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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CEIA / José Mauro de Vasconcelos
A CEIA / José Mauro de Vasconcelos

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Houve a voz. A voz vinha saindo macia. Eis que todos escutavam.
- Era uma beleza! Só queria que vocês vissem. O meu avô com quase oitenta anos, galopando pelos campos a fora. Quando falava, até o gado tremia, o mato tremia, as pedras tremiam. O que dizia era lei. Ao pôr do sol ele retornava; os cascos do seu cavalo, um animal enorme todo branco e de crinas douradas, arrancavam mais poeira de todas as estradas e de todos os ariscos. Sua barba - aquilo era ainda mais bonito - sua barba muito branca que roçava até o peito se dividia em duas bandas e se lançava contra os ombros largos...
Parou. Suas mãos, que ao contrário da voz se movimentavam sempre com muita dificuldade, tombaram sobre a cama. Seu corpo foi se enrodilhando, ao perder a emoção da história que contava, e retornando ao natural da paralisia. Agora voltara a ser a mesma aranha grande, encolhida e respirando arfante.
Todos guardavam silêncio na enfermaria. Alguns encontravam-se sentados e aqueles, que nem isso podiam fazer, ouviam deitados, forçando os ouvidos para que nada se perdesse daquela história tão linda.
Mas pelo jeito ele não falaria mais hoje. Dava pena mesmo. Foi por isso que Pedro encostou-se no mármore da mesa, sorriu e resolveu reacender a conversa.
- Engraçado! Comigo nunca aconteceu dessas coisas. Nada de sertão nem de fazenda em minha vida. Sempre gostei foi do mar. Ah! o mar com suas ondas grandonas, rebentando contra a areia branca. A gente até desconfiava que a areia fugia com medo das ondas. Toda minha mocidade, e até um pouco mais, foi passada junto das águas. Sabem o que diziam quando me avistavam? - Lá vai Pedro, o Pescador - Minha tarrafa escorregava pelos ombros, minha jangada rolando sob os toros e eu dominava o mar. Dominava o mar de dia e de noite, chupando o cheiro da maresia o mais que os meus pulmões pudessem receber... Hoje...

 


 


Suspendeu os braços atrofiados pela lepra nervosa. Aprumou o corpo, também curvado pela doença e magre-za, e arrastou as pernas magérrimas em direção à cama.
- Onde você vai, Pedro? Por que não conta mais?
- Vou até a última cama. Quem sabe ele quer conversar alguma coisa.
- Deixe prá lá, Pedro. Ele não quer. Aquele homem não é bom. Ele não gosta de ninguém. Nem mesmo de você. Nem mesmo dele.
Pedro sorriu com brandura e falou bem baixo.
- Ele está morrendo... ele está morrendo...
- Não está não. A cama dele está limpinha. Quando um aqui está morrendo, a gente sabe que a cama e as cobertas ficam escuras de tanta mosca.
Pedro abanou a cabeça.
- Nem sempre a gente para morrer precisa estar cercado de moscas.
Entretanto não continuou a lenta caminhada porque Madalena entrou pela porta da enfermaria com uma seringa na mão. Passou por Pedro e reclamou.
- Que diabo, você não fica no seu canto? Está sempre no meio para atrapalhar. Vai se sentar, trambolho, que daqui a pouco vai chegar a comida.
Todos acompanhavam o vulto rotundo de Madalena. Seus cabelos, mais desbotados que oxigenados, ondulados por cabeleireiro barato, se suspendiam na nuca, tornando a cabeça pequena para o seu corpo. Manchas de suor marcavam as mangas do vestido azul-claro.
Madalena parou defronte à cama de João. Ele fingiu não avistá-la.
- Ei, meu santo. É pra você mesmo. Vamos virando essa bunda velha, que não quero perder muito tempo.
João apoiou a Bíblia sobre o peito.
- Você precisa jogar esse livro no lixo. Está tão ensebado que atrai mosquito.
João fitou-a gravemente. O rosto macilento só possuía olhos. Uns olhos muito negros e iluminados. Madalena comoveu-se.
- Está bem. Está bem. Que é que você estava lendo de bonito agora?
- Sobre os anjos.
Madalena deu uma risada debochada.
- Vivendo nessa esterqueira e pensando em anjo. Era só o que faltava.
- Que sabe você sobre os anjos, Madalena?
- Sei lá. Dizem que não são homens nem mulheres. Vi alguns em estampas. Vi outros em procissão.
João não se alterou.
- Os anjos são as coisas mais lindas de Deus, Madalena. Eles vivem em legiões e ficam mais perto de Deus do que qualquer santo. Eles adoram a Deus bem de perto, entendeu?
- O que é legião?
- Uma espécie de grupo, de bando. São nove legiões. Anjos, Arcanjos, Tronos, Dominações, Potestades, Virtudes, Principados e os mais importantes ainda: Querubins e Serafins. São nove legiões deles.
- Ótimo! Mas eu acho que você tem minhoca na cabeça. Em todo caso se distrai com as suas bobagens e não fica pensando na porcaria da vida. Agora vamos ao que interessa.
Desatou a amarra do pijama grosseiro e fedido e ajudou o homem a virar-se. Olhou, mais com nojo do que com piedade, as nádegas peludas do homem todo encalombado de tanta picada. Procurou um lugar menos irritado e aplicou a injeção.
Por que os médicos faziam aquilo? Aquele homem nunca teria cura. Mas nenhum daqueles miseráveis poderia morrer. Eram necessários para o anfiteatro das aulas de neurologia. Serviam de cobaias. Enfim...
- Doeu?
- Não.
Estava mentindo. Aquela injeção ardia como fogo. Tornou a amarrar o pijama do homem e colocá-lo na posição anterior.
- Pronto. Agora prepare-se que daqui a pouco vai chegar aquele jantar gostoso de sempre.
Madalena sentiu náuseas, pensando na grande panela de sopa. Nem porco mereceria aquilo. Aquele caldo frio e gorduroso, onde boiavam endurecidas as verduras, pedaços de abóboras, de aipim, batatas meio bichadas. Tudo isso aparecendo impiedosamente com cascas. Nenhuma mão caridosa para descascá-las. Também para quê? Todo mundo chegara à conclusão de que aquilo ali não era mais gente.
João fixou os olhos em Madalena e adivinhou-lhe os pensamentos.
- Não vai ser sempre assim, Madalena. Um dia, Ele virá por aquela porta e em vez das batatas com casca Ele trará um pão. cheio de paz e de amor.
- Você é louco!
- Pode ser. Mas Ele virá. Então todos nós, que somos os doentes dessas doze camas, vamos poder levantar. Seremos abraçados como gente e como irmãos. Nós vamos caminhar limpos de corpo e sem dor até aquela mesa. E depois caminharemos atrás Dele por uma estrada cheia de pássaros e rosas perfumadas. Ele destruirá todas essas doze camas, você vai ver.
- Pior ainda. Porque os outros desgraçados que vierem depois vão ter de dormir no chão duro. Bom. Tudo isso está muito bonito, mas preciso voltar para a minha sala.
Saiu, arregaçando um pouco a saia e cocando as axilas suadas.

 

CAPÍTULO 2 - Os olhos de Lúcio

Tentou fechar os olhos com força sabendo desnecessário. Ergueu as mãos, comprimindo os ouvidos num desespero absoluto.
Mas a voz de Lúcio repercutia calma por dentro do seu ser, parecendo perfurar-lhe o coração como agulhas de fogo. Pior, os olhos tristes que vazavam as suas pálpebras fechadas, sempre mirando-o daquela maneira resignada da última vez. Por que Lúcio não mudava aqueles olhos? Por que não se enraivecia, não o xingava? Não. Nunca. Quando menos esperava, Lúcio reaparecia. Até nos momentos em que o joelho inchado o levava à loucura da dor.
- Dói muito?
- Dói, Lúcio. E você sabe que eu queimo como se estivesse com o próprio inferno dentro dos meus ossos?
- Você exagera. Toda dor é igual. Não há maior nem menor.
- Desgraçado! Miserável!
- Eu? Por quê? Nunca xinguei você em momento algum. Agüentei o jogo que você me propôs. Não pode ofender-me assim. Mesmo porque...
- Cale-se, Lúcio.
- Conversando, as coisas melhoram, se esclarecem. Não vai demorar tanto, você sabe disso. E por sua culpa. Se seguisse o meu conselho, como segui o seu, a solução seria rápida.
Apertou a cabeça e soltou um pequeno uivo de desespero. Virou-se, sentindo o corpo todo molhado de suor. Os olhos estavam chorando por mais que quisesse se conter.
- Dói muito?
Não era mais a voz de Lúcio. Era daquele homem. Ouviu a sua cama ranger e o colchão abalar-se. O homem sentara-se a seu lado. Felizmente sua presença afastava para longe a imagem de Lúcio.
- Dói, muito?
Prendeu os lábios com os dentes para não responder.
Pedro observou o seu rosto transtornado onde o suor invadia tudo. A dor poderia levar aquele homem à loucura e ao desespero total.
- Espere um pouco. Vou ajudá-lo.
Ergueu-se e caminhou até a pia e voltou no seu passo arrastado, trazendo um velho lenço molhado.
Umedeceu a testa, os cabelos, os lábios e sobretudo os olhos que teimavam em permanecer fechados.
- Melhorou um pouco?
Os olhos foram se abrindo e o vulto confuso entre sombras dançava no resto do seu desatino.
- Não é mais você, Lúcio? Não. Não é. Não são os olhos verdes de Lúcio.
Respirou fortemente, quase arquejante, como se quisesse atirar a dor para bem longe.
- Sou eu, Pedro. Simão Pedro, como você disse que eu me chamava. Não se lembra?
Um ligeiro sorriso nasceu na face do outro e serviu para ampliar os vincos que desciam dos olhos sempre iluminados, sempre molhados. Aquele homem devia chorar até quando dormia.
Repetiu num murmúrio.
- Simão Pedro.
Pedro continuou friccionando o seu pescoço com o lenço úmido, desatou o laço que servia de botão e enxugou também o suor do peito emagrecido, onde as costelas começavam a despontar pontudas.
- Por que você não faz uma coisa?
- O quê?
- Já que não quer tomar as injeções que o médico receita, tome pelo menos, de vez em quando, um sedativo desses que estão sobre a mesinha.
- Ê bobagem. Porque a dor diminui por momentos, mas depois ela parece crescer mais. Por isso não quero as injeções.
- Mesmo assim, seria melhor. A gente deve se poupar sempre um pouco.
- Tem vezes que até eu penso em tomar um deles.
- E por que não o faz?
- Porque prefiro levantar-me só quando preciso ir ao banheiro. Apoiar essa perna no chão mais de uma vez é impossível.
- E por que não me chama?
- Por que incomodar os outros? Ninguém tem esse direito.
- Eu vou buscar um caneco d'água. De agora em diante, ele sempre estará cheio a seu lado.
Novamente se encaminhou para a pia. Pedro até perdera a noção de quantas vezes fizera aquele roteiro desde que se achava internado na enfermaria. Quantos anos, Pedro? Abriu a bica e encheu o caneco. Besteira, Pedro. Não adianta pensar nessas coisas. Deu com o rosto envelhecido no espelho descascado, com as rugas compridas, com os cabelos totalmente brancos, com os gestos indecisos das mãos incompletas e de suas garras meio recurvas. Vamos, Pedro. Vamos, Simão Pedro. Você não tem dor e aquele homem está morrendo. Você também não pode dizer que deve viver a vida para a frente, mas pelo menos pode afirmar que pode morrer sua vida devagar e sem dor.
- Está aqui a água. O comprimido você mesmo descasca porque meus dedos não prestam para nada. Mas dá ainda para levantar um pouco a sua cabeça enquanto você bebe.
Acompanhou o movimento do outro e desceu a cabeça devagar no travesseiro de palha duro e socado.
- Feche os olhos e experimente dormir, que a dor vai embora logo.

Quis erguer-se.
-Não se vá. Fique mais. Se você ficar um pouco, Lúcio vai desistir e não volta mais hoje.
Pedro sorriu. Sabia que a dor, quando era muita, criava delírios e fantasias mórbidas.
Ficou quieto, sem se mover, apenas respirando de leve, esperando que o rapaz de olhos fechados dormisse completamente. Suspendeu a vista para o comprido da enfermaria e viu as camas dispostas de seis em seis. Do lado do fundo onde dormia, elas eram um bloco unido. Mas na fila da frente havia a mesa das refeições, e as camas se colocavam de três em três para que permitissem a passagem da porta. Fora da porta, aquele imenso corredor branco sempre com cheiro de éter e de remédios. No fundo do corredor encontrava-se o pavilhão das mulheres. Todas com o mesmo problema deles. Era gente guardada como tesouro para ser exibida no anfiteatro do sexto ano, no curso de Neurologia. Mudou os pensamentos rapidamente. Os olhos voltaram-se para dentro da enfermaria. Havia calma. Havia paz. Os homens se grudavam tanto nos leitos que muitas vezes nem se lhes distinguia as cabeças. A maioria era retirada para fazer as necessidades ou para tomar banho na mesma banheira onde a água, sendo pouca, devia lavar pelo menos quatro corpos. Sempre deixavam o que se cocava por último. Sua coceira crônica poderia passar para os outros. Nem sempre havia sabão. Mas os pijamas meio quentes e ásperos eram mudados de quinze em quinze dias depois do banho. Os pijamas vinham da Liga Brasileira de Assistência. No lugar do botão e das casas apareciam dois pedacinhos de cadarços para amarrar.
A enfermaria sempre parecia a mesma. Muitos doentes naqueles anos haviam morrido e foram substituídos por "casos" de estudos, casos raros como os estudantes e os médicos classificavam. A enfermaria não aumentava nem diminuía. Tudo ali se aprisionava num limite. Como um navio que se perdesse num mar e esse mar não trouxesse outro horizonte além da própria água.
Não obstante, os homens não eram tristes. E quando se aproximava um pouco de tristeza, se adivinhava pelo ajuntamento das moscas e pela sombra da morte rondando lentamente pelos cantos.
No mais, eles gostavam até de se comparar intimamente. De descobrir que o caso dos companheiros parecia sempre pior e com menos possibilidade de duração. O passado interessava apenas nos primeiros dias, nos primeiros momentos, enquanto novidade. Depois, o esquecimento, a redução ao nada. O mesmo acontecia com o futuro, colocado na mão de Deus. Como se Deus pudesse fazer mesmo alguma coisa, ou se lembrasse de o fazer. Mas Deus estava presente em todas as crises de dor. Deus habitava em todos os gemidos e em todas as lágrimas, em todos aqueles rostos que já tinham sido humanos e que se contorciam sem jeito. Passados os momentos de angústia, Deus se petrificava na atrofia e na paralisia. Deus talvez não fosse uma grande esperança, mas também não significava esquecimento. Nunca também a lembrança. A lembrança de que aqueles pedaços de gente, que tinham sido homens, que se retorciam, se encolhiam e minguavam, podiam um dia ter sido feitos à imagem desse mesmo Deus.
Alguma coisa atraía o olhar de Pedro. Eram os olhos negros de João que pareciam adivinhar-lhe os pensamentos. Voltou a vista para o rapaz que ainda dormia. Bom que o remédio fizesse um pouco de efeito. Mesmo assim, sentia que os olhos negros de João o estavam observando. Estremeceu. Que olhos verdes seriam aqueles de que ele falara? Quem seria Lúcio?
O rapaz movimentou-se na cama e sorriu para Pedro.
- Dormiu um pouco?
- Acho que sim.
- Pelo menos uma hora e meia. Olhe, o sol já baixou e penetra pelas janelas da enfermaria. As moscas vêm brincar na sua luz em cima da mesa de mármore. Já refrescou bastante.
Ficou observando a dança das moscas no mármore manchado da mesa.
- Pedro. Pedro, não. Simão Pedro. Você que está aqui faz muito tempo, sabe me dizer porque essa mesa é de mármore?
Pedro riu e balançou a cabeça negativamente.
- Pois eu desconfio que sei.
Voltou longe ao passado. Vira muitas daquelas mesas na "morgue". Sujas e manchadas tal aquela.
Pedro continuou seu pensamento.
- Eu menti. Eu também sei de onde ela veio. Foi do necrotério. As mesas de madeira não agüentavam. Aqui muita gente caía e desmaiava sobre elas. Daí trouxeram essa de lá.
Calaram-se. Não havia mais motivo para insistir naquela conversa.
- Olhe lá. João não tira os olhos de cima da gente.
- Não tem importância.
- Acho que ele desconfia que você anda batizando a gente de apóstolo.
- Mas foi ele mesmo que veio com essa conversa. De que alguém entraria por aquela porta e faria um milagre. Não foi?
- Foi.
- Nós não somos doze? Aquele homem lá do fundo não se chama Bartolomeu? Você não é Pedro? Ele mesmo não se chama João? Não vive lendo coisas da Bíblia e do Evangelho? Não tem mania de fazer profecias e ser evangelista? Tudo isso foi facilitando.
Pedro ria da idéia esquisita.
- Depois, que diferença faz aquele homem lá se chamar Joaquim ou Tadeu? José ou Tiago? Faz?
- Acho que eles nem estão sabendo dessa brincadeira. O diabo é como a gente vai perguntar ao João o nome de todos os apóstolos?
- Também não é necessário. Nem todos os apóstolos serão importantes aqui nessa enfermaria. Mas se for preciso eu sei o nome de todos.
Pedro se admirou.
- Sabe mesmo?
- Sei. Quer ver?
Suspendeu os dedos e foi contando, enquanto os enunciava.
- Simão Pedro, Tadeu, Felipe, Bartolomeu, André, Tomé, Mateus, Simão, Tiago, Tiago Menor, João e Judas Iscariotes.
- Puxa! Sabe mesmo. Então vai ser fácil batizar o povo.
- João já existe. Bartolomeu é uma evidência. É você é Simão Pedro. "Tu és Pedro e sobre essa pedra eu edificarei a minha Igreja."
Pedro se encontrava fascinado.
- E eu?
- Não sei. Você parece muito moço para ser apóstolo, igual àqueles velhos que a gente vê na ceia do Senhor. Só você mesmo que inventou a história pode saber o nome que vai querer.
- Eu só posso ser um.
O ar de zombaria desaparecera e sua fronte achava-se agora contraída. Seus olhos eram toda uma expressão de tristeza. Pedro se apercebeu que a dor começava a retornar.
- Eu sou Judas. Judas Iscariotes.
- Por que logo esse? Esse é horrível, não é?
- Talvez. Mas eu tenho trinta anos. Nasci num dia trinta e traí um homem talvez por menos de trinta dinheiros.
Pedro não sabia o que dizer. Na certa, a dor recomeçaria nele o plano do delírio e de tristeza.
- Vamos parar. Você precisa descansar um pouco. Está falando demais. Não quer outro comprimido?
- Estou quase acabando... Eu sou Judas. Judas Iscariotes. Não se esqueça disso. Mesmo porque Judas, depois de Cristo, foi a figura mais importante dos evangelhos. Ele afirmou o Cristo. Sem ele, talvez Jesus nem tivesse a importância que teve. Cristo precisava ser traído. Estava nos seus planos.
- Está bem. Está bem. Mas não se enerve, senão a dor volta com mais força.
Judas balançou a cabeça.
- Ela já voltou. Só disfarçou um pouquinho. Até que foi boa a nossa conversa.
- Está bem. Mas eu me lembrei de uma coisa. Passei toda a tarde e me esqueci de dar água ao morto. Nem reparei se ele movimentou os lábios pedindo. Que cabeça meu Deus!
Judas prendeu seu braço fino entre os dedos.
- Ele não é o Morto. De agora em diante chamar-se-á Tomé. Só ele pode ter esse nome.
Ante o espanto de Simão Pedro, Judas esclareceu.
- Tomé era aquele que para acreditar precisava tocar. Ele tocou nas chagas de Cristo para ver se era mesmo o Cristo Redivivo. Esse é Tomé ao contrário. Ele precisa ser tocado para demonstrar que ainda está vivo.
Afrouxou o corpo e Simão Pedro pôde se aproximar da cama de Tomé.
Apanhou a caneca de ágata, encheu-a na pia e fixou o rosto, o corpo morto de Tomé. O homem apenas respirava. Respirava devagar. O rosto de olhos fechados não mostrava uma gota de suor sequer. Fazia meses que se encontrava ali naquela cama. Não falava. Não se movia. Só os lábios, quando sentia sede. Não fosse Pedro, ou às vezes João, ele morreria de sede. Madalena nunca se incomodava se ele movimentava os lábios ou não. O mais que fazia era deixar uma laranjada aguada sobre sua mesa. Isso porque o médico ordenara.
Pedro passou os dedos molhados em sua testa e depois levantou a cabeça de Tomé, deixando pingar gotas de água. Enquanto executava isso, ia raciocinando.
- Talvez nunca operem... Talvez achem que não valha a pena. Por isso os médicos não vão se interessar mais. Eles mesmos disseram que talvez ele tenha momentos em que possa pensar e ouvir. Mas não garantem nada. Naturalmente ele nem vai sentir quando chegar a morte. Tudo vai ser como num sono.
Ergueu a vista, enquanto deixava a água pingar um pouco mais. As moscas ainda dançavam na luz, pulavam do ladrilho para a mesa de mármore e dessas para as bocas dos doentes mais indefesos.
Depois, Simão Pedro levantou-se com a caneca entre as garras.
- Até logo, Tomé. Não sei se você sabe. Mas Tomé é o nome com que você foi batizado aqui. É muito melhor a gente chamar você de Tomé do que de morto. Até logo, amigo.
Foi para sua cama. Ergueu as pernas secas e ficou analisando com os dedos atrofiados as bolas salientes dos joelhos. Quando escurecesse mais chegaria a hora do jantar. Do jantar, não. Da Ceia, como Judas afirmara.
Do lado de fora, no parque, grudadas nos ficus-benjamins gigantes, as cigarras faziam um alarido ensurdecedor, anunciando que o Verão cada dia se tornava mais forte.
Foi então que Pedro pensou com um sorriso. "Amanhã é mais uma quinta-feira. É mais um dia de visitas".

 

CAPÍTULO 3 - A Ceia

Foi Simão, o epiléptico, quem deu o alarme.
- Lá vem "ele".
Judas Iscariotes virou o pescoço cansado para o lado do grito. Adivinhava tudo o que aconteceria. Mas precisava interessar-se por alguma coisa, ao menos para despistar a dor contínua.
Simão, o epiléptico, desgrudou-se da janela, caminhou meio desequilibrado, como sempre com a intenção de ajudar os companheiros a se movimentarem.
Conforme "ele" estivesse, a ceia decorreria calma e sem medo. Pedro dera agora para inventar que aquele homem era o Demônio. E quando se aproximava a hora da sua aparição, pensavam medrosamente: O Demônio vem aí.
Simão permitiu que Tadeu enrodilhasse os braços fracos no seu pescoço, enquanto penosamente ajeitava o travesseiro para que o rapaz se recostasse. E aquilo fazia mal a Simão. Não só porque seu corpo possuía pouca resistência como também pelo cheiro que se escapava de Tadeu e subia às suas narinas. Tadeu sempre se encontrava sujo. Uma vez Pedro ou ele conseguiam lavá-lo, mas o dia todo era impossível. E enquanto Tadeu permanecia parado com as cobertas, erguidas até o pescoço a coisa disfarçava, mas quando precisavam movimentá-lo uma certeza acusava a sua consciência, a certeza de que não era nada nesse mundo, que ninguém valia nada, nada mais do que a merda do corpo de Tadeu.
Entretanto Tadeu sorria agradecido e murmurava numa voz humilde o seu muito obrigado.
Em seguida Simão ajudou Mateus a descer da cama e o apoiou para que alcançasse a mesa. Dali a sentar-se no banco a dificuldade seria amenizada.
Por sua vez, Pedro, do outro lado, prosseguia numa tarefa semelhante. Urgia que os que não pudessem se sentar à mesa, se encontrassem soerguidos nos leitos para que o Demônio não ficasse com raiva.
E os olhos de Judas acompanharam o vulto piedoso de João, concentrado, rezando enquanto aguardava a ceia. E o medo também parecia imobilizar a todos naquela posição diferente da paralisia comum. Porque ninguém podia adivinhar como seria a aparição do Demônio.
Foi então que Judas Iscariotes riu, apesar de estar com o rosto molhado de lágrimas e de dor. Aquela ceia era mais humana do que todas as que vira em estampas e pinturas. Era mais humilde e ainda mais pobre. Possivelmente mais real, porque todos se colocavam nos dois lados da mesa. Na ceia de prata da casa de sua avó, todos os Apóstolos permaneciam de um só lado como se quisessem sair no retrato. Olhou novamente João. Pobre João que profetizava coisas lindas. João que não via a estranheza daquela ceia. Que não enxergava o vazio que existia no centro. A ceia onde o personagem principal nunca aparecia. Aparecia, sim, a porta vazia por trás, onde João anunciava o grande milagre. Quem sabe mais tarde.
O ruído do panelão sacudindo-se na bandeja grande de alumínio aumentou porque os passos dele subiam a escada externa e iam começar a invadir a enfermaria.
Os que podiam e estavam sentados em volta da mesa de mármore branco, munidos apenas de colher, tentavam agora afastar as últimas moscas da tarde. Talvez disfarçando naquele gesto a apreensão pela presença do Demônio.
Dentro em breve a luz fugiria para dentro da noite e seria necessário acender a da sala.
O Demônio, resfolegante pelo esforço, colocou o bandejão na mesa e deu boa-noite com um sorriso. Na semi-sombra, os olhos medrosos se apaziguaram e os homens puderam respirar mais livremente. O Demônio não se encontrava bêbado. Com cuidado ele ajeitou a bandeja para não magoar os doentes que se debruçavam na mesa. E o Demônio falou.
- Esperem que vou acender a luz.
Isso também acontecia. O preto enorme, encurvado. Com os olhos bestiais e maneiras simiescas, algumas vezes se comportava ao nível de um ser humano.
Preparava-se para servir os doentes, mas Pedro o interrompeu.
- Por favor, deixe que eu faça isso. O senhor está cansado. Veio de longe com todo esse peso.
Ele cedia e procurava nos bolsos uma guimba de cigarro apanhada no chão, na sala dos médicos.
Uma satisfação geral afugentava a inquietação anterior e mandava para bem longe o medo do Demônio. Esqueciam-se que o preto era o próprio Demônio. Afinal ele não era tão ruim assim... Ele se tornava ruim por causa da bebida.
Esqueciam-se até que no dia anterior ele chegara bêbado, cruel e desesperado, porque não conseguira acertar no bicho. E odiando aquele mundo em que poderia ter ascendência, vingava-se dos doentes.
Brutalmente puxaria esse que não se sentara na cama e que tremia.
- Seu porco imundo! Por que não se senta?
Agarrava outro.
- Seu filho da puta, está com luxo hoje?
Parava diante da cama de Tomé, o Morto.
- Vocês deviam estar como esse vagabundo que não dá trabalho.
E metia o pé onde o botinão grosso se avolumava, em qualquer parte do corpo de Tomé.
Os homens ainda conseguiam se encolher mais de tanto pavor. Não podiam fugir. Não podiam falar nem responder. Tinham vontade de matá-lo, mas não possuíam mãos para tanto.
Madalena encostada na parede, quase escondida no vão da porta, assistia tudo. Presenciava tudo e estava habituada a tanto. Não se comovia com o comum dessas cenas e não se intrometia nunca. Tinha que ser assim mesmo. Sempre o fora nos vinte anos que rolara pelos ladrilhos do Hospital de Neurologia. Assim era no pavilhão imundo dos homens. Assim o era no pavilhão imundo das mulheres.
Mas hoje, não. "Ele" não bebera e se desmanchava em cordialidade para com os internados. Reparava com prazer na mão mirrada de Pedro penetrando no vasilhame gorduroso e enchendo com aquela sopa de entulhos os pratos de ágata descascados.
A comida ensebada e quase fria se derramava com parcimônia. A sopa grossa e pegajosa, com pedaços de carne dura e escurecida, os talos de couve e principalmente a batata que nunca vinha descascada, patinava pelos pratos. As colheres indecisas e mal manejadas batiam barulhentamente. Os homens enfraquecidos deitavam-se quase, apoiando-se nos membros para não encostar o rosto no mármore da mesa. Os gestos tornavam-se incompletos. Os sorvos, ruidosos.
Nas camas era pior. Mateus, cujos braços a cada dia se paralisavam mais, erguia a colher até a boca. Os lábios, com pouco movimento e entreabertos, derramavam a metade da porção levantada. O caldo escorria pelo pescoço, atingia o pijama e só não encardia mais o lençol porque Pedro ou Simão caridosamente colocavam um pedaço de jornal velho.
Judas Iscariotes com dificuldade virou o rosto para outro lado. Mas seus ouvidos escutavam a conversa, os pedidos entrecortados.
- Pedro, está gostoso, não? Se sobrar um pedaço de batata você põe no meu prato?
- Espere um pouco, Felipe.
- Sobrou um pedacinho de carne, Pedro?
- Carne não tem mais. Só couve, quer?
Judas Iscariotes sabia a origem daquela comida toda. Na certa, eram restos que apanhavam nas feiras. Sobras de verduras, esmolas de carne. Mas eles tinham fome. E enquanto não viesse o Pão do Amor que João vivia prometendo, eles se contentavam com o pouco daquilo tudo. Teriam que se alimentar porque a noite quente se tornava longa. E teriam também de engabelar a fome até o café das sete e meia, no dia seguinte.
O Demônio principiou a juntar os pratos.
- Não falta mais ninguém?
Rolou a vista pelas camas até atingir Judas, deitado de costas para a ceia.
- Ele não quer?
- Não.
- Por quê?
- Há dois dias que não come. Há dois dias que quase não fala. Há dois dias que não quer se movimentar. Desde que falou com o médico ficou assim.
- Vamos até lá.
Contornou a cama e colocou-se entre ele e a porta que dava entrada ao anfiteatro. Encarou o rosto emagrecido de Judas que a luz ao longe vinha desbotar ainda mais. Ele continuava na mesma posição. O pescoço inteiriçado e os olhos procurando a treva. O peito, forçado pela posição do pescoço, respirava meio arquejante, mostrando a cada movimento pela abertura do pijama as costelas salientes.
Sentou-se na beira da cama e com as mãos duras suspendeu a cabeça de Judas Iscariotes. Um tremor percorreu-lhe o corpo e a cabeça tentou voltar à posição anterior. O Demônio não o permitiu.
- Olhe. Você precisa comer. Você precisa se alimentar.
Um gemido surgiu em vez de voz.
- Não vê que isso não ajuda? Não fique assim. Você vai ficar bom.
Ergueu-lhe mais a cabeça.
- Se você não quer ir até a mesa, eu trago o prato até aqui.
Judas abriu mais os olhos. Fitou o Demônio sem nada dizer. A morte fizera leito nas suas pupilas. Sua alma se desligara do momento e parecia não querer compreender aquilo que lhe diziam.
- Vamos. Não fique assim. O joelho dói muito, não dói?
Um pouco de luz se fez dentro daquele olhar.
- O Dr. Tiago falou com você, não foi? Ele não disse que você ia ficar bom?
Seus lábios se contraíram endurecidos, e novamente um fio de lágrimas escorregou de cada lado do seu rosto.
- Não. Ele não disse isso. Disse apenas que vou cortar minha perna muito em breve. Disse também que o meu tumor se irradiou. Que os meus pulmões estão atingidos pela metástase. Sabe o que é isso? Pois bem, isso quer dizer que... meus dias estão contados. Se não acredita pergunte a Lúcio!
- Que Lúcio, meu filho?
- Abra a porta do anfiteatro, por favor. O Demônio obedeceu.
- Está vendo? Lúcio está sozinho sentado na terceira fila. È aquele que está sempre sorrindo. Sim. O de grandes olhos verdes...
Tentou colocar a cabeça no travesseiro e respirou fundo.
- Agora, me deixe em paz, sim?
O Demônio encaminhou-se para o centro da enfermaria e em silêncio começou a arrumar os pratos e os restos da ceia na bandeja grande de alumínio.

 

CAPÍTULO 4 - O Pêndulo de Felipe

Foi o Dr. Tiago que, brincando, batizara o seu pescoço de pêndulo. Nem sabia bem o que significava, mas devia ser algo relacionado com sua cabeça desequilibrada. Não possuía forças do lado direito do pescoço e a cabeça tombava, encostando-se no ombro. Tornava-se necessário então suspender com a mão esquerda a cabeça e empurrá-la para o lado direito. Para que ela permanecesse nessa posição, amparava-a constantemente com a mão, impedindo que caísse. Então ao acordar a primeira coisa era colocar no lugar aquele pescoço deslocado. Não se esquecer que em momento algum durante o dia poderia soltar a mão esquerda. Convencer-se sempre que, sem esse apoio, a cabeça tombaria sobre o ombro.
Pronto. Felipe tinha se organizado e sentara-se na cama. Alguma vantagem aquela doença trouxera-lhe. Bastava encostar a cabeça no travesseiro e já dormia. O mundo que desabasse no maior terremoto e ele nem acordaria. Um sono só. Ligado e sem sonhos. Amanhecia, acordava descansado como se nada tivesse. Também o médico lhe dissera que nunca mais sairia do hospital. Aquilo era muito bom. Não precisava trabalhar, nem viver a vida lá fora que se tornava cada dia mais difícil. Orgulhava-se até de ser um caso muito raro. Nem se incomodava nos dias de "caçada humana" quando o chamavam para o anfiteatro para servir de exemplo aos estudantes do sexto ano. Só desabotoava o pijama em cima e mais nada. O que interessava era o seu "pêndulo".
Sorriu. Não é que aquele pessoal vivia inventando coisas?! Agora tinham-lhe dito que seu nome era Felipe. E que ele era um dos Apóstolos do Senhor. Nem se zangou. Melhor se chamar Felipe do que pelo nome pavoroso com que os pais o tinham batizado. Felipe até que era bonito. Felipe. Pronto, então eu sou Felipe mesmo. Com apóstolo ou sem apóstolo, gostei de ser Felipe.
A primeira vez que chegara ali, os médicos lhe perguntaram sobre sua história. E ele contou. História besta mesmo. Ficara assim num carnaval de dois anos passados. Tomara um puto porre e adormecera no asfalto da Praça da Bandeira. O calor do verão trazia da terra o bafo morno, recolhido do sol intenso. De madrugada, acordara com uma dor incrível na cabeça e no pescoço. Ainda por cima caía uma chuvarada grossa sobre o seu corpo. Tamanha fora a impressão desse acordar, tão grande era a dor, que não sabia se se encontrava vivo ou morto. Se não estava grudado no asfalto e rachava ao mesmo tempo que na terra. Inconsciente e com muita febre, chegara numa ambulância até ao pavilhão dos homens.
Ficara com uma parte do pescoço paralisada, sem forças. Desde aquela época, os médicos diziam esperar uma ocasião para operá-lo. Mas não se enganava. Quando uma pessoa caía ali, nunca era operada não. Eles só queriam mostrar a doença deles para os estudantes. - Depois, se acostumou. Se acostumou com a mão na cabeça e parecia que, quando não se achava nessa posição, alguma coisa se encontrava errada. Foi ficando. Dependendo só da habilidade da mão direita, podia ajudar em qualquer trabalho no hospital. Permitiam que ele entabulasse o comércio cotidiano entre os doentes e a rua. Felipe fazia a fezinha dos homens no jogo-do-bicho. Os homens espremiam os tostões vindos quase sempre da caridade contra uma sorte que não vinha. Também o que queriam mais? Tinham casa e comida de graça, banho de quinze em quinze dias, e de quinze em quinze dias um pijama limpo. Ora, bolas!
Felipe também trazia as novidades da rua, principalmente as histórias dos desastres, que agradavam tanto ali.
As últimas notícias da guerra, para animar a paralisia reinante na enfermaria.
Agora, seu orgulho todo era bem outro. Fora nomeado barbeiro pelo hospital. Segurando a cabeça com a mão esquerda, com a outra apoiava a navalha ou a tesoura. Ia barbeando ou cortando os cabelos. Cobrava pouco, de acordo com o que o freguês tivesse para pagar. Agora, de graça, nunca. Não era otário. Interessante que ninguém tinha medo ou desconfiava que um dia aquela mão, que sustentava a navalha, poderia falhar.
Felipe sentou-se mais fortemente na cama. Estava quase pronto. Só faltava o pescoço dar aquele estalinho. E logo que desse poderia levantar-se.
Madalena apareceu na porta da enfermaria com uma cara de chamar chuva. Felipe riu por dentro. A puta velha estava danada da vida. Hoje era quinta-feira e o médico ordenara que os doentes teriam de ser lavados. Ia ser trabalho duro para ela e o Demônio.
Ninguém gostava da velha enfermeira, que quando se agachava para fazer massagens nas nádegas de alguém, deixava à mostra as pernas gordas e caroçudas, assim como as grandes nódoas de suor debaixo do sovaco, no vestido encardido. Desleixada e suja, xingando entre dentes, cumprindo de um jeito incompleto todas as obrigações, confundindo higiene com os dedos sempre enfiados nos cabelos ensebados, a torcer cachinhos. Nem mesmo para companhia, durante a noite, ela servia. Se continuava ali era porque não encontravam outra para trabalhar tão barato. Muitas noites, tinham dela necessitado e por mais que batessem à porta do seu quarto, só o ruído do seu gordo ronco respondia às súplicas e aos gemidos.
Todos os olhos se muniam de piedade, quando Madalena penetrava na enfermaria com a agulha de injeção desembainhada. Também ninguém reclamava porque tudo tinha de ser assim mesmo.
Entretanto para Madalena aqueles homens nada significavam. Se por acaso encontrava-se de bom humor fazia piadas com eles. Caso contrário, xingava baixinho. Era tão dura como os ladrilhos do chão. Se um resto de emoção lhe extravasava a alma era para prender-se a um mundo totalmente falso. Possuía lágrimas roliças para depois do almoço chorar com as rádio-novelas, enquanto os dedos grossos remexiam pontos no tricô.
Alguém murmurara que tinha duas filhas, mas o que elas faziam não conseguia atingir o conhecimento da enfermaria. Nos raros dias de folga, quando retornava ao hospital, vinha de olhos inchados e de nariz vermelho como pimentão.
Agora Madalena estava ali. Analisando tudo, enquanto o dia não clareava, toda a extensão do seu trabalho.
Os olhos matreiros de Felipe não perdiam um só de seus movimentos.
- É isso mesmo, sua puta velha. Sua puta imprestável e intrigante. Você vai ter de trabalhar duro hoje. Vai ter de lavar muito rabo cheio de bosta e muito pinto cheio de sebo, sua vaca. Você ganha é pra isso e não pra ficar grudada no rádio a vida inteira.
Foi ai que o pescoço de Felipe deu o estalo que ele chamava amigavelmente de endurecimento. Voltou à realidade. Hoje era quinta-feira. Dia de visitas. O dia mais alegre da vida. O dia mais lindo do hospital. Portanto dia de muito trabalho seu. Os doentes gostavam de aparecer de rosto barbeado e de cabelos penteados.
Deu uma risada gostosa.
- Doentes, qual nada. Apóstolos. Não é assim que seu Judas lá de baixo e seu Pedro chamam? Os apóstolos. Que é também mais bonito que doente ou aleijado, lá isso é.
Era a hora da semana em que melhor conseguia apanhar uns cobres. Olhou a vida em volta com um sorriso. A manhã dentro em breve traria para a enfermaria a claridade de mais um dia de verão.
As janelas entreabertas empurravam para longe os negros das últimas sombras que começavam a desbotar e transparecer.
De repente, Felipe sentiu os seus olhos atraídos para a cama de Judas Iscariotes.
Ao contrário dos últimos dias, Judas se erguera no leito e encostando o travesseiro na grade da cabeceira, encontrava-se quase sentado. Seu rosto lívido acalmara-se como se não sentisse nenhuma dor. O vinco das lágrimas secara. De longe, seus olhos brilhavam como carvões fosforescentes que se fossem apagando.
E Felipe estremeceu.
Também observava o amanhecer. Na tristeza dos seus olhos, com a claridade do novo dia, as sombras se propagavam lentamente.
Pensava. Tinha de pensar. Diziam que os velhos dormiam menos e que se levantavam mais cedo para melhor aproveitar o resto da vida que lhes sobrava. Não era as-- sim? Se o era, os velhos tinham uma condenação mais amena e caridosa. Os outros condenados precisavam contar cada amanhecer. E vai amanhecer, Judas Iscariotes. Mais um dia na figueira do sol. A luz invadirá pela janela com uma força selvagem e constante de vida e tudo se repetirá. Até... que seus olhos não amanheçam mais.
No entanto vinha aquela moleza terrível que crescia dia a dia, hora a hora, minuto a minuto. Crescia proporcionalmente à sua dor. Os braços quase não obedeciam à sua vontade. Mesmo porque a sua vontade não se realizava quase. Somente aquele cansaço que doía até nas pálpebras, aquela lassidão, aquela busca do não ser.
A luz clareará a enfermaria e doze camas vão aparecer. Alguém bocejará. Depois os primeiros remexidos nos leitos. Os homens começarão a se locomover dentro dos seus reduzidos limites. Passarão se arrastando até a pia. Sentar -se-ão nas latrinas imundas e sairão ainda mais sujos. Homens. Pedaços de homens que já foram gente. Um sorriso interno doendo na alma rebentou em si. Ria da descoberta perversa.
- "No meu tempo de menino eu estudei frações".... Não se arrependeu da maldade do pensamento mas voltou a se alojar em sua insignificância. Tornando-se de novo o hóspede desesperado de si mesmo. A frouxidão da vontade revelava-se mais crua. Não queria recordar-se de coisa alguma e contudo sentia-se prisioneiro da memória, do decorrer das lembranças. Principalmente da perseguição de Lúcio. Lúcio que agora não desistia. Lúcio que surgia todas as noites, voando nas sombras com as asas do remorso e da acusação.
Suspirava aliviado. Tinha um dia de verão, longo, dolorido e cansativo, mas que afastava para longe o fantasma dos olhos verdes de Lúcio. Cada noite ele apertava mais o cerco. E sabendo-o condenado, exigia a sua retribuição paga ao preço dos "trinta dinheiros".
Virou a cabeça para a porta do anfiteatro. Certificava-se que agora ali não existiria ninguém. Chorava por dentro do seu desalento. Um dia alguém me quis. A dúvida o assaltava. Ou talvez não me tenham querido. Todavia, de uma maneira ou de outra, porque a gente não é concebido por amor e sim por sexo e prazer, saindo para a aurora, vagindo amedrontado com essa mesma luz que aparece, conservando os mesmos mistérios, eu vim como os outros: num parto cru entre gemidos de dores animais.
Por que os pensamentos se alinhavam assim? Por quê? Devia ser da doença, da febre, dos arrepios de frio que enregelava os seus ossos, da dor aguda como arpões de fogo. Antigamente não era assim, nunca o fora.
Tentava disfarçar. Movimentar os dedos, mas as forças faltavam-lhe. E entretanto precisava movimentar-se, pois que ainda se encontrava intato. Quase perfeito. E nada. Só o pensamento. Só o pensamento.
- E se me quiseram, por que agora tanta solidão? Solidão de mim mesmo.
A luz invadiu tudo. Foi fechando os olhos doloridos.
Afinal aquilo era a vida. Aquilo ainda era a vida. E quem sabia lá o que significava a vida? Quem somos, de onde viemos e para onde vamos? Meu querido Gauguin.-Numa noite dessas, Lúcio adivinhara-lhe os pensamentos mais uma vez e repetira um trecho que lera não sei onde. Ele dizia que não sabia. Mas eu me recordava de quem era. Ignazio Silone. Lúcio fingia-se de esquecido para dar menor importância à coisa. Estranho, porque quando vivo, Lúcio nunca demonstrara um resquício de cinismo. "Levava o trigo nove meses para nascer e se transformar em pão. A uva, nove meses para amadurecer e se transformar em vinho. O feto, nove meses para ver a aurora". E depois, devia ser mais ou menos assim, de nove em nove anos o corpo se metamorfosearia. Se não fosse nove, poderia ser doze, se não fosse suficiente doze - Merda! - Quinze anos. Saía a infância, fugia a adolescência, estabilizava-se a maturidade... e tudo para quê? Para ser devorado tão rapidamente como o pão ou o vinho? Talvez a vida do corpo, comparada à vida do pão ou do vinho, possuísse a mesma duração de tempo no mistério das origens...
Afinal, o que era a vida?
Reabriu os olhos e sua vista grudou-se no balde de lixo onde as primeiras moscas da manhã banqueteavam o desjejum. O sujo da véspera permanecera esquecido. Algodões manchados de sangue mostravam-se para a luz.
Sim o sangue. O sangue era a vida. O sangue era Cristo. Mas o sangue não era Deus. Deus era uma maravilha tão longínqua, tão perfeita, que era melhor a gente deixar Deus ser Deus em paz. Quantas vezes na selva, à luz de miríades de estrelas, estrelas tão lindas, tão próximas, tão grandes que quase se apanhavam com os dedos, não fizera declarações de amor a Deus.
- Deus, você é lindo e formidável. Eu não tenho palavras. E se pudesse rebentar o meu coração para poder exprimir o meu amor e a minha admiração por Você eu o faria, porque ninguém tem palavras para conversar com você e elogiar o que Você faz, não é, meu bom Deus? Você fez esse mundo lindo. Esse cosmo. Esse universo, toda essa, imensidão de galáxias que sem você não poderia existir...
Calava-se na noite e sentava-se na areia fria das praias do rio e perdia seus olhos humildes ante tanta grandiosidade e pujança.
- Sem Você, meu querido Deus, nada disso existiria. Eu sei. Só isso que sei e que poderei saber.
Depois o peito se confrangia, atacado por aquela angústia que vinha desde os tempos de menino. Aquela mesma angústia que perseguiu muito um santo tão importante e inteligente como Santo Agostinho: "E quem fez Você, Deus? Como Você surgiu, meu querido Deus?"
Podiam as religiões tapear com quaisquer que fossem os terrenos das revelações. Isso não bastava ante a eternidade de Deus. De que valiam as explicações do livre arbítrio. Tínhamos o livre arbítrio da escolha mas nos condenavam ao limite de uma mística obrigatória. Sempre o quadrado imperfeito de Cristo em vez do Círculo eterno de Deus. Inculcavam-nos a solidão de um individualismo condena-tório - quando apenas nos prometiam a revelação limitada, onde permanecia uma participação inconclusa e distante, onde havia um Deus eterno, intangível e insofismável. Ora, bolas para a filosofia, para a teologia, para a indecisão da Escolástica - Sorriu - "que me perdoe Aristóteles na sua inteligência maior e mais lúcida do mundo". Bolas também para os desígnios da quididade unilateral. Porque a verdade segundo a assertiva aquina-tense era uma só. Restava saber apenas se Cristo estava com a verdade apregoada. Porque, apesar das suas convicções divinas, apesar do seu poder penetrante de áuspice, apesar da sua grande e característica assuetude, Deus continuaria mesmo após a revelação, eterno e infinito. E o infinito continuaria sendo a negação do espaço e o eterno a negação do tempo. Ou estaria tudo trocado? O tempo é que seria a negação do eterno, do espaço, do infinito... Muitas vezes na vida abismara-se com a ignorância de Cristo. Nunca Ele afirmou estar ciente da existência de Buda, de Brama, que vieram séculos antes, com as mesmas teses, com as mesmas e indisfarçáveis teorias de amor. E por quê? Mais que os outros, era inegável, Cristo tornava-se mais consubstanciai. Metamorfoseava-se num líder mais realista, tentando de um meio mais dolorido também revelar a perfeição de Deus. Mas porque somente Ele era a verdade e a vida? E os outros, ignorados por Ele, silenciados por Ele. Sim, devia ser isso. Um meio. Um meio de chegar a Deus. Um meio, porém, nunca uma solução.
Remexeu-se nervosamente na cama. Aqueles pensamentos davam-lhe certo excitamento, cansavam-no, mas conseguiam disfarçar o seu desfalecimento e dor.
Riu intimamente. Posso parecer com Judas Iscariotes. Ser até chamado assim. Mas não odeio Cristo. Acho lindo o seu sacrifício. O bem que ele criou, as sementes de esperanças que Ele semeou. Afinal, se realmente houvesse uma salvação, tanto seria belo ou mais belo> se ela fosse obtida pela figura de Cristo. Se houvesse uma salvação, felizes os que o conseguissem pelo amor de Brama ou pela placidez de Buda. No mais, Cristo era tão lindo no seu idealismo é seu holocausto. Usara um pouco demais horríveis explorações sentimentais. O sangue. A cruz. A chicoteação. A coroa de espinhos. E sobretudo Judas. E sobretudo Judas. Abusou de Judas para a sua Redenção - Lá vinha a figura estranha do Irmão Estêvão, com o nariz apimentado, sempre se enxugando num lenço de riscadinho, afirmar categórico: Judas é o único ser condenado ao inferno. Em casa, para seu espanto o pai também confirmava, dizendo usar as palavras de Jesus: Sim, é verdade, é o único que está garantido no inferno. Aquela história barata da religião católica, quadrada e passiva, esbofeteava as primícias da sua fé no coração da gente ainda "tão puro, ainda na alvorada", como diria Fagundes Varela. Nunca. Cristo que se dizia Amor jamais quereria tamanha barbaridade. Um único homem a quem Cristo condenasse lançaria por terra toda a teoria do seu amor pela humanidade...
- E Deus não perdoa em primeiro lugar aqueles que se suicidam?
Sentiu um arrepio brutal triturar-lhe a medula de todos os ossos. Era a voz de Lúcio.
- Não é isso? Deus não perdoa imediatamente aos suicidas? Responda.
Trincou os dentes para impedir a fala.
- Alguém me disse um dia. E esse alguém foi você. Sé um homem não tivesse que morrer e abreviasse a vida, sim. Seria um crime contra o Espírito Santo. Contra Deus. Mas ele apenas abrevia, destrói apenas uma coisa que tem de acabar um dia. E o desespero de quem se mata? Você já imaginou? Não é isso que alcança o perdão de Deus imediatamente? Fale! Diga alguma coisa.
E como não respondesse, Lúcio continuava.
- Agora você está começando a saber o que é esse desespero. E note bem que os mortos não são pagos com as trinta moedas do desamor. Por enquanto você só vê os meus olhos, o meu rosto e ouve a minha voz. Mas por acaso sabe o que aconteceu às minhas mãos? Vamos, diga. Sabe?
Judas Iscariotes balançou a cabeça negativamente.
- Quer ver?
- Por favor, Lúcio. Agora não..
- Tem razão. Ainda é um pouco cedo para que eu as mostre. Vou sair. Continue se masturbando metafisica-mente. É bonito. Ajuda a disfarçar a dor. Ajuda até a morrer. Isso eu posso lhe garantir. Não se lembra onde parou? Pois bem. Na criação do inferno. Vamos, o inferno foi criado, jamais...
- Será perpétuo. Jamais verdadeiro no sentido eterno. Respirou aliviado ao sentir longe a presença de Lúcio.
Nunca ele surgira tão cedo. Sentiu-se pequenino e inútil. Desanimado e vão. Por que os meios que nos levam a Deus são tão quadrados e obsoletos? Tão limitados? Talvez o fracasso de Buda, de Brama, de Cristo tenha advindo pela limitação do quadrado. Aquela mania. Quadrado filia.
Mas o coração se apaziguava ao raciocinar que, se tivéssemos sido arremessados no contorno de um círculo, estaríamos talvez mais próximos da eternidade de Deus. Muito embora a eternidade também fosse um círculo impalpável. - Sabe, Deus. Apesar de todas as minhas culpas, eu gosto de você. Gosto a meu jeito. Ao formato da minha grande pequenez. Deus, você é a coisa mais linda do pensamento, e o homem, minúsculo, vaidoso e bobo em pensar que foi criado à sua imagem e semelhança. Tão lindo Cristo morrendo na cruz para a sua Redenção e redenção dos homens. Até Os quadros famosos mostravam tudo isso numa tragédia sublime. Deu um suspiro de desânimo.
- Bobagens! Quando eu estudava medicina e Lúcio também... ninguém ignorava que Cristo morreu clinicamente por um processo de acidose.
Parou os olhos num pequeno armário, que sempre se postava como sentinela muda perto da porta do anfiteatro. Sempre trancado à chave. Ali havia uma quantidade enorme de remédios. Sedativos fortíssimos que só eram aplicados com ordens médicas. Terminado o expediente médico, as chaves giravam em sua fechadura e ele parecia dormir indiferente à dor dos outros.
Fez um esforço porque alguma coisa o atraía. Queria saber a razão disso. Uns olhos o atraíam e não seriam os de Lúcio.
Deu com o olhar de Felipe que o fitava espantado, e estremeceu.

