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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CHAMA AO VENTO / T. H. White
A CHAMA AO VENTO / T. H. White

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CHAMA AO VENTO

 

Ele pensou um pouco e disse:

Descobri que o Jardim Zoológico é de muita valia para meus pacientes. Eu deveria receitar para o Sr. Pontifax uma série de visitas aos grandes mamíferos. Não o deixem pensar que é para fins medicinais...

 

O passar dos anos não foi amável com Agravaine. Mesmo quando tinha quarenta, ele parecia ter já sua idade atual, que era cinqüenta e cinco. Raramente estava sóbrio.

Mordred, um frio fiapo de homem, parecia não ter idade. Seus anos eram indefiníveis, tal como a profundidade de seus olhos azuis e as inflexões de sua voz musical.

Os dois estavam nos claustros do palácio do clã das Órcades em Camelot, observando os falcões pousados nos seus poleiros ao sol, no pátio verde. Os claustros tinham os vistosos arcos agora na moda, em cujas arcadas graciosas os falcões pousavam com nobre indiferença — um falcão peregrino, um açor, uma falcoa e seu macho, e quatro pequenos esmerilhões que tinham passado presos todo o inverno e, no entanto, tinham sobrevivido. Os poleiros estavam limpos — pois os esportistas daquela época consideravam que, se você gostasse de praticar esportes sangrentos, era seu dever esconder os vestígios de bestialidade com escrupulosos cuidados. Todos estavam belamente ornamentados com couro espanhol escarlate e adereços de ouro. Os caparões dos falcões eram feitos com trancas de couro de cavalo branco. O peregrino tinha um caparão totalmente branco como a neve e peias cortadas de autêntico couro de unicórnio, como tributo de seu status. O peregrino fora trazido diretamente da Islândia, e isso era o mínimo que podiam fazer por ele. Mordred disse alegremente:

— Por Deus, vamos sair daqui. Este lugar fede.

Quando ele falou, os falcões moveram-se ligeiramente, fazendo suas campainhas tocar como um murmúrio. As campainhas tinham vindo das índias, sem considerar as despesas, e o par usado pelo pe­regrino era feito de prata. Uma enorme coruja-águia, que às vezes era usada como chamariz, mas que no momento estava pousada num poleiro na sombra do claustro, abriu os olhos quando as campainhas tocaram. Antes de abri-los, podia ser confundida com uma coruja empalhada, um desalinhado monte de penas. Mas no momento em que os abria, virava uma criatura de Edgar Allan Poe. Era difícil olhar direto neles. Eram olhos vermelhos, homicidas, terríveis, pa­recendo realmente emitir luz. Eram como rubis cheios de chama. Seu nome era Grão-Duque.

— Não sinto fedor nenhum — disse Agravaine. Farejou suspeitosamente, tentando cheirar. Mas seu palato tinha desaparecido, tanto para cheiro quanto para gosto, e estava com dor de cabeça.

— Fede a Esporte — disse Mordred, fazendo sinal de aspas —, a Feitos e aos Melhores. Vamos para o jardim.

Agravaine voltou com teimosia ao assunto que estavam discu­tindo antes.

— Não adianta fazer barulho por causa disso — disse. — Sabemos o que é certo e o que é errado, mas ninguém mais sabe. Ninguém escutaria.

— Mas precisam escutar.

Pequenas manchas na íris dos olhos de Mordred queimavam com uma luz turquesa, tão brilhantes quanto os da coruja. Em vez de ser um sujeito vaidoso com o ombro torto, vestido com roupas extravagantes, havia se transformado numa Causa. Nesse aspecto, tornou-se tudo o que Arthur não era — o opositor irreconciliável do inglês. Tornou-se o Gaélico invencível, rebento de raças deses­peradas mais antigas que a de Arthur, e mais sutis. Agora, quando inflamava-se com sua Causa, a justiça de Arthur parecia bourgeoese e obtusa ao extremo. Parecia não passar de estúpida complacência, em comparação com a selvageria e a vontade feroz dos Pictos. Seus ancestrais maternos transpareciam em seu rosto quando tratava Ar­thur com desprezo — ancestrais cuja civilização, como a de Mor­dred, era matriarcal: tinham cavalgado em pêlo, atacado em charretes, lutado com estratagemas e ornamentado suas horríveis fortalezas com cabeças de inimigos. Marcharam, cabelos longos e ferozes, como nos conta um escritor antigo, "espada nas mãos, con­tra rios transbordantes ou oceano tempestuoso". Eram a raça, hoje representada mais pelo Exército Republicano Irlandês (IRA) que pelos nacionalistas escoceses, que sempre tinha assassinado os gran­des proprietários rurais e os culpado de serem assassinados — a raça que podia fazer de um homem como Lynchahaun um herói nacio­nal, por ter arrancado o nariz de uma mulher com uma dentada, sendo ela uma Gaulesa —, a raça que fora expelida pelo vulcão da história para os lugares mais longínquos do globo, onde, com um rancoroso sentimento de injustiça e inferioridade, até hoje procla­ma sua antiga megalomania. Eram os católicos capazes de imediata­mente cair em cima de qualquer papa ou santo — Adriano, Alexan­dre ou São Jerônimo — se as políticas dos santos não se adequassem às suas conveniências: os defensores histericamente suscetíveis, in­felizes e enfraquecidos de uma herança arruinada. Eram a raça cuja rebeldia bárbara, astuta e valorosa fora escravizada, séculos atrás, pelos povos estrangeiros representados por Arthur. Essa era uma das barreiras entre o pai e seu filho. Agravaine disse:

— Mordred, quero conversar. Parece que aqui não há onde possamos sentar. Sente-se aí nessa coisa que eu sento aqui. Nin­guém poderá nos escutar.

— Não me importo se escutam ou não. Isso é o que queremos. Deve ser dito alto, e não murmurado nos claustros.

— No final, os sussurros chegarão lá.

— Não, não chegarão. Isso é o que não vai acontecer. Ele não quer escutar, e enquanto sussurrarmos, ele pode continuar fingindo que não escuta. Não se é Rei da Inglaterra por todos esses anos sem saber usar da hipocrisia.

Agravaine estava desconfortável. Seu ódio pelo Rei não era algo real como o de Mordred — na verdade, tinha poucos senti­mentos pessoais contra qualquer um, exceto Lancelot. Sua atitude era mais de maldade à solta.

— Acho que não adianta se queixar sobre o que aconteceu no passado — disse sombriamente. — Não podemos esperar que ou­tras pessoas se aliem a nós quando tudo é complicado e aconteceu há tanto tempo.

— Pode ter acontecido há muito tempo, mas isso não altera o fato de que Arthur é meu pai, e que me deixou num barco à deriva quando eu era bebê.

— Pode não alterar para você — disse Agravaine —, mas alte­ra para outras pessoas. É uma confusão tão grande que ninguém se importa. Você não pode esperar que pessoas comuns se lembrem de avôs e meias-irmãs e coisas desse tipo. De qualquer maneira, atual­mente os seres humanos não saem para a guerra por conta de brigas particulares. E preciso um agravo nacional, — algo que tenha a ver com política e que esteja prestes a explodir. É preciso usar as ferra­mentas que já estão à mão. Esse sujeito, John Bali, por exemplo, que acredita em comunismo: tem milhares de seguidores que estariam prontos para ajudar em caso de distúrbios por seus próprios objeti­vos. Ou então os Saxões. Poderíamos dizer que somos favoráveis ao movimento nacional. E nesse caso, podemos até juntar todos eles e chamar tudo de comunismo nacional. Mas tem que ser algo amplo e popular, que todos possam sentir. Tem que ser contra um grande número de pessoas, como os Judeus ou os Normandos ou os Saxões, para que todos possam ficar zangados. Nós podemos ou ser líderes dos Antigos, que procuram justiça contra os Saxões; ou dos Saxões contra os Normandos; ou dos servos contra a sociedade. Queremos uma bandeira, sim, e também um símbolo. Podemos usar a Suástica. Comunismo, nacionalismo, qualquer coisa assim. Mas como uma queixa particular contra o velho, é inútil. De qualquer maneira, você ia ter que gastar meia hora só para começar a explicar isso, mesmo se começasse a gritar do alto dos telhados.

— Posso gritar que minha mãe era irmã dele, e que ele tentou me afogar por causa disso.

— Se você quiser — disse Agravaine.

Antes de a coruja despertar, eles estavam conversando sobre as antigas queixas da família — sobre a avó, Igraine, que fora maltrata­da pelo pai de Arthur —, sobre a antiga e desaparecida disputa entre os gaélicos e os gauleses, que escutaram de sua ama na velha Dunlothian. Eram essas injustiças que o sangue mais frio de Agravaine reconhecia como demasiado antigas e confusas para servir de arma contra o Rei. Agora tinham chegado a uma queixa mais recente: o pecado de Arthur com sua meia-irmã que terminara com uma tenta­tiva de assassinar o bastardo que daí nasceu. Isso certamente pode­ria ser uma arma mais forte, mas o problema é que Mordred era ele mesmo o bastardo. A covardia do irmão mais velho lhe alertara, com sua mente mais esperta, que um filho dificilmente poderia le­vantar sua ilegitimidade como bandeira para derrubar o pai. Além disso, o assunto fora abafado por Arthur há muito tempo. Parecia má política que fosse Mordred o único a levantá-lo.

Estavam sentados em silêncio, olhando para o chão. Agravaine estava fora de forma, com bolsas sob os olhos. Mordred, esbelto como sempre, era uma figura elegante, no auge da moda. Os exage­ros de sua roupa lhe proporcionavam uma boa camuflagem, sob a qual mal se notava seu ombro defeituoso. Ele disse:

— Não sou orgulhoso.

Olhou com amargura para seu meio-irmão, colocando mais significado no olhar do que o outro podia perceber. Dizia com os olhos: "Veja meu aleijão, então. Não tenho razão para ter orgulho do meu nascimento".

Agravaine levantou-se, impaciente.

— De qualquer forma, tenho que tomar um trago — disse, ba­tendo palmas para chamar o pajem. Depois passou os dedos que tre­miam sobre as pálpebras e ficou parado, entediado, olhando a coruja com desprazer. Mordred, enquanto esperavam a bebida, observava-o com desprezo.

— Se você remexer na velha sujeira — disse Agravaine, reanimado com o hipocraz — acaba sujo. Não estamos em Lothian, não se esqueça disso. Estamos na Inglaterra de Arthur, e os ingleses o amam. Eles ou vão se recusar a acreditar em você ou, se acredita­rem, vão pôr a culpa em você, e não nele, porque foi você quem le­vantou o assunto. É certo que nem um único homem se rebelaria por isso.

Mordred olhou para ele. Estava odiando-o, como à coruja — condenando-o como covarde. Não suportava ser frustrado em seu devaneio de vingança, e então descarregava mentalmente seu des­peito em Agravaine, dizendo para si mesmo que o meio-irmão era um bêbado traidor da família.

Agravaine percebeu isso e, já consolado com meia garrafa, riu na cara dele. Deu uma palmadinha em seu ombro bom, forçando o jovem a encher sua taça.

— Beba — disse ele, rindo entre dentes. Mordred bebeu como um gato sendo envenenado.

— Já ouviu falar — perguntou Agravaine, divertido — de um santo poderoso chamado Lancelot?

Piscou um dos olhos empapuçados, olhando por cima do nariz com benevolência.

— Vá em frente.

— Suponho que já ouviu falar do nosso preux chevalier.

— Claro que conheço Sir Lancelot.

— Acho que não estou errado quando digo que esse puro ca­valeiro já nos deu uma ou duas boas quedas, estou?

— A primeira vez que Lancelot me desmontou — disse Mor­dred — foi há tanto tempo que mal consigo me lembrar. Mas isso não quer dizer nada. Um homem pode derrubar você do cavalo com uma vara, mas isso não quer dizer que seja melhor que você.

Era algo estranho — agora que Lancelot fora metido na con­versa — que os sentimentos vividos de Mordred se transformassem em indiferença. Mas Agravaine, que antes estivera relutante, tor­nou-se fluente.

— Precisamente — disse. —E nosso nobre cavaleiro foi aman­te da Rainha da Inglaterra durante todo esse tempo.

— Todo mundo sabe que Gwen é amante de Lancelot desde antes do dilúvio, mas o que adianta isso? O próprio Rei sabe disso. Que eu saiba com certeza, já lhe contaram três vezes. Não vejo o que podemos fazer a esse respeito.

Agravaine pousou o dedo ao lado do nariz, como um gaiteiro bêbado, e depois o apontou para o irmão.

— Contaram para ele mas com rodeios — anunciou. — Pes­soas lhe enviaram insinuações, como escudos com brasões com du­plo sentido, ou cornos nos quais somente esposas fiéis podiam be­ber. Mas ninguém jamais lhe disse isso abertamente, cara a cara. Meliagrance só fez uma acusação geral, e mesmo isso na época dos julgamentos por combate. Pense no que aconteceria se denunciás­semos Lancelot pessoalmente, sob essas Leis recém-promulgadas, de forma que o Rei fosse forçado a investigar.

Os olhos de Mordred abriram-se, tal como acontecera com os da coruja.

— Então?

— Acho que não aconteceria nada além de um rompimento. Arthur depende de Lancelot como seu comandante e chefe de suas tropas. É daí que vem seu poder, já que todo mundo sabe que nin­guém pode resistir à força bruta. Mas se pudéssemos arranjar um desentendimento pequeno entre Arthur e Lancelot por causa da Rainha, o poder deles se dividiria. Então seria o tempo de fazer po­lítica. Então seria o tempo das pessoas descontentes, os Lollardos e Comunistas e Nacionalistas e toda a plebe. Então, seria o momen­to da sua famosa vingança.

— Poderíamos quebrá-los, pois estariam divididos.

— Significa ainda mais do que isso.

— Significa que os da Cornualha estariam quites por conta do avô e eu por conta da mãe...

— ... não usando força contra força, mas usando nossos cére­bros.

— Significa que eu poderia me vingar do homem que tentou me afogar quando eu era um bebê...

— ... indo primeiro atrás do valentão, e depois sendo um pou­co cuidadoso.

— Atrás do nosso famoso Falso Amigo...

— ... Sir Lancelot.

A questão era, e talvez valha a pena recordar tudo pela última vez, que o pai de Arthur tinha assassinado o Duque da Cornualha.

Tinha matado o sujeito porque queria desfrutar de sua esposa. Na noite do assassinato do Duque, Arthur foi concebido dentro da infeliz condessa. Tendo nascido cedo demais para as variadas convenções de luto, casamento e coisas assim, foi secretamente entregue a Sir Ector da Floresta Sauvage, que o criou. Crescera ignorando quem eram seus pais até que, quando era um jovem de dezenove primaveras, caí­ra de amores por Morgause, sem saber que ela era uma de suas meias-irmãs, filha da Condessa e do Duque assassinado. Essa meia-irmã, já mãe de Gawaine, Agravaine, Gaheris e Gareth, tinha o do­bro da idade do jovem Rei — e teve sucesso em seduzi-lo. O resul­tado dessa união foi Mordred, que cresceu só com sua mãe, nas remotas e bárbaras Ilhas Exteriores. Fora criado só por Morgause porque era muito mais novo que o resto da família. Os outros já ha­viam fugido para a corte do Rei — forçados a isso pela ambição, pois era a maior corte do mundo, ou então para escapar da mãe. Mordred foi deixado para ser dominado por ela, com seu ressentimento ances­tral contra o Rei e seu despeito pessoal, pois, embora ela tivesse con­seguido seduzir o jovem Arthur, este lhe escapara, para se estabele­cer com Guenevere como esposa. Morgause, remoendo no Norte com o único filho que lhe restava, concentrara seus poderes maternais sobre o jovem aleijado. Ela o amara e o esquecera por turnos, uma carnívora insaciável que vivia da afeição de seus cães, seus filhos e seus amantes. Finalmente, um dos outros filhos cortou sua cabeça num acesso de ciúmes, ao descobri-la na cama, aos setenta anos de idade, com um jovem chamado Sir Lamorak. Mordred, confuso en­tre os amores e ódios desse lar assustador, tinha, na época, participa­do desse assassinato. Agora, na corte do pai que fora suficientemen­te gentil para esconder a história de seu nascimento, o desgraçado filho viu-se como irmão reconhecido de Gawaine, Agravaine, Gahe­ris e Gareth, viu-se tratado amorosamente pelo Rei-pai que sua mãe ensinara a odiar com todo coração, viu-se deformado, inteligente, crítico, numa civilização que era direta demais para permitir a pura crítica intelectual, e se viu, finalmente, como o herdeiro de uma cul­tura do Norte que sempre fora antagônica da moral grosseira do Sul.

 

O pajem que trouxera o hipocraz para Sir Agravaine entrou pela porta do claustro. Inclinou-se duas vezes, com a exage­rada cortesia que se esperava dos pajens antes que se tornassem es­cudeiros a caminho de se tornarem cavaleiros, e anunciou:

— Sir Gawaine, Sir Gaheris, Sir Gareth.

Os três irmãos o seguiram, excitados pelas recentes façanhas e práticas ao ar livre, e agora o clã estava completo. Todos eles, exce­to Mordred, tinham esposas enfiadas em algum lugar — mas nin­guém jamais as via. Poucos viam os irmãos separados por muito tempo. Havia algo infantil neles, quando estavam juntos, que na verdade era atraente, em vez do contrário. Talvez todos os paladi­nos da história de Arthur tivessem algo de infantil — se considerar­mos simplicidade infantilidade.

Gawaine, que era o chefe da família, entrou primeiro, com um falcão com sua plumagem juvenil no punho. O tipo corpulento ti­nha agora alguns fios brancos no meio da cabeleira vermelha. Por sobre as orelhas eram amarelados, da cor das doninhas, e logo ficariam brancos. Gaheris se parecia com ele, ou pelo menos era mais parecido com ele que os demais. Só que era uma cópia mais suave, nem tão ruivo, nem tão forte — nem tão obstinado. Na verdade, era um pouco tolo. Gareth, o mais jovem dos que eram irmãos de pai e mãe, mantivera os traços de sua juventude. Caminhava com uma mola nos pés, como se desfrutasse estar vivo.

— Ora! — exclamou da porta a voz rouca de Gawaine. — Já bebendo?

Ele ainda mantinha o sotaque bizarro como desafio ao inglês simples, mas deixara de pensar em gaélico. Seu inglês tinha melho­rado contra sua vontade. Estava ficando velho.

— Saúde, Gawaine, saúde!

Agravaine, que sabia que suas bebidinhas antes do meio-dia eram desaprovadas, perguntou educadamente:

— Tiveram um bom dia?

— Nã foi tã mau.

— Foi um dia esplêndido — exclamou Gareth. — Iniciamos a falcoa no haut vollay com o passager1 de Lancelot, e ela ficou real­mente bem treinada. Nunca pensei que conseguisse isso sem um tratador! Gawaine controlou perfeitamente a ave. Ela emparelhou sem um segundo de hesitação, como se tivesse sempre voado atrás de uma garça, deu uma bela volta por cima dos montes de feno perto de Castle Blanc, e voou por cima pelo lado dos peregrinos, no caminho de Ganis. Ela...

 

1. Termos de falcoaria. Alto vôo, ou seja, a ave sobe para localizar, ela mesma, a presa. Passager é o falcão peregrino capturado já crescido e usado para treinar os outros.

 

Gawaine, que notara o bocejo proposital de Mordred, disse:

— Pode poupar seu bafo.

— Foi um belo vôo — Gareth concluiu, desalentado. — E como agarrou sua presa, pensamos que podíamos lhe dar um nome.

— E que nome escolheram? — perguntaram os dois com con­descendência.

— Já que ela vem de Lundy, que começa com L, achamos que seria uma boa idéia dar-lhe um nome derivado de Lancelot. Pode ser Lancelotta ou algo assim. Vai ser uma falcoa de primeira classe.

Agravaine olhou para Gareth por baixo das sobrancelhas e disse, pausadamente:

— Então é melhor chamá-la de Gwen.

Gawaine voltou do pátio, onde fora deixar a peregrina em seu poleiro.

— Deix'isso pra lá — disse.

— Sinto muito por estar dizendo a verdade.

— Pouco m’mporta a verdade. Só digo assim, feche a matraca.

— Gawaine — disse Mordred para o ar — é tão bom preux che­valier que ninguém pode dizer maldades na sua frente se não terá problemas. Vejam só, é tão forte que imita o grande Sir Lancelot.

O ruivo voltou-se para ele com dignidade.

— Nã sou tã forte, irmão, e nã mi gabo disso. Só quero qui mi povo seja decente.

— E claro que é decente dormir com a esposa do Rei — disse Agravaine —, mesmo que a família do Rei tenha esmagado a nossa fa­mília e tenha tido um filho com nossa mãe, que depois tentou afogar.

Gaheris protestou:

— Arthur sempre foi bondoso conosco. Parem de uma vez com essa lamúria.

— Porque nos teme.

— Não vejo como Arthur pode nos temer — disse Gareth — quando tem Lancelot do lado dele. Todos sabemos que é o melhor cavaleiro do mundo e que pode dominar qualquer um. Não sabemos, Gawaine?

—- Por mim, nã quero falar disso.

De repente, Mordred se inflamou, irritado com o tom senho­rial de Gawaine.

— Muito bem, mas eu sim. Posso ser um cavaleiro fraco nas justas, mas tenho coragem para defender minha família e meus di­reitos. Não sou hipócrita. Todos na corte sabem que a Rainha e o comandante-em-chefe são amantes, e no entanto, supostamente todos nós somos cavaleiros puros, protetores das damas, e ninguém fala sobre nada a não ser sobre esse Santo Graal. Agravaine e eu de­cidimos comparecer diante de toda a corte de Arthur agora e per­guntar sobre a Rainha e Lancelot na cara dele.

— Mordred — exclamou o chefe do clã —, você nã vai fazer nada disso! É um pecado.

— Vai sim — disse Agravaine —, e eu estarei lá com ele. Gareth permaneceu entre a dor e o espanto.

— Eles estão mesmo querendo fazer isso — protestou. Depois do instante de espanto, Gawaine tomou a iniciativa e partiu para a ação.

— Agravaine, sou o chefe do clã, i estou lhi proibindo.

— Está me proibindo.

— Sim, proíbo; é coisa di desmiolado fazer isso.

— O honesto Gawaine acha que você é um louco rematado — comentou Mordred.

Desta vez o enorme raivo virou-se para ele como um cavalo empinado.

— Chega! — gritou. — Você acha qui nã lhi darei uma surra porqui é aleijado i quer tirar vantagem. Mas eu lhi bato, garoto, si você chiar.

Mordred ouviu sua própria voz falando friamente, como se viesse de trás de seus ouvidos.

— Gawaine, você me surpreende. Acabou de produzir uma se­qüência de pensamentos.

E depois, quando o gigante avançou na direção dele, a mesma voz disse:

— Vá em frente. Bata em mim. Mostre sua coragem.

— Ah, pára com isso, Mordred — implorou Gareth. — Pode parar com essa provocação um instante?

— Mordred não iria provocar, como você diz — interveio Agravaine —, se ele não ameaçasse.

Gawaine explodiu como um dos novos canhões da moda. Afas­tou-se com uma meia volta de Mordred, como um touro excitado, e gritou para ambos.

— Cos diabo, vocês vã ficar quietos ou dar o fora daqui? Nun­ca podemos ter paz na família? Calem a matraca, em nome de Deus, i parem di falar besteiras sobre Sir Lancelot.

— Não é besteira — disse Mordred — e nem vamos parar de falar. E levantou-se.

— Bem, Agravaine — perguntou. — Vamos até o Rei? Alguém mais quer vir?

Gawaine se plantou no caminho.

— Mordred, você nã vai.

— Quem vai me deter?

— Eu.

— Sujeito corajoso — comentou a voz gelada, ainda vindo de algum lugar no ar, e o corcunda avançou.

Gawaine levantou sua mão vermelha, com cabelos dourados nas costas dos dedos, e o empurrou. Ao mesmo tempo Agravaine moveu sua própria mão branca, com dedos gordos, para o punho de sua espada.

— Não se mova, Gawaine. Tenho uma espada.

— Você tinha que ter uma espada — gritou Gareth —, seu diabo!

A vida do irmão mais novo subitamente ajustara-se a um pa­drão e o reconheceu. A mãe assassinada, o unicórnio, o homem que agora sacava a espada e uma criança em um depósito empunhando uma adaga: essas coisas o fizeram gritar.

— Muito bem, Gareth — vociferou Agravaine, branco como um lençol. — Sei o que você quer dizer, e agora desembainho.

A situação saiu do controle: começaram a agir como bonecos, como se tudo tivesse acontecido antes — o que era verdade. Gawaine, ao ver a lâmina, entrou numa de suas fúrias cegas. Girou o corpo afastando-se de Mordred, soltou uma torrente de palavras, desembainhou a faca de caça, que era a única coisa que portava, e avançou para cima de Agravaine — tudo isso simultaneamente. O homem gordo, como se tivesse caído na defensiva com o impacto da fúria do irmão, recuou diante dele, segurando a espada diante de si com as mãos tremendo.

— Sim, você sabe bem o qui ele quer dizer, seu carniceiro — rosnou Gawaine. — Pode sacar a espada contra su própr’rmão, já qui gosta di matar desarmados. Qui a maldiçã da mortalha caia-lhi encima! Solte a espada, homem! Solte a espada! O qui quer? Nã basta ter matado nossa mãe? Maldito, abaixa a espada, ou crie cora­gem di lutar com ela. Agravaine...

Mordred deslizava por trás dele, com a mão em sua própria adaga. Em um segundo o brilho do aço relampejou nas sombras, aceso pelos olhos da coruja e, no mesmo instante, Gareth pulou em sua defesa. Agarrou Mordred pelos punhos, gritando:

— Agora basta! Gaheris, atenção com os outros.

— Agravaine, solte a espada! Gawaine, deixe-o em paz.

— Sai fora, homem! Dou eu mismo u'a liçã nesse cã de caça.

— Agravaine, solte a espada logo ou ele vai matar você. Rápi­do, homem. Não seja idiota. Gawaine, deixe-o em paz. Ele fez sem querer. Gawaine! Agravaine!

Mas Agravaine tinha desferido um golpe fraco na direção do chefe da família, que o desviou facilmente com a faca. Agora, o enorme velho, com as têmporas cor de furão, correra e o agarra­ra pela cintura. A espada caiu com estardalhaço no chão enquan­to Agravaine desabava em cima da mesa com hipocraz, e Gawai­ne por cima dele. A adaga levantou-se, venenosa, para terminar o serviço — mas Gaheris agarrou-a por trás. Formou-se um cená­rio de perfeito silêncio, completamente imóvel. Gareth segurava Mordred. Agravaine, escondendo os olhos com a mão livre, esquivava-se da faca. E Gaheris mantinha suspenso o braço vingador. Nesse momento complicado, a porta do claustro abriu-se pela segunda vez, e o pajem cortesão anunciou com a impassividade de sempre:

— Sua Majestade, o Rei!

Todos relaxaram. Soltaram o que estavam agarrando e se me­xeram. Agravaine sentou-se ofegante. Gawaine afastou-se dele, pas­sando uma mão no rosto.

— Por Deus! — murmurou. — Si eu nã tivesse esses ataques di fúria!

O Rei estava na porta.

Ele entrou, o calmo velho que tinha feito o melhor possível até então. Aparentava mais que sua idade, que era considerável. Seu olhar real percebeu a situação num piscar de olhos. Caminhou pelo claustro para gentilmente beijar Mordred, sorrindo para todos.

 

Lancelot e Guenevere estavam sentados à beira da janela do solário. Um observador dos nossos dias, que conhecesse a lenda arturiana apenas por meio de Tennyson e de pessoas do mes­mo tipo, ficaria surpreso ao observar que os amantes famosos já ti­nham passado seu apogeu. Nós, que aprendemos a basear nossa in­terpretação do amor no romance convencional de rapaz-e-moça de Romeu e Julieta, ficaríamos admirados se pudéssemos voltar à Ida­de Média — quando o poeta da cavalaria podia escrever sobre o homem dizendo que tinha "en ciei un dieu, par terre une déesse". Os amantes, então, não eram recrutados entre os jovens e adolescen­tes: eram pessoas experimentadas, que sabiam o que faziam. Na­queles tempos, as pessoas amavam umas às outras por toda a vida, sem as conveniências do divórcio ou do psiquiatra. Tinham um Deus no paraíso e uma deusa na Terra — e já que pessoas que se de­votam a deusas devem ter certos cuidados em relação àquelas a quem se devotarão, não escolhiam seus objetos de devoção somen­te pelos padrões efêmeros da aparência, nem as abandonavam levianamente quando a decadência da matéria começava a se apresentar.

Lancelot e Guenevere sentavam-se à beira da janela da torre, e a Inglaterra de Arthur estendia-se abaixo deles, sob os suaves raios do pôr-do-sol.

Era a Gramarye da Idade Média, que algumas pessoas se acos­tumaram a chamar de Idade das Trevas, e Arthur a fizera o que era. Quando o velho Rei chegara ao trono, ela era uma Inglaterra de ba­rões armados, de fome e de guerra. Era o país dos julgamentos por ordálio com ferros incandescentes, da Lei da Inglesidade? e da triste canção sem palavras da Morfa-Rhuddlan. Então, na costa marítima, dentro do alcance de um navio estrangeiro, não havia sobrado nem animal nem árvore frutífera. Então, nos pântanos e nas vastas flores­tas, os últimos saxões se defendiam contra o domínio amargo de Uther, o Conquistador. Então, as palavras "Normando" e "Barão" eram equivalentes ao moderno vocábulo "Sahib". Então, a cabeça de Llewellyn ap Griffith, com sua coroa de heras, apodrecia nas estacas da Torre, e você encontraria mendigos na beira das estradas, homens mutilados que na mão esquerda carregavam sua mão direita, e cães da floresta que trotavam ao lado deles, também mutilados pela amputa­ção de um dedo da pata — para que não caçassem nas florestas do se­nhor. Quando Arthur primeiro chegou, os camponeses estavam acos­tumados a se barricar toda noite em suas choças, como se estivessem em um cerco, e rezavam a Deus para ter paz na escuridão, e o chefe da casa repetia as orações usadas no mar quando se aproxima a tem­pestade, e terminava com a súplica "Que o Senhor nos abençoe e aju­de", à qual todos respondiam "Amém". No castelo do barão, nos tem­pos antigos, podia-se encontrar pobres sendo estripados — e suas tripas vivas sendo queimadas diante deles —, homens sendo abertos para ver se tinham engolido ouro, homens amordaçados com pinças dentadas de ferro, homens pendurados de cabeça para baixo na fu­maça, outros em poços com cobras ou com torniquetes de couro em volta das cabeças, ou enfiados em caixas cheias de pedras para arre­bentar seus ossos. Basta examinar a literatura do período, com suas histórias de famílias mitológicas, como os Plantagenetas, os Capetos e daí por diante, para ver como era o país. Reis lendários como John estavam acostumados a enforcar vinte e oito reféns antes do jantar; ou como Philip, eram defendidos por "sargentos-maceiros", uma es­pécie de tropa de assalto que protegia seu senhor com maças; ou como Louis, decapitavam seus inimigos em cadafalsos sob cujo san­gue os filhos das vítimas eram obrigados a permanecer. Isso, de qual­quer forma, era o que Ingulf de Croyland costumava nos contar, até que se descobriu que era um falsificador. Então havia arcebispos, apelidados de "Esfola-vilão", e igrejas usadas como fortalezas — com trincheiras nas tumbas entre os ossos —, e lista de multas para assas­sinos, e corpos de excomungados deixados sem sepultura, e campo­neses famintos comendo grama ou cascas de árvores ou uns aos ou­tros. (Um deles devorou quarenta e oito.) Havia assado de hereges, por um lado — quarenta e cinco Templários foram queimados num único dia —, e cabeças de cativos sendo jogadas por catapultas para dentro de castelos sitiados, por outro. Aqui, o líder de uma revolta camponesa se retorcia nas cadeias, enquanto era coroado com um tripé de ferro incandescente. Ali, um Papa se queixava por ter sido aprisionado para resgate, enquanto outro estrebuchava envenenado. Tesouros foram cimentados nos muros dos castelos, em forma de barras de ouro, e os construtores executados logo em seguida. Crian­ças brincando nas ruas de Paris tinham usado o corpo de um policial para se divertir, e outras, com as mulheres e os velhos, tinham mor­rido de fome fora das muralhas das cidades sitiadas, embora dentro do círculo dos sitiantes. Hus e Jerônimo, com a mitra da apostasia sobre suas cabeças, arderam e chiaram nos postes. Os idiotas jarretados de Jumiàges flutuaram Sena abaixo. Descobriu-se que Giles de Retz tinha nada menos que uma tonelada de ossos de crianças, calci­nados, em seu castelo, depois de havê-las assassinado à média de du­zentas e quarenta por ano durante nove anos. O Duque de Berry perdeu um reino por causa da impopularidade que ganhou por sen­tir pena de oitocentos soldados de infantaria mortos em uma bata­lha. O jovem conde de St. Pol aprendeu as artes da guerra ganhan­do de presente vinte e quatro prisioneiros vivos para assassiná-los de várias formas, como prática. Luis XI, outro dos reis de ficção, man­teve bispos que o aborreciam dentro de jaulas caras. O Duque Ro­bert foi chamado de "Magnífico" por seus nobres — mas de "Diabo" por seus paroquianos. Enquanto isso, antes da vinda de Arthur, as pessoas comuns — das quais quatorze foram devoradas por lobos em uma cidade em apenas uma semana; das quais um terço morreria de Peste Negra; cujos cadáveres eram acomodados nas covas "como ba­con" em camadas; para as quais os refúgios noturnos com freqüência eram as florestas e pântanos e cavernas; para as quais, em setenta anos, sabe-se que houve quarenta e oito de fome; essas pessoas ti­nham recorrido à nobreza feudal, chamada de "senhores dos céus e da terra", e foram espancadas por bispos que caíam em cima delas com barras de ferro, por não poderem derramar sangue — tinham gritado alto que Cristo e seus santos estavam dormindo.

 

2. Law of Englisbry. Lei normanda que impunha uma multa a cem pessoas por cada normando assassinado. Para evitar isso, era necessário provar que o morto era de ascendência inglesa. (N. da T.)

3. Referência à época das guerras dos ingleses contra os habitantes do país de Gales. (N.da T.)

 

"Pourquoi", os pobres infelizes cantavam em seu sofrimento:

"Pourquoi nous laisserfaire dommage?

Nous sommes hommes comme ils sont."

(Por que deixam que nos façam mal? Nós somos homens como eles.)

