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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CATEDRAL DO MAR - P.2 / Ildefonso Falcones
A CATEDRAL DO MAR - P.2 / Ildefonso Falcones

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

 

 

Finais de Março de 1348 , Barcelona

Despontava a madrugada e Arnau e os bastaixos esperavam na praia a descarga de uma galera maiorquina que tinha arribado ao porto durante a noite. Os próceres da confraria ordenavam as suas gentes. O mar estava calmo e as ondas lambiam a praia com delicadeza, chamando os cidadãos de Barcelona a iniciarem a jornada. O sol começava a desenhar faixas de cores no sítio onde as águas ondulavam, e os bastaixos, enquanto esperavam a chegada dos barqueiros com as mercadorias, deixavam-se levar pelo encanto do momento, com o olhar perdido no horizonte e o espírito dançando com o mar.

— Que estranho — disse alguém no grupo. — Não descarregam.

Todos fixaram a atenção na galera. Os barqueiros tinham-se aproximado da embarcação e alguns deles regressavam à praia vazios; outros falavam aos gritos com os marinheiros na coberta, alguns dos quais se lançavam à água e se empoleiravam nas barcas. Mas ninguém descarregava fardos da galera.

— A peste! — Os gritos dos primeiros barqueiros ouviram-se na praia muito antes de as barcas arribarem. — A peste chegou a Maiorca!

Arnau sentiu um calafrio. Era possível que aquele mar tão belo lhes trouxesse uma tal notícia? Um dia cinzento, de temporal, talvez... mas naquela manhã tudo parecia mágico. Durante meses, esse fora o tema de conversa dos barceloneses: a peste assolava o Oriente distante, estendera-se para ocidente e devastava comunidades inteiras.

— Talvez não chegue a Barcelona — diziam alguns. — Tem de atravessar todo o Mediterrâneo.

— O mar há-de proteger-nos — afirmavam outros. Durante meses, o povo quis acreditar nisto: a peste não chegaria a Barcelona.

Maiorca, pensou Arnau. Já tinha chegado a Maiorca; a praga cruzara léguas e léguas de Mediterrâneo.

— A peste! — repetiam os barqueiros ao arribar à praia. Os bastaixos rodearam-nos, para ouvirem que notícias traziam. Numa das barcas vinha o piloto da galera.

— Levem-me ao regedor e aos conselheiros da cidade — ordenou, depois de saltar para a rebentação. — Rápido!

Os próceres atenderam à solicitação do piloto; os restantes assediaram os recém-chegados. «Morrem às centenas», contavam. «É horrível. Ninguém pode fazer nada. Crianças, mulheres e homens, ricos ou pobres, nobres ou humildes... Até os animais são pasto para a praga. Os cadáveres amon-toam-se nas ruas e apodrecem, e as autoridades não sabem 0 que fazer. As pessoas morrem em menos de dois dias, entre espantosos gritos de dor.» Alguns bastaixos correram em direcção à cidade, dando vozes e criando espavento. Arnau escutava, encolhido. Diziam que aos doentes com peste apareciam grandes bolhas purulentas no pescoço, nas axilas e nas virilhas, e que estas cresciam até rebentar.

A notícia espalhou-se pela cidade e muitos foram os que se aproximaram do grupo da praia para ouvirem por algum tempo e regressarem a correr a suas casas.

Barcelona inteira tornou-se um ninho de rumores: «Quando as bolhas se abrem, saem demónios. Os doentes enlouquecem e mordem as pessoas; é assim que se transmite a doença. Os olhos e os órgãos genitais rebentam. Se alguém olha para as bolhas, fica contagiado. É preciso queimá-los antes de morrerem, porque, senão, a doença ataca outra pessoa. Eu vi a peste!» Qualquer pessoa que iniciasse a sua conversa com estas palavras era imediatamente objecto de atenção e as pessoas apinhavam-se à sua volta para ouvir a sua história; depois, o horror e a imaginação multiplicavam-se nas bocas dos cidadãos que ignoravam aquilo que os esperava. O município, como única precaução, ordenou a máxima higiene, e as pessoas acorreram aos banhos públicos... e às igrejas. Missas, ofertórios, procissões: tudo era pouco para afastar o perigo que se aproximava da cidade condal; e, ao fim de um mês de agonia, a peste chegou a Barcelona.

Primeiro, foi um calafete que trabalhava nos estaleiros. Os médicos correram a vê-lo, mas a única coisa que puderam fazer foi confirmar aquilo que tinham lido em tratados e livros.

— São do tamanho de pequenas ameixas — disse um, apontando para as grandes bolhas que havia no pescoço do homem.

— Negras, duras e quentes — acrescentou outro, tocando-lhes.

— Panos de água fria para a febre.

— E preciso sangrá-lo. Se o sangrarmos, desaparecem as hemorragias em redor das bolhas.

— Temos de lancetar as bolhas — aconselhou um terceiro.

Os outros médicos deixaram o doente e olharam para o que tinha falado.

— Os livros dizem que não se devem lancetar — atalhou um deles.

— No fim de contas — disse outro —, é apenas um calafate. Vejamos as axilas e as virilhas.

Também aí havia grandes bolhas negras, duras e quentes. Entre gritos de dor, o doente foi sangrado e a pouca vida que lhe restava esvaiu-se pelos golpes que os galenos fizeram no seu corpo.

Nesse mesmo dia apareceram novos casos. No dia seguinte, mais; e depois, ainda mais. Os barceloneses fecharam-se nas suas casas, onde alguns morriam por entre sofrimentos terríveis; outros, por medo do contágio, eram deixados nas ruas, onde agonizavam até que a morte os levasse. As autoridades deram ordens para se marcar com uma cruz de cal as portas das casas onde se tivesse havido algum caso de peste. Insistiram na higiene corporal, em que se evitasse o contacto com os contagiados, e ordenaram que os cadáveres fossem queimados em grandes piras. Os cidadãos esfregaram a pele até quase a arrancarem, e os que podiam mantiveram-se afastados dos doentes. No entanto, ninguém tentou fazer o mesmo com as pulgas e, para estranheza dos médicos e das autoridades, a doença continuou a propagar-se.

Passaram-se semanas e Arnau e Maria, como muitas outras pessoas, continuaram a ir diariamente a Santa Maria para insistirem em preces a que o céu não correspondia. À sua volta, morriam, devido à epidemia, amigos tão queridos como o bom padre Albert. A peste assanhou-se contra os idosos Pere e Mariona, que não tardaram a morrer às mãos da funesta praga. O próprio bispo organizou uma procissão de prece que deveria percorrer todo o perímetro da cidade; sairia da catedral e desceria pela Rua de la Mar até Santa Maria, onde se lhe juntaria a Virgem de la Mar no seu andor, antes de seguir o trajecto previsto.

A Virgem esperava na Praça de Santa Maria, junto com os bastaixos que a haveriam de carregar. Os homens olhavam uns para os outros, enquanto se perguntavam em silêncio acerca dos bastaixos ausentes. Ninguém respondia. Fechavam os lábios e baixavam os olhos. Arnau recordou-se das grandes procissões em que tinham transportado a sua padroeira, em que lutavam por se aproximar do andor. Os próceres tinham de impor a ordem e estabelecer turnos para que todos pudessem carregar o andor da Virgem, e agora... não eram suficientes nem para... levantá-lo. Tinham morrido assim tantos? Quanto tempo duraria aquilo, Senhora? O rumor das preces do povo desceu pela Rua de la Mar. Arnau olhou para a frente da procissão: as pessoas andavam cabisbaixas e arrastando os pés. Onde estavam os nobres que, com tanto barulho, se juntavam sempre ao bispo? Quatro dos cinco conselheiros da cidade tinham morrido; três quartas partes dos membros do Conselho dos Cem tiveram igual sorte. Os restantes tinham fugido da cidade. Os bastaixos ergueram em silêncio a sua Virgem, carregaram-na aos ombros, deixaram passar o bispo e juntaram-se à procissão e às preces. De Santa Maria, continuaram até ao convento de Santa Clara, passando pela Praça do Born. Em Santa Clara, e apesar do incenso dos sacerdotes, foram assaltados pelo odor a carne queimada; muitos substituíram as orações pelo pranto. Por alturas da porta de San Daniel, viraram para a esquerda, em direcção à Porta Nou e ao mosteiro de Sant Pere de les Puelles; avistaram um ou outro cadáver e evitaram olhar para os doentes que esperavam a morte nas esquinas ou diante das portas marcadas com uma cruz branca, que nunca voltariam a abrir-se para eles. Senhora, pensou Arnau, com o andor sobre os ombros, porquê tanta desgraça? De Sant Pere, seguiram, rezando, até à Porta de Santa Anna, onde voltaram a virar à esquerda, em direcção ao mar, até ao bairro do Forn deis Ares, para se dirigirem de novo para a catedral.

Mas o povo começou a duvidar da eficácia da Igreja e das suas autoridades; rezavam até à exaustão e a peste continuava a fazer estragos.

— Dizem que é o fim do mundo — lamentou-se Arnau um dia, ao chegar a casa. — Barcelona inteira está enlouquecida. Andam uns aí que se dizem flagelantes — Maria estava de costas para ele. Arnau sentou-se, à espera que a mulher o descalçasse, e continuou a falar. — Andam pelas ruas às centenas, em tronco nu, gritando que se aproxima o dia do Juízo Final, confessam os seus pecados aos quatro ventos e flagelam as costas com látegos. Alguns têm as costas em carne viva e continuam... — Arnau acariciou a cabeça de Maria, ajoelhada diante dele. Ardia. — O que...

Procurou o queixo da sua mulher com a mão. Não podia ser. Ela não. Maria ergueu uns olhos vítreos para ele. Suava e tinha o rosto congestionado. Arnau tentou levantar-lhe mais a cabeça, para lhe ver o pescoço, mas ela fez um gesto de dor.

— Tu não! — exclamou Arnau.

Maria, ajoelhada, com as mãos nas sandálias do marido, olhou fixamente para Arnau, enquanto as lágrimas começavam a correr-lhe pelo rosto.

— Oh, meu Deus! Tu, não! Meu Deus! — Arnau ajoelhou-se junto dela.

— Vai-te embora, Arnau — balbuciou Maria. — Não fiques ao pé de mim.

Arnau tentou abraçá-la, mas ao agarrá-la pelos ombros, Maria tornou a fazer um esgar de dor.

— Vem — disse-lhe, abraçando-a o mais suavemente que pôde. Maria, soluçando, tornou a insistir que ele se fosse embora. — Como poderia eu deixar-te? És tudo o que eu tenho... tudo o que eu tenho! Que faria eu sem ti? Alguns curam-se, Maria. Tu também te hás-de curar. — Tentando consolá-la, levou-a para a alcova e deitou-a na cama. Aí, conseguiu ver-lhe o pescoço, um pescoço que recordava bonito, e que agora começava a enegrecer. — Um médico! — gritou, abrindo a janela e assomando para a rua.

Ninguém pareceu ouvi-lo. No entanto, nessa mesma noite, quando as bolhas começaram a apossar-se do pescoço de Maria, alguém marcou a sua porta com uma cruz de cal.

Arnau só pôde pôr panos molhados em água fria sobre a testa de Maria. Derreada na cama, a mulher tiritava. Incapaz de se mexer sem sofrer dores terríveis, os seus surdos queixumes faziam os pêlos de Arnau ficar em pé. Maria tinha o olhar perdido no tecto. Arnau via como lhe cresciam as bolhas no pescoço e como a pele se tornava mais negra. «Amo-te, Maria. Quantas vezes quis dizer-to?» Agarrou-lhe na mão e ajoelhou-se junto da cama. Assim passou a noite, agarrado à mão da mulher, tremendo e suando com ela, clamando aos céus a cada espasmo que Maria sofria.

Amortalhou-a com o melhor lençol que tinham e esperou que passasse a carreta dos mortos. Não a deixaria na rua. Ele mesmo a entregaria aos funcionários. E assim fez. Quando ouviu o lento bater dos cascos do cavalo, pegou no cadáver de Maria e desceu à rua.

— Adeus — disse-lhe, beijando-a na testa. Os dois funcionários, enluvados e com os rostos tapados por panos grossos, olharam surpreendidos enquanto Arnau destapava a cara de Maria e a beijava. Ninguém queria aproximar-se dos doentes, nem mesmo sendo os seus entes queridos, que abandonavam nas ruas, ou, no melhor dos casos, chamavam-nos a eles para recolherem os mortos dos leitos onde tinham encontrado a morte. Arnau entregou a sua mulher aos funcionários, que, impressionados, tentaram depositá-la com cuidado sobre a dezena de cadáveres que já transportavam.

Com lágrimas nos olhos, Arnau viu a carreta a afastar-se, até se perder nas ruas de Barcelona. Ele seria o próximo: entrou em casa e sentou-se à espera da morte, desejoso de se reunir a Maria. Três dias inteiros esteve Arnau a aguardar a chegada da peste, apalpando constantemente o pescoço em busca de algum inchaço que não chegava. As bolhas não apareceram e Arnau acabou por convencer-se de que, de momento, o Senhor não o chamava para seu lado, para perto da sua mulher.

Arnau caminhou pela praia, pisando as ondas que se aproximavam da cidade maldita; vagueou por Barcelona, alheio à miséria, aos doentes e aos soluços que saíam pelas janelas das casas. Qualquer coisa o fez regressar a Santa Maria. As obras tinham sido interrompidas, os andaimes estavam desertos, as pedras descansavam no chão, à espera de que alguém as cinzelasse, mas as pessoas continuavam a ir à igreja. Entrou. Os fiéis congregavam-se em redor do inacabado altar-mor, de pé ou ajoelhados no chão, rezando. Apesar de a igreja ainda se encontrar aberta ao céu nas absides em construção, o ambiente estava carregado pelo incenso que se queimava para aplacar os odores de morte que acompanhavam as pessoas. Quando ia a aproximar-se da sua Virgem, um sacerdote dirigiu-se aos paroquianos do altar-mor.

— Sabei — disse-lhes — que o nosso Sumo Pontífice, o Papa Clemente VI, emitiu uma bula em que inocenta os judeus de serem os causadores da praga. A doença é apenas uma pestilência com que Deus aflige o povo cristão. — Um murmúrio de desaprovação elevou-se entre os congregados. — Rezai — continuou o sacerdote —, encomendai-vos ao Senhor...

Muitos deles abandonaram Santa Maria, discutindo em altos gritos.

Arnau não prestou atenção ao sermão e dirigiu-se para a capela do Altíssimo. Os judeus? Que tinham os judeus a ver com a peste? A sua pequena Virgem esperava-o no mesmo sítio de sempre. Os círios dos hastaixos continuavam a acompanhá-la. Quem os teria acendido? No entanto, Arnau mal conseguia vislumbrar a sua mãe; uma espessa nuvem de incenso fazia um remoinho à volta da figura. Não a viu sorrir. Quis rezar, mas não pôde. «Porque permitiste isto, mãe?» As lágrimas voltaram a correr-lhe pela cara ao recordar Maria, o sofrimento dela, o corpo dela abandonado à dor, as bolhas que a tinham assolado. Fora um castigo, mas era ele quem o merecia, fora ele quem pecara, sendo infiel com Aledis.

E ali, diante da Virgem, jurou que nunca voltaria a deixar-se levar pela luxúria. Devia isso a Maria. Acontecesse o que acontecesse. Nunca.

— Passa-se alguma coisa contigo, filho? — ouviu perguntarem-lhe. Arnau virou-se e encontrou o sacerdote que desde há pouco estava a dirigir a paróquia. — Olá, Arnau — saudou depois de ver que era um dos hastaixos que acorriam a Santa Maria. — Passa-se alguma coisa contigo? — repetiu.

— Maria.

O sacerdote anuiu com a cabeça.

— Rezemos por ela — instou-o.

— Não, padre — opôs-se Arnau. — Ainda não.

— Só em Deus podemos encontrar consolo, Arnau. Consolo? Como ia ele encontrar consolo no que quer que fosse? Arnau tentou ver a sua Virgem, mas o fumo tornou a impedir-lho.

— Rezemos... — insistiu o sacerdote.

— Que significa isso dos judeus? — interrompeu-o Arnau, em busca de uma saída.

— Toda a Europa crê que a peste se deve aos judeus — Arnau interrogou-o com o olhar. — Dizem que em Genebra, no castelo de Chillon, alguns judeus confessaram que a peste foi espalhada por um judeu de Sabóia que envenenava os poços com uma poção preparada pelos rabinos.

— E isso é verdade? — perguntou-lhe Arnau.

— Não. O papa inocentou-os, mas as pessoas procuram culpados. Rezamos agora?

— Fazei-o vós por mim, padre.

Arnau abandonou Santa Maria. Na praça, viu-se rodeado por um grupo de cerca de vinte flagelantes. «Arrepende-te», gritavam, sem parar de flagelar as costas com os látegos. «É o fim do mundo!», gritavam outros, cuspindo-lhe as palavras na cara. Arnau viu o sangue que lhes escorria pelas costas em carne viva e lhes escorria pelas pernas, despidas abaixo da cintura e abraçadas por cilícios. Observou os olhos esbugalhados e os rostos que o olhavam. Fugiu a correr para a Rua de Monteada, até que os gritos se desvaneceram. Ali reinava o silêncio... mas havia algo. As portas! Poucos dos grandes portões de acesso aos palácios da Rua de Monteada mostravam a cruz branca que estigmatizava a maioria das portas da cidade. Arnau viu-se diante do palácio dos Puig. Também este não tinha a cruz branca; as janelas estavam fechadas e não se notava qualquer actividade dentro do edifício. Desejou que a peste os encontrasse onde quer que se tivessem refugiado, que sofressem como .a sua Maria tinha sofrido. Arnau fugiu dali com mais pressa ainda do que fugira dos flagelantes.

Quando chegou ao cruzamento da Rua de Monteada, Arnau voltou a encontrar-se com uma multidão exaltada, neste caso provida de paus, espadas e balestras. Estão todos loucos, pensou Arnau, afastando-se para dar passagem às pessoas. De pouco tinham servido os sermões que se estavam a pronunciar por todas as igrejas da cidade. A bula de Clemente VI não conseguira apaziguar os ânimos de um povo que precisava de descarregar a sua ira. «A judiaria!», ouviu gritarem. «Hereges! Assassinos! Arrependam-se!» Os flagelantes também ali estavam e continuavam a castigar-se nas costas, salpicando tudo de sangue e exaltando todos os que os rodeavam.

Arnau colocou-se na cauda da horda, junto daqueles que a seguiam em silêncio, e entre os quais conseguiu ver um ou outro doente. Toda a Barcelona confluiu na judiaria e rodeou por todos os lados o bairro semi-amuralhado. Uns colocaram-se a norte, junto ao palácio do bispo; outros, a poente, em frente às antigas muralhas romanas da cidade; outros colocaram-se na Rua de Bisbe, com a qual a judiaria confinava a oriente, e os restantes, entre os quais o grupo onde se encontrava Arnau, a sul, na Rua da Boquería e em frente ao Castell Nou, onde se encontrava a entrada do bairro. A gritaria era ensurdecedora. O povo clamava por vingança, embora por enquanto se limitasse a gritar diante das portas, mostrando os paus e as balestras.

Arnau conseguiu arranjar um local na apinhada escadaria da igreja de Sant Jaume, a mesma de onde os tinham escorraçado, a ele e a Joanet, num dia já longínquo, quando procurava aquela Virgem a quem chamaria mãe. Sant Jaume erguia-se mesmo em frente à muralha sul da judiaria e, daí, por cima de toda aquela gente, Arnau pôde ver o que se estava a passar. A guarnição de soldados reais, capitaneada pelo regedor, estava preparada para defender a judiaria. Antes de atacar, uma comitiva de cidadãos aproximou-se para parlamentar com o regedor, junto à porta entreaberta da judiaria, para que ele retirasse as tropas do interior; os flagelantes gritavam e dançavam em volta do grupo e a multidão continuava a ameaçar os judeus, que nem sequer conseguia ver.

— Não se retirarão — ouviu Arnau dizer a uma mulher.

— Os judeus são propriedade do rei, só dependem do rei — concordou outro. — Se os judeus morrerem, o rei perderá os impostos que lhes cobra...

— Isso e todos os créditos que pede a esses usurários.

— E não só isso — interveio um terceiro. — Se se assaltar a judiaria, o rei perderá até os móveis que os judeus lhe emprestam, a ele e à sua corte, quando vem a Barcelona.

— Os nobres terão de dormir no chão — ouviu-se gritar por entre gargalhadas. Arnau não conseguiu evitar um sorriso.

— O regedor defenderá os interesses do rei — disse a mulher.

E assim foi. O regedor não cedeu e, quando se deram por terminadas as conversações, fechou-se apressadamente no interior da judiaria. Aquele era o sinal que as pessoas esperavam, e antes que ele tivesse conseguido fechar a porta, os mais próximos das muralhas lançaram-se contra ela, ao mesmo tempo que uma chuva de paus, flechas e pedras começava a voar por cima das muralhas do bairro judaico. O assalto começara.

Arnau viu como uma turba de cidadãos, cegos pelo ódio, se lançava sem ordem nem coordenação contra as portas e muralhas da judiaria. Não havia nenhum comando; o mais parecido com uma ordem eram os gritos dos fiagelantes que continuavam a torturar-se ao pé das muralhas e que incitavam os cidadãos a trepá-las e a assassinar os hereges. Muitos caíram sob as espadas dos soldados do rei assim que conseguiram chegar ao cimo das muralhas, mas a judiaria estava a ser alvo de um assalto maciço pelos seus quatro lados, e muitos outros conseguiram passar pelos soldados e enfrentar-se corpo-a-corpo com os judeus.

Arnau permaneceu nas escadarias de Sant Jaume por duas horas. Os gritos de guerra dos combatentes recordaram-lhe os seus dias de soldado: Bellaguarda e Castell-Rosselló. Os rostos dos que caíam confundiam-se com os dos homens a quem um dia dera a morte; o cheiro a sangue levava-o ao Rossilhão, à mentira que o levara àquela guerra absurda, a Aledis, a Maria... e abandonou o seu local de espectador, de onde seguira a matança.

Andou em direcção ao mar pensando em Maria e no que o levara a refugiar-se na guerra. Os seus pensamentos viram-se bruscamente interrompidos. Estava próximo do Castell de Regomir, bastião da antiga muralha romana, quando uns gritos muito perto o obrigaram a regressar à realidade.

— Hereges!

— Assassinos!

Arnau deu com uma vintena de pessoas armadas com paus e facas que ocupava toda a rua e que gritava para algumas pessoas que deviam estar encostadas à fachada de uma das casas. Porque não se limitavam a chorar os seus mortos? Não parou, e dispôs-se a atravessar o grupo de exaltados para continuar o seu caminho. Enquanto os afastava aos empurrões, desviou por instantes o olhar para o local que aquela gente cercava: na ombreira da porta de uma casa, um escravo mouro, ensanguentado, tentava proteger com o corpo três crianças vestidas de preto com a rodela amarela ao peito. Arnau viu-se de imediato entre o mouro e os agressores. Fez-se silêncio e as crianças espreitaram com as suas caritas assustadas. Arnau olhou para elas; lamentava não ter dado filhos a Maria. Uma pedra voou em direcção a uma daquelas cabecinhas e roçou por Arnau. O mouro pôs-se no seu caminho; a pedrada bateu-lhe no estômago e fê-lo dobrar-se de dor. O pequeno rosto olhou directamente para Arnau. A sua mulher adorava crianças; tanto se lhe dava que fossem cristãs, mouras ou judias. Seguia-as com o olhar, na praia, nas ruas... Os seus olhos perseguiam-nos e depois olhavam para ele...

— Afasta-te! Sai daí — ouviu Arnau atrás de si. Arnau olhou para aqueles pequenos olhos assustados.

— Que querem fazer a estas crianças? — perguntou. Vários homens, armados com facas, enfrentaram-no.

— São judeus — responderam-lhe em uníssono.

— E só por isso vão matá-las? Não estão já satisfeitos com os pais delas?

— Envenenaram os poços — respondeu um. — Mataram Jesus. Matam as crianças cristãs para os seus rituais hereges. Sim, arrancam-lhes o coração... Roubam as hóstias sagradas.

Arnau já nem ouvia. Continuava a sentir o cheiro do sangue da judiaria... e o cheiro de Castell-Rosselló. Agarrou pelo braço o homem que lhe estava mais próximo e bateu-lhe na cara ao mesmo tempo que lhe sacava a faca e o voltava para os restantes.

— Ninguém fará mal a estas crianças!

Os atacantes viram como Arnau empunhava a faca, como a movia em círculos na sua direcção, como os olhava.

— Ninguém fará mal a estas crianças — repetiu. — Vão lutar para a judiaria, contra os soldados, contra os homens.

— Matá-los-ão — ouviu o mouro dizer atrás de si.

— Herege! — gritaram-lhe os do grupo. —Judeu!

Tinham-lhe ensinado a atacar primeiro, a apanhar desprevenido o inimigo, a não permitir que o seu oponente ganhasse vantagem, a assustá-lo. Arnau lançou-se à facada contra os mais próximos, com um grito de «Sant Jordi!». Cravou o punhal no ventre do primeiro e rodou sobre si próprio, o que obrigou os que se preparavam para se lançar sobre ele a retroceder. O punhal rasgou o peito de um outro. Caído no chão, um dos atacantes apunhalou-o na perna. Arnau olhou para ele, agarrou-o pelos cabelos, inclinou-lhe a cabeça para trás e degolou-o. O sangue jorrou em borbotões. Três homens jaziam no chão e os restantes começaram a afastar-se. «Foge quando estiveres em desvantagem», tinham-lhe aconselhado. Arnau fez menção de se voltar a lançar sobre eles e aquela gente começou a tropeçar enquanto tentava afastar-se dele. Com a mão esquerda, sem olhar para trás, instou o mouro a aproximar-se e, quando notou o tremer das crianças agarradas às suas pernas, começou a andar em direcção ao mar, de costas, sem perder os agressores de vista.

— Estão à vossa espera na judiaria — gritou para os assaltantes enquanto continuava a empurrar as crianças.

Alcançaram a antiga Porta do Castell de Regomir e começaram a correr. Arnau, sem mais explicações, impediu que as crianças se dirigissem para a judiaria.

Onde poderia esconder as crianças? Arnau conduziu-os até Santa Maria e estacou em seco diante da entrada principal. De onde estavam, através da obra inacabada, conseguia-se ver o interior.

— Não... Não pretende meter as crianças numa igreja cristã? — perguntou-lhe, receoso, o escravo.

— Não — respondeu Arnau. — Mas muito perto dela.

— Porque não nos deixou regressar às nossas casas? — perguntou por sua vez uma rapariga, em todos os aspectos a mais velha dos três, e muito mais folgada que os outros depois da corrida.

Arnau apalpou a perna. O sangue jorrava abundantemente.

— Porque as vossas casas estão a ser atacadas pelo povo — respondeu-lhe. — Culpam-vos pela peste. Dizem que vocês envenenaram os poços. — Ninguém respondeu nada. — Lamento — acrescentou Arnau.

O escravo muçulmano foi o primeiro a reagir:

— Não podemos ficar aqui — disse, obrigando Arnau a parar de examinar o estado da sua perna. — Faça o que achar conveniente, mas esconda as crianças.

— E tu? — inquiriu Arnau.

— Tenho de me inteirar do que aconteceu com as famílias deles. Como poderei encontrar-vos?

— Não poderás — respondeu Arnau, pensando que naquele momento não podia mostrar-lhe o caminho para o cemitério romano.

— Eu encontrar-te-ei a ti. Vem à meia-noite à praia, em frente à peixaria nova. — O escravo anuiu; quando iam a separar-se, Arnau acrescentou: — Se ao fim de três noites não tiveres aparecido, tomar-te-ei por morto.

O muçulmano assentiu de novo e olhou para Arnau com os seus grandes olhos pretos.

— Obrigado — disse-lhe, antes de começar a correr na direcção da judiaria.

A mais pequena das crianças tentou seguir o mouro, mas Arnau segurou-a pelos ombros.

Nessa primeira noite, o muçulmano não compareceu ao encontro. Arnau ficou à espera dele por mais de uma hora depois da meia-noite; ouvia o rumor distante dos tumultos na judiaria e observava a noite, tingida de vermelho pelos incêndios. Durante a espera, teve tempo para pensar em tudo o que se passara durante aquele dia tresloucado. Tinha três crianças judias escondidas num antigo cemitério romano, debaixo do altar-mor de Santa Maria, debaixo da sua própria Virgem. A entrada para o cemitério, que nos seus tempos de juventude descobrira com Joanet, continuava igual desde a última vez que lá tinham estado. Ainda não tinha sido construída a escada da porta do Born, e os estrados de madeira tinham-lhes permitido o acesso fácil; no entanto, os guardas que vigiavam o templo, e que tinham estado a rondar durante quase uma hora pela rua, tinham-nos obrigado a esperar agachados e em silêncio pela oportunidade para se esgueirarem por debaixo das tábuas.

As crianças seguiram-no sem reclamar, até que, depois de percorrerem o túnel, na escuridão, Arnau os avisou de que não deviam tocar em nada se não queriam ter uma surpresa desagradável. Então, as três crianças começaram a chorar desconsoladamente e Arnau não soube como responder àquele pranto. De certeza que Maria teria sabido acalmá-las.

— São apenas mortos — gritou-lhes —, e nem sequer de peste. Que preferem? Estar aqui, vivos junto dos mortos, ou lá fora, para que vos matem? — Os prantos pararam. — Agora vou voltar a sair para ir buscar uma vela, água e alguma comida. De acordo? De acordo? — repetiu perante o silêncio das crianças.

— De acordo — ouviu responder a rapariga.

— Vamos lá ver: arrisquei a minha vida por vocês, e ainda vou continuar a arriscá-la se alguém descobrir que tenho três crianças judias escondidas debaixo da igreja de Santa Maria. Não estou disposto a fazer isso se, quando regressar, descobrir que vocês desapareceram. Que dizem? Esperam-me aqui, ou preferem voltar para as ruas?

— Esperaremos aqui — respondeu, decidida, a rapariga.

Arnau foi recebido por uma casa vazia. Lavou-se e tratou da perna. Ligou a ferida. Encheu de água a sua velha bexiga, pegou numa lamparina e em óleo para a carregar, num pão duro e carne salgada, e regressou a correr para Santa Maria.

As crianças não se tinham mexido e continuavam no fim do túnel, onde as tinha deixado. Arnau acendeu a lamparina e viu três criaturinhas assustadas que não corresponderam ao sorriso com que tentou acalmá-las. A rapariga abraçava os outros dois. Eram todos morenos, com os cabelos longos e limpos, saudáveis, com os dentes brancos como a neve, sobretudo a rapariga.

— São irmãos? — lembrou-se de perguntar.

— Nós somos irmãos — respondeu de novo a rapariga, apontando para o mais pequeno. — Ele é nosso vizinho.

— Bom, creio que depois de tudo o que se passou e do que ainda temos pela frente, deveríamos apresentar-nos. Chamo-me Arnau.

A rapariga fez as honras: ela chamava-se Raquel, o irmão chamava-se Jucef, e o vizinho, Saúl. Arnau continuou a interrogá-los à luz da lamparina, enquanto as crianças lançavam olhares fugazes para o interior do cemitério. Tinham treze, seis e onze anos. Tinham nascido em Barcelona e viviam com os seus pais na judiaria, para onde regressavam quando tinham sido atacados pelos selvagens de quem Arnau os tinha defendido. O escravo, a quem sempre tinham tratado por Sahat, era propriedade dos pais de Raquel e Jucef, e se tinha dito que viria ao encontro na praia, tinham a certeza de que o faria; nunca lhes tinha faltado.

— Muito bem — disse Arnau, depois das explicações julgo que valerá a pena darmos uma olhadela por este local.

Há muito tempo, desde que eu tinha mais ou menos a vossa idade, que não vinha aqui, embora me pareça que ninguém aqui se mexeu. — Só ele se riu. De joelhos, moveu-se até ao centro da gruta, iluminando o interior. As crianças permaneceram agachadas onde estavam, olhando com horror para as tumbas abertas e para os esqueletos. — Isto foi o melhor de que me consegui lembrar — justificou-se ao perceber as expressões de pânico das crianças. — Aqui, de certeza que ninguém vos encontrará enquanto esperamos que tudo se acalme...

— E que vai ser de nós se matarem os nossos pais? — interrompeu-o Raquel.

— Não penses nisso. Certamente que não lhes acontecerá nada. Olhem, venham cá. Há aqui um espaço sem túmulos, e é suficientemente grande para cabermos todos. Vamos! — teve de insistir, chamando-os com gestos.

Por fim, conseguiu que as crianças se lhe reunissem num espaço que lhes permitia sentarem-se no chão sem tocarem em nenhum túmulo. O antigo cemitério romano continuava igual desde a primeira vez que o vira, com as suas estranhas tumbas de telhas em forma de pirâmides alongadas e com as grandes ânforas com cadáveres no interior. Arnau colocou a lamparina em cima de uma delas e ofereceu-lhes de beber, o pão e a carne salgada. Todos beberam com avidez, mas para comer apenas aceitaram o pão.

— Não é kosher — desculpou-se Raquel, apontando para a carne salgada.

— Kosher?

Raquel explicou-lhe o que significava kosher e os ritos que se deviam seguir para que os membros da comunidade judaica pudessem comer carne, e continuaram a conversar até que os dois rapazinhos caíram rendidos ao sono sobre o colo da rapariga. Então, sussurrando para não os acordar, a rapariga perguntou-lhe:

— E tu, não acreditas no que dizem por aí?

— Em quê?

— Que envenenámos os poços.

Arnau demorou alguns instantes a responder.

— Algum judeu morreu com a peste? — perguntou.

— Muitos.

— Nesse caso, não — afirmou. — Não acredito. Quando Raquel adormeceu, Arnau rastejou pelo túnel e dirigiu-se para a praia.

O ataque à judiaria prolongou-se por dois dias, durante os quais as escassas forças reais, juntamente com membros da comunidade judaica, tentaram defender o bairro dos constantes assaltos a que era submetido por um povo enlouquecido e fanatizado que, em nome da Cristandade, desfraldava a bandeira do saque e do linchamento. Por fim, o rei enviou tropas suficientes e a situação começou a regressar à normalidade.

Na terceira noite, Sahat, que tinha estado a lutar ao lado dos seus amos, conseguiu escapar-se para se encontrar com Arnau na praia da cidade, diante da peixaria, conforme tinham combinado.

— Sahat! — ouviu na noite.

— Que fazes tu aqui? — perguntou o escravo a Raquel, que correu para ele.

— O cristão está muito doente.

— Não será...

— Não — interrompeu-o a rapariga. — Não é peste. Não tem bolhas. É a perna dele. A ferida infectou e tem muita febre. Não consegue andar.

— E os outros? — perguntou o escravo.

— Estão bem. E...

— Estão à vossa espera.

Raquel conduziu o mouro até às tábuas da porta do

Born de Santa Maria.

— Aqui? — perguntou o escravo quando a rapariga se meteu por baixo das tábuas.

— Silêncio — respondeu ela. — Segue-me. Deslizaram os dois pelo túnel até ao cemitério romano.

Todos tiveram de ajudar a levar Arnau dali; Sahat rastejando para trás, puxando-o pelas mãos, e as crianças empurrando-o pelos pés. Arnau desmaiara. Os cinco, com Arnau aos ombros do escravo e as crianças disfarçadas de cristãs com roupas que Sahat tinha trazido, tomaram o caminho para a judiaria, tentando, mesmo assim, caminhar pelas sombras. Quando chegaram diante das portas da judiaria, vigiadas por um forte contingente de soldados do rei, Sahat explicou ao oficial de guarda a verdadeira identidade das crianças e a razão por que não traziam a rodela amarela. Quanto a Arnau, sim, era um cristão com febre que precisava da atenção de um médico, tal como o oficial podia comprovar, e efectivamente fez, embora afastando-se imediatamente, não fora dar-se o caso de ser um doente com peste. No entanto, o que verdadeiramente lhes abriu as portas da judiaria foi a generosa bolsa que o escravo deixou cair nas mãos do oficial do rei enquanto falava com ele.

 

«Ninguém fará mal a estas crianças... Pai, onde estás? Porquê, pai? Há cereais no palácio... Amo-te, Maria...» Quando Arnau começava a delirar, Sahat obrigava as crianças a saírem do quarto e mandava chamar Hasdai, o pai de Raquel e de Jucef, para que o ajudasse a imobilizá-lo, caso Arnau começasse a lutar com os soldados do Rossilhão e se lhe abrisse de novo a ferida na perna. Amo e escravo vigiavam-no ao lado da cama, enquanto outra escrava lhe punha compressas frias na testa. Assim estava havia uma semana, durante a qual recebeu os melhores cuidados dos médicos judeus e a atenção constante da família Crescas e dos seus escravos, e em especial de Sahat, que velava o doente dia e noite.

— A ferida não tem grande importância — diagnosticaram os médicos —, mas a infecção afecta todo o corpo.

— Sobreviverá? — perguntou Hasdai.

— É um homem forte — limitaram-se a responder os médicos, antes de saírem de casa.

— Há trigo no palácio! — tornou a gritar Arnau, transpirado pela febre, ao fim de alguns minutos.

— Se não fosse ele — disse Sahat —, estaríamos todos mortos.

— Bem sei — respondeu Hasdai, de pé ao lado dele.

— Porque o terá feito? É um cristão.

— É uma boa pessoa.

De noite, quando Arnau descansava e a casa ficava em silêncio, Sahat virava-se para a direcção sagrada e ajoelhava-se a rezar pelo cristão. Durante o dia, obrigava-o pacientemente a beber água e a engolir as poções que os médicos tinham preparado. Raquel e Jucef apareciam frequentemente e Sahat permitia-lhes que entrassem, se Arnau não estivesse a delirar.

— É um guerreiro — afirmou uma vez Jucef, com os olhos muito abertos.

— Certamente que o foi, sim — respondeu Sahat.

— Disse-me que era bastaix — corrigiu Raquel.

— No cemitério disse-nos que era um guerreiro. Quando muito, será um bastaix guerreiro.

— Disse-te isso para te calares.

— Eu apostaria que é um bastaix — interveio Hasdai. — Tendo em conta o que diz.

— É um guerreiro — insistiu a criança mais pequena.

— Não sei, Jucef. — O escravo passou-lhe os dedos pelos cabelos negros. — Porque não esperamos que se cure e depois ele mesmo nos conte?

— Será que se vai curar?

— Certamente. Já alguma vez viste um guerreiro morrer por causa de uma ferida numa perna?

Quando as crianças saíam, Sahat aproximava-se de Arnau e tocava-lhe na testa, que continuava a arder. «Não são só as crianças que continuam vivas graças a ti, cristão. Porque o fizeste? O que te levou a arriscar a tua vida por um escravo e três crianças judias? Vive. Tens de viver. Quero falar contigo, agradecer-te. Além disso, Hasdai é muito rico e há-de recompensar-te, certamente.»

Alguns dias mais tarde, Arnau começou a recuperar Uma manhã, Sahat encontrou-o sensivelmente menos quente.

— Alá, louvado seja o seu nome, ouviu-me. — Hasdai sorriu quando verificou as melhoras pessoalmente.

— Viverá — atreveu-se a assegurar aos filhos.

— Vai contar-me as suas batalhas?

— Filho, não creio...

Mas Jucef começou a imitar Arnau, movendo o punhal freneticamente diante de um grupo imaginário de agressores. No momento em que ia para degolar um homem caído, a irmã agarrou-lhe o braço.

—Jucef! — gritou-lhe.

Quando se voltaram para o doente, deram com os olhos abertos de Arnau. Jucef recompôs-se.

— Como te sentes? — perguntou Hasdai.

Arnau tentou responder, mas tinha a boca seca. Sahat aproximou-se com um copo de água.

— Estou bem — conseguiu dizer, depois de beber. — E as crianças?

Jucef e Raquel aproximaram-se da cabeceira da cama, empurrados pelo pai. Arnau esboçou um sorriso.

— Olá — disse Arnau.

— Olá — responderam as crianças.

— E o Saul?

— Está bem — respondeu Hasdai —, mas agora tens de descansar. Vamos, meninos.

— Quando estiveres bem, contas-me as tuas batalhas? — perguntou-lhe Jucef antes que o pai e a irmã o levassem do quarto.

Arnau anuiu e tentou esboçar um sorriso.

Ao longo da semana seguinte a febre baixou por completo e a ferida começou a fechar. Arnau e Sahat conversaram sempre que o bastaix se sentiu com forças para o fazer.

— Obrigado — foi a primeira coisa que disse ao escravo.

— Já me agradeceste, lembraste? Mas porquê... Porque fizeste isto?

— Os olhos daquelas crianças... a minha mulher nunca o teria permitido...

— Maria? — perguntou Sahat lembrando-se dos delírios de Arnau.

— Sim — respondeu Arnau.

— Queres que a avisemos de que estás aqui?

Arnau cerrou os lábios com firmeza e negou com a cabeça.

— Há alguém que queiras que avisemos?

O escravo não insistiu mais, ao ver a expressão que ensombrava o rosto de Arnau.

— Como terminou o cerco? — perguntou Arnau, noutra ocasião, a Sahat.

— Duzentos homens e mulheres assassinados. Muitas casas saqueadas ou incendiadas.

— Que desastre!

— Não tanto assim — corrigiu-o Sahat. Arnau olhou para ele, surpreendido. — A judiaria de Barcelona teve sorte. Do Oriente até Castela, os judeus foram assassinados sem piedade. Mais de trezentas comunidades ficaram totalmente destruídas. Na Alemanha, o próprio imperador Carlos IV prometeu conceder o perdão a qualquer delinquente que assassinasse um judeu ou destruísse uma judiaria. Imaginas o que se teria passado em Barcelona se o vosso rei, em vez de proteger a judiaria, tivesse perdoado a todos os que matassem algum judeu? — Arnau fechou os olhos e negou com a cabeça. — Em Mainz, queimaram na fogueira seis mil judeus, e em Estrasburgo imolaram em massa dois mil, numa imensa pira no cemitério judaico, incluindo mulheres e crianças. Dois mil de uma só vez...

As crianças só podiam entrar no quarto de Arnau quando Hasdai ia visitar o doente e podia assegurar-se de que as crianças não o incomodavam. Um dia, quando Arnau já começava a levantar-se da cama e a dar os primeiros passos, Hasdai apareceu sozinho. O judeu, alto e magro, com o cabelo negro, comprido e liso, o olhar penetrante e o nariz adunco, sentou-se à frente dele.

— Deves saber... — disse com voz grave — suponho que já sabes — corrigiu — que os teus sacerdotes proíbem a coabitação entre cristãos e judeus.

— Não te preocupes, Hasdai. Assim que eu possa andar...

— Não — interrompeu-o o judeu. — Não estou a dizer-te que tenhas de sair da minha casa. Salvaste os meus filhos de uma morte certa, arriscando a tua própria vida. Tudo o que tenho é teu, e ficarei agradecido para sempre. Podes ficar nesta casa o tempo que quiseres. A minha família e eu próprio sentir-nos-íamos muito honrados se assim o fizesses. A única coisa que queria fazer era avisar-te, sobretudo se decidires ficar, de que temos de manter a máxima discrição. Ninguém saberá pelos meus, e neles incluo toda a comunidade judaica, que vives em minha casa; por isso podes estar descansado. A decisão é tua e insisto em que nos sentiríamos muito honrados e felizes se decidisses ficar connosco. Que me respondes?

- Quem contaria ao teu filho as minhas batalhas?

Hasdai sorriu e deu-lhe uma mão, que Arnau apertou.

Castell-Rosselló era uma fortaleza impressionante... O pequeno Jucef sentava-se em frente a Arnau, no chão do jardim das traseiras dos Crescas, com as pernas cruzadas e os olhos muito abertos, e saboreava uma e outra vez as histórias de guerra do bastaix, atento ao cerco, inquieto nas contendas, sorridente na vitória.

— Os defensores lutaram com valor — contava-lhe —, mas os soldados do rei Pedro foram superiores...

Quando terminava, Jucef insistia para que repetisse outra das suas histórias. Arnau contava-lhe tanto relatos verdadeiros como inventados. «Eu só ataquei dois castelos», esteve a ponto de lhe confessar. «Nos restantes dias de guerra, limi-támo-nos a saquear e a destruir quintas e colheitas... excepto as figueiras.»

— Gostas de figos, Jucef? — perguntou-lhe certa vez, relembrando os troncos retorcidos que se erguiam no meio da destruição total.

— Já chega, Jucef — advertiu-o o pai, que acabava de chegar ao jardim, perante a insistência do pequeno em que lhe contasse outra batalha. — Vai dormir — Jucef, obediente, despediu-se do pai e de Arnau. — Porque lhe perguntaste se gosta de figos?

— É uma longa história.

Sem dizer uma palavra, Hasdai sentou-se em frente a ele numa cadeira. «Conta-me», disse-lhe com o olhar.

— Arrasámos com tudo... — confessou Arnau depois de me relatar brevemente os antecedentes —, excepto com as figueiras. Absurdo, não é verdade? Deixávamos os campos arrasados e, no meio deles, por entre tanta destruição, uma solitária figueira olhava-nos, perguntando-nos o que estávamos a fazer.

Arnau perdeu-se nas suas recordações e Hasdai não se atreveu a interrompê-lo.

— Foi uma guerra sem sentido — acrescentou por fim o bastaix.

— No ano seguinte — disse Hasdai —, o rei recuperou o Rossilhão. Jaime de Maiorca ajoelhou-se de cabeça descoberta diante dele e rendeu os seus exércitos. Talvez essa primeira guerra em que estiveste tenha servido para...

— Para matar de fome os camponeses, as crianças e os mais humildes — interrompeu-o Arnau. — Talvez tenha servido para que o exército de Jaime ficasse sem provisões, mas para isso tiveram de morrer muitas pessoas humildes, garanto-te. Nada mais somos do que joguetes nas mãos dos nobres. Decidem sobre os seus assuntos sem se importar quantas mortes ou quanta miséria podem trazer aos restantes.

Hasdai suspirou.

— Se eu te contasse, Arnau... Nós somos propriedade real, somos do rei...

— Eu fui para a guerra para lutar e acabei a queimar as colheitas dos mais pobres.

Os dois homens ficaram pensativos durante alguns instantes.

— Bem! — exclamou Arnau, rompendo o silêncio. — Já sabes o porquê da história das figueiras.

Hasdai levantou-se e deu uma palmada a Arnau no ombro. Depois convidou-o a entrar em casa.

— Refrescou — disse-lhe, olhando para o céu.

Quando Jucef os deixava a sós, Arnau e Raquel costumavam conversar no pequeno jardim dos Crescas. Não falavam da guerra; Arnau contava-lhe coisas da sua vida de bastaix e de Santa Maria.

— Nós não acreditamos em Jesus Cristo como sendo o Messias; o Messias ainda não chegou e o povo judeu aguarda a sua chegada — contou-lhe, certa vez, Raquel.

— Dizem que vocês o mataram.

— Não é verdade! — respondeu a rapariga, afogueada. — A nós é que sempre nos mataram e nos expulsaram de onde quer que estejamos!

— Dizem — insistiu Arnau — que na Páscoa sacrificam uma criança cristã e que comem o coração e os membros para cumprir com os vossos rituais.

Raquel negou com a cabeça.

— Isso é uma tolice! Tu próprio já viste que nós não podemos comer carne que não seja kosher e que a nossa religião nos proíbe de ingerir sangue; que havíamos nós de fazer com um coração de uma criança, com os seus braços ou as suas pernas? Tu já conheces o meu pai e o pai de Saul. Acha-los capazes de comer o coração de uma criança?

— E a hóstia? — perguntou. — Dizem também que vocês as roubam para as torturar e fazer reviver o sofrimento de Jesus Cristo.

Raquel gesticulou com as mãos.

— Nós, judeus, não acreditamos na transub... — fez um gesto de contrariedade. Encalhava sempre naquela palavra quando falava com o pai! — Transubstanciação — repetiu de um jacto.

— Na quê?

— Na transubs... tanciação. Para vocês, isso significa que Jesus Cristo está na hóstia, que a hóstia é realmente o corpo de Cristo. Nós não acreditamos nisso. Para os judeus, a vossa hóstia não passa de um pedaço de pão. Seria bastante absurdo da nossa parte torturarmos um simples pedaço de pão.

— Então, nada daquilo de que são acusados é verdade?

— Nada.

Arnau queria acreditar em Raquel. A rapariga olhava-o com os olhos muito abertos, implorando-lhe que arredasse da mente os preconceitos com que os cristãos difamavam a sua comunidade e as suas crenças.

— Mas são usurários. Isso é que não podem negar. Raquel ia para responder quando ouviram a voz do pai da rapariga.

— Não. Não somos usurários — interveio Hasdai Crescas, aproximando-se deles e sentando-se junto da filha. — Pelo menos, não o somos tanto assim como dizem. — Arnau ficou calado, à espera de uma explicação. — Repara, até há pouco mais de um século, no ano de 1230, os cristãos também emprestavam dinheiro a juros. Tanto os judeus como os cristãos o faziam, mas um decreto do vosso Papa Gregório IX proibiu aos cristãos que emprestassem a juros e, a partir daí, só os judeus e algumas outras comunidades, como os lombardos, puderam continuar a praticar essa actividade. Durante mil e duzentos anos, os cristãos emprestaram dinheiro a juros. Há pouco mais de cem anos é que deixaram de o fazer, pelo menos oficialmente — Hasdai sublinhou a palavra —, e afinal, nós é que somos usurários.

— Oficialmente?

— Sim, oficialmente. Há muitos cristãos que emprestam dinheiro a juros por nosso intermédio. Mas, seja como for, deixa-me expiicar-te por que razão o fazemos. Em todas as épocas e em todos os lugares, nós, judeus, sempre dependemos directamente do rei. Ao longo dos tempos, a nossa comunidade foi expulsa de muitos países; foi-o até da sua própria terra, depois do Egipto, mais tarde, em 1183, de França, e pouco depois, em 1290, de Inglaterra. As comunidades judaicas tiveram de emigrar de um país para outro, deixar para trás todos os seus haveres e suplicar aos reis dos países para onde se dirigiam que lhes dessem permissão para se estabelecerem. Em resposta, os reis, tal como acontece com os vossos, costumam assenhorear-se da comunidade judaica e exigem-lhe grandes contribuições para as suas guerras e as suas despesas. Se não obtivéssemos lucros através do nosso dinheiro não poderíamos cumprir as extravagantes exigências dos vossos reis, e tornaríamos a ser expulsos de onde nos encontrássemos.

— Mas vocês não emprestam dinheiro apenas aos reis

— insistiu Arnau.

— Pois não. É verdade. E sabes porquê? — Arnau fez que não com a cabeça. — Porque os reis nunca reembolsam os seus empréstimos; muito pelo contrário, pedem-nos mais e mais empréstimos para as suas guerras e as suas despesas. A algum lado temos de ir buscar o dinheiro para lhes emprestar, ou mesmo para contribuir gratuitamente, sem que se trate sequer de um empréstimo.

— E não se podem negar a fazê-lo?

— Mandar-nos-iam embora ou... o que seria pior, não nos defenderiam dos cristãos, como fizeram há uns dias. Morreríamos todos. — Desta vez, Arnau anuiu com a cabeça em silêncio, diante do olhar satisfeito de Raquel, que via como o pai conseguia convencer o bastaix. Ele mesmo vira os encolerizados barceloneses clamando contra os judeus. - Seja como for, repara que também não emprestamos dinheiro aos cristãos que não sejam mercadores ou que não tenham por ofício comprar e vender. Há quase cem anos que o vosso rei Jaime, o Conquistador, promulgou um usatge segundo o qual qualquer escrito de levantamento ou de depósito efectuado por um cambista judeu a alguém que não seja mercador se considera falso e simulado pelos judeus, pelo que não podemos agir contra aqueles que não forem mercadores. Não podemos lançar escritas de levantamento ou depósito a alguém que não seja mercador, uma vez que nunca cobraríamos aos devedores.

— E que diferença há?

— Toda a diferença, Arnau, toda. Vocês, cristãos, orgulham-se de não emprestar dinheiro a juros, seguindo as ordens da vossa Igreja, e é certo que não o fazem, pelo menos às claras. No entanto, fazem o mesmo, mas dão-lhe outro nome. Repara: até que a Igreja impediu os empréstimos a juros entre cristãos, os negócios funcionaram da mesma forma como agora entre judeus e mercadores: havia cristãos com muito dinheiro que emprestavam a outros cristãos, mercadores, e a quem estes devolviam o capital com juros.

— E que aconteceu quando foi proibido o empréstimo a juros?

— Pois foi muito simples: como sempre, vocês, cristãos, deram a volta à norma da Igreja. Era evidente que nenhum cristão que tivesse dinheiro o iria emprestar a outro sem obter algum benefício de volta, como se pretendia. Para isso, ficava antes com o dinheiro e não corria risco nenhum. Então, os cristãos inventaram um negócio que se chama comanda. Já ouviste falar dele?

- Sim — reconheceu Arnau. — No porto fala-se muito das comandas sempre que chega um navio com mercadorias, mas a verdade é que nunca percebi o que era.

— É muito simples, na verdade. A comanda não é mais do que um empréstimo com juros... disfarçado. Há um comerciante, um cambista, em geral, que entrega dinheiro a um mercador para que compre ou venda uma mercadoria. Quando o mercador fecha o negócio, tem de devolver ao cambista a mesma quantia que recebeu, mais uma parte dos ganhos. É o mesmo que um empréstimo a juros, mas chamado de outra maneira: comanda. O cristão que entrega esse dinheiro obtém um benefício pelo seu dinheiro, que é o que a Igreja proíbe: a obtenção de lucros por causa do dinheiro e não pelo trabalho do homem. Os cristãos continuam a fazer exactamente o mesmo que faziam há cem anos, antes de serem proibidos os juros, só que com outro nome. O resultado é que se nós emprestamos dinheiro para um negócio, somos usurários, mas se for um cristão a fazê-lo através de uma comanda, já não o é.

— Não há nenhuma diferença?

— Apenas uma: nas comandas, aquele que entregou o dinheiro corre o mesmo risco do negócio, isto é, se o mercador perde a mercadoria ou não regressa, por exemplo por ter sido assaltado por piratas durante uma travessia marítima, aquele que tiver entrado com dinheiro perde-o. Isso não aconteceria com um empréstimo, pois o mercador continuada a estar obrigado a devolver o dinheiro com juros, mas na prática acaba por ser o mesmo, porque o mercador que perdeu a sua mercadoria não nos paga, e no fim de tudo, nós, judeus, temos de nos acomodar às práticas comerciais habituais: os mercadores querem comandas em que não corram o risco e nós temos de as fazer porque, caso contrário, não conseguiríamos lucros para cumprirmos com os vossos reis, Percebeste?

— Nós, cristãos, não emprestamos a juros, mas o resultado é o mesmo, através das comandas — comentou Arnau para consigo.

— Exacto. O que a vossa Igreja tenta proibir não é o juro em si mesmo, mas a obtenção de um benefício pelo dinheiro, e não pelo trabalho, e isso desde que os empréstimos não sejam feitos a reis, nobres ou cavaleiros, naquilo a que se chama empréstimos baratos, porque um cristão pode emprestar dinheiro aos reis, nobres ou cavaleiros com juros; a Igreja pressupõe que esses empréstimos se destinam à guerra e considera válido o juro.

— Mas essa prática só é levada a cabo por cambistas cristãos — argumentou Arnau. —Não se pode julgar todos os cristãos por aquilo que esses fazem...

— Não te enganes, Arnau — avisou-o Hasdai, sorrindo e gesticulando com as mãos. — Os cambistas recebem em depósito o dinheiro dos cristãos e com esse dinheiro contratam comandas, cujos benefícios depois têm de pagar àqueles cristãos que lhes entregaram o seu dinheiro. Os cambistas dão a cara, mas o dinheiro é dos cristãos, de todos aqueles que o depositam nas mesas de câmbio. Arnau, há uma coisa que nunca mudará na História: aquele que tem dinheiro, quer ter mais ainda; nunca o oferece, nem nunca o fará. Se os vossos bispos não o fazem, porque o haviam de fazer os seus fiéis? Chame-se-lhe empréstimo, chame-se-lhe comanda, chame-se-lhe o que se quiser, o certo é que as pessoas nunca dão nada; no entanto, os únicos usurários somos nós.

Enquanto conversavam, chegou a noite, uma noite mediterrânica, estrelada e plácida. Durante uns momentos, os três ficaram em silêncio, desfrutando a paz e a tranquilidade aue se respirava no pequeno jardim das traseiras da casa de Hasdai Crescas. Por fim, chamaram-nos para o jantar e, pela primeira vez desde que estava alojado com aqueles judeus, Arnau viu-os como pessoas iguais a ele, com outras crenças, mas boas, tão boas e tão caridosas como podiam ser os mais santos de entre os cristãos. Nessa noite, sem qualquer reserva, desfrutou dos sabores da cozinha judaica acompanhado por Hasdai à mesa e servido pelas mulheres da casa.

 

O tempo ia passando e a situação começava a tornar-se incómoda para todos. As notícias que chegavam sobre a peste eram animadoras: cada vez apareciam menos casos. Arnau precisava de regressar a casa. Na noite anterior à partida, Arnau e Hasdai juntaram-se no jardim. Tentaram conversar amistosamente, de coisas simples, mas a noite sabia a despedida e, entre uma frase e outra, evitavam olhar-se.

— Sahat é teu — anunciou subitamente Hasdai, entregando-lhe a documentação que o corroborava.

— Para que quero um escravo? Nem sequer poderei alimentar-me a mim próprio até que o comércio marítimo recupere, como vou eu dar de comer a um escravo? A confraria não permite que os escravos trabalhem. Não preciso de Sahat.

— Sim, vais precisar dele — respondeu Hasdai, sorrindo. — Ele está em dívida contigo. Desde que nasceram Raquel e Jucef, Sahat encarregou-se de cuidar deles como se fossem seus próprios filhos, e asseguro-te que os adora como tal. Nem Sahat nem eu poderemos alguma vez pagar-te o que fizeste por eles. Pensámos que a melhor forma de te compensar por essa dívida seria facilitando-te a vida. Para isso, precisarás de Sahat, e ele está disposto a isso.

— Facilitar-me a vida?

— Ambos te ajudaremos a tornares-te rico. Arnau devolveu o sorriso ao seu ainda anfitrião.

— Sou apenas um bastaix. As riquezas são para os nobres e os mercadores.

— Serão também para ti. Eu disponibilizarei os meios para que assim seja. Se agires com prudência e seguindo as instruções de Sahat, não tenho dúvidas de que chegarás a ser rico. — Arnau olhou para ele, à espera de explicações. — Como deves saber — prosseguiu Hasdai —, a peste está a recuar; os casos começam a ser isolados, mas as consequências da praga foram terríveis. Ninguém sabe exactamente quantas pessoas morreram em Barcelona, mas o que se sabe é que dos cinco conselheiros, quatro morreram. E isso pode ser terrível. Bem, vamos ao assunto: muitos dos mortos eram cambistas que exerciam a sua profissão em Barcelona. Sei-o, porque colaborava com eles e agora já cá não estão. Creio que, se estiveres interessado, poderás dedicar-te ao negócio do câmbio...

— Não sei nada de negócios, nem de câmbios — interrompeu-o Arnau. — Todos os mestres de ofícios precisam de passar por uma prova. Eu não sei nada de tudo isso.

— Os cambistas ainda não — respondeu Hasdai. — Sei que já foi pedida ao rei uma regulamentação, mas ele ainda não a criou. A profissão de cambista é livre, desde que assegures a tua mesa. Quanto à sabedoria, Sahat tem a bastante. Ele sabe absolutamente tudo sobre as mesas de câmbio. Há muitos anos que colabora no meu negócio. Comprei-o porque era um especialista em transacções desse tipo. Se o deixares fazer tudo, aprenderás e prosperarás sem problemas. Apesar de ser escravo, é um homem de toda a confiança e deve-te lealdade por aquilo que fizeste pelos meus filhos, únicas pessoas que ele ama, pois para ele são a sua família. — Hasdai interrogou Arnau com os olhos semicerrados. —-E então?

— Não sei... — hesitou Arnau.

— Contarás com a minha ajuda e a de todos os judeus que conhecem a tua história. Somos um povo agradecido, Arnau. Sahat conhece todos os meus correspondentes ao longo do Mediterrâneo, na Europa e mesmo para lá do Oriente, nas terras distantes do sultão do Egipto. Contarás com uma grande base para empreender o negócio, e nós mesmos te ajudaremos de início. É uma boa proposta, Arnau. Não terás nenhum problema.

O céptico consentimento de Arnau pôs em marcha toda a maquinaria que Hasdai já tinha preparada. Primeira regra: ninguém devia saber que Arnau contava com o apoio dos judeus; isso jogaria contra ele. Hasdai entregou-lhe documentos que provavam que todo o dinheiro que utilizasse provinha de uma viúva cristã de Perpingnan, e formalmente assim era.

— Se alguém te perguntar — disse-lhe —, não respondas, mas se te vires forçado a isso, diz que herdaste. Vais precisar de muito dinheiro — continuou. — Em primeiro lugar, terás de assegurar a tua mesa de câmbio perante os magistrados de Barcelona, constituindo uma fiança no valor de mil marcos de prata; depois, terás de comprar uma casa, ou os direitos de uma casa, no bairro dos cambistas, seja na Rua de Canvis Vells ou na de Canvis Nous, e acomodá-la para exerceres a tua profissão; por fim, terás de reunir mais dinheiro, para começares a trabalhar.

Cambista! E porque não? Que lhe restava da sua antiga vida? Todos os que lhe tinham sido queridos tinham morrido por causa da peste. Hasdai parecia convencido de que, com a ajuda de Sahat, a mesa funcionaria. Nem sequer conseguia imaginar como seria a vida de um cambista; ficaria rico, assegurara-lhe Hasdai. Que faziam os ricos? De repente, lembrou-se de Grau, o único rico que tinha conhecido, e sentiu um vazio no estômago. Não. Ele nunca seria como Grau.

Assegurou a sua mesa de câmbio com os mil marcos de prata que Hasdai lhe entregou e jurou diante do magistrado que denunciaria a moeda falsa — interrogando-se sobre como ia ele reconhecê-la se algum dia lhe faltasse Sahat — e que a quebraria mediante umas cisalhas especiais que todo o cambista tinha de ter. Legalizou com a assinatura do magistrado os enormes livros de contas que dariam fé das suas operações e, num momento em que Barcelona se via mergulhada no caos que se seguira à praga da peste bubónica, recebeu a sua autorização para exercer como cambista e foram fixadas as horas em que obrigatoriamente teria de estar em frente ao seu estabelecimento.

A segunda regra que Hasdai o aconselhou a seguir foi relativa a Sahat:

— Ninguém deve saber que é uma oferta minha. Sahat é muito conhecido entre os cambistas, e se alguém descobre, tens problemas. Como cristão, podes fazer negócios com os judeus, mas evita que comecem a chamar-te amigo de judeus. Há outro problema relativamente a Sahat que tens de saber: poucos profissionais do câmbio perceberiam que eu o vendesse. Tive centenas de ofertas por ele, cada uma mais tentadora que a outra, e sempre me neguei, tanto por causa da competência dele como por causa do amor dele pelos meus filhos. Eles não perceberiam. Por isso, pensámos que se Sahat se convertesse ao cristianismo...

— Converter-se? — interrompeu Arnau.

— Sim. Nós, judeus, não podemos ter escravos cristãos. Se algum dos nossos escravos se converte, temos de libertá-lo ou vendê-lo a outro cristão.

— E os restantes cambistas acreditariam nessa conversão?

— Uma epidemia de peste é capaz de minar qualquer fé.

— E Sahat está disposto a esse sacrifício?

— Está.

Tinham falado disso, não como senhor e escravo, mas como os dois amigos em que tinham acabado por se vir a tornar, com o passar dos anos.

— Serias capaz? — perguntara-lhe Hasdai.

— Sim — respondera Sahat. — Alá, que o seu nome seja glorificado e louvado, saberá compreender. Bem sabes que a prática da nossa fé está proibida em terras cristãs. Cumprimos com as nossas obrigações em segredo, na intimidade dos nossos corações. Assim continuará a ser, por mais água-benta que me deitem por cima da cabeça.

— Arnau é um cristão devoto — insistiu Hasdai. — Se sabe disso...

— Nunca o saberá. Nós, escravos, mais do que ninguém sabemos a arte da hipocrisia. Não, não falo por ti, mas fui escravo onde quer que tenha estado. Frequentemente, as nossas vidas dependem disso.

A terceira regra ficou em segredo entre Sahat e Hasdai.

— Nem preciso de te dizer, Sahat — disse-lhe o seu antigo senhor, com a voz trémula —, a gratidão que sinto pela tua decisão. Os meus filhos e eu agradecer-te-emos para sempre.

— Eu é que devo agradecer-vos.

__Suponho que sabes para onde deves concentrar os teus esforços nesta altura...

— Creio que sim.

— Nada de especiarias. Nada de tecidos, óleos ou ceras - aconselhou-o Hasdai, enquanto Sahat anuía com a cabeça recebendo as instruções que já previra. — Até que a situação volte a estabilizar, a Catalunha não estará preparada para assumir de novo essas importações. Escravos, Sahat, escravos. Depois da peste, a Catalunha precisa de mão-de-obra. Até agora, nunca nos tínhamos dedicado muito ao negócio dos escravos. Encontrá-los-ás em Bizâncio, na Palestina, em Rodes e em Chipre. E evidentemente também no mercado da Sicília. Consta-me que na Sicília se vendem muitos turcos e tártaros. Mas eu seria partidário de utilizar os seus lugares de origem; em todos eles temos correspondentes a quem podes recorrer. Em muito pouco tempo, o teu novo senhor amontoará uma fortuna considerável.

— E se ele se negar ao comércio de escravos? Não parece ser pessoa para...

— Ele é boa pessoa — interrompeu-o Hasdai, confirmando as suas suspeitas —, escrupuloso, de origens humildes e muito generoso. Poderia acontecer que se negasse a entrar no comércio de escravos. Não os tragas para Barcelona. Que Arnau não os veja. Leva-os directamente para Perpingnan, para Tarragona ou para Salou, ou limita-te a vendê-los em Maiorca. Maiorca tem um dos mercados de escravos mais importantes do Mediterrâneo. Deixa que outros os tragam para Barcelona ou que façam comércio com eles onde quiserem. Castela também está muito necessitada de escravos. Em todo o caso, até que Arnau se aperceba de como as coisas funcionam decorrerá tempo suficiente para ganhar bastante dinheiro. Eu propor-lhe-ia, e assim lhe vou dizer pessoalmente, que ao princípio se dedicasse a conhecer bem as moedas, os câmbios, os mercados, as rotas e os principais objectos de exportação ou importação. Entretanto, tu podes dedicar-te aos teus afazeres, Sahat. Lembra-te que não somos mais espertos que os outros e que todo aquele que tenha dinheiro vai importar escravos. Vai ser uma temporada muito lucrativa, mas curta. Até que o mercado se esgote, porque há-de esgotar-se, aproveita.

— Conto com a tua ajuda?

— Toda. Dar-te-ei cartas para todos os meus correspondentes, que já conheces. Dar-te-ão todo o crédito de que precises.

— E os livros? Terão de lá constar os escravos e Arnau poderá vê-los.

Hasdai dirigiu-lhe um sorriso de cumplicidade.

— Tenho a certeza de que também saberás resolver esse pequeno pormenor.

 

— Esta! — Arnau apontou para uma pequena casa de dois andares, fechada e com uma cruz branca na porta. Sahat, já rebaptizado como Guillem, ao seu lado, assentiu. — Sim? — perguntou Arnau.

Guillem tornou a assentir, desta vez com um sorriso nos lábios.

Arnau olhou para a casita e abanou a cabeça. Limitara-se a apontar para ela e Guillem consentira. Era a primeira vez na sua vida que os seus desejos se cumpriam de forma tão simples. Seria sempre assim, a partir dali? Voltou a abanar a cabeça.

— Passa-se alguma coisa, meu senhor? — Arnau olhou para ele zangado. Quantas vezes lhe tinha já dito que não queria que o tratasse por senhor? Mas o mouro negara-se; respondia que deviam guardar as aparências. Guillem devolveu o olhar. — Por acaso não te agrada, meu senhor? — acrescentou.

— Sim... claro que me agrada. É adequada?

— Claro que sim. Não podia ser melhor. Olha — disse-lhe, apontando —, está mesmo na esquina entre as duas ruas dos cambistas: Canvis Nous e Canvis Vells. Que melhor casa que esta arranjarias?

Arnau olhou para onde Guillem apontava. Canvis Vells chegava até ao mar, à esquerda de onde se encontravam;Canvis Nous abria-se diante deles. Mas Arnau não a escolhera por causa disso; nem sequer se tinha dado conta de que aquelas ruas eram as dos cambistas, apesar de ter andado por elas centenas de vezes. A casinha erguia-se no limite da Praça de Santa Maria, em frente ao que iria ser o portão maior do templo.

— Bom presságio — murmurou para si próprio.

— Que dizes, senhor?

Arnau voltou-se bruscamente para Guillem. Não suportava que se lhe dirigisse usando aquela palavra.

— Que aparências temos de guardar agora? — disparou. — Ninguém nos está a ouvir. Ninguém está a olhar para nós.

— Lembra-te que desde que te tornaste cambista, muita gente te ouve e muita gente te observa, mesmo que não te apercebas. Tens de te acostumar a isso.

Nessa mesma manhã, enquanto Arnau se perdia na praia, por entre os barcos, olhando para o mar, Guillem investigou a propriedade da casinha que, como era de esperar, pertencia à Igreja. Os enfiteutas tinham morrido e quem melhor que um cambista para a ocupar de novo?

A tarde, entraram na casa. O andar superior tinha três pequenos quartos, e mobilaram dois, um para cada um. O andar de baixo era composto por uma cozinha, com saída para aquilo que devia ter sido uma pequena horta e, separada dela por um tabique, com vista para a rua, um quarto diáfano em que, durante os dias seguintes, Guillem instalou um armário, várias lamparinas de óleo e uma mesa de madeira nobre, comprida, com duas cadeiras atrás e quatro à frente.

— Falta qualquer coisa — disse Guillem um dia; depois saiu de casa.

Arnau ficou sozinho no que seria a sua mesa de câmbio. A longa mesa de madeira reluzia; Arnau tinha-a limpo uma e outra vez. Passou os dedos pelos espaldares das duas cadeiras.

— Escolhe o lugar que desejares — disse-lhe Guillem.

Arnau escolheu a da direita, à esquerda dos futuros clientes. Então, Guillem mudou as cadeiras: à direita colocou uma cadeira de braços, forrada a seda vermelha; a correspondente ao mouro era simples. Arnau sentou-se na sua cadeira e observou a sala vazia. Que estranho! Ainda havia poucos meses dedicava-se a descarregar barcos, e agora... Nunca se tinha sentado numa cadeira como aquela! Num extremo da mesa, em desordem, estavam os livros; de pergaminhos que não rasgassem, dissera-lhe Guillem quando os tinham comprado. Também tinham comprado penas, tinteiros, uma balança, vários cofres para o dinheiro e uma grande cisalha para cortar a moeda falsa.

Guillem tirou dinheiro da sua bolsa, mais do que Arnau tinha alguma vez visto em toda a sua vida.

— Quem paga tudo isto? — perguntou a certa altura.

— Tu.

Arnau abriu os olhos e olhou para a bolsa que pendia do cinto de Guillem.

— Queres ficar com ela? — ofereceu-se Guillem.

— Não — respondeu.

Para além dos objectos que tinham adquirido, Guillem trouxera um seu: um belo ábaco com uma moldura de madeira e contas de marfim, que Hasdai lhe tinha oferecido. Arnau pegou no ábaco e moveu as contas de um lado para outro. Que lhe dissera Guillem? Primeiro mexera as contas com rapidez, calculando e calculando. Arnau pedira-lhe que o fizesse mais lentamente e o mouro, obediente, tentara ex-plicar-lhe o funcionamento, mas... como era que lhe tinha explicado?

Deixou o ábaco e dedicou-se a pôr ordem na mesa. Os livros em frente à sua cadeira... não, em frente à de Guillem. Era melhor que fosse ele a fazer as anotações. Os cofres, esses sim, podia pô-los ao seu lado; a cisalha um pouco mais afastada e as penas e os tinteiros junto dos livros, bem como o ábaco. Quem havia de usá-lo, senão Sahat?

Estava nisto, quando Guillem entrou.

— Que te parece? — perguntou-lhe Arnau, sorridente, estendendo uma mão por cima da mesa.

— Muito bem — respondeu-lhe Guillem, devolvendo o sorriso —, mas assim não vamos conseguir ter nenhum cliente, e muito menos que alguém nos confie o seu dinheiro. — O sorriso de Arnau desfez-se no mesmo instante. — Não te preocupes, é só porque faltava isto. Foi o que fui comprar.

Guillem entregou-lhe um pano que Arnau desenrolou com cuidado. Tratava-se de uma toalha de caríssima seda vermelha, com franjas douradas nas pontas.

— Isto — disse-lhe o escravo — é o que está a faltar em cima da mesa. É o sinal público de que cumpriste com todos os requisitos que as autoridades exigem e de que tens a tua mesa convenientemente assegurada perante o magistrado municipal, no valor de mil marcos de prata. Ninguém, sob pesadas penas, pode colocar o tapete sobre uma mesa de câmbio se não possuir a autorização municipal. Por isso, se não a puseres na tua mesa, ninguém entrará aqui, nem vira depositar o seu dinheiro.

A partir desse dia, Arnau e Guillem dedicaram-se por completo ao seu novo negócio e, tal como aconselhara Hasdai Crescas, o antigo bastaix mergulhou na aprendizagem dos rudimentos da sua profissão.

— A primeira função de um cambista — disse-lhe Guillem, enquanto estavam sentados ambos do mesmo lado da mesa, com o canto do olho colocado na porta, para verem se alguém se decidia a entrar — é a do câmbio manual da moeda.

Guillem levantou-se da mesa, rodeou-a, parou diante de Arnau e depositou uma bolsa de dinheiro à frente dele.

— Agora, repara bem — disse-lhe, pegando numa moeda da bolsa e pondo-a sobre a mesa. — Conheces esta? — Arnau assentiu. — É um croat de prata catalão. São cunhadas em Barcelona, a poucos passos daqui...

— Poucas tive na minha bolsa — interrompeu-o Arnau —, mas estou cansado de as carregar às costas. Pelos vistos, o rei só confia nos bastaixos para transportá-las.

Guillem anuiu, sorrindo, e meteu de novo a mão na bolsa.

— Esta — continuou, pegando noutra moeda e pondo-a ao lado do croat — é um florim aragonês de ouro.

— Dessas nunca tive nenhuma — disse Arnau, pegando no florim.

— Não te preocupes, terás muitas — Arnau olhou para Guillem nos olhos e o mouro confirmou com seriedade. — Este é um antigo dinheiro barcelonês de tern — Guillem pôs outra moeda sobre a mesa e, antes que Arnau voltasse a interrompê-lo, continuou a tirar moedas. — Mas no comércio movimentam-se muitas outras moedas — disse —, e deves conhecê-las a todas. As muçulmanas: besantes, masmudinas rexedis, besantes de ouro — Guillem foi colocando todas as moedas em fila, à frente de Arnau. — Os torneses franceses; as dobras de ouro castelhanas; os florins de ouro cunhados em Florença; os genoveses, cunhados em Génova; os ducados venezianos; a moeda marselhesa, e as restantes moedas catalãs: o real maiorquino ou valenciano, o gros de Montpellier, os melgurienses dos Pirenéus Orientais e a jaquesa, cunhada em Jaca e utilizada principalmente em Lérida.

— Virgem Santa! — exclamou Arnau, quando o mouro parou.

— Tens de as conhecer todas — insistiu Guillem. Arnau percorreu a fila de moedas com o olhar, uma e outra vez. Depois, suspirou.

— Há mais? — perguntou, erguendo os olhos para Guillem.

— Sim, muitas mais, mas estas são as mais habituais.

— E como é que se cambiam? Desta vez, foi o mouro quem suspirou.

— Isso é mais complicado — Arnau fez-lhe sinal que continuasse. — Bom, para se fazer o câmbio usam-se as unidades de conta; as libras e os marcos para as grandes transacções; os dinheiros e os soldos para o uso corrente. — Arnau assentiu; ele sempre falara de soldos ou dinheiros, independentemente da moeda que os representasse, embora em geral fosse sempre a mesma. — Quando tens uma moeda, é preciso calcular-lhe o valor segundo a unidade de conta e depois fazer o mesmo com aquela pela qual queres trocá-la.

Arnau tentava seguir as explicações do mouro.

- E esses valores...

- São fixados periodicamente na câmara de comércio de Barcelona, no Consulado de la Mar. É preciso ir lá para se ver qual é o câmbio oficial.

— Varia? — Arnau abanou a cabeça. Não conhecia aquelas moedas, ignorava como se faziam os câmbios, e ainda por cima o câmbio variava!

— Constantemente — respondeu-lhe Guillem. — E é preciso dominar os câmbios; é aí que está o maior benefício dos cambistas. Já verás. Um dos maiores negócios é a compra e venda de dinheiro...

— Comprar dinheiro?

— Sim. Comprar... ou vender dinheiro. Comprar prata com ouro ou ouro com prata, jogando com as muitas moedas que existem; aqui, em Barcelona, se o câmbio for bom, ou no estrangeiro, se por acaso o câmbio for melhor lá.

Arnau gesticulou com ambas as mãos, em sinal de impotência.

