Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CHAVE DA CORAGEM / Nora Roberts
A CHAVE DA CORAGEM / Nora Roberts

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A beleza e a verdade não são nada sem a coragem para as manter. Mas um par de mãos pode apertar com demasiada força, e o que é precioso escorre por entre os dedos. Perda e sofrimento, mágoa e vontade marcam o árduo caminho pela floresta. Ao longo da viagem há sangue, a morte da inocência e dos fantasmas do que podia ter sido. Sempre que o caminho se bifurca, é a fé que escolhe o caminho ou a dúvida que o bloqueia.

Será desespero ou alegria? Poderá haver realização sem o risco de perder?

Tratar-se-á de um final ou de um princípio? O caminho seguirá até à luz ou regressará às trevas?"

Três mulheres. Três chaves. Cada uma das três mulheres tem vinte e oito dias para encontrar o seu caminho através de uma perigosa busca que poderá completar-lhe o destino... ou destruir para sempre a sua vida.

 

 

 

 

Capítulo 1

Zoi McCourt tinha dezasseis anos quando conheceu o rapaz que viria a mudar a sua vida. Tinha crescido nas montanhas da Virgínia, e era a mais velha de quatro filhos. Aos doze, o pai já tinha fugido com a mulher de outro homem.

No entanto, Zoe não encarara esse facto como uma grande perda. O seu pai era um homem instável e irritadiço, que preferia beber cerveja com os amigos ou ir para a cama com a mulher do vizinho a cuidar dos seus.

Mesmo assim, tinha sido duro, já que, na maior parte das semanas, ainda trazia dinheiro para casa.

A mãe era uma mulher magra e nervosa, que fumava de mais e compensava a deserção do marido substituindo-o, com alguma regularidade, por namorados da mesma laia de Bobby Lee meCourt. Embora eles a fizessem feliz a curto prazo, e triste e furiosa a longo prazo, ela nunca conseguira passar sem um homem durante mais de um mês.

Crystal McCourt criara os filhos numa roulotte de duas divisões estacionada num love do Parque de Caravanas de Hillside. Depois da fuga do marido, Crystal apanhara uma bebedeira de caixão à cova e, entregando as responsabilidades a Zoe, saltara para o seu Camaro em terceira mão para, nas suas próprias palavras, ir atrás daquele "sacana aldrabão e da sua maldita puta".

Tinha passado três dias fora. Não conseguira encontrar Bobby mas regressara ébria. A busca custara-lhe alguma auto-estima e o emprego na Debbie's House of Beauty.

O salão da Debbie era mais um barracão, mas, mesmo assim, foi um duro golpe deixar de ter um salário regular.

 

A experiência endureceu Crystal consideravelmente. Mandou os filhos sentarem-se e explicou-lhes que as coisas iam ser árduas e duras, mas haviam de encontrar uma solução.

Pregou o diploma de esteticista na cozinha da roulotte e abriu o seu próprio cabeleireiro.

Baixou os preços em relação aos da Debbie, e tinha um verdadeiro talento para arranjar o cabelo.

Era assim que se tinham aguentado. A roulotte cheirava a água oxigenada, a permanentes e a fumo, mas tinham-se aguentado.

Zoe lavava cabeças, varria os cabelos cortados e tratava dos três irmãos mais novos. Quando revelou alguma aptidão, começou a fazer brushing e a cortar o cabelo.

Sonhava ainda com algo melhor, com outros mundos, para lá do parque.

Teve bons resultados na escola, principalmente a Matemática. O seu talento para números fez com que viesse a ocupar-se da contabilidade, dos impostos e das contas da mãe.

Já era adulta antes do seu décimo quarto aniversário, e a criança dentro dela ansiava por algo mais.

Não constituiu, por isso, qualquer surpresa o facto de se deixar deslumbrar por James Marshall.

Ele era tão diferente dos rapazes que conhecia. Não apenas por ser um pouco mais velho - dezanove anos para os seus dezasseis - mas porque já tinha viajado e visto o mundo. E era tão bonito! Era como o Príncipe Encantado dos livros.

O seu bisavô podia ter trabalhado nas minas que existiam naqueles montes, mas James não tinha um único bocadinho de poalha de carvão. As gerações anteriores tinham-no escovado todo, e acrescentado algum brilho e polimento.

A família tinha dinheiro, o tipo de dinheiro que servia para pagar distinção, estudos e viagens à Europa. Tinham a maior casa da cidade, branca e vistosa como um vestido de noiva, e James e a irmã mais nova tinham estudado em colégios particulares.

Os Marshall gostavam de dar festas, grandes festas estrondosas com música ao vivo e comida requintada servida por empresas

de catering. A sr.a Marshall mandava sempre Crystal ir lá a casa arranjar-lhe o cabelo para as festas, e Zoe frequentemente acompanhava-a para tratar-lhe das unhas.

Ela sonhava com aquela casa, tão limpa e cheia de flores e coisas bonitas. Era tão maravilhoso saber que as pessoas viviam assim. Nem toda a gente vivia enlatada numa roulotte a cheirar a produtos químicos ou a fumo entranhado.

Prometeu a si mesma que um dia haveria de viver numa casa. Não tinha de ser grande e imponente como a dos Marshall, mas havia de ser uma casa a sério, e teria um pequeno jardim.

Um dia, também viajaria para os lugares de que a sr.a Marshall falava: Nova Iorque, Paris, Roma.

Poupava para isso todos os centavos das gorjetas e o dinheiro dos trabalhos extra. Aliás, o dinheiro que não era destinado à mãe para equilibrar as contas.

Tinha jeito para lidar com dinheiro. Aos dezasseis anos, possuía quatrocentos e catorze dólares guardados numa conta de poupança secreta.

Em Abril, quando fez catorze anos, ganhou algum dinheiro a mais ajudando a servir numa das festas dos Marshall. Ela era bastante apresentável, e estava ansiosa por trabalhar lá em casa.

Nessa altura usava os cabelos compridos, um longo fio negro caído ao longo das costas. Sempre fora esguia, mas desabrochara de tal maneira que os rapazes andavam sempre a farejar atrás dela. Não tinha tempo para eles... pelo menos não tinha muito.

Tinha uns olhos castanho-dourados com pestanas compridas que estavam sempre a ver, a observar, a questionar, e uns lábios grandes e carnudos que não sorriam logo à primeira. Os seus traços eram marcados e angulosos, acrescentando algum exotismo em contraste com a sua timidez natural.

Fazia o que lhe mandavam, e fazia-o bem; e resguardava-se, tanto quanto possível.

Talvez tivesse sido a timidez, ou os olhos sonhadores, ou a competência que atraíra James. Fosse como fosse, ele namoriscou com ela naquela noite no início da Primavera, desorientou-a

e, fundamentalmente, lisonjeou-a. Depois, pediu para voltar a vê-la.

Encontraram-se em segredo, o que ainda contribuía para aumentar a emoção. A ideia idílica de ter alguém como James a prestar-lhe atenção era algo que a deixava segura de si mesma. Como ele a escutava, a sua timidez desapareceu e ela confessou-lhe os seus sonhos e esperanças.

Ele era meigo para ela e, sempre que ela conseguia fugir, iam dar longos passeios de automóvel, ou pura e simplesmente sentavam-se a ver as estrelas e a conversar.

Como era evidente, não tardou muito a fazerem mais do que isso.

Ele confessou-lhe que a amava. Disse que precisava dela.

Numa suave noite de Junho, sobre um cobertor vermelho que estenderam no bosque, ela perdeu a inocência com o optimismo voraz dos jovens.

Ele continuou a ser meigo, atento, e prometeu que haviam de estar sempre juntos. Ela imaginou que ele acreditava nisso. E acreditou nele.

No entanto, havia um preço a pagar pela juventude e pela tolice. Ela pagou-o. E, analisando, ele também. Talvez tivesse até pago mais, muito mais do que ela - porque enquanto ela perdera a sua inocência, James ficara sem um tesouro muito mais precioso.

Fitava agora esse tesouro. O seu filho.

Se James mudara a vida dela, Simon voltara a endireitá-la. Noutro caminho, de outra forma. James permitira a Zoe saborear pela primeira vez o que era ser mulher. Porém, o filho transformara-a numa mulher.

Adquirira a sua casa - a sua casinha com quintal - e fizera-o sozinha. Podia nunca ter chegado a viajar para todos aqueles lugares maravilhosos como em tempos sonhara, mas tinha visto todas as maravilhas do mundo nos olhos do filho.

Agora, quase dez anos depois de lhe ter pegado ao colo pela primeira vez, de lhe ter prometido que nunca o deixaria ficar mal, avançava mais uma vez em frente, com o filho. Estava a tentar fazer com que Simon tivesse mais.

Zoe McCourt, a rapariga tímida das montanhas da Virgínia, estava prestes a abrir o seu próprio estabelecimento na bonita cidade de Pieasant Valley, com duas mulheres que se tinham tornado simultaneamente irmãs e amigas no curto espaço de dois meses.

Indulgence. O nome agradava-lhe. Era aquilo que ela queria para os seus clientes, o que ia dar trabalho, muito trabalho, para ela e para as amigas. Mas até o trabalho era uma espécie de prazer, visto ser algo a que todas tinham sonhado dedicar-se.

A galeria de arte e artesanato de Malory Price ocuparia um dos lados do piso térreo da sua doce casa nova. A livraria de Dana ficaria do outro. E o seu salão estender-se-ia pelo piso superior.

"Já faltam poucas semanas", pensou. Faltavam poucas semanas de obras e remodelações, a instalar produtos, stocks e equipamentos. E a seguir abririam as portas ao público.

Sentiu um sobressalto na barriga só de pensar nisso, mas não se tratava apenas de receio. Alguns desses sobressaltos eram de excitação pura.

Sabia exactamente qual seria o aspecto da casa depois de pronta: cheia de cor e de luz no salão principal, e com tons mais suaves e relaxantes nas salas de tratamentos. Teria velas espalhadas, para dar aroma e ambiente, e quadros interessantes nas paredes. Boa iluminação para melhorar a disposição e relaxar.

Prazeres. Para a mente, para o corpo, para o espírito. Tencionava dar às clientes um pouco dos três.

Nessa noite ia a conduzir vinda do Vale, onde montara a sua casa, para ir tratar de negócios nas montanhas, onde enfrentaria o seu destino. Simon estava um pouco pensativo, a olhar pela janela. O rapaz não estava contente, sabia-o, mas mesmo assim obrigara-o a ir de fato.

Quando uma pessoa recebia um convite para jantar num lugar como o Pico do Guerreiro, tinha de se vestir a rigor.

Possível tradução: "Prazeres". (N. da T.)

Absorta, Zoe puxou a parte de baixo do vestido. Comprara-o num outlet por bom preço, e esperava que a malha púrpura-escura fosse adequada.

"Provavelmente, devia ter arranjado alguma coisa preta", pensou, "para ficar com um ar mais distinto e mais sóbrio." No entanto, gostara imenso da tonalidade, e precisava daquele toque de cor para lhe dar confiança. Aquela era uma das noites mais importantes da sua vida, por isso, podia muito bem ir vestida com uma roupa que a fazia sentir-se bem.

Zoe comprimiu os lábios. Já que os seus pensamentos tinham circulado em torno daquilo em que evitara pensar, era altura de lidar com isso.

Como explicaria a um rapaz de nove anos o que fizera, pensou, e, mais ainda, o que estava prestes a fazer?

- Acho que é melhor conversarmos sobre o motivo pelo qual viemos cá jantar esta noite - começou.

- Aposto que mais ninguém vem de fato - murmurou ele.

- E eu aposto que tu estás enganado.

O rapaz virou a cabeça e lançou-lhe um olhar de viés.

- Dinheiro.

- Dinheiro - concordou ela.

"Ele é tão parecido comigo", pensou Zoe. Às vezes isso provocava nela uma espécie de alegria feroz e possessiva. Não era estranho não existir nada de James estampado naquele rosto? Os olhos eram os dela, a boca era a sua, bem como o nariz, o queixo, os cabelos, tudo transformado apenas ligeiramente para constituir aquele que era Simon.

- bom - disse ela, e aclarou a garganta. - Sabes que, há um ou dois meses, recebi um convite para vir até aqui. E que foi nessa altura que conheci a Malory e a Dana.

- Claro, lembro-me disso porque no dia seguinte compraste-me a PlayStation 2, e nem sequer era o meu dia de anos.

- Os presentes de "desaniversário" são os melhores.

Ela conseguira comprar a prenda que Simon tanto desejava com parte dos vinte e cinco mil dólares que lhe tinham pago por ter concordado com... o fantástico.

- Tu conheces a Malory e a Dana, e conheces o Flynn, o Jordan e o Bradley.

- Sim, ultimamente passamos muito tempo com eles. São fixes. Para cotas - acrescentou, com uma careta que ele sabia que lhe daria vontade de rir.

Porém, ela não se riu.

- Há algum problema com eles? - perguntou o rapaz muito depressa.

- Não. Não. Não há problema absolutamente nenhum - respondeu ela, mordendo o lábio inferior enquanto tentava encontrar as palavras certas. - Hum, às vezes as pessoas têm uma ligação umas às outras sem o saberem. Quero dizer, a Dana e o Flynn são irmãos... aliás, meios-irmãos. A Dana tornou-se amiga da Malory; nessa mesma altura, o Flynn e a Malory conheceram-se e, quando deram por isso, estavam apaixonados.

- Isso é alguma história melada? Ainda sou capaz de vomitar.

- Se vomitares, põe a cabeça fora da janela. Bem, o Flynn é um velho amigo do Jordan e do Bradley, e, quando eram mais novos, o Jordan e a Dana eram... namorados - era a palavra mais segura de que uma mãe se podia lembrar. - A seguir, o Jordan e o Bradley abandonaram o Vale. E depois voltaram, em parte devido a estas pessoas com quem vamos estar. E o Jordan e a Dana voltaram a andar juntos e...

- E agora vão-se casar, tal como o Flynn e a Malory. Parece uma epidemia. - Entretanto tinha-se virado para ela, e o seu rosto reflectia o sofrimento típico da pré-adolescência. - Se formos a esses casamentos como fomos ao da tia Joleen, se calhar vais obrigar-me a ir de fato, não?

- Vou! Atormentar-te é um dos meus prazeres tranquilos. O que te estou a tentar mostrar é que cada um de nós acabou por ficar ligado aos outros de uma maneira ou de outra. E há mais uma coisa. Ainda não te falei muito acerca das pessoas que vivem no Pico do Guerreiro.

- São mágicos.

A mão de Zoe tremeu sobre o volante. Ela abrandou e encostou o carro à beira da estrada.

- O que queres dizer com "mágicos"?

- Bolas, mãe. Eu costumo ouvir-vos conversar quando têm aquelas reuniões. Então, eles são bruxos ou quê? Não compreendo.

- Não. Sim. Não sei ao certo. - Como poderia explicar a uma criança o que eram deuses antigos? - Acreditas em magia, Simon? Não estou a falar em truques de cartas, mas no tipo de coisas que se lêem nas histórias como o Harry Potter ou O Hobbit.

- Se não fossem reais, porque é que haveria tantos livros, filmes e tretas assim acerca disso?

- Está bem visto - afirmou ela passado um momento. - A Rowena e o Pitte, as pessoas que vivem no Pico, as pessoas que vamos ver esta noite, são mágicas. Vêm de um lugar diferente, e estão aqui porque precisam da nossa ajuda.

- Para quê?

Conseguira captar a atenção e o interesse dele, sabia-o. O interesse que o levava a ler as histórias que ela referira, os livros de banda desenhada dos X-Men e os jogos de vídeo em que encarnava personagens, e que ele adorava.

- Vou explicar-te. Isto vai parecer uma historieta mas não é. Só que entretanto tenho de ir conduzindo, para não chegarmos atrasados.

- Está bem.

Zoe respirou fundo tranquilamente enquanto voltava a entrar na estrada.

- Há muito tempo, mesmo muito, muito tempo, num lugar a que chamam a Cortina dos Sonhos, ou a Cortina Magnética, havia um jovem deus...

- Como Apolo?

- Mais ou menos. Mas não era grego. Era celta. Era filho de um rei e, quando cresceu, fez uma visita ao nosso mundo, conheceu uma rapariga e apaixonou-se.

A boca de Simon contorceu-se.

- Porque é que acontece sempre a mesma coisa?

- Podemos voltar mais tarde a esse tipo de coisas? Não temos muito tempo. Apaixonaram-se e, embora ele não pudesse propriamente fazer isso, os pais deixaram-no levar a rapariga com ele para poderem casar-se. Alguns dos deuses estavam de acordo com isso, mas para outros isso não estava certo. Houve batalhas e...

- Fixe.

- O mundo dividiu-se praticamente em dois reinos. Num deles, o jovem deus passou a ser o governante, casado com a sua esposa humana, ao passo que o outro era governado por um feiticeiro maléfico.

- Fixérrimo.

- O jovem rei tinha três filhas. Chamam-lhes semideusas porque eram em parte humanas. Cada uma delas possuía um dom especial. O da primeira era a música, ou a arte, o da segunda era a escrita, ou o conhecimento, e o da terceira era a coragem, acho eu. A valentia.

A sua boca ficou um bocado seca só de pensar nisso, porém, Zoe engoliu em seco e prosseguiu.

- Ela era uma espécie de guerreira. Eram muito chegadas umas às outras, como quaisquer irmãs, e os pais amavam-nas. Para que elas ficassem em segurança enquanto o reino passava por todos aqueles problemas, o rei providenciou um guerreiro e uma mestra para as proteger e ensinar. Até que, não resmungues, o guardião e a mestra se apaixonaram.

Ele deixou cair a cabeça para trás e pôs-se a olhar para o tejadilho.

- Eu sabia.

- Como não eram rapazes sarcásticos com nove anos, as filhas ficaram felizes por eles e encobriam-nos quando eles se afastavam um pouco para ficarem a sós. Por isso, as raparigas não foram tão bem guardadas como deviam ter sido. O feiticeiro malvado tirou partido disso, aproximou-se e lançou-lhes um feitiço. O feitiço fez com que as almas das filhas fossem roubadas e encerradas numa caixa de vidro com três fechaduras e três chaves.

- Meu, ficaram na pior.

- Pois ficaram. As almas encontram-se fechadas dentro da caixa, e só poderão sair quando as chaves rodarem, uma por uma, nas fechaduras, o que só pode ser feito pela mão de um mortal. De um ser humano.

Como sentia um formigueiro nos dedos, Zoe esfregou-os na parte de baixo do vestido.

- Sabes, como elas eram meio humanas, o feiticeiro fez com que só alguém do nosso mundo pudesse salvá-las, porque ele não imaginava que isso fosse possível. A mestra recebeu as chaves - mas não pode usá-las -, e foi atirada para este mundo, juntamente com o guardião. Em todas as gerações, ambos têm de pedir a três seres humanos, os únicos três seres humanos capazes de abrir a fechadura, para encontrarem as chaves. Estas têm de ser escondidas e descobertas como parte da demanda, como parte da conjura. Cada uma das escolhidas tem de agir à vez, e tem apenas quatro semanas para encontrar a chave e colocá-la na fechadura.

- Uau, são vocês que têm de encontrar a chave? Como é que foram escolhidas?

Zoe soltou um leve suspiro. O filho dela era um rapaz inteligente e lógico.

- Não sei ao certo. Nós, a Mal, a Dana e eu, somos parecidas com as filhas. As Filhas do Vidro, como lhes chamam. A Rowena é uma artista, e tem um retrato delas no Pico. São associações, Simon. Há algo que nos liga umas às outras, às chaves e às filhas. Acho que se pode dizer que é o destino.

- Se não encontrarem as chaves, elas ficam fechadas dentro da caixa?

- As almas delas é que ficam. Os seus corpos estão dentro de urnas de vidro, hum, como a Branca de Neve. À espera.

- A Rowena e o Pitte são a mestra e o guardião - proferiu ele, assentindo. - E tu, a Malory e a Dana têm de encontrar as chaves e resolver tudo.

- Exacto. A Malory e a Dana já tiveram a sua vez, e encontraram as suas chaves. Agora é a minha vez.

- Vais encontrá-la - afirmou ele, com um aceno solene de cabeça. - Tu encontras sempre as coisas que eu perco.

Se ao menos as coisas fossem tão simples como encontrar os brinquedos do filho.

- Vou fazer todos os possíveis por encontrá-la. Mas digo-te uma coisa, Simon: o feiticeiro, que se chama Kane, já tentou impedir-nos. E vai fazer o mesmo comigo. Embora seja bastante assustador, não posso deixar de tentar.

- Dás-lhe um chuto no rabo.

As gargalhadas desfizeram-lhe alguns nós que sentia no estômago.

- É esse o meu plano. Não tencionava contar-te tudo isto, mas também não me parecia correcto não dizer nada.

- Porque nós somos uma equipa.

- Sim, somos uma excelente equipa.

Zoe parou em frente aos portões abertos do Pico do Guerreiro.

Os portões eram ladeados por dois guerreiros de pedra, de mãos na bainha das espadas. Pareciam-lhe tão corajosos, tão formidáveis. "Associações?", pensou. Que associação podia haver entre alguém como ela e aqueles guerreiros ao portão?

Tranquila, Zoe respirou fundo e prosseguiu.

- com mil macacos! - exclamou Simon, ao lado dela.

- É mesmo.

Ela percebeu a reacção dele ao ver a casa. Também ficara de olhos esbugalhados e queixo caído da primeira vez que a vira de perto.

Muito embora "casa" fosse uma expressão demasiado comum para o Pico. Metade castelo, metade fortaleza, erguia-se muito acima do Vale como aquelas montanhas majestosas, e sobrepunha-se a elas. Os seus picos e torreões eram feitos de pedra negra com carrancas empinadas nas goteiras como se fossem cair por capricho, o que não seria propriamente muito divertido. Era uma casa enorme, rodeada de relvados luxuriantes que se estendiam até aos bosques e se tornavam sombrios ao cair da noite.

No cimo da torre mais alta esvoaçava uma bandeira branca com o emblema de uma chave dourada.

O Sol punha-se atrás dela, e a tela do céu tinha veios vermelhos e dourados, acrescentando um efeito ainda mais impressionante.

"Em breve o céu estará negro", pensou Zoe, "apenas com uma fina nesga de Lua." No dia seguinte começava a primeira noite de Lua nova, o início da demanda.

- Lá dentro também é o máximo. Parece uma coisa de filme. Não mexas em nada.

- Mãe.

- Estou nervosa. Poupa-me - disse ela, conduzindo lentamente até à entrada. - Mas a sério, não mexas em nada lá dentro.

Parou o automóvel esperando não ser a primeira nem a última a chegar, e a seguir tirou um batom para retocar o que pusera à pressa antes de sair de casa. Num gesto automático, passou os dedos pelas pontas direitas dos cabelos, que usava agora mais curtos do que o filho.

- Tu estás bem, certo? Podemos ir? Quero que estejamos muito bem apresentados - afirmou ela, pegando-lhe no queixo e usando o pente que tirara da carteira para lhe pentear os cabelos enquanto ele a fuzilava com o olhar. - Se não gostares do que nos derem ao jantar, finge que comes, mas não digas que não gostas nem faças ruídos como se estivesses para vomitar. Eu depois arranjo-te qualquer coisa quando chegarmos a casa.

- Podemos ir ao McDonald's?

- Depois logo vemos. Estamos bem. Estamos óptimos. Pronto.

- Zoe voltou a pôr o pente dentro da mala e começou a abrir a porta do carro.

O velhote que vinha acolher as visitas e estacionava os seus automóveis estava ali para estacionar o dela. Ele fazia-a sempre dar um salto.

- Oh. Obrigada.

- O prazer é todo meu, menina. Boa-noite para os dois. Simon lançou-lhe um longo olhar observador.

-Olá.

- Boa-noite, senhor.

Contente com o título, Simon sorriu para ele e aproximou-se.

- O senhor é um dos mágicos?

As rugas do velho tornaram-se mais pronunciadas e transformaram-se num largo sorriso.

- Talvez seja. O que achavas se fosse?

- Lindo. Mas porque é que é tão velho?

- Simon.

- É uma boa pergunta, minha senhora - disse ele, em resposta ao assobio horrorizado de Zoe. - Sou assim velho porque tive o prazer de viver muito. Desejo-te o mesmo prazer - acrescentou, inclinando-se com os ossos a ranger até o seu rosto ficar ao nível do de Simon. - Queres saber uma verdade?

- Está bem.

- Nós somos todos mágicos, só que uns sabem disso e outros não.

Dito isto, voltou a endireitar-se.

- Eu arrumo-lhe o carro, minha senhora. Tenham uma boa noite.

- Obrigada - disse ela, pegando na mão de Simon e caminhando até ao pórtico e às portas de entrada. Estas abriram-se antes que eles tivessem tempo de bater, e Rowena apareceu.

Os seus cabelos cor de fogo caíam-lhe gloriosamente sobre os ombros de um longo vestido verde como as sombras do bosque. Tinha um pendente de prata entre os seios, com a pedra central transparente a emitir o seu clarão sob a luz brilhante do átrio.

Como sempre, a sua beleza provocou um breve choque, como uma pequena descarga eléctrica.

Embora estendesse a mão para cumprimentar Zoe, os seus olhos - de um verde mais forte e mais rico do que o vestido - só viam Simon.

- Bem-vindo - proferiu, com uma entoação que fazia ecoar a das terras distantes que Zoe em tempos desejara conhecer. - Tenho muito gosto em voltar a ver-te. E é um enorme prazer conhecer-te, Simon, até que enfim.

 

- Simon, esta é sr.a Rowena.

- Só Rowena, por favor, porque espero que venhamos a ser amigos. Não entram? - perguntou, sem tirar a mão da de Zoe e tocando com a outra no ombro de Simon.

- Espero que não tenhamos chegado atrasados.

- Não, de modo algum - Rowena recuou, e abriu caminho sobre o chão de mosaicos coloridos. - A maior parte dos outros já cá está, mas a Malory e o Flynn ainda não chegaram. Estamos na salinha. Diz-me, Simon, gostas de fígado de vitela e couves-de-bruxelas?

Antes de se lembrar da ordem da mãe, ele começou a fazer ruídos como se estivesse para vomitar, mas, entretanto, Zoe já estava toda corada. E o riso de Rowena pairava em torno deles.

- Como sinto exactamente o mesmo, é uma sorte esse prato não fazer parte da refeição de hoje. Os nossos últimos convidados - anunciou ao entrar na salinha. - Pitte, vem conhecer o jovem senhor McCourt.

Simon ergueu o rosto para olhar para a mãe, e deu-lhe uma cotovelada.

- Senhor - afirmou, com grande satisfação, pelo canto da boca. O amante de Rowena apresentava-se tão bem como ela. O seu forte porte de guerreiro estava envolto num elegante fato escuro. Os seus cabelos negros encontravam-se penteados para trás, revelando as faces robustas, cujos ossos pareciam talhados por debaixo da carne. Os olhos, de um azul brilhante, observavam Simon enquanto este erguia uma sobrancelha e estendia a mão com elegância.

- Boa-noite, sr. McCourt. O que posso oferecer-lhe para beber?

- Posso beber Coca-Cola?

- com certeza.

- Por favor, instalem-se à vontade - disse Rowena, com um gesto hospitaleiro.

Entretanto, Dana já se tinha levantado para atravessar a sala.

- Olá, Simon. Como vai isso?

- Bem. Tirando o facto de ter perdido um dólar por aquele tipo e o Brad estarem de fato.

-Azar.

- Vou falar com o Brad, está bem, mãe?

- Está bem, mas... - começou ela, e soltou um suspiro quando ele se afastou. - Não mexas em nada - acrescentou muito baixinho.

- Ele vai portar-se bem. E tu, como estás?

- Não sei - respondeu, olhando para a amiga, uma das pessoas em quem ela viera a confiar tão plenamente. Os olhos castanho-escuros olharam para ela com um entendimento que apenas mais uma pessoa era capaz de ter. - Acho que me sinto um pouco confusa. Mas não vamos pensar nisso agora. Estás com óptimo aspecto.

Para Zoe, era absolutamente verdade. Os densos cabelos castanhos tombavam, flexíveis e elegantes, em forma de sino, três dedos abaixo do queixo forte de Dana. Era um penteado bom para ela, já que fora Zoe, a cabeleireira, que o aconselhara.

Era um alívio Dana ter escolhido um casaco cor de tijolo por cima do preto mais formal.

- Ainda melhor - acrescentou -, pareces feliz. - Ergueu a mão esquerda de Dana para admirar o rubi lapidado em forma de quadrado. - O Jordan tem imenso gosto para jóias e para noivas.

- Isso é indiscutível - afirmou Dana, olhando para o sofá, onde Jordan e Pitte conversavam.

"São bastante parecidos com os guerreiros que ladeiam os portões", pensou.

- Arranjei um belo homem.

"Ficam muito bem um com o outro", pensou Zoe. O porte sensual de amazona de Dana, com a estrutura alta e musculada de Jordan. Acontecesse o que acontecesse, Zoe estava feliz por eles se terem reencontrado.

- Pensei que talvez apreciasses um copo de champanhe - afirmou Rowena, avançando para oferecer a Zoe uma taça de cristal com o vinho borbulhante.

- Obrigada.

- O teu filho é lindo.

O orgulho ocupou o lugar dos nervos.

- Pois é. A coisa mais bela da minha vida.

- Isso faz de ti uma mulher muito rica - comentou Rowena, tocando-lhe no braço e sorrindo. - Ele e o Bradley parecem ter ficado amigos rapidamente.

- Ligam bem um com o outro - concordou Zoe.

Não sabia bem o que havia de pensar; aquilo parecia-lhe tão improvável. Porém, ali estavam eles, lado a lado, no outro canto da sala, obviamente envolvidos numa conversa profunda. O homem num elegante fato cinzento-escuro, e o rapaz no seu fato castanho-escuro que já lhe ficava - céus! - um pouco pequeno.

Parecia estranho que Simon se sentisse tão à vontade com aquele homem enquanto ela estava tão pouco à vontade com ele. Ela e o filho costumavam andar a par.

Então Brad virou-se e os seus olhos, quase da mesma cor do fato, cruzaram-se com os dela.

"Ah, sim", pensou ela, "aqui está o motivo." Aquela era a única pessoa que ela e Simon conheciam que lhe conseguia pôr a barriga a andar à volta com um único olhar.

Ele era demasiado belo, demasiado rico, demasiado tudo. "Muito, mas muito fora do teu alcance, Zoe, e já passámos por essa experiência."

 

Bradley Charles Vane IV fazia James Marshall parecer um labrego, de todas as maneiras possíveis. A fortuna dos Vane, construída com base na madeira, espalhando a sua cadeia de lojas de qualidade, a HomeMakers, por todo o país, fazia de Brad um homem muito poderoso e privilegiado.

O seu aspecto - os cabelos louro-escuros, os olhos cor de fuligem e a boca de feiticeiro - tornavam-no, na sua opinião, um homem perigoso. Brad tinha o porte esguio e musculado ideal para aqueles fatos de marca. "Umas pernas longas que percorreriam rapidamente o caminho até à porta", imaginou ela.

Além do mais, achava-o imprevisível. Num minuto podia ser frio e arrogante, no seguinte colérico e mandão, e depois surpreendentemente meigo.

Não confiava num homem cujo comportamento não conseguia prever.

Porém, confiava-lhe Simon, o que constituía mais um enigma. Ele nunca faria mal ao seu menino. Tinha a certeza absoluta disso. Além de que não podia negar que ele era bom a lidar com ele, bom para ele.

Mesmo assim, quando Brad se levantou para ir ter com ela, todos os seus músculos se retesaram.

- Está tudo a correr bem?

- Tudo em ordem.

- Sempre explicaste ao Simon o que se passa.

- Ele tem o direito de saber. Eu...

- Se parares de me saltar à garganta talvez eu consiga dizer-te que estou de acordo. Não só tem esse direito, como tem uma mente suficientemente brilhante e ágil para lidar com o assunto.

- Ah! - exclamou ela, baixando os olhos para o copo. - Desculpa. Estou um pouco nervosa.

- Talvez te ajude pensares que não estás sozinha nisto. Enquanto ele falava ouviu-se um burburinho na sala. Passado um instante, Moe, o desastroso cão preto de Flynn, entrou por ali adentro num rompante. Soltou um latido de contentamento e correu para a bandeja de canapés pousada sobre uma mesinha baixa.

Flynn e Malory correram atrás dele, seguidos de uma Rowena que não parava de rir. Houve gritos, mais latidos e um infeliz ruído de coisas a cair.

- De facto - acrescentou Brad enquanto fitava o caos que se seguiu -, é uma sorte se conseguires arranjar cinco minutos de sossego neste grupo.

Capítulo 2

Afinal de contas, foi Zoe quem teve de fingir que comia. Não por causa da comida, mas porque não conseguia descontrair-se. Era difícil engolir o que quer que fosse com um nó no estômago.

Já tinha jantado naquela casa, com os seus tectos altos e a lareira crepitante. Sabia bem como tudo ficava belo à luz dos lustres e banhado pelo brilho das velas.

Porém, desta vez sabia sem sombra de dúvida como a noite iria acabar. Não ia haver nenhum sorteio. Não seria uma questão de sorte, como fora das outras vezes, quando ela, Malory e Dana se dirigiram para a caixa entalhada para ver qual delas retiraria de lá o disco com o emblema da chave.

Tanto Malory como Dana tinham tido a sua vez, e tinham sido bem sucedidas, apesar das probabilidades reduzidíssimas. Elas tinham encontrado as chaves. Tinham triunfado, e duas fechaduras tinham sido abertas.

Zoe ajudara-as. Sabia que contribuíra com ideias, com apoio e até com consolo. Mas, na hora H, percebera que o fardo recaíra sobre os ombros de cada uma delas, uma de cada vez. Bem vistas as coisas, tanto Malory como Dana tinham tido de procurar no fundo de si próprias, e tinham tido de alcançar a chave tangível.

Agora o fardo e o risco eram dela. Ia ter a sua oportunidade.

Tinha de ser suficientemente corajosa, suficientemente inteligente, suficientemente forte, caso contrário, tudo o que elas tinham feito até ali ficaria reduzido a nada.

Até aquela carne de porco maravilhosamente assada era difícil de engolir com a sensação que tinha na garganta.

A conversa fluía pela mesa, como se todos estivessem reunidos num jantar perfeitamente normal com amigos. Malory e Flynn estavam mesmo à sua frente. Malory penteara os cabelos para trás, de modo que os caracóis louro-arruivados lhe caíam para trás, deixando a descoberto o seu rosto de menina. Os seus grandes olhos azuis riam, cheios de animação, enquanto falava sobre o trabalho que estavam a desenvolver na Indulgence.

De vez em quando, Flynn tocava-lhe nas costas da mão, no braço, num gesto casual de quem pensa "ainda bem que aqui estás", "ainda bem que és minha", o que animava o coração de Zoe.

Para manter a mente ocupada com coisas mais simples, decidiu que tinha de o convencer a deixá-la cortar-lhe o cabelo. Era de um belo tom castanho-forte com nuances de avelã, muito espesso e volumoso. Porém, com uma tesourada aqui e ali, podia melhorar o corte sem lhe retirar aquele ar descontraído e despenteado que ia bem com os traços esguios do seu rosto e com o formato daqueles olhos verde-escuros.

Deixando a mente vaguear, cortou e penteou mentalmente todos os presentes à volta da mesa.

Deu um salto quando Brad lhe tocou com o pé por debaixo da mesa.

- Chamam-te a este planeta.

- Estava só a pensar, mais nada.

- E não estavas a ouvir - salientou ele.

Aborrecida, Zoe espetou o garfo num bocado de carne de porco.

- Estava, sim.

A voz dela estava tensa, e o corpo retesado. Brad compreendia o que ela estaria a sentir. No entanto, pensou que conhecia uma maneira segura de fazê-la descontrair-se.

- O Simon parece estar divertidíssimo.

Zoe olhou na direcção dele. Rowena tinha-o colocado ao lado dela e, de vez em quando, entabulavam o que parecia ser uma conversa intensa, quase íntima, enquanto Simon ia debicando a comida que tinha no prato.

"Não vai ser preciso parar no McDonalds", pensou Zoe a sorrir.

- Ele faz amigos facilmente. Mesmo com os mágicos.

- Os mágicos? - repetiu Brad.

- É assim que ele os vê. Ele absorveu esta história toda, e acha que é fixe.

- E é fixe. Não há nada mais fixe para um miúdo do que a batalha entre o Bem e o Mal. Para ti é que é um pouco mais problemático.

Ela espetou outro naco de carne de porco e passou-o de um lado para o outro do prato.

- A Malory e a Dana conseguiram. E eu também vou conseguir.

- Também acho - concordou ele, continuando a comer enquanto ela o fitava de sobrolho franzido. - Então, já encomendaram as novas janelas para a Indulgence?

- Ontem.

Brad acenou com a cabeça como se aquilo fosse novidade para ele. Não imaginou que ela tivesse interesse em saber que dera instruções para ser avisado sempre que ela aparecesse ou fizesse alguma encomenda.

- Parte dos caixilhos vão ter de ser substituídos. Posso passar por lá e dar-te uma ajuda.

- Não é preciso. Eu consigo fazer isso.

- Gosto de trabalhar com madeira sempre que posso - afirmou ele com um sorriso amável e um olhar casual, de amigo para amigo. - Está-me na massa do sangue. E a iluminação? Já decidiram?

"Consegui distraí-la", reparou. Zoe podia não ter ficado entusiasmada por ele ter puxado a conversa, mas pelo menos não estava a pensar na chave naquele momento. E conseguira comer.

Brad estava doido por ela. Ou talvez pura e simplesmente doido. Não era que a rapariga o tivesse encorajado. Tinha sido fria e acutilante desde que a conhecera, há aproximadamente dois meses. Tirando a única vez em que conseguira apanhá-la desprevenida e dar-lhe um beijo.

"Esse interlúdio não teve nada de acutilante", recordou Brad, "e espero que ela tenha ficado tão surpreendida e desconcertada com a experiência como eu."

Mesmo agora, se o permitisse, conseguiria elaborar uma fantasia deliciosa que envolvia pouco mais do que comprimir os lábios contra a base daquele belo e longo pescoço.

Além disso, havia o miúdo. Simon fora o seu grande prémio naquela caixa de bolachas. Divertido, inteligente, interessante, o rapaz era um prazer total. Mesmo que não se tivesse sentido atraído pela mãe dele, Brad não teria deixado de passar algum tempo com o filho.

O problema era que Simon era muito mais cooperante em termos de conviver com ele do que Zoe. Pelo menos, até ao momento. Mas Bradley Charles Vane IV nunca tinha desistido daquilo que queria, baixando os braços.

Na sua perspectiva, havia um certo número de batalhas a travar, e tencionava tomar parte activa em todas elas. Estava ali por ela, e ela ia ter de se habituar à ideia. Ele estava ali para ajudá-la. E também para a conquistar.

As sobrancelhas dela uniram-se, e o que quer que estivera a dizer relacionado com os sistemas de electricidade e iluminação parou.

- Porque é que estás a olhar assim para mim?

- Assim como?

Ela inclinou-se um pouco para ele, afastando-se, reparou Brad, dos ouvidos aguçados do filho.

- Como se estivesses prestes a dar-me uma dentada, em vez de comeres o resto das batatas às rodelas.

Ele debruçou-se para ela, o suficiente para a ver estremecer.

- E Vou dar-te uma dentada, Zoe. Só que não é agora.

-Já tenho demasiado em que pensar, não posso estar a preocupar-me contigo.

- Vais ter de arranjar espaço - afirmou ele, e pousou uma mão em cima da sua antes que ela tivesse oportunidade de a retirar.

- Pensa no seguinte: o Flynn fazia parte da demanda da Malory. O Jordan fez parte da demanda da Dana. Faz as contas, Zoe. Só sobrámos nós.

- Sou bastante boa em matemática - começou ela, libertando a mão, pois o contacto fazia-a sentir-se constrangida. - E, pelas minhas contas, a única pessoa que sobra sou eu.

- Parece-me que em breve saberemos quem é melhor a adicionar e a subtrair.

Brad deixou as coisas nesse ponto e acabou o seu vinho.

De novo na sala, onde encontraram café e triângulos de tarte de maçã suficientemente grossos para fazer os olhos de Simon saírem das órbitas, Malory esfregou a mão nas costas de Zoe, para a reconfortar.

- Estás pronta?

- Tenho de estar, não é verdade?

- Estamos todos contigo. Formamos uma boa equipa.

- A melhor. Só que pensei que estaria preparada. Diverti-me imenso com os preparativos. Não imaginei é que ia ter assim tanto medo.

- Para mim foi mais fácil.

- Como podes dizer isso? - proferiu Zoe, abanando a cabeça, estupefacta. - Entraste nisto sem saber quase nada.

- Exacto. E tu tens tudo o que nós aprendemos e experimentámos nos últimos dois meses às voltas dentro da cabeça - com um sorriso compassivo, Malory apertou a mão de Zoe. - Isso é assustador. E há mais. Quando começámos, não estávamos assim tão envolvidas: umas com as outras, com a Rowena e o Pitte, e com as filhas. Agora, tudo tem muito mais importância do que tinha há dois meses.

Zoe libertou um suspiro nervoso.

- Não me estás a fazer sentir melhor.

- Não era essa a ideia. Transportas um grande fardo às costas, Zoe, e, algumas vezes, vais ter de carregá-lo sozinha, por mais que queiramos tirar-te algum peso de cima.

Malory ergueu os olhos, contente por ver Dana caminhar na sua direcção.

- O que foi? - perguntou Dana.

- Uma pequena conversa antes de começarmos - respondeu Malory, e pegou novamente na mão de Zoe. - O Kane vai tentar fazer-te mal. Vai tentar enganar-te. Na realidade, e pensei muito nisto por ser a última prova, onde se deita tudo a perder ou a ganhar, ele ainda vai estar mais decidido a obstruir o teu caminho.

Dana pegou novamente na mão de Zoe.

- Já estás a sentir-te com mais energia?

- Também pensei muito nisto. Tenho medo dele - confessou Zoe, endireitando os ombros. - Acho que me estão a tentar dizer que devo ter receio. Que, para estar mesmo preparada, devo ter receio.

- É exactamente essa a ideia.

- Então acho que estou preparadíssima. Preciso de falar com a Rowena antes de ela nos levar até à sala do retrato. Quero estipular uma coisa antes de avançarmos para a próxima etapa.

Olhou na direcção de Rowena, e bufou ao vê-la envolvida numa conversa profunda com Brad.

- Porque será que ele está sempre onde eu quero ir?

- Boa pergunta - respondeu Dana, e deu-lhe uma palmadinha nas costas.

Malory esperou que Zoe atravessasse a sala.

- Dana? Também estou assustada.

- Bem, já somos três.

Zoe parou à frente de Rowena e aclarou a garganta.

- Desculpa interromper, Rowena, mas preciso de falar contigo por um instante, antes de passarmos ao que... se segue.

- Claro. Imagino que tenha a ver com o que o Brad e eu estávamos a discutir.

- Não me parece. Tem a ver com o Simon.

- Sim - com um ar convidativo, Rowena deu uma palmadinha na almofada a seu lado. - Exacto. O Bradley tem insistido muito para eu fazer algo de concreto e específico em relação ao Simon.

 

- O Kane não vai tocar no rapaz - havia um tom de aço, frio e inflexível, na voz de Bradley. - Ele não vai usar o rapaz. O Simon tem de sair disto. Isso não é negociável.

- Quer dizer que agora és tu que estabeleces as condições para a Zoe e para o filho?

- Não - respondeu Zoe, muito depressa. - Eu posso falar por mim e pelo Simon. Mesmo assim, obrigada - disse ela, olhando para Brad. - Obrigada por teres pensado no Simon.

- Não estou apenas a pensar nele. Estou a tentar clarificar muito bem as coisas. Tu e o Pitte querem a terceira chave - disse para Rowena. - Querem que a Zoe seja bem sucedida. O Kane quer o seu fracasso. Havia regras, como disseste, em relação a infligir danos aos mortais, feri-los, matá-los. Da última vez ele quebrou essas regras e, se pudesse, teria morto a Dana e o Jordan. Desta vez não há razão para pensar que volte a fazer jogo limpo. Aliás, há todos os motivos para acreditar que o seu jogo ainda vai ser mais sujo.

Os músculos em torno do coração de Zoe pareceram apertar-se, deixando-a sem fôlego.

- Ele não toca no meu rapaz. Tens de prometer. Tens de garantir isso, senão acaba já tudo.

- Novas condições - começou Rowena, erguendo o sobrolho.

- E ultimatos?

- Vamos pôr as coisas deste modo - antes que Zoe tivesse oportunidade de se manifestar, Brad silenciou-a com um olhar penetrante. - Se não fizeres nada para retirar o Simon de cena, se não o protegeres do Kane, ele pode ser usado contra a Zoe, levando-a a fracassar. Tu estás perto, Rowena. Demasiado perto para deixares esse tipo de manipulação interferir no teu caminho.

- Boa jogada, Bradley - afirmou Rowena, e deu-lhe uma palmadinha no joelho. - O Simon tem em ti um campeão formidável. E em ti também - disse ela para Zoe. - Mas isso já foi feito.

- O quê? - perguntou Zoe, olhando para Simon do outro lado da sala, dando a Moe um pouco de tarte à socapa.

- Ele foi colocado sob protecção, a mais forte que conheço. Isso foi feito enquanto ele dormia, na noite em que a Dana

emcontrou a segunda chave. Mãe - disse ela com meiguice, tocando no rosto de Zoe -, não pediria que pusesses o teu filho em risco, nem por causa das filhas de um deus.

- Então ele está em segurança - afirmou ela, cerrando os olhos enquanto sentia a ferroada das lágrimas. - O Kane não pode fazer-lhe mal?

- Ele está tão seguro quanto possível. Para isso, o Kane teria de passar por cima de mim e do Pitte. Prometo-te que um ataque lhe custaria muito caro.

- Mas se conseguisse...

- Nesse caso teria de nos enfrentar primeiro - interrompeu Brad. -A nós os seis... e a um grande cão. O Flynn e eu já falámos nisso. É melhor levares o Moe contigo, e mantê-lo por perto como a Dana fez. Como um sistema de alarme.

- Levar o Moe? Para casa? - e imaginou aquele canzarrão desajeitado na sua pequena casinha. - Esperava que falassem comigo antes de tomarem decisões dessas.

- É uma sugestão, não uma decisão - disse ele, inclinando a cabeça, e, embora o seu tom de voz fosse novamente suave, a expressão do rosto estava tensa. - Trata-se apenas de uma sugestão sensata e razoável. Além disso, um miúdo da idade do Simon devia ter um cão.

- Quando eu achar que o Simon está preparado para ter um cão...

- Ora, ora - reprimindo uma gargalhada, Rowena deu outra palmadinha no joelho de Brad, e no de Zoe. - Não é uma tolice porem-se a discutir quando estão os dois a pensar no melhor para o Simon?

- Não podemos seguir adiante? Estou ansiosa por oficializar isto.

- Está bem. O Simon podia levar o Moe a dar um passeio lá por fora. Estará protegido - garantiu a Zoe. - Estará em segurança.

- Pode ser.

- Vou já tratar disso. A seguir, passaremos à sala do lado.

Zoe deu por si sentada no sofá ao lado de Brad, sem Rowena a servir de elo de ligação entre eles, e cruzou as mãos no colo quando ele pegou na chávena de café.

- Peço desculpa se te pareci ingrata e mal-educada - começou ela. - Não o sou. Não sou ingrata.

- Apenas mal-educada?

- Talvez - saber isso fê-la corar. - Mas não foi de propósito. Não estou habituada a ter ninguém...

- A ajudar-te? - sugeriu ele. - A preocupar-se contigo? com o Simon?

Percebeu um certo azedume na sua voz, mas havia algo simultaneamente descuidado e indiferente que a fez sentir-se pequena. Contrariou a sensação mudando de posição e fitando-o de olhos nos olhos.

- Pois não, não estou habituada. Ninguém me ajudou a criá-lo, nem a alimentá-lo nem a amá-lo. Ninguém me ajudou a dar-lhe um tecto. Fui eu quem fez tudo isso sozinha, e não me saí nada mal.

- Não só não te saíste nada mal - corrigiu ele -, como te saíste extraordinariamente bem. E depois? Achas que isso significa que podes afastar qualquer ajuda?

- Não, não significa. Fazes-me sentir tão confusa.

- Bem, isso já é um princípio - comentou ele, e pegou-lhe na mão, levando-a aos lábios antes que ela tivesse oportunidade de protestar. - Boa sorte.

- Ah. Obrigada - disse Zoe, e levantou-se rapidamente assim que Rowena entrou na sala.

- Se estão todos prontos, gostaríamos de prosseguir a tradição de iniciar a demanda na sala ao lado.

Brad mantinha a atenção fixa em Zoe. Ela estava um pouco pálida mas aguentava-se. Mesmo assim, enquanto caminhavam pelo corredor amplo, reparou que Malory e Dana se aproximaram para se porem uma de cada lado dela.

Tinham-se tornado uma equipa, uma tríade, ou mesmo uma família durante os últimos dois meses. Estava convencido de que,

agora, nada alteraria isso. Precisavam dessa unidade para o que viria a seguir.

O seu coração teve um sobressalto quando ele entrou na sala do lado e olhou para o retrato que a dominava.

As Filhas do Vidro, momentos antes de as suas almas serem roubadas, encontravam-se perto umas das outras, tal como as três mulheres que partilhavam o mesmo rosto dessas semideusas trágicas.

Venora, com os vivos olhos azuis de Malory, estava sentada com uma harpa nas mãos e um sorriso estampado no rosto. Niniane, que tinha os traços fortes e os densos cabelos castanhos de Dana, estava sentada ao lado dela num banco de mármore, e tinha nas mãos uma pena e um pergaminho.

De pé, com uma espada a seu lado e um cachorrinho no braço, Kyna fitava-o. Os seus cabelos eram uma grande cascata de tinta preta, em vez do estilo curto, desportivo e sensual de Zoe. Porém, os olhos, aqueles grandes olhos cor de topázio, eram os mesmos.

Aqueles olhos atraíam-no, como se lhe cravassem ganchos no coração.

As três raparigas irradiavam beleza, alegria e inocência num mundo luxuriante de cor e de luz. No entanto, uma observação mais atenta revelava a sugestão das trevas que se avizinhavam.

Por entre a densa floresta verdejante estava a forma sombria de um homem. E, deslizando em direcção às lajes reluzentes, via-se a figura sinuosa de uma serpente.

No canto, o céu encontrava-se alterado pelo início de uma tempestade de que as raparigas ainda não se tinham apercebido. E os amantes que se beijavam ao fundo estavam demasiado enleados um no outro para pressentir o perigo que corriam as suas protegidas.

Quem olhasse com atenção, porém, veria as três chaves inteligentemente introduzidas no quadro. Uma, disfarçada em forma de pássaro, parecia voar pelo céu azul-celeste. Outra estava escondida por entre as luxuriantes folhas verdes da floresta. E a terceira encontrava-se reflectida no fundo do lago atrás das filhas, que partilhavam o seu último momento de paz e de inocência.

Ele vira o ar delas depois do feitiço. Brancas e imóveis como a morte dentro dos cofres de cristal, pintadas por Rowena.

Brad comprara esse quadro, intitulado Depois do Feitiço, meses antes de ter regressado ao Vale e conhecido aquelas mulheres. Sentira-se compelido a adquiri-lo, compreendia agora, tal como se apaixonara, ou se deixara fascinar ou obcecar - como desejava sabê-lo! - pelo rosto de Zoe.

- Duas chaves já foram encontradas - começou Rowena. Duas fechaduras estão abertas. Agora já só resta uma - afirmou, caminhando até debaixo do retrato enquanto falava, com o fogo a crepitar em chamas douradas e vermelhas por detrás dela.

- Vocês concordaram em encetar esta demanda por curiosidade, e por se encontrarem num ponto em que alguns aspectos da vossa vida eram instáveis e insatisfatórios. Também - acrescentou -, porque foram pagas. No entanto, prosseguiram a demanda por serem fortes e verdadeiras. Ao longo de três milénios, ninguém chegou tão longe.

- Vocês aprenderam o poder da arte - continuou Pitte, aproximando-se de Rowena. - E o poder da verdade. As primeiras duas jornadas levam-vos à terceira.

- Vocês têm-se umas às outras - disse ela para as mulheres. E têm os vossos homens. Em conjunto, formam uma cadeia. Não podem permitir que ele quebre essa cadeia - disse Rowena, avançando e falando para Zoe como se esta se encontrasse sozinha na sala. - Agora chegou a tua vez. Desde sempre, foste a escolhida para a conclusão.

- Eu? - perguntou Zoe, sentindo o pânico na garganta. - Se isso é verdade, porque tirámos à sorte? com a Mal e a Dana?

- A escolha deve sempre existir. O destino é a porta, mas tu podes optar por entrar ou virar-lhe costas. Vais entrar?

Zoe olhou para o retrato, e assentiu.

- Então vou dar-te o teu mapa, a tua pista para a chave, e rezar para que ela te oriente bem - proferiu Rowena, aproximando-se

e pegando num pergaminho. - "A beleza e a verdade" - começou a ler - "não são nada sem a coragem para as manter. Mas um par de mãos pode apertar com demasiada força, e o que é precioso escorre por entre os dedos. Perda e sofrimento, mágoa e vontade marcam o árduo caminho pela floresta. Ao longo da viagem há sangue, a morte da inocência e dos fantasmas do que podia ter sido.

Sempre que o caminho se bifurca, é a fé que escolhe o caminho ou a dúvida que o bloqueia. Será desespero ou alegria? Poderá haver realização sem o risco de perder? Tratar-se-á de um final ou de um princípio? O caminho seguirá até à luz ou regressará às trevas?

Há alguém que se encontra em ambos os lados, de mãos estendidas. Aceitarás uma, a outra, ou cerrarás as mãos em punhos para defender o que já é teu até que se desfaça em pó?

O medo anda à solta, e a sua seta atinge o coração, a mente e as entranhas. Sem cuidados, as feridas infectam, e cicatrizes há muito ignoradas transformam-se em escudos que impedem os olhos de ver o que mais precisa de ser visto.

Onde se encontra a deusa, de espada na mão, disposta a travar cada batalha a seu tempo? Disposta, também, a pousar a espada quando o tempo de paz chegar. Encontra-a, conhece o seu poder, a sua fé e o seu coração audacioso. Porque, quando finalmente olhares para ela, terás a chave para a libertar. E irás encontrá-la num caminho onde nenhuma porta te será fechada."

- Caramba! - exclamou Zoe, comprimindo a barriga com a mão. - Posso ficar com o papel, não posso? Não vou conseguir lembrar-me de tudo isso.

- Claro que podes.

- Óptimo - comentou ela, fazendo um esforço enorme para manter um tom de voz calmo e sereno. - Pareceu-me um pouco...

- Violento - afirmou Dana.

- Sim, isso - concordou Zoe, e sentiu-se considerávelmente melhor quando a mão de Dana pousou no seu ombro. No entanto,

tem comparação com as outras, parecia que a minha pista era composta por um monte de perguntas. Rowena estendeu-lhe o pergaminho.

- Encontra as respostas - limitou-se a dizer.

Quando ficaram de novo a sós, Pitte pôs-se ao lado de Rowena a analisar o retrato.

- Ele não vai tardar a persegui-la - afirmou Rowena. - Pois não?

- Não. Teve mais tempo para a observar, para aprender os seus pontos fracos, para perceber os seus receios e necessidades. E vai usá-los contra ela.

- O rapaz está a salvo. Façamos o que fizermos, por mais que nos custe, temos de o manter em segurança. É um menino lindo, Pitte.

Ao ouvir o sofrimento, a nostalgia na voz dela, ele chegou-a para si.

- Ele estará em segurança. Custe o que custar - afirmou, e comprimiu os lábios contra a sua nuca. - Ele não vai tocar na criança.

Rowena assentiu e, virando a cabeça, olhou para o fogo.

- Será que ela vai confiar tanto como eu confio em ti? Será capaz disso, com tudo o que já lhe aconteceu, e tudo o que ainda vai ter de arriscar?

- Tudo se reduz à coragem de uma mulher - disse ele, e levantou-lhe a cabeça com a ponta dos dedos, deixando o polegar contornar a sua linha do queixo. - Se ela tiver nem que seja um vislumbre da tua, é certo que vamos ganhar isto.

- Mas não te teve a ti. Não teve ninguém. Elas tocaram-me o coração, Pitte. Nunca esperei sentir isto... - confessou Rowena, levando os dedos ao peito. - Laços. Mas, mais do que todas, é esta mãe corajosa que me comove.

- Então confia nela e no seu exército. Elas são... inteligentes e cheias de recursos. Para mortais.

com isso, acabou por fazê-la rir, e voltou a animá-la.

- Três mil anos entre eles, e mesmo assim continuas a achá-los uma curiosidade.

-Talvez. Mas, ao contrário do Kane, aprendi a respeitá-las... e a nunca subestimar uma mulher. Vem - disse ele, tomando-a nos braços. - Vamos para a cama.

Muito depois de deitar Simon, Zoe encontrou dezenas de coisas para fazer pela casa. Muito depois de Simon parar de falar com o cão em segredo, depois de Zoe ouvir Moe trepar para cima da cama e escutar o riso abafado de Simon, continuou a deambular por ali, à procura de alguma coisa que lhe ocupasse as mãos e a mente.

A demanda começava ao nascer do Sol, e receava que ia ter de ficar acordada para presenciar o seu início, e para assistir ao romper do dia.

"Não é propriamente a minha primeira noite sem dormir", pensou. Passara inúmeras noites assim. Noites em que Simon estivera agitado ou doente. Noites em que se tinha virado e revirado na cama, preocupada com as contas. Noites que ocupara com uma dezena de tarefas porque o dia pura e simplesmente não chegava para as concluir.

Até tinha havido vezes em que não conseguira dormir por se sentir demasiado feliz para fechar os olhos. Na sua primeira noite naquela casa, recordou, passara horas a andar por ali, a tocar nas paredes, a olhar pelas janelas e a fazer planos de tudo o que queria fazer para que ela se transformasse num lar para Simon.

Como aquela era outra grande ocasião, não valia a pena queixar-se por causa de meia dúzia de horas de sono perdidas.

À meia-noite, ainda se encontrava demasiado inquieta para repousar, e decidiu dar a si mesma o prazer de um longo duche quente, que não seria agora interrompido por um rapazinho a chamar a sua atenção.

Pendurou a sua melhor camisa de noite, vermelho-viva, no cabide atrás da porta, e acendeu uma vela dentro dum    recipiente de vidro, feita por si, para conferir aroma ao vapor.

"Os pequenos rituais", acreditava, "contribuem para ajudar a conciliar o sono."

Consolou-se com o vibrar da água e com a sensação sedosa do gel de duche de flor de pessegueiro que estava a pensar usar no seu salão. "Vou deixar a pista andar às voltas na cabeça", decidiu, "para tentar primeiro encará-la como um todo. E segui-la por partes. Alguma peça há-de encaixar, e seguirei a busca até... até à peça seguinte", reflectiu.

Passo a passo, até começar a ver a imagem. Um quadro para Malory, um livro para Dana. O que restaria para ela? "Champô e creme para o rosto?", pensou, com uma gargalhada pouco convincente. Isso era o tipo de coisa que ela conhecia. Isso, e as coisas que tinham importância no mundo de um rapaz. "Sei fazer coisas", pensou. "Sei construir e transformar."

"Sou boa com as mãos", recordou-se, e fê-las girar dentro de água enquanto as observava. Porém, o que tinha isso a ver com caminhos numa floresta, ou uma deusa com uma espada?

"Uma viagem", pensou enquanto desligava a água. Só podia ser esse tipo de símbolo, já que ela nunca tinha ido a lado nenhum. E não parecia que isso fosse mudar tão cedo.

Talvez tivesse a ver com a sua vinda para o Vale, ou com o facto de ter começado o seu negócio com Malory e Dana. "Ou então", reflectiu enquanto se enxugava com a toalha, "talvez seja apenas a vida."

A vida dela? As vidas das filhas? "Tenho de descobrir a resposta a essa questão", decidiu enquanto espalhava na pele um creme com aroma a pêssego. Não havia nada assim tão interessante na sua vida, mas nada dizia que tinha de o ser. Lembrou-se de que Dana retirara palavras específicas da sua pista e trabalhara com elas. Pensou que podia fazer o mesmo.

A deusa com a espada... era bastante fácil. Kyna tinha a espada, e Kyna era ela. No entanto, isso não explicava como havia de conhecê-la para encontrar a chave que iria libertá-la.

Zoe abanou a cabeça e virou-se, olhando de relance para o espelho embaciado por cima do lavatório.

Tinha os cabelos longos, uma faixa negra sobre os ombros que fazia o seu rosto parecer muito, mas muito pálido. O seu olhar era directo, intenso e dourado. Os vapores quentes do duche pairavam entre Zoe e o espelho, reluzindo como uma cortina quando ela ergueu a mão para alcançar, com os dedos a tremer, um reflexo que não era o seu.

Por alguns instantes, parecia que os seus dedos iam passar pela cortina, através do vidro, e tocar em carne.

A seguir deu por si de pé, sozinha, numa casa de banho cheia de vapor de água, com os dedos encostados ao espelho manchado. E a olhar para o seu próprio rosto.

"Já estou a imaginar coisas", pensou, e deixou cair a mão. Projecção, era como aquilo se chamava. Tentar ver-se a si mesma na pele da jovem deusa, suficientemente cansada e exausta para pensar que podia fazê-lo. "Outro ponto de vista a ter em conta", decidiu. De manhã, quando a sua mente estivesse mais alerta.

Meteu-se na cama com os seus dossiers, e folheou as listas de fornecedores. Tencionava contar com eles para gerir o cabeleireiro, o spa. A própria casa Indulgence.

Divertiu-se a considerar algumas ideias novas, a tirar alguns apontamentos, e tentou concentrar-se.

Porém, a chave e a pista estavam sempre a vir-lhe à mente.

Uma floresta. Havia imensas florestas nas terras altas da Pensilvânia. Tratar-se-ia de uma floresta a sério, com árvores, ou de uma metáfora?

Ela não era boa com metáforas.

Sangue, o que significaria o sangue? Referir-se-ia ao sangue de Jordan quando ele se ferira? Ou ao sangue de outra pessoa qualquer? Ou ao seu?

Era certo que fizera uma boa quantidade de cortes e arranhadelas ao longo dos anos. Uma vez cortara o dedo, quando tinha, o quê, onze anos? Estava a cortar tomate para as sanduíches. O irmão e a irmã tinham estado a discutir, e um deles chocara contra ela.

A faca fizera um corte longitudinal no polegar, da ponta até à articulação, e o sangue jorrara como uma fonte. "Ainda tenho uma cicatriz", pensou, virando o polegar para detectar uma linha ténue.

Apesar de tudo, a cicatriz não era dura, e também não era nenhum escudo. Portanto não devia ser isso.

Sofrimento, perda, sangue e desespero. Céus, porque teria a sua pista de ser tão depressiva?

"Vou ter de resolver a questão o melhor possível", decretou para si mesma, e voltou a pegar nos seus apontamentos. Pestanejou quando a sua visão começou a ficar desfocada, e adormeceu com a luz acesa.

Sonhou com o seu próprio sangue, a gotejar constantemente para um chão de linóleo castanho enquanto algumas crianças gritavam à volta dela.

Capítulo 3

Acordou mais tarde do que devia. Zoe não se lembrava de quando teria sido a última vez em que isso tinha acontecido. Certamente não fora na década anterior. Em consequência disso, eram quase dez horas quando chegou, com o rapaz e o cão a reboque, à Indulgence.

Estacionou na rua, pois o caminho de acesso já estava cheio. O automóvel de Flynn, o de Jordan e... um dos de Brad. Que ela soubesse, tinha dois, provavelmente mais.

Conseguiu apanhar a trela de Moe antes de ele saltar para fora do carro e, com um jeito maternal para o malabarismo, agarrou na carteira e na geleira, e controlou o cão sem tirar os olhos do filho enquanto ia carregando tudo.

- Agarra bem este cão - pediu a Simon enquanto lhe passava a trela. - Obriga-o a obedecer. Temos de saber o que o Flynn tenciona fazer com ele hoje.

- Ele pode ficar comigo. Podemos brincar no quintal.

- Logo se vê. Vai andando, mas fica num lugar onde eu te veja de dentro de casa até decidir isso.

Os dois afastaram-se dali enquanto ela se dirigia para a porta principal.

Ela adorava olhar para aquela grande casa antiga, cheia de potencialidades. Já tinham deixado nela a sua marca, pintando o pórtico de um azul-vivo e festivo e dispondo os vasos de flores de cada lado da escadaria principal.

Assim que pudesse, ia comprar alguns vasos velhos na feira de artigos em segunda mão. A seguir ia limpá-los e pintá-los. Talvez também procurasse um barril de uísque, para plantas sazonais.

 

Olhou para a janela por cima da porta principal. Malory contratara um artista que trabalhava em vitrais para criar um painel para aquele espaço utilizando o logotipo delas. Aquilo era o tipo de coisa que ia tornar a casa um lugar único.

Pousou a geleira e abriu a porta.

Ouviu música. Não estava propriamente aos altos berros, mas quase. Por entre a música ouviu ruídos de martelos, serras e vozes. O agradável som do trabalho a progredir.

Ficou a escutar durante alguns instantes, enquanto olhava para a escadaria que dividia o piso inferior em duas partes iguais. A livraria de Dana de um lado, e a galeria de Malory do outro. "com o meu salão de cabeleireiro por cima", pensou. A cozinha comum nas traseiras, e o pequeno pátio onde um dia, esperava, instalariam mesas onde os clientes se sentariam a beber refrescos quando estivesse bom tempo.

Embora ainda faltassem semanas até a Indulgence abrir, aquilo já era para Zoe a concretização de um sonho.

- Ei! Onde está o resto da equipa?

Zoe voltou à realidade, e ergueu os olhos para Dana, que entrava no pequeno átrio.

- Ah! Lá fora. Desculpa o atraso.

-Já te cortámos no salário. Ou vamos cortar, assim que arranjarmos um relógio de ponto. Ora, tira esse ar culpado, Zoe. Ainda ninguém tem hora de entrada, especialmente a um sábado.

- Queria ter chegado há uma hora e meia - explicou ela, encolhendo os ombros enquanto despia o casaco -, mas fiquei a dormir até tarde. Só consegui acordar perto das oito.

- Oito! - exclamou Dana, horrorizada. - Sua grande preguiçosa!

- Não sei como é que o Simon conseguiu manter aquele cão sossegado, ou vice-versa, mas quando acordei estavam no quintal. Depois de conseguir torná-los apresentáveis, dar-lhes o pequeno-almoço e vestir-me, já estava atrasadíssima. Depois parei em casa do Flynn, a pensar deixar lá o Moe, mas não estava ninguém, o que foi uma grande alegria para o Simon.

Zoe soltou um suspiro.

 

- Dana, eu ainda vou acabar por lhe arranjar um cão. Eu sei que vou.

Viram-se as covinhas de Dana nas suas bochechas quando ela sorriu.

- Isso é só conversa.

- É mesmo verdade. Não sabia que hoje vinha toda a gente até aqui.

- Lembrámo-nos de dar uma ajuda por ser sábado.

- Isso é bom - pronta para se entregar ao trabalho, Zoe pôs o seu cinto de ferramentas. - O que é que estão a fazer?

- Eu ia dar a segunda demão de verniz no meu soalho, mas o Jordan acha que não tenho jeito. Por isso está ele a dá-la, e eu estou a pintar a cozinha, já que é opinião unânime que eu só sou boa a pintar.

- És uma excelente pintora - comentou Zoe, diplomaticamente.

- Hum. A Malory e o Flynn estavam a dar o verniz no lado dela, mas ela acha que ele não sabe, portanto mandaram-no ir lá para cima trabalhar com o Brad.

- Lá para cima? No meu espaço? O que é que o Brad está a fazer lá em cima no meu espaço?

- Acho que estava... - começou Dana, mas depois resolveu poupar o fôlego, visto Zoe ter entretanto disparado escada acima, para ver com os seus próprios olhos.

As paredes do cabeleireiro já tinham sido pintadas por ela. Eram de um rosa-profundo a puxar para o púrpura. "Uma tonalidade forte", pensou ela, "uma cor feminina, embora não tão ameninada que um homem se sinta repelido por ela."

Em contrapartida, para o lambrim e as bancadas que começara já a construir, optaria por um verde-forte, e utilizaria essas mesmas cores, em tonalidades mais suaves, nas áreas de tratamento.

O soalho já tinha sido afagado e envernizado - uma tarefa que ela resolvera executar, protegendo-o depois com panos velhos.

Tinha planos para alguns armários com portas de vidro, e já escolhera o tecido para fazer as capas para um sofá em segunda mão e para algumas cadeiras que reservara.

 

Tinha escolhido a iluminação, as mesas de tratamento, e mesmo a cor das toalhas que iria usar. Tudo no seu salão de cabeleireiro ia ter o seu toque, reflectir a sua visão e ser criado pelas suas próprias mãos.

Ali estava Bradley Charles Vane IV ocupado a serrar a tábua para uma das suas bancadas.

- O que estás a fazer?

Ninguém a ouviu, como seria de esperar, com a serra eléctrica de Brad a zunir, o agrafador de Flynn a agrafar, e o raio da música aos altos berros.

- O que é que estás a fazer?

Era como se ela não estivesse ali. bom, tinha de resolver o assunto naquele preciso momento.

Caminhou até ao lugar onde a sua sombra incidiu sobre a prancha e o escantilhão ao longo do qual Brad estava a cortar. Este olhou para cima e fez um pequeno aceno com a cabeça, para dizer que ela lhe estava a tapar a luz.

Zoe manteve-se firme.

- Quero saber o que estás a fazer.

- Espera aí - gritou-lhe ele, e acabou de passar a lâmina pela tábua. Desligou a serra eléctrica, e tirou os óculos de protecção.

- O teu laminado já chegou.

- Eu quero... o meu laminado? - A excitação da notícia fê-la seguir de imediato na direcção por ele indicada. E ali estava ele, naquele maravilhoso verde-forte. - É perfeito. Eu sabia que ia ser perfeito. Só era para chegar na próxima semana.

- Chegou mais cedo - Brad apressara-se a cortá-lo. - Devemos ter algumas pranchas prontas ainda hoje.

- Não estou à espera de que tu...

- Olá, Zo - cumprimentou Flynn, pousando o agrafador e sorrindo para ela. - O que te parece?

- Parece-me que foram muito simpáticos em terem vindo. Estão a perder o vosso sábado. Mas eu posso fazer isto, se quiserem... fazer outra coisa qualquer.

- Já demos um bom avanço - afirmou ele, olhando para trás dela. - Onde está o canzarrão e o rapazinho?

- Estão no jardim. Não sabia o que fazer com eles.

- Têm montes de espaço para correr. Vou lá vê-los - disse Flynn, pondo-se de pé. - Querem café quando eu voltar?

- Só se não fores tu a fazê-lo - disse Brad.

- Ingrato - ripostou Flynn, piscando o olho a Zoe, e deixou-os a sós.

- Não quero que tu...

- Fizeste um belo desenho - interrompeu Brad. - Para as bancadas. Muito simples. É fácil seguir os teus planos; fica-se com uma boa noção do que tens em mente.

Ela cruzou os braços.

- Não esperava ter mais ninguém a segui-los.

- Trabalhas bem - disse ele, e parou um pouco enquanto ela o fitava. - Planos cuidados, boas opções, gosto pelo design. Há algum motivo para teres de fazer tudo sozinha?

- Não. Só não devias sentir-te obrigado a ajudar, mais nada. Ele ergueu uma sobrancelha.

- Ingrata.

Vencida, ela soltou uma gargalhada.

- Talvez seja antes por conhecer o tipo de trabalho de que sou capaz, mas não saber se tu és bom - afirmou ela, caminhando em torno da base da bancada que ele estava a acabar para ela. Acho que te safas.

- O meu avô ia ficar muito orgulhoso de ouvir isso.

com a madeira entre os dois, ela teve facilidade em lhe dirigir um breve sorriso.

- Quero ser eu a cortar o laminado. Só quero poder...

- Olhar para ele depois de estar pronto, olhar para ele um ano depois de estar pronto, e dizer: "Fui eu quem fez isto."

- Sim. É exactamente isso. Logo vi que ias perceber.

Ele mudou de posição, assentou o peso em cima de uma anca e inclinou a cabeça.

- Sabes porque voltei para o Vale?

- Acho que não. Não me parece.

- Pergunta-me um dia destes. Queres pegar naquele agrafador? Vamos dar cabo disto.

Ela tinha de reconhecer que trabalhavam bem os dois em equipa e, ao contrário do que ela imaginara, ele não a tratava como se ela não soubesse lidar com as ferramentas. Pelo contrário, partia do princípio que sabia trabalhar com elas.

Era verdade que ele tinha tendência para ser mandão em algumas coisas. Se ela começava a pegar em alguma coisa que ele achava demasiado pesada, vociferava-lhe para pousá-la no chão. E insistiu em ser ele a ir lá ao andar de baixo buscar a geleira.

Porém, ela nem se importou, entusiasmada como estava a espalhar cola no laminado da primeira bancada.

Embora as janelas estivessem abertas para arejar, os vapores eram demasiado fortes.

- Ainda bem que estamos a fazer bancadas pequenas comentou Brad. - Se tivéssemos de preparar grandes áreas disto sem uma ventoinha, ficávamos zonzos antes de chegarmos ao fim.

- Entusiasmei-me um bocado quando estava a refazer as minhas bancadas da cozinha há dois anos atrás. Fiquei alegre como se tivesse apanhado uma bebedeira de sábado à noite, e tive de ir para a rua deitar-me na relva.

Ele observou o rosto dela, e reparou que, embora estivesse um pouco corada, os seus olhos estavam claros.

- Se começares a sentir o mesmo, avisa.

- Estou bem - disse ela, passando uma ponta do dedo pela cola. - Aqui já está quase.

- Que pena. Não me importava de te ver alegre. Ela virou-se para ele enquanto se endireitava.

- Aqui há bastante ar fresco.

- Mas estás um bocado corada - advertiu ele, fazendo-lhe uma carícia na cara, passando-lhe o dedo pelo rosto. - Tens uma pele incrível.

- É, hum, como nos anúncios - replicou ela e, embora não soubesse se tinha corado antes, sentia agora o calor começar a subir. - Eu uso muitos dos produtos que vou trazer para cá. Há um serum magnífico. É uma autêntica libertação do tempo.

- A sério? - disse ele, e os seus lábios curvaram-se um pouco enquanto ele fazia descer o dedo pelo pescoço dela. - Parece resultar.

- Não quero usar nada em que não acredite.

- O que é que fazes com a boca?

Perante aquela pergunta, a boca dela abriu-se.

- O quê?

- O que é que usas? Tens os lábios macios - comentou ele, esfregando neles a almofada do polegar. - Macios. Tentadores.

- Há um bálsamo que... não faças isso. -O quê?

- Não me beijes. Não admito confusões desse género. Além disso, temos de trabalhar.

- Tens razão. Mas o trabalho tem de ser interrompido em algum momento. A cola já deve ter secado. Estás preparada?

Ela assentiu. com ou sem ar fresco, sentia-se agora um pouco zonza. E só podia pensar que era ele o responsável. Imaginou que ele sabia disso, que sabia até que ponto aqueles olhares longos e profundos e aqueles toques íntimos e casuais afectavam uma mulher.

Por isso, ia ter de se defender deles antes que eles a metessem em sarilhos.

Em conjunto, levantaram o laminado. Tratava-se de um processo exigente; era preciso trabalho de equipa e precisão para criar uma superfície lisa. Quando a cola tocava na outra superfície coberta de cola não havia retrocesso.

Depois de pousarem a peça, com as arestas macias e as pinças presas de poucos em poucos centímetros para a manter no sítio enquanto secava, Zoe recuou um pouco.

Sim, era verdade, ela tivera razão em arredondar as arestas para lhe dar aquela curva subtil. Simples, prática, mas com uma fluidez que lhe dava um toque de classe.

Os clientes podiam não reparar nos pormenores, mas não deixariam de dar pelo efeito.

- Ficou com bom ar - afirmou Brad a seu lado. - Foi inteligente termos feito os buracos para os fios desses aparelhómetros que vocês usam.

- Chamam-se secadores e ferros de frisar.

- Exacto. Assim, os fios não ficam a sair de todos os lados e a emaranharem-se uns nos outros. Isso dá-vos um ar limpo.

- Quero que o salão tenha um ar elegante mas descontraído.

- O que é que tencionas fazer às pessoas nas outras salas?

- Ah, rituais secretos - respondeu ela, fazendo uma onda com a mão que o fez sorrir. - E quando ganhar o suficiente para investir a sério, mando instalar um duche sueco e uma banheira de hidromassagem na casa de banho. Transformo-a numa espécie de espaço de terapia pela água. Mas ainda falta muito para isso. Para já, vou começar a construir a segunda bancada.

"Ela trabalha como uma troiana", pensou Brad. "Não se limita a saber o que quer e como consegui-lo, nem a ter vontade de suar para o obter."

Subjacente a todos os seus actos, estava a crença de que tinha de os fazer.

Só parava para ir ver o filho, para verificar se não tinha fome e se estava em segurança.

Quando prepararam o laminado para a segunda bancada, já os outros estavam a acabar o dia.

Malory subiu até ao andar de cima e pôs as mãos nas ancas.

- Ena! Sempre que aqui entro há alguma coisa nova. Zoe, isto está a ficar óptimo. As cores são simplesmente fabulosas. Isto é a bancada, não é? - perguntou, aproximando-se para admirar a que já estava concluída. - Nem posso crer que tenhas sido tu a construí-la.

- Tive alguma ajuda - replicou, enrolando os ombros tensos enquanto se aproximava de Malory. - Está mesmo fabuloso, não achas? Sei que podia ter comprado qualquer coisa mais ou menos

pelo mesmo preço, mas não teria ficado exactamente como eu queria. Como vão as coisas lá por baixo?

- Os soalhos estão prontos, e a cozinha pintada - como se tivesse acabado de se lembrar de que ainda estava a usá-lo, Malory retirou o lenço azul que lhe protegia os cabelos. - Demos a primeira demão nos armários, e os electrodomésticos foram limpos de alto a baixo.

- Fiquei completamente envolvida com este trabalho. Devia ter-vos dado uma ajuda na cozinha, a ti e à Dana.

- Tivemos bastante ajuda, obrigada - disse ela, penteando os seus caracóis louro-escuros com os dedos de maneira a dar-lhes mais volume. - Vamos todos comer frango de churrasco. Estão prontos para arrumar as coisas?

- Por acaso, só queria acabar isto. Manda o Simon até cá acima, que nós aparecemos um pouco mais tarde.

- Não queres que o leve comigo? Ele já está lá fora a brincar com o Flynn e o Moe.

- Ah. Bem. Não...

- Ele fica bem, Zoe. Aparece quando tiveres acabado. Vou tentar guardar-te uma perna de frango. E para ti também, Brad.

- Ah, não precisas de ficar - quando Zoe se virou, Malory piscou o olho a Brad e voltou a descer as escadas.

- Queres acabar esta bancada.

- Quero, mas não queria empatar-te.

- Quando me empatares, eu aviso. Pronta para colar isto? Para poupar tempo, Zoe decidiu não discutir.

A segunda bancada ficou acabada e montada, e deixaram-na a secar ao lado da primeira enquanto recolhiam e arrumavam as ferramentas. Deixaram as janelas um pouco abertas.

Antes que ela tivesse tempo, ele pegou na geleira.

- Basta por hoje.

- Agradeço imenso a ajuda. Se não te importas, deixa a arca no pórtico, enquanto eu dou uma vista de olhos ao soalho e à cozinha, e vejo se fica tudo fechado quando sair.

- Eu espero. Também gostava de ver o trabalho.

Zoe começou a descer as escadas, mas depois parou e virou-se para trás.

- Estás a tomar conta de mim? É isso? É que eu sei tomar conta de mim própria.

Brad mudou a arca de mão.

- Sim, estou a tomar conta de ti. Embora não tenha dúvida de que és capaz de tomar conta de ti, do teu filho, dos teus amigos, ou mesmo de perfeitos estranhos, se for caso disso.

- Se eu sou assim tão capaz, não preciso que tomes conta de mim. Porque é que fazes isso?

- Porque gosto. Além de gostar de olhar para ti, ponto final, porque és uma mulher bonita e eu sinto-me muito atraído por ti. Como não dás sinais de ser vazia ou estúpida, tenho a certeza de que notas que me sinto atraído por ti. No entanto, se tiveres alguma dúvida, podes continuar a descer o raio das escadas para eu poder pousar a geleira e demonstrar-te.

- Limitei-me a fazer-te uma pergunta - replicou ela. - Não pedi nenhuma demonstração de nada.

Desceu os últimos degraus, e acabara de virar para a cozinha quando ouviu o baque da arca frigorífica a bater no chão.

A rapariga não teve tempo de reagir quando os seus pés se levantaram do chão, voltando depois a assentar nele quando foi virada e encostada contra a parede.

Zoe viu a fúria nos olhos dele, fazendo-os ficar quentes e quase negros. E provocando nela uma comichão igualmente acirrada na garganta, simultaneamente de medo e de raiva, a par da excitação suficiente para confundir essas sensações.

- Toma conta de ti - disse ele, em tom de desafio. - Depois logo passamos à demonstração.

Ela fitou-o nos olhos, e aguardou que ele a libertasse um pouco mais. A seguir, pôs-lhe um joelho entre as pernas, com uma rapidez assustadora, e parou a um milímetro de provocar sérios danos.

Ele contraiu-se, e isso deu-lhe imensa satisfação.

 

- Está bem. Em primeiro lugar, deixa que te diga que tens um controlo excepcional - afirmou ele, sem se mexer. Ambos compreenderam que bastaria um golpe rápido para o fazer cair de joelhos. - E em segundo lugar, queria agradecer-te, sinceramente, por o teres utilizado nesta situação.

- Não sou nenhuma pacóvia indefesa.

- Nunca te vi como indefesa nem como pacóvia - de repente, a situação e a sua posição pareceram-lhe ridiculamente divertidas. Começou a rir-se, e a seguir desatou às gargalhadas até baixar pura e simplesmente a testa contra a dela. - Não sei como consegues chatear-me, mas a verdade é que consegues.

Ele aliviou a força da mão nos ombros dela, e depois libertou-a para prender as mãos na parede, de cada lado da cabeça dela.

- Importas-te de baixar esse joelho? Pelo menos um ou dois palmos. Faz-me ficar nervoso.

- É essa a ideia - disse ela, embora tivesse acedido. - Não sei qual é a piada.

- Nem eu. Céus, Zoe, de uma maneira ou de outra, dás-me a volta à cabeça. Diz-me uma coisa. Não posso achar-te bonita? Não posso sentir-me atraído por ti?

- Como queres que responda a isso?

- É um enigma, não achas? - O olhar dele percorreu-lhe o rosto até à boca. - Tenta ver as coisas do meu ponto de vista.

- Afasta-te um bocado - como lhe faltava o ar, ela tamborilou os dedos contra o peito dele. - Não consigo falar contigo assim.

- Está bem. É só um segundo - pediu ele, e roçou os seus lábios nos dela numa espécie de promessa sussurrada que lhe provocou um formigueiro na barriga.

Depois, Brad recuou.

- Seria fácil permitir-te isso. - Como não sabia se conseguiria manter-se de pé, ela deixou-se ficar encostada à parede. - Permitir-me isso a mim própria. Tenho necessidades, necessidades normais, como qualquer pessoa. E não estou com um homem há mais de um ano... quase dois.

- Até podias ter estado ontem. O que me interessa é o momento presente.

- Bem, mas não estive. Há alguns motivos para isso.

- O Simon.

Zoe assentiu.

- É ele o maior motivo. Não vou deixar entrar na minha vida qualquer homem que não deixasse entrar na vida dele.

- Sabes que eu não seria capaz de lhe fazer mal. - A fúria começou novamente a voltar. - É um insulto para mim partires do princípio de que o faria.

- Eu sei que não lhe farias mal, por isso escusas de ficar assim tão assanhado. Mas eu também faço parte desse motivo, e tenho o direito de ter cuidado comigo. Os teus intentos não são propriamente pegares-me na mão ou dares-me beijinhos meigos de manhã, Bradley.

-Já era um princípio.

- Mas não é esse o objectivo final, e ambos sabemos disso. Não vejo motivo para começarmos quando não sei se posso acabar. Não sei se me faria bem ir para a cama contigo. E, se eu fosse, não sei se isso e o facto de me desejares teria a ver com o desejo puro e simples, ou antes com tudo aquilo que se passa à nossa volta.

- Julgas que me sinto atraído por ti por causa da chave?

- E se estiveres? - perguntou ela, erguendo as mãos com as palmas viradas para cima. - Como ficarias se te sentisses usado desse modo? Bradley, a questão é que tu e eu não estaríamos aqui se não fosse a chave. Não temos a mesma origem. E não estou a falar do Vale.

-Não.

- Não temos nada em comum, a não ser a chave.

- A chave - concordou ele. - Amigos que são importantes para os dois, o lugar onde se encontram as minhas raízes e onde tu estabeleceste as tuas. A necessidade de construirmos alguma coisa para nós próprios. Além disso, há ainda um rapazinho. Que por acaso te pertence, mas que me adoptou. Contigo ou sem ti, ele ter-me-ia adoptado na mesma. Compreendes isso?

Ela não conseguiu deixar de dizer que sim com a cabeça.

- E há mais, mas vamos deixar de lado a química sexual. Se somares tudo, parece-me que temos bastantes coisas em comum.

- A maior parte das vezes não sei o que te hei-de dizer, nem como.

- Se calhar, não devias pensar tanto no assunto - sugeriu ele, estendendo a mão. - Vamos lá ver a cozinha. Se não saímos depressa daqui para fora, quando chegarmos só encontramos ossos.

Ela sentia-se grata por ele ter abandonado o assunto. Não conseguia separar os seus pensamentos dos seus sentimentos, pôr as suas preocupações e as suas necessidades em áreas separadas. Pelo menos naquele momento.

Também se sentia grata por o tempo passado em casa de Flynn ter girado à volta do frango e de temas descontraídos, e não da chave.

Ainda não tinha nada para dizer, e havia demasiadas informações e perguntas a mais a circular na sua mente para serem alinhadas numa conversa inteligente.

Iam precisar de se reunir em breve, todos eles, mas primeiro ela queria ter algum tempo para preparar tudo.

Tanto Malory como Dana haviam elaborado rapidamente as suas teorias. Embora essas teorias tivessem sido desenvolvidas, apuradas e reformuladas ao longo das quatro semanas, não deixavam de constituir uma base.

"Só que eu não tenho nada", pensou Zoe.

Portanto, ia passar a noite a reflectir na pista, em todos os seus apontamentos, e a recapitular, a par e passo, as duas demandas anteriores. Algures por ali devia encontrar respostas.

Quando Simon e Moe acalmaram e a casa respirou finalmente uma tranquilidade abençoada, Zoe sentou-se à mesa da cozinha. Colocara apontamentos, dossiers e livros dispostos por pilhas. Decidiu que já tinha tomado café suficiente, por isso resolveu fazer chá.

Enquanto bebia a primeira chávena, releu a pista e anotou numa página em branco do seu bloco de apontamentos o que lhe pareciam ser as palavras mais importantes.

"Beleza, verdade, coragem

Perda, sofrimento

Floresta

Caminho

Viagem

Sangue e morte Fantasmas

Medo

Deusa

Audácia"

Era provável que lhe tivessem faltado algumas, mas a lista já era um ponto de partida. Beleza para Malory, verdade para Dana. Coragem para ela.

Perda e sofrimento. Dela, ou referir-se-ia às raparigas? Se interpretasse a demanda pessoalmente, qual seria a sua perda, qual seria o sofrimento? "Recentemente perdi o emprego", pensou Zoe, e anotou a ideia. Só que isso acabara por constituir uma oportunidade.

Florestas? Havia muitas, embora algumas fossem mais importantes para ela do que outras. Havia uma floresta no Pico do Guerreiro. Havia florestas na sua terra natal, onde crescera. Havia florestas ao longo do rio que corria ao pé da casa de Brad. No entanto, caso se tratasse de uma floresta simbólica, podia implicar o facto de não ser vista por causa das árvores. Não ver o âmbito geral de uma coisa por estar demasiado preocupada com alguns pormenores.

Ela fazia isso às vezes, era verdade. Mas havia tantos pormenores e, tirando ela, quem se iria preocupar com eles?

Zoe tinha uma reunião de pais e professores em breve. Simon precisava de sapatos e de um novo casaco de Inverno. A máquina de lavar roupa estava a começar a fazer barulho, e ela ainda não conseguira limpar as sarjetas.

Precisava de comprar as toalhas do cabeleireiro e ia ter de optar por uma máquina de lavar e secar para lá. O que significava que a máquina de casa ia ter de continuar a fazer barulho durante mais algum tempo.

Pousou a cabeça no punho e fechou os olhos durante alguns instantes.

Havia de conseguir fazer tudo isso; era essa a sua tarefa. Só que, um dia daqueles, ia passar uma tarde estendida à sombra, só com um livro e um jarro de limonada bem gelada.

A rede abanava suavemente como um berço, e o livro estava abandonado sobre a sua barriga, ainda na mesma página. Sentia na boca o gosto a limonada amarga.

Tinha os olhos fechados por detrás dos óculos escuros, e sentia a brisa a soprar-lhe suavemente no rosto.

Não sabia qual teria sido a última vez em que se sentira tão descontraída. A mente e o corpo em repouso total. Sem nada para fazer a não ser ficar recolhida em paz e sossego.

Deixou-se levar por aquela sensação com um suspiro de satisfação total.

E deu por si de pé na roulotte, a suar no meio do calor desagradável. "É como viver dentro de uma lata", pensou enquanto varria os cabelos cortados para um canto.

Ouviu o irmão e a irmã a discutir, e as suas vozes entravam pelas janelas minúsculas. Altas, tensas e zangadas. Ali toda a gente parecia estar sempre zangada.

Aquilo fazia a sua cabeça latejar horrivelmente.

Avançou para a porta, escancarou-a e gritou-lhes: "Estejam calados! Por amor de Deus, vejam se se calam durante cinco minutos e me deixam em paz."

E deu por si a vaguear por uma floresta, com a espessa neve invernal por debaixo dos pés. O vento uivava por entre os pinheiros, varrendo os ramos contra o céu cor de pedra.

Sentia-se fria, perdida e cheia de medo.

Quando começou a cambalear, inclinada contra o temporal, passou um braço por debaixo da enorme barriga para proteger o bebé.

Ele era tão pesado, e ela sentia-se tão cansada...

Sentia vontade de parar, de descansar. Qual seria o objectivo, qual seria a finalidade? Nunca encontraria a saída.

A dor atingia-lhe a barriga, dobrando-a com o choque. Sentiu um jorro por entre as pernas, e olhou horrorizada para o sangue que caía sobre a neve.

Aterrorizada, abriu a boca para gritar, e deparou consigo novamente na rede, à sombra, novamente a saborear limonada.

"Escolhe."

Endireitou-se subitamente na sua mesa da cozinha, a tremer, enquanto Moe ladrava para o ar a seu lado.

Capítulo 4

foi mais complicado do que Zoe previra convencer Simon a passar o dia com um dos amigos da escola, em vez de ir com ela trabalhar na Indulgence.

Ele gostava de andar com eles. Queria brincar com Moe. Além de que também podia ajudar. E não ia atrapalhar nada.

Por fim, ela acabou por cair no estratagema parental mais eficaz de todos. A chantagem. Pelo caminho podiam parar na loja de vídeo e alugar dois jogos e um filme.

Quando se apercebeu de que Moe podia ir com ele e ficar no quintal de Chuck, a brincar com o jovem labrador do amigo, Simon não ficou apenas satisfeito, mas satisfeitíssimo.

Isso ajudou a aliviar uma grande parte da culpa, e da preocupação, e deu a Zoe a oportunidade de explorar a sua primeira teoria.

Se a viagem sugerida na pista fosse sua, e a floresta uma espécie de símbolo da vida, talvez se referisse à sua vida em Pleasant Valley. Aos caminhos que ela percorrera no sítio que transformara para aí viver.

Ela tinha sido arrastada para ali, para aquela pequena e bela cidade no vale, e percebera que aquele era o seu lugar assim que ali passara, aproximadamente quatro anos antes.

Tinha tido de trabalhar, de labutar, de se sacrificar para ter alegria e realização pessoal. Tivera de escolher os seus caminhos, os seus rumos, as suas metas.

Estava agora a retomar o contacto com eles, enquanto conduzia pelas ruas que conhecia tão bem. "Ruas sossegadas", pensou, naquele domingo de manhã. Percorreu os bairros tal como fizera

vários anos antes, quando estava decidida a encontrar uma casa para si e para Simon. Tinha começado por fazer isso, recordou-se, para ter tempo de ver até que ponto as casas a impressionavam, e de que modo as pessoas a faziam sentir-se enquanto as via a caminhar ou a conduzir.

Era Primavera, fim de Primavera. Zoe admirara os jardins, os quintais, a sensação de solidez do lugar.

Tinha visto a placa a dizer "Vende-se" no relvado maltratado da pequena casa castanha. E, com uma espécie de clique de reconhecimento instantâneo, percebera que era aquilo. Parou à beira do passeio, tal como fizera antes, e observou o que era seu ao mesmo tempo que tentava vê-lo tal como era antes.

As casas vizinhas eram igualmente pequenas, mas cuidadas. Havia belas árvores frondosas. Vira uma rapariga a andar de bicicleta pelo passeio, e um adolescente ao fundo do quarteirão, a lavar o carro com a música aos altos berros.

Recordou a emoção que borbulhara nela ao anotar o nome e o número da agência imobiliária que estava na placa.

E fora para lá que se dirigira a seguir. Por isso, naquele momento resolveu fazer o mesmo. Embora o preço pedido fosse demasiado elevado, isso não a desencorajara. Sabia que devia parecer uma pacóvia, com os seus sapatos e roupas vulgares. Provavelmente até a falar, com o seu sotaque rural da Virgínia.

"Contudo, não sou pacóvia nenhuma", pensou Zoe com satisfação.

Estacionou, tal como antes, e saiu do carro.

Tinha marcado um dia para ir ver a casa, cujo preço viria logo a regatear arduamente, e a seguir descera aquela rua da baixa em direcção ao salão de cabeleireiro, para ver se precisavam de alguém.

A imobiliária estava fechada ao domingo, tal como o cabeleireiro, mas ela passou por ambos os lugares, imaginando-se tal como antes. "Cheia de nervos e de entusiasmo, mas com um ar indiferente", recordou. "Tinha conseguido o emprego, talvez até mais depressa, e mais facilmente do que devia", pensava agora.

Mais uma daquelas coisas que não podiam deixar de acontecer? Ou teria sido apenas uma questão de seguir pelo caminho certo na altura certa?

"Deixei neste salão de cabeleireiro muito mais do que três anos", reflectiu Zoe, parada em frente à montra com as mãos nas ancas. Tinha feito ali um bom trabalho. Melhor do que o da sacana da patroa, a Carly. O que constituíra parte do problema.

Muitos dos clientes tinham começado a solicitar especificamente os serviços de Zoe, e as suas gorjetas eram consideráveis. Carly não gostara nada disso; não lhe agradara que uma das suas funcionárias recebesse todas as atenções na sua própria casa. Por isso, começara a dificultar-lhe as coisas: cortando as horas de Zoe aqui, ou sobrecarregando-a mais ali. Queixando-se de que ela conversava de mais com as clientes, ou que não falava o suficiente. Tudo o que pudesse servir para a desmoralizar ou afectar o seu orgulho.

Zoe tolerara sem ripostar. "Será que fiz bem?", pensou. Precisava do emprego, da clientela fixa e do ordenado, das gorjetas. Caso se tivesse defendido, teria sido despedida muito antes.

Mesmo assim, era desmoralizador perceber o trabalho que tivera para receber um salário tão miserável.

"Não!" Respirou fundo e afastou a raiva e a vergonha. Não, ela tinha aguentado aquilo para manter a sua casa, o seu filho, a sua vida. Não se tratava de uma batalha que pudesse ter ganho. Afinal de contas, acabara por ser despedida na mesma. No entanto, isso acontecera na altura certa, quando se encontrava num dos tais pontos de viragem.

E não teria sido aquela raiva, aquela vergonha, aquela sensação de desespero ou mesmo de pânico ao sair do salão de Carly que a tinham empurrado para a Indulgence? Será que tinha começado a criar o seu próprio negócio se continuasse a receber um salário, se tivesse as contas pagas e a casa segura?

"Não", reconheceu. Teria sonhado com isso mas não o teria posto em prática. Não teria tido coragem para isso. Precisara de levar aquele chuto no rabo para correr o risco de seguir por um 'novo caminho.

Deu meia-volta e olhou para a cidade, que conhecia agora como se fosse a sua própria casa. Para aquele lado ficava a mercearia, virando por aquela rua ia dar-se aos correios, e seguindo para a esquerda, depois do pequeno parque à direita, ia-se para a escola de Simon.

Ao cimo do quarteirão encontrava-se a cafetaria da Rua Principal e os batidos de leite que Simon adorava. Mesmo à saída da cidade e subindo a estrada da montanha seguia-se para o Pico do Guerreiro.

Podia, inclusivamente, orientar-se a partir dali com uma venda nos olhos, até ao apartamento de Dana, ou até à casa onde Flynn e Malory viviam. Até à biblioteca, à tabacaria, à drogaria ou à pizaria.

Podia seguir o rio até à casa de Bradley.

"Diferentes caminhos", reflectiu, enquanto voltava para o carro. Diferentes opções, diferentes destinos. Mas faziam parte de um todo. Todo esse que fazia agora parte dela.

Se a chave estava ali, algures no que considerava ser o seu lugar, havia de encontrá-la.

Entrou no automóvel e percorreu um caminho sinuoso, o caminho mais longo, até à Indulgence.

Zoe não disse nada aos amigos durante toda a manhã. Primeiro sentia necessidade de trabalhar, não apenas física mas também mentalmente, desenvolver a sua teoria e decifrar com exactidão o que lhe acontecera na noite anterior.

Só podia falar nisso quando tivesse as ideias todas muito ordenadas dentro da cabeça. E, reconheceu, havia uma dinâmica completamente diferente quando os homens estavam por perto. Havia coisas que podia dizer, e uma maneira de dizê-las quando se encontrava apenas com Malory e com Dana, que não era exactamente a mesma quando havia homens por perto. Mesmo os homens em quem aprendera a confiar.

Deixou Brad ocupado com os trabalhos de carpintaria, e passou a manhã de domingo a colocar massa nos azulejos da casa de

banho. Era o tipo de trabalho que lhe deixava a mente livre para se dedicar ao que lhe tinha acontecido, e ao que isso poderia significar.

Seria estranho o facto de a sua experiência não ter sido semelhante ao que acontecera com Malory e com Dana nos seus primeiros encontros com Kane? Ou será que isso tinha alguma importância?

"Escolhe", dissera-lhe ele. Até aí, pelo menos, o padrão era o mesmo. Cada uma delas tinha tido de optar. E, aparentemente, o risco aumentava de chave para chave.

Ele não lhe tinha propriamente feito mal. Tinha havido aquele momento no meio do nevão, porém, Zoe já passara por pior do que isso. Porque lhe teria ele mostrado três cenas diferentes, mal lhe dando tempo para se instalar numa ilusão antes de a atirar para a seguinte?

A primeira era uma pequena fantasia inocente, nada que tivesse o peso de alterar a sua vida. A segunda, mais entediante e familiar, e a terceira...

"A terceira", pensou, enquanto espalhava a massa no chão, "foi assustadora." Era para a assustar. "Estás perdida, não tens ninguém, estás grávida."

"Já passei por isso", reflectiu.

A seguir a dor, o sangue. "Como um aborto", percebeu. Perder o bebé. No entanto, ela não perdera o bebé; ele estava protegido.

E se Kane não soubesse? Estupefacta, baixou-se de cócoras. E se ele não soubesse que Simon estava protegido? Não começaria por ameaçar tocar na coisa mais preciosa da sua vida, na única coisa pela qual ela seria capaz de dar a vida?

- Zoe.

A esponja que ela usava para espalhar a massa caiu em cima dos mosaicos com um som seco.

- Desculpa. Não te queria assustar - disse Brad, permanecendo na soleira da porta, com um ombro encostado à ombreira, como estava já há alguns minutos, a observá-la.

Havia muita coisa às voltas dentro daquela cabeça, ele sabia-o. Vira tudo aquilo passar no rosto dela.

- Não, está tudo bem - replicou ela, e voltou ao trabalho. Estou quase a acabar isto.

- O resto da equipa está quase a fazer um intervalo para o almoço.

- Está bem. Eu desço assim que acabar. Vou deixar a massa a secar.

Ele aguardou que ela continuasse o trabalho até ficar mais perto, até ela chegar mesmo à saída da porta. Depois acocorou-se a seu lado.

- Vais contar-me o que aconteceu?

A mão dela hesitou, e a seguir retomou o ritmo.

- O que queres dizer com isso?

-Já passei tempo suficiente a olhar para ti para saber quando se passa alguma coisa. Conta-me o que está a acontecer desde ontem, Zoe.

- Eu conto - ela pousou a esponja no balde que colocara mesmo à saída da divisão. - Mas não é só a ti.

- Ele fez-te mal? - perguntou Brad, e agarrou-lhe a mão, usando a mão livre para lhe virar o rosto.

- Não. Larga-me. Tenho as mãos cobertas de massa.

- Mas ele fez qualquer coisa. - O seu tom de voz era gélido, tal como quando controlava a sua raiva. - Porque é que não disseste nada?

- Precisava de tempo para pensar no assunto, reflectir um pouco nisto, mais nada. Vai ser mais fácil para mim contar isto a toda a gente ao mesmo tempo. - A mão dele continuava a envolver-lhe o rosto. E o rosto dele estava muito próximo. - Também seria mais fácil para mim se não me tocasses assim neste momento.

- Neste momento? - indagou ele, voltando a dirigir os dedos para a base do pescoço. - Ou nunca mais?

Ela sentiu vontade de se encostar àquela mão e ronronar.

- Vamos começar por agora.

Ela começou a pôr-se de pé, mas ele entretanto já se tinha levantado, com a mão dela ainda na sua, e puxou-a para cima.

- Diz-me só uma coisa... O Simon está bem?

Ela conseguia combater a atracção. Conseguia até combater a excitação sexual. Porém, ia ter uma grande dificuldade em combater a preocupação profunda e evidente que Brad demonstrava pelo seu filho.

- Sim. Está bem. Ele queria vir hoje. Gosta de estar contigo... com todos - acrescentou rapidamente. - Mas não queria falar nisto à frente dele. Pelo menos para já.

- Então vamos descer e conversar sobre o assunto, e eu depois passo por lá para ir vê-lo.

- Não precisas de ir...

- Eu também gosto de estar com ele. Convosco - acrescentou, passando a mão ao de leve pelo pescoço e pelo ombro dela. Podias voltar a convidar-me para jantar.

- Bem, eu...

- Amanhã. Que tal amanhã?

- Amanhã? Vamos comer esparguete.

- Óptimo. Eu levo vinho - considerando obviamente o assunto arrumado, ele empurrou-a pela porta. - É melhor irmos lá a baixo lavar as mãos.

Zoe não sabia bem quando tinha perdido o pé, ou por que motivo tivera tanta dificuldade em recusar. Ele tinha-a apanhado, apercebeu-se Zoe enquanto se lavava para ir almoçar. Disso não havia dúvidas; todavia, fizera-o com tanto jeito que a situação ficara resolvida antes que ela se desse conta.

Além disso, o jantar era só no dia seguinte. E ela já tinha coisas suficientes com que se preocupar para se arreliar com um prato de esparguete.

A cozinha podia muito bem ser uma obra em progressão, mas não deixava de ser o melhor local de reunião. Uma placa de contraplacado em cima de dois cavaletes de serrador servia de mesa, e havia baldes e escadotes a fazer de cadeiras.

Dana passou-lhe um balde.

- Isso é manteiga de amendoim e geleia? - perguntou, olhando para a sanduíche que Zoe abrira. - Manteiga de amendoim crocante e geleia de uva?

- É - respondeu Zoe, começando a levar à boca uma das metades triangulares, quando viu Dana praticamente a salivar. Queres?

- Há muito que não como uma boa sanduíche de manteiga de amendoim com geleia. Troco metade da tua por metade da minha de presunto e queijo suíço em pão de centeio.

Fizeram a troca, e a seguir deu uma dentadinha para provar.

- Excelente - comentou enquanto mastigava. - Ninguém faz tão bem estas sanduíches como uma mãe. Então, vais contar-nos o que se passa, ou queres comer primeiro?

Zoe levantou os olhos, e a seguir passou-os pela divisão. Estava tudo a olhar para ela. À espera.

- Tenho algum letreiro na cara?

- É como se tivesses - respondeu Malory, mergulhando uma colher no iogurte. - Estavas com um ar preocupado esta manhã, quando chegaste, mas parecia que não querias dar a entender isso. Depois foste logo para cima. Além disso, não disseste nada em relação ao aspecto da cozinha, que já está pintada.

- Está excelente. Eu ia dizer-vos isso. - Nunca se sentindo à vontade por ser o centro das atenções, Zoe partiu ao meio a sua metade da sanduíche. - E queria esperar que estivessem todos a fazer uma pausa para vos contar o que aconteceu ontem à noite.

- Agora estamos a fazer uma pausa - lembrou Dana, esfregando a mão na coxa de Zoe. - O que se passa?

Ela demorou algum tempo a fazer o seu relato, de maneira a poder explicar tudo, sem deixar escapar nenhum pormenor.

- Foi diferente do que aconteceu convosco. com qualquer dos que já tiveram alguma experiência com o Kane. Até foi diferente do que nos aconteceu aqui em casa durante o primeiro mês.

- Percebeste que era ele? - perguntou-lhe Jordan.

- Esse é que é o problema. Nunca fiquei tempo suficiente em nenhum dos três... lugares - imaginava poder designá-los assim -

para sentir isso. E acho que não consegui sair desses lugares como alguns de vocês fizeram. Não havia tempo para isso. Foi mais como estar num sítio qualquer, a seguir fechar os olhos por um segundo, e passar a estar noutro cenário qualquer.

- Vamos pensar num lugar de cada sua vez - declarou Flynn, que entretanto sacara de um bloco de apontamentos. - Em cima de uma rede - afirmou, e bateu com os dedos na página. - Estavas no teu quintal?

- Não. Não tenho rede. Nunca me deitei numa rede à sombra com um jarro de limonada e um livro. Quem é que tem tempo para isso? Seria bom. Eu estava a pensar que não iria ter muito espaço para respirar durante as próximas semanas, e a seguir, pimba, ali estou eu deitada numa rede, a beber limonada.

Ela franziu o sobrolho, sem reparar no olhar atento de Brad.

- Não sei onde estava. Acho que o mais importante não era isso, mas sim o que imaginei. A rede podia estar em qualquer lugar; ela significava apenas que não tinha nada que fazer durante toda a tarde. Ou então, o facto de me apetecer não ter nada que fazer.

- Parece-me que tens razão - concordou Malory. - Ele cria fantasias e deixa-nos vivê-las, experimentá-las. A minha, ser uma artista, casada com o Flynn; a casa ideal, a vida ideal - prosseguiu, envolvendo a mesa com um gesto. - A fantasia da Dana, estar sozinha numa ilha tropical, sem qualquer preocupação. E para ti, uma tarde de lazer.

- Uma fraca fantasia, em comparação com as vossas - comentou Zoe com um sorriso, aliviada por a sua conclusão parecer válida.

- Mas ele arrancou-te de lá, em vez de te dar tempo de desfrutares dela - salientou Jordan. - Talvez não quisesse dar-te a hipótese de a encarares como falsa. Deu-te só uma pequena prova, e passou adiante. Uma nova estratégia.

- Acho que sim, em parte. Mas, bom, vejam a segunda parte: aquilo era a roulotte da minha mãe, e Deus sabe o quanto lá chorei. Reconheci o aspecto, o cheiro, os meus irmãos a discutir

 

lá fora. Só não sei que idade tinha. Seria tal como sou hoje? Seria miúda? Algures entre essa altura e o presente? Pensativa, Zoe abanou a cabeça.

- O que isso significa é que não fiquei com uma sensação de mim mesma, mas apenas da impulsividade e do cansaço de tudo aquilo. Senti-me apenas como se me limitasse a fazer aquilo, a limpar a casa e a tratar das crianças, e senti que estava farta. Pode dizer-se que me senti particularmente cansada e irritadiça. Acho que isso também é mais ou menos simbólico.

- Metida numa armadilha - ajudou Brad. - Sempre a fazer o que é preciso, sempre para os outros, e sem nunca ver onde isso acaba.

- Sim. A minha mãe fazia tudo o que podia, e precisava de mim para ajudar. Mas uma pessoa acaba por se sentir presa numa armadilha. Sente que, faça o que fizer, as coisas nunca irão melhorar.

- Por isso, tanto podemos deitar-nos numa rede a gozar a vida, como cansar-nos a fazer as mesmas coisas vezes sem conta - comentou Dana, enrugando os lábios enquanto pensava. - Mas não existem só essas duas alternativas. As coisas não são assim tão simples. Tu já provaste isso a ti própria.

- Algumas pessoas podem olhar para a minha vida e pensar que estou simplesmente a viver uma rotina diferente. Não é que eu sinta isso, mas é possível que dê essa impressão. E depois há a terceira parte.

 

- Ele quis assustar-te - explicou Malory.

- Pois foi, e, bolas, conseguiu mesmo. Estava frio, e eu estava sozinha. Aquilo não era uma daquelas neves maravilhosas do País das Maravilhas. Era uma neve perversa e maléfica, capaz de matar. E eu sentia-me tão cansada, com o bebé tão pesado dentro da barriga. Só me apetecia deitar-me em qualquer lado a descansar, mas sabia que não podia. Se o fizesse, morreria e, se morresse, o bebé também morreria.

Inconscientemente, levou a mão à barriga, como que para proteger o ser que lá vivera.

- Depois vieram as contracções. Percebi logo o que era, uma pessoa lembra-se. Mas aquelas eram piores; não constituíam um progresso, como o trabalho de parto. Aquilo era um fim, um fim com aquele sangue todo a cair na neve.

- Ele queria ameaçar-te através do Simon - disse Flynn, e o seu rosto endureceu. - Isso não vai acontecer. Não vamos permitir.

- Acho que, em parte, é isso. Tentar assustar-me, usando o Simon. E acho que esse foi um dos motivos pelos quais ele me arrancou dali obrigando-me a optar. Digo-vos, assim que regressei e vi o Moe a rosnar, levantei-me e fui disparada para o quarto do Simon.

E, a tremer como varas verdes, Zoe pôs-se a recordar.

- Mas ele estava todo estendido como de costume, com uma perna a cair para fora da cama e os cobertores todos emaranhados um no outro. Juro-vos, aquele rapaz nem consegue ser equilibrado a dormir.

- Ele usou o Simon como símbolo - sugeriu Brad, servindo-se de café; como ela ainda não se tinha servido, ele estendeu-lhe uma chávena.

O olhar dela encontrou-se com o dele enquanto ela acenava com a cabeça e o medo vibrava na base da sua garganta.

- Também foi isso que me pareceu.

- Um símbolo de quê? - inquiriu Dana. - Da vida dela?

- Sim, da vida dela - retorquiu Brad. - E da alma dela. Uma escolha. Conforto, tédio, ou perder tudo o que é. Ele desafiou-a.

- Pois desafiou. Mas acho... será que ele não sabe que o Simon está em segurança? Se calhar não consegue perceber que ele está protegido e que não lhe serve de nada tentar ameaçar-me desse modo.

- És capaz de ter razão. Mas - prosseguiu Brad -, mas eu diria que não tardará a saber disso, e então tentará usar qualquer outra coisa contra ti.

- Desde que não seja o meu filho. Seja como for, o que aconteceu fez-me pensar mais na pista. Fiquei chateada - afirmou ela, com uma pequena gargalhada. - Por isso, passei mais tempo a

 

tentar descobrir. Tive a ideia de que o Vale talvez fosse semelhante à minha floresta. As diferentes coisas que eu fiz ou escolhi são como os caminhos.

- Nada mau - comentou Dana.

- Isso dava pano para mangas. Tirei uma hora esta manhã e andei por aí de automóvel, a auscultar a memória. A tentar ver as coisas como as vi pela primeira vez e a perceber de que modo se alteraram para mim.

- Ou de que maneira as alteraste - sugeriu Brad.

- Sim - contente, ela dirigiu-lhe um dos seus raros sorrisos. Não sei se estou a ir na direcção certa, mas estou a reunir lugares e, hum, acontecimentos que me parecem importantes para mim. Se os reunir dentro da minha cabeça, talvez algum deles se destaque. Se começar a seguir no caminho certo, acho que o Kane não vai ficar satisfeito. E aí vou perceber.

Era-lhe difícil imaginar-se numa batalha cerrada com alguém, e muito menos com um feiticeiro. Porém, não estava disposta a desistir ao primeiro golpe. "Se há algo que sei fazer é defender-me", pensou Zoe.

Podia muito bem não conseguir encontrar a chave, mas nunca por ter deixado de a procurar.

Passou a noite de domingo a vasculhar apontamentos, a passar a vista pelos apontamentos que tinham recolhido sobre os mitos celtas, e a navegar pela Internet no portátil que Flynn lhe emprestara.

Embora não soubesse se aprendera algo de novo, o exercício ajudou-a a reunir as informações que já conhecia.

A chave, onde quer que se encontrasse, teria a ver com ela. Teria alguma relação com a sua vida ou com o que ela queria da vida. E afinal de contas, acabaria por conduzi-la a uma escolha. Embora os amigos, um ou todos eles, pudessem ter alguma relação com ela, Zoe seria a única pessoa capaz de fazer essa escolha.

"Afinal, o que pretendo?", perguntou Zoe a si própria enquanto se preparava para dormir. Uma tarde deitada numa rede? Às vezes, era tão simples quanto isso. Saber que fugira pela porta daquela roulotte e seguira o seu caminho? Disso não havia dúvidas. E que encontrara o seu rumo no meio daquela floresta aterrorizadora, e conseguira para o seu filho não apenas a vida, mas uma boa vida.

Ela precisava de saber essas coisas, e de saber que continuaria a construir essa vida para Simon, e para si mesma. Precisava que a Indulgence fosse um êxito. E isso, em parte, por orgulho.

A mãe sempre dissera que ela era demasiado orgulhosa.

Talvez tivesse sido, e talvez esse orgulho lhe tivesse dificultado mais as coisas. Mas também a tinha ajudado a passar pelos maus momentos.

Zoe não tinha conseguido tudo aquilo com que sonhara, porém aquilo que tinha servia-lhe perfeitamente.

Apagou a luz. Embora sentisse alguma dor pelo facto de não ter ninguém, ali no escuro, a quem pudesse recorrer, sentia também a satisfação, ou mesmo o orgulho, de saber que podia sempre contar consigo.

Ela estava a trabalhar no piso superior da Indulgence, no dia seguinte, a aparafusar as bancadas, quando ouviu gritos no andar de baixo. Gritos de excitação, reparou de imediato, e não de aflição. Por isso, concluiu a bancada em que estava a trabalhar antes de descer para ver qual era a causa de tanto alarido.

Seguindo as vozes, foi dar à secção de Dana, e largou igualmente um grito ao ver a estante de livros encostada a uma das paredes e dois caixotes enormes no meio da sala.

- Elas chegaram! As tuas estantes chegaram. Oh, têm óptimo aspecto. Tiveste razão em escolhê-las. Ligam mesmo bem com as tuas cores.

- Ligam, não ligam? Tenho o projecto que fiz, aquele que alterei seis dúzias de vezes. Mas não sei se não devia trocar o sector de livros infantis pelo de não-ficção.

- Porque não abrimos o caixote seguinte, colocamos os livros onde planeaste, e depois logo se vê? - sugeriu Malory, estendendo o seu x-acto.

O homem que fazia a entrega da mercadoria transportou o caixote seguinte.

- Minha senhora, onde quer que ponha este?

- Oh, meu Deus - foi a única coisa que Dana conseguiu dizer.

- Deixe-o aí - disse-lhe Zoe. - Depois logo vemos. Quantos arranjaste? - perguntou ela a Dana.

- Muitos. Talvez demasiados, mas queria ter a certeza de conseguir arrumar tudo como tinha imaginado. Só que agora... Credo, tenho o coração a bater tanto. Será de emoção? Será de terror? Diz-me tu.

- É de excitação - respondeu Malory, toda animada, enquanto abria outro caixote. - Anda, vamos também arrumar este. Vamos arrumá-los todos, e depois vais ver a maravilha.

- Isto é real - murmurou Dana quando trouxeram mais um caixote. - É mesmo real. Vou deixar de ter apenas umas salas vazias.

- Prateleiras, livros, mesas, cadeiras - afirmou Zoe, rasgando o cartão. - Dentro de poucas semanas estaremos aqui sentadas a tomar a nossa primeira chávena de chá.

- Pois é - controlando a emoção, Dana ajudou-as a colocar mais um balcão. - E depois vamos ver todas as coisas bonitas da galeria da Malory.

- E acabamos com uma visita ao salão da Zoe - disse Malory, recuando. - Reparem no que já fizemos. Já viram o que aqui está?

Zoe olhou para o caixote seguinte.

- Neste momento, ainda nem consigo perceber o que vai sair daqui. Prepara o x-acto, Mal. Temos trabalho a fazer.

Continuavam a trazer mais estantes quando apareceu o segundo camião de mercadorias.

- É da HomeMakers - disse Malory, observando-os pela janela.

- Esperamos alguma entrega da HomeMakers para hoje?

- Temos algumas coisas encomendadas - disse-lhe Zoe. - Não imaginei que já estivesse alguma coisa pronta. Vou lá ver.

Dirigiu-se para a porta principal e foi ter com o condutor ao pórtico.

- É aqui a Indulgence? - perguntou-lhe ele.

Ouvir outra pessoa dizer o nome fê-la sentir-se muito bem.

- É, sim.

- Tenho umas janelas no camião - comunicou ele, entregando-lhe a factura para verificar. - Tenho aqui uma lista das que vamos substituir. Se estiver de acordo, começamos já. Podemos montá-las todas hoje.

- Montar? Nós não encomendámos a instalação, só as janelas.

- A instalação está incluída. Tenho aqui uma nota - afirmou, tacteando dentro do bolso. - Do sr. Vane para uma senhorita McCourt.

- Eu sou a senhorita McCourt- disse ela, pegando no envelope de sobrolho franzido e abrindo-o. Lá dentro havia apenas uma folha de papel de carta, com uma única linha:

"Não discutas."

Ela abriu a boca, voltou a fechá-la e a seguir olhou para o condutor. Entretanto, viu outros dois homens a saírem do camião para se encostarem ao capô.

- O sr. Vane disse para a senhora lhe telefonar se houvesse algum problema em relação a isto. Quer que comecemos já ou prefere que aguardemos?

- Não. Não, podem começar já. Obrigada.

Zoe voltou para dentro, esfregando a parte de trás do pescoço enquanto via Dana e Malory montarem outra bancada.

- Chegaram as janelas para substituir.

- Óptimo. Se calhar, devíamos deixar isto para depois - sugeriu Dana.

- Temos uma equipa de montagem para as instalar - prosseguiu Zoe. - O Bradley... a HomeMakers... incluiu a instalação.

- O Brad é mesmo um querido - comentou Malory.

- Dá sempre jeito conhecer o dono - afirmou Dana, recuando um passo e abanando a cabeça. - Não, vamos endireitar isto.

Desconcertada, Zoe afastou com o pé um bocado de cartão.

- Não acham que devíamos pagar pela instalação?

- Aceita, Zoe - disse Dana, um pouco ofegante, enquanto fazia força para colocar a estante no lugar. - A cavalo dado não se olha o dente - prosseguiu, olhando para trás e acrescentando, com uma gargalhada -, mas claro está que este cavalo em particular preferia que tu não só lhe visses os dentes como também lhe desses uns beijinhos.

- Ele vem jantar comigo hoje.

- Excelente. Dá-lhe um grande e molhado.

- Tenho medo. Malory pousou o x-acto.

- Do Brad?

- Sim. Dele, de mim - explicou, esfregando o punho entre os seios, como se sentisse alguma dor. - Do que vai acontecer.

- Oh, minha querida.

- Não sei o que fazer, nem o que pensar. Uma coisa é uma pessoa envolver-se só pelo gozo, pela excitação. Mas eu não estou à procura de gozo nem de excitação. Pelo menos deste tipo.

- E achas que ele está?

- Não sei. Aliás, claro que está. É homem. Não o recrimino por isso. E acho que ele é capaz de ter entrado na onda do romance. Deve achar que devemos aliar-nos para matar o dragão. Mas ainda tenho de pensar no que vai acontecer depois disso.

- Ele não é negligente em relação às pessoas, se é isso que te preocupa - proferiu Dana, muito séria, abanando a cabeça. Conheço-o quase desde sempre. Ele é um bom homem, Zoe.

- Também acho que sim. E vejo que é. Mas não é o meu homem, e não é provável que venha a ser. De qualquer modo, se continuar nesta onda vai acabar por me fazer ceder. E receio que, se isso acontecer, vá começar a desejar uma coisa que não posso ter.

- Não me parece que exista alguma coisa que não possas ter disse-lhe Malory. - Se não fosses tu não tínhamos conseguido esta casa.

- Isso é uma tolice. Lá por eu ter encontrado a casa...

- Não é só a casa, Zoe. A ideia, a visão, a fé - impaciente, Malory pousou a mão no ombro de Zoe e abanou-o ao de leve.

- Foste tu quem começou isto. Por isso, acho que quando tu imaginas o que queres verdadeiramente, também imaginas a maneira de o obter.

Para manter as mãos ocupadas, Zoe pegou no x-acto e começou a abrir o caixote seguinte.

- Alguma vez te apaixonaste, a sério, antes do Flynn?

- Não. Senti desejo, tive paixões, algumas bastante pesadas. Mas nunca amei ninguém como amo o Flynn.

Zoe acenou com a cabeça.

- E para ti sempre foi o Jordan, Dana.

- Sim, quer eu quisesse quer não.

- Eu já me apaixonei - respondeu ela, falando em voz baixa enquanto trabalhava. - Amei o pai do Simon. Amei-o com tudo o que tinha. Algumas pessoas talvez julguem que não temos grande coisa aos dezasseis anos, mas eu tinha tanto amor para dar. Dei-lhe todo o meu amor. Não pensei, não hesitei. Limitei-me a dar-lho.

Ela afastou o cartão e deixou-o cair.

- Conheci outros homens desde essa altura. Alguns homens bons, e outros que revelaram não ser assim tão bons. No entanto, nenhum deles me chegou a tocar como aquele rapaz, quando eu tinha dezasseis anos. Eu desejei-o, Mal, quase mais do que desejava a própria vida.

- Ele não ficou contigo - retorquiu ela.

- Pois não. Ele amou-me, acredito que sim, mas não o suficiente para ficar comigo. Não o suficiente para optar por estar comigo, nem sequer para reconhecer o que tínhamos em conjunto. Limitou-se a ir-se embora e voltou para a vida dele, enquanto a minha ficou feita em pedaços.

Para descarregar alguma dessa raiva tão antiga, fez a lâmina zunir através do cartão.

- Ele ficou noivo há poucos meses. A minha irmã enviou-me o recorte do jornal. Tem um grande casamento planeado para a Primavera. Fiquei doida quando li. Fiquei doida, porque ele planeia fazer um grande casamento todo elegante na Primavera e nunca pôs a vista em cima do filho.

- Ele é que perde - afirmou Malory.

- Sim, isso é verdade. Ele é que perde. Mas, mesmo assim, eu amei-o, e desejei-o. Não pude tê-lo, e isso ia dando cabo de mim

- com um suspiro, Zoe pousou a cabeça na beira da bancada.

- Não vou voltar a querer aquilo que não posso ter. E tenho medo do Bradley, porque ele foi o único homem, em dez anos, que me faz lembrar, só um bocadinho, do que era aos dezasseis.

Capítulo 5

O importante a ter em mente é que ela já era uma mulher adulta, e as mulheres adultas muitas vezes convidavam os homens para uma refeição sem se desfazerem em pedaços ou sem se apaixonarem.

Aquilo era apenas uma pequena alteração na sua rotina das segundas-feiras.

Implicava ir buscar um bom pão e ingredientes frescos para salada, no caminho para casa. E preparar mais molho. Tinha de pôr Simon a fazer os trabalhos de casa mais cedo que de costume. E isso era uma luta, apesar do suborno que era o seu grande amigo Brad ir jantar lá a casa.

Tinha de tomar banho, mudar duas vezes de roupa e retocar a maquilhagem. A seguir tinha de dar banho a Simon, o que era outra luta, e acender velas aromáticas, para ficar tudo bonito e o ar deixar de estar empestado com )eau de Moe.

Havia a salada para preparar, a mesa para pôr, aritmética e leitura para verificar e a comida para dar ao cão.

Tudo isso tinha de ser feito entre as vinte e cinco para as quatro e as seis e meia.

"Ele não deve estar habituado a jantar tão cedo", pensou ela enquanto mexia o molho. "Quanto mais ricas são as pessoas mais tarde comem." Porém, Simon tinha de estar na cama às nove porque era dia de escola. Era essa a regra da casa, por isso Bradley Vane ia ter de se adaptar, ou então teria de ir comer o seu esparguete a outro lado.

Zoe bufou. Alto! Ele não se tinha queixado, pois não? Era ela que estava a criar todas aquelas complicações.

 

- Simon, tens mesmo de acabar isso.

- Detesto fracções - disse ele, e a seguir bateu com os calcanhares contra a perna da cadeira e olhou com ar irritado para os trabalhos de Matemática. - As fracções desfazem-se em bocados.

- Há coisas que não se vêem inteiras. Precisas de conhecer as partes que as compõem.

- Porquê?

Ela tirou os guardanapos de pano que cosera na máquina de costura.

- Para conseguires reunir as coisas, separá-las, compreender como tudo isso funciona.

- Porquê?

Zoe dobrou os guardanapos em triângulos.

- Estás a tentar irritar-me, ou isso é um dom natural?

- Não sei. Porque é que vais pôr isso na mesa?

- Porque temos companhia.

- É só o Brad.

- Eu sei quem é. Simon, só tens mais três problemas para resolver. Vê se os acabas para podermos pôr a mesa.

- Porque é que não posso fazê-los a seguir ao jantar? Porque é que tenho de fazer sempre os trabalhos de casa? Porque não posso levar o Moe até lá fora e ir brincar um bocado?

- Porque eu quero que os faças agora. Porque é a tua tarefa. Porque eu mandei.

Enviaram um para o outro olhares de zanga e irritação mútuos.

- Não é justo.

- Notícia de última hora: a vida nem sempre é justa. E agora vê se acabas isso, senão perdes a tua hora de televisão e vídeo de hoje. E pára de dar pontapés na cadeira - vociferou ela.

Pegou na tábua de cortar e começou a cortar os legumes para a salada.

- Se continuas a fazer caretas nas minhas costas - disse ela, agora com frieza -, deixas de poder ver televisão e vídeo durante toda a semana.

Simon não sabia como ela se apercebia do que ele estava a fazer por detrás dela, mas era sempre assim. Num pequeno impulso de rebeldia, demorou três vezes mais do que precisava a resolver o problema seguinte.

Os trabalhos de casa eram uma treta. O rapaz lançou uma olhadela rápida, para ver se a mãe conseguia ouvir o que ele estava a pensar. Porém, ela continuava a cortar coisas para a porcaria da salada.

Não era que ele não gostasse da escola. Às vezes até gostava. Mas não percebia por que motivo tinha de a levar para casa todas as noites. Apeteceu-lhe dar mais um pontapé na cadeira, só para a pôr à prova. Contudo, Moe entrou na cozinha e distraiu-o.

- Olá, Moe. Então, meu, o que é que trazes aí? Zoe virou-se, olhou para trás e deixou cair a faca.

- Oh, meu Deus!

Moe estava ali parado, com a cauda e o corpo todo a abanar, e trazia os restos de um rolo de papel higiénico presos nos dentes.

Quando ela deu um salto na direcção dele, Moe interpretou isso como um sinal de brincadeira. Disparou para a esquerda, contornou rapidamente a mesa e voltou a sair pela porta da cozinha.

- Pára! Bolas. Simon, vê se me ajudas a apanhar esse cão.

Moe, entretanto, já tinha feito a sua obra de arte. Havia bocados de papel rasgado e de papel amachucado espalhados pelo chão como flocos de neve. Zoe foi atrás dele até à sala enquanto ele rosnava à volta da televisão, todo divertido. Simon, que se ria, deliciado, passou por ela a correr e mergulhou.

O rapaz e o cão rolaram por cima da alcatifa.

- Simon, isto não é nenhuma brincadeira - avisou ela, conseguindo apanhar o rolo molhado. Porém, quanto mais ela puxava, mais os olhos de Moe reluziam.

O animal firmou os dentes com mais força, ladrando todo animado.

- Ele acha que sim. Julga que estás a tentar tirar-lhe o rolo a brincar. Ele adora essa brincadeira.

Exasperada, ela olhou para o filho. Ele agora estava ajoelhado ao lado do cão, com um braço sobre o dorso de Moe. Parte do papel estraçalhado colara-se às calças limpas de Simon e ao pêlo de Moe.

Ambos sorriam para ela.

- Eu não estou a brincar - salientou ela, mas as palavras reprimiam uma gargalhada. - Não estou! Estás a ser feio - admoestou ela, batendo-lhe com um dedo no focinho. - Muito feio.

O cão pôs-se sobre as patas de trás, deu a pata e cuspiu o rolo de papel para o chão, aos pés dela.

- Ele quer que o atires para o ir buscar.

- Ah, sim, é mesmo isso que vai acontecer - comentou ela, pegando no rolo e escondendo-o atrás das costas. - Simon, vai buscar o aspirador. O Moe e eu precisamos de ter uma conversa.

- Ela não está mesmo zangada - disse Simon ao ouvido de Moe. - Os olhos dela ficam mais escuros e assustadores quando se zanga a sério.

Simon afastou-se. Muito rapidamente, Zoe agarrou Moe pela coleira antes que ele tivesse tempo de ir atrás do rapaz.

- Não, senhor. Nem penses. Olha só para a porcaria que fizeste. O que é que tens a dizer acerca disto?

O cão deitou-se e rebolou, pondo-se de barriga para cima.

- Comigo só te safas se souberes usar o aspirador.

Zoe soltou um suspiro quando ouviu bater à porta e Simon gritou:

- Eu vou abrir!

- Óptimo. Não podia ser melhor.

Zoe ficou a ver Moe a correr e ouviu a voz excitada de Simon a contar a Brad a última aventura de Moe.

- Ele correu por toda a casa. Fez uma confusão enorme.

- Estou a ver - disse Brad, virando-se para a sala onde Zoe se encontrava, rodeada de papel higiénico rasgado. - A diversão não pára, ha?

- Ele deve ter conseguido ir ao armário da roupa. Deixa-me só ver se acabo de limpar isto.

- Porque não te limitas a pegar nisto? - sugeriu ele, estendendo uma garrafa de vinho e uma dúzia de rosas amarelas. - O Simon e eu podemos limpar o chão.

- Não, a sério, não podes...

- Claro que posso. Têm um aspirador? - perguntou Brad a Simon.

- Ia agora mesmo buscá-lo - disse ele prontamente.

- Eu limpo isto. Não gostas de rosas?

- Gosto, claro. São lindas - afirmou ela, começando a tirá-las, mas depois olhou para a mão e para os restos de papel molhado.

- Oh - exclamou ela, com um longo suspiro -, pronto.

- Eu faço isso por ti - ofereceu-se ele de novo, tirando-lhe o papel das mãos antes que ela tivesse oportunidade de se opor, e enchendo-as com as flores. - Também vais precisar disto - acrescentou ele, passando-lhe a garrafa de Chiantí. - Não sei se queres ir abrindo a garrafa, para deixar o vinho respirar.

Brad virou-se para trás quando Simon apareceu com o aspirador.

- Liga-me isso, Simon, e vamos despachar o assunto, porque estou a sentir qualquer coisa a cheirar muito bem.

- Molho de esparguete. A mãe faz o melhor molho do mundo. Mas primeiro temos de comer salada.

- Há sempre um senão - comentou ele, sorrindo para Zoe enquanto enrolava as mangas da camisa azul-escura. - Temos isto sob controlo.

- Muito bem. Então, obrigada - agradeceu ela, sem saber o que fazer, e levou as rosas e o vinho para a cozinha. Ainda ouviu Simon tagarelar mais um pouco, e depois o ruído súbito do aspirador, logo seguido dos latidos doidos de Moe.

Já se tinha esquecido de que Moe considerava o aspirador um inimigo letal. Tinha de ir lá buscá-lo. Depois ouviu as gargalhadas animadas de Simon, o som mais profundo mas igualmente deliciado das de Brad, e os latidos cada vez mais frenéticos que significavam que tanto o homem como o rapaz estavam apenas a encorajar Moe a entrar em parafuso.

Não, eles estavam muito bem. Era melhor deixá-los em paz.

E isso deu-lhe a possibilidade de mergulhar pura e simplesmente o rosto nas flores. Nunca lhe tinham dado rosas amarelas. Eram tão alegres e elegantes. Ao fim de alguns momentos de dúvida, decidiu-se pela esguia jarra de cobre que salvara da obscuridade numa venda de garagem. com o polimento que lhe dera, constituía agora um receptáculo adequadamente brilhante para umas rosas amarelas.

Dispôs as flores e abriu a garrafa de vinho. Depois de pôr uma panela de água a ferver para cozer a massa, voltou a dedicar-se à salada.

Ia correr tudo bem, ia correr tudo optimamente. Não se podia esquecer de que ele era apenas um homem. Um amigo. Apenas um amigo que viera jantar a sua casa.

- Tudo de volta ao normal - afirmou Brad ao entrar. Reparou no arranjo de flores que ela pousara na bancada. - Bonito.

- São mesmo lindas. Obrigada. Simon, vamos pôr o Moe no quintal por um bocado? Entretanto podes levar os teus livros para a sala do lado e acabar os últimos problemas. E a seguir jantamos.

- Que tipo de problemas? - perguntou Brad enquanto se dirigia para os livros de Simon.

- A porcaria das fracções - respondeu Simon, abrindo a porta das traseiras para Moe sair e lançando à mãe um longo olhar sofredor. - Não posso fazê-los mais logo?

- Podes, se prescindires da tua hora a seguir ao jantar.

A boca de Simon virou-se no que a mãe reconheceu como o início de uma cara séria.

- As fracções são uma treta. É tudo uma treta. Se temos calculadoras, computadores e tudo o mais, para que é que me obrigam a resolvê-las?

- Porque...

- Sim, as calculadoras ajudam - explicou Brad num tom casual, acima da voz zangada de Zoe, e passou o dedo sobre a folha do caderno de Simon. - Estes problemas devem ser difíceis de mais para os conseguires resolver sozinho.

- Não são nada.

- Não sei. Parece-me bastante difíceis. Tens de somar estes três e três quartos aos dois e cinco oitavos. É complicado.

- Basta transformar os quartos em oitavos, só isso. Assim disse Simon e, pegando no lápis e prendendo a língua entre os dentes, fez a conversão. - Estás a ver? Agora já se pode somar os seis oitavos aos três oitavos, e a seguir volta-se a converter tudo em um e três oitavos. Fica-se com seis e três oitavos ao todo. A solução é seis e três oitavos.

-Ah! Que tal?

- Isso foi algum truque? - perguntou Simon, desconfiado.

- Não sei porque dizes isso - afirmou Brad, despenteando os cabelos de Simon. - Agora resolve o último, espertalhão.

- Bolas!

Zoe viu Brad inclinar-se sobre o ombro do filho, e sentiu o seu corpo começar a aproximar-se do ponto de fusão quando ele levantou os olhos e lhe sorriu.

Não, ela receava que ele não fosse apenas um homem qualquer, um amigo que viera jantar a sua casa.

- Já está! - exclamou Simon, fechando o caderno com força.

- Posso sair em liberdade condicional, senhor guarda?

- Para já, estás livre. Vai arrumar os livros e lavar as mãos para irmos jantar - ordenou Zoe, servindo dois copos de vinho enquanto Simon saía da divisão disparado. - Tens jeito para rapazinhos teimosos.

- é capaz de ajudar o facto de também ter sido um deles

- replicou ele, aceitando o copo. - Ele é rápido a fazer contas.

- Pois é. Tem-se saído bastante bem na escola. Só detesta os trabalhos de casa.

- É normal, não achas? O que estás a usar?

- Eu... - novamente desconcertada, ela olhou para a camisola num tom azul-marinho.

- Não é a roupa; é o perfume. Tens sempre um cheiro fabuloso, e nunca é o mesmo.

- Tenho andado a experimentar muitos produtos diferentes. Sabonetes, cremes e... - captando o brilho no olhar dele, Zoe levou o vinho aos lábios antes que ele tivesse tempo de se aproximar para os beijar... perfumes.

-Tem graça. Muitas mulheres têm um perfume preferido, como se fosse uma assinatura. E isso às vezes persegue um homem. Tu pões um homem a imaginar qual será o perfume do dia, de maneira que ele não consegue deixar de pensar em ti.

Ela podia ter recuado, porém não havia espaço suficiente na cozinha para o fazer sem tornar óbvio o gesto.

- Não uso perfume por causa dos homens.

- Eu sei. Isso ainda dá mais sedução ao acto.

Ele captou o olhar de pânico que ela lançou em direcção à porta ao ouvir Simon regressar. com um ar descontraído, Brad afastou-se e deixou Zoe voltar para junto do fogão.

- Vamos comer agora? - inquiriu Simon.

- Estou a pôr o esparguete na panela. Vão-se sentando. Começamos pela salada.

"A mesa está bonita", pensou Brad. Pratos coloridos, taças festivas, linhos com padrões de cores vivas. Havia velas acesas, e como Simon não fez qualquer comentário acerca delas, Brad concluiu que não eram raras na mesa dos McCourt.

Brad pensou que ela se ia descontraindo, a pouco e pouco. Claro que o rapaz era o principal responsável por isso. Não parava de falar, de fazer perguntas e comentários, e tudo isso contribuía para amenizar o ambiente, embora conseguisse estar a comer por uma família inteira.

Mas Brad compreendia-o. A mãe de Simon fazia um belo prato de esparguete.

Ele próprio não conseguiu deixar de repetir.

- Gosto das tuas fotografias da sala - disse Brad a Zoe.

- Os postais? São de pessoas conhecidas que foram de viagem.

- Somos nós que fazemos as molduras - acrescentou Simon. A mãe tem uma caixa para fazer meia esquadria. Um dia, somos capazes de ir viajar, e depois somos nós que enviamos postais às pessoas. Não é, mãe?

- Aonde queres ir?

- Não sei - respondeu ela, enrolando a massa à volta do garfo com ar absorto. - A algum lado.

- Um dia vamos a Itália comer esparguete - disse Simon a sorrir, e comeu mais uma garfada.

- Lá não fazem a massa melhor do que a tua mãe.

- Já lá estiveste?

- Já. Estás a ver a fotografia que vocês têm da ponte de Florença? Já lá estive.

- É mesmo fixe? - indagou Simon.

- É mesmo fixe.

- Têm lá um lugar com água em vez de ruas.

- É Veneza, Simon - recordou-lhe Zoe. - São canais. Já foste a Veneza? - perguntou ela a Brad.

- Já. É linda. Vai-se a todo o lado de barco - disse ele a Simon.

- Ou a pé. Têm táxis e autocarros aquáticos.

- Estás a gozar!

- A sério. Não existem carros em Veneza nem estradas para eles. Tenho umas fotografias algures. Vou procurá-las e depois mostro-tas.

A seguir, Brad voltou a virar a atenção para Zoe.

- Como está a correr o trabalho?

- As estantes da Dana vieram hoje. Largámos tudo para as montarmos. Foi um momento importante para nós. E as janelas também chegaram - prosseguiu ela, aclarando a garganta. - Queria agradecer-te pela instalação. Foi muito generoso da tua parte.

- Hum, hum. Recebeste o meu recado? Ela rodou a massa à volta do garfo.

- Recebi. Apesar disso, foi generoso da tua parte. Ele não conseguiu deixar de rir.

- Pensa nas coisas do seguinte modo: a Indulgence trouxe muito negócio à HomeMakers durante as últimas semanas. Essa foi a nossa maneira de agradecer a vossa preferência. E então, eles montaram todas as janelas?

- Imagino que já deves saber a resposta a essa pergunta - afirmou Zoe. Tinha a certeza de que ele era o tipo de homem que exigia que todas as suas ordens fossem cumpridas.

Brad respondeu à pergunta com um sorriso.

- O pessoal disse que eram bonitas... e que comeram bolinhos e beberam café à conta do assunto.

Divertida, ela baixou os olhos para o prato.

- Parece que tu comeste duas doses de esparguete à conta do assunto.

Ele sorriu para ela, e levantou a garrafa para se servir de mais vinho.

- Estou cheio - anunciou Simon. - Já podemos ir jogar um jogo de vídeo? Eu e o Brad?

- Podem.

Simon levantou-se de imediato, e Brad reparou que ele levou a sua louça e pousou-a na bancada ao lado do lava-loiça.

- Posso voltar a deixar o Moe entrar?

Zoe espetou um dedo na barriga de Simon.

- Ele que não se aproxime dos meus armários.

- Está bem.

- Primeiro vou ajudar a tua mãe a lavar a louça - disse Brad.

- Não é preciso. A sério - insistiu ela enquanto Brad limpava o prato tal como Simon fizera. - Tenho o meu sistema de trabalho e, além disso, o Simon passou o dia à espera do jogo. Dentro de uma hora ele tem de ir para a cama.

- Anda. Anda - disse Simon, agarrando Brad pela mão e começando a puxá-lo. - A minha mãe não se importa. Pois não, mãe?

- Não, não me importo. Todos para fora da minha cozinha, incluindo o cão.

-Já venho enxugar a louça assim que vencer o anão - disse-lhe Brad. - Não demoro nada.

- Nem penses - entoou Simon, enquanto puxava Brad para fora da cozinha.

Fez bem ao coração de Zoe ouvir o filho a divertir-se enquanto ela se dedicava à rotina de pôr a cozinha em ordem. Simon nunca tivera nenhum adulto do sexo masculino que demonstrasse ter verdadeiramente interesse por ele. Agora, com Flynn, Jordan e Bradley, tinha três.

E, tinha de reconhecê-lo, Brad era o seu preferido. "Houve uma espécie de clique entre eles", pensou. Alguma química masculina misteriosa. Isso era uma coisa que ela não só tinha de aceitar, como de encorajar.

Porém, antes de o fazer, tinha de deixar bem claro a Brad que, o que quer que acontecesse, ou não, entre eles, Simon não era descartável.

Zoe acabou de arrumar a cozinha, fez café e preparou um tabuleiro para o café e para um prato de biscoitos de chocolate.

Quando trouxe o tabuleiro, lá estava Brad, de pernas cruzadas, no chão ao lado de Simon. O cão ressonava, com a cabeça encostada ao joelho de Brad.

O quarto reverberava com os sons e as imagens do WWE Smackdown.

- Feito! Estás feito! - cantou Simon enquanto manipulava freneticamente os comandos.

- Ainda não, meu caro. Toma lá esta!

Zoe viu um enorme lutador louro levar o seu corpulento opositor ao tapete e ministrar-lhe uma valente sova.

Seguiu-se uma luta corpo a corpo, grunhidos e gritos terríveis, e nem todos vinham dos altifalantes.

- Derrota - rosnou ele. - Conheci o sabor da derrota.

- Sim, vê se te habituas a ela - afirmou Brad, debruçando-se para dar uma palmada na barriga de Simon. - Conheceste o mestre, e agora a sua grandeza.

- Para a próxima, és um homem morto.

- Nunca me hás-de ganhar no Smackdown.

- Ai não? vou mostrar-te como vai ser para a próxima. Levantou-se num pulo e saltou para as costas de Brad.

Seguiu-se outro combate corpo a corpo, como Zoe reparou, mais grunhidos, e o tipo de gritos que lhe animava o coração. Nem pestanejou quando Brad colocou Simon acima da cabeça e o atirou para cima do tapete.

- Rende-te, pequeno desafiador patético.

- Nunca! - exclamou Simon, e desatou-se a rir a bandeiras despregadas quando se viu sujeito a um ataque de cócegas ao mesmo tempo que tentava afastar a cara da língua molhada de Moe. - O meu cão feroz vai fazer-te em bocados.

- A sério? Estou a tremer de medo. Rendes-te?

Sem fôlego, com as lágrimas a correr de tanto rir, Simon ficou a torcer-se e a contorcer-se durante mais dez segundos.

- Está bem, está bem. Acabaram-se as cócegas, senão vomito!

- No meu tapete, não - advertiu Zoe.

Ao ouvir a voz dela, Brad virou a cabeça, e Simon começou a contorcer-se. E a ponta do seu cotovelo bateu na boca de Brad.

- Uups - proferiu Simon, com um relincho contido. Brad encostou a mão ao pequeno corte.

- Vais pagar por isto - afirmou num tom de voz perigoso que fez os dedos de Zoe tremerem no tabuleiro.

Num instante, Brad estava de pé, e passaram-lhe horrores pela cabeça. Ia para abrir a boca para gritar, avançando já para proteger o filho, quando Brad o levantou no ar, o prendeu pelos pés e o fez voltar a gritar de riso.

Quando Zoe sentiu os joelhos fracos e os seus braços começarem a tremer, pousou o tabuleiro do café com um tilintar de louça.

- Olha, mãe! Estou de cabeça para baixo!

- Estou a ver. Vais ter de te endireitar e ir lavar os dentes.

- Mas não posso... - começou ele, enquanto Moe lhe lambia a cara.

- Amanhã há escola, Simon. Vamos, prepara-te para ires para a cama. Depois podes vir dar as boas-noites ao Bradley.

Embora estivesse agora a olhar para Moe, Brad fez Simon girar até os seus pés tocarem no chão.

- Põe-te a andar. Em breve terás a desforra.

- Óptimo. Quando?

- Que tal sexta-feira à noite? Podes vir visitar-me e trazer a tua mãe contigo. Jantamos lá em casa, e a seguir vamos para a sala de jogos.

- Boa! Podemos ir, mãe? - antecipando a resposta, ele pôs os braços à volta da cintura dela. - Não digas que logo se vê. Diz que sim. Por favor!

Ela ainda tinha os joelhos a tremer.

- Sim. Pode ser.

- Obrigado - agradeceu ele, e deu-lhe um grande abraço, saindo da sala a dançar ao mesmo tempo que assobiava para chamar o cão.

- Pensaste que lhe ia bater - aquilo foi dito com um espanto tão grande que Zoe se sentiu como se tivesse levado um soco no estômago.

- É que... tu parecias... Desculpa. Já te devia conhecer.

- Não costumo bater em miúdos.

- Claro que não. Foi medo.

- Alguém o magoou? Andaste com alguém que lhe tivesse batido?

- Não. Não - repetia ela, tentando acalmar-se. - Nunca houve ninguém que lhe tivesse dado assim tanta importância. E gostava de ver alguém levantar-lhe a mão comigo por perto.

Aparentemente satisfeito com a resposta, ele assentiu.

- Está bem. Podes ficar tranquila que essa pessoa não hei-de ser eu.

- Insultei-te. Não gosto de insultar ninguém... bem, pelo menos por engano meu. É que aconteceu tudo tão depressa, e tu estavas com ar zangado, e... tens o lábio a deitar sangue.

- Estava só a brincar com ele. Ainda me lembro do que a minha mãe dizia: "Brincadeiras de mão são beijos de burro" - disse ele, e levou o dedo ao lábio ferido. - Vocês têm sempre razão.

- E agora estás a tentar fazer-me sentir melhor. - Seguindo a sua intuição, ela tirou um guardanapo do tabuleiro. Sem pensar, pôs uma ponta do guardanapo na boca e enxugou-lhe o lábio. -

Ainda há pouco, quando entrei aqui, gostei de ver os dois juntos; foi bonito. Também o podias ter deixado ganhar, mas não deixaste. E isso é bom, porque não quero que ele cresça a pensar que tem de ganhar sempre. Também é preciso saber perder e...

Zoe estacou, e olhou para o guardanapo horrorizada. Tinha cuspido nele, caramba.

- Meu Deus - exclamou, amachucando o guardanapo na mão.

- Que estupidez.

- Não - ridiculamente comovido, ele pegou-lhe na mão. - Foi muito querido. E tu também és.

- Nem por isso. Não particularmente. Seja como for, parou de sangrar. Ainda é capaz de doer durante um bocado.

- Esqueceste-te de um passo - disse ele, e pôs-lhe uma mão na cintura, fazendo-a deslizar até à base da coluna. - Não era agora que me davas um beijo para o lábio ficar bom?

- Não está assim tão mal - com efeito, estava lindo. Ele tinha uma boca bonita.

- Dói - murmurou ele.

- Bem, se tencionas ser bebé.

Ela inclinou-se, disposta a dar um beijo ao de leve naqueles belos lábios. Amigável, descontraído. Deu-lhe um beijinho, e tentou ignorar o nó no estômago.

Ele não a puxou para si nem tentou prolongar o beijo, limitando-se a mantê-la onde se encontrava, com os olhos fixos nela.

- Continua a doer - avisou ele. - Não me dás mais um?

As sirenes de alarme continuavam a tocar, mas ela não lhes ligou.

-Acho que sim.

Ela tocou os lábios dele com os seus. Tão quentes, tão firmes.

com um ligeiro ruído na garganta, ela cedeu àquela sensação e passou a língua por aqueles lábios, penteando-lhe os cabelos com os dedos.

Mesmo assim, ele continuava à espera. Zoe sentiu a tensão endurecer-lhe o corpo, e ouviu a respiração dele abrandar. Porém, ele continuava à espera.

Então, ela passou os braços à volta dele e deixou-se afundar naquele calor, naquela firmeza, naquela sedução lenta e constante.

Era tão bom navegar naquela longa onda líquida, com tantos sabores e texturas. A forma da boca dele, a sensação das línguas a deslizar uma sobre a outra, a pressão de um corpo contra o outro.

Eram tantas as sensações que encerrara bruscamente dentro de si e que começavam agora a voltar à vida.

- Oh, meu Deus - gemeu ela, e não conseguiu deixar de se aninhar contra ele.

Brad era capaz de jurar que sentira o chão começar a tremer-lhe debaixo dos pés. Teve a certeza de que o mundo sofreu um abanão valente que o deixou com vertigens. A boca dela passara de leve e doce para quente e ávida, numa única batida do coração.

Ansioso por mais, ele mudou o ângulo do beijo, e mordiscou-lhe incansavelmente o lábio inferior só para ouvir o gemido baixo e gutural dela.

Quando ele lhe percorreu o corpo com as mãos, ela estendeu-se por debaixo delas como uma mulher que tivesse acordado de um longo sono.

A seguir recuou e olhou em direcção à porta em estado de choque.

- Simon - conseguiu ela dizer, e penteou os cabelos. Recuou rapidamente outra vez no preciso momento em que Simon e Moe se precipitaram para dentro da sala.

O rapaz usava um pijama dos X-Men, reparou Brad. E cheirava a pasta de dentes.

- Tudo pronto? - perguntou Zoe, dirigindo um sorriso animado ao filho. Ainda sentia o sangue a correr dentro da cabeça. Meu Deus, eh, o Brad e eu íamos agora tomar café.

- Bah! - exclamou Simon, dirigindo-se para Zoe e levantando a cabeça para um beijo de boas-noites.

- Eu já lá vou daqui a nada.

- Está bem. Boa-noite - disse ele para Brad. - Vamos fazer uma desforra, não vamos?

- Podes crer. Podes esperar só um bocadinho? Preciso da tua opinião acerca de uma coisa.

Antes que Zoe tivesse tempo de se aperceber das suas intenções, Brad puxou-a para si e beijou-a. Foi um beijo contido, comparativamente, e ela ficou gelada como uma estátua, mas, mesmo assim, não deixava de ser um beijo.

A seguir soltou-a, deixando apenas um braço firme à volta da cintura dela, e perguntou, erguendo o sobrolho para Simon:

- Então?

Os olhos do rapaz eram alongados como os da mãe, amarelo-acastanhados como os da mãe, e continham um mundo de especulação. Ao fim de cinco longos segundos, fechou os olhos, enfiou um dedo na boca e começou a fazer barulhos como se estivesse a vomitar.

- Hum, hum - comentou Brad. - Tirando o impulso de vomitar, tens algum problema com o facto de eu beijar a tua mãe?

- Se vocês quiserem fazer uma coisa assim tão nojenta, podem fazer à vontade. O Chuck disse-me que o irmão dele, o Nate, gosta de enfiar a língua na boca das miúdas. Isso não pode ser verdade? Pois não?

com aquilo que considerou ser um controlo heróico, Brad manteve o rosto impassível.

- Há todos os tipos de beijos.

- Pois é. Vou levar o Moe para o quarto, para ele não ter de ficar a ver se vocês voltam a fazer alguma coisa assim tão nojenta.

- Adeus, miúdo - enquanto Simon e Moe se afastavam, Brad virou-se e sorriu para Zoe. - Queres fazer alguma coisa nojenta?

- Acho que é melhor irmos beber café.

 

Capítulo 6

As reuniões, os projectos e os planos de expansão mantiveram Brad preso à HomeMakers durante alguns dias. Ele não se podia queixar, já que tinha sido dele a ideia de voltar para Pleasant Valley para instalar a sede da empresa, ao mesmo tempo que supervisionava o quadrante nordeste do negócio da família, remodelava a loja do Vale e aumentava-a em mil e quinhentos metros quadrados.

Isso implicava papelada, telefonemas, adaptações em termos de pessoal e de procedimentos, reuniões com arquitectos e construtores, e regatear com os fornecedores ou ser perseguido por eles.

Brad sabia lidar com esse tipo de coisas. Fora ensinado a lidar com essa situação e passara os últimos sete anos nos escritórios de Nova Iorque a aprender o que fazer ou não como director de uma das cadeias de venda a retalho do país.

Ele era um Vane, da quarta geração dos Vane da HomeMakers. E não estava disposto a passar a bola a outro. Aliás, tencionava mesmo jogá-la bem, transformando a primeira HomeMakers na maior, mais prestigiada e mais lucrativa do sistema nacional.

O pai dele não tinha ficado muito entusiasmado com a sua decisão. B. C. Vane iII considerava-a baseada no sentimento. "E, de facto, foi mesmo", pensou Brad. E porque não? Fora o seu avô que construíra a modesta loja de materiais de construção, e depois apostara tudo para a fazer dar novos voos, transformando-a num bastião das Laurel Highlands, um entreposto de sucesso, muito útil ao consumidor que necessitasse de fazer melhorias no seu lar.

com coragem, astúcia e visão, tinha criado ainda uma segunda loja, a seguir uma terceira, e depois mais lojas, até se tornar um símbolo do empresário americano com lugar na capa da revista Time antes do quinquagésimo aniversário.

Por isso, sim, era por sentimento, embora este fosse temperado com uma boa dose de coragem, astúcia e visão típicos dos Vane.

Brad observou a sua terra natal enquanto conduzia o automóvel pela baixa. O Vale prosperava à sua maneira tranquila e constante. O mercado imobiliário da região era bastante representativo, e quando as pessoas compravam casa ali tendiam a criar raízes e a ficar. A venda a retalho era um negócio em ascensão, e progredia numa linha constante, acima da média nacional. Além disso, os dólares dos turistas mantinham a economia local a um bom nível.

O Vale prezava a sua atmosfera de cidade de província, embora o facto de se encontrar a uma hora de Pittsburgh emprestasse a esse ambiente um halo de sofisticação.

Para quem viesse de férias havia passeios pela montanha, esqui, passeios de barco, pesca e estalagens encantadoras e bons restaurantes: o sabor do campo a um passo do burburinho da cidade.

Era um bom lugar para viver, e um bom lugar para fazer negócio.

Brad tencionava dedicar-se a ambos.

Talvez não tivesse a intenção de ser assim tão rápido, mas também não contara regressar e ver-se envolvido numa demanda de chaves místicas. Tal como não esperara apaixonar-se por uma prudente mãe solteira e pelo seu filho irresistível.

Mesmo assim, era apenas uma questão de fixar objectivos, estabelecer prioridades e não esquecer os pormenores.

Estacionou o carro e entrou no Valley Dispatch para tratar de alguns desses pormenores.

Ficou entusiasmado ao imaginar o amigo a gerir o jornal da região. Flynn podia não projectar a imagem de um homem que pudesse ou viesse a poder ter mão de ferro para estar à frente de

uma equipa, cumprir prazos e preocupar-se com a publicidade, o conteúdo e o preço do jornal. E era por isso que ele era tão bom no seu emprego, pensou Brad enquanto se dirigia para a redacção e para o gabinete do amigo.

Tinha uma forma particular de levar as pessoas a fazer as coisas, e de as levar a fazerem-nas à sua maneira, sem que elas se apercebessem disso.

Brad abriu caminho por entre secretárias e repórteres, por entre a cacofonia dos telefones, dos teclados e das vozes. Sentiu o cheiro do café, de bolos ou biscoitos, e do after-shave de alguém, com aroma a pinheiro.

Lá estava Flynn, dentro das paredes de vidro do gabinete do chefe de redacção, sentado ao canto da secretária de camisa às riscas, calças de ganga e ténis Nike velhos.

Invocando o privilégio de uma amizade de trinta anos, Brad entrou logo no gabinete, que tinha a porta aberta.

- Eu próprio irei cobrir a reunião, sr. presidente da câmara dizia Flynn, abanando a cabeça para o telefone que estava em cima da sua secretária, e para a luz acesa.

A sorrir, Brad enfiou as mãos nos bolsos e esperou que Flynn terminasse a chamada.

- Desculpa. Não percebi que estavas ao telefone.

- Então, o que é que um director experiente como tu faz no meu humilde gabinete esta manhã? - indagou Flynn.

- Vim deixar o plano do anúncio da próxima semana.

- Isso é roupa muito elegante para um moço de recados comentou Flynn, apontando para a manga do fato de Brad.

- Tenho de ir a Pittsburgh mais logo, em negócios - explicou, largando a pasta em cima da secretária de Flynn. - E queria conversar contigo acerca de fazermos um bloco de dez páginas a cores para a semana, antes do Dia de Acção de Graças. Quero que saia antes da Black-Friday.

Sexta-feira antes do Dia de Acção de Graças nos estados Unidos da América, tradicionalmente o dia de maior comércio do ano. (N. da T.)

- Sou o homem certo para ti. Queres a minha gente a falar com a tua gente, como eu costumo dizer - acrescentou Flynn. Isto parece tão típico de Hollywood.

- É essa a ideia. Prefiro criar isto ao nível local, em vez de o fazer através da empresa. É uma coisa específica para a loja do Vale, e quero que tenha qualidade e seja adequado. Uma coisa que o consumidor possa levar na carteira ou no bolso quando vai às compras. E quero que seja exclusivo. Quero que saia no Dispatch num dia em que não haja mais folhetos, desdobráveis ou cupões.

- Há uma enchente de folhetos na semana antes do Dia de Acção de Graças - salientou Flynn.

- Exacto. Não quero que este se perca no meio dos outros. Deve ficar sozinho.

Flynn esfregou as palmas das mãos.

- Isso vai custar-te uma nota.

- Quanto?

- Vou falar com a publicidade e arranjamos um valor. Dez páginas, a cores? - confirmou Flynn, enquanto tomava os seus apontamentos. - Volto a contactar-te amanhã.

- Óptimo.

- Uau, olha só para nós a fazer negócio. Também tomas um café?

Brad olhou para o relógio e viu as horas.

- Tomo. Também queria falar contigo acerca de outro assunto. Posso fechar?

Flynn encolheu um ombro quando Brad apontou para a porta.

- Podes - serviu café e sentou-se à secretária. - É acerca da chave?

- Há alguns dias que não sei de nada. A última vez que estive com a Zoe tive a impressão de que ela não queria falar nisso. Pelo menos comigo.

- Então estás a pensar se ela falará comigo, ou mais provavelmente com a Mal, que depois falará comigo. De momento, não tanto - comunicou-lhe Flynn. - A Malory acha que a Zoe anda

muito ansiosa, e está com os nervos em franja a pensar quando é que o Kane irá fazer alguma jogada.

- Tenho andado às voltas com a pista. Na minha opinião, é a Zoe que tem de dar um passo. Vou estar com ela na sexta-feira à noite, mas talvez seja melhor fazermos uma sessão de brainstorming antes disso.

- Sexta-feira à noite? - perguntou Flynn, bebendo um gole de café. - Vai ser algum acontecimento social?

- O Simon vai lá a casa brincar - irrequieto, Brad deambulava pelo escritório enquanto ia falando. - E traz a mãe.

- Inteligente.

- Faz-se o que se pode. Ele é um miúdo excelente, e não é tão complicado como a mãe.

- Tenho a impressão de que ela teve uma vida difícil, e teve de desbravar caminho sozinha. O que vem mesmo a calhar com o tema da pista dela.

- Ela é uma mulher extraordinária.

- Estás muito preso a ela?

- Completamente - tentando acalmar-se, Brad debruçou-se sobre o parapeito da janela. - O problema é que ela não confia em mim. Mas estou a fazer progressos. Pelo menos, ultimamente já não fica petrificada ou na defensiva sempre que olho para ela. Só que às vezes parece fitar-me como se eu tivesse acabado de vir de outro planeta, e não propriamente em missão de paz.

- Ela é muito complexa. As mulheres complexas têm de ser mais cuidadosas. Se forem inteligentes. E a Zoe é inteligente.

- Estou doido com o miúdo. Quanto mais tempo passo com ele, mais me apetece passar. Gostava de conhecer a história do pai dele.

Flynn abanou a cabeça perante o olhar inquiridor de Brad.

- Lamento, mas as minhas fontes não se pronunciam sobre esse assunto. Podias experimentar a abordagem directa e perguntar-lhe tu mesmo.

Brad anuiu.

- Só mais uma coisa, antes de me ir embora: vais escrever o tal artigo?

-As Filhas do Vidro - pronunciou Flynn em voz alta, olhando para o ar como se estivesse a ler um título. - "Linha de Encontros Românticos Pleasant Valley, na Pensilvânia. Dois deuses celtas visitaram o cenário das Laurel Highlands para desafiar três mulheres locais a encontrar as chaves da lendária Caixa das Almas."

Ficou a rir-se durante um bocadinho, e voltou a pegar na chávena de café.

- Dava uma história dos diabos. Aventura, intriga, romance, dinheiro, risco e triunfo pessoais, e o poder dos deuses, tudo aqui mesmo, na nossa pacata terra natal. Sim, já pensei nisso... em escrevê-la, e em escrevê-la bem. Quando me meti nisto, pensei: "Meu Deus, Meu Deus, podiam muito bem pegar em mim e enfiar-me num manicómio, que isso não me impediria de a escrever."

- O que é que te impediu?

- Isso iria colocá-las no centro das atenções. Mais uma vez. Algumas pessoas iam acreditar, muitas não acreditariam, mas toda a gente ia pôr-se a fazer-lhes perguntas, a matraqueá-las em busca de respostas e depoimentos. Elas... aliás, nenhum de nós poderia voltar a ter uma vida normal.

Flynn olhou para o café e voltou a encolher ligeiramente os ombros.

- E é basicamente disso que se trata. De todos nós podermos viver a vida que queremos, que temos direito a viver. Se for o Jordan a escrevê-la já é diferente: ele transforma a história num livro. Passa a ser ficção. Mas eu não vou escrevê-la para o jornal.

- Sempre foste o melhor.

Flynn parou com a chávena na mão. -Hum?

- O que tinha a visão mais clara, o coração mais puro. Foi por isso que ficaste no Vale, no jornal, quando tinhas vontade de partir. Talvez tenha sido por isso que o Jordan e eu pudemos partir. Por sabermos que estarias aqui quando voltássemos.

Era raro a língua de Flynn ficar presa, como se tivesse um nó, porém, foi o que aconteceu nessa altura.

- Bem - foi a única coisa que conseguiu dizer.

- Tenho de ir a Pittsburgh - comunicou Brad, pousando o café e levantando-se. - Liga-me para o telemóvel se acontecer alguma coisa enquanto eu estiver fora.

Ainda sem fala, Flynn limitou-se a assentir.

Zoe mediu e misturou o tom de coloração da sr.a Hanson. A sua vizinha gostava de fortes madeixas ruivas por entre o castanho. Zoe encontrara uma combinação de tonalidades que agradava às duas, e há já três anos que cortava e pintava os cabelos da sr.a Hanson uma vez por mês.

Era a única cliente de Zoe que ia a casa dela. As recordações de crescer com cabelos no chão e produtos químicos no ar tinham-na feito prometer a si mesma que nunca transformaria a sua casa num negócio.

Contudo, a sr.a Hanson era diferente, e a cerca de uma hora por mês que Zoe passava a fazer-lhe a coloração na cozinha era mais uma visita do que trabalho.

Ainda se lembrava de quando se mudara para aquela casa, do modo como a sr.a Hanson, cujos cabelos tinham um infeliz tom preto deslavado, os acolhera no bairro.

Ela trouxera bolachas com pepitas de chocolate e, depois de lançar uma olhadela a Simon, assentira com ar de aprovação. A seguir, oferecera os seus serviços como ama oficial, afirmando que, com os filhos já crescidos, sentia a falta de ter um rapaz lá por casa.

Fora a primeira amiga que Zoe fizera no Vale, e tinha-se tornado não só uma avó substituta para Simon como uma mãe para Zoe.

- Vi o teu homem novo chegar, há umas noites atrás - disse a sr.a Hanson, com os olhos azuis a piscar no seu rosto bonito, equilibrada em cima do banco da cozinha de Zoe.

- Não tenho homem nenhum, nem novo nem velho - afirmou Zoe enquanto separava os cabelos e pintava as raízes grisalhas.

- Um belo homem novo - prosseguiu a sr.a Hanson, sem se deixar intimidar. - Um bocado parecido com o pai, que eu conheci vagamente quando tinha a mesma idade. Aquelas rosas que ele te trouxe aguentam-se bem. Olha como ficaram bonitas depois de abrirem.

Zoe lançou uma olhadela para a mesa.

- Tenho-lhes cortado os caules e mudado a água para as manter frescas.

- É como ter um raio de sol na mesa. As rosas amarelas ligam bem contigo. É preciso ser um homem inteligente para saber isso. O Simon está sempre a falar do Brad para aqui e para ali. Isso significa que ele é bom para o rapaz.

- Pois é. Dão-se bem como a palha com o fogo - comentou Zoe enquanto ia trabalhando, e as suas sobrancelhas uniram-se.

- O Bradley parece gostar muito do Simon.

- Imagino que também deve gostar muito da mãe do Simon.

- Somos amigos... pelo menos estou a tentar que sejamos. Ele põe-me nervosa.

A sr.a Hanson deu uma risadinha.

- O homem tem ar disso; deve mesmo pôr uma mulher nervosa.

- Não é o que pensa. Bem, por acaso até é - disse Zoe, desatando-se a rir antes de voltar a molhar o pincel. - Mas é só nervosa.

- Ele já te beijou? - perante o longo silêncio de Zoe, a sr.a Hanson soltou uma risada de satisfação. - Boa. Não me pareceu nada lento. Que tal?

- A seguir tive de ver se ainda tinha a parte de cima da cabeça, porque parecia ter sido levada pelo vento.

- Já não era sem tempo. Estava um bocadinho preocupada contigo, minha querida. Sempre a trabalhar dia e noite, pelo que me parecia. Sem nunca teres tempo para ti. Nos últimos tempos

tenho visto aquelas moças engraçadas com quem te tens dado, e o Brad Vane a aparecer por aqui, e sinto o coração mais alegre. Dito isto, estendeu a mão para dar uma palmadinha na mão de Zoe.

- Continuas a trabalhar dia e noite, especialmente agora que estás a montar o negócio, mas estou a gostar de ver.

- Não poderia montar este negócio sem a senhora a tomar conta do Simon a seguir à escola durante tantas tardes.

A sr.a Hanson fez um som para manifestar que não era assim, e afastou as palavras de Zoe com um aceno.

- Sabes muito bem que adoro ter aquele rapaz por perto. É como se fosse um dos meus. Não vejo muito os meus netos, com o Jack a viver em Baltimore e o Deke na Califórnia. Não sei o que faria sem o Simon. Ele anima os meus dias.

- Ele considera-a a si e ao sr. Hanson como se fossem avós dele. Isso tira-me um peso de cima.

- Conta-me como vão as coisas no cabeleireiro. Estou ansiosa por abrires o negócio e pores a Carly com a cara à banda quando lhe começares a roubar as clientes. Ouvi a Sara Bennett dizer que a rapariga que a Carly contratou para te substituir não faz nada de jeito.

- É pena - comentou Zoe, porém fê-lo com uma risadinha. Não lhe desejo azar, a não ser pela maneira como me despediu. A dizer que lhe tirei dinheiro da caixa - prosseguiu Zoe, toda irritada. - A chamar-me ladra.

-Tem calma.

- Oh, desculpe - disse Zoe, ao aperceber-se de que puxara os cabelos da sr.a Hanson. - Fico doida sempre que começo a pensar nisso. Fiz um bom trabalho para ela.

- Demasiado bom. E muitas das clientes habituais dela queriam que fosses tu a penteá-las, e não ela. Tudo se resume a inveja, e nada mais.

- Conhece a Mareie? A moça que arranja as unhas lá? Telefonei-lhe há um ou dois dias, só para a sondar. Vai trabalhar para mim.

- Não me digas.

- Temos de manter segredo até eu ter tudo pronto. Não quero que a Carly a despeça e a faça ficar sem trabalho antes de eu abrir. Mas ela está preparada para a avisar assim que eu lhe disser. E ela é amiga de uma estilista que trabalha no centro comercial e vai casar no início do ano e quer encontrar um cabeleireiro mais perto da cidade. Então, eu perguntei-lhe: "E que tal na cidade?" E a Mareie vai dizer-lhe para se encontrar comigo. Diz que ela é mesmo boa.

- Parece-me que estás a organizar tudo.

- É uma boa sensação, sabe? Tenho a Chris para fazer massagens e alguns tratamentos corporais. E a minha amiga Dana, lembra-se dela? Contratou uma senhora para trabalhar com ela na livraria, e ela tem uma amiga que se mudou há pouco para o Vale e trabalhava num spa no Colorado. Também vou falar com ela. É tão emocionante... desde que não comece a pensar na folha de pagamentos.

- Vais sair-te bem. Melhor do que isso.

- O canalizador apareceu hoje, para montar os lavatórios. Já tenho as luzes instaladas e vou acabar as bancadas. Às vezes estou lá e ponho-me a olhar em redor, e penso que aquilo só pode ser um sonho.

- Os sonhos merecem-se, Zoe. E este é bem merecido.

"Eu mereci-o", pensou Zoe mais tarde, enquanto lavava o pincel e a tigela de coloração. Ou estava a merecê-lo. Mesmo assim, muito daquilo era como uma bênção. E ela prometeu a si mesma que nunca o teria como certo.

Estava disposta a fazer um bom trabalho. A ser uma boa sócia e uma boa empregadora. Sabia o que era trabalhar para alguém mais interessado em preencher os espaços vazios da agenda de marcações do que nas necessidades básicas dos seus funcionários. Alguém que se esquecera do que era permanecer de pé hora após hora até sentir os pés a arder e o fundo das costas a doer tanto como um dente cariado.

Todavia, ela não se iria esquecer.

Talvez não fosse aquele o caminho que esperara percorrer há muitos anos, quando era uma jovem que se imaginava a possuir coisas bonitas e uma vida sossegada, que alcançaria utilizando o cérebro.

No entanto, era aquele o caminho que ela tomara, e estava a transformá-lo numa grande estrada.

- Podias voltar atrás e alterar tudo.

Afastou os olhos do lavatório e fitou Kane. A surpresa, o choque e até o medo estavam enterrados sob camadas espessas de nevoeiro. Embora soubesse isso, não conseguia senti-lo.

Ele era belo, de uma beleza morena. Tinha cabelos escuros e olhos profundos, ossos salientes esculpidos sob a pele branca, imaculada. Era mais alto do que ela imaginara. Não tinha o ar robusto de Pitte mas um corpo gracioso e elegante que Zoe imaginou poder mover-se tão agilmente como uma cobra.

- Estava a ver quando aparecerias - a voz dela parecia apagada, como se se formasse mais na sua mente do que no seu corpo.

- Estive a observar-te. Um passatempo agradável - disse ele aproximando-se mais, e a sua mão roçou-lhe nas faces. - És muito bonita. Bonita de mais para trabalhares assim. Bonita de mais para passares a vida a melhorar o aspecto dos outros. Tu sempre quiseste mais. Ninguém entendeu.

- Pois não. A minha mãe ficava furiosa. Sentia-se ofendida.

- Ela nunca te conheceu. Usou-te como uma escrava.

- Ela precisava de ajuda. Fez o melhor que podia.

- E quando tu precisaste de ajuda? - A voz dele era meiga, e o rosto todo ele compreensão. - Coitadinha. Usada, traída, abandonada. E uma vida inteira a pagar por um acto de irreflexão. E se isso nunca tivesse acontecido? A tua vida seria bem diferente. Não imaginas?

- Não, eu...

- Olha - disse Kane, erguendo uma bola de cristal. - Olha para o que podia ter sido.

Incapaz de fazer outra coisa, ela olhou, e entrou na cena.

Ela fez girar a cadeira de cabedal onde se afundava enquanto olhava por uma ampla janela de canto, de onde via as torres e os telhados de uma grande cidade. Tinha o auscultador ao pé do ouvido e uma expressão de satisfação no rosto.

- Não, não posso. Parto amanhã para Roma. Algum trabalho, muito lazer - olhou para o fino relógio de ouro que tinha no pulso. - O lazer é um pequeno bónus lá de cima, por ter conseguido um contrato com os Quartermain. Uma semana no Hastler. É claro que te envio um postal.

Ela desatou a rir, e fez a cadeira girar na direcção do escritório no preciso momento em que a sua assistente lhe trazia uma chávena alta de porcelana.

- Eu telefono-te quando voltar. Ciao.

- O seu cappuccino, sr.a McCourt. O carro chega dentro de quinze minutos.

- Obrigada. O dossier dos Modesto?

- Já se encontra dentro da sua pasta.

- És a melhor. Sabes como me podes contactar, mas a partir de terça-feira não estou disponível. Por isso, a menos que seja urgente, faz de conta que viajei até Vénus e estou incomunicável.

- Pode contar com isso. Ninguém merece mais umas férias do que a senhora. Desejo-lhe uma estada maravilhosa em Roma.

- Tenciono tê-la.

Enquanto bebia o seu cappuccino em pequenos goles, Zoe virou-se para o computador e foi buscar um dossier para confirmar alguns pormenores de última hora.

Adorava o seu trabalho. Podia haver quem dissesse que eram apenas números, contabilidade, tinta preta ou vermelha. No entanto, para Zoe aquilo era um desafio, ou mesmo uma aventura. Ela tratava das questões financeiras de algumas das maiores e mais complexas empresas do mundo, e fazia-o muito bem.

"Estava a anos-luz dos livros de contabilidade que fazia para o negócio da minha mãe", pensou. A uma distância enorme.

Tinha estudado muito para ganhar a bolsa universitária, e trabalhara no duro para acabar o curso e garantir a entrada numa das multinacionais financeiras mais prestigiadas de Nova Iorque.

A seguir, continuara a trabalhar para subir na empresa. Um escritório no décimo quinto andar, o seu próprio pessoal, tudo antes dos trinta.

Tinha um belo apartamento, uma vida emocionante e uma carreira na qual adorava mergulhar dia após dia. Viajara até todos os lugares com que sonhava quando era miúda e se esgueirava para percorrer os bosques à noite.

Tinha aquilo cuja necessidade nunca conseguira explicar à sua família. Era respeitada.

Satisfeita, desligou o computador e acabou de beber o cappuccino. Afastou a cadeira da secretária, pegou na pasta e atirou o casaco para cima do ombro.

Roma esperava-a.

O trabalho vinha em primeiro lugar. Mas depois também podia divertir-se. Tencionava retirar uma boa fatia de tempo para fazer compras. Qualquer coisa em cabedal, qualquer coisa em ouro. Um passeio à Armani ou à Versace. Talvez a ambas. Quem o merecia mais?

Começou a caminhar em direcção à porta, e a seguir parou e voltou para trás. Tinha uma sensação incómoda, um baque no fundo da mente. Estava a esquecer-se de alguma coisa. De alguma coisa importante.

- O seu automóvel chegou, sr.a McCourt.

- Sim, eu vou já.

Avançou novamente em direcção à porta. Mas não. Não, não podia partir assim sem mais nem menos.

- Simon - a cabeça dela começou a andar à volta com tanta força que ela teve de apoiar uma mão à parede. - Onde está o Simon?

Zoe desatou a correr porta fora, a gritar por ele. E caiu através do cristal para o chão da cozinha.

- Nunca cheguei a ter medo - contou Zoe a Malory e a Dana.

- Nem quando aterrei no chão. Foi mais: "Hum, e esta?"

- Foi só isso que ele te disse? - perguntou Dana.

- Sim. Ele foi muito meigo - disse Zoe, enquanto tentava fixar as bancadas à parede. - Muito simpático. Nada assustador.

- Talvez por estar a tentar seduzir-te - concluiu Malory.

- Foi o que eu pensei - afirmou Zoe, dando um abanão à bancada para experimentar e assentindo. - "Não gostavas que as coisas fossem assim, em vez daquilo em que se transformaram?" Era como se tudo fosse apenas uma questão de escolher uma coisa em vez de outra.

- A encruzilhada no caminho - lembrou Dana, pondo as mãos nas ancas.

- Exacto - concordou Zoe, que alinhou o último parafuso e fez o buraco com o berbequim. - Dou-te a oportunidade de teres uma carreira fantástica e uma vida deslumbrante, de ires passar uma semana a Roma. E para isso só precisas de fazer uma pequena coisa. Não engravidar aos dezasseis anos. Ele percebeu que não me podia ameaçar com o Simon, por isso deve ter-se lembrado de o eliminar pura e simplesmente da equação.

- Está a subestimar-te.

Zoe lançou uma olhadela a Malory.

- Ah, pois está, porque nada do que haja naquela bola de cristal se aproxima da minha relação com o Simon. E sabem que mais? Nem se aproxima do que estou aqui a fazer convosco.

Ela sorriu e pôs-se de pé.

- Apesar disso, estava com uns sapatos excelentes. Acho que eram Manolo Blahnik, como os que usa a... como é que ela se chama... a Sarah Jessica Parker.

- Hum. Uns sapatos excelentes e sensuais, ou um rapaz de nove anos - afirmou Dana, batendo com um dedo no queixo. Uma escolha difícil.

- Acho que vou continuar pobre por enquanto - confessou ela, e recuou para observar a bancada completa. - Ele não me assusta - confessou Zoe, soltando uma gargalhada, e pousando o berbequim. - Tinha a certeza de que sim, mas não assusta nada.

- Não baixes as defesas - avisou-a Malory. - Ele não vai aceitar um simples "não, obrigada" como resposta.

- Mas é essa a resposta que vai continuar a ter. Seja como for, ele fez-me voltar a pensar na pista. Escolhas. O momento da verdade, como tu lhe chamaste, Malory, nos quadros. Acho que tive um momento desses na noite em que o Simon foi concebido, ou quando tomei a decisão de o ter. Mas acho que tem de haver outro, quer relativamente a uma decisão já tomada quer a uma que ainda tenho de tomar.

- Podemos fazer uma lista - começou Malory, o que fez Dana começar a rir-se.

- Como é que eu adivinhei que ela ia dizer isto?

- Uma lista - prosseguiu Malory, lançando um olhar brando à amiga - de acontecimentos e decisões importantes que a Zoe tomou e de acontecimentos pouco importantes que tiveram consequências importantes. Tal como ela pensou no Vale como uma floresta cheia de caminhos. Desta vez é a vida dela a floresta. Podemos procurar intersecções, associações, perceber de que modo uma escolha levou a outras, e em que medida qualquer uma delas tem alguma coisa a ver com a chave.

- Tenho andado a pensar nisso, e estava a pensar... - começou ela, e depois alinhou a bancada, tirou a fita métrica e voltou a pousá-la. - As decisões que vocês tomaram, as coisas que vocês fizeram e que vos levaram até às vossas chaves envolviam o Flynn e o Jordan. O Brad e eu somos os únicos que restamos, por isso acho que as minhas decisões também devem envolvê-lo. Isso coloca-o comigo na linha da frente.

- O Brad sabe tomar conta de si mesmo - garantiu-lhe Dana.

- Tenho a certeza de que sim. E eu sei tratar de mim. Só não sei é se consigo lidar com ele. Não posso cometer nenhum erro, nem em relação à chave nem em relação a mim e ao Simon.

- Receias que seja um erro estares mais próxima do Brad, a criar com ele uma relação pessoal? - perguntou-lhe Malory.

- Por acaso, começo a recear que não estar perto dele possa ser um erro. Faz com que seja mais difícil ter sentido prático.

- Vais a casa dele esta noite - afirmou Malory. - Porque não aproveitas a dica do Simon só por esta vez e aprecias estar com alguém que mostra gostar tanto de estar contigo?

- Vou tentar - asseverou, pegando outra vez na fita. - Ajuda saber que levo um pau-de-cabeleira. Dois, aliás, contando com o Moe.

- Mais cedo ou mais tarde, por mais que o Brad goste do Simon, vai querer estar contigo a sós.

Zoe passou a fita métrica a Dana e pegou no berbequim.

- Logo me preocupo com isso, mais cedo ou mais tarde. "Mais cedo, mais tarde e neste preciso momento", pensou Zoe quando ficou outra vez sozinha.

Ela sabia que, com uma atracção física tão intensa, não podiam deixar de se aproximar. No entanto, ela podia, e estava disposta a fazê-lo, decidir a altura, o lugar e o ambiente certos. As regras. Tinha de haver regras, tal como tinha de haver um entendimento entre eles antes de darem esse passo tão íntimo.

Se Bradley Vane era, na realidade, uma das suas encruzilhadas no caminho, era essencial ter a certeza de que nenhum dos dois acabaria sozinho, perdido e magoado no final do percurso.

Capítulo 7

O grito entusiasmado de Simon interrompeu a discussão interna de Zoe em relação à escolha dos brincos. Deveria levar as grandes argolas de prata, com uma espécie de sensualidade descuidada, ou as pequenas gotas de marcassite que ostentara no Verão anterior, mais modestas e sofisticadas?

Eram esses pormenores que marcavam o estado de espírito de uma mulher, o seu aspecto exterior, as suas intenções para um evento. "Um homem pode não se aperceber deles", pensou enquanto erguia um exemplar de cada par junto das orelhas, "mas uma mulher sabe por que motivo usa um par de brincos em especial. Ou de sapatos. Ou porque escolhe um sutiã em particular."

Eram essas as peças com que se construía um ritual de encontro. Zoe pousou os dois pares de brincos e levou uma mão ao estômago.

Caramba, ela ia ter um encontro.

- Mãe, vem cá depressa! Tens de ver isto.

- É só um minuto.

- Depressa, depressa, ele está a entrar no quintal. Caramba. Oh, caramba! Anda cá, mãe!

- O que foi? - perguntou ela, dirigindo-se para a sala descalça. Só podia escolher os sapatos depois de ter escolhido os brincos. Por amor de Deus, Simon, temos de sair dentro de poucos minutos, e eu não... - ao dizer isto, ficou boquiaberta, tal como o filho, ao olhar com ele pela janela da frente e ver a limusina preta estacionar atrás do seu velho chaço.

- É o maior automóvel que vi em toda a minha vida.

- Eu também - replicou Zoe. - Deve estar perdido.

- Posso ir lá fora ver? - perguntou ele, e agarrou-lhe na mão, apertando-a tal como fazia quando estava particularmente frenético. - Por favor, por favor! Posso tocar-lhe?

- Acho que não lhe deves tocar.

- Está um homem a sair do carro - a voz de Simon reduziu-se a um sussurro de reverência. - Parece um soldado.

- É um chauffeur - disse ela, pousando a mão no ombro de Simon enquanto espreitavam os dois pela janela. - É como se chama às pessoas que conduzem limusinas.

- Ele está a vir até à porta.

- Deve precisar de indicações.

- Posso só ir lá ver enquanto tu lhe dás as indicações para ir para qualquer lado? Eu não mexo em nada.

- Vamos perguntar - sugeriu ela e, pegando em Simon pela mão, dirigiu-se para a porta.

"O Simon tem razão", pensou ela ao abrir a porta. "Ele parece mesmo um soldado: alto e muito direito, com ar de militar, envergando um uniforme e um chapéu preto."

- Posso ajudá-lo? - perguntou-lhe ela.

- Sr.a Zoe McCourt? Sr. Simon McCourt?

- Ah! - exclamou ela, apertando Simon para si. - Sim.

- O meu nome é Bigaloe. Irei conduzi-los até casa do sr. Vane esta noite.

- Vamos andar de limusina? - perguntou Simon, cujos olhos ficaram grandes e brilhantes como dois sóis. - Nessa?

- Sim, senhor - respondeu Bigaloe, piscando rapidamente o olho a Simon. - No lugar que desejarem.

- Boa! - proferiu Simon, que disparou um punho para o ar, soltou um grito e estava para ir direito à limusina se Zoe não o tivesse puxado.

- Mas nós temos carro. E um cão.

- Sim, senhora. O sr. Vane enviou-lhe isto.

Zoe olhou para o bilhete que Bigaloe lhe estendeu, e reconheceu o papel do envelope.

- Fica aqui, Simon - ordenou ela, e soltou-lhe a mão para abrir o envelope.

A folha de papel dizia apenas:

"Também não discutas desta vez."

- Mas não vejo porque... - começou ela, desconcertada e vencida pelo pedido desesperado que via nos olhos de Simon.

- Saímos dentro de poucos instantes, sr. Bigaloe.

- Demore o tempo que for preciso, minha senhora. Assim que ela fechou a porta, Simon deu-lhe um abraço.

- Isto é de mais!

- Sim. De mais.

- Podemos ir já? Podemos?

- Está bem. Vai buscar o teu blusão e o presente que fizemos para o Bradley. Preciso da minha carteira - "e dos sapatos", pensou. Parece que, afinal, a escolha recairia sobre os brincos de marcassite.

Assim que saíram de casa, Simon foi direitinho ao automóvel, e parou para acenar animadamente aos Hanson, que se encontravam no pórtico de entrada.

- Vamos andar de limusina! Não é o máximo? com um sorriso largo, o sr. Hanson acenou de volta.

- Como uma estrela de rocke. Quero saber tudo amanhã.

- Está bem. Este é o sr. Bigaloe - anunciou Simon quando o motorista abriu a porta. - Vai levar-nos a casa do Brad. Estes são o sr. e a sr.a Hanson. São os vizinhos do lado.

- Prazer em conhecê-los - disse Bigaloe, tirando o chapéu, e oferecendo uma mão a Zoe. - O cão pode vir comigo, se achar bem.

- Oh. Bem, se não o incomodar.

- Olha para aquilo, John - proferiu a sr.a Hanson, apertando rapidamente a mão do marido. - Parece a Cinderela. Só espero que a nossa menina seja suficientemente inteligente para não fugir quando o relógio bater a meia-noite.

Havia pequenos vasos de vidro com flores frescas ao lado das janelas pintadas. E algumas luzinhas, semelhantes a luzes decorativas, dispersas pelo chão e pelo tejadilho.

Havia um aparelho de televisão e uma aparelhagem, e botões para accionar tudo num painel mesmo por cima da cabeça dela.

Tudo cheirava a cabedal e a lírios.

Simon trepou logo por cima do longo assento lateral, para espreitar pela abertura da cabina da limusina e encher Bigaloe de perguntas.

Zoe não teve coragem de o impedir. Além de que isso lhe permitia ter alguns instantes para se adaptar.

A partir daí, desistiu. Levaria um ano a adaptar-se.

Simon voltou para o seu lugar.

- O Moe gosta de ir à frente, e o sr. Bigaloe deixa-o pôr a cabeça fora da janela. E o sr. Bigaloe diz que eu posso tocar em tudo o que quiser, porque sou o patrão. E posso tirar uma gasosa daquele frigorífico se tu deixares, porque tu és a minha patroa, e eu posso ver televisão! Dentro do carro. Posso?

Zoe olhou para o seu rosto vivo e deslumbrado. Num impulso, tomou aquele rosto nas suas mãos e deu-lhe um beijo sonoro nos lábios.

- Sim, podes beber uma gasosa. Sim, podes ver televisão dentro do carro. E olha, olha para mim. Podes acender e apagar as luzes. E repara, há ali um telefone.

- Vamos telefonar a alguém.

- Telefona tu - disse ela, pegando no telefone e passando-lho.

- Telefona à sr.a Hanson. Não achas que ela vai adorar?

- Está bem. vou tirar uma gasosa, ligar a televisão e telefonar-lhe para lhe contar tudo.

Ela riu-se com ele, brincou com os comandos e bebeu uma gasosa para poder dizer que tinha bebido.

Quando chegaram a casa de Brad, ela pegou na mão de Simon antes que ele tivesse oportunidade de pôr a mão na pega da porta.

- É o sr. Bigaloe que deve abrir a porta - informou ela, baixinho. - Faz parte das suas obrigações.

- Está bem - quando a porta se abriu, Simon saltou para fora do automóvel e levantou o olhar para Bigaloe. - Foi mesmo bom. Obrigado por nos ter conduzido.

- Foi um prazer.

- Deve ter percebido que foi a primeira vez que andámos de limusina - afirmou Zoe quando ele a ajudou a sair.

 

- Não me lembro de ter gostado tanto de levar alguém. Estou ansioso por levá-los a casa quando estiverem prontos.

- Obrigada.

- Espera só quando eu contar à malta - disse Simon, pegando na trela e deixando Moe puxá-lo até à porta. - Ninguém vai acreditar.

Antes que Zoe tivesse tempo de lhe dizer para bater, ele já tinha aberto a porta e começara a gritar por Brad.

- Brad! Vimos televisão dentro do carro, telefonámos à sr.a Hanson e bebemos gasosa. E o Moe foi à frente.

- Parece ter sido um passeio muito preenchido.

- Simon, devias bater à porta. Moe!

O cão entretanto desatara a correr para a sala principal e para o sofá.

- Não faz mal - disse-lhe Brad quando Moe saltou para cima das almofadas e se estendeu como um sultão peludo. - Temos vindo a habituar-nos a tê-lo aqui.

- Trouxemos-te uma prenda - disse Simon, a dançar no mesmo lugar e atirando a caixa para as mãos de Brad. - Fui eu e a mãe que o fizemos.

-Ai sim? Então vamos para a cozinha abri-lo. Deixem-me só ir pendurar os vossos casacos.

- Eu posso ir. Sei onde é - ofereceu-se Simon, tirando o blusão e saltitando até Zoe lhe passar o seu. - Só podem abrir a prenda quando eu chegar.

- Está bem.

- É uma maneira de agradecer teres mandado o automóvel começou Zoe, enquanto se dirigiam para a cozinha. - O Simon nunca mais se vai esquecer disto. Foi uma grande emoção para ele.

- Gostaste do passeio?

- Estás a brincar?! - exclamou ela, soltando uma gargalhada que ainda continha vestígios de estupefacção. - Foi como ser uma princesa por vinte minutos. Só que, como brincámos com todos os botões e com a televisão, acho que foi mais como ser uma criança durante vinte minutos. Mas não era preciso fazeres uma coisa dessas, teres tanto trabalho.

- Não foi trabalho nenhum. Fi-lo por gosto. Sabia que o Simon ia ficar todo entusiasmado, e não quis preocupar-me com o facto de teres de conduzir sozinha à noite. - Além disso - acrescentou ele, enquanto tirava uma garrafa de um balde de prata -, queria que tivesses a oportunidade de te descontraíres e apreciares este bom champanhe.

- Oh. Mesmo sem o bilhete que enviaste, seria difícil opor-me a tudo isto.

- Ainda bem - disse ele, abriu a garrafa com um estrondo animado e estava a servir a segunda taça quando Simon entrou a correr, com Moe atrás.

- Tens de abrir a prenda agora. É um presente bem-vindo.

- Um presente de boas-vindas - corrigiu Zoe, e passou o braço, como fazia frequentemente, à volta dos ombros de Simon.

- Uma prenda atrasada de boas-vindas pelo teu regresso ao Vale.

- Vamos lá ver o que temos aqui - proferiu ele, e abriu o laço sentindo-se um pouco disparatado, pois já sabia que ia guardar a fita branca de renda e o raminho de pequenas flores vermelhas que ela prendera nele. Zoe tinha ainda estampado ou pintado em stencil silhuetas dessas flores na caixa castanha simples, e pusera a prenda lá dentro, envolta num ninho de papel branco e fino polvilhado de purpurina.

- Sabes mesmo embrulhar prendas.

- Quando se oferece uma prenda, deve ter-se o cuidado de a tornar bonita.

Brad tirou a vela tricolor enfiada num castiçal baixo e transparente.

- É linda - comentou, e cheirou-a. - Tem um aroma magnífico. Foram vocês que a fizeram?

- Nós gostamos de fazer coisas, não é, mãe? É só derreter a cera e acrescentar os aromas. Fui eu quem os escolheu.

- É para o Dia de Acção de Graças - explicou Zoe. - A camada de cima é tarte de maçã, e a do meio é arando, com pinheiro de Natal em baixo. Tem um azulejo para pousar por baixo. O fundo do castiçal fica muito quente.

Brad pegou no azulejo branco com arandos pintados nos cantos.

- A mãe pintou os arandos, e eu pus o vidrado.

- Está lindo - comentou ele, pousando o azulejo na bancada e a vela em cima. A seguir, inclinou-se para dar um abraço a Simon. Quando voltou a endireitar-se, sorriu para o rapaz.

- Não sei se queres olhar para outro lado.

- Porquê?

- Vou beijar a tua mãe.

- Bah! - embora Simon tapasse a cara com as mãos, sentiu uma impressão na barriga.

- Obrigado - agradeceu Brad, e deu um beijo ao de leve nos lábios de Zoe. - Caminho livre, miúdo.

- Vais acender a prenda? - indagou Simon.

- Vou - respondeu Brad, tirando um utensílio esguio da gaveta para acender o pavio. - Tem óptimo aspecto. Onde é que aprenderam a fazer velas?

- Foi uma coisa que eu arranjei. Tenho andado a fazer experiências. Estava à espera de melhorar o suficiente para montar uma linha de velas, pot-pourri e coisas do género, para ter no cabeleireiro.

- Eu podia ter uma coisa desse género na HomeMakers. Zoe olhou para a sua vela.

- Podias?

- Vamos ter muitos outros artigos do género das velas decorativas a seguir à expansão. Vais ter de me mostrar algumas das outras que fizeram, e depois conversamos.

- Posso ir até à sala dos jogos? - perguntou Simon. - Trouxe o Smackdown, para podermos ter a desforra.

- Claro que sim. Há outro jogo instalado. Podes trocar.

- Vens jogar agora?

- Tenho de começar a preparar o jantar, mas tu podes ir aguçando o apetite. Quero que tenhas fome. Mandei vir as pernas de rã de avião por tua causa.

- Blargh!

- Pernas de rã gigante. Vindas de África.

- Nem pensar.

- Ou então podemos só comer bife.

- Bife de rã!

- com certeza.

Fingindo que dava um grito, Simon desatou a correr para fora da cozinha.

- Tens imenso jeito para ele - comentou Zoe.

- Ele também facilita as coisas. Porque não te sentas e... - começou Brad, mas parou ao ouvir-se um novo grito de Simon, vindo da sala de jogos. - Ele descobriu o jogo novo.

- Bradley. - Hum?

- Tenho de te pedir que me prometas uma coisa. Não digas já que sim - acrescentou ela, por prudência, girando o copo pelo pé enquanto observava o rosto dele. - É importante e, se levares o tempo necessário a pensar no assunto, acredito que manterás a tua palavra.

- O que queres que prometa, Zoe?

-O Simon... ele é tão chegado a ti. Ele nunca teve... ninguém como tu a dar-lhe atenção, pelo menos deste modo. Por isso, ele começa a depender da tua atenção. Preciso que prometas que, aconteça o que acontecer connosco, como quer que corra a nossa relação, não te irás esquecer dele. Não me refiro a andar de limusina. Estou a pedir-te que me prometas que não deixarás de ser amigo dele.

- Ele não é a única pessoa que está a contar com isso, Zoe. Posso perfeitamente fazer-te essa promessa - afirmou, estendendo-lhe a mão. - Tens a minha palavra de honra.

Ela aceitou a mão e apertou-a até a tensão que surgira dentro dela ao fazer o pedido se dissolver.

- Pronto. Bem - disse ela, olhando para a cozinha. - O que é que eu posso fazer?

- Podes ficar sentada a beber o teu champanhe.

- Devia ajudar a fazer essas pernas de rã africana.

Ele passou-lhe a mão por detrás do pescoço e deu-lhe um beijo, embora não propriamente ao de leve nem com tanta displicência como quando Simon se encontrava na cozinha.

- Senta-te a beber o teu champanhe - repetiu, e deu-lhe um piparote no lóbulo da orelha. - Bonitos brincos.

Ela soltou uma gargalhada breve e logo abafada.

- Obrigada - embora achasse que devia ajudar, sentou-se num banco do bar. - Vais mesmo cozinhar?

- Vou fazer um grelhado, o que é completamente diferente. Todos os homens da família Vane sabem grelhar. Se não soubessem, seriam expulsos da família.

- Vais fazer um grelhado? Em Novembro?

 

- Nós, os Vane, fazemos grelhados durante todo o ano, mesmo que tenhamos de abrir caminho por entre o gelo ou fortes nevões, correndo o risco de congelar. No entanto, parece que tenho aqui um utensílio bastante prático mesmo à mão.

- Já os vi nas revistas - disse ela, e ficou a vê-lo acender o grelhador incorporado na parte de cima do fogão. - E na televisão, em alguns programas de culinária.

Brad colocou batatas já enroladas em folha de alumínio a volta da chama.

- Não podes é dizer ao meu pai que usei isto em vez de ir lá para fora como um homem.

- Os meus lábios não se abrirão - prometeu ela, e bebeu um gole de champanhe enquanto se dirigia para o frigorífico e tirava de lá uma travessa de aperitivos. - Foste tu quem preparou isto?

Ele reflectiu durante alguns instantes, enquanto ela pousava a bandeja na bancada à sua frente.

- Eu podia mentir e impressionar-te, mas em vez disso vou surpreender-te com a minha honestidade. São do Luciano's, tal como a bomba de chocolate para a sobremesa e as caudas de lagosta.

- Caudas de lagosta? Luciano's? - repetiu ela, escolheu um dos canapés, introduziu-o entre os lábios, e soltou um gemido enquanto os paladares se misturavam na sua língua.

-bom?

- Fantástico. É tudo fantástico. Estou a tentar perceber como é que a Zoe McCourt está aqui sentada a comer canapés do Luciano's. Não parece ser realidade. Estás a tentar deslumbrar-me, Bradley. E está a resultar.

- Gosto de te ver sorrir. Sabes qual foi a primeira vez que sorriste mesmo para mim? Quando te dei um escadote.

- Já tinha sorrido para ti antes disso.

- Não. Nem por isso. Deus sabe bem como eu queria que sorrisses, mas tu parecias apostada em perceber tudo mal e em ofenderes-te sempre que eu abria a boca.

- Isso é... - começou ela, e soltou uma gargalhada. - Provavelmente verdade.

- Mas eu consegui conquistar-te astutamente, ou pelo menos comecei, com um escadote de fibra de vidro.

- Não sabia que era uma armadilha. Pensei que estavas a ser atencioso.

- Foi uma armadilha atenciosa. Precisas de mais champanhe. Ela ficou a reflectir enquanto ele foi buscar a garrafa.

- Tu intimidavas-me.

- Perdão?

- Tu intimidavas-me, e ainda intimidas, um pouco. E a casa intimidava-me. Da primeira vez que aqui vim, para vir ter com a Malory, e te vi. Entrei numa casa enorme e magnífica, e vi o quadro que tinhas comprado.

- Depois do Feitiço.

 

- Sim. E foi um choque vê-lo, e estar aqui. Senti a cabeça a andar à roda. Disse qualquer coisa acerca de ter de voltar para casa por causa do Simon, o meu filho, e tu olhaste para a minha mão e reparaste que eu não usava aliança.

- Zoe...

Ela abanou a cabeça.

- E tinhas uma expressão no rosto. Isso desconcertou-me.

- Pelos vistos, tu começaste a desconcertar-me logo desde o início - pensando melhor, Brad resolveu voltar a encher o copo.

- Vou falar-te do quadro, e isso irá dar-te uma grande vantagem nesta relação que estamos a iniciar.

Encontro. Relação. A cabeça dela ia começar outra vez a andar à roda.

- Não percebo o que queres dizer com isso.

- Vais perceber. Quando eu vi aquele quadro pela primeira vez, bem, foi uma surpresa. Ali estava a Dana, a irmã mais nova do meu melhor amigo. Uma pessoa de quem gostava muito.

Encostou-se ao bar, descontraidamente elegante com a sua camisola preta e a vela caseira a brilhar entre eles.

- E lá estava a Malory. É claro que eu ainda não a conhecia, mas houve qualquer coisa que me fez parar para pensar, para ver com mais atenção.

Brad parou, e colocou dois dedos por debaixo do queixo de Zoe.

- E depois vi esta cara. Esta cara incrível. Só de olhar para ela ficava sem conseguir respirar. Fiquei fascinado por aquela cara. Tinha de possuir aquele quadro. Teria dado tudo por ele.

- Faz parte da associação - proferiu ela, com a garganta seca mas sem conseguir erguer o copo para beber. - O quadro estava-te destinado.

- Talvez seja verdade. Acabei por acreditar que sim. Mas não era isso que queria dizer. Eu tinha de ter o quadro porque tinha de poder olhar para aquele rosto. Para o teu rosto. Conhecia-o de todos os ângulos. A forma dos olhos, da boca. Passei imenso tempo a observar aquela cara. Até que tu entraste na sala naquele

dia, e eu fiquei estupefacto, a pensar: "Ela acordou, saiu do quadro e agora está aqui."

- Mas não sou eu que estou representada naquele quadro.

- Chiu. Não conseguia pensar. Durante alguns instantes, só conseguia ouvir o meu coração a bater. Enquanto tentava pensar, enquanto tentava não te agarrar só para me convencer de que não te ias desvanecer como o fumo, toda a gente conversava. Eu tinha de falar contigo, tinha de fingir que estava tudo normal quando o mundo me tinha pregado uma enorme partida de um momento para o outro. Não podes imaginar o que se estava a passar dentro de mim.

- Não. Acho... que não - concluiu ela.

- Tu disseste que tinhas de ir para casa por causa do teu filho, e quando disseste isso foi o mesmo que me tivesses dado um golpe na garganta. Como é que ela podia pertencer a alguém antes de eu ter uma oportunidade? Por isso olhei para a tua mão, vi que não usavas aliança, e pensei: "Graças a Deus, ela não pertence a mais ninguém."

- Mas nem sequer me conhecias.

- Conheço agora - disse ele e, baixando-se, tomou os lábios dela entre os seus.

- Bolas. Agora vais estar sempre a fazer isso?

Brad afastou-se, deu um beijo ao de leve na testa de Zoe, e virou-se para Simon.

- Vou. Mas como não quero que te sintas excluído, também te vou dar um beijo.

Simon fez ruídos como se estivesse para vomitar e afastou-se a dançar para trás do banco da mãe.

- Se tens de beijar alguém, beija-a a ela. Quando é que vamos comer? Estou cheio de fome.

- Há uns belos bifes prontos para irem para a grelha. Então, miúdo, como queres a tua rã?

Depois do jantar e da desforra do jogo de vídeo, quando os olhos de Simon começaram a fechar-se e ele se estendeu no chão

da sala de jogos, Zoe deixou-se deslizar para os braços de Brad. Deixou-se levar pelo beijo.

"A magia existe", pensou. E aquela noite tinha sido mágica.

- Tenho de levar o Simon para casa.

- Fica - pediu ele, esfregando a face contra a dela. - Fiquem os dois.

- Isso é um grande passo para mim - confessou ela, pousando a cabeça no ombro dele. "Seria demasiado fácil ficar", pensou. Deixar-se abraçar assim. Porém, os grandes passos nunca deviam ser dados com ligeireza.

- Não estou a brincar contigo, mas tenho de reflectir no que será mais correcto - "para todos nós", pensou. - Quando me interroguei como teria acabado aqui estava a falar a sério. Tenho de estar segura em relação ao que se seguirá.

- Eu não te vou fazer mal. Não vou magoar nenhum de nós.

- Não tenho receio de que isso aconteça. Não, é mentira. Tenho. Mas também receio poder fazer-te mal. Não te cheguei a contar o que aconteceu ontem à noite. Não queria falar nisso à frente do Simon.

- O que foi?

- Podemos ir para a outra sala? Para o caso de ele acordar.

- Foi o Kane - afirmou Brad, enquanto a conduzia até à sala principal.

- Sim - anuiu ela, e contou-lhe o que acontecera.

- Era isso que tu querias, Zoe? Viver em Nova Iorque e ter um emprego de grande prestígio?

- Oh, não sei se seria Nova Iorque. Também podia muito bem ser Chicago, Los Angeles, qualquer lugar que parecesse ser importante. Qualquer lugar que não fosse aquele onde me encontrava.

- Porque te sentias infeliz, ou porque havia coisas que desejavas?

Ela começou a responder, e depois parou.

- Pelos dois motivos - compreendeu. - Não sei se pensava que era infeliz, mas acho que o fui durante a maior parte do tempo. O mundo parecia-me tão pequeno e estereotipado no lugar onde eu vivia; da forma como vivia.

O olhar de Zoe passou pelas janelas até ao relvado e à sombria faixa de rio.

- Mas o mundo não é pequeno nem estereotipado. Eu costumava pensar nisso, interrogava-me em relação a tudo isso. Em relação às pessoas e aos lugares.

Surpreendida consigo mesma, Zoe virou-se e viu-o a olhar para ela, firme e tranquilo.

- Seja como for, estou a fugir ao assunto.

- Não me parece. O que é que te fazia feliz?

- Oh, montes de coisas. Não quero que julgues que estava sempre triste o tempo todo. Não estava. Gostava da escola. Era boa nos estudos. Gostava de aprender coisas, de as descobrir. Era particularmente boa nas contas. Fazia a contabilidade e preenchia as declarações de impostos da minha mãe. Pagava as contas. Gostava de fazer isso. Achava que talvez viesse a ser contabilista ou técnica oficial de contas. Ou que podia vir a trabalhar num banco. Queria ir para a universidade, arranjar um bom emprego e ir viver para a cidade. Ter coisas. Ter mais, só isso. Queria que as pessoas me respeitassem, ou que me admirassem, por eu saber fazer as coisas.

Zoe encolheu ligeiramente os ombros e dirigiu-se para a lareira.

- Costumava irritar a minha mãe por causa da maneira como falava nisso e se preocupava com as minhas coisas, porque queria mantê-las em bom estado. Ela dizia que eu me considerava melhor do que os outros, mas não era isso.

As sobrancelhas de Zoe uniram-se enquanto ela olhava para as chamas.

- Não era nada disso. Só queria ser melhor do que era. Achava que, se fosse suficientemente inteligente, podia arranjar o tal emprego e ir viver para a cidade, e aí ninguém olharia para mim e pensaria: "Aquela é a ranhosa da roulotte, a que mora atrás do sol-posto."

- Zoe.

Ela abanou a cabeça.

- Era o que as pessoas pensavam, Bradley. E pensavam isso porque era verdade. O meu pai bebia de mais e fugiu com outra mulher; deixou a minha mãe com quatro filhos, um monte de contas e uma roulotte com duas divisões. A maior parte da minha roupa foi-nos dada por caridade. Tu não sabes o que isso é.

- Pois não. Não sei o que isso é.

- Há pessoas que nos dão coisas por generosidade, mas muitas fazem-no para poderem sentir-se superiores. Para poderem sentar-se confortavelmente e dizer: "Vejam só o que eu fiz por aquela pobre mulher e pelos seus filhos." E isso vê-se-lhes na cara.

Ela lançou-lhe uma olhadela, com o rosto corado de orgulho e de vergonha.

- É odioso. Eu não queria que ninguém me desse nada. Queria conseguir as coisas por mim. Por isso, trabalhava, juntava dinheiro e fazia grandes planos. E depois engravidei.

Zoe olhou para a entrada em forma de arco para se assegurar de que Simon continuava fora do seu campo de audição.

- Só me apercebi disso ao segundo mês. Pensei que estava com gripe ou coisa do género. Só que a gripe não passava, por isso fui ao hospital e eles disseram-me. Já estava com quase nove semanas. Meu Deus, nove semanas inteirinhas, e suficientemente parva para não perceber.

- Eras uma criança. -Uma criança cuja dor ele partilhava agora.

- Não eras nada parva, eras uma criança.

- com idade suficiente para engravidar. com idade para saber o que isso significava. Sentia-me tão assustada. Não sabia o que ia acontecer. Não contei à minha mãe, pelo menos no início. Fui ter com o rapaz. Também ficou assustado, e talvez até um pouco zangado. Mas disse que íamos fazer o que devíamos. Senti-me melhor a seguir. Senti-me mais calma. Então, fui para casa e contei à minha mãe.

Zoe respirou fundo e apertou os dedos contra as têmporas. Não tencionara falar de tudo aquilo, no entanto, agora que começara, tinha de acabar.

- Oh, parece que ainda estou a vê-la, sentada à mesa com a ventoinha ligada. Estava calor, um calor pavoroso. Ela olhou para mim, inclinou-se na minha direcção e deu-me uma bofetada. Compreendo a atitude dela - afirmou Zoe quando Brad praguejou. - E compreendi-a na altura. Compreendo-a agora. Andava a esgueirar-me de casa para estar com aquele rapaz, e tive de pagar por isso. Eu compreendo que ela me tenha dado aquela bofetada, Bradley, foi merecida. Só não compreendo o que veio a seguir. O facto de ela se ter sentido satisfeita por me ver em apuros, tal como lhe tinha acontecido; de ter feito questão de afirmar que eu não era melhor do que ela, apesar de todas as minhas ideias e dos meus planos. Não compreendo que me tenha feito sentir ordinária e transformado num castigo o bebé que eu trazia no ventre.

- Ela estava enganada - disse Bradley, e proferiu-o num tom simples e terra-a-terra que fez Zoe ficar sem fôlego. - O que aconteceu ao pai?

- Bem, ele não fez o que devia, como tinha afirmado. Não me apetece falar sobre isso agora. Na minha pista há uma questão relacionada com as encruzilhadas do caminho. Eu escolhi o rumo que queria seguir nessa altura. Abandonei a escola e fui trabalhar. Tirei o curso geral de estética e a licença de esteticista, e saí de casa.

- Espera aí- disse ele, estendendo uma mão. - Saíste sozinha de casa, aos dezasseis anos? Ainda por cima grávida? A tua mãe...

- Não teve voto na matéria - interrompeu ela. E virou-se para o encarar, com o fogo no rosto. - Saí quando estava grávida de seis meses porque não estava disposta a criar o meu bebé naquela maldita roulotte. Escolhi o meu rumo - afirmou ela -, e talvez tenha sido isso que me colocou no caminho do Vale, do Pico e de tudo isto.

"Talvez tivesse de dizer tudo isto", pensou. Talvez precisasse de retroceder, passo a passo, para ver como tudo se passara. Para ele também ficar a saber.

- Não estaria aqui se tivesse escolhido outro caminho, se não tivesse amado um rapaz e se não tivesse feito um bebé com ele.

Não estaria aqui se tivesse ido para a universidade e arranjado o tal bom emprego, e ido a Roma passar aquela semana. Tenho de perceber o que isso significa, no que diz respeito à chave. Porque eu dei a minha palavra de honra em como tentaria encontrá-la. E tenho de perceber se é por isso que estou aqui, contigo. Porque Deus sabe que não faz sentido para mim estar aqui se não for por isso.

- O que quer que te trouxe aqui faz todo o sentido.

- Ouviste o que eu disse? - indagou ela. - Ouviste alguma palavra do que eu disse acerca das minhas origens?

- Palavra por palavra - retorquiu ele, e atravessou a sala dirigindo-se na direcção dela. - És a mulher mais espantosa que já conheci.

Ela olhou para ele, e a seguir ergueu as mãos, exasperada.

- Não te compreendo mesmo. Também não é para compreender. Mas há uma coisa em que ambos temos de pensar. Porque o mundo não é pequeno nem estereotipado. E, Bradley, não há apenas um mundo a exigir a nossa preocupação.

- Cada mundo dá as suas voltas - afirmou ele, assentindo. - E a sua órbita entrecruza-se com a do outro.

- Sendo assim, és tu a escolha que deverei fazer, ou da qual me devo afastar?

Brad dirigiu-lhe um sorriso, mas um sorriso firme e cheio de vivacidade.

- Tenta afastar-te. Ela abanou a cabeça.

- E se eu me virar para ti e algo surgir entre os dois, algo de real, o que acontecerá se tiver de voltar a escolher?

Ele pousou-lhe as mãos nos ombros, e fê-las deslizar até elas lhe emoldurarem o rosto.

- Zoe, já existe alguma coisa entre nós, e é bastante real. Ela desejou ter a mesma certeza.

Quando voltou de automóvel para casa, através da noite inundada pela luz da Lua em quarto crescente, nada parecia real.

Capítulo 8

Champanhe, lagosta e limusina, oh, meu Deus! -exclamou Dana enquanto colocavam o armário de padaria em ferro forjado na cozinha comum.

- Que estilo - concordou Malory. - Talvez o Brad não se importe de dar ao Flynn umas lições sobre como preparar um jantar para uma mulher.

- Isso é uma parte do problema. Eu sou do tipo cerveja, hambúrguer e quiosque. Foi maravilhoso, absolutamente maravilhoso, só que igualzinho a um sonho bom.

- E que mal é que isso tem? - inquiriu Dana.

- Nenhum - respondeu Zoe, enchendo as bochechas de ar e soprando lentamente para as esvaziar. - Mas começo a ter sentimentos bastante sérios por ele.

- Repito: que mal é que isso tem?

- Deixa ver, por onde hei-de começar? Não somos propriamente do mesmo planeta, eu estou a tentar iniciar um negócio, o que vai implicar dedicar-lhe todos os minutos do dia, e ainda tenho de criar o Simon durante os cerca de dez anos que se seguem. Tenho três semanas para encontrar a última chave da Caixa das Almas, e se estivéssemos a jogar ao quente e frio tinha uma queimadura de gelo no traseiro.

- Sabes, nunca ninguém apanha queimaduras de gelo no traseiro - comentou Dana. - Não sei porque será.

Escolheu uma das bonitas latas de chá que decidira levar e pousou-a numa das prateleiras do armário. Virou a cabeça para um lado e para o outro para avaliar se estaria na posição certa.

- Podemos ver o assunto de um modo mais sério - começou Malory, num tom de voz que se tornou mais seco ao colocar na prateleira uma taça feita à mão pertencente à sua nova colecção.

- Nem o negócio nem o Simon constituem um motivo para não teres um homem na tua vida, se te sentires atraída por ele. Se acreditares que é um homem bom.

- É claro que me sinto atraída por ele. Até uma mulher em coma se sentiria atraída por ele. E ele é um homem bom. Eu não quis acreditar que era, mas é muito bom.

Zoe colocou uma das suas velas com fragrâncias na prateleira.

- Seria menos complicado se não fosse. Aí, era provável que eu conseguisse arranjar tempo para um caso tórrido e excitante, e depois afastávamo-nos os dois sem remorsos.

- Porque é que já estás a pensar em afastamento e em remorsos? - perguntou-lhe Malory.

- Tenho tido uma constante na minha vida, que é o Simon. Agora tenho outra, que são vocês as duas. Ambas constituem milagres. Não estou a contar com uma terceira.

- Ainda dizem que eu sou pessimista - murmurou Dana. Bem, vou dar-te uma ideia - afirmou, enquanto pousava mais uma caixa no armário. - Pensa que o Brad é um rapaz crescido, e que, por isso, se decidirem os dois ter esse caso tórrido e excitante, são os dois responsáveis pelo que sair daí. Ah, e não te esqueças de nos ir contando todos os pormenores. A seguir, não te esqueças de que podes ter de estar a postos para esta parte da demanda, mas nós as três formamos uma equipa, o que significa que não és a única a enfrentar a queimadura de gelo neste momento.

- Bem pensado - concordou Malory, enquanto pousava uma travessa pintada à mão no armário, e assentiu com ar de aprovação enquanto olhava para o frasco de farmácia com loção para as mãos que Zoe acrescentou. - Acho que está na altura de uma reunião oficial. Vamos pôr seis magníficas cabeças a pensar em conjunto e ver que tipo de ideia genial sairá daí.

- Talvez desentupa e me tire deste maldito impasse - disse Zoe, e acrescentou um prato de sabonete elegante, mais uma

vela, e recuou para Malory pousar uma jarra comprida e elegante e um par de castiçais de porcelana no armário.

- Não estás propriamente parada - discordou Dana. - Estás a colocar hipóteses, a pensar nas coisas, a alinhar ideias. As coisas estão a tomar forma, tal como este armário. Uma coisa aqui, outra ali, e a seguir dás um passo atrás para ver o conjunto, para avaliar o que é preciso acrescentar ou ajustar.

- Espero bem que sim. Precisa de livros - comentou Zoe, acenando com a cabeça para o armário.

- A primeira encomenda chega para a semana - anunciou Dana, passando para ao lado dela e repousando um cotovelo no ombro de Zoe. - Bem, eu sei que é só um armário de cozinha, mas está lindíssimo!

- É parecido connosco - contente, Malory passou um braço à volta da cintura de Zoe. - E sabes o que vai ficar ainda melhor? Quando as pessoas começarem a comprar.

No piso superior, Zoe pôs-se de pé no escadote para pendurar os armários de arrumação em cima dos lavatórios. Enquanto trabalhava, ia assinalando as tarefas que destinara para si mesma ao longo dessa semana.

Precisava de despender de mais tempo ao computador. Não só para investigação, mas também para experimentar fazer o design da lista de serviços do cabeleireiro e spa de dia.

Pensou se conseguiria arranjar papel da cor do lambrim. Um papel distinto.

 

Ia ter também de decidir, de uma vez por todas, quais seriam os preços. Iria baixá-los em vários dólares em relação à sua concorrente na cidade, ou aumentar alguns dólares em relação a ela e tirar lucros consideráveis?

Zoe estava a usar produtos de melhor qualidade do que o outro salão de cabeleireiro da cidade, e eles eram mais dispendiosos. Por outro lado, estava certa de oferecer à clientela um ambiente mais atraente.

Além de que o outro salão não servia a clientela - "os clientes", corrigiu; "clientes" era uma expressão mais sofisticada. O outro salão não servia às clientes água mineral com gelo ou chávenas de chá de ervas, como ela tencionava fazer. Nem lhes proporcionava um rolo quente com ervas aromáticas, para repousarem o pescoço enquanto estavam a arranjar as mãos.

Zoe pendurou o armário, passou o braço pela testa para enxugar o suor, e começou a descer do escadote.

- Que bela tonalidade.

Apanhada desprevenida, Zoe agarrou-se ao escadote e olhou para Rowena.

- Não te ouvi... - Teria aparecido pura e simplesmente, vinda do nada?

- Desculpa - disse Rowena, e os seus olhos dançaram ao adivinhar os pensamentos de Zoe. - A Malory e a Dana pediram-me para vir logo que possível. Estive lá em baixo a admirar o trabalho das três. Queria ver o vosso espaço. Como disse, as cores são maravilhosas.

- Queria que tivessem um ar divertido.

- E conseguiste. E o que é que eu vim interromper?

- Oh, tinha acabado agora mesmo. Armários para arrumar champôs, cremes e coisas do género. Os meus lavatórios vão ficar ali.

-Ah!

- E, bem, as bancadas dos cabeleireiros - proferiu, apontando. - Os secadores fixos acolá, a recepção, a sala de espera. Vou pôr um sofá, meia dúzia de cadeiras e um banco estofado. E aquela sala acolá, que faz uma esquina, é para a manicura. Encomendei uma cadeira de massagem aquecida para aquilo que tenciono designar por Pedicura Indulgence. A pedicura convencional vai ser boa, mas esta vai arrasar. Incluirá... bem, isto não te deve interessar.

- Antes pelo contrário - afirmou Rowena enquanto deambulava para ver a área, e a seguir passou a outra sala. - E isto?

- É uma das salas de tratamentos. Massagens ou tratamentos faciais. Do outro lado é a parte dos envolvimentos. Vou ter um envolvimento de desintoxicação e um tratamento com parafina excelente. E vou utilizar a casa de banho grande para tratamentos de esfoliação.

- É um programa muito ambicioso.

- Ando a planear isto na minha cabeça há muito tempo. Até me custa a crer que se está mesmo a concretizar. Tencionamos abrir a 1 de Dezembro. Rowena, eu não me esqueci da chave. Só que ainda não descobri a resposta.

- Se fosse fácil não seria importante. Sabes bem disso - acrescentou Rowena, e deu uma palmadinha distraída no ombro de Zoe enquanto voltava para a sala principal. - Nada disto foi fácil.

- Não, mas foi apenas trabalho. Passo a passo - explicou ela, sorrindo um pouco quando Rowena se virou, erguendo o sobrolho. - Está bem, já percebi. Passo a passo.

- Diz-me, como está o teu filho?

- O Simon está bem. Hoje ficou com um amigo. Jantámos ontem em casa do Bradley.

- Jantaram? Tenho a certeza de que foi agradável.

- Eu sei que há coisas que não me podes dizer, mas não é por isso que deixarei de perguntar. E, se pergunto, não é por mim. Não tenho receio de correr riscos.

- Sim, não imaginei que tivesses. Já correste bastantes.

- Tive a minha conta. Eu concordei em envolver-me nisto, tal como a Malory e a Dana. Porém, o Bradley não. Quero saber se há alguma coisa que o faça ter sentimentos por mim, sentimentos que me possam servir para encontrar a chave.

Rowena parou diante de um espelho. Ajeitou os cabelos num gesto feminino intemporal.

- Porque havias de pensar isso?

- Porque ele está apaixonado pelo retrato, pelo rosto de Kyna no retrato, e acontece que eu sou parecida com ela.

Rowena tirou um frasco de champô de uma caixa e pôs-se a observá-lo.

- Tens-te assim em tão pouca conta?

- Não. Não estou a dizer que ele não possa estar ou não esteja interessado em mim. Na minha pessoa. Só que foi o quadro que desencadeou nele esse sentimento.

- E ele comprou o quadro, e escolheu o seu caminho. O caminho que ia dar a ti - afirmou ela, voltando a tapar o frasco. Interessante, não é?

- Preciso de saber se a opção foi tomada por ele.

- Não é a mim que tens de perguntar. E tu não estás pronta para acreditar nele, caso ele responda - replicou ela, abrindo outro frasco para o cheirar. - Queres que te prometa que ele não vai sair magoado. Não posso fazer isso. E acredito que ele se sentiria insultado se soubesse que fizeste uma pergunta dessas.

- Então vai ter de se sentir insultado, porque eu tinha de perguntar - disse Zoe, erguendo as mãos para depois as deixar cair. Provavelmente, também não interessa. O Kane não se preocupa comigo. Pensávamos que ele podia aparecer, todo apetrechado, mas limitou-se a dar-me um piparote, como faria a uma mosca. Não me parece que esteja assim tão preocupado com a possibilidade de eu poder encontrar a chave.

- E assim, ao ignorar-te, vai destruindo a tua autoconfiança. Estás a facilitar-lhe a vida.

Zoe ficou surpreendida pelo tom de Rowena, como se não ligasse ao assunto.

- Eu não disse que ia desistir - começou ela, e depois parou para expirar. - Credo, ele tem-me mais na mão do que eu pensava. Anda a manipular-me. Durante a maior parte da minha vida, as pessoas ou me ignoravam ou me diziam que eu não era capaz de fazer o que mais desejava.

- Mas tu provaste que elas estavam enganadas, não foi? Prova-lhe agora que ele se enganou.

A alguns quilómetros dali, na cafetaria da Rua Principal, Brad mudou de posição para Flynn poder entrar na cabina ao lado dele. Do outro lado da mesa, Jordan tinha as suas pernas compridas

esticadas e observava já a ementa, composta numa folha de papel plastificado.

- Essa ementa não muda há uns sessenta anos, pá! - comentou Flynn. - Já devias conhecê-la de cor. E salteado - acrescentou, e, como o café de Brad já estava na mesa, bebeu um gole.

- Porque é que te sentas sempre ao meu lado e bebes o meu café? Porque nunca te sentas ao pé dele e não bebes o café dele?

- Adoro a tradição - respondeu ele, sorrindo para a empregada que se aproximava com uma caneca e a cafeteira. - Olá, Luce, vou comer a sanduíche de rolo de carne.

Ela assentiu e anotou o pedido.

- Ouvi dizer que tinhas estado na reunião da câmara esta manhã. Alguma novidade?

- Só as balelas do costume.

Ela deu uma risadinha e lançou uma olhadela para Jordan.

- E tu, matulão?

Quando ela se afastou com os pedidos, Flynn recostou-se no lugar e inclinou a cabeça na direcção de Brad.

- Então, já sabias que aqui o importante sr. Vane enviou a sua limusina de um quilómetro para ir buscar a namorada para jantar ontem à noite?

- Não digas. Exibicionista.

- Só tinha meio quilómetro, e como raio é que soubeste?

- Eu cheiro as notícias à distância - replicou Flynn, tamborilando com um dedo na narina. - No entanto, as minhas fontes não conseguiram confirmar se o exibicionismo lhe deu alguma vantagem.

- Ganhei ao miúdo no Smackdown, mas ele arrasou-me no Grand Jheft Auto.

- Andas a tentar ganhar pontos perante a mãe - concluiu Jordan. - Aposto que o miúdo ficou encantado por andar de limusina.

- Ficou. E a Zoe também. Lembram-se do que ela disse no outro dia, que nunca se deitou numa rede? - A sua expressão ensombrou-se quando ele retirou o café a Flynn. - Como é que uma pessoa pode passar a vida inteira sem se deitar numa rede?

 

- E agora queres comprar-lhe uma, para ela se deitar - depreendeu Flynn.

- Acho que sim.

- O que faz com que tu, vejamos... - começou Jordan, olhando para o tecto... sim, isso era limpinho-a seguir, adquiriu um tom mais sério. - Ela é uma mulher fantástica. Merece um descanso, alguém que assuma parte do seu fardo.

- Anda a trabalhar para isso. No caso da tua mãe, se tivesse aparecido alguém que quisesse ter uma relação com ela, achas que isso te tinha incomodado?

- Não sei. Nunca ninguém tentou... pelo menos ela não deixou que ninguém tentasse. Não tenho a certeza. Acho que isso dependeria de quem fosse, e da maneira como essa pessoa a tratasse. As coisas são assim tão sérias?

- Estão a ir por esse caminho, pelo menos para mim.

- Voltámos ao início - comentou Flynn. - Nós os três, e elas as três. Fica tudo muito arrumadinho.

- Se calhar, às vezes as coisas são para ficarem arrumadas.

- Eu sei disso. Não se esqueçam de que estou noivo da rainha da arrumação. No entanto, acho que isso é um assunto a pensar. O papel que desempenhas nesta produção onde estamos inseridos - constatou Flynn com um ar muito prosaico.

E deixou a ideia assentar enquanto serviam as sanduíches.

- Tenho andado a pensar no assunto - confessou Brad. - Parece-me que a pista se refere, em grande medida, a coisas que aconteceram com ela, ou a algo que ela fez antes de me conhecer. Só que essas mesmas pistas também se podiam aplicar a coisas que aconteceram comigo, ou a coisas que eu fiz antes de a conhecer. Foram essas coisas que me trouxeram de volta até aqui.

- Caminhos diferentes, mas um mesmo destino - afirmou Jordan, assentindo. - É uma teoria. Agora os nossos caminhos cruzaram-se.

- Aquilo que tu fazes agora, essa é uma das questões - sugeriu Flynn. - Mas também onde estás. A deusa com uma espada indica um combate.

- Ela não vai travá-lo sozinha - prometeu Brad. - Nos quadros, a espada está embainhada. No meu está embainhada e colocada junto a ela, dentro da urna, e no do Pico está embainhada e ela leva-a à cintura.

- Também está embainhada na pedra no retrato que Rowena fez de Artur - acrescentou Jordan.

- Ela nunca teve oportunidade de a retirar da bainha - afirmou Brad, recordando a imagem do rosto branco e tranquilo no retrato. - Talvez nos compita dar-lhe essa oportunidade.

- Se calhar, a Malory devia dar mais uma vista de olhos aos retratos - sugeriu Flynn. - Para ver se lhe falhou alguma coisa. Não...

- Não te esqueças do que ias a dizer - pediu Jordan quando o seu telemóvel começou a tocar. Abriu a tampa e sorriu ao ver o número. - Olá, boneca - disse, e pegou no seu café. - Hum, hum. Acontece que os meus sócios estão comigo no escritório neste preciso momento. Posso, sim - afirmou passado um minuto, e a seguir afastou o telefone do ouvido.

- Reunião às seis, em casa do Flynn. Tenho sinais afirmativos comunicou para o telefone. - Para mim, pode ser. A Zoe vai fazer chili - disse ele aos amigos.

- Pede à Dana para dizer à Zoe que a vou buscar.

- O Brad pede para dizeres à Zoe que ele a vai buscar. Vamos passar por aí a dar-vos uma ajuda esta tarde... Está bem, então depois vemo-nos em casa. Ah, então, Dana? O que é que trazes vestido?

Ele sorriu, e voltou a meter o telemóvel no bolso.

- Deve ter-se desligado.

Enquanto o chili estava a fazer, Zoe espalhou os seus papéis e apontamentos em cima da mesa da cozinha. A casa estava em silêncio, para variar. Era altura de tirar vantagem disso.

Talvez tivesse tentado ser demasiado organizada, imitando o estilo de Malory; ou apoiado demasiado nos livros, tentando seguir as pisadas de Dana. Porque não tentar adoptar nesta tarefa a intuição e a impulsividade que usara noutros projectos?

Deveria ela proceder tal como fazia quando queria escolher tinta nova para as paredes ou outro tecido para as cortinas? Espalhava um monte de amostras e punha-se a olhar para elas até haver alguma coisa que lhe chamasse a atenção.

Foi então que percebeu.

Ela tinha os apontamentos cuidadosamente anotados, fotocópias de Malory e de Dana. Tinha o fluxo detalhado dos acontecimentos de Jordan, e as fotografias que Malory tirara dos quadros.

Pegou no bloco de apontamentos que comprara no dia a seguir à visita ao Pico do Guerreiro. Já não parecia tão novo. Tinha um ar usado. E talvez fosse melhor assim.

"Há muito trabalho dentro deste bloco", recordou ao passar as páginas. Muitas horas, muito esforço. E esse trabalho, essas horas, tinham ajudado Malory e Dana a completar as suas partes da demanda.

Havia ali algo que a iria ajudar a completar a sua parte, e a concluí-la.

Abriu o bloco de apontamentos ao acaso, e começou a ler.

"Kyna, a guerreira", escrevera ela. "Porque será que ela me calhou? Consigo ver Venora, a artista, na Malory, e Niniane, a escriba, na Dana. Mas em que medida sou uma guerreira ?

Eu sou cabeleireira. Não, especialista de pele e cabelos - não me posso esquecer disso. Trabalhei para isso. Sou bastante trabalhadora, mas isso não é o mesmo que lutar.

À Malory calhou a beleza, à Dana, o conhecimento. Eu tenho a coragem. Onde encaixa a coragem?

Será apenas viver? Isso não parece ser suficiente."

Reflectindo, Zoe bateu com o lápis na folha, e a seguir marcou-a dobrando um canto. Folheou a secção até chegar a uma folha em branco.

"Talvez seja suficiente apenas viver. A Malory não teve de escolher entre viver no mundo real... sacrificar parte da beleza, e a Dana não teve de aprender a ver a verdade e a viver com ela? Esses foram passos essenciais nas suas demandas. Qual será a minha?"

Zoe começou a escrever mais depressa, tentando encontrar um paradigma, tentando formar um padrão. À medida que as ideias e possibilidades lhe foram surgindo na mente, pôs o lápis de lado e procurou outro.

Quando esse ficou com a ponta gasta, levantou-se da mesa para afiar os lápis.

Satisfeita quando as pontas ficaram afiadas, colocou um lápis atrás de cada orelha e foi até ao fogão mexer o chili e reflectir.

Talvez estivesse no caminho certo, ou então talvez não... o facto é que ainda não conseguia ver o fim da estrada. Contudo, seguia numa direcção qualquer, e isso já era importante.

Deixando a mente deambular, pegou na colher para provar o chili, e olhou para o seu reflexo baço na tampa do fogão.

Tinha os cabelos compridos pelos ombros, adornados com uma faixa larga e dourada, com uma pedra escura em forma de diamante no centro. Os seus olhos eram mais dourados do que castanhos. Muito claros, muito directos.

Viu o verde do vestido, no mesmo tom escuro da floresta, e uma alça de cabedal castanho no ombro. Reparou no brilho prateado de uma bainha de espada na cintura.

Havia árvores frondosas cobertas de pérolas de orvalho matinal, que reflectiam os raios de sol. E por entre as árvores havia caminhos.

Sentiu a madeira suave do cabo da colher na mão, sentiu o cheiro que vinha da panela.

"Isto não é uma alucinação", disse para si mesma. "Não é imaginação."

- O que estás a tentar dizer-me? O que queres que eu veja? A imagem recuou, para Zoe se ver por inteiro: a constituição

esguia, umas botas nos pés. Permaneceram assim durante mais alguns instantes, a olhar uma para a outra. Depois a figura virou costas, pôs-se a caminhar por entre a névoa, entrou na floresta e, com a mão na bainha da espada, começou a trilhar um caminho agreste.

- Não sei o que isso significa. Raios! - frustrada, Zoe bateu com o punho na tampa do fogão. - Que raio é que isto significa?

Virando rapidamente o punho, desligou o bico do fogão. Estava prestes a chegar ao limite da sua paciência para com os deuses.

Brad parou no caminho de acesso à casa de Zoe um pouco mais cedo do que o necessário. Imaginou que os homens que navegavam na onda veloz do amor, da luxúria, da paixão - do que quer que estava a acontecer com ele - tinham tendência a aparecer mais cedo para verem as mulheres por quem estavam obcecados.

Não ficou surpreendido ao ver Zoe sair de casa antes de ele ter tempo de desligar a chave na ignição. Conhecia-a há tempo suficiente para saber que era uma pessoa fiável.

Além disso, viu-a carregada com uma mochila, um enorme saco que carregava ao ombro e uma grande panela.

- Deixa-me ajudar-te - ofereceu-se ele enquanto saía do carro.

- Não preciso de ajuda.

- Precisas sim, a menos que tenhas mais alguém aí dentro desse saco.

Brad pegou na panela e ficou ligeiramente surpreendido quando a sentiu tentar puxar a panela de volta.

- Sabes, de vez em quando era agradável que ouvisses o que eu digo, para variar - disse ela, e escancarou a porta da bagageira do seu grande SUV reluzente, atirando lá para dentro a mochila.

- E seria ainda mais agradável se te desses ao trabalho de perguntar, em vez de te limitares a dar ordens ou a tirar conclusões precipitadas.

- É melhor voltares a pegar nisto.

Ela tirou-lhe a panela das mãos e a seguir inclinou-se para encaixá-la no fundo da bagageira.

- Eu não te pedi para me vires cá buscar. Não preciso que me venham buscar e que me levem aqui ou ali. Eu tenho carro.

"O amor, a luxúria, a paixão", pensou ele, "podem ser todos postos no banco detrás, tal como o chili, quando a irritação ocupa o lugar do condutor."

- Tinha de passar por aqui de caminho para lá. Não fazia sentido levar dois automóveis. Onde está o Simon?

- Vai jantar e dormir a casa de um amigo. Devia ter-te consultado primeiro? - perguntou ela e, depois de contornar rapidamente o automóvel, levantou os punhos quando o viu antecipar-se para lhe ir abrir a porta. - Achas que tenho ar de incapaz. Ou parece-te que não sei abrir o raio da porta de um carro desportivo?

- Não - disse ele, e fechou a porta. - Podes abri-la - convidou, e deu a volta para se ir sentar no outro assento.

Esperou que ela puxasse e prendesse o cinto de segurança.

- Importas-te de me dizer que bicho te mordeu? - perguntou ele, num tom exageradamente agradável, o mesmo tom perigosamente agradável que o seu pai usava quando estava prestes a desfazer um opositor em bocadinhos.

- Isso é da minha conta, e digo o mesmo em relação ao meu humor. Estou de mau humor. Também posso. Se julgas que sou doce, conformista e fácil de manipular, estás enganado. Então, sempre conduzes, ou vamos ficar aqui parados?

 

Ele ligou o automóvel e pôs a marcha-atrás.

- Se tens a impressão de que te julgo uma pessoa doce, conformista ou fácil de manipular, és tu que estás enganada. És é uma esquisita, comichosa e hipersensível.

- Não admira que penses isso, só por eu não gostar de que me digam o que fazer, e como ou quando fazê-lo. Sou tão capaz e tão inteligente como tu. Talvez mais, até, porque não nasci com pessoas a corresponderem a todos os meus desejos e a todas as minhas ordens.

- Espera aí.

- Eu tive de lutar para ter tudo o que tenho. Lutar para conseguir as coisas - vociferou ela -, e lutar para as manter. Não preciso que ninguém apareça na sua carrinha branca, ou na sua limusina, ou no seu grande Mercedes para me vir salvar.

- Quem é que está a tentar salvar-te, raios?

- E também não preciso de nenhum homem, com ar de Príncipe Encantado por perto para me animar. Se quiser dormir contigo, durmo.

- Neste preciso momento, minha linda, acredita no que te digo, não estou a pensar em sexo.

Ela respirou avidamente e rangeu os dentes.

- E não me chames linda. Não gosto. Especialmente nesse tom empertigado de menino que andou em colégios particulares.

- Por acaso, neste momento, "linda" é a coisa mais delicada que me ocorre para te chamar.

- Não quero que sejas delicado. Não gosto de ti quando és delicado.

- Ai não? Então vais adorar isto.

Brad parou subitamente em cima do passeio, sem ligar à fúria das buzinas atrás de si. Tirou o cinto de segurança só com uma mão e agarrou na camisola dela com a outra. Puxou-a para a frente e voltou a atirá-la contra o assento com um beijo que não tinha nada a ver com romance e tinha tudo a ver com mau génio.

Ela lutou, debateu-se, enfureceu-se. Durante esses poucos momentos de fúria, foi a sua força bruta contra a dele, revelando-se que ela esgotaria os seus recursos.

Quando ele a libertou e voltou a pôr o cinto de segurança, a respiração dela era entrecortada.

- Que se lixe o Príncipe Encantado! - atirou, arrancando novamente do passeio.

"Não, ele agora já não parece uma personagem de banda desenhada", pensou ela. A menos que fosse uma daquelas figuras dos senhores da guerra que arrasavam aldeias inteiras, levando exactamente tudo o que queriam. Daqueles que arrastavam uma mulher para o seu cavalo e fugiam com ela ainda aos berros.

- Pensei que não estavas a pensar em sexo. Ele evitou dirigir-lhe um olhar furibundo.

- Estava a mentir.

- Não vou pedir desculpa por aquilo que disse. Tenho o direito de dizer o que penso. Tenho o direito de estar irritada e zangada.

 

- Óptimo. Também não vou pedir desculpa pelo que acabo de fazer. Tenho os mesmos direitos.

- Acho que sim. Não estava propriamente zangada contigo. Agora estou, mas não estava. Só estava zangada em geral.

- Se quiseres podes dizer-me porquê, ou então não digas nada

- afirmou ele, parando à porta da casa de Flynn e ficando à espera.

- Foram umas coisas que aconteceram. Prefiro falar nisso para toda a gente. Não vou pedir desculpa - repetiu ela. - Se continuares a meter-te à minha frente, vais dar um óptimo alvo.

- Digo o mesmo - retorquiu ele, e saiu do automóvel. - Eu levo a tua maldita panela - escancarou a porta e pegou na panela. - Combinado?

Zoe olhou para ele, ali parado na fresca noite de Outono, dentro do seu belo sobretudo, com a sua grande panela na mão. "E com um ar", pensou, "de quem seria capaz de despejar o conteúdo da panela em cima de mim."

Deixou o riso irromper-lhe na garganta, e soltou-o enquanto tirava a mochila.

- É agradável, quando estou a ser uma parva, ter alguém a esbracejar e a relinchar comigo. A panela está bastante cheia. Vê lá se não a viras e entornas o chili em cima do teu belo casaco.

Ela começou a avançar em direcção à porta.

- "Que se lixe o Príncipe Encantado!" - proferiu, e desatou-se novamente a rir. - Essa foi boa.

- Também tenho os meus momentos - murmurou ele, seguindo-a até dentro de casa.

Enquanto o chili estava a aquecer no fogão novo de Flynn, Zoe foi dar uma vista de olhos à sala de estar. Reparou que o toque de Malory estava agora presente por todo o lado. Nas obras de arte penduradas nas paredes ou dispostas pela sala. Havia amostras de tecido em cima do braço do sofá e o que pareciam ser utensílios de lareira antigos colocados ao pé da mesma.

Havia no ar um aroma simultaneamente feminino e outonal.

Zoe recordou-se da primeira vez que entrara naquela sala. Há apenas dois meses - uma vida. Nessa altura, não havia mais nada além do enorme sofá enfadonho, uma ou duas grades de cerveja a fazer de mesas, e alguns caixotes ainda por desempacotar.

O sofá continuava horrível, mas as amostras de tecido indicavam-lhe que Malory ia tratar dessa questão. Tal como iria tratar do resto da casa, com o sentido de organização e criatividade que lhe era próprio.

"Ela e Flynn formam agora um casal", pensou Zoe, "e estão a transformar esta casa num lar."

Pendurada na parede havia uma recordação do modo como tinham chegado àquele ponto. Zoe aproximou-se para observar o retrato que Malory pintara enquanto se encontrava sob o feitiço de Kane. A Deusa Que Canta, parada perto de uma floresta enquanto as irmãs observavam. Era belo e brilhante, e cheio de alegria inocente.

E a chave que se encontrava aos pés de Venora fora retirada do quadro, trazida até à terceira dimensão por vontade de Malory, e usada para abrir a primeira fechadura.

- Fica bem ali - disse Zoe. - Está no lugar certo.

A seguir, virou-se. Eles estavam à sua espera, sabia-o, e teve de combater o nervosismo. Cada uma de sua vez, Malory e Dana tinham dirigido as suas reuniões. Agora chegara o seu momento.

- Acho que é melhor começarmos.

Capítulo 9

Trouxe todos os meus apontamentos - começou ela - para o caso de precisarmos de os consultar. Ou para o caso de eu ficar confusa e precisar deles. Durante quase toda a semana que passou, estive a pensar nisto sozinha sem falar muito sobre o assunto com ninguém. Acho que isso foi um erro. Ou talvez não tenha sido um erro, mas agora é altura de o fazer.

Zoe expirou.

- Não tenho muito jeito para este tipo de coisas. Vou limitar-me a dizer aquilo que penso, e vocês podem todos intervir sempre que quiserem.

- Zo? - pediu Dana, tirando uma cerveja da mesa e passando-lha. - Descontrai.

- Estou a tentar - replicou ela, e bebeu um gole rápido. Acho que o Kane ainda não me forçou ao máximo porque ele só vê o que está à superfície. Depois de tudo o que já aconteceu, ficámos a saber que ele não compreende aquilo que nós somos interiormente. Julgo que é por isso que ele nos odeia. Ele odeia-nos - murmurou ela -, porque não consegue ver aquilo que nós somos, e não consegue aperceber-se bem do que não consegue ver.

- Muito bem - afirmou Jordan, o que a ajudou a descontrair-se um pouco mais.

- Vou dizer-vos o que me parece que ele vê em mim. Uma mulher com uma infância... "desfavorecida", acho que é assim que costumam dizer. Uma infância desfavorecida. A palavra é "pobre", mas as pessoas não gostam de dizer isso. Eu não tenho muitos estudos. Engravidei quando tinha dezasseis anos, e ganhei

a vida como cabeleireira. Principalmente como cabeleireira, embora tenha trabalhado como empregada de mesa e profissões afins para ganhar a vida. Não tenho a classe nem a cultura da Malory.

- Ora, a sério, isso é...

- Espera - disse Zoe, estendendo uma mão para deter o vivo protesto de Malory. - Ouve-me só. Eu não tenho isso, e não tenho a formação nem a confiança da Dana. O que eu tenho é umas costas fortes e um filho para criar. Só que isso não é, bem... não é tudo. E há uma coisa que ele não vê nem compreende.

Zoe bebeu mais um gole, para humedecer a garganta.

- A determinação. Eu não me resignei a ser pobre. Quis mais do que isso, e descobri maneiras de o conseguir. Além disso, há a minha palavra. Eu fiz uma promessa naquela noite no Pico, e, quando eu faço uma promessa, cumpro-a. E não sou nenhuma cobarde. Acho que o Kane não se preocupa comigo porque não vê isso, e, mais do que isso, porque teve tempo de sobra para me observar, ou para me estudar, ou lá que raio ele faz, e foi suficientemente esperto para perceber que eu talvez não me tivesse em grande conta, a mim e às minhas hipóteses de conseguir levar isto a bom termo, se me fizesse acreditar que ele não me ligava grande coisa.

Zoe respirou fundo.

- O erro foi dele. Ele não vai ganhar fazendo-me sentir que não estou à altura.

- Vais dar-lhe um chuto no rabo - afirmou Dana.

Os olhos dela ficaram mais vivos e, embora não se apercebesse disso, ficou com um sorriso de guerreira.

- Ah, vou dar-lhe um bom chuto no rabo, e a seguir vou espremer-lhe os tomates até ficarem vermelhos.

Deliberadamente, com o intuito de a fazer rir, Flynn cruzou as pernas como se quisesse proteger-se.

- Tens alguma ideia de como vais conseguir fazer isso?

- Algumas. com a Dana e a Malory, a questão foi estabelecer etapas, fazer escolhas, ou mesmo sacrifícios. Elas tentaram perceber de que modo reflectiam as suas pistas... - começou ela, olhando

para o retrato. - E as deusas que representavam. Por isso, eu tenho de pensar de que maneira é que aquilo que eu fiz, ou tenho de fazer, se reflecte na minha. O cão e a espada. É isso que ela tem no quadro do Pico. Ela alimenta e defende, acho eu. Eu tenho um filho que alimento e protejo há mais de nove anos.

- Não é só ele - recordou Jordan. - A tua natureza é alimentar e proteger qualquer pessoa de quem gostes, qualquer pessoa que precise disso. É algo de instintivo, que se transforma num trunfo. Outra coisa que o Kane não iria compreender em relação a ti é o facto de tu gostares das mulheres que se encontram naquele quadro, gostares delas a ponto de partilhares da sua situação.

- A amizade - acrescentou Brad, fazendo um gesto em direcção ao retrato. - A família e a preservação de tudo isso. São elementos essenciais na tua vida.

- Então acho que estamos no mesmo comprimento de onda, porque estava a pensar que, até aqui, uma das características básicas das demandas tem sido viver a vida da maneira que realmente se quer, avançar e assumir os riscos necessários, a predisposição para fazer sacrifícios e trabalhar para fazer as coisas acontecer.

"Isto soa bem em voz alta", constatou Zoe. "Parece mais sólido."

- Tomei sozinha a decisão de ter um filho. Muitas pessoas disseram-me que estava a cometer um erro, mas, dentro do meu coração, eu desejava aquela criança e queria dar-lhe o melhor. Saí de casa porque sabia que nunca seria capaz de lhe dar o melhor se ficasse. Tinha receio, e foi muito duro. Mas foi o melhor para mim e para o Simon.

- Escolheste o teu caminho - proferiu Brad em voz baixa.

- Pois escolhi. E senti parte da perda e do desespero de que a Rowena falava na pista. Não se pode criar um filho sem alguma perda e desespero. A verdade é que não se pode criar um filho sozinha sem esses sentimentos. Mas também se tem toda a alegria, e o orgulho, e o encanto. Eu escolhi vir até ao Vale porque era isso que queria para mim e para o Simon. A seguir, tive de decidir se ia continuar agarrada a um emprego que me permitia

pagar as contas, ou arriscar e montar o meu próprio negócio. Não precisava de fazer isso sozinha e, como vêem, as outras opções permitiram que eu não tivesse de o fazer.

Zoe agachou-se para tirar alguns papéis da mochila.

- Estão a ver isto? Fui eu que fiz. É uma espécie de quadro, uma espécie de mapa.

Ela passou-o primeiro a Malory.

- Estão a ver, é o lugar onde eu cresci... não é muito longe daqui. Fica a menos de cem quilómetros da fronteira deste Estado. E estes são os nomes das pessoas da minha família e das pessoas que tiveram influência na minha vida... seja de que modo for. A seguir, assinalei outros lugares onde vivi e trabalhei, e introduzi os nomes de todos eles. E acabei aqui, com vocês todos. Sabem, estava a pensar que parte disto tem apenas a ver com a vida. O que uma pessoa faz, e o que acontece com ela entretanto.

Malory ergueu os olhos do mapa e cruzou o seu olhar com o de Zoe.

- Tu trabalhaste na HomeMakers.

- Só a tempo parcial. Três noites por semana e as tardes de sábado, durante cerca de três meses antes de o Simon nascer explicou Zoe. Depois virou-se para Brad e acrescentou: - Nem tinha pensado nisso. Palavra que não pensei.

- Em que loja?

- Na que fica perto de Morgantown, à saída da Auto-estrada

  1. Foram muito bons para mim. Já estava de seis meses quando fui à procura de trabalho extra. Entrei em trabalho de parto quando estava a trabalhar na caixa registadora número quatro. Penso que isso significa uma coisa: entrei em trabalho de parto quando estava a trabalhar para ti.

Ele pegou no mapa quando este passou por ele, observou-o e tomou nota das datas.

- Estive a resolver problemas nessa loja em Março desse ano disse ele, e bateu com os dedos no mapa. - Lembro-me disso porque um dos sujeitos com quem me ia reunir chegou à reunião

pedindo desculpa por ter aparecido com alguns minutos de atraso. Parecia que uma das nossas operadoras de caixa tinha entrado em trabalho de parto e ele tinha feito questão de que ela chegasse ao hospital em segurança.

O arrepio que percorreu Zoe não era de medo. Era de emoção.

- Tu estavas lá.

- Não só estava lá como, quando voltei no dia seguinte para acabar a reunião, soube que tinha ganho a aposta. Eu tinha apostado que seria um rapaz, com três quilos e duzentos gramas, e que o trabalho de parto duraria doze horas.

Ela soltou um suspiro controlado.

- Estiveste lá muito perto.

- O suficiente para me permitir ganhar duzentos dólares.

- Isso é bastante sinistro - comentou Dana. - Aonde é que nos leva?

- Em parte, até onde a Zoe e eu nos encontramos - afirmou Brad, voltando a olhar para o mapa. - Tu não voltaste a trabalhar na loja de Morgantown.

- Não. Consegui arranjar umas horas extra no cabeleireiro onde estava a trabalhar, e elas deixavam-me levar o bebé para lá. Por muito simpáticos que sejam na HomeMakers, não se pode trabalhar numa caixa registadora com um bebé por debaixo da caixa.

"Ele estava lá", pensou Zoe novamente. Os seus caminhos tinham-se cruzado no momento mais importante da sua vida.

- Eu não queria gastar dinheiro com uma ama - prosseguiu ela. - Mais do que isso, acho que não estava pronta para o perder de vista.

Brad estudou o seu rosto, e tentou imaginá-la... imaginar os dois naquele dia, quase dez anos antes.

- Se eu tivesse feito a minha ronda à loja primeiro, teria dado contigo, e teria falado contigo, mas decidi começar pelos gabinetes e fazer as reuniões. Foi uma daquelas pequenas opções que alteram os acontecimentos subsequentes durante um período de tempo bastante longo.

- Não estava previsto que vocês se encontrassem nessa altura

- aventou Malory, abanando a cabeça. - Eu sei que isto dá um bocado a impressão de destino e de fado, mas não devemos deixar de ter esses elementos em consideração. Só estava previsto que se conhecessem quando estivessem os dois aqui. Caminhos, encruzilhadas, cruzamentos. A Zoe tem-nos no seu mapa.

Malory chegou-se mais para a frente e inclinou a cabeça para tentar ler ao mesmo tempo que Brad.

- Tu podias acrescentar ali os caminhos que percorreste, Brad. Do Vale até à Columbia, de volta ao Vale, para Nova Iorque, para Morgantown, para outro lado qualquer, e outra vez de volta aqui. Havias de encontrar outros cruzamentos e encruzilhadas. Que vos trouxeram aos dois até aqui. Não se trata apenas de uma questão geográfica.

- Não - concordou Brad, batendo com o dedo sobre os nomes que Zoe assinalara perto da sua terra natal. - James Marshall. É o pai do Simon?

- Sim, em termos técnicos. Porquê?

- Porque eu conheço-o. As nossas famílias fizeram um negócio. Nós comprámos umas terras ao pai dele, embora tenha sido o filho a fechar o negócio. Um belo love comercial perto de Wheeling. Assinei os papéis antes de regressar de Nova Iorque. Foi um dos incentivos que usei para voltar para aqui e ocupar esta zona.

- Tu conheceste o James - proferiu Zoe, num murmúrio.

- Conheci-o, e passei tempo suficiente com ele para saber que ele não te merece, nem a ti nem ao Simon. Preciso de outra cerveja.

Zoe manteve-se no mesmo lugar durante algum tempo.

- Vou ver o chili. Olhem, dêem-me só alguns minutos que eu já sirvo o jantar.

Dito isto, apressou-se a seguir para a cozinha.

- Bradley.

Ele continuou a andar, e a seguir abriu a porta do frigorífico e tirou de lá de dentro uma cerveja.

- Foi por isso que ficaste lixada quando eu te fui buscar? inquiriu ele. - Por teres feito o teu quadro, teres começado a pensar nele e teres visto a relação que havia comigo?

- Sim, foi em parte por isso - respondeu ela, unindo os dedos para depois os afastar. - É como se isso fosse mais um tijolo, Bradley, e ainda não percebi se ele serve para me proporcionar um caminho mais sólido ou para construir uma parede que me está a cercar.

Ele olhou para ela, rodeado da fúria de estupefacção que o rodeava.

- Quem é que está a tentar cercar-te? Isso é um raio de uma acusação para me fazeres, Zoe.

- Não és tu. Isso não tem a ver contigo. Tem a ver comigo. com aquilo que eu sinto, com o que penso e faço. E raios o partam! Não consigo evitar que fiques irritado com o facto de eu ter de decidir se é uma parede ou um caminho.

- Uma parede ou um caminho - repetiu ele, e bebeu mais um gole de cerveja. - Meu Deus, por acaso compreendo essa sensação. Preferia não compreender.

- Isso fez-me sentir que estava a ser empurrada, e eu fico furiosa quando me sinto empurrada para as coisas. Tu não tens a menor culpa ou responsabilidade no assunto, mas também não me parece que seja eu a responsável. Acho que não gosto de lidar com coisas que não sejam minha culpa ou da minha responsabilidade.

- Ele foi um grande imbecil em te ter deixado fugir. Zoe soltou um suspiro.

- Ele não me deixou fugir. Limitou-se a não me agarrar. E isso já deixou de me enfurecer há muito - acrescentou ela, dirigindo-se para o fogão e destapando a panela. - Houve mais uma coisa que aconteceu. Vou acabar de cozinhar o chili e depois logo falo nisso contigo e com os outros ao jantar.

- Zoe - disse ele, tocando-lhe no ombro, e abriu um armário à procura de pratos. - Em relação àqueles tijolos? Podes sempre deitar uma parede abaixo e construir com eles um belo caminho.

Comeram na cozinha, apinhados em torno da mesa, já que a sala de jantar estava longe de corresponder aos padrões de Malory. Enquanto bebiam cerveja e comiam o chili e o pão aquecido, Zoe contou-lhes o que vira no espelho da casa de banho coberto de vapor e na tampa do fogão.

- Da primeira vez, pensei que tinha sido imaginação. Parecia demasiado estranho para não o ser... e aquilo durou apenas alguns segundos. Mas hoje... vi-a mesmo - confirmou Zoe. - Vi-a no lugar onde eu devia estar.

- Se o Kane anda a experimentar outro estratagema - começou Dana -, não estou a perceber.

- Não foi o Kane - afirmou Zoe, franzindo o sobrolho para o prato. - Não sei como explicar o que me leva a ter tantas certezas, à excepção do facto de ter sentido que não era ele. Quando ele nos toca provoca uma sensação específica.

Zoe ergueu os olhos e cruzou o olhar com o de Dana, e a seguir com o de Malory, para obter confirmação.

- Talvez uma pessoa não perceba logo, mas apenas a seguir. A sensação não tinha a ver com ele. Era uma sensação quente prosseguiu ela. - Tanto de uma vez como da outra, era uma sensação de calor.

- A Rowena e o Pitte são capazes de andar a acrescentar alguns floreados - sugeriu Flynn, servindo-se de mais chili. - Eles disseram que o Kane infringiu as regras com a Dana e o Jordan, e por isso resolveram criar uma compensação.

- Isso é capaz de lhes trazer complicações - acrescentou Jordan.

- Talvez. Talvez tenham decidido compensar mais as coisas. Para prevenir ou coisa do género.

- Para mim não resulta - discordou Bradley. - Se eles resolvessem pisar outra vez o risco, logo no início da demanda da Zoe, porque não fazer algo de sólido, algo de tangível? Para quê serem tão crípticos?

- Também não me parece que tenham sido eles - disse Zoe, espalhando a comida no prato. - Acho que foi ela.

-A Kyna? - perguntou Malory, recostando-se, fascinada. - Mas como? Elas não podem fazer nada.

- Talvez. Não sabemos como tudo isto funciona verdadeiramente, mas imaginem que ela não pode fazer nada mas os pais podem. Comecei a pensar: e se alguém fechasse o Simon num lado qualquer? Eu ficava doida. Se houvesse alguma maneira de o tirar de lá, faria tudo o que pudesse.

-Já passaram três mil anos - salientou Flynn. - Para quê tanta espera?

- Eu sei - afirmou Zoe, pegando num bocado de pão e partindo um naco. - Só que desta vez é diferente para elas, não acham? Não foi isso que a Rowena disse? Além de que talvez não fosse possível fazer nada até aqui, mas o Kane alterou as coisas derramando sangue, sangue mortal.

- Continua - pediu Jordan quando ela parou de falar. - Deita tudo cá para fora.

- bom. Se o Kane mudou a natureza do feitiço infringindo as suas regras, e se isso abriu... bem, uma espécie de fresta na cortina, os pais que as adoram não tentariam enviar uma réstia de luz por essa fresta? Eles queriam que eu a visse. Não apenas num quadro, mas mais pessoalmente.

- Que a visses em ti - concluiu Bradley. - Que te visses ao espelho e a visses em ti.

- Sim - proferiu Zoe, soltando um suspiro de alívio. - Sim, é essa a sensação que eu tenho. É como se quisessem que ela me dissesse alguma coisa. Só que ela não pode dizer pura e simplesmente: "Olha, Zoe, a chave está debaixo do canteiro de gerânios do alpendre." Mas é como se ela estivesse a tentar mostrar-me uma coisa que eu tenho de fazer, ou um lugar aonde tenho de ir para a encontrar.

- O que é que ela trazia vestido?

- Credo, Hawke - exclamou Dana, dando-lhe um soco.

- Não, a sério, vamos ver os pormenores. Ela estava vestida tal como aparece nos retratos?

- Ah, estou a ver - disse Zoe, enrugando os lábios. - Não, trazia um vestido curto, verde-escuro - a seguir, fechou os olhos para tentar trazer de volta a recordação. - E botas. Botas castanhas mesmo até aos joelhos. Tinha um pendente, aquele que a lenda diz que o pai deu a cada uma, e uma pequena fita, talvez fosse uma tiara. Uma espécie de adereço da Super-Mulher, com uma jóia em forma de diamante no centro. Verde-escura, tal como o vestido. E a espada à cintura. Oh!

Os seus olhos voltaram a abrir-se.

- Ela tinha um daqueles... - impaciente consigo própria, Zoe fez um gesto ao longo das omoplatas. - Uma alijava. Era isso, aquela coisa para guardar setas. E tinha um arco preso ao ombro.

- Parece que a senhora ia à caça - concluiu Jordan.

- Na floresta - prosseguiu Zoe. - Ela seguia o caminho da floresta para ir à caça. Uma caçada é como uma demanda.

- Talvez a floresta da demanda seja mais literal do que pensámos - considerou Dana enquanto ia comendo. - Vou fazer uma investigação sobre florestas nos livros e nos quadros, bem como nos bosques locais em torno do Vale. É capaz de aparecer alguma coisa.

- Se me conseguires descrever a cena, eu posso tentar esboçá-la

- sugeriu Malory. - Talvez isso nos ajude a vê-la como tu a viste.

- Está bem - disse Zoe, assentindo com um ar determinado. Isso parece-me positivo. Tenho andado a sentir que o tempo me escorre por entre os dedos, mas isto parece-me positivo. Ela tinha uns olhos fortes e tristes - afirmou com ar sereno. - Não sei como me iria sentir comigo mesma se não a ajudasse.

Ela estava perdida em pensamentos quando Brad a conduziu a casa, e deixou-se ficar a olhar para a Lua em quarto crescente. Quase lhe parecia conseguir vê-la crescer e tornar-se mais branca, como que para marcar o tempo que ainda lhe restava.

- Não sei se alguma vez prestei atenção às fases da Lua. Uma pessoa olhava para cima e via que estava cheia, quase em Lua nova ou quarto crescente. Nunca me lembrei de reparar se estava

a crescer ou a diminuir. Mas agora acho que nunca mais deixo de reparar. Vou ficar a saber em que fase está sem sequer olhar para o céu. Já tenho menos de duas semanas.

- Tu tens um quadro, e tens um esboço. Tu tens uma visão. Não se pode compor o puzzle sem as peças. E estás a reuni-las.

- Estou a contar com isso. Ajudou falar no assunto, mas agora tenho tudo a andar à volta dentro da minha cabeça. Nenhuma peça assenta durante tempo suficiente para eu conseguir voltar a pegar nela. Não consigo transformar as palavras em respostas, como a Dana, nem encontrar imagens que constituam respostas, como a Malory. Tenho de pôr mão em alguma coisa, sei lá, e trabalhar com base nisso. Só que ainda não tenho nada para trabalhar. É frustrante.

- Às vezes temos de nos afastar para ver as peças. Em seguida, temos de voltar a observá-las, a vê-las de ângulos diferentes.

Brad parou no caminho de acesso à casa dela.

- Vou passar cá a noite.

- O quê?

- Não vais ficar aqui sozinha, sem o Simon sequer em casa. E se acontece alguma coisa? - perguntou Brad, e saiu para tirar a panela da bagageira do automóvel. - Eu durmo no sofá.

- Eu tenho o Moe - começou ela, quando o cão deu um salto e desatou a correr até à porta.

- Da última vez que verifiquei, o Moe não conseguia marcar um número de telefone nem conduzir um automóvel. És capaz de precisar de alguém que saiba fazer as duas coisas - acrescentou ele, e parou ao pé da porta, à espera de que ela a abrisse.

- Não é...

- Não discutas.

Ela abanou as chaves e lançou-lhe um olhar furibundo.

- Acho que me apetece discutir.

- Não adianta nada, mas, se queres mesmo, é melhor discutirmos lá dentro. Está escuro, está a ficar frio, e o Moe está a ficar demasiado interessado nos restos da panela.

Zoe abriu a porta e foi direita à cozinha.

- Pousa isso. Eu trato do assunto - disse ela, e foi buscar uma caixa de plástico, encolheu os ombros para despir o casaco e atirou-o para cima de uma cadeira da cozinha. - Talvez não te tenha ocorrido que deixei o Simon passar a noite em casa de um amigo porque queria ter algum tempo só para mim.

- Ocorreu-me. Eu não te impeço de ficares só - advertiu ele, tirando o casaco e pegando, a seguir, no casaco dela. - Vou pendurá-los.

Sem dizer nada, ela começou a transferir o resto do chili para dentro da caixa de plástico.

Brad não estava a fazer aquilo por mal, e Zoe sabia-o. E ela não se importava de ter um homem forte e capaz em casa. Pura e simplesmente, não estava habituada a ter um homem forte e capaz dentro de casa. Em particular, um que lhe dissesse o que havia a fazer.

"Isso é só parte do problema", reflectiu, enquanto colocava a tampa na caixa. Ela comandava o seu navio há tanto tempo que o facto de ter outra pessoa ao leme, por melhores que fossem as suas intenções, irritava-a.

Se isso era uma fraqueza de carácter, ela também tinha o direito de ter algumas fraquezas.

"É parte do problema", pensou Zoe novamente, ao levar a panela para o lava-loiça, para a lavar. A outra parte, a maior parte do problema, era ter dentro de casa um homem por quem se sentia atraída quando não havia nenhum miúdo de nove anos para se meter entre os dois.

E isso, apercebeu-se enquanto punha a panela a secar, era uma enorme parvoíce.

Zoe foi até à sala. Ele estava sentado numa cadeira, a folhear uma das suas revistas. Moe, depois de perder a esperança de comer o chili, encontrava-se esparramado a seus pés.

- Se queres alguma coisa para ler - começou ela -, posso arranjar-te alguma coisa melhor do que revistas de cabeleireiro.

- Tudo bem. Têm uns modelos excelentes. Importas-te que te faça uma ou duas perguntas? A primeira era se.tens um cobertor e uma almofada.

- Por acaso, tenho alguns a mais.

- Boa. A outra, que me ocorreu depois de ver esta ruiva com o piercing na sobrancelha é... como é que isto se põe?

- Estás interessado em pôr um piercing na sobrancelha?

- Não. Não, não estou. Mas acontece que há algum tempo, reparei... que estavas com umas calças de ganga um pouco descaídas e um top curtinho, por isso não pude deixar de ver que tinhas uma barrinha de prata: que tinhas um piercing no umbigo.

Ela empinou a cabeça.

- Pois tenho.

- Fiquei a pensar se o usavas sempre.

Ela manteve-se muito discreta e com um ar muito sério.

- Às vezes, uso uma argola de prata.

- Hum, hum - sem conseguir evitá-lo, ele lançou uma olhadela para a barriga de Zoe, e pôs-se a imaginar. - Interessante.

- Antes de vir para o Vale, tive um segundo emprego num salão de piercings e tatuagens. Andava a guardar tudo o que podia para dar uma entrada para a casa. Como era funcionária podia usar os serviços gratuitamente, além de que o facto de uma pessoa passar pelo mesmo processo ajudava a lidar com os clientes. E, não - acrescentou ela, lendo os seus pensamentos -, as únicas partes do corpo que estava disposta a furar eram o umbigo e os lóbulos das orelhas. Queres alguma coisa para beber? Um aperitivo?

- Não, eu estou bem - respondeu ele, não considerando a saliva que se acumulava ao fundo da boca. - Tatuagens? Fizeste alguma?

Aí, ela sorriu, simpática como uma professora de catequese.

- Fiz. Só uma pequena.

Zoe sabia que ele estava a imaginar como seria e, sobretudo, onde estaria. Resolveu deixá-lo a pensar.

- Escusas de dormir no sofá, Bradley - afirmou ela, e viu os seus olhos concentrarem-se e fixarem-se no seu rosto. Apesar de se encontrarem a um metro de distância, sentiu a tensão no corpo dele. - Não há necessidade disso, estando só nós os dois em

casa - disse ela, e fez uma longa pausa. - Podes dormir na cama do Simon.

- Na cama do Simon - repetiu ele, como se tivesse dito aquilo numa língua estrangeira. - Pois. Está bem. Óptimo.

- Não queres vir até cá acima, para eu te mostrar onde ficam as coisas?

- Quero - respondeu ele, pousou a revista e deu um empurrão a Moe para o fazer rebolar e pôr-se de pé.

- Há imensas toalhas lavadas no armário da casa de banho começou ela, divertindo-se quando começou a subir as escadas.

- E temos uma escova de dentes extra, que podes usar.

Brad mantinha os braços caídos enquanto subia as escadas ao lado dela, e tentava não se torturar com imagens de tatuagens e piercings no umbigo. Falhara miseravelmente.

- Tenho uma reunião com o pessoal às oito e meia da manhã, por isso saio cedo.

- Eu também acordo cedo, por isso não me incomodas nada. Ela empurrou a porta do quarto de Simon. Havia lá dentro um beliche com mantas azul-marinho e cortinas num tom vermelho-vivo na janela. As prateleiras da mesma cor das mantas estavam cheias do tipo de coisas que os rapazes costumam coleccionar. As figuras de personagens de acção, os livros, as pedras e os modelos de automóveis. Uma secretária vermelha, à altura do Simon, estava por baixo da janela e tinha preso um candeeiro do Super-Homem, estando povoada por livros escolares e outros acessórios e brinquedos aéreos e náuticos próprios de um rapazinho.

Estava arrumado, embora longe de estar sujeito a um regime militar; tinha um quadro de cortiça cheio de desenhos, fotografias e imagens tiradas de revistas. Havia sapatos que tinham sido abandonados ao acaso, bonés presos nos postes do beliche de cima e uma pasta escolar no chão com parte do conteúdo a escorrer. E um cheiro suave a algo de agreste, que era completamente típico de um rapaz.

- É um quarto magnífico.

- Periodicamente sorteamos quem faz a limpeza do quarto. Como fui quem perdeu da última vez, ainda se encontra em bom estado.

Ela encostou-se à soleira da porta.

- Não tens problema em dormir aqui?

- Não, serve perfeitamente.

- Agradeço o teu cavalheirismo, e o facto de não estares a tentar tirar partido da situação, sem te quereres aproveitar de mim.

- Resolvi dormir aqui porque tu não deves ficar sozinha, e não para tirar partido de nada.

- Hum, hum. Só queria ter a certeza disso e, como já tenho, vou confessar-te uma coisa. Eu não sou nenhum cavalheiro. - E, avançando, comprimiu o corpo contra o dele. - vou tirar partido da situação - disse Zoe, apertando-lhe o rabo com as mãos e pressionando-o. - E vou-me atirar a ti. O que tencionas fazer quanto a isso?

O sistema dele entrou em estado de alerta; a sua pulsação acelerou.

- Chorar de gratidão?

A rir, ela mordeu-lhe o lábio inferior.

- Chora mais logo. Põe as mãos no meu corpo - exigiu ela, olhando-lhe para os lábios com cobiça. - Por todo o corpo.

Ele introduziu as mãos na parte de trás da camisola dela, e firmou-se antes de sair da própria pele. O sabor dela, quente e maduro, inundou-o, enquanto aquele corpo tenso e sensual se comprimia e movia contra ele.

Depois, as mãos dele correram por debaixo da camisola para tomarem as costas longas e lisas, a cova da cintura, o subtil ressalto da anca. "Mais", era a única coisa que o seu cérebro conseguia pensar, num frenesi. "Mais."

Zoe arqueava-se e ronronava enquanto os lábios dele, sedentos, lhe sugavam o pescoço.

A sua barriga deu um salto quando ela lhe puxou pela fivela do cinto.

- Já passou algum tempo desde a minha última vez - a voz dela era sonora, e os dedos não paravam de se mexer. - Vais ter de me desculpar a pressa.

- Tudo bem - num movimento rápido, ele fê-la girar até ficar de costas para a parede.

- Não há problema.

Ele tirou-lhe a camisola pela cabeça e atirou-a para o lado. As suas mãos já estavam nos seios dela antes de a camisola aterrar no chão.

A arfar, as mãos dela iam trabalhando entre os dois, enquanto tentava manter os lábios contra os dele e se apressava a desabotoar-lhe a camisa. Credo, como ela desejava a sensação de o ter contra si. A sensação de o ter dentro de si. A sua pele ganhou de novo vida, o sangue galopava, quente, por debaixo da pele e o seu coração batia a um ritmo que ela esquecera que podia ser tão rápido, tão marcado, tão excitante.

Desesperada, ela empurrou-lhe a mão para baixo e manteve-a firme entre as suas pernas. A cabeça dela tombou para trás, expondo a linha do pescoço aos lábios dele, aos seus dentes, e as ancas dela moviam-se enquanto ela pressionava a mão dele contra a ganga e o calor dentro dela.

Era como ter os nervos em carne viva. Nervos com arestas de vidro dilacerado. Roçavam contra os dele, rasgando-o também. E o aroma dela, algo exótico que evocava o sussurro de meias-noites, sombras, segredos, corria pelo sistema dele como uma droga. Até que a única coisa que ele tocava, saboreava, a única coisa que conhecia era Zoe.

A necessidade que sentia dela era como um relâmpago no coração.

Brad abriu-lhe o botão das calças de ganga e puxou-as para baixo. Enquanto ela tentava aguentar-se, ele mergulhou os dedos no calor. Viu o choque de prazer correr-lhe pelo rosto enquanto ela mergulhava na sua mão.

- Não pares - dizia, e a sua boca movia-se, frenética e febril por debaixo da dele; as suas unhas arranhavam perversamente as costas dele antes de mergulharem contra as suas coxas.

Ela montou aquele turbilhão feroz de sensações que vergastavam a mente e o corpo, montou-o a tremer e ansiosa por mais.

O prazer queimava-lhe a pele, fazia-a arder até ela achar que ia ficar doida perante a força bruta da sua própria avidez.

Zoe agarrou-se a ele num pedido premente, e gritou quando ele a penetrou, forte e profundamente. E mesmo assim, não era de mais. As ancas dela vibraram num pedido brutal de velocidade, os seus gemidos de desejo sobrepuseram-se ao som forte da carne a embater contra carne, contra a parede e, mais uma vez, contra carne.

Ele acompanhava os movimentos dela, naquela corrida veloz e suada para a libertação, até a sua visão se ofuscar e o seu sangue bramir. Depois conduziu os dois, a tremer, para a meta.

O coração dela continuava a bater quando ela deixou cair a cabeça no ombro dele. Sorveu uma golfada de ar, sentiu-o entrar, abrir caminho até aos pulmões e sair de novo.

Como se apercebeu vagamente, estava nua, suada e pregada na parede do lado de fora do quarto do filho. Devia sentir-se horrorizada. Porém, não estava. Na verdade, sentia-se deliciada.

- Estás bem? - perguntou ele, com a voz abafada, e ela sentiu os lábios dele a moverem-se contra os seus cabelos.

- Acho que fui muito melhor do que bem. Acho que fui fantástica.

- Foste. És - Ele acabara de a possuir contra a parede. Ou tinha sido ela que o possuíra. - Ainda não consigo pensar - admitiu ele, e encostou uma mão à parede para se conseguir manter direito. - Hoje escolheste a argola - disse ele, percorrendo-lhe o corpo com a outra mão até conseguir passar um dedo pela argola que ela tinha no umbigo. - É mesmo sensual. Não fazia ideia.

Ele afastou-se apenas o suficiente para vê-la rir-se.

- Fomos bastante rápidos. Acho que não vi a tua tatuagem. Deslumbrada, deliciada, ela tocou nos cabelos.

- És um sujeito engraçado, Bradley Charles Vane IV. Todo preocupado com piercings e tatuagens.

- Nunca tinha tido esta reacção com mais ninguém. Onde é que está?

- Vou mostrar-te. Primeiro, devo dizer-te que ainda não prescindi dos teus serviços esta noite - disse ela, inclinando-se e passando-lhe a língua numa longa linha molhada pelo pescoço.

- Mas és capaz de querer deitar-te para o segundo round.

- Ainda estarei de pé?

Ela voltou a rir-se, e a seguir soltou-se e bateu com um dedo na sua omoplata esquerda enquanto caminhava para o quarto do outro lado do corredor.

- Espera - pediu ele, pousando-lhe uma mão no braço, e aproximou-se para observar a imagem. - É uma fada.

- Pois é. Às vezes é uma fada boa - afirmou Zoe, olhando por cima do ombro, com um sorrisinho nos lábios. - Outras vezes é má. Não queres vir até aqui para veres qual delas está de serviço esta noite?

 

Capítulo 10

Joe Enfrentou o dia com energia para gastar e ideias frescas a palpitar dentro da cabeça. Enquanto o café estava a fazer, foi partindo e mexendo alguns ovos.

"Está um homem no meu chuveiro", pensou, com um sorriso de orelha a orelha. Um homem lindo que a mantivera ocupada quase toda a noite. Não se lembrava da última vez em que se sentira tão... saudável com menos de quatro horas de sono. O seu corpo parecia maravilhosamente solto e ágil, bem como a sua mente. Tinha a certeza absoluta de que conseguiria enfrentar tudo o que viesse ter com ela, só com uma mão.

"As pessoas que dizem que o sexo não tem importância", pensou, "só podem ter falta dele."

Colocou os ovos num prato, e estava a acrescentar uma torrada quando ouviu Brad entrar na cozinha.

- Mesmo a tempo - afirmou ela, virando-se para lhe estender o prato.

- Não precisavas de me preparar o pequeno-almoço.

- Não queres? - perguntou ela, pegando num garfo para partir mais ovos.

- Não disse que não queria - explicou ele, tirando-lhe o prato e, a seguir, o garfo. - Também vais comer?

- Talvez - replicou ela avançando para ele e abrindo a boca. Desejoso de entrar naquele estado de espírito, ele deu-lhe um bocadinho de ovo enquanto se encontravam à frente do fogão.

- Senta-te - disse-lhe ela, e serviu o café. - Come enquanto está quente. Disseste que tinhas uma reunião muito cedo.

- Talvez seja melhor cancelá-la - disse ele, inclinando-se para comprimir os seus lábios contra a base do pescoço dela. - Podíamos tomar o pequeno-almoço na cama.

- A única maneira de tomares o pequeno-almoço na cama por estes lados é ficares doente - esclareceu ela, afastando-se até conseguir pousar-lhe uma mão no sobrolho. - Não. Come, vai a casa mudar de roupa, e vai trabalhar.

- És terrivelmente rigorosa. Mas fazes bons ovos mexidos. Tens planos para hoje?

- Meia dúzia de coisas - respondeu ela, pegando numa torrada, e sentou-se à frente dele para pôr manteiga. - Quando tiveres oportunidade, tens de passar pela Indulgence. Estamos a acabar os pormenores, e aquilo começa verdadeiramente a brilhar.

- É a primeira vez que me convidas a ir lá.

- Também é a primeira vez que durmo contigo.

- Gosto de ver isso como uma tendência crescente.

- É possível.

- Não estou interessado em estar com mais ninguém. Nem na cama nem a comer ovos de manhã.

- Não costumo andar por aí a dormir com qualquer um disse ela num tom de voz sério.

- Não foi isso que eu disse, e muito menos o que queria dizer.

- Recordando a si mesmo que devia ter calma, ele pegou-lhe na mão com firmeza. - Estou a querer dizer-te que és a única mulher em que estou interessado.

- E eu estou a ser... o que é que tu disseste... comichosa e hipersensível.

- Sim, mas não deixas de fazer uns ovos excelentes.

- Desculpa. Este tipo de coisa não tem sido... ia dizer uma prioridade para mim, mas a questão é que não tem sido. Ponto final. Estou a tactear o meu caminho.

- Experimenta o seguinte: "Bradley"... a propósito, a minha mãe é a única outra pessoa que me chama sempre Bradley. É simpático. Adiante: "Bradley, também não estou interessada em mais ninguém."

 

O sorriso dela abriu-se.

- Bradley, também não estou interessada em mais ninguém.

- Para mim, resulta.

Também estava a resultar para ela. E isso era apenas um pouco assustador.

- Uma vez, disseste que te devia perguntar porque voltaste para o Vale. Pergunto-te agora.

- Está bem - retorquiu ele, pegando no frasco de compota de morango que ela pousara na mesa e espalhando um pouco em cima da torrada. - A HomeMakers é mais do que um negócio. É mais do que uma tradição. É uma família. Quando se é um Vane - afirmou ele, encolhendo os ombros -, é-se a HomeMakers.

- Era isso que tu querias?

- Era, e ainda bem para mim. Houve muitas coisas a aprender, a compreender, para as quais tive de me preparar. Tive de sair do Vale para perceber profundamente o funcionamento da organização, para a ver no seu todo, para além dos primórdios da empresa.

Zoe observou-o. Estava vestido com roupa casual, e tinha a camisa ligeiramente enrugada por causa das mãos dela e por ter passado a noite estendida no chão. Mesmo assim, emanava força e confiança. "Algo que já vem de trás", imaginou.

- Tu tens orgulho nisso. Na tua família e nos primórdios da empresa.

- Muito. Ela cresceu muito, e continua a crescer. Fizemos algumas coisas bastante boas. Mais uma vez, não se trata apenas de negócio. Mas de programas, de projectos, dos alicerces que o meu avô e o meu pai criaram na base da empresa. Eu queria voltar para cá, voltar ao princípio, e criar alguma coisa por mim. Tenciono deixar a minha marca, e tenciono fazê-lo no Vale.

Brad pôs a chávena de café de lado.

- E é melhor ir já. Vais sair agora?

- Daqui a pouco. Tenho algumas coisas a fazer - respondeu Zoe, levantando-lhe o prato antes de ele ter tempo de o pôr no lava-loiça, e virou-se para ele. - Tu vais deixar a tua marca, Bradley.

És o tipo de homem que deixa marca. É uma sorte para o Vale ter-te de volta.

Por alguns instantes, ele ficou pura e simplesmente sem fala.

- Isso é a coisa mais simpática que me podias dizer. Obrigado.

- De nada. Agora, ao trabalho - disse-lhe ela, dando-lhe um beijo. - E deixa a tua marca.

"Uma despedida acolhedora", pensou ele, e era algo a que não se importava nada de se habituar. Ele abraçou-a, puxou-a para si, e elevou o beijo a um nível muito mais alto.

Os olhos dela ficaram desfocados quando ele a largou. "Mais uma coisa", pensou ele, "a que podia facilmente habituar-me."

- Obrigado pelo pequeno-almoço. Até logo. Ela esperou que ele saísse, e respirou fundo.

- Caramba. Isto é capaz de me prender.

Uma olhadela ao relógio do fogão pô-la rapidamente a arrumar a cozinha. "Está na altura", pensou, "de me dedicar ao que tenho a fazer."

Aliás, estava na altura de iniciar o caminho que optara por seguir em primeiro lugar.

Munida do mapa e dos apontamentos, entrou no automóvel e conduziu em direcção ao seu passado.

Considerou que talvez constituísse parte da demanda lidar com o passado e compreendê-lo enquanto construía o futuro. Ou talvez fosse apenas uma coisa que ela tinha de fazer para compreender o caminho que a conduziria até à chave.

Fosse como fosse, dirigia-se para o que fora em tempos o seu lar.

"Já percorri estas estradas", recordou-se Zoe, mas sempre com alguma relutância, senão um pouco de culpa. "Desta vez", premeditou, "encaminho-me para a descoberta."

As montanhas estavam agora quase sem cor, revelando apenas os cinzentos desmaiados das árvores despidas e os castanhos monótonos e inertes das folhas caídas. E aquelas árvores erguiam-se contra um tenebroso céu de Novembro.

 

Zoe optou por tomar as estradas secundárias, seguindo a estreita faixa serpenteante que percorria os campos em pousio, passando por pequenas casas implantadas em relvados diminutos.

A cada quilómetro ia regressando mais atrás.

Tinha percorrido aquela estrada a pé, muitas e muitas vezes. De manhã cedo, quando perdia a camioneta da escola por não ter conseguido fazer tudo a tempo. Tinha percorrido aquele campo, um atalho, e ainda se lembrava do seu intenso cheiro a verde no início do Verão.

Às vezes, corria pelo campo quando se esgueirava para ir ter com James, corria com o coração a voar à sua frente no suave ar primaveril, até ao lugar onde ele estava estacionado à beira da estrada, à sua espera.

Os pirilampos dançavam no escuro; as ervas altas faziam-lhe cócegas nas pernas sem meias. Então, acreditava que tudo era possível, desde que desejasse o suficiente.

Agora sabia que as únicas coisas possíveis eram aquelas para as quais trabalhava. Mesmo assim, podiam fugir-lhe das mãos.

Parou à beira da estrada, não muito longe do local onde um rapaz esperara por ela. E, baixando-se para passar por debaixo da vedação de arame, percorreu o baldio em direcção ao bosque.

Aquele era o bosque dela em criança. A sua floresta, cheia de silêncio, segredos e magia. Tudo isso continuara a ser dela, à medida que ela ia crescendo. Um lugar para passear, para pensar, para delinear projectos.

E fora ali, acreditava ela, sobre um cobertor vermelho estendido em cima de agulhas de pinheiro e folhas amachucadas, que concebera a criança que mudara o rumo da sua vida.

Ainda havia caminhos de terra batida por entre as árvores, como reparou. Por isso, ainda havia crianças que iam brincar ali, ou mulheres que passeavam, homens que caçavam. O lugar em si não se alterara. Talvez fosse essa a questão. A floresta não mudava, pelo menos assim tão rapidamente, tão abertamente, como as pessoas e os animais que se moviam por ela.

Zoe permaneceu imóvel durante alguns instantes, a respirar a tranquilidade, os aromas de Novembro a podridão e a humidade. Tentando não pensar, deixou a intuição escolher o seu caminho.

Perda e desespero, alegria e luz. Conhecera tudo isso ali. Sangue devido à perda da inocência? Medo das consequências, esperança de que o amor bastasse?

Sentou-se num tronco caído e tentou visualizar as estradas da sua vida a partir dali, e a chave que aguardava numa delas.

Ouviu o bicar de um pica-pau e o suspiro do vento por entre os ramos vazios.

Foi então que viu o gamo branco parado, a olhar para ela com os seus olhos de um azul-safira.

- Oh, meu Deus - proferiu, e ficou sentada no mesmo lugar onde se encontrava, com receio de se mexer. com medo de respirar.

Tanto Malory como Dana tinham visto um veado branco, recordou-se, aquilo a que Jordan chamara um elemento tradicional numa demanda. Porém, elas tinham visto o gamo no Pico do Guerreiro, e não numa estreita faixa dos bosques da Virgínia.

- Isto significa que eu tinha razão. Eu tinha de vir aqui. Isso deve querer dizer que estou certa. Mas o que queres que eu faça? Eu quero ajudar. Estou a tentar ajudar.

O gamo virou a cabeça e afastou-se do caminho agreste. com os joelhos a tremer, Zoe levantou-se para o seguir.

"Será que alguma vez sonhei com isto?", pensou. Não exactamente com aquilo, não com seguir o caminho de um gamo branco, mas com a magia, o encantamento e o desejo de fazer algo de importante.

"Sonhei", admitiu, "fazer alguma coisa que me levasse para longe dali, para longe do tédio e do desespero de não conseguir ver o mundo para lá deste bosque."

Teria procurado isso em James? Tê-lo-ia amado, ou será que apenas o vira como uma possibilidade de fuga?

Zoe parou e levou uma mão ao coração, como que em choque.

- Não sei - murmurou. - Não sei mesmo.

O gamo olhou para ela, e a seguir retomou o seu caminho, saltou por cima das margens rochosas de um pequeno riacho e foi-se embora.

Esperando ter compreendido, Zoe seguiu pelo caminho da esquerda, saiu do bosque e dirigiu-se pela gravilha compacta do parque de caravanas.

Tal como o bosque, o parque também quase não sofrera alterações. Rostos diferentes, talvez, unidades diferentes aqui e ali, porém continuava apinhado de casas que nunca teriam raízes.

Ouvia aparelhos de rádio, televisores - o seu zunido e o seu bramido saíam pelas janelas -, o som de um bebé a chorar em breves vagidos entrecortados e o matraquear do motor de um veículo a sair do parque.

A casa da mãe era de um verde deslavado e empalidecido, com uma pequena placa de metal por cima da porta lateral. O automóvel estacionado ao lado dela tinha o pára-choques amolgado.

Ela ainda não tirara a rede de Verão da porta, reparou Zoe.

A porta de rede rangeu quando Zoe a abriu, e a porta interior não cedeu logo quando ela girou a maçaneta. Zoe deu-lhe um pequeno empurrão e deixou a rede fechar-se atrás de si ao entrar.

A mãe estava na cozinha, onde fazia a sua vida. A pequena bancada ao lado do fogão estava cheia de garrafas, tigelas, uma caixa de plástico cheia de bigoudis coloridos para fazer permanentes e uma pilha de toalhas para o cabelo, esfarrapadas nas pontas devido às inúmeras lavagens.

A cafeteira estava ao lume, e havia um cigarro a deitar fumo num cinzeiro de vidro verde.

"Ela parece demasiado magra", foi a primeira coisa que Zoe pensou, como se a vida a tivesse esculpido até ao essencial. Usava umas calças de ganga apertadas e um top preto reduzido que apenas servia para realçar os ângulos agudos. O cabelo estava bastante curto, e ela usava-o agora num tom ruivo forte.

As pantufas arrastaram no chão enquanto ela servia o café de costas para a porta. E ela usava-as puídas, como Zoe sabia, para serem mais confortáveis.

Estava a preparar-se para fazer uma permanente, e ia estar de pé durante algum tempo.

A televisão do outro lado da sala estava sintonizada num dos programas matinais que pareciam prosperar à custa da raiva e do sofrimento.

- Ou foi você que chegou cedo de mais ou sou eu que estou atrasada - afirmou Crystal. - Ainda não tomei a minha segunda chávena de café.

- Mãe.

De caneca na mão, Crystal voltou-se.

Já se tinha maquilhado como habitualmente, apercebeu-se Zoe. Tinha os lábios vermelhos e as pestanas carregadas de rímel. Apesar dos cosméticos, a sua pele tinha um ar velho e gasto.

- Ora esta, vejam só o que o vento trouxe - disse Crystal, erguendo a caneca para beber enquanto passava os olhos pela filha. - Trouxeste o rapaz?

- Não. O Simon está na escola.

- Não há problema nenhum com ele?

 

- Não, ele está bem.

- Contigo?

- Não, mãe - tranquilizou-a ela, e deu um beijo no rosto de Crystal. - Tinha uma coisa para fazer por estes lados, e lembrei-me de vir fazer-lhe uma visita. Tem alguma marcação a seguir?

- Dentro de aproximadamente vinte minutos.

- Posso beber um café?

- Serve-te - Crystal coçou o rosto enquanto via Zoe servir-se de outra caneca. - Tens coisas para fazer por estes lados? Pensei que ias montar uma casa muito grande e elegante lá na Pensilvânia.

- E vou, mas não sei se diria que é muito grande e elegante comentou Zoe, mantendo um tom animado e fazendo um esforço para não ligar à desconfiança nem ao ar crítico da voz da mãe. - Podia ir até lá dar uma vista de olhos. Devemos abrir daqui a poucas semanas.

Crystal não respondeu. Zoe não esperava que ela o fizesse. Limitou-se a pegar no cigarro e a aspirar longamente o fumo.

- Como estão todos?

- Vamos andando - respondeu Crystal, encolhendo um ombro. - O Júnior continua a trabalhar para a companhia dos telefones, e tem-se saído bem. Emprenhou aquela mulher com quem vive.

A caneca de Zoe bateu contra a bancada.

- O Júnior vai ser pai?

- Parece que sim. Diz que vai casar com ela. Espero que ela lhe faça a vida num inferno.

- A Donna é porreira, mãe. Eles já estão juntos há mais de um ano. Vão ter um filho - disse Zoe afavelmente, e sorriu perante a ideia de o seu irmãozinho vir a ser pai. - O Júnior sempre teve jeito para bebés. Ele é ternurento para eles.

- Como se um bebé fosse fazer tudo às mil maravilhas. Ao menos a Joleen não quer começar a deitá-los cá para fora.

Decidida, Zoe manteve o sorriso nos lábios.

- Ela e o Denny estão a dar-se bem?

- Têm os dois trabalho e um tecto em cima da cabeça, portanto não têm nada de que se queixar.

- Isso é bom. E a Mazie?

- Não tenho ouvido muito dela, agora que arranjou a casa em Cascade. Acha que está muito importante desde que foi estudar Gestão e começou a trabalhar num escritório.

"O que te terá feito ficar tão azeda?", pensou Zoe. "O que te terá tornado tão dura?"

- Devia estar orgulhosa, mãe. Orgulhosa por os seus quatro filhos estarem a fazer pela vida. Foi a mãe quem nos proporcionou os meios para isso.

- Não vejo nenhum deles vir até aqui agradecer-me por ter trabalhado no duro durante mais de vinte e cinco anos para eles terem a barriga cheia e roupa para vestir.

- Eu estou aqui para lhe agradecer por isso. Crystal soltou uma gargalhada de desdém.

- O que é que tu queres?

- Não quero nada. Mãe...

- Não descansaste enquanto não saíste daqui. Nunca houve nada que bastasse para a rainha Zoe. Engravidaste daquele maldito rapaz Marshall a pensar que conseguias ter uma boa vida. Ele deu-te logo um coice, não foi? E tu apressaste-te a desandar daqui, à espera de aterrares noutro caldeirão de ouro.

- Parte disso é verdade - afirmou Zoe tranquilamente - e outra parte não. Eu queria ir-me embora daqui. Queria qualquer coisa melhor. Não tenho vergonha disso. Mas nunca encarei o meu filho como um bilhete para uma viagem melhor. Trabalhei no duro para si, mãe, e trabalhei no duro para o Simon e para mim. E tive resultados. Continuo a tê-los.

- Isso não faz de ti uma pessoa melhor. Não te transforma numa pessoa especial.

- Eu acho que sim. Acho que faz de mim uma pessoa melhor do que aquelas que não firmam os pés no chão e tomam conta da sua vida. Foi o mesmo que a mãe fez. Cuidou dos seus, da melhor maneira que pôde, e isso faz de si uma pessoa especial. Eu sei como é difícil criar um filho - prosseguiu ela, enquanto Crystal a fitava. - Como é duro e assustador criarmos esse filho, e preocuparmo-nos com ele, e termos de trabalhar para arranjar maneira de pagar as contas e manter tudo a funcionar sem a ajuda de ninguém.

Ouviu-se outro motor a pegar, com uma barulheira infernal.

- Eu só tenho o Simon, e houve alturas em que não sabia o que havia de fazer a seguir, alturas em que não sabia como conseguiria resistir na manhã seguinte, quanto mais na semana seguinte. A mãe conseguiu criar-nos aos quatro. Sinto muito se a fiz sentir que isso não tinha importância. Talvez não lhe tenha dado suficiente importância enquanto as coisas iam correndo. Mas queria agradecer-lhe por tudo isso agora.

Crystal apagou a ponta do cigarro e cruzou os braços.

- Estás outra vez grávida?

- Não - com uma gargalhada, Zoe esfregou as mãos na cara. Não, mãe.

- Passaste por aqui, vinda do nada, para me agradecer?

- Não posso dizer que tenha sido isso o que pensei esta manhã ao acordar, mas sim. Só quero agradecer.

- Sempre foste estranha. Bem, já disseste. Agora tenho uma cliente que está quase a chegar.

Zoe soltou um pequeno suspiro de alívio e pousou a caneca de café no lava-loiças.

- Então, até ao Natal.

- Zoe - chamou Crystal quando ela se virou em direcção à porta. Após uma breve hesitação, Crystal avançou e deu a Zoe um abraço um pouco desajeitado. - Tu sempre foste estranha repetiu ela, e a seguir voltou para a bancada e começou a separar os bigoudis.

com as lágrimas a cair, Zoe saiu e deixou a porta de rede bater atrás de si.

- Adeus, mãe - murmurou, e voltou a caminhar em direcção ao bosque.

Não sabia se tinha feito mais do que uma espécie de retrospectiva, mas sentia-se bem - tal como lhe tinha sabido bem o breve abraço constrangido da mãe. Dera um passo em direcção à cura de uma ferida pessoal, e em direcção à chave.

Ela tinha de se compreender a si própria, não era? Tinha de perceber por que motivo tomara as opções que tomara, e onde elas a tinham levado, antes de perceber que escolha tinha de fazer para encontrar a chave.

Ansiosa por avançar, percorreu o caminho. Dirigir-se-ia a Morgantown, passaria pelos quartos que alugara, iria ao cabeleireiro e à loja onde tinha trabalhado e ao hospital onde Simon nascera. Talvez também houvesse ali alguma coisa por concluir, algo para resolver, algo para ver.

Vivera ali durante aproximadamente seis anos, os primeiros anos de vida do seu filho. Porém, não criara quaisquer laços fortes. Porque seria? Tinha feito amizade com as pessoas com quem

trabalhara, e convivera com os vizinhos e uma ou duas outras jovens mães.

Tivera relações com dois homens enquanto lá vivia, homens de quem gostara. No entanto, era tudo muito transitório. Isto porque, como se apercebeu, aquele nunca tinha sido o lugar dela. Não fora um destino, mas sim um ponto de passagem.

Na altura não se tinha dado conta disso, mas depois tinha-se dirigido para o Vale. Para Malory e Dana. Para o Pico, para a chave.

Também se teria dirigido para Bradley, e viria ele a ser uma parte essencial da sua vida, tal como acontecera com elas?

Ou será que ele era unicamente mais uma encruzilhada que a levaria de um ponto a outro?

"Avança", disse para si mesma. "Avança e verás."

Olhou para o relógio para avaliar o tempo que ainda tinha de viagem, para passar em Morgantown e voltar para casa.

Ia conseguir fazer tudo e voltar a casa antes de Simon regressar da escola. Mesmo assim, era melhor parar para fazer um telefonema, para prevenir. Devia informar Dana e Malory de que não iria trabalhar.

Iria até lá cedo na manhã seguinte para compensar e, nessa noite, podia trabalhar nas capas do sofá, e talvez passar pela HomeMakers no dia seguinte, para ir buscar as prateleiras que queria. Se conseguisse isso e se o carregamento seguinte das suas mercadorias viesse a tempo, talvez...

Os seus pensamentos detiveram-se quando ela parou e descreveu um círculo.

Tinha-se afastado do caminho, segundo se apercebeu, o que era bem feito, por ter deixado a mente vaguear. Ali o mato era mais espesso, além de ser composto por espinhos que lhe dariam cabo das calças e do blusão se não tivesse cuidado.

Levantou os olhos para tentar verificar a direcção pelo Sol, mas o céu tornara-se de chumbo, com meia dúzia de nuvens mal-humoradas a rastejar pela sua paleta de tons monótonos.

Ia limitar-se a voltar para trás pelo caminho que percorrera nos últimos minutos. Isso pouco importava, já que o bosque não era maior do que um campo de futebol, criando uma cunha entre o campo e o parque de caravanas.

Aborrecida consigo mesma, enfiou as mãos nos bolsos e começou a descrever o caminho de volta. O ar gelara enquanto ela caminhava, e cheirava mais a neve do que a chuva. Zoe pôs-se a andar rapidamente, com pressa de voltar e de se manter quente.

As árvores pareciam maiores, mais próximas do que deviam, e as sombras demasiado grandes para aquela hora do dia. Não se ouvia agora o barulho de nenhum pica-pau a bicar a madeira nem a restolhada dos esquilos a correr pelas árvores. O bosque estava tão silencioso como uma tumba.

Zoe parou novamente, espantada por se sentir tão desorientada num lugar por onde corria em criança. As coisas tinham mudado, claro, tudo mudava. Porém, quando chegara, não a tinha surpreendido verificar como aquele lugar se alterara pouco?

Teve uma sensação de peso no estômago ao olhar para as longas sombras escuras que se lhe atravessavam no caminho.

Como podia haver sombras se não havia sol para as criar?

Quando caíram os primeiros flocos de neve, Zoe ouviu um rugido baixo e gutural no meio das árvores.

A primeira ideia que lhe ocorreu foi a de que seria um urso. Ainda havia ursos naquelas montanhas. Em criança, recordava-se de ver as pegadas e as marcas deixadas pelos ursos. De vez em quando, eles avançavam pelo parque de caravanas à noite e apanhavam o lixo que não tivesse sido armazenado convenientemente.

com o coração a bater no fundo da garganta, ordenou a si própria que se mantivesse calma. Um urso não estaria interessado nela. Não trazia comida nem constituía a menor ameaça.

Tinha pura e simplesmente de voltar para o parque, ou ir para o campo e encontrar o seu automóvel.

Descreveu o caminho de volta durante algum tempo, vasculhando as árvores na direcção do rugido. E começou a vaguear por entre uma névoa rasteira, com uma orla azul.

Deu meia-volta, pôs-se a caminhar rapidamente por entre a neve espessa que caía e vasculhou o bolso de trás, à procura do seu canivete.

Como arma era ridículo, porém, sentia-se melhor com ele na mão.

Ouviu novamente o rugido, mais perto e do outro lado. Apressou o passo, começando quase a correr, e agarrou na mala com a mão livre. Esta tinha peso e uma alça comprida. Também podia ser utilizada como arma, se necessário.

Apertou os maxilares para impedir os dentes de bater. Em seu redor, a neve caía com tanta força que ia preenchendo as suas pegadas quase à medida que elas se formavam.

O que quer que a perseguia avançava ao mesmo ritmo que ela, virava-se quando ela se virava. Captara o cheiro dela, como se apercebeu. Do mesmo modo que ela se apercebera do seu odor... forte e selvagem.

As roseiras-bravas pareciam irromper, erguer-se da neblina rasteira para lhe bloquear o caminho, com caules da grossura do seu punho e espinhos reluzentes como lâminas.

- Isto não é real. Isto não é real - entoava ela, porém, aqueles espinhos rasgavam-lhe a roupa e a carne enquanto ela se debatia contra eles.

Foi então que sentiu o cheiro do seu próprio medo e do seu próprio sangue.

Uma trepadeira soltou-se como uma cobra, envolvendo-lhe o tornozelo, e fê-la cair redonda no chão.

A gemer, Zoe rebolou para se virar de costas. E foi então que o viu.

Talvez fosse um urso, mas de uma espécie que nunca percorrera aquele bosque ou procurara comida no lixo.

Era preto como um antro infernal, e tinha os olhos de um vermelho venenoso. Quando rosnou, ela viu uns dentes longos e afiados como sabres. Enquanto cortava desesperadamente a trepadeira com o canivete, o animal ergueu-se sobre as patas traseiras e tapou-lhe o mundo.

- Filho-da-mãe. Filho-da-mãe - rasgando a trepadeira, Zoe pôs-se de pé num salto e largou a correr.

Ele ia matá-la. Desfazê-la em pedaços.

Zoe sugou o ar necessário para gritar enquanto avançava para a esquerda, e deu um golpe. Ouviu o grito de resposta atrás de si, semelhante a uma risada.

"Isto não é real, não é verdadeiro", pensou num frenesi. Mas não deixava de ser mortífero. Aquilo estava a brincar com ela; primeiro queria o seu pavor e a seguir...

Não estava disposta a morrer ali. Pelo menos daquele modo, em fuga. Não ia deixar o filho sem mãe para satisfazer ou divertir um deus diabólico.

Dobrou-se, apanhou um tronco caído e, virando-se para trás, ergueu o ramo como um bastão e mostrou os dentes.

- Anda cá, meu sacana! Anda!

Zoe susteve a respiração e recuou perante a investida do animal.

O gamo apareceu, vindo do nada, e deu um grande salto no ar. A haste trespassou o urso de lado, furando-o. O som da carne a romper e o uivo furioso foram terríveis. O sangue saía em catadupas, manchando de vermelho o branco enquanto ele se virava para atacar o gamo com aquelas garras maléficas.

O gamo fez um som que era quase humano quando o seu flanco branco se encheu de sangue, mas voltou à carga, impelindo a haste contra as garras do bicho, girando de maneira a colocar o seu corpo à frente do corpo de Zoe como se fosse um escudo.

"Foge!" foi a ordem que ela ouviu explodir dentro da sua cabeça, acordando-a do choque de assistir àquele combate. Mudou o bastão de mão e bateu-lhe com todas as suas forças.

Atingiu-o no focinho, e atingiu-o com força. O impacto fez os seus braços vibrarem, mas, mesmo assim, voltou a bater-lhe.

- Toma lá, a ver se gostas - murmurava inconscientemente, quase sem fôlego. - Toma lá, a ver se gostas - e batia com a madeira contra a carne e os ossos.

o O urso gritou e recuou aos tropeções. Quando o gamo ferido recuperou e baixou a cabeça, preparando-se para atacar, o urso desapareceu numa espiral de fumo imundo.

A arfar, Zoe caiu de joelhos na neve ensanguentada. Sentia um nó no estômago que lhe provocou vómitos em seco. Quando as náuseas e os acessos de vómitos secos aliviaram, ela levantou a cabeça.

O gamo branco estava parado, meio enterrado na neve. Os golpes no flanco reluziam com o sangue, mas os seus olhos olhavam fixamente para os dela.

- Temos de sair daqui. Ele é capaz de voltar - disse ela; pôs-se de pé e, completamente zonza, enfiou a mão na carteira. Tirou de lá um maço de lenços de papel. - Tu estás ferido. Estás a sangrar. Deixa-me ajudar-te.

Porém, ele recuou à sua aproximação. A seguir, dobrou as patas da frente e baixou a sua enorme cabeça no que era inegavelmente uma vénia.

E desapareceu, num halo de luz.

A neve desvanecera-se, e o caminho até ao campo estava novamente limpo. Zoe baixou o olhar para o local onde o sangue manchara o solo, e viu uma única rosa amarela.

Dobrou-se para a apanhar e permitiu-se chorar um pouco enquanto se afastava, a coxear, por entre as árvores do bosque.

- São só ferimentos, mas alguns estão um bocado feios - afirmou Malory, comprimindo os lábios enquanto limpava os golpes na carne de Zoe com algodão. - Ainda bem que vieste logo para aqui.

- Eu pensei... Não, não pensei - sentia-se um pouco embriagada, como Zoe se apercebeu, um pouco tonta e dorida, agora que estava de volta. - Limitei-me a conduzir até aqui, sem sequer pensar em ir primeiro a casa. Meu Deus, nem sei como consegui cá chegar. Está tudo envolto numa névoa. Precisava de estar contigo e com a Dana, de vos contar o que aconteceu e saber se vocês estavam bem.

- Não fomos nós que estivemos sozinhas no bosque, a combater com monstros.

- Hum - proferiu Zoe, tentando não ligar ao mau cheiro do anti-séptico.

Tinha feito a viagem de regresso ao Vale no meio de um nevoeiro que a mantivera entorpecida. Só começara a tremer depois de passar as portas da Indulgence.

Tinha sentido necessidade de tomar banho. Necessitara de água quente e de sabonete. De estar limpa. A necessidade era tão premente que ela pedira às amigas para irem até à casa de banho com ela, para poder explicar tudo enquanto se lavava.

Agora, apenas em roupa interior, empoleirada num banco da casa de banho enquanto Malory lhe tratava das feridas e Dana lhe ia buscar roupa limpa a casa, tudo parecia um sonho.

- Ele nem foi capaz de vir atrás de mim como um homem. Que cobarde de merda! Acho que lhe dei uma lição.

- Acho que sim - impressionada, Malory tombou a cabeça sobre a coroa da cabeça de Zoe. - Oh, meu Deus, Zoe, podias ter morrido.

- Pensei que ia morrer, e deixem que vos diga que aquilo me chateou bastante. Não estou a tentar atenuar as coisas - disse ela, e pegou na mão de Malory. - Foi horrível. Foi mesmo horrível e... e primitivo. Tive vontade de matar. Quando peguei naquele ramo, estava pronta para matar. Estava sequiosa por isso. Nunca tinha sentido nada de semelhante.

- Toma, deixa-me ver estes golpes nas tuas costas. Este não acertou por pouco na tua fada.

- Hoje é uma fada boa - adiantou ela, fazendo uma careta por causa do ardor. - O gamo, Mal. Foi ele quem me salvou. Se ele não tivesse investido daquela maneira, não sei o que teria acontecido. E ele estava a sangrar; estava ferido. Magoou-se muito mais do que eu. Só queria saber se ele ficou bem.

Zoe soltou uma gargalhada de incredulidade.

- Ia limpá-lo com um monte de lenços de papel. Não é uma tolice?

- Aposto que ele não ia achar o mesmo. - Numa tentativa de fazer o inventário das feridas da amiga, Malory recuou um passo.

- Pronto. Não é possível fazer mais do que isto.

- A minha cara não está assim tão mal, pois não? - perguntou ela, levantou-se cuidadosamente, e virou-se para o espelho em cima do lavatório. - Não, está bem. Se estou preocupada com a minha cara, acho que devo estar a voltar ao normal.

- Estás linda.

- Bem, um pouco de batom e blush ajudava - comentou ela, movendo os olhos para cruzar o olhar com Malory ao espelho. Ele não me atingiu.

- Não, nem uma beliscadura.

- Dei comigo num lugar qualquer. Não sei bem onde, mas hoje fiz uma coisa certa; dei um passo em frente, e isso preocupou-o.

Zoe virou-se para trás.

- Não tenciono perder. Dê por onde der, não tenciono perder.

No torreão de Pico do Guerreiro, Rowena preparou uma poção numa taça de prata. Embora a sua mente estivesse perturbada, as mãos eram rápidas e certeiras.

- Vais ter de beber isto tudo.

- Preferia um uísque.

- A seguir podes tomar um - prometeu ela, lançando uma olhadela para o lugar onde Pitte se encontrava, a olhar mal-humorado pela janela. Estava de tronco nu, e as marcas que ostentava eram vermelhas e brilhantes sob aquela luz.

- Depois de tomares a poção, devo conseguir tratar a ferida e retirar o veneno. Mesmo assim, vais ter de ficar sossegado durante alguns dias.

- E ele também. Mais do que sossegado, diria eu. Perdeu mais sangue do que eu. Ela recusou-se a fugir - contou ele. - Ficou para lutar.

- E eu agradeço a todas as fadas por isso - replicou ela, aproximando-se dele e pegando na taça. - Não faças má cara. Bebe,

Pitte, bebe tudo, e não só terás o teu uísque como tratarei de arranjar tarte de maçã para a sobremesa.

Ele tinha um fraquinho por tarte de maçã, e pelo olhar nos olhos da amada. Por isso, pegou na taça e bebeu todo o seu conteúdo.

- Maldição, Rowena, será que não consegues fazê-la mais amarga?

- Senta-te agora - pediu ela e, abrindo-lhe a mão, estendeu-lhe um copo de vidro grosso. - E bebe o teu uísque.

Ele bebeu, mas não se sentou.

- As regras de combate voltaram a mudar. Agora o Kane sabe que nós não recuaremos de braços caídos, limitados pelas leis que ele próprio infringiu.

- Ele agora também vai arriscar tudo. Conta com o poder que reuniu, com aquilo que ele perverteu e que o rodeia. Se não conseguirmos quebrar o feitiço, Pitte, se ele não for derrotado, não irá ficar sem castigo. Não posso deixar de crer que ainda há justiça no nosso mundo.

- Vamos lutar. Rowena assentiu.

- Também tomámos a nossa opção. O que tencionas fazer se essa opção nos mantiver por cá? Se essa opção implicar nunca mais podermos voltar para casa?

- Viver - respondeu ele, olhando pela janela. - Que mais posso fazer?

- Que mais podemos fazer? - replicou ela e, pousando-lhe a mão na ferida, atenuou a queimadura.

 

Caopítulo 11

Ele teve de tentar manter-se calmo, de se conter para não ir a correr para casa de Zoe e começar a dar ordens. Essa, Brad sabia-o, era a maneira de agir do seu pai.

E era bastante eficaz.

Apesar disso, por mais que amasse e admirasse o pai, não queria ser como ele.

A única coisa que queria verdadeiramente nesse momento era verificar se Zoe estava bem. E, a seguir, garantir que permanecesse assim.

"Além de que também tenho de pensar no Simon", recordou-se Brad, enquanto parava em frente à casa de Zoe. Não podia levar tudo à sua frente, pôr-se a bramir que ela fora imprudente em sair dali sozinha e colocar a sua vida em risco, com o rapaz por perto. Não ia assustar uma criança só para soltar os seus medos e frustrações.

Ia esperar que Simon se deitasse, e depois podia soltá-los.

Alguns instantes antes de bater à porta, explodiram latidos dentro de casa. Uma coisa que se podia dizer a favor de Moe era que ninguém era apanhado desprevenido quando ele estava por perto. Ouviu os gritos e as gargalhadas do rapaz, e depois a porta abriu-se.

- Primeiro devias perguntar quem era - disse-lhe Brad. Simon revirou os olhos enquanto Moe dava saltos para cumprimentar Brad.

- Olhei pela janela e vi o teu carro. Eu sei isso tudo. Estou a jogar basebol; estou a acabar a sétima partida - pegou na mão de Brad e puxou-o para a sala. - Podes ficar com a outra equipa. Só está a perder por duas.

- Pois, pois, chamas-me para jogar quando a minha equipa já está a perder. Escuta, eu preciso de conversar com a tua mãe.

- Ela está no quarto, a coser qualquer coisa. Vá lá, só tenho uns minutos até ela me mandar acabar o jogo e ir tomar banho.

"O miúdo é uma jóia", reconheceu Brad. "Tem uns olhos que dão vontade de lhe oferecer o mundo."

- Preciso mesmo de conversar com a tua mãe, por isso, que tal marcarmos um jogo lá mais para o meio da semana? Um frente a frente, amigo, e eu vou arrasar o teu domínio.

- Como se eu deixasse! - Ele ainda pensou em discutir mas resolveu aguentar-se. Se Brad mantivesse a mãe a conversar, talvez ela se esquecesse quando chegasse a sua hora de ir tomar banho. - As nove partidas inteirinhas, prometes?

- Prometo.

O sorriso dele assumiu um ar manhoso.

- Podemos jogar em tua casa, na televisão grande?

- Vou ver o que posso fazer.

com o público da partida de basebol a aplaudir na televisão, Brad dirigiu-se para o quarto de Zoe. Ouviu a música antes de chegar à soleira da porta. Ela tinha posto a música baixinho, e ele ouviu a voz dela enquanto ela murmurava mais do que cantava a acompanhar Sarah McLachlan. A seguir, as vozes foram abafadas pelo zunido martelado do que ele reconheceu como sendo uma máquina de costura.

Zoe estava a trabalhar numa máquina portátil montada sobre uma mesa, em frente à janela lateral. As fotografias emolduradas e a arca pintada que ele se recordava de ver em cima dela tinham passado para o toucador, para criar espaço para a máquina e para o que pareciam ser quilómetros de tecido.

Era um quarto essencialmente feminino: muito ao estilo de Zoe. Nem espalhafatoso nem demasiado elegante, mas muito feminino em pormenores. Taças cheias de pot-pourri, almofadas debruadas a renda, a velha cama de ferro estanhada e uma manta de xadrez colorida.

Ela emoldurara anúncios de pó-de-arroz, perfume, produtos para o cabelo e roupa tirados de revistas antigas e tinha-os agrupado nas paredes, formando uma espécie de galeria excêntrica e nostálgica.

Zoe estava a coser, reparou ele, como uma pessoa que sabia o que estava a fazer, num ritmo constante e competente, enquanto o seu pé - enfiado numa espessa meia cinzenta, batia ao som da música que saía do rádio-despertador ao pé da cama.

Brad esperou que ela parasse a máquina e começasse a colocar novamente o tecido.

-Zoe?

- Hum? - perguntou ela, mudando de posição na cadeira e dirigindo-lhe o olhar vazio de uma mulher cuja mente estava consideravelmente ocupada. - Oh, Bradley, não sabia que estavas aqui. Não te ouvi... - explicou, e olhou para o relógio. - Estava a ver se conseguia acabar estas capas antes da hora do Simon ir para a cama. Acho que não vou conseguir.

- Capas? - o pensamento dele teve de fazer um desvio. - Estás a fazer capas?

- Também se fazem - a irritação fervilhava no tom de voz dela, enquanto ia puxando o tecido. - vou fazer as capas para um sofá do cabeleireiro. Queria uma coisa simpática e divertida, e acho que estas hidrângeas grandes resultam. A cor também. E não há mal nenhum em fazer as coisas em casa.

- Não era isso que eu queria dizer. Só fico surpreendido por conhecer alguém que saiba fazer uma coisa dessas.

Ela ficou irritada. Embora soubesse que era uma estupidez, não deixou de se irritar.

- Imagino que muitas das mulheres que conheces devem ter costureiras, por isso não precisam de distinguir um lado do outro de uma máquina de costura.

Ele aproximou-se para levantar um pouco de tecido, e observou-a com ar especulativo.

- Se estás decidida a interpretar mal tudo aquilo que eu digo, vamos acabar por discutir sobre uma coisa completamente diferente do assunto que vim aqui discutir contigo.

- Não tenho tempo para discutir contigo acerca de assunto nenhum. Preciso de acabar isto enquanto é tempo.

- Vais ter de arranjar tempo. Eu tenho... - começou ele, olhando com ar maldisposto para o rádio-despertador quando este começou a tocar.

- Não posso arranjar aquilo que não tenho - explicou ela, levantando-se para desligar o alarme. - Está posto para eu saber a hora a que tenho de chamar o Simon para o banho. Esse processo ocupa no mínimo meia hora, se ele colaborar. Além de que hoje é segunda-feira, e às segundas-feiras costumamos ficar os dois a ler durante meia hora antes de ele ir para a cama. A seguir, tenho no mínimo mais uma hora de costura, e depois...

-Já percebi.

"Certo", pensou ele, e pôs as mãos nos bolsos, pois sabia quando uma mulher estava decidida a pô-lo a andar.

- Eu trato do banho do Simon e da leitura.

- Tu... o quê?

- Não sei coser, mas sei dar banho e sei ler.

Ela ficou tão admirada que nem sabia como compor uma frase.

- Mas não é... não és... - afirmou, fazendo os possíveis para alinhar os seus pensamentos. - Tu não vieste aqui para ficares a tomar conta do Simon.

- Não, vim aqui para gritar contigo... o que já sabes, aliás, e é por isso que estás chateada. Mas posso gritar mais logo. Imagino que o Simon já conhece bem a rotina do banho e da leitura. Nós desenrascamo-nos. Acaba as tuas capas - concluiu, enquanto saía do quarto. - Discutimos quando estivermos os dois prontos.

- Eu não...

Entretanto ele já tinha saído e estava a chamar o filho dela.

Era muito difícil ficar ofendida com um homem que a compreendia tão bem. Zoe levantou-se para ir atrás dele, e a seguir parou. Simon começava já a entrar no pedido dos "cinco minutos a mais".

Os lábios dela estremeceram num sorriso maternal muito cheio de si. Porque não deixar Bradley saborear o pesadelo do ritual de convencer um rapaz de nove anos da necessidade de se vestir e ir para a cama? A melhor das hipóteses era ele erguer as mãos, vencido, muito antes do termo.

O que implicaria ficar demasiado exausto para se preocupar a discutir com ela... ou a admoestá-la porque não devia ter saído sozinha de casa nessa manhã.

Coisa que ela tinha o direito de fazer, como recordou a si mesma. Além do mais, tinha um compromisso. Porém, não estava com tempo nem disposição para discutir tudo isso nessa noite.

Por isso, Simon iria cansá-lo, ele iria para casa, e ela teria uma noite de sossego para acabar o trabalho e planear a sua estratégia para os dias seguintes.

Além de que, decidiu enquanto voltava para a máquina de costura, podia deixar as capas de lado.

Ficou a ouvir as vozes deles, a estranha harmonia existente entre o homem e o rapaz, e começou a coser a linha seguinte. Um deles chamaria por ela quando chegassem a um impasse.

Ouviu risadas - a gargalhada maníaca de Simon - e desfez-se num sorriso. Imaginando que o seu tempo ia ser bastante limitado, concentrou-se na tarefa que tinha em mãos.

Perdeu a noção do tempo e só veio à superfície quando se apercebeu de como a casa estava calma. Não se ouviam vozes em altos berros nem o cão a ladrar.

Preocupada, levantou-se da máquina e foi a correr até à casa de banho do outro lado do corredor. Parecia que começara uma guerra muito selvática e muito molhada. As toalhas enxaguavam parte da água do chão, e havia espuma na banheira, o que significava que Simon optara pelas bolhas e pelo conjunto de automóveis e de soldados de plástico espalhados pela banheira.

O casaco de Bradley estava pendurado no cabide da parte de dentro da porta. Distraída, Zoe retirou-o de lá, alisando o alto no colarinho.

Armani, reparou ao olhar para a etiqueta. Aquilo era inédito. Não costumava haver roupas de design italiano penduradas no seu cabide da casa de banho.

Levando-o cuidadosamente, encaminhou-se para o quarto de Simon. Ouviu-o ler - a sua voz tinha o peso habitual de quando ele estava ensonado.

com cuidado para não fazer barulho, Zoe pôs-se a espreitar à porta. E depois limitou-se a ficar parada a olhar, com o casaco perto do coração.

O filho estava na cama, no beliche de cima. Tinha vestido o pijama do Harry Potter, e tinha os cabelos a brilhar do champô.

Moe estava estendido no beliche de baixo, com a cabeça na almofada, já a ressonar.

E o homem, cujo casaco ela trazia, estava deitado no beliche ao lado do seu filho, com as costas encostadas à parede e os olhos - tal como os de Simon - no livro.

Simon estava aninhado contra ele, com a cabeça pousada no ombro de Brad enquanto lia a história em voz alta.

O coração dela caiu-lhe aos pés. Não tentou opor-se a isso, incapaz de lançar qualquer tipo de defesa. Naquele momento único, amou ambos com todo o seu amor.

Acontecesse o que acontecesse, teria sempre aquela imagem na mente. "E o Simon também", pensou. Naquele momento, devia a Bradley Vane mais do que alguma vez poderia retribuir-lhe.

Sem querer perturbá-los, saiu do quarto e desceu em silêncio até à cozinha.

Pôs café a fazer e tirou biscoitos de um frasco. Se ele ia gritar com ela, podiam muito bem fazê-lo de uma maneira civilizada. Quando terminassem, e ela estivesse sozinha, ia tentar voltar a pensar com clareza.

Como estava atenta, ouviu-o atravessar o pequeno corredor. Pegou na cafeteira para manter as mãos ocupadas, e estava a servir o café quando Brad chegou.

- Ele deu-te muito trabalho?

- Nem por isso. Já acabaste de coser?

- Está quase - respondeu ela, virando-se para lhe dar a caneca, e aí o seu coração voltou a palpitar. Ele estava descalço, com as mangas da sua linda camisa azul arregaçadas até aos cotovelos. As bainhas das calças tinham ficado molhadas.

- Já sei que estás zangado comigo, e acho que deves pensar que tens motivos para isso. Eu também estava para me zangar e dizer as coisas do costume em relação a gerir a minha vida e cumprir as promessas que fiz.

Zoe passou a mão sobre os ombros do casaco, que tinha estendido nas costas de uma cadeira.

- Como passei um bocado a pensar nisso, fiquei com alguns bons argumentos para te dizer. Só que não me apetece dizer-tos agora. Por isso, queria que não estivesses zangado.

- Eu também queria o mesmo - afirmou ele, lançando uma olhadela para a mesa. - Então, vamos sentar-nos a discutir acompanhados de um café e biscoitos?

-Acho que não consigo discutir contigo, Bradley, pelo menos depois de teres posto o meu miúdo a dormir daquela maneira confessou ela, com a emoção estampada no rosto. - Mas posso ficar a ouvir-te gritar comigo.

- Tens jeito para tirar o recheio a uma boa discussão - comentou ele, sentando-se e esperando que ela se sentasse à sua frente.

- Deixa-me ver os teus braços.

Sem dizer nada, ela puxou as mangas da camisola, mostrando os cortes e arranhadelas. Quando o silêncio se instalou, ela puxou novamente as mangas para baixo.

- Foram só as roseiras-bravas - explicou ela rapidamente. -Já fiquei pior a tratar do nosso jardim.

Ela parou, remetida ao silêncio pelo olhar frio que ele lhe lançou de seguida.

- Podia ter sido pior. Muitíssimo pior. Por amor de Deus, tu estavas sozinha. O que é que te levou a ir de automóvel para a Virgínia e a meteres-te pelo bosque sem mais ninguém?

- Foi lá que eu cresci, Bradley. Eu cresci naquele bosque. A paisagem torna-se menos agreste depois de atravessar a fronteira

da Pensilvânia. - Para ter alguma coisa para fazer, ela acendeu a vela de três pavios que fizera para a mesa da cozinha, uma que cheirava a mirtilos. -A minha mãe mora lá num parque de caravanas. O Simon foi muito provavelmente concebido naquele bosque.

- Se queres ir ver a tua mãe ou o lugar onde cresceste, tudo bem. Só que agora não estás em circunstâncias normais. Tu não me disseste que ias lá hoje de manhã.

- Eu sei. Se tivesse dito, terias querido ir também, e eu não queria que fosses. Sinto muito que isso te possa magoar, mas queria ir sozinha. Precisava de ir sozinha.

Ele engoliu o ressentimento, embora ele lhe secasse a garganta.

- Também não disseste à Dana nem à Malory que ias até lá. Partiste sem dizer a ninguém, e foste atacada.

- Não me lembrei de dizer nada a ninguém. É isso que te deixa furioso - disse ela, acenando com a cabeça. - Então, vais ter de ficar furioso. Eu fiz um acordo. Dei a minha palavra de honra, e estou a tentar fazer o que prometi, e tu não podes ficar aí sentado a dizer-me que não farias o mesmo. Ir até lá esta manhã tem exactamente a ver com isso. Achei que devia ir. Acho que precisava de ir.

- Sozinha?

- Sim. Tenho algum orgulho e alguma vergonha. Eu tenho o direito de sentir o que sinto, Bradley. Julgas que eu queria levar-te comigo, no teu fato Armani, àquela roulotte a cair?

- Isso não é justo, Zoe.

- Não, não é justo mas é a verdade. A minha mãe já acha que eu sou convencida. Se tivesse ido até lá contigo... Bem, olha só para ti.

Ela acenou com a mão, e ia-se desatando a rir com a exasperação no rosto dele.

- Até à distância se vê que és rico, Bradley, com ou sem esse casaco italiano.

- Poupa-me - foi a única coisa de que ele se conseguiu lembrar.

- Tu não tens culpa, e porque haverias de ter? Além disso, cai-te bem. A ela é que não teria caído nada bem, e eu precisava de a ver, de conversar com ela. Tinha coisas para lhe dizer que não teria conseguido dizer contigo ali. Nem com a Malory ou com a Dana. Precisava de ir até lá por minha causa, e por causa da chave. Era eu quem tinha de fazer isso.

- E se não tivesses conseguido sair de lá?

- Mas saí. Não digo que não tenha ficado assustada quando aquilo começou. Nunca apanhei um susto tão grande - instintivamente, Zoe esfregou os braços como se estivesse gelada. - Parecia uma armadilha, a maneira como tudo mudou, a maneira como ele veio ter comigo. Parecia quase um conto infantil, e foi isso que tornou as coisas tão assustadoras.

Ela olhava agora para trás dele, para o lugar onde estivera.

- Perdida no bosque, a ser perseguida por qualquer coisa... que não era humana. Mas lutei. E era isso que tinha a fazer. Afinal, acabei por feri-lo mais do que ele me feriu a mim.

- Bateste-lhe com um pau.

- Aquilo era maior do que um pau - a boca dela curvou-se um pouco quando viu o mau génio estampado na cara dele. - Era um belo tronco forte, mais ou menos desta grossura - demonstrou ela, afastando as mãos. - E entre o susto e a raiva, dei-lhe uma valente sova. É claro que não sei como as coisas teriam corrido se o gamo não tivesse aparecido. Mas também não preciso de pensar, porque ele apareceu, e o Kane também. Isso diz-me que eu procedi bem ao ir até lá.

- Não voltes lá sozinha, Zoe. Peço-te. Eu vim até aqui esta noite totalmente decidido a ordenar-te isso. Mas estou apenas a pedir-to.

Zoe pegou num biscoito, partiu-o em dois e ofereceu-lhe metade.

- Estava a pensar ir amanhã a Morgantown, passar pelo lugar onde vivi, onde trabalhei, onde o Simon nasceu. Só para ver se é a próxima paragem. Se conseguir sair logo de manhã, posso estar de volta pelas duas, três no máximo, e ainda ir trabalhar um bocadinho no cabeleireiro. Se calhar, podias ir comigo.

Ele limitou-se a puxar do telemóvel e a marcar um número.

- Diná, é o Brad. Desculpa telefonar-te para casa. Preciso que anules todos os meus compromissos de amanhã - afirmou, e aguardou um bom bocado. - Sim, eu sei. Marca tudo para outra altura, sim? Tenho uns assuntos pessoais a tratar, que me vão ocupar a maior parte do dia. Só devo conseguir estar aí depois das três. Óptimo. Obrigado. Adeus.

Brad desligou o telemóvel e guardou-o novamente.

- A que horas queres sair?

"Oh, tu és um homem muito especial." -Aproximadamente um quarto para as oito? Assim que o Simon for para a escola.

- Está bem - disse ele, e deu uma dentada num biscoito. Deves precisar de voltar lá para cima, para acabares de coser.

- Ainda não. É melhor fazer uma pausa. Queres sentar-te no sofá a fingir que vemos televisão?

Ele fez-lhe uma festa no rosto.

- Claro que quero.

Zoe entrou na Indulgence na tarde seguinte, carregando um caixote enorme. Pousou-o à entrada da porta e olhou em redor. Havia quadros nas paredes, bem como um grande pano indiano. A mesa que ela recuperara tinha sido colocada junto à parede pequena do lado esquerdo da porta, e tinha em cima uma das suas velas, um pisa-papéis alto de vidro transparente em forma de gota e três livros alinhados entre dois suportes em forma de livros.

Alguém instalara a nova luz do tecto e colocara um bonito tapete de papoilas ao vento.

O prazer e a culpa debateram-se dentro dela. Arregaçou as mangas e preparou-se para lançar mãos à obra enquanto procurava as amigas.

Não as encontrou no sector de Malory, mas ficou boquiaberta ao percorrer aquele espaço. Tinham passado dois dias desde a última vez que dera uma vista de olhos no piso inferior, mas não lhe parecia possível conseguir fazer tanta coisa nesse espaço de tempo.

Havia quadros, esboços, esculturas e gravuras emolduradas a decorar as paredes. Um armário alto e estreito encerrava uma colecção de arte em vidro, e outro, baixo e comprido, exibia olaria colorida. Em vez do balcão da caixa, Malory optara por incluir uma secretária antiga na primeira sala. Mantivera o balcão na segunda, onde iria pôr o serviço de embrulhos.

Havia ainda muitos caixotes por abrir, mas já era evidente a visão que Malory tivera para aquele espaço. Zoe sorriu ao verificar que já havia uma esguia árvore de Natal, com ornamentos artesanais pendurados nos ramos.

Zoe deambulou por ali e passou pela cozinha para entrar na loja de Dana.

Os livros ocupavam mais de metade das prateleiras. Sobre uma velha mísula havia chávenas, canecas e caixas de lata.

Tanta coisa, e ela não tinha lá estado para partilhar a diversão e ajudar no trabalho.

Ao ouvir o chão ranger no andar de cima, Zoe subiu a escada a correr.

- Onde está toda a gente? Não posso crer no que vocês conseguiram fazer enquanto eu...

Começou, detendo-se, sem fala, ao ver o seu salão.

- Não conseguimos esperar - explicou Dana, afagando-lhe o rosto com a mão e dando uma palmadinha na cadeira que ela e Malory tinham acabado de montar. - Pensámos que era bom montá-las todas antes de tu voltares. Acabámos agora mesmo.

Lentamente, Zoe atravessou a sala, passando a mão sobre o cabedal almofadado de uma das suas quatro cadeiras de corte.

- E funcionam. Olha - quando Malory carregou com o pé no círculo cromado na base da cadeira, esta começou a subir. - É divertido.

- Olhem! - exclamou Dana, tombando para cima da cadeira e fazendo-a girar. - Isto é que é divertido.

- Chegaram - foi a única coisa que Zoe conseguiu dizer.

- Não foi só isso; olha para ali - disse Malory, apontando para os três lavatórios reluzentes. - Instalaram-nos esta manhã - arrastou

uma Zoe deslumbrada até lá, e pôs a água a correr. - Estás a ver? Funcionam mesmo. Isto é um salão de beleza.

- Não posso crer - comentou Zoe, e a seguir sentou-se no chão, cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.

- Oh, minha querida - disse Malory, desatando imediatamente o lenço que trazia na cabeça e oferecendo-lho.

- Tenho lavatórios. E cadeiras - proferiu Zoe, soluçando contra o quadrado de algodão colorido. - E... e tu tens quadros, estátuas e caixas de madeira entalhadas. A Dana tem livros. Há três meses, eu tinha um emprego da treta, a trabalhar para uma mulher que nem gostava de mim. Agora tenho cadeiras. E vocês montaram-nas.

- Tu recuperaste a mesa - contrapôs Malory.

- E encontraste a masseira da cozinha. Fizeste o projecto das calhas de iluminação, puseste massa nos azulejos das casas de banho - lembrou Dana, inclinando-se para fazer uma festa na cabeça de Zoe. - Nós estamos nisto juntas, Zoe.

- Eu sei, eu sei, é mesmo por isso - confessou ela, enxugando as lágrimas. - Isto é lindo. Tudo. Adoro. Adoro-vos. Eu estou bem.

Zoe fungou, e soltou o ar todo que sentia preso no peito.

- Meu Deus, apetece-me lavar a cabeça a alguém - disse ela a rir-se, e levantou-se num salto. - Quem quer ser a primeira? perguntou, e abanou a cabeça ao ouvir um grito no andar de baixo. - Merda. Esqueci-me. É o rapaz da feira de artigos em segunda mão com o meu sofá. Paguei-lhe vinte dólares para ele mo trazer até cá acima. Tenho de ir ajudá-lo.

Quando Zoe saiu a correr, Malory comentou para Dana:

- Ela tem muita coisa a fervilhar dentro dela.

- Pois tem. Não sei se alguma de nós já pensou na pressão que recairia na que fosse em último lugar. Além disso, há ainda a proximidade da abertura desta casa - comentou ela, estendendo os braços de maneira a envolver toda a sala. - Ela tem de estar pronta para tudo.

- Temos de garantir que estaremos por perto quando isso acontecer.

As duas desceram para dar uma ajuda com o sofá. Quando este estava no lugar, Malory recuou e levantou a cabeça.

- Bem... é bonito e comprido. E... - começou, tentando encontrar algo de positivo a dizer acerca daquele objecto castanho e desengraçado. - Tem umas belas costas elevadas.

- "Feio como uma noite de trovões" era a expressão que procuravas - ajudou Zoe. - Mas espera só - decretou, e começou a abrir a caixa que trouxera de casa, parando de seguida. - Vão lá para fora até eu acabar.

- Acabar o quê? - perguntou Dana, e deu um ligeiro pontapé no sofá. - Acabar de queimá-lo?

- Vá lá. Dêem-me dez minutos.

- Acho que vai demorar mais - avisou Malory.

Assim que ficou sozinha, Zoe lançou imediatamente mãos à obra. Se havia coisa que sabia, era não ligar a comentários desagradáveis.

Quando a transformação ficou completa, deu um passo atrás, com as mãos nas ancas.

E, credo, ela tinha voltado a conseguir. Foi até ao cimo das escadas e chamou pelas amigas.

- Podem subir. Venham dizer-me o que pensam, com sinceridade.

- A ideia de queimar isso não te pareceu sincera? - inquiriu Dana. - A Mal e eu podemos fazê-lo se não tiveres tempo. Não tens de ir ter com o Simon a casa?

- Não. Depois já falamos nisso - afirmou, puxando a mão de Dana, e a seguir a de Malory, e arrastando-as de volta para o salão de cabeleireiro.

- Santo Deus, Zoe! Meu Deus, está lindo - comentou Malory, estupefacta, aproximando-se para ver melhor o sofá. Aquele chaço castanho desenxabido era agora um encantador sofá cheio de hidrângeas cor-de-rosa-profundo sobre um fundo azul-claro. As almofadas tinham sido dispostas com cuidado, e havia uns laços de cores vivas a envolver os braços do sofá.

- Parece um milagre - comentou Dana.

- Quero fazer um ou dois apoios para os pés, utilizando o mesmo tecido ou um com as tonalidades mais fortes. Depois vou arranjar umas cadeiras de realizador e fazer capas para elas - só um drapeado, como se vê nos casamentos, com um laço atrás.

- Entretanto, podias aproveitar para me tricotar umas capas novas para o automóvel - sugeriu Dana.

- Está fantástico, Zoe. Não te queres sentar nele e contar-nos o que aconteceu hoje?

-Ainda não me posso sentar. Sentem-se vocês. Quero ver como fica alguém aí sentado.

Zoe pôs-se a andar de um lado para o outro e a observar o sofá de diferentes ângulos.

- Está mesmo como eu queria. As vezes fico um pouco espantada por estar tudo a correr tão bem comigo. E começo a preocupar-me e a pensar que não vou conseguir encontrar a chave. Eu sei que isso vos deve parecer completamente imbecil.

- Nem por isso - confessou-lhe Dana, aninhando-se no sofá. Eu costumo preocupar-me com o que pode correr mal quando as coisas estão a correr optimamente.

- Eu pensava... esperava... sentir alguma coisa ao regressar a Morgantown. Eu, aliás, nós, passámos pela minha antiga casa e pelo cabeleireiro onde trabalhei. Até chegámos a ir à HomeMakers. Só que não foi como ontem. Não havia a mesma sensação de urgência em entender.

Zoe voltou a sentar-se no chão em frente ao sofá.

- Foi bom voltar a ver algumas coisas, lembrar-me delas. Mas aquilo não me cativou. Vivi ali quase seis anos, mas foi... apercebi-me de que foi uma espécie de transição. Eu não tencionava ficar. Trabalhei lá e vivi lá, mas a minha mente dirigia-se sempre mais para diante. Para aqui, imagino eu - disse ela baixinho. Para onde seguiríamos assim que eu pudesse. O Simon nasceu lá, e esse foi o facto mais importante da minha vida. Mas mais nada do que eu fiz por lá, mais nada do que me aconteceu lá, era assim tão importante. Aquilo foi apenas... um lugar para nos recompormos.

- Então foi isso que descobriste - afirmou Malory. - Que a chave não estava lá. Se não tivesses ido e perdido tempo a procurar, não saberias isso.

- Mesmo assim, não sei onde ela está - disse Zoe, frustrada, batendo com um punho no joelho. - Tenho a sensação de que devia conseguir ver, de que estou a olhar apenas ligeiramente na direcção errada, e preocupa-me continuar a viver o meu dia-a-dia e não conseguir ver, só porque não virei a cabeça e não olhei para o lugar certo.

- Nós também ficámos desencorajadas - recordou-lhe Dana.

- Também olhámos na direcção errada.

- Tens razão. Só que está a acontecer tanta coisa deste lado que isso faz com que o que acontece do outro pareça muito pouco. Este lugar, e o que eu sinto em relação a ele, o que sinto em relação a vocês é tão forte... Às vezes ponho-me a pensar como é que irei fazer aparecer a chave a partir do nada... mas, no momento seguinte, sei que vou conseguir. Sei que vou, se olhar na direcção certa.

- Tu voltaste ao ponto de partida - recordou-lhe Malory. - E procuraste no lugar onde ficaste à espera: não achas que é uma maneira possível de descrever o tempo que passou antes de vires para aqui?

- Acho que sim.

- Se calhar, devias procurar no ponto de chegada. No ponto em que te encontras neste momento.

- Queres dizer aqui? Achas que ela pode estar aqui, nesta casa?

- Talvez, ou então noutro lugar qualquer que seja importante para ti. Num lugar onde tiveste ou venhas a ter esse momento de verdade. Essa decisão.

- É possível - assentiu Zoe, pensativa. - vou tentar concentrar-me um pouco nessa ideia. vou ficar a trabalhar aqui enquanto o Simon está com o Brad.

- O Brad está a tomar conta do Simon? - repetiu Dana.

- Esse é o outro aspecto da questão - confessou ela para Dana, com um olhar de espanto. - Estávamos a vir embora, e eu disse qualquer coisa em relação a ir buscá-lo à escola e a trazê-lo comigo para aqui, a tentar decidir como ia conseguir conjugar tudo, e o Brad disse-me que o ia buscar. Não adiantava nada dizer que não. Ele vai então buscá-lo à escola, leva-o para a HomeMakers um bocado, e a seguir vão juntos para casa dele; aliás, parece que têm uma combinação qualquer acerca de um jogo de vídeo. Disse-me para dedicar-me ao que tenho a fazer, que ele levava o Simon a casa por volta das oito. Ah, e disse para não me preocupar com o jantar - acrescentou, acenando airosamente com a mão. - Eles encomendam piza.

- Isso é algum problema? - perguntou Malory.

- Não é propriamente um problema. De certeza que não vai constituir qualquer problema para o Simon, e o tempo também me dá jeito. Só não quero é começar a depender de alguém. Isso é só mais uma maneira de me meter em sarilhos. Não quero estar apaixonada por ele. Não quero isso, e acho que não consigo evitá-lo.

com um suspiro, Zoe pousou a cabeça em cima do joelho de Malory.

- O que é que hei-de fazer? Malory fez-lhe uma festa na cabeça.

- O que vier a seguir.

 

Capítulo 12

Joe ainda ficou sozinha depois de as amigas terem ido para

casa. Queria tomar o pulso à casa em seu redor, tal como

sentira o bosque no dia anterior. O que a teria atraído naquela casa?

Tinha sido ela a encontrá-la. Tinha sido ela a fazer as contas, embora uma parte de si mesma não tivesse acreditado que ia conseguir.

Mesmo assim, apesar das dúvidas, apesar dos contratempos, tinha seguido a sua intuição, e delineara dentro da sua cabeça o que começara por ser uma espécie de fantasia. Uma espécie de esperança que acabara por se transformar na sua realidade.

Fora ela a primeira das três a entrar por ali adentro, a começar a ver o que havia a fazer e como isso poderia ser concretizado. "Fui a primeira a reclamar este território", pensou, enquanto passava os dedos pela parede do corredor central do segundo piso.

Não tinha sido ela a permanecer ali enquanto o agente imobiliário apregoava as potencialidades, o valor comercial e as taxas de juro, sabendo que aquele era o lugar ideal para construir o seu futuro? Não fora ela quem vira as desenxabidas paredes beges, o estuque lascado, as janelas sujas, e imaginara cores, luzes e possibilidades caso estivesse disposta a arriscar?

Isso não constituía um momento de verdade?

A casa fora mais uma coisa que a juntara a Malory e a Dana, que as tinha feito passar a ser uma equipa. Tal como a demanda as unia. Tal como cada uma delas era uma chave. Envolvida na busca das respostas do passado e do futuro.

 

Kane tinha aparecido ali para tentar e ameaçar as suas duas amigas. Apareceria também para a ameaçar? O medo que sentia dele era algo que vivia dentro dela.

Permaneceu de pé no topo das escadas, a olhar para a porta. Só tinha de descer as escadas, passar por aquela porta e voltar a entrar num mundo que entendia e reconhecia e, em certa medida, controlava.

Os automóveis passavam na rua, as pessoas caminhavam no passeio. Era a vida de todos os dias a seguir o seu ritmo quotidiano.

Lá dentro, ela encontrava-se sozinha, tal como estivera sozinha no bosque. Tal como se encontrava sozinha todas as noites quando apagava o candeeiro ao lado da cama e pousava a cabeça na almofada.

Eram essas as suas opções, e não podia ter receio do que escolhera fazer com a sua vida.

Afastou-se das escadas, encaminhou-se para longe da porta e do mundo exterior, e caminhou pelo corredor silencioso da parte da casa que reclamara para si.

O gelo percorreu-lhe a pele quando ela se aproximou da porta do sótão. Todas tinham evitado subir até lá desde a experiência de Malory. Nem falavam nele. Era uma parte da casa que deixara de existir para elas, uma parte da qual tinham desistido, e de um modo bastante factual.

Não estaria na altura de o recuperar? Se a casa ia pertencer-lhes, pertencer-lhes na totalidade, não podiam fingir que uma parte dela não existia.

Malory tinha chegado ao seu momento decisivo naquela casa, e vencera. Porém, elas tinham decidido abandonar aquele campo como se tivessem sofrido uma perda.

Estava na altura de alterar isso.

Zoe estendeu a mão e fez girar a maçaneta. Abriu a porta. Era melhor acender a luz - um acto comum, quotidiano. A luz era mais reconfortante do que o escuro, e isso era algo de humano. No entanto, ela continuou a andar, tentando não estremecer quando as escadas rangeram sob o seu peso.

 

O pó fazia-lhe cócegas no nariz, e Zoe via-o rodopiar em partículas que flutuavam no veio de luz proveniente da lâmpada. O lugar precisava de uma boa limpeza, e por entre os artigos abandonados que os inquilinos anteriores tinham deixado para trás havia uma grande quantidade de lixo passível de ser transformado em diversos tesouros.

Um armário que precisava de ser lixado ou pintado, candeeiros sem abajures, uma cadeira de baloiço com a parte de baixo partida, caixotes a ganhar pó, livros a apanhar bolor.

Reparou que as aranhas tinham andado bastante ocupadas por aqueles lados e os ratos deviam ter feito ninhos confortáveis dentro das paredes sem estuque. Aquela divisão precisava de uma boa varredela. Era aconselhável montar armadilhas. Havia ali um belo espaço de arrumação desperdiçado.

Recordou-se de como ele era quando se encontrava cheio de uma névoa azul, e sentiu um frio de gelar os ossos.

"É melhor", fez questão de recordar a si mesma, "pensar que houve aqui uma vitória." Apesar disso, dirigiu-se para a janela e abriu-a, para deixar que o ar gélido da noite afastasse o cheiro a bafio.

"Estar aqui, sozinha, é um passo importante", reflectiu. Não se tratava apenas de uma espécie de conquista, mas também de uma prova para si mesma de que não permitiria que o medo a paralisasse. Da próxima vez, prometeu a si mesma, traria uma vassoura, um pano do pó, um balde e uma esfregona. Mas, para já, podia aproveitar para ver o que ficara para trás, e separar as coisas que podiam ter algum aproveitamento das que tinham de ir para o lixo.

Havia uma velha gaiola para pássaros que podia ser limpa e pintada. Havia de encontrar alguma utilidade para ela. Tal como para o candeeiro de pé alto em metal e para a mesa cambada. Os livros não estavam propriamente cheios de traças, por isso Zoe anotou mentalmente a necessidade de lhes dar uma vista de olhos, encaixotar todos o que estivessem demasiado estragados e levá-los dali para poupar trabalho a Dana.

 

Encontrou uma boneca de trapos antiga com um ombro arrancado. "Alguém a amou em tempos", pensou. Talvez com uma boa lavagem e meia dúzia de pontos alguém voltasse a amá-la. Resolveu pô-la debaixo do braço enquanto ia vasculhando por entre caixotes e afastava do caminho algumas peças de mobiliário.

Considerou o longo espelho oval com cantos biselados um achado. Sim, era verdade que precisava de ser novamente estanhado, mas tinha uma forma muito bonita. Podiam pendurá-lo na zona central ou, melhor ainda, usá-lo em vez do armário de remédios do lavabo do piso inferior.

com a boneca nos braços, Zoe inclinou o espelho contra a parede e deu um passo atrás para ver melhor.

Viu-se no espelho coberto de manchas, banhada pela luz crua, com pó nos cabelos e na cara, e com uma boneca de trapos ferida no colo.

"Tal como o espelho, tal como a boneca", pensou, "neste momento, a minha aparência não é nada de especial." No entanto, o potencial era o mais importante. Estava com um pouco de olheiras, mas isso não era nada que uma pausa de dez minutos com uma máscara de pepino nos olhos não pudesse resolver. Ela sabia melhorar-se, em termos de aspecto. Isso implicava apenas rotina e meia dúzia de truques.

E também sabia manter-se sintonizada interiormente. Desde que se considerasse uma obra em progressão, não pararia de aprender, de se transformar, de tirar o máximo partido de si própria.

Ela não era uma triste boneca de trapos que precisava que cuidassem dela. Zoe sabia muito bem tratar de si mesma e dos que dela precisavam.

Kyna precisava dela, pensou. Kyna e as irmãs precisavam que ela encontrasse a última chave para as tirar da prisão. Ela não podia, não ia desistir antes de fazer tudo o que estivesse ao seu alcance.

- O que quer que isso implique - disse em voz alta -, não recuarei.

O vidro envolveu-se em névoa enquanto ela olhava para ele, e apareceu uma pequena faísca a dançar na superfície malhada. Zoe viu-se através dela. Deixou de ser ela mesma, e transformou-se numa mulher alta e elegante vestida de verde, com uma boneca ao colo e uma espada no flanco.

Fascinada, recuou um passo e estendeu a mão para tocar no espelho. E viu os dedos entrar pelo vidro adentro. Chocada, voltou a tirá-los rapidamente e levou a mão fechada ao coração, que batia descompassado.

A imagem permaneceu no espelho, a olhar para ela. À espera.

Apeteceu-lhe fugir, sentia as pernas tensas, face à perspectiva de correr para a porta e desaparecer. Contudo, não havia feito uma promessa? O que quer que isso implicasse. Fechando os olhos durante alguns instantes, tentou acalmar-se. O que Malory lhe dissera acerca de Brad aplicava-se em relação a quase tudo o que havia na vida, não era verdade? Fazia-se sempre o que vinha a seguir.

Zoe reuniu coragem, apertou a boneca para obter consolo e entrou no espelho.

Permaneceu com as suas irmãs banhada pela luz do sol, com o aroma do jardim a pairar no ar. Os pássaros cantavam numa espécie de alegria desesperada que lhe animava o coração.

No seu braço, o cachorro contorcia-se e retorcia-se para lhe lamber o maxilar. Ela pousou-o para ele poder brincar um bocado e reuniu-se às irmãs, que riam.

- Devíamos ensiná-lo a dançar - disse Venora, fazendo flutuar os dedos sobre as cordas da sua harpa enquanto o cachorrinho saltava desajeitadamente para apanhar uma borboleta que passava.

- Ele vai é pôr-se a escavar o jardim - curvando-se, Niniane fez uma festa na cabeça do cachorro. - E vai andar sempre a meter-se em sarilhos, como qualquer cão. Estou tão contente por o teres encontrado, Kyna.

- Ele parecia estar à minha espera. - Loucamente apaixonada, ela aninhou-se e pôs-se a fazer cócegas na barriga macia e rechonchuda

do cachorro. - Estava sentado no caminho da floresta, como se dissesse: "Já não era sem tempo de apareceres e me levares para casa."

- Coitadinho. Como se terá perdido? Kyna lançou uma olhadela a Venora.

- Não me parece que estivesse perdido. Acho é que foi encontrado - afirmou ela, levantando-o, e endireitou-se para dar uma volta enquanto ele se contorcia de alegria. - Vamos tomar conta de ti e proteger-te. E tu vais ficar grande e forte.

- E depois é ele que nos protege - lembrou Niniane, estendendo a mão para dar um pequeno puxão na cauda do cachorro.

- Já temos guardas mais que suficientes - afirmou Kyna, esfregando a face contra a cabeça do cachorro e virando-se para olhar para o outro lado do jardim, para as duas figuras que se abraçavam sob uma árvore florida. - A Rowena e o Pitte ou estão a guardar-nos, ou a guardar-se um ao outro.

- O nosso pai preocupa-se demasiado - comentou Niniane, pousando a pena e erguendo o rosto para o céu. Uma taça azul perfeita. - Como podíamos estar mais seguras do que aqui, no coração do reino?

- Há quem deseje ter a ousadia de atacar o coração - lembrou Kyna, levando inconscientemente a mão à bainha da espada. Há quem seria capaz de prejudicar os nossos pais, o nosso povo e o nosso mundo, ou mesmo o mundo do outro lado do véu, através de nós.

- Não compreendo a necessidade do ódio quando existe tanta beleza. E tanto amor - acrescentou Venora.

- Enquanto houver pessoas como o Kane e os seus seguidores, haverá sempre uma batalha entre o Bem e o Mal. É assim em todos os mundos - explicou-lhes Kyna. - Tem de haver guerreiros, tal como tem de haver artistas, bardos, governantes e estudiosos.

- Hoje em dia a espada é dispensável - afirmou Venora com uma gargalhada. - Mas vejam. O amor é certamente uma arma tão audaz e verdadeira como o aço - prosseguiu, tocando na sua

harpa enquanto observava Rowena e Pitte. - Vejam como eles estão juntos, como se não precisassem de mais nada senão um do outro. Um dia iremos encontrar isso.

- Mas o homem que eu amar deve ser tão belo como o Pitte afirmou Niniane -, e inteligente.

- E o meu será tudo isso, mas com a alma de um poeta - disse Venora e, pestanejando, levou uma mão ao coração. - E o teu,

Kyna?

- Ah, bom - suspirou Kyna, pondo novamente o cachorro ao colo. - Bonito, claro, e inteligente, com essa alma de poeta... e um coração de guerreiro. E deve ser o mais conhecedor dos amantes.

Desataram-se as três a rir, como quaisquer outras irmãs, muito juntas, sem notarem que naquela perfeita taça azul começava a fervilhar uma negridão a ocidente.

Venora estremeceu.

- Está a ficar frio.

- O vento - começou Kyna, e o mundo enlouqueceu.

Ela deu meia-volta, e a espada ecoou quando ela a desembainhou, quando se interpôs entre as irmãs e a sombra que vinha do bosque.

Ela ouviu os berros, a pérfida vergastada do vento, os gritos daqueles que acorriam em defesa de alguém. Viu o deslizar maléfico de uma cobra sobre as lajes e uma névoa azul a avançar.

E Kane, com os olhos negros de poder no seu belo rosto, avançou saído das sombras. Ergueu os braços para aquele céu fervilhante com uma voz de trovão.

Quando ele fez a sua investida, de espada bem erguida no ar, a dor percorreu-lhe o corpo como uns dedos perversos, dilacerando-lhe o coração e fazendo-a cair de joelhos.

Ela viu-o sorrir por um instante antes de ser arrancada do corpo.

No sótão, à luz crua da lâmpada do tecto, Zoe permaneceu mais uma vez de pé, com uma dor gélida no peito e lágrimas a correrem-lhe pelo rosto.

- Sofro por elas - confessou Zoe, comprimindo uma mão contra a outra, sentada à mesa da cozinha. - Eu senti o mesmo que ela: as emoções, o sol, o pêlo quente do cachorro, mas estava separada de tudo isso. Não sei como explicar.

- Uma espécie de imagem no espelho? - sugeriu Brad, aproximando dela um pouco mais o copo de vinho que lhe servira.

Zoe conseguira conter-se quando fora pôr Simon na cama, embora transparecesse nos seus olhos o que estava a sentir.

Brad pressentira-o, e desconfiou que Simon também o pressentira, pois o rapaz tinha ido para a cama sem um único protesto.

Ela estava agora pálida, e tentava impedir as mãos de tremer.

- Sim - parecia aliviá-la o facto de ter um nome para aquilo. Parecia isso, parecia um reflexo. Entrei no espelho, como a Alice

- afirmou ela, num tom de espanto. - E eu conheci-as, Bradley. Amei-as, tal como ela as amava. Estavam sentadas no jardim, a apreciar o contacto com o cachorro e com a luz do sol, um pouco divertidas, um pouco enciumadas por a Rowena e o Pitte estarem tão absortos um no outro, e conversavam; eram apenas três raparigas novas a conversar acerca do tipo de homens por quem se apaixonariam. Depois o ambiente ficou escuro, frio e aterrorizador. Ela tentou lutar.

Mais uma vez subjugada, Zoe enxugou as lágrimas recentes do rosto.

- Ela tentou protegê-las. Foi essa a sua primeira e última ideia. Ele... ele deleitou-se com a dor delas. Festejou o fracasso dela. Vi isso no rosto dele. Ela não conseguiu impedi-lo. E eu também não.

Zoe pegou no seu copo de vinho e bebeu um pequeno gole.

- Não devias ter ido até lá sozinha.

- Eu acho que tinha mesmo de ir sozinha. Compreendo o que estás a dizer, mas acho e sinto que isso era uma coisa que tinha de viver sozinha. Bradley - chamou ela, pondo o vinho de lado e estendendo a mão para tocar na dele. - Ele não sabia que eu estava lá. O Kane não sabia. Tenho a certeza. Só pode significar alguma coisa o facto de eu ter sido levada até lá sem ele saber. Acho que significa que ela continua a lutar, ou pelo menos a tentar lutar.

Ele recostou-se no lugar e reflectiu.

-Talvez seja possível que, depois das duas fechaduras estarem abertas, elas consigam fazer passar alguma coisa. Os seus pensamentos, os seus sentimentos, a sua esperança. Isso podia bastar para contactarem contigo, em especial se tivessem auxílio.

- A Rowena e o Pitte.

- Vale a pena tentar descobrir. Se conseguires que alguém fique com o Simon, vamos lá acima perguntar-lhes.

-Já são quase dez. Não íamos conseguir ir até lá e voltar senão perto da meia-noite. Não quero pedir a ninguém para vir a esta hora da noite.

- Está bem. Eu peço - afirmou ele; levantou-se e pegou no telefone da cozinha.

- Bradley...

- Confias no Flynn para ficar com o Simon?

- Claro que confio - respondeu ela enquanto ele marcava o número. -Mas ele não devia ter de sair de casa para fazer de ama.

Brad limitou-se a erguer uma sobrancelha.

- Flynn, podes vir até à casa da Zoe e ficar com o Simon? Nós temos de ir até lá acima falar com a Rowena e com o Pitte. Eu depois explico-te. Óptimo. Já vos vemos, a ti e à Malory - disse ele e pousou o auscultador. - Dez minutos. Os amigos são assim, Zoe.

- Eu sei - agitada, ela puxou pelos seus próprios cabelos. Não gosto de prejudicar as pessoas por causa dos meus receios

- Uma mulher que entra dentro de um espelho não devia ter receio de subir até ao Pico.

- Acho que não.

Talvez não fosse propriamente receio, mas expectativa, compreendeu ela enquanto passavam os portões do Pico. Havia uma sensação de premência, agora que tinha estado, verdadeiramente, na pele da mulher do retrato.

"Da rapariga", emendou. Tinha sentido toda aquela inocência, esperança e coragem - a juventude pura. Porque quando estava ao espelho conhecera a deusa, de alma e coração.

E o seu próprio coração sofria com a sua dor.

Zoe ergueu o olhar para a Lua ao sair do automóvel. "É a minha ampulheta", pensou. E o tempo pareceu voar enquanto aguardavam.

Foi Pitte quem veio à porta, abrindo-a antes de eles atravessarem o pórtico. Parecia descontraído, como Zoe reparou, e menos formal que de costume, num fato cinzento cor de pedra.

- Peço desculpa por aparecer tão tarde - começou ela.

- É tarde? - retorquiu ele, pegando-lhe na mão e fazendo-a corar ao levá-la aos lábios. - Não há nenhuma hora em que não sejam bem-vindos.

- Oh! - corada, Zoe olhou para Brad, que observava Pitte fixamente. - É muita simpatia da vossa parte. Mas mesmo assim, vamos tentar não demorar muito.

- Fiquem o tempo que quiserem - replicou ele, mantendo a mão na sua e conduzindo-a para dentro de casa. - À noite arrefece bastante. Temos a lareira acesa na salinha. O teu filho está bem?

- Está - respondeu Zoe. "Será que alguma vez conversei com o Pitte?", pensou. - Está a dormir. O Flynn e a Malory estão com ele. O Bradley trouxe-me aqui porque... tenho algumas perguntas acerca de certas coisas que aconteceram.

- Ela foi atacada - comunicou Brad categoricamente enquanto entrava na sala.

Rowena levantou-se rapidamente.

- Estás ferida?

- Não. Não, estou bem. Bradley, não devias assustar assim as pessoas.

- Ela foi atacada - repetiu Brad. - E embora tenha ficado com feridas e arranhadelas, podia ter sido bastante pior.

- Estás zangado - reconheceu Pitte. - Eu também teria ficado, se ela fosse minha. Até uma guerreira - afirmou para Zoe antes que ela tivesse oportunidade de falar - devia apreciar ter um campeão.

- Sentem-se, por favor - convidou Rowena, apontando para o sofá. - Chá, suponho. Algo reconfortante. Eu vou buscar - Ofereceu-se,

mas primeiro dirigiu-se para Zoe, envolveu-lhe o rosto com a mão e deu-lhe um beijo. - Estou em dívida para contigo proferiu em voz baixa. - E não há dinheiro que pague essa dívida. Embora vacilasse, Zoe permaneceu de pé enquanto Rowena deslizava pela sala. A seguir, olhou para Pitte.

- Eras tu. No bosque. O gamo no bosque. Eras tu.

Ele tocou-a novamente, limitando-se a aflorar-lhe o rosto com as pontas dos dedos.

- Porque não fugiste, mãezinha?

- Não podia. Estavas ferido - explicou ela. Como as suas pernas tremiam, resolveu sentar-se no sofá. - Estava demasiado receosa, e demasiado enfurecida para fugir. E tu estavas ferido.

- Ela pô-lo a andar com um bastão feito com um tronco de árvore - contou Pitte a Brad. - E foi magnífica. És um homem afortunado.

- Ela não está tão convencida disso como eu. Por enquanto. Confusa, Zoe comprimiu os dedos contra as têmporas.

- Tu estavas no bosque, a guardar-me. O gamo...tinha os teus olhos.

Pitte sorriu quando Rowena voltou a entrar na sala.

- Podia não ter aparecido, se a Rowena não me tivesse incitado.

- Será que ele me teria matado?

- Já fez verter sangue humano - advertiu Pitte, sentando-se numa cadeira. - Podia ter-te feito verter sangue.

- Será que ele te teria... poderia matar-te?

O queixo de Pitte ergueu-se muito ligeiramente, num sinal de arrogância.

- Certamente teria tentado.

- Talvez tivesse sido um pouco mais eficaz apareceres sob a tua forma, mas armado - comentou Brad.

- Não posso combatê-lo sob uma forma humana quando ele assume a forma de um animal.

- Tu ficaste gravemente ferido - recordou Zoe. - Ele rasgou-te o flanco.

- E já fui tratado. Agradeço a preocupação.

-Ah, aí vem o chá. Ele resmungou bastante enquanto estava a tratá-lo-afirmou Rowena, inclinando-se para levantar o bule que a criada pousara em cima da mesa. - O que foi bom sinal. Se o Pitte estivesse gravemente ferido não diria uma palavra.

- Fiz bem em ir até lá. Eu sinto... a maior parte do tempo sinto que não estou a fazer o suficiente. Mas fiz bem em ir até lá.

- O caminho é teu - disse Rowena, passando uma chávena a Zoe. - O teu homem está preocupado contigo. Eu compreendo disse a Bradley, e começou a servir a segunda chávena. - Prometo que faremos tudo para a manter em segurança.

- Colocaram uma protecção em torno do Simon. Coloquem uma protecção em torno dela.

O rosto de Rowena exprimia compreensão quando serviu a segunda chávena.

- Não há chave sem riscos. E há um não acabar de riscos sem a chave. Ela precisa que deposites a tua fé nela. A fé é tão vital como um escudo e uma espada.

- Tenho toda a fé do mundo na Zoe. E nenhuma confiança no Kane.

- Ambas as atitudes são sensatas - reconheceu Pitte. - Ele pode estar a lamber as feridas neste momento, mas ainda não acabou. Em relação a nenhum de vocês.

- Ele não me incomodou - salientou Brad.

- Um inimigo astuto escolhe a altura e o campo. Quanto mais ela gostar de ti, mais forte é o golpe. Afinal de contas, o caminho mais seguro até à alma passa pelo coração.

Quando a chávena de Zoe tremeu no pires, Brad acenou para Pitte.

- Vamos preocupar-nos com o que está a acontecer agora, e tratar do que vier quando vier. Tu és a guardiã das chaves - disse para Rowena. - As regras mudaram, como tu própria afirmaste. Dá-lhe a chave, e acaba com isto.

- Ele está a negociar - evidentemente agradado, Pitte endireitou-se no sofá. - Existe um contrato.

- Que não dizia nada sobre o risco de perder a vida, ou algum membro - acrescentou Brad descontraidamente. - E cujos termos ficaram esvaziados ao serem desferidos ataques às pessoas envolvidas.

- Eles não aludiam à reparação de quaisquer ferimentos que escapassem ao nosso controlo.

- Não houve uma explicação pormenorizada. Rowena soltou um suspiro.

- Tens mesmo de o irritar? - perguntou a Brad. - Estou certa de que ambos apreciariam uma boa discussão acerca de contratos e termos legais e tudo o mais. E a questão é que eu até concordaria em que deixasse de existir a penalização de um ano das vossas vidas, como se afirma no contrato, caso a Zoe decidisse pôr termo à demanda. O Pitte também estaria de acordo, embora gostássemos de discutir primeiro os termos, por uma questão formal.

- E de diversão - acrescentou ele.

- Não posso entregar-lhe a chave - prosseguiu Rowena. - Uma vez aceite e iniciada a demanda, ela deixou de estar nas minhas mãos. Não posso tocar nas chaves antes de elas serem encontradas pelas pessoas escolhidas para o fazer, ou antes que o prazo chegue ao fim. É essa a natureza do contrato.

- Então diz-lhe onde ela está.

- Não posso.

- Porque ela não está em lado nenhum antes de eu a encontrar - proferiu Zoe suavemente quando a ideia se estabeleceu com clareza na sua mente. - Ela só existe - disse ela, dirigindo agora o olhar para Rowena - quando eu souber.

- Tu tens todo o poder nesta demanda; apenas precisas de saber como utilizá-lo.

- Fui eu que atravessei o vidro? Ou foste tu que me fizeste atravessá-lo?

- Não estou a entender.

- O espelho do sótão da Indulgence. A Kyna estava lá. Olhámos uma para a outra, e a seguir dei um passo, e entrei no jardim do quadro. Passei a fazer parte dele.

Rowena firmou uma mão sobre o pulso de Zoe.

- Conta-me tudo. Exactamente como aconteceu. Enquanto ela falava, o olhar de Rowena nunca abandonou o seu rosto. Os dedos cravaram-se na sua carne até ela sentir o sangue começar a aflorar-lhe a pele.

Quando terminou, Zoe sentiu aqueles dedos estremecer uma vez, antes de se soltarem.

- Um momento - pediu Rowena com a voz embargada, e levantou-se, indo colocar-se em frente ao fogo.

- A ghra - proferiu Pitte, aproximando-se dela, e baixou o rosto sobre a sua nuca.

- É grave? - abatida, Zoe estendeu a mão na direcção da mão de Brad.

- Temi o pior pelo meu mundo. Que o Kane fosse capaz de desafiar toda e qualquer lei sem nós darmos por isso. Que vertesse o sangue dos mortais sem ser punido. Oh! - exclamou Rowena, virando-se para trás e pressionando o rosto contra o peito de Pitte.

- O meu coração ficou sombrio e cheio de temor.

- Prepara-se uma batalha, disso não resta a menor dúvida. E eu estou aqui fechado - proferiu Pitte, com a frustração patente em cada palavra.

- É aqui que és necessário - afirmou Rowena, afastando-se dele. Tinha o rosto marejado de lágrimas. - Esta batalha também tem de ser ganha.

Ela virou-se novamente para Zoe.

- Há uma nova esperança.

Zoe abriu a carteira, tirou um lenço de papel e ofereceu-o a Rowena.

- Não estou a entender.

- Eu não pus esta hipótese, e o Kane também não. Não a previ, tal como ele. Se ele conseguisse mostrar-te, deixar-te tocar o que ela é, seria capaz de a alcançar.

Expressão gaélica que significa "meu amor". (N. da T.)

- Quem?

- O rei. Não é só o Kane que pode usar a guerra para os seus intentos. Se conseguirmos vencer neste território, o rei vencerá no seu. Concederam-te uma dádiva, Zoe. Durante alguns instantes foste uma deusa, a filha de um rei - explicou Rowena, com o rosto iluminado. - Não só te mostraram o que são, o que perderam, como pudeste tocar nisso. O Kane nunca poderá quebrar esse laço.

- Ela tentou lutar, mas não conseguiu. Desembainhou a espada - começou Zoe, e sentiu, nesse momento, a maneira como esta se recusara a sair da bainha -, mas ele atacou-a antes que ela conseguisse usá-la.

- A batalha ainda não se deu - proferiu Rowena, suavemente agora, tocando-lhe na mão. - Quer no vosso mundo quer no meu.

- Ela conheceu-o. Ela compreendeu... quando aquilo aconteceu, ela compreendeu, e fitou-o no rosto.

- Ela tocou-te, viveu em ti durante esses mesmos momentos, e viveu, julgo eu, o mesmo que tu. Foi essa a tua dádiva para ela.

- Não vou deixá-la lá. Espero que ela esteja ciente disso.

Brad ficou para trás na altura em que tencionavam sair, e virou-se para Pitte enquanto Rowena conduzia Zoe até à porta.

a - Se ele lhe fizer mal, venho ter contigo, seja lá qual for a

"forma que assumas.

- Eu faria o mesmo no teu lugar.

Brad lançou uma olhadela em direcção a Zoe, e manteve o

tom de voz baixo.

- Diz-me o que devo fazer para ele vir atrás de mim.

- Ele há-de ir, porque há uma ligação entre os dois. Existe uma ligação entre todos vós. Faz com que ela te ame, e isso não tardará a acontecer.

Capítulo 13

O sono", decidiu Zoe, "não vai ser uma prioridade durante algum tempo." Segundo os seus planos, nem ia estar entre as suas cinco actividades preferidas. Tinha um filho para criar e não sentia que lhe estava a dar o tempo ou a atenção que merecia. Tinha um negócio para organizar, e isso ia consumir-lhe consideravelmente mais tempo.

Estava a ter a sua primeira relação séria com um homem em toda a sua vida adulta, e ainda não tivera tempo para perceber como se metera nela, quanto mais para saber como podia desfrutar dela.

Tinha uma demanda e, se não atravessasse a meta em menos de duas semanas, estava tudo perdido. O que se encontrava fechado dentro de uma caixa de vidro vivera dentro dela por um instante milagroso. E Zoe estava disposta a verter sangue para o salvar.

O sono ia ter de esperar até ela conseguir encaixá-lo na agenda.

Passou um dia na Indulgence a entrevistar possíveis futuras funcionárias, a delinear um horário e uma potencial tabela de preços. Passou a tarde com Simon, a ajudá-lo a fazer uma casa para pássaros que ele tinha de apresentar num projecto da escola, a aparar-lhe o cabelo e a apreciar a sua companhia.

A maior parte do serão foi dividida entre a papelada para tratar e as tarefas domésticas que descuidara durante um período demasiado longo.

Reduzia e fazia malabarismos com os números. Esticava-os e comprimia-os mas os resultados eram sempre os mesmos. Os

custos iniciais tinham devorado o seu capital a um ritmo galopante. Em grande parte, isso tinha a ver com a sua determinação de começar em grande estilo, como ela própria admitiu. Porém, que diabo, não ia permitir que nada ensombrasse o seu sonho.

"Por isso, tenho de reduzir todas as despesas ao mínimo", reconheceu ao analisar a folha de cálculos que criara no computador. Já não era a primeira vez que o fazia. Se conseguissem abrir antes do Dia de Acção de Graças, e se tivessem, de facto, clientes, rapidamente começariam a compensar o investimento. Aos pinguinhos, mas um pinguinho iria dar um rio, e o rio um oceano.

Essas semanas antes do Natal eram a melhor altura para o comércio e exactamente aquilo de que a Indulgence precisava para se lançar.

Se havia coisa que Zoe sabia fazer era esticar o dinheiro. Já o fizera. Ia precisar de manter o automóvel durante mais dois anos sem grandes reparações, se Deus o permitisse.

Podia poupar um bocadinho aqui e outro ali sem afectar Simon. Bastavam seis meses, talvez um ano, e a Indulgence ia fazer uma enorme diferença nas suas vidas. Ia dar-lhe a estabilidade que ela queria tão desesperadamente para o filho. E dar-lhe-ia o orgulho e o respeito que queria tão desesperadamente para si.

Era essa a direcção que seguia desde que saíra daquela roulotte aos dezasseis anos. Uma importante encruzilhada na sua vida. Mais uma direcção. Reflectindo, Zoe resolveu sentar-se. E os outros?

Se a Indulgence era uma das encruzilhadas, o mesmo acontecia com a casa onde ela vivera, a casa para a qual tinha feito poupanças e a qual pagava todos os meses com o fruto do seu trabalho árduo. Zoe tinha a impressão de que, se uma viagem de volta às suas raízes e uma exploração do sótão da Indulgence podiam constituir um recurso de poder e um renovar de forças, lavar o chão da cozinha podia ter o mesmo resultado.

Arrumou os papéis, fechou o computador portátil e tirou o balde do armário.

Ela escolhera aquela casa em primeiro lugar por ser acessível. Única e simplesmente. E percebera, tal como quando entrara na casa que viera a transformar-se na Indulgence, que aquele era o seu lugar. O lar que ela ia dar a Simon.

"Embora naquela altura não tivesse grande aspecto", recordou enquanto lavava o chão, de gatas. A tinta de um castanho cor de terra e o quintal cheio de ervas daninhas também não ajudavam muito. Lá dentro, os tapetes estavam puídos e a canalização não parecia grande coisa, o linóleo da cozinha estava uma miséria e as paredes encontravam-se cheias de buracos dos pregos.

Contudo, o tamanho era perfeito e o preço ideal.

Ela raspara, pintara, escavara e plantara. Vasculhara vendas de garagem e feiras, chegando mesmo a ir à lixeira municipal.

Também não dormia muito nessa altura, recordou-se enquanto se punha de cócoras. Porém, cada hora tinha valido a pena. Zoe tinha aprendido muito acerca de si própria e do que era capaz de fazer.

A sorrir, passou um dedo pelo quadrado de vinil reluzente. Fora ela que colocara aquele revestimento no chão com as suas próprias mãos. Andara atenta aos saldos e escolhera aquele padrão branco na HomeMakers.

"Também comprei a tinta para exteriores e interiores na HomeMakers", pensou. E parte do material de canalização, bem como o aplique da casa de banho do primeiro piso.

com efeito, não havia uma única divisão na casa que não tivesse alguma coisa da HomeMakers. Isso não podia deixar de querer dizer alguma coisa.

E só podia referir-se ao Bradley.

"Ele está em todo o lado para onde eu olhe", pensou. E mesmo quando não estava a pensar nele, ele também estava presente, às voltas na sua cabeça. Estar envolvida com ele era emocionante, mas um pouco assustador. Mas estar apaixonada por ele... isso era pura e simplesmente impossível.

Mais do que isso, era perigoso para ele. Ela não se tinha esquecido do que Pitte afirmara. Quanto mais ela gostasse de Bradley, mais ele podia sair magoado. Zoe não punha em causa o facto de ele fazer parte da demanda, de poder, de algum modo, vir a fazer parte da sua vida. Todavia, não estava disposta a deixar as suas fantasias em relação ao que podia ser, caso as coisas fossem apenas ligeiramente diferentes, colocarem-no no caminho de Kane.

Já era suficiente ter um homem como ele a gostar dela, e a gostar tanto do seu filho. Não ia ser ambiciosa e pedir mais do que isso.

Depois de lavar o chão, Zoe olhou para o relógio por cima do fogão. Eram quase três e meia da manhã. Tinha uma cozinha impecável, uma conta corrente equilibrada, uma lista de serviços e uma lista de preços bem elaboradas. Porém, se tinha dado mais algum passo em direcção à chave, desconhecia-o.

Resolveu ir dormir um pouco, para acordar fresca na manhã seguinte.

Bradley estava sentado, iluminado pelo halo fulvo da fogueira, a beber cerveja morna. A temperatura pouco importava. Aos dezasseis anos, a única coisa que interessava era a cerveja. O pai havia de esfolá-lo se descobrisse: e descobria quase sempre. Porém, nada podia estragar a liberdade de uma noite quente de Verão.

Não tencionava dormir. Ia fumar mais um cigarro, beber o resto da cerveja, e deixar-se ficar.

Tinha sido ideia de Jordan irem acampar para a montanha, perto das sombras do Pico do Guerreiro. A velha casa assombrada sempre atraíra o amigo, que estava sempre a inventar histórias acerca dela e das pessoas que lá teriam vivido ou morrido.

E Brad tinha de reconhecer que a casa era fascinante de ver. E interessante; dava que pensar. Quando pensava nela, tentava imaginar quem teria construído um monstro daqueles no topo de uma montanha da Pensilvânia. Era um pouco assustador, mas fixe.

Mesmo assim, preferia deixar o Pico para Jordan. Preferia muito mais a casa de madeira desmazelada ao pé do rio. Mesmo quando pensava em ir viver para Nova Iorque a seguir à universidade, ou em viajar pelo mundo, não conseguia imaginar-se a viver noutro lugar que não fosse a Casa do Rio.

Pelo menos para sempre.

Todavia, a universidade, Nova Iorque e "para sempre" ficavam a uma vida de distância. A um milhão de Verões de distância. Nesse momento, gostava de estar exactamente onde estava, um pouco tocado pela cerveja, ao pé de uma fogueira no bosque.

Estar a tão grande altitude nas montanhas aumentava ainda mais a aventura de ir até lá com Jordan e Flynn, trepando aquela alta parede de pedra como um bando que fugisse para dentro, e não para fora da prisão.

Ele tinha de trabalhar na segunda-feira. O bom velho B. C. não tolerava faltistas. Os Vane davam no duro, mesmo durante as férias de Verão, e isso não estava mal. Porém, ele tinha o fim-de-semana inteiro para estar com os amigos. Para andar pelos bosques, pelo meio das ervas, sabendo que não havia ninguém para lhes dizer o contrário.

Brad sabia muito bem o que era ter responsabilidade: para com a família, o emprego, o nome dos Vane. Um dia, criaria a sua própria marca, tal como o avô e o pai tinham feito. Mas, às vezes, era preciso fugir de tudo isso e ir beber uma cerveja, comer uns cachorros-quentes e passar uma noite junto à fogueira com os amigos.

Não fazia ideia onde eles se teriam metido, mas estava com demasiada preguiça para tentar descobrir. Bebeu um gole de cerveja, e não ligou à vozinha dentro da sua cabeça que lhe dizia que, afinal, ele gostava demasiado daquele sabor amargo e fermentado. Fumou um cigarro, e ficou a ver os pirilampos fazerem o seu espectáculo de luzes nocturno.

O piar de um mocho era suficientemente sinistro para o sobressaltar, e o zunido permanente dos insectos fornecia um agradável

pano de fundo aos seus pensamentos acerca de quando convencer Patsy Hourback a sentar-se com ele no assento de trás do carro. Até ali ela estava a ser demasiado rigorosa, limitando as suas actividades aos beijos com a língua e a uma ou outra apalpadela dos seios - por cima da blusa.

O que ele queria mesmo era tirar a blusa a Patsy Hourback.

O problema era que ela queria que ele lhe dissesse primeiro que a amava, e isso era demasiado intenso. Brad gostava dela, muito, e estava bastante envolvido com ela em termos físicos, mas amor? Credo.

Isso era demasiado assustador e fora de tempo. Ele não amava Patsy, e não via os seus sentimentos seguirem nessa direcção. Se é que chegaria a dar esse passo, isso teria de acontecer... mais tarde - disso tinha a certeza. Aconteceria muito mais tarde, e com alguém que ele ainda não conseguia vislumbrar. Alguém que nem queria ver.

Primeiro tinha muita coisa a fazer, muitos lugares aonde ir.

Entretanto, o seu preservativo de prevenção fazia-lhe um buraco no bolso, e ele queria mesmo que Patsy Hourback lhe desse uma oportunidade.

Brad acabou a cerveja e ficou a pensar se haveria de beber a segunda que lhe competia da grade. Só que não tinha assim tanta graça bebê-la sozinho.

A restolhada no mato fê-lo sorrir.

- Deve ter sido a maior mijadela da história, especialmente quando se tem um instrumento assim tão pequeno.

Ficou à espera do comentário ou insulto grosseiro, e franziu o sobrolho quando o bosque permaneceu novamente em silêncio.

- Vá lá, rapazes, eu ouvi-vos chegar. Se não vierem, bebo o resto da cerveja sozinho.

A resposta foi mais uma restolhada vinda da direcção oposta. Brad sentiu um arrepio subir-lhe pela espinha, mas defendeu a sua virilidade pegando na segunda cerveja.

- Pois é, estou assustadíssimo. Credo, deve ser o Jason com a máscara do hóquei! Socorro, socorro. Vocês são tão deficientes.

Resfolegou, abriu a cerveja e bebeu um grande gole para ficar em forma.

O uivo que veio do escuro era húmido e faminto.

- Pára com isso, Hawke, meu grande sacana - porém, a ordem saiu fraca e tremente, de uma garganta que se fechara. A mão dele tacteou o solo à procura de um dos troncos afiados que tinham usado para fazer os cachorros-quentes.

O grito cortou o silêncio, horrível, e cheio de medo e de dor. Brad pôs-se imediatamente de pé, com o tronco na mão como se fosse uma espada. Rodopiou em círculo, com o medo a fazer-lhe um nó na barriga enquanto perscrutava as sombras.

Durante um momento que lhe pareceu demasiado longo, não ouviu outro som além do galopar do seu coração.

Quando o grito se ouviu de novo, proferia o seu nome.

Os pirilampos disparavam os seus súbitos clarões enquanto Brad corria em direcção ao som. A voz que ouvira pertencia a Flynn, um som estridente de terror, de agonia, que não podia ter sido forjado. Ouviu outro grito, igualmente urgente. Este provinha de Jordan, atrás de si, e parecia dilacerar a noite.

Aflito, em pânico, voltou para trás. Ouviu-se uma restolhada no escuro que avançava em direcção a ele com uma força que não podia ser humana. De repente, a noite encheu-se de ruídos. O vento a bramir por entre as árvores, os ramos que tombavam no chão da floresta à sua volta. E ouviram-se gritos vindos de todas as direcções ao mesmo tempo. Enquanto corria, o calor do Verão transformou-se num frio amargo e gelado, e uma névoa estendeu-se sobre o chão, erguendo-se como um rio até quase lhe chegar aos joelhos.

O medo revolvia-lhe as entranhas - medo por causa dos amigos, por si próprio.

Fugiu a correr das árvores e meteu pelo meio das ervas altas que se estendiam sob as lanças e as torres do Pico do Guerreiro.

A Lua cheia erguia-se por cima dele. Banhados pela sua luz, viu os dois amigos, estendidos por entre as ervas altas. com os

membros despedaçados. Preces insanas saíram-lhe pela garganta enquanto ele corria na sua direcção.

Escorregou no sangue e, pior, caiu de joelhos numa poça medonha ao lado do corpo de Flynn. Sentiu o estômago às voltas quando agarrou o amigo e as suas mãos vieram quentes e molhadas. O sangue escorria dos dedos de Brad à luz daquela Lua perfeita e clara. - Não - proferiu baixinho, com a voz a tremer. Fechou os

olhos e recompôs-se, tentando reunir todas as suas forças. - Não

- a sua voz ficou mais forte quando ele abriu os olhos e se obrigou a olhar novamente. - Isto é treta.

Enquanto Brad olhava, combatendo a dor e o medo, Flynn virou a cabeça sobre o pescoço despedaçado e disse com um esgar:

- Ei, sacana. Sabes que mais? És o próximo.

Embora o coração galopasse dentro do seu peito, Brad pôs-se de pé e repetiu.

- Treta.

- Vai doer, a sério - ainda com um esgar, Flynn levantou-se. Ouviu-se uma gargalhada, horrendamente deliciada, enquanto aquilo que tinha sido Jordan fazia o mesmo. Começaram a avançar em direcção a ele, em passos arrastados.

- Estamos todos feitos - disse Jordan, e piscou o olho a Brad com a única vista que lhe restava. - Estamos feitos.

Ele conseguia cheirá-los, sentia o cheiro a morte à medida que eles se aproximavam.

- Vais ter de te esforçar mais, Kane. Muito mais, porque isto é uma treta.

Sentiu uma dor, uma dor chocante e surpreendente que lhe irradiou do peito para dentro de todas as células do corpo. Brad aproveitou-a, utilizando-a para obrigar os lábios a forjar um sorriso enquanto olhava para as imagens dos amigos, que pareciam tiradas de um filme de terror.

- Vocês estão muito em baixo - afirmou, e conseguiu dar uma espécie de gargalhada enquanto se esforçava por não desmaiar.

E acordou a tremer de frio na cama.

Esfregou a mão no peito, que pulsava, sentou-se e respirou profundamente.

- Bem, já não era sem tempo.

- Então, tínhamos mesmo um ar nojento?

Flynn dirigiu a Brad um sorriso animado. Estavam sentados com Jordan à mesa da cozinha de Brad. Este tinha esperado até de manhã para lhes telefonar, embora tivesse passado umas longas duas horas sozinho com as imagens da sua experiência na cabeça.

Limitara-se a dizer-lhes que precisava que eles fossem ter com ele. E, como era evidente, eles tinham vindo.

Agora, à luz do dia, com o aroma do café e dos pãezinhos quentes, toda a experiência parecia exagerada e descabida. Na opinião de Brad, eram demasiados pesadelos reunidos num só para que a história tivesse alguma solidez.

- Deixa-me ver... Quase não tinhas pescoço, e uma boa parte do teu peito tinha sido arrancada. E tu - disse para Jordan - tinhas o olho esquerdo completamente fora da órbita, e parte da cara toda rasgada.

- Se calhar até ficava melhor - comentou Flynn.

- Acho que escorreguei nos teus miolos - disse-lhe Brad. Não é que te fizessem falta.

- O Flynn está sempre a perder os miolos - disparou Jordan, e pôs-se a observar Brad por cima da borda da caneca. - Estás ferido?

- Senti o peito a latejar como doido, e fiquei com uma dor de cabeça desgraçada, mais nada.

- Então, a pergunta é: como é que voltaste?

- Primeiro, tive mais tempo para me preparar, sabendo o que vos tinha acontecido aos dois. Mais tempo para imaginar o que podia acontecer e o que havia de fazer em relação ao assunto.

Tinha uma ideia na cabeça, aquilo a que se pode chamar uma palavra-chave, que tinha colocado lá para me safar. E resultou. Flynn deu uma dentada no pão.

- E a palavra é?

- "Treta." É grosseira - prosseguiu, enquanto Flynn separava as migalhas. - É humana e está à altura da situação. E a outra questão é que ele é descuidado. Não posso dizer que aquilo não tenha sido eficaz, particularmente no início. Eu sentia-me com dezasseis anos. Que diabo, estava sentado à fogueira, a beber cerveja morna e a pensar no corpo da Patsy Hourback.

- Ela tinha um corpo magnífico - lembrou Jordan.

- Seja como for, eu estava bastante obcecado com a Patsy nesse Verão. Por acaso, estava principalmente obcecado por sexo, mas a Patsy era o foco principal. Portanto, no início eu estava lá, nos bosques ao lado do Pico. Nessa altura, o Flynn começa a gritar como uma rapariga...

- Como é que sabes que não era o Jordan? - perguntou Flynn, sentindo-se insultado, e trincando amuadamente o seu pãozinho.

- Porque é que eu tenho de gritar como uma rapariga?

- Isso é com o Kane - sugeriu Brad. - Nessa altura, eu estava na boa. Vocês os dois gritavam e chamavam por mim. Mas as coisas começaram a piorar, só um bocadinho. O vento, o nevoeiro, o frio. Aconteceu tudo muito de repente, e as coisas começaram a fazer um clique dentro da minha cabeça. Quando vos vi aos dois ali deitados, voltei a perder a noção das coisas durante algum tempo. A seguir, escorreguei nos miolos do Flynn, ou nos intestinos dele.

- Estamos a tentar comer - queixou-se Flynn.

- Era de mais, sabem? E a história não pegava. Eu já não tinha dezasseis anos, pelo menos mentalmente. Ele tinha perdido o controlo. Acho que foi isso. Percebi que era ele. Percebi que era treta.

Brad levantou-se para ir buscar a cafeteira.

- Depois de ter passado as duas últimas horas a pensar nisso, percebi o que ele estava a tentar fazer.

- Separar-nos - sugeriu Jordan.

- Acertaste em parte. Isolar-me: fazer-me ficar ali sozinho enquanto vocês saíam os dois. E a seguir encontrar-vos agredidos depois de me pedirem para vos ajudar.

- E fazer com que nos virássemos contra ti - concluiu Flynn. Os gémeos zombies. Pôr-nos contra ti. Como havias de confiar e ainda para mais fazer equipa com dois tipos que te tentam comer os miolos? Já vi isso nos filmes - acrescentou ele. - É isso que os zombies fazem.

- Ele queria que eu me sentisse só e isolado, além de ameaçado.

- Ou talvez pior - acrescentou Jordan. - Se tu não tivesses desaparecido, nós podíamos ter feito alguns estragos. Quando ele voltar a abordar-te vai ser mais directo.

- Não faz mal - afirmou Brad, pegando no café. - Eu também

vou ser.

- Acho que precisas de algo mais do que o teu excelente aspecto para lidares com um feiticeiro, amigo - salientou Flynn.

Brad assentiu, pousou a faca ao lado do prato e passou um dedo pela ponta.

- Os feiticeiros também vertem sangue.

- Tencionas contar à Zoe o que aconteceu? - perguntou Jordan.

- Sim. Estamos juntos nisto, até ao fim. Pensei passar pela Indulgence esta manhã.

- Ela só vai lá estar da parte da tarde - comunicou-lhe Flynn. A Malory disse que ela tinha algumas coisas para fazer em casa esta manhã.

- Melhor ainda.

Ele terminou uma chamada no telemóvel enquanto parava atrás do automóvel dela, e demorou alguns instantes a anotar o novo compromisso no seu Palm Pilot. Enquanto pensava na reunião com o seu arquitecto, nos planos de expansão e nas mudanças que queria implementar em termos de design, dirigiu-se para a porta principal e bateu.

Tudo isso lhe fugiu imediatamente da cabeça quando ela abriu a porta.

Trazia umas calças de ganga rasgadas em ambos os joelhos e um daqueles tops que deixam ver a barriga. "Hoje traz o piercing em forma de barra", reparou. Aquela barrinha de prata tão erótica a brilhar no umbigo.

Estava descalça, com as unhas dos pés num tom rosa como o daqueles ovos de Páscoa pintados, e tinha umas enormes argolas de prata finas nas orelhas. Trazia também um trapo na mão que cheirava imenso a limão.

- Estou a fazer limpezas - apressou-se ela a dizer. - Acabei agora mesmo o quarto. - Como se se tivesse acabado de dar conta do trapo, enfiou-o no bolso. - Estava a precisar de ter um tempinho por aqui antes de ir trabalhar.

- Está bem - disse ele, e entrou, conseguindo tirar os olhos de cima dela o suficiente para observar a sala em redor. Cada centímetro de chão brilhava, cada pedaço de vidro reluzia.

- Tens andado ocupada.

- As limpezas ajudam-me a pensar, e estava a pensar na casa. Que talvez a casa tenha a ver com a demanda. E se eu ocupar algum tempo a prestar atenção à casa, a tudo o que existe nela, as coisas talvez... O que foi? - perguntou ela, corando um pouco, sentindo-se no alvo do seu olhar fixo, e esfregando a face. - Tenho a cara suja?

- A tua cara é perfeita. É a cara mais perfeita que já vi.

- É bom ouvir isso depois de ter andado a apanhar cotão.

- O Simon está na escola?

- Está. - Os olhos dela abriram-se mais ao reconhecer o brilho nos olhos dele. - Bem, por favor... são quase dez da manhã. Não tens de ir trabalhar?

- Tenho - respondeu ele, avançando quando ela recuou. Mas arranjei algum tempo porque precisava de conversar contigo. Parece que a conversa vai ter de esperar.

- Não podemos... - poderiam?

- Aposto que podemos. Vamos experimentar.

Ele pegou nela ao colo, e a barriga dela fez uma longa prega adorável enquanto ele a levava para o quarto.

- Céus! - exclamou ela, sem conseguir parar de rir nervosamente. - É como nos romances. Tirando o facto de eu não estar a usar algo mais sensual do que umas calças de ganga velhas.

Cheirava-lhe ao seu líquido de tratamento para madeira e a ameixas maduras.

- Não há nada mais sensual do que umas calças de ganga velhas quando és tu que estás dentro delas.

- Oh, isso é bom - disse ela, deliciada, aninhando o rosto no pescoço dele. - É mesmo bom - prosseguiu, mordiscando-lhe o lóbulo da orelha. - Tenho roupa a lavar. Não tenho conseguido lavá-la ultimamente. Por isso... não trago nada por debaixo das calças de ganga.

Ele virou a cabeça e olhou para os olhos sorridentes dela.

- Ah, sim? Então a conversa vai ter mesmo de esperar.

Os braços dela envolveram-lhe o pescoço quando ele a deitou na cama, e ela puxou-o para si, calorosa.

- Isto deve ser a minha recompensa por ter feito o trabalho todo - murmurou.

- Tenho andado a pensar em fazer amor contigo novamente desde aquela primeira vez.

Ele tomou-lhe os lábios nos seus, roçou-os ao de leve e mergulhou profundamente neles.

"Parece um milagre", pensou Zoe, deixando-se flutuar no momento. Deixando-se levar para longe pelo homem que conseguia fazê-la sentir que era tão preciosa como um diamante.

Ele beijou-a como se pudesse passar a vida sem fazer mais nada senão unir os lábios aos seus. Zoe seria muito bem capaz de passar o tempo naquela calidez, embora sentisse a necessidade de excitação a vibrar dentro dele. A calma alegria do acto, a calma alegria dele, envolvia-lhe o coração como fitas de seda macia.

Brad acariciava-a como se o seu corpo fosse um tesouro delicado que nunca se cansaria de explorar. Cada carícia daquelas

mãos maravilhosas era um consolo, uma vibração, uma promessa. Aquela doce maravilha fluía pelo seu corpo como vinho.

Ali, ao sol da manhã, a paciência deslizava por ela em toques prolongados, quase preguiçosos. Zoe deixava-se levar pelas ondas alternadas da ansiedade e da calma, enquanto lá fora o mundo seguia a sua actividade sem ela.

O facto de roubarem o tempo um do outro acrescentava uma camada etérea àquela intimidade.

Ele brincou com a pele exposta pela ganga rasgada, fez deslizar os dedos pela região onde o top dela subia. Ouviu o murmúrio de excitação quando acariciou a pele em torno do piercing. Quando os seus lábios lhe mordiscaram o pescoço, ela virou a cabeça e soltou um suspiro.

Todas as preocupações e todo o cansaço que a tomara desvaneceram-se.

Ele sentiu-a entregar-se a ele, ao prazer, ouviu a respiração dela tornar-se mais profunda à medida que ele se demorava. Será que ela sabia o que significava para ele estar com ela assim, com o sol a entrar pelas janelas, a casa vazia e a calma em torno deles?

Será que ela sabia o quanto ele precisava dela quando só agora ele mesmo começava a perceber?

Até então, não sabia quanto tinha para dar, e como desejava dá-lo desesperadamente. O que ele era, o que tinha, o que sentia, o que imaginava. Os lábios dele envolveram novamente os dela, e ele ofereceu-se totalmente.

O coração dela subiu-lhe à garganta, e as suas mãos desabotoaram-lhe a camisa enquanto as emoções a invadiam. Mais do que prazer... Era mais do que a promessa de prazer o que inundava aquelas sensações sedutoras. A tremer, ela deixou-se deslizar.

Era disso que ele precisava: da rendição total um ao outro. Em que não havia mais ninguém nem mais nada além dos dois.

- Quero olhar para ti - disse ele, enquanto lhe cobria o rosto de beijos antes de lhe tirar o top pela cabeça. - Só olhar para ti.

 

Enquanto a observava, enquanto olhava para aqueles olhos pesados e deslumbrados, ele fez deslizar a ganga.

Pele macia e curvas suaves, pernas compridas, quase de bailarina. Aqueles olhos adormecidos e aquela boca de sereia. "É uma mistura fascinante de fragilidade e exotismo", pensou.

Curvando-se, pressionou os lábios contra a parte de cima da coxa dela, fazendo-os deslizar lentamente ao longo da pele sensível enquanto ela estremecia.

Brincou com a língua perto da zona quente.

- Quero que fiques aí deitada. E que me deixes fazer-te coisas.

Ela não poderia tê-lo impedido. Estava já ancorada no desejo, imersa em sensações. Quando o primeiro choque de calor a percorreu, ela apertou os dedos em torno das grades de ferro da cama e deixou-o levá-la aonde quisesse.

A sensação era de glória e de encantamento. Aquelas mãos, tão dedicadas na sua paciência, descobriam todos os segredos. Aquela boca macia e perscrutadora devorava-a centímetro a centímetro. Ela curvou-se quando o orgasmo irrompeu por dentro dela como uma catapulta, e mesmo assim não parou.

As emoções entrecruzavam-se, bem como os sentimentos, até ela ficar com a sensação de ter os sentidos imersos em luz, fazendo brilhar a sua pele. E, de cada vez que a dor se formava, ela acolhia-a de braços abertos.

Ele estava perdido nela, sem dar atenção a mais nada além do que ela lhe dava, e do que ele se sentia obrigado a tomar. Cada vez que o corpo dela estremecia, ainda havia mais.

Ele subiu para cima dela. Ela enrolou-se à volta dele. Ele deslizou para dentro dela. Ela envolveu-o.

Lentamente, muito lentamente, para esgotar cada gota de prazer no momento em que este os esgotava. Os seus corpos a subir e a descer, o ritmo do sangue e o latejar das pulsações encerravam o mundo fora daquele quarto cheio de sol.

Algures, o tempo ia escorrendo, os automóveis passavam na rua, um cão ladrou para uns esquilos num jardim, porém, ela só se dava conta da presença dele. Não ouvia mais nada senão o seu próprio nome enquanto vacilava à beira do abismo, proferido quase em oração.

E, a seguir, o seu grito de alegria enquanto galopava com ele.

"Nunca, ninguém, em lugar algum, se sentiu melhor do que eu", pensou Zoe. Ninguém fora mais completamente seduzida ou vira o seu prazer ser mais profundamente satisfeito.

Vogando no resplendor do pós-coito, Zoe passou os dedos pelos cabelos de Brad.

A cabeça dele repousava entre os seus seios, e a mão dele cobria a dela. Era a mistura de sensações mais doce que ela alguma vez sentira.

- Estou tão contente por teres aparecido - disse ela com ar ensonado, e sorriu ao sentir os lábios dele curvarem-se contra o lado do seio dela.

- Ainda bem que estavas em casa.

 

- Isto é tudo tão... lindo. Aqui deitados, todos nus e satisfeitos às... - Zoe virou a cabeça e olhou para o relógio. - Hum, às dez para as onze da manhã. É melhor do que ganhar a lotaria.

Brad levantou a cabeça e sorriu para ela.

- Bem melhor.

- És tão bonito. Estou sempre a pensar que pareces um daqueles homens lindíssimos das minhas revistas.

Ele fez uma careta.

- Poupa-me.

- A sério. Mas precisavas de um corte de cabelo - comentou ela, abrindo os dedos por entre os cabelos dele. - Eu podia tratar de ti.

- Ah... Talvez um dia destes.

Ela deu um puxão nos cabelos que agarrara.

- Não sei se sabes, mas sou muito boa no que faço para ganhar a vida.

- Tenho a certeza. Absoluta - disse ele. Para a distrair, deu-lhe um beijo na omoplata, e rebolou, pondo-se ao lado dela. - Vim até aqui para conversar contigo.

- Podes ir falando enquanto eu te aparo o cabelo. As cabeleireiras são como os empregados dos bares. Estamos habituados a conversar e a trabalhar ao mesmo tempo.

- Não duvido. Mas provavelmente não será a melhor altura para isso. Temos de nos vestir.

- Cobarde - disse ela, sentando-se e pondo os braços à volta dos joelhos.

- Para já, aceito o comentário - afirmou ele, enquanto se levantava para procurar as calças. - Zoe, ontem à noite... bem, mais precisamente esta manhã... tive uma experiência.

O ar brincalhão desapareceu imediatamente enquanto ela se pôs de joelhos.

- Ficaste ferido? Ele magoou-te?

- Não - respondeu Brad, pegando no top dela para lho entregar. - Vais ter de manter a calma enquanto eu te conto tudo.

Ele vestiu-se e foi-lhe narrando a história.

O receio inicial dela desaparecera. Ele não estava ferido, como ela podia verificar com os seus próprios olhos. E estava firme. Deus sabia que sim. Talvez até um pouco firme de mais.

- Achas que ele estava a usar o Jordan e o Flynn contra ti... ou queria que pensasses que eles estavam contra ti...

- Acho que é essa a ideia.

- Ele não entende as pessoas, o amor ou a amizade. E não te compreende a ti, disso tenho a certeza, se pensou que isso te ia fazer sentir mais isolado ou que te ia assustar. A única coisa que conseguiu foi fazer-te sentir mais envolvido.

Um sorriso ténue formou-se-lhe nos lábios.

- Parece que tu até me compreendes. Ela analisou o rosto dele.

- Quanto a isso não sei, mas compreendo como te dás com o Jordan e com o Flynn. Porque terá ele escolhido essa noite? Por

tu seres novo, por estarem perto do Pico? Agora tudo tem um significado. Estamos tão perto que tudo significa alguma coisa.

Ele assentiu, contente por os seus pensamentos se dirigirem no mesmo sentido.

- Acho que foi pelos dois motivos. Quando éramos novos, e mais fáceis de moldar. Antes de te conhecermos, ou à Mal, antes de o Jordan ver a Dana como algo mais do que a irmã do Flynn. Foi nessa noite que o Jordan viu a Rowena a caminhar no parapeito do Pico.

Brad fez uma pausa, e alisou os punhos da camisa.

- Eu fazia dezasseis anos nessa noite, Zoe. A mesma idade que tu tinhas quando saíste de casa.

- Oh! - exclamou ela, envolvendo os braços em torno dela própria como se tivesse sentido um arrepio. - Achas que isso significa alguma coisa?

- Acho que não podemos considerar nada uma coincidência. Foi uma noite importante para mim, para o Flynn e para o Jordan. Na altura não nos apercebemos disso. Parecia uma daquelas agitadas noites de Verão. Porém, estávamos no patamar que nos iria separar da infância e levar-nos até à idade adulta. Tu tinhas a mesma idade quando deste aquele passo.

- Para mim foi diferente.

- Sim. Mas talvez o Kane pudesse ter alterado o que aconteceu nessa noite, pelo menos na minha cabeça; podia ter alterado a maneira como a encaro actualmente. E o que fiz a seguir. O que sinto em relação ao Flynn e ao Jordan tem muito a ver com o motivo pelo qual voltei para cá e a maneira como te conheci.

- E se ele tivesse criado uma barreira entre vocês, ou mesmo se os tivesse feito magoar-te? Bem, não propriamente eles mas o que tu acreditavas serem eles, isso podia ter enfraquecido aquilo que partilhamos. Podia ter destruído isso.

- Acho que isso fazia parte dos planos. Sentindo-se inquieta, ela comprimiu os lábios.

- Ele fracassou, por isso vai enfurecer-se.

- Sim, vai enfurecer-se. Acho que nenhum de nós devia passar muito tempo sozinho durante os próximos dias. Quero que tu e o Simon fiquem em minha casa.

- Não posso...

- Zoe, pensa só um minuto. - Já preparado para desculpas e objecções, ele aproximou-se e pousou-lhe as mãos nos ombros.

- O que houver a fazer para concluir isto irá envolver-nos aos dois. Devíamos ficar juntos o máximo de tempo possível. Além disso, eu quero-te comigo. Quero-vos aos dois.

- Essa é a parte mais difícil. Como é que lhe vou explicar que vamos ficar em tua casa?

- Ele está suficientemente a par dos acontecimentos para aceitar essa solução. E achas mesmo que ele se vai opor à ideia de ter acesso fácil à minha sala de jogos?

- Não. Não, não acho - replicou ela, libertando-se de debaixo das mãos dele e pondo-se de pé. - Bradley, eu só não quero que ele... Eu sei o que este tipo de coisas significa para uma criança. Depois do meu pai nos abandonar, havia sempre um homem lá em casa durante uns tempos.

O rosto dele ficou petrificado.

- Não tem nada a ver com isso. É mais importante do que isso a todos os níveis. Zoe, tu e o Simon não são presenças temporárias na minha vida.

A respiração dela parou.

- Tens de ir mais devagar.

Subitamente cheio de impaciência, a voz dele endureceu.

- Se calhar, és tu que precisas de ir mais depressa. Não queres que te diga o que significas para mim, o que eu sinto por ti?

- Como pode qualquer um de nós pensar claramente em relação a isso? - Desesperadamente sedenta de ar, dirigiu-se para as cortinas. - Tu não sabes o que eu irei significar ou o que irás sentir depois de terminarmos isto. Agora estamos envolvidos numa demanda, e ela... ela aumenta tudo.

- Eu fiquei envolvido contigo no preciso momento em que te vi.

- Não faças isso. - A respiração dela teve um sobressalto, e ela sentiu um nó no coração. - Não sabes como isso me pode magoar.

- Talvez não. Explica-me.

- Não posso falar agora. - Embora maldizendo a sua cobardia, ela virou-se para ele e abanou a cabeça. - E tu também não. Ambos temos de sair.

Ele pegou-lhe no queixo com a mão e pousou os lábios sobre os dela.

- Havemos de conversar acerca disto, muito mais vezes. Mas agora toca a tratar do que temos de combinar. Se não queres ficar em minha casa, fico eu na tua. Mas gostava que considerasses a minha ideia. Passo por cá a seguir ao trabalho, e depois resolvemos.

 

Capítulo 14

Por volta do meio-dia e meia, Zoe estava a instalar as calhas de luzes da livraria de Dana. Tinham tomado a decisão de se concentrarem numa zona do edifício nessa tarde, até os pormenores finais dessa secção estarem concluídos. Num jogo de pedra, papel ou tesoura, Dana tinha sido a vencedora.

- Para mim faz sentido - afirmou Dana, enquanto enchia um pequeno mostruário giratório com cartões de boas-festas. - Há mais espaço na casa do Brad, e ele tem serviço de limpeza. Também sabemos que é rápido a cozinhar. Podias concentrar-te na chave e no teu cabeleireiro, e deixar tudo o resto andar até ao fim do mês.

"A escolha é lógica", reconheceu Zoe. "É sensata." No entanto...

- Não é tão simples como isso. Como posso aceitar a ideia de que a minha casa pode fazer parte da demanda se não estiver em casa?

- Essa ideia já te levou a algum lado? - perguntou-lhe Malory.

- Não, acho que não, mas só passou um ou dois dias desde que comecei a tentar encarar as coisas desse ponto de vista.

Perante o silêncio com que a frase foi acolhida, Zoe baixou os braços e soltou um suspiro.

- Está bem, eu sei que já devia ter sentido alguma coisa se a ideia fosse importante. Mas não consigo ter a certeza.

- Cá para mim, acho que estás a evitar alguma coisa - comentou Dana, com a boca torcida.

À defesa, Zoe dirigiu-lhe um longo olhar gélido.

- Não é só evitar. É... precaução. E não é o mesmo que o Jordan ficar no teu apartamento enquanto os dois esperam para

se mudarem para o Pico, ou quando a Malory foi viver com o Flynn. Vocês estão noivos. E eu tenho de pensar no Simon.

- O Brad é doido pelo Simon - salientou Malory.

- Eu sei - retorquiu ela, levantando a aparafusadora eléctrica para acabar de fixar as luzes ao tecto. - Mas isso não significa que devamos ir viver juntos. Não quero que o Simon fique confuso acerca de mim e do Brad, por causa do sexo, ou que se habitue ao casarão dele e a ter todas as coisas, e a atenção, e... bem, a ter a companhia diária do Brad.

Malory parou de pôr livros na estante.

- É só o Simon que não queres que fique confuso?

- Não - respondeu ela, soltando um suspiro enquanto passava a aparafusadora a Dana. - Estou a tentar sentir-me bem com os meus sentimentos, mantê-los dentro de limites razoáveis. Existe um monte de motivos para isso.

- Estou a olhar para ti e não vejo uma mulher que imponha limites a si própria.

Zoe pegou na luz que Malory lhe passou, e montou-a suavemente na faixa.

- Achas que eu devia ir.

- Acho que devias fazer o que te der mais felicidade. Às vezes, fazermos o que nos dá felicidade é mais difícil e assustador do que fazermos o que é mais seguro.

Embora estivesse muito longe de se sentir segura em relação ao que a fazia sentir-se feliz, ou ao que ia pura e simplesmente pregar-lhe um susto de morte, Zoe resolveu quebrar a rotina e foi buscar Simon à escola.

- Pensei que ia para casa da sr.a Hanson.

- Eu sei - num gesto já habitual, Zoe afastou o ombro do caminho quando Moe enfiou o focinho entre os assentos para cumprimentar Simon. - Eu telefonei-lhe. Queria falar contigo.

- Estou em sarilhos?

- Não sei. - De sobrancelhas arqueadas, ela perguntou:

- Estás?

- Não, juro. Não fiz nada de mal.

 

Zoe estacionou o automóvel e acenou para a sr.a Hanson, que estava no seu jardim a varrer folhas.

- Está bem. Então vamos até casa comer qualquer coisa e conversar um bocadinho.

- Moe - apreciando o jogo, Simon saiu a correr. - Biscoito! gritou, e desatou-se a rir quando Moe começou a correr como um doido para a porta da rua.

-Mãe? -Sim?

- Quando o Moe tiver de voltar para casa achas que o Flynn o deixa vir visitar-nos de vez em quando?

- Aposto que sim - respondeu ela, e parou à porta enquanto Moe vibrava.

- Simon, eu sei que queres ter um cão. Porque é que não me pediste?

- Se calhar ainda não podemos ter nenhum.

- Oh - com um pequeno nó no peito, ela abriu a porta e deixou Moe disparar em direcção à cozinha e aos biscoitos.

- Eles custam dinheiro. Mesmo que sejam trazidos do canil, acho que se tem de pagar alguma coisa. E é preciso comprar-lhes comida, brinquedos e coisas do género. E têm de levar injecções no veterinário. Mas eu estou a poupar para podermos comprar um. Para o ano talvez possamos comprá-lo.

Sem querer arriscar mostrar a voz, Zoe limitou-se a assentir. Pendurou o casaco e o de Simon, aproveitando para se recompor. Quando voltou para a cozinha, Simon já tinha atirado a mochila para o chão e tirado um biscoito da caixa para dar a Moe, que já estava desesperado.

Serviu a Simon um copo de leite e tirou uma maçã para cortar às fatias, de modo a ter as mãos ocupadas enquanto falava.

- Como sabes, estou a tentar fazer uma coisa importante: encontrar uma chave.

 

- Para os mágicos.

- Sim, para os mágicos. Estou a esforçar-me muito, e às vezes penso, bem, "é hoje que a vou encontrar". E outras vezes não acho nada disso. A única certeza que tenho é que vou precisar de auxílio.

- Precisas que eu te ajude?

- De certo modo, sim - respondeu ela, pousando as fatias de maçã num prato, e acrescentando algumas uvas. - O Bradley também me quer ajudar. E os mágicos disseram-me que é importante que ele me ajude.

- Ele é muito inteligente.

- Gostas muito dele, não gostas?

- Hum, hum - disse ele, e tirou uma fatia de maçã assim que a mãe pousou o prato. - Tu também, não gostas?

- Gosto. O Bradley achou que talvez pudesse ajudar-me mais se nós ficássemos em casa dele durante algum tempo.

De rosto imperscrutável, até para a mãe, Simon observou-a enquanto comia a maçã.

- Viver lá, com ele?

- bom, ficar em casa dele durante algum tempo. Como visitas.

- O Moe também?

Ao ouvir o seu nome, Moe agarrou a sua adorada bola de ténis entre os dentes e enfiou a sua cabeça enorme por debaixo do braço de Simon.

- Sim, tenho a certeza de que o Moe pode ir.

- Lindo - depois de dar um pontapé na bola que Moe deixara cair para fazer o cão ir buscá-la, Simon pegou numa uva. - Ele gosta de lá estar; é divertido.

- Seríamos convidados, Simon, portanto, tu e o Moe... - desta vez foi ela a dar um pontapé na bola. - Vais ter de te portar muito bem.

Simon acenou com a cabeça enquanto Moe escorregava pelo chão, indo embater ligeiramente contra a porta das traseiras, trazendo a bola de volta.

- Está bem. Tu e o Brad vão dormir na mesma cama e ter sexo?

- O quê? - perguntou ela, deixando a voz subir num tom esganiçado.

- O Chuck diz que os pais dele têm sexo na cama, que fica mesmo no quarto ao lado. Diz que a mãe faz barulhos como se lhe doesse.

- Oh, meu Deus.

A comer uvas, de olhos fixos no rosto da mãe, Simon mandou a bola para fora da cozinha. -Dói?

- Não - replicou ela em voz baixa, e a seguir aclarou a garganta. - Não, não dói. Acho que é melhor, eh, fazermos as malas para...

- Então porque é que ela grita e isso, e faz barulhos do género? Zoe sentiu o sangue escoar-se-lhe do rosto, e voltar a dardejar como fogo por debaixo da pele.

- Bem. É que algumas pessoas ficam... - "Oh, meu Deus, vê se me ajudas!" - Sabes, quando estás a jogar um jogo ou a ver televisão e ficas excitado, e por isso... gritas ou fazes barulhos.

- Sim, porque é divertido.

- Porque é divertido. O sexo também pode ser divertido, mas tens de ter idade para isso, e deves preocupar-te com a outra pessoa e querer partilhá-lo com ela.

- Os homens devem usar preservativos para vocês não ficarem enjoadas ou terem filhos sem querer-disse Simon e, acenando com a cabeça com ar sensato, acabou de comer as uvas. - O pai do Chuck tem alguns na gaveta ao pé da cama.

- Simon McCourt, não tens de andar a revistar a gaveta do sr. Barriste r.

- Foi o Chuck que viu. Tirou um e veio mostrar-mo. Têm um ar engraçado. Mas o Brad tem de usar um para ter sexo contigo, senão ficas enjoada.

- Simon - começou ela, e teve de fechar os olhos durante um momento. - Simon - repetiu. - Nós não vamos ficar em casa do Brad para termos sexo. E quando duas pessoas, dois adultos, têm o tipo de relacionamento que inclui, eh, estarem juntos dessa forma, isso é uma coisa muito íntima.

- Então a mãe do Chuck não devia fazer tanto barulho.

Zoe abriu a boca, voltou a fechá-la, e limitou-se a pousar a cabeça na mesa e a rir até às lágrimas.

Quando Brad chegou, ela tinha uma mala preparada para cada um, um saco com os artigos que Simon considerava essenciais para a sua sobrevivência e outro com o que ela considerava essencial para a sua. Além disso, tinha a geleira com produtos perecíveis que tirara do frigorífico e alguns dos flocos e aperitivos preferidos do Simon. Ao lado estava uma saca de dez quilos de comida para cão e uma caixa cheia de coisas do Moe.

- Vão fazer algum safari? - perguntou-lhe Brad, lançando uma olhadela para a bagagem.

- A culpa foi tua - recordou-lhe Zoe.

Ele deu um ligeiro toque com o dedo do pé na geleira.

- Sabes, eu também tenho comida em casa.

- Estas coisas estragam-se se não forem consumidas. Por falar em estragar, não queria que sentisses que tens de alimentar o Simon ou a mim. Vamos ter de combinar regras e tarefas como ele tem aqui. Se sair da linha, diz-me e eu trato do assunto.

- Mais alguma coisa?

- Sim. Não me importo de fazer refeições para todos, e dividimos as despesas a meias.

- Se quiseres cozinhar, sou plenamente a favor, mas escusas de te preocupar em pagar metade seja do que for.

- Não discutas. Ou pago a minha parte ou não vamos - afirmou ela, pegou no casaco e enfiou as mangas. - Não vou interferir na tua vida, mas vou interferir na minha e na do Simon. Sempre que precisares de sossego ou de privacidade, não tenhas receio de dizer.

- Se calhar era melhor começar a escrever - disse ele, tacteando os bolsos à procura de um bloco de apontamentos. - Acho que vai haver um teste.

-Agora podes achar isto hilariante, mas nunca viveste debaixo do mesmo tecto com um miúdo de nove anos e um cão. És capaz de precisar de fazer terapia no fim do mês. Portanto, se chegares a um ponto em que aches que já tens a tua conta, é só dizer.

- É tudo?

- Mais uma coisa. O Simon e eu tivemos uma conversa ainda há pouco, e acho que temos de discutir...

Zoe resolveu abandonar o assunto quando viu Simon descer as escadas com Moe.

- Mãe, ia-me esquecendo do dragão viscoso.

- Simon, só vamos ficar alguns dias fora. Não precisas de levar todos os teus brinquedos.

- Deixa-me ver - pediu Brad, estendendo a mão e pegando no dragão duro de plástico. Descobriu o mecanismo, pressionou-o e viu uma fita de matéria verde e viscosa sair pela boca do dragão. - Fixe.

- Desisto! Simon, vamos começar a levar isto tudo para o automóvel.

Foi preciso considerável tempo e persuasão até Simon conseguir acalmar-se para dormir. Zoe percebia que ele estivesse fora de si de alegria e excitação. O quarto onde iria dormir em casa de Brad tinha o dobro do tamanho do seu quarto, e continha um centro de entretenimento com televisão própria.

Embora tivesse instituído as regras para essa área da casa, tencionava manter-se alerta em relação a qualquer barulho da televisão a seguir à hora de ir para a cama.

Zoe desfez as suas malas e arrumou as roupas nas gavetas aromatizadas de um antigo toucador de mogno, pousando os artigos de higiene sobre o tampo verde-pálido da bancada da casa de banho ao lado.

- Não te habitues mal - proferiu à laia de aviso, enquanto passava os dedos pela renda branca e delicada da colcha, que valorizava a cama larga onde ia dormir.

"São só alguns dias", pensou. Como um capítulo num conto de fadas.

Olhou para cima, para a madeira cor de mel do tecto abaulado, e pensou como seria acordar de manhã naquela cama, naquele quarto.

Estava a correr o fecho da mala vazia quando Brad bateu no umbral da porta, que se encontrava aberta.

- Encontraste tudo o que precisavas?

- Tudo e muito mais. É um quarto magnífico; parece que estou dentro de um biscoito quente - comentou, pondo-se de cócoras para arrastar a mala para debaixo da cama. - Dá a tentação de uma pessoa se pôr aos saltos na cama, como o Simon.

- Está à vontade.

Embora ela sorrisse, os seus olhos revelavam inquietação. Zoe apontou para as rosas amarelas no toucador.

- Estavas assim tão seguro de conseguir o que querias?

- Estava certo do teu bom senso, e do teu compromisso em prosseguir a demanda.

- Tens uma maneira de fazer as coisas, Bradley - disse ela, passando novamente os dedos sobre a colcha. - Tens uma maneira suave de fazer as coisas.

- De qualquer modo, queria que tu e o Simon estivessem o mais seguros possível. Se tivesse tido de te incitar a isso, tê-lo-ia feito. Ainda bem que nos poupaste a isso.

- Se me tivesses tentado incitar, eu ter-me-ia irritado, o que teria anulado o meu bom senso. De qualquer modo, é mais inteligente estarmos juntos.

- Óptimo. Deixas-me esgueirar-me para o teu quarto a meio da noite?

Embora tivesse tentado dirigir-lhe um olhar de indiferença, ela sentiu os lábios tremer.

- A casa é tua.

- A escolha é tua.

Zoe soltou uma gargalhada.

- Uma maneira suave. Precisamos de conversar. Podemos ir até lá abaixo?

- Claro - respondeu Brad, estendendo a mão, e, embora reparasse na hesitação dela, manteve-a estendida até ela avançar e pousar a mão na sua. - Que tal um copo de vinho à lareira?

- Acho formidável. Tudo aqui é formidável. Estou com pavor de que o Simon parta alguma coisa.

- Deixa-te disso. No dia em que me mudei para cá, o Flynn passou por aqui com o Moe. A primeira coisa que aquele cão fez foi desatar a correr pela casa e partir um candeeiro. Não foi nenhuma tragédia nacional.

- Acho que estou só receosa.

- Senta-te à lareira enquanto eu vou buscar o vinho.

A lareira já estava acesa. Ele devia ter tratado disso enquanto ela estava a desfazer as malas. Tal como o resto da casa, a sala parecia arrumada, quente e interessante. Todas as pequenas peças, as coisas que ela imaginava que ele trouxera das suas viagens, as obras de arte, e inclusivamente a disposição de tudo isso.

Isso revelava um homem que sabia bem o que queria e que estava habituado a ter o melhor.

Zoe levantou-se para ir ver um quadro que ilustrava uma rua de Paris, com a esplanada e os seus guarda-sóis coloridos, os rios de flores, a dignidade do Arco do Triunfo em segundo plano.

Aquilo não tinha nada a ver com os seus postais emoldurados.

E ele estivera sentado num desses cafés cheios de gente, a beber café forte por uma chaveninha, ao passo que ela apenas sonhara com isso.

Brad apareceu com uma garrafa de vinho numa mão e dois copos na outra.

- Comprei-o há uns anos - disse ele enquanto se aproximava.

- Agradou-me o movimento, a maneira como o trânsito se apinhava na rua. Quase se ouvem as buzinas a apitar.

Brad deitou vinho num dos copos e esperou que ela lhe pegasse.

- Parece que os Vane não se cansam de coleccionar obras de arte.

- Se calhar, deviam pensar em criar um museu.

- Por acaso, o meu pai está a pensar nisso. Um hotel, uma estância. Podíamos enchê-la de algumas das suas obras de arte, e assim já tínhamos desculpa para comprar mais.

- Ele era capaz de comprar um hotel só para ter onde pôr a sua colecção de obras de arte?

- Para isso, e também por negócio. Arte, madeira e capitalismo são as palavras de código dos Vane. Ele anda a tentar encontrar o terreno ideal aqui nas montanhas, onde tudo começou. - O seu encolher de ombros foi um gesto de confiança e à-vontade. Mas, se não conseguir, há-de encontrá-lo noutro lugar qualquer. Quando o B. C. sabe o que quer, não aceita um "não" como resposta.

- Quer dizer que resolvem a coisa honestamente.

- Aceito isso como um elogio. Ele é um homem bom. Um pouco extravagante, mas um homem bom. Um bom marido e pai, e um homem de negócios dos diabos. Ele vai gostar de ti.

- Não me parece - proferiu ela em voz baixa.

- Vai admirar o que fizeste com a tua vida, o que conseguiste. E o que continuas a construir. Ele havia de dizer que tens garra, e não há nada que ele respeite mais.

Zoe esperava que um homem como B. C. Vane a fritasse se descobrisse que ela estava envolvida com o filho.

- Tu ama-los? Aos teus pais?

- Muito.

- Eu não sei se amo a minha mãe - disse ela, e aquilo saiu-lhe sem querer, antes de saber se era isso que pensava. - Que coisa horrível de dizer. Eu quero, mas não sei se a amo.

Chocada com as suas próprias palavras, sentou-se num braço de uma cadeira.

- E o meu pai, não o vejo há imenso tempo. Já nem o conheço, portanto como poderia amá-lo? Ele abandonou-nos. Deixou a mulher e os quatro filhos, e nunca mais voltou.

 

- Isso foi duro para ti. Foi duro para a tua mãe.

- Para todos nós - concordou Zoe. - Mas principalmente para a minha mãe. Embora não lhe tenha destroçado o coração, encolheu-o até ele ficar todo seco e quebradiço e sem nada para nos dar. Quando ele se foi embora, ela saiu atrás dele. Nunca imaginei que voltasse.

- Ela deixou-vos sozinhos? - O puro ultraje do acto vibrava-lhe na voz. - Ela deixou quatro filhos sozinhos?

- Ela estava doida para o ter de volta. Só ia ficar fora alguns dias mas... oh, meu Deus, tive tanto medo. O que é que eu iria fazer se ela não voltasse?

- Não podias ter telefonado a ninguém, a pedir ajuda?

- À irmã da minha mãe, mas ela e a minha mãe estavam sempre a discutir, por isso não me apeteceu telefonar-lhe. Da maneira como as coisas estavam, não sabia se havia de ligar a alguém da família do meu pai. A questão é que eu não sabia que raio havia de fazer, e então limitei-me a cuidar dos miúdos e a esperar que ela voltasse para casa.

Ele não conseguia imaginar aquilo.

- Que idade tinhas?

- Doze. O Júnior só tinha menos um ano do que eu, e não me ligava nenhuma. A Joleen era dois anos mais nova do que ele, portanto devia ter oito, acho eu, e passou um dia inteiro a chorar. Nunca vi ninguém chorar como ela, nem antes nem depois disso

- comentou Zoe, soltando um suspiro. - Mazie, a mais novinha, tinha cinco anos, por isso não percebeu bem o que estava a acontecer, mas sabia que se passava alguma coisa. Eu não conseguia tirar os olhos dela. Não sabia o que havia de fazer se ficássemos sem comida ou sem dinheiro para comprar mais comida.

Zoe mudou de posição na cadeira, agitando o copo de vinho entre os joelhos.

- Mas depois ela voltou. Ainda me lembro de pensar que estava com um ar cansadíssimo, e endurecido. Mas ainda havia de ficar com um ar mais cansado e mais duro em pouco tempo. Ela

fez o melhor que pôde por nós. Fez tudo o que podia, mas não sei se voltou a amar-nos. Não sei se terá sido capaz disso. Nesse momento, ela olhou para ele.

- É essa a minha origem. Queria que soubesses.

- Estás a contar-me isso por pensares que isso pode alterar o que sinto por ti? Que, se achar os teus pais irresponsáveis e egoístas, vou deixar de te amar?

O vinho passou a borda do copo dela quando a sua mão tremeu.

- Não digas isso. Não fales de amor quando nem me conheces.

- Eu conheço-te, Zoe. Queres que te diga o que conheço? O que vejo, o que sinto?

Ela abanou a cabeça.

- Meu Deus. Não sei o que hei-de fazer. Não sei como hei-de fazer-te entender a maneira como isto me perturba. Até que ponto tenho medo de me entregar e acabar por ficar também seca por dentro.

- Como te entregaste ao James Marshall? Ela soltou um suspiro.

- Eu amei-o, Bradley. Amei-o tanto. Parecia que estava dentro de uma bola de cristal, onde tudo era vivo e brilhante. Não se tratou apenas de uma imprudência, de um descuido entre nós.

Ele sentou-se ao pé dela.

- Conta-me. Preciso de saber - disse ele quando ela hesitou. E se isso não for suficiente, voltar a recapitular tudo o que aconteceu talvez seja um dos passos em direcção à chave.

- Não é uma questão de vergonha - proferiu ela tranquilamente. - Não é que tenha vergonha, mas parte do que aconteceu... as coisas que aconteceram, o que senti... sempre as guardei só para mim. Mas tu mereces ouvir isso.

Brad tocou-lhe nas costas da mão e deixou-a prosseguir.

- Como é que o conheceste?

- Acho que posso dizer que foi através das nossas mães. A sr.a Marshall era cliente da minha mãe. Às vezes, convidava a minha

mãe para ir até lá a casa antes de uma festa ou antes de ir fazer alguma coisa especial, para ela a pentear. Eu também podia ir, para arranjar as mãos da sr.a Marshall ou para lhe lavar a cabeça. Ela era simpática para mim. Era sempre muito amável, e não se metia na minha vida. Bem, pelo menos não muito - corrigiu. Ela conversava comigo e respondia às perguntas que eu lhe fazia acerca dos quadros nas paredes ou das flores no toucador. Perguntava-me como iam as aulas ou os rapazes. E dava-me sempre cinco dólares a mais quando a minha mãe não estava a ver. O James estava a estudar. Já o tinha visto uma vez por outra, mas ele nunca reparava em mim. E eu tinha visto as fotografias no gabinete da sr.a Marshall. Ele era tão bonito, parecia um cavaleiro ou um príncipe, que talvez eu me sentisse apaixonada por esse estilo de vida. Como qualquer rapariga.

- Ou qualquer rapaz - acrescentou Brad.

- Talvez. Eles costumavam dar muitas festas na casa grande. A sr.a Marshall adorava dar festas. Contratava-me para ajudar a servir em algumas delas, e chegou a comprar-me uma saia preta e uma blusa branca de qualidade para eu ficar bonita. Eles deram uma festa na Primavera, e o James dessa vez estava em casa, de férias da escola. E reparou em mim.

Zoe baixou os olhos para o seu copo de vinho, como se se tivesse esquecido da sua existência. Depois bebeu um longo gole enquanto pensava no que iria dizer a seguir.

- Ele foi atrás de mim até à cozinha, e não parava de conversar comigo, de namoriscar. Eu era muito tímida e ele fazia-me sentir desajeitada. Mas era muito meigo. Depois da festa acabar e de estar tudo limpo, ele levou-me a casa.

Ela encolheu os ombros e deixou-os tombar novamente.

- Eu não devia aceitar boleias de rapazes, por isso não devia tê-lo deixado levar-me. Sabia que a mãe dele não ia gostar se descobrisse. E a minha? Ter-me-ia esfolado. Só que não podia fazer nada. Era como se não pudesse deixar de voltar a vê-lo. Esgueirava-me para ir ter com ele, porque os pais dele e a minha mãe não o teriam permitido. Isso ainda tornava as coisas mais

 

emocionantes, mais maravilhosas. Como o Romeu e a Julieta. Eu era demasiado nova, e ele também, para pensarmos assim. Para mergulharmos no amor sem pensar em mais nada.

Zoe olhou para Brad e conseguiu ler-lhe os pensamentos.

- Estás a pensar que ele abusou de mim, que me usou, mas não foi assim que as coisas se passaram. É possível que ele não me amasse, pelo menos da mesma maneira que eu o amava. No entanto, ele achava que sim. Só tinha dezanove anos, e foi apanhado desprevenido quando se apaixonou, tal como eu.

- Zoe, aos dezanove anos, com o estilo de vida dele, era provável que soubesse muito mais sobre... a vida do que tu.

- Talvez. Talvez seja verdade, até porque eu não sabia nada de nada. Mas ele não me forçou, Bradley. Não quero que penses isso. Ele não insistiu nem exigiu, e não teve mais culpa do que eu. As coisas aconteceram assim.

- E quando lhe disseste que estavas grávida? Ela respirou fundo, devagar.

- Só soube que estava grávida depois dos dois meses. Não tinha grande jeito para esse tipo de coisas. Só tive a certeza em Setembro, e nessa altura ele já estava na universidade. Quando ele voltou a casa num fim-de-semana, contei-lhe. Ficou furioso e cheio de medo. E, tal como vejo as coisas actualmente, acho que a história já estava a perder o encanto para ele. Ali estava ele, vindo da universidade com tantas coisas emocionantes a acontecerem, e uma rapariga da terra dele, por quem ele já está a perder o interesse, diz-lhe que está grávida.

- Sim, azar o dele.

Zoe não conseguiu deixar de sorrir.

- És mesmo duro para com ele.

- Seria muito mais duro se tivesse oportunidade disso - confessou Brad, irritado, e levantou-se para servir mais meio copo de vinho. - Talvez seja em parte por ciúme. Mas principalmente por saber que ele te deixou passar por isto sozinha.

- Ele disse que faríamos o que estivesse certo; que ficaria ao meu lado. Acredito que estava a falar a sério, embora se sentisse receoso e enfurecido. Acredito que ele estivesse a falar a sério quando me disse isso.

- As palavras não custam nada.

- Pois não - disse ela, assentindo, enquanto Brad deambulava pela casa. - Uma pessoa como tu teria falado a sério, e teria cumprido a sua palavra. Nem toda a gente é feita da mesma massa. E às vezes o que está certo não é o que nos parece. Se estou aqui é porque ele não cumpriu a sua palavra, por isso fez-se o que era certo. Para mim e para o Simon.

- Está bem. O que aconteceu a seguir?

- Ele ia contar aos pais, e eu tinha de contar à minha mãe, e depois faríamos o que tivesse de ser.

- Só que ele não fez.

- Oh, ele contou aos pais dele, tal como eu contei à minha mãe. A minha mãe ficou doida, mas parte disso era presunção. Consegui ver essa faceta quando lhe contei. A parte dela que pensou que era bem feito, por eu julgar que era melhor do que os outros, e agora ia ter de aprender a lição. Apesar de tudo, quando a sr.a Marshall apareceu, a minha mãe defendeu-me.

O queixo dela ergueu-se, num gesto de orgulho.

- A sr.a Marshall disse que eu era uma aldrabona e uma mentirosa, uma vagabunda que tinha enganado o filho fazendo-o portar-se mal nas suas costas. Que eu não ia arrastar o filho dela para a valeta, e se estava grávida isso não queria dizer que o bebé fosse dele. Mesmo que fosse, não queria que ele ficasse a pagar durante o resto da vida por ter ido para a cama comigo. E ainda disse mais coisas: que me tinha aceite em sua casa, tinha confiado em mim, e eu não passava de uma ladra e de uma prostituta. Atirou um cheque de cinco mil dólares para cima da mesa e disse que era tudo o que havia de receber. Tanto podia usá-lo para fazer um aborto como para o que quisesse, mas não viria a receber nem mais um tostão, e, se tentasse pedir mais, se tentasse

voltar a ver o James, trataria de fazer com que a minha família pagasse por isso.

- Tu tinhas o neto dela na barriga.

- Ela não via as coisas desse prisma. Não conseguia. E havia de ter feito a minha família pagar. Tinha dinheiro e poder, e eu não tinha nada para contrapor a isso. Mandou o James embora, não sei para onde. Escrevi-lhe uma carta em Setembro desse ano, para a universidade, a perguntar o que havia de fazer, o que ele queria que eu fizesse. Ele não chegou a responder, por isso penso que isso chegou como resposta. Reuni o dinheiro e as poupanças que tinha feito, e fui-me embora. Não ia criar o meu bebé naquele parque de caravanas. Não ia criá-lo perto dos Marshall. Depois de o Simon nascer, enviei outra carta ao James, com uma fotografia do bebé. Foi devolvida por abrir. Então, resolvi pôr o assunto de lado, e prometi a mim mesma cuidar de mim sozinha. E não procurar ninguém para tornar as coisas melhores, ou diferentes, ou para me mostrar o que havia de fazer. Não ia procurar ninguém para me dizer que me amava e a seguir voltar a fazer o mesmo.

Brad voltou a sentar-se, tirou-lhe da mão o copo de vinho que ela negligenciara e pô-lo de lado.

-Já provaste que és capaz de conseguir uma boa vida para ti e para o Simon. Por ti mesma. Continuas a ter de prová-lo?

- Se eu deixar que isto aconteça entre nós e tu te fores embora... Não sou suficientemente corajosa para correr esse risco. Até podia ser, se estivesse sozinha. Mas não estou.

- Não acreditas que esteja apaixonado por ti...

- Acredito que tu achas que estás, e eu sei que ninguém te impediria de fazer o que fosse mais acertado. Mesmo que não fosse acertado para ti. Por isso, vou pedir-te que esperes até este mês chegar ao fim, até tudo estar menos romântico e emocionante, e depois logo vemos como nos sentimos os dois.

"Ela está a empunhar um espelho", pensou ele, "que reflecte o que aconteceu com ela e o James sobre o que está agora a

acontecer connosco." Brad tentou encontrar algum entendimento no meio da mágoa.

- Deixa-me perguntar-te uma coisa. Apenas uma. Amas-me?

- Não posso deixar de te amar, mas posso controlar o que devo fazer em relação a esse sentimento.

Capítulo 15

Ela tinha seguido na direcção errada. Zoe estava agora certa disso. Voltara à Indulgence, vasculhara os três pisos inteiros sozinha, limpara o sótão por completo, e olhara para o espelho. Porém, não encontrara nada que orientasse o seu caminho. Nenhum clarão súbito de luz ou inspiração.

Nenhuma chave.

Voltara para casa, e passara uma hora inteira sentada sozinha na sala. Embora se sentisse tola, fechara as cortinas, acendera velas e tentara entrar num estado propício ao conhecimento ou à percepção.

Em vez disso, por pouco não adormecera. Sentia-se cansada, frustrada e irritadiça e, provavelmente, num estado adverso a abrir-se à intuição.

Decidiu voltar ao princípio e iniciar tentar de novo.

Combinou as coisas em relação a Simon antes de ir falar com Bradley.

Ele tinha sido delicado desde que eles se tinham mudado para os quartos das visitas. "Um pouco frio", pensou Zoe enquanto se dirigia para o escritório que ele tinha em casa. Apesar de tudo, compreendia a sua atitude.

Zoe bateu à porta, e abriu-a quando ele a mandou entrar.

- Desculpa incomodar-te, mas... oh... - osenormes projectos afixados num quadro atraíram-na para dentro do escritório. - Estes são os vossos planos para a expansão.

- Mmm. Ainda há alterações a fazer mas está quase. Vamos começar em Março, assim que o tempo ficar melhor.

- Vão acrescentar tudo isto ao sector de jardinagem e horticultura?

- Vamos duplicá-lo. As pessoas que têm jardins querem árvores, arbustos, flores e legumes, e meios para os plantarem e para os manterem - afirmou ele, e bateu com os dedos na coxa enquanto a observava a ver os projectos. - Além disso, temos ainda a decoração de jardins. E esta secção vai incluir várias linhas novas de mobiliário para o exterior.

- É muito ambicioso.

- Hei-de fazer com que resulte. Quando uma coisa é importante, temos de ser persistentes até a fazermos resultar.

- Sei que estás zangado comigo.

- Um bocado. Principalmente frustrado. Vais para a cidade?

- Não. Hoje não. Falei agora com o Flynn. Ele hoje vai ficar algum tempo com o Simon. De qualquer modo, já tem saudades do Moe, e o Simon não se importa nada de passar a maior parte do sábado a brincar com o Flynn e com o cão. E eu... quero voltar à Virgínia, ao bosque. Para ver se me escapou alguma coisa. Estou a contar-te isto porque não quero que te preocupes ou fiques arreliado.

- Eu levo-te lá.

- Sim - ela sentiu um nó no estômago. - Acho que é boa ideia. Tenho de fazer uma paragem no caminho de volta, mas também preciso de conversar acerca disso contigo. Se pudermos ir cedo, era bom.

- Dá-me cinco minutos.

- Obrigado. Eu vou buscar o Simon e o Moe.

Quando ela saiu, Brad tirou uma faca de mato de uma gaveta fechada à chave e abriu-a para experimentar a lâmina.

Ela ordenou a si própria que se mantivesse tranquila enquanto abandonavam o Vale.

- Hum. Uma das coisas acerca das quais queria conversar contigo é sobre o Dia de Acção de Graças. A Malory disse que ias passar cá as Festas.

- Não é a melhor altura para sair.

- Não. - O Dia de Acção de Graças era a véspera do fim do seu prazo. Daí a menos de uma semana, toda a areia da ampulheta teria sido escoada. - Queria saber se gostavas que festejássemos os sete o Dia de Acção de Graças cá na tua casa. A sala de jantar da Malory ainda não está pronta, e a tua é bastante grande. Eu posso tratar dos cozinhados e...

- Sim - respondeu ele, estendendo o braço para lhe tocar na mão. - Gostava imenso. Se te encarregas dos cozinhados, eu arranjo os ingredientes. Faz-me uma lista de compras.

- Isso ajuda. Não temos muito tempo.

Ele olhou para ela, percebendo exactamente aonde ela queria chegar.

- Há tempo suficiente.

- Estou a tentar convencer-me disso. Há mais uma coisa em relação à qual pensei que me podias ajudar. Quero passar pelo canil e escolher um cão para o Simon. Depois do Dia de Acção de Graças, depois... de estar tudo terminado, posso ir buscá-lo. Disseram-me que me guardavam um durante uma semana.

- Porque não o levas já?

- Pois, isso então era o máximo: um rapaz, um canzarrão e um cachorrinho a correrem pela casa. Um cachorro a fazer-te chichi nos tapetes e a roer-te tudo o que não esteja preso ao chão. Podemos esperar até voltarmos para casa.

- Claro - comentou Brad, e não falou mais no assunto.

Ela conduziu-o para fora da estrada principal, pelas estradas serpenteantes, e pediu-lhe para estacionar na orla do campo, tal como fizera antes.

- É uma bela paisagem campestre.

- Pois é - Zoe saiu do automóvel para o ar frio, que lhe pôs imediatamente as bochechas cor-de-rosa. - Adoro as montanhas. Não gostava de viver num lugar onde não houvesse montanhas. E árvores.

Ela passou por debaixo da vedação.

- Costumava brincar naquele bosque quando era pequena, e sentava-me acolá a sonhar quando era mais crescida.

- com que é que sonhavas?

- Oh, com todos os lugares onde havia de ir, com as coisas que iria ver, com as pessoas que havia de conhecer.

- Rapazes?

- Nem por isso. Ou não tanto como as outras raparigas, acho eu. Costumava pensar que se havia uma coisa que não havia de fazer era amarrar-me a um homem e ter um rancho de filhos, e acabar por não fazer nem ter nada de especial. Se calhar, a minha mãe tinha razão quando dizia que eu era presunçosa.

- Não tinha nada.

- Eu estava tão farta de tomar conta das minhas irmãs e do meu irmão, de ajudar a manter as coisas em ordem. De me preocupar com as contas e com a maneira de fazer uma refeição render. Aos doze anos, a última coisa que me passava pela cabeça eram os rapazes, o casamento ou os bebés. Nem sequer brincava com bonecas.

Ele pegou-lhe na mão quando se aproximaram das árvores.

- com que é que brincavas?

- com ferramentas e tintas. Gostava de arranjar coisas. Dei as minhas bonecas à Joleen e à Mazie. Não valia a pena fingir que tomava conta de alguém quando já o fazia na realidade. Oh, meu Deus, como ansiava por sair dali para fora. Eu queria ir-me embora, e queria tanto que isso acontecesse, Bradley, que quando o James apareceu... eu não esperava engravidar. Mas... não sei se não terei imaginado algures dentro da minha cabeça que afinal ia ter de optar pelo homem e pelos filhos, e que era essa a única maneira de sair dali e conseguir mais alguma coisa.

- E se fosse? - inquiriu ele, parando quando chegaram à beira das árvores. - E se fosse, Zoe? Tu tinhas dezasseis anos.

- Mas agora já não tenho, e quero que saibas que não te encaro como uma via para conseguir ter mais na vida - afirmou ela, agarrando-lhe ambas as mãos, com força. - Preciso que saibas isso antes de percorrermos este bosque.

- Eu não penso isso. Caramba, eu mal consigo que tu aceites mais, nem que te dê com as coisas na cabeça. - Para amenizar a situação, ele ergueu-lhe a mão e beijou-a. - Mas eu estou disposto a aceitar mais de ti. Quero que me dês mais.

- Se pudesse dá-lo a alguém, seria a ti - confessou ela, abraçando-o e apertando-o contra si. - És o melhor homem que conheci na vida, e é isso que me assusta mais.

- Já é tempo de me deixares preocupar-me comigo.

- Mais alguns dias - murmurou ela e, afastando-se, voltou a dar-lhe a mão e entrou no bosque.

- Vi o gamo branco naquele caminho - contou-lhe. - Mas mais nada. Foi bom voltar a caminhar por aqui. Pacífico. O Simon foi concebido aqui. É um lugar agradável, um lugar importante para mim.

- Então, também é para nós.

Zoe encaminhou-se na mesma direcção que tomara da vez anterior, só que não viram nenhum veado branco, nem nada que provocasse qualquer sensação especial. Quando chegaram ao local onde começava a gravilha, ela parou mais uma vez.

- Tenho de ir visitar a minha mãe. Não precisas de ir.

- Não queres que eu a conheça?

Ela olhou para as roulottes, e expirou.

- Talvez seja melhor. Sábado é um dia ocupado para ela. É capaz de ter clientes, por isso não devemos demorar.

Ele viu algumas crianças a brincar num balouço enferrujado, e um dobermann puxado por uma corrente grossa, que lhes ladrou como se já tivesse sentido o sabor do sangue. De uma roulotte à esquerda ouviam-se vozes numa discussão agressiva. E à direita havia uma rapariguinha empoleirada num sobe e desce, a cantarolar uma canção de embalar à boneca.

A menina levantou os olhos e dirigiu a Bradley um lento e belo sorriso.

- A Cissy está a fazer a sesta - comunicou-lhe num murmúrio. Ele baixou-se, virando a cabeça para olhar para a boneca.

- É muito bonita.

- É a minha bonequinha querida.

Enquanto ela dizia aquilo, a porta abriu-se atrás dela. Uma rapariga saiu com um pano da louça na mão e desconfiança no olhar.

- Precisam de alguma coisa? - perguntou, pousando a mão no ombro da rapariguinha.

- Estávamos só a ver a Cissy - explicou Brad.

- Eu sou a filha da Crystal McCourt, a Zoe - entendendo os receios da mãe, Zoe aproximou-se e pousou a mão no braço de Brad. - Estamos só de visita.

- Ah - exclamou ela, visivelmente mais tranquila. - Prazer em conhecê-los. Pregaram-me um susto, só isso. A Chloe sabe que não deve falar com estranhos mas parece que nunca se lembra. Confia em toda a gente. Dê um beijinho meu à sr.a McCourt e diga-lhe que lhe agradeço mais uma vez por ter cortado o cabelo da Chloe tão bem.

- Eu digo - quando Zoe se afastou, ouviu a mulher dizer: "Anda para dentro com a mamã, minha linda."

- Há pessoas que têm aqui uma bela vida - comentou baixinho. - Plantam pequenos jardins em canteiros e fazem piqueniques no Verão.

- E algumas pessoas vivem em palácios e não conseguem ter uma boa vida. A questão não é onde, mas como. E quem.

"Talvez", pensou Zoe, "isso seja mais uma coisa que eu devia recordar."

- Aquilo é nosso. Dela. Nosso - disse ela, deixando cair a mão com que apontara para fazer um gesto em direcção à roulotte dupla em tom de verde desmaiado. - Tenho vergonha por sentir vergonha disto. E odeio-me por odiar que tu vejas isto. Ela sempre disse que eu era demasiado orgulhosa. Acho que tinha razão a esse respeito.

- Eu acho que tu não és perfeita. Se calhar, afinal já não te amo.

Ela tentou rir-se, mas o riso ficou preso na garganta.

- Vais apresentar-me à tua mãe, Zoe, ou queres que vá até lá e bata à porta?

- Ela não vai gostar de ti.

- Não estás a ter em conta o meu charme incrível. Reparando no tom divertido e autoconfiante, Zoe limitou-se a fitá-lo no rosto.

- Isso é uma das coisas de que ela não vai gostar em ti - disse ela, conformada, e avançou. Ouviu conversar assim que chegou à porta. Vozes de pessoas novas, pelo menos duas delas.

"A manhã de sábado pega com a noite", pensou. A noite de sair. Algumas raparigas queriam pentear-se para uma noite de engate. Zoe bateu na moldura metálica da rede, abriu-a e deu um bom empurrão com o ombro na porta interior.

"Três raparigas", reparou. Uma com os cabelos envoltos em prata - alguém ia ficar louro, A segunda tinha os cabelos curtos já cobertos de tinta. Uma terceira aguardava a sua vez e segurava numa revista de moda para mostrar um penteado.

Pareciam um bando de aves animadas; de repente calaram-se e começaram a dar risadinhas ao descobrirem Brad atrás de Zoe.

A roulotte cheirava a tinta, a descolorante, a fumo e ao jantar da noite anterior.

Crystal acabou de marcar o tempo no temporizador que se encontrava em cima da bancada, e virou-se. As sobrancelhas dela descreveram um arco.

- O vento trouxe-te de volta pela segunda vez no mesmo mês, e nem sequer estamos perto do meu aniversário - o olhar dela fixou-se em Brad e parou, com um ar inquiridor.

- Passei por estes lados. Queria apresentar-te o meu amigo Bradley.

- Bradley. Isso é um nome fino.

- Prazer em conhecê-la, sr.a McCourt.

- Há aqui gente a mais - afirmou ela, pegando nos cigarros e no isqueiro Bic cor-de-rosa. - Vamos lá para fora.

- Meninas - disse Brad para as raparigas, e as gargalhadas irromperam mais uma vez quando ele se afastou.

- Já vi que tens que fazer - começou Zoe.

- Está um sábado animado - comentou Crystal e, quando a porta se fechou, acendeu o isqueiro e soltou um fio de fumo. - A miúda dos Jacobson quer o cabelo louro. Quer ser a BritneySpears. Tinha uns lindos cabelos castanhos cor de avelã, mas, se quer dar cabo deles, não é da minha conta.

- É a Haley Jacobson? Era uma miudinha da última vez que a vi.

- Tem dezasseis anos. A mesma idade que tu tinhas quando te foste embora. Se continua a pavonear-se por aí desta maneira, ainda se mete em sarilhos como tu.

- Já deixei de encarar o que me aconteceu como um sarilho há muito tempo - disse Zoe, pois sabia que as raparigas também ali estavam e, como a mãe não se tinha dado ao trabalho de baixar a voz, elas tinham ouvido tudo. - O Simon foi a melhor coisa que me aconteceu.

- Disseste-me que não querias ter mais filhos - a ruga entre as sobrancelhas de Crystal tornou-se mais profunda quando ela disparou outra olhadela em direcção a Brad. - Vieste dizer-me o contrário?

- Não. O Bradley é...

- A Zoe e o Simon são importantes para mim - disse Brad suavemente. - Queria conhecê-la. A Zoe contou-me que criou quatro filhos praticamente sozinha. Deve ter sido de si que ela herdou tanta coragem.

"bom nome, bom ar, bem falante", pensou Crystal enquanto soltava uma baforada de fumo.

- Não é preciso coragem para criar os filhos. É preciso ter umas costas fortes.

- Imagino que é preciso ter as duas coisas. Tem uma filha linda e surpreendente, sr.a McCourt. Deve ter muito orgulho nela.

- Bradley. Tem um nome fino e tem bons modos. Se a quiser, o problema é seu - disse ela, como se tanto lhe desse que ele fizesse isso ou o contrário, e encolheu um ombro. - É boa trabalhadora e boa parideira. Não se queixa muito.

- Não me hei-de esquecer disso - afirmou ele no mesmo tom que ela, fazendo Crystal rir-se sem querer.

- Talvez tenha mais bom gosto desta vez. Não tem muito ar de ser sacana.

- Obrigado.

- Tu nunca tentaste esquivar-te ao trabalho - disse para Zoe, com uma pontinha de afecto. - Isso tenho de reconhecer - no impulso do momento, estendeu a mão e tocou nos cabelos de Zoe. - bom corte... tem estilo. De qualquer modo, também nunca foste estúpida. Tens a oportunidade de conseguir uma boa vida: porque está-me a parecer que podes ter uma boa vida, e seria uma estupidez não aproveitares. Uma mulher tem de agarrar o que puder.

- Mãe.

- Eu digo o que penso, sempre disse e hei-de dizer - afirmou Crystal, deixando cair o cigarro e esmagando-o com o sapato. - Tenho de voltar para dentro. Desta vez, vê se pões o anel - aconselhou Zoe. E virando o queixo para Bradley: - Podia ter arranjado pior.

Abriu a rede; voltou para dentro. E fechou a porta.

- As coisas nunca resultam bem. Nunca - afirmou Zoe, com os olhos marejados de lágrimas, por mais que tentasse contê-las. -Temos de ir.

Ela disparou em direcção ao bosque quase a correr, e manteve a cabeça baixa quando Brad lhe pegou no braço.

- Ela não te compreende.

- Isso não é novidade nenhuma para mim.

- Ela não compreende a luz dentro de ti. Ou que a questão não é o que tu podes obter, mas sim o que queres fazer. Ela não te compreende, por isso não sabe amar-te.

- Não sei o que hei-de fazer em relação a isso.

- Se continuares a tentar, ainda te magoas. Se parares de tentar, magoas-te na mesma - disse ele, passando-lhe as mãos ao longo dos braços para a consolar. - Eu compreendo-te, Zoe, por isso sei qual vai ser a tua escolha.

Ela olhou para trás na direcção da roulotte.

- Vou voltar no Natal, e nessa altura talvez... talvez... - Como sabia que ambos precisavam que ela sorrisse, Zoe sorriu. - Eu disse-te que ela não ia gostar de ti.

- Ela gostou de mim. Já está presa na minha rede - contrapôs ele, curvando-se para lhe dar um beijo ao de leve nos lábios. - Tal como a filha.

- Eu cá, se me prendem, fico pior que uma barata! - avisou ela, deu-lhe outra vez a mão e encaminharam-se para o bosque.

- Será que as baratas se irritam com facilidade?

- Olha, a Dana é que podia descobrir isso. Ela pode procurar em qualquer lado como é o comportamento das baratas. Nem sei onde é que ela vai buscar metade das coisas que encontra, mas depois faz-nos sempre uma palestra acerca do assunto. Nunca conheci ninguém com tanto jeito para letras. Para mim sempre foram os números. E agora sou amiga da Dana, que sabe tudo sobre livros, e da Malory, que sabe tudo sobre arte. Aprendi imenso com elas nos últimos dois meses. Às vezes, tudo isto parece um sonho.

Zoe fez uma pausa, à procura de qualquer coisa enquanto falava.

- E um dia destes ainda acordo e as coisas estão todas como dantes. Vou estar outra vez a trabalhar para aquela vaca da Carly e nunca vou chegar a conhecer a Dana ou a Mal. Vou pegar no jornal e ler a coluna do Flynn, mas não o vou conhecer. Ou ver um dos livros do Jordan e pensar como será ele, pois não terei maneira de saber.

Ela olhou para Brad e tocou-lhe com os dedos na face.

- Não te vou conhecer. Hei-de ir comprar qualquer coisa à HomeMakers, e não vou pensar em ti, porque nada disto aconteceu.

- Isto é real - garantiu ele, enrolando firmemente os dedos à volta do pulso dela para ela sentir a força, e para ele lhe sentir as pulsações. - Isto é real.

- E se não fosse? E se eu estivesse na cama a ter um sonho enorme e complicadíssimo? Acho que ia acordar com o coração destroçado - confessou, olhando na direcção da roulotte da mãe.

- Ou pior do que isso. O que quer que aconteça a seguir, onde quer que tudo isto vá dar, não aguentaria perder a oportunidade

de te conhecer. Beija-me - pediu ela, aproximando-se e pondo-se em bicos de pés. - Beijas-me?

Ele puxou-a para si, e pousou suavemente os lábios nos dela. Deixou o momento crescer. Quando ela soltou um suspiro, quando ela lhe pôs os braços à volta do pescoço, a sensação foi mais maravilhosa do que qualquer sonho.

Ela sentiu qualquer coisa mudar dentro de si, e uma dor tão doce que fez as lágrimas voltarem a correr. O ar estava fresco, e a boca dele tão quente. O amor, para lá de tudo o que ela alguma vez esperara, estava ali à sua frente.

Sentiu a mão dele acariciar-lhe os cabelos, alisar-lhos ao longo das costas. O seu corpo jovem esguio uniu-se ao dela a tremer de desejo.

Ela afastou-se, olhou para aqueles olhos azul-claros, e deixou uma lágrima escorrer-lhe pelo rosto.

- James - disse suavemente, envolvendo-lhe o rosto entre as mãos.

- Amo-te, Zoe - a voz de James... um pouco ofegante, ansiosa, veio-lhe aos ouvidos. - Fomos feitos um para o outro. Nunca hás-de sentir o mesmo por mais ninguém.

- Pois não - inundada pelo amor que emanava do coração de uma rapariga de dezasseis anos, ela pressionou a mão dele contra os seus lábios, o seu rosto, e manteve-a aí. - Nada voltará a ser o mesmo, para nenhum de nós.

- Vamos fugir os dois. Ficaremos juntos para sempre. Ela sorriu, um sorriso muito suave.

- Não vamos nada - afirmou, e beijou-o novamente, sem remorsos, afastando-se em seguida. - Adeus, James.

Brad segurou-a quando os joelhos dela cederam, e continuou a abaná-la e a dizer o nome dela tal como fazia desde que a sentira abandoná-lo.

Os olhos dela viam tudo desfocado, as suas faces tinham empalidecido.

Ela tinha-lhe chamado James.

- Olha para mim. Olha para mim, raios!

- Estou a olhar. - Mole, a cabeça dela tombou para trás e, embora a vista ficasse ofuscada com o esforço, ela tentou focá-la.

- Estou a olhar para ti, Bradley.

- Vamos sair daqui para fora - disse ele, e começou a levantá-la, mas ela comprimiu uma mão contra o peito dele.

- Não. Está tudo bem. Só preciso de mais um segundo. Deixa-me ficar sentada durante um segundo.

Ela deslizou para o chão e sentou-se com a testa encostada aos joelhos.

- Estou um bocado tonta. Só preciso de me recompor.

Ele tirou a faca da bainha por debaixo do blusão e passou longamente a vista pelo bosque antes de se acocorar à frente dela.

- Tu passaste-te, como se te tivessem desligado. Chamaste-me James.

- Eu sei.

- Tu desmaiaste. Não estavas comigo; estavas com ele. A olhar para ele - Brad falava com amor. - Disseste que nada voltaria a ser como dantes.

- Eu sei o que disse. Ele levou-me até lá. O Kane levou-me até lá, mas eu sabia - mais firme, ela levantou a cabeça. - Eu fiquei consciente disso, quase desde que começou. Senti... não tenho vergonha do que senti, e não me arrependo disso. Isso significaria que tenho vergonha e pena em relação ao Simon. Só lamento que o Kane te tenha utilizado deste modo.

- Tu choraste por ele - estendendo a mão, Brad apanhou uma lágrima na ponta do dedo.

- Sim, chorei pelo James. E pelo que as coisas podiam ter sido se ele tivesse sido mais forte, ou se nós os dois tivéssemos sido mais fortes. E a seguir disse-lhe adeus.

Ela pousou a mão sobre a mão de Brad, e enroscou os dedos na palma da sua mão.

- O Kane quis que eu sentisse tudo o que senti pelo James, e quis usar esses sentimentos para nos afastar. Achas que conseguiu?

- Isto incomodou-me. Magoou-me - confessou Brad, olhando para as suas mãos unidas. Após algum tempo, virou a sua mão de

forma a unir os dedos de ambos. - Mas não, não nos conseguiu afastar.

- Bradley - disse ela, começando a encostar-se a ele, com vontade de lhe aflorar os lábios com os seus. Então viu a faca. Os seus olhos abriram-se muito. - Oh, meu Deus!

- Ele é passível de ser ferido - afirmou Bradley pura e simplesmente. - Se eu tiver hipótese, vou magoá-lo - acrescentou, levantando-se e guardando a faca. A seguir estendeu-lhe uma mão.

Ela humedeceu os lábios.

- É melhor teres cuidado com isso.

- Sim, mãe.

- Ainda estás um bocado chateado, não estás? Eu sei quem tu és, Bradley. E sei quem eu sou. Ele tentou fazer-me esquecer isso mas não conseguiu. Isso não pode deixar de ter algum sentido. Eu senti exactamente o mesmo que senti aos dezasseis anos com o James. O corpo, o coração. A cabeça. Ele passou-me a mão pelos cabelos. Nessa altura, eu usava-os compridos, e ele costumava fazer isso. Passava-me a mão ao longo dos cabelos quando me beijava. Essas coisas estão dentro de mim, nessas caixas de recordações. O Kane consegue entrar nelas.

Foi preciso um acto supremo de vontade, mas Bradley obrigou-se a si mesmo a pensar para além dos aspectos pessoais, e dedicar-se à demanda.

- O que é que ele te disse? O James... o que é que te disse?

- Que me amava, que eu nunca ia sentir por ninguém o mesmo que sentia por ele. É verdade, nunca mais. Não devo. Mas Bradley, eu percebi.

Então, Zoe deu uma volta sobre si própria e o seu rosto iluminou-se.

- Mesmo quando estava ali parada com os cabelos pelo meio das costas e o rosto dele nas mãos, percebi que aquilo não era real. Que era um truque. E fui eu que o usei.

Ela uniu as palmas das mãos e bateu com a parte lateral dos dedos na boca enquanto descrevia um círculo.

- Este lugar. Eu tinha de vir aqui. Aliás, tinha de voltar cá contigo. Mas a chave não está aqui - disse ela, deixando cair os braços. - Não está aqui.

- Lamento muito.

- Não - proferiu ela, abanando a cabeça, e depois voltou a rodopiar com um sorriso radiante. - Eu sei que não está aqui. Sinto-o. Não preciso de me preocupar, escuso de voltar aqui à procura, na expectativa, porque já fiz tudo o que tinha a fazer aqui. Ou o que tínhamos a fazer.

Ela saltou para os braços dele, com força e velocidade suficientes para o fazer recuar um passo. A rir, prendeu as pernas à volta da cintura dele e deu-lhe um beijo sonoro.

- Não sei bem o que tudo isto significa, mas hei-de descobrir. Pela primeira vez em vários dias, acredito que vou descobrir. Eu vou abrir aquela caixa, Bradley.

Zoe comprimiu a face contra a dele.

- vou abri-la, e elas vão voltar para casa.

Quando pararam à porta da casa de Flynn, Zoe dirigiu a Brad um olhar gélido.

- Isto só partiu unicamente da tua cabeça, quero deixar isso bem claro.

-Já o fizeste. Umas seis vezes.

- Não vou ter a menor pena de ti ou dos teus bens.

- Sim, sim. Blá, blá.

Ela abafou uma gargalhada e manteve o rosto sério enquanto o seguia em direcção à casa.

- Não te esqueças de quem tentou ser prática.

- Exacto - disse ele, dirigindo-lhe um sorriso enquanto abria a porta. - Ficaste perdida assim que olhaste para aqueles olhos castanhos.

- Eu podia ter esperado uma semana.

- Mentirosa.

A gargalhada escapou-lhe ao pousar o cachorrinho e deixá-lo esgueirar-se pelo corredor.

- Isto é capaz de ser interessante.

Moe saiu disparado da cozinha, e parou com uma escorregadela. Os seus olhos reviraram-se e o seu corpo animou-se. E o cachorrinho, uma bola de pêlo castanho e cinzento, saltou de alegria e correu a mordiscar o focinho de Moe.

Brad agarrou Zoe pelo braço antes que ela tivesse tempo de desatar a correr.

-E se...

- Tem um pouco de fé - sugeriu Brad.

Moe estremeceu, e pôs-se a farejar o cachorro enquanto este saltava e pulava. Depois atirou-se para o chão e pôs-se a rebolar, pondo-se de barriga para o ar numa atitude de felicidade extrema quando o cachorrinho trepou para cima dele e se pôs a morder-lhe as orelhas.

- Meu grandalhão com coração de manteiga - murmurou Zoe, e sentiu o sorriso aumentar, transformando-se num enorme sorriso tolo de orelha a orelha quando Simon saiu da cozinha.

- Olá, mãe! Vamos comer sanduíches especiais ao almoço. Fui eu e o Flynn que as fizemos e... - começou, e depois parou, de olhos esbugalhados, quando o cão abandonou Moe para investir contra ele.

- Uau! Um cãozinho! De onde é que ele veio? - perguntou Simon, já no chão, a rir enquanto o cão lhe lambia a cara e ia caindo para trás de cada vez que Moe fazia uma investida. - Parece uma cria de um urso ou coisa parecida.

Enterrado no meio dos cães, Simon virou-se o suficiente para olhar para Brad.

- É teu? Quando é que o arranjaste? Qual é o nome dele?

- Não é meu. Acaba de ser libertado. E não tem nome.

- Então quem... - começou; a seguir ficou imóvel, e os seus grandes olhos dourados fixaram-se nos da mãe.

- É teu, meu querido.

Nesse momento, ela percebeu que o cão podia roer-lhe a casa toda como uma praga de térmitas que ela nunca se iria arrepender. Nunca haveria de esquecer o clarão de alegria e de espanto que iluminara o rosto do seu filho.

- É nosso? - perguntou Simon, com a voz a tremer, quando conseguiu pôr-se de joelhos. - Posso ficar com ele?

- Acho que ele está a contar com isso - disse-lhe ela, aproximando-se para se ajoelhar e despentear o pêlo claro do cachorro, da cor das nuvens. - Vais ter de ser muito responsável, e ver se ele come bem, fica bem ensinado e recebe amor suficiente. Os cães dão muito trabalho. Ele vai precisar muito de ti.

- Mãe - demasiado emocionado para se sentir embaraçado com a presença de Brad, Simon abraçou a mãe e enfiou o rosto contra o ombro dela. - Obrigado, mãe. Adoro-te mais do que tudo no mundo.

- E eu adoro-te mais do que tudo no mundo - replicou ela, retribuindo o abraço forte dele, largando uma gargalhada cheia de lágrimas quando os dois cães começaram a brincar. - Acho que o Moe vai gostar de ter um novo amigo.

- Parece uma grande família - comentou Simon, erguendo o cachorro bem alto.

O recém-chegado exprimiu a sua alegria fazendo chichi em cima do joelho do rapaz.

 

Capítulo 16

Joe esfregou o creme esfoliante na perna de Dana e sorriu quando a amiga soltou um gemido longo e sentido. - Agrada-me muito que vocês desistam da vossa tarde de domingo para serem as minhas cobaias.

Desta vez, Dana resmungou. Malory estava sentada numa cadeira da sala de tratamentos e passou os dedos pela pele lisa, acabada de esfoliar.

- Nem posso crer na sensação que isto dá.

- Não estava preocupada com os resultados: estes produtos são fantásticos. Mas quero ter a certeza de que o tratamento completo resulta.

- Para mim resulta - afirmou Dana com uma voz lenta e abafada.

Zoe olhou em redor e observou as prateleiras de produtos, as velas acesas, a pilha de toalhas verde-menta arrumadas em cima da bancada, e o cristal transparente que ela pendurara no tecto por cima da marquesa.

"Está tudo certo", pensou.

- É claro que, quando fizermos isto a sério, não vai haver aqui três pessoas a conversar. Queres que estejamos em silêncio, Dana?

-Vocês nem existem no meu pequeno mundo. O aroma deste produto é equivalente ao conforto que proporciona.

- Ainda bem que estamos a fazer isto - disse Malory, e bebeu um gole da limonada gelada que Zoe pusera num jarro largo. Se vamos abrir na sexta, temos de trabalhar o máximo de truques possível, nas três áreas.

Engolindo em seco, levou a mão à barriga.

- Meu Deus, ainda bem que abrimos na sexta. Embora seja uma espécie de amostra da grande inauguração de 1 de Dezembro, já é qualquer coisa.

- O grande dia, o dia final - comentou Zoe.

- Tu vais encontrar a chave - afirmou Malory, tocando-lhe no ombro. - Eu sei que vais.

Aquela associação, a mão de Malory na sua, a sua na mão de Dana, fê-la sentir-se apoiada

- Esse é outro motivo pelo qual queria fazer isto hoje. Precisava de algum tempo a sós convosco.

Zoe olhou novamente para o cristal. Parecia mesmo que se tornara mais mística ao longo dos últimos meses.

- Para recarregar baterias. O meu poder feminino.

- Ah! Ah! - riu-se Dana, fazendo Zoe rir-se também.

- Depois do que aconteceu ontem, sinto-me mais confiante, embora continue a haver uma vozinha que aparece de vez em quando e me pergunta por que raio imagino que vou ser capaz de resolver isto.

- É a voz da Zoe - perguntou-lhe Dana - ou do Kane?

- É a voz da Zoe, o que torna as coisas mais irritantes. Ontem, houve um enorme fluxo de emoção, de energia, quando me apercebi do que estava a acontecer, por saber o que era e conseguir controlá-lo. Mas preciso de avançar mais.

- Voltaste a um início e também a um fim - observou Malory, curiosa, examinando os frascos e bisnagas alinhados nas prateleiras de Zoe. - E connosco as três aqui hoje, vamos voltar ao tema básico. Durante a nossa parte da demanda, tanto a Dana como eu tivemos períodos em que nos sentimos sós e desencorajadas.

- Certo - confirmou Dana. - Quando encontrámos obstáculos que nos levaram a becos sem saída. Ou, pelo menos, era o que nos parecia.

- É verdade - disse Malory, virando-se e anuindo com a cabeça.

- No entanto, sem esses obstáculos, será que tínhamos percorrido o caminho certo? Não me parece. Tenho pensado muito nisso

- acrescentou, encostando-se à bancada. - Uma demanda não é

linear, não é algo que siga um trajecto em linha recta. Ela descreve círculos, curvas e contracurvas. Mas cada passo, cada parte do percurso tem a sua função. Vamos pensar na tua.

- A Dana tem de se ir passar por água.

- Então não te esqueças do ponto em que estávamos - pediu Dana, encaminhando-se para o chuveiro envolta na toalha que Zoe lhe entregara.

-Tens algumas ideias novas-comentou Zoe, dirigindo-se para o lavatório e passando as mãos por água. - Estou a ver que sim.

- Por acaso, tenho. Sou capaz de ter mais facilidade em relacionar, por exemplo, a floresta com as árvores, porque não estou envolvida nela como tu. E a experiência que tive no sótão desta casa foi semelhante ao que aconteