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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CEIA DE ELSINORE / Karen Blixen
A CEIA DE ELSINORE / Karen Blixen

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "VT"

 

 

 

  Sete Contos Góticos / Isak Dinesen

 

 

À esquina de uma rua de Elsinore, junto ao porto, ergue-se uma velha casa, cinzenta, digna, construída no início do século XVIII, e que olha reticente os novos tempos que em seu redor se levantam. Os muitos anos como que lhe criaram uma unidade, e, quando a porta fronteira se abre em dias de vento nor-nordeste, a porta do corredor no primeiro andar abre-se também por simpatia. Demais, quando se pisa um certo degrau da escada, logo num eco lhe responde uma tábua no sobrado da saleta como em vaga melodia.

Estivera a casa por longos anos na posse da família De Coninck, mas depois da bancarrota de 1813, e da tragédia que por essa altura se abateu sobre a família foi a casa abandonada e todos se mudaram para Copenague. Uma velha apenas, de touca branca, ficara a velar pela casa antiga na companhia de um moço e, de viver nos velhos quartos, ela só pensava, só falava dos velhos tempos. As duas filhas da família não se tinham casado, e agora já passavam da idade. O filho morrera. Mas nos Verões de tempos idos - assim contava a senhora Baek - pelas tardes soalheiras de domingo, o Papá e a Mamã De Coninck, com os filhos, saíam no pequeno landau da família para a casa de campo da senhora velha, a avó, onde jantavam, como era de uso, às três horas, na sombra do grande ulmeiro, esse que em Junho espalhava no relvado copiosas sementinhas castanhas, redondas e achatadas. Ali faziam as honras ao pato com ervilhas e aos morangos com natas, e o rapazinho corria, em calções brancos de nanquim, a dar de comer aos cães de Bolonha da avó.

As duas irmãs costumavam recolher em gaiolas os muitos pássaros que lhes ofereciam os seus apaixonados mareantes. Quando alguém lhe perguntava se as duas jovens não tocavam harpa, a velha senhora Baek, num movimento de ombros, dava a entender que era impossível nomear cada uma de tantas perfeições das meninas. Quanto aos seus adoradores, inútil seria abordar esse tema. Era inesgotável.

A velha senhora Baek, que fora por pouco tempo casada com um marinheiro, e reentrara ao serviço da família depois que ele se afogara, lastimava que as bonitas irmãs não estivessem casadas. Nunca se conformara. Aos olhos do mundo vivia teimando que as meninas não haviam conhecido um só homem digno delas, salvo o irmão. Mas ela própria adivinhava que esta sua teoria era inconsistente. Fora esse o caso, e as duas irmãs haviam de procurar esquecer, com um homem, esse ideal. Até ela, no interesse das meninas, faria o mesmo, ainda que muito lhe custasse. E no seu íntimo ela conhecia a verdade. Era dezassete anos mais velha que a mais velha das irmãs, Fernande, a quem chamavam Fanny, e dezoito anos mais velha que Elisa, que nasceu no dia da tomada da Bastilha, e estivera na família durante quase toda a vida. Mesmo incapaz de o expressar por palavras, sentia vivamente, no corpo e na alma, que um triste fado envolvia a família, unindo os três irmãos, e impedindo-os de manter uma relação verdadeira com os outros seres humanos.

Enquanto foram raparigas nenhum acontecimento social seria um sucesso em Elsinore sem a presença das lindas irmãs De Coninck. Elas eram a alma das festas na cidade. Quando entravam nos salões de baile, os tectos das ponderadas casas dos velhos comerciantes pareciam elevar-se um pouco, e das paredes brotar, luminosas, as colunas jónias que as videiras enlaçavam. Quando uma delas abria o baile, tão leve como um passarinho, tão forte como o pensamento, assim consagrava aquela reunião aos deuses da verdadeira alegria de viver, em cuja presença não ousam mostrar-se os cuidados e a inveja. Trinavam duetos como dois rouxinóis e imitavam, sem esforço e sem maldade, as vozes de todo o beau monde de Elsinore, a ponto de fazerem tremer de riso as panças dos inveterados jogadores, amigos de seu pai, a meio de uma partida de cartas. Imaginavam as duas, num ápice, novas charadas e jogos de prendas, e quando saíam para a lição de música ou para o Passeio voltavam transbordantes de histórias do que se passara e do que lhes ditava a fantasia, de improviso, cada qual mais extravagante do que a anterior.

Mas depois, na intimidade dos seus quartos, elas num vaivém obstinado desfaziam-se em prantos, ou sentadas à janela, de olhos fitos no cais, apertavam as mãos no regaço, ou insones pela noite choravam amargamente sem motivo. Falavam então da vida com a triste amargura de um Tímon de Atenas, provocando na senhora Baek uma inquietude, como se ela penetrasse uma atmosfera de ferrugem que tudo corroía. A mãe, que não tinha no sangue a maldição, havia de ficar seriamente alarmada, se fosse testemunha de momentos assim, e suspeitaria de um amor infeliz. O pai tê-las-ia compreendido e sofrido por elas, mas esse estava ocupado com os seus negócios e não entrava nos quartos das filhas. Só esta criada, então na meia-idade, e cujo temperamento era tão oposto ao delas, as compreendia à sua maneira e tudo calava no seu peito, tal como as irmãs, com um misto de orgulho e desespero. Às vezes tentava confortá-las. Quando exclamavam: «Hanne, como é terrível que haja tanta mentira, tanta falsidade neste mundo!» - ela dizia: «E então? Era ainda pior se fosse mesmo verdade tudo o que para aí se diz!»

De novo as raparigas se levantavam, enxugavam as lágrimas, experimentavam ao espelho os chapéus novos, organizavam representações teatrais ou excursões de trenó, escandalizavam e alegravam o coração dos amigos, e tudo voltava ao princípio. Pareciam tão incapazes de fugir a um extremo como ao outro. Em resumo, eram melancólicas natas, dessas criaturas que fazem felizes os outros sendo elas fatalmente desgraçadas, filhas do riso, do encanto e das lágrimas pungentes, da mais louca alegria e da solidão mais profunda.

Se alguma vez estiveram apaixonadas, a velha senhora Baek não o sabia dizer. Desesperavam-na, até, com o duro cepticismo com que negavam que alguém pudesse apaixonar-se por elas, quando a senhora Baek, realmente, bem via os cisnes de Elsinore empalidecer, penar, seguir o rumo do exílio ou ficar solteiros por amor delas. A senhora Baek sentia também que, se elas um dia pudessem convencer-se, de facto, de que eram amadas por um homem, essa seria a salvação das duas condenadas. Mas a relação que mantinham com o mundo era estranha e distorcida, como se fora apenas o seu reflexo num espelho o que mostravam, enquanto na sombra e na distância a mulher real se apagava, espectadora. Seguiria essa mulher com viva atenção os movimentos do amante cortejando a sua imagem, rindo em segredo com a impossibilidade de um dia ser consumado esse amor, chegado que fosse o momento, e sentindo o coração tornar-se de pedra a cada dia. Desejava essa mulher que o homem quebrasse o vidro e a linda criatura que nele se achava, e se voltasse enfim para ela? Ah, isso a senhora Baek sabia estar fora de questão. Talvez as duas lindas irmãs tirassem um estranho prazer da adoração oferecida à sua imagem no espelho. E finalmente já não podiam viver sem ela.

Porque pensavam desta forma tão peculiar, estavam destinadas a ficar solteiras. Agora duas velhas, com cinquenta e dois e cinquenta e três anos, pareciam aceitar melhor a vida, como coisa suportável que em breve terá fim. Que fossem desaparecer da face da Terra sem deixar notícia de si não as perturbava, pois sempre souberam ser esse o seu destino. Dava-lhes uma certa satisfação sentir que já desapareciam em vida, com graciosidade. Elas não haviam de apodrecer, como tantas amigas suas, pois já tinham sido, quais elegantes múmias espirituais, envoltas em mirra e ervas aromáticas. Em dias de maior doçura, e particularmente no convívio com a nova geração, os filhos de amigas suas, exalavam até um odor picante de santidade, que os jovens lembrariam toda a vida.

Essa fatal melancolia revelara-se em Morten, o rapaz, de maneira diferente, e nele fascinou a senhora Baek até à obsessão. Com ele nunca perdia a paciência, como lhe acontecia por vezes com as meninas, pelo facto de ele ser macho e ela fêmea, e por razão da verdadeira aura que o envolvia e estava ausente nas irmãs. Ele, sim, fora em Elsinore, como antes dele outro jovem dandy bem-nascido, o mais observado de todos os observadores, o espelho da moda e o modelo de todos. Muitas foram as raparigas do burgo que não se casaram por sua causa, ou que só tarde vieram a tomar por marido alguém que se assemelhava, talvez não propriamente en face, não propriamente no perfil, a essa cabeça de jovem deus que tinha, então, desaparecido no horizonte. E houve até uma que foi, aos olhos do mundo, a noiva de Morten, ela também já casada agora, e com filhos - aber frage nur nicht wie! Perdera essa beleza radiosa de loura que no seu tempo lhe valera em Elsinore o nome de «cordeirinho de ouro», e onde impara dantes uma criaturinha linda, trilhava agora as ruas uma senhora discreta e pálida. Mas era ainda ela a rapariga que, num dia soalheiro de Março, Morten, ao saltar da lancha no cais de Elsinore, onde a cidade em peso o aclamava entusiasta, roubara ao chão num abraço, e para quem o mundo à sua volta girara em turbilhão, num frémito de leques e longas fitas de todas as cores do arco-íris.

Morten de Coninck fora mais reticente de maneiras que as irmãs. Não via necessidade alguma de esforçar-se. Quando entrava numa sala, discretamente, a todos possuía e dominava. Tinha essa beleza de corpo e elegância de mãos e pés das mulheres da família, mas não a sua delicadeza de traços. O nariz e a boca pareciam talhados por mais rude artista. A sua fronte, porém, era a mais admirável, com uma serenidade, com uma nobreza extraordinárias. Quem falasse com ele erguia os olhos para essa fronte larga e pura, como se nela irradiasse a tiara diamantina de um moço imperador, ou a auréola de um santo. Morten de Coninck parecia incapaz de conhecer a culpa ou o medo. E provavelmente desconhecia-os de facto. Em Elsinore ele foi a figura do herói durante três anos.

Estava-se na época das guerras napoleónicas, quando os alicerces do mundo tremeram. Nessa luta de titãs a Dinamarca pretendera seguir o próprio caminho em liberdade, e pagara o preço: Copenague foi bombardeada e incendiada. Numa noite de Setembro, quando o céu da cidade flamejava rubro aos olhos de toda a Zelândia, o grande carrilhão da Frue Kirke, que o incêndio fizera soar, tocou sozinho o hino de Lutero, Einfester Burg ist unser Gott, antes que a torre alta caísse em ruínas. Para salvar a capital, o Governo teve de render a armada. As orgulhosas fragatas inglesas conduziram pelo canal do Sund os navios de guerra da Dinamarca - a luz dos seus olhos, uma enfiada de pérolas, um bando de cisnes em cativeiro. Os portos vazios clamavam aos céus, e a vergonha e o ódio enchiam os corações.

Foi durante as lutas e os importantes eventos que marcaram os anos seguintes de 1807 e 1808, que uma flotilha de corsários se reuniu, centelhas vivas de uma ruína fumegante. Levados pelo patriotismo, pela sede de vingança e pela mira de lucros, os corsários vieram de toda a costa e das pequenas ilhas da Dinamarca; eram nobres, barqueiros e pescadores, eram idealistas e aventureiros - bravos navegantes todos eles. Um homem que recebesse a carta de corso fazia sua a causa de um país exangue; tinha o direito de atacar o inimigo onde quer que o avistasse e podia voltar rico da batalha. A flotilha de navios corsários mantinha com o Estado uma curiosa relação: era uma sorte de mancebia marítima confessa, um casamento morganático, contando de uma e outra parte com uma dedicação apaixonada. Se não exibia as dragonas e o metal brilhante e santificado da união legítima, tinha pelo menos nos lábios o beijo ardente e rubro do Estado dinamarquês, e essa liberdade da concubina para enfeitiçar o seu real senhor com estes loucos desvarios que uma soberana não sonha sequer praticar. A própria Marinha de Guerra - ou o que dela restava, navios que se encontravam longe de Copenague nesses dias fatais de Setembro - olhava com simpatia a flotilha dos corsários, e com ela vivia em santa paz; a mesma provavelmente que reinava entre Raquel e a sua escrava Bilha, que era capaz do que a senhora não podia. Era um tempo de homens valorosos. Mais uma vez os canhões sibilaram nos canais dinamarqueses, aqui e além, onde menos se esperava, pois os navios corsários raramente operavam em conjunto; cada um deles era livre e sozinho. Feitos incríveis heróicos sucediam-se, valiosas presas eram roubadas às fragatas que as escoltavam e trazidas para o porto por barquinhos triunfantes e temerários, de mastreação pendendo desfeita, por entre os gritos de júbilo. Tudo isto era matéria de canções. Raramente outra classe de heróis pôde calar mais fundo no coração e na alma dos homens e mulheres do povo, e dos rapazes todos, de uma nação inteira.

Depressa se verificou que os navios maiores não se prestavam a esta sorte de comércio. O brigue ou o veleiro de cabotagem, com uma tripulação de doze a vinte homens e com seis a dez canhões giratórios, manobrável e rápido numa emergência, era o que se queria na ocasião. A perícia náutica do capitão e o seu conhecimento das rotas era de sobremaneira importante, e a bravura de cada homem da tripulação, a sua astúcia no manejo dos canhões e na abordagem com armas brancas, eram decisivas para a vitória. Assim se alcançavam as honras da guerra; e não só as honras mas o ouro; e não só o ouro mas a vingança sobre o violador, que é doce ao coração. E quando entravam no porto, com toda a mastreação por vezes coberta de gelo até que o navio parecia desenhado a giz sobre o escuro das ondas, para estes lobos do mar, velhos e moços, a hora do triunfo tinha já soado, mas ainda os esperava uma grande comoção, pois o rebuliço era tremendo quando entravam a barra das pequenas cidades portuárias. Depois vinha o juízo do navio apresado e o leilão dos salvados, que eram por vezes de grande valor. O Governo retirava uma parte, e cada tripulante recebia a sua, do capitão ao artilheiro, do imediato aos rapazes, que tinham direito a um terço da parte de um homem. Um rapaz que embarcasse nos corsários sem ter mais do que a camisa, as calças e a cinta que trazia no corpo, voltava com elas em farrapos e tintas de sangue e uma história de perigos e de alto mar para contar aos amigos, e podia fazer tilintar no bolso quinhentos riksdaler uns quinze dias depois, quando findasse o leilão. Os judeus de Copenague e de Hamburgo, cada um se coroando com três cartolas sobrepostas, surgiam imediatamente no leilão, nele desempenhando um importante papel ou, mais cedo ainda, espoliando os títulos de resgate dos bolsos de marinheiros impacientes.