Essa era a surpreendentemente moderna civilização que Arthur tinha herdado. Mas não era a civilização que os amantes olhavam.

Agora, tranqüilos ao pôr-do-sol rosa-esverdeado diante deles, es­tendia-se a fabulosa Alegre Inglaterra da Idade Média, que já não era tão cheia de trevas. Lancelot e Guenevere estavam olhando para a Idade dos Indivíduos.

Que época extraordinária foi a da cavalaria! Todos eram essen­cialmente eles mesmos — e estavam tumultuadamente ocupados, atendendo aos caprichos da natureza humana. Havia tanto prazer na paisagem que se estendia diante da janela, tanta variedade de pes­soas e coisas inesperadas, que mal se podia pensar em como come­çar a descrevê-la.

A Idade Média e das Trevas! O século XIX era muito impudente com seus rótulos. Pois ali, sob a janela da Gramarye de Arthur, os raios do sol flamejavam em centenas de jóias nos vitrais de monastérios e conventos, ou dançavam nos pináculos de catedrais e castelos, que seus construtores verdadeiramente amaram. A arquitetura, nes­sa idade das trevas deles, era uma paixão tão iluminadora do coração que os homens davam apelidos amorosos para suas fortalezas. A Joyous Gard de Lancelot não era uma exceção numa era que nos dei­xou Beauté, Plaisance ou Malvoisin — o mau vizinho para seus ini­migos —, numa época em que até um imbecil como o imaginário Richard Coeur de Lion, que sofria de furúnculos, podia chamar sua fortaleza de "Gaillard"4 e falar dela como "minha bela filha de um ano". Até mesmo o legendário canalha Guilherme, o Conquistador, tinha um segundo apelido: o "Grande Construtor". Pense nos pró­prios vitrais, com suas cinco cores principais, todas pintadas. Era mais pesado que o nosso, mais grosso e podia ser encaixado em pedaços menores. Eles os amavam com o mesmo ardor com que ama­vam seus castelos, e Villars de Honnecourt, tocado por um exemplar particularmente belo, parou para desenhá-lo em uma de suas viagens, explicando que "seguia em meu caminho, atendendo a um cha­mado para ir à terra da Hungria, quando desenhei este vitral porque me agradou mais que todos os outros". Imagine o interior dessas ve­lhas igrejas — não os interiores cinzentos e vazios a que estamos acostumados, mas interiores resplandecentes de cores, revestidos de afrescos em que todas as figuras estavam na ponta dos pés, ondulan­do em tapeçarias ou brocados de Bagdá. Imagine também os interio­res dos castelos que eram visíveis da janela de Guenevere. Não eram mais as sombrias torres do tempo da ascensão de Arthur. Agora es­tavam cheios de mobília feita por marceneiros em vez de carpintei­ros; agora as paredes sem portas estavam cobertas com os esplendo­res de Arras, tapeçarias como as das Justas de Saint Denis, que, apesar de cobrirem mais de 340 metros quadrados, foram tecidas em menos de três anos, tal o ardor da criação. Se observar de perto, hoje, as ruínas desses castelos, às vezes poderá perceber os ganchos nos quais se penduravam essas tapeçarias cintilantes. Lembre-se, tam­bém, dos ourives de Lorena, que faziam oratórios na forma de pe­quenas igrejas, com naves, estátuas, transeptos e tudo o mais, como casinhas de boneca. Lembre-se dos esmaltadores de Limoges, e dos trabalhos em champlevé, e dos entalhadores de marfim alemães, e das granadas incrustadas em vidro fundido. Finalmente, se quiser imagi­nar o fermento de artes criativas que existia nessa nossa famosa Ida­de das Trevas, deve abandonar a idéia de que a cultura escrita che­gou à Europa com a queda de Constantinopla. Todos os clérigos em todos os países eram homens de cultura naqueles tempos — era sua profissão ser assim. "Cada letra escrita" — disse um abade medieval — "é um ferimento infligido ao demônio". A biblioteca de St. Piquier, já no século V, tinha 256 volumes, incluindo Virgílio, Cícero, Terêncio e Macrobius. Charles V tinha uma biblioteca com não me­nos que novecentos e dez volumes, de forma que sua coleção pessoal era tão grande quanto uma coleção de clássicos de hoje.

 

4 - Nomes em francês no original, significando, respectivamente, "Alegre Vigia", "Beleza", "Divertimento", "Mau vizinho" e "Galhofeiro".

 

Todos na corte sabem que a Rainha e o comandante-em-chefe são amantes, e no entanto supostamente todos nós somos cavaleiros puros, protetores das damas, e ninguém fala sobre nada a não ser sobre esse Santo Graal.

 

Por último, sob a janela, estavam as próprias pessoas — a coruscante mistura de excentricidades que se reconheciam como possuidoras de coisas chamadas corpos, assim como almas, e que os preenchiam das maneiras mais surpreendentes. Com o nome de Sil­vestre II, um famoso mágico ascendeu ao papado, apesar de ser no­tório por ter inventado o relógio de pêndulo. Um fabuloso Rei da França, chamado Robert, que sofreu o infortúnio de ser excomunga­do, meteu-se em terríveis problemas com seus arranjos domésticos porque os dois únicos servos que puderam ser convencidos a cozi­nhar para ele insistiam em queimar as caçarolas depois das refeições. Um arcebispo de Canterbury, depois de excomungar todos os cônegos da catedral de S. Paulo ao mesmo tempo, invadiu o Priorado de S. Bartolomeu e liquidou o subprior no meio da capela — o que criou tal confusão que suas roupas foram rasgadas, revelando a arma­dura que usava por baixo, e ele teve que fugir para Lambeth em um barco. A Condessa de Anjou costumava sumir pela janela no mo­mento da secreta da missa. Madame Trote de Salerno usava suas ore­lhas como lenço e deixava suas sobrancelhas crescerem até abaixo dos ombros, como correntes de prata. Um bispo de Bath, na época do imaginário Edward I, foi devidamente considerado, depois de muita reflexão, uma pessoa inadequada para o arcebispado por ter demasiados filhos ilegítimos — não alguns, mas demasiados. E o próprio bispo mal poderia ser comparado à Condessa de Henneberge, que subitamente deu à luz a 365 crianças em um único parto.

Era a idade da plenitude, a época de se meter em tudo até o pes­coço. Talvez Arthur tenha imposto essa idéia à Cristandade por causa da riqueza de sua própria educação sob os cuidados de Merlin.

Pois o Rei, ou pelo menos é assim que Malory o interpreta, era o santo padroeiro da cavalaria. Não era um bretão angustiado saltitando de um lado para o outro num terno de anil do século V — nem ainda um desses nouveaux riches de Ia Poles que devem ter afligido os últimos anos do próprio Malory. Arthur era o rei do co­ração de uma cavalaria que alcançara seu auge talvez duzentos anos antes que nosso autor antiquário começasse a trabalhar. Era o em­blema de tudo que era bom na Idade Média, e ele mesmo é quem tinha feito essas coisas.

Tal como Malory o descreve, Arthur da Inglaterra era o cam­peão de uma civilização que é mal interpretada nos livros de histó­ria. O servo da cavalaria não era um escravo sem esperança. Ao con­trário, tinha pelo menos três caminhos legítimos de ascensão, o maior dos quais era a Igreja Católica. Com o auxílio das políticas de Arthur, essa igreja — ainda a maior das corporações de livre acesso para os homens cultos da terra — tinha se tornado uma estrada aberta para o escravo mais baixo. Um camponês saxão foi o Papa Adriano IV, e o filho de um carpinteiro foi Gregório VIL Nessa des­prezada Idade Média deles, uma pessoa podia se tornar o homem mais poderoso do mundo simplesmente por ter se instruído. E é um erro acreditar que a civilização de Arthur era fraca em nossa famo­sa ciência. Os cientistas, apesar de serem chamados de mágicos na época, inventaram coisas quase tão terríveis quanto as que nós in­ventamos — salvo que nos acostumamos às deles pelo uso. Os gran­des mágicos, como Albertus Magnus, Frei Bacon e Raymond Lully conheciam vários segredos que perdemos hoje, e descobriram como resultado secundário aquilo que ainda parece ser o maior produto da civilização, ou seja, a pólvora. Receberam honras por sua sabedo­ria, e Albert, o Grande, foi sagrado bispo. Um deles, chamado Baptista Porta, parece ter inventado o cinema — apesar de ter a sensi­bilidade de não desenvolvê-lo.

Quanto aos aviões, no século X, um monge chamado Aethelmaer fazia experiências com eles, e poderia ter alcançado o sucesso se não fosse um acidente de ajuste na seção da cauda. Ele caiu, como diz William of Malmesbury, "quod caudam in posterioriparte oblitus fuerat adaptaren 5.

 

5. "Porque se esqueceu de adaptar a cauda na parte posterior". (N. da T.)

 

Mesmo nas questões mundanas, a Idade das Trevas não ficava muito atrás de nós. Pelo menos tinham nomes espirituosos para seus coquetéis mais terríveis, que chamavam de Arrepia o Gorro, Cachorro Doido, Pai Filho-da-puta, Comida de Anjo, Leite de Dragão, Encosta na Muralha, Passo Largo e Levanta a Perna.

A visão da janela era deliciosa, apesar de estranha em alguns casos. Onde hoje temos campos cercados e parques, eles tinham comunidades aldeãs, charnecas, pântanos e florestas enormes. Sherwood se estendia por centenas de quilômetros, de Nottingham até o meio de York. Quanto aos negócios que aconteciam na ilha, apicultura, fabricação de espantalhos e aração com bois: para estes, deve-se olhar o Lutterell Psalter, onde estão belamente desenhados. Naqueles dias, se você tivesse um interesse em coisas peculiares, talvez tivesse a sorte de ver passar cavalgando por sua janela um ca­valeiro em armadura. Teria prestado atenção na cabeça dele, que era raspada ao redor das orelhas e atrás; mas no alto o cabelo cres­cia como o de uma boneca japonesa, de forma que o crânio parecia um conjunto de duas bolas, uma menor e outra maior, uma em cima da outra. Esse tufo no alto era excelente para absorver cho­ques por baixo do elmo. O passante seguinte podia ser um clérigo, talvez num cavalo de passo, e o cabelo deste seria o exato oposto do cavaleiro, já que seria completamente careca no topo, por causa da tonsura. Quando primeiro comparecera diante do bispo para ser ordenado clérigo, tinha levado consigo um par de tesouras. Em se­guida, se quisesse ver passar uma pessoa peculiar, poderia ser um cruzado que prometera libertar o sepulcro de Deus. Era de esperar a cruz em sua sobrecapa, sem dúvida, mas talvez você não esperas­se vê-lo tão deliciado com o assunto a ponto de colocar o mesmo símbolo em todos os lugares possíveis. Como um escoteiro noviço, cheio de entusiasmo, colocara uma cruz no escudo, na cota, no elmo, na sela e na brida do cavalo. O sujeito seguinte a passar pela janela podia ser um leigo cisterciense, o qual você esperaria que fosse um homem educado por causa de suas roupas. Mas não, ele era analfabeto ex officio. A profissão dele era colar os selos nas bu­las papais e, assim, para preservar o Segredo do Papa, era necessá­rio ter certeza de que ele não poderia ler sequer uma palavra. De­pois poderia passar um saxão barbudo, vestindo uma espécie de barrete frígio, como sinal de desafio e depois um cavaleiro das Marcas da fronteira do Norte. Este último, como vivia de incursões noturnas, portaria uma lua e várias estrelas sobre fundo azul em seu casaco. Aqui, podia aparecer uma fumaça na paisagem, subindo da fornalha de algum alquimista que, muito sensatamente, estaria ten­tando transformar chumbo em ouro — uma arte que permanece além da nossa capacidade de hoje, embora estejamos nos aproxi­mando disso com a fusão atômica. Ali, bem perto das cercanias de um monastério, você poderia ver uma procissão de monges raivo­sos marchando descalços em volta do estabelecimento — mas po­deriam estar caminhando contra o sol, em maldição por terem bri­gado com o abade. Talvez, se olhasse naquela direção, veria um vinhedo cercado de ossos — fora descoberto, nos primeiros anos de Arthur, que os ossos fazem uma cerca excelente para vinhedos, tumbas e até para fortes — e talvez, se olhasse em outra direção, poderia ver a porta de um castelo que parecia a forca de um guarda-caças. Estaria completamente coberta com cabeças pregadas de lobos, ursos, cervos e assim por diante. Mais adiante, ali à esquer­da, talvez estivesse havendo um torneio segundo as leis estabeleci­das por Geoffrey de Preully, e o diretor do torneio estaria exami­nando cuidadosamente os combatentes, como os juizes antes de uma luta de boxe, para conferir que não estavam colados em suas se­las. Os juizes de um torneio judicial entre um certo Duque de Salisbury e um Bispo de Salisbury, no reino do suposto rei Edward III, descobriram que o campeão do bispo tinha rezas e encantamentos costurados por toda a veste sob a armadura — o que era conside­rado tão ruim quanto um boxeador esconder uma ferradura na luva. Debaixo da soleira da janela podia estar passando um par de núncios papais com problemas intestinais, cavalgando de volta a Roma. Um par desses uma vez foi enviado para excomungar Barnabas Visconti, mas Barnabas simplesmente fez com que comessem a bula — pergaminho, faixas, selo de chumbo e tudo o mais. Seguin­do bem perto deles talvez viesse passando um peregrino profissional, apoiando-se em um grosso e nodoso cajado e vergado sob o peso de medalhas bentas, relíquias, conchas, verônicas e coisas parecidas. Ele se autodenominaria um palmeiro e, se fosse muito viajado, suas relí­quias podiam incluir uma pena do anjo Gabriel, alguns dos carvões nos quais São Lourenço foi assado, um dedo do Espírito Santo, "completo e inteiro como sempre", um "frasco do suor de S. Miguel quando lutou contra o diabo", um pedacinho "da moita em cima da qual o Senhor falou com Moisés", uma túnica de S. Pedro, ou um pouco do leite da Virgem Maria preservado em Walsingham. De­pois do palmeiro talvez vagasse por ali uma figura mais sinistra: um desses que "dormem de dia e andam à noite, comem bem e bebem melhor, mas não possuem nada". Seria um fora-da-lei, sobre os quais se escreveu:

"Para um bandido esta é a lei, que o agarrem e prendam sem pieda­de, e o enforquem numa árvore e o deixem balançar ao vento."

Mas antes de chegar a esse último balanceio ao vento, ele teria vivido uma vida livre. Sua companheira estaria caminhando resolu­tamente a seu lado, também com a cabeça a prêmio — cujo cabelo teria sido raspado antes de ela partir com ele para a floresta e ser co­nhecida como proscrita. Ocasionalmente, ela daria uma olhada para trás, alerta ao clamor que indicaria estarem sendo caçados.

Ali poderia vir um barão fazendo transportar à sua frente, com extremo cuidado, uma torta quente, pois tinha que levar tal peça ao Rei uma vez ao ano, para que Arthur a cheirasse, como pagamento de seus deveres feudais. E por ali podia vir outro barão em pleno ga­lope, atrás de um ou outro dragão e pumba!, cair no chão, enquanto o cavalo trotava para longe. Mas se isso acontecesse, um de seus aju­dantes imediatamente o montaria em seu próprio cavalo — tal como hoje se faz com o caçador-chefe —, porque essa era a lei feudal. No Norte distante, sob o esmaecer do pôr-do-sol, poderia se perceber a luz da cabana de alguma bruxa ocupada, não apenas fazendo bone­cos de cera de alguém que ela desaprovava, mas também batizando a imagem — esse era o fator operativo — antes de lhe enfiar vários al­finetes. Um dos padres amigos dela, aliás, que tivesse se vendido ao diabo, podia estar pronto para rezar uma Missa de Réquiem contra qualquer um de quem você quisesse se livrar — e quando chegasse ao "Réquiem aeternum dona ei, Domine 6”, estaria querendo isso mes­mo, apesar de o homem estar vivo. Igualmente distante a Oeste, e no mesmo pôr-do-sol, você poderia ver Engyerrand de Marigny, que construiu as enormes forcas em Mountfalcon, ele mesmo apodre­cendo e chacoalhando na mesma forca, pois fora considerado culpa­do de Magia Negra. Os Duques de Berry e da Bretanha, dois ho­mens honestos, poderiam passar trotando juntos pela estrada, com couraças de cetim imitando o aço. Esses dois não gostavam de assu­mir as vantagens da armadura e, considerando o cetim mais fresco para usar, decidiram ser pessoas comuns e corajosas. Lancelot podia ter feito o mesmo tipo de coisa. Acima deles, na colina, mas sem ser visto por eles, poderia estar sentado Jolyjoly Wat, com sua caixa de alcatrão ao lado. Era a figura mais típica de Gramarye, e seu alcatrão era o anti-séptico para as suas ovelhas. Se lhe tivessem dito, "Não es­trague o navio por meia barrica de alcatrão", ele imediatamente concordaria — pois fora o inventor do ditado, que mudamos de ovelhas para navios7.

 

6. "Dá-lhes a paz eterna, Senhor" - Oração no ofício dos mortos. (N. da T.)

7. Jogo de palavras que em inglês são homófonas: sheep (ovelha) e ship (navio). (N. da T.)

 

Em um ponto mais distante, talvez alguém falido estivesse le­vando uma vigorosa surra em algum mercado moscovita — não por conta de má vontade pessoal contra ele, mas na ardente esperança de que se ele berrasse suficientemente alto, algum parente ou ami­go teria pena e pagaria suas dívidas. Mais ao Sul, na bacia do Medi­terrâneo, poderia se ver um marinheiro sendo punido por jogo, com base numa lei de Richard Coeur de Lion. A punição consistia em ser jogado três vezes na água, desde cima do mastro mestre, e seus companheiros aclamavam cada barrigada com gritos. Uma tercei­ra e engenhosa punição possivelmente fora infligida no mercado ali abaixo. Um mercador de vinhos, cujos produtos eram de má qualidade, poderia ter sido amarrado no pelourinho e obrigado a beber uma quantidade excessiva do seu próprio licor — e o resto depois jogado em sua cabeça. Que dor de cabeça na manhã seguin­te! Nessa direção, se você tivesse a mente aberta, poderia se diver­tir com a insolente Alisoun, que dava risadinhas depois de receber o beijo incomum que nos conta Chaucer. Naquela, poderiam obser­var um exasperado Miller e sua família, tentando consertar a confu­são que acontecera na noite anterior com o deslocamento de um berço, como Reeve conta em sua história. Um escolar que tivera a iniciativa e a boa sorte de matar o Duque de Salisbury com um dos recém-inventados canhões, poderia estar sendo idolatrado por seus colegas de academia, no pátio da longínqua escola monástica. Ameixeiras, apenas recém-introduzidas como as amoreiras de Merlin, podiam estar florescendo sob a luz da lua ao lado do pátio. Outro garotinho, desta vez um rei de quatro anos de idade na Escócia, poderia estar tristemente outorgando um Mandato Real à sua babá, autorizando-a a espancá-lo sem ser culpada de Alta Traição. Um desacreditado exército, que costumava viver da espada como uma quadrilha treinada, poderia estar implorando seu pão de porta em porta — um bom destino para todos os exércitos —, e um homem que tivesse pedido santuário naquela distante igreja do Leste, pode­ria ter sua perna cortada por ter dado meio passo fora da porta. No mesmo santuário poderia estar uma bela coleção de falsários, la­drões, assassinos e devedores, todos ocupados forjando ou amolan­do suas facas para a saída noturna, aproveitando o calmo retiro da igreja dentro da qual não podiam ser presos. O pior que podia lhes acontecer, uma vez que tivessem alcançado seu santuário, era o ba­nimento. Então teriam que caminhar até Dover, sempre ficando no meio da estrada e agarrando um crucifixo — se o soltassem por um momento, podiam ser atacados —, e uma vez lá, se não pudessem imediatamente tomar um navio, teriam que diariamente entrar no mar até o pescoço, para provar que realmente estavam tentando.

Você sabia que nessa Idade das Trevas visível da janela de Gue­nevere havia tanta decência no mundo que a Igreja Católica podia impor uma paz a todas as lutas — a chamada Trégua de Deus —, que durava de quarta-feira à segunda, assim como em todo período do Advento e da Páscoa? Você acha que eles, com suas Batalhas, Fome, Peste Negra e Servidão, eram menos ilustrados que nós, com nossas Guerras, Bloqueio, Influenza e Recrutamento? Mesmo que fossem imbecis o suficiente para acreditar que a Terra era o centro do universo, nós também não acreditamos que o homem é a flor mais fina da criação? Se um peixe leva milhões de anos para se trans­formar em réptil, será que o Homem, nas nossas poucas centenas de anos, modificou-se a ponto de se tornar irreconhecível?

 

Desde a janela da torre, Lancelot e Guenevere olhavam o pôr-do-sol da cavalaria. Os perfis escurecidos destacavam-se em silhueta contra a luz. Lancelot, o velho feio, tinha o perfil de uma gárgula. Poderia estar olhando, em horrenda meditação, do alto de Notre Dame, construída nessa época. Mas em sua maturidade, pa­recia mais nobre que antes. As linhas da feiúra tinham afundado e se tornado linhas de força. Como o buldogue, que é um dos cães mais malfalados, Lancelot tinha desenvolvido um rosto no qual as pessoas podiam confiar.

O detalhe tocante é que os dois cantavam. Suas vozes, não mais ricas em tonalidade como as dos jovens, ainda eram firmes na nota. Se eram débeis, eram puras. Uma apoiava a outra.

 

"Quando o mês de maio (cantava Lancelot)

Chega e o dia

Embeleza-se de luz

Nada mais temo."

"Quando" (cantou Guenevere)

"Quando termina o dia

E com nostalgia o sol se põe

Deixando a luz esvaecer

Não temo o anoitecer"

"Mas, oh" (cantavam juntos)

"Mas oh, tanto a noite quanto o dia

Do meu coração a alegria

Devem um dia partir, para sempre

Tudo feito, tudo acabado."

 

Pararam, depois de um inesperado floreio no organilho, e Lan­celot disse:

— Sua voz está boa. Receio que a minha esteja enferrujando.

— Você não deve beber licores.

— Que maldade dizer isso! Desde o Graal que sou abstêmio quase total.

— Bem, preferia que você não bebesse nada.

— Então não beberei mais nada, nem água. Vou morrer de sede a seus pés, e Arthur me fará um funeral esplêndido, e nunca perdoará você por isso.

— Sim, e eu irei para o convento por meus pecados, e lá vive­rei feliz para sempre. O que vamos cantar agora?

Lancelot disse:

— Nada. Não quero mais cantar. Venha e sente-se perto de mim, Jenny.

— Você está infeliz com alguma coisa?

— Não. Nunca estive tão feliz em minha vida. E ouso dizer que nunca mais serei tão feliz.

— Por que tão feliz?

— Não sei. Acho que é porque a primavera finalmente chegou, e o verão brilhante está diante de nós. Seus braços vão ficar bron­zeados de novo, levemente queimados aqui em cima, e os cotovelos, rosados. Não tenho certeza se não gosto mais dos lugares onde você se dobra, como a parte de dentro de seus cotovelos. Guenevere esquivou-se dos elogios galantes.

— O que será que Arthur anda fazendo?

— Arthur está visitando Gawaine e os seus, e eu estou falando dos seus cotovelos.

— Percebo.

— Jenny, eu estava feliz porque você estava me dando ordens. Essa é a explicação. Você estava me falando que eu bebo demais. Gosto quando você cuida de mim e me diz o que devo fazer.

— Parece que você precisa disso.

— Eu preciso mesmo — disse. Depois, com um ímpeto que surpreendeu os dois: — Posso vir hoje à noite?

— Não.

— Por que não?

— Lance, por favor, não pergunte. Você sabe que Arthur está em casa, e é muito perigoso.

— Arthur não se importa.

— Se Arthur nos surpreender — ela disse, sabiamente —, terá que nos matar.

Ele negou isso.

— Arthur sabe tudo sobre nós. Merlin o preveniu com todas as letras, e a Fada Morgana mandou insinuações muito claras, e depois teve o problema com Sir Meliagrance. Mas ele não quer confusão. Jamais nos surpreenderia, a menos que o forçassem a isso.

— Lancelot — disse ela, com raiva —, não vou admitir que você fale de Ardiur como se ele fosse um alcoviteiro.

— Não estou falando dele desse jeito. Foi meu primeiro amigo, e eu o amo.

— Então está falando de mim como se eu fosse pior.

— E agora você está se comportando como se fosse.

— Muito bem, se é isso que você tem a dizer, é melhor se retirar.

— Assim você poderá fazer amor com ele, suponho.

— Lancelot!

— Oh, Jenny! — ele saltou, ágil como sempre, e a abraçou. — Não fique zangada. Sinto muito se fui indelicado.

— Saia daqui! Deixe-me em paz.

Mas ele continuou segurando-a com força, como alguém que prende um animal selvagem para que não fuja.

— Não fique zangada. Sinto muito. Você sabe que não foi por querer.

— Você é um animal.

— Não, não sou um animal, nem você. Jenny, vou continuar segurando-a até passar sua raiva. Falei porque me sinto miserável.

Sua voz abafada e contida retrucou, queixosa:

— Você acabou de dizer que estava feliz.

— Bem, não estou feliz. Estou muito infeliz, e me sinto chateado com o mundo inteiro.

— Você acha que é o único?

— Não, não acho. E sinto muito pelo que disse. Vai me fazer infeliz por ter dito isso. Pronto, por favor, seja bondosa, e não me faça infeliz por mais tempo.

Ela cedeu. Os anos tinham suavizado suas brigas de antes.

— Então está bem.

Mas seu sorriso e sua concessão o impulsionaram mais.

— Por que não foge comigo, Jenny?

— Por favor, não comece tudo de novo.

— Não posso evitar — disse, desesperado. — Não sei mais o que fazer. Deus, já passamos por isso em nossas vidas tantas vezes, mas parece que fica pior na primavera. Por que você não vem comi­go para o Joyous Gard e deixa tudo isso para trás?

___Lance, solte-me e seja razoável. Pronto, sente-se e vamos cantar outra música.

— Mas eu não quero cantar.

E eu não quero ouvir nada disso.

Se você viesse comigo para o Joyous Gard isso acabaria de uma vez por todas. Fosse como fosse, poderíamos viver juntos até a velhice, e seríamos felizes, e não teríamos que enganar ninguém todos os dias, e poderíamos morrer em paz.

— Você disse que Arthur sabe de tudo — disse ela — e que não o estamos enganando em nada.

— Sim, mas isso é diferente. Amo Arthur e não agüento quando o vejo me olhando e sei que ele sabe. Você sabe, Arthur ama a nós dois.

— Mas Lance, se você o ama tanto, como quer fugir com sua esposa?

— Quero que tudo fique claro — disse, teimoso —, pelo me­nos no final.

— Bem, eu não quero isso.

— De fato — e agora ele estava novamente furioso —, o que você quer realmente é ter dois maridos. As mulheres sempre que­rem tudo.

Ela pacientemente desistiu de brigar.

— Não quero ter dois maridos, e me sinto tão desconfortável quanto você. Mas o que adianta revelar tudo? Como estamos agora é horrível, mas pelo menos Arthur sabe de tudo dentro de si mesmo, e nós ainda nos amamos e estamos seguros. Se eu fugisse com você, o resultado seria a quebra de tudo isso. Arthur teria que declarar guerra a você e cercar Joyous Gard, e então um de vocês morreria, ou os dois, e centenas de outras pessoas morreriam, e nada ficaria melhor. Além disso, não quero deixar Arthur. Quando casei com ele, prometi ficar com ele, que sempre foi gentil comigo, e gosto dele. O mínimo que posso fazer é dar-lhe um lar e ajudá-lo, mesmo que ame você também. Não vejo de que adianta revelar tudo. Por que deveríamos tornar Arthur publicamente miserável?

Nenhum dos dois tinha percebido, no lusco-fusco crescente, que o próprio Rei tinha chegado enquanto ela falava. De perfil para a janela, mal podiam ver o que havia no quarto atrás. Mas ele entra­ra. Parou por uma fração de segundo, concentrado em seus pensa­mentos, que estavam bem longe, considerando a facção das Órcades ou algum outro problema de Estado. Parou sob a cortina da porta, a mão pálida com o sinete real brilhando na escuridão enquanto abria a tapeçaria, e então, sem ficar escutando nem por um momento, dei­xou a tapeçaria se fechar e desapareceu. Foi buscar um pajem para o anunciar.

— A única coisa decente... — dizia Lancelot, torcendo as mãos entre os joelhos. — Para mim, a única coisa decente seria fugir para longe e não voltar jamais. Mas meu cérebro não agüentou isso quando tentei da outra vez.

— Meu pobre Lance, se não tivéssemos parado de cantar! Agora você vai ficar nervoso de novo e ter um de seus ataques. Por que não podemos esquecer tudo isso e deixar seu famoso Deus to­mar conta de tudo? Não adianta tentar pensar, ou fazer alguma coi­sa porque é certo ou errado. Eu não sei o que é certo ou errado. Mas não podemos confiar em nós mesmos, e fazer o que fazemos, e esperar pelo melhor?

— Você é sua esposa e eu seu amigo.

— Bem — disse ela —, quem nos fez amar um ao outro?

— Jenny, não sei o que fazer.

— Então não faça nada. Venha até aqui e me dê um beijo gentil, e Deus cuidará de nós dois.

— Minha querida!

Dessa vez o pajem subiu as escadas com o barulho habitual, à maneira dos pajens, trazendo luz ao mesmo tempo. Arthur tinha pedido que acendesse as velas.

A sala brilhou com as cores ao redor dos amantes, que rapida­mente tinham se separado. E começou a mostrar o esplendor de suas peças quando o rapaz acendeu os pavios. Os prados floridos e os arbustos cheios de frutos e pássaros da tapeçaria de Arras se es­palharam e se agitaram pelas quatro paredes. A cortina da porta su­biu mais uma vez, e o Rei entrou na sala.

Ele parecia velho, mais velho que os dois. Mas era a nobre ve­lhice do respeito próprio. Mesmo hoje, às vezes se pode encontrar um homem de sessenta anos ou mais que se mantém reto como um junco, e cujos cabelos são negros. Eles eram desse tipo. Lan­celot, agora que podia ser visto claramente, era um refinamento ereto de humanidade — um fanático pela responsabilidade huma­na. Guenevere, e isso podia surpreender quem a conhecera em seus tempos de tormentas, parecia doce e bela. Quase inspirava a vontade de protegê-la. Mas Arthur era o mais comovedor dos três. Estava vestido com muita simplicidade, gentil e paciente com suas coisas simples. Muitas vezes, quando a Rainha estava recepcionan­do pessoas importantes sob as luzes do Grande Salão, Lancelot o descobria sentado sozinho numa sala pequena, cerzindo meias. Agora, com suas vestes azuis caseiras — o azul, que era um coran­te caro naquela época, estava reservado aos reis, ou aos santos e anjos nos quadros — ele fez uma pausa na soleira da sala brilhan­te e sorriu.

— Viva, Lance. Viva, Gwen.

Guenevere, com a respiração ainda agitada, respondeu à saudação.

— Viva, Arthur. Você nos surpreendeu.

— Sinto muito. Acabei de voltar.

— Como estavam os Gawaines? — perguntou Lancelot, no velho tom que nunca conseguia fazer natural.

— Estavam no meio de uma briga quando cheguei.

— É bem coisa deles! — ambos exclamaram. — O que você fez? Por que estavam brigando?

As perguntas soaram como se fossem assuntos de vida ou morte, captando equivocadamente o estado de espírito do Rei, devido aos deles mesmos.

O Rei olhou direto diante de si.

— Não perguntei.

— Sem dúvida algum assunto familiar — disse a Rainha.

— Sem dúvida era isso.

— Espero que ninguém tenha se machucado?

— Ninguém se machucou.

— Ainda bem — ela exclamou, notando que seu alívio parecia absurdo — que tudo terminou bem.

— Sim, tudo terminou bem.

Eles viram que seus olhos estavam brilhando. Ele parecia se divertir com a perturbação dos dois, e a atmosfera era normal.

— Ora — disse o Rei —, precisamos continuar falando sobre os Gawaines? Será que não ganho um beijo da minha esposa?

— Querido.

Ela trouxe a cabeça dele para perto da sua e o beijou na testa, pensando nele como uma velha coisa fiel — seu ursinho amigo. Lancelot levantou-se.

— Acho melhor me retirar.

— Não saia, Lance. É ótimo ter você aqui um pouco para nós. Venha. Sente-se perto do fogo e cante um pouco. Logo poderemos dispensar o fogo.

— É isso mesmo — disse Guenevere. — Imagine, logo será verão.

— Ainda assim, é ótimo sentar ao pé da lareira — no lar.

— É ótimo para você no seu lar — disse Lancelot de maneira esquisita.

— Por quê?

— Eu não tenho lar.

Não se importe, Lance. Um dia terá. Espere até chegar à minha idade e depois comece a se preocupar com isso.

E não é porque toda mulher que você conhece não o tenha caçado por quilômetros — disse a Rainha.

— E com uma machadinha — acrescentou Arthur.

— E metade delas com propostas de casamento.

— E depois você se queixa de não ter um lar.

Lancelot começou a rir e o último fio de tensão se rompeu.

— E você — perguntou —, casaria com uma mulher que o per­seguisse com uma machadinha?

O Rei considerou gravemente a questão antes de responder.

— Não poderia fazer isso — disse afinal — porque já sou casado.

— Com Gwen — disse Lancelot.

Era estranho. Parecia que eles tinham começado a falar com significados que estavam separados das palavras que usavam. Era como as formigas falando com suas antenas.

— Com a Rainha Guenevere — disse o Rei, contradizendo.

— Ou Jenny? — sugeriu a Rainha.

— Sim — ele concordou, mas só depois de uma longa pausa —, ou Jenny.

O silêncio se tornou mais profundo, até que Lancelot se levan­tou pela segunda vez.

— Bem, devo ir.

Arthur colocou a mão em seu braço.

— Não, Lance, fique mais um minuto. Quero contar algo a Guenevere esta noite e gostaria que você também ouvisse. Estamos juntos há muito tempo. Quero lhes confessar tudo sobre um assun­to antigo, pois você também é da família.

Lancelot sentou-se.

— Certo. Agora cada um de vocês me dá uma mão e sentarei entre os dois, assim. Pronto. Minha Rainha e meu Lance, e nenhum dos dois deve me acusar pelo que lhes vou contar.

Lancelot disse amargamente:

— Nas estamos em posição de acusar ninguém, Rei.

— Não? Bem, não sei o que você quer dizer com isso. Mas quero lhes contar a história de algo que fiz quando era jovem. Foi antes que me casasse com Gwen, e muito antes que você fosse ar­mado cavaleiro. Vocês se importam se eu fizer isso?