— Na realidade, é bastante simples — insistiu Guillem. — Verás. Na Catalunha é o rei quem fixa a paridade entre o florim de ouro e o croat de prata, e o rei disse que é de treze para um; um florim de ouro vale treze croats de prata. Mas em Florença, em Veneza ou em Alexandria, o que o rei diz não lhes importa, e o ouro que um florim contém não vale treze vezes a prata contida num croat. Aqui, o rei fixa a paridade por motivos políticos; lá, pesam o ouro e a prata que as moedas contêm e fixam-lhe o valor. Ou seja, se uma pessoa juntar croats de prata e os vender lá fora, obterá mais ouro do que lhe dariam aqui na Catalunha pelos mesmos croats. E se depois regressar aqui com esse ouro, voltarão a dar-lhe treze croats de prata por cada florim de ouro.

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— Mas isso... toda a gente o poderia fazer — objectou Arnau.

— E assim fazem... Todos os que podem. Quem tem dez ou cem croats não o faz. Fazem-no os que contam com muita gente disposta a entregar-lhes esses dez ou cem croats — Olharam um para o outro. — Esses somos nós — concluiu, abrindo as mãos.

Algum tempo depois, quando Arnau já dominava as moedas e controlava os câmbios, Guillem começou a falar-lhe das rotas e das mercadorias.

— Hoje em dia, a principal — disse-lhe — é a que vai por Cândia até Chipre, daí até Beirute e daí até Damasco ou Alexandria... Mas o papa proibiu o comércio com Alexandria.

— Então, como se faz? — perguntou Arnau, brincando com o ábaco.

— Com dinheiro, claro. Compra-se o perdão.

Arnau recordou-se então das explicações que lhe tinham dado nas obras reais sobre os dinheiros com que se pagava a construção dos estaleiros reais.

— E só fazemos comércio através do Mediterrâneo?

— Não. Fazemos comércio com todo o mundo. Com Castela, com França, com a Flandres, mas fazêmo-lo através do Mediterrâneo. A diferença reside no tipo de mercadorias; a Inglaterra, França e Flandres compramos tecidos, sobretudo de luxo: panos de Toulouse, de Bruxelas, de Malines, de Diestes ou de Vilages, embora também lhes vendamos o linho catalão. Também compramos produtos de cobre ou latão. No Oriente, na Síria e no Egipto, compramos especiarias...

— Pimenta — interrompeu-o Arnau.

- Sim, pimenta. Mas não te enganes. Quando alguém te falar em comércio de especiarias, incluirá nele a cera, o açúcar e até os dentes de elefante. Se te falarem de especiarias miúdas, então sim, estarão a falar daquilo que comummente se entende por especiarias: canela, cravo, pimenta, noz-moscada...

— Falaste em cera... Importamos cera? Como é possível que importemos cera, se no outro dia me disseste que exportávamos mel?

— Pois é — interrompeu o mouro. — Exportamos mel, mas importamos cera. O mel sobra-nos, mas as igrejas consomem muita cera. — Arnau recordou-se da principal obrigação dos bastaixos: manter sempre acesos os círios à Virgem da la Mar. — A cera vem da Dácia, através de Bizâncio. Outros dos principais produtos em que se faz comércio — continuou Guillem — são os alimentos. Antes, há muitos anos, exportávamos trigo; agora temos de importar todo o tipo de cereais (trigo, arroz, milho e cevada) e exportamos azeite, vinho, frutos secos, açafrão, toucinho e mel. Também se faz comércio com a salmoura...

Nesse momento entrou um cliente, e Arnau e Guillem interromperam a conversa. O homem sentou-se em frente aos cambistas e, depois de uma troca de saudações, depositou uma soma considerável de dinheiro. Guillem ficou muito contente: não conhecia aquele cliente, o que era bom sinal. Começavam a não depender dos clientes antigos de Hasdai. Arnau atendeu-o com seriedade; contou as moedas, comprovou a sua autenticidade, mas, por precaução, foi-as passando a Guillem. Depois, anotou o depósito nos livros. Guillem observou-o enquanto escrevia. Tinha melhorado; tinha feito um esforço considerável nesse sentido. O preceptor dos Puig tinha-lhe ensinado as letras, mas passara anos sem usar a escrita.

Enquanto esperavam pelo início da época de navegação Arnau e Guillem limitavam-se a preparar os contratos de comanda. Compravam produtos para exportar, concorriam com outros mercadores para fretar navios, ou contratavam-nos e discutiam que produtos importariam no regresso de cada um dos navios.

— Que ganham os mercadores que contratamos? — perguntou um dia Arnau.

— Depende da comanda. Nas comandas normais, em geral, um quarto dos benefícios. Nas comandas de dinheiro, ouro ou prata, não se usa o quarto. Nós marcamos o câmbio que queremos e o mercador obtém os seus benefícios da diferença de câmbio que puder conseguir.

— Que fazem esses homens em terras tão distantes? — voltou a perguntar Arnau, tentando imaginar como seriam aqueles lugares. — São terras estrangeiras, falam-se lá outras línguas... Deve ser tudo tão diferente.

— Sim, mas repara que nessas cidades — respondeu Guillem — existem consulados catalães. São como o Consulado de la Mar de Barcelona — esclareceu. — Em cada um desses portos existe um cônsul, nomeado pela cidade de Barcelona, que administra a justiça em matéria comercial e que medeia nos conflitos que possam surgir entre os mercadores catalães e as gentes ou autoridades do lugar. Todos os consulados têm um entreposto ou alfândega. São recintos amuralhados em que se hospedam os mercadores catalães e que estão dotados de armazéns para guardar as mercadorias até que sejam vendidas ou embarcadas de novo. Cada uma delas é como se fosse uma parte do território catalão em terras estrangeiras. São extraterritoriais; quem manda nelas é o cônsul, e não as autoridades do país em que se encontram.

— E não se importam?

— A todos os governos interessa o comércio. Cobram impostos e enchem os seus cofres. O comércio é um mundo à parte, Arnau. Podemos estar em guerra com os sarracenos, mas já desde o século passado, por exemplo, que temos consulados em Tunis ou em Bugia, e podes ter a certeza de que nenhum cabecilha mouro violará os entrepostos catalães.

A mesa de câmbio de Arnau Estanyol funcionava. A peste tinha dizimado os cambistas catalães, a presença de Guillem era uma garantia para os investidores e as pessoas, à medida que a epidemia desaparecia, iam trazendo à luz do dia o dinheiro que tinham guardado em suas casas. No entanto, Guillem não conseguia dormir. «Vende-os em Maiorca», aconselhara-lhe Hasdai, referindo-se aos escravos, para que Arnau não se apercebesse da operação. E Guillem assim mandara. «Em maldita hora!», praguejou pela enésima vez, revirando-se na cama. Recorrera a um dos últimos navios que partiam de Barcelona na época de navegação, quase nos primeiros dias de Outubro. Bizâncio, Palestina, Rodes e Chipre: esses eram os destinos dos quatro mercadores que tinham embarcado em nome do cambista de Barcelona, Arnau Estanyol, mediante letras de câmbio que Guillem levara Arnau a assinar. Este nem sequer olhara para elas. Aqueles mercadores deveriam comprar escravos e levá-los para Maiorca. Guillem voltou a mudar de posição.

No entanto, as circunstâncias políticas conspiravam contra ele: apesar da mediação do Sumo Pontífice, o rei Pedro conquistou definitivamente a Sardenha e o Rossilhão um ano depois da sua primeira tentativa, ao terminar a prorrogação que então tinha concedido. A 15 de Julho de 1344, Jaime III, depois da rendição da maior parte das suas vilas e cidades, ajoelhou-se diante do seu cunhado, de cabeça descoberta, solicitando misericórdia e entregando os seus territórios ao conde de Barcelona. O rei Pedro concedeu-lhe o senhorio de Montpellier e os viscondados de Omelades e Carladés, mas recuperou as terras catalãs dos seus antepassados: Maiorca, o Rossilhão e a Sardenha.

Todavia, depois de se ter rendido, Jaime de Maiorca reuniu um pequeno exército de sessenta cavaleiros e trezentos homens a pé e tornou a entrar na Sardenha para guerrear contra o cunhado. O rei Pedro nem sequer acorreu para lhe dar batalha. Limitou-se a enviar os seus lugares-tenentes. Cansado, perseguido e derrotado, o rei Jaime procurou refúgio junto do Papa Clemente VI, que continuava a favorecer os seus interesses, e ali, nas mãos da Igreja, foi tramada a última estratégia: Jaime III vendeu ao rei Filipe VI de França o senhorio de Montpellier, por doze mil escudos de ouro; com essa quantia, mais os empréstimos da Igreja, armou uma frota que a rainha Joana de Nápoles lhe forneceu, e em 1349 voltou a desembarcar em Maiorca.

Estava previsto que os escravos chegassem nas primeiras viagens do ano de 1349. Havia uma grande quantidade de dinheiro em jogo, e se alguma coisa falhasse, o nome de Arnau — por muito que Hasdai respondesse por ele — ficaria manchado em frente aos correspondentes com quem teria de trabalhar no futuro. As letras de câmbio tinham sido assinadas por ele e, embora Hasdai pagasse como avalista, o mercado não permitia que uma letra ficasse por pagar. As relações com os correspondentes em países distantes baseavam-se na confiança, na confiança cega. Como poderia triunfar um cambista que falhasse logo na sua primeira operação?

— Até ele me disse que evitássemos qualquer rota que passe por Maiorca — confessou um dia a Hasdai, única pessoa com quem podia desabafar, na horta da casa do judeu.

Evitavam olhar-se nos olhos e, no entanto, sabiam que ambos estavam a pensar no mesmo. Quatro barcos de escravos! Aquela operação poderia arruinar até mesmo Hasdai.

— Se o rei Jaime não foi capaz de manter a palavra dada no dia em que se rendeu — disse Guillem procurando o olhar de Hasdai —, que será do comércio e dos bens dos catalães?

Hasdai não respondeu. Que podia ele dizer-lhe?

— Talvez os teus mercadores escolham outro porto —

sugeriu por fim.

— Barcelona? — perguntou Guillem, abanando a cabeça.

— Ninguém podia prever uma coisa assim — tentou tranquilizá-lo o judeu.

Arnau tinha salvo os seus filhos de uma morte certa. Como não consolar-se com isso?

Em Maio de 1349, o rei Pedro enviou a armada catalã a Maiorca, em plena época de navegação, em plena época de comércio.

— Ainda bem que não mandámos nenhum navio para Maiorca — comentou um dia Arnau. Guillem viu-se obrigado a concordar.

— O que poderia acontecer — perguntou de novo Arnau — se o tivéssemos feito?

— Que queres dizer?

— Nós recebemos dinheiro das pessoas e investimo-lo em comandas. Se tivéssemos enviado algum navio para Maiorca e o rei Jaime o tivesse apresado, não teríamos nem o dinheiro, nem as mercadorias; não poderíamos devolver os depósitos. Nós corremos os riscos das comandas. Que aconteceria então?

— Abatut — respondeu Guillem com maus modos.

— Abatut?

— Quando um cambista não pode devolver os depósitos, o magistrado de câmbios concede-lhe um prazo de seis meses para satisfazer as dívidas. Se ao fim do prazo não as tiver liquidado, declara-o abatut, prende-o, a pão e água, e vende os seus bens para pagar aos credores...

— Eu não tenho bens.

— Se os bens não chegam para cobrir as dívidas — continuou a recitar Guillem —, corta-se-lhe a cabeça em frente ao seu estabelecimento, para servir de exemplo aos restantes cambistas.

Arnau ficou calado. Guillem não se atreveu a olhar para ele. Que culpa tinha Arnau de tudo aquilo?

— Não te preocupes — tentou tranquilizá-lo. — Isso não acontecerá.

 

A guerra com Maiorca continuava, mas Arnau era feliz. Quando não tinha trabalho na mesa, saía e punha-se à porta, apoiado à ombreira. Depois da peste, Santa Maria voltava a ganhar vida. A pequena igreja românica que ele e Joanet tinham conhecido já não existia e as obras avançavam para a porta maior. Era capaz de passar horas a ver como os pedreiros colocavam as pedras e a recordar as muitas dessas pedras que ele próprio tinha carregado. Santa Maria significava tudo para Arnau: a sua mãe, a entrada para a confraria... Mesmo o refúgio para as crianças judias. De vez em quando, para aumentar a sua alegria, recebia carta do irmão. As missivas de Joan eram breves, e nelas apenas informava Arnau de que se encontrava bem de saúde e plenamente dedicado ao estudo.

Apareceu um bastaix carregado com uma pedra. Poucos tinham sobrevivido à praga. O seu próprio sogro, Ramon, e muitos outros, tinham morrido. Arnau chorara na praia junto dos seus antigos companheiros.

— Sebastiá — murmurou ao reconhecer o bastaix.

— Que dizes? — ouviu Guillem perguntar atrás de si.

Arnau virou-se.

- Sebastiá — repetiu. — Esse homem, o que leva a pedra, chama-se Sebastiá.

Sebastiá saudou-o ao passar à frente dele, sem virar a cabeça, olhando em frente e com os lábios apertados sob o peso da pedra.

— Durante muitos anos, fiz o mesmo — continuou Arnau com a voz entrecortada. Guillem não fez nenhum comentário. — Tinha apenas catorze anos quando levei a minha primeira pedra para a Virgem. — Nesse momento, passou outro bastaix. Arnau saudou-o.

— Julguei que me ia partir ao meio, que se me ia partir a espinha, mas a satisfação que senti quando cheguei... Meu Deus!

— Alguma coisa de bom deverá ter a vossa Virgem para que as pessoas se sacrifiquem por ela dessa maneira — ouviu o mouro a dizer.

Depois, ficaram ambos em silêncio enquanto a procissão de bastaixos passava diante deles.

Os bastaixos foram os primeiros a apelar a Arnau.

— Precisamos de dinheiro — disse-lhe sem rodeios Sebastiá, que se tornara prócer da confraria. — A caixa está vazia, as necessidades são muitas e o trabalho, de momento, muito escasso e mal pago. Os confrades não têm com que viver depois da peste e eu não posso obrigá-los a contribuir para a caixa até que recuperem do desastre.

Arnau olhou para Guillem, que, inexpressivo, estava sentado ao seu lado, atrás da mesa em que brilhava o tapete vermelho de seda.

— A situação está assim tão má? — perguntou Arnau.

— Nem imaginas. Com as subidas de preço dos alimentos, não ganhamos para dar de comer às nossas famílias.

Além disso, há as viúvas e os órfãos dos que morreram. Temos de ajudá-los. Precisamos de dinheiro, Arnau. Devolver-te-emos até à última moeda que nos emprestes.

— Eu sei.

Arnau voltou a olhar para Guillem em busca da aprovação deste. Que sabia ele de empréstimos? Até ali, só tinha recebido dinheiro, nunca o tinha emprestado.

Guillem levou as mãos à cara e suspirou.

— Se não for possível... — começou a dizer Sebastiá.

— Sim — interrompeu-o Guillem. Estavam havia dois meses em guerra e não tinha ainda notícias dos seus escravos. Que diferença faria mais algum dinheiro? Seria Hasdai a arruinar-se. Arnau podia permitir-se aquele empréstimo. — Se ao meu senhor lhe basta a vossa palavra...

— É quanto me basta — respondeu de imediato Arnau. Arnau contou o dinheiro que a confraria dos bastaixos lhe tinha pedido e entregou-o solenemente a Sebastiá. Guillem viu como se davam as mãos por cima da mesa, os dois de pé, em silêncio, procurando desajeitadamente esconder os seus sentimentos durante um aperto de mãos que se prolongou por uma eternidade.

Durante o terceiro mês de guerra, quando Guillem já começava a perder a esperança, chegaram os quatro mercadores, juntos. Quando o primeiro deles tinha feito escala na Sicília e se dera conta da guerra com Maiorca, esperara a chegada de mais navios catalães, entre os quais as três galeras restantes. Todos os pilotos e mercadores decidiram evitar a rota por Maiorca e os quatro venderam a sua mercadoria em Perpingnan, segunda capital do principado. Conforme 0 mouro lhes tinha ordenado, encontraram-se com Guillem fora da mesa de câmbio de Arnau, no entreposto da Rua Carders, e aí, uma vez deduzida a sua quarta parte dos benefícios, entregaram-lhe várias cartas de câmbio pelo capital da operação, mais os três quartos que correspondiam a Arnau.

Uma fortuna! A Catalunha precisava de mão-de-obra e escravos tinham sido vendidos a preços exorbitantes.

Quando os três mercadores já se tinham ido embora e ninguém no entreposto o olhava, Guillem beijou as letras de câmbio uma, duas, mil vezes.

Meteu-se a caminho, de regresso à mesa de câmbio, mas perto da Praça do Blat mudou de ideias e dirigiu-se à judiaria. Depois de dar a notícia a Hasdai, caminhou para Santa Maria, sorrindo para o céu e para toda a gente.

Quando entrou na mesa de câmbio, encontrou Arnau com Sebastiá e um sacerdote.

— Guillem — saudou-o Arnau —, apresento-te o padre Juli Andreu. É o substituto do padre Albert.

Guillem inclinou-se desajeitadamente diante do sacerdote. Mais empréstimos, pensou enquanto o saudava.

— Não é o que pensas — disse-lhe Arnau. Guillem apalpou as letras de câmbio que trazia e sorriu. Que interessava? Arnau era rico. Sorriu de novo e Arnau interpretou erradamente o sorriso. — É pior do que imaginas — afirmou com seriedade. «O que pode ser pior do que um empréstimo à Igreja?», esteve tentado a perguntar o mouro. Depois saudou o prócer dos bastaixos. — Temos um problema — concluiu Arnau.

Os três homens ficaram por um instante a olhar para o mouro. «Só se Guillem aceitar», exigira Arnau, passando por cima das referências que o padre fizera à sua condição de escravo.

- Alguma vez te falei de Ramon? — Guillem negou. — Ramon foi uma pessoa muito importante na minha vida. Ajudou-me... Ajudou-me muito. — Guillem continuava de pé, como correspondia a um escravo. — Ele e a mulher morreram da peste e a confraria não se pode encarregar da filha. Estivemos a falar e pediram-me... pediram-me...

— Porque me consultas, senhor?

O padre Juli Andreu, esperançado, virou-se para Arnau.

— A Pia Almoina e a Casa de la Caritat não conseguem dar conta do recado — prosseguiu Arnau. —Já nem conseguem distribuir pão, vinho e uma sopa entre os seus mendigos, como faziam diariamente. A peste fez estragos.

— O que desejas, senhor?

— Propuseram-me perfilhá-la.

Guillem voltou a sentir as letras de câmbio. Agora, até podias perfilhar vinte crianças!, pensou.

— Se é o que tu desejas — limitou-se a responder.

— Eu não sei nada de crianças — retorquiu Arnau.

— Basta dar-lhes carinho e um lar — interveio Sebastiá. — Lar, já tens... e dá-me a impressão de que carinho tens até de sobra.

— Ajudar-me-ás? — perguntou Arnau a Guillem, sem ouvir Sebastiá.

— Obedecer-te-ei em tudo o que queiras.

— Não quero obediência. Quero... peço ajuda.

— As tuas palavras honram-me. Tê-la-ás, de todo o meu coração — comprometeu-se Guillem. — Toda a que precises.

A menina, de seis anos, chamava-se Mar, como a Virgem. Em pouco mais de três meses começou a superar o golpe que para ela tinha sido a epidemia de peste e a morte dos pais. A partir daí, já não se conseguia ouvir o retinir das moedas ou o raspar das penas nos livros da mesa de câmbio: os risos e as correrias enchiam a casa. Arnau e Guillem, sentados atrás da mesa, sacudiam-na dali, quando ela se conseguia escapar da escrava que Guillem comprara para cuidar dela, e aparecia ali, mas depois, invariavelmente, olhavam sorridentes um para o outro.

Donaha, a escrava, fora mal aceite por Arnau.

— Não quero mais escravos! — gritara, interrompendo os argumentos de Guillem.

Mas então, a rapariga, esquálida, suja e com as roupas feitas em farrapos, desatou a chorar.

— Onde poderá ela estar melhor do que aqui? — perguntou então Guillem a Arnau. — Se tanto te desgosta, promete-lhe a liberdade, mas então será vendida a outra pessoa. Precisa de comer... e nós precisamos de uma mulher que se ocupe da menina. — A rapariga ajoelhou-se diante de Arnau e este tentou afastá-la. — Sabes o quanto deve ter sofrido esta rapariga? — Guillem semicerrou os olhos. — Se a devolvesses...

Arnau, embora contrariado, acedeu. Para além da escrava, Guillem encontrara solução para o dinheiro obtido com a venda dos escravos e, depois de pagar a Hasdai como correspondente em Barcelona dos vendedores, entregou os vultuosos benefícios obtidos a um judeu da confiança de Hasdai, de passagem por Barcelona.

Abraham Levi apareceu uma manhã na casa de câmbio. Era um homem alto e enxuto, com uma barba branca rala e vestia uma levita preta onde sobressaía a rodela amarela. Abraham Levi saudou Guillem, e este apresentou-lhe Arnau.

Quando o judeu se sentou diante deles, entregou a Arnau uma letra de câmbio pelos lucros obtidos.

— Quero depositar esta quantia no seu estabelecimento, mestre Arnau — disse-lhe.

Arnau abriu muito os olhos ao ver a quantia. Depois, entregou o documento a Guillem, instando-o nervosamente a que lesse.

— Mas... — começou a dizer, enquanto Guillem fingia surpreender-se — Isto é muito dinheiro. Porque o depositas na minha mesa, e não na de um dos teus...

— Irmãos de fé? — ajudou-o o judeu. — Sempre confiei em Sahat. Não creio que a mudança de nome — disse olhando para o mouro — tenha modificado as suas capacidades. Vou de viagem, numa viagem muito longa, e quero que sejas tu e Sahat quem movimenta o meu dinheiro.

— Estas quantias remuneram-se com um quarto pelo simples facto de se depositarem na mesa, não é verdade, Guillem? — O mouro assentiu. — Como pagaremos os teus lucros se vais partir para essa viagem tão longa? Como poderemos pôr-nos em contacto com...

«Para quê tantas perguntas?», perguntou-se Guillem. Não tinha dado instruções para tanta pergunta a Abraham, mas o judeu defendeu-se com elegância.

— Reinveste-os — respondeu. — Não se preocupem comigo. Não tenho filhos nem família, e para onde vou não preciso de dinheiro. Algum dia, talvez distante, disporei dele ou mandarei alguém para que o faça. Até então, não deves preocupar-te. Serei eu a entrar em contacto convosco. Não te importas?

— Porque havia de importar-me? — disse Arnau. Guillem respirou fundo. — Se é assim que desejas, assim será.

Fecharam a transacção e Abraham Levi levantou-se.

— Tenho de me despedir de alguns amigos na judiaria — acrescentou, depois de se despedir deles.

— Acompanho-te — disse Guillem, procurando a aprovação de Arnau, que consentiu com um gesto.

Dali, os dois dirigiram-se a um escrivão e, diante dele, Abraham Levi outorgou uma carta de pagamento do depósito que acabara de efectuar na mesa de Arnau Estanyol, renunciando a favor deste por quaisquer benefícios, fosse sob que forma fosse, que o dito depósito pudesse originar. Guillem regressou à mesa de câmbio com o documento escondido debaixo da roupa. Era apenas uma questão de tempo, pensou enquanto caminhava por Barcelona. Formalmente, aquele dinheiro era propriedade do judeu, e assim constava nos livros de Arnau, mas nunca ninguém poderia reclamá-lo, pois o judeu tinha outorgado uma carta de pagamento a seu favor. Entretanto, os três quartos dos benefícios que aquele capital originasse, que seriam propriedade de Arnau, seriam mais do que suficientes para que este multiplicasse a sua fortuna.

Nessa noite, quando Arnau dormia, Guillem desceu até à mesa. Tinha encontrado uma pedra solta na parede. Protegeu o documento, envolvendo-o num pano resistente, e escondeu-o atrás da pedra, que fixou o melhor que pôde. Um dia qualquer haveria de pedir a um dos pedreiros de Santa Maria que a fixasse melhor. A fortuna de Arnau descansaria ali até que pudesse confessar-lhe de onde vinha o dinheiro. Era apenas uma questão de tempo.

«De muito tempo...», teve Guillem de se corrigir num dia em que passeavam pela praia depois de passarem pelo Consulado de la Mar para resolverem alguns assuntos. Barcelona continuava a receber escravos; mercadoria humana que os

barqueiros transportavam até à praia, apinhada nos seus barcos. Homens e rapazes aptos para o trabalho, mas também mulheres e crianças cujos prantos obrigaram os dois homens a desviar o olhar.

— Escuta-me bem, Guillem. Nunca, por muito mal que possamos estar — disse-lhe Arnau —, por mais que possamos necessitar disso, financiaremos uma comanda de escravos. Preferia perder a cabeça às mãos do magistrado municipal.

Depois viram como a galera, à força de remos, abandonava o porto de Barcelona.

— Porque se vai? — perguntou Arnau sem pensar. — Não aproveita o regresso para carregar mercadorias?

Guillem virou-se para ele, abanando imperceptivelmente a cabeça.

— Regressará — assegurou-lhe. — Vai só até ao mar alto... para continuar a descarregar — acrescentou com a voz entrecortada.

Arnau ficou em silêncio por alguns instantes, vendo como a galera se afastava.

— Quantos morrem? — perguntou por fim.

— Demasiados — respondeu-lhe o mouro com a recordação de um navio semelhante.

— Nunca, Guillem. Lembra-te: nunca.

 

1 de janeiro de 1354

Praça de Santa Maria de la Mar, Barcelona

O que não iria ser ali diante de Santa Maria, pensou Arnau enquanto observava de uma das janelas da sua casa toda a população de Barcelona reunida e apinhada na praça, nas ruas adjacentes, em cima dos andaimes, mesmo dentro da igreja, com a atenção posta num estrado que o rei mandara erguer. Pedro III não tinha escolhido a Praça do Blat, nem a da catedral, nem a câmara de comércio ou os magníficos estaleiros que ele próprio estava a construir. Não. Escolhera Santa Maria, a igreja do povo, aquela que estava a ser erguida graças à união e ao sacrifício de todas as suas gentes.

— Não há outro lugar em toda a Catalunha que represente melhor que este o espírito dos habitantes de Barcelona — comentou Arnau para Guillem nessa manhã, enquanto viam como os operários levantavam o estrado. — E o rei sabe disso. Por isso o escolheu.

Arnau sacudiu os ombros por causa de um calafrio. Toda a sua vida tinha girado em volta daquela igreja!

— Vai custar-nos dinheiro — limitou-se a rezingar o mouro.

Arnau virou-se para ele, tentado a protestar, mas Guillem não desviou os olhos do estrado e Arnau optou por não acrescentar mais nada.

Tinham decorrido cinco anos desde que tinham aberto a mesa de câmbio. Arnau estava com trinta e três, e era feliz... E rico, muito rico. Levava uma vida austera, mas os seus livros registavam uma fortuna considerável.

— Vamos tomar o pequeno-almoço — incitou-o, pondo-lhe uma mão no ombro.

Em baixo, na cozinha, esperava-os Donaha com a menina, que a ajudava a pôr a mesa.

A escrava continuou a preparar o pequeno-almoço, mas Mar, ao vê-los, correu para eles.

— Toda a gente fala da visita do rei! — gritou. — Poderemos aproximar-nos dele? Virão também os seus cavaleiros?

Guillem sentou-se à mesa com um suspiro.

— Vêm pedir-nos mais dinheiro — explicou à rapariga.

— Guillem! — exclamou Arnau perante a expressão de perplexidade de Mar.

— É verdade — defendeu-se o mouro.

— Não. Não é, Mar — disse-lhe Arnau, obtendo o prémio de um sorriso. — O rei vem pedir-nos ajuda para conquistar a Sardenha.

— Dinheiro? — perguntou a menina, depois de piscar um olho a Guillem.

Arnau observou a rapariga primeiro, e depois Guillem; ambos lhe sorriram com ironia. Como aquela criança crescera! Já era quase uma rapariga, bela, inteligente, com um encanto capaz de arrebatar qualquer pessoa.

— Dinheiro? — repetiu a rapariga interrompendo os Seus pensamentos.

— Todas as guerras custam dinheiro! — viu-se Arnau obrigado a reconhecer.

— Ah! — disse Guillem, abrindo os braços. Donaha começou a encher-lhes as escudelas.

— Porque não lhe contas — prosseguiu Arnau quando Donaha acabou de servir — que na realidade não nos custa dinheiro, mas que na realidade ganhamos dinheiro?

Mar abriu os olhos para Guillem. Guillem hesitou.

— Há três anos que temos impostos especiais — comentou, negando-se a dar razão a Arnau —, très anos de guerra que financiámos aos barceloneses.

Mar apertou os lábios num sorriso e virou-se para Arnau.

— É verdade — comentou Arnau. — Há exactamente três anos, os Catalães assinaram um tratado com Veneza e Bizâncio para fazer guerra a Génova. O nosso objectivo era conquistar a Córsega e a Sardenha, que pelo tratado de Anagni deviam ser feudos catalães e que, no entanto, se encontravam em poder dos Genoveses. Sessenta e oito galeras armadas! — Arnau levantou a voz. — Sessenta e oito galeras armadas, vinte e três catalãs e o resto venezianas e gregas, enfrentaram-se no Bósforo contra sessenta e cinco galeras genovesas.

— Que aconteceu? — perguntou Mar perante o repentino silêncio de Arnau.

— Ninguém ganhou. O nosso almirante, Ponç de Santa Pau, morreu na batalha e só regressaram dez das vinte e três galeras catalãs. Que se passou então, Guillem? — O escravo negou com a cabeça. — Conta-lhe, Guillem — insistiu Arnau.

Guillem suspirou.

- Os Bizantinos atraiçoaram-nos — recitou —, e em troca da paz pactuaram com Génova e concederam-lhe o monopólio do seu comércio.

- E que mais aconteceu? — insistiu Arnau.

- Perdemos uma das rotas mais importantes do Mediterrâneo.

— Perdemos dinheiro?

— Sim.

Mar seguia a conversa olhando para um e para outro. Até Donaha, junto do fogo, fazia o mesmo.

— Muito dinheiro?

— Sim.

— Mais do que aquele que depois demos ao rei?

— Sim.

— Só se o Mediterrâneo for nosso poderemos comerciar em paz — sentenciou Arnau.

— E os Bizantinos? — perguntou Mar.

— No ano seguinte, o rei armou uma frota de cinquenta galeras capitaneada por Bernat de Cabrera e venceu os Genoveses na Sardenha. O nosso almirante apresou trinta e três galeras e afundou outras cinco. Oito mil genoveses morreram e três mil e duzentos mais foram capturados, e apenas quarenta catalães perderam a vida! Os Bizantinos — continuou, com o olhar posto nos olhos de Mar, que rebrilhavam de curiosidade — recuaram e voltaram a abrir os seus portos ao nosso comércio.

— Três anos de impostos especiais que ainda estamos a pagar — acrescentou Guillem.

— Mas se o rei já tem a Sardenha e nós o comércio com Bizâncio, do que vem agora o rei à procura? — perguntou Mar.

— Os nobres da ilha, encabeçados por um tal juiz de Arbórea, levantaram-se em armas contra o rei Pedro, e ele tem de ir sufocar essa revolta.

— O rei — interveio Guillem — deveria conformar-se com manter as rotas comerciais abertas e cobrar os seus impostos. A Sardenha é uma terra tosca e dura. Nunca chegaremos a dominá-la.

O rei não se poupou a esforços para se apresentar perante o seu povo. Sobre o estrado, a sua curta estatura passou despercebida à multidão. Vestia as suas melhores vestes de gala, de um brilhante vermelho-carmesim que brilhava ao sol de Inverno tanto como as pedrarias que o adornavam. Para aquela ocasião não se esquecera de levar a coroa de ouro nem, evidentemente, o pequeno punhal que sempre trazia à cinta. O seu séquito de nobres e cortesãos não lhe ficava atrás e, tal como o seu senhor, vestia-se luxuosamente.

O rei falou ao povo e elogiou-o. Quando se dirigira um rei aos simples cidadãos para lhes explicar o que pensava fazer? Falou da Catalunha, das suas terras e dos seus interesses. Falou da traição de Arbórea na Sardenha e as pessoas levantaram os braços e clamaram por vingança. O rei continuou a enaltecer o povo, com Santa Maria à sua frente, até que lhe solicitou a ajuda de que precisava; o povo ter-lhe-ia entregue os seus filhos, se lhos tivesse pedido.

A contribuição saiu de todos os barceloneses; Arnau pagou a quantia que lhe correspondia como cambista da cidade e o rei partiu para a Sardenha, ao comando de uma frota de cem navios.

Quando o exército saiu de Barcelona, a cidade retomou a normalidade e Arnau voltou a dedicar-se à sua mesa de câmbio, a Mar, a Santa Maria e a ajudar aqueles que vinhaffl ter com ele para pedir um empréstimo.

Guillem teve de se habituar a uma forma de agir muito diferente da dos cambistas e mercadores que até então conhecera, incluindo Hasdai Crescas. Ao princípio, opusera-se, e assim manifestara a Arnau a sua oposição, cada vez que este abria a bolsa para entregar dinheiro a algum dos muitos trabalhadores que dele precisavam.

— Por acaso não pagam? Por acaso não o devolvem? — perguntava-lhe Arnau.

— São empréstimos sem juros — comentava Guillem. — Esse dinheiro devia estar a dar lucro.

— Quantas vezes me disseste já que devíamos comprar um palácio, que deveríamos viver melhor? Quanto custaria tudo isso, Guillem? Sabes bem que custaria infinitamente mais do que todos os empréstimos que concedemos a estas pessoas.

E Guillem vira-se obrigado a calar-se. Porque ele estava certo. Arnau vivia modestamente na sua casa da esquina de Canvis Nous com Canvis Vells. A única coisa em que não olhava a despesas era com a educação de Mar. A menina recebia educação em casa de um mercador amigo onde iam os preceptores e, claro, em Santa Maria. Pouco demorou a junta das obras da Paróquia a recorrer a Arnau, solicitando uma ajuda económica.

— Já tenho capela — respondeu Arnau quando a junta lhe propôs beneficiar uma das capelas laterais de Santa Maria. — Sim — acrescentou perante a surpresa da comitiva.

- A minha capela é a do Santíssimo, a dos bastaixos; e será sempre essa. De qualquer forma... — disse, abrindo o cofre —, "e quanto precisais?

De quanto precisais? Quanto queres? Com quanto te arejarias? Tens o suficiente, com este? Guillem teve de se acostumar àquelas perguntas até que começou a ceder quando as pessoas o saudavam, lhe sorriam e lhe davam graças de cada vez que passeava pela praia ou pelo bairro de la Ribera. Talvez Arnau tenha razão, começou a pensar. Entregava-se aos outros, mas acaso não fizera o mesmo com ele e com as três crianças judias que estavam a ser apedrejadas, e que não conhecia? Se não fosse esse seu carácter, o mais provável era que ele próprio, Raquel e Jucef estivessem mortos. Porque havia ele de mudar só por ser rico? E Guillem, tal como fazia Arnau, começou a sorrir às pessoas com quem se cruzava e a saudar os desconhecidos que lhe cediam a passagem.

No entanto, essa forma de agir nada tinha que ver com algumas decisões que Arnau tinha tomado ao longo dos anos. Que se negasse a participar em comandas ou fretes que tivessem relação com o comércio de escravos, parecia lógico, mas por que razão — interrogava-se Guillem — se negava por vezes a participar em certos negócios que nada tinham que ver com escravos?

Das primeiras vezes, Arnau justificara a sua decisão sem entrar em discussão.

— Não me convence.

— Não me agrada.

— Não vejo o negócio muito claro. Por fim, o mouro impacientou-se.

— É uma boa operação, Arnau — disse-lhe quando os comerciantes abandonaram a mesa de câmbio. — Que se passa? Por vezes recusas negócios que nos proporcionariam bons lucros. Não te entendo. Já sei que não sou eu que...

— Sim, és — interrompera-o sem se virar para ele, os dois sentados nas suas cadeiras à mesa. — Desculpa. O que se +assa é que... — Guillem aguardou pelas palavras dele. — Bom, nunca participarei num negócio em que entre Grau Puig. O meu nome nunca há-de estar ligado ao dele.

Arnau olhou para a frente, muito para lá da parede da casa.

- Contar-me-ás porquê, um dia?

— Porque não? — murmurou virando-se para ele.

E contou-lhe.

Guillem conhecia Grau Puig, pois este tinha trabalhado com Hasdai Crescas. O mouro interrogava-se por que razão, se Arnau não queria trabalhar com ele, se prestava o barão a fazê-lo com Arnau. Por acaso os sentimentos não seriam recíprocos, depois de tudo o que Arnau lhe tinha contado?

— Porque será? — perguntou um dia a Hasdai Crescas, depois de lhe resumir a história de Arnau, certo de que não sairia dali.

— Porque há muita gente que não quer trabalhar com Grau Puig. Há já bastante tempo que eu não o faço, e tal como eu, muitos outros. É um homem obcecado por estar num lugar para onde não foi chamado por nascimento. Enquanto era um simples artesão, era de confiança; agora... Agora, os objectivos dele são outros, e nunca percebeu no que se metia quando casou — para se ser nobre, é preciso nascer nobre, há que ter mamado nobreza. Não é que isso seja bom, ou que o defenda, mas só os nobres de berço podem continuar a selo e controlar, ao mesmo tempo, os seus riscos. Além disso, se se arruínam, quem se atreve a levar a sua contra um barão catalão? São orgulhosos, soberbos, nascidos para mandar e para estar acima de todos os restantes, mesmo na ruína. Grau Puig só pôde continuar a ser nobre à força de dinheiro. Gastou uma fortuna no dote da sua filha Margarida, e isso quase o arruinou. Toda a Barcelona o sabe. Que faz um simples artesão a viver num palácio na Rua de Monteada? E quanto mais as pessoas querem enganar os outros, mais têm de demonstrar o seu poder à força de delapidar dinheiro. Que faria Grau Puig sem dinheiro?

— Que queres dizer?

— Não quero dizer nada, mas eu não faria negócios com ele. Nisso, embora por motivos diferentes, o teu patrão acertou.

A partir desse dia, Guillem aguçava o ouvido sempre que ouvia alguma conversa em se mencionasse Grau Puig, e na câmara de comércio, no Consulado de la Mar, nas transacções, entre compras e vendas de mercadorias, nos comentários sobre a situação do comércio, falava-se muito do barão; falava-se demasiado.

— O filho, Genís Puig... — comentou um dia para Arnau, depois de saírem da câmara de comércio e enquanto ambos olhavam para o mar, para um mar calmo, plácido e manso como nunca. Arnau virou-se para ele ao ouvir aquele nome. — Genís Puig teve de pedir um empréstimo barato para poder seguir com o rei para Maiorca. — Teriam os olhos de Arnau brilhado? Guillem devolveu o olhar. Não lhe tinha respondido, mas não lhe tinham brilhado os olhos? — Queres que continue?

Arnau continuou calado, mas por fim fez que sim com a cabeça. Tinha os olhos semicerrados e os lábios levemente fechados. E continuou a assentir durante um momento.

— Autorizas-me a tomar as decisões que considere oportunas? — perguntou por fim Guillem.

_— Não te autorizo. Peço-te, Guillem, peço-te.

Com discrição, Guillem começou a usar os seus conhecimentos e os muitos contactos que tinha feito ao longo de anos de negócios. Que o filho, o cavaleiro Dom Genís, tivesse tido de recorrer a um dos empréstimos especiais para nobres significava que o pai já não podia pagar os gastos para a guerra. Os empréstimos baratos, pensava Guillem, implicam um juro considerável; são os únicos em que se admite a cobrança de juros entre cristãos. Por que razão iria um pai permitir que o filho pagasse juros, a não ser por ele próprio carecer desse capital? E a tal Isabel? Aquela harpia que tinha afundado Arnau e o pai, que obrigara Arnau a arrastar-se de joelhos, como permitia uma tal situação?

Guillem lançou as suas redes durante alguns meses; falou com os seus amigos, com aqueles que lhe deviam favores, e mandou mensagens a todos os seus correspondentes: qual era a situação de Grau Puig, barão catalão, comerciante? Que sabiam dele, dos seus negócios, das suas finanças, da sua solvência?

Quando a temporada de navegação estava quase a terminar e os navios regressavam já ao porto de Barcelona, Guillem começou a receber respostas às suas cartas. Preciosa informação! Uma noite, quando encerraram o estabelecimento, Guillem ficou sentado à mesa.

— Tenho coisas para fazer — disse a Arnau.

— Que coisas?

— Amanhã conto-te.

No dia seguinte, pela manhã, antes do pequeno-almoço, os dois sentaram-se à mesa e contou-lhe:

— Grau Puig está numa situação crítica. — Teriam voltado a brilhar os olhos de Arnau? — Todos os cambistas ou mercadores com quem falei estão de acordo: a fortuna dele evaporou-se...

— Talvez sejam apenas rumores mal-intencionados - interrompeu Arnau.

— Espera. Toma — Guillem entregou-lhe as respostas dos correspondentes. — Isto comprova-o. Grau Puig está nas mãos dos lombardos.

Arnau pensou nos lombardos: cambistas e mercadores, correspondentes das grandes casas florentinas ou pisanas, um grupo fechado que vigiava os seus próprios interesses, cujos membros negociavam entre si ou com as casas-matrizes. Monopolizavam o comércio de tecidos de luxo: panos de lã, sedas e brocados, tafetá de Florença, tecidos de Pisa e muitos outros produtos. Os lombardos não ajudavam ninguém e, quando cediam parte dos seus negócios ou do seu mercado, faziam-no apenas e exclusivamente para que não os expulsassem da Catalunha. Não era nada bom depender deles. Folheou os documentos e colocou-os na mesa.

— Que propões?

— O que é que desejas?

— Bem sabes: a ruína dele!

— Segundo dizem, Grau já é um ancião e quem gere os negócios são os filhos e a mulher. Imagina! As finanças dele estão num equilíbrio precário; se lhes falhasse alguma operação, tudo se desmoronaria e não poderiam fazer frente aos seus compromissos. Perderiam tudo.

— Compra as dívidas dele — Arnau falou friamente, sem mexer um único músculo do corpo. — Fá-lo com discrição. Quero ser o credor deles, mas não quero que saibam - Faz que falhe uma das suas operações... Não, uma não — corrigiu-se —, todas! — gritou, batendo na mesa com tanta força que até os livros estremeceram. — Todas as que possas. - acrescentou em voz baixa. — Não quero que se me escapem.

 

20 de Setembro de 1355, Porto de Barcelona

O rei Pedro III, ao comando da sua frota, chegou vitorioso a Barcelona depois da conquista da Sardenha. Toda a Barcelona acorreu a recebê-lo. Desembarcou, por entre o fervor popular, por uma ponte de madeira erguida sobre o mar em frente ao convento de Framenors. Atrás dele, nobres e soldados desembarcaram numa Barcelona vestida de festa para celebrar a vitória sobre os Sardos.

Arnau e Guillem fecharam a mesa a correram a receber a armada. Depois, com Mar, juntaram-se aos festejos que a cidade tinha preparado em honra do rei; riram, cantaram e dançaram, ouviram histórias, comeram doces e quando o Sol começava a pôr-se e a noite de Setembro a refrescar,

regressaram a casa.

— Donaha! — gritou Mar quando Arnau abriu a porta.

A jovem entrou em casa, contente pela festa, e continuou a chamar Donaha aos gritos, mas ao chegar à porta da cozinha estacou.

Arnau e Guillem olharam um para o outro. Que se passava? Teria acontecido algo à escrava?

Correram para a cozinha.

— O que... — começou Arnau a perguntar, espreitando por cima de Mar.

— Não creio que estes gritos sejam os mais adequados para receber um parente que há tanto tempo não vês, Arnau — disse uma voz masculina, não totalmente desconhecida.

Arnau tinha começado a afastar Mar, mas parou com a mão sobre o ombro dela.

— Joan! — conseguiu gritar ao fim de uns segundos. Mar viu como Arnau se aproximava, de braços abertos e balbuciando, daquela figura de preto que a tinha assustado. Guillem abraçou a rapariga junto à ombreira da porta.

— É o irmão dele — sussurrou-lhe.

Donaha estava escondida a um canto da cozinha.

— Meu Deus! — exclamou Arnau ao abraçar Joan. — Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! — continuava a dizer enquanto o levantava no ar, uma e outra vez.

Joan lá conseguiu separar-se de Arnau, sorridente.

— Vais partir-me em dois... Mas Arnau nem o ouvia.

— Porque não me avisaste? — perguntou-lhe, agarrando-o agora pelos ombros. — Deixa-me ver-te. Mudaste! — «Treze anos», tentou dizer Joan, mas Arnau não o deixou. — Há quanto tempo estás em Barcelona?

— Vim...

— Porque não me avisaste?

Arnau corria em volta do irmão a cada pergunta.

— Vens para ficar? Diz que sim, por favor!

Guillem e Mar não puderam evitar um sorriso. O frade viu-os sorrir.

— Basta! — gritou, afastando-se um passo de Arnau. — Chega. Vais matar-me!

Arnau aproveitou a distância para o examinar. Só os olhos eram os mesmos do Joan que partira de Barcelona: vivos brilhantes; quanto ao resto, estava quase calvo, magro curvado... e aquele hábito negro que lhe caía dos ombros tornava-o ainda mais tétrico. Tinha menos três anos que ele, mas parecia muito mais velho.

- Não comias? Se não tinhas que chegasse com o dinheiro que te mandava...

— Sim — interrompeu Joan —, mais do que suficiente. O teu dinheiro serviu para alimentar... o meu espírito. Os livros são muito caros, Arnau.

— Devias ter-me pedido mais.

Joan fez um gesto com a mão e sentou-se à mesa, de frente para Guillem e Mar.

— Bem, apresenta-me a tua afilhada. Vejo que cresceu desde a tua última carta.

Arnau fez sinal a Mar e esta aproximou-se de Joan. A rapariga baixou os olhos, perturbada pela severidade que se lia nos olhos do sacerdote. Quando o frade deu por terminado o seu exame, Arnau apresentou-lhe Guillem.

— Guillem — disse Arnau. — Já te falei muito dele nas minhas cartas.

— Sim — Joan não fez menção de estender a mão e Guillem retirou a sua, que tinha estendido para ele. — Cumpres com as tuas obrigações cristãs? — perguntou-lhe.

— Sim...

— Frei Joan — acrescentou Joan.

— Sim, frei Joan — repetiu Guillem.

— E aquela é Donaha — interveio rapidamente Arnau. Joan anuiu sem sequer olhar para ela.

— Bem — disse dirigindo-se a Mar e indicando-lhe com o olhar que podia sentar-se —, és então a filha de Ramon, não é verdade? O teu pai foi um grande homem, trabalhador e cristão temeroso de Deus, como todos os bastaixos. —. Joan olhou para Arnau. — Rezei muito por ele desde que Arnau me disse que tinha morrido. Que idade tens, rapariga? Arnau mandou Donaha servir a ceia e sentou-se à mesa. Então, deu-se conta de que Guillem continuava de pé, afastado da mesa, como se não se atrevesse a sentar-se diante do novo convidado.

— Senta-te, Guillem — pediu-lhe. — A minha mesa é tua.

Joan não se mexeu.

O jantar decorreu em silêncio. Mar estava invulgarmente calada, como se a presença daquele recém-chegado lhe tivesse tirado a espontaneidade. Joan, por seu lado, comeu frugalmente.

— Conta-me, Joan — disse-lhe Arnau quando acabaram. — Que é feito de ti? Quando regressaste?

— Aproveitei o regresso do rei. Tomei um navio até à Sardenha quando soube da vitória e daí vim para Barcelona.

— Viste o rei?

— Não me recebeu.

Mar pediu licença para se retirar. Guillem imitou-a. Ambos se despediram de frei Joan. A conversa prolongou-se até de madrugada; em frente de uma garrafa de vinho doce, os dois irmãos recuperaram os treze anos de separação.

 

Para tranquilidade da família de Arnau, Joan decidiu mudar-se para o convento de Santa Catarina.

— Lá é que é o meu lugar — disse ao irmão. — Mas virei visitar-vos todos os dias.

Arnau, a quem não tinha passado despercebido que tanto a sua afilhada como Guillem se tinham sentido pouco à vontade durante o jantar da noite anterior, não insistiu mais do que o estritamente necessário.

— Sabes o que me disse? — sussurrou a Guillem ao meio-dia, depois de almoçarem, quando todos se levantavam da mesa. Guillem aproximou o ouvido. — Perguntou-me o que temos feito para casar Mar.

Guillem, sem mudar de posição, olhou para a rapariga, que estava a ajudar Donaha a levantar a mesa. Casá-la? Mas se era apenas uma... Uma mulher! Guillem virou-se para Arnau. Nenhum deles a tinha olhado como agora faziam.

— Para onde foi a nossa menina? — sussurrou Arnau para o amigo.

Os dois voltaram a olhar para Mar: ágil, bonita, serena e segura.

Entre um prato e outro, Mar olhou também para eles durante um momento.

O seu corpo mostrava já a sensualidade de uma mulher as curvas marcavam-se com clareza e o peito destacava-se por debaixo da camisa. Tinha catorze anos.

Mar tornou a olhar para eles e viu-os embasbacados. Desta vez, não sorriu; pareceu incomodar-se, mas foi apenas por um instante.

— Que estão vocês a olhar? — disparou. — Por acaso não têm nada que fazer? — acrescentou, de pé diante de ambos, muito séria.

Os dois anuíram ao mesmo tempo. Não havia dúvida: tornara-se uma mulher.

— Terá o dote de uma princesa — comentou Arnau para Guillem, já na mesa da câmbio. — Dinheiro, roupa e uma casa... Não, um palácio! — Bruscamente, virou-se para o amigo. — Que novidades há dos Puig?

— Vai deixar-nos... — murmurou Guillem, não fazendo caso da pergunta de Arnau.

Ficaram ambos em silêncio.

— Há-de dar-nos netos — disse por fim Arnau.

— Não te deixes enganar. Dará filhos ao marido. Além disso, se nós, escravos, não temos filhos, muito menos temos netos.

— Quantas vezes te ofereci já a liberdade?

— Que faria eu sendo livre? Estou bem como estou. Mas Mar... Casada! Não sei porquê, mas garanto-te que já começo a odiá-lo, seja ele quem for.

— Também eu — murmurou Arnau.

Viraram-se um para o outro, sorriram, e depois desataram a rir às gargalhadas.

- Não me respondeste — disse Arnau quando recuperaram a compostura. — Que novidades há dos Puig? Quero aquele palácio para Mar.

- Mandei instruções para Pisa, para Filippo Tescio. Se há alguém no mundo que possa fazer o que queremos, é Filippo.

— Que lhe disseste?

- Que contratasse corsários, se preciso fosse, mas que as comandas dos Puig não deviam chegar a Barcelona, nem as que saíssem de Barcelona deviam chegar ao seu destino. Que roubasse as mercadorias ou as incendiasse, o que quisesse, mas que não chegassem ao destino.

— Respondeu-te?

— Filippo? Nunca o faria. Não o faria por escrito nem confiaria esse encargo a ninguém. Se alguém se apercebesse... Há que esperar que acabe a época de navegação. Falta pouco menos de um mês. Se nessa altura não tiverem chegado as comandas de Puig, não poderão fazer face às suas obrigações; estarão arruinados.

— Comprámos os créditos deles?

— És o maior credor de Grau Puig.

— Devem estar a sofrer — murmurou Arnau para si próprio.

— Não os viste? — Arnau virou-se rapidamente para Guillem. — Desde há muito tempo que andam na praia. Antes estava lá sempre a baronesa e um dos filhos; agora juntou-se-lhes Genís, que regressou da Sardenha. Passam as horas vasculhando o horizonte, à espera de um mastro... e quando aparece algum e chega ao porto algum navio que não é o que esperavam, a baronesa maldiz as ondas. Pensei que soubesses...

— Não, não sabia — Arnau deixou passar alguns instantes. — Avisa-me assim que chegar ao porto algum dos nossos barcos.

— Chegam vários navios juntos — disse-lhe Guillem certa manhã, de regresso do Consulado.

— Estão lá?

— Claro. A baronesa está tão perto da água que as ondas lhe molham os sapatos... — Guillem calou-se de repente. — Desculpa, não queria...

Arnau sorriu.

— Não te preocupes — tranquilizou-o.

Arnau subiu ao seu quarto e vestiu as melhores roupas que tinha, lentamente. Por fim, Guillem conseguira convencê-lo a comprá-las.

— Uma pessoa de prestígio como tu -— dissera-lhe — não pode apresentar-se mal vestida na Câmara ou no Consulado. O rei assim ordena, e até mesmo os vossos santos; São Vicente, por exemplo...

Arnau mandou-o calar-se, mas cedeu. Pôs uma camisa branca sem mangas, de tecido de Malinas, forrada a pele, uma cota até aos pés, de seda vermelha damasquinada, meias pretas e sapatos de seda pretos. Com um largo cinturão bordado a fio de ouro e pérolas, cingiu a cota à cintura. Completou tudo com um fantástico manto negro que Guillem lhe conseguira de uma expedição para lá da Dácia, forrado a arminho e bordado a ouro e pedras preciosas.

Guillem aprovou quando o viu passar diante da mesa. Mar ia para dizer qualquer coisa, mas acabou por se manter calada. Viu que Arnau saía porta fora; depois correu para la ficou a ver, da rua, como ele se dirigia para a praia, com a manto ondulando na brisa marinha que subia de Santa Maria e com as pedras preciosas envolvendo-o em fulgores.

- Aonde vai Arnau? — perguntou a Guillem depois de regressar à mesa e de se sentar numa das cadeiras de visita, em frente a ele.

— Vai cobrar uma dívida.

— Deve ser muito importante.

— Muito mesmo, Mar — Guillem cerrou os lábios. — No entanto, este vai ser apenas o primeiro pagamento.

Mar começou a brincar com o ábaco de marfim. Quantas vezes, escondida na cozinha, assomando apenas a cabeça, vira como Arnau trabalhava com ele? Sério, concentrado, movendo os dedos sobre as contas e fazendo anotações nos livros. Mar sacudiu o calafrio que lhe percorreu a espinha.

— Que tens? — inquiriu Guillem.

— Nada... nada.

E porque não havia de lhe contar? Guillem poderia compreendê-la, disse a rapariga para si própria. Com excepção de Donaha, que escondia um sorriso de cada vez que ela ia à cozinha para espiar Arnau, ninguém mais sabia. Todas as raparigas que se reuniam em casa do mercador Escales falavam do mesmo. Algumas até estavam já comprometidas, e não paravam de elogiar as virtudes dos seus futuros maridos. Mar ouvia-as e fugia das perguntas que lhe faziam. Como poderia falar de Arnau? E se ele se apercebesse? Arnau tinha trinta e cinco anos, e ela apenas catorze. Havia uma rapariga a quem tinham prometido um homem ainda mais velho que Arnau! Teria gostado de poder contar isso a alguém. As suas amigas podiam falar de dinheiro, de porte, de atractivos, de honestidade ou de generosidade, mas Arnau superava-os a todos! Por acaso não contavam os bastaixos que Mar via na praia, que Arnau tinha sido um dos soldados mais valentes do rei Pedro? Mar tinha descoberto as velhas armas de Arnau, a balestra e o punhal dele, no fundo de um baú, e quando estava sozinha pegava nelas e acariciava-as imaginando-o rodeado de inimigos, lutando como os bastaixos lhe tinham contado que tinha feito.

Guillem olhou para a rapariga. Mar passava a ponta de um dedo por uma da bolas de marfim do ábaco. Estava muito quieta, com o olhar perdido. Dinheiro? Tinha-o a rodos. Toda a Barcelona sabia disso. E quanto a bondade...

— De certeza que não se passa nada? — tornou a perguntar-lhe Guillem, sobressaltando-a.

Mar corou. Donaha dizia que qualquer um podia ler os seus pensamentos, que levava o nome de Arnau nos lábios, nos olhos, em todo o seu rosto. E se Guillem tivesse também lido isso?

— Não... — repetiu. — De certeza.

Guillem moveu as contas do ábaco e Mar sorriu-lhe... com tristeza? Que se passaria na cabeça da rapariga? Talvez frei Joan tivesse razão; já estava em idade núbil, era uma mulher fechada com dois homens...

Mar afastou o dedo do ábaco.

— Guillem...

— Diz. Calou-se.

— Nada, nada — disse por fim, levantando-se. Guillem seguiu-a com o olhar enquanto ela abandonava a mesa; custava-lhe aceitar, mas provavelmente o frade tinha razão.

Aproximou-se deles. Tinha ido até à beira da água enquanto os barcos, três galeras e um baleeiro, entravam no porto. O baleeiro era propriedade sua. Isabel, de preto, segurando o chapéu com uma mão, e os seus enteados Josep e Genís, ao lado, todos de costas para ele, observavam a entrada dos navios. Não trazem o vosso consolo, pensou Arnau.

Bastaixos, barqueiros e mercadores calaram-se ao verem passar Arnau, vestido de gala.

«Olha para mim, harpia!» Arnau esperou a alguns passos da orla. «Olha para mim! Da última vez que o fizeste...» A baronesa voltou-se, lentamente; depois, os filhos fizeram o mesmo. Arnau respirou fundo. «Da última vez que o fizeste, o meu pai estava pendurado por cima da minha cabeça.»

Bastaixos e barqueiros murmuravam entre si.

— Precisas de alguma coisa, Arnau? — perguntou-lhe um dos próceres.

Arnau negou com a cabeça, com o olhar fixado nos olhos da mulher. As pessoas afastaram-se e ele ficou em frente à baronesa e aos primos.

Voltou a respirar fundo. Cravou os olhos nos de Isabel, apenas por uns instantes; depois, passeou o olhar pelos primos, olhou para os navios e sorriu.

Os lábios da mulher contraíram-se antes de se virar para o mar, seguindo a direcção marcada por Arnau. Quando olhou de novo para ele, foi para o ver afastar-se; as pedrarias da sua capa refulgiam.

Joan continuava empenhado em casar Mar e propôs vários candidatos; não lhe foi difícil encontrá-los. Bastava falar da quantia do dote de Mar, que nobres e mercadores acorriam à chamada, mas... como dizer isso à rapariga? Joan ofereceu-se para o fazer, mas quando Arnau comentou isso com Guillem, o mouro opôs-se redondamente.

— Deves ser tu a fazê-lo — disse. — E não um frade que ela mal conhece.

Desde que Guillem lhe dissera isto, Arnau perseguia Mar com o olhar, onde quer que a rapariga estivesse. Conhecia-a? Havia anos que conviviam, mas na realidade era Guillem quem se tinha ocupado dela. Ele tinha-se simplesmente limitado a desfrutar da presença dela, dos seus risos e das suas brincadeiras. Nunca falara com ela de nenhum assunto sério. E agora, cada vez que pensava em aproximar-se da rapariga e em pedir-lhe que o acompanhasse a dar um passeio pela praia, ou, porque não, a Santa Maria, de cada vez que pensava em dizer-lhe que tinham de tratar de um assunto sério, encontrava-se perante uma mulher desconhecida... e hesitava, até que ela própria o surpreendia a olhá-la, e sorria-lhe. Onde estava a criança que se empoleirava nos seus ombros?

— Não quero casar com nenhum deles — respondeu-lhes.

Arnau e Guillem olharam-se. Por fim, pedira a ajuda de Guillem.

— Tens de me ajudar — pediu.

Os olhos de Mar iluminaram-se quando lhe falaram de casamento, eles os dois atrás da mesa de câmbios, ela em frente, como se de uma operação mercantil se tratasse. Mas depois negou com a cabeça perante cada um dos cinco candidatos que Joan lhes tinha proposto.

— Mas, minha menina — interveio Guillem —, algum terás de escolher. Qualquer rapariga ficaria orgulhosa dos nomes que te mencionámos.

Mar tornou a fazer que não com a cabeça.

- Não me agradam.

- Pois, mas alguma coisa será preciso fazer — disse de novo Guillem, dirigindo-se a Arnau.

Arnau olhou para a rapariga. Estava quase a chorar. Escondia a cara, mas o tremor do seu lábio inferior e a respiração agitada denunciavam-na. Porque reagiria assim uma rapariga a quem acabavam de propor tais homens? O silêncio prolongou-se. Por fim, Mar levantou o olhar para Arnau, apenas num imperceptível movimento das pálpebras. Porque a fazia sofrer?

— Continuaremos a procurar até encontrarmos algum que lhe agrade — respondeu Guillem. — Estás de acordo, Mar?

A rapariga assentiu com a cabeça, levantou-se e saiu, deixando os dois homens para trás. Arnau suspirou.

— E eu que julgava que o difícil ia ser dizer-lho! Guillem não respondeu. Continuava com o olhar fixo na porta da cozinha, por onde Mar tinha desaparecido. Que se passava? Que escondia a sua menina? Sorrira ao ouvir a palavra «casamento», olhara-o com os olhos faiscantes, e depois...

— Vais ver como o Joan vai ficar quando souber — acrescentou Arnau.

Guillem virou-se para Arnau, mas conteve-se a tempo. Que importava o que pensava o frade?

— Tens razão. O melhor é continuarmos à procura.

Arnau virou-se para Joan.

— Por favor — disse-lhe —, não é o momento.

Entrara em Santa Maria para se acalmar. As notícias não eram boas e ali, com a sua Virgem, com o constante martelar dos operários, com o sorriso de todos os que trabalhavam na obra, sentia-se à vontade. Mas Joan encontrara-o e colara-se a ele. Mar para aqui, Mar para ali. No fim de contas, não lhe dizia respeito.

— Que razões pode ter para se opor ao casamento? — insistia Joan.

— Não é agora o momento, Joan — repetiu Arnau.

— Porquê?

— Porque acabam de nos declarar outra guerra — o frade sobressaltou-se. — Não sabias? O rei Pedro, o Cruel, de Castela, acaba de nos declarar a guerra.

— Porquê?

Arnau abanou a cabeça.

— Porque há muito tempo que já tinha vontade de o fazer — clamou, agitando os braços. — A desculpa foi que o nosso almirante Francesc de Perellós apresou em frente às costas de Sanlúcar dois navios genoveses que transportavam azeite. O castelhano exigiu a sua libertação e, como o almirante fez ouvidos surdos, declarou-nos a guerra. Esse homem é perigoso — murmurou Arnau. — Tenho ouvido dizer que ganhou a pulso o seu cognome; é rancoroso e vingativo. Percebes o que isto é, Joan? Neste momento estamos em guerra contra Génova e Castela ao mesmo tempo. Parece-te o momento indicado para andar às voltas com a rapariga? — Joan hesitou. Encontravam-se debaixo da pedra de chave da terceira abóbada da nave central, rodeados pelos andaimes de onde sairiam as nervuras. — Lembraste? — perguntou-lhe Arnau apontando para a pedra de chave. Joan ergueu os olhos e anuiu. Eram apenas umas crianças quando tinham visto como içavam a primeira daquelas pedras! Arnau esperou uns instantes e depois prosseguiu: — A Catalunha não vai poder suportar isto. Ainda estamos a pagar a campanha contra a Sardenha e já se nos abre outra frente.

— Julgava que os comerciantes eram partidários das conquistas.

— Castela não nos abrirá nenhuma rota comercial. A situação é grave, Joan. Guillem tinha razão — O frade fez uma careta ao ouvir o nome do mouro. — Ainda nem acabámos de conquistar a Sardenha e os Corsos sublevaram-se; fizeram--no assim que o rei abandonou a ilha. Estamos em guerra contra duas potências e o rei esgotou todos os seus recursos. Até os conselheiros da cidade parecem ter enlouquecido!

Começaram a andar para o altar-mor.

— Que queres dizer?

— Quero dizer que o tesouro não aguentará. O rei continua com as suas grandes construções: os estaleiros reais e amnova muralha...

— Mas são necessárias — alegou Joan, interrompendo o irmão.

— Os estaleiros, talvez, mas a nova muralha não faz sentido depois da peste. Barcelona não precisa de ampliar esta muralha.

— E?

— E então, o rei continua a esgotar os seus recursos. Para a construção das muralhas obrigou todas as povoações dos arredores a contribuírem, para o caso de algum dia terem de se refugiar atrás delas; depois, criou um novo imposto destinado à construção: uma quadragésima parte de todas as heranças deverá destinar-se à ampliação das muralhas.

E quanto aos estaleiros, todas as multas cobradas pelos consulados são dedicadas à sua construção. E agora, é uma nova guerra.

— Barcelona é rica.

— Já não é, Joan. Esse é que é o problema. O rei cedeu privilégios à medida que a cidade concedia recursos, e os conselheiros meteram-se em tais gastos que agora não podem financiá-los. Aumentaram os impostos sobre a carne e o vinho. Sabes que parte do orçamento municipal cobria esses impostos? — Joan fez que não. — Cinquenta por cento de todos os gastos municipais. E agora sobem-nos. As dívidas do município vão levar-nos à ruína, Joan, a todos nós.

Ficaram os dois pensativos diante do altar-mor.

— Que novidades há de Mar? — insistiu Joan quando se decidiram a abandonar Santa Maria.

— Fará o que quiser, Joan, o que quiser.

— Mas...

— Sem mas. É a minha decisão.

— Bate — pediu Arnau.

Guillem bateu com a aldraba sobre a madeira do portão. O som retumbou pela rua deserta. Ninguém veio abrir.

— Torna a bater.

Guillem começou a bater na porta, uma, duas... sete, oito vezes; à nona, abriu-se um postigo.

— Que se passa? — perguntaram os olhos que apareceram. — A que se deve esta barulheira? Quem sois?

Mar, agarrada ao braço de Arnau, sentiu que ele ficava

tenso.

— Abre! — ordenou Guillem.

- Quem mo pede?

- Arnau Estanyol — respondeu com gravidade Guillem -, proprietário deste edifício e de tudo o que há dentro dele- incluída a tua pessoa, se fores escravo.

«Arnau Estanyol, proprietário deste edifício...» As palavras de Guillem ressoaram nos ouvidos de Arnau. Quanto tempo tinha passado? Vinte anos? Vinte e dois? Do outro lado do postigo, os olhos hesitaram.

— Abre! — insistiu Guillem, gritando.

Arnau ergueu os olhos para o céu, pensando no pai.

— Que... — começou a perguntar-lhe a rapariga.

— Nada, nada — respondeu sorrindo Arnau no momento em que a porta para acesso de pessoas recortada num dos portões começou a abrir-se.

Guillem ofereceu-lhe a passagem.

— Os portões, Guillem. Que abram os dois portões. Guillem entrou e, de fora, Arnau e Mar ouviram-no a dar ordens. «Estás a ver-me, pai? Lembras-te? Foi aqui que te entregaram a bolsa de dinheiro que te perdeu. Que podias tu ter feito então?» A revolta da Praça do Blat regressou-lhe então à memória; os gritos das pessoas, os gritos do pai, todos pedindo cereal! Arnau sentiu que se lhe fazia um nó na garganta. Os portões abriram-se de par em par e Arnau entrou.

Vários escravos encontravam-se no pátio de entrada. A sua direita, a escadaria que levava aos andares nobres. Arnau não olhou para cima, mas Mar fê-lo, e conseguiu ver umas sombras que se moviam por detrás das janelas. A frente deles estavam duas cavalariças, com os palafreneiros parados à entrada. Santo Deus! Um tremor percorreu o corpo de Arnau, que se apoiou em Mar. A rapariga parou de olhar para cima.

— Toma — disse Guillem, oferecendo-lhe um pergaminho enrolado.

Arnau não lhe pegou. Sabia o que era. Aprendera de cor o seu conteúdo desde que Guillem lho mostrara no dia anterior. Era o inventário dos bens de Grau Puig, que o regedor lhe outorgava em pagamento dos seus créditos: o palácio, os escravos — Arnau procurou em vão por entre os nomes mas não estava lá o de Estranya —, algumas propriedades fora de Barcelona, entre as quais se encontrava uma insignificante casa em Navarcles que decidiu deixar-lhes, para que lá vivessem. Algumas jóias, duas parelhas de cavalos com os respectivos arreios, uma carruagem, vestidos e trajes, panelas e pratos, tapetes e móveis, tudo o que se encontrava dentro do palácio aparecia arrolado naquele pergaminho enrolado que Arnau lera uma e outra vez na noite anterior.

Tornou a observar a entrada das cavalariças e depois passeou o olhar por todo o pátio empedrado... até ao pé das escadas.

— Subimos? — perguntou Guillem.

— Subimos. Leva-me perante os teus senho... perante Grau Puig — corrigiu-se, dirigindo-se a um escravo.

Percorreram o palácio; Mar e Guillem observavam tudo, Arnau olhava em frente. O escravo levou-os até ao salão principal.

— Anuncia-me — disse Arnau a Guillem antes de abrir as portas.

— Arnau Estanyol! — gritou o amigo, abrindo-as. Arnau não se lembrava de como era o salão principal do palácio. Nem sequer olhara quando, em jovem, o percorrera... de joelhos. Também agora não o fazia. Isabel estava sentada num cadeirão junto a uma das janelas; ao seu lado, de pé Josep e Genís. O primeiro, tal como a sua irmã Margarida tinha casado. Genís continuava solteiro. Arnau procurou a família de Josep. Não estava ninguém. Noutro cadeirão, viu Grau Puig, envelhecido e babando-se.

Isabel olhava-o com os olhos incendiados.

Arnau postou-se no meio do salão, junto a uma mesa de jantar, de madeira nobre, com o dobro do comprimento da sua mesa de cambista. Mar ficou junto de Guillem, atrás dele. Nas portas do salão juntaram-se os escravos.

Arnau falou suficientemente alto para que a sua voz ecoasse em toda a sala.

— Guillem, aqueles sapatos são meus — disse, apontando para os pés de Isabel. — Tirem-lhos.

— Sim, senhor.

Mar virou-se, sobressaltada, para o mouro. Senhor? Conhecia o estatuto de Guillem, mas nunca antes o tinha ouvido dirigir-se a Arnau em tais termos.

Com um sinal, Guillem chamou dois dos escravos que olhavam da ombreira da porta, e os três encaminharam-se para Isabel. A baronesa continuava altiva, enfrentando o olhar de Arnau.

Um dos escravos ajoelhou-se, mas antes que a tocasse, Isabel descalçou-se em silêncio e deixou cair os sapatos no chão, sem deixar de olhar por um segundo para Arnau.

— Quero que recolhas todos os sapatos que haja nesta casa e lhes deites fogo no pátio — disse Arnau.

— Sim, meu senhor — tornou a responder Guillem. A baronesa continuava a olhá-lo com altivez.

— Esses cadeirões — Arnau apontou para os assentos dos Puig —, levem-nos daqui.

— Sim, senhor.

Grau foi pegado em braços pelos filhos. A baronesa levantou-se antes que os escravos pegassem no cadeirão e levassem, junto com os restantes, para um dos cantos do salão

Mas continuava a olhá-lo.

— Esse vestido é meu. Teria ela tremido?

— Não pretenderás que... — começou a dizer Genís Puig, endireitando-se, ainda com o pai nos braços.

— Esse vestido é meu — repetiu Arnau, interrompendo-o, sem deixar de olhar para Isabel.

Tremia?

— Mãe — interveio Josep —, vai mudar de roupa. — Tremia.

— Guillem — gritou Arnau.

— Mãe, por favor!

Guillem aproximou-se da baronesa. Tremia!

— Mãe!

— E que queres que vista? — gritou Isabel dirigindo-se ao enteado.

Isabel virou-se de novo para Arnau, tremendo. Guillem também olhou para ele. «Queres mesmo que lhe tire o vestido?», perguntava com os olhos.

Arnau franziu o sobrolho e, pouco a pouco, muito lentamente, Isabel baixou os olhos para o chão, chorando de raiva.

Arnau fez um sinal a Guillem e deixou passar alguns momentos enquanto os soluços de Isabel preenchiam o salão principal do palácio.

— Esta mesma noite — disse por fim, dirigindo-sa a Guillem — quero este edifício vazio. Diz-lhes que podem regressar a Navarcles, de onde nunca deviam ter saído. — Josep e Genís olharam para ele; Isabel continuava a soluçar. — Não me interessam essas terras. Dá-lhes roupas dos escravos mas não calçado; queima-o todo. Vende tudo e fecha esta casa.

Arnau virou-se e deu de caras com Mar. Esquecera-se dela. A rapariga estava transtornada. Pegou-lhe no braço e saiu com ela.

— Já podes fechar estas portas — disse ao velho que lhas tinha aberto.

Andaram em silêncio até à casa de câmbio, mas, antes de entrarem, Arnau deteve-se.

__Um passeio pela praia?

Mar anuiu.

— Já cobraste a tua dívida? — perguntou-lhe quando começavam já a ver o mar.

— Nunca poderei cobrá-la, Mar — a rapariga ouviu-o murmurar ao fim de um momento. — Nunca.

 

9 de Junho de 1359 , Barcelona

Arnau trabalhava na mesa de câmbios. Encontravam-se em plena época de navegação. Os negócios iam de vento em popa e Arnau tornara-se uma das primeiras fortunas da cidade. Continuavam a viver na pequena casa da esquina de Canvis Vells com Canvis Nous, com Mar e Donaha. Arnau não dera ouvidos aos conselhos de Guillem de que se mudassem para o palácio dos Puig, que permanecia fechado há quatro anos. Pelo seu lado, Mar era tão teimosa quanto Arnau, e não tinha ainda consentido em contrair matrimónio.

— Porque queres afastar-me de ti? — perguntou-lhe um dia, com os olhos marejados de lágrimas.

— Eu... — hesitou Arnau. — Eu não quero afastar-te de mim!

Ela continuou a chorar e procurou o ombro dele.

— Não te preocupes — disse-lhe Arnau, acariciando-lhe a cabeça —, nunca te obrigarei a fazer o que não queiras.

E Mar continuava a viver com eles.

Nesse dia, 9 de Junho, começou a repicar um sino. Arnau parou de trabalhar. No mesmo momento, somou-se-lhe mais um sino, depois outro, e depois muitos mais.

- Via fora — comentou Arnau.

Saiu para a rua. Os operários de Santa Maria desciam vertiginosamente dos andaimes; pedreiros e canteiros saíam nelo portão maior e as pessoas corriam pelas ruas com o Via fora! nos lábios.

Nesse momento, encontrou-se com Guillem, que caminhava apressado, alterado.

— Guerra! — gritou.

— Estão a convocar a host — disse Arnau.

— Não... Não — Guillem fez uma pausa para recobrar o fôlego. — Não é a host da cidade. É a de Barcelona e de todas as vilas e aldeias num raio de duas léguas. Não é só a de Barcelona.

Eram as de Sant Boi e Badalona. As de Sant Andreu e Sarrià; Provençana, Sant Feliu, Sant Genís, Cornélia, Sant Just Desvern, Sant Joan Despi, Sants, Santa Coloma, Esplugues, Vallvidrera, Sant Marti, Sant Adrià, Sant Gervasi, Sant Joan d'Horta... O repique dos sinos retumbava sobre Barcelona até duas léguas de distância.

— O rei invocou o usatge princeps namque — continuou Guillem. — Não é a cidade. É o rei! Estamos em guerra! Atacam-nos. O rei Pedro de Castela ataca-nos...

— Barcelona? — interrompeu-o Arnau.

— Sim. Barcelona.

Os dois entraram em casa a correr.

Quando saíram, Arnau equipado como quando servira Eiximèn d'Esparça, dirigiram-se à Rua de la Mar para chegarem à praça do Blat; no entanto, as pessoas desciam a rua, gritando o via fora, em vez de a subirem.

— Que... — tentou perguntar Arnau, segurando por um traço um dos homens armados que corriam rua abaixo.

— Para a praia! — gritou o homem, libertando-se da mão de Arnau. — Para a praia!

— Por mar? — perguntaram-se Arnau e Guillem um ao outro.

Os dois somaram-se à multidão que corria para a praia.

Quando chegaram, os barceloneses começavam a apinhar-se na praia, com os olhos postos no horizonte, armados com as suas balestras e com o repique dos sinos nos ouvidos. O via fora! foi perdendo força e os cidadãos acabaram por ficar em silêncio.

Guillem levou a mão à testa para se proteger do forte sol de Junho e começou a contar os navios: um, dois, três, quatro... O mar estava calmo.

— Vão aniquilar-nos — ouviu Arnau atrás de si.

— Vão arrasar a cidade!

— Que poderemos fazer contra um exército?

Vinte e sete, vinte e oito... Guillem continuava a contar.

«Vão arrasar-nos», repetiu Arnau para si. Quantas vezes falara disso com mercadores e comerciantes? Barcelona estava indefesa por mar. Desde Santa Clara até Framenors, a cidade abria-se para o mar, sem qualquer defesa. Se uma armada chegasse a entrar no porto...

— Trinta e nove... e quarenta. Quarenta navios! — exclamou Guillem.

Trinta galeras e dez lenhos, todos armados. Era a armada de Pedro, o Cruel. Quarenta navios carregados de homens curtidos, guerreiros veteranos, contra cidadãos transformados de repente em soldados. Se conseguissem desembarcar, lutar-se-ia na própria praia, nas ruas da cidade. Arnau sentiu um calafrio ao pensar nas mulheres e crianças... Em Mar. Derrotá-los-iam! Saqueariam. Violariam as mulheres. Mar!

Apoiou-se em Guillem ao voltar a pensar nela. Era jovem bela. Imaginou-a em poder dos castelhanos, gritando, pedindo ajuda... Onde estaria ele então?

A praia continuava a encher-se de gente. O próprio rei acorreu à praia e começou a dar ordens aos seus soldados.

- O rei! — gritou alguém.

E que podia fazer o rei?, esteve quase a replicar Arnau.

Desde há três meses que o rei se encontrava na cidade, preparando uma armada para ir em defesa de Maiorca, que Pedro, o Cruel, ameaçara atacar. No porto de Barcelona havia apenas dez galeras — o resto da frota ainda estava para chegar — e lutariam no próprio porto!