Logo brilharam, como novos cometas, os nomes dos heróis populares e dos seus navios, erguendo-se a sua fama, dia após dia, à estatura de um mito. Eram esses homens Jens Lind, do Cort Adeler, a quem chamavam «Punhos de Renda», por todo se esmerar no vestir, e que desempenhou por vários anos o papel do grande nababo para depois, esgotado que foi o dinheiro, se acabar em lacaio de meninos. Era o capitão Raaber, do Vingador, uma figura de poeta; eram os irmãos Wulffsen, do Gaivota e do Madame Clark, homens ricos de Copenague; e Christen Kock, do Eolo, cuja guarnição, do primeiro ao último homem, pereceu ou ficou ferida no recontro com uma fragata inglesa ao largo de Laess; e era o jovem Morten de Coninck, do Fortuna II.

Quando Morten se dirigiu ao pai pedindo que lhe equipasse um navio corsário, o coração do velho senhor De Coninck temeu-se um pouco da ideia. Havia muitos, ricos e respeitados armadores em Copenague, alguns deles com um volume de negócios superior ao seu, que nesses dias tinham lançado ao mar os seus corsários, e o senhor De Coninck, que a ninguém consentia maior patriotismo, já sofrera graves perdas às mãos dos ingleses. Era-lhe penoso, porém, aceder a tal pedido. Repugnava-o atacar navios mercantes, mesmo que levassem contrabando. Parecia-lhe o mesmo que assaltar uma senhora ou matar um albatroz. Morten viu-se obrigado a pedir apoio ao primo de seu pai, Fernand de Coninck, um velho e rico solteirão de Elsinore, filho de uma francesa e partidário entusiasta do imperador Napoleão. As irmãs de Morten foram magistrais em ajudá-lo a conquistar o tio Fernand, e em Novembro de 1807 o jovem lançou ao mar o seu navio. Fernand de Coninck jamais lamentou a sua generosidade. Tudo aquilo o remoçava, sentia-se com menos vinte anos, e além disso foi juntando uma colecção de souvenirs dos navios inimigos que lhe dava grande prazer.

O Fortuna II de Elsinore, equipado com doze homens e quatro canhões giratórios, recebeu carta de corso no dia 2 de Novembro - não estava essa data gravada, como as datas que se seguiram, no coração da senhora Baek, tal o nome de Calais no coração de Maria Tudor, mesmo ao fim de trinta anos? Já no dia 4 o Fortuna II surpreendeu um brigue inglês ao largo de Hveen. Um navio de guerra inimigo, que a toda a pressa se dirigiu para o local, atirou sobre o corsário, mas a tripulação conseguiu cortar as amarras da presa e trazê-la em segurança, sob a protecção dos canhões do Kronborg.

O dia 20 de Novembro foi de grande glória para o corsário. Separou de um comboio o brigue inglês Cravina e a corveta Júpiter, que levava um carregamento de lona, faiança, vinhos, licores, café, açúcar e sedas. A carga foi posta em terra em Elsinore, mas as duas presas foram levadas para Copenague, e aí julgadas e condenadas. Duas centenas de judeus estiveram em Elsinore para o leilão da carga da Júpiter no dia 13 de Dezembro. Morten arrematou uma peça de brocado branco que se dizia ter sido fabricado na China e enviado de Inglaterra para dele se talhar o vestido para o casamento da irmã do Czar. Por esta altura já Morten estava noivo, e toda a cidade de Elsinore ria ou sorria vendo-o que se afastava com o seu pacote debaixo do braço.

Muitas foram as perseguições movidas ao corsário pelos navios de guerra inimigos. De uma vez, no dia 27 de Maio, ao lutar com uma fragata inglesa, o corsário encalhou à vista de Aarhus, mas escapou atirando borda fora o lastro de ferro e entrou no porto coberto pelo fogo das baterias dinamarquesas. Os burgueses de Aarhus deram ao jovem e ilustre capitão o ferro preciso para o seu lastro. Conta-se que as costureirinhas lhe foram oferecer os seus ferros de engomar, e para lhe dar sorte os beijaram ao entregá-los.

No dia 15 de Janeiro o Fortuna, auxiliado por outro corsário, o Três Amigos, apresara seis navios e com eles entrava a barra de Dogden, para os leiloar em Copenague, quando uma das presas encalhou no Midelgrund. Era um brigue que trazia um carregamento de lona avaliado em cem mil riksdaler, que os corsários tinham, horas antes, separado de um comboio inglês. Os navios de guerra inimigos ainda os perseguiam. Ao verem o acidente, os perseguidores logo enviaram um numeroso destacamento de seis chalupas, a recapturar o brigue. Os corsários, esses, não estavam dispostos a entregá-lo, e bordejaram contra os ingleses, que foram repelidos a fogo de metralha e obrigados a abandonar a presa. Mas o navio estava condenado. O mestre de corso que seguia a bordo, ao ver as forças superiores dos barcos inimigos, havia lançado fogo ao brigue para que não mais pudesse sair nas mãos dos ingleses. O incêndio alastrou de forma tão violenta que o barco não pôde ser salvo, e toda a noite a cidade de Copenague ficou a ver esse alto farol que, terrível, se consumia para norte. As cinco presas restantes foram levadas para Copenague.

Foi no Verão desse ano que o Fortuna II veio travar uma luta de vida ou de morte ao largo de Elsinore. Por essa altura já era o corsário um espinho atravessado na garganta dos ingleses e, numa noite escura de Agosto, eis que estes se preparam, a partir dos navios de guerra estacionados nas costas da Suécia, para vir aprisio-ná-lo. Duas grandes chalupas se aproximavam, os toletes envoltos em lã. A tripulação do corsário dormia, e só o jovem Morten e o atalaia estavam na coberta quando as chalupas, com uma guarnição de 35 homens, rasparam o costado do Fortuna e cravaram nas suas tábuas os arpéus de abordagem. Das chalupas dispararam tiros, mas a bordo do corsário não houve tempo nem espaço para usar os canhões. Foi uma luta a machado, ao sabre e à navalha. O inimigo enxameava na coberta, vindo de todos os lados; homens cortavam as amarras, outros pendiam da carranca. Mas o combate não durou muito. Os marinheiros do Fortuna lutaram como leões, e em vinte minutos a coberta ficou livre. O inimigo saltou para as chalupas e fez-se ao largo. Os canhões foram então disparados e feitos três tiros de metralha sobre os ingleses, que fugiram deixando 12 homens, entre mortos e feridos, na coberta do Fortuna II.

Em Elsinore tinha-se ouvido o fogo dos mosquetes inimigos, mas nenhuma resposta do Fortuna. A população juntara-se no porto e ao longo dos baluartes do Kronborg, mas a noite era escura e, embora o céu começasse a avermelhar para nascente, ninguém podia ver o que estava acontecendo. Então, ao raiar da primeira luz da manhã no céu cinzento, soaram três tiros, uns a seguir aos outros, e o rapazio de Elsinore jurou que via um fumo branco correr ao longo da escuridão das ondas. O Fortuna II entrou a barra de Elsinore meia hora mais tarde. Parecia negro no céu da manhã. A mastreação vinha toda mutilada e pouco a pouco os de terra foram distinguindo as pequenas silhuetas negras no navio, vermelhas no convés. Disse-se então que não havia a bordo lâmina de sabre ou de navalha que não estivesse tinta de vermelho, e que todas as redes da amurada, da popa à enxárcia, vinham ensopadas de sangue. Ninguém a bordo escapara ileso, também, mas um só havia que fora ferido gravemente. Era um preto das índias Ocidentais, nativo das colónias dinamarquesas ali estabelecidas - «negro na pele mas dinamarquês pelo coração», diziam na manhã seguinte os jornais de Elsinore. O próprio Morten, sujo de pólvora, uma ligadura tapando um dos olhos, branco na luz da aurora, trazendo estampada no rosto ainda a violência do combate, ergueu os braços bem alto à multidão que os aclamava na praia.

No Outono desse ano todo e qualquer corso foi subitamente proibido. Pensava-se que tal comércio atraía as fragatas inimigas aos mares dinamarqueses, e constituíam um perigo para o país. Por outro lado, o corso era tido por muitos como uma forma de luta selvagem e desumana. Foi um rude golpe para muitos marinheiros valorosos, que, abandonando os convés, partiram mundo afora, errando sempre, incapazes de fixar-se de novo e retomar nas pequenas cidades o trabalho como antes. O país chorava as suas aves de rapina.

Para Morten de Coninck, todos concordavam, a ordem nova surgira em tempo apropriado. Ele, que tinha colhido os louros, podia agora casar-se e fixar-se em Elsinore.

Estava ele nesse tempo noivo de Adrienne Rosenstand; o gavião desposaria a branca pomba. Adrienne era amiga chegada das irmãs, que a tratavam como se a tivessem elas inventado, dando-se ao prazer de vestir a sua beleza de modo a realçá-la melhor. O gosto das irmãs era requintado e decidido, e levaram tanto tempo a escolher o enxoval da amiga como se do próprio casamento se tratasse. A sós, nem sempre eram tão indulgentes para com a frágil cunhada, e uma e outra deploravam apaixonadamente o casamento do irmão com uma burguesinha, uma ave ornamental saída da capoeira de Elsinore. Se tivessem reflectido um pouco, haviam de congratular-se com a escolha. A timidez e o convencionalismo de Adrienne permitiam que elas brilhassem ainda, ímpares, no seu mundo de arrojo e fantasia; mas que seria das irmãs do gavião se ele, como bem poderia ter acontecido, lhes metesse em casa jovem águia?

O enlace iria ter lugar em Maio, quando a Natureza em volta de) Elsinore é mais bonita, e toda a cidade aguardava esse dia, impaciente. Mas afinal o casamento não chegou a celebrar-se. Na manhã festiva o noivo tinha desaparecido; e nunca mais foi visto em Elsinore. As irmãs desfizeram-se em lágrimas de dor e de vergonha, e tiveram de dar a notícia à noiva, que caiu desfalecida ao ouvi-la e ficou doente por longo tempo; não mais voltou a ser quem era. Toda a cidade parecia ter emudecido, na dor desse momento, enlutada. Nem um só mexeriqueiro se aproveitou da soberba ocasião. Elsinore sentia como sua aquela perda - irreparável.

Nenhuma mensagem directa de Morten de Coninck chegou jamais a Elsinore. Mas, com o passar dos anos, rumores aportavam do Ocidente. Fizera-se pirata, constou primeiro, e esse não era um destino invulgar para um corsário sem pátria. Correu depois o boato que tomara parte nas guerras da América, onde se distinguira. Mais tarde houve quem dissesse que se tornara um grande plantador e senhor de muitos escravos nas Antilhas. Mas mesmo a esses rumores a cidade não deu muita importância. O seu nome raramente era pronunciado; só voltou a sê-lo muitos anos mais tarde, quando já podia falar-se dele como de uma figura num conto de fadas, como o Barba-Azul ou Sindbad, o Marinheiro. Nas salas da família De Coninck ele deixou de existir no dia seguinte ao do casamento. O seu retrato foi retirado da parede. A senhora De Coninck deixou-se morrer de desgosto pela perda do filho. Era uma mulher cheia de vida, um instrumento afinado onde os filhos iam vibrar em notas claras e puras. Se nunca mais iria ser usado, se nenhuma valsa ou marcha militar voltaria a ouvir-se, mais valia então pôr de parte o instrumento. Pois a morte não era mais contrária à sua natureza que o silêncio.

Para as irmãs de Morten, as raras notícias dele eram o maná que alimentava os seus corações no deserto. Não ousavam servi-lo aos amigos ou aos pais; mas na destilaria dos seus quartos era sujeito a variadas preparações. O irmão voltaria almirante de uma frota estrangeira, o peito coberto de medalhas nunca vistas, para casar-se com a noiva que o esperava, ou voltaria ferido, de saúde arruinada, mas com as mais altas honrarias, para morrer em Elsinore. Desembarcaria no molhe. Não o fizera ele antes, não o tinham elas visto com os próprios olhos? Mas até este fraco alimento foi temperado pelos anos com amarguras pungentes. Elas mesmas, se lhes fosse dado escolher, antes queriam a fome que tragá-lo. Dizia-se que Morten, longe de ser um distinto oficial da Marinha ou um rico plantador, fora na realidade um pirata nas águas de Cuba e Trindade - um dos últimos dessa raça. Mas, perseguido pelos navios Albion e Triunfo, tinha perdido o barco nas águas de Porto Espanha e por pouco não morrera. Tentara ganhar a vida de muitas e difíceis maneiras, e fora visto por alguém doente e miserável nas ruas de Nova Orleães. A última coisa que as irmãs souberam dele foi que tinha sido enforcado.

Desde o dia do casamento de Morten que a senhora Baek sofria a sua dor em silêncio. Foram trinta longos anos. Os sofismas das duas irmãs nunca ela quis compartilhar; entravam-lhe por um ouvido e saíam-lhe por outro. Era toda humildade e atenções para com a noiva abandonada, quando esta vinha depois em visita à família, e no entanto nunca lhe demonstrou grande compaixão. Ela sabia, como sempre, muito mais do que outra pessoa da casa. Não se pode afirmar que pressentira a catástrofe, mas recebera estranhos avisos em sonhos. O noivo ganhara o hábito, desde criança, de sentar-se às vezes ao pé dela no seu quartinho. Fizera-o enquanto se procedia aos grandes preparativos para a sua felicidade. Por cima do croché e dos óculos ela havia espiado aquele rosto. E ela, que tantas vezes seroava até tarde, e já trabalhava na rouparia antes que o sol de Verão surgisse no Sund, estava ao corrente das entradas e saídas que o resto da casa desconhecia. Alguma coisa acontecera entre os noivos. Teria ele pedido a Adrienne que o possuísse e o tomasse nos seus braços para que jamais ele pudesse abandoná-la? A senhora Baek não concebia que uma rapariga, fosse quem fosse, tivesse coragem de recusar alguma coisa a Morten. Ou teria ela cedido, e a magia provara ser ineficaz? Ou tê-lo-ia ela observado, que dia a dia se afastava, e não reunira ainda assim a força de oferecer o sacrifício que poderia retê-lo?

Ninguém jamais o saberia, pois Adrienne nunca falava dessas coisas; aliás, nem o poderia ter feito ainda que o quisesse. Desde a convalescença dessa longa enfermidade parecia ter ficado um pouco surda. Só ouvia o que se consentia ser dito em altas vozes, e assim acabou os seus dias numa atmosfera de estridentes banalidades.

Durante quinze anos a linda Adrienne esperou o noivo; depois casou-se.

As duas irmãs De Coninck assistiram ao casamento. Estavam magnificamente vestidas. Foi essa, de resto, a última ocasião em que apareceram como as beldades de Elsinore, e embora já estivessem na casa dos trinta, foram tão pretendidas como as jovenzinhas da cidade. O seu presente de casamento para a noiva não foi menos grandioso. Ofereceram-lhe os brincos e o alfinete de diamantes de sua mãe, uma parure sem igual em Elsinore. Despojaram também as janelas das suas salas de todas as flores para com elas adornar os altares, pois o casamento celebrou-se em Dezembro. Todos pensaram que as duas orgulhosas irmãs honravam assim a amiga para compensá-la do que sofrera às mãos de Morten. Mas a senhora Baek conhecia a verdade. Ela sabia que agiam movidas por uma profunda gratidão, e que a parure de diamantes era uma oferenda em acção de graças. Porque a bela Adrienne já não era a virgem viúva do irmão querido, e já não ocupava o lugar a seu lado aos olhos do mundo. Se a gentil intrusa deixava agora a casa delas, o mínimo que podiam fazer era segui-la até à porta em rasgadas reverências. Para com os filhos de Adrienne, mais tarde, e pela mesma razão ainda, elas teriam a mais excessiva bondade, deixando-lhes por fim a maior parte dos seus bens terrenos; e em tudo isto eram movidas pela gratidão para com essa linda ninhada de aves ornamentais saídas da capoeira de Elsinore - porque não eram os filhos do irmão.

A própria senhora Baek fora convidada a assistir ao casamento e passara um serão agradável. Quando se servia o gelado, ela subitamente pensou nos icebergs do vasto e negro oceano, como tinha lido num livro, e num rapaz solitário que os olhava da coberta do navio, e nesse momento os seus olhos encontraram os da menina Fanny, que se sentava na outra extremidade da mesa. Esses olhos negros estavam fulgurantes, e brilhavam marejados de lágrimas. Com toda a força de uma De Coninck, a distinta solteirona reprimia alguma coisa: uma grande saudade, uma grande vergonha, ou um grande triunfo.

Mas havia uma outra rapariga em Elsinore cuja história é de direito contar, ainda que muito brevemente, neste passo. Essa era a filha de um estalajadeiro de Stetten, de seu nome Katrine, do sangue dos carvoeiros que vivem junto a Elsinore e são, sob muitos aspectos, aparentados com os ciganos. Alta e bonita, era uma morena de faces coradas, e dizia-se que fora, a certa altura, a eleita do coração de Morten de Coninck. Teve um destino triste. Foi dada por quase todos como louca. Começou a beber e a cair em vícios piores, e morreu nova. Para com esta rapariga mostrava Elisa, a mais nova das duas irmãs, uma grande bondade. Por duas vezes lhe montou uma pequena chapelaria, porque a rapariga era talentosa e sabia por instinto o que era elegante, e Elisa encarregava-se de a tornar conhecida pois não usava outros chapéus que os feitos por ela; no fim da vida, Elisa dava-lhe dinheiro. Quando, depois de muitos escândalos em Elsinore, Katrine se mudou para Copenague e ficou residindo na Rua de Dybensgade, onde em geral nunca uma senhora poria os pés, Elisa de Coninck ainda assim a ia ver, e parecia regressar dessas visitas com mais forças e uma secreta alegria. Porque era assim que uma rapariga amada e abandonada por Morten de Coninck devia portar-se. Só esta ruína evidente, esta miséria e esta degradação eram o contraponto harmonioso que podia ressoar nos ouvidos da irmã e alegrar o seu peito, quando ela se fechava às palavras de consolo que queria dar-lhe o mundo. Elisa sentou-se no leito de morte de Katrine qual feiticeira que observa, atenta, os efeitos da poção fatal e quase nem respira aguardando o resultado a consumar-se.

Esse Inverno de 1841 foi particularmente rigoroso. O frio veio antes do Natal, e em Janeiro instalou-se uma grande geada, mortalmente calma e contínua. Se alguma neve caía por vezes, era em grãos duros e escassos, mas não havia vento, não havia sol, não havia uma agitação no ar ou nas águas. Um gelo espesso cobria o Sund e podia ir-se a pé de Elsinore à Suécia e tomar um café com os amigos, esses cujos pais tinham encontrado os pais dos que atravessavam, agora gelada, essa água ao som dos canhões, quando as vagas foram alterosas. As gentes pareciam fitas de negros soldadinhos de chumbo na infinita planura cinzenta. Mas à noite, quando as luzes das casas e os fracos lampiões das ruas iluminavam apenas um breve caminho no gelo, esta planura branca do mar era toda estranha, como se um sopro de morte varresse o mundo. O fumo das chaminés subia a direito no ar. Nem os mais velhos se lembravam de outro Inverno assim.

A senhora Baek tivera, como os demais, um grande orgulho nos tremendos frios, que a empolgaram sempre, mas nestes meses de Inverno ela mudara. Provavelmente estava já perto do fim, que se aproximava a largos passos. Tudo começou quando ela caiu desmaiada na sala de jantar, numa manhã em que fora sozinha comprar peixe, e durante algum tempo mal se pôde mexer. A partir de então mergulhava em grandes silêncios. Parecia ter mirrado, e os seus olhos ficaram pálidos. Dava a volta à casa como antigamente, mas agora parecia-lhe que tinha de escalar uma encosta infinita e escarpada quando à noite, na companhia da vela e da própria sombra, subia as escadas; e parecia ficar à espera de sons longínquos quando se sentava com a sua malha junto ao alto fogão de porcelana, que fendia. Os amigos começaram a pensar que lá teriam de cortar uma cova para ela nessa terra dura como ferro, antes que viesse o degelo da Primavera. Mas ela aguentava-se, e pouco tempo depois parecia já mais forte, apesar de mais rígida, como se também ela se tornara em gelo, atingida pelo frio Inverno que não havia jamais de abandoná-la. Não recuperou aquela sua alegre e precisa fluência de conversa que, por setenta anos, fora um prazer para tantos, mantivera os criados na ordem, e promovera ou refreara os mexericos de Elsinore.

Uma tarde confiou ao moço que a ajudava em casa que decidira ir a Copenague para ver as meninas. No dia seguinte saiu a contratar a viagem com o cocheiro da praça. A notícia deste projecto correu célere pela cidade, pois a jornada de Elsinore a Copenague não era para brincadeiras. Numa quinta-feira levantou-se ainda à luz da vela e desceu os degraus de pedra até à rua, o seu saco de tapete na mão, enquanto a luz da manhã surgia indecisa.

A jornada não era, de facto, para brincadeiras. Mais de nove léguas separavam Elsinore de Copenague, e a estrada corria ao longo da costa. Em muitos trechos dela quase nem estrada havia; só um trilho que seguia a praia. Aqui o vento, soprando do lado do mar, varrera a neve, de modo que os trenós não podiam passar, e ela era velha e seguia numa carruagem a que se cobrira o chão de palha. Viajava bem agasalhada; mesmo assim, e à medida que a carruagem fazia caminho e o dia de Inverno, surgindo, mostrava toda uma paisagem de silêncio e frio, era como se nada ali pudesse viver, e menos ainda uma velha sozinha numa carruagem. Ia sentada em completa imobilidade, olhando à sua volta. A planura do Sund gelado era cinzenta na luz parda. Aqui e além, algas esparsas na praia marcavam-na de castanho e negro. Junto da estrada, sobre a areia, os corvos marchavam, marciais, ou lutavam por um peixe morto. As casinhas dos pescadores, ao longo da estrada, tinham portas e janelas bem fechadas. Por vezes via os moradores, com altas botas que lhes chegavam acima dos joelhos, lá muito ao longe, no gelo, a que iam cortar buracos para apanhar bacalhau com um isco de arame. O céu tinha a cor do chumbo, mas pelo horizonte corria uma larga faixa da cor de uma casca velha de limão, ou de um marfim muito antigo.

Longos anos se haviam passado desde que ela percorrera aquela estrada. Como ia seguindo, figuras há muito esquecidas vinham acompanhar a carruagem. Parecia-lhe estranho que o cocheiro indiferente, de gorro de peles, e os cavalicoques baios tivessem o poder de a conduzir a um mundo que eles próprios desconheciam.

Passaram por Rungstead, onde em criança ela servira numa velha estalagem de rubras telhas junto à estrada. Dali à cidade o caminho era melhor. Ali vivera, nos seus últimos anos, doente e miserável, o grande poeta Ewald, um génio, o cisne do Norte. De saúde arruinada, profundamente ferido no seu amor pela inconstante

 

Arendose, um alcoólico, ele ainda irradiava uma vitalidade, uma luz brilhante que havia fascinado a rapariguinha. A pequena Hanne, então com dez anos, fora sensível ao magnetismo dos grandes e misteriosos poderes da vida, que ela não compreendia. Era feliz quando podia estar com ele. Três coisas, soubera pelas conversas da estalajadeira, ele sempre implorava: poder casar-se, porque a vida sem uma mulher era para ele insuportavelmente fria e árida; qualquer espécie de álcool e, embora fosse um grande connaisseur de vinhos, era capaz de beber o grosseiro gin da região; e, finalmente, que o levassem à Sagrada Comunhão. Todas as três coisas lhe eram firmemente negadas pela mãe e pelo padrasto, ricos burgueses de Copenague, e até pelo amigo, o pastor Schoenheyder, porque não o queriam ver feliz das duas primeiras formas, e consideravam que ele devia mudar de vida antes que pudesse ser feliz por acção da terceira. A estalajadeira e Hanne sentiam pena dele. Ambas se teriam casado com ele, ambas lhe teriam dado vinho e o teriam levado à Sagrada Comunhão, se tal estivesse ao seu alcance. Muitas vezes, quando as outras crianças brincavam, Hanne deixava-as e ia colher para ele as primeiras violetas da Primavera, nas ervas, com os dedos frios, antecipando já a expressão do seu rosto ao cheirar os raminhos de flores. Havia nisto qualquer coisa que ela não compreendia, e que mesmo assim se apoderava fortemente do seu ser - que as violetas pudessem ter tanto valor. Em geral o poeta era alegre se estava com ela, sentava-a nos joelhos, e aquecia nela as mãos tão frias. O seu hálito cheirava por vezes a gin, mas ela nunca o contou a ninguém. Mesmo três anos depois, quando recebeu a Confirmação, ela imaginava o Senhor Jesus com o longo cabelo em rabicho, e aquele raro sorriso, louco, fraco e altivo, do poeta moribundo.

A senhora Baek entrou em Copenague pelas Portas de Leste no momento em que os lampiões se acendiam. Foi mandada parar e interrogada pelos guardas da portagem que, ao saber que ela era uma honesta mulher e não levava contrabando, a deixaram passar. Assim ela havia de aparecer às portas do Paraíso, ignorante do que dela se queria mas confiando que, se ela se tinha portado com correcção, de acordo com as suas luzes, os outros se portariam também com correcção, de acordo com as luzes que tivessem.

A carruagem seguiu pelas ruas de Copenague, e ela olhava em redor - porque não vinha à cidade há muitos anos - como olharia em volta para formar a sua opinião da Nova Jerusalém. As ruas não estavam cobertas de ouro e crisóprasos, e aqui e além amontoava-se alguma neve; mas, assim como eram, ela as aceitou. Aceitou também os estábulos, onde tinha de descer, e a caminhada a pé, na noite azul e gelada, de Copenague a Gammeltorv, onde ficava a casa das meninas.

Todavia sentiu, ao percorrer lentamente o seu caminho através das ruas, que era uma intrusa e que não era ali o seu lugar. Ninguém dava por ela sequer, excepto dois jovens, imersos numa discussão política, que tiveram de separar-se para a deixar passar, e uns rapazitos que fizeram comentários ao seu chapéu. Destas coisas ela não gostava; em Elsinore não havia disto.

As janelas do primeiro andar da casa das irmãs De Coninck estavam profusamente iluminadas. Lembrando-se que era o dia do aniversário de Fernande, a senhora Baek, no largo, imaginou que as meninas estariam dando uma festa.

Assim era, com efeito, e enquanto a senhora Baek subia lentamente a escada, arrastando os pés pesados e a sua mensagem de degrau em degrau, as irmãs recebiam alegremente os convidados na saleta cinzenta, aquecida e aconchegada, com o tapete verde e os brilhantes móveis de mogno.