— Claro que não nos importamos, se você quiser contar.

— Mas não acreditamos que você tenha feito algo errado.

— Na verdade, começou antes de meu nascimento, pois meu pai se apaixonou pela Condessa da Cornualha e matou o Duque para consegui-la. Ela era minha mãe. Vocês conhecem essa parte da história.

— Sim.

— Talvez não saibam que nasci num momento inconveniente. Demasiado cedo depois do casamento do meu pai com minha mãe. Foi por isso que eles me mandaram ainda em cueiros para ser criado por Sir Ector. Foi Merlin quem me levou.

— E então — disse Lancelot, alegremente — você foi levado de volta à corte quando seu pai morreu, e puxou a espada mágica da pedra, o que provou que era o legítimo Rei da Inglaterra, e viveu feliz depois disso, e assim acabou essa história. Não acho que seja uma história ruim.

— Infelizmente, esse não foi o final.

— Como?

— Bem, meus caros, fui afastado da minha mãe no momento em que nasci, e ela nunca soube para onde fui levado. Nem eu sabia quem era minha mãe. As únicas pessoas que sabiam do nosso relacionamen­to eram Uther Pendragon e Merlin. Muitos anos depois, quando eu já era Rei, conheci a família de minha mãe, ainda sem saber quem eram. Uther estava morto, e Merlin andava tão atarantado com suas visões que tinha esquecido de me contar, então nos conhecemos como estranhos. Achei que uma delas era inteligente e bela.

— As famosas irmãs da Cornualha — mencionou friamente a Rainha.

— Sim, querida, as famosas irmãs da Cornualha. O falecido Duque teve três filhas e, é claro, embora eu não soubesse disso, eram minhas meias-irmãs. Chamavam-se Fada Morgana, Elaine e Morgause, e eram consideradas as mulheres mais belas da Bretanha.

Esperaram que sua voz calma continuasse, o que logo aconteceu.

— Eu me apaixonei por Morgause — acrescentou — e tivemos um bebê.

Se algum deles sentiu surpresa, ressentimento, comiseração ou inveja, não demonstrou. A única coisa surpreendente para eles foi o segredo ter sido mantido por tanto tempo. Mas podiam adivinhar por sua voz que Arthur sofria, e que não queria ser interrompido até que purgasse completamente seu coração.

Fitaram o fogo em um dos mais longos dos seus silêncios. De­pois, Arthur sacudiu os ombros.

— Então, vejam — disse —, sou o pai de Mordred. Gawaine e os demais são meus sobrinhos, mas ele é meu filho completo.

Lancelot viu em seus olhos que podia falar.

— Não vejo maldade em sua história, mesmo assim. Você não sabia que ela era sua meia-irmã. Ainda não tinha conhecido Gwen. E sabendo da história dela depois, provavelmente foi culpa de Mor­gause. Aquela mulher era um demônio.

— Era minha irmã. E mãe de meu filho.

Guenevere acariciou sua mão.

— Sinto muito.

— Além disso — ele disse —, era uma criatura muito bela.

— Morgause... — começou Lancelot.

— Morgause pagou sua conta ao ter a cabeça cortada, portanto, vamos deixá-la em paz.

— Cortada — disse Lancelot — por um de seus próprios fi­lhos, que a encontrou dormindo com Sir Lamorak...

— Por favor, Lancelot.

— Sinto muito.

— Ainda não acho que foi um erro seu, Arthur. Afinal, você não sabia que ela era sua irmã.

O Rei soltou um longo suspiro, e começou novamente, ainda mais rouco.

— Ainda não lhes contei — disse — a pior parte do que fiz.

— E o que foi?

— Vejam, eu era jovem, tinha dezenove anos. E Merlin veio, tarde demais, dizer o que tinha acontecido. Todos me disseram que pecado horrível era aquilo, e como nada além de sofrimento viria dali, e também um monte de outras coisas sobre como seria Mor­dred se nascesse. Assustaram-me com profecias horríveis, e fiz algo que me apavora desde então. Nossa mãe tinha escondido Morgau­se logo que soube de tudo.

— O que você fez?

— Deixei que proclamassem que todas as crianças nascidas em uma certa época deveriam ser colocadas em um grande barco a ser lançado ao mar. Eu queria destruir Mordred para seu próprio bem, e não sabia onde ele nasceria.

— E fizeram isso?

— Sim, o navio foi lançado, e Mordred estava lá, e naufragou em uma ilha. A maior parte das pobres crianças se afogou, mas Deus sal­vou Mordred e o mandou de volta para me envergonhar depois. Mor­gause jogou-o contra mim, muito depois de o ter recuperado. Mas para outras pessoas, ela sempre fingiu que ele era realmente filho de Lot, como Gawaine e os demais. Naturalmente, não queria falar do assunto com pessoas de fora, e com os irmãos dele também não.

— Bem — disse Guenevere —, se ninguém sabe disso exceto nós e o clã das Órcades, e se Mordred está são e salvo...

— Não posso esquecer os outros bebês — disse ele miseravel­mente. — Sonho com eles.

Por que não nos contou isso antes?

— Tinha vergonha.

Desta vez Lancelot explodiu.

— Arthur — exclamou —, você não tem nada do que se enver­gonhar. O que você fez foi-lhe imposto quando era demasiado jo­vem para saber o que fazer. Se eu pusesse minhas mãos nos brutos que assustam crianças com histórias sobre pecado, quebraria o pes­coço deles. Qual o bem que isso faz? Pense em todo esse sofrimen­to, e por nada! E os pobres bebês!

— Todos afogados.

Sentaram-se novamente, olhando para as chamas, até que Guenevere voltou-se para seu marido.

— Arthur — ela perguntou —, por que você nos contou essa história hoje?

Ele esperou, escolhendo as palavras.

— É porque receio que Mordred tenha ressentimentos contra mim, pobre garoto — e ele tem razão.

— Traição? — perguntou o comandante-em-chefe.

— Bem, não exatamente traição, Lance. Mas acho que ele não está satisfeito.

— Corte logo a cabeça do chorão e liquide o assunto.

— Não, jamais poderia pensar em fazer isso! Você esquece que Mordred é meu filho? Eu gosto dele. Fiz muito mal ao garoto, e mi­nha família vem ferindo os da Cornualha desde sempre, de uma ou de outra maneira, não posso aumentar essa maldade. Além disso, sou seu pai. Posso me ver nele.

— Não parece haver muita semelhança.

— Mas há. Mordred é ambicioso e amante da honra, como sempre fui. É só porque tem um corpo fraco, que fracassou nos nos­sos esportes, e isso o amargurou, como provavelmente teria me amargurado se eu não tivesse tido sorte. Ele também é corajoso, de uma forma estranha, e é leal ao seu povo. Compreendam, sua mãe o colocou contra mim, o que era natural, e, para ele, eu represento as coisas más. E quase certo que pretenda me matar no final.

— Você está falando sério ao dizer que isso é razão para não matá-lo agora?

O Rei subitamente pareceu surpreso, ou chocado. Ele estivera sentado relaxado entre os dois, porque estava cansado e infeliz, no entanto, agora levantou-se e encarou seu capitão nos olhos.

— Você deve se lembrar que sou o Rei da Inglaterra. Quando se é rei não se pode sair executando pessoas por gosto. O rei é a cabeça de seu povo, e deve dar exemplo para todos, e realizar a vontade deles.

Perdoou a expressão de espanto no rosto de Lancelot e mais uma vez tomou sua mão.

— Você descobrirá — explicou — que quando os reis são tira­nos que acreditam na força, o povo torna-se tirano também. Se eu não me apoiar na lei, não terei lei entre o meu povo. E naturalmen­te quero que meu povo tenha a nova lei, porque assim ele será mais próspero e, em conseqüência, serei mais próspero também.

Eles o observaram, imaginando o que ele queria transmitir. Arthur sustentou o olhar, tentando falar com os olhos.

— Veja, Lance, tenho que ser absolutamente justo. Não posso me permitir ter mais coisas como essa dos bebês em minha consciên­cia. A única maneira de me manter afastado do uso da força é pela justiça. Longe de desejar executar seus inimigos, um verdadeiro rei deve estar pronto para executar seus amigos.

— E sua esposa? — perguntou Guenevere.

— E sua esposa — ele respondeu com gravidade.

Lancelot se mexeu desconfortavelmente no assento, observando com uma tentativa de humor:

— Espero que você não vá cortar a cabeça da Rainha logo mais. O Rei ainda manteve sua mão na dele, e o olhou mais uma vez.

— Se Guenevere ou você, Lancelot, se provarem culpados de um crime contra meu reino, terei que mandar cortar a cabeça de ambos.

— Deus do céu — ela exclamou. — Espero que ninguém vá provar isso!

— Também espero.

— E Mordred? — perguntou Lancelot depois de algum tempo.

— Mordred é um jovem infeliz, e receio que tente qualquer coisa para me fazer sofrer. Se, por exemplo, ele conseguir alguma maneira de me atingir através de você, meu caro, ou através de Gwen, tenho certeza de que tentará. Percebem o que quero dizer?

— Percebo.

— Então, se houver algum momento em que qualquer um dos dois possa, bem... possa lhe dar esse tipo de motivo... terão cuidado comigo, não é? Estou nas mãos de vocês, meus queridos.

— Mas isso parece tão sem sentido...

— Você tem sido gentil com ele — disse Lancelot — desde que chegou aqui. Por que desejaria ferir...

O Rei cruzou os braços, e parecia estar olhando as chamas por baixo das pálpebras abaixadas.

— Você esquece — disse, gentilmente — que eu nunca conse­gui ter um filho com Gwen. Quando eu morrer, Mordred pode ser o Rei da Inglaterra.

— Se ele tentar alguma traição — disse Lancelot, apertando os punhos — eu mesmo o matarei.

Imediatamente, a mão cheia de veias azuis estava segurando seu braço.

— Isso é algo que você não deve jamais fazer, Lance. Seja lá o que Mordred faça, mesmo que tente contra a minha vida, deve pro­meter se lembrar que, pelo sangue, ele é uma espécie de herdeiro obrigatório. Eu fui cruel...

— Arthur — exclamou a Rainha —, você não pode dizer isso. E tão ridículo que me faz sentir envergonhada.

— Vocês não me acham um homem cruel? — perguntou, surpreso.

— Claro que não.

— Mas eu pensava, depois da história dos bebês...

— Ninguém — afirmou Lancelot com ferocidade — jamais so­nharia em ter esse pensamento.

O Rei levantou-se à luz da lareira, parecendo desorientado e satisfeito. Considerava ridículo supor que não fosse cruel, mas esta­va agradecido pelo amor deles.

— Bem — disse —, de qualquer forma, não pretendo conti­nuar sendo mau. É dever do Rei evitar derramamento de sangue se puder, e não provocá-lo.

Olhou mais uma vez para ambos, por baixo das pálpebras.

— Pois então, meus queridos — terminou alegremente —, agora devo ir até o Tribunal de Queixas, e administrar um pouco de nossa famosa justiça. Você fica aqui com Gwen, Lance, e alegre-a um pouco depois dessa história terrível. Seja um bom companheiro.

 

Quando Arthur disse que ia administrar um pouco de sua famosa justiça, não queria dizer que ia realmente presidir um tribunal. Na Idade Média, os reis presidiam pessoalmente os tribu­nais, até na época do dito Henry IV, que se supõe ter presidido tan­to o Tribunal do Erário quanto o Tribunal do Rei. Mas àquela hora da noite, já era demasiado tarde para administrar justiça. Arthur ia ler as petições da manhã seguinte, uma prática que seguia como ho­mem consciencioso. Nesses dias, a Lei era seu principal interesse, seu esforço final contra a Força.

Na época de Uther Pendragon não existia realmente uma lei digna desse nome, exceto uma espécie de etiqueta infantil e parcial reservada às classes superiores. Mesmo agora, desde que o Rei co­meçou a encorajar a Justiça para conter de vez o poder da Força Maior, havia-se que lidar com três tipos de lei. Ele estava tentando fundir a Lei dos Costumes, a Lei Canônica e a Lei Romana em um único código, que esperava poder chamar de Código Civil. Essa ocupação, assim como a leitura das petições da manhã, era o que costumava obrigá-lo a trabalhar todas as noites na solidão e no si­lêncio do Salão de Justiça.

O Salão de Justiça estava na outra extremidade do palácio. E não estava vazio como deveria estar.

Embora houvesse cinco pessoas ali, esperando pelo Rei, talvez a primeira coisa que um visitante moderno notasse fosse o próprio salão. O que surpreendia nele é que as tapeçarias o faziam ficar qua­drado. Já era noite, de forma que as janelas estavam cobertas, e as portas jamais ficavam descobertas. O resultado é que você se senti­ria como se estivesse numa caixa: teria a sensação estranha de fecha­mento simétrico que deve ser conhecida pelas borboletas nas garra­fas em que morrem. Como se fosse um quebra-cabeças chinês, você ficaria imaginando como as cinco pessoas foram introduzidas ali. Por todas as paredes, do chão ao teto, em fila dupla, as histórias de Davi e Betsabé, Suzana e os anciãos, eram contadas em quadros fle­xíveis, com cores alegres e fortes. As coisas esmaecidas que vemos hoje não têm nada a ver com as tapeçarias brilhantes que faziam do Salão de Justiça uma caixa pintada.

Os cinco homens cintilavam à luz de velas. Havia pouca mobí­lia para distrair os olhos das figuras deles — apenas uma mesa com­prida com pergaminhos espalhados para inspeção do Rei, o trono do Rei e, no canto, uma mesa de leitura alta, com o respectivo as­sento. O colorido do lugar estava nas paredes e nos homens. Cada um deles vestia uma túnica de seda blasonada com a divisa e os três cardos, e os irmãos mais novos com as marcas de membros mais jo­vens da família, de modo que pareciam uma mão com as cartas aber­tas. Era a família Gawaine e, como de costume, discutiam.

Gawaine disse:

— Pela última vez, Agravaine, vai fechar a matraca? Nã vou mi meter nisso.

— Eu também não — acrescentou Gareth. Gaheris disse:

— Nem eu.

— Si teimar com isso, vã quebrar o clã. Já disse claramente qui nenhum di nós vai ajudar. Vã se meter em confusa sozinhos.

Mordred esperava com paciência trocista.

— Estou do lado de Agravaine — disse. — Lancelot e minha tia são uma vergonha para todos nós. Agravaine e eu assumiremos a responsabilidade, se ninguém mais o fizer.

Gareth voltou-se raivoso para ele.

— Vocês estão sempre prontos para se meter em qualquer coi­sa vergonhosa.

— Obrigado.

Gawaine fez um esforço para ser conciliador. Não era uma pes­soa conciliadora, de forma que o esforço parecia realmente físico, como um terremoto.

— Mordred — disse —, por favor, escute. Seja um bravo rapaz i deixa isso passar. Sou o mais velho de todos, i posso ver o mal qui virá disso.

— Venha o que vier, irei ao Rei.

— Mas Agravaine, si fizer isso, vai provocar guerra. Nã perce­be que Arthur i Lancelot vã ter qui ir um contra o outro, i metade dos reis da Bretanha vã ficar com Lancelot por conta di sua reputaçã i isso vai virar u'a guerra civil?

O chefe do clã aproximou-se pesada e desajeitadamente de Agravaine, como se fosse um animal bem-humorado fazendo um truque, e deu-lhe uma palmadinha com a pata gigantesca.

— Vamos, homem. Esqueça a briga dessa tarde. Todo homem tem sus fúrias mas, afinal, somos irmãos. Nem imagino como v'cê pode ir contra Sir Lancelot, sabendo o qui ele fez pra nós todo esse tempo. Si esqueceu qui ele salvou v'cê i Mordred, lá do Sir Turquine? Qui cabeça! Devemos a ele a vida dos dois. I também mi vida, homem, por causa de Sir Carados na Torre Dolorosa.

— Ele só fez isso por sua própria honra.

Gareth voltou-se para Mordred.

— Entre nós, você pode dizer o que quiser sobre Lancelot e Guenevere porque infelizmente é verdade, mas não consentirei que faça nenhuma troça. Quando cheguei na corte como pajem da cozi­nha, ele foi a única pessoa decente comigo. Não tinha a menor idéia de quem eu era, mas me dava gorjetas, me animava e me defendia de Kay, e foi ele que me sagrou cavaleiro. Todo mundo sabe que ja­mais fez nenhuma maldade na vida.

— Quando eu era um jovem cavaleiro — disse Gawaine —, Deus qui mi perdoe, mas mi metia em luta erradas i mi deixava le­var pela paixã... sim, i matei um cavaleiro depois qui ele si rendeu. I também matei u'a moça. Mas Lancelot nunca fez mal a quem era mais fraco qui ele.

Gaheris acrescentou:

— Ele protege os jovens cavaleiros e tenta ajudá-los a ganhar as esporas. Não entendo como pode ter raiva dele.

Mordred sacudiu os ombros, dando um piparote na manga do seu casaco, e fingiu bocejar.

— Quanto a Lancelot — observou —, Agravaine é que está atrás dele. Minha disputa é com o alegre monarca.

— Lancelot — declarou Agravaine — está acima de sua posição.

— Não está não — disse Gareth. — É o maior homem que conheço.

— Não tenho nenhuma paixão de escolar por ele.

Do outro lado da tapeçaria, uma porta rangeu nas dobradiças. O trinco estalou.

— Paz, Agravaine — insistiu suavemente Gawaine. — Veja o qui vai dizer.

— Não vou me calar.

A mão de Arthur levantou a cortina.

— Por favor, Mordred — sussurrou Gareth. O Rei entrou na sala.

— Afinal, é apenas certo — disse Mordred, levantando a voz para ser ouvido — que nossa Távola Redonda faça justiça.

Agravaine também, fingindo não notar que alguém tinha che­gado, acrescentou sua resposta em voz alta:

— É tempo que alguém diga a verdade.

— Mordred, fica quieto!

— E nada mais que a verdade! — concluiu o corcunda com uma espécie de triunfo.

Arthur, que viera pisando duro pelos corredores de pedra de seu palácio, com a mente fixa no trabalho que tinha pela frente, fi­cou parado na porta sem demonstrar surpresa. Os homens da divi­sa e do cardo, voltando-se para ele, viram o velho Rei no seu último minuto de glória. Ficaram um instante em silêncio e Gareth, com a dor do reconhecimento, o viu como era. Não um herói de roman­ce, mas um homem simples que tinha feito o melhor possível; não um líder da cavalaria, mas o pupilo que tentara ser fiel a seu mestre extravagante, o mago, pensando o tempo todo; não Arthur da Ingla­terra, mas um velho cavalheiro solitário que passara metade de sua vida portando a coroa nas garras do destino.

Gareth ajoelhou-se diante dele.

— Não temos nada com isso.

Gawaine, apoiando-se mais vagarosamente em um joelho, juntou-se a ele no chão.

— Senhor, vim tentando controlar mis irmãos, mas eles nã mi escutam. Nã quero ouvir o qui vã dizer.

Gaheris foi o último a se ajoelhar.

— Queremos sair antes que falem.

Arthur atravessou o salão e levantou Gawaine gentilmente.

— Claro que pode sair, meu caro, se desejar — disse. — Espero que isso não lhe traga problemas familiares.

Gawaine voltou-se sombrio para os demais.

— Será um problema — disse, envolvendo-se na velha linguagem da cavalaria como em um manto — que há de destruir a flor da cavalaria em todo o mundo; um dano causado à nossa nobre frater­nidade. E tudo por causa de dois infelizes cavaleiros.

Quando Gawaine saiu desdenhosamente da sala, empurrando Gareth à sua frente e seguido por Gaheris, o Rei caminhou para o trono em silêncio, com um gesto de imponência. Tirou duas almo­fadas do assento e colocou-as nos degraus.

— Bem, sobrinhos — disse calmamente —, sentem-se e me digam o que quiserem.

— Preferimos ficar em pé.

— Podem ficar à vontade, é claro.

Esse começo não convinha à política de Agravaine. Ele protestou.

— Ora, Mordred, vamos! Nenhum de nós está brigando com o Rei. Ninguém pensa nisso.

— Ficarei de pé.

Agravaine sentou-se humildemente em uma das almofadas.

— Prefere ficar com as duas almofadas?

— Não, obrigado, senhor.

O velho observou e esperou — como um homem que vai ser enforcado submete-se ao carrasco, mas que não ajudaria com o nó. Observou-os com uma ironia cansada, deixando o trabalho por conta deles.

— Talvez seja mais sensato — disse Agravaine, com relutância bem estudada — não dizer mais nada sobre isso.

— Talvez seja.

Mordred atacou a situação com violência.

— Isto é ridículo. Viemos dizer algo a nosso tio e é certo que devemos dizer-lhe.

— É desagradável.

— Neste caso, meus caros rapazes, se preferirem, não falemos mais desse assunto. As noites de primavera são belas demais para que nos preocupemos com coisas desagradáveis, portanto vocês não querem sair e fazer as pazes com Gawaine? Podiam pedir-lhe em­prestado aquele seu açor esperto para amanhã. A Rainha estava jus­tamente mencionando como gostaria de ter uma jovem lebre para o jantar.

Ele lutava por ela, talvez por todos eles. Mordred, olhos brilhantes fixos em seu pai, anunciou sem preâmbulo:

— Viemos dizer-lhe o que todas as pessoas nesta corte sem­pre souberam. A Rainha Guenevere é abertamente amante de Sir Lancelot.

O velho inclinou-se para ajeitar seu manto. Enrolou as pontas nos pés para mantê-los quentes, levantou-se e olhou os dois no rosto.

— Estão prontos para provar essa acusação?

— Estamos.

— Vocês sabem — perguntou gentilmente — que isso já foi feito antes?

— O contrário é que seria extraordinário.

— A última vez que rumores desse tipo circularam foram pro­vocados por uma pessoa chamada Sir Meliagrance. Como o assun­to não era suscetível de prova de outra maneira, a decisão foi deixa­da para um combate pessoal. Sir Meliagrance caluniou a Rainha de traição, e ofereceu lutar por sua opinião. Felizmente, Sir Lancelot foi gentil o suficiente para defender Sua Majestade. Vocês se lem­bram do resultado?

— Lembramos bem.

— Quando finalmente aconteceu ajusta, Sir Meliagrance caiu de costas no chão e insistiu em se render a Sir Lancelot. Foi impos­sível fazê-lo se levantar para lutar, até que Lancelot ofereceu tirar o elmo, o lado direito de sua armadura, e ter uma de suas mãos amarradas às costas. Sir Meliagrance aceitou a oferta e foi devida­mente decapitado.

— Sabemos disso tudo — exclamou o irmão mais novo, impa­ciente. — O combate pessoal não tem significado. De qualquer for­ma, não é boa justiça. São os sicários que ganham.

Arthur suspirou e cruzou as mãos. Continuou com a voz calma que não havia levantado.

— Você ainda é muito jovem, Mordred. Ainda terá que apren­der que todas as formas de fazer justiça são injustas. Se puder su­gerir outra forma de resolver assuntos duvidosos, salvo o combate pessoal, estou pronto para escutá-lo.

— Como Lancelot é mais forte que todos os demais, e sempre de­fende a Rainha, isso não quer dizer que a Rainha tenha sempre razão.

— Tenho certeza de que não. Mas veja, os pontos em dispu­ta devem ser resolvidos de alguma forma depois que são levanta­dos. Se uma acusação não pode ser provada, então ela deve ser re­solvida de outra forma, e quase todas essas formas são injustas para alguém. Não se trata de desafiar pessoalmente o campeão da Rai­nha, Mordred. Pode alegar enfermidade e contratar o homem mais forte que conheça para lutar por você, e a Rainha, é claro, vai procurar o homem mais forte que conheça para lutar por ela. Se­ria praticamente a mesma coisa se cada um de vocês contratasse o melhor argumentador que conhecessem para argumentar a seu fa­vor. Em última instância, geralmente é a pessoa mais rica que ga­nha, seja por contratar o argumentador mais persuasivo ou o me­lhor combatente, portanto, não adianta fingir que é simplesmente uma questão de força bruta.

— Não, Agravaine — prosseguiu ele, quando este fez um mo­vimento para falar. — Não me interrompa agora. Quero deixar cla­ro uma coisa sobre essas decisões por combate pessoal. Até onde percebo, é um assunto de riqueza: de riqueza, e pura sorte e, é claro, há a vontade de Deus. Quando as riquezas são iguais, podemos dizer que ganha o lado que tiver mais sorte, como se fosse uma disputa com moeda. Agora, vocês dois têm certeza, se acusarem a Rainha Guenevere de traição, de que o lado de vocês terá mais sorte?

Agravaine entrou na conversa com sua imitação de timidez. Tinha bebido com moderação e sua mão já não tremia.

 

Mas se isso acontecesse, um de seus ajudantes imediatamente o monta­ria em seu próprio cavalo — tal como hoje se faz com o caçador-chefe — porque essa era a lei feudal. No norte distante, sob o esmaecer do pôr-do-sol, poderia se perceber a luz da cabana de alguma bruxa ocupada...

 

— Se me desculpar, tio, o que ia dizer é o seguinte. Esperáva­mos resolver o assunto sem nenhum combate pessoal.

Arthur imediatamente levantou a cabeça.

— Vocês sabem muito bem que o julgamento por ordálio foi abolido — disse — e, para fazer isso por purgação, seria impossível achar o número necessário de pares para uma Rainha.

Agravaine sorriu.

— Não conhecemos muito as novas leis — disse suavemente —, mas pensamos que quando uma afirmação pudesse ser provada num desses seus novos tribunais, não se levantaria o caso de combate pessoal. É claro, podemos estar enganados.

— Julgamento por júri — observou Sir Mordred com insolên­cia —, não é assim que é chamado? Um tipo de espetáculo de feira.

Agravaine, exultante em sua mente fria, pensou: "Vítima de suas próprias invenções!".

O Rei tamborilou seus dedos no braço do trono. Eles estavam pressionando, atacando pelo flanco e o faziam recuar. Então disse lentamente:

— Vocês conhecem a lei muito bem.

— Por exemplo, tio, se Lancelot fosse realmente surpreendido na cama de Guenevere, diante de testemunhas, então não haveria necessidade de combate, não é certo?

— Se me desculpar por dizer isso, Agravaine, prefiro que se re­fira à sua tia por seu título, pelo menos diante de mim, mesmo em relação a este assunto.

— Tia Jenny — assinalou Mordred.

— Sim, acredito ter escutado Sir Lancelot chamá-la por esse nome.

— "Tia Jenny!" "Sir Lancelot!" "Se me desculpar por dizer isso!" E eles provavelmente estão se beijando agora mesmo.

— Ou você fala educadamente, Mordred, ou então se retira de minha sala.

— Tenho certeza de que ele não quer parecer arrogante, tio. É só que está revoltado com a desonra do bom nome do Rei. Quere­mos pedir justiça, e Mordred sente muito — bem — por sua Casa. Não é verdade, Mordred?

— Não me importo nada com minha Casa.

O Rei, cujo rosto ficava cada vez mais pálido, suspirou e man­teve sua paciência.

— Bem, Mordred — ele disse —, é melhor não nos perdermos em ninharias. Já não tenho resistência para grosserias. Você me diz que minha esposa é amante do meu melhor amigo, e aparentemen­te quer provar isso por demonstração, então vamos nos restringir a isso. Considero que sabe as implicações da acusação...

— Não, não sei.

— Tenho certeza de que Agravaine sabe, pelo menos. As impli­cações são estas. Se você insistir em provar isso no tribunal, em vez de apelar para uma Corte de Honra, o assunto irá prosseguir de acordo com as provas civis. Se provar sua acusação, o homem que salvou vocês dois de Sir Turquine terá a cabeça cortada, e minha es­posa, a quem amo muito, terá que ser queimada viva, por traição. Se você fracassar era provar seu caso, devo lhe avisar que banirei você, Mordred, o que o privará de qualquer esperança de sucessão, tal como é e, por sua vez, condenarei Agravaine à fogueira porque, ao fazer a acusação, estaria ele mesmo cometendo traição.

— Todo mundo sabe que podemos provar imediatamente nossa acusação.

— Muito bem, Agravaine: você é um advogado esperto e está determinado a usar a lei. Suponho que não adiante nada lembrar vocês que existe uma coisa chamada misericórdia?

— O tipo de misericórdia — perguntou Mordred — que colo­cava bebês à deriva, em barcos?

— Obrigado, Mordred. Estava me esquecendo.

— Não queremos misericórdia — disse Agravaine. — Quere­mos justiça.

Arthur apoiou os cotovelos nos joelhos e cobriu os olhos com os dedos. Permaneceu curvado por algum tempo, reunindo as forças do dever e da dignidade, e depois falou com a mão cobrindo a boca.

— Como vocês pretendem provar?

O homem corpulento era todo polidez.

— Se consentir ficar fora por uma noite, tio, podemos reunir um bando armado e capturar Lancelot no quarto da Rainha. Você deverá estar fora, ou lá ele não irá.

— Não acho realmente que possa preparar uma armadilha para minha própria esposa. Acho que é justo dizer que o ônus da prova está com vocês. Sim, acho que isso é justo. Tenho claramen­te o direito de me recusar a me tornar ... bem, uma espécie de cúmplice. Não faz parte do meu dever me ausentar de propósito para ajudá-los. Não, posso perfeitamente me recusar a fazer isso de coração aberto.

— Mas não pode se recusar para sempre a se ausentar. Não pode passar o resto da vida atado à Rainha, com o objetivo de manter Lancelot longe dela. E a caçada que estava programada para a próxima semana? Se não participar dela, estará deliberada­mente alterando seus planos para distorcer a justiça.

— Ninguém consegue distorcer a justiça, Agravaine.

— Então você irá à caçada, tio Arthur, e nós temos permissão para arrombar o quarto da Rainha se Lancelot estiver lá?

O júbilo em sua voz era tão indecente que até mesmo Mordred ficou enojado. O Rei levantou-se, apertando a roupa ao seu redor, como se quisesse aquecer-se.

— Nós iremos.

— E não irá avisá-los? — a voz do sujeito se atropelava com a excitação. —Não irá preveni-los depois de termos feito a acusação? Não seria justo?

— Justo? — ele perguntou.

O Rei olhou-os de uma distância imensa, parecendo pesar a verdade, a justiça, a maldade e os problemas dos homens.

— Têm a nossa permissão.

Seus olhos voltaram da distância, fixando-se neles como o bri­lho dos olhos de um falcão.

— Mas se puder lhes dizer uma coisa, Mordred e Agravaine, como pessoa privada, a única esperança que tenho agora é que Lan­celot mate os dois e todas as testemunhas — uma façanha que, es­tou orgulhoso em dizer, nunca está além dos poderes de meu Lan­celot. E devo acrescentar também que, como ministro da Justiça, se vocês falharem minimamente em provar essa acusação monstruosa, vou processá-los sem compaixão, com todo o rigor da lei que vocês mesmos puseram em movimento.

 

Lancelot sabia que o Rei fora caçar na Floresta Nova, portanto, tinha certeza de que a Rainha o mandaria chamar. Estava escu­ro em seu quarto, exceto por uma vela em frente ao quadro de um santo, e ele andava de um lado para o outro de roupão. Salvo pelo alegre roupão, e por uma espécie de turbante na cabeça, estava pronto para a cama, ou seja, estava nu.

Era um quarto sombrio, sem luxos. As paredes eram nuas e não havia nenhum dossel sobre a cama pequena e dura. As janelas não tinham vidro. Tinham uma espécie de tela de linho oleado esticada sobre elas. Grandes comandantes muitas vezes têm esses quartos de dormir simples, de campanha — dizem que o Duque de Wellington costumava dormir numa cama de campanha no Castelo Walmer —, sem móveis, exceto talvez uma cadeira ou um velho baú. O quarto de Lancelot tinha um desses, parecido com um caixão com cintas de metal. Fora isso e a cama, nada mais havia para ser visto — a não ser a enorme espada encostada na parede, com as correias penduradas atrás dela.

Havia um bacinete deixado em cima da arca. Depois de algum tempo, ele o pegou e o aproximou da vela, e lá ficou com a mesma expressão de espanto que teve o menino tanto tempo atrás — olhan­do seu reflexo no aço. Colocou-o de volta e recomeçou a andar.

Quando escutou a batida na porta, pensou que fosse o sinal. Es­tava pegando a espada e estendendo a mão para a maçaneta quando a porta abriu sozinha. Gareth entrou.

— Posso entrar?

— Gareth!

Olhou surpreso para ele, e depois disse sem entusiasmo:

— Entre. É bom ver você.

— Lancelot, vim preveni-lo.

Depois de olhar com atenção, o velho abriu um sorriso.

— Santo Deus! — disse. — Espero que não venha me prevenir de algo sério.

— Sim, é sério.

— Bem, entra e fecha a porta.

— Lancelot, é sobre a Rainha. Nem sei como começar.

— Então nem se importe com isso.

Pegou o jovem pelos ombros e começou a levá-lo de volta para a porta.

— Muito obrigado por vir me avisar — ele disse, apertando os om­bros —, mas não acho que você possa me contar nada que eu não saiba.

— Oh, Lancelot, você sabe que eu faria qualquer coisa para ajudá-lo. Não sei o que os outros dirão quando souberem que estive com você. Mas não podia deixar de vir.

— Qual é o problema?

Ele interrompeu seus movimentos e olhou novamente para o jovem.

— É Agravaine e Mordred. Eles odeiam você. Ou, pelo menos, Agravaine odeia. Tem ciúmes. Mordred odeia mais Arthur. Tentamos o máximo impedi-los, mas eles foram em frente. Gawaine diz que não quer ter nada com isso, por nenhum lado, e Gaheris nunca foi muito bom para decidir o que fazer. Então tive que vir eu mesmo. Tinha que vir, mesmo que seja contra meus próprios irmãos e o clã, porque devo tudo a você, e não podia deixar que acontecesse.

— Meu pobre Gareth! Em que estado você está!

— Eles foram até o Rei e lhe disseram de frente que você... que você vai para o quarto da Rainha. Tentamos impedi-los, e não ficamos para ouvir, mas foi isso que contaram.

Lancelot soltou o ombro. Deu duas passadas pelo quarto.

— Não se preocupe com isso — disse, voltando-se para o visi­tante. — Muitas pessoas disseram isso antes e não deu em nada. Isso passa.

— Não desta vez. Posso sentir isso dentro de mim.

— Bobagem.

— Não é bobagem, Lancelot. Eles o odeiam. Não vão tentar um combate desta vez, não depois de Meliagrance. São espertos demais. Vão preparar uma armadilha para você. Vão atacar você por trás.

Mas o veterano apenas sorriu e lhe deu uma palmadinha.

— Você está imaginando coisas — anunciou. — Vá para casa e para a cama, meu amigo, e esqueça tudo. Foi gentil de sua parte ter vindo, mas vá para casa, fique tranqüilo e tenha um bom sono. Se o Rei fosse criar confusão, jamais teria ido à caçada.

Gareth mordeu os dedos, criando ânimo para olhar direto no rosto de Lancelot. Finalmente disse:

— Por favor, não vá ao quarto da Rainha esta noite.

Lancelot ergueu uma de suas extraordinárias sobrancelhas, mas logo a abaixou.

— Por que não?

— Tenho certeza de que é uma armadilha. Tenho certeza de que o Rei saiu esta noite de propósito para que você vá até lá e en­tão Agravaine possa surpreendê-los.

— Arthur jamais faria uma coisa dessas.

— Ele fez.

— Bobagem. Conheço Arthur desde que você estava em cueiros e ele não faria isso.

— Mas é um risco!

— Se for um risco, vou gostar.

— Por favor!

Desta vez ele pôs a mão na nuca de Gareth e começou a levá-lo de verdade para a porta.

— Ora, meu querido pajem da cozinha, simplesmente escute. Em primeiro lugar, conheço Arthur; em segundo, conheço Agravai­ne. Você acha que devo ter medo dele?

— Mas traição...

— Gareth, uma vez, quando eu era jovem, uma dama passou por mim, correndo atrás de um falcão peregrino que havia se solta­do da linha. A parte da linha que se arrastava se enredou em uma ár­vore e o falcão ficou preso lá no alto. A dama me convenceu a subir na árvore e pegar seu pássaro. Nunca fui muito de subir em árvores. Quando cheguei no alto e libertei o falcão, apareceu o marido da dama com armadura completa e disse que ia cortar minha cabeça. Toda essa história do falcão era uma armadilha para me fazer tirar a armadura, para que eu ficasse à mercê dele. Eu estava na árvore só de camisa, sem ao menos uma adaga.

— Sim?

— Bem, eu o derrubei com um galho. E ele era um homem muito melhor que Agravaine, mesmo que tenhamos ficado um pou­co reumáticos desde aqueles belos dias.

— Eu sei que você pode lidar com Agravaine. Mas suponha que ele o ataque com um bando armado?

— Ela não vai fazer isso.

— Vai sim.

Alguém arranhou a porta, um tamborilar gentil.  Um rato podia ter feito o barulho, mas os olhos de Lancelot ficaram vagos.

— Bem, se ele fizer, terei que lutar contra o bando — disse abruptamente. — Mas é uma situação imaginária.

— Você não pode deixar de ir esta noite?

Tinham alcançado a porta e o capitão do Rei falou com decisão.

— Olha — disse —, se quer saber, a Rainha mandou me cha­mar. Não posso recusar uma vez que fui chamado, não é?

— Então, minha traição aos Antigos será inútil?

— Não inútil. Quem quer que saiba o amará por isso. Mas po­demos confiar em Arthur.

— E você irá a despeito de tudo?

— Sim, pajem da cozinha, e vou neste instante. Deus do céu, não faça esse olhar tão trágico. Deixe por conta deste patife expe­riente e corra para a cama.

— Isso significa adeus.

— Bobagem, isso quer dizer boa-noite. E, além do mais, a Rai­nha está esperando.

O velho jogou o manto por cima do ombro, tão facilmente quanto se ainda estivesse no frescor da juventude. Levantou o trin­co e ficou parado na porta, pensando no que tinha esquecido.

— Se eu pudesse deter você!

— Ah!, não pode.

Entrou na escuridão do corredor, tirou o assunto de sua mente e desapareceu. O que ele esqueceu foi sua espada.

 

Guenevere esperou Lancelot sob a luz de velas, em seu esplêndido quarto de dormir, escovando seus cabelos grisa­lhos. Parecia singularmente adorável, não como uma estrela de cinema, mas como uma mulher que ganhara uma alma. Cantava consigo mesma. Era um hino — entre todas as coisas —, o belo Veni, Sante Spiritus, que se supõe ter sido escrito por um papa.

As chamas das velas, levantando-se serenas ao ar noturno, re­fletiam-se nos lioncelos dourados que guarneciam o azul profundo do dossel da cama. Os pentes e escovas brilhavam com ornamentos feitos de massa. Uma grande arca de latão polido tinha santos e an­jos esmaltados nos painéis. As cortinas brocadas brilhavam nas pa­redes em pregas suaves, e, no assoalho, havia uma tapeçaria genuína, um luxo exagerado e repreensível. Isso fazia as pessoas se intimida­rem quando caminhavam por cima, já que tapeçarias não eram des­tinadas aos assoalhos. Arthur costumava passar de lado.

Guenevere cantava e escovava os cabelos, sua voz baixa combi­nando com a imobilidade das chamas, quando a porta se abriu suavemente. O comandante-em- chefe deixou seu manto na arca e atra­vessou o quarto para ficar atrás dela. Ela o viu pelo espelho, sem surpresa.

— Posso fazer isso por você?

— Se quiser.

Ele pegou a escova e começou a passá-la pela avalanche de pra­ta com dedos ágeis pela prática, enquanto a Rainha fechava os olhos. Depois de algum tempo ele falou.

— É como... Nem sei o quê. Não como seda. Parece mais água caindo, só que há algo nublado neles. As nuvens são feitas de água, não é? É um orvalho tênue, ou o mar no inverno, ou uma cachoei­ra, ou um monte de feno na geada? Sim, é um monte de feno, pro­fundo, suave e cheiroso.

— É um aborrecimento — disse ela.

— É o mar em que nasci — ele disse solene. A Rainha abriu os olhos e perguntou:

— Você chegou em segurança?

— Ninguém me viu.

— Arthur disse que voltava amanhã.

— Foi? Olha aqui um cabelo branco.

— Arranque-o.

— Pobre fio de cabelo — disse ele. — É bem fino. Porque seu cabelo é tão bonito, Jenny? Eu teria que trançar uns seis deles juntos para que ficasse grosso como um dos meus. Devo puxar?

— Sim, puxe.

— Doeu?

— Não.

— E por que não? Quando eu era criança, costumava puxar os cabelos das minhas irmãs, e elas os meus, e doía furiosamente. Será que perdemos nossas faculdades quando envelhecemos, para não sentiremos mais nossas dores e alegrias?

— Não — ela explicou. — É porque você puxou só um fio.

Quando se arranca um cacho inteiro, então dói. Olhe.

Ele abaixou a cabeça para que ela a alcançasse, e ela, se estican­do para trás com um braço branco, girou um cacho em seus dedos. E puxou até ele fazer uma careta.

— Sim, ainda dói. Que alívio!

— Era assim que suas irmãs puxavam?

— Sim, mas eu puxava os cabelos delas com muito mais força. Sempre que eu me aproximava de uma delas, escondiam as trancas com as duas mãos e me olhavam fixamente.

Ela riu.

— Ainda bem que eu não era uma de suas irmãs.

— Oh, mas eu jamais puxaria os seus cabelos. Eles são bonitos demais. Eu ia querer fazer outras coisas com eles.

— O que você faria?

— Eu teria... bem, acho que me enroscaria dentro deles como um ratinho e iria dormir. É isso que eu gostaria de fazer agora.

— Não até terminar.

— Jenny — ele perguntou de repente —, você acha que isto vai durar?

— O que quer dizer?

— Gareth veio me ver há pouco. Ele queria me avisar que Ar­thur tinha saído de propósito para que se armasse uma armadilha, e que Agravaine e Mordred viriam nos agarrar.

— Arthur jamais faria uma coisa dessas.

— Foi isso que eu disse.

— A menos que fosse obrigado — ela refletiu.

— Não sei como poderiam fazer isso. Ela saiu pela tangente.

— Foi bonito Gareth ir contra os irmãos.

Sabe, acho que ele é uma das melhores pessoas da corte. Gawaine é decente, mas tem o pavio curto e não perdoa.

— É leal.

— Sim, Arthur costumava dizer que para alguém que não fos­se das Órcades, eles pareceriam assustadores; mas se você fosse um deles, era um homem de sorte. Eles brigam como gatos, mas real­mente adoram uns aos outros. E um clã.

A tangente da Rainha, de alguma maneira, colocara-a nova­mente de volta ao círculo.

— Lance — ela perguntou espantada —, você acha que eles podem ter forçado a mão com o Rei?

— Como assim?

— Arthur tem um terrível senso de justiça.

— Sei disso.

— Houve aquela conversa semana passada. Acho que ele ten­tava nos avisar. Ouça! Você escutou alguma coisa?

— Não.

— Pensei ter escutado alguém à porta.

— Vou ver.

Ele foi até a porta e a abriu, mas não havia ninguém lá.

— Um falso alarme.

— Então tranque-a.

Ele deslizou a trave de madeira pela porta — uma enorme bar­ra de quinze centímetros de espessura, que correu por uma ranhu­ra escavada na parede. Voltando para perto do castiçal, começou a separar os cabelos brilhantes em partes adequadas para começar agilmente a trançá-los.

— É bobagem ficar nervosa — ele observou.

Ela ainda estava especulando, entretanto, e respondeu com uma pergunta.

— Você se lembra de Tristão e Isolda?

— Claro que sim.

— Tristão dormia com a esposa do Rei Mark, e o Rei o assas­sinou por causa disso.

— Tristão era um estúpido.

— Eu o achava um bom sujeito.

— Isso é o que ele queria que você achasse. Mas era um cava­leiro da Cornualha, como o resto deles.

— Diziam que era o segundo melhor cavaleiro do mundo. Sir Lancelot, Sir Tristão, Sir Lamorak...

— Isso era falatório.

— Por que você acha que ele era estúpido?

— Bem, é uma longa história. Você não se lembra o que era a cavalaria antes que seu Arthur começasse a Távola Redonda, então nem sabe com que gênio se casou. Não sabe a diferença que existe entre Tristão e, bem, Gareth, por exemplo.

— Qual a diferença?

— Nos velhos tempos, era cada cavaleiro por si. Os velhos per­sonagens, gente como Sir Bruce Saunce Pite, eram piratas. Sabiam que, dentro da armadura, eram invencíveis, e faziam o que queriam. Era assassinato aberto e lascívia descarada. Quando Arthur chegou ao trono, eles ficaram furiosos. Você sabe, Arthur acreditava no Cer­to e no Errado.

— E ainda acredita.

— Felizmente também tinha um caráter tenaz como essa idéia que lhe ocorreu. Levou cinco anos para conseguir pô-la de pé, mas era a idéia de que as pessoas deviam ser gentis. Eu devo ter sido um dos primeiros cavaleiros a captar dele a idéia da gentileza, e a captei jovem, e isso passou a fazer parte de mim. Todo mundo vive dizen­do como sou um cavaleiro perfeito e gentil, mas isso não tem nada a ver comigo. É idéia de Arthur. Foi ele quem desejou que a gera­ção mais jovem fosse assim, como Gareth, e agora virou moda. Isso levou à busca do Graal.

— E por que Tristão era estúpido?

— Bem, ele era. Arthur diz que era um bufão. Vivia na Cor­nualha, nunca tinha sido educado por Arthur, mas ouviu falar da moda. Meteu na cabeça uma idéia embaralhada de que os cavaleiros deviam ser gentis, e ficava sempre correndo para estar na moda, sem realmente entender ou sentir isso dentro dele. Era uma espécie de imitador. Por dentro, não era nem um pouco gentil. Tratava mal a mulher, estava sempre provocando o velho Sir Palomides porque era negro, e tratou o Rei Mark da maneira mais vergonhosa. Os ca­valeiros da Cornualha são Antigos e, no fundo, sempre foram hos­tis à idéia de Arthur, mesmo que a tenham adotado em parte.

— Como Agravaine.

— Sim. A mãe de Agravaine era da Cornualha. A razão pela qual Agravaine me odeia é que eu defendo a idéia. É engraçado, mas todos os três de nós que as pessoas comuns diziam ser os três me­lhores cavaleiros — quero dizer Lamorak, Tristão e eu — foram odiados pelos Antigos. Eles ficaram felizes quando Tristão foi assas­sinado por ter copiado a idéia e, é claro, foi a família de Gawaine que matou Sir Lamorak à traição.

— Eu acho — disse ela — que a razão pela qual Agravaine odeia você é a velha história das uvas verdes. Não acho que se im­porte nem um pouco com a idéia mas, por sua natureza, inveja qual­quer um que seja melhor combatente que ele. Detestava Tristão por causa da surra que levou dele a caminho de Joyous Gard, e ajudou a matar Lamorak porque o rapaz o derrotou nas Justas do Priorado, e — quantas vezes você o derrubou?

— Nem me lembro.

— Lance, você percebe que as duas outras pessoas que ele odiava estão mortas?

— Todos morrem, cedo ou tarde.

De repente, a Rainha soltou suas trancas do dedo dele. Ela ti­nha se virado na cadeira e, com uma mão segurando a trança, olha­va-o com os olhos redondos.

— Acredito que é verdade o que Gareth disse! Acredito que es­tão vindo nos surpreender esta noite!

Ela pulou da cadeira e começou a empurrá-lo para a porta.

— Vá embora. Vá embora enquanto é tempo.

— Mas, Jenny...

— Não, sem nenhum mais, eu sei que é verdade. Posso sentir isso. Aqui está seu manto. Oh, Lance, por favor, saia rápido. Eles es­faquearam Sir Lamorak pelas costas.

— Ora, Jenny, não se excite com miragens. É só sua imagina­ção...

— Não é minha imaginação. Escuta. Escuta.

— Não ouço nada.

— Olha para a porta.

A maçaneta que levantava o trinco da porta, uma peça de ferro batido, moldada como uma ferradura, movia-se suavemente para a esquerda. Mexia como um caranguejo, incerta.

— O que é que há com a porta?

— Olha a maçaneta!

Ficaram olhando fascinados, enquanto a maçaneta se mexia ce­gamente, em saltos, uma exploração cuidadosa, hesitante.

— Oh, Deus — ela sussurrou. — Agora é tarde demais!

A maçaneta voltou para seu lugar e ouviu-se uma batida alta de ferro contra a madeira da porta. Era uma boa porta de tábuas du­plas, uma com o veio correndo verticalmente e a outra na horizon­tal, e estava sendo atacada do outro lado com uma manopla. A voz de Agravaine, ecoando na caverna de seu elmo, gritou:

— Abram a porta em nome do Rei!

— Estamos perdidos — disse ela.

— Cavaleiro traidor — gritou a voz relinchante, enquanto a madeira tremia sob o metal. — Sir Lancelot, agora o agarramos.

Muitas outras vozes se juntaram à balburdia. Muitas outras ar­maduras, agora que já não havia necessidade de precaução, subiam barulhentas pela escada de pedra.

Lancelot resvalou, de forma inconsciente também, para a lin­guagem da cavalaria.

— Há de existir alguma armadura na câmara — perguntou — com que eu possa cobrir meu corpo?

— Não há nada. Nem mesmo uma espada.

Ele ficou parado, olhando a porta com uma expressão intrigada, séria, e as vozes eram como as de uma matilha de cães.

— Oh, Lancelot — disse ela —, não há nada com que lutar, e você está quase despido. Eles estão armados e são muitos. Você vai ser morto e eu serei queimada, e nosso amor chegou a um amargo fim.

Ele estava irritado por não poder resolver o problema.

— Se pelo menos tivesse minha armadura — disse, com irritação. — É ridículo ser agarrado como um rato na ratoeira.

Olhou em volta do quarto, maldizendo-se por ter esquecido sua arma.

— Cavaleiro traidor — estrondou a voz —, saia da câmara da Rainha!

Outra voz, musical e controlada, gritou com prazer.

— Fiquem sabendo que temos aqui catorze homens armados, e não podem escapar.

Era Mordred, e as batidas ficavam cada vez mais altas.

— Bem, malditos sejam, então — ele disse. — Não podemos continuar com esse barulho. Tenho que ir ou acordarão todo o castelo.

Ele voltou-se para a Rainha e a tomou nos braços.

— Jenny, vou chamar você de minha nobilíssima Rainha cristã. Você será forte?

— Meu querido.

— Minha adorada Jenny. Vamos nos beijar. Ouça, você sempre foi minha dama especial, e nunca falhamos antes. Não se assuste desta vez. Se me matarem, lembre-se de Sir Bors. Todos meus irmãos e sobrinhos virão para cuidar de você. Envie uma mensagem para Bors ou Demaris e, se for necessário, eles a resgatarão. Eles a levarão a salvo para Joyous Gard, e lá poderá viver em minhas próprias terras, como a Rainha que é. Você compreende?

— Se você for morto, não vou querer ser resgatada.

— Vai sim — ele disse com firmeza. — É importante que alguém fique vivo para contar nossa história de forma decente. Essa é a tarefa difícil que cabe a você. Além disso, quero que reze.

— Não. As orações deverão ser feitas por outra pessoa. Se matarem você, poderão me queimar. E enfrentarei minha morte com a humildade de uma rainha cristã.

Ele a beijou carinhosamente e a colocou na cadeira.

— Tarde demais para discutir — disse ele. — Sei que você será sempre Jenny seja lá o que aconteça, e eu devo então ser Lancelot.

Depois, ainda olhando preocupado pelo quarto, acrescentou distraidamente:

— Não me importo que tenham me atacado, mas fizeram mal ao envolver você nisso.

Ela o observou, tentando não chorar.

— Eu daria meu pé para ter uma pequena armadura, ou só uma espada, para que pudesse lhes deixar uma recordação — ele disse.

— Lance, se me matarem e você for salvo, eu ficarei feliz.

— E eu extremamente infeliz — respondeu, vendo-se subitamente tomado de bom humor. — Bem, bem, vamos fazer o melhor possível. Que me importam meus velhos ossos, acho que vou me divertir bastante!

Ele colocou as velas no parapeito da arca de Limoges, de forma uqe estivessem atrás de si quando ele abrisse a porta. Pegou seu manto negro e o dobrou cuidadosamente em quatro no sentido do comprimento, depois do que envolveu sua mão e antebraço esquerdo como proteção. Pegou o escabelo do lado da cama e o balançou na sua mão direita, e deu uma última olhada no quarto. Todo esse tempo o barulho ficava cada vez mais alto lá fora, e dois homens estavam claramente tentando arrombar a porta com seus machados de combate, tentativa que estava sendo frustrada pelos veios cruzados da porta dupla. Ele foi até a porta e levantou a voz, com o que ime­diatamente se fez silêncio.

— Leais senhores — disse —, parem com o barulho e a confu­são. Abrirei esta porta, e então poderão fazer comigo o que quiserem.

— Então saia — gritaram confusamente. — Faça isso. Não adianta lutar contra nós. Deixe-nos entrar na câmara. Salvaremos sua vida se se entregar ao Rei Arthur.

Ele encostou o ombro contra a porta que saltava e silenciosa­mente empurrou a tranca para a parede. Depois, ainda mantendo a porta firme com seu ombro — as pessoas do lado de fora tinham pa­rado com as machadadas, sentindo que algo iria acontecer —, apoiou firmemente o pé direito no chão, a cerca de meio metro do batente da porta, e deixou-a girar e abrir. Com um salto, a porta pa­rou ao bater em seu pé, deixando uma abertura estreita de forma que ficou mais entreaberta que escancarada, e um único cavaleiro com armadura completa se esgueirou pela abertura como se fosse uma marionete. Lancelot bateu a porta atrás de si, deslizou a tran­ca, agarrou a espada da figura pelo punho com sua mão protegida, puxou-o para a frente e deu-lhe uma rasteira, ao mesmo tempo que lhe dava um tremendo golpe com o escabelo enquanto o cavaleiro caía, e num átimo estava sentado sobre seu peito — tão ágil como sempre. Tudo foi feito com calma e à vontade, como se o homem armado é que fosse impotente. Aquela grande torre que entrara no quarto com a altura e a largura de uma armadura, e que ficava um segundo procurando o adversário pela fenda do elmo, esse homem dava, agora, a impressão de docilidade — parecia ter entrado e en­tregue sua espada para Lancelot e se jogado, ele mesmo, no chão. Agora, o vulto de ferro estava deitado, obediente como nunca, en­quanto o homem descalço enfiava a própria espada do homem dei­tado pela abertura de ventilação do elmo. O cavaleiro estremeceu um pouco em protesto enquanto Lancelot pressionava com ambas as mãos o punho da espada.

Lancelot levantou-se, esfregando as mãos no roupão.

— Sinto ter tido que matá-lo. Abriu o visor e olhou:

— Agravaine das Órcades!

A confusão lá fora tornou-se terrível, com marteladas, macha­dadas e maldições, enquanto Lancelot virou-se para a Rainha.

— Ajude-me com a armadura — disse rapidamente.

Ela aproximou-se imediatamente, sem repugnância, e os dois ajoelharam-se ao lado do corpo, retirando as peças vitais.

— Escute — ele disse, enquanto trabalhavam. — Isto nos dá uma boa chance. Se eu conseguir expulsá-los, voltarei para buscar você, e iremos os dois para Joyous Gard.

— Não, Lance. Já fizemos mal demais. Se conseguir lutar e sair, deve ficar longe daqui até tudo acabar. Eu ficarei aqui. Se Arthur me perdoar, e se tudo for abafado, então você volta mais tarde. Se ele não me perdoar, pode vir me resgatar. Aonde vai esta peça?

— Passe para mim.

— Aqui está a outra.

— Seria muito melhor se viesse — ele pressionou, lutando para entrar na cota de malhas como um jogador de rúgbi se enfiando no uniforme.

— Não. Se eu for, tudo se romperá para sempre. Se eu ficar, talvez possamos arranjar as coisas. E você sempre pode me resgatar se for necessário.

— Não gosto de deixar você aqui.

— Se eu for condenada e você me resgatar, prometo que irei com você para Joyous Gard.

— E se não?

— Limpe o elmo com sua capa — disse ela. — Se não, então você poderá voltar mais tarde e tudo será como antes.

— Muito bem. Pronto. Posso dispensar o resto.

Ele se endireitou, segurando a espada ensangüentada, e olhou para o morto que havia assassinado a própria mãe.

— O irmão de Gareth — disse pensativamente. — Talvez estives­se bêbado. Que Deus o guarde, embora pareça absurdo dizer isso.

A velha dama fez com que olhasse as velas.

— Isso significa adeus — ela sussurrou —, por algum tempo.

— Significa adeus.

— Dá-me um beijo? — pediu ela.

Ele beijou sua mão, pois estava armado, sujo de sangue e coberto de metal. Os dois pensaram simultaneamente nos treze homens lá fora.

— Gostaria que levasse algo meu, Lance, e me deixasse alguma coisa sua. Vamos trocar os anéis.

Um deu o anel ao outro.

— Deus esteja com meu anel — ela disse —, tal como eu estou.

Lancelot voltou-se e foi até a porta. Estavam gritando de fora:

— Saia da câmara da Rainha!

— Traidor do Rei!

— Abra a porta!

Faziam o máximo de barulho que podiam para aumentar o escândalo. Ele ficou de pernas abertas diante do tumulto, e res­pondeu-lhes na linguagem da honra.

— Parai o barulho, Sir Mordred, e aceitai meu conselho. Saiam todos para longe da porta desta câmara, e não façam essa confusão e as ofensas que estão insinuando. E se partirem e não fizerem mais barulho, amanhã comparecerei diante do Rei. E então se verá quem de vocês, ou então se todos vocês, me acusarão de traição. E lá vos responderei como deve responder um cavaleiro, que aqui vim sem nenhuma má intenção, e hei de provar isso lá e mostrar a vocês com minhas próprias mãos.

— Devias ter vergonha, traidor — gritou a voz de Mordred. — Vamos agarrar-vos apesar da sua destreza, e vos mataremos se for do nosso agrado.

Outra voz gritou:

— Ficai sabendo que o Rei Arthur nos deu a escolha de vos matar ou deixar-vos vivo.

Lancelot abaixou o visor sobre o rosto sombrio e empurrou a tranca com a ponta da espada. A sólida madeira, abrindo ruidosa­mente, mostrou o lintel apinhado de homens armados e agitando archotes.

— Ah, senhores — disse sombriamente —, é só isso que dese­jam? Então, cuidem-se.

 

O clã de Gawaine esperava no Salão de Justiça, uma semana mais tarde. O salão parecia diferente à luz do dia, porque as janelas estavam descobertas. Já não era uma caixa, não tinha mais a suavidade levemente ameaçadora ou enganadora das quatro pare­des, não era mais o tipo de ratoeira de tapetes que tentava o espadim de Hamlet a sair desentocando ratos. A luz da tarde jorrava pe­los caixilhos das janelas, iluminando a tapeçaria de Betsabé, sentada com dois seios redondos numa banheira nas muralhas de um caste­lo que parecia ter sido construído com tijolos de brinquedo — fa­zendo Davi se sobressair no teto ao lado, com coroa, barba e uma harpa —, ondulando em cima de uma centena de cavalos, lanças pa­ralelas, elmos e armaduras, que enchiam a cena da batalha na qual Urias foi morto. O próprio Urias caía de seu cavalo, parecendo um mergulhador sem experiência, sob a influência de um golpe que um dos cavaleiros inimigos desfechara na região da sua cintura. A espa­da estava atravessada no meio de seu corpo, de modo que o pobre homem parecia cortado em duas peças, e uma quantidade de vermes em vermelhão brotava da ferida de modo espantoso, os quais se su­punha serem suas tripas.

Gawaine estava sentado, deprimido, em um dos bancos laterais, colocado ali para os suplicantes, com os braços cruzados e a cabeça contra a tapeçaria. Gaheris, empoleirado na mesa comprida, remexia os laços de um capuz de couro para falcões. Estava tentando modifi­cá-los para que fechassem com mais firmeza, e como o entrelaça­mento desses cordões era bastante complicado, estava completamen­te perdido. Gareth estava de pé ao seu lado, doido para pegar o capuz com as próprias mãos, pois tinha certeza de poder fazer o serviço. Mordred, com o rosto lívido e o braço numa tipóia, estava encosta­do no vão de uma das janelas, olhando para fora. Ainda sentia dores.

— Deve passar por baixo da fenda — disse Gareth.

— Eu sei, eu sei. Mas estou tentando passar primeiro este.

— Deixe-me tentar.

— Só um instante. Está passando. Mordred disse, da janela:

— O carrasco está pronto para começar.

— Oh.

— Será uma morte cruel — disse ele. — Estão usando madei­ra curada, e não vai haver fumaça, ela vai queimar antes de sufocar.

— É o qui v'cê pensa — observou Gawaine, taciturno.

— Pobre velha — disse Mordred. — Quase dá para sentir pena dela.

Gareth voltou-se furioso para ele.

— Você devia ter pensado nisso antes.

— Agora o laço de cima — disse Gaheris.

— Acredito — continuou Mordred, no que era quase um solilóquio — que nosso Suserano deve assistir à execução desta janela.

Gareth perdeu completamente a paciência.

— Será que não pode fechar a matraca um minuto? Dá para pensar que você gosta de ver pessoas sendo queimadas.

Mordred respondeu com desdém.

Você também, na verdade. Só que não acha bonito dizer isso. Vão queimá-la de camisão.

— Pelo amor de Deus, cale-se!

Gaheris disse, no seu jeito lento:

— Acho que você não precisa se preocupar.

Num instante Mordred estava diante dele.

— O que quer dizer com isso, que ele não precisa se preocupar?

— Com certeza nã precisa si preocupar — disse Gawaine, raivoso. — Acha qui Lancelot nã virá resgatá-la? Ele nã é ne­nhum covarde, seja lá o que for.

Mordred pensava rapidamente. Sua pose quieta na janela dera lugar à excitação e ao nervosismo.

— Se ele tentar resgatá-la, haverá luta. O Rei Arthur terá que lutar contra ele.

— O Rei Arthur vai observar daqui.

— Mas isso é monstruoso! — ele explodiu. — Quer dizer que Lancelot vai poder escapar com a Rainha debaixo dos nossos narizes?

— É exatamente o que vai acontecer.

— Mas ninguém vai ser punido!

— Deus do céu, homem — gritou Gareth. — Você quer ver a mulher queimar?

— Sim, eu quero.  Sim, eu quero. Gawaine, você vai ficar sentado aí e deixar isso acontecer depois que seu próprio irmão foi morto?

— Eu avisei Agravaine.

— Seus covardes! Gareth! Gaheris! Façam com que Gawaine tome alguma atitude! Não podem deixar isso acontecer. Lancelot assassinou Agravaine, o irmão de vocês.

— Até onde compreendi a história, Mordred, Agravaine foi com outros treze cavaleiros, bem armados, tentar matar Lancelot quando ele estava só de roupão. O desfecho foi que Agravaine foi morto, com os outros treze cavaleiros — menos um, que fugiu.

— Eu não fugi.

— Você sobreviveu, Mordred.

— Gawaine, juro que não fugi. Lutei contra ele quanto pude. Mas ele quebrou meu braço e eu não pude fazer mais nada. Por mi­nha honra, Gawaine, tentei lutar.

Ele estava quase chorando.

— Não sou um covarde.

— Se você não fugiu — perguntou Gaheris —, como é que Lan­celot deixou você ir embora depois de matar todos os outros? Era in­teresse dele matar todos vocês, para que não houvesse testemunhas.

— Ele quebrou meu braço.

— Sim, mas não matou você.

Com a dor do braço, e com a raiva, o homem começou a chorar como uma criança.

— Seus traidores! É sempre assim. Porque não sou forte, vo­cês se juntam contra mim. Vocês defendem os idiotas musculosos e não acreditam no que digo. Agravaine está morto e sendo velado, e vocês não vão punir ninguém por isso. Traidores, traidores! E vão ser sempre assim!

Ele parou quando o Rei entrou. Arthur, parecendo cansado, caminhou vagarosamente até o trono e sentou-se ali. Acenou para que eles voltassem a seus lugares. Gawaine desabou no banco de onde se levantara, enquanto Gareth e Gaheris permaneceram de pé, observando o Rei com olhares de piedade, e os soluços de Mor­dred como pano de fundo.

Arthur apertou a testa com a mão.

— Por que Mordred está chorando? — perguntou.

— El'estava tentanto explicar — disse Qawaine — como Lan­celot matou treze cavaleiros mas resolveu, di repente, qui nã mata­ria nosso Mordred. Parece qui havia algum afeto intre eles.

— Acho que posso explicar. Vejam, dez dias atrás pedi a Sir Lancelot que não matasse meu filho.

Mordred disse amargurado:

— Obrigado por nada.

Não tem que me agradecer, Mordred. Lancelot é que seria a pessoa certa a quem agradecer.

— Preferia que ele tivesse me matado.

— Estou contente por ele não ter feito isso. Tente ter um pou­co de compaixão, meu filho. Lembre-se de que sou seu pai. Logo não me sobrará mais família, salvo você.

— Queria não ter nascido.

— Eu também, meu pobre rapaz. Mas você nasceu, e agora temos que fazer o melhor possível.

Mordred foi até ele, apressado, com uma espécie de dissimula­ção acanhada.

— Pai — disse —, sabe que Lancelot pretende vir resgatá-la?

— Estou esperando isso.

— E colocou cavaleiros para detê-lo? Providenciou uma guar­da forte?

— A guarda é tão forte quando deve ser, Mordred. Tentei ser justo.

— Pai — disse ele, ansioso —, mande Gawaine e esses dois para reforçá-la. Ele virá com toda força.

— Bem, Gawaine? — perguntou o Rei.

— 'Brigado, tio. Preferia qui nã pedisse.

— Tenho que perguntar, Gawaine, por justiça para com a guar­da que já está lá. Veja, não seria justo deixar uma guarda fraca se penso que Lancelot está vindo, pois seria traição aos meus próprios homens. Seria sacrificá-los.

— Quer mi peça ou nã, com todo respeito por Vossa Majesta­de, nã irei. Avisei aqueles dois desde o começo qui nã ia mi meter nisso. Nã quero ver a Rainha Guenevere queimada, i posso dizer qui espero que nã seja, i nã vou ajudar nisso. É o qui digo.

— Isso soa como traição.

— Pode ser traição, mas tenho mi afeiçã pela Rainha.

— Eu também tenho afeição por ela, Gawaine. Fui eu quem me casei com ela. Mas quando se levanta uma questão de justiça pú­blica, os sentimentos das pessoas têm que ser deixados de lado.

— Nã sei deixar mis sentimentos di lado. O Rei voltou-se para os demais.

— Gareth? Gaheris? Vão me fazer o favor de colocar a arma­dura e reforçar a guarda?

— Tio, por favor, não nos peça isso.

— Não tenho nenhum prazer nisso, Gareth.

— Sei que não tem, mas por favor, não nos force. Lancelot é meu amigo, como poderia lutar contra ele?

O Rei tocou sua mão.

— Lancelot esperaria que você fosse, meu caro, seja contra quem fosse. Ele também acredita na justiça.

— Tio, não posso lutar contra ele. Ele me sagrou cavaleiro. Irei se for seu desejo, mas vou sem armadura. Receio que seja também traição da minha parte.

— Estou pronto para ir de armadura — disse Mordred —, mesmo com o braço quebrado.

Gawaine observou sarcasticamente:

— Será bem seguro pra v'cê, menino. O Rei já fez Lancelot prometer nã machucá-lo.

— Traidor!

— E Gaheris? — perguntou o Rei.

— Vou com Gareth, desarmado.

— Bem, suponho que é o melhor que podemos fazer. Espero ter tentado cumprir meu dever.

Gawaine levantou-se do banco e se arrastou, com simpatia desajeitada, em direção ao Rei.

— Fez mais do qui si podia esperar di u'a pessoa — ele disse, calorosamente, segurando a mão cheia de veias em sua mãozorra —, i agora tem qui olhar pra frente i esperar o melhor. Deixa mis ir­mãos irem desarmados. Ele nã fará mal a eles, si puder ver seus ros­tos. Eu ficarei com você.

— Então sigam.

Devo dizer ao carrasco que comece?

Sim, se é seu dever, Mordred. Entregue a ele meu anel e pe­gue a sentença com Sir Bedivere.

— Obrigado, pai. Obrigado. Não demoro mais que um minuto. O rosto pálido, queimando de entusiasmo e, por um momento, com uma gratidão estranhamente genuína, saiu apressado da sala. Com os olhos acesos e um tique nervoso na boca, seguiu os irmãos, que foram unir-se à guarda. O velho Rei, deixado para trás com Gawaine, afundou a cabeça nas mãos.

— Ele podia ter feito isso com um pouco mais de decência. Podia ter tentado mostrar que não estava tão contente.

Gawaine pôs as mãos nos ombros caídos.

