Biblio "SEBO"
Para os leitores não familiarizados com os meus dois romances anteriores, em que as personagens são Sir Baldwin Furnshill e Simon Puttock, poderá ser útil fazer um pequeno resumo sobre a história do século XIV.
Os finais dos anos de 1200 e princípios dos de 1300 foram períodos em que a população da Europa se encontrou sujeita a mudanças tremendas, Em Roma, os conflitos por causa do Papado levaram o Papa a mudar a sua corte para Avinhão, em França, facto que fez com que o monarca francês, Filipe IV, se tornasse no mais poderoso homem da cristandade uma vez que passou a poder influenciar directamente o vigário de Deus sobre a Terra.
Como prova da sua nova autoridade basta-nos olhar para os Pobres Soldados de Cristo e do Templo de Salomão, vulgarmente conhecidos por Cavaleiros Templários, que tinham constituído a principal instituição da Europa durante quase 200 anos e só prestavam contas ao próprio Papa. Esses monges consideravam-se guerreiros de Deus e combateram em defesa do Reino de Jerusalém. A fé que depunham na missão da Ordem - a protecção das terras de Cristo contra as invasões pelos pagãos -, era tal que arriscaram frequentemente as suas vidas durante as batalhas. Eram cavaleiros por direito próprio mas renunciaram aos prazeres seculares e às fortunas pessoais para poderem prestar os votos da sua ordem monástica, pobreza, castidade e obediência.
Os Templários floresceram com as Cruzadas e ganharam vastas somas com empreendimentos na banca e no comércio. Na verdade, poderiam ser descritos como tendo sido os primeiros banqueiros "retalhistas" que emitiam notas de confirmação de depósitos, notas essas que podiam ser apresentadas e levantadas noutros países. Os apoiantes doaram-lhes enormes propriedades, cujos ricos rendimentos ajudaram a manter os seus exércitos. Em finais dos anos de 1200, os Templários constituíam uma força que era preciso ter em conta.
Contudo, Filipe IV tinha uma terrível necessidade de fundos. Em 1306 avançou contra um grupo muito rico mas pouco apreciado e desprotegido. Todos os judeus de França foram presos num único dia. Os seus registos e bens foram apreendidos e leiloados para benefício da Coroa. Entretanto, os cidadãos judeus eram expulsos do reino com os bolsos vazios. Muito convenientemente, todas as notas que confirmavam as dívidas do monarca aos judeus foram destruídas, enquanto os valores que os seus súbditos deviam aos judeus passaram a constituir dívidas para com o monarca... que exigiu o pagamento a pronto. Bem vistas as coisas tratou-se de um empreendimento com grande êxito, pelo que Filipe começou a olhar em volta em busca de outros grupos igualmente ricos que pudessem ser "depenados".
Os Templários não constituíam um alvo fácil, mas não deixavam de ser ricos. Contudo, como Ordem Religiosa, estavam sob a protecção do Papa. Como poderia o monarca lançar a mão ao dinheiro dos Templários enquanto o Papa fosse responsável por eles, pelo menos nominalmente?
Felizmente para Filipe, o Papa Clemente V era um homem com uma atitude perfeitamente moderna, que só se interessava pela sua própria saúde. Por outro lado, encontrava-se mesmo à mão de semear agora que vivia em França. Contudo, até ele hesitaria ante a ideia de roubar os Templários, pelo que o monarca francês avançou sem o informar.
Na verdade, o destino dos Templários fora selado alguas anos antes, em 1291, quando foi perdida a última possessão na Palestina ainda com algum significado, facto que pôs ponto final aos motivos para a existência da própria Ordem. Acre foi a última possessão cristã no velho Reino de Jerusalém que havia sido conquistado pelos Cruzados. Foi atacada em Abril de 1291 e caiu em 28 de Maio sob a maciça carnificina levada a cabo pelos Muçulmanos. Com a queda da cidade morreram também todas as esperanças da Cristandade em relação ao velho reino, bem como muito do respeito pelos Templários. Houve outras Ordens que também passaram a ser olhadas com desprezo depois da queda de Acre, mas os Templários eram os únicos com a sede em França e foi isso o que levou à sua extinção.
Na sexta-feira, 13 de Outubro de 1307 - uma data que a superstição popular trouxe até nós - foram presos todos os membros da Ordem que se encontravam em França. Já nos foram propostas muitas teorias da conspiração para justificar a destruição da Ordem, mas só há um facto absoluto e indiscutível: anteriormente, os Templários eram ricos e a seguir as suas riquezas desapareceram. Filipe foi o primeiro a acusá-lo o ajudou a acreditar nas alegações contra os Templários.
A Ordem foi desfeita, Alguns dos seus cavaleiros já estavam mortos mas outros, em especial os mais proeminentes, foram queimados na praça pública. Dos restantes, muitos dos quais receberam autorização para desaparecerem em mosteiros, houve uns quantos que se apagaram e juntaram aos cavaleiros Teutónicos, aos Hospitalares ou a outras Ordens que combatiam os pagãos nas franjas da Cristandade.
Em Inglaterra e na Escócia nunca houve uma grande fé nas acusações contra os Templários. O monarca inglês, Eduardo II, confiava neles porque tinham ajudado o seu pai nas batalhas contra os Escoceses, e também porque o Mestre da Ordem morrera durante a guerra contra William Wallace. Eduardo recebeu uma comunicação papal ordenando-lhe que prendesse os seus velhos amigos, mas adiou uma tomada de decisão durante várias semanas. Era um homem fraco (que mais tarde seria afastado pela esposa e pelo respectivo amante), e já tinha demasiados inimigos para estar disposto a perder os Templários e o seu apoio. Quando se decidiu a agir já a maioria dos Templários havia desaparecido... bem como o respectivo tesouro.
A maioria desses Templários nunca foi encontrada e é quase certo que alguns deles se refugiaram na Escócia. Diz-se que o pavilhão dos Templários foi visto na Batalha de Bannockbum, um dos mais infelizes acontecimentos para Eduardo II. O monarca escocês, Robert I (o Bruce) não receava enfrentar o Papa uma vez que já tinha sido excomungado e que o seu país se encontrava sob Anátema Papal, o que significava que os sacerdotes não podiam levar a cabo os ritos sagrados do Cristianismo tão específicos como saber se o humor seria blasfemo. No entanto, ao mesmo tempo, homs de desprezo!
No meio de tudo isto, algumas áreas mantiveram-se calmas e ordeiras. A zona ocidental da Inglaterra permaneceu em paz enquanto as cidades costeiras eram atacadas por piratas, as possessões britânicas no continente era tomadas pelo monarca francês, os escoceses atacavam as regiões fronteiriças e a Irlanda era invadida.
É essa a época de Sir Baldwin Furnshill, que fora um cavaleiro templário, e do seu amigo Simon Puttock, almoxarife do Castelo de Lydford.
A CHARNECA DO ENFORCADO
Thomas Smyth precisaria de andar muito mais.
Viu-se forçado a parar - com as mãos pousadas nas coxas e a ofegar -, antes da última vertente. O tempo arrefecia com a aproximação da noite, o que era um alívio depois do calor escaldante do dia. Lançou uma olhadela ao pico rochoso por cima dele e esboçou um leve sorriso. Aquela expedição dava-lhe a saber que tinha de aceitar o facto de já não ser um jovem. Embora a sua mente continuasse a ser a mesma de quando ali chegara pela primeira vez, a mente de um rapaz que ainda não fizera 20 anos, tudo isso acontecera havia mais de 32 anos e Thomas já se encontrava para lá de meia-idade.
Olhou em volta e viu as finas colunas de fumo que subiam para leste no ar parado do fim da tarde. Os habitantes das quintas dispersas ao longo da estrada de Chagford preparavam-se para a noite. Ouviu um cão a ladrar, um homem a gritar, portadas de janelas a serem fechadas e os ocasionais mugidos baixos dos bois presos nos seus estábulos. Parecia que tudo voltava ao normal, depois da miséria de 1315 e 1316, em que todo o país fora assolado pela fome. Aquele pequeno povoado no meio de Dartmoor era uma prova de que o clima melhorara e que agora, em 1318, prometia finalmente algumas ricas colheitas.
Todavia, a ira de Smyth, que aparentemente nunca o largava, não lhe permitia observar a vista em paz e sentia que os seus olhares eram atraídos para trás dele. Sabia que os nevoeiros acinzentados que se viam a sul e leste eram provocados pela nova fundição cuja fornalha a carvão derretia o estanho que constituía a principal fonte da sua riqueza. Eram os outros fogos, mais para norte, que o levavam a contrair os maxilares e a lançar miradas furiosas. Tratava-se do fogo de outros homens, mineiros que haviam chegado recentemente e que lhe tinham roubado as terras.
Ele próprio também não nascera ali. Fora muitos anos antes, durante as guerras galesas, que ouvira falar nas enormes riquezas que poderiam ser amontoadas por quem trabalhasse o minério que jazia, com abundância, nas charnecas. Assim, depois de as batalhas terminarem vagueara para o sul decidido a lançar a mão a uma parte de tais riquezas.
Nessa altura, em 1286, não passara de um jovem desengonçado com 19 anos, um pobretanas sem futuro. Naqueles tempos uma grande parte da área em torno de West Dart River permanecia desabitada e só um punhado de mineiros se debatia a trabalhar na terra em busca de algum lucro. Os impostos eram tremendos, aumentavam sempre que era preciso mais dinheiro para as guerras... e era muito raro que o velho Rei não estivesse em guerra. Muitos desses homens já tinham abandonado a terra quando Thomas ali chegara, o qo '65itá-los ao máximo.
Todavia, tinham surgido outros que se tinham apoderado de terras que considerava suas, que haviam trabalhado para obterem vantagens próprias, que lhe tinham arruinado os esforços e feito passar por tolo em frente dos vizinhos. Era intolerável!
Lançou um último olhar de ódio para as colunas de fumo, virou novamente o rosto para a colina e continuou a subir.
Por trás dele, George Harang sorriu de satisfação. Captara um relance da6dente. Respeitava demasiado o seu amo para o fazer.
Subiam a vertente sul do Longaford Tor e pouco depois já George conseguia avistar o clarão amarelo de uma fogueira perto da extremidade cónica de pedra que se erguia lá no alto. Acenou na sua direcção e caminhou um pouco à frente, com a faca na mão, mas não havia necessidade de cautelas. Os três homens aguardavam-nos no abrigo de uma pequena concavidade natural no meio das ervas, tal como fora combinado. O servo de Thomas Smyth quase não lhes prestou atenção e continuou a andar para lá do pequeno grupo, para acabar por se deter com os braços cruzados no momento em que a conversa se iniciou.
George ficou com a certeza de que o seu amo poderia ser confundido com um homem dez ou 20 anos mais novo.
O brilho feroz dos olhos, os movimentos rápidos e súbitos enquanto falava, como se estivesse a apunhalar alguém, o entusiasmo rápido das palavras... eram tudo coisas que pareciam indicar um homem na flor da vida e não aquele que era já o mais velho de toda a região.
Thomas acabou de falar e os seus olhos fitaram os dos outros homens por momentos como que para confirmar que escolhera o grupo apropriado. Depois, satisfeito, deu palmadas nas costas dos dois que se encontravam mais perto, levantou-se e começou a descer a colina, agora mais rapidamente, com George a segui-lo de perto.
- Eles concordaram em fazê-lo... - disse Thomas num tom meditativo, a olhar para leste com as mãos enganchadas no largo cinto de cabedal enquanto se dirigiam para os cavalos.
- Sim, senhor - concordou George, que ficou surpreendido quando o amo rodopiou para o olhar, com a testa franzida pela concentração.
- Também achas que estou a proceder bem, não é verdade?
George acenou com convicção.
- O Harold Magge fará tudo o que lhe pedir - afirmou com firmeza enquanto os olhos quase negros o fitavam. - Para além disso, o Stephen, o Crocker e o Thomas Horsho farão o que o Harold lhes disser.
Thomas virou-se novamente para a paisagem.
- Óptimo - murmurou, baixinho. - Estou farto! Quero as minhas terras de volta.
Para sudeste deles, enquanto os dois homens desciam a colina, Adam Coyt empurrava as últimas cabeças de gado para o portão e soltava os cães para que andassem à-vontade no recinto murado com pedras da charneca enquanto ele verificava os pontos mais fracos da vedação.
Passara toda a sua vida nas charnecas. Quando rapaz brincara nos amplos espaços abertos, nas vastas planícies ondulantes entre Lydford e Chagford, e observara a vida das criaturas ao longo das estações do ano. Coelhos, veados, cervos, lobos e raposas... Conhecia-os tão bem como aos animais da sua própria quinta. Era um homem das charnecas e nunca conhecera outra vida. O seu pai vivera ali, tal como o pai do seu pai, com todas as gerações a trabalharem sob aquele clima cruel que destruía tão frequentemente aqueles que não o respeitavam.
Tal como os mineiros do estanho, Adam sentia uma íntima afinidade com a terra, afinidade que no seu caso tivera origem na experiência e no medo. Embora tivesse prosperado, Dartmoor fizera-se pagar e levara-lhe a mulher e o filho. Não podia lançar as culpas sobre as charnecas. Era assim que as coisas funcionavam na floresta e ponto final. A mulher não deveria ter saído quando começara a nevar e fora uma loucura ter tentado regressar. O Crockern, o espírito de Dartmoor, merecia o respeito das pessoas. Não valia a pena rezar a Deus para pedir ajuda quando o Crockern lançava os seus ventos amargos sob a terra. Adam chorara quando lhe descobrira o corpo - dobrado e enrolado numa pequena bola de agonia com carnes a que o gelo dera um tom branco-azulado -, mas não durante muito tempo. As lágrimas não faziam sentido e havia trabalho para fazer. Um ano mais tarde também o filho sucumbira, incapaz de sobreviver ao amargo Inverno de 1316 em que os alimentos se tinham estragado sob as chuvas incessantes. Nessa altura, Adam nem sequer fora capaz de chorar. A vida fora muito dura e tentara dar o suficiente ao rapaz, reduzindo a sua magra porção para o alimentar, mas mesmo isso fora insuficiente e os choros da criança haviam aumentado de volume até ao dia em que quase ficara aliviado quando se tinham esmorecido e calado. Um mês mais tarde, depois do degelo, fizera a cruel viagem até à igreja de Widecombe porque o pequeno corpo já não podia continuar no barril, protegido pelo sal como uma perna de porco, e também porque desejava vê-lo sepultado junto da mãe.
No entanto, apesar de tudo isso, as charnecas tinham-lhe concedido uma boa vida. O gado prosperava, a sua existência não era afectada pelas infelicidades da guerra ou pelas doenças de que todos falavam, que grassavam nas cidades onde ia comprar bens, e vivia em paz, longe dos outros. Os únicos que ocasionalmente lhe perturbavam a vida eram os mineiros, que escavavam buracos nas terras de que necessitava para pastos e que perturbavam as águas dos ribeiros onde dava de beber aos animais.
Para um homem da charneca tal como Adam Coyt, o mundo era formado por dois tipos de pessoas: as iguais a ele, que eram dali, de Dartmoor, e os outros, os estranhos, que provinham de outras partes de Devon ou do mundo, Agora que a noite caía já os seus fogos podiam ser vistos como brilhantes pontos de luz, alguns distantes, outros mais perto. Aqueles eram os lugares onde viviam os mineiros do estanho. Suspirou perante a visão mas afagou a cabeça do cão e continuou para casa. Não havia nada que pudesse fazer a respeito dos caçadores de metais que os invadiam.
Henry Smallhobble bocejou e recostou-se em frente da sua fogueira, ansioso por verificar o que o escuro minério lhe iria dar. Na semana anterior cavara um novo rego de modo a levar um pouco do rio Dart até ao seu pequeno lote para que a água corrente o ajudasse a separar o valioso minério de estanho do solo mais leve que o rodeava. Era a sua primeira fogueira desde que terminara o rego, e era também a primeira tentativa de mineração naquela área.
Tratava-se de um trabalho duro em comparação com o que estava habituado a fazer e as suas mãos enchiam-se de bolhas com demasiada facilidade. Eram precisos muitos dias de trabalho para conseguir minério suficiente para valer a pena acender uma fogueira mas, no mínimo, a parcela de terreno coberto de mato parecia ter mais potencial do que a anterior. Passara a maior parte de um ano a cobrir algumas centenas de metros do leito do pequeno ribeiro, separando o minério bom dos restos inúteis e a empilhar o refugo à beira da água, até ao momento em que vira minério no buraco que abrira para acender uma fogueira. Ficara interessado e começara a investigar o terreno em volta. Ao princípio surgira muito pouco, mas depois acabara por localizar o que aparentava ser um depósito muito rico. Ao que parecia, existia uma espessa camada de minério ao longo do antigo leito do rio, a apenas 30 ou 40 centímetros de profundidade. Desistira das buscas no ribeiro e concentrava-se agora na reserva existente por baixo das antigas margens.
Espreguiçou-se, descontraiu-se e apoiou-se sobre os cotovelos. Era um homem magro, no final da casa dos 20, com um cabelo cor de rato, muito mal cortado. Parecia excessivamente cansado, com feições tensas e uns brilhantes olhos castanhos que exibiam uma cintilação febril. A sua pele nunca se bronzeava por muitas que fossem as horas passadas ao sol e mantinha um pouco saudável tom avermelhado.
Ouviu um ruído e olhou por cima do ombro. Sarah, a esposa, aproximava-se com a bandeja de madeira em que transportava uma tigela de feijões, sopa, pão e uma caneca de cerveja. Era uma mulher trigueira e gorducha, no princípio da casa dos 20, que ficou a observá-lo enquanto comia. Viu-o olhar para cima e sorriu, com as faces a encherem-se-lhe de covinhas. Isso fez com que voltasse a parecer ter 15 anos, a idade que tivera quando a conhecera. Começou a conversar e Henry ficou satisfeito por ver que a mulher não fazia referência aos seus medos. Já tinham conversado o suficiente a respeito das ameaças e dos perigos e não valia a pena regressar a um assunto tão estéril dia
após dia. A mulher acenou na direcção do fogo enquanto Henry engolia a cerveja.
- Achas que há muito minério nesse lote?
Pousou a caneca no chão com todo o cuidado e olhou para o carvão fumegante. Aquela era a maneira mais fácil de retirar o metal do minério. Cavava-se um buraco no chão e acendia-se uma fogueira com camadas de carvão e de minério. Quando o fogo morresse, o metal podia ser liberto das cinzas em blocos negros e irregulares. Quebrou a crosta do pão e mastigou-a.
- Não sei. O minério era escuro e pesado, mas é difícil de dizer. Por vezes, o melhor metal surge dos bocados com pior aspecto, enquanto o minério com bom aspecto não dá nada...
Via que os pensamentos da mulher não se concentravam nas suas palavras. Levantara os olhos para o clarão tremeluzente, a norte, onde o vizinho mais próximo levantara a cabana.
- Não vale a pena preocupares-te, Sarah - disse, num tom suave.
- Pois não - admitiu, mas continuou a olhar. - Mesmo assim, preferia que ele viesse para aqui e passasse a noite connosco. Seria mais seguro, tanto para nós como para ele. Enquanto estivermos separados...
- Sarah, ele não vem. De qualquer modo... - lançou uma olhadela rápida para o fogo distante - vai ficar bem.
- Os homens do Smyth já nos ameaçaram demasiadas vezes. Se nos quiserem afastar podem atacar-nos com facilidade, e o Peter está demasiado distante de toda a gente, no meio da charneca. Não há ninguém para o ajudar.
O marido levantou-se e encolheu os ombros.
- Eu sei, mas está convencido de que se encontra em segurança. De qualquer modo, não vejo motivos para termos medo. Somos mineiros de estanho tal como o Smyth e temos os mesmos direitos, Não nos pode obrigar a partir.
Sarah acenou mas evitou-lhe os olhos. Sabia que tudo aquilo estava muito certo perante a Lei, mas isso não era o suficiente para lhe afastar os receios. Os homens já tinham aparecido por três vezes, duas delas quando o Henry estivera fora, a trabalhar. Da primeira vez só tinham feito comentários lúbricos, rodeando-a e impedindo-lhe a fuga enquanto se divertiam a insultá-la, especulando sobre por que motivo ainda não tinha filhos. A culpa era dela ou do marido? O Henry não era suficientemente bom? Não seria melhor arranjar outro homem, um verdadeiro mineiro? Tudo o que pudera fazer fora ficar calada, com o rosto a avermelhar-se de timidez e embaraço perante uma tal conversa. Dessa vez não tinham ficado muito tempo.
Da segunda vez, o Henry estivera com ela. Num certo momento encontravam-se sozinhos... e no momento seguinte tinham-se visto rodeados por quatro homens com os bordões prontos, que lhes tinham dito para se irem embora, para deixarem aquela terra. Recordou-se da coragem do marido com uma vaga de orgulho. Empurrara-a para trás dele, para a pôr em segurança, e enfrentara os homens. Enfrentara-os e amaldiçoara-os, defendera com firmeza o seu direito a minerar o estanho dentro dos seus limites e ignorara as ameaças e os avisos. Os homens tinham partido tão subitamente como tinham aparecido, mas as palavras ameaçadoras pareciam ter ficado a pairar no ar parado do crepúsculo durante horas.
Todavia, a visita que mais a assustara fora a terceira. Estivera no interior da cabana e vira entrar um homem que nem sequer batera à porta. Reconhecera-o imediatamente; era Thomas Smyth. Encaminhara-se para um banco sem ser convidado e sentara-se. A seguir começara a falar com uma voz calma e suave, com os cotovelos pousados nos joelhos e a fitá-la com os inquietantes olhos negros. Ao princípio pensara que o homem estava apenas a divagar. Falara-lhe da sua vida, do casamento, do amor pela filha... e fora então que compreendera que procurava intimidá-la.
- Não gostaria de ver a minha filha tão longe de toda a gente. Não gostaria de pensar que poderia ficar viúva com toda a facilidade e que teria de lutar pela sobrevivência sem a ajuda de ninguém.., tal como te pode vir a acontecer se o teu marido morrer lá fora, na charneca.
Dessa vez, a sua fúria fora atiçada. Era uma obscenidade que aquele homem se atrevesse a entrar na sua casa para a ameaçar com um completo desprezo por todas as leis da hospitalidade. Fora tão chocante que se esquecera dos seus próprios medos, levantara a colher de pau e guinchara-lhe que se fosse embora. Thomas fizera-o, lançando um olhar meio cínico, meio divertido, para a arma que ela empunhara, como se a estivesse a comparar com as espadas, facas e setas dos seus homens. Todavia, ainda fizera uma pausa junto da porta, olhara para trás, para ela, e dissera com tons lentos e deliberados: - Pense no que lhe disse, senhora Smalhobbe. No fim de contas, o seu marido até pode já estar morto. A senhora pode já ser viúva. Pense bem nisso!
O terror daquela visita ainda lhe pesava na alma. O homem estranho e trigueiro, com uma voz suave e que a comparara à filha deixara-lhe uma impressão de crueldade que não se apagara com o tempo. Sabia que o marido ficara cheio de ansiedade por causa dela quando voltara para casa naquela noite. O terror que sentira fora demasiado visível e lançara-se na protecção dos seus braços logo que o vira chegar, e passara-se algum tempo até que o marido conseguisse persuadi-la de que estivera em perfeita segurança. Na verdade, até nem vira ninguém durante todo o dia.
- Queres ir-te embora da charneca?
Aquelas palavras tinham sido tão inesperadas e baixas que ao princípio nem tivera a certeza de o ouvir correctamente. Rodopiou, com os olhos abertos de espanto.
- O quê?!
O óbvio espanto da mulher fez com que a boca de Henty se encurvasse num sorriso seco.
- Perguntei se te querias ir embora daqui. Eu não quero... mas se não conseguires viver em paz então talvez seja melhor que nos mudemos para outro lado.
- Mas... - Calara-se e ficara a pensar. Aquela terra era tudo o que possuíam no mundo. Tinham chegado ali - fora apenas há um ano? -, para tentarem iniciar uma nova vida depois de terem perdido a velha casa. Graças a Deus, tinham conseguido ganhar um magro sustento. Se se fossem embora naquela altura... conseguiriam alguma vez vir a instalar-se noutro local qualquer? Fora a primeira vez, desde o início das visitas dos homens de Smyth, que contemplara as opções que lhes restavam: ficar e correr o risco de possíveis actos de violência da parte do vizinho poderoso, ou partir para procurarem um novo modo de vida em qualquer outro lado. Tinham tentado durante um ano antes de chegarem às charnecas e a simples recordação do que haviam passado bastava para a pôr a tremer. Não seria capaz de enfrentar tudo aquilo outra vez.
Encarou o marido e susteve-lhe o olhar durante quase um minuto.
- Ficamos - acabara por dizer.
Henry esboçara um sorriso terno.
- Ao menos, temo-nos um ao outro - declarou.
- Sim - sussurrou Sarah, mas lançara uma última olhadela assustada para a pequena fogueira de Peter Bruther, tão pequena e triste na sua distante solidão.
A decisão de permanecerem deixara um vazio de medo na barriga de Sarah. O refúgio que tinham considerado seguro apenas algumas semanas antes demonstrara ser tão inseguro como todos os outros locais onde tinham tentado esconder-se. Sim, ao menos tinha o marido com ela, pensou. O pobre Peter Bruther não tinha ninguém. Como poderia defender-se, sozinho, lá longe, se os mineiros do Tbomas Smyth decidissem atacá-lo?
Sir Robert Beauscyr saltou do cavalo, atirou as rédeas ao cavalariço que o aguardava e caminhou rapidamente para os degraus que conduziam ao velho salão. O seu estreito rosto estava muito pálido e tinha os lábios comprimidos numa estreita linha. Subiu os degraus a dois e dois, escancarou a grande porta e atravessou o reposteiro para entrar no próprio salão.
- Pai! - começou, imperioso. - Aquele maldito cretino, o seu homem que...
- Cala-te! - O grito zangado do pai, sempre muito composto e normalmente calmo, obrigou Robert a fazer uma pausa e foi apenas nessa altura que reparou nos outros dois homens que se encontravam na sala. A sua fúria dissipou-se enquanto os estudava com desconfiança, Houve um deles - jovem, de ombros largos e com um poderoso braço direito que falava de toda uma vida gasta no treino para a guerra -, a quem reconheceu imediatamente.
Sir Robert podia ver que o seu irmão mais novo atingira a maturidade. O rapaz de 14 anos, elegante e magro, que saíra de casa havia seis anos, estava agora transformado num guerreiro de pele trigueira. Possuía uns olhos azuis que enfrentavam os dele com toda a calma mas o rosto modificara-se. Tinham-lhe quebrado o nariz e exibia uma espessa cicatriz na face esquerda, cicatriz essa que Robert estava certo que iria atrair todas as mulheres de Exeter.
Pelo seu lado, John Beauscyr não ficou nada impressionado com o aspecto do irmão e viu-se forçado a ocultar uma careta de desprezo.
Sempre mais interessado nos estudos do que na luta, Robert exibia a magreza ascética de um sacerdote e uma pele cerosa devido ao facto de passar demasiadas horas dentro de casa. Até o aperto de mão era mole e patético. John estava certo de que o irmão mais velho teria dado um melhor mercador do que um cavaleiro. Para John, o facto da lotaria da vida o ter feito aparecer em segundo lugar constituía uma constante fonte de agravos. Quem iria herdar a velha mansão de Beauscyr, em Dartmoor, seria Robert e não ele.
O segundo visitante era um homem alto, que se mantinha um pouco afastado do fogo como que a conter-se até ter a certeza de que Sir Robert não constituía um perigo. Avançou depois de constatar as boas-vindas de John e Sir Robert ficou abalado com a sensação de poder que emanava dele. Não se tratava apenas do poder dos músculos, mas também de propósitos e de força de vontade. Foi John quem os apresentou.
- Robert, este é o meu amo. S/r Ralph de Warton. Sou seu escudeiro já há mais de dois anos. Sir Ralph, este é o meu irmão.
Sir Robert olhou rapidamente para o pai e fez um gesto para o servo que esperava instruções.
- Sir Ralph, alegra-me que visitasse a nossa casa e é muito bem-vindo, Vai ficar aqui durante algum tempo?
Sir Ralph inclinou a cabeça com graciosidade.
- Infelizmente, não muito, senhor. Este é apenas o último estágio da nossa jornada para a costa. Confesso que considero deprimente o actual estado do reino e ficarei satisfeito por partir logo que puder.
- Quem não o ficaria? - perguntou Sir William num tom seco, dando instruções ao servo para ir buscar mais vinho e algumas carnes frias. - Desde os tempos da fome que quase não há servos da gleba suficientes para trabalharem nos campos.
- No entanto, é um sítio pacífico.
- Suponho que sim. Pelo menos, estamos a salvo dos ataques daqueles assassinos vindos da Escócia.
- Sim, são verdadeiros filhos do diabo - concordou Sir Ralph.
- Claro que são, senhor! Loucos! Devem estar loucos! Uma só vitória.., e pensam que podem penetrar no reino com total impunidade sempre que lhes apetecer. Não perceberão que terão de sofrer o extremo desagrado do Papa? Creio que o chefe deles já foi excomungado... Querem que todo o país fique sujeito ao anátema?
- Já está sujeito ao anátema. - Foi John quem falou e Robert ficou interessado ao ver que o irmão corara e baixara os olhos quando o seu cavaleiro lhe lançara uma mirada rápida. Fora como se, repentinamente, se apercebesse que dissera algo de errado. Sir Ralph manifestou-se enquanto aceitava uma caneca de vinho das mãos do servo.
- Sim, os Escoceses estão todos sob interdição. O Papa decidiu castigá-los por se recusarem a resolver a sua disputa com Eduardo que, no fim de contas, é o seu soberano feudal.
- Óptimo! - disse Sir William, esfregando as mãos com um sorriso de satisfação. - Esperemos que isso os leve a compreender os erros do seu procedimento. Talvez percebam que não podem viver graças ao expediente de continuarem a roubar tudo o que lhes apetece. Esses Escoceses não são mais do que uma tribo de gente fora-da-lei.
- Contudo, isso também anula todas as possibilidades de uma nova cruzada à Terra Santa, que é o que o Papa desejava - continuou Sir Ralph, olhando para a caneca. - Enquanto os Escoceses continuarem a atacar o norte e o monarca francês ameaçar o sul, o nosso Rei Eduardo nunca concordará com uma viagem à Palestina. Os desejos do Papa quanto a uma nova tentativa na Terra Santa nunca passarão disso mesmo: simples desejo sem quaisquer possibilidades de virem a ser satisfeitos.
- Pelo menos, o Papa está a tentar submeter os Escoceses...
- Sim, senhor... e as notícias da Irlanda não são más. Aparentemente, o magistrado do Rei que lá se encontra forçou os invasores escoceses a recuarem. Graças a Deus por termos um homem sensato no comando das tropas!
- Hum, se... se houvesse uma nova cruzada, Sir Ralph... juntar-se-ia a ela? - perguntou Sir Robert, que foi olhado com interesse pelos brilhantes olhos cinzentos do cavaleiro.
- Sim, senhor. Sou como o seu irmão. Não tenho propriedades e o meu irmão herdou tudo do nosso pai. Aquilo por que anseio - aquilo de que necessito -, é de uma oportunidade para ganhar a glória e favores. Qual é o lugar mais apropriado para um cavaleiro, se não nas batalhas? Podia ganhar fama e fortuna se houvesse outra cruzada. Contudo, seja como for, não haverá nenhuma, pelo menos enquanto os monarcas inglês e francês brigarem entre eles sempre que têm oportunidade. Não irei para a Palestina, mas quero atravessar o mar, ver novas terras e combater. Há guerras em Itália onde um cavaleiro pode ganhar boas somas. Talvez vá para lá.
Sir William fez um sinal a pedir mais vinho, arrotou e concordou.
- Sim, as cidades italianas oferecem boas oportunidades. Sir Ralph acenou mas os seus olhos continuavam postos em Sir
Robert. Passado um instante, John pigarreou e perguntou:
- Então, como vai o domínio? A mansão parece ter sofrido muito pouco quando comparada com o resto do reino.
- Tivemos sorte - admitiu Sir William. - As nossas propriedades não foram tão afectadas como muitas outras e não nos morreram muitos servos.
- No entanto, houve alguns que fugiram.
O tom seco de Sir Robert fez com que o irmão e o cavaleiro levantassem os olhos. O pai abriu a boca para falar mas Sir Robert continuou, com a ira novamente a crescer agora que recordava o incidente.
- Oh, sim, houve alguns que fugiram... tal como o Peter Bruther...
John fez uma careta.
- Quem, o filho da velha Martha?
- Sim. Ela morreu e ele fugiu há uns nove meses. Pensámos que tinha ido para leste, para tentar ganhar a sua liberdade, mas vi-o hoje mesmo, na estrada para Exeter. Aparentemente, o cretino nem sequer fugiu, limitou-se a meter-se nas charnecas. Viu-me... e o patife deu-se ao trabalho de me deter para me mostrar que já não nos teme!
- Bateste-lhe? - perguntou o irmão, curioso,
- Estava rodeado de mineiros, como guardas em torno de um rei. Não pude fazer nada. Se o tivesse feito, seria atacado. - Sir Robert olhou com fúria para o fogo na lareira e John não escondeu o trejeito de troça ante a fraqueza do irmão.
Sir Ralph encolheu os ombros.
- Bom, se o quer, vá atrás dele. Um servo que foge tem de continuar livre durante um ano e um dia para ganhar a sua liberdade. Se ainda não se passou um ano, então tem o direito de ir buscá-lo.
- Não aqui, SirRalph. As charnecas são diferentes... e há outros que irão ver que se conseguiu escapar sem ser castigado! Vai certificar-se disso. Na verdade, o patife prometeu-mo e até se riu de mim! Ele, um servo da gleba... a rir-se de mim.
Sir William exibiu uma expressão de preocupação.
- Sim, pode ser mau para o domínio. Que podemos nós fazer? Se não fizermos nada... os outros servos concluirão que se podem ir embora quando quiserem e a mansão ir-se-á abaixo por causa da falta de trabalhadores. Porém, se tentarmos ir buscá-lo, os mineiros podem enfrentar-nos...
John não se mostrou preocupado.
- Exige ao magistrado de Lydford que venha resolver o assunto. Perante a Lei, é ele o responsável pelos mineiros de Devon. O Peter Bruther tem de voltar e o magistrado pode obrigá-lo.
- Talvez tenhas razão... - murmurou Robert. John olhou para cima de repente e ficou surpreendido com a fúria que viu no rosto do irmão quando este rosnou:
- Há uma coisa de que tenho a certeza: se apanho o patife sozinho no meio da charneca... vai lamentar ter-se rido à minha custa!
- Não podes fazer nada a um mineiro - protestou o pai, sem grande convicção.
- Eu? Pai, não posso permitir que os servos fujam... e tu também não!
- Por amor de Deus, Simon!
- O que foi? - Simon Puttock vtrou-se na sela e espreitou o amigo.
O seu companheiro soltou um suspiro dramático, captou a expressão de Simon e não conseguiu impedir-se de rebentar em gargalhadas ruidosas, embora simpáticas.
- O quê? A tua infelicidade, mais nada! Tens sido como um urso com uma pata presa numa armadilha durante todo o caminho, sempre a queixar-te desta visita! Vais continuar assim até lá chegarmos? Por que estás tão incomodado? A jornada não é longa, há uma refeição à nossa espera e o tempo está bom para uma cavalgada por essas charnecas de que tanto me falaste.
Simon, almoxarife do Castelo de Lydford, encolheu os ombros com amargura mas foi forçado a reconhecer a validade de, pelo menos, a última parte daquelas afirmações. Dali, no alto da franja mais oriental de Lydford, as charnecas pareciam muito convidativas sob a luz do Sol. Vistas à distância constituíam toda uma série de enganadoras colinas verdes suavemente moldadas, pintalgadas por brilhantes toques de amarelo e dourado nos locais onde a luz iluminava os tojos, e com ocasionais tons púrpura e malva nas zonas de urzes. A cena parecia tão rica de cores como o traje de um imperador, com os flancos das colinas salpicados de branco aqui e acolá, nos sítios onde os rebanhos de ovelhas pastavam. Lá no alto pairava um falcão no céu sem nuvens enquanto na frente deles a água cintilava nos riachos e poças.
Porém, a vista não lhe dava qualquer espécie de conforto e o pior de tudo era que o almoxarife não sabia como explicar inteiramente os seus problemas. Já tinham decorrido dois anos desde que conhecera Sir Baldwin Furnshill, o senhor da mansão de Furnshill, perto de Cad-bury, e entretanto os dois homens haviam-se tornado bons amigos. Tal como Simon muito bem sabia depois de investigar alguns assassínios com a sua ajuda, Baldwin era astuto, culto e tinha uma boa percepção das leis - em especial agora que era o Guardião da Paz do Rei -, mas os problemas que Simon era forçado a enfrentar quase diariamente seriam incompreensíveis mesmo para um homem com experiência nos assuntos legais. Embora Baldwin tivesse viajado muito nos seus tempos da juventude, fizera-o enquadrado numa organização rica e poderosa pelo que, para ele, os problemas locais eram uma questão muito diferente.
O almoxarife lançou-lhe uma olhadela duvidosa. Sob o clarão do Sol, Baldwin tinha um aspecto bronzeado e em forma, com a fina cicatriz de faca que lhe cortava a face a brilhar sob a luz. Os olhos castanhos moviam-se com confiança sobre a paisagem e o rosto quadrado e forte era a perfeita imagem de um cavaleiro moderno. Porém, a barba bem aparada que lhe acompanhava a linha do queixo destoava, tal como as roupas. A velha túnica estava manchada e gasta, tinha os calções desbotados e empoeirados, e isso fazia com que parecesse estar a passar por tempos difíceis. Não era verdade e Simon sabia-o, porque as propriedades do cavaleiro eram prósperas. Pura e simplesmente, Baldwin não se preocupava com a sua aparência e ficava satisfeito por parecer pobre perante todos os que quisessem acreditar que o era.
- Vem daí, Simon! Como podes estar tão infeliz num dia como este? - perguntou Baldwin novamente. Não era normal que o seu amigo se mostrasse tão introspectivo e abstraído do mundo. Em geral era o próprio Baldwin quem se deixava arrastar por negros pensamentos e era Simon quem tinha de o trazer de volta para a realidade, Contudo, daquela vez, as coisas não eram assim. Baldwin sentia-se descontraído e refrescado depois de ter estado três dias com o almoxarife e custava-lhe a compreender por que razão um recado de uma obscura mansão para os lados de Widecombe deixara o amigo tão incomodado.
Simon continuou a cavalgar em silêncio durante um bocado, oscilando ao ritmo dos passos lentos do cavalo.
- São aqueles malditos mineiros, Baldwin... - acabou por dizer. - Arranjam sempre problemas onde quer que apareçam...
- Ora, mas a queixa desse tal Beauscyr é uma coisa muito simples, não é verdade?
- Não é tão simples como parece... - grunhiu Simon. - Isto aqui não é como na tua mansão, onde tens o direito de tratar os camponeses como quiseres. Perante a Lei, esta área é... uma floresta!
- Uma floresta?! - repetiu Baldwin, confuso.
- Sim. Costumava ser terreno de caça para o monarca até ao momento em que transformou o Piers Gaveston no conde da Cor-nualha e lhe doou estas terras. Depois do assassínio de Galveston as terras reverteram para o monarca... e os mineiros estão sob a alçada do domínio do Rei.
- Ah, sim? Porquê?
O almoxarife explicou:
- Houve sempre muito estanho nas charnecas e a sua mineração transformou-se numa ocupação proveitosa para muitos... e também para o monarca. Eduardo cobra impostos sobe o metal extraído, pelo que deu aos mineiros o direito de se protegerem, e aos seus interesses. Na prática, podem fazer quase tudo o que os ajude a encontrar estanho.
- No entanto, o homem não deixa de ser um fugitivo, não é verdade? Tudo isso é irrelevante.
- Quem me dera que fosse. O problema está no facto de ter passado a ser um mineiro logo que limitou um lote de terreno. Por isso, passou a ficar sob a alçada do domínio do Rei. Beauscyr pode não gostar mas o seu servo é, de facto, um mineiro de estanho a trabalhar para o monarca... e Beauscyr nada pode fazer a esse respeito.
- Bom, então esse tal Beauscyr vai ter de aceitar que perdeu um homem, mesmo que isso não lhe agrade... Quanto muito, poderá apresentar uma petição ao Rei, se achar que tem razões de queixa.
Simon estudou o amigo com os olhos carregados de amargura. O cavaleiro devolveu-lhe o olhar com uma franca e alegre incompreensão e Simon voltou a soltar um suspiro.
- Sir William Beauscyr não vai ver as coisas desse modo, Sir Baldwin - afirmou, num tom seco. O cavaleiro soltou uma risadinha ante aquela utilização sarcástica do seu título enquanto o almoxarife fazia caretas para o caminho que tinha pela frente. - Pela parte que lhe diz respeito, ele também tem direitos... tal como tu ou qualquer outra pessoa. O homem era um servo da gleba seu. Fugiu-lhe e tem de lhe ser devolvido.
- Excepto que o homem está agora sob a protecção do Rei - retorquiu Baldwin com ligeireza.
- Sim, passou a pertencer aos domínios reais - admitiu Simon. - O problema está em que são muitos os servos que fogem e se intitulam mineiros apenas para poderem escapar aos seus senhores. Nas charnecas houve alguns que reclamaram direitos e privilégios de mineração, ou seja, afirmaram que eram mineiros e comportaram-se como tal até lhes ser imposta a correspondente taxa... e depois mudaram repentinamente de ideias e passaram a ser mercadores, agricultores, ou lenhadores... ou seja o que for! É essa a alegação do Beauscyr. Afirma que o homem...
- como é que ele se chama? Peter? - se declarou mineiro apenas por conveniência mas não tem qualquer intenção de minerar seja o que for.
- Aí está uma coisa que não compreendo - disse Baldwin. - Para que serviria? Limitou-se a passar de um amo para outro e continua a não ser um homem livre...
- Ah, mas é! - declarou Simon com ênfase. - Como mineiro de estanho goza da maior parte dos direitos de um homem livre. A questão é precisamente essa. Pode explorar todo o minério que quiser, durante todo o tempo que lhe apetecer. Os mineiros gozam de direitos antigos desde há muito, muito tempo, para garantir ao Rei que produzem o máximo de metal que puderem. O monarca ganha uma fortuna por ano à custa dos seus esforços. É por isso mesmo que impõe muito poucas regras aos mineiros, que estabeleceram as suas próprias leis. É por isso que podem ir para todo o lado, nas charnecas. Têm o direito, que lhes foi concedido pelo Rei, de vaguearem por onde quiserem, de entrarem nas terras de toda a gente para escavarem o estanho, de cortarem as turfeiras para os seus fogos e de canalizarem os cursos de água para as minas. Na verdade, podem fazer quase tudo. Esse Peter Qualquer-coisa sabia muito bem o que fazia quando fugiu. Para todos os efeitos, está livre, e aquele burro do Beauscyr quer que eu - eu!-, resolva problemas que estão a fermentar há séculos...
Baldwin sorriu-se para si mesmo enquanto o amigo continuava a resmungar. Aos 32, Simon era cerca de 13 anos mais novo do que ele e ocasionalmente ainda se mostrava predisposto ao tipo de explosões iradas que Baldwin costumava associar aos selvagens de cabelos ruivos do norte. Contudo, o cavaleiro sabia que aqueles ataques de mau temperamento nunca duravam muito. Alto, com uma pele trigueira e cabelos castanhos quase pretos, Simon era normalmente fleumático e aceitava o que a vida ia colocando no seu caminho. À medida que ia envelhecendo, os seus olhos cinzentos estudavam o mundo com uma calma reservada que escondia uma mentalidade aguçada. Fora educado e era um homem mais preparado para dar ouvidos a argumentos. Esforçava-se na procura de uma linha justa e razoável através de todas as disputas, um traço que Baldwin considerava tranquilizador num homem que era responsável pelo bem-estar e pelas vidas de muitos outros. A mente lógica do almoxarife era capaz de satisfazer a maior parte dos peticionários e só muito raramente perdia a paciência, o que por vezes acontecia quando as questões lhe pareciam injustas ou as pessoas se mostravam intransigentes.
Naquele momento, a má-disposição tinha a ver com o facto de ter sido enviado para servir de mediador entre duas partes cujos pontos de vista e desejos se encontravam em extremos completamente opostos. Pelo pouco que Baldwin já ouvira, não havia qualquer hipótese de Simon conseguir agradar a ambos os grupos. As necessidades dos mineiros e dos senhores da terra das charnecas estavam extremamente entrelaçadas mas eram demasiado opostas para permitirem uma resolução fácil, e muitas vezes era o próprio monarca quem tinha de impor um acordo. Baldwin estudou o amigo durante alguns momentos, com simpatia.
- De qualquer modo, Simon, fiquei satisfeito por ver que o teu próprio Peter vai muito bem.
O almoxarife lançou-lhe um sorriso interrogativo ao ouvi-lo mencionar o filho.
- Obrigado por mudares de assunto - respondeu. - Sim o Peter está bem, graças a Deus! O Hugh dedicou-se muito ao rapaz. - O filho fora uma bênção há muito aguardada. Simon e Margaret, a sua esposa, adoravam a filha, Edith, mas ambos haviam ansiado por um irmão para a rapariga. Esses desejos tinham sido finalmente concretizados no ano anterior e Hugh, o servo de Simon, afeiçoara-se imediatamente ao bebé, um facto que de vez em quando provocava discussões entre ele e a filha de Simon sobre quem deveria tomar conta da criança.
Um pouco mais adiante, Baldwin remexeu-se sobre a sela e perguntou:
- Ouviste alguma coisa sobre o que se passa nos pântanos da Escócia? - O almoxarife mirou-o com um ar intrigado e o cavaleiro prosseguiu: - Parece que o Papa ficou tão furioso com as guerras entre Escoceses e Ingleses que mandou dois cardeais para tentarem negociar uma paz.
- Uma paz entre o Bruce e o Eduardo? Nunca! - fungou Simon. - Nenhum dos homens do Rei em Inglaterra quer ver o Bruce a conservar o que roubou e é improvável que ele concorde em devolver tudo.
- Talvez as coisas se tornem mais fáceis. Agora que os Irlandeses obrigaram os seus homens a recuar talvez o Bruce admita que, pelo menos nessa área, as suas conquistas já atingiram os limites. Pode ser que comece finalmente a pensar na paz.
- Não estou assim tão certo disso. Um homem daqueles não tem honra. Jurou lealdade ao pai do Rei quando era ainda o conde de Carrick... Como quer que voltem a confiar nele?
- Com toda a facilidade, meu amigo. Essa foi apenas uma daquelas promessas políticas - disse Baldwin, com cinismo. - Depois disso já foi coroado Rei. No fim de contas, o nosso abençoado Eduardo também é um vassalo de França por causa da Gasconha... e ainda não prestou vassalagem ao Rei Filipe, pois não?
- Ah, mas é diferente! Eduardo é um homem de honra e ao longo dos últimos anos foi várias vezes a França prestar vassalagem. Quantas vezes querem que ele lá vá? De cada vez que regressa a casa o monarca francês morre.,, e tem de lá voltar para a vassalagem ao sucessor. Não, as coisas são diferentes com este louco da Escócia, que se recusa a vir prestar vassalagem ao seu Rei inglês.
- Não me parece que seja assim tão simples, Simon. Bom, de qualquer modo, resta-nos ter esperança numa paz. A última coisa de que o país precisa é de mais guerras.
- Os cardeais obtiveram algum êxito?
- Não. Nem por isso... - respondeu Baldwin baixinho, para logo soltar uma risadinha. Quando prosseguiu fê-lo com a lentidão de um homem que está a escolher as suas palavras com todo o cuidado. - De facto, diz-se que foram incomodados durante o caminho. Desembarcaram nas nossas costas em Julho do ano passado mas parece que só chegaram à Escócia muito mais tarde. Consta que depararam com um grupo de bandidos entre Iorque e Durham e que foram roubados.
- Que lhes aconteceu?
- Oh, nada, ninguém lhes fez mal. Ficaram mais feridos no orgulho do que nas suas próprias pessoas! Claro que lhes levaram os cavalos e o dinheiro, mas não os incomodaram mais do que isso. Todavia, o exercício adicional talvez tenha feito algum bem aos dignos cardeais...
- Suponho que esse roubo acabou com todas as esperanças de paz. Se os malditos rebeldes escoceses se atreveram a atacar e roubar os cardeais do Papa que iam ao encontro do seu senhor...
- Ah, Simon! - O cavaleiro rebentou em gargalhadas, o que levou o amigo a mirá-lo, sem o compreender. - Não deves chegar a conclusões precipitadas! Não foram os escoceses quem atacou os cardeais, mas sim um bando conduzido por um inglês.
- Nenhum inglês se atreveria a fazê-lo!
- Sir Gilbert Middleton atreveu-se. Tinha-se dedicado ao banditismo. Ouvi dizer que pensou que, já que o monarca era incapaz de proteger as pessoas nos pântanos do noite, então talvez se pudesse aproveitar desse facto. Foi apanhado em finais do ano passado e é provável que a sua cabeça apareça espetada numa lança, em Londres, dentro de muito pouco tempo, por causa do embaraço que provocou ao Rei Eduardo.
- Como é que descobres essas coisas? - murmurou Simon, dividido entre o ressentimento pelas gargalhadas e a vontade de se juntar a elas.
- É simples - disse-lhe o homem mais velho. - Converso com os viajantes. A maior parte das pessoas fica feliz por poder contar as novidades a um homem interessado. Para além disso... por vezes ainda tenho alguns amigos que me vêm visitar.
Aquelas palavras deixaram-nos a ambos silenciosos durante um minuto. Já se tinham passado mais de dez anos desde que os Pobres Soldados de Cristo e do Templo de Salomão, os Cavaleiros Templários, tinham sido presos em 1307, e ali em Inglaterra encontravam-se praticamente esquecidos, com as terras divididas e vendidas, ou na posse dos seus rivais, os Cavaleiros Hospitalares. Contudo, Baldwin e Simon não conseguiam esquecer os Templários Baldwin fora membro dessa Ordem desgraçada e colocada fora-da-lei,
Havia um ponto de vista, vulgarmente defendido na Inglaterra e na Escócia, de que os Cavaleiros Templários tinham estado inocentes dos crimes que lhes tinham atribuído e que se tinham limitado a ser vítimas de um complicado plano do rei francês para se apoderar das suas riquezas. Depois da Ordem ter sido destruída, muitos dos seus membros haviam sido utilizados pelo monarca inglês como diplomatas ou tinham-se unido a outros monges guerreiros na Escócia, onde Roberto I desejava tantos soldados treinados quantos conseguisse encontrar. Dizia-se que a Beauséant, a bandeira negra e branca dos templários, fora vista em Bannockbum onde as forças inglesas tinham sido desbaratadas de um modo tão desastroso. Por isso, havia por todo o país um grande número de homens que no passado tinham sido camaradas de armas de Sir Baldwin de Furnshill antes deste se tornar no Guardião da Paz do Rei em Crediton e de receber frequentemente convidados na sua pequena mansão. Simon sabia de tudo aquilo mas preferia não aprofundar demasiado o assunto.
- Então... - murmurou, após algum tempo - o Papa também quer a paz, não é? Pode ser útil. Talvez consiga persuadir o Bruce a acabar com os ataques...
- Não deponhas muita fé na habilidade do homem para acabar com as guerras, meu amigo. - Baldwin sorriu. - No fim de contas, o Papa até já excomungou o Bruce. Para além disso, se tivesses sido coroado Rei dos Escoceses, duvido que gostasses de receber uma carta do Papa começada por: "Tu, que te intitulas Rei da Escócia"! Se o Papa quiser realmente a paz... então terá de se esforçar mais do que isso.
Ainda se riam quando começaram a descer a ligeira vertente de onde podiam ver a vastidão das charnecas. Para Baldwin, pouco familiarizado com aquela área, a visão era impressionante. As ervas brilhantes cintilavam ao sol, curtas e ralas no sítio onde haviam sido cortadas pelo gado, ou compridas e esguias como juncos, mas ambas sulcadas pelos rastos prateados da água que escorria para charcos. O caminho que tinham de percorrer era como um corte escuro que descrevia meandros por entre colinas suavemente moldadas sobrepujadas por penedos. Baldwin pressentia que aquela paisagem poderia ser muito árida no Inverno, mas naquele momento parecia-lhe cheia de promessas, com os cantos das cotovias no céu claro e com a constante música tilintante da água.
O cavaleiro e o amigo não viram mais ninguém durante vários quilómetros. O caminho estava bem pisado, com as ervas achatadas ou desgastadas nalguns locais, mas não havia sinais de habitações. A pouco e pouco o solo tornou-se, se é que tal era possível, ainda mais profusamente coberto por pedregulhos cinzentos. O trilho conduziu-os a um vale baixo e momentos depois já cavalgavam nas franjas do pequeno bosque que cobria uma colina íngreme, onde as árvores cresciam no meio das rochas e penedos.
- Deus do céu! Simon, que se passou aqui?
As árvores eram diferentes de todas as que o cavaleiro já vira. Era como se cada uma delas tivesse mirrado. Não passavam de caricaturas deformadas e engelhadas das grandes árvores que conhecia nas suas próprias terras. Nenhuma daquelas árvores atingia mais de seis metros de altura e na sua maioria eram muito mais pequenas.
- Ainda bem que ficaste surpreendido - troçou Simon. - Sempre gostaste de me espantar com as tuas narrativas a respeito dos países estrangeiros e é agradável poder pagar essa dívida, pelo menos em parte.
- Mas... o que foi que aconteceu a estas árvores? Por que estão tão... Só me consigo lembrar de uma palavra: deformadas. São carvalhos, não são?
- Sim, creio que são - disse Simon num tom pensativo enquanto olhava para as árvores mais perto do trilho. - No entanto só atingem esta altura aqui, no bosque de Wistman.
- E nas outras partes da charneca?
- Ouvi dizer que há outro sítio onde as árvores são iguais, mas ainda não as vi. Toda as outras que tenho visto são normais.
- São na verdade muito curiosas... e os ramos apontam todos na mesma direcção. Já tinhas reparado nisso?
- Até parece que apontam para qualquer coisa, não é? Ouvi uns boatos...
- Sim?
- Bom, recordas-te das histórias, não é verdade? As histórias do Diabo e da sua matilha de cães que perseguem as almas perdidas? É deste sítio que vêm essas histórias, Baldwin, das charnecas. Dizem que os cães do Diabo são ouvidos neste bosque quando os ventos sopram com força.
Baldwin olhou-o com azedume.
- Suponho que pensas que esses cães vêm aqui para mijarem nas árvores? Os cães do Diabo mijam nos ramos, matam-nos e isso faz com que as árvores morram de um lado? Ora, com franqueza, Simon...
- Não, claro que não - retorquiu Simon, que levantou apressadamente a mão para deter o fluxo da ironia do cavaleiro. - No entanto, sei que não gostaria de permanecer neste sítio depois de escurecer.
- Sim, estou a entender-te - disse Baldwin, pensativo e a olhar para as árvores. Achou que tinham uma atmosfera opressiva e que era fácil de compreender que as pessoas imaginassem o pior a respeito de um lugar como aquele, em especial se o vento uivasse por entre os troncos ao cair da noite. Pessoalmente, Baldwin não acreditava em histórias de velhas, mas era natural que as pessoas se sentissem afectadas pelo poder ameaçador de um local como aquele.
- As pessoas pensam que há algo de estranho neste lugar - prosseguiu Simon - e talvez fosse isso o que deu o nome ao bosque. Nesta zona, wisht significa "invulgar", ou "estranho"... e não há dúvida de que as árvores são estranhas.
- Pois são... mas creio que crescem assim por uma qualquer razão muito mundana. Cães do Diabo! - A voz traía o divertimento que sentia e o almoxarife lançou-lhe um olhar desconfiado.
A quase dois quilómetros para sul, depois de ultrapassarem mais uma colina, Baldwin compreendeu subitamente por que razão Simon o levara para aqueles lados. Puxou as rédeas ao cavalo e ficou a olhar.
- Era isto que queria que visses, Baldwin. Bem-vindo às minas de estanho de Dartmoor! - anunciou Simon quando se deteve.
Baldwin descobriu-se a olhar para um vasto acampamento, sem qualquer muro ou vedação, que fora instalado numa planície rodeada por colinas baixas. O terreno estava salpicado, aqui e acolá, por casas acinzentadas de pedra e turfa. Uma delas, maior do que as outras e instalada no meio do acampamento, soltava uma espessa coluna de fumo que se desfazia na brisa ligeira. Toda aquela vasta área estava esburacada por poços e trincheiras. No seu centro corria um rio estreito mas muito rápido, em cujas margens se abriam muitos pequenos canais construídos pelos homens. Para além disso, havia uma grande barragem à sua direita. A barragem alimentava outros canais que se perdiam à distância e que Baldwin calculou que se dirigissem a outras minas.
- Com tantas cabanas... devem viver aqui muitos homens... - disse Baldwin, observando a área com um olhar especulativo.
- Um exército. Mais de uma centena só neste acampamento - concordou Simon, esporeando o cavalo.
Ainda só tinham percorrido uma curta distância quando avistaram um par de homens à beira do acampamento, homens que reagiram de um modo que fez com que Simon exibisse um sorriso sardónico.
Desconfiar de todos os estranhos era uma atitude típica da parte dos mineiros. Um dos homens apontou na direcção deles antes de se afastar a correr, enquanto o outro agarrava no que parecia ser uma picareta e os enfrentava resolutamente. Quando Simon e o amigo se aproximaram já havia um grupo a aguardá-los, grupo esse que aos olhos militares de Baldwin até parecia ser formado por soldados treinados. O homem que fora pedir ajuda já regressara e vinha acompanhado por uma personagem corpulenta que se comportava como se fosse o chefe. Simon cavalgou na sua direcção sempre com um sorriso amigável até ao momento em que o homem lhe atirou:
- Quem são vocês? Que querem daqui?
O almoxarife suspirou. Irritava-o que aqueles mineiros se sentissem suficientemente livres para serem tão arrogantes e mal-educados, e irritava-o ainda mais que tivessem o direito e a força para se comportarem assim. Ouviu Baldwin a aspirar o ar com força e quase sentiu as ondas de desaprovação emitidas pelo cavaleiro.
- Bom dia - respondeu, num tom agradável. - Vamos visitar uma pessoa, a leste daqui. O meu companheiro nunca tinha visto uma mina de estanho e...
- E também não será hoje que a irá ver - declarou o homem com firmeza.
Baldwin aproximou o seu cavalo do de Simon. O mineiro era baixo, tinha cabelos cor de areia e uma pele queimada pelo sol e pelo vento até ganhar um tom semelhante ao do couro de uma velha sela. Embora parecesse idoso, Baldwin não tinha a certeza sobre se isso se devia à dureza da vida na charneca ou se era um indicativo da sua idade verdadeira. Se a boa forma tivesse alguma coisa a ver com o assunto, então o homem não era velho. Tinha uma barriga rija e uns ombros quase tão largos como a altura, pelo que o cavaleiro chegou rapidamente à conclusão de que não gostaria de lutar contra um homem daqueles sem a superioridade das armas. Na verdade, o homem limitava-se a usar uma adaga à cintura, mas o modo como mantinha as mãos com os polegares encaixados no cinto, perto do punho da arma, era sinal de que continuava desconfiado.
- Pelo menos, devem poder dizer-nos a que distância fica a mansão de Sir William Beauscyr - interveio Baldwin com secura, e ficou satisfeito ao ver um rápido lampejo de dúvida nos olhos castanhos do mineiro.
- São amigos de Sir William?
- Nem por isso... - retorquiu Sir Baldwin, olhando para Simon - mas o almoxarife de Lydford e eu vamos fazer-lhe uma visita.
- O almoxarife? - os olhos do homem desviaram-se para Simon, desconfiados.
- Sim, sou o almoxarife - declarou Simon, que começava a sentir-se dominado pelo exaspero. - Sim, vou visitar Sir William. Agora, responde à pergunta do meu amigo e diz-nos a que distância estamos da mansão!
As instruções foram-lhes dadas com relutância enquanto os outros os observavam, com as mãos a brincarem com as picaretas e as pás. Baldwin ficou satisfeito quando voltaram a partir e deixaram para trás o tenso e apertado nó de mineiros. Já se encontravam para lá da aldeia improvisada e subiam a vertente do outro lado do acampamento quando olhou para trás das costas e ficou perturbado ao verificar que o homem de cabelos cor de palha permanecera imóvel no mesmo sítio e ainda tinha os olhos postos neles.
Numa altura em que tantos senhores enfrentavam dificuldades no financiamento das suas propriedades, a mansão de Beauscyr constituiu uma surpresa para Baldwin. Conhecia o nome da família, é claro... Os seus membros tinham prestado tantos anos de serviços leais aos reis de Inglaterra que seria difícil nunca ter ouvido falar neles, mas no entanto não estava à espera de encontrar uma mansão tão grandiosa. Contudo, logo a seguir recordou-se de que Sir William Beauscyr combatera na Escócia, em Gales, e que passara algum tempo em França com o Rei Eduardo. Deveria ter-se encontrado numa posição que lhe trouxera benefícios e era óbvio que, tal como muitos homens ricos que haviam subido na vida, gostava de exibir as suas riquezas.
O imponente forte jazia a alguns quilómetros para lá do acampamento dos mineiros, junto à fronteira oriental das charnecas, na direcção de Widecombe. Erguia-se numa pequena elevação numa curva do East Dart, pelo que o rio corria ao longo das traseiras dos edifícios de modo a formar um estreito fosso. Ali perto viam-se também as habitações dos servos da casa e de alguns dos que trabalhavam nos campos mas que eram esmagadas pelas dimensões da mansão propriamente dita. Baldwin examinou a disposição das construções à medida que descia uma colina a alguma distância. A mansão, rectangular e construída com a pedra local, continha todos os edifícios essenciais no interior das muralhas. O portão principal abria-se na imponente muralha da frente, virada a oeste, e para lá dele havia uma passagem muralhada, barrada por uma segunda porta que garantia a segurança do interior, A residência ficava do outro lado de um pátio empedrado e erguia-se bem alta sobre a estrutura dos subterrâneos, uma construção maciça com um pátio vedado numa das extremidades, onde a família se podia esconder dos servos. A área da cozinha ficava para norte, com o que pareciam ser quartos para uma guarnição, e os estábulos tinham sido instalados a sul. Qualquer inimigo que tentasse atacar o complexo teria de se sujeitar à chuva de projécteis lançados do alto de todos os edifícios. A mansão propriamente dita poderia resistir a um assalto prolongado mesmo que ambos os portões fossem derrubados e permitissem o acesso ao pátio.
Os dois homens tiveram de esperar junto do primeiro portão durante alguns minutos, mas foram rapidamente admitidos e desceram das selas com grande satisfação. A mansão encontrava-se a apenas a 20 quilómetros de Lydford mas tinham sido obrigados a subir e descer tantas colinas, e a atravessar tantos rios a vau que a distância lhes parecera muito maior. Simon endireitou-se e esfregou a curva das costas enquanto Baldwin fazia uma careta de dor.
- Parece-me que já não estou em forma para jornadas destas - admitiu Baldwin. - Ah, aquele será o nosso anfitrião?
Aparecera um homem no alto da escadaria da residência. Avistou os dois visitantes, desceu os degraus e avançou para eles. Simon apercebeu-se que não se tratava do homem que lhe mandara a mensagem peremptória exigindo ajuda para a recuperação do servo fugido. Sir William já deveria estar muito avançado na casa dos 50 anos e aquele tinham 20 e poucos.
- O meu pai pediu-me para os receber - anunciou. - Sou o seu filho, Sir Robert Beauscyr. O senhor é o almoxarife? Venha comigo e...
- Não. - Baldwin interrompeu-o rapidamente quando o homem lhe fez sinal. - Este é o almoxarife. Eu sou apenas um amigo.
Robert de Beauscyr corou, zangado, e olhou para Simon como se o almoxarife o tivesse enganado deliberadamente. O coração de Simon caiu-lhe aos pés perante o olhar altivo e de desprezo do jovem, que mantinha os lábios contraídos numa linha muito fina. Aquilo demonstrava que seria muito improvável virem a ter uma argumentação calma e lógica. Soltou um suspiro no momento em que SirRobert Beauscyr fez um curto aceno com a mão indicando que o deviam seguir até à residência onde, e Simon sabia-o, lhe iriam pedir que se explicasse, e onde era provável que tivesse de passar por uma experiência desagradável.
Chegaram ao topo das escadas e descobriram-se à entrada de um estreito corredor. Para a esquerda havia uma porta aberta que conduzia a uma despensa cheia de barris e caixas, onde um homem enchia um jarro com cerveja, o que constituía uma visão muito agradável depois da cavalgada. Baldwin seguiu os outros para o salão onde o fogo fumegava numa lareira no centro do pavimento, rodeada por bancos e mesas dispostos ao acaso sobre as palhas secas. As paredes estavam cobertas por tapeçarias enegrecidas pela idade e pelo fumo mas que eram iluminadas por feixes de luz provenientes das altas janelas. Na sua frente havia um estrado onde, em volta de uma mesa redonda, se sentavam três homens e uma mulher. Simon já se encontrava junto do estrado, com Robert Beauscyr a apresentá-lo. Ia dizendo o nome das pessoas e Baldwin estudava-as com interesse.
- O meu pai, Sir William Beauscyr. - A primeira impressão do cavaleiro foi a de que se tratava de um homem grande e desajeitado. O corpo era desproporcionado em relação às pernas curtas e os seus braços pendiam, compridos e pesadamente musculosos como os de um macaco, sob a túnica azul de mangas curtas. Tinha uma grande cicatriz em forma de estrela a marcar-lhe ambas as faces, como se tivesse sido atingido por um golpe de lança, As sobrancelhas eram pesadas e intimidantes, enquanto a boca espessa tinha um vivo tom rosado, carnudo e sensual, no rosto pálido. Embora outrora tivesse sido um lutador, isso deveria ter sido há muitos anos. Sir William já não era um homem que inspirasse medo, concluiu Baldwin ao reparar na pança que se derramava sobre o cinto de couro.
- A minha mãe, Lady Matillida.
Baldwin observou a elegante mulher que esboçou um aceno régio e ficou impressionado. Parecia pouco mais velha do que o filho mas deveria encontrar-se nos finais da casa dos 30 para já ter um rapaz daquela idade. Era alta, com não menos do que 1,70 m, com olhos escuros, delgada e graciosa, e os seus movimentos eram tão rápidos e confiantes como os de uma águia. Baldwin ficou com a nítida sensação de que fora ela quem contribuíra com a maior parte da inteligência que pudesse existir naquele casamento.
- O meu irmão, John.
Era óbvio que o jovem se estava a treinar para ser um soldado. Tinha um corpo bem formado, cabelos mais claros do que os dos restantes membros da família, um par de olhos num tom azul-claro que era surpreendentes em alguém com uma pele tão trigueira, olhos que percorreram Simon e saltaram para o cavaleiro com uma intensidade que Baldwin considerou curiosamente inquietante. Depois, havia o outro.
- O amo do meu irmão, Sir Ralph de Warton.
Era alto e elegante na sua túnica verde muito solta e Baldwin considerou que deveria tratar-se de um homem muito viajado. Tratava-se de algo bem visível nos seus olhos calmos e escuros, inseridos por baixo de sobrancelhas finas. Não tinha cicatrizes visíveis mas Baldwin sabia demasiado bem que muitos homens de guerra carregavam consigo as marcas das batalhas por baixo das roupas, naqueles locais onde as armaduras eram mais fracas. Quando Simon o apresentou e anunciou o seu nome e título, Baldwin - que ainda estudava o cavaleiro -, tomou súbita consciência de que o interesse era recíproco. Sir Ralph de Warton ficou nitidamente desconcertado com a presença de Baldwin, como se tivesse uma qualquer razão para o temer, ou à sua posição.
A comida apareceu, pão fresco acabado de sair do forno e carnes frias. Simon e Baldwin, como hóspedes, foram convidados a juntarem-se à mesa da família. Aceitaram com gratidão e sentaram-se juntos na extremidade da mesa, na frente de Sir Ralph. Por consentimento comum todos evitaram mencionar os motivos para a visita de Simon até ao fim da refeição, após o que Matillida, o seu filho John e Sir Ralph se levantaram e olharam interrogativamente para Sir Robert, à espera que ele se lhes juntasse. Contudo, Sir Robert recusou-se firmemente a olhar para eles e fitou o pai, que acabou por esboçar um encolher de ombros petulante, num gesto de assentimento.
Logo que os outros três saíram da sala foi o filho quem começou a expor as exigências para a devolução do servo fugitivo enquanto o pai brincava com a taça de estanho agora vazia.
- Então, que pretende fazer, almoxarife? Pedimos ao magistrado principal de Lydford para vir investigar, mas ele enviou-o a si. Que vai fazer? Estas fugas dos nossos servos da gleba têm de terminar ou acabaremos arruinados.
- Sim, é difícil, claro... - disse Simon num tom tranquilizador, - O administrador pediu-me para vir aqui falar convosco. No entanto, devem ter em conta as dificuldades. O vosso servo é agora um mineiro do estanho e...
- Estamos a par de tudo isso! A questão é esta: que vai fazer para o trazer de volta? Se a mansão não produzir alimentos, não teremos dinheiro e não poderemos pagar os impostos. Tome nota das minhas palavras: se aquele miserável levar a melhor com a sua deslealdade, então haverá outros a seguirem o seu exemplo muito em breve!
- Sim, mas os mineiros gozam de antigos direitos... - Simon suspirou quando foi novamente interrompido.
- Não precisa de me falar neles! Nasci e aqui e sei tudo a respeito dos direitos dos mineiros de estanho! Isto não tem nada a ver com direitos. Peter Bruther não é um mineiro, não está a cavar para extrair turfa ou estanho. Limita-se a ficar sentado na sua nova casa, sem fazer nada. Não precisa de acreditar em mim, vá lá e veja com os seus próprios olhos!
Simon respondeu, com um tom paciente:
- Mesmo que lá fosse, para que serviria? Não faz nenhuma diferença que esteja ou não esteja a preguiçar. No que se refere à Lei, o homem já não é uma responsabilidade vossa e...
- Não é uma responsabilidade nossa? - A voz do rapaz ergueu-se num grito. - É um nosso servo e a Lei permite-lhe fugir apenas para satisfazer os patifes das charnecas...
- E o monarca... - interveio Baldwin tranquilamente. SirRobert lançou-lhe um olhar de ódio e a voz tremeu-lhe de desprezo quando resmungou:
- O Rei? Esse inútil... O que...
- Cala-te, Robert. - O pai resolvera intervir, finalmente. Inclinou-se para a frente e pousou os cotovelos na mesa. Tal como outros que Baldwin conhecera e que também tinham sido feridos nas faces, o velho cavaleiro falava com um ligeiro cecear, como se a sua língua tivesse sido danificada. Tinha um aspecto fatigado e Baldwin ficou com a certeza de que a ideia de chamar o administrador para pedir ajuda não fora dele. - Almoxarife, o senhor sabe que o meu filho tem razão. É preciso fazer qualquer coisa. Não posso permitir que os servos desapareçam das minhas terras. Qual será a posição do magistrado se formos buscar esse tal Bruther?
- Não devem fazê-lo - declarou Simon com toda a franqueza. - Se o fizerem, os mineiros estarão no seu direito se o impedirem e o magistrado não quer conflitos.
- Nesse caso, não irá fazer nada para nos ajudar?
Simon levantou as mãos num gesto de desânimo.
- Que quer que lhe diga, senhor? Quer que minta? Quer que lhe faça promessas que sabe que não poderei cumprir? Não tenho forças a que possa recorrer, sou apenas um homem do Rei... e não posso sancionar uma violação da lei. Bruther tem a Lei pelo seu lado. Se tentar ir buscá-lo... então vejo-me forçado a dizer-lhe que terei de apoiar os mineiros se estes o quiserem impedir de o fazer. Creio que já sabe disso. Olhe, se quiser, posso tentar dar algum apoio ao seu problema, escrevendo ao...
- Quer dizer que, depois de tantos anos a defender os interesses do Rei, tenho agora de aceitar a perda da minha principal riqueza, não é verdade?
- O homem foi-se embora. Esqueça-o. Tornou-se efectivamente num homem livre desde que demarcou a sua própria terra para mineração.
- Almoxarife... - Sir Robert Beauscyr inclinou-se para a frente e falou com uma voz que era quase um silvo - no que me diz respeito, aquele homem ainda é um nosso servo e os nossos servos não possuem nada! Servem-se de uma parcela das nossas propriedades enquanto lho permitirmos e é tudo. Se são donos de alguma coisa... só se for das suas barrigas e da fome. Mais nada!
- Sir William - disse Simon, ignorando a explosão do jovem - nada do que eu possa dizer irá alterar os factos.
- Pois é, não tem nada para dizer, pois não? - retorquiu Sir Robert, que se levantou tão repentinamente que derrubou a cadeira, e que fitou o almoxarife com fúria. - No entanto, não estou preparado para ver a minha herança a sumir-se por causa da estupidez da lei... e dos seus funcionários! Se não nos ajudar... então teremos de resolver o assunto sozinhos! - O jovem saiu da sala tão apressadamente que Simon nem sequer teve tempo para lhe responder.
Os três homens ficaram em silêncio durante alguns momentos. Baldwin mantinha os olhos postos no reposteiro que ainda se agitava depois da passagem tempestuosa de SirRobert, até ao momento em que ouviu SirWilliam a falar baixinho, num tom pensativo.
- Está preocupado, tal como todos nós. Aqui, nas charnecas, já é suficientemente difícil manter os camponeses a trabalhar sem perdermos os mais jovens, que têm a esperança de conseguir a liberdade e de ganhar bom dinheiro durante esse processo...
- Sim, compreendo o seu problema, mas que posso eu fazer? Como almoxarife tenho de me guiar pela Lei.
- E acha que esta é a maneira mais correcta? Por amor de Deus! - Virou-se para Simon, desesperado. - Impedi que o meu filho dissesse algo de desagradável a respeito dele... mas o monarca não consegue controlar as pessoas! Vejam o que aconteceu em Bristol! Há apenas dois anos a cidade teve de ser atacada com artilharia porque se recusavam a pagar os impostos devidos à Coroa! No campo, os assaltantes das estradas estão a transformar-se num problema e há bandos de fora-da-lei a aparecerem em todo o lado. Os servos atrevem-se a revoltarem-se abertamente. Já ninguém quer obedecer à Lei em lado nenhum e toda a gente despreza Eduardo desde a derrota de Ban-nockburn. Que nos irá acontecer se aquele homem conseguir escapar-se? Podemos ter uma revolta aqui, na minha mansão! Os servos podem decidir revoltar-se... e que faria o senhor nesse caso, almoxarife? Viria pedir desculpa ao meu cadáver... e aos corpos da minha mulher e filhos?
Não havia nada que Simon lhe pudesse dizer, pelo que o velho cavaleiro acabou por baixar os olhos para os pousar nas mãos. Tivera esperança em conseguir uma ajuda, algo de construtivo, mas era óbvio que não iria conseguir nada do magistrado ou do seu almoxarife. Os mineiros tinham o poder e a força da Lei por trás deles, tal como muito bem sabiam. Não havia nada mais que pudesse fazer e estava tudo entregue às mãos de Deus. Lentamente, Sir William levantou-se e saiu da sala, sentindo repentinamente todo o peso da idade. No mínimo, tinha de impedir que o filho se comportasse de um modo estúpido e fosse provocar os mineiros.
Baldwin ouviu um pesado suspiro logo que o reposteiro se fechou por trás de Sir William. O cavaleiro olhou para o almoxarife e exibiu um sorriso contraído.
- Creio que começo a compreender as tuas preocupações a respeito desta vinda aqui.
Simon grunhiu qualquer coisa, olhou para a passagem oculta pelo reposteiro e levantou-se.
- Vamos dar uma vista de olhos à mansão. Esta sala deixa-me nervoso e sinto-me como um prisioneiro à espera do regresso do carcereiro.
De regresso ao pátio, Simon aspirou uma grande golfada de ar fresco embora a atmosfera estivesse quente e cheirasse a turfa. Já estivera à espera que os Beauscyr se zangassem, mas isso não lhe facilitava a tarefa. No fim de contas até estava de acordo com eles e não desejava ser responsável pelo que lhes pudesse acontecer se fossem atacados por uma revolta dos próprios servos. A voz compreensiva do amigo interrompeu-lhe os pensamentos.
- Vamos, Simon. Já nada podes fazer por eles. Tal como disseste, o Peter Bruther tem o direito legal de permanecer entre os mineiros se for esse o seu desejo.
- Eu sei, mas isso não ajuda. No fim de contas, Sir William tem razão. O valor de uma mansão depende da força de trabalho... Os servos perderão o respeito pelo amo se descobrirem que podem ignorar a sua vontade... e isso só pode conduzir a uma revolta.
Baldwin agitou a mão na direcção dos edifícios que rodeavam o pátio.
- Não precisas de exagerar nos teus receios pelos Beauscyr - declarou, com secura. - Olha para este sítio! Seriam necessárias todas as forças do condado para entrar aqui!
Simon entendeu o que o amigo queria dizer. As defesas da mansão eram mais fáceis de apreciar dali, do interior, e pareciam ainda mais impressionantes. Encontrava-se rodeada por altas muralhas e os armazéns por baixo do edifício principal pareciam estar a abarrotar de provisões. A julgar pelo número de homens que andavam de um lado para o outro, a residência tinha um bom complemento de guardas, para além dos servos. Simon apontou com o queixo para um par de homens que preguiçava junto dos portões.
- Parece que os Beauscyr se podem dar ao luxo de manterem um exército próprio.
Baldwin seguiu-lhe o olhar e acenou lentamente.
- Sim. Bom, não é uma surpresa. Sir William foi soldado do Rei durante um bom número de anos. É sabido que capturou vários inimigos de Eduardo, pelo que deve ter feito muito dinheiro com os resgates. Para além disso deve ter conseguido muitos saques.
Havia uma nota cínica na sua voz e Simon perguntou:
- Que se passa? Também combateste... e deves ter feito cativos e obtido os teus próprios saques. No fim de contas, andar a combater nas guerras só vale a pena por causa dos despojos. Ninguém se daria ao trabalho de se juntar a um exército se não houvesse uma recompensa.
Baldwin sorriu mas não fez comentários. Raramente conversavam sobre os tempos em que Baldwin fora um Cavaleiro Templário, pelo que o almoxarife, tão fortemente enraizado no mundo secular, tinha dificuldades para compreender que os Templários tinham combatido não pelos lucros mas por Deus. Quando conseguiam riquezas, estas não iam para o indivíduo e serviam apenas para enriquecer a Ordem de modo a que a mesma pudesse continuar as suas funções vitais de protecção aos peregrinos na Terra Santa. Tudo o mais deixava de ser importante quando comparado com essa tarefa sagrada. Os Cavaleiros da Ordem não tinham sido soldados mundanos a lutarem por benefícios próprios. Eram a vanguarda de Cristo, os monges guerreiros, pelo que o seu código de cavalaria fazia com que o conceito mercenário dos restantes soldados fosse muito desagradável para Baldwin.
- Vem daí, meu amigo. Voltemos lá para dentro - pediu tranquilamente. - Pelo menos, sabemos que regressaremos a Lydford já amanhã.
- Sim, mas tenho a certeza de que não vamos poder esquecer este assunto. Com um jovem como SirRobert Beauscyr envolvido no caso... podes ter a certeza de que voltaremos a ouvir falar nisto muito em breve.
Sir Robert Beauscyr permanecia de pé nas muralhas do castelo, por cima do portão principal, e sentia-se repleto de indignação enquanto observava os dois homens que se afastavam. Sempre tivera fé nas regras da lei, acreditara que davam protecção àqueles que dela necessitavam e estava convicto de que a sua família tinha o direito do seu lado. Para ele, a possibilidade de Peter Bruther poder escapar-se com tanta facilidade não era apenas injusto, era errado. Porém, o facto de qualquer tentativa para corrigir a situação significar uma violação da própria lei era ainda muito pior.
- Então, meu irmão, não obtivemos nenhuma satisfação...
John aparecera silenciosamente a seu lado e também olhava para Baldwin e Simon, que trotavam ao longo da ligeira vertente. Sir Robert não conseguiu conter uma expressão de troça.
- Estás sozinho, uma vez sem exemplo, John? Para onde foi o teu amo, SirRalph?
- Oh, Saiu para uma cavalgada, para ir ver as charnecas. - Lançou uma olhadela levemente divertida e interrogativa para o irmão, mas a seguir encolheu os ombros como se a disposição deste fosse tal como seria de esperar e sem grande importância. - Então, parece certo que o almoxarife não nos quer ajudar.
O irmão confirmou com um aceno zangado.
- Para que serve a Lei se não defende o que é justo e está correcto?
- Ah, mas desta vez a Lei tem de encontrar um meio termo entre os interesses de uma pequena família das charnecas e os da Coroa.
O tom seco e sarcástico fez com que Sir Robert o olhasse.
- Que queres dizer? O nosso pai, e o pai do nosso pai, ajudaram os reis de Inglaterra em todas as guerras dos últimos 50 anos. Os interesses do monarca fora os nossos interesses... e tu deves sabê-lo.
- Tens a certeza? - A voz de John ganhou uma tonalidade de desprezo. - Pelo que tenho ouvido dizer, este vosso Rei é demasiado indeciso... até para escolher a túnica que irá usar pela manhã. Só está interessado em dinheiro, para exibir largueza perante os amigos... e os mineiros enviam-lhe esse dinheiro. E nós, que valemos? Que valor se pode dar à nossa lealdade quando tem a possibilidade de escolher entre os grandes senhores, homens como Aymer de Valence e Thomas de Lancaster? Achas que também precisa da família Beauscyr para o proteger?
Sir Robert fez um gesto irritado com a mão, como se quisesse afastar aquela sugestão, e replicou:
- Tolices! O monarca sabe quem são os seus amigos verdadeiros. Os seus protectores são os cavaleiros dos condados, tal como nós, os homens a quem recorre em tempo de guerra e não...
- Irmão, por favor! Acreditas realmente no que estás a dizer? O monarca não é suficientemente estúpido para pensar desse modo. Os cavaleiros a que recorre sempre que é preciso combater nas batalhas, tal como dizes... ou estão no estrangeiro ou ganham dinheiro a lutar ao lado de Pisa, ou de Veneza, ou de quaisquer outros que possam pagar. Os que não se foram embora põem a lealdade ao seu senhor muito à frente da lealdade para com o monarca. No fim de contas, a quem é que a maior parte dos cavaleiros locais deve vassalagem? Ao monarca ou ao grande senhor local? De qualquer modo, Eduardo nem sequer se precisa de preocupar com isso por estes lados. Aqui, a escolha é clara: coloca-se do lado dos mineiros, que lhe fornecem muitas toneladas de estanho e os respectivos impostos... ou estará do lado dos poucos cavaleiros cujas terras bordejam as charnecas e cuja riqueza só pode ser medida por um punhado de libras?
- Com toda a justeza, ele devia...
- Oh, não! A vida não é justa! O monarca, que Deus o abençoe, é forçado a olhar pelo seu próprio bem e pelo bem do reino. Receio que o nosso pai - e tu também -, pesem muito pouco na sua estima quando comparados com os mineiros do estanho.
- Que se passa contigo?! - perguntou Sir Robert, sentindo-se picado pelo sarcasmo. - Sabes que o monarca necessita de homens como nós! Somos a espinha dorsal do reino. Onde estaria ele se não fossem os cavaleiros e...
- Quem são aqueles...?
A súbita concentração no rosto do irmão fez com que Sir Robert desse meia volta e olhasse para a paisagem. Havia um par de cavaleiros a aproximar-se pela vertente oeste. Sir Robert contraiu o rosto enquanto tentava distinguir as figuras.
- Deus do Céu! É aquele mineiro, o Thomas Smyth, com o seu ajudante. Que querem daqui!?
- Não faço ideia - respondeu John, imperturbável, com os olhos postos nos cavaleiros. - Contudo, és o herdeiro da mansão e estou certo de que em breve o saberás!
Sir Robert resmungou uma praga, rodou sobre os calcanhares e apressou-se na direcção da escadaria da torre pequena, no canto onde se erguiam os estábulos. Aquilo só servia para aumentar as suas preocupações, Os mineiros eram uma irritação constante e as visitas que eles lhes faziam de vez em quando não costumavam ser por motivos sociais, tal como Sir Robert muito bem sabia.
John, curioso por ver o que se iria passar, deixou-se ficar no alto da muralha de onde podia observar o pátio. O seu ponto de vantagem dar-lhe-ia uma visão perfeita sobre a recepção que os dois homens iriam ter. O velho mineiro saltou do cavalo, atirou as rédeas ao servo com um altivo gesto do pulso. John verificou, com alguma surpresa, que o homem estava seguro de não correr qualquer perigo embora se encontrasse na própria fortaleza do inimigo. O visitante deixou o servo, atravessou o pátio à pressa e dirigiu-se para as escadas da residência, onde Sir William, com o rosto acinzentado, já o esperava. Os dois homens encontraram-se, trocaram algumas palavras e entraram. Sir Robert emergiu alguns instantes depois do edifício dos estábulos, precipitou-se para as escadas e entrou a correr.
Do alto dos degraus era possível ouvir o que se dizia no interior do salão e John, por instantes, ainda brincou com a ideia de ficar à escuta. Era uma oportunidade para uma distracção inofensiva, para poder escutar qualquer coisa com que pudesse espicaçar o orgulho do irmão... Todavia, o embaraço que sentiria se fosse apanhado não compensava as eventuais vantagens. Encolheu os ombros e tratou de esquecer a reunião entre aqueles homens. Fazia calor no alto da muralha e preparava-se para se ir embora dali em busca de uma cerveja quando ouviu os gritos da altercação.
Era óbvio que o debate se tornara acalorado. Distinguiu a voz do pai, que aparentemente a erguera numa tentativa para acalmar alguém, e também o berro mais áspero do irmão:
- Não podem! Não o permitirei! Isto é uma loucura, é a loucura total! Querem aceitar a palavra desse estranho? Vai contra toda a lógica! Não o admitirei!
Escutaram-se mais algumas afirmações do mesmo tipo e John verificou que o servo do mineiro também parecia intrigado. Ouvira o primeiro grito e agitara-se, indeciso, sem saber muito bem se deveria ou não entrar no salão. O homem pousou uma das mãos na adaga, levou a outra ao lábio inferior, que começou a repuxar... e tomou a decisão de começar a avançar para o salão. Contudo, nem sequer teve tempo para atravessar o pátio. A porta abriu-se de repente e Sir Robert saiu à pressa. Desceu os degraus a correr e atravessou o pátio empedrado na direcção dos estábulos. Aí chegado, empurrou um vagaroso moço de estábulo na direcção do seu cavalo e começou a gritar ordens para que lhe selassem e preparassem o animal. Logo de seguida saltou para o dorso da montada, galopou pelo pátio, atravessou o portão e continuou pela vertente na frente da mansão.
John ficou a olhar, confuso, até ver o irmão a desaparecer por entre as árvores do alto da colina. A seguir, regressou ao pátio. O pai encontrava-se no alto dos degraus, com o mineiro por trás dele, à entrada da casa. John viu o movimento rápido da mão deste último e verificou que o servo do homem largava o punho da adaga, mas o que mais o chocou e o que mais gozo lhe deu foi a expressão de desespero no rosto do pai, que ficara a olhar para o local onde o filho mais velho desaparecera das vistas.
Sir Ralph tomara em conta os problemas causados pelos fora-da-lei, decidira aceitar os conselhos do anfitrião e levara consigo um homem de armas. Para além disso também ganhara consciência, depois de conversar com o seu jovem escudeiro, que havia outra boa razão para levar com ele alguém que conhecesse bem a área, uma vez que Dartmoor podia ser uma região perigosa mesmo no meio do Verão. Havia pântanos por todo o lado e era frequente que apanhassem os viajantes desprevenidos nas suas armadilhas, tal como faziam com as ovelhas e com o restante gado dos habitantes das charnecas. Mesmo assim, o calor do Sol tornava difícil ter medo fosse do que fosse e em breve abandonava todos os sentimentos de cautela e começava a galopar, gozando a sensação do vento a puxar-lhe o manto e sentindo a potência elegante e precisa das passadas do cavalo. Não se vestira para a guerra e envergara apenas as roupas de montar, com calções, bem como uma túnica simples de lã verde, fina e fresca. Para além disso nem sequer sentira a necessidade de levar o grande cavalo de batalha. Naquele dia montava o palafrém, uma ágil égua cinzenta que comia quilómetros com uma alegria ansiosa.
O guarda, um jovem bem-disposto chamado Ronald Taverner, também parecia satisfeito com o passeio. De vez em quando sabia-lhe bem poder sair da mansão. Não conhecia aquele cavaleiro mas era uma alma optimista, ansiosa por agradar a SirWilliam e por satisfazer qualquer amigo da família Beauscyr. Naquele instante, o desejo que mais se sobrepunha na sua mente era poderem parar em qualquer lado para tomarem umas bebidas, e era por isso que estava a conduzir o cavaleiro para noroeste, na direcção do fabricante de cerveja, no local onde o rio Dart se cruzava com a estrada para Oeste que atravessava a charneca. O agricultor que aí vivia fazia sempre muito mais cerveja do que necessitava e vendia o excedente de bom grado a quem quer que passasse por lá.
Tinham percorrido cerca de oito ou nove quilómetros quando se viram à beira de uma falésia baixa. Detiveram-se e espreitaram o vale formado por uma curva apertada do velho leito do rio. Lá em baixo viam-se os restos do que deveria ter sido uma poderosa torrente de água, agora reduzida a um estreito ribeiro que escorria por entre as rochas e que descrevia curvas apertadas para a esquerda e para a direita. À sua volta havia uma massa de pedras cinzentas da charneca e de gravilha diversa, salpicada aqui e acolá por um arbusto ou por uma árvore raquítica. Também avistaram um homem, que se endireitou quando as duas figuras apareceram na elevação por cima dele e que protegeu os olhos contra o Sol para os espreitar.
Sir Ralph ignorou-o. Era óbvio que o homem era apenas mais um dos mineiros de estanho e por isso mesmo de pouca importância. Porém, ouviu um silvo súbito quando o homem de armas aspirou o ar repentinamente e perguntou:
- O que é?
- Aquele homem, lá em baixo... É o Peter Bruther, um fugitivo da mansão do meu amo.
- Ah, sim? - Sir Ralph olhou para trás. Viu um homem no final da casa dos 20, magro e fatigado, vestido com uma túnica castanha desbotada e com o que parecia ser uma capa esfarrapada. Os olhos escuros fitaram os seus, não com desconfiança ou medo, mas apenas com uma espécie de vaga curiosidade. Passado um instante encolheu os ombros, começou a recolher lama do rio e a despejá-la num saco de couro. Sir Ralph sentiu-se desiludido. Pelo que ouvira, aquele servo era a personificação do próprio Diabo, enquanto que, na realidade, tinha uma figura patética. O cavaleiro tomou uma decisão rápida e sorriu para si mesmo. Esporeou o cavalo e desceu a vertente até ao local onde o homem se encontrava.
Bruther ouviu-o aproximar-se, voltou a endireitar-se e viu-os a chapinhar no rio. Lançou uma única mirada para trás das costas como se estivesse à espera de um ataque de surpresa e ficou pacientemente à espera. Ralph sorriu. Mesmo que quisesse, o homem não tinha para onde fugir e nem sequer lhe valia a pena tentar escapar-se de dois homens a cavalo.
- És o Peter Bruther?
O homem ouviu as palavras, endireitou-se ainda mais e olhou para cima, para ele.
- Sou um mineiro.
Ralph sentiu uma contorção da boca. O homem tinham um espírito desafiador e isso agradava-lhe.
- Então, presumo que o és. Fugiste das propriedades de Sir William Beauscyr.
- Sim, fui um dos seus servos - confessou Bruther com um ar calmo, tão casual como se estivesse a admitir que possuía um saco de milho para vender.
Ralph estudou-o e ganhou subitamente consciência de que havia uma espécie de humor seco naqueles olhos inteligentes. Era inquietante. Como cavaleiro, estava habituado a toda uma gama de expressões nos rostos dos servos, expressões que eram em geral de ansiedade ou trepidação, mas mais frequentemente de medo. Nunca tivera pela frente o desprezo declarado que era agora evidente na contracção dos lábios do homem e na sobrancelha levantada. A fúria começou a invadi-lo. Num mercador, ou noutro homem livre, aquilo teria sido uma falta de respeito. Num fugitivo era uma impudência descarada. Ralph esporeou o cavalo para mais perto.
- Se há algo que te diverte, partilha-a comigo...
- Oh, não... pelo menos até me explicar por que razão quer falar comigo. No fim de contas, o intruso é o senhor e não eu.
- Intruso!- O cavaleiro cuspiu a palavra, espantado como o atrevimento daquele homenzinho insignificante.
A seu lado, o homem de armas aspirou o ar com força e disse:
- Sir Ralph, creio que deveríamos regressar...
- Não! - interrompeu-o o cavaleiro, com os olhos postos na figura magra que tinha na frente. - Acho que devemos levar este homem de volta connosco, mais do que não seja porque a sua insolência merece um castigo. Para além disso, seria uma boa maneira de pagar a hospitalidade que Sir William me concedeu. No fim de contas, a família Beauscyr não poderá ser responsabilizada se for eu a levar-lhe de volta o homem que lhes fugiu, pois não? Para além disso, ir-me-ei embora em breve... e poderá ser punido por ter fugido logo que se encontre de volta às terras da mansão. Amarra-o e entrega-me a ponta da corda. Irá connosco para a mansão e poderá explicar por que motivo se sente tão divertido. Se não quiser andar, podemos arrastá-lo...
- Sir Ralph...
Daquela vez foi Peter Bruther quem interrompeu o homem de armas.
- Chama-se Sir Ralph, não é? Sabe que sou um mineiro do estanho... e está a ver as minhas ferramentas. Nesse caso, deve saber que só respondo perante o Rei e que estou sujeito às leis dos mineiros do estanho. Mesmo assim, ainda me quer levar como refém?
Ralph sorriu com desprezo.
- Sei que és um servo fugitivo dos Beauscyr e isso é tudo o que me interessa. - Virou-se para o homem de armas. - Disse-te para o amarrares e...
A voz morreu-lhe ante a visão que surgiu perante os seus olhos surpreendidos. Onde anteriormente só existira a curva vazia do leito do rio estava agora um grupo de oito homens. As pás e picaretas que seguravam os seus punhos sujos indicavam que se tratava de mineiros e compreendeu, demasiado tarde, que deveriam ter estado a trabalhar mais para diante, para lá da curva do rio. Não teve dúvidas, quando os olhou, de que estavam prontos para lutar. Levou a mão à espada num gesto inconsciente e esse movimento bastou para que a ponta de uma picareta se levantasse, ameaçadora. Afastou a mão do punho da arma, mas não muito.
- Deixem-nos em paz - rosnou.
- Ora, senhor, esses homens são meus amigos, são mineiros tal como eu. Acho que se devia ir embora. Esta é a terra do estanho, é a nossa terra. O senhor não tem quaisquer direitos aqui. - Bruther encontrava-se quase junto à cabeça do cavalo e espreitava-o. A sua voz ganhou um tom áspero e trocista. - Vá-se embora, senhor cavaleiro... ou prefere tentar levar-me de volta, tal como ameaçou?
- Vais lamentar isto! - Ralph baixou-se na sela e fitou Bruther com olhos onde brilhava uma fúria impotente. Todavia, nada havia que pudesse fazer. Deu um violento puxão às rédeas para que o freio metálico mordesse a língua da égua, esporeou-a na direcção da vertente. Antes que Taverner o pudesse seguir, Bruther ainda lhe segurou nas rédeas do cavalo e sorriu para o nervoso homem de armas. Enquanto os outros mineiros se riam, Bruther agarrou no pequeno rolo de corda do homem de armas e sopesou-o nas mãos.
- Diz a Sir Ralph que fico com isto - declarou, trocista e com uma risadinha. Vou conservá-la sempre à mão. Se me quiser, volte cá, amarre-me e leve-me com ele. - Deu uma palmada na garupa do cavalo e Ronald galopou atrás do cavaleiro que desaparecera.
Todavia, o homem de armas teve de cavalgar muito antes que as troças e as gargalhadas dos homens que deixava para trás acabassem por morrer com a distância.
Henry Smalhobbe endireitou-se, gemeu e massajou a curva das costas. O Sol já ia baixo no céu oriental. Fez-lhe uma careta com as suas faces sulcadas pelas rugas e verificou que era muito tarde. Tinha de regressar à cabana porque dentro de cerca de 30 minutos já estaria escuro. Em Bristol, as colinas e as árvores que os rodeavam bloqueavam o Sol e a sua luz, mas ali o crepúsculo arrastava-se lentamente para a noite verdadeira e as estrelas emergiam gradualmente por cima dele a brilharem como minúsculos diamantes.
Colocou ao ombro o pequeno saco de couro cheio de pedras, agarrou na pá e na picareta e encaminhou-se para casa.
O solo erguia-se lentamente a partir do velho leito do rio e tinha de trepar a vertente até à planície lá em cima, para depois seguir a corta-mato para chegar à cabana e à Sarah. Tratava-se de um caminho que percorrera todos os dias ao longo do que já eram semanas e conhecia-o bem. Não tinha de enfrentar pântanos perigosos desde que caminhasse com cuidado e mantivesse a massa acinzentada do Higher White Tor à sua frente e o Longaford Tor à esquerda. Para além disso, o percurso era fácil, por ser relativamente nivelado, coberto por ervas e com poucas pedras.
O ribeiro murmurava alegremente por trás dele enquanto trepava a vertente e em breve deixou de o ouvir logo que se afastou. Para além dos pássaros, a sua única companhia durante o dia fora o borbulhar da água. Contudo, àquela hora já a maior parte das aves se recolhera, a charneca estava tranquila e só se ouvia o suave sussurrar do vento, o que o fez ajeitar o fardo de pedras sobre o ombro e seguir em frente com mais determinação. Contavam-se demasiadas histórias a respeito do velho Crockern para que um homem se sentisse inteiramente à vontade quando a noite se espessava e a luz fugia para deixar a charneca entregue aos seus espíritos.
Contudo, Henry Smalhobbe não era exageradamente supersticioso e atirou com todos os pensamentos a respeito dos espíritos da charneca para o fundo da mente. Aprendera a fazê-lo quando era ainda um garoto pequeno e deixava para trás de si os medos improdutivos como se fossem uma espécie de bagagem indesejável. Pouco fora o que perturbara o ritmo pacífico e regular da sua infância. Depois, quando atingira a idade adulta passara a maior parte do tempo a prestar leais serviços ao amo e o trabalho mantivera-o demasiado ocupado para ter medo de fantasmas ou de espíritos... mas isso fora antigamente...
Parou e esfregou um dos olhos com a mão. A pálpebra não parava de tremer, numa estranha e irritante aflição que se desenvolvera ao longo dos últimos meses e que de vez em quando lhe assolava a mente com a ideia de poder tratar-se de um sinal percursor da cegueira. Era um pensamento que o aterrorizava. Ser cego era ser alvo de todos os abusos... ou pior. Não havia qualquer protecção para um cego a não ser que este fosse rico e Henry Smalhobbe não era rico. Sabia perfeitamente o que acabaria por acontecer se viesse a cegar. Os outros mineiros apoderar-se-iam das suas terras e a esposa seria expulsa da charneca. Onde iria um cego arranjar um trabalho? A única esperança estava em que Sarah pudesse ganhar a vida para os dois e para isso só havia uma solução...
Contraiu o maxilar e prosseguiu. Era estúpido perder tempo a preocupar-se com coisas daquelas. No fim de contas, ali na charneca existiam muitos outros perigos. Podia ser mordido por um animal raivoso ou por uma serpente, podia cair num pântano ou apanhar a lepra. O número de mortes horríveis possíveis era mais do que suficiente para não necessitar de exercitar a imaginação.
Como que em resposta a uma deixa, ouviu um uivo baixo a vibrar na brisa suave e olhou para o horizonte. Lobos... mas encontravam-se muito longe, a julgar pelo som. Caminhou um pouco mais depressa.
A escuridão era já quase completa e ficou aliviado ao ver a luz trémula a escapar-se pela porta da cabana. Ele e Sarah haviam-na construído com pedras de tamanhos regulares do que lhes parecera um velho muro a alguns metros de distância, e tinham preenchido os intervalos com cascalho e lama para impedir a passagem das correntes de ar, mas possuíam apenas um velho e espesso cobertor de rustão para lhes servir de porta. De Inverno de era praticamente inútil mas era o bastante naquela altura, no pico do Verão. Sarah deixava-o sempre aberto à noite até ele chegar a casa, para o ajudar a descobrir o caminho. Ali, o terreno era plano, com algumas pedras dispersas. Havia um ou dois arbustos a quebrarem a planura coberta de ervas existente na frente da sua porta, mas tirando isso a área estava desimpedida até onde os olhos conseguiam alcançar. No entanto, ainda a alguma distância, Henry parou e franziu a testa. Um dos arbustos parecia ter mudado de forma. Naquela manhã, quando partira, o arbusto não passara de uma planta escanzelada mas agora parecia-lhe maior e mais substancial. Por instantes sentiu-se como se o seu coração tivesse parado. O terror das charnecas voltou a invadi-lo e fê-lo recordar repentinamente todas as histórias que ouvira a respeito dos espíritos daquelas terras desoladas. Na altura, as lendas que ouvira contar quando se encontrava na frente da lareira da estalagem a bebericar uma cerveja tinham-lhe parecido ridículas, mas agora, a quilómetros do ser humano mais próximo, sentia-se indefeso. Uma rajada de vento agitou-lhe os cabelos da testa e a leve carícia fê-lo sentir suores frios. Depois, quando a figura sombria se moveu lentamente, os cabelos da nuca de Henry puseram-se de pé como os pêlos do dorso de um cão atingido por um gelado espasmo de medo.
Aquilo, fosse o que fosse, estava a bloquear-lhe o caminho. Não podia chegar a casa sem passar por ali e não podia ir ver como estava a Sarah. De certeza que deveria encontrar-se no interior mas não se atrevia a chamá-la, não por causa da sua própria segurança mas por medo do que a coisa poderia fazer à esposa.
Depois, de repente, o medo sumiu-se como se tivesse sido soprado pelo vento. A figura tossira! Uma qualquer criatura capaz de produzir um som tão mundano era feita apenas de carne e osso, tal como ele próprio. Agarrou no alvião, pousou silenciosamente o saco de couro no chão e agachou-se. Quem quer que ali estivesse queria manter-se escondido. A pequena explosão de som fora abafada, como que contida pela palma da mão. O que traíra o homem fora a brisa, que transportara o som até ele como um espião amigável. Quem era e o que fazia ali era ainda um mistério que Henry estava ansioso por solucionar.
Pousou cuidadosamente um pé na frente do outro e avançou para a presa, descrevendo uma larga curva para apanhar o homem pelas costas.
A figura ganhou definição a pouco e pouco e transformou-se num homem agachado, a descansar calmamente com os cotovelos apoiados nos joelhos. Envergava uma capa escura e vigiava o terreno na sua frente, embora ocasionalmente lançasse olhadelas para a cabana com uma deliberação cautelosa. Henry sentiu o sangue a martelar-lhe nos ouvidos. Aquele não era um vulgar habitante da charneca. Tratava-se claramente de uma emboscada e o mineiro sentiu a ira a crescer dentro dele. O homem estava à sua espera. Tal como Henry sabia, só havia um motivo para que alguém o quisesse atacar. Se fosse capaz de surpreender o estranho... então talvez o conseguisse capturar e ficaria em vantagem.
Arrastou-se na direcção da forma escura com infinitos cuidados. Imobilizava-se e continha a respiração de cada vez que via a cabeça do homem começar a mover-se. Depois, logo que o estranho se virava novamente para o caminho, Henry continuava com os pés a erguerem-se muito alto e devagar, numa paródia aos movimentos normais, antes de voltar a pousá-los com todas as cautelas, testando cada passo I para ter a certeza de que não emitia o mínimo som. Ali não havia raminhos ou folhas secas para traírem a sua presença. Foi num estado de estranha tensão, como um formigueiro de excitação no crânio e com as mãos fechadas em torno do alvião como se fossem feitas de ferro fundido, com a boca aberta para silenciar a respiração, que continuou a avançar lenta e dolorosamente.
Então, de repente, tudo começou a correr mal.
- Henry? Henry?
O chamamento da esposa, que já traía uma leve ansiedade, ouviu-se com toda a clareza no ar nocturno, vindo da porta da cabana. Sarah estava parada a olhar para a escuridão e fazia-o apenas por ser muito tarde. Aguardara com a comida pronta desde o crepúsculo porque era normal que o marido regressasse antes do escurecer. Agora, quando se encaminhara para o reposteiro improvisado e o empurrara para o lado, verificara que a noite já estava completamente negra. Henry nunca chegava a casa tão tarde, pensara para si mesma. A seguir interrogara-se sobre se o marido se teria magoado, Podia ter caído num dos inúmeros pântanos que proliferavam em determinadas áreas, ou ter sofrido um acidente enquanto escavava. No entanto, era uma hipótese ridícula. Henry conhecia bem toda a zona circundante e percorrera-a na sua companhia para ter a certeza de que era segura. Sabia que era um homem cuidadoso e era improvável que se magoasse. No entanto, embora ainda não se encontrasse muito preocupada, já estava sujeita a um vago nervosismo. Não era seu costume andar por fora até tão tarde e detestava sabê-lo a atravessar a charneca no meio da escuridão.
Espetou a cabeça mais para o exterior, fez uma careta e espreitou em volta. Havia uma figura sombria lá adiante. Chamou. Viu o rosto a que a escuridão dava um tom branco-amarelado a virar-se para ela... Logo de seguida viu a outra forma a rodar e a endireitar-se e os dois homens que saltaram de um dos lados do caminho. Foi nessa altura que gritou.
Ao sair do salão, Samuel Hankyn arrotou suavemente para si mesmo enquanto sorria sob a influência calmante da forte cerveja que lhe enchia a barriga. Estava ligeiramente interessado nos motivos que tinham feito com que o amo o tivesse mandado para casa tão cedo, uma vez que era improvável que Sir William saísse sem a companhia de um homem de armas, em especial porque ia encontrar-se com o homem que, tal como toda a gente na mansão sabia muito bem, considerava como sendo um inimigo.
Samuel reparou que Ronald Taverner, o seu companheiro, continuava a exibir uma vaga e leve expressão de estupidez, o que o levou a reagir com uma careta de exaspero. Não lhe devia ter dado ouvidos quando Ronald sugerira que parassem para uma bebida antes de regressarem às respectivas casas. No fim de contas, já verificara demasiadas vezes que o rapaz aguentava muito mal a bebida.
Era estranho, voltou a pensar, que o amo tivesse mandado embora os seus homens à porta do mineiro para entrar sozinho. Depois da discussão daquela tarde seria de esperar que Sir William fosse ter com ele acompanhado por um grande grupo de homens e não o tivesse feito apenas com Sir Ralph, o filho John e dois homens de armas, que tinham sido ele próprio e o jovem Ronald. Uma mostra de força estaria muito mais de acordo com um homem na sua posição. Para além disso, toda a gente ficara a par da discussão que enraivecera Sir Robert ao ponto de o fazer precipitar-se para o exterior, pelo que ainda havia mais motivos para uma exibição de força perante os mineiros. Se desconfiassem que tinham semeado a discórdia nas fileiras da família Beauscyr, então os mineiros poderiam decidir exigir mais... ou até tomar o cavaleiro como refém para o trocarem por um grande resgate, coisa que já anteriormente acontecera.
Contudo, naquele momento, Samuel sentia-se grato por se ter escapado. Preferia manter-se afastado se as coisas azedassem ao ponto de haver uma luta. Os cavaleiros estavam suficientemente protegidos, uma vez que dispunham de cotas de malha e de armaduras, e não era provável que os matassem se falhassem e fossem capturados. Era muito mais rentável mantê-los prisioneiros em troca de uma boa maquia. Tal não acontecia com os homens de armas, Nunca fora rico e nem sequer conseguira pagar mais do que o mínimo de armamento legal - na verdade, a espada de Samuel e o elmo tinham sido pagos por Sir William -, e portanto não servia para nada como refém. Se fosse apanhado, um homem de armas já tinha muita sorte se o seu único castigo fosse uma faca na garganta.
Enfrentou a estrada na sua frente e fez um esgar. Era isso o que o mais incomodava. Sir William sabia que corria perigo no acampamento dos mineiros... Então, porque fora tão desprotegido? Era uma loucura! De certeza que não estava a preparar-se para ceder, o que seria quase incrível.
No entanto, os factos falavam por si. Tinham saído da mansão dos Beauscyr para a residência de Thomas Smyth no povoado dos mineiros, no meio das charnecas, e Sir William ordenara aos homens de armas que o deixassem. Depois, quando Samuel olhara para trás, vira John e Sir Ralph a deixarem o cavaleiro à porta e a afastarem-se pela estrada de Chagford. Não teriam abandonado o velho cavaleiro se este não tivesse a certeza de se encontrar em segurança. Isso só podia querer dizer que ia aceitar as condições impostas pelos mineiros... e que pagaria para que não continuassem a causar prejuízos nas suas propriedades.
Samuel e Ronald podiam ter regressado directamente à mansão, mas o ambiente na fortaleza continuava a ser tempestuoso depois da discussão da tarde e Ronald convencera-o rapidamente a irem em busca de uma estalagem. Os dois homens tinham visto John e Sir Ralph a encaminharem-se para nordeste pela estrada de Chagford e calculado que se dirigiam para o Fighting Cock. Não era segredo para ninguém que iam frequentemente a essa taberna, para beberem e para outros entretenimentos, pelo que Samuel e Ronald tinham preferido escolher outro lugar qualquer onde não ficassem sob os olhares divertidos e patrocinadores do cavaleiro. Por isso, tinham-se afastado na direcção oposta, para o salão do agricultor, no ponto onde os rios Dart e Cowsic se juntavam a estrada. Fora ali, naquele pequeno vale, que se tinham sentido muito felizes agarrados às canecas de cerveja e se haviam esquecido dos amos e dos problemas em que estes estavam envolvidos.
Agora, algumas horas depois, o dia já escurecia e Samuel tinha pressa em regressar à mansão. Não queria encontrar-se no exterior quando anoitecesse tanto porque estava perfeitamente consciente das coisas que se contavam, como porque receava a reacção de Lady Matillida se chegassem tarde. A fortaleza dos Beauscyr era suficientemente pequena para que ela o viesse a saber. Já outros tinham aguentado a sua fúria e Samuel não tinha vontade de passar pela mesma experiência.
Abandonaram a casa do agricultor e viraram para leste. Não tiveram de esperar muito tempo até Samuel ver um par de cavaleiros na sua frente. Ficou com a certeza de que se tratava de mineiros e soltou uma praga. Uma simples meia caneca de cerveja deixava Ronald completamente incapaz para combater e o jovem, daquela vez, bebera três canecas. Samuel lançou uma olhadela nervosa para sul. Recordava-se daquela área, que ficava perto do rio Dart, onde o terreno era, em muitos locais, pouco mais do que um pântano. No entanto, do outro lado da estrada havia um trilho para norte. Podiam segui-lo durante cerca de quilómetro e meio, para depois virarem para leste, para a estrada de Lych. Não era um caminho muito directo, mas sempre era melhor do que envolver-se numa luta desigual. Murmurou uma nova praga e esporeou a montada para o trilho.
Ronald pareceu nem sequer dar pela mudança de direcção. Limitou-se a seguir, muito contente, atrás de Samuel, com o rosto a irradiar satisfação. Samuel resmungou por entre os dentes. Aquele caminho ia obrigá-los a um desvio de uns bons dois quilómetros. Todavia, não tinham alternativa. Os dois cavaleiros já se encontravam no fundo do trilho e olhavam-no com desconfiança. Samuel rezou para que não os seguissem e continuou em frente.
Inicialmente, o trilho iria conduzi-os ao longo do rio, após o que as colinas começariam a erguer-se dos dois lados. Teria sido fácil virar para a direita e voltar novamente à estrada, mas isso colocá-los-ia perto de Crockern Tor, a sede do parlamento dos mineiros. Naquela noite sentia muito pouca atracção por tudo o que estivesse associado aos homens do estanho, pelo que Samuel decidiu permanecer no trilho até encontrar a estrada para Lych.
As rochas de ambos os lados aumentaram de número e os cavalos começaram a trepar. Surgiu uma colina na frente dos dois homens, chegaram ao seu cimo e avistaram uma segunda. Pouco depois já Samuel conseguia ver a massa verde-escura de uma floresta e contraiu os lábios. Sabia que a estrada principal ficava pouco depois daquelas árvores e voltou a esporear o cavalo. O resto do percurso seria muito mais rápido e quanto mais depressa lá chegasse mais satisfeito se sentiria. O Sol já se encontrava muito baixo, a oriente. O seu clarão tinha um rebordo dourado e púrpura por cima da colina à sua esquerda, e para além disso coloria o topo da margem à sua direita com tonalidades impossivelmente brilhantes. Ali em baixo, no vale, sentia-se o frio a erguer-se do rio e à sua volta havia uma qualidade fantasmagórica que abafava o som dos cascos dos cavalos enquanto rodeavam o pequeno bosque.
- Ainda falta muito? - ouviu Ronald a perguntar. O cérebro do rapaz continuava ensopado e o rosto não perdera a expressão de felicidade estupidificada.
- Cala-te, burro... - resmungou. - Se não fosses tu já estávamos a chegar a casa. Não percebes onde estamos? - Ronald fitou-o com uma expressão vazia, de completa incompreensão. - Ainda não percebeste que estamos muito longe do nosso caminho?
Tinham atingido o topo do bosque e Samuel preparava-se para lhes virar as costas, com desprezo, e para seguir na direcção da estrada de Lych quando viu algo de novo na expressão de Ronald.
- E agora, o que foi? - perguntou, irritado.
Em resposta, o jovem homem de armas levantou um dedo trémulo. Ali, um pouco para a esquerda dos dois homens, erguia-se uma grande árvore com uma rocha junto à base do tronco. Havia um homem suspenso dos seus ramos, a girar lentamente, com a cabeça descaída para o peito.
Já escurecera havia quase uma hora quando Matillida Beauscyr ouviu o grito vindo do portão, o resfolegar pesado de um cavalo e o barulho dos cascos no pátio. Espreitou pela porta aberta, viu os palafraneiros a segurarem no cavalo do seu filho mais velho enquanto este desmontava e lhes dava instruções para cuidarem e alimentarem a enorme criatura. A seguir, começou a avançar na sua direcção.
Permaneceu imóvel, com uma das mãos pousadas na ombreira da porta, enquanto o filho se aproximava. Embora não desse qualquer sinal, o filho percebeu imediatamente até que ponto se encontrava zangada.
- Mãe, as minhas desculpas por ter chegado tão tarde. Eu...
- Cala-te e entra!
As palavras saíram-lha à força por entre uns dentes tão cerrados como se tivesse as mandíbulas encravadas. O filho segui-a e sentiu as faces a corar tal como acontecera na sua juventude, numa antecipação da língua cortante da progenitora. Fez um esforço para manter a cabeça erguida e tomou a decisão de nada revelar dos seus sentimentos.
Era sempre assim quando sabia que a preocupara. Robert não tinha grande medo dos homens, nem sequer do pai, mas a mãe era diferente. Matillida era filha de ricos burgueses do Exeter e fora educada para se comportar imperiosamente, confiante no facto dos seus desejos se encontrarem apoiados no poder da autoridade. Ainda conservava o porte de uma princesa mas agora, na mansão que se tornara na sua casa, detinha mais poder do que qualquer rainha.
Chegados ao salão, a mãe encaminhou-se para a lareira, praguejou para um servo, mandou-o embora com secura, sentou-se e olhou para o filho.
- Então? - inquiriu, num tom enganadoramente frio. Não queria deixar-se levar pelas emoções porque isso seria rebaixar-se, mas também não escondia o desprezo enquanto olhava para o filho mais velho... que tinha bons motivos para estar ali a contorcer-se na sua frente.
Mudar-se para o meio das charnecas depois da agitada vida social de Exeter não fora fácil mas compreendera o seu dever. O pai ficara satisfeito por ter conseguido casá-la com um homem como o Beauscyr. Na mente de Matillida, Sir William talvez não fosse tão atraente como outros cavaleiros, mas em 1289 era um homem de riqueza e de poder e ficara satisfeita com o modo como se conseguira ajustar à sua casa. Nos 19 anos que se tinham passado desde esse momento nunca se esquecera da sua dupla responsabilidade: tomar conta da mansão e dar ao marido os filhos de que ele necessitava. Fizera-o, apesar de dois outros filhos e uma filha terem morrido jovens por serem demasiados fracos para sobreviverem ao duro clima das charnecas. Só dois haviam sobrevivido... e agora o mais velho tinha deixado a família exposta a um ataque! Que estupidez!
- Lamento se te preocupaste por minha culpa, mas... - começou Robert, rígido.
- Não sejas estúpido! Se fosses suficientemente louco para te meteres em sarilhos na charneca... saberias muito bem como te desenvencilhar. Por outro lado, se fizesses com que te matassem, pelo menos ter-nos-ias poupado aos problemas que a tua habitual falta de senso nos costuma arranjar...
- Que queres dizer com isso? Estava zangado... Tinha de sair daqui ou poderia acabar por dizer qualquer coisa que ainda nos criaria mais problemas.
- Não, não estavas zangado. Estavas amuado como uma criança a quem tivessem tirado o brinquedo. Abandonaste uma reunião importante em que o teu pai precisava de ti... - o tom de voz começava a elevar-se - e foste-te embora de um modo que fez com que toda a gente no pátio te pudesse ver e ouvir. Sabes o que devem ter pensado? "Oh, coitado do filho do amo!" E qual será o resultado dessas tuas atitudes, no futuro? Como queres que te venham a respeitar? Que irá acontecer quando o teu pai morrer? Já tem mais de 55 anos e não poderá durar muito mais. Como irás assumir as suas responsabilidades se os homens pensarem que irás fugir de cada vez que seja preciso tomar uma decisão difícil ou participar numa negociação?
- Isso não é justo... - respondeu o filho, com o rosto a corar. - Aquele mineiro cretino, o Smyth, estava a ameaçar-nos! Entrou aqui a cavalgar como se fosse o dono de tudo e...
- Atreveste a chamar-lhe cretino - A mãe falou num tom baixo mas as suas mãos apertavam os braços esculpidos da cadeira com toda a força. A estupidez o filho era irritante de ver. Recebera uma educação privilegiada e deveria ter compreendido as implicações tanto para a mansão como para ele.
- O homem, ao menos, sabe o poder que tem aqui... e tu pareces esquecer-te disso! Não te recordas de que, de acordo com as leis do monarca, um mineiro pode entrar nas nossas terras se disser que há estanho para explorar? Não sabes que, se disser que há minério debaixo dos nossos campos de cultura, pode arruiná-los e não... - levantou a mão para impedir uma tentativa de interrupção - me venhas dizer que não se atreveria a fazê-lo! Tem os homens necessários para o fazer. Depois, quando veio aqui para conversar... foges da sala como uma donzela receosa de perder a virgindade!
- Suponho que teria sido melhor se tivesse ficado e o desafiasse! Terias gostado disso... - respondeu, num tom amargo.
- Deixa de ser estúpido! - A mãe levantou-se abruptamente e ficou a olhá-lo com as mãos unidas. - Quando o teu pai morrer serás responsável pela mansão e por mim. Esse tal Smyth não pode aperceber-se de nenhuma fraqueza tua... porque se servirá dela contra ti. Se pensar que só precisa de te enraivecer de cada vez que cá vier para negociar contigo... então saberá como controlar-te.
- Mas... quer que lhe paguemos para não entrar nas nossas terras!
- Sei disso! Por agora, tal como dizes, quer que lhe paguemos para protegermos a mansão. Se recusarmos irá afirmar que há aqui estanho, ou exigirá o desvio das águas do nosso rio para as suas fundições, ou abaterá as nossas árvores para fabricar carvão para as suas fornalhas... ou qualquer outra coisa. Sabemos que nada podemos fazer para o impedir. Porém, muito em breve talvez haja algo que possamos usar contra ele. É por isso que temos de o acalmar, de continuar a ter relações amigáveis com ele e de tentar não o insultar ou rebaixar para o mantermos longe da mansão. É o que o teu pai e o teu irmão estão a fazer agora, a tentar mantê-lo satisfeito. Foi uma atitude necessária... depois da tua explosão. Agora, vamos pagar. Amoleceremos o homem, seremos simpáticos e certificar-nos-emos de que fica satisfeito. Mais tarde... ganharemos vantagem e obrigá-lo-emos a arrepender-se da sua presunção!
- Mas como? É apenas um vulgar camponês, pouco melhor do que o Peter Bruther, um servo fugido! Queres negociar com um homem desses?
- Até negociaria com o próprio Diabo se isso servisse para manter a mansão intacta!
Aquelas palavras levaram algum tempo a penetrar. O facto da sua própria mãe ter proferido uma tal blasfémia espantou-o... mas não havia engano possível. Não tinha dúvidas quanto ao significado das palavras que acabara de ouvir nem quanto à determinação da mãe, e de súbito não teve a certeza de alguma vez a ter compreendido. Murmurou outro pedido de desculpas e abandonou a sala.
Novamente sozinha, Matillida deixou que o ar lhe escapasse lentamente dos pulmões. O rapaz precisava de compreender. Tinha responsabilidades, não apenas para com a terra e para com a mansão, mas também para com a família. Naquele dia, o seu comportamento pusera em perigo tudo isso... o que era imperdoável. Sentia-se repleta de uma sensação de perigo iminente e receosa pela segurança daquele lugar e da família.
Lá fora, Sir Robert, arrastava os pés sobre as pedras do pátio. Estava confuso, inseguro a respeito de si mesmo e ainda mais a respeito da mãe. Muito em breve, a mãe, no mínimo, teria de o tratar melhor, como a um homem e não como a uma criança insensata. Parou junto dos estábulos e observou um moço de estábulo a esfregar o suor dos flancos do seu cavalo com um molho de palha. Hoje, com um pouco de sorte, começara uma nova vida para ele, pensou SirRobert enquanto subia as escadas que levavam ao alto da muralha.
Ainda lá se encontrava, junto do portão principal, quando os dois cavaleiros surgiram à vista. Foi com olhos baços e desinteressados que os viu descer a colina a trote. Acabou por verificar que eram dois homens de armas da própria mansão.
- Abram o portão! - gritou um deles quando se aproximaram. - Sir William já chegou?
Os fechos foram corridos, os portões destrancados e Sir Robert ouviu a resposta ácida do porteiro.
- Vocês deviam saber... uma vez que saíram com ele. Claro que ainda não voltou!
- Deus do céu!
Sir Robert viu o homem a saltar do cavalo e a conduzi-lo para o portão através do segundo portão, logo seguido pelo outro homem. Estavam ambos exaustos pela cavalgada e as montadas pareciam cansadas e manchadas de suor. Pouco depois já se encontravam rodeados por uma agitada multidão de guardas e cavalariços. Houve qualquer coisa na ansiedade contida daquela cena que o fez apressar-se para a muralha interior e gritar lá para baixo:
- Eh, tu! Que se passa? Que aconteceu?
A sua voz silenciou a multidão lá em baixo e descobriu-se a olhar para um grupo de rostos pálidos. Havia um que sobressaía. Era o de um dos homens de armas, que o encarava com uma mistura de nervosismo e desconfiança.
- Senhor, é o fugitivo, o Peter Bruther! Está morto!
Na tarde seguinte, Sir Ralph de Warton olhava para a paisagem a partir de uma das torres mais baixas e meditava nas notícias sobre o Bruther quando viu quatro figuras a cavalgarem para a mansão Beauscyr. O almoxarife de Lydford e o seu amigo eram claramente visíveis à frente e concluiu que os outros deveriam ser servos. Um deles mantinha-se perto do cavaleiro e movia-se ao mesmo ritmo como um escudeiro bem treinado, facto que chamou imediatamente a atenção de Sir Ralph. O homem era obviamente um guerreiro e o modo como cavalgava, nunca a mais de alguns passos do cavalo do amo, indicava que os dois estavam habituados a trabalhar em conjunto. Usava uma leve sobrecapa de lã, tal como o cavaleiro, mas estavam ambos equipados com cotas de malha, tal como revelavam os reflexos ocasionais nos pulsos e nos tornozelos.
O último homem do grupo arrastava-se atrás dos outros como um saco de cereais e irradiava desconforto e infelicidade. Tinha pequena estatura e envergava uma simples camisa de mangas curtas por baixo de um colete acolchoado. Era claro que não se tratava de um homem de guerra fosse qual fosse o sentido que se desse a essa designação, e tinha o aspecto de um vulgar trabalhador.
Ralph ouviu passos, virou-se e descobriu John a espreitar por cima do seu ombro.
- Ah, o almoxarife e o amigo estão de volta... Para além disso, trouxeram guardas. Foi uma precaução sensata. Nunca se sabe quem poderão ser os nossos inimigos, pois não?
Ralph lançou-lhe um sorriso frio.
- Ora, não temos nada a temer uns dos outros.
- Acha que não? -John encarou-o. - Depois de ter sido humilhado por aquele homem...
- Não sejas ridículo! Tratava-se de um simples camponês, que nem sequer merecia a minha ira... e muito menos o risco de vir a ser enforcado por assassínio. Porquê? Decerto não estás a pensar que eu...
- Talvez... mas foi um embaraço, não foi? Espero que o homem de armas que se encontrava consigo não sinta a necessidade de contar o que se passou convosco ao nosso amigo almoxarife porque isso poderia induzi-lo em erro desnecessariamente.
- O homem de armas? - Ralph olhou-o, desconfiado. - Mas que podia ele dizer?
- Apenas o que se passou, é claro. Talvez seja melhor ir falar com ele para me certificar de que a sua memória é... modificada. No fim de contas, o que menos precisamos é de suspeitas a nosso respeito.
Fez uma vénia e afastou-se. Ia a meio da escada quando o primeiro portão se abriu para dar as boas-vindas aos visitantes e Ralph virou novamente a sua atenção para os quatro homens que penetravam na barbacã.
- Sim... - murmurou - essa é a última coisa de que necessito. Aqui, sou um estranho. E tu, meu amigo? Que queres tu?
Os quatro homens já se encontravam no pátio e desmontavam lentamente dos seus cavalos. Hugh, o servo de Simon, foi o último a fazê-lo. Sempre odiara cavalgar. Fora nascido e criado nos limites nordeste de Dartmoor, como segundo filho de um agricultor, e enquanto rapaz não necessitara de montar um cavalo... nem tivera essa oportunidade. A sua vida, na pequena aldeola onde residira havia sido mais ou menos auto-suficiente e os bens que não conseguiam produzir eram negociados com os mercadores de passagem. Por isso mesmo, fora muito raro sentirem a necessidade de viajar para qualquer lado.
Porém, desde que entrara ao serviço de Simon, Hugh vira-se forçado a habituar-se ao facto de ter de cobrir longas distâncias com alguma regularidade... e isso significava que tivera de aprender a montar. Odiava fazê-lo! Estava convencido de os cavalos eram demasiado grandes para poderem ser controlados por um homem e de cada vez que trepava para um e se instalava desajeitadamente na sela todos os seus pensamentos se viravam para a dureza do chão lá em baixo. Ao serviço de Simon via-se obrigado a ir até Tiverton, ou para leste, até Exeter, e por vezes tinha de atravessar as charnecas para visitar as cidades produtoras de estanho de Ashburton, Tavistock e Chagford. Outras vezes, via-se na obrigação de fazer a longa viagem até à costa. Para ele, aquelas deslocações era sempre excursões de desespero em que passava o tempo a pensar na dor e na angústia das jornadas. Depois, mesmo quando chegavam ao destino, não conseguia apreciar a satisfação da chegada em segurança... porque os seus pensamentos já estavam virados para as agonias da viagem de regresso.
Contudo, naquele dia não se sentia assim tão mal. O tempo mantivera-se bom, os receios de se vir a perder nos nevoeiros da charneca tinham-se revelado infundados, isto enquanto o calor do Sol e os frequentes goles do vinho do odre o tinham deixado quase amolecido. Mesmo assim não tinha qualquer desejo de que o amo viesse a pensar que estava a habituar-se às cavalgadas, pelo que conservou a carranca de desagrado enquanto libertava os pés dos estribos e deslizava pesadamente da sela. ficando a esfregar a curva das costas com as duas mãos.
Em rapaz, Hugh passara muito tempo fora de casa com os rebanhos de ovelhas, para as proteger dos ladrões tanto de duas como de quatro patas. Muitas das suas desconfianças a respeito das pessoas provinham desses tempos, pelo que o seu rosto endureceu ao virar-se para observar as muralhas da mansão. Havia homens atarefados a toda a sua volta, com alguns deles prontos para conduzir as montadas para a cavalariça enquanto outros os libertavam dos sacos das selas. O par que conversava com o seu amo e Sir Baldwin era formado, soube-o depois, por SirWilliam de Beauscyr e pelo filho, Sir Robert. Para lá deles viam-se mais homens que os observavam sem nada fazerem. Tratava-se de soldados que podiam ter sido fora-da-lei ainda na semana anterior, que preguiçavam encostados a postes ou andavam por ali com os polegares enfiados nos cinturões das espadas. Para Hugh, pareciam-se com carrascos a avaliarem os prisioneiros, uma ideia que lhe provocou um súbito estremecimento.
O idoso cavaleiro e o filho saudaram Simon e Baldwin, após o que os conduziram para o salão, com Hugh a arrastar-se atrás deles. Edgar, o escudeiro de Baldwin, mantinha-se tão perto do seu amo como uma sombra.
- Sir William - disse Simon quando entraram no salão - segundo entendi, a morte de Peter Bruther não foi acidental...
O homem reagiu com um sorriso retorcido.
- Não, almoxarife, não se tratou de um acidente.
- Por que está tão certo disso? - inquiriu Baldwin.
- Porque o enforcaram. Dois dos meus homens encontraram-no pendurado numa árvore - retorquiu, com secura.
Simon e Baldwin trocaram um olhar. A novidade preocupava-os a ambos, mas muito particularmente ao almoxarife. Eram tantos os problemas já existentes entre os mineiros e os proprietários de terras que bastava uma pequena faísca para desencadear uma conflagração que poderia envolver toda a região sob a sua autoridade. Aquela morte poderia vir a transformar-se nessa faísca.
Era claro que Sir William não sofria dos mesmos medos. Mostrou-se reservado mas não receoso enquanto avançava para a lareira onde a mulher se mantinha tranquilamente sentada a bordar uma tapeçaria. Sorriu para ele quando o marido lhe tocou no ombro mas voltou a prestar atenção ao trabalho e Sir William declarou:
- Não há dúvida de que se trata de um aborrecimento... mas serviu para resolver um problema.
Baldwin não ficou surpreendido com aquelas palavras. Teria sido estranho que o velho cavaleiro pensasse de outro modo. No fim de contas, a morte de Bruther deveria ter constituído um alívio para Sir William e o homem não era hipócrita.
Simon sentou-se num banco perto do fogo e olhou para o velho cavaleiro com uma expressão pensativa. Robert avançou para o estrado e encostou-se à mesa, escutando a conversa com toda a atenção. Simon lançou-lhe uma mirada rápida e virou-se novamente para o cavaleiro.
- Resolveu um problema? - repetiu, incitando-o a falar.
- Sim. - Sir William deixou-se cair pesadamente numa cadeira. - Resolveu. O Bruther está morto. Iria ser um problema amargo para mim e para a minha família enquanto vivesse, mas morreu e o exemplo que deu aos meus servos também morreu com ele. Agora, se um dos meus outros servos da gleba estivesse a pensar em fugir... irá ter de pensar duas vezes.
Baldwin, que se sentara ao lado de Simon, inclinou-se para a frente.
- Tem alguma ideia sobre quem o poderá ter morto? - perguntou. Ficou surpreendido quando Matillida Beauscyr lhe respondeu.
A mulher começou por manter os olhos postos no trabalho, mas acabou por os levantar para encarar Baldwin.
- Sim. Foi ele próprio. - A voz estava carregada de certezas. - Foi tão responsável pela sua morte... como se tivesse sido ele próprio a colocar a corda em volta do pescoço.
- Como...? - disse Baldwin, com um esgar. - Como é isso possível?
- Os mineiros destas paragens constituem um grupo duro, Sir Baldwin, e aplicam a sua própria justiça. Regem-se todos por um certo número de princípios. Se um homem reclama uma determinada terra, essa terra é dele. Esse tolo do Bruther apoderou-se de um lote de terra e começou a extrair minério. Não tenho dúvidas de que acabarão por concluir que se encontrava nas terras de alguém. Para os mineiros do estanho, seria o equivalente a um roubo. Estou certa de que irão descobrir que invadiu a propriedade de outro e que os mineiros verdadeiros decidiram castigá-lo.
Sir Robert vez uma careta como se não estivesse muito seguro a respeito daquele argumento, mas depois percebeu tudo e quase deixou escapar uma exclamação de espanto. Matillida, com muito poucas palavras, acabara de lançar as culpas para cima de Thomas Smyth.
- Quer dizer que o enforcaram por estar a trabalhar nas terras reclamadas por outro? - repetiu Baldwin, numa espécie de sondagem.
Foi Sir William quem respondeu.
- Sim e não temos dúvidas a esse respeito. Foi linchado pelos restantes mineiros.
Simon agitou-se no seu banco.
- Trouxeram o corpo para aqui?
- Sim, está lá em baixo, numa cripta subterrânea... onde faz mais fresco.
- Podemos ir vê-lo?
O cavaleiro encolheu os ombros e conduziu-os de volta ao pátio, na direcção da cozinha, deixando a mulher e o filho para trás. Quando chegou à traseira do edifício, junto à muralha que se encontrava mais perto do rio, Sir William fê-los descer um curto lanço de escadas que conduzia a uma cave pouco profunda onde os barris de vinho e de cerveja se alinhavam ao longo das paredes. Hugh deu umas pancadinhas num deles e ouviu um som abafado. Era o som reconfortante de um barril completamente cheio. Na outra extremidade daquela cave via-se um grande caixão, onde repousava o corpo do homem que causara tantos problemas ao senhor das terras.
Sir William avançou para o caixão e chamou os outros com um gesto de proprietário. Baldwin e Simon espreitaram para dentro do caixote e descobriram-se a olhar para o rosto de um homem no fim da casa dos 20 anos, com um corpo delgado, vestido com uma rude túnica sem mangas, feita de um tecido avermelhado que lhe deixava os braços a descoberto.
- Pobre diabo... - murmurou Baldwin. Simon ouviu-o e compreendeu facilmente os motivos para o comentário. O cabelo empastado do homem caíra-lhe sobre um dos olhos, quase o cobrindo, mas não o suficiente para ocultar o olhar desfocado. Era óbvio que Bruther morrera estrangulado. Tinha os olhos esbugalhados, a boca aberta, a língua transformada numa massa inchada e enegrecida, com uma linha de marcas de dentes provocada pelo fecho dos maxilares durante os estertores da morte. Os restos da corda de cânhamo continuavam em volta do seu pescoço. Era uma corda leve, do tipo utilizado para amarrar coisas e que não costumava estar associado a enforcamentos. Para além disso, não se encontrava muito apertada. Baldwin estudou o corpo enquanto o almoxarife o observava. Pousou as mãos no rebordo do caixão e percorreu o cadáver com os olhos. Simon imitou-o e obrigou-se a olhar para o morto.
O cadáver de Bruther não era semelhante aos outros que já vira. Começava a ficar familiarizado com a morte, uma vez que nos dois últimos anos vira homens queimados e apunhalados, e fora frequente sentir vontade de vomitar depois de os examinar. Como representante legal também testemunhara enforcamentos mais do que suficientes e verificara quais os seus resultados. Para a sua mente, os corpos dos enforcados eram menos perturbadores do que os dos assassinados, provavelmente porque ficava contente quando os culpados eram castigados mas também porque os sinais de violência eram muito menores. Aquele cadáver era diferente por ser o de um homem que fora morto sem qualquer espécie de razão válida e sem julgamento, durante um crime violento. Para além disso, os últimos momentos da vítima deveriam ter sido horríveis. Era como se o terror final da vítima lhe estivesse a ser transmitido. Imaginava, nos olhos da mente, o grupo de homens que o tinham agarrado, que lhe haviam amarrado as mãos atrás das costas, que lhe tinham posto a corda ao pescoço para depois o içarem a espernear e a asfixiar, deixando-o pendurado até o seu rosto escurecer e os olhos se lhe revirarem. Foi um pensamento que lhe provocou um estremecimento e que o forçou a engolir em seco e a desviar os olhos.
Como de costume, Baldwin não parecia afectado pela visão da morte. Terminou o tranquilo exame ao corpo e chamou o servo. Edgar, que se armara com uma vela acesa, aproximou-se e levantou-a junto do cadáver de acordo com as instruções do cavaleiro. Começou pelos pés e foi avançando lentamente para cima, detendo-se nas mãos e nos pulsos e prosseguindo até ao rosto. Por fim, Baldwin segurou a cabeça do morto entre as mãos e estudou-a, examinando tanto o rosto como o crânio enquanto murmurava qualquer coisa para si mesmo.
Sir William lançou um olhar de espanto na direcção de Simon, que esboçou um sorriso fraco.
- Não se preocupe, Sir William. O meu amigo faz sempre coisas destas.
- Pois é, má sorte a minha... - resmungou o cavaleiro. - Muito bem, Edgar, põe a vela perto do pescoço enquanto examino a corda.
- Mas... para quê?! - O velho cavaleiro bateu com o pé, impaciente, enquanto mantinha os braços cruzados sobre o peito. - Ainda não viram o suficiente? O homem está morto... e é tudo.
Baldwin olhou para cima com o rosco sulcado por linhas e sombras profundas provocadas pela luz alaranjada da vela.
- Não sei se será tudo, senhor. - Fez um sinal a Edgar. - Corta-lhe a corda. Sir William, como pode dizer que é tudo quando ainda não sabemos quem o matou?
- Tal como disse a minha mulher, devem ter sido...
- Os mineiros. Pois... Contudo, tenho poucas dúvidas de que os mineiros dirão que foi outra pessoa qualquer. Quem sabe... até podem dizer que foi o senhor, Sir William. Onde foi que disse que o encontraram?
O ancião olhou de Simon para Baldwin com uma expressão Zangada.
- Eu? Não se atreveriam!
- Ou um dos seus filhos... - prosseguiu Baldwin alegremente. "- É por isso que temos de estudar o corpo, para verificarmos se exi74 birá algumas provas sobre quem na realidade o matou. Bom, onde foi que o encontraram?
- No... no bosque de Wistman... É um pequeno bosque a alguma distância daqui.
- E estava pendurado numa árvore?
- Sim. Os meus homens viram qualquer coisa a balouçar quando passaram por lá. Olhara e descobriram este corpo. - O choque ainda fazia com que Sir William continuasse com os olhos muito abertos.
- Obrigado. Se não se importar, creio que seria interessante ver onde foi que o encontraram. Pode pedir a um dos seus homens para nos levar até lá?
- Sim, suponho que posso, se é o que pretendem. Vou tratar disso.
- Óptimo. Agora... ah, obrigado, Edgar.
Baldwin tirou a corda das mãos do servo e estudou-a com cuidado. Era de forte cânhamo. Edgar cortara-a no pescoço, preservando o nó de modo a que este também pudesse ser estudado. Simon observou-o enquanto o cavaleiro experimentava o laço, puxando-o para que corresse com facilidade ao longo da corda, A seguir olhou para o cadáver. Simon estendeu a mão e Baldwin entregou-lhe a corda sem uma palavra. Estava novamente concentrado na figura do morto e parecia ter-se esquecido dos outros que ali se encontravam presentes.
Simon sempre tivera uma faceta melindrosa que o cavaleiro considerava atraente ou irritante, de acordo com a disposição do momento. Para Baldwin, que passara pela experiência das guerras e vira muitas formas de morte, havia sempre um certo fascínio em cada novo cadáver. Era impulsionado por uma curiosidade pura, não para provar um princípio mas apenas para descobrir a verdade. De cada vez que via um novo corpo queria sempre estudá-lo e descobrir as razões que se encontravam por trás da morte, como se o cadáver pudesse explicar-lho se o escutasse e observasse. Para além disso, estava sempre decidido a dar a cada um deles todo o tempo necessário para lhe contar o que se passara.
Há muito que aprendera que, quando um homem ou uma mulher morriam de uma maneira específica, os sinais eram sempre semelhantes aos de outros que tinham morrido de uma causa parecida. Por isso, graças à sua experiência, era claro que aquele homem morrera por enforcamento. Os sinais no rosto confirmavam-no. Baldwin já os vira com demasiada frequência noutros homens enforcados e acenou para si mesmo enquanto os registava com uma disposição desapaixonada. A pele da cabeça e da parte superior do pescoço ganhara um tom escuro, os olhos tinham pequenas hemorragias nas zonas brancas, e as faces e o escalpe, quando afastou os cabelos, revelavam ainda mais hemorragias. Não, não tinha dúvidas de que o homem morrera asfixiado.
Recuou e examinou o corpo. Havia um pormenor que o incomodava. Quando estudara o pescoço com mais pormenor vira uma coisa que lhe parecera estranha. A corda estivera atravessada no pescoço e deixara uma larga marca, perfeitamente visível onde a pele fora arrancada. Era como uma espécie de uma comprida bolha que deixara exposta a carne que se encontrava por baixo e vertera um líquido claro. Logicamente, devia tratar-se de uma queimadura provocada pela corda. Contudo, o que o confundia era a segunda marca. Por baixo daquela pele esfolada havia uma linha mais estreita, que se estendia de um lado ao outro da garganta. Tirou a vela das mãos de Edgar e aproximou-a do pescoço do morto.
- Bom, é tudo... ou vamos ficar aqui toda a tarde? - perguntou Sir William, que se remexia, irritado. - A coisa parece-me clara. O Bru-ther morreu enforcado. Que mais querem?
Baldwin franziu a testa, pegou numa das mãos de Bruther e olhou-a, prestando atenção ao pulso. Deixou-a cair, endireitou-se lentamente e sorriu para o dono da casa.
- Sim, é claro. Agora, vamos deixá-lo em paz... se quiser fazer o favor de nos conduzir aos homens que descobriram o corpo.
Sir William avançou pesadamente para as escadas que conduziam à cozinha e esperou pelos seus hóspedes antes de sair para o pátio. Deu ordens a um guarda, que mirou os estranhos com desconfiança antes de ir procurar alguém. Samuel Hankyn apareceu poucos minutos depois e olhou para Simon com um rosto tão seco e com umas feições tão aguçadas que o faziam parecer-se com um furão esfomeado. Estava vestido com um traje de lã acastanhada e com um colete de couro. Olhou interrogativamente para o amo e conseguiu espreitar Simon e Baldwin pelo canto dos olhos enquanto Sir William lhe explicava o que estes pretendiam.
Pouco depois já iam a caminho. A julgar pela posição do Sol ainda tinham umas boas três horas de luz antes do cair da noite e nenhum deles queria ficar encurralado nas charnecas quando esta chegasse, pelo que cavalgaram a um ritmo rápido que dificultava as conversas.
Samuel seguia à frente e Simon ia logo atrás dele, sentindo-se rígido e com os músculos a protestarem contra tantas horas passadas na sela. Cerca de meia hora depois viraram para norte e penetraram num largo vale entre duas colinas baixas.
- Não foi por aquele bosque... - perguntou Baldwin quando avistou a massa de verdura à sua frente - que passámos no outro dia? Simon espreitou em frente e respondeu.
- Sim, é o Wistman - declarou, mas houve qualquer coisa na sua voz que fez com que o cavaleiro o olhasse.
- Suponho que me vais dizer que o homem foi morto porque incomodou os cães do Diabo! - comentou com ligeireza.
- Há coisas de que não nos podemos rir, em particular aqui, nas charnecas, Baldwin. É um sítio diferente dos outros, onde podem ter lugar acontecimentos estranhos. Olha para esta floresta: as árvores são todas mais baixas do que deveriam ser. Crockern toma conta da sua terra de acordo com os seus desejos.
Baldwin preparava-se para dizer qualquer coisa quando Samuel apontou:
- Era ali que ele estava - disse, com toda a simplicidade.
Na frente deles via-se uma massa de troncos cobertos de musgos. Uma leve brisa agitava as folhas secas e gelava os homens ao arrefecer-lhes o suor que lhes escorria pelas costas. Pararam e ficaram a olhar. Por baixo de uma das árvores, um pouco mais alta do que as restantes, havia uma grande rocha e a seu lado encontrava-se um sujo rolo de corda do mesmo cânhamo que tinham recuperado do corpo de Peter Bruther.
- Estava pendurado além, naquele ramo - continuou Samuel, com um dedo a indicar o pesado ramo directamente por cima da rocha.
O cavaleiro acenou, desceu do cavalo e caminhou para a árvore. Verificou que a corda fora cortada. Olhou para cima, para o carvalho, e depois para baixo, para a rocha.
- Foste tu quem cortou a corda para o desceres?
- Sim, senhor, quando regressei aqui com outros homens. Baldwin trepou para cima da rocha. Ficava a uns 60 centímetros do chão e se erguesse os braços era-lhe possível tocar no ramo por cima da sua cabeça. Agarrou no ramo, ficou a olhá-lo durante algum tempo, largou-o e saltou da pedra, para começar imediatamente a estudar o chão em volta enquanto Simon o observava. Já vira o amigo a proceder assim, em busca de pistas, a agir como um cão atrás de um rasto.
Samuel resmungou para si mesmo, esporeou o cavalo e colocou-se por trás do abrigo de um penedo para se proteger contra o vento. Hugh juntou-se-lhe e ofereceu-lhe um gole do odre do vinho. O guia acenou com gratidão e tomou um longo gole da bebida fresca, para logo lhe devolver o odre e limpar a boca com as costas da mão.
Samuel agitou um polegar na direcção do cavaleiro, agora agachado, a empurrar folhas e raminhos para um lado e para o outro enquanto examinava o solo, e perguntou:
- Ele é sempre assim? Parece que anda em busca de raízes! Hugh arrotou tranquilamente e rolhou o odre.
- Fá-lo muitas vezes... e parece conseguir ver as coisas mais inesperadas - explicou, com uma espécie de respeito relutante. - No entanto, nem sequer imagino o que estará a procurar.
- Não há nada para procurar. Vieram aqui uns homens, enforcaram-no... e pronto!
- Vivia perto daqui, não é verdade?
O homem encolheu os ombros e encolheu ligeiramente a cabeça na direcção do Norte.
- Um pouco para norte daqui. A maior parte dos mineiros vive em campo aberto, mas este estava mais perto do centro da charneca do que os restantes. Devia ser louco. Toda a gente que viva na charneca durante algum tempo sabe que deve manter-se a afastado do centro...
- Porquê? - Edgar aproximara-se e agora estava confortavel-mente instalado na sela a curta distância deles.
- Porque ninguém que conheça bem a charneca se atreve a provocá-lo - murmurou Hugh enquanto o guarda acenava com um ar muito sério.
- Provocar quem? De que estão vocês a falar?
- Olha - disse Hugh - esta área, toda ela, pertence ao Crockern, o espírito da charneca, que não gosta que as pessoas tentem roubar-lha. Até os mineiros o sabem e é por isso que se mantêm mais juntos. Conservam-se nas suas aldeias ou acampamentos e deixam o resto da charneca para o velho. No caso contrário... - A voz apagou-lhe como se se tivesse apercebido da sobrancelha erguida numa expressão cínica.
- Continua, Hugh. No caso contrário... o quê?
- Havia um agricultor não muito longe daqui... Tinha uma boa vida, ganhava o suficiente para se sustentar e à família... mas tornou-se ambicioso. Quis mais. Por isso, começou a aumentar as suas terras, roubando cada vez mais bocados à charneca. Bom, o Crockern não se importa que as pessoas vivam aqui desde que não façam mal às suas terras, mas não gosta nada que lhe roubem bocados de que na realidade não necessitam. Por isso, impediu as coisas de crescerem nos novos campos e pensou que iria deter o agricultor. Não foi o que aconteceu. O estúpido continuou a querer aumentar as suas terras, drenando-as, construindo vedações e valas. Plantou cada vez mais, sempre mais... até que o Crockern se fartou e decidiu acabar com aquilo. O agricultor descobriu que os animais tinham morrido e que todas as plantas haviam secado, não apenas nas novas terras como também nos velhos campos. A seguir, a sua casa ardeu de alto a baixo...
Samuel interrompeu-o.
- Casa? Não foi a casa mas sim o celeiro.
- Casa ou celeiro, tanto faz - emendou Hugh diplomaticamente. - De qualquer modo, perdeu tudo e ficou arruinado. É para que vejas como é o Crockern. Quem o incomodar no seu território acabará por ser destruído.
- E acham que foi o que aconteceu a este mineiro? - Edgar estava divertido. Passara a maior parte da sua vida em grandes cidades e achava que podia tratar as superstições dos camponeses com desprezo. - Tentou extrair demasiado da terra e o velho da charneca matou-o?
Hugh ofendeu-se com o tom trocista e calou-se, mas o homem de armas olhou para Edgar com uns escuros olhos pensativos.
- Se fosse a ti, não me ria. O Crockern pode não gostar, aqui, nas suas terras. Quem poderá saber por que razão morreu o Bruther? Que eu saiba até se pode ter suicidado, mas digo-te uma coisa: no que me diz respeito, o rapaz tanto pode ter sido vítima do Crockern como dos mineiros que vivem por perto.
- Se é esse o caso, por que não aconteceu nada aos outros mineiros? De certeza que o Crockern não ia estabelecer diferenciações entre eles, pois não?
O homem de armas estudou-lhe o rosto com cuidado e fez um gesto para o sul.
- Sabes como se chama aquela colina?
Edgar olhou em volta, para o caminho que os levara até ali. Avistou uma colina mas do local onde se encontravam só conseguia distinguir-lhe os flancos. Abanou a cabeça.
- Chama-se Crockern Tor e é ali que os mineiros se reúnem no seu parlamento - declarou Samuel lentamente. - O Bruther vivia ali perto. Talvez até demasiado perto. O Crockern não gosta que lhe perturbem os ossos...
- De certeza que não acreditas nisso! - troçou Edgar, mas o homem ignorou-o, incitou o cavalo e afastou-se um pouco. Edgar encarou Hugh e notou-lhe uma expressão especulativa no rosto... como se estivesse à espera que um raio o pudesse atingir de um momento para o outro.
O cavaleiro concluiu o seu estudo do solo, exibiu uma careta pensativa e voltou a subir para o cavalo.
- Simon - disse, baixinho - creio que este assunto se irá tornar muito interessante antes de o darmos por concluído. - Instalou-se na sela, agarrou nas rédeas e ficou a olhar para a árvore. - Esta morte tem qualquer coisa de estranho...
- Então porquê?
- Em primeiro lugar, por causa do local. Que estava o Bruther aqui a fazer? A apanhar lenha, ou algo do género? Não vejo nenhum machado. Depois, temos o corpo... - Calou-se e ficou a olhar para a árvore como se esperasse que esta respondesse aos seus pensamentos.
- O corpo...? - incitou-o Simon após alguns instantes.
- Sim. Se quisesses linchar alguém, qual era a primeira coisa que lhe fazias?
- Não sei... Talvez o amordaçasse.
- E...?
- Bom, dependia do número de homens que estivessem comigo, da força da vítima e de muitas outras coisas.
Baldwin mirou-o de esguelha.
- Não achas que uma das primeiras coisa que farias seria amarrá-lo?
- Ah, sim, é claro!
- Então... por que motivo o Bruther não se encontrava amarrado?
- Suponho que os homens que o mataram o terão desamarrado...
- Não, Simon. Não foi amarrado. Se o tivesse sido, os pulsos teriam ficado com marcas. Não as tinham. Verifiquei-os.
- Não estaria inconsciente? Não o terão derrubado antes de o enforcarem?
- É uma possibilidade... - admitiu o cavaleiro no tom de quem não se queria comprometer.
- Então, aí tens, Foi atacado e deixaram-no inconsciente. A seguir houve alguém que passou a corda por aquele ramo, amarrou-lha à garganta, içou-o e atou a outra ponta da corda à árvore para o manter pendurado.
- Suponho que é possível - declarou Baldwin, duvidoso. Continuava a interrogar-se a respeito da fina marca no pescoço do morto mas não queria discuti-la na presença do homem de armas. Virou o cavalo para enfrentar os outros.
- Eh, tu! - chamou Simon, e o guia aproximou-se. - Encontraste o corpo quando estavas na companhia de outro homem da mansão, não é verdade?
O homem de armas confirmou com um aceno.
- Sim, estava com o Ronald Taverner.
- Por que vieram por aqui? Este local fica a quilómetros da casa de Thomas Smyth. Segundo sei, acompanharam Sir William até lá.
Samuel explicou a decisão de irem tomar uma bebida, bem como o complicado percurso que tinham escolhido para o regresso a casa depois de verem os dois mineiros na estrada. Baldwin escutou-o com toda a atenção. A história soava a verdadeira mas o homem parecia algo reticente quanto a uma questão.
- Continuo sem compreender por que vieram para este lado - respondeu, numa tentativa de sondagem, - Não havia uma taberna ou uma estalagem mais próxima? Não há uma na estrada de Chagford?
- John e o seu cavaleiro tinham ido para lá. Não quisemos estar com eles...
- E por que não? - inquiriu Simon.
- Porque... - o homem calou-se e olhou para o chão.
- Ora, vamos lá, Samuel. Não contaremos nada a ninguém - afirmou Simon, tranquilizador.
- O John pode ser um homem muito violento... - murmurou. Baldwin acenou. Tinha a certeza, pelo que já observara, de que o jovem escudeiro podia ser um amo muito cruel. No fim de contas, estava a ser educado por Sir Ralph de Warton. Os cavaleiros mercenários como Sir Ralph eram demasiado vulgares e não eram conhecidos pela sua bondade ou pela generosidade de espírito.
- Então, foi por isso que fizeram todo o caminho até ao agricultor que vende cerveja perto do Dart para irem beber - comentou Simon. - Depois, a caminho de casa, abandonaram a estrada por causa de alguns mineiros. Como eram eles?
- Um era alto e ambos eram jovens. Tinham mantos e usavam os capuzes sobre as cabeças. - A face do homem de armas ganhou uma expressão pensativa.
Simon também ficou a pensar.
- É muito raro que os mineiros tenham cavalos. Em geral, quando os têm, servem-se de póneis, não é? Dizes que usavam mantos... A noite não estava quente? Por que estariam com os capuzes nas cabeças?
- Não sei. Na altura presumi que se tratava de mineiros. Quem mais andaria pelas charnecas àquela hora do dia? Os agricultores já deviam estar a recolher os seus animais e nenhum mercador quer viajar àquela hora. Por isso, pensei...
- Poderia ter sido um cavaleiro, acompanhado por um escudeiro? Samuel voltou a franzir a testa, pensativo. Agora que pensava no assunto... era verdade que houvera algo de estranho naqueles dois homens.
- Não sei... Um deles podia ter sido uma pessoa bem-nascida, mas o outro... - Calou-se e mergulhou no silêncio.
Passados alguns instantes, Simon pigarreou para limpar a garganta.
- Muito bem, Samuel - disse, com simpatia. - Fala connosco se te lembrares de mais alguma coisa. Agora... sabes onde é que esse tal Bruther costumava viver?
- Sei, sim, era para lá da casa do Smalhobbes - respondeu, agitando um polegar por cima do ombro.
- Óptimo, não fica muito longe do nosso caminho. Leva-nos lá. Simon e Baldwin seguiram o homem de armas, que os conduziu para lá da rocha onde os dois servos se encontravam à espera. Simon viu Edgar a lançar uma olhadela paternalista para Hugh e ainda o ouviu murmurar: "O cadáver de Crockern!" O almoxarife tomou uma nota mental para perguntar ao homem qual o significado daquele comentário.
Começaram a trepar a vertente da colina e pouco depois já tinham deixado as rochas para trás, uma vez que só pareciam existir no vale, em torno do bosque. Na direcção do alto da colina a terra era firme e ondulante, estava coberta de ervas até onde os olhos conseguiam alcançar e mostrava-se salpicada, aqui e acolá, por pequenas flores amarelas. Os ubíquos picos rochosos acinzentados destacavam-se por todo o lado ao longo da linha do horizonte. Simon avistou aquela vastidão vazia e soltou um gemido interior. Já estava ansioso por se ver livre da sela mas era óbvio que ainda teria de esperar algum tempo para poder ter esse prazer.
Tiveram de percorrer uns bons dois quilómetros e meio até à pequena cabana onde Bruther vivera. Viram-na após alguns minutos de marcha e não passava de uma pequena construção feita com pedras, coberta por um desajeitado telhado de turfa. Na sua frente corria um ribeiro muito rápido que escavara uma abertura profunda no solo negro. Por trás da casa via-se um talhão cultivado, onde algumas plantas se debatiam contra os ventos amargos que ressequiam aquela terra. Os cinco homens abrandaram para um trote lento logo que avistaram a casa. Todos eles tinham sentido a necessidade de se aproximarem tranquilamente como uma espécie de sinal de respeito para com o morto que vivera ali. O seu avanço foi quase silencioso quando atravessaram o ribeiro e se dirigiram para a porta... e foi nessa altura que ouviram um grito agudo e viram a mulher a escapar-se pela porta, a baixar-se para passar por baixo da cabeça do cavalo de Baldwin e a fugir para leste.
Inicialmente, os homens ficaram tão surpreendidos que nenhum deles se moveu. O cavalo de Baldwin pareceu ficar tão espantado como o cavaleiro e só reagiu depois da mulher já se ter afastado. Porém, quando resfolegou e agitou a cabeça já Sir Baldwin começava a recuperar do choque. O cavaleiro esporeou-o e foi atrás da mulher, seguido de perto por Edgar, enquanto Simon trocava um olhar de confusão com Hugh.
Não tinha qualquer desejo de a magoar ou de a assustar, mas queria saber quem ela era e o que teria estado a fazer na casa do morto. Aproximou-se num percurso oblíquo para não a alarmar exagerada-mente, ultrapassou-a e pôs o cavalo a trote, A mulher soluçava. Baldwin sorriu-se para ela, tentando parecer tranquilizador, e levantou as mãos para lhe mostrar que estavam vazias de armas. A coisa pareceu funcionar porque deteve o cavalo e a mulher parou a pouca distância, a limpar os olhos e a ofegar.
Para o cavaleiro, era impossível não reparar nos sinais de pobreza da mulher, no vestido desfiado, na touca suja, nos buracos nos cotovelos e nos joelhos, mas o que mais o impressionou foi o porte. Era alta, mantinha-se muito direita, quase como numa grande dama, e não tinha medo de lhe enfrentar o olhar. Baldwin podia ver que a mulher que tinha na sua frente não era uma serva tão assustada como um coelho.
- Por favor, pare, minha senhora. Garanto-lhe que não corre qualquer perigo.
- Quem é o senhor? Está com o Thomas?
A expressão de franca incompreensão de Baldwin devia ter sido convincente porque os olhos da mulher acabaram por se desviar dos dele e viraram-se primeiro para os homens em frente da porta da cabana e a seguir para Edgar, que pousara os cotovelos na cernelha do cavalo. Baldwin encolheu os ombros para dar mais ênfase ao facto de não saber a quem ela se referia.
- Então, não são mineiros - murmurou, desconfiada. A sua confusão aumentou quando o cavaleiro de rosto trigueiro se começou a rir.
- Não, não somos mineiros. Sou Sir Baldwin Furnshill e aquele cavalheiro ali atrás é Simon Puttock, o almoxarife de Lydford. Viemos aqui para descobrir quem matou o Peter Bruther.
- Ah, então ele está morto?! - exclamou a mulher, que cobriu o rosto com as mãos.
Edgar conduziu o cavalo de Baldwin de regresso à cabana enquanto o cavaleiro caminhava ao lado da chorosa mulher. Quando chegaram junto dos outros já conseguira saber que se tratava de Sarah Smalhobbe.
- Por que estavas aqui, Sarah? - perguntou Simon quando Baldwin a apresentou.
- Queria ajuda depois de nos terem atacado. Apareceram ontem na minha casa, três homens, e lançaram-se sobre o meu marido. Está lá agora, na cabana. Três contra um! Que grande vitória! Os cobardes bateram-lhe, pontapearam-no quando já estava caído no chão e atingiram-no com os cacetes só porque se recusa a abandonar a charneca. Para onde poderíamos nós ir, senhor? Não temos família para nos proteger, somos pessoas pobres e não podemos partir para irmos à procura de outro lugar onde possamos viver...
- Não és aqui da zona, pois não? - perguntou Baldwin com suavidade.
O olhar da mulher virou-se imediatamente para ele. Hesitou, com medo de falar demasiado.
- Não, senhor. Viemos do norte.
- De onde? Por que se deslocaram para tão longe, para este lugar miserável?
Inesperadamente, a mulher começou novamente a choramingar.
- Senhor, a vida aqui é difícil mas não tínhamos outro lugar onde ganhar uma crosta de pão. A fome afectou pessoas mais ricas do que nós. Tivemos de partir para qualquer lado quando já não conseguíamos arranjar comida. Ouvimos falar nas minas e pareceu-nos ser uma oportunidade para reconstruirmos as nossas vidas.
Simon lançou uma olhadela a Baldwin e voltou-se de novo para a mulher.
- Podemos proteger-te durante o caminho até à tua casa e talvez possamos ajudar o teu homem. No entanto, tens de nos dizer quem lhe fez isso.
O medo regressou aos olhos de Sarah.
- Se nos disseres, trataremos de que não voltem a aparecer aqui - afirmou Simon, tranquilizador.
- Como posso ter a certeza disso? E se estiver enganado? Podem queimar-nos ou matar-nos aos dois.
- Sarah, acalma-te. Sou o almoxarife. Não se atreverão a atacarmos se souberem que vocês estão sob a minha protecção.
- Não sei... Terei de falar com o meu marido...
- Muito bem, não te forçarei. No entanto, pensa nisso. Talvez te possamos ajudar. No fim de contas, o que menos desejamos aqui é uma lei imposta por brigões.
- Ora, é o que já temos, almoxarife - disse a mulher com tristeza, virando a cara.
Simon e Baldwin entraram na pequena cabana enquanto a mulher ficava à espera no exterior com Hugh e Edgar. Havia um tronco de madeira a suportar o telhado da cabana. Ao lado, uma zona queimada e alguns raminhos indicavam o local onde o mineiro acendia a sua lareira. A mobília era composta por um único banco. A triste colecção de posses do homem jazia sobre um grande bloco de pedra que sobressaía da parede e fazia de mesa: uma capa, um capuz, uma pequena faca, meio pão e um coelho esfolado. No chão, ao lado, tinha sido enrolada uma enxerga muito fina e gasta.
Baldwin pegou no coelho morto e sopesou-o, - Não pode ter mais de um dia. Com este calor não duraria muito mais. Se o apanhou... achas que se iria suicidar logo de seguida?
- Pensas que se pode ter suicidado? - inquiriu Simon num tom seco.
- Não - retorquiu o cavaleiro, com um suspiro - mas o suicídio era uma explicação para o facto de não ter as mãos amarradas. Depois, há aquela segunda marca...
- Qual segunda marca?
Baldwin explicou-lhe enquanto Simon o escutava atentamente.
- Prova, mais ou menos, que deve ter-se tratado de um assassínio - disse o cavaleiro, atirando o coelho para um lado.
- Não foi uma atitude muito honrosa, pois não? Aparecer por trás de um homem para o esganar... Não é o tipo de comportamento que seria de esperar num sítio destes. Em geral, há uma luta, com as adagas ou os punhos. Isto é... doentio.
- Sim. Tal como dizes, não foi um acto de honra. No entanto, há muitos mineiros na charneca e duvido que algum deles tenha sangue nobre. De qualquer modo, também não tinham grandes razões para o matar se o que estava em jogo era um roubo,..
- Poderão ter-lhe tirado alguma coisa?
- A um servo da gleba? Talvez possuísse uma bolsa, mas vivia aqui há menos de um ano. Não pode ter ganho muito. Não, duvido que o propósito fosse o roubo. Para além disso, desde quando os ladrões enforcam as suas vítimas?
Não havia ali mais nada para descobrir. Saíram e montaram nos cavalos, Baldwin ofereceu à senhora. Smalhobbe um lugar na montada de Edgar mas a mulher recusou. Não se encontrava longe de casa e preferia ir a pé.
- Tal como eu... - resmungou Hugh quando verificou que Simon o podia ouvir, mas o almoxarife preferiu ignorar o comentário.
Na propriedade dos Smalhobbes depararam com uma pequena cabana de pedra, muito bem arranjada e limpa. Sarah correu imediatamente para a porta e entrou enquanto os homens desmontavam. O interior era minúsculo. Simon viu, à luz de uma vela que escorria e que enchia o ar com o odor rançoso de gordura animal a arder, a figura delgada que jazia numa enxerga na outra extremidade da sala, com a mulher ajoelhada a seu lado. Ao vê-los entrar, o mineiro fez um esforço para se levantar, com os olhos a revelarem ansiedade mas não medo, tal como Baldwin notou com aprovação. O mineiro estava com mau aspecto e tinha as feições macilentas todas pisadas. No entanto, apesar de ser de complexão ligeira, Smalhobbe parecia resistente e em forma.
- A minha mulher disse-me que estão a tentar descobrir o que aconteceu na noite passada... - disse, num tom exausto e tenso.
Baldwin olhou em volta da sala e soltou um suspiro ao verificar que não existiam bancos ou cadeiras. Acabou por se agachar.
- Sim. Mataram o Peter Bruther, tal como a tua mulher já te deve ter dito. Ao que sabemos, também foste atacado.
Henry Smalhobbe viu Simon a agachar-se ao lado do cavaleiro. A expressão do mineiro era reservada e desconfiada, mas Simon pensou detectar nela um grão de esperança, como se o homem tivesse rezado por uma qualquer espécie de alívio e estivesse a ver uma oportunidade de salvação. Simon pigarreou.
- Podes contar-nos o que aconteceu na noite passada? Talvez também te possamos ajudar enquanto tentamos descobrir quem matou o Peter Bruther.
- Talvez... - disse Henry Smalhobbe num tom tranquilo enquanto se apoiava num cotovelo. O seu rosto estava agora na escuridão, abaixo do nível da vela na parede, pelo que a sua expressão era difícil de ler. Simon perguntou a si mesmo se o movimento teria sido intencional. Mordeu o lábio, concentrado, enquanto o mineiro continuava.
- Não há muito para dizer. Estive fora todo o dia, tal como de costume, a trabalhar no pequeno ribeiro que fica para sul daqui. Regressei quando já quase escurecera. Bom, estava quase a chegar a casa quando vi um homem escondido lá fora. Devia estar à minha espera. - Falava com um tom desapaixonado, como se estivesse a narrar a provação de outro homem. - Quando ouvi a Sarah a gritar tive de olhar para ver se ela estava bem... Bom, antes de me conseguir virar houve qualquer coisa que me atingiu na traseira da cabeça... - Interrompeu-se e apalpou o crânio. - Caí e houve alguém que me sussurrou ao ouvido, dizendo que acabaria por morrer se não me fosse embora e deixasse esta terra para o seu proprietário. A minha mulher...
- Compreendo. Por favor, o que aconteceu a seguir?
- Bateram-me. Um deles pontapeou-me, o outro tinha o que julgo que era um bordão e espancou-me por todo o lado, nas pernas, nas costas, na cabeça. Desmaiei quando começaram a bater-me na cabeça. - Falava com simplicidade, sem tentar embelezar a história, pelo que Simon ficou certo de poder acreditar no homem.
Foi Baldwin quem se inclinou para a frente e perguntou:
- Viste algum desses homens?
- Nem precisava, senhor. Conheço-os a todos. Eram o Thomas Horsho, o Harold Magge e Stephen, o Crocker. - Explicou brevemente as visitas anteriores e como o tinham ameaçado e à mulher. - Em geral, o George Harang também costuma estar presente quando estes homens saem para assustar as pessoas, mas na noite passada foi o Harold quem falou. Se o George tivesse aparecido, teria sido ele.
- Ouviste-os a dizer alguma coisa sobre o Peter Bruther? Um qualquer comentário?
- Não senhor, não que me lembre. Dir-lho-ia se me lembrasse. - A voz do homem estava carregada de convicção.
- Ouviste falar de mais alguém que tenha sido atacado recentemente? Sabes de alguém que também tenha ficado ferido na noite passada?
- Não, senhor - respondeu Smalhobbe, olhando para a mulher em busca de uma confirmação. Sarah também abanou a cabeça, com os olhos muito abertos de preocupação.
Baldwin calou-se e pôs-se de pé com dificuldade, com os ossos dos joelhos a estalarem.
- Obrigado por tudo. Veremos o que poderemos fazer. Talvez possamos castigar esses homens... se estiveres preparado para os acusar.
- Oh, não, senhor! - O rosto de Sarah Smalhobbe contorceu-se de medo. - Não podemos! Que nos aconteceria se o fizéssemos? Pode ver o que estes homens são capazes de fazer quando lhes arranjamos um pequeno problema...
Simon inclinou a cabeça.
- Que queres dizer com esse "pequeno problema"? Que foi que vocês fizeram para merecerem este espancamento?
A mulher fitou-o por instantes mas acabou por baixar os olhos, que se viraram com nervosismo para o marido. Pelo menos, foi essa a impressão de Simon.
- Henry? - disse Simon, incitando o homem, que também lhe pareceu nervoso.
- Quando viemos para aqui fizemo-lo legalmente, demarcando o nosso lote de terreno e registando-o. Tudo o que queríamos era que nos deixassem em paz para podermos ganhar a vida, e até agora conseguimo-lo, Porém, há mineiros que só querem ver as pessoas fora das terras.
- Mineiros? Não estás a referi-te aos proprietários das terras? São eles quem quer ver os mineiros pelas costas...
- Não, senhor. Os proprietários querem que os deixemos sossegados, é verdade, porque há mineiros que lhes estragam as terras e os pastos. Não, estava a referir-me a mineiros que nos querem fora daqui.
- Então, é um terreno muito rico? Há aqui muito estanho e os outros querem que te vás embora para ficarem com ele?
Para surpresa do cavaleiro, o homem ferido soltou uma gargalhada áspera.
- De modo nenhum! Pode haver aqui estanho suficiente para mim e para a Sarah, mas não o suficiente para ficarmos ricos! Não, tudo isto é porque outro homem pagou a mineiros para não trabalharem esta terra, para que ele a possa conservar como pastos. Aqueles homens estão a impor esse acordo.
- Quer dizer que te bateram porque foram pagos para manterem estas terras vagas?
- Sim, senhor. Trabalham para um homem muito poderoso, o Thomas Smyth, que foi pago para não fazer a exploração de minério nesta parte da charneca. Por isso, disse-lhes para se verem livres de pessoas como eu.
- Sabias disto, Simon? - perguntou Baldwin, olhando espantado para o amigo.
- Já tinha ouvido falar nessa história - admitiu Simon - mas é difícil de impedir. Quando os mineiros de Devon se separaram dos da Cornualha, há uns 13 anos, e fundaram o seu próprio parlamento aqui, em Dartmoor, tornaram-se muito poderosos localmente e este tipo de coisas já aconteceu várias vezes. Todavia... - levantou-se e acenou para os Smalhobbes - farei o que puder para o impedir agora que sei quem é o responsável.
Simon manteve-se silencioso durante o regresso à mansão e Baldwin ficou satisfeito por poder entreter-se com os seus pensamentos.
Embora o almoxarife já lhe tivesse falado dos problemas criados pelos mineiros do estanho, não compreendera até que ponto os bandos de homens afectavam a vida das pessoas das charnecas, aterrorizando algumas em troca de dinheiro recebido de outras. Quando chegaram à mansão de Beauscyr ainda continuava com uma carranca pensativa. O crepúsculo aproximava-se e estavam todos muito aliviados por poderem descer das selas. Samuel Hankyn dirigiu-se para a cozinha enquanto os dois homens e os respectivos servos se encaminhavam para o salão. Baldwin ficou satisfeito ao ver a comida posta para eles numa mesa junto à lareira e já enchera uma malga e estava a comer ainda antes dos outros se terem sentado. Para além deles não havia mais ninguém no salão.
Depois de se passarem alguns minutos viram Sir Robert de Beauscyr a puxar o reposteiro para um lado e a entrar. Atravessou o solo coberto de palhas até um banco na frente de Simon e sentou-se, após o que ficou a olhar para o almoxarife.
- Então? Descobriram alguma coisa? - perguntou, num tom imperioso.
Simon fitou-o em silêncio enquanto mastigava um bocado de carne dura e seca. Não gostara do mais velho dos dois irmãos logo desde o primeiro encontro. A sua arrogância era insultuosa e Simon não estava habituado a ser tratado daquele modo. Engoliu, recostou-se no banco e pegou na caneca de estanho. Ignorou a questão e perguntou:
- Há quanto tempo estão a pagar ao Thomas Smyth para manterem os mineiros fora das terras da mansão? - Calou-se e tomou um gole da bebida.
Robert Beauscyr ficou confundido. Aquele assunto só surgira à superfície nos últimos dias. Antes disso, nem ele próprio estivera a par do acordo. Recuperou a compostura com algum esforço e tentou desvalorizar a questão com um encolher de ombros, bem consciente de que o choque que sofrera fora visível.
- Que tem isso a ver com o assassínio? - retorquiu. - É irrelevante.
- Não, não é irrelevante. Por exemplo, se o senhor pagasse a um homem para proteger as suas terras e ele o tentasse fazer matando alguém, então seria como se tivesse pago para o matarem... - Descontraído, o almoxarife meteu um bocado de pão na boca e deliciou-se com o ar incomodado do cavaleiro. - Não está de acordo?
- Não... Quero dizer, talvez... mas isso aqui não é importante.
- Porquê? Considera-se acima da Lei? - inquiriu Baldwin com suavidade.
SirRobert fitou-o, zangado.
- Claro que não... mas o bosque de Wistman não faz parte da mansão. Fica fora da nossa propriedade. Se é de alguém, então deve ser do Adam Coyt, um homem da charneca, que tem direitos de pastagem nessa área. De qualquer modo, nunca pagaríamos para mandar matar um servo!
- Nem sequer um servo que tivesse fugido e constituísse um embaraço contínuo para a família?-perguntou Simon com as sobrancelhas levantadas.
Contudo, Sir Robert não teve tempo para responder. A porta exterior bateu e o pai entrou na sala. Sir William ficou irritado ao verificar que o filho já ali se encontrava. Notou a tensão nos homens presentes em volta da mesa, hesitou e rezou mentalmente uma oração rápida. Que terá este idiota dito agora?, interrogou-se, por entre os dentes cerrados. Acenou com cortesia para os visitantes e sentou-se ao lado do filho, sentindo-se exausto. Sabia que a sua fadiga era visível e a sugestão de Baldwin de que os mineiros o poderiam acusar do assassínio de Bruther constituíra um tremendo choque e custava-lhe enfrentar o olhar do cavaleiro. A semana que passara fora suficientemente difícil, e sabia que não iria melhorar antes de o almoxarife se ir embora.
Suspirou e disse:
- Bom, suponho que encontraram o sítio onde ele foi morto, não é verdade, almoxarife?
O filho explodiu imediatamente:
- Não me disseram... Descobriram alguma coisa?
Havia uma sugestão de nervosismo na sua voz, pensou Simon, que sujeitou o jovem a uma mirada pensativa.
- Parece improvável que se tenha suicidado - declarou, para os Beauscyr. - Pensamos que pode ter sido morto por um bando. - Ainda não queria mencionar a visita que tinham feito aos Smalhobbes, pelo menos até ter a certeza que ficariam a salvo de retaliações. - Tal como nos disse, os mineiros são homens violentos. Não duvido de que alguns, entre eles, tenham ficado incomodados com as actividades de mineração do Bruther.
- Estou a ver. E que vai fazer a esse respeito?
Simon olhou para a caneca e levantou os olhos na direcção de Baldwin. O cavaleiro não tinha dúvidas. Esticou as pernas preguiçosamente e suspirou de alívio, satisfeito.
- Amanhã, iremos falar com esses mineiros para vermos o que têm para nos dizer.
- Óptimo - afirmou Sir Robert, levantando-se. - Quero este assunto resolvido rapidamente para que as coisas possam normalizar-se. - Avançou rapidamente para a porta e desapareceu.
- Perdoe a rudeza do meu filho, almoxarife. É apenas a impetuosidade da juventude. Teve um dia muito difícil e está convencido de que os mineiros nos vão criar mais problemas. Para além disso, discutiu com o meu outro filho... e um dos homens de armas foi ferido durante um exercício. Por que será que as coisas correm todas mal ao mesmo tempo?
Simon esboçou um sorriso gelado e acenou, enquanto Baldwin escondia um sorriso por trás da caneca. Se o rapaz continuasse a ser tão "impetuoso", pensou para si mesmo, então era provável que a ponta da espada do almoxarife acabasse por lhe dar uma lição de boas maneiras.
Na manhã seguinte receberam as necessárias indicações para descobrirem o caminho e partiram muito cedo em busca do mineiro Thomas Smyth de que tanto tinham ouvido falar. Durante o caminho aproveitaram para conversar sobre o cadáver. Simon não estava muito convencido a respeito das preocupações de Baldwin quanto à fina marca no pescoço de Bruther.
- Tens a certeza de que não era nada relacionado com a corda com que o enforcaram?
- Não pode ter sido da corda - afirmou Baldwin com decisão.
- Se um homem é enforcado, a corda deixa uma nódoa negra. Se um homem é estrangulado, as marcas dos dedos e dos polegares acabam por aparecer. Contudo, podes atingir um corpo morto com todas as tuas forças... e não deixarás marcas.
Simon encolheu os ombros.
- Talvez seja como dizes, mas que tem isso a ver com o assunto?
- Neste corpo, a corda não deixou a nódoa negra. Queimou-lhe a pele, é verdade, mas não deixou outros sinais. Que quer isso dizer? Quer dizer que o Bruther já estava morto quando o enforcaram. Foi a corda fina que o matou... porque foi essa que lhe deixou uma marca no pescoço.
- Bonito! Então, houve alguém que o enforcou depois de o matar para mostrar como o homem tinha morrido. Foram muito simpáticos...
- comentou Simon, sarcástico.
Baldwin sorriu.
- Sim, houve alguém que o estrangulou antes de ser enforcado - admitiu o cavaleiro. - Depois, houve alguém – presumivelmente o mesmo "alguém" - que se deu ao trabalho de o enforcar por uma qualquer razão.
- Tens a certeza de que o homem foi estrangulado?
- Oh, sim, quanto a isso não há dúvidas. Tinha todos os sinais de ter sido estrangulado. Não viste as manchas vermelhas que lhe cobriam a cara? Não reparaste nas pequenas hemorragias nos olhos?
- Não senti necessidade de estudar o corpo com tanta atenção como tu... - retorquiu Simon com secura, provocando uma risadinha do cavaleiro. - Que mais foi que descobriste?
- É assim tão óbvio?
- Sim, Baldwin. Pareces tão contente contigo mesmo como um estalajadeiro que vendeu um barril de cerveja velha de seis meses a um tolo. Vamos lá, o que foi?
O cavaleiro coçou o pescoço, pensativo.
- Tal como te disse, as mãos do Bruther não foram amarradas. Não tinha marcas nos pulsos. A linha no pescoço estava bem definida na frente da garganta e nos lados, mas não atrás. Vi-lhe alguns arranhões na cabeça mas não sei dizer se aconteceram quando estava vivo ou não. Para mim, parece-me ter sido atacado pelas costas.
- Isso já eu percebi, Aproximaram-se sorrateiramente e aplicaram-lhe um garrote.
- Sim, mas o facto também quer dizer outra coisa, é claro.
- O quê?
Baldwin lançou-lhe uma longa olhadela sofredora e soltou um suspiro.
- Pensa no assunto, meu velho amigo. Se tivesse sido apanhado por um grupo de homens... haveria sinais de luta. Não vi nenhum, para além daquela fina marca. Na minha opinião, o Bruther ou levou uma pancada na cabeça, que produziu aqueles arranhões, para logo de seguida ser estrangulado, ou foi apanhado desprevenido por um único atacante que lhe passou uma tira de couro em volta do pescoço e o estrangulou desse modo. Penso que a segunda possibilidade é melhor do que a primeira.
- Porquê?
- Em nome de Deus, Simon! - Agora, o tom do cavaleiro era abertamente exasperado. - Pensa, homem! Se o tivesse derrubado, por que razão o assassino se daria ao trabalho de ir em busca de uma tira de couro quando lhe bastava colocar as mãos em volta da garganta do mineiro? Precisaria apenas de um minuto e seria tão rápido como matar um coelho ou uma galinha. Suponho que o assassino poderia ter a tira de couro consigo, mas não é mais provável que a tenha preparado de propósito para a vítima? Já a tinha bem apertada em volta dos dois punhos quando viu o Bruther a aproximar-se. Depois, bastou-lhe passá-la pelo pescoço da vítima desprevenida e... - fez um gesto violento com as mãos - e foi tudo. Passou a haver menos um mineiro nas charnecas.
- Faz sentido - disse Simon, com um trejeito - mas continuamos sem saber quem o matou.
- Pois é. Tudo o que podemos fazer é tentar descobrir se haveria alguém com motivos para o querer morto, para depois interrogarmos essas pessoas. O problema está em que parece ter havido muita gente a desejar que se fosse embora da sua mina...
- Bom, talvez descubramos alguma coisa ali em baixo - declarou o almoxarife. Tinham subido ao alto de uma pequena colina e olhavam para uma aldeia no fundo de uma vertente pouco inclinada.
Baldwin teve a sensação de que a aldeia se destacava de um modo incongruente no meio das vastas planícies onduladas da charneca.´ As casas e vivendas mal-amanhadas tinham sido construídas ao estilo de pequenos povoados como Blackway ou Wefford e erguiam-se no interior de pequenas propriedades, embora as cores estivessem completamente erradas. Nas suas terras o solo era vermelho e a lama usada para erguer as paredes coloria as casas e dava cor às pedras calcárias. As habitações que agora via tinham um aspecto insípido e sombrio. Porém, quando se aproximaram, verificou que se havia enganado. Aquelas não eram as construções normais, em madeira e taipa, a que estava habituado. Na sua mansão a lama e os animais encontravam-se sempre à mão e as florestas forneciam toda a madeira que se podia desejar. Ali, nas charnecas, esses materiais de construção não eram tão facilmente acessíveis e só proliferava uma substância, as pedras da charneca, que as pessoas utilizavam em todo o lado.
As casas acompanhavam a estrada, que se estendia mais ou menos a direito de um horizonte ao outro. Por trás das casas encontravam-se as hortas que forneciam alimentos às pessoas e aos animais, com caminhos que formavam a fronteira externa da aldeia. Um ribeiro abria uma cicatriz através da paisagem, dividindo o povoado ao meio e alimentando um lago de peixes. Havia um largo vau no ponto onde a estrada se cruzava com o ribeiro, que permitia uma travessia segura. Foi para aí que se dirigiram uma vez que lhes tinham dito que o mineiro era o dono da propriedade que ficava mais perto da margem ocidental.
Quando se aproximou, Baldwin contraiu os lábios num assobio silencioso. Embora não existissem muralhas, um fosso ou um grande portão, era óbvio que o local pertencia a um homem rico. Baldwin já conhecera muitas casas ricas, mas nenhuma se pudera gabar de uma tão boa aparência. O salão central era vasto, com janelas altas e largas por baixo de um telhado coberto a ardósia. Na frente existia uma área de armazenamento, bem como uma construção quadrada, separada, que poderia ser uma cozinha. Todo o conjunto transmitia uma sensação de conforto e de tranquilidade. Olhou para Simon e verificou que o almoxarife ficara igualmente impressionado.
- Faz com que Lydford pareça um pouco patética - ouviu Simon a murmurar, e o cavaleiro riu-se. Sabia que Lydford ganhara uma grande notoriedade na família do almoxarife por causa das suas muitas correntes de ar. Os ventos cortantes sopravam pela Garganta de Lydford, embatiam no castelo e tornavam a vida no seu interior muito infeliz. Margaret, a esposa de Simon, ficara aliviada quando Simon, na sua posição de almoxarife, preferira viver numa casa próxima em vez de no próprio castelo.
Aquela casa estava separada da estrada por um vasto campo onde se via um grupo de bois que continuaram a remoer, satisfeitos, quando os homens passaram por eles. Havia um caminho directo aos estábulos e foi por aí que os quatro cavaleiros enveredaram. Desmontaram e viram aparecer um homem de cabelos claros que esfregava os olhos que revelavam sono. Tomou-lhes conta dos cavalos e olhou-os com evidente surpresa uma vez que era ainda muito cedo para visitas.
Tinham começado a avançar para a casa quando surgiu outro homem à porta.
- Ali! - exclamou Baldwin, - Creio que o nosso encontro se vai tornar muito interessante...
Simon levantou os olhos e verificou que se tratava do homem que lhes dissera para abandonarem o acampamento dos mineiros durante a primeira visita. O reconhecimento foi mútuo. O homem de cabelos cor de areia hesitou e ficou a olhar para o grupo que avançava para ele. Deu uma vista de olhos à sua volta e voltou a encará-los, com o rosto imobilizado numa careta de desconfiança que, de algum modo, deixou Simon mais alegre.
- Olá... Creio que já nos encontrámos - disse, bem-disposto.
- Aye... Talvez.
- Ah, claro! É o homem que nos ajudou a encontrar o caminho para a mansão de Sir William, não é verdade? - O homem fitou-os sem responder. - Viemos ver Thomas Smyth. É esta a casa?
O homem fungou enquanto olhava Simon de alto a baixo.
- Não me parece que ele o queira ver.,, a si.
- Penso que a opinião do dono da casa conta mais do que a de um servo - ripostou Simon com secura, avançando para passar para lá do homem. Para sua surpresa, o almoxarife descobriu o caminho bloqueado. O mineiro mantinha-se na sua frente com as mãos enfiadas no cinto.
- Por que o querem ver?
Baldwin observou com interesse as diferentes emoções que se perseguiram umas às outras nas feições expressivas do seu amigo. O espanto ultrajado foi rapidamente seguido por um divertimento seco, mas ambas essas emoções foram rapidamente expulsas por um súbito ataque de ira. Simon ficou com o rosto vermelho e contraiu os maxilares. Baldwin achou que seria melhor colocar-se rapidamente a seu lado.
- Creio que devemos ser nós a dizer ao teu amo porque queremos falar com ele - declarou apressadamente, com um sorriso. Edgar colocou-se a seu lado nesse momento, já com a mão a segurar no punho da espada. - Onde está o teu amo? - prosseguiu Baldwin.
George Harang ficou a olhá-lo. Não estava habituado a ver a sua vontade contrariada. Nenhum mineiro o desafiaria daquele modo, mas não sabia muito bem como responder ao almoxarife e ao amigo. Preparou-se e estava prestes a gritar por ajuda quando se ouviu uma voz por trás dele.
- Que barulheira vem a ser esta?
Simon levantou os olhos e viu um recém-chegado a aparecer à entrada. Era gorducho mas alegre e exibia um sorriso de boa disposição.
Para Simon, o homem parecia-se com a mastim de Baldwin... embora fosse um pouco menos feio. Era baixo, com cabelos grisalhos até aos ombros e olhos que eram como lascas de carvão a brilharem de divertimento. Poderia ter passado por um servo pobre porque não havia nada no seu vestuário que denotasse riqueza. O colete de cabedal estava rasgado e gasto, a camisa era de um simples tecido de lã, manchado e escurecido em muitos sítios, e o único adorno pessoal que o almoxarife conseguia ver era o anel de ouro no indicador. As exibições de ostentação eram desnecessárias porque a sua pose indicava que só podia ser o dono da casa.
Endireitou-se e fez um gesto para o confuso criado.
- Sai do caminho, George. É claro que receberei estes visitantes. Não posso mandar embora o almoxarife de Lydford, pois não?
Fez-lhe sinal para entrarem, com Hugh a seguir logo atrás do cavaleiro e de Simon, enquanto Edgar ficava a olhar para George. O escudeiro de Baldwin só seguiu atrás dos outros quando os olhos do guarda começaram a vacilar.
A casa era magnífica, tal como Baldwin esperara. A porta dava para um corredor apainelado - por cima do qual existia uma varanda para músicos -, que conduzia a um longo salão com altas janelas que lançavam imensos lagos de luz sobre o solo coberto de palha. A lareira era um enorme círculo de terra batida no meio do salão, com um gigantesco tronco a fumegar num leito de cinzas brilhantes que assobiavam e estalavam baixinho. Havia tapeçarias para protegerem as paredes e conservarem o calor, enquanto todos os trabalhos em madeira que se encontravam à vista eram ricamente esculpidos. Estavam dois cães para a caça aos lobos deitados junto da lareira, que se levantaram quando deram pela entrada dos visitantes e ficaram a olhar para o dono.
Thomas Smyth avançou para os cães e pousou as mãos nas suas cabeças por breves instantes. Os dois animais, como se tivessem recebido um sinal, deitaram-se imediatamente e ficaram a descansar. Por perto havia um banco junto a uma mesa e Smyth sentou-se, acenando aos visitantes para que fizessem o mesmo.
Simon descobriu-se a ser assaltado por súbitas dúvidas. Aquele homem não tinha o aspecto de ser um extorsionário brutal, e muito menos um assassino. Exibia um aspecto calmo e razoável, envolto na autoconfiança produzida pela riqueza. Observou Baldwin a aproximar-se da lareira e a agachar-se na frente dos cães, para lhes afagar as cabeças. Contudo, quando Hugh se aproximou, um dos animais olhou para ele e emitiu um rosnado ligeiro mas audível, que fez com que o servo se afastasse à pressa e se fosse sentar no banco. No entanto, os animais submeteram-se às festas de Baldwin com aparente prazer.
O almoxarife abanou a cabeça. Não sabia como aquilo acontecia, mas Baldwin produzia sempre o mesmo efeito nos cães.
- Então, almoxarife, o que posso fazer por si? - Thomas Smyth estava sentado muito à-vontade, com as mãos nos joelhos, e era a perfeita imagem da amizade.
- Como soube que sou o almoxarife?
- Ora, homens tão importantes como o senhor e o seu amigo dão sempre nas vistas quando passam pelas charnecas. Para além disso, os meus homens cobrem uma grande área de terreno aqui em volta. No fim de contas, tenho mais de cem homens a trabalharem para mim.
- Oh, claro... - disse Simon, que teve consciência da ameaça implícita naquelas palavras aparentemente inofensivas. Só um homem rico e seguro do seu poder se podia permitir ter tanta gente a trabalhar para ele, e o mineiro punha em destaque o número de homens com que podia contar, Como que para dar ainda mais ênfase a esse facto, Smyth olhou casualmente para os outros três homens antes de voltar a pousar o olhar em Simon. Porém, a seguir, notou a compreensão no rosto do almoxarife e sorriu, como se tudo aquilo fosse apenas um jogo. Agora que ambos o sabiam, podiam acabar com a esgrima verbal e ir directamente ao assunto. Foi com um sentimento de leve desgosto que Simon se descobriu a gostar da confiança atrevida daquele homem, e decidiu abordar o verdadeiro motivo para a sua visita de um modo oblíquo.
- Houve um ataque ontem à noite - começou. - Por que foi que os seus homens espancaram o Henry Smalhobbe e lhe disseram para abandonar a mina?
- Quem?
- O Henry Smalhobbe, que reconheceu os seus homens.
- Isso é uma acusação grave, almoxarife - ripostou Thomas Smyth, com os olhos a transformarem-se em gelo negro. Alguém aspirou o ar com força por trás dele e Simon virou-se. O porteiro seguira-os até ao salão e encontrava-se ali, por perto. O homem olhou o almoxarife com uma expressão zangada.
- Sim, é muito grave - admitiu Simon com suavidade, voltando a virar-se para o mineiro.
- Esse homem disse exactamente quem foi que lhe bateu? - Daquela vez, o mineiro exibiu uma expressão de surpresa.
- Harold Magge, Thomas Horsho e Stephen, o Crocker. São todos homens seus.
- George? - Smyth olhou para o servo.
- Senhor - respondeu - esses homens já deixaram as minas. Devem ter-se ido embora anteontem.
- Ah! Está a ver, almoxarife, foram-se embora do meu acampamento. Deve ter sido por iniciativa própria que atacaram esse tal... como é que ele se chama?
Simon ignorou a pergunta.
- E por que razão se iriam embora do seu acampamento?
- Ora, almoxarife - retorquiu Smyth, encolhendo os ombros e sorrindo - há tantas razões para um homem se ir embora quantos os homens que tenho a trabalhar para mim. Sou um mestre do estanho, tenho interesses em muitas minas espalhadas pelas charnecas e é difícil controlar os que trabalham em todas as minhas minas. São de todos os tipos: trabalhadores pagos ao dia, trabalhadores contratados por mim ao ano e muitos outros. Espera que os conheça a todos, pessoalmente? É impossível! Depois, é claro, também temos os estranhos, homens que não são daqui e acabam por detestar as charnecas... ou que lhes ganham medo. Ficam muitas vezes deprimidos por viverem isolados no meio delas e acabam por se irem embora.
- Já houve quem nos sugerisse que detém um apertado controlo sobre os homens... e sobre as suas minas.
- Oh, sim, é claro que o faço. - O sorriso afável alargou-se ainda mais, como que de satisfação ao ver que aquilo era o melhor que o almoxarife conseguia fazer. - Tenho de os controlar com vigor. Esses homens são um bando de brutos, almoxarife. Precisam de uma considerável... bom, digamos que "supervisão", está bem, almoxarife? Lá fora há muitos que não gostariam de ver o seu passado sujeito a um escrutínio demasiado atento. Estou certo que uma boa parte deles só veio para Dartmoor porque sabia que ficariam sujeitos às leis dos mineiros do estanho... e a salvo dos embaraços que deixaram para trás. No entanto, isso não significa que os conheça a todos pelos nomes.
- Quer dizer que tem homens fora-da-lei a trabalhar para si? - perguntou Simon com rudeza.
- Almoxarife, por favor! Espera que interrogue a todos os xerifes e magistrados desta terra a respeito do passado de cada homem que aparece aqui a pedir trabalho?! De qualquer modo, a maioria deles nunca voltará aos locais de onde vieram, pelo que se pode dizer que até estou a ajudar a Lei impedindo-os de continuarem a ser fora-da-lei! Enquanto aqui estiverem, a trabalhar para mim, não vivem nos bosques e não roubam os mercadores... se é que alguma vez o fizeram, é claro. Baldwin levantou-se e grunhiu:
- E esses três homens? Eram fora-da-lei?
- Não faço ideia. Não lhes perguntei - respondeu Smyth.
- É verdade que tem andado a tentar forçar o Smalhobbe e outros a abandonarem as charnecas?
- Forçar?- Fez uma pausa com a cabeça inclinada para um lado enquanto olhava para o cavaleiro como se tivesse ficado espantado.
- Sim, a expulsá-los à força das charnecas, por meio de ameaças e sugerindo que as esposas poderão ser violadas, ou que acabarão por ficar viúvas...
- Ora, francamente! Já tenho por aí muitas minas, não preciso de mais!
- No entanto, há um homem que foi ferido e que o considera responsável... e temos um outro que foi morto.
- Morto? - Baldwin pensou que o olhar que o mineiro lançou a George Harang não fora fingido. Havia ali uma surpresa verdadeira.
- Sim, um homem chamado Bruther - acrescentou Simon num tom seco.
- Quem foi que disse? O Peter está morto? - O mineiro ficou como que transido e olhava para eles com uma expressão de incredulidade.
- Foi assassinado - declarou Simon, - Alguém o enforcou. Tem alguma ideia sobre quem poderia desejar a morte do Bruther?
Smyth mantinha uma cara-de-pau. O almoxarife não podia saber a verdade, pensou. Se a conhecesse, aquela pergunta nunca teria sido feita. No entanto, houve uma interrupção antes que se conseguisse recompor para responder,
A porta abriu-se e Baldwin viu-se frente-a-frente com um par de mulheres. Uma delas era uma matrona alegre e satisfeita, talvez dez anos mais nova do que Smyth. O cavaleiro calculou, pelo sorriso da mulher, que deveria tratar-se da esposa do mineiro. Era baixa e roliça, com a pele clara e fresca que estava habituado a associar aos habitantes da charneca, mas sem nenhum vestígio da apatia que já vira noutros sítios. Tinha os cabelos pretos entrançados e enrolados por baixo de uma touca cuja severidade rígida contrastava com os sorridentes olhos castanhos.
A outra era uma mulher mais jovem, obviamente a filha. Tinha os mesmos cabelos escuros, bem como um sorriso radiante e quente que traía a vivacidade do seu espírito. Viu os visitantes e parou à entrada, mas depois virou os olhos para o pai e atravessou o salão na sua direcção. Baldwin pôde verificar que a jovem só deveria ter 15 anos, ou perto disso, uma vez que ainda conservava os movimentos de adolescente. Era esguia como um potro, mas sem o ar embasbacado por vezes tão evidente nas raparigas da sua idade. A jovem mostrava-se autoconfiante e o modo elegante e decoroso com que aproximou do pai, como que a flutuar, deixou bem claro que tinha a consciência de estar a ser observada por quatro homens. Baldwin reparou que a mãe também notara aquele comportamento. Soltou um suspiro, como se se sentisse levemente desesperada com um tal comportamento, mas depois sorriu quando olhou para o cavaleiro. Baldwin sentiu-se impelido a reagir também com um grande sorriso.
- Pai, prometeste ir dar uma volta a cavalo comigo, esta manhã. - A voz da jovem era profunda e contrastava com a sua figura delgada. Embora tivesse a sua atenção aparentemente pousada no pai, colocara-se a seu lado e virara-se com a mão no ombro dele, de modo a poder estudar os visitantes.
- Sim, mas neste momento estou ocupado, minha pomba - respondeu Smyth passando um braço em volta da cintura da jovem. Tirando isso ignorava e olhava atentamente para o almoxarife. Simon pressentiu que Smyth se estava a controlar com dificuldade, mas isso não constituía uma surpresa. Ninguém gostava de ser acusado de extorsão e assassínio num só dia, pensou.
- Vais demorar muito? - Agora, a jovem tinha os olhos postos em Baldwin, desafiadora, e o cavaleiro ficou sem saber se a pergunta se dirigira directamente a ele ou não. Entretanto, o mineiro grunhia qualquer coisa e dirigia-se a Simon.
- Quem podia querer o Peter morto? Olhe, terá de perguntar ao estupores de quem ele fugiu, os Beauscyr. Queriam-no de volta para evitar a fuga de outros servos da mansão e não faziam segredo desse facto.
- Por que razão o iriam matar?
- Como um aviso... para mostrar o que pode vir a acontecer a outros fugitivos. Enforcaram-no, não foi o que disse? Os Beauscyr devem ter querido que o castigo fosse tão óbvio quanto possível. Uma corda ao pescoço dá nas vistas! Terão alguma outra maneira de impedir a desagregação da sua mansão? Não podem permitir que os servos abandonem o trabalho e fujam quando lhes apetecer. A mansão precisa de homens.
- Sugeriram que pode ter sido o senhor quem o mandou matar. Por momentos não se ouviu um som, mas logo de seguida o servo do mineiro inclinou-se sobre a mesa por trás de Simon, com o rosto tenso e duro.
- Disseram uma coisa dessas? Atreveram-se a acusar o meu amo de...?
- Cala-te, George! - A ordem foi imediata e sem cedências. Simon viu que os olhos de Smyth se tinham tornado negros de fúria, mas a raiva desapareceu tão rapidamente como aparecera, deixando-o com um aspecto fatigado e estranhamente vulnerável. O almoxarife recordou-se de que aquele homem era já velho quando comparado com muitos outros. Quando voltou a falar fê-lo com uma voz mais lenta, mas a emoção ainda era nítida na precisão das palavras.
- Almoxarife, vivo aqui há muitos anos. Tal como já lhe disse, tenho de controlar um grupo de homens muito violentos. Já temos tido problemas, embora não muito frequentes, mas consegui sempre manter a paz, ao contrário do que já se passou noutros locais onde até os cavaleiros recorreram ao roubo. Estes últimos anos foram duros mas aqui, na charneca, conseguimos a sobrevivência das regras da lei. Se me passasse pela cabeça que foram homens meus quem matou o Peter Bruther... garanto-lhe que os obrigaria a pagar. Compare isso com o que se passa na família Beauscyr. Olhe para o velho tolo do Sir William e para os seus dois jovens cachorrinhos. Se quer encontrar o assassino... então só tem de se virar para essa família. Sir Robert de Beauscyr, muito em particular, é um...
- Pai, isso é injusto! - A explosão da filha apanhou-o de surpresa. A jovem rodopiou, libertando-se do braço que lhe rodeava a cintura. - O Robert nunca recorreria ao assassínio! - Cala-te, Alicia! - Smyth não levantou a voz mas o tom era gelado e zangado. - Os teus pontos de vista não são importantes e isto não tem nada a ver contigo. É um assunto sério. Alguém cometeu um assassínio e penso que pode ter sido o Robert. - Virou-se novamente para Simon enquanto a filha lhe lançava um olhar trágico e se dirigia para junto de George enquanto Smyth continuava; - Robert Beauscyr sempre teve uma faceta cruel e pode recorrer aos homens de armas do pai para o auxiliarem. Para ele, teria sido fácil ir até à charneca e matar o Bruther.
Baldwin tinha os olhos postos na filha do mineiro. Estava sentada ao lado de George, com os olhos fixos no pai enquanto o velho servo lhe dava pancadinhas nas costas com um rosto cheio de compreensão. A jovem parecia estar prestes a rebentar em lágrimas e o cavaleiro apercebia-se de que deveria haver algo entre ela e o herdeiro dos Beauscyr. As idades eram as apropriadas. O rapaz tinha um pouco mais de 20, a jovem estava pronta para casar aos 15 ou perto disso e muito provavelmente conheciam-se um o outro ao longo de quase toda a vida por morarem tão perto um do outro. Os restantes povoados ficavam distantes e não deveria haver muitos outros jovens da mesma idade por perto.
Simon estava a dizer:
- E o senhor? Onde estava na noite em que o Bruther foi morto?
- Eu? - A expressão de descrença apagou-se, substituída por uma outra, de raiva. - Aqui, almoxarife! Estava aqui! Se quiser verificar junto de uma testemunha independente... então pergunte a Sir William Beauscyr, que também se encontrava aqui, comigo. Agora, peço-lhe que me desculpe, mas tenho outros assuntos a tratar.
Encaminhou-se para a porta mas Baldwin interveio antes que se pudesse ir embora.
- Por favor, mais uma coisa, antes de sair. Se não levantar objec-ções, gostaríamos de ir ao acampamento, para perguntarmos aos homens se sabem o que aconteceu aos outros três mineiros. Seria bom que pudéssemos falar com eles o mais depressa possível, para confirmar a sua inocência neste assunto, ou para...
Thomas Smyth encarou-o com uma leve troça.
- Com certeza - respondeu. - O George leva-vos lá e certifica-se de que respondem às vossas perguntas. Não é verdade, George? - O homem desapareceu e a porta bateu por trás dele.
- George, há quanto tempo conheces o teu amo? - perguntou Simon num tom conciliatório enquanto desciam a vertente e se afastavam da casa na direcção sudoeste, a caminho do acampamento dos mineiros. Já haviam deixado o ribeiro muito para a esquerda e passavam por terras vazias onde o único som que se ouvia era o tilintar dos arreios dos cavalos.
Harang levantou os olhos desconfiados, com as sobrancelhas quase unidas numa única linha cor de areia. Ficou tranquilizado com a expressão de franqueza que viu e encolheu os ombros.
- Acho que há uns 17 anos.
- Foi nessa altura que chegaste aqui?
- Sim.
- E começaste logo a trabalhar para ele?
- Sim.
- Nunca mais o deixaste?
- Não.
As respostas taciturnas levaram Simon a hesitar. Olhou para Baldwin, que perguntou num tom tranquilo:
- Então, suponho que a Alicia nasceu algum tempo depois de começares a trabalhar para o Thomas Smyth, não é verdade?
- Sim.
- Ela deve ter... 15 anos? Ou 16?
- Quinze. Nasceu em 1303, em Maio. - Era a primeira vez que a voz se mostrava um pouco mais suave e o rosto do homem mostrou a força dos seus sentimentos pela rapariga.
- Parece uma rapariga inteligente.
- Sim, é esperta - disse Samuel para o cavaleiro, que agora se encontrava a seu lado. - Muito esperta e rápida. Lembro-me de que, quando era mais nova, só precisava de lhe dizer uma vez que espécie de pássaro ouvíamos a cantar e nunca mais se esquecia.
- É um prazer lidar com uma pessoa que aprende depressa, não é?
- Oh, sim, senhor! Para além disso, é quase tão forte como um rapaz. Cresceu aqui e conhece as charnecas tão bem como as pessoas conhecem as suas hortas. Por vezes sai sozinha durante horas, no seu pónei.
- É óbvio que gosta de Sir Robert Beauscyr.
- Por que diz uma coisa dessas? - As desconfianças voltaram a ensombrar o rosto de George.
- Não fez segredo disso no modo como saltou imediatamente em sua defesa, não foi?
- Bom... sim, eles conhecem-se - admitiu George, de má vontade.
- Não será... - Baldwin hesitou. - Quero dizer, acho que concordarás comigo se disser que esse tal Robert Beauscyr pode ser rico, mas não é o perfeito exemplo de um cavaleiro. Seria de pensar que ela o achasse demasiado aborrecido,..
- Foi o que também lhe disse, mas como ela é... - O rosto avermelhou-se-lhe e George calou-se.
- Talvez um pouco teimosa? Fiquei com a ideia de que sabe muito bem o que quer. - George lançou-lhe um olhar rápido. Sorriu repentinamente e confirmou com um aceno. - Ah, bem me parecia!
- Olhe, senhor... - disse George, descontraindo-se na sela - não se trata apenas disso. Se ela se tivesse virado para outra pessoa qualquer, tal como um agricultor, duvido que me pudesse queixar. Contudo, não confio nos Beauscyr. Conheci muitos senhores nos meus tempos e os filhos nunca são tão fortes como os pais, se é que me entende. Os filhos parecem sempre ser mais fracos, tanto na cabeça como nas armas. É como se ficassem com menos força. Creio que foi o que aconteceu com os Beauscyr. Sir William é suficientemente forte, não o discuto, e provou-o a combater pelo Rei. E quanto ao filho, Sir Robert...? Bom, tem miolos, mas usa-os todos para os livros e para a leitura, e isso não é natural. Não, não me parece uma pessoa certa...
- Uma pessoa certa para a Alicia, queres tu dizer? Ou estás a sugerir que seria capaz de matar? - Baldwin riu-se ao ver a expressão do homem. - Ora, vamos lá, George! Tal como disse o teu amo, Robert Beauscyr tinha boas razões para querer o servo de volta. Achas que o pode ter assassinado?
- Sir Robert Beauscyr a matar o Peter Bruther? - Ficou a pensar no assunto e continuou a cavalgar em silêncio enquanto analisava as implicações. Sabia que a família Beauscyr não tinha grandes razões para gostar de Peter Bruther, mas a diferença entre matar um homem e não gostar dele era muito grande. - Nunca me passou pela cabeça que ele o pudesse fazer... mas se tivesse consigo um grupo de homens prontos para cumprir ordens... então era capaz de lhes dizer que o fizessem.
- E que sabes do irmão dele?
- Esse?! - exclamou, como se cuspisse. - Se o Robert ficou com os miolos... então o John tem os músculos. É um daqueles homens que gostaria de ter sempre pela frente e nunca por trás. Contudo, não está interessado nas terras, anda sempre na companhia do seu cavaleiro, em busca de mais saques ou despojos. Pessoas daquele tipo nunca estão satisfeitas e querem sempre mais.
- Daquele tipo...? - Baldwin lançou-lhe uma olhadela mas George achou que já falara de mais, recusou explicar-se e manteve um silêncio reservado durante o resto da jornada. Felizmente, o local para onde se dirigiam não ficava longe e pouco depois já se encontravam no vasto planalto onde os mineiros tinham instalado o seu acampamento. George conduziu-os para a casa da fundição, onde existia um pequeno estábulo junto da grande roda d'água que girava lentamente. Deixaram aí os cavalos e dirigiram-se para a casa propriamente dita.
- Queriam ver isto da última vez que passaram aqui perto - disse George, fazendo sinal ao cavaleiro para entrar.
Baldwin descobriu que a fundição era tão quente como a casa de um ferreiro e que estavam dois homens de tronco nu a trabalharem na fornalha, cujas chamas enchiam a sala quadrada com um violento clarão vermelho quase sobrenatural. O ar estava tão seco e carregado de fumo de carvão que se tornava difícil de respirar depois da frescura da cavalgada. Para além disso, cada apertão do grande fole fazia com que a atmosfera parecesse lançar-se contra ele.
O edifício era uma construção simples, com duas salas, construído com pedras resistentes e turfa para impedir a entrada da chuva e dos ventos. Uma porta à sua direita levava a um armazém e a fornalha ficava na sua frente, engastada na parede. Parecia-se como uma série de pedras dispostas verticalmente, com uma largura máxima de 1,20 m. Para a esquerda ficava o grande fole, que era aparentemente propulsionado a partir do exterior pela roda d'água e que alimentava de ar o fundo da fornalha. Por detrás daquelas pedras, disse-lhe George, havia um grande pote de barro com a forma de um cone apoiado sobre a ponta.
- Enchemos o pote com camadas de carvão e de minério - explicou o homem quando lho perguntaram. - Os foles são necessários para que a fornalha aqueça o suficiente para fundir o estanho. Quando isso acontece, escorre para aquela cuba, no fundo. - Indicou uma pedra profundamente sulcada, por baixo da fornalha. - Depois só resta transformar o metal em lingotes e fica pronto para seguir para a cidade.
A temperatura era de facto extrema. Baldwin estava ansioso por sair dali embora lhe agradasse a ideia de ficar mais tempo para ver o que se passava na fundição.
- É fascinante - murmurou para Simon, no exterior, enquanto limpava o suor da testa - mas muito desconfortável!
- Aye... mas é muito bom quando a neve cobre a terra - afirmou George alegremente. Parecia ter recuperado o bom humor desde que entrara na fundição, pensou Baldwin, como um diabo friorento depois de receber um breve mas reconfortante calorzinho do Inferno.
- Podes mostrar-nos onde viviam aqueles três homens? - pediu Simon. - Aborrecia-o ter de ver as fornalhas, o equipamento e a restante parafernália dos mineiros. Para ele, era uma visão tão excitante como a do bacalhau a secar ao sol, embora fosse muito mais rentável.
George Harang encolheu os ombros despreocupadamente e conduziu-os para uma série de cabanas na extremidade sul do povoado. Parou junto de uma, fez-lhes sinal para entrarem e encostou-se à parede com toda a descontracção. Simon e Baldwin trocaram um olhar, baixaram-se para passar pela porta e entraram.
Tratava-se de um buraco miserável, com apenas três metros por dois metros e meio, que cheirava a urina e a fumo. Havia ali uma minúscula lareira com alguns raminhos e bocados de madeira queimada, e a seu lado via-se um molho de lenha. Para além disso, viram uma pobre enxerga que deixava escapar a palha do interior e que tinha a seu lado um saco de lona sobrepujado por um prato de madeira e por
uma caneca. Estava tudo coberto de fuligem. Tirando isso, o pequeno quarto encontrava-se vazio.
Lá fora, um estranho juntara-se a Hugh, Edgar e George. Era baixo, magro e tinha a pele macilenta e os olhos brilhantes típicos do excesso de trabalho. George apontou-o com um polegar.
- Era um amigo daqueles homens e costumava compartilhar a cabana com eles.
Simon verificou que o jovem estava nervoso, talvez por timidez.
- Gostaria de te fazer algumas perguntas a respeito do Harold Magge, do Thomas Horsho e do Stephen, o Crocker. Sabes onde eles estão?
- Não, senhor - respondeu o rapaz, abanando a cabeça com um gesto enfático. - Nem sequer os vi irem-se embora. Não estavam aqui anteontem quando vim dormir e nunca mais os vi.
- Dormiam sempre aqui?
- Sim, senhor. - O aceno foi tão pronunciado como a abanadela de cabeça e Simon começou a perguntar a si mesmo se o jovem teria a cabeça bem presa aos ombros. Se não tivesse, talvez ela acabasse por se soltar de um momento para o outro.
- Quando foi a última vez que os viste?
- Não sei, senhor.
- Mais ou menos, rapaz! Não precisas de nos dizer o momento exacto.
- Há alguns dias, senhor.
- Onde foi que os viste pela última vez?
- Não me lembro, senhor.
- Ora, de certeza que deves saber se estavam aqui, na cabana, ou se os vistes noutro sítio qualquer!
- Não sei, senhor.
Simon olhou-o e sentiu o exaspero a subir dentro dele até ao instante em que teve um relance do rosto de George Harang. Continuava encostado à parede, irradiava despreocupação e sorria-se para o mineiro... e o almoxarife compreendeu tudo.
- Obrigado - disse - foste-nos muito útil. - O homem afastou-se à pressa como uma lebre assustada. Simon virou-se e olhou para o amigo. - Creio que o George já desperdiçou demasiado tempo connosco, não achas? - Viu a incredulidade no rosto de Baldwin, pegou-lhe pelo braço e começou a dirigi-lo na direcção dos cavalos. - Vamos, sabes que temos de falar com os Beauscyr. ++O guia acompanhou-os até aos cavalos.
- Lamento que tenham descoberto tão pouca coisa - mentiu alegremente.
- Pois é... - retorquiu Simon calmamente. - Só mais uma coisa. - Onde estavas na noite em que o Bruther morreu?
- Eu?! - George. - Estava em casa do meu amo. Onde queriam que estivesse?
- Foi uma completa perda de tempo! - murmurou Baldwin, irritado, quando se afastaram do acampamento. Simon olhou-o e sorriu.
- Não inteiramente, Baldwin. Aprendemos uma coisa com a nossa visita: é óbvio que o George Harang e o Thomas Smyth não querem ajudar-nos a apanhar nenhum daqueles três homens. Sabem exactamente o que eles andaram a fazer e não querem que o descubramos... o que levanta algumas questões interessantes. Por exemplo, se Thomas Smyth está a esconder os homens ou a impedir-nos de os encontrarmos, será que sabia que eles iam para aqueles lados? Ter-lhes-á dito para irem? Será que lhes deu instruções para espancarem o Henry Smalhobbe? Se o fez, também lhes terá dito para irem ao sítio do Peter Bruther para o atacarem?
- Pelo seu aspecto... pode ter feito tudo isso - disse Baldwin, com olhos meditativos e semicerrados enquanto espreitava o horizonte. Simon acompanhou-lhe o olhar e viu um homem a conduzir um rebanho. O cavaleiro continuou; - Creio que o Smyth é capaz de tudo para obter o que deseja. Trata-se de um homem que montou aqui o seu próprio império e ninguém lhe pode dizer como deve ou não deve proceder. Tem um certo número de homens dispostos a fazer o que ele quer... e se aquele pobre desgraçado cheio de medo serve de exemplo, então são muitos os que o receiam. Tenho a certeza de que era disso que ele tinha medo, não achas?
- Sim, não tenho dúvidas. Foi por isso que pensei ser melhor irmo-nos embora dali porque não conseguiríamos chegar a lado nenhum... pelo menos enquanto o George Harang andasse por perto. Se quisermos respostas por parte dos homens de Thomas Smyth... então vamos ter de os afastar tanto do amo como do servo.
Foi com uma sensação de alívio que SirWilliam viu o pequeno grupo a afastar-se para ir à caça. Três dos camponeses seus dependentes tinham-se juntado aos filhos e a Sir Ralph. Os dois rapazes tinham passado o tempo a embirrar um com o outro quase desde o momento em que John aparecera. Embora tivesse orgulho em ambos os filhos, SirWilliam começava a ansiar pelo momento em que Sir Ralph e o filho mais novo decidissem ir-se embora para prosseguirem com as suas viagens no estrangeiro. Soltou um suspiro e regressou ao salão onde a esposa deveria estar à sua espera. Mattilida também começava a ressentir-se da tensão provocada pelas questiúnculas constantes e mostrava-se irritadiça.
Havia algo de errado com Robert, reflectiu. Em geral, o seu filho mais velho respondia de uma maneira pragmática aos problemas mas agora parecia incapaz de ver como evitar os conflitos... e na verdade até parecia procurá-los. No passado sempre evitara as discussões e preferira prosseguir com o trabalho mas agora, desde o caso do Peter Bruther e em particular após o regresso do irmão a casa, era como se tivesse ganho gosto pelas querelas. Sir William franziu a testa. Era quase como se o filho tivesse descoberto subitamente uma nova força de carácter.
Também o John se transformara numa pessoa diferente e era claro que uma boa parte dessa transformação se devia ao treino para guerreiro. Anteriormente fora apenas um simples rapazinho mas regressara como um homem e Robert tinha dificuldades para compreender esse facto. John passara a ter as suas próprias opiniões a respeito de um certo número de assuntos e já não se vergava aos pontos de vista do irmão. Isso acabara. Saíra de casa como um rapaz tímido e tranquilo, para regressar habituado ao trabalho e às dificuldades após seis anos de treino constante ao serviço do seu amo. Era um guerreiro confiante e tranquilo que vivera durante anos nos pântanos escoceses a combater os ataques nas fronteiras e que já vira demasiadas coisas para poder voltar ao seu antigo estado de obediência feliz que o fizera ceder constantemente aos desejos do irmão. Talvez fosse isso. Talvez Robert ainda não tivesse compreendido que John alcançara a maturidade, concluiu SirWilliam.
Trepou os degraus mas descobriu que os seus olhos eram atraídos para o portão principal como se tentasse ver atrás dele para observar os homens que se afastavam. Continuava inseguro a respeito de Sir Ralph. Não havia dúvida de que o cavaleiro lhe treinara bem o filho nas artes da guerra e da cavalaria. Vira inúmeros pequenos sinais disso, tanto no modo como distribuía dinheiro entre os guardas ou como se oferecia para dar esmola aos pedintes que apareciam à porta, mas principalmente no modo como manejava a espada. Fora impressionante, admitiu Sir William para si mesmo, mas também um pouco preocupante.
No dia anterior John mostrara-se rabugento, aparentemente aborrecido, e pedira a um dos guardas para praticar com ele. Um dos homens de armas, Ronald Taverner, deixara-se persuadir e tinham-se servido de pesadas espadas de treino, em ferro, com os gumes e as pontas embotadas. Para além disso, como protecção extra, tinham-se equipado com pequenos escudos circulares. A ideia fora manter John bem treinado, ou pelo menos assim o afirmara, mas Sir William fora aos estábulos para assistir e ficara surpreendido com algo que Sir Ralph dissera.
O cavaleiro juntara-se-lhe, pousara os antebraços no corrimão com um pequeno sorriso seco no rosto e Sir William dissera:
- É bom ver os jovens a trabalhar para conseguirem o seu melhor, não é verdade?
Sir Ralph olhara-o de relance e voltara a virar-se para os combatentes.
- Para poderem aprender, não seria preferível que os jovens escolhessem combatentes tão bons como eles, ou melhores?
Sir William ficara surpreendido e observara os dois homens. O significado do que o cavaleiro dissera fora óbvio, tal como ele próprio pudera verificar. Enquanto o filho demonstrara a sua habilidade, lançando a espada contra todos os pontos fracos do adversário tal como um bom soldado, o guarda mostrara-se menos seguro e muito abaixo do nível de John. Segurava bem na espada mas parecia não ter forças suficientes para a manobrar com eficiência. O seu escudo nunca era suficientemente veloz para aparar os golpes da arma do oponente e a lâmina não era rápida o bastante para tirar vantagem das abertas. Embora John tivesse conseguido fazer com que parecesse que se estava a esforçar, o esforço verdadeiro fora todo do outro lado.
- Sim, parecem um pouco desequilibrados... - comentara, e ficara surpreendido com a risadinha do seu hóspede.
- Mais do que um pouco. O John vai perder o interesse de um momento para o outro. Ah, aí está!
John hesitara, um dos pés prendera-se-lhe e fizera-o cambalear. O guarda atirou-se imediatamente a ele. Porém, logo que avançou, o escudeiro desviou-se para o lado e atingiu-o com o escudo, fazendo-o cair de joelhos. Antes de se conseguir mover jã a pesada espada descera e o homem caíra e rolara na poeira do chão agarrado ao pescoço enquanto John saltava por cima dele, atirava a espada para o chão e despia as luvas com gestos casuais.
- Pai, receio que o teu guarda não tenha percebido o meu pequeno truque. -Tinha os olhos parcialmente cerrados e SirWilliam não entendera muito bem aquela expressão. - De qualquer modo, aprendeu a não confiar num espadachim que tropeça.
- Precisavas de lhe bater com tanta força? Não havia necessidade... - Três homens precipitaram-se para a figura caída a ajudaram-na a pôr-se de pé enquanto Sir William olhava, espantado. Mesmo de pé, a cabeça do homem oscilava para um lado e para o outro como se tivesse o pescoço partido.
- Claro que havia - retorquira John, imperturbável. - Como poderia aprender se não se magoasse? Os cães e os servos, só aprendem as lições quando lhes batemos! Vai ficar bom, mas terá uma bela dor de cabeça durante um ou dois dias. - A seguir fitara Sir Ralph, que o enfrentara calmamente. - De qualquer modo, o importante foi ter vencido. Vencer é o que interessa quando se segura numa arma, não é verdade? Vencer e sobreviver.
- John, isso não é próprio de um cavaleiro. O que conta não é apenas a vitória, mas sim a honra do combate - protestara o pai.
- Talvez, pai... mas por vezes a honra não é importante - declarara John e Sir William ficara tão chocado perante aquele cinismo que se calara. John esboçara um encolher de ombros e afastara-se, deixando os dois homens a olhar para ele. Quando o levaram dali para recuperar também o homem ferido observou John a afastar-se e lançou-lhe um olhar de ódio.
Porém, pior do que o desagrado que sentira ante as palavras do filho fora o choque que sofrera ao ouvir o murmúrio do cavaleiro que se encontrava a seu lado.
- O seu homem deve estar grato. O John teria feito o mesmo se a espada fosse verdadeira e estivesse afiada.
Agora, um dia depois, Sir William ainda recordava a estranha tristeza na voz do cavaleiro do norte. Fora como se Sir Ralph tivesse, com aquelas palavras, confessado a si mesmo até que ponto treinara mal o escudeiro. Embora um guerreiro devesse ser resoluto e determinado nas batalhas, também devia ser leal, honrado e cortês, tanto para os que estavam abaixo dele como para os superiores. Contudo, o comportamento de John não revelava nenhuma dessas qualidades. Sir William estava certo que era por isso que Sir Ralph parecia tão infeliz, tão incomodado, como se tivesse compreendido pela primeira vez a verdadeira natureza do escudeiro que criara.
Um barulho para os lados do portão fê-lo levantar os olhos, novamente atraídos para a entrada. Eram o almoxarife e o amigo, que regressavam da visita a Thomas Smyth. A ansiedade invadiu-o enquanto os via a desmontar mas não havia nada que pudesse fazer. Em breve iria saber se Thomas lhes contara alguma coisa. De repente, endireitou-se. Sir Ralph podia ter outros motivos para a negra disposição do dia anterior, concluiu. Não se sabia a que horas morrera o Peter Bruther... e Sir Ralph podia pensar que John desempenhara um papel na morte do vilão.
Simon viu a figura do velho cavaleiro a subir as escadas lentamente e acenou na sua direcção.
- Os acontecimentos atingiram-no com força. SirWilliam parece mais velho do que quando aqui viemos pela primeira vez.
- Sim. Sente o peso da responsabilidade. É estranho como a morte faz com que um homem se recorde das suas próprias fraquezas... ou das da família, - Baldwin tinha um rosto pensativo e os olhos postos na porta agora fechada.
- Achas que o devemos deixar sozinho durante algum tempo?
- Bom, vamos ter de interrogar numa qualquer altura... e pode ser agora mesmo... - declarou Baldwin, encaminhando-se para o salão.
No interior, o velho cavaleiro e a esposa descansavam em frente do fogo. Simon pôde verificar até que ponto SirWilliam estava exausto quando o viu levantar os olhos para os quatro homens.
- Almoxarife, SirBaldwin.., Entrem e bebam um pouco de vinho.
- Obrigado - respondeu Simon, que se esticou para pegar na caneca e se sentou no banco. Baldwin instalou-se a seu lado enquanto Edgar e Hugh ocupavam lugares mais atrás, sem darem nas vistas.
- Tiveram uma manhã proveitosa? - perguntou Matillida com graciosidade e Baldwin sorriu-se para ela enquanto bebericava o vinho.
- Sim, muito... - disse. - Fomos visitar Thomas Smyth e o acampamento dos mineiros. Ah, diga-me, vimos um homem nas charnecas junto das minas, a conduzir gado. Há muitos a servirem-se das charnecas como pastos?
Sir William acenou uma confirmação.
- Sim, há alguns. As coisas já não são como eram antes da fome... Nessa altura tínhamos cinco mil cabeças ou mais, mas agora esse número está reduzido a metade... No entanto, ainda há agricultores que se servem dos seus direitos de pastagem. O homem que viram eram provavelmente o Adam Coyt, que vive para oeste daqui. Creio que passou toda a sua vida nas charnecas... e foi uma vida difícil. A mulher e o filho morreram-lhe e aguentou a pequena quinta sozinho desde esse momento.
- Deve ser duro para um homem como ele - comentou Baldwin. - Vê-se obrigado a trabalhar sozinho... e não tem ninguém a quem deixar o produto desse trabalho.
- Receio que isso aconteça muitas vezes. - Sir William suspirou.
- As charnecas são duras para todos os que escolhem viver aí. Para se ser um homem das charnecas é preciso ser tão duro como elas.
- Mas a sua mansão não é assim! - protestou Simon. - Tem êxito, com boas colheitas e um número crescente de cabeças de gado.
- Como almoxarife, Simon sabia-o porque via os registos da produção anual. Sir William lançou-lhe uma olhadela como se estivesse à espera de um aumento imediato dos impostos.
- Até agora temos tido sorte, almoxarife. Mais sorte do que outros... - admitiu, com esforço. - Deve estar satisfeito por ter dois filhos fortes a quem deixar tudo - prosseguiu Baldwin.
- Claro. Seria difícil se eu não tivesse herdeiros. - Sir William encolheu os ombros.
Baldwin não o fitou nos olhos.
- O Thomas Smyth não tem nenhum filho, pois não? Pode dizer-nos alguma coisa a respeito dele?
Sir William olhou para as chamas por instantes.
- Seria de pensar - afirmou, num tom seco - que viessem a descobrir tudo aquilo de que precisam da boca do próprio homem quando lá estiveram. De qualquer modo, não é daqui, como já devem ter adivinhado. Creio que veio de algures no norte e se mudou para esta zona em 86 ou 87. Claro que na altura era apenas um rapaz, mas muito entusiástico. Começou a extrair minério e teve sorte. São muitos os homens que trabalham durante anos sem descobrirem nada, mas ele foi um dos afortunados. Calhou-lhe um bocado de terra com uma boa quantidade de metal e foi astuto. Pôs outros homens a trabalhar para ele por um salário enquanto ia à procura de mais minério. Muito em breve já não lhe bastava encontrar mais estanho e tentou arranjar maneiras melhores e mais eficientes para o refinar. A maioria dos homens contenta-se em encontrar o estanho e fundi-lo uma vez, mas ele não.
- Fundí-lo uma vez? - repetiu Baldwin. Foi Simon quem respondeu enquanto pousava os cotovelos nos joelhos.
- Há uma primeira e uma segunda fundição, Baldwin. Os mineiros, quando encontram o minério, partem-no em pequenos bocados e derretem o estanho nos seus fogos. É a chamada "primeira fundição". Esse metal tem montes de impurezas por causa do carvão e de outras porcarias, pelo que tem de ser fundido novamente para produzir o "estanho branco", que já está ser suficientemente limpo para ser trabalhado na cidade.
- Compreendo. E o Smyth não se satisfez com isso?
- Oh, não - respondeu Sir William com um sorriso amargo. - Não era o suficiente para o velho Thomas. É demasiado esperto... e tinha de construir a sua própria fundição. Agora tem uma fornalha tão limpa que pode derreter o estanho mais depressa para o recuperar em maiores quantidades... e é tudo "estanho branco". Na prática, está quase completamente livre de impurezas. Consegue produzir toda a quantidade que quer, bem como fundir o metal dos outros homens. Cobra-lhes para se servirem da sua fundição e isso tornou-o ainda mais poderoso.
Simon não deixou escapar as implicações.
- Não gosta dele, Sir William.
- Não, não gosto. Não está certo que um homem como ele possa viver como um lorde. É apenas um membro da plebe... e nem sequer sabemos se é um homem livre. Pode ser um camponês fugitivo como o Bruther, alguém que conseguiu escapar-se para as charnecas. O facto de ter conseguido acumular muito dinheiro não o torna melhor.
- O mineiro disse-nos que o senhor estava com ele na noite em que o Peter Bruther morreu. Que estava lá a fazer, se o homem lhe desagrada assim tanto?
Sir William fitou-o com uma breve expressão de ira, que foi rapidamente apagada por uma espécie de aceitação fatigada.
- O senhor, para um hóspede, é muito inquisitivo, almoxarife - suspirou. - Não faz mal. Estive a negociar. Fui lá para chegar a um acordo, de modo a que não me dêem cabo das terras.
- Quer dizer que lhe foi pagar para não entrar aqui?
- Sim. Se não o fizesse, garantiu-me que organizaria um pequeno exército de mineiros para me tirarem a água, para cavarem no pasto e deitarem as árvores abaixo para o fabrico de carvão. No fim de contas, têm esse direito. Resolvemos o assunto com uma soma em dinheiro.
- Estou a ver. Os homens que encontraram o corpo tinham saído consigo, não é verdade?
- Sim... mas mandei-os embora quando fui falar com o Smyth.
- Porquê?
- Queria falar com ele sem as orelhas curiosas de dois homens de armas a ouvirem a conversa.
- Ficou a sós com o Smyth durante a conversa?
- Também lá estava o seu ajudante, o George Harang.
- Não tinha ninguém consigo!? - O espanto na voz de Simon era perfeitamente nítido.
Sir William levantou os olhos e fez uma careta.
- Quem queria que estivesse comigo, almoxarife? Um filho como o Robert, que odeia o facto de ter de negociar com um chantagista? Ou talvez John e o seu amo, que me acompanharam mas... Ah! Esses preferiam ter de cortar as suas próprias gargantas a negociar com um membro da plebe! Deixaram-me logo que cheguei à casa do mineiro. Enviei os homens de armas de volta a casa para não ouvirem o que eu discutira com o Smyth. Como poderia permitir que um dos meus guardas ouvisse uma conversa daquelas? Não teria de esperar muito para que toda a gente soubesse que eu, o senhor da mansão, estava a ser ameaçado por um vulgar mineiro e era obrigado a pagar. Que respeito teriam os homens por mim depois de ouvirem uma coisa dessas?
A esposa pousou-lhe a mão no ombro e William acalmou-se a pouco e pouco. Acabou por se recostar na cadeira, exausto. De certeza, pensou, que o almoxarife devia compreender a sua situação. Uma fortaleza como a dele dependia da força dos homens que se encontravam no seu interior. Se os guardas se sentissem inseguros a respeito do amo... poderiam desertar ou, pior ainda, decidir que estava demasiado velho para as suas responsabilidades. Os lordes fracos não viviam muito... porque havia sempre alguém pronto para organizar um motim entre os seus guardas. As coisas não eram como nos velhos tempos, em que os homens de honra trabalhavam para os amos durante toda a vida. Agora, castelos como o de Beauscyr tinham de se basear em contratados, em mercenários pagos. Era por isso que aquele seu castelo, tal como muitos outros mais recentes, tinham os dormitórios dos homens de armas separados dos aposentos onde a família vivia. No passado teriam dormido todos no mesmo edifício, mas os mercenários não mereciam grande confiança como guardas e não era invulgar que um lorde se visse forçado a combater contra os seus homens para defender a casa dos soldados que treinara para a guerra. O almoxarife também devia ser capaz de compreender aquilo, não era verdade? A esposa olhou para Simon com frieza.
- Não será suficiente que tenhamos de nos rebaixar em frente desse mineiro? Precisam de remexer neste assunto para nos embaraçar?
- Lamento, minha senhora, mas embora o Peter Bruther fosse apenas um servo, parece ter sido assassinado e temos de perguntar a toda a gente quem poderia ter estado envolvido.
- Quem podia ter estado envolvido? Está dizer que suspeita do envolvimento do meu marido? - Contraiu a testa de zanga e desprezo. - Não quero ouvir mais nada. senhor. São nossos hóspedes... mas não temos necessidade de dar ouvidos a insultos. Agora, preferia ficar sozinha. Por favor, deixem-nos.
Não se tratava de um pedido. Simon sentiu-se envergonhado e mais do que um pouco triste por ter perturbado a dama da mansão e conduziu os outros para fora da sala.
- Era assim que costumava sentir-me quando era um rapazinho e a ama me punha fora da sala por me ter comportado mal - murmurou Baldwin para o animar. Simon sorriu-se para ele com gratidão.
Logo que saíram, Matillida ajoelhou-se aos pés do marido e pousou as mãos no seu colo.
- Estás a ver como as cabeças deles funcionam? O estupor do Smyth já os tem do seu lado. Já ouviste falar na corrupção dos funcionários... Pois bem, é óbvio que o almoxarife pensa mais na sua bolsa no que na justiça! Tens de fazer qualquer coisa para que o Puttock compreenda que os mineiros que lá estão fora são um perigo!
Sir William tinha um aspecto velho e cansado. A mulher podia ver, pela primeira vez, o modo como os anos haviam imposto um fardo ao espírito do marido. Sir William pousou uma das suas mãos nas dela e a outra nos cabelos da mulher e esboçou um sorriso fraco.
- Pobre Matillida. Tudo o que pretendes é ver a família forte e em segurança... e só descobres ameaças vindas de todo o lado. Que queres que faça? Que mande assassinar o Thomas Smyth? Ou talvez que o faça torturar até admitir que matou o jovem Bruther?
- Não sejas estúpido. De modo nenhum! Não há dúvida de que precisamos de o manter connosco. Não podemos permitir que este caso ganhe demasiadas proporções e acabe por virar o Smyth contra nós. Sabes que o Robert tem os olhos postos na Alicia?
- O quê?! O meu filho quere-a? Mas se ele odeia o Thomas...
- Claro que odeia, mas isso não significa nada no que se refere à rapariga. Para além disso, seria boa para ele. É inteligente e deve trazer um bom dote.
O marido soltou uma gargalhada áspera.
- Um bom dote? Oh, sim, um dote muito bom! Será como receber de volta o nosso próprio dinheiro.
- Sim, marido, mas é melhor que volte sob a forma de um dote do que ficar perdido para a família para sempre. A rapariga daria uma boa esposa para o Robert, como já te disse... em especial comigo a ajudá-la e a treiná-la. Por isso, temos de garantir que o pai não se vira contra nós, não temos?
- No entanto, disseste que precisamos de levar o almoxarife a compreender até que ponto os mineiros são perigosos. Como poderemos...
- Temos de ajudar o almoxarife a perceber que é preocupante termos fora-da-lei e ladrões disfarçados de mineiros, é claro. Não pomos objecções à vinda de homens livres para trabalharem aqui, mas apenas aos bandidos e assassinos. Se lhes permitem que fiquem, será de surpreender que por vezes as pessoas acabem por ser mortas por eles? Claro que não! É esse o ponto em que deves insistir junto do almoxarife e do amigo. A sobrevivência já é suficientemente difícil,., e não precisamos de assassinos e de fora-da-lei a viverem por perto, num acampamento de mineiros.
Sir William levantou-se, suspirou, e olhou para baixo, para ela.
- Verei o que posso fazer.
- Tens de o fazer! Precisamos de manter o Thomas Smyth satisfeito para que encare com bons olhos o casamento da filha com o Robert. Para ele, esse casamento pode fazer muito sentido porque irá casar a filha numa boa família... e também será bom para nós porque poderemos aproveitar o seu poder e riqueza. No entanto, precisa de ser um pouco vergado. Tem de compreender que o seu poder termina nas fronteiras das nossas terras e que não deve tentar extorquir-nos mais dinheiro.
Sir William acenou e encaminhou-se para a porta. Contudo, a voz da mulher deteve-o antes de conseguir sair.
- Para além disso, se o almoxarife te der ouvidos talvez possamos quebrar para sempre o poder de outros mineiros como ele... e ganharemos o controlo sobre aquelas terras para nós mesmos.
Sir Ralph de Warton cavalgava lentamente com a mente concentrada na discussão entre Robert e John. Tinha perfeita consciência da facilidade com que irmãos podiam chegar a vias de facto. Não muitos anos antes fora ele próprio quem desembainhara a espada contra o irmão mais velho, e tudo por causa de uma aposta sobre o preço de um falcão. Não ficava chocado por ver Robert e John a embirrarem um com o outro - estavam apenas a agir tal como todos os irmãos, em todo o mundo -, mas achava que o grau de animosidade mútua atingia uma virulência surpreendente. Havia sempre correntes subterrâneas no tom de voz de qualquer deles logo que abriam as bocas. Robert, que era delgado, pálido e com um aspecto enfermiço, e portanto detestável sob o ponto de vista do cavaleiro, não deixava de ser leal e honrado, enquanto John era abertamente impertinente e insultuoso, sem mostrar qualquer consideração fosse por quem fosse.
Naquele dia, a sugestão de irem à caça fora de Sir Ralph. Achara que seria uma boa ideia afastarem-se da atmosfera claustrofóbica da mansão, para longe dos olhos cinzentos do almoxarife e das perguntas astutas do seu amigo de Furnshill. Sir Ralph antecipara uma cavalgada agradável numa zona tranquila do parque privado dos Beauscyr, onde poderiam lançar os cães atrás de um veado. Já se passara muito tempo desde a última vez em que pudera gozar uma caçada como um simples passatempo e não como uma tarefa necessária, pelo que a perspectiva lhe parecera atraente.
A realidade fora muito diferente. Tinham cavalgado para leste, para longe das charnecas propriamente ditas. Tinham encontrado alguns bosques espessos e os dois irmãos haviam começado a discutir quase imediatamente. Um deles - não sabia muito bem qual fora -, comentara a escolha do local da caçada feita pelo outro e Ralph vira-se, de repente, no meio de uma verdadeira batalha. Fora por pura autodefesa que se deixara ficar para trás enquanto os insultos e as pragas voavam de um lado para o outro e a paz desaparecera. Tinham descoberto um pequeno veado que tinham perseguido durante uns dois quilómetros, mas depois o rasto perdera-se e é claro que cada um dos irmãos dissera que a culpa fora do outro. Sir Ralph contivera a ira durante mais um quilómetro mas acabara por perder qualquer desejo de continuar com os dois e anunciara a sua intenção de voltar para trás. Recusara apressadamente qualquer companhia e virara o cavalo para oeste, ignorando a expressão de rogo de um homem de armas que também não queria ouvir mais discussões e desejava voltar para o castelo e para junto de uma boa caneca de cerveja.
Havia uma qualquer tensão entre aqueles dois jovens que não conseguia compreender e que lhe parecia ir muito para além das rivalidades normais. Talvez tudo se devesse, muito simplesmente, às invejas do mais novo. Na maior parte das famílias, John teria sido enviado para um convento em vez de ser treinado como guerreiro. Muito frequentemente, o segundo filho era desviado para a vida religiosa enquanto o mais velho prosseguia com a sua educação e treino como herdeiro. Contudo, naquele caso, tinha sido ao contrário. Robert, não obstante a pose e o comportamento orgulhoso, era mais apropriado para uma vida nos claustros, enquanto John era resoluto, forte e decidido. Teria sido um bom amo para a mansão, pensou o cavaleiro.
Já junto ao portão, Sir Ralph chamou o porteiro, desceu do cavalo e penetrou no pátio. Avistou o outro cavaleiro, o amigo do almoxarife, e ficou rígido. Endireitou os ombros e levou o cavalo para o estábulo.
- É uma boa montada - ouviu Baldwin dizer, Acenou e evitou o olhar do homem. Ter-se-ia virado para se afastar mas o cavaleiro de cabelos escuros encontrava-se demasiado perto para poder passar, pelo que se deixou ficar, a puxar pelas luvas.
Era uma indecisão dolorosa de observar, concluiu Baldwin. Sorriu, tentando parecer o mais amigável possível, o que só serviu para aumentar a ansiedade do homem. Baldwin afagou a garupa do cavalo e foi nessa altura que os seus olhos repararam na marca visível no exterior da coxa esquerda. Era um grande "M" parcialmente oculto pela sujidade. Olhou para o cavaleiro e notou-lhe o rosto inexpressivo e a pose tensa.
- Sir Ralph, não se preocupe - disse-lhe, num tom suficientemente baixo para o cavalariço não o poder ouvir. - O que se passa lá em cima, em Warbeck, não tem qualquer espécie de importância aqui em baixo. - Virou-se e foi-se embora, mas sentiu os olhos do cavaleiro postos nas suas costas durante todo o caminho através do pátio.
Simon encontrava-se a entrada da cozinha, com Hugh e Edgar a seu lado. O almoxarife e o servo bebiam de grandes canecas de cerveja que acabavam de lhes ser servidas.
- Outra vez a beber, Simon? A cerveja vai confundir-te o cérebro.
- Chegaste tarde - disse Simon, tomando outro grande gole. - O meu cérebro já está suficientemente confuso. Mineiros, cavaleiros, escudeiros, servos... Bah! Estamos a desperdiçar o nosso tempo! Não faço a mínima ideia sobre quem poderá ter morto o Bruther e nem sequer sei que tipo de homem era ele. Como poderemos descobrir quem o fez quando tudo o que temos é uma série de vagas sugestões de gente que não gostava dele?
- Tens razão - afirmou Baldwin, recebendo uma caneca das mãos do servo e estendendo-a para que lha enchessem. Contudo, tapou-a com a mão quando se encontrava apenas meia cheia.
- Obrigado. Sim, Simon, podes ter razão. Sabemos que o homem era um espinho para o seu amo, o velho Sir William, e também para Robert de Beauscyr. Thomas Smyth não gostava dele por ser um estranho e por não se vergar à sua vontade, pelo que pode tê-lo morto...
- Para além disso, pode ter sido morto pelo bando que espancou o Smalhobbe - interveio Simon. - Depois, também temos aquele cavaleiro... - acrescentou, apontando com o queixo para a figura alta que permanecia nos estábulos. - Não confio nele. É demasiado altivo.
- Sei o que queres dizer mas parece-me que poderei esclarecer algumas coisas a seu respeito muito em breve. Deixa isso comigo.
- E quanto ao outro irmão?
- Quem, o John? Quase não apareceu aqui nos últimos três anos, ou mais... Que motivos poderia ter para o assassínio?
- Há muitas razões para o assassínio, Baldwin. Talvez quisesse resolver um problema ao pai e ao irmão.
Sir Ralph acabara de emergir dos estábulos. Ficou parado a olhar para o pequeno grupo de homens, como que indeciso, mas depois começou a avançar para o salão. Baldwin levantou uma sobrancelha na direcção do almoxarife.
- Viste aquilo? Creio que teria vindo falar comigo se eu estivesse sozinho.
- Por que dizes uma coisa dessas?
- Estive a observar o seu cavalo, há momentos, e tinha a marca de um ferro na garupa.
- Ah, sim? Ora, são muitos os lordes que precisam de contratar guerreiros adicionais. É frequente fazerem isso, não é? Marcam os cavalos, para os poderem encontrar se forem roubados. Não é invulgar que um homem venda o cavalo e diga que lho roubaram quando acha que o amo não lhe está a pagar o suficiente e sabe que lhe darão outro. Para além disso, se os mercenários decidirem fugir antes do fim do contrato, as marcas são uma maneira fácil de os encontrar. Não é agradável, eu sei, mas há muita gente a fazê-lo. É outro hábito estrangeiro que estamos a adoptar.., - Simon, por favor! Não deves meter-te em grandes viagens, meu amigo, ou acabarás por ser linchado a poucos metros da costa em qualquer país estrangeiro! O importante é isto: conheces algum sítio onde marquem os cavalos com um "M"?
- Morethonhampstead? - O rosto de Simon contraiu-se enquanto tentava pensar em lugares distantes.
Baldwin riu-se e deu-lhe uma palmada nas costas que fez com que o almoxarife entornasse a maior parte da cerveja e soltasse um resmungo de desagrado.
- Simon, és precioso como guia nesta zona do país, mas conheces muito pouco do mundo. Quem, nessa pequena cidade, se iria preocupar com mercenários contratados? Dou-te uma pista: tenta muito longe, para o norte. Perto da Escócia, onde John e Sir Ralph estavam a viver...
Nesse momento ouviu-se um grito vindo do portão e houve imediatamente uma grande agitação de homens no pátio. Viram entrar a figura altiva de Robert de Beauscyr, logo seguido pelo irmão, que ostentava um grande sorriso. Os três homens estavam acompanhados por três cães de caça.
- Em vez de te gabares de saberes muito mais coisas do que eu, Baldwin, por que não vais falar com o Robert? - murmurou Simon. - Entretanto, trocarei umas palavras com o outro irmão. Tentaremos descobrir se sabem alguma coisa.
O cavaleiro concordou com um aceno e o almoxarife avançou casualmente para o escudeiro, que limpava o suor do cavalo. Entretanto, Baldwin seguia Robert até à outra extremidade do estábulo.
Hugh encarou Edgar.
- E que vamos nós fazer? - perguntou.
O homem de armas não tirava os olhos do amo.
- Não me parece que os possamos ajudar. Muito provavelmente, até seríamos empecilhos...
- Foi o que pensei. - Hugh arrotou, muito satisfeito, e estendeu novamente a caneca para que lha enchessem.
Baldwin aproximou-se no momento em que Robert Beauscyr observava um cavalariço a retirar a sela e os arreios ao seu cavalo enquanto fazia comentários secos a respeito da qualidade do trabalho do homem. Levantou os olhos rapidamente ao ouvir os passos do cavaleiro e pareceu aliviado ao ver quem ele era... ou não era.
- Foi uma boa cavalgada? - perguntou Baldwin num tom agradável.
- A cavalgada foi boa mas a conversa foi aborrecida. Muito aborrecida.
Baldwin apoiou-se num cavalete e cruzou os braços confortavelmente.
- As relações entre irmãos são difíceis. Achamos que devemos gostar deles, mas por vezes são impossíveis de aturar.
- Mostra-se tão superior... Não era assim antes de ter ido para o norte. Nessa altura gostávamos de conversar a respeito de tudo e apreciávamos a companhia um do outro. Contudo, agora, é sempre a mesma coisa: "Oh, vocês ainda fazem as coisas desse modo...", ou "Bom, é claro que no norte não tínhamos todos estes luxos..." e "Suponho que o facto de viverem no meio de lado nenhum os leva a fazer isso, mas numa companhia decente..." Dá-me vontade de lhe enfiar um pouco de bom senso na cabeça, à força...
O cavaleiro sorriu.
- Podemos escolher os amigos mas estamos agarrados à família - admitiu.
- Não por muito mais tempo, graças a Deus! Vai partir em breve com SirRalph e ficarei satisfeito quando se forem embora.
- Não seja tão duro para com ele, Robert. Ainda é muito jovem e aquilo acabará por lhe passar com o tempo... O problema está em que tem andado a combater na companhia de outros homens que respeita. Quando ganhar as suas esporas irá compreender que a vida não é assim tão simples. Neste momento, tudo o que sabe é que foi posto à prova na batalha e venceu ou que, pelo menos, não morreu. Porém, como cavaleiro irá descobrir que estar no comando não é assim tão fácil. Terá de enviar homens para a morte e a responsabilidade é pesada e irá torná-lo mais sóbrio...
Robert fitou-o e viu-lhe uma expressão distante nos olhos.
- Também combateu e conduziu homens? - perguntou. Baldwin como que despertou e esboçou um sorriso contorcido.
- Oh, sim, meu amigo. E vi-os morrer. Na época era muito parecido com o seu irmão, cheio de fogo e de bravura... e era também uma fonte constante de embaraço e dor para o meu irmão mais velho... que tinha a responsabilidade de proteger a mansão e a família enquanto eu gozava a minha liberdade. Creio que nunca compreendi até que ponto o trabalho dele era duro. Foi necessária a morte de uma cidade para me mostrar o que eram os verdadeiros deveres... e nessa altura já era demasiado tarde para lhe poder dizer qualquer coisa. Estava muito longe. Não se preocupe, o John acabará por se acalmar. Tornar-se-á melhor e sentir-se-á novamente orgulhoso e feliz por lhe poder chamar irmão... logo que ele se liberte da ânsia pelo poder e pelo dinheiro.
- Se alguma vez isso acontecer... - respondeu Robert, lançando um olhar azedo por cima do ombro, na direcção do irmão. - Agora, os cavaleiros que partem para o continente nem sempre voltam ricos, tal como acontecia nos velhos tempos em que se podiam conquistar reinos.
- Ainda há alguns que o conseguem - afirmou Baldwin tranquilamente. - Creio que será bem tratado enquanto estiver ao serviço de Sir Ralph. Aquele homem é muito astuto.
- É possível.
- Robert... - A voz de Baldwin ganhou um tom pensativo. - Sei que isto é aborrecido para si, mas tenho de lhe perguntar: que esteva a fazer na noite em que o Peter Bruther morreu?
O homem rodopiou para o enfrentar.
- Eu? Está com a intenção de me acusar?
Baldwin sustentou a mirada do homem em silêncio e Sir Robert acabou por baixar os olhos. Fez uma careta e encolheu os ombros.
- Suponho que tem razão. No fim de contas, tinha motivos para o odiar depois de ter fugido e de fazer com que a minha família passasse por tola. - Ficou a olhar para as botas. -Já sabe a respeito daquele estupor, o Thomas Smyth, e do modo como exigiu que pagássemos para o manter fora das nossas terras. Foi na tarde em que nos veio visitar e tivemos o resto do dia para pensar no assunto. Fez as coisas parecerem muito razoáveis, disse que tinha necessidade de mais água e que fazê-la vir das charnecas iria custar muito dinheiro. A alternativa, afirmou, era desviar os nossos ribeiros, porque isso lhe sairia muito mais barato. Porém, a seguir disse que se pagássemos a diferença, então podia dizer aos mineiros para deixarem a nossa água em paz e para a irem buscar mais longe. Foi pura chantagem, nada mais.
- Como reagiu o seu pai?
- O meu pai é um homem idoso. Está velho e cansado. Passou parte da sua vida a combater em muitas batalhas e ainda tem de enfrentar gente como o Smyth. Pensou que não tínhamos escolha. Bom... receio ter perdido a calma. Negociar com o Smyth era como regatear com um ladrão pela devolução da nossa própria bolsa! Vi que o patife ia conseguir o que queria e fiquei como louco. Deixei-os, por não querer participar numa negociação daquelas, e cavalguei até a taberna de Chagford.
- Aproximou-se do sítio do Bruther? Robert nem sequer hesitou.
- Sim. Passei pelas terras dele ao fim da tarde. Não o vi, nem a ninguém.
- Quando foi que regressou?
- Um pouco depois de escurecer. Estava furioso e precisei de muito tempo para me acalmar. A ideia de que o meu pai estava a desperdiçar os meus direitos de nascimento ao deixar escapar um servo e ao pagar aos mineiros... Bom, era melhor que me mantivesse afastado durante algum tempo...
- E como reagiu o John à proposta do mineiro?
- Como queria que reagisse? Ficou divertido quando ouviu falar no assunto. Quando o pai morrer, a propriedade será minha e não dele. Para ele, tudo o que prejudique a mansão fará com que eu pareça um tolo e isso agrada-lhe. - O tom de voz era amargo.
- Disse que não viu ninguém no sítio do Bruther? E noutros locais?
Robert franziu a testa e pensou durante um minuto.
- À tarde vi o Adam Coyt, um homem da charneca, a norte do Crockern Tor. Creio que estava a cortar turfa. Para além dele, só avistei mineiros.
- Onde? E a que horas do dia?
- Foi pouco depois de ver o Coyt. Caminhavam pela estrada e dirigiam-se para norte.
- Quantos eram? - perguntou Baldwin, tentando manter uma voz normal de modo a esconder a súbita tensão.
- Três. Afastavam-se do acampamento na direcção das charnecas. Não estavam muito longe do Coyt.
- Compreendo. - Baldwin acenou, a pensar. Havia algo de inseguro nas maneiras de SirRobert, pensou. Fez uma pergunta casual. - Esteve sozinho durante todo esse tempo?