A reunião promovida pelas duas solteironas era típica delas, pois os convidados eram quase todos do sexo masculino. Elas existiam, nessa bonita casa de Gammeltorv, quais duas grandes cortesãs espirituais de Copenague, levando ao excesso os seus admiradores e seduzindo-os a esbanjar com elas a saúde e a riqueza intelectuais que possuíam. Tal como duas jovens cortesãs da carne perseguiam os grandes e os príncipes da Terra, assim elas armavam ciladas constantes aos honoratiori do mundo espiritual, e esta noite podiam exibir nem mais nem menos do que o Bispo da Zelândia, o director do Teatro Real de Copenague, que era também um distinto dramaturgo e autor de livros filosóficos, e um velho e famoso pintor de animais, recém-chegado de Roma, onde fora cumulado de honrarias. Um velho comodoro de rosto fresco, que ainda trazia um ferimento recebido em 1807, e uma dama da rainha velha, elegante e boa ouvinte, cuja saia volumosa parecia absolutamente maciça da cintura para baixo, completavam o grupo, ambos velhos amigos que ali estavam nesse dia apenas para fazer sala.

Se estas duas irmãs não podiam viver sem homens era porque tinham essa firme convicção, que corre nas veias de todas as famílias de marinheiros como um instinto, de que a última palavra sobre o nosso real valor cabe ao sexo oposto. Podemos pedir a alguém do nosso sexo uma opinião e um conselho sobre a nossa bússola e a tripulação, sobre a nossa cuisine ou o jardim, mas quando se trata do próprio valor até as palavras dos melhores amigos são vãs e nada contam, e temos de apelar para alguém do outro sexo. Os velhos capitães de cabelos brancos, que dobraram o cabo Horn e enfrentaram já centenas de furacões, guiam-se por esta lei. Podem ser altamente respeitados na coberta ou na messe, e honrados pelos seus contemporâneos leais de cabelos grisalhos, mas são finalmente as raparigas que decidem se eles têm direito ou não a continuar vivos. As mulheres dos velhos marinheiros sabem-no, e dar-se-ão a grandes fadigas para obter dos homens, até dos mais moços, um juízo favorável. Esta doutrina, e este olhar, rápido na apreciação, são desenvolvidos nas famílias de marinheiros, pois nelas os dois sexos têm o ensejo de se verem a distância. Um marinheiro, ou a sua filha, julgam uma pessoa do sexo oposto com a rapidez e a segurança do caçador que ajuíza de um cavalo, o lavrador de uma rês ou o soldado de uma espingarda. Nas famílias de clérigos e de escribas, em que os homens ficam em casa todos os dias da sua vida, as pessoas podem ser extremamente bons juizes dos outros individualmente, mas o homem não sabe o que é uma mulher, e a mulher não sabe o que é um homem; quem vê de perto não vê ao certo.

As duas irmãs, em toucas de longas fitas de seda, faziam as honras da casa com toda a graciosidade. Nesses tempos, em que os homens não fumavam na presença de senhoras, a atmosfera de um serão permanecia até ao fim serena, e só um muito delicado e aromático e exótico fio de fumo subia dos copos de rum velho e raro com água quente, limão e açúcar, pousados sobre a mesa à luz mansa do candeeiro. Nenhum dos presentes escapava à influência deste néctar. Momentos antes todos tinham conjurado a passada juventude ao cantarem velhas canções que se lembravam de ter ouvido aos amigos de seus pais enquanto se bebia o vinho desses bons velhos tempos. O bispo, senhor de uma voz muito agradável, tinha erguido o seu copo a brindar à velha geração, segundo o antigo costume:

A memória dos jovens alegres, os nossos pais e nossos avós, pois livres souberam amar; e a prova aqui está, somos nós!

O eco da canção - porque ela agora afirmava haver um longo caminho de cinco minutos entre o ouvido e o cérebro - pusera Fanny de Coninck pensativa e distante. Que estranha prova, pensa ela, são estes corpos secos e velhos de que as meninas e os rapazes de há meio século suspiraram e estremeceram e se perderam em êxtases! Que prova singular é esta mão pálida, das loucuras de mãos moças numa noite de Maio há muitos, muitos anos!

Como estava de pé, o queixo, neste enfático sonhar, descaíra um pouco sobre a fita de veludo negro que lhe afogava a garganta, e seria difícil, a quem não a tivesse conhecido jovem, encontrar sinais de beleza no rosto de Fanny. O tempo fora um tanto cruel para ela. Uma leve contorsão de feições, que dantes fora adoravelmente picante, tornara-se agora numa pequena mas inquietante deformidade.

A sua ligeireza de pássaro caricaturava-se em pequenos movimentos bruscos, espasmódicos. Mas tinha ainda os olhos brilhantes de outrora, e era afinal uma figura distinta, quase tocante.

Momentos depois já conversava animadamente com o bispo. Até o lencinho nos seus dedos e os botõezinhos de cristal na seda estreita do busto pareciam tomar parte na discussão. Nem a pitonisa em sua trípode, o corpo envolto em fumos inspiradores, havia de parecer mais profética.

O tema em debate era a questão de saber se, oferecidas umas asas de anjo que não poderiam jamais ser retiradas, o contemplado aceitaria ou recusaria essa oferta.

- Ah, mas Vossa Reverendíssima - dizia Fanny - ao subir pela nave, havia de converter toda a congregação apenas com o espectáculo das suas costas. Nem um só pecador restaria em Copenague. Mas lembre-se de que até Vossa Reverendíssima teria de descer do púlpito ao meio-dia de todos os domingos. Já deve ser difícil agora, mas como é que Vossa Reverendíssima, com um par de asas brancas de anjo, havia de parecer quando...

O que ela desejava realmente dizer era: «quando tivesse de usar o bispote». Fosse quarenta anos mais nova que o diria. As irmãs De Coninck não tinham impunemente convivido com marinheiros desde a infância. Expressões muito vigorosas, imprecações até, como não se ouvia da boca das outras meninas de Elsinore, vinham naturalmente aos seus lábios rosados e tinham o poder de enfeitiçar os seus admiradores até à idolatria. Elas sabiam os muitos nomes do demónio, e em momentos de agitação exclamavam: «Que inferno, que inferno!». Agora, a longa prática de ser uma senhora e de receber tolhiam Fanny, que em vez disso concluiu suavemente:

- ...estivesse a comer um branco peru assado?

Porque fora peru assado que o bispo comera ao jantar, com evidente prazer. Mesmo assim, a sua imaginação foi tão vívida que achava curioso que o prelado, fitando, assim de perto, os seus olhos penetrantes, não visse neles a imagem dele próprio, todo paramentado, usando o bispote com um par de asinhas nas costas.

O velho ficara tão animado com a discussão que entornara algumas gotas do copo para o tapete.

- Minha deliciosa e prezada senhora - disse ele - sou um bom protestante e orgulho-me de não ter errado muito ao tentar conciliar as coisas do Céu com as da Terra. Numa situação como essa, eu baixaria os olhos e veria, em boa verdade, a minha pessoa celeste reflectida em miniatura, como a senhora vê a sua, todos os dias, nesse pedacinho de espelho em suas belas mãos.

O velho professor de pintura disse:

-Quando estive em Itália mostraram-me um pequeno osso, de

forma curiosa, que só se encontra na omoplata do leão, e que é o vestígio de uma asa, desse tempo em que os leões tinham asas, tais como ainda vemos no leão de São Marcos. Foi muito interessante.

- Ah, de facto, é uma bela figura monumental a dessa coluna - disse o bispo, que também estivera em Itália e sabia possuir uma cabeça leonina.

- A mim, se me fossem dadas asas - disse Fanny - pouco ligaria para a minha bela figura ou para as monumentalidades. Mas, por Sant'Ana, havia de voar!

- Permita-me esperar, minha senhora - disse o bispo - que não o faria. Nós temos as nossas razões para desconfiar de uma senhora que voa. Ouviu talvez falar de Lilith, a primeira mulher de Adão? Ela era, em contraste com Eva, toda feita do barro da Terra, como seu marido. E qual foi a primeira coisa que ela fez? Seduziu dois anjos, fê-los revelar a palavra secreta que abre os Céus, e assim, voando, fugiu a Adão. Isto é para nos ensinar que, mesmo se existe muito do barro terreno numa mulher, nem o marido nem os anjos a conseguem dominar.

- Realmente - prosseguiu ele, muito animado, o copo ainda na mão - na mulher os atributos particularmente celestiais e angélicos, e aqueles que mais admiramos e veneramos, todos lhe pesam e a forçam para a Terra. As longas tranças, os véus da pudicícia, os vestidos que se arrastam, até as adoráveis formas feminis, elas mesmas, o busto e a anca, que se arredondam, são o menos conformes possível à ideia de voar. Nós, todos nós, de boa vontade lhe damos o título de anjo, e as asas brancas, e as erguemos no nosso mais alto pedestal, com a única, inevitável condição de que ela não sonhe voar, de que ela tenha sido educada na estrita ignorância da possibilidade de voar.

- Oh, Ia Ia - disse Fanny - nós bem o sabemos, senhor bispo; e é sempre a mulher que os senhores não amam nem veneram, aquela que não possui a longa trança e o redondo busto, e que tem de arregaçar as saias para varrer o chão, que se ri do emblema da sua escravidão e unge o cabo da vassoura na véspera da Walpurgis.

O director do Teatro Real esfregou suavemente as delicadas mãos.

- Quando ouço as senhoras queixarem-se da sua árdua missão na vida e das restrições que sofrem - disse ele então - lembro-me às vezes de um sonho que tive um dia. Estava eu nessa altura escrevendo uma tragédia em verso. Pareceu-me, no meu sonho, que as palavras e as sílabas desse poema se rebelavam e protestavam dizendo: «Porque teremos de nos dar ao infinito trabalho de ficar de pé ou caminhar ou proceder de acordo com leis difíceis e dolorosas, que as palavras da sua prosa não sonham sequer obedecer?» Eu respondi: «Mesdames, porque vós estais destinadas a ser poesia. Da prosa pedimos e esperamos muito pouco. Ela deve existir - pelo menos para os regulamentos da Polícia e para o almanaque. Mas o poema que não é belo não tem razão de existir.» Deus me perdoe se alguma vez fiz poemas que não tivessem alguma beleza, ou tratei uma senhora de maneira a impedi-la de ser perfeitamente bela - que os meus outros pecados bem posso eu suportar.

- Como - disse o velho comodoro - posso eu ter dúvidas quanto à realidade das asas, eu, que cresci entre os veleiros e as senhoras do princípio do século? Esses medonhos navios a vapor, que por aí andam agora, bem podem ser uma espécie de bruxas do mar - são como as mulheres que se sustentam a si mesmas. Mas, se as senhoras pretendem deixar de ser veleiros de brancas velas ou poemas, então teremos nós, os homens, de ser poemas perfeitamente belos e deixar-lhes a tarefa de regulamentar a Polícia. Sem poesia o veleiro não nayega. Quando eu era cadete, rumando à Gronelândia ou ao Oceano Índico, costumava confortar-me, quando à noite fazia o meu quarto de vigia, pensando, por ordem consecutiva, em todas as mulheres que conhecia, e recitando os poemas que sabia de cor.

- Mas tu sempre foste um poema, Julian - disse Elisa. - Um rondó.

Sentiu-se tentada a abraçar o primo; sempre foram os melhores dos amigos.

- Ah, e a propósito de Eva e do Paraíso - disse Fanny - todos vós ainda tendes um certo ciúme da serpente.

- Quando estive em Itália - disse o professor - muitas vezes pensei no quanto é curioso que a serpente, que foi, se bem entendo as Escrituras, quem abriu os olhos do homem para as artes, seja um assunto impossível de, por si só, figurar num quadro. A cobra é uma criatura linda. Em Nápoles havia uma grande Casa dos Répteis, e eu costumava lá ir estudar as cobras durante longas horas. Elas têm peles que são como jóias, e os seus movimentos são maravilhosas obras de arte. Mas nunca vi uma cobra bem pintada num quadro. Eu próprio sou incapaz de as pintar.

- Lembras-te, Elisa - disse o comodoro, que estivera seguindo o curso dos próprios pensamentos - do baloiço que fiz para ti em Oregaard, no dia dos teus dezassete anos? Escrevi um poema, até.

- Lembro-me, sim, Julian - disse Elisa, o rosto iluminando-se. - Tinha a forma de um barco.

Era curioso como as duas irmãs, que tão infelizes foram na juventude, tivessem tanto prazer em relembrar o passado. Eram capazes de ficar horas seguidas falando dos mais insignificantes pormenores desses tempos, que as faziam rir e chorar mais perdidamente que qualquer caso do dia. Talvez para elas só tivesse verdadeiro encanto o que obedecesse a esta condição essencial: não existir no real.

Outro curioso fenómeno era que ambas, a quem tão pouco tinha acontecido, falassem com piedade e um certo desdém das amigas casadas, que tinham maridos, filhos e netos, como se as outras fossem pobres criaturas tímidas cujas vidas tivessem sido monótonas e insípidas. E que elas, que não tinham maridos, nem filhos, nem amantes, se não coibissem de sentir que haviam escolhido o caminho mais romântico e mais aventuroso. A explicação é que, para elas, só as possibilidades tinham algum interesse; as realizações não tinham qualquer peso. Elas próprias tiveram nas mãos todas as possibilidades, e nunca as abandonaram para fazer uma escolha definitiva e ceder a uma realidade limitada. Podiam tomar parte ainda em fugas por escadas de corda, em casamentos secretos, se fosse preciso. Ninguém poderia detê-las. Assim, as suas amigas mais chegadas eram apenas solteironas como elas, ou mulheres casadas mas infelizes, damas da távola redonda das possibilidades. Para com as amigas casadas e felizes, alimentadas de realidade, elas usavam, com toda a benevolência, de uma outra linguagem, como se aquelas fossem uma casta ligeiramente inferior, e para se falarem carecessem de um intérprete.

O rosto de Elisa tinha-se iluminado, como um puro e fino vaso de alabastro atrás do qual se acendesse um candeeiro, à menção do baloiço em forma de barco que lhe fora oferecido no dia dos seus 17 anos. Ela sempre fora, de longe, a mais bela dos três irmãos De Coninck. Na mocidade a velha tia francesa chamara-lhes la Bonté, la Beauté e l’esprit, sendo Morten la Bonté.