— Nã tema, tio — disse. — Tudo vai terminar bem. Lancelot vai resgatá-la a tempo i sem danos.

— Tentei cumprir meu dever.

— Merece toda admiraçã.

— Condenei-a porque a lei mandava condená-la. Fiz o melhor que pude para que a sentença seja executada.

— Mas nã vai ser. Lancelot virá salvá-la.

— Gawaine, não pense que tento permitir que ela seja salva. Eu sou a Justiça da Inglaterra, e agora é nosso dever queimá-la até a morte, sem remorso.

— Sim, tio, i todo mundo sabe o tanto qui se esforçou. Mas isso nã altera a verdade, qui no fundo do nosso coraçã queremos qui eia si salve.

— Oh, Gawaine — ele disse. — Estou casado com ela há tantos anos. O outro virou as costas e foi até a janela.

— Nã si preocupe. A questã vai si endireitar.

— O que é certo? — gritou o velho, olhando para ele com o ros­to do desespero. — O que é errado? Se Lancelot vier resgatá-la, pode matar esses inocentes que estão na guarda para garantir que ela seja queimada. Eles confiaram em mim, e tive que colocá-los lá para man­ter Lancelot longe, pois essa é a justiça. Se ele a salvar, eles serão mor­tos. Se eles não forem mortos, ela será queimada. E arderá até a mor­te, Gawaine, no meio de chamas horríveis — a minha adorada Gwen.

— Nã pense nisso, tio. Nã vai acontecer. Mas o Rei estava fraquejando.

— Então, por que ele não vem logo? Por que esperar tanto tempo? Gawaine respondeu com calma:

— Ele tem qui esperar até qui ela esteja em campo aberto, na praça, pois de outro jeito teria qui tomar di assalto o castelo.

— Eu tentei avisá-los, Gawaine. Tentei avisá-los alguns dias antes de eles serem surpreendidos. Mas é difícil dizer essas coisas em palavras simples, sem ferir os sentimentos das pessoas. E fui idiota, também. Não quis tomar consciência de tudo. Esperava que se eu não fosse realmente consciente de tudo, as coisas se acomoda­riam no final. Você acha que foi culpa minha? Acha que eu podia tê-los salvo se tivesse feito outra coisa?

— Fez o melhor qui pode.

— Quando eu era jovem fiz algo que não era justo, e daí nas­ceu a desgraça da minha vida. Você acha que é possível parar as con­seqüências de uma má ação fazendo boas ações depois? Eu não. Desde então, durante toda a minha vida, tentei abafar o que fiz com boas ações, mas a coisa continua em círculos crescentes. Não pode parar. Você acha que isso também é conseqüência?

— Nã posso saber.

— Que horrível é esperar assim! — ele gritou. — Deve ser pior para Gwen. Por que não a trazem de uma vez e liquidam logo o assunto?

 

Talvez, se olhasse naquela direção, veria um vinhedo cercado de ossos — fora descoberto, nos primeiros anos de Arthur, que os ossos fazem uma cerca excelente para vinhedos, tumbas e até para fortes — e talvez, se olhasse em outra direção, poderia ver aporta de um castelo que parecia a forca de um guarda-caças.

 

— Farã isso logo.

— Não é culpa dela. Será minha? Deveria ter me recusado a aceitar as provas de Mordred e ter cancelado o assunto de uma vez? Ou tê-la inocentado? Podia ter deixado de lado minha nova lei? Devia ter feito isso.

— Podia ter feito.

— Podia agir como desejava.

— Sim.

— Mas então o que aconteceria com a justiça? Quais seriam as conseqüências? Conseqüências, justiça, más ações, bebês afogados! Toda a noite passada eu podia ver tudo isso em cima de mim.

Gawaine falou baixo, num tom de voz alterado.

— Esqueça tudo isso. Guarda sus forças pras dificuldades qui esta vindo. Vai fazer isso?

O Rei segurou os braços do seu trono.

— Sim.

— Receio qui tem qui vir para a janela. Esta si preparando pra trazer a Rainha.

O velho não fez nenhum movimento, apenas seus dedos aper­taram ainda mais a madeira. Sentou-se olhando fixo diante de si. De­pois, esforçou-se para levantar, apoiando o peso nos punhos, e foi cumprir seu dever. Se não assistisse à execução, ela não seria legal.

— Ela está com um camisão branco.

Os dois ficaram em pé, em silêncio, observando como pessoas que não tivessem sentimentos. A crise provocava neles uma prostra­ção que forçava a linguagem a um tom de murmúrio.

— Sim.

— O que estão fazendo?

— Nã sei.

— Rezando, suponho.

— Sim, o bispo está na frente. Eles observaram as orações.

Como parecem estranhos.

— Sã apenas comuns.

— Você acha que eu posso sentar — ele perguntou, como uma criança — agora que já me mostrei?

— Deve ficar.

— Não sei se posso.

— É preciso.

— Mas Gawaine, e se ela olhar para cima?

— Se v'cê nã ficar, nã será conforme a lei.

Lá fora, na praça que se via da janela, pareciam estar cantando um hino. Era impossível distinguir as palavras ou a melodia. Eles po­diam observar os clérigos ocupados cuidando dos detalhes da morte, e os cavaleiros cintilantes parados imóveis, e as cabeças das pessoas, como cestas de coco, em volta da parte externa da praça. Não era fá­cil ver a Rainha. Encontrava-se quase oculta pelo torvelinho do ceri­monial, sendo levada nesta ou naquela direção, alvo da convergência dos pequenos grupos de oficiais ou de confessores, sendo apresenta­da ao carrasco, sendo persuadida a se ajoelhar e a rezar, exortada a se levantar e a discursar, sendo aspergida, recebendo velas para segurar, sendo perdoada e sendo solicitada a perdoar, pacientemente levada adiante para ser conduzida para fora da vida com pompa e dignida­de. Na verdade, não havia nada de sombrio num assassinato legal na Idade das Trevas.

O Rei perguntou:

— Consegue ver algum resgate chegando?

— Nã.

— Parece muito tempo.

Abaixo da janela cessou a cantoria, provocando um silêncio aflitivo.

— Quanto tempo mais?

— Uns minutos.

— Vão deixar ela rezar?

— Sim, ela vai rezar.

Subitamente, o velho perguntou:

Você acha que devemos rezar?

— Si quiser.

Será que nos ajoelhamos?

— Duvido qu'importe.

— Que oração diremos?

— Nã sei.

— Posso rezar o Pai Nosso? É só do que consigo me lembrar.

— Perfeito.

— Vamos rezar juntos?

— Si quiser.

— Gawaine, acho que devo me ajoelhar.

— Eu fico di pé — disse o senhor das Órcades.

— Agora...

Iam começar a súplica nada profissional quando o toque de cla­rim soou para além do mercado.

— Silêncio, tio!

A reza parou no meio da frase.

— Há soldados chegando. Cavalos, acho!

Arthur estava de pé, na janela.

— Onde?

— O clarim!

E agora, nítido, agudo, exultante, a música do metal penetrou na própria sala. Sacudindo Gawaine pelo ombro, o Rei, com a voz tremente, começou a chorar:

— Meu Lancelot! Eu sabia que ele conseguiria!

Gawaine forçou os largos ombros pela janela. Estavam dispu­tando a vista.

— Sim. É Lancelot.

— Olha para ele. Em prata.

— A prata, faixa vermelha!

— O belo cavaleiro!

— Olha só todos eles!

De fato, valia a pena olhar. O mercado era uma avalanche, como uma cena de faroeste. As cestas de frutas se romperam e os co­cos se espalharam. Os cavaleiros da guarda tentavam montar, com um pé no estribo, saltitando ao lado das montadas, que giravam ao seu redor. Os acólitos derrubavam os turíbulos. Os padres abriam caminho pelo meio da multidão. O bispo, que queria ficar, estava sendo empurrado na direção da igreja, enquanto seu báculo vinha atrás como se fosse um estandarte, carregado por algum cônego fiel. Um dossel, que fora levado com quatro paus para proteger alguém ou alguma coisa, afundava com os paus espalhados, como um naufrágio no Atlântico. A correnteza de cavaleiros cintilantes, com armas tilintando e a música de metais, desaguou na praça, agitando as penas dos elmos como se fossem cabeças de peles-vermelhas, suas espadas su­bindo e descendo como um estranho maquinismo. Abandonada pelo grupo de ministrantes que a ocultara enquanto lhe ofertava a extre­ma-unção, Guenevere parecia um farol. Com seu camisão branco, amarrada ao poste, permanecia imóvel no meio do movimento. Flu­tuava acima deles. A batalha se desenvolvia a seus pés.

— Que ímpeto e arranque dos cavalos!

— Ninguém jamais arremeteu como ele.

— Oh, pobre guarda!

Arthur torcia as mãos.

— Um homem caiu.

— É Segwarides.

— Qui confusa!

— Suas investidas — declarou o Rei com veemência — sempre foram irresistíveis, sempre. Ah, que estocada!

— Lá vai Sir Pertilope.

— Não, é Perimonis. O irmão dele.

— Olha só qui belas espadas ao sol. Olha as cores. Bom golpe, Sir Gillimer, bom golpe!

Não, não! Olha só Lancelot. Olha como ele corta e despedaça. Lá foi Aglovale derrubado. Olha, ele está indo na direção da Rainha.

— Priamus vai detê-lo!

Priamus, bobagem! Vamos ganhar, Gawaine, vamos ganhar!

O grandalhão se virou, sorrindo de entusiasmo.

— Nós quem?

— Muito bem, então são "eles", seu cabeçudo. Sir Lancelot, é claro. Lá se foi Sir Priamus.

— Sir Bors caiu.

— Não importa. Dentro de um minuto colocarão Bors noutro cavalo. Lá está ele, indo até a Rainha. Oh, olha! Está levando um ves­tido e um manto para ela.

— Sim, é mesmo!

— Meu Lancelot não iria deixar minha Guenevere ser vista de camisão!

— Nã ia mesmo.

— Está vestindo-a.

— Ela está sorrindo.

— Deus abençoe os dois, as criaturas. Mas, oh, os homens a pé!

— Está terminando, pode-se dizer.

— Ele não matará mais que o necessário. Podemos confiar nele para isso?

— Podemos confiar no homem para isso.

— É Damas quem está embaixo do cavalo?

— Sim. Damas sempre usou um penacho vermelho. Acho que está pra bater em retirada. Qui rapidez!

— Guenevere montou.

A música do clarim invadiu a sala novamente, um toque diferente.

— Estão se retirando. É o toque de retirada. Senhor, senhor, olha só qui confusão!

— Espero que não haja muitos feridos. Pode ver? Devemos ir ajudá-los?

— Muitos devem ter morrido — disse Gawaine.

— Minha fiel guarda.

— Mais de uma dúzia.

— Meus bravos! E é culpa minha!

— Nã acho qui seja culpa di ninguém im particular, a menos qui seja di mi irmão, qui já está morto. Sim, os últimos esta si jun­tando. Vejo o vestido branco da Rainha acima da multidã.

— Devo acenar para ela?

— Nã.

— Não seria correto?

— Nã.

— Está bem, suponho que não deva fazer isso. Ainda assim, teria sido gentil fazer algum gesto de despedida.

Gawaine voltou-se para ele tonto de emoção.

— Tio Arthur — disse —, és um grande homem. Eu vos disse qui tudo ia acabar bem.

— E você também é um grande homem, Gawaine, um homem bom e gentil.

E os dois se beijaram alegremente à moda antiga, em ambas as faces.

— Pronto — disseram. — Pronto.

— E o que é preciso fazer agora?

— É v'cê qui tem qui dizer.

O velho Rei olhou ao redor como se estivesse procurando a coisa que devia fazer. Sua idade e os indícios de enfermidade tinham sumido dele. Parecia mais ereto. Seu rosto estava rosado. As rugas ao redor dos olhos estavam brilhando.

— Acho que, para começar, vamos beber um drinque monstruoso.

— Muito bem. Chame o pajem.

— Pajem, pajem! — gritou ele da porta. — Onde diabos v'cê si meteu? Pajem! Aqui, seu verme, traga-nos alguma bebida. O qui es­tava fazendo? Vendo su senhora queimar? Ainda bem qui se frustrou!

O jovem, feliz, soltou um grito e voltou a descer as escadas que tinha subido até a metade.

I depois da bebida? — perguntou Gawaine.

Arthur voltou-se para Gawaine alegremente, esfregando as mãos.

Não pensei ainda. Algo irá acontecer. Talvez possamos fa­zer Lancelot pedir desculpas ou algum arranjo semelhante — e en­tão ele poderá voltar. Podemos conseguir que ele explique que esta­va no quarto da Rainha porque ela o chamou para pagar o feudo de Meliagrance, como o havia incumbido, pois não queria saber para nada desse pagamento. E então, é claro, ele tinha que salvá-la, pois sabia que era inocente. Sim, acho que podemos arranjar alguma coisa assim. Mas eles terão que se comportar direito no futuro.

O entusiasmo de Gawaine tinha se evaporado diante do seu tio. Ele falou devagar, com os olhos no chão.

— Eu duvido... — começou. O Rei olhou para ele.

— Duvido qui si consiga arranjar isso direito, enquanto Mordred for vivo.

Levantando a tapeçaria da porta com uma mão pálida, a cria­tura fantasmal em meia-armadura, o braço desarmado numa tipóia, apareceu na soleira.

— Nunca — disse, com se fosse a deixa perfeita de um amargo drama —, enquanto Mordred for vivo.

Arthur voltou-se, surpreso. Observou os olhos febris e foi até seu filho em um movimento de preocupação.

— Ora, Mordred!

— Ora, Arthur.

— Na fale assim com o Rei. Como ousa?

— E você não fale comigo para nada.

A voz sem tom fez o Rei parar no meio do caminho. Depois ele se recompôs.

— Vamos — disse com suavidade. — Foi uma carnificina terrível, sabemos. Vimos da janela. Mas certamente é melhor que sua tia esteja a salvo, e que as formas da justiça tenham sido satisfeitas...

— Foi uma carnificina terrível.

A voz era a de autômato, mas cheia de significado.

— Os guardas...

— Lixo.

Gawaine estava se virando para seu meio-irmão como se fosse um robô. Todo seu corpo se virou.

— Mordred — ele perguntou num tom incomodado. — Mor­dred, onde v'cê deixou Sir Gareth?

— Onde deixei os dois?

O homem ruivo começou a exclamar, cuspindo rápido as palavras.

— Nã fique m’mitando — gritou. — Nã fique repetindo qui nem um papagaio. Fale onde eles esta.

— Vá e procure por eles, Gawaine, entre as pessoas na praça.

Arthur começou:

— Gareth e Gaheris...

— Estão no chão da praça do mercado. Foi difícil reconhecê-los, por causa do sangue.

— Eles não estão feridos, não é? Estavam desarmados. Não estão feridos?

— Estão mortos.

— Bobagem, Mordred.

— Bobagem, Gawaine.

— Mas eles estavam sem armadura — protestou o Rei.

— Eles estavam sem armadura. Gawaine disse, com ênfase assustadora:

— Mordred, si estiver mentindo...

— .... o honrado Gawaine assassinará o último do seu sangue.

— Mordred!

— Arthur! — ele respondeu. E encarou-o com um rosto de pe­dra, uma mistura insana de malignidade, suavidade e infelicidade.

Se for verdade, é terrível. Quem poderia querer matar Gareth, ainda mais com ele desarmado?

— Quem?

— Eles nem iam lutar. Iam ficar de lado, porque eu lhes pedi­ra isso. Além do mais, Lancelot é o melhor amigo de Gareth. O ra­paz era amigo da família Ban. Parece impossível. Tem certeza de que não está cometendo um erro?

A voz de Gawaine encheu a sala de repente.

— Mordred, quem matou mis irmãos?

— Quem, realmente?

Ele correu até o aleijado, levado pela fúria.

— Quem senão Sir Lancelot, meu rude amigo.

— Mentiroso! Tenho qui ver isso.

Saiu da sala aos tropeções, ainda correndo com o mesmo ím­peto com que tinha avançado sobre seu irmão.

— Mas, Mordred, tem certeza de que estão mortos?

— O topo da cabeça de Gareth foi cortado — ele disse com indiferença —, e ele tinha uma expressão de surpresa. Gaheris não tinha expressão nenhuma, pois sua cabeça foi partida ao meio.

O Rei estava mais atônito que horrorizado. Com espanto e angústia disse:

— Lance não pode ter feito isso. Ele os conhecia... ele os amava. Eles estavam sem elmos e ele podia reconhecê-los. Foi ele quem sagrou Gareth cavaleiro. Jamais faria uma coisa dessas.

— Não, é claro.

— Mas você diz que ele fez.

— É o que digo.

— Deve ter sido um engano.

— Deve ter sido um engano.

— O que você quer dizer?

— Quero dizer que o puro e destemido Cavaleiro do Lago, a quem você permitiu que o chifrasse e fugisse com sua esposa, divertiu-se um pouco antes de partir, assassinando meus dois irmãos, ambos desarmados e ambos queridos amigos seus.

Arthur sentou-se no banco. O pequeno pajem, voltando com a bebida solicitada, fez a dupla vênia.

— A vossa bebida, senhor.

— Leve isso embora.

— Sir Lucan, o Mordomo, pergunta, senhor, se pode pedir ajuda para trazer alguns homens feridos para cá, senhor, e se há linho para ataduras por aqui?

— Pergunte a Sir Bedivere.

— Sim, senhor.

— Pajem — gritou quando o jovem saía.

— Senhor?

— Quantas baixas?

— Dizem vinte cavaleiros mortos, senhor. Sir Belliance, o Orgulhoso, Sir Segwarides, Sir Griflet, Sir Brandiles, Sir Aglovale, Sir Tor, Sir Gauter, Sir Gillimer, os três irmãos de Sir Renold, Sir Da­mas, Sir Priamus, Sir Kay, o Estrangeiro, Sir Driant, Sir Lambegus, Sir Hermide, Sir Pertilope.

— E quanto a Gareth e Gaheris?

— Não ouvi falar deles, senhor.

Chorando e ainda correndo, o homem vermelho, parecido com uma montanha, entrou mais uma vez na sala. Corria para Arthur como uma criança. Soluçava.

— É verdade! É verdade! Descobri um homem qui viu como foi. Pobre Gaheris i o pequeno Gareth, ele matou os dois, desarmados.

Caiu de joelhos. Enterrou seus cabelos grisalhos no manto do velho Rei.

 

Num brilhante dia de inverno, seis meses depois, Joyous Gard foi cercado. O sol cintilava nos ângulos retos sob o vento norte, deixando branco de gelo o lado leste dos sulcos. Fora do castelo, os estorninhos e maçaricos fuçavam ansiosos a relva endurecida. As árvores desfolhadas pareciam esqueletos, ou mes­mo mapas dos veios do sistema nervoso. O estéreo, se golpeado, soava como madeira. Tudo tinha a cor do inverno, o desbotado verde do musgo, como uma almofada de veludo verde deixada por anos ao sol. As árvores desfolhadas, como a almofada, também ti­nham uma cobertura de penugem nos troncos. As coníferas porta­vam todas sua roupagem fúnebre. O gelo estalava nas poças e, no fosso gélido, erguia-se o próprio Joyous Gard, como um belo qua­dro sob a fraca luz do sol.

O castelo de Lancelot não era ameaçador. As antigas torres da época da ascensão de Arthur tinham sido substituídas por fortalezas joviais, hoje difíceis de imaginar. Não se deve imaginá-lo como as fortalezas arruinadas que se vêem atualmente, com argamassa desfazendo-se entre as pedras. A muralha era rebocada. E tinham mis­turado cromo no reboco para que ficasse ligeiramente dourada. Os torreões cobertos de ardósia, cônicas à moda francesa, subiam de complicadas muralhas em centenas de inesperadas espirais. Havia pontezinhas fantásticas, cobertas como a Ponte dos Suspiros, que davam para a capela de uma outra torre. Havia escadarias externas subindo sabe-se lá para onde — talvez para o paraíso. Dos postigos subitamente subiam chaminés. Janelas com vitrais autênticos, bem no alto e fora de perigo, brilhavam onde antes se viam paredes nuas. Bandeirolas, crucifixos, gárgulas, bicas de água, cata-ventos, pináculos e campanários coroavam os tetos pontudos — tetos que tinham esse ou aquele feitio, às vezes com telhas vermelhas, às vezes de pe­dra musgosa, às vezes de ardósia. O lugar era uma cidade, não ape­nas um castelo. Era um bolo confeitado, e não um pão ázimo da ve­lha Dunlothian.

Ao redor do alegre castelo estava o acampamento dos que fa­ziam o cerco. Os reis, naqueles tempos, levavam as tapeçarias de casa quando saíam em campanha, o que dá uma medida do tipo de acampamento que armavam. As tendas eram vermelhas, verdes, quadriculadas, listradas. Algumas eram de seda. Num labirinto de bandeiras e cordas, estacas e lanças compridas, jogadores de xadrez e vivandeiras, de interiores cobertos de tapeçarias e baixelas de ouro, Arthur da Inglaterra estabelecera-se para vencer seu amigo pela fome.

Lancelot e Guenevere estavam sentados perto da lareira do sa­guão. Já não se acendia fogo no meio da sala, deixando a fumaça es­capar como pudesse através das clarabóias. Ali havia uma lareira de verdade, belamente esculpida com as armas e suportes de Benwick, e a metade de uma árvore ardia na grelha. Lá fora o gelo deixara o chão escorregadio para os cavalos. Portanto, era um dia de trégua, ainda que não declarada. Guenevere disse:

— Não consigo imaginar como você pode ter feito isso.

— Nem eu, Jenny. Nem mesmo sei se fiz, só que" todo mundo diz que fiz.

— Você não se lembra de nada?

— Eu estava excitado, acho, e assustado por você. Havia um monte de pessoas brandindo armas, e cavaleiros tentando me deter. Tinha que abrir caminho.

— Não parece coisa sua.

— Você não acha que fiz de propósito, não é? — ele pergun­tou, amargurado. — Gareth gostava mais de mim que dos irmãos. Eu era quase seu padrinho. Oh, vamos deixar isso de lado, pelo amor de Deus.

— Não importa — ela disse. — Ouso dizer que ele está melhor fora disso tudo, pobre coitado.

Lancelot deu um pontapé no tronco, pensativo, um braço apoiado no consolo da lareira, olhando para o fulgor das cinzas.

— Ele tinha olhos azuis. Parou, recordando-os no lume.

— Quando veio para a corte, ele não disse os nomes dos pais. Isso porque teve que fugir de casa para vir, para começar. Havia uma inimizade de anos entre a mãe dele e Arthur, e a velha odiava a idéia de ele vir. Mas Gareth não pôde evitar. Queria o romance e a aven­tura dos cavaleiros e a honra. Então fugiu de casa, e não nos disse quem era. Não pediu para ser sagrado cavaleiro. Para ele, bastava estar no grande centro até provar sua força.

Arrumou a posição de uma acha que se desgarrara.

— Kay levou-o para trabalhar na cozinha e deu-lhe um apelido: Bela Mãos. Kay sempre foi implicante. E agora... parece que foi há tanto tempo...

No silêncio — que mantiveram, cada um com um cotovelo no consolo e um pé virado para o lume —, a cinza leve espalhava-se.

— Eu costumava lhe dar algumas gorjetas, para que comprasse suas coisinhas. Beaumains, o pajem da cozinha. Por algum motivo qualquer, ele se apegou a mim. Eu o sagrei cavaleiro com minhas próprias mãos.

Olhou, surpreso, para as mãos, mexendo-as como se nunca os tivesse visto.

— Depois, ele lutou na aventura do Cavaleiro Verde, e desco­brimos que era um campeão... O gentil Gareth — disse, quase com espanto. — Matei-o eu também com as mesmas mãos, porque ele se recusou a usar sua armadura contra mim. Que criaturas horríveis são os humanos! Se vemos uma flor quando andamos pelos campos, cortamos sua cabeça com um pau. Foi assim que Gareth morreu.

Guenevere tomou com angústia a mão culpada.

— Você não podia ter evitado.

— Eu podia ter evitado — ele estava passando por seu tormen­to religioso habitual. — Foi minha culpa. Você está certa quando diz que não parece do meu feitio. Foi minha culpa, minha culpa atroz. Foi porque combati por todo lado na pressa.

— Você tinha que fazer o resgate.

— Sim, mas eu podia ter lutado só com os cavaleiros armados. Em vez disso, fui combatendo para todo lado e caí sobre os solda­dos a pé, meio armados, que não tinham nenhuma chance. Eu esta­va cap-à-piede eles estavam em cuir-bouillé, só couro e porrete. Mas eu os estraçalhei e Deus nos castigou. Foi porque me esqueci de meus votos de cavaleiro que Deus me fez matar o pobre Gareth, e Gaheris também.

— Lance! — ela exclamou, bruscamente.

— Agora estamos nesse tormento infernal — ele continuou, recusando-se a escutar. — Agora tenho que lutar contra meu próprio Rei; que me sagrou cavaleiro e me ensinou tudo que sei. Como nosso lutar contra ele? Mesmo Gawaine, como posso lutar contra ele? Matei três dos seus irmãos. Como posso aumentar isso? Mas Gawaine nunca me dispensará. Agora, nunca me perdoará. Eu não o culpo. Arthur nos perdoaria, Gwen, mas Gawaine não deixará que ele faça isso. Tenho que ficar sitiado nesse buraco como um covar­de quando ninguém quer lutar, exceto Gawaine, e então eles saem com suas fanfarras e cantam:

''Cavaleiro traidor Venha aqui fora combater. Ei! Ei! Ei!"

— O que eles cantam não importa. A canção deles não faz de você um covarde.

— E meus próprios homens também estão começando a pen­sar isso. Bors, Blamore, Bleoberis, Lionel, o tempo todo eles me pe­dem para sair e lutar. E se eu sair, o que acontece?

— Até onde eu sei — ela disse —, o que acontece é que você os vence, e depois os deixa partir, e implora para que eles voltem para suas casas. Todos respeitam sua bondade.

Ele escondeu a cabeça na curva do cotovelo.

— Você sabe o que aconteceu na última batalha? Bors teve uma justa com o próprio Rei, e o derrubou. Ele pulou de seu cavalo e pa­rou sobre Arthur com sua espada desembainhada. Vi o que aconte­cia e galopei como louco. Bors perguntou: Devo pôr um fim a esta guerra? Com tanta dureza, não, eu gritei, sob pena de perder tua própria cabeça. Então pusemos Arthur de novo em seu cavalo e eu implorei, implorei de joelhos, para que ele fosse embora. Arthur co­meçou a chorar.  Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ele me olhou e nada disse. Parecia muito mais velho. Ele não quer lutar contra nós, mas é Gawaine. No princípio, Gawaine estava do nosso lado, mas eu matei seus irmãos com minha maldade.

— Esqueça sua maldade. É o temperamento negro de Gawaine e a astúcia de Mordred.

— Se fosse só Gawaine — ele lamentou —, ainda haveria uma esperança de paz. Dentro de si, ele é decente. É um homem bom. Mas Mordred sempre está lá, insinuando coisas e fazendo-o se sen­tir miserável. E há todo esse ódio entre os gaélicos e os gauleses, e essa Nova Ordem de Mordred. Não consigo ver o final.

A Rainha sugeriu, pela centésima vez:

— Você acha que adiantaria alguma coisa se eu voltasse para Arthur e me pusesse à sua mercê?

— Nós oferecemos isso e eles recusaram. Portanto, não adian­ta insistir. No final, eles acabariam queimando você.

Ela afastou-se da lareira e caminhou para o grande vão da ja­nela. Embaixo, do lado de fora, os trabalhos do cerco se espalhavam. Alguns minúsculos soldados, no acampamento inimigo, jogavam alegremente "A raposa e os gansos" num pequeno lago gelado. A gargalhada deles soava nítida, separada pela distância das quedas que a provocava.

— Em todas as guerras — ela disse —, os soldados da infanta­ria que não são cavaleiros morrem, mas ninguém repara.

— O tempo todo.

Sem se virar, ela continuou:

— Acho que vou voltar, querido, e enfrentar o risco. Mesmo se eu for queimada, isso seria melhor do que ter tanto desgosto.

Ele a seguiu até a janela.

— Jenny, eu iria com você, se servisse de alguma coisa. Pode­ríamos ir juntos, e deixá-los cortar nossas cabeças, se tivesse alguma esperança de com isso parar essa guerra. Mas todos enlouqueceram. Mesmo se nos entregássemos, Bors, Ector e o resto continuariam com a rixa, se fôssemos mortos. Há uma centena de outras rixas em andamento, por aqueles que matamos no mercado e nas escadas, e por coisas de mais de meio século do passado de Arthur. Em breve não serei mais capaz de detê-los, mesmo se as coisas continuarem como estão. Hebes le Renoumes, Villiers, o Valente, Urre da Hun­gria: eles começariam a me vingar e tudo ficaria pior. Urre está ter­rivelmente grato.

— A civilização parece ter ficado insana — ela disse.

— Sim, e parece que fomos nós que a fizemos assim. Bors, Lionel e Gawaine feridos, e todo mundo bramindo por sangue. Eu tenho que sair com meus cavaleiros e fingir que estou pretenden­do atacar, e talvez Arthur seja instigado contra mim, ou talvez ve­nha Gawaine, e então terei que me cobrir com meu escudo e me defender, mas sem revidar. Os homens percebem e dizem que, ao não me esforçar, estou prolongando a guerra, o que torna tudo pior para eles.

— O que é verdade.

— Claro que é verdade. Mas a alternativa é matar Arthur e Gawaine, e como posso fazer isso? Se pelo menos Arthur pegasse você e fosse embora, seria melhor do que como está agora.

Vinte anos antes, ela poderia ter tido um ataque com sugestão tão pouco hábil. Era um sinal de seu outono o fato de agora ter achado graça.

— Jenny, é uma coisa terrível de ser dita, mas é verdade.

— Claro que é verdade.

— Parece que estamos tratando você como uma boneca.

— Todo somos bonecos.

Ele encostou a cabeça na pedra fria do vão da janela, até que eia tomou sua mão.

— Não pense sobre isso. Apenas permaneça no castelo e seja paciente. Talvez Deus tome conta de nós.

— Você já disse isso antes.

— Sim, uma semana antes de nos apanharem.

— Mesmo se Deus não o fizer — ele disse, amargo —, pode­ríamos recorrer ao Papa.

— O Papa!

Ele levantou os olhos.

— O que você quer dizer?

— Ora, Lance, o que você disse... E se o Papa enviasse bulas para os dois lados, dizendo que nos excomungaria se não entrásse­mos em um acordo? Se apelássemos para as leis papais? Bors e os outros teriam que aceitar. Certamente...

Ele a olhou com atenção, enquanto ela escolhia as palavras.

— Ele poderia nomear o Bispo de Rochester para administrar os termos da paz...

— Mas que termos?

Ela, no entanto, agarrara a idéia e estava em fogo.

— Lance, nós dois teríamos de aceitá-los, fossem quais fossem. Mesmo se eles significassem... se fossem ruins para nós mas levas­sem a paz para o povo. E nossos cavaleiros não teriam desculpas para continuar a rixa, porque eles teriam que obedecer à Igreja...

Ele não conseguia encontrar as palavras.

— Será?

Ela virou-se para ele com uma expressão de serenidade e alívio — a expressão eficaz e sem dramas que as mulheres assumem quan­do têm de amamentar, ou realizar outro trabalho de competência qualquer. Ele não sabia como reagir.

— Podemos enviar uma mensagem amanhã — ela disse.

— Jenny!

Ele não podia suportar que ela admitisse ser passada de um para outro, já não mais jovem, ou que tivesse que perdê-la, ou que não tivesse que perdê-la. Entre as vidas dos homens e o amor deles e seus velhos totens, nada lhe restou senão a vergonha. Ela enten­deu e o ajudou também com isso. Beijou-o com ternura. Lá fora, o coro diário estava começando:

"Cavaleiro traidor Venha aqui fora combater. Ei! Ei! Ei!"

Vamos — ela disse, passando a mão em seus cabelos brancos. — Não os escute. Meu Lancelot deve permanecer no castelo, e haverá um final feliz.

 

Então, Sua Santidade fez as pazes para eles — concluiu Mordred, furioso.

— Sim.

Estavam no Salão de Justiça, Gawaine e ele, esperando as úl­timas etapas da negociação. Ambos vestiam-se de preto — com a es­tranha diferença que Mordred estava resplandecente, uma espécie de Hamlet, enquanto Gawaine parecia mais um coveiro. Mordred começara a se vestir com essa dramática simplicidade desde a época que se tornara líder do partido popular. Seus objetivos eram uma espécie de nacionalismo, com autonomia gaélica, e também um massacre dos judeus, para vingar um santo mítico chamado Hugh de Lincoln. Já eram milhares, espalhados pelo país, levando o em­blema de um punho escarlate empunhando um chicote, e que se autodenominavam Surradores. Já o mais velho, que só usava o uni­forme para agradar o irmão, tinha apenas um negrume despreten­sioso, o autêntico, desesperado, preto do luto.

Imagine só — prosseguiu Mordred. — Se não fosse o Papa, jamais teríamos essa bela procissão com todo mundo carregando ramos de oliveira e os inocentes amantes vestidos de branco.

— Foi u'a boa procissã.

A mente de Gawaine não se movia com facilidade pelos cami­nhos da ironia, por isso aceitava como simples declaração o que era zombaria.

— Foi muito bem encenada.

O irmão mais velho moveu-se desconfortável, como se quisesse mudar de posição, mas voltou a ficar do jeito que estava antes.

Disse com dúvida, quase como se fosse uma pergunta ou um apelo:

— Lancelot diz im sua carta qui matou nosso Gareth por en­gano. Disse qui nã o viu.

— É bem típico de Lancelot se lançar contra homens desarmados sem olhar para ver quem eles são. Sempre foi famoso por fazer isso.

Dessa vez, a ironia foi tão forte que até Gawaine a entendeu.

— Eu digo que nã parece provável.

— Provável? Claro que não parece. Não foi a maneira padrão de Lancelot. Ele era opreux chevalier que sempre poupa as pessoas, que nunca mata alguém mais fraco que ele. Essa foi a bela vereda da popularidade de Lancelot. Você acha que, de repente, ele ia abandonar sua pose e começar a matar descuidadamente homens desarmados?

Com um patético esforço para ser justo, Gawaine disse:

— Parece qui nã havia ninhuma razã para qui ele os matasse.

— Razão? Gareth era nosso irmão! Ele o matou como repre­sália, como vingança porque foi nossa família que o pegou com a Rainha.

Com mais cuidado, acrescentou:

— Foi porque Arthur gosta de você e ele tinha ciúme de sua in­fluência. Ele planejou, tudo cuidadosamente, para enfraquecer o clã das Órcades.