- Oh, sim, todo o tempo.
Baldwin soube que o homem estava a mentir.
O sorriso de John alargou-se quando viu Simon a avançar para ele. Parou com as mãos no cinto, à espera.
- Então, almoxarife, já encontrou os homens que mataram o Bruther? - perguntou alegremente.
Simon lançou-lhe uma mirada ácida. Os modos fanfarrões do jovem eram tão aborrecidos como os do irmão mais velho.
- Ainda não, mas vamos descobri-los - retorquiu com secura.
- Ah, sim? -John desviou os olhos para onde Baldwin conversava com Robert. - E suponho que vão consegui-lo conversando com cada um de nós individualmente para não conseguirmos arquitectar uma história entre nós? Se assim é, chegou tarde. Estivemos completamente a sós durante algum tempo.., desde que Sir Ralph se aborreceu, creio que por causa das nossas conversas. Muito bem. Em que lhe posso ser útil?
- De certeza que o Peter Bruther foi morto por uma qualquer razão específica. Quem o poderia odiar o suficiente para o enforcar?
- É uma boa pergunta. Suponho que já conhece os suspeitos óbvios, o Thomas Smyth, os seus alegres companheiros, o meu pai e também, é claro, o meu irmão. Cabe-lhe fazer uma escolha entre eles.
- E quanto a si?
- Eu?! - A surpresa do jovem foi visível durante uma fracção de segundo e Simon notou-a. - Mas... Ah, almoxarife, penso que está com joguinhos... Que motivos podia eu ter? Não vou ganhar nada com a morte do Bruther. Era um aborrecimento para a família mas isso já não me diz respeito. A propriedade vai toda para o Robert e não tenho desejo de o ajudar removendo obstáculos à sua felicidade. Por que o faria?
- Está realmente zangado por o Robert ir herdar a propriedade, não está?
- É muito observador, almoxarife - afirmou John num tom seco. A seguir encurvou os lábios e prosseguiu com uma voz de desprezo: - O meu amado irmão é um escriba. É bom nos livros e nas contas. Suponho que é disso que a mansão necessita durante a maior parte do tempo... mas há ocasiões em que precisa de alguém com força. Ele não a tem... e eu tenho-a.
- Para manter os camponeses controlados?
- Essa é uma das questões - confirmou, com um aceno. - Porém, com os bandidos a tornarem-se num problema e com os fora-da-lei a atacarem lugares nas redondezas, acho que chegou a altura de tratarmos com dureza todos os que fomentam a discórdia. Estão preparados para dar cabo do equilíbrio do reino e têm de ser destruídos.
Simon observou-o. O rapaz sorria enquanto proclamava as suas curas para a nação como se ouvisse ali uma qualquer anedota que o almoxarife não conseguia compreender.
- Nesse caso, acha que os fora-da-lei devem ser perseguidos e mortos - comentou, - Oh, sim, almoxarife, tal como todos os que criam a desarmonia. Camponeses vulgares que se transformam em fora-da-lei, ladrões, assaltantes, cervejeiros que acrescentam água à cerveja, trabalhadores do estanho que misturam impurezas no metal.., e homens que não conseguem manter as suas propriedades em ordem. Não acha que são todos merecedores de uma corda?
- Incluindo os cavaleiros?
- Oh, não. - A expressão do jovem tornou-se séria. - Não podemos incluir um bom cavaleiro na mesma categoria dos restantes. Um cavaleiro é detentor de todas as virtudes principais, independentemente do resto. É a ordem mais elevada da terra, que combate pelo bem. No fim de contas, nas três ordens da sociedade, os cavaleiros, o clero e o povo, os cavaleiros são os mais importantes porque são os homens que têm de defender a ordem.
- Há quem diga que os clérigos deveriam encontrar-se na primeira ordem.
- Podem dar-nos indicações, e pouco mais. As cruzadas provaram-no. Os bispos e os seus homens demonstraram que deveríamos recuperar a Terra Santa, mas poderiam tê-lo conseguido sem os cavaleiros? Claro que não!
- Todavia... - a alma cristã de Simon começava a agitar-se - foram os cavaleiros que perderam a Terra Santa ao confraternizarem com os pagãos! Se eles...
- Se não tivessem sido mal conduzidos por outros, não é o que quer dizer? O Papa e os bispos cederam aos maus hábitos, não é verdade? Os Papas só se mostraram interessados nas sua própria riqueza durante demasiado tempo. Olhe para o Bonifácio... e para os boatos que dizem que se trata de um adorador do Diabo e da sodomia. Não admira que Deus tenha decidido que a Terra Santa nos devia ser retirada.
- Mas... isso não tem nada a ver com o assunto! Bonifácio só foi Papa anos depois da queda de Acre!
- Pensa que foi o primeiro debochado e herético? Não, essas coisas estão a acontecer há anos. Pelo seu lado, os cavaleiros foram sempre puros, porque o dever de um cavaleiro é buscar a honra e a glória nas batalhas. Cortesia, hombridade, generosidade... são esses os princípios que um cavaleiro deve seguir. Tudo o que um bispo necessita é de professar o seu amor a Deus para aumentar cem vezes a sua fortuna. É imediatamente considerado como sendo um homem santo... e as pessoas passam a ir ter com ele como carneiros para lhe entregarem o seu dinheiro.
- Tem uma visão muito cínica do mundo, John.
- Talvez. No entanto, pelo menos, o mundo não me irá desapontar. Já vi demasiadas coisas para confiar em alguém ou em alguma coisa para além de mim próprio e da minha espada.
- Se pensa desse modo, então acha que um servo fugitivo não tem qualquer importância quando comparado com um cavaleiro, e que deve ser morto por levar a vergonha à família de um cavaleiro?
- Ah, muito bem, almoxarife! - exclamou o jovem, deliciado. - Traz-nos de volta ao assunto e sugere, ao mesmo tempo, que eu podia ter um motivo para o assassinar! Não, receio que tenha de se virar para outro lado. Não me daria a esse trabalho por alguém que causasse dificuldades ao meu irmão. Porque o faria? O Bruther era um espinho nos flancos do Robert... e isso até me agradava.
- De qualquer modo, onde estava no dia em que o Bruther foi assassinado?
- Ah! Já perguntava a mim mesmo quando iria chegar aí. Bom, vejamos... Estive aqui durante quase todo o dia com Sir Ralph, a minha mãe e o meu pai. Por exemplo, assisti à discussão entre o Robert e o Thomas Smyth... e foi um embaraço ver o meu irmão a fugir de uma reunião como um garoto admoestado. Depois da refeição da tarde acompanhei o meu pai até à casa do Smyth. Sir Ralph também foi connosco. A propósito, o meu pai pagou ao mineiro o dinheiro que ele lhe exigiu. É chocante, eu sei, mas aconteceu.
- E ficou com o seu pai?
- Não. -John abafou um bocejo. - Sir Ralph e eu não nos queríamos ver envolvidos num assunto tão sórdido. Deixámos lá o meu pai e fomos até à estalagem Fighting Cock. Regressámos a casa um pouco mais tarde.
- Qual foi o caminho que utilizaram no regresso?
- Não passámos pela cabana do Bruther, se é isso o que quer saber, almoxarife. Viemos directamente para casa. - Sorriu, à espera da pergunta seguinte.
Simon viu, pelo canto dos olhos, que Baldwin se afastava de Robert. Concluiu que não valia a pena continuar a tentar interrogar o escudeiro. Era claro que John não estava preocupado com as suas perguntas. Ou então, se o estava, aprendera a escondê-lo muito bem, pensou Simon ao ver a expressão divertida do jovem.
- Não se preocupe, almoxarife, tenho a certeza de que irá descobrir o assassino - declarou John com um tom trocista.
Simon acenou, impassível, afastou-se e foi ter com Baldwin.
- Que tal o John? - perguntou o cavaleiro, espreitando na direcção do jovem por cima do ombro do almoxarife.
- Em resumo... insuportável. Se tornasse um pouco mais óbvio que me considera um parvo, ter-me-ia sentido com o direito de lhe bater. Fiquei com a sensação de que troça das nossas tentativas para descobrirmos o responsável pela morte do Bruther. Então e o Beauscyr mais velho?
- Oh, mostrou-se calmo e razoável... uma vez sem exemplo - disse Baldwin, divertido com a amargura na voz de Simon. Não tem um álibi para aquela tarde. Esteve fora, sozinho, durante a maior parte do dia. - Explicou o que Robert lhe contara, após o que Simon fez um resumo da sua conversa com John.
Para terminar, o almoxarife disse:
- Assim, pelo menos, parece que o John tem uma série de testemunhas. Sir Ralph esteve com ele, segundo afirmou. Isso significa que podemos confirmar o que o John me contou. Agora, creio que a personagem mais suspeita é o Robert, não achas, Baldwin?
O cavaleiro olhava para os dois irmãos.
- Suponho que sim - murmurou, meditativo. - No entanto, gostaria de confirmar as palavras do John. Talvez valha a pena cavalgarmos até essa estalagem para provarmos a cerveja.
- Irmão?
Na escuridão da noite, aquele chamamento suave e baixo fez com que Sir Robert rodopiasse já com a mão no punho da espada. Ouviu uma gargalhada seca e viu uma sombra a destacar-se da muralha junto dos estábulos. A fraca luz de um archote permitiu-lhe ver que se tratava do irmão, - Que queres? - rosnou.
O rosto de John mostrava-se ansioso.
- O almoxarife, ou aquele maldito cavaleiro, também te interrogaram hoje?
- Sim, e então?
- Acho que deves ter cuidado, mais nada. O almoxarife parece pensar que podes ter sido o assassino.
Robert sentiu as forças a esvaírem-se-lhe do corpo.
- E...? - perguntou, sentindo uma pontada de medo.
- Podemos estar em desacordo a respeito de muitas coisas, irmão, mas isto é importante. Foram os mineiros que mataram o Bruther, não tenho quaisquer dúvidas a esse respeito, mas parece que talvez tenham subornado o almoxarife - no fim de contas é ele o responsável pelos mineiros - ou que conseguiram fazer parecer que foi alguém daqui, da mansão. Não podemos permitir uma coisa dessas.
- Que sugeres?
- Este assassínio... deve ter sido cometido por aqueles três homens que atacaram o Smalhobbe. Que poderemos nós fazer para os encontrar? O Thomas Smyth é um malandro esperto e sem dúvida que os tem bem escondidos. É claro que se pudéssemos agarrar um deles para o obrigar a admitir o que fizeram ao Smalhobbe e ao Bruther, seria meio caminho andado para demonstrar ao almoxarife que estamos inocentes.
- Onde iria ele esconder três homens? - perguntou Robert, pensativo. - Na charneca não há muitos esconderijos... a não ser que os tenha no próprio campo dos mineiros...
Sir Ralph estava ansioso por se ir embora. A mansão só o brindava com perigos e sentia que tudo o que fizesse estaria sujeito a escrutínio. A única opção era partir e prosseguir a sua jornada. Aquele atraso forçado deixava-o receoso.
Escurecera havia pouco tempo e lá em cima. na muralha junto do portão, a paisagem parecia ter desaparecido, escondida pelo brilho relativo dos archotes e braseiros que iluminavam as muralhas. Envolveu-se na capa e olhou para sul com uma expressão sombria. Embora o seu coração continuasse no norte, onde nascera, sabia que tinha de partir e que precisava de o fazer o mais depressa possível.
Ouviu um ruído e espreitou para baixo, para o pátio. Viu John, o seu escudeiro, e Robert, o irmão, muito juntos ao pé dos estábulos. A porta do salão abriu-se e Sir Ralph reparou que os dois irmãos batiam rapidamente em retirada para a escuridão do interior dos estábulos. Ergueu uma sobrancelha, surpreendido. Por que estariam a ser tão sub-reptícios?
Avistou o cavaleiro alto junto à porta do salão e começou a compreender o desejo de obscuridade de John e Robert. A visão do almoxarife e do amigo começava a tornar-se maçadora... e preocupante. Estar tão perto da costa e da fuga e ter sido detido ali, nas charnecas, era tão frustrante como ser apanhado num cerco e a ideia de ter de falar com o cavaleiro, depois das leves sugestões daquele dia, era o suficiente para o deixar nervoso. Tinha a certeza de que Baldwin de Furnshill adivinhara mais do que deixar entender.
Havia um guarda no pátio e Baldwin desceu os degraus e foi ter com ele. O suave murmúrio das vozes dos dois homens ergueu-se até Sir Ralph no ar tranquilo da noite e o guarda apontou para ele. Sir Ralph continuava a olhar para baixo quando Baldwin levantou os olhos na sua direcção e sentiu o sangue a parar-lhe nas veias quando viu o cavaleiro subir as escadas para ir ter com ele.
- Sir Ralph, ainda bem que o encontro.
- Preparava-me para voltar para dentro. Está frio aqui em cima - respondeu ajeitando melhor a capa em torno dos ombros.. - Não lhe levarei muito tempo. Venha, caminhemos um pouco pela muralha.
Era impossível recusar-se àquela voz calma e séria, pelo que Sir Ralph acabou por se ver a caminhar ao lado do cavaleiro. Tudo o que desejava era paz e solidão para poder planear o seu futuro, e não a continuação de uma conversa oblíqua como a que já haviam tido naquele dia. Porém, para sua surpresa, Baldwin não queria que ele falasse.
- Servi num exército repleto de honras, sabe? - começou. Sorriu e olhou para a colina na frente da mansão. - Combati na última batalha de Acre, em 1291- Já foi há muito tempo, é claro. Na altura, tudo o que queria era uma possibilidade de ganhar fama, um desejo perfeitamente apropriado para um jovem cavaleiro, não é verdade? Contudo, mais tarde encontrei-me numa posição em que os meus compromissos foram postos em causa. É muito difícil quando se presta um juramento pelos mais honrosos dos motivos e acabamos por descobrir que fomos traídos. Foi o que me aconteceu.
Baldwin parou por cima do portão principal e soltou um suspiro. Anteriormente pensara que recordar o seu próprio passado seria uma boa ideia, mas agora pressentia o nervosismo e a desconfiança de Sir Ralph. Prosseguiu com um tom tristonho.
- Ainda acontece muitas vezes, é claro. Os homens juram lealdade e depois descobrem que os seus senhores não são honrados. Num caso desses, que deve um homem fazer? Ir-se embora e encontrar outro senhor? Ou esperar até ser liberto do seu juramento? É uma situação muito complicada.
Sir Ralph escutava-o e sentia-se apanhado numa armadilha. Gostaria de poder confiar naquele estranho. Havia integridade e compreensão nos seus olhos castanhos, uma bondade que em geral associava aos sacerdotes e que apelava aos seus próprios sentimentos de solidão e perigo ao ponto de lhe dar vontade de contar a verdade, de partilhar o seu segredo. Contudo, não se atrevia.
Tinha um aspecto macilento, pálido e doentio sob a luz oscilante-Baldwin mantinha-se com as mãos pousadas calmamente na muralha enquanto espreitava para o negrume, recordando o passado, como se se tivesse perdido nos seus próprios pensamentos e inconsciente da presença de .Sir Ralph.
- De qualquer modo... - continuou Baldwin - o que por acaso possa acontecer no norte não nos diz respeito aqui. Os pântanos andam sempre em reboliço e os homens têm de se defender quando os escoceses atacam. - Virou-se e encarou Sir Ralph com uma sobrancelha levantada enquanto estudava o cavaleiro com um ar duvidoso. - Toda-via, se um homem assassinasse alguém, isso era algo que eu já não podaria admitir. Se descubro que um homem assassinou alguém, tenho de me certificar de que é preso. Para além disso, se eu pensasse que sabia quem matou esse tal vilão, o Bruther, metê-lo-ia na prisão até ao julgamento independentemente de ser filho de um servo ou de um lorde.
- Está a acusar-me de ter morto o rapaz? Que motivos poderia eu ter para o fazer?
- Boa pergunta. Também me interrogo sobre os motivos possíveis - disse Baldwin, vendo a tensão na pose do outro. - Não, não estou a acusá-lo, Sir Ralph. No entanto, creio que sabe alguma coisa a respeito do assunto e gostaria que confiasse em mim. Talvez acabe por o fazer, com o tempo.
Sir Ralph desviou os olhos. Queria acreditar nas palavras do cavaleiro mas não podia falar. Era demasiado perigoso. Não era daquela área e não tinha ali família ou amigos com que pudesse contar para o protegerem.
Passado um instante, Baldwin suspirou. Não havia mais nada que pudesse dizer e a expressão determinada no rosto de Sir Ralph demonstrava a sua resolução em manter o silêncio. Baldwin virou-se para se afastar mas deteve-se momentaneamente quando olhou para o pátio interior. De que estariam eles a falar?, interrogou-se. Sir Ralph seguia a direcção do seu olhar e viu John e Robert perto de um archote preso num suporte de parede.
Novamente sozinho, Sir Ralph olhou para o sul. Para ele, era irrelevante que Baldwin se tivesse deitado a adivinhar ou não. O que interessava era o facto de estar informado a respeito do seu passado. Como o descobrira não era importante. O facto era... que sabia... e isso podia querer dizer que o almoxarife também sabia.
A ideia fê-lo estremecer.
Simon grunhiu quando se levantou do banco que lhe servira de cama durante a noite. No passado, quando fora mais novo e ainda não se habilitara ao privilégio de dormir num salão, passara frequentemente as suas noites em celeiros durante as viagens. Era preferível àquilo, pensou. Num celeiro ou estábulo havia feno e palha para fazer uma cama confortável, mas agora era um almoxarife e os anfitriões pareciam pensar que merecia a oportunidade de dormir no salão principal, num dos melhores bancos de madeira da família, Provavelmente, pensou, com um estremecimento, isso devia-se ao desagrado geral pelos almoxarifes.
Não seria de surpreender que se tratasse de uma qualquer espécie de castigo. Tentava comportar-se com hombridade, mas era verdade que existiam muitos almoxarifes com a fama de serem desonestos e corruptos. Mesmo entre os responsáveis pelas charnecas existiam alguns cujas acções eram, no mínimo, dúbias. Ouviam-se queixas regulares de pessoas que afirmavam que os almoxarifes capturavam homens do condado e os mantinham nas cadeias até pagarem um resgate, ou que os jurados eram forçados a tomar más decisões nos tribunais, em troca de dinheiro. Eram muito poucos os que confiavam nos almoxarifes das charnecas.
Espreguiçou-se e olhou em volta. Como de costume, Hugh ainda ressonava suavemente a um canto, junto à parede. Fosse onde fosse que dormisse, de manhã era sempre preciso o equivalente a uma carga de cavalaria para o conseguir acordar. Não havia sinais de Baldwin ou de Edgar. Os seus bancos estavam vazios.
Levantou-se, bocejou e aproximou-se da lareira. Os grandes troncos de madeira que a tinham alimentado na noite anterior estavam quase consumidos e teve de juntar alguns carvões ardentes e de soprar para reacender as chamas. Precisou de algum tempo e ainda estava agachado quando ouvíu a porta a abrir-se de repente. Sobressaltou-se, olhou em volta e viu Baldwin a entrar, com Edgar a apressar-se na sua esteira.
- Depressa, Simon, prepara-te para partir, já mandei que selassem o cavalo e preparassem comida. Não sabemos quanto tempo iremos demorar. - Deu um pontapé no banco onde Hugh continuava a dormir. - Malditos sejam! - exclamou.
- Em nome de Deus, que se passa contigo? - perguntou Simon num tom razoável, sorrindo maliciosamente ante a visão de Hugh, que fora acordado à força e tentara pôr-se de pé num salto sem saber onde se encontrava. Agitou os braços, deslizou para trás e desapareceu.
- Que se passa? Uma guerra, almoxarife! Aqueles loucos foram para o campo dos mineiros com alguns homens de armas.
- O quê? Quem?
- Acorda, Simon! Que diabo, dás cabo da paciência de um santo quando estás meio a dormir! Meteram na cabeça que os assassinos de Peter Bruther estão nos campos do Peter Smyth e foram procurá-los,
O rosto de Hugh reapareceu por cima do banco, com os olhos esbugalhados pelo alarme. Contudo, Simon não percebeu se era por causa da queda ou por pensar que tinha sido atacado.
- Hugh! Não fiques aí a olhar e despacha-te!
Meteram-se a caminho numa questão de minutos. Os cavalos já estavam prontos e à espera. Precisaram apenas de breves momentos para treparem para as selas, receberem as rédeas das mãos dos cavalariços, esporearem as montadas através do portão e cavalgarem pela charneca em direcção ao campo dos mineiros.
O Sol já ia bem alto no céu quando se aproximaram, com Simon a pensar no pequeno-almoço que deveria ter tomado se não fossem as estúpidas acções dos dois irmãos. Na mansão, pensava, meio sonhador, devia haver carnes frias da vitela que tinham comido na noite anterior e sentiu o estômago a resmungar ante a recordação. Baldwin colocou-se a seu lado e Simon fitou-o com acidez.
O cavaleiro, que exibia uma carranca séria, ignorou o olhar do almoxarife.
- O que é aquilo? Estás a ouvir? - Inclinou a cabeça para um lado e Simon imitou-o. Por cima do matraquear dos cascos e do chiar dos arreios era possível ouvir o vago som de estrondos e pancadas, como se estivesse ali todo um exército de ferreiros. Baldwin soltou uma praga por entre os dentes serrados.
- Deus do céu! Chegámos demasiado tarde!
Baldwin esporeou os flancos do seu grande cavalo, incitando-o, e levou a mão ao punho da espada. Só agora, que estava quase a chegar, se interrogava se teria sido boa ideia ir atrás dos dois irmãos e dos seus homens. Eram apenas quatro, uma força inadequada para separar as partes em conflito se houvesse uma batalha. Já tinha a espada solta na respectiva bainha e acabara de pegar novamente nas rédeas quando atingiram o alto de uma colina e avistaram o vale dos mineiros.
- Graças a Deus! - ouviu Simon a dizer e acenou para si mesmo. Não havia corpos caídos no chão e os dois lados ainda não se tinham lançado um sobre o outro.
A multidão era mais densa junto da casa da fundição e foi para aí que Baldwin dirigiu a montada. Precipitou-se pela pequena vertente e através do rio, com a água a espirrar dos dois lados, para se lançar sobre os homens que gritavam e praguejavam.
Baldwin berrou "Parem!" com toda a força dos seus pulmões, puxou pela espada e avançou para os mineiros. Agora já conseguia perceber a causa para todos aqueles estrondos metálicos. Não era o ruído das espadas a embaterem nas armaduras mas sim o das pedras que choviam sobre os escudos dos dois irmãos. Encontravam-se na frente da porta da fundição com três homens de armas a seu lado, enquanto os mineiros lhes atiravam pedras que iam buscar ao infindável fornecimento existente nas margens do ribeiro. Baldwin viu George Harang à frente do grupo de homens. Parecia estar a dirigir o ataque e a incitar os mineiros a continuarem.
Houve um homem que atirou uma pedra que foi ressaltar no escudo de John, fazendo-o cambalear e praguejar, mas foi a última. Baldwin surgiu no meio dos dois grupos quando a pedra embateu no alvo e gritou para o mineiro que a atirara enquanto o apontava com a espada.
- Eu disse para pararem! Arrancar-te-ei a cabeça se vir outro projéctil! Entendido?- O homem acenou, desorientado e surpreendido por ver um cavaleiro aparecer subitamente na sua frente. Baldwin certificou-se de que o homem lhe obedeceria e só depois rodopiou o cavalo para enfrentar os Beauscyr. Descobriu que Simon já se lhe juntara, com Edgar e Hugh de cada lado. O cavalo do almoxarife escarvava o solo enquanto Simon olhava para os homens com uma raiva perfeitamente visível.
- Então? Qual é a vossa desculpa para invadirem a propriedade alheia? - perguntou Simon com a voz tão gelada como um dos riachos da charneca. - São culpados de invasão da floresta do Rei, de ataque armado e de ameaças aos homens dos domínios do Rei. Que justificações podem apresentar? Robert? Fale!
- Queríamos apanhar o bando que matou o Peter Bruther...
- Oh? Quer dizer que agora já sabem quem o matou? John avançou com uma expressão de divertimento no rosto.
- Almoxarife, a culpa teve de ser dos mineiros. Estavam a ameaçar-nos, tal como sabe. Da extorsão ao assassínio vai apenas um pequeno passo!
- Isso é uma estupidez!
- Garanto-lhe que é verdade. Foi esse mesmo bando quem espancou os mineiros mais isolados. Então e o Henry Smalhobbe? Não merece protecção contra estes bandidos das charnecas? Ou não se preocupa com eles, almoxarife?
Simon, branco de fúria, estava prestes a lançar o cavalo para a frente mas Baldwin segurou-o pelo braço. A voz do cavaleiro era calma.
- John de Beauscyr, você é um tolo! Esteja calado! O almoxarife tem o direito de proteger os mineiros. Não apenas um mas todos! Está em falta só por ter vindo aqui, isto para não falar no facto de ter puxado das armas contra os que têm o direito legal de estar neste local. Lidaremos consigo mais tarde! Por agora, terão de ir connosco.
- E os nossos prisioneiros? - troçou o jovem.
- Quais prisioneiros? - perguntou Simon.
John desapareceu no interior da fundição. Ouviram um grito e uma praga. Momentos depois surgiram três homens, todos com as mãos ligadas, que pestanejaram perante a luz do Sol e se detiveram, inseguros, à vista dos quatro grandes cavalos que lhes bloqueavam o caminho. John seguia-os, descontraído, agitando a espada na sua direcção.
- Por ser para si, almoxarife, tenho o prazer de lhe apresentar os homens que o senhor queria conhecer: Stephen, o Crocker, Harold Magge e Thomas Horsho. Não nos vai agradecer por os termos encontrado?
- O senhor, almoxarife, é suposto ser o protector dos direitos dos mineiros! - rugiu Thomas Smyth. - Não está aqui para perturbar o nosso trabalho nem para apoiar os estranhos que decidem molestar os meus homens!
Baldwin e Simon tinham cavalgado até à casa do mineiro depois de Edgar e Hugh escoltarem os Beauscyr e os seus homens de volta à mansão, deixando para trás os três membros do bando. Teria sido impossível levar dali os três prisioneiros, facto que os murmúrios zangados da multidão de mineiros havia tornado bem claro, mas Simon falara com George Harang e este concordara, depois de alguns sinais de relutância, em manter os três homens sob guarda até todos terem falado com Thomas Smyth. O almoxarife persuadira-o que George seria considerado responsável pelos prisioneiros perante o magistrado de Lydford. Se escapassem, responderia por isso.
O almoxarife e o amigo deixaram-se ficar calmamente sentados enquanto o dono da casa trovejava, a andar de um lado para o outro como um urso numa jaula. Os olhos de Simon seguiam o mineiro mas este, por dentro, estava a ferver. Uma coisa era aproveitar-se dos Beauscyr, e outra muito diferente era mentir a um almoxarife do magistrado... pelo que preferia manter-se calado até conseguir controlar a ira. Pela sua parte, como não tinha de se preocupar com as imposições legais, Baldwin encontrava-se numa posição que lhe permitia gozar o encontro e fazia-o, observando a explosão de Thomas Smyth com um divertimento que não ocultava. Contudo, o divertimento de Baldwin não ajudava acalmar o temperamento de Smyth. Tinha um rosto tão sombrio como o céu durante uma tempestade e olhava com fúria para os dois homens. Pela sua parte, George Harang permanecia na frente deles com uma expressão de claro desprezo.
- Como podemos trabalhar no estanho do Rei se nos levantam obstruções? Se isto não é uma obstrução, então só Deus sabe o que é! Foi uma loucura deixá-los ir ao campo dos mineiros. Se eu lá estivesse, garanto que aqueles estupores não se teriam ido embora com vida! E deixaram-nos ir! Deviam ter sido presos imediatamente... por si, almoxarife! É para isso que o senhor cá está e é esse o seu trabalho. Se o senhor não o fizer... alguém terá de o fazer! Que impudência! Abriram caminho à força até à minha fundição, bateram em dois trabalhadores como se fossem um bando de fora-da-lei... e o senhor deixou-os irem-se embora! Sim, deviam ter sido presos, enviados para a cadeia de Lydford e detidos até ao próximo tribunal do estanho, que lhes teria arrefecido as ambições! Dois deles... acompanhados por homens de armas! Deus do céu!
Baldwin pensou que o homem estava a ficar sem invectivas. Smyth parou ao lado de George Harang e observou os dois homens sentados, mas a seguir captou a expressão no rosto do servo... o que só serviu para aumentar a sua fúria.
- E tu... tu podes deixar de te comportar como um advogado com um novo cliente! Se tivesses feito bem o teu trabalho, aquele campo estaria melhor defendido. Como foi que os patifes dos Beauscyr conseguiram lá entrar?! Como? Deviam ter sido visto a quilómetros de distância e detidos! Como podemos proteger o nosso estanho se os mineiros não montarem guarda à fundição e aos armazéns?
George oscilou. Já sofrera muitas vezes com a língua afiada do amo, mas daquela vez era muito pior. Nunca vira Thomas tão zangado, nem sequer nas alturas em que uma grande parte da zanga não passava de um espectáculo que se abatia sobre um dos homens por ter infringido as regras. Contudo, agora não se tratava de fingimento. Era a raiva feroz e crua de um homem que começava a sentir a corda demasiado esticada.
- Senhor, eu fiz o que...
- Cala-te! - Thomas virou-se novamente para Simon. - Então, almoxarife, que vai fazer a este respeito? Quero aqueles homens presos!
- Não.
- Não? Que quer dizer com isso?! Não faz ideia do que... Simon interrompeu-lhe a nova tirada.
- Não prenderei os Beauscyr nem os seus três homens. Vou interrogá-los a todos e não iniciarei nenhuma acção até saber o que na verdade se está a passar aqui. Tem havido muitos abusos da vossa parte e dos Beauscyr... e vou pôr fim a isso. O senhor vai acabar imediatamente com todas as tentativas para assustar as pessoas das charnecas. para ver se se vão embora...
- Atreve-se a dizer-me, a mim, o que devo fazer? - a voz do mineiro era agora mais baixa e tinha o rosto pálido como se o sangue lhe tivesse fugido das faces. - Atreve-se a dizer que vai interrogar os meus homens? Digo-lhe uma coisa, almoxarife: nunca ninguém teve a arrogância de me ameaçar na minha própria casa e se o senhor pensa que...
- Thomas Smyth, sou o almoxarife de Lydford, tal como o senhor mesmo salientou. Estou aqui sob as ordens do magistrado. Se presumir interromper-me nem que seja mais uma vez... prendê-lo-ei e atiro-o, a si, para a cadeia. Fiz-me entender?
Embora o tom de Simon fosse enganadoramente suave, Thomas teve consciência da força que se encontrava por trás daquelas palavras. Mordeu o lábio, furioso, mas depois encaminhou-se para uma cadeira e sentou-se, tenso. Ordenou ao servo que fosse buscar vinho e ficou a olhar para Simon.
O almoxarife devolveu-lhe o olhar sem vacilar e prosseguiu.
- Óptimo. Já tinha provas de que os seus homens espancam mineiros que se encontram legitimamente nas charnecas, de que o senhor extrai dinheiro aos donos das propriedades para se manter fora das suas terras... e agora descobri que me mentiu. Quando o interroguei sobre esses homens disse-me que já cá não estavam e que tinham desaparecido do acampamento dos mineiros. Porém, acabei de descobrir que os Beauscyr tinham razão para presumir que o senhor mentira, e que de facto estava a esconder esses homens no armazém da fundição. O senhor é culpado tanto sob as leis da floresta do Rei, como sob as leis do estanho. Contudo, antes que consiga resolver a confusão que o senhor mesmo criou, pretendo descobrir o que aconteceu a Peter Bruther e espero a sua total colaboração. Mandá-lo-ei prender imediatamente se sentir que não a estou a receber. Fui suficientemente claro?
- Está a soldo dos Beauscyr... - troçou o mineiro - e é por isso que não quer cumprir o seu dever!
Irado com a acusação, Baldwin fez um movimento para se levantar mas a mão de Simon segurou-o pelo braço e deixou-se ficar, afirmando:
- Isto está a tornar-se intolerável! Aqui o meu amigo tenta esclarecer um assassínio e vocês, bem como todos os outros que vivem nesta área, só querem argumentar a respeito dos antigos privilégios!
- Antigos, sim, senhor cavaleiro... mas importantes - rosnou Thomas, para logo se abater sobre a cadeira. Vira a ira do cavaleiro e isso fizera-o ter tento na língua. George regressara com um servo, um homem magro e de rosto cinzento, que trazia uma caneca e um jarro. Smyth suspirou, pegou no vinho que lhe era oferecido e só então compreendeu que não havia nenhuma caneca para os visitantes.
- Então e eles, estúpido!? Queres que bebam pelo jarro? - berrou, fitando o servo, que desapareceu rapidamente da sala. - Soltou um novo suspiro e esboçou um sorriso de desagrado. - Parece que o meu mundo se está a desmoronar,.. - murmurou. - Muito bem, acredito em si, almoxarife... e apresento-lhe as minhas desculpas. Faça o que tem a fazer. Que deseja de mim?
Simon estudou-o com um rosto impassível. Estivera perto de perder a paciência quando Baldwin saltara em sua defesa e sentia-se satisfeito por ter conseguido controlar a situação. Poderia conseguir muito mais com o mineiro do seu lado do que como inimigo... mas no entanto tinha a certeza de que havia ali algo de errado.
- Em primeiro lugar quero a sua autorização para falar com quem quiser no seu acampamento, quando eu quiser e sem interferências dos seus homens. - Levantou os olhos quando o disse. George Harang e o servo regressavam com mais canecas e um jarro.
- Muito bem. Estou de acordo, se isso ajudar a descobrir o assassino do Peter.
- Para além disso, posso querer falar com outras pessoas. A sua filha...
- A Alicia? Mas porquê? Ela estava...
- Porque conhece o Robert Beauscyr e mais nada.
- Está bem, mas estou certo de que não poderá ajudá-lo. De qualquer modo, no futuro não lhe permitirei que o volte a ver.
- Em último lugar, quero saber a que horas viu Sir William na noite em que o Bruther morreu.
- Estava aqui quando regressámos a casa - disse Smyth, olhando para o servo do vinho. - Tu! Quando foi que ele chegou?
A cabeça do servo rodou para eles. Era um velho, demasiado magro para ser saudável, e tinha cabelos cor de areia que se iam tornando mais pálidos à medida que se faziam grisalhos.
- Chegou ainda de dia, senhor. Trouxe-o para aqui para esperar e ficou parado no meio da sala a gritar por mais vinho de poucos em poucos minutos. Tive de voltar constantemente para lhe trazer novos jarros.
Simon acenou com desprezo.
- Sim, parecia já estar bêbedo quando cá cheguei.
- Onde esteve antes disso?
- Passámos a maior parte do dia com os nossos homens, inspeccionando o trabalho e o funcionamento da fundição. Ainda é muito recente e preocupou-me a possibilidade de não estar a funcionar correctamente. Foi por isso que lá estivemos durante a maior parte do tempo. Cheguei aqui depois e Sir William e sentámo-nos imediatamente, para comermos, mas ele não tinha fome. Creio que deve ter pensado que partilhar a nossa comida iria ferir demasiadamente o seu orgulho.
- Sei o que ele veio aqui fazer.
- Foi Sir William quem lho disse? - Smyth pareceu surpreendido.
- Não gostou de o fazer mas sim, foi ele. Presume que concordou com as suas condições?
- Sim... - confirmou Thomas, contraído - mas queria pagar menos do que lhe pedi e fui forçado a salientar que lhe podia evitar muitos problemas. No fim, acabou por concordar.
- Que espécie de disposição era a dele quando se foi embora?
- Não vou fingir que se sentia feliz, almoxarife, mas pareceu compreender que não tinha por onde escolher.
- Compreendo. - Simon bebericou um gole de vinho e perguntou: - O que pensa do Robert Beauscyr?
- É um impetuoso. Está tão interessado nos estudos que nunca pensa no resultado das suas acções - declarou Thomas com desdém. - O que se passou hoje é mais uma prova. Um outro qualquer teria pensado melhor neste ataque e ir-se-ia embora antes que os homens despertassem... mas teve de lá entrar no meio de uma barulheira tão grande que os acordou a todos. A seguir viu-se obrigado a lutar para se ir embora. Pura estupidez.
- Teria dito isso a seu respeito antes do que se passou hoje?
- Que quer dizer? Oh, suponho que... - O mineiro ficou a pensar por instantes. - Não, provavelmente não. Teria pensado que se tratava de um dos mais sensatos proprietários desta área por causa dos seus estudos. Não, tem razão. O modo como agiu hoje nem parece dele. Em geral, gosta de satisfazer os mineiros...
- E o John?
- Ah, almoxarife! Agora está a interrogar-me a respeito de uma pessoa que não consigo compreender! Estou certo de que o jovem John é um homem duro. Não me agrada nem confio nele porque quando fala parece ter sempre uma qualquer outra ideia diferente na cabeça. Ressente-se com o facto do irmão ser o herdeiro das propriedades e não se trata apenas de inveja. Acho que pensa, com toda a honestidade, que seria um melhor amo. Talvez o pudesse ser... Quando o deseja até consegue encantar as cotovias que pairam nos céus e sem dúvida que tem a capacidade diplomática para mentir sem deixar de parecer honesto.
- O Robert Beauscyr podia querer capturar o Bruther para o levar de volta para a propriedade. Talvez fosse capaz de o matar se o homem se recusasse - comentou Simon. - Tinha um motivo para o assassínio: acabar com um embaraço para a mansão e punir o que considerava ser um mero fugitivo. Todavia, não vejo qualquer motivo para que o John matasse o rapaz. Sabe de algum?
- O John? - Thomas franziu a testa, concentrado, e olhou para as profundezas das chamas. - Não, nenhum de que me consiga aperceber. Esteve fora demasiado tempo para se sentir insultado pelo Peter e não me parece que seja o tipo de rapaz interessado em ajudar o irmão.
- Quem mais poderia querer ver o Bruther morto? O ancião lançou-lhes uma olhadela de impotência.
- Não sei, almoxarife. Tanto quanto eu saiba, não havia ninguém por aqui que lhe quisesse fazer mal.
- Que sabe do Bruther? - Simon começava a sentir-se desesperado. - De onde veio ele?
- Era filho de Martha Bruther, uma viúva de Shallow Barton, uma pequena aldeia nos arredores de Widecombe. O marido era o velho Arthur Bruther, que morreu antes do rapaz nascer, pelo que ela teve de o educar sozinha, - O mineiro hesitou. - Nem sequer imagino que pudesse haver alguém interessado em matá-lo.
Simon reparou que havia uma aura de tranquilidade em volta do homem, tranquilidade que achou muito curiosa. Era um homem poderoso, que devia ser um duro amo para muitos dos mineiros, e não lhe parecia natural que sentisse tanta simpatia pelo morto, em especial tendo em conta que Bruther vivia numa parcela de terreno em que Smyth estava interessado. O almoxarife começou a interrogar-se sobre se aquilo não seria uma representação para seu benefício. Tinha a certeza de que Thomas Smyth era capaz de fingir tristeza. O mineiro voltou a encher a caneca, em silêncio, e tomou vários grandes goles enquanto olhava para a distância.
Baldwin inclinou-se para a frente.
- Acha que o Bruther podia estar envolvido em qualquer coisa ilegal? O roubo de gado, por exemplo? Poderá ter sido morto por causa de algum roubo?
- Não! - A negativa enfática surpreendeu o cavaleiro e fê-lo erguer as sobrancelhas. - Tenho a certeza de que teria ouvido falar nisso. Tomo conta de muitos homens e tento certificar-me de que respeitam a Lei. No caso contrário, teria o almoxarife a visitar-me de duas em duas semanas.
O cavaleiro acenou mas manteve os olhos fixos no mineiro enquanto Simon dizia:
- Não me parece que tenhamos mais perguntas para lhe fazer. Se se lembrar de alguma coisa, quero ouvi-la logo que possível. Agora, preciso de falar com a sua filha. Também tenho de a interrogar a respeito daquela noite.
- Mas... ela não pode ter visto ou ouvido fosse o que fosse. Esteve aqui durante todo o tempo...
- Pode ser, mas tudo é possível... e quero saber mais coisas a respeito de Robert Beauscyr. Também me pode ajudar sob esse aspecto.
Foi com má vontade que Thomas Smyth fez um gesto tenso para George Harang, que saiu da sala e regressou rapidamente na companhia da jovem. Baldwin sorriu. A velocidade com que ela aparecera e o rosto corado deixavam bem claro que estivera a escutar a conversa à porta.
Baldwin estudou Alicia e não teve dificuldades para compreender por que motivo Robert Beauscyr estava interessado nela. Tinha pose, talvez por causa da mãe. Era visível no modo como caminhava. O rosto, de modo nenhum tão pesado como o de Christine, exibia uma testa alta e uma pele macia, com olhos grandes e muito espaçados. Alicia avançou lentamente para o lado do pai e parou, desafiadora, mantendo o queixo levantado como se estivesse à espera de ouvir a sentença de um julgamento.
Simon começou a interrogá-la. Não tinha qualquer desejo de a perturbar. Um dia, a sua própria filha iria ser como aquela rapariga, oscilando na fronteira entre a adolescência e o estado adulto... e desejosa de a ultrapassar rapidamente.
- Minha querida, sabemos que o teu pai teve a visita de Sir William Beauscyr na noite em que o Peter Bruther morreu. Onde estiveste à tarde e à noite?
Alicia olhou rapidamente para o pai e declarou:
- De manhã fui com a mãe a Chagford mas regressámos a casa por volta do meio-dia. Quando o pai se sentou no salão, com Sir William, deixámos os homens sozinhos e fomos para os nossos aposentos.
- E ficaste lá toda a noite? Não viste ninguém?
- Não.
- Compreendo. Nesse caso, podemos continuar. O Robert Beauscyr é um dos teus amigos?
A jovem endireitou-se um pouco, como uma rainha altiva.
- Ele e eu conhecemo-nos desde que nascemos.
- Então diz-me: como descreverias o seu temperamento?
- O temperamento do Robert?! Oh, tranquilo. É sempre muito calmo e educado. É raro levantar a voz e são precisas muitas provocações para que o faça. Claro que também é corajoso. Pode não ter desperdiçado as suas forças em guerras distantes, o que aqui não tem qualquer significado, mas defende sempre todos aqueles que precisam de ajuda.
Baldwin esfregou a testa enquanto a ouvia e suspirou para dentro. Era aquele o problema quando se interrogavam os jovens a respeito dos seus pares. Descreviam-nos sempre como o Diabo em pessoa ou como perfeitos heróis. Nunca parecia existir um meio termo. Se havia alguma coisa a saber por intermédio das cuidadosas perguntas de Simon, então era o facto de que a jovem gostava de Robert. Trocou um olhar rápido com o almoxarife, que respondeu com um aceno.
- Muito bem, Alicia. Obrigado, foste-nos muito útil. Agora... - acrescentou, levantando-se - acho que temos de ir. Precisamos de ver outras pessoas e de falar com elas.
O almoxarife agradeceu a Thomas Smyth e à filha e os dois homens foram à procura dos cavalos.
- Baldwin... - disse Simon com um sorriso de lobo - creio que devemos fazer uma breve visita à estalagem Fighting Cock, não achas?
A estalagem constituiu uma agradável surpresa logo que lhes surgiu à vista. Tinha um grande bloco central um pouco afastado dos armazéns, dos estábulos e das cozinhas, e era toda construída em pedra. Porém, enquanto muitos outros edifícios pareciam deprimentes e acinzentados, aquele sítio brilhava ao sol. Para além disso, a julgar pelo número dos cavalos que esperavam no exterior, também fazia bom negócio.
Deixaram os cavalos amarrados nos anéis existentes na parede da estalagem e entraram. Era um grande salão, com o tecto suportado por enormes pilares que se erguiam como mastros de grandes navios. No meio havia uma lareira e as palhas que cobriam o chão tinham um cheiro fresco e perfumado que quase cobria o odor amargo da cerveja entornada. As janelas eram altas e estreitas mas iluminavam bem a sala.
Tal como esperavam, o sítio estava cheio. Baldwin avistou mineiros de rostos marcados instalados a um canto, um mercador com trajes vistosos, acompanhado por quatro servos, num grupo reunido em conferência junto da lareira, um cavaleiro com dois homens de armas, encostado à parede e a observar os outros com um sorriso trocista, um grupo de agricultores que se ria à gargalhada numa mesa, e dois homens idosos e de faces rosadas, sentados muito direitos e compostos como se as exibições barulhentas lhes desagradassem. No meio de tudo aquilo moviam-se três servas que circulavam elegantemente por entre os homens, carregadas com canecas e jarros.
Baldwin encaminhou-se para uma mesa que se encontrava vazia e fez sinal a uma rapariga pálida e bonita, com cabelos soltos, castanho-avermelhados. A jovem sorriu para ele, acenou e começou a abrir caminho no meio das mesas.
- Bom, Simon, precisamos de saber se Sir Ralph esteve aqui tal como disse o John, não é verdade? - disse o cavaleiro enquanto se sentava.
- Senhores?
Baldwin levantou os olhos e viu a rapariga a seu lado. Devolveu-lhe o sorriso, fez a encomenda e a jovem voltou a desaparecer no meio da multidão. Regressou pouco depois, carregada com jarros de barro cheios de cerveja. Pousou-os e Baldwin perguntou-lhe se lhes poderia dispensar um minuto.
- Ah, não, senhor! Há muita gente para ser servida. Tenho de continuar a trabalhar ou posso perder o emprego...
- Não te demoraremos - prometeu Baldwin. - Acontece que o meu amigo e eu conhecemos os Beauscyr, e o John disse-nos que esteve aqui com o seu cavaleiro, no outro dia...
- Sim, senhor. Entraram cerca de uma hora antes do escurecer. O John é bem conhecido nesta casa... - Surgiram-lhe covinhas no rosto e a luz brilhou, como que reflectida em flocos de ouro, nos seus olhos cor de avelã. Prosseguiu, feliz: - Não posso ficar parada. De qualquer modo, se ele recomendou uma de nós, deve ter sido a Molly e não eu. Sou a Alison. Posso pedir-lhe para vir ter convosco mais tarde, se o desejarem.
O cavaleiro ficou a olhá-la sem perceber.
- Oh! Eu...
Simon notou o embaraço do amigo e rebentou em gargalhadas. Baldwin ficara sem voz. A rapariga olhava de um para o outro e Simon debateu-se para controlar o bom humor. Por fim, conseguiu dizer:
- Alison, só mais uma pergunta: se o John esteve com a Molly, onde estava o seu amigo?
- O amigo? Oh, não me entenderam. A Molly esteve com o amigo dele. Naquele dia, o John não tinha disposição...
- Estou a ver. O amigo ficou cá muito tempo? - inquiriu Simon enquanto Baldwin se inclinava para a frente, atento.
- A maior parte da noite, senhor. - Os olhos da jovem saltaram para o cavaleiro com algum nervosismo. Sabia que a família Beauscyr era rica e poderosa e não gostava de ser interrogada a seu respeito.
- Então, o John e o amigo ficaram aqui até tarde? - perguntou Simon.
- Não.
- Como?
- O John não esteve cá muito tempo. Saiu quando a Molly levou o amigo... talvez para ir dar uma "voltinha"! - A jovem soltou uma risadinha. - Só regressou muito mais tarde. - Viu um homem a fazer-lhe sinais urgentes, deixou-os e abriu caminho por entre as pessoas.
- Patife! - praguejou Simon, esvaziando a caneca.
- Sim, isto muda um pouco as coisas, não é verdade? Se ela tiver razão, então os dois irmãos andaram lá por fora naquela noite.
- Sim e não teria sido difícil, para qualquer deles, apanhar e matar o Bruther...
- Pergunto a mim mesmo... Talvez estivessem os dois a tentar matar o Bruther... embora revelem todos os sinais de se odiarem um ao outro.
- Queres dizer que podem ter formado uma aliança?
- Bom, é possível. É óbvio que Sir Robert queria ver o servo devolvido ou punido, e não é impossível que tenha persuadido o irmão a ajudá-lo... salientando que a mãe dependia da estabilidade da mansão, por exemplo.
- Suponho que sim, mas não me parece plausível depois de ver como reagem um ao outro. Talvez o John tivesse as suas próprias razões para desejar a morte do Bruther?
- Sim,.. - A expressão de Baldwin traía as dúvidas. - Porém, parece-me um exagero pensarmos que ambos desejavam a morte do homem e que, por coincidência, foram à procura da vítima na mesma noite. Acho muito improvável. Deve haver uma explicação mais simples mas ainda não temos todos os factos. Bom, vamos embora. Quero ouvir o que aqueles três mineiros têm a dizer.
No acampamento dos mineiros encontraram um guarda baixo mas muito musculoso instalado à porta da fundição, com a espada desembainhada. Observou os dois homens com desconfiança quando os viu aproximarem-se e pareceu pouco disposto a desviar-se até ao momento em que Baldwin pousou a mão na própria espada e o olhou sem pestanejar. Passado instantes, o guarda encolheu os ombros com rudeza e deixou-os passar.
Os três mineiros estavam novamente no armazém onde se tinham mantido escondidos e permaneciam sentados, com expressões sombrias e pouco comunicativas. Lançaram miradas a Baldwin e Simon quando estes entraram mas não deram qualquer sinal de os reconhecerem.
Não fazia diferença porque nem sequer valia a pena tentarem falar naquele local. A roda-d'água rumorejava e chiava, os homens que trabalhavam contribuíam para o barulho ao baterem no minério - colocado em recipientes de pedra -, com as suas barras de ferro, a fim de o desfazerem para ser fundido na fornalha. Para além disso, também se ouvia o contínuo resfolegar do enorme fole. A sala estava abafada e repleta de um odor ácido que Simon já começava a reconhecer: era o cheiro metálico do estanho, o cheiro a dinheiro. Fez um sinal a Baldwin, que convidou os três homens a seguirem-nos para o exterior, onde o ar era mais limpo e podiam falar num ambiente livre do estrondear das máquinas e dos homens.
Os prisioneiros pestanejaram depois da escuridão do interior mas seguiram Simon e Baldwin para a margem do ribeiro. O guarda foi atrás do grupo, indeciso sobre se deveria permitir que os prisioneiros saíssem mas com pouca vontade de discutir o assunto com um cavaleiro.
Simon examinou os homens quando já se encontravam sentados a alguma distância da roda em movimento.
- Qual de vocês é o Magge? - perguntou.
Verificava que não valia a pena tentar assustá-los mais. O medo que sentiam era por demais evidente. Sabiam que as suas vidas corriam perigo. O modo como se tinham arrastado até ali dava a entender que tinham sido espancados. Simon iria falar nesse assunto quando voltasse a ver os irmãos Beauscyr. Na sua opinião, não havia desculpas para a tortura de prisioneiros.
Harold Magge levantou a cabeça como se esta fosse tão pesada como uma rocha assente sobre os ombros. Os seus olhos raiados de sangue, num rosto tão escurecido pelo sol como a terra escura que os rodeava, fitaram o almoxarife com uma imensa fadiga. Em tempos mais felizes, pensou Simon, e com uma caneca de cidra na mão, aquele homem com os cabelos cortados curtos e o restolho de uma barba grisalha a cobrir-lhes os queixos deveria mostrar-se tão alegre como um agricultor nascido livre. Agora tinha uma nódoa negra a manchar-lhe uma face, com os rebordos tingidos de um pouco saudável tom amarelo, e exibia vários arranhões no rosto. Dava uma sensação de grande tristeza e quase desespero.
- Sabem que são todos suspeitos de assassínio? Magge acenou lentamente e respondeu num tom cáustico:
- Sim. O nosso amo traiu-nos.
- Não são destas partes? - perguntou Simon.
- Não, eu vim do leste, do Kent. Estou aqui há 15 anos, a trabalhar nas minas. Fui leal ao meu amo durante todo esse tempo.
- Não duvido, mas precisamos de saber tudo o que se passou na noite em que o Bruther morreu. Já sabemos que atacaram outro mineiro. Porquê?
Magge suspirou, pegou numa pequena pedra, atirou-a ao ar, apanhou-a e voltou a atirá-la. Continuou a fazê-lo enquanto falava, sempre com os olhos postos na pedra e nunca no almoxarife.
- Aconteceu há alguns dias. O Thomas Smyth apareceu e pediu que eu fosse a Longaford Tor e levasse estes homens comigo.
- E ele, foi lá sozinho?
- Não, apareceu com o George Harang.
- Sai sempre daqui com o George? - inquiriu Simon. Os olhos mantiveram-se fixos na pedra que subia e descia.
- Sim. O George trabalha para ele há mais de 17 anos, ou pelo menos é o que afirma, o que quer dizer que chegou aqui um pouco antes de mim. Bom... pediu-nos para o ajudarmos a ver-se livre dos mineiros espalhados pela charneca, de todos os que não trabalham para ele.
- Tal como o Henry Smalhobbe e o Peter Bruther?
- Tal como eles - admitiu, mas depois apanhou a pedra e olhou para Simon. - Contudo, não nos pediu para fazermos fosse o que fosse ao Bruther. Na verdade, disse-nos para o deixarmos em paz.
- Disse-vos para o deixarem em paz? - repetiu Simon, sarcástico. - Suponho que queria sentir-se um santo ao deixar um homem à-vontade na charneca enquanto se livrava dos outros.
O mineiro pareceu não perceber a ironia do comentário. Continuou agarrado à pedra e declarou:
- Só sei o que estou a contar. Disse-nos para deixarmos o Bruther em paz. Queria afugentar todos os outros, mas não o Bruther.
- Muito bem. E depois?
- Já tínhamos passado algum tempo a tentar assustá-los, mas esses estranhos são umas pessoas esquisitas.,. - A voz era desdenhosa - e nenhum deles se quis ir embora. Foi esse o problema. O Thomas queria que se fossem e disse-nos que os espancássemos. Foi o que fizemos.
- Estiveram na mina do Henry Smalhobbe. - Não era uma pergunta e Magge esboçou um pequeno aceno antes de voltar a atirar a pedra. Aparentemente, a rotina de a lançar e de a apanhar acalmava-o. Simon achava o gesto irritante e ansiava por lha arrancar das mãos, mas a intuição fazia-o manter-se quieto e calado, à espera que o homem continuasse. Não precisou de esperar muito para que a sua paciência fosse recompensada.
- Estivemos lá. Encontrava-me no caminho, à espera dele, quando a mulher o chamou da cabana. - Falou sem expressão enquanto descrevia a curta emboscada. Explicou como Smalhobbe quase apanhara os atacantes mas fora traído pelo chamamento ansioso da esposa, como o tinham atirado ao chão e começado a espancá-lo. - Confesso que era um tipo duro - acabou por dizer, num tom meditativo. - Se fôssemos apenas dois, e não três, talvez tivesse conseguido enfrentar-nos. Assim, não teve grandes hipóteses porque o atacámos por todos os lados.
Simon acenou, meio divertido com o respeito relutante que o mineiro revelava para com o homem que havia espancado de uma maneira tão selvagem. Olhou para o amigo, ficou surpreendido ao vê-lo numa intensa concentração e a seguir percebeu o que despeitara o interesse de Baldwin. Era estranho que Henry Smalhobbe se tivesse mostrado tão habilidoso contra os seus atacantes.
- Mas ele lutava assim tão bem? - perguntou.
- Sim. - Não havia dúvidas na mente do mineiro. - Parecia um homem de armas bem treinado.
- E a seguir foram à procura do Peter Bruther?
Os olhos raiados de sangue fitaram-no com um clarão de ira.
- Não! Já lhe disse que nunca lá fomos. O Thomas ordenou que o deixássemos em paz e assim fizemos.
A seu lado, um dos outros prisioneiros, um homem magro e de mau aspecto, com uma rala cabeleira grisalha e olhos claros, levantou a cabeça e comentou com algum pedantismo:
- Por que não acreditam em nós? Por que o iríamos matar? Não tínhamos nenhum motivo!
- Cala-te, Stephen! - A seca ordem de Magge silenciou o outro e Baldwin estudou-o, com a testa franzida. Baldwin não duvidava que aquele Crocker era um homem fraco e sem carácter, capaz de obedecer a qualquer tipo de ordens, mas havia à sua volta uma sensação de injustiça que dava a entender que se sentia genuinamente magoado com a sua sorte.
- Muito bem - acabou Simon por dizer. - Portanto, negam absolutamente que tivessem algo a ver com o assassínio do Peter Bruther. Viram alguém nas charnecas, naquele dia... antes ou depois do vosso ataque ao Smalhobbe?
A pedra foi novamente apanhada e ficou na mão enquanto Magge se concentrava, com as sobrancelhas contraídas.
- Havia lá um par de homens que eu já tinha visto na mansão Beauscyr. Afastaram-se na direcção do bosque Wistman.
- Mais ninguém?
Os olhos raiados de sangue hesitaram.
- Não - murmurou. Baldwin e Simon perceberam que o homem estava a mentir.
- Por que haveríamos de fazer mal ao Bruther? - A voz de Stephen, o Crocker, era um lamento de infelicidade. - Perguntem ao Smalhobbe, que é capaz de o ter morto! Talvez quisesse as terras do Bruther e costumava ser um fora-da-lei, por isso...
- Como? - A cabeça de Simon rodopiou para fitar o homem enquanto fazia um gesto seco, ordenando a Harold Magge que ficasse calado. Magge olhou furioso para o companheiro mas manteve a boca fechada. - Como é que sabes?
- Vi-o! - Na voz do Crocker havia uma vaga de satisfação subjacente ante a reacção às suas palavras. - Pertencia a um bando que atacou um mercador lá para o norte, há mais de um ano. Foi aí que aprendeu a lutar, com um bando de assassinos.
Quando regressaram finalmente à mansão não precisaram de ir à procura de Sir Ralph. Ainda mal tinham acabado de entrar no salão e de se sentarem quando o cavaleiro entrou.
- Onde está toda a gente? - perguntou Simon, agitando a mão, num gesto vago, para a sala vazia.
- Lady Beauscyr foi descansar para os seus aposentos e Sir William saiu para ir à caça. Não estava muito satisfeito com os filhos, como devem imaginar. O Robert saiu e o John estava lá em baixo, nos estábulos, quando o vi pela última vez - respondeu Sir Ralph com os olhos postos em Baldwin. Parecia que o cavaleiro do norte estava interessado em falar com ele a sós, mas Baldwin não se sentia preparado para lho permitir. Fez sinal na direcção de um banco e pousou o queixo na mão.
- Foi apenas há poucos dias, Sir Ralph, que contei aqui a este meu amigo algumas novas que me foram transmitidas por um viajante. Acabara de chegar do norte, de junto dos exércitos que protegem Tynemouth, e tinha algumas histórias interessantes para contar sobre o que lá se passa.
Para Simon, foi como se o homem perdesse repentinamente todas as suas energias. Deixou-se cair no banco e fitou Baldwin com os olhos de uma lebre paralisada pela aproximação do caçador.
- Falou-me de um grupo de homens, cavaleiros e soldados, que se estavam a aproveitar dos problemas com os Escoceses para as suas próprias actividades, roubando e pilhando ao longo de uma vasta área enquanto o monarca está absorvido com outras questões. Uma situação desgraçada...
- Sim... - sussurrou Sir Ralph, perturbado, mas depois endireitou-se como se tivesse encontrado uma nova reserva de forças e de coragem, e enfrentou o olhar sério de Baldwin com resolução.
- Ao que sei, chamam-lhes shavaldores e percorrem a terra como soldados - disse Baldwin. Viu o aceno tenso e prosseguiu: - Eram conduzidos por dois homens, Sir Gilbert de Middleton e Sir Walter de Selby. Atacaram dois cardeais, Luke de Fieshi e John de Offa, que tinham sido enviados para negociarem com o monarca escocês. Não lhes fizeram mal, pois não? No entanto, tiraram-lhes os cavalos, o dinheiro e tudo o mais, pelo que foi um grave insulto ao Papa e uma ofensa para o monarca inglês, é claro.
O rosto de Sir Ralph já estava tão cinzento como as cinzas da lareira. Simon não sentia qualquer simpatia por ele. Os homens suposta-mente honrados, espalhados por todo o país, que haviam recorrido à violência nos últimos anos eram demasiados para que pudesse sentir algo mais do que desprezo.
- Isso foi no ano passado, é claro, em 1317. Desde esse momento, as acções de Sir Gilbert persuadiram todos os seus vizinhos de que era necessário detê-lo. Segundo sei, preparavam-se para atacar o seu castelo em Mideford. Pergunto a mim mesmo se estará a par deste assunto, Sir Ralph? Não? Se bem me lembro, também havia um cavaleiro na companhia de Sir Gilbert. - O tom vago na voz de Baldwin era enganador. Os seus olhos não revelavam qualquer perda de concentração enquanto fitava o homem que tinha na sua frente. - Creio que se chamava Sir Ralph. Sir Ralph de Oxham. Terá ouvido falar nele? - Não deu tempo ao outro para responder e prosseguiu: - Claro que tudo isso, aqui em baixo, não tem qualquer interesse. É irrelevante. Se um cavaleiro jura lealdade a um outro muito mais poderoso, então devemos homenageá-lo por não quebrar o juramento. É difícil condenar um homem que não quebra um juramento mesmo quando o seu amo decide tornar-se, por exemplo, num shavaldore. De qualquer modo, já temos problemas mais do que suficientes para mantermos a paz neste condado para ainda por cima nos irmos preocupar com os assuntos de outros que se encontram a muitas centenas de quilómetros de distância. No fim de contas temos de pensar neste assassínio, mesmo que se trate apenas da morte de um servo.
Sir Ralph soltou o ar lentamente, numa exalação que sussurrou através dos seus lábios contraídos.
- Sim - respondeu, num tom de infelicidade. - O assassínio é um crime muito mais grave, não é?
- Diga-me, Sir Ralph, foi a uma estalagem com o John na noite em que o Peter Bruther morreu, não foi? Estivemos hoje nessa mesma estalagem e uma rapariga disse-nos que passou a noite com uma delas mas que o John saiu para uma cavalgada.
- Saiu? Não, disse-me que tinha lá estado toda a noite... e vi-o na sala quando saí do quarto.
- Encontrou-o a dormir?
- Não, estava acordado, sentado junto da lareira.
- Já era de dia?
- Não, ainda fazia escuro e os galos não tinham cantado. - Nas mentes de Simon e Baldwin havia poucas dúvidas quanto à sinceridade de Sir Ralph. - Pensei que lá tivesse passado toda a noite. Pelo menos, foi o que me disse... Onde mais poderia ter estado? - De súbito, o rosto do cavaleiro tornou-se branco quando compreendeu o que acabara de dizer.
- Sir Ralph, ficar-lhe-íamos muito gratos se não mencionasse nada desta conversa ao John ou à família - declarou Baldwin num tom baixo. - O senhor não é estúpido e não preciso de lhe explicar o motivo.
- O cavaleiro voltou a acenar lentamente, com a mente a revolver a surpreendente revelação a respeito do seu escudeiro. - Agora, pode dizer-nos como ele era quando esteve consigo, no norte?
- Muito bem - concordou Sir Ralph. - Pareceu-me sempre corajoso e preparado para se colocar à frente de qualquer grupo de ataque, independentemente dos riscos. Também era brilhante e não um jovem burro como alguns. Era capaz de planear e organizar um ataque. Quanto às acções defensivas... era rápido a analisar a disposição do terreno e a saber aproveitá-la. Sabia como colocar os arqueiros e os homens de armas com eficiência. Tenho de afirmar que não havia melhor escudeiro enquanto eu estive... no norte.
- Era honesto? Diria que era uma pessoa honrada?
- Honrada, sim. Certificava-se de que um cativo era bem tratado até se obter um resgate. Que mais pode um soldado fazer? Não tenho consciência de que alguma vez tivesse maltratado um prisioneiro e tomava sempre boa conta deles.
- Não respondeu à minha primeira pergunta. Era honesto? Sir Ralph recordou os ataques, naquelas ocasiões em que o chefe,
Gilbert, os levara às aldeias e ao priorado. O entrechocar das armas, as discussões por causa dos despojos, o saque, as mulheres a chorarem perante a visão dos homens mortos... bem como o inevitável sorriso cínico no rosto do escudeiro quando este olhava para a sua parte dos lucros, ou quando jogava aos dados com outros soldados e acabava sempre por ganhar os despojos que tinham conseguido obter. Também se recordou do modo como John conseguia arranjar sempre comida às escondidas quando esses mesmos homens passavam fome, e do modo como lhes mentia, dizendo que também estava esfomeado.
- Não - declarou SirRalph com tristeza. - Não, agora que penso nisso... não me parece que fosse honesto.
Baldwin acenou lentamente. Era claro, pela expressão no rosto de Sir Baldwin, que o cavaleiro encarava o seu escudeiro sob uma nova luz.
- Penso... - disse - que devíamos ir procurar o outro homem de armas que estava com o Samuel Hankyn quando encontraram o corpo, para confirmarmos a sua história.
- Sim - respondeu Simon, com os olhos ainda postos no cavaleiro. - Como se chamava ele?
- Ronald Taverner.
O sobressalto foi bem visível. Sir Ralph estivera a estender a mão para o vinho quando Baldwin falara, ouvira o nome e quase atirara com o jarro para o chão. Ficou imóvel, a contemplar o jarro que tinha nas mãos como que para evitar os olhos do almoxarife, mas acabou por voltar a pousá-lo com todo o cuidado.
- O que foi, Sir Ralph? - perguntou Simon, com a voz a trair uma franca surpresa.
O cavaleiro virou o rosto para ele. Tinha uma expressão trágica, mas não pronunciou uma palavra, levantou-se e saiu rapidamente da sala. Simon e Baldwin ficaram a olhar um para o outro, espantados.
George Harang entrou no salão com todo o cuidado. Conseguira evitar o amo durante algumas horas indo até ao acampamento sob o pretexto de verificar o funcionamento da fundição, mas o recado do mensageiro não deixara margem para dúvidas.
- O senhor Thomas quer ver-te, George, e quer ver-te agora! Não me parece que esteja com disposição para esperar... - dissera o rapaz, com os olhos a revelarem a urgência da missão.
George interrogara-o durante o caminho do regresso e ficara a saber que Smyth quase não se mexera na sua cadeira junto à lareira depois do almoxarife e do amigo terem saído. O servo encarregue do vinho fora falar com ele, o amo berrara-lhe e a partir daí tinham-no deixado sozinho. Depois, após algumas horas, havia regressado subitamente à vida, rugira a pedir vinho e mandara chamar George.
George atravessou o pavimento até onde Smyth contemplava a pequena fogueira com uma das mãos a apoiar o queixo e a outra pousada sobre o flanco de um cão, e sentiu a sua ira a crescer. Aquele velho encolhido que ali se encontrava não era o seu amo. Thomas Smyth era um homem forte e corajoso, bem conhecido através da charneca. A figura que via na sua frente era a de um velho descaído na cadeira, fatigado e fraco depois de toda uma vida de luta.
- Senhor? Disseram-me que me queria ver - murmurou George, hesitante. Os olhos negros pousaram-se nele.
- Queria ver-te? - A voz de Smyth tinha um tom pensativo, como se estivesse a pensar em qualquer outra coisa, e George compreendeu que o amo não se sentia humilhado mas sim consumido pela raiva. - Claro que te queria ver! Quem mais poderia chamar? O almoxarife e o amigo... O que pensas deles?
- Não gosto do cavaleiro... mas o almoxarife parece-me sincero...
- Oh, sim, sincero... Mas poderemos confiar nele? Não tenho a certeza. Para começar, até que ponto conhece ele esta área? Não tão bem como nós, George. Para além disso tem estado sempre aqui, na casa dos Beauscyr, a ouvir as suas mentiras a respeito dos mineiros e de mim. Não gosto dele, não confio nele... e penso que os Beauscyr são capazes de fazer dele o que quiserem. Todos os membros daquela família nos querem ver fora das charnecas, têm o representante do Rei a viver na sua própria casa e vão pô-lo a pensar à maneira deles. De qualquer modo, não deve ser difícil de comprar. A maior parte dos almoxarifes vende-se por pouco...
- Acha que vai tomar o lado dos Beauscyr, senhor?
- Acho que temos de nos certificar de que não o faz. É preciso que não os percas de vista, George. Vê para onde vão e com quem falam, e depois veremos, está bem? - Desviou os olhos e ficou novamente a olhar para as chamas. - Creio que aquele almoxarife pode constituir um grande perigo para nós, uma verdadeira ameaça... e quero ter a certeza de que estamos em segurança...
Ronald Taverner jazia numa enxerga por baixo do salão, num quarto tranquilo onde poderia descansar. Samuel Hankyn encontrava-se ajoelhado a seu lado e ajudava-o a engolir pequenos goles de cerveja aquecida e adoçada. Observava o amigo com preocupação. Desaparecera o rapaz alegre que conhecia há tanto tempo e tinha ali um jovem pálido e nervoso, que se sobressaltava ao mínimo som. Samuel mordeu o lábio, zangado ao ver até que ponto o amigo se modificara. Simon e Baldwin entraram no quarto e Samuel recuou para a parede, lançando-lhes uma olhadela desconfiada.
Simon sentiu-se com claustrofobia no pequeno quarto. Para além de um banco já bem roído pelo caruncho e pelos ratos, não havia outro sítio onde se pudesse sentar. O almoxarife experimentou o banco, hesitante. Pareceu ser capaz de o suportar mas Baldwin preferiu ficar de pé. Seria demasiado perigoso pô-lo à prova com o peso de dois corpos.
Embora estivesse habituado a ver homens feridos, a visão daquela última vítima obrigou o almoxarife a uma careta de compaixão. Pelo aspecto, Taverner era pouco mais do que um rapaz, um homem jovem no final da adolescência, com uma desgrenhada cabeleira acinzentada por cima de um rosto estreito com uma testa alta. Os olhos escuros enfrentaram o almoxarife com uma expressão de excitação e os seus dedos delgados agarraram o cobertor velho e desfiado. Ronald Taverner não estava habituado a falar com autoridades.
- Que foi que te aconteceu? - perguntou Baldwin. Simon percebeu, pela voz do cavaleiro, que este também ficara chocado com o estado do rapaz.
- Magoei-me durante um treino, senhor.
- Como? - Baldwin não lhe via ferimentos visíveis mas a imobilidade da forma por baixo do cobertor revelava o grau do seu sofrimento.
- Foi quando estive com o John, senhor. Praticámos com espadas sem gume e ele apanhou-me no pescoço.
- Nesse caso, foi um acidente.
O almoxarife e o amigo viram o rápido olhar que o jovem lançou a Samuel. Simon inclinou-se para a frente.
- Foi um acidente?
- Oh, sim, senhor! - A voz do jovem era enfática mas o amigo fungou de desprezo.
- Samuel? - disse Simon, olhando para cima.
O homem não precisou de mais incitamentos. A injustiça do ataque começara por o chocar, mas depois a sua ira acendera-se e fora crescendo durante as horas em que se ocupara do companheiro.
- Não, senhor, não foi um acidente. Foi um aviso... - declarou, com amargura.
- Um aviso? - O tom da voz de Samuel levou-o a erguer as sobrancelhas. - Que queres dizer? Um aviso a respeito de quê?
- Vamos, Ronald, conta-lhe. Diz-lhe como aquele estupor quase te matou. Não lhe deves nada e podes fazê-lo.
Hesitante, e com muitos olhares para o amigo, Ronald falou-lhes da sessão de treino com o mais novo dos dois irmãos, como tentara atingi-lo, e como John tropeçara para depois o atingir no pescoço. Não tinha dificuldades para se lembrar. A recordação da agonia na sua cabeça, da dor intolerável, ainda estava demasiado viva. O rapaz estremeceu.
- Disse que foi apenas para me ensinar, senhor - concluiu, num tom tristonho.
- Deixa-me ver - exigiu Baldwin, que se aproximou do leito rudimentar e se ajoelhou. Examinou o pescoço negro e inchado durante um instante antes de ajudar o jovem de rosto branco a deitar-se outra vez. A seguir fitou o almoxarife com uma expressão de fúria gelada.
- Isto é ridículo! É um ferimento demasiado sério para uma sessão de treino! Aquele maldito John deve ter tentado infligir-lhe o máximo de dor... e este rapaz podia ter morrido!
- Que estava ele a tentar ensinar-te, Ronald? - perguntou Simon, inclinando-se para a frente.
- Eu...
- Diz-lhes, Ronald. Agora já não vale a pena ficares calado. Podem mandar-nos embora mas, ao menos, estaremos vivos. Acabará por te matar se voltar a fazer-te isto. Queres acabar como o pobre do Peter Bruther? - A voz de Samuel traía a sua frustração.
- Bom, senhores... foi para me impedir de dizer fosse a quem fosse que eu e o Sir Ralph encontrámos o Peter Bruther na charneca um pouco antes de o terem morto...
Simon escutou a história e o seu rosto contraiu-se num trejeito de perplexidade. O rapaz terminou e afundou-se novamente na almofada com um gemido, logo seguido por um estremecimento quando tentou ajeitar-se numa posição mais confortável, e Baldwin e o almoxarife trocaram um olhar intrigado.
- Diz-me, Ronald - pediu Simon depois de um minuto ou dois de reflexão - tens alguma ideia sobre por que razão o que acabaste de nos dizer levou ao teu espancamento?
- Não, senhor... a não ser...
- Foi porque o John e o amigo mataram o Bruther - declarou Samuel de rompante.
Simon estudou-o.
- John e Sir Ralph?
- Vimo-los a saírem daqui juntos e voltaram juntos. Devem ter sido eles quem matou o Bruther. Depois, o John magoou o Ronald para o impedir de falar. Talvez até tivesse tentado matá-lo...
- Ora, vamos lá, isso...
- Que outra razão teria? Quiseram que ele mantivesse a boca fechada.
- Ao que parece, Sir Ralph passou toda a noite na taberna, na companhia de uma mulher... - interveio Baldwin tranquilamente. - Não podia ter morto o Bruther.
- Uma desavergonhada de uma taverna? Se lhe pagaram o suficiente até é capaz de dizer que passou o ano inteiro com ele - troçou Samuel. - Essas mulheres das tabernas só querem dinheiro. Está a dizer-me que a considera honesta?
- Contudo, se estiveres certo... - disse Simon, paciente - não percebo por que razão pensas que mataram o Bruther.
Samuel afastou-se da parede com um movimento rápido. Custava-lhe a acreditar que o almoxarife fosse tão ingénuo.
- É óbvio! Esse Sir Ralph não aceitou ser insultado por um servo fugido e voltou lá com o escudeiro para matar o Bruther por causa da sua insolência! Não queriam que ninguém ouvisse falar no assunto e tentaram evitar tudo o que os pudesse ligar ao Bruther. Foi por isso mesmo que tiveram de impedir quaisquer boatos a respeito do encontro na charneca porque revelariam que Sir Ralph queria o Bruther morto! Um cavaleiro nobre a bater em retirada com o rabo entre as pernas! Não é razão mais do que suficiente?
- Não pode ser! - protestou Ronald, fazendo gestos fracos com uma das mãos. - Foi sempre bom e generoso para mim, o contrário dos outros, No fim de contas...
- Sei de tudo isso - declarou Samuel rapidamente e Baldwin olhou-o com interesse. Sentia que a interrupção fora demasiado apressada, mas o homem de armas enfrentou a sua mirada sem vacilar. - Não havia lá mais ninguém. Quem mais o poderia ter feito? Se tiver razão e essa mulher estiver a dizer a verdade, então talvez o cavaleiro tenha estado na taberna nessa noite, mas... E o John, também lá esteve? Pode ter pensado que um insulto ao seu amo também era um insulto a ele próprio.
Simon e Baldwin saíram do quarto pouco depois. Não havia ali mais nada para aprender ou, tal como o cavaleiro admitiu alegremente para si mesmo, não havia mais nada que os dois homens se sentissem preparados para divulgar. Quando falou fê-lo com um tom baixo e cuidadoso por causa dos servos que corriam de um lado para o outro. O almoxarife estava mergulhado em pensamentos e teve de lhe pedir para repetir a pergunta.
- Perguntei: o que pensas de tudo isto, Simon?
- Faria sentido, não achas? - murmurou Simon. - Se não soubéssemos que Sir Ralph estava na taberna naquela noite, e se o que Ronald nos disse é verdade... então os dois homens são os suspeitos ideais. Pela minha parte, considero que os filhos dos Beauscyr são capazes de tudo!
- Simon, Simon! - exclamou Baldwin, rindo-se. - Pensas que o John matou o Bruther por causa do insulto ao amo? Não achas que isso seria um pouco de lealdade a mais? Pelo que vi do John, não me parece que seja assim tão dedicado a quem quer que seja!
- Pois não, tens razão. Tem demasiada autoconfiança para se preocupar com o que possam dizer a respeito do seu amo. Para além disso, não se preocupa nem com a propriedade, nem com o irmão.
- Reparaste como o Samuel calou o amigo? Samuel obrigou-o a calar-se quando o Ronald estava a dizer que SirRalph era melhor do que os outros.
- Sim, mas não faço ideia sobre o que o rapaz iria dizer. Talvez possamos interrogar o Taverner a sós...
Baldwin abanou a cabeça.
- É demasiado tarde. Pelo modo como os dois se comportaram, diria que o Samuel é o mais forte... e não queria que o outro divulgasse qualquer coisa. Neste momento, é provável que Ronald já tenha sido persuadido a calar-se. Vai obedecer ao Samuel, Em quem mais poderá ele confiar, aqui na mansão, depois de ter sido magoado daquele modo?
- Será possível que tenham visto o John? Seria isso o que o Samuel estava a esconder?
O cavaleiro encolheu os ombros e contraiu a boca num crescente de descrença.
- Não faço ideia. De momento parece que temos fartura de pessoas que não gostavam do Bruther... mas nenhuma a quem possamos apontar o dedo. Começo a interrogar-me sobre se viremos a descobrir mais alguma coisa, a não ser que o Samuel decida abrir-se connosco.
- Baldwin fez uma careta. - Vejamos as coisas de outro modo: quem estava nas charnecas naquela noite e tinha uma razão para querer o Bruther morto?
- Sabemos, pela rapariga, que o John saiu da estalagem. Podia ter-se juntado ao irmão nas charnecas para cometerem o crime.
- Sim, teria sido possível... mas os dois quase não falam um com o outro sem entrarem imediatamente em discussões...
- Isso pode ser para esconder o crime... e também encaixa com a tentativa de John para ocultar o encontro entre o Bruther e o seu cavaleiro! - Deu uma palmada na coxa, numa breve exibição de satisfação pela sua astúcia.
- Espera! - pediu Baldwin, pondo a mão no ombro do amigo.
- Por que iria o John atacar o Taverner?
- Para atirar as suspeitas sobre Sir Ralph. Não se esforçou muito para silenciar o Taverner, pois não? Apenas o suficiente para que o rapaz e o amigo ficassem zangados. Se fosse a sério tê-lo-ia comprado com dinheiro e não o ameaçava nem espancava. Tratar o rapaz daquele modo quase garantiu a certeza de que a história se viria a saber.
Baldwin franziu a testa e suspirou.
- Não estou assim tão certo. Pelo que vi, o John pode pensar que a única maneira de manter um homem calado é através do medo. Não, penso que tentou manter a história secreta da única maneira que sabia e que não fazia ideia de que o resultado seria este. Não te esqueças que se trata de um soldado, Simon... e que foi um shalvadore com Sir Ralph. Segundo todas as probabilidades, viveram do roubo e da extorsão. É possível que nem sequer lhe tenha ocorrido que podiam obter o que queria graças a meios mais subtis. Não, penso que temos de tentar descobrir muito mais antes de acusarmos alguém deste assassínio.
Simon olhou-o e o seu entusiasmo foi gradualmente substituído por uma expressão de sombria reflexão.
- Muito bem, Baldwin... mas acho que posso ter razão.
- Sim, talvez tenhas, mas neste momento estamos a viver na mansão do pai do rapaz e precisamos de ter cuidado com o modo como procedemos. Não temos provas de nada, só suposições. Sabemos apenas que naquela noite havia duas personagens estranhas na charneca mas ninguém parece saber quem elas eram. Para além disso... tudo o mais são conjecturas.
- Nesse caso, precisamos de arranjar provas. - Simon começou a encaminhar-se para o salão mas parou de repente.
- Baldwin! De acordo com Ronald Taverner, o Bruther tinha um grupo de mineiros com ele! Porquê...? Vem daí!
Prosseguiram para as escadas e treparam-nas rapidamente, já lá em cima, Baldwin seguiu-o ao longo da muralha até ao ponto onde Sir Ralph espreitava para o exterior com as mãos apoiadas ao parapeito. Sentiu-os a aproximarem-se, virou-se lentamente e suspirou.
- Sir Ralph, ouvimos falar do seu encontro com o Peter Bruther, na charneca - disse-lhe Simon quando se já se encontrava mais perto do cavaleiro.
- Calculei que isso viesse a acontecer. - Encurvou os lábios num trejeito de amargura. - Um cavaleiro a bater em retirada perante a ralé é o tipo de coisa que um homem de armas nunca esquece.
- Precisamos de saber exactamente o que aconteceu. Pode ter uma relação com o assassínio.
- Quer dizer que pensa que posso ter morto o rapaz. - Os olhos do cavaleiro examinaram-lhe os rostos por instantes. Exibiam dúvidas demasiado óbvias e sabia que, se estivesse na posição deles, que também teria desconfianças. - É verdade que fui humilhado - admitiu - mas isso não é razão para matar.
- Devia ter-nos contado tudo antes, Sir Ralph - disse Simon num tom brusco. - Ter-nos-ia poupado tempo e muitas interrogações a seu respeito. Talvez possa compensar esse erro. Ao que sabemos, encontrou o Bruther e tentou trazê-lo de volta aqui?
- Sim. Estava a cavar no meio das pedras quando o avistei. Quis vê-lo de mais perto. A seguir insultou-me e ia puni-lo por causa disso. Trazer o fugitivo de volta seria uma ajuda para o meu anfitrião e pensei que Sir William ficaria grato... mas foi impossível.
- Claro. Foi impedido pelos homens que se encontravam com ele?
- Sim. - O rosto do cavaleiro contorceu-se numa careta de auto-reprovação. - Devia tê-los ignorado, mas...
- Quantos eram?
- Oh, não sei. Sete, ou talvez oito...
- E como se comportavam para com ele? - perguntou Simon com a testa franzida.
- Que quer dizer?
Baldwin interveio naquele momento.
- Como se comportavam com o rapaz? Acha que o Bruther estaria com medo deles? Poderiam ser seus amigos? Eram guardas a vigiá-lo... ou estavam a protegê-lo?
O cavaleiro exibiu uma expressão carregada de espanto e de dúvida.
- Não faço ideia... Só sei que pareciam estar a favor do homem. Não me pareceram seus inimigos.
- Portanto, não ficou com a sensação de que o Bruther estava a ser detido ali, contra a sua vontade? - insistiu Baldwin.
- Se estivessem, o homem não teria sido tão grosseiro para comigo, pois não? Teria aproveitado a minha presença para se livrar deles. De qualquer modo, porque razão estaria detido pela sua própria gente?
- Teve essa sensação? Pensou que se tratava da sua própria gente?
- Deus do céu! - A paciência de Sir Ralph começava a esgotar-se. - Claro que sim! Eram mineiros, não eram? Tal como ele!
- Pense, Sir Ralph - pediu Baldwin com toda a calma. - Está certo disso? Tem a certeza de que eram amigos e que não estavam a deter um homem que por acaso era um mineiro? Como se comportaram?
Sir Ralph ficou a olhá-lo.
- Eles... - começou, mas interrompeu-se. - Agora que penso no assunto... eram quase como guardas. Estavam ali em volta mas nenhum falou, como se o Bruther fosse o chefe. Se fossem iguais seria de esperar que um dos outros também dissesse qualquer coisa, mas o Bruther foi o único que falou...
- Disse-nos que não sabia que o John tinha saído da estalagem durante o tempo em que esteve com aquela mulher - afirmou Simon.
- É verdade. Não fazia ideia de que tinha saído.
- Por isso, não sabe quanto tempo é que ele andou por fora? Teria podido ir até ao sítio do Bruther?
Sir Ralph ergueu as mãos num gesto de desespero por sentir que estava a ser posto à prova para além da sua capacidade de resistência, e fitou o almoxarife com exaspero.
- Em nome de Deus! Como quer que o saiba? Nem sequer fazia ideia de que o John saíra antes de vocês mo dizerem!