 

CAPÍTULO 5 - Os Bons Samaritanos da Penúria

- Nada disso! Se não paga, não lhe corto o cabelo nem lhe faço a barba.
André, desapontado, fitava Felipe. Seus olhos cresceram no espanto e na decepção.
Judas Iscariotes acompanhava a discussão. Estranho que todos os enfermos possuíssem olhos tão grandes. Os rostos quase sempre paralisados e de pequenas expressões, afinados certamente pela dor, faziam com que os olhos se arredondassem e se tornassem enormes. Todos viviam mais pelos olhos do que por qualquer parte do corpo.
André achava-se assim naquele momento. Uma dose de incompreensão e humildade se concentrava neles como se dissessem: "Não é possível ser mau desse jeito":
Porém Felipe não cedia. Em pé, defronte à cama, com a mão esquerda apoiando o pescoço e com a outra sustentando a navalha e a tesoura, esperava que André capitulasse.
- Pois é. Não pagando, nada feito.
Sentindo que a parada poderia ser perdida, Felipe argumentou.
- Prá jogar no bicho, você tem, você acha. Agora, para pagar uns miseráveis níqueis, fica aí com essa cara de piedade, de quem subiu a escadaria da Penha, de joelhos. E se ainda fosse uma barba macia, agradável de se fazer, vá lá. Mas uma puta duma barba de bode, dura como carrapicho.
André já ia desistir mesmo.
- Hoje não tenho nada. Felipe gozou.
- Por que não pede emprestado às mulheres? Você não vive falando nelas? Papando tudo que é fêmea com os olhos? Até agora só não papou a bunda caroçuda da Madalena.
Principiou a rir da própria piada. André suplicou.
- Olhe, Felipe. Hoje é dia de visitas. Deve vir alguém me visitar e eu lhe pago depois.
- Vem nada. Vai acontecer que nem Tiago. Chora a vida inteira, esperando o dia de visitas. E depois chora o tempo todo porque nunca vem alguém visitá-lo. Ele pelo menos tem uma vantagem. Tem família muito rica e manda sempre dinheiro pra ele.
- Deve vir aquele frade dominicano.
- E daí?
- Daí eu deixo meus braços de fora e abro o paletó do meu pijama. Finjo que estou com muito calor e mostro meu peito.
- Isso é uma nojeira.
- Eu sei. Mas dá certo. Sempre o frade pinga uns dois mil réis.
- Na semana passada não lhe deram nada.
- Mas nessa vão dar. Você vai ver.
Felipe continuava na indecisão. E essa indecisão maior aumentou porque Madalena vinha, com o Demônio, carregando abrutalhadamente Tadeu.
Comentou baixinho para André.
- Essa puta velha não presta mesmo. Vai começar o banho colocando primeiro Tadeu e sua coceira. Isso é pra todo mundo pegar aquilo.
- É mesmo. Ela também, tem raiva de me dar banho por causa das minhas costelas soltas.
- Não dói quando elas saem do lugar, não?
- No começo, doía muito. Agora eu sei um jeito de dar um estalinho e elas voltam pro lugar, logo.
- Gozado! Meu pescoço também reclama um estalinho e eu sei bem a hora que ele vem.
Calaram-se e ouviram o barulho do corpo de Tadeu jogado na banheira velha, que nunca tinha a caridade de uma água quente.
André insistiu.
- Vai fazer ou não? Não custa, Felipe. O que é uma barba a mais ou a menos pra você? Você não sabe como é triste olharem pra gente e a gente sentir pena nos olhos que nos olham?
- Uai! Você ainda gora falava em mostrar as costelas soltas e a sua chaga do peito para fazer dó... agora mudou? Eu é que não me incomodo que sintam pena de mim. Afinal quem vem aqui sabe que a gente é o lixo. Todo o resto do podre que sobrou da humanidade. Que é que esperavam encontrar? Anjinhos com a bundinha de fora, cheirando a pó-de-arroz?
Felipe soltou uma risada debochada.
- Já sei. Apóstolos. Ê isso que Judas lá embaixo diz. Mas ele é louco, ou está ficando louco porque vai morrer. Já vive sentindo o cheiro do céu em qualquer coisa. Mas a sua barba não faço mesmo. Melhor é ficar barbado. Se vier alguém da sua família e perguntar por que não fez a barba, poderá dizer que não teve dinheiro. Assim lhe darão algum e se você não jogar no bicho, poderá me pagar na próxima vez.
Madalena recostada na porta, esperando que o Demônio enxugasse o corpo de Tadeu, escutava a conversa. Soltou uma risada, deixando a boca maltratada à mostra e sacudindo os seios gordos e o ventre caído.
Felipe ia se afastar, quando uma mão pousou em seu ombro.
Judas caminhara entre as camas para ir ao banheiro. Por certo ouvira toda a conversa.
Baixou os olhos e tentou se desculpar.
- O senhor desculpe. Não sei porque fui dizer aquilo. Judas sorriu.
- Que eu vou morrer logo? Não tem importância, todo mundo sabe. Todo mundo morre. Você também irá um dia. A diferença é que uns vão mais cedo e outros demoram meia-hora a mais.
Depois a outra mão magra entreabriu-se e ofereceu uma nota.
- Está aqui. Deve dar. Para o que ele lhe deve e por hoje.
Desceu a mão magra, suspensa com esforço e procurou apoiar-se na cama. Precisava reiniciar a caminhada para o banheiro.
André balbuciou meio engasgado.
- Por que o senhor fez isso?
- Não sei. Talvez não devesse fazer. Talvez depois eu me pergunte por que o fiz. Não interessa. Possivelmente porque o meu tempo é curto e eu preciso acabar de gastar meus trinta dinheiros.
- O senhor tem tudo isso?
- Tudo não. Mas ainda sobra um pouco. Ria da cara espantada de André.
Madalena enfiou os dedos sujos nos cabelos gordurosos e ficou nos minutos de espera enrolando os cachinhos da nuca suada.

* * *

Naquele tempo, a quinta-feira era o dia mais importante para eles: o dia de visitas.
Algumas vezes, e acontecera raramente, eles podiam ser visitados aos domingos. Isso quando era a Páscoa para os de fora, Semana Santa para os da rua.
Acontecia que a manhã de quinta-feira tornava-se insuportável." As horas cruzavam os ponteiros e não andavam.
Hoje a manhã tomava esse aspecto dolorido. Não fora a atividade de Felipe trançando pela enfermaria, gritando e discutindo o preço dos cortes dos cabelos e das barbas, eles não teriam onde fixar os olhos. O banho de todos não significava mais do que um mergulho rápido numa água sempre fria, e uma ensaboada ligeira. Mudança da água da banheira de quatro em quatro corpos e pronto. Uma hora era o suficiente.
Quando havia um doente novo ou ameaça de morrer, Dr. Tiago surgia com aqueles olhos muito azuis e então podia-se criar algo de curioso nas observações de todos eles. Prestavam atenção nos menores gestos do doutor, indagando em silêncio se aquele embarcava logo ou se tinha oportunidade de continuar. Ou ainda, se demoraria alguns dias aguardando a visitação das moscas - melhor dizendo: Nossa Senhora das moscas, Dona Morte.
Hoje, não. Não fora internado ninguém. Nem havia vaga. Não sobrava uma cama na enfermaria. Ninguém fora transferido. Nenhum operado e portanto recolhido ao pavilhão da Cirurgia. E sobretudo ninguém morrera.
No auditório que separava o pavilhão dos homens do das mulheres, não haveria aula. E suas portas, cerradas e mudas, nada traduziam. Os sextanistas de medicina não teriam aula de Neurologia. Ninguém seria procurado para servir de exemplo ou de cobaia.
Poucos queriam compreender que estavam ali para "aquilo". Que a saúde impossível de retornar justificava as suas presenças perenes na enfermaria. Com "aquilo", eles pagavam o preço da permanência, o sujo dos lençóis encardidos, a caridade grosseira dos pijamas costurados pelos dedos anônimos da Liga Brasileira de Assistência.
Eles estavam ali, ignorando que os seus sacrifícios talvez ajudassem a que outros, mais favorecidos pela sorte e pela vida, não chegassem ao ponto de se exibirem no anfiteatro.
O medo nascia cedo quando o zunzum das vozes crescia lá dentro e o arrastar das cadeiras indicava os alunos se acomodando. As janelas abertas com força era outro sinal. E as conversas animadas atravessavam as paredes da enfermaria. Os olhos ficavam desanimados olhando para aquele ponto. Um ímã parecia atraí-los para lá. De repente... A porta se abria de par em par. Vai começar o Rodeio.
Empurravam um carrinho para o centro da enfermaria e um médico, o professor que ministrava as aulas, cercado de alguns alunos, percorria com os olhos, bem devagar, as doze camas.
Felipe comentava para André.
- Na cama dele nunca param. Só porque é rico. -J- Ê aquele.
João apertava a Bíblia sebenta contra o peito para acalmar o coração aflito. Tiago já ficava com os olhos cheios d'água. O outro Tiago, aquele cujos ossos cresciam sempre e que precisavam sempre ser aparados, encurtados, tentava cobrir a cabeça com o lençol. Tadeu danava-se a se cocar mais, de nervoso.
O laço parecia estar girando, girando no alto antes de se abater sobre o escolhido.
Felipe virava as costas para a cena. Simão, o epiléptico, deixava escorrer um fio de baba grossa. André estalava as costelas continuamente. Só Tomé nada podia fazer.
Todavia era muito triste quando o laço caía sobre um deles. Quando era arrastado, arremessado sobre o carrinho e transportado para o centro do auditório onde olhos semi-insensíveis analisavam as porções das suas misérias físicas.
Havia até comentários desumanos. Piadas cruéis.
- Hoje é o pêndulo.
- Deus do céu, é aquele que vive cagado.
- É o castanhola.
- É o pirocudo.
Riam-se das próprias piadas. Mas se concentravam quando a explicação do professor se anunciava.
Pedro odiava ir. Talvez por isso fosse sempre o mais escolhido, o mais procurado. Porque além do seu caso se prestar para uma porção de explicações, podia servir-se das suas garras para tirar as suas roupas e tornar a vestir-se.
De todos, somente Tomé não podia compreender o ridículo e a humilhação da cena. Não sabia que estranho se tornava o corpo, nu, aparecendo quase seco, com a pele enegrecida e manchada, deixando à mostra os ossos sem carne. E os sexos se avolumavam e se empreteciam desproporcionados, balançando sem significado a qualquer toque ou movimento. E que feio, trágico e bastardo, ao mesmo tempo indecente, os pêlos do corpo se tornando longos porque os ossos se desproviam de carne e a pele se deslustrara...
Era horrível olhar Pedro. Simão Pedro - "tu que és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja". Pedro, o Pescador, voltar de olhos baixos e ficar sentado sem nada dizer, todo o resto da manhã. Ninguém perturbava o seu silêncio. Sua mudez tornava-se compreendida. Não adiantava dizer-lhe que o demônio trouxera a bandeja da comida. Ele não se alimentaria, nem ajudaria os outros a comer. Apenas seus dedos de graveto ficavam seguindo doloridamente todas as linhas do pijama ou todo risquinho do lençol.
Porém hoje não havia aula.
Tiago, o maior, sim o maior. Porque sua cabeça crescia sempre apesar de devagar, por causa da hidrocefalia. Tiago, o maior, com os seus olhos azuis espiava para a porta para ver se o Dr. Tiago visitaria a enfermaria nessa manhã. No seu cérebro, que ia se reduzindo a cada dia, a ponto de tornar-se fino como uma folha de papel, guardava sempre um orgulho de possuir o mesmo nome que o médico.
- Mas esse outro aí, Tiago segundo, também é Tiago.
- Não é. Desse eu não gosto.
O médico não poderia comparecer. O corredor encontrava-se abarrotado de gente para a consulta. Gente que aguardava com impaciência uma vaga na enfermaria. Podia-se ouvir o ruído lá fora, os choros, os gemidos, as queixas e as reclamações.
Por isso o Dr. Tiago não viria, nem mesmo para visitar Judas Iscariotes, para lhe dar uma palavra amena, uma gota de calor humano.
Estranho! Qualquer daqueles homens vender-se-ia por uma palavra de carinho ou um gesto de piedade.
Um grito lancinante cortou a enfermaria de cima a baixo. Todos se paralisaram de pavor. Nenhuma garganta humana poderia emitir um som daquele. Judas Iscariotes encontrava-se lívido, abraçado ao joelho sem poder parar de uivar.
E o Dr. Tiago veio. Dessa vez Tiago maior chorava de medo.
- Madalena, traga depressa a seringa. A morfina. Dose forte.
E quando o remédio começou a fazer efeito, esticaram o corpo de Judas na cama e Pedro enxugou o seu rosto molhado de suor.
- Eu lhe falei, meu filho. Você precisa de vez em quando tomar uma dessas injeções.
Dr. Tiago sorria, vendo o alívio no rosto do rapaz.
- Agora, você vai dormir muitas horas. Dirigiu-se a Pedro.
- Ele dorme bem durante a noite?
- Nas vezes que eu acordo e são muitas, ele está sempre apertando o joelho entre as mãos.
- Ela vai dormir. Está fazendo efeito. Preciso ir.
Saiu em direção do seu consultório no fundo do corredor..
Pedro arrastou-se para junto da janela e ficou desanimado observando o parque. O dia anunciava-se quente e cheio de sol.
Começavam as grandes amendoeiras a amarelecer. As velhas figueiras-bravas suspendiam os nós das raízes como se quisessem desligar as garras da terra. Um vento pequeno agitava um ou outro trapo posto a secar na cerca de arame farpado. Sempre as mulheres do outro pavilhão descobriam uma maneira de pendurar panos velhos nos espinhos dos arames.
Pedro voltou-se para dentro da sala, cansado de espiar a paisagem indiferente.
As moscas já dançavam loucas nas fímbrias da luz invasora que se projetava no chão.
Aquela luz, avolumando-se limpa e branca, penetrava mais e mais na sala. O dia completamente branco afastava ainda mais a paz da enfermaria.
As horas não passavam. As visitas só viriam depois das duas horas e por enquanto nem o almoço das onze se anunciara.
Só Felipe continuava a visitação das camas.

* * *

Foi quase uma tarde comum de visitas. Veio gente. Alguns parentes. Tiago chorou. André esperou inutilmente por alguém. Pedro recebeu bananas cheirosas e maduras e um jornal que trazia muitas notícias de crimes. A enfermaria ficou animada com as conversas. Falaram de futebol, de lutas de boxe e até de corridas de cavalos. Quando contaram sobre a guerra, João baixou os olhos e rezou no coração. Quando comentaram sobre os bombardeios, Tadeu delirou de alegria e se cocou muitas vezes. Todavia quando o assunto incidiu nos afundamentos dos navios, Pedro sentiu-se tomado de uma grande tristeza.
Se o frade dominicano falhou e André não pôde impressioná-lo com a sua chaga no peito e suas costelas deslocadas, eis que à última hora apareceu uma freira. A visita fora encerrada, mas como a religiosa viera de longe, permitiram-lhe uma visita rápida pelas camas. Ela trazia um sorriso contínuo nos lábios e um saco de venda cheio de biscoitos açucarados.
Pedro ajudou-a na parada de cada leito, explicando por alto o caso de cada doente.
No fim da enfermaria, de um lado, Tomé; do outro, Judas Iscariotes.
- Esse?
- Tomé, o morto.
- Morto?
- Quase. Vive dormindo. A gente precisa ver se ele movimenta os lábios para lhe dar água ou laranjada quando tem.
Por trás dos óculos, muniu-se de uma grande piedade.
- Só se alimenta disso?
- Não. Muitas vezes, os médicos aplicam-lhe soro nas veias. Um dia ele vai ser operado de um tumor muito grande que tem na cabeça.
Balançou a cabeça meio desanimada.
- E aquele?
- Vamos deixar para outra vez. Ele está dormindo.
- Qual o seu mal?
- Está mais morto do que Tomé. Os dias contados. Está com câncer.
- Meu Deus! Eu preciso falar com ele. Preciso. Talvez uma palavra de amor faça bem à sua alma.
- Melhor deixar que ele durma. Ele tomou injeção antes do almoço. De noite quase não dorme de dor.
Ela tomou uma resolução definitiva. Ajoelhou-se perto do rosto adormecido de Judas. Passou a mão em sua face. Depois sacudiu brandamente o seu ombro.
- Meu filho. Meu filho. Ouça-me.
Judas Iscariotes entreabriu os olhos e seu rosto estava completamente macerado. Tentou compreender dentro do seu torpor e do seu cansaço o que significava aquela freira ajoelhada junto do seu rosto. Agora lembrava-se. Dia de visitas. Dia de visitas e por que havia tanto silêncio na enfermaria? Olhou Pedro como se indagasse. Pedro entendeu o significado do seu olhar.
- Os outros já se foram. Ela quer falar com você. Falar comigo o quê? Eu não tenho nada que dizer. Quero é dormir. Dormir enquanto posso...
- Veja, eu gostaria de fazer alguma coisa por você. Olhe, trouxe uns biscoitinhos muito gostosos. Vou deixar alguns do lado da sua mesinha.
O olhar de Judas começou a endurecer-se.
Queria lutar intimamente contra a sua extenuação. "Eu estou cansado. Eu estou tão cansado. Eu estou muito cansado... O que quer essa mulher comigo? Por que não me deixa em paz? Por que não vai passear suas esperanças na hóstia consagrada?
E ela falava, falava docemente e suas palavras confundiam ainda mais a sua capacidade de compreensão. Tocava sempre na ternura de Jesus. Por que não o Cristo? Ou os dois juntos. Quando menino achava que Jesus sempre fora mais doce mesmo. Era ele que aparecia batendo na porta do coração, pedindo humildemente licença para entrar, nos santinhos da Primeira Comunhão. Já o Cristo, não. Pegava no chicote e batia nos vendilhões do templo. Tinha uma frase de desamor continuamente: "Em verdade, em verdade eu vos digo" - Nela parecia encerrar-se muito mais condenação, muito mais advertência do que amor. Ficava com pena de Cristo, apesar de achar que pena só se deve ter dos desgraçados. Cristo estava velho. Velho dentro do limitado tempo humano. Velho dentro de teorias arcaicas de uma religião que envelhecera como qualquer outra que possuísse dois mil e cansados anos.
Ela agora falava de bem. De fazer bem. Fazer bem? Ser bom? Ninguém precisava de Cristo para ser bom. Quantos índios conhecera na selva tão suaves, tão amigos, tão resignados, que nunca tinham ouvido falar de Cristo ou outro arúspice qualquer. Certo que com o Cristo quem já era bom só poderia mesmo melhorar. Mas aí não havia mistério algum.
Fazer bem? Ser bom? Jesus ia para um canto e retornava como Cristo. Só ela não compreendia que falava muito, MUITO. E eu estou cansado, Buda, Maomé, Brama e "Padre Cícero".
Queria fechar os olhos e não podia. Estava imantado nos seus óculos de aros grossos. Sentia suas pupilas ainda endurecidas do tóxico se paralisarem ainda mais.
Já sei. Agora percebo. Ela quer me fazer o bem. Bem. Mal. Maniqueísmo. Ela quer me fazer bem. Umas palavras retornaram do tempo em que gostava de fazer estudos filosóficos. Eram palavras de Henri Bergson. Bergson? Seriam dele? Não estaria confundindo-se em seu torpor? Se ela o deixasse dormir, tudo se modificaria. Tudo volutearia no nirvana. Fugiria àquela condenação de memórias retalhadas. Pois bem. Fossem de quem fossem, significavam uma concisa máxima: o homem deve ser bom. E sendo bom, o bem se faz naturalmente segundo a vontade de Deus. E aquela freira queria fazer-lhe um bem. Para quê? Por quê? Poderia por acaso colocar Deus em todo o seu Infinito de amor à altura dos meus dedos? Nem Cristo, por mais que afirmasse, jamais o conseguira. Saberia que, continuando o raciocínio de Bergson, a gente querendo fazer um bem, não estará principiando um mal? Eu estou meio louco pelo sedativo e pela morte. Ela está louca. Louca de vazio e de participação frustrada. E eu quero apenas que me deixe dormir. Dormir. Esquecer. Alguma coisa que se assemelhasse ao "néant." Se ela não pára, não conseguirei fechar mais meus olhos e sinto que isso se aproxima. Que grande mal que me faz"...
A freira tentou calar-se, impressionada pelos olhos duros, quase paralisados, do homem. O coração quase espasmodeava no peito: "Meu Deus! Nunca vi ninguém tão perdido de infinito!"
Pedro tornava-se apreensivo. Tocou-lhe no braço e implorou:
- Por favor, deixe esse homem em paz. Não vê que ele nem compreende o que a senhora está falando?
- Irei já. Só quero que me diga qualquer coisa. Uma palavra só.
Desanimado, Pedro retirou as garras do seu ombro. A religiosa, meio apavorada, fixou os olhos cada vez mais secos e cada vez mais endurecidos de Judas Iscariotes.
- Diga pelo menos que gostou que viesse? Esperou um segundo.
- Não tem nenhuma palavra amiga para mim?
Ainda o silêncio.
- Nada?
Judas molhou os lábios e eles se movimentaram com firmeza.
- PUTA!

 

CAPÍTULO 6 - Vasos Comunicantes

Sou uma coisa que tem sede!
Quando era um homem, possuía outro nome. Hoje sou apenas Tomé.
E como Tomé, tenho sede. Ninguém vê que meus lábios se movem.
Esqueceram-se de mim.
- Deus. Deus. DEUS! Tenho sede!
* * *
Tocando-se em seu corpo, Tomé às vezes sentia. Falando-se a seu lado, Tomé às vezes ouvia. Além disso, nem sempre, podia sentir o cheiro, o mau cheiro da sua urina e das suas fezes, grudando-se na crina do colchão.
O resto existia como noite, como silêncio, talvez como imitação de eternidade.
Havia para Tomé duas espécies de mão. A boa, que sempre surgia na paciência de Pedro. Pedro, não. Pois se ele virará o apóstolo Tomé, Pedro não deveria vir sem acompanhamento. Simão Pedro. A mão má que o maltratava na impiedade do Demônio. As frases perversas acompanhavam, como sombra, a mão perversa.
- Essa praga da peste por que não morre logo? Essa sujeira do inferno!...
Simão Pedro interferia.
- Não diga isso. Ele pode ouvir.
- Que o quê! Essa merda humana não ouve mais nem quando chegar a pá do coveiro.
Uma vez, a voz de um médico visitante perguntara:
- Ele ouvirá?
- Quem sabe, às vezes. Nem sempre poderá estar ouvindo. Nem sempre sentirá alguma coisa. Outras vezes sim.
- Vão operá-lo?
- Sim.
- Haverá alguma esperança?
- Nenhuma.
- Então por quê?... O catedrático riu.
- Filho, a eutanásia é proibido. E mesmo esse é um dos casos mais interessantes do mundo.
- E se lhe extraíssem o tumor?
- Daria na mesma. Talvez fosse interessante no micrótomo, nas lâminas da patologia.
Um sorriso leve e a frase saiu mansamente.
- Só a morte.
O médico moço engoliu em seco, produzindo certo ruído com a glote.
- Puta-merda, Meu Deus!
- É o caso mesmo.

* * *

Tornava-se para Tomé, difícil, lembrar-se de tudo. Reconstituir sua vida, impossível. Algumas lacunas existiam como manchas em seu pensamento. Outras vezes confundia-se, sem saber se algo fazia parte de si ou se pertencia a outrem. Todavia alguns pedaços da memória ligavam-se entre si. E o resultado de tudo isso era trazer, aos poucos momentos em que se tornava lúcido, uma dor tamanha e indescritível, que o levava ao auge da loucura e pavor. Sentia-se amarrado, prisioneiro do cérebro e da noite. Todo ele se movimentava nas paredes da cabeça que latejava, latejavam.
Raciocinava com desespero e não sabia onde estavam as suas mãos. Se soubesse o lugar delas e as pudesse movimentar, enforcava-se. Por Deus que enforcava-se.
Vivia. Sim. Vivia e respirava para quê? Bem que a morte poderia num daqueles momentos caridosos de sono sem luz libertá-lo. Por que a morte se esquecera dele e não o libertava?
Uma vez... Foi sim, não foi? Uma vez numa feira, vira uma porção de passarinhos que soltos na calçada não fugiam à aproximação de passos. Eram de muitas espécies. Não se lembrava do nome de todos. Mas os canários da terra, tão amarelinhos, nunca poderia esquecer. Esquisito que tinham asas inteiras e não voavam. Apenas tremiam ao ruído de alguma voz.
- Por quê, eim?
- São passarinhos cegos. Puseram ácido nos olhos deles.
- Por quê, eim?
- Ora, assim eles não sabem quando é dia ou noite e podem cantar a qualquer hora.
- Como podem fazer uma maldade dessas?
- Ora, bolas! São apenas passarinhos. Os tempos andam duros e a gente tem que ganhar a vida, não é?
Afastara-se, sentindo uma dor incontida apertando o seu peito. Apesar de ser um homão, saiu bobamente chorando e limpando as lágrimas com as costas das mãos.
E agora, Tomé?
Com o tempo, e limitando esse tempo com a espécie de barulho que faziam na enfermaria, foi conseguindo se libertar das sensações, de todas as sensações humanas. Uma passividade bestial acometia-o gradativamente, que podia perder a noção da sua essência para transformar-se numa coisa que pensava aos pedaços, que sobretudo tinha sede.
Perdido o horror melancólico da destruição, punha-se a falar com Deus.
- Sabe, Deus? Eu só desejava andar. Andar um pouco. Mesmo que continuasse cego. Arrastar-me um pouco. Só um pouquinho desse tamanho. O Senhor sabe o que eu faria? Encostar-me-ia na janela e receberia o sol, o vento pelo rosto. O resto Pedro iria descrevendo como era.
Se não era desejar muito, sua felicidade consistia em alguém trazer água aos seus lábios, e também quando raramente o levavam e o imergiam na banheira. Tomé enfiara os dedos nas chagas de Cristo para acreditar que Ele estava vivo. Ele, Tomé, era ao contrário. Era preciso ser o TOCADO, para acreditar-se vivo. Saía do banho com o corpo limpo, esfregado, num pijama renovado.
Era bom, se era, quando Felipe tinha tempo e sentava-se na sua cama, passando sabonete em seu rosto e raspando a barba dura, requete-requete. Isso era mais raro. Não podia distinguir se Felipe o barbeava todas as semanas ou, se na maioria do tempo, estava como "aquela" voz do médico comentara.
- Sabe o que eu queria, Deus? Era, se mesmo em vez de andar, eu pudesse movimentar os braços. Ah! Que bom! Escorregaria as mãos pelas grades da cama, seguraria a caneca, que Simão Pedro trouxesse, com as próprias forças ou pegaria agradecido na mão de Simão quando bondosamente lhe alisasse os cabelos.
Por que pensar tanta coisa? Para ouvir o desespero de sua alma perdida se enrodilhando na tristeza? Bem que queria chorar e não sabia como.
- Pelo menos, meu Deus, se isso não fosse pedir muito, eu queria mexer com um dos meus dedos. Só com um deles, sabe? Então eu alisaria o lençol, o pijama.
Não. Impossível. Não poderia chorar. Tudo tão desarrumado em sua cabeça. Nada obedecia aos seus menores desejos.
Poucas vezes porque era muito difícil desejar, não se incomodaria de ser cego e de não se movimentar. Mas se falasse... Se falasse... se lhe fosse dado responder ao que ouvia...
- Não adianta, não é Deus? Nem você quer conversa comigo.
As vozes aumentavam dentro da enfermaria. Chegava mais gente.
Simão estava feliz. Mateus conversava com alguém que possuía voz fina e estridente. Tadeu se cocava mais porque o dia se encontrava muito quente e não chegava ninguém para ele. O resto se perdia num aglomerado de vozes indefinidas.
O sol devia reinar lá fora, produzindo aquele calor mortiço e abafado. Sua sede aumentava. Tornou a movimentar os lábios. Pedro não viu. Simão não viu.
Um torpor cruciante atingiu em cheio sua cabeça. O sono principiou a confundir tudo. Sua grande sede seria devorada pelo sono.
Tomé adormeceu.
Só muito mais tarde conseguiu despertar. Aí, já havia silêncio por todos os cantos. Devia ser noite para os outros também.
Um trovão repercutiu muito longe. Mais perto uma voz gemeu. Tadeu coçou-se com força; talvez acordasse assustado com o trovão.
Outro trovão cresceu lá fora. A sede de Tomé retornou com mais força ainda.
- Meu Deus! Vai chover. Fez muito calor durante o dia. Foi-se mais um dia de visitas. Todos estão dormindo.
Mas o homem no fim da enfermaria gemeu com mais força. Ou não era gemido. Parecia mais um choro. Não havia um deles, que chamavam de Tiago, o maior, que chorava por tudo?
Outro trovão se repetiu mais perto. O barulho do vento se realizava nas árvores do parque. Tomé escutava tudo. Uma brisa suave penetrava pelas frestas das janelas e revolvia a sua coberta. Esse ventinho de Deus! O cheiro da banana na mesinha de Pedro chegava mais forte ao seu olfato, desintegrando-se na noite.
O trovão cresceu mais perto ainda. O vento pareceu estancar. Um cheiro de terra molhada se revolveu no espaço. Chovia lá fora. E Tomé continuava com sede. De repente a janela bateu com força atirada por um soco de vento inesperado.
- Pedro!... PEdro!... PEDro!... PEDRo!... PEDRO!...
O vento chamava Pedro suavemente. O vento do mar. E Pedro sorriu adormecido.
O vento do mar dançava e chamava por Pedro!
- Olha o mar, Pedro!
- Vai pescar, Pedro!
- O mar chama por você e você dorme, Pedro?
- Pescar, Pedro. Pescar, Pedro, o pescador!
E Pedro se viu menino com os pés descalços caminhando pelas ondas desmanchadas. O mar era seu. Ia ser seu por toda a vida. E Pedro se fez homem. Pedro cresceu perto do seu barco, junto da sua jangada. Soltou uma gargalhada feliz para confundir o seu riso com o vento.
Eis que... O que foi Simão Pedro? Diga o que foi para não rebentar o coração sozinho.
Eis que o mar, as águas do mar foram fugindo, fugindo e só existia areia. Pedro sentiu os pés secos e lágrimas nos olhos. O mar se afastava cada vez mais. Só o vento no seu coração continuava a chamar por ele. Mas assim mesmo perdendo a força na distância.
- PEDRO!... PEDRo!... PEDro!... PEdro!... PedVo!...
A janela bateu com força e Simão Pedro acordou.
Do lado de fora vinha o cheiro da chuva, da terra removida pelas gotas d'água.
Pedro despertou de todo. A janela abrira-se ameaçadoramente e a tempestade de verão tombava sobre a sua cama e a de Tomé.
Concentrou as forças do seu desânimo e levantou-se.
Uma tristeza morta o invadia todo. Postou-se contra a janela e espiou a sombra das árvores no parque. Tudo negro se revolvendo ao clarão dos relâmpagos.
E o mar não existia como sempre.
A chuva borrifou-lhe o rosto, empapou os seus cabelos e veio descendo pelos lábios de angústia. Foi quando Simão Pedro estremeceu.
- Tomé!...Tomé!...Ninguém se lembrou dele hoje.

Ninguém lhe deu uma caneca d'água.
Esquecendo seu abatimento, fechou rapidamente a janela, apanhou a caneca e se dirigiu para a pia.

 

CAPÍTULO 7 - Passos da solidão

- Não!...Não me abandones!... Pelo amor de nosso filho, eu te suplico de joelhos!...
Um grito lancinante e o ruído de um corpo, arremessando-se ao chão. Ao mesmo tempo, choros exagerados ecoavam.
A voz continuava.
- Não, Alfredo, tu não podes fazer isso. Pensa no futuro de nosso filhinho. Que irá ser dele?...
- Nosso filho? Tu por acaso pensaste nele quando foste para os braços de outro? - A voz do homem aumentava e o tom de desprezo crescia em suas palavras - Tu te lembraste do nosso filhinho nesse momento, Maria Isabel?...
Uma gargalhada estourou cínica e exagerada, fazendo coro com as lágrimas e as súplicas da mulher.
- Perdoa-me, Alfredo. Pelo amor de Nosso Senhor Jesus Cristo, não me abandones agora. Serei tua escrava. Beijarei teus pés. Farei tudo que quiseres.
Os soluços se entrecortavam, maiores.
- Não, pérfida. Fica com a sombra da tua traição e da tua desgraça.
O som de uma porta que batia com força. Maria Isabel gemendo no chão com a voz sumindo entre o pranto. Falando consigo mesma.
- Não... Alfredo... Alfredo... O nos... so... filhi... nho. Não te vás, Alfredo.
Uma música crescente invadiu a cena, começando a sufocar a voz. Madalena nem sabia que tocavam o "Lago dos Cisnes" de Tchaikowsky. Suas mãos tinham se paralisado. O tricô morrera embaraçado entre os dedos. No peito, aquela dor imensa rasgando a sua carne. Os olhos boiando dentro da laguna das lágrimas. O nariz fungou e ergueu uma das mãos para assoar-se. Depois, as lágrimas, quentes como açudes vazados, desceram pelo rosto intumescido e escorregaram até a boca.
Outra voz dessa vez. Outra voz angustiada indagando:
- Alfredo voltará? Que futuro estará reservado para a infidelidade de Maria Isabel? O que reserva a sorte para o seu filhinho abandonado?
Uma voz encantadora anunciava ainda.
- Ouçam amanhã, às quatorze e trinta, a continuação da novela que é a sensação do Rio de Janeiro e do Brasil inteiro: O HOMEM OJUE NÃO SOUBE PERDOAR...
Retornou o "Lago dos Cisnes". A música foi morrendo miúda, até que a mesma voz anunciou.
- Exatamente quinze horas e um minuto. Pontualidade infalível. Hora Argus.
Madalena torceu o dial. Desligou o aparelho de rádio comprado a prestações, que por sinal estavam atrasadas; as mãos caíram-lhe no colo completamente esmorecidas. Os olhos principiaram a secar-se mas a dor ainda habitava perto dos seus suspiros. Ela se enxergava só. Abandonada pelo marido, que gostava mais da pinga do que das duas filhinhas.
Ela via-se vivendo pela vida naquele medo e desamparo. A luta terrível para conservar a honra de mulher moça. As filhas entregues a uma vizinha do subúrbio e os pés palmilhando o comprido de todas as ruas, à procura de um emprego que garantisse a subsistência das três. Tremendamente duro o recomeço da vida. Mas agora, aquilo nada significava. Talvez como um pedaço de passado longínquo. As filhas estavam criadas. Viviam daquele jeito, porque descobriram que era a maneira mais certa e eficaz. Perdera até a capacidade para compreender que se dissolveram, que se evaporaram vinte e poucos anos no pavilhão daquela clínica. Endurecera-se como os ladrilhos da enfermaria. E se ainda conseguia emocionar-se era ouvindo às escondidas as grandes tragédias das rádio-novelas.
Suspirou resignada e principiou a levantar-se. Recordava-se que o rádio anunciara três horas e precisava cumprir as ordens do Dr. Tiago.
Jogou água no rosto e nos cabelos e compôs um pouco o vestido amarrotado. Ligou o aquecedor elétrico para as seringas ficarem esterilizadas dentro daquela vasilha bem feitinha.
Penetrou na enfermaria e viu que Judas Iscariotes dormia calmo.
Balançou os ombros indiferente e continuou com os olhos percorrendo cada canto da enfermaria. Foi interrompida nos seus pensamentos pelo barulho da seringa borbulhando na água fervendo.
Preparou a injeção.
- Dr. Tiago mandou aplicar nele soro de dois em dois dias. Se mandou, vamos ter que fazer. Mas pra quê? Se o homem está mesmo condenado. Se o homem vive dizendo que não quer viver!