Ele enfraqueceu a si mismo.

Além disso, tinha ciúmes de Gareth. Tinha medo que nos­so irmão invadisse seus domínios. Nosso Gareth o imitava, o que não convinha zopreux chevalier. Não se pode ter dois cavaleiros sem máculas.

O Salão de Justiça fora preparado para a pompa final. Parecia despido só com os dois homens ali. Estavam sentados de maneira curiosa, um atrás do outro nos degraus do trono, o que significava que não olhavam no rosto um do outro. Mordred olhava para as costas de Gawaine, e Gawaine para o chão. Ele disse com um pe­queno estremecimento:

— Gareth era o melhor di nós.

Se tivesse se voltado rapidamente, teria ficado surpreso com a intensidade com que era observado. O rosto do mais jovem estava em desacordo com a harmonia de sua voz. Quem olhasse atenta­mente poderia ter observado que, nos últimos seis meses, o com­portamento de Mordred tornara-se ainda mais estranho.

— Um companheiro querido — disse —, e assassinado justo pelo homem em que depositara sua fé.

— O que vai mi ensinar a nunca confiar num do Sul. Mordred alterou o pronome com uma ênfase imperceptível.

— Sim, vai nos ensinar.

O velho tirano girou seu corpo. Agarrou a mão branca como se quisesse apertá-la falou com perturbação.

— Eu costumava pensar qui era maldade di Agravaine - de Agravaine i sua. Achava qui os dois tinham um preconceito mui grande contra Sir Lancelot. Mi envergonho.

— O sangue é mais denso que a água.

— É isso, Mordred. O camarada pode fazer barulho sobre ideais, sobre o certo i o errado i tudo isso... mas no final tudo acaba e com su próprio povo. Mi lembro de quando Gareth ia roubar o pomar do padre, perto do rochedo...

Calou-se aos poucos, Mordred o incitou.

— Seu cabelo era quase branco quando era menino, de tão louro.

— Kay o chamava di Belas Mãs.

— Isso era para ser um insulto.

— Sim, mas era verdade. Tinha mãs delicadas.

— E agora ele está em seu túmulo.

Gawaine corou até as sobrancelhas, suas veias latejando nas têmporas.

— Deus amaldiçoe todos eles! Eu nã aceito essa paz. Nã vou perdoá-los. Por qui motivo Rei Arthur quer botar panos quentes? O qui tem o Papa a ver com isso? Foi mi irmã qui foi massacrado, nã deles, i por Deus Todo-Poderoso, terei mi vingança!

— Lancelot vai escorregar por nossos dedos. É um homem oleoso demais para segurar.

— Nã vai escorregar. Desta vez vamos agarrá-lo. Os da Cor­nualha já perdoaram demais.

Mordred mudou de degrau.

— Você já pensou no que a Távola fez com a Cornualha e as Órcades? O pai de Arthur matou nosso avô. Arthur seduziu nossa mãe. E Lancelot matou três dos nossos irmãos, além de Florence e Lovel. No entanto, aqui estamos nós, vendendo nossa honra para reconciliar os dois Ingleses. Não parece covardia?

— Nã, nã é covardia. O Papa pode forçar o Rei a aceitar su Rainha, mas na bula nã tem ninhuma palavra sobre Sir Lancelot. Demos proteçã para trazer a mulher, i também o deixaremos ir. Mas depois disso...

— Por que devemos deixá-lo escapar, mesmo agora?

— Pelo motivo di qui tem salvo-conduto. Ora essa, homem Mordred, somos homens sagrados cavaleiros!

— Não devemos nos rebaixar com manobras sujas, mesmo se nossos inimigos as usarem.

— Sim, justamente. Deixamos o javali ter espaço pra correr, i depois o perseguimos até a morte. Arthur está fraquejando: fará a vontade nossa.

— É triste — disse Sir Mordred - como o pobre parece ter perdido o ânimo desde que todo esse negócio começou.

Sim, é triste. Mas ele bem sabe a diferença entre o qui é certo i o qui é errado.

— É uma mudança para ele.

— Quer dizer, fraquejar im su autoridade.

— Rápida dedução.

Seus sarcasmos eram tão inúteis quanto caçoar de um cego.

— Ele nã pode tê-la sempre. Pra começar, nunca deveria ter ficado do lado daquele traidor.

— Nem se casado com Gwen.

— Sim, o erro está com eles. Nã fomos nós qui começamos a briga.

— Realmente, não fomos.

— O Rei deve defender a justiça. Mesmo si Sua Santidade o obrigar a levar a mulher pra su cama, nós temos o direito nosso im relaçã a Lancelot. Homem, ele fez u'a grande traiçã quando levou a Rainha, i também quando matou os da família nossa.

— Temos todo o direito.

O grandão tomou outra vez a mão do outro, a mão pálida den­tro da mão calejada do coveiro. Disse com dificuldade:

— Seria mui ruim estar só.

— Tivemos a mesma mãe, Gawaine.

— Sim!

— E ela também era a mãe de Gareth...

— Aí vem o Rei.

O cortejo da reconciliação chegara às etapas finais. As trom­betas soavam no pátio, enquanto os dignitários da Igreja e do Es­tado começavam a subir a escada. Os cortesãos, bispos, arautos, pajens, juizes e espectadores conversam enquanto se aproximavam. A forma cônica da tapeçaria, antes um vaso vazio, começou a florir com eles. Floriu com damas de rostos lisos e toucados que pareciam crescentes, ou cones, ou o espantoso penteado usado pela Duquesa em "Alice no País das Maravilhas". Com corpetes brilhantes que terminavam abaixo das axilas, saias longas e man­gas bufantes, em camelino de Trípoli, tafetá ou roseta, as delica­das criaturas inundavam seus lugares com um aroma de mirra e mel - com o qual haviam escovado os dentes. Os acompanhantes — jovens escudeiros na última moda, muitos deles usando o em­blema dos Surradores de Mordred — vinham andando com passinhos miúdos com seus sapatos de biqueira longa, com os quais era impossível subir escadas. No começo dos degraus, eles os tira­vam, e os pajens os levavam até o final da escada. A impressão dada pelos rapazes era a de pernas metidas em meias longas - foi inclusive considerado necessário decretar uma lei sobre questões suntuosas, insistindo para que suas jaquetas fossem compridas o bastante para cobrir-lhe as nádegas. Depois, havia os conselhei­ros mais respeitáveis, com chapéus extraordinários, alguns dos quais eram como abafadores de bule, outros como turbantes, ou­tros como asas de pássaros, e outros ainda como regalo. Suas ves­tes eram plissadas e acolchoadas, com colarinhos altos engoma­dos, dragonas e cintos cravados de jóias. Havia cléricos com pequenos solidéus simples para aquecer suas tonsuras, vestidos em roupas sóbrias que contrastavam com as dos laicos. Havia um cardeal visitante com o glorioso capelo de borda que ainda ador­na o papel de carta do Wolsey's College de Oxford. Havia peles de todos os tipos, inclusive um belo arranjo de lã de ovelha bran­ca e preta, em losangos contrastantes. Os que conversavam fa­ziam barulho como estorninhos.

Essa era a primeira parte da cerimônia. A segunda começou com os anúncios mais próximos das trombetas. Então chegaram vá­rios cistercienses, secretários, diáconos e outros religiosos, todos levando tinta feita com casca de espinheiro negro fervida, pergami­nho areia, bulas, penas e um tipo de canivete que os escribas costu­mavam levar na mão esquerda quando estavam escrevendo. Tam­bém levavam varas de contas e as atas da última reunião.

A terceira parte era o Bispo de Rochester, que fora designado núncio. Veio com toda a pompa de um núncio, embora tivesse dei­xado o dossel no começo da escada. Era um senhor de cabelos sedosos, com sua capa de asperges e báculo, alva e anel — cortês, sacerdotal, conhecedor do poder espiritual.

Por fim, as trombetas chegaram à porta e a Inglaterra entrou. Com arminho pesado cobrindo seus ombros e o braço esquerdo, uma faixa mais estreita ao longo do direito, o manto de veludo azul e a coroa esmagadora, pleno de majestade e amparado, quase lite­ralmente, pelos oficiais do cerimonial, o Rei foi conduzido até o tro­no no estrado, seu dossel dourado com bordados de dragões rampantes e vermelhos — e ali, a multidão agora se abrindo, via-se Gawaine e Mordred vindo se juntar a ele. Arthur afundou-se onde foi colocado. O núncio consagrado também se sentou, em um tro­no oposto, coberto de branco e ouro. O murmúrio aquietou.

— Estamos prontos para começar?

A voz sacerdotal de Rochester aliviou a tensão:

— A Igreja está pronta.

— Também o Estado.

Ouviu-se o resmungo da voz de Gawaine, vagamente ofensivo.

— Há alguma coisa qui deveríamos acertar antes da chegada deles?

— Tudo está bem resolvido.

Rochester voltou os olhos para o Senhor das Órcades.

— Estamos gratos a Sir Gawaine.

— São bem-vindos.

Nesse caso — disse o Rei — e suponho que devemos avisar Sir Lancelot que o Tribunal está pronto para recebê-lo.

— Homem Bedivere, mande trazer os prisioneiros. Podia-se observar que Gawaine tinha assumido o hábito de falar pelo trono, e que Arthur o deixava fazê-lo. O núncio, no entanto, foi menos submisso.

— Um momento, Sir Gawaine. Devo assinalar que a Igreja não considera essas pessoas prisioneiras. A missão de Sua Santidade, a qual represento, é de pacificação, não de vingança.

— A Igreja pode considerar os prisioneiros como quiser. Aqui estamos para fazer o qui a Igreja quer, mas o faremos à nossa pró­pria i bruta maneira. Traga os prisioneiros.

— Sir Gawaine...

— Tocai para Sua Majestade. O Tribunal está aberto.

No meio da música como a de uma cerimônia ruim, e da mú­sica que respondeu do lado de fora, as cabeças viraram-se para a porta.

Houve um sussurro de sedas e peles. Abriu-se uma ala com o arrastar de pés. No arco da porta, agora aberta, Lancelot e Guene­vere esperavam pelo sinal para entrar.

Havia algo de patético na magnificência dos dois, como se esti­vessem vestidos a rigor para um baile a fantasia mas não de maneira completamente apropriada. Estavam de roupa branca, entretecida de ouro, e a Rainha, não mais jovem nem graciosa, levava desajeitada seu ramo de oliveira. Vieram com timidez pela ala, como atores bem-intencionados que tentam dar o melhor de si, mas que não são bons atores. Ajoelharam-se em frente ao trono.

— Meu mais poderoso Rei.

O movimento de simpatia foi captado por Mordred.

— Encantador!

Lancelot olhou para o mais velho dos irmãos.

— Sir Gawaine.

O senhor das Órcades virou-lhe as costas. Ele voltou-se para a Igreja.

Meu senhor de Rochester.

— Seja bem-vindo, filho.

— Eu trouxe a Rainha Guenevere por ordem do Rei e do Papa.

Houve um silêncio constrangido, no qual ninguém ousou ajudá-lo a continuar seu discurso.

— É meu dever, portanto, uma vez que ninguém responde, afirmar a inocência da Rainha da Inglaterra.

— Mentiroso!

— Venho para garantir, com minha pessoa, que a Rainha é leal, fiel, verdadeira e sincera em relação ao Rei Arthur, e isso eu sustentarei contra qualquer desafio, exceto apenas se for do Rei ou de Sir Gawaine. É meu dever para com a Rainha fazer esse ofere­cimento.

— O Santo Padre nos ordena aceitar seu oferecimento, Lancelot. O clima dramático que estava crescendo na sala foi quebrado pela segunda vez pela facção das Órcades.

— Vergonha por sus palavras orgulhosas — gritou Gawaine. — Quanto à Rainha, deixe qui ela si curve i seja perdoada. Mas vós, falso cavaleiro traiçoeiro, qui motivo tinhas para matar mi irmão, qui vos amava mais do qui todos de mi família?

Os dois grandes homens tinham passado para a alta linguagem, adequada para o lugar e a paixão.

— Deus sabe que de nada adianta eu oferecer minhas descul­pas, Sir Gawaine. Preferiria antes ter matado meu sobrinho, Sir Bors. Mas não os vi, Gawaine, e paguei por isso!

— Foi feito como injúria a mi e às Órcades!

— Faz-me arrepender até o mais fundo do coração — ele disse — que pensais assim, meu senhor Sir Gawaine, pois sei que enquanto fores contra mim, nunca terei o beneplácito do Rei.

— Palavras verdadeiras, homem Lancelot. Viestes sob salvo-conduto i proteçã para trazer a Rainha, mas partireis para longe como assassino qui sois.

— Se sou assassino, Deus me perdoe, meu senhor. Mas nunca matei por traição.

Ele pretendia protestar sua inocência, mas foi interpretado como querendo dizer outra coisa. Apertando seu punhal com uma das mãos, Gawaine exclamou:

— Percebo o que queres dizer. Queres dizer que Sir Lamorak... O Bispo de Rochester levantou sua luva.

— Gawaine, não podemos deixar essa discussão para outro momento? O assunto imediato é devolver a Rainha. Sem dúvida Sir Lancelot gostaria de dar uma explicação sobre o problema, para que a Igreja possa se justificar em sua reconciliação.

— Agradecido, meu senhor.

Gawaine lançou-lhe um olhar furioso, mas a voz cansada do Rei ordenou que os trabalhos prosseguissem. Estes avançavam de modo desajeitado, com uma série de interrupções.

— Fostes apanhado com a Rainha.

— Senhor, fui chamado ao quarto de minha senhora vossa Rai­nha, não sei dizer por qual motivo; mas tão logo ultrapassei a porta da câmara, imediatamente Sir Agravaine e Sir Mordred bateram, chamando-me de traidor e desleal cavaleiro.

— Chamaram-vos assim justamente.

— Meu senhor Sir Gawaine, em sua altercação, eles provaram por si mesmos não estarem do lado da justiça. Falo pela Rainha, não por minha própria causa.

— Ora, ora, Sir Lancelot.

O cavaleiro imperfeito voltou-se para seu mais antigo amigo, a primeira pessoa que ele amou com todo seu ser. Abandonou a lín­gua da cavalaria, passando para a linguagem comum.

— Não podemos ser perdoados? Não podemos ser amigos ou­tra vez? Voltamos em penitência, Arthur, quando não precisávamos voltar de jeito nenhum. Não se lembra dos velhos tempos, quando lutamos juntos e éramos amigos? Toda essa crueldade poderia ser removida pela boa-vontade de Sir Gawaine, se você nos concedesse sua clemência.

O Rei concede justiça — disse o homem vermelho. — Tivestes clemência com mis irmãos?

Fui clemente com todos vós, Sir Gawaine. Ouso dizer que posso falar sem jactância quando digo que muitos nesta sala me de­vem sua liberdade, se não sua vida. Lutei pela Rainha em causas de outros, então por que não posso lutar em minha própria causa? Tam­bém lutei por vós, Sir Gawaine, e vos salvei de uma morte ignóbil.

— E no entanto, agora — disse Mordred —, só restam dois das Órcades.

Gawaine atirou a cabeça para trás.

— O Rei pode fazer como desejar. Mi decisã foi tomada seis meses atrás, quando encontrei Gareth banhado im seu sangue — e desarmado.

— Prouvera Deus que ele estivesse armado, pois então poderia ter me enfrentado. Poderia ter me matado e evitado nossa desgraça.

— Nobre discurso.

De repente, e apaixonadamente, o velho companheiro gritou para quem quisesse ouvir:

— Por que acreditaria que eu queria matá-los? Eu mesmo ar­mei Gareth cavaleiro. Eu o amava. No momento que soube que ele estava morto, sabia que você nunca me perdoaria. Sabia que signifi­cava o fim da esperança. Era contra meu interesse matar Sir Gareth.

Mordred murmurou:

— Era contra nosso coração.

Lancelot tentou um último esforço de persuasão.

— Gawaine, perdoe-me. Meu próprio coração sangra pelo que fiz. Sei quanto estás sofrendo, porque também eu estou sofrendo. Não concederás a paz a nosso país se eu fizer uma penitência? Não me forces a lutar por minha vida, mas deixai-me fazer uma peregri­nação pela alma de Gareth. Começarei em Sandwich, só com minha camisa, e andarei descalço até Garlisle, e farei doações para que re­zem uma missa por ele a cada quinze quilômetros.

— O sangue de Gareth — disse Mordred — não é para ser pago com doações para missa, nós achamos... por mais que isso possa agradar ao Bispo de Rochester.

A paciência do velho cavaleiro explodiu.

— Fique de boca calada!

Gawaine inflamou-se de imediato.

— Mantenha os modos, mi covarde maníaco, ou eu o apunha­lo aqui mismo, aos pés do Rei.

— Será preciso mais...

Outra vez, o Núncio interveio:

— Sir Lancelot, por favor. Que alguns de nós mantenham a devida calma e compostura, a qualquer custo. Gawaine, sentai-vos. Foi oferecida uma penitência pelo sangue de Gareth para que por meio dela a guerra possa chegar a seu fim. Dai-nos sua resposta.

Com um momento de silêncio e expectativa, o gigante de ca­belos cor de areia levantou a voz:

— Eu escutei a falaçã di Sir Lancelot i sus grandes oferecimen­tos, mas ele assassinou mis irmãos. Isso nunca poderei perdoar, sen­do a principal di todas su traiçã a Sir Gareth. Si é da vontade di mi tio, Rei Arthur, entrar im acordo com ele, entã o Rei perderá mis serviços i o di todos os gaélicos. Por mais qui si converse sobre isso, nós sabemos a verdade. O homem é um traidor conhecido, do Rei i di mi mismo.

— Não há ninguém vivo, Gawaine, que me chamou de traidor. Já expliquei sobre a Rainha.

— Já passamos essa questã. Nã estou insinuando sobre a mu­lher, já qui é mais correto nã fazer isso. Falo do qui su próprio jul­gamento deve ser.

— Se for o julgamento do Rei, eu o aceitarei.

— O Rei i eu já tínhamos acordado, antes di chegares.

 

Insistiu em voltar para ajudar o Rei e, na batalha do desembarque, tentou combater. Infelizmente, recebeu uma pancada de clava na fenda antiga e morreu poucas horas depois.

 

— Arthur...

— Dirigi-vos ao Rei por seu título.

— Senhor, isso é verdade?

O velho, no entanto, apenas inclinou a cabeça.

Pelo menos deixem-me ouvi-lo da boca do Rei!

Mordred disse:

— Fala, pai.

Ele balançou a cabeça como um urso açulado. Moveu-a com o movimento pesado de um urso, mas sem deixar de olhar o chão.

— Fala.

— Lancelot — ouviu-se ele dizer —, você sabe como a verdade encontra-se entre nós. Minha Távola está destruída, meus cavalei­ros ou partiram ou morreram. Nunca imaginei uma briga com você, Lance, nem sua comigo.

— Mas isso não pode terminar?

— Gawaine diz... — ele começou, debilmente.

— Gawaine!

— Justiça...

Gawaine pôs-se de pé, manhoso, corpulento e violento.

— Mi Rei, mi senhor i mi tio. É vontade desse Tribunal qui eu pronuncie a sentença contra esse desleal traidor?

O silêncio tornou-se absoluto.

— Saibam todos, portanto, qui esta é a palavra do Rei. A Rai­nha pode voltar para ele com su liberdade como era, i nã correrá pe­rigo algum por nada qui foi suposto antes deste dia. Esta é a vonta­de do Papa. Mas vós, Sir Lancelot, vós deveis partir banido desse reino, dentro di quinze dias, declarado traidor; i, por Deus, depois desse prazo, havemos de segui-lo i derrubar sobre suas orelhas a fortaleza mais poderosa da França.

— Gawaine — ele pediu, dolorosamente —, não me siga. Eu aceitarei esse banimento. Viverei em meus castelos na França. Mas não me siga, Gawaine. Não continue essa guerra eternamente.

— Deixai isso com vossos superiores. Esses castelos são do Rei.

— Se você me seguir, Gawaine, não me desafie: não deixe Ar­thur vir contra mim. Não posso lutar contra meus amigos. Gawai­ne, pelo amor de Deus, não nos faça combater.

— Deixa de falaçã, homem. Entregue a Rainha i retire su pes­soa rapidamente deste Tribunal.

Lancelot recompôs-se com uma espécie de cuidado final. Des­viou os olhos da Inglaterra para seu algoz. Virou-se lentamente para a Rainha, que nada falara. Viu seu ridículo ramo de oliveira, sua fal­ta de jeito e roupas tolas. Com a cabeça erguida, elevou a tragédia deles à nobreza e à gravidade.

— Bem, senhora, parece que devemos nos separar.

Ele tomou-lhe a mão, conduziu-a para o meio da sala, trans­formando-a na dama de suas lembranças. Algo em seu aperto de mão, em seu andar, na amplitude de sua voz, fez com que ela flores­cesse de novo — era a última cumplicidade deles — como a Rosa da Inglaterra. Elevou-a ao píncaro da conquista que haviam esquecido. Tão imponente como numa dança, a gárgula levou-a até o centro. Ali, equilibrando-a ruborizada, a pedra mestra do reino, ele termi­nou. Era a última vez que Sir Lancelot, Rei Arthur e a Rainha Gue­nevere ficariam juntos.

— Meu Rei e meus velhos amigos, uma palavra antes de ir. Mi­nha sentença é deixar esta fraternidade, à qual servi toda a minha vida. É deixar vosso país e ser perseguido com guerra. Aqui estou, então, pela última vez, como o campeão da Rainha. Aqui estou para lhe afirmar, senhora e dama, na presença de todo este Tribunal, que se qualquer perigo a ameaçar no futuro, então um pobre braço virá da França para defendê-la — e que todos disso se lembrem.

Deliberadamente, beijou-lhe os dedos e voltou-se rigidamen­te, e começou a percorrer com passos lentos e em silêncio o longo comprimento da sala. Seu futuro se fechava ao seu redor à medida que seguia em frente.

Quinze dias até Dover era o prazo estipulado para qualquer criminoso que tivesse recebido santuário. Ele teria que percorrer o caminho à maneira dos criminosos: sem cinto, descalço, de cabeça descoberta e só com seu camisão, como se estivesse pendurado em uma forca. Teria que andar pelo meio da estrada segurando uma pe­quena cruz na mão, que era o símbolo do asilo, seu santuário. Pro­vavelmente Gawaine ou seus homens estariam seguindo-o furtiva­mente caso ele, por algum momento, deixasse seu talismã de lado. Ainda assim, em camisa ou cota de malha, ele era o velho Coman­dante. Caminharia firmemente, sem pressa, olhando direto à sua frente. Ao passar pela soleira da porta, já tinha a expressão de resis­tência. As pessoas no Salão da Justiça sentiram-se incomodadas quando o velho soldado saiu, e muitos olharam de lado os chicotes encarnados, com um pavor secreto.

 

Guenevere encontrava-se nos aposentos da Rainha, no Castelo de Carlisle. A cama enorme fora arranjada como um sofá. Parecia tão arrumada e retangular sob o dossel, que a pessoa podia se sentir intimidada para sentar. Havia uma lareira com um peque­no bule aquecendo ao lado, uma cadeira alta e a mesa de leitura. Ha­via também um livro a ser lido, talvez o Galeotto que Dante men­ciona. Custara o mesmo preço de noventa bois mas, como Guenevere já o lera sete vezes, já não emocionava tanto. Uma re­cente queda de neve jogava para cima, dentro do quarto, a luz do fi­nal da tarde, que brilhava no teto mais do que no piso, alterando as sombras habituais. Elas eram azuis, e nos lugares errados. A grande dama costurava, sentada um tanto formalmente na cadeira alta com o livro ao lado, e uma das suas damas de companhia, sentada nos de­graus da cama, também costurava.

Guenevere costurava, com a mente meio vazia de uma costurei­ra, a outra metade de seus pensamentos girando sem rumo entre suas preocupações. Desejava não estar em Carlisle. Era demasiado perto do Norte que era a região de Mordred —, demasiado longe das seguranças da civilização. Por exemplo, ela gostaria de estar em Lon­dres — talvez na Torre. Em vez de para essa monótona extensão de neve, ela gostaria de estar olhando pelas janelas da Torre para a alegria e a agitação da metrópole: para a Ponte de Londres, com as casas cam­baleando em cima, constantemente prestes a cair dentro do rio. Re­cordava-se dela como uma ponte de grande personalidade, também com as casas e as cabeças dos rebeldes nas estacas e o lugar onde Sir David lutou uma justa completa com Lord Welles. Os porões das ca­sas ficavam dentro dos pilares da ponte, e tinha também sua própria capela, e uma torre para defendê-la. Era um tipo perfeito de cidade de brinquedo, com donas de casa pondo as cabeças para fora das janelas, ou baixando baldes para dentro do rio com cordas compridas, ou jo­gando fora a água suja, ou pendurando a roupa, ou gritando com os fi­lhos quando a ponte levadiça estava para ser levantada.

A propósito, seria muito bom simplesmente estar na própria Torre. Aqui, em Carlisle, tudo era silencioso como a morte. Mas lá, na Torre do Conquistador, um constante ir e vir de londrinos esta­ria animando o gelo. Mesmo o zoológico de Arthur, que agora ele mantinha na Torre, estaria proporcionando um confortável fundo de barulho e cheiros. A última adição fora um elefante adulto, pre­sente do Rei da França, e especialmente desenhado para os arquivos pelo infatigável farejador de novidades, Mathew Paris.

Quando Guenevere chegou ao elefante, descansou a costura e começou a esfregar os dedos. Eles estavam adormecidos. Já não se descongelavam tão rapidamente como antes.

— Agnes, você colocou as migalhas do lado de fora para os pássaros?

— Sim, madame. O tordo estava animado hoje. Soltou um belo de um trinado contra um dos melros que estava demasiado glutão.

— Pobres criaturas. De qualquer forma, suponho que, em poucas semanas, todos estarão cantando.

Parece que faz tanto tempo desde que todo mundo partiu — disse Agnes. — A corte agora está como os pássaros: silenciosa e sem alma.

Eles voltarão, sem dúvida.

Sim, madame.

A Rainha pegou outra vez a agulha e empurrou-a cuidadosa­mente através do tecido.

Dizem que Lancelot tem sido valente.

Lancelot sempre foi um cavaleiro valente, madame.

A última carta diz que Gawaine teve um duelo com ele. Ele deve ter sofrido muito por ter de lutar com Gawaine.

Agnes disse com ênfase:

— Não consigo entender porque o Rei fica com Sir Gawaine contra seu melhor amigo. Qualquer um pode ver que é só por tei­mosia. E ainda arrasar a terra da França só para fazer mal a Sir Lan­celot, e matar tanta gente e dizer essas coisas que os Surradores di­zem. Não fará bem a ninguém continuar assim. Por que eles não podem deixar o passado ser passado, eu me pergunto.

— Acho que o Rei fica com Sir Gawaine porque está tentando ser justo. Acha que o clã das Órcades tem o direito de pedir justiça pela morte de Gareth — e suponho que realmente tenha. Além dis­so, se o Rei não se unisse a Sir Gawaine, não teria mais ninguém. Ele tinha mais orgulho da Távola Redonda do que de qualquer outra coisa, e agora ela está se desfazendo e ele quer conservar alguém.

— Combater Sir Lancelot é uma maneira ruim de conservar a Mesa unida — disse Agnes.

— Sir Gawaine tem seu direito à justiça. Pelos menos, dizem que ele tem. E o Rei tampouco é livre para escolher. Foi arrastado pelas pessoas — pelos homens que querem fazer conquistas na França e exigiram isso, ou que estão enjoados da longa paz que ele conseguiu manter, ou que estão ansiosos por promoções militares e mortes em troca daqueles que morreram na Praça do Mercado. Há os jovens cavaleiros do partido de Mordred, que acreditam em na­cionalismo e que foram ensinados a pensar que meu esposo é um velho antiquado, e há os parentes dos que estavam na luta nas esca­das, e há o clã das Órcades, que não esquece seus antigos ódios. A guerra é como um fogo, Agnes. Um homem a começa mas ela se es­palha por todo lado. Não é só por uma única coisa.

— Ah, esses assuntos elevados do poder, madame, estão além de nossa compreensão, pobres mulheres. Mas fale, o que dizia a carta?

Guenevere ficou em silêncio por algum tempo, olhando a carta sem vê-la, enquanto seus pensamentos refletiam sobre os problemas do esposo. Depois disse lentamente:

— O rei gosta tanto de Lancelot que é forçado a ser injusto com ele por medo de parecer injusto com outras pessoas.

— Sim, Madame.

— Aqui diz... — continuou a Rainha, reparando com um so­bressalto na carta que estivera olhando — aqui diz que Sir Gawaine cavalgava todos os dias em frente ao castelo, gritando que Lancelot era covarde e traidor. Os cavaleiros de Lancelot ficaram furiosos e saíram, um por um, para duelar com ele, mas ele os derrubou a to­dos, e feriu gravemente alguns. Quase matou Bors e Lionel, até que finalmente Sir Lancelot teve que ir, ele mesmo. As pessoas de den­tro do castelo o obrigaram. Ele disse a Sir Gawaine que fora obri­gado, como uma fera acuada.

— E o que disse Sir Gawaine?

— Sir Gawaine respondeu: "Parai de tagarelar e saia; vamos sossegar nossos corações".

— E sossegaram?

— Sim, tiveram um duelo na frente do castelo. Todos prome­teram não interferir, e eles começaram às nove horas da manhã. Você sabe como Sir Gawaine sempre luta melhor de manhã. Foi por isso que começaram tão cedo.

— Misericórdia para Sir Lancelot! Ter que enfrentá-lo com a força de três! Pois ouvi dizer que os Antigos têm o sangue das fadas dentro deles, através do cabelo vermelho, sabia, madame?, e isso dá ao chefe do clã, antes do meio-dia, a força de três pessoas, porque o sol luta com ele!

Deve ter sido terrível, Agnes. Mas Sir Lancelot é demasiado orgulhoso para não lhe dar essa vantagem.

Fico surpresa por ele não ter morrido.

Quase morreu. Mas se protegeu com o escudo e esquivou-se todo o tempo, lentamente, e recuou. Diz a carta que ele recebeu muitos golpes horríveis, mas conseguiu se defender até o meio-dia. Então, claro, quando a força mágica enfraqueceu, Lancelot conse­guiu tomar a ofensiva e terminou dando um golpe na cabeça de Sir Gawaine que o deixou prostrado. Não conseguiu mais se levantar.

— Ai! de Sir Gawaine!

— Sim, ele poderia tê-lo matado bem ali.

— Mas não matou.

— Não. Lancelot recuou e baixou a espada. Gawaine implorou que o matasse. Estava mais furioso que nunca e gritava: "Por que parais? Vamos, matai-me e acabai com essa carnificina. Eu não me renderei. Matai-me de uma vez, pois só farei voltar a combater-vos se me deixardes vivo". Ele estava chorando.

— Podemos ter certeza de que Sir Lancelot se recusou a gol­pear um cavaleiro ferido — disse Agnes, sabiamente.

— Podemos.

— Ele sempre foi um cavaleiro bom e gentil, embora não exa­tamente o que se pode chamar de uma beleza.

— Era o comandante de todos.

Ficaram em silêncio, reservadas nos seus sentimentos, e reco­meçaram a costurar. Depois, a Rainha disse:

— A luz está ruim, Agnes. Não está na hora de acender os juncos?

— Certamente, madame. Eu estava mesmo pensando nisso.

Ela começou a acendê-los no fogo, resmungando sobre o lugar atrasado e desprovido, os selvagens nortistas que não tinham velas, enquanto Guenevere cantarolava baixinho, distraída. Era o dueto que costumava cantar com Lancelot e, quando o reconheceu, parou imediatamente.

— Pronto, senhora. Os dias parecem mais compridos.

— Sim, logo chegará a primavera.

Sentada e costurando à luz fumarenta, Agnes retomou suas perguntas onde tinha parado.

— E o que disse o Rei sobre o assunto?

— Chorou quando viu como Gawaine fora poupado. Isso o fez recordar-se de outras coisas, e ele sentiu-se tão infeliz que adoeceu.

— Será que ele teve o que chamam de depressão nervosa, ma­dame?

— Sim, Agnes. Ele ficou doente de tristeza, e Gawaine teve concussão, então os dois passaram mal juntos. Mas os cavaleiros continuaram o cerco.

— Bom, não é uma carta muito alegre, não é, madame?

—Não, não é.

— Lembro que uma vez recebi uma carta... mas é isso, eles dizem que as notícias ruins viajam mais depressa.

— Tudo são cartas, agora... agora que a corte está vazia e o mundo dividido, e que não ficou ninguém a não ser Lorde Protetor.

— Ah, e esse Sir Mordred: não consigo suportar os gostos dele. Por que ele sai por aí fazendo tantos discursos para as pessoas, e fica agitando seu chapéu para fazê-los dar vivas? Por que ele não pode se vestir com roupas mais alegres, em vez de ficar zanzando por aí com aquele preto, como se fosse o Santo Dia do Juízo Final? Ele ti­rou isso do pobre Sir Gawaine, ouso dizer.

— O uniforme supostamente é o luto por Gareth.

— Aquele lá nunca se importou com Sir Gareth. Não acredito que se importe com ninguém.

Ele se importava com a mãe, Agnes.

E ela teve a garganta cortada por não ter sido melhor do que devia. São um povinho esquisito, todos eles.

A Rainha Morgause deve ter sido uma pessoa estranha disse Guenevere, com cuidado. — É de conhecimento de todos, agora que Mordred foi feito Lorde Protetor, portanto, não faz mal falar sobre isso. Mas ela deve ter sido uma mulher poderosa para ter atraído nosso Rei quando já era mãe de quatro meninos. Ora, ela atraiu Lamorak quando já era avó. Devia ter uma influência terrível sobre os filhos, para que um deles se sentisse tão furioso com ela a ponto de matá-la. Estava por volta dos setenta anos. Acho que ela devorou Mordred como uma aranha, Agnes.

— Houve uma época que eles costumavam falar que as irmãs da Cornualha eram feiticeiras. Claro, a pior delas era Morgana le Fay. Mas essa Morgause não ficava muito atrás.

— Faz com que a gente sinta pena de Mordred.

— Guarda a pena para si mesma, madame, pois não receberá nenhuma dele.

— Ele tem sido educado desde que assumiu o cargo.

— Sim, tem sido. Mas são os quietos que fazem as maldades. Guenevere refletiu sobre isso, segurando o tecido sob a luz.

Perguntou com alguma ansiedade:

— Você não acha que Sir Mordred pretende fazer algo errado, acha, Agnes?

— Ele é do mal.