Baldwin encostou-se contra o parapeito da muralha e cruzou os braços.
- Não sabemos o que pensar... mas parece que o John teve uma oportunidade para matar o Bruther. Ainda era dia quando entraram na estalagem, não é verdade? - O cavaleiro confirmou com um aceno. - E ainda era dia quando foi com a mulher?
- Suponho que sim. As portadas das janelas estavam fechadas e não sei dizer.
- Então, tudo se resume assim: John sabia que o Bruther o tinha insultado, a si, o seu amo. Também sabia que o Bruther causara problemas ao pai e à mansão. Agora, nós sabemos que teve a oportunidade para o matar porque desapareceu durante algum tempo.
- Ora, mas de certeza de que deveria haver outros com mais motivos do que ele para o matarem, não acham?
- É possível, mas não podemos ignorar o facto de John ter tido tanto a oportunidade como os motivos. Terá morto alguém enquanto esteve no norte, consigo?
Sir Ralph humedeceu os lábios, nervoso.
- É possível... - conseguiu dizer após um instante.
- Então, pode ter voltado a matar. - O tom de Baldwin era definitivo e Sir Ralph acenou lentamente. Já não tinham mais perguntas e o cavaleiro deixou-os pouco depois. Desceu as escadas pensativo e viram-no a atravessar o pátio muito devagar, na direcção do salão.
- Agora, creio que Sir Ralph já tem a certeza de que foi o seu escudeiro - disse Baldwin.
- Sim, mas pode estar enganado. Não te esqueças que os três homens que trabalharam para Thomas Smyth podiam estar a dizer a verdade quando afirmaram que lhes disseram para não atacarem o Bruther - recordou-lhe Simon. - Pelo que Sir Ralph nos contou, parece que o rapaz estava a ser protegido pelos mineiros, pelo que é menos provável que tenham sido os homens de Smyth quem o matou. Mas porquê? Por que estaria o Thomas a proteger este homem em vez de o forçar a abandonar a área? Se estava tão decidido a expulsar o Henry Smalhobbe e os outros, o que o levou a permitir que o Bruther ficasse?
- Pelo que já ouvimos, esse tal Peter Bruther não era nenhum cobarde. Aparentemente, estava preparado para enfrentar o antigo amo, Sir Ralph e quem quer que fosse. Talvez também tenha enfrentado o Thomas Smyth. No fim de contas, não sabemos quem eram os mineiros que o defenderam contra o valoroso cavaleiro. Talvez existam outros como ele e o Smalhobbe... Um pequeno grupo de fracos unidos para se protegerem contra os fortes...
- É possível. Temos de falar com o Henry Smalhobbe para lhe perguntarmos.
- Também podemos ir perguntar aos mineiros, é claro, mas duvido que descubramos muito mais do que já sabemos - murmurou Baldwin.
- Não. Quero ver o Smalhobbe. Quero saber mais a respeito do passado desse homem.
Henry Smalhobbe deteve-se à entrada da cabana e pousou o saco das ferramentas com uma satisfação evidente. Sarah ouviu o barulho, precipitou-se para a porta, afastou a cortina e soltou um suspiro de alívio quando viu o marido. Continuara nervosa e ansiosa desde o ataque, em especial depois de ter ouvido falar na morte do pobre Peter. Nunca mais conseguira descontrair-se após esse dia terrível.
O ar estava parado e húmido e passara todo o dia com a sensação de que o calor a iria fazer desmaiar. Até as aves pareciam pensar que cantar era demasiado fatigante e só se ouvia uma cotovia ocasional. Ao princípio do dia houvera uma neblina que escondera as colinas distantes quando olhara para o sul, e a paisagem mais próxima tre-meluzira por baixo da intensa vaga de calor.
Enquanto levara a cabo as suas tarefas, varrendo o solo de terra batida, lavando uma túnica e amassando a farinha, Sarah Smalhobbe pressentira um perigo a pairar à sua volta como se a própria charneca a odiasse e quisesse que ela e o marido morressem. Aquelas charnecas não era suaves e gentis como as terras do norte, perto da sua antiga casa, mas sim brutais e insensíveis. Quase que as sentia a vigiarem-na.
Sarah não era dada a superstições mas as histórias a respeito do velho da charneca, o Crockern, amontoavam-se no fundo da sua cabeça. Referiam-se ao modo como o espírito odiava os homens, odiava a maneira como os mineiros escavavam profundamente o seu corpo para lhe extraírem as riquezas e perturbavam as grandes rochas cinzentas que eram os seus ossos. Talvez estivessem no século XIV mas Sarah, embora fosse cristã, sentia o peso da desaprovação do espírito e sabia que seria melhor não o provocar na sua própria terra.
Pelo menos, o marido estava de volta a casa em segurança. Abraçou-o e sentiu-se novamente perto das lágrimas. Ouviu-lhe o murmúrio de dor quando o envolveu nos braços e lhe apertou o peito magoado, mas mesmo assim não o quis largar. Era demasiado bom poder agarrar-se a ele depois da solidão do dia.
Henry acariciou-a com amor e beijou-lhe a cabeça. As dores diminuíam mas ainda tinha um braço quase completamente inútil. Fora até à mina para ter a certeza de que não lhe estavam a roubar o minério, mas não aparecera ninguém durante todo o dia e passara o tempo sentado, a interrogar-se sobre o seu futuro naquela terra. Os mineiros que trabalhavam para o Smyth estavam a tornar-se mais violentos e não iria conseguir proteger-se, e à esposa, se os seus ataques continuassem. Talvez devessem partir enquanto o podiam fazer, antes de qualquer novo ataque? No entanto, proceder desse modo seria admitir a derrota.
O abraço da mulher tornou-se um pouco mais apertado e Henry sorriu através da dor. Não suportava vê-la sofrer. Se fugisse para longe com ela, como iriam ganhar a vida? Ainda não tinham lucros da exploração do minério e haviam perdido todas as posses antes de chegarem ali. Afagou-lhe as costas com suavidade e conduziu-a para o interior da cabana, onde se sentaram e comeram o pão em silêncio. Não tinham necessidade de falar. Ambos conheciam a natureza dos riscos e dos perigos se regressassem à estrada. Quanto mais não fosse, era sempre possível que um dos seus velhos inimigos os descobrisse. Ali, nas charnecas, sempre estavam protegidos pelas leis dos mineiros do estanho. Em campo aberto poderiam ser desafiados e no fim de contas nem sequer estavam muito longe da antiga casa. Henry sabia que talvez conseguissem chegar à Cornualha, às áreas mineiras aí existentes, mas quem lhes garantiria que seria melhor?
Depois de comer e de beber um pouco da cerveja que Sarah preparara, Henry levantou-se e espreguiçou-se. Gemeu com uma mistura de dor e de prazer quando os nervos e músculos, cansados e contraídos se esticaram, por baixo das nódoas negras, sorriu-se para ela e saiu.
A charneca brilhava sob uma lua cheia que coloria de cinzento-prateado as colinas ondulantes e as planícies como se estas se encontrassem iluminadas por uma luz interior. Era como se toda aquela paisagem bravia estivesse coberta por uma fina e leve camada de geada. Agora, ao princípio da noite, tinha mais consciência da antiguidade daquela terra e de até que ponto era diferente dos bosques e terras agrícolas em torno da velha casa, em Bristol. Sentou-se com a mulher a seu lado e ficaram ambos a olhar, perdidos nos seus pensamentos e esquecidos do mundo. Não falaram. Não havia necessidade. Limitaram-se a ficar sentados, a meditar, gozando a companhia um do outro e a frescura.
Estavam tão entretidos que nem sequer repararam nos cavaleiros que avançavam para eles até ao momento em que um casco embateu numa pedra. Sarah agarrou-se ao braço do marido quando Thomas Smyth começou a berrar e galopou sobre eles.
Naquela noite, o jantar foi uma ocasião pouco agradável embora John Beauscyr a achasse divertida. Simon, Baldwin e os seus homens sentaram-se à mesa com a família, no estrado, enquanto os servos enchiam o resto do salão. Contudo, havia algo de estranho na atmosfera. SirRalph, tal como John verificou, mantinha-se sombrio e mastigava a comida com mau humor, quase sem notar a presença dos que se encontravam à sua volta. Era como se já estivesse marcado como sendo um cobarde ou um assassino. O cavaleiro, nas poucas ocasiões em que os seus olhos encontraram os de John, desviou-os à pressa e com um ar quase culpado. Matillida revelou-se nervosa e ríspida para com os servos, e a certa altura chegou a atirar um jarro à cabeça de um homem e a gritar-lhe por lhe ter derramado vinho sobre o vestido, isto enquanto Sir William comia silenciosamente e com uma concentração decidida, tentando evitar os olhares tanto dos hóspedes como dos membros da família.
Pela sua parte, John mostrou-se descuidado e bem-disposto. A sua única preocupação era Robert, o irmão. Este comia tranquilamente mas com um certo ar de desafio enquanto arrancava bocados à carne e os devorava, o que John achou perturbador. Se eu fosse o almoxarife, pensou, ia querer saber por que motivo se sente tão livre de preocupações. Mantinha uma vigilância dissimulada sobre o irmão pelo canto dos olhos, em busca de alguns sinais que pudessem explicar a sua evidente descontracção, mas a refeição terminou sem que os descobrisse. O pai e a mãe dirigiram-se para os aposentos, os servos da casa encaminharam-se para os respectivos quartos e os guardas voltaram às tarefas na caserna.
Baldwin apercebeu-se do interesse do rapaz pelo irmão e acabou por reconhecer o seu próprio fascínio pelo comportamento de Robert. Aparentemente, este último tinha dificuldade em conter o seu divertimento ou alegria. Devia ter acontecido qualquer coisa naquela tarde, pensou o cavaleiro. A sala esvaziou-se e Baldwin levantou-se. Viu Robert a encaminhar-se para a porta e foi atrás dele, apenas vagamente consciente de Edgar, que abandonou imediatamente a mesa e o seguiu. Depois de tantos anos, a presença de Edgar só tinha algo de notável quando se encontrava ausente.
Baldwin avistou a sua presa nos estábulos, a afagar um cavalo. Fez sinal a Edgar para esperar e avançou para se juntar a Robert.
- Então, Sir Baldwin, anda a seguir-me? - Robert Beauscyr levantou uma sobrancelha como que para sugerir um divertimento sardónico.
- Não... mas quando o vi sair pensei que podia vir até cá fora para gozar o ar da noite.
Tinha bons motivos para aquelas palavras. O Sol descia lentamente e o céu ganhara um tom rosado e cor de malva, fazendo com que a fortaleza e as colinas em volta parecessem uma pintura envernizada, lisa e brilhante. A imagem fez Baldwin recordar-se das belas sedas que vira em Chipre e sentiu que podia levantar a mão e tocar naquelas cores quentes e vibrantes. O Sol banhara Robert com tonalidades brilhantes e o seu rosto parecia quase dourado, transformando as suas feições em geral incaracterísticas.
Todavia, não se tratava apenas do colorido. Havia uma urgência nos movimentos do jovem enquanto se deslocava em volta do cavalo. Robert estava diferente, mas... vivo, e até a voz tinha uma nova vitalidade.
- Mais perguntas... ou é apenas um hóspede aborrecido em busca de divertimento?
O sorriso de Baldwin desapareceu de repente. Conhecera outros que se tinham mostrado moles e desenxabidos para logo ganharem uma nova energia depois de actos de violência. Agora, Baldwin interrogava-se sobre se a nova excitação de Robert poderia ter a mesma causa, e se teria sido ele o assassino.
- Teve uma tarde agradável? - perguntou, e foi imediatamente recompensado por uma olhadela rápida.
- Tive sim, muito obrigado, Sir Baldwin - respondeu, trocista. - Consegui fazer uma bela cavalgada, que não foi interrompida nem pelas intromissões do meu irmão, nem pelas suas perguntas. Suponho que também passou um dia agradável?
Baldwin ignorou a provocação, avançou e afagou a garupa do cavalo.
- Estou certo de que a acharia muito aborrecida. Fizemos perguntas a muita gente, mais nada. No entanto, não acha que é interessante falar com gente que normalmente nunca encontraríamos?
- Também interrogou os três que apanhámos? - Robert espreitou o cavaleiro com uma súbita concentração.
- Sim, Harold Magge e os outros. - Baldwin ficou um pouco surpreendido ao ver que o jovem se tornara um pouco mais pensativo. - Quem foi que lhes bateu?
- Quem lhes bateu? O que quer dizer?
- Só isso, mais nada. Foram severamente espancados. Foi você e o seu irmão quem os torturou?
Sir Robert fitou-o, espantado.
- Por que haveríamos nós de fazer uma coisa dessas?! Pensávamos que eles podiam lá estar e fomos procurá-los, mas nem sequer tivemos tempo para lhes fazer mal porque fomos atacados pelos outros logo que os descobrimos.
Baldwin levantou uma sobrancelha duvidosa e o jovem cavaleiro suspirou e virou-se. Agora já parecia triste, vazio, e Baldwin teve pena de ver que a felicidade do jovem se apagara. Acrescentou, num tom mais conciliatório.
- Aqueles três homens foram-nos muito úteis.
- Que tinham eles para dizer? - perguntou, afastando-se mais para o outro lado do cavalo, pelo que ficou com o rosto escondido pela escuridão do estábulo e Baldwin não lhe conseguia ver as feições.
Baldwin sugou os dentes para extrair um bocado de carne e disse:
- Confirmaram que foram eles quem atacou o Smalhobbe, mas negaram completamente que tivessem algo a ver com a morte do Bruther.
- Terão visto os dois cavaleiros de que o Samuel falou? Era uma pergunta reveladora, pensou Baldwin.
- Porquê esse interesse pelos cavaleiros? Agora já pensa que foram eles quem cometeu o assassínio? Esta manhã estava convencido de que tinham sido os mineiros...
- Eu... bom, eles próprios não o iriam admitir, pois não? De certeza que tentaram atirar as culpas para cima de outro qualquer.
perguntava a mim mesmo se teriam tentado acusar os cavaleiros. Fizeram-no?
Baldwin sorriu e acenou. Agora, tinha a certeza de já saber quem fora um dos cavaleiros.
A manhã seguinte estava seca mas encoberta quando os quatro homens partiram da mansão Beauscyr, e Baldwin achou que a mudança de tempo era desanimadora. As planícies ondulantes e as colinas, com os seus flancos invadidos pelas urzes escuras e com os cimos cobertos pelas variadas formas dos montes de pedras a que chamavam tors, ganhavam imediatamente um aspecto mais ameaçador e malevolente sob aquela luz sombria. Alguns dos montes de pedra pareciam-se com criaturas fantásticas prontas para saltar, outras com gigantes a pairarem sobre a terra em busca de criaturas mais pequenas que pudessem esmagar. Embora em geral não fosse dado a medos não justificados ou a superstições, a visão das formas maciças que se erguiam a toda a sua volta fizeram-no ganhar consciência de que aquele era um lugar remoto, muito longe de qualquer cidade.
Simon não parecia afectado pela sensação maligna da área, o que o deixava vagamente irritado. Caminhava com firmeza e assobiava qualquer coisa, aparentemente inconsciente da ameaça que o cavaleiro sentia. De certo modo, a própria falta de interesse que demonstrava pela paisagem era tranquilizadora para Baldwin. Era uma despreocupação que parecia manter os monstros afastados, como se necessitassem de que acreditassem neles para serem verdadeiros. Porém, sentia o orgulho mordiscado ao descobrir que, pelo menos daquela vez, era ele quem estava a ser supersticioso.
Começaram por se dirigir para oeste e depois para nordeste até chegarem a um pequeno bosque, que Baldwin notou não ser formado por árvores como as de Wistman mas sim por carvalhos normais, direitos e altos, e por castanheiros. Aí chegados tiveram de rodear uma vasta área de terrenos pantanosos antes de poderem seguir por caminhos bem pisados de terra batida que subiam e desciam as suaves vertentes das colinas da charneca até chegarem a um ribeiro. Continuaram ao longo da margem, para norte, com Simon a indicar o caminho. À sua volta via-se uma mata de árvores dispersas. Por fim, o Sol conseguiu libertar-se das nuvens prateadas e viram-se rodeados por um clarão verdejante que brilhava através da folhagem. Atingiram uma ponte de tábuas onde uma maciça rocha havia sido colocada no meio do ribeiro e Simon virou para a direita. Havia ali um trilho que seguia para leste e em breve se viram fora das árvores e a treparem uma elevação. Simon abrandou quando atingiu o topo e Baldwin teve a sua primeira visão da quinta de Adam Coyt.
Tratava-se de um terreno bem cuidado, que jazia a escassos 800 metros da escada à beira de uma colina arborizada que a protegia da pior das tempestades de Inverno. A comprida casa era forte e resistente, e fora construída com pedra da charneca agora oculta por uma cobertura de cal. A poucos metros de distância via-se um recinto para gado, com três edifícios à sua volta para o protegerem do frio. O telhado da casa deixava escapar uma fina coluna de fumo que era imediatamente dispersa pelas rajadas de vento.
Adam Coyt, que se encontrava junto do celeiro a cortar os ramos a uma série de troncos de árvore para depois os poder dividir em tábuas, viu-os a aproximarem-se com olhos semicerrados e desconfiados. Ali, os estranhos eram uma raridade, pelo que largou o machado e foi ao encontro deles.
Hugh ficou aliviado por poder descer do cavalo. Sabia muito bem que o seu amo, naquele dia, queria percorrer grandes distâncias e falar com várias pessoas, pelo que estava decidido a descansar sempre que pudesse. Viu Adam a aproximar-se e acenou-lhe. Reconhecia o tipo de homem que ele era por causa dos tempos passados em Drewsteignton durante a sua juventude. Aquele era um dos velhos homens da charneca, duro como os elementos, tão nascido da terra como qualquer uma das árvores do seu pequeno bosque.
Simon saltou da montada e esboçou um sorriso tranquilizador.
- Bom dia. Eu... - Ainda mal começara a falar quando dois cães pastores saltaram subitamente para fora do celeiro e ficaram a rosnar na sua frente. Adam soltou um assobio, ordenou-lhes que se calassem sem sequer olhar para eles e Simon ficou aliviado ao verificar que os cães obedeciam. Sentaram-se imediatamente e um dos bichos começou a coçar-se. De um momento para o outro tinham deixado de ser animais selvagens com maxilas a escorrerem baba para se transformarem em companheiros amigáveis, com bocas sorridentes. Sempre à vontade com os cães, Baldwin aproximou-se deles, deixou que lhe cheirassem as mãos e começou a afagá-los. Momentos depois já se encontrava rodeado por dois cães entusiasmados, que ofegavam e o lambiam, e que quase o atiravam ao chão.
- Ele gosta de cães - disse Simon. mais como desculpa do que como explicação. Adam voltou a acenar, mas agora francamente espantado com o facto de um homem conseguir dar-se daquele modo com animais de trabalho. Para a sua maneira de pensar tratava-se de certeza um sinal de loucura, tal como fazer festas a uma vaca ou um borrego. Não havia qualquer vantagem em tratar os animais de quinta de um modo tão amigável.
Simon fez as apresentações, o agricultor grunhiu um assentimento quando o almoxarife lhe pediu para lhe fazer umas perguntas e conduziu-os para a pilha de lenha. As suas acções demonstravam que os estrangeiros eram bem-vindos para passarem o tempo como lhes apetecesse, mas precisava de ganhar a vida e tinha trabalho para fazer, pelo que o inquérito foi conduzido ao ritmo das pancadas firmes do machado.
Baldwin largou os cães com pena e sentou-se num tronco grosso enquanto Simon permanecia de pé ali perto. Foi o almoxarife quem começou.
- Adam, viveu aqui toda a sua vida. As coisas têm mudado muito ao longo dos anos?
O agricultor ficou a pensar por instantes sem levantar os olhos.
- Não. As charnecas são as charnecas. Mudam com as estações e é tudo.
- Os mineiros fizeram alguma diferença?
- Tornaram-se mais gananciosos. Antigamente eram apenas um pequeno grupo. Agora há imensos e só poucos são donos das minas. Dantes todos os mineiros eram como o Bruther ou o Smalhobbe, apenas um ou dois homens com um bocado de terra. Agora há imensos no mesmo sítio a trabalharem para pessoas como o Thomas Smyth.
- Suponho que, pelo menos, deve estar a salvo deles aqui em cima. Não devem aparecer muitos para o incomodar.
O machado deteve-se mas voltou a descer.
- Quando se tem direitos de pastagem, como eu... então acho que se aproximam demasiado. Cavam por todo o lado e deixam os buracos abertos no chão para os animais se magoarem. Tive uma novilha que partiu uma perna no ano passado, mas não consegui que me indemnizassem porque os mineiros reclamaram os seus privilégios. Perdi a vaca e não me ajudaram, mesmo apesar da culpa ser deles.
- Quer dizer que as coisas estão piores do que costumavam estar?
- Ah, sim! Houve tempos em que não se aproximavam a menos de dez quilómetros daqui. Agora estão apenas a dois quilómetros, precisamente no sítio para onde levo a manada, - E acha que se estão a tornar gananciosos?
- Nós, os que vivemos nas terras comuns da charneca, gozamos de direitos antigos, almoxarife. Estamos cá já não se sabe desde quando, a minha família e outras, mas agora as nossas vidas estão a ser dificultadas por alguns estranhos. Alguns até roubam. Houve um roubo na noite em que o Bruther morreu. Exigem dinheiro para não nos ocuparem as terras. Se não pagamos, escavam-na e desviam toda a água para não a podermos utilizar. Contudo, nada podemos fazer contra isso. Quem nos irá proteger se os mineiros decidirem atacar-nos ou roubar o que é nosso?
- Disseste que houve um roubo? Quem foi que roubaram? Adam Coyt agitou a cabeça na direcção de Widecombe.
- O velho Wat Meavy, em Henway. Derrubaram-no e roubaram-lhe a bolsa.
- Ninguém me disse nada,.. - murmurou Simon com uma careta.
- Não podemos ir a correr a Lydford cada vez que acontece uma coisa dessas. De qualquer modo, num certo momento o velho ia a caminho de Chagford... e no momento seguinte já estava com o rabo no meio da estrada e aliviado de umas quantas moedas. Há por aqui demasiados mineiros para que nos preocupemos com mais um roubo. Acontece constantemente, almoxarife.
- E está a piorar, pelo que dizes.
- Sim. - Subitamente, o homem olhou para cima com um sorriso triste e encolheu os ombros. - Não é o que se passa em todo o país? O magistrado do Rei sabe bem o que se passa, não sabe? Segundo ouvi dizer, não é só aqui, é em todo o lado.
- No entanto, se as pessoas estão a sofrer tanto, então deviam falar com o magistrado, ou pelo menos comigo, como almoxarife. Poderíamos…
- A sofrer tanto! - exclamou o agricultor, deixando cair o machado. - E que pensa que tem acontecido aqui? Houve aldeias inteiras que se esvaziaram por causa do clima, com as últimas pessoas a irem-se embora antes que a terra as levasse, tal como aconteceu com os seus pais, mães, mulheres e filhos. Precisa que lhe vamos lá dizer que sítios como Hound Tor já estão vazios? Os homens trabalharam enquanto as mulheres adoeciam e as crianças morriam, tal como acontece connosco, agricultores. Temos de cuidar das nossas quintas, mas para que servem elas se os nossos filhos morreram? Para quê trabalharmos e esforçarmo-nos se não temos a quem passar os nossos ganhos? No Hound Tor já só existiam três, dos 11 que lá estavam há quatro anos. Morreram todos, desapareceram! Não sabia disso, almoxarife?
Os olhos muito abertos e fixos revelavam uma infelicidade e um desespero que atingiram o coração de Simon como uma maça. Sabia que a fome fora terrível, mas nunca a associara com os problemas existentes ali, nas charnecas. Durante o pior de todo aquele sofrimento ainda vivia em Sandford, longe dali, para nordeste, onde as quintas não tinham sido tão gravemente afectadas.
Adam viu a compreensão no rosto do almoxarife e dobrou-se, devagar e dolorosamente, para recuperar o machado. Grunhiu quando se levantou e espreitou a ferramenta como se não a reconhecesse. Quando falou foi com uma voz contemplativa.
- Tinha uma esposa e um filho... Só um, porque os outros morreram muito cedo. É preciso ser-se duro para se sobreviver nesta terra. Não há parteiras nem amas para ajudar. Só cá estava eu e a maior parte das vezes encontrava-me a trabalhar quando a minha mulher dava a luz. Penso que o último parto foi o mais duro para ela e que nunca recuperou completamente. Ficou com um aspecto pálido e fraco durante um ano e meio. Depois, numa tarde em que esteve a trabalhar, morreu durante uma tempestade de neve quando regressava a casa. A seguir também o rapaz começou a definhar... - Pestanejou de repente a brandiu o machado com toda a força. - Há muitos outros como eu aqui em volta. Muitos de nós perderam as famílias e tivemos de as levar para Widecombe ou Lydford, quando as neves derreteram, para serem enterradas. Sofremos mais do que o suficiente. Por isso, talvez nos tenhamos esquecido de lhe dizer o que se passava, mas agora já sabe...
Baldwin, que se mantivera em silêncio, pigarreou e inclinou-se para a frente. Sabia que mostrar simpatia teria sido insultante e considerado como paternalismo.
- Adam, podes falar-nos da noite em que o Peter Bruther morreu? Onde estavas naquele dia?
O machado desceu e o ramo cortado saltou para um lado. O agricultor pegou nos ramos caídos à sua volta e atirou-os para a pilha cada vez maior junto da porta. Soltou um suspiro, atravessou o pátio na direcção da casa e regressou com uma grande bilha de barro que levou à boca para tomar um grande gole. Limpou a boca com as costas da mão e passou a bilha ao cavaleiro, que sorriu de gratidão. Baldwin descobriu que a bilha estava cheia de uma cidra tão forte que mal se conseguia engolir e teve de controlar a vontade de tossir provocada pelos vapores da bebida. Foi com alívio que passou a bilha a Simon.
- Naquela tarde estava a norte daqui, a recolher turfa perto do Longaford Tor, onde o chão é plano antes de se chegar dos pântanos. Vou lá frequentemente porque é um bom combustível - disse Coyt, olhando para o tronco que tinha na sua frente, - Por estas bandas não há grande fartura de madeira. De qualquer modo, demorei-me mais do que esperava e a minha pónei já não é tão ligeira como costumava ser quando tinha de transportar cargas. Foi por isso que cheguei mais tarde a casa. Estava perto do sítio do Smalhobbe quando o crepúsculo começou. O jovem Henry é um valente, temos de o afirmar. Ainda tentou apanhar um dos homens que estavam à espera dele mas os outros dois apanharam-no primeiro.
- Não pensou em ir buscar ajuda?
- Ajuda? Aqui? Onde queria que fosse? O sítio mais próximo é o daquele mineiro, o Bruther, que fica a cerca de dois quilómetros para norte. Para além disso, como podia ter a certeza de que um mineiro se dispunha a ajudar outro? Eram mineiros que estavam a atacar o Henry. Para que servia ir buscar outro? Para além disso, mesmo que fosse até lá a correr já se teriam ido embora quando voltasse.
- Como estava a mulher dele?
- A fazer uma fita, a gritar e coisas assim... Contudo, os homens nem sequer a ouviam. Continuaram a bater no Smalhobbe.
- Havia lá mais alguém?
- Avistei um par de cavaleiros enquanto estava a cortar a turfa.
- Viste quem eles eram? - perguntou Baldwin repentinamente. Coyt olhou-o com uma vaga surpresa, - Creio que era aquele mineiro, o Smyth, com o ajudante. Estavam a norte do Smalhobbe.
- O quê, dirigiam-se na direcção do Bruther? - inquiriu Simon.
- Sim, suponho que iam para esse lado - retorquiu Coyt, desinteressado.
- Tens a certeza de que eram eles?
- Passaram por mim mais tarde, na estrada, quando já estava a ficar escuro. Reconheci os cavalos. Eram eles.
- Compreendo. - Simon e Baldwin trocaram um olhar. Se os homens seguiam pela estrada, então vinham dos lados do bosque de Wistman. Baldwin prosseguiu: - Continuaste para sudoeste?
- Sim, ao longo da estrada, e depois para leste. Há um trilho que segue directamente para a minha porta. O meu pobre e velho pónei precisou de algum tempo.
- Não viste mais ninguém na estrada? Não passou ninguém por ti?
- Não, mas... - O agricultor franziu a testa.
- Pode ser importante - incitou-o Baldwin.
- Não sei... mas houve alguém que me ultrapassou quando cheguei à estrada para Chagford. Nessa altura já fazia muito escuro, mas havia alguém a norte de mim, a cavalgar em silêncio. Não vi quem era.
- Isso foi quanto tempo depois de teres visto os dois cavaleiros?
- Não muito depois. Tive de atravessar o ribeiro, o Cherry, e o pónei é lento... mas não se tinham passado mais do que alguns minutos.
- E estava longe?
- Não olhei. - A voz do agricultor tornou-se num murmúrio enquanto o machado passava a subir e descer um pouco mais lentamente.
- Porquê? Não estranhou ouvir um cavaleiro àquela hora da noite, ainda por cima fora da estrada?
O rosto do agricultor avermelhou-se. Voltou golpear o tronco mas não respondeu.
- Coyt? Por que foi que não olhaste?
De súbito o agricultor rodopiou e enfrentou-o, de um modo que não era agressivo mas sim um pouco beligerante.
- Porque pensei que podia ser o Velho Nick! Foi por isso!
- O Velho..?
Simon interveio rapidamente.
- O Diabo, Baldwin. O Diabo.
Adam Coyt virou-lhes as costas e afastou-se. Baldwin ergueu as mãos num gesto de desespero logo que o homem deixou de os poder ouvir.
- O Diabo! Por Deus! Por que é que esta gente ainda insiste nessas crenças ridículas? Bastar-lhe-ia uma olhadela para ver quem era! Pode ter sido o Robert, o John... ou nenhum deles! Porém, como aquele estúpido...
- Não é assim tão estúpido, Baldwin - interrompeu-o Simon com aspereza. - Não fazia ideia de que alguém fora morto, nem de que aquele cavaleiro podia ter estado envolvido. Estas quintas da charneca são tão remotas, tão longe de toda a gente... Ainda não sentiste a solidão da charneca? Por aqui, é muito fácil que a mente de um homem se vire para esse tipo de coisas. Para além disso correm muitas histórias sobre o Diabo...
- Ora, Simon, francamente, isso não é desculpa! Se este homem tivesse dado uma olhadela rápida, podia ter...
- Podia ter... o quê? - Adam Coyt regressara sem que dessem por ele. - Não conhece estas charnecas, não andou por aí. Não vive aqui todo o ano e ainda não viu o que as charnecas podem fazer a um homem. Veja o caso do Bruther. Sim, o cavalo que passou por mim naquela noite podia levar o seu assassino... e então?
- Que quer dizer? - O rosto de Baldwin contraiu-se numa máscara de confusão irritada.
- A culpa foi dele mesmo. Estava demasiado internado na charneca e esta sabe defender-se a si mesma. É o que lhe estou a dizer. Esta área é completamente diferente quando se vive nela. Pode pensar que sou estúpido por acreditar no Velho Nick ou no Crockern. Para si, éfácil. Vai-se embora e volta para a sua povoação. Eu tenho de ficar, de viver aqui... e não posso fazê-lo se a terra não me deixar. O Bruther também não acreditava, pensava que se tratava apenas de superstições. Ouvi-o uma vez, a rir-se da ideia de que o Crockern se poderia vingar dos mineiros que viviam mais no interior da charneca. Disse que não se ralava com o Crockern e que lhe propunha um bom preço pela terra. Não é bom troçar dos espíritos na sua própria terra.
- Então, nesse caso pensa que foi esse Crockern quem matou o Bruther? Não foi o Diabo? - O tom de Baldwin era trocista.
- Não sei... e não me interessa. Quem quer que o fizesse deixou o Crockern satisfeito e é tudo o que sei.
- Mitos e superstições! - murmurou Baldwin, frustrado, quando os quatro homens se afastaram da casa de Coyt e começaram a seguir a estrada que penetrava nas charnecas. - Se o homem tivesse olhado teríamos agora mais uma testemunha, ou pelo menos o nome de alguém que poderia ter visto quem eram os dois cavaleiros. Para além disso, também era possível que o desconhecido fosse o assassino de Bruther.
"Se os homens se comportassem normalmente e ignorassem as histórias das velhas... - acrescentou, com amargura - então não só seriam menos medrosos durante todo o seu tempo como provavelmente até poderiam trabalhar melhor e ter vidas mais felizes! O Crockern e o Velho Nick!
Simon esboçou um sorriso fraco ante o desprezo do cavaleiro.
- Baldwin, as pessoas, por aqui, não têm muito mais com que se entreter. De qualquer modo, a questão é esta: quem iria naquele cavalo?
- Se aceitarmos a palavra do agricultor... era o próprio Diabo! Simon sabia que o amigo tinha muito pouca consideração pelas velhas lendas, que Baldwin já ridicularizara com frequência. O cavaleiro era um homem muito viajado, com mais experiência do mundo, e Simon tinha dificuldades para discutir o assunto com ele. Mesmo assim, achava que as explosões irascíveis contra as crenças locais profundamente enraizadas eram insultuosas.
- Simon? - Baldwin olhou-o com uma expressão envergonhada. - Peço desculpa... mas já vi muitas pessoas prejudicadas por boatos e histórias para querer ter alguma coisa a ver com essas coisas. Tens razão, meu velho amigo. Precisamos de descobrir quem era aquele cavaleiro isolado. Pode ter sido um dos filhos do Beauscyr, é claro.
O Robert poderá dizer-nos onde foi naquela noite e o John estava fora da estalagem, embora ainda não o tenha admitido.
O almoxarife deixou-se amolecer pela mudança de disposição do cavaleiro.
- Nesse caso, agora temos de saber coisas a respeito de três homens e não apenas de dois - murmurou. - O par de cavaleiros visto por Samuel e Ronald, e o cavaleiro isolado ouvido por Coyt.
- Sim... e é estranho. - Baldwin tinha um rosto pensativo. - Depois de falar com Sir Robert teria sido capaz de jurar que ele fora um dos dois cavaleiros. Ficou com um ar tão culpado... teria sido ele o cavaleiro solitário do Coyt?
- Se foi, terá morto o Bruther? Ou os responsáveis foram o Smyth e o ajudante? Se foi o Smyth quem matou o Bruther... o que andava Sir Robert a fazer por ali?
- Se na verdade era ele - resmungou Baldwin. - De qualquer modo, o assassino deve ter pertencido a um dos dois grupos, não achas? Mineiros... ou gente da mansão Beauscyr.
- Creio que sim, a não ser... - Baldwin olhou, Simon mordeu o lábio e encolheu os ombros. - Creio que pode haver outro grupo, Baldwin. Os agricultores, tal como o Coyt, também têm sido prejudicados. Escavam-lhes os campos, desviam a água dos seus ribeiros, arruinam-lhes as pastagens...
- Será razão suficiente para matar?
Tinham chegado novamente à ponte de tábuas e Simon deixou que o cavalo se detivesse para beber.
- Não sei. Depende do que pensavam do Bruther. Que espécie de pessoa era ele? De acordo com a história de Sir Ralph parece ter-se tratado de um rapaz atrevido, pelo menos quando tinha outros por perto. Para além disso foi rude para com o Robert um pouco antes de termos chegado aqui.
- Sim, a maioria diz que era impulsivo e que estava sempre a fazer inimigos - admitiu Baldwin. - No entanto, o Smyth falou bem dele.
- Já não estamos nos velhos tempos em que os servos da gleba eram sempre subservientes. Este homem parece levado a voluntariedade ao extremo. Quantos fugitivos se atrevem a insultar dois homens como Sir Robert, que até à pouco fora o seu amo, e como Sir Ralph, um homem bem versado nas batalhas e preparado para defender o seu nome?
- Mas não o defendeu, pois não?
- Não, mas só porque estavam lá muito outros mineiros e teria sido uma estupidez.
- Sir Robert também não reagiu quando Bruther o insultou. Um homem que provocava as pessoas daquela maneira devia ter um grande desejo de morrer...
Simon olhou para o amigo.
- Baldwin, quantas vezes viste pessoas a comportarem-se assim?
- Servos? Nunca!
- E quanto a outras pessoas?
Baldwin encolheu os ombros e contraiu os lábios.
- Ser rude para com um cavaleiro é muito perigoso e...
- Não percebeste o que quis dizer. Nas únicas vezes em que vi pessoas a humilharem intencionalmente um cavaleiro ou um homem de armas... foi quando elas sabiam que eram mais poderosas!
- Pois sim, mas não estás a sugerir que um mero servo se pode sentir mais poderoso do que Sir Robert, pois não? Só precisamos de olhar para eles para vermos até que ponto eram diferentes. Um era pobre e vivia numa cabana rudimentar, enquanto o outro é rico, herdeiro de uma grande mansão e de dinheiro, com grandes propriedades e merecedor da estima do monarca. Como podia um miserável servo como o Bruther pensar que era igual a um homem desses... ou até superior?
- Foi desse modo que se comportou, não foi? - O cavalo bebera e Simon tocou-lhe nos flancos para o fazer atravessar o ribeiro. - Para se atrever a falar daquele modo devia pensar que era, pelo menos, um igual. Sabia que os Beauscyr o consideravam como um fugitivo.,. mas mesmo assim enfrentou-os e levou a melhor.
- Só por causa dos mineiros que o acompanhavam - protestou Baldwin.
- E por que razão se sentia seguro na sua companhia?
- Ora, imagino que por também serem mineiros, tal como ele, Foste tu mesmo quem me disse que os mineiros têm as suas próprias leis e regras. Sem dúvida que sabia estar a salvo junto de outros da sua laia..
- Não, Baldwin. Sabemos que o Thomas Smyth é um amo duro e que impõe a sua vontade aos mineiros aqui à volta. Não foi por isso que espancaram o Smalhobbe?
- Sim... o Bruther não se terá unido a outros pequenos mineiros da área como protecção contra o Smyth?
- Se esse grupo existe... falhou miseravelmente, não achas? Se organizasses homens e insultasses os inimigos... deixavas os outros e ias para casa sozinho, à noite? Duvido! Depois de arranjarem mais um inimigo de certeza que se manteriam juntos para se defenderem!
- Sim, suponho que tens razão - admitiu Baldwin, meditabundo.
- Por isso, se o Bruther tinha tantos homens com ele, por que razão estava aparentemente só e indefeso na noite em que morreu? Para onde tinham ido os outros... e porquê? Por que o deixaram ali?
- Terá havido um desacordo? Talvez quisessem fazer qualquer coisa que ele desaprovava e...
- Não, não... Recordas-te de como Sir Ralph descreveu o seu encontro com o Bruther? Disse que era como se o rapaz mandasse nos outros, não foi? Foi o único que falou e nenhum dos outro o fez. Aconteceu o mesmo quando insultou Sir Robert. O Bruther falou, os restantes limitaram-se a assistir e a empunhar as armas. Não, Penso que era ele quem mandava mas... porqueo deixaram sozinho? Se um chefe discorda do grupo, alguns vão-se embora mas há outros que ficam, mesmo que sejam poucos.
- Talvez fosse assim. Pode ter havido outros com ele quando mataram o Bruther, mas escaparam-se antes que lhes acontecesse qualquer coisa.
- Não me parece. Vê as coisas deste modo: estamos a pressupor que naquela noite havia três pessoas por perto, na charneca. Se o Bruther tivesse nem que fosse um único homem com ele, os outros três teriam tido dificuldades para o apanhar sem que um deles ficasse ferido ou fosse morto.
- Talvez tenha acontecido. Talvez tenha morto o outro e atirado o corpo para um pântano. Mesmo que não o tenham feito e se se tratasse de um dos cavaleiros, podem ter-se contentado em apanhar o homem que odiavam sem se preocuparem com os outros. Estás a construir tijolos sem palha, meu velho amigo. Tudo isto são conjecturas e nada mais.
Simon abanou a cabeça.
- Não me parece. Façamos uma visita ao Smalhobbe e talvez ele possa lançar alguma luz sobre o assunto.
Ao seguirem pela estrada era como se refizessem os passos de Adam Coyt na noite do assassínio e Baldwin descobriu-se a olhar em volta com interesse. O caminho parecia razoavelmente direito e mantinha-se nos terrenos mais baixos. Havia arbustos retorcidos a ladearem a estrada, bem como ocasionais maciços de urzes. Um pouco mais adiante surgiu-lhes um pequeno bosque, com colinas a erguerem-se dos dois lados. Quando o interrogou, Simon disse-lhe que aquela área se chamava Bellever. A estrada principal de este para oeste ainda ficava a uns dois quilómetros e devia permitir-lhes chegar rapidamente até onde viviam os mineiros mais afastados.
Agora, a propriedade dos Smalhobbe tinha um aspecto mais alegre. O fumo subia preguiçosamente do telhado e edifício de pedra cinzenta, erguido no meio da vasta planície, agradou a Baldwin. Era uma imagem de tranquilidade, curiosamente contrastante com os recentes acontecimentos violentos.
Sarah Smalhobbe encontrava-se sentada num banquinho, em frente da porta, e depenava uma galinha enquanto as outras esgravatavam no solo à sua volta. Lançou-lhes um vagaroso sorriso de boas-vindas e chamou o marido, que se lhes juntou um minuto depois.
- Almoxarife, SirBaldwin... - disse, baixando a cabeça para eles com respeito.
- Henry, gostaria de conversar um pouco contigo - disse Simon, descendo do cavalo e entregando as rédeas a Hugh. Via que Smalhobbe tinha um aspecto muito cansado, mas que para além disso se encontrava suficientemente bem. Pelo menos, já conseguia andar. O mineiro estava vestido com um pesado colete de couro por cima de uma fina camisa de lã e de calções curtos. Tinha uma comprida faca presa ao espesso cinto, o braço esquerdo envolto num pano desde o pulso ao cotovelo, bem como uma nódoa negra numa face e um corte por cima de um olho negro.
Smalhobbe sentou-se no banco da mulher e suspirou.
- Ainda me dói quando caminho mais do que alguns metros, senhores. As minhas costas são uma massa de altos e baixos nos sítios em que aqueles patifes me bateram.
- Não vão voltar - afirmou Simon com secura. - Os homens foram encontrados e estão a ser guardados no campo dos mineiros.
- O quê, estão a ser guardados por outros homens do Thomas Smyth? - O rosto do mineiro revelou desânimo. - Mas... também trabalhavam para ele! Não podem confiar nele para os manter detidos. Vai querer libertá-los para prosseguirem com o que andavam a fazer! - Olhou primeiro para os dois homens e a seguir para a esposa, que se encontrava de pé a alguma distância, à escuta com uma expressão de preocupação.
- Não me parece - declarou Baldwin tranquilizador, - Têm outras coisas com que se ocupar. O Thomas Smyth não voltará aqui durante algum tempo, se alguma vez o fizer.
O mineiro não pareceu convencido e percorreu o horizonte com os olhos, como se esperasse ver aparecer um bando de atacantes de um momento para o outro.
Simon tentou recuperar a sua atenção.
- Henry, estamos com dificuldades para descobrir quem poderá ter morto o Bruther. Quem pensas que o poderá ter feito? Achas que foram os homens que te atacaram?
- Referem-se ao Harold Magge e aos outros? - O mineiro ficou a olhá-lo. - Não, duvido. São perfeitamente capazes de bater nas pessoas mas... matar o Peter? Não me parece.
- Não viste mais ninguém naquela noite, até seres atacado?
- Não, ninguém. Passei todo o dia na minha mina e esteve tudo tranquilo.
- Não te aproximaste de Wistman?
- Não.
Baldwin interrompeu-os.
- Chegaste tarde a casa. Porquê?
- Estive a fundir - respondeu o mineiro com simplicidade. - Por vezes, leva tempo.
Simon acenou e continuou:
- Sabes quem eram os amigos do Bruther?
- Amigos?
Baldwin agachou-se na frente dele e fixou-o nos olhos.
- Sabemos que tinha vários homens com ele nos dias antes da sua morte. Sir Robert de Beauscyr viu-os, tal como Sir Ralph de War-ton. Eram sete ou oito homens, que também pareciam ser mineiros. Tens alguma ideia sobre quem seriam?
O mineiro olhou para a esposa com uma expressão impotente.
- Não, não faço ideia.
Baldwin viu a olhadela rápida da mulher, a expressão de rogo nos olhos do marido e soube que o homem estava a mentir.
- Muito bem - disse, tranquilamente. - Então talvez nos possas dizer outra coisa. Que espécie de homem era o Bruther?
- Era um mineiro - retorquiu Smalhobbe precipitadamente. - Não se encontrava aqui há muito tempo e estava a aprender a obter o estanho, tal como eu.
- Pois sim, mas como era ele? Se soubermos que espécie de homem era talvez consigamos perceber por que haveria alguém de o querer matar.
- Bom, era esperto e autoconfiante, suponho. Tinha dificuldades para fazer amigos e para confiar nas pessoas, mas parecia suficientemente feliz.
- Era agressivo por natureza?
- Não que eu visse. Claro que era capaz de uma luta depois de umas bebidas, mas é tudo.
- Ia beber muitas vezes?
- Uma ou duas vezes por semana, Costumava ir ao Fighting Cock, ali para os lados de Chagford.
- Como era que se podia permitir essa despesa? - perguntou Simon com uma careta. - Pagar cerveja na estalagem deve ter sido impossível para um homem como ele, um servo fugido a trabalhar como mineiro. De onde lhe vinha o dinheiro?
Smalhobbe encolheu os ombros e não respondeu. A situação era confusa para o cavaleiro que o escutava e observava. Tornava-se claro que o mineiro sabia qualquer coisa de que não estava disposto a falar. Fora atacado por outros mineiros, um dos seus vizinhos fora morto... e limitava-se a encolher os ombros? Os grandes olhos castanhos de Sarah Smalhobbe continuavam colados na figura do marido. Baldwin apercebia-se de que também ela estava ansiosa mas não fazia ideia dos motivos.
Entretanto, o almoxarife prosseguia.
- Então, dizes que ia à estalagem um par de vezes por semana. Com quem era que se misturava?
- Nunca fui com ele e não sei dizer.
- Compreendo. No entanto ouviste dizer que se metia em lutas?
- Sim. Uma vez andou à pancada com um mercador por pensar que o homem o tinha insultado, e de outra vez com um homem da charneca que disse que ele era um simplório.
- Terá sido o Adam Coyt?
- Não sei.
Aquela atitude começava a irritar Baldwin, que se inclinou para a frente e afirmou, num tom áspero:
- Hoje, de repente, parece haver muitas coisas que não sabes, Smalhobbe. Para ti, o teu vizinho mais próximo é como um livro fechado. Não fazes ideia sobre quem eram os amigos, e não te lembras de nada a respeito do seu dinheiro, das lutas ou dos inimigos. Estás a querer proteger o assassino?
Henry Smalhobbe encarou-o e Baldwin compreendeu que se enganara. O homem não estava assustado. O desafio na expressão dos seus olhos incluía astúcia, o que queria dizer que defendia os seus interesses. Então, nesse momento, o cavaleiro lembrou-se de outra coisa. Estudou as galinhas e o mineiro começou a dar sinais de nervosismo.
- Então, Henry, com quem estiveste esta semana? Ou quem foi que te veio visitar?
Para espanto de Simon, o rosto do homenzinho foi-se abaixo e o mineiro gaguejou:
- Quem, senhor? Não sei do que está a falar...
Baldwin levantou-se, pousou as mãos nas ancas e pairou ameaçadoramente sobre o mineiro. Por instantes, Sarah chegou a pensar que o cavaleiro lhe ia bater.
- Chega de mentiras, Henry Smalhobbe! - trovejou Baldwin. - Foste pago para te manteres calado, não foste? Quando te visitámos pela primeira vez não tinhas galinhas. De onde apareceram estas? Foram um presente de alguém que te deseja bem, sem dúvida, porque tens aqui uma capoeira de boas dimensões. Diz-nos quem foi!
- Não, senhor, honestamente, foram...
- Henry, temos de lhes dizer a verdade! - A mulher caiu de joelhos na frente dele, com as mãos postas e levantadas como se estivesse a rezar. Por outro lado, tal como um homem a quem prestam a devida homenagem, o marido rodeou as mãos dela com as dele e fitou-a no rosto. - Henry, conta-lhes! Estão a tentar ajudar as pessoas como nós, que vivem aqui, nas charnecas - implorou. - Por favor, conta-lhes!
Os olhos de Smalhobbe ergueram-se para o almoxarife e o homem soltou um suspiro.
- Muito bem, vou dizer-lhes o que sei.
- Obrigado - disse Simon com alívio. - Quem eram os homens que estavam com ele?
- Mineiros do acampamento. Trabalham para o Thomas Smyth. Costumavam ficar na planície por trás da casa do Bruther e ajudavam-no a trabalhar no seu lote de terra.
Baldwin fez uma careta de incredulidade.
- Estás a dizer-me que o Thomas Smyth deixava que os seus mineiros fossem ajudar um homem no meio da charneca?!
- Não sei por que o fazia, senhor. Só lhe posso dizer o que sei. Eram homens dele e ajudavam o Bruther.
- Tens a certeza que não eram mineiros vindos de mais longe, no norte? - inquiriu Simon. - O Bruther não se terá associado a outros pequenos mineiros para se poderem defender?
- Não. Sabe, eu conheci alguns daqueles homens quando descemos até aqui, às charnecas, pela primeira vez. Encontrámo-los durante a jornada para Dartmoor e voltei a vê-los com o Bruther.
- Mas... que estavam eles a fazer aqui? - interrogou-se Simon, intrigado.
- A protegê-lo. Sabia-se que se tratava de um fugitivo... Oh, provavelmente há muitos servos da gleba aqui, nas charnecas, uma vez que são o melhor lugar do mundo para se esconderem, mas o Bruther veio de uma mansão que ficava perto, pelo que podia ser apanhado e levado de volta a qualquer momento. Precisava de homens para tomarem conta dele.
- Por que razão iria o Thomas Smyth protegê-lo? - insistiu Simon. -julguei que queria expulsar das charnecas todas as pessoas como tu e o Bruther.
- Sim, queria que me fosse daqui... - admitiu Smalhobbe. - Quanto ao Bruther não sei. A mina dele ficava a alguma distância, no interior da charneca, longe da estrada e de tudo o mais. Talvez o Smyth não se ralasse com aquele bocado de terra. Sei que o único motivo que o levava a desejar o meu lote era por pensar que lhe devia pertencer e por estar mais perto do seu acampamento. Talvez o Bruther estivesse demasiado distante para valer a pena tentar assustá-lo.
- Mesmo assim, por que iria enviar homens para o proteger?
- O Smyth queria que todos os mineiros estivessem a salvo dos ataques dos estranhos - explicou Smalhobbe. - Quem quer que viesse aqui para levar o Bruther estaria a dizer ao mundo que os mineiros não passavam de pessoas vulgares, sem direitos especiais. Smyth é um homem forte e ousado. Não iria querer que outros, quer fossem estranhos ou mineiros, o começassem a considerar como um fraco. Quantos dos seus homens se estão a tentar libertar do passado ao virem para aqui? Quantos eram ladrões, assaltantes ou fora-da-lei? Quantos dos seus mineiros perderia o Smyth se uma pessoa qualquer pudesse vir à charneca para levar de volta os fugitivos? De certeza que não iria querer que isso acontecesse, para não lhe dar cabo de toda a produção. Creio que pensou que devia tomar conta do Bruther... para proteger todos os homens do acampamento.
Simon precisou de alguns minutos para absorver aquilo. Viu o cavaleiro a acenar lentamente o seu acordo. Fazia sentido. Eram muitos os barões que procediam da mesma maneira e enviavam homens para proteger o pequeno forte do seu vizinho, não para obter lucros mas para deter um possível agressor.
- Muito bem - acabou por dizer - mas por que razão não estavam aqueles homens com ele na noite em que o mataram?
- Isso não sei, senhor.
- Fazes alguma ideia sobre o que terá ele estado a fazer no bosque de Wistman?
- Não - Respondeu o mineiro, abanando a cabeça.
- Disseste que costumava ir à estalagem - interveio Baldwin. - Poderia ir a caminho?
Smalhobbe virou-se para ele e voltou a abanar a cabeça.
- Não. Se estivesse a caminho da estalagem teria seguido directamente para leste. Conhecia bem o caminho. Wistman fica para sudeste da sua casa e não teria motivos para lá ir.
- E era frequente lutar com os outros quando estava bêbedo? Smalhobbe acenou com um ar pesaroso e soltou um suspiro.
- Sim, era frequente. Suponho que nunca teve a oportunidade para beber muito enquanto esteve com os Beauscyr, mas quando veio para aqui passou a ir regularmente à Fighting Cock e ter-se-ia metido em disputas constantes se não fossem os homens que estavam com ele. Os outros tinham de engolir os seus insultos e gabarolices enquanto os guardas o protegiam.
- E o Smyth permitia uma coisa dessas? De certeza que não desejava ver os habitantes locais incomodados por um fala-barato cuja única utilidade era estar a estabelecer um precedente para a segurança dos outros. Não acredito!
- Não sei porque era. Só sei que era isso o que acontecia.
- Compreendo. Nesse caso, só tenho mais uma pergunta: quem te subornou para te manteres calado a respeito do Bruther?
- Senhor, eu...
- O nome, Smalhobbe! Já nos atrasaste demasiado! Quem foi?
- Não vos posso dizer! Ele matava-me!
- Então... foi o Thomas Smyth.
A expressão de choque no rosto do mineiro foi quase cómica.
- Mas,., como foi que descobriu? - gaguejou.
- Passaste os últimos minutos a dizer-nos que ele é o homem mais poderoso das charnecas e sabemos que te mandou espancar para reforçar esse poder. É óbvio. No entanto, há mais uma coisa - disse Baldwin, franzindo a testa e inclinando-se para a frente. - Por que foi que te pagou para te manteres silencioso a respeito do Bruther?
Daquela vez o encolher de ombros foi de impotência, mas os olhos de Smalhobbe estava carregados de ressentimento e recusou-se a responder.
- Muito bem - acabou Baldwin por dizer. - No entanto, podes responder a isto: é verdade que foste um fora-da-lei?
Sarah sentiu a respiração a prender-se-lhe na garganta. A truculência de Henry desapareceu e viu-lhe o pânico nos olhos. Depois de tanto tempo, sabia que as tentativas que tinham levado a cabo para iniciarem uma nova vida estavam a ir por água abaixo. A compreensão desse facto serviu para que o nó na garganta se apertasse ainda mais e começou a soluçar. Sentiu a barriga a contorcer-se e teve de pousar as duas mãos no chão quando olhou para o cavaleiro.
- Senhor, não é verdade - disse Sarah, com a voz desfeita pela emoção.
Baldwin lançou-lhe um sorriso reconfortante quando a mulher se ajoelhou na sua frente.
- Então, conta-nos a verdade. Estamos muito mais interessados neste assassínio do que em feitos do passado...
A mulher ignorou o grito desesperado do marido, "Sarah!" e disse:
- Senhor, confio em si. Jura-me que seremos deixados em paz se não tivermos nada a ver com a morte do Peter Bruther?
Baldwin lançou uma olhadela a Simon em busca de uma confirmação, e acenou lentamente.
- Sim, a não ser que o vosso passado também inclua outros assassínios.
- É justo. Senhor, o meu marido costumava trabalhar para um amo justo e decente, um burguês de Bristol - começou. - O Henry era o encarregado das bebidas e a nossa vida foi feliz até há dois anos...
- A Rebelião? - incitou-a Baldwin.
- Sim. - A mulher acenou. - O nosso amo era Robert Martyn. O monarca impôs pesados impostos a Bristol em 1316 e ignorou os apelos da cidade para que os reduzisse. Enviámos homens até Londres para lhe explicar que eram demasiado elevados, mas não os quis ouvir. No fim, enviou o xerife de Gloucester com as forças do condado e montou um cerco à cidade. Esvaziaram o fosso, destruíram o moinho do castelo e montaram engenhos de cerco. A seguir atiraram-nos pedras até tomarem a cidade.
- O Robert Martyn foi declarado fora-da-lei, não é verdade?
- Sim, senhor, e teve de abandonar o reino. Que podíamos nós fazer? Não tínhamos casa, não tínhamos dinheiro nem um amo. Fomos expulsos da cidade quando a fome estava no seu pior e se não fosse algumas pessoas que encontrámos...
Henry decidiu-se a falar, com uma voz mortiça e pesada.
- Eram fora-da-lei, mas tiveram piedade de nós e deram-nos de comer. Um dos homens era daqui, das charnecas, e decidimos vir ver se as histórias a respeito do estanho eram verdadeiras. Esse tal homem ensinou-me a caçar e a lutar, mas juro que nunca roubei nada e que nunca matei ninguém.
Os olhos do mineiro fixaram-se nos de Simon com uma expressão de desafio e o almoxarife acreditou nas palavras do homem.
Ao encaminharem-se para a estalagem Fighting Cock passaram em frente da casa de Thomas Smyth e Hugh não conseguiu impedir-se de torcer o pescoço para a olhar mesmo quando já se estavam a afastar-se. A mansão parecia tranquila, com apenas uns quantos cavalariços e um pastor a vaguearem pelo pátio e a empilharem palha suja e excrementos num canto perto da entrada. A partir dali, a pilha seria recolhida por uma carroça e transportada para os campos da mansão por trás da povoação para se transformar em adubo.
Hugh ficara intrigado depois de ouvir tudo o que o mineiro dissera. Presumira que a morte do mineiro tivera uma causa simples e que fora enforcado por alguém com ressentimentos contra o homem. Para além disso, teria sido capaz de apostar que o responsável fora um dos membros da família Beauscyr. Agora contudo, estava certo de que tudo aquilo tivera algo a ver com o patrão dos mineiros, instalado na sua grande mansão. Que outra razão o levaria a pagar aos Smalhobbe para manterem as bocas fechadas?
Foi com alguma relutância que virou o rosto novamente para a estrada, mas não necessitou de muito tempo para que a sua disposição melhorasse. Hugh não era um homem dado a prolongadas introspecções. Na sua frente havia uma estalagem, onde lhe dariam comida e uma boa e forte cerveja. Foi quanto bastou para que suspirasse de felicidade.
Simon achou a estalagem um pouco menos movimentada do que quando a visitara anteriormente. Agora havia várias mesas livres e encaminhou-se directamente para uma das grandes, por baixo de uma janela e longe da lareira, para terem a possibilidade de conversarem sem serem interrompidos. Sentou-se num banco e olhou à sua volta.
Viu duas raparigas a circularem de um lado para o outro com as bebidas, mas podia ver que aquela não era a melhor altura do dia. Descobriu-as a bocejar de uma maneira extravagante e apercebeu-se de uma outra a dormir em cima de um banco encostado junto à parede mais distante. As suas vidas eram muito mais atarefadas ao fim da tarde e à noite. Baldwin e os outros juntaram-se-lhe, com o cavaleiro a ocupar o lugar em frente do amigo, e fizeram a encomenda. A rapariga com quem tinham falado da outra vez não se encontrava à vista em lado nenhum e Simon decidiu esperar até terem comido para perguntar por ela. A comida surgiu sob a forma de um espesso e rico guisado, feito com uma carne tão picada que era impossível de identificar. Baldwin remexeu-a com a colher de pau, desconfiado, antes de levantar os olhos para Simon:
- O que pensas disto? - perguntou.
O almoxarife reagiu com um sorriso suave.
- Não devias fazer perguntas dessas...
- Por que não?
- Porque isto pode ser qualquer coisa. Lá fora.., - fez um gesto com a mão, abarcando toda a charneca - não há grande coisa para comer e um homem tem de sobreviver o melhor que puder. Há lobos, mas os principais animais são a caça da floresta, veados, ursos e assim por diante. Pertencem ao Rei e não há ninguém aqui que se atreva a quebrar as leis da floresta para os ir caçar, é claro. Vou partir do princípio de que esta carne deve ter vindo de Chagford.
- Ah! - exclamou Baldwin, com um sorriso enquanto mergulhava o pão no molho. Tal como esperara, o guisado tinha um forte paladar a caça e o vinho que encomendara combinou bem com a comida para lhe dar uma sensação de confortável bem-estar. Quando terminou, Baldwin recostou-se e estudou as pessoas que se encontravam na sala enquanto os outros comiam em silêncio.
As raparigas esforçavam-se por manter os jarros e as canecas sempre cheios. Houve uma que lhe chamou a atenção. Era delgada, de cabelos escuros, com uma figura quase arrapazada. Movia-se por entre os bancos e mesas com uma segurança fria e era frequente carregar vários jarros e canecas ao mesmo tempo com uma eficiência calma. Não se parecia com as outras mulheres das charnecas. Na sua maioria as raparigas da área tinham peles claras e cabelos escuros, mas aquela era bastante trigueira. Baldwin chamou-a.
Simon estava a limpar a boca com as costas da mão quando a jovem se aproximou com uma expressão agradável mas reservada. O cavaleiro perguntou-lhe se existia ali uma rapariga chamada Molly e mulher respondeu, com um aceno cauteloso:
- Sou eu.
Os homens apresentaram-se rapidamente. A rapariga afirmou estar nervosa porque o facto de não poder continuar a trabalhar iria irritar o amo, pelo que Baldwin resolveu chamar o estalajadeiro. O homem lançou olhadelas culpadas para as malgas vazias logo que soube quem eram os seus clientes, esboçou um sorriso amarelo e permitiu que Molly ficasse a conversar com eles durante todo o tempo que desejassem. O cavaleiro agradeceu-lhe com bons modos e persuadiu a rapariga a sentar-se.
Não podia ser muito mais velha do que Alicia, a filha de Thomas Smyth, mas nascera para uma vida muito mais dura e sem nenhum dos mimos que a filha do mineiro poderia esperar. Os olhos cinzentos olhavam-no sem qualquer tipo de curiosidade. Não era estúpida, mas não tinha nenhum interesse pelos homens sentados em volta daquela mesa,
Simon começou e apercebeu-se do aborrecimento da rapariga.
- Estamos a tentar descobrir o que aconteceu na noite em que o Peter Bruther morreu - disse-lhe. - O John Beauscyr disse-nos que esteve aqui com um amigo naquela noite. Lembras-te disso?
A rapariga acenou. - Sim, chegaram os dois cerca de duas horas antes de escurecer.
- Estiveste com Sir Ralph durante algum tempo?
- Ele quis-me. Passei algumas horas com ele, até bastante tarde. A seguir deixou-me e regressou à mansão com o John.
- Sabemos que o John não permaneceu aqui durante todo o tempo que passaste com o amigo dele, mas já tinha voltado quando Sir Ralph se foi embora?
- Sim, estava aqui quando voltámos - respondeu a jovem com novo aceno.
- Como te pareceu? Tinha o mesmo aspecto de quando o deixaram sozinho?
- Não sei o que quer dizer... Bom, suponho que estava um pouco excitado... e corado. No entanto, quando aqui chegou já estava assim. - Os olhos da jovem ganharam uma expressão distante. - Não, não estava na mesma. Quando chegou estava zangado, passou a maior parte do tempo a praguejar por entre os dentes e ignorou-nos, a mim e às outras raparigas. Em geral não é assim. Costumava sorrir e brincar com todas nós. Naquela noite nem parecia ele. Entrou com o amigo, pegou numa bebida e sentou-se num banco.
- Falou com alguém?
- Pode ter falado - retorquiu, desinteressada e com um bocejo. - Não sei. Sir Ralph ocupou todo o meu tempo. Tudo o que sei é isto: o John estava maldisposto e mantive-me afastada.
- Compreendo. E a disposição dele já não era a mesma quando voltaste a descer?
- É verdade - afirmou, com mais um aceno. - Quando voltámos já estava mais alegre. Pagou-me uma bebida e brincou com Sir Ralph. Pensei que talvez se tivesse descontraído com uma das outras raparigas, mas elas disseram-me que não, que ele saíra durante um bocado e reaparecera mais bem-disposto.
- Terá dito onde esteve ou por que razão estava mais bem-disposto? - inquiriu Simon, roendo a ponta de uma unha.
- Não... pelo menos que eu ouvisse. As raparigas só me disseram que saiu durante cerca de uma hora e que quando apareceu outra vez foi como se todos os seus problemas já tivessem sido resolvidos.
- Compreendo... - Simon levantou uma das mãos, num gesto fatigado. Era claro que a rapariga sabia muito pouco. No entanto, foi nesse momento que Baldwin se inclinou para a frente.
- Molly... - perguntou - até que ponto conhecias bem o Peter Bruther?
- Bastante bem - retorquiu, com os olhos carregados de suspeitas. - Porquê?
- Porque queremos saber o máximo possível a seu respeito, mais nada.
- Bom, não me interessa o que dizem... - afirmou, com um arroubo tranquilo enquanto lançava uma olhadela para o bar, onde o estalajadeiro os mirava de vez em quando.
- O que é que dizem, Molly?
- Que era mau e cruel... mas não era nada disso!
A veemência da jovem surpreendeu-o, mas não tanto como a súbita humidade que lhe surgiu nos olhos e o modo com os seus ombros estremeceram ao de leve.
- Molly, lamento, não pensei que...
- Pois não. Ninguém pensa que nós, as que servimos aqui, possamos ter alguma espécie de sentimentos. Não contamos... - A voz era dura. Não estava carregada de autopiedade mas sim de uma espécie de pena.
- Não é nada disso, Molly - declarou Baldwin com suavidade. - Não fazia ideia de que o conhecias tão bem...
- Não era com os outros homens, que estão sempre a fazer promessas. Gente como o John e outros, que dizem frequentemente que nos vão tirar daqui para nos instalarem numa casinha e tomarem conta de nós. Às vezes acontece... mas a maior parte dos homens não quer saber de nós. O Peter era diferente. Ele interessava-se. Dizia que me viria buscar quando tivesse dinheiro e que viveríamos em qualquer lado, longe deste sítio. Afirmou que me levaria para a cidade, para Exeter ou para qualquer outro lado, e falava a sério. Com os outros é apenas um truque para sermos mais amigáveis, mas o Peter interessava-se de verdade. E agora...
- Há quanto tempo o conhecias?
- Ao Peter? Há um ano. Começou a aparecer na estalagem desde que fugiu da mansão.
- Ouvimos dizer que costumava meter-se em discussões.
- Sim, às vezes. Detestava que eu trabalhasse aqui e não queria ver-me ir com outros homens. Ficava como louco. Foi expulso várias vezes por arranjar conflitos.
- O John Beauscyr também costumava ir contigo?
- Sim, mas nunca gostei dele, é cruel. Magoa as raparigas. O Peter nunca era assim. Dizia que sabia o que era ter um "dono" e que era bom poder fugir-lhe... Era por isso que compreendia a minha vontade de fugir e viver livre. Como poderia o John Beauscyr entender uma coisa dessas? Só sabe apoderar-se do que quer, usar as pessoas e deitá-las fora...
- O Peter Bruther esteve cá na noite em que morreu? - perguntou Baldwin tranquilamente.
- Sim, mas foi-se embora antes da chegada do John e de Sir Ralph.
- Tens a certeza?
- Oh, sim - declarou, enfática. - Não queria embaraçar o cavaleiro do John. O estúpido ameaçara amarrar o Peter para o arrastar de volta aos Beauscyr e fê-lo sem reparar que os amigos do Peter estavam por trás dele. Para além disso, o Peter acabou por ficar com a corda!
- A corda?
- Sim. Na noite em que ele morreu, o Peter e os amigos trouxeram-na para aqui para ma mostrarem. Tirar a corda ao homem que pensara ter podido levá-lo para voltar a viver como um servo... era como uma espécie de trofeu.
- O Peter levou-a quando se foi embora?
- Oh, sim, não a quis deixar para trás.
- Portanto, já ia a caminho de casa quando o John e o amigo chegaram?
- Sim, senhor.
- Sabes que caminho terá tomado para voltar para casa?
- Primeiro ao longo da estrada e a seguir pela charneca depois de passar a casa do mineiro junto ao ribeiro. Ia sempre pelo mesmo caminho.
- Então, se o John e Sir Ralph vinham para aqui desde a casa do Thomas Smyth, devem ter-se cruzado com ele, não é verdade?
- Sim, senhor, eles... Que está o senhor a dizer? Que o John podia ter morto o Peter?!
- Não sei. Quanto tempo terá o John ficado na estalagem depois de subires com Sir Ralph?
- Tanto quanto eu saiba, ninguém o viu sair. Houve alguém que reparou que o lugar dele se encontrava vazio, mas não o viram sair. Mais tarde, a Alison foi ajudar um agricultor a subir para o cavalo porque não era capaz de o fazer sozinho e reparou que o cavalo do John também desaparecera. Foi nessa altura que ela compreendeu que ele saíra.
- Estou a ver... - murmurou Baldwin, recostando-se e olhando para Simon.
O almoxarife franziu a testa para o tampo da mesa enquanto pensava.
- Molly... - disse, um instante depois - dizes que o Peter Bruther afirmou que te levaria e te libertaria logo que tivesse dinheiro. Por que não foste ter com ele, se já tinha a sua própria mina?
- Porque insistiu em que seria demasiado perigoso, uma vez que os Beauscyr tentavam obrigá-lo a voltar. Receava que acontecesse uma luta.
- Sabias que tinha guardas, homens do acampamento dos mineiros. Não compreendo. Ouvi dizer que os mineiros queriam que ele, e outros que não trabalham para o Smyth, se fossem embora da charneca. Então por que concordaram em ajudá-lo... mas não aos outros?
- Não sei... mas naquela noite, no dia em que foi morto, disse-me que já não iria necessitar de guardas e que poderia recomeçar a sua vida como um homem livre.
- Que queria ele dizer?
- Acontecera qualquer coisa no dia anterior. Conversou com o Thomas Smyth mas não me disse do que falaram. O Peter limitou-se a dizer que estaria em segurança e que eu poderia ir viver com ele porque também eu ficaria em segurança. - As lágrimas subiram-lhe aos olhos. - No dia seguinte ouvi dizer que estava morto. - De súbito o seu rosto animou-se e murmurou, num silvo: - Perguntem àquele estupor do Smyth! Perguntem-lhe... porque deve ter sido ele quem matou o meu Peter!
Pôs-se de pé num salto e afastou-se, mantendo as costas viradas para o pequeno grupo de homens reunidos em torno da mesa. Olhou rapidamente em volta quando voltou a ouvir chamar pelo seu nome e verificou que os homens tinham desaparecido.
- Olá, Molly - disse George Harang, recostando-se na cadeira e brindando-a com um sorriso de lobo. - Primeiro, vou começar por uma caneca de cerveja... e a seguir gostava de falar contigo... a sós.
Houve poucas conversas entre os quatro homens enquanto percorriam o caminho até à grande casa de Thomas Smyth. Entregaram as rédeas dos cavalos a um servo que lhes disse que o amo se encontrava no interior e pouco depois já se tinham instalado no salão com um servo a servir-lhes vinho. Thomas Smyth surgiu pouco depois, à pressa, sempre com o ar de homem de negócios com muitos afazeres e pouco tempo para conversar.
- Almoxarife, Sir Baldwin, bem-vindos sejam, mais uma vez. Em que vos posso ser útil? - perguntou, deixando-se cair numa cadeira.
Baldwin observou-o, impassível. Simon, pelo seu lado, estava zangado com o facto de todas aquelas informações lhe terem requerido tanto trabalho... e convicto de que Thomas Smyth sabia mais do que queria admitir. Devia ser essa a sua filosofia de vida, pensou. Guardava tudo para si até ter a certeza de que as informações não podiam ser usadas para subornar ou chantagear alguém em seu próprio proveito. Simon tinha a certeza de que fora por isso que não mencionara os homens que protegiam o Bruther. Não vira vantagens na revelação de um tal facto. Simon sorveu o vinho, meditativo, e pousou a caneca.
- Quando foi que enviou os primeiros homens para protegerem o Bruther?
- Que interesse tem isso? - O rosto de Thomas Smyth ainda exibia um sorriso, mas já não tão amplo.
Baldwin conseguia ver que o homem se encontrava perto da exaustão e não tão autoconfiante como no primeiro encontro.
- Interessa... porque o almoxarife lhe fez a pergunta - declarou Baldwin com toda a firmeza, e foi recompensado com uma mirada fria.
- Para começar, por que razão enviou homens para o protegerem? - inquiriu Simon.
- Porque não queria que o mineiro fosse levado pelos Beauscyr - retorquiu Smyth. - Seria um embaraço ver um trabalhador das minas a ser levado daqui.
- Oito homens para o protegerem apenas disso... numa altura em que tentava expulsar outros mineiros da mesma área? Foi um acto muito generoso. Teria sido mais fácil trazer o Bruther para o acampamento. Nesse caso não teria necessidade de mandar a sua gente para tão longe, não é verdade?
- Não me ocorreu. De qualquer modo, o Peter teria perdido a mina se eu o tivesse deixado ir para o acampamento... e não queria que os Beauscyr pensassem que podiam vencer um mineiro com tanta facilidade.
Simon estudou-o. Fazia sentido, pensou, com uma careta. Também conseguia ver as linhas de tensão no rosto de Smyth e a mão do mineiro torcia nervosamente uma linha solta da camisa.
- Contudo, queria que os homens abandonassem aquela parte da charneca - insistiu. - Foi o senhor mesmo quem o disse. Nesse caso, por que tomou conta de um deles de um modo tão extravagante?
- Em nome de Deus! - A súbita explosão fez com que todos se endireitassem. - Por que não havia de tomar conta dele?! Precisava de ajuda, podia dar-lha... e mais nada! Por amor de Deus, esqueçam isso e tratem de encontrar o assassino daquela pobre alma! Neste momento é o que mais interessa!
- Pretendemos fazê-lo, Thomas... mas para isso precisamos de entender que espécie de homem era o Bruther, para que possamos descobrir quem tinha razões para o matar. O senhor, por exemplo..,
- Eu?!
- Sim. Queria que os mineiros como ele e o Smalhobbe se fossem embora para outras charnecas. Tinha três homens dispostos a consegui-lo, tal como muito bem sabemos... - Simon teve consciência de um movimento atrás dele enquanto falava e Christine Smyth entrou na sala. Thomas Smyth olhou para a mulher quando esta avançou para o seu lado e lhe pousou a mão no ombro. - Então, porque foi que não mandou os seus homens espancarem-no, tal como ao outro? - insistiu Simon. - Porque estava ele livre de ataques enquanto o senhor agia contra os vizinhos?
- Só posso dizer que não tinha razões para o prejudicar, e todas as razões para o proteger. Já vos disse porquê: - porque a mansão o queria de volta. - O mineiro pegou na mão da esposa.
Para Simon, aqueles dois pareciam-lhe um par trágico, com a mulher ao lado do marido como uma serva leal, e o homem a olhar para Simon com as linhas da dor e do cansaço a esculpirem-lhe sulcos no rosto. O almoxarife soltou um suspiro. O homem não queria falar e não podia ser forçado.
- Muito bem. Outra questão: viram-no a cavalgar para o lugar do Bruther no fim de tarde do dia em que ele morreu. Porquê?
Os olhos do mineiro transformaram-se em fendas.
- Está a acusar-me do assassínio?
Christine Smyth apertou mais a mão no ombro do marido. Sabia que ele se encontrava deprimido por qualquer motivo, que ficara assim desde que soubera da morte do Bruther, mas Thomas não lhe dizia porquê e estava assustada. Sentia a tensão dos músculos do marido sob a palma da mão e ansiava por o acariciar como a uma criança enquanto a respiração se lhe prendia na garganta. - Não, só quero saber por que razão lá esteve.
- Quis falar com ele.
- Já o tinha feito no dia anterior. Queria falar com ele a respeito de quê?
- O assunto nada tinha a ver com o seu assassínio.
- Atendendo às circunstâncias, a sua recusa em responder parece estranha... - Simon aguardou, mas o mineiro aguentou-lhe o olhar sem vacilar. - Muito bem. E por que foi que ele deixou de ter guardas?
- Isto nada tem a ver com a morte do Peter e não vou perder mais tempo com tolices!
- Ao menos diga-nos uma coisa: que espécie de homem era ele?
- Era um homem forte e vigoroso. Que mais poderei dizer? Pareceu-me do tipo independente, a quem as coisas teriam corrido bem aqui e que trabalharia muito.
- Sabia que se envolvia constantemente em lutas, na estalagem?
- Lutas? O Peter? Custa-me a acreditar.
- Também lá tinha uma mulher, uma das raparigas que andam a servir - Simon disse-os descuidadamente mas viu a leve tristeza no rosto do homem.
- Não me surpreende. Ele era assim, sempre preocupado com os outros.
Simon franziu a testa e levantou os olhos para a mulher.
- Minha senhora, esteve fora no dia em que este homem foi morto, não esteve?
- Sim, fui a Chagford com a minha filha e com o George Harang.
- O George esteve convosco durante todo o tempo?
- Sim, até virmos para casa. - A mulher sentia a tensão a apertar-lhe o peito como os aros de ferro em torno de um barril. - A seguir ele teve de sair com o meu marido para ir ver as minas.
- Quando foi isso?
- Ao princípio da tarde, quando regressámos. Simon voltou a olhar para Thomas.
- Quando regressou do acampamento, o Bruther estava aqui? Viu-o nessa tarde?
- Não. Não. O Peter não veio aqui nesse dia.
- De acordo com a rapariga, esteve na estalagem nessa tarde. Mais tarde voltou por este caminho para regressar a casa. Deve ter passado pela sua porta. Não o viu?
- Não, como já lhe disse. - O rosto de Thomas Smyth parecia abatido. - Não o vi naquele dia. Não veio aqui.
- Aparentemente, saiu da estalagem um pouco antes de John Beauscyr lá chegar. O John tinha vindo aqui com o pai e com Sir Ralph, mas Sir William e o filho separaram-se à sua porta.
- Não. O Bruther não estava aqui. - Christine sentiu a emoção controlada do marido. Apertava-lhe a mão com força, expulsando-lhe o sangue dos dedos, pelo que libertou a mão devagar, dirigiu-se a um banco e sentou-se, muito composta.
O interrogatório prosseguiu mas a mulher manteve os olhos no homem, repleta de apreensões. Sabia que o marido estava a esconder a verdade, mas que verdade era essa? Para ela, era óbvio que Thomas estava assustado e temia que os interrogadores dessem por isso. A reunião continuou e o marido começou a mostrar-se cada vez mais agitado.
Era a primeira vez que Thomas lhe escondia qualquer coisa. Normalmente discutia com ela até os mais pequenos pormenores do que se passava no acampamento dos mineiros e abria-se a respeito dos mais vagos dos problemas, mas Christine não fazia ideia sob quais seriam as ligações entre o marido e o jovem Peter Bruther. Sentia-se assustada. Thomas sempre fora um homem forte, decidido e confiante, mas agora era como observar o reboco a cair de uma parede, primeiro uma lasca, a seguir uma fenda, logo seguida pela queda de mais bocados até a parede ficar completamente desprotegida. Era aquilo o que sentia, como se as reservas de força e determinação do marido estivessem a ser desgastadas sob o firme impacte de algo que tinha a ver com a morte daquele homem. Todavia, não fazia ideia sobre o que estaria a provocar uma tal reacção.
Na noite anterior o marido não conseguira adormecer. Acordara subitamente, procurara-o mas ele não estava lá. Dera uma volta pelos aposentos e não o encontrara. Por fim descobrira-o no salão, sentado na cadeira em frente do fogo, com uma caneca de vinho na mão. O marido nada dissera mas pudera ver que os seus olhos se mostravam ansiosos e receosos. Até os cães tinham percebido que havia algo de errado. Tinham-se mantido sentados a seu lado como sentinelas, espreitando o rosto do dono com uma preocupação devotada. Porém, o marido não quisera explicar o que o preocupava nem sequer naquela altura.
- Então, foi assim: quando Sir William entrou aqui não viu o filho dele, nem Sir Ralph, nem sequer o Bruther, não é verdade? E enquanto esteve fora? Viu Sir Robert na charneca?
Christine mordeu o lábio e lançou um olhar angustiado para o marido quando ele respondeu:
- Não.
- Creio que neste momento não temos mais nada para lhe perguntar, Thomas - disse Simon, pondo-se de pé lentamente, a olhar para o mineiro com um certo grau de desagrado. - Porém, pense nisto: se quer que a Lei proteja as pessoas que aqui estão, e não apenas os seus homens mas também a si e à sua família, então tem de nos contar tudo. Sei que está a esconder qualquer coisa. - Saiu da sala, seguido de perto pelos dois servos e por Baldwin, que sorriu para a mulher e lhe fez um aceno.
Christine correu para o lado do marido logo que a cortina se fechou.
- Thomas... - começou, mas ele deteve-a.
- Arranja um mensageiro para ir à procura do George. Diz-lhe para voltar aqui imediatamente porque preciso de falar com ele. Arranja-me um jarro de vinho. Estou tão sequioso como um cão com raiva...
Christine correu para ir cumprir os pedidos. A voz do marido voltara a ter a velha autoridade e estava certa de que já arranjara uma saída para os seus problemas. Christine Smyth tinha razão... mas o seu coração teria mergulhado no desespero se soubesse o caminho que os pensamentos do marido estavam a seguir naquele momento.
Simon trepou para o cavalo, pegou nas rédeas e virou a montada para leste. Baldwin também montou, reparou na mirada rápida do almoxarife e seguiu-lhe o olhar. Na estrada no alto da colina, a leste deles, aproximava-se um cavaleiro, Quando Hugh conseguiu subir para o seu cavalo já era óbvio que se tratava de Alicia.
- Boa tarde - disse-lhe Baldwin num tom agradável quando a jovem se aproximou. - Foi passear até muito longe?
Alicia riu-se, satisfeita com o exercício, com o rosto corado e enca-lorado.
- Fui quase até Chagford - respondeu, dando uma palmadinha no pescoço da égua.
O cavaleiro avançou um pouco e estudou o animal. Tratava-se de uma pequena égua castanha, pouco maior do que um pónei, mas com um aspecto firme, forte de patas e de pescoço pesado.
- Que idade tem ela?
- A Meg? Pouco mais de três anos.
- Se alguma vez vier a ter uma cria... não se esqueça de me avisar. Parece um animal forte e resistente. Imagino que é o animal ideal para este terreno.
Simon juntou-se-lhes. A jovem mirou-o com um certo ar provocador e inclinou a cabeça.
- Está aqui para me interrogar, almoxarife? - perguntou, num desafio. - Não sei se o poderei ajudar, mas talvez deva obrigar-me a contar tudo o que sei.
- Não me parece que precise de a interrogar com muita insistência - retorquiu Simon sem lhe devolver o sorriso. -Já discutimos o assunto com o seu pai. - No entanto, não nos serviu de nada, acrescentou para si mesmo.
Baldwin adivinhava os motivos para o azedume do amigo.
- Diga-me, Alicia - inquiriu, num tom suave - Esteve em Chagford com a sua mãe no dia em que o Peter Bruther morreu. Não o viu durante todo o dia, ou viu?
O rosto da jovem imobilizou-se e deixou de afagar a égua.
- Eu? Não, não o vi na cidade. De qualquer modo não estivemos lá muito tempo. Voltámos para aqui ao princípio da tarde.
Baldwin sorriu para a tentar descontrair e Alicia imitou-o, embora hesitante e pouco segura sobre o que viria a seguir.
- É frequente cavalgar até tão longe?
- A Chagford? Às vezes, mas não muito frequentemente.
- Não acha que pode ser perigoso? Há por aqui muitos homens que gostariam de apanhar a filha de Thomas Smyth..
- Que quer dizer, Sir Baldwin? - perguntou a jovem num tom inocente e Simon teve de virar a cara para esconder o sorriso.
A súbita perturbação do cavaleiro fez com que a sua voz ficasse mais áspera.
- Acho que sabe muito bem do que estou a falar, Alicia... tal como o seu amigo Sir Robert de Beauscyr. - Foi a vez de Alicia corar, não por vergonha, mas sim com uma espécie de orgulho juvenil, e Baldwin acenou, muito sério. - Devia ter cuidado. Há vários tipos de lobos neste tipo de charnecas.
Estava apensar no que Smalhobbe lhes dissera, mas a jovem interpretou-o mal.
- Oh, mas isso é ridículo! O Robert não é desses! Não me interessa o que o meu pai vos disse, porque ele foi sempre amável e gentil para comigo. Só não acredito... - Calou-se e contorceu uma das mãos como se quisesse agarrar as palavras antes destas poderem chegar ao cavaleiro.