* * *

Dr. Tiago acusava o Dr. Barretto.
- Taí o homem, Barretto. Taí o seu protegido. Desanimado. Fazendo manha. Não quer se alimentar. Só toma injeção se for à força. Vamos ver se você dá um jeito nele.
Dizia àquilo por dizer. Mas os três tinham pleno conhecimento da crueldade das palavras. Do que ficava escondido sem poder ser enunciado.
Dr. Barretto tentou animá-lo, mas não sabia como. O homem estava secando. Desaparecendo. E quando lhe amputassem a perna um pouco acima do joelho...Não. Não queria pensar.
- Você precisa alimentar-se. Eu sei que a comida não desce, mas é preciso. Caso contrário já estão até pensando em aplicar-lhe o sistema de enema. Lembra-se ainda o que é isso?
O rosto magro imitou um sorriso.
- Claro. Enfiar alimento pelo rabo a dentro. O nome é elegante mas o sistema é indecoroso.
- Isso. Ria. Gosto de vê-lo assim. Como antigamente.
Dr. Tiago encostara-se no armário de remédios e cruzara os braços. Nem adiantava os olhos do outro Tiago procurarem os seus. Ele não sorria naquele momento. Seus olhos azuis buscavam distância e no entanto não fazia tanto tempo.
Recordava-se que a porta do seu consultório fora aberta e Dr. Barretto foi entrando precipitado. Vinha acompanhado de um homem sorridente e de rosto inusitadamente bronzeado de sol.
- Vá dando licença. Esse caboclo é meu amigo. Estudou medicina até o terceiro ano comigo. Encontrei-o num bonde. Quase não queria vir.
Apertou a mão do homem.
- Sente-se.
Dr. Barretto foi logo se retirando, para deixar os dois mais à vontade; depois viria saber o resultado.
- Então?
- É isso. A perna. O pé. Uma dor pequena dentro do joelho.
- Ninguém olhou isso ainda?
- Ninguém.
Deu uma gargalhada gostosa, sadia, cheia de vida.
- Eu não tenho ninguém, doutor.
Os olhos do Dr. Tiago muito azuis e curiosos, parecendo duas janelas do céu, fixavam-se sobre ele. Como sempre faziam todos.
Riu mais. Era um pouco de vida, de indiferença, de liberdade estourando naquela maneira fogosa de rir.
- Sério, doutor. Não tenho ninguém. Sempre fiz o possível, melhor dizendo, de não ter ninguém.
Diante do médico aparecia a sua figura simpática. Talvez tivesse passado dos trinta anos ou estivesse beirando isso. Sua barba por fazer dava-lhe um aspecto agradável. Não se podia negar. Um belo animal. Sobretudo seus gestos elegantes e desinibidos deixavam escapar uma certeza, como se soubesse que toda a humanidade lhe pertencesse.
- Não se assuste, doutor. Quase nunca tenho ninguém. E se não moro é porque a selva é grande demais. Infelizmente gosto de cultivar em meu peito doses maciças de dromomania. Gosto de viver ao sol. Gosto da chuva, dos rios, dos índios, dos grandes rios. Adoro o cheiro da chuva na terra. Detesto a maleita e me irrito facilmente quando apanho um resfriado.
Dr. Tiago continuava a sua análise. Sabia que era desses tipos que contam para impressionar, que são sinceros, mas o que de verdadeiramente "impressiona" eles escondem, matam. A vida para ele não significava somente aquilo ou tão pouco como queria fazer acreditar. Senão, por que os seus olhos se encontravam cercados de rugas e sua testa permanecia vincada com sulcos impróprios da sua idade? E dos lados da boca, na comissura dos lábios, um risco angustioso expressava uma dor ou uma contínua angústia. Selva, sol, fuga...
Retribuiu a sua mocidade sorrindo também.
- Acabou?
- Já.
- Posso fazer sua ficha?
- Vale a pena, doutor?
- Quem sabe?
- Então faça.
Apoiou a caneta num papelório.
- Seu nome?
Um pequeno gesto de contrariedade movimentou os seus ombros.
- Não tenho. O Barreto garantiu que o senhor não pediria.
- Aqui é preciso. Pensou um pouco.
- Precisa mesmo, doutor?
Dr. Tiago afirmou com a cabeça.
O moço olhou desanimado o médico e comentou decisivo.
- Então, nada feito. Obrigado, doutor. Adeus. Virou-se para sair. Dr. Tiago o deteve.
- E se eu dispensar o seu nome? Afinal não é todo o dia que o Dr. Barretto me recomenda uma pessoa amiga.
- Assim é melhor.
- Então coloco um x na papeleta em lugar do seu nome. Fez o que prometera.
- Como você não tem nome, não precisa ter idade. Logo, outro x. E como você é dromomaníaco, outro x. Está satisfeito agora?
Sorriu e coçou o pescoço, onde o cabelo crescido enroscava-se.
- O senhor é camarada.
- Vai deixar-se examinar?
- Vou. Prometo que ficarei bom. Se eu quiser ficar bom, eu fico.
Quem deu uma risada foi o dr. Tiago.
- E só morre quando quiser, não?
O médico rolou um martelinho de reflexo entre os dedos e comentou.
- Ê o que todos pensamos nessa idade. Ê o que você pensa. Mas o tempo é um grande mestre. Aprendemos muito com ele.
E não fazia muito tempo, não? Dr. Tiago voltou à realidade e seus olhos pousaram no rapaz. Não. Não deveria ser o mesmo.
Mas os pensamentos incidiam no mesmo assunto.
- O que foi isso no pé?
- Um desastre. Reparou, doutor, que eu sou um caso raro?
- Como assim?
- Veja meus dedos, os dois primeiros perto do dedão. São ligados quase até em cima.
- É mesmo.
- Quando eu estudava medicina, meus colegas viram isso e me levaram ao professor de doenças ósseas. Sabe o que ele disse? Exatamente isso.
- Que eu sou um caso raro. Que a disposição desses dedos denuncia a existência de meniscos discóides? É verdade?
- É. Você pode doar seu esqueleto para estudos. Bateu com os nós dos dedos na mesa para isolar. Nada de mau presságio.
- Levante a calça por favor, ou melhor, abaixe-a. Obedeceu.
- Vamos começar pé.
Sentiu as mãos apalpando a nodosidade da antiga fratura.
- Ninguém tratou disso?
- Ninguém. Isto é, uns garimpeiros. Sabe Doutor, a gente vinha descendo uma corredeira numa canoa.
- Que é corredeira?
- Uma espécie de cachoeira menor, mas muito ligeira e perigosa. Naquela época eu vivia pangolando de um garimpo para outro. Se o ouro alcançava preço, a gente estava lá bateando. Se diamante pintava, a gente enfiava o escafandro. Se cristal pegava preço marmo, a gente se derretia ao sol no cabo da picareta.
O médico achou graça.
- Metade do que você fala eu ignoro, mas vamos lá que é interessante.
- Isso não tem importância. Ê só um pedacinho para chegar aonde eu quero. Eu vinha com quatro garimpeiros descendo uma corredeira no Tocantins e a canoa rodou, perdendo o canal. Deu uma virada e a gente foi levado aos borbotões, batendo nas pedras. Foi um salve-se quem puder. O mais rebentado fui eu. Aqui no pé e nos dois joelhos. No esquerdo foi pouca coisa. Perdemos tudo. Garimpo é assim mesmo: Ê perder e recomeçar. Fiquei um tempão num rancho de uns negros que plantavam mandioca brava pra fazer farinha. Até que pude andar de novo. O pé inchava e doía como se estivesse sempre picado por formiga-de-fogo. Depois cortei selva de novo e fui procurar meia-praça em outros garimpos.
- Suspenda a perna.
Obedeceu à ordem. As mãos apalpavam ora o joelho, ora desciam para o pé.
- Movimente o pé para o lado. Não sentiu dificuldade alguma.
- Agora para cima.
- Aí é que está. Não posso. Ficou paralítico.
Os dedos práticos subiram pela perna. Ficaram apalpando algum tempo perto da canela e depois se dirigiram para trás do joelho.
- Sente alguma coisa aqui quando toco?
- Quase perfeitamente. Em alguns pontos existe uma sensação esquisita, como se tudo fosse grosso.
- É natural. Já esperava por isso.
Parou os exames e encarou seriamente o rapaz.
- Não sente algo mais? Algo de diferente?
- Na verdade sinto, sim. Uma dor fininha lá dentro do joelho. Como se fosse uma dor de dente no joelho.
- Tem reparado se essa dor aumenta?
- Um pouquinho mais, um pouquinho menos. Às vezes até irrita um pouco.
Dr. Tiago voltou a sentar-se junto à escrivaninha. Um sorriso abriu-se em seus lábios, diminuindo o azul dos seus olhos. Falou com voz bastante simpática.
- Você tem uma lesão no Ciático Popliteo Externo. Lembra-se disso?
Foi a vez dele rir.
- No meu tempo de estudante eram dois. O Popliteo interno e o externo. Eu nunca esqueci o nome. Porque achava Popliteo gozadíssimo. Lembrava Ptolomeu do Egito. Ptolomeu Philopátor, irmão de Cleópatra.
Dr. Tiago soltou uma gargalhada gostosa.
- Não vejo muita analogia, mas é original.
- Sabe, doutor, a gente tem tanta coisa dentro da gente! Quando eu via, nas figuras anatômicas, nervos, músculos, estômagos, metros e metros de intestinos, quase não acreditava que eu possuísse aquilo. O fígado, por exemplo, sempre tomei conhecimento dele quando se manifestava irritado por excesso de álcool ou de outras besteiras.
- Entretanto, de agora em diante, seu fígado não vai se irritar mais, porque você não vai tomar mais uma gota de álcool.
Deu de ombros.
- Isso é completamente indiferente.
- Faremos um tratamento especial para você.
- Faremos como?
- Vou arranjar-lhe uma cama na enfermaria.
- Terei de ficar internado aqui?
- Por quê? Não gosta do lugar? Talvez até sinta saudade e recorde coisas que andou estudando no passado.
- Não sei. Talvez goste.
- Não é tão ruim assim. Você terá certas liberdades que os outros doentes não terão. Inclusive poderá quebrar a lenda.
- Que lenda?
- De que quem se interna aqui jamais consegue sair...
- E ninguém sai?
- Geralmente, não. Pense bem. No seu tempo você nunca viu um pavilhão parecido com esse?
Pensou. Pensou. Pensou e sorriu.
- É.
- Eles vão ficando por aí porque são casos de paralisia muito dolorosas. Servem para estudo dos sextanistas de neurologia.
- Estou lembrado. Não cheguei até lá. Cobaias.
-- Não é bom esse termo. Quando você estiver aqui, vai ver que ninguém quer mais sair.
- Acostumaram-se?
- De um certo modo, sim. De outro, o que poderão eles fazer dentro de um mundo tão difícil e hostil?
- Meu caso não é tão grave assim, é? Quando entrei, vi gente lá fora reclamando uma vaga há muito tempo.
- É certo que seu caso não é tão grave, nem difícil de cura, nem perigoso. Podemos reativar o seu nervo com massagens elétricas, muita vitamina BI e massagens manuais. Então tentaremos uma operação.
- Uma diortose?
O médico riu novamente.
- Que exagero. E apenas um pé e um joelho.
- E pé e joelho não são esqueleto? Calaram-se, entreolhando-se.
- E então?
- Olhe doutor, bem que eu queria se pudesse agora. Mas tenho que voltar ao interior de Goiás, lá pras bandas da Ilha do Bananal. Numa fazenda que só Deus sabe o caminho. Entre o Rio do Coco e o Rio Javaé. Tenho que levar um dinheiro de pagamento. O senhor me entende? O pessoal espera por isso faz séculos. E essa viagem demorará muitos meses.
Dr. Tiago ficou sério e os olhos azuis se concentraram, dando a impressão de que eles tornavam-se verde-escuros.
- Você é quem sabe. Mas eu não brincaria muito... no seu caso.
- Vamos fazer o seguinte. Eu não posso deixar de ir. Mas prometo que voltarei para me tratar. Prometo. Não vou demorar muito.
Levantou-se e estendeu a mão agradecida para o médico.
Deu de ombros com expressão um tanto gaiata.
- Já não sou muito vaidoso. O fato de puxar um pouco com essa perna não me molesta muito. Depois, a selva nem olha pra isso.
Dr. Tiago veio voltando, voltando. Como o pensamento pode voar rápido. Agora distinguia a palavra do Dr. Barretto.
- Vai ter que comer. E vamos usar um pouco de soro de vez em quando.
Aquele homem não parecia o mesmo. Ele voltara. Demorara demais com aquela dor fina no joelho. E a dor crescera demais. Crescera demais.

 

CAPÍTULO 8 - Compassos da Solidão

O dia se avolumava quente, anunciando chuva para a noite. Por que todos os dias de visitas terminavam com a ameaça de chuva?
Lá fora já se ouviam as vozes que esperavam a hora que a porta se abrisse. Dentro em breve o relógio anunciaria, para a inquietação de Tiago, o bater das duas horas. Então o portão da entrada da Clínica seria aberto de par em par.
Madalena trocara um vestido limpo e seu rosto, geralmente engordurado, perdera o brilho sob uma camada de pó-de-arroz creme. Como não precisara lavar a esterquice dos homens, podia guarnecer as bochechas com um sorriso bem humorado. Vivia a sua transfiguração. O momento da sua mistificação de santidade. Nos dias de visita uma pérfida meiguice se apossava dela. Todos os seus gestos traduziam bondade e paciência. Os visitantes, embora pobres, os amigos e parentes dos doentes, levavam sempre consigo a esperança e algum dinheiro. Muitas vezes deixavam-lhe entre os dedos umas magras notas. E isso fazia bem. Principalmente agora que as prestações do rádio se acumulavam atrasadas. Os visitantes encontravam em Madalena a personificação do anjo caridoso e amigo. Ela conversaria com todos, dando notícias agradáveis sobre a saúde de um ou de outro. Seria capaz até de sentar-se na beira das camas e tentar conversar com aqueles despojos que, nos dias comuns, pensaria em jogar no mais imundo dos lixos. Ou pior ainda, não tomar conhecimento da existência deles.
Até a enfermaria transcendia à limpeza. As próprias moscas cooperavam com a ausência. Talvez para não macular o brilho de um dia tão radiante e feliz.
Todos sorriam, na espera. O bom humor fazia com que apostassem qual deles seria o primeiro a receber a visita, que rosto amigo invadiria primeiro a enfermaria.
Judas Iscariotes escorregou lentamente as costas que se apoiavam no travesseiro. Nesse movimento sentiu a agulha do soro escorrente, fincada em suas carnes. Sorriu, porque a dor física não importava tanto para ele. Ou talvez houvesse um mistério naquele soro. Quem sabe? Alguma coisa colocada nele para entorpecê-lo, deixando que a dor ficasse em segundo plano. A verdade é que a dor no joelho permanecia, que o joelho inchara um pouco mais. Ou um pouco mais ele emagrecera. A verdade é que não se fixava mais no sofrimento físico.
Fixou a borracha que escorria o líquido, tentando empurrar vida para o seu corpo ressequido e dizimado. Relembrou-se de uma palavra. Puta! E não sentia remorso algum de tê-la dito. Os olhos da freira não ficaram retidos em sua memória. Talvez apenas como um ponto de referência de alguém sedento de salvação.
Deitou-se completamente. Ele também já ouvia o ruído do dia de visitas lá fora. E esses ruídos cresciam porque na enfermaria a expectativa, a angústia da espera, silenciara a todos.
Algo mordeu-lhe as entranhas. Conversava com o seu desespero. Como detestava o dia de visitas. Nesses momentos sua solidão se distendia por uma planície áspera e muito maior. Sentia no latejar do coração o ritmo de uma única frase: - Não ter ninguém!... Não ter ninguém!...
Os olhos ardidos e avermelhados queriam umedecer-se.
- Não ter ninguém!...
Com moleza ergueu a mão magra e repuxou o lençol sobre o rosto.
- Não ter ninguém!...
Sentiu-se abafado. Dentro em pouco o suor, talvez um suor que eliminasse vida, a vida de que ele se impregnava através do soro, dissolvesse um pouco mais de suas energias. Entretanto era preferível. Preferível não enxergar, do que avistar-se com os outros que tinham alguém. Vendo, ele sentia-se tocado às raias do abandono. Ouvindo apenas, tentava desintegrar-se e sofrer menos.
Percebia seu hálito esboroar-se na colcha encardida e áspera.
- Não ter ninguém!
E a colcha devolvia aos seus ouvidos, sempre em tonalidades crescentes, no barulho da sua respiração ritmada e aflita, o conteúdo daquela maldita frase: não ter ninguém.
Jogado ali. Paralisado. Despojado daquela selva infinita onde sempre vagabundeara, podia ampliar o significado da solidão. Ora! A gente nasce só e morre só. E nos momentos compridos que vive só, longe da morte, longe da morte? Não ter ninguém. Tudo quanto desejara. Aniquilar todas as raízes que o prendiam a alguém ou a um passado. Não ter ninguém? Fazia poucos anos que não se importava com o sentido daquilo tudo.
Os outros, a quem se igualara em doença e prostração, tinham alguém. Recebiam palavras amigas e solidariedade. Quando todos se retirassem, os outros poderiam ler jornais, falar corretamente ou de maneira trôpega sobre corridas de cavalo e futebol. Ou então da guerra, o assunto que mais entusiasmava o ambiente. Quando o sono enchesse o recinto e a noite tivesse acendido a sua escuridão, poderia sentir o cheiro de banana madura exalando de algum canto. No dia seguinte, Pedro viria oferecer-lhe uma. E a banana tornar-se-ia mais redonda porque as garras de Simão Pedro grudavam-se nela recurvas.
- Não ter ninguém!
- Como não ter ninguém? E eu? Eu não sou ninguém?
De onde vinha a voz de Lúcio? Debaixo dos lençóis fechava os olhos com mais força. Mas ela penetrava por entre suas pálpebras, sentava-se dentro do seu cérebro. Era a voz. Eram os olhos. Os dois misturando-se, confundindo-se, enlouquecendo-o.
- Querido, eu não sou ninguém? Usava de ternura, meiguice, carinho. Se conseguisse gritar com a maior Torça de seus pulmões, a voz continuaria macia no meio dos seus urros.
- Estou aqui. Estou aqui.
Ouvia o riso. Uma pausa. A voz. O riso ciciante. A pausa. O riso e a pergunta.
- E eu não sou ninguém, querido?
Todos os sons morriam, perdiam a importância, quando Lúcio ressurgia.
- Eu prometi, não prometi? Não lhe afiancei que nunca o deixaria? Que com o passar do tempo e o rolar das horas - ria - eu iria apertando o meu cerco? Então por que estranhar? Mesmo porque não adianta.
Engolia em seco e virava-se na cama, sem coragem de libertar-se do lençol que o asfixiava e empapava seus cabelos despenteados.
- Não quero que se queixe de solidão, querido. Não permito que se sinta só. Estou aqui. Ficarei até o último momento. Até a agonia do seu derradeiro respirar. E só quando seu corpo estiver duro como a mesa da Ceia, duro e frio como o mármore dos Mortos, eu partirei. Mesmo assim, quem garante que não prosseguiremos juntos na solidão de todas as trevas?
Remexeu-se com mais força para que a agulha entranhada em suas carnes produzisse uma dor maior. Uma fisgada cruel que atirasse para longe o ritmo dos pensamentos, os mil dedos do remorso, a suavidade da voz de Lúcio.
Agora eram outros olhos. Os azuis de Dr. Tiago. E o médico tornava-se cúmplice do diálogo de Lúcio.
- Sarcoma Osteogênico. Por que demorou tanto? O médico balançando a cabeça desanimado. Lúcio interferia.
- Claro que ele tinha de lhe dizer a verdade. Não podia enganá-lo, podia? Nós já estávamos desconfiados disso, não?
Dr. Tiago falava baixo com medo da realidade daquela condenação.
-Temos que interná-lo. Talvez ainda não exista a metástase.
Judas Iscariotes engolindo em seco. Confundindo-se nas palavras.
-Nós já desconfiávamos. Nós sabíamos disso.
Dr. Tiago espantou-se.
- Nós? Lúcio sorriu.
- Você está usando o plural, querido. Ele desconhece a minha condição de intimidade.
Suas faces cobriram-se de rubor. Dr. Tiago franziu o cenho.
- Barretto falou-lhe alguma coisa?
- Não. Em verdade nada me disse. Talvez ele covardemente me escondesse até o último momento. Eu me confundi. Eu estava querendo dizer apenas eu e saiu o nós.
- É uma fatalidade. O sarcoma osteogênico não costuma aparece em adultos. Em crianças é mais comum. Que idade você tem agora?
- Vinte e oito anos.
- Dificilmente ataca uma pessoa depois dos trinta anos. Uma fatalidade.
Judas riu de um modo parvo.
- Perdi por dois pontos. E agora, doutor?
- Você sabe, não sabe? Lúcio interferiu.
- Claro que sabemos. Por que vocês não param de se tapear. Se eu pudesse me comunicar por ele, doutor, seria mais fácil. O senhor quer dizer que a dor vai aumentar, não é? Já sabemos. O que ignoramos é se, depois de se eliminar a parte atingida do joelho, a dor prosseguirá em outra parte com a mesma violência.
- Sabe o que estou pensando, Dr. Tiago?
- Calculo. Mas não posso garantir. Só Deus saberá disso. Há casos em que a dor desaparece mesmo que... existem outros que continuam até...
- Não tenho escolha.
- Ficará dessa vez?
- Que outro destino me espera?
Estalou as juntas dos dedos, uma a uma, lentamente, como se quisesse esticar a sua decisão.
- Entretanto, o senhor vai me prometer uma coisa.
- Mesmo sem saber, prometo.
Aí seu rosto bronzeado, já marcado pelos primeiros sintomas da dor, molhou-se de lágrimas.
- Não me deixe, doutor, ser escolhido para exame das aulas de neurologia.
- Prometo que nunca.
Dr. Tiago foi caminhando lentamente, todo de branco, perdendo-se no corredor imenso da sua memória. Agora estavam os dois. O seu cansaço, o seu semi-torpor e a continuidade segura da fala de Lúcio.
- Também não precisa se desesperar assim. Isso não é desespero. Desespero é aquele que eu senti quando aceitei a sua insinuação. Judas Iscariotes, meu bom Judas Iscariotes! Você ainda não sabe o que é sentir o peito rebentando e as mãos tentando segurar o resto da vida. O que de imenso penetra em nossa consciência quando estamos a um passo de transpor o terrível soportal da escuridão. Esse é o pior momento. Você talvez tenha nascido com dor semelhante, mas é arremessado e não espera...
Calou-se um pouco.
- Bem. Nós nos divertíamos muito. Barretto e eu. A descoberta das primeiras pesquisas. O encantamento de colocar os tecidos. Quaisquer que fossem e das mais diversas partes do corpo. Juntar-lhes formol e esperar impaciente pelo endurecimento. A ansiedade de manejar o micrótomo e colocar tudo bem disposto nas lâminas.
Calou-se um momento pensando em algo que deveria significar muito.
- Você não achava que as lâminas de vidros eram todas muito bem feitinhas, Judas Iscariotes?
Gemeu desalentado.
- Nunca fui muito apaixonado pela Patologia.
-Ah! Que pena! A gente colocar a lâmina no microscópio e descobrir. Descobrir a diversificação das células. Que mundo, meu Deus! A conformação de cada uma. O que eu ri quando me indicaram os Diplococus Gram-Negativos. Aquelas coisas mimosas em forma de rins. E aquelas coisas tão harmoniosas poderiam mesmo significar a masculinidade de um homem na minha terra. A senhora Dona Blenorragia. Dona Gonorréia da Silva. Puxa. Células lindas. Roxas, vermelhas, azuladas, amarelas, desbotadas. Um mundo galáxico de misérias humanas. Um painel apaixonante. Alucinante. Se os movimentos de arte abstrata tomassem conhecimento de um microscópio, a teriam revolucionado muito mais cedo. Bem. A verdade é que ao precisar isolar-me, esconder-me, senti falta das minhas lâminas. Não importa, já passou. O que existe é você. Foi você que me criou e recriou dentro de si. A realidade é que não quero que se sinta só.
Lúcio assobiou uma música qualquer e principiou a cantar.
- "Panela no fogo furada Não dá pra fazer feijoada." "Panela no fogo furada Não dá pra fazer feijoada."
- Por favor, Lúcio, pare com isso. Pare!
- Por quê? Não gosta? Lá em casa havia uma cozinheira negra que cantava assim. Ficava a vida inteira catando feijão.
"Panela no fogo furada Não dá pra fazer feijoada"
- Você nunca teve uma empregada em casa que gostasse de cantar uma cantiga horas e horas seguidamente? Não sei. Aquela música devia ajudar a passar a desimportancia do seu tempo. Está bem. Se não gosta muito, falaremos de outro assunto.
Lúcio voltou a assobiar a música da mesma cantiga. De repente sua voz ficou mais grave.
Escute. Eu tenho de falar. Falar porque me ajuda.
Você algum dia compreenderá isso. Assim o espero. O tempo é exíguo. É daqueles que quanto mais a gente vive, menos se está vivendo. Paradoxalmente estou ajudando a você. Mas eu tenho que me apressar e falar. Falar muito. Mesmo não respondendo, não poderá deixar de me ouvir.
- Foi uma fatalidade!
- Sarcoma Osteogênico!
- Numa laminazinha bonita, nada mais seria que um Neoplasma.
Lúcio sorriu enlevado.
- Afinal você, que tanto amou a selva, tem um rio dentro do seu corpo. Esse rio vai invadindo as praias dos seus músculos, cartilagens... E o sangue como uma canoa vai derivando, parando nas estrias dos tecidos, deixando resíduos contaminosos nas partes mais fracas e atingíveis. O seu rio é como quase todo o rio do Brasil. Desce sempre para o norte. Entretanto, se fosse uma espécie de osteólise, a devastação dos tecidos executar-se-ia sem deixar vestígios, eliminando talvez os resíduos. Então você não sentiria tanta dor. Escute-me, Judas Iscariotes. Eu preciso que você me escute. Talvez disso dependa a redenção do nosso nada.
Judas revolveu-se cansado. Não poderia reagir. Teria que deixar Lúcio persegui-lo até que alguma coisa o fizesse calar. Mas tinha que ser por ele mesmo. Quantas vezes não teve a impressão de seu cérebro ser um grande quadro negro onde Lúcio ia riscando, com um giz de fogo, palavras cruéis e incandescentes.
- Você sabe, Judas Iscariotes, que tem mais uma semana. Uma semana para caminhar com o seu corpo ainda íntegro. Quer dizer, quase íntegro. Por que não vem comigo? No fim de um dia de visitas, todos estarão tão cansados, inclusive Madalena, que nada verão. Deixarei que você se apóie em mim. Encorajarei para que caminhe. Desceremos a escada. Dentro da noite que vai ser chuvosa, você achará a solução que outrora me prometeu.
Sabe, Judas, meu doce Judas Iscariotes, existem uns ônibus lindos, novos que o povo carioca apelidou de Bonitão. Eles correm velozes e suas rodas na rua molhada deslizam como veludo. Eu não tive quem me empurrasse. Comigo existiu mais a solidão de mim mesmo. Com você não. Estarei até o momento final. Junto até os últimos passos da sua caminhada. Minhas mãos que você nunca quer ver tocarão suavemente as suas costas, posto que seu corpo pouco pesa. Um segundo. E estaremos libertados. Longe da mesquinha dor humana e da falsa piedade da vida. Por que não vem?
- Não adianta. Não irei, Lúcio.
- Mas por que, meu querido?
- Reconheço que sou covarde. Covarde até que... Lúcio recuou desanimado.
- Pena. Você é covarde. Covarde mesmo. Quando eu fui, veja bem, e você não ignora isso, não havia a cura para minha moléstia, certo? Mas pouco tempo depois, apareceu a cura. Você não me deu a chance, Judas Iscariotes. Você me vendeu para a iniqüidade por quanto? Quanto dinheiro havia naquela carteira para quem me convencesse a aceitar a opção?
Judas gemeu passivamente.
- Havia algum. Bastante para aquele tempo. Naquele tempo...
- Deixemos de histórias que começam com Naquele Tempo. Elas não são pra nós. Entretanto, podemos evidenciar uma hipótese. Se eu o convido para essa decisão é porque... mesmo que fosse anunciada a cura do seu mal, já seria muito tarde para você. Como sou, não me atingem os remorsos, Judas Iscariotes.
Os olhos de Judas se molharam muito mais de tristeza do que de dor.
- "Nós", Lúcio, nós os outros, estávamos desesperados por sua causa. Ignorávamos que "essas coisas levam tempo para se desintegrar". Agora escute. Eu não irei com você. Já disse que sou covarde. Covarde até a medula dos meus ossos, de todos os ossos ou tecidos que já foram atingidos pelas garras emaranhadas do carcinoma. Lúcio, eu não irei.
- Covarde! Covarde mesmo. Prefere que a Senhora das Moscas, como é chamada aqui na enfermaria, encontre a miséria do seu corpo dizimado na forma execranda de um Ossonhe primitivo e bárbaro.
Calou-se. Sua voz, que nunca demonstrava cansaço, concluiu:
- Que não seja muito tarde, quando você na solidão dos próprios passos inutilmente conclamar por mim!...

 

CAPÍTULO 9 - O Céu Azul com Deus e Anjos por Todo Canto

Ao contrário das outras noites que se seguiam ao dia de visitas, ninguém parecia sentir sono. O cansaço das conversas, o calor violento do dia, o conteúdo das conversas traziam logo o sono a todos, mesmo antes da luz ser desligada.
Tiago balançava a cabeçorra entristecido. Seus olhos vermelhos atestavam o muito que chorara.
Felipe procurava consolá-lo.
- Você é um bobo, Tiago. Faz como eu, não liga. Não espero visita de ninguém. Me contento vendo as outras pessoas que chegam.
- Não veio hoje. Mas quinta-feira vai chegar. Mamãe não vem porque não gosta da gente. Meu pai porque não pode viajar. Minha tia está na Europa. Mas minha avó que gostava de mim, essa vem. Essa vem sim.
Felipe encarou a cabeça nervosa de Tiago e uma sombra de suspeita perpassou em sua mente.
- Sua avó não pode vir, Tiago.
- Pode sim. Você não é meu amigo. Se você fosse, diria que minha avó vem na quinta-feira. E vai trazer meu cachorrinho todo branco com a orelha preta. Ele se chama Bilu.
- Ué. Você foi quem falou que tinha vindo praqui porque sua avó já morreu. Não foi?
Vovó é que era boa pra mim. Os outros não. Ela deixava meu cachorrinho Bilu todo branco com a orelha preta entrar no meu quarto e lamber as minhas mãos e até o meu rosto. Vovó me dava banho numa banheira limpa e com sabonete cheiroso. Não essa banheira de água suja e ma.
Começou a fungar e a chorar de novo.
- Pare com isso, Felipe, que não adianta.
- Ela vem sim.
- Não vem não. Porque ela morreu. Se ela não tivesse morrido, você ainda estaria na fazenda e brincaria com o seu cachorrinho... como é o nome dele?
- Bilu.
- Pois então.
Simão Pedro achegou-se para apaziguar os ânimos.
- Venha até a pia comigo, Felipe. Eu quero lhe fazer uma encomenda quando você sair amanhã.
Afastaram-se da cama de Tiago e Simão Pedro comentou em voz baixa.
- Não discuta com ele, Felipe.
- Mas como pode ele falar na avó se ela já morreu.
- Finja que acredita. A cabeça dele não é normal. Você não vê? Quanto mais ela cresce, assim ouvi o médico falar, ele vai ficando mais idiota e vai acabar não dizendo coisa com coisa.
- Está bem. Mas eu não gosto de ver ninguém ser tapeado.
Depois disso ninguém quis mais conversar. A noite continuava áspera e quente. Não chovera como esperavam. Tadeu cocava o seu nervosismo constante. Ninguém sabia ao certo que importância tinha a doença de Tadeu para os médicos ou para a enfermaria. Ele andava, comia direito, não se queixava de dor. De visível, só aquela coceira interminável. Aquela coceira que o afastava de todos. Ninguém queria ser ajudado por ele. Nascia o medo do contágio. Ser do jeito que eram, e ainda por cima com coceira, tornava-se uma condenação muito grande.
João tentava com os movimentos limitados apanhar qualquer coisa na sua mesinha. Lutou uma, duas vezes, até que Simão veio de sua cama socorrê-lo.
- Procurando alguma coisa, Professor?
- Minhas bicicletas e aqueles pedaços de caderno velho ali.
Simão apanhou-lhe os óculos. Riu-se deles. Chamar aquilo de óculos. Todo remendado com arame fininho na armação e o vidro direito colado com pedaços sujos de esparadrapo.
-Dá pra enxergar com toda essa amarração?
- Dá e chega. Graças a Deus que ainda possuo esses. Um dia alguém me dará um de presente.
- Tomé as folhas do caderno, João. O outro agradeceu sorrindo.
- Meu tesouro.
Simão analisava disfarçadamente o vulto de João. Ele não fazia alguns movimentos. Nos momentos comuns, não o conseguia. Entretanto, como podia descer da cama e caminhar deitado apoiando-se nos calcanhares e nas palmas da mão? Como conseguia erguer-se no banheiro, fazer suas necessidades sem incomodar ninguém? Mesmo quando era o escolhido no Rodeio, fazia questão de caminhar a seu modo até o anfiteatro. Só lá, permitia que o guindassem até a mesa de estudos.
- Que é que você tem nesse tesouro?
- É uma história linda.
- De quem?
- Minha mesmo.
- Você que escreveu?
- Nem sempre quando estou com a Bíblia na mão estou lendo. Muitas vezes eu coloco papel do caderno e fico devagarzinho escrevendo. Agora já terminei.
- Vai ler pra gente, João?
- Ninguém vai gostar.
- Você não falou que é linda?
- Eu acho. Mas quem não entender, não gosta.
Simão Pedro aproximou-se curioso. Foi logo dando palpite.
- Pois eu acho que deve ser linda mesmo, porque você só diz coisas sempre muito bonitas, João.
- Não sei se vale a pena. Logo Madalena vem e apaga a luz.
- Você lê o pedaço que der. Se não acabar, a gente espera a noite que vem. Vamos, João. Assim você até distrai a tristeza de Tiago.
- Tá bem. Se vocês querem. Só que precisam suspender meu travesseiro e levantar meu corpo mais alto.
Fizeram e ficaram esperando.
E houve a voz:
"Foi assim. O primeiro vagabundo entrou no jardim, que era todo muito lindo e cheio de luz. Não fazia calor e o relógio da estação batia três horas: Tem... Tem... Tem... Ele procurou um banco bem escondido e bem vazio. Foi então que ele se sentou. Foi então que ele cruzou os braços sobre a barriga grande. Foi então que ele viu os patinhos nadando no lago defronte. Um pé de salgueiro-chorão assobiava o vento nas suas folhas. A sombra da amendoeira fazia um grande guarda-sol em cima da grama. Foi então que ele olhou o céu. E viu que o céu estava todo azul e cheio de Deus e de anjos por todo o canto. E veio um vento tão doce, que fazia até bem ao coração. Foi daí que ele olhou em redor e viu que não havia guarda nenhum. E como tudo era paz e ele tinha andado muito pelo comprido das ruas, foi-que-foi fechando os olhos sem temor.
O segundo vagabundo, que era magrinho e muito alto e que tinha uma barba por fazer de muitos dias, chegou sem nem fazer barulho e olhou o outro cochilando. Fazia tempo que não se encontravam. Sentou-se tão de leve que nem embalançou o banco. Depois com a mão amiga tocou no ombro do vagabundo gordo.
Ele não estremeceu nem nada. Não devia ser guarda, porque guarda, quando acordava, era com chute de botina. Abriu os olhos com calma.
Aí o outro falou.
- Bons olhos o vejam.
- Ah! Sois você? Faz tanto tempo que a gente não se encontra.
- E que eu não andava por essas bandas. Tirei umas férias. Eu peguei e li numa revista de médico que todo homem deve passar quinze dias por ano num Sanatório. Peguei è fui. Até engordei.
-Engordou mesmo.
-Fiquei quinze dias na Santa Casa de Misericórdia.
O vagabundo magrinho sentiu-se arrepiado.
-Mas lá não é horrível? Dizem que dão banho de seis em seis dias. Que tiram sangue, que furam a espinha...
-E daí? Nada disso dói. E é doendo que a gente descobre que a vida fica mais bonita.
- É.
- E você?
- Eu também mudei de rumo, sabe? Descobri uma ponte lá na Urca que é uma beleza. A gente pode até escutar a conversa dos barcos com a maré. A gente dorme e, até o momento de fechar os olhos, fica vendo as estrelas do céu, quando há estrelas no céu. Mesmo quando chove chuva grande, nem dá para molhar o frio que a gente já sente sozinho.
- Não tem perigo de chutes de guardas?
- Que nada. De manhã, acordo cedo e fico espiando a entrada do Fluminense Iate Club. Aí o porteiro que é bonzinho me dá café com pão. E o pão muitas vezes vem com manteiga. Que amigão.
- Um dia vou te fazer uma visita.
- Está devendo.
Foi aí que os dois homens ficaram um bocado de tempo sem falar nem nada. Só espiando a tarde que andava macia com chinelos de paina para não assustar as nuvens e nem o vento.
Foi então que o vagabundo magrinho ficou falando sozinho. Mastigando a língua.
Santa Casa de Misericórdia... Santa Casa de Misericórdia...
O vagabundo gordo, de quem eu me esqueci de dizer que tinha os cabelos brancos como algodão branquinho, chamou a sua atenção. Assim mesmo sem se zangar na alma.
- Não fale em Misericórdia...
- Por quê?
- Porque não gosto. Misericórdia dá impressão de pena e pena só se deve ter dos desgraçados.
- Tá bem...
Guardaram novo silêncio e o primeiro vagabundo foi que falou dessa vez, se lembrando de uma coisa.
- Você tem um cigarro aí, meu amigo?
- Tenho.
Enfiou a mão no bolso e retirou um pacote embrulhado num pedaço de jornal do Globo. Abriu entre suas mãos com muito cuidado.
- Peguei essas guimbas ontem de noite. São fresquinhas e cheirosas. Escolha uma. Qualquer uma menos essa.
Com o dedão comprido indicava uma maior no meio da multidão das outras.
- Por que essa não?
Sorriu feliz como passarinho que nunca ouviu falar de gaiola.
- Essa.
Trouxe o pedaço de cigarro até o rosto e se alisou nele.
- Essa foi uma mulher linda que jogou no chão. Uma mulher tão linda como uma fada. Toda vestida de preto. Os cabelos eram tão loiros, quase tocavam no meio das costas. Que linda. Pintava os lábios de vermelho e manchou a ponta do cigarro. Ela andava como se não andasse. Por onde pisava os pés, ia nascendo tudo quanto era espécie de flor. Rosas, cravos e lírios. Linda. Tão linda!
Suspirou tão forte que o primeiro vagabundo ficou com medo que ele rasgasse um pedaço da tarde.
- Tão linda, você sabe? O meu tipo.
O vagabundo gordo nem disse que não acreditava. Pra quê? Sabia que na vida não havia mulher daquelas. Se houvesse, não pisava em flor. Se pisasse em flor, era daquelas que andavam em carros de luxo com motorista de luva e de óculos inteiros. E mesmo se houvesse como ele estava contando, ele nunca tinha visto uma assim.
O vento aumentava de leve. Gente passava com pressa pra pegar trem na estação Dom Pedro II. Só eles não tinham pressa e podiam espiar tudo que achavam bonito e macio.
Foi então que o primeiro vagabundo pensou numa coisa que era muito grave e difícil.
- Posso lhe falar de um assunto?
- Do que quiser.
Torceu os dedos gordos, estalou os nós dos dedos, ficava pra lá e prá cá sem jeito de como começar a coisa.
- Como você sabe, eu passei quinze dias na Santa Casa de Misericórdia...
- Você falou disso já.
- Mas queria que você visse bem que lá a gente fica... como posso dizer? A gente fica deitado numa cama, longe do mundo e das necessidades dele.
- Uai! Eu pensei que você tinha descoberto lá a casa do Paraíso?
- Pois aí é que está. A gente fica lá numa lerdeza toda, não precisa de necessitar de nada mas...
- Desembuche logo, homem de Deus!
- É simples. Longe da rua, longe dos pontos, a gente fica sem ganhar nenhum tostão. Nem mesmo uma mão caridosa joga uma moedinha pro nosso sorriso mais simpático.
- Que lá isso é verdade, deve ser.
- Pois é bom que se diga que eu estou órfão de dinheiro.
- Sei.
- Queria lhe pedir um favor.
- Quanto?
- Você não tem sobrando aí uma pratinha de um mil réis?
- Se tivesse essa fortuna aquela loura linda nem me escapava.
- Nem oitocentos réis?
- Jamais.
- E quinhentos réis?
- Não seria hoje.
- Nem quatrocentos réis?
- Impossível, amigo.
Engoliu em seco uma brasa de desaponto.
- Bem. Duzentos réis eu não peço porque ofende a minha moral.
O vagabundo magro deu uma risada gostosa.
- Pois tá. Duzentos réis eu tenho. Meteu a mão no bolso e puxou o níquel.
- Fique com ele. É tudo que consegui hoje. Eu sei como são essas coisas.
Em silêncio, o primeiro vagabundo ficou rolando o dinheiro entre os dedos um tempão. E nesse tempão a tarde começou a espreguiçar sua roupa clara, dando idéia que estava com vontade de dormir. Era capaz até de não demorar muito pra que acendessem as luzes da cidade e do Cristo do Corcovado.
O vagabundo gordo resolveu até por agradecimento procurar um assunto mais distraído.
- E então?
- Então o quê?
- Você sabe, lá na Santa Casa a gente não tem notícias certas. Por isso você que tem andado pela cidade deve saber melhor das coisas.
- Sobre?
- Sobre o quê?
- Sobre o que se diz da guerra.
Pela primeira vez o rosto do outro perdeu a calma deixando ver que estava havendo tempestade no seu coração. Respondeu com raiva e indiferença.
- A guerra não me interessa.
- Deus do céu! O que foi que você disse?
- Eu disse que a guerra não me interessa. Não tenho mais nada para perder com as guerras.
- Mas deve haver sempre um ponto, uma coisa, entre um homem e uma guerra.
- Comigo não há.
Espantado, o vagabundo gordo pensava depressa. -Não interessam a você os navios afundados?
- Não.
- As cidades destruídas?
- Não.
- A mocidade destruída?
- Não.
Foi então que ele fez uma pausa cheia de dor. Passou a mão sobre o banco do jardim e perguntou todo tremendo.
- Não interessam a você as bombas que caem em nossos jardins e destroem tantos dos nossos bancos?
O outro levou um choque elétrico de dor. Olhou o banco. Olhou todos os bancos brancos do jardim. Os que estavam ocupados e os que se encontravam vazios. Alisou demoradamente as costas do banco. Levantou os olhos cheios d'água e falou então.
- Sim. A guerra é uma coisa horrível!...
João calou-se e deixou que as folhas do caderno caíssem sobre o seu corpo. Sentia-se cansado a ponto de sentir dificuldades em retirar as bicicletas.
Simão Pedro sentia-se extasiado.
- Foi você que escreveu toda essa história?
- É.
- Foi você que pensou em tudo isso?
- Foi. Num dos dias de visita falavam tanto da guerra que eu pensei em tudo isso.
- Foi a coisa mais linda que eu já ouvi. Palavra de honra.
A conversa foi interrompida pela entrada abrupta de Madalena.
- Nunca vi tanta besteirada junta! Fiquei escutando do lado de fora para ver em que dava toda essa baboseira.
- Mas você não gostou, Madalena?
Nunca vi chatice maior. História pra mim, que não tem amor, beijo e abraços, não presta pra nada. Mas olha que eu até que tive muita paciência. Já passam quinze minutos ou um pouco mais, da hora de apagar a luz. Arrumem-se todos porque acabou-se a festa.
Foi até junto da porta, torceu o comutador. Seus chinelos bateram sobre o ladrilho do corredor. Depois a luz de lá também se extinguiu.
Felipe não continha a sua indignação.
- Mas é uma vaca mesmo!
Simão Pedro sorriu da revolta de Felipe. Depois que se acostumaram com a escuridão, Felipe não se conteve e achegou-se à cama de Simão Pedro.
- É uma égua afolozada! Madrinha da tropa mesmo. Só uma égua dessas não gosta de uma coisa bonita assim.
Simão Pedro esperou acalmar-se a expressão do outro e indagou:
- Você entendeu bem a história de João, Felipe?
- Só naquele final que eu fiquei muito confuso. No resto é igualzinho à vida da gente quando tem que se afundar na cidade. O que foi que ele quis dizer com os bancos, Pedro?
- Veja se compreende. Aquela história é feita mesmo pra qualquer um de nós. É só trocar o banco por nossas camas. Entendeu?
- Ainda estou todo misturado.
- Vamos ver se dá para lhe explicar melhor. Nós não temos nada na vida, não é?
- É.
- Quando vem a guerra pode destruir tudo. Cidade, navio, gente... A guerra pode destruir tudo. E a gente não sente muito porque não tem um ponto de contato com ela. Mas se as bombas caírem perto da gente e destruírem tudo que nos resta, que no caso é essa enfermaria, a guerra fica sendo uma coisa horrível, não fica?
- Nem num fale nisso, por amor de Deus. Seria a guerra mais horrível do mundo.
- Até amanhã, Felipe. Que no seu sono de pedra nunca apareça uma guerra.
- Até amanhã, Simão Pedro.

 

CAPÍTULO 10 - A Noite Transfigurada de Tiago Maior

No seu mundo reduzido de pensamentos tomara uma decisão. Iria. Partiria. Todos dormiam na enfermaria. Bartolomeu gemia no sono e raras vezes Tadeu coçava-se irritado.
- Meu cachorrinho Bilu é todo branco com uma orelha preta.
Fungou compridamente e ergueu a mão para limpar os seus olhos. Agora precisava apoiar as mãos com muita força e tentar sentar o corpo. Sabia que se fizesse barulho Pedro acordaria e viria espiar o que seria aquilo. Tinha certeza de que quando a noite escurecia demorava muito tempo para ficar dia de novo.
- Felipe falou aquilo porque Felipe não gosta de mim. Como pesava o resto do corpo semi-paralisado! Se suas pernas não fossem retorcidas uma na outra, causando dificuldade em limpá-lo quando se sujava ou vesti-lo quando trocava a calça de pijama, desceria com facilidade. Se elas fossem retas como a de muita gente, escorregariam no lençol da cama. Assim, demorava muito. Elas enganchavam no colchão disforme quando o movimento era maior. Respirava fundo. Parava um pouco e tornava a respirar procurando paciência e mais força. Não ignorava que chegando ao chão elas deveriam deslizar porque nada havia para esbarrá-las.
- Vou de novo.
Começou a sentir que suava e que suas mãos estavam ficando escorregadias no ferro da cama. Entretanto nada o faria desanimar.
Quero ver o meu cachorrinho Bilu todo branco e de orelha preta. Ele vai lamber o meu rosto.
Puxou mais as pernas c estas se soltaram. Se conseguisse virar o corpo um pouco estaria na borda da cama. Conseguiu. Os pés libertos do lençol balançaram-se no espaço. Alegrou-se pela vitória. Os braços doíam muito quando os joelhos começaram a acompanhar os pés e as pernas embaralhadas.
Simão Pedro ressonou forte, movimentou-se em seu leito e virou calmo as costas para a sua cama. Ficou aliviado. Se Pedro acordasse, estaria tudo perdido. Ficou sem se mexer uma porção de tempo, respirando mais fundo e teimando em não soltar as mãos que estavam mais umedecidas de suor. Se as despregasse da grade, com a posição em que se encontrava o corpo, jamais conseguiria alcançá-las de novo. Ia tentar recomeçar do ponto em que parará. Forçou os braços que começavam a cansar. Não queria desanimar porque faltava pouco. O corpo principiou a projetar-se no vazio. Só a força de vontade fazia com que conseguisse ainda se agarrar no gradil da cama. Aliviado sentiu que os pés tocavam no chão frio do ladrilho. Ficou com os olhos cheios de água, mas dessa vez sorriu. Podia soltar a mão direita com cuidado e colocá-la junto da esquerda. Executou o movimento. Agora era a vez de desligar a mão esquerda e apoiar-se no colchão. O corpo desceu mais e estava a menos de meio metro do chão. Cairia maciamente no chão. Tudo demorava muito mas estava dando certo. Fechou os olhos, segurou a cabeça grande com a mão esquerda para aparar o baque que ela daria contra os ladrilhos. Abriu os dedos da mão direita e foi soltando a grade. O corpo baixava mais e os dedos agora seguravam a beira do colchão. O corpo tombou com um ruído cavo e a cabeça bateu de leve, sem doer muito e sem chamar a atenção.
Encontrava-se deitado de bruços. Melhor do que podia ser. Se o corpo tivesse resvalado de costas, não teria salvação. Girou-se sobre a barriga e na penumbra da enfermaria avistou a porta que dava para a mesa da ceia, sempre entreaberta. Sentiu-se meio desgraçado ao ver que o corpo sem apoio quase não caminhava. Seus braços nadavam no vazio. Suas mãos atingiam o chão mas não tinham ponto de apoio para puxar as suas esperanças. Mas iria. Colou o rosto na frialdade do ladrilho e com as mãos alisou cada pedaço. Só existiam pequeninas reentrâncias em volta de cada ladrilho pelo gasto do cimento. Fincando as unhas conseguia arrastar-se um pouquinho mais. As unhas estavam grandes e o ajudavam. Mas depois de certo tempo, as pontas dos dedos começaram a doer muito. Resolveu não se importar.
- Quero ver meu cachorrinho Bilu que tem uma orelha preta.
Atingira o meio da enfermaria e os dedos começaram a sangrar. E o suor quente que sentia na cama transformava-se num frio cortante doendo na barriga. Só o desespero o empurrava para frente. Fechava os olhos e tateava os ladrilhos em busca de buracos onde suas unhas, se desgastando, penetravam doloridas. Nem queria saber quanto tempo tinha deslizado de olhos fechados. Tinha medo de abri-los e descobrir que a porta ainda se encontrava longe. Animava-se pensando na cadeira de rodas que sempre havia à disposição dos doentes no corredor. Só bastava chegar perto dela, restabelecer as forças e puxar o corpo. Quando sentasse nela tudo seria mais fácil. Porque só com o impulso das mãos elas estariam deslizando. Sorriu pensando nisso. Agora, precisava parar um pouco. Ajudar a suspender a cabeça com as mãos para medir a distância entre ele e a porta. Quase deu um grito de horror. Perdera a direção. Não enxergava mais a porta da Ceia e sim o armário de remédios junto da porta do anfiteatro. Não conseguira. Não conseguira. A noite tinha andado mais ligeira do que seu desespero. Levou as mãos à boca e começou a lamber o sangue dos seus dedos escalavrados.