Elisa era tão loura quanto a irmã era morena, e em Elsinore, onde por certo tempo foram moda os apelidos, chamavam-lhe «Ariel», ou «O Cisne de Elsinore». A sua beleza encerrara essa particularidade singular de parecer uma promessa, de ser apenas o primeiro passo de uma longa e extraordinária carreira. Ela fora a jovem mulher excepcional que tivera a inspiração de ser, da cabeça aos pés, impressionantemente bela. Mas essa era tão-somente o começo. O passo seguinte seria talvez o seu trajo, pois Elisa primava sempre pelo vestir, e chegava a contrair pesadas dívidas de que por vezes o irmão tomava a responsabilidade perante o pai - na compra de brocados, caxemiras e plumas vindas para ela de Copenague e Hamburgo, e até de Paris. Mas isto era apenas e ainda um começo de algo mais. Vinha depois o modo como ela se movia e dançava. Havia à sua volta uma atmosfera de expectativa, que levava os observadores a conter a respiração. Que iria esta extraordinária rapariga fazer a seguir? Se nesse instante ela tivesse realmente desdobrado um par de longas asas brancas, e se elevasse do cais de Elsinore no céu de Verão, ninguém ficaria surpreendido. Todos sabiam que ela iria fazer alguma coisa de extraordinário, com tal abundância de graças. «Há mais força nessa rapariga - dizia o velho contramestre do Fortuna quando, num dia de Primavera, ele a viu descer ao porto a correr, sem chapéu - do que em todos os marinheiros juntos do Fortuna.» E, afinal, ela nada fizera.

Em Gammeltorv ela apagava-se discreta, intencionalmente, de dia para dia, até raiar numa beleza mais marmórea. Era ainda capaz de medir a cintura com as duas mãos longas e esbeltas, e movia-se com muita leveza e altivez, como uma velha égua árabe, um tanto hirta, sim, mas inequivocamente nobre, serena, no mundo da guerra como no das quimeras. E nela esse não-sei-quê mantinha ainda abertas as perspectivas, a sensação de que algures nela muito se reservava e não era de todo impossível que algo de extraordinário ainda acontecesse.

Meu Deus, esse baloiço, Elisa! - exclamou o comodoro. - Tinhas sido tão mazinha para mim na noite anterior que eu fui para o jardim de Oregaard, nessa manhã de Julho, ainda cedo, resolvido a enforcar-me. E ao olhar a copa do grande ulmeiro ouvi a tua voz dizer atrás de mim: «Esse ramo serve perfeitamente.» Era cruel, pensei eu. Mas ao voltar-me vi-te, ainda de papelotes enrolados no cabelo, e lembrei-me que te tinha prometido um baloiço. Eu não podia morrer; pelo menos enquanto não cumprisse a promessa. Quando o instalei e te vi sentada nele, pensei: Se há-de querer sempre o meu destino que eu seja o lastro das velas brancas das lindas raparigas, então eu dou graças a Deus pelo meu destino.

É E isso que amamos em ti; que amámos sempre - disse Elisa. Uma criadinha extremamente bonita, de fitas de um tom de

azul-pálido na touca - que as duas velhas cortesãs espirituais empregavam para dar um equilíbrio à casa, do mesmo modo que duas jovens cortesãs mundanais teriam, com o mesmo fim, uma criada feia e pouco afortunada, uma anã com espírito e imaginação - trouxe numa bandeja toda a sorte de guloseimas: gengibre da China, tangerinas e frutas cristalizadas. Ao passar pela cadeira de Fanny, disse num murmúrio:

- A senhora Baek chegou de Elsinore e está à espera na cozinha.

A cor de Fanny mudou, que ela nunca soubera receber, serena, as notícias da chegada ou da partida de alguém. A alma deixou-a e voou para a cozinha, de onde Fanny a teve de arrastar até si.

- Nesse Verão de 1806 - disse ela - saiu a tradução da Odisseia em dinamarquês; foi a primeira, creio eu. O papá costumava ler-nos passagens ao serão. Ah, e para nós escolhíamos o papel do herói e dos seus valorosos marinheiros, desafiávamos Ciclopes e navegávamos entre a ilha dos Lestrígones e as praias dos Feaces! Nunca poderei acreditar que não passámos esse Verão navegando em navios de velas castanhas.

Pouco depois a reunião terminava, e as duas irmãs erguiam os estores da janela para acenarem aos quatro homens que ajudavam a menina Bardenfleth a subir para o seu coche de gala, e seguiam, num grupinho falador e animado, atravessando o pequeno deserto de cor ferrosa que era o Gammeltorv nocturno, comentando, por entre as discussões poéticas e filosóficas, o extraordinário frio.

Este momento no final das reuniões sempre tocava de modo peculiar o coração das duas irmãs. Ficavam satisfeitas por se verem livres dos convidados; mas um instante de silêncio e de amargura acompanhava esse prazer. Porque elas sabiam ainda fazer-se amar. Possuíam o esplendor capaz de refractar pequenos efeitos de arco-íris na atmosfera da vida de Copenague. Mas quem saberia fazê-las amar? A taça do vinho intelectual e sentimental que gerava calor e movimento das veias flebolíticas dos velhos convidados, onde iriam elas buscá-la? À outra irmã, bem o sabiam, e em geral contentavam-se com isso. Em momentos assim, porém, a tristesse da eterna anfitriã formalizava-as um pouco.

Não acontecia o mesmo esta noite, pois mal correram os estores rodaram para a cozinha, apressando-se a mandar para a cama a criadinha bonita, como se pressentissem que o verdadeiro prazer da vida se achava unicamente na companhia das velhas. Fizeram mais café para a senhora Baek e para si próprias, usando a antiga cafeteira de cobre pendurada sempre na parede. O café, na opinião das mulheres da Dinamarca, é para o corpo o que a palavra de Deus é para a alma.

Fosse em tempos idos que as irmãs e a criada se voltassem a ver depois de uma longa separação, as raparigas haviam de começar logo a entreter a viúva com histórias dos seus admiradores. O tema era um perpétuo fascínio para a senhora Baek, e caro às duas irmãs pela oportunidade que lhes dava de a chocar. Mas esses dias tinham passado. Deram-lhe notícias da cidade - um velho viúvo tinha voltado a casar, outro tinha enlouquecido - contaram-lhe um ou outro mexerico da Corte, dos que ela entendesse, e que tinham ouvido à Bardenfleth. Mas alguma coisa no rosto da senhora Baek lhes chamou a atenção. Era todo um pesado destino o seu rosto; ela é que trazia notícias para dar. Em breve elas faziam uma pausa para a ouvir.

A senhora Baek deixou que a pausa se prolongasse.

- O menino Morten - disse ela por fim, e ao som dos seus pensamentos que a tinham acompanhado nesses longos dias e longas noites ela ficou muito pálida - está em Elsinore. Anda pela casa.

A esta notícia um silêncio mortal caiu sobre a cozinha. As duas irmãs sentiram arrepiar-se os cabelos. O terror do momento era para elas isto: ser a senhora Baek quem lhes dava tais notícias. Elas o poderiam ter anunciado, por fantasia ou perversidade, e pouco significado teria. Mas ser Hanne, que para elas era o princípio mesmo da solidez e do equilíbrio do mundo, a pronunciar as palavras que lhes atiravam em cara o fim de tudo - isso fez com que os segundos passados na cozinha parecessem às duas irmãs serem os primeiros instantes de um terramoto.

A senhora Baek apercebia-se da estranheza da situação, e de tudo o que estava passando pela cabeça das meninas. Também ela se teria aterrorizado, se pudesse ainda sentir algum terror. Agora, era só um grande triunfo o que sentia.

- Eu vi-o - disse ela. - Sete vezes.

Aqui as irmãs começaram a tremer tão violentamente que tiveram de pousar as chávenas de café.

- A primeira vez - disse a senhora Baek - estava ele em pé, na sala de jantar vermelha, a olhar para o relógio grande. Mas o relógio estava parado. Eu tinha-me esquecido de lhe dar corda.

Subitamente uma chuva de lágrimas brotou dos olhos de Fanny, e banhou as faces pálidas.

- Oh, Hanne, Hanne - disse ela.

- Depois encontrei-o uma vez na escada - disse a senhora Baek. - Três vezes ele veio sentar-se ao pé de mim. De uma vez apanhou um novelo de lã que me tinha rolado para o chão e atirou-mo para o regaço.

- Como te pareceu ele? - perguntou Fanny numa voz aguda e alquebrada, fugindo ao olhar da irmã, que permanecia imóvel.

- Parece mais velho do que quando se foi embora - disse a senhora Baek. - Usa o cabelo mais comprido que os homens de cá; deve ser a moda americana. Tinha umas roupas muito velhas também. Mas ele sorria para mim como antigamente. A terceira vez que o vi, antes de ele se ir embora, porque ele vai-se embora a seu modo e quando a gente pensa que ainda o encontra já lá não está, atirou-me um beijo exactamente como ele costumava fazer em rapaz, quando eu ralhava com ele.

Elisa ergueu o olhar, muito lentamente, e os olhos das duas irmãs encontraram-se. Nunca, em toda a vida, elas tinham ouvido uma palavra sequer à senhora Baek que se pudesse pôr em dúvida.

- Mas - disse a senhora Baek - desta última vez fui dar com ele a olhar durante muito tempo para os vossos retratos. E pensei que vos quisesse ver, por isso as vim buscar para voltarem a Elsinore.

A estas palavras as irmãs ergueram-se como dois granadeiros na parada. A senhora Baek, essa, embora numa agitação terrível, permaneceu sentada, figura central como sempre daquelas reuniões.

- Quando é que o viste? - perguntou Fanny.

- A primeira vez - disse a senhora Baek - faz hoje três semanas. A última foi no sábado. Então pensei: agora tenho de ir buscar as meninas.

Subitamente o rosto de Fanny incendiou-se. Olhava para a senhora Baek com grande ternura, a ternura dos dias de juventude. Sentiu que este era um grande sacrifício que a velha fazia por dedicação a elas e por um sentido do dever. Porque essas três semanas em que vivera com o fantasma do proscrito da família De Coninck, sozinha, devem ter sido o ponto alto da vida da senhora Baek, e para sempre assim seria. Agora, acabava-se.

Seria difícil dizer se, quando falou, a sua voz se aproximava mais do riso ou do choro.

- Oh, iremos, Hanne - disse - iremos a Elsinore.

- Fany, Fanny - disse Elisa - ele não está lá; não é ele. Fanny deu um passo em direcção ao lume, tão violentamente que na sua touca as longas fitas ondularam.

- Porque não, Lizzie? - disse ela - Deus afinal quer fazer alguma coisa por ti e por mim. E não te lembras, quando o Morten tinha de voltar à escola depois das férias, e não queria ir, que ele nos obrigava a dizer ao papá que tinha morrido? Nós fazíamos uma sepultura para ele, debaixo da macieira, e ele deitava-se lá. Lembras-te?

As duas irmãs neste momento viram, com os olhos da memória, exactamente a mesma imagem do rapazinho corado, com terra nos caracóis, que tinha sido puxado da sepultura por um jovem pai furioso, e a imagem delas, com as pequenas pás e os vestidos de musselina todos sujos, seguindo a procissão até casa, quais carpideiras frustradas. O irmão podia estar desta vez a pregar-lhes uma Partida.

Ao voltarem-se uma para a outra os dois rostos tinham a mesma expressão de facécia juvenil. A senhora Baek, da sua cadeira, ao vê-las, sentiu-se como a mãe feliz que sobre as palhas dá à luz. Um peso, um volume dela se haviam separado, e a sua importância tinha com eles desaparecido. Era sempre assim com as pessoas de posição. Tomavam tudo o que a gente tivesse, até os fantasmas.

A senhora Baek não deixou que as irmãs regressassem com ela a Elsinore. Fê-las adiar de um dia a viagem. Queria velar para que os quartos estivessem aquecidos quando as recebessem, e para que houvesse botijas de água quente nas camas estreitas onde elas há tanto tempo não dormiam. Partiu no dia seguinte, deixando-as passar em Copenague essa noite ainda.

Foi bom para elas que lhes tivessem sido dadas essas horas em que podiam decidir-se e preparar-se para se encontrarem com o fantasma do irmão. Uma tempestade se abatia sobre elas, e os seus navios, que tinham conhecido a calmaria dos remansos, perdiam-se no turbilhão de uma nevasca, por entre vagas tão altas como casas. Mesmo assim elas não eram, nos folhos de renda dos corpetes, marinheiros de primeira viagem nas tempestades da vida. Eram capazes de manobrar ainda, e de aguentar a escota. Nem se debulharam em lágrimas. As lágrimas nunca foram remédio para elas. As lágrimas eram as primeiras a surgir, e uma fraqueza apenas; agora eram passadas, e elas velejavam pelo grande dilema. Bem conheciam a regra dos velhos marinheiros:

Vem o vento antes da chuva - fica a vela em pano roto. Vem a chuva antes do vento - baixa a vela e faz-te ao porto.

As duas irmãs não falaram muito enquanto esperavam ser recebidas na sua casa de Elsinore. Se fosse domingo teriam ido à igreja, porque eram convictas praticantes, e críticas dos pregadores eminentes da cidade, de modo que voltariam para casa seguras de que elas teriam feito melhor. Na igreja talvez lhes tivesse agradado a companhia; só a casa do Senhor, entre todas, as abrigaria juntas. Assim, era preciso que vagueassem em extremos opostos da cidade, por ruas e parques vestidos de neve, as mãozinhas pequenas em regalos, olhando as estátuas nuas e frias e os pássaros gelados nos ramos.