- Em que não acredita, Alicia? - perguntou Baldwin num tom baixo mas a jovem abanou a cabeça com firmeza.
- Por favor esqueçam o que eu disse. Não é importante.
- Receio bem que o seja, Sabe, se queremos ter a certeza de que não foi Sir Robert... então precisamos de saber certas coisas. Por exemplo, neste momento nem sequer sabemos onde era que ele estava no dia em que o Bruther foi assassinado. Admitiu que se encontrava nas charnecas mas não nos forneceu nenhuma maneira de o comprovarmos... Foi quase como se pensasse que arranjaria problemas para alguém se dissesse onde estava.
Os olhos da jovem não enfrentaram os dele. Permaneceu perfeitamente imóvel, a olhar para a paisagem, e falou num tom fraco.
- Não estão na verdade a pensar que esteve envolvido no assassínio, pois não? É um homem tão calmo e tranquilo...
- Quem matou o Bruther era provavelmente um homem muito calmo - afirmou Baldwin. - É precisa muita calma para apanhar um homem pelo pescoço e estrangulá-lo, mantendo-se seguro pelas costas até deixar de se agitar...
Alicia estremeceu.
- Foi assim que ele morreu? Não tinha compreendido... - levantou a cabeça instantes depois e enfrentou o olhar de Baldwin com resolução. - Muito bem, responderei às suas perguntas.
- Viu Sir Robert naquele dia?
- Sim. Estava em Chagford quando lá chegámos e vi-o. A mãe não o viu e não percebeu que fui ter com ele. Andara a beber e estava muito infeliz por causa do meu pai lhes exigir dinheiro. Disse-lhe que tentaria falar com o pai para que reduzisse o resgate. Quis ficar a conversar comigo mas a mãe já me estava chamar e tive de ir, pelo que concordei em encontrar-me com ele mais tarde, em Longaford. Nós... já nos tínhamos encontrado aí anteriormente.
- Compreendo. Por isso, foi lá durante a tarde e viu-o?
- Sim. Fui ao fim da tarde, já começava escurecer. Estava bem e os efeitos da bebida tinham desaparecido. Contudo, ainda não tinha conseguido falar com o meu pai. Ele saíra logo que a mãe e eu chegámos de Chagford porque só aguardava pelo regresso do George. Aparentemente, havia um tipo qualquer de problemas nas minas e ia tentar falar com ele mais tarde. Passei o resto da tarde com a mãe. Depois, quando ela foi descansar, escapuli-me para o tor para ir ver o Robert e estive com ele ao princípio da noite. Quando voltei para casa já o meu pai voltara e estava a falar com Sir William e era demasiado tarde para o convencer. Sir William já lhe entregara o dinheiro.
Simon interrompeu-a.
- Que pensa o seu pai do facto de andar a encontrar-se com o Robert?
- Amo Sir Robert... e vou casar com ele. - Alicia levantou a cabeça com altivez. - O facto do meu pai não gostar da família dele não me diz respeito.
- Vai casar com ele?
- Sim. Decidimo-lo ontem.
Então, fora por isso que o jovem se mostrara tão satisfeito na tarde anterior. Baldwin sorriu.
- Posso garantir-lhe que o deixou muito feliz. Diga-me: viu o seu pai chegar a casa nessa noite.
- Não.
- E não viu o Bruther no salão?
- O Bruther? Porquê? Ele esteve lá?
Simon estudou-lhe o rosto mas não detectou nenhuma falsidade.
- Para onde foi com Sir Robert?
- Para oeste e depois para sul. Quando se fez tarde voltámos à estrada e regressámos à mansão.
Simon interveio rapidamente.
- Quer dizer que desceram até às duas pontes?
- Sim - retorquiu a jovem, que se virou para ele, surpreendida.
- Chegaram lá precisamente quando estava a escurecer? Viram dois homens a cavalo?
Alicia acenou uma confirmação.
- Vimos, mas saíram da estrada antes de chegarmos junto deles. Seguiram para norte, na direcção do bosque de Wistman.
Simon e Baldwin trocaram um olhar. Os dois cavaleiros tinham sido Samuel Hankyn e Ronald Taverner.
- Isso já responde a uma das nossas interrogações - afirmou Baldwin, recordando a sua certeza de que Sir Robert estivera na charneca. Nesse caso, a rapariga fora o segundo cavaleiro visto por Samuel.
- No entanto, deixa outra por responder - disse Simon, voltando a encarar a jovem, que olhava de um para o outro com uma expressão interrogativa.
- Alicia, onde estava exactamente antes disso? Chegaram lá pela estrada?
- Sim, mantivemo-nos na estrada, tal como disse. Não havia motivo para a abandonar e de qualquer modo não o faríamos, pelo menos depois de escurecer. É demasiado perigoso, não se conseguem ver os pântanos. Porquê?
Viram mais algum cavaleiro?
- Não, só aqueles dois. Porquê?
No caminho de regresso Simon manteve-se silencioso e preocupado. Não se encontravam mais perto de descobrir quem matara o Bruther e tudo o que conseguiam eram testemunhos em conflito uns com os outros. O mistério dos dois cavaleiros vistos por Samuel já estava respondido,., mas isso não esclarecera o mistério e só servira para pôr em destaque o pouco que compreendiam a respeito do assunto. Thomas Smyth fora visitar Bruther no dia anterior à sua morte mas recusava-se a dizer porquê. John de Beauscyr andara por fora mas recusava-se a dizer onde... e Sir Robert podia ter morto o Bruther antes de ir ao encontro de Alicia.
- Voltamos a Beauscyr, Simon?
A voz calma do amigo quebrou o seu silêncio deprimido e o almoxarife grunhiu um assentimento. Encontravam-se quase junto do caminho, à esquerda, que passava para lá da quinta de Adam Coyt e seguia para a mansão, mas o Sol já se encontrava muito baixo e o vento era cortante e frio. Baldwin ajeitou a capa em volta dos ombros.
- Pensei que estávamos no Verão - resmungou, a tremelicar. Simon encolheu os ombros.
- O tempo, aqui nas charnecas, está sempre a surpreender-nos. Com um vento como este, é provável que chova muito em breve.
- Então, apressemo-nos.
Cravaram as esporas nos cavalos e aceleraram o passo. Por cima deles, as grandes nuvens cinzentas com rebordos tingidos de branco moviam-se através do céu com uma velocidade alarmante. A terra, que até ali parecera tão calma e suave com os seus tons de verde e púrpura, começava agora a ganhar um aspecto mais sombrio. As charnecas tornavam-se ameaçadoras, com as urzes transformadas num lúgubre tapete escuro enquanto os tors, as rochas no alto das colinas, passavam a assemelhar-se a monstros negros e agachados, prontos para saltar sobre os viajantes.
Até o próprio Baldwin soltou um suspiro ante aquela visão. Embora rejeitasse instintivamente qualquer sugestão sobre a possível existência de fantasmas ou espíritos em busca de almas, tal como pensavam Adam Coyt e as outras pessoas da área, era fácil de compreender a facilidade com que esses medos podiam surgir. Os enormes espaços abertos da charneca, com a sua quase total ausência de árvores, faziam com que um homem compreendesse quão pequeno era quando comparado com a vastidão da natureza.
Baldwin espreitou Simon, que cavalgava com uma expressão sombria, encolhido contra o frio, e disse:
- Há uma estranha sensação nestas charnecas quando o tempo muda...
- Sim - murmurou Simon - e ainda bem que reparas nisso, em especial depois do que disseste ao Coyt.
- Ora, não há necessidade de superstições. Só queria dizer que se sente... que há uma certa... uma espécie de malevolência... -A voz apagou-se-lhe numa nota confessional e apologética. O cavaleiro evitou os olhos de Simon.
- Sente-se? Malevolência? E afirmas que não tens qualquer tipo de superstições?
- Simon, podemos sentir um ambiente sem termos de lançar as culpas para cima de fantasmas e espíritos imaginários!
- No entanto, consegues corar quando uma jovem rapariga te namorisca... e pressentes malevolência quando o tempo arrefece!
- Não foi apenas o tempo que arrefeceu! - declarou o cavaleiro com vigor, para evitar falar de Alicia.
- Oh, não? - Simon levantou uma sobrancelha cínica. - A charneca não te incomodava até ao aparecimento das nuvens.
- Isso pouco tem a ver com o assunto. Foi o modo como...
- Sim?
- Há alturas, Simon, em que me pões furioso!
- Pois... mas a minha mulher faz uma boa cerveja e gostas da minha reserva de vinhos... - salientou o almoxarife num tom pedante.
- Por vezes pergunto a mim mesmo se isso será suficiente para justificar a nossa amizade.
Atingiram o caminho e avançaram para a mansão mergulhados no silêncio. Começou a cair uma chuva miudinha que os salpicou e que provocou minúsculas explosões de poeira no solo, mas o ar, ao mesmo tempo, pareceu aquecer e Baldwin libertou-se das dobras do manto. A chuva era um alívio depois do calor dos últimos dias e sempre gostara da sensação das gotas de chuva a baterem-lhe no rosto. Simon, tal como pôde ver, não estava tão satisfeito. O almoxarife cavalgava com as costas dobradas contra os elementos e exibia uma careta de desagrado.
- Bom, Simon - disse - o que vamos fazer agora?
- Não estamos mais perto de uma resposta, pois não? - replicou Simon, desalentado.
- Pelo menos já começámos a compreender um pouco esse tal Bruther - respondeu o cavaleiro.
- Ah, sim? O Smyth diz que ele era um modelo de bom comportamento, o Coyt afirma que era um tipo atrevido e despreocupado que seria capaz de torcer a cauda ao Crockern se tivesse essa oportunidade. Os Beauscyr e o seu convidado consideraram-no como uma espécie de louco, um patife capaz de fazer fosse o que fosse... incluindo ameaçar e troçar de um cavaleiro. O Smalhobbe parece ter tido medo dele ou, pelo menos, alguma desconfiança. A Molly e o Smyth dizem que era bom, trabalhador e honesto, enquanto outros pensam que era desonesto.
- Sim, mas olha para as coisas sob outro ponto de vista, Simon. É natural que os Beauscyr e Sir Ralph não gostassem de um homem como o Bruther. Ia contra a ordem natural das suas vidas, uma vez que não só se atrevera a fugir como não revelou quaisquer remorsos ou culpas por o ter feito. Esse facto marcava-o como sendo um perigo, alguém preparado para se opor a tudo o que consideravam mais precioso... e o pior era que não podiam fazer nada a esse respeito. Para Coyt tratava-se de um homem quase impossível de compreender porque não tinha medo das charnecas nem se deixava aterrorizar pelo Crockern. É compreensível, por se tratar de um agricultor que passou toda a sua vida ali...
- E quanto aos outros? - perguntou Simon, - O Smalhobbe parecia não gostar dele.
- Pois parecia, mas isso podia dever-se à sua própria posição. Tem medo de ser denunciado como fora-da-lei, embora saiba lutar, tal como disse o Magge. Um homem que compreende que está a ser emboscado e rodeia o seu atacante deve ter tido algum treino militar, quer este se devesse a uma aprendizagem convencional... ou a experiências menos honestas. De qualquer modo, estava claramente ressentido por não ter conseguido proteger-se a si mesmo e à mulher, enquanto o Bruther se mantinha em segurança...
- Tal como disseste, a Molly e o Smyth quase reverenciam a sua memória.
- Os motivos da Molly são compreensíveis, graças a Deus! Pensava que o rapaz a iria salvar da vida que leva na estalagem e que faria dela a sua esposa.
- Sim, mas então o Smyth? Há aí qualquer coisa de estranho. - Simon calou-se, mergulhado em pensamentos.
- O quê? - incitou-o Baldwin.
- Pode não ser nada, mas... Toda a gente com quem falámos se referia a ele como sendo "o Bruther", excepto duas pessoas. A Molly e o Smyth trataram-no por "Peter". Não sei... mas ambos pareciam conhecê-lo bem... ou pelo menos melhor do que os outros. Reparaste nisso?
- Não, não reparei- respondeu Baldwin com as sobrancelhas contraídas e quase juntas. - No entanto, tens razão, foi o que fizeram. Porquê?
George Harang atirou as rédeas ao cavalariço, saltou do cavalo e correu para o salão. No interior encontrou Thomas Smyth sentado na sua cadeira na frente do fogo, agarrado a uma caneca. Levantou os olhos quando o servo entrou, de rosto vermelho e sujo depois da cavalgada sob a leve chuva e com o rosto carregado de preocupação.
- Senhor? Recebi o seu recado e vim logo que pude. Que se passa? O rapaz disse que o almoxarife e o amigo estiveram aqui a fazer perguntas. Há alguma coisa errada?
Thomas Smyth reagiu com um sorriso fatigado.
- Não, meu velho amigo,., ou pelo menos não da maneira que pensas. Contudo, agora já sei quem matou o Peter. Na noite em que Sir William nos visitou veio acompanhado pelo filho, o estupor do John. O John deixou-o à nossa porta e foi para a estalagem. O pobre do Peter estava lá, mas de acordo com a Molly foi-se embora para casa um pouco antes do John aparecer.
George franziu a testa.
- Nesse caso, devem-se ter cruzado na estrada.
- Sim... e a seguir o Peter desapareceu. Quem o podia ter morto? Só podia ter sido o estupor do John Beauscyr!
- Que quer que...
- Não sejas estúpido! - Smyth cuspiu as palavras com desprezo. - Quero a sua cabeça, aqui, agora, em cima do meu colo! Aquele verme patético matou o meu Peter e provavelmente pensa que consegue safar-se! O almoxarife é incompetente... ou está a ser pago por Sir William. Não sei e não me interessa! Tudo o que sei é que o John matou o Peter e que tem de pagar por isso.
- Então, quer que eu diga isso ao almoxarife?
- Não me ouviste? O almoxarife é inútil!Temos de o apanhar e de fazer justiça! O Peter era um mineiro e encontrava-se sob as nossas leis. Nós, como mineiros, podemos obter justiça. Não podemos confiar nos funcionários porque têm as mãos metidas nas bolsas dos Beauscyr e não se preocupam connosco. Por que haveria o almoxarife de se ralar com as nossas dificuldades? Não nos serve de nada e vamos ter de ser nós a apanhar aquele Beauscyr. Quero um grupo de homens para amanhã, todos armados, para irmos prender o John Beauscyr. É um assassino... e irá pagar!
George saiu da sala a correr com o cérebro num rodopio, Não tivera tempo para contar ao amo a conversa com a Molly, na estalagem e hesitou por um instante. Deveria voltar ao salão para informar o amo a esse respeito? Contudo, acabou por abanar a cabeça. O amo tinha novas provas e o que George ouvira da boca da rapariga deixara de ser importante. Precipitou-se para o cavalo.
Mais uma vez a sós, Thomas Smyth regressou à sua solitária vigília junto do fogo, Era estranho, pensou, de um modo abstracto, mas as chamas já não o conseguiam aquecer. Desde o assassínio de Peter que não conseguia nem descanso, nem paz de espírito enquanto o cansaço da inacção lhe devorava os ossos. Estremeceu e esboçou um sorriso para si mesmo. Então, a velhice era aquilo, uma exaustão que lhe esgotava a força de vontade e a fome por dinheiro e poder. Anteriormente não fora assim, quando cada dia constituíra uma nova oportunidade, uma nova possibilidade de expandir a área de mineração e de aumentar as suas riquezas, Agora, já nada daquilo o parecia interessar.
A sua esposa, Christine, abriu a porta do salão. Viu-lhe as feições tensas e encovadas e apressou-se a ir ter com ele sentindo-se como se o seu coração estivesse para rebentar. Passou-lhe os braços em volta do corpo, apertou-o e sentiu o mesmo que sentira quando embalara os filhos, oferecendo-lhes protecção e segurança. O facto de estar a prestar aquele pequeno serviço ao seu homem fez com que a respiração se lhe prendesse na garganta como se fosse um caroço de ameixa e as lágrimas de simpatia subiram-lhe aos olhos. Dos filhos, seis no total, só um sobrevivera. Todos os outros haviam sucumbido sob o frio e as doenças que atacavam igualmente os bebés dos ricos e dos pobres.
Thomas acabou por se libertar e olhou para o rosto dela, manchado pelas lágrimas, com uma espécie de espanto. Levantou uma das mãos devagar e tocou nas gotas que lhe escorriam pelas faces. A seguir suspirou e puxou-a para o colo num abraço muito apertado. Chegara a vez de ser ela a chorar e a soluçar e de ser ele a embalá-la, o que fez com que acabasse por sentir que a fraqueza da esposa o fazia ganhar forças. A abstracção e o desespero abandonaram-no e descobriu-se invadido por uma determinação rígida. Iria vingar Peter Bruther... acontecesse o que acontecesse.
Lentamente, a infelicidade abjecta de Christine começou a desaparecer e sentiu que os braços do marido a apertavam com mais intensidade à medida que ia recuperando as forças. Quando se libertou do abraço verificou que os seus olhos agora negros brilhavam com um propósito firme. Suspirou enquanto limpava os olhos com as costas da mão e voltou a sentir-se incapaz de o ajudar. Respirou Rindo e conseguiu dizer:
- Então, vais com os homens em busca do assassino? - antes das lágrimas lhe voltarem a embargar a voz.
- Ouviste-nos?
- Não estive à escuta. Falaste suficientemente alto para seres ouvido pelos mineiros no acampamento.
O rosto do marido permanecia sério.
- Iremos amanhã. - Odiava vê-la vexada mas não havia nada que pudesse fazer quanto a isso. A mulher precisava de compreender que tinha uma obrigação para com o Peter Bruther.
Christine esboçou um sorriso fraco.
- Vais apanhar o John Beauscyr e enforcá-lo? Vais linchá-lo como a um vulgar criminoso?
- Não foi o que ele fez ao Peter? Asfixiou-o pelas costas como um vulgar fora-da-lei. Que esperas que faça?
- Espero que, ao menos, se possa defender.
- Para quê, para arranjar um advogado? Para que serviria? Sabemos que foi ele. Não havia lá mais ninguém.
- Mas, Thomas... E se não foi?
- Foi! - retorquiu, com aspereza. Expulsou-a do colo e saiu do salão.
Os olhos de Christine acompanharam-no com tristeza. Embora não se atrevesse a falar em voz alta, os seus lábios moveram-se para articular as palavras:
- E se não foi ele?
Simon e os outros chegaram a Beauscyr no preciso momento em que Sir William regressava de uma caçada, cansado e frustrado depois de um longo dia na sela que terminara sem nada para mostrar. Parecia que os animais tinham desaparecido. As áreas que geralmente lhe garantiam comida estavam vazias: os coelhos, nas suas tocas, haviam sofrido os ataques de um predador, os pombos-bravos tinham-se mudado para outro lado e não havia garças no lago dos peixes. Por fim decidira voltar para casa e dizer aos cozinheiros para matarem algumas rolas das capoeiras para darem de comer aos hóspedes.
Ver os quatro homens não serviu para lhe melhorar a disposição. Para ele, era como se aqueles aparecessem sempre que acontecia algo de errado... ou como se a infelicidade os acompanhasse. Se o tivessem ajudado anteriormente, quando o Peter Bruther rugira, então sentir-se-ia de um modo diferente mas a ineficiente resposta do almoxarife à crise - ou, na opinião de Sir William, a sua completa falta de compreensão e pouca vontade de ajudar -, tinham-no deixado com uma opinião amarga a respeito do homem. Quanto ao amigo... parecia divertir-se com as provações que a mansão estava a sofrer. Por isso, foi com o queixo algo atirado para a frente que o ancião acenou para Baldwin e Simon. A sua ira não se dissipou quando o almoxarife lhe pediu imediatamente para falar com ele.
- Agora? - retorquiu. O almoxarife devia compreender que queria mudar de roupa, lavar-se e descansar durante um bocado antes de ter de aturar mais perguntas, mas o Simon insistiu e o cavaleiro acabou por concordar, embora com má catadura. Hugh e Edgar foram tratar dos cavalos enquanto os três homens se dirigiam para o salão. Quando aí chegaram descobriram um certo número de guardas a jogarem aos dados em frente da lareira, guardas que mostraram muito pouca vontade de se mudarem para a casa da guarda, cheia de correntes de ar. No fim, foi preciso um berro furioso do amo para os convencer de que não se encontrava com disposição para brincadeiras, pelo que os homens recolheram as suas coisas com maus modos e foram-se embora.
- Bom. O que é?
Simon sentou-se. Momentos depois Sir William compreendeu que aquela reunião iria demorar algum tempo e também se deixou cair numa cadeira. Baldwin sentou-se a alguns metros de distância, a observar o cavaleiro com interesse. A sua ira era clara e Baldwin percebia como o homem se deveria sentir. Tanto quanto lhe dizia respeito, a morte de Bruther nada tinha a ver com ele, No fundo, o assassino até lhe poupara muitos problemas... e ponto final. Para além disso, a lei, ali representada pelo almoxarife para quem se virara logo desde o princípio, não servira de grande coisa. Comportara-se da maneira mais apropriada e chamara um funcionário do monarca quando enfrentara o problema, mas isso não lhe dera qualquer conforto. O que parecera ser um simples caso de um servo a escapar-se da propriedade transformara-se numa confusão de manobras políticas entre ele, como proprietário, e os mineiros. Para além disso, pelo menos do seu ponto de vista, o almoxarife pusera-se do lado dos mineiros e opusera-se às suas reclamações. Agora, o almoxarife continuava à procura do homem que lhe resolvera os problemas como quem varre a neve do caminho. No que tocava a Sir William, Simon podia continuar à procura até ao fim dos tempos, No entanto, ainda podia ser convocado para uma conversa com o almoxarife sempre que o maldito funcionário o desejasse.
Para o velho cavaleiro, tal como Baldwin sabia, o pior era precisamente o facto de o almoxarife o poder fazer quando lhe apetecesse. Sir William podia ser velho mas não era parvo. Embora tivesse um álibi, sabia perfeitamente que os filhos não o tinham e quaisquer reticências da sua parte poderiam ser consideradas suspeitas, em particular desde que Sir Robert pensara que a morte de Peter Bruther poderia ser benéfica para a sua herança. Mesmo assim, ser convocado para discutir o assunto imediatamente depois de um dia passado na sela constituía, no mínimo, uma falta de cortesia por parte do hóspede.
Agora mantinha-se sentado com um ar imponente e com a testa contraída enquanto tentava controlar o temperamento. Ainda por cima, o prolongado olhar avaliador a que Simon o sujeitou não serviu para lhe melhorar a disposição.
- Sir William - acabou o almoxarife por dizer - também nós passámos muitas horas a cavalo e visitámos um certo número de pessoas...
- Vá direito ao assunto, almoxarife... - grunhiu Sir William.
- Muito bem. No dia em que o Peter Bruther morreu o senhor saiu daqui com o seu filho John, com o seu hóspede, Sir Ralph, e com dois homens de armas. É verdade?
- Sabe bem que é.
- Pois sei. Viu mais alguém na estrada durante o caminho até à casa do Thomas Smyth?
Na voz de Simon havia algo que parecia indicar que a pergunta era importante. Sir William ficou a pensar por instantes, com o rosto contraído numa carranca de concentração.
- Passámos pela quinta do Coyt... - acabou por dizer - e aí não havia ninguém na estrada.
- E no resto do caminho? Haveria alguém entre esse ponto e a casa do Thomas Smyth?
- Não. Tenho a certeza de que não havia.
- Óptimo! Quando lá chegaram, o que se passou, com toda a exactidão?
- Desmontei e o John e Sir Ralph decidiram deixar-me ali. Preferiram ir até à estalagem em vez de ficarem à espera comigo.
- E os homens de armas?
- Tinha-lhes dito para me deixarem pouco depois de passarmos pela estrada do Coyt. Não queria que ouvissem o que ia discutir com o Smyth, mas tive de informar o John. Não me encontrava numa posição muito agradável, pois não? Por que iria deixar que os homens ouvissem aquelas coisas? De qualquer modo, já lhe tinha contado tudo isto. Quer ouvir a história outra vez?
- É importante, Sir William. Agora, viu alguém na estrada à vossa frente quando se separou do seu filho? Havia alguém a aproximar-se da casa, vindo do leste?
- Não, claro que não!
- A partir dali a charneca é quase plana e consegue ver-se a uma grande distância. Avistou alguém na charneca?
Sir William olhou primeiro para Simon e depois para Baldwin, e a irritação tornou-lhe a voz mais seca.
- Não! Porquê? O que está a sugerir agora, almoxarife? Quem é que eu devia ter visto?
Simon ficou calado mas Baldwin olhou para o cavaleiro, hesitante.
- Sabemos que o Peter Bruther esteve na estalagem naquela noite e que saiu pouco antes do seu filho lá chegar. Parece provável que se tenham encontrado na estrada. Porém, se o fizeram, por que é que o seu filho não o disse?
- E quem diz que o John viu o homem? O Bruther pode ter-se escondido quando viu o meu filho a aproximar-se.
- Não ali, SirWilliam. Conhece a área tão bem como nós. Não há lugares para um homem se esconder, pelo menos perto da estrada. Para além disso já sabemos que o Bruther estava habituado a passar pela charneca, perto da casa do Smyth... e isso parece indicar que o seu filho o deve ter encontrado.
- E então? Está a dizer que o John matou o homem, arrastou o corpo até ao bosque de Wistman e correu de volta à estalagem? Presumo que lá esteve aquela noite.
Simon suspirou.
- Esteve, sim, mas...
- E chegou lá na companhia de Sir Ralph? Ou apareceu depois do amo?
O almoxarife semicerrou os olhos para as chamas.
- Chegaram juntos - admitiu.
- Mesmo assim, atreve-se a insultar o nome do meu filho na minha presença e na minha casa! - Os olhos de Sir William estavam escancarados de raiva. - Sugere que o meu filho é um assassino, um homem capaz de estrangular outro e pendurá-lo numa árvore... quando não tem qualquer espécie de prova?!
- Sir William, por favor! - Simon falou de um modo lento, procurando manter uma voz normal e calma. - Não tenho qualquer desejo de o insultar a si ou ao seu filho, Sir William, e o senhor sabe-o. No entanto, parece óbvio que John se encontrava na área na altura em que o jovem Bruther também lá estava, e é provável que o tenha visto. Não estou a dizer que o seu filho foi o único que o viu. É óbvio que Sir Ralph também lá se encontrava e é possível que se tenha recordado da humilhação que sofreu às mãos do Bruther. Não seria o primeiro soldado a matar alguém que o tivesse insultado. Tanto quanto consigo ver, não havia qualquer razão verdadeira para que o John matasse o jovem, mas Sir Ralph tinha motivos, não é verdade? De qualquer modo, o senhor já me confirmou que não viu o Bruther na estrada. As pessoas da estalagem têm a certeza de que ele saiu um pouco antes do John e Sir Ralph lá chegarem e foi por isso que presumi que se tivessem cruzado com ele quando ia a caminho da estalagem.
O velho cavaleiro fitava-os, horrorizado. A sua expressão de choque era visível para os dois homens.
- Mas... mas... De certeza que o Bruther já tinha passado antes de chegarmos à casa do Smyth... - gaguejou.
- Como já disse, Sir William, se ele tivesse passado o senhor tê-lo-ia visto na charneca. A partir da estrada para Beauscyr tem-se uma visão de quilómetros e a estrada é toda assim até à estalagem. Se estava na charneca... então o senhor deveria tê-lo avistado.
- Não andávamos à procura dele... - o tom começava a ser de rogo. - Podia lá estar em cima e não termos reparado. Talvez se escondesse atrás de uma rocha? Há por lá muitas e só precisava de um instante para o fazer. Deve ter sido isso! Viu-nos, compreendeu quem éramos e desapareceu das vistas porque devia saber que Sir Ralph ia querer vingar-se dos insultos que proferira quando se tinham encontrado anteriormente.
- Não, Sir William, não pode ter sido isso - afirmou Baldwin. Fê-lo de uma maneira precisa, para não dar oportunidade aos mal-entendidos. - Cavalgámos por ali várias vezes no último par de dias. Se o Bruther lá estava, então o senhor deve tê-lo visto. Contudo, não o viu e os seus homens também não. Tinha homens de armas consigo, que deveriam estar atentos aos mineiros ou a alguém que pudesse constituir uma ameaça. Para além disso, o seu filho e o respectivo cavaleiro também devem ter mantido os olhos abertos. São homens de guerra e estão pouco habituados à paz. Custa-me a acreditar, mesmo que o senhor estivesse concentrado na sua reunião com o Smyth, que os seus companheiros fossem tão descuidados que se esquecessem de manter a vigilância. Claro que o Bruther podia já ter passado, mas se assim fosse de certeza que teria sido visto pelo Samuel e pelo Ronald depois de os ter dispensado.
- Porquê? Teriam seguido na direcção oposta para regressarem aqui.
- Pois, mas seguiram para Dart para beberem cerveja. - Foi por isso que encontraram o corpo... e deixaram a estrada por causa de dois cavaleiros que pensaram poder ser mineiros. Isso quer dizer que o Bruther ainda não tinha passado, o que, por sua vez, significa que o seu filho e Sir Ralph o devem ter encontrado mais tarde.
O ancião olhava de um para o outro com um rosto repentinamente pálido e ceroso. Os olhos, enormes e que o medo tomava quase luminosos, pareciam trair as suas próprias dúvidas a respeito do filho, mas acabaram por se fixar em Simon com uma expressão de desespero.
- No entanto, nada sugere que o John o matasse, tal como disse. Deve ter sido o amo, Sir Ralph. Por que iria o John matar aquele homem? Não tinham nada a ver um com o outro.
Simon olhou para Baldwin, numa tentativa para evitar o infeliz espectáculo da desintegração do cavaleiro. Suspirou, olhou para as mãos pousadas no colo e disse:
- Lamento, Sir William, mas ainda há mais... os dois homens chegaram juntos à estalagem, mas o seu filho saiu momentos depois e esteve fora durante muito tempo. Pode ter arrastado o corpo pela charneca, até ao bosque, para o ir pendurar na árvore antes de regressar. - Forçou-se a enfrentar o olhar do velho cavaleiro. - Pode ter a certeza de que lamento - declarou, com simplicidade.
Sir William levantou uma das mãos e fez um gesto curioso e fútil como se estivesse a afastar uma mosca, recusando a sugestão de que o filho pudesse ter estado envolvido. Abriu a boca para falar... mas a porta escancarou-se naquele momento para deixar entrar a esposa antes que o pudesse fazer.
Pareceu surpreendida ao ver o pequeno grupo. Deteve-se de repente ao aperceber-se do ambiente que pairava no salão, mas a seguir ergueu as sobrancelhas e avançou de um modo lento e ameaçador na direcção dos homens, com os olhos acusadores sempre postos no almoxarife.
- Ouvi dizer que o meu marido tinha regressado, almoxarife, mas não me tinha apercebido que tinham monopolizado a sua companhia desde esse momento. Em geral, os hóspedes permitem que o anfitrião seja saudado pela esposa depois de um dia inteiro de separação. - A voz da mulher era gelada quando parou junto de Sir William.
Simon soltou um suspiro. Matillida Beauscyr quase tremia de fúria e não tinha nenhuma vontade de sofrer os efeitos da sua língua afiada, mas sabia que seria essa a sua sorte se levantasse a mais pequena suspeita a respeito do filho mais novo da mulher. A simples presença da esposa já instilara novas forças em Sir William e o almoxarife verificou que o cavaleiro não estava com disposição para deixar prosseguir a entrevista sem ela.
- As minhas desculpas, minha senhora. Não tive a intenção de deter o seu marido mais do que o necessário e não quis aborrecê-la, mas ainda temos de discutir algumas questões...
- Por favor, não se preocupem comigo e continuem - declarou, com uma polidez gelada. - Esperarei até terminarem e a seguir talvez possa dar as boas-vindas ao meu marido... em paz e sossego.
A chegada da mulher agira como um tónico para o marido e Sir William endireitou-se na cadeira. Baldwin examinou-o e verificou que os olhos do velho estavam novamente mais firmes e tinham perdido a ansiedade. Baldwin tossiu ligeiramente, numa leve limpeza da garganta que fez com que os Beauscyr se virassem para ele.
- Minha senhora, sente-se, por favor, se deseja ficar. Entretanto, Sir William, importa-se de pedir a um dos servos que vá buscar o seu filho?
A mulher lançou-lhe um olhar de raiva por ver recusado o seu desejo de ficar a sós com o marido, mas este soltou um pequeno suspiro e acenou uma confirmação antes que ela pudesse protestar. Como o homem permaneceu sentado e silencioso, Simon chamou o servo encarregue das bebidas com um súbito berro e o homem de cabelos grisalhos apareceu imediatamente, a saltitar sobre os pés como um coelho medroso. John surgiu pouco depois, com um sorriso sardónico estampado no rosto, logo seguido por SirRalph. O cavaleiro, conforme Baldwin reparou, parecia pensativo como se também esperasse ser acusado de qualquer coisa.
John sorriu-se para o grupo ali reunido, avançou para um banco e sentou-se. Cruzou os braços e ficou a olhar para Simon com uma sobrancelha erguida numa interrogação.
- Em que lhe posso ser útil, almoxarife?
- No dia em que o Peter Bruther morreu deixou o seu pai na casa do Thomas Smyth e cavalgou directamente para a estalagem, não é verdade?
- Sim, como o senhor muito bem sabe.
- Encontrou alguém pelo caminho? - inquiriu Simon e Baldwin verificou que o amigo não enfrentava os olhos do jovem escudeiro enquanto fazia a pergunta. Era como se preferisse escutar atentamente as tonalidades da resposta e não quisesse ser distraído pelas expressões ou gestos do jovem.
Baldwin pensou que John reagiu bem, Ficou sobressaltado, o que se tornou óbvio pelo modo como aspirou o ar e lançou uma olhadela ao pai, mas recuperou rapidamente e olhou para Simon com um rosto pensativo.
- Posso ter visto - afirmou despreocupadamente - mas na verdade não me recordo.
- Não se recorda... - repetiu Simon numa voz pesada. De súbito rodopiou e enfrentou-o. - Está a desperdiçar o meu tempo e o do meu amigo, Beauscyr! Viu o Peter Bruther a regressar da estalagem, não viu? Já fomos informados sobre a sua chegada à estalagem e sobre a saída do Bruther. O que aconteceu quando o viu?
O desprezo na voz de Simon cortou a arrogância do jovem como um machado a cortar toucinho. John recuou ante a ira do almoxarife e levantou uma das mãos como que para aparar um golpe.
- Não! Não o matei e não pode afirmar que o fiz!
- O que foi que aconteceu na estrada, naquele dia? - Simon já estava meio levantado da cadeira, a fitá-lo intensamente, e Sir William preparou-se para proteger o filho. Foi isso que fez com que o rapaz recuperasse a calma. Viu o pai a inclinar-se para a frente para se levantar e suspirou. O seu rosto revelava o nervosismo que sentia mas enfrentou os olhos de Simon com resignação.
- Sim, é verdade que encontrámos o Bruther - admitiu.
A sala como que se imobilizou repentinamente, com toda a gente à escuta do jovem Beauscyr. Baldwin pensou que Simon parecia tão atento como um caçador a estudar a presa. O rosto de Sir Ralph revelou uma espécie de medo doentio que aumentou ainda mais a sua palidez. Sir William pareceu encolher-se na cadeira e ficou a olhar para o filho com a preocupação ansiosa de um ladrão que vê os jurados a deliberarem sobre a sua culpa. Lady Matillida ficou como que paralisada.
- Vinha da estalagem, tão emproado como um galarote e igualmente arrogante. -John fungou ante a recordação. - Ao princípio nem sequer reparámos nele, mas quando se aproximou soltou uma espécie de gargalhada, o que me fez levantar os olhos e só então vi quem ele era.
- Estava sozinho? - perguntou Simon e o rapaz abanou a cabeça. - Oh, não, almoxarife! Tinha consigo alguns dos seus amigos mineiros... ou tê-lo-íamos morto logo ali! Seria fácil se estivesse só. Infelizmente, não estava.
- Reconheceu os homens que estavam com ele? Pode dizer-nos os seus nomes?
- Não. Normalmente, não me associo a esse tipo de vagabundos.
- Sir Ralph? Pode confirmar isto?
Baldwin olhou para o cavaleiro quando Simon fez a pergunta. Sir Ralph acenou uma confirmação e respondeu:
- Sim. Foi um embaraço termos de nos submeter novamente às suas troças, mas não tínhamos por onde escolher. Podíamos ter atacado por estarmos montados e eles irem a pé, mas os nossos cavalos não eram de guerra. A minha pequena égua não serviria de nada. Ter-se-ia encolhido ao primeiro golpe e poderiam arrancar-me da sela enquanto a tentasse controlar. Se montasse o meu cavalo de guerra... então não teria hesitado.
- Porquê? Que foi que eles disseram?
- Fizeram vários comentários a nosso respeito, chamaram-nos estrangeiros e invasores da propriedade alheia, e disseram-nos para abandonarmos a charneca antes que os mineiros nos expulsassem... para além de outras coisas do mesmo cariz...
- E o Bruther mostrou-vos a corda?
- Sim, não perdeu a oportunidade de me recordar a humilhação por que passei - declarou o cavaleiro com um aceno e num tom contraído.
Simon virou-se novamente para John.
- E a seguir, prosseguiram para a estalagem?
- Sim, por amor de Deus! De que estava à espera? Que os seguíssemos até ao acampamento? Não fomos assim tão estúpidos! - troçou John, convencido de estar na mó de cima. - E ficaram lá?
Baldwin pressentiu que o sorriso do jovem se tornou um pouco rígido. Para além disso, John pareceu um pouco inquieto com a pergunta.
- Bom, é claro! Por que iríamos sair? É um lugar agradável para passar algumas horas.
- Não sei por que motivo iria querer sair, John, e foi por isso que fiz a pergunta. Onde foi quando saiu da estalagem? Regressou muito tempo depois. Por onde andou?
De repente as cores regressaram-lhe ao rosto sob a forma de duas manchas vermelhas, de ira, no alto das faces.
- Então, andou a fazer perguntas? Interrogou aqueles brutos da estalagem a meu respeito como se eu fosse um fora-da-lei? Como se atreve,..
- Já chega! Quero saber para onde foi e porquê! Também quero saber o que viu. Quem poderá confirmar para onde foi, o que fez, quanto tempo lá esteve e quando voltou para junto do seu amo?
- Não vou responder! - O jovem levantou-se, encarou o almoxarife e encaminhou-se para a porta, - Um momento, John! - O chamamento de Simon fez com que o rapaz parasse, mas não respondeu ao xerife com palavras ou movimentos. Nem sequer se virou para ele ficou parado, rígido como um carvalho enquanto Simon prosseguia. - Informo-o que pode sair desta sala agora mas que não poderá abandonar a mansão. Se o fizer declará-lo-ei fora-da-lei e exigirei um grupo de perseguição para o capturar. Não sei o que se passou naquela noite... mas está a ser obstrutivo e isso deixa-me desconfiado. É o único homem que não parece em condições de relatar as suas acções naquela noite e isso transforma-o no principal suspeito. Irá haver um magistrado nomeado para ouvir e registar os acontecimentos que rodearam a morte do mineiro... e será um magistrado dos mineiros. Sabe o que isso quer dizer? Significa que o grupo de jurados será constituído não apenas por homens de Devon mas também por mineiros, e que irão pedir-lhes para julgarem se pensam que podia ter morto o Bruther. Pense nisso! Pense bem nisso... porque se não começar a responder às minhas perguntas ponho-o a ferros no castelo de Lydford. Agora, saia, se quiser. Voltarei a falar consigo amanhã de manhã.
O rapaz saiu da sala sem responder e Simon olhou para o pai e para a mãe. Permaneciam sentados, rígidos como as estátuas de um túmulo, com as faces transformadas em máscaras de choque e de horror.
- Sir William, Lady Matillida, lamento muito que tenhamos chegado a este ponto. Por favor perdoem-me, mas não posso trair o meu dever. Se puderem, falem com o vosso filho e convençam-no a contar-me a verdade. - Simon levantou-se. Baldwin, que não quis ficar a sós com os pais do rapaz, também se levantou rapidamente e foi atrás do amigo.
Matillida ficou parada a olhar. Não conseguia compreender a enormidade das dificuldades em que a sua família se encontrava. Moveu a cabeça para um lado e para o outro numa negação silenciosa da culpa do filho. Era impossível, incrível, que ele pudesse ser objecto de suspeitas. John, o seu filho, sempre tão brilhante, sempre tão honrado... os seus pensamentos saltaram imediatamente para as implicações do facto. John tivera conhecimento dos actos de Bruther, que fugira da mansão, provocando a vergonha e o embaraço da família, e ouvira falar nos insultos ao seu amo. Se se tivesse zangado com mais uma humilhação a Sir Ralph, então era possível que tivesse decidido vingá-la para, simultaneamente, exorcizar o espírito do mal que Bruther impusera aos Beauscyr. Era um pouco selvagem e teimoso, sempre o fora, e não havia dúvidas de que seria capaz de matar.
Só um homem podia lançar alguma luz sobre tudo aquilo. Olhou para Sir Ralph, que fitava a porta com um trejeito de perplexidade.
- Que foi que os mineiros vos disseram naquela noite?
Sir Ralph estava distraído, sobressaltou-se com a pergunta e coçou a cabeça.
- Foram obscenos, minha senhora. Insultaram-nos aos dois e aos nossos pais. Também fizeram alguns comentários a seu respeito e foi isso o que nos deixou mais zangados - respondeu, fitando-a com olhos lacrimejantes.
- E o John... matou o Bruther? - perguntou Matillida numa voz sem entoação. Foi como se o estivesse a interrogar a respeito do tempo, sem qualquer vacilação que pudesse revelar a agitação interior. Embora o cavaleiro não respondesse, os seus olhos assombrados confirmaram o que pensava. Teve de engolir em seco, com força, antes de se levantar com alguma dificuldade e de sair do salão.
Hugh e Edgar tinham ficado à espera no seu local favorito, junto à cozinha, onde haviam posto o servo encarregue das bebidas a encher-lhes as canecas com a sua melhor e mais forte cerveja. Simon e Baldwin juntaram-se-lhes e o homem apressou-se a ir buscar mais bebida. Sentaram-se num banco, com Simon a apoiar a cabeça nas mãos e a massajar as têmporas. Quando levantou um pouco a cabeça viu uma caneca no chão, a seu lado, e tomou um grande gole.
- Assim é melhor... - murmurou, limpando a boca com a mão. Arrotou e olhou para o amigo. - Então, o que pensas?
- Eu? Se o rapaz não responder as coisas irão correr muito mal para ele - afirmou Baldwin tranquilamente. Instantaneamente, os dois servos quiseram saber de quem estavam a falar e Baldwin explicou-lhes o que se passara no salão. - O John está a esconder-nos qualquer coisa - concluiu.
- Pelo seu comportamento, parece-me suficientemente claro que, no mínimo, deve ter tido uma intervenção qualquer no assassínio - disse-lhes Simon. - Que outra razão pode haver para se manter calado? No entanto, por que motivo nem sequer inventou uma história? É isso o que me mais me intriga.
- O quê, não tem um álibi? - Edgar pousou a caneca da cerveja. - Não ofereceu qualquer tipo de explicação? - inquiriu, surpreendido.
- Não, nenhuma. Recusou-se a explicar onde foi. - Simon abanou a cabeça, preocupado. - O rapaz não é estúpido e deve calcular a que conclusões iremos chegar. Se não fizer um esforço para demonstrar a sua inocência... então só há um pressuposto...
- Há outra coisa estranha... - murmurou Baldwin tão baixinho que os outros três quase não ouviram as suas palavras. Viraram-se para ele com expressões mistificadas e o cavaleiro acrescentou: - Quero dizer que me parece estranho que John e Sir Ralph tivessem ido à estalagem em busca da Molly... a rapariga que o Bruther aparentemente também desejava... pergunto a mim mesmo... - Franziu a testa e ficou a olhar para a distância.
- O quê? - perguntou Simon um minuto depois, irritado com a pausa.
- Hum? Oh, estava só a pensar. Se o John queria realmente irritar o Bruther, então a melhor maneira seria dizer que ia para a cama com a rapariga do mineiro. No fim de contas, o Bruther nada poderia fazer quanto a isso... excepto talvez desafiá-lo!
Simon olhou-o de boca aberta.
- Podia tê-lo feito, não podia?
- Pelo menos, serviria para explicar os factos: John e Sir Ralph encontram o mineiro, há uma troca de palavras, o escudeiro ameaça ir à procura da Molly, o mineiro promete-lhe uma luta se ele o fizer, o cavaleiro e o escudeiro vão para a estalagem, o mineiro segue na sua esteira, vê a rapariga a ir com o cavaleiro e fica à espera cá fora. Um pouco depois o escudeiro sai, combinam a luta, encontram-se na charneca, combatem até à morte e...
- E o rapaz morre. John leva o corpo para o bosque, enforca-o e depois...
- Pois, é esse o problema, não é? - disse Baldwin quando Simon se calou.
Hugh olhou de um para o outro.
- De certeza que isso explica tudo, não é verdade?
- Não, Hugh - suspirou Baldwin. - Não explica. Em primeiro lugar John não teria medo de o admitir. Um desafio feito em frente dos mineiros fornecia-lhe testemunhas, fazia com que a morte fosse em autodefesa e ilibava-o de uma acusação de assassínio. Em segundo lugar, toda a estalagem estaria consciente de que iria haver um combate. Em terceiro...
Simon interveio de repente:
- Em terceiro... desde quando é que os homens combatem até à morte apenas com finas cordas para se estrangularem um ao
outro?
Hugh olhou para o chão com um ar truculento e sugeriu:
- Talvez lutassem com facas ou espadas e não tenha reparado nos ferimentos?
Baldwin lançou-lhe uma olhadela.
- Não, Hugh. Não havia facadas... ou teríamos dado por isso. O Bruther morreu de uma corda em volta do pescoço. Deixou marcas e essas marcas só aparecem num corpo vivo. A marca era fina, pelo que a corda que o matou não pode ter sido mais grossa. Quando uma pessoa continua viva as marcas diluem-se e apagam-se com o tempo. Para além disso, quanto mais nítida for a marca mais recente é o ferimento. Porém, se alguém morre de um golpe ou, neste caso, por estrangulamento, então não se verificam alterações nas marcas. Já me disseram que Deus dispôs as coisas desse modo para nos ajudar a descobrir como foi que um homem morreu.
O servo tinha um ar espantado.
- Como é isso possível? - perguntou, com uma careta. - Tem a certeza?
- Já vi muitos mortos, Hugh - disse Baldwin num tom grave. - Talvez até demasiados. Sobrevivi às guerras e vi os efeitos que provocam nas suas vítimas. É por isso que sei.
Ficaram todos em silêncio por instantes. Simon via que o seu amigo estava mergulhado em meditações sombrias mas não sabia como distraí-lo dos seus pensamentos. Para seu alívio, foi Edgar quem o fez. O servo contemplou o amo por um momento, fez um movimento como se estivesse desinteressado e perguntou:
- E então, para onde foram os mineiros?
Simon suprimiu um sorriso quando Baldwin se virou para o servo.
- Como?
- Estava a pensar que havia mineiros com o Bruther quando ele saiu da estalagem naquela noite, mas que não podem ter estado com ele quando morreu. Para onde foram?
Baldwin resmungou:
- Só temos a palavra do John e de Sir Ralph quanto à presença dos mineiros...
- Se tiverem razão - interveio Hugh subitamente mas com o rosto ainda a exibir uma careta de dúvida - não teria o John proposto a luta à mesma?
- O quê? - resmungou Simon, lançando um olhar exasperado para o servo.
- Bom, se o John concordou em encontrar-se com o Bruther a sós para lutarem, então talvez tenha saído mais cedo, antes do Bruther o esperar, para o apanhar pelo pescoço. Isso explicaria tudo, não é verdade?
Simon ficou a olhar para ele e a seguir virou-se para Baldwin. O cavaleiro acenou.
- Se, como dizes, o John tivesse concordado em lutar, seguisse para a estalagem e depois se escapulisse para emboscar o Bruther, então faria sentido. Também explicaria por que motivo Sir Ralph se manteria calado, uma vez que o cavaleiro podia pressentir que a culpa recairia sobre ele por causa do modo como o mineiro o insultara anteriormente. Para além disso, poderia sentir-se culpado do comportamento do seu escudeiro porque constituiria uma vergonha para ele, mas,.. - Baldwin soltou um suspiro - custa-me a crer que o Bruther ou o John confiassem o suficiente um no outro para combinarem encontrarem-se a sós.
Edgar serviu-se de mais cerveja e acabou de encher as outras canecas. Pousou o jarro e disse:
- Um momento! Têm a certeza de que não há outras testemunhas, para além do John e de Sir Ralph, que digam que estavam lá mais mineiros? E se todo esse encontro na estrada não passar de uma invenção? Não poderá ter acontecido que os dois homens encontrassem o Bruther e o estrangulassem, para a seguir esconderem o corpo e seguirem para a estalagem a fim de terem um álibi? Mais tarde, o John esgueirou-se para o exterior, voltou a agarrar no corpo e cavalgou até Wistman, onde o enforcou?
- Os guardas do rapaz estavam lá. Foi o que disse a Molly - insistiu Baldwin - No entanto devem ter-se ido embora antes do Bruther ser morto.
- Sim - declarou Simon. - Para onde foram e porquê?
- E quando? - murmurou Baldwin.
Ouviram uma porta a bater. Simon levantou os olhos e viu John e o pai de pé no alto das escadas. Sir William começou a levantar uma das mãos como que para o chamar mas fez uma careta e desistiu.
- Baldwin - disse o almoxarife num tom baixo - ou me engano muito o nosso jovem amigo foi persuadido a dar-nos mais informações, - Levantou-se, bebeu o resto da cerveja e pousou a caneca.
Baldwin também se levantou para se juntar a ele. Atravessaram o pátio juntos até aos degraus e olharam para cima, na expectativa.
John tinha os olhos postos no chão mas as cores flamejantes nas suas faces revelavam mais humilhação do que ira. Era o pai, conforme Baldwin notou, quem exibia uma expressão de pura raiva, com um rosto muito pálido e olhos que nem sequer pestanejavam. Quando falou fê-lo com uma voz estrangulada, como se o próprio acto de proferir as palavras fosse imensamente difícil.
- Venha connosco, por favor, almoxarife. O senhor também, Sir Baldwin. O meu filho tem muito para vos contar, mesmo muito! Vem daí, cretino! - A última frase destinava-se ao filho e o velho empurrou John pelas costas. O rapaz levantou os olhos e deparou com a firme mirada de Simon. O almoxarife não lhe viu nenhuma expressão de medo, mas sim de desafio. John avançou a oscilar, como um prisioneiro a caminho da forca, e desceu as escadas. Passou para lá dos estábulos e dirigiu-se para o lanço de degraus que davam acesso à muralha. Trepou-os com todos os sinais de um cansaço infinito.
Simon ficou surpreendido com aquela visão. Foi atrás do jovem num estado de confusão, olhando de vez em quando para o pai do rapaz, que continuava consumido pela ira. Se fosse de noite, pensou o almoxarife, era provável que Sir Wiíliam parecesse incandescente.
No alto da muralha, Sir William fez um sinal ao guarda que lá se encontrava e ordenou-lhe que os deixasse sozinhos. A seguir avançou até à barbacã.
- Este é o local mais privado de toda a mansão. Se falássemos lá dentro, no salão, alguém ouviria a nossa conversa e este inútil já fez mais do que o suficiente para trazer a vergonha à nossa casa. - Lançou uma mirada amarga para o filho. - Conta-lhes!
John pousara as mãos na muralha e olhava para a terra na sua frente numa espécie de espanto, como se nunca antes a tivesse visto.
- É verdade que vimos o Bruther - começou - e estava com os amigos, como já vos disse. Troçaram, assobiaram e insultaram-nos a ambos, para além de nos mostrarem a corda de Sir Ralph, mas nada podíamos fazer contra tantos pelo menos enquanto estivéssemos naqueles cavalos. Tivemos de engolir o nosso orgulho e seguir em frente.
- Conta-lhes o resto! Conta-lhes a espécie de filho que criei... e como desonraste o meu nome! Vamos, conta-lhes!- Sir William gritou e deixou escapar um pouco de saliva. O rapaz encolheu-se perante aquele rosto branco tão perto do seu.
- Já sou um soldado há muitos anos, lá em cima, no norte. Aí, nunca tivemos de suportar este tipo de humilhações. Se um homem nos ofendia... morria. Era essa a regra... e por que não? - Os seus olhos enfrentaram os de Baldwin e desafiaram-no. - No fim de contas, é isso o que faz um soldado. Quando combatíamos para Sir Gilbert nem sequer pensávamos nas mortes porque era esse o nosso dever... até ao momento em que Sir Ralph se esqueceu da sua honra quando ouviu dizer que os cardeais tinham sido roubados. Decidiu abandonar o serviço de Sir Gilbert precisamente quando este mais necessitava de ajuda, Para nossa grande vergonha, tivemos de nos escapar para aqui como ratos a rugirem de uma casa incendiada. Pois bem, pareceu-me que ser insultado pelo Bruther era uma coisa má. É óbvio que os servos daqui se esqueceram do dever de servir e respeitar os seus melhores. Naquela noite, quando cheguei à estalagem, estava muito envergonhado. Sir Gilbert não teria permitido que uma tal ralé se escapasse impune. Todavia, Sir Ralph disse que devíamos esquecer o assunto e deixá-los ir, incluindo o Bruther, e prosseguir com o nosso plano para fugir do país. Respondi-lhe: "Vão pensar que podem insultar um cavaleiro e escapar à justiça!", mas respondeu com aquele seu sorriso afectado e afirmou que continuaríamos vivos. A honra, para ele, não tem qualquer significado!
- E que fez a seguir? - incitou-o Simon tranquilamente.
- Bebi uma ou duas canecas de vinho mas achei que o ar da estalagem cheirava mal. Estava toda a gente a tentar divertir-se e ninguém reparava em mim. Sir Ralph foi com uma das raparigas e fiquei sozinho. Decidi sair para arejar a cabeça. Estava uma noite tranquila e queria evitar quaisquer problemas, tal como Sir Ralph me dissera, pelo que me afastei das minas e da charneca e segui na direcção de Chagford. Não sei exactamente qual foi o caminho que tomei mas passado algum tempo descobri-me perto de uma carroça. Havia um homem na carroça e quando lhe ordenei que me dissesse onde estava, o homem fez um comentário a respeito dos tolos que não deviam meter-se à estrada sem saberem para onde iam. Por isso, eu... bati-lhe. A seguir vi a bolsa. Pareceu-me estúpido não a levar e o homem fora tão insultuoso que pensei que lhe serviria de lição...
- Ah, então foi você quem roubou o Wat Mavy! - exclamou Simon.
- Era esse o nome dele? Não sabia. De qualquer modo, sim, fui eu. A seguir voltei para a estalagem. A minha cabeça estava um pouco confusa mas não queria que ninguém ouvisse falar no meu encontro... O pai virou a cara para o outro lado, desgostoso. John levantou a mão como se quisesse tocar-lhe no ombro, mas hesitou, voltou a descê-la e ficou com a cabeça pendente, desanimado. Baldwin pensou que o jovem parecia tão infeliz como um cão chicoteado.
- Não voltou a ver o Bruther depois desse encontro na estrada? - perguntou. John não levantou a cabeça e limitou-se a abaná-la.
Passado um momento, o almoxarife soltou um suspiro pesado.
- Muito bem. Pode ir, por agora.
- Mas eu... - olhou para o pai, que rodopiou repentinamente.
- Ouviste o que o almoxarife te disse! Vai! - gritou, tenso. John ficou com um ar encolhido, virou-se lentamente e dirigiu-se para as escadas.
- Como vê, almoxarife... - disse Sir William logo que o filho deixou de o poder ouvir - o meu filho não teve nada a ver com o assassínio. É apenas um ladrão! - Cuspiu as últimas palavras com desprezo.
Baldwin contemplou-o por momentos. A seguir começou a falar calmamente e declarou:
- São muitos os homens que fizeram coisas estúpidas quando eram jovens, Sir William. - A cabeça do velho cavaleiro rodou para o olhar. - Não lhe estou a dizer isto para lhe dar
esperanças infundadas. Muitos descobrem os prazeres do poder quando são jovens mas mais tarde acabam por se transformar em homens de honra. O seu filho começou mal... mas ainda se pode redimir se se juntar a uma honrada companhia de mercenários, em Itália. Não seja demasiado duro para com ele.
O velho cavaleiro acenou pensativamente, com uma estranha expressão desconfiada mas que também revelava alguma esperança. Virou-se para Simon, - Isso depende de si, almoxarife. Vai prender o meu filho por roubo? Ou vai deixá-lo seguir para Itália?
Simon não respondeu imediatamente. Meditava na história que o rapaz lhe contara. Não havia dúvida de que se encaixava nos factos tal como os conheciam... mas deixava-o com o mesmo problema: quem fora o cavaleiro que Coyt ouvira na charneca?
- Não vejo razão para me preocupar com esse assunto... se o senhor compensar as perdas do Wat Meavy. O agricultor ainda não se queixou do roubo, pelo que talvez nunca venha a ouvir falar nessa história se forem ter com ele rapidamente e lhe devolverem o dinheiro. Se ninguém me comunicar nada... não vale a pena envolver-me, não é verdade? – Sir William acenou, aliviado. - Porém, tenho de lhe pedir que não diga nada ao John por enquanto. Deixe-o sofrer os seus sentimentos de culpa durante algum tempo porque isso pode levá-lo a compreender até que ponto o seu comportamento foi grave. Deixe-o a fervilhar em lume brando... e voltaremos a falar dele mais tarde.
O cavaleiro voltou a acenar, soltou um segundo suspiro e afastou-se na direcção em que o filho seguira. Baldwin colocou-se ao lado do amigo e ficaram a olhar para a figura dobrada do velho cavaleiro.
- É difícil de acreditar que já foi um grande homem, temido por tanta gente, não é? - murmurou o cavaleiro.
Simon ficou surpreendido com a compreensão na sua voz.
- Sim - concordou. - É fácil esquecer que alguém como ele foi outrora um jovem cheio de fogo.
- Oh, quanto a isso não tenho a certeza! Demonstrou fogo mais do que suficiente ainda há pouco, quando descobriu a espécie de homem em que o filho se transformou.
- Pois... mas olha para ele agora. - Os olhos dos dois homens seguiram o cavaleiro que se dirigia para as escadas do salão. A certa altura tropeçou e quase caiu. Nas sombras perto dos estábulos encontrava-se um homem de armas que avançou rapidamente para o ir ajudar. Avançou para a luz e Simon verificou que se tratava de Samuel Hankyn. SirWilliam parou de repente, como que chocado com a sua própria falta de coordenação, ou como um homem forçado a reconhecer a idade avançada. Simon sentiu o coração a bater de simpatia perante aquela visão. Sir William Beauscyr estava velho e gasto por demasiadas crises. Era um homem que vivera de mais, que vira o filho virar-se para a desonra... e que estava à espera da morte. O almoxarife desviou os olhos daquele espectáculo infeliz quando Hankyn escoltou o nobre amo até ao conforto dos aposentos.
- Pobre velho... - Simon sentiu os olhos de Baldwin postos nele no momento em que falou.
- Talvez... mas pergunto a mim mesmo se o Bruther sentiria alguma espécie de compaixão pelo seu antigo amo.
O ruidoso badalar do sino da capela acordou Simon instantaneamente e fê-lo pôr-se de pé num salto. O salão ainda se encontrava meio às escuras porque o Sol da madrugada não subira o suficiente para conseguir penetrar pelas janelas. Endireitou-se e sentiu uma vaga de ressentimento. Odiava ser acordado repentinamente. Em casa, quando o despertavam daquele modo ficava tão embirrento como uma criança durante todo o dia. Agora era muito pior porque não via motivos para lhe terem interrompido o descanso. Hugh estava sentado no banco a esfregar os olhos turvos, Baldwin exibia uma carranca e dois servos dos Beauscyr coçavam-se e bocejavam ali perto. Foi nessa altura que ouviram a agitação lá fora.
Simon agarrou no cinturão e na espada e debateu-se com a fivela quando já cambaleava em direcção à porta. Baldwin juntou-se-lhe, sem se preocupar em levar a bainha da espada. Limitara-se a desembainhá-la e agora encontrava-se junto do almoxarife com o aço frio e branco a cintilar nas suas mãos. Edgar também o seguira, com um rosto inescrutável. Hugh chegou pouco depois. Agarrava na longa adaga com força suficiente para que os nós dos seus dedos ficassem brancos. Simon abriu a porta de repente.
Ao princípio, o almoxarife convenceu-se de que o forte estava a ser atacado. Era uma confusão, com os homens a correrem de um lado do pátio para o outro. Alguns levavam os elmos nas mãos, outros debatiam-se com cinturões e escudos, e todos tinham sido acordados pelo inesperado alarme. Contudo, logo de seguida chegou-lhe ao nariz o cheio acre a coisas queimadas. Olhou para a esquerda e viu o fumo que se erguia dos estábulos. Pelo aspecto da coluna de fumo era um milagre que o edifício não estivesse envolto em chamas, mas lembrou-se de que as ervas e a palha provocavam sempre muito fumo.
Começou a piscar os olhos furiosamente por causa da fumaça. Parecia não haver qualquer ordem ou sentido na agitação dos homens em pânico. Os guardas mantinham-se nas muralhas, a berrar e a acenar, alguns respondiam-lhes do pátio e era uma completa loucura. Havia quem corresse de um lado para o outro sem qualquer razão e quem gritasse ordens a torto e a direito.
De súbito, Sir William apareceu no pátio por baixo das escadas, apercebeu-se rapidamente da situação e começou a latir ordens. Os homens acabaram com as correrias loucas e instalou-se uma calma aparente. Os cavalos foram retirados dos estábulos enquanto se formava uma fileira de homens até à nascente. Começaram a passar os baldes entre si e a atirarem água contra as chamas. A um berro do cavaleiro alguns servos correram para os alpendres ao pé da cozinha e foram buscar os longos paus e as escadas que aí se encontravam armazenadas. O colmo fumegava por cima dos estábulos e aqueles homens subiram ao telhado e serviram-se dos paus para atirarem o colmo para o chão, onde outros o espezinharam para apagarem as chamas. Em breve tudo aquilo terminara e os homens ficaram parados ou arrastaram-se sob a fraca luz da madrugada, rindo-se de alívio e pairando como crianças numa feira.
Logo que viu que o fogo se encontrava controlado, Sir William apontou para um guarda e Simon verificou que se tratava do capitão que fora buscar Samuel quando do seu primeiro dia passado no forte.
- Tu! Que foi que se passou aqui?
- Não sei, senhor. - O homem encolheu os ombros, desconcertado. - O guarda encontrou o feno a arder e depois, quando saiu... foi aquilo que o senhor viu.
Simon olhou para a cozinha, tranquila e deserta àquela hora da manhã. Era frequente que as cozinhas soltassem fagulhas que saltavam para os telhados das outras construções, e também era vulgar que as cozinhas fossem envolvidas pelas chamas. Era por essa razão que em geral se encontravam separadas da residência e de outros edifícios, mas isso não impedia que uma fagulha ocasional voasse até outro telhado e devia ter sido isso o que acontecera ali. Não havia qualquer mistério. Encolheu os ombros, lançou um sorriso fatigado na direcção de Baldwin e preparava-se para regressar ao salão para esperar pelo Pequeno-almoço, logo seguido por uma soneca, se tal fosse possível, quando um outro homem apareceu a correr na base das escadas.
Ignorou o capitão da guarda e olhou directamente para Sir William.
- Sir William, tem de vir comigo, depressa!
- E agora, que mais temos? - rosnou o velho cavaleiro.
- Sir... o Samuel Hankyn e o Ronald Taverner... estão mortos! Simon sentiu a boca a escancarar-se enquanto Baldwin, a seu lado, se imobilizava de horror. Baldwin foi primeiro a recuperar e desceu as escadas a correr, ágil como um veado. Simon precipitou-se atrás dele. Correram ambos para o pequeno cubículo onde tinham conversado com os dois homens.
Naquele interior sombrio teria sido fácil de imaginar que Ronald Taverner estava apenas a dormir. Jazia sobre a enxerga, com os olhos fechados e a cabeça pousada num rolo de roupas, como se estivesse prestes a acordar. Simon sentiu-se tentado a acordá-lo mas a coberta havia sido puxada para um lado e deixara à vista o peito pálido onde a punhalada se destacava claramente como uma pequena boca de lábios salientes. Simon grunhiu e desviou a cara enquanto Baldwin, com o rosto contraído num esgar de intensa concentração, deslizava para a frente e examinava o corpo. Havia um homem ajoelhado ao lado da cama e Baldwin conversava com ele quando Sir William entrou com o filho Robert a seu lado.
- Que vem a ser isto? O Taverner está morto?
- Sim, Sir Robert. Está morto. Temos mais um assassínio - respondeu Baldwin com secura.
- Um assassínio? Desta vez foi dentro do próprio forte?! Tem a certeza? - inquiriu Robert.
Baldwin nem sequer tentou responder. Se o jovem não conseguia ver o ferimento então o problema era dele e o cavaleiro tinha coisas mais importantes para fazer.
Sir Robert virou-se para Simon, que se encontrava encostado à porta.
- Almoxarife, parece que o senhor é tão incapaz de evitar os assassínios como de os resolver.
Simon lançou-lhe um lento olhar de desprezo e avançou para junto de Baldwin. Houve algo que se lhe cravou no pé e o almoxarife dobrou-se para apanhar o objecto. Era um dado, que entregou a Baldwin.
Este examinou-o e atirou-o para cima e para baixo enquanto examinava o cadáver.
- Então? - perguntou-lhe Simon. Sentia-se infeliz perante outra morte desnecessária e não era capaz de tirar os olhos da figura imóvel na sua frente.
O cavaleiro esboçou um encolher de ombros de impotência.
- Foi apunhalado, como podes ver. Deve ter sido muito recente. O corpo ainda continua quente e nem sequer começou a arrefecer. Como podes verificar, quase não há sangue. Só vi isto uma ou duas vezes e é muito raro. Normalmente, seria de esperar mais sangue... - A voz morreu-lhe.
- Senhor? Quer ir ver o Samuel agora?
O cavaleiro levantou a cabeça com interesse.
- Onde é que ele está?
- Ali mesmo.., - O homem fê-los passar por uma porta baixa. Do outro lado havia um pequeno compartimento usado como armazém. No interior via-se um certo número de barris caídos e Samuel jazia no meio deles com o rosto para baixo. Tinha um braço torcido para trás das costas como que para enxotar um mosquito ou uma mosca, e o outro pousado por baixo da cabeça. O corpo estava contorcido e era óbvio que passara por uma grande agonia no momento da morte.
Simon não conseguiu ficar a olhar para a figura caída na sua frente. Eram demasiadas mortes e aquela parecia irradiar uma tristeza e uma dor tangíveis no pequeno compartimento transformado num mausoléu. Descobriu-se a levar uma das mãos à cabeça e a cobrir parcialmente os olhos como que a esconder-se daquela visão.
Baldwin estendeu um braço, arrancou uma lanterna das mãos de um rapaz de boca aberta e fez um sinal com a cabeça, para Edgar.
- Põe esta gente daqui para fora. O Hugh ajuda-te. - Espetou um dedo na direcção do homem que parecia ter descoberto os corpos. - Tu podes ficar.
Edgar acenou e começou a empurrar a multidão para fora do compartimento. Foram precisos alguns momentos até conseguirem um pouco de paz porque os homens que se encontravam no pátio procuravam espremer-se através da pequena porta enquanto Edgar e Hugh os forçavam a recuar. Por fim quando a porta ficou fechada, Edgar reparou que Sir William e o filho tinham permanecido no mesmo sítio. O servo perguntava a si mesmo se lhes deveria pedir que saíssem quando ouviu o chamamento de Baldwin. Esqueceu-se dos dois homens e apressou-se. Baldwin entregou-lhe a lanterna para que a segurasse de modo a poder estudar a figura caída.
Primeiro examinou a posição do corpo, mantendo-se imóvel mas com os olhos a percorrerem-lhe os membros enquanto a sua mente memorizava as posições e os locais onde os barris derrubados jaziam, para depois se virar para os outros artigos ali armazenados. Via que o homem devia ter caído para a frente. Não havia outros sinais de luta para além da pilha de barris em que embatera e que derrubara. Agachou-se e examinou o barril mais próximo. Havia um círculo no chão a seu lado e acenou para si mesmo.
- Olha, Simon este caiu directamente do local onde se encontrava. - Experimentou abanar o barril. - Não é muito pesado. Os outros deviam estar por cima deste.
Deixou que os olhos voltassem a abarcar a cena e aproximou-se do corpo. Alguns centímetros acima da mão de Samuel havia um corte bem nítido no tecido de lã. Tocou-lhe ao de leve, sentiu-o pegajoso e encurvou os lábios num trejeito de nojo.
- Sim, também foi apunhalado... mas pelas costas.
- Que terá acontecido aqui?
- Não tenho a certeza. - Os olhos de Baldwin desviaram-se para o corpo em cima da cama. Tirou a luz das mãos de Edgar e avançou para a enxerga.
- Ah!
- O que é? - perguntou Simon, seguindo-o. - O que foi que encontraste?
- Olha. - Baldwin virou-se e na sua mão via-se uma faca de lâmina curta com a lâmina manchada de sangue seco. - Deve ter sido com isto que os mataram.
A voz de Sir William ressoou no pequeno armazém.
- Sir Baldwin, aqui também há uma faca.
- O quê? - O rosto do cavaleiro registou espanto por instantes e a seguir precipitou-se para o local onde o velho cavaleiro olhava para uma faca de lâmina fina que revirava nas mãos.
Baldwin pegou-lhe e estudou-a.
- Afinal, o que se terá passado aqui? - murmurou.
- Acho que sei o que foi - disse Sir Robert. - Os guardas-cos-tumam vir jogar aqui em baixo. Aborrecem-se com frequência e refugiam-se neste compartimento para jogarem aos dados. É óbvio que estes dois estiveram a jogar, começaram a discutir e chegaram a vias de facto. No fim, apunhalaram-se um ao outro.
- É uma hipótese verdadeiramente magnífica - murmurou Baldwin. O jovem cavaleiro esboçou um leve sorriso, satisfeito com a aprovação do homem mais velho. No entanto, Simon apercebera-se do sarcasmo no tom do amigo e a sua disposição melhorou um pouco.
- Explicava tudo, não era? - insistiu o jovem cavaleiro, olhando de esguelha para Simon.
- Oh, é claro! - A voz de Baldwin registava uma concordância enfática.
Robert sorriu, saiu do armazém, olhou brevemente para o corpo estendido na enxerga e saiu. Hugh fechou a porta atrás dele. Sir William, que ficara a ver o filho a sair, virou outra vez os olhos para Baldwin que voltar a estudar a figura de Samuel.
- Não está convencido, pois não, Sir Baldwin? - perguntou, numa voz calma e firme.
- Não, de modo nenhum.
- Então porquê?
- Porque seria simultaneamente demasiado simples e demasiado difícil. Oh, tenho a certeza de que o pobre rapaz que está ali deitado na enxerga morreu quase instantaneamente do seu ferimento. Não havia sangue e creio que isso significa que morreu num instante. A falta de sangue parece sempre indicar uma morte rápida. Porém, este, o Samuel.., teria de se arrastar até este sítio antes de morrer.
- E então?
- Sir William, este homem sangrou muito. Se não acredita, apalpe-lhe as costas do casaco. Para além disso há uma grande poça de sangue no local onde caiu. No entanto, não há sangue no chão junto à enxerga do Ronald, nem desde a cama até aqui. Não foi apunhalado lá, mas sim aqui, onde caiu e morreu.
- Ora, mesmo assim pode ter sido apunhalado pelo outro. O Ronald pode tê-lo apunhalado e regressado à cama onde acabou por morrer...
- Receio que não. Como já disse, o Ronald morreu quase instantaneamente. O que há armazenado nestas caixas e coisas?
A pergunta apanhou Sir William desprevenido.
- Aqui? Comida e bebida, suponho... para além de roupas sobressalentes. Nada de especial. Porquê?
- Porque perguntei a mim mesmo porque razão este homem teria vindo aqui... - Os olhos de Baldwin percorriam o compartimento enquanto falava. Não tinha janela e possuía apenas uma pequena porta que dava para o pátio. Experimentou-a e encontrou-a fechada.
Simon lançou-lhe um olhar interrogativo e o cavaleiro encolheu os ombros.
- Não significa nada - disse. - Neste momento está fechada mas o assassino pode ter entrado a noite passada e fechado a porta depois de matar o Samuel.
- Está a querer dizer... que foi alguém da guarnição quem matou estes dois? - inquiriu Sir William com o rosto a ficar avermelhado.
- Hum? Oh, sim, sem qualquer dúvida, pelo menos na parte que me toca. Alguém entrou aqui, provavelmente pela porta fechada e chamou ou derrubou uma pilha de barris para atrair a atenção do Samuel. Que outro motivo o teria feito vir a este compartimento? O pobre homem entrou, foi agarrado e apunhalado pelas costas. Com um ferimento naquele sítio das costas não deve ter levado muito tempo a morrer. A seguir o mesmo homem passou para o quarto do Ronald e apunhalou-o no coração, possivelmente quando estava a dormir, mas isto é apenas uma suposição. O facto dos dados já estarem ou não no chão não é importante, mas é possível que o assassino se tivesse lembrado de os deixar para sugerir a ideia de que se tratara de uma luta por causa do jogo. A seguir tratou de deixar as facas depois de as sujar no sangue, para chegarmos à conclusão fácil de que se tinham morto um ao outro. Não tenho dúvidas de que o assassino esperava que pensássemos que estes dois discutiram por causa de dinheiro. Contudo, já os tinha visto juntos e para mim é muito difícil, se não impossível, de acreditar numa coisa dessas. Eram demasiado amigos.
Sir William pareceu ir murchando à medida que Baldwin falava. Simon quase esperava que o velho acabasse por cair quando o cavaleiro se calasse, tal era o seu aspecto frágil e fraco. O rosto do homem ganhou uma expressão introspectiva.
- Há mais alguma coisa? Alguma indicação de quem possa ter sido? - perguntou, mas Baldwin não respondeu. Continuou a revistar as duas salas em busca de pistas enquanto os outros o observavam. Ainda ali se encontravam quando o servo começou a esmurrar a porta e a gritar novamente por Sir William.
Sir Robert olhou para o irmão com um sorriso seco, sem qualquer espécie de humor. Ouvira falar da cena da noite anterior e divertia-o ver como a mesma afectara o irmão. John mantinha-se à parte, não queria falar com os homens de armas que ajudavam Robert a subir para o cavalo, nem com os que trepavam para as suas próprias montadas para se juntarem à caçada. Aguardava na periferia de toda aquela agitação como uma criança amuada enquanto os homens se preparavam.
Ainda havia um cheiro a madeira e a palha queimada vindo dos estábulos. Era um odor que invadia tudo e fora em parte por causa disso que Robert se persuadira a sair para ir em busca de comida. Não tinha qualquer desejo de ficar no forte a supervisionar os homens que tratariam da limpeza. Depois do que se passara na noite anterior sabia que John também devia preferir passar a manhã fora da mansão, o que lhe dava um certo prazer sádico por saber que o irmão não o poderia fazer. Num impulso, conduziu o cavalo para junto de John.
- Vamos, irmão! Por que não te juntas a nós? -John olhou para cima e Robert viu-lhe o desespero nos olhos. O facto de ver o irmão tão assoberbado pelos seus medos fê-lo lamentar a pergunta sarcástica e provocadora. Quando voltou a falar já o seu tom era muito mais suave.
- John? Estás bem? Queres que fique aqui? Se quiseres desabafar, os homens poderão ir sozinhos...
- Desabafar contigo?! - Por instantes tudo o que Robert conseguiu ver foi a surpresa do irmão, o que o levou a esboçar um sorriso retorcido. Sim, a sua proposta parecera estranha. Durante as últimas semanas haviam discutido constantemente, sem sequer desejarem aproximar-se demasiado um do outro. Tinham ideias demasiado diferentes, e os seus motivos, interesses e almas estavam a mundos de distância. As faíscas saltavam de cada vez que se juntavam, tal como acontecia com o ferro e o sílex. Contudo, isso deixava Robert com um vazio no coração e sabia-o porque o sentia. Desejava um irmão a quem pudesse considerar um amigo, um homem com quem pudesse falar, com quem pudesse discutir as suas ansiedades e esperanças, a quem pudesse confiar o seu amor pela Alicia, que o compreendesse e o encorajasse. Todavia, não se tratava apenas disso: precisava de alguém em quem pudesse confiar do fundo do coração, um homem em que se pudesse apoiar, em especial agora que estava prestes a ser o novo amo de Beauscyr, e muito em particular desde a morte do Bruther. Inclinou-se para a frente na sela para que a sua cabeça ficasse perto da do irmão e ninguém mais ouvisse o que ia dizer.
- Olha, John, se quiseres eu fico aqui para conversar contigo. Sei que te irás embora em breve e não quero que partas com ressentimentos. - O rosto do irmão foi invadido por uma expressão de incerteza e John espreitou-o enquanto mordia um lábio. Robert ganhou coragem.
- Serás sempre bem-vindo aqui quando o pai morrer e eu for o amo, e,..
O feitiço quebrou-se. John perdeu toda a sua indecisão ao ouvir aquelas poucas palavras. Contorceu as feições numa careta de desagrado e troça e recuou meio passo.
- Para que te possas sentir generoso para comigo, não é? Para que me concedas as migalhas da tua mesa, como se fosse um velho mendigo a pedir esmola à tua porta? - Robert quis gritar, quis deter aquele fluxo de rancor e de inveja, mas as palavras prenderam-se-lhe na garganta. - Que bondade a tua, irmão! Que bondade! Deixas-me regressar aqui de vez em quando para ver até que ponto vives bem, que rentável que é a propriedade e que tens fartura de filhos! Receio, meu irmão, que não seja capaz de o fazer. Receio que prefira permanecer em Itália. Uma prisão em Itália ser-me-ia mais agradável do que ver-te a viver em plena felicidade. Pela minha parte, quando o nosso pai morrer não terei qualquer desejo de te voltar a ver a ti ou à propriedade. Agradeço-te muito, meu irmão... e espero que te divirtas durante a tua caçada. - E que partas o maldito pescoço! Acrescentou, para dentro.
Robert ficou a olhá-lo enquanto a cor lhe fugia do rosto. Permaneceu sentado no cavalo, rígido e imóvel como se fosse esculpido em mármore, e foi então que John percebeu que não havia qualquer orgulho na sua atitude, mas apenas a mágoa da rejeição. Ansiou por poder anular as suas palavras, por poder explicar-se, mas era demasiado tarde. O mal estava feito.
Robert, com a espinha rígida e direita, esporeou o cavalo, colocou-o a trote atravessou os dois portões. Não seria conveniente permitir que o resto do grupo de caçadores se apercebesse do tormento por que estava a passar. A terra erguia-se na sua frente, formando uma vasta extensão encimada por um pequeno grupo de árvores. Foi para aí que se dirigiu, com os cascos dos cavalos dos seguidores a martelarem atrás dele. Havia um espesso nó de desespero no seu peito e quase não conseguia pensar de uma maneira coerente porque cada um dos seus pensamentos o conduzia a John e ao terrível desprezo que vira nos olhos do irmão.
Foi por isso que a emboscada teve um êxito tão dramático.
Foi com uma sensação semelhante ao pânico que George Harang observou os homens que se aproximavam. Se não tivesse sido aquele incêndio, pensou... A mansão não teria despertado tão cedo, ainda estariam todos a tomar o pequeno-almoço, e não em plena actividade. Para além disso, era demasiado cedo para sair com um grupo de caça. Os preparativos ainda nem sequer iam a meio.
No entanto os homens aproximavam-se como se não tivessem visto o grupo de mineiros escondidos que os aguardavam, O grupo de caça era formado por uma forte força de homens de armas, mas havia uma figura isolada que avançava muito à frente dos outros. Ignorava os restantes e cavalgava direito como uma tábua, aparentemente sem se preocupar com o facto de os guardas o poderem acompanhar ou não.
Harold avaliou as probabilidades de êxito, fez um sinal urgente ao homem que se encontrava perto dele e transmitiu-lhe instruções.
Ah, se o John não se tivesse ofendido tão depressa, lamentava-se Robert enquanto chicoteava o cavalo para o fazer subir a vertente. Por que se irritava tão depressa só porque o mais velho dos dois iria herdar a propriedade? Era a ordem natural das coisas e não se tratava de uma qualquer injustiça nova e curiosa.
Cerrou os maxilares com decisão. John não tivera motivos para rejeitar a tentativa de reconciliação, que lhe fora feita com toda a sinceridade. Todavia, a recusa zombeteira do irmão deixara bem claro que não poderia haver uma amizade entre os dois. Porém, apesar da sua ira, Robert ainda sentia aquele ardor por trás dos olhos.
Avistou a figura de um homem a destacar-se contra a linha do céu na sua frente, que agitava os braços com gestos urgentes. Robert esporeou o cavalo e aumentou-lhe a velocidade. Pelo menos, havia alguém que precisava da sua ajuda, pensou, com um sorriso amargo a torcer-lhe os lábios.
Aproximou-se e viu que o homem lhe era familiar. Tinha um corpo volumoso e em forma, pernas curtas e um tronco espesso como o de um carvalho. Era George Harang.
- Agora!- berrou George.
De súbito, o terreno ficou cheio de mineiros. Apareceu um grupo na frente dele e quando Robert rodopiou descobriu que estava cercado. Havia mais homens por trás dele, alguns dos quais o enfrentavam com sorrisos de desdém perante a sua estupidez enquanto outros se viravam para os seus homens e colocavam setas nos arcos. Robert ficou a olhar, confuso. O sangue martelava-lhe nas veias e trovejava-lhe nas têmporas com o ritmo constante de um cavalo de batalha a galope, e sentiu um frio a percorrer-lhe o corpo.
George desceu a vertente na sua direcção, a rir-se ruidosamente enquanto dava ordens e mantinha os olhos desconfiados postos nos membros do grupo de caça.
- Amarrem-no!
- Sir William! Sir William - As pancadas na porta eram tão violentas que davam a sensação de que as tábuas se iriam desfazer em poeira e o velho cavaleiro levantou os olhos com resignação. Nunca mais haveria paz?, interrogou-se. Irritado. Avançou para aporta e escancarou-a, - Que vem a ser isto...? - Sir William, foram os mineiros. Apareceram e capturaram o seu filho. Vimo-los das muralhas, senhor. Eles...
Baldwin e Simon aproximaram-se à pressa e escutaram, um de cada lado do velho cavaleiro enquanto o mensageiro gaguejava, com um rosto pálido e redondo enrugado e ansioso que fez Baldwin lembrar-se da sua cadela mastim que sem dúvida devia jazer confortavelmente em frente da fogueira em Furnshill. Afastou aquela ideia da cabeça e captou o final da mensagem:
- ... e eles apanharam-no, derrubaram-no do cavalo e... Baldwin agarrou-o pelo ombro. O homem tinha cabelos grisalhos e uns dentes negros e irregulares numa boca mole e revoltante. Os olhos azuis fixaram-no e o terror que neles existiam era fácil de constatar. A pouco e pouco, foi-se acalmando sob a mirada grave dos olhos castanhos do cavaleiro.
- Bom, agora volta ao princípio. Dizes que o filho do teu amo foi apanhado. Qual deles?
- Sir Robert, senhor - gaguejou o homem.
- E foi levado pelos mineiros?
- Sim, senhor. Os homens que estavam ao portão viram tudo. Estava lá o George Harang e os outros e apanharam Sir Robert no cimo da colina quando saiu para a caça. Eram muitos, amarraram-lhe as mãos e levaram-no.
- Para onde? Em que direcção seguiram?
- Foram para o acampamento dos mineiros, suponho. Um dos nossos homens seguiu-os e estamos a selar o resto dos cavalos, senhor.
- Óptimo. - Baldwin olhou para Sir William. - temos de nos apressar. Não podemos permitir uma coisa destas. Tomar um homem das charnecas como refém é uma coisa, mas fazer um cavaleiro cativo é outra completamente diferente.
- Sabe de alguma razão para que levassem o seu filho, Sir William? - perguntou Simon.
- Não, não faço ideia sobre o que os levou a fazer isto - declarou o cavaleiro com franco espanto. - sempre vivemos lado a lado com os mineiros da charneca e nunca tinha acontecido uma coisa destas. Pagãmos-lhe sempre que quiseram dinheiro, não os intimidámos, reconheci o seu poder e teria sido estúpido tentar vergá-los... porque isso só levaria a mais problemas. Não, não faço ideia por que o fizeram.