* * *

Judas Iscariotes elevou o corpo e apoiou-se sentado no travesseiro. Logo existiria um interminável e quente dia de verão. Um dia em que a cada minuto aquela idéia ficaria obcecando-o. "Está chegando a hora. Da Próxima semana não poderei passar. Dr. Tiago avisou. E eu sei que ele está com a verdade. Resta saber se a dor que se prolongará no rio do meu corpo existirá tão forte como a sinto no joelho".
Teve um esgar tentando imitar um sorriso. No escuro da enfermaria ninguém poderia avistar aquele seu jeito de desespero. E a guerra. A sua guerra, Judas Iscariotes. E a bomba caindo próximo à sua perna, Judas. Na guerra lá de longe, muita gente será mutilada. Muitas pernas serão cortadas. A sua não será a única...
Sentiu uma onda de suor frio, pegajoso escorrer em sua barriga. Com a mão direita apalpou o joelho inchado. Não tinha doído muito nesses últimos dias. Como era mesmo o termo médico? Gonialgia. Não era bem assim. Gonialgia era apenas uma dor simples no joelho. A sua era mais definitiva. A dor do carcinoma. A algia do sarcoma.
Tremeram todos os ossos do corpo. E eu estou morto. Lúcio, frio em sua lógica, estava com a razão. Por que não abreviar tudo aquilo enquanto podia caminhar? Não tinha liames místicos que o prendessem à vida. Não quebrantaria qualquer dogma de auto-fé destruindo o que lhe pertencia. Havia Deus. Sim, Deus. Mas ele estava tão longe, tão abandonado talvez. Tão perdido de infinito. Como foi mesmo que alguém explicara a egoísta angústia de Santo Agostinho? Era o dedo. Sim o dedo. Meu dedo dói. É meu dedo que dói. Que me importa que você corte a sua perna, se é meu dedo que dói?
Respirou profundamente.
- Não é meu dedo que dói, Santo Agostinho. É a minha perna que dói.
Muito embora reconhecendo que a dor diminuíra um pouco. Talvez por um processo de sinetia. Talvez por ingestão de algum sedativo poderoso colocado dentro do soro. Talvez. Talvez até por sugestão. A verdade é que nesses dois dias podia caminhar menos cruciado até o banheiro. Mas não se iludia demais. Lúcio via mais adiante porque sua visão era mais perspicaz e profunda. "Ela vai voltar mais forte, mesmo que você ampute a perna, mesmo assim."
Lúcio usava de todos os argumentos para convencê-lo àquela caminhada que ultrapassa todas as fronteiras.
Decidira até acalmar-se. Submeter-se a sua guerra particular. Que lindo! João com as suas guerras, cheias de poesia. Com o céu azul com Deus e muitos anjos por toda a parte. Com a pureza dos seus sentimentos, sem se revoltar com coisa alguma, falando de anjos, arcanjos. Das legiões de Tronos, Potestades, Virtudes e Principados, fazendo uma reverência toda especial aos Querubins e Serafins. João era íntimo dos anjos. Até sua guerra era feita por anjos sem asas... Passou a mão nos olhos para espantar uma visão. O que era aquilo? Não, não poderia ser um anjo caído. Forçou a vista na escuridão e deu com o vulto de Tiago, o Maior, nadando nas águas do desespero. Ficou um instante observando a luta do seu arrastamento. Onde iria Aquele louco? Onde pensaria estar indo?
Resignado virou o corpo para os pés da cama. Quando Tiago se aproximasse mais, poderia estender o braço e ajudá-lo. Puxá-lo para perto de sua cama. Ainda fitava o grande esforço do outro. Não sabia se suas unhas fincadas no vão dos ladrilhos faziam mais força para puxar o corpo ou caminhar a grande cabeça. De repente viu que o homem começou a lamber os dedos e parará sem forças de prosseguir.
Falou-lhe com voz baixa para não despertar os outros que dormiam profundamente.
- Dê-me sua mão. Eu o ajudarei.
Tiago levantou os olhos para a sua mão estendida.
Segure na minha mão e com a outra ajude a empurrar o corpo porque não tenho lá muita força.
As mãos se tocaram e Judas Iscariotes sentiu seus dedos inundados por um líquido grosso que não era suor.
Ajudou-o a encostar-se na sua cama. Enxugou os dedos ensangüentados no lençol. Em seguida passou a mão no rosto quase imberbe de Tiago, o Maior. Desceu a mão para o seu peito.
- Você está todo gelado. Vou chamar Simão Pedro para ajudar.
Tiago murmurou com voz entrecortada.
- Agora, não. Espere um pouco.
- Por que você fez tudo isso? Desceu de sua cama sozinho.
- Desci.
- Levou a noite inteira para chegar até aqui.
- Foi sim.
- E por quê?
- Não sei.
- Queria falar comigo?
Demorou um pouco pensando antes de responder.
- Eu queria falar com você?
- Por quê?
- Porque você é como eu. Você também é rico e amigo dos médicos. Por isso não vai lá dentro.
Mostrou com os dedos o anfiteatro fechado.
- Isso não tem importância, hoje se quiserem podem me levar lá que eu não me importo mais.
- Eu não gosto, eu não quero. Eu choro quando me levam lá.
Calaram-se um instante. Tiago foi movido por uma inesperada sofreguidão.
- Você acha que Felipe falou a verdade? Judas muniu-se de paciência.
- Não sei bem o que Felipe lhe falou.
- Ele disse que nunca vem ninguém me visitar. Ele diz que eu nunca tive um cachorrinho chamado Bilu com uma orelha preta. Ele disse que minha avó morreu.
Tiago segurou fortemente na mão de Judas Iscariotes.
- Você acredita que eu tenho um cachorrinho chamado Bilu?
Judas Iscariotes recordou-se da freira, do dia daquela visita. Lembrou-se das palavras de Bergson. A gente não sabe se fazendo um bem está principiando um mal. Não sentia remorsos de ter xingado a freira. Talvez que se fosse nesse momento não a tivesse xingado...
- Eu perguntei e você não respondeu.
- Por que você não foi conversar com João? João é sempre tão bom. Sempre tão cheio de palavras de fé e de esperança. Eu não sou como ele.
- Não. João não quer mais saber de mim. Diz que eu já contei muito do meu cachorrinho Bilu, da minha avó. João acha que eu sou um bobo porque fico esperando que venha visita e quando não vem fico chorando muito. Só você não sabia ainda da minha história.
- E você quer que eu acredite nela?
- Não.
- Não?
- Não.
- E por quê? Por que, Tiago? Você não viajou uma noite inteira para me contar isso?
Tiago começou a mover desajeitadamente a cabeça. Estava chorando baixinho e limpava com os seus dedos ensangüentados o corrimento das lágrimas. Seu rosto começava a lambuzar-se todo.
- Por que, Tiago?
- Porque...
Aquela confissão saiu devagar e dolorosa.
- Porque eu não vou mais acreditar que tive um cachorrinho chamado Bilu com uma orelha preta. Porque eu agora sei que nunca mais vem visita. Porque eu sei que agora minha avó...
Parou de falar e com um esforço inaudito virou a cabeça para perto do rosto de Judas Iscariotes. Sua face era co-movedora. A luz que principiava a anunciar a manhã incidia agora cheiamente sobre ela. Naquela mistura de sangue e lágrimas só os seus olhos transpareciam de azul. Eu não queria vir falar com você.
- E por que veio?
- Não acertei ir até a porta. Judas estava perplexo.
- E se você chegasse até a porta, Tiago?
- Entrava no corredor.
- E o que há no corredor de tão importante? Queria chamar a Madalena e pedir algum remédio?
- Não estou sentindo dor.
- E o que você queria no corredor?
- A cadeira de rodas. Sentar-me-ia nela, desceria a escada e iria embora.
- Mas como você poderia descer a escada, de cadeira de rodas?
- Desceria sim. Eu sei que desceria.
- Mas não poderia ir muito longe, Tiago?
- Iria sim. Você sabe que o portão grande está sempre aberto, não está?
- Parece. Mas quem você queria encontrar fugindo assim?
- Minha avó. Só ela foi boa pra mim. Só ela foi boa pra mim.
Olhou bem dentro dos olhos de Judas. E Judas pôde descobrir que lá dentro dos olhos de Tiago havia um infinito perdido de dor.
- Eu ficaria esperando. Esperando...
Judas não quis perguntar o que ele esperaria. Já adivinhara. Deixou o final para Tiago contar.
- Eu esperaria um ônibus bem grande. Empurraria a cadeira pela escada abaixo...
Engoliu em seco.
- E iria encontrar a minha avó.

 

CAPÍTULO 11 - Noite de Simão, o Epiléptico

Podia-se dizer que Bartolomeu e Mateus possuíam a atração dos pólos opostos. Assim glosavam os médicos quando os viam tão amigos e inseparáveis. Existia uma dose rascante de humor negro naquela infeliz comparação. Se Bartolomeu possuía o lado direito paralisado, Mateus era mais completo; a hemiplegia o atacara somente no braço esquerdo. Sempre havia o que conversar entre eles. Para acender o cigarro, Bartolomeu segurava a caixa e Mateus riscava o fósforo. Como falsos xifópagos abraçavam-se para caminhar até o banheiro. Um apoiava-se no outro e o outro entreabria a braguilha do pijama para ajudar o companheiro a esvaziar-se. E vice-versa. Mesmo quando a necessidade se tornava mais demorada, nenhum dos dois reclamava em servir um ao outro. Não surgia entre eles nenhuma repugnância ou vergonha. Resignaram-se à uma situação caprichosa da vida. Se tivessem que esperar por Madalena ou pelo Demônio acabavam se desapertando na cama mesmo. Preferível aquele pequeno sacrifício a aumentarem o odor putrefato que os velhos colchões já ostentavam. Sempre Bartolomeu agradecia mais porque a sua situação, muito menos favorável, exigia mais paciência do outro. Entretanto os seus males surgiram de um modo diferente. Mateus contava numa história um tanto absurda que viera dos pagos do sul. Que era tropeiro e montava um belo pingo. Uma vez precisara viajar sozinho. Viagem longa e com Minuano ameaçando. Dizia ele que fora mordido pela mosca do sono. Que caíra do cavalo e ficara ao relento talvez dias, talvez noites. Quando o encontraram, o braço já se paralisara. Se demorassem mais, diziam também, que o corpo todo ia se transformar numa pedra dura até que a morte o atacasse.
Já Bartolomeu não. Não contava de onde viera, mas pelo número de parentes que o visitavam às quintas-feiras, não podia ter surgido de muito longe. No começo só sentia uns choques pelo corpo. Uma coisa esquisita aparecida não sabia como. A molecada da rua vivia atrás dele à espera da hora do choque. Por mais que xingasse a meninada, sempre havia alguém a segui-lo. Talvez aquilo o enervasse mais e produzisse o ataque mais a miúdo. Vinha de olhos baixos pelas ruas, o chapéu afundando-se sobre os olhos, a pasta nervosamente apertada debaixo do braço... De repente o corpo dava uma carreirinha inesperada e incontida. A cabeça arremessava-se para trás, o chapéu ia parar longe e a pasta se estatelava no chão, entreabrindo-se e espalhando papel por todo canto. O corpo todo estremecia como se uma corrente elétrica o atravessasse por todos os nervos. Ficava três minutos naquela agonia. A molecada se dispersava com medo e nada dizia. Os choques viravam pequenos tremores e começavam a parar. A custo tirava o lenço do bolso e limpava o suor da testa e do rosto. Precisava se concentrar para organizar desanimado os novos movimentos.
Alguma mão caridosa juntava seus papéis, apanhava sua pasta.
-- Tomé suas coisas, seu Bartolomeu.
Não podia nem agradecer porque os olhos estavam cheios d'água de tão pequeno que se sentia. Precisava era se acalmar e continuar o seu caminho. Noutro canto haveria outra molecada curiosa esperando a sua passagem, aguardando ansiosa por seus choques. Até que um dia eles pararam de vez. Mas pararam para pior. Deixaram-lhe como triste lembrança o lado direito paralisado.
Depois o tempo passara. Não havia recuperação. Deixaram-no ali. Quanto tempo, Bartolomeu? Sei lá, meu Deus. Só sei que muito tempo. Criara na sua solidão a mania das moscas. De ficar contando o tempo que restava dos que iam morrer. Achava até lindo. Elas vinham chegando, chegando. Não eram das que ficavam voando de lá para cá, não. Aumentavam, aumentavam e ficavam espiando para a cara daquele que deveria partir em breve. Se alguém as afugentava, voavam em bando e em círculo para pousarem no mesmo lugar como se nada tivesse acontecido. E quando o médico mandava colocar um biombo de fazenda branca encardida elas se afastavam, pousavam em bando no teto. Quando tudo se acalmava, desciam na cama. Enchiam o biombo de pequenos pontos negros imóveis. Só a elas era dado assistir à agonia do doente, como se soubessem de tudo. E quando chegava o fim, como que obedecendo à uma ordem se retiravam em silêncio, passando pela mesma janela, indo-se perder nos mistérios da vida.
Bartolomeu adorava ficar olhando aquilo. Reclamava entre dentes, franzindo a pequena testa, apertando os pequenos olhos, adquirindo uma face estranhamente pitécia quando deparava com o biombo imundo. Bem que podiam pelo menos respeitar a hora da morte de um daqueles condenados. Não custava mudar o pano de vez em quando. Desanimava. Mas para que, Bartolomeu? Aquele ali já fora branco, branquinho também. Ficou assim porque assistiu muita gente morrendo. Ficou assim, como a vida da gente, porque viveu a sua vida. É isso.
E por que Bartolomeu e Mateus, que tanto falavam, guardavam silêncio agora? Mateus dissera a última frase e apontara com o queixo para o leito de Simão.
E quando Simão, o epiléptico, se encolhia na cama ou se afastava pelos cantos, furtando-se a conversar com alguém ou fixar a vista em qualquer dos companheiros, evidenciava que alguma coisa estava para acontecer.
Se por ventura alguém conseguisse observar os seus olhos num desses momentos, poderia até amedrontar-se e fugir da sua presença. Suas pupilas se dilatavam duras, dando a impressão de que os olhos tinham perdido o movimento. Todas as suas expressões eram de pedra. Apenas a boca caída e retorcida deixava escapar um contínuo file-te de baba. Respirava com mais força. Suas mãos se crispavam sempre como se quisesse dilacerar uma angústia ou esmagar um pesadelo...
Simão hoje encontrava-se assim. Desde a manhã quando uma súbita tristeza o invadiu e foi crescendo, crescendo, crescendo cada vez mais, ele emudecera.
Hoje não ajudaria ninguém. Não se apiedaria de ninguém. Tudo nele se revestindo de indiferença. Nem ele mesmo compreendia porque se transformava desse jeito. Não saberia sequer, depois de passada a crise, o que de verdadeiro acontecera consigo.
Perdia a vontade de almoçar. O coração começava pequenininho a sentir saudades de sua casa, longe. Longe onde, Simão? Fale pra mim. Longe, no interior de Minas Gerais. Todos nós viemos de longe, não é verdade? De tão longe para quê? Para se juntar a uma porção de gente como a gente. Uma porção de gente que, se juntasse um pedaço de cada um, não daria um homem perfeito. É isso. Só isso. Apenas isso.
A tarde veio encontrá-lo ainda mais triste e de olhos mais duros.
Pedro que tudo observava comentou baixinho para Felipe.
- Hoje vai ter... Vai ser a noite de Simão, o epiléptico. André arrancou um fiapo da colcha e comentou penalizado.
- É horrível, não é Pedro?
- É. Mas o que se pode fazer?
André observou o rosto atento de Bartolomeu. Na certa, ele pensaria o que sempre pensava. "Ele só vai melhorar quando chegarem as "moscas".
Tiago começara a umedecer os olhos. Pedro o acalmou.
- Fique quieto, sim? Isso de nada adianta.
Tomé quis concordar balançando a grande cabeça, mas aquele movimento disritmado precipitou mais depressa as lágrimas em seu rosto.
O desânimo pareceu apossar-se de toda a enfermaria. Ninguém poderia fazer nada. Nada que evitasse aquilo. Os ataques de Simão seriam inesperados como a chuva do próprio verão. Não tinham dia certo. Hora exata. Não fossem a tristeza dos meus olhos e o mutismo, nada indicava ao certo quando eles viriam e como viriam. Pedro rezava no coração do seu mal-estar para que os ataques não fossem prolongados.
E quando a Ceia chegou, Simão não sentiu vontade de sentar-se à mesa, nem munir-se de sua colher enferrujada.
Quando chegaram as sombras que carregavam a noite, suas pupilas tinham se desenvolvido mais. Até suas mãos se desinteressavam em limpar a baba escorrente.

* * *

Tudo era silêncio. As luzes da enfermaria haviam sido apagadas, dando a impressão de que a noite seria comum como todas as outras. Um ou outro, de vez em quando, soltava um gemido espaçado. Alguém, além de Tadeu se cocando sempre, mexia com força o enxergão da cama, agitando-se com um estranho sonho.
Judas Iscariotes, que dormira o dia todo alimentado pelo soro, com a escuridão abria os olhos, mesmo arriscando-se a encontrar os verdes olhos de Lúcio. Ficava escutando em volta, sentindo cada vez mais a fraqueza intrometer-se em seu corpo e o desânimo se apossar da sua vontade.
Naquelas horas de insônia, o joelho doía como brasa soprada. Por que as dores aumentam com a escuridão da noite? Via-se dominado por uma estranha confusão de sentimentos. Não queria acompanhar Lúcio do jeito que ele convidara. Do jeito que ele o convidaria sempre. Lúcio não era de desistir. Nos momentos de grande dor detestava viver. Detestava os médicos que teimavam em prolongar o seu sofrimento. Perguntava-se por que a morte tanto demorava. Entretanto, se no momento de seu maior desespero Lúcio viesse para "acompanhá-lo" recusava-se ao convite. Revoltava-se com a insinuação. Não adiantava. Tudo estava escrito. Ninguém fugia à sua própria solidão. A sua real condenação legada pela vida. O que poderia responder à sua angústia e ao seu abandono? Nada. Nada mais do que um ruído de uma mola dentro de um velho colchão ou um gemido impessoal e indefinido. Além disso, nada turvava o silêncio da noite tão grande e inútil.
Foi quando um ruído estranho, pavoroso e bárbaro repercutiu pelos nervos da enfermaria. O som de uma cama que se debatia louca, parecendo rebentar-se contra a parede e pisotear diabolicamente contra os ladrilhos do chão.
Todos os que podiam sentar-se já se tinham recostado assustados nas camas. O barulho tornava-se maior e mais desesperado.
Simão Pedro, trêmulo, amarrava o pijama desabotoado; erguia-se atarantado à procura do comutador da luz.
Tinha começado a noite de Simão, o epiléptico.
Com a presença da luz, seus olhos se envidraçavam rubros. Todo seu corpo se inteiriçava tomando nuances entre o branco e o amarelo. Suas mãos cresciam os dedos em garras recurvadas. Tudo nele se paralisava, endurecia, para quase em seguida rebentar-se em convulsões. A baba escorria engrossada da boca entreaberta e retorcida. Roncos bestiais atravessavam sua garganta ampliando ainda mais os trejeitos da máscara cinérea.
Os outros o contemplavam com o medo estampado nos olhos.
Tiago chorava baixinho. João voltara a se enrodilhar como uma grande aranha. Bartolomeu tentava tornar-se impassível mas a sua mão esquerda espremia a grade da cabeceira.
Simão Pedro, sem forças para contê-lo, encaminhou-se para a cama de Judas Iscariotes.
- Que poderemos fazer?
Judas balançou a cabeça como se quisesse dizer: nada.
Apenas soergueu o corpo debilitado na cama. Simão Pedro cocou os cabelos brancos.
- Nenhum de nós vai ter forças para segurá-lo. Defronte àquele mundo paralisado, Simão, o epiléptico, se debatia em crise. Os sons roucos morreram em sua garganta, mas agora, sua cabeça rolava de um lado para outro com uma velocidade incrível, como se fosse um pêndulo de perdido controle.
As mãos crispavam-se no travesseiro procurando por instinto refrear o seu movimento de loucura. Entretanto ele não conseguia segurar o rosto transtornado.
Pedro indagou novamente.
- O que poderemos fazer?
Os olhos de Judas tinham adquirido uma calma diferente. Aquela calma de quem também já participava dos mistérios da morte.
- Ele não morrerá. Vai melhorar.
Simão soltou um ronco maior procurando colocar no pulmão um ar renovador. A cabeça paralisou-se de imediato. A baba ainda escorria. A boca de dentes maltratados ampliou-se mais. As mãos se descongestionaram, amolecendo os dedos. Penas amassadas voaram do travesseiro estraçalhado. O peito inteiriçado voltou ao ponto normal. A respiração perdia o aceleramento e acalmava-se aos poucos.
Uma sensação de alívio pousou em todos na enfermaria. A angústia fugia dos olhos de Pedro.
Só Judas observava Simão com a mesma calma.
Simão entreabriu os olhos docemente. Parecia desconhecer o ambiente que o cercava. Parecia que a luz se fazia em seus olhos pela primeira vez. A curiosidade morava em suas pupilas. O que fora? Onde estava?
Judas Iscariotes sorriu em seus pensamentos. Lázaro ao ressurgir do túmulo possuiria aquele modo de olhar. Ou talvez Adão, desorientado com o primeiro sono, despertasse assim.
Todavia Simão custava a se reencontrar. As formas de todas as coisas demoravam a se fixar em sua observação. Estranho já ser noite! E sendo noite e havendo silêncio por que a luz estava acesa? E por que aquele homem se sentara em sua cama e segurara as suas mãos? Aquele homem era conhecido seu mas não sabia de onde. Os seus olhos significavam bondade. Seu sorriso, paz. Ainda sentia a sensação de suas mãos suaves alisando-lhe os cabelos. E foi sorrindo que ele se levantou. E foi calmo que ele se afastou da sua cama e se encaminhou para a porta da Ceia e desapareceu.
Simão esfregou os olhos. Não seria Pedro? Estivera talvez sonhando e confundira Pedro com o estranho.
Simão falou com sua voz vindo de longe, do mundo das sombras.
- Pedro.!... Pedro!...
Pedro aproximou-se do leito de Simão.
- Estou aqui.
- Foi você?
E como Pedro não soubesse responder formulou outra pergunta.
- Olhe, o homem foi embora?
Pedro acompanhou os olhos de Simão se dirigindo para a porta da Ceia.
- Pedro, ele foi embora. Saiu ali por aquela porta. A mão trêmula indicava a porta da enfermaria.
Os grandes olhos de todos os doentes dilatavam-se mais pelo espanto. Simão estava vendo alguma coisa. A doença teria transtornado a sua razão?
Simão descansou a mão amarelada na perna magra de Pedro. Perguntou sem esperança alguma.
- Será que ele vai voltar, Pedro?
Uma piedade imensa alastrava-se na alma de Simão Pedro.
- Ele vai voltar sim. Fique quieto. Você está me ouvindo, Simão?
O epiléptico esqueceu-se da porta e fixou Simão Pedro. Conseguia fugir ao fascínio daquela porta.
- Fique quieto, Simão. Você teve um ataque. Vou limpar um pouco o seu rosto. Se acalme.
Simão fechou os olhos sentindo a mão de Pedro em sua face. Era diferente. O toque da mão de Pedro lembrava só um pouco as mãos daquele homem.
- Está melhor?
Abriu os olhos e tentou sorrir em seu desânimo.
- Você não viu, Pedro. Mas era um homem tão bonito e tão bom. Os olhos dele eram verdes, como nunca vi em ninguém. Duas estrelas muito verdes.
Simão Pedro arrepiou-se todo. Simão também estaria enxergando os olhos verdes que viviam perseguindo Judas Iscariotes? Disfarçou a vista e descobriu a palidez de Judas. Descobriu que aquela sua calma anterior desaparecera e os seus lábios estavam tão brancos como o rosto e tremiam quase imperceptivelmente.
Simão agora não ignorava mais o que lhe acontecera. Não seria essa a última crise violenta que o atacaria. Sentia o corpo nada pesar-lhe e um profundo desinteresse de tudo que se infiltrava em sua vida.
Afundou mais a cabeça no travesseiro rasgado e relaxou os músculos ainda mais. Urgia fazer alguma coisa. Algo que tentasse desfazer a impressão de terror que atacara os outros doentes. Não ignorava como feios e horrendos se manifestavam os seus momentos de ataque. Dessa vez fora mais triste. Nunca, nunca acontecera assim antes. Nunca das outras vezes o homem viera até ele. E por que viera? O homem era limpo e bonito. Todos ali se assemelhavam a lixos humanos. Nenhum deles merecia a atenção de uma visita como aquela...
Ergueu o corpo no leito.
- O que vai fazer, Simão?
- Pouca coisa, Pedro. Vou até a pia lavar o rosto.
Levantou-se cambaleando. À luz do ambiente confundia-se forte. As camas balançavam dentro da enfermaria. Seus pés tornavam-se bambos, os músculos pouco significavam e o chão se forrara de uma grossa camada de borracha que bamboleava.
Reagiu, afastando da vista as sombras azuladas que circundavam tudo que procurava enxergar.
Aos poucos se arrastava mais seguro. Até a ameaça da vertigem sumira. Agora, a pia se encontrava a menos de dois metros.
A paz retornara aos olhos dos outros. O medo fugira da face de André. Tadeu recomeçara a sua coceira mais nervosa porque agora o motivo fora assustador. João rezava com calma. O medo fugira da face de Tiago Menor. Mateus acendera um cigarro para Bartolomeu e Bartolomeu acendeu o cigarro de Mateus. Até Tiago Maior retirara o lençol da grande cabeça, diminuíra as suas pupilas e conseguira secar os olhos.
Sossegara o coração de Pedro enquanto comentava com André.
- Foi um ataque muito feio. Foi um ataque...
Não conseguiu terminar a frase. O ruído do espelho se partindo e os cacos caindo no ladrilho com estardalhaço interromperam a sua frase. Ao mesmo tempo, um baque surdo e pesado se ouviu.
Pedro paralisou-se um momento, atacado de pavor. Suas mãos atrofiadas cruzaram-se sobre o peito.
Os olhos de André grudaram-se desesperados no rosto de Pedro.
- Meu Deus!... Ê ele de novo.
Impulsionado pelo desespero tentou correr até a pia.
Tiago chorou de novo. O cigarro aceso ficou queimando sozinho entre os dedos de Bartolomeu. Mateus arrastou-se procurando abrigo em sua cama.
De longe, Pedro gritou implorando.
- Ê preciso alguém para me ajudar.
Seu desespero tornava-se maior porque sabia que o pedido de socorro repercutiria em vão. Felipe dormia o seu sono de pedra e nada o despertaria. Justamente quem o ajudava mais nas horas de aflição era o próprio Simão.
Ninguém aparecia. E quem estaria em condições de ajudar?
Num movimento súplice todos os olhares atingiram a cama de Judas Iscariotes. Havia a mesma angústia em cada espera. "Será que ele conseguirá?"
Judas compreendeu e sorriu tristemente. Teria de lutar. Convencer-se de que a dor de Santo Agostinho era maior que a sua. Foi suspendendo o corpo nas grades da cabeceira. Só nesse pequeno movimento o joelho voltou a estourar de dor. Pior era a força gasta para organizar-se. Para que seus músculos reagissem e o fizessem caminhar. O desalento dos gestos retardava todo o movimento do seu corpo. Não era somente a dor que o segurava preso ao solo, ou lhe dificultava os passos vacilantes. Era algo só por ele compreendido. Mesmo assim puxado pelos braços do desespero, segurando-se em outras camas, ia conseguindo atingir o centro da enfermaria.
O momento seguinte afigurava-se-lhe o pior: aquele desgraçado espaço que interrompia a cama e que dava passagem para a porta onde o homem se fora...
Os olhares agoniados torciam por ele como se fosse um cavalo velho obrigado a correr numa raia repleta de obstáculos. A torcida não era para ele e sim para a égua da sua dor. Os gritos não provinham das gargantas e sim dos olhos desesperados.
A mesa da Morte e da Ceia encontrava-se a menos de dois metros. A mesa da Ceia que se desacostumara a freqüentar. Mesa morta. Inútil. Sem braços... E precisava chegar até ela. Tinha de chegar. O outro estava morrendo e Pedro pedia socorro. Simão Pedro dirigia todos os seus passos:
- Agarre na mesa. Agarre com mais força. Puxe o corpo. Quando o joelho esquentar vai doer menos. Por amor de Deus, venha. Simão está horrível.
Arremessou o corpo e sentiu o mármore morto e frio sob os seus dedos. Aquele gelo pareceu criar-lhe algum ânimo. Animado por aquela conquista, apoiou-se ainda mais na mesa e os braços obedeceram às suas ordens com menor sacrifício. Da mesa alcançou a cama mais próxima. Pouco mais poderia apoiar-se nos ladrilhos do corredor que levava à pia e às imundas latrinas.
Ainda pôde perceber a cabeça deslocada de Felipe, tombando fora da cama naquele sono profundo que só as pedras poderiam ter. Para ele a noite era a morte e o sono uma continuação de mesas e de pedras mortas e irrealiza-das.
- Ajude-me. A gente tem que levantá-lo. Ele caiu contra o espelho e cortou a testa. Rachou também a boca ao bater na pia.
Simão encontrava-se lavado em sangue. Uma pequena fonte borbulhava inundando a sua face e derivando para dentro do pijama. A ferida da boca lançava um sangue mais claro porque este se confundia com a baba viscosa.
Agarrando-se à beira da pia, Judas Iscariotes conseguiu abaixar-se e puxar um dos braços de Simão sobre o seu ombro. Com um esforço sobre-humano os dois foram se levantando. Simão com o corpo hirto revirava os olhos e respirava pesadamente. Sacudia o seu sangue sobre o rosto dos dois homens. O cheiro do suor acre do corpo do epiléptico causava náuseas ajudas.
Saíram do corredor. As paredes juntas não deixavam que os três tombassem.
- Agora, falou Pedro ofegante, preste bem atenção. Segure-se bem com a outra mão nas grades das camas, senão cairemos todos.
A cada novo esforço Simão sangrava mais. Naquela caminhada de vermes os três conseguiram chegar até a cama de Simão.
Deitaram o homem enquanto respiravam arfantes. Era preciso tomar rápidas providências.
E ainda foi Simão Pedro que encontrou forças para voltar até a pia. Trouxe um pano embebido n'água e começou a limpar o ferimento do epiléptico. Havia um talho feio no supercílio esquerdo e provavelmente um ferimento no interior da boca, além da rachadura do lábio.
O ataque estava novamente se finalizando. Simão respirava de leve e suas expressões enrijecidas desapareciam. Até a baba gosmenta se estancara e os olhos tendiam a fechar.
Mateus aconselhou de sua cama.
- E se a gente chamasse a Dona Madalena?
Judas Iscariotes deu de ombros acompanhando a resposta de Simão Pedro.
- De nada adiantaria. Aquilo e nada é a mesma coisa.
Todos tentavam se acomodar em suas camas. E sem coragem de apagar a luz porque sabiam que o sono não viria mais essa noite, ficaram fazendo a vigília do silêncio.
De quando em vez espiavam para Simão, aguardando que, a qualquer momento, seus traços feridos, seu rosto inchado fossem sacudidos por renovadas convulsões. Depois observavam Simão Pedro, confiantes. Aquele homem de braços atrofiados pela lepra nervosa crescia em sua confiança como um salvador. Sabiam que o mundo dos perfeitos fugia deles, se distanciando das suas pequenas misérias como as horas incomodando o tempo. Ninguém viria essa noite. Só havia Simão Pedro para ajudá-los.
O tempo passava e Simão respirava calmo. Já o cansaço começava a se manifestar grandemente nos olhos dos outros enfermos. Parecia que a luz da enfermaria se acometia de iluminação tremeluzente como um pequeno sol querendo se apagar.
O silêncio da noite era interrompido pelo ruído dos bondes rasgando os trilhos da solidão. Até os bondes eram mais raros. Como os bondes se encontravam tão longe, tão longe deles.
João cochilava com a Bíblia sebenta escorregando no peito. Bartolomeu se imobilizara como o morto Tomé. Tiago com a sua cabeça pesada no pescoço fino puxava-a com o sono para dentro do travesseiro. Seus membros não podiam mais suster o desfalecimento que ó atacava.
Um galo cantou distante e Simão Pedro velava. Judas Iscariotes entrefechava os olhos e sorriu quase imperceptivelmente.
- "Antes que o galo cante três vezes, Tu Me negarás, Simão Pedro".
O sorriso morreu em suas faces onde nenhum tremor perpassava sua expressão de madeira talhada. Seu peito magro e saliente apenas se projetava para frente numa imobilidade inexpressiva.
Todavia Simão Pedro velava calmo. Paciente e doce, ele não pensava sequer em dormir.
O galo cantou muitas vezes, não cantou Simão Pedro? Cantou sim, e você esqueceu-se de contar porque não há ninguém para negar.
Um novo movimento brutal e o corpo de Simão tombou pesadamente no chão.
Judas abriu os olhos. Todos estavam vivos novamente. Acordados pelo medo naquela noite que pertencia a Simão, o epiléptico.
Simão Pedro ajoelhara-se junto do homem caído.
- Ele tornou a se machucar no rosto.
O rosto emborcado no ladrilho confirmava isso, remexendo-se no sangue.
- E agora, Simão Pedro? Que poderemos fazer?
- Vou chamar Dona Madalena. Eles devem ter algum remédio.

* * *

Madalena apareceu enorme, bocejando. Era a imagem do próprio desmazelo. Os peitos grandes rolando soltos na camisola suja e azeda, dentro de um roupão furta-cor mal amarrado.
Bocejou de novo e limpou os olhos daquele sono que a dominava como nunca. Olhou Simão indiferentemente. Enfiou os dedos gordos entre os cabelos embaraçados e engordurados. Ante a expectativa de todos, encaminhou-se devagar para o armário.
Postada à sua frente comentou com voz roufenha.
- É. Mas não tenho a chave. Dr. Tiago nunca deixa a chave comigo. Se tivesse a chave apanharia um comprimido de Luminal e ele melhoraria logo.
Simão Pedro aproximou-se desesperado.
- Mas a senhora precisa fazer algo. Não vê que esse homem está morrendo?
Respondeu com indiferença.
- Não vê que não tenho a chave? Quer que eu vire chave para abrir o armário?
Simão Pedro fitou o armário com ódio. A salvação estava ali. Dentro daquela estupidez de vidro. A salvação de Simão e a paz da enfermaria estavam presas por uma mísera fechadura e uma desgraçada chave inexistente no momento. Olhou duramente o buraco vazio. Os vidros embaçados da parede do armário. Tão frágil. Bastaria enfiar a mão e sentir os estilhaços espalhando-se no chão.
Voltou-se enfurecido para Madalena.
- E se a gente quebrasse o vidro?
- Está louco, homem!
Suas grossas sobrancelhas se encurvaram tomadas de profunda indignação.
- O que diria Dr. Tiago amanhã? Que pensa que sou aqui?
Deu uma risadinha cínica.
- O que não iriam dizer do meu zelo e responsabilidade? Não vou colocar em jogo o meu velho emprego por causa de um armário quebrado.
E como se não bastasse, ainda ladainhou.
- Se conservo esse lugar é porque nunca me pegaram numa falta. Eu estou velha e não arranjaria outro lugar assim para trabalhar.
Virou as costas gordas para Simão Pedro. Na sua face encovada notavam-se nuances de repugnância.
Simão estrebuchava. Suas mãos vazias, sem travesseiro para agarrar, apertavam crispadas o inexistente.
Madalena finalmente tomou uma decisão.
- Acho melhor a gente tirar o colchão da cama e botar no chão. Assim ele não cairá e não se machucará tanto.
Judas Iscariotes quis levantar-se, mas Simão Pedro tolheu-lhe o movimento, comprimindo o seu peito com a mão.
- Fique aí. Não precisa. Você já tem a sua própria dor para doer. A gente se arranja bem.
Executaram o combinado e recolocaram o corpo de Simão sobre o colchão.
- Agora ele não cairá mais. Resta só esperar que Dr. Tiago chegue amanhã.
Suspirou. Emendou o suspiro com um bocejo dilatado, espreguiçou os braços rechonchudos e retirou-se da enfermaria.
Simão Pedro e Judas Iscariotes olharam mudamente para o armário. "Esperar que o médico venha"... E se ele se atrasasse? E se ele por acaso não viesse nessa manhã? Rezava Simão Pedro para que tal não acontecesse e que o Dr. Tiago chegasse religiosamente às nove e quinze.
Enquanto isso, Simão gastava a vida. Consumia as energias do corpo fraco, arriscando se a morrer a cada novo ataque.
Simão Pedro alisou a cabeça embranquecida, sem saber o que fazer. Esperar, esperar e esperar. Como a vida era estúpida e indecente! E amanhã, Simão, com o rosto crivado de gazes e esparadrapos, todo arroxeado, doendo até para sorrir, talvez esteja feliz por ter resistido à noite de sua grande loucura. Tudo seria amenizado, se eles não fossem tão fracos e o armário tão poderoso. Nenhum deles na realidade teria coragem para espatifar o vidro. Aqueles tubos mesquinhos e diminutos continham uma coisa pequena e redonda de cor branca que, levada à boca, em um segundo poderia resolver a angústia dos outros enfermos. Economizaria as forças daquele ser que se debatia no chão. Mas eles eram todos igualmente medrosos. Nenhum pulso seria erguido contra o armário, e a fechadura continuaria perfeita, integra, sobreguardando o seu milagre da cura.
Outro galo cantou mais longe. A madrugada se anunciava igual às outras e os olhos de Simão Pedro se umedeceram.
- É preciso que eu comece a contar o canto dos gaios para que o tempo passe e eu não adormeça.
O cansaço veio aos poucos, pesando nos olhos dos outros companheiros de vigília. Os homens pareciam ter-se acostumado aos ataques de Simão.
A luz continuava acesa e somente Pedro e Judas Iscariotes permaneciam despertos tomando conta do epiléptico.
Perto das quatro horas. Simão teve nova crise e só os dois presenciaram a sua agonia.
Depois, de vinte em vinte minutos; a situação piorou muito. O homem voltara a ter convulsões. Mal descansava duma, surgia outra. O problema continuaria sempre porque o armário de vidro jamais seria aberto.
Agora era mais difícil olhar para o doente. Simão, com o desespero dos últimos ataques, se despira todo. O corpo branco e nu se misturava com o sangue. E mais tarde foi mais cruel ainda. Com o remexer mais forte, as fezes vinham saindo fedorentas. E a urina encharcava suas pernas. A cada estremecimento os ombros se enchiam de mais sangue e as pernas, de escrementos. Aquela imundície fétida encerando as pernas finas e amareladas.
Judas Iscariotes não resistiu. Esqueceu-se de tudo. Da dor, da falta de forças. Todo o desespero do mundo o empurrava para a porta do fundo. Suas trôpegas mãos grudaram-se na fechadura da porta. Torceu a chave. Puxou a porta contra o peito. Quanta luz. Lá fora a manhã se realizava linda.
Desceu os degraus da escada sem saber como. Sentou-se nos últimos batentes. Nem se importava com a dor do joelho. Os olhos inchados, avermelhados, confrangiam-se olhando ávida.
O sol do final do verão surgiria em breve. Mutações rosadas e fios de ouro pincelavam sobre o azul puro do dia. Mais um dia. Um dia calmo, onde os parciais faziam ruídos, irritando as folhas das árvores. Os grandes pés de figueira-brava iluminavam-se brilhantes nas copas. Nenhuma delas era a sua figueira. A figueira dos seus desesperos. Todas aquelas indicavam paz. O vento nasceu de leve e balançou peças esquecidas nos arames da cerca. No coração das escuras árvores os sabiás cantavam. Soltavam pios lindos e ritmados. Os machos atraíam as fêmeas para a umidade do bosque. Em tudo a calma da vida. Sorriu. Por que será que a sabiá não canta? Só o macho. Em verdade, só aquela calma. O suave da vida se realizando bela e sem pressa. Tudo tão indiferente e necessário. Tão grandioso e belo. Só os homens eram pequeninos e insignificantes. Pequeninos, insignificantes e reais. Além disso, a frase de Madalena que ficara gravada na memória, anunciando a chegada do médico às nove horas. Isso tornava-se p mais importante.
Atacava-o de novo o desalento. O que importava a vida lá de dentro? A morte lá de dentro? A luz que ainda não fora apagada? O homem que se consumia? Tudo aquilo lá... e aqui? Aqui a vida completa, inconsútil e misteriosa. A vida que o atraía, que o prendia à inutilidade de mais um dia. Na presença da luz que era branca, que era azul, que era dourada, tornavam-se encantados os seus olhos doloridos, insones e avermelhados. Ninguém o tiraria dali durante muito tempo. Queria permanecer. Ficar horas e horas olhando a luz. Porque aquela luminosidade não significava nada além de um sentido estético. A luz não prometia nada, não anunciava a morte, não traduzia eternidade. A luz em si era mais um dia sem dor. Por que os dias não sofrem?
- Por que os dias não sofrem? Ora essa, você também sofre porque quer, não querido?
Foi tomado por um estremecimento tão grande como se tivesse adquirido o mal de Simão. Quis tapar os ouvidos.
- Não adiantará, querido. Você vai me ouvir.
- Hoje não, Lúcio, por favor. Hoje não. Você sabe que eu passei uma noite pavorosa.
Ouviu a risada de Lúcio repercutir bem calma.
- Eu sei. Mas você passou uma noite. E o que é uma noite perto de uma eternidade por que estou passando?
Sentiu os olhos cheios d'água. Olhou em volta para descobrir onde Lúcio se escondia. Na claridade tornava-se mais difícil descobri-lo.
- Aqui. Estou aqui. Venha comigo, querido. Está vendo, não o quero levar para a porta da enfermaria. Quero caminhar com você no interior do bosque, longe dos ônibus tão elegantes. Venha.
Queria negar-se a obedecer, mas o corpo erguia-se, apoiando-se na escada.
- Assim. Assim. Assim sim, meu querido. Vou até fazer uma coisa. Não deixarei que o seu joelho doa por um momento sequer nessa nossa caminhada. Venha. Dê-me o braço. Apoie-se em mim. Estou forte, não? Vamos ouvir na paz do bosque a música de todos os sabiás. Vamos, meu querido.

 

CAPÍTULO 12 - Quantum Mutatus ab Illo

- Viu? Nada de dor, nada de cansaço. Só nós dois e essa sombra maravilhosa das figueiras-bravas. Não se impressione, que não irei oferecer-lhe uma corda, meu querido Judas Iscariotes. Esse é o seu novo nome, não é verdade?
- Você sabe de tudo.
Judas Iscariotes encostou-se numa raiz adunca e suspendeu a cabeça para o céu deixando escapar um suspiro.
- Por que isso agora? Suspirando por um mundo perdido?
- Não. Talvez um momento perdido de êxtase. Tão azul é o céu do fim de verão! Antigamente na selva eu adorava os dias límpidos que nasciam com o morrer de abril e o aparecer de maio. Estranho eu me lembrar de uma coisa.
- O quê?
- Talvez não tenha importância. Uma frase que eu achava tão expressiva antigamente. Estava inscrita em certos relógios: "Cada hora fere a nossa vida até que a derradeira a roube".
Os olhos verdes de Lúcio adquiriram uma expressão de tristeza inusitada.
- Nem sempre as horas roubam a nossa vida. Muitas vezes a derradeira são os outros que decidem por nós...
- Você prometeu, Lúcio.
- Está bem. Vamos sorrir. Deu uma risada suave.
- Vamos fazer um brinde. Como eram as palavras daquele camarada que estudava com a gente? Aquele que tinha mania de falar difícil. Quando por maldade lhe perguntavam se era um padre sem batina, ele tornava-se digno e hierático. "Padre que deixou a batina, não. Simplesmente um "défroqué"...
Judas sorriu tentando lembrar-se da sua costumeira frase, ao lazer um brinde qualquer.
- Era algo relacionado com ânfora, não?
- Não. Ânfora, para ele, seria o banal, o medíocre. Era urcéola. "Ergamos a urcéola aos paramos e bebamos a sutade da paz."
- Você não esqueceu nada, Lúcio?
- Não posso...
Os olhos verdes de Lúcio analisaram o rosto macilento do outro. Judas sentia o peso dessa observação. Ele estava comparando o seu momento com o passado. Fechou mais os olhos e arriscou uma pergunta.
- Lúcio, eu já morri?
- Bobagem. Não é assim que se morre. Ninguém morre sem a passagem e essa é terrivelmente marcante. Ê o pior momento de cada um.
- Eu pensava antigamente que a morte fosse tão inapercebida como o nascimento. Ninguém se lembra como nasceu, mas assistindo a um parto, vê-se que a dor do ar penetrando no pulmão de um recém-nascido deve ser horrível. A gente também passou pela mesma coisa e não se recorda. Eu pensava que a passagem deveria ser assim.
- Você saberá na sua derradeira hora. Na hora que escolheu. Vê? Você é quem prolonga o assunto mórbido dessa vez. Por que está se preocupando agora? Olhe a beleza do dia e ouça o canto dos sabiás se aquecendo do orvalho da noite. Não é mais belo?
- Não. Esses meus últimos dias têm sido horríveis. Diz-se que, quando a morte se aproxima, a gente de tudo se recorda. Vivo, parece-me, do passado, de todas as lembranças. Por que será? Talvez só você possa me esclarecer.
- É simples. Em cada soro que lhe é aplicado, e isso não é novidade paia você, estão aumentando a quantidade de anestésico e soníferos. A cada dia as doses serão acrescidas de um remédio mais forte. Daqui pra frente, você viverá mais dos sonhos do que da dor. Nesse período onírico os tóxicos criarão um mundo de fantasia em sua mente. Ora coisas maravilhosas, ora hediondamente angustiantes. O subconsciente nosso é muito complexo.
- Por que não posso pensar em coisas simplesmente lindas, marcadas de ternura e paz?
- Hoje você pode. Estou lhe dando uma trégua. Afinal você foi tão formidável para mim, lembra-se?
- Não consigo.
- Abra os olhos.
Judas Iscariotes obedeceu.
- O que vê?
- O dia.
- Então, espere.
Lúcio estalou os dedos.
- Faça-se a noite. E agora?
- Entrevejo a noite formigando de estrelas.
- Lembra-se de algum fato? Pense.
- Não consigo.
- Então, espere. Tornou a estalar os dedos.
- Faça-se o dia novamente. E agora?
- Não sei. Terei que lembrar-me longe ou perto?
- Não tão longe, posto que você tanto não viveu. Quer que eu o ajude?
- Por favor, Lúcio.
Os olhos de Lúcio percorreram distâncias.
- Como você era moço! Moço e tão puro. Quase um anjo.
Judas sorriu.
- Um anjo tão pobre tentando estudar com tanta dificuldade. E você, tão belo, tão fino, parecia mais um príncipe. Sobretudo um príncipe rico. Enquanto os outros usavam o bonde do Derby para ir à Faculdade, você era o único que possuía uma baratinha atrevida. Eu me lembro que a passagem para os estudantes de medicina custava cem réis.
- Quanto a isso não posso garantir, porque não freqüentava essas coisas.
Judas se concentrou com uma fisgada cruel no coração. Precisava criar coragem. Coragem de perguntar. Nenhuma hora se afigurava tão propícia, pois Lúcio não estava cobrando nada, nem o acusando.
- Lúcio!
- Já sei o que vai me perguntar. Não me pergunte. Nunca responderia.
- Mas eu tenho que perguntar. É tão importante como a minha condenação. Eu fiz com que você se matasse, Lúcio. Portanto, eu o matei.
Os olhos verdes de Lúcio percorriam as raízes protuberantes da figueira, numa fuga dolorida.
- Você acha que eu o matei por maldade? Os olhos de Lúcio se desanuviaram. Sorriu até.
- Não creio. Por um momento, quando enviei o dinheiro pelo correio, eu estava transtornado, desesperado. Não, você não quis que eu morresse, apenas por egoísmo ou crueldade. Você me matou...
Sua voz adquiria uma trêmula emoção. Não teria ganas de calar-se. Judas Iscariotes entreabriu os lábios arfantes.
- Continue, Lúcio.
- Você me matou mais que por piedade. Você me matou por amor.
- Amor, Lúcio?
Passou a mão na testa para enxugar o suor frio e acalmar a palidez que ainda se tornava maior nos seus traços macerados.
- Foi assim. Nós não sabíamos. Mas o amor é um sentimento que transcende a morte.
- Mas como? Éramos tão normais. Excessivamente normais. Chegávamos a trocar as fêmeas prazenteiramente. Cada um se satisfazia orgulhosamente com o prazer da primeira conquista e da segunda entrega. Lúcio riu.
- Talvez não seja a essa espécie de amor que me refiro. Um amor lindo e sobre-humano. Nada de sexo. Apenas uma atração que as pessoas sentem num sentimento mais puro. Que há de escabroso no amor dos anjos em relação a Deus? Ou no amor de João Evangelista por Cristo. Ou em Cristo chamar João de meu amado? Foi um pensamento sublime que atacou você para que a doença não me apodrecesse em vida.
- E porque você me cobra a dívida, aquela dívida constantemente?
- Porque talvez eu não queira, vendo você se decompor, que espere pelos derradeiros momentos da "sua hora". Eu, no começo, agia com certo ódio, mas com o tempo fui me modificando e você tem notado isso. Até no modo de tratá-lo. Sou forçado a insistir até... Bem não falemos mais nisso. Voltemos ao início da conversa. A parada do Bonde de um tostão. O bonde circular do Derby. Você se lembra do nosso trote? Foi gozado, não? Mas eu sofri pra burro. O meu desespero era que desmaiasse, pois estava quase vomitando de pavor. Como você foi bom. Minha avó inglesa, se visse aquilo, murmuraria emocionada: "How could you be so noble?"
A agonia desgastara-se do peito de Judas Iscariotes, e o inglês sofisticado de Lúcio fazia-o sorrir apesar de ainda sentir os olhos cheios d'água da emoção do assunto anterior.
Não era agora difícil recordar-se do trote. Parecia que a fama da riqueza de Lúcio caminhava rápida entre os estudantes.
Tinham colocado todos os calouros em fila. E cada um deles teria de participar de uma cena com um cadáver. Havia dois sobre uma mesa de mármore. Lúcio, a sua frente, parecia contar terrificado o número de calouros que desaparecia. Tirara um lenço perfumado do bolso e limpava continuamente a face. Analisava penalizado todos os seus gestos. Podia até contar os tremores que sacudiam os seus membros.
- Tá difícil, companheiro?
Lúcio virou-se com aqueles olhos mais verdes ainda porque estava a ponto de chorar.
- Não vou agüentar.
- É só um minutinho. Faça força. Feche os olhos e trinque os dentes. Quando tiver de executar o que mandarem, não respire. Disfarce, senão eles marcam você.
- Tenho vontade de sair correndo.
- Não faça isso. Talvez...
A idéia perpassou-lhe como um raio.
- Tem dinheiro aí?
- Tenho.
- Quanto daria para passar por cima dessa prova?
- Sei lá. O que quiserem.
- Não fale assim. Se ouvem, você fica quebrado pro resto da vida. Digamos um conto de réis?
- Dou voando.
Fez menção de enfiar a mão no bolso.
- Espere. Deixe chegar a sua vez.
Lúcio olhou cheio de novas esperanças e murmurou baixinho.
- Esse negócio da gente ficar descalço em ladrilho tão frio, nunca me aconteceu antes.
- A gente vê isso.
Ficaram observando os pés nus mutuamente.
- Que destino vão dar aos nossos sapatos, você sabe?
- Estão colocados todos num saco, e quando sairmos daqui, vamos todos para a rua Nova. Alguém sobe numa janela do primeiro andar, ou do segundo, desamarra o saco e joga todos os sapatos. É aquela confusão danada. A gente vai virar criança catando dinheiro na rua. Melhor dizendo, catando sapato. Até que isso é gozado.
A palidez se dissipara um pouco do seu belo rosto. Porém, quando o candidato a sua frente foi chamado, voltou a tremer assustado. As vozes dos veteranos cresciam dentro daquele ambiente fechado e fúnebre. Os "carrascos" se aproximaram de Lúcio.
Judas Iscariotes segurou-o pelo braço e tomou a sua frente.
- Ei companheiros, tive uma idéia. Veio uma vaia de gozação.
- Olha, minha gente, o bonitinho teve uma idéia.
- Garanto que vão gostar. Fizeram um coro de vozes sacanas.
- Ah! Sim. Nós vamos gostar muito. Qualé?
- Eu vi que de manhã a coleta do dinheiro entre os calouros foi pequena.
- Sim. Foi pequena. Você tem uma idéia de como melhorar.
As vozes estavam se tornando insuportáveis e o cerco fechava-se em volta dos dois.
- Tenho sim. Vocês deixam ele fazer uma coisa "de leve", sabe como é? E eu consigo duas pelegas de quinhentos para a chopada de vocês essa noite.
- E se não conseguir, a gente capa você. Onde já se viu estudante ter tanto dinheiro.
- Eu tenho.
- Mostre.
- Primeiro vocês mandem ele fazer a coisa "de leve", como combinamos.
Estava frito. Puxara toda a atenção para si.
Calaram-se um instante e confabularam. Depois puxaram Lúcio para que se adiantasse até perto da mesa de mármore. Apontaram-lhe o corpo de uma mulher nua.
- Está bem. Se você arranja tanto capim, terá que passar somente os dedos no cabelo dessa Bela Adormecida.
Lúcio obedeceu como um autômato, talvez fechando os olhos e deixando de respirar, como lhe fora aconselhado.
Um estudante segurou-o pelo braço, aguardando as ordens do grupo.
- Ei, Vicente, segure o caboclo perto da escada. Se esse papagaio falador não tiver o dinheiro, traga-o de volta.
Foi a vez de arrastarem Judas para o meio da sala. Formaram um círculo à sua volta.
- E o dinheiro? Cadê?
Enfiou a mão no bolso da calça e puxou as duas notas amassadas. Elas foram passadas de mão em mão. E a surpresa era tanta que o silêncio apareceu, contrastando com a algazarra anterior.
- Tem mesmo, minha gente.
Bateram palmas de alegria e chegaram até a vivar. A noitada seria de fartura. Todavia, passado o espanto, encararam avidamente o rapaz.
- Errol Flynn, você é um sujeito formidável. Nós estamos precisando de uma pessoa assim. Venha cá, meu pequeno gênio.
Foi carregado em triunfo até junto da mesa.
- Bem, nós fomos camaradas e atendemos o seu pedido. Agora vamos escolher alguma coisa especial para você. Você merece.
Confabularam de novo. Aproveitou-se daquela pausa para olhar o lado da escada. Lúcio desaparecera. Sorriu. Seu plano dava certo. Faria o que escolhessem para executar, dizendo palavrões entre dentes. O palavrão sempre lhe dera coragem nos piores momentos de sua vida.
- Pronto. Você sabe dançar?
- Mais ou menos.
- Pois chegue-se perto daquela dama. Ela foi antigamente uma dama de cabaré e adora dançar um tango.
Ficou indeciso a olhar a mulher nua de peitos pequenos e escuros. As ancas largas. As coxas bem unidas e endurecidas pela morte. Sua boca não se fechara no momento final e ela conservava um rictus de desânimo, e pelo canto dos lábios podia-se ver um dente mal incrustado, de ouro.
- Vamos.
Começaram a marcar compasso com as mãos e a cantar. Havia até os que assobiavam. Naquele momento jurava que para o resto da vida nunca mais ouviria "Ia Cumparsita.
- Vamos, Errol Flvnn, não podemos perder muito tempo com um só candidato.
Começou a xingar-se por dentro. "Não era isso que você queria, seu merda? Puta que pariu, agora não tenho escolha". Tinha que apelar para o cinismo.
- Alguém precisa me ajudar.
- Claro. Claro. Estamos aqui para isso.
Várias mãos trouxeram o cadáver da mulher que em pé parecia bem pequena.
- Abrace-a. Enlaçou a sua cintura.
- Vamos, minha Pavlova. Desculpe o mau jeito, dona. Era quase impossível arrastar numa dança macabra um corpo hirto, nu e gelado. Tinha que fazer. Já começara e eles próprios não teriam paciência de demorar-se muito. Cantavam e batiam palmas e o maldito tango não parava.
- Assim não, galã. Encoste o rosto na dama. Ela quer carinho.
E as mãos que suavam escorregavam na pele álgida. E o rosto frio colando-se ao seu. Tentava não respirar para sentir menos o hálito podre e desagradável. Encorajava-se, xingando-se de tudo, esperando que aquele tango chegasse ao fim.
- Pronto. Pronto.
Aplaudiram com uma alegria de bárbaros e ajudaram-no a colocar o corpo da mulher morta sobre a pedra fria. Puxou o lenço para desafogar seu desatino contido.
- Posso ir?
- NÃO. Você ajudou um amigo, agora precisa executar outra tarefinha tantinho pior, no lugar dele.
Toda sua coragem ruiu por terra. Haveria algo pior do que o tango? Se eles anunciavam isso, havia sim. Ficou resignado, à espera da nova tarefa.
- Está vendo aquele senhor deitado do outro lado?
Por Deus! Não iriam querer que dançasse com um homem morto...
- Não fique desanimado, Errol Flvnn. Você só vai dar um beijinho nele. Um beijinho de ternura amiga. Vamos.
Empurraram-no aos trambolhões.
Ficou um segundo espiando o homem morto. "Criolão filho da puta! Veja a sinuca em que você está me colocando?" Dessa vez nem os palavrões pareciam encorajá-lo. O homem deveria ter morrido afogado. Talvez fosse um daqueles pobres jangadeiros do Pina. Na certa, bebera, caíra da jangada e estava ali com os olhos arregalados e o bucho intumescido. Precisava cuidar-se e não apertar o seu ventre. Não ignorava que dali sairiam ruídos estranhos e os estudantes morreriam de prazer. Olhou o rosto com a barba por fazer de muitos dias. Infeliz! ter de morrer e com uma cara tão estúpida.
- Vamos. Um beijinho.
Cercavam-no para que não pudesse furtar-se das ordens recebidas.
- Dessa vez, como você foi bonzinho, só um beijinho de leve. Veja bem. "De leve", como você aconselha sempre.
Abaixou-se num átimo e beijou a face barbuda do cadáver.
- Assim também não. É abusar da nossa generosidade. Um beijinho na boquinha do moço. Vamos. Na boquinha.
As mãos aprisionaram-lhe os ombros e braços. Forçavam o seu pescoço para frente, e, quase a desmaiar, sentiu seus lábios se colando à boca rude do pescador.
Estava livre agora e o cerco se concentrava nos outros calouros. Pôs-se a caminhar, subindo a escada como se saísse de um túnel de tortura. Os pés gelavam-se mais contra a escada nua. Tinha a impressão que a escada morrera também. Passou a mão na testa para afastar os pensamentos mórbidos. O que passara perfazia uma quota muito grande para uma só pessoa. Agora, precisaria caminhar descalço até a Rua Nova. Ninguém se incomodaria, vendo-o descalço no bonde. Conheciam os usuários do Derby o costume dos estudantes em trote. Pensou no rapaz e sorriu. Cabra cagão! Medroso de dar dó. Apesar disso, deveria ser boa pessoa e de muito fina educação.
Saiu da Escola de cabeça baixa. Tudo passara. No próximo ano seria a sua vez de ministrar os mesmos atropelos a outros estudantes novos.
- Ei!
Ergueu a cabeça. O rapaz o esperava. Tinha recuperado a calma e a cor do rosto. O calor da rua fazia-lhe bem. Esperou que se aproximasse. Ele olhava o relógio no pulso.
- Ficaram todo esse tempo com você?
- Se ficaram.
- Puxa! Mais de quinze minutos. Que horror!
- Quinze minutos! Pra mim foram dois purgatórios juntos.
- Posso.saber o que lhe aconteceu?
Quis olhá-lo com certo menosprezo mas mudou de idéia porque havia sinceridade em todos os seus traços.
- Fizeram-me dançar um tango com a mulher, e a tarefa, que era sua, tive de executá-la.
- O que foi?
- Beijar aquele criolão bem na boca, sentindo a língua grossa, fedorenta e fria.
- Porra!
- Porra mesmo. Tenho que começar tomando uma puta duma cachaça pura e depois dois chopps gelados para desinfetar a alma.
- Vamos. Eu convido. Você me salvou a vida. Vamos, lá do outro lado da rua há um bar gostoso.
Caminharam em silêncio. Só depois de beberem o prometido é que se olharam abertamente. Estavam de novo vendendo mocidade e esperanças. Gargalharam ao mesmo tempo. No fim começaram a achar que tudo fora mesmo na base da gozação.
- Agora só restaria esperar o bonde e ir pro centro da cidade. Às quatro horas irão devolver os nossos sapatos. Você vem?
- Não. Você virá comigo. Tenho um carro. Assobiou admirado.
- Assim melhora?
- E como!
Saíram do bar e foram buscar o carro estacionado numa rua tranqüila.
- Só pra quem pode!
- Bem que eu queria um V-8 do último tipo, mas a "velha" não deixou.
- E fez bem.
Sabiam do que falavam e não se distenderam no assunto. Acomodados no interior do carro conversavam moleza para o tempo passar.
- Você não disse o seu nome. Eu sou Lúcio.
- Raul. Apertaram-se as mãos.
- Seremos bons amigos, não Raul?
- Acredito.
- Você não gosta de conversar ou ainda está sob a influência do trote?
- Um pouco de cada.
- Então vamos falar, porque ajuda a distrair. Onde você mora?
Ficou com vergonha de dizer. Tornou-se meio corado. Não respondeu.
- Eu moro no Hotel Central. Estou lá num apartamento muito bom. Desde que cheguei para o vestibular, instalei-me ali. Até que é bom. Quando começarem as aulas, acho que vou até procurar uma casa simpática ali pela Rua do Hospício.
Parou ante a hostilidade dos olhos de Raul.
- O que foi?
- Vou descer.
- Por quê? Disse alguma coisa que ofendesse?
- Só coisas que ofendessem. Você é podre, Lúcio.

Ao perceber a palidez e o desânimo do outro, retrocedeu da sua agressão.
- Estou dizendo besteiras, desculpe. Ê que nós somos muito diferentes. Eu moro numa pensão vagabunda na Rua da Praia. Perto do Mercado São José. Sabe o que há por lá? Não. Baratas, mau cheiro e putas baratas. A gente almoça, e de noite toma café com leite com banana-são-tomé ou um pedaço de macaxeira. O dinheiro que meu pai me manda não dá pra mais. Ainda tenho de trabalhar como censor no Colégio Carneiro Leão todas as manhãs. Essa é a merda da minha vida.
Lúcio puxou um cigarro. Ofereceu o maço e Raul não quis servir-se.
- Não fumo. Obrigado.
Lúcio soltou uma tragada comprida e acompanhou o fumo brigando contra o vento manso.
- Que posso fazer? A gente não pode mudar a face do mundo.
Raul sorriu. Deu uma palmada nas costas do novo amigo-
- Tem razão. Estou sendo cretino como uma vaca velha. Que horas são?
- Três e meia. Quer ir?
-- Vamos com calma. Há tempo. Recife é uma cidade calma. Os bondes têm sempre lugar e as ruas não estão muito cheias de automóveis.

* * *

Quando anunciaram a distribuição dos sapatos, foi aquela ansiedade. Todos fixavam o saco levantado, prestes a desabar. A estranha chuva se precipitou ruidosa nas pedras da rua. Todo mundo parava para ver a catação. Até os bondes deixavam de andar.
No fim, Lúcio que não perdera tempo, surgiu com um par na mão, orgulhoso da sua conquista.
- E você?
- Fiquei na mão. Apanharam os meus.
- Não tem importância.
- Pode não ter pra você. Pra mim faz uma diferença enorme.
- Fique com esses. Também não são meus. São pequenos para os meus pés. Quer?
Examinou o par de sapatos com cobiça.
- Puta merda! Que maravilha.
- Fique pra você.
- Vou experimentar. Soltou um assobio de prazer.
- Uma luva.
Judas Iscariotes entreabriu os olhos e o sol passeava em seu rosto, penetrando pelas folhas da figueira-brava. Estivera longe, sonhando.
A voz de Lúcio confirmava a realidade.
- Foi lindo, não foi?
- Foi. Agora me diga, Lúcio, os sapatos de quem eram?
- Meus mesmo. Se lho dissesse, você ficaria cheio de frescura e não os aceitaria.
Judas riu.
- Aceitaria sim. Porque os que perdi eram os meus únicos-sapatos.
- E bom sonhar. É muito bom sonhar. Quer voltar para a enfermaria ou continuar?
- Esperemos um pouco. Minha noite foi muito pesada e aqui me sinto tão bem. E como se antigamente estivéssemos juntos.
- Então vamos lembrar outra coisa que nos tenha encantado. Vou estalar os meus dedos.
- Por que, Lúcio, ouço o ruído dos seus dedos e não distingo as suas mãos?
- Você assim o quis. Lembra-se? Se quiser, posso mostrá-las.
Judas Iscariotes temeu por aquele momento e recuou.
- Não, agora não. Por favor.
- Está certo. Mas uma vez você terá que vê-las. Deixemos isso pra mais tarde.
Estalou os dedos e sua voz ordenou.
-Faça-se a noite!
E a noite se fez.
Do carro Lúcio buzinava com força e só parou quando Raul meteu a cabeça na janela. Tinha os cabelos úmidos e enrolava-se numa toalha.
- Desce ou subo?
- Acabei o banho agora. Melhor você subir.
Foi obra de um momento. Já estava sentado na cama de Raul, espiando e tagarelando enquanto ele se penteava e se vestia.
- Nós vamos jantar juntos. No Leite.
- Quem disse?
- Vai negar à sua capacidade estomacal um delicioso jantar no Leite?
- Espere. Vamos devagar. Eu estou cansado. Quero dormir cedo.
- Ninguém proíbe isso. Você não vai fazer cerimônia comigo. Sai à hora que quer. Se insisto é porque precisamos comemorar.
Raul deu uma risada.
- Você e suas comemorações. Vai dizer que hoje é o aniversário de uma cunhada que é prima em terceiro grau do marido de sua tia?
- Não. Hoje é coisa séria. Se bem que esse motivo, que você expôs, mereça o máximo respeito do maior cristão.
- Então diga.
- Quero comemorar porque ganhei uma aposta de minha mãe. Ela achava que nunca eu daria para médico. Sabia por antecipação que sempre me aconteceria "aquilo", quando eu me deparasse com um cadáver.
- E daí?
- Daí. Acabou-se. Posso assistir a qualquer aula de anatomia com a maior naturalidade do mundo. Como qualquer outro estudante. Cadáver pra mim agora é flor.
Raul riu.
- E sobre o parto? Também já mudou de idéia? Lúcio franziu o nariz meio descontrolado.
- Bem. Isso é mais duro. Porque o troço é nojento mesmo. Eu acho. Uma placenta balofa e remexente ainda me repugna a alma. Mas vou me dominar também. Mesmo porque não preciso viver presenciando isso. Minha intenção é optar pela Patologia. Por falar nisso, e você?
- Psiquiatria no duro. Sem tirar nem pôr.
- Esplêndido. Psiquiatria é um colosso. Quer dizer então que nós vamos jantar no Leite.
Era impossível negar qualquer coisa a Lúcio. Quando intentava algo, ninguém o demovia jamais.
- Então vá lá.
- Eu sabia. Porque faz mais de uma semana que você não aceita um convite meu.
- Precisa gravata, não?
- Lógico. Lá é um lugar muito chique. Raul apanhou uma gravata atrás da porta.
- Deixe eu ver isso.
Rodou aquilo que chamava de gravata nos dedos.
- Essa forca de Judas é que você chama de gravata? Será que você tem preguiça até de desatar o nó?
- Cadê tempo. Já deixo o laço armado e é só enfiar no pescoço e ficar enforcado.
- Não. Com essa nunca. Você é meu mendigo predileto mas não precisa exagerar. Olhe o que eu trouxe.
Enfiou a mão no bolso do paletó e retirou uma gravata. Falou com toda doçura possível.
- Não se zangue, viu? Eu trouxe essa porque combina melhor com você do que comigo.
O Leite era o máximo do luxo. Todos os turistas que aportavam em Recife faziam questão de jantar nele. Ali se reuniam os políticos do interior para discutir elegantemente os seus problemas. Ali a "Haute-Gome" piteirava as suas elegantes noitadas. Os garçãos precisavam de classe e disciplina. Geralmente eram importados do sul. Até às nove e meia só existiria mesa com reservas antecipadas e com boas propinas. Lúcio sabia disso e já providenciara tudo. O "maitre" o conhecia e os garçãos se inclinavam à sua passagem por entre as mesas.
Raul sentia-se eufórico, talvez porque tivesse bebido ura tal vinho especial. Especial como tudo que Lúcio inventava. Ficou indeciso quando Lúcio olhou o relógio e indicou-lhe as horas. A noite tomava um aspecto delicioso, tornando difícil raciocinar com lógica. Censor? Colégio Carneiro Leão? Levantar cedo? Ele mesmo? Podia traduzir o sorriso de Lúcio analisando todas as suas indecisões. Os olhos repetiam a sua filosofia de vida. Aproveitar o tempo enquanto há tempo. A vida é uma só. E o que se leva da vida é a vida que se leva. Por que sacrificar-se pelos outros, se os outros não evitarão que você morra sozinho, seu bobo. De mais a mais, se você perder um dia, um diazinho, ninguém vai se importar, vai? Invente qualquer desculpa. Remorso? Bobagem. Remorso se cura com café, aspirina e coca-cola, como qualquer ressaca...
- Depois não vá me acusar que eu não o deixei ir... Passou a mão na boca sem nada responder.
- A verdade é que você está gostando, não.
- Sei lá. Sinto uma alegria tão grande no coração que tenho vontade de gritar como uma arara flechada.
- Pois grite.
- Você está louco.
- Talvez. Apenas lhe pergunto: por que terminar uma alegria assim tão depressa? Por que não prolongá-la? As horas. Ora, as horas. Ora, bolas para as horas. A noite mal começou. A noite ainda é "baby".
- Ganhou, Lúcio. Quais são os seus planos?
- Um cabaré.
Saltou na cadeira como se a espinha fosse uma mola se partindo.
- Cabaré? Mas eu nunca fui a um cabaré.
- Pois uma vez será sempre a primeira. Quem o proíbe de ir?
- Duas coisas: dinheiro e idade.
- Duas coisas extraordinariamente bestas. A primeira, nem precisa me agradecer. É minha santa mãezinha que está pagando. Esqueceu do que falamos? A segunda faz rir a qualquer vaquinha de presépio. Idade? Porra, meu herói! Com esse físico dobrado tem lá investigador que vá interceptar a sua entrada?
Aproximou a boca do rosto de Raul. Falava entre dentes.
- Ouça, seu trouxa, eu conheço a meganhada toda. Eles vão me fazer mais festas do que esses pobres garçãos. Certo?
A idéia começou a empolgar a sua curiosidade.
- Que cabaré?
- O Atlântico.
Assobiou entusiasmado. Ir a um cabaré, depois poder contar um puta farol aos colegas. Ir a um cabaré era quase uma afirmação de masculinidade. E logo o Atlântico. Quantas vezes, tendo de ir ao bairro de Santo Antônio, olhava o prédio na esquina. Mudo e dormindo durante o dia. Escondendo o mistério das suas noites barulhentas. As escadarias que subiam e desciam o pecado. Tinha que ir. Talvez fosse preferível da primeira vez procurarem um cabaré mais modesto e não o mais famoso e importante da cidade.
- Tem que ser o Atlântico? Por que não um mais modesto? Afinal tudo é cabaré. Dá no mesmo.
- Aí é que você se engana. O filhinho da minha santa mãe não entra em qualquer pulgueiro barato. Nem por castigo. Pra se fazer isso, deve-se fazer bem feito. Oh! Mother, mother, como você sofreria se me visse aceitando os conselhos desse bocó.
- Tá bem. Não precisa me fazer do tamanho dessa xícara de café. Pois vamos ao Atlântico, e viva sua Motherzinha!
- Só é preciso uma coisa.
Lúcio já chamara o garçom para liquidar a conta. Todos os seus gestos eram finos. A vida inteirinha fora fabricada para que reinasse a sua elegância nas menores coisas.
- Está com a identidade?
- Claro. Há perigo?
- Nenhum. Apenas é bom ter-se sempre a carteira de identidade. Num cabaré, como num hospital, ou numa igreja. Só isso.
Nem sentiu o vento remexer-lhe os cabelos quando o carro de capota arriada atravessou a ponte, procurando o bairro de Santo Antônio. Apenas notou que o café Lafayette ficara para trás e o cabaré Atlântico também.
- Você passou?
- Ainda é um pouco cedo. Vou buscar uns pacotes de cigarros americanos com o barman do Grande Hotel. Você se importa?
Balançou a cabeça, compreendendo.
- Depois vou abastecer o carro. Assim mesmo, ainda poderemos girar um pouco, gastando o tempo. Vamos dar uma de mendigo, circulando pela praia do Pina.
- Lúcio, você não existe.
- Como não? Penso, logo existo. Não contrariemos agora o pai do Cartesianismo.
Deu uma gargalhada de encher a noite e abafar o ruído dos pneus rodando macios no calçamento.
- Estou me lembrando de algo. Como é mesmo o nome daquele plebeu? Aquele seminarista que se diz "dé-froqué"?
- Não tenho certeza, mas deve ser Ignácio. Ignácio, com G mesmo.
- Pois noutro dia ele falou uma frase notável. Eu tomei nota para decorar. Está de acordo com a minha teoria epicurista de vida. "Video meliora proboque, deteriora sequor."
- Lindo.
Raul bateu palmas.
- Lindo, mas que significa essa minhocada toda?
- Que o danado tem cultura, lá isso tem. Ê o próprio homem vacilante imaginado por Ovídio em suas Metamorfoses.
- Vai traduzir ou não?
- Vou, é claro. Mas como a gente tem que passar o tempo, prolonguei o assunto. Você é uma besta, não entende de nada na vida.
Deu um pigarro para impressionar e explicou solenemente a frase.
- "Vejo as coisas melhores e as aprovo, mas sigo as piores."
Raul colou a boca na mão e soltou um purrute estridente. Não haveria melhor coisa a fazer numa ocasião daquelas.
- Depois da aula de saber que lhe dei, acho que não custaria acender um cigarro pra mim, não?
Raul fingiu certa preocupação.
- Você não poderia parar o carro por um minuto? Lúcio diminuiu a marcha e encostou na calçada. O mar do Pina dormia na escuridão da noite.
- Pipi?
- Nem um pouco. Fixou o amigo intrigado.
- Então, por quê?
- Para você acender calmamente o cigarro. Não quer gastar o tempo?
Lúcio acendeu o isqueiro e levou-o ao cigarro nos lábios. Jogou fumaça pra cima e deu uma bruta risada. Ligou de novo a chave do carro e recomeçou o passeio.
- Sabe que você é um belo filho da puta também, seu ingrato.
Andavam devagar. No centro da rua uns pescadores vinham carregando os apetrechos da pesca. Nem adiantava traduzir os pensamentos de Raul. Vinha aquela lenga-lenga: "Os infelizes chegando do trabalho a essa hora e a gente indo pra farra"...
- Vamos andar depressa e passar bem junto daquela gente?
- Pra quê?
- Vamos xingar os plebeus. É danado de gostoso.
- Deixe pra lá.
- Você nunca fez isso, fez?
- Fiz sim, quando toda a turma viaja de trem nas férias. O trem vai saindo e a gente bole com meio mundo. Muitas vezes atiravam até pedras no trem.
- Então vamos.
Foi parando perto dos pescadores, botou a cabeça para fora e lascou o berro.
- Pobres!
Pisou no acelerador, gargalhando feliz. O barulho do carro só deixava aparecer o final do palavrão:... ta!... ta!
- Agora a noite está quase completa. Olhou o relógio.
- Vamos voltar. Está de bom tamanho.
Subiram a escadaria com calma. Raul queria disfarçar, demonstrando que estava habituadíssimo a freqüentar aqueles ambientes. Na realidade, seus músculos tremiam, chegando a doer. As batatas das pernas umedeciam-se, obrigando as meias a se encolherem. No seu nervosismo, os degraus pareciam estar subindo sobre seu amedronta-mento.
O diabo é que todos conheciam Lúcio. Já estava em uma mesa especial. Sorria para todos e acenava para os conhecidos. A semi-escuridão do ambiente acalmava um pouco os pulos do coração de Raul.
O garçom se aproximou.
- O mesmo de sempre, senhor Lúcio?
- Claro. Para dois. Melhor dito, traga-me uma garrafa de uísque.
- Alguma marca preferida.
- A de sempre, Hipólito.
O homem fez uma mesura, retirando-se.
Raul abaixou-se para consertar as meias descidas.
- Uísque, Lúcio?
- Claro, cretino. Não vai querer tomar raspadinho de tamarindo, como na festa da Madalena.

- Mas eu nunca tomei uísque.
- Pois vai tomar agora. E se pensa que é alguma coisa do outro mundo, vai se enganar. Uísque nada mais é do que cachaça educada em Oxford. A diferença só se percebe no preço e no gosto, que é muito melhor, e, ademais, a ressaca aparece sem azia. Só.
Olhou as mulheres decotadas e terrivelmente mal pintadas, sorrindo de longe, à espera de um aceno.
- Elas vão é chuchar! Não vou chamar nenhuma marafona daquelas. As menos piores aparecem um pouco mais tarde para se valorizar. Aquela de cabelo pintado de branco é a Lolita, um bonde. Aquela outra é uma espanholinha até regular, mas fala pelos diabos. Vamos deixar aqueles detritos pra lá. Opa! Tá vindo o uísque.
- Se você não quer nenhuma daquelas mulheres, que veio fazer aqui?
- Daqui a pouco eu mostro. Mas se você quiser, pode chamar aquela trempe toda para a mesa.
Raul pensou na nota magra de dez mil réis, que tinha de render pelo menos oito dias. Por nada no mundo abriria a carteira de estudante para apanhá-la. O garçom chutou para longe o seu dilema.
- Sirva primeiro ele.
- Não, por favor, primeiro Lúcio. Ele é freguês velho. O garçom obedeceu e Lúcio sorriu gaiatamente em sua direção.
- Duas pedras de gelo ou mais?
- Duas, Hipólito.
- E o senhor?
- Exatamente como o dele. Mas carregue mais no uísque.
Foi a vez de Lúcio se espantar. Não demorou-se muito naquela atitude porque algo o preocupava.
- E ela?
- Canta dentro de cinco minutos. Já sabe que o senhor chegou.
Lúcio ergueu o copo.
- Tintim.
- Tintim.
- Quem é ela, Lúcio?
- Uma flor. Veio de São Paulo. Estou louco.
- Vai me emprestar depois?
- Quando passar minha paixão, talvez.
- E essa paixão é pra mês ou dois dias?
- Sei lá. De repente a gente dá uma de japonês: Pau duro, coração mole. Pau mole, coração duro. Não sei não, essa está abalando as esferas do meu rolimã.
A música tocou um prefixo meio nostálgico. As luzes começaram a diminuir no salão. Lúcio apertou a manga do paletó de Raul.
- É ela. Olhe bem.
Tudo escureceu como por milagre. Surgindo não se sabe de onde, um foco de luz caiu sobre uma mulher, defronte a um microfone.
Palmas estrugiram e vozes exclamaram aos brados.
- Ivonete!
- Ivonete!
Assobios e barulhos de copos se brindando.
Ivonete abaixou a cabeça com uma dignidade impressionante. Levantou uns olhos muito negros para cima. Colou a mão direita aos lábios e jogou um beijo para o público. Aquele beijo, na certa, possuía um só dono.
Raul sentiu uma estranha comoção. Algo havia de errado nele. A mulher era linda, linda, tão linda como nunca vira. Os cabelos negros estavam puxados para trás, amarrados num coque. Duas argolas de ouro balançavam-se nas orelhas. O silêncio tornou-se maior.
Só então a orquestra introduziu o começo de uma marcha-frevo. Sim, uma marcha-frevo tristíssima. Tinha de ser assim. Cabaré é primo de tango e sobrinho da tristeza.
Raul engoliu em seco. Nervosamente levou o copo de uísque aos lábios. Queria refrescar a sua angústia.
Ivonete retesou o corpo, abriu mais os olhos negros, como se procurasse consolo no negror do ambiente, e principiou a cantar. Nunca mais esqueceria aquela música e aquela letra.

"Que vais fazer, mandarim,
com esse sorriso cruel?
Ele vai se esquecer de mim,
soltando papagaios de papel".

Tornou a repetir o refrão. E continuou música afora, com a tristeza aumentando nos olhos umedecidos de emoção.

"Foi ele, que após a dança,
beijou-me as tranças e jurou paixão...
Oh! Esse chin prazenteiro
foi o primeiro
na profissão"...

Repetiu uma ou duas vezes a marcha-frevo. E quando acabou, não deixaram que ela se arredasse do microfone.
Ivonete repetiu tanto o frevo, e o público só parou de bisá-la quando, pela última vez, as lágrimas baixaram pelo seu rosto moreno.
Era um delírio ensurdecedor. Tudo se aplacou quando as luzes se reacenderam e Ivonete desapareceu.
Lúcio virou-se para perguntar se gostara e viu que Raul chorava.
- Mas rapaz, o que é isso?
- Não sei. Foi me dando uma coisa. Uma tristeza apertando meu peito; nem sei explicar.
- Que bobagem, Raul. Aquilo é palco. Ê tudo ensaiado.
- Eu sei que sou uma égua mesmo. Mas vi tudo pelo lado contrário.
- Beba mais um uísque, que passa.
Colocou mais gelo e mais bebida em seu copo.
- Ela não é linda?
- Nunca vi tão linda assim.
- Depois ela volta para cantar outro número. Pena não deixarem que ela cante outra música. Precisa repetir, repetir...
- Deve ser horrível.
- Que nada. Ela ganha para isso. Pomba! Veja se melhora essa cara de bezerro desmamado que toma leite em pó! Se soubesse que iria ficar assim, nem o teria trazido.
-Deve ser do álcool. Sem álcool já sou um cretino para ficar com os olhos cheios d'água...
- Quer ir agora?
- E Ivonete?
- Só sai depois das quatro. Levo você e depois venho esperá-la.
- Tá bem.
Hipólito já estava ali pressuroso, recebendo a conta e a gorda caixinha.
Raul descia as escadas com mais calma, muito embora o corpo estivesse amolecido pelo uísque. Que diferença daquela sofreguidão que quase lhe embargava os passos ao subir. O som da música se perdia a cada degrau descido. Na rua, ele ficava tão longe, tão alto, como se pertencesse ao céu. A rua era dos mortos. Podiam passar um leiteiro, um jornalista que se recolhia do Jornal do Comércio, ou uma puta da mais baixa estirpe ainda tentando dar uma canoada.
Fazia bem colocar a cabeça meio pendida para fora do carro e receber os últimos e doces ventos da noite. O silêncio de fora restituía a paz, tão comprometida nas derradeiras horas.
- Gostou?
- Foi uma noite fantástica. Tudo maravilhoso.
- Não, sua égua, falo da mulher.
- Além da imaginação. Entretanto...
- O quê?
- Nunca dormiria com ela.
Lúcio ficou tão intrigado que brecou o carro com certa violência.
- Por quê? Por ser uma puta?
Não, não. Não é isso. Não seria a primeira prostituta com quem me deitaria. Justamente porque ela me despertou sentimentos antípodas.
Como Lúcio em silêncio esperasse uma explicação, constrangido, pôs-se a esclarecer os seus pensamentos.
- Sabe o que foi? Talvez por ter tomado muito uísque...
- Lá vem a culpa sobre o pobre uísque.
- Talvez ele tenha afrouxado a minha censura. A verdade é que...
- Desembuche logo, homem de Deus. Você está cheio de nós górdios.
- Pois bem. Quando eu vi aquela mulher. Os olhos tão negros e cheios d'água, a pele tão fina, tão branca e transparente. Com as mãos esguias e angustiadas, segurando a haste do microfone... Eu não vi uma puta cantando. Ela se transformava numa das madonas sofredoras de El Greco, com aqueles pescoços finos e expressivos.
Lúcio sorriu complacente.
- Jamais vi um cretino tão romântico. Vamos parar de sonhar.
Estalou os dedos.
- Faça-se o dia novamente.
Raul entreabriu os olhos mortiços, e, em cima da sua cabeça, as árvores balançavam as folhas, numa pequena dança do verão que começava a ir. Passou a mão no peito, que resfriara sob aquela doce sombra.
- Lúcio! Você ainda está aí?
- Claro.
- Foi tudo tão lindo, não?
- Foi. A mocidade é a única parte dessa porca vida que possui algum significado. O resto é estrume. Pense no que fomos. Olhe o que restou. Veja a fotografia da asarcia em que você se transformou, Raul.
- Não falemos nisso agora. Naquele ano, quando as férias chegaram, você viajou com a sua avó para a Inglaterra. Eu fiquei na minha praia do Meio, em Natal, gozando o sol violento do verão.
- Foi naquela trágica viagem à Europa que comecei a descobrir o que me esperava.
Raul concordou.
- Sim, na volta da viagem você começou a se tornar triste e indiferente... Vamos mudar de assunto.
- Sabe, Lúcio, que a guerra está ameaçada de acabar?
- Claro que sei. Os sinos dobrarão por toda a parte.
Haverá risos em todos os corações, paz em todos os olhares. E as ruas encher-se-ão de novos mutilados. Belo quadro, pois não?
Raul sentiu-se novamente mal. Os olhos de Lúcio, magnetizados, pousavam sobre o seu joelho inchado.
- Por favor, Lúcio. Desvie o seu olhar da minha perna.
- Ora, não seja idiota.
As áscuas do seu olhar aterrorizavam. E não podia desgrudar-se daquele magnetismo. Mordia-lhe o peito um desespero pungente.
- Por favor, Lúcio. Não estrague as belas horas de sonho que você me proporcionou.
- Eu não proporcionei nada. Não sou eu quem controla as oscilações da sua catarse. O produto do seu remorso é simplesmente você.
Olhava profundamente o joelho se avolumando no pijama vagabundo. Parecia querer serrar-lhe doridamente a parte atingida pelo sarcoma. Por isso falara da guerra e dos mutilados tão cruelmente.
- Não precisa me acusar dessa maneira. Estou por pouco, Lúcio. Talvez na próxima semana terei decidido amputar a perna. É isso que você quer?
- É uma pena. Uma lástima que não possa mais dançar um tango argentino em meu lugar.
- Eu o faria novamente.
- Faria? E quantas outras coisas você também não repetiria"? Não precisa negar: é uma evidência.
Raul foi tomado de grande fraqueza e, empapado de suores gélidos, mal podia segurar o joelho para escondê-lo daquela perfuração de Lúcio.
- Por que me trouxe aqui, Lúcio? Não foi só para recordarmos fatos tão marcantes da nossa juventude, foi?
- Que acha? Vou lhe contar a verdade. Depois de uma noite como a que você passou, talvez fosse mais fácil induzi-lo...
- Induzir dessa vez a que, Lúcio?
Lúcio soltou uma risada irritante.
- Convenci-me de que Tiago, o Maior, teria mais coragem do que você em procurar a paz sob a roda de um ônibus. Então pensei trazê-lo para esse pequeno passeio. Pense bem, a manhã está encantadora e há um sol todo carinho, convidando para um sono diferente.
- Cale-se!
- Não adianta tapar os ouvidos. Minhas palavras penetrarão no âmago da sua consciência. Olhe em redor. Veja o que está sobre os tentáculos dessas raízes. Ali mesmo, enrodilhada como uma doce e escura cobra. Uma muçurana de veludo, Raul.
Apavorado, descobriu a corda repousando enovelada entre as raízes da figueira.
- A corda você já tem. A figueira é toda sua, Judas Iscariotes.
- Não irei, Lúcio. Não farei o que você quer.
- Se existe alguma dificuldade, eu ajudarei a arremessar a corda ao galho. Construo um nó macio, silencioso e deslizante.
Raul sentiu os olhos enevoarem-se. Controlou o peito para que a pergunta nascesse com mais calma.
- Foi por essa razão que você me trouxe aqui, Lúcio. O que dói é a falsidade de todos esses momentos de sonho e amizade. Como pôde até enlamear a pureza de nossa amizade? Por que levantar até uma suspeita sobre a grande dignidade que existiu entre nós dois?
- Eu?
- Você, Lúcio. Você chegou até a insinuar amor entre nós dois. Tudo para trazer-me junto desse laço e dessa figueira. Por que conspurcar o amor que é um sentimento tão sagrado?
-Bobagem. É cretinice sua. Não há amor na vida. Em nenhum momento da vida, sabe? A morte sim. A morte é amor. A morte é um sentimento muito maior e mais profundo que o amor. É nisso que você se confunde.
Tornou a olhar duramente. Primeiro para o joelho de Raul. Depois para a corda enrolada nas raízes da figueira.

 

CAPÍTULO 13 - O Tapete do Evo

O desalento de Simão Pedro contrastava com a aparente calma da enfermaria. Em vão tentava disfarçar o seu desânimo. "Bobagem, Simão Pedro, a vida é assim mesmo. Sobretudo pra nós que temos de esperar a chegada da noite, o começo do dia, o começo da noite, a chegada do dia. E depois, pronto! Mas a verdade, coração, é que até a gente chegar a esse pronto! - o tempo às vezes demora muito."
Não criava coragem nem para mexer o corpo no leito. Ficaria, sabia lá quanto, com as mãos perdidas entre as coxas finas, o rosto fixado entre o armário inútil dos remédios e a cama dos dois mortos. Aquilo, sim, doía. A consciência de que o sono de Judas Iscariotes, prolongado pelos entorpecentes, criavam-lhe um aspecto circunstancial de morte. Por que Deus em toda a sua misericórdia não o levava durante aqueles períodos de inconsciência? Seria apenas uma ligação de sonos, sem dor, sem desesperos. Dava pena ver o rosto se afilando e o corpo perdendo as carnes cada dia. Arrepiava conhecer a sua luta para não deixar que lhe amputassem a perna. Protelando sempre, conseguira passar quase o verão. Por que se agarrava tanto a uma perna, a um joelho condenado a um suplício contínuo assim? Logo ele que estudara medicina, que não ignorava nada do que teria de acontecer.
Simão Pedro engoliu a saliva salgada do fracasso lentamente.
A vida parecia mesmo um tapete eterno, como naquelas histórias de criança, em que se viajava sempre voando. Por mais que viajasse depressa o tapete, havia momentos em que ele parecia pairar no ar esperando pelo vento da desesperança para tocá-lo mais adiante.
Virou a cabeça desanimado e deu com os olhos de João que abaixara a Bíblia para fitá-lo. Parecia ler-lhe os pensamentos. E João sorria. Sorria como a estimulá-lo. Aquele não parecia temer nada. E quando a Senhora das Moscas lhe estendesse as mãos, partiria como um justo, com o sorriso de quem achou a viagem do seu tapete a coisa mais maravilhosa que tivera.
Desconcertado, tornou a voltar a cabeça para as duas camas divididas pelo armário.
Tomé dava uma pena total, que logo desaparecia. Não se sabia bem o que era nem o que poderia estar sentindo. Mas Judas, não. Falava, falava tão bonito. Uma pena! Sentiu uma pontada tão dolorida no peito que precisou beber um pouco de água. Judas ainda não sabia de toda a realidade. Ignorava que mais dia menos dia teria o membro decepado.
Aí Simão Pedro contou, com dificuldade, nos dedos mirrados. "Ontem, foi dia de visitas. Hoje é sexta. Amanhã, sábado. Ele terá o domingo para caminhar com as duas pernas. Mesmo que se rebente de dor e uive, ainda estará marchando com as duas pernas. Mas a segunda foi o dia marcado pelo médico para fazer a operação.
- Olhe, Pedro, falara-lhe Dr. Tiago, você, que tem jeito e calma, vai dar a notícia devagarzinho a ele, quando ele retornar do efeito da morfina.
Não tivera coragem de dizer, não. Agora carecia esperar que acordasse para aos poucos transmitir-lhe o recado amargo. Juntara as duas garras nervosamente. Por que ele não ia embora durante aquele sono. Por quê? Por que o seu tapete não tomava logo o rumo ignorado de uma noite que nunca voltava?
Felipe entrou às gargalhadas na enfermaria. Fez tanto barulho que acordou aqueles que ainda podiam acordar.
Bartolomeu apertou os olhinhos matreiros, ansioso pela novidade.
-A praga da Peste! Castigo anda a cavalo. Pensa que é só judiar dos outros e não ter volta?
Pulava grotescamente no meio das camas, segurando o pescoço com mais força para que não desabasse com os movimentos da sua dança frenética.
Aquilo afastou os pensamentos atrozes de Simão Pedro. Aproximou-se de Felipe. Esperou calmamente que ele parasse. Felipe fez ainda umas cabriolas e jogou-se com força, sentando-se na cama de Bartolomeu.
Parou de rir e ensaiou uma voz de falsete.
- Alfredo! Alfredo!... Não me abandones nesse momento. O que será do nosso filhinho?...
Ria desbragadamente da sua própria inventiva.
- Agora, minha gente, acabou-se.. A puta da vacona se estrepou.
- De que você está falando, seu doido?
- De Madalena.
- E que é que tem?
- Veio um investigador com o dono da casa e levou de volta o seu rádio. Bem feito! Foi praga minha. A sacana daquela velha só sabia grudar a orelha nele, mas pagar que é bom, não pagava.
Houve um silêncio geral. Ninguém dizia nada. Só os olhos grandes dos doentes observavam espantados o rosto de Felipe. Depois os olhos foram mudando de expressão. Não adquiriam a mesma satisfação de Felipe e sim uma estranha tristeza.
João foi o único que interpelou Felipe. O seu sorriso desaparecera, muito embora sua voz permanecesse,calma.
- Seu coração achou isso bom, Felipe?
- Achei e muito. E pena que não tivesse sido há mais tempo.
João abanou a cabeça inutilmente.
- Mas isso é vingança, meu amigo. E Deus não gosta de vingança.
Felipe encolerizou-se.
- Ora Deus. Deus que vá lamber sabão! Você fica aí com indigestão de Deus, só falando besteiras sobre Ele. E Ele o que é que faz pela gente? NADA. Nada de nada. O que faz por você? Também NADA. Você acha que Ele vai perder tempo com essa merda de gente que somos? Pois olhe. Olhe bem o que vou fazer.
E ante o espanto de todos, segurou no sexo e gritou com mais raiva.
- Taqui pra Deus!
João persignou-se e falou com humildade:
- Perdoai-lhe, meu Deus, ele não sabe o que fala.
- Não sei. Não sei, uma merda. Não sei. Se Ele se importasse conosco mandaria agora mesmo um raio me matar. Por que não manda?
Virou-se danado e saiu da enfermaria. Não obstante, um mal-estar entremeado de medo grudou-se nas paredes da enfermaria e na alma de cada um. Felizmente Deus não dava importância às palavras de um maluco daqueles. Sua bondade era muito maior do que esta tontice.
Simão Pedro pensou em voltar para a cama. Hoje o dia estava marcado para o vôo do tapete eterno. Ele pairaria no ar por mais tempo ainda. Precisava inventar uma coisa muito forte para espairecer e arejar suas esperanças.
- Pedro!
Atendeu ao apelo. Era Bartolomeu.
- O que quer você?
- Sente-se aqui, por favor.
- Pronto.
Seu rosto estava mais pálido do que de costume e os olhinhos de macaco travesso pareciam umedecidos.
- Ficou com medo das palavras de Felipe, Bartolomeu? Não tenha medo; nada disso tem significado para a grande Glória de Deus.
- Não. Não fiquei. Eu já estou acostumado com as maluquices dele. No fundo, ele é uma boa pessoa. Não deve ter dito aquilo de coração. Só para irritar João. Também, aquela beatice de João enjoa qualquer cristão, não acha?
- Não sei não. Cada um sabe o que se passa dentro de si.
- Sabe o que é, Pedro? Eu estou com medo. Outro medo.
- Conte. Contando, talvez você melhore. Bartolomeu tentou aproximar o rosto do ouvido de Pedro. Apesar do terrível mau hálito, Pedro curvou-se para escutá-lo.
- Pedro, já faz dois dias que eu estou com uma eólica horrível.
- Onde?
- Aqui. Mostrava-lhe o estômago.
- Pode ser de alguma coisa estragada que você comeu. Não sentiu dor de barriga?
- Pouquinho. Quando Felipe me levou ao banheiro disse que eu estava podre.
- Então é isso. Ê só pedir um remédio ao Dr. Tiago e ele resolve tudo.
- Será?
- Claro. Mais alguma coisa?
Bartolomeu ficou meio indeciso, mas como começara a contar precisava acabar.
- Também sinto uma fisgada fina como se fosse picada de agulha aqui no braço sadio e do lado do peito.
- Não é nada. Desarranjo pode dar isso também.
- Mas estou com medo, Pedro. Quando esse lado morreu, senti uma dor parecida. Parecida e mais forte.
- Bobagem. Não vai ser nada. Amanhã a gente conversa com Dr. Tiago e ele descobre tudo e cura. Descanse. Tente dormir um pouco. Você vai ficar logo bom.
Falava sem convicção, e naquele estado de espírito foi procurar o leito. Sabia que continuaria a fitar o armário entre os dois mortos.
Estaria esperando que o tapete eterno recebesse os bons ventos. Quando a Ceia chegasse, ajudaria os outros e tentaria esquecer-se de tudo.
Abriu mais os olhos porque Judas Iscariotes remexia-se na cama e prenunciava acordar-se.