Como iriam duas senhoras altamente respeitadas, ricas, benquistas e amimadas por todos, dar as boas-vindas ao enforcado do seu próprio sangue? Fanny percorria sem descanso a alameda de tílias dos Roseirais Reais de Rosenborg. Não seria capaz de a percorrer mais tarde, nem sequer nos dias estivais, quando se tornava um caramanchão de verde e oiro, cheio como um aviário das vozes das crianças. Levava consigo, de uma ponta à outra da alameda, a imagem do irmão olhando o relógio, e o relógio parado e morto. A imagem agigantava-se. Era a morte da mãe com a dor de o ver partir que ele assim olhava, e o desgosto da sua noiva. Crescia ainda a imagem. Eram todos os corações do mundo que foram traídos e sofreram, todas as dores das criaturas fracas e silenciosas, toda a injustiça e o desespero da Terra que ele assim olhava. E ela sentia que tudo isso lhe pesava sobre os próprios ombros. A responsabilidade era sua. Se no mundo havia sofrimento e morte era por culpa dos De Coninck. A infelicidade fazia com que subisse e descesse a alameda como folha seca ao sabor do vento - uma senhora distinta, de botinas de pele, em seu coração um grande pássaro louco, de asas cortadas, adejando no poente invernoso. Entortando os olhos podia ver no seu grande nariz, rosado sob o véu, um bico tremendo e cruel. De tempos a tempos uma pergunta lhe vinha à mente: O que estará a Elisa a pensar? Era estranho que a irmã mais velha sentisse, com amargura e terror, que a irmã mais nova assim a tinha abandonado na sua hora de aflição. Ela, que procurara estar só, não obstante repetia a si mesma: «Pois não pode ela velar comigo uma hora?» Fora já o mesmo na velha casa dos De Coninck. Se as coisas se tornavam realmente complicadas, Morten, o papá e a mamã De Coninck voltavam-se para a silenciosa rapariga mais nova, muito menos brilhante do que a própria Fanny: «O que pensa a Elisa disto?»

Escurecia, e como reflectisse que a senhora Baek já devia estar na casa de Elsinore, Fanny subitamente se deteve e pensou: Deverei rezar a Deus? Muitas amigas suas, bem o sabia, encontravam conforto na oração. Ela desde criança não rezava. Por ocasião dos seus domingos passados na igreja, que eram visitas de cortesia ao Senhor, os seus breves silêncios, de cabeça baixa, foram gestos de polidez. A sua oração, agora que ela começava a formulá-la, nem por isso lhe agradou. Costumava em pequena ler em voz alta a correspondência do papá, por isso estava habituada ao estilo das cartas de empenhos - «...Sentindo-me profundamente impressionado pela magnificência e nobreza da bem conhecida bondade de Vossa Excelência...» Ela própria recebera muitas cartas semelhantes; também muitos rapazes lhe imploraram de joelhos qualquer coisa. Fora altamente generosa para os pobres e dura para os apaixonados. Ela nunca pedira nada, nem o iria fazer agora em nome do orgulhoso irmão mais novo. Como a sua oração começasse a assemelhar-se a uma carta de empenhos ou a uma declaração, Fanny calou-se. «Ele não há-de sentir vergonha - pensou ela - pois foi ele quem me chamou. Ele não terá medo de dez mil pessoas que tanto se obstinaram em persegui-lo.» E, posto isto, dirigiu-se a casa.

Quando, na tarde de sábado, as irmãs chegaram à casa de Elsinore, conheceram uma profunda agitação de alma. Até o ar, até o cheiro do vestíbulo as penetrava, essa atmosfera de sal e de algas que sempre enlaça as velhas casas junto ao mar. Diz-se, pensou Fanny de Coninck, fungando, que o nosso corpo se muda completa-mente no curso de sete anos. Como eu mudei, como eu esqueci! Mas o meu nariz ainda deve ser o mesmo. O meu nariz eu conservei, e ele lembra-se de tudo. A casa, de tão aquecida, parecia uma estufa, e isto comoveu-as como se fosse um cumprimento, como se um velho admirador tivesse posto o uniforme de gala em sua honra. Muita gente, ao visitar os lugares do passado, suspira ante os sinais do tempo e da mudança. As irmãs De Coninck, pelo contrário, sentiam que a velha casa bem podia, ela sim, deplorar os sinais do tempo e do declínio neste seu reencontro com elas, e gritar: Céus, Céus! São estas as duas raparigas de faces como damascos, de argentinas vozes, de sapatinhos de baile, que usavam deslizar pelo corrimão das minhas escadas? - e em suspiros ecoando pelas altas chaminés: Oh, meu Deus! Ide-vos, ide-vos! Se a velha casa, porém, assim quis ignorar o que sentia e fingir que elas estavam na mesma, dava mostras de uma grande cortesia.

O profundo e cerimonioso prazer com que a senhora Baek as acolhia só poderia comovê-las. Veio à porta para as receber; mudou-lhes os sapatos e as meias, e tinha pronta uma bebida quente. Se a podemos fazer feliz apenas com visitá-la, pensaram elas, porque só hoje aqui viemos? Seria porque essa casa da infância e da mocidade lhes tinha parecido sempre um pouco fria e deserta, como uma sepultura, antes de abrigar um fantasma?

A senhora Baek levou-as pela casa a mostrar-lhes os lugares onde estivera Morten, e repetiu os gestos dele muitas vezes. Às irmãs pouco importavam os gestos que ele teria feito se não os dirigira a elas, mas apreciaram o amor da velha pelo irmão, e escutaram-na pacientes. Afinal a senhora Baek sentia um grande orgulho, como se lhe fora entregue uma sagrada relíquia do esqueleto bem-amado do rapaz, um ossinho que só ela guardaria.

A sala onde seria servida a ceia era de esquina. Duas janelas viravam a leste, de onde se avistava o velho castelo cinzento de Kron-borg, com as suas agulhas acobreadas, qual punho ameaçador em pleno Sund. Sobre os baluartes os antigos capitães da fortaleza haviam plantado um jardim, onde, na nudez do Inverno, tílias mostravam ao mundo como crescem desregradas as árvores que não aprendem a marchar, militares, duas a duas. Outro par de janelas, viradas a sul, davam para o porto. Era estranho ver o porto de Elsinore sem um movimento, onde os marinheiros regressavam dos barcos presos no gelo.

As paredes da sala foram dantes pintadas de carmim, mas com o tempo a cor tinha manchado numa riqueza de tons como um vaso de vidro cheio de rosas vermelhas moribundas. À luz das velas, estas paredes lisas coravam e brilhavam intensas, e em certos lugares resplandeciam como pequenos lagos de laca vermelha seca, ardendo. Numa parede estavam os retratos das duas irmãs De Coninck quando jovens, as beldades de Elsinore. O terceiro retrato, o do irmão, fora retirado há tanto tempo que só uma ligeira sombra na parede marcava o lugar onde estivera um dia. Um potpourri defumava no fogão, e ladeando-o Neptunos vinham, com tridentes, conduzindo as parelhas de cavalos através das altas ondas. Mas as pétalas secas de rosa datavam de Verões de há muitos anos. Só uma leve fragrância de rosa se espalhava dessa pira funerária, um pouco rançosa, como o bouquet de um fino clarete por longo tempo conservado. Frente ao fogão a mesa estava posta, sobre a toalha branca, com delicados pratos e chávenas de porcelana chinesa.

Nesta mesma sala os três irmãos De Coninck tinham celebrado outrora muitas ceias secretas, quando preparavam alguma soirée de máscaras ou de teatro, ou quando Morten voltava, a horas mortas, de uma expedição no seu veleiro que devia ser segredo para os pais. Ao comer e beber em ocasiões como essas, usavam eles de toda a cautela, não fossem acordar a casa, que dormia. Há trinta e cinco anos a sala vermelha assistira a muita hilariedade causada por tais precauções.

Fiéis à tradição, as irmãs De Coninck entraram na sala e tomaram os seus lugares à mesa, em frente uma da outra, junto ao fogão e em silêncio. Nestas velhas beldades infatigáveis de cem bailes a idade e a agitação principiavam enfim a reivindicar os seus direitos. As pálpebras pesavam-lhes, e não poderiam resistir por muito mais tempo se alguma coisa não acontecesse.

Não tiveram de esperar muito. Quando acabavam de servir o chá e levavam aos lábios as finas chávenas, ouviram um leve sussurro no silêncio da sala. Quando ligeiramente se voltaram, viram o irmão de pé ao topo da mesa.

Assim ficou por momentos, e fez um aceno de cabeça, sorrindo-lhes. Depois tomou da cadeira vaga e sentou-se entre elas. Colocou as mãos na quina da mesa, movendo-as mansamente para os lados e retomando a primeira posição, precisamente como dantes costumava fazer.

Morten estava pobremente vestido com um casaco cinzento escuro, que parecia desbotado e muito gasto. No entanto via-se que cuidara muito a sua aparência para vir a este encontro, pois tinha um colarinho branco, uma gravata negra cuidadosamente cingida, e cabelo bem escovado para trás. Talvez tivesse receio, pensou Fanny por momentos, ele, que viveu tanto tempo em tão rude companhia, de causar nas irmãs uma impressão de menos requinte e pior educação. Não teria por que preocupar-se; até no patíbulo ele seria um cavalheiro. Estava mais velho do que elas o lembravam, mas não tão velho como as irmãs. Parecia ter quarenta anos.

O seu rosto seria talvez mais grosseiro que outrora, estava marcado pelas intempéries e muito pálido. Conservava, a par dos olhos negros, sempre um tanto encovados, o mesmo divino jogo de luz e de sombra que há muitos anos enlouquecia as donzelas. A sua boca generosa tinha ainda a franqueza e a doçura de outros tempos. Mas a sua fronte pura sofrera uma mudança. Não era porque estivesse agora sulcada por um sem-número de pequenos traços horizontais, pois o mármore de que era feita suportava sem deslustre os desgastes superficiais. Mas o tempo revelara o verdadeiro carácter dessa fronte. Não era a tiara imperial o que um dia prendera todos os olhares e encimava as negras sobrancelhas. Era a semelhança nobre e grave com a fronte de uma caveira. A sua luz pertencera ao senhor, não do mundo, mas do túmulo e da eternidade. Agora, que o cabelo se afastava, a fronte revelava essa verdade franca e simplesmente. Para além disso, alguém que tivesse obtido, com o rosto desse irmão, a chave do conhecimento deste singular tipo de beleza familiar, reconhecê-la-ia imediatamente no rosto das irmãs, e até nos dois retratos juvenis que pendiam da parede. A característica mais marcante destas três cabeças era a sua semelhança, em traços largos, com uma caveira.

O semblante de Morten guardara, porém, a placidez, a deferência, a dignidade de sempre.

- Boa-noite, irmãzinhas; bons olhos, bons olhos vos vejam - disse ele - foram muito gentis, muito boas em ter vindo aqui para me verem. Deve ter sido uma...

Deteve-se e por momentos pareceu buscar as palavras, como se não tivesse o hábito já de falar com as pessoas; e depois concluiu:

- ...viagem bem fresquinha, a vossa, até Elsinore, penso eu. As irmãs, sentadas, olharam-no, tão pálidas como ele. Morten sempre tivera o costume de falar em voz muito baixa, ao contrário delas. Assim, uma discussão entre as duas irmãs desenrolava-se com elas falando ao mesmo tempo, correndo-se o risco de uma voz estridente abafar a outra. Mas se alguém queria ouvir o que Morten tinha a dizer, teria de fazer silêncio. Era assim que ele falava agora, e se bem que elas estivessem quase preparadas para o verem, não o estavam para ouvir a sua voz.

Escutaram-no em silêncio, como antes faziam. Mas ansiavam por algo mais. Ao porem os olhos no irmão os troncos secos delas todos se viraram. Poderiam tocar-lhe? Não, elas sabiam que isso não podia ser. Não fora em vão que tinham lido histórias de fantasmas toda a vida. E isto mesmo lhes recordou os velhos tempos quando, para essas suas ceias privadas, Morten vinha por vezes com o seu grande capote encharcado de chuva e de mar, brilhante, negro e áspero como a pele de um tubarão, ou todo lustroso de neve, ou coberto de alcatrão, de modo que elas, rindo, tinham de estender o braço a afastá-lo dos seus vestidos. Oh, como as melodias de há trinta anos tinham vindo transpostas do tom maior para um puro tom menor! Que nevascas teria ele atravessado nessa noite? Com que espécie de alcatrão se havia coberto?

- Como vão, minhas queridas? - perguntou ele. - A vida é tão alegre em Copenague como era nos velhos tempos de Elsinore?

- E tu como estás, Morten? - perguntou Fanny, a voz uma boa oitava mais alta do que a dele. - Estás mesmo com o ar bonito de um capitão de corsário. Trazes contigo o sabor e a riqueza dos ventos alíseos ao nosso mosteiro de Elsinore.

- Sim, eram bons ventos, esses - disse Morten.

- Até onde foste, Morten? - perguntou Elisa, numa voz trémula. - A imensidão de lugares bonitos que deves ter conhecido, e nós nunca vimos! Como eu queria, como eu queria estar no teu lugar!

Fanny lançou à irmã uns olhos vivos e firmes. Teriam os pensamentos de ambas encontrado caminhos paralelos desde as ruas e os jardins brancos de neve de Copenague? Ou daria voz esta silenciosa irmã, mais nova do que ela, muito menos brilhante, à verdade simples que lhe ia no coração?

- Sim, Lizzie, minha pomba - disse Morten. - Bem me lembro. Tenho pensado nisso... O que tu costumavas chorar batendo o pezinho e apertando as mãos num grito: «Ah, quem me dera estar morta!»

- Donde vens, Morten? - perguntou Fanny.

- Do Inferno - disse Morten. - Desculpa - acrescentou, vendo a irmã estremecer. - Vim agora, como vês, porque o Sund gelou. Nessas alturas posso vir. É de norma.

Ah, como o coração de Fanny ganhou asas quando ouviu estas palavras. Ela própria o sentiu, como se tivesse gritado, num berro de libertação, mulher nesse momento de por fim dar à luz. Quando o Imperador, vindo da ilha de Elba, pisou o solo de França, trouxe consigo o tempo antigo. Esquecidas ficaram a rubra Moscovo e as marchas no Inverno terrível de negro e branco. A bandeira tricolor vinha desfraldada ao vento, e os velhos granadeiros erguiam os braços e clamavam ainda: Vive VEmpereur! A alma de Fanny, como eles, vestia o velho uniforme. Era porque os outros a viam, e pelo gozo de o encarnar, que ela doravante se vestia do corpo de uma velha.