Arnau abanou a cabeça com o olhar fixo nas velas que pouco a pouco se aproximavam da costa. O de Castela tinha conseguido enganá-los. Desde que começara a guerra, as batalhas e as tréguas tinham-se ido alternando. Pedro, o Cruel, atacou primeiro o reino de Valência e depois o de Aragão, de onde tomou Tarazona, com o que ameaçou directamente Saragoça. A Igreja interveio e Tarazona entregou-se ao cardeal Pedro de la Jugie, que deveria arbitrar a qual dos reis correspondia a cidade. Também se assinara uma trégua de um ano, que não incluía, no entanto, as fronteiras dos reinos de Múrcia e de Valência.

Durante a trégua, o Cerimonioso conseguira convencer o seu meio-irmão Ferrán, aliado então do de Castela, a que o atraiçoasse, e, depois de o fazer, o infante atacara e saqueara o reino de Múrcia até chegar a Cartagena.

Da própria praia, o rei Pedro ordenou que aparelhassem as dez galeras e que os cidadãos de Barcelona e das vilas limítrofes, que já começavam a chegar à praia, embarcassem juntamente com os poucos soldados que o acompanhavam Todas as barcas, pequenas ou grandes, mercantes ou de pesca, deviam sair ao encontro da esquadra castelhana.

— É uma loucura — comentou Guillem, observando como as pessoas se lançavam para as barcas. — Qualquer uma daquelas galeras abordará os nossos barcos e os partirá em dois. Morrerá muita gente.

Ainda faltava bastante para que a frota castelhana chegasse ao porto.

— Não terá piedade — ouviu Arnau atrás de si. —Vai destroçar-nos.

Pedro, o Cruel, não teria piedade. A sua fama era bem conhecida: executara os seus irmãos bastardos, Frederico em Sevilha e Juan em Bilbau, e um ano depois, a sua tia Leonor, depois de a manter presa todo esse tempo. Que piedade poderia esperar-se de um rei que matava os seus próprios parentes? 0 Cerimonioso não matara Jaime de Maiorca, apesar das suas muitas traições e das guerras que os tinham colocado em confronto.

— Seria melhor organizar a defesa em terra — comentou Guillem, gritando e aproximando-se do seu ouvido. — Por mar, é impossível fazê-lo. Assim que os castelhanos passem as tasques, arrasam-nos.

Arnau concordou. Porque se empenhava o rei em defender a cidade por mar? Guillem tinha razão: assim que passassem as tasques...

— As tasques!— gritou Arnau. — Que navio temos no porto?

— Que pretendes?

— As tasques, Guillem! Não entendes? Que barco temos?

— Aquele baleeiro — respondeu-lhe, apontando para um imenso e pesado barco bojudo.

__Vamos, não há tempo a perder.

Arnau começou a correr de novo para o mar, misturando-se na multidão que fazia o mesmo. Olhou para trás, para dizer a Guillem que acelerasse o passo.

A orla tornara-se um formigueiro de soldados e barceloneses, metidos na água até à cintura; uns tentavam subir para as pequenas barcas de pesca que já saíam para o mar, outros esperavam que chegasse algum barqueiro para que os levasse para qualquer um dos grandes navios de guerra ou mercantes fundeados no porto.

Arnau viu chegar um deles.

— Vamos! — gritou a Guillem, metendo-se na água, tentando adiantar-se a todos os que se dirigiam para a barca.

Quando lá chegaram, a barca estava a transbordar, mas o barqueiro reconheceu Arnau e arranjou-lhes lugar.

— Leva-me ao baleeiro — disse-lhe quando o homem ia a dar ordem para partirem.

— Primeiro, as galeras. É essa a ordem do rei...

— Leva-me ao baleeiro! — instou-o Arnau. O barqueiro inclinou a cabeça. Os homens da barca começaram a queixar-se. — Silêncio! — gritou Arnau. — Tu conheces-me. Tenho de chegar ao baleeiro. Barcelona... a tua família depende disso. Todas as vossas famílias podem depender disso!

O barqueiro olhou para o grande navio bojudo. Tinha apenas de desviar-se um pouco. Porque não? Porque havia de estar a enganá-lo Arnau Estanyol?

— Para o baleeiro! — ordenou aos remadores. Enquanto Arnau e Guillem se agarravam às escadas que 0 piloto do baleeiro lhes lançara, o barqueiro rumou à galera mais próxima.

— Todos os homens aos remos! — ordenou Arnau ao piloto, mal chegou à coberta.

O homem fez um gesto aos remadores, que se colocaram de imediato nos seus bancos.

— Que fazemos? — perguntou.

— Para as tasques — respondeu Arnau. Guillem concordou

— Que Alá, o seu nome seja louvado, queira que te corra bem.

Mas se Guillem conseguira perceber a intenção de Arnau, tal não aconteceu com o exército e os cidadãos de Barcelona. Quando viram como o baleeiro se punha em movimento, sem soldados, sem homens armados, rumo ao alto-mar, alguém disse:

— Quer salvar o seu navio. — Judeu! — gritou outro.

— Traidor!

Muitos outros se juntaram aos insultos e, daí a pouco, a praia inteira clamava contra Arnau. Que se propunha fazer Arnau Estanyol? — interrogavam-se os bastaixos, todos com os olhos postos no barco bojudo que avançava lentamente, ao ritmo de mais de uma centena de remos que caíam na água para voltarem a subir, uma e outra vez, uma e outra vez.

Arnau e Guillem colocaram-se na proa, de pé, com a atenção posta na armada castelhana, que começava a aproximar-se perigosamente, mas, quando passaram junto às galeras catalãs, uma chuva de flechas obrigou-os a esconder-se. Voltaram a pôr-se de pé, depois de ficarem fora do seu alcance.

— Vai correr bem — disse Arnau para Guillem. — Barcelona não pode cair nas mãos desse canalha.

As tasques, uma cadeia de bancos de areia paralela à costa que impedia a entrada das correntes marítimas, eram a única

A fesa natural do porto de Barcelona, mas ao mesmo tempo representavam um perigo para os navios que tentavam arribar ao porto. Uma só entrada, na forma de um canal com calado suficiente, permitia a passagem dos navios; se não fosse através desse canal, os barcos encalhavam nos baixios. Arnau e Guillem aproximaram-se das tasques deixando atrás de si milhares de gargantas de onde saíam os mais obscenos insultos. Os gritos dos catalães conseguiam mesmo sobrepor-se ao repique dos sinos.

«Correrá bem», repetiu Arnau para consigo. Depois, ordenou ao piloto que os remadores deixassem de remar. Quando a centena de remos se levantou acima da borda e o baleeiro deslizou em direcção às tasques, os gritos e insultos começaram a abrandar, até que o silêncio reinou na praia. A armada castelhana aproximava-se cada vez mais. Por cima dos sinos, Arnau ouviu como a quilha do barco deslizava para os baixios.

— Tem de sair bem! — gritou. Guillem agarrou-lhe um braço e apertou-o. Era a primeira vez que lhe tocava daquela maneira.

O baleeiro continuou a deslizar, lentamente, muito lentamente. Arnau olhou para o piloto. «Estamos no canal?», perguntou-lhe com um simples sinal dos olhos. O piloto anuiu; desde que recebera ordens para pararem de remar que percebera o que Arnau queria fazer.

Toda a Barcelona já o sabia.

— Agora! — gritou Arnau. —Vira!

O piloto deu a ordem. Os remos de bombordo mergulharam no mar e o baleeiro começou a girar em círculo até que a popa e a proa encalharam nas paredes do canal.

O navio estacou.

Guillem apertou com mais força o braço de Arnau. Entreolharam-se os dois e Arnau puxou-o para si, para o abraçar, enquanto a praia e as galeras estalavam em vivas.

A entrada do porto de Barcelona tinha sido fechada.

Da orla da praia, armado para a batalha, o rei olhou para o baleeiro atravessado nas tasques. Nobres e cavaleiros permaneceram em seu redor, em silêncio, enquanto o rei contemplava a cena.

— Às galeras! — ordenou por fim.

Com o baleeiro de Arnau atravessado nas tasques, Pedro, o Cruel, organizou a sua armada para mar aberto. 0 Cerimonioso meteu-se pelas tasques adentro e, antes que anoitecesse, as duas frotas — uma de guerra, com quarenta navios armados e dispostos para o combate, e a outra mais pitoresca, com apenas dez galeras e dezenas de pequenos barcos mercantes ou de pesca carregados de cidadãos — encontraram-se frente a frente, ao longo de toda a linha da costa portuária, desde Santa Clara até Framenors. Ninguém podia entrar nem sair de Barcelona.

Nesse dia não houve batalha. Cinco das galeras de Pedro III dispuseram-se perto do baleeiro de Arnau e, à noite, os soldados reais, iluminados por uma Lua resplandecente, abordaram-no.

— Parece que a batalha decorrerá à nossa volta — comentou Guillem para Arnau, os dois sentados na coberta, protegidos das flechas dos balestreiros castelhanos.

— Tornámo-nos a muralha da cidade, e todas as batalhas começam nas muralhas. Nesse momento, aproximou-se um oficial real.

- Arnau Estanyol? — perguntou. Arnau fez-se mostrar, levantando uma mão. — O rei autoriza-o a abandonar o barco.

- E os meus homens?

- Os condenados às galeras? — Na semiescuridão, Arnau e Guillem conseguiram discernir a expressão de surpresa do oficial. Que lhe importaria uma centena de condenados? - Podem ser necessários aqui — respondeu de imediato o oficial.

— Nesse caso, fico — disse Arnau. — É o meu barco e são os meus homens. — O oficial encolheu os ombros e continuou a dispor as suas forças.

— Queres desembarcar tu? — perguntou Arnau a Guillem.

— Por acaso não sou mais um dos teus homens?

— Não, e sabes isso muito bem — ficaram os dois em silêncio durante alguns instantes, enquanto viam passar sombras e ouviam as correrias dos soldados que tomavam posições, e as ordens, dadas a meia-voz, quase sussurradas, dos oficiais. — Sabes que há muito tempo deixaste de ser escravo — prosseguiu Arnau. — Basta-te pedir a tua carta de liberdade e tê-la-ás.

Alguns soldados colocaram-se perto deles.

— Vão para os porões, como os outros — sussurrou-lhes um dos soldados, tentando ocupar o lugar deles.

— Neste barco, vamos onde quisermos — respondeu-Ihe Arnau. O soldado inclinou-se diante deles.

— Perdão — desculpou-se. — Todos vos agradecemos 0 que fizeram. — E procurou outro sítio junto à borda.

— Quando quererás ser livre? — tornou a perguntar Arnau.

— Não creio que soubesse ser livre. Ficaram os dois em silêncio. Quando já todos os soldados tinham abordado o baleeiro e ocupado os seus postos a noite começou a passar lentamente. Arnau e Guillem dormitaram por entre as tosses e os sussurros dos homens.

Ao amanhecer, Pedro, o Cruel, deu ordens para o ataque. A armada castelhana aproximou-se das tasques e os soldados do rei começaram a disparar as suas balestras e a lançar pedras com uns pequenos trabucos montados nas bordas e também com brigolas. A frota catalã fez o mesmo do outro lado dos baixios. Lutava-se ao longo da linha de costa, mas acima de tudo junto ao baleeiro de Arnau. Pedro III não podia permitir que abordassem o baleeiro e várias galeras, incluindo a real, tomaram posições perto dele.

Muitos homens morreram ao serem atingidos pelas flechas disparadas de um lado e do outro. Arnau recordava-se do silvo das flechas quando saíam disparadas da sua balestra, colocado atrás de uma rocha em frente ao castelo de Bellaguarda.

Umas gargalhadas sacudiram-no do seu devaneio. Quem podia estar a rir-se numa batalha? Barcelona estava em perigo e havia homens a morrer. Como era possível que alguém risse? Arnau e Guillem entreolharam-se. Sim, eram risos. Gargalhadas cada vez mais sonoras. Procuraram um sítio resguardado para verem a batalha. Os tripulantes de muitos barcos catalães, em segunda ou terceira linha, a coberto das flechas, troçavam dos castelhanos, gritavam-lhes e riam-se deles.

Dos seus navios, os castelhanos tentavam acertar-lhes com as suas brigolas, mas com tão pouca pontaria que as pedras caíam, uma após outra, no mar. Algumas pedras levantavam uma coluna de espuma ao caírem na água. Arnau e Guillem olharam um para o outro e sorriram. Os homens dos barcos tornaram a rir-se dos castelhanos e a praia de Barcelona, repleta de cidadãos transformados em soldados, somava-se aos risos.

Durante todo o dia, os catalães estiveram a troçar dos artilheiros castelhanos, que falhavam uma e outra vez.

— Não gostaria de estar na galera de Pedro, o Cruel — comentou Guillem para Arnau.

— Pois não — comentou este, rindo. — Nem quero pensar no que fará a esses aprendizes.

Essa noite nada teve que ver com a anterior. Arnau e Guillem puseram-se a cuidar dos muitos feridos do baleeiro, a curá-los e a ajudá-los a descer até às barcas que deviam levá-los para terra. Até ao baleeiro, as flechas dos castelhanos chegavam. Um novo contingente de soldados abordou o navio e, quando já quase tinha passado a noite, tentaram descansar um pouco para a nova jornada.

A primeira luz tornou a acordar as gargantas dos catalães, e os gritos, os insultos e os risos ecoaram de novo no porto de Barcelona.

Arnau tinha esgotado as suas flechas e, junto com Guillem, resguardados, dedicou-se a contemplar a batalha.

— Olha — disse-lhe o amigo, apontando para as galeras castelhanas. — Estão a aproximar-se muito mais do que ontem.

Era verdade. O rei de Castela tinha decidido terminar quanto antes com a troça dos catalães, e dirigiu-se directamente para o baleeiro.

— Diz-lhes que parem de se rir — comentou Guillem com os olhos postos nas galeras castelhanas que se aproximavam.

Pedro III dispôs-se a defender o baleeiro e aproxirnou-Se dele tanto quanto as tasques lho permitiram. A nova batalha foi travada perto de Guillem e de Arnau; quase podiam tocar na galera real, e distinguiam claramente o rei e os seus cavaleiros.

As duas galeras, de lado, estavam cada uma de um lado das tasques. Os castelhanos dispararam uns trabucos que tinham montados à proa. Arnau e Guillem viraram-se para a galera real. Não havia danos. O rei e os seus homens continuavam na coberta e o navio não parecia afectado pelos disparos.

— Aquilo é uma bombarda? — perguntou Arnau, apontando para o canhão para onde o rei Pedro III se dirigia.

— Sim — respondeu Guillem.

Vira como a tinham carregado para a galera enquanto o rei preparava a sua frota, acreditando que os castelhanos iam atacar Maiorca.

— Uma bombarda num barco?

— Sim — tornou a responder Guillem.

— Deve ser a primeira vez que se arma uma galera com uma bombarda — disse Arnau, com a atenção concentrada nas ordens que o rei estava a dar aos seus artilheiros. — Nunca tinha visto...

— Nem eu...

A conversa viu-se interrompida pelo estrondo que a bombarda fez depois de disparar uma grande pedra. Voltaram-se ambos para a galera castelhana.

— Bravo! — gritaram em uníssono quando a pedra arrancou o mastro da galera.

Todos os barcos catalães vitoriaram o disparo. O rei mandou que carregassem de novo a bombarda - A surpresa e a queda do mastro impediram que os castelhanos respondessem ao fogo com os seus trabucos. O disparo seguinte acertou em cheio no castelo de popa do navio e destroçou-o.

Os castelhanos começaram a afastar-se das tasques.

O escárnio constante e a bombarda da galera real fizeram reconsiderar o castelhano, e ao fim de um par de horas mandou a sua frota abandonar o assédio e dirigir-se para Ibiza.

Da coberta, Arnau e Guillem observaram, juntamente com vários oficiais do rei, a retirada da armada castelhana. Os sinos da cidade começaram a repicar.

— Agora, teremos de desencalhar este barco — comentou Arnau.

— Nós já trataremos disso — ouviu atrás de si. Arnau virou-se e deu com um oficial que acabara de abordar o baleeiro. — Sua Majestade espera-vos na galera real.

O rei tivera duas noites inteiras para se inteirar sobre quem era Arnau Estanyol. «Rico», disseram-lhe os conselheiros de Barcelona, «imensamente rico, majestade.» O rei assentia com pouco interesse a cada comentário que os conselheiros lhe faziam sobre Arnau: a sua etapa como bastaix, a sua luta às ordens de Eiximèn d'Esparça, a sua devoção a Santa Maria. No entanto, os olhos abriram-se-lhe ao ouvir que era viúvo. «Viúvo e rico», pensou o monarca. «Se nos safarmos desta...»

-— Arnau Estanyol — apresentou-o em voz alta um dos carnerlengos do rei. — Cidadão de Barcelona.

O rei, sentado numa cadeira na coberta, estava ladeado por uma multidão de nobres, de cavaleiros conselheiros e de próceres da cidade que se tinham aproximado da galera rea| depois da retirada dos castelhanos. Guillem ficou perto da amurada, atrás dos que rodeavam Arnau e o rei.

Arnau fez menção de pôr um joelho em terra, mas o rei mandou-o levantar-se.

— Estamos muito satisfeitos com a vossa acção — falou o rei. — A vossa ousadia e inteligência foram cruciais para ganharmos esta batalha.

O rei calou-se e Arnau hesitou. Deveria responder ou ficar calado? Todos os presentes tinham os olhos postos nele.

— Nós — continuou o rei —, em agradecimento pela vossa acção, desejamos favorecer-vos com a nossa graça.

E agora? Deveria falar? Que graça poderia conceder-lhe o rei? Tinha tudo o que podia desejar...

— Concedemo-vos em matrimónio a nossa pupila Elionor, a quem dotamos com as baronias de Granollers, Sant Vicenç deis Horts e Caldes de Montbui.

Todos os presentes murmuraram; alguns aplaudiram. Matrimónio! O rei dissera matrimónio? Arnau virou-se em busca de Guillem, mas não conseguiu encontrá-lo. Os nobres e os cavaleiros sorriam-lhe. Mas o rei dissera matrimónio?

— Não estais contente, senhor barão? — perguntou o rei, ao vê-lo com a cabeça voltada para trás.

Arnau virou-se de novo para o rei. Senhor barão? Matrimónio? Para que queria ele tudo aquilo? Nobres e cavaleiros calaram-se perante o silêncio de Arnau. O rei trespassava-o com o olhar. Elionor, fora o que dissera? A sua pupila? Não podia... Não devia contrariar o rei!

— Não... Quero dizer, sim, majestade — balbuciou. — Agradeço-vos a vossa graça.

- Seja então.

Pedro III levantou-se e a sua corte fechou-se à sua volta. Alguns deram palmadas nas costas de Arnau ao passarem perto dele, e felicitaram-no com frases que se tornavam ininteligíveis. Arnau ficou ali sozinho, no mesmo sítio onde antes estivera rodeado de gente. Virou-se para Guillem, que continuava encostado à amurada.

De onde estava, Arnau abriu as mãos, mas o mouro respondeu-lhe fazendo gestos na direcção do rei e da sua corte, e depois escondeu-as rapidamente.

A chegada de Arnau à praia foi tão celebrada como a do próprio rei. A cidade inteira lançou-se sobre ele e Arnau teve de ir de mão em mão, de um para outro, recebendo felicitações, palmadas e apertos de mão. Toda a gente queria apro-ximar-se do salvador da cidade, mas Arnau não conseguia reconhecer nem ouvir ninguém. Agora que tudo lhe corria bem, que era feliz, o rei decidira casá-lo. Os barceloneses acompanharam-no, muito encostados a ele, da praia para sua mesa de câmbios, e quando entrou, ficaram em frente à entrada, gritando o seu nome, gritando sem cessar.

Assim que entrou, Mar lançou-se-lhe nos braços. Guillem já tinha chegado e estava sentado na sua cadeira; não tinha contado nada. Joan, que também tinha corrido para a mesa, observava-o com o seu habitual aspecto taciturno.

Mar ficou surpreendida quando Arnau, talvez com mais força do que teria desejado, se desembaraçou do seu abraço. Joan foi felicitá-lo, mas Arnau também não lhe fez caso. Por fim, deixou-se cair numa cadeira, junto de Guillem. Os outros olhavam para ele, sem se atreverem a dizer nada.

— Que tens? — atreveu-se Joan a perguntar, por fim.

— Vão casar-me! — gritou Arnau, erguendo os braços acima da cabeça. — O rei decidiu fazer-me barão e casar-me com a sua pupila. Esse é o favor que me faz por o ter ajudado a salvar a capital do seu reino! Casar-me!

Joan pensou por uns momentos, inclinou a cabeça e sorriu.

— Porque te queixas? — perguntou-lhe.

Arnau olhou-o de soslaio. Ao seu lado, Mar começara a tremer. Só Donaha se apercebeu, da porta da cozinha e acudiu a ajudá-la a manter-se em pé.

— O que é que te desagrada? — insistiu Joan. Arnau nem sequer olhou para ele. Mar sentiu a primeira facada depois de ouvir as palavras do frade: — Que há de mal em que te cases? E logo com a pupila do rei. Tornar-te-ás barão da

Catalunha.

Mar, receando vomitar, foi com Donaha para a cozinha.

— Que se passa com Mar? — perguntou Arnau. O frade demorou um momento a responder.

— Eu te direi o que se passa — disse por fim. — Que também se devia casar! Deveriam casar-se ambos! Por sorte, o rei tem mais cabeça que tu.

— Deixa-me, Joan, peço-te — disse, cansado, Arnau.

O frade ergueu as mãos no ar e abandonou a mesa de câmbios.

— Vai ver o que se passa com Mar — pediu Arnau a Guillem.

— Não sei o que se passa com ela — disse este ao seu amo uns minutos mais tarde —, mas Donaha disse-me que não me preocupe. Coisas de mulheres — acrescentou.

Arnau virou-se para ele.

- Nem me fales de mulheres.

- Pouco podemos fazer contra os desejos do rei, Arnau Talvez, com algum tempo, encontremos uma solução. Mas não tiveram tempo. Pedro III fixou para o dia 23 de Junho a sua partida para Maiorca, para perseguir o rei de Castela; mandou que a sua armada estivesse reunida no porto de Barcelona nessa data e manifestou que antes de partir queria ver resolvido o assunto do casamento da sua pupila Elionor com o aclamado Arnau. Assim o comunicou um oficial do rei ao bastaix, na sua mesa de câmbios.

— Só me restam nove dias! — queixou-se a Guillem quando o oficial desapareceu da porta. — Talvez menos!

Como seria essa tal Elionor? Arnau nem conseguia dormir só de pensar nisso. Velha? Bonita? Simpática, agradável, ou altiva e cínica como todos os nobres que já conhecera? Como ia casar com uma mulher que nem sequer conhecia?

Encarregou disso Joan:

— Tu podes fazer isso. Descobre-me como é essa mulher. Não consigo deixar de pensar no que me esperará.

— Diz-se — contou-lhe Joan na mesma tarde do dia em que o oficial se apresentara na sua mesa — que é bastarda de um dos infantes do principado, de algum dos tios do rei, embora ninguém se atreva a dizer qual deles. A mãe dela morreu do parto por isso, foi acolhida na corte...

— Mas... Como é ela, Joan? — interrompeu Arnau.

— Tem vinte e três anos e é atraente.

— E de carácter?

— E nobre — limitou-se Joan a responder. Para que havia de lhe contar tudo o que ouvira de Elionor? Era atraente, decerto, segundo lhe tinham dito, mas os

seus traços reflectiam sempre um constante enfado com o mundo inteiro. Era caprichosa e mimada, altiva e ambiciosa. O rei casara-a com um nobre que falecera ao fim de pouco tempo e ela, sem filhos, regressara à corte. Um favor a Arnau? Uma graça real? Os confidentes de Joan tinham-se rido. O rei não aguentava mais Elionor, e com quem casá-la melhor do que com um dos homens mais ricos de Barcelona, um cambista a quem poderia recorrer em busca de créditos? O rei Pedro ganhava em todos os sentidos: tirava o peso de Elionor de cima dos ombros e assegurava o acesso a Arnau. Para que havia Joan de contar-lbe tudo isso?

— Que queres tu dizer com isso de que é nobre?

— Pois isso mesmo — disse Joan, tentando evitar o olhar de Arnau. — Que é nobre, uma mulher nobre, com o seu carácter, como todas elas.

Também Elionor tinha feito averiguações por sua conta, e a sua irritação aumentava à medida que lhe chegavam mais notícias: um antigo bastaix, uma confraria que derivava dos escravos da costa, dos macips de ribera, dos mancipados. Como pretendia o rei casá-la com um bastaix? Era rico, muito rico, sim, segundo lhe diziam todos, mas que lhe importava a ela o dinheiro dele? Vivia na corte e nada lhe faltava. Decidiu acorrer ao rei quando se deu conta de que Arnau era filho de um camponês fugitivo e que ele próprio, por nascimento, também tinha sido servo da terra. Como podia o rei pretender que ela, filha de um infante, casasse com semelhante personagem?

Mas Pedro III não a recebeu e mandou que a boda se celebrasse a 21 de Junho, dois dias antes da partida para Maiorca.

No dia seguinte, casar-se-ia. Na capela real de Santa Ágata.

- É uma capela pequena — explicou-lhe Joan. — Foi construída no início do século por Jaime II, por indicação da esposa, Branca de Anjou, sob o signo das relíquias da Paixão de Cristo, tal como a Sainte Chapelle de Paris, de onde era proveniente a rainha.

Seria uma festa íntima, e tanto assim que a única pessoa que o acompanharia seria Joan. Mar recusou-se a assistir. Desde que anunciara o seu casamento que a rapariga lhe fugia e se calava na presença dele, olhando-o de vez em quando, mas sem os sorrisos que até então sempre lhe dedicara.

Por isso, nessa tarde Arnau abordou a rapariga e pediu-lhe que o acompanhasse.

— Aonde? — perguntou Mar. Aonde?

— Não sei... Que tal Santa Maria? O teu pai adorava aquela igreja. Foi lá que o conheci, sabes?

Mar acreditou; ambos saíram da mesa de câmbios e dirigiram-se para a fachada inacabada de Santa Maria. Os pedreiros começavam a trabalhar nas torres oitavadas que deveriam ladeá-la, e os mestres do cinzel afanavam-se no ttmpano, nas ombreiras, nas janelas e nas arquivoltas, picando e repicando sobre a pedra. Arnau e Mar entraram no templo. As nervuras da terceira abóbada da nave central tinham começado já a estender-se para o céu, em busca da chave, como uma teia de aranha protegida pelo andaime de ladeira sobre o qual cresciam.

Arnau sentiu a presença da rapariga ao seu lado. Era tão como ele, e o cabelo caía-lhe com graça sobre os ombros.

Cheirava bem: a fresco, a ervas. A maioria dos operários admirara-a; viu-o nos olhos deles, mesmo quando os desviavam assim que se apercebiam do olhar de Arnau. O aroma dela ia e vinha ao ritmo dos seus movimentos.

— Porque não queres vir ao meu casamento? — perguntou-lhe de repente. Mar não respondeu. Passeava o olhar pelo templo.

— Nem sequer me permitiram casar nesta igreja — murmurou Arnau.

A rapariga voltou a não dizer nada.

— Mar... — Arnau esperou que ela se virasse para ele.

— Gostaria que estivesses comigo no dia do meu casamento. Sabes que não me agrada o casamento, que o faço contra a minha vontade, mas o rei... Não insistirei mais, de acordo?

— Mar anuiu. — Se não o fizer, poderemos continuar a tratar-nos como sempre?

Mar baixou os olhos. Eram tantas as coisas que teria querido dizer-lhe... Mas não podia negar-lhe o que ele lhe pedia; não seria capaz de lhe negar nada.

— Obrigado — disse Arnau. — Se me faltasses tu... Não sei o que seria de mim se me faltassem aqueles que amo!

Mar sentiu um calafrio. Não era esse tipo de carinho que ela queria. Era amor. Porque consentira em acompanhá-lo? Dirigiu o olhar para a abside de Santa Maria.

— Joan e eu vimos como levantaram essa pedra de chave, sabes? — disse-lhe Arnau ao observar a direcção do olhar dela. — Éramos apenas umas crianças.

Nesse momento, os mestres vidreiros trabalhavam com denodo no claristório, o conjunto de janelas situado abaixo da abside, depois de terem finalizado as da parte superior, rujo arco ogival aparecia cerceado por uma pequena roseta. Depois, começariam a decorar os grandes janelões ogivais que se abriam debaixo delas. Trabalhavam as cores compondo as figuras e desenhos, todos compostos por meio de finas e delicadas tiras de chumbo, que recebiam a luz exterior para a filtrarem para o templo.

— Quando eu era rapaz — continuou Arnau —, tive a sorte de falar com Berenguer de Montagut. Nós, lembro-me de ele dizer referindo-se aos Catalães, não precisamos de mais decoração: só do espaço e da luz. Então apontou para a abside, mesmo para onde estás agora tu a olhar, e deixou cair uma mão estendida até ao altar, simulando a luz de que tinha falado. Eu disse-lhe que entendia o que ele estava a dizer, mas na verdade era incapaz de imaginar ao que ele se referia. — Mar virou-se para ele. — Era muito novo — desculpou-se — e ele era o mestre, o grande Berenguer de Montagut. Mas hoje, sim, entendo-o — Arnau aproximou-se mais de Mar e estendeu uma mão em direcção à roseta da abside, lá em cima, lá muito em cima. Mar esforçou-se por disfarçar o ligeiro tremor que teve ao sentir o contacto com Arnau. — Vês como a luz entra no templo? — Então começou a baixar a mão em direcção ao altar-mor, como Berenguer fizera nos seus tempos, mas desta vez apontando para uns coloridos raios de luz que efectivamente entravam na igreja. Mar seguiu a mão de Arnau. — Repara bem: os vitrais orientados para o sol são de cores vivas, vermelhos, amarelos e verdes, para aproveitar a força da luz do Mediterrâneo; as que não estão lá são o branco ou o azul. E a cada hora, a medida que o Sol percorre o céu, o templo vai mudando de cor e as pedras reflectem umas ou outras tonalidades.

Quanta razão tinha o mestre! É como uma igreja nova todo os dias, a cada hora, como se continuamente nascesse urn novo templo, porque ainda que as pedras estejam mortas o sol está vivo e é diferente em cada dia; nunca se verão os mesmos reflexos.

Ficaram os dois hipnotizados pela luz.

Por fim, Arnau agarrou Mar pelos ombros e virou-a para ele.

— Não me deixes, Mar, por favor.

No dia seguinte, ao amanhecer, na capela de Santa Ágata, escura e carregada, Mar tentou ocultar as suas lágrimas enquanto decorria a cerimónia.

Por seu lado, Arnau e Elionor permaneciam hieráticos diante do bispo. Elionor nem sequer se mexeu, muito direita, com o olhar em frente. Arnau virou-se para ela por um par de vezes, no início da cerimónia, mas Elionor continuou a olhar em frente. A partir de então, apenas se permitiu alguns olhares de soslaio.

 

No próprio dia da boda, assim que terminou a cerimónia, os novos barões de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui partiram para o castelo de Montbui. Joan tinha transmitido a Arnau as perguntas do mordomo da baronesa. Onde pretendia Arnau que dormisse dona Elionor? Nos quartos superiores de uma vulgar casa de câmbios? E o seu serviço? E os seus escravos? Arnau mandou-o calar-se e acedeu a pôr-se em marcha nesse mesmo dia, na condição de que Joan os acompanhasse.

— Porquê? — perguntou este.

— Porque me dá a impressão de que precisarei dos teus ofícios.

Elionor e o seu mordomo partiram a cavalo, ela à amazona, com as duas pernas do mesmo lado da montada e com um palafreneiro a pé que segurava as rédeas da sua senhora. 0 escrivão e duas donzelas iam montados em mulas, e cerca de uma dúzia de escravos puxava outras tantas azémolas carregadas com os pertences da baronesa.

Arnau alugou um carro.

Quando a baronesa viu aparecer o carro, desengonçado, puxado por duas mulas e carregado com os haveres de Arnau, Joan e Mar — Guillem e Donaha ficavam em Barcelona —-, o fogo que saiu pelas suas pupilas poderia ter acendido uma fogueira. Essa foi a primeira vez que olhou para Arnau e para a sua nova família; tinham casado, tinham comparecido perante o bispo, na presença do rei e da mulher deste, e nem sequer tinha olhado para um ou para os outros.

Escoltados pela guarda que o rei pusera à sua disposição abandonaram Barcelona. Arnau e Mar montados no carro. Joan, caminhando ao seu lado. A baronesa estugou o passo para chegar quanto antes ao castelo. Avistaram-no antes do pôr de Sol.

Erguido no alto de uma elevação, o castelo era uma pequena fortaleza onde até então tinha residido um carlánx. Camponeses e servos tinham-se juntado ao séquito dos seus novos senhores, de forma que, quando estavam a escassos metros do castelo, mais de uma centena de pessoas caminhava com eles, perguntando-se quem seria a personagem tão ricamente vestida, mas montada naquele carro desconjuntado.

— E agora, porque paramos? — perguntou Mar quando a baronesa deu ordem de parar.

Arnau fez um gesto de ignorância.

— Porque nos têm de entregar o castelo — respondeu Joan.

— E não deveríamos entrar para no-lo entregarem? — inquiriu Arnau.

— Não. Os Costumes Gerais da Catalunha estabelecem outro procedimento: o carlán(1) deve abandonar o castelo, com a sua família e servos, antes de no-lo entregar.

(1) Carlán era um título nobiliárquico de origem castelhana, alusivo à pessoa que tinha certa jurisdição senhorial sobre um território reduzido. (N. do T.)

 

As pesadas nortas da fortaleza abriram-se lentamente e o carlán saiu por elas seguido pela sua família e servos. Quando chegou perto da baronesa, entregou-lhe algo. — Devias ser tu a recolher aquelas chaves — disse Joan a Arnau.

- E para que quero eu um castelo?

Quando a nova comitiva passou junto do carro, o carlán dirigiu um sorriso trocista para Arnau e para os seus acompanhantes. Mar corou. Até os servos os olharam directamente nos olhos.

— Não devias tolerar isto — voltou a intervir Joan. — Agora, és tu o senhor. Devem-te respeito, fidelidade...

— Olha, Joan — interrompeu-o Arnau —, deixemos uma coisa clara: não quero nenhum castelo, não sou nem pretendo ser senhor de ninguém, e além disso só penso permanecer neste lugar o tempo estritamente necessário para pôr em ordem o que houver para pôr em ordem. Assim que tudo esteja em condições, regressarei a Barcelona, e se a senhora baronesa desejar viver no seu castelo, aqui o tem, todo para ela.

Essa foi a primeira vez em todo o dia em que Mar esboçou um sorriso.

— Não podes ir-te embora — negou Joan.

O sorriso de Mar desapareceu e Arnau virou-se para o frade.

— Mas não posso porquê? Posso fazer o que quiser. Não sou o barão? Por acaso não se vão embora os barões com o rei durante meses e meses?

— Mas esses vão para a guerra.

— Com o meu dinheiro, Joan, com o meu dinheiro. Parece-me que é mais importante que seja eu quem vai do que qualquer um desses barões que nada mais fazem senão pedir empréstimos baratos. Bem — acrescentou, voltando-se para o castelo — e agora, que esperamos? Já está vazio e eu esto cansado.

— Ainda falta... — começou a dizer Joan.

— Tu e as tuas leis — interrompeu-o. — Porque é que vocês dominicanos têm de aprender leis? Que falta ainda...

— Arnau e Elionor, barões de Granollers, Sant Vicenr e Caldes de Montbui! — Os gritos ecoaram ao longo do vale que se estendia pelo sopé do monte. Todos os presentes ergueram os olhos para o mais alto dos torreões da fortaleza de onde o mordomo de Elionor, com as mãos em concha em frente à boca, gritava: — Arnau e Elionor, barões de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui! Arnau e Elionor...

— Faltava o anúncio da tomada do castelo — concluiu Joan.

A comitiva pôs-se de novo em marcha.

— Pelo menos dizem o meu nome. O mordomo continuava a gritar.

— Se não fosse assim, não seria legal — esclareceu o frade.

Arnau ia para dizer alguma coisa, mas em vez disso abanou a cabeça.

O interior da fortaleza, como era costume, crescera desordenadamente entre as muralhas e em redor da torre de menagem, a que tinha sido adicionado um corpo de edifício composto por um enorme salão, cozinha e despensa, p^3 além dos quartos no andar de cima. Afastadas do conjunto erguiam-se diversas construções destinadas a albergar os servos e os escassos soldados que compunham a guarnição do castelo.

Foi o oficial da guarda, um homem baixo, pesado, desajeitado e sujo, quem teve de fazer as honras a Elionor e seu séquito. Entraram todos para o grande salão.

- Mostra-me os aposentos do carián — gritou-lhe Elionor.

O oficial indicou-lhe uma escada de pedra, adornada com uma simples balaustrada também de pedra, e a baronesa seguida pelo soldado, pelo mordomo, pelo escrivão e pelas donzelas, começou a subir. Em momento algum se dirigiu a Arnau.

Os três Estanyol ficaram no salão, enquanto os escravos depositavam nele os pertences de Elionor.

— Talvez devesses... — começou a dizer-lhe Joan.

— Não te metas, Joan — disparou-lhe Arnau. Durante um momento, dedicaram-se a inspeccionar o salão: os tectos altos, a imensa chaminé, os cadeirões, os candelabros e a mesa para doze pessoas. Pouco depois, o mordomo de Elionor apareceu na escada. No entanto, não chegou a pisar o salão; ficou três degraus acima.

— Diz a senhora baronesa — recitou daí, sem se dirigir a ninguém em concreto — que esta noite está muito cansada e não quer ser incomodada.

O mordomo começava a dar meia-volta quando Arnau o deteve:

— Eh, tu! — gritou. O mordomo voltou-se. — Diz a tua senhora que não se preocupe, que ninguém a incomodará... Nunca — sussurrou. Mar abriu os olhos e levou as mãos à boca. O mordomo tornou a dar meia-volta, mas Arnau deteve-o de novo. — Eh! — tornou a gritar — Quais Sao os nossos quartos? — O homem encolheu os ombros. - Onde está o oficial?

— Atendendo a senhora.

— Pois sobe, vai ter com a tua senhora e manda descer o oficial. E apressa-te, porque caso contrário corto-te os testículos e da próxima vez que voltes a anunciar a tomada dum castelo, hás-de fazê-lo trinando.

O mordomo, agarrado à balaustrada, hesitou. Era aquele o mesmo Arnau que aguentara todo o dia encarrapitado num carro? Arnau semicerrou os olhos, aproximou-se da escada e desembainhou a sua faca de bastaix, que quisera levar para a boda. O mordomo não chegou a ver o gume rombo; ao terceiro passo de Arnau, correu escada acima.

Arnau virou-se e viu Mar a rir-se, e o rosto displicente de frei Joan. Mas não eram eles os únicos a sorrir: alguns escravos de Elionor tinham presenciado a cena e também trocavam sorrisos.

— E vós! — gritou-lhes Arnau —, descarregai o carro e levai as coisas para os nossos quartos.

Estavam há mais de um mês instalados no castelo. Arnau tinha tentado pôr ordem nas suas novas propriedades: no entanto, de cada vez que se embrenhava nos livros de contas da sua baronia, acabava por encerrá-los com um suspiro. Folhas rasgadas, números rasurados e emendados, dados contraditórios, quando não mesmo falsos. Eram ininteligíveis, totalmente indecifráveis.

Ao fim de uma semana de permanência em Montbui. Arnau começara a acarinhar a ideia de regressar a Barcelona e de deixar aquelas propriedades nas mãos de um administrador, mas enquanto tomava a decisão optou por conhecer as propriedades um pouco melhor; no entanto, em vez de visitar os nobres que lhe deviam vassalagem e que nas suas visitas ao castelo o desdenhavam por completo e se rendiam aos pés de Elionor, fê-lo aos comuns, aos camponeses, aos servos dos seus servos.

Acompanhado por Mar, saiu para os campos com curiosidade. Que haveria de verdade no que ouvia dizer em Barcelona? Eles, os comerciantes da grande cidade, baseavam frequentemente as suas decisões nas notícias que lhes chegavam. Arnau sabia que a epidemia de 1348 despovoara os campos, segundo se dizia, e que mesmo no ano anterior, em 1358, uma praga de gafanhotos piorara a situação, arruinando as colheitas. A falta de recursos próprios começara a fazer-se notar no comércio e os mercadores tinham modificado as suas estratégias.

— Meu Deus! — murmurou nas costas do primeiro camponês, quando este entrou a correr na sua casa rural para apresentar o novo barão à sua família.

Como ele, Mar não conseguia desviar os olhos da casa em ruínas e dos seus arredores, tão sujos e desleixados como o homem que os tinha recebido e que agora voltava a sair acompanhado por uma mulher e por duas crianças pequenas.

Os quatro puseram-se em fila diante deles e, desajeitadamente, tentaram fazer-lhes uma vénia. Havia medo nos seus olhos. As roupas estavam rasgadas e as crianças... As crianças nem se conseguiam manter em pé. As pernas eram mapas como espigas.

— E esta a tua família? — perguntou Arnau.

O camponês começava a anuir quando de dentro da casa veio um choro fraco. Arnau semicerrou os olhos e o homem abanou a cabeça, lentamente; o medo que antes havia nos seus olhos deu lugar à tristeza.

— A minha mulher não tem leite, senhor.

Arnau olhou para a mulher. Como havia de ter leite aquele corpo? Para isso precisava de ter peito!

— E ninguém por aqui poderia...

O camponês adiantou-se ao fim da pergunta:

— Estão todos na mesma, senhor. As crianças morrem. Arnau percebeu como Mar levava uma mão à boca.

— Mostra-me a tua quinta: o galinheiro, os estábulos a tua casa, os teus campos.

— Não podemos pagar mais, senhor!

A mulher caíra de joelhos e começava a arrastar-se para Mar e Arnau.

Arnau aproximou-se dela e agarrou-a pelos braços. A mulher encolheu-se ao contacto com Arnau.

-Que...

As crianças começaram a chorar.

— Não a castigueis, senhor, peço-vos — interveio o marido aproximando-se dele. — É verdade, não podemos pagar mais. Castigai-me a mim.

Arnau soltou a mulher e recuou uns passos, até onde estava Mar, que observava a cena com os olhos muito abertos.

— Não lhe ia bater — disse, dirigindo-se ao homem. — Nem a ti, nem a ninguém da tua família. Não vos vou pedi mais dinheiro. Só quero ver a tua quinta. Diz à tua mulher que se levante.

Primeiro tinha sido o medo, depois a tristeza, e agora a estranheza; os dois cravaram em Arnau os olhos encovados, com uma expressão de surpresa. Por acaso brincamos aos deuses?, pensou Arnau. Que tinham feito àquela família para responderem daquela maneira? Estavam a deixar morrer um dos seus filhos e ainda pensavam que alguém se lhes dirigia para lhes pedir mais dinheiro.

O celeiro estava vazio. O estábulo também. Os campos não estavam trabalhados, os utensílios de lavoura estavam estragados, e a casa... Se a criança não morresse de fome, morreria de uma doença qualquer. Arnau nem se atreveu tocar-lhe. Parecia... parecia que se partiria se lhe tocasse.

Pegou na bolsa que trazia à cinta e tirou algumas moedas. Foi oferecê-las ao homem, mas rectificou e tirou ainda

mais algumas moedas.

— Quero que esta criança viva — disse-lhe, deixando o dinheiro sobre o que em tempos devia ter sido uma mesa.

— Quero que tu, a tua mulher e os teus outros filhos comam. Este dinheiro é para vós, entendido? Ninguém tem direito a ele, e se tiverdes algum problema, vinde ter comigo ao castelo.

Nenhum deles se mexeu; tinham os olhos postos nas moedas. Nem sequer foram capazes de desviar os olhos para se despedirem de Arnau quando este saiu da casa.

Arnau regressou ao castelo sem dizer uma palavra, cabisbaixo, pensativo. Mar partilhou com ele esse silêncio.

— Estão todos na mesma, Joan — disse Arnau uma noite, enquanto ambos passeavam ao fresco pelos arredores do castelo. — Há alguns que tiveram a sorte de ocupar quintas desabitadas, de camponeses mortos ou que simplesmente fugiram. Como não haviam de o fazer? Essas terras, dedicam-nas agora a bosque e pastos, o que lhes dá alguma garantia de sobrevivência quando as terras não produzem. Mas a maioria... A maioria deles está numa situação desastrosa.Os campos não produzem, e morrem de fome.

— E isso não é tudo — acrescentou Joan. — Dei-me conta de que os nobres, os teus feudatários, estão a obrigar, os camponeses que restam a assinar capbreus...

— Capbreus?

— São documentos segundo os quais os camponeses reconhecem a vigência de todos os direitos feudais que tinham caído em desuso nos tempos de bonança. Como restam poucos homens, espremem-nos para conseguirem os mesmos benefícios de quando havia muitos e as coisas corriam bem.

Arnau andava há muitas noites a dormir mal. Acordava sobressaltado, vendo rostos magros. No entanto, desta vez, não conseguia sequer conciliar o sono. Percorrera as suas terras e fora generoso. Como podia admitir uma tal situação? Todas aquelas famílias dependiam dele; primeiro, dos seus senhores, mas estes, por sua vez, eram feudatários de Arnau. Se ele, como senhor destes, lhes exigia o pagamento das suas rendas e mercês, os nobres carregavam sobre aqueles desgraçados as novas obrigações que o regedor gerira com absoluta negligência.

Eram escravos. Escravos da terra. Escravos das suas terras. Arnau encolheu-se na cama. Os seus escravos! Um exército de homens, mulheres e crianças famintos a quem ninguém dava importância nenhuma... a não ser para os sangrar até à morte. Arnau lembrou-se dos nobres que tinham vindo visitar Elionor, sãos, fortes, luxuosamente vestidos, alegres. Como podiam viver de costas para a realidade dos seus servos? Que podia ele fazer?

Era generoso. Distribuía dinheiro onde precisavam dele, uma miséria para ele, mas que despertava alegria entre as crianças e fazia sorrir Mar, sempre ao seu lado. Mas aquilo não podia eternizar-se. Se continuasse a distribuir dinheiro, —seriam os nobres a aproveitar-se disso. Continuariam a não lhe pagar a ele e explorariam ainda mais os desgraçados. Que podia fazer?

E enquanto Arnau se levantava cada manhã mais pessimista, o estado de ânimo de Elionor era muito diferente.

— Convocou nobres, camponeses e aldeãos para a Virgem de Agosto — explicou Joan ao irmão, porque na sua qualidade de dominicano era o único que mantinha algum contacto com a baronesa.

— Para quê?

— Para que lhe prestem... que vos prestem... homenagem — rectificou. Arnau incitou-o a continuar. — Segundo a lei... — Joan abriu os braços; foste tu que me pediste, tentou dizer-lhe com o gesto. — Segundo a lei, qualquer nobre, em qualquer momento, pode exigir aos seus vassalos que renovem o juramento de fidelidade e reiterem a homenagem ao seu senhor. É lógico que, não o tendo ainda recebido, Elionor deseje que lho façam.

— Queres dizer que virão?

— Os nobres e cavaleiros não têm obrigação de comparecer a um chamamento público, desde que renovem a sua vassalagem em privado, apresentando-se perante o seu novo senhor no prazo de um ano, um mês e um dia, mas Elionor esteve a falar com eles e parece que virão. No fim de contas, e a pupila do rei. Ninguém quer fazer frente à pupila do rei.

— E ao marido da pupila do rei?

Joan não lhe respondeu. No entanto, algo nos seus 0lhos... Conhecia aquele olhar.

— Tens mais alguma coisa a dizer-me, Joan? O frade negou com a cabeça.

Elionor mandou construir um estrado num sítio plano situado perto do castelo. Sonhava com o dia da Virgem de Agosto. Quantas vezes vira nobres e povos inteiros prestando vassalagem ao seu tutor, o rei. Agora, prestá-ia-iam a ela como a uma rainha, como a uma soberana nas suas terras. Que importância tinha que Arnau estivesse ao seu lado? Todos sabiam que era a ela, a pupila do rei, que se submetiam. Tal era a sua ansiedade que, próximo já o dia marcado, se permitiu mesmo sorrir para Arnau, de muito longe e fracamente, mas sorrindo.

Arnau hesitou e os seus lábios devolveram uma careta. Porque lhe sorri?, pensou Elionor. Cerrou os punhos. «Imbecil!», insultou-se a si própria. Como foste humilhar-te perante um vulgar cambista, um servo fugitivo? Estava havia mais de um mês e meio em Montbui e Arnau não se aproximara dela. Mas não era um homem? Quando ninguém a estava a ver, observava o corpo de Arnau, forte, poderoso, e à noite, sozinha na sua alcova, permitia-se sonhar que aquele homem a montava selvaticamente. Há quanto tempo já não vivia tais sensações? E ele humilhava-a com o seu desdém. «Como se atrevia?» Elionor mordeu com força o lábio inferior. «Já vai ver», disse para consigo.

No dia das festividades da Virgem de Agosto, Elionor levantou-se de madrugada. Da janela do seu solitário quarto observou a planície dominada pelo estrado que mandara construir. Os camponeses começavam a reunir-se no eirado, muitos deles nem sequer tinham dormido, para chegarem a tempo ao chamamento dos seus senhores. Todavia, ainda não tinha chegado nenhum nobre.

 

O sol anunciou um dia esplêndido e quente. O céu, límpido e sem nuvens, era semelhante àquele que, quase quarenta anos antes, acolhera a celebração do casamento de um servo da terra chamado Bernat Estanyol, e parecia uma cúpula azul-celeste sobre os milhares de vassalos reunidos no eirado. Aproximava-se a hora, e Elionor, nos seus melhores trajes de gala, passeava nervosa pelo imenso salão do castelo de Montbui. Só faltavam os nobres e os cavaleiros! Joan, vestindo o seu hábito negro, descansava numa cadeira, e Arnau e Mar, como se nada daquilo fosse com eles, trocavam divertidos olhares de cumplicidade perante cada suspiro de desespero que saía da garganta de Elionor.

Por fim, os nobres chegaram. Sem olhar às formalidades, impaciente como a sua senhora, um servo de Elionor irrompeu pela sala a anunciar a chegada deles. A baronesa assomou à janela e, quando se voltou para os presentes, o seu rosto irradiava felicidade. Os nobres e cavaleiros das suas terras chegavam à planície com todo o alvoroço de que eram capazes. As suas luxuosas vestes, as espadas e as jóias misturavam-se com o povo, dando uma nota de cor e de brilho às restes cinzentas, tristes e gastas dos camponeses. Os cavalos, pela mão dos palafreneiros, começaram a reunir-se atrás do estrado, e os seus relinchos romperam o silêncio com que os humildes tinham acolhido a chegada dos seus senhores, os servos dos nobres instalaram luxuosas cadeiras, forradas a seda de cores vivas, ao pé do palanque, onde os nobres e os cavaleiros jurariam homenagem aos seus novos senhores. Instintivamente, as pessoas separaram-se da última fila de cadeiras, para deixarem um espaço visível entre elas e os privilegiados.

Elionor voltou a olhar pela janela e sorriu ao comprovar mais uma vez o alarde de luxo e nobreza com que os seus vassalos pensavam recebê-la. Quando, por fim, acompanhada pelo seu séquito familiar, se viu diante deles, sentada no estrado, olhando-os à distância, sentiu-se como uma verdadeira rainha.

O escrivão de Elionor, transformado em mestre-de-cerimónias, deu início ao acto, lendo o decreto de Pedro III segundo o qual se concedia como dote a Elionor, pupila real, a baronia das honras reais de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui, com todos os seus vassalos, terras, rendas... Enquanto o escrivão lia, Elionor deleitava-se com as palavras dele; sentia-se observada e invejada — mesmo odiada, porque não? — por todos aqueles vassalos que só o tinham sido, até ali, do próprio rei. Deveriam sempre fidelidade ao príncipe, mas a partir daquele momento, entre o rei e eles haveria um novo escalão: ela. Arnau, pelo contrário, não prestava atenção alguma às palavras do escrivão, e limitava-se a devolver os sorrisos que lhe eram dirigidos pelos camponeses que tinha visitado e ajudado.

Misturadas entre o povo chão e indiferentes ao que ali se passava, havia duas mulheres vistosamente vestidas, conforme obrigava a sua condição de mulheres públicas: uma, já idosa; a outra, madura, mas bonita, mostrando com altanaria os seus atributos.

- Nobres e cavaleiros — gritou o escrivão, chamando, desta vez a atenção de Arnau —, prestais hoje homenagem Arnau e Elionor, barões de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui?

— Não!

A negativa pareceu rasgar o céu. O despojado carlán do castelo de Montbui pusera-se de pé e contestava com voz atroadora o requerimento do escrivão. Um murmúrio surdo saiu da multidão colocada atrás dos nobres; Joan abanou a cabeça como se já tivesse previsto aquilo, e Mar hesitou, sentindo-se estranha perante toda aquela gente. Arnau ficou sem saber o que fazer e Elionor empalideceu até o seu rosto ficar branco como cera.

O escrivão voltou o olhar para o estrado, aguardando instruções da sua senhora, mas, ao não as receber, tomou a iniciativa:

— Negais-vos?

— Negamo-nos — bramou o carlán, seguro de si. — Nem mesmo o rei pode obrigar-nos a prestar homenagem a uma pessoa de condição inferior à nossa. É de lei! — Joan anuiu, com tristeza. Não tinha querido dizer isso a Arnau. Os nobres tinham enganado Elionor. — Arnau Estanyol — prosseguiu o carlán, dirigindo-se ao escrivão aos gritos — e cidadão de Barcelona, filho de um camponês fugitivo. Não vamos prestar homenagem ao filho de um fugitivo da terra, por mais que o rei lhe tenha concedido as baronias que dizes!

A mais jovem das duas mulheres pôs-se em bicos de pés para ver o estrado. A vista dos nobres ali sentados tinha despertado a sua curiosidade, mas ao ouvir pela voz do carlán 0 nome de Arnau, cidadão de Barcelona e filho de um camponês, as suas pernas começaram a fraquejar.

Com o murmúrio do povo em fundo, o escrivão tornou a olhar para Elionor. Também Arnau o fez, mas a pupila real não fez nenhum gesto. Estava paralisada. Depois da primeira impressão, a sua surpresa transformara-se em ira. O branco do seu rosto transformara-se em vermelhidão: tremia de raiva e as suas mãos, apertando os braços da cadeira, pareciam querer atravessar a madeira.

— Porque me disseste que ele tinha morrido, Francesca? — perguntou Aledis, a mais jovem das duas prostitutas.

— Ele é meu filho, Aledis.

— Arnau é teu filho?

Ao mesmo tempo que assentia com a cabeça, Francesca fez sinal a Aledis para que baixasse a voz. Por nada do mundo desejava que alguém pudesse aperceber-se de que Arnau era filho de uma mulher pública. Por sorte, as pessoas que as rodeavam apenas estavam atentas à comoção entre os nobres.

A discussão parecia recrudescer por momentos. Perante a passividade dos restantes, Joan decidiu intervir.

— Podeis ter razão no que dizeis — afirmou, por detrás da ultrajada baronesa. — Podeis negar-vos à homenagem, mas isso não derroga a obrigação de prestar serviços aos vossos senhores e de reconhecer-lhes o direito. É a lei! Estais dispostos a isso?

Enquanto o carlán, consciente de que o dominicano tinha razão, olhava para os seus companheiros, Arnau fez um gesto a Joan para que se aproximasse.

— Que significa isso? — perguntou-lhe, em voz baixa.

— Significa que salvam a sua honra. Não prestam homenagem a...

— A uma pessoa de condição inferior — ajudou-o Arnau. — Bem sabes que isso não me importa.

- Não te prestam homenagem nem se submetem a ti como vassalos, mas a lei obriga-os a continuar a prestar-te serviços e a reconhecer-te o direito, a reconhecer as terras e as honras que por ti têm.

-— Algo de parecido com os capbreus que eles obrigam os camponeses a aceitar?

— Sim, algo parecido.

— Reconheceremos o direito — respondeu o carlán.

Arnau não prestou a menor atenção ao nobre. Nem sequer olhou para ele. Pensava; ali estava a solução para a miséria dos camponeses. Joan continuava inclinado para ele. Elionor já não contava para nada; os olhos dela olhavam para lá do espectáculo, para ilusões perdidas.

— Isso quer dizer — perguntou Arnau a Joan — que mesmo que não me reconheçam como seu barão, continuo a mandar e eles têm de me obedecer?

— Sim. Apenas salvam a sua honra.

— Está bem — disse Arnau, pondo-se de pé lentamente e chamando por gestos o escrivão. — Vês o espaço que há entre os senhores e o povo? — perguntou-lhe quando o teve a seu lado. — Quero que te coloques ali e vás repetindo tudo o que lhes vou dizer! — Enquanto o escrivão se encaminhava para o espaço aberto entre os nobres, Arnau dirigiu um sorriso cínico ao carlán, que esperava resposta para o seu compromisso de reconhecer o direito. — Eu, Arnau, barão de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui...

Arnau esperou que o escrivão repetisse as suas palavras:

— Eu, Arnau, barão de Granollers, Sant Vicenç e Caldes d« Montbui...

— Declaro proscritos das minhas terras todos aqueles costumes conhecidos como maus usos...

— Declaro proscritos...

— Não podes fazer isso! — gritou um dos nobres, interrompendo o escrivão.

Perante as palavras dos nobres, Arnau olhou para Joan procurando a confirmação das suas prerrogativas.

— Sim, posso fazê-lo — limitou-se a responder Arnau depois de Joan ter anuído.

— Iremos ao rei! — gritou outro.

Arnau encolheu os ombros. Joan aproximou-se dele.

— Já pensaste no que acontecerá a esta pobre gente se lhes dás esperança e depois o rei não te dá razão?

— Joan — respondeu Arnau com uma segurança em si próprio que até então não tinha tido —, é possível que eu não saiba nada da honra, da nobreza ou da cavalaria, mas conheço as entradas que há nos meus livros relativamente aos empréstimos a sua majestade; por certo — acrescentou sorrindo — consideravelmente aumentados pela campanha de Maiorca depois do meu casamento com a sua pupila. Disso, sim, sei bem. Asseguro-te que o rei não porá em causa a minha palavra.

Arnau olhou para o escrivão e instou-o a continuar:

— Declaro proscritos das minhas terras todos aqueles costumes conhecidos como maus usos... — gritou o escrivão.

— Declaro derrogado o direito de intestia, pelo qual o senhor tem direito a herdar parte dos bens dos seus vassalos — Arnau continuou a falar com clareza e lentamente, para que o escrivão pudesse repetir as suas palavras. O povo escutava em silêncio, incrédulo e esperançado ao mesmo tempo. — O direito de cugutia, segundo o qual os senhores se apropriam de metade ou da totalidade dos bens da mulher adúltera; o de exorquia, segundo o qual se lhes outorga uma parte dos bens dos camponeses casados que morram sem filhos- o de tus maletractandi, segundo o qual os senhores podem maltratar à sua discrição os camponeses e apropriar-se das suas coisas — o silêncio acompanhava as palavras de Arnau, a tal ponto que o próprio escrivão se calou, ao perceber que a multidão ali reunida conseguia ouvir sem problemas o discurso do seu senhor. Francesca agarrou-se ao braço de Aledis. — O direito de arsia, pelo qual o camponês tem por obrigação indemnizar o senhor pelo incêndio das suas terras. O direito de espoli forçada, pelo qual o senhor pode deitar-se com a noiva na sua primeira noite...

O filho não pôde ver, mas entre aquela multidão que começava a agitar-se alegremente à medida que se dava conta da seriedade das palavras dele, uma anciã, sua mãe, largou Aledis e levou as mãos ao rosto. Aledis compreendeu tudo no mesmo instante. As lágrimas vieram-lhe aos olhos e abraçou a sua patroa. Entretanto, nobres e cavaleiros, ao pé do palanque de onde Arnau libertava os seus vassalos, discutiam qual seria a melhor maneira de apresentar aquele problema ao rei

Declaro proscritos quaisquer outros serviços a que até agora tenham estado obrigados os rústicos e que nao sejam o pagamento do justo e legítimo cânone das suas terras. Declaro-os livres para cozerem o seu próprio pão, para ferrar os seus animais e reparar os seus instrumentos nas suas próprias forjas. As mulheres, as mães, declaro-as livres de se negarem a amamentar gratuitamente os filhos dos vossos senhores. — A anciã, perdida nas suas recordações, já nao podia deixar de chorar. — Assim como se poderão negar a servir gratuitamente nas casas dos vossos senhores. Liberto-os da obrigação de darem prendas aos vossos senhores no Nata1 e de trabalhar nas terras deles gratuitamente.

Arnau guardou silêncio por alguns instantes, enquanto observava para lá dos preocupados nobres a multidão quc esperava ouvir determinadas palavras. Faltava um! As pessoas sabiam disso e esperavam inquietas perante o repentino silêncio de Arnau. Faltava um!

— Declaro-vos livres! — gritou por fim.

O carlãn gritou e levantou um punho na direcção de Arnau. Os nobres que o acompanhavam gesticularam e gritaram por sua vez.

— Livres! — soluçou a idosa entre os vivas da multidão.

— No dia de hoje, em que os nobres que se recusaram a prestar homenagem à pupila do rei, os camponeses que trabalham as terras que compõem as baronias de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui serão iguais aos camponeses da Catalunha nova, iguais aos das baronias de Entença, da Conca dei Barberà, do campo de Tarragona, do condado de Prades, da Segarra ou da Garriga, do marquesado de Aytona, do território de Tortosa ou do campo de Urgelliguais aos camponeses de qualquer outra das dezanove comarcas desta Catalunha conquistada com o esforço e o sangue dos vossos pais. Sois livres! Sois camponeses, mas nunca mais, nestas terras, voltareis a ser servos da terra, nem o serão os vossos filhos ou os vossos netos!

— Nem as vossas mães! — sussurrou Francesca para si. — Nem as vossas mães — repetiu antes de romper de novo em lágrimas e de se agarrar a Aledis, que tinha os sentimentos à flor da pele.

Arnau teve de abandonar o palanque para evitar que o povo se lançasse sobre ele. Joan ajudou Elionor, que estava incapaz de caminhar por si só. Atrás deles, Mar tentava controlar a emoção que parecia a ponto de estalar no seu peito. O eirado começou a esvaziar-se quando Arnau e o seu séquito o abandonaram, em direcção ao castelo. Os nobres, depois de chegarem a acordo sobre como apresentariam o assunto ao rei, fizeram o mesmo a galope, sem respeitarem as gentes que se apinhavam nos caminhos e que tinham de saltar para os campos para não serem atropeladas por cavaleiros irados. Os camponeses iniciaram a sua longa marcha de regresso aos seus lares com um sorriso nos rostos. Só duas mulheres permaneciam quietas no terreiro.

— Porque me enganaste? — perguntou Aledis. Desta vez, a idosa virou-se para ela.

— Porque não o merecias... e ele não devia viver junto de ti. Tu não foste chamada a ser mulher dele — Francesca não hesitou. Disse-o friamente, tão friamente quanto lhe permitia a sua voz rouca.

— Pensas mesmo que não o merecia? — perguntou Aledis. Francesca enxugou as lágrimas e recuperou de novo a energia e a firmeza que lhe tinham permitido continuar o seu negócio durante anos.

— Por acaso não viste no que ele se tornou? Por acaso ouviste o que ele fez? Julgas que a vida dele teria sido a mesma junto a ti?

— E aquilo do meu marido e do duelo...

— Mentiras.

— Que me procuravam... — Também — Aledis franziu o sobrolho e observou

Francesca.

— Tu também me mentiste, lembras-te? — atirou-lhe à cara a idosa.

— Eu tinha os meus motivos.

— E eu os meus.

— Sim, agarrar-me para o teu negócio... Agora percebo.

— Não foi esse o único, mas reconheço que sim. Tens alguma queixa? Quantas raparigas ingénuas enganaste tu desde então?

— Nada disso teria sido necessário se tu...

— Lembro-te que a escolha foi tua — Aledis hesitou. — Outras, não pudemos escolher.

— Foi muito duro, Francesca. Chegar até Figueras, arrastar-me, submeter-me... E para quê?

— Vives bem, melhor que muitos dos nobres que hoje aqui estavam. Não te falta nada.

— Falta-me a minha honra.

Francesca ergueu-se tanto quanto o seu corpo martirizado lho permitiu. Então, enfrentou Aledis.

— Olha, Aledis, eu nada entendo de honras nem de honrarias. Tu vendeste-me a tua. A mim, roubaram-me a minha quando era apenas uma moça. Ninguém me permitiu escolher. Chorei aqui hoje aquilo que nunca em toda a minha vida me tinha permitido chorar, e já basta. Somos o que somos e de nada nos serviria, nem a ti nem a mim, pensar como poderíamos ter sido. Deixa que sejam os outros a lutar pela sua honra. Viste-os hoje. Quem, de entre os que estavam perto de nós, pode falar de honra?

— Talvez agora, sem os maus usos...

— Não te enganes; continuarão a ser uns desgraçados sem sítio onde caírem mortos. Lutámos muito para chegarmos onde estamos; não penses na honra: não foi feita para o povo.

Aledis olhou à sua volta e observou o povo. Tinham-nos libertado dos maus usos, sim, mas continuavam a ser os mesmos homens e as mesmas mulheres sem esperança, as mesmas crianças famélicas e seminuas. Anuiu com a cabeça e abraçou Francesca.

 

— Não estás a pensar deixar-me aqui?!

Elionor desceu a escada cheia de fúria. Arnau estava no salão, sentado à mesa, assinando os documentos com que derrogava os maus usos das suas terras. «Assim que os assine, vou-me embora», dissera a Joan. O frade e Mar, por detrás de Arnau, observavam a cena.

Arnau acabou de assinar e depois enfrentou Elionor. Devia ser a primeira vez que falavam desde que tinham casado. Arnau não se levantou.

— Que interesse tens em que eu fique aqui?

— Como queres que fique num lugar onde me humilharam da maneira que fizeram?

— Então, digo de outra forma: que interesse podes ter em seguir-me?

— És o meu marido! — saiu-lhe com voz estridente. Dera mil e uma voltas, mas não podia ficar, nem tão-pouco podia regressar à corte do rei. Arnau fez uma careta de desagrado. — Se te fores embora, se me deixares aqui — acrescentou Elionor — faço queixa ao rei.

As palavras dela ecoaram nos ouvidos de Arnau: «Iremos ao rei!», tinham ameaçado os nobres. Julgava poder solucionar o ataque dos nobres, mas... Olhou para os documentos que acabara de assinar. Se Elionor, a sua própria mulher, a pupila real, se juntasse às queixas dos nobres...

- Assina — incitou-a, estendendo-lhe os documentos.

- porque havia de o fazer? Se derrogas os maus usos, ficamos sem rendas.

- Assina e viverás num palácio na Rua de Monteada de Barcelona. Não precisarás destas rendas. Terás todo o dinheiro de que precises.

Elionor aproximou-se da mesa, pegou na pena e inclinou-se sobre os documentos.

- Que garantias tenho de que cumprirás a tua palavra? - perguntou de repente, virando-se para Arnau.

— A de que quanto maior for a casa, menos te verei. Essa é a garantia. A de que quanto melhor viveres, menos me incomodarás. Serve-te esta garantia? Não tenho intenção de te dar outras.

Elionor olhou para os que estavam atrás de Arnau. A rapariga estava a sorrir?

— E eles viverão connosco? — perguntou, apontando para eles com a pena.

— Sim.

— Ela também?

Mar e Elionor trocaram um olhar gélido.

— Será que não falei com suficiente clareza, Elionor? Assinas?

Assinou.

Arnau não esperou que Elionor fizesse os seus preparativos e, nesse mesmo dia, ao entardecer, para evitar o calor de Agosto, partiu para Barcelona, num carro alugado, tal como chegara ali.

Nenhum deles olhou para trás quando o carro cruzou as portas do castelo.

- Porque temos de ir viver com ela? — perguntou Mar a Arnau durante a viagem de regresso no carro.

— Não posso ofender o rei, Mar. Nunca se sabe qual poderá ser a resposta de um monarca.

Mar ficou calada durante alguns instantes, pensativa.

— Por isso lhe ofereceste tudo o que ofereceste?

— Não... Bem, também, mas a principal razão foram os camponeses. Não quero que ela se queixe ao rei. Supostamente, o rei concedeu-nos rendas para vivermos, embora na realidade não existam, ou sejam mínimas. Se ela fosse ter com o rei a dizer que, devido aos meus actos, tinha delapidado essas rendas, talvez o rei derrogasse as minhas ordens.

— O rei? Porque havia o rei de...

— Deves saber que há muitos anos o rei decretou uma pragmática contra os servos da terra, inclusivamente contra os privilégios que ele próprio e os seus antecessores tinham concedido às cidades. A Igreja e os nobres exigiram-lhe que tomasse medidas contra os camponeses que fugiam das suas terras e que as deixavam baldias... e ele assim fez.

— Não pensei que fosse capaz disso.

— É nobre como os outros, Mar; o primeiro deles. Passaram a noite numa casa rural nos arredores de Monteada. Arnau pagou generosamente aos camponeses. Levantaram-se ao amanhecer e, antes que o calor começasse a apertar, entraram em Barcelona.

— A situação é dramática, Guillem — disse Arnau. Puseram fim às saudações e explicações e ficaram por fim sós. — O principado está muito pior do que imaginávamos - Aqui, só nos chegam as notícias, mas é preciso ver o estado dos campos e das terras. Não vamos aguentar.

— Há muito tempo que venho a tomar medidas — surpreendeu-o Guillem. Arnau incitou-o a continuar. — A crise é grave e já se estava a delinear; já tínhamos falado disso por mais de uma vez. A nossa moeda desvaloriza-se constantemente nos mercados estrangeiros, mas o rei não toma nenhuma medida aqui, na Catalunha, e por isso sustentamos paridades insustentáveis. O município está a endividar-se cada vez mais para financiar a estrutura que se criou em Barcelona. As pessoas já não obtêm benefícios com o comércio e procuram lugares mais seguros para o seu dinheiro.

— E o nosso?

— Lá fora. Em Pisa, em Florença, e até mesmo em Génova. Aí, ainda se pode negociar com câmbios lógicos — ficaram ambos em silêncio por uns instantes. — Castelló foi declarado abatut — acrescentou Guillem, interrompendo o silêncio. — Começou o desastre.

Arnau lembrou-se do cambista, gordo, sempre a transpirar e simpático.

— Não foi prudente. As pessoas começaram a reclamar a devolução dos seus depósitos e ele não pôde honrar o compromisso.

— Poderá pagar?

— Não acredito.

A 29 de Agosto, o rei desembarcou vitorioso da sua campanha em Maiorca contra Pedro, o Cruel, que fugira de ibiza, depois de a tomar e saquear, assim que a frota catalã chegara às ilhas.

Ao fim de um mês, quando Elionor chegou, os Estanyol, incluindo Guillem, apesar da sua inicial oposição, mudaram-se para o palácio da Rua de Monteada.

Ao fim de dois meses, o rei concedeu audiência ao carlán de Montbui. No dia anterior, enviados de Pedro III tinham solicitado um novo empréstimo à mesa de Arnau. Quand viram o empréstimo concedido, o rei mandou o carlán embora e manteve as ordens de Arnau.

Ao fim de outros dois meses, decorridos os seis que a lei concedia ao abatut para que pagasse as suas dívidas, o cambista Castelló foi decapitado em frente à sua mesa de câmbios, na Praça dos Canvis. Todos os cambistas de cidade foram obrigados a presenciar, na primeira fila, a execução. Arnau viu como a cabeça de Castelló se separava do corpo após o golpe certeiro do verdugo. Teria gostado de poder fechar os olhos, como muitos tinham feito, mas não conseguiu.Tinha de ver aquilo. Era um apelo à prudência que nunca deveria esquecer, disse para si, enquanto o sangue se derramava sobre o cadafalso.

 

Via-a sorrir. Arnau continuava a ver sorrir a sua Virgem, e a vida sorria-lhe, tal como ela. Fizera quarenta anos e, apesar da crise, os negócios corriam-lhe bem e proporcionavam-lhe grandes lucros, dos quais destinava uma parte aos indigentes ou a Santa Maria. Com o tempo, Guillem deu-lhe razão: as pessoas do povo pagavam e devolviam os seus empréstimos, tostão a tostão. A sua igreja, o templo do mar, continuava a crescer através da terceira abóbada central e dos campanários octogonais que flanqueavam a entrada principal. Santa Maria estava cheia de artesãos: marmoristas e escultores, pintores, vidraceiros, carpinteiros e ferreiros. Havia até um organista, cujo trabalho Arnau seguia com atenção. — Como soaria a música no interior daquele templo majestoso? — interrogava-se frequentemente. Depois da morte do arcediago Bernat Llul e a morte de dois clérigos, quem agora ocupava o cargo era Pere Salvete de Montirac, com quem Arnau mantinha uma relação próxima. Também o grande mestre Berenguer de Montagut tinha morrido, bem como o seu sucessor, Ramon Despuig. O encarregado da direcção das obras do templo era agora Guillem Metge.

Mas Arnau não tratava apenas com os prebostes de Sana Maria. A sua situação económica e a sua nova condição levavam-no a confraternizar com os conselheiros da cidade, com próceres e com membros do Conselho dos Cem. A sua opinião era ouvida na câmara de comércio e os seus conselhos seguidos por comerciantes e mercadores.

— Deves aceitar o cargo — aconselhou-lhe Guillem. Arnau pensou por alguns instantes. Tinham acabado de lhe oferecer o posto de cônsul de la Mar de Barcelona, representante máximo do comércio da cidade, juiz nas disputas mercantis, com jurisdição própria, independente de qualquer outra instituição de Barcelona, árbitro de qualquer problema que surgisse no porto ou que os seus trabalhadores tivessem, e vigilante do cumprimento das leis e costumes do comércio.

— Não sei se poderei...

— Ninguém o faria melhor que tu, Arnau, ouve o que te digo — interrompeu-o Guillem. — Podes, claro que podes.

Aceitou ser um dos novos cônsules quando terminasse o mandato de algum dos anteriores.

Santa Maria, os seus negócios, as suas futuras novas obrigações como cônsul de la Mar... Tudo isso criou em redor de Arnau uma muralha atrás da qual se sentia cómodo, e quando regressava ao seu novo lar, ao palácio da Rua de Monteada, não se dava conta do que se passava por detrás dos seus grandes portões.

Arnau cumprira as promessas feitas a Elionor, mas também cumpriu com as garantias sob as quais as propusera, e a relação entre ambos era fria e distante; reduzia-se ao imprescindível para a convivência. Entretanto, Mar cumprira vinte esplendorosos anos e continuava a recusar-se a casar. Para que havia de o fazer, se tenho Arnau para mim? Que faria ele sem mim? Quem o descalçaria? Quem o esperaria quando voltasse do trabalho? Quem conversaria com ele e escutaria os seus problemas?

Elionor? ]oan, cada vez mais embrenhado nos seus estudos? Os escravos? Ou Guillem, com quem já passa a maior parte do dia?, pensava a rapariga.

Todos os dias, Mar esperava com impaciência o regresso a casa de Arnau. A sua respiração acelerava quando o ouvia bater com força aos portões, e o sorriso regressava-lhe aos lábios enquanto ia, correndo, esperá-lo no alto das escadas que levavam aos andares nobres. Porque durante o dia, enquanto Arnau não estava lá, a vida dela era um suplício monótono e constante.

— Nada de perdiz! — ouviu-se na cozinha. — Hoje jantaremos vitela.

Mar virou-se para a baronesa, de pé à entrada da cozinha. Arnau gostava de perdiz. Ela tinha ido com Donaha comprá-las. Escolhera-as ela própria, pendurara-as de uma trave na cozinha e verificara dia após dia o seu estado. Por fim, decidira que estavam no ponto e, de manhã, muito cedo, descera à cozinha para as preparar.

— Mas... — tentou opor-se Mar.

— Vitela — interrompeu-a Elionor, trespassando-a com o olhar.

Mar voltou-se para Donaha, mas a escrava respondeu-lhe encolhendo imperceptivelmente os ombros.

— O que se come neste casa, quem decide sou eu — continuou a baronesa, dirigindo-se desta vez a todos os escravos presentes na cozinha. — Nesta casa mando eu!

Depois deste último grito, deu meia-volta e desapareceu.

Nesse dia, Elionor esperou para ver qual era o resultado a sua teima. Iria a rapariga fazer queixas a Arnau, ou manteria aquela disputa em segredo? Mar também pensou no assunto: deveria contar aquilo a Arnau? Que poderia ganhar

com isso? Se Arnau se pusesse do seu lado, discutiria com Elionor, e na verdade ela era a dona da casa. E se não se pusesse do seu lado? Sentiu o estômago a encolher-se. E se não o fizesse? Arnau dissera uma vez que não podia ofender o rei. E se Elionor se queixasse ao rei por causa dela? Que diria então Arnau?

Elionor deixou escapar um sorriso de desprezo na direcção de Mar ao final do dia, quando viu que Arnau continuava a tratá-la como sempre, sem lhe dirigir a palavra. Com o tempo, esse sorriso foi-se transformando num assédio constante à rapariga. Elionor proibiu que Mar acompanhasse os escravos nas compras e que entrasse nas cozinhas. Colocou escravos às portas dos salões quando ela lá estava dentro. «A senhora baronesa não deseja ser incomodada», diziam a Mar quando ela tentava entrar. Dia após dia, Elionor foi encontrando mais maneiras de molestar a rapariga.

O rei. Não podiam ofender o rei. Mar tinha aquelas palavras gravadas na mente e repetia-as vezes sem conta. Elionor continuava a ser pupila do rei e podia chegar ao monarca a qualquer momento. Não ia ser ela a causa de que Elionor se ofendesse!