* * *

Quando a Ceia apareceu todo mundo começou a tomar as suas precauções. O Demônio bebera. Não se encontrava completamente ébrio, mas os seus olhos avermelhados chispavam. Fazia tudo com brutalidade. Atirava tudo com estardalhaço. Não queria fitar ninguém e seu mutismo amedrontava mais.
Saiu sem ajudar ninguém a se servir. Quando voltou, uma hora mais tarde, a noite já se fizera quase. Retirou tudo para dentro da grande bandeja com gestos mais vacilantes. Comprovava que naquele intervalo voltara ao bar para beber.
Foi um alívio quando desapareceu sacolejando as panelas na descida complicada dos degraus.
Simão Pedro ainda comentou para João:
- Será que ele não volta?
- Difícil. Quando levar a bandeja pro refeitório, vai pro seu porão e dorme até amanhã. Quando acordar, já nem se lembrará do que aconteceu.
- E se a gente fechasse a porta?
- Não é necessário. Aquela porta traz o único vento da noite para abrandar o nosso calor.
Todos já se tinham recolhido para o sono. Inclusive Felipe, esquecido da discussão, começara a pender a cabeça fora da cama para a imobilidade de pedra.
A mesma opressão continuava no peito de Simão Pedro. O sono daria fim àquilo tudo. Amanhã seria outro dia. Nem sequer criara coragem de visitar a cama de qualquer enfermo para dizer uma palavra amiga. Apenas molhara os lábios de Tomé que tinham pedido água. Foi com alívio que viu Madalena apagar a luz da enfermaria. Seus olhos fecharam-se fatigados, recebendo o sono querido por que tanto aguardava. Não podia precisar se dormira muito, ou se sonhava. A verdade é que a luz estava acesa de novo na enfermaria. Esfregou os olhos para orientar-se melhor. Tinha certeza de ter visto Madalena girar o comutador. Algo de muito estranho deveria estar acontecendo para que a luz se reacendesse assim. Talvez Bartolomeu tivesse piorado e precisasse de socorro.
Uma risada debochada repercutiu por todo canto.
O Demônio, completamente embriagado, sem camisa, estava se apoiando na porta da entrada da Ceia.
- Vocês hoje vão me pagar, seus putos!
Caminhou até a mesa e ficou batendo com força contra o mármore gelado.
- Todo o dia eu levo carão pelas porcarias mal feitas que vocês fazem. Hoje vou me vingar.
Ninguém se mexia. O medo tolhia qualquer movimento.
- Pois é. Eu vivo aqui como se estivesse numa prisão. O mais que posso fazer é tomar uma cachacinha no bar. Passo meses sem saber o que é o gosto de uma mulher.
Riu com mais estridência e desequilíbrio.
- E aqui dentro tem um que é branquinho como uma fêmea. Pensam que eu não reparo quando dou banho. Muitas vezes eu já tinha pensado nisso. Quando passava sabão naquela bundinha bem feita eu pensava: Muita fêmea não tem uma coisa tão bonitinha assim, nem tão lisa. Sabem de quem eu estou falando, não? É daquele.
Apontou para a cama de Tiago.
- É ele. Tem uma cabeça grande, feia pra burro. As pernas são engruvinhadas como cipó. Mas atrás não. Vocês não viram como eu vi, quando dou banho nele e fico passando a mão naquela carne macia.
Arrotou forte e passou a mão na baba que escorria pelo rosto.
- E ele é limpo e branquinho. Não é como vocês, cambada de porcos filhos da puta!
Balanceou-se para o lado do leito de Tiago. Os olhos já estavam soltando lágrimas.
- Pare de chorar que ainda não lhe fiz nada. Nem vai doer, seu bobo cabeçudo!
Virou-se para o olhar atarantado de todos e, enfiando a mão no bolso da calça, retirou uma faca sem bainha. Passou o gume na boca, sorriu e ameaçou.
- Quem se meter a besta, destripo os intestinos para fazer lingüiça!
Tiago começou a gritar como um louco! Sua cabeça revoluteava tanto que parecia querer saltar do fino pescoço.
- Calma, calma, branquinho.
Com a faca habilidosamente cortou os cordões que amarravam as calças do pijama de Tiago.
- Vamos virar essa coisinha branca para cima. Bundinha redonda de nenê.
O paralítico suspendeu os braços para agarrar-se à grade da cama e tentar suspender o corpo. Talvez pensasse arremessar as pernas de cipó retorcido fora da cama e fora do alcance do bêbado.
- Pare com isso, garoto.
Espetou devagar a faca no punho esquerdo de Tiago, fazendo os seus dedos se soltarem. Repetiu a ação com a mão direita. A dor obrigou o rapaz a ceder e escorregar para a cama.
-Seja bonzinho que eu não quero cortar você.
Enfureceu-se brutalmente.
- Pare de gritar se não quer que eu corte o seu pescoço!
Madalena apareceu embrulhada no velho robe desbotado. Nem podia acreditar no que seus olhos presenciavam. Tremia como vara verde e quando descobriu a faca brilhando na mão do Demônio, voltou de carreira para o quarto. Trancou a fechadura com duas voltas, afogou-se, apesar do calor, debaixo da coberta. Tapara os ouvidos apavorada. O próprio coração vibrava tão alto e descompassado que encobria todo o ruído lá fora. No dia seguinte procuraria saber como terminara tudo. Não tinha a quem recorrer e não possuía coragem para enfrentar um homem bêbado e armado. João persignou-se e recomendou a Pedro.
- Vá, Simão Pedro. Talvez você falando, ele mude de idéia.
Simão Pedro seguiu o conselho. Estava mais branco que o pijama e seus cabelos prateados. Seus lábios tremiam disritmados.
Tocou nas costas do Demônio, que tentava virar o corpo de Tiago de bruços.
Ele virou-se babando e de olhos fumaçando.
- Eu avisei que não queria que ninguém viesse se meter. Porém vendo a velhice de Simão Pedro, apenas encostou a mão em seu peito e empurrou com força. O corpo do velho rodopiou arremessado e foi bater de boca contra a cama de Tadeu. Os tremores não deixavam que se levantasse.
- Magoou-se Simão Pedro?
Era Judas Iscariotes que o encorajava. Era a mão de Simão, o epiléptico, querendo reerguê-lo.
- Um pouco. Só um pouco.
Um filete de sangue escorria do lábio inferior, aberto pela pancada. Doía menos que a humilhação.
- Eu vou até junto dele.
- Não vá. Ele matará você, Judas Iscariotes.
- Vou sim. Terei forças de chegar até lá. Basta que vocês dois me sustentem por um instante até que eu consiga equilibrar-me de pé.
Tentaram aquela manobra embora descressem do resultado. Mas alguma coisa urgia ser feita. E eles eram pequenos, doentes e impotentes para conseguirem salvar alguém. E não vinha socorro de nenhuma parte. Era rezar no coração e esperar a caminhada de dor de Judas Iscariotes.
O Demônio estava quase conseguindo prender o corpo de Tiago de bruços sobre o colchão.
Judas estava a um metro da cena bestial. O que aconteceu causou maior espanto ainda entre os enfermos.
Ele soltara uma gargalhada estridente que revelava uma satisfação imensa.
O próprio Demônio desvirou-se meio apalermado. No olhar de Judas morava o deboche e a cobiça.
- O que você quer?
Mostrou-lhe a faca novamente empunhada.
Onde Judas Iscariotes fora buscar tamanho cinismo?
- Bem, companheiro. O amigo não vai querer aproveitar sozinho, vai?
O Demônio achou engraçada a idéia.
- Quer dizer que você também...
- Claro. Pensa que só você enxerga as coisas? Eu também, meu amigão. Eu já tinha visto muitas vezes esse negócio aí cor-de-rosinha...
Apontava com o queixo as nádegas desprotegidas de Tiago.
- Eu também sou filho de Deus. Também estou num jejum dos diabos dentro dessas paredes podres. Mas que você tem bom gosto, isso tem!...
O Demônio ria desbragadamente. Estava se deliciando com a idéia.
- E quem é que vai primeiro?
- Pode ser você. Mas o certo é a gente tirar a sorte. Quer?
- Não tenho uma moeda.
Judas abriu a palma da mão e apresentou um níquel.
- Seu sacana, você pensa em tudo.
- Até que não. Acho que por direito você quem deveria começar. Mas se for um trato feito entre dois machos, -aí, sim, é bom a gente tirar a sorte.
O Demônio olhava o seu rosto, tentando descobrir uma trapaça.
Judas sorriu safadamente, tentando disfarçar aquela suspeita.
- Cara, você.
- Coroa, você.
Simão Pedro encontrava-se tão fascinado que esquecera até a dor do seu ferimento. Que estaria maquinando Judas? Não poderia perder um só dos seus gestos, porque talvez ele convidasse a Simão e a ele para agir.
A moeda foi jogada em cima da mesa. Pulou com um tilintar macabro. Rodopiou e foi morrendo em pequenos gritinhos.
- Cara. Judas exultou.
- A sorte foi amiga. Ganhei.
O Demônio ficou cocando a barba com grosseria.
- Tá cum sorte, seu sacana. Até que é bom. Assim você é quem se machuca indo primeiro. Eu vou pegar o negócio já macio...
Fitaram-se por um segundo e riram ao mesmo tempo.
- O que está esperando agora?
- Que você me ajude. Só você pode.
- Não vá dizer que depois de tudo você...
- Nem sombra disso. Pareço sempre um bode novo quando vejo uma coisinha dessas. Mas assim a frio é meio chato. Você preparou tudo, esquentando-se no bar. Eu não.
- Que conversa comprida é essa.
- Juro por Deus! Beber uma coisinha é coisa que não me deixam fazer há tanto tempo quanto isso. Você bem poderia me ajudar. Não tem um pouco de pinga no seu quarto?
- Tudo vazio. Nem fundo de garrafa.
- Não tem gaita pra comprar?
- Tou duro como essa mesa.
Judas enfiou a mão no bolso do pijama.
- E isso dá?
Entre os dedos exibia uma nota novinha de dez mil réis.
- Dá?
- Se dá. Mas eu preciso atravessar a rua e ir buscar no bar.
- Dá tempo. A noite é muito comprida. Mas não se demore.
Os olhos do Demônio brilhavam de cobiça ante tanto dinheiro junto.
- Topa?
- Topo.
- Mas não demore que eu estou louco. Louco para fazer as duas coisas.
- Trago duas?
- Duas é melhor. Uma a gente toma antes para esquentar e a outra, depois para comemorar. O troco é seu.
O Demônio saiu tão alegre que esqueceu a faca em cima da mesa da Ceia. Ouviram os ruídos dos seus passos descendo a escada dos fundos da enfermaria.
- Por favor, Pedro, a porta.
- Simão, tranque todas as janelas. Ele não vai voltar. Mas é melhor garantir.
Judas ajudou Tiago a desvirar-se e acalmou-o.
- Já passou. Já passou. Daqui a pouco você está dormindo e amanhã pensará que tudo não passou de um sonho mau. Cubra-se bem que esses arrepios são mais de nervoso do que de frio.
Simão Pedro retornara da sua missão. O que restava da cena era apenas aquela faca nua sobre a mesa.
- Vou guardá-la, não acha? Amanhã contaremos tudo ao*Dr. Tiago e mostraremos a faca.
Judas riu. Seu rosto estava empalidecendo. A dor morava novamente em todos os seus traços.
- Não sei se conseguirei voltar à minha cama.
- Conseguirá. Nos o ajudaremos. Apóie-se em Simão e em mim. Vamos devagar para que sua perna doa menos. Você falou que a noite é muito comprida. Pois vamos. Não temos pressa nenhuma.
Judas Iscariotes deitou-se e Pedro trouxe-lhe uma caneca d'água para que tomasse um comprimido.
- Não vai adiantar muito, Simão Pedro. Isso agora é muito fraco. Minha dor exige remédio cada vez mais forte.
Bebeu o sedativo e ficou olhando para o teto. Queria confirmar se tudo a que assistira e de que participara era realidade. Lúcio tinha prognosticado que durante "certo" período viveria entre a dúvida e a alucinação.
Simão Pedro fez menção de erguer-se da ponta da sua cama.
- Não vá ainda. Fique mais um pouco. Por favor, converse qualquer coisa. Acho que estou melhorando mesmo.
- Como foi que você imaginou essa saída Judas? Sorriu.
- Não sei. Talvez na minha vida já tenha acontecido algo parecido com isso.
- Você estava certo de que o Demônio iria engolir aquilo tudo?
- Não. Mas a gente tinha que arriscar. Que mais no mundo se poderia fazer? Foi bom haver um final feliz.
- Por que você acredita que o Demônio não voltará mais hoje?
- Isso é mais fácil de deduzir. Ele está bêbado. Chegando ao bar, beberá um pouco antes de voltar. E bebendo sempre, esquecerá tudo. Ficará tão bêbado que mal poderá chegar até o seu quarto. Amanhã nem saberá o desatino que praticou.
- O Dr. Tiago vai mandá-lo embora?
- Não, você sabe melhor que eu. Quem poderá fazer o que ele faz com o dinheiro que ganha? Lavar essa enfermaria-merda, doentes-merdas, trazer comida-merda, viver sua vida-merda... Dr. Tiago falará com ele e ele vai prometer. Mas não sairá nunca. Ê como Madalena.
Começou a fechar os olhos. A boca entreabriu-se e a respiração meio ofegante aumentava seu peito emagrecido. Ainda teve forças para concluir.
- Foi uma pena. Pena que eu tenha tão pouco tempo para andar e ter gasto tanta energia nessa caminhada. Meu bom Simão Pedro, não sei se caminharei mais uma vez até chegar aquela hora...

 

CAPÍTULO 14 - O Caldeirão dos Degenerados

Simão Pedro tornava a contar nos dedos. Mais um dia. Não. Menos ura dia para Judas Iscariotes. Um dia também a menos para todos. Mas para Judas as horas tinham um cunho mais definitivo. Queria aprisionar as horas, segurar os ponteiros, agarrar o tempo entre seus dedos deficientes. Queria pisar, fazer em estilhaços o relógio do seu desalento. E só conseguia engolir a saliva salgada e saburrosa. Parecia que tudo combinava para precipitar a realidade das desgraças. Se olhava para um lado, estavam os dois mortos. Se buscava com a vista o outro canto da enfermaria, esbarrava em Bartolomeu esperando a visita da Senhora das Moscas. Ele, que ansiara tanto em ver uma cama coberta de pontos negros, agora observava apavorado as janelas, esperando a qualquer momento surgir o enxame, a procissão das Fronteiras.
Felipe estava desconfiado que o desarranjo de Bartolomeu, nascido tão intempestivamente, não podia ter uma boa origem. E o mau cheiro que se desprendia das suas fezes prenunciava um breve desenlace. Os médicos não esconderam a verdade. Bartolomeu apodrecia todo por dentro. Estava sendo comido violentamente, rapidamente sumindo.
Felipe desistira de limpá-lo porque não reunia tanta força para aquilo. Muito menos seu amigo xipófago Mateus.
Madalena trouxera a novidade. Iriam providenciar um biombo, aquele biombo que escondia a vergonha da morte, para cercarem Bartolomeu. Assim evitariam a expressão do seu olhar quando as moscas viessem pacientemente sentar-se à sua cabeceira, ao lado dos braços, em volta da cabeça, na umidade dos lábios.
O que não permitiriam, isso nunca, é que os outros vissem o seu pavor à chegada das moscas. Os seus olhos analisando o engrossamento do cortejo. Os seus olhos observando se os olhares dos outros sentiam o mesmo prazer que sempre tivera quando elas apareciam em outro leito. Talvez até sua família tão numerosa o levasse para casa para que seu passamento se desse num ambiente de paz. Simão Pedro até que desejava isso, mas duvidava. Se não o quiseram vivo, por que tê-lo em seu ambiente, apodrecendo entre fezes e moscas silenciosas?
Se Simão Pedro possuísse capacidade de odiar, ainda que fosse um pouco, estaria imprecando contra João. João que prometia coisas tão lindas, falava de legião de anjos, de Aparições e de milagres... João tão calmo, João tão miserável que não rezava com mais força para que tanta coisa desgraçada não acontecesse por ali.
Tão aprisionado em seu tapete eterno que não parecia querer viajar tão cedo, Simão Pedro tomou a decisão de caminhar pelo parque dos ficus-benjamins e das figueiras-bravas. Não era momento para que os pássaros ainda cantassem no ambiente. Mas a sombra daria bálsamo ao coração.
- Escada dura. Dura como o esquecimento de Deus e dos homens.
Desceu com cuidado os degraus de cimento. Ontem o Demônio descera por ali com outras intenções.
- Ora diabo de pensamentos. Só coisas tristes. Só coisas tristes. A gente acaba não agüentando mais. Se coração rebentasse mesmo com a dor, a gente seria todo um remendão por dentro.
Atravessou a cerca de arame farpado onde as mulheres do outro Pavilhão colocavam trapos lavados para secar. Olhou dois banheirões enormes onde duas bicas ficavam constantemente jorrando. Ali lavavam a roupa das camas, os pijamas. Bem que deveria haver uma licença para que pudesse banhar-se naquela água. Mas poderia dar numa senvergonhice sem par. Não havia porta e iria acabar homem tomando banho junto com mulher... Uma sacanagem grossa.
Procurou o canto mais frondoso das árvores e abrigou-se à sua sombra. Sentou-se entre duas raízes e encostou a cabeça num dos troncos. Nem o silêncio lhe fazia bem ou lhe trazia paz.
- Quem falou outro dia, Simão Pedro, que a guerra está para acabar? Negócio de aliados. Negócio de Invasão. Por que os homens gostam tanto de se matar? Por que não esperam a hora da morte que não perdoa ninguém? João falou dos navios afundados. João falou das cidades destruídas. João falou da mocidade destruída. João falou dos bancos bombardeados. Por que João, que só fala de coisas bonitas, foi contar tudo aquilo? Mais bonito seria contar da paz com sinos tocando por toda parte. Dos pombos brancos voando no céu cheio de nuvem e de azul. Dos corações se abraçando, cheios de felicidade e fé. João só falou da guerra ruim. E qual era a guerra que não era ruim? Eu não tenho navios, João. Eu não tenho cidades, João. Eu não possuo bancos, João. Eu não tenho mocidade, João. Eu não tenho nada, João. Tenho só a velhice e ninguém. Ninguém e a velhice. A velhice e ninguém, João. Com a guerra ou sem a guerra, só isso me sobrou da vida, João.
O coração se apertou tanto, tanto que os olhos foram se enchendo de lágrimas. Lágrimas salgadas e amargas que desciam pelo recente ferimento no lábio inferior. Lágrimas sozinhas que tinham de cair. Por mais que tentasse colocar o rosto entre as mãos, não conseguiria detê-las. A lepra nervosa deformara todos os seus dedos para impedir de segurar o seu próprio choro.

* * *

Quando de tardinha Simão Pedro retornou à enfermaria só se falava naquilo. A notícia estourara como bomba.
- Mateus?
- Sim. Mateus mesmo.
- Como pôde fazer isso?
- Como pôde, não sei. Mas que fez, fez.
- E onde está ele?
- Trancado na segunda privada. Diz que só sai de lá depois de morto. Se insistirem ele corta o pescoço com uma gilete velha.
Simão Pedro, meio atarantado, engoliu em seco.
- Vou dar água a Tomé. Ele movimenta os lábios.
Na volta parou na cama de Judas Iscariotes e ainda criou ânimo para lhe dar um sorriso. Judas Iscariotes falava baixo.
- Você pode ajeitar meu travesseiro.
- Posso sim.
Judas sentiu a mão crispada ajustando o seu pescoço na fronha suja.
- Nós já morremos, Simão Pedro?
- Se a morte vem de uma vez só, ainda estamos vivos.
- Você soube de Mateus?
- Sim, já soube.
- Estavam esperando por você. Onde você andava, Simão Pedro?
- No bosque dos sabiás. Queria descansar um pouco.
- Estiveram buscando você por toda parte.
- Que querem de mim dessa vez? Judas sorriu fracamente.
- Escolheram você para falar com Mateus. Acham que só você pode tirá-lo de lá. Convencê-lo a não se matar.
- Por que eu? João é o mais indicado. João sempre fala mais bonito.
- Tentaram com João. Mas Mateus disse que só falaria com você. Que João só fala mentiras. Vive num mundo bonito demais em que só ele acredita. João até que tentou. Arrastou-se como uma aranha, mas a sua voz clamou no deserto, sem significado algum.
Simão Pedro apertou a cabeça, e escorregou os dedos entre os cabelos prateados.
-Meu Deus! Meu Deus!...
Suspirou profundamente como se quisesse encher o pulmão de vida e de coragem.
Resignado concordou.
- Eu vou ter com ele. Só preciso descansar um pouco da minha caminhada.
Sorriu em sua máscara de desolação.
- E você como se sente, Judas Iscariotes?
- Como você ou pior. Com os dedos da alma contando todos os minutos.
- Você é o homem mais corajoso que eu conheço. Judas percebeu o riso de escárnio de Lúcio e sua voz espicaçando suas penas.
- Corajoso? Ainda bem que os homens desconhecem os outros homens.
Pedro levantou a cabeça surpreso para Judas.
- Você disse mais alguma coisa?
- Não. Talvez tenha agradecido o seu elogio quase em silêncio.
- Bem. Vou lá.
Sentia os olhos crescidos dos doentes acompanhando a sua marcha. Sempre que acontecia um fato inédito os olhos dos homens, aumentavam mais como se fossem os únicos donos móveis de cada rosto.
Estacou diante da porta da privada. Ansioso tentou escutar se havia qualquer ruído lá dentro. Nada. Mas era ali que ele estava. Procederia de uma forma que não o assustasse mais.
Seria necessário munir-se de todos os farrapos da sua calma e da sua ternura.
Fez um sinal avisando que não queria a proximidade de ninguém.
Junto à cama de Bartolqmeu, por fora do biombo colocado, ainda vazio de moscas, existia um tamborete. Aquilo ajudaria. Apanhou-o e fez um pequeno ruído para que Mateus notasse a presença de alguém.
Sentou-se nele e sem ânimo encostou a cabeça na porta da privada.
Faltavam-lhe palavras para principiar.
- Mateus!
O silêncio permanecia lá dentro.
- Você queria falar comigo. Eis-me aqui.
De novo o nada como resposta. E se ele tivesse cumprido a sua ameaça? Se tivesse golpeado os pulsos ou seccionado a garganta? Não. O sangue estaria correndo pela abertura embaixo. Ou talvez não. Eles não possuiriam muito sangue. Cada um deles era um farrapo de gente. O sangue poderia estar embebido no pijama e secara-se antes de atingir a porta.
- Escute, Mateus, você queria falar comigo. Não queria?
Ouvia forte a batida angustiada do coração. Pedia aos céus que houvesse uma resposta do homem acuado. Que crime tão horrível ou pecado tão desgraçado poderia ter cometido um homem como aquele. Imaginava a cena. Madalena perseguindo aos gritos, tocando-o do pavilhão das mulheres. O Demônio seguindo Madalena, chamando-o de todos os palavrões. E como conseguira caminhar com tanta pressa se uma parte do seu corpo era paralisada? O grotesco da corrida. O medo, o pavor empurrando-o para a latrina, fechando a porta com o corpo e depois conseguindo fechar o trinco. Depois as batidas e as ameaças de derrubar a porta e lançá-lo nu à rua...
Pedro passou a língua nos lábios e sentiu a rachadura incomodando um pouco, mas não tanto como o tamanho da maldade humana.
- Mateus, eu estou aqui. Minha cabeça está encostada à porta. Não precisa falar alto. Eu posso escutar você. Meu ouvido se aproxima do trinco e posso ouvir tudo que falar mesmo que seja baixinho.
Estranho confessionário. Nas igrejas, todos se ajoelhavam e o padre sempre se separava por uma gradezinha ou um trançado de xadrez. O seu, não. Tudo se resumia num banco, uma porta bruta e um homem sentado numa privada sem higiene sempre repleta de merda. E quem era ele? Ninguém. Ninguém que pudesse ter o dom de perdoar. Apenas a mais velha porcaria que se arrastava naquele pavilhão com um coração envelhecido que podia compreender qualquer um daqueles condenados.
Precisava insistir e insistir. Ter calma para que nada do que dissesse ampliasse mais os temores de Mateus. Mudou o rumo da conversa.
- Eu sei que você está preso aí, já faz muito tempo, Mateus. O dia é quente e você deve ter muita sede.
E como o outro não se decidisse a responder aos seus apelos, tomou uma decisão.
- Está bem. Você me quis e estou aqui. Vim como seu amigo que sempre fui. Mas você precisa se lembrar que eu sou um velho e também um doente. Não agüentarei permanecer aqui muito tempo. Ficarei mais uns quinze ou vinte minutos, depois abandonarei você à sua sorte.
Esperaria o prometido enquanto o coração rezava. Dali podia ver pelo pedaço do corredor três camas. A de Tiago Menor, cuja estranha paralisia ninguém sabia explicar. Um quase menos cruel do que o de Tomé, o morto. Depois a cama de João. E João olhava em sua direção esperando pelo sucesso da sua missão. E João mexia com os lábios rezando aos seus anjos. Por fim a cama de Tiago Maior que também observava os seus movimentos e de vez em quando limpava as lágrimas dos olhos. Uma vaga sonolência tentava pesar em suas pupilas. Devia ser cansaço, porque normalmente ninguém adormeceria junto a tamanho mau cheiro. O coração agitou-se forte. A porta estava sendo arranhada pelo lado de dentro. Muniu-se de novas esperanças.
- Pedro!
A voz era sumida quase imperceptível.
Estaria sonhando? Colou mais o ouvido junto ao trinco.
- Pedro! Você ainda está aí?
- Estou, Mateus.
- Pedro, eu tenho sede!
- Eu sei.
- Pedro, eu tenho muita sede mesmo.
- Podemos fazer alguma coisa. Você abre a porta e eu lhe dou um caneco de água.
- Não posso fazer isso. Eu acredito em você. Mas sei que se abrir a porta eles virão pegar-me.
- Eles quem?
- O Demônio, Madalena, os soldados e a Polícia.
- Eu não deixarei.
- Eu sei. Mas o Demônio é muito forte e já bateu em você ontem, rachando sua boca.
Simão Pedro sabia que não seria atendido daquela forma e que Mateus continuaria com sede por mais algum tempo. Entretanto, ele resolvera falar. O que prenunciava um bom augúrio.
Aí Simão Pedro comoveu-se ainda mais. Mateus falava e chorava baixinho.
- Pedro, o que vão fazer comigo?
- Não sei bem ainda.
- Por que, Pedro? Eles não podem me mandar embora, Pedro. Eu não tenho ninguém na vida. Sou como você.
- Talvez eles não mandem você embora.
- Vão mandar sim. Pedro, o que vou fazer no meio das ruas? No meio de uma cidade grande... Nem sei andar nela. Por que foi acontecer aquilo comigo?
Fungava forte e dominava-se para falar.
- Pedro, aqui é tão bom. A gente tem comida, tem roupa. A comida é muito boa e a roupa também. Onde vou achar uma cama assim para poder dormir? Eu não queria findar os meus dias numa escadaria, levantando meu único braço para pedir esmola. Juro que não queria.
- Se você me contar tudo direitinho, eu falo com Dr. Tiago e talvez ele deixe você ficar com a gente.
- Meu Deus! Por que foi me acontecer tudo aquilo?
- Eu não estava na enfermaria e não me contaram direito o que se passou. Você não confia em mim? Me conte tudo então.
- Vou lhe contar.
Ouvia-se que Mateus enchia o peito de coragem e resignação para falar.
- Sabe, Pedro, eu não queria fazer nada daquilo. A mulher foi que me puxou sempre. Já faz tempo. Era eu chegar à porta, ela dava um jeito de aparecer, vindo de não sei onde. Eu até que fugia. Se eu chegava às vezes à janela, ela tava lá estendendo pano na cerca de arame farpado. E me fazia adeus e me fazia proposta. É uma mula-tona gorda que tem uns defeitos no pé.
Mateus calou-se e engoliu alguns soluços mais fortes.
- Conte tudo, Mateus.
- Eu tenho vergonha até de lhe contar.
- Sou seu amigo e nada na vida vai me causar espanto.
- Aí, Pedro, aconteceu que a gente se encontrou no corredor. E ela perguntou se eu era ou não era homem. Que macho que era macho não ficava assim fugindo de uma fêmea. Foi ela que me mostrou e me levou para aquele quartinho onde guardam as roupas de cama e os pijamas dos homens. Empurrou a porta e me agarrou. Eu não podia dizer que não. A gente aqui nem sabe mais como é uma mulher. Ela que me ajeitou todo. Você sabe que eu não tenho movimento completo com meu braço...
Mateus aumentou o seu choro.
- Foi quando a porta abriu e Madalena pegou a gente mesmo antes de ter feito qualquer coisa. O resto você sabe.
Pedro calou-se pensando na história. Mulher quando queria era bicho safado mesmo. Na certa ela iria contar a história ao jeito dela. Na certa também não iria acontecer nada com ela. Enquanto isso, Mateus estaria condenado a penar pelas ruas impiedosas da cidade desconhecida.
- E agora, Pedro? O que vai ser de mim?
- Amanhã eu converso com Dr. Tiago. Como sou o doente mais velho e ele me pede para fazer tudo, talvez ele compreenda a sua situação e deixe você continuar aqui.
- Você vai falar por mim, Pedro?
- Dou minha palavra. Mas pelo jeito você não acredita em mim.
- Juro por tudo que é mais santo que acredito.
- Então abra a porta para que eu lhe dê um pouco d'água.
- E depois? Eu posso fechar a porta de novo?
- Pode. Já lhe dei a minha palavra.
- Então vá buscar a caneca.
Mateus ficou escutando os movimentos de Pedro. Sua ida até a pia. O jorro da torneira e seus passos retornando.
- Abra que eu enfiarei a mão com a caneca.
Mateus abriu pressurosamente, fechou a porta e bebeu com sofreguidão, amainando a grande sede. Devolveu a caneca, tornando a cerrar a porta.
- Quer mais?
- Agora não, Pedro. Muito obrigado.
Pedro pensou no problema mais grave a resolver. Estava quase certo do sucesso. Desde que Mateus lhe abrira a porta, tudo aconteceria mais fácil.
- Que bom, Pedro. Eu estava com uma sede de morrer.
- Agora, Mateus, você precisa confiar em mim totalmente.
- Eu confio.
Simão Pedro sorriu da ingenuidade.
- Você não quer sair daí, quer?
- Hoje não. Vou ficar a noite toda e só depois que você falar com Dr. Tiago. Se prometerem que não vão arrombar a porta e me capar, eu saio.
- E você agüentará passar a noite com esse fedor todo?
- Não será a pior coisa que já passei na vida.
- Está bem. Mas você precisa me entregar...
- O quê, Pedro?
- A gilete. Não posso permitir que você fique com ela aí dentro. É a única coisa que eu exijo em troca de falar com o Dr. Tiago.
Mateus titubeou um pouco e Pedro temia perder a sua grande cartada.
- Não posso, Pedro.
- É assim que você me agradece?
- Por favor, Pedro, Eu...eu...
Vencendo uma grande dor, Mateus resolveu confessar toda a verdade.
- Eu não posso lhe entregar, Pedro, porque eu não tenho gilete alguma.
- Você está mentindo, Mateus!
- Juro. Não tenho nada. Se eu tivesse, Pedro, na agonia que passei todas essas horas aqui dentro, já teria cortado o pescoço.
Pedro passou a mão aliviado, no peito, para enxugar um suor frio.
- Eu inventei aquela história com medo que arrombassem a porta. Onde é que eu iria descobrir uma gilete assim?
Calaram-se. Mas a voz de Mateus interrompeu a pausa com uma cândida humildade.
- E agora, Pedro? Você vai contar que eu não tenho a gilete? Se contar, eles me jogarão na rua essa noite mesmo.
- Não. Não direi isso a ninguém. Ao contrário, vou contar pra todo mundo que você está armado com ela. Assim, se é que é possível, você terá uma noite de paz.
- Pedro, você é amigo mesmo! Quando eu sair...Se ficar... tendo dinheiro, vou pagar Felipe para fazer uma vez sua barba e seu cabelo.
- Esqueça disso. Agora que está tudo resolvido, vou lhe dar mais uma caneca d'água para você passar a noite. Comida não deixarão que eu lhe dê. Mesmo porque uma noite de fome a gente pode agüentar. Agora a sede, não. E duro demais pra se passar.
Voltou à pia e encheu a caneca. Entregou-a.
O coração de Simão Pedro exultava. Parecia que o tapete eterno começava a se movimentai procurando outra direção, outros ventos mais brandos e mais harmoniosos. Depois, Simão Pedro devolveu o tamborete ao seu lugar. Olhou para os grandes olhos que o observavam e sorriu com brandura.
A luz da enfermaria estava acesa numa hora incomum. A noite ainda era madura e anunciava-se longa.
Judas despertou com a voz de Madalena sacudindo a sua cama.
- Vamos, porque não temos muito tempo a perder e a viagem durará pelo menos doze horas.
Sentia-se atordoado e seus olhos pesavam, teimando em fechar, motivados por tanto anestésico ingerido nos últimos dias.
Todos os outros começavam a se movimentar. Simão Pedro e Simão já ajudavam os outros a se vestir e a se levantar. Em vez de pijama, todos estavam se agasalhando com túnicas transparentes de seda amarela.
- Todos terão de ir. Menos o Morto e Tiago Menor.
Pedro indagou temeroso.
- Até Bartolomeu que está morrendo.
- Principalmente ele.
- E como agiremos para afastar tanta mosca do seu biombo. Elas se multiplicaram demais nessa noite.
- Não é problema. Depois, você precisa usar óculos. Onde está vendo moscas. São apenas dezenas de lindas borboletas azuis.
Bateu palmas e as borboletas esvoaçaram, formando guirlandas azuladas circulando o biombo.
Simão Pedro sentiu-se aliviado, Muito mais ainda porque, não havendo mais moscas, Bartolomeu não iria ao encontro da grande Senhora delas.
- Pare de conversar e aja mais depressa. O ônibus logo buzinará na porta.
Judas Iscariotes encontrava-se estupefato. Ninguém parecia notar nada de anormal em Madalena. Ela falava elegantemente e com muita decisão. E o que tornava mais extraordinário era não usar os vestidos habitualmente sujos, encardidos e suados. Em seu lugar havia uma espécie de sotaina toda de veludo vermelho, abotoada do pescoço até os pés. Sobre o peito ostentava uma grande corrente de ouro terminada na ponta com um camafeu de brilhantes. Os cabelos pintados de um negro tão escuro até azulavam Ela os prendera elegantemente num coque. E na cabeça um grande chapéu vermelho também de veludo, de grandes abas caídas, contrastando com a copa rasa. Somente os calçados destoavam da sua elegância. Eram velhos borzeguins amarelos com peitilhos brancos atados por cordéis negros.
Simão Pedro veio auxiliar Judas Iscariotes a vestir-se.
- Como você está bonito, Simão Pedro. Como seus cabelos brancos ficam tão dignos com essa túnica amarela.
- Vamos vestir a sua. Judas estranhou.
- Por que a dos outros é amarela e a minha verde?
- Não sei. Era essa que estava dobrada nos pés da sua cama.
Uma voz conhecida segredou aos seus ouvidos.
- Fui eu quem escolheu, Raul. Verde. Verde cor de selva. Verde principalmente: a cor dos meus olhos. Lembra-se daquela noite?
- Você vai também conosco? Simão Pedro admirou-se da pergunta.
- Claro que vou. Todos vão, menos Tomé e Tiago Menor.
Lúcio sorriu e advertiu.
- Cuidado quando me falar. Ele não pode ouvir o que eu digo, mas pode escutar o que você fala. Claro que também vou. Vai ser um espetáculo inigualável.
Tadeu também vai? Já disse os que ficam.
- Ninguém quererá sentar-se perto dele por causa da leishmaniose.
Pedro suspirou.
- Se fosse só por isso.
- Diga uma coisa, Simão Pedro. Você sabe realmente qual a doença de Tadeu? Nunca tinha pensado em perguntar-lhe, mas como você é o mais velho daqui...
Simão Pedro abanou a cabeça misteriosamente.
- Nunca poderei contar. É uma promessa. Mas um homem não permaneceria num ambiente tão especial só porque contraiu uma coceira incurável.
- Deve ser.
Ajudou a enfiar a camisola verde na cabeça e ela se grudava ao corpo como se tivesse sido feita sob medida.
- Que viagem é essa de que estão falando? Simão Pedro readquiriu o seu ar de mistério.
- Pelo que ouvi será muito longa. Doze horas ou mais de duração.
- Que coisa esquisita. Será que nós já morremos, Simão Pedro?
Ele sorriu com bom humor.
- Nunca vi pergunta mais sem nexo. Não há necessidade de vestir todo mundo de amarelo e você de verde para morrer. Vamos, estão chamando.
Segurou no braço de Pedro e descobriu que a magreza da doença desaparecera.
- Está admirado? Passe a mão no seu joelho e verá uma diferença...
- Eu queria lhe falar sobre isso, mas fiquei temeroso. Nem sequer sinto qualquer dor.
- É assim mesmo. Todos nós estamos anestesiados. Por isso ficamos com a ilusão de que não somos mais doentes.
Judas foi perdendo a alegria. Então tudo era fictício? Não conseguira escapar da sua condenação.
- Não se impressione. Veja Tiago Maior. No íntimo ele tem a sensação de que está caminhando com as pernas completamente sãs. Mas é tudo um estado de espírito. Na realidade, vai ser empurrado naquela cadeira de rodas até o ônibus.
Dr. Tiago entrou na enfermaria. Ele encontrava-se translúcido. Sua túnica era de uma alvura tão transparente que doía nos olhos. Seus olhos eram o próprio céu. Nem sequer parecia caminhar e sim deslizar sobre os ladrilhos.
Bateu palmas sem se irritar.
- Vamos, meus filhinhos, precisamos todos partir. Urge que saiamos dentro de um segundo.
 saída do Portão Central, Madalena fornecia um copo com uma substância desconhecida a cada um. A qualquer um que se recusasse a beber apenas explicava: "É ordem médica. Ajudará na viagem"
A droga conseguia um efeito imediato porque todos eles pareciam inflados como balões de borracha, e o corpo saltava mais quando tocava ao chão e se locomovia em pulos desequilibrados e grotescos. - Para o ônibus.
Um rapaz sem rosto, mas fardado de azul-claro, indicava os lugares.
- Aqueles doze para os doentes. Mais dois para o médico e a enfermeira.
O que mais chamava atenção no ônibus era o seu extraordinário colorido e decoração. Todo pintado de roxo, com a porta e as janelas em cor de abóbora. Grudados em sua pintura, existiam centenas de pintinhos novos, todos amarelos e fazendo uma piadeira desconsolada. A cada palmo existia um daqueles pintinhos.
O rapaz fardado de azul explicou feliz.
- Não se impressionem. Eles não alcançam preço bom no mercado. Então nos são oferecidos para decorar os ônibus da Grande Viagem. Não se preocupem que não sofrerão. Quando o veículo adquirir uma certa velocidade eles naturalmente serão descolados e atirados entre as ramagens das árvores. Morrerão docemente.
Não se podia negar que o ônibus oferecia um agradável conforto. Os bancos tomavam a posição de cada corpo deformado. No seu interior uma pequena luz, apenas, indicava os lugares.
- Assim poderão dormir e descansar. E haverá música para os que gostarem. Os que não apreciarem, podem apertar esse pequeno botão de madre-pérola e ela será desligada.
Na parte traseira do grande ônibus parecia haver mais passageiros.
O rapaz de azul-claro adivinhava os pensamentos e sua voz surgida não se sabe de que parte do corpo, porque seu rosto não existia, continuava na explicação.
- Vêm outros de outros pavilhões. São centenas de ônibus que chegarão de outras partes.
Contou com o indicador os lugares e ficou surpreso,
- Sobram dois lugares. Dr. Tiago explicou.
- Pertenciam a dois doentes que morreram ontem. Não houve tempo de avisar a Corte Suprema.
O rapaz não se alterou.
- Não importa, poderei colocar ali uma encomenda. Desceu e voltou. Na mão trazia uma enorme gaiola.
Dentro havia um grande javali de presas retorcidas muito brancas. Os olhos, apesar de rubros, não indiciavam agressividade. Logo em seguida outra gaiola com outro javali nas mesmas condições tomou o lugar vago. Os bichos bocejaram e logo se acomodaram.
- Eles dormirão o tempo todo. Não causarão o menor incômodo. A não ser que resolvam urinar na gaiola. Aí sim, pois a urina fede insuportavelmente.
- Tudo pronto.
- Tudo.
O ônibus colocou o motor em ponto de marcha. O rapaz de azul-claro ligou todas as luzes. Tudo se transformou como em um grande palco iluminado.
- Vou descerrar a cortina rósea para vocês conhecerem o nosso melhor motorista. O mais habilidoso de nossa frota.
Puxou a cortina e para espanto de todos o Demônio sentava-se à direção do veículo. Suas mãos adquiriam enormes proporções e se encontravam aprisionadas ao volante por algemas de cristal. Não podia virar a cabeça, mas pelo espelho via-se seu rosto preocupado, com dois chifres de ouro polido reverberando até com o seu respirar mecânico.
Como os outros, vestia-se com uma túnica negra de seda que modelava o seu torso musculoso.
Antes que se desfizessem do assombro a luz foi desligada e a semi-escuridão reinou no ambiente.
- Pronto, meus queridos. Ele é o maior de todos os condenados. Será o Primeiro Vector do Sexo e da Castração.
O ônibus, voava pelas ruas a fora. A baía do Botafogo dormia plácida com o colar de luzes. Judas Iscariotes sorriu comentando com Simão Pedro.
- Não há dúvida que a viagem tem um sortilégio, um extraordinário fascínio...mas faz bem. Como é linda a cidade adormecida.
Depois mudaram de rumo e se dirigiram para o Largo do Machado. Pegaram a Rua das Laranjeiras.
- Estamos indo para o lado de Águas-Férreas.
- Devemos estar. Eu não conheço o Rio direito.
Era tão macio o rodar do ônibus que ele parecia deslizar e não tocar no solo. Para a sua marcha inexistia os costumeiros buracos da rua.
- Estamos subindo. Vamos passando as Paineiras. Deus do céu. Já estamos chegando ao Corcovado. É tudo tão desconcertante e veloz.
- Você sabe onde nós vamos? Fitou o desalento de Pedro.
- Não sei. E você?
Simão Pedro deu de ombros indiferentemente.
Judas Iscariotes encontrava-se fascinado. O ônibus passava pelas costas da estátua do Cristo do Corcovado e subia por uma estrada que nem sabia existir. Ficou em dúvida. Só uma vez visitara o local. Mas guardara a impressão de que a estrada finalizava ali. Entretanto o ônibus continuava a sua marcha.
- Olhe, Simão Pedro, como é lindo o Rio das alturas. Se você nunca viajou de avião, pode estar tendo a mesma impressão agora. A Urca, Copacabana, Ipanema.
Simão Pedro debruçou-se na janela do amigo e também encantou-se com o deslumbramento da paisagem. Quando retornou à antiga posição, encontrou o rapaz de azul-claro a seu lado.
- Por favor, viajem em silêncio. Os outros são mais fracos e precisam dormir o tempo todo. Terão que reunir o resto de suas forças para o Grande Momento.
Judas adiantou-se no banco.
- Só uma pergunta.
- Mas fale baixo.
- Para onde estamos indo?
- Não posso lhe adiantar muito. Fui instruído apenas e essa é a minha primeira viagem. Ouvi falar de um Grande Juízo. De uma coisa semelhante a um Pré-Armajedom. Agora, prossiga a sua viagem em silêncio, como os outros.
Simão Pedro encostou os lábios nos ouvidos de Judas Iscar i o tes.
- O que é esse negócio?
- Não sei direito. Parece que é qualquer coisa relativa ao Juízo Final dos Demônios. Tudo é muito confuso.
Agora a viagem adquiria uma expressão de grande monotonia. As horas deveriam passar indiferentes, mas o dia não aparecia. Tornava-se uma jornada em contínua treva. Os olhos também procuravam o sono. Lutava para não dormir e acompanhar os faróis do carro iluminando a borda da estreita e confortável estrada. Quando uma espessa bruma dourada não encobria as árvores, seus galhos apresentavam flores maravilhosas. Flores gigantescas como nunca vira e de todos os matizes.
Cansou-se de preliar contra o cansaço e sonolência que desabavam sobre as pálpebras e dormiu profundamente.