- Não estamos um belo par de camafeus, Morten? - perguntou, de olhos brilhantes. - Não é que as nossas tias velhas tinham razão, quando nos censuravam a vaidade, e a vaidade de todas as coisas? Realmente, quem mete na cabeça dos jovens que o melhor será comprar a tempo as muletas e a corneta acústica, acaba sempre por levar a melhor.

- Não, tu estás encantadora, Fanny - disse ele, os olhos brilhando também, gentis, para ela. - Como uma esfinge.

Porque eles costumavam juntos caçar borboletas quando eram pequenos.

- E se as duas me parecessem um par de velhinhas, eu havia de gostar tanto. Não existiam muitas, lá onde eu estive, por muitos anos. Agora, quando a avó dava as suas festas de anos em Oregaard, aí é que se via uma casa cheia de velhinhas lindas. Como um grande aviário, e a avó entre elas como a altiva catatua.

- E no entanto uma vez disseste - replicou Fanny - que darias um ano de vida se pudesses escapar-te à espiga de uma tarde com elas.

- É verdade - disse Morten - mas o conceito em que eu tinha um ano de vida mudou muito desde então. Mas digam-me, a sério, ainda há quem ate pedrinhas aos billets-doux e os atire pela janela da vossa carruagem quando voltam dos bailes?

- Oh! - disse Elisa, sustendo a respiração.

Was klaget aus dem dunkeln Thal Die Nachdigall?

Was seujzet darein der Erlenbach Mit manchen Ach?

Lembrava um poema há muito esquecido de um apaixonado há muito esquecido também.

- Não estão casadas, pois não, minhas queridas? - disse Morten, subitamente receoso (possibilidade absurda) que um estranho pertencesse às irmãs.

- E porque não? - retorquiu Fanny. - Ambas temos maridos e amantes em barda. Eu casei com o Bispo da Zelândia; ele perdeu um tanto o equilíbrio no tálamo nupcial por causa das asas.

Escapou-lhe um risinho fino e delicado, em leves golfadas, como o vapor que sai do bico de uma chaleira. À distância de vinte e quatro horas o Bispo parecia ridiculamente pequeno, como um boneco visto de uma torre.

- A Lizzie casou... - prosseguiu, mas logo se deteve. Quando eram pequenos, os irmãos De Coninck viveram numa peculiar superstição, que lhes viera de uma comédia de marionetas, e que era a seguinte: as mentiras que se dizem acabam por tornar-se verdade. Por esta razão eles sempre tiveram um especial cuidado ao escolher as mentiras que diziam. Assim, nunca invocavam uma dor de dentes para não irem visitar as tias velhas num domingo, pois temiam que Nemesis os perseguisse e ficassem realmente com dores de dentes. Mas já era mais seguro mentir que o professor de música lhes dissera para não praticarem mais as gavottes porque já as tocavam com mestria. O hábito ainda lhes corria nas veias.

- Não, para falar a verdade, Morten - disse Fanny - somos duas solteironas, e tudo por tua causa. Ninguém nos quis desposar. Ficámos com má fama desde o dia em que tu fugiste, levando o coração, a alma e a inocência de Adrienne.

Encarou-o para ver o que ele iria replicar. Tinha-lhe seguido os pensamentos. As irmãs tinham sido fiéis, mas ele - o que fizera ele? Tinha-lhes imposto uma cunhada bonita e gentil.

O tio, Fernand de Coninck, aquele que ajudara Morten a conseguir o seu navio, vivera em tempos em França, durante a Revolução. Era esse o tempo, esse o lugar para quem pertencia à família De Coninck. Também ele nunca se libertou de um e de outro; nem já velho e solitário em Elsinore se sentira feliz com a placidez da sua vida. Muitas anedotas e canções desse outro tempo lhe acudiam aos lábios, e o irmão como as irmãs, meninos ainda, aprenderam-nas de cor. Momentos depois Morten, lentamente e em voz baixa, principiava a recitar uma das cantilenas do tio Fernand. Fora feita numa ocasião especial, quando as tias velhas do Rei de França deixavam o país e a polícia revolucionária mandou que se abrisse toda a bagagem que levavam na fronteira, temendo alguma traição.

Disse Morten:

 

Avez-vous ses chemises

à Marat?

Avez-vous ses chemises?

Cest pour vous un três vilain cas

si vous les avez prises.

 

O rosto de Fanny reflectiu imediatamente a expressão da face de Morten. Sem buscar na memória por mais do que um momento, ela seguiu com a segunda estrofe. Desta vez eram as tias velhas do rei que falavam:

 

Avait-il de chemises

à Marat?

Avait-il, de chemises?

Moi je crois qu'il rien avait pas.

Ou les avait-il prises?

E Elisa pegou no fio da canção, quase rindo:

Il en avait trois grises, à Marat.

Il en avait trois grises. Avec Vargent de son mandat sur le Pont Neuf acquises.

 

A estas palavras as irmãs sentiram-se mais leves, e os três lavaram para sempre as mãos da linda e infeliz Adrienne Rosenstand.

- Mas tu casaste, Morten? - perguntou, bondosa, Elisa, o riso ainda na voz.

- Casei - disse Morten. - Tive cinco mulheres. As espanholas são lindas, sabem?, como um mosaico de jóias. Uma delas era dançarina. Quando ela dançava era realmente como se um bando de borboletas rodopiasse, arrastado para o vértice de uma pequena chama; a sua dança entontecia, e essa pareceu-me ser então, que eu era novo, uma fascinante qualidade numa esposa. Outra era filha de um capitão inglês, uma rapariga honesta, e ela nunca me teria esquecido. Outra era a jovem viúva de um rico plantador. Uma verdadeira senhora. Todos os seus pensamentos pareciam deixar como a cauda longa de um vestido atrás de si. Deu-me dois filhos. Outra era uma negra, e foi essa que eu mais amei.

- E elas entraram a bordo do teu navio? - perguntou Elisa.

- Não, nenhuma delas entrou a bordo do meu navio - respondeu Morten.

- Mas diz - pediu Fanny - entre tudo o que tiveste, o que foi que mais amaste?

Morten reflectiu por momentos.

- Entre todas - respondeu - é melhor a vida de pirata.

- Melhor que a do capitão de um corsário no Sund? - perguntou Fanny.

- Melhor, sim - disse Morten - porque se está no alto mar.

- Mas o que te decidiu a ser pirata? - insistiu Fanny, muito intrigada, porque isto se parecia com um livro de aventuras romanescas.

- O coração, o coração - disse Morten - é que nos leva sempre à desgraça. Apaixonei-me. Foi um coup de foudre, de que o tio Fernand tanto falava. Ele bem sabia o poder dessas paixões. E ela pertencia a outro, por isso eu não podia tê-la sem infringir um pouco a lei e a ordem. Fora construída em Génova, usada pelos franceses como navio-correio, e tinha a fama de ser a escuna mais veloz que alguma vez cruzou o Atlântico. Deu à costa nas praias da ilha de Saint Martin, que é meio francesa e meio holandesa, e foi vendida pelos holandeses em Philipsburg. O velho Van Zandten, o armador, que então me contratou, e me amava como a um filho, mandou-me a Philipsburg a comprá-la. Era a coisa mais linda, sim, sem favor, a coisa mais linda que eu vi em toda a minha vida. Era como um cisne. Quando a vi, as velas enfunadas, vinha ligeira, garbosa, nobre, uma grande senhora - como um dos cisnes da avó em Oregaard, quando os fazíamos arreliar - pura, leal como as lâminas de Damasco. E depois, minhas queridas, parecia-se um pouco com o Fortuna II. Também ela tinha um traquete pequenino, uma vela mestra excepcionalmente grande, e um alto botaló.

Nesse momento peguei em todo o dinheiro do velho Van Zandten e comprei-a para mim só; e desde então nós tivemos, eu e ela, de nos afastar das pessoas respeitáveis da região. Que há-de um homem fazer quando o amor o domina? Fui seu amante fiel, e sei que ela foi feliz com a sua leal tripulação, por todos adorada e amimada qual mulher caprichosa que tem as unhas dos pés polidas com alcana. Comigo ela foi o terror do mar das Caraíbas, a jovem águia-pesqueira que fazia correr as aves timoratas. Portanto não sei ao certo se fiz bem ou se fiz mal. Não deverá possuir a bela dama o homem que mais amor lhe tiver?

- E ela também se apaixonou por ti? - perguntou Elisa, rindo.

- Mas qual é o homem que vai perguntar a uma mulher se é amado? - disse Morten. - O que se deve perguntar de uma mulher e: «Qual é o seu preço? E se estás disposto a pagá-lo?» Não devemos enganá-las, mas usar de cortesia e pagar de boa vontade, quer seja dinheiro contado, o amor, o casamento ou a nossa vida e honra o que elas nos exijam; senão, se somos pobres e não podemos pagar, que lhe tiremos o chapéu e as deixemos para um homem mais rico. Tem sido este um bom latim, sólido, moral, para os homens e as mulheres desde que o mundo é mundo. Quanto a sermos amados... Primeiro que tudo: as mulheres serão capazes de amar-nos?

- E então as mulheres que não têm preço? - disse Elisa, rindo ainda.

- E então essas, minha querida! - disse Morten. - Essas deviam ter sido tudo menos mulheres. Talvez Deus as queira, e saiba o que fazer delas. Elas atraem os homens aos maus caminhos, e depois não são capazes de os salvar, nem mesmo querendo.

- Como se chamava o teu barco? - perguntou Elisa, de olhos baixos.

Morten encarou-a, rindo.

- O nome do meu barco, era La Belle Eliza - respondeu.

- Não o sabias?

- Sabia, sim - disse Elisa, a voz de novo plena de riso.

- Disse-me o capitão de um navio do papá, há muitos anos, em Copenague, que a tripulação tinha enlouquecido de terror e o obrigara a voltar para o porto quando, ao largo de Santo Tomás espiaram as velas de joanete de um navio pirata. Tiveram tanto medo dele, disse o capitão, como se Satã em pessoa. E contou-me que o nome do navio era La Belle Eliza. Pensei logo que esse barco só podia ser o teu.

Era então este o segredo que a solteirona guardara do mundo inteiro. Ela não fora sempre de mármore. Algures no seu peito essa pequena chama de felicidade se mantivera acesa. Com este fim

- pois outro não houvera - se tinha feito uma mulher tão bela em Elsinore. Uma escuna cruzava o mar azul, como reclinada num leito de jacintos, beijada pelos ventos e pelo cálido ar, as pandas velas brancas semelhantes à ousada falésia de greda, tostada pelo sol, com muito e rijo aço na bordada, vermelhos os sabres e as navalhas, e o seu nome, por direito e por justiça, era La Belle Eliza. Oh, burgueses de Elsinore, não me viram pois dançar o minuete? A esse mesmo compasso fui eu que sulquei os mares!

Enquanto ele falava o sangue subia às faces de Elisa. Era de novo rapariga, e as longas fitas da sua touca já não eram a garridice de uma velha, mas o adorno de uma noiva, fogosa e casta.

- Sim, era como um cisne - disse Morten - doce, doce como as melodias.

- Se eu estivera nesse navio mercante - disse Elisa - e tu o tiveras abordado, o teu navio seria meu por direito, Morten.

- Sim - disse ele sorrindo à irmã - e todo o matelotage. Era o costume, quando levávamos a bordo uma jovem mulher. Terias a teus pés um serralho de admiradores.

- Perdi-a - disse ele - por minha culpa, num estuário da Venezuela. É uma longa história. Um dos meus homens revelou o seu ancoradouro ao governador inglês de Porto Espanha, em Trindade. Eu não estava junto dela, nessa altura. Saíra num barco de pesca, a sessenta milhas de Porto Espanha, a obter informações sobre um cargueiro holandês. Vi enforcarem ali toda a minha tripulação, e via-a a ela pela última vez.

- Desde então - continuou ele, feita uma pausa - nunca mais pude dormir bem. Não passava do sono leve. Sempre que tentava mergulhar no sono, logo me sabia arrastado para a superfície, como um pedaço de madeira à deriva. Desde esse dia comecei a perder peso, porque tinha atirado fora o meu lastro. Estava com ela. Tornara-me, de tão leve, incapaz do que quer que fosse. Desde esse dia foi como se não tivesse corpo. Lembram-se de como o papá e o tio Fernand costumavam discutir, ao jantar, os vinhos que tinham comprado e dizer que alguns deles tinham um belo bouquet mas não tinham corpo? Assim eu era então, minhas queridas: o bouquet posso dizer que ainda o tinha, mas não o corpo. Já não podia mergulhar na amizade, no medo, em qualquer verdadeiro prazer. E ainda não conseguia dormir.

As irmãs não precisavam de fingir compaixão pelo seu infortúnio. Era o delas também. Todos os De Coninck sofriam de insónia. Quando eram pequenas riam do pai e das tias que se cumprimentavam de manhã, em primeiro lugar, com minuciosas perguntas e detalhes de como tinham passado essa noite. Agora não riam; o assunto também para elas se tornara muito importante.

- Mas quando não consegues dormir à noite - disse Fanny suspirando - é por acordares muito cedo ou porque nem adormeceste sequer?

- Não, nem adormeço sequer - disse Morten.

- Não é então porque tens...

Diria «frio», mas, lembrando-se de onde ele dissera que vinha, calou-se.

- E eu sempre soube - disse Morten, que pareceu não ter ouvido o que ela disse - que nunca teria paz se não pudesse dormir, mais uma vez, a bordo do La Belle Eliza.

- Mas viveste em terra também - disse Fanny, o pensamento correndo para alcançar o irmão, que ela sentia como se lhe fugisse.

- Vivi, sim - disse Morten. - Tive por algum tempo uma plantação de tabaco em Cuba. E era um aprazível lugar. Tive uma casa branca, de pilares, de que tu havias de gostar muito. Os céus dessas paragens são claros, delicados, como um copo de rum verdadeiro. Foi ali que eu tive a linda esposa, a viúva do plantador, e dois filhos. Ali havia mulheres com quem dançar, nos nossos bailes, tão leves como os ventos alíseos... como vós duas. Tive um pónei muito bonito, chamado Pégaso, parecido com o Zampa do papá... Lembram-se dele?