— Ele não faria nada errado justo quando o Rei o deixou para cuidar do país e de nós?

— Esse seu Rei, madame, se me perdoa a liberdade, está com­pletamente fora da minha compreensão. Primeiro, vai lutar contra seu melhor amigo porque Sir Gawaine o manda fazer isso e, depois, deixa o seu maior inimigo como Lorde Protetor. Por que ele insis­te em agir tão cegamente?

— Mordred nunca foi contra as leis.

— Isso é porque ele é demasiado esperto.

— O Rei disse que Mordred teria que ser o herdeiro do trono, e não se pode ter o Rei e o herdeiro fora do país em um mesmo mo­mento, portanto, era natural que fosse deixado como Protetor. Foi apenas justo.

— Esse tipo de justiça, madame, nunca traz nada de bom. Elas continuaram costurando.

Agnes acrescentou:

— Se isso é verdade, o Rei deveria ter ficado e deixado Sir Mordred ir.

— Eu gostaria que ele tivesse feito isso. Mais tarde ela explicou:

— Acho que o Rei quis ficar com Sir Gawaine para o caso de poder servir de moderador entre eles.

Elas costuravam com desconforto, as agulhas passando pelo tecido escuro como o raio comprido das estrelas cadentes.

— Você tem medo de Sir Mordred, Agnes?

— Sim, madame, tenho.

— Eu também. Nos últimos tempos, caminha por aí tão silen­ciosamente e... olha para as pessoas de maneira estranha. E depois tem todos esses discursos sobre os gaélicos e os saxões e os judeus, e todos os gritos e histeria. Semana passada, eu o escutei rir sozinho. Foi horrível.

— Ele é dissimulado. Talvez esteja nos escutando agora.

— Agnes!

Guenevere deixou sua agulha cair, como se tivesse recebido um golpe.

— Ah, vamos, madame: não me leve a sério. Eu estava brincando. Mas a Rainha continuou gelada.

— Vá até a porta. Eu acho que você está certa.

— Ah, madame, não posso fazer isso.

Abra-a de uma vez, Agnes.

Madame, imagina se ele estiver lá!

Ela foi contagiada pelo sentimento. A luz impotente dos jun­cos não era suficiente. Ele podia estar dentro do próprio quarto, em algum canto escuro. Ela levantou-se de um salto, como uma perdiz quando o falcão se aproxima, e puxou a saia. Para as duas mulheres, o castelo de repente estava demasiado escuro, demasiado vazio, de­masiado solitário, demasiado ao Norte, demasiado cheio de noite e inverno.

— Se você abrir a porta, ele irá embora.

— Mas devemos lhe dar tempo para ir embora.

Lutavam com suas vozes, sentindo-se como se estivessem sob uma asa negra.

— Aproxime-se, então, e fale alto, antes de abrir.

— Madame, o que devo dizer?

— Diga, "Devo abrir a porta?" Então eu responderei: "Sim, acho que já é hora de ir para cama."

— Acho que já é hora de ir para a cama.

— Vá.

— Muito bem, madame. Posso começar?

— Comece, sim, logo!

— Não sei se vou dar conta.

— Oh, Agnes, por favor, rápido!

— Muito bem, madame. Acho que vou dar conta, sim. Olhando para a porta como se ela pudesse atacá-la, Agnes falou com sua voz mais alta:

— Eu estou indo abrir a porta!

— É hora de ir para a cama! Nada aconteceu.

— Agora, abra — disse a Rainha.

Ela levantou a tranca e abriu rapidamente a porta, e lá estava Mordred, sorrindo na soleira.

— Boa-noite, Agnes.

— Oh, senhor!

Com uma mão sobre o peito, a infeliz mulher fez-lhe uma rápi­da cortesia, e passou por ele correndo em direção às escadas. Ele afas­tou-se para um lado, educadamente. Quando ela desapareceu, ele en­trou no quarto, suntuoso no seu veludo negro, com um diamante frio brilhando à luz dos juncos no emblema escarlate. Qualquer pessoa que não o tivesse visto nos últimos dois meses teria percebido, ime­diatamente, que ele estava louco — mas sua razão se perdeu tão gra­dualmente que quem vivia com ele não pudera notar. Seu cãozinho preto seguia-o, com os olhos brilhantes e o rabo encaracolado.

— Nossa Agnes parece estar muito nervosa — ele disse. — Boa noite, Guenevere.

— Boa noite, Mordred.

— Um pouquinho de bordado? Pensei que vocês estivessem tricotando meias para os soldados.

— O que veio fazer aqui?

— Só uma visitinha noturna. Desculpe a entrada dramática.

— Você sempre espera à soleira das portas?

— A pessoa tem que entrar pelas portas de alguma forma, se­nhora. E mais adequado do que entrar pela janela — embora, acredito, algumas pessoas tenham ficado conhecidas por fazer isso.

— Entendo. Quer sentar?

Ele sentou-se com gestos elaborados, e o cãozinho logo saltou para seu colo. De certa forma, era trágico observá-lo pois era como sua mãe. Atuava, e havia deixado de ser real.

Tragédias foram escritas onde louras fatais traíram seus aman­tes, levando-os à ruína; onde Cressidas, Cleópatras, Dalilas, e algu­mas vezes filhas travessas, como Jéssíca, causaram a desgraça de seus amantes ou pais: mas não são elas o coração da tragédia. São sacudidelas na alma do homem. Que importa se Antony caiu sobre sua espada? Só ele morreu. E o desejo pela mãe, não pela amante, que apodrece o espírito. E isso que condena o caráter trágico à sua ca­minhada de morte. É Jocasta, não Julieta, quem habita na câmara interior. É Gertrude, não a tola Ofélia, quem leva Hamlet à sua lou­cura. O coração da tragédia não está em tomar ou roubar. Qualquer moça cabecinha-de-vento pode roubar um coração. Mas está no ato de dar, de pôr, de acrescentar, de sufocar sem travesseiros. Desdêmona, roubada de vida ou honra, não é nada para um Mordred, rou­bado de si mesmo — sua alma roubada, reprimida, secada, enquan­to a mãe-personagem vive triunfante, supérflua e com amor sufocante devotado a ele, aparentemente inocente de má-intenção. Mordred foi o único filho das Qrcades que nunca se casou. Ele, en­quanto seus irmãos fugiam para a Inglaterra, foi o que ficou sozinho com ela por vinte e quatro anos — sua despensa viva. Agora que ela estava morta, ele tornara-se seu túmulo. Ela existia nele como uma vampira. Quando ele se mexia, quando assoava seu nariz, ele o fazia com os movimentos dela. Quando atuava, tornava-se tão irreal quanto ela fora, pretendendo ser uma virgem para o unicórnio. Ele chapinhava na mesma magia cruel. Começara até a ter cães para pôr no colo, como ela — embora sempre tenha odiado os dela com o mesmo ciúme amargo com que odiara seus amantes.

— Parece que sinto uma frieza no ar esta noite?

— Em fevereiro faz frio.

— Estava me referindo à delicadeza de nossa relação pessoal.

— O Protetor, que meu esposo nomeou, deve ser bem recebido pela Rainha.

— Mas não o bastardo do esposo, suponho?

Ela abaixou sua agulha e olhou-o de frente.

— Não entendo porque veio assim, e não sei o que você quer. Ela não desejava ser hostil, mas ele a estava forçando. Ela nunca tivera medo de ninguém.

— Eu estava pensando em ter uma conversa sobre a situação política, apenas uma conversinha.

Ela percebeu que eles estavam diante de uma crise de algum tipo, e isso a enfraqueceu. Estava muito velha, agora, para lidar com homens loucos, embora ainda não suspeitasse de sua sanidade. Só a ironia incômoda de seu tom de voz a fazia sentir-se, ela também, ir­real — fazia-a incapaz de simplesmente dizer suas próprias palavras. Mas não se renderia.

— Ficarei feliz em saber o que você quer dizer.

— Isso é extremamente generoso de sua parte... Jenny.

Era monstruoso. Ele a estava transformando em uma de suas fantasias, não estava de jeito nenhum se dirigindo a uma pessoa de carne e osso.

Indignada, ela respondeu:

— Poderia ser gentil o suficiente para se dirigir a mim pelo meu título, Mordred?

— Mas certamente. Peço perdão se invadi a seara de Lancelot. O sarcasmo agiu como um tônico. Elevou sua estatura à da dama real que ela era, ao porte altivo de uma majestade cujos dedos reumáticos cintilavam de anéis, de alguém que dominara o mundo com sucesso por cinqüenta anos.

— Acredito que lhe seria muito difícil fazer isso — ela disse, imediatamente.

— Ah! Mas receio que estava pedindo por isso! Você sempre foi um pouco impetuosa... Rainha Jenny.

— Sir Mordred, se você não pode agir como um cavalheiro, eu me retiro.

— E para onde iria?

— Para qualquer lugar: qualquer lugar onde uma mulher com idade suficiente para ser sua mãe estaria a salvo desse tipo de extra­vagância.

— A questão — ele observou, como se refletisse — é: onde você estaria a salvo? O plano parece destinado ao fracasso, em últi­ma instância, quando se considera que todos se foram para a França e que eu sou o governante do reino. Claro, você poderia ir para a França... se conseguisse chegar lá.

Ela entendeu, ou começou a entender.

— Não sei o que você quer dizer.

— Então deve tentar adivinhar.

— Se você puder me dar licença — ela disse, levantando-se —, gostaria de chamar minha dama.

— Chame-a, como queira. Mas eu teria que mandá-la embora.

— Agnes só aceita ordens minhas.

— Duvido. Vamos experimentar.

— Mordred, quer se retirar?

— Não, Jenny — ele disse. — Quero ficar. Mas se você se sentar com calma por um minuto e escutar, prometo me comportar como um perfeito cavalheiro — como um de seus preux chevaliers, de fato.

— Você não me dá opções.

— Pouquíssimas.

— O que você quer? — ela perguntou e se sentou, entrelaçan­do as mãos no colo. Estava acostumada a uma vida de perigos.

— Ora, vamos — ele disse, com grande bom humor, completa­mente ensandecido, desfrutando seu jogo de gato e rato. —Não deve­mos nos precipitar dessa maneira sem graça. Devemos nos pôr à von­tade antes de começar nossa conversa, ou então ela parecerá forçada.

— Estou escutando.

— Não, não. Você deve me chamar de Mordy, ou de algum apelido carinhoso. Então parecerá mais natural quando eu lhe cha­mar de Jenny. Tudo caminhará de maneira muito mais agradável.

Ela não respondeu.

— Guenevere, você tem idéia da sua posição?

— Minha posição é a de Rainha da Inglaterra, assim como a sua é a de Protetor.

— Enquanto Arthur e Lancelot estão combatendo um ao outro na França.

— Exatamente.

— Suponha que eu lhe diga — ele perguntou, alisando o cãozinho — que recebi uma carta esta manhã? Que Arthur e Lancelot estão mortos?

— Eu não acreditaria em você.

— Mataram-se um ao outro em combate.

— Não é verdade — ela respondeu, calmamente.

— Realmente, não é. Como você adivinhou?

— Se não era verdade, foi cruel dizer isso. Por que você disse?

— Grande quantidade de pessoas teria acreditado, Jenny. Espero que uma grande quantidade acredite.

— Por que acreditariam? — ela perguntou, antes de entender seu objetivo. Então parou, prendendo a respiração. Pela primeira vez começou a sentir medo: mas era por Arthur.

— Você não pode querer dizer que...

— Oh, mas eu posso — ele exclamou, com alegria —, e vou fazer. O que você acha que acontecerá se eu anunciar a morte do pobre Arthur?

— Mas Mordred, você não pode fazer uma coisa dessas! Eles estão vivos... Você deve tudo... O Rei fez de você seu representan­te... Seu juramento... Não seria verdade! Arthur sempre o tratou com escrupulosa justiça.

Ele respondeu com os olhos frios:

— Nunca pedi para ser tratado com justiça. É algo que ele faz com o povo para se divertir.

— Mas ele é seu pai!

— Quanto a isso, tampouco pedi para nascer. Suponho que ele fez também para se divertir.

— Entendo.

Ela sentou-se, torcendo a costura nas mãos, tentando pensar.

Por que você odeia meu esposo? — perguntou, quase em dúvida.

Não o odeio. Desprezo-o.

Quando tudo aconteceu — ela explicou com gentileza —, ele não sabia que sua mãe era irmã dele.

E suponho que ele não sabia que eu era seu filho, quando nos enxotou no barco?

Ele mal tinha dezenove anos, Mordred. Eles o atemoriza­ram com profecias, e ele fez o que o mandaram fazer.

— Minha mãe era uma mulher honesta até encontrar Rei Arthur. Tinha um lar feliz com Lot das Órcades, e lhe deu quatro filhos valentes. O que aconteceu depois?

— Mas a Rainha Morgause tinha o dobro da idade dele. Ela deve ter...

Ele a fez parar, levantando a mão.

— Você está falando de minha mãe.

— Sinto muito, Mordred, mas realmente...

— Eu amava minha mãe.

— Mordred...

— O Rei Arthur aproximou-se de uma mulher que era fiel a seu esposo. Quando a deixou, era uma mulher desonrada. Terminou seus dias em uma cama desnuda com Sir Lamorak, morta com jus­tiça por um de seus próprios filhos.

— Mordred, não adianta dizer nada se você não quiser ver... se você não consegue acreditar que Arthur é bom e está arrependido e em dificuldades. Ele gosta de você. Ele estava me contando como amava você justo um ou dois dias antes que esse tormento começasse...

— Ele pode ficar com o amor dele.

— Ele tem sido tão justo — ela protestou.

— O nobre e justo Rei! Sim, é fácil ser justo depois que tudo acaba. Essa é a parte divertida. Justiça! Ele pode ficar com isso também.

Tentando falar com firmeza, ela disse:

— Se proclamar a si mesmo rei, eles virão da França para com­bater contra você. Então teremos duas guerras em vez de uma, e ela será travada na Inglaterra. Toda a fraternidade será destruída.

Ele sorriu de pura satisfação.

— Parece inacreditável — ela disse, espetando o bordado. Não havia nada que pudesse fazer. Por um momento, passou pela sua cabeça que se ela se humilhasse diante dele, se se ajoelhas­se em seus velhos joelhos endurecidos para pedir clemência, ele po­deria talvez se apaziguar. Mas era evidente que seria inútil. Ele es­tava fixo em sua rota, como uma bola correndo por um sulco habitual. Mesmo sua conversa era, por assim dizer, a parte falada de sua atuação. Terminaria segundo o roteiro.

— Mordred — ela disse, impotente —, tenha piedade do povo do país, se não tiver nenhuma de Arthur nem de mim.

Ele tirou o cãozinho do colo e se levantou, sorrindo para ela com louca satisfação. Endireitou-se, olhando-a, mas sem realmente a ver.

— É claro que terei piedade de você — ele disse —, já que não terei de Arthur.

— O que você quer dizer?

— Eu estava pensando em um padrão, Jenny, um simples padrão.

Ela o olhou sem falar.

— Sim. Meu pai cometeu incesto com minha mãe. Você não acha que seria um padrão, Jenny, se eu respondesse me casando com a esposa do meu pai?

 

Estava escuro na tenda de Gawaine, exceto por um braseiro achatado que iluminava fracamente a partir de baixo. A tenda era pobre e gasta, comparada com os pavilhões esplêndidos dos ca­valeiros ingleses. Sobre a cama dura havia algumas mantas com o padrão xadrez das Órcades, e os únicos ornamentos eram uma pe­sada garrafa de água benta que ele estava tomando como remédio, com a etiqueta "Optimus egrorum, medicus fit Thomans bonorum", e um molho de urzes murchas amarrado no mourão da tenda. Eram os seus deuses domésticos.

Gawaine estava esticado, deitado de bruços, nas mantas. Estava chorando, lenta e desesperadamente, enquanto Arthur, sentado ao lado dele, afagava sua mão. Era porque o ferimento o enfraquecera, do contrário não estaria chorando. O velho Rei tentava acalmá-lo.

— Não se aflija por isso, Gawaine — ele disse. — Você fez o melhor que podia.

— Foi a segunda vez qui ele mi poupou, a segunda im um mês.

— Lancelot sempre foi forte. Os anos parecem não tocá-lo.

— Por qui ele nã mi mata, entã? Implorei qui mi fizesse esse favor. Falei qui si mi deixasse para ser emendado, eu ia lutar com ele de novo quando fosse remendado. I por Deus! — acrescentou, com lágrimas — como mi cabeça dói!

Arthur explicou, com um suspiro:

— É porque os dois golpes pegaram no mesmo lugar. Foi má sorte.

— Faz o corpo si sentir envergonhado.

— Não pense nisso, então. Fique deitado tranqüilo, ou você terá febre de novo e não poderá lutar por muito tempo. E então, o que faríamos? Ficaríamos completamente perdidos sem nosso Ga­waine para comandar uma batalha para nós.

— Sou só um espantalho, Arthur — ele disse. — Sou um valentã de más intençãs, e nã consigo derrotar Lancelot.

— As pessoas que dizem que não boas sempre são as que pres­tam. Vamos mudar de assunto e falar de coisas agradáveis. A Ingla­terra, por exemplo.

— Nunca veremos di novo a Inglaterra.

— Bobagem! Vamos ver a Inglaterra na primavera. Ora, já é quase primavera. Os flocos de neve já terão desaparecido há sécu­los, e ouso dizer que Guenevere já terá um pouco de açafrão. Ela é boa em jardinagem.

— Guenevere foi gentil comigo.

— Minha Gwen é gentil com todo mundo — disse o velho, or­gulhoso. — Imagino o que estará fazendo agora. Indo para cama, suponho. Ou talvez esteja acordada até tarde, tendo uma conversa com seu irmão. Seria ótimo pensar que eles estão falando de nós nesse momento, talvez falando de coisas admiráveis sobre as proe­zas de Gawaine; ou talvez Gwen esteja dizendo que gostaria que seu velho voltasse para casa.

Gawaine mexeu-se inquieto na cama.

— Tenho a intençã de voltar pra casa — murmurou. — Si Lancelot odeia o clã das Órcades, como Mordred diz, por qui poupou su chefe? Pode mesmo ser qui ele tenha matado Gareth por má sorte.

— Tenho certeza de que foi má sorte. Se você me ajudar a pôr um fim na guerra, vamos poder terminar logo com isso. É por sua justiça que estamos lutando agora, você sabe. Eu e os outros que queremos lutar teremos que acabar nos curvando a isso. Se você quiser pôr um fim nisso, ninguém ficará mais feliz do que eu.

— Sei, mas mi fiz um juramento de lutar com ele até a morte.

— E você teve duas boas tentativas.

— I levei uma surra completa nas duas vezes — disse, com amargura. — Lancelot podia ter terminado a guerra duas vezes. Nã, ia parecer covardia si eu mi rendesse.

— Os mais valentes são os que não se importam de parecerem covardes. Lembre-se de como Lancelot se escondeu em Joyous Gard durantes meses, enquanto cantávamos hinos do lado de fora.

— Nã posso esquecer o rosto di nosso Gareth.

— Foi triste para todos nós.

Gawaine estava tentando pensar, um esforço que a falta de prá­tica tornava difícil. Nesse escuro anoitecer, era duas vezes mais difí­cil, por causa de sua cabeça. Desde a época que Galahad lhe deu uma concussão, na busca do Graal, ele ficou sujeito a dores de cabeça, e agora, por um curioso acidente, Lancelot lhe dera dois golpes, em duelos diferentes, no mesmo lugar.

— Por qui deveria desistir? — ele perguntou. — Só porqui ele mi derrotou? Seria como fugir dele si desistisse agora. Si pudesse derrubá-lo im um tercer encontro, talvez. I poupar o chefe... ficaria empatado.

— Os campos — disse o Rei, pensativo —, logo estarão cobertos de ranúnculos amarelos e de margaridas. Seria ótimo conquistar a paz.

— E verdade, i a caça com falcã na primavera.

A figura agitou-se na cama escura, com um movimento de re­cordação, mas imobilizou-se quando a dor lhe trespassou o crânio.

— Misericórdia, mi cabeça lateja di dor.

— Você quer que eu apanhe uma atadura úmida para colocar aí, ou uma taça de leite?

— Nã. Deixa assim. Nã vai adiantar.

— Pobre Gawaine. Espero que nada tenha se quebrado aí dentro.

— A coisa qui está quebrada é mi espírito. Vamos mudar di conversa.

O Rei disse, em dúvida:

— Não devo falar muito. Acho que devo sair e deixar você dormir.

— Nã, fique. Nã mi deixe só. Fico aborrecido si estou só comigo.

— O médico disse...

— Pro inferno c'o o médico. Fique mais um pouco. Pegue mi mã. Fale da Inglaterra.

— Amanhã deve chegar um correio e então poderemos saber como está a Inglaterra. Teremos as últimas notícias, e haverá uma carta do jovem Mordred, e talvez minha Gwen me escreva.

— As cartas di Modred sã alegria fria, di certa forma. Arthur apressou-se a defendê-lo.

— É só porque ele tem uma vida infeliz. Você pode acreditar que dentro dele tem um fogo permanente de amor. Gwen dizia que todo o calor dele era para a mãe.

— Ele amava nossa mãe.

— Talvez estivesse apaixonado por ela.

— Isso explicaria a razã de sus ciúmes.

Gawaine ficou surpreso com essa descoberta, que pela primeira vez lhe ocorria.

— Talvez tenha sido por isso que ele deixou Sir Agravaine matá-la, quando ela teve aquele caso com Lamorak... Pobre rapaz, tem sido maltratado pelo mundo.

— Ele é o único de mis irmãos qui mi restou.

Eu sei. O episódio com Lancelot foi um trágico acidente.

O senhor de Lothian mexeu febrilmente na atadura.

Mas nã pode ter sido acidente. Eu podia ter mis dúvidas si eles estivessem usando elmos, mas eles estavam sem proteçã. Ele devia saber disso.

— Já conversamos sobre isso várias vezes.

— Sim, nã adianta.

O velho perguntou com trágico recato:

— Você não acha que poderia chegar a perdoá-lo, Gawaine, seja o que for que tenha acontecido? Não estou pretendendo me furtar ao dever, mas se a justiça pudesse ser combinada com a clemência...

— Vou combiná-la quando ele estiver sob mi mercê, nã antes.

— Bom, é você quem deve dizer. Aí vem o médico para me dizer que fiquei tempo demais. Entre, doutor, entre.

Mas foi o Bispo de Rochester quem entrou alvoroçado, carre­gando alguns pacotes e uma lanterna de ferro.

— É você, Rochester. Achamos que era o doutor.

— Boa noite, senhor. E boa noite para Sir Gawaine.

— Boa noite.

— Como está a cabeça hoje?

— Melhor, obrigado, mi senhor.

— Ótimo, essa é uma excelente notícia. E eu — ele acrescen­tou com malícia — também trouxe uma boa notícia. O correio che­gou cedo!

— Cartas!

— Aqui está uma bem longa — e ele entregou uma carta para o Rei.

— Tem alguma pra mim?

— Nada, receio que não, esta semana. Terá melhor sorte da próxima vez.

Arthur aproximou a carta da lanterna e quebrou o selo.

— Perdão se a leio.

— Claro. Não podemos fazer cerimônia com as notícias da In­glaterra. Meu Deus, nunca pensei que um dia na vida me tornaria um romeiro, Sir Gawaine, e ficaria andando de um lado para outro em terras estrangeiras....

A tagarelice do bispo extinguiu-se. Arthur ficou imóvel. Não ficou nem vermelho nem pálido; nem deixou cair a carta, nem olhou fixo à sua frente. Lia em silêncio. Mas Rochester parou de falar, e Gawaine ergueu-se em um cotovelo. Observaram-no ler, boquia­bertos.

— Senhor...

— Nada — ele disse, afastando-os com a mão. — Perdão. As notícias...

— Espero...

— Deixe-me terminar, por favor. Converse com Sir Gawaine. Gawaine perguntou:

— São más notícias... Posso ver?

— Não, por favor, um minuto.

— Mordred?

— Não. Não é nada. O doutor disse... Meu senhor, eu gostaria de lhe falar lá fora.

Gawaine começou a se sentar na cama.

— Tenho qui saber.

— Não há nada para se preocupar. Fique deitado. Nós voltaremos.

— Si você sair sem mi contar, eu vou atrás.

— Não é nada. Fará mal à sua cabeça.

— O qui é?

— Nada. É só que...

— Sim?

— Bem, Gawaine — ele disse, sucumbindo de repente —, pare­ce que Mordred proclamou-se a si mesmo Rei da Inglaterra, sob a sua Nova Ordem.

— Mordred!

— Ele disse a seus Surradores que estamos mortos, entende — Arthur explicou, como se fosse uma espécie de problema —, e...

— Mordred disse que estamos mortos?

— Ele disse que estamos mortos, e...

Mas não conseguiu achar as palavras.

— E o quê?

— Ele vai se casar com Gwen.

Houve um silêncio de morte, enquanto a mão do bispo procu­rava vagamente a cruz em seu peito e Gawaine agitava-se entre as roupas da cama. Depois, os dois falaram ao mesmo tempo.

— Lorde Protetor...

— Nã pode ser verdade. Deve ser brincadeira. Mi irmão nã fa­ria uma coisa dessas.

— Desgraçadamente, é verdade — disse o Rei, com paciência. — Esta carta é de Guenevere. Só Deus sabe como ela conseguiu enviá-la.

— A idade da Rainha...

— Depois da proclamação, ele pediu-a em casamento. Ela não tinha ninguém a quem recorrer. A Rainha aceitou o pedido.

— Aceitou Mordred!

Gawaine conseguiu um jeito de colocar as pernas para fora da cama.

— Tio, mi dê esta carta.

Tomou-a da mão inerte, que a entregou automaticamente, e começou a ler, inclinando a folha para a luz. Arthur continuou a explicar.

— A Rainha aceitou a proposta de Mordred e pediu autoriza­ção para ir a Londres preparar o enxoval. Quando estava em Lon­dres com os poucos que permaneceram fiéis, ela entrou subitamen­te na Torre e fechou os portões. Graças a Deus é uma fortaleza poderosa. Agora, eles a estão sitiando na Torre de Londres e Mor­dred está usando armas de fogo.

Rochester perguntou, desnorteado:

— Armas de fogo?

— Ele está usando canhões.

Era demais para o entendimento do velho padre.

— É inacreditável! — ele disse. — Dizer que estamos mortos e casar com a Rainha! E depois usar canhões...

— Agora que as armas de fogo chegaram — disse Arthur —, a Távola acabou. Devemos apressar-nos de volta para casa.

— Usar canhões contra homens! Devemos partir imediata­mente em socorro, meu senhor. Gawaine pode ficar aqui...

Mas o Senhor das Órcades já estava fora da cama.

— Gawaine, o que está fazendo? Volte imediatamente para a cama.

— Vou com vocês.

— Gawaine, deite-se. Rochester, ajude-me com ele.

— Mi último irmão quebrou seu juramentado di fidelidade.

— Gawaine...

— I Lancelot... Oh Deus, mi cabeça!

Ele oscilou sob a luz tênue, segurando a atadura com ambas as mãos, enquanto sua sombra se movia grotescamente em torno do mourão da tenda.

 

Anguish da Irlanda uma vez sonhou com um vento que derru­baria todos os seus castelos e cidades — e este parecia conspi­rar para isso. Estava soprando ao redor do Castelo de Benwick com todos os registros de um órgão. O barulho que fazia soava como grosseiros feixes de seda sendo puxados através das árvores; como nós puxamos o cabelo com o pente; como montes de areia fina es­correndo por uma pá; como gigantescos panos de linho sendo tor­cidos; como tambores em uma batalha distante; como uma intermi­nável serpente desviando-se entre a vegetação rasteira do mundo das árvores e das casas; como velhos suspirando, mulheres gemen­do e lobos correndo. Assobiava, zumbia, latejava, ribombava entre as chaminés. Sobretudo, soava como uma criatura viva: um ser monstruoso, elementar, lamentando sua danação. Era o vento de Dante, carregando amores e guindastes perdidos: Satã sem sabá, labutando e causando tumulto.

No mar ocidental, atormentava sua placidez, levantando das águas seu corpo e carregando-o como espuma. Na terra seca fazia as árvores vergarem-se à sua frente. Os espinheiros retorcidos, que cresceram com tronco duplo, gemiam, batendo um tronco contra o outro com gritos e lamentos. Nos ramos das árvores que açoitavam e estalavam, os pássaros voltavam-se de cabeça contra o vento, o corpo na horizontal, as garras afiadas transformadas em âncoras. Os falcões peregrinos sentavam-se estoicamente nos ro­chedos, os pêlos de suas suíças raiadas pela chuva e as penas mo­lhadas eriçadas nas cabeças. Os gansos selvagens, batendo as asas no crepúsculo, rumo a seu repouso, dificilmente conseguiam fa­zer um metro por minuto contra o vento em torrentes, seus gri­tos desencontrados soando de frente para trás, de tal forma que eles tinham que já ter passado para que se pudesse ouvi-los, em­bora só estivessem a poucos metros de altura. Os patos selvagens e os marrecos, voando alto com o vendaval por trás, desapareciam antes de chegar.

Por baixo das portas do castelo, as rajadas penetrantes tortura­vam os tapetes de junco do chão. Ululavam nos poços das escadas em caracol, chacoalhavam as janelas de madeira, gemiam estriden­tes pelas seteiras, agitavam as tapeçarias geladas em ondulações igualmente geladas, procuravam a medula dos ossos. As torres de pedra arrepiavam-se sob elas, tremendo materialmente como as cordas baixas dos instrumentos musicais. Pedaços de cimento voa­vam para longe e se despedaçavam com ruídos desconexos.

Bors e Bleoberis estavam acocorados ao lado do lume vivo, ao qual o vento, sem trégua, parecia ter dado a propriedade de lançar luz sem calor. O próprio fogo parecia congelado, como se fosse pin­tado. O espírito de ambos estava perturbado pelo flagelo do tempo.

— Mas por que eles partiram com tanta pressa? — perguntou Bors, em tom de queixa. — Nunca antes ouvi falar de um cerco sen­do levantado assim. Eles se foram da noite para o dia. Partiram como se tivessem sido levados pelo vento.

— Devem ter recibo más notícias. Alguma coisa de mau deve ter acontecido na Inglaterra.

— Pode ser.

— Se eles decidiram perdoar Lancelot, teriam enviado uma mensagem.

— Realmente parece estranho, fazerem-se à vela tão imediata­mente, sem dizer nada.

— Você acha que pode ter acontecido uma revolta na Cornualha, ou em Gales, ou na Irlanda?

— Sempre há os Antigos — concordou Bleoberis, entorpecido.

— Não acho que tenha sido uma revolta. Acho que o Rei adoeceu e teve que ser levado rapidamente para casa. Ou Gawaine pode ter caído doente. Será que aquele golpe que Lancelot lhe deu, da segunda vez, penetrou sua caixa craniana?

— Pode ser.

Bors atiçou o fogo.

— Partirem assim, sem dizer uma palavra!

— Por que Lancelot não faz alguma coisa?

— O que poderia fazer?

— Não sei.

— O Rei o desterrou.

— Sim.

— Portanto, não há nada a fazer.

— Mesmo assim — disse Bleoberis —, eu queria que ele fizes­se alguma coisa.

Uma porta abriu-se com estrondo no fundo das escadas do tor­reão. As tapeçarias giraram, os juncos ergueram-se, o fogo jorrou fumaça, e a voz de Lancelot, com o vento, gritou:

— Bors! Bleoberis! Demaris!

— Aqui!

— Onde!

— Aqui em cima!

Quando a porta distante fechou, o silêncio voltou à sala. Os

tapetes de junco se acomodaram de novo, e os pés de Lancelot soaram claramente nos degraus de pedra, onde antes fora difícil ouvir seus gritos. Entrou apressado, segurando uma carta.

— Bors. Bleoberis. Estava procurando vocês. Os dois cavaleiros levantaram-se.

— Chegou uma carta da Inglaterra. Os mensageiros foram atirados à costa cerca de cinco quilômetros acima. Teremos que partir imediatamente.

— Para a Inglaterra?

— Sim, sim. Para a Inglaterra, claro. Encarreguei Leonel de organizar o transporte e quero que você, Bors, cuide da forragem. Teremos que esperar até que o vendaval passe.

— Por que estamos indo? — perguntou Bors.

— Quais são as notícias?

— Notícias? — ele disse, vagamente. — Não há tempo para isso. Eu lhes contarei no barco. Tome, leiam a carta.

Ele deu a carta para Bors e saiu antes que eles pudessem fazer mais perguntas.

— Ora, ora!!

— Leia o que ela diz.

— Nem sei de quem é.

— Talvez a própria carta o diga.

Lancelot reapareceu antes que a pesquisa deles tivesse passado da data.

— Bleoberis — ele disse —, eu me esqueci. Quero que você cui­de dos cavalos. Vamos, me dê a carta. Se vocês dois começarem a so­letrá-la vão demorar a noite toda.

— O que ela diz?

— A maior parte das notícias veio com o mensageiro. Parece que Mordred se revoltou contra Arthur, proclamou-se a si mesmo Líder da Inglaterra e pediu a mão de Guenevere.

— Mas ela já é casada — protestou Bleoberis.

 

Então, a cabeça de Llewellyn de Griffith, com sua coroa de heras, apodrecia nas estacas da Torre, e você encontraria mendigos na beira das estradas, homens mutilados que na mão esquerda carre­gavam sua mão direita, e cães da floresta que trotavam ao lado deles, também mutilados pela amputação de um dedo da pata — para que não caçassem nas florestasdo senhor.

 

Foi por isso que levantaram o cerco. Então, ao que parece,

Mordred reuniu um exército em Kent para se opor ao desembarque do Rei. Ele  tinha anunciado que Arthur estava morto. Está manten­do a Rainha cercada na Torre de Londres, e usando canhões.

— Canhões!

Ele foi ao encontro de Arthur em Dover e travou uma ba­talha para evitar o desembarque. Foi um combate difícil, metade no mar, metade na terra, mas o Rei venceu. Conseguiu desembarcar.

— Quem escreveu a carta? Lancelot de repente sentou-se.

— Foi Gawaine, o pobre Gawaine. Ele está morto.

— Morto!

— Como pôde escrever... — começou Bleoberis.

— É uma carta terrível. Gawaine era um homem bom. Todos vocês que me obrigaram a combatê-lo, vocês não viram o coração que ele tinha dentro do peito.

— Leia a carta — sugeriu Bors, impaciente.