Como estava enganada! Pouco se satisfazia Elionor com as quezílias domésticas. As suas pequenas vitórias desvaneciam-se quando Arnau regressava a casa e Mar lhe saltava para os braços. Riam-se, conversavam... e tocavam-se. Arnau contava-lhe as coisas do dia, as disputas na câmara de comércio, os câmbios, os navios... sentado num cadeirão, com Mar aos seus pés, fascinada pelas histórias dele. Por acaso não devia ser aquele o legítimo lugar da sua esposa? Arnau acompanhado por Mar, ficava a uma das janelas, à noite, depois do jantar, com ela pelo braço, enquanto olhavam a noite estrelada. Por detrás deles, Elionor cerrava os punhos até cravar as unhas nas palmas das mãos; então, a dor fazia-a

reagir e levantava-se bruscamente para se retirar para os seus aposentos.

E na sua solidão, pensava na situação em que se encontrava. Arnau não lhe tocara desde que tinham casado. Ela acariciava-se o corpo, o peito... ainda continuava firme! As nádegas, as coxas... e quando o prazer começava a chegar, chocava sempre com a realidade: aquela rapariga... Aquela rapariga tinha conseguido ocupar o seu lugar!

— Que acontecerá quando o meu marido falecer? Perguntou directamente, sem preâmbulos, depois de se sentar diante da mesa repleta de livros. Depois, tossiu; todo aquele escritório cheio de livros e pergaminhos, aquele pó...

Reginald d'Área examinou com tranquilidade a sua visitante. Era o melhor advogado da cidade, segundo tinham dito a Elionor, e um especialista em interpretação dos Usatges da Catalunha.

— Dou por entendido que não tendes filhos do vosso marido, não é verdade? — Elionor franziu o sobrolho. — Tenho de saber isso — insistiu com parcimónia. Todo ele, corpulento e com ar bonacheirão, com a sua cabeleira e a sua barba brancas, inspirava segurança.

— Não. Não tive filhos.

— Suponho que a vossa consulta se refere ao aspecto Patrimonial.

Elionor remexeu-se na cadeira, inquieta.

— Sim — respondeu finalmente.

— O vosso dote ser-vos-á devolvido. Quanto ao património do vosso marido, ele pode dispor dele por testamemo como bem entender.

— Poderá não me caber nada?

— O usufruto dos bens durante um ano, o ano de luto.

— Apenas isso?

O grito conseguiu descompor Reginald D Área. Que julgava aquela mulher?

— Isso devei-lo ao vosso tutor, o rei Pedro — respondeu com secura.

— Que quereis dizer?

— Até o vosso tutor aceder ao trono, a Catalunha regia-se por uma lei de Jaime I, segundo a qual a viúva, desde que o fizesse honestamente, desfrutava o usufruto de toda a herança do marido por toda a vida. Mas os mercadores de Barcelona e Perpignan são muito ciosos do seu património, mesmo quando se trata das suas mulheres, e conseguiram um privilégio real pelo qual as viúvas só disporiam de um ano de luto, e não do usufruto. O vosso tutor elevou esse privilégio ao estatuto de lei geral para todo o principado...

Elionor já não o ouvia, e levantou-se antes que o advogado terminasse a sua exposição. Voltou a tossir e passeou o olhar pelo escritório. Para que quereria ele tantos livros? Reginald levantou-se também.

— Se necessitais de mais alguma coisa...

Elionor, já de costas, limitou-se a levantar uma mão.

Estava bem claro: precisava de ter um filho do seu mando para assegurar o futuro. Arnau cumprira a sua palavra e Elionor conhecera outra forma de vida: o luxo, algo que também conhecera na corte, mas que, por estar submetida aos inúmeros controlos dos tesoureiros reais, sempre estivera fora do seu alcance. Agora gastava quanto queria, tinha tanto quanto desejava. Mas se Arnau morresse... E a única coisa que lho impedia, a única que o mantinha afastado dela, era aquela bruxa voluptuosa. Se a bruxa não estivesse ali... Se de-

inarecesse... Arnau render-se-ia perante ela! Não haveria de ser capaz de seduzir um servo fugitivo?

Uns dias mais tarde, chamou o frade ao seu quarto; era o único dos Estanyol com quem tinha algum trato.

— Não posso acreditar nisso! — respondeu Joan.

— Pois, mas assim é, frei Joan — disse Elionor, com as mãos ainda no rosto. — Desde que nos casámos, nunca me pôs uma mão em cima.

Joan sabia que não havia amor entre Arnau e Elionor, e que dormiam em quartos separados. E nada havia de especial nisso. Ninguém se casava por amor, e a maioria dos nobres dormiam separados. Mas se Arnau nem sequer tinha tocado em Elionor, então não estavam casados.

— Já falastes do assunto? — murmurou.

Elionor afastou as mãos do rosto para mostrar uns olhos vermelhos que exigiam a atenção imediata de Joan.

— Não me atrevo. Não saberia como fazer isso. Além disso, creio... — Elionor deixou uma suspeita no ar.

— Credes em quê?

— Creio que Arnau está mais interessado em Mar do que na sua própria esposa.

— Bem sabeis que Arnau adora aquela rapariga.

— Não me refiro a esse tipo de amor, frei Joan — insistiu baixando a voz. Joan levantou-se da cadeira. — Sim. Bem sei que vos custará acreditar nisto, mas estou convencida de que essa rapariga, como lhe chamais, pretende o meu marido. É como ter o Diabo dentro da minha própria casa, Frei Joan! — Elionor conseguiu que a voz lhe tremesse. -, minhas armas, frei Joan, são as de uma simples mulher que quer cumprir com o mandamento que a Igreja impõe às mulheres casadas, mas de cada vez que o tento fazer, esbarro num marido que se encontra mergulhado numa voluptuosidade que o impede de me dar atenção. Já não sei o que fazer!

Por isso Mar não se queria casar! Seria verdade? Joan começou a recordar: estavam sempre juntos, e ela lançava-se nos braços dele! E aqueles olhares, aqueles sorrisos... Que estúpido ele tinha sido! O mouro sabia daquilo, claro que sabia; por isso a defendia.

— Não sei que vos possa dizer — desculpou-se.

— Eu tenho um plano... mas preciso da vossa ajuda e, sobretudo, do vosso conselho.

 

Joan escutou o plano de Elionor e, enquanto o fazia, um calafrio percorreu-lhe o corpo.

— Tenho de pensar nisso — respondeu quando ela insistiu na sua dramática situação matrimonial.

Nessa mesma tarde, Joan encerrou-se no seu quarto. Pediu desculpa pela sua ausência ao jantar. Evitou Arnau e Mar. Evitou o olhar inquisitivo de Elionor. Frei Joan olhou para os seus livros de teologia, cuidadosamente ordenados no armário. Neles deveria estar a resposta para o problema. Durante todos os anos que passara longe do irmão, Joan nunca deixara de pensar nele. Amava Arnau; ele e o pai tinham sido a única coisa que tinha tido na sua infância. Nesse carinho havia agora tantas dobras e rugas como no seu hábito. Entre elas, havia uma admiração que, nos piores momentos, roçava a inveja. Arnau, com o sorriso franco e o gesto certeiro, era um rapazinho que afirmava falar com a Virgem. Frei Joan fez um gesto displicente ao recordar o muito que tentara ouvir essa voz. Agora sabia que era quase impossível, que só uns poucos eleitos se viam abençoados com essa honra. Estudara e disciplinara-se com a esperança de vir a ser um deles; jejuara até quase perder a saúde, mas tudo fora em vão.

Frei Joan embrenhou-se nas doutrinas do bispo Hincmaro, nas de São Leão Magno, nas do mestre Graciano cartas de São Paulo e em muitas outras.

Só a comunhão carnal entre dois cônjuges, a coniunctio sexum, podia conseguir que o matrimónio entre os homens reflectisse a união de Cristo com a Igreja, objectivo principal do sacramento: sem a carnalis copula não existia o matrimó-nio, dizia o primeiro.

Só quando se produziu a consumação do matrimónio por meio da cópula carnal é que este é válido perante a Igreja, afirmava São Leão Magno.

Graciano, seu mestre na Universidade de Bolonha, abundava na mesma doutrina, aquela que unia o simbolismo nupciai, o consentimento que os cônjuges prestavam perante o altar, com a copulação sexual do homem e da mulher: a una caro. Até São Paulo, na sua famosa carta aos Efésios, dizia: «Aquele que ama a sua mulher ama-se a si mesmo; porque ninguém odeia a sua própria carne; pelo contrário, alimenta-a e cuida dela, tal como Cristo da sua Igreja. Pot este motivo, o homem deixará o seu pai e a sua mãe e aderirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. Este mistério é grande; mais o digo eu em relação a Cristo e à Igreja.»

Até já bem entrada a noite, frei Joan esteve embrenhado nos ensinamentos e doutrinas dos grandes. Que procurava: Abriu de novo um dos tratados. Até quando ia negar a verdade? Elionor tinha razão: sem cópula, sem união carnal, não havia matrimónio. «Porque não copulaste com ela? Estás a viver em pecado. A Igreja não reconhece o teu casamento.» A luz da candeia, releu Graciano, devagar, seguindo as letras com o dedo, tentando encontrar o que lhe constava que não existia. «A pupila real! O próprio rei te entregou a sua pupila e tu não copulaste com ela. Que diria o rei se soubesse? É uma ofensa ao rei. Ele entregou-te Elionor em casamento. Ele mesmo a levou ao altar e tu ofendeste a graça que ele te concedeu. E o bispo? O que diria o bispo?» Inistiu com Graciano. E tudo por uma jovenzinha soberba e não tinha querido cumprir o seu destino como mulher, Joan ficou a vasculhar os livros durante horas, mas a sua mente perdia-se no plano de Elionor e nas possíveis alternativas. Deveria dizer-lho directamente. Então, imaginava-se a si próprio, sentado diante de Arnau, talvez melhor até de pé... sim, ambos de pé... «Deverias dormir com Elionor. Estás a viver em pecado», diria. E se ele se zangava? Era barão da Catalunha, cônsul de la Mar. Quem era ele para lhe dizer o que quer que fosse? Regressava então aos livros. Maldita a hora em que perfilhara a rapariga! Era ela a causa de todos os problemas. Se Elionor tinha razão, Arnau poderia inclinar-se mais por Mar do que pelo seu próprio irmão. Mar era a culpada, a única culpada daquela situação. Recusara todos os pretendentes para continuar a passear a sua voluptuosidade diante de Arnau. Que homem poderia resistir àquilo? Era o Diabo! O Diabo feito mulher, a tentação, o pecado. Porque tinha ele de pôr em risco o carinho do seu irmão se 0 Diabo era ela? O Diabo era ela. A culpa era ela que a tinha. Só Cristo resistiu às tentações. Arnau não era Deus, era um homem. Porque tinham os homens de sofrer por causa do Diabo?

Joan voltou a mergulhar nos livros até que encontrou o que procurava:

Vê como está impressa esta má inclinação em nós, que a natureza humana por si mesma e pela sua original corrupção, sem outro motivo alheio ou instigação, se dedica a essa vileza, que se a bondade de nosso senhor não reprimisse essa natural inclinação, todo o mundo cairia natural e sucintamente nessa vilela, já lemos sobre como mandaram um menino pequeno e puro, criado por uns santos eremitas no deserto, que nunca tinha tu contacto com a fêmea, à cidade onde estavam o seu pai e a sua mãe. E assim que entrou no local onde estavam o seu pai e a sua mãe, perguntou àqueles que o tinham levado acerca das coisas novas que via, que coisas eram: e como tinha visto belas mulheres e bem adornadas, perguntou o que eram, e os santos ermitões disseram-lhe que aquelas coisas eram diabos que perturbavam todo o mundo, e como estavam em casa do pai e da mãe perguntaram os santos ermitões ao menino que levavam, e disseram-lhe assim: «Vê que quantidade de coisas belas e novas viste e que nunca tinhas visto; qual delas mais te agradou?» E o menino respondeu: «De todas as coisas belas que vi, as que mais me agradaram são esses diabos que perturbam o mundo.» E como aqueles lhe dissessem: «Oh, mesquinho! Não ouviste dizer tantas vezes, e lido, que maus são os diabos e o mal que fazem, e que o seu lugar é no Inferno? Como, então, te puderam agradar assim que os viste pela primeira vez?» Dizem que o menino respondeu: «Ainda que sejam coisas más os diabos e que tanto mal façam, e que estejam nos infernos, não me importariam nada esses males, desde que estivesse e morasse com diabos como estes. E agora sei que os diabos do Inferno não são tão más coisas como dizem, e agora sei que faria bem em estar no Inferno, posto que tais diabos lá há, e com eles devia estar. Assim fosse eu com eles, se Deus o quisesse.»

 

Frei Joan terminou a leitura e fechou os livros quando já o dia amanhecia. Não ia correr riscos. Não ia ser ele a, como aqueles santos ermitões, enfrentar o menino que preferia o Diabo. Não havia de ser ele a chamar mesquinho ao irmão. Quem o dizia eram os seus livros, precisamente aqueles que Arnau lhe tinha comprado. A sua decisão não podia ser outra. Ajoelhou-se no genuflexório do seu quarto, sob a imagem de Jesus Cristo crucificado, e rezou.

 

Nessa noite, antes de conciliar o sono, julgou sentir um odor estranho, um odor a morte que lhe inundou o quarto quase até o sufocar.

 

No dia de São Marcos, o Conselho dos Cem reunido em plenário e os próceres de Barcelona tinham elegido Arnau Estanyol, barão de Granollers, Sant Vicenç e Caldes de Montbui, cônsul de la Mar de Barcelona. Em procissão, conforme estabelecia o Llibre de Consolai de Mar, aclamado pelo povo, Arnau e o segundo cônsul, os conselheiros e os próceres da cidade percorreram Barcelona até chegarem à câmara de comércio, à sede do Consulado de la Mar, um edifício em reconstrução na própria praia, a poucos metros da igreja de Santa Maria e da mesa de câmbio de Arnau.

Os missatges, como se chamavam os soldados do consulado, prestaram-lhe honras; a comitiva entrou no palácio e os conselheiros de Barcelona entregaram a posse do edifício aos recém-eleitos. Assim que os conselheiros abandonaram o local, Arnau começou a exercer as suas novas funções: um mercador reclamava o valor de um carregamento de pimenta que caíra ao mar ao ser descarregado por um jovem barqueiro. A pimenta foi trazida à sala de juízos e Arnau comprovou pessoalmente que se tinha estragado.

Escutou as razões do mercador e do barqueiro e as testemunhas que cada um levou ao juízo. Conhecia pessoalmente o mercador. Conhecia pessoalmente o jovem barqueiro - Não muito tempo antes, pedira-lhe um crédito na sua mesa de câmbios. Acabara de casar. Arnau felicitara-o e desejara-lhe felicidades.

Sentencio — a voz tremeu-lhe — que o barqueiro deve satisfazer o preço da pimenta. Assim o dispõe — Arnau leu o livro que o escrivão aproximou dele — o capítulo sessenta e dois dos Costumes do Mar. — Acabara de lhe pedir um crédito. Acabara de casar, em Santa Maria, como correspondia aos homens do mar. Estaria a moça já grávida? - Arnau recordou o fulgor dos olhos da jovem mulher do bar-

queiro no dia em que os felicitara. Pigarreou: — Tens… - voltou a pigarrear: — Tens dinheiro?

Arnau desviou os olhos do jovem. Acabara de lhe conceder um crédito. Teria sido para a casa? Para a roupa? Pata os móveis? Ou talvez para aquela barca? A negativa do jovem encheu-lhe os ouvidos.

— Condeno-te, pois, a... — O nó que se lhe formou na garganta quase o impediu de continuar. — Condeno-te pois a prisão até que satisfaças o valor total da dívida.

Como poderia pagar se não poderia trabalhar? Estaria ela grávida? Arnau esqueceu-se de bater com o martelo na mesa. Os missatges incitaram-no a isso com o olhar. Bateu. O jovem foi levado para os calabouços do consulado. Arnau baixou os olhos.

— É necessário — disse-lhe o escrivão quando todos os intervenientes abandonaram a sala.

Arnau ficou imóvel, sentado à direita do escrivão, no centro da imensa mesa que presidia à sala.

— Olha — insistiu o escrivão pondo-lhe à frente um novo livro, que era o regulamento do consulado. — Aqui está dito em relação às ordens de prisão: «Que assim mostra o seu poder, do maior ao menor.» Tu és o cônsul de la Mar e tens de mostrar o teu poder. A nossa prosperidade, a prosperidade da nossa cidade, depende disso.

Nesse dia, não teve de mandar mais ninguém para a prisão, mas teve de o fazer em muitos outros dias. A jurisdição do cônsul de la Mar abrangia todos os assuntos relacionados com o comércio — preços, salários de marinheiros, segurança dos navios e das mercadorias... — e quaisquer outros que estivessem relacionados com o mar. Desde que tomara posse do cargo, Arnau tornara-se uma autoridade independente do bailio ou do regedor; ditava sentenças, embargava, executava bens dos devedores, encarcerava, e tudo isso com um exército às suas ordens.

E enquanto Arnau se via obrigado a encarcerar jovens barqueiros, Elionor mandava chamar Felip de Ponts, um cavaleiro que conhecera durante o seu primeiro casamento e que por várias vezes tinha recorrido a ela para que intercedesse junto de Arnau, a quem devia uma quantidade de dinheiro considerável e que não conseguia pagar.

— Tentei tudo o que estava ao meu alcance, D. Felip — mentiu Elionor quando ele se apresentou perante ela. — Mas foi de todo impossível. Em breve será reclamada a vossa dívida.

Felip de Ponts, um homem grande e forte, com uma hirsuta barba loura e olhos pequenos, empalideceu ao ouvir as palavras da sua anfitriã. Se lhe reclamassem a dívida, perderia as suas poucas terras... e até o seu cavalo de guerra. Um cavaleiro sem terras para se manter e sem cavalo para guerrear nao podia considerar-se como tal.

Felip de Ponts pôs um joelho em terra.

— Rogo-vos, senhora — suplicou. — Tenho a certeza de que se o desejardes, o vosso marido adiará a sua decisão. Se me executa a dívida, a minha vida deixará de fazer sentido.- Fazei-o por mim! Pelos velhos tempos!

Elionor fez-se rogada durante alguns instantes, de pé em rente ao cavaleiro ajoelhado. Fingiu que pensava.

— Levantai-vos — mandou. — Poderia haver uma possibilidade...

— Rogo-vos! — repetiu Felip de Ponts antes de se levantar.

— É muito arriscado.

— Seja o que for! Não tenho medo de nada. Combati com o rei em...

— Tratar-se-ia de sequestrar uma rapariga — soltou Elionor.

— Não... Não vos entendo — balbuciou o cavaleiro ao fim de uns instantes de silêncio.

— Entendestes-me perfeitamente — replicou Elionor. — Tratar-se-ia de sequestrar uma rapariga e, além disso... desflorá-la.

— Isso é punido com a morte!

— Nem sempre.

Elionor tinha ouvido dizer isto. Nunca tinha querido perguntar, e agora ainda menos, com o seu plano em mente, pelo que esperara que o dominicano esclarecesse as suas dúvidas.

— Procuramos alguém que a rapte — disparara. Joan abrira os olhos desmesuradamente. — Que a viole —Joan levara as mãos ao rosto. — Julgo saber — prosseguira ela — que os Usatges dispõem que se a rapariga ou os pais consentirem no casamento, não há punição para o violador — Joan continuava com as mãos no rosto, mudo. — É isto verdade, Frei Joan? É verdade? — insistiu, perante o silêncio do frade.

- Sim, mas...

— É ou não é?

— É — confirmara Joan. — O estupro é punido com o desterro perpétuo se não tiver havido violência, e com a morte, se tiver havido. Mas se o casamento for consentido, o violador propuser um marido que aceite, de igual valor que o da rapariga, não há castigo.

Elionor esboçara um sorriso que depois tentara esconder assim que Joan voltara a dirigir-se a ela, tentando dissuadi-la. Elionor assumira a postura de uma mulher desonrada.

— Não sei, mas asseguro-vos que não há barbaridade que não esteja disposta a cometer para recuperar o meu marido. Procuramos alguém que a rapte — repetira —, que a viole, e depois consentimos o casamento — Joan negava com a cabeça. — Que diferença faz? — insistia Elionor. — Poderíamos entregar Mar em casamento... mesmo contra a vontade dela, se Arnau não estivesse tão cego... tão obcecado por essa jovem. Vós mesmos a entregaríeis em casamento se Arnau vo-lo permitisse. A única coisa que faríamos seria contrariar a perniciosa influência dessa mulher sobre o meu marido. Seríamos nós a escolher o futuro marido de Mar; tal como aconteceria se a entregássemos em casamento, mas sem contar com a aquiescência de Arnau. Não se pode contar com ele; está louco, fora de si por causa desta jovem. Conheceis algum pai que proceda como Arnau e que permita a uma filha envelhecer solteira? Por mais dinheiro que tenha? Por mais nobre que seja? Conheceis algum? Até o rei me entregou contra minha vontade... sem contar com a minha opinião.

Joan fora cedendo perante as razões de Elionor, que aproveitou a debilidade do frade para insistir uma e outra vez na sua situação precária, no pecado que se estava a conter naquela casa... Joan prometera pensar no caso... e assim fizera. Felip de Ponts obtivera a sua aprovação, com condições, mas obtivera.

— Nem sempre... — repetiu Elionor.

Os cavaleiros eram obrigados a conhecer os Usatges.

— Dizeis então que a rapariga consentiria no casamento? Porque não casa então?

— Os seus tutores consentiriam.

— Porque não se limitam a entregá-la em casamento?

— Isso não é da vossa conta — cortou Elionor. Essa pensou, será tarefa minha... e do fradinho.

— Pedis-me que rapte e viole uma rapariga e dizeis-me que o motivo não é da minha conta. Senhora, haveis-vos enganado. Serei devedor, mas sou um cavaleiro...

— É minha pupila — Felip de Ponts ficou surpreendido. — Sim, estou a falar-vos da minha pupila, Mar Estanyol.

Felip de Ponts lembrou-se da rapariga que Arnau tinha perfilhado. Vira-a algumas vezes na mesa de câmbios do pai e até tinha tido com ela uma conversa agradável num dia em que fora visitar Elionor.

— Quereis que rapte e violente a vossa própria pupila?

— Parece-me, D. Felip, que me expressei com suficiente clareza. Posso assegurar-vos de que não haverá castigo para o vosso delito.

— Por que motivo...

— Os motivos são assunto meu! Bem, então? Que dizeis?

— Que ganharia eu?

— O dote seria suficientemente avultado para liquidar todas as vossas dívidas e, acreditai, o meu marido seria muito generoso com a sua pupila. Além disso, ganharíeis o meu favor, e bem sabeis como sou próxima do rei.

— E o barão?

— Eu me ocuparei do barão.

__ Não compreendo...

__ Não há mais nada para compreender: a ruína, o desato e a desonra, ou o meu favor. — Felip de Ponts sentou-se. — A ruína ou a riqueza, D. Felip. Se vos negais, amanhã mesmo o barão executará a vossa dívida e confiscará as vossas terras, as vossas armas e os vossos animais. Isso, sim, posso assegurar-vos.

 

Decorreram dez dias de angustiada incerteza até que Arnau teve as primeiras notícias acerca de Mar. Dez dias durante os quais paralisara toda a actividade que não fosse a de investigar o que acontecera à rapariga, desaparecida sem deixar rasto. Manteve reuniões com o regedor e com os conselheiros, para os instar a que pusessem todo o seu empenho em averiguar o que se passara. Ofereceu recompensas avultadas por qualquer informação sobre a sorte ou o paradeiro de Mar. Rezou como nunca tinha rezado na sua vida, e por fim Elionor, que disse ter recebido a informação de um mercador de passagem que procurava Arnau, confirmou-lhe as suas suspeitas. A rapariga tinha sido sequestrada por um cavaleiro chamado Felip de Ponts, seu devedor, que a mantinha à força numa casa rural fortificada perto de Mataro, a menos de um dia de viagem a pé a norte de Barcelona.

Arnau mandou a esse local os missatges do consulado. Entretanto, ele próprio foi para Santa Maria, para continuar a rezar à sua Virgem de la Mar.

Ninguém se atreveu a incomodá-lo, e até os operários abrandaram o seu ritmo de trabalho. Prostrado de joelhos diante daquela pequena figura de pedra que tanto tinha sempre significado ao longo da sua vida, Arnau tentou afastar as cenas de horror e de pânico que o tinham assaltado durante dez dias e que agora voltavam a rondar a sua mente, interca1adas com a figura do rosto de Felip de Ponts.

Felip de Ponts atacara Mar no interior da sua própria casa, amordaçara-a e espancara-a até que a rapariga, exausta, cedera na sua oposição. Metera-a num saco e sentara-se com ela na parte de trás de um carro com arneses conduzido por um seu criado. Desta forma, como se tivesse vindo comprar ou reparar as rédeas e selas, atravessaram as portas da cidade sem que ninguém desconfiasse do cavaleiro. Na sua casa, no interior da torre fortificada que se erguia num dos seus extremos, o cavaleiro desonrou a rapariga, uma e outra vez, com cada vez mais violência e lascívia à medida que se apercebia da beleza da sua refém e da obstinação dela em proteger o corpo, que já não a sua virgindade. Porque Felip de Ponts se comprometera com Joan de que roubaria a virgindade de Mar sem a despir sequer, sem lhe mostrar o seu próprio corpo, empregando a força exclusivamente necessária para isso; e assim fizera da primeira vez, a única em que devia ter-se aproximado de Mar. Mas a luxúria mandara mais do que a sua palavra de cavaleiro.

Nada do que, entre lágrimas e com o coração apertado, Arnau chegou a imaginar no interior de Santa Maria podia comparar-se com o que a rapariga sentiu.

A entrada dos missatges no templo paralisou por completo as obras. As palavras do oficial ressoaram como faziam na corte de justiça do consulado:

— Mui honrado cônsul, é verdade. A vossa filha foi sequestrada e encontra-se em poder do cavaleiro Felip de Ponts.

— Falastes com ele?

— Não, mui honrado. Fez-se forte na torre e negou a nossa autoridade aduzindo que não se tratava de um assunto mercantil.

— Sabeis algo da rapariga? O oficial baixou os olhos.

Arnau cravou as unhas no reclinatório.

— Não tenho autoridade? Se ele quer autoridade — rosnou entredentes —, vai tê-la.

A notícia do sequestro de Mar espalhou-se com rapidez. No dia seguinte, logo de manhã, todos os sinos das igrejas de Barcelona começaram a repicar com insistência e o Via fora! tornou-se um grito na boca de todos os cidadãos: era

preciso resgatar a barcelonesa.

A Praça do Blat, como em tantas outras ocasiões, tornou-se o ponto de reunião do sometent, o exército de Barcelona, aonde foram chegando todas as confrarias da cidade. Nem uma única faltou e, sob os seus pendões, congregavam-se os confrades devidamente armados. Nessa manhã, Arnau despojou-se das suas roupas luxuosas e vestiu de novo aquelas com que lutara, sob as ordens de Eiximèn d'Esparça, primeiro, e contra Pedro, o Cruel, depois. Continuava a utilizar a maravilhosa balestra do pai, que nunca quisera substituir e que acariciou como nunca antes tinha feito; à cinta, o mesmo punhal com que anos antes dera a morte aos seus inimigos.

Quando Arnau se apresentou na praça, mais de três mil homens aclamaram-no. Os abanderados içaram os pendões. Espadas, lanças e balestras elevaram-se por sobre as cabeças da multidão ao som de um Via fora! ensurdecedor. Arnau não se descompôs. Joan e Elionor, atrás dele, empalideceram. Arnau procurou por entre o mar de armas e pendões, por sobre as cabeças; os cambistas não tinham confraria.

— Isto também fazia parte dos vossos planos? — perguntou o dominicano a Elionor, por entre o clamor.

Elionor tinha o olhar perdido na multidão. Barcelona inteira apoiava Arnau. Brandiam as armas no ar e gritavam. Tudo por causa de uma simples moça.

Arnau distinguiu o pendão. A multidão foi abrindo alas para que passasse enquanto se dirigia ao lugar onde se encontravam os bastaixos.

— Isto também estava nos vossos planos? — perguntou de novo o frade. Ambos olhavam para as costas de Arnau. Elionor não respondeu. — Comerão vivo o vosso cavaleiro. Vão arrasar-lhe as terras, destruir-lhe a quinta e depois...

— O quê? Depois, o quê? — rosnou Elionor olhando em frente.

Perderei o meu irmão. Talvez ainda estejamos a tempo de consertar alguma coisa. Isto não vai acabar bem..., pensava Joan.

— Falai com ele... — insistiu.

— Estais louco, frade?

— E se ele não aceita o casamento? E se Felip de Ponts conta tudo? Falai com ele antes que a host se ponha em marcha. Fazei-o. Por Deus, Elionor!

— Por Deus? — Desta vez, Elionor virou a cara para Joan. — Falai vós com o vosso Deus. Fazei isso, frade.

Ambos chegaram ao pendão dos bastaixos. Aí encontraram Guillem, sem armas, como escravo que era.

Arnau olhou para Elionor com o cenho franzido quando se apercebeu da presença dela.

— Também é minha pupila — exclamou ela. Os conselheiros deram a ordem e o exército do povo de Barcelona pôs-se em marcha. Os pendões de Sant Jordi e da cidade iam à frente, depois os bastaixos e depois as demais confrarias; três mil homens para apenas um cavaleiro. E Elionor e Joan no meio deles.

A meio do caminho, a host de Barcelona aumentou com mais de uma centena de camponeses das terras de Arnau, que acudiam com gosto, com as suas balestras, a defender quem tão generosamente os tinha tratado. Arnau viu que nenhum outro nobre ou cavaleiro se juntara a eles.

Arnau caminhava sério sob o pendão, misturado entre os bastaixos. Joan tentou rezar, mas o que antes lhe saía com fluidez parecia agora emperrar na sua mente. Nem ele nem Elionor tinham imaginado que Arnau chegaria ao ponto de convocar a host dos cidadãos. O estrondo que aqueles três mil homens faziam, em busca de justiça e de reparação para uma cidadã barcelonesa, ensurdecia Joan. Muitos deles tinham beijado as suas próprias filhas antes de partirem; mais do que um, já armado, enquanto se despedia da mulher, segurara o queixo dela e dissera: «Barcelona defende a sua gente... sobretudo as suas mulheres.»

Vão arrasar as terras do desgraçado Felip de Ponts como se a sequestrada tivesse sido a sua própria filha, pensou Joan. Julgá-lo-ão e executá-lo-ão, mas antes disso hão-de dar-lhe oportunidade para falar... Joan olhou para Arnau, que continuava a caminhar em silêncio, com o semblante sombrio.

Ao entardecer, a host dos cidadãos alcançou as terras de Felip de Ponts e deteve-se ao pé de uma pequena lomba em cujo cimo se encontrava a casa do cavaleiro. Esta não era mais do que uma casa de camponês, sem defesa alguma excepção da habitual torre de vigilância que se erguia de um dos lados. Joan olhou para a casa; depois, passeou a vista pelo exército que esperava as ordens dos conselheiros da cidade. Olhou para Elionor, que evitou enfrentá-lo. Três mil homens para tomar uma simples casa rural!

Joan acordou e correu para o local para onde se tinham deslocado Arnau e Guillem, junto dos conselheiros e demais próceres da cidade, sob o pendão de Sant Jordi. Encontrou-os discutindo o que fazer a partir daquele momento, e o estômago deu-lhe voltas ao perceber que a grande maioria era partidária de atacar a casa, sem nenhuma advertência, e sem dar a Ponts a oportunidade de se render à host.

Os conselheiros começaram a dar ordens aos próceres das confrarias. Joan olhou para Elionor, que se mantinha erecta, com o olhar perdido na casa. Aproximou-se de Arnau. Ia para lhe falar, mas não conseguiu. Guillem, ao seu lado, muito direito, olhou-o com um toque de desprezo. Os próceres das confrarias começaram a transmitir as ordens aos seus soldados. O rumor dos preparativos para a guerra tornou-se presente. Acenderam-se tochas; ouviu-se o aço das espadas e as cordas das balestras a tensionar-se. Joan virou-se para olhar de novo para a casa, e depois outra vez para o exército. Punham-se em marcha. Não haveria concessões. Barcelona não teria clemência. Arnau, como outro soldado qualquer, deixou o frade para trás e seguiu em direcção à casa do senhor de Ponts; empunhava o seu punhal. Mais um olhar para Elionor: continuava impassível.

— Não! — gritou Joan quando o irmão lhe virou costas.

O grito do frade, no entanto, foi abafado pelo rumor do exército inteiro. Da casa, saiu uma figura a cavalo; Felip de Ponts, a passo, lentamente, dirigia-se para eles.

— Prendei-o! — ordenou um conselheiro.

— Não! — gritou Joan. Todos se viraram para ele. Arnau interrogou-o com o olhar. — Não é preciso prender um homem que se rende.

— Que se passa, frade? — inquiriu um dos conselheiros — Por acaso vais dar ordens à host de Barcelona?

Joan suplicou com o olhar para Arnau.

— Não é preciso prender um homem que se rende — repetiu para o irmão.

— Deixai que se renda — concedeu Arnau.

O primeiro olhar de Felip de Ponts foi para os seus cúmplices. Depois, enfrentou os que se encontravam sob o pendão de Sant Jordi, entre os quais se encontravam Arnau e os conselheiros da cidade.

— Cidadãos de Barcelona — gritou, suficientemente alto para que todo o exército pudesse ouvi-lo. — Sei a razão por que aqui estais hoje e sei que buscais justiça para uma concidadã vossa. Aqui me tendes. Confesso-me autor dos delitos que se me imputam, mas antes que me prendais e me arraseis as minhas propriedades, suplico-vos a oportunidade para falar.

— Fala — permitiu-lhe um dos conselheiros.

— É certo que, contra a sua vontade, sequestrei e deitei-me com Mar Estanyol... — Um murmúrio percorreu as fileiras da host barcelonesa, interrompendo o discurso de Felip de Ponts. Arnau fechou as mãos sobre a balestra. — Fi-lo mesmo à custa da minha própria vida, consciente do castigo por tais delitos. Fi-lo e voltaria a fazê-lo se voltasse a nascer, tal é o amor que sinto por esta rapariga, tal a angústia de a ver definhar na sua juventude sem um marido a seu lado para desfrutar os dotes que Deus lhe concedeu, que os meus sentimentos superaram a razão e os meus actos foram mais de um animal enlouquecido de paixão que os de um cavaleiro do rei Pedro. — Joan sentiu a atenção do exército e, mentalmente, tentou ditar ao cavaleiro as suas palavras seguintes. — Como animal que fui, entrego-me a vós; como cavaleiro que gostaria de voltar a ser, comprometo-me a casar com Mar, para continuar a amá-la para toda a vida. Julgai-me! Não estou disposto, como prevêem as nossas leis, a proporcionar-lhe marido de igual valor. Antes de a ver com outro, matar-me-ia eu próprio.

Felip de Ponts terminou o seu discurso e esperou orgulhosamente, muito direito em cima do seu cavalo, desafiando um exército de três mil homens que se mantinha em silêncio, tentando assimilar as palavras que acabavam de escutar.

— Louvado seja o Senhor! — gritou Joan.

Arnau olhou para ele, intrigado. Todos se viraram para o frade, incluindo Elionor.

— A que propósito vem isso? — perguntou Arnau.

— Arnau — disse-lhe Joan, agarrando-lhe num braço e em voz suficientemente alta para que os presentes pudessem ouvi-lo —, este não é mais do que o resultado da nossa própria negligência. — Arnau respirou fundo. — Durante anos, consentimos nos caprichos de Mar, adiando os nossos deveres para com uma jovem sã e bela e que já deveria ter trazido filhos a este mundo, como é sua obrigação; assim o dispõem as leis de Deus e não somos nós quem podemos negar os desígnios de Nosso Senhor. — Arnau tentou responder, mas Joan obrigou-o a manter o silêncio com um movimento da mão. — Sinto-me culpado. Durante anos senti-me culpado por ser demasiado complacente com uma mulher caprichosa cuja vida carecia de sentido conforme às normas da santa Igreja Católica. Este cavaleiro — acresceutou, apontando para Felip de Ponts — não é mais do qUe a mão de Deus, alguém enviado por Nosso Senhor para realizar aquilo que nós próprios não soubemos fazer. Sim, durante anos senti-me culpado por ver como murchava a beleza e a saúde que Deus deu a uma rapariga que teve a sorte de ser recolhida por um homem bondoso como tu. Não quero sentir-me culpado também da morte de um cavaleiro que, à custa da sua própria vida, que hoje aqui nos oferece, veio cumprir aquilo que nós não fomos capazes de cumprir. Consente neste casamento. Eu, se de alguma coisa te serve a minha opinião, aceitaria.

Arnau ficou em silêncio durante alguns instantes. O exército inteiro estava pendente das palavras dele. Joan aproveitou o momento para se virar para Elionor, e pareceu-lhe observar um sorriso de orgulho nos lábios dela.

— Queres dizer que tudo isto é culpa minha? — perguntou Arnau a Joan.

— Minha, Arnau, minha. Eu é que devia ter-te avisado de quais são as leis da Igreja, de qual é o desígnio de Deus, mas não o fiz... e lamento.

Guillem deitava fogo pelos olhos.

— Qual é o desejo da rapariga? — perguntou Arnau ao senhor de Ponts.

— Sou cavaleiro do rei Pedro — respondeu este — e as leis do rei, as mesmas que hoje vos trazem aqui, não dão valor aos desejos de uma mulher casadoira. — Um rumor de aprovação percorreu a host. — Estou a oferecer-me em casamento, eu, Felip de Ponts, cavaleiro catalão. Se tu, Arnau Estanyol, barão da Catalunha, cônsul de la Mar, não consentires no casamento, prendei-me e julgai-me; se consentires, de pouco importa o desejo da rapariga.

 

O exército voltou a aprovar as palavras do cavaleiro, aquela era a lei, e todos a cumpriam, entregando as suas filhas em casamento, independentemente da vontade delas.

— Não se trata do teu desejo, Arnau — aduziu Joan, baixando a voz. — Trata-se da tua obrigação. Assume-a. Ninguém pede a opinião das suas filhas ou pupilas. Decide-se sempre considerando o que é melhor para elas. Este homem deitou-se com Mar. Pouco importa já qual é o desejo da rapariga. Ou se casa com ele, ou a vida dela será um inferno. Tens de ser tu a decidir, Arnau: mais uma morte, ou a solução divina para a nossa negligência.

Arnau procurou entre os seus aliados. Olhou para Guillem, que continuava com o olhar fixo no cavaleiro, disparando ódio. Encontrou Elionor, sua esposa por vontade real, e ambos aguentaram o olhar. Com um gesto, Arnau inquiriu a opinião dela. Elionor anuiu. Por último, virou-se para Joan.

— É a lei — respondeu este.

Arnau olhou para o cavaleiro. Depois para o exército. Tinham baixado as armas. Nenhum daqueles três mil homens parecia discutir as palavras do senhor de Ponts, nenhum pensava já em guerra. Esperavam a decisão de Arnau. Aquela era a lei catalã, a lei da mulher. Que conseguiria lutando, matando o cavaleiro e libertando Mar? Qual seria a vida da rapariga a partir de então, sequestrada e violada como tinha sido? Um convento?

— Consinto.

Houve um momento de silêncio. Depois, um murmúrio que se propagou por entre as filas de soldados, enquanto a decisão de Arnau se transmitia de uns para outros. Alguns aprovaram publicamente a posição de Arnau. Outros gritaram. Alguns outros se lhes foram juntando e a host estalou em vivas.

Joan e Elionor trocaram olhares.

A apenas uma centena de metros de onde se encontravam, encerrada na torre de vigilância da casa de Felip de Ponts, a mulher cujo futuro acabara de se decidir observava a multidão que se apinhava no sopé da pequena elevação Porque não subiam? Porque não atacavam? Que podiam estar a tratar com aquele miserável? Que gritavam?

— Arnau! Que gritam os teus homens?

 

A gritaria da bost convenceu-o de que o que acabava de ouvir era verdade: «Consinto.» Guillem cerrou os lábios com força. Alguém lhe bateu nas costas e foi juntar-se à gritaria. «Consinto.» Guillem olhou para Arnau e depois para o cavaleiro. O seu rosto parecia descontraído. Que podia fazer um simples escravo como ele? Voltou a olhar para Felip de Ponts; agora sorria. «Deitei-me com Mar Estanyol», fora o que ele dissera. «Deitei-me com Mar Estanyol.» Como podia Arnau...

Alguém lhe chegou uma bexiga de vinho à boca. Guillem afastou-o com maus modos.

— Não bebes, cristão? — ouviu dizerem-lhe.

O seu olhar cruzou-se com o de Arnau. Os próceres felicitavam Felip de Ponts, ainda em cima do cavalo. As pessoas riam e bebiam.

— Não bebes, cristão? — tornou a ouvir atrás de si. Guillem empurrou o homem que lhe oferecia a bebida e voltou a procurar Arnau com o olhar. Os próceres felicitavam-no também a ele. Rodeado, Arnau conseguiu esticar a cabeça para corresponder a Guillem.

Toda a gente, incluindo Joan, começou a empurrar Arnau em direcção à casa do cavaleiro, mas Arnau não parou de olhar para Guillem.

Entretanto, a host inteira festejava o acordo. Os homens tinham acendido fogueiras e cantavam em volta delas.

— Brindai ao nosso cônsul e à felicidade da pupila dele — disse outro homem, aproximando-lhe mais uma vez urna bexiga de vinho.

Arnau desaparecera no caminho para a casa. Guillem voltou a afastar a bebida.

— Não queres brindar?

Guillem olhou para o homem. Virou-lhe as costas e começou a caminhar de regresso a Barcelona. O bulício da host foi-se desvanecendo. Guillem viu-se sozinho no caminho para a cidade; arrastava os pés... arrastava os seus sentimentos e o pouco orgulho de homem que restava a um escravo; todo ele se arrastou até Barcelona.

Arnau recusou o queijo que lhe foi oferecido pela tremelicante idosa que cuidava da casa de Felip de Ponts. Próceres e conselheiros apinhavam-se no primeiro andar, sobre os estábulos, onde se encontrava a grande lareira de pedra da casa do cavaleiro. Procurou Guillem no meio da multidão. As pessoas conversavam, riam e chamavam a idosa para que servisse queijo e vinho. Joan e Elionor ficaram junto da lareira; ambos desviaram o olhar quando Arnau cravou a vista neles.

Um murmúrio obrigou-o a desviar a atenção para o outro extremo da sala.

Mar, agarrada pelo braço por Felip de Ponts, tinha entrado na sala. Arnau viu como ela se libertava com violência da mão do cavaleiro e corria para ele. Um sorriso apareceu-lhe nos lábios. Mar abriu os braços muito antes de chegar até ao sítio onde ele a esperava, mas quando ia a abraçá-lo, estacou e deixou cair os braços lentamente.

Arnau julgou ver uma equimose no rosto dela.

__Que se passa, Arnau?

Arnau virou-se e procurou a ajuda de Joan, mas o irmão permanecia cabisbaixo. Todos na sala esperavam as palavras dele.

— O cavaleiro Felip de Ponts invocou o usatge: Si quis vlrginem... — disse-lhe, por fim.

Mar não se mexeu. Uma lágrima começou a correr-lhe pela cara. Arnau fez um leve movimento com a mão direita, mas refreou-se imediatamente e deixou que aquela lágrima se perdesse no queixo de Mar.

— O teu pai... — tentou intervir Felip de Ponts, de lá de trás, antes de Arnau o mandar calar com um gesto imperativo. — O cônsul de la Mar deu a sua palavra em como aceitava o casamento diante da host de Barcelona. — Felip de Ponts soltou as palavras numa rajada, antes que Arnau pudesse fazê-lo calar-se... ou que se desdissesse.

— Isso é verdade? — perguntou Mar.

A única verdade é que gostaria de te abraçar, de te beijar, de te ter sempre comigo. Será isso que um pai deve sentir?, pensou Arnau.

— Sim, Mar.

Já não apareceram mais lágrimas no rosto de Mar. Felip de Ponts aproximou-se da rapariga e voltou a agarrá-la pelo braço. Ela não se opôs. Alguém rompeu o silêncio e todos os presentes se juntaram aos gritos. Arnau e Mar continuavam a olhar-se. Ouviu-se um viva pelos noivos que retumbou nos ouvidos de Arnau. Dessa vez, foi o rosto dele a encher-se de lágrimas. Talvez o irmão tivesse razão, talvez ele tlvesse percebido algo que nem mesmo ele próprio sabia. Diante da Virgem jurara que não tornaria a ser infiel a uma esposa, mesmo que fosse uma esposa imposta, por amor a outra mulher.

— Pai? — perguntou Mar aproximando a sua mão livre para lhe enxugar as lágrimas.

Arnau tremeu ao sentir o toque de Mar no seu rosto.

Girou sobre si próprio e fugiu.

Nesse mesmo momento, num lugar qualquer do escuro e solitário caminho de regresso a Barcelona, um escravo ergueu os olhos para o céu e ouviu o grito de dor da criança que cuidara como se fosse sua filha. Nascera escravo e vivera como tal. Aprendera a amar em silêncio e a reprimir os seus sentimentos. Um escravo não era um homem, e por isso na sua solidão, único lugar onde ninguém podia cercear-lhe a sua liberdade, aprendera a ver muito mais para lá do que todos aqueles a quem a vida toldava o espírito. Vira o amor que sentiam um pelo outro e rezara, aos seus dois deuses, para que aqueles seres que tanto amava conseguissem finalmente libertar-se das suas grilhetas, umas correntes mais fortes que as de um simples escravo.

Guillem permitiu-se chorar — uma conduta que, como escravo, lhe era proibida.

Guillem não atravessou as portas de Barcelona. Chegou à cidade ainda de noite e parou diante da porta fechada de San Daniel. Tinham-lhe roubado a sua menina. Talvez sem sequer o saber, mas Arnau vendera-a como se de uma escrava se tratasse. Que ia ele fazer em Barcelona? Como poderia sentar-se onde antes se sentara Mar? Como poderia passear por onde antes o fizera com ela, conversando, rindo, partilhando os sentimentos secretos da sua menina? Que poderia fazer em Barcelona, a não ser recordar-se dela dia noite? Que futuro o esperaria junto do homem que tinha cerceado as ilusões de ambos?

Guillem continuou a percorrer o caminho da costa e, ao fim de dois dias, chegou ao porto de Salou, o segundo mais importante da Catalunha. Aí, olhou para o mar, para o horizonte, e a brisa marítima trouxe-lhe recordações da sua infância em Génova, de uma mãe e de irmãos de quem tinha sido cruelmente separado após ser vendido a um comerciante com quem começara a aprender o negócio. Depois, numa viagem comercial por mar, amo e escravo tinham sido capturados pelos Catalães, em guerra permanente com Génova. Guillem passara de mão em mão até que Hasdai Crescas vira nele qualidades muito superiores às de um simples operário manual. Tornou a olhar para o mar, para os navios e para os passageiros... Porque não Génova?

— Quando sai o próximo navio para a Lombardia, para Pisa? — O jovem revolveu nervosamente os papéis que se amontoavam em cima da mesa do armazém. Não conhecia Guillem e, inicialmente, tratou-o com desdém, como teria feito com qualquer outro escravo sujo e malcheiroso, mas quando o mouro se apresentou, as palavras que o seu pai costumava dizer acenderam-se na sua mente: «Guillem é a mão direita de Arnau Estanyol, cônsul de la Mar de Barcelona, de quem nós vivemos.» — Preciso de instrumentos para escrever uma carta e de um lugar tranquilo para o fazer — acrescentou Guillem.

«Aceito a tua oferta de liberdade», escreveu. «Parto para Génova, via Pisa, para onde viajarei em teu nome, como escravo, e onde esperarei a tua carta de liberdade.» Que mais lhe poderia dizer? Que sem Mar não poderia viver? E o seu senhor e amigo Arnau, poderia? Para quê recordar-lhe «Vou à procura das minhas origens, da minha família», acrescentou. «Juntamente com Hasdai, foste o melhor amigo qne já tive; cuida bem dele. Ficar-te-ei para sempre agradecido Que Alá e Santa Maria te protejam. Rezarei por ti.»

O jovem que o tinha atendido partiu para Barcelona assim que a galera em que Guillem embarcara manobrou para abandonar o porto de Salou.

Arnau assinou a carta de liberdade de Guillem lentamente, observando cada traço que aparecia no documento: a peste, a luta, a mesa de câmbios, dias e dias de trabalho, de conversa, de amizade, de alegria... A mão tremeu-lhe ao riscar o último traço. A pena dobrou-se quando acabou de assinar. Ambos sabiam que eram outras as razões que o tinham levado a fugir.

Arnau regressou à câmara de comércio, de onde deu ordens para que remetessem a carta ao seu correspondente em Pisa. Junto com ela, incluiu uma ordem de pagamento de uma pequena fortuna.

— Não esperamos por Arnau? — perguntou Joan a Elionor depois de entrar na sala de jantar, onde a baronesa o esperava, já à mesa.

— Tendes apetite? — Joan fez que sim com a cabeça-— Pois, então, se quereis jantar, é melhor que o façais agora.

O frade sentou-se em frente a Elionor, de um dos lados da longa mesa de Arnau. Dois criados serviram-lhes pão branco andial, vinho, sopa e ganso assado condimentado com pimenta e cebolas.

- Não dissestes que tínheis apetite? — inquiriu Elionor a Joan, ao ver que o frade brincava com a comida. Joan limitou-se a erguer os olhos para a cunhada. Aquela foi a única frase que se ouviu em todo o serão.

Várias horas depois de se ter retirado para o seu quarto, Joan ouviu movimento no palácio. Alguns criados apressavam-se a receber Arnau. Oferecer-lhe-iam comida, que este recusaria, como fizera das três vezes em que Joan decidira esperar por ele: Arnau sentava-se num dos salões do palacete, onde Joan o esperava, e recusava o jantar tardio com um gesto cansado da mão.

Joan ouviu os passos dos criados, de regresso. Depois, ouviu os passos de Arnau em frente à sua porta, lentos, dirigindo-se para o seu quarto. Que poderia dizer-lhe se saísse agora? Tentara falar com ele das três vezes em que o esperara, mas Arnau fechava-se em si mesmo e respondia com monossílabos às perguntas do irmão: «Estás bem?» «Sim.» «Tiveste muito trabalho na câmara?» «Não.» «As coisas vão bem?» Silêncio. «E Santa Maria?» «Bem.» Na escuridão do seu quarto, Joan levou as mãos ao rosto. Os passos de Arnau tinham-se afastado. E de que queria ele que ele falasse? Dela? Como poderia escutar dos lábios dele que ainda a amava?

Joan vira como Mar recolhera a lágrima que corria pelo tosto de Arnau. «Pai?», ouvia-a dizer. Vira Arnau estremecer.

Depois, virara-se e vira que Elionor sorria. Fora preciso vê-lo sofrer para compreender... Mas como poderia confessar-lhe a verdade? Como lhe ia dizer que tinha sido ele? Aquela lágrima tornou a aparecer na recordação de Joan. Amava-a assim tanto? Conseguiria esquecê-la? Ninguém foi consolar Joan quando, uma noite mais, se fincou de joelhos no chão e rezou até ao amanhecer.

 

— Gostava de sair de Barcelona.

O prior dos dominicanos observou o frade; estava magro, com os olhos afundados sobre umas enormes olheiras com o hábito negro em desalinho.

— Sentes-te capaz, frei Joan, de assumir o cargo de inquisidor?

— Sim — asseverou Joan. O prior olhou-o de alto a baixo. — Preciso apenas de sair de Barcelona, que logo recuperarei.

— Seja. Na semana que vem partirás para o Norte. O destino de Joan era uma zona de pequenas aldeias dedicadas à agricultura e à criação de gado, perdidas no interior de vales e montanhas, cujas gentes viam com temor a chegada do inquisidor. A presença dele não era nada de novo para aquela gente. Há mais de cem anos, quando Ramon de Penyafort recebera do Papa Inocêncio IV o encargo de se ocupar da Inquisição no reino de Aragão e no principado de Narbona, aquelas aldeias tinham sofrido os interrogatórios dos frades de negro. A maioria das doutrinas consideradas heréticas pela Igreja tinha vindo de França para a Catalunha: os cátaros e os valdenses, primeiro, os begardos, depois, e por fim os templários, perseguidos pelo rei francês. As zonas fronteiriças tinham sido as primeiras a receber as influências heréticas; naquelas terras se tinha condenado e executado os nobres: o visconde Arnau e a esposa Ermessenda; Ramon, senhor do Cadí, ou Guillem de Niort, regedor do conde Nuno Sanç na Sardenha e em Coflent, terras onde Joan deveria exercer o seu ministério.

- Excelência — foi a forma como o recebeu em mais uma daquelas aldeias uma comitiva dos principais próceres, e se inclinavam diante dele.

- Não sou excelência — respondeu Joan, mandando-os levantarem-se com gestos. — Chamai-me simplesmente frei Joan.

A sua curta experiência demonstrava que aquela cena se repetia sempre. A notícia da chegada do inquisidor, do escrivão que o acompanhava e de meia dúzia de soldados do Santo Ofício precedera-os. Encontravam-se na pequena praça da aldeia. Joan observou os quatro homens, que se recusavam a endireitar-se completamente: mantinham a cabeça curvada, estavam descobertos e eram incapazes de ficar quietos. Não havia mais ninguém na praça, mas Joan sabia que muitos olhos escondidos estavam postos nele. Tanto tinham assim a esconder?

Depois da recepção, viria o mesmo de sempre: dar-lhe-iam o melhor alojamento da aldeia, onde o esperaria uma mesa bem servida, demasiado bem servida para as possibilidades daquela gente.

— Só quero um pedaço de queijo, pão e água. Retirai tudo o resto e ocupai-vos de que os meus homens sejam atendidos — repetiu mais uma vez ao sentar-se à mesa.

Mais uma casa igual. Humilde e simples, mas construída em pedra, ao contrário das barracas de barro ou de madeira podre que se amontoavam naquelas aldeias. Uma mesa e várias cadeiras constituíam todo o mobiliário de uma sala que Se espalhava em redor da lareira.

— Sua excelência deve estar cansada.

Joan olhou para o queijo que tinha à sua frente. Tinham viajado durante várias horas, caminhando por trilhos pedregosos, aguentando o frio do amanhecer, com os pés enlameados e empapados pela geada. Por debaixo da mesa, coçou a dorida perna e o pé direito, cruzados sobre a perna esquerda.

— Não sou excelência — repetiu monotonamente — e também não estou cansado. Deus não quer saber de cansaços quando se trata de defender o Seu nome. Começaremos em breve, assim que eu tenha comido qualquer coisa. Ide reunir as pessoas na praça.

Antes de partir de Barcelona, Joan pedira em Santa Catarina o tratado escrito pelo Papa Gregório IX em 1231, e estudara o procedimento dos inquisidores itinerantes.

«Pecadores! Arrependeí-vos!» Primeiro, o sermão ao povo. As pouco mais de setenta pessoas que se tinham juntado na praça baixaram os olhos para o chão assim que ouviram as primeiras palavras. Os olhares do frade de negro paralisa-vam-nas. «O fogo eterno espera-vos!» Da primeira vez, duvidara da sua capacidade para se dirigir às pessoas, mas as palavras surgiam-lhe umas atrás das outras, com facilidade, com tanta mais facilidade quanto mais se apercebia do poder que exercia sobre aqueles camponeses aterrorizados. «Nenhum de vós se salvará! Deus não permite ovelhas negras no seu rebanho.» Tinham de se denunciar; tinham de fazer sair à luz a heresia. Essa era a sua função: encontrar o pecado que se cometia na intimidade, aquele de que só sabiam o vizinho, o amigo, a mulher...

«Deus sabe. Conhece-vos. Vigia-vos. Aquele que contempla impassível o pecado arderá no fogo eterno, porque é pior quem admite o pecado do que aquele que peca; o que peca pode encontrar o perdão, mas o que esconde o pecado...» Joan voltou a ficar em silêncio, por um momento que prolongava até que via como as pessoas se dobravam perante a sua ameaça: «... não encontrará o perdão.»

Medo. Fogo, dor, pecado, castigo... O monge de negro gritava e prolongava as suas diatribes até se apoderar dos espíritos, numa comunhão que começara a sentir logo no seu primeiro sermão.

— Tendes um período de graça de três dias — disse, por fim. — Todo aquele que se apresente voluntariamente para confessar as suas culpas será tratado com benevolência. Decorridos esses três dias... o castigo será exemplar. — Virou-se para o oficial: — Investiga aquela mulher loura, o homem que está descalço, e também aquele do cinturão preto. A rapariga com a criança... — Discretamente, Joan apontou para eles. — Se não se apresentarem voluntariamente, devereis trazê-los, juntamente com uns quantos mais escolhidos à sorte.

Durante os três dias, Joan ficou sentado à mesa, hierático, juntamente com um escrivão e alguns soldados que não paravam de mudar de posição enquanto, lenta e silenciosamente, as horas passavam.

Apenas quatro pessoas apareceram para quebrar o tédio: dois homens que tinham falhado com a obrigação de assistir a missa, uma mulher que tinha desobedecido por várias vezes ao marido, e um rapazinho que assomou a cabeça, com os olhos enormes, através da porta.

Alguém o empurrou pelas costas, mas o rapazinho recusou-se a entrar e ficou com metade do corpo fora e metade dentro.

— Entra, rapaz — disse-lhe joan.

O rapazinho retrocedeu, mas uma mão voltou a empurrá-lo para dentro e fechou a porta.

— Que idade tens? — perguntou Joan.

O rapazinho olhou para os soldados, para o escrivão que já estava embrenhado no seu labor, e para Joan.

— Nove anos — gaguejou.

— Como te chamas?

— Alfons.

— Aproxima-te, Alfons. Que queres dizer-nos?

— Que... Que há dois meses apanhei feijões da horta do meu vizinho.

— Apanhaste?

— Roubei — ouviu-se tenuemente.

 

Joan levantou-se da enxerga e acendeu a candeia. Havia várias horas que a aldeia já ficara em silêncio, as mesmas que ele próprio passara a tentar conciliar o sono. Fechava os olhos e adormecia, mas uma lágrima que caía pela cara de Arnau voltava a acordá-lo. Precisava de luz. Tentava de novo, uma e outra vez, mas acabava sempre por se levantar, as vezes violentamente, outras transpirando, e outra devagarinho, sopesando as recordações que o impediam de dormir.

Precisava de luz. Comprovou que ainda havia azeite na candeia.

O rosto triste de Arnau apareceu-lhe nas sombras.

Tornou a deixar-se cair na enxerga. Fazia frio. Fazia sempre frio. Observou por uns segundos o bruxulear da chama e as sombras que se moviam ao seu compasso. A única janela do quarto não tinha portadas e o ar passava por ela. «Todos dançamos alguma dança; a minha...»

Encolheu-se debaixo das mantas e obrigou-se a fechar os olhos.

Porque não amanhecia logo? Mais um dia que teria passado, dos três de graça.

Joan caiu num sono leve e, ao fim de pouco mais de meia hora, tornou a acordar, transpirado. A candeia continuava a arder. As sombras continuavam a dançar. A aldeia continuava em silêncio. Porque não amanhecia?

Enrolou-se nas mantas e aproximou-se da janela.

Mais uma aldeia. Mais uma noite à espera que amanhecesse.

Que chegasse o dia seguinte...

De manhã, um grupo de cidadãos escoltados pelos soldados fazia fila em frente à casa.

Disse chamar-se Peregrina. Joan fingiu não prestar a menor atenção à mulher loura que entrara em quarto lugar. Não obtivera nada dos três primeiros. Peregrina permaneceu de pé em frente à mesa a que estavam sentados Joan e o escrivão. O fogo crepitava na lareira. Mais ninguém os acompanhava. Os soldados permaneciam no exterior da casa. De repente, Joan levantou os olhos. A mulher tremeu.

- Tu sabes de alguma coisa, não é verdade, Peregrina?

Deus vigia-nos — afirmou Joan. Peregrina anuiu com os olhos fixos no chão de terra da casa. — Olha para mim.

Preciso que olhes para mim. Por acaso queres arder no fogo eterno? Olha para mim. Tens filhos?

 

A mulher levantou o olhar, lentamente.

— Sim, mas... — balbuciou.

— Mas não são eles os pecadores — interrompeu-a Joan. — Quem é, então, Peregrina? — a mulher hesitou. —. Quem é, Peregrina?

— Blasfema — afirmou.

— Quem blasfema, Peregrina?

O escrivão preparou-se para anotar.

— Ela... — Joan esperou em silêncio. Já não havia saída. — Ouço-a blasfemar quando se zanga... — Peregrina voltou a dirigir os olhos para o chão. — A irmã do meu marido, Marta. Diz coisas terríveis quando se zanga.

O raspar da pena do escrivão elevou-se acima de qualquer outro som.

— Mais alguma coisa, Peregrina?

Desta vez, a mulher ergueu a cabeça com tranquilidade.

— Nada mais.

— De certeza?

—Juro-vos. Tendes de acreditar em mim.

Apenas se enganara no caso do homem do cinturão preto. O homem descalço denunciara dois pastores que não guardavam a abstinência: afirmara tê-los visto a comer carne na Quaresma. A rapariga com a criança, viúva precoce, fez o mesmo com o seu vizinho, um homem casado que não parava de lhe fazer propostas desonestas... Que lhe tinha até acariciado um seio.

— E tu deixaste? — perguntara-lhe Joan. — Sentiste prazer?

A rapariga desatou a chorar.

— Aproveitaste-te? — insistiu Joan.

— Tínhamos fome — soluçou, mostrando a criança.

O escrivão tomou nota do nome da rapariga. Joan fixou o olhar nela. E que te deu ele?, pensou. Uma côdea de pão seca? É isso que vale a tua honra?

— Confessa! — sentenciou Joan, apontando para ela. Outras duas pessoas tinham denunciado outros tantos vizinhos. Hereges, tinham garantido.

— Certas noites, acordo a ouvir barulhos estranhos e vejo luzes lá em casa — disse um. — São adoradores do demónio.

Que te terá feito o teu vivinho para que o denuncies?, pensou Joan. Sabes bem que ele nunca saberá o nome do seu delator. Que ganharás tu se eu o condenar? Talvez um pedaço de terra?

— Como se chama o teu vizinho?

— É Anton, o padeiro.

O escrivão anotou o nome.

Quando Joan deu por terminado o interrogatório, já tinha anoitecido; fez entrar o oficial e o escrivão e ditou-lhes os nomes daqueles que deveriam comparecer perante a Inquisição no dia seguinte, ao amanhecer, assim que o Sol despontasse.

De novo o silêncio da noite, o frio, o bruxulear da chama... e as recordações. Joan tornou a levantar-se.

Uma blasfema, um libidinoso e um adorador do demónio. «Quando amanhecer sereis meus», rosnou. Seria verdade, a história do adorador? Muitas tinham sido até aí as denúncias semelhantes a essa, mas apenas uma tinha tido fundamento. Seria verdade desta vez? Como poderia demonstrar isso?

Sentiu-se cansado e voltou para a enxerga para fechar os olhos. Um adorador do demónio...

— Juras pelos quatro Evangelhos? — perguntou Joan quando a luz começava a entrar pela janela do piso térreo da casa. O homem fez que sim.

— Sei que pecaste — afirmou Joan.

Rodeado por dois soldados de pé, o homem que tinha comprado um segundo de prazer à viúva jovem empalideceu. Gotas de suor começaram a humedecer-lhe a fronte.

— Como te chamas? — «Gaspar», ouviu responder. — Sei que pecaste, Gaspar — repetiu Joan. O homem balbuciou:

— Eu... Eu...

— Confessa — Joan elevou o tom de voz.

— Eu...

— Açoitem-no até que confesse! —Joan levantou-se e bateu na mesa com ambas as mãos.

Um dos soldados levou a mão ao cinto, de onde pendia um chicote de couro. O homem caiu de joelhos diante da mesa de Joan e do escrivão.

— Não! Peço-vos! Não me açoiteis.

— Confessa.

O soldado, com o chicote ainda enrolado, bateu-lhe nas costas.

— Confessa! — gritou Joan.

— Eu... Eu não tenho culpa. É essa mulher. Enfeitiçou--me. — O homem falava atabalhoadamente. — O marido já não a possui. — Joan não se mexeu. — E procura-me, persegue-me. Só o fizemos umas quantas vezes, mas... Mas não voltarei a fazê-lo. Não voltarei a vê-la. Juro-vos.

— Fornicaste com ela?

— Sim... Sim.

— Quantas vezes?

— Não sei...

— Quatro, cinco... Dez?

— Quatro. Sim. É isso. Quatro vezes.

— Como se chama essa mulher? O escrivão tomou nota outra vez.

— Que mais pecados cometeste?

— Não... Nenhum mais, juro-vos.

— Não jures em vão — Joan arrastou as palavras. — Açoitai-o.

Ao fim de dez chicotadas, o homem confessou que tinha fornicado com aquela mulher e com várias prostitutas quando ia ao mercado de Puigcerdà; além disso, tinha blasfemado, mentido e cometido uma infinidade de pequenos pecados. Outras cinco chicotadas foram o bastante para que se lembrasse da jovem viúva.

— Confesso — sentenciou Joan —, amanhã, na praça, deverás comparecer para o sermo generalis em que te será comunicado o teu castigo.

O homem nem sequer teve tempo para protestar. De joelhos, foi arrastado pelos soldados para o exterior da casa.

Marta, a cunhada de Peregrina, confessou sem necessidade de ameaças de maior, e, depois de a convocar para o dia seguinte, Joan fez um sinal ao escrivão com os olhos.

— Trazei Anton Sinom — ordenou este ao oficial depois de ler a lista.

Assim que viu entrar o adorador do demónio, Joan enditeitou-se na dura cadeira de madeira. O nariz de águia daquele homem, a testa alta e os seus olhos escuros...

Queria ouvir a voz dele.

—Juras pelos quatro Evangelhos?

— Sim.

— Como te chamas? — perguntou-lhe, antes mesmo de homem se colocar diante dele.

— Anton Sinom

Aquele homem pequeno, um pouco encurvado, respondeu à pergunta abatido, entre os dois soldados que o acompanhavam, com um trejeito de resignação que não passou despercebido ao inquisidor.

— Sempre te chamaste assim?

Anton Sinom hesitou. Joan esperou pela resposta.

— Aqui, toda a gente me conheceu sempre por esse nome — disse por fim.

— E fora daqui?

— Fora daqui tinha outro nome.

Joan e Anton olharam-se. Em momento algum o homenzinho tinha baixado os olhos.

— Um nome cristão, talvez?

Anton negou com a cabeça. Joan reprimiu um sorriso. Como começar? Dizendo-lhe que sabia que ele tinha pecado? Aquele judeu convertido não entraria nesse jogo. Ninguém na aldeia o tinha descoberto; caso contrário mais do que um já o teria denunciado, como era costume acontecer aos convertidos. Devia ser inteligente, este Sinom. Joan observou durante alguns segundos enquanto se perguntava que esconderia aquele homem. Porque iluminava a sua casa durante a noite?

Joan levantou-se e saiu do edifício; nem o escrivão nem os soldados se mexeram. Quando fechou a porta atrás de si, os curiosos que se apinhavam em frente à casa ficaram paralisados. Joan ignorou-os a todos e dirigiu-se ao oficial.

__Estão por aqui os familiares daquele que está lá dentro?

O oficial apontou-lhe para uma mulher e dois rapazes que olhavam para ele. Havia qualquer coisa...

— A que se dedica esse homem? Como é a casa dele? Que fez quando o citastes para comparecer perante o tribunal?

— É padeiro — respondeu o oficial. — Tem a loja por debaixo da casa. A casa... É normal, limpa. Não falámos com ele para o citar; falámos com a mulher.

— Não estava na padaria?

— Não.

— Fostes logo ao amanhecer, como vos mandei?

— Sim, frei Joan.

«Certas noites acorda-me...» O vizinho dissera «acorda-me». Um padeiro... Um padeiro levanta-se antes do amanhecer. «Não dormes, Sinom? Se tens de te levantar ao amanhecer...» Joan voltou a olhar para a família do convertido, um pouco afastada dos restantes curiosos. Passeou em círculos por alguns instantes. De repente, tornou a entrar na casa; o escrivão, os soldados e o convertido não se tinham mexido de onde os tinha deixado.

Joan aproximou-se do homem até que os rostos de ambos quase se tocaram; depois, sentou-se no seu lugar.

— Dispam-no — mandou aos soldados.

— Sou circuncidado. Já o reconheci...

— Dispam-no!

Os soldados viraram-se para Sinom e, antes de se lançarem sobre ele, o olhar que o convertido dirigiu a Joan convenceu-o de que tinha razão.

— E agora — disse-lhe quando o homem ficou totalmente nu —, que tens a dizer-me?

Convertido tentou mater a compostura o melhor que pôde.

- Não sei a que te referes – respondeu-lhe ele.

- Refiro-me – Joan baixou a voz e rosnou cada uma das suas palavras – a que o teu rosto e o teu pescoço estão sujos, mas onde começa o teu peito a tua pele está imaculadamente limpa. Refiro-me a que as tuas mãos e os teus pulsos estão sujos, mas os teus braços estão impolutos. Refiro-me a que os teus pés e os teus tornozelos estão sujos, mas as tuas pernas estão limpas.

- Sujidade onde não há roupa, limpeza onde a há – alegou Sinom.

- Nem sequer farinha, padeiro? Pretendes dizer-me que a roupa de um padeiro o protege da farinha? Pretendes fazer-me acreditar que no forno trabalhas com a mesma roupa com que recebes o Inverno? Nde está a farinha dos teus braços? Hoje é segunda-feira, Sinom. Santificaste a festa de Deus?

- Sim.

- Joan bateu na mesa com o punho ao mesmo tempo que se levantava.

- Mas também te purificaste de acordo com os teus ritos hereges – gritou, apontando para ele.

- Não – gemeu Sinom.

- Veremos, Sinom, veremos. Encarcerem-no e tragam-me a mulher e os filhos.

- Não! – suplicou Sinos quando os soldados já o arrastavam pelas axilas para o sótão. – Eles nada têm que ver com isto…

- Alto! – mandou Joan. Os soldados detiveram-se e viraram o convertido para o inquisidor. – Com que é que nada têm a ver, Sinom? Com quê?

Sinos confessou, tentando assim ilibar a sua familia. Quando terminou, Joan ordenou a detenção dele…e da familia. Depois, fez que lhe trouxessem à sua presença os restantes acusados.

 

Ainda não tinha amanhecido quando Joan desceu à praça.

- Ele não dorme? – perguntou um dos soldados, entre dois bocejos.

- Não – respondeu outro. – Ouvem-no muitas vezes a andar de um lado para o outro durante a noite.

S dois soldados observavam Joan, ultimava os preparativos para o sermão final. Hábito preto, puído, sujo, enxovalhado, parecia negar-se a acompanhar os seus movimentos.

- Pois se não dorme e também não come… - comentou o primeiro,

- Vive do ódio – interveio o oficial, que escutara a conversa.

Povo começou a comparecer assim que despontou a primeira luz do dia. OS acusados na primeira linha, separados dos restantes e escoltados pelos soldados; entre eles, Alfons, o rapazinho de nove anos.

Joan deu início ao auto-de-fé e as autoridades da aldeia aproximaram-se para prestar o voto de obediência à Inquisição e jurar o cumprimento das penas impostas. Frade começou a ler as acusações e as penas. Os que tinham comparecido durante o período de graça receberam castigos mais leves: peregrinar até à catedral de Gerona. Alfons foi condenado a ajudar gratuitamente, um dia por semana durante um mês, o vizinho a quem tinha roubado. Quando leu a acusa ção de Gaspar, um grito interrompeu-lhe o discurso:

— Rameira! — Um homem lançou-se sobre a mulher que se tinha deitado com Gaspar. Os soldados acudiram a defendê-la.

— Era então esse o pecado que querias contar-me? continuou o homem a gritar, por detrás dos soldados. Quando o marido ofendido se calou, Joan ditou a sentença:

— Todos os domingos, durante três anos, vestindo um sambenito, permanecerás de joelhos em frente à igreja, desde o nascer do Sol até que se ponha. E quanto a ti... — começou a dirigir-se para a mulher.

— Reclamo o direito de a castigar! — gritou o marido. Joan olhou para a mulher. «Tens filhos?», esteve quase a perguntar-lhe. Que mal tinham feito os filhos para serem obrigados a falar com a mãe empoleirados numa caixa, através de uma pequena janela, com o único consolo de uma carícia de uma mão no cabelo? Mas aquele homem tinha o direito... — Quanto a ti — repetiu —, entrego-te às autoridades seculares, que tratarão de que se cumpra a lei catalã, a expensas do teu marido.

Joan continuou a acusar e a impor penas. — Anton Sinom. Tu e a tua família são colocados à disposição do inquisidor-mor.

— Em marcha — comandou Joan assim que teve todos os seus escassos pertences acomodados sobre uma mula.

O dominicano despediu-se daquela aldeia com o olhar, ouvindo as suas próprias palavras, que ainda ecoavam na pequena praça: nesse mesmo dia chegariam a outra aldeia, a depois a outra, e a outra ainda. «E as gentes de todas elas», pensou «olharão para mim e ouvir-me-ão aterrorizadas. E depois denunciar-se-ão entre si e virão à luz os seus pecados. E eu terei de investigá-los, terei de interpretar os seus movimentos, as suas expressões, os seus silêncios, os seus sentimentos, para encontrar o pecado.»

- Apressai-vos, oficial. Quero chegar antes do meío-dia.

 

                                                 SERVOS DO DESTINO

 

Páscoa de 1367 , Barcelona

Arnau continuava ajoelhado diante da sua Virgem de la Mar enquanto os sacerdotes celebravam os ofícios da Páscoa. Com Elionor, entrara em Santa Maria; a igreja estava cheia, a transbordar, mas as pessoas afastaram-se para que ele pudesse chegar à primeira fila. Reconhecia os sorrisos de cada um: aquele tinha-lhe pedido um empréstimo para a sua nova barca; aquele outro tinha-lhe entregue as suas poupanças; outro tinha pedido um empréstimo para o dote da filha; aquele ainda não tinha devolvido o combinado. Este último tinha os olhos caídos no chão. Arnau parou junto dele e, para desespero de Elionor, ofereceu-lhe a mão.

— Que a paz esteja contigo — disse-lhe.

Os olhos do homem iluminaram-se e Arnau continuou o percurso até ao altar-mor. Aquilo era tudo o que tinha, dizia ele à Virgem: gente humilde que gostava dele em troca de ajuda. Joan andava a perseguir o pecado, e de Guillem nada sabia. Quanto a Mar, que dizer dela?

Elionor bateu-lhe no tornozelo e, quando Arnau olhou para ela, instou-o, por gestos, a que se levantasse. «Por acaso já alguma vez viste um nobre que permaneça ajoelhado tanto tempo como tu?», recriminara-o Elionor por diversas vezes Arnau não fez caso dela, mas Elionor tornou a bater-lhe no tornozelo.

«É isto o que tenho, mãe. Uma mulher que se preocupa mais com as aparências que qualquer outra coisa, excepto de que eu faça dela mãe. Deveria fazê-lo? Só quer um herdeiro só quer um filho que lhe garanta o futuro.» Elionor bateu-lhe outra vez no tornozelo. Quando se virou de novo para ela, a esposa indicou-lhe com os olhos os outros nobres que se encontravam em Santa Maria. Alguns estavam de pé, mas a maior parte estava sentada; só Arnau continuava de joelhos.

— Sacrilégio!

O grito ecoou por toda a igreja. Os sacerdotes calaram--se, Arnau levantou-se e todos se viraram para a entrada principal de Santa Maria.

— Sacrilégio! — voltou a ouvir-se.

Vários homens abriram caminho até ao altar-mor aos gritos de sacrilégio, heresia, demónios... e judeus! Iam para falar com os sacerdotes, mas um deles dirigiu-se a todos:

— Os judeus profanaram a hóstia sagrada! — gritou. Um rumor elevou-se por entre o povo.

— Não lhes bastou terem morto Jesus Cristo — voltou a exclamar o primeiro do altar —, também querem profanar o corpo Dele.

O rumor inicial transformou-se numa gritaria. Arnau virou-se para as pessoas, mas o seu olhar deu com o de Elionor.

— Os teus amigos judeus — disse-lhe esta.

Arnau sabia a que se referia a sua mulher. Desde o casamento de Mar, era-lhe insuportável estar em casa, e muitas tardes ia ver o seu amigo Hasdai Crescas, e por lá ficava, conversando com ele até muito tarde. Antes que Arnau pudesse responder a Elionor, os nobres e os próceres que os acompanhavam nos ofícios juntaram-se aos comentários e discutiam entre si:

— Querem continuar a fazer sofrer Cristo depois de morto — disse um deles.

— A lei obriga-os a manterem-se em suas casas durante a Páscoa, com as janelas e as portas fechadas; como teriam eles podido? — perguntou um ao lado de Arnau.

— Devem ter-se escapulido — afirmou outro.

— E as crianças? — interveio outro. — Por certo que também hão-de ter raptado alguma criança cristã para a crucificarem e lhe comerem o coração...

— E para lhe beberem o sangue — ouviu-se dizer a alguém.

Arnau não conseguia desviar os olhos daquele grupo de nobres enfurecidos. Como podiam... O olhar voltou a cruzar-se com o de Elionor. Sorria.

— Os teus amigos — repetiu a mulher com escárnio.

Naquele momento, toda a igreja de Santa Maria começou a clamar por vingança. «Para a judiaria!», incitaram-se uns aos outros, aos gritos de hereges e sacrílegos. Arnau viu como se lançavam para a saída da igreja. Os nobres ficaram para trás.

— Se não te apressas — ouviu Elionor dizer-lhe —, ficarás fora da judiaria.

Arnau virou-se para a sua mulher; depois, virou-se para a Virgem. A gritaria começava a perder-se pela Rua de la Mar.

— Porquê tanto ódio, Elionor? Por acaso não tens tudo quanto desejas?

— Não, Arnau. Sabes bem que não tenho o que desejo e talvez seja isso o que entregas aos teus amigos judeus.

— A que te estás a referir, mulher?