- E foste feliz em Cuba? - perguntou Fanny.

- Fui, mas por pouco tempo - disse Morten. - Gastava demasiado. Vivia do que não tinha, um perigo de que o papá sempre me prevenira. Tive de abandonar tudo.

Morten ficou silencioso, e depois disse:

- Tive de vender os meus escravos.

A estas palavras a sua palidez tornou-se tão extrema, velou-se de uma tal cor de cinza, que as irmãs, se não soubessem que ele estava morto, teriam medo que ele morresse ali. Os olhos, todas as feições pareciam afundar-se no seu rosto. Era a expressão de um homem na fogueira, quando as chamas principiam a subir.

As duas mulheres, também pálidas e rígidas, ficaram em profundo silêncio. Era como se o sopro da geada tivesse embaciado três janelas. Elas não sabiam uma palavra de conforto que lhe oferecessem nesse transe. Porque nenhum De Coninck jamais se separou de um criado. Era na família um ponto de honra que todo aquele que entrasse ao seu serviço deveria nele permanecer e ficar amparado para sempre. Abriam uma excepção no caso de um casamento ou da morte, mas a contragosto o faziam. Aliás, era opinião geral no círculo de amigos das duas irmãs que estas na velhice se quedaram com um só objectivo real na vida: entreter os criados.

Mais sentiam elas esse desdém secreto por todos os homens, criaturas incapazes de levantar fundos, e que é apanágio das belas mulheres, sabedoras como são dos seus infinitos recursos. As irmãs De Coninck, em Cuba, nunca teriam permitido que a situação chegasse a tão trágico desfecho. Pois não poderiam muito bem elas ter-se vendido trezentas vezes, e fazer felizes trezentos cubanos, e assim garantir o bem-estar dos seus trezentos escravos? Houve, por isso, uma longa pausa.

- Mas o fim - disse Fanny, retomando, com um profundo suspiro, a conversa - não foi nessa altura, então?

- Não, não - disse Morten - só muito tempo depois. Quando me vi sem dinheiro, fiz transportes de carga num velho brigue, primeiro entre Havana e Nova Orleães, depois até Nova Iorque. São mares difíceis, esses.

Conseguira a irmã desviar-lhe o pensamento daquela angústia, e Morten entusiasmava-se agora ao falar das várias rotas do comércio. Em tudo parecera, ao longo do encontro, ficar mais sociável, recuperando aquela serenidade do homem que aprecia o convívio e compreende bem o que vai na alma dos seus companheiros.

- Mas era meu destino que nada me corresse bem - prosseguiu ele. - A pouca sorte perseguia-me. Não sabem?, o meu barco veio a naufragar junto ao recife do Sable, onde meteu água e se afundou numa calmaria fatal; e por umas coisas e outras, enfim, se o posso dizer, fui enforcado em Havana. Já sabiam?

- Já sabíamos - disse Fanny.

- Têm vergonha de mim por isso, talvez? - perguntou.

- Não! - disseram as irmãs com energia.

Podiam ter-lhe respondido sem o olharem, mas ambas volveram os olhos para ele. E pensaram que talvez fosse esta a razão por que ele trazia o colarinho e a gravata tão inusitadamente afogados; talvez houvesse uma marca nesse pescoço forte e delicado, à volta do qual elas haviam cingido a cambraia com tantos cuidados, sempre que saíam juntos para os bailes.

Houve um momento de silêncio na sala vermelha, após o qual Fanny e Morten começaram a falar ao mesmo tempo.

- Desculpa - disse Morten.

- Não - disse Fanny - não. Que ias tu a dizer?

- Perguntava pelo tio Fernand - disse Morten. - Ainda é vivo?

- Ah, não, meu querido Morten - disse Fanny. - Morreu em 30. Já era um velho então. Foi ao casamento de Adrienne, e fez um discurso, mas já estava muito cansado. À noite puxou-me de parte e disse-me: «Minha filha, é uma gênante fête, esta.» Morreu três semanas depois. Deixou à Elisa o dinheiro e as mobílias. Numa gaveta achámos um pequeno medalhão de prata, incrustrado a diamantes cor-de-rosa, com um anel de cabelo louro, e escritas as palavras: «O cabelo de Charlotte Corday».

- Compreendo - disse Morten. - Era um belo homem, o tio Fernand. E a tia Adelaide também morreu?

- Também. Morreu antes dele - disse Fanny.

Quisera contar-lhe da morte de Madame Adelaide de Coninck, mas não o fez. Sentia-se deprimida. Esses, que tinham morrido, Morten devia tê-los encontrado já. O desamparo do irmão morto dava-lhe grande tristeza.

- Como ela nos ralhava, a tia Adelaide - disse ele. - Quantas vezes ela me disse: «Essa tua melancolia, Morten, esse descontentamento da vida que tu e as meninas vos consentis, é uma coisa que me põe furiosa. O que é bom para mim devia sê-lo também para vós. O que precisais é de casar e ter muitos filhos para criar; era remédio santo.» E tu, Fanny, respondeste: «Sim, titi, foi esse o conselho que uma tia do papá lhe deu, e que ele seguiu.»

- Já para o fim - interrompeu Elisa - ela não queria ouvir falar de coisas que aconteceram depois dos seus trinta anos e da morte do marido. Nem pensava nisso. Dos netos dizia: «São as modas-novas dos meus filhos mais novos. Eles ainda hão-de perceber que não valem de nada.» Mas lembrava-se de todos os escrúpulos religiosos do tio Theodore, o marido, e que ele não a deixava dormir, com as suas meditações sobre a queda do homem e o pecado original. Nisso ela tinha orgulho ainda.

- Devem achar que eu sou muito ignorante - disse Morten. - Sabem tanta coisa que eu não sei.

- Oh, meu querido Morten - disse Fanny - mas tu com certeza sabes muitas coisas de que nós duas não sabemos absolutamente nada.

- Não são muitas, Fanny - disse Morten. - Uma ou duas, talvez.

- Conta-nos uma, ou duas - pediu Elisa. Morten reflectiu por breve tempo.

- Uma coisa eu aprendi - disse ele - de que antes não fazia a mínima ideia. Cest une invention três fine, três spirituelle, de la part de Dieu, como dizia do amor o tio Fernand. É isto: não se pode ter tudo. Eu sozinho nunca daria com isto. É de facto uma ideia original. Mas sabem, realmente, Ele é três fin, três spirituel, o Senhor!

As duas irmãs empertigaram-se como se tivessem recebido um elogio. Ambas, como já se disse, frequentavam assíduas a igreja, e a palavra do irmão sempre teve um grande peso para elas.

- Mas, sabem? - disse Morten subitamente - aquele cachorrinho insolente da tia Adelaide, o Fingal, esse eu vi.

- Como foi? - perguntou Fanny - conta.

- Foi quando eu estava absolutamente só - disse Morten - quando o meu navio naufragou nos recifes do Sable. Três de nós conseguimos salvar-nos num escaler, mas não tínhamos água. Os outros morreram, e eu acabei por ficar só.

- Em que pensaste então? - perguntou Fanny.

- Sabem?, pensei em vocês - disse Morten.

- E o que pensaste de nós?-perguntou ainda Fanny em voz baixa. Morten respondeu:

- Pensei: nós não passamos de amadores, quando dizíamos não. Mas Deus sabe dizer não. Meu Deus, se Ele o sabe! Até julgarmos que nem Ele será capaz de continuar assim. Mas Ele persiste, e mais uma vez diz não.

- Já havia pensado muito nisso, dantes - disse Morten - em Elsinore, nesses dias antes do meu casamento. E agora continuamente penso nisso. Pensei nessas grandes, puras e belas coisas que nos dizem não. Porque haveriam elas de dizer-nos sim, e tolerar as nossas carícias insípidas? A quem nos diz sim, nós dominamos, arruinamos e abandonamos, para descobrirmos, quando as deixamos, que nos davam repugnância. A terra diz sim aos nossos planos e às nossas obras, mas o mar diz não; e nós, nós amamos sempre o mar. E ouvir Deus dizer não, na calmaria, com a Sua própria voz, faz-nos muito bem. O céu estrelado surgiu ali, e também ele disse não. Qual mulher altiva e nobre.

- E foi então que viste o Fingal? - perguntou Elisa.

- Foi - disse Morten. - Mesmo nessa altura. Quando voltei levemente a cabeça, o Fingal estava sentado comigo no escaler. Vocês sabem que ele sempre foi um cãozinho com mau génio, e nunca gostou de mim porque eu o fazia arreliar. Sempre me mordia se eu me aproximava. Não ousei tocar-lhe quando o vi no bote. Tive medo que ele me desse outra dentada. Mas ele lá estava, sentadinho, e ficou junto a mim toda essa noite.

- E desapareceu depois? - perguntou Fanny.

- Não sei, minha querida - disse Morten. - Uma escuna americana, que rumava à Jamaica, recolheu-me já de manhã. Ia a bordo um homem que tinha querido comprar o meu navio no leilão de Philipsburg. E assim foi que me enforcaram - foi o meu fim, como tu dizes - em Havana.

- Custou-te? - perguntou Fanny num murmúrio.

- Não, minha pobre Fanny - disse Morten.

- Estava lá alguém contigo? - murmurou Fanny.

- Sim, estava lá um padre jovem, gordo - disse Morten. - Tinha medo de mim. Se calhar tinha ouvido falar mal de mim. Mas, vá lá, deu o seu melhor. Eu perguntei-lhe: «Pode obter-me, agora, mais um minuto de vida?» Ele disse: «Que vai fazer com um minuto de vida, meu pobre filho?» Eu disse: «Vou pensar, com o baraço já em volta do pescoço, por um minuto, na Belle Eliza».

Enquanto ficavam agora em silêncio por momentos, ouviam a gente que passava na rua por baixo da janela, e conversava. Por entre as gelosias podiam seguir o brilho fugidio das lanternas.

Morten recostou-se na cadeira, e parecia agora às irmãs mais velho e fatigado. Parecia-se, na verdade, e muito, com o pai, quando o velho De Coninck voltava cansado do escritório e era um prazer para ele sentar-se tranquilo na companhia das filhas.

- Está-se muito bem aqui, nesta sala - disse ele - é tal e qual como nos velhos tempos... não acham? Com o papá e a mamã lá em baixo. Nós três ainda não estamos muito velhos. Ainda somos bonitos.

- O círculo está de novo completo - disse Elisa mansamente, numa das suas frases antigas.

- Está completo, Lizzie - disse Morten, sorrindo para ela.

- O círculo vicioso - disse Fanny automaticamente, lembrando outro dos seus termos familiares.

- Sempre foste - disse Morten - uma rapariguinha tão inteligente.

A estas palavras amáveis e directas, Fanny, impetuosamente, susteve a respiração.

- E, oh meninas - exclamou Morten - como nós suspirávamos então, estranhamente, por fugirmos de Elsinore!

A irmã mais velha de súbito rodou todo o corpo na cadeira e encarou-o de frente. O seu rosto estava mudado numa careta de dor. A longa vigília e a tensão começavam a ser evidentes, e a voz com que falou era rouca e insegura, como se ela a fosse buscar ao mais fundo do seu peito.

- Sim - exclamou ela - tu falas bem! Mas queres ir-te embora outra vez e deixar-me aqui. Tu! Tu estiveste nesses grandes mares de águas quentes de que falas, estiveste em mais de cem países. Casaste com cinco mulheres... Ah, que sei eu! Para ti é fácil falar com calma, e ficar aí sentado e quieto. Nunca precisaste de agitar os braços para te aqueceres. Nem precisas agora!

A sua voz soçobrou. Gaguejando, fincou os dedos no bordo da mesa.

- E aqui - gemeu ela num grito - eu tenho frio! O mundo à minha volta é um gelo. Tenho tanto frio à noite, na minha cama, que nem as botijas me dão calor!

Neste momento o alto relógio de escada começou a bater as horas, porque Fanny lhe havia dado corda nessa tarde. Bateu a meia-noite num compasso grave e lento, e Morten rapidamente ergueu os olhos para ele.

Fanny quisera continuar a falar, aliviando dos seus ombros, finalmente, todo o peso de uma vida, mas sentiu uma opressão no peito. Não podia a sua voz sobrepor-se à do relógio, e a sua boca abriu-se e fechou-se duas vezes sem que dela se ouvisse um som.

- Ah, que inferno - bradou - que inferno!

Como não podia falar, estendeu os braços para o irmão, tremendo. Às pancadas do relógio a face do irmão surgia-lhe cinzenta e indistinta, e um pânico horrível se apossou dela. Era para isto que ela tinha dado corda ao relógio! Atirou-se ao encontro do irmão, por sobre a mesa.

- Morten! - gritou num uivo longo. - Irmão! Espera! Ouve! Leva-me contigo!

Quando soou a última badalada e o relógio voltou ao seu tiquetaque, como se quisera prosseguir fazendo alguma coisa, fosse ela qual fosse, por toda a eternidade, a cadeira entre as duas irmãs ficou vazia, e Fanny, ao vê-la deixou-se cair sobre a mesa.

Ficou assim por longo tempo, sem se mover. Da noite invernosa, de muito longe, lá do Norte, veio um ressoar como o eco de um tiro de canhão. Os filhos de Elsinore bem sabiam o seu significado: era o gelo quebrando-se algures, abrindo uma larga fenda.

Fanny pensou, sombria, ao fim de um longo momento: «em que estará a Elisa a pensar?» e num esforço levantou a cabeça, ergueu os olhos, e secou os lábios com o lencinho. Elisa sentava-se, imóvel, à sua frente, no lugar que sempre ocupara. Unia sobre o peito as longas fitas da touca, como se puxasse uma corda, e Fanny lembrou-se de a ter visto assim, há muitos, muitos anos, quando se irritava, puxar as tranças louras. Elisa ergueu os olhos descoloridos e fitou a irmã.

- Pensar - disse então - pensar, com o baraço já em volta do pescoço, por um minuto, no La Belle Eliza.

 

                                                                                Karen Blixen  

 

                      

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