Simon acenou lentamente.
- Muito bem. Preparemo-nos...
Hugh e Edgar foram atrás deles. O servo de Baldwin ostentava um sorriso de satisfação e deu uma palmada nas costas de Hugh.
- Não te preocupes - disse-lhe, alegremente. - Vai ser divertido! - concluio, começando a assobiar.
- Divertido! - murmurou Hugh com desprezo e com uma fungadela. Tinha a desagradável suspeita de que iria haver sangue derramado e não tinha qualquer desejo de ver a cor do seu próprio sangue.
No pátio depararam com uma massa de homens confusos e ansiosos. Alguns usavam elmos, outros tinham cotas de malha, mas a maioria envergava apenas os coletes de couro ou almofadados. Todos eles empunhavam armas, desde as rudimentares ferramentas agrícolas às lanças de cabo comprido, e só alguns possuíam espadas. Um deles, meio envergonhado, armara-se com um velho podão. Todos exibiam a mesma preocupação tranquila, quer tivessem os rostos pálidos ou corados. Baldwin sabia que uma coisa era aceitar a comida e o alojamento de um amo, mas quando se tratava de o proteger a natureza do juramento prestado ganhava um significado bastante diferente e muito mais assustador. Toda aquela gente estava consciente do pouco valor que Sir William devia dar às suas vidas quando comparadas com a do filho sobrevivente mais velho. Baldwin leu uma velha interrogação nos olhos de todos eles: o amo seria capaz de vencer sem desperdiçar necessariamente a vida dos seus servidores? Era uma interrogação que estava ali, na sua atenção, nos movimentos lentos e sem pressa, no afagar cuidadoso do cabo de uma lança. Todos aqueles homens sentiam a mesma tensão enquanto olhavam para Sir William.
Baldwin estava prestes a virar-se para mencionar aquilo ao cavaleiro quando o ancião passou por ele, dirigiu-se às escadas e subiu-as até meia altura. Todavia, já não se tratava do mesmo Sir William. Momentos antes não passara de um velho vergado sob as preocupações e com a vitalidade esgotada pelos acontecimentos recentes, mas agora já não. Passara a ser um homem de guerra.
A multidão não soltou qualquer grito de aclamação. Num enforcamento até as vítimas eram saudadas com alegres aplausos, mas isso não aconteceu com Sir William. Os homens olharam para ele, que lhe devolveu os olhares. Lentamente abateu-se sobre eles um estranho silêncio, curiosamente invulgar para um grupo tão grande. No entanto, não era de surpreender, pensou Baldwin. No fim de contas, aqueles homens tinham assistido ao constante declínio do chefe da família Beauscyr. Todos sabiam que já lhe restavam poucos anos de vida. Os seus passos tinham abrandado gradualmente, cansava-se com mais facilidade e começara a perder as forças que o tinham distinguido como um grande guerreiro.
Durante vários minutos não se ouviu outro som para além do estalar e chicotear das roupas penduradas numa corda, perto da cozinha, para secarem sob as rajadas do vento. O Sol espreitava por entre algumas nuvens dando um toque de calor à cena, mas Sir William continuava a olhá-los. Alguns dos homens começaram a remexer-se com os pés a chapinharem nas pequenas poças de água derramada dos baldes.
- Todos vocês sabem o que aconteceu ao meu filho - começou, num tom pensativo, triste, mas perfeitamente claro. - Foi capturado e levado pelos mineiros. Não sei o motivo. Pode ser que os mineiros pretendam trocá-lo por um resgate. Já fizeram isso com outros anteriormente, mas no passado nunca se atreveram a fazê-lo comigo. Talvez fosse porque concordei pagar-lhes para que não dessem cabo das terras da mansão. Agora sentem-se tão poderosos que até acham que me podem ameaçar. Se pensam desse modo, então a culpa é minha. Devia ter-me apercebido. Todavia nada pude fazer porque me ameaçaram de outras coisas se tentasse usar a força para os manter afastados daqui. Tive de pagar. Lamento, porque isso significa que vão ter de combater para me ajudarem a libertar o meu filho.
Mantinha-se muito direito, a fitar os homens, e a sua figura perdera todo o aspecto de velhice.
- Todavia, quero que compreendam uma coisa, todos vós. Não se trata apenas de mim e da minha família. Trata-se de vos salvar a vocês!Se os mineiros conseguirem ir em frente com isto, ficarão a saber que venceram os mais fortes de toda a charneca. Não podemos permitir que tomem reféns à vontade sempre que lhes apetecer. Se o fizerem nunca mais ninguém se sentirá livre e não me refiro apenas aos cavaleiros mas também aos agricultores, mercadores, servos e até aos rendeiros. Todos terão de se submeter aos mineiros. É isso o que vocês querem? Sentir-se-ão capazes de entrar em qualquer lado, até nos vossos campos, e arruinarão as colheitas das vossas famílias. É o que irá acontecer se lhes permitirmos que nos vençam. Ficarão a saber que têm o poder suficiente para mandar.
A voz do cavaleiro foi crescendo e inchando até preencher todo o pátio. Os homens deixaram de se agitar e escutavam-no atentamente, alguns dos quais com caretas de compreensão a escurecerem-lhes as faces. Um ou dois olharam para os amigos e acenaram com uma nova convicção. Sir William prosseguiu:
: - Não estou a pedir a nenhum de vocês que me siga para libertar o meu filho. Poucos, se é que há algum, de vós sentem a necessidade de o defender para além do vosso dever para com a mansão e o herdeiro das terras. Todavia, hoje, têm de vir comigo, não por mim ou por1 ele mas sim por vós próprios e pelas outras pessoas das charnecas, para vos protegerdes e para manter esta terra livre para todos. Temos de quebrar a arrogância daqueles mineiros e levá-los a compreender que não podem continuar a ameaçar, a extorquir, a roubar e a incomodar. Têm de aprender que defenderemos o nosso terreno e nos defendermos a nós mesmos... e a única maneira de o conseguirmos é libertando o meu filho. Não quero lutar, estou velho e os meus tempos de guerra já passaram, mas não permitirei que ladrões e fora-da-lei me tirem as terras sem empunhar uma espada e gritar: "Acabou-se!" Não, não quero lutar, mas fá-lo-ei se for necessário e agora, hoje, posso ter de o fazer. Vocês também. Não por mim, não pelo meu filho, mas sim por vós mesmos! De súbito agarrou na espada, retirou-a da bainha e ergueu-a por cima da cabeça.
- Há algum homem entre vós que não esteja preparado para combater pela sua terra?
O pátio explodiu num grande berro de negação. Os gritos ecoaram nos edifícios em volta e fizeram com que os cavalos se agitassem e relinchassem. Houve um cão que ladrou num tom baixo e lamentoso.
- Então... montem os vossos cavalos e sigam-me!
Baldwin lançou uma mirada aos homens que agora aplaudiam e agitavam os braços. Fora um bom esforço, admitiu para si mesmo. Homens que apenas minutos antes resmungavam murmúrios sombrios por terem de defender o filho de um cavaleiro que deveria ter-se apercebido do perigo, que haviam remexido nervosamente nas armas enquanto pensavam nas dos mineiros, que se tinham interrogado sobre quanto os mineiros iriam pedir pela vida de Sir Robert e se seria demasiado, que tinham estremecido ante a possibilidade de serem feridos, isto porque sob o calor do Verão os ferimentos infectavam com facilidade, o que por sua vez significava uma morte lenta e torturante... estavam agora com as espadas, as adagas e as ferramentas erguidas sobre as suas cabeças e aplaudiam. A primeira lição que um comandante guerreiro tinha de aprender, pensou, com desagrado, era sobre como persuadir os homens que combatiam por ele de que estavam na verdade a combater por eles próprios. Sir William fora um soldado durante muitos anos e essa fora uma lição que nunca esquecera. Reparou que um daqueles homens ficara com um corte num braço por causa do manejo descuidado de uma faca. Por momentos olhara, como que entorpecido, para o sangue que pingava, antes de voltar a acenar e a aplaudir. A visão fez com que Baldwin soltasse um suspiro. Era estranho o modo como os homens decidiam arriscar a vida por alguém só por causa de um bonito discurso.
- Impressionante. – Sir Ralph aproximara-se sem que os outros dessem por isso e Baldwin olhou-o com uma interrogação nos seus olhos escuros. Não vira o cavaleiro durante todo o dia, nem durante o pânico e a correria para apagar o incêndio, nem sequer quando os corpos tinham sido encontrados. Agora vigiava os homens amontoados no pátio com uma espécie de reconhecimento triste. - Costumava ser como ele - acrescentou, meditativo, - cheio de fogo e de noções de honra, pronto para defender os meus direitos e privilégios acontecesse o que acontecesse... e o Diabo que levasse os meus inimigos! Agora luto apenas por dinheiro e o dinheiro não dura tanto como uma causa. Para além disso, também não inflama os corações.
- Contudo, sempre mantém a barriga cheia durante algum tempo - comentou Simon com ligeireza por trás dele.
Sir Ralph não enfrentou o olhar do almoxarife e preferiu virar-se para Baldwin.
- Apenas por algum tempo... e quando o dinheiro desaparece não fica mais nada. Nenhuma causa, nenhuma honra, nenhuma grande liberdade... Apenas a busca de mais dinheiro. - Olhou para a multidão. - Estes, pelo menos, têm uma causa para o dia de hoje, mesmo que não dure muito...
Baldwin meditou naquelas palavras enquanto iam buscar os cavalos e se preparavam para partir. O rosto do homem revelara uma tristeza infinita, como se sentisse amargamente a falta dos tempos passados em que tivera batalhas honrosas para combater, em que fora um homem leal e cavalheiresco na companhia de outros guerreiros com motivações semelhantes. Baldwin compreendia os seus sentimentos de perda e a sensação de falta de finalidade. Tratava-se da sensação de falta de direcção que também conhecera quando a sua Ordem fora destruída, e que o consumira até iniciar a sua busca do homem que considerara responsável. Sim, Baldwin compreendia facilmente os seus sentimentos.
Simon montou no cavalo e ficou à espera muito antes de Baldwin. Na confusão que tinha lugar no pátio, a simples tarefa de manter os animais suficientemente calmos para serem selados recaía toda sobre Edgar e Hugh, pelo que o almoxarife foi o primeiro a ver o irmão Beauscyr mais novo. Do seu ponto de vantagem, a espreitar por cima das cabeças da multidão, podia ver o rapaz com clareza na base das escadas, com os polegares metidos no cinturão enquanto lançava olhares sombrios sobre a confusão de pessoas. Sir William falou com ele e a seguir olhou em volta em busca de Simon. Instantes depois já se encontrava a seu lado.
- Almoxarife, quero que o John vá connosco.
- Não me parece que precisemos dele - respondeu Simon, fazendo um gesto para os homens de armas que os rodeavam. - Creio que temos uma força suficientemente forte.
- A questão não é essa e o senhor sabe-o - retorquiu o velho cavaleiro com firmeza. - O Robert é irmão dele e John tem o direito de ajudar a libertá-lo.
- Talvez... mas não seria melhor deixá-lo aqui? Pode tratar da defesa da mansão.
- A minha esposa é perfeitamente capaz de o fazer. Não, o lugar dele é connosco.
Simon fez uma pausa por instantes. Ambos tinham consciência de que Sir William não necessitava de lho pedir. Se o desejasse, poderia ter o almoxarife amarrado e guardado enquanto conduzia os seus homens, - Se me disser porquê, talvez concorde consigo. Sir William reagiu com um aceno tenso.
- Muito bem. Os dois tiveram uma zanga esta manhã e o John pensa que foi por causa dessa zanga que o Robert se deixou cair na emboscada de um modo tão disparatado. Robert teria sido mais cuidadoso se não tivessem discutido ou, pelo menos, não iria tão à frente do grupo de caça e não seria apanhado com tanta facilidade. O John sente-se muito mal por causa disso, almoxarife, e quer ajudar a libertar o Robert.
Simon encolheu os ombros e esboçou um aceno.
- É uma causa justa. Traga-o consigo.
Os homens já estavam todos prontos. Baldwin trepara para cima do seu pesado cavalo e os dois servos também já se encontravam nas selas. Edgar ainda mantinha o seu ar de excitação. O pátio mergulhou no silêncio quando Sir William e o filho treparam para as montadas e a seguir o grupo cavalgou para lá dos portões e começou a subir a vertente na frente do forte. Os restantes iriam segui-los a pé.
No alto da elevação, junto às árvores, foram recebidos por um mensageiro ofegante e de rosto vermelho por causa da sua louca corrida pela charneca.
- Graças a Deus que o apanhei, Sir William! Os mineiros que levaram o seu filho estão no acampamento dos mineiros, no meio da charneca.
- Óptimo. Vai buscar um cavalo fresco e segue-nos.
Sir William esporeou a montada e continuou em frente, vagamente consciente de ser seguido por Simon e Baldwin. O filho ia a seu lado com Sir Ralph mas o velho cavaleiro conservava os olhos postos em frente, não fosse o seu rosto trair todas as dúvidas e medos que sentia. Pura e simplesmente, não conseguia compreender o que esperava Thomas Smyth alcançar com a captura de Robert.
Talvez se justificasse se tivessem andado constantemente a argumentar e a lutar, mas a mansão há muito que aceitara o facto desagradável dos mineiros terem direitos nas charnecas, e não os molestara tal como tinham feito muitos outros proprietários de terras. Alguns cobravam uma taxa sobre todo o estanho extraído nas suas propriedades, mas Sir William chegara muito cedo à conclusão de que seria melhor deixá-los entregues ao seu trabalho. Tinha outras maneiras de fazer dinheiro sem a necessidade de criar complicações com os funcionários do Rei e sem provocar a ruína da sua família. Em geral e durante a maior parte do tempo, ele e os mineiros tinham conseguido coexistir... e era isso que fazia com que aquela tomada de um refém fosse tão incompreensível. Teria sido capaz de compreender se por acaso existissem ressentimentos antigos mas, tanto quanto soubesse, não havia motivos para a emboscada.
Lançou um olhar de esguelha ao seu outro filho. John cavalgava todo dobrado, como se carregasse com um desgosto secreto. Não o surpreenderia que o seu filho mais jovem fosse de algum modo o responsável por aquele desastre. Cerrou os maxilares com força, zangado, enquanto enumerava os problemas causados pelo escudeiro de Sir Ralph: as constantes disputas com Robert, a sua arrogância e rudeza, a estupidez que demonstrara ao roubar aquele homem perto de Chagford, tudo coisas que agora lhe pareciam ter conduzido ao desastre final. O velho cavaleiro pressentia que, de algum modo, era tudo por culpa de John.
Isso levou-o a interrogar-se sobre o que pensaria o almoxarife do seu filho. Simon deixara mais do que claro que duvidava da palavra de John e que o considerava, no mínimo, como sendo de pouca confiança. Sir William também não ficaria surpreendido se o almoxarife pensasse que o rapaz tinha morto o Bruther... e que talvez também tivesse apunhalado os dois homens de armas. Não existia um motivo claro para que tivesse cometido os dois crimes mas John parecia ter uma ânsia pelas ilegalidades e pelo crime... e ele próprio o confirmara quando confessara o roubo, Mais uma vez, tratara-se de um ofensa sem qualquer razão válida. Se o John estava necessitado de dinheiro, então podia tê-lo pedido ao pai. Não havia necessidade de ir roubar para a estrada. A única coisa que o salvava, e Sir William sabia-o, era a sua juventude. Eram muitos os homens, reconhecia-o com tristeza, que se juntavam aos bandos de ladrões e aos grupos que vagueavam de um lado para o outro do país sempre que a lei e a ordem se iam abaixo. Os crimes de John, fossem eles quais fossem enquanto fora um shavaldore nas terras do norte, de certeza que não eram tão hediondos quando comparados com os de outros.
Contudo, só lhe interessava uma única coisa, que era a libertação de Robert. Tinha de libertar o filho mais velho custasse o que custasse.
Baldwin ainda continuava a pensar nos dois homens mortos. Já se tinha passado tanta coisa naquela manhã que se sentia tão exausto como se tivesse passado toda a noite a pé. O incêndio, as mortes, a emboscada, a captura de SirRobert... Todas aquelas coisas se confundiam e misturavam na sua mente enquanto tentava colocá-las numa sequência lógica. Sabia que era ofensivo abandonar a investigação daquele modo, mas enquanto Sir Robert estivesse vivo toda a gente tinha a obrigação de ajudar a libertá-lo. Para além disso, se possível, o almoxarife teria de tentar impedir uma luta entre as duas forças, coisa que iria ser mais difícil depois do discurso de SirWilliam. Agora já todos os homens da mansão antecipavam uma batalha. Deus sabia que o sangue dos homens do Ocidente levava sempre muito tempo para aquecer, mas depois de agitado eram capazes de lutar até à morte por aquilo que consideravam justo.
Baldwin voltou a pensar nos dois homens mortos com a mente a rodopiar em busca de uma explicação lógica. Quem poderia querer vê-los mortos? Era um mistério porque ambos lhe tinham parecido serem homens decentes. Era verdade que se verificavam lutas frequentes entre os membros de guarnições aborrecidas e instaladas longe da cidade mais próxima e era por isso que os castelos modernos tinham passado a ser construídos com alojamentos separados para os homens mais leais, quando comparados com os mercenários. Desse modo, os conflitos entre as tropas podiam ser contidos. Para além disso, o amo e os homens mais leais tinham a possibilidade de trancar as portas para se manterem fora desses conflitos. Em geral, essas lutas deviam-se a questões de jogo. Talvez fosse isso o que tivesse provocado aqueles assassínios, pensou Baldwin. Podia ter estado alguém no compartimento a jogar aos dados com o Samuel e rebentara uma discussão. Quem quer que fosse podia ter passado do quarto para o armazém, derrubado alguns barris para fazer barulho... e apunhalara Samuel pelas costas quando este seguira essa pessoa para ir ver o que se passava. Ronald podia ter ouvido qualquer coisa e acordado, e também fora morto.
Baldwin fez uma careta. Não, aquilo não lhe soava bem. Era uma história com demasiados pequenos pormenores que o incomodavam. Por exemplo, quando os barris haviam sido derrubados, por que fora que ele próprio não os ouvira? Qualquer soldado sabia como por a mão sobre a boca da vítima para a apunhalar pelas costas - era uma precaução sensata para evitar os gritos -, mas os barris a caírem deviam ter feito muito barulho. Por que não tinham sido ouvidos no salão que ficava por cima? Baldwin e Edgar tinham ambos o sono leve depois de tantos anos de vida como viajantes e soldados, e um ruído súbito daquele género, durante a noite, deveria tê-los acordado.
Não, o barulho não podia ter acontecido quando estavam a dormir. Devia ter ocorrido quando se encontravam no exterior do salão. Para além disso, os dois corpos ainda se encontravam quentes, o que significava que os homens tinham morrido havia pouco tempo, provavelmente quando ele e Edgar se encontravam no pátio. Com o barulho do sino e da luta para apagar o incêndio ninguém repararia no som cavo dos barris a tombarem. Por outro lado, as mortes não deviam ter estado ligadas a questões de jogo. Era verdade que os soldados eram capazes de jogar aos dados a qualquer hora do dia,., mas tão cedo, ainda de madrugada?
- Ali está ele!
O grito do cavaleiro que seguia à frente despertou-o das suas meditações. Mais tarde iria ter muito tempo para voltar a examinar os pormenores. Naquele momento era preciso salvar um jovem e evitar uma luta... se tal fosse possível. Suspirou, apalpou o punho da espada e aliviou-a na bainha, rezando para que não se verificassem mais mortes naquele dia.
Na frente deles, o acampamento dos mineiros tinha um ar de tranquilidade adormecida. As pequenas cabanas que salpicavam a paisagem tinham fumo a erguer-se das lareiras como uma qualquer aldeia pacífica, e a ausência de uma muralha qualquer de protecção dava-lhe uma aura de confiança e de resistência, como se não necessitasse de recear a natureza ou os outros homens. Na verdade, seriam muito poucas as pessoas capazes de tentar roubar um acampamento de mineiros. Alguém suficientemente louco para o fazer descobrira rapidamente até que ponto os mineiros se mostravam agarrados aos seus lucros. Baldwin ouvira falar numa ocasião, na Cornualha, em que um abade decidir impor a sua própria taxa sobre o metal extraído nas suas propriedades e enviara uma força a exigir o pagamento. O abade aprendera rapidamente que, quando provocados, os homens conseguem formar enxames e picar como as abelhas, pelo que fora forçado a reduzir as suas exigências.
A alguns passos de distância, Sir Ralph quase esperava ver Sir William a cavalgar como um guerreiro dos velhos tempos, arrasando o local até ao chão numa orgia de destruição, de cavalos a estrondearem na planície, de homens brandindo lanças e espadas, espetando e cortando tudo o que lhes aparecesse pela frente. Essa era a velha maneira, a chevauchée, a carga de cavalaria.
Porém, Sir William aprendera a fazer a guerra entre homens como aqueles mineiros e desprezava os ataques loucos. Pelo que já ouvira dizer, os seus adversários sabiam como dispor os arqueiros, tal como acontecia com os galeses, contra os quais lutara nos tempos do velho Rei Eduardo. Nesses dias, ele e outros tinham ficado impressionados com as capacidades dos inimigos, em particular a habilidade com que se serviam do terreno para afunilar os cavaleiros na direcção de pequenas áreas onde os animais podiam ser obrigados a abrandar e os cavaleiros eram derrubados. Não desejava deixar-se apanhar por truques como esses nem queria perder vidas desnecessariamente, e muito em especial a do filho.
Sir William escrutinou cuidadosamente a disposição do terreno. Descia desde o ponto em que se encontrava até ao rio, com as pequenas construções dispersas por aqui e acolá como pedras de um jogo dispostas num tabuleiro. Não havia nenhum sistema de defesa aparente, nenhuma barricada ou muralha onde os arqueiros se pudessem esconder, mas apenas algumas pequenas cabanas muito juntas. Era nelas que os mineiros confiavam para a sua protecção. As ruelas e passagens eram suficientemente estreitas para permitirem a instalação de cordas atravessadas que derrubariam os cavaleiros das suas selas. Os homens podiam estar à espera por trás das cabanas, prontos para saltar com as suas mocas ou espadas. Não tinha a mínima dúvida de que os mineiros já sabiam que ele e a sua força se encontravam ali. Deviam ter um vigia num qualquer ponto mais alto. Olhou para o outro lado. À sua esquerda erguia-se um pequeno amontoado de rochas, o local ideal para um sentinela com uma boa visão sobre as terras para leste. O homem não teria precisado de muito tempo para saltar para o chão, trepar para um cavalo e precipitar-se para o acampamento.
Sir Ralph e Baldwin juntaram-se-lhe. O mercenário agitou a cabeça na direcção do acampamento.
- Onde pensa que o terão colocado?
- Não faço ideia. Pode estar em qualquer uma daquelas cabanas. - De súbito, Sir William sentia-se exausto. Deixou-se cair na sela e virou um rosto cansado para Baldwin.
- Que acha, Sir Baldwin?
Baldwin, que estudava a área, não respondeu durante algum tempo mas acabou por apontar.
- Além, na fundição. É o lugar mais seguro e foi por isso que os três mineiros se esconderam lá. O armazém só tem uma porta e nenhuma janela. Contudo, as outras construções em volta tornam difícil chegar até lá.
- Creio que tem razão - retorquiu o velho cavaleiro com um aceno.
- Então, vamos lá para termos a certeza - disse Sir Ralph, com os olhos a saltitarem de um para o outro com alguma confusão. - Por que espera?
- Porque conheço este estupor de mineiro - respondeu Sir William num tom carregado. - Foi soldado comigo há muitos anos atrás, no País de Gales. Pode não ser um cavaleiro mas não deixava de ser um bom guerreiro e muito astuto.
Simon colocou-se ao lado de Sir William.
- Se é uma ratoeira, serviu-se de um isco muito bom. Posso sugerir que devemos desarmá-la antes de entrarmos nela?
- Fale com clareza, homem! Que está a querer dizer? - perguntou SirWilliam, irritado.
- Vou lá abaixo e tentarei conversar com ele. Não faz sentido atirarmo-nos para ali a galope. Se tem experiência de guerra, tal como o senhor disse, deve ter colocado os seus homens em sítios onde não os conseguiremos apanhar mas de onde poderão fazer chover setas sobre nós. Seria perigoso metermo-nos nisso. Por outro lado, é improvável que me faça mal. Não tenho nada a ver com este assunto e não vai querer atacar-me para não irritar nem o magistrado, nem o próprio Rei.
- Vou contigo, Simon - disse Baldwin. - Também devo estar em segurança.
- Se têm a certeza disso... - murmurou Sir William, olhando-os com aparente surpresa. - Estão certos de que não correm perigo?
- Como já disse, não me parece que o homem queira provocar o monarca. No fim de contas, isto são terras do Rei. Pode ser suficientemente orgulhoso para o ofender a si, mas se o monarca ouvi-se dizer que um dos seus almoxarifes tinha sido maltratado mandaria as suas forças para aqui e os mineiros veriam as suas vidas dificultadas. Sim, estou certo de que estaremos seguros.
Sir William aceitou a proposta com um encolher de ombros e os dois homens começaram a descer a longa vertente com todo o vagar, acompanhados pelos servos.
- Lá atrás, pensei que podia ser uma boa ideia... - disse Baldwin, pensativo.
- E agora já não?
- Isto está tudo muito tranquilo, não está?
Baldwin tinha razão. Quando se aproximaram, Simon conseguiu ouviu o borbulhar e o chapinhar da água na grande roda. As cabanas pareciam estar todas vazias mas tinha a incomodativa sensação de estar a ser vigiado. Era como penetrar numa daquelas velhas quintas há muito desertas, mas a sensação ali era muito mais alarmante porque o cheiro a fumo pairava por todo o lado. Devia haver ali uma grande movimentação de pessoas, com os homens a cozinharem e a martelarem, a conversarem e a gritarem uns com os outros enquanto trabalhavam... mas o silêncio era opressivo.
- Maldição! Cavalguemos como homens e acabemos com esta lenta tortura! - murmurou Simon. Estava prestes a esporear o cavalo quando Baldwin apontou o solo com o queixo.
- Meu amigo, será melhor que não o faças... se tens amor à tua montada.
Simon franziu a testa, seguiu-lhe o olhar e viu os pequenos quadrados abertos nas ervas. Havia buracos escavados por todo o lado na área lisa e plana que conduzia à fundição, buracos esse que haviam sido novamente cobertos com turfa para ficarem ocultos. Fez uma careta envergonhada e acenou com relutância. Todos aqueles bocados de turfa escondiam um buraco com 30 centímetros de profundidade, prontos para partirem as pernas aos cavalos e deterem uma carga.
Baldwin avistou relances de homens à espera no meio das cabanas. Sob muitos aspectos, eram parecidos com aqueles que Sir William comandava. Eram gente dura, habituada a trabalhar com as pesadas picaretas e marretas que agora empunhavam, e que olhavam ansiosamente para os quatro homens que avançavam lentamente para falarem com o seu amo. O cavaleiro suspirou. A guerra era sempre assim, fosse qual fosse a disputa: os ricos brigavam e os pobres lutavam e morriam pelas causas deles.
Detiveram-se junto à fundição e esperaram, deixando-se ficar sentados nos cavalos. Simon olhou para Baldwin e viu que este se mantinha calmo e à-vontade. O almoxarife fez uma careta porque sentia o estômago a contrair-se e subira-lhe à boca um gosto ácido. Houve um ruído súbito que fez com que o cavalo se agitasse, Simon praguejou e dominou-o com força, com os joelhos. Quando voltou a levantar a cabeça descobriu-se a olhar para o rosto interrogativo de Thomas Smyth. O mineiro empunhava uma pesada cimitarra, uma espada de um só gume e cheia de bocas, o que revelava que o seu passado não fora pacífico. O homem parecia surpreendido por ver ali o almoxarife com o amigo.
Simon sentiu o medo a dissipar-se. Era difícil ter medo de um homem que com uma aparência tão composta e normal. Embora os seus encontros com o mineiro nem sempre tivessem sido agradáveis, Smyth tinha a vantagem de não ser um homem que perdesse tempo com rodeios.
- Thomas... - disse, sentindo-se subitamente cansado e vazio - que diabo pensa você que está a fazer?
Sentaram-se num banco no exterior de uma das cabanas e bebericaram uma cerveja grosseira enquanto Thomas Smyth os observava com as sobrancelhas descaídas. Para Baldwin, o homem tinha o aspecto de ter sido empurrado para lá dos limites da paciência. Os seus olhos negros estavam raiados de sangue e afundados ao ponto de quase parecerem ter sido esmurrados, e as linhas do rosto tinham-se aprofundado. Envelhecera muito nos últimos dias tal como acontecera com Sir William.
- Foi a última gota de água... quando ouvi que o cachorro dos Beauscyr - refiro-me ao John -, estivera na estalagem naquela noite. O John, depois de ter deixado o pai na minha casa, deve ter passado pelo Peter quando ele vinha para aqui.
- E então? - perguntou Simon.
- A seguir, o John Beauscyr deve ter seguido o Peter e matou-o.
- Contudo, o mineiro tinha homens com ele e você sabia-o.
- Sabia, sim... mas também sei que os mineiros o deixaram um pouco depois e voltaram para o acampamento. O Peter disse-lhes que não iria precisar deles naquela noite.
- Quer dizer que foi para a cabana e ficou sozinho? - perguntou Baldwin.
- Sim, e também durante todo o caminho pela charneca. Matá-lo teria sido muito fácil.
- E sabe como ele morreu? - inquiriu Simon com suavidade. O mineiro acenou, sombrio.
- Esganado... e enforcado. O John Beauscyr não teria quaisquer dificuldades para o fazer.
- Talvez... Só não compreendo por que motivo o faria.
- É um Beauscyr, não é? O Peter fugiu das terras deles e fê-los passar por parvos. O John quis ver-se livre do homem que lhe envergonhou a família.
- Thomas, o rapaz não pensa desse modo. Não, custa-me a acreditar que isso o conduzisse ao assassínio. Em geral, até parece satisfeito por ver o irmão em dificuldades e penso que gostou de saber que o homem fugiu das terras da mansão... pelo menos até ser envergonhado pelo próprio Bruther.
- Como é que foi envergonhado?
- Na noite em que morreu, o Bruther insultou o John e Sir Ralph na estrada e deixou-os envergonhados.
- Ah, sim? Tenho a certeza de que o provocaram.
- Provocaram-no? Quando tinha um grupo de homens com ele? - Baldwin ergueu as sobrancelhas. - Está a sugerir que quando dois homens são confrontados por oito... esses dois tentam provocá-los? Não me parece muito credível.
- Talvez não fosse intencional. Os cavaleiros podem ser uns tolos muito arrogantes...
- Tal como os mineiros - comentou o cavaleiro num tom cáustico e Thomas mergulhou no silêncio depois de lhe lançar uma olhadela nervosa.
- Qualquer homem o pode ser... - interveio Simon num tom pacífico. - De qualquer modo, continua a não haver uma explicação para tudo isto.
O mineiro ficou a olhá-lo.
- Uma explicação para isto? Pensei que era óbvio! Se o rapaz matou o Peter.., então quero que pague pelo seu acto. Os meus homens não o conseguiram agarrar mas o irmão apareceu cá fora e apanharam-no.
- E a seguir? Que pretende fazer agora que capturou o filho de Sir William? Matá-lo... ou mantê-lo preso só pelo prazer que isso lhe possa dar? De qualquer modo há uma força considerável, conduzida pelo próprio cavaleiro, à espera no exterior do vosso acampamento... e Sir William quer o filho de volta. Está preparado para assistir à morte de mais mineiros só porque deseja vingar o Bruther?
- Sim! Trocarei o Robert pelo John e o estupor enfrentará a justiça dos mineiros por causa daquilo que fez!
A confirmação enfática fez com que o almoxarife e o amigo trocassem olhares preocupados. Ambos queriam evitar o que prometia ser uma batalha violenta e perigosa. Os mineiros eram em maior número do que a força de 40 homens de armas a cavalo que Sir William conseguira reunir, mas os outros guardas do forte já vinham a caminho, a pé, pelo que o velho cavaleiro acabaria por atacar se pensasse que tinha a vantagem do seu lado.
Baldwin inclinou-se para a frente e enfrentou os olhos fixos e decididos do mineiro.
- Isto não faz sentido. Perdeu um homem, é verdade, mas não me parece razão suficiente para que arrisque as vidas de todos os outros. Não sabemos se foi o John quem matou o Bruther. Sim, pode ter tido essa oportunidade mas pensamos que não se encontrava na área quando o Bruther foi morto. Estava para os lados de Chagford.
Houve uma rápida expressão de dúvida no rosto do homem. Baldwin prosseguiu tranquilamente:
- Para além disso, o próprio Robert nem sequer se encontrava lá perto e sabemo-lo graças ao testemunho de três pessoas que o viram.
- O cavaleiro não viu motivos para lhe dizer que uma dessas pessoas era a própria filha do mineiro. - Não esteve envolvido no assassínio.
- Então, quem matou o Peter?
- Chegamos a pensar em si - admitiu Simon com toda a franqueza. - O Adam Coyt viu-o perto do sítio do Bruther naquele dia.
- Que foi lá fazer?
Para sua surpresa, o mineiro reagiu com um sorriso retorcido.
- Eu?!-Virou-se e chamou Harang, que se encontrava a um par de metros de distância a afiar uma longa adaga enquanto olhava para o grupo de homens que aguardava, na planície. - George, chega aqui por um minuto. Bom, diz a estes dois o que tu e eu andámos a fazer na noite em que o Peter morreu.
O corpulento servo olhou para Baldwin e para Simon com desconfiança. Viu o aceno de Thomas Smyth e encolheu os ombros.
- Estivemos aqui, no acampamento, durante a maior parte da tarde, a verificar a fundição e o modo como o forno estava a funcionar. Quando se fez tarde, saímos para irmos fazer uma visita ao Peter. No dia anterior o meu amo oferecera-lhe trabalho como supervisor da fundição. Fazia sentido ter alguém aqui que ele conhecesse e em que pudesse confiar para cuidar dos lingotes. Fomos saber qual era a sua resposta mas a casa estava vazia e cavalgámos para a mansão para falarmos com Sir William.
- Devia confiar muito no Bruther, para lhe propor um trabalho desses... - comentou Simon, servindo-se de mais bebida. A bilha era torta, tinha o barro estalado e a biqueira partida, mas não foi isso o que o fez entornar a cerveja. Foi a resposta do mineiro.
- Era meu filho, almoxarife.
Os dois homens endireitaram-se e ficaram com as bocas abertas. Baldwin descobriu-se a pensar: ah, então épor isso que o trata sempre pelo nome de baptismo! Por que não percebi?
- Mas como...? - gaguejou Simon. - De certeza que... Por que foi que não no-lo disse antes?
- E por que haveria de dizer? Teria alterado o modo como estão a investigar a sua morte? Que teria o senhor feito, almoxarife, se se tratasse de um filho seu? O mesmo que eu, é claro! Quis saber quem o matou para poder encontrar o assassino... para o tratar tal como ele tratou o meu filho, O meu único filho... - concluiu, com um grunhido de desespero.
- Não compreendo, Thomas... - interveio Baldwin num tom conciliatório. - Diz que era seu filho, mas.,.?
Thomas olhou para o cavaleiro e esboçou um sorriso fraco.
- A minha esposa é uma mulher decente, Sir Baldwin. Tem sido boa para mim e deu-me muitos filhos. Todavia, só a Alicia sobreviveu e todos os outros morreram à nascença ou poucos anos depois. A seguir, a pobre Christine deixou de poder ter filhos e tive de me contentar porque havia o Peter... - Os olhos do homem ganharam uma expressão distante. - A mãe foi a Martha Bruther. Ainda nem sequer conhecera a Christine quando encontrei a Martha. Desejei-a, desejei-a tanto que estive disposto a casar com ela, mas a Martha não me quis. Disse que já experimentara o casamento e que preferia viver sozinha. O marido costumava bater-lhe e nem pensava em arranjar outro. Não necessitava de um homem. No entanto, tinha orgulho no Peter, o nosso filho. - Calou-se, a espreitar para lá do ombro de Baldwin enquanto as memórias lhe regressavam.
- Teríamos poupado muito tempo se soubéssemos disso - declarou Simon, irritado. - Ter-nos-íamos concentrado nos outros suspeitos. - A seguir, contudo, amaldiçoou a sua própria insensibilidade.
- Não o pude dizer antes... - explicou Smyth - com a minha mulher lá em casa. Teria ficado muito magoada. Por isso, calei-me e tentei ajudar-vos tanto quanto pude. Não me pareceu que fosse importante.
- E também não o é agora - declarou Baldwin, compassivo. - No entanto, voltemos à questão principal: o que vai fazer com o Robert Beauscyr? Tenho a certeza de que está inocente e não vai querer fazer mal a um homem que pode vir a ser o seu futuro genro, pois não?
O mineiro abriu a boca de espanto. Todavia, ouviu-se um grito antes de poder responder e apareceu um homem a correr que apontou para a planície.
- Vêm aí! Vêm aí!
Smyth levantou-se e esboçou um sorriso triste.
- Creio que Sir William acabou de decidir por nós. Vamos defendermo-nos!
O que fizera com que Sir William se decidisse pelo ataque fora a chegada dos homens a pé. O seu senescal reunira todos os homens da propriedade, para além dos restantes guardas da mansão, e obrigara-os a apressarem-se para se juntarem ao amo depois de agarrarem no que tivessem à mão que pudesse ser utilizado como arma. Marretas, pás, machados e martelos constituíam o seu pobre armamento, e todos os homens tinham os mesmos olhares fixos e ansiosos, demasiado assustados para fugirem mas muito receosos do que iria acontecer naquele dia. Se fosse uma batalha para protegerem as mulheres e os filhos, teriam lutado até à morte com uma determinação estóica, tal como os seus senhores tinham feito contra os Franceses, os Dinamarqueses e os Normandos, mas aquela luta não era a deles. Tratava-se de uma questão entre os mineiros e o amo, e não tinham qualquer desejo de deixar as família sem pais por causa de problemas que nada tinham a ver com eles.
Logo que entraram na planície houve um vigia que os viu e cavalgou directamente para Sir William, que lhe ordenou que voltasse para trás e dissesse aos homens para descansarem porque os iria conduzir para a batalha muito em breve.
Durante algum tempo mantivera-se sentado, a vigiar o acampamento com a testa franzida. O almoxarife e os amigos já tinham partido havia muito tempo. Não era imaginação sua, e o Sol começara a criar sombras mais alongadas. Para além disso, vira a sua própria sombra a deslocar-se sobre um maciço de urzes e passar para lá dele. John permanecia no cavalo a seu lado, com uma disposição sombria, enquanto Sir Ralph observava o acampamento com uma espécie de tranquilidade aborrecida, como se naquelas terras áridas não houvesse nada que lhe prendesse a atenção. Sir William ouviu um cavalo a resfolegar, olhou por cima do ombro para o homem por trás dele e verificou que também ele mantinha a mesma tranquilidade. Eram poucos os que o olhavam e as miradas dos homens estavam quase todas postas no acampamento.
Nunca esperara voltar a cavalgar para uma batalha durante o resto da sua vida. Ao ver os homens, que incluíam todos os guardas do forte, bem como os servos que sabiam montar, teve a curiosa sensação de que tudo aquilo estava errado. Quem ali deveria encontrar-se a comandar os homens não devia ser ele mas um dos filhos. Estava demasiado velho. O seu tempo passara havia mais de 30 anos, tal como acontecera com o do velho Rei, quando dos brutais embates no País de Gales. Nessa altura fora jovem e fogoso, um poderoso líder de homens, um homem de honra que tivera outros homens famosos a seu lado.
Esses tinham sido os bons tempos. Os riscos tinham sido grandes, a pilhagem fora boa e todos os sobreviventes tinham experimentado um sentimento de realização e de orgulho. Não obstante o desastre da expedição de Anglesey, o senhor de Beauscyr não deixara de ficar com uma boa parte do saque para si mesmo.
A expressão voltou a ensombrar-se-lhe rapidamente quando se lembrou do homem baixo, trigueiro e com olhos escuros que pertencera à sua companhia, que se mantivera separado dos outros, que combatera sozinho como se não fizesse parte do grupo e fosse apenas um estanho que se limitara a juntar-se a eles para lhes dar a sua assistência sempre que necessário. Agora, 30 anos mais tarde, esse mesmo homem, Thomas Smyth, capturara o seu filho sem qualquer espécie de motivo aparente.
Fez rodopiar o cavalo e acenou a um dos homens que se encontrava por perto.
- Leva um recado aos outros - pediu. Transmitiu-lhe algumas instruções rápidas e enviou-o na sua missão. Manteve os olhos fixos no cavaleiro enquanto este galopava pela colina e desaparecia do outro lado, e a seguir olhou para o filho.
- Vamos, John, tratemos de libertar o teu irmão.
Simon e Baldwin viram os homens a pé a surgirem do outro lado da colina e a avançarem em direcção ao acampamento numa massa irregular. Edgar, instalado logo por trás do amo, podia ver as defesas preparadas para os enfrentar. Era verdade que não existia ali nenhuma paliçada ou muralha como na mansão dos Beauscyr, mas os mineiros tinham espalhado grandes pedras por todo o acampamento, o que dificultava o avanço rápido dos cavalos. Essas pedras, em conjunto com os buracos escavados por todo o lado na planície, eram o suficiente para deterem uma qualquer carga. Os mineiros também se tinham dividido em pequenos grupos, cujo anel exterior era formado pelos que se encontravam armados com arcos. Os restantes - a maior parte das forças dos mineiros -, empunhavam espadas, lanças e barras de ferro em mãos que, de repente, tinham ficado húmidas.
Thomas Smyth andava de um lado para o outro transmitindo breves palavras de apoio e encorajamento, rindo-se dos comentários de um, dando palmadas nas costas de outro e tocando de vez em quando, aqui e acolá, numa arma enferrujada que lhe provocava grandes manifestações de desgosto. Para Baldwin, o mineiro comportava-se de um modo semelhante aos de muitos outros líderes de homens, sorridente, instilando confiança com o seu comportamento e recordando-se sempre dos nomes dos homens. O cavaleiro verificava que Thomas Smyth sabia, tal como todos os bons comandantes, que se um homem estava disposto a combater e morrer pelo seu amo, então o amo devia mostrar o máximo de respeito por ele. Para além disso, também sabia como posicionar as tropas de modo a obter as melhores vantagens.
Baldwin mordiscou o bigode e tentou ir ter com o mineiro por duas vezes mas George Harang tinha a espada desembainhada e guardava os dois homens e os respectivos servos com a ajuda de cinco outros mineiros. Os seus olhos nunca abandonavam o almoxarife e o amigo, nem sequer quando as forças de Beauscyr soltaram um tremendo grito, nem quando os pés começaram a ressoar no solo como um rio estrondoso no momento em que os homens dos Beauscyr iniciaram a corrida para o acampamento. Tirando isso, tudo o mate-se mantinha estranhamente calmo. Uma cotovia cantou por cima do acampamento, a roda-d'água murmurava suavemente por trás da fundição e Baldwin teve uma sensação de irrealidade. Parecia-lhe impossível que estivesse realmente ali e que muito em breve fosse testemunhar o clímax de anos de conflitos entre os mineiros e o senhor das terras. Por outro lado, também lhe custava a crer que se iria ver enredado numa batalha que nada tinha a ver com ele. Não tinha qualquer envolvimento nos interesses ou reclamações das duas partes e estava ali apenas para ajudar um amigo que tentava conseguir justiça para um homem que fora capturado.
Os homens em corrida já tinham desistido de um qualquer tipo de formação militar e não pôde impedir-se de contrair os lábios num trejeito de desprezo que substituiu rapidamente por um outro, que passou a ser de compreensão. Aqueles homens eram como as tropas que vira em Acre. Não passavam de pobres diabos sem treino atirados contra o inimigo para tentarem abrir uma passagem enquanto a cavalaria procurava o melhor sítio para abrir uma brecha nas fileiras. Tal como em Acre, também estes iriam ser destruídos. Aqui não havia uma linha a romper, não havia defesas em que a cavalaria se pudesse concentrar. O cavaleiro estremeceu quando ouviu os silvos e os estalidos dos arcos e teve de virar a cara para o outro lado, mas não antes de ter visto homens a cambalearem e a caírem, dois dos quais com as varas emplumadas ao sobressaírem de um modo obsceno dos seus peitos, e um outro com a seta embebida na garganta. Ergueu-se no ar uma segunda vaga de setas, cujo silvo oco se assemelhou ao voo de um bando de gansos, silvo que foi logo seguido por pancadas sólidas quando atingiram as carnes com um som terrível.
Contudo, não compreendera até que ponto Sir William fora bem treinado. A torrente de homens atingiu o acampamento e quase simultaneamente, ou assim lhe pareceu, ouviu-se um grande grito do outro lado do acampamento. Um forte grupo de cavaleiros rodeara-o e estava agora a atacar pelo lado do rio, por trás dos defensores. O grito como que esporeou os homens de Beauscyr e as suas armas começaram a subir a descer, com as espadas a enfrentarem machados, as lanças a chocarem-se com martelos, as adagas a faiscarem contra adagas... numa cacofonia de sons discordantes semelhante ao de um exército de ferreiros a martelarem nas bigornas em simultâneo.
A seguir ouviu-se um novo rumor quando o velho cavaleiro conduziu os seus homens a galope. Baldwin conseguiu ver os dois homens que se encontravam à frente, Sir William e Sir Ralph, com as espadas bem erguidas, com o Sol a brilhar nas suas cotas de malha e armaduras, a cintilar no metal das espadas e nos gumes aguçados das lanças enquanto a terra estremecia sobre o trovejar dos cascos dos cavalos. Foram muitos os que caíram quando atingiram o terreno esburacado, mas a maioria conseguiu atingir os limites da pequena aldeia de cabanas.
Simon sentia-se atormentado. Não sabia o que fazer. Não tinha qualquer possibilidade de impedir a contenda mas também não podia ficar parado, sem levantar um único dedo, a ver tantos homens a serem mortos ou feridos sem um motivo aparente. George Harang e os companheiros remexiam ansiosamente nas armas e lançavam olhares desconfiados para os dois homens que vigiavam. Thomas Smyth não pedira a Simon ou Baldwin para lhe entregarem as armas, mas ambos sentiam que não seria seguro tentar puxar por elas. Os mineiros não tinham motivos para os considerarem como inimigos, pelo menos por enquanto, e os dois homens preferiam que as coisas continuassem assim.
Simon captou relances ocasionais das figuras que lutavam no meio das cabanas. Estremeceu quando viu um machado descer e arrancar o braço a um homem pelo ombro. Ouviu um uivo curto, rapidamente interrompido, rodopiou e viu um outro a cair de joelhos com uma massa sangrenta no local onde deveria ter a garganta. De súbito sentiu-se envolto em vagas de náuseas e ofegou, com os olhos ainda postos no homem que caía lentamente para um lado com os olhos muito abertos como se tivesse ficado surpreendido.
Foi então que a sua ira se atiçou ao máximo. Empurrou um guarda para o lado e rosnou para George Harang:
- Leva-me ao Smyth!
O mineiro olhou-o, inseguro.
- Disseram-me para vos conservar aqui.
- Não me interessa! Quantos mais terão de morrer enquanto aqueles dois estúpidos combatem entre si à custa das vidas dos outros? Leva-me até ele, agora! Isto não é só uma loucura, é fútil!
George hesitou, indeciso. Thomas dissera-lhe para ficar ali com os dois homens mas também ele se sentia chocado com a brutalidade da batalha. Aquilo não era o que esperara. Não era maneira de vingar o Peter. Tratava-se apenas de uma confrontação em que os homens que tinham menos motivos para lutar se viam lançados uns contra os outros. Contudo, lentamente e com relutância, acabou por abanar a cabeça. Nunca desobedecera ao seu amo.
Baldwin avançou de um modo casual. Simon encontrava-se a curta distância com o rosto a ficar vermelho de fúria e o cavaleiro aproximou-se dele, consciente da crescente tensão dos outros guardas.
- George... - disse - o Simon tem razão. Temos de acabar com isto. Olha e vê...
O mineiro arriscou um olhar e viu homens agarrados uns aos outros, a segurarem-se pelas gargantas, um outro sentado no chão, entorpecido, a sangrar profusamente de um ferimento no crânio... e corpos... Para onde quer que olhasse havia corpos espalhados pelo solo. Enquanto olhava viu um jovem cair depois de ser atingido pelo golpe de uma moca. Cerrou os dentes e virou-se para Simon.
- Venham comigo - disse, num tom baixo.
Conduziu-os para lá dos guardas, que ficaram a olhar uns para os outros sem saber se deveriam juntar-se à luta ou permanecer onde estavam, guiou-os por entre duas cabanas que ficavam à esquerda, até um local onde o terreno subia. Foi dali que conseguiram ver Thomas Smyth. Brandia a pesada espada como se esta fosse leve como uma pena e enfrentava John Beauscyr. Simon olhou em volta e distinguiu Sir William, a pé, um pouco mais para diante, junto de Sir Ralph, que também abandonara o cavalo. Um homem armado com uma lança passou por eles a cambalear com um corte sangrento num braço e Simon soltou uma violenta praga. O homem teria talvez 20 anos, não mais, chorava, não via o caminho à sua frente e caminhava apenas para fugir a mais lutas. A visão enfureceu o almoxarife. Simon passou para lá de dois grupos que combatiam antes que Baldwin o pudesse deter, desembainhou a espada, empurrou Thomas e John de maneira a que se separassem e meteu-se no meio deles.
Baldwin ficou a olhar, imobilizado pelo espanto, mas depois reparou que dois mineiros se precipitavam para Simon por pensarem que ia atacar o amo. Deu um salto para a frente, murmurou uma oração e enfrentou os dois homens com as costas viradas para o almoxarife e a espada esticada em frente do corpo enquanto fitava os mineiros com olhos que nem sequer pestanejavam. Os dois homens hesitaram, trocaram um olhar e começaram a rodeá-lo lentamente para se aproximarem de Thomas Smyth, mas o cavaleiro continuou a bloquear-lhes a passagem. Os mineiros pararam ao ouvirem a voz do almoxarife.
- Acabem com esta loucura!
O cavaleiro arriscou uma olhadela para trás e viu que o seu amigo berrava directamente para o rosto do mineiro. Thomas estava branco de raiva mas tinha a espada segura nas duas mãos e Baldwin chegou a pensar, por um instante terrível, que o homem iria atacar Simon. Porém, de repente o fogo morreu-lhe nos olhos e Smyth pareceu mirrar. O ensurdecedor clamor da batalha ressoava em volta deles mas o mineiro permanecia prisioneiro do seu próprio mundo privado de dor e desgosto.
Não fora aquilo o que pretendera. Tentara apoderar-se de John, o homem que acreditava ter morto o seu filho, mas quando George Harang voltara com Robert pretendera utilizá-lo de algum modo como moeda de troca para poder capturar o verdadeiro culpado. Não fora aquilo o que desejara. Pretendera apenas vingar o filho e não causar mais mágoas. O almoxarife olhava-o com franco desprezo. Smyth ficou abalado e olhou à sua volta.
O local onde se encontravam era uma distinta ilha de calmaria no meio da batalha, rodeada por homens que se esquartejavam e apunhalavam uns aos outros. O lado por quem lutavam era um mistério porque a confusão da batalha os reduzira a uma uniformidade monótona, de rostos cerrados, brandindo as armas com a determinação fixa e temerosa daqueles que querem matar antes que lhes aconteça algo de mau. Thomas teve dificuldades para distinguir os seus homens dos de Beauscyr. Estavam todos envolvidos nas suas batalhas pessoais, em pequenos grupos de três ou quatro equipados com as mais variadas armas. Alguns mantinham-se agarrados numa luta mortal pelo controlo de uma única adaga, outros a escorregarem e a deslizarem nas margens do rio, com os rostos e as roupas cobertas de lama e terra, enquanto ainda outros se mantinham de pé e cortavam arcos no ar com o ferro e o aço das armas. Aqui e acolá havia homens que olhavam desconfiados uns para os outros, ofegando enquanto descansavam, já demasiado exaustos para continuar. Por todo o lado se viam corpos caídos. Alguns contorciam-se, outros rolavam, uns quantos gritavam mas eram muito mais os que jaziam, imóveis, com expressões fixas, com ferimentos de punhaladas ou grandes marcas nos crânios nos locais onde as maças ou mocas lhes tinham esmagado os miolos.
Simon viu o rosto do mineiro a alterar-se. Surgiu-lhe nos olhos uma expressão de compreensão, e com ela uma outra de infinita tristeza. Acenou, baixou a espada, endireitou o corpo e Simon soube que a batalha iria terminar dentro em pouco.
- Acabem com isso! - rugiu, e Simon ficou surpreendido com o poder da sua voz. - Parem todos, imediatamente!
Alguns dos que se encontravam mais perto fizeram uma pausa e viraram-se para o olhar. Baldwin viu um homem que tentou olhar para Thomas. Quando o fez, o seu opositor atirou-se para a frente, para o golpear, mas Baldwin desviou-lhe a espada para um lado no último instante. O outro virou-se imediatamente para ele e tentou lançar o machado contra o homem dos Beauscyr, pelo que Baldwin também teve de o atacar.
- Acabem com isso! - rosnou. - Se algum de vocês voltar a tentar... arranco-lhe um braço!
Simon abriu caminho por entre a massa de homens e aproximou-se de Sir William. Mantinha-se de pé, com as faces muito brancas, enquanto um homem lhe amarrava um pano sujo em volta da cabeça. Tinha um bocado de pele da face pendente no local onde fora cortado por uma adaga. Olhou o almoxarife com um ar entorpecido.
- Diga aos seus homens para pararem! Agora! - ordenou-lhe Simon numa voz áspera. - Os mineiros pararão se os seus homens o fizerem. Ordene-lhes que baixem as armas, Sir William!
- E o Robert?
- Diga aos seus para acabarem com a luta e poderemos perguntar por ele, não acha? - gritou Simon num tom desagradável. - A morte de todos os seus homens irá servir para ajudar o seu filho? Diga-lhes que ponham fim à luta! - Para seu grande alívio, viu o velho cavaleiro a suspirar e a confirmar com um aceno.
A batalha expandira-se de modo a cobrir quase dois quilómetros quadrados e foram precisos vários minutos de berros para que os combates cessassem. Gradualmente, com muitas incertezas e em todos os casos com os homens com os olhos sempre postos nos inimigos por uma questão de cautela, os vários opositores afastaram-se remexendo nas armas recentemente partidas ou estropeadas. Recuaram, formando pequenos grupos sombrios e ofegantes que nalguns sítios eram constituídos por três mineiros e noutros por três ou quatro dos homens de Beauscyr. Vários camponeses tentavam acalmar um jovem que soluçava, agarrado a um pulso esmagado. Estavam todos tensos, na expectativa de um recomeço dos combates, tinham medo de serem surpreendidos e nenhum deles confiava nos inimigos que tinha pela frente.
Baldwin viu aquilo, pegou em Thomas por um braço e levou-o até Sir William e Simon.
- Thomas, tem de ordenar aos seus homens que recuem um bocado. Sir William, faça o mesmo. Os homens devem recuar e deixar-vos aqui aos dois, para que todos possam ver que não há truques. Digam-lhes para formarem um círculo à nossa volta.
Devagar, com passos arrastados, os dois grupos de homens separaram-se quando os respectivos chefes lhes transmitiram essas ordens. Rebentou uma pequena escaramuça quando um homem viu um amigo morto, mas os companheiros puxaram-no. Simon nem sequer conseguiu perceber de que lado da contenda se encontrava o homem. O espaço entre os combatentes foi aumentando lentamente à medida que todos recuavam em desviarem os olhos dos opositores. De vez em quando havia um que tropeçava num corpo. Felizmente, os mortos eram poucos. Os que se encontravam feridos foram reunidos e levados para serem tratados e em breve se viram grupos de homens a transportarem os que não conseguiam andar. Carregaram-nos até às margens do rio para que os seus membros fossem lavados e ligados. Aqui e acolá acenderam-se as fogueiras necessárias para aquecer os ferros que iriam cauterizar os ferimentos mais graves.
Simon obrigou-se a desviar os olhos, ignorou os murmúrios zangados que lhe chegavam de todos os lados e enfrentou Beauscyr e o mineiro. John também ali se encontrava, de pé ao lado do pai, e observava a cena à sua volta com um divertimento altivo. Edgar e Hugh permaneciam junto de Baldwin. O servo de Simon parecia estar bem, embora tivesse a túnica salpicada de sangue.
- Muito bem, Sir William e Thomas. Esta estupidez tem de acabar - declarou Simon enquanto avançava para eles, acabando por parar com as mãos no cinto. - Em primeiro lugar, Thomas, quero que ordene a libertação do Robert Beauscyr. Não tem nada a ganhar com o facto de o manter aqui.
- Por que haveria de o libertar? Penso que este patife miserável matou o Peter e quero conservar o irmão até ver o que lhe irá acontecer.
Simon falou numa voz muito alta, para que todos o pudessem ouvir.
- O John Beauscyr contou-me o que andou a fazer na noite em que Peter foi morto e a sua explicação satisfaz-me, pelo menos por agora. Não foi ele quem matou o seu filho.
O silêncio foi total quando toda aquela gente se apercebeu do significado das suas palavras. O velho cavaleiro foi o primeiro a manifestar-se num tom baixo e chocado.
- O seu filho?
- Sim, o Peter Bruther era meu filho. Conheci a mãe antes de me casar. Foi para bem da minha esposa que nunca admiti essa paternidade mas o rapaz sabia que era do meu sangue. Foi uma das razões que o fez vir para a charneca. Disse-lhe que o fizesse para poder aprender tudo a respeito da extracção do estanho e para ter a possibilidade de enriquecer, e certifiquei-me de que tinha sempre guardas à sua volta para o protegerem contra o senhor e os seus homens.
John também estava de boca aberta.
- O Peter era seu filho? - perguntou, abanando a cabeça de incredulidade. - Nenhum de nós o sabia!
- E foi por isso que o mataste? Por pensares que estava desprotegido? - rugiu o mineiro, dando um rápido passo em frente. Baldwin avançou para se colocar entre eles.
- Espere, Thomas! - Os profundos olhos castanhos do cavaleiro enfrentaram e acalmaram o brilho de fúria nos olhos negros do mineiro. - Olhe à sua volta! Já provocaram males mais do que suficientes. É melhor que conversemos e nos escutemos uns aos outros por instantes antes de causarmos mais mortes.
- A culpa destas mortes não é minha! Foram os Beauscyr quem atacou o acampamento - protestou Thomas. Todavia, a sua voz não tinha entoação e o mineiro desviou os olhos. Deixou passar um instante mas acabou por acenar.
Simon dirigiu-se ao velho cavaleiro.
- Sir William, quero evitar mais derramamento de sangue. Estou certo de que o senhor e os seus homens também não desejam mais mortes. Não estamos num tribunal, não temos um magistrado para conduzir um inquérito nem um amanuense para registar as declarações, mas podemos levar a cabo uma investigação, agora mesmo, aproveitando-nos do facto de poder ser testemunhado por todos os homens que se encontram à nossa volta. Mais tarde poderei fazer o meu relatório ao magistrado de Lydford. A sugestão agrada-lhe?
O velho acenou, sem nunca tirar os olhos do mineiro. Simon pressentiu que Sir William se interrogava a si mesmo sobre como se sentiria se estivesse na pele de Thomas Smyth e tivesse perdido o filho, um jovem que não pudera reconhecer publicamente e a quem tentara ajudar a libertar-se da servidão para encetar uma nova vida em que poderia ser protegido... para depois descobrir que alguém o assassinara. O rosto de Sir William revelou todo o seu horror e compaixão. O suspiro que soltou deu algum alívio a Simon. O cavaleiro iria comportar-se com moderação.
- Thomas? Estamos de acordo? - perguntou o almoxarife, olhando para o mineiro. Thomas Smyth acenou lentamente. - Óptimo, nesse caso, mandemos vir cadeiras. Não temos nenhuma necessidade de ficarmos de pé quando nos podemos sentar!
O almoxarife sentou-se ao centro, flanqueado por Baldwin e Hugh. Edgar manteve-se por perto, enquanto Sir William e o filho se instalavam à esquerda de Simon e Thomas à direita. Os mineiros e os homens da mansão sentaram-se ou agacharam-se em volta deles, o que levou Simon a recordar-se dos tribunais de mineiros do estanho em que já participara. Era estranho estar a controlar uma reunião como aquela. Em geral seria o magistrado ou o juiz a sentar-se no trono para escutar as provas de um inquérito ou julgamento, mas o almoxarife nem sequer tinha tempo para se preocupar com a sua falta de experiência. O assunto era demasiado grave para ser adiado, tal como o demonstrara a recente batalha. Estava decidido a resolver a disputa entre os mineiros e os Beauscyr.
- Estamos todos aqui para tentarmos descobrir o que realmente se passou no dia em que o Peter Bruther morreu - começou. - Todos vocês me conhecem. Sou o almoxarife de Lydford e o meu dever é encontrar o assassino. Apelo a todos vós para que testemunhem as palavras dos que vierem a ser chamados à nossa presença. Quero que ouçam e vejam que vamos ser justos para todos. - Olhou em volta. - Em primeiro lugar quero ver os três homens que foram enviados ao Henry Smalhobbe para o espancarem.
Precisou de esperar algum tempo para que fossem buscar os três homens. Harold Magge mostrou-se resolutamente desafiador, mas os outros encolheram-se e ficaram nervosos na frente de toda aquela gente. Simon verificou que as nódoas negras dos homens eram já menos visíveis e acenou para si mesmo enquanto Thomas lhes dizia para contarem a verdade. Simon deu início ao interrogatório:
- Foram à procura do Henry Smalhobbe e atacaram-no no dia em que o Bruther morreu, não é verdade?
Magge confirmou com um aceno. Muito rapidamente, Simon fê-lo narrar o que já ouvira antes, como se tinham instalado para esperarem pelo Smalhobbe e como o homem quase os conseguira surpreender. Contudo, acabara por ser derrubado e espancado, e os três homens tinham regressado ao acampamento. Simon olhou para Thomas quando perguntou:
- Depois disso, quem foi que vos espancou? Quem vos causou essas nódoas negras?
- O Thomas Smyth. Deve ter pensado que tínhamos morto o Bruther e dissera-nos para não o atacarmos. Quando soube que o Bruther fora encontrado no bosque de Wistman dirigiu-se directamente para o acampamento e mandou-nos chamar. A seguir fez com que nos espancassem para admitirmos o assassínio do Bruther.
- E mataram o Bruther?
- Não!
- Viram o Bruther nessa noite?
- Não!
- Quem foi que viram nessa noite?
Magge hesitou, lançou uma olhadela a Thomas e Baldwin viu o velho mineiro a fazer um pequeno aceno de assentimento.
- O George Harang e o Thomas. Vimo-los a cavalgar de regresso do sítio do Bruther depois de termos deixado o Smalhobbe. Dirigiam-se para sul, para a estrada.
- Thomas?
- Sim, é verdade. - levantou o rosto com uma expressão vazia. - Fomos visitá-lo mas não estava lá. Esperei algum tempo mas depois começou a escurecer e pareceu-me melhor voltar para casa, para ir receber Sir William. Não vi sinais do Peter.
- Compreendo. Agora, Harold Magge: de onde vinha o Smalhobbe quando vocês o emboscaram?
- Do sul.
- Poderia ter vindo do bosque de Wistman?
- O Smalhobbe?! - Havia troça na voz do homem. - Não passa de um pequeno mineiro e nunca mataria outro!
- Quase vos surpreendeu, não é verdade? Foste tu mesmo quem me disse que talvez te conseguisse dominar se a esposa não o tivesse chamado. Se te dominasse, era provável que fosse capaz de correr com os outros, não achas? Agora, por favor, responde à pergunta: podia vir do bosque de Wistman?
- Vinha do sul... Wistman fica a sudoeste dali, mas podia ter feito o percurso mantendo-se nas terras baixas para evitar as colinas. Para além disso estava atrasado e chegou a casa muito mais tarde do que era habitual. Sim, suponho que podia ter estado no bosque.
- Nunca me tinhas dito isso - queixou-se Thomas Smyth. Tinha a voz cansada, o rosto pálido e olhava para o homem com uma espécie de tristeza impotente.
- Não nos perguntou por onde andara o Smalhobbe, senhor - retorquiu Magge com secura, - Só nos perguntou o que nós andámos a fazer. Também não sabia que o Peter era seu filho... e pensei que tínhamos feito algo que não lhe tivesse agradado,.. - A voz morreu-lhe quando o almoxarife levantou a mão.
- Harold, dirias que é possível que tivesse sido ele? - Simon confiava instintivamente na opinião do homem que, de algum modo, lhe dava uma sensação de solidez. Recordou-se que da primeira vez que vira o Magge pensara instantaneamente num agricultor das charnecas. Agora, e tal como um agricultor faria, Magge manteve-se em silêncio durante algum tempo para analisar a questão.
- Acho que seria possível mas não me parece que fosse ele. O Smalhobbe não é um assassino, independentemente do que os outros dizem a seu respeito.
- Nesse caso... gostaria de falar com Robert Beauscyr - declarou Simon. Pouco depois já o jovem cavaleiro se encontrava na frente do grupo. Não parecia ter sido maltratado, o que era um alívio. Baldwin perguntara a si mesmo o que poderia acontecer se o jovem aparecesse ferido. Não seria improvável que os homens dos Beauscyr se sentissem tentados a lançarem-se num novo ataque. No fim de contas, fora por causa dele que lhes tinham ordenado que combatessem.
Simon pediu-lhe que contasse a toda a gente o que fizera durante a noite do assassínio. Nervoso, Robert começou por explicar a sua fuga da mansão e como cavalgara até Chagford, onde encontrara Alicia, bem como o seu subsequente acordo para se encontrar com ela mais tarde, o que provocou um sorriso retorcido no rosto de Thomas, que não compreendera, pelo menos até àquele momento, até que ponto a filha estava envolvida com o rapaz. Olhou-o e perguntou a si mesmo como seria Robert Beauscyr como genro. Para sua surpresa, descobriu que a ideia era menos desagradável do que esperara.
- Viu dois cavaleiros na estrada, não é verdade? Na direcção do bosque de Wistman...? - perguntou Simon, incitando-o.
- Sim.
- E mais ninguém?
- Mais ninguém, almoxarife. Simon olhou para o mineiro.
- Os dois cavaleiros eram homens de armas da mansão. Foram eles quem encontrou o corpo do Bruther pouco depois.
- Estão aqui? - perguntou Thomas, olhando os homens alinhados na sua frente.
- Estão mortos - ripostou Simon com secura. A afirmação provocou uma nova e perigosa onda de tensão entre os homens que os observavam.
- Como? Como foi que morreram?
Foi Sir William quem respondeu, num tom tão cansado como o do mineiro - Parece que se envolveram numa luta por causa de um jogo de dados. Foram apunhalados.
- Quando foi isso? - inquiriu o mineiro.
- No princípio da manhã de hoje - disse-lhe Simon. - Os corpos ainda estavam quentes quando os encontrámos.
Thomas Smyth virou-se para espreitar John.
- Foste tu, não foste? - A sua voz tremia de emoção. - Os homens deviam poder identificar-te e mataste-o para ocultar as tuas culpas!
- Cale-se, Thomas! - interveio Simon, mas John ficou com o rosto branco de fúria.
Saltou da cadeira e enfrentou o mineiro enquanto agarrava no punho da espada. Porém, Edgar afastou-lhe a mão com uma palmada antes que o jovem pudesse desembainhar a arma. Ouviu-se um rumor de ira vindo dos homens do Beauscyr, logo correspondido por um súbito movimento dos mineiros sentados do outro lado do espaço onde Simon e os outros se encontravam sentados. Simon levantou-se à pressa e levantou as mãos bem altas.
- Estejam quietos!- berrou, para logo a seguir olhar de Thomas para SirWilliam. Levantaram-se ambos, devagar e com relutância, e trataram de acalmar os homens. Entretanto John olhava com fúria para Edgar, que se sorria para ele com toda a calma sem nunca tirar os olhos do rapaz.
Simon fitou o mais novo dos Beauscyr.
- Mantenha a mão longe da espada, escudeiro. Não queremos mais sangue derramado sobre as charnecas.
- Espera que eu, filho de um cavaleiro de honra, aceite ser acusado de assassínio por um mineiro? Por Deus, não tem o direito de...
- Silêncio! Tenho todo o direito... e o dever de investigar um assassínio! Ponha-se na nossa frente e mantenha a mão longe da espada. Terei de lhe lembrar que isto é a investigação legal de um assassínio? Se não me obedecer mandá-lo-ei prender e envio-o para a prisão de Lydford!
Por momentos, Baldwin ainda pensou que John fosse argumentar. Olhou com ódio para o almoxarife enquanto analisava a sua posição.
Simon estava com o rosto vermelho de fúria e a ira fervilhava dentro dele, pronta para saltar cá para fora e escaldar o jovem. No fim, John encolheu os ombros com desprezo e chegou-se para o lado, para junto do irmão.
- John Beauscyr, esteve na charneca naquele dia. Viu mais alguém? Uma pessoa qualquer que pudesse estar envolvida na morte do Peter Bruther? - A raiva de Simon acalmava e compreendeu que teria de omitir a confissão de roubo que o rapaz lhe fizera. Num ambiente como aquele não era de esperar que os mineiros fossem capazes de controlar a ira se descobrissem que John estivera envolvido, tal como admitira, num acto de banditismo. John narrou os acontecimentos da noite com poucas palavras e descreveu a cavalgada até à casa de Smyth e a subsequente jornada para a estalagem. Quando se referiu ao seu encontro com Bruther, na estrada, o silêncio foi total e toda a gente o escutou atentamente.
Baldwin pensou que o rapaz constituía uma boa testemunha, forte e directa, que se exprimia com uma segurança controlada. A sua própria postura implicava convicção, uma vez que falou com as pernas ligeiramente afastadas e com os braços cruzados sobre o peito. Era a perfeita imagem das virtudes de um cavaleiro.
Simon conduziu-o cuidadosamente ao longo do relato do encontro com Bruther, em que este e os seus homens tinham deixado o jovem Beauscyr na estrada com o seu cavaleiro e tinham troçado deles quando se dirigiam para a estalagem.
- E não viu mais ninguém na estrada depois de deixar o Bruther?
- Não. Não vi - Mais uma vez, a declaração foi feita de um modo que não deixou espaço para dúvidas.
- Então, as coisas resumem-se assim... - disse Simon, falando em voz alta para benefício dos mineiros e dos homens dos Beauscyr que os rodeavam por todos os lados. - O Bruther saiu da estalagem e foi para casa. Quando chegou junto da casa do pai os guardas deixaram-no e prosseguiu sozinho através da charneca. Algum tempo depois o Adam Coyt passou pela estrada a caminho de casa e ouviu um cavaleiro a norte dele, na charneca. Não olhou para ver de quem se tratava. - Ouve um ligeiro aliviar da tensão na multidão e até algumas pequenas gargalhadas nervosas quando acrescentou: - Àquela hora da noite, o Adam Coyt pensou que podia ser o Diabo ou o Croc-kern. Escutem-me, todos vocês! - Levantou-se e examinou a multidão que os observava. - É certo que Thomas não mandou assassinar o seu próprio filho. O John Beauscyr estava na estalagem com o amigo. O irmão encontrava-se com a Alicia Smyth. Portanto, nenhum deles foi responsável pelo assassínio. Ainda não sei quem foi quem matou o Peter Bruther mas acabarei por o descobrir. Quando o fizer, o homem será preso e enviado a tribunal. Ouviu-se um grito por trás dele, num tom trocista.
- Estás a fingir tudo! Por que haverias de te preocupar com um mineiro? Não te ralas com o Bruther e tudo o que queres é ajudar os teus amigos Beauscyr!
- Pensam que estou a ser pago pelos Beauscyr?! - rugiu Simon, com o rosto a ganhar uma coloração vermelha-escura. - Pensam que estou agarrado à bolsa de Sir William? Já agora também podem sugerir que fui pago pelos mineiros! Fui eu quem impediu Sir William de ir buscar o Bruther de volta à propriedade, fui eu quem convenci os filhos a deixarem os mineiros em paz e fui eu quem tentou impedir esta loucura! Não permitirei que digam que sou um corrupto e que desonro o meu cargo em troca de subornos! - os olhos furiosos de Simon varreram a multidão e Baldwin verificou, com um pequeno sorriso, que os homens que ele fitava desviavam imediatamente a cara. Ninguém se queria arriscar a suportar a ira do almoxarife.
Simon acalmou-se com um esforço óbvio. - Este assunto é triste e desagradável, mas as lutas entre os mineiros e os Beauscyr têm de acabar. Não há motivos para que se percam mais vidas. Não quero ouvir falar em mais mortes. Encontrarei o assassino do Bruther, tal como também irei descobrir quem matou o Samuel Hankyn e o Ronald Tavemer. Morreram três homens e só Deus sabe quantos foram mortos - e quantos mais irão morrer -, por causa da batalha que hoje teve lugar aqui. Isto tem de parar! - Olhou para Sir William e para Smyth. - Têm de resolver as vossas diferenças. Não posso impedi-los de se tentarem matar um ao outro, se for isso o que estão decididos a fazer. Contudo, e juro-o por Deus, se ouvir falar em mais uma batalha pedirei ao Rei que envie as suas tropas para impor a paz nas charnecas! Agora vou-me embora, Sir William, e quero que leve os seus homens de volta à mansão. Irei lá ter mais tarde. Thomas, espero que liberte Sir Robert imediatamente.
Baldwin, que continuava sentado, viu como o mineiro e o senhor da terra chegavam a um acordo e os homens começavam a recolher as armas. Gradualmente, os homens de Beauscyr começaram a afastar-se do local da reunião e a subir a colina, com alguns deles a receberem os cavalos das mãos dos que os seguravam e a montar. Os mineiros mostravam-se sombrios, a olhar e a murmurar entre si enquanto os inimigos se iam embora lentamente, enquanto outros tratavam dos ferimentos de companheiros que sangravam.
O cavaleiro soltou um suspiro. Naqueles dias havia tantos assassínios que era frequente que os assassinos conseguissem escapar. Um mercador podia ser apunhalado na estrada sem que os locais vissem o seu atacante ou, se o vissem, poderiam não saber como se chamava. Por vezes, até um homem que fora reconhecido ou apanhado em flagrante conseguia escapar à justiça fugindo para longe. No fim de contas, nunca pagaria o seu crime se não chegasse a ser capturado... e cabia à população local pagar impostos à Coroa pela quebra da paz do Rei.
A área estava a ficar rapidamente vazia, com os homens dos dois lados a juntarem-se em pequenos grupos e a separarem-se. Os mineiros encaminharam-se para as suas cabanas e os soldados afastaram-se a cavalo ou a pé. Baldwin viu Simon a conversar com Robert. O jovem estava pálido e tenso mas Baldwin atribuiu o facto ao medo em relação ao seu potencial futuro sogro. O facto de parecer nada ter sofrido às mãos dos mineiros era um alívio.
John montou o cavalo, agitou as rédeas e afastou-se a trote, com os olhos de Baldwin a segui-lo até a sua figura ser um ponto no horizonte. Não havia dúvidas de que o rapaz era irritante, mas isso não significava que fosse um assassino. Mesmo assim, andara por fora naquela noite e embora existisse uma espécie de testemunha na pessoa do homem roubado perto de Chagford, era sempre possível que John tivesse morto o Bruther mais cedo e depois se apressasse para conseguir criar um álibi. Baldwin não partilhava as convicções de Simon quanto à inocência de John.
Aquilo levou Baldwin a pensar nos outros homens que tinham andado por fora nas charnecas quando o Bruther fora tão brutalmente assassinado. O Adam Coyt, por exemplo. Podia ter inventado a história a respeito de um cavaleiro a passar perto da estrada quando a noite caía, O cavaleiro sentia-se inclinado a acreditar na palavra do homem, mas apenas por simpatia para o com o seu tipo de pessoa, forte e individualista, a trabalhar num ambiente duro para conseguir ganhar o suficiente para ganhar a vida. Na verdade, não tinha qualquer outro motivo para confiar na sua palavra.
Quanto ao paradeiro dos Beauscyr na tarde em que Bruther morrera... Bom, Sir William estivera na casa do mineiro e Robert encontrara-se com Alicia... mas de acordo com o que Alicia lhes dissera houvera um breve período - que Simon não mencionara perante a multidão -, em que esta estivera longe de Robert no intervalo em que regressara a casa e o momento em que fora ter com ele à estrada. O que andara ele a fazer durante essas horas perdidas? Logo de seguida, a mente de Baldwin regressou a John. Havia sempre o John... a espalhar malevolentemente boatos e mentiras para seu divertimento pessoal e a tentar minar a posição do irmão por causa das invejas relacionadas com a herança.
Baldwin, profundamente mergulhado em pensamentos, continuou a caminhar de volta ao acampamento principal onde o seu cavalo ficara amarrado. Depois, também havia os outros, Samuel Hankyn e Ronald Taverner. As suas mortes eram um mistério. Os dois homens tinham-lhe parecido suficientemente inofensivos, em particular o pobre e jovem Ronald. Era ridículo sugerir que pudessem ter estado envolvidos numa qualquer discussão fatal por causa de um jogo de dados. O modo como Samuel tentara cuidar do amigo mostrava até que ponto essa ideia era insensata. Se tivesse havido uma luta então deveria ter lá estado outro homem, alguém que presumivelmente começara por assassinar o Samuel, uma vez que era saudável e se encontrava em forma, para depois ir apunhalar o infeliz Ronald enquanto este jazia na enxerga.
Lançou uma olhadela a Simon. Agora, o almoxarife conversava com Hugh e dava-lhe instruções num tom monótono mas entrecortado que mostrava que a sua ira ainda fervilhava. Hugh também o sabia e era por isso que mantinha a cabeça baixa e escutava o amo sem se atrever a interrompê-lo ou a argumentar. Era um comportamento tão diferente das suas maneiras habitualmente truculentas que Baldwin não conseguiu evitar um sorriso rápido antes de virar a cara.
Então, quem poderia ter estado com os dois homens na pequena divisão?, interrogou-se. Talvez conseguisse uma resposta se questionasse os guardas, os que se encontravam de serviço às primeiras horas da madrugada, mas tinha muitas dúvidas. Havia algo de errado. Estava a deixar escapar qualquer coisa.
Olhou para as forças que se afastavam e verificou que os quadrados de turfa tinham sido espezinhados. Agora, o perigo que constituíam já era visível para todos. Sabia que se tratava de um truque muito simples para dificultar os combates a cavalo. Sim, o mineiro era capaz de defender a sua terra. Exibira as capacidades tácticas de um guerreiro e Baldwin recordou que SirWilliam dissera que Thomas fora um soldado, havia muito tempo, no País de Gales. Para Sir William, a surpresa fora essencial para não perder mais homens. Tudo o que necessitara fora distrair a atenção dos mineiros que se encontravam na frente, assustando-os com tropas montadas e equipadas com lanças e espada a aparecerem pela retaguarda de modo a permitir uma carga de cavalaria em segurança. Fora o que também acontecera com o fogo, que desviara as atenções dos dois homens mortos.
De súbito, a carranca de Baldwin intensificou-se. Compreendeu. de repente, que fora por isso que os assassínios não tinham chamado a atenção de ninguém... Fora por causa do alarme provocado pelo incêndio. O repicar da sineta abafara todos os outros ruídos.
Simon acabou de dar instruções a Hugh e olhou em volta para o acampamento. Os mineiros regressavam ao seu trabalho e os homens de Beauscyr já quase tinham desaparecido do outro lado da colina, levando com eles os feridos e os mortos. Ali perto havia uma pilha de corpos, de cinco mineiros que tinham morrido, e Simon olhou-a com amargura. Para um almoxarife, falhar na prevenção de um único assassínio já era suficientemente mau... mas uma batalha em grande escala na floresta do Rei constituía um acontecimento muito pior. De certeza que lhe iriam pedir responsabilidades pelo que se passara! Soltou um suspiro e sentiu-se exausto. Os acontecimentos da manhã tinham cobrado o seu preço, desde o combate ao incêndio até à tentativa para impedir uma batalha, e agora tudo o que desejava era poder sentar-se para pensar, bem como um longo e refrescante gole de cerveja. Viu Baldwin, endireitou-se e fez uma careta quando ouviu uma articulação a estalar. A seguir avançou para o cavaleiro.
- Bom, Baldwin, isto terminou, pelo menos de momento - murmurou, e viu a cabeça do cavaleiro a rodar de repente. - Baldwin? O que foi?
O cavaleiro explicou-lhe a sua nova visão a respeito dos dois mortos e do incêndio para distrair as atenções. Simon ouviu-o mas não conseguiu deixar de olhar para o pequeno e patético monte de mortos.
- Eu sei... - disse-lhe Baldwin seguindo-lhe o olhar - mas a guerra é assim. Sabes, acho que o destino do Samuel e do Ronald foi muito pior. As suas mortes foram premeditadas e mataram-nos a ambos antes que se pudessem defender... tal como aconteceu com o Peter Bruther. Foi agarrado por trás e garrotado, o Samuel foi apunhalado pelas costas e o Ronald foi chacinado quando jazia na sua cama, indefeso.
- Se o que dizes estiver certo... - murmurou Simon - então o assassino deve ter iniciado o incêndio e deslizado para o quarto para matar o Hankyn e o Taverner...
- Sim, mas não consigo compreender por que terá atraído o Samuel ao armazém. Àquela hora deveriam estar os dois a dormir e nesse caso bastava-lhe apunhalar o Samuel no local onde este se encontrasse...
- Oh, isso é fácil. Creio que o assassino, quem quer que fosse, iniciou o fogo e entrou no armazém vindo directamente do pátio. Esperou até que o alarme soasse. Quando isso aconteceu, deu um pontapé nos barris para provocar um barulho. Acordou o bom do Samuel, que entrou para ver o que se passava. Apanhou-o pelas costas, tapou-lhe a boca para o impedir de gritar e apunhalou-o, Depois disso, tudo o que o assassino precisou de fazer foi entrar no compartimento seguinte e acabar com o pobre do Ronald que jazia na enxerga.
- Sim... mas porquê, Simon? É isso o que não compreendo. Para quê matá-los?
- Aí está uma coisa que só descobriremos quando interrogarmos o assassino. No entanto, penso que quem o fez deve ter pensado que os dois homens o viram na charneca quando o Bruther morreu. Seria uma boa explicação, não achas? Pensou que o tinham visto e certificou-se de que não o diriam a ninguém.
- Se for verdade... - declarou Baldwin num tom baixo - então deve ter sido alguém do interior do forte. O fogo começou antes dos portões serem abertos. O Adam Coyt, o Thomas Smyth e os seus homens... Bom, todos os que se encontravam no exterior devem estar inocentes. Quem quer que matou o Bruther e os outros dois tinha de lá estar dentro na noite passada...
- Oh, sim, Baldwin. Não tenho dúvidas quanto a isso - afirmou Simon num tom pesaroso, conduzindo-o para onde Hugh e Edgar os esperavam com os cavalos.
O almoxarife saltou para a sela e olhou em volta, para o acampamento dos mineiros, Os sinais de luta já tinham desaparecido quase completamente. Os corpos, a prova de que se desenrolara uma batalha, haviam sido tapados e de certeza que muito em breve os transportariam para a pequena igreja de Widecombe. Dois homens tapavam as armadilhas para cavalos com terra e calcavam o solo com os pés enquanto outros percorriam o terreno recolhendo setas, que seriam guardadas no armeiro para o caso de novo ataque. Para além disso, o acampamento recuperara um pouco da sua atmosfera calma e meio adormecida sob o quente Sol do Verão.
Simon esporeou o cavalo na vertente e disse:
- Está tudo tão sossegado que até parece que não aconteceu nada...
O cavaleiro acenou a sua concordância.
- Tens razão! Na verdade, é difícil de imaginar a carnificina que aqui teve lugar há umas horas. As ervas estão pisadas... e mais nada. As charnecas sabem esconder bem os seus segredos.
- Pois é. Quer se trate de um homem isolado como o Bruther, ou de um grupo como os que aqui estão, todos acabam por desaparecer...
Encontravam-se junto à franja exterior de cabanas e Hugh olhou para trás com um ar pensativo.