— A ti, Arnau, a ti. Bem sabes que nunca cumpriste com as tuas obrigações conjugais.

Durante alguns instantes, Arnau recordou as numerosas ocasiões em que tinha rechaçado ao avanços dela; primeiro, com delicadeza, tentando não a ofender; depois, com brusquidão, sem contemplações.

— O rei obrigou-me a casar contigo, mas nada disse quanto a satisfazer as tuas necessidades — atirou-lhe.

— O rei, não — respondeu ela —, mas a Igreja, sim.

— Nem Deus me poderá obrigar a deitar-me contigo! Elionor encaixou as palavras do marido com o olhar fixo nele; depois, muito lentamente, virou a cabeça para o altar-mor. Tinham ficado sós em Santa Maria... à excepção de três sacerdotes que permaneciam em silêncio, ouvindo a discussão sobre o casamento. Arnau também se virou para os sacerdotes. Quando os esposos voltaram a cruzar o olhar, Elionor fechou os olhos.

Nada mais disse. Arnau virou-lhe as costas e encaminhou-se para a saída de Santa Maria.

— Vai ter com a tua amante judia — ouviu Elionor gritar-lhe atrás de si.

Um calafrio percorreu a espinha de Arnau.

Nesse ano, voltara a ocupar o cargo de cônsul de la Mar. Vestido de gala, encaminhou-se para a judiaria; os gritos da multidão cresciam à medida que percorria a Rua de la Mar, a Praça do Blat, a Calçada de la Preso, para chegar à igreja de Sant Jaume. O povo clamava por vingança e apinhava-se diante dos portões defendidos por soldados do rei. Apesar do tumulto, Arnau abriu caminho com relativa facilidade.

— Não se pode entrar na judiaria, mui honrado cônsul — disse-lhe o oficial da guarda. — Estamos à espera de ordens do lugar-tenente real, o infante D. Juan, filho de Pedro III.

E chegaram as ordens. Na manhã seguinte, o infante D. Juan ordenou a reclusão de todos os judeus de Barcelona na sinagoga maior, sem água nem comida, até que aparecessem os culpados da profanação da hóstia.

— Cinco mil pessoas — resmungou Arnau no seu escritório da câmara de comércio quando lhe comunicaram a notícia. — Cinco mil pessoas amontoadas na sinagoga sem água nem comida! Que será das crianças, dos recém-nascidos? Que espera o infante? Que imbecil pode esperar que um judeu se declare culpado de profanação da hóstia? Que estúpido pode esperar que alguém se condene a si próprio à morte?

Arnau bateu na mesa do seu escritório e levantou-se. O bedel que lhe tinha trazido a notícia sobressaltou-se.

— Avisa a guarda — mandou Arnau.

O mui honrado cônsul de la Mar percorreu a cidade apressadamente, acompanhado por meia dúzia de missatges armados. As portas da judiaria, ainda vigiadas por soldados do rei, estavam abertas de par em par; em frente a elas, a multidão desaparecera, mas havia ainda pouco mais de uma centena de curiosos que tentavam penetrar no interior, apesar dos empurrões que os soldados distribuíam.

— Quem está no comando? — perguntou Arnau ao oficial da porta.

— O regedor está lá dentro — apontou o oficial.

— Avisem-no.

O regedor não tardou a aparecer.

- Que desejas, Arnau? – perguntou-lhe, estendendo-lhe a mão.

- Desejo falar com os judeus.

- O infante mandou…

- Eu sei – interrompeu-o Arnau. – Por isso mesmo tenho de falar com eles. Tenho muitos procediemtos em curso que afectam judeus. Preciso de falar com eles.

- Mas o infante…- começou a dizer o regedor.

- infante vive das alfamas! Doze mil soldos anuais que têm de lhe pagar, por disposição do rei – o regedor anuiu. - O infante terá interesse em que apareçam os culpados da profanação, mas não tenhas dúvidas de que também terá interesse em que os assuntos comerciais dos judeus sigam o seu curso; caso contrário… Tens de ter em conta que a judiaria de Barcelona é a que mais contribui para esses doze mil soldos anuais.

O regedor não duvidava disso e cedeu passagem a Arnau e à sua comitiva.

- Estão na sinagoga maior – disse-lhe, enquanto se punha ao lado dele.

- Bem sei, bem sei.

Apesar de todos os judeus estarem aprisionados, o interior da alfama era um formigueiro. Sem parar de andar, Arnau viu como um enxame de frades negros se dedicava a inspeccionar todas e cada uma das casas dos judeus, em busca da hóstia sangrante.

Ás portas da sinagoga, Arnau deu com outra guarda real.

- Venho falar com Hasdai Crescas.

Oficial de comando tentou opor-se, mas o oficial que os acompanhava fez um gesto afirmativo. Enquanto esperava a saída de Hasdai, Arnau virou-se para a judiaria. As casas, todas com as portas abertas de par em par, ofereciam um espectáculo deplorável- s frades entravam e saíam, frequentemente com objectos, que mostravam a outros frades, os quais os examinavam e depois negavam com a cabeça, para depois os atirarem para o chão, já pejado de haveres dos judeus. Quem são os profanadores?, pensou Arnau.

- Honrado – ouviu dizerem-lhe atrás dele.

Arnau virou-se e deu com Hasdai. Durante uns segundos, observou aqueles olhos que choravam pelo saque a que a sua intimidade estava a ser submetida. Arnau ordenou a todos os soldados que se afastassem de ambos. Os misstages obedeceram, mas os soldaods do rei continuaram perto deles.

- Interessam-vos, por acaso, os assuntos do Consulado de la Mar? – perguntou-lhes Arnau. – Retirai-vos para juntos dos meus homens. Os assuntos do Consulado são secretos.

Os soldados obedeceram, de má vontade. Arnau e Hasdai olharam-se.

- Gostaria de poder dar-te um abraço – disse Arnau quando já ninguém podia ouvi-los.

- Não podemos.

- Como estão?

- Mal, Arnau. A nós, velhos, pouco nos importa, e os jovens aguentarão. Mas as crianças estão há horas sem comer nem beber. Há vários recém-nascidos; quando

Se acabar o leite das mães… Só estamos ali há algumas horas, mas as necessidades do corpo…

- Posso ajudar-vos?

- Tentamos negociar, mas o regedor não quer atender-nos. Bem sabes que só há uma maneira: compra a nossa liberdade.

— Quanto poderei ter de...

O olhar de Hasdai impediu-o de continuar. Quanto valia a vida de cinco mil judeus?

— Confio em ti, Arnau. A minha comunidade está em perigo.

Arnau estendeu-lhe a mão.

— Confiamos em ti — repetiu Hasdai, aceitando a despedida de Arnau.

Arnau voltou a circular por entre os frades negros. Teriam encontrado a hóstia que sangra? Os objectos, incluindo agora os móveis, continuavam a amontoar-se nas ruas da judiaria. Cumprimentou o regedor à saída. Nessa mesma tarde, iria pedir-lhe audiência, mas... Quanto deveria oferecer-se pela vida de um homem? E pelas de toda uma comunidade? Arnau já tinha negociado com todo o tipo de mercadorias — tecidos, especiarias, cereais, animais, navios, ouro e prata

— conhecia o preço dos escravos, mas... Quanto valia um amigo?

Arnau saiu da judiaria, virou à esquerda e meteu pela Rua de Banys Nous; atravessou a Praça do Bota e, quando se encontrava na Rua Carders, perto da esquina com a Rua de Monteada, onde ficava a sua casa, parou de repente. Para quê? Para se encontrar com Elionor? Deu meia-volta para regressar à Rua de la Mar e ir para a sua mesa de câmbios. Desde o dia em que consentira no casamento de Mar... Desde esse dia que Elionor o tinha perseguido sem descanso. Primeiro, insinuando-se. Ela, que nunca até então o tinha tratado por «querido»! Nunca se preocupara com os negócios dele, ou com o que ele comia, ou simplesmente com saber como ele estava. Quando essa táctica falhara, Elionor decidira atacar de frente. «Sou uma mulher», dissera-lhe, um dia. Não lhe agradara decerto o olhar com que Arnau lhe respondera, porque nada mais dissera... Até alguns dias depois: «Temos de consumar o nosso matrimónio; estamos a viver em pecado.»

— Desde quando te interessas tanto pela minha salvação? — respondera Arnau.

Elionor não cessara de insistir, apesar do desinteresse do marido, e por fim decidira falar com o padre Juli Andreu, um dos sacerdotes de Santa Maria, para lhe expor o assunto. Esse sim, tinha interesse na salvação dos fiéis, entre os quais Arnau se contava como um dos mais queridos. Perante o cura, Arnau não poderia recusar-se como fazia com Elionor.

— Não posso, padre — respondera Arnau, quando o sacerdote o abordara um dia em Santa Maria.

Era verdade. Logo após a entrega de Mar ao cavaleiro de Ponts, Arnau tentara esquecer a rapariga e, porque não?, criar a sua própria família. Ficara só. Todas as pessoas a quem amava tinham desaparecido da sua vida. Podia ter filhos, brincar com eles, dedicar-se e encontrar neles esse algo que lhe faltava, e tudo isso só poderia obter com Elionor. Mas quando a via aproximar-se dele, perseguindo-o pelas salas do palácio, ou quando ouvia a voz dela, falsa, forçada, tão diferente da voz com quem tinha convivido até então, todas as suas disposições se iam abaixo.

— Que queres dizer, meu filho? — perguntara o sacerdote.

— O rei obrigou-me a casar com Elionor, padre, mas nunca me perguntou se gostava da sua pupila.

— A baronesa...

— A bari onesa não me atrai, padre. O meu corpo nega-se.

— Posso recomendar-te um bom médico... Arnau sorriu.

— Não, padre, não. Não se trata disso. Fisicamente, estou bem; é simplesmente...

— Então, deveis esforçar-vos por cumprir com as vossas obrigações matrimoniais. Nosso Senhor espera...

Arnau aguentou o sermão do cura até que imaginou Elionor a contar-lhe mil e uma histórias. Que teria ele julgado?

— Olhai, padre — interrompera-o. — Eu não posso obrigar o meu corpo a desejar uma mulher que não desejo — O sacerdote fez um gesto, tentando interromper, mas Arnau impediu-o com outro gesto. — Jurei que seria fiel à minha mulher, e isso tenho feito: ninguém pode acusar-me do contrário. Venho rezar com muita frequência e dou muito dinheiro a Santa Maria. Dá-me a impressão de que, contribuindo para erguer este templo, expio as debilidades do meu corpo.

O cura parou de esfregar as mãos.

— Filho...

— Que vos parece, padre?

O sacerdote procurou então nos seus escassos fundamentos de teologia algo para rebater todos os argumentos que ele empregara. Não fora capaz, e por fim desapareceu com passos rápidos por entre os operários de Santa Maria. Quando Arnau ficou sozinho, foi em busca da sua Virgem e ajoelhou-se:

— Só penso nela, mãe. Porque me deixaste entregá-la ao senhor de Ponts?

Não voltara a ver Mar desde o casamento desta com Felip de Ponts. Quando este morreu, poucos meses depois da cerimónia, tentou aproximar-se da viúva, mas Mar não quis recebê-lo. «Talvez seja melhor assim», disse Arnau para si mesmo. O juramento diante da Virgem acorrentava-o agora mais do que nunca: estava condenado a ser fiel a uma mulher que não amava e a quem não poderia amar. E a renunciar à única pessoa com quem poderia ser feliz...

— Encontraram a hóstia? — perguntou Arnau ao regedor, sentados diante um do outro no palácio que dava para a Praça do Blat.

— Não — respondeu o regedor.

— Estive a falar com os conselheiros da cidade — disse-lhe Arnau —, e concordam comigo. O encarceramento de toda a comunidade judaica pode afectar muito seriamente os interesses comerciais de Barcelona. Acabamos de começar a temporada de navegação. Se te aproximares do porto, verás alguns navios à espera para partirem. Levam comandas de judeus; ou as descarregam, ou deverão esperar os comerciantes que as acompanham. O problema é que nem toda a carga é dos judeus; também há mercadorias de cristãos.

— Porque não as descarregam?

— Isso subiria o preço do transporte das mercadorias dos cristãos.

O regedor abriu as mãos, num gesto de impotência.

— Juntem as dos judeus nuns navios, e as dos cristãos noutros — apontou por fim, como solução.

Arnau abanou a cabeça.

— Não pode ser. Nem todos os navios têm o mesmo destino. Sabes que a temporada de navegação é curta. Se os barcos não zarpam, atrasar-se-á o comércio e não poderão regressar a tempo; perderão uma viagem e isso encarecerá o preço das mercadorias. Todos perderemos dinheiro. — Incluindo tu, pensou Arnau. — Por outro lado, a espera dos barcos no porto de Barcelona é perigosa: se houver algum temporal...

— E que propões tu?

«Que os soltem a todos. Que mandem os frades parar de registar os lares deles. Que lhes devolvam os seus haveres.., que...»

— Multem a judiaria.

— O povo exige culpados e o infante comprometeu-se a encontrá-los. A profanação de uma hóstia...

— A profanação de uma hóstia — interrompeu-o Arnau — será mais cara do que qualquer outro delito. — Para quê discutir? Os judeus já tinham sido julgados e condenados, aparecesse ou não a hóstia que sangra. A dúvida levou o regedor a franzir o sobrolho. — Porque não tentas? Se o conseguirmos, serão os judeus a pagar, e apenas eles. Caso contrário, será um mau ano para o comércio, e pagaremos todos.

Rodeado de operários, de ruído e de pó, Arnau levantou os olhos para a pedra de chave que fechava a segunda das quatro abóbadas da nave central de Santa Maria, a última que se tinha construído. Na grande pedra de chave estava representada a Anunciação, com a Virgem ajoelhada, coberta por uma capa vermelha bordada a ouro, enquanto recebia a notícia da sua próxima maternidade da boca de um anjo. As cores vivas, vermelhos e azuis, mas sobretudo os dourados, captaram o olhar de Arnau. Bonita cena. O regedor sopesara os argumentos de Arnau e finalmente cedera.

Vinte e cinco mil libras e quinze culpados! Aquela foi a resposta que o regedor lhe deu no dia seguinte, depois de consultar a corte do infante D. Juan.

— Quinze culpados? Querem executar quinze pessoas por causa da insídia de quatro loucos?

O regedor bateu com o punho na mesa.

— Esses loucos são a Santa Igreja Católica.

— Sabes bem que não — insistiu Arnau. Os dois homens entreolharam-se.

— Sem culpados — disse Arnau.

— Não será possível. O infante...

— Sem culpados! Vinte e cinco mil libras é uma fortuna. Arnau tornou a sair do palácio do regedor sem destino fixo. Que haveria de dizer a Hasdai? Que quinze deles teriam de morrer? No entanto, não conseguia afastar da cabeça a imagem de cinco mil pessoas apinhadas numa sinagoga, sem água, sem comida...

— Quando terei uma resposta? — perguntou ao regedor.

— O infante está a caçar.

A caçar! Cinco mil pessoas aprisionadas por ordem sua, e ele tinha ido caçar. De Barcelona a Gerona, as terras do infante, duque de Gerona e de Cervera, não deviam ser mais do que umas três horas a cavalo, mas Arnau teve de esperar pelo dia seguinte, já bem avançado na tarde, para ser chamado pelo regedor.

— Trinta e cinco mil libras e cinco culpados.

Eram mil libras por judeu de diferença. Talvez seja este o preço de um homem, pensou Arnau.

— Quarenta mil, sem culpados.

— Não.

— Irei ao rei.

— Sabes bem que o rei já tem problemas suficientes com a guerra contra Castela para se vir indispor com o próprio filho e lugar-tenente. Para alguma coisa o nomeou.

— Quarenta e cinco mil, mas sem culpados.

— Não, Arnau, não...

— Consulta-o! — rebentou Arnau. — Peço-te — rectificou.

O fedor que emanava da sinagoga atingiu Arnau quando ainda estava a vários metros dela. As ruas da judiaria estavam ainda piores e os móveis e objectos dos judeus amontoavam-se por toda a parte. No interior das casas ecoavam os batuques dos frades negros que arrasavam paredes e levantavam chãos em busca do corpo a sangrar de Cristo. Arnau teve de se esforçar para aparentar serenidade quando se encontrou com Hasdai, desta vez acompanhado por dois rabinos e outros dois chefes da comunidade. Tinha os olhos a arder. Seriam os eflúvios de urina que vinham do interior da sinagoga, ou simplesmente as notícias que tinha de lhes dar?

Durante alguns instantes, com um sem-número de gemidos em fundo por companhia, Arnau observou aqueles homens que tentavam renovar o ar dos seus pulmões; como seria lá dentro? Todos olharam de lado para o espectáculo que as ruas da judiaria proporcionavam, e a forte respiração de cada um deles viu-se momentaneamente entrecortada.

— Exigem culpados — disse Arnau quando os cinco homens recuperaram. — Começámos por quinze. Vamos em cinco e espero...

— Não podemos esperar, Arnau Estanyol — interrompeu-o um dos rabinos. — Hoje morreu um idoso; estava doente, mas os nossos médicos nada puderam fazer por ele, nem sequer molhar-lhe os lábios. Não nos deixam enterrá-lo. Percebes o que isso significa? — Arnau confirmou com um gesto. — Amanhã, o fedor do seu corpo em decomposição juntar-se-á aos...

— Na sinagoga — interrompeu-o Hasdai —, não nos podemos sequer mexer; as pessoas... as pessoas não se podem sequer levantar para fazerem as suas necessidades. As mães já não têm leite; deram de mamar aos seus recém-nascidos e às outras crianças, para lhes matar a sede. Se esperamos muitos dias mais, cinco culpados serão um pequeno pormenor.

— Mais quarenta e cinco mil libras — acrescentou Arnau.

— Que nos importa o dinheiro, se podemos morrer aqui todos? — interveio o outro rabino.

— E? — perguntou Arnau.

— Insiste, Arnau — suplicou-lhe Hasdai.

Mais dez mil libras, e apressaram o correio do infante... Ou talvez nem tivesse chegado a partir. Arnau foi chamado na manhã seguinte. Três culpados.

— São homens! — recriminou Arnau ao regedor durante a discussão.

— São judeus, Arnau. São apenas judeus. Hereges que são propriedade da coroa. Sem o favor da coroa, já estariam todos mortos e o rei decidiu que três deles deverão pagar pela profanação da hóstia. O povo assim exige.

Desde quando o rei se importa com o que o povo exige?, pensou Arnau.

— Além disso — insistiu o regedor —, desta forma solucionam-se os problemas do consulado.

O cadáver do idoso, os seios secos das mães, as crianças a chorar, os gemidos e o fedor, tudo aquilo levou Arnau a fazer um gesto de acordo. O regedor recostou-se no seu cadeirão.

— Duas condições — acrescentou Arnau, obrigando-o a prestar de novo atenção. — Primeira, serão eles a escolher os culpados — o regedor anuiu —, e segunda, o acordo deve ser aprovado pelo bispo e deve comprometer-se a acalmar os seus fiéis.

— Isso já eu fiz, Arnau. Julgas que gostaria de ver uma nova matança na judiaria?

A procissão partiu da própria judiaria. No interior, as portas e janelas das casas estavam fechadas e as ruas viam-se desertas, pejadas de móveis. O silêncio da alfama parecia responder ao clamor que se ouvia fora dela, onde as pessoas se apinhavam em redor do bispo, refulgente de ouro ao sol mediterrânico, e da infinidade de sacerdotes e frades negros que esperavam ao longo da Rua da Boquería, separados do povo por duas filas de soldados do rei.

A vozearia rasgou o céu quando três figuras apareceram nas portas da judiaria. As pessoas levantaram os braços com os punhos fechados e os seus insultos confundiram-se com o ruído metálico do desembainhar das espadas quando os soldados se dispuseram a defender a comitiva. As três figuras, acorrentadas de pés e mãos, foram conduzidas até ao centro de duas fileiras de frades negros e, assim, encabeçada pelo bispo de Barcelona, a procissão iniciou a sua marcha. A presença dos soldados e dos dominicanos não impediu o povo de apedrejar e cuspir nos três culpados que se arrastavam no meio deles.

Arnau rezava em Santa Maria. Levara a notícia à judiaria, onde voltara a ser recebido por Hasdai, pelos rabinos e pelos chefes da comunidade às portas da sinagoga.

— Três culpados — dissera-lhes, tentando olhá-los de frente. — Podeis... podeis escolhê-los vós mesmos.

Nenhum deles pronunciou uma palavra; simplesmente se limitaram a observar as ruas da judiaria, deixando que os queixumes e os lamentos que vinham da sinagoga envolvessem os seus pensamentos. Arnau não tivera força para prolongar a sua intercessão e ilibara-se perante o regedor ao abandonar a judiaria. «Três inocentes... Porque tu e eu sabemos que isto da profanação do corpo de Cristo é falso.»

Arnau começou a ouvir a gritaria da multidão ao longo da Rua de la Mar. O rumor encheu Santa Maria; insinuou-se pelas frinchas das portas sem parar e subiu pelos andaimes de madeira que sustentavam as estruturas em construção, tal como qualquer pedreiro poderia ter feito, até alcançar as abóbadas. Três inocentes! Como os terão escolhido? Terão sido os rabinos a fazer a escolha, ou ter-se-iam apresentado voluntariamente? Então, Arnau recordou os olhos de Hasdai, observando as ruas da judiaria. Que havia naqueles olhos? Resignação? Por acaso seria aquele o olhar de alguém que está a... despedir-se? Arnau tremeu; os joelhos fraquejaram-lhe e teve de se agarrar ao genuflexório. A procissão aproximava-se de Santa Maria. A gritaria aumentou. Arnau levantou-se e olhou para a saída que dava para a Praça de Santa Maria. A procissão não tardaria a entrar. Permaneceu no templo, olhando para a praça, até que os insultos do povo se tornaram realidade.

Arnau correu para a porta. Ninguém ouviu o alarido que fazia. Ninguém o viu chorar. Ninguém o viu cair de joelhos ao ver Hasdai acorrentado, arrastando os pés por entre uma chuva de insultos, pedras e escarros. Hasdai passou diante de Santa Maria com os olhos postos no homem que, de joelhos, batia com os punhos no chão. Arnau não o viu e continuou a bater até que a procissão se afastou, até que a terra começou a tingir-se de vermelho. Então, alguém se ajoelhou à sua frente e lhe pegou nas mãos com suavidade.

— O meu pai não queria que te preocupasses por causa dele — disse-lhe Raquel quando Arnau ergueu os olhos.

— Vão... Vão matá-lo...

— Sim.

Arnau olhou para a cara daquela rapariga já feita mulher. Ali mesmo, debaixo daquela igreja, escondera-a muitos anos antes. Raquel não chorava e, apesar do perigo, trazia as suas vestes de judia e a rodela amarela que mostrava a sua condição.

— Temos de ser fortes — disse-lhe a rapariguinha de que se lembrava.

— Porquê, Raquel? Porquê ele?

— Por mim. Por Jucef. Pelos meus filhos e pelos de Jucef, seus netos; pelos seus amigos. Por todos os judeus de Barcelona. Disse que já estava velho, que já tinha vivido o bastante.

Arnau levantou-se com a ajuda de Raquel e, apoiado nela, seguiram a gritaria.

Queimaram-nos vivos. Ataram-nos a uns postes, sobre camadas de lenha e caruma, e deitaram-lhes fogo sem que em momento algum parasse o clamor de vingança dos cristãos. Quando as chamas lhe alcançaram o corpo, Hasdai ergueu os olhos para o céu. Então, foi Raquel quem desatou a chorar, abraçou-se a Arnau e escondeu as lágrimas no peito dele; estavam um pouco afastados da multidão.

Arnau, abraçado à filha de Hasdai, não pôde afastar os olhos do corpo em chamas do amigo. Pareceu-lhe que sangrava, mas as chamas pegaram-se com rapidez ao corpo.

De repente, deixou de ouvir os gritos das pessoas; já só as via sacudindo os punhos fechados, ameaçadores... De imediato algo lhe chamou a atenção e o levou a virar a cara para o direita. A meia centena de metros encontravam-se o bispo e o inquisidor-mor, e junto deles, com o braço estendido, apontando para eles, Elionor falava com eles. Ao lado estava outra dama, elegantemente vestida, que Arnau não reconheceu logo. Esta cruzou o olhar com o do inquisidor enquanto Elionor gesticulava e gritava sem parar de apontar para ele.

— Aquela, aquela judia é a amante dele. Olhem para eles. Vejam como ele a abraça.

Nesse preciso instante, Arnau abraçou com força a mulher judia que chorava contra o seu peito, enquanto as chamas, fazendo coro com os gritos da multidão, se elevavam para o céu. Depois, ao desviar o olhar para fugir do horror, os olhos de Arnau deram com os de Elionor. Ao ver a expressão dela, aquele ódio profundo, a maldade da vingança-satisfeita, estremeceu. E então ouviu o riso da mulher que acompanhava a sua esposa, uma gargalhada inconfundível, irónica, que Arnau trazia gravada na memória desde pequeno: o riso de Margarida Puig.

 

Uma vingança que andava há muito a tramar-se, em que Elionor não estava sozinha. Uma vingança em que a acusação contra Arnau e a judia Raquel era apenas o princípio.

As decisões de Arnau Estanyol enquanto barão de Granollers, Sant Vicenç dels Horts e Caldes de Montbui tinham provocado irritação nos outros nobres, que viam agora soprar ventos de rebeldia por entre os seus camponeses... Mais do que isso, tinham sido obrigados a sufocar, com mais contundência do que a que fora necessária até ali, uma revolta que pedia, aos gritos, a abolição de certos privilégios a que Arnau, aquele barão que nascera servo, tinha renunciado. Entre estes nobres ofendidos encontrava-se Jaume de Bellera, filho do senhor de Navarcles, que Francesca amamentara em menino. E, a seu lado, estava Genís Puig, que, depois do despejo, tivera de ocupar a velha casa de Navarcles que pertencera ao seu avô, o pai de Grau. Uma casa que muito pouco tinha a ver com o palácio da Rua de Monteada, onde passara a maior parte da sua vida. Ambos tinham passado horas lamentando a sua má fortuna e traçando planos de vingança. Planos que agora, se as cartas da sua irmã Margarida não mentiam, estavam a ponto de dar os seus frutos...

Arnau pediu ao marinheiro que estava a testemunhar que guardasse silêncio e virou-se para o aguazil do tribunal do Consulado de ia Mar, que irrompera pela sala do juízo.

— Um oficial e vários soldados da Inquisição querem ver-vos — sussurrou este, inclinando-se sobre ele.

— Que querem? — perguntou Arnau. O porteiro fez um gesto de ignorância. — Que esperem pelo fim da sessão - ordenou, antes de instar o marinheiro a continuar com as suas explicações.

Outro marinheiro morrera durante a travessia e o senhor do navio recusava-se a pagar aos herdeiros mais de dois meses de salário, quando a viúva sustentava que o pactuado não tinha sido o pagamento por meses, e que, por consequência, tendo o seu marido morrido no alto-mar, lhe correspondia metade da quantia acordada.

— Continua — incitou Arnau, com o olhar na viúva e nos três filhos do falecido.

— Nenhum marinheiro faz acordos por meses...

De repente, as portas do tribunal abriram-se violentamente. Um oficial e seis soldados da Inquisição, armados, empurrando sem contemplações o aguazil do tribunal, irromperam na sala.

— Arnau Estanyol? — perguntou o oficial, dirigindo-se directamente a ele.

— Que significa isto? — bradou Arnau. — Como se atrevem a interromper... O oficial continuou a andar até se colocar diante de Arnau.

— És Arnau Estanyol, cônsul de la Mar, barão de Granollers...

— Bem o sabeis, oficial — interrompeu-o Arnau. — Mas...

— Por ordem do tribunal da Santa Inquisição, estais detido. Acompanhai-me.

Os missatges do tribunal fizeram menção de defender o seu cônsul, mas Arnau deteve-os com um gesto.

— Fazei o favor de vos afastardes — pediu Arnau ao oficial da Inquisição.

O homem hesitou por uns instantes. O cônsul, com um gesto calmo, insistiu com um gesto da mão, indicando-lhe que se colocasse mais perto da porta e, por fim, sem parar de vigiar o seu detido, o oficial deu alguns passos atrás, suficientes para que Arnau recuperasse a visão dos familiares do marinheiro morto.

— Sentencio a favor da viúva e dos filhos — expôs com tranquilidade. — Deverão receber a metade do salário total da travessia, e não dois meses, como pretende o senhor do navio. Assim ordena este tribunal.

Arnau bateu com a mão, pôs-se em pé e enfrentou o oficial da Inquisição.

— Vamos — disse-lhe.

A notícia da detenção de Arnau Estanyol espalhou-se por Barcelona e, daí, pela boca de nobres, mercadores ou simples camponeses, por grande parte da Catalunha.

Alguns dias mais tarde, numa pequena vila do Norte do principado, um inquisidor que nesse momento estava a atemorizar um grupo de cidadãos recebia a notícia da boca de um oficial da Inquisição.

Joan olhou para o oficial.

— Parece que é verdade — insistia.

O inquisidor virou-se para o povo. Que lhes estava a dizer? Arnau detido?

Voltou a olhar para o oficial, e este anuiu com a cabeça.

Arnau?

As pessoas começaram a remexer-se, inquietas. Joan tentou continuar, mas não conseguia pronunciar uma palavra. Mais uma vez, virou-se para o oficial e percebeu um sorriso nos lábios dele.

— Não continuais, frei Joan? — avançou este. — Os pecadores esperam-vos.

Joan virou-se de novo para o povo.

— Partimos para Barcelona — ordenou.

De regresso à cidade condal, Joan passou muito perto das terras do barão de Granollers. Mesmo desviando-se pouco do seu caminho, teria podido ver como o carlán de Montbui e outros cavaleiros submetidos a Arnau percorriam as terras amedrontando uns camponeses que voltavam a estar submetidos aos maus usos que em tempos Arnau derrogara. «Dizem que foi a própria baronesa quem denunciou Arnau»,

assegurou alguém.

Mas Joan não passou pelas terras de Arnau. Desde que iniciara o regresso, não trocara uma palavra com o oficial, nem com nenhum dos homens que faziam parte da comitiva, nem sequer com o escrivão. No entanto, não podia deixar de ouvir.

— Parece que o prenderam por heresia — disse um dos soldados, suficientemente alto para que Joan o pudesse ouvir.

— O irmão de um inquisidor? — acrescentou outro, aos gritos.

— Nicolau Eimeric conseguirá que confesse tudo o que tem no íntimo — interveio então o oficial.

Joan recordou Nicolau Eimeric. Quantas vezes o tinho felicitado pelo seu trabalho como inquisidor?

— Há que combater a heresia, frei Joan... Há que procurar o pecado por baixo da aparência de bondade das pessoas; nas suas alcovas, nos seus filhos, nos maridos e nas mulheres.

E ele assim tinha feito. «Não se pode hesitar em torturá-los para que confessem.» E também isso ele tinha feito, sem descanso. Que tortura teria ele aplicado a Arnau para que ele se confessasse herege?

Joan apressou o passo. O sujo e amarrotado hábito negro caía-lhe sobre as pernas como chumbo.

— Por sua culpa, vejo-me nesta situação — comentou Genís Puig, sem deixar de andar de um lado para o outro na sala. — Eu, que desfrutei...

— De dinheiro, de mulheres, de poder — interrompeu--o o barão.

Mas o caminhante não fez caso do barão.

— Os meus pais e o meu irmão morreram como simples camponeses, famintos, atacados por doenças que só medram entre os pobres, e eu...

— Um simples cavaleiro sem hostes para acudir ao rei — acrescentou cansadamente o barão, terminando a mil vezes repetida frase.

Genís Puig deteve-se diante de Jaume, o filho de Llorenç de Bellera.

— Parece-te isto engraçado?

O senhor de Bellera não se mexeu do cadeirão de onde seguira a ronda de Genís pela torre de menagem do castelo de Navarcles.

- Sim — respondeu-lhe ao fim de alguns instantes. —

Mais do que engraçado. Os teus motivos para odiares Arnau Estanyol parecem-me grotescos, comparados com os meus.

Jaume de Bellera dirigiu o olhar para o alto da torre.

— Queres parar de uma vez por todas de andar às voltas?

— Quanto demorará ainda o teu oficial? — perguntou Genís, sem parar de andar às voltas pela torre.

Ambos esperavam a confirmação das notícias que Margarida Puig insinuara numa carta prévia. Genís Puig, de Navarcles, convencera a irmã a que, pouco a pouco, durante as muitas horas que Elionor passava sozinha naquela que fora a casa da família Puig, ganhasse a confiança da baronesa. Não lhe fora muito difícil: Elionor necessitava de uma confidente que odiasse tanto o seu marido como ela própria. Fora Margarida quem, de maneira insidiosa, informara Elionor para onde se dirigia o barão. Fora Margarida quem inventara o adultério de Arnau com Raquel. Agora, assim que Arnau fosse detido por se relacionar com uma judia, Jaume de Bellera e Genís Puig dariam o passo seguinte que já tinham previsto.

— A Inquisição deteve Arnau Estanyol — confirmou o oficial, assim que entrou na torre de menagem.

— Então, Margarida tinha razão — exclamou Genís.

— Cala-te — mandou o senhor de Bellera, do seu cadeirão. — Continua...

— Detiveram-no há três dias, enquanto administrava justiça no tribunal do consulado.

— De que o acusam? — perguntou o barão.

— Não é muito claro; há quem diga que é de heresia, outros sustentam que é de ser judaizante, e outros por manter relações com uma judia. Ainda não foi julgado; está encarcerado nas masmorras do palácio episcopal. Meia cidade está por ele, e meia contra. Mas todos fazem fila diante da mesa de câmbios dele, para reaverem os seus depósitos. Eu vi-os as pessoas brigam para conseguirem recuperar o seu dinheiro.

— E pagam-lhes? — interveio Genís.

— Por enquanto, sim, mas toda a gente sabe que Arnau Estanyol emprestou muito dinheiro a gente sem recursos e se ele não conseguir recuperar esses empréstimos... Por isso é que toda a gente luta por chegar à mesa: duvidam de que o cambista possa manter-se. Há uma grande comoção.

Jaume de Bellera e Genís Puig trocaram um olhar.

— Começa a queda — comentou o cavaleiro.

— Procura a puta que me amamentou — mandou o barão ao oficial — e fecha-a nas masmorras do castelo!

Genís Puig juntou-se ao senhor de Bellera e incitou o oficial a que se apressasse.

— Esse leite endemoninhado não era para mim — ouvira-o dizer em muitas ocasiões. — Era para o filho dela, Arnau Estanyol, e enquanto ele desfruta do dinheiro e do favor do rei, eu tenho de sofrer as consequências do mal que a mãe dele me transmitiu.

Jaume de Bellera tivera de recorrer ao bispo, para que a epilepsia de que sofria não fosse considerada um mal do demónio. No entanto, a Inquisição não hesitaria em considerar Francesca possuída do demónio.

— Gostaria de ver o meu irmão — disse Joan a Nicolau Eimeric assim que se apresentou no palácio do bispo.

O inquisidor-mor franziu o sobrolho.

— Deves conseguir que se arrependa e confesse a sua culpa.

— De que é ele acusado?

Nicolau Eimeric estremeceu atrás da mesa a que o recebera.

— Pretendes que te diga de que é ele acusado? És um grande inquisidor, mas... Por acaso estás a tentar ajudar o teu irmão? — Joan baixou os olhos. — Só posso dizer-te que se trata de um assunto muito sério. Permitir-te-ei que o visites, desde que te comprometas a que o objectivo das tuas visitas seja apenas o de conseguires a confissão dele.

Dez chicotadas! Quinze... Vinte e cinco... Quantas vezes repetira aquelas ordens nos últimos anos? «Até que confesse!», ordenava ao oficial que o acompanhava. E agora... Agora pediam-lhe que obtivesse a confissão do seu próprio irmão. Como havia de o conseguir? Joan quis responder, mas a sua intenção ficou-se por um simples movimento das mãos.

— É a tua obrigação — recordou-lhe Eimeric.

— É meu irmão. É a única pessoa que tenho...

— Tens a Igreja. Tens-nos a todos nós, teus irmãos na fé cristã — o inquisidor-mor deixou passar alguns segundos. — Frei Joan, esperei porque sabia que virias. Se não assumires este compromisso, terei de me encarregar disso pessoalmente.

Não conseguiu reprimir uma careta de repulsa quando o fedor das masmorras do palácio episcopal lhe atingiu os Sentidos. Enquanto percorria o passeio que o levaria até Arnau, Joan ouviu o gotejar da água que se infiltrava pelas paredes e a correria das ratazanas que fugiam à sua passagem. Notou como uma delas se escapava por entre os seus tornozelos. Estremeceu, tal como fizera perante a ameaça de Nicolau Eimeric: «Terei de me encarregar pessoalmente.» Que falta teria cometido Arnau? Como ia dizer-lhe que ele seu próprio irmão, se comprometera a...

O aguazil abriu a porta da masmorra e uma grande sala escura e malcheirosa abriu-se diante de Joan. Algumas sombras moveram-se e o retinir das correntes que as mantinham presas às paredes ressoou nos ouvidos do dominicano. Este sentiu que o seu estômago se revoltava contra aquela miséria, e a bílis subiu-lhe à boca. «Ali», disse-lhe o aguazil, apontando para uma sombra encolhida a um canto; e sem esperar resposta, saiu da masmorra. O ruído da porta a fechar-se atrás de si sobressaltou-o. Joan permaneceu de pé, à entrada da cela, envolto na sombra; uma única janela, gradeada, no alto da parede, permitia a entrada de ténues raios de luz. As correntes começaram a ouvir-se de novo após a saída do aguazil; mais de uma dezena de sombras se mexeu. Estavam tranquilos por não terem vindo buscá-los, ou talvez desesperados por essa mesma razão? — pensou Joan ao mesmo tempo que se começava a ver rodeado de gemidos e lamentos. Aproximou-se de uma das sombras, da que julgava ter sido a apontada pelo aguazil, mas quando se dobrou diante dela, o rosto cheio de chagas e desdentado de uma idosa virou-se para ele.

Caiu para trás; a idosa olhou-o por uns segundos e tornou a esconder a sua desdita na escuridão.

— Arnau? — sussurrou Joan, ainda caído no chão. Depois, repetiu o nome em voz alta, rompendo o silêncio que obtivera por resposta.

__Joan?

Apressou-se em direcção à voz que lhe indicava o caminho. Voltou a acocorar-se diante de outra sombra, agarrou a cabeça do irmão entre as mãos e puxou-a para o seu peito.

— Virgem Santa! Que... Que te fizeram? Como estás? — Joan começou a apalpar Arnau; o cabelo áspero, as maçãs do rosto que começavam a sobressair... — Não te dão de comer?

— Sim — respondeu Arnau. — Uma côdea de pão e água.

Quando Joan tocou nas argolas que lhe prendiam os tornozelos, afastou as mãos com rapidez.

— Poderás fazer alguma coisa por mim? — interrompeu-o Arnau. Joan ficou calado. — Tu és um deles. Sempre comentaste comigo o quanto o inquisidor te aprecia. Isto é insuportável, Joan. Já não sei há quantos dias aqui estou. Estava à tua espera...

— Vim assim que pude.

— Falaste com o inquisidor?

— Sim — apesar da escuridão, Joan tentou esconder o olhar.

Os dois irmãos ficaram em silêncio.

— E então? — perguntou por fim Arnau.

— Que fizeste tu, Arnau?

A mão de Arnau crispou-se no braço de Joan.

— Como podes tu pensar?!

— Preciso de o saber, Arnau. Preciso de saber de que te acusam para te poder ajudar. Sabes bem que a denúncia é secreta; Nicolau não ma quis dizer.

— Então, de que falaram?

— De nada — respondeu Joan. — Não quis falar de nada com ele até te poder ver. Preciso de saber por onde poderá ir a acusação para convencer Nicolau.

— Pergunta a Elionor — Arnau tornou a ver a sua mulher apontando-o entre as chamas que queimavam o corpo de um inocente. — Hasdai foi morto — disse.

— Elionor?

— Achas estranho?

Joan perdeu o equilíbrio e teve de se apoiar em Arnau.

— Que se passa contigo, Joan? — perguntou-lhe o irmão, fazendo um esforço para que ele não caísse.

— Este sítio...Ver-te aqui... Julgo que estou agoniado.

— Vai-te daqui — incitou-o Arnau. — Ser-me-ás mais útil lá fora do que aqui a tentar consolar-me. Joan levantou--se. As pernas fraquejavam-lhe.

— Sim. Penso que sim.

Chamou o aguazil e abandonou a masmorra. Percorreu o corredor precedido pelo obeso vigilante. Tinha algumas moedas.

— Toma — disse-lhe. O homem limitou-se a guardar o dinheiro. — Amanhã terás mais, se tratares bem o meu irmão — A única resposta que teve foi o corrupio das ratazanas à sua passagem. — Ouviste-me? — insistiu. Apenas se ouviu um grunhido que reverberou pelo túnel das masmorras até abafar o ruído dos ratos.

Precisava de dinheiro. Assim que saiu do palácio do bispo, Joan dirigiu-se à mesa de câmbios de Arnau, onde deparou com uma multidão que se apinhava na esquina de Canvis Vells com Canvis Nous, frente ao pequeno edifício de onde Arnau dirigira os seus negócios. Joan recuou.

- Está ali o irmão dele! — gritou alguém.

Várias pessoas se lançaram sobre ele. Joan fez menção je se escapulir, mas mudou de atitude ao ver que as pessoas paravam a alguns passos dele. Como haviam de atacar um dominicano? Endireitou-se o mais que pôde e seguiu o seu caminho.

— Que se passa com o teu irmão, frade? — perguntou-lhe alguém quando Joan passou perto.

Joan enfrentou um homem que era bastante mais alto que ele.

— O meu nome é frei Joan, inquisidor do Santo Ofício — levantou a voz ao mencionar o seu cargo. — Podes tratar-me por senhor inquisidor.

Joan olhou para cima, directamente nos olhos do homem. «E quais são os teus pecados?», perguntou-lhe em silêncio. O homem recuou um par de passos. Joan voltou a encaminhar-se para a mesa de câmbios e as pessoas foram abrindo caminho para que passasse.

— Sou frei Joan, inquisidor do Santo Ofício! — teve de voltar a gritar diante das portas fechadas do estabelecimento.

Três oficiais de Arnau receberam-no. O interior estava em desordem; os livros estavam abertos sobre a toalha vermelha, enrugada, que cobria a longa mesa do irmão. Se Arnau visse aquilo...

— Preciso de dinheiro — disse-lhes. Os três mostraram incredulidade.

— Também nós — respondeu o mais velho, chamado Remigi, que substituíra Guillem.

— Que dizes?

— Que não há um soldo, frei Joan — Remigi aproximou-se da mesa para mostrar vários cofres. — Nem um, frei Joan.

— O meu irmão não tem dinheiro?

— Em moeda, não. Que julgais que faz essa gente toda aí fora? Querem o seu dinheiro. Já estamos a ser acossados há vários dias. Arnau continua a ser muito rico — tentou tranquilizá-lo o oficial —, mas está tudo investido, em empréstimos, em comandas, em negócios em curso...

— E não podeis exigir a devolução dos empréstimos?

— O maior devedor é o rei, e já sabeis que os cofres de sua majestade...

— Não há mais ninguém que deva dinheiro a Arnau?

— Sim. Há muita gente, mas são empréstimos que não venceram ainda, e dos que já venceram... Bem sabeis que Arnau emprestava muito dinheiro a gente humilde. Não podem pagar. Mesmo assim, quando souberam da situação de Arnau, muitos deles vieram e pagaram parte do que deviam, o pouco que têm, mas o gesto não passa disso. Não podemos cobrir a devolução dos depósitos.

Joan virou-se para a porta e apontou:

— E eles, porque podem eles exigir o seu dinheiro?

— De facto, não podem. Todos depositaram dinheiro para que Arnau negociasse com ele, mas o dinheiro é cobarde, e a Inquisição...

Joan fez um gesto para que Remigi esquecesse o seu hábito negro. O grunhido do aguazil voltou a ecoar nos seus ouvidos.

— Preciso de dinheiro — pensou em voz alta.

—Já vos disse que não há — ouviu da boca de Remigi-

— Pois eu preciso dele — reiterou Joan. — Arnau precisa dele.

Arnau precisa dele e, sobretudo, pensou Joan virando-se de novo para a porta, precisa de tranquilidade. Este escândalo só pode prejudicá-lo. As pessoas pensarão que está arruinado, e então ninguém quererá saber dele... Precisamos de apoios.

- Não se pode fazer nada para acalmar essa gente? Não podemos vender nada?

— Poderíamos ceder algumas comandas. Agrupar os depositários por comandas em que não esteja Arnau — respondeu Remigi.

— Mas sem a autorização dele...

— Serve-te a minha?

O oficial olhou para Joan.

— É preciso, Remigi.

— Suponho que sim — cedeu o empregado ao fim de uns instantes. — Na verdade, nem perderíamos dinheiro. Unicamente trocaríamos negócios: eles ficariam com uns, e nós com outros. Sem Arnau no meio, eles tranquilizar-se-ão... Mas tereis de me dar autorização por escrito.

Joan assinou o documento que Remigi lhe preparou.

— Trata de conseguir dinheiro vivo para amanhã à primeira hora — disse-lhe, enquanto assinava. — Precisamos de dinheiro vivo — insistiu perante o olhar do oficial. — Vende alguma coisa a baixo preço, se for preciso, mas precisamos desse dinheiro.

Assim que Joan saiu da mesa de câmbios e calou de novo os credores, Remigi começou a agrupar as comandas. Nesse mesmo dia, o último navio que partiu do porto de Barcelona levava instruções para os correspondentes de Arnau, ao longo do Mediterrâneo. Remigi agiu com rapidez; no dia seguinte, seriam satisfeitos os credores que começariam de imediato a propagar a notícia da nova situação de Arnau.

Pela primeira vez em quase uma semana, Arnau bebeu água fresca e comeu alguma coisa que não fosse pão duro. O aguazil obrigou-o a levantar-se, empurrando-o com o pé, e despejou um balde de água no lugar dele. Melhor a água que os excrementos, pensou Arnau. Durante alguns segundos, só se ouviu o barulho da água a cair no chão e a respiração do obeso aguazil; até a idosa que se rendera à morte e tinha o rosto permanentemente escondido por entre farrapos levantou os olhos para a figura de Arnau.

— Deixa ficar o balde — ordenou o bastaix ao aguazil quando este se preparava para sair.

Arnau já vira como ele maltratava os presos só pelo simples facto de o olharem nos olhos. O aguazil virou-se com o braço estendido, mas deteve-se mesmo antes de embater no corpo de Arnau, que permanecia imóvel à espera do embate; então, cuspiu e deixou cair o balde no chão. Antes de sair, ainda pontapeou uma das sombras que os observavam. Quando a terra absorveu a água, Arnau tornou a sentar-se. Lá fora, ouvia-se o repicar de um sino. Os ténues raios de sol que conseguiam passar pela janela, que no exterior ficava rente ao chão, e o ruído dos sinos, eram a sua única ligação ao mundo. Arnau ergueu os olhos para a pequena janela e aguçou o ouvido. Santa Maria estava inundada de luz,

mas ainda não tinha sinos; no entanto, o ruído dos cinzéis contra as pedras, o martelar nas madeiras e os gritos dos operários conseguiam ouvir-se a grande distância da igreja. Quando o eco de algum daqueles ruídos entrava na masmorra... Santo Deus! A luz e o som envolviam-no e transportavam-no num voo até junto do espírito daqueles que trabalhavam entregues à Virgem de la Mar. Arnau voltava a sentir nas suas costas o peso da primeira pedra que tinha levado para Santa Maria. Quanto tempo se passara desde então? Como as coisas tinham mudado! Era apenas uma criança, uma criança que encontrara na Virgem a mãe que nunca conhecera...

Pelo menos, disse Arnau para si, pudera salvar Raquel do terrível destino a que parecia estar condenada. Assim que vira Margarida Puig e Elionor apontando para eles, Arnau ocupara-se de Raquel, e fizera que ela e a família fugissem da judiaria. Nem ele mesmo sabia para onde tinham ido...

— Quero que vás procurar Mar — disse a Joan quando este voltou a visitá-lo.

O frade ficou quieto, ainda a dois passos do irmão.

— Ouviste-me, Joan? — Arnau levantou-se para se aproximar, mas as correntes puxavam-lhe as pernas. Joan ficou parado no mesmo sítio. — Joan! Ouviste-me?

— Sim... Sim... Ouvi-te —Joan aproximou-se do irmão para o abraçar. — Mas... — começou a dizer-lhe.

— Preciso de a ver, Joan — Arnau agarrou os ombros do frade, impedindo-lhe o abraço, e sacudiu-o com suavidade. — Não quero morrer sem voltar a falar com ela...

— Por Deus! Não digas...

— Sim, Joan. Poderia morrer aqui mesmo, sozinho, com uma dúzia de indigentes como testemunhas. Mas não gostava de morrer sem ter tido uma oportunidade de ver Mar.

É uma coisa...

— Mas... Que queres tu dizer-lhe? Que pode ser assim tão importante?

— Preciso do perdão dela, Joan, preciso do perdão... E de lhe dizer que a amo —Joan tentou libertar-se das mãos do irmão, mas Arnau impediu-lho. — Tu conheces--me, tu és um homem de Deus. Sabes bem que nunca fiz mal a ninguém, a não ser a essa... criança.

Joan conseguiu libertar os ombros... e caiu de joelhos diante do irmão.

— Não foste... — começou a dizer.

— Só te tenho a ti, Joan — interrompeu-o Arnau, ajoelhando-se também. — Tens de me ajudar. Nunca me falhaste. Não podes fazê-lo agora. És a única pessoa que tenho, Joan!

Joan continuou calado.

— E o marido dela — lembrou-se de perguntar. — Talvez ele não permita...

— Morreu — respondeu-lhe Arnau. — Averiguei isso quando ele deixou de pagar os juros de um empréstimo barato. Morreu às ordens do rei, na defesa de Catalayud.

— Mas... — tentou de novo Joan.

—Joan... Estou preso à minha mulher, atado por um juramento que fiz e que me impedirá de me unir a Mar enquanto ela for viva... Mas preciso de a ver. Preciso de lhe contar os meus sentimentos, mesmo que não possamos estar juntos... — Arnau recuperou pouco a pouco a serenidade. Havia outro favor que queria pedir ao irmão. — Passa pela mesa de câmbios. Quero saber como estão as coisas.

Joan suspirou. Nessa mesma manhã, quando acorrera à mesa de câmbios, Remigi entregara-lhe uma bolsa de dinheiro.

- Não foi um bom negócio — ouviu da boca do oficial.

Nada era um bom negócio. Depois de deixar Arnau, tendo-lhe prometido que iria em busca da rapariga, Joan pagou ao aguazil mesmo à porta da masmorra.

— Pediu-me um balde.

Quanto custava um balde para que Arnau... Joan depositou outra moeda.

— Quero esse balde sempre limpo — O aguazil guardou o dinheiro e virou-se para percorrer o corredor. — Há um preso morto ali dentro — acrescentou Joan.

O aguazil limitou-se a encolher os ombros.

Nem sequer saiu do palácio episcopal. Depois de deixar as masmorras, foi em busca de Nicolau Eimeric. Conhecia aqueles corredores. Quantas vezes os tinha percorrido na sua juventude, orgulhoso das suas responsabilidades? Agora eram outros jovens que se moviam por ali, uns sacerdotes muito limpos que não escondiam que o observavam com uma certa estranheza.

— Confessou? Prometera-lhe ir à procura de Mar.

— Confessou? — insistiu o inquisidor-mor.

Joan passou a noite acordado, a preparar aquela conversa, mas nada do que tinha pensado acorreu em sua ajuda.

— Se o fizesse, que pena teria...

— Já te disse que é muito grave.

— O meu irmão é muito rico.

Joan aguentou o olhar de Nicolau Eimeric.

— Estás a pretender comprar o Santo Ofício, tu, um inquisidor?

— As multas são admitidas habitualmente como pena. Estou certo de que se propusesse uma multa a Arnau...

— Sabes bem que depende da gravidade do delito. A denúncia que foi feita contra ele...

— Elionor não pode denunciá-lo por nada — interrompeu Joan.

O inquisidor-mor levantou-se da cadeira e encarou Joan, com as mãos apoiadas na mesa.

— Então — disse, levantando a voz —, vocês dois sabem que foi a pupila do rei quem fez a denúncia. A própria mulher dele, a pupila do rei! Como havias tu de imaginar que tinha sido ela, se o teu irmão não tivesse nada a esconder? Que homem desconfia da sua própria esposa? Porque não de um rival comercial, de um empregado, ou de um simples vizinho? Quantas pessoas condenou Arnau enquanto cônsul de la Mar? Porque não poderia ter sido uma dessas pessoas? Responde-me, frei Joan. Porquê a baronesa? Que pecado esconde o teu irmão para saber que foi ela?

Joan encolheu-se na cadeira. Quantas vezes tinha utilizado o mesmo procedimento? Quantas vezes tinha ele próprio agarrado nas palavras ainda no ar para... Como sabia Arnau que tinha sido Elionor? Poderia realmente ser que...

— Não foi Arnau quem mencionou a esposa — mentiu. — Sou eu que sei.

Nicolau Eimeric ergueu as mãos para o céu.

— Tu sabes, frei Joan? E como é que sabes?

— Porque ela o odeia... Não! — tentou rectificar, mas Nicolau já lhe estava a cair em cima.

— E porquê? — gritou o inquisidor. — Por que razão a pupila do rei odeia o seu próprio marido? Por que razão uma boa mulher, cristã, temente a Deus, consegue chegar ao ponto de odiar o marido? Que tipo de mal lhe fez esse marido para despertar o ódio dela? As mulheres nasceram para servir os homens; é essa a lei, terreal e divina. Os homens batem nas suas mulheres e elas não os odeiam por isso; os homens fecham as mulheres e nem mesmo assim elas os odeiam; as mulheres trabalham para os homens, fornicam com eles quando eles querem, têm de cuidar deles e submeter-se a eles, mas nada disso cria ódio. Que sabes tu, frei Joan?

Joan cerrou os dentes. Não devia falar mais. Sentia-se vencido.

— És inquisidor. Exijo-te que me digas o que sabes! — gritou Nicolau.

Joan continuou em silêncio.

— Não podes apoiar o pecado. Peca mais quem cala do que quem o comete.

Uma infinidade de praças de pequenas aldeias, com as suas gentes amesquinhadas pelas suas diatribes, começou a desfilar pela mente de Joan.

— Frei Joan — Nicolau cuspiu as palavras lentamente, apontando para ele por cima da mesa —, quero essa confissão amanhã mesmo. E reza por que eu não decida julgar-te a ti também. Ah, frei Joan! — acrescentou quando Joan já se estava a retirar —, procura mudar de hábito, que já recebi algumas queixas e certamente...

Nicolau fez um gesto com a mão, apontando o hábito de Joan. Quando este saiu do escritório, olhando para os rasgões e os fios repuxados do seu hábito negro, tropeçou num dos cavaleiros que esperavam na antessala do inquisidor-mor. Junto deles, três homens armados guardavam duas mulheres acorrentadas, uma já idosa e outra mais jovem, cujo rosto...

— Ainda aqui estás, frei Joan? — Nicolau Eimeric tinha saído a porta para receber os cavaleiros.

Joan não se deixou distrair mais e estugou o passo.

Jaume de Bellera e Genís Puig entraram na sala de Nicolau Eimeric; Francesca e Aledis, depois de receberem um rápido olhar do inquisidor, permaneceram na antecâmara.

— Recebemos notícia — começou a dizer o senhor de Bellera depois de se apresentar, uma vez sentados nas cadeiras de cortesia — que detivestes Arnau Estanyol.

Genís Puig não parava de mexer as mãos pousadas no colo.

— Sim — respondeu secamente Nicolau. — É público.

— De que é ele acusado? — saltou Genís Puig, recebendo um imediato olhar de reprovação por parte do nobre. «Não fales. Tu não fales até que o inquisidor te pergunte alguma coisa», tinha-lhe aconselhado em repetidas ocasiões.

Nicolau virou-se para Genís.

— Por acaso não sabeis que isso é segredo?

— Rogo-vos que desculpeis o cavaleiro de Puig — interveio Jaume de Bellera —, mas como vereis, o nosso interesse é fundado. Consta-nos que existe uma denúncia contra Arnau Estanyol e queremos apoiá-la.

O inquisidor-mor ergueu-se na sua cadeira. Uma pupila do rei, três padres de Santa Maria que tinham ouvido Arnau blasfemar na própria igreja, aos gritos, enquanto discutia com a esposa, e agora um nobre e um cavaleiro. Poucos testemunhos poderiam gozar de maior credibilidade. Instou-os a continuarem com o olhar.

Jaume de Bellera semicerrou os olhos na direcção de Genís Puig; depois iniciou a exposição que tanto tinha preparado.

- Acreditamos que Arnau Estanyol é a encarnação do Diabo — Nicolau nem se mexeu. — Esse homem é filho de assassino e de uma bruxa. O pai, Bernat Estanyol, assas-inou um rapaz no castelo de Bellera e fugiu com o filho, Arnau que meu pai, sabendo quem era, mantinha preso para que não fizesse mal a ninguém. Foi Bernat Estanyol quem provocou a revolta da Praça do Blat durante o primeiro mau ano, lembrais-vos? Ali mesmo o executaram...

— E o filho queimou o cadáver do pai — acrescentou então Genís Puig.

Nicolau fez uma careta. Jaume de Bellera tornou a trespassar o intrometido com o olhar.

— Queimou o cadáver? — perguntou Nicolau.

— Sim. Eu mesmo o vi — mentiu Genís Puig, recordando as palavras da sua mãe.

— Denunciaste-lo?

— Eu... — O senhor de Bellera fez menção de intervir, mas Nicolau impediu-o com um gesto. — Eu... Era apenas uma criança. Tive medo de que fizesse o mesmo comigo.

Nicolau levou as mãos ao queixo para tapar com os dedos um imperceptível sorriso. Depois, incitou o senhor de Bellera a continuar.

— A mãe, aquela velha que ali está fora, é uma bruxa. Agora trabalha como meretriz, mas deu-me de mamar e transmitiu-me o mal, endemoninhou-me com o leite que estava destinado ao filho — Nicolau abriu os olhos ao ouvir a confissão do nobre. O senhor de Navarcles deu-se conta disso. — Não vos preocupeis — acrescentou rapidamente —, assim que o mal se manifestou, o meu pai trouxe-me à presença do bispo. Sou descendente de Llorenç e Catarina de Bellera — continuou o nobre —, senhores de Navarcles.

Podeis comprovar que ninguém na minha família teve alguma vez o mal do Diabo. Só pode ter sido do leite endemoninhado

— Dizeis que é uma meretriz?

— Sim, e podeis comprová-lo; diz chamar-se Francesca.

— E a outra mulher?

— Quis vir com ela.

— Outra bruxa?

— Isso fica ao vosso critério. Nicolau pensou por uns instantes.

— Mais alguma coisa? — perguntou.

— Sim — interveio de novo Genís Puig. — Arnau assassinou o meu irmão Guiamon quando este não quis participar nos seus ritos demoníacos. Tentou afogá-lo certa noite na praia... Depois, ele morreu.

Nicolau voltou a fixar a atenção no cavaleiro.

— A minha irmã Margarida pode testemunhar. Ela estava lá. Assustou-se e tentou fugir quando Arnau começou a invocar o Diabo. Ela mesmo vos poderá confirmar.

— Também dessa vez não o denunciastes?

— Só soube agora, quando disse à minha irmã o que pensava fazer. Continua aterrorizada pela possibilidade de Arnau lhe fazer mal; durante anos viveu com esse medo.

— São acusações muito graves.

— São as que Arnau Estanyol merece — alegou o senhor de Bellera. — Sabeis que esse homem se dedicou a minar a autoridade. Nas suas terras, contra a opinião da esposa, derrogou os maus usos; aqui em Barcelona, dedica-se a emprestar dinheiro aos humildes, e como cônsul de la Mar é bem conhecida a sua tendência para proferir sentenças a favor do povo — Nicolau Eimeric ouvia atentamente.

- Durante toda a vida se dedicou a minar os princípios que devem reger a nossa convivência. Deus criou os camponeses para que trabalhassem na terra submetidos aos seus senhores feudais. Até a própria Igreja proibiu que os seus camponeses tomem os hábitos, para não os perder...

— Na Catalunha Nova não existem os maus usos — interrompeu-o Nicolau. O olhar de Genís Puig ia de um para outro.

— E precisamente isso que quero dizer — o senhor de Bellera moveu as mãos com violência. — Na Catalunha Nova não há maus usos... por interesse do príncipe, por interesse de Deus. Havia que povoar essas terras conquistadas aos infiéis, e a única forma era atrair as pessoas. O príncipe assim decidiu. Mas Arnau não é mais do que o príncipe... do Diabo.

Genís Puig sorriu ao aperceber-se de que o inquisidor-mor anuía levemente com a cabeça.

— Empresta dinheiro aos pobres — prosseguiu o nobre —, dinheiro que sabe que nunca recuperará. Deus criou os ricos... e os pobres. Não se pode aceitar que os pobres tenham dinheiro e casem as suas filhas como se fossem ricos; isso contraria o desígnio de Nosso Senhor. Que vão pensar esses pobres acerca de vós, eclesiásticos, ou de nós, nobres?

Por acaso não cumprimos os preceitos da Igreja tratando os pobres como aquilo que são? Arnau é um diabo filho de diabos e não faz mais do que preparar a vinda do Diabo através do descontentamento do povo. Pensai nisso.

Nicolau Eimeric pensou. Chamou o escrivão para que pusesse por escrito as denúncias do nobre de Bellera e de Genís Puig, mandou chamar Margarida Puig e ordenou o encarceramento de Francesca.

- E a outra? – perguntou o inquisidor ao senhor de Bellera. – É acusada de alguma coisa? – s dois homens hesitaram.- Nesse caso, ficará em liberdade.

Francesca foi acorrentada longe de Arnau, no extremo oposto da imensa masmorra, e Aledis foi lançada à rua.

Depois de organizar tudo, Nicolau deixou-se cair no cadeirão da sua mesa. Blasfemar no templo do Senhor, manter relações carnais com uma judia, ser amigo de judeus, assassino, manter prácticas diabólicas, agir contra os preceitos da igreja…E tudo isso sustentado por sacerdotes, nobres, cavaleiros…e pela pupila do rei. O inquisidor-mor recostou-se no cadeirão e sorriu.

«O teu irmão é assim tão rico, frei Joan? Que estúpido! Para que me falas em multas, se todo o dinheiro passará para as mãos da inquisição no momento em que eu condenar o teu irmão?»

Aledis tropeçou várias vezes quando os soldados a empurraram para fora do palácio do bispo. Depois de recuperar o equilibrio, percebeu que várias pessoas a olhavam. Que tinham gritado os soldados? Bruxa? Estava quase no meio da rua e as pessoas olhavam-na atentamente. Lhou para as suas roupas sujas. Apalpou os cabelos, ásperos e despenteados. Um homem bem vestido passou a seu lado, olhando-a com decaramento. Aledis deu uma patada no chão e lançou-se sobre o homem, grunhindo, mostrando os dentes como os cães quando atacam.

O homem deu um salto e afastou-se a correr, até que percebeu que Aledis não se tinha mexido do lugar. Então, foi a mulher quem olhou para os circunstantes; um após outro, baixaram os olhos e seguiram o seu caminho, embora não faltasse quem, de soslaio, se tivesse virado para trás e visse como a bruxa olhava para os curiosos. Que se passara? Os homens do nobre de Bellera tinham irrompido pela sua casa e detido Francesca enquanto a idosa descansava numa cadeira. Ninguém lhes dera a mais pequena satisfação. Tinham afastado as raparigas com violência, quando estas de tinham virado contra os soldados; todas tinham procurado o apoio de Aledis, que estava paralisada pela surpresa. Alguns clientes tinham saído dali a correr seminus. Aledis enfrentara aquele que parecia ser o oficial:

- Que significa isto? Porque prendeis esta mulher?

- Por ordem do senhor de Bellera – respondera o oficial.

O senhor de Bellera! Aledis desviou o olhar para Francesca, encolhida entre dois soldados que a seguravam por debaixo dos braços. A idosa começara a tremer. Bellera!

Desde que Arnau derrogara os maus usos no castelo de Montebui e Francesca revelara os seus segredos a Aledis, as duas mulheres tinham superado a única barreira que até então havia entre elas. Quantas vezes ouvira dos lábios de Francesca a história de Llorenç de Bellera? Quantas vezes a vira chorar ao recordar aqueles momentos? E agora…outra vez Bellera; levavam-na outra vez para o castelo, como quando…

Francesca continuava a tremer entre os dois soldados.

- Deixem-na – gritou Aledis para os soldados.- Não vêem que estão a magoá-la? – s soldados viraram-se para o oficial.- Iremos voluntariamente – acrescentara Aledis olhando para o oficial.

O oficial encolhera os ombros e os soldados tinham entregado a idosa a Aledis.

Tinham-nas levado para o castelo de Navarcles, onde tinham encerrado nas masmorras. No entanto, não tinha sido maltratadas. Pelo contrário, tinha-lhes sido dada água e comida, e até alguns feixes de palha para dormirem. Agora percebia a razão disso: o senhor de Bellera queria que Francesca chegasse em condições a Barcelona, para onde as tinham transferido dois dias depois, num carro, no mais absoluto silêncio. Porquê? Para quê? Qual era o significado de tudo aquilo?

A gritaria devolveu-a à realidade. Absorta nos seus pensamentos, descera a Rua do Bisbe e virara para a Rua Sederes para chegar à Praça do Blat. O dia limpo e soalheiro de Primavera congregara na praça mais gente que o habitual, e junto com os compradores de cereais havia dezenas de curiosos. Encontrava-se debaixo da antiga porta da cidade e virou-se quando sentiu o odor do pão da banca que estava à sua esquerda. O padeiro olhou-a com receio e Aledis recordou-se do seu aspecto. Não trazia um soldo consigo. Engoliu a saliva que se lhe tinha formado na boca e afastou-se, evitando cruzar o olhar com o do padeiro.

Vinte e cinco anos; vinte e cinco anos desde a última vez que pisara aquelas ruas, que não via aquela gente e que não respirava os odores da grande cidade condal. Estaria ainda aberta a Pia Almoina? Nessa manhã não lhes tinham dado de comer no castelo e o estômago lembrava-lho. Voltou pelo caminho que tinha feito, de novo em direcção à catedral, junto ao palácio do bispo. A boca começou-lhe de novo a segregar saliva quando se aproximou da fila de mendigos que se apinhavam à porta da Pia Almoina. Quantas vezes na sua juventude passara por aquele sítio sentindo pena daqueles famintos que se viam obrigados a expor-se a toda a cidade em busca da caridade pública?

Juntou-se a eles. Baixou a cabeça, para que o cabelo lhe escondesse o rosto, e arrastou os pés seguindo a fila que avançava para a comida; escondeu a cara ainda mais quando chegou perto do noviço e estendeu as mãos. Porque tinha de pedir esmola? Tinha uma boa casa e poupara dinheiro para viver comodamente o resto da vida. Os homens continuavam a desejá-la e... pão duro de farinha de fava, vinho e um prato de sopa. Comeu. Fê-lo com a mesma fruição com que o faziam todos os miseráveis que a rodeavam.

Quando terminou, levantou os olhos pela primeira vez. Estava rodeada de pedintes, estropiados e idosos que comiam sem perder de vista os seus companheiros de desgraça, agarrando com força o pedaço de pão duro e a escudela. Que razão tinha conseguido levá-la até ali? Porque tinham detido Francesca no palácio do bispo? Aledis levantou-se. Uma mulher loura, vestida de vermelho brilhante, que caminhava para a catedral, chamou-lhe a atenção. Uma nobre... Sozinha? Mas se não fosse uma nobre com aquele vestido podia ser uma.... Teresa! Aledis correu para a rapariga.

— Fizemos turnos diante do castelo para sabermos o que se passava convosco — disse-lhe Teresa depois de se terem abraçado.

— Não nos foi difícil convencer os soldados da porta a porem-nos a par de tudo — a rapariga piscou um dos seus bonitos olhos azuis. — Quando vos levaram e os soldados nos disseram que vos tinham trazido para Barcelona, tivemos de encontrar uma forma de vir também; por isso demoramos tanto... E Francesca?

— Está detida no palácio do bispo.

— Porquê?

Aledis encolheu os ombros. Quando as tinham separado e lhe tinham dado ordens para que se fosse embora, tentara que os soldados ou os sacerdotes lhe dessem um motivo «Para as masmorras com a velha», conseguira ouvir. Mas ninguém lhe respondera e tinham-na afastado do caminho aos empurrões. A insistência em saber as razões da detenção de Francesca custara-lhe que um jovem frade, a cujo hábito se agarrara, chamasse a guarda. Tinham-na lançado à rua aos gritos de «bruxa».

— Quantas vieram?

— Eulália e eu.

Um vestido verde brilhante corria para elas.

— Trouxeram dinheiro?

— Sim, claro...

— E Francesca? — perguntou Eulália ao chegar perto de Aledis.

— Detida — respondeu esta. Eulália ia para continuar a perguntar, mas Aledis fê-la calar-se com um gesto. — Não sei porquê — olhou para as jovens... Haveria algo que elas não conseguissem saber? — Não sei por que razão a prenderam — repetiu —, mas havemos de saber; não é verdade, meninas?

Ambas lhe sorriram com um ar travesso.

Joan arrastou a lama que sujava a bainha do seu hábito negro por toda a Barcelona. O irmão pedira-lhe que fosse à procura de Mar. Como se iria ele apresentar diante dela. Depois, tentara chegar a um pacto com Eimeric e, em vez disso, como um daqueles vulgares aldeões a quem ele condenava, caíra na sua própria armadilha e proporcionara ao inquisidor-mor ainda maiores indícios de culpabilidade. Que poderia Elionor ter denunciado? Por um momento, pensou

em visitar a cunhada, mas a simples recordação do sorriso que ela lhe dirigira em casa de Felip de Ponts fê-lo desistir. Se tinha denunciado o seu próprio marido, que havia de lhe dizer a ele?

Desceu pela Rua de la Mar até Santa Maria. O templo de Arnau. Joan deteve-se e contemplou-o. Ainda rodeada de andaimes de madeira, por onde os pedreiros se deslocavam sem descanso, Santa Maria já mostrava o que haveria de ser a sua orgulhosa construção. Todas as paredes exteriores, com os seus contrafortes, estavam acabadas, tal como a abside e duas das quatro abóbadas da nave central; as nervuras da terceira abóbada, cuja pedra de chave tinha sido paga pelo rei para que se cinzelasse nela a figura equestre do seu pai, o rei Afonso, começavam a elevar-se num arco perfeito, suportadas por complicados andaimes, à espera de que a pedra de chave equilibrasse os esforços e o arco se mantivesse por si só. Apenas faltavam as duas últimas abóbadas principais, e Santa Maria ficaria completamente coberta.

Como seria possível não se apaixonar por aquela igreja? Joan recordou o padre Albert e a primeira vez que ele e Arnau tinham pisado Santa Maria. Nem sequer sabia rezar! Anos mais tarde, enquanto ele aprendia a rezar, a ler e a escrever, o irmão carregava pedras até ali mesmo. Joan recordou as chagas a sangrarem com que Arnau aparecera nos primeiros dias; e, no entanto... sorria. Observou os mestres-de-obras de diferentes ofícios que se afadigavam nas portadas e arquivoltas da fachada principal, na sua estatuária, nas suas portas reforçadas, na filigrana diferente em cada uma das portas, nas grades de ferro forjado e nas gárgulas com todo o tipo de figuras alegóricas, nos capitéis das colunas e nos vitrais, sobretudo nos vitrais, essas obras de arte chamadas a filtrar a mágica luz do Mediterrâneo para brincarem, hora a hora, quase minuto a minuto, com as formas e as cores do interior do templo.

Na imponente rosácea da fachada principal já podia vislumbrar-se a futura composição: no seu centro, uma pequena rosácea polibulada, de cujo centro partiam, como flechas caprichosas, como um sol de pedra minuciosamente lavrado os mainéis destinados a dividir a rosácea principal; depois destes, os traços de filigrana cediam passagem a uma fila de trilóbulos em forma ogival e, depois disso, outra fila de quadrilóbulos, estes arredondados, que encerravam definitivamente a grande rosácea. Por entre toda aquela filigrana de pedra, igual à que decorava as estreitas janelas da fachada, ir-se-iam depois incrustando os vitrais chumbados; de momento, no entanto, a rosácea aparecia como uma imensa teia de aranha, de pedra finamente lavrada, à espera de que os mestres vidraceiros viessem preencher os buracos.

Ainda têm muito que fazer, pensou Joan perante a visão da centena de homens que trabalhavam entregues à ilusão de todo um povo. Nesse momento, chegou um bastaix carregado com uma enorme pedra. O suor corria-lhe pela cara e chegava-lhe aos tornozelos; todos os seus músculos se desenhavam, tensos, vibrando ao ritmo dos passos que o aproximavam da igreja. Mas sorria; sorria como o seu irmão sorrira. Joan não conseguiu desviar os olhos do bastaix. Dos andaimes, os pedreiros deixaram o que estavam a fazer e penduraram-se para ver a chegada das pedras que mais tarde teriam de trabalhar. Depois do primeiro bastaix, apareceu outro, e outro, outro ainda, todos encurvados. O barulho do cinzel contra as pedras rendeu-se perante os humildes trabalhadores da ribeira de Barcelona e, durante alguns instantes, Santa María inteira ficou enfeitiçada. Um pedreiro rompeu o sílêncío do alto do templo. O seu grito de ânimo rasgou os ares,reverberou nas pedras e penetrou no interior de quantos observavam a cena.

«Ânimo», sussurrou Joan, somando-se ao clamor que se tinha iniciado. Os bastaixos sorriam e, cada vez que um descarregava uma pedra, a gritaria aumentava. Depois, alguém lhes oferecia água, e os bastaixos levantavam as botijas sobre a cabeça, deixando que a água lhes escorresse pela cara antes de beberem. Joan via-se a si próprio na praia, perseguindo os bastaixos com a bexiga de água de Bernat. Depois, levantou os olhos para o céu. Devia ir à procura dela: se essa era a penitência que o Senhor lhe impunha, iria em busca da rapariga e confessar-lhe-ia a verdade. Rodeou Santa Maria até à Praça do Born, o Pia d'en Llul e o convento de Santa Clara, para sair de Barcelona pela Porta de São Daniel.

Não foi difícil a Aledis encontrar o senhor de Bellera e Genís Puig. Exceptuando a alfândega, destinada aos comerciantes que chegavam a Barcelona, a cidade condal contava então com apenas cinco hospedarias. Deu ordens a Teresa e Eulália para que se escondessem no caminho que levava a Montjuíc até que ela lá fosse buscá-las. Aledis permaneceu em silêncio enquanto via como elas se afastavam, com as recordações a exacerbarem os seus sentimentos...

Quando perdeu de vista o refulgir dos vestidos das suas raparigas, iniciou a busca. Primeiro, a hospedaria do Bou, muito perto do palácio do bispo, junto à Praça Nova. O cozinheiro mandou-a embora com maus modos quando se apresentou na porta das traseiras e perguntou pelo senhor de Bellera. Na hospedaria de la Massa, em Portaferrissa, também perto do palácio do bispo, uma mulher que amassava farinha nas traseiras disse-lhe que não estavam ali hospedados esses senhores; então, Aledis dirigiu-se à hospedaria do Estanyer, junto à Praça da Liana. Ali, outro rapaz, muito descarado, olhou a mulher de alto a baixo.

— Quem se interessa pelo senhor de Bellera? — perguntou.

— A minha senhora — respondeu Aledis. — Tem vindo a segui-lo desde Navarcles.

O rapaz, alto e magro como um pau, fitou o olhar nos seios da meretriz. Depois, estendeu a mão direita e sopesou um deles.

— Que interesse tem a tua senhora nesse nobre? Aledis aguentou sem se mexer, esforçando-se por conter um sorriso.

— Não me compete a mim saber isso — o rapaz começou a apalpar-lhe o seio com força. Aledis aproximou-se e roçou-lhe uma mão perto da virilha. O rapaz encolheu-se ao seu contacto. — No entanto — disse ela, arrastando as palavras —, se estão aqui, talvez eu tenha de dormir esta noite na horta, enquanto a minha senhora...

Aledis acariciou as virilhas do rapaz.

— Esta manhã mesmo — balbuciou o jovem —, vieram dois cavaleiros em busca de alojamento.

Desta vez, sim, sorriu. Por um momento pensou em separar-se do rapaz, mas... Porque não? Havia tanto tempo que não tinha sobre si um corpo jovem, inexperiente, movido apenas pela paixão...

Aledis empurrou-o para um pequeno telheiro. Da primeira vez, o rapaz nem sequer teve tempo de baixar os calções, mas a partir daí, a mulher acalmou todo o ímpeto do caprichoso objecto do seu desejo.

Quando Aledis se levantou para se vestir, o rapaz ficou deitado no chão, remexendo-se e com o olhar perdido num ponto qualquer do telheiro.

— Se me voltares a ver, seja onde for — disse-lhe ela —, não me conheces, percebes?

Aledis teve de insistir duas vezes até o rapaz lho prometer.

— Vocês serão minhas filhas — disse a Teresa e Eulália, depois de lhes entregar as roupas que acabara de comprar. — Enviuvei há pouco tempo e estamos de passagem para Gerona, onde esperamos que um irmão meu nos acolha. Não temos recursos. O vosso pai era um simples oficial... curtidor de Tarragona.

— Pois olha que para quem acabou de enviuvar e ficou sem recursos, estás muito sorridente — atirou-lhe Eulália enquanto se despia do vestido verde e fazia uma careta simpática para Teresa.

— É verdade — confirmou esta —, devias evitar essa expressão de satisfação. Mais parece que acabas de conhecer...