* * *

Grandes fachos iluminavam uma imensa cratera. No fundo, lavas do vulcão eram controladas e remexidas por grandes colheres de ferro.
Depois, um guindaste de proporções gigantescas depositou uma grande vasilha de ferro. Todo aquele serviço realizava-se por homens igualmente sem rosto, como o rapaz do ônibus. Diferenciavam-se somente por usarem calças colantes vermelhas e o torso completamente nu. Os músculos todos remexiam-se iluminados pelas labaredas e fagulhas que por vezes escapavam da larva incandescente.
Depois colocaram várias espécies de calhas que desciam da montanha e tombavam sobre a boca do caldeirão.
Um microfone invisível anunciou uma ordem.
- Dentro em breve os réprobos e os degenerados receberão a Injectio Super Excitante e preparar-se-ão para a operação Ego-Castracional. É bom saberem todos que na-, da disso é doloroso. Outrossim, ninguém terá capacidade de prazer. Tudo não passa de um método esterilizante e preventivo.
Outros ônibus já se encontravam parados à beira da cratera. E os médicos vestidos de branco como o Dr. Tiago, todos armados de archotes meio incandescentes, organizavam os doentes, os réprobos nas proximidades das grandes calhas. Estas, por sua vez, nas extremidades tinham o formato de uma grande pia luminosa. Alguma coisa seria derramada na pia para que, escorrendo pela calha, caísse no centro do grande caldeirão.
Trouxeram primeiro, e eram outros homens sem rosto e também de calças vermelhas, as gaiolas das feras. Se o ônibus do Dr. Tiago transportara dois javalis, os outros variavam os espécimens. Eram lobos de dentuças ameaçadoras, leões, tigres e jacarés de olhos coruscantes.
Arrastaram os outros homens de chifres, acorrentados como o Demônio. Todos ficaram dispostos juntos das pias. Todos colocados no meio das suas feras escolhidas. Judas e Simão Pedro apreciavam aturdidos a cena incomum. Tinham medo de falar. Mas sentiram certa piedade, quando empurraram o Demônio e o agrilhoaram ao cano da pia. Depois os ferozes javalis rodearam os seus flancos. A uma distância que, a qualquer movimento de desobediência, poderiam fincar as presas em suas carnes.
O microfone voltou a funcionar e o eco da montanha repetia as ordens de uma maneira macabra. Ninguém duvidaria que aquela voz também não fosse aproveitada em outras crateras circunvizinhas, ocultas aos olhos devido à escuridão da noite.
- Atenção, senhores doutores, é necessário a aplicação do Primus NOX nos réprobos. Rogamos que tudo se realize ao mesmo tempo para que não haja atraso. Pois que novas caravanas estão no Vale Termopilário, aguardando a sua vez.
Os médicos retiraram a batina negra dos demônios e esses babaram de horror. Os corpos então completamente nus deixavam escorrer um suor opalescente.
Tudo era feito em silêncio profundo..
Seringas com agulhas compridas eram encostadas nas nádegas dos demônios. Deveria doer. Mas eles temiam mexer-se para não se aproximarem das feras guardiãs.
Todos os demônios em um segundo se encontraram excitados, ostentando os membros rijos e tumefactos.
A voz anunciou-se novamente.
- Queiram agir os senhores Carrascos Maniqueístas.
Judas Iscariotes levou a mão aos lábios. Aqueles eram os carrascos? Crianças louras como anjos, com os cabelos tocando quase os calcanhares, aproximavam-se sorrindo, portando nas mãos navalhas afiadíssimas.
Judas Iscariotes quis premir os olhos e não conseguiu. Simão Pedro entendeu o seu gesto.
-É inútil. Eu também tentei e não consegui. Teremos de acompanhar tudo de olhos bem abertos.
Os Demônios apenas retorciam as expressões dos rostos compreendendo a extensão do ato. Não por uma dor física e sim pelo temor moral.
Os anjinhos louros, com uma habilidade inesperada e sempre conservando os sorrisos inocentes, de um só golpe deceparam os sexos de todos os demônios.
Não houve um só gemido. Apenas os olhos aumentaram de desespero e intensidade.
Os sexos cortados rolaram, inundando tudo de sangue. Eles foram boiando no próprio vermelho à procura das calhas condutoras.
- Podem soltar as mãos dos Réprobos.
Mesmo libertos eles continuavam aprisionados ao furor das suas feras.
- Agora é a vez dos degenerados.
Dr. Tiago aproximou-se dos seus doentes. Separou Simão Pedro de Judas Iscariotes.
- Você não. Você é quase um dos nossos. Pode usar da prioridade que lhe concerne.
Todos os doentes formavam filas junto às pias ensangüentadas. Os demônios num inútil gesto de pudicícia colocavam as mãos onde outrora existira o sexo.
Dr. Tiago instruía Madalena quanto aos seus enfermos. Perto do médico ela se metamorfoseava numa enfermeira cordata e eficiente.
O microfone atuou com mais força como se exigisse mais presteza e ação.
- As Senhoras enfermeiras queiram despir os Degenerados.
Os botões de todas as batinas amarelas foram aos poucos desabotoados pelas mãos agora tão finas e elegantes de Madalena. Todos haviam recebido a influência do remédio anunciado. O mais impressionante era Simão Pedro que parecia tão desesperado como quando era caçado para as aulas de Neurologia aplicada.
Judas Iscariotes tremia todo. Certamente chamariam de novo os tais Carrascos Maniqueístas para decepar os sexos dos chamados Degenerados. Se pudesse fugir a tudo aquilo, sumir, evaporar-se ou, pelo menos, fechar os olhos ou ocultar o rosto...
A voz que soou ao microfone era outra. Uma voz de tal mansuetude que comovia.
- Meus filhos, vós sois os Degenerados. Não por culpa vossa e sim por uma determinação dos Destinos. Sois os mais condenados de todos. De vós não poderá existir a perpetuação da espécie. Visto que os vossos descendentes seriam gerados com as vossas taras muito mais ampliadas. É triste vos dizer tudo isto. Mas quando chegardes ao limite da Grande Passagem, ser-vos-á dado um prêmio de esquecimento maior. Continuareis completos dentro da vossa imperfeição outorgada. Apenas perdereis em um segundo as esperanças de reprodução de novas vidas. Nada tenho mais a vos falar.
Calou-se aquele discurso. Entretanto o microfone foi reocupado pela voz anterior.
- Demônios impuros e miseráveis, cumpri vossa humilhante tarefa.
E os enfermos foram confiados aos demônios. Com as mãos sujas de sangue, eles começaram a masturbar a todos os doentes. Tudo se realizando numa operação mecânica, sem prazer e sem gozo. Cada um deixava escapar um jorro comprido e violento de sêmen, que procurava o caminho da pia e das calhas. Todos eram manuseados muitas vezes, enquanto durasse aquela ereção motivada pelo estimulante afrodisiaco. Quando nada mais havia dentro do sexo ou dentro das forças do corpo, o doente desmaiava e era substituído.
Começou então a se formar uma massa oleosa nas calhas, a pingar grossamente como gotas opacas nos bordos do caldeirão. E quando a torrente atingiu o fundo fervente, apareceu uma música estranhíssima, toda feita de gemidos e de lamentações. Eram as futuras vidas que se extinguiam ao calor, muito antes de serem geradas.
Tão horripilante que num arranco Judas Iscariotes conseguiu safar-se do seu lugar e atingir o interior do ônibus. Sentou-se angustiado em sua poltrona. Pensava poder fechar os olhos e esquecer. Dormir desgraçadamente até a morte dos séculos.
- Que coisa, não, Raul?
Estremeceu porque apercebeu-se que Lúcio se encontrava sentado ao lado. Suspirou doridamente.
- Felizmente, escapei a tanta humilhação.
- Quem disse?
Olhou os enigmáticos olhos verdes de Lúcio. Agora sabia que alguma coisa de mais trágico e repugnante lhe seria reservado.
- O que farão comigo, Lúcio?
- Pouca coisa. Tudo muito rapidamente. Olhe para o fundo do ônibus.
O moço sem rosto e de azul-claro retirara todas as cadeiras e as colocara em formato de círculo. Com os dedos magicamente virou todas as luzes para o centro daquele círculo. O mais curioso era colocar um velho microfone num dos cantos como se esperasse alguém para cantar. Firmou a memória querendo descobrir onde conhecera aquele microfone antes. Aquele velho microfone.
- Por que tudo isso, Lúcio?
- Ficaram com pena de você. Bobagem, não? Tanto fazia esterilizarem você, como não. Logo, você estará longe de todos esses problemas. Assim como eu.
Lúcio sorriu.
- Tiveram pena. Mas você terá que passar por algo semelhante. Deram-lhe a "prioridade". Aquilo que você sempre condenava em mim. Aquilo que meu dinheiro sempre conseguia, só em estalar os dedos. Vou mudar de assunto. Você não se recordou de nada ao ver todos aqueles fachos, aqueles archotes, iluminando a noite? Garanto que se lembrou.
- Sim. Das noites da selva. Das dormidas na praia com o frio do Verão que o bom Deus nos mandava. Com o ventinho gelado que espantava para longe as muriçocas e a gente dormia o cansaço de um dia bem remado em santa paz. As fogueiras ficavam sendo reacendidas a noite inteira, ou por mim ou por algum índio companheiro e amigo, para espantar as feras. É isso?
- Exatamente. Sabe por que pergunto? Porque sua expressão ao contemplar esses plebeus condenados de pinto duro foi de tal espanto, tal espanto, que eu diria ser a mesma quando me contemplou pela primeira vez. Sim, pela primeira vez, sentado à sua frente.
Lúcio riu.
- E você pensava que tudo tinha acabado, morrido, esquecido. Esquecera-se que a semente do remorso quando germina não morre mais. Você pode cortá-la, apará-la, pisoteá-la... mas ela renasce com fênix, ressurgindo das cinzas.
- Nós já falamos disso. Por que justamente nesse momento relembrar?
- Todos os momentos pertencem totalmente a todos os momentos. Isso na sua devida importância. Todos os seus momentos me foram significativamente importantes, Raul.
- Por que me lembrar agora? Justamente agora?
- Existe uma crença boba entre os humanos. Uma crença que funciona bastante bem, creia-me. Toda pessoa, ao sentir que vai transpor a grande Fronteira, revê a vida rapidamente. Não digo toda a vida, porque a vida também é formada de uma grande dose de bobagem e de inutilidades. E eu não quero perder o seu "flashback" por nada. Principalmente no que se refere a nós dois. E justo?
Ficou sem dar uma resposta.
- Vou insistir por um segundo. Seu tempo é pouquíssimo, Raul. Tão pouco que os remédios, os sedativos, trarão a sua memória toda entrecortada. Mas eu estarei junto para que não perca nada do que me interessa. É um direito que me assiste. Ou você pensa que, eliminando a minha vida, se apossou de todos os meus direitos?
Deu uma risadinha cruel e maléfica.
- Mas no momento, o momento é outro. E será divertidíssimo. Olhe.
Madalena entrara no ônibus e atravessando o resto que sobrara da fila de cadeiras, passou indiferente por eles. Foi-se postar em frente do microfone.
- Vamos para perto. Ela precisa de público para aplaudi-la.
Sentaram-se perto e Madalena parecia ignorá-los.
Primeiro, retirou o chapéu rubro e atirou-o no chão. Deixou à mostra os cabelos negros e luzidios, bem amarrados no coque. Em seguida, como se recebesse ordens ocultas, puxou as luvas pelos dedos.
- Eu conheço aquele microfone.
- E aquelas mãos?
- Parece que sim. São lindíssimas. Madalena não possui mãos daquele jeito.
- Quem disse que ela é Madalena?
Os dedos longos foram entreabrindo a veste vermelha e esta escorregando pelo corpo deitou-se no chão. Um vestido negro de cetim ou seda apertavam as formas enxundiosas da mulher.
- As mãos não são. Mas essa mulher, pelancuda e gorda, ainda é Madalena.
- Por todos os demônios do inferno. Você é teimoso. Espere e serão alijadas suas teimas.
Uma orquestra invisível começou a executar a introdução de uma música que tanto o emocionara no passado. A mulher elevou os grandes olhos negros para o céu, onde uma pintura forte tentava encobrir as centenas de rugas que os empapuçavam, e cantou:
"Que vais fazer, Mandarim, com esse sorriso cruel? Ele vai se esquecer de mim, soltando papagaios de papel"
"Foi ele, que após a dança, beijou-me as trancas, e jurou paixão... Oh! Esse chin prazenteiro foi o primeiro na profissão".
- Gostou? Pois aplauda. Ela precisa disso. O vestígio dela necessita da nossa ovação. O que custa pois?
Os olhos de Judas Iscariotes estavam cheios d'água. O peito magro se oprimia em desolação.
- Viu que não era Madalena nenhuma? Estou brincando. Ivonete e Madalena são a mesma pessoa.
- Não pode ser.
- Pode sim. Você não viu que na enfermaria ela nunca se aproximava diretamente da sua cama, diretamente dos seus olhos?
- Não creio. Ivonete tinha um rosto de Madona. Só as mãos são uma tênue recordação dela.
- Madona! Que romântico! Uma puta como todas as outras. Uma puta que a noite desfigura mais depressa que qualquer outra mulher. Ou vai me dizer que também não sabe disso? Que uma prostituta gasta perna, seio, bunda, braços, rosto, com uma rapidez incrível? Mais do que duzentas mães que gerassem doze filhos numa vida? Você é gozado. Pra umas coisas tem uma sutileza de anjo.
Esperou que a orquestra desse os finais da música e chamou com voz imperiosa.
- Ivonete!
- Chamou-me, querido?
- Eu lhe falei de um amigo que estava louco para dormir com você? Pois aqui ele está.
- Então vou lá para as cadeiras. Tirarei a roupa ligeiro, porque logo precisarei me preparar para trazer os Degenerados de volta.
Deu um muxoxo debochado.
- Não sei porque em vez daquela... - fez um gesto indecente com a mão - não jogaram aqueles imundos dentro do próprio caldeirão!
Saiu rebolando as velhas nádegas para o fundo do ônibus.
-Você mentiu, Lúcio. Eu uma vez lhe disse que nunca dormiria com ela. Você falou-lhe o contrário.
- Não há alternativa. Ou você prefere ser masturbado como os outros lá nas pias? A sua prioridade é essa. Gastar-se nas entranhas de Ivonete. Depois você não mais terá forças na vida para usar outra mulher.
Bateu nos ombros desanimados de Raul.
- Ora vamos, meu querido. Não deve humilhá-la não Ela não tem idéia de que envelheceu assim. A cretina julga-se bonita e pensa que ainda canta como antigamente. Você bem que ouviu sua voz roufenha de ganso esganiça-do... Vamos lá. Eu o ajudarei a despir-se...
Obedecia como um autômato. Lúcio o empurrava para a mulher nua, de coxas pelancudas entreabertas, mostrando os pêlos longos e lisos a deslizarem sobre as pernas. Um miramacho não seria tão hediondo.
- Vamos. Ela não tem muito carinho. Faz tempo que ela espera por alguém que a ame e a faça estremecer de gozo.
Sua linda batina verde de seda tombava ao chão e o corpo nu com os ossos espetando sua magreza se arremessavam contra as banhas suaretitas de Ivonete.
- Ame-a, meu querido. É a sua prioridade. Eu cantarei a canção mais linda do amor. O epitalâmio mais lindo e mais sagrado. Cada nota saída da minha boca expedirá um perdigoto que caindo ao solo se transformará em manjar de gusanos. Meus lindos noivos, vamos.
E Judas Iscariotes apertou o corpo fétido de Ivonete. As carnes amolecidas como peixe se deteriorando grudavam-se ao seu olfato. Agora podia jurar que Ivonete voltava a ser Madalena. Madalena só e sem amor. Madalena abandonada, sem filhas e sem rádio.
Lúcio enlouquecia de prazer.
- Meus noivos lindos, antes do mais sublime, um pouco de dança. A dança amadurece os corpos para o amor.
Começou a cantarolar a música de um tango. Um tango que não gostaria de escutar nem no momento da morte: La Cumparsita.
E o ônibus foi crescendo, crescendo. A voz de Lúcio adquiria proporções altíssimas. Toda a humanidade, se tivesse um pouco de boa vontade, poderia escutar aquele ritmo.
Madalena foi se endurecendo toda. Os membros tomaram-se de uma algidez mórbida. Seu rosto gelava-se como a mesa da Ceia.
- Dance mais, querido. Está divino.
Sua perna intumescida pelo sarcoma tentava arrastar a mulher naquele baile de fantasmas. Madalena estava morta. Madalena ou Ivonete dançava morta em seus braços exatamente igual como dançara pela primeira vez no trote dos calouros.
Só podia ter sido a mão de Deus que se apiedara dele e o acordara daquele pesadelo.
Diante dos seus olhos, Dr. Tiago sorria. Dr. Barretto perguntava-lhe com mansuetude.
- Está melhor? Vou mandar que lhe dêem um pouco de leite gelado. É muito bom para o estômago e para desintoxicar.
Afastaram-se tão amigos.
Simão Pedro substitui-os à frente de sua cama. Tudo voltara a ser como antes. Voltara daquela viagem terrível. A paisagem da enfermaria continuava a mesma.
- Que dia é hoje, Simão Pedro?
- Hoje é a manhã de mais uma sexta-feira. Recordou-se das palavras de Lúcio que se gravavam em fogo em sua memória.
- Você terá pouco tempo para lembrar-se e eu não quero perder os momentos mais importantes. Não seriam bem aquelas palavras. Mas Lúcio lhe dissera palavras similares...
Sorriu enfraquecido para Simão Pedro. Sem querer ele encolhera três dedos na mão direita. Encolhera suas garras finas e aduncas. Três. Três dias. Três dias para que pudesse andar com as duas pernas.
Simão Pedro passou a mão sobre o seu peito num gesto que arranhava docemente.
- Você dormiu tanto e tão calmo. Desde ontem. Dr. Tiago nem deixou que o acordassem para ver o dia de visitas.

 

CAPÍTULO 15 - A Febre da Solidão

Não seria melhor se em vez daquela sonolência contínua que lhe produzia uma tibieza ímpar, deixassem que lhe voltassem todas as dores? E por que não? A dor absoluta, insuportável talvez criasse em seu íntimo uma vontade de que cortassem logo a sua perna. Então sentia-se naquele dilema. Já? Ainda não. Dormia. Abria os olhos. Faltava muito, Simão Pedro? Quem respondia era Lúcio.
- Ande depressa que o seu tempo é mínimo.
"Ande depressa". Como andar depressa? Lúcio continuava o maior de todos os gozadores que conhecera. Ele avisava-o que devia segurar, morder o tempo entre os dentes e usava uma expressão contrária.
Sempre deixavam alguma coisa escorrendo em suas veias. A frouxidão nascia daquele líquido se infiltrando em suas veias. Sorriu desgraçadamente. Sentia-se o próprio caldeirão dos degenerados. Aquela borracha era a calha condutora dos espermas, mas a febre da sua angústia não fazia ferver nada, nem produzir salmos elegíacos.
- De que está rindo? Sonhando com coisas agradáveis? Descerrou os olhos e deu com a figura simpática do Dr.
Barretto junto à sua cabeceira. Sua mão apalpava-lhe o pulso.
- Não foi nada. Mas você não pode me enganar. Quero saber de algo. Ê essencial para mim.
- Vamos ver lá, o que é?
- Quanto tempo, Barretto?
- Quanto tempo de que tempo?
- Você sabe o que pergunto. Não brinque, por favor.
- Quer saber quantos dias faltam para a operação?
- Não. Isso, eu sei. Não perdi por completo essa noção semântica de meu enfraquecimento e da dor. E não estou delirando ainda.
Dr. Barretto deu um assobio com simpatia.
- Puxa! Está mais lúcido do que eu. Tomou uma atitude séria.
- Afinal que quer que realmente lhe diga? Judas Iscariotes sorriu um tanto taciturno.
- Olhe, Barretto, eu sei que nessa profissão você está acostumado a ver gente bater as botas todas as horas... Sei que os médicos ficam calejados por dentro e por fora. Faz de conta que eu sou apenas mais um.
Dr. Barretto meneou a cabeça, comprimindo os lábios.
- Não julgue com tanta justeza os sentimentos de um médico. Ninguém que eu conheça se conforma em perder um doente. A gente finge, mas a sensação da última perda é semelhante à primeira. Isso nos dá a noção exata da nossa impotência e fraqueza. Talvez eu nunca desse um bom clínico ou cirurgião. Por isso me dediquei mais à Patologia.
Foi Judas Iscariotes quem sorriu com vontade.
- Pare com essa litania. Porra! Eu só quero saber se vou demorar muito ou pouco, depois que cortarem a minha perna.
- Ninguém sabe. Espero que façam um tratamento de cobalto e você pode muito bem se recuperar. Quem sabe? Eu espero. Quero vê-lo ainda forte. Ainda vamos caminhar bastante por aí...
- É me fazer de besta mesmo. Caminhar... Judas Iscariotes sentiu-se jocoso como há muito não se sentia.
- Barretto, você ainda é muito católico?
- Por que mudar na minha idade?
- Ê amigo do Papa? Se for, você conseguirá que eu ande mesmo um pouco.
- Você sempre maluco. Que tem o Papa a ver com todo esse mingau?
- Simples. Com jeito você lhe pede a Sédia Gestatória... aí sim. Eu poderei andar por aí sem dificuldade nenhuma.
Barretto carinhosamente passou a mão em seus cabelos
- Malucão! Mas eu prefiro vê-lo como antigamente, soltando palavrões e irreverências. Agora posso ir? Preciso dar o resultado de uns exames. Mais tarde estarei dando um pulinho até cá.
Saiu com seu uniforme impecavelmente branco. Desapareceu na porta da Ceia.
Judas Iscariotes recolheu-se ao ventre dos seus pensamentos. A vida dispersa. A vida une. Pode ser hoje, pode. ser amanhã. Talvez espere muitos anos, mas o que ela resolve, realiza. Nem sabiá precisar quanto tempo fazia que deixara a medicina. Mas no ano anterior. Talvez nem fizesse um ano. Talvez a temporada de uma chuva e o começo de um verão na selva, se tanto. Viera ao Rio, depois daquelas infindáveis viagens de trem, pelo interior de São Paulo, Triângulo Mineiro e Goiás. Depois daquelas cortações de rio e selva, ou por canoas, ou em caminhão, ou mesmo em lombo de cavalo xucro, viera ao Rio buscar um pagamento para o pessoal da fazenda. O antigo portador adoecera e ele lá naquelas brenhas era o que mais conhecia uma cidade como o Rio. Teria que perder no mínimo três santos dias. Até que preparassem toda aquela papelada e somassem na firma o dinheiro reclamado. Dava certo prazer depois de tanto tempo rever aquela cidade. O Rio era adorável. Os verdes bondes sempre vazios, sempre oferecendo lugares. Claro que os bondes operários vinham sempre apinhados. Não era novidade nenhuma. Uma manhã resolveu tomar um bonde qualquer na Galeria Cruzeiro. Escolheu um. Praia Vermelha. Tanto podia ser aquele como Ipanema, Leme ou Jockey-Club. Mas o que surgira à sua frente com toda a simpatia fora aquele: Praia Vermelha. Que bom. Reveria um lado do Rio que não via ainda há mais tempo. Catete. Largo do Machado. Senador Vergueiro. Botafogo. Urca. A Urca sim. O seu lindo casino, sua pequena praia, seus iates galeando sobre o mar como se respirassem. No bonde, alguma coisa incômoda também fez-se recordação. Algo que se ligava à Medicina. Besteira. Assunto morto, enterrado. Quando o bonde cruzou o Pavilhão Mourisco, um rapaz pediu licença e sentou-se a seu lado. Voltou a vista para o seu encantamento. Mas sentiu que o rapaz o observava com intensidade. Não era ninguém tão elegante nem tão mal vestido que pudesse chamar a atenção. Sentiu que uma mão pousava em sua perna, e uma voz, que vinha de longe, lhe falou amigavelmente.
- Desculpe, você não é Raul?
Nem podia negar nada. A seu lado estava Barretto, aquele estudante sempre tão sério e tão consciencioso. Barretto lhe sorria com grande prazer.
- Ora, ora, o mundo é pequeno. Quantas vezes não pensei que fim levara você.
Apertaram-se as mãos.
- Que fim levou você? Por que deixou a carreira já no meio do terceiro ano?
Disfarçou.
- Não dava praquilo. Meu destino era outro. Queria urna vida que me oferecesse mais aventuras.
- E conseguiu?
- Mais ou menos.
Cortou o assunto. Desviou a conversa ligeiramente.
- Pra onde você vai?
- Ali perto. Eu não pude desistir. Formei-me e trabalho como chefe de um laboratório de patologia.
Barretto olhou-o longamente. Parecia intrometer-se na barreira do tempo.
- Ninguém na Faculdade entendeu o seu desaparecimento. Foi total. Lembro-me que na época ligamos o fato ao suicídio de Lúcio. Como vocês eram inseparáveis, calculamos que tivesse sofrido um trauma muito grande. Agora você desvendará esse mistério. Acertamos?
Raul sentia um gosto de fogo na garganta. Precisou respirar com força para responder. Barretto, vendo-o empalidecer, retrucou.
- Estou brincando. Se isso lhe dói, deixe como está.
- Não, não.
Controlava-se com medo de se trair em qualquer detalhe.
- Não tenho nada a esconder. De fato, quando aquilo se deu, tamanho foi o meu desgosto que perdi o entusiasmo...
- Foi terrível para todos. Lúcio tão novo, tão vivo, tão rico. Você sabia da sua doença?
- Fui dos primeiros a tomar conhecimento.
- Deus do céu! O que você não deve ter passado.
- Nem metade do que você pensa seria o suficiente. Não me conformei. Não quis nem ver Lúcio pela última vez. Nem presenciar as cerimônias fúnebres.
Barretto deu um salto de surpresa e tocou a campainha do bonde.
- Puxa. Já ia passando do ponto. Pegou na mão de Raul com insistência.
- Por favor, venha comigo. Não diga que tem o que fazer. Faz tanto tempo. Por favor, não me negue isso. Vamos tomar um cafezinho no meu Laboratório.
Não possuía argumentos para contrariá-lo. Já se encontravam lado a lado caminhando na calçada. Segurou na manga de Barretto.
- Só que não precisa voar. Nessas passadas eu não poderei acompanhá-lo.
- Por quê? Algum problema com a perna? Sabe que notei você descer do bonde com certa dificuldade?
Riram.
- O danado do olho clínico. Não é bem a perna. Ê meu joelho direito que faz um tempinho que vem me incomodando.
-Já viu um médico? Um especialista?
- Naqueles buracos onde estou afundado? Você esta é doido.
Contou os detalhes do acidente na corredeira. Findo o relato, um risco de preocupação marcava a testa do medico.
- Vamos ver isso.
- Aqui na rua?
- Que é que tem? Encoste-se aqui no muro. Suspenda a calça até a altura do joelho.
Abaixou-se um pouco e apalpou a região.
- Dói?
- Assim não. Na selva quando vem a friagem do grande verão, incha um pouco e incomoda andar. Só quando a junta esquenta, como o povo de lá diz, é que melhoro. Ê grave?
- Não parece. Mesmo porque não sou um Clínico. Depois de a gente tomar o cafezinho, amigo, vou telefonar ao Tiago. Aquele, sim, é um dos maiores neurologistas do mundo.
- Será que vale a pena?
- E por que não? Você não vai gastar nada. Não custa ver.
- E se ele pedir para que eu faça um tratamento? Agora não dá, Barretto. Tenho que voltar para o mato. Não posso demorar mais o abandono daquela gente pobre de lá.
- Não custa examinar. Depois vocês se decidem. Tá?
Caminharam novamente. Dessa vez com mais calma. Como se gostassem de recuperar em breve tempo todos os longos momentos perdidos.
- Sabe, Raul, você, até que a gente compreendeu ter abandonado tudo. Mas os outros três...
- Que outros três?
- Eram três. Me lembro como se fosse hoje. Nunca pude me esquecer dos seus rostos e dos seus nomes. O Ferreira. O Góis e o Amílcar. Esse último era da Paraíba e tinha um bigodão de assustar.
Raul segurou-se dentro do seu espanto. Teria que firmar-se para não se trair.
- Que houve com eles?
- Não soube?
-Não. Nunca mais vi ou ouvi falar de ninguém da nossa turma.
- Aos poucos como se fossem frutas se despencando, eles foram abandonando a Medicina, sem dar uma razão plausível. Afinal, você que era muito amigo de Lúcio, poderá dizer. Eles eram assim tão achegados à Lúcio?
Raul sorriu, procurando tempo para responder com lógica e firmeza.
- Talvez você ignore o que acontecia com os estudantes, fora da Faculdade. Mas nós cinco éramos inseparáveis. Talvez realmente eu fosse o grande amigo de Lúcio. Todas as quartas-feiras de folga e todas as tardes de sábado a gente se reunia para jogar pôquer.
- Isso eu não sabia.
- Pode ser também que realmente eles não sentissem uma verdadeira vocação.
- Também pode ser. Mas esqueçamos por ura momento tudo isso porque estamos chegando. Dá pra subir dois lances de escada?
- Também ainda não estou tão aleijado assim.
- Nem pensar. Que besteira.
Subiram a escadaria e ele tirou do bolso com certo orgulho a chave do seu mundo. Tudo aquilo era seu. Limpo, organizado. Monte de prateleiras. Outras mesas com microscópios de todos os tamanhos. Estantes bem dispostas com compêndios médicos. Uma mesa com telefone e uma cadeira de rodas. Todo aquele seu mundo sonhado. Desejado. Realizado.
Puxou uma cadeira. Sentou-se atrás da mesa. Tocou uma campainha. Sorriu contente.
- Sabe que eu gostei mesmo de revê-lo. Não mudou nada, Raul. Talvez seu rosto esteja mais bronzeado e tenha adquirido uma seriedade de homem. Mas é o mesmo. Espere aí.
Na sua euforia nem esperava uma resposta ou uma anuência. Discou o telefone e combinou com o médico amigo se poderia aparecer. Meia hora? Tá, ótimo. Muito obrigado. Mas é um grande amigo de infância. Ele também andou estudando Medicina. Você vai gostar. Até já. Obrigado.
Olhou de novo encantado. Falava com toda a sua simplicidade, mostrava em cada traço a surpresa de encontrar alguém que julgara perdido para sempre na vida.
- Agora só falta chegar Rolinha. Vou encomendar um café especial. Por um segundo pôs-se a imaginar como seria a Rolinha. Gorda, magra, comprida, baixa...
Nem teve tempo de preocupar-se com isso, porque a porta entreabriu-se e um rosto negríssimo, luzidio, exibindo um sorriso perfeito, indagava.
- Um cafezinho, Dr. Barretto?
- O mais perfeito que puder fazer. Hoje é dia de festa no coração.
Quando a mulher desapareceu, voltaram a falar, como se tivessem combinado antes, sobre Lúcio.
- Quando ele descobriu?
- Fazendo exame de saúde no CPOR. Uma mancha escura na espinha na região dos rins.
- Esse detalhe eu ignorava. Ele falou tudo com você, Raul?
- Tudo. Até do medo que o levassem para um daqueles leprosários horrendos do nordeste. Fez valer o seu dinheiro para que não o denunciassem. Pelo que me contou, prometeu que viajaria para São Paulo a fim de melhor ser tratado e internar-se onde ninguém tivesse ouvido falar dele. Depois, foi aquela fuga. Vivendo na escuridão da noite. Deixou a sua casa. Procurou bairros distantes. Até que se convenceu que no quarto andar...
- Aquele da Rua da Aurora?
- Aquele mesmo. Descobriu que estando mais perto causaria menos surpresa.
- Ele tinha um carro muito bonito, não?
- Era o que de mais chique havia na época; uma baratinha Cadillac. Ele também vendeu.
- Você o viu até os últimos dias?
Por que toda aquela confissão? Urgia responder tudo. Barretto não possuía um dedo de maldade. Não desconfiava de nada, nem o estava acusando. Somente satisfazia sua mórbida curiosidade. Mentiria quantas vezes se tornassem necessárias.
- Não. Deixei de vê-lo uns três meses antes. Ele me implorou. E era cruel para ambos. Tanto que eu julgava que ele tivesse tomado um rumo ignorado.
- Pobre. Tomou o rumo da ponte do Capibaribe. Aquela lá longe. E esperou a noite se adiantar... O resto nós já sabemos. Vamos esquecer.
Felizmente Rolinha entrou festiva servindo o café saboroso. Raul sentia dificuldades em ingeri-lo. Barretto notava seu constrangimento.
- Foi chato lembrar tudo isso. Mas eu precisava... Notou com espanto que Raul esquecera-se do café.
- Não gosta? Ou está ruim demais.
- Ao contrário. O cheiro é delicioso. Não se assuste porque vou tomá-lo todo, lamber até a xícara. Mas quando estiver na selva doida e lembrar-me dessa maravilha de café, vou xingá-lo por todo o resto da eternidade.
Barretto ingeriu o último gole e comentou tristemente.
- Foi uma pena!
- Que é que foi uma pena?
- Sei lá. Tanta coisa. Pena você ter abandonado a Medicina. Pena Lúcio não ter tido um pouco de paciência.
Raul sentiu-se todo arrepiado. Até a barba de um dia doeu-lhe.
- Paciência de quê?
- De esperar um pouco.
- Que quer dizer com esperar um pouco?
- Sim. Isso mesmo. A humanidade é atacada pela leprofobia. Dificilmente alguém escapa disso. É natural. Uma maldição que vem da Bíblia. E hoje a gente vê que não é assim. Só isso.
- Você está cheio de circunlóquios. Traduza logo o que pensa. Pelo menos confirme o que estou desconfiando.
- É simples. O horror da lepra faz imaginar que um doente afetado por essa moléstia se decomponha em semanas. Ora, o processo leva anos para se desencadear. Todo mundo pensa que o nariz cai de imediato, os dedos, as orelhas... Tudo ignorância... Se ele tivesse tido paciência de esperar... talvez estivesse curado.
- Curado.
Raul segurou-se com força para não se erguer num impulso incontrolável.
- Sim, curado! Talvez com certas deficiências, mas cicatrizado, são. Sem perigo de contaminar os outros.
- Verdade?
Seu rosto deveria estar branco como a parede. Barretto compreendeu o seu desespero.
- Acalme-se; quando eu soube disso, fiquei mais emocionado do que você. Pelo menos mais pálido. E eu não era tão seu amigo.
Raul baixou as mãos, deixando-as pendentes e semi-mortas entre os joelhos. Seus olhos percorriam sem divisar os riscos do assoalho encerado.
Ouviu o barulho da cadeira giratória de Barretto se movimentando. Depois os vidros da biblioteca se descerrando e um livro qualquer sendo retirado.
- Aqui está o processo. Pasmem os céus. O processo de cura de uma condenação Bíblica.
Folheou o livro fino e leu palavras soltas.
- Derivados da Sulfa. Qualquer composto do grupo S02. A Sulfona. O Promim. A cura. Dentro de um ou dois anos tudo estará concretizado, graças a Deus. A cura. E Lúcio não teve paciência.
Para alívio do cruel desatino de Raul o telefone tilintou. O Dr. Tiago reclamava sua presença no horário determinado.
Saíram.
Pouco tempo depois caminhava, procurando a beira-mar. Queria sorver o ar salgado para recuperar-se, armazenar vida no seu íntimo tão destroçado pelo recente impacto.
Sentou-se no paredão, decidido a voltar para a selva. Jamais colocar os pés naquele pavilhão de Neurologia. Nunca mais enfrentar os olhos bondosos de Barretto.
Fitou o cochilar dos iates de luxo e as gaivotas brancas riscando o azul do céu. Seus olhos encheram-se de lágrimas. E as mil garras do remorso se alastravam no sangue dolorido percorrendo suas veias e artérias.
Em pleno dia os olhos verdes de Lúcio vinham surgindo do mar. Caminhavam, imantando os seus olhos, prendendo-os à sua fascinação.
Sentiu depois que Lúcio sentara-se a seu lado e continuava a analisar todos os traços do seu rosto. Como se quisesse desenhar cada ângulo do seu perfil.
- Você sabia, Lúcio?
- Como poderia saber? Eu não tive paciência, não?
- Agora você sabe. Agora você apertará cada vez mais o cerco.
- Certamente.
- E sobre os outros três?
- Desconfiava.
- Por que não os seguiu também? Lúcio soltou uma risada sarcástica.
- Porque eles tomaram parte naquele plano...
Como um punhal penetrante o dedo indicador de Lúcio penetrava fundo no seu coração.
- Eles tomaram parte naquele plano. Mas foi você. VOCÊ. Você quem me vendeu à Morte.

* * *

João estava milagrosamente em pé defronte da sua cama. Apenas dos braços cruzados desaparecera a Bíblia velha e sebosa. Em seu lugar existia outra com uma linda capa de madrepérola que adquiria tons dourados bem fortes conforme o seu respirar. E João lhe falava com bastante calma e convicção.
- Meu filho, meu irmão. É mister que nesse transe a alma compreenda todas as variantes da Partida. Se a vida se realiza em pequenas etapas até que amadureça, a Morte surge em partículas menores e mais fracas. Como se fora um dissolver de minúsculas partículas enfraquecendo-se e penetrando no imo da memória. Parece difícil, mas não é. Parece duro talvez. Quem atinge o umbral desse momento deve deixar que a Resignação sobrepuje a Lógica e as ameaças de Razão adormeçam na Paz do Nada.
Irritava-se com aquelas palavras ocas de João. Aos outros ele costumava se manifestar tão simples, tão calmo e tão humano. Entretanto não pensava em feri-lo. Deixá-lo-ia prosseguir o quanto desejasse.
- Não poderei trazer para o seu Pré-Sono a música divina de qualquer legião de anjos. Que tristeza. Eles são tão lindos. Você tem preferência por algum?
- Sei lá. Só me recordo de Anjos e Arcanjos. João manifestou um olhar de reprovação.
- Eles são tão lindos. Virtudes, Potestades, Querubins, Serafins, Dominações... qual desses nomes soa melhor para você?
Irritou-se.
- Que importa? Eles não são para mim. Você mesmo não esclareceu isso.
Todavia, arrependeu-se da grosseria, porque João era humilde, humilde mesmo. Citou o último porque, sendo o último, ficou mais gravado em sua lembrança.
- Está bem. Fico com Dominações. Resolveu dissipar uma pequena dúvida.
- Diga-me, João. Quando um eleito morre ouve o canto de todos esses anjos?
- Difícil. Uma legião para cada justo. E deve ser muito. Todos somente para a maior grandeza do bom Deus.
- E gente como eu? O que farão comigo?
- Não muito. Mas Simão Pedro e eu choraremos sentidamente a sua ida. Depois pediremos para ungir o seu corpo com óleos cheirosos. Enrolaremos o corpo morto no mais alvo e delicado síndon. E quando o levarem para a sua nova casa modesta, nesse exato momento pediremos aos céus que se possa ouvir o cantar de todos os sabiás dos bosques.
Virou-se cansado e enxergou Simão Pedro, à cabeceira, sentado no tamborete.
Gemeu abatido.
- Que horas são, Simão Pedro?
- Ainda é cedo. Você quer alguma coisa?
- Por favor, sem que o magoe, leve João para a cama dele. Ele me cansa tanto.
Simão Pedro olhou o lugar indicado e vazio. Sorriu triste.
- Nem foi preciso pedir. Ele está indo sozinho. Suspirou aliviado.
- Sabe o que é, meu amigo? Ele fala difícil. Muitas vezes não o compreendo ou ele confunde tudo. Devo ser como aqueles apóstolos burros que não compreendiam o Mestre, e ele criou o Pentecostes. É isso. Vou pedir a Deus que me ilumine de poderes monergísticos para entender suas prédicas.
Olhou o sorriso pobre de Simão Pedro.
- Por que está sorrindo, Simão Pedro?
- Porque eu não entendo nada do que você está falando.
- Não tem importância. A mínima importância. Esqueça, sim? Eu tenho um pouco de sede.
Simão Pedro deu-lhe de beber.
- Por que será assim, eim?
- Assim o quê?
- Eu gostaria de dormir, e acordar quando tudo já tivesse passado. Contudo, fico lutando para não dormir. Aproveitar o pouco tempo que me resta. Por quê?
- Não sei responder essa pergunta. Eu sei de tão pouca coisa, Judas. Talvez você não se recorde que me batizou de Simão Pedro e que Pedro foi considerado sempre um dos discípulos mais burros. Se ele, que falava com o Mestre, era assim, imagine eu...
- Ele era Amado. Como você, Pedro, que todos aqui amam. "Tu és pedra, e sobre essa pedra edificarei a minha Igreja". Você é a Igreja amiga de todos aqui.
Simão Pedro sentiu umedecerem-se os olhos e sua voz mal vencia a comoção.
- Que igreja eu poderia construir com a fraqueza das mãos e com as garras dos meus dedos? Nem um ranchinho de palha de pescador cujo chão seria calçado de seixos do rio e conchinhas do mar...
Passou a mão na cabeça do rapaz e implorou terna-mente.
- Durma. Não fale tanto. Você precisa dormir, sim?