- Pergunto a mim mesmo onde terá morrido o Bruther - murmurou.
- Que queres dizer? - inquiriu Baldwin, olhando para o servo de Simon.
- Não sabemos onde ele morreu, pois não? Pode ter sido morto onde o encontraram, mas parece-me um pouco estranho que estivesse no bosque de Wistman, tão afastado do seu caminho. Tudo o que sabemos é que morreu algures entre a casa de Thomas Smyth e a sua própria cabana.
- Bem pensado, Hugh. Portanto, tudo o que temos a fazer é percorrer as charnecas entre esses dois lugares e descobriremos onde o mataram. Deve ser fácil... - O tom de Simon era claramente sarcástico.
Todavia, Baldwin continuou a olhar para o servo com uma expressão pensativa.
- Na realidade, não deve ser muito difícil. No fim de contas sabemos que o Bruther era cuidadoso e desconfiado. Se estivesse a caminhar pela charneca e ouvisse alguém atrás dele, virar-se-ia para ver quem era, Se houvesse alguém à sua espera, de certeza que o Bruther o veria. Estas charnecas são tão planas que até podemos ver um besouro a um quilómetro de distância.
Encontrava-se quase no topo da colina, por cima da planície, e Baldwin virou-se para estudar a paisagem.
- Se um homem quisesse emboscar alguém, fá-lo-ia mais para o interior da charneca, não acham? Devia preferir um sítio tranquilo, onde não houvesse a possibilidade de ser ouvido por ninguém... mesmo no caso de levar outros com ele. Onde é que há um lugar desses no meio das charnecas?
- Suponho que num tor... ou num grupo de outras rochas...
- Isso mesmo! Há rochas por trás das quais um homem se pode esconder. No entanto, o John teria a possibilidade de lá chegar para emboscar o Bruther, sem ser visto pela sua vítima?
Simon considerou a hipótese por instantes.
- Dependia do caminho que tomasse a partir da casa do mineiro. O assassino já devia lá estar quando o Bruther passou. A seguir levou o corpo para o bosque de Wistman, teve tempo para o enforcar e escapou-se. Pergunto a mim mesmo quanto tempo terá isso levado...
- Um bom bocado... - pressupôs Baldwin - e essa é outra das coisas que não compreendo. Toda a gente parece ser capaz de explicar por onde andou, excepto Sir Robert e o irmão. Claro que o John pode ter tido o tempo necessário se cavalgasse imediatamente para Chagford para ir roubar o agricultor.., - O que quer dizer que foi Sir Robert...
- Sim - disse Baldwin, mas a sua expressão era de dúvida. Simon suspirou.
- Ainda não sabemos com exactidão onde é que o Bruther foi morto, nem quando. Deve ter sido um pouco antes do escurecer... - Calou-se de repente e quando voltou a falar estava mergulhado nos seus pensamentos. - Nunca tinha pensado nisso. Já estava morto quando os dois homens do Beauscyr passaram por lá, o que quer dizer que o mataram ainda de dia.
- Nesse caso, vamos presumir que foi morto à luz do dia - disse Baldwin. - O corpo teve de ser levado para o bosque porque parece ter seguido directamente para casa e o seu percurso não passava perto do bosque de Wistman. O bosque fica a quase dois quilómetros de distância de qualquer ponto do caminho, pelo que deve ter sido transportado num cavalo. Seria demasiado pesado para ser carregado.
- Sim - confirmou Simon, concentrado nos seus pensamentos.
- Se o John teve pouco tempo para o fazer, poderá ter sido o irmão? - interrogou-se Baldwin.
- A Alicia não disse que encontrou Sir Robert quando começava a escurecer? Teve tempo para matar o Bruther desde que a deixou até ter voltado a encontrar-se com ela.
- É verdade, mas custa-me a crer que fosse ele.
Edgar ouviu aquilo e torceu-se na sela para encarar o amo.
- Não podia ter sido o Adam Coyt? O homem tinha um cavalo de trabalho...
Baldwin foi rude para com o servo, o que era invulgar.
- Não sejas ridículo. O Coyt admitiu ter lá estado. Se não o dissesse, nunca o teríamos sabido. Por que iria confessar que esteve lá se tivesse sido o assassino e nem sequer necessitasse de admitir que estivera perto do local? Para além disso há outra coisa: o Coyt não gosta dos mineiros em geral, é verdade, mas não tinha nenhum desagrado especial pelo Bruther excepto no que se refere ao facto do rapaz estar a estragar a charneca... e era por causa disso que esperava que o... hum... o Crockern protegesse a sua terra. De qualquer modo, o Coyt não esteve na mansão na noite passada. Não podia ter morto os outros dois.
Simon encolheu os ombros.
- Os assassínios podem não estar relacionados. É uma hipótese que temos de admitir.
- É improvável, Simon. Pensa bem: um homem foi morto. Dois outros encontram o corpo e podem ter visto qualquer coisa. Pouco depois, esses dois também são assassinados. Seriam demasiadas coincidências se tivessem morrido por razões diferentes. Não, deve haver uma ligação entre essas mortes.
- Nesse caso pensas, definitivamente, que foi um dos Beauscyr?
- Sim.
Hugh contorceu o rosto e olhou para Simon.
- E quanto a Sir Ralph? Não sabemos quando o Bruther foi morto, como disse, e Sir Ralph podia tê-lo feito.
- Não, Hugh. Estava com Sir William e John, a caminho da casa do mineiro. Afirmaram que estiveram juntos e eu acredito.
- Então deve ter sido o outro - anunciou Hugh. - Nunca confiei em Sir Robert, que sempre me pareceu demasiado arrogante.
- O Robert? Suponho que é possível - disse Simon, que esboçou um leve sorriso ao ver a satisfação do servo. - Contudo, pressinto que não é um assassino. Acho mais provável que tivesse sido o irmão.
- Sim, o John podia ter ido atrás do homem que o insultou - admitiu Baldwin. - É perfeitamente possível que conseguisse ultrapassar o Bruther, que esperasse por ele e lhe saltasse em cima para o estrangular.
- Se foi o John - disse Simon - será que teve tempo suficiente para o assassinar e para o enforcar no bosque?
- Teve o tempo necessário para conseguir chegar à estrada de Chagford - declarou Baldwin com secura. - De qualquer modo, que estiveste a dizer ao Hugh antes de partirmos? Falaste com ele durante algum tempo.
Simon soltou uma gargalhada curta.
- Disse-lhe para descobrir se se terão verificado muitos roubos que não tenham sido comunicados. Aquele ataque ao Wat Meavy interessou-me. Queria saber se o Coyt estava a dizer a verdade e se houve mais roubos do que eu imaginava.
- E então?
- Diz-lhe, Hugh.
- Disseram-me que não tinha havido muitos até há poucas semanas. A partir daí, as coisas pioraram.
Baldwin lançou uma rápida olhadela ao almoxarife.
- Achas que o John se tem dedicado aos roubos desde que voltou para casa?
- Não seria a primeira vez que um escudeiro se dedicava à pilhagem. Suponho que foi treinado para isso lá no norte... e que continua a proceder como sempre fez.
- É possível - respondeu o cavaleiro, encolhendo os ombros - mas não vejo como isso nos poderá ajudar.
- Vê a coisa deste modo; de quanto tempo precisaria o John para chegar até Chagford e atacar o Meavy? - perguntou Simon. E esse Meavy foi atacado quando? Viu quem o atacou? Terá sido realmente o John quem o fez? Ainda não sabemos, pois não? Bom, pensamos que o John pode ter estado envolvido numa série de ataques para roubar as pessoas daqui.., mas isso não faz dele um assassino. De qualquer modo, se pudesse ser acusado dos roubos, seria à mesma punido por quebrar a paz do Rei. Pode ter tido tempo para sair da estalagem, ir atrás do Bruther para o matar, enforcar o corpo e cavalgar para leste até encontrar alguém que pudesse roubar. Encontrou o Wat Meavy por acaso. Podia ter sido outra pessoa qualquer, desde que essa pessoa tivesse medo do nome dos Beauscyr e não o viesse a acusar do roubo. Se eu tiver razão, tudo o que ele pretendia era ter alguém que pudesse invocar para testemunhar que não se encontrava perto do Bruther, para o caso de virmos a saber que não passou toda a noite na estalagem. Foi por isso que também pedi ao Hugh para descobrir onde vive esse tal Wat Meavy... e ele fê-lo.
- É longe?
Simon olhou para nordeste, encolheu os ombros e sorriu. Baldwin suspirou, espreguiçou-se e acenou.
- Ah, estou a ver. Então vamos lá, para descobrirmos o que realmente se passou.
Henway, a pequena aldeola,onde Wat Meavy vivia, localizava-se a uns sete quilómetros do acampamento dos mineiros. Os quatro homens seguiram a estrada, viraram para norte sobre as charnecas quando Hugh lhes apontou o caminho, e desceram a um vale profundo onde o ar era muito mais fresco. Havia alguns amontoados de arbustos e de árvores nas margens de um pequeno ribeiro, inteiramente cobertas por um musgo espesso, e o som da água a murmurar misturava-se com a luz esverdeada que se filtrava através das árvores produzindo uma sensação de paz e de calma.
Acompanharam o curso de água e chegaram rapidamente à casa de Wat Meavy. Era um resistente edifício em pedra, com um conjunto de construções exteriores a formar uma espécie de paliçada, ligados por uma vedação baixa para manter os animais domésticos no interior e as criaturas selvagens no exterior. O fumo que se erguia da casa deslizava para eles e trazia consigo um delicioso aroma a pão fresco.
Subiram a pequena vertente até ao pátio com os cascos a matraquearem no solo e desmontaram devagar, aliviando os músculos magoados. A partir dali a quinta tinha um aspecto rico, com as paredes caiadas de fresco, estábulos bem tratados e um celeiro. Enquanto olhavam em volta viram uma mulher que saía da casa a limpar as mãos a um avental.
À distância parecia andar na casa dos 20, mas quando se aproximou verificaram que devia ser mais velha, talvez com 30 e muitos anos. Baldwin avistou algumas crianças a espreitarem inquisidoramente à porta, observando os visitantes. Piscou-lhes um olho e virou-se para a mulher, sem prestar grande atenção às apresentações que o almoxarife estava a fazer. A mulher era de altura média, bem constituída e não possuía os ombros encurvados tão comuns nas camponesas. Tinha o rosto sulcado pela idade e bronzeado por uma vida passada no exterior a ajudar o marido, mas olhou para o pequeno grupo com os seus olhos castanhos, brilhantes e vivos. Simon concluiu as apresentações, a mulher pediu-lhes que a acompanhassem e conduziu-os até à casa.
Pôs as crianças a correr para irem buscar malgas, pratos e bancos, e insistiu que se deveriam juntar à refeição da família logo o marido chegasse, o que aconteceu pouco depois quando ouviram as pesadas botas a ressoar no pátio. O homem acenou para o grupo como se estivesse à espera que aparecessem, encaminhou-se para um banco a curta distância da lareira e sentou-se. A cerveja surgiu e foi bebida, sendo imediatamente seguida pelo pão ainda quente do forno e por queijo. O agricultor manteve-se atento e esperou que os seus hóspedes fossem servidos antes de começar a comer, isto enquanto a mulher ajudava as crianças a manterem as canecas cheias. Baldwin teve de sorrir constantemente e de abanar a cabeça sempre que as crianças tentavam encher-lhe a caneca, mas uma delas era insistente e o cavaleiro descobriu que tinha sempre mais líquido para beber de cada vez que desviava os olhos. Eventualmente acabou por ter de recorrer ao truque simples de deixar a caneca cheia, mas sentiu-se culpado ao deparar com o olhar de censura de uma garota com cabelos cor de estopa que não devia ter mais de nove anos e que se mantinha a olhar para ele, com o jarro pronto. Baldwin admitiu a derrota e bebeu um gole. O súbito sorriso da criança foi radiante e aqueceu-o mais do que a própria comida.
O cavaleiro lançou pequenas olhadelas em volta da sala enquanto comia. A casa era mais pequena do que esperara e presumiu que, antigamente, fora muito mais comprida. Era frequente que essas construções imensas sofressem colapsos catastróficos e se desmoronassem sobre si mesmas. Ali, parecia que uma das extremidades abatera e que o resto havia sido salvo. Anteriormente o gado e outros animais deviam ser mantidos numa extremidade da casa enquanto os homens e as suas famílias usavam a outra, mas agora parecia - e o cheiro também o indicava -, que os animais já ali não entravam. Calculou que a área para lá da nova parede de pedra por trás das suas costas dava para um edifício construído com as pedras do antigo, e que provavelmente seria uma espécie de estábulo para guardar os animais. Havia presuntos suspensos nos barrotes do telhado, para curarem por cima do fumo, presuntos esses que adicionavam o seu próprio cheiro pungente ao ambiente. De acordo com a experiência do cavaleiro, a maior parte das quintas fediam a gado, a suor e urina, mas naquela não era esse o caso.
O seu olhar acabou por pousar sobre Wat Meavy e o cavaleiro ficou desconcertado ao verificar que o homem estivera a submetê-lo a um pormenorizado escrutínio. Os olhos azuis-desbotados enfrentaram os seus sem pestanejar a partir de um rosto redondo com a cor do couro velho. A túnica castanha-avermelhada estava rota e gasta, mas o agricultor envergava-a com o mesmo orgulho com que um grande senhor envergaria uma armadura. Tinha o leve restolho de uma barba grisalha a cobrir-lhe o queixo e o lábio superior, bem como cabelos negros e escorridos, numa completa desordem, por cima de uma gordurenta faixa de pano. Aparentemente, usava a faixa para cobrir um ferimento. O agricultor servia-se da comida tal como se servia das ferramentas, pensou Baldwin. As mãos maciças agarravam em bocados de pão e queijo que enfiava na boca enquanto os seus olhos saltitavam de Simon para Baldwin e de volta ao cavaleiro.
Hugh sentia-se em casa. Fora criado numa pequena quinta de ovelhas para nordeste, perto de Drewsteignton, e aquele era o tipo de companhia - agricultores, com os seus filhos - em que se sentia mais à-vontade. A sala era muito semelhante a divisão principal da casa dos seus pais, embora se tivessem passado muitos anos desde a última vez que lá estivera. As pessoas eram amigáveis, a comida era boa, e a cerveja... - tomou um grande gole e suspirou de gratidão quando o líquido com um sabor intenso lhe escorreu pela garganta -, a cerveja era óptima!
Quando acabaram de comer e se recostaram, Hugh arrotou e agarrou na sua caneca. Sentia o espírito reconfortado, envolto num calor muito agradável, e voltou a prestar atenção aos outros. Baldwin mostrava-se pensativo enquanto olhava para o agricultor, e Wat Meavy, com a testa quadrada muito sulcada, parecia dividido entre o nervosismo e a desconfiança. O agricultor verificou que os seus hóspedes já haviam terminado e mandou embora a mulher e as crianças. Simon inclinou-se para a frente e sorriu-lhe com uma expressão tranquilizadora.
- Wat Meavy, estamos aqui porque queremos fazer-lhe perguntas a respeito do dia em que foi atacado. - Explicou brevemente quem ele e Baldwin eram e pousou o queixo na mão. - Sei que não ia comunicar o roubo mas queremos ouvir tudo a esse respeito. Pode ser importante para outro assunto que tentamos resolver, um assassínio.
- Referem-se ao Peter Bruther?
Simon acenou. O agricultor olhou para o almoxarife por momentos, sem responder, mas depois esboçou um ligeiro aceno.
- O que querem saber?
- Ia a caminho de Chagford? - perguntou Simon.
- Não. Passei todo o dia na cidade e estava de regresso. Fui vender uma porca e alguns leitões.
- Compreendo. A que horas saiu de lá para voltar para casa? Wat Meave reagiu com um sorriso lento.
- Era tarde, almoxarife. Estive todo o dia em Chagford e estar ali de pé, ao sol... foi uma coisa que me deu sede. Não precisava de me apressar, a minha esposa ainda não estava à minha espera e fui à estalagem da cidade. Suponho que lá devo ter estado três ou quatro horas antes de me vir embora.
- Já escurecera?
- Não, ainda não. - Fez uma súbita careta de concentração. - No entanto, penso que o crepúsculo estava a chegar.
- Segundo julgo saber, foi atacado logo no exterior da cidade, não é verdade?
- Sim. Tinha acabado de passar por Coombe e começava a dirigir-me para sul. Há ali um lugar onde costumava existir um carvalho junto a um muro, mas a árvore caiu há alguns anos e o velho Stephen Thorn nunca tratou de remendar o muro. As pedras ainda estão espalhadas pelo chão. Um pouco mais adiante a estrada faz uma curva apertada para a esquerda e fica mais estreita, e há uma outra que aparece por trás de nós. Bom, acho que foi daí que aquele homem apareceu. Na altura cheguei a pensar que tinha surgido do ar. Surgiu de repente, com uma grande espada na mão e gritou-me que parasse. Pensei que fosse o próprio Diabo! De qualquer modo o meu cavalo já parara porque não está habituado a ver homens aparecerem de repente. Antes que percebesse o que estava a acontecer já tinha levado uma pancada no lado da cabeça e o patife cortara-me a bolsa do cinto... - Os olhos do agricultor ganharam uma expressão distante. - A minha porca e dois leitões! Estupor de ladrão! Valiam bom dinheiro. Vendi-os por cinco xelins e a maior parte do dinheiro estava naquela bolsa. Cinco xelins!
Baldwin pigarreou para limpar a garganta.
- E que se passou a seguir? Regressou directamente a casa depois do homem o agredir?
- Sim, senhor.
- Reconheceu-o?
- Oh, sim, senhor! - Olhou o cavaleiro com uma súbita desconfiança, como que perguntando a si mesmo se deveria prosseguir.
Simon quebrou o súbito silêncio.
- Não tenha receio. Diga-nos quem ele era e nada lhe acontecerá. Julgamos já saber quem foi o ladrão mas precisamos de uma confirmação.
- E se ele e a família vierem aqui? Podem queimar a nossa casa até ao chão, bem como matar a minha mulher e filhos...
- Não virão aqui, Wat. Certificar-me-ei disso.
- Não sei...
- Wat, o pai do culpado já me prometeu que compensaria o seu prejuízo. Isso ajuda? O homem não fazia ideia de que o filho estivera aqui. No entanto, tenho de ouvir o nome da sua boca. Tem de mo dizer.
- Era o John Beauscyr.
A resposta franca fez com que Simon se abatesse no banco, exausto. Pensara que aquele homem lhe pudesse vir a dizer qualquer coisa que ainda não soubesse, mas ali estava a prova. Agora, só havia mais uma questão importante. A sua voz era baixa e séria quando perguntou:
- Wat, faz ideia de quando terá acontecido esse ataque? Já era noite ou ainda havia luz?
- Não sei... - disse o agricultor, perplexo com a pergunta. Deixou descair o lábio inferior e franziu a testa com o esforço para se recordar. - Deixe-me ver... Deixei Chagford ainda de dia e só tinha passado de Coombe. O cavalo deve ter levado algum tempo...
- Como foi que o reconheceu? - perguntou Baldwin com uma mirada a Simon e inclinando-se para a frente.
- Ora, pelo rosto, é claro!
- Tinha alguma lanterna consigo?
- Não.
- Então, ainda havia luz suficiente para ver?
De súbito, a cara do agricultor abriu-se num grande sorriso.
- Sim, é claro! Foi a oeste do baldio de Meldon e quando lá passei tinha o Sol a afundar-se na minha frente! Lembro-me de ter pensado que era tarde... Sim, foi mesmo no início do crepúsculo!
- Estou a ver - disse o cavaleiro. - E já era tarde quando o John saiu da estalagem, não era, Simon? Creio que não poderia ter assassinado o Bruther e chegado aqui a tempo de atacar o Wat.
Simon acenou, desanimado.
- Pois não. Aparentemente, está inocente - admitiu. - Porém, sendo assim, quem foi o criminoso?
Baldwin brindou-o com um sorriso de compreensão.
- Sei tanto como tu - declarou. - Wat, estamos-lhe muito gratos pela sua ajuda.
- O prazer foi meu, senhor - declarou o agricultor, que acompanhou os homens até à porta. Uma vez no exterior, Simon teve uma ideia e virou-se lentamente.
- Wat, disse-nos que ele pareceu surgir de lado nenhum. Qual era o seu aspecto? Pareceu-lhe preocupado ou perturbado? Poderia estar cansado por causa de uma cavalgada rápida?
- Cansado? De modo nenhum. Não, estava perfeitamente descansado.
- Que quer dizer?
- Pareceu-me... como o poderei descrever? Ansioso, como um cão atrás de um rasto. Era como se estivesse decidido a provar qualquer coisa... e passou o tempo a murmurar...
- A murmurar o quê? - Simon franzia a testa e Baldwin voltou para trás para ouvir a conversa.
- Qualquer coisa a respeito de alguém... Baldwin sorriu e tocou no braço de Simon...
- Vamos. Acho que já roubámos tempo suficiente a este agricultor. O John odiava o Bruther e provavelmente resmungou que o faria pagar os insultos que o rapaz lhe atirou na estrada...
- Ah, não senhor! - disse Meavy, com o rosto contraído numa careta. - Não era nada disso! Dizia que afinal não era assim tão mau e que o pai não era melhor do que ele. Também disse que "já agora podia imitar o pai e que quando mais depressa se fosse embora melhor seria"... Não percebi muito bem, a cabeça doía-me, mas parece-me que foi isso o que ele murmurou...
- Que podia imitar o pai?! - O rosto de Simon era a imagem da confusão.
- Sim, senhor, que já agora podia imitar o pai.
O Sol descia lentamente para oeste quando saíram da pequena quinta e tomaram a estrada de regresso a Beauscyr. Simon conduzia o grupo, olhando para o chão na frente do cavalo sem o ver enquanto revia as informações que o agricultor lhes dera. Wat Meavy impressionara-o com a clareza do seu relato. Embora estivesse provavelmente bêbedo quando fora atacado depois de uma tarde passada na estalagem, o homem conseguira recordar a viagem de regresso a casa. Sabia que fora de dia e o local onde fora atacado mesmo depois de ter levado uma pancada na cabeça. As suas palavras mereciam crédito.
- Simon?
O almoxarife virou-se e viu o amigo a cavalgar a seu lado com uma expressão intrigada que lhe juntava as sobrancelhas de tal modo que pareciam formar uma única linha negra. Simon grunhiu:
- O que é?
- Supõe, por um momento, que o agricultor tem razão. Supões que o John Beauscyr estava a murmurar imprecações a respeito do pai. Que significaria isso?
- Bom, suponho que significa que o pai lhe deu um sermão por causa dos roubos...
- Ah, mas isto aconteceu antes de o pai descobrir que ele é um ladrão. Foi por pensarmos que estava envolvido no assassínio do Bruther que admitiu ter roubado o Meavy, para demonstrar ao pai que não podia ter estado perto do Bruther quando o mataram.
- Pois, e então?
- Estás a ser propositadamente burro? - protestou Baldwin. - Olha, ele murmurou a respeito de imitar o pai. Por que quereria fazer uma coisa daquelas? Refiro-me a ter roubado o Wat Meavy. Parece-me que naquele dia deve ter ouvido algo a respeito do pai que o fez decidir-se pelo roubo.
- Ouviu uma coisa que o levou a roubar o Meavy? - repetiu Simon com tom vazio.
- É possível. No entanto, por que iria dizer "no fim de contas, não era assim tão mau? - Baldwin olhava intensamente para o pescoço do cavalo. - Simon, pergunto a mim mesmo...
- O quê?
- Se Sir William não lhe teria já dito para acabar com os roubos... e o rapaz, a seguir, ouviu dizer que o pai também costumava roubar. Talvez fosse o suficiente para o levar a atacar alguém.
Simon ficou estarrecido, mas acabou por conseguir comentar:
- É uma suposição muito ousada.
- Se Sir William já anteriormente tivesse dito ao filho para não roubar, então de certeza que teria ficado enraivecido ao ouvir falar do Wat Meavy.
- Sim, suponho que ficaria. No entanto, sugerir que o próprio Sir William pudesse...
- Sabemos que Sir William lutou pelo Rei em várias guerras. Não seria de surpreender que tivesse aproveitado a oportunidade para lançar a mão a despojos não inteiramente legítimos.
- Mas onde iria o John ouvir uma coisa dessas a respeito do pai?!
- Do Bruther. - Baldwin evitou os olhos de Simon.
- Do Bruther! - explodiu o almoxarife. - Em nome de Deus, como te foste lembrar de uma coisa dessas? Não há nada que sugira que o Bruther soubesse fosse o que fosse a respeito de Sir William... e agora dizes-me que foi ele quem fez com que o John enlouquecesse e começasse a roubar? Que se passa contigo?!
- Penso... - retorquiu Baldwin de um modo lento e preciso - que é possível que o Bruther tenha ouvido o pai a falar sobre qualquer coisa que Sir William fez no passado. Talvez num passado distante... Sabemos que Sir William foi um soldado, tal como te disse, e o Thomas Smyth também o foi. A batalha de hoje provou-o. Foi muito eficiente no modo como dispôs as suas tropas. Se Sir William não se tivesse acautelado, era provável que o Smyth tivesse chacinado os homens dos Beauscyr. É possível que o Thomas saiba algo a respeito de Sir William. No fim de contas, isso explicaria muita coisa... Pensa no modo como Sir William cedeu tão facilmente às exigências do mineiro. Afirmou que o fez porque o Smyth tem o direito legal de estar na charneca. Pode ser verdade... mas acho difícil de acreditar.
Tinham chegado ao trilho principal que atravessava a charneca e viraram para sudoeste, para a terra batida da estrada.
- Se eu tiver razão, Sir William receia o mineiro por causa do que o Thomas Smyth sabe do seu passado... - Calou-se de repente e ficou a olhar para a frente. - Simon... tenho sido um cretino! É claro! Só há uma explicação!
- Qual? - inquiriu Simon num tom sarcástico. - A de que o Thomas Smyth ameaçou expor o passado do cavaleiro se este não permitisse que os mineiros explorassem o estanho na sua terra? Ou pensas que o cavaleiro soube qualquer coisa a respeito do mineiro que o manteve afastado da propriedade? Baldwin, penso que estás a...
- Simon, escuta! Por favor, apenas por um minuto. - Baldwin exibia um grande sorriso. - Pensa nisto: normalmente, quando se encontrava na charneca, o Bruther tinha homens a protegê-lo. No entanto e de repente, precisamente na noite em que Sir William foi ter com o Thomas Smyth, o Bruther deixou de precisar desses homens. É estranho, não achas? Agora, pensa nisto: o John encontrou o Bruther nessa noite e não há dúvidas de que trocaram palavras... A seguir, o rapaz precipitou-se para Chagford e roubou o primeiro homem que encontrou. Não me parece ser um comportamento racional para um escudeiro.
- Creio que bebeste demasiada daquela boa cerveja do Meavy... Não sabes o que estás a dizer... - declarou Simon, mas manteve os olhos desconfiados pousados no amigo. Passados alguns minutos o almoxarife perdeu a paciência. - Muito bem, Baldwin, onde querias chegar? Que queres que adivinhe com base nessas tuas sugestões?
- Ah, Simon, mais tarde, meu velho amigo. Vamos na direcção tanto da casa dos Beauscyr como da do mineiro. Por que não começamos por fazer uma visita ao Thomas Smyth? Não fica muito longe do nosso caminho...
Depois disto, o cavaleiro recusou-se a falar mais sobre o assunto.
Quando trotaram no pátio de Smyth já Hugh começava a ficar desesperado. Não se atrevera a parar e deixar que os outros prosseguissem porque sabia que a sua própria lentidão aborrecia o cavaleiro. Tinha a certeza de que Baldwin se recusaria a parar se desmontasse para ir regar as flores da beira da estrada, e os três homens acabariam por o deixar ficar para trás. Hugh ainda estava demasiado nervoso com as ideias a respeito do Crockern para querer ser deixado sozinho enquanto o amo e os outros desapareciam à distância. Remexeu-se, dorido e com os lábios firmemente comprimidos de angústia crescente enquanto o líquido sacolejava na sua bexiga.
O pátio estava atarefado, com servos a conduzirem os cavalos para o exterior para um pouco de exercício ou para limparem os estábulos do esterco e das palhas sujas, enquanto outros descarregavam uma carroça de provisões para a cozinha. Foi no meio de toda aquela agitação que Hugh saltou do cavalo e atirou as rédeas a Edgar, que recebeu o seu apelo mudo com algum divertimento, e se precipitou para a parede do estábulo. O alívio foi intenso após alguns segundos de agonia e Hugh sorriu para as pedras da parede na sua frente como um tolo. Procurou o amo e viu os três homens a seguirem atrás de George Harang, na direcção do salão. Sabia que devia ir atrás deles mas não podia apressar-se. Não valia a pena, pensou. Simon e o cavaleiro só iam entrar para fazerem mais perguntas e até àquele momento nunca tinham necessitado da sua ajuda.
No interior do salão, Simon e Baldwin juntaram-se a Thomas Smyth num grupo apertado e olharam em volta com tristeza.
O salão continha quase 20 homens feridos durante o combate daquela manhã e os servos de Smyth corriam para um lado e para o outro com malgas de água e tiras de pano rasgado para servirem de ligaduras. A mulher do mineiro também lá estava, a segurar na mão de um homem e a murmurar-lhe palavras de conforto. Levantou os olhos e limpou a testa quando Simon entrou, mas o almoxarife constatou que a mulher estava inteiramente concentrada no ferido. Havia um cirurgião ajoelhado junto de outra figura e era óbvio que o homem se sentia sob uma grande pressão por ter tantos cortes e punhaladas para tratar.
Simon ficou a observá-lo com um horror fascinado e viu o cirurgião começar a examinar um ferimento numa cabeça. O almoxarife não foi capaz de desviar os olhos quando o médico enfiou um dedo no ferimento cheio de coágulos. A seguir, muito rapidamente, pegou numa navalha de barba e rapou a cabeça do ferido. Depois, enquanto o assistente segurava o mineiro de rosto branco pelos ombros, o cirurgião agachou-se junto da cabeça do homem com um grande par de pinças. Fez um sinal, introduziu as pinças no ferimento e retirou-as quase imediatamente com um fragmento de osso branco a reluzir no meio dos fluidos. O homem ferido soltou um guincho, aquietou-se e acalmou-se, a ofegar e com os olhos muito abertos de medo e de dor. Contudo, o cirurgião voltou a investigar o ferimento e sorriu. Lavou o sangue, limpou a ferida com clara de ovo e pareceu satisfeito. Suturou o ferimento com cuidado, pegou numa bolinha de um remédio que cheirava a breu e espalhou-a sobre a costura. Levantou-se com um suspiro e passou ao seguinte, um jovem que deveria ter 21 ou 22 anos e que tinha uma seta quebrada a sobressair de um ombro. Chorava abertamente quando o cirurgião se aproximou e as espessas lágrimas de terror escorriam-lhe pelas faces magras e sujas.
Thomas Smyth olhava para tudo aquilo com tristeza mas levantou a cabeça e deparou com os olhos da mulher. Esta ficou rígida e muito direita, sustentou-lhe o olhar e lançou-lhe um sorriso rápido antes de voltar a prestar atenção ao ferido que tinha na sua frente. Aquele breve reconhecimento fez com que o peito de Thomas inchasse de orgulho. Depois do drama no acampamento compreendera imediatamente que teria de se explicar perante Christine a respeito de Martha Bruther e do seu filho morto antes que ela ouvisse a história da boca de outros, pelo que a puxara para um lado quando os feridos ainda estavam a ser transportados para o interior.
A mulher não fizera comentários enquanto ele falara e Thomas sentira o pânico a crescer perante a mágoa que lhe estava a causar. Porém, a seguir, Christine baixara a cabeça e dissera:
- Isso foi há muito tempo, Thomas, ainda antes de eu te ter conhecido. Guardaste a tristeza que sofreste com a sua morte só para poupares os meus sentimentos? - Não conseguira dizer nada e ficara a olhá-la, mudo. Passado um instante, a mulher tocara-lhe no braço com suavidade. - Vem, marido. Temos de nos certificar que não há mais mortes como a do teu pobre filho.
Agora, o almoxarife e o amigo tinham regressado para mais perguntas. Smyth esfregou os olhos. Estava cansado depois dos horrores da manhã e chocado com o que via.
- Afastemo-nos deste espectáculo - murmurou, conduzindo-os para a porta. Simon gostou de o ver parar várias vezes pelo caminho, para dar uma palmada no ombro ou nas costas de um ferido e sem nunca deixar de trocar uma ou duas palavras com os seus homens. Via-se que se preocupava com eles e os homens sabiam-no. Alguns deles até tentavam endireitar-se quando o viam aproximar-se, como se quisessem demonstrar o seu respeito.
Simon ficou aliviado por se ver fora do salão e novamente ao ar livre. A aura de dor e morte que existia no interior era deprimente e inalou o ar com força enquanto caminhava atrás do mineiro, que se dirigiu na direcção do ribeiro com a cabeça baixa e as mãos metidas no cinto. Havia ali um banco junto à água e Thomas Smyth sentou-se, a olhar para o vazio. Simon e Baldwin colocaram-se na sua frente, com Edgar à espera um pouco atrás.
Foi Simon quem quebrou o silêncio. Lançou um olhar desconfiado para o amigo - olhar que disse a Baldwin, com mais precisão do que quaisquer palavras, que o almoxarife ainda não fazia a mínima ideia sobre a direcção em que os seus pensamentos o estavam a levar -, e disse:
- Thomas, fomos visitar o Wat Meavy na sua quinta depois de sairmos do acampamento. Confirmou que viu o John Beauscyr na noite em que o seu filho foi morto.
- Viu o Beauscyr naquela noite? - O rosto intrigado do mineiro ergueu-se para enfrentar o olhar firme do almoxarife. - Não percebo... Quer dizer que o Beauscyr estava lá quando o Peter foi assassinado? Não foi ele quem o matou?
- Não. Pelo que ouvimos, não foi o John. :; O mineiro ficou abalado.
Meu Deus! Conduzi os meus homens para a morte por causa de... Como é que esse Meavy pode ter a certeza? Está a dizer-me que...?
Baldwin interveio com gentileza.
- Thomas, esta manhã fiquei muito impressionado com o seu método de preparação das defesas, em particular o modo como colocou os arqueiros em relação aos soldados a pé, obrigando um qualquer ataque frontal a concentrar-se precisamente no sítio onde o queria. Sim, foi soberbo. - O mineiro olhou para o cavaleiro em silêncio. Baldwin prosseguiu, imperturbável. - Se não fosse o segundo ataque através do rio, de certeza que teria ganho o dia muito à-vontade, não é verdade? Teria havido um grande massacre. Onde foi que aprendeu a combater assim?
Thomas encolheu os ombros.
- Foi apenas sorte, mais nada. Pareceu-me ser a melhor maneira de dispor os homens.
- Então, não foi por causa da sua experiência como soldado, nas guerras que combateu ao lado de Sir William?
- Ele disse-vos?! - Aquele espanto não podia ser fingido. Baldwin encarou-o com o bigode a erguer-se num sorriso de lobo.
- Há alguma razão para que não o fizesse?
- Ora, porque isso só serve para desacreditar o homem - retorquiu o mineiro com secura. - Por que haveria ele de falar no assunto? É verdade, combati nas guerras de Gales e conheci Sir William quando lá estive. Foi em parte por isso que vim para aqui, por ter ouvido os seus homens a falarem na mineração do estanho e por ter pensado que talvez valesse a pena experimentar.
Simon olhava de um para o outro com alguma confusão e o cavaleiro deu por isso. Fez um gesto na direcção do amigo e pediu:
- Talvez seja melhor explicar-lhe. O almoxarife é demasiado jovem para ter estado envolvido nessas guerras.
- Está bem... - disse Thomas, lançando uma olhadela levemente desgostosa na direcção de Simon, talvez por causa da sua falta de conhecimentos sobre a história recente. - Foi nos anos de 80. O Rei Eduardo, pai deste nosso Eduardo e um homem muito melhor, apelou ao seus lordes para a ajudarem a acabar com as rebeliões no País de Gales de uma vez por todas e até se ofereceu para ser ele próprio a pagar às tropas. O Galeses tinham sido sempre um espinho no seu flanco e na altura, antes do filho provar, em Bannockburn, que era um incompetente, já tinha os Escoceses sob controlo e podia perder tempo a vergar os Galeses à sua vontade. O meu senhor juntou-se ao exército e fui com ele, para nos unirmos às tropas sobre o comando de Luke de Tany. Em 82 eu só tinha 20 anos, mas era forte e ia preparado para ganhar algumas honrarias em combate, pelo que pouco depois já era comandante de uma pequena companhia.
- Sir William também lá estava?
- Oh, sim... com toda a sua arrogância de jovem cavaleiro, tal como acontece agora com o filho, o Robert! Creio que foi a sua primeira guerra, embora depois disso tivesse participado em muitos ataques. Contudo, era um cavaleiro e nem sequer falava comigo. Eu só lá estava para obedecer às ordens e nada mais. Ficámos sob o comando de Tany durante imenso tempo. Lembro-me que partimos no princípio de Maio e que tínhamos de ir para Neston, no estuário do Dee. Eu era um arqueiro e pertenci ao grupo que foi embarcado numa frota de mais de 60 navios vindos dos Cinco Portos. Muitos de nós, arqueiros, encontrávamo-nos nos navios para servirmos como marinheiros até chegarmos a Anglesey. Tomámos a ilha e construímos uma ponte sobre o estreito de Menai para podermos continuar o ataque até Ban-gor... mas foi tudo. No fim de Setembro estávamos prontos mas tivemos de esperar por ordens do Rei para continuarmos porque devíamos mergulhar o inimigo na confusão distraindo os seus homens quando as tropas do próprio Rei iniciassem um novo ataque.
"A coisa correu bem. O monarca e o conde de Lincoln avançaram pelo vale de Clwyd, o conde de Warenne deslocou-se ao longo do curso médio do Dee e Reginald de Grey avançou a partir de Hope. Os Galeses não tinham quaisquer hipóteses contra esse tipo de forças e tudo aquilo devia ter sido resolvido num instante se o arcebispo Pecham não tivesse tentado acabar com as mortes. Serviu de mediador durante algum tempo e deteve o ataque... o que foi um estúpido desperdício de tempo. Era óbvio que os Galeses estavam apenas a aproveitar a oportunidade para reagruparem os seus homens, preparando-os para novos combates.
"Entretanto, nós, em Anglesey, não tínhamos nada para fazer. Era um sítio miserável, sem um acampamento decente e com demasiados homens numa pequena área. Caíamos doentes, estávamos receosos e aborrecidos. Tudo o que desejávamos era seguir em frente e obrigar os Galeses a recuar. Pois bem... - Thomas levantou os olhos para a sua audiência atenta - creio que foi por isso que Sir William fez o que fez. Por aborrecimento!
Surgiu-lhe no rosto uma expressão distante e prosseguiu com a narrativa. De vez em quando levava a mão ao queixo para coçar uma picada de insecto.
- Em primeiro lugar têm de compreender que os soldados se tinham comportado bem até àquele momento. Tínhamos atacado e conquistado a ilha, montado um acampamento tal como nos foi ordenado e construído a ponte. Porém, o tédio de estarmos ali sentados sem nada para fazer era terrível! Sabíamos que podíamos ter de atravessar a ponte de um momento para o outro para enfrentarmos os Galeses e isso preocupava-nos. Aqueles loucos, com as suas longas facas, são guerreiros assustadores. Começaram a rebentar lutas entre nós por causa do calor e do cada vez maior número de homens que caíam doentes com as febres. Eram pequenas disputas... mas atiçavam-se como o carvão quando o fole sopra. Normalmente até teriam sido esquecidas mas acabaram por se tornar em motivos para matar. Tudo isto, para um jovem cavaleiro em busca de glória e de riquezas, era enlouquecedor.
"Foi em Novembro que nos começámos a movimentar. Tínhamos passado meses à espera e penso que o Tany estava tão ansioso por acção como todos os outros, pelo que atravessámos a ponte e entrámos na Snowdonia. O nosso líder pensou que conseguiria levar a cabo um ataque decisivo que lançasse a desordem entre os Galeses e acabasse com a guerra. Já se tem dito que o Tany quis arruinar as conversações de paz - não sei se é verdade, mas pode ter sido -, mas tudo o que posso dizer é que todos nós queríamos seguir em frente.
- Ao princípio, as coisas correram bem. Penetrámos no país mas a hoste principal viu-se envolvida numa batalha com os Galeses. Quando isso aconteceu encontrava-me num flanco com Sir William, que me ordenou que me juntasse a ele. Pensámos que íamos atacar a retaguarda dos galeses, mas não... Rodeámo-los e continuámos a avançar para o interior.
Thomas ergueu os olhos para enfrentar Baldwin.
- Sir William ouvira falar num convento a alguns quilómetros de distância - ainda hoje não sei como o lugar se chamava -, onde se dizia que as freiras tinham ouro e jóias. Era essa a sua finalidade, e não o combate numa qualquer batalha gloriosa. Tudo o que pretendia era tirar proveito de uma guerra que considerava estúpida. Levou-nos até lá e atacámos o convento. Não tiveram qualquer hipótese. Éramos cerca de 150 homens e as freiras só tinham 20 e tal soldados para as defenderem. Foram todos mortos... incluindo as mulheres, mas só depois de terem sido violadas. - O rosto de Thomas endureceu e a voz ganhou um tom frio e amargo. - Sir William foi o primeiro e tomou duas mulheres para ele antes de deixar entrar os soldados. Fez-se o silêncio durante algum tempo até Baldwin se agitar.
- E você? - perguntou.
- Eu? Estive lá mas não violei, não matei, nem roubei. Como podia um homem ser tão bárbaro para com mulheres que se tinham dedicado a Deus? Não se tratava de vadias das tabernas, mas sim de mulheres santas. Não seria capaz de lhes tocar mesmo que quisesse. Não, virei o meu cavalo para Anglesey e ainda bem que o fiz. No caso contrário acabaria por dizer qualquer coisa a Sir William... e isso significaria uma morte lenta e sem nenhuma honra.
- Não, voltei para trás mas nessa altura já a batalha fora perdida e Tany morrera afogado no Estreito de Menai. Os homens tinham-se dispersado e passei por muitas dificuldades para conseguir voltar ao acampamento. Não me pareceu que valesse a pena falar de Sir William e das suas acções. A situação já era suficientemente má e a maior parte dos homens falava em voltar para bordo dos navios e partir para Rhuddan ou Neston, mas os navios recusaram-se a embarcar fosse quem fosse. Creio que tinham medo do que o monarca poderia dizer ou fazer-lhes. Por isso ficámos encurralados ali até termos a sorte de vermos chegar o Otto de Grandison para tomar conta das coisas. Foi então que tive o meu primeiro choque quando, de repente... ali estava Sir William outra vez, aparentemente coberto de glória e de riquezas saqueadas.
"Tinham-se apoderado de tudo o que ele e os seus homens conseguiram transportar e a seguir tinham fugido o mais depressa possível para evitarem os Galeses. Suponho que já deviam ter ouvido falar na derrota do exército. Por isso, foi Sir William quem levou notícias da batalha ao monarca, e foi Sir William quem o monarca recompensou por ter agido tão corajosamente como mensageiro!
Calou-se e franziu a cara para a água que corria no ribeiro.
- Claro que eu era apenas um pobre soldado, um arqueiro a cavalo. Não podia acusar um grande homem como Sir William de ter agido fora-da-lei. Se o tivesse feito, de certeza que seria morto por causa da minha presunção. Por isso, tentei esquecer o assunto. Estava com os soldados quando Otto de Grandison nos conduziu de novo sobre o Estreito, dessa vez com êxito, e estava com o exército quando este se lançou sobre Snowdonia e tomou Caernavon e Harlech. Não houve um grande saque mas pelo menos saí de lá com vida, embora amargo por ver a facilidade com que um cavaleiro conseguia ganhar fama, riquezas e os favores do monarca. A guerra deixara-me sem um sítio para onde ir e passou algum tempo até me recordar do que outros homens do séquito de Sir William tinham dito a respeito do estanho e do modo como um homem podia viver livre nas charnecas, conseguindo fazer dinheiro com o seu próprio trabalho. A ideia pareceu-me boa e vim para aqui.
Simon encheu as bochechas quando suspirou. Sabia que a história do mineiro era demasiado vulgar. Já conhecera outros soldados e vira a sua amargura por terem sido traídos, o desgosto provocado pelas recompensas dadas a quem menos as merecia enquanto outros que deveriam ter sido festejados eram esquecidos. A guerra era assim.
- E não há dúvidas de que foi Sir William quem conduziu o ataque ao convento? - perguntou.
Thomas Smyth grunhiu uma confirmação sem sequer levantar a cabeça.
- Diga-me, Thomas - interveio Baldwin - quando foi que mencionou isso a Sir William?
Desta vez o mineiro olhou para cima com um sorriso a brincar-lhe nos lábios.
- Como adivinhou? - inquiriu. - Não interessa! Disse-lho no dia em que o Peter foi morto, quando falei com ele.
- O quê, quando o viu de manhã, em Beauscyr? - perguntou Baldwin com uma súbita intensidade.
- Não, ao fim da tarde, quando ele veio aqui.
- E que foi que lhe disse?
- Tinha-lhe pedido para vir a minha casa a fim de discutirmos o que haveríamos de fazer quanto ao estanho nas suas terras - disse Thomas, com um sorriso rápido. - Creio que sabem o que quero dizer.
Trouxe o dinheiro e pensou que o assunto ficara arrumado... Preparava-se para se ir embora quando lhe disse que me lembrava do convento. Ficou calado, tão quieto como um cão quando se apercebe de um perigo e se agacha, pronto para saltar. Disse-lhe tudo o que acabei de vos contar a respeito da campanha, do modo como levou os homens para longe da batalha para aumentar a sua fortuna, e sobre como conseguira ganhar os favores do monarca. Creio que ficou chocado.
- E porque foi que esperou por esta altura para lhe contar tudo isso? Guardou o segredo durante anos. Por que o revelou agora, depois de tanto tempo?
- Queria que o meu filho aceitasse mais responsabilidades em relação à mina. Não informei SirWilliam de que se tratava do meu filho, é claro, mas dei-lhe a saber que queria que o jovem Bruther pudesse viver livre de ataques. Disse-lhe que se houvesse um ataque ao Peter... o vingaria contando a minha história a toda a gente. No fim de contas, a situação agora era muito diferente. Anteriormente eu não passava de um arqueiro sem valor cuja palavra podia ser posta em causa. Agora sou uma pessoa poderosa nesta área, com dinheiro e homens para apoiarem as minhas palavras. Sir William sabia que não o podia negar e ficou branco de fúria.
O rosto de Baldwin ganhou uma expressão grave.
- Estou a ver. Foi por isso que pensou que o Peter já não necessitava de guardas?
- Não, a culpa disso não foi minha. Se lá tivesse estado ter-me-ia certificado de que continuava a ter homens com ele. Contudo, presumo que se sentiu seguro - respondeu Thomas Smyth com um suspiro de tristeza e os olhos postos no chão. - Contara-lhe toda a história no dia anterior... e dissera-lhe que ia confrontar Sir William. Pensei que lhe poderia ser útil saber que espécie de homem era Sir William, mas nunca pensei que deixasse os guardas para trás naquela noite.
- Suponho que se sentiu seguro a partir do momento em que o senhor comunicou a Sir William o que sabia a respeito dele - declarou Simon.
- Talvez... - retorquiu o mineiro com tristeza - mas agora já não faz diferença. O meu Peter está morto.
- Há uma coisa que ainda não compreendo - interveio Baldwin num tom calmo. - Diz que o Peter passou por aqui e que os guardas o deixaram antes de se dirigir para a charneca... mas por que razão haveria ele de passar por aqui? Este sítio não fica no caminho para a cabana onde vivia. Se saiu da estalagem, teria sido melhor que atravessasse a charneca. Passou por aqui apenas para deixar os homens que o guardavam?
- Era costume passar por aqui quando voltava da estalagem. Este caminho é mais seguro, com menos pântanos.
- E não o viu?
- Não. Naquela tarde estive fora com o George, no acampamento, e depois fui à cabana do Peter.
- Sir William estava aqui quando regressou?
- Sim.
- Compreendo. Muito bem! - Baldwin juntou as mãos com uma palmada decidida. - Nesse caso, creio que o podemos deixar em paz. Lamento termos tido de o interrogar a respeito destas questões, que devem ser dolorosas de recordar, mas acabou de nos esclarecer alguns pontos.
- Óptimo - exclamou o mineiro com algum espanto - mas não vejo como!
- Ora, não foi nada de especial. Apenas algumas coisas de que não estava muito certo. Por agora... um muito bom dia para si.
Quando se sacudiu e voltou a arrumar as roupas, Hugh reparou que o velho encarregado das bebidas o olhava a curta distância e despejava um balde numa pia. Hugh fez uma careta apologética mas o velho lançou um olhar ofendido para a mancha de humidade na parede e comentou:
- Isto aqui não é nenhuma latrina, sabes? Hugh sentiu o embaraço a aumentar.
- Lamento, mas pensei que...
- Suponho que o servo de um almoxarife não podia caminhar mais uns metros até à pia?
- Olha, pensei que não fazia diferença...
- Não fazia diferença! - Os olhos fatigados do velho olharam para Hugh com desagrado e novamente para a mancha de humidade. Abanou a cabeça e foi-se embora. Hugh começou a andar atrás dele, sentindo-se culpado por lhe ter desagradado. O homem amoleceu um pouco perante as suas desculpas murmuradas e quando chegaram à porta do salão já quase se arrependera dos comentários que fizera.
- Esquece! - disse. -Andamos todos muito nervosos desde que o Bruther foi morto. O nosso amo já não é o mesmo e agora, ainda por cima, temos de tratar de todos estes feridos..,
Hugh acenou. Chegavam-lhe perfeitamente aos ouvido os gritos e apelos vindos do interior do salão e hesitou antes de entrar.
- Estão todos ali dentro?
- Sim, - suspirou o velho. - Primeiro foi o pobre do Bruther e agora é isto...
- Os feridos também foram por culpa dele, sabes? O teu amo queria apanhar o assassino.
- O Bruther está morto. É injusto culpá-lo de tudo isto, mesmo que tenha sido feito em seu nome - retorquiu o homem com aspereza. Viu o nervosismo no rosto de Hugh e teve pena dele. - Vem daí até à dispensa, e bebe um pouco de cerveja... - disse, num tom mais agradável.
Hugh reconheceu o ramo de oliveira e foi atrás do homem. Entrou na sala cheia de caixotes e barris, e sentou-se num barril de vinho enquanto o velho soltava um grunhido e se instalava com todo o cuidado num velho banco antes de começar a encher duas canecas de cerveja. Fez uma pausa ao ouvir um grito agudo vindo do salão e Hugh ficou rígido, mas a seguir agarrou na bebida com gratidão e tomou um grande gole.
O velho encarregado das bebidas acenou para a porta e declarou:
- Está ali um cirurgião com o seu assistente... e não precisa que tu ou eu nos metamos no seu caminho.
- Conhecias o Bruther? - perguntou Hugh, numa tentativa para mudar de assunto.
- Sim. Foi uma boa pessoa para mim, muito educado e sempre com tempo disponível para partilhar uma caneca de cerveja.
- É muito boa - afirmou Hugh com um aceno, e o velho voltou a encher-lhe a caneca.
- O Bruther também dizia que era boa. Na verdade, gostava de beber. Nunca se importava muito com o que bebia mas dizia que eu fabricava a melhor cerveja de Dartrnoor. - Hugh não tinha necessidade de falar. O velho queria companhia, e não conversa, pelo que ficaram tranquilamente sentados durante alguns minutos. O velho remexeu-se no banco e continuou: - Também era corajoso. Ouviste falar naquele encontro entre ele e o cavaleiro? Mandou o parvo seguir o seu caminho e ainda lhe ficou com a corda.
Hugh franziu a testa, levantou os olhos e perguntou:
- Onde ouviste isso?
- Foi ele quem me contou quando aqui veio no dia em que morreu. Não esteve cá muito tempo. Esperava ver o nosso amo mas o Thomas estava no acampamento. Mesmo assim partilhou uma ou duas canecas de cerveja comigo enquanto o seu antigo amo berrava lá em cima, no salão, a pedir mais vinho.
- Sir William também cá estava?!
- Sim. O velho estupor andava de um lado para o outro no salão, furioso por ter de esperar pelo meu amo. Quando não gritava por vinho... praguejava e murmurava o suficiente para despertar os mortos. O Bruther achou que era divertido.
- Chegaram a falar um com o outro?
- Não, claro que não! O Bruther ficou aqui comigo até se ir embora.
- Quer dizer que nunca entrou no salão?
- Não... que eu visse. De qualquer modo, não estive aqui durante todo o tempo.
- Hum? Porquê?
- Tive de sair. Houve um problema com o fogo na cozinha e fui ajudar o cozinheiro.
- Deixaste o Bruther aqui?
- Apenas o tempo suficiente para terminar a cerveja. A seguir apareceu na cozinha para se despedir de mim. Pobre diabo. Parecia estar novamente feliz...
- Estava mais feliz quando saiu do que quando entrou? - inquiriu Hugh com todo o cuidado.
- Sim. Tinha uma disposição miserável quando aqui chegou, penso que por qualquer coisa a respeito de uma rapariga. Contudo, ele sempre disse que a minha cerveja lhe arrefecia o cérebro e acalmava o temperamento. Depois de uns quantos goles já estava mais bem-disposto. Vi-o ir-se embora. Virou-se para trás e acenou, além em baixo, nos campos junto ao ribeiro. Ia realmente alegre, com a corda enrolada e pendurada no ombro.
- Sir William ainda aqui estava?
- Oh, sim! Vi-o quando regressei da cozinha. Estava um pouco mais calmo. Já não parecia tão zangado, graças a Deus! Perguntou-me onde eu estivera e nem sequer gritou comigo. A seguir pediu mais vinho.
Hugh coçou uma picada de insecto no escalpe.
- Quer dizer que estiveste longe daqui durante um bocado, não foi? - arriscou.
- O máximo que pude. - O velho encolheu os ombros. - Não queria ficar por aqui com ele a gritar-me. Fiz companhia ao cozinheiro durante um bocado até ouvir os cavalos do amo.
- Oh... - exclamou Hugh, desanimado. - Nesse caso, se ouviste o teu amo a entrar no pátio também terias ouvido o cavalo de Sir William se ele tivesse ido a qualquer lado...
- Eh? - Os olhos velhos e astutos do homem ergueram-se rapidamente. - Porquê? Por que estás tu...? Não, não podia. A cozinha fica nas traseiras... e ouvi o nosso amo na estrada.
- Ser-te-ia possível ouvir um homem a montar a cavalo no pátio e a sair na direcção da charneca? - inquiriu Hugh cautelosamente, sentindo um súbito vazio de expectativa na barriga. Nem sequer precisava de ouvir a resposta.
De volta a Beauscyr, Simon e Baldwin sentaram-se em cadeiras perto da lareira apagada. Sir William ainda lá não estava. John, que atirava ansiosamente uma adaga ao ar e voltava a apanhá-la, permanecia por perto e olhava para Edgar com uma expressão de desagrado porque o servo permanecia preguiçosamente encostado a um pilar. Sir Ralph também estava presente, de pé com as costas contra uma parede, com os braços cruzados negligentemente. No entanto, apesar de todo o seu aspecto negligente, Baldwin via a atenção a brilhar nos seus olhos. Ambos pareceram surpreendidos ao verem Thomas Smyth entrar atrás dos outros. Sir Robert Beauscyr e a mãe surgiram pouco depois. Como sempre, Matillida entrou com uma pose real, ignorou os hóspedes, caminhou directamente para a mesa sobre a plataforma e sentou-se numa cadeira. O filho mais velho parou para pensar por instantes mas acabou por a seguir. Sentou-se ao lado da mãe e olhou para Simon. Por fim, a porta escancarou-se de repente e Sir William entrou no salão.
Para Simon, o velho cavaleiro parecia ter recuperado a juventude. Avançou com a mão pousada no punho da espada e colocou-se ao lado da esposa. Aí chegado tocou-lhe ao leve no ombro, sentou-se e inclinou-se para a frente sobre os cotovelos. O velho cavaleiro fez um sinal a reconhecer a presença de Thomas Smyth, que permanecia por trás de Simon, muito tenso. A seguir enfrentou Baldwin e Simon.
- Bom, que têm a relatar? Quero um inquérito a respeito das actividades dos mineiros. É crucial, depois de se terem apoderado do meu filho.
- Sir William, não me parece que seja uma boa ideia - retorquiu Simon com delicadeza.
- E por que não? - gritou Robert, pondo-se de pé num salto e fitando o almoxarife. Simon suspirou e tornou-se rígido quando o jovem continuou: - Suponho que lhe ofereceram tanto dinheiro que não foi capaz de recusar, não foi? Faz ideia do que é ser-se capturado como se fôssemos um vulgar criminoso? Sabe o que é ser arrastado daquele modo e...
- Sim... - murmurou Baldwin. - Deve ser difícil ser arrastado assim.,. Claro que um mercador seria capaz de esquecer com o tempo, mas um cavaleiro nobre...? Um que quer impor a sua vontade sobre o seu feudo? Deve ser uma coisa muito difícil de suportar... - concluiu, sorrindo para o jovem com um ar encantador.
Robert abriu a boca para falar mas apercebeu-se do brilho perigoso nos olhos de Baldwin e acabou por a fechar de repente. Podia ver, com toda a facilidade, que algo se modificara naquele cavaleiro ao longo das últimas horas. Perdera o acanhamento e a suavidade das maneiras, e no seu lugar havia agora uma estranha dureza. Era como se tivesse tomado uma decisão e estivesse disposto a levá-la até ao fim, acontecesse o que acontecesse.
- Sim... - repetiu Baldwin, que se levantou e caminhou para Sir Ralph. - Um cavaleiro não aceitaria um tal embaraço com facilidade, pois não? - Os olhos do cavaleiro do norte fixaram os dele por instantes mas acabaram por se desviar, não por nervosismo, tal como Baldwin pôde constatar, mas por uma espécie de tédio.
- Que vem a ser isto, Sir Baldwin? Pode pensar que é uma boa altura para insultar os seus anfitriões, mas essas atitudes não me impressionam e não as considero divertidas. - Lady Beauscyr tinha o rosto branco, mas Baldwin não sabia dizer se era de ira ou de medo.
- Muito bem, minha senhora. As minhas desculpas por estar a perturbá-la, mas receio não ter outra alternativa. - Permaneceu ao lado de Sir Ralph mas agora com os olhos postos em Thomas, como se estivesse a explicar todo o assunto ao mineiro e os outros que se encontravam presentes na sala não passassem de meros espectadores do drama.
- Estes assassínios foram confusos. Ao princípio, quando se tratava apenas do Bruther, parecia existir um número infindável de pessoas que o queriam ver morto e que seriam capazes de o fazer. Quem o fez-podia ter sido outro mineiro - chegámos a pensar em si -, e até talvez num dos habitantes da charneca. Para além disso eram muitos os que beneficiariam com a sua morte.
- Porém, a seguir, quando morreram os dois homens de armas, tornou-se claro que o assassino só podia ser alguém do interior da mansão. O portão mantém-se fechado e trancado durante a noite e era inadmissível pensar que alguém pudesse ter entrado. Não, o assassino estava no interior.
"Ao princípio pensámos que tinha de ser Sir Ralph. Veio do norte, onde matar é um lugar comum e os magistrados até têm dificuldades para manterem em dia a lista dos mortos. Seria assim tão surpreendente que estivesse envolvido? Contudo, naquela noite encontrava-se na estalagem, com uma mulher. O cavaleiro nunca se afastou de lá durante muito tempo, a não ser que ela e outros estivessem a mentir.
O mineiro acenou e viu Baldwin aproximar-se de John, que continuava com os olhos baixos e a atirar a adaga para cima e para baixo.
- E o John? - disse Baldwin, contemplando o rapaz com os olhos cruzados. - Também foi um problema. Esteve com Sir Ralph durante todo o caminho até à estalagem, mas saiu pouco depois de lá chegar. Claro que também pensámos no irmão, Robert, que fugiu do salão e passou o resto do dia a cavalgar pelas charnecas. Todavia, descobrimos que esteve com a sua amada durante quase todo o tempo, em particular na altura em que o Bruther foi morto. Portanto, não fora ele.
Simon observou John, que abrandara a pouco e pouco os lançamentos da adaga ao ar e acabara por parar. O maxilar do jovem sobressaiu de um modo agressivo e a sua voz tornou-se perigosamente baixa quando perguntou:
- Está a acusar-me de assassínio, Sir Baldwin?
O cavaleiro examinou-o em silêncio durante um minuto. Foi Simon quem respondeu por ele.
- Não... e por várias razões. Em primeiro lugar não podemos acreditar que tivesse tido tempo para cavalgar do Bosque de Wistman até Chagford. O Bruther esteve na estalagem antes de si e encontrou-o na estrada. Tinha homens com ele, pelo que não pôde matá-lo na altura por haver demasiadas testemunhas. Oh, havia outra coisa a seu favor: estava convencido de que o Bruther tinha muitos homens com ele. Não podia ter sabido que os deixara na casa do pai. Não, não foi você.
Robert levantou-se, a gaguejar de espanto.
- Então... está... a sugerir... que fui eu?
Sir Ralph olhou ansiosamente para Baldwin quando este respondeu:
- Não. Também não matou o Bruther. Estava com a Alicia, tal como nos disse. Para além disso, pelo que ela nos contou, não teria tido tempo. Disse-nos que já era tarde quando a deixou e acredito na sua palavra.
"Não, quem quer que tivesse cometido o crime precisava de ter um grande ódio pelo Bruther, bem como razões para pensar que lucraria com a morte do mineiro ou, pelo menos, que a sua família ganharia alguma coisa com isso. Não sei qual foi o caso. De qualquer modo, tanto quanto eu saiba, eis o que aconteceu:
"O Bruther esteve a beber na estalagem naquela noite. Ia lá sempre que possível para se encontrar com a rapariga que amava. Foi uma tristeza que tivesse escolhido aquela, uma mulher que não se conseguia reservar para um único homem. Afirmou que era um dos poucos que parecia desejá-la com boas intenções... e só revelou tristeza por si mesma depois de ter ouvido falar na morte do rapaz. Os outros só queriam uns breves momentos de prazer. De qualquer modo, o Bruther saiu para voltar para casa. Pelo caminho encontrou-o a si, John, e provocou-o. Suponho que o insultou a si e ao seu amo. Terá agitado a corda na frente dos seus olhos? A seguir, atrevo-me a dizê-lo, começou a falar do seu pai e do modo como Sir William se comportou mal durante a juventude. Muito provavelmente, afirmou que o seu pai não era melhor do que um vulgar fora-da-lei. Suponho que também lhe falou de um certo convento no País de Gales onde o seu pai manchou o nome da família. O senhor pagou-lhe na mesma moeda e disse que se iria divertir com a tal rapariga.
Thomas Smyth soltou um grunhido de compreensão. Os acontecimentos encaixavam-se tão perfeitamente como uma seta num arco quando Simon prosseguiu com a narrativa.
- O John continuou para a estalagem... mas estava furioso com o Bruther, não estava? Furioso por ter sabido do passado do seu pai e por o patife ir ficar impune depois de o ter humilhado daquele modo - disse o almoxarife, olhando para o jovem. - Sabia que era provável que o Bruther tivesse razão, que era possível que o seu pai tivesse estado envolvido no saque ao convento durante a sua juventude... e concluiu que já agora podia servir-se do exemplo dele para arranjar dinheiro, em especial depois de Sir Ralph ter declarado que tinha ficado com pouca estima por si depois de saber o que andou a fazer lá pelo norte. Foi por isso que se mostrou tão irado quando atacou o Meavy, e foi por isso que murmurou coisas a respeito do seu pai enquanto roubava a bolsa do pobre homem. Sabia que Sir William tinha feito muito pior quando era jovem. Muito, muito pior... Baldwin esboçou um aceno apreciador e sorriu.
- Entretanto, o Bruther prosseguia o seu caminho. Chegou à casa onde o pai vivia, tal como sempre fazia, mas aquele dia foi diferente. Tinham-lhe contado coisas sobre o passado de Sir William e pensou que este já fora informado de que o deveria deixar em paz, para além de se certificar de que os seus homens também o fariam. Estava livre de medos em relação à família Beauscyr e aos respectivos amigos. Antes disso só se sentira em segurança por causa dos guardas que se encontravam à sua volta, mas agora já não eram precisos e deixou-os à porta da casa de Thomas. Por que razão teria feito tal coisa se não se sentisse seguro?
Simon recostou-se, cruzou os braços e retomou a narrativa.
- Fê-lo, é claro, porque pensou que Sir William já tinha sido ameaçado naquela manhã. Julgou estar livre da servidão porque o pai lhe dissera que, depois daquele dia, nunca mais teria de se preocupar com a família Beauscyr. O cavalo de Sir William encontrava-se no exterior da casa e o Bruther entrou. Foi lá para o insultar, não é verdade, Sir William? Sentia-se a salvo e imagino que o provocou fazendo comentários a respeito de si e do seu filho. A seguir foi-se embora para a mina, certo de que não corria qualquer espécie de perigo.
Como podia ele saber que o pai ainda não falara com Sir William? - perguntou Baldwin. - Thomas Smyth só regressou a casa quando já quase anoitecera. Precisara de algum tempo para ir à cabana do Bruther e voltar... e apareceu um pouco depois de si, não é verdade, Sir William?
- Sim - confirmou o velho cavaleiro, Tinha o rosto muito pálido e Baldwin pensou que era quase como se pudesse ver as pedras da parede através da pele cor de pergaminho do ancião.
Simon inclinou-se para a frente com a testa franzida, mas Baldwin levantou uma das mãos a pedir silêncio.
- Sim, chegou aqui pouco depois de si... mas foi pouco depois da sua segunda chegada! O Bruther entrou no salão enquanto o senhor lá se encontrava e... bom, digamos que se sentiu pouco feliz com as atitudes que ele tomou. O rapaz compreendeu que o pai não estava em casa e voltou a sair. O senhor ficou a remoer as palavras que acabara de ouvir. Aquele homem conhecia o seu passado, um passado que o senhor não queria que se tornasse público. Por isso, resolveu ir atrás dele e montou-lhe uma emboscada. Saltou-lhe em cima quando o viu aparecer e estrangulou-o com a primeira coisa que encontrou... O que foi?
- Uma tira de couro da minha sela. Estava solta havia dias. Arranquei-a quando passei do cavalo para as rochas e me instalei para o esperar.
- Estou a ver... A seguir achou que seria uma boa ideia deixar um recado permanente a quaisquer outros servos que pudessem vir a pensar que a fuga para a charneca podia ser uma boa ideia. Transportou o corpo no seu cavalo até ao bosque de Wistman e deixou-o pendurado.
- É verdade - declarou Sir William tranquilamente, com as faces a exibirem uma palidez terrível. - Carreguei-o até àquele maldito bosque, pendurei-o pelo pescoço e voltei para aqui. Juro que nunca soube que se tratava do filho de Thomas Smyth. Julguei que estivesse interessado no Bruther apenas porque este me podia embaraçar.
- Will... - Matillida pousou uma da mãos no antebraço do marido mas este sacudiu-a.
- Matei-o, sim... mas a Lei está do meu lado! Era um meu servo, maldito seja, e não tinha o direito de fugir e de nos insultar, a mim e aos meus. Era meu servo e eu possuía-o. Tentei persuadi-lo a regressar mas rejeitou as minhas propostas. Depois... depois começou a insultar-me... a mim!... na casa do Smyth. Ameaçou-me, disse-me para manter o meu filho afastado da sua puta ou iria falar do meu passado. Vi tudo vermelho! Tinha de fazer qualquer coisa. Fui atrás dele, embosquei-o na charneca e depois pensei que o corpo seria o símbolo ideal para evitar que outros tentassem fazer a mesma coisa. Tratei de o pendurar na árvore, cavalguei de regresso à casa do mineiro o mais depressa possível e fiquei à espera do Thomas Smyth.
- Foi tão rápido que o responsável pelas bebidas nem sequer deu pela sua saída - acrescentou Baldwin.
- Então, como foi que souberam?
- Era a única pessoa que esteve só e não tinha um álibi. Pensámos que estivera com o Thomas mas este só regressou a casa ao final da tarde. O Samuel e o Ronald terminaram as suas cervejas e saíram ao crepúsculo, pelo que o senhor deve ter estado muito tempo na casa do Thomas. Tiveram tempo para irem até à casa do agricultor que vende cerveja, beberam e voltaram a sair... mas no entanto o senhor tinha-nos dito que só chegara a casa do mineiro um pouco antes dele aparecer. Só ontem é que compreendemos tudo, quando ouvimos dizer que o homem das bebidas o tinha deixado sozinho durante muito tempo. Se não fosse isso... talvez nunca tivéssemos adivinhado.
Robert olhava para o pai.
- Mas... por que foi que o mataste, pai? Não tinhas necessidade de o assassinar!
- Irmão, acho que ainda precisas de aprender muita coisa a respeito do que é ser um cavaleiro forte - troçou John. - Um cavaleiro forte faz o que quer e ignora os fracos!
- Serás assim tão estúpido? - perguntou Sir Ralph, que estremecia de raiva contida e se aproximou do jovem. - Pensas realmente que ser um cavaleiro é apenas isso? Não compreendeste nada a respeito das regras da cavalaria? Ser um cavaleiro não significa roubar e matar. Como queres que o teu nome seja honrado se só fores conhecido por matar e violar? Um cavaleiro não é isso, é líder do rebanho, é um representante da vontade de Deus!
- Talvez o seja para si, Sir Ralph - retorquiu o rapaz - que sempre fostes tão honesto e puro! Mas não aqui, quando é preciso controlar servos fracos. Chama-me estúpido mas abandonou o seu amo quando ele mais necessitava de si e...
O punho apanhou o rapaz na extremidade do queixo. A sua cabeça saltou para trás com a força do golpe e foi embater na parede com um estalo forte. No entanto endireitou-a rapidamente, com os olhos a brilharem de fúria animal e já com a adaga na mão. A lâmina descreveu um arco prateado para o alto e emitiu um brilho malevolente. Simon viu, com um horror sobressaltado e sentindo-se incapaz de se mover, que a adaga se dirigia directamente ao peito de Sir Ralph.
Edgar reagiu melhor. Agarrara na espada e ficara pronto para intervir mal vira a mão de Sir Ralph a fechar-se num punho. Agora que a adaga subia, Edgar baixou a espada na direcção do punho do rapaz servindo-se da parte lateral da lâmina. Não pretendera ser violento mas toda a sala ouviu o osso a partir-se e John ficou a olhar, com uma expressão vaga, para a mão que ficara pendente enquanto a adaga tilintava no chão.
- Acabou-se! - berrou Baldwin, rodopiando para se virar para a plataforma. - Não haverá mais mortos nesta maldita mansão! Por que decidiu matar o Taverner e o Hankyn, Sir William? Foi por eles o terem visto quando regressavam do bosque daquela noite e teve medo que pudessem falar no assunto?
Sir William fez um novo aceno cansado, com os olhos firmemente postos no filho mais novo.
- Sim - admitiu, num tom pesado. - O Samuel viu-me e somou dois e dois... Contou-mo ontem. Soube que era apenas uma questão de tempo antes da história vir ao de cima. Não teriam constituído um problema se não fosse isso...
- Por isso, ateou o incêndio para criar uma diversão... - disse Simon num tom incrédulo - após o que deslizou de volta àqueles compartimentos, apunhalou o Samuel quando ele entrou no armazém e a seguir dirigiu-se à enxerga do Taverner para assassinar um homem doente enquanto ele dormia?
Os olhos velhos e cansados viraram-se para ele, mas a voz de Sir William incluía agora uma certa dose de desprezo.
- E que faria o senhor, almoxarife? Deixava que o chantageassem? Pode ter a certeza de que era isso que aquele diabo com cara de fuinha estava a preparar. Oh, sim! Também suponho... - a voz ficou carregada de sarcasmo - que não levantaria um dedo para proteger o seu nome e o da sua família?
Para surpresa de Simon, foi Robert - que até ali permanecera de boca aberta por causa do choque que sofrera -, quem respondeu.
- Claro, pai! Por que tinham aqueles homens de morrer? Só te estavas a proteger a ti mesmo por causa dos teus erros do passado! Não tinhas necessidade de matar dois homens que te serviram com lealdade durante anos! A tua honra era falsa, era uma invenção... Achas que valia a vida de três homens? Tudo o que conseguiste foi amontoar a injustiça sobre a desonra!
- Cala-te, idiota! - atirou-lhe Matillida, Enfrentou Baldwin com o rosto transformado numa máscara gelada.- Muito bem, Sir Baldwin, tudo isto foi muito interessante mas não é muito relevante. Lá fora é quase noite e os portões já devem estar fechados. Diga-me, por que acha que temos de continuar a ouvi-lo?
- Porque, minha senhora, Sir William cometeu três assassínios e temos de apresentar provas na próxima reunião do tribunal em Lydford. Lamento, mas nada podemos fazer a esse respeito.
- Ah, mas de certeza... - prosseguiu a mulher num tom suave - que não nos quer arruinar, pois não? Haverá alguma vantagem para os que já estão mortos? No fím de contas, há muito poucas provas de que o meu marido tenha feito algo de errado,..
- Minha senhora, ele admite-o! - declarou Simon com vigor, mas a mulher levantou a mão.
- Ainda ninguém tentou acusar o meu marido fosse do que fosse. Podíamos esquecer este caso desagradável com toda a facilidade. Não somos muito ricos, mas podemos oferecer terras e dinheiro aos nossos amigos.
Baldwin fitou-a com as sobrancelhas erguidas.
- Está a sugerir um acordo? - acabou por perguntar. Lady Matillida acenou. - Compreendo. - Virou-se para o mineiro e fez-lhe sinal para avançar.
- Nesse caso, quero deixar bem claro qual é a minha opinião - declarou Thomas num tom pesado. - Sir William, acuso-o do assassínio de Peter Bruther, do assassínio de Samuel Hankyn e do assassínio de Ronald Taverner.
- Creio que isto diz tudo - afirmou Simon calmamente. - Sir William, o senhor está obrigado a ir a Lydford connosco. Minha senhora, espero que isto a esclareça sobre qual é a nossa posição.
A mulher olhou-o com uma raiva furiosa. Ia começar a abrir a boca para gritar pelos guardas mas Robert pousou-lhe a mão no ombro antes que ela pudesse falar. A mãe ainda tentou soltar-se com uma palmada mas Robert segurou-lhe a mão. Matillida fitou-o, horrorizada, quando Robert ordenou:
- Mãe, cala-te, O cavaleiro tem razão... o pai é culpado e ele próprio o confessou. Não permitirei que morram mais homens honestos para proteger um culpado! Sir Baldwin, tem todo o meu apoio.
Havia um medo selvagem nos olhos do pai do jovem.
- Robert? Que queres dizer? Não estás à espera que eu vá para o castelo de Lydford, pois não, porque matarei quem quer que tente levar-me para lá, seja ele quem for! Os guardas desta mansão são...
- São meus... e obedecerão às minhas ordens quando ouvirem dizer que és um assassino e que confessaste ter morto dois dos seus amigos. Queres que te mande amarrar para o provar?
Baldwin, que se encontrava novamente sentado ao sol no exterior da casa de Simon em Lydford e observava os servos a trabalharem nos campos para lá da povoação, sentia-se descontraído e ensonado. O inquérito terminara de um modo mais ou menos satisfatório. Sir William fora levado ao tribunal, acontecimento que inicialmente provocara algum desassossego entre os magistrados da terra, que nunca haviam imaginado que fosse possível ter um cavaleiro preso na húmida e fria cela subterrânea. Todavia tinham-se habituado rapidamente à ideia e alguns até tinham passado a apreciar as profundidades a que o cavaleiro descera, tanto metafórica como fisicamente. As lutas entre os homens dos Beauscyr e os mineiros haviam cessado completamente. Agora, as únicas lutas de que havia notícia tinham a ver apenas com as ocasionais e vulgares trocas de murros no exterior da estalagem, bem como com uma ou outra disputa ocasional, nas charnecas, para decidir quem fora que limitara esta ou aquela parcela de terreno para exploração mineira.
Baldwin ouviu um guincho agudo e o saltitar de pequenos passos por trás dele, sorriu, gemeu e levantou-se lentamente. Momentos depois já Simon estava a seu lado com a filha pendurada num braço.
- Vai buscar um pouco de vinho ao teu pobre pai, Edith - pediu, pousando-a nas ervas com todo o cuidado. A rapariguinha de oito anos soltou umas risadinhas e correu de volta para o interior da casa. Os olhos de Simon seguiram as suas formas delgadas até a ver desaparecer e a seguir deixou-se cair no assento com um suspiro de contentamento enquanto lançava uma olhadela provocatória ao amigo. - Espero que tenha sobrado algum vinho.
Baldwin sorriu e virou a caneca ao contrário para mostrar que estava vazia.
- Não tenho a certeza, mas também espero que sim - disse, com os olhos semicerrados contra o brilho do Sol. - Que tal está o nosso amigo Sir William nesta bela manhã?
- Ora, como de costume. Insiste em que o libertem, insiste na sua inocência, insiste que a comida nem sequer é suficientemente boa para um cão... e insiste em que eu irei ocupar o lugar dele muito em breve logo que o monarca ouça falar nesta indignidade... Já sabes como é...
- Como pode ele dizer que está inocente?! Por amor de Deus, confessou o crime na nossa frente!
- Sim, mas parece já não se recordar que o fez. Agora diz que nem sequer se encontrava perto da área, nega quase raivosamente que tenha estrangulado o Bruther e muito menos apunhalado os outros dois.
Baldwin acenou e os seus olhos foram novamente atraídos para a paisagem. As palavras que Simon pronunciou a seguir chamaram-lhe a atenção precisamente quando Edith regressou, seguida pela bonita e elegante figura de Margaret, a esposa de Simon. A ama depositou o adormecido irmão de Edith ali perto e a voz do almoxarife baixou de tom enquanto observava o filho e sentia mais uma vez aquela sensação de mistificada maravilha por que costumava passar quando se lembrava que ajudara a criar um ser tão pequeno.
- John Beauscyr e SirRalph vão partir em breve. Ah, obrigado, Edith. Sim, sabe maravilhosamente!
O cavaleiro abriu os olhos de repente e ficou ansiosamente à espera de ouvir mais qualquer coisa enquanto Simon despenteava os cabelos da filha - um atentado à sua dignidade que a fez protestar ruidosamente -, e conversava com a esposa. Passados alguns minutos Baldwin não conseguiu aguentar mais tempo e explodiu:
- Peço perdão, Margaret, mas o teu marido deve ser o homem mais frustrante de toda a cristandade! Que quiseste dizer com isso? O John e SirRalph vão partir juntos?! O que foi que lhes aconteceu para voltarem a ser amigos?
Simon lançou-lhe um olhar divertido e sorriu.
- Desculpa, Baldwin. Esqueci-me que ontem não estiveste no castelo. - Estava a referir-se a uma reunião que combinara entre os mineiros e os Beauscyr, representados respectivamente por Thomas Smyth, e pelo Robert. Tinham pedido ao almoxarife que se sentasse e testemunhasse os acordos a que tinham chegado para que no futuro não se verificassem discussões. Baldwin estivera fora com Edgar, a cavalgar para o norte, e Simon não tivera oportunidade de falar com ele desde esse momento.
- Apareceram os dois muito bem-dispostos. Creio que o Thomas já compreendera que era provável que o Robert, embora passasse a ser uma espécie de filho, nem sempre iria ceder à sua vontade mas que de qualquer modo era um bom amigo e um homem honesto, um dos bons resultados de tanta leitura, tal como admite o próprio irmão. De qualquer modo, concordaram com o que precisavam de fazer, até onde os mineiros podiam ir e quanto terão de pagar à mansão por se utilizarem das suas terras. Depois disso tiveram o prazer de anunciar que a Alicia vai casar com o Robert e convidaram-nos para a cerimónia. Também te convidaram a ti, Baldwin, Sir Ralph e o John entraram quando a reunião já estava no fim. Ao que parece, Sir Ralph ficou horrorizado ao ouvir o modo como o John falou de honra e lealdade no dia em que acusaste o pai, e para além disso não fazia ideia de que o rapaz andava a roubar pessoas por aí. Agora parece decidido a dar ao jovem uma melhor noção sobre o que é ser um cavaleiro e voltou a colocá-lo sob a sua asa para ter a certeza de que o John aprende tudo... e muito em particular as virtudes da cavalaria. O rapaz concordou.,, e penso que Sir Ralph ficou muito surpreendido! Ver o pai humilhado foi um grande choque para o jovem John e creio que foi forçado a encarar as suas próprias acções com outros olhos...
Margaret inclinou-se para a frente para encher a caneca de Baldwin com o pesado cântaro de estanho. Simon agarrou-a pelo pulso magro e segurou-lho por instantes. Margaret sorriu, sentindo o calor do amor que sentia pelo seu homem. A seguir olhou para Baldwin e disse:
- Acham surpreendente? No fim de contas o rapaz é ainda muito novo. Pelo que vos ouvi dizer, passou toda a sua vida em posições de poder. Primeiro aqui, onde cresceu com um pai com autoridade sobre vastas terras, e depois no norte, onde esteve envolvido em lutas constantes. Será assim tão estranho que tenha tomado como garantido que podia tirar o que lhe apetecesse, a quem quisesse e quando o desejasse?
- Não - respondeu Simon - mas será que se consegue modificar?
- Dá-lhe essa oportunidade, Simon. - Baldwin riu-se e bebericou o vinho enquanto se recostava no assento. - Creio que já to tinha dito há uns dias. Ainda é novo e tem muito que aprender: como conseguir respeito e lealdade, como ganhar fama e honrarias e também, o que não é menos importante, como se compreender a si mesmo. Pensa no roubo ao pobre e velho Wat Meavy. Não foi a acção maldosa de um fora-da-lei ou de um shavaldore, mas sim o ataque confuso e amargo de um rapaz que ainda não sabe o que quer e que pensou que essa acção faria com o pai o passasse a encarar como um homem igual a ele, forte e resoluto. Talvez pensasse que o roubo o deixaria nas boas graças de Sir William. Dá-lhe uma oportunidade e talvez te surpreendas quando vires até onde ele irá conseguir subir.
- Irá ter essa oportunidade no local para onde vai. Aparentemente, vão embarcar para a Itália.
Baldwin acenou, ensonado. Sentia o calor do Sol nas faces e havia uma brisa suave vinda do profundo desfiladeiro ali perto que o embalava e acalmava. Era-lhe difícil manter-se concentrado na conversa sobre o cavaleiro e o seu escudeiro.
- Irão ter a oportunidade de alcançarem a glória com que o John sonha...
- Sir Ralph disse... Como é que foi? Ah, sim, citou um livro e disse que iria ensinar o John a ser um verdadeiro cavaleiro.
- Qual livro? - perguntou Baldwin.
- Penso que foi escrito por um homem chamado Lull.
- Ah! Ramon Lull! Já vi esse livro sobre a cavalaria. Não é mau, embora não seja tão bom como outros. No entanto suponho que é do tipo de que Sir Ralph deve gostar. Lull afirma que os homens mais fiéis, forte e corajosos foram escolhidos para serem cavaleiros. Sugere o princípio de que, depois da perda da Graça, quando Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, a cavalaria foi criada para defender e conter o povo. Bom, acho que não é dos piores para a aprendizagem do John... desde que absorva as ideias de serviço ao povo e não apenas os elementos respeitantes ao poder.
- Baldwin... - disse Margaret com um sorriso - estás a divagar.
- Isso, minha querida - replicou o cavaleiro sem abrir os olhos - é porque sou uma alma divagante que presentemente está quase a dormir. Por que não dizes ao teu marido para se descontrair e sentar calmamente, para poder aproveitar este tempo? Pelo que tenho visto, é muito raro que vocês tenham a oportunidade de gozar o calor do Sol nesta abençoada mansão. Por que não aproveitam?
Simon sorriu e virou-se para a mulher, mas não precisou de muito tempo para voltar a entregar o filho à ama para poder ir passear pelos campos com Edith. No fim de contas, não era razoável esperar que a garota se mantivesse sossegada numa altura em que o ressonar do cavaleiro adormecido ameaçava acordar os mortos que descansavam no pátio da igreja de St. Petroc, a quase meio quilómetro de distância.
Michael Jecks
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