— Não se preocupem — interrompeu-as Aledis —, quando for preciso aparentarei a dor que corresponde a uma viúva recente.

— E até que seja preciso — insistiu Teresa —, não poderias esquecer a viúva e contar-nos a que se deve essa alegria toda?

As duas raparigas riram-se. Escondidas entre a vegetação do sopé da montanha de Montjuíc, Aledis não pôde deixar de observar os corpos nus delas, perfeitos, sensuais... Juventude. Por um momento, lembrou-se de si mesma, ali mesmo, muitos anos antes...

— Ah! — exclamou Eulália. — Isto arranha.

Aledis regressou à realidade e viu Eulália vestida com uma camisa longa e descolorida que lhe chegava até aos tornozelos.

— As órfãs de um curtidor não podem vestir-se de seda.

— Mas isto... — queixou-se Eulália, puxando a camisa com dois dedos.

— Isso é o normal — insistiu Aledis. — Seja como for, vocês duas esqueceram-se disto.

Aledis mostrou-lhes duas tiras de roupa descolorida e tão ásperas como as camisas. Aproximaram-se para as recolher.

— Que é isto? — perguntou Teresa.

— São mantos e servem para...

— Não. Não vais pretender que...

— As mulheres decentes tapam o peito. — Ambas tentaram protestar. — Primeiro o peito — ordenou Aledis —, depois as camisas e, por cima, os vestidos, e dêem graças — acrescentou perante o olhar das raparigas — por vos ter comprado camisas e não cilícios. Talvez vos ficasse melhor fazer alguma penitência.

As três tiveram de se ajudar umas às outras para colocarem as tiras de pano sobre os seios.

— Julgava que o que querias era que seduzíssemos os nobres — disse-lhe Eulália enquanto Aledis puxava a sua tira de pano sobre os seus abundantes seios. — Não vejo como é que com isto...

- Deixa-me fazer como quero — respondeu Aledis. — Os vestidos são... quase brancos, símbolo de virgindade. Esses dois canalhas não deixarão passar a oportunidade de dormir com duas virgens. Vocês não sabem nada de homens — insistiu Aledis enquanto acabavam de se vestir —, por isso não se mostrem coquetes nem ousadas. Neguem-se sempre. Recusem os avanços deles as vezes que forem necessárias.

— E se os recusarmos tanto que desistam? Aledis levantou os olhos para observar Teresa.

— Ingénua — disse-lhe, sorrindo. — A única coisa que têm de conseguir é que eles bebam. O vinho fará o resto. Enquanto ficarem com eles, eles não desistirão. Asseguro-vos isso. Por outro lado, tenham em conta que Francesca foi detida pela Igreja, não por ordem do regedor, ou do bailio. Dirijam a vossa conversa para temas religiosos...

As duas raparigas olharam-na com surpresa.

— Religiosos? — exclamaram em uníssono.

— Compreendo que não saibam muito disso — assumiu Aledis. — Usem a imaginação. Creio que alguma coisa terá que ver com bruxaria... Quando me expulsaram do palácio, fizeram-no aos gritos de «bruxa».

Ao fim de algumas horas, os soldados que vigiavam a Porta de Trentaclaus franquearam o acesso à cidade de unia mulher vestida de preto, com o cabelo apanhado num carrapito, e as suas duas filhas de branco, com o cabelo recatadamente apanhado, calçando vulgares sandálias, sem enfeites nem perfumes, e que seguiam cabisbaixas atrás da mulher de preto, com os olhos fixos nos calcanhares da primeira, como Aledis lhes tinha ordenado.

 

A porta da masmorra abriu-se de repente. Não era a hora habitual; o Sol ainda não baixara o suficiente e a luz insistia em filtrar-se através da pequena janela gradeada, mas a miséria que enchia o ambiente parecia disposta a impedi-la, e a luz misturava-se com o pó e com os eflúvios dos presos. Não era a hora habitual, e todas as sombras se moveram. Arnau ouviu o ruído das correntes, que parou assim que o aguazil entrou com um novo preso; não vinham buscar nenhum deles. Mais outro... Outra, corrigiu-se Arnau, ao ver o perfil de uma idosa no umbral da porta. Que pecado teria cometido aquela pobre mulher?

— Levanta-te, bruxa! — ecoou na masmorra. Mas a bruxa não se mexeu. O aguazil deu dois pontapés no vulto que jazia aos seus pés. O eco daqueles golpes surdos vibrou durante uns segundos que pareceram eternos. — Disse-te que te levantes!

Arnau notou como as sombras tentavam colar-se às paredes que as retinham. Eram os mesmos gritos, o mesmo tom imperativo, a mesma voz. Nos dias que já levava de encarcerado, ouvira várias vezes aquela voz, troando do outro lado da porta da masmorra, depois de um preso ter sido desacorrentado. Também então vira como as sombras se encolhiam e vomitavam com medo da tortura. Primeiro era a voz, o grito, e depois de alguns instantes, o arrepiante uivo de um corpo a ser mutilado.

- Levanta-te, puta velha!

O aguazil tornou a pontapeá-la, mas a idosa continuava a não se mexer. Por fim, agachou-se, bufando, agarrou-a por um braço e arrastou-a para onde lhe tinham dado ordens que a acorrentasse: longe do cambista. O som das chaves e das grilhetas sentenciou a idosa. Antes de sair, o aguazil atravessou a masmorra, para ir onde Arnau se encontrava.

— Porquê? — perguntara depois de receber a ordem de acorrentar a bruxa longe de Arnau.

— Esta bruxa é a mãe do cambista — respondera-lhe o oficial da Inquisição; assim lho dissera o oficial do senhor de Bellera.

— Não julgues — disse o aguazil assim que chegou perto de Arnau — que pelo mesmo preço conseguirás que a tua mãe coma melhor. Por muito que seja tua mãe, uma bruxa custa dinheiro, Arnau Estanyol.

Não mudara nada: a casa rural, com a sua torre de vigilância encostada, continuava a dominar a pequena elevação. Joan olhou para cima e o ruído da host regressou-lhe aos ouvidos, o ruído dos homens nervosos, das espadas e dos gritos de alegria quando ele próprio, exactamente ali, conseguira convencer Arnau a entregar Mar em casamento. Nunca se portara bem com a rapariga; que havia de lhe dizer agora?

Joan ergueu os olhos para o céu e depois, encurvado, cabisbaixo, arrastando o hábito, iniciou a subida da suave ladeira.

Os arredores da casa pareciam desertos. Apenas o barulho dos animais presos no estábulo do piso térreo rompia o silêncio.

— Está alguém? — gritou Joan.

Ia para gritar de novo quando um movimento chamou a sua atenção. Espreitando de uma das esquinas da casa, um rapazinho olhava para ele, com os olhos muito abertos.

— Chega aqui, rapaz — ordenou Joan. O rapazinho hesitou.

— Vem cá...

— Que se passa?

Joan virou-se para a escada exterior que levava ao andar superior. No alto dessa escada estava Mar, que o interrogava com o olhar. Ficaram ambos um longo momento sem se mexerem nem dizerem nada. Joan tentou encontrar naquela mulher a imagem da rapariga cuja vida oferecera ao cavaleiro de Ponts, mas aquela figura exalava uma severidade que pouco tinha que ver com a explosão de sentimentos que cinco anos antes tinham vivido no interior daquela mesma casa. O tempo passava e Joan sentia-se cada vez mais coibido. Mar atravessava-o com o olhar, parada, sem sequer pestanejar.

— Que procuras, frade? — perguntou-lhe por fim.

— Vim falar contigo. — Joan teve de levantar a voz.

— Não me interessa nada do que tenhas a dizer-me. Mar fez menção de dar meia-volta, mas Joan apressou-se a intervir.

— Prometi a Arnau que falaria contigo. — Ao contrário do que esperava, Mar não pareceu mudar de atitude ao ouvir a menção a Arnau; no entanto, também não virou costas. — Escuta-me, não sou eu que quero falar contigo — Joan deixou passar alguns segundos. — Posso subir?

Mar virou-lhe as costas e entrou em casa. Joan dirigiu-se a a escada e, antes de subir, olhou de novo para o céu. Era esta, verdadeiramente, a penitência que merecia?

Pigarreou para chamar a atenção dela. Mar continuou virada para a lareira, ocupada com uma panela que pendia de mna corrente que, por sua vez, pendia do tecto.

- Fala — limitou-se a dizer.

Joan observou-a de costas, inclinada sobre o fogo. O cabelo caía-lhe pelas costas quase até chegar a umas nádegas que apareciam firmes, perfeitamente delineadas debaixo da camisa. Tornara-se uma mulher... atraente.

— Não vais dizer nada? — perguntou-lhe Mar, voltando a cabeça por um instante.

Como havia de...

— Arnau foi encarcerado pela Inquisição — soltou o dominicano de supetão.

Mar parou de mexer o conteúdo da panela. Joan ficou em silêncio.

A voz dela pareceu sair das próprias chamas, tremendo, comovida:

— Há quem esteja encarcerada há muito tempo.

Mar continuou de costas para Joan, direita, com os braços caídos ao longo do corpo e o olhar perdido na chaminé.

— Não foi Arnau quem te encarcerou. Mar virou-se bruscamente.

— Por acaso não foi ele quem me entregou ao senhor de Ponts? — gritou. — Não foi ele quem consentiu no meu casamento? Não foi ele quem decidiu não vingar a minha desonra? Ele violou-me! Sequestrou-me e violou-me.

Cuspira cada palavra. Tremia. Toda ela tremia; desde o lábio superior até às mãos, que agora tentava agarrar diante do peito. Joan não conseguiu suportar aqueles olhos injectados de sangue.

— Não foi Arnau — repetiu o frade com a voz trémula — Fui... Fui eu! — gritou. — Entendes, mulher? Fui eu quem o convenceu de que devia entregar-te em casamento Que teria sido de uma rapariga violada? Que teria sido de ti quando toda a Barcelona soubesse da tua desgraça? Fui eu quem, convencido por Elionor, preparou o sequestro e consentiu na tua desonra para poder convencer Arnau a que te entregasse em casamento. Fui eu o culpado de tudo. Arnau nunca te teria entregado.

Olharam um para o outro. Joan sentiu que o peso do hábito se aligeirava. Mar parou de tremer e as lágrimas chegaram-lhe aos olhos.

— Ele amava-te — acrescentou Joan. — Amava-te então, e ama-te agora. Precisa de ti...

Mar levou as mãos ao rosto. Dobrou os joelhos para um lado e o seu corpo foi-se encolhendo até ficar prostrada diante do frade.

Já estava. Já o fizera. Agora, Mar chegaria a Barcelona, contaria tudo a Arnau e... Com estes pensamentos, Joan baixou-se para ajudar Mar a levantar-se...

— Não me toques! Joan saltou para trás.

— Passa-se alguma coisa, senhora?

O frade virou-se para a porta. No umbral, um homem hercúleo, armado com uma gadanha, olhava-o, ameaçadora; por detrás das pernas dele, espreitava a cabeça do rapazinho. Joan estava a menos de dois palmos do recém-chegado, que era muito mais alto do que ele.

- Não se passa nada — respondeu Joan; mas o homem passou por ele em direcção a Mar, empurrando-o como se ele não existisse.

- Já te disse que não se passa nada — insistiu Joan. — Vai ocupar-te dos teus trabalhos.

O rapazinho procurou refúgio atrás da porta e voltou a espreitar por ela. Joan parou de observá-lo e, quando se voltou para o interior, viu que o homem da gadanha estava ajoelhado junto de Mar, sem lhe tocar.

— Não me ouviste? — perguntou Joan. O homem não lhe respondeu. — Obedece e vai cuidar dos teus afazeres.

Desta vez, o homem virou-se para Joan.

— Só obedeço à minha senhora.

Quantos como aquele, grandes, fortes e orgulhosos, se tinham prostrado diante dele? Quantos vira chorar e suplicar antes de lhes ditar a sentença? Joan semicerrou os olhos, apertou os punhos e deu dois passos em direcção ao criado.

— Atreves-te a desobedecer à Inquisição? — gritou.

Ainda não tinha terminado a frase quando Mar se levantou. Tremia de novo. O homem da gadanha também se levantou, mais lentamente.

— Como te atreves tu, frade, a vir a minha casa e ameaçar o meu criado? Inquisidor? Ah! Não passas de um diabo disfarçado de frade. Foste tu quem me violou! — Joan viu como o criado apertava as mãos no cabo da gadanha. — Tu próprio o reconheceste!

— Eu... — vacilou Joan.

O criado aproximou-se dele e colocou-lhe o gume rombo da gadanha contra o estômago.

— Ninguém saberia, senhora. Veio sozinho. Joan olhou para Mar. Não havia temor nos seus olhos, nem sequer compaixão, apenas... Virou-se tão depressa

quanto pôde para alcançar a porta, mas o rapazinho fechou-a violentamente e encarou-o.

Por trás dele, o criado estendeu a gadanha e rodeou com ela o pescoço do frade. Desta vez, o gume afiado da alfaio pressionou o nó da garganta de Joan, que ficou muito quieto. O rapazinho já não o olhava com temor. O seu rosto reflectia os sentimentos dos que estavam atrás dele.

— Que... Que vais fazer, Mar? — Quando falou, a gadanha produziu-lhe um corte no pescoço.

Mar ficou por uns momentos em silêncio. Joan conseguia ouvir-lhe a respiração.

— Fecha-o na torre — mandou.

Mar não tinha voltado a entrar na torre desde o dia em que vira como a host de Barcelona se preparava para o assalto, primeiro, e depois como estalava em vivas. Quando o marido caíra em Catalayud, encerrara-a.

 

A viúva e as suas duas filhas atravessaram a Praça da Liana até à hospedaria do Estanyer, um edifício de pedra, de dois andares, que no piso de baixo tinha a cozinha e a sala de jantar dos hóspedes, e em cima tinha os quartos. Foram recebidas pelo dono da hospedaria, com o moço. Aledis deu uma piscadela de olho ao rapaz, ao ver que ele a olhava, aparvalhado. «Para onde estás a olhar?», gritou o estalajadeiro antes de lhe dar uma palmada no pescoço. O jovem saiu a correr para as traseiras da casa. Teresa e Eulália aperceberam-se da piscadela de olho e sorriram em conluio.

— Eu é que vou ter de vos dar uma palmada a vocês duas — sussurrou-lhes Aledis, aproveitando o facto de o estalajadeiro se ter virado por um momento. — Querem portar-se como deve ser e pararem de se coçar? A próxima que se torne a coçar...

— Não se consegue andar com estas tiras de esparto...

-— Silêncio — mandou Aledis quando o estalajadeiro voltou a prestar-lhes atenção.

Dispunha de um quarto em que poderiam dormir as três, embora só houvesse duas enxergas.

— Não se preocupe, bom homem — disse-lhe Aledis. As minhas filhas estão acostumadas a partilhar o leito.

— Repararam como o dono olhou para nós quando lhe disseste que dormíamos juntas? — perguntou Teresa quando já estavam no quarto.

Duas enxergas de palha e uma pequena arca sobre a qual descansava uma lamparina de azeite faziam, com esforço o papel de mobiliário.

— Já se estava a ver metido entre nós duas — concordou Eulália, rindo.

— E isso sem vocês mostrarem os vossos encantos, já vos disse — interveio Aledis.

— Poderíamos trabalhar assim. Tendo em conta o resultado...

— Só funciona uma vez — afirmou Aledis. — Umas quantas vezes, no máximo. Eles gostam da inocência, da virgindade. A partir do momento em que a conseguem... Teríamos de andar de lugar em lugar, enganando as pessoas, e não poderíamos cobrar...

— Não haveria dinheiro suficiente em toda a Catalunha que me fizesse andar com estas faixas no peito e com estas... — Teresa começou a coçar-se desde as coxas até ao peito.

— Não te coces!

— Agora ninguém nos vê — defendeu-se a rapariga.

— Mas quanto mais te coçares mais te fará comichão.

— E a piscadela de olho ao moço? — perguntou Eulália. Aledis olhou para elas.

— Isso não é assunto vosso.

— E cobras-lhe? — interveio Teresa.

Aledis recordou a expressão do rapaz quando nem sequer tivera tempo de baixar os calções, e depois a torpe violência com que montara sobre ela. Gostava da inocência, da virgindade...

— Alguma coisa consegui... — respondeu sorrindo.

Esperaram no quarto até à hora de jantar. Então, desceram e sentaram-se em redor de uma mesa tosca de madeira sem polimento. Daí a pouco, apareceram Jaume de Bellera e Genís Puig. Assim que se sentaram à sua mesa, do outro lado da sala, não pararam de olhar para as raparigas. Não havia mais ninguém na sala de jantar da hospedaria. Aledis chamou a atenção das duas raparigas, e ambas se benzeram antes de começarem a comer as malgas de sopa que o estalajadeiro serviu.

— Vinho? Só para mim — disse-lhe Aledis. — As minhas filhas não bebem.

— Uma jarra de vinho atrás de outra... Desde que o nosso pai morreu... — desculpou-a Teresa, dirigindo-se ao estalajadeiro.

— Para se refazer da dor... — rematou Eulália.

— Escutem, raparigas — sussurrou-lhes Aledis —, já são três jarros de vinho, e a verdade é que me começa a fazer efeito. Pois bem, daqui a nada, deixarei cair a cabeça sobre a mesa e começarei a ressonar. A partir daí, já sabem o que têm a fazer. Temos de saber por que razão detiveram Francesca e o que pretendem fazer com ela.

Depois de se deixar cair sobre a mesa, com a cabeça ente as mãos, Aledis dispôs-se a escutar.

— Vinde aqui — ecoou na sala. Silêncio. — Se está bêbeda... — ouviu-se ao fim de algum tempo.

—- Não vos faremos nada — disse um deles. — Como e que vos íamos fazer alguma coisa se estamos numa hospedaria? Está ali o dono da casa.

Aledis pensou no estalajadeiro: desde que lhe deixassem tocar em alguma coisa...

— Não se preocupem; somos cavaleiros...

Por fim, as jovens cederam e Aledis ouvíu-as levantarem-se da mesa.

— Não se te ouve a ressonar — sussurrou-lhe Teresa. Aledis permitiu-se um sorriso.

— Um castelo!

Aledis imaginou Teresa, com os seus impressionantes olhos verdes muito abertos, olhando directamente para o senhor de Bellera e permitindo que este desfrutasse da beleza dela.

— Ouviste, Eulália? Um castelo. É um nobre a sério, Nunca tínhamos falado com um nobre...

—Contai-nos as vossas batalhas — ouviu Eulália a incitá-los. — Conheceis o rei Pedro? Já falastes com ele?

— Quem mais conheceis? — juntou-se Teresa.

As duas concentraram-se no senhor de Bellera. Aledis esteve tentada a abrir um pouco os olhos, apenas o suficiente para poder observar... Mas não podia. As suas raparigas saberiam fazer tudo bem.

O castelo, o rei, as Cortes... Tinham participado nas Coites? A guerra... Uns gritinhos de terror quando Genís Puig. sem castelo, nem rei, nem Cortes, reclamou protagonismo exagerando as suas batalhas... E vinho, muito vinho.

— Que faz um nobre como vós nesta cidade, nesta hospedaria?

— Será que esperais alguém importante? — ouviu Aledis que perguntava Teresa.

— Trouxemos uma bruxa — saltou Genís Puig.

As raparigas só faziam perguntas ao senhor de Bellera. Teresa viu como o nobre reprovava com o olhar o seu companheiro. Aquele era o momento certo.

- Uma bruxa! — exclamou Teresa, lançando-se sobre Jaume de Bellera e agarrando-lhe as mãos. — Em Tarragona vimos queimarem uma. Morreu a gritar enquanto o fogo lhe subia pelas pernas e lhe queimava o peito e...

Teresa olhou para o tecto como se estivesse a seguir o rumo das chamas; de seguida, levou as mãos ao peito, mas após alguns segundos regressou à realidade e mostrou-se perturbada diante de um nobre cujo rosto já só demonstrava desejo.

Sem soltar as mãos da jovem, Jaume de Bellera levantou-se.

— Vem comigo — foi mais uma ordem que um pedido, e Teresa deixou-se arrastar.

Genís Puig viu-os irem-se embora.

— E nós? — disse a Eulália, pondo bruscamente uma das mãos na perna da rapariga. Eulália não fez nenhum gesto para a afastar.

— Primeiro, quero saber tudo acerca da bruxa. Isso excita-me...

O cavaleiro deslizou a mão até à coxa da rapariga enquanto iniciava a sua exposição. Aledis esteve quase a levantar a cabeça e estragar tudo, quando ouviu o nome de Arnau. «A bruxa é mãe dele», ouviu Genís Puig a dizer. Vingança,

vingança, vingança...

— Vamos agora? — perguntou Genís Puig quando terminou as suas explicações.

Aledis ouviu o silêncio de Eulália.

— Não sei... — respondeu a rapariga.

Genís Puig levantou-se violentamente e esbofeteou Eulália.

— Deixa-te de hesitações e vem!

— Vamos — cedeu ela.

Quando se viu só na sala, Aledis teve dificuldade em se endireitar. Levou as mãos à nuca e esfregou-a. Iam confrontar Arnau e Francesca, o demónio e a bruxa, como lhes tinha chamado Puig.

— Mais depressa me mataria do que deixaria que Arnau soubesse que sou sua mãe — dissera-lhe Francesca nas poucas conversas que tinham tido depois do discurso de Arnau na planície de Montbui.

— Ele é um homem respeitável — acrescentara antes que Aledis pudesse contestar — e eu uma vulgar meretriz; além disso... nunca conseguiria explicar-lhe os motivos de muitas coisas; por que razão não fui atrás do pai dele, por que razão o abandonei à morte...

Aledis baixara os olhos.

— Não sei o que o pai lhe contou sobre mim — continuara Francesca —, mas fosse o que fosse, já não tem remédio. O tempo traz o esquecimento, até do amor de uma mãe. Quando penso nele, agrada-me recordá-lo em cima daquela plataforma, desafiando os nobres; não quero que tenha de descer dali por minha causa. É melhor deixar as coisas assim, Aledis, e tu és a única pessoa no mundo que sabe isto; confio em que nem sequer quando eu morrer revelarás o meu segredo. Promete-me isso, Aledis. Mas agora, de que ia servir essa promessa?

 

Quando Esteve voltou a subir à torre, já não levava a gadanha.

- A senhora diz que ponhas isto nos olhos — disse Joan, estendendo-lhe um trapo.

- Mas que julgas tu? — exclamou Joan, dando um pontapé no pedaço de tecido.

O interior da torre era pequeno, com não mais de três passos em qualquer direcção; com um só passo, Esteve colocou-se à frente dele e esbofeteou-o duas vezes, uma em cada face.

— A senhora mandou que tapes os olhos.

— Sou um inquisidor!

Desta vez, a bofetada de Esteve lançou-o contra a parede da torre. Joan ficou caído aos pés dele.

— Põe isso — Esteve levantou-o, agarrando-o com uma só mão. — Põe isso — repetiu quando Joan já estava de pé.

— Pensas que usando a violência consegues vergar um inquisidor? Nem imaginas...

Esteve não o deixou terminar. Primeiro, bateu-lhe na cara, com o punho fechado. Joan foi disparado de novo para trás e o criado começou a assestar-lhe pontapés, no ventre, no estômago, no peito, na cara...

Joan enrolou-se como um novelo por causa da dor. Esteve voltou a pô-lo de pé com uma mão.

— A senhora diz que ponhas isso.

Sangrava da boca. As pernas fraquejavam-lhe. Quando o criado o soltou, Joan tentou manter-se de pé, mas uma dor intensa num joelho fê-lo dobrar-se e cair para cima de Esteve, agarrando-se aos braços dele. O criado empurrou-o para o chão.

— Põe isso.

O trapo estava perto dele. Joan notou que se tinha urinado e que o hábito se lhe colava às pernas.

Pegou no trapo e atou-o sobre os olhos.

Ouviu o criado a fechar a porta e a descer a escada silêncio. Uma eternidade. Depois, várias pessoas subir Joan ergueu-se, tacteando a parede. A porta abriu-se traziam móveis... talvez cadeiras?

Joan manteve-se em silêncio.

— A Inquisição nunca venda os olhos aos seus... detidos — disse por fim. Talvez se a pudesse enfrentar...

— Certo — ouviu Mar dizer-lhe. — Só lhes tapam a alma, a dignidade, a honra. Sei que pecaste — repetiu.

— Não aceito essa argúcia.

Mar fez um sinal a Esteve. O criado aproximou-se de Joan e deu-lhe um murro no estômago. O frade dobrou-se ao meio, de boca aberta. Quando se conseguiu erguer, o silêncio voltou a reinar. O seu próprio arquejar impedia-o de ouvir a respiração dos presentes. Doíam-lhe as pernas e o peito, o rosto ardia-lhe. Ninguém disse nada. Uma joelhada na parte exterior da coxa atirou-o ao chão.

A dor regressou e Joan ficou encolhido em posição fetal.

De novo se fez silêncio.

Um soco nos rins obrigou-o a encurvar-se em sentido contrário.

— Que queres tu? — gritou Joan por entre as pontadas de dor.

Ninguém respondeu até que deixou de lhe doer. Então o criado levantou-o e tornou a pô-lo diante de Mar. Joan teve de fazer um esforço para se manter de pé.

— Que queres...

— Sei que pecaste.

Até onde seria ela capaz de ir? Até matá-lo à paulada. Seria capaz de o matar? Pecara e, no entanto... que autoridade tinha Mar para o julgar? Um tremor percorreu-lhe o corpo todo e esteve a ponto de o deitar de novo ao chão.

- Já me condenaste — conseguiu dizer Joan. — Para que queres julgar-me?

Silêncio. Escuridão.

- Diz-me, mulher! Para que queres tu julgar-me?

- Tens razão — ouviu por fim. —Já te condenei, mas lembra-te que que foste tu quem confessou a tua culpa. Mesmo aí, no sítio onde estás, ele roubou-me a minha virgindade aí mesmo, violou-me uma e outra vez... Enforca-o e desfaz-te do cadáver — acrescentou Mar, dirigindo-se a Esteve. Os passos de Mar começaram a afastar-se escada abaixo, Joan notou como Esteve lhe atava as mãos atrás das costas. Nem sequer conseguia mexer-se, nenhum músculo do seu corpo respondia. O criado levantou-o para o colocar em pé sobre um tamborete, em que Mar tinha estado sentada. Depois, ouviu-se o ruído de uma corda que era lançada contra as vigas de madeira da torre. Esteve não acertou, e a corda caiu com estrondo. Joan voltou a urinar-se e defecou. Tinha acorda em volta do pescoço.

— Pequei! — gritou com as forças que lhe restavam.

Mar ouviu o grito, ao fundo das escadas.

Por fim.

Mar subiu à torre, seguida pelo rapazinho.

— Agora, escuto-te — disse a Joan.

Ao raiar do dia, Mar aprontou-se para partir para Barcelona. Vestida nas suas melhores roupas, adornada com as poucas jóias que possuía, com o cabelo limpo e solto, deixou que Esteve a ajudasse a subir para uma mula e açoitou o animal.

— Cuida da casa — disse ao criado antes que a azémola começasse a andar. — E tu, ajuda o teu pai.

Esteve empurrou Joan, atrás da mula. — Cumpre, frade — disse-lhe. Cabisbaixo, Joan começou a arrastar os pés atrás de Mar agora, que se passaria? Nessa mesma noite, quando lhe tinham retirado o trapo que lhe tapava os olhos, Joan vira-se diante de Mar, iluminada pela luz tremeluzente das tochas que ardiam atrás dela na parede circular da torre. Então, cuspira-lhe na cara.

— Não mereces o perdão... Mas Arnau pode precisar de ti — dissera-lhe Mar, depois. — Só isso te salva de te matar com as minhas próprias mãos aqui mesmo.

Os pequenos cascos pontiagudos da mula soavam suaves no terreno. Joan seguia aquele trote compassado, com os olhos fixos nos seus próprios pés. Confessara tudo: desde as suas conversas com Elionor até ao ódio com que se dedicara à Inquisição. Fora então que Mar lhe retirara a venda e lhe cuspira na cara.

A mula continuava a andar, dócil, em direcção a Barcelona. Joan sentiu o cheiro do mar, que, à sua esquerda, se viera juntar à sua viagem.

 

0 sol já aquecia quando Aledis saiu da hospedaria do Estanyer e se misturou com as pessoas que percorriam a Praça da Liana. Barcelona já acordara. Algumas mulheres, apetrechadas com baldes, panelas e botijas, faziam fila em frente ao bocal do poço de la Cadena, perto da hospedaria, enquanto outras se amontoavam diante do talho da praça, no extremo oposto. Todas falavam aos gritos e riam. Aledis queria ter saído antes, mas disfarçar-se de viúva com a duvidosa ajuda de duas raparigas que não paravam de lhe perguntar o que iria acontecer a partir dali, o que ia ser de Francesca, e se a queimariam na fogueira, como pretendiam os cavaleiros, atrasara-a. Pelo menos, ninguém reparava nela enquanto andava pela Praça do Blat. Aledis sentiu-se estranha; sempre chamara a atenção dos homens e o desprezo das mulheres, mas agora, com o calor colado à sua roupa preta, olhava para um lado e para o outro e ninguém lhe dava sequer um olhar furtivo.

O rumor da Praça do Blat, ali próxima, anunciou-lhe mais gente, sol e calor. Transpirava, e os seios começavam a lutar contra as faixas de pano que os cingiam. Aledis virou a direita logo antes de chegar ao grande mercado de Barcelona, procurando a sombra da Rua dos Semolers, e subiu por esta até à Praça do Oli, onde as pessoas se amontoavam em busca do melhor azeite, ou compravam pão na loja que abria para a praça. Depois de a atravessar, chegou à frente j Sant Joan, onde as mulheres que faziam fila também não repararam na viúva transpirada que passava por elas.

De Sant Joan, virando à esquerda, Aledis chegou à catedral e ao palácio do bispo. No dia anterior tinham-na expulsado dali, chamando-lhe bruxa. Reconhecê-la-iam agora? - O rapaz da hospedaria... Aledis sorriu enquanto procurava um acesso lateral; o rapaz tinha tido a oportunidade de se fixar nela melhor do que os soldados da Inquisição.

— Procuro o aguazil das masmorras. Tenho um recado para ele — disse, respondendo às perguntas do soldado que guardava a porta. Este deu-lhe passagem e indicou-lhe o caminho das masmorras. A medida que descia as escadas, a luz e as cores desapareceram.

Ao fim das escadas, viu-se numa antecâmara rectangular vazia, com o chão de terra e iluminada por tochas; num dos lados, o aguazil descansava as suas abundantes carnes sobre um tamborete, com as costas contra a parede; do outro lado, abria-se um corredor escuro.

O homem examinou-a em silêncio enquanto ela se aproximava.

Aledis respirou fundo.

— Queria ver a idosa que encarceraram ontem — e fez tilintar uma bolsa de moedas.

Sem sequer se mexer, sem lhe responder, o aguazil cuspiu para muito perto dos pés dela e fez um gesto com a mão. Aledis deu um passo atrás.

— Não — respondeu o homem.

Aledis abriu a bolsa. Os olhos do aguazil seguiram o brilho das moedas que caíam na mão de Aledis. As ordens eram estritas: ninguém podia entrar nas masmorras sem autorização expressa de Eimeric, e ele não queria ter de enfrentar o inquisidor-mor. Conhecia bem os arrebatamentos de ira dele... e os procedimentos que usava contra quem lhe desobedecesse. Mas o dinheiro que aquela mulher lhe oferecia… Além do mais, o oficial não lhe dissera que o que o inquisidor-mor não queria era que alguém tivesse acesso ao cambista? Aquela mulher não queria ver o cambista, mas falar com a bruxa.

— De acordo — consentiu.

 

Nicolau bateu com força na mesa.

— Quem pensa que é esse desavergonhado?

O jovem frade que lhe tinha levado a notícia deu um passo atrás. O seu irmão, mercador de vinhos, comentara nessa mesma noite, enquanto jantavam em sua casa, rindo, por entre o alvoroço que os cinco filhos faziam:

— O melhor negócio que faço em muitos anos — dissera-lhe.

— Pelos vistos, o irmão de Arnau, o frade, deu ordem para vender abaixo de custo as comandas, para conseguir dinheiro vivo, e por minha fé que vai consegui-lo. O oficial de Arnau está a vender a metade do preço — depois, levantara o jarro de vinho e, sem parar de rir, brindara por Arnau.

Ao conhecer essa notícia, Nicolau emudecera, depois ruborizara-se e por fim rebentara. O jovem frade ouviu as ordens que Nicolau deu, aos gritos, ao seu oficial:

— Vai e, assim que dêem com frei Joan, façam-no vir aqui! Dá ordens à guarda!

Enquanto o irmão do mercador de vinhos saía do escritório, Nicolau abanou a cabeça. Que julgava aquele fradinho?

 

Por acaso pensava que podia enganar a Inquisição, esvaziando as arcas do irmão? Essa fortuna seria para o Santo Ofício... Toda! Eimeric cerrou os punhos até que o sangue deixou de lhe correr pelos nós dos dedos.

— Nem que tenha de o levar para a fogueira — rosnou para consigo.

— Francesca... — Aledis ajoelhou-se perto da idosa, que fez uma careta parecida com um sorriso. — Que te fizeram? Como estás? — A idosa não respondeu. Os lamentos dos restantes presos acompanharam o silêncio. — Francesca eles têm Arnau preso. Por isso te trouxeram para aqui.

— Já sei — Aledis sacudiu a cabeça, mas antes que pudesse perguntar, a idosa continuou: — Está ali.

Aledis virou a cabeça para o lado contrário da cela e vislumbrou uma figura de pé, atenta às duas.

— Como...

— Ouve-me — ecoou na masmorra —, tu, visitante da idosa. — Aledis olhou de novo para aquela figura. — Quero falar contigo. Sou Arnau Estanyol.

— Que se passa, Francesca?

— Desde que me prenderam aqui, tem estado a perguntar por que razão o aguazil lhe disse que sou a mãe dele, que ele se chama Arnau Estanyol e que foi detido pela Inquisição... Isso, sim, tem sido uma verdadeira tortura.

— E que lhe disseste tu?

— Nada.

— Ouve-me!

Desta vez, Aledis não se virou.

— A Inquisição quer demonstrar que Arnau é filho de uma bruxa — disse Aledis a Francesca.

Escuta-me, por favor.

Aledis notou como as mãos de Francesca se apertavam nos seus braços. A pressão da idosa juntou-se aos ecos da súplica de Arnau.

- Não vais... — Aledis pigarreou. — Não vais dizer-lhe nada?

- Ninguém tem de saber que Arnau é meu filho. Ouves-me, Aledis? Se nunca o admiti até agora, muito menos o vou fazer quando a Inquisição... Só tu sabes isto, rapariga - a voz da idosa tornou-se mais clara.

—Jaume de Bellera...

— Por favor! — ouviu-se de novo. Aledis virou-se para Arnau; as lágrimas impediam-na de o ver, mas esforçou-se por não as limpar.

— Só tu, Aledis — insistiu Francesca. — Jura-me que nunca o dirás a ninguém.

— Mas o senhor de Bellera...

— Ninguém pode provar isso. Jura-me, Aledis.

— Vão torturar-te.

— Mais do que a vida já me torturou? Mais do que me está a torturar o silêncio que vejo obrigada a guardar perante os rogos de Arnau? Jura-me.

Os olhos de Francesca brilharam na penumbra.

— Juro.

Aledis lançou-lhe os braços ao pescoço. Pela primeira vez em muitos anos, notou a fragilidade da anciã.

— Não... Não quero deixar-te aqui — disse-lhe, chorando-Que vai ser de ti?

— Não te preocupes por mim — sussurrou-lhe a idosa ao ouvido. — Aguentarei até os convencer de que Arnau não é meu filho. — Francesca teve de tomar ar antes prosseguir: — Um Bellera arruinou a minha vida; um filho dele jamais fará o mesmo com a de Arnau.

Aledis beijou Francesca e ficou por um instante com lábios colados à cara dela. Depois, levantou-se.

— Ouve-me!

Aledis olhou para a figura.

— Não vás lá — pediu-lhe Francesca, do chão.

— Aproxima-te! Peço-te!

— Não suportarias, Aledis. Juraste-me.

Arnau e Aledis olharam-se no escuro. Apenas duas silhuetas. As lágrimas de Aledis brilharam enquanto lhe deslizavam pela cara.

Arnau deixou-se cair quando viu que a desconhecida se dirigia para a porta da masmorra.

Nessa mesma manhã, uma mulher montada numa mula entrou em Barcelona pela Porta de San Daniel. Atrás dela, um dominicano que nem sequer olhou para os soldados seguia arrastando os pés. Percorreram a cidade até ao palácio do bispo, sem falarem, o frade sempre atrás da mula.

— Frei Joan? — perguntou-lhe um dos soldados que montavam guarda à porta. O dominicano levantou o rosto esmurrado para o soldado.

— Frei Joan? — perguntou de novo o soldado. Joan anuiu.

— O inquisidor-mor deu-nos ordens para vos levarmos à sua presença.

O soldado chamou a guarda e vários companheiros seus vieram buscar Joan.

A mulher não se apeou da mula.

 

Sahat irrompeu no armazém que o velho negociante tinha em Pisa, perto do porto, nas margens do Arno. Alguns oficiais e aprendizes tentaram saudá-lo, mas o mouro não ligou a ninguém. «Onde está o vosso amo?», perguntava a todos, sem parar de andar por entre as mercadorias que se empilhavam no grande edifício. Por fim, encontrou-o no outro extremo do armazém, inclinado sobre umas peças de tecido.

— Que se passa, Filippo?

0 velho comerciante endireitou-se com dificuldade e virou-se para Sahat.

— Ontem chegou um navio com destino a Marselha.

— Bem sei. Passa-se alguma coisa?

Filippo observou Sahat. Quantos anos teria? O certo era que já não era jovem. Como sempre, estava bem vestido, mas sem cair na ostentação de muitos que não eram tão ricos como ele. Que se teria passado entre Arnau e ele? Nunca lho tinha querido contar. Filippo recordou o escravo recém-chegado da Catalunha, a carta de liberdade, a ordem de Pagamento por parte de Arnau...

— Filippo!

O grito de Sahat fê-lo regressar ao presente por uns instantes; no entanto, voltou a perder-se nos seus pensamentos, e continuava a mostrar o ímpeto de um jovem cheio de ilusões. Empreendia sempre tudo com aquela decisão...

— Filippo, peço-te!

— Certo, certo, tens razão. Desculpa — o ancião aproximou-se dele e apoiou-se-lhe no braço. — Tens razão, tens, razão. Ajuda-me. Vamos para o meu escritório.

No mundo dos negócios de Pisa, eram poucas as pessoas em que Filippo Tescio se apoiava. Aquela amostra pública de confiança por parte do ancião podia abrir mais portas do que faria um milhar de florins de ouro. Desta vez, no entanto, Sahat deteve o lento avançar do rico comerciante.

— Filippo, por favor.

O ancião puxou-o suavemente, para que continuassem a caminhar.

— Notícias... Más notícias. Arnau — disse-lhe, dando-lhe tempo para se preparar. — foi detido pela Inquisição.

Sahat ficou em silêncio.

— Os motivos são bastante confusos — continuou Filippo.

— Os oficiais dele começaram a vender comandas e, pelos vistos, a situação dele... Mas isso é apenas um rumor, e suponho que mal-intencionado. Senta-te — incitou-o quando chegaram ao que o ancião chamava o seu escritório, e que era uma simples mesa armada sobre uns cavaletes, de onde controlava os três oficiais que em mesas semelhantes anotavam as operações em enormes livros de comércio, ao mesmo tempo que vigiava o constante tráfego do armazém.

Filippo suspirou ao sentar-se.

— Não é tudo — acrescentou. Sentado diante dele, Sahat não fez nenhum gesto. — Esta Páscoa, os barceloneses levantaram-se contra a judiaria. Acusaram-nos de terem profanado uma hóstia. Uma multa importante e três executados... — Filippo observou como o lábio inferior de Sahat começava a tremer. — Hasdai...

O ancião desviou o olhar de Sahat e permitiu-lhe alguns instantes de intimidade. Quando se voltou de novo para ele, viu que tinha os lábios fortemente apertados. Sahat inspirou fundo pelo nariz e levou as mãos à cara, para esfregar os olhos.

— Toma — disse-lhe Filippo, entregando-lhe uma carta. __ É de Jucef. Um navio que zarpou de Barcelona com destino a Alexandria deixou-a ao meu representante em Nápoles; o piloto do que vinha para Marselha entregou-ma. Jucef encarregou-se do negócio e conta aqui tudo o que se passou, embora pouco fale de Arnau.

Sahat pegou na carta, mas não a abriu.

— Hasdai executado e Arnau preso — disse. — E eu aqui...

— Reservei-te passagem para Marselha — disse-lhe Filippo. — Partirá amanhã ao amanhecer. Dali, não te será difícil chegares a Barcelona.

— Obrigado — ouviu-se Sahat dizer a si mesmo. Filippo ficou em silêncio.

— Vim aqui em busca das minhas origens — começou a contar-lhe Sahat —, em busca da família que julgava ter perdido. Sabes o que encontrei? — Filippo limitou-se a olhar para ele. — Quando me venderam, ainda menino, a minha mãe e mais cinco irmãos eram vivos. Só consegui dar com um deles... e também não posso garantir que o fosse. Era escravo de um descarregador do porto de Génova. Quando mo indicaram, não consegui reconhecer nele um irmão meu... Nem sequer me lembrava do nome dele. Arrastava urna perna e faltava-lhe o dedo mindinho da mão direita e as duas orelhas. Então, pensei que o amo dele devia ser uma pessoa muito cruel para o tratar assim, mas depois… — Sahat, fez uma pausa e olhou para o ancião. Não obteve resposta. — Comprei a liberdade dele e fiz que lhe entregassem uma boa quantia de dinheiro, sem lhe revelarem que era eu quem estava por detrás de tudo aquilo. Só lhe durou seis dias; seis dias em que esteve permanentemente bêbedo, delapidando no jogo e nas mulheres aquilo que para ele deveria ser uma fortuna. Voltou a vender-se como escravo ao seu antigo dono, a troco de cama e comida — Sahat fez um gesto de desprezo com a mão. — Isso foi a única coisa que encontrei aqui, um irmão bêbedo e esbanjador...

— Também encontraste alguns amigos — queixou-se Filippo.

— É verdade. Desculpa. Referia-me a...

— Eu sei a que te referias.

Os dois homens ficaram a olhar para os documentos que estavam sobre a mesa. O movimento do armazém despertou-lhes os sentidos.

— Sahat — disse por fim Filippo —, durante muitos anos fui correspondente de Hasdai, e agora, enquanto Deus me der vida, sê-lo-ei do seu filho. Depois, por vontade de Hasdai e instruções tuas, tornei-me também correspondente de Arnau. Durante todo esse tempo, fosse de comerciantes, de marinheiros ou de pilotos, sempre ouvi aqui elogios a Arnau; até aqui se comentou o que ele fez com os servos das suas terras! Que se passou entre vós? Se se tivessem zangado, ele não te teria premiado com a liberdade, e muito menos me teria mandado dar-te aquela quantia de dinheiro. Que foi que aconteceu para tu o abandonares e ele te beneficiar daquela maneira?

Sahat deixou que as suas recordações viajassem até perto de uma ladeira, próximo de Mataró, ao som de espadas e ba-lestras...

— Uma rapariga... Uma rapariga extraordinária...

— Ah!

— Não — exclamou o mouro. — Não é aquilo que pensas.

E, pela primeira vez em cinco anos, Sahat contou em voz alta aquilo que durante todo aquele tempo tinha guardado para si.

— Como te atreveste?! — O grito de Nicolau Eimeric ecoou pelos corredores do palácio. Nem sequer esperou que os soldados abandonassem o gabinete. O inquisidor-mor passeava pela sala gesticulando com os braços. — Como te atreves a pôr em perigo o património do Santo Ofício? — Nicolau virou-se bruscamente para Joan, que permanecia em pé no centro da sala. — Como ousaste mandar vender as comandas a baixo preço?

Joan não respondeu. Passara a noite acordado, maltratado e humilhado. Acabara de percorrer várias milhas atrás dos quartos traseiros de uma mula, e doía-lhe o corpo todo. Cheirava mal e o hábito, sujo e ressequido, arranhava-lhe a pele. Não comera nada desde o dia anterior e tinha sede. Não. Não pensava responder.

Nicolau aproximou-se dele por detrás.

— Que pretendes tu, frei Joan? — sussurrou-lhe ao ouvido.

— Talvez vender o património do teu irmão, para o esconder da Inquisição?

Nicolau permaneceu alguns instantes ao lado de Joan.

- Cheiras mal! – gritou afastando-se dele e voltando a gesticular com os braços. – Cheiras como um vulgar camponês — continuou a rosnar pela sala até que por fim se sentou. — A Inquisição apreendeu os livros de comércio do teu irmão; já não haverá mais vendas. — Joan não se mexeu — Proibi as visitas à masmorra; ou seja, nem sequer tentes vê-lo. Dentro de alguns dias, daremos início ao julgamento Joan continuou sem se mexer.

— Não me ouviste, frade? Daqui a poucos dias começarei a julgar o teu irmão.

Nicolau bateu com o punho na mesa. — Está bem. Vai-te daqui!

Joan arrastou as bainhas do hábito sujo pelo brilhante soalho do gabinete do inquisidor-mor.

Joan parou sob o lintel da porta para deixar que os seus olhos se acostumassem ao sol. Mar esperava-o, de pé em terra, com a rédea da mula na mão. Obrigara-a a vir da sua casa rural e agora... Como lhe iria dizer que o inquisidor tinha proibido as visitas a Arnau? Como poderia carregar também com a culpa dessa proibição?

— Pensas sair, frade? — ouviu atrás de si. Joan virou-se e deu com uma viúva lavada em lágrimas.

Olharam-se.

— Joan? — perguntou a mulher. Aqueles olhos castanhos, aquela cara…

- Joan? – voltou ela a insistir.- Joan, sou eu, Aledis. Lembras-te de mim?

nhos, aqui' ~aPergUnt°U * "^ A^ olhos casta-

- A filha do curtidor... — começou Joan a dizer.

- Que se passa, frade?

Mar aproximara-se da porta. Aledis viu que Joan se voltava para a recém-chegada. Depois, o frade olhou de novo ela e depois de novo para a mulher da mula.

- Uma amiga de infância — disse. — Aledis, apresento-te Mar. Mar, esta é Aledis.

As duas mulheres saudaram-se com um aceno de cabeça.

- Isto não é sítio para estar à conversa — a ordem do soldado obrigou os três a virarem-se. — Saiam da entrada.

- Viemos ver Arnau Estanyol — disparou Mar, elevando a voz, com a mula agarrada pela rédea.

O soldado olhou-a de alto a baixo antes de uma careta trocista aparecer na sua cara.

— O cambista? — perguntou.

— Sim — insistiu Mar.

— O inquisidor-mor proibiu as visitas ao cambista. — 0 soldado fez menção de empurrar Aledis e Joan.

— Porque proibiu ele as visitas? — perguntou Mar enquanto os outros dois começavam a afastar-se do palácio.

— Isso pergunta ao frade — respondeu o soldado, apontando para Joan.

Os três começaram a afastar-se.

— Devia ter-te matado ontem, frade.

Aledis viu como Joan baixava os olhos para o chão. Nem sequer respondera. Depois, observou a mulher da mula; seguia muito direita, segurando o animal com autoridade. Que se teria passado no dia anterior? Joan não escondia o rosto amassado e a sua acompanhante queria ver Arnau. Quem era aquela mulher? Arnau estava casado com a baronesa, a mulher que o acompanhara no palanque do castelo de Montbui, quando derrogara os maus usos...

— Daqui a poucos dias começará o julgamento de Arnau. Mar e Aledis pararam imediatamente. Joan avançou mais alguns passos, até que se deu conta de que as mulheres não o acompanhavam. Quando se virou para elas, viu que ambas se olhavam em silêncio. «Quem és tu?», pareciam perguntar uma à outra com o olhar.

— Duvido que este frade tenha tido infância. E muito menos amigas — disse Mar.

Aledis não a viu hesitar. Mar permanecia de pé, orgulhosa; os seus olhos jovens pareciam querer trespassá-la. Até a mula, atrás dela, estava muito quieta, com as orelhas espetadas e atentas.

— És muito directa — disse-lhe Aledis.

— A vida ensinou-me a sê-lo.

— Se há vinte e cinco anos o meu pai tivesse consentido, teria casado com Arnau.

— Se há cinco anos me tivessem tratado como uma pessoa e não como um animal — virou-se para Joan —, continuaria ao lado de Arnau — disse Mar.

O silêncio acompanhou uma nova ronda de olhares entre as duas mulheres. Ambas se divertiram com isso, avaliando-se uma à outra.

— Há vinte e cinco anos que não vejo Arnau — confessou por fim Aledis. «Não pretendo competir contigo», tentou dizer-lhe numa linguagem que só duas mulheres podem compreender.

Mar mudou o peso de um pé para o outro e afrouxou a pressão sobre a rédea da mula. Baixou os olhos e o seu olhar deixou de trespassar Aledis.

— Vivo fora de Barcelona; tens onde me acolher? — perguntou Mar, depois de alguns instantes.

- Eu também vivo fora. Estou alojada... com as minhas filhas, na hospedaria do Estanyer. Mas poderíamos acomodar-nos — acrescentou quando a viu hesitar. — E este? — Aledis apontou para Joan com um gesto da cabeça.

As duas observaram-no, parado ainda no mesmo sítio, com a cara amassada e o hábito, sujo e roto, pendendo dos seus ombros caídos.

— Tem muito que explicar — disse Mar — e poderemos necessitar dele. Que durma com a mula.

Joan esperou que as mulheres se voltassem a pôr a caminho e seguiu-as.

«E tu, porque estás aqui?», vai perguntar-me. «Que fazias no palácio do bispo?» Aledis olhou de novo para a sua nova acompanhante; voltava a caminhar direita, puxando a mula, sem se afastar quando alguém se punha no seu caminho. Que se teria passado entre Mar e Joan? O frade parecia completamente submisso... Como podia um dominicano admitir que uma mulher o mandasse dormir com uma mula? Atravessaram a Praça do Blat. Já tinha reconhecido que conhecia Arnau, mas não tinha dito que o vira nas masmorras, suplicando-lhe que se aproximasse. «E Francesca? Que hei-de dizer-lhes de Francesca? Que é minha mãe? Não. Joan conhe-ceu-a e sabe que não se chamava Francesca. A mãe do meu defunto marido? Mas que dirão quando a virem implicada no processo contra Arnau? Eu teria de saber. E quando se souber que é uma mulher pública? Como é que uma mulher pública vai ser minha sogra?» É melhor não saber nada. Mas então, que estava ela a fazer no palácio do bispo?

— Oh - respondeu Aledis à pergunta de Mar- fui levar uma encomenda do mestre curtidor, do meu falecido marido. Como sabia que íamos passar por Barcelona…

Eulália e Teresa olharam-na, sem pararem de comer das suas escudelas. Tinham chegado à hospedaria e tinham conseguido que o estalajadeiro colocasse um terceiro colchão no quarto de Aledis e suas filhas. Joan anuiu quando Mar disse que ele dormiria no estábulo, com a mula.

— Ouçam o que ouvirem — dissera Aledis às raparigas —, não digam nada. Procurem não responder a nenhuma pergunta e, acima de tudo, não conhecemos nenhuma Francesca. Os cinco sentaram-se a comer.

— Bem, frade — voltou a intervir Mar. — Porque proibiu o inquisidor-mor as visitas a Arnau? Joan não tocara na comida.

Os sorrisos desapareceram quando reconhe-ceraffl o hábito negro de Joan. O frade continuou a olhar pa-fa eles e os cavaleiros sentaram-se em silêncio à mesa, com 0S olhos nos pratos que o estalajadeiro acabara de lhes servir r- Porque vão julgar Arnau? - perguntou Aledis quan-I do Joan voltou a atenção de novo para elas.

Precisava de dinheiro para pagar ao aguazil — respondeu com uma voz cansada —, e como na mesa de Arnau não havia dinheiro vivo, dei ordens para venderem algumas comandas. Eimeric julgou que eu estava a tentar esvaziar cofres de Arnau e que então a Inquisição...

Nesse momento entraram na hospedaria o senhor de Bellera e Genís Puig. Nas suas caras desenhou-se um enorme sorriso ao verem as duas raparigas.

—Joan — disse-lhe Aledis —, esses dois nobres estiveram ontem a molestar as minhas filhas e dá-me a impressão de que as intenções deles... Poderias ajudar-me a que não voltem a molestá-las?

Joan virou-se para os dois homens, enquanto estes, de pé, se deleitavam a olhar para Teresa e Eulália e a recordar a noite anterior. Os sorrisos desapareceram quando reconheceram o hábito negro de Joan. O frade continuou a olhar para eles e os cavaleiros sentaram-se em silêncio à mesa, com os olhos nos pratos que o estalajadeiro acabara de lhes servir.

- Porque vão julgar Arnau? – perguntou Aledis quando Joan voltou a atenção de novo para elas.

Sahat observou o barco marselhês enquanto a tripulação fazia os últimos preparativos para zarpar: uma sólida galera de um só mastro, com um leme de popa e dois laterais, cento e vinte remadores a bordo e uma capacidade de cerca de trezentos botes.

— É rápida e muito segura — comentou Filippo. — Já teve vários encontros com piratas e conseguiu sempre escapar. Em três ou quatro dias estarás em Marselha — Sahat anuiu. — Daí, não te será difícil embarcar num navio de cabotagem e chegar a Barcelona.

Filippo agarrava-se ao braço de Sahat com uma mão enquanto com a bengala apontava para a galera. Funcionários, comerciantes e trabalhadores do porto saudavam-no com respeito ao passar perto dele; depois, faziam o mesmo para com Sahat, o mouro em quem o comerciante se apoiava.

— Está bom tempo — acrescentou Filippo apontando a bengala para o céu. — Não terás problemas. O piloto da galera aproximou-se da borda e fez um sinal na direcção de Filippo. Sahat notou como o ancião lhe apertava o braço.

— Dá-me a impressão de que não voltarei a ver-te — disse o ancião. Sahat virou a cara para ele, mas Filippo agarrou-o ainda com mais força. — Já sou muito velho, Sahat.

Os dois homens abraçaram-se junto da galera.      

— Trata dos meus assuntos — disse-lhe Sahat, separando-se dele.

— Assim farei, e quando não puder — acrescentou com a voz trémula —, assim farão os meus filhos. Depois, estejas onde estiveres, terás de ajudá-los tu.

— Assim farei — prometeu por sua vez Sahat. Filippo puxou Sahat para si e beijou-o nos lábios diante da multidão que esperava a partida da galera, atenta ao último passageiro; um murmúrio elevou-se perante aquela demonstração de carinho por parte de Filippo Tescio. — Vai — disse-lhe o ancião.

Sahat deu ordens aos escravos que traziam a sua bagagem para que subissem antes dele, e depois subiu. Quando chegou à amurada, Filippo já tinha desaparecido.

O mar estava calmo. O vento não soprava e a galera avançava ao ritmo do esforço dos seus cento e vinte remadores.

«Não tive a valentia suficiente», dizia Jucef na sua carta, depois de explicar a situação provocada pelo roubo da hóstia, «para fugir da judiaria e acompanhar o meu pai nos seus últimos momentos. Confio em que ele compreenderá, esteja onde estiver agora.»

Sahat, na proa da galera, levantou o olhar para o horizonte. «Bastante valentia tens tu e os teus para viverem numa cidade de cristãos», disse para consigo. Tinha já lido e relido a carta:

Raquel não queria fugir, mas convencemo-la.

Sahat saltou o resto da carta, até ao fim:

Ontem, a Inquisição deteve Arnau e hoje consegui saber, por intermédio de um judeu que está no palácio do bispo, que foi a mulher dele, Elionor, quem o denunciou como judaizante. E como a Inquisição precisa de duas testemunhas para dar crédito à denúncia, Elionor mandou chamar ao Santo Oficio vários sacerdotes de Santa Maria à la Mar que, pelos vistos, presenciaram uma discussão entre o casal; ao que parece, as palavras que Arnau disse poderiam ser consideradas sacrílegas e dão suficiente aval à denúncia de Elionor.

O assunto, continuava Jucef, era bastante complexo. Por um lado, Arnau era muito rico e esse património interessava à Inquisição, e por outro, encontrava-se nas mãos de um homem como Nicolau Eimeric. Sahat recordava-se do soberbo inquisidor-mor, que assumira o cargo seis anos antes de ele ter abandonado o principado e que tivera a oportunidade de ver em algumas celebrações religiosas às quais tivera de acompanhar Arnau.

Desde que te foste embora, Eimeric acumulou cada vez mais poder, sem medo sequer de enfrentar publicamente o próprio soberano. Há anos que o rei não paga as rendas ao Papa, pelo que Urbano IV ofereceu a Sardenha como feudo ao senhor de Arbórea, o cabecilha da sublevação contra os Catalães. Depois da longa guerra contra Castela, voltam a suble-var-se os nobres corsos. Tudo isto foi aproveitado por Eimeric, que depende directamente do Papa, para enfrentar sem rebuços o próprio rei. Por um lado, sustenta que a Inquisição deveria ampliar a suas competências aos judeus e às outras confissões não cristãs. Deus nos livre disso! Ao que o rei, como proprietário das judiarias da Catalunha, se opõe radicalmente. No entanto, Eimeric continua insistindo junto do Papa, que não está muito disposto a defender os interesses do nosso monarca.

Mas, para além de querer intervir nas judiarias, contra os interesses do rei, Eimeric atreveu-se a acusar de heréticas as obras do teólogo catalão Ramon Elul. Desde há mais de meio século, as doutrinas de Elul têm sido respeitadas pela Igreja catalã, e o rei pôs a trabalhar juristas e pensadares na sua defesa, porque tomou o assunto como uma ofensa pessoal por parte, do inquisidor-mor.

Estando assim as coisas, consta-me que Eimeric tentará transformar o processo contra Arnau, barão catalão e cônsul de la Mar, num novo confronto com o rei, para consolidar mais a sua posição e obter uma fortuna importante para a Inquisição. Parece que Eimeric já escreveu ao Papa Urbano a dizer-lhe que reterá a parte do rei dos bens de Arnau, para fazer face às rendas que Pedro tem em divida; desta forma, o inquisidor-mor vinga-se do rei num nobre catalão e consolida a sua posição perante o Papa.

Creio, por outro lado, que a situação de Arnau é muito delicada, senão mesmo desesperada; o irmão dele, Joan, é inquisidor, e bastante cruel na verdade; a mulher dele foi quem o denunciou; o meu pai morreu, e nós, dada a acusação de judaizante e para seu próprio bem, não podemos demonstrar o nosso apreço para com ele. Só lhe restas tu.

Assim terminava Jucef: «Só lhe restas tu.» Sahat guardou a carta no cofrezinho em que guardava a correspondência que durante cinco anos mantivera com Hasdai. «Só lhe restas tu.» Com o pequeno cofre nas mãos, de pé na proa, voltou a perscrutar o horizonte. «Remem, marselheses... Só lhe resto eu.»

 

Eulália e Teresa retiraram-se a um sinal de Aledis. Joan fizera-o pouco antes ; a sua despedida não tivera resposta por parte de Mar.

- Porque o tratas assim? – perguntou Aledis quando ficaram a sós na sala da hospedaria. Só se ouvia o crepitar da lenha quase consumida. Mar guardou silêncio. – No fim de contas, é o irmão dele…

- Esse frade não merece nada melhor.

Mar não levantou os olhos, fixos na mesa, de onde tentava arrancar uma farpa que sobressaía. E bonita, pensou Aledis, O cabelo, brilhante e ondulado, caía-lhe pelos ombros, tinha as feições bem definidas: lábios bem delineados, maçãs do rosto altas, queixo marcado e nariz direito. Aledis surpreendeu-se quando viu os dentes, brancos e perfeitos, e durante o trajecto para a hospedaria não pudera deixar de notar o corpo dela, firme e bem constituída. No entanto, as mãos eram as de uma pessoa que tinha trabalhado no campo: ásperas e calejadas.

Mar deixou a farpa e dirigiu a atenção para Aledis, que aguentou o olhar dela em silêncio.

— É uma longa história — confessou.

— Se desejares, tenho tempo — disse Aledis.

Mar respondeu com uma careta e deixou passar alguns segundos. Porque não? Havia anos que não falava com uma mulher; havia anos que vivia fechada em si mesma, dedicada a trabalhar numas terras ingratas, tentando que as espigas e o sol compreendessem a sua desgraça e se apiedassem dela. Porque não? Parecia uma boa mulher.

— Os meus pais morreram na grande peste, quando eu era ainda criança...

Não regateou pormenores. Aledis tremeu quando Mar lhe falou do amor que sentira no terreiro do castelo de Montbui. «Como eu te compreendo», esteve quase a dizer-lhe. «Também eu...» Arnau, Arnau, Arnau; de cada cinco palavras, uma era Arnau. Aledis recordou a brisa do mar acariciando o seu corpo jovem, traindo a sua inocência, aumentando o seu desejo. Mar relatou-lhe a história do seu sequestro e do seu casamento; a confissão fê-la começar a chorar.

— Obrigada — disse Mar quando a sua garganta lhn permitiu. Aledis agarrou-lhe na mão.

— Tens filhos? — perguntou-lhe quando se refez.

— Tive um — Aledis apertou-lhe a mão. — Morreu há quatro anos, recém-nascido, na epidemia de peste que ceifou as crianças. O pai não chegou a conhecê-lo; nem sequer chegou a saber que estava grávida. Morreu em Catalayud defendendo um rei que, em vez de capitanear os seus exércitos zarpava de Valência com destino ao Rossilhão para afastar a família de um novo surto de peste — Mar acompanhou as palavras com um sorriso de desdém.

— E que tem tudo isso a ver com Joan? — perguntou Aledis.

— Ele sabia que eu amava Arnau... e que ele me correspondia.

Aledis bateu na mesa quando acabou de ouvir a história. A noite já ia avançada, e a pancada ecoou na hospedaria.

— Pensas denunciá-los?

— Arnau sempre protegeu esse frade. É irmão dele, e ama-o — Aledis recordou os dois rapazes que dormiam no piso inferior da casa de Pere e Mariona: Arnau a carregar pedras, Joan a estudar. — Não queria fazer mal a Arnau e, no entanto, agora... agora não posso vê-lo, nem sei se ele sabe que estou aqui e que continuo a amá-lo... Vão julgá-lo. Talvez... Talvez o condenem a...

Mar voltou a chorar desconsoladamente.

— Não penses que vou romper o juramento que te fiz, mas tenho de falar com ele — disse-lhe quando já se estava a despedir. Francesca tentou examinar-lhe o rosto na penumbra. — Confia em mim — acrescentou Aledis.

Arnau tinha-se levantado no momento em que Aledis voltou a entrar nas masmorras, mas não a chamara. Limitara-se a observar em silêncio como as duas mulheres cochichavam. Onde estava Joan? Havia dois dias que não vinha visitá-lo, e tinha muitas coisas para lhe perguntar. Queria que ele averiguasse quem era aquela idosa. Que fazia ela ali? Porque lhe dissera o aguazil que era a sua mãe? Que se passava com o processo? E com os negócios? E Mar? Onde estava Mar? Alguma coisa estava errada. Desde a última vez que Joan o visitara, o aguazil voltara a tratá-lo como a outro qualquer; a comida era de novo apenas uma côdea de pão duro e água podre, e o balde tinha desaparecido.

Arnau viu a mulher separar-se da idosa. Com as costas apoiadas na parede, começou a deixar-se cair, mas... mas ela dirigia-se para ele.

No escuro, Arnau viu que ela se aproximava, e levantou--se de novo. A mulher parou a alguns passos dele, afastada dos ténues raios de luz que iluminavam a masmorra.

Arnau semicerrou as pálpebras para tentar vê-la com mais clareza.

— Proibiram-te as visitas — ouviu a mulher dizer-lhe.

— Quem és tu? — perguntou Arnau. — Como sabes isso?

— Não temos tempo, Ar... Arnau — Chamara-lhe Arnau! Se o aguazil se apercebesse...

— Quem és tu?

Porque não dizer-lho? Porque não abraçá-lo e consolá-lo? Não seria capaz. As palavras de Francesca ecoavam nos Seus ouvidos. Aledis virou-se para ela e olhou de novo para Arnau. A brisa do mar, a praia, a juventude, a longa viagem

até Figueras...

— Quem és? — ouviu de novo.

— Isso não interessa. Só quero dizer-te que Mar está em Barcelona, à tua espera. Ama-te. Continua a amar-te.

Aledis observou como Arnau se apoiava na parede. Esperou uns segundos. Havia ruído nos corredores. O aguazil só lhe concedera alguns momentos. Mais ruídos. A chave na fechadura. Arnau também ouviu e virou-se para a porta.

— Queres que lhe dê algum recado?

A porta abriu-se e a luz das tochas do corredor iluminou Aledis.

— Diz-lhe que eu também... — O aguazil entrou na masmorra. — Que a amo. Ainda que não possa...

Aledis rodou sobre si mesma e encaminhou-se para a porta. — Que fazias tu, a falar com o cambista? — perguntou-lhe o obeso aguazil, depois de fechar a porta.

— Chamou-me quando eu vinha a sair.

— É proibido falar com ele.

— Não sabia.Também nem sabia que aquele era o cambista. Não lhe respondi nada. Nem sequer me aproximei dele.

— O inquisidor-mor proibiu...

Aledis pegou na bolsa e fez tilintar as moedas.

— Mas não te quero voltar a ver por aqui — disse o aguazil, pegando no dinheiro. — Se voltares, não sais da masmorra.

Entretanto, no tenebroso interior da masmorra, Arnau continuava a tentar apreender as palavras daquela mulher: «Ama-te. Continua a amar-te.» No entanto, a recordação de Mar estava turvada pelo fugitivo reflexo das tochas nuns enormes olhos castanhos. Conhecia aqueles olhos. Onde os vira antes?

Dissera-lhe que lhe daria o recado.

— Não te preocupes — insistira —, Arnau saberá que estás aqui à espera dele.

— Diz-lhe também que o amo — gritara Mar quando Aledis já entrava na Praça da Liana.

Desde a porta da hospedaria, Mar vira como a viúva virava a cara para ela e sorria. Quando Aledis desaparecera da vista, Mar saíra da hospedaria. Pensara nisso no trajecto desde Mataró; pensara nisso quando a tinham impedido de ver Arnau; pensara nisso nessa mesma noite. Da Praça da Liana, andou alguns passos pela Rua de Bòria, passou diante da Capela d'en Marcus e virou à direita. Deteve-se no início da Rua de Monteada, e durante alguns instantes ficou a observar os nobres palácios que a flanqueavam.

— Senhora! — exclamou Pere, o velho criado de Elionor, quando lhe deu passagem por um dos grandes portões do palácio de Arnau.

— Que alegria ver-vos. Há quanto tempo que... — Pere calou-se, e com gestos nervosos convidou-a a passar para o pátio empedrado da entrada. — Que vos traz por aqui?

— Vim ver D. Elionor. Pere assentiu e desapareceu.

Entretanto, Mar perdeu-se nas recordações. Tudo continuava igual; o pátio, fresco e limpo, com as suas pedras polidas e reluzentes; os estábulos, em frente, e à direita a impressionante escada que dava acesso à zona nobre, por onde Pere acabara de subir.

Pere regressou compungido.

— A senhora não deseja receber-vos.

Mar levantou os olhos para o andar nobre. Uma sombra desapareceu atrás de uma das janelas. Quando vivera ela aquela mesma situação? Quando? Voltou a olhar para as janelas.

— Certa vez — murmurou para as janelas, diante de Pere, que não se atrevia a consolá-la pela afronta —, vivi esta mesma cena. Arnau saiu vitorioso, Elionor. Aviso-te: cobrou a sua dívida... por inteiro.

 

As armas e equipagem dos soldados que o acompanhavam ecoavam ao longo dos intermináveis e altos corredores do palácio episcopal. A comitiva marchava marcialmente; o oficial abria caminho, dois soldados iam à frente dele e outros dois atrás dele. Ao chegar ao fim da escadaria que subia das masmorras, Arnau deteve-se para se acostumar à luz que inundava o palácio; um forte golpe nas costas obrigou-o a seguir o ritmo dos soldados. Arnau desfilou perante frades, sacerdotes e escrivães, colados às paredes para permitirem a passagem. Ninguém lhe tinha querido responder. O aguazil entrara nas masmorras e libertara-o das correntes. «Aonde me levas?» Um dominicano de preto benzeu-se à passagem dele, outro ergueu um crucifixo. Os soldados continuavam a marchar, impassíveis, afastando toda a gente só pela sua presença. Havia dias que não tinha notícias de Joan, nem da mulher dos olhos castanhos; onde vira antes aqueles olhos? Perguntara à idosa, mas não obtivera resposta. «Quem era aquela mulher?», gritara, por quatro vezes. Algumas das sombras amarradas às paredes tinham murmurado, outras tinham permanecido impassíveis, tal como a idosa, que nem sequer se mexera; e, no entanto, quando o aguazil o retirara aos empurrões da masmorra, parecera-lhe vê-la remexer-se, inquieta. Arnau tropeçou contra um dos soldados que o precediam. Tinham parado em frente a umas portas de madeira imponentes, de duplo batente. O soldado empurrou-o fazendo-o retroceder. O oficial bateu às portas, abriu-as, e a comitiva entrou numa sala imensa, com ricas tapeçarias nas paredes. Os soldados acompanharam Arnau até ao centro da sala e depois foram fazer guarda para perto das portas.

Atrás de uma longa mesa de madeira, profusamente trabalhada, sete homens olhavam-no. Nicolau Eimeric, o inquisidor--mor, e Berenguer d'Erill, bispo de Barcelona, ocupavam o centro da mesa, ricamente vestidos com trajes bordados a ouro. Arnau conhecia-os a ambos. A esquerda do inquisidor, o notário do Santo Ofício; Arnau já se cruzara com ele em algumas ocasiões, mas nunca tinham chegado a falar. A esquerda do notário, e à direita do bispo, dois dominicanos de negro desconhecidos completavam o tribunal.

Arnau devolveu-lhes o olhar em silêncio, até que um dos frades fez uma careta de desprezo. Arnau levou uma mão ao rosto e apalpou a barba suja que lhe crescera nas masmorras; nas suas vestes, não havia rasto das cores originais, e estavam rotas; os seus pés, descalços, pretos, e as unhas das mãos compridas e tão sujas como estas. Cheirava mal. Ele próprio se enojou com o seu cheiro.

Eimeric sorriu perante o esgar de aversão de Arnau.

— Primeiro, fá-lo-ão jurar sobre os quatro evangelhos — explicou Joan a Mar e a Aledis, sentados em redor de uma mesa da hospedaria. — O julgamento pode durar dias, ou mesmo meses — disse-lhes quando elas o incitaram a ir à porta do palácio do bispo. — E melhor esperar aqui na hospedaria.

— Alguém o vai defender? — perguntou Mar. Joan negou com a cabeça, cansado.

— Atribuir-lhe-ão um advogado... que está proibido de o defender.

— Como?! — exclamaram as duas mulheres em uníssono.

— Proibimos os advogados e os notários — recitou Toan — de que ajudem os hereges, que os aconselhem ou os apoiem, bem como que acreditem neles ou os defendam — Mar e Aledis interrogaram Joan com o olhar. — Assim reza uma bula do Papa Inocêncio III.

— Então? — perguntou Mar.

— O trabalho do advogado consiste em conseguir a confissão voluntária do herege; se defendesse o herege, estaria a defender a heresia.

— Nada tenho a confessar — respondeu Arnau ao jovem sacerdote que lhe tinham atribuído como advogado.

— É especialista em direito civil e canónico — disse Nicolau Eimeric —, e um entusiasta da fé — acrescentou sorrindo.

O sacerdote abriu os braços, em sinal de impotência, tal como antes fizera o aguazil da masmorra, quando instara Arnau a confessar a sua heresia. «Deverias fazê-lo», limitou-se a aconselhá-lo. «Deves confiar na benevolência do tribunal.» Repetiu exactamente o mesmo gesto — quantas vezes o teria já feito como advogado dos hereges? — e, depois de um sinal de Eimeric, retirou-se da sala.

— Depois — continuou Joan, acedendo à insistência de Aledis —, pedir-lhe-ão que nomeie os seus inimigos.

— Para quê?

— Se nomeasse alguma das testemunhas que o denunciaram, o tribunal poderia considerar que a denúncia está viciada por essa inimizade.

— Mas Arnau não sabe quem o denunciou — interveio Mar.

— Não. Neste momento, não. Depois, sim, podia saber... Se Eimeric lhe concedesse esse direito. Na realidade, deveria saber — acrescentou, perante a expressão das suas interlocutoras —, porque assim dispôs Bonifácio VIII, mas o Papa está muito longe, e cada inquisidor conduz o processo como mais lhe convém.

— Creio que a minha mulher me odeia — respondeu Arnau à pergunta de Eimeric.

— Por que razão há-de odiar-te D. Elionor? — perguntou de novo o inquisidor.

— Porque não tivemos filhos.

— E tentaste? Deitas-te-te com ela? Jurara sobre os quatro evangelhos.

— Não.

O notário deixou escorregar a pena sobre os papéis que descansavam à sua frente. Nicolau Eimeric virou-se para o bispo.

— Mais algum inimigo? — interveio desta vez Berenguer d'Erill.

— Os nobres das minhas baronias, e em especial o carlán de Montbui — o notário continuou a escrever. — Também ditei muitas sentenças como cônsul de la Mar, mas creio ter trabalhado com justiça.

— Tens algum inimigo entre os membros do clero? Porquê aquela pergunta? Sempre se dera bem com a Igreja.

— A não ser alguns dos presentes...

— Os membros deste tribunal são imparciais — interrompeu-o Eimeric.

— Confio nisso — Arnau enfrentou o olhar do inquisidor.

— Alguém mais?

— Como bem sabeis, exerço a profissão de cambista há muito tempo; talvez...

— Não se trata aqui — voltou a interrompê-lo Eimeric — de que especules sobre quem ou quais poderiam ser os teus inimigos, e por que razões. Se os tens, tens de dizer os seus nomes; caso contrário, negar. Tens ou não? — rugiu Eimeric.

— Não julgo tê-los.

— E depois? — perguntou Aledis.

— Depois, começará o verdadeiro processo inquisitorial

— Joan recuou nas suas memórias até às praças das aldeias, às casas dos regedores, às noites de vela... Mas uma forte pancada na mesa devolveu-o à realidade.

— Que significa isso, frade? — gritou-lhe Mar. Joan suspirou e olhou-a nos olhos.

— «Inquisição» significa procura. O inquisidor tem de procurar a heresia, o pecado. Mesmo quando existem denúncias, o processo não se fundamenta nelas, nem se cinge a elas. Se o acusado não confessa, é preciso procurar essa verdade escondida.

- De que forma? – perguntou Mar.

Joan fechou os olhos antes de responder.

- Se te referes à tortura, sim, é um dos procedimentos.

- Que lhe fazem?

- Pode ser que não cheguem a torturá-lo.

- Que lhe fazem?- insistiu Mar.

- Para que queres saber? – perguntou-lhe Aledis, agarrando-lhe a mão. – Isso só servirá para te atormentar mais ainda.

- A lei proíbe que a tortura provoque a morte ou a amputação de algum membro- esclareceu Joan -, e só se pode torturar uma vez.

Joan observou como as duas mulheres, com lágrimas nos olhos, tentavam consolar-se. No entanto, o próprio Nicolau Eimeric encontrara maneira de contornar essa disposição legal. Non ad modum iterationis sed continuationis, costumava dizer, com um estranho brilho nos olhos; não como repetição, mas como continuação, traduzia então aos noviços que ainda não dominavam o latim.

- Que acontece se o torturarem e continuar a não confessar?- inquiriu Mar, fungando.

- A sua titude será tid em conta na hora de ditar a sentença – respondeu Joan, sem adiantar mais.

- E a sentença? Será Eimeric ditá-la?- pergntou Aledis.

- Sim, a não ser que a condenação seja a prisão perpétua ou a execução na foguei; nesse caso, precisa da aprovação do bispo. No entanto – continuou o frade, interrompendo a pergunta seguinte das mulheres -, se o tribunal considerar que o assunto é complexo, há ocasiões em que consulta os boni viri, umas trinta a oitenta pessoas, entre laicos e seculares, a fim de que lhe dêem a sua opinião sobre a culpabilidade do acusado e sobre a pena que lhe deve ser dada. Quando assim é, o processo prolonga-se por meses e meses.

- Durante os quais Arnau continuará na prisão…- acrescentou Aledis.

Joan assentiu com a cabeça e ficaram os três em silêncio; as mulheres tentavam assimilar o que tinham ouvido, e Joan recordava outra das máximas de Eimeric: « O cárcere há-de ser lôbrego, um subterrâneo onde não possa entrar nenhuma claridade, especialmente do Sol ou da Lua; há-de ser duro e áspero, para que abrevie o mais possível a vida do réu, até o fazer perecer.»

Com Arnau no meio da sala, em pé, sujo e esfarrapado, inquisidor e bispo aproximaram as cabeças e começaram a cochichar. Notário aproveitou para pôr em as folhas, e os quatro dominicanos cravaram os olhos em Arnau.

- Como conduzirás o interrogatório? – perguntou-lhe Berenguer d’Erill.

- Começaremos como sempre, e à medida que obtenhamos algum resultado, iremos comunicando-lhe as acusações.

- Vais dizer-lhas

- Sim. Creio que com este homem será mais eficaz a pressão dialéctica do que fisica; no entanto, se não houver outro remédio…

Arnau tentou sustentar o olhar dos frades negros. Um, dois, três, quatro… Mudou o peso do corpo para o outro pé e voltou a olhar para o inquisidor e o bispo.