* * *

Sacudiu os ombros de Judas Iscariotes com certa violência.
- Dormir! Ora, que besteira dormir! Apegue-se à vida. Eu avisei que seu tempo era mínimo.
Desesperado, contrapunha os olhos aos olhos verdes de Lúcio.
- Tenho uma coisa pra nós. Uma coisa formidável. Quer ver?
Colocou um rádio sobre a mesa de cabeceira de Judas.
- Só nós dois poderemos ouvir. Não incomodará ninguém na enfermaria. Deixe-me ver. Ah! Sim. Existe uma tomada elétrica atrás daquele armarinho de remédio. Vou ligar o aparelho.
Voltou a sentar-se no tamborete que nas últimas horas pertencia a Pedro. Simão Pedro cansara-se da vigília e deveria ter adormecido.
- Onde você arranjou isso?
- Chama essa maravilha de "isso"? É de Madalena. Ela mo emprestou.
- Madalena não teria dinheiro para comprar um rádio desses.
- Está bem. Se você quer a verdade: Eu lhe dei de presente. Talvez tenha esquecido que sempre fui muito rico. A propósito, o que você fez com aquele dinheiro que lhe enviei?
Um suor gélido escorreu por sua espinha. Desgraçadamente respondeu.
- Você sabe. Você me seguiu sempre. Você nunca me abandonou.
- Não é verdade. Eu só voltei mesmo, depois daquele desastre na corredeira. Na praia, quando a noite era escura e cheia de estrelas. Esqueceu-se? O que você fez com o meu dinheiro?
- Gastei-o todo. Gastei-o com ódio, fugindo.
- Fugindo de quê?
- Fugindo de você, Lúcio.
- Não. Você mente. Essas drogas todas desmancharão os seus recalques. Você está com maior senso de autocrítica.
Deu uma batida, fingindo-se amigo, nos ombros de Judas.
- Você fugia realmente era de você. Mas não tem importância. Aquele dinheiro não me faltaria para qualquer coisa. Só queria que não esquecesse um detalhe. Voltemos ao rádio. Não acha estranho Madalena amar tanto essas novelas piegas e baratas?
- Poderemos ouvir música. Existem bons programas de música.
- Também gostaria, se sobrasse mais tempo para nós. Mesmo porque o rádio está viciado em novelas. Ouçamos.
Ligou o aparelho, torceu o dial em busca do que desejava.
- Conhece essas vozes?
Judas Iscariotes quase sentou-se na cama de tão assustado.
- "O que faria você?
- Não sei.
- Mas estamos aqui para decidir alguma coisa.
- Mas que é duro e cruel, lá isso é..." Abaixou o volume do rádio.
- Conhece? Ou melhor, reconhece? "
Judas fechou os olhos e quando os reabriu estava sentado numa mesa do café Lafaiette. Amílcar preocupado, torcendo os bigodões negros. Góis sem vontade de levar o chopp aos lábios. Enquanto Ferreira, assustado, avisava a presença do garçom se aproximando.
- Você toma alguma coisa, Raul? Como sempre, atrasou um pouco.
Atarantado, olhou o garçom. Temia que ele perguntasse o fim que teria levado Lúcio. Precipitou-se, encomendando uma batida de limão, para que o garçom se afastasse depressa.
Voltaram a um silêncio que precisavam interromper, muito embora não o desejassem.
- Você o viu?
- Vi.
Tudo era dito em voz baixa e confidente.
- E ele?
- Está horrível. Ainda não se nota sintoma de deformação. Mas parece que a doença existia antes do que ele pensava.
- Será que ele esbanjava tanta vida para disfarçar? Estava tentando se enganar?
- Talvez.
- E ele?
- Vive na penumbra. Num quarto andar ali na Rua da Aurora.
- Tão perto, meu Deus.
- Escondendo-se muito longe, talvez chamasse mais a atenção sobre ele. As maçãs do rosto parecem um pouco deformadas como querendo anunciar para breve os sintomas do leproma. Mesmo assim, ele deixou crescer os cabelos como um Cristo. Sempre deixa que eles caiam sobre o rosto. Evita a luz e seu quarto vive numa penumbra doentia.
- E por lá ninguém desconfia?
- Sabe-se lá o que ele contou para os proprietários. Talvez um homem com um terrível desgosto. Um homem que dorme de dia. Sai à noite para se embebedar. Sei lá...
- Infelizmente acabarão descobrindo.
- Todos nós já pensamos nisso.
Resolveram confessar-se mutuamente. E aquela pergunta já tinha sido formulada muitas vezes, ou em conjunto, ou na solidão dos quatro.
- O que você faria se fosse com você? Dessa vez temos de ser sinceros o mais possível. Você, Amílcar?
- Talvez fugisse para o sul. Talvez me entregasse.
- Acabaria num leprosário? Engoliu em seco, desesperado.
- Sabe o que significaria? Os tratamentos da lepra são os mais primitivos. Aplicações de óleo de Chaulmugra no local afetado. Mil picadas sem fim. Aquilo arde como fogo, porque é preciso desinfetar os lugares sãos que cercam as feridas. E na maioria dos casos só retarda a chaga, o apodrecimento.
Amílcar abaixou a cabeça desorientado.
- Não sei o que responder. Nem o que faria. Passe a pergunta adiante.
Foi escolhido para externar a sua opinião o filósofo Góis.
- E você?
- Eu não gostaria de apodrecer aos poucos. Ver meus dedos, minhas orelhas, caindo aos pedaços. Sou mais pela morte.
- Teria coragem?
- Haveria de ter pelo menos um desespero tão grande que me levasse a esse fim.
- E você, Ferreira?
Ferreira, sem jeito e emotivo, deixava escorrer lágrimas pelo rosto.
- Pare com isso, homem de Deus. Ninguém pode saber o que estamos conversando. Uma tora de homem como você, chorando, vai despertar qualquer suspeita mais tarde.
- Desculpem. Não é momento de chorar, mas eu sou besta mesmo. Perguntem ao Raul. Ele, sim, deverá decidir melhor, porque se trata do seu maior amigo.
- Não sei o que faria em seu lugar.
Suas palavras tinham tomado uma dureza de pedra.
- Não sei. Só não quero saber que descobriram Lúcio e o levaram. Não desejaria por nada nesse mundo vê-lo cair aos pedaços. Seria crueldade demais da vida. Conhecendo-o como o conheço, ele optaria pela morte.
- Você fugiu à nossa pergunta. O que faria em seu lugar?
- Eu me mataria. Sem nenhuma dúvida: eu me mataria.
Lúcio desligou o rádio.
- Não se esqueceu de nada? Reconheceu todas essas vozes e as resoluções que tomaram a meu respeito?
- Fez um gesto de reacionar o aparelho.
- Torna-se desnecessário, Lúcio. Não esqueci um só detalhe.
- Então, repita a última frase.
- Sem nenhuma dúvida: eu me mataria. Lúcio tomou um tom cáustico e desafiante.
- Pois é. Eu me mataria. È fácil dizer. Resolver numa mesa de bar o destino de alguém. Muito fácil. Eis que é chegada a sua hora. Deixo a escolha a seu livre arbítrio. Não estou lhe entregando nas mãos o frio desumano de um revólver. Que outra alternativa vocês me deram?
- Nós pensávamos estar praticando um bem.
- Mas você mesmo, com sua mania de Bergson, não podia esquecer-se de que muitas vezes a gente, praticando um bem, está principiando um mal.
- Você pode descrer. Mas não queríamos vê-lo fugindo. Sabê-lo se decompondo em vida ou procurando cidades longe, do sul, em que os doentes do mal de Hansen agitavam um sino, anunciando suas presenças. Ou pediam esmolas, apresentando canecas amarradas em ponta de varas.
- Muito bem.
Lúcio tomava-se de uma violência incontrolável.
- Muito bem. Chegou o seu momento. Você está caindo aos pedaços. Devorando-se internamente. Uma ruína. Um escombro humano.
- Com uma pequena diferença. Uma bárbara diferença. Meu mal não é transmissível.
- O meu possuía esse aspecto mas... tinha cura. Nisso consiste a maior crueldade de vocês.
Abrandou a voz.
- Querido, vê-lo desmoronar não é a minha imensa preocupação. Juro. Quero evitar essas dores terríveis que sente. Não se iluda. Mesmo daqui a três dias - Três dias, não; enganei-me; apenas mais dois - as dores tornar-se-ão insuportáveis. Ainda que por felicidade seus amigos médicos o ajudem, intoxicando-o de morfina.
Judas Iscariotes sentiu o rosto lavado em lágrimas.
- Lúcio, tenho vivido com o horror presente do meu erro. Você não ignora isso. Deixe-me morrer. Sabemos que não durarei muito. Deixe-me dormir. Eu sou um covarde, um medroso, um cagão, como a gente classificava qualquer fraco antigamente. Deixe-me dormir...
- Nesses últimos dias, enquanto tiver as duas pernas, não o deixarei. Não posso prometer o que não hei de cumprir.
Os saltos dos chinelos de couro batiam no chão perto da sua cama. Sentiu-se calmo pela sua presença. Ainda pôde comunicar a Lúcio.
- Que bom! Madalena chegou. Ela veio buscar o rádio de volta.
- Pois sim! Apenas veio aplicar mais uma injeção. Bendisse na alma o cheiro azedo de Madalena, abaixando-se sobre o seu corpo e procurando nas nádegas um lugar menos emagrecido. Antes de acabar a massagem com álcool na pele, suplicou.
- Madalena, você pode me fazer um favor? Ela riu com desdém.
- Que outra coisa faço nesses dias e noites? Parece que virei enfermeira particular. Afinal você é a menina dos olhos do Dr. Tiago e do Dr. Barretto. Há gente pior do que você. Veja o infeliz do Bartolomeu. Está desaparecendo no meio das fezes. E eles? Nem ligam.
Depois, olhando a face cinérea de Judas Iscariotes, recuou um pouco o seu ressentimento. Traduzia em suas expressões estar avistando a morte no seu nariz afilado.
- O que quer?
- Você pode levar o seu rádio. Obrigado. Já escutei tudo que me interessava.
- Que rádio?
Irritava-se julgando que o desgraçado estava gozando a história fracassada do rádio.
- Ele está na mesinha de cabeceira. É lindo. O rádio mais lindo do mundo. Obrigado.
Por trás da cama de Judas, Simão Pedro fez um sinal, convencendo Madalena de que ele estava delirando.
- Está bem. Já que não precisa mais, eu o levarei.
Soltou um obrigado tíbio e apressou-se em fechar os olhos.

* * *

- Não. Você não vai dormir. Nem pense que vai. Lúcio o sacudia pelos ombros, tentando reanimá-lo.
- Por favor, deixe-me dormir. Deixe-me ter a impressão de que estou morrendo. Não consigo mais abrir os olhos. A injeção está fazendo efeito.
- Qual nada. Você pensa que morrer é tão fácil assim? Não permitirei que desperdice o tão pouco que lhe resta.
Sentia-se sacudido, mas as mãos de Lúcio pareciam estar longe, nas léguas do infinito. Sua voz entrava em seus ouvidos, percorria os labirintos do cérebro, parecia patinar nas meninges. Meninges. As Meninges são três: Pia Mater, Dura Mater e Aracnóide...
- Está bem. Você dormirá. Mas estarei dentro de suas lembranças como se você revivesse num redemoinho ou na atração de uma voragem. Estou dentro de sua vida. Tão dentro como o sangue que percorre as veias. Sonhe aquilo que penso. Reveja aquilo que quero.
E Judas Iscariotes reviveu lembranças entrecortadas, cenas do seu passado na selva. Todas elas permeadas de desconforto e distância. Uma hora, remava ao sol vivo de quarenta e tantos graus nas águas barrentas do Rio Araguaia. Outra vez, sem camisa, picado de mosquito, trabalhava na roça do Serviço de Proteção aos índios, em São Domingo, no Rio das Mortes. Não havia uma pausa para um descanso ou contemplação das belezas da selva. Agora o machado retesava os seus músculos, diminuindo, reduzindo toras de lenha, na Ilha do Bananal. Via-se em cima de lombos de burros percorrendo matas. Dormindo na rede debaixo da chuva. Quando havia uma estiagem, desamarravam a rede para torcê-la e tornar a esticá-la. Apesar de molhada, a noite asfixiava de calor. Muriçocas e carapanãs picavam as costas atravessando o tecido da rede. Onde estava agora? Nas crateras de noventa metros de profundidade dos garimpos de cristal. Jogar a terra pelo cabo da pá, de bancada a bancada, até atingir a superfície. Respirava forte porque o corpo precisava sempre de ar renovado. As bateias dançando nas mãos, e as pernas o dia inteiro mergulhadas nas águas sujas. Procurava a sorte que não vinha? Talvez não. Procurava sim, gastar o tempo da vida e esquecer suas origens. O tempo marcava-lhe o rosto e empurrava a adolescência para bem longe. O essencial era andar. Tornar a andar. Não se fixar em nenhum lugar onde começasse a aparecer a curiosidade sobre o seu passado. Não seria demais que o julgassem um criminoso, fugindo à consciência e à Polícia, como tantos outros daquelas brenhas. Comportava-se bem. Não abusava da bebida, nem era dado a estripulias, cabarés e brigas. De noite dormia como pedra. Ou na frialdade das areias das praias dos rios, ou nas redes armadas em acampamentos ou barracões de garimpeiro. Numa viagem com uns garimpeiros, dera-se aquele acidente que a princípio julgara tão sem importância. Podia ouvir ainda o ritmo das remadas do batelão tão pesado, que transportava as tralhas dos garimpeiros. O mestre no jacumã bem que tinha recomendado.
- Cuidado em equilibrar o corpo. Nenhuma remada em falso. A canoa tá pesada. Cuidado com a corredeira que é marma e brava...
De nada adiantou: O destino estava pregando uma peça. Entre as pedras estreitas do canal ele deixara um pequeno tronco fincado. Foi só a embarcação triscar e desgovernar-se, tomando a descida de bubuia. No arremesso maior da queda d'água a canoa empinou e virou de borco, jogando as cargas pesadas sobre os homens. Não houve ura grito de alarme ou um pedido de socorro. Todos desapareceram na voragem. Foram se debatendo, jogados, imprensados contra as pedras por vários minutos. No acalmar das águas, no fim do rebojo, começaram a aparecer, nadando. Felizmente alcançaram uma pequena praia do rio. Um velho, o mais velho, o dono do batelão, vendo a canoa desaparecer destroçada na correnteza, que se tornara lisa mas coberta de flocos de espuma, apenas murmurou entre dentes.
- Eta Tocantins danado!
Perderam tudo. Só de noite confirmaram que o baiano Misael pertencia ao mundo dos finados. Era melhor dizerem um ora pro nobis em conjunto porque o mistério das águas do rio tinha devorado a sua alegria, a sua mocidade e aquela voz que vivia de cantar.
- Moço, vosmecê está mesmo maltratado.
- Devo ter quebrado a perna. Ou talvez o joelho. E provavelmente o pé. Não sei. Nem dá pra doer. Está tudo grosso e anestesiado. É bem provável que tenha ofendido um nervo. Deve ser o ciático. Combinaram uma porção de planos.
- Perdemos tudo. Até a garrafinha que tinha os xibius e os gramas de ouro do nosso lucro. Ela deve ter se espatifado na corredeira.
- Pois é. A gente precisa começar tudo de novo no começo.
Calaram-se.
- Se a gente tivesse um fosque pra fazer a fogueira tudo seria melhorado. Porque do jeito que a tarde corre vamos ter uma noite de frio. Sem coivara ninguém num guenta.
Um deles se lembrou e remexeu o fundo do bolso. Falou com alegria.
- Escapou.
- O quê?
- Minha guimba. Se o algodão secar e a gasolina não tiver molhado muito, é capais de fazer lume.
- Vamos ponhar ela em cima daquelas pedras quentes na bundinha da cachoeira. Quando dá fé vai dar milagre.
E a sorte que deu.
Organizaram uma batida na praia pra ver se havia pelo menos ovos de gaivota porque tracajá e tartaruga ainda iam custar muito. Voltaram com os braços cheios do nada. Mas havia resignação nos olhos e nos rostos. Bem comum a caboclos acostumados à dureza da selva.
Quando estava o sol pelas quatro horas, já haviam recolhido muita lenha seca. Toras grossas para agüentar a noite e pedaços menores para reacender o fogo durante a noite.
Achegaram-se do rapaz acidentado. Sentaram-se à sua volta.
- Olhe moço, a gente combinou com muita calma enquanto pegava a lenha.
Raul sorriu. Adivinhava o significado da reunião.
- Olhe, moço...
Mesmo assim, tornava-se duro ditar a sua sentença.
- Podem falar. Eu entendo.
- A gente ficou sem tudo como viu. É lei de garimpo: quem se machuca na selva, na selva fica.
- Eu sei.
- Ninguém tem força nem condição para lhe carregar até um rancho.
- Também sei.
- O senhor não era do nosso grupo. Viajou com nóis porque pediu.
- Eu sei e agradeço.
Aí que foi duro acabar com o resto da conversa.
- A gente vai simbora antes que a noite feche de toda. Vamos ver se se arcança um rancho ou uma corrutela. Aí a gente pede socorro e o povo vem lhe buscar...
O velho mais velho cocou a cabeça totalmente branca e despenteada.
- Eles vêm sim. Porque vão imaginar que a gente cometeu uma morte...
Raul sorriu.
- Se não vierem, virão os urubus do céu. Também é a lei da selva. Eu agradeço aos senhores esses dias que deixaram que eu viajasse na sua canoa e dividiram a matula comigo.
- É uma pena moço. A gente vê de longe que o senhor é uma pessoa de muito trato.
Os outros, meio sem jeito, ergueram-se mas o velho tinha que rematar a combinação.
- Vamo deixar uma coivara bem grande acesa. Vamo cavar um leito bem fundinho na areia da praia, pra que de noite seu corpo tenha o calor do sol que ficou na areia. A clareira do fogo vai toca pra longe qualquer bicho que se aproxime. Perto do seu braço a gente deixa uns paus mais leve. O senhor acordando, dá pra encostar no braseiro. Assim, se não pegar muito no sono, pode acordar e se defender da noite.
Levantaram-se e começaram a preparar a grande fogueira em respeitoso silêncio.
Terminada a operação, só o velho se abaixou e perguntou um pouco comovido.
-Lhe dói muito?
-Por enquanto nada.
- Que Deus e as Santa Alma do Purgatório lhe protejam. Adeus.
Fizeram uma fila, transpuseram uma moita longa de sarão. Depois sumiram na barreira, um de cada vez, sem olhar pra trás.
Com a noite vieram os mosquitos das primeiras horas. Depois partiram com o frio. O barulho da corredeira ampliava-se porque a noite era quase silenciosa. A roupa, resumida numa calça e numa camisa, estava seca e engrossada pela farinha da areia, ajudando contra o frio. As labaredas cresciam enormes e quase retas porque não havia vento. Isso parecia ajudá-lo. A lenha seria economizada, e o cheiro do seu corpo não seria propagado, aguçando mais a curiosidade das feras.
Bastava que não dormisse pesado. Assim arremessaria um pedaço de madeira ao fogo, reavivando-o. Sua salvação poderia depender da luta contra a sonolência e uma espécie de febre que lhe causava um princípio de torpor.
Quando deu fé, a noite era toda uma imensidão de estrelas. A fogueira agigantava-se na escuridão e alguns animais gritavam na selva, irritados e amedrontados com o clarão.
De repente o coração gelou no peito. Se não estivesse delirando, diria ouvir passos se aproximando. Não. Não se equivocara. Alguém riscava de leve as areias. Poderia ser uma fera, um cristão, morador perdido naquelas paragens, ou um índio curioso procurando alguma partilha.
- Sou eu.
Aquela voz rebentava em estilhaços todo o seu medo e angústia. Estourava dos espaços, do inferno, da solidão. Tentou erguer-se nos cotovelos.
- Não. Não faça movimentos. Não desperte ainda a dor, porque, não se iluda, ela virá... e como.
No refulgir da fogueira, os olhos de Lúcio estavam mais verdes do que toda a selva depois de uma grande chuvarada.
Misteriosamente apanhou um pedaço de fogo e atiçou o braseiro da fogueira.
- Não quero que você "morra" de frio, meu querido. Olhou o céu cheio de estrelas.
- A grande Ursa já adormeceu. Escorpião reina soberano. Que beleza o céu de Deus, não?
Todas as frases de Lúcio possuíam um terrível imantismo e duplo sentido.
- Foi uma fatalidade. Vocês perderam tudo, não? Uma fatalidade. Tenho a impressão de que essa anestesia que ataca a sua perna direita é motivada simplesmente porque você atingiu o nervo ciático. Se não me falha a memória, antigamente estudamos isso juntos. Ciático Popliteo externo. Ciático Popliteo interno. Que você acha?
Não queria responder. Continuava meio tonto e aparvalhado. Sentia medo até. Lúcio adivinhava os seus pensamentos.
- Asneira dizer que os mortos não fazem mal. Não pensa assim?
Sem obter resposta Lúcio cantarolou com voz suave.

"Panela no fogo furada
Não dá pra fazer feijoada...
Panela no fogo furada
Não dá pra fazer feijoada..."

Riu de uma maneira expansiva.
- "Musguinha" besta tá aí! Era uma canção que uma velha babá cantava pra mim.
Grudou novamente os olhos verdes de selva, de esmeralda líquida, nos olhos medrosos de Raul.
- Ora também! Precisamos conversar muito. Como vê, estou fazendo tudo para que fique à vontade.
Assobiou, voltando a olhar as estrelas. E admirando a sua beleza dentro da noite, continuou a conversar. Era mais um monólogo de solidão.
- Você não pensou muito em mim, não, querido? Isto é, pensou que não pensou. Matou-se numa vida hostil e bruta para tentar esquecer-me. Sabe que eu não me importei em absoluto? Eu apenas aguardava um momento importante para fazer a minha "reentrée" em sua vida. Acertei em cheio, não?
Vendo que não receberia resposta, prosseguiu.
- Querido, você não pode continuar assim como um bebezinho emburrado. Pense como sou seu amigo. Não quero deixá-lo sozinho numa contingência dessas. Que prova maior poderia dar? Melhor é ir-se habituando comigo. Porque eu voltei. Voltei. Esse momento é a hora mais importante da sua vida para mim. O mais importante de todos nesses últimos anos. Por isso voltei, querido.
Levantou-se, espreguiçando-se contra o céu milionário de estrelas. Falou em tom definitivo, como se traduzisse seus desejos e a vontade irrefutável de Deus.
- Eu estarei com você, Raul. De hoje em diante viverei dentro dos seus pensamentos como uma sombra na sombra. Chegou o momento de cobrar uma dívida. E essa dívida, querido, vai ser muito difícil de saldar...

 

CAPÍTULO 16 - Noli me Tangere

- Eu dormi muito, Simão Pedro?
- Bastante, meu amigo.
- Que horas são?
- Ainda é cedo.
- Acho que não é cedo, Simão Pedro. Falta muito?
- Esqueça. A tarde está fria e o verão foi embora.
- Sei. O verão foi-se embora e a guerra está para acabar. Todo um mundo se renovando. Eu sei que a tarde está linda. Mas a verdade, Simão Pedro, você não poderá me negar. A que dia pertence essa tarde?
Simão Pedro chegou a apertar o peito para acalmar o coração.
- Fale, meu amigo. Eu tenho perdido a noção de tudo, até da dor. Não posso entretanto perder a noção da morte. Essa tarde linda pertence a que dia?
- Ao domingo, Judas Iscariotes. Então ele soltou um soluço constrangido.
- Ê, pois, a tarde do meu último dia.
Suspendeu o corpo fraco no colchão. A tarde descia calma, penetrando nas janelas da enfermaria. Ao contrário dos dias quentes de verão, as moscas tinham desaparecido.
- Todas as moscas já se foram, Simão Pedro.
- As comuns sim. As outras permanecem no biombo que encobre a cama de Bartolomeu.
-Já não era tempo que elas se acercassem de mim?
- Você não vai morrer. Apenas fará uma operação amanhã. Ninguém pode garantir nada nesse mundo. Quem sabe se meu velho coração não pode parar antes do seu? Ninguém sabe. Só o bom Deus.
- Está bem. Está bem. Você me faria mais um favor?
- Estou aqui para tanto.
- Não deixe que me dêem nenhuma injeção essa tarde. Promete?
- Não sei. Não depende tanto de mim. Não seria melhor você tornar a dormir e ignorar tudo?
- Não. Por um único motivo. Senti uma vontade imensa. E essa vontade imensa está enchendo cada canto de minha alma. Eu quero caminhar pela última vez e participar da Ceia.
Uma necessidade imperiosa espicaçava morbidamente aquele seu desejo. Um gosto de partida na alma. Uma sensação de auto-adeus. Seu corpo era o cais. A perna, o adeus. Em menino, sempre vira partir navios. Não tinha para quem acenar um lenço branco. Mas o navio, apitando lugubremente, achatava o peito de mágoas desconhecidas.
Pedro sorriu placidamente.
- Você quer dizer que gostaria de ir sentar-se à mesa?
- Sim. Caminhando com minhas pernas. Mesmo que pra isso sinta a maior de todas as dores. Caminhar pela última vez com o corpo que a vida me proporcionou. Você sabe de uma coisa, Simão Pedro? Quando eu estudava Medicina, vi muitos doentes amputados sentirem doer no local da parte já retirada.
- Eu acredito. Mas vamos falar de uma coisa mais alegre.
- Onde existe coisa mais alegre por aqui? Na minha frente há outro morto: o apóstolo Tomé. Nos olhos de quem me cerca enxergo o espectro da morte. No fundo dá sala o biombo mortuário de Bartolomeu com moscas paralisadas em humilde expectativa.
- Está bem. Mas pense outra coisa. Pense que sua perna não está doendo nesse momento. Feche os olhos e repouse. Não precisa adormecer...
- Está bem, meu amigo, vou tentar obedecê-lo.
- Enquanto isso, vou começar a dar um jeito no pessoal para que quando venha a Ceia, tudo se encontre melhor organizado.
As sandálias de Pedro, o Pescador, bateram disritmadas no chão e foram se perdendo sem pressa.
Uma madorna começava a entorpecer os seus sentimentos. E aquilo o desanimava. Todo aquele abulismo reaparecia depois de uma pequena reação qualquer. Os remédios o prostravam tal qual o desejo dos médicos. Não queria que ele estivesse consciente até o momento precípuo. Na realidade estava imbuído de tremenda agnosia. Começava a ser atacado de uma inconsciência intelectual e fazia esforço para perceber as coisas como realmente elas eram.
- Você está exagerando, querido.
Lúcio intrometia-se como bem entendia em seus pensamentos. Surgia sempre numa hora mais ou menos de paz. Nos instantes menos desejados.
- E agora?
- Nada. Por que preocupar-se? Pensei comigo. Ele não quer perder a Ceia. Esforça-se para adormecer. Entretanto se não dorme, o tempo rola lentamente. Estão provando novamente a minha dedicação...
- O que pretende agora?
- Vamos.
- Não irei.
Segurou com força as grades da cama.
- Juro que dessa vez não acompanharei você.
Lúcio soltou uma gargalhada.
- Não irá? Como poderá negar-se a fazer o que quero? Solte-se.
Judas Iscariotes agarrava-se loucamente à cama.
- Então serei forçado a obrigá-lo. Por que resistir se suas forças são tão diminutas? Olhe.
Um saco de couro agitava-se ante os olhos de Judas Iscariotes. O som de moedas tilintava alucinadamente.
- Tomé, querido. É todo pra você. São mais trinta moedas. Todas de ouro. Todas reluzentes como o sol. Vem?
Judas soltou a grade e apertou os ouvidos para fugir àquele som martirizante. Era em vão; o entrechocar das moedas penetrava lá dentro da cabeça, fazendo-o quase gritar de dor.
- Pare, por favor. Esconda esse dinheiro desgraçado. Eu vou.
Arfava o peito, regado de suores frios.
- Eu vou...
Lúcio falou com certo triunfo.
- Não queria ter feito isso. Você me obrigou, querido.
Judas ergueu-se e sentiu que Lúcio o apoiava com as mãos fortes penetrando nas suas axilas.
- Vamos com calma. Agora pode fechar os olhos. Obedeceu.
- Estamos na noite. Estamos na rua. Não existem no céu as estrelas de que você tanto gosta. Mas vamos mesmo assim.
O corpo era arrastado como num torvelinho. Não podia diferenciar se andava ou voava.
- Hoje não posso convidá-lo a ir naquele carro de capota aberta, se lembra? Nem havia motivo para isso. O tempo passa e aquela baratinha, naturalmente um ferro-velho hoje, estaria, ridícula e obsoleta.
- Onde estamos?
- Pode abrir os olhos. Reconhece?
Tentou firmar a vista e analisar a paisagem. A pouca iluminação do ambiente dificultava-lhe o intento. Forçou as pálpebras com as costas da mão, tentando clarear um pouco mais a visão. Somente velhos casarões se recortavam no perfil da noite.
- Não se afobe, você conhece. Conhece sim. Se não dá para enxergar desse lado, vire-se à sua direita.
O coração confrangeu-se. A ponte de ferro, vazia de gente, de qualquer movimento, refletia-se nas águas sombrias do Capibaribe.
- Recife, meu velho. Recife dos casarões e das fontes coloniais. Da rua da Aurora com as suas pedras britadas.
Recife que tanto nós amamos e que embalou tantos sonhos da nossa juventude.
Parou defronte um velho pardieiro.
- Esse nós conhecemos bem, não querido? O cheiro de velhice, pobreza, vômitos, sujeira, ratos... Sabe porque eu escolhi esse ambiente com um odor tão deteriorado? Não? Sinta o aroma da maré podre que vem do rio.
Teve que aspirar aquele cheiro nauseabundo.
- Ê simples. Combinando o cheiro do rio com a podridão desgraçada do prédio, eu pensava escapar. Disfarçar o cheiro doce que dia a dia iria nascer com o desenvolvimento da minha doença. Mas vocês nem pensaram num detalhe desses... Entre.
- A porta está trancada.
- Não está. Trancada pra quê? Até as putas que habitam o fundo do segundo andar já se recolheram. E quando elas o fazem mais cedo, existem duas razões. Ou muito cansaço ou mãos vazias.
Empurrou Judas Iscariotes para o lado da escada. A luz mortiça de uma fraca lâmpada recortava os degraus velhos, gastos, e que iriam ranger muito à sua escalada. Sentiu-se apavorado. Seus dentes castanholavam.
- Você não vem?
- Para quê? O caminho você já conhece. Basta prestar atenção porque nos desvãos da escada e nos lances de cada andar pode esbarrar com o corpo de algum mendigo ou um bêbado.
Suas pernas teimavam em não obedecer. Lúcio empurrou-o irritado.
- Obedeça, seu palerma. Sinta exatamente o que eu sentia todas as noites em minha solidão. O que amargurava todo o sangue nas minhas veias e chacoalhava meu coração contra a parede do peito. Era a mesma angústia noturna. Rastejava escondido nas horas mortas da noite em busca de algo para alimentar-me. A volta era toda essa tortura que você vai conhecer, sentir como eu senti, pelo menos uma vez na vida.
Pediu humildemente.
- Me acompanhe por amor de Deus.
- Amor de quem? Ouvi bem? Ora, querido, nesse momento não há lugar para sandices. Suba. Eu estarei lá. Vamos reviver uma cena. Esses últimos dias você aqueceu na cabeça uma idéia comum: que a morte faz reviver todos os momentos que nos foram importantes. Esse, para nós dois, deve ter sido o ápice. Suba. Não se esqueça. A quarta porta. Nem precisa bater. A porta se encontrará apenas encostada. Uma luz mortiça trará seus passos junto a meu abandono. Vá.
Empurrou a porta com os dedos do desalento. As dobradiças gemeram um lamento de ferrugem. A luz ainda tornava mais sombrio a horridez do cenário.
- Quem é?
- Eu. Você sabe que sou eu.
- O que quer?
- Você sabe por que vim. Nós estamos repetindo uma cena.
- Quê cena?
Engoliu em seco desorientado.
- Da última vez havia um pouco mais de luz aqui.
- Também creio que se engana. Provavelmente seus olhos envelheceram.
A voz de Lúcio surgiu irritada e manifestou uma ordem imperiosa.
- Tudo será exatamente como aconteceu. Não se pode frustrar os traços do destino.
Foi-se aproximando transido de medo e de indecisão. Lamentava ter se proposto a vir ali.
- Lúcio...
Sua voz estacava, impossibilitada de prosseguir.
- A que você veio?
Lúcio saiu da penumbra em que se encontrava e a luz amarelada incidiu sobre os seus traços. Seus cabelos tinham crescido e tocavam-lhe os ombros. Com aquela iluminação, eles obtinham um colorido de fogo. O rosto intumescia-se nas maçãs. Dali talvez explodissem duas chagas. Surpreendentes eram seus olhos verdes que pareciam iluminar mais do que a lâmpada. Todos os pêlos de Raul se eriçaram. Lúcio se transfigurava num Cristo doentio à espera de novo holocausto.
- Eu pedi que você não voltasse mais.
- Tinha que fazer... Nós não queremos vê-lo...
- Além de você existem outros que também...
- O Góis, o Amílcar, o Ferreira.
- Sei. E decidiram-se...
- Tudo por seu bem. Mais cedo ou mais tarde.
- Você acha que...
- Iriam sim.
A voz de Lúcio tomara uma rigidez de pedra.
- Muito bem. E o que escolheram?
- Isso.
Lúcio examinou com os olhos cuidadosamente.
- E não falhará?
- É bastante novo e de pouco uso.
- Pensaram em tudo.
- Você faria o mesmo com qualquer um de nós.
- Provavelmente.
Houve um silêncio em que podia ser distinguido o respirar apressado de ambos.
- Então?
- Está certo. Ponha-o em cima da mesa. Melhor suspender o pano e abrir uma gaveta. Ali dentro não despertará muita curiosidade.
- Você acha que poderá vir alguém aqui antes?
- Nunca se sabe.
Movimentou as pernas como se tentasse aquecer a sua coragem.
- Preciso ir.
- Muito bem.
Pensou em perguntar quando ele se decidiria a realizar... Mas sua voz não encontrou saída na garganta. Talvez fosse crueldade demais.
- Por que não vai?
Aproximou-se de Lúcio. Não podia se conter. Seus olhos estavam umedecendo suas faces.
- Lúcio.
- O que quer agora?
- Pelo bem que nós nos quisemos sempre.
- Não comece com isso agora.
Avançou com a mão estendida para o amigo.
- Adeus, Lúcio.
A mão ficou petrificada no espaço. Para aumento de todo o seu horror, os olhos verdes de Lúcio estavam possuídos do fogo dos infernos. Sua voz saiu rouca e cavernosa. Era uma voz que esbofeteava seu rosto e sua alma.
- NOLI ME TANGEREI...
Virou as costas e desceu a escadaria, sentindo todos os degraus se abalarem com o peso dos seus saltos. Ganhou a rua. Respirou com força. O rio estava cheio e luminoso. Ainda existia um resto de tarde e as luzes da cidade brevemente acender-se-iam. Andou como autômato pelas ruas até que a noite se revelou completa. Suas pernas desesperadas ainda caminhavam quando a madrugada queria anunciar a alva.
Conseguiu voltar até o quarto de pensão. Meteu-se numa ducha bem fria. Por todo canto que parasse o olhar, sentia-se perseguido pelas palavras condenatórias de Lúcio.
- NOLI ME TANGEREI...
Acabava de descobrir uma triste realidade. Quando Lúcio realizasse tudo o que tinham planejado, a vida teria também perdido todo o gosto para ele. Os olhos verdes de Lúcio, as palavras de Lúcio iriam gravar-se a fogo em cada gota do seu sangue.
De tarde, no bar defronte à Faculdade, encontrou-se com os três.
Quase não havia diálogo. Tudo era dito por cochichos e monossílabos. Contou-lhes tudo.
- Nós também passamos a noite sem poder dormir.
Pensávamos que seria nessa mesma noite.
- Não foi. Caso acontecesse alguma coisa, já saberíamos aqui na Faculdade.
- E se ele desistir?
- Eu conheço Lúcio. Ele aceitou. Não volta atrás.
Com a barba de dois dias e grandes olheiras, voltou quase à noitinha para seu quarto. Nem bem retirara a camisa, a dona da pensão bateu na porta.
Entreabriu-a nervosamente.
- Olhe, seu Ruy, logo depois do almoço mandaram lhe entregar esse pacote.
Empalideceu, vendo o embrulho. Seria o revólver devolvido por Lúcio? Recebeu a encomenda e viu que nada pesava. Em um segundo não sabia o que pensar. Se desejava ter recebido o revólver ou se estava contente com a leveza do embrulho.
- Obrigado, D. Elza.
Fechou a porta. Sentou-se na cama com o coração amedrontado, espiando o pacote por fora. Precisava abri-lo. Os dedos quase não obedeciam, e o peito adquiriu um estranho calor. Rasgou o papel. Dentro existia uma caixa. Retirou a tampa. Um envelope gordo aparecia colado. Nada escrito em sua frente. Mas ao desvirá-lo, descobriu a letra de Lúcio. A caligrafia firme e decidida. Elegante até. Uma única frase.
- Você esqueceu-se disso, querido.
Com os dedos tremendo rompeu o envelope e um monte de notas caiu em seu colo. Pôs-se a contar, balbuciando e chorando.
- Trinta contos.
Caiu sobre o travesseiro e chorou demoradamente aquilo que seria o começo da sua grande solidão.
- Eu sei. As minhas trinta moedas.

* * *

Simão Pedro tentava acordá-lo com brandura.
- Olhe, Judas Iscariotes. Já se pode ouvir o barulho das panelas, balançando na bandeja. O Demônio não tardará a entrar na enfermaria.
Fez forca para compreender todas as palavras que lhe eram dirigidas.
- Você falou que queria ir à Última Ceia, não falou? Fiquei com pena de acordá-lo. Você dormia tão calmo.
- Fez bem. Eu quero ir. Eu preciso ir. Eu tenho que ir...
- Eu ajudo, quer? Talvez você fique tonto por causa dos remédios.
- Não, meu amigo. Eu preciso ir só. "Hoje eu tenho que caminhar completamente só".
Simão Pedro andou um pouco e voltou-se receoso. Talvez ele não conseguisse e precisasse de auxílio. Ele teimava. Tinha conseguido descer da cama e tentava equilibrar-se numa perna muito fraca e noutra quase morta.
O Demônio passou por ele e sorriu, admirado do seu esforço e coragem. Conseguiu reunir na alma certo orgulho. Não estava vencido de todo. O importante é que iria caminhar sozinho até a mesa da Ceia. Estava com as suas pernas. O presente, que a vida dera ao corpo, ainda lhe pertencia. Nada havia mudado ainda. O Demônio continuaria ali. Tudo que fizera começava a ser esquecido. Onde encontrariam um homem capaz de trabalhar, como ele, por um ordenado tão pobre? Nenhum homem conseguiria sobreviver com tão pouco. Mas para ele, tornava-se suficiente. Dava para o seu jogo de bicho e para as deliciosas cachaças. Camisas e calças recebia de presente dos médicos e dos estudantes. Podiam ser de gordos ou de magros. Mas ficavam-lhe bem. Compridas ou curtas. Afinal era pobre e tinha corpo de empregado.
Judas Iscariotes riu. O cérebro estava funcionando livre e bem.
Parou em frente da cama de Tomé. Também ele não mudara. Nunca seria operado e continuaria preso à sua sina. Não tocaria nunca para dizimar as suas dúvidas. Teria de ser tocado para saber-se ainda vivo.
Os olhos de todos tinham crescido mais de admiração do que de magreza. A Ceia fora colocada sobre o mármore gelado da mesa. Logo Simão e Simão Pedro fariam a distribuição da sopa porca.
Tocaram-lhe no braço. Uma voz vibrou suavemente ao seu ouvido.
- Irei com você até a Mesa.
- Não. Não há necessidade.
- Há sim. Até aquela mesa ainda tenho as minhas esperanças. Você não andava e está andando. Talvez até lá vença a sua total covardia.
- Perderá o seu tempo, Lúcio.
E caminhou devagar. Não sentia doer a perna. Era uma maneira amigável dela despedir-se. Sem dor. Depois, quando a retirassem do corpo, a dor voltaria em outras partes. Mas isso era depois. Por enquanto, a enfermaria permanecia imutável.
Tiago dessa vez não chorava. Sorria-lhe até. Só no fundo da alma, que ia diminuindo dia a dia, guardava aquela certeza de que o seu cãozinho Bilu, com uma orelha preta e todo branquinho, não viria mais aos seus braços.
Mateus estava ameaçado de partir. Mas a cada dia a ameaça ia ficando mais delgada. Mesmo porque ele era um caso interessantíssimo. E o que praticara quase forçado, nada significava diante do serviço que prestava ao futuro da humanidade.
Parou um momento para respirar fundo e restaurar as forças. Notou que as moscas não voejavam na enfermaria. E sempre àquela hora eram mais atraídas pelo cheiro da comida.
Lúcio atendeu ao seu pensamento.
- O tempo passou, meu querido. Você nem reparou que o verão está quase no fim e que já falam no fim da guerra. Houve uma tapeação mútua entre você e os seus amigos médicos. Você protelando a amputação da perna e eles fingindo querer amputá-la. Com isso o belo verão se despede e parte por mais um ano.
- Por mais "um ano", Lúcio?
- Ora, deixe disso. O verão cumpre o seu tempo como sempre. Mas se está sentindo falta das moscas, as outras estão permanentemente lá.
Indicou o leito de Bartolomeu.
- Antes que fechem as janelas, com a aproximação da noite, elas se vão a um só comando. Depois retornam na primeira manhã e pacientemente aguardam.
Judas Iscariotes imaginava os olhos de Bartolomeu por trás do biombo. Os olhos cada vez mais esbugalhados, contando o aumentar da Senhora das Moscas e o diminuir do seu corpo.
Simão Pedro aflitivamente acompanhava cada passo do homem. Postara-se a uma das cabeceiras da mesa e aguardava sua chegada. Só então principiaria a servir a Ceia. E só então, Judas Iscariotes prestou atenção a algo que nunca notara. Ninguém queria sentar-se de costas para a porta da Ceia. Era sinal de mau presságio.
Afastaram o banco para que se sentasse. Tudo feito com paciência e determinação. Apoiou os braços magros na frialdade do mármore e tentou sorrir para os que ainda podiam comparecer à Ceia.
Lúcio falou ao seu ouvido.
- Pela última vez, precisamos conversar.
- Agora é tarde, Lúcio. Simão Pedro vai servir a refeição.
- Ainda não. Olhe.
Estranhamente todos tinham se paralisado. Não eram mais gente e sim uma escultura. Como muitas que vira. Como tantas ceias que diferiam nas posições dos apóstolos, conservando sempre a mesma intenção.
- Venha comigo, querido. Não quero que sofra mais. Você nem pode imaginar o que está reservado para o seu resto de vida. Quando você me esclareceu, na penumbra do meu quarto, eu dei razão e aceitei seus argumentos. Nem sequer os discuti.
- É verdade. Mas eu não tenho a sua coragem.
- Não é preciso muito. Com o esforço exigido para a caminhada da cama até aqui, logo você será abordado por um torpor avassalante. Será fácil encaminhá-lo à cadeira de rodas e de lá para a libertação.
- Não irei. Você perdeu, Lúcio.
Enraivecido, Lúcio levantou uma das mãos e esbofeteou o rosto de Raul.
Sorriu porque o rosto não sentira o impacto da bofetada. Diante dos olhos pela primeira vez lhe apareciam integralmente as mãos de Lúcio. Elas encontravam-se envoltas em gazes e manchadas de sangue nas palmas.
- O que foi isso, Lúcio?
- São as minhas chagas.
- Que chagas? As chagas da cruz?
- Grande cretino. Pare de me confundir com outra pessoa. Essas são as minhas. Pelo menos tenho direito a possuir uma coisa que é completamente minha. São minhas mãos, querido. Minhas mãos que você nunca quis enxergar. Pois vai vê-las nesse exato momento. Soltou as ataduras e ficou balançando as gazes no ar até que elas se desfizessem e tombassem no chão.
- Ei-las, querido. Examine-as bem. Foi você quem me presenteou com isso.
As palmas das mãos de Lúcio exibiam cortes profundos, que deixavam aparecer os ossos.
- Foi da ponte, Raul. São as marcas da morte, querido. Porque morrer é horrível. Tanto faz com a brutalidade com que me destruí, ou com a passividade da dor que espera por você. São as marcas da ponte, veja.
Raul cerrou os olhos para não presenciar nada. Em vão, porque estava além de suas forças. Voltara a ser noite. Noite muito escura e chuvosa. Lúcio caminhava sempre na sombra, procurando os cantos mais abandonados. Lúcio dirigindo-se para a ponte. Parando para ver o vazio da vida. Ninguém. Ninguém naquele momento. Aquele momento que pertence completamente a cada ser humano. Não chegou a alcançar a metade da ponte. Suspendeu-se até o gradil e sentou-se. Ficou balançando as pernas e vendo as águas do rio, refletindo as luzes das ruas. Retirou o revólver do bolso e depositou-o ao lado. Parou um momento, olhando o céu negro e sem significado. Fechou os olhos como se rezasse. Depois entreabriu a camisa e deixou o peito receber rajadas do vento frio. Apanhou o revólver, encostou-o em cima do coração e disparou. O tiro morreu sem eco no abandono da noite e da vida. O corpo oscilou para frente e para trás. Num derradeiro instinto de conservação ainda agarrou-se às grades enferrujadas da ponte. As mãos crispavam-se naquele desespero total. O corpo foi deslizando e ficou pendurado no espaço. As mãos, que teimavam em sustê-lo, escorregaram pelos ferros enferrujados e cheios de pontas agudas. Elas cederam e abriram-se todas ensangüentadas. O corpo projetou-se no espaço e mergulhou no rio, acompanhando a viagem que o revólver executara antes.
- São minhas chagas, Raul. Essas são minhas.
O sangue coagulara em suas palmas mas as carnes rasgadas haviam destruído as linhas da vida e da morte, do amor e dos sonhos.
Desviou o olhar para os apóstolos. Continuavam ainda completamente petrificados. Como eram lindos naquela pose irreal. Não pareciam mais com o lixo humano da verdade.
Sem querer, procurou a porta aberta da Ceia. Recordou-se das palavras de João. "Alguém vai entrar por aquela porta"... Forçou o ouvido, no desespero de escutar passos chegando, à distância. E o que existia na distância? Ora, se existia. Seus pensamentos foram retrocedendo no tempo, até onde havia alguém que penetrava por uma porta de esperanças como aquela.
Reviu-se menino. Quantos anos? Nove ou dez. Não mais. E irmão Amadeu contando uma história. Uma história linda. Talvez a mais linda que ouvira na infância. Lembrava-se até do nome da cidade onde acontecera. Siquém. O nome: O suave Milagre. Um menino pobre, ardendo de febre e pedindo à mãe para ver o Rabi da Galiléia. O que doía muito era a fala da mãe.
- Nós somos muito pobres.
O menino insistindo para ver o Rabi da Galiléia.
A voz da mãe já proporcionava lágrimas em seus olhos de infância.
- Ele está muito longe. Ele não virá.
Num último gemido, o menino doente implorou.
- Mamãe, eu queria ver o Rabi da Galiléia...
E a porta abriu-se suavemente e uma voz se ouviu.
- Eu estou aqui.
Raul passou a mão sobre os olhos, para estancar um começo de lágrimas. Não, não choraria nunca mais. "Sou eu quem está aqui". Ali só existe uma porta, sem milagres. Milagre só no coração amantíssimo de João. A realidade cruel se mostrava nas mãos de Lúcio, que se abaixavam para recuperar suas gazes. Desajeitadamente principiou a enfaixar a sua herança. Foi então que ele falou sem raiva e sem recriminação.
- Estou quase terminando. Dentro em breve eles voltarão para servir os pratos de sopa. Então tudo estará perdido. Você está resolvido, não é? Eu sei, querido. Eu me vou para sempre. Não sairei por aquela porta e sim pela do anfiteatro. Cada um tem a sua porta na vida para entrar e para sair. E quando eu a transpuser, tudo voltará a ser exatamente como antes. Sem diferença alguma. De uma coisa esteja certo. Sem mim, você se sentirá em solidão maior ainda. E depois que eu atravessar o meu destino definitivo, nunca mais encontrarei uma porta de retorno, nunca mais.
Terminara de amarrar-se. Sorriu.
- Agora não é necessário que as minhas chagas estejam sempre muito bem arrumadas. Dentro em breve elas se perderão na memória do Espaço.
Sorriu e nesse gesto deixava transparecer uma terrível pena do amigo.
- Adeus, Judas Iscariotes. Não lhe darei as mãos para que você não me devolva uma frase minha. Uma frase que dói mais na alma do que qualquer chaga: Noli Me Tangere...
Virou-se calmo e compassado. Andou resoluto até a sua porta. Girou a maçaneta e desapareceu, sem deitar um único olhar de despedida.
Voltou a ser ouvido o ruído da colher, remexendo o panelão de sopa.
Simão Pedro usou sua maior doçura.
- Vou primeiro servir os outros. Enquanto isso, escolherei os pedaços mais gostosos para você.
Ouvia a palavra de Simão Pedro, mas seus olhos se prendiam atraídos pela porta aberta à sua frente.
Aí a voz de Simão Pedro cresceu num entusiasmo sadio.
- Hoje está acontecendo um milagre.
Dizia Milagre como se todas as letras fossem maiúsculas: MILAGRE.
O coração de Judas Iscariotes revolveu-se desesperado no peito. Que milagre anunciaria Simão Pedro? A profecia de João?
Prendeu os olhos na porta com ansiedade. A Porta. A POrta. A PORta. A PORTa. A PORTA.
Queria ouvir os passos caminhando. As sandálias batendo nos ladrilhos frios. Caminhando. Caminhando sempre até a angústia da sua alma.
Simão Pedro apanhara a concha para servir o seu prato.
- Você vai ver que milagre. Nunca aconteceu isso durante todo o tempo em que estou aqui.
Não queria olhar o prato e sim a porta. Mas ouviu a sopa caindo no prato lentamente, como tudo que Simão Pedro sabia fazer.
- Olhe o milagre, Judas Iscariotes!
Parou um pouco e, vendo que Judas Iscariotes fixava a porta em êxtase, concluiu.
- HOJE, AS BATATAS VIERAM DESCASCADAS!
* * *
E em verdade, em verdade eu vos digo: - Ninguém entrou por aquela porta e ninguém se sentou àquela mesa!

 

 

                                                                  José Mauro de Vasconcelos

 

 

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