— Parece que um corte que lhe dei na cabeça foi grave. Ele não devia ter feito a viagem. Mas estava se sentindo só e miserável, e tinha sido traído. Seu irmão mais jovem se tornou um traidor. In­sistiu em voltar para ajudar o Rei e, na batalha do desembarque, tentou combater. Infelizmente, recebeu uma pancada de clava na ferida antiga e morreu poucas horas depois.

— Não vejo porque você deveria se perturbar com isso.

— Escutem o que está escrito.

Lancelot levou a carta até a janela e caiu em silêncio, exami­nando o escrito. Havia algo de tocante nela, a caligrafia sendo tão diferente do seu autor. Dificilmente Gawaine seria o tipo de pessoa que poderia ser considerado um escritor. Na verdade, pareceria mais natural se ele fosse analfabeto, como a maioria dos outros. No entan­to, aqui, em vez do trespassado gótico então em uso, estava a encan­tadora e minúscula gaélica antiga, tão perfeita, redonda e pequena como quando ele a aprendera com algum antigo santo de Dunlothian. Ele escrevera tão pouco desde então que a arte retivera sua beleza. Era a caligrafia de uma velha donzela, ou de um rapaz fora de moda, sentado com os pés presos nas pernas de um banco e a lín­gua de fora, escrevendo com todo cuidado. Conservara essa exati­dão inocente, essas hastes antiquadas e elegantes, no sofrimento e na paixão até a velhice. Era como se um fulgurante rapaz tivesse saí­do da armadura negra: um pequeno garoto com o nariz pingando, os pés nus de dedos sujos, uma raiz de sargaço no maço fino de ce­nouras que eram seus dedos.

 

Dedicado a Sir Lancelot, a flor de todos os nobres cavaleiros de que ouvi falar ou conheci em meus dias: eu, Sir Gawaine, filho do Rei Lot das Órcades, filho da irmã do nobre Rei Arthur, a quem aqui envio minhas saudações.

E é do meu desejo que todo o mundo testemunhe que eu, Sir Gawaine, Cavaleiro da Távola Redonda, procurei minha morte em vossas mãos — e não através de vosso querer, mas sendo esse o meu próprio desejo. E portanto eu vos rogo, Sir Lancelot, que retorne uma vez mais a este reino e visite minha tumba, e faça mais ou menos alguma oração por minh'alma.

E neste mesmo dia que vos escrevo essa missiva, fui ferido de morte na mesma ferida que recebi de vossas mãos, Sir Lancelot, pois por um homem mais nobre não poderia eu ser morto.

Da mesma maneira, Sir Lancelot, por todo o amor que sempre existiu entre nós....

 

Lancelot parou de ler e jogou a carta na mesa.

— Chega! — ele disse. — Não posso continuar. Ele me pede para ir com toda rapidez, para ajudar o Rei contra seu irmão: seu úl­timo parente. Gawaine amava a família, Bors, e no final ficou sem ninguém. No entanto, me escreveu para me perdoar. E até diz que a culpa foi dele. Deus sabe como ele foi um bom e verdadeiro irmão.

— O que devemos fazer em relação ao Rei?

— Devemos chegar à Inglaterra o mais rápido que pudermos. Mordred retirou-se para Canterbury, onde está travando uma nova batalha. Pode ter terminado, a essa altura. Essa mensagem chegou atrasada por causa da tempestade. Tudo depende da nossa rapidez.

Bleoberis disse:

— Vou cuidar dos cavalos. Quando partimos?

— Amanhã.   Esta noite.  Agora.   Quando o vento  amainar. Apresse-se.

— Certo.

— E você, Bors, a forragem.

— Sim.

Lancelot seguiu Bleoberis até as escadas, mas virou-se na porta.

— A Rainha sitiada — disse. — Temos que libertá-la.

— Sim.

Bors, deixado a sós com o vento, pegou a carta com curiosida­de. Inclinou-a à luz fraca, admirando o z parecendo um g, o b en­caracolado, e o t curvo como a lâmina de um arado. Cada pequena linha era o sulco que ela abria, macio como a terra recém-lavrada. Mas o sulco vagava para o final. Ele a virou, observando a assina­tura marrom. Soletrou a conclusão — fazendo movimentos de fala com a boca, enquanto os tapetes batiam, a fumaça soprava e o vento gemia.

 

E neste dia minha carta foi escrita, apenas duas horas e meia antes de minha morte, escrita com minha própria mão e assim subscrita com parte do sangue do meu coração.

 

Gawaine das Órcades

 

Ele soletrou o nome duas vezes e deu um tapinha nos dentes. Gawaine.

— Suponho que no Norte eles pronunciariam Cuchullain — ele disse em voz alta, em dúvida. — Nunca se sabe com essas línguas anti­gas.

Depois, pousou a carta, aproximou-se da lúgubre janela e co­meçou a cantarolar uma canção chamada Bruma, bruma na monta­nha, cujos versos se perderam para nós nas vagas do tempo. Talvez fossem como os modernos, que dizem que

 

"O sangue ainda é forte, o coração é da Alta Escócia

E nós, nos sonhos, contemplamos as Hébridas."

 

O mesmo vento de tristeza soprava ao redor do pavilhão do Rei em Salisbury. Dentro, havia uma calma silenciosa, de­pois do tumulto ao ar livre. Era um interior suntuoso, em parte por conta das tapeçarias reais — lá estava Urias, ainda no momento da bissecção —, do diva mergulhado em peles e das velas cintilantes. Era mais uma tenda de grandes dimensões do que uma tenda de campanha. A cota de malha do Rei reluzia fracamente num cabide ao fundo. Um falcão mal-educado, que tinha o vício de gritar, per­manecia encapuzado e imóvel em um poleiro, como o de um papa­gaio, meditando sobre algum pesadelo ancestral. Um galgo, branco como marfim, estendido sobre as quatro patas, o rabo curvado como uma foice ossuda, observava o velho homem com os olhos mansos da compaixão. Um magnífico tabuleiro de xadrez esmalta­do, com peças de jaspe e cristal, encontrava-se na posição de xeque-mate, ao lado da cama. Havia papéis por todo canto. Eles cobriam a escrivaninha do secretário, a mesa de leitura, os bancos; documen­tos enfadonhos de governo, mesmo assim bravamente examinados; jurídicos, ainda a serem codificados; do comissariado, do arma­mento e ordens do dia. Um grande registro encontrava-se aberto na anotação de um criminoso infeliz, William atte Lane, que fora condenado à forca, suspendatur, por pilhagem. A margem, com a le­tra elegante do secretário, estava o lacônico epitáfio "susp.", ade­quado ao tom de tragédia. Sobre a mesa de leitura havia pilhas in­findáveis de petições e memoriais, todos trazendo a decisão real e assinatura. Naqueles com os quais o Rei concordava, ele escrevera laboriosamente "Le roy le veult". As petições rejeitadas estavam marcadas com a desculpa cortês sempre usada pela realeza: "Le roy s'advisera". A mesa de leitura e seu assento eram feitos de uma úni­ca peça, e ali se encontrava, prostrado, o próprio Rei. Sua cabeça estava pousada em meio aos papéis, espalhando-os. Parecia estar morto — e quase estava.

Arthur estava esgotado. Ficara desfeito com as duas batalhas que já travara: a de Dover, a outra em Barham Down. Sua esposa era uma prisioneira. Seu amigo mais antigo estava banido. Seu filho ten­tava matá-lo. Gawaine estava enterrado. Sua Távola fora destruída. Seu país estava em guerra. No entanto, ele poderia, de alguma ma­neira, ter enfrentado tudo isso se o credo de seu coração não tivesse sido destroçado. Muito tempo atrás, quando seu espírito era o de um jovem esperto chamado Wart, muito tempo atrás ele fora ensinado por um ancião benevolente, que torcia sua barba branca. Fora ensi­nado por Merlin a acreditar que o homem era aperfeiçoável: que era, no todo, mais decente do que animalesco; que valia a pena tentar ser bom; que não existia uma coisa como o pecado original. Ele foi for­jado como uma arma para ajudar o homem, na suposição de que os homens eram bons. Foi forjado por aquele velho mestre iludido em uma espécie de Pasteur, ou Curie, ou o determinado descobridor da insulina. A missão para a qual foi destinado era contra a Força, a doença mental da humanidade. Sua Távola, sua idéia da Cavalaria, seu Santo Graal, sua devoção à Justiça: esses foram passos progressivos no esforço para o qual ele foi criado. Era como um cientista que, em toda a sua vida, buscara a raiz do câncer. Deveria — se tivesse chegado ao fim — fazer os homens mais felizes. Mas toda a estrutu­ra dependia da primeira premissa: que o homem era decente.

Olhando para sua vida passada, tinha a impressão de ter estado todo o tempo lutando para construir um dique contra uma inunda­ção que, sempre que a checava, tinha irrompido em um novo lugar, fazendo com que começasse todo o seu trabalho de novo. Era a inundação da Force Majeur. Durante os primeiros tempos antes de seu casamento, ele tentara combater a força com a força — em suas batalhas contra a confederação gaélica —, só para descobrir que dois errados não fazem um certo. Mas conseguira esmagar com su­cesso o sonho feudal de guerra. Em seguida, com sua Távola Re­donda, tentou utilizar a Tirania em formas menores, para que seu poder pudesse servir a fins úteis. Enviou homens poderosos para so­correr os oprimidos e corrigir o que era mau — para liquidar o po­der individual dos barões, da mesma maneira que ele havia liquida­do o poder dos Reis. Eles assim fizeram, até que, com o decorrer do tempo, os fins foram conseguidos, mas a força continuou em suas mãos, indisciplinada. Por isso ele teve que procurar um novo canal, e os enviou a serviço de Deus na procura do Santo Graal. Isso tam­bém redundou em fracasso, pois quem chegou ao fim da busca, atin­giu a perfeição e se perdeu para o mundo, enquanto os que falha­ram, logo regressaram, sem terem se tornado melhores. Por fim, ele procurou fazer um mapa da força, como era, para subjugá-la por meio das leis. Tentou codificar os maus usos do poder pelos indiví­duos, a fim de poder impor-lhe limites pela justiça impessoal do Es­tado. Estava preparado para sacrificar sua esposa e seu melhor ami­go à impessoalidade da Justiça. E então, mesmo quando a força do indivíduo parecia subjugada, o Princípio da Força levantou-se às suas costas em uma outra forma: a forma da força coletiva, da fero­cidade de grupo, de numerosos exércitos insensíveis às leis individuais. Ele subjugara a força das unidades só para vê-la sendo assu­mida pelas pluralidades. Conquistou o assassinato para enfrentar a guerra. Para isso não havia Leis.

As guerras dos primeiros tempos, aquelas contra Lot e o Dita­dor de Roma, foram batalhas para derrubar a convenção feudal de encarar a guerra como uma caçada à raposa ou um jogo de resgate. Para derrubá-la, ele introduziu a idéia da guerra total. Em sua ve­lhice, essa mesma guerra total voltara para empoleirar-se como ódio total, como a mais moderna das hostilidades.

Agora, com a fronte pousada nos papéis e os olhos fechados, o Rei estava tentando não compreender. Pois se existia uma coisa como o pecado original, se o homem fosse, no todo, um vilão, se a bíblia tivesse razão ao dizer que o coração dos homens era acima de tudo falso e desesperadamente mau, então o propósito de toda a sua vida tinha sido em vão. A Cavalaria e a Justiça tornavam-se ilusões infantis, se o tronco no qual tentara enxertá-las fosse o Surrador, fosse o Homoferox em vez do Homo sapiens.

Atrás desse pensamento havia um pior, que ele não ousava abordar. Talvez o homem não fosse bom nem ruim, fosse apenas uma máquina em um universo insensato — sua coragem não mais que uma reação ao perigo, como o salto automático sob a picada de um alfinete. Talvez não houvesse virtudes, a menos que saltar sob a picada de um alfinete fosse uma virtude, e a humanidade apenas um asno mecânico conduzido pela férrea cenoura do amor pelo moinho insensato da reprodução. Talvez a Força fosse uma lei da Natureza, necessária para manter aptos os sobreviventes. Talvez ele próprio...

Já não podia continuar, porém. Sentia como se houvesse algo atrofiado entre seus olhos, ali onde a base do nariz penetra no crâ­nio. Não conseguia dormir. Tinha pesadelos. Amanhã seria a bata­lha final. Enquanto isso, havia todos esses papéis para ler e assinar. Mas ele não conseguia nem lê-los nem assiná-los. Não conseguia le­vantar sua cabeça do meio deles.

Por que os homens combatiam?

O velho rei sempre fora um pensador escrupuloso, nunca um inspirado. Agora seu cérebro exausto deslizava entre seus círculos habituais: os passos fatigados, como os do burro no moinho, ao re­dor do qual ele labutara muitas milhares de vezes em vão.

Eram chefes perversos que conduziam populações inocentes para a carnificina, ou eram populações perversas que escolhiam os líderes de acordo com seus próprios corações? Considerando a coi­sa de frente, parecia improvável que um Líder pudesse forçar um milhão de ingleses contra a sua vontade. Se, por exemplo, Mordred quisesse fazer os ingleses usar saias, ou ficar de cabeça para baixo, eles certamente não teriam tomado seu partido — por mais inteli­gentes, persuasivos, ilusórios ou mesmo terríveis que fossem seus estímulos. Um líder certamente seria forçado a oferecer alguma coi­sa que atraísse aqueles a quem comandava? Poderia dar o empurrão que faria desmoronar a construção, mas com certeza a construção já estaria vacilando por si mesma antes de cair? Se isso fosse verdade, então as guerras não eram calamidades para as quais gentis inocen­tes eram conduzidos por homens maus. Eram movimentos nacio­nais, mais profundos, mais sutis em sua origem. E, na verdade, não lhe parecia que nem ele nem Mordred tivessem conduzido o país ao sofrimento. Se era tão fácil conduzir um país em várias direções, como se ele fosse um porco em uma corda, por que falhara em con­duzi-lo segundo as regras da Cavalaria, da Justiça e da Paz? Tinha tentado.

Então, novamente — este era o segundo círculo, parecia o In­ferno —, se nem ele nem Mordred realmente desencadearam a des­graça, o que a causara? Em geral, como começa uma guerra? Pois toda a guerra parecia perfeitamente enraizada em seus antecedentes. Mordred remontava a Morgause, Morgause a Uther Pendragon, Uther a seus ancestrais. Parecia como se, desde sempre, Caim tives­se matado Abel, apoderando-se de seu país, depois do que os homens de Abel procuraram conquistar seu patrimônio outra vez. Os ho­mens continuaram, através dos tempos, vingando o erro com o erro, a morte com a morte. Ninguém ficou melhor por isso, pois ambos os lados sempre sofrem, e estão todos enredados. A guerra atual po­deria ser atribuída a Mordred ou a si mesmo. Mas também se devia a milhões de Surradores, a Lancelot, Guenevere, Gawaine, todo mundo. Aqueles que viveram pela espada eram forçados a morrer por ela. Era como se tudo levasse à dor, enquanto o homem se recu­sasse a esquecer o passado. Os erros de Uther e de Caim eram erros que só poderiam ser remediados pela bênção do esquecimento.

Irmãs, mães, avós: tudo se enraizava no passado! Qualquer tipo de ação praticada em uma geração pode ter incalculáveis conseqüên­cias na outra, de tal maneira que um mero espirro era uma pedrinha jogada em um lago onde seus círculos podiam alcançar as mais lon­gínquas margens. Parecia que a única esperança era não agir em ne­nhuma circunstância, não desembainhar espadas perante nada, man­ter-se quieto, como uma pedrinha não atirada. Mas isso seria odioso.

O que era Certo, o que era Errado? O que diferenciava o Fa­zer do Não Fazer? Se pudesse voltar no tempo, pensou o Rei, eu me enterraria em um monastério, por receio de um Fazer que levasse ao infortúnio.

A bênção do perdão: esse era o primeiro ponto essencial. Se tudo que alguém fizesse, ou que seu pai tivesse feito, era uma se­qüência interminável de Fazeres condenados a abrir caminho com sangue, então o passado deveria ser obliterado para que se pudesse fazer um novo começo. O homem deveria estar pronto para dizer: Sim, desde Caim houve injustiças, mas só podemos remediar a des­graça se aceitarmos o status quo. Terras foram roubadas, homens as­sassinados, nações humilhadas. Vamos começar tudo de novo sem lembranças, em vez de viver ao mesmo tempo para a frente e para trás. Não podemos construir o futuro vingando o passado. Vamos nos sentar como irmãos e aceitar a Paz de Deus.

Desgraçadamente, os homens dizem isso a cada guerra suces­siva. Sempre dizem que a do momento deve ser a última, e a partir de então será o paraíso. Sempre estão prestes a reconstruir um mun­do como nunca jamais se viu. Quando o momento chega, no entan­to, eles são demasiados estúpidos. São como crianças gritando que construiriam uma nova casa, mas quando chega o momento de construir, não têm a capacidade prática. Não sabem como escolher os materiais adequados.

Os pensamentos do velho Rei prosseguiam com esforço. Não o levavam a lugar nenhum: voltavam-se sobre si mesmos e percor­riam o mesmo trajeto duas vezes: mas ele estava tão acostumado com eles que não conseguia pará-los. Entrou em outro círculo.

Talvez a grande causa da guerra fosse a posse, como tinha dito John Bali, o comunista. "Os assuntos noon andom bem na Imgraterra", ele afirmara, "e non aandaram até que todaas as cooisas se-jom da comunidade, e que non existom aldeãas nem fidallgos". Tal­vez sejam travadas porque as pessoas dizem meu reino, minha esposa, meu amante, minhas propriedades. Isto era o que ele, Lan­celot e todos eles sempre conservaram no fundo dos seus pensa­mentos. Talvez, enquanto as pessoas tentassem possuir coisas sepa­radamente umas das outras, mesmo a honra e as almas, para sempre haveria guerras. O lobo faminto sempre atacaria a rena gorda, o po­bre roubaria o banqueiro, os servos fariam revoluções contra as clas­ses altas, e a nação sem dinheiro combateria a rica. Talvez as guer­ras ocorram apenas entre os que têm e os que não têm. Em oposição a isso, era-se obrigado a colocar o fato de que ninguém conseguia definir o estado de "ter". Um cavaleiro com uma armadura de pra­ta imediatamente alegaria ser uma pessoa que não tem, se encon­trasse um cavaleiro com uma armadura de ouro.

Mas ele pensou, assuma por um momento que o "ter", não im­porta como for definido, possa ser o nó do problema.

Eu tenho, e Mordred não tem. Em contrapartida, ele argumenta consigo mesmo: não é justo colocar assim, como se Mordred e eu fôssemos os causadores da tempestade, pois na verdade, nós nada somos exceto figuras de proa de forças complexas que parecem estar sob algum tipo de impulso. É como se houvesse um impulso na estrutura da sociedade. Mordred, agora, está sendo impulsiona­dos de maneira quase impotente, por uma quantidade de pessoas quase impossível de contar: pessoas que acreditam em John Bali, que espera ganhar poder sobre seus companheiros declarando que todos os homens são iguais, ou pessoas que vêem em qualquer sublevação uma oportunidade de aumentar seu próprio poder. Parece vir por baixo. Os homens de Bali e de Mordred são os cachorros de baixo querendo se levantar, ou cavaleiros que não eram líderes na Távola Redonda e, portanto, a odeiam, ou o pobre que deseja ser rico, ou o que não tem poder procurando ganhar poder. E meus ho­mens, para quem não sou mais que um estandarte ou um talismã, são os cavaleiros líderes — os ricos defendendo suas propriedades, os que têm poder e não querem deixá-lo escapar. É um encontro de força dos que Têm e dos que Não Têm, uma batalha insana de cor­pos de homens, não de chefes. Mas deixemos isso de lado. Admita­mos a vaga idéia de que a guerra se deve ao "ter" em geral. Nesse caso, o correto seria se recusar a ter fosse o que fosse. Esse, como Rochester já tinha assinalado, era o conselho de Deus. O homem rico já fora ameaçado com o olho da agulha, e houve também os mercadores. Era por isso que a Igreja não podia interferir muito nos tristes negócios do mundo, como Rochester dizia, porque as nações, as classes e os indivíduos sempre estavam gritando "Meu, meu", onde a Igreja tinha instruções para dizer "Nosso".

Se isso fosse verdade, então a questão não seria apenas dividir as propriedades, como tal. Seria a questão de dividir tudo — mes­mo pensamentos, sentimentos, vidas. Deus havia dito a seu povo que teria de deixar de viver como indivíduos. Que teriam de entrar na corrente da vida, como uma gota mergulhando em um rio. Deus havia dito que só os homens que tivessem renunciado a seus eus ciu­mentos, às suas individualidades fúteis de felicidades e tristezas, é que poderiam morrer em paz e entrar no círculo. Aquele que que­ria salvar sua vida seria pedido que a perdesse.

No entanto, na velha cabeça branca, havia algo que não podia aceitar a perspectiva divina. Obviamente, você poderia curar um câncer no útero começando por não ter útero. Remédios radicais e drásticos poderiam cortar qualquer coisa — e a vida com o corte. Conselhos ideais, que ninguém estava preparado para seguir, não eram realmente conselhos. Aconselhar o Céu na Terra era inútil.

Outro círculo conhecido se desenrolou à sua frente. Talvez a guerra se devesse ao medo: o medo de confiar. A menos que hou­vesse verdade, e a menos que as pessoas dissessem a verdade, sem­pre haveria perigo em tudo que estivesse fora do indivíduo. Você diz a verdade a si mesmo, mas não tem garantias em relação a seu vizi­nho. Essa incerteza pode acabar fazendo do vizinho uma ameaça. Essa, de qualquer forma, teria sido a explicação de Lancelot para a guerra. Ele costumava dizer que a posse mais vital do homem era a sua Palavra. Pobre Lance, ele teve que quebrar sua própria palavra: de qualquer maneira, raros homens tiveram uma palavra tão boa.

Talvez as guerras acontecessem porque as nações não confia­vam na Palavra. Assustavam-se e por isso combatiam. As nações eram como as pessoas: tinham sentimentos de inferioridade, ou de superioridade, ou de vingança, ou de medo. Era correto personali­zar as nações.

Suspeita e medo; posse e cobiça; ressentimento pelo erro ances­tral; tudo isso parecia fazer parte. No entanto, não eram parte da so­lução. Ele não conseguia ver a solução real. Estava demasiado velho, cansado e miserável para pensar de maneira construtiva. Era apenas um homem que tivera boas intenções, que fora estimulado a seguir aquele rumo de pensamentos por um nigromante excêntrico com um fraco pela humanidade. A Justiça fora sua última tentativa — não fazer nada que não fosse justo. Mas isso terminou em fracasso. Fazer qualquer coisa tornara-se excessivamente difícil. Ele estava acabado. Arthur provou que não estava completamente acabado levantan­do sua cabeça. Havia algo invencível em seu coração, uma tintura de grandeza na simplicidade. Sentou-se ereto e alcançou a sineta de ferro.

— Pajem — ele disse, quando o rapazinho entrou apressado, esfregando os olhos.

— Meu senhor.

O Rei olhou-o. Mesmo em seu ponto extremo, ele era capaz de reparar nos outros, especialmente se fossem jovens ou decentes. Quando confortara o destroçado Gawaine em sua tenda, era ele quem mais precisava de conforto.

— Meu pobre rapaz — disse ele. —Você devia estar dormindo. Observou o jovem com uma atenção tensa, afilada. Havia muito tempo que não via a inocência e a segurança da juventude.

— Olhe — disse —, pode levar este bilhete ao bispo? Se ele estiver dormindo, não o acorde.

— Sim, meu senhor.

— Obrigado.

Quando a criatura movimentou-se para sair, ele a chamou de volta.

— Ah, pajem?

— Meu senhor?

— Qual é o seu nome?

— Tom, meu senhor — ele respondeu, com polidez.

— Onde você vive?

— Perto de Warwick, meu senhor.

— Perto de Warwick.

O velho parecia estar tentando imaginar o lugar, como se fosse o Paraíso Terrestre, ou um país descrito por Mandeville.

— Em um lugar chamado Newbold Reve ll. É bonito.

— Quantos anos você tem?

— Farei treze em novembro, meu senhor.

— E eu o fiz ficar acordado a noite toda.

— Não, meu senhor. Eu dormi bastante em uma das selas.

— Tom de Newbold Revell — ele disse, admirado. — Parece que envolvemos muita gente. Diga-me, Tom, o que pretende fazer amanhã?

— Lutarei, senhor. Tenho um arco bom.

— E você matará pessoas com esse arco?

— Sim, meu senhor. Muitas, espero.

— E se elas matarem você?

— Então vou estar morto, meu senhor.

— Entendo.

— Devo levar a carta agora?

— Não. Espere um minuto. Quero falar com alguém, só que minha cabeça está atrapalhada.

— Devo buscar uma taça de vinho?

— Não, Tom. Sente-se e tente escutar. Tire esse jogo de xadrez do banco. Você consegue entender as coisas que são ditas?

— Sim, meu senhor. Sou bom para entender.

— Você entenderia se eu lhe pedisse para não lutar amanhã?

— Eu queria lutar — ele disse, com coragem.

— Todo mundo quer lutar, Tom, mas ninguém sabe por quê. Suponha que eu lhe peça para não lutar, como um favor especial ao Rei? Você faria isso?

— Eu faria o que me fosse ordenado.

— Então, escute. Sente-se por um minuto que vou lhe contar uma história. Sou um homem muito velho, Tom, e você é jovem. Quando for um velho, será capaz de contar o que vou lhe contar esta noite, e quero que o faça. Compreende esse desejo?

— Sim, senhor. Acho que sim.

— Conte as coisas assim. Uma vez havia um rei, chamado Rei Arthur. Esse sou eu. Quando chegou ao trono da Inglaterra, ele viu que todos os reis e barões estavam lutando uns contra os outros, como loucos, e como eles podiam se dar ao luxo de combater com armaduras caras, não havia praticamente nada que os impedisse de fazer o que lhes apetecesse. Eles fizeram muitas coisas ruins, porque viviam pela força. Então esse Rei teve uma idéia, e a idéia era que a força deveria ser usada, se tivesse de o ser, em nome da justiça, não em seu próprio nome. Compreenda bem isto, meu jovem. Ele acha­va que se pudesse fazer seus barões lutarem pela verdade, para aju­dar os fracos e para endireitar o erro, então sua luta talvez não fos­se tão ruim como era antes. Então ele reuniu todas as pessoas verdadeiras e decentes que conhecia, e as vestiu com armaduras, e as sagrou cavaleiros, e lhes ensinou a sua idéia, e as sentou ao redor de uma Távola Redonda. Nos tempos felizes, eles eram cento e cin­qüenta e o Rei Arthur amava sua Távola de todo coração. Sentia mais orgulho dela do que de sua própria e querida esposa e, por muitos anos, seus cavaleiros andaram de um lado a outro matando ogros, salvando donzelas, resgatando prisioneiros pobres e tentan­do endireitar o mundo. Essa era a idéia do Rei.

— Acho que era uma idéia boa, meu senhor.

— Era, e não era. Deus sabe.

— O que aconteceu com o Rei no final? — perguntou o rapaz, quando a história parecia ter terminado.

— Por alguma razão, as idéias deram errado. A Távola se divi­diu em facções, uma guerra sem trégua começou, e todos morreram.

O rapaz interrompeu, confiante.

— Não — disse —, não todos. O Rei venceu. Nós venceremos. Arthur sorriu vagamente e balançou a cabeça. Não admitiria nada a não ser a verdade.

— Todo mundo morreu — ele repetiu —, exceto um certo pajem. — Eu sei do que estou falando.

 

Os outros já haviam fugido para a corte do Rei — forçados a isso pela ambição, pois era a maior corte do mundo, ou então para escapar da mãe. Mordred foi deixado para ser dominado por ela, com seu ressentimento ancestral contra o Rei e seu despeito pessoal.

 

— Meu senhor?

— Esse pajem chamava-se Tom de Newbold Revell, perto de Warwick, e o velho Rei despachou-o antes da batalha, sob pena da mais amarga desgraça. Entenda, o Rei queria que alguém sobrevi­vesse para se lembrar de sua famosa idéia. Ele queria com todas as suas forças que Tom voltasse para Newbold Revell, onde poderia crescer e se tornar um homem, e viver sua vida na paz dos campos de Warwickshire — e queria que ele contasse a todos que o escutas­sem essa idéia antiga, que ambos uma vez acharam que era boa. Você acha que pode fazer isso, Thomas, para agradar o Rei? O rapaz disse, com os olhos puros da verdade absoluta:

— Eu faço qualquer coisa pelo Rei Arthur.

— Você é um bravo companheiro. Agora, escute, homem. Não se deixe confundir pelas pessoas das lendas. Fui eu quem lhe contou qual era a minha idéia. Sou eu quem está lhe ordenando que sele imediatamente seu cavalo, parta para Warwickshire e não combata com seu arco amanhã. Você compreende tudo isso?

— Sim, Rei Arthur.

— Prometa-me que terá cuidado com sua pessoa daqui em diante. Tente lembrar que você é um tipo de navio que transportará a idéia quando as coisas correrem mal, e que toda a esperança de­pende de que você viva.

— Prometo.

— Parece egoísta de minha parte usá-lo para isso.

— É uma honra para seu pobre pajem, meu bom senhor.

— Thomas, minha idéia sobre aqueles cavaleiros foi uma espé­cie de chama, como esta aqui. Eu a carreguei durante muitos anos com uma mão para protegê-la contra o vento. Muitas vezes ela qua­se se apagou. Estou lhe passando essa chama agora — promete não deixá-la se apagar?

— Ela continuará a arder.

— Bravo Tom. O portador da luz. Quantos anos me disse que tinha?

— Quase treze.

— Sessenta anos a mais, talvez. Metade de um século.

— Eu a passarei às outras pessoas, Rei. Aos ingleses.

— Dirá aos outros, em Warwickshire: Vejam todos que mara­vilhosa chama ele carregava?

— Sim, Senhor, isto eu farei.

— Então está feito: agora, Tom, é preciso que partas imediata e rapidamente. Levarás o melhor filho de égua que encontrares e seguirás até Warwickshire, jovem, sem se desviar para nada?

— Seguirei rápido, companheiro, para que a chama arda.

— Bravo Tom, então, Deus vos abençoe. Não vos esqueça do nosso Bispo de Rochester antes de partires.

O jovem ajoelhou-se para beijar a mão do seu senhor — cujo manto, segundo Malory, parecia absurdamente novo.

— Meu senhor da Inglaterra — ele disse.

Arthur o levantou gentilmente, para beijá-lo no ombro.

— Sir Thomas de Warwick — disse, e o rapaz partiu.

A tenda amarelo-castanha e magnífica estava vazia. O vento gemia e as velas pingavam. Esperando o Bispo, o velho Rei senta­ra-se à sua mesa de leitura. No momento, sua cabeça caíra para a frente, sobre os papéis. Os olhos do galgo, captando a luz das ve­las ao olhar para ele, brilhavam como espectros, duas taças ambarinas de luz selvagem. Os canhões de Mordred, que ele manteria em atividade durante a escuridão até a batalha da manhã, começa­ram a cair com ruído surdo e golpear lá fora. O Rei, exaurido pelo seu último esforço, entregou-se à tristeza. Mesmo quando a mão de seu visitante levantou a aba da tenda, lágrimas silenciosas es­corriam por seu nariz e caíam no pergaminho com um tique-taque regular, como um relógio antigo. Virou sua cabeça para o lado, não querendo ser visto, incapaz de fazer melhor. A aba caiu, enquanto a estranha figura de capa e chapéu entrava suavemente.

— Merlin?

Mas não havia ninguém ali: sonhara com ele em um breve cochilo de velhice.

Merlin?

Recomeçou a pensar, mas agora com a mesma clareza de sem­pre. Recordava-se do velho nigromante que o educara — que o edu­cara com animais. Havia, ele recordava, algo como meio milhão de diferentes espécies de animais, das quais o homem era apenas uma. Claro que o homem era um animal — ele não era um vegetal nem um mineral, era? E Merlin o ensinou acerca dos animais de maneira que a espécie única pudesse aprender observando os problemas das outras milhares de espécies. Lembrava-se das formigas beligerantes, que reivindicavam fronteiras, e dos gansos pacíficos, que não faziam isso. Lembrava-se das lições do texugo. Lembrava-se de Lyo-lyok e da ilha que viram em sua migração, onde todos aqueles mergulhões, tordas-mergulhadoras, alcas e gaivotas viviam juntos em paz, conser­vando seus próprios tipos de civilização sem guerras — porque não reivindicavam fronteiras. Via o problema diante dele claro como um mapa. A coisa fantástica sobre a guerra era que ela era travada por causa de nada — literalmente nada. As fronteiras eram linhas imagi­nárias. Não havia nenhuma linha divisória visível entre a Escócia e a Inglaterra, embora Flodden e Bannockburn tivessem lutado por cau­sa disso. A causa era a geografia — geografia política. Nada mais. As nações não precisavam ter o mesmo tipo de civilização, nem o mes­mo tipo de líder, não mais que os mergulhões e as alcas. Podiam con­servar suas próprias civilizações, como os esquimós e os hotentotes, se concedessem umas às outras liberdade de comércio, de passagem e de acesso ao mundo. Países teriam que se tornar condados — mas condados que conservariam sua própria cultura e leis locais. As li­nhas imaginárias na superfície da Terra só precisavam não ser imagi­nadas. As aves voadoras, pela própria natureza, as ignoravam. Como as fronteiras tinham parecido estúpidas para Lyo-lyok, e assim pare­ceriam aos Homens se eles pudessem aprender a voar.

O velho Rei sentiu-se revigorado, lúcido e quase pronto para começar tudo de novo.

Chegaria o dia — havia de chegar o dia — em que ele voltaria a Gramarye com uma nova Távola Redonda que não teria cantos — como o mundo não tinha —, uma mesa sem fronteiras entre os po­vos que ali se sentariam para festejar. A esperança de fazer uma mesa assim dependeria da cultura. Se os povos pudessem ser convencidos a ler e a escrever, não apenas a comer e a fazer amor, ainda havia uma chance de que pudessem chegar à razão.

Era demasiado tarde, agora, para outro esforço. Nesse mo­mento seu destino era morrer ou, como diziam alguns, ser levado para Avilion, onde poderia esperar por dias melhores. A partir da­quele momento, Lancelot e Guenevere estavam destinados a pegar a tonsura e o véu, enquanto Mordred deveria morrer. A sorte deste ou daquele homem era menos que uma gota, embora cintilante, no grande movimento azul do mar iluminado pelo sol.

Os canhões de seu adversário estavam estrondando na manhã esfarrapada quando a Majestade da Inglaterra se levantou para en­frentar o futuro com o coração tranqüilo.

 

                                                                                            T. H. White  

 

                      

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