Continuavam a cochichar. Os dominicanos continuavam com a atenção posta nele. A sala estava no mais absoluto silêncio, à excepção do cochichar dos prebostes.

— Está a começar a ficar nervoso — disse o bispo depois de levantar os olhos para Arnau e de voltar a chegar-se ao inquisidor.

— É uma pessoa habituada a mandar e a ser obedecida — respondeu Eimeric. — Tem de entender a sua verdadeira situação aceitar o tribunal e a sua autoridade, submeter-se a ele. Só então estará em condições para ser interrogado. A humilhação é o primeiro passo.

Bispo e inquisidor prolongaram as suas consultas durante um longo momento, durante o qual Arnau se viu constantemente examinado pelos dominicanos. Arnau tentou distrair-se pensando em Mar, em Joan, mas cada vez que pensava num deles, o olhar de um frade negro cravava-se nele como se soubesse o que estava a pensar. Mudou de posição uma infinidade de vezes; levou a mão à barba e ao cabelo, e observou o seu estado de sujidade. Berenguer d'Erill e Nicolau Eimeric, refulgentes de ouro, comodamente sentados atrás da mesa do tribunal, olhavam-no de soslaio, para depois recomeçarem a cochichar.

Finalmente, Nicolau Eimeric dirigiu-se a ele com voz forte:

— Arnau Estanyol, sei que pecaste.

Começava o julgamento. Arnau inspirou com força.

— Ignoro a que vos referis. Creio ter sido sempre um bom cristão. Procurei...

— Tu próprio reconheceste perante este tribunal que não mantiveste relações com a tua esposa. Será essa a atitude de um bom cristão?

— Não posso ter relações carnais. Não sei se sabereis que já fui casado antes e também... não pude ter nenhum filho.

— Queres dizer que tens um problema físico? — interveio o bispo.

— Sim.

Eimeric observou Arnau por uns instantes; apoiou os cotovelos na mesa e, cruzando as mãos, tapou a boca com elas. Depois virou-se para o notário e deu-lhe uma ordem em voz baixa.

— Declaração de Juli Andreu, sacerdote de Santa Maria de la Mar — leu o notário, embrenhando-se nos papéis. — «Eu, Juli Andreu, sacerdote de Santa Maria de la Mar, requerido pelo inquisidor-mor da Catalunha, declaro que aproximadamente em Março do ano de 1364 de Nosso Senhor, mantive uma conversa com Arnau Estanyol, barão da Catalunha, acerca da sua esposa, D. Elionor, baronesa, pupila do rei Pedro, a qual me manifestara a sua preocupação pelo incumprimento que o seu marido fazia dos seus deveres conjugais. Declaro que Arnau Estanyol me confiou que a sua esposa não o atraía e que o seu corpo se negava a manter relações com D. Elionor; que se encontrava bem fisicamente e que não podia obrigar o seu corpo a desejar uma mulher que ele não desejava; que sabia que estava em pecado» — Eimeric cerrou os olhos em direcção a Arnau —, «e que era por essa razão que rezava tanto em Santa Maria e fazia donativos vultuosos para a construção da igreja.»

O silêncio voltou a cair na sala. Nicolau continuava com os olhos postos em Arnau.

— Manténs que tens um problema físico? — perguntou finalmente o inquisidor.

Arnau recordava-se daquela conversa, mas não se recordava exactamente...

— Não me lembro do que terei dito.

— Reconheces então ter falado com o padre Juli Andreu?

— Sim.

Arnau ouviu o raspar da pena do notário.

— No entanto, estás a pôr em dúvida a declaração de um homem de Deus. Que interesse poderia ter o clérigo em mentir contra ti?

— Poderá estar enganado. Não se lembrar bem do que eu lhe disse...

— Pretendes dizer que um sacerdote que duvidasse do que foi dito declararia como o fez o padre Juli Andreu?

— Só digo que pode estar enganado.

— O padre Juli Andreu não é teu inimigo, pois não? — interveio o bispo.

— Não o tinha como tal.

Nicolau voltou a dirigir-se ao notário.

— Declaração de Pere Salvete, clérigo de Santa Maria de la Mar. «Eu, Pere Salvete, clérigo de Santa Maria de la Mar, requerido pelo inquisidor-mor da Catalunha, declaro que na Páscoa do ano de 1367 de Nosso Senhor, enquanto oficiávamos a Santa Missa, irromperam na igreja uns cidadãos alertando para o roubo de uma hóstia por parte dos hereges. A missa foi suspensa e todos os paroquianos abandonaram a igreja, à excepção de Arnau Estanyol, cônsul de la Mar, e sua esposa, D. Elionor.» — «Vai com a tua amante judia-», as palavras de Elionor soaram de novo nos ouvidos de Arnau. Sentiu o mesmo calafrio que sentira naquele dia. Levantou os olhos. Nicolau estava atento ao que ele fazia e sorria. Tê-lo-ia notado? O escrivão continuava a ler: — «... e cônsul respondeu-lhe que nem Deus poderia obrigá-lo a deitar-se com ela...»

Nicolau mandou o notário parar e deixou de sorrir.

— Também mente, o clérigo?

«Vai com a tua amante judia!» Porque não o tinha deixado terminar a leitura. Que pretendia Nicolau? A tua amante judia, a tua amante judia... As chamas lambendo o corpo de Hasdai, o silêncio, o povo embriagado reclamando justiça em silêncio, gritando palavras que não lhe chegavam a sair da boca, Elionor apontando para ele e o bispo e Nicolau olhando para ele... E Raquel abraçada a ele...

— Também mente o clérigo? — repetiu Nicolau.

— Não acusei ninguém de mentir — defendeu-se Arnau. Precisava de pensar.

— Negas os preceitos de Deus? Por acaso opões-te às obrigações que, como marido cristão, te competem?

— Não... Não... — hesitou Arnau.

— Então?

— Então o quê?

— Negas os preceitos de Deus? — repetiu Nicolau, elevando a voz.

As palavras reverberaram nas paredes de pedra da ampla sala. Sentia as pernas intumescidas, depois de tantos dias naquela masmorra.

— O tribunal pode considerar o teu silêncio como uma confissão — acrescentou o bispo.

— Não. Não os nego — começavam a doer-lhe as pernas. — Importam assim tanto ao Santo Ofício as minhas relações com D. Elionor? Por acaso é pecado...

— Não te iludas, Arnau — interrompeu-o o inquisidor —, quem faz as perguntas é o tribunal.

— Fazei-as, então.

Nicolau observou como Arnau se mexia, inquieto, e mudava de posição repetidamente.

— Está a começar a sentir dor — sussurrou ao ouvido de Berenguer d'Erill.

— Deixemo-lo pensar nisso — respondeu o bispo. Começaram a cochichar de novo e Arnau voltou a sentir pousados em si os olhares dos quatro dominicanos. Doíam-lhe as pernas, mas tinha de resistir. Não podia prostrar-se diante de Nicolau Eimeric. Que aconteceria se caísse ao chão? Precisava... de uma pedra. De uma pedra às costas, de um longo caminho a percorrer carregado com uma pedra para a sua Virgem. «Onde estás tu agora? De verdade que são estes os teus representantes?» Era apenas um rapazinho, e, no entanto... Porque não havia de aguentar agora? Percorrera Barcelona inteira com uma rocha que pesava mais do que ele, suando, sangrando, ouvindo os gritos de ânimo das pessoas. Não lhe restaria nada daquela força? Ia deixar-se vencer por um frade fanático? Ele, o rapazinho bastaix que todos os rapazes da cidade tinham admirado? Passo a passo, arrastando os pés pelo caminho até Santa Maria, para depois regressar a casa e descansar para o dia seguinte. A casa... Os olhos castanhos, os grandes olhos castanhos. E então, nesse momento, com um estremecimento que quase o fez cair ao chão, reconheceu Aledis na visitante da masmorra escura.

Nicolau Eimeric e Berenguer d'Erill trocaram um olhar quando viram como Arnau se endireitava. Pela primeira vez, um dos dominicanos desviou o olhar para o centro da mesa. — Não cai — cochichou, nervoso o bispo.

— Onde satisfazes os teus instintos? – perguntou Nicolau, elevando a voz.

Por isso o tinha tratado por Arnau. Aquela voz... Sim. Aquela voz era a voz que tantas vezes tinha ouvido no sopé da montanha de Montjuic.

— Arnau Estanyol! — O grito do inquisidor devolveu os seus pensamentos ao tribunal. — Perguntei-te onde satisfazes os teus instintos.

— Não entendo a vossa pergunta.

— És um homem. Não tiveste relações com a tua esposa durante anos. É muito simples: onde satisfazes as tuas necessidades como homem?

— Desde há esses mesmos anos que dizeis que não tenho contacto com mulher nenhuma.

Respondera sem pensar. O aguazil dissera-lhe que era sua mãe.

— Mentes! — Arnau estremeceu. — Este mesmo tribunal te viu abraçado a uma herege. Isso não é ter contacto com uma mulher?

— Não sei a que vos referis.

— Que pode levar um homem e uma mulher a abraçarem-se em público, senão — Nicolau gesticulou com os braços — a lascívia?

— A dor.

— Que dor? — lançou o bispo.

— Que dor? — insistiu Nicolau perante o silêncio. Arnau calou-se. As chamas da pira iluminaram a sala. — Pela execução de um herege que tinha profanado uma hóstia sagrada? — perguntou de novo o inquisidor, apontando-lhe um dedo cheio de anéis. — É essa a dor que sentes enquanto bom cristão? O do peso da justiça sobre um desalmado, um profanador, um miserável, um ladrão?

— Não foi ele! — gritou Arnau.

Todos os membros do tribunal, incluindo o notário remexeram nos seus assentos.

— Os três confessaram as suas culpas. Porque defendes os hereges? Os judeus...

— Judeus! Judeus! — revoltou-se. — Que tem o mundo contra os judeus?

— Acaso ignoras? — perguntou o inquisidor levantando a voz. — Crucificaram Jesus Cristo!

— Não pagaram o suficiente com as suas próprias vidas? Arnau deu com os olhares dos membros do tribunal.

Todos se tinham erguido nas cadeiras.

— Advogas o perdão? — perguntou Berenguer d'Erill.

— Não são esses os ensinamentos de Nosso Senhor?

— O único caminho é a conversão! Não se pode perdoar a quem não se arrepende — gritou Nicolau.

— Estais a falar de algo que aconteceu há mais de mil e trezentos anos. De que tem de se arrepender o judeu que nasceu nos nossos dias? Ele não tem culpa alguma do que se passou então.

— Todo aquele que abraça a doutrina judaica está a responsabilizar-se pelo que fizeram os seus antepassados; está a assumir a sua culpa.

— Apenas abraçam ideias, crenças, tal como nós... — Nicolau e Berenguer estremeceram; porque não? Por acaso não era verdade? Não merecia isto aquele homem vilipendiado que entregara a sua vida pela comunidade? — Como nós — afirmou Arnau com contundência.

— Equiparas a fé católica à heresia? — saltou o bispo.

— Não me corresponde a mim comparar nada; esse é um trabalho que deixo para vós, homens de Deus. Apenas disse...

— Sabemos perfeitamente o que disseste! — interrompeu-o Nicolau Eimeric, levantando a voz. — Comparaste autêntica fé cristã, a única, a verdadeira, com as doutrinas heréticas dos judeus.

Arnau enfrentou o tribunal. O notário continuava a escrever nos seus papéis. Até os soldados, atrás dele, hieráticos, junto das portas, pareciam escutar o raspar da pena no papel- Nicolau sorriu, e o som do escrivão colou-se a Arnau até lhe alcançar cada nervo. Um calafrio percorreu-lhe o corpo. O inquisidor-mor apercebeu-se disso e sorriu abertamente. Sim, disse-lhe com o olhar, são as tuas declarações.

— São como nós — insistiu Arnau.

Nicolau mandou-o calar-se com um gesto da mão.

O notário continuou a escrever por mais uns instantes. Ali ficam as tuas palavras, voltou a dizer-lhe com o olhar o inquisidor-mor. Quando o escrivão levantou a pena, Nicolau sorriu de novo.

— Está suspensa a sessão até amanhã — declarou, levantando-se do cadeirão.

Mar estava cansada de ouvir Joan.

— Aonde vais? — perguntou-lhe Aledis. Mar limitou-se a olhar para ela. — Outra vez? Tens ido todos os dias e nunca conseguiste...

— Consegui que saiba que estou aqui e que não vou esquecer aquilo que me fez —Joan escondeu o rosto. — Consegui vê-la através da janela e fazer-lhe saber que Arnau é meu; vi-o nos olhos dela e pretendo recordar-lhe isso todos os dias da sua vida. Estou disposta a conseguir que em cada momento pense que fui eu quem ganhou.

Aledis observou-a enquanto ela abandonava a hospedada. Mar fez o mesmo caminho que vinha fazendo desde a sua chegada a Barcelona, até se posicionar à porta do palácio da Rua de Monteada. Bateu com toda a sua força a aldraba da porta. Elionor recusar-se-ia a recebê-la, mas havia de saber que ela estava ali em baixo.

Mais uma vez, o velho criado abriu o postigo.

— Senhora — disse-lhe, através do postigo —, já sabeis que D. Elionor...

— Abre a porta. Só quero vê-la, mesmo que seja através da janela atrás da qual se esconde.

— Mas ela não quer, senhora.

— Ela sabe quem eu sou?

Mar viu como Pere se voltava para as janelas do palácio.

— Sim.

Mar tornou a bater a aldraba com força.

— Não insistais, senhora, ou D. Elionor mandará chamar os soldados — aconselhou-lhe o ancião.

— Abre, Pere.

— Ela não quer ver-vos, senhora.

Mar sentiu uma mão a pousar-se no seu ombro e a afastá-la da porta.

— Mas quem sabe se não quererá ver-me a mim — ouviu, antes de ver um homem aproximar-se do postigo.

— Guillem! — gritou Mar, lançando-se para ele.

— Lembras-te de mim, Pere? — perguntou o mouro, com Mar pendurada ao pescoço.

— Então não havia de me lembrar?

— Pois então, diz à tua senhora que quero vê-la. Quando o ancião fechou o postigo, Guillem agarrou Mar pela cintura e ergueu-a. Rindo-se, Mar deixou-se levantar. Depois, Guillem pô-la no chão e afastou-se um passo para trás, agarrando-lhe as mãos e abrindo-lhe os braços, para poder observá-la.

- A minha menina — disse, com a voz embargada. — Quantas vezes sonhei com poder voltar a pegar em ti! Mas agora pesas muito mais. Tornaste-te uma verdadeira...

Mar largou-lhe as mãos e abraçou-se a ele.

— Porque me abandonaste? — perguntou-lhe, chorando.

— Era apenas um escravo, minha querida. Que poderia fazer um simples escravo?

— Era como se fosses meu pai.

— E já não o sou?

— Sê-lo-ás sempre.

Mar abraçou Guillem com força. Sê-lo-ás sempre, pensou o mouro. Quanto tempo perdi, longe daqui? Virou-se para o postigo:

— D. Elionor também não quer ver-vos — ouviu-se do outro lado.

— Diz-lhe que terá notícias minhas.

Os soldados acompanharam-no de regresso às masmorras. Assim que o aguazil voltou a acorrentá-lo, Arnau não mais separou os olhos da sombra que se aninhava à sua frente, do outro lado da sala. Continuou de pé quando o aguazil saiu da masmorra.

— Que tens tu a ver com Aledis? — gritou para a idosa, quando já não se ouviam passos no corredor.

Arnau julgou vislumbrar um sobressalto na sombra, mas no mesmo momento a figura voltou a ficar imóvel.

— Que tens a ver com Aledis? — insistiu. — Que fazia ela aqui? Porque te vem visitar?

O silêncio que obteve como resposta trouxe-lhe a recordação do reflexo daqueles grandes olhos castanhos.

— Que têm a ver Aledis e Mar? — suplicou à sombra Tentou ouvir pelo menos a respiração da idosa, mas uma infinidade de estertores e gemidos misturaram-se no silêncio com que Francesca lhe respondia. Arnau passeou o olhar pelas paredes da masmorra. Ninguém lhe prestava a menor atenção.

O estalajadeiro parou de mexer a grande panela sobre o fogo assim que viu aparecer Mar acompanhada por um mouro luxuosamente ataviado. O seu nervosismo aumentou quando, atrás deles, entraram dois escravos carregados com os haveres de Guillem. «Porque não terá ficado na alfândega, como todos os mercadores?», perguntou-se enquanto corria para o receber.

— É uma honra para esta casa — disse-lhe, inclinando-se numa reverência exagerada. Guillem esperou que o estalajadeiro parasse com os salamaleques.

— Tens alojamento?

— Sim. Os escravos podem dormir no...

— Alojamento para três — interrompeu-o Guillem. — Dois quartos; um para mim, e outro para eles.

O estalajadeiro desviou os olhos para os dois rapazes de grandes olhos escuros e cabelo encrespado, que esperavam em silêncio, atrás do seu senhor.

— Sim — respondeu. — Se é isso que desejais. Acompanhai-me.

— Eles tratarão de tudo. Traz-nos um pouco de água. Guillem acompanhou Mar até uma das mesas. Estavam a sós na sala de jantar.

— Dizes então que o julgamento começou hoje?

__Sim, embora também não te possa garantir. Nem sequer pude vê-lo.

Guillem notou como a voz de Mar se alquebrava. Estendeu a mão para a consolar, mas não chegou a tocar-lhe. Ela já não era uma menina, e ele... No fim de contas não passava de um mouro. Ninguém deveria pensar... Já fizera muito diante do palácio de Elionor. A mão de Mar percorreu o trajecto que faltara à de Guillem.

— Continuo a ser a mesma. Para ti, serei sempre. Guillem sorriu.

— E o teu marido?

— Morreu.

O rosto de Mar não mostrou desgosto. Guillem mudou de assunto:

— Já alguém fez alguma coisa por Arnau? Mar semicerrou os olhos e fechou os lábios.

— Que queres tu dizer? Não podemos fazer...

— E Joan? Joan é inquisidor. Sabes alguma coisa dele? Não intercedeu por Arnau?

— Esse frade? — Mar sorriu com desdém e ficou calada; para quê contar-lhe? Já bastava o problema de Arnau, e Guillem viera por causa disso. — Não. Não fez nada. Pior ainda, tem o inquisidor-mor contra ele. Está aqui connosco.

— Connosco?

— Sim. Conheci uma viúva chamada Aledis e que está aqui alojada com as duas filhas. Era amiga de Arnau quando eram crianças. Parece que calhou estar de passagem quando soube da detenção dele. Estou a dormir com elas. É uma boa mulher. Verás toda a gente quando forem horas de comer.

Guillem apertou a mão de Mar.

- Que foi feito de ti?- perguntou-lhe ela.

 

Mar e Guillem estiveram a contar um ao outro os seus cinco anos de separação, até que o sol subiu direito sobre Barcelona; Mar evitou contar-lhe alguma coisa referente a Joan. As primeiras a aparecer foram Teresa e Eulália, chegavam acaloradas, mas sorridentes, se bem que o sorriso tenha desaparecido dos seus bonitos rostos assim que viram Mar e se lembraram da prisão de Francesca.

Tinham passeado por meia cidade, desfrutando a nova identidade que as suas vestes de órfãs, e de virgens, lhes proporcionavam… Nunca antes tinham gozado de tal liberdade, porque a lei as obrigava a vestirem-se de seda e com cores, para que qualquer pessoa pudesse reconhecê-las. «Entramos?» Propusera Teresa, apontando disfarçadamente para as portas da igreja de Sant Jaume. Disse-o num sussurro, como se tivesse medo de que apenas a ideia pudesse desencadear a ira de toda a Barcelona. Mas nada aconteceu. Os paroquianos que se encontravam no interior da igreja não lhes deram a menor atenção, e o sacerdote, perante cuja passagem as raparigas baixaram imediatamente o olhar e se aproximaram uma da outra, também não.

Da Rua da Boquería, desceram, conversando e rindo, em direcção ao mar; se tivessem subido pela Rua do Bisbe, até à Praça Nova, ter-se-iam encontrado com Aledis, em frente ao Palácio do bispo, com o olhar fixdo nas janelas, tentando reconhecer Francesca ou Arnau em cada silhueta que se desenhava atrás dos vidros. Nem sequer sabia por detrás de que janela estariam a julgar Arnau! Francesca teria já deposto? Joan nada sabia acerca dela. Aledis passeava os olhos de janela em janela.

- Que fazes aí parada, mulher? – Aledis deu com um dos soldados da inquisição a seu lado. Não o vira chegar.

- Que olhas tu com tanto interesse?

Aledis encolheu-se e desatou a correr, sem lhe responder. Não conhecem Francesca, pensou, enquanto fugia. Nenhuma das vossas torturas poderá obrigá-la a confessar o segredo que calou durante toda a sua vida.

Antes que Aledis chegasse à hospedaria, chegou Joan, com um hábito limpo que conseguira no mosteiro de Sant Pere de les Puelles. Quando viu Guillem, sentado com Mar e as duas filhas de Aledis, ficou parado no meio da sala.

Guillem olhou para ele. Aquilo fora um sorriso ou uma careta de desagrado?

O próprio Joan não lhe teria sabido responder.Ter-lhe-ia Mar contado acerca do sequestro?

Num relâmpago, Guillem recordou-se do tratamento que o frade lhe prestara quando estava com Arnau, mas não era altura para ajustes de contas, e levantou-se. Precisavam de estar unidos, pelo bem de Arnau.

- Como estás, Joan? – disse-lhe, agarrando-o pelos ombros.- Que te aconteceu à cara?- acrescentou, vendo as equimoses.

Joan olhou para Mar, mas apenas encontrou o mesmo rosto duro e inexpressivo com que o brindara desde que fora buscá-la. Mas não, Guillem não podeia ser tão cínico que fosse perguntar…

- Um mau encontro – respondeu.- Nós, frades, também os temos.

- Suponho que já os terás excomungado – sorriu Guillem, acompanhando o frade até à mesa.- Não é isso que dizem as Constituições de Paz e Trégua? – Joam e Mar entrolharam-se.

- Não é assim? Será excomungado aquele que rompa a paz contra os clérigos desarmados... Não ias armado, pois não, Joan?

Guillem não teve oportunidade de se aperceber da tensão entre o frade e Mar, porque nesse instante apareceu Aledis. As apresentações foram breves, porque Guillem queria falar com Joan.

— Tu és inquisidor — disse-lhe. — Qual é a tua opinião sobre a situação de Arnau?

— Creio que Nicolau pretende condená-lo, mas não pode ter grande coisa contra ele. Suponho que se safará com um sambenito e uma multa importante, que é o que interessa a Eimeric. Conheço Arnau; nunca fez mal a ninguém. Por mais que Elionor o tenha denunciado, nunca poderão encontrar...

— E se a denúncia de Elionor fosse acompanhada pela de uns sacerdotes? — Joan sobressaltou-se. — Denunciariam insignificâncias alguns sacerdotes?

— A que te referes?

— Isso agora não interessa — disse Guillem, recordando a carta de Jucef. — Responde-me. Que acontecerá se a denúncia for avalizada por sacerdotes?

Aledis não ouviu as palavras de Joan. Deveria contar o que sabia? Poderia aquele mouro fazer alguma coisa? Era rico... E parecia... Eulália e Teresa olharam para ela. Tinham-se mantido em silêncio, como ela lhes mandara, mas agora pareciam ansiosas por que ela falasse. Não foi necessário perguntar-lhes; ambas anuíram. Mas isso significava... E depois? Alguém tinha de fazer alguma coisa, e aquele mouro...

— Há muito mais do que isso — interveio, interrompendo as hipóteses que Joan ainda estava a elaborar.

Os dois homens e Mar fixaram nela os seus olhares.

— Não penso dizer-vos como soube, nem quero voltar a falar deste assunto, depois de vos ter contado. De acordo?

— Que queres dizer com isso? — perguntou Joan.

— É muito claro, frade — retorquiu Mar.

Guillem olhou surpreendido para Mar; a que se devia aquela maneira de tratar Joan? Virou-se para Joan, mas este baixara os olhos.

— Continua, Aledis. Estamos de acordo — aceitou Guillem.

— Lembram-se dos nobres que estão aqui hospedados? Guillem interrompeu o discurso de Aledis assim que ouviu o nome de Genís Puig.

— Tem uma irmã que se chama Margarida — disse-lhe Aledis.

Guillem levou as mãos à cara.

— Continuam alojados aqui? — perguntou.

Aledis continuou a contar o que as suas raparigas tinham descoberto; o consentimento de Eulália para com Genís Puig não fora em vão. Depois de descarregar nela uma paixão embebida em vinho, o cavaleiro explanara as acusações que tinham formulado contra Arnau perante o inquisidor.

— Dizem que Arnau queimou o cadáver do pai — contou Aledis. — Eu não posso acreditar...

Joan reprimiu um vómito. Todos se viraram para ele. 0 frade, com a mão na boca, estava congestionado. A escuridão, o corpo de Bernat pendurado daquele cadafalso improvisado, as chamas...

— Que tens a dizer agora, Joan? — ouviu Guillem a perguntar-lhe.

— Vão executá-lo — conseguiu ainda dizer, antes de sair a correr da hospedaria, com a mão a tapar a boca.

A sentença de Joan ficou a pairar sobre os restantes. Ninguém olhou para ninguém.

— Que se passa entre Joan e tu? — perguntou, discretamente, Guillem a Mar, passado um bom bocado, sem que o frade tornasse a aparecer.

Era apenas um escravo... Que poderia fazer um simples escravo? As palavras de Guillem ecoavam na cabeça de Mar. Se lhe contasse... Precisavam de estar unidos! Arnau precisava de que todos lutassem por ele, incluindo Joan.

— Nada — respondeu-lhe. — Bem sabes que nunca nos demos bem.

Mar evitou o olhar de Guillem.

— Contar-me-ás, um dia? — insistiu Guillem. Mar baixou ainda mais os olhos.

      

O tribunal já estava constituído: os quatro dominicanos e o notário sentados atrás da mesa, os soldados fazendo guarda junto à porta, e Arnau, tão sujo como no dia anterior, em pé, no meio da sala, vigiado por todos eles.

Daí a pouco entravam Nicolau Eimeric e Berenguer d'Erill, arrastando luxo e soberba. Os soldados saudaram-nos e os restantes elementos do tribunal levantaram-se até que ambos tomaram os seus lugares.

— Inicia-se a sessão — disse Nicolau. — Recordo-te — acrescentou, dirigindo-se a Arnau — que continuas a estar sob juramento.

«Esse homem», comentara-lhe o bispo a caminho da sala, «falará mais devido ao juramento prestado que por medo à tortura.»

— Passe a ler as palavras do réu — continuou Nicolau, dirigindo-se ao notário.

«Só abraçam ideias, crenças, como nós.» A sua própria declaração chocou-o. Com a constante presença de Mar e de Aledis na mente, estivera toda a noite a pensar no que tinha dito. Nicolau não lhe tinha permitido explicar-se, mas, por outro lado, como poderia fazê-lo? Como poderia contar aqueles caçadores de hereges sobre as suas relações com Raquel e com a família dela? O notário continuava a ler. Não podia dirigir as averiguações para Raquel; bastante tinham já

sofrido com a morte de Hasdai, para ainda lhes lançar a Inquisição no encalço...

— Consideras que a fé cristã se reduz a ideias ou crenças que podem ser abraçadas voluntariamente pelos homens? —_ perguntou Berenguer d'Erill. — Pode um simples mortal julgar os preceitos divinos?

Porque não? Arnau olhou directamente para Nicolau. Não são vocês simples mortais? Queimá-lo-iam. Queimá-lo-iam como tinham feito a Hasdai e a tantos outros. Um calafrio percorreu-lhe o corpo.

— Expressei-me incorrectamente — respondeu por fim.

— Como te expressarias, então? — interveio Nicolau.

— Não sei. Não possuo os vossos conhecimentos. Só posso dizer que creio em Deus, que sou um bom cristão e que sempre agi de acordo com os preceitos cristãos.

— Consideras que queimar o corpo do teu pai é agir conforme os preceitos de Deus? — gritou o inquisidor-mor, pondo-se de pé e batendo na mesa com as duas mãos.

Raquel, escondendo-se nas sombras, dirigiu-se a casa do irmão, como tinha combinado com ele.

— Sahat — disse como única saudação, ficando parada à entrada da casa. Guillem levantou-se da mesa que partilhava com Jucef.

— Sinto muito, Raquel.

A mulher respondeu com uma careta. Guillem estava a alguns passos, mas um leve movimento dos seus braços foi o bastante para que se aproximasse dela e a abraçasse. Guillem apertou-a contra si e tentou consolá-la, mas a voz nao

correspondia. Deixa que as lágrimas corram, Raquel, pensou. Deixa que comece a apagar-se esse fogo que ficou nos teus olhos. Ao fim de alguns instantes, Raquel separou-se de Guillem e enxugou as lágrimas.

— Vieste por causa de Arnau, não é verdade? — perguntou-lhe quando se recompôs. — Tens de ajudá-lo — acrescentou, perante a anuência de Guillem. — Nós pouco podemos fazer sem complicarmos ainda mais as coisas.

— Estava a dizer ao teu irmão que preciso de uma carta de apresentação para a corte.

Raquel interrogou com o olhar o irmão, ainda sentado à mesa.

— Havemos de a conseguir — anuiu este. — O infante D. Juan, com a sua corte, membros da corte do rei e próceres do reino estão reunidos em parlamento em Barcelona para tratarem do assunto da Sardenha. É um momento excelente.

— Que pensas fazer, Sahat? — perguntou Raquel.

— Ainda não sei. Escreveste-me — acrescentou, dirigindo-se a Jucef— que o rei está a enfrentar o inquisidor. — Jucef anuiu. — E o filho?

— Muito mais — disse Jucef. — O infante é um mecenas das artes e da cultura. Gosta de música e de poesia, e na sua corte de Gerona costuma reunir escritores e filósofos. Nenhum deles aceita os ataques de Eimeric a Ramon Llull. A Inquisição está mal vista entre os pensadores catalães; no início do século foram condenadas, por heréticas, catorze obras do médico Arnau de Vilanova; a obra de Nicolás de Calábria também foi declarada herética pelo próprio Eimeric, e agora perseguem outro dos grandes, como o é Ramon Llull. Parece que lhes repugna tudo o que é catalão. Poucos são os que se atrevem a escrever, por medo da interpretação, que dos seus textos possa fazer Eimeric; Nicolás de Calábria acabou na fogueira. Por outro lado, se alguém poderá afectar o projecto do inquisidor de exercer a sua jurisdição sobre as judiarias catalãs, é o infante. Tem em conta que o infante vive dos impostos que nós lhe pagamos. Há-de prestar-te atenção — afirmou Jucef—, mas não te iludas: é difícil que ele enfrente directamente a Inquisição. Guillem anuiu para consigo.

Queimar o cadáver...

Nicolau ficou de pé, com as mãos apoiadas sobre a mesa, olhando para Arnau; estava congestionado.

— O teu pai — rosnou — era um diabo que sublevou o povo. Por isso o executaram e por isso tu o queimaste, para que morresse como tal.

Nicolau calou-se, apontando para Arnau.

Como sabia ele? Só havia uma pessoa que sabia... O escrivão arranhava o papel com a sua pena. Não podia ser. Joan não... Arnau sentiu as pernas a fraquejarem.

— Negas ter queimado o cadáver do teu pai? — perguntou Berenguer d'Erill.

Joan não podia tê-lo denunciado!

— Negas? — repetiu Nicolau, elevando a voz. Os rostos dos membros do tribunal desfiguraram-se e Arnau reprimiu um vómito.

— Tínhamos fome! — gritou. — Alguma vez tivestes fome? — O rosto inchado do pai, com a língua de fora, confundiu-se com os rostos dos que o rodeavam. Joan? Porque não tinha ido vê-lo? — Tínhamos fome! — gritou. Arnau ouviu o pai a falar: «Eu, no teu lugar, não me submeteria.» - por acaso alguma vez tivestes fome?

Arnau tentou lançar-se sobre Nicolau, que continuava a interrogá-lo com o olhar, de pé, soberbo, mas antes que chegasse a ele, os soldados imobilizaram-no e arrastaram-no de novo para o centro da sala.

— Queimaste o teu pai, como a um demónio? — voltou a perguntar Nicolau, num grito.

— O meu pai não era nenhum demónio! — respondeu-lhe Arnau, gritando também, esbracejando com os soldados que o mantinham agarrado.

— Mas queimaste o cadáver dele.

«Porquê, Joan? És meu irmão, e Bernat... Bernat sempre te amou como a um filho.» Arnau baixou a cabeça e ficou pendurado nos braços dos soldados. Porquê?

— Foi a tua mãe que te mandou? Arnau só conseguiu levantar a cabeça.

— A tua mãe é uma bruxa que transmite o mal do Diabo — acrescentou o bispo.

Que estavam eles a dizer?

— O teu pai assassinou um rapaz para te libertar a ti.

— Confessas? — gritou Nicolau.

— O que... — tentou dizer Arnau.

— Tu — Nicolau apontou para ele — também assassinaste um rapaz cristão. Que pensavas fazer com ele?

— Foram os teus pais que te mandaram? — perguntou o bispo.

— Querias o coração dele? — perguntou Nicolau.

— Quantos mais rapazes assassinaste?

— Que relações manténs com os hereges?

Inquisidor e bispo lançaram-lhe uma rajada de pergunta O teu pai, a tua mãe, rapazes, assassínios, corações, hereges judeus... Joan! Arnau deixou cair de novo a cabeça. Tremia

— Confessas? — terminou Nicolau.

Arnau não se mexeu. O tribunal deixou passar o tempo Entretanto, Arnau continuava pendurado dos braços dos soldados. Por fim, Nicolau fez-lhes sinal para abandonarem a sala. Arnau sentiu que o arrastavam.

— Esperai! — ordenou o inquisidor quando já iam abrir as portas. Os soldados viraram-se para ele. — Arnau Estanyol! — gritou. — Arnau Estanyol! — gritou de novo.

Arnau levantou a cabeça lentamente e olhou para Nicolau.

— Podeis levá-lo — disse o inquisidor aos soldados, quando notou o olhar de Arnau sobre si. — Anotai, notário — ouviu Arnau o inquisidor a dizer enquanto fechava as portas —, que o réu não negou nenhuma das acusações formuladas por este tribunal e se negou a confessar, simulando um desfalecimento cuja falsidade se descobriu quando, já livre do processo inquisitorial, e antes de abandonar a sala, se virou para responder ao chamamento do mesmo.

O som da pena perseguiu Arnau até às masmorras.

Guillem deu ordens aos seus escravos para que organizassem a mudança para a alfândega, muito próxima da hospedaria do Estanyer, e cujo proprietário recebeu com muito desagrado a noticia; deixava Mar, mas não podia arriscar-se a que Genís Puig o reconhecesse. Os dois escravos responderam abanando a cabeça a todas as tentativas que o estalajadeiro fez para impedir que o rico mercador abandonasse seu estabelecimento. «Para que quero eu nobres que não pagam?», resmungou ao contar o dinheiro que os escravos de Guillem lhe entregaram.

Da judiaria, Guillem dirigiu-se imediatamente para a alfândega; nenhum dos mercadores de passagem pela cidade e que ali se alojavam conhecia a sua antiga relação com Arnau.

— Tenho estabelecimento aberto em Pisa — respondeu a um mercador siciliano que se sentou para comer na sua mesa e que se interessou por ele.

— Que te trouxe a Barcelona? — perguntou o siciliano.

Um amigo com problemas, esteve quase a responder-lhe. 0 siciliano era um homem baixo, calvo, e de feições excessivamente marcadas; disse-lhe que se chamava Jacopo Lercardo. Falara longa e francamente com Jucef, mas ter outra opinião seria sempre bom.

— Há alguns anos mantive bons contactos com a Catalunha, e aproveitei uma viagem a Valência para explorar um pouco o mercado.

— Pouco há que explorar — disse-lhe o siciliano, sem parar de levar a colher à boca.

Guillem esperou que ele continuasse, mas Jacopo continuou embrenhado na sua sopa de carne. Aquele homem não falaria a não ser com alguém que conhecesse o negócio tão bem como ele.

— Notei que a situação mudou muito desde a última vez que aqui estive. Nos mercados nota-se a falta dos camponeses; as bancas deles estão vazias. Lembro-me de que antes o almotacé tinha de impor a ordem entre mercadores e camponeses.

—Já não tem trabalho — disse o siciliano, sorrindo. — Os camponeses já não produzem e não vêm vender aos mercados. As epidemias dizimaram a população, a terra não rende, e os próprios senhores abandonam-nas e deixam-nas baldias O povo emigra para a terra de onde vens: Valência.

— Visitei alguns velhos conhecidos. — O siciliano voltou a olhá-lo por cima da colher. —Já não arriscam o dinheiro em operações comerciais; limitam-se a comprar a dívida da cidade. Tornaram-se financeiros. Segundo me disseram, há nove anos, a dívida municipal era de umas cento e sessenta e nove mil libras; hoje deve estar numas duzentas mil libras, e continua a subir. O município não pode continuar a obrigar-se ao pagamento dos censales ou violarios que estabelece como garantia da dívida; vai arruinar-se.

Por alguns instantes, Guillem permitiu-se pensar na eterna discussão do pagamento dos juros do dinheiro que os cristãos tinham proibido. Retraída a actividade comercial, e com ela as comandas que retribuíam o dinheiro, tinham conseguido outra vez iludir a proibição legal com a criação dos censales ou dos violarios, pelos quais os ricos entregavam dinheiro ao município e este se comprometia ao pagamento de uma quantia anual em que, evidentemente, se incluíam os juros proibidos. Nos violarios, se se quisesse devolver o capital inicial emprestado, havia que pagar um terço mais do que o emprestado. No entanto, ao comprar dívida municipal, não se corriam os riscos das expedições comerciais... enquanto Barcelona pudesse pagar.

— Mas enquanto essa ruína não chega — disse-lhe o siciliano, fazendo-o regressar à realidade —, a situação é excepcional para ganhar dinheiro no principado...

— Vendendo — interrompeu-o Guillem.

— Principalmente. — Guillem notou que o siciliano começava a confiar nele. — Mas também se pode comprar, desde que se faça isso com a moeda adequada. A paridade entre o florim de ouro e o croat de prata é totalmente fictícia, e muito distante das paridades estabelecidas nos mercados estrangeiros. A prata está a sair da Catalunha de forma maciça, e o rei continua empenhado em manter o valor do seu florim de ouro, contra o mercado; essa atitude vai sair-lhe muito cara.

— Porque julgas que ele mantém essa posição? — perguntou Guillem, interessado. — O rei Pedro sempre se comportou como uma pessoa sensata...

— Por simples interesse político — interrompeu-o Jacopo. — O florim é a moeda real; a cunhagem na casa da moeda de Montpellier depende directamente do rei. O croat, pelo contrário, é cunhado em cidades como Barcelona e Valência, por concessão real.

O monarca quer sustentar o valor da sua moeda, mesmo que esteja enganado; no entanto, para nós, é o melhor erro que poderia cometer. O rei fixou a paridade do ouro relativamente à prata em treze vezes mais do que na realidade custa noutros mercados!

— E os cofres reais?

Aquele era o ponto a que Guillem queria chegar.

— Treze vezes sobrevalorizados! — riu-se o siciliano. — O rei continua a sua guerra contra Castela, embora pareça que está quase a terminar. Pedro, o Cruel, tem problemas com os seus nobres, que se inclinaram para o Trastâmara. A Pedro, o Cerimonioso, só já lhe são fiéis as cidades, e, ao que parece, os judeus. A guerra contra Castela arruinou o rei. Há quatro anos, as cortes de Monzón concederam-lhe um subsídio no valor de duzentas e setenta mil libras, à custa de

novas concessões aos nobres e às cidades. O rei investe esse dinheiro na guerra, mas perde privilégios para o futuro e agora, uma nova revolta na Córsega... Se tens algum interesse investido na casa real, esquece-o.

Guillem deixou de ouvir o siciliano e limitou-se a anuir com a cabeça e a sorrir quando lhe parecia que isso era devido. O rei estava arruinado, e Arnau era um dos seus maiores credores. Quando Guillem abandonara Barcelona, os empréstimos à casa real ultrapassavam as dez mil libras; a quanto ascenderiam agora? Nem sequer devia ter pago os juros dos empréstimos baratos. «Executá-lo-ão.» A sentença de Joan veio-lhe de novo à memória. «Nicolau utilizará Arnau para reforçar o seu poder», dissera-lhe Jucef. «O rei não paga ao Papa, e Eimeric prometeu-lhe parte da fortuna de Arnau.» Estaria o rei Pedro disposto a tornar-se devedor de um Papa que acabava de promover uma revolta na Córsega ao negar o direito da coroa de Aragão? Mas como conseguir que o rei se opusesse à Inquisição?

— A vossa proposta interessa-nos.

A voz do infante perdeu-se na imensidade do salão do Tinell. Tinha apenas dezasseis anos, mas acabava de presidir, em nome do seu pai, ao Parlamento que deveria tratar da revolução sarda. Guillem observou dissimuladamente o herdeiro, sentado no trono e ladeado pelos seus dois conselheiros, Juan Fernandez de Heredia e Francesc de Perellós, ambos de pé. Dizia-se dele que era débil, mas aquele rapaz, dois anos antes, tivera de julgar, sentenciar e executar quem fora o seu tutor desde que nascera: Bernat de Cabrera. Depois de ordenar a sua execução na praça do mercado de Saragoça, o infante tivera de mandar a cabeça do visconde ao seu pai, o rei Pedro.

Nessa mesma tarde, Guillem conseguira falar com Francesc de Perellós. O conselheiro escutara-o com atenção; depois, mandara-o esperar atrás de uma pequena porta. Quando, depois de uma longa espera, o deixaram passar, Guillem encontrou-se no mais imponente salão que jamais pisara: uma sala diáfana de mais de trinta metros de largura, coberta por seis longos arcos em diafragma que chegavam quase até ao chão, com as paredes nuas e iluminadas por tochas. O infante e os seus conselheiros esperavam-no ao fundo do salão do Tinell.

Ainda a vários passos do trono, fincou um joelho em terra.

— No entanto — dizia o infante —, recordai-vos de que não podemos enfrentar a Inquisição.

Guillem esperou até que Francesc de Perellós, com um olhar cúmplice, lhe indicasse que podia falar.

— Não tereis de fazê-lo, meu senhor.

— Seja — sentenciou o infante, depois do que se levantou e abandonou o salão acompanhado por Juan Fernandez de Heredia.

— Levantai-vos — indicou-lhe Francesc de Perellós. — Quando será?

— Amanhã, se puder. Se não, depois de amanhã.

— Avisarei o regedor.

Guillem abandonou o palácio maior quando já começava a anoitecer. Olhou o límpido céu mediterrânico e respirou fundo. Tinha ainda muito que fazer.

Nessa mesma tarde, quando ainda não tinha acabado de falar com Jacopo, o siciliano, recebera uma mensagem de Jucef: «O conselheiro Francesc de Perellós receber-te-á esta tarde no palácio maior, assim que acabe o Parlamento.» Sabia como interessar o infante; era fácil: remitir os importantes empréstimos à coroa que constavam nos livros de Arnau para que não acabassem nas mãos do Papa. Mas... Como libertar Arnau sem que o duque de Gerona tivesse de enfrentar a Inquisição?

Guillem saiu para passear antes de se dirigir ao palácio. Os seus passos levaram-no à mesa de Arnau. Estava fechada; os livros, devia tê-los Nicolau Eimeric, para evitar vendas fraudulentas e os oficiais de Arnau tinham desaparecido. Olhou para Santa Maria, rodeada de andaimes. Como era possível que um homem que tudo tinha dado por aquela igreja... O passeio prosseguiu até ao consulado de la Mar e até à praia.

— Como está o teu senhor? — ouviu atrás de si. Guillem virou-se e viu um bastaix carregado com um enorme saco às costas. Arnau emprestara-lhe dinheiro havia muitos anos, e ele pagara de volta, moeda a moeda. Guillem encolheu os ombros e fez uma careta. Depois, a fila de bastaixos que estava a descarregar um barco e que seguia o primeiro rodeou-o. «Que se passa com Arnau?», ouviu perguntar. «Como podem acusá-lo de ser herege?» Também àquele tinha emprestado dinheiro... para o dote de uma filha? Quantos deles tinham recorrido a Arnau? «Se o vires», dizia outro, «diz-lhe que há uma vela acesa por ele aos pés de Santa Maria. Nós garantimos que esteja sempre acesa.» Guillem tentou desculpar-se com a sua ignorância, mas não deixaram: os bastaixos soltaram imprecações contra a Inquisição e depois seguiram o seu caminho.

Com a visão dos bastaixos desalentados, Guillem encaminhou-se com passo decidido para o palácio maior.

Agora, com a silhueta de Santa Maria recortada contra a noite atrás de si, o mouro voltava a encontrar-se diante da mesa de câmbios de Arnau. Precisava da carta de pagamento que, em tempos, o judeu Abraham Levi assinara, e que ele mesmo tinha escondido atrás de uma pedra na parede. A porta estava fechada à chave, mas havia uma janela no piso térreo que nunca tinha fechado bem. Guillem perscrutou a noite; parecia que não havia ninguém. Arnau nunca conhecera a existência daquele documento. Guillem e Hasdai tinham decidido esconder os lucros que lhe tinham sido proporcionados pela venda de escravos sob a aparência de um depósito efectuado por um judeu de passagem por Barcelona: Abraham Levi. Arnau nunca teria aceitado aquele dinheiro. A janela guinchou, rompendo o silêncio nocturno, e Guillem ficou paralisado. Era apenas um mouro, um infiel que estava a entrar, de noite, na casa de um réu da Inquisição. De pouco lhe serviria o baptismo, se fosse apanhado. No entanto, os ruídos nocturnos demonstraram-lhe que o Universo não o vigiava: o mar, o ranger dos andaimes de Santa Maria, crianças a chorar, homens a gritar com as mulheres...

Abriu a janela e esgueirou-se por ela. O depósito fictício que Abraham Levi efectuara servira para que Arnau negociasse com aquele dinheiro e obtivesse bons lucros, mas cada vez que fazia uma operação, Arnau anotava uma quarta parte a favor de Abraham Levi, titular do depósito. Guillem deixou que os seus olhos se habituassem à escuridão, até que a Lua começou a mostrar-se. Antes de Abraham Levi abandonar Barcelona, Hasdai acompanhara-o a um escrivão, para que assinasse a carta de pagamento do dinheiro que tinha depositado; o dinheiro era, pois, propriedade de Arnau, mas nos livros do cambista ainda constava em nome do judeu e multiplicara-se ano após ano.

Guillem ajoelhou-se junto da parede. Era a segunda pedra da esquina. Começou a forçá-la. Nunca encontrara um momento certo para confessar a Arnau aquele primeiro negócio que fizera nas suas costas, mas em seu nome, e o depósito de Abraham Levi fora crescendo e crescendo. A pedra resistia-lhe. «Não te preocupes», recordava-se de Hasdai lhe ter dito certa vez em que, na sua presença, Arnau lhe tinha falado do judeu, «tenho instruções para que continues assim. Não te preocupes», repetira. Quando Arnau se voltara, Hasdai olhara para Guillem, que só pudera responder-lhe encolhendo os ombros e suspirando. A pedra começou a ceder. Não. Arnau nunca teria admitido trabalhar com dinheiro proveniente da venda de escravos. A pedra cedeu e, debaixo dela, Guillem encontrou o papel, cuidadosamente envolto num pano. Não se preocupou com lê-lo; sabia o que dizia. Colocou de novo a pedra no buraco e colocou-se perto da janela. Não ouviu nada de anormal, e por isso abandonou a mesa de Arnau, depois de voltar a fechá-la.

 

Os soldados da Inquisição tiveram de entrar para o irem buscar à masmorra; dois deles agarraram-no por baixo dos braços e arrastaram-no, enquanto Arnau tropeçava e caía. As escadas de acesso ao andar de cima bateram-lhe nos tornozelos, e Arnau deixou-se arrastar pelos corredores do palácio. Não tinha dormido. Nem sequer prestou atenção aos monges e sacerdotes que olhavam para ver como ele era levado à presença de Nicolau. Como fora Joan capaz de o denunciar?

Desde que o tinham devolvido às masmorras, Arnau chorara, gritara e batera com violência contra a parede. Porquê Joan? E se Joan o tinha denunciado, que tinha Aledis que ver com tudo aquilo? E a mulher presa? Aledis, sim, tinha motivos para o odiar; abandonara-a e depois fugira dela. Estaria conluiada com Joan? Teria mesmo ido buscar Mar? E, se assim era, porque não tinha ela vindo visitá-lo? Era assim tão difícil comprar um vulgar carcereiro?

Francesca ouvira-o a soluçar e a bradar. Quando ouvira os gritos do filho, o seu corpo encolhera-se ainda mais. Teria gostado de olhar para ele e de lhe responder, até mentir-lhe, mas consolá-lo. «Não conseguirás resistir», avisara ela a Aledis. Mas... E ela? Seria capaz de resistir muito mais tempo àquela situação? Arnau continuara a queixar-se ao Universo, e Francesca encolhera-se contra as frias pedras da parede.

As portas da sala abriram-se e Arnau foi introduzido nela. O tribunal já estava reunido. Os soldados arrastaram Arnau até ao centro da sala e soltaram-no; Arnau caiu de joelhos, com as pernas abertas, cabisbaixo. Ouviu que Nicolau rompia o silêncio, mas foi incapaz de compreender as suas palavras. Que lhe importava já o que aquele frade lhe poderia fazer, se o seu próprio irmão já o tinha condenado? Não tinha ninguém. Não tinha nada.

«Não te iludas», respondera-lhe o aguazil, quando tentara comprá-lo oferecendo-lhe uma pequena fortuna, «já não tens dinheiro.» Dinheiro! O dinheiro fora a causa que levara o rei a casá-lo com Elionor; o dinheiro estava por detrás da atitude da sua esposa, que provocara a detenção. Seria o dinheiro que tinha movido Joan? — Trazei a mãe!

Os sentidos de Arnau não puderam continuar impassíveis perante aquela ordem.

Mar e Aledis, com Joan um pouco afastado delas, permaneciam na Praça Nova, em frente ao palácio do bispo. «A corte do infante D. Juan receberá o meu senhor esta tarde», limitara-se a dizer-lhes um dos escravos de Guillem no dia anterior. Nessa manhã, ao raiar do dia, o mesmo escravo voltara a apresentar-se diante delas para lhes dizer que o seu senhor queria que esperassem na Praça Nova.

E ali estavam os três, especulando acerca das razões pelas quais Guillem lhes teria enviado aquele recado.

Arnau ouviu abrirem-se as portas da sala atrás de si, e os soldados que voltavam a entrar e percorriam a distância ate onde ele se encontrava. Depois, voltaram a ocupar os seus postos junto à porta.

Sentiu a presença dela. Viu os seus pés descalços, enrugados, sujos e em chagas, ambos a sangrarem. Nicolau e o bispo sorriram quando viram Arnau atento aos pés da sua mãe. Virou a cabeça para ela. Ainda com ele de joelhos, a idosa não era nem um palmo mais alta do que ele; toda ela estava encolhida. Os dias de prisão não tinham passado sem marcas para Francesca: o seu escasso cabelo grisalho estava eriçado e emaranhado; o seu perfil, com o olhar fixo no tribunal, era como um saco de pele vazia, sem um indício de carne. Arnau não lhe conseguiu ver os olhos, afundados em órbitas que pareciam inchadas.

— Francesca Esteve — disse Nicolau —, juras pelos quatro evangelhos?

A voz da idosa, dura e firme, surpreendeu todos os presentes.

— Juro por eles — respondeu —, mas cometeis um erro; não me chamo Francesca Esteve.

— Como te chamas, então? — perguntou Nicolau.

— O meu nome é Francesca, mas não Esteve, e sim Ribes. Francesca Ribes — acrescentou, elevando a voz.

— Devemos recordar-te o teu juramento? — interveio o bispo.

— Não. Por esse juramento estou a dizer a verdade. 0 meu nome é Francesca Ribes.

— Não és então filha de Pere e Francesca Esteve? — perguntou Nicolau.

— Nunca cheguei a conhecer os meus pais.

— Casaste com Bernat Estanyol no senhorio de Navarcles? — Arnau endireitou-se. Bernat Estanyol?

— Não. Nunca estive nesse lugar, nem nunca casei com ninguém.

— Então não tiveste um filho chamado Arnau Estanyol?

— Não. Não conheço nenhum Arnau Estanyol. Arnau virou-se para Francesca.

Nicolau Eimeric e Berenguer d'Erill cochicharam entre si. Depois, o inquisidor dirigiu-se ao notário.

— Escuta — ordenou a Francesca.

— Declaração de Jaume de Bellera, senhor de Navarcles — começou a ler o notário.

Arnau cerrou os olhos ao ouvir o nome de Bellera. O pai falara-lhe dele. Escutou com curiosidade a suposta história da sua vida, aquela que o pai resolvera com a morte. A chamada da mãe ao castelo para amamentar o filho recém-nascido de Llorenç de Bellera. Bruxa? Ouviu pela boca do notário a versão de Jaume de Bellera sobre a fuga da sua mãe quando, recém-nascido, sofrera os primeiros ataques do mal do Diabo.

— Depois — prosseguiu o notário —, o pai de Arnau Estanyol, Bernat Estanyol, libertou-o aproveitando um descuido da guarda, depois de assassinar um rapaz inocente, e ambos fugiram para Barcelona, abandonando as suas terras. Já na cidade condal, foram acolhidos pela família do comerciante Grau Puig. O denunciante tem por adquirido que a bruxa se tornou uma mulher pública. Arnau Estanyol é filho de uma bruxa e de um assassino — terminou.

— Que tens a dizer? — perguntou Nicolau a Francesca.

— Que vos enganastes na meretriz — respondeu com simplicidade a idosa.

— Tu! — gritou o bispo, apontando para ela — Mulher pública! Ousas pôr em dúvida o acerto da Inquisição?

— Não estou aqui como meretriz — respondeu de novo Francesca —, nem para ser julgada por isso. Santo Agostinho escreveu que seria Deus a julgar as meretrizes.

O bispo enrubesceu.

— Como te atreves a citar Santo Agostinho? Como?

Berenguer d'Erill continuou a gritar, mas Arnau já não o ouvia. Santo Agostinho escreveu que seria Deus a julgar as meretrizes. Santo Agostinho escreveu... Havia anos... numa taberna de Figueras, ouvira essas mesmas palavras de uma mulher pública... Não se chamava Francesca? Santo Agostinho escreveu... Como era possível?

Arnau virou o rosto para Francesca: vira-a duas vezes na sua vida, em dois encontros cruciais. Todos os membros do tribunal viram a atitude dele para com a mulher.

— Observa o teu filho! — gritou Eimeric. — Negas que és a sua mãe?

Arnau e Francesca ouviram como aqueles gritos ressoavam nas paredes da sala; ele, prostrado, virado para a idosa; ela com o olhar em frente, fixo no inquisidor.

— Olha para ele! — tornou a gritar Nicolau, apontando para Arnau.

Uma leve tremura percorreu o corpo de Francesca, perante o ódio daquele dedo acusador. Só Arnau, ao seu lado, percebeu como a pele flácida que pendia do pescoço dela se tetraía quase imperceptivelmente. Francesca não deixou de olhar para o inquisidor.

— Confessarás — assegurou-lhe Nicolau, mastigando a palavra. — Garanto-te que confessarás.

— Via fora!

O grito perturbou a tranquilidade da Praça Nova. Um rapaz atravessou-a a correr e a repetir a chamada às armas.

Via fora! Via fora! Aledis e Mar olharam uma para a outra e depois ambas olharam para Joan.

— Não estão a tocar os sinos — respondeu este, encolhendo os ombros.

Santa Maria não tinha sinos. No entanto, o Via fora percorrera toda a cidade condal e as pessoas, intrigadas, reuniam-se na Praça do Blat esperando encontrar o pendão de Sant Jordi junto à pedra que marcava o centro da praça. Em vez disso, dois bastaixos armados com balestras dirigiam os homens para Santa Maria.

Na Praça de Santa Maria, no andor com dossel, aos ombros dos bastaixos, a Virgem de la Mar esperava que o povo se reunisse à sua volta. Em frente à Virgem, os próceres da confraria, sob o seu pendão, recebiam a multidão que descia pela Rua de la Mar, um deles com a chave da Sagrada Urna pendurada ao pescoço. As pessoas apinhavam-se em volta da Virgem, cada vez em maior número. Afastado, junto à porta da mesa de Arnau, Guillem observava e escutava com atenção.

— A Inquisição raptou um cidadão, o cônsul de la Mar de Barcelona — explicavam os próceres da confraria.

— Mas a Inquisição... — disse alguém.

— A Inquisição não depende da nossa cidade — respondeu um dos próceres —, nem sequer do rei. Não obedece às ordens do Conselho dos Cem, nem do regedor, nem do bailio. Nenhum destes nomeia os seus membros; quem o faz é o Papa, um Papa estrangeiro que só quer o dinheiro dos nossos cidadãos. Como podem acusar de herege um homem que se dedicou sempre à Virgem de la Mar?

— Só querem o dinheiro do nosso cônsul! — gritou um dos reunidos.

- Mentem para ficarem com o nosso dinheiro!

- Odeiam o povo catalão — alegou outro dos próceres.

as pessoas iam transmitindo a conversa de umas para as outras. Os gritos começavam a ecoar na Rua de la Mar.

Guillem viu os próceres da confraria dos bastaixos a darem explicações aos das outras confrarias da cidade. Quem não receava pelo seu dinheiro? Se bem que também a Inquisição fosse temível. A denúncia mais absurda...

— Temos de defender os nossos privilégios — ouviu-se alguém dizer, depois de falar com os bastaixos.

O povo começava a agitar-se. As espadas, os punhais e as balestras sobressaíam por cima das cabeças, agitando-se ao som da chamada do Via fora.

A gritaria tornou-se ensurdecedora. Guillem viu chegarem alguns dos conselheiros da cidade, e aproximou-se imediatamente do grupo que discutia em frente à passagem da Virgem.

— E os soldados do rei? — conseguiu ouvir um dos conselheiros a perguntar.

O prócer repetiu exactamente as palavras que Guillem lhe tinha dito:

— Vamos à Praça do Blat e vejamos o que faz o regedor. Guillem afastou-se deles. Durante um instante, fixou o olhar na pequena imagem de pedra que repousava sobre os ombros dos bastaixos. «Ajuda-o», rogou-lhe, em silêncio.

A comitiva pôs-se em marcha. «Para a Praça do Blat», dizia o povo.

Guillem uniu-se à multidão que subia pela Rua de la Mar até à praça, onde se erguia o palácio do regedor. Poucos sabiam que o objectivo da host de Barcelona era verificar que posição tomaria o regedor, pelo que, enquanto, por entre os gritos do povo, a Virgem era instalada no local onde deveriam encontrar-se os pendões de Sant Jordi e da cidade, não teve problema em aproximar-se do próprio palácio.

Do centro da praça, junto da Virgem e do pendão dos bastaixos, próceres e conselheiros olharam para o palácio. As pessoas começaram a perceber. Fez-se silêncio, e todos se voltaram para o palácio. Guillem sentiu a tensão. O infante cumpriria o acordo? Os soldados tinham-se colocado em fila, entre o povo e o palácio, com as espadas desembainhadas. O regedor apareceu a uma das janelas, olhou para a massa humana que se apinhava lá em baixo e desapareceu. Ao fim de uns instantes, um oficial do rei apresentou-se na praça; milhares de olhos, incluindo os de Guillem, concentraram-se nele.

— O rei não pode intervir nos assuntos da cidade de Barcelona — exclamou. — Convocar a host é competência da cidade.

De imediato deu ordem aos soldados para se retirarem.

O povo viu os soldados a desfilarem em frente ao palácio e a virarem pela antiga porta da cidade. Antes de o último deles ter desaparecido, um Via fora rompeu o silêncio e fez tremer Guillem.

Nicolau ia ordenar que levassem Francesca de regresso às masmorras para a torturar, quando o repique dos sinos interrompeu o seu discurso. Primeiro foi o de Sant Jaume, na chamada a convocar a host, e a ele se foram somando todos os sinos da cidade. A maioria dos sacerdotes de Barcelona eram fiéis seguidores das doutrinas de Ramon Llull, objecto da ira de Eimeric, e poucos viram com maus olhos a lição que a cidade pretendia dar à Inquisição.

— A host? — perguntou o inquisidor a Berenguer d'Erill. O bispo fez um gesto de ignorância.

A Virgem de la Mar continuava no centro da Praça do Blat, à espera dos pendões das diferentes confrarias, que se iam somando ao dos bastaixos. No entanto, as pessoas dirigiam-se já para o palácio do bispo.

Aledis, Mar e Joan ouviram como se aproximavam, até que o Via fora começou a ecoar na Praça Nova.

Nicolau Eimeric e Berenguer d'Erill aproximaram-se de uma das janelas envidraçadas e viram, depois de a abrir, mais de uma centena de pessoas a gritar e a erguer as armas contra o palácio. A gritaria aumentou quando alguém reconheceu os dois prebostes.

— Que se passa? — gritou Nicolau ao oficial, depois de dar um salto para trás.

— Barcelona veio libertar o cônsul de la Mar — respondeu aos gritos um rapaz à mesma pergunta feita por Joan.

Aledis e Mar fecharam os olhos e apertaram os lábios. Depois, deram-se as mãos e fixaram um olhar cheio de lágrimas para aquela janela que tinha ficado meio aberta.

— Corre a chamar o regedor! — ordenou Nicolau ao oficial.

Entretanto, sem ninguém a prestar-lhe atenção, Arnau levantou-se e agarrou um braço de Francesca.

— Porque tremeste tu, mulher? — perguntou-lhe. Francesca reprimiu uma lágrima que queria cair-lhe pelo rosto, mas não pôde evitar que os seus lábios se contraíssem numa máscara de dor.

— Esquece-te de mim — respondeu-lhe, com a voz entrecortada.

O clamor exterior interrompeu conversas e pensamentos. A host, já completa, aproximava-se da Praça Nova. Passou a antiga porta da cidade, passou junto do palácio do regedor, que observava o espectáculo de uma das janelas percorreu a Rua dos Seders até à Rua da Boquería e, daí enfrente à igreja de Sant Jaume, cujo sino continuava a repicar subiu pela Rua do Bísbe, até ao palácio.

Mar e Aledis, ainda de mão dada, assomaram à boca da rua. Ambas apertaram as mãos com tanta força que os nós dos dedos lhes empalideceram. As pessoas encostavam-se às paredes para deixarem passar a host; primeiro, o pendão dos bastaixos, com os seus próceres, depois a Virgem no andor, e atrás dela, numa amálgama de cores, os pendões de todas as confrarias da cidade.

O regedor recusou-se a receber o oficial da Inquisição.

— O rei não pode intrometer-se nos assuntos da host de Barcelona — respondeu-lhe o oficial real.

— Assaltaram o palácio do bispo — queixou-se o enviado da Inquisição, ainda arquejando.

O outro encolheu os ombros. «Usas essa espada para torturar?», esteve quase a perguntar-lhe. O oficial da Inquisição viu o olhar do outro, e os dois homens encararam-se em silêncio.

— Gostava de ver como se bateria contra uma espada castelhana ou contra um alfange mouro — disse o homem do regedor, apontando para a espada do outro, antes de cuspir para os pés do oficial da Inquisição.

Entretanto, a Virgem já estava em frente ao palácio do bispo, dançando ao som dos gritos da host, sobre os ombros dos bastaixos, que pouco mais podiam fazer do que apressar passo para se juntarem à explosão de paixões do povo de Barcelona.

Alguém lançou uma pedra contra as janelas envidraçadas. A primeira não acertou, mas a segunda, sim, e muitas mais das que se lhes seguiram.

Nicolau Eimeric e Berenguer d'Erill afastaram-se das janelas. Arnau continuava à espera de uma resposta de Francesca. Nenhum dos dois se mexeu.

Várias pessoas batiam às portas do palácio. Um rapaz começou a trepar pelas paredes, com a balestra pendurada às costas. O povo aclamou-o. Outros lhe seguiram os passos.

— Basta! — gritou um dos conselheiros da cidade, tentando afastar aqueles que tentavam arrombar as portas. — Basta! — repetiu, empurrando-os. — Ninguém ataca sem o consentimento da cidade.

Os homens das portas pararam.

— Ninguém ataca sem o consentimento dos conselheiros e dos próceres da cidade — repetiu.

Os que estavam mais perto das portas calaram-se e a mensagem foi-se transmitindo por toda a praça. A Virgem parou de abanar, o silêncio instalou-se na host e a praça assentou os olhos nos seis homens que estavam pendurados na fachada; o primeiro já tinha alcançado a janela partida da sala do tribunal.

— Descei! — ouviu-se.

Os cinco conselheiros da cidade e o prócer dos bastaixos, com a chave da Sagrada Urna pendurada ao pescoço, bateram à porta do palácio.

— Abri à host de Barcelona!

— Abri! — O oficial da Inquisição batia às portas da judiaria, fechadas perante a passagem da host. — Abri à Inquisição!

Tentara chegar ao palácio do bispo, mas todas as ruas que para lá iam estavam cheias de cidadãos. Só havia uma maneira de se aproximar do palácio: através da judiaria, com que confinava. Dali, pelo menos, poderia transmitir a mensagem: o regedor não interviria.

Nicolau e Berenguer receberam a notícia ainda na sala do tribunal: as tropas do rei não viriam em sua defesa, e os conselheiros ameaçavam assaltar o palácio, se não lhes fosse permitida a entrada.

— Que querem?

O oficial olhou para Arnau.

— Libertar o cônsul de la Mar.

Nicolau aproximou-se de Arnau até os seus rostos quase se tocarem.

— Como se atrevem — cuspiu. Depois deu meia-volta e tornou a sentar-se atrás da mesa do tribunal. Berenguer acompanhou-o.

— Deixem-nos entrar — mandou Nicolau.

Libertar o cônsul de la Mar... Arnau endireitou-se o mais que as suas poucas forças lhe permitiram. Desde a pergunta que o filho lhe tinha feito, Francesca tinha o olhar perdido. «O cônsul de la Mar.» O cônsul de la Mar sou eu, disse a Nicolau com o olhar.

Os cinco conselheiros e o prócer dos bastaixos irromperam pelo tribunal. Atrás deles, tentando passar despercebido, Guillem, que tinha obtido permissão do bastaix para os acompanhar.

Guillem ficou à porta, enquanto os outros seis, armados, se punham em frente a Nicolau. Um dos conselheiros adiantou-se ao grupo.

— Que... — começou a dizer Nicolau.

— A host de Barcelona — interrompeu-o o que se tinha adiantado, levantando a voz acima da do inquisidor — ordena-vos que lhe entregueis Arnau Estanyol, cônsul de la Mar.

— Ousais dar ordens à Inquisição? — perguntou Nicolau. O conselheiro não desviou o olhar de Nicolau Eimeric.

— Pela segunda vez — avisou. — A host ordena-vos que lhe entregueis o cônsul de la Mar de Barcelona.

Nicolau balbuciou e procurou a ajuda do bispo.

— Assaltarão o palácio — disse este.

— Não se atreverão — sussurrou Nicolau.

— É um herege! — gritou o inquisidor.

— Não deveríeis julgá-lo primeiro? — ouviu-se do grupo de conselheiros.

Nicolau olhou-os com os olhos semicerrados.

— É um herege — insistiu.

— Pela terceira e última vez, entregai-nos o cônsul de la Mar.

— Que quereis dizer com última vez? — interveio Berenguer d'Erill.

— Olhai lá para fora, se quereis saber.

— Prendam-nos! — saltou o inquisidor, esbracejando para os soldados postados à porta. Guillem afastou-se de onde estava, perto dos soldados. Nenhum dos conselheiros se mexeu. Alguns soldados deitaram a mão às suas armas, mas o oficial de comando indicou-lhes com um gesto que desistissem.

— Prendam-nos! — insistiu Nicolau.

— Vieram negociar — opôs-se o oficial.

— Como te atreves?! — começou a gritar Nicolau, já de pé. O oficial interrompeu-o:

— Dizei-me vós como quereis que defenda este palácio que depois os prenderei; o rei não acorrerá em nossa ajuda. — O oficial fez um gesto para o exterior, de onde começavam a chegar os gritos do povo. Depois, olhou para o bispo, à procura de ajuda.

— Podeis levar o vosso cônsul de la Mar — respondeu o bispo. — Está livre.

Nicolau corou.

— Que dizeis? — exclamou, agarrando o bispo pelo braço.

Berenguer d'Erill safou-se dele com um violento movimento do braço.

— Vós não tendes autoridade para nos entregar Arnau Estanyol — disse o conselheiro, dirigindo-se ao bispo. — Nicolau Eimeric, a host de Barcelona deu-vos três oportunidades; entregai-nos o cônsul de la Mar ou sofrereis as consequências.

Acompanhando as palavras do conselheiro, uma pedra atravessou a sala e foi cair em frente à longa mesa onde estavam sentados os membros do tribunal; até os dominicanos deram um salto nas suas cadeiras. A gritaria voltava a tomar conta da Praça Nova. Entrou outra pedra; o notário levantou-se, pegou nas suas resmas de papel e refugiou-se no canto oposto da sala. O mesmo tentaram fazer os frades negros mais próximos da janela, mas um gesto do inquisidor obrigou-os a interromper a fuga.

— Estais louco? — sussurrou-lhe o bispo.

Nicolau começou a passear os olhos pelos presentes, até encontrar os olhos de Arnau; sorria.

— Herege! — bradou.

— Já basta — disse o conselheiro, dando meia-volta.

— Levai-o! — insistiu o bispo.

— Apenas viemos negociar — alegou o conselheiro, parando e levantando a voz acima do rumor que chegava da praça. — Se a Inquisição não se verga às exigências da cidade e não liberta o preso, terá de ser a host a fazê-lo. É a lei.

Nicolau, de pé em frente a todos eles, tremia, com os olhos injectados de sangue e saindo das órbitas. Mais duas pedras embateram contra as paredes do tribunal.

— Vão assaltar o palácio — disse-lhe o bispo, sem se preocupar que o ouvissem. — Que diferença vos faz? Tendes as declarações dele e os seus bens. Declarai-o herege também; estará condenado a fugir para o resto da vida.

Os conselheiros e o prócer dos bastaixos tinham chegado às portas do tribunal. Os soldados puseram-se de lado, com o medo estampado no rosto. Guillem só prestava atenção à conversa entre o bispo e o inquisidor. Entretanto, Arnau continuava no centro da sala, junto de Francesca, desafiando Nicolau, que se negava a olhá-lo.

— Levai-o! — cedeu, por fim, o inquisidor.

Primeiro foi o povo da praça, e depois o das ruas apinhadas em volta dela; todos estalaram em vivas quando os conselheiros apareceram à porta do palácio com Arnau. Francesca arrastava os pés atrás deles; ninguém se preocupava com ela, quando Arnau a agarrou pelo braço e a puxou para fora do tribunal. No entanto, depois da porta da sala tinha-a soltado e parara. Os conselheiros tinham-no incitado a prosseguir o seu caminho. Nicolau, de pé atrás da mesa observava-o, alheio à chuva de pedras que entrava pela janela; uma delas bateu-lhe no braço esquerdo, mas o inquisidor nem se mexeu. Todos os restantes membros do tribunal se tinham refugiado longe da parede da fachada, por onde entrava a ira da host.

Arnau parara junto dos soldados, apesar dos protestos dos conselheiros, que o apressavam.

— Guillem...

O mouro aproximou-se, agarrou-o pelos ombros e beijou-o na boca.

— Vai com eles, Arnau — incitou-o. — Lá fora esperam-te Mar e o teu irmão. Eu ainda tenho coisas a fazer aqui. Depois irei ver-te.

Apesar dos esforços dos conselheiros para o protegerem, as pessoas lançaram-se sobre Arnau assim que pôs um pé na praça; abraçaram-no, tocaram-lhe e felicitaram-no. Os rostos sorridentes do povo apareceram-lhe à frente numa roda interminável. Ninguém se queria afastar para dar passagem aos conselheiros, e todos aqueles rostos lhe falavam aos gritos.

Os empurrões das pessoas faziam com que o grupo dos cinco conselheiros da cidade e o prócer dos bastaixos, com Arnau no meio, andasse de um lado para o outro. Aquele clamor penetrava no mais fundo de Arnau. A sucessão de caras era interminável. As pernas começaram a fraquejar-lhe - Arnau ergueu os olhos por cima das cabeças, mas apenas conseguiu ver uma infinidade de balestras, espadas e punhais erguidos para o céu, subindo e descendo ao som dos gritos da host, uma e outra vez, uma e outra vez... Quis apoiar-se nos conselheiros e, quando começava a cair, uma pequena figura de pedra apareceu entre o mar de balestras, ondulando ao mesmo ritmo delas.

Guillem regressara e a sua Virgem sorria-lhe. Arnau fechou os olhos e deixou-se levar em bolandas pelos conselheiros.

Nem Mar nem Aledis nem Joan conseguiram aproximar-se de Arnau, por mais empurrões e cotoveladas que dessem. Entreviram-no nos braços dos conselheiros quando a Virgem de la Mar e os pendões iniciaram o seu regresso à Praça do Blat. Quem também o viu foram Jaume de Bellera e Genís Puig, misturados entre o povo. Até aí, tinham unido as suas espadas aos milhares de armas que se erguiam contra o palácio do bispo, e tinham-se visto obrigados a juntar-se aos gritos contra o inquisidor-mor, embora no seu íntimo rezassem para que Nicolau resistisse e o rei mudasse de posição e viesse em socorro do Santo Ofício. Como era possível que aquele rei, por quem tantas vezes tinham arriscado as suas vidas...

Ao ver Arnau, Genís Puig começou a voltear a sua espada no ar e a gritar como um possesso. O senhor de Navardes conhecia aquele grito, o mesmo grito que ouvira noutras ocasiões quando o cavaleiro se lançava ao ataque, a todo o galope e com a espada estendida por cima da cabeça. A arma de Genís chocou contra as balestras e as espadas dos que os rodeavam. As pessoas começaram a afastar-se dele e Genis Puig avançou para a comitiva, que estava prestes a abandonar a Praça Nova pela Rua do Bisbe. Como pretendia ele enfrentar toda a host de Barcelona? Matá-lo-iam; primeiro aele, e depois...

Jaume de Bellera lançou-se sobre o amigo e obrigou a baixar a espada. Os mais próximos deles olharam-nos intrigados, mas a multidão continuava a empurrar para a Rua do Bisbe. A clareira voltou a fechar-se assim que Genis parou de gritar e voltear a espada. O senhor de Bellera afastou -o dos que o tinham visto empreender o ataque.

— Ficaste louco? — disse-lhe.

— Libertaram-no! Livre! — Genís respondeu com o olhar posto nos pendões que já começavam a descer pela Rua do Bisbe. Jaume de Bellera obrigou-o a virar a cara para ele.

— Que pretendes tu?

Genís Puig voltou a olhar para os pendões e tentou li-bertar-se de Jaume de Bellera.

— Vingança! — respondeu.

— Não é esse o caminho certo — avisou-o o senhor de Bellera. — Não é esse o caminho — depois abanou-o com toda a força, até que Genís Puig se acalmou. — Havemos de encontrar maneira...

Genís olhou-o fixamente; os lábios tremiam-lhe.

— Juras?

— Pela minha honra.

A sala do tribunal foi ficando em silêncio, à medida que a host abandonava a Praça Nova. Quando os gritos de vitória do último cidadão ecoaram na Rua do Bisbe, a agitada respiração do inquisidor recobrou o ritmo. Ninguém se mexera. Os soldados tinham aguentado, firmes, atentos a que as suas armas e equipamentos não batessem. Nicolau passeou o olhar pelos presentes; não foi necessária nenhuma palavra: «traidor», recriminou Berenguer d'Erill; «cobardes», insultou os restantes. Quando voltou a atenção para os soldados, descobriu a presença de Guillem.

— Que faz aqui este infiel? — gritou. — Ainda é preciso mais este escárnio?

O oficial não soube o que responder; Guillem entrara com os conselheiros e ele não dera pela sua presença, atento como estava às ordens do inquisidor-mor. Por seu lado, Guillem esteve quase a negar a sua condição de infiel e de proclamar o seu baptismo, mas não chegou a fazê-lo: apesar dos esforços do inquisidor-mor nesse sentido, o Santo Ofício não tinha jurisdição sobre judeus e mouros. Nicolau não podia prendê-lo.

— Chamo-me Sahat de Pisa — disse Guillem, elevando a voz. — Desejava falar convosco.

— Nada tenho que falar com um infiel. Expulsem este...

— Creio que vos interessará aquilo que tenho para vos dizer.

— Pouco me importa o que julgues crer.

Nicolau fez um gesto ao oficial, que desembainhou a espada.

— Talvez vos importe saber que Arnau Estanyol está abatut— insistiu Guillem, começando a recuar perante a ameaça do oficial. — Não podereis dispor de um único soldo da fortuna dele.

Nicolau suspirou e olhou para o tecto da sala. Sem precisar de ordens expressas, o oficial parou de ameaçar Guillem.

— Explica-te, infiel — instou-o o inquisidor.

- Tendes os livros de Arnau Estanyol; consultai-os.

— Julgas que não o fizemos?

— Sabei então que as dívidas do rei foram saldadas.

O próprio Guillem assinara a carta de pagamento e entregara-a a Francesc de Perellós. Arnau nunca chegara a revogar os seus poderes, conforme o mouro comprovara nos livros do magistrado judicial dos cambistas.

Nicolau não mexeu um único músculo. Todos na sala coincidiram no mesmo pensamento: fora essa a razão por que o regedor não interviera.

Decorreram alguns momentos, durante os quais Guillem e Nicolau se olharam firmemente. Guillem sabia o que naquele preciso momento pairava na cabeça do inquisidor: «Que vais tu dizer ao Papa? Como é que lhe vais pagar a quantia que lhe prometeste? E já mandaste a carta; não há possibilidade alguma de que não seja entregue ao Papa. Que lhe vais dizer? Precisarás do apoio dele contra um rei que não tem feito outra coisa a não ser enfrentar-te.»

— E que tens tu que ver com tudo isto? — perguntou por fim Nicolau.

— Posso explicar-vos... em privado — exigiu Guillem, perante o gesto que Nicolau fizera.

— A cidade levanta-se contra a Inquisição, e agora um simples infiel exige-me uma audiência privada! — lamentou-se aos gritos Nicolau. — Alguém pode acreditar nisto?

«Que dirás ao teu Papa?», perguntou-lhe Guillem com o olhar. «Estarás interessado em que toda a Barcelona fique a par das tuas manobras?»

— Revistem-no — ordenou o inquisidor-mor ao oficial , comprovem que não tem armas e acompanhem-no à antecâmara do meu escritório. Esperem lá até que eu chegue.

Vigiado pelo oficial e por dois soldados, Guillem permaneceu de pé na antecâmara do inquisidor-mor. Nunca se atrevera a contar a Arnau a origem da sua fortuna: a importação de escravos. Saldadas as dívidas do rei, se a Inquisição apreendesse a fortuna de Arnau também apreenderia as suas dívidas, e só ele, Guillem, sabia que as entradas a favor de Abraham Levi eram falsas; se ele não mostrasse a carta de pagamento que o judeu assinara um dia, o património de Arnau era inexistente.

 

Assim que pusera os pés na Praça Nova, Francesca afastara-se da porta e colara-se às paredes do palácio. Dali vira como as pessoas se lançavam sobre Arnau e como os conselheiros tentavam sem êxito que o cordão que tinham formado à sua volta não se rompesse. «Olha para o teu filho!» As palavras de Nicolau sobrepuseram-se aos gritos da host. «Não querias que eu olhasse para ele, inquisidor? Pois aqui está, e venceu-te.» Francesca endireitou-se contra a parede quando viu que Arnau desmaiava, mas depressa o povo fez que desaparecesse da sua vista, e tudo se reduziu a um mar de cabeças, armas, pendões e, no meio, a pequena Virgem violentamente sacudida.

Pouco a pouco, sem parar de gritar e de exibir as suas armas, a host foi avançando pela Rua do Bisbe! Francesca não se mexeu de onde estava. Precisava do apoio da parede; as pernas já não a sustinham. Quando a praça começou a esva-ziar-se, viram-se uma à outra. Aledis não quisera seguir Mar e Joan: era impossível que Francesca se encontrasse entre os conselheiros. Uma idosa como ela... E ali estava! Fez-se-lhe um nó na garganta ao ver Francesca agarrada ao único apoio que conseguira encontrar, pequena, encolhida, indefesa...

Começou a correr para ela no mesmo instante em que os soldados da Inquisição, longe já os gritos da host, se atreviam a assomar à porta do palácio do bispo. Francesca tinha ficado parada a um passo da porta.

— Bruxa! — cuspiu-lhe o primeiro soldado.

Aledis parou de repente a pouca distância de Francesca e dos soldados.

— Deixai-a — gritou Aledis. Vários soldados já se encontravam no exterior do palácio. — Deixai-a, ou eu vou chamá-los — ameaçou-os, apontando para as últimas espaldas que ainda se agitavam na Rua do Bisbe.

Alguns soldados olharam para lá; no entanto, outro soldado desembainhou a espada.

— O inquisidor aprovará a morte de uma bruxa — disse. Francesca nem sequer olhou para os soldados. Os seus olhos continuavam fixos na mulher que correra para ela. Quantos anos tinham passado juntas? Quantos sofrimentos?

— Deixem-na, cães! — gritou Aledis, dando alguns passos para trás e apontando para a host; queria correr para eles, mas o soldado já tinha erguido a espada sobre Francesca. A lâmina da arma parecia maior do que ela. — Deixem-na!

— gemeu.

Francesca viu como Aledis levava as mãos ao rosto e caía de joelhos. Francesca recolhera-a em Figueras e desde então... Morreria sem a abraçar?

O soldado já tinha todos os músculos em tensão quando os olhos de Francesca o atravessaram.

— As bruxas não morrem sob a espada — avisou-o com voz serena. A arma tremeu nas mãos do soldado. Que dizia aquela mulher? — Apenas o fogo purifica a morte de uma bruxa — seria verdade, aquilo? O soldado procurou o apoio dos seus companheiros, mas estes começaram a recuar. — se me matares com a espada, perseguir-te-ei para toda a vida, a ti e a todos! — Ninguém poderia imaginar que daquele corpo brotasse o grito que acabavam de ouvir. Aledis ergueu os olhos. — Perseguir-vos-ei a vós — sussurrou Francesca —, às vossas esposas e filhos, e aos filhos dos vossos filhos e às mulheres deles. Eu vos amaldiçoo! — pela primeira vez desde que saíra do palácio, Francesca prescindiu do apoio das pedras. Os restantes soldados já tinham regressado ao interior; só restava o que mantinha a espada ao alto. — Amaldiçoo-te — dísse-lhe, apontando para ele. — Mata-me, e o teu cadáver não terá repouso. Transformar-me-ei em mil vermes e devorarei os teus órgãos. Farei meus os teus olhos para toda a eternidade.

Enquanto Francesca continuava a ameaçar o soldado, Aledis levantou-se e aproximou-se dela. Pôs-lhe um braço por cima dos ombros e começou a andar.

— Os teus filhos sofrerão a lepra... — passaram as duas por baixo da espada do soldado. — A tua mulher tornar-se-á meretriz do Diabo...

Não olharam para trás. O soldado permaneceu ainda um momento com a espada ao alto, mas depois baixou-a e virou-se para as duas figuras que cruzavam lentamente a praça.

— Vamo-nos daqui, minha filha — disse Francesca assim que chegaram à Rua do Bisbe, já deserta.

Aledis estremeceu.

— Tenho de passar pela hospedaria...

— Não, não. Vamo-nos daqui, já. Sem perder um momento.

— E Teresa e Eulália?

— Já lhes mandaremos recado — respondeu Francesca apertando contra si a rapariga de Figueras. Ao chegar à Praça de Sant Jaume, contornaram a judiaria em direcção à Porta da Boquería, que era a mais próxima. Caminhavam abraçadas, em silêncio.

— E Arnau? — perguntou Aledis. Francesca não respondeu.

A primeira parte correra conforme tinha planeado. Naquele momento, Arnau devia estar com os bastaixos, no pequeno barco de cabotagem que Guillem tinha fretado. 0 pacto com o infante D. Juan tinha sido muito preciso; Guillem recordou as palavras: «A única coisa a que o lugar-tenente se compromete», dissera-lhe Francesc de Perellós depois de o ouvir, «é a não ir contra a host de Barcelona; em caso algum desafiará a Inquisição, tentará forçá-la a fazer alguma coisa ou porá em dúvida as suas resoluções. Se o teu plano tiver êxito e Estanyol for libertado, o infante não o defenderá se a Inquisição voltar a prendê-lo ou condená-lo; está claro?» Guillem anuíra e entregara-lhe a carta de pagamento dos empréstimos baratos concedidos ao rei. Agora, restava a segunda parte: convencer Nicolau de que Arnau estava arruinado e de que pouco poderia conseguir perseguindo-o ou condenando-o. Poderiam ter fugido todos para Pisa e deixar os bens de Arnau em poder da Inquisição; de facto, já os tinha, e a condenação de Arnau, mesmo sem a sua presença, obrigaria à apreensão dos bens. Por isso, Guillem tentava enganar Eimeric; não tinha nada a perder e havia muito aganhar: a tranquilidade de Arnau, e que a Inquisição não o perseguisse para o resto da vida.

Nicolau fê-lo esperar por várias horas, ao fim das quais apareceu acompanhado por um pequeno judeu vestido com a obrigatória levita negra, em que se destacava a rodela amarela. O judeu trazia vários livros debaixo do braço e seguia o inquisidor com passos curtos e rápidos. Evitou olhar para Guillem quando Nicolau ordenou a ambos, com um gesto que entrassem no escritório.

Não os convidou a sentarem-se. Só ele o fez, atrás da sua mesa.

— Se é certo o que dizes — começou a dizer, dirigindo-se a Guillem —, Estanyol está abatut.

— Bem sabeis que é verdade — disse Guillem. — O rei nada deve a Arnau Estanyol.

— Nesse caso, poderia mandar vir aqui o magistrado municipal dos câmbios — disse o inquisidor. — Seria irónico que a mesma cidade que o libertou do Santo Ofício o matasse agora por abatut.

«Isso nunca acontecerá», esteve tentado a dizer-lhe Guillem; «eu tenho a liberdade de Arnau. Basta-me apresentar a carta de pagamento de Abraham Levi...» Não. Nicolau não o recebera para agora o ameaçar de denunciar Arnau ao magistrado municipal. Queria o seu dinheiro, o dinheiro que prometera ao seu Papa, o mesmo dinheiro que aquele judeu, decerto o amigo de Jucef, lhe dissera de que poderia dispor.

Guillem calou-se.

— Podia fazer isso — insistiu Nicolau.

Guillem abriu as mãos e o inquisidor perscrutou-o.

— Quem és tu? — perguntou-lhe por fim.

— Chamo-me...

— Pois, pois — interrompeu-o Eimeric com a mão. — Chamas-te Sahat de Pisa. O que eu queria saber é o que faz um pisano em Barcelona, a defender um herege.

— Arnau Estanyol tem muitos amigos, mesmo em Pisa.

— Infiéis e hereges! — gritou Nicolau.

Guillem voltou a abrir as mãos. Quanto tempo demoraria até sucumbir ao dinheiro? Nicolau pareceu entendê-lo. Ficou em silêncio alguns instantes.

— Que têm a propor à Inquisição esses amigos de Arnau Estanyol? — cedeu por fim.

— Nestes livros — disse Guillem, apontando para o pequeno judeu, que não tirara os olhos da mesa de Nicolau — constam entradas a favor de um credor de Arnau Estanyol; uma fortuna.

Pela primeira vez, o inquisidor dirigiu-se ao judeu.

— É verdade?

— Sim — respondeu o judeu. — Desde o início da actividade, há entradas a favor de Abraham Levi...

— Outro herege! — interrompeu-o Nicolau. Os três ficaram em silêncio.

— Continua — ordenou-lhe o inquisidor.

— Essas entradas multiplicaram-se ao longo dos anos. No dia de hoje, poderão ser mais de quinze mil libras.

Uma luz brilhou nos olhos do inquisidor. Nem Guillem nem o judeu deixaram de o notar.

— E então? — perguntou, dirigindo-se a Guillem. — Os amigos de Arnau Estanyol poderiam conseguir que o judeu renunciasse ao seu crédito. Nicolau recostou-se na cadeira de madeira.

— O vosso amigo — disse — está em liberdade. Ninguém oferece dinheiro. Porque iria alguém, por mais amigo que fosse, ceder quinze mil libras?

— Arnau Estanyol foi apenas libertado pela host. Guillem sublinhou o «apenas» — Arnau podia continuar a considerar-se submetido ao Santo Ofício. Chegara o

momento. Estivera a avaliá-lo durante a espera na antecâmara, enquanto observava as espadas dos oficiais da Inquisição. Não poderia menosprezar a inteligência de Nicolau. A Inquisição não tinha jurisdição sobre um mouro... a não ser que Nicolau demonstrasse que ele o tinha atacado deliberadamente. Nunca podia propor um pacto com um inquisidor. Teria de ser Eimeric a oferecer-se. Um infiel não podia tentar comprar o Santo Ofício.

Nicolau incitou-o, com o olhar, a continuar. Não me apanhas, pensou Guillem.

— Talvez tenhais razão — disse. — A verdade é que não há uma razão lógica, uma vez libertado Arnau, para que alguém avance com essa quantia. — Os olhos do inquisidor tornaram-se fendas estreitas. — Não compreendo por que razão me mandaram aqui; disseram-me que entenderíeis, mas partilho da vossa acertada opinião. Lamento ter-vos feito perder tempo.

Guillem esperou que Nicolau se decidisse. Quando o inquisidor se endireitou na cadeira e abriu os olhos, Guillem soube que tinha ganho.

— Ide-vos — disse ao judeu. Assim que o homenzinho fechou a porta, Nicolau prosseguiu, mas continuou a não lhe dizer para se sentar. — O vosso amigo está livre, é verdade, mas o processo contra ele não está encerrado. Tenho a confissão dele. Mesmo livre, posso sentenciá-lo como herege relapso. A Inquisição — continuou, como se falasse apenas para si próprio — não pode executar as sentenças de morte; tem de ser o braço secular, o rei. Os vossos amigos — acrescentou, dirigindo-se a Guillem — devem saber que a vontade do rei é volúvel. Talvez um dia...

— Estou certo de que tanto vós como sua majestade farão o que têm de fazer — respondeu Guillem.

— O rei tem muito claro o que deve fazer: lutar contra o infiel e levar a Cristandade a todos os recantos do reino, mas a Igreja... Muitas vezes é difícil saber qual é a melhor opção para os interesses de um povo sem fronteiras. O vosso amigo, Arnau Estanyol, confessou a sua culpa e essa confissão não pode ficar sem castigo. — Nicolau parou e voltou a examinar Guillem. «Tens de ser tu», disse-lhe Guillem com o olhar. — Contudo — prosseguiu o inquisidor, perante o silêncio do seu interlocutor —, a Igreja e a Inquisição devem ser benevolentes se com essa atitude conseguem fazer face a outras necessidades que, posteriormente, revertam para o bem comum. Os teus amigos, esses que te mandaram cá, aceitariam uma condenação menor?

Não vou negociar contigo, Eimeric, pensou Guillem. «Só Alá, louvado seja o seu nome, sabe o que poderias conseguir se me prendesses; só Ele sabe se atrás destas paredes não haverá olhos espiando-nos e ouvidos escutando-nos. Tens de ser tu a propor a solução.»

— Nunca ninguém porá em dúvida as decisões da Inquisição — respondeu-lhe.

Nicolau ajeitou-se na cadeira.

— Solicitaste uma audiência privada alegando que poderias ter algo que me interessaria. Disseste que uns amigos de Arnau Estanyol poderiam conseguir que o maior credor dele tenunciasse a um crédito no valor de quinze mil libras. Que queres tu, afinal, infiel?

— Sei o que não quero — limitou-se a responder Guillem.

— Está bem — disse Nicolau, levantando-se. — Uma condenação mínima: sambenito durante todos os domingos de um ano na catedral, e os teus amigos conseguem a renúncia do crédito.

— Em Santa Maria — Guillem surpreendeu-se ao ouvir-se a si próprio, mas as palavras tinham surgido do mais profundo do seu ser. Onde, senão em Santa Maria, poderia Arnau cumprir a pena do sambenito?

 

Mar tentou seguir o grupo que levava Arnau, mas a multidão de pessoas reunidas não lho permitia. Recordou-se das últimas palavras de Aledis:

— Cuida dele — gritara-lhe por cima do clamor da host. Sorria.

Mar avançou a toda a pressa, tropeçando de costas para a enxurrada humana que a arrastava.

— Cuida muito bem dele — repetira Aledis enquanto Mar continuava a olhar para ela, tentando esquivar-se de todos os que vinham de frente para ela. — Eu quis fazer isso há muitos anos...

De repente, desaparecera.

Mar esteve a ponto de cair no chão e ser espezinhada. «A host não é sítio para mulheres», ralhou-lhe um homem que não tivera nenhum pejo em empurrá-la. Conseguiu dar a volta. Procurou os pendões que estavam já a chegar à Praça de Sant Jaume, no final da Rua do Bisbe. Pela primeira vez nessa manhã, Mar deixou de lado as lágrimas, e da sua garganta saiu um grito que calou os daqueles que a rodeavam. Nem sequer pensou em Joan. Gritou, empurrou, pisou os que a precediam, e foi abrindo passagem à cotovelada.

A host concentrou-se na Praça do Blat. Mar estava bastante perto da Virgem, a qual, aos ombros dos bastaixos, dançava sobre a pedra do centro da praça, mas Arnau... Mar julgou distinguir uma discussão entre alguns homens e os conselheiros da cidade. No meio deles... Sim, ali estava. Só lhe faltavam alguns passos, mas na praça o povo estava muito compacto. Arranhou o braço a um homem que se negou a afastar-se. O homem desembainhou um punhal e, por instantes...

No entanto, acabou por começar a rir às gargalhadas deixando-a passar. Atrás dele teria de estar Arnau, mas quando virou costas, só encontrou os conselheiros e o prócer dos bastaixos.

— Onde está Arnau? — perguntou-lhe, arquejando e suando.

O bastaix, imponente, com a chave da Sagrada Urna pendurada ao pescoço, olhou para baixo, para a observar. Era segredo. A Inquisição...

— Sou Mar Estanyol — disse-lhe, atropelando as palavras. — Sou a filha órfã de Ramon, o bastaix. Deves tê-lo conhecido.

Não, não o conhecera, mas ouvira falar dele, da sua filha, e de que Arnau a tinha perfilhado.

— Corre para a praia — limitou-se a dizer-lhe.

Mar atravessou a praça e voou pela Rua de la Mar, vazia de gente da host. Alcançou-os perto do consulado; um grupo de seis bastaixos levava Arnau aos tropeções, ainda aturdido.

Mar quis lançar-se sobre eles, mas antes que pudesse fazê-lo, um dos bastaixos interpôs-se; as instruções do pisano tinham sido muito precisas: ninguém podia saber o paradeiro de Arnau.

— Deixa-me! — gritou Mar, esbracejando e pontapeando no ar.

O bastaix tinha-a agarrado pela cintura, tentando não a magoar. Não pesava nem metade do que pesava qualquer pedra ou qualquer dos fardos que carregava todos os dias.

— Arnau! Arnau!

Quantas vezes sonhara ouvir aquele grito? Quando abria os olhos via-se levado em bolandas por homens cujos rostos nem sequer conseguia distinguir. Levavam-no para qualquer lugar, apressados, em silêncio. Que se estava a passar? Onde estava? Arnau! Sim, era o mesmo grito que um dia lhe tinham lançado em silêncio os olhos de uma rapariga que ele atraiçoara, na casa de Felip de Ponts.

Arnau! A praia. As recordações confundiram-se com o rumor das ondas e com a brisa de odor salobro. Que fazia na praia?

— Arnau!

A voz chegou-lhe de longe.

Os bastaixos meteram-se na água, em direcção à barca que deveria levar Arnau até ao laude fretado por Guillem, que esperava a meio do porto. A água do mar salpicou Arnau.

— Arnau.

— Esperem — balbuciou, tentando levantar-se. — Esta voz... Quem...

— É uma mulher — respondeu um dos bastaixos. —

Não causará problemas. Temos de...

Arnau aguentava de pé, ao lado da barca, agarrado pelas axilas pelos bastaixos. Olhou para a praia. «Mar espera-te.» As palavras de Guillem calaram tudo o que o rodeava. Guillem, Nicolau, a Inquisição, as masmorras... Tudo veio em turbilhão à sua mente.

— Meu Deus! — exclamou. — Tragam-na. Peço-vos. Um dos bastaixos apressou-se a ir até onde Mar continuava a ser retida.

Arnau viu-a correr para ele.

Os bastaixos, que também olhavam para ela, deixaram de o fazer quando Arnau se libertou deles; parecia que a mais suave das ondas poderia derrubá-lo só de lhe chegar aos tornozelos.

Mar parou diante de Arnau, que tinha os braços caídos; então, viu uma lágrima que lhe caía pelo rosto. Aproximou--se e recolheu-a com os lábios.

Não trocaram uma palavra. Ela própria ajudou os bastaixos a fazê-lo subir para a barca.

De nada lhe serviria enfrentar o rei de forma tão directa. Desde que Guillem se fora embora, Nicolau andava de um lado para o outro no seu escritório. Se Arnau não tinha dinheiro, também de nada lhe servia sentenciá-lo. O Papa nunca lhe perdoaria a promessa que lhe tinha feito. O pisano tinha-o apanhado. Se queria cumprir com o Papa...

Umas batidas à porta distraíram a sua atenção, mas depois de desviar o olhar para ela, Nicolau continuou no seu caminhar para trás e para diante.

Sim. Uma condenação menor salvaria a sua reputação como inquisidor, evitaria que tivesse de enfrentar o rei e proporcionar-lhe-ia o dinheiro suficiente para... As batidas na porta repetiram-se. Nicolau voltou a olhar para a porta. Teria gostado de levar aquele Estanyol à fogueira. E a mãe dele?

Que seria feito da velha? Decerto se aproveitara da confusão... As batidas voltaram a ressoar no interior da sala. Nicolau, perto da porta, abriu-a com violência.

— Que é?

Jaume de Bellera, com o punho cerrado, ia para bater de novo.

— Que quereis? — perguntou o inquisidor-mor, olhando para o oficial que deveria estar de guarda na antecâmara e que agora se encontrava encurralado, perante a espada de Genís Puig. — Como vos atreveis a ameaçar a vida de um soldado do Santo Ofício? — bradou.

Genís afastou a espada e olhou para o seu companheiro.

— Estamos à espera há muito tempo — respondeu o senhor de Navarcles.

— Não quero receber ninguém — disse Nicolau ao oficial, já livre da ameaça de Genís. —Já te tinha dito.

O inquisidor fez menção de fechar a porta, mas Jaume de Bellera impediu-o.

— Sou barão da Catalunha — disse, arrastando as palavras — e mereço o respeito devido à minha condição.

Genís concordou com as palavras do amigo e voltou a interpor-se, de espada na mão, no caminho do oficial, que tentava acorrer em auxílio do inquisidor.

Nicolau olhou para os olhos do senhor de Bellera. Podia pedir ajuda; o resto da guarda não tardaria em acorrer, mas aqueles olhos raiados de sangue... Quem sabia o que poderiam fazer dois homens acostumados a impor a sua vontade? Suspirou. Na verdade, aquele não parecia ser o melhor dia da sua vida.

— Muito bem, barão — cedeu. — Que quereis?

— Prometestes condenar Arnau Estanyol e, em vez disso, deixaste-o escapar.

— Não me lembro de ter prometido nada, e quanto a tê-lo deixado escapar... Foi o vosso rei, esse rei cuja nobreza reclamais para vós, quem não acorreu em socorro da Igreja. Pedi-lhe a ele as explicações.

Jaume de Bellera balbuciou algumas palavras indecifráveis e agitou as mãos.

— Podeis condená-lo ainda — disse, por fim.

— Fugiu — alegou Nicolau.

— Nós o traremos! — gritou Genís Puig, ameaçando ainda o oficial, mas com a atenção posta neles.

Nicolau virou o olhar para o cavaleiro. Porque teria de lhes dar explicações?

— Dar-vos-emos provas suficientes do pecado dele — interveio Jaume de Bellera. — A Inquisição não pode...

— Que provas? — ladrou Eimeric. Aqueles dois pedantes estavam a dar-lhe a oportunidade de salvar a cara. Se desmentisse essas provas... — Que provas? — repetiu. — A denúncia de um endemoninhado como vós, barão? —Jaume de Bellera tentou intervir, mas Nicolau impediu-o, com um movimento violento da mão. — Estive a procurar esses documentos que dissestes que o bispo vos entregou quando nascestes — olharam-se nos olhos. — Não os encontrei, sabeis?

Genís Puig deixou cair a mão que segurava a espada.

— Devem estar nos arquivos do bispado — defendeu-se Jaume de Bellera.

Nicolau limitou-se a negar com a cabeça.

— E vós, cavaleiro? — gritou Nicolau, dirigindo-se a Genís. — Que tendes vós contra Arnau Estanyol? — O inquisidor reconheceu em Genís o medo de quem esconde

a verdade; aquele era o seu trabalho. — Sabeis que mentir à Inquisição é um delito? — Genís procurou apoio em Jaume de Bellera, mas o nobre tinha o olhar perdido num ponto qualquer do escritório do inquisidor. Estava por sua conta. — Que me dizeis, cavaleiro? — Genís mexeu-se, procurando onde esconder o olhar. — Que vos fez o cambista? — assanhou-se Nicolau. — Talvez vos tenha arruinado?

Genís respondeu. Foi apenas um segundo, um segundo em que olhou de soslaio para o inquisidor. Era isso. Que mais poderia fazer um cambista a um cavaleiro, senão arruiná-lo?

— A mim, não — respondeu ingenuamente.

— A vós, não? Então, ao vosso pai? Genís baixou os olhos.

— Tentastes utilizar o Santo Ofício através da mentira! Denunciastes em falso para vossa vingança pessoal!

Jaume de Bellera regressou à realidade, sacudido pelos gritos do inquisidor.

— Ele queimou o pai — insistiu Genís, com a voz já quase inaudível.

Nicolau sacudiu o ar com uma mão aberta. Que seria melhor fazer agora? Prendê-los e levá-los a julgamento não faria mais do que manter vivo um assunto que era preferível enterrar o mais depressa possível.

— Comparecereis perante o notário e retirareis as vossas denúncias; caso contrário... Entendido? — gritou, perante a passividade de ambos. Os dois homens anuíram. — A Inquisição não pode julgar um homem baseando-se em falsas denúncias. Ide — terminou, acompanhando a sua ordem com um gesto dirigido ao oficial.

— Juraste vingança por tua honra — recordou Genís Puig a Jaume de Bellera, quando se voltavam para a porta.

Nicolau ouviu a exigência do cavaleiro. Também ouviu a resposta:

— Nunca um senhor de Bellera deixou uma promessa por cumprir — afirmou Jaume de Bellera.

O inquisidor-mor semicerrou os olhos. Já tinha o suficiente. Deixara em liberdade um acusado. Acabara de mandar duas testemunhas retirar as suas acusações. Estava a manter pactos comerciais com um... um pisano? Nem sabia com quem! E se Jaume de Bellera cumprisse a sua promessa antes de ele aceder à fortuna que restava a Arnau? Manteria o pisano o acordo? Aquele assunto tinha de ser silenciado definitivamente.

— Pois desta vez — bradou, nas costas dos dois homens —, o senhor de Navarcles deixará a promessa por cumprir.

Os dois homens viraram-se.

— Que dizeis? — exclamou Jaume de Bellera.

— Que o Santo Ofício não pode permitir que dois... — fez um gesto de desprezo com a mão — dois seculares ponham em causa a sentença que ditei. Esta é a justiça divina. Não existe outra vingança! Entendeis, Bellera? — O nobre hesitou. — Se cumprirdes a vossa promessa, julgar-vos-ei como endemoninhado. Entendeis-me, agora?

— Mas uma promessa...

— Em nome da Santa Inquisição, liberto-vos dela. — Jaume de Bellera anuiu. — E vós — acrescentou, dirigindo-se a Genís Puig — tende muito cuidado de não vingar aquilo que a Inquisição já julgou. Expliquei-me com clareza?

Genís Puig assentiu.

O laude, uma pequena embarcação de dez metros com vela latina, procurara refúgio numa enseada recôndita das costas de Garraf, escondida da passagem de outras embarcações, e a que apenas se podia aceder por mar.

Uma barraca precariamente construída pelos pescadores com os destroços que o Mediterrâneo arrojava à baía rompia a monotonia das pedras e dos seixos cinzentos que lutavam com o sol por devolver a luz e o calor com que as acariciava.

O piloto do laude tinha recebido, juntamente com uma boa bolsa de moedas, ordens concretas de Guillem. «Deixa-o lá com um marinheiro de confiança, com água e comida suficiente, e depois dedica-te à cabotagem, mas escolhe portos próximos e regressa a Barcelona pelo menos uma vez em cada dois dias para receberes instruções minhas; receberás mais dinheiro quando tudo terminar», prometera-lhe, para ganhar a lealdade dele. Não teria sido necessário fazê-lo: Arnau era querido pela gente do mar, que o considerava um cônsul justo, mas o homem aceitou o bom dinheiro. No entanto, não contava com Mar e a rapariga recusou-se a partilhar os cuidados a dispensar a Arnau com um marinheiro.

— Eu tratarei dele — asseverou-lhe, assim que desembarcaram na baía, e acomodaram Arnau na pequena cabana.

— Mas o pisano... — tentou intervir o piloto.

— Diz ao pisano que Mar está com ele, e se ele vir algum inconveniente, regressa com o teu marinheiro.

Exprimiu-se com uma autoridade invulgar numa mulher. O piloto olhou para ela e tentou opor-se de novo.

— Vai — limitou-se ela a ordenar-lhe.

Quando o laude se perdeu atrás das rochas que protegiam a enseada, Mar respirou fundo e levantou o rosto para o céu. Quantas vezes se negara a si própria aquela fantasia?

Quantas vezes, com a recordação de Arnau presente, tentara convencer-se de que o seu destino era outro? E agora... Mar olhou para a cabana. Continuava a dormir. Durante a travessia, Mar comprovara que ele não tinha febre nem estava ferido. Sentara-se junto à borda do barco e, com as pernas cruzadas, apoiara a cabeça de Arnau sobre elas.

Arnau abrira os olhos por várias vezes, sorrira, e voltara a fechá-los com um sorriso nos lábios. Ela, com as duas mãos, agarrava uma das dele e, cada vez que Arnau olhava para ela, apertava até que ele se entregava de novo ao sono, comprazido. Assim fora uma e outra vez, como se Arnau quisesse comprovar que a presença dela era real. E agora... Mar regressou à cabana e sentou-se aos pés dele.

Esteve dois dias a percorrer Barcelona, recordando os lugares que tinham feito parte da sua vida durante tanto tempo. Pouco tinham mudado as coisas durante os cinco anos em que Guillem estivera em Pisa. Apesar da crise, a cidade era um formigueiro. Continuava aberta para o mar, defendida apenas pelas tasques onde Arnau varara o baleeiro quando Pedro, o Cruel, ameaçara com a sua frota as costas da cidade condal; entretanto, continuava a erigir-se a muralha ocidental que Pedro III mandara erguer. Continuava também a construção dos estaleiros reais. Até essa construção acabar, os barcos eram varados e reparados ou construídos nos velhos estaleiros, junto à praia, em frente à torre de Regomir. Ai, Guillem deixou-se levar pelo forte odor do alcatrão com que os calafates, depois de o misturarem com estopa, impermeabilizavam os navios. Observou o trabalho dos carpinteiros de mar, dos construtores de remos, dos ferreiros

e dos cordoeiros. Noutros tempos, acompanhara Arnau na inspecção do trabalho destes últimos, para comprovar que nas cordas destinadas a cabos ou enxárcias não se misturava cânhamo velho com cânhamo novo. Passeavam então por entre os barcos, solenemente acompanhados pelos carpinteiros marítimos. Depois de avaliar as cordas, Arnau dirigia-se, indefectivelmente, para os calafates. Mandava embora os que o acompanhavam e, com Guillem, observado de longe pelos restantes, falava em privado com eles.

«O trabalho deles é essencial; a lei impede que trabalhem à tarefa», explicara-lhe Arnau da primeira vez. Por isso, o cônsul falava com eles, para saber se algum deles, movido pela necessidade, não cumpria aquela norma, destinada a garantir a segurança dos barcos.

Guillem observou como um deles, de joelhos, repassava minuciosamente a junta que acabara de calafetar. A imagem fê-lo fechar os olhos. Apertou os lábios e abanou a cabeça. Tinham lutado muito lado a lado, e agora Arnau estava escondido numa enseada, à espera de que o inquisidor-mor o sentenciasse numa condenação menor. Cristãos! Pelo menos, tinha com ele Mar, a sua menina... Guillem não estranhou quando o piloto do laude, depois de deixar Mar e Arnau, apareceu na alfândega e lhe explicou o sucedido. Aquela era a sua menina!

— Boa sorte, minha querida — murmurou.

— Como dizeis?

— Nada, nada. Fizeste bem. Afasta-te do porto e regressa daqui a dois dias.

No primeiro dia, não recebeu notícias de Eimeric. No segundo, voltou a embrenhar-se em Barcelona. Não podia continuar à espera na alfândega; deixou lá os seus criados, com ordens de que o procurassem por toda a cidade se alguém perguntasse por ele.

Os bairros dos mercadores continuavam exactamente iguais. Barcelona podia percorrer-se de olhos fechados, bastando ter como guia o característico odor de cada um desses bairros. A catedral, tal como Santa Maria ou a igreja do Pi, continuava em construção, se bem que o templo de la Mar estivesse muito mais avançado que os outros dois. Santa Clara estava em obras, e também Santa Ana. Guillem parou diante de cada uma das igrejas para observar o trabalho de carpinteiros e pedreiros. E a muralha do mar? E o porto? Curiosos, aqueles cristãos.

— Perguntam por vós na alfândega — disse-lhe, arfando, um dos criados, ao terceiro dia.

«Já cedeste, Nicolau?», interrogou-se Guillem, apressando-se para a alfândega.

Nicolau Eimeric assinou a sentença na presença de Guillem, em pé diante da mesa. Depois, selou-a e entregou-lha em silêncio.

Guillem pegou no documento e começou a lê-lo ali mesmo.

— No fim, no fim — apressou-o o inquisidor. Obrigara o escrivão a trabalhar toda a noite, e não ia agora ficar ali todo o dia à espera que o infiel a lesse.

Guillem olhou para Nicolau por cima do documento e continuou a ler as razões do inquisidor. Jaume de Bellera e Genís Puig tinham retirado as suas denúncias; como o teria conseguido Nicolau? O testemunho de Margarida Puig era questionado por Nicolau, depois de o tribunal ter tido conhecimento de que a sua família tinha sido arruinada devido a negócios mantidos com Arnau; e a de Elionor... não dava crédito da entrega e submissão obrigatórias de toda a mulher ao seu marido!

Além disso, Elionor sustentava que o denunciado tinha abraçado publicamente uma judia com quem supunha que ele tivesse relações carnais, e citava como testemunhas desse acto público o próprio Nicolau e o bispo Berenguer d'Erill. Guillem voltou a observar Nicolau por cima do documento da sentença; o inquisidor devolveu-lhe o olhar. «Não é certo», dizia Nicolau, «que o denunciado tenha abraçado qualquer judia no momento referido por D. Elionor. Nem ele nem Berenguer d'Erill, que também assinava a sentença» e Guillem passou então para a última página para comprovar o selo e a assinatura do bispo, «podiam corroborar tal denúncia. O fumo, o fogo, o bulício, a paixão, qualquer dessas circunstâncias», prosseguia Nicolau, «pode ter levado uma mulher, débil por natureza, a julgar ter presenciado tal situação. Sendo, pois, notoriamente falsa a acusação vertida por D. Elionor quanto à relação de Arnau Estanyol com uma judia, pouca credibilidade pode outorgar-se ao resto da sua denúncia.»

Guillem sorriu.

Os únicos factos que certamente poderiam considerar-se puníveis eram os presenciados pelos sacerdotes de Santa Maria de la Mar. As palavras blasfemas tinham sido reconhecidas pelo réu, embora se tivesse arrependido delas perante o tribunal, objectivo último de todo o processo inquisitorial. Por isso se condenava Arnau Estanyol a uma multa consistente na apreensão de todos os seus bens, bem como a cumprir penitência durante todos os domingos de um ano, em

frente a Santa Maria de la Mar, coberto com o sambenito próprio dos condenados.

Guillem acabou de ler os formalismos legais e concentrou-se nas assinaturas e selos do inquisidor e do bispo. Conseguira!

Enrolou o documento e procurou no interior das suas roupas a carta de pagamento assinada por Abraham Levi, para a entregar a Nicolau. Guillem viu em silêncio como o inquisidor lia o documento que significava a ruína de Arnau, mas também a sua liberdade e a sua vida; de qualquer forma, também nunca lhe teria sabido explicar de onde provinha aquele dinheiro, e a razão por que aquela carta de pagamento tinha estado escondida todos aqueles anos.

 

Arnau dormiu o resto do dia. Ao anoitecer, Mar acendeu uma pequena fogueira com as folhas secas e a lenha que os pescadores tinham acumulado na barraca. O mar estava calmo. A mulher ergueu os olhos para o céu estrelado. Depois, olhou para o desfiladeiro que rodeava a enseada; a Lua brincava com as arestas das rochas, iluminando-as caprichosamente aqui e ali.

Respirou o silêncio e saboreou a calma. O mundo não existia. Barcelona não existia, a Inquisição também não, e nem sequer Elionor ou Joan: apenas ela e Arnau.

A meia-noite, ouviu ruídos no interior da barraca. Levantou-se para se dirigir para lá, quando Arnau saiu à luz da Lua. Ficaram ambos muito quietos, a uns passos de distância. Mar estava entre Arnau e o fogo da fogueira. O resplendor das chamas definia a silhueta dela e escondia nas sombras os seus traços. Será que já estou no céu?, pensou Arnau. A medida que os seus olhos se acostumavam à penumbra, as feições do rosto que tinha perseguido nos seus sonhos foram tomando forma; primeiro, os olhos, brilhantes; quantas noites tinha chorado por eles? Depois, o nariz, as maçãs do tosto, o queixo... e a boca; aqueles lábios... A figura abriu os braços para ele e o resplendor das chamas espreitou por detrás

dela, acariciando um corpo delineado através de vestes etéreas cúmplices da luz e da escuridão. Chamava-o.

Arnau acorreu à chamada. Que se passava? Onde estava? Era Mar, de verdade? Encontrou a resposta ao agarrar na mãos dela, no sorriso que lhe dirigia, no cálido beijo que recebeu nos lábios.

Depois, Mar abraçou-se a ele, e o mundo regressou, à realidade. «Abraça-me», ouviu-a apenas pedir-lhe, Arnau rodeou as costas da rapariga e apertou o seu corpo contra o corpo da jovem. Ouviu-a chorar. Sentiu os espasmos do peito dela contra o seu, e acariciou-lhe a cabeça com suavidade. Quantos anos tinham tido de passar para desfrutar finalmente aquele momento? Quantos erros cometera?

Arnau separou a cabeça de Mar do seu ombro e obrigou-a a olhá-lo nos olhos.

— Desculpa — começou a dizer-lhe —, desculpa ter-te entregado...

— Cala-te — interrompeu ela. — O passado não existe. Não há nada para perdoar. Comecemos a viver a partir de hoje. Olha — disse-lhe, pegando-lhe na mão —, o mar. O mar não sabe nada do passado. Aí está. Nunca nos pedirá explicações. As estrelas, a Lua, aí estão também, e continuarão a iluminar-nos, brilham para nós. Que lhes importa a elas o que possa ter acontecido? Acompanham-nos e ficam felizes por isso; vês como brilham? Cintilam no céu; fariam isso se se importassem? Não se levantaria uma tempestade se Deus quisesse castigar-nos? Estamos sós, tu e eu, sem passado, sem recordações, sem culpas, sem nada que possa intrometer-se no nosso... amor.

Arnau manteve os olhos postos no céu, depois olhou para o mar, para as pequenas ondas que lambiam suavemente a enseada, sem sequer chegarem a rebentar. Olhou para a parede rocha que os protegia e deixou-se embalar pelo silêncio. Virou-se para Mar, sem lhe largar a mão. Tinha algo para lhe contar, algo de doloroso, algo que tinha jurado perante a Virgem, depois da morte da sua primeira mulher, e a que não podia renunciar. Olhando-a nos olhos, num sussurro, explicou-lhe. .   Quando acabou o seu relato, Mar suspirou.

— Só sei que não penso voltar a abandonar-te, Arnau. Quero estar contigo, perto de ti... Nas condições que tu propuseres.

Ao amanhecer do quinto dia, chegou um laude, de onde apenas Guillem desembarcou. Encontraram-se os três na orla do mar. Mar afastou-se dos dois homens, para permitir que se abraçassem.

— Meu Deus! — soluçou Arnau.

— Qual Deus? — perguntou Guillem com um nó na garganta, afastando Arnau e mostrando num sorriso os seus dentes brancos.

— O de todos — respondeu Arnau, somando-se à alegria do mouro.

— Chega aqui, minha menina — disse Guillem, estendendo um braço.

Mar aproximou-se dos dois e abraçou-os pela cintura.

— Já não sou a tua menina — disse-lhe ela, com um sorriso travesso.

— Serás sempre a minha menina — corrigiu-a Guillem.

— Sempre — confirmou Arnau.

Desta forma, os três abraçados, foram sentar-se em volta dos restos da fogueira da noite anterior.

 

— Estás livre, Arnau — comunicou-lhe Guillem, assim que se acomodou no chão; estendeu-lhe a sentença.

— Diz-me o que diz — pediu-lhe Arnau, recusando-se a pegar no rolo. — Nunca li um documento que viesse das tuas mãos.

— Diz que são apreendidos os teus bens... — Guillem olhou para Arnau, mas não observou nenhuma reacção.

E que és condenado a pena de sambenito durante todos os domingos de um ano, diante das portas de Santa Maria. Quanto ao resto, a Inquisição deixa-te em liberdade.

Arnau imaginou-se descalço, vestido com uma túnica de penitente até aos pés, com duas cruzes pintadas, diante das portas da sua igreja.

— Devia ter percebido que havias de conseguir, quando te vi no tribunal, mas não estava em condições...

— Arnau — interrompeu-o Guillem —, ouviste bem o que te disse? A Inquisição apreendeu todos os teus bens. Arnau ficou em silêncio por uns instantes.

— Estava morto, Guillem — respondeu. — Eimeric estava disposto a matar-me. E por outro lado, eu teria dado tudo o que tenho... tinha — corrigiu-se, agarrando a mão de Mar — por estes últimos dias. — Guillem desviou o olhar para Mar e encontrou um sorriso amplo e uns olhos brilhantes. A sua menina... Sorriu, por sua vez. — Estive a pensar...

— Traidor! — ralhou-lhe Mar, com um leve encontrão. Arnau bateu suavemente na mão da rapariga.

— Se bem me lembro, há-de ter custado muito dinheiro que o rei não enfrentasse a host.

Guillem anuiu.

— Obrigado — disse Arnau.

Os dois homens olharam-se.

— Bem — acrescentou Arnau, decidindo romper o sortilégio — e à ti, como te correram as coisas estes anos todos?

Com o Sol já alto, os três dirigiram-se para o laude, depois de fazerem sinais ao marinheiro para se aproximar da enseada. Arnau e Guillem embarcaram.

— Só um momento — pediu-lhes Mar.

A rapariga virou-se para a enseada e olhou para a pequena cabana tosca. Que a esperava agora? A pena do sambenito, Elionor...

Mar baixou os olhos.

— Não te preocupes com ela — consolou-a Arnau, acariciando-lhe os cabelos. — Sem dinheiro, não nos incomodará. O palácio da Rua de Monteada faz parte do meu património, e por isso agora pertence à Inquisição. Só lhe resta Montbui. Terá de ir para lá.

— O castelo — murmurou Mar. — A Inquisição não ficará com ele?

— Não. O castelo e as terras foram-nos entregues em dote pelo rei. A Inquisição não pode apreendê-lo como património meu.

— Lamento pelos camponeses — murmurou Mar, lembrando-se do dia em que Arnau derrogara os maus usos.

Ninguém falou de Mataró, da casa de Felip de Ponts.

— Seguiremos em frente... — começou a dizer Arnau.

— De que falam? — interrompeu Guillem. — Terão todo o dinheiro de que precisarem. Se quiserem, poderemos voltar a comprar o palácio da Rua de Monteada.

805

— Esse dinheiro é teu — recusou Arnau.

— Esse dinheiro é nosso. Olhem — disse para ambos -não tenho ninguém a não ser vocês. Que vou eu fazer com o dinheiro que consegui graças à tua generosidade? É vosso

— Não, não — insistiu Arnau.

— Vocês são a minha família. A minha menina... e o homem que me deu a liberdade e a riqueza. Isso significa que não me querem na vossa família?

Mar estendeu um braço para tocar em Guillem. Arnau balbuciou:

— Não... Não queria dizer isso... Claro que...

— Pois o dinheiro vem comigo — voltou a interrompê-lo Guillem. — Ou queres que o ceda à Inquisição?

A pergunta fez sorrir Arnau.

— E tenho grandes projectos — acrescentou Guillem. Mar continuou a olhar para a enseada. Uma lágrima caiu-lhe pelo rosto. Não se mexeu. A lágrima chegou-lhe aos lábios e perdeu-se na comissura. Regressavam a Barcelona. Para cumprir uma pena injusta, com a Inquisição, com Joan, o irmão que o traíra... E com uma esposa que ele desprezava e de quem não podia libertar-se.

 

Guillem arrendara uma casa no bairro de la Ribera. Evitou o luxo, mas a casa era suficientemente ampla para acolher os três; com um quarto para Joan, pensou Guillem quando dera as instruções devidas. Arnau foi recebido com carinho pelas gentes da praia quando desembarcou do laude no porto de Barcelona. Alguns mercadores que vigiavam o transporte das suas mercadorias ou caminhavam por perto da câmara de comércio saudaram-no com um movimento da cabeça.

— Já não sou rico — comentou para Guillem, sem parar de andar e correspondendo às saudações.

— As notícias correm depressa — respondeu-lhe Guillem. Arnau dissera que a primeira coisa que queria fazer ao desembarcar era visitar Santa Maria, para agradecer à sua Virgem a libertação; os seus sonhos tinham passado da confusão à nitidez da pequena figura saltando por cima das cabeças do povo, enquanto ele era levado aos empurrões pelos conselheiros da cidade. No entanto, o seu trajecto foi interrompido ao passar à esquina da Rua de Canvis Vells com Canvis Nous. A porta e as janelas da sua casa, da sua mesa de câmbios, estavam abertas de par em par. À frente da casa estava um grupo de curiosos que se afastaram para um lado quando viram Arnau chegar. Não entraram. Os três reconheceram alguns dos móveis e objectos que os soldados da Inquisição amontoavam num carro junto à porta: a longa mesa, que sobressaía do carro e tinha sido atada com cordas o tapete vermelho, a císalha para cortar a moeda falsa, o ábaco, os cofres...

O aparecimento de uma figura de negro que anotava os haveres desviou a atenção de Arnau. O dominicano parou de escrever e cravou nele o olhar. As pessoas ficaram em silêncio enquanto Arnau reconhecia aqueles olhos: eram olhos que o tinham perscrutado atrás da mesa, junto do bispo. — Abutres — murmurou.

Eram os seus haveres, o seu passado, as suas alegrias e os seus dissabores. Nunca pensara que presenciar a forma como o espoliavam... Nunca dera importância aos seus bens e, no entanto... levavam ali toda uma vida. Mar notou o suor na mão de Arnau. Alguém, de trás, assobiou ao frade; imediatamente os soldados deixaram os objectos e desembainharam as armas. Três outros soldados surgiram do interior, de espada na mão.

— Não permitirão outra humilhação às mãos do povo — avisou Guillem, puxando por Arnau e Mar.

Os soldados arremeteram contra o grupo de curiosos, que saiu a correr em todas as direcções. Arnau deixou-se levar por Guillem, olhando para trás, com os olhos fixos no carro.

Esqueceram Santa Maria, até cujos portões chegaram alguns dos soldados que perseguiam o povo. Contornaram-na apressadamente para chegarem à Praça do Born e, daí, à sua nova casa.

A notícia do regresso de Arnau correu pela cidade. Os primeiros a apresentar-se foram alguns missatges do consulado. O oficial não se atreveu a olhar Arnau na cara. Quando se dirigiu a ele, fê-lo utilizando o título habitual, «mui honrado», mas tinha para lhe entregar a carta através da qual o Conselho dos Cem da cidade o destituía do seu cargo. Depois de a ler, Arnau estendeu a mão ao oficial, que então levantou os olhos.

— Foi uma honra trabalhar convosco — disse-lhe.

— A honra foi minha — respondeu Arnau. — Não querem pobres — comentou para Guillem e Mar quando o oficial e os soldados saíram.

— Temos de falar disso — interveio Guillem.

Mas Arnau fez que não com a cabeça. Ainda não, acrescentou.

Muitas outras pessoas passaram pela casa de Arnau. Algumas, como o prócer da confraria dos bastaixos, foram recebidas por Arnau; outras, de condição humilde, limitaram-se a expressar os seus melhores desejos aos criados que as recebiam.

Ao segundo dia, apresentou-se Joan. Desde que tivera notícia da chegada de Arnau a Barcelona, Joan não cessara de se interrogar sobre o que lhe teria contado Mar. Quando a incerteza se lhe tornou insuportável, decidiu enfrentar os seus medos e ir ver o irmão. Arnau e Guillem levantaram-se quando Joan entrou na sala. Mar continuou sentada perto da mesa.

«Queimaste o cadáver do teu próprio pai!» A acusação de Nicolau Eimeric ecoou nos ouvidos de Arnau assim que viu aparecer Joan. Tinha tentado não pensar nisso.

Da porta da sala, Joan balbuciou algumas palavras; depois, percorreu os passos que o separavam de Arnau de cabeça baixa. Arnau semicerrou os olhos. Vinha pedir desculpas. Como pudera o seu irmão...

— Como pudeste fazê-lo? — atirou-lhe quando Joan chegou junto dele.

Joan desviou os olhos dos pés de Arnau para Mar. Não o tinha ela já castigado o suficiente? Tinha tido de contar a Arnau? A rapariga, no entanto, parecia surpreendida.

— Que vieste aqui fazer? — perguntou Arnau, com a voz fria. Joan procurou desesperadamente uma desculpa...

— E preciso pagar os gastos da hospedaria — ouviu-se a si próprio a dizer.

Arnau sacudiu o ar com a mão e deu meia-volta, virando-lhe as costas.

Guillem chamou um dos seus criados e deu-lhe uma bolsa de dinheiro.

— Acompanha o frade a liquidar a conta da hospedaria — ordenou.

Joan procurou a ajuda do mouro, mas este nem sequer olhou para ele. Refez os seus passos em direcção à porta e desapareceu por ela.

— Que se passou entre vós? — perguntou Mar, assim que Joan abandonou a sala.

Arnau ficou calado. Deveriam sabê-lo? Como explicar-lhe que tinha queimado o cadáver do seu próprio pai, e que o irmão o tinha denunciado à Inquisição? Ele era a única pessoa que sabia.

— Esqueçamos o passado — respondeu por fim. — Pelo menos a parte que pudermos.

Mar ficou em silêncio por uns instantes; depois, anuiu.

Joan saiu da casa atrás do escravo de Guillem. Durante o trajecto até à hospedaria, o jovem teve de se virar por diversas vezes para o dominicano, porque este ficava parado na rua, com o olhar perdido. Tinham tomado o caminho que levava à alfândega, que era o que o rapaz conhecia.

Na Rua de Monteada, no entanto, o escravo não conseguiu que Joan o seguisse. O frade permaneceu imóvel diante dos portões do palácio de Arnau.

— Vai tu pagar — disse-lhe Joan, libertando-se dos puxões do rapaz. — Eu tenho outras contas para saldar — murmurou para si.

Pere, o velho escravo, conduziu-o à presença de Elionor. Repetia algumas palavras, num sussurro, desde que passara pela porta; o tom de voz foi subindo enquanto subia as escadas de pedra, com Pere, que se virava, intrigado, para ele, e acabou por soltar essas palavras com voz atroadora quando ficou perante Elionor, antes que esta pudesse dizer alguma coisa:

— Sei que pecaste!

A baronesa, de pé no meio do salão, olhou para ele, altaneira.

— Que parvoíces dizes para aí, frade? — respondeu-lhe.

— Sei que pecaste — repetiu Joan.

Elionor soltou uma gargalhada, antes de lhe virar costas.

Joan observou o traje de rico brocado que a mulher vestia. Mar tinha sofrido. Ele tinha sofrido. Arnau... Arnau tinha de ter sofrido tanto como eles.

Elionor continuava a rir-se, de costas.

— Quem julgas tu que és, frade?

— Sou um inquisidor do Santo Ofício — respondeu Joan. — E no teu caso, não preciso de confissão nenhuma.

Elionor virou-se, em silêncio, perante a frieza das palavras de Joan. Viu que ele tinha uma lamparina de azeite acesa na mão.

— Que...

Não lhe deu tempo para acabar a frase. Joan lançou a lamparina contra o corpo dela. O óleo impregnou-lhe as luxuosas vestimentas e ateou-se imediatamente.

Elionor gritou.

Toda ela se tornara uma tocha quando o idoso Pere acorreu para ajudar a sua senhora, chamando aos gritos pelos restantes escravos. Joan viu-o a puxar de um dos tapetes pendurados nas paredes para o deitar sobre Elionor. Afastou o escravo com um empurrão, mas à porta do salão já se encontravam outros criados, com os olhos muito abertos.

Alguém pediu água.

Joan observou Elionor, que caíra de joelhos, envolta em chamas.

— Perdoa-me, Senhor — balbuciou.

Então, procurou outra lamparina. Pegou nela e, com ela na mão, aproximou-se de Elionor. As saias do seu hábito pegaram fogo.

— Arrepende-te! — gritou antes de o fogo o envolver. Deixou cair a lamparina sobre Elionor e ajoelhou-se ao lado dela. O tapete sobre o qual se encontravam começou a arder com intensidade. Alguns dos móveis também já ardiam.

Quando os escravos apareceram com a água, limitaram--se a atirá-la das portas do salão. Depois, tapando o rosto, fugiram da densa fumarada.

 

15 de Agosto de 1384

Festividade da Assunção

Igreja de Santa Maria de la Mar, Barcelona

Tinham passado dezasseis anos.

Da Praça de Santa Maria, Arnau levantou o olhar para o céu. O repicar dos sinos da igreja enchia Barcelona inteira. Os pêlos dos seus braços responderam àquela música e eriçaram-se; um calafrio percorreu-lhe o corpo ao ouvir o som dos quatro sinos. Vira como os quatro sinos balançavam, enquanto desejava aproximar-se para puxar as cordas juntamente com os jovens: o Assumpta, o maior, de oitocentos e sessenta e cinco quilos; o Conventual, mediano, de seiscentos e cinquenta quilos; o Andrea, de duzentos quilos; e o Vedada, o mais pequeno, de cem quilos, no alto da torre.

Nesse dia inaugurava-se Santa Maria, a sua igreja, e os sinos pareciam soar de forma diferente do que tinham feito desde que tinham sido instalados... Ou seria ele que os ouvia de outra forma? Olhou para as torres oitavadas que encerravam a fachada principal por um dos seus lados: altas, esbeltas e ligeiras, de três corpos, cada um deles mais estreito à medida que se erguiam para o céu; abertas aos quatro ventos mediante janelas ogivais, rodeadas de varandas em cada um dos seus níveis e acabadas por terraços em cada nível Durante a construção, tinham dito a Arnau que seriam simples, naturais, sem agulhas nem capitéis, naturais como o mar, a cuja padroeira protegiam, mas imponentes e fantásticas, pensou Arnau ao contemplá-las, como o mar também era.

O povo, nos seus melhores trajes, reunia-se em Santa Maria; alguns entravam na igreja; outros, como Arnau, permaneciam cá fora, contemplando a sua beleza e ouvindo a música que os seus sinos tocavam. Arnau apertou Mar, que tinha contra si à sua direita; à sua esquerda, esticando-se, partilhando do prazer do pai, estava um rapaz de treze anos com um sinal por cima do olho direito.

Acompanhado pela sua família, enquanto os sinos continuavam a repicar, Arnau entrou em Santa Maria da la Mar. O povo, que naquele momento estava a entrar, deteve-se e deu-lhe passagem. Aquela era a igreja de Arnau Estanyol; como bastaix, tinha carregado às costas as primeiras pedras; como cambista e cônsul de la Mar, agraciara-a com importantes donativos; e depois, como comerciante de seguros marítimos, continuara a fazê-lo. No entanto, Santa Maria não se livrara das catástrofes: a 28 de Fevereiro de 1373, um terramoto que abalara Barcelona derrubara o campanário da igreja. Arnau foi o primeiro a contribuir para a sua reconstrução.

— Preciso de dinheiro — dissera então a Guillem.

— É teu — respondera o mouro, consciente do desastre e de que nessa mesma manhã Arnau tinha recebido a visita de um membro da Junta da Obra de Santa Maria.

Porque a fortuna voltara a sorrir-lhes. Aconselhado por Guillem, Arnau optara por se dedicar aos seguros marítimos.

A Catalunha, órfã de regulação, ao contrário do que acontecia em Génova, Veneza ou Pisa, era um paraíso para os primeiros a empreenderem este negócio, mas apenas os comerciantes prudentes como Arnau e Guillem tinham conseguido sobreviver. O sistema financeiro do principado estava a afundar-se, e com ele as pessoas que queriam obter lucros rápidos, como aquelas que seguravam a carga acima dos seus valores reais, com o que dificilmente se voltava a ter notícias dela, ou como aqueles que seguravam navio e mercadoria mesmo depois de se saber já que os corsários tinham apresado o navio, e apostavam em que a notícia pudesse ser falsa. Arnau e Guillem escolheram bem os navios e melhor ainda os riscos, e depressa recuperaram para aquele novo negócio uma vasta rede de representantes, a mesma com que tinham trabalhado como cambistas.

A 26 de Dezembro de 1379, Arnau não pôde perguntar a Guillem se podia destinar aquele dinheiro a Santa Maria. O mouro falecera um ano antes, de repente. Arnau encontrara-o sentado na horta, na sua cadeira, sempre virada para Meca, para onde dirigia as suas orações, num segredo de todos conhecido. Arnau falara com os membros da comunidade moura e, pela noite, estes tomaram a seu cargo o cadáver de Guillem.

Nessa noite, a de 26 de Dezembro de 1379, um terrível incêndio devastara Santa Maria. O fogo reduzira a cinzas a sacristia, o coro, os órgãos, os altares, e tudo o que até então fora construído no seu interior e que não fosse de pedra. Mas também a pedra sofrera os efeitos do incêndio, ainda que apenas nos cinzelados, e a pedra de chave em que estava representado o rei Afonso, o Benigno, pai do Cerimonioso, que pagara aquela parte da obra, ficara totalmente destruída.

O rei encolerizou-se com a destruição da homenagem ao seu régio progenitor e exigiu que a obra fosse reconstruída mas muito tinham já os habitantes do bairro de la Ribera nas mãos, para terem de custear ainda uma nova pedra de chave apenas para satisfazer os desejos do monarca. Todo o esforço e dinheiro do povo se destinaram à sacristia, ao coro, aos órgãos e aos altares; a figura equestre do rei Afonso foi engenhosamente reconstruída em gesso, colada à pedra de chave e pintada a vermelho e ouro.

A 3 de Novembro de 1383 foi colocada a última chave da nave central, a mais próxima da porta principal, e que ostentava o escudo da Junta da Obra, em honra de todos aqueles cidadãos anónimos que tinham permitido a construção da igreja.

Arnau levantou os olhos para ela. Mar e Bernat acompanharam-no, e os três sorriram quando empreenderam o caminho para o altar-mor.

Desde que a chave fora montada no andaime, esperando que as nervuras dos arcos chegassem até ela, Arnau repetira uma e outra vez os mesmos argumentos:

— É o nosso brasão — disse um dia ao seu filho, Bernat O rapaz olhou para cima.

— Pai — respondeu-lhe —, esse é o escudo do povo. As pessoas como tu têm os seus próprios escudos gravados nos arcos e nas pedras, nas capelas e nos... — Arnau levantou uma mão, tentando interromper as palavras do filho, mas o rapaz continuou: — Nem sequer tens uma cadeira no coro!

— Esta é a igreja do povo, filho. Muitos homens deram a sua vida por ela, e o nome deles não está em lugar nenhum.

Então, as recordações de Arnau viajavam até ao rapazinho que carregava pedras desde a pedreira real até Santa Maria.

— O teu pai — interveio então Mar — gravou com o seu sangue muitas destas pedras. Não há melhor homenagem que essa.

Bernat virou-se para o pai com os olhos arregalados.

— Como tantos outros, filho — disse-lhe. — Como tantos outros...

Agosto no Mediterrâneo, Agosto em Barcelona. O sol brilhava com uma magnificência difícil de encontrar em qualquer outro lugar do mundo; porque antes de se filtrar através dos vitrais de Santa Maria para brincar com a cor e com a pedra, o mar devolvia ao sol o reflexo da sua própria luz e os raios chegavam à cidade embebidos numa espécie de esplendor inigualável. No interior do templo, o reflexo colorido dos raios solares, ao passar pelos vitrais, confundia-se com o cintilar de milhares de círios acesos e espalhados pelo altar-mor e pelas capelas laterais de Santa Maria. O odor a incenso impregnava o ambiente e a música do órgão ressoava numa construção acusticamente perfeita.

Arnau, Mar e Bernat dirigiram-se para o altar-mor. Debaixo da magnífica abside e rodeada por oito esbeltas colunas, diante de um retábulo, descansava a pequena figura da Virgem de la Mar. Atrás do altar, adornado com preciosas telas francesas que o rei Pedro emprestara para a ocasião, não sem antes avisar, por meio de uma carta enviada de Vilafranca del Penedès, que deviam ser devolvidas imediatamente depois da celebração, o bispo Pere de Planella preparava-se para oficiar a missa de consagração do templo.

O povo abarrotava em Santa Maria, e os três tiveram de parar. Alguns dos presentes reconheceram Arnau e cederam-lhe a passagem para o altar-mor, mas Arnau agradeceu-lhe e ficou ali, de pé, entre eles: a sua gente e a sua família Só lhe faltava Guillem... e Joan. Arnau preferia recordá-lo como o rapazinho com quem descobrira o mundo, mais do que como o amargurado monge que se sacrificara entre as chamas. O bispo Pere de Planella iniciou o ofício.

Arnau notou que a ansiedade o assaltava. Guillem, Joan, Maria, o seu pai... e a idosa. Por que razão, sempre que pensava nos que lhe faziam falta, acabava sempre por se lembrar daquela idosa? Pedira a Guillem que a procurasse, a ela e a Aledis.

— Desapareceram — disse-lhe um dia o mouro.

— Disseram-me que era a minha mãe — recordou Arnau em voz alta. — Insiste.

— Não as consegui encontrar — voltou a dizer-lhe ao fim de algum tempo Guillem.

— Mas...

— Esquece-as — aconselhou-lhe o amigo, não sem uma certa autoridade no tom de voz.

Pere de Planella continuava com a celebração.

Arnau tinha sessenta e três anos, estava cansado, e procurou apoio no filho.

Bernat apertou com carinho o braço do pai, e este obrigou-o a aproximar o ouvido dos seus lábios, ao mesmo tempo que apontava para o altar-mor:

— Consegues vê-la a sorrir, filho? — perguntou-lhe.

 

 

NOTA DO AUTOR

No desenvolvimento deste romance, pretendi seguir a Crónica de Pedro III, com as necessárias adaptações exigidas por uma obra de ficção como a proposta.

A escolha de Navarcles como enclave do castelo e terras do senhor do mesmo nome foi totalmente fictícia, mas não assim com as baronias de Granollers, Sant Vicenç dels Horts e Caldes de Montbui, que o rei Pedro concede a Arnau em dote pelo seu casamento com a sua pupila Elionor — esta última, criação do autor. As baronias em questão foram cedidas em 1380 pelo infante Martin, filho de Pedro, o Cerimonioso, a Guillem Ramon de Monteada, do ramo siciliano dos Monteada, pelos seus bons ofícios em prol do casamento entre a rainha Maria e um dos filhos de Martin, que depois reinaria sob o cognome de O Humano. Esses domínios, não obstante, duraram menos no poder de Guillem Ramon de Monteada do que perduram ao protagonista do romance. Assim que os recebeu, o senhor de Monteada vendeu-os ao conde de Urgell para, com o dinheiro obtido, armar uma frota e dedicar-se à pirataria.

O direito de deitar-se na primeira noite com a noiva era efectivamente um dos direitos que os Usatges concediam aos senhores sobre os seus servos. A existência dos maus usos na Catalunha Velha, mas não na Nova, levou os servos da

terra a revoltarem-se contra os seus senhores, com contínuos conflitos, até serem derrogados por completo pela sentença arbitral de Guadalupe de 1486, embora mediante o pagamento de uma importante indemnização aos senhores desapossados dos seus direitos.

A sentença real contra a mãe de Joan, pela qual se vê obrigada a viver numa cela até à sua morte a pão e água, foi efectivamente ditada em 1330 por Afonso III contra uma mulher chamada Eulália, consorte de Juan Dosca.

O autor não partilha das considerações que, ao longo do romance, se fazem sobre as mulheres ou sobre os camponeses; todas elas, ou a grande maioria, foram textualmente copiadas do livro escrito pelo monge Francesc Eiximenis, aproximadamente no ano de 1381, Lo Crestià.

Na Catalunha medieval, ao contrário do que acontecia no resto de Espanha, submetida à tradição legal goda plasmada no Fuero Juzçgo que o proibia, os estupradores podiam efectivamente casar com a estuprada, mesmo que tivesse existido violência no sequestro, por aplicação do usatge Si quis virginem, tal como acontece no casamento de Mar com o senhor de Ponts.

A obrigação do estuprador era dotar a mulher, a fim de que encontrasse marido, ou então casar com ela. Se a mulher já fosse casada, aplicavam-se as penas por adultério.

Não se sabe ao certo se o episódio em que o rei Jaime de Maiorca tenta sequestrar o seu cunhado, Pedro III, e que fracassa porque um monge familiar deste último se apercebe do plano ao escutá-lo em confissão — no romance, ajudado por Joan —, sucedeu na realidade, ou se foi uma invenção de Pedro III para servir de desculpa para o processo aberto contra o rei de Maiorca, e que acabaria com a apreensão dos seus reinos. O que, de facto, parece verdade é a exigência do rei Jaime de construir uma ponte coberta desde as suas galeras, fundeadas no porto de Barcelona, até ao convento de pramenors, gesto que talvez tenha exacerbado a imaginação do rei Pedro acerca da trama relatada nas suas crónicas.

A tentativa de invasão de Barcelona por parte de Pedro, o Cruel, de Castela aparece minuciosamente relatada na Crónica de Pedro III. Efectivamente, o porto da cidade condal, depois do avanço da terra e da desactivação dos portos anteriores, encontrava-se indefeso perante os fenómenos naturais e os ataques inimigos; foi apenas em 1340 que, sob o reinado de Pedro III, o Cerimonioso, se iniciou a construção de um novo porto mais de acordo com as necessidades de

Barcelona.

Contudo, a batalha deu-se tal qual como é relatada por Pedro III, e a armada castelhana não conseguiu aproximar-se da cidade porque um navio — um baleeiro, segundo Capmany — se atravessou nas tasques (baixios) de acesso à praia, impedindo o avanço do rei de Castela. É nesta batalha que se pode encontrar uma das primeiras referências ao uso de artilharia — uma brigola montada na proa da galera real — nas batalhas navais. Pouco depois, aquilo que não tinha sido até então mais do que um meio de transporte de tropas passou a tornar-se grandes e pesadas naus armadas com canhões, o que fez mudar completamente o conceito da batalha naval. Na sua Crónica, o rei Pedro III delicia-se com a troça e o escárnio que a host catalã, da praia ou das numerosas barcas que saíram em defesa da capital, dirigiram às tropas de Pedro, o Cruel, e considera-a, juntamente com a eficácia do uso da brigola, uma das razões por que o rei de Castela desistiu do seu empenho em invadir Barcelona.

Na revolta da Praça do Blat, do chamado primeiro mau ano, em que os barceloneses reclamavam trigo, foram efetivamente submetidos a julgamento sumaríssimo os promotores da mesma, que foram executados por enforcamento execução essa que, por razões de argumento, se situou na própria Praça do Blat. O certo é que as autoridades municipais confiaram em que um simples juramento poderia vencer a fome do povo.

Quem também foi executado no ano de 1360, por decapitação, neste caso, em frente à sua mesa de câmbios, como estabelecia a lei, perto da actual Praça Palácio, foi o cambista F. Castelló, declarado abatut, ou em falência.

Também no ano de 1367, tendo por base a acusação de profanação de uma hóstia, e depois de terem sido encerrados na sinagoga sem água nem comida, três judeus foram executados por ordem do infante D. Juan, lugar-tenente do rei Pedro. Durante a Páscoa cristã, era terminantemente proibido aos judeus saírem de suas casas; mais, ao longo desses dias tinham de ter permanentemente fechadas as janelas e portas dos seus lares, para que nem sequer pudessem ver ou interferir nas numerosas procissões dos cristãos. Mas ainda assim, a Páscoa desencadeava, mais ainda que habitualmente, os rancores dos fanáticos e as acusações de celebração de rituais heréticos aumentavam durante esta época, que os judeus temiam, com razão.

Eram duas as principais acusações que se efectuavam contra a comunidade judaica, relacionadas com a Páscoa cristã: o assassínio ritual de cristãos, essencialmente crianças, para as crucificar, torturar, beber o seu sangue ou comer o seu coração, e a profanação da hóstia, ambos, segundo o povo, destinados a fazer reviver a dor e o sofrimento da paixão de Cristo dos católicos.

A primeira acusação conhecida de crucificação de uma criança cristã deu-se na Alemanha do Sacro Império, em Wurtzburg, no ano de 1147, se bem que, como sempre, o mórbido delírio do povo depressa tenha conseguido que tais acontecimentos se espalhassem por toda a Europa. Apenas um ano depois, em 1148, foram acusados judeus ingleses de Norwich de crucificarem outra criança cristã. A partir daí, as acusações de assassínios rituais, principalmente durante a Páscoa e por meio de crucificação, generalizaram-se: Gloucester, 1168; Fulda, 1235; Lincoln, 1255; Munique, 1286... A tal ponto chegava o ódio aos judeus e a credibilidade do povo, que no século xv um franciscano italiano, Bernardino da Feltre, anunciou antecipadamente a crucificação de uma criança, primeiro em Trento, onde a profecia acabou, evidentemente, por se cumprir e o pequeno Simon apareceu morto na cruz. A Igreja beatificou Simon, mas o frade continuou a «anunciar» crucificações: Reggio, Bassano, Mântua... Só em meados do século xx a Igreja rectificou e anulou a beatificação de Simon, mártir do fanatismo, e não da fé.

Uma das saídas que a host de Barcelona efectivamente fez, se bem que posteriormente à data relacionada com o romance, uma vez que se deu em 1369, foi contra a aldeia de Creixell, por esta impedir o livre-trânsito e a pastorícia do gado com destino à cidade condal, gado que só vivo podia entrar em Barcelona; esta causa, a da detenção de gado, foi uma das principais pelas quais a host de cidadãos saía a defender os seus privilégios em frente a outras povoações e senhores feudais.

Santa Maria de la Mar é sem dúvida alguma um dos mais belos templos que existem; carece da monumentalidade de outras igrejas, coetâneas ou posteriores, mas no seu interior pode respirar-se o espírito que Berenguer de Montagut procurou incutir-lhe: a igreja do povo, edificada pelo povo e para o povo, como uma grande casa rural catalã, austera, protegida e protectora, com a luz mediterrânica como supremo elemento diferenciador.

A grande virtude de Santa Maria, no dizer dos entendidos, é que se construiu num período ininterrupto de tempo de cinquenta e cinco anos, sob uma única influência arquitectónica, com escassos elementos acrescentados, o que a torna o expoente máximo do chamado gótico catalão. Como era costume naquela época, e a fim de não interromper os serviços religiosos, Santa Maria foi sendo construída sobre a antiga igreja. Inicialmente, o arquitecto Bassegoda Amigo situava o templo primitivo na esquina da Rua Espaseria, apontando que a actual foi construída diante da velha, mais a norte, e deixando entre elas uma rua, hoje de Santa Maria. No entanto, a descoberta em 1966, durante as obras de construção de um novo presbitério e cripta no templo, de uma necrópole romana sob Santa Maria modificou a ideia original de Bassegoda, e o seu neto, arquitecto e estudioso do templo, sustenta actualmente que as sucessivas igrejas de Santa Maria se encontraram sempre no mesmo local; umas construções sobrepunham-se às outras. É nesse cemitério que se supõe que tenha sido enterrado o corpo de Santa Eulália, padroeira de Barcelona, cujos restos mortais foram trasladados pelo rei Pedro, de Santa Maria para a catedral.

A imagem da Virgem de la Mar que se usa no romance é a que actualmente se encontra no altar-mor, e antes estava situada no tímpano da porta da Rua do Born.

Dos sinos de Santa Maria não se tem notícia até ao ano de 1714, quando Filipe V venceu os Catalães. O rei castelhano agravou com um imposto especial os sinos da Catalunha, como castigo pelo seu constante repicar chamando os patriotas catalães ao sometent, a pegar em armas para defenderem a sua terra. Contudo, não foi património exclusivo dos castelhanos assanharem-se contra os sinos que chamavam os cidadãos para a guerra. O próprio rei Pedro, o Cerimonioso, quando conseguiu vencer a oposição valenciana que se erguera em armas contra ele, mandou executar alguns dos sublevados obrigando-os a beber o metal fundido do sino da Unión, que chamara os valencianos ao sometent.

Tal era a representatividade de Santa Maria que o rei Pedro escolheu a sua praça para arengar aos cidadãos na guerra contra a Sardenha e desdenhou outros locais da cidade, como a Praça do Blat, junto ao palácio do regedor, para reunir a cidadania.

Os humildes bastaixos, com o seu trabalho de transportarem gratuitamente as pedras até Santa Maria, são o mais claro exemplo do fervor popular que ergueu a igreja. A paróquia concedeu-lhes privilégios e, hoje, a sua devoção mariana permanece reflectida nas figuras de bronze da porta maior, em relevos no presbitério ou nos capitéis de mármore, em todos os quais se representam as figuras dos carregadores portuários.

O judeu Hasdai Crescas existiu — e também existiu um tal Bernat Estanyol, capitão dos almogávares —, mas da mesma forma que o primeiro foi escolhido pelo autor, o segundo não se deve a mais do que uma simples coincidência. O ofício de cambista e a vida que se lhe atribui, não obstante, são invenção do autor. Sete anos depois de Santa Maria ter sido oficialmente inaugurada, no ano de 1391 — mais de cem anos antes de os Reis Católicos terem expulsado os judeus dos seus reinos —, a judiaria de Barcelona foi arrasada pelo povo, os seus moradores executados, e aqueles que tiveram melhor sorte, como, por exemplo, aqueles que conseguiram refugiar-se num convento, foram obrigados a converter-se. Totalmente destruída a judiaria barcelonesa derrubados os seus edifícios e construídas igrejas no seu interior, o rei Juan, preocupado pelos prejuízos económicos que implicava para as arcas reais o desaparecimento dos judeus, tentou fazer que voltassem a Barcelona; prometeu isenções fiscais até que a sua comunidade atingisse o número de duzentas pessoas e derrogou obrigações como a de emprestarem as suas camas e móveis quando a corte estava em Barcelona, ou a de alimentar os leões e outras feras reais. Mas os judeus não regressaram e no ano de 1397 o rei concedeu a Barcelona o privilégio de não ter judiaria.

Nicolau Eimeric, o inquisidor-mor, acabou por se refugiar em Avinhão com o Papa, mas com a morte do rei Pedro regressou à Catalunha e continuou a atacar as obras de Ramon Llull. O rei Juan desterrou-o da Catalunha em 1393 e o inquisidor refugiou-se de novo junto do Papa; no entanto, nesse mesmo ano, regressou a Seu d'Urgell e o rei Juan teve de exigir ao bispo da cidade a sua expulsão imediata. Nicolau fugiu uma vez mais para Avinhão e, quando o rei Juan morreu, conseguiu permissão do rei Martin, o Humano, para poder passar os últimos anos da sua vida em Gerona, sua cidade natal, onde morreu aos oitenta anos. As referências acerca das máximas de Eimeric sobre a possibilidade de torturar mais de uma vez, como continuação de uma mesma tortura anterior, tal como as condições de que um cárcere se deve revestir, até o réu acabar por perecer, são verdadeiras.

Desde 1249, ao contrário de Castela, onde a Inquisição não foi instituída até ao ano de 1487, por mais que a recordação dos seus terríveis processos perdurasse durante séculos, a Catalunha dispôs de tribunais da Inquisição totalmente diferenciados e independentes da tradicional jurisdição eclesiástica exercida através dos tribunais episcopais. A opção pela instituição oficial dos tribunais da Inquisição na Catalunha encontrou a sua razão de ser no objectivo original dos mesmos: a luta contra a heresia, nesses tempos identificada com os cátaros do Sul de França e com os valdenses de Pedro Valde em Lião. Ambas as doutrinas, consideradas heréticas pela Igreja, ganharam adeptos na população da Catalunha Velha, devido à proximidade geográfica; chegaram a contar-se entre eles, como seguidores dos cátaros, nobres catalães pirenaicos como o visconde Arnau e a sua esposa Ermessenda; Ramon, senhor do Cadí, e Guillem de Niort, regedor do conde Nuno Sanç, na Sardenha e Conflent.

Por esta razão, a Inquisição começou precisamente na Catalunha a sua triste caminhada pelas terras ibéricas. Em 1268, no entanto, foi posto fim ao movimento cátaro, e a Inquisição catalã, entrado o século XIV, recebeu ordens do Papa Clemente V para dirigir os seus esforços contra a proscrita ordem dos cavaleiros do Templo, tal como se estava a fazer no vizinho reino francês. Mas na Catalunha os templários não sofreriam a mesma perseguição que a sustentada pelo monarca francês — se bem que esta fosse principalmente baseada em motivos económicos —, e num conselho provincial convocado pelos metropolitanos de Tarragona para tratar do assunto dos templários, todos os bispos presentes adoptaram unanimemente uma resolução pela qual se declaravam livres de culpa e não se encontrava razão alguma para a heresia de que eram acusados.

Depois dos templários, a Inquisição catalã dirigiu a sua atenção para os begardos, que também tinham conseguido untroduzir-se na Catalunha, e ditou algumas sentenças de morte, executadas, como era norma, pelo braço secular, após a entrega do condenado. Contudo, em meados do século XIV, em 1348, com o assalto popular às judiarias por toda a Europa, com base na epidemia da peste e das acusações generalizadas contra os judeus, a Insiquisição catalã, carente de hereges e de outras seitas ou movimentos espirituais, começou a dirigir a sua actuação para os judaizantes.

 

 

                                                                                Ildefonso Falcones 

 

 

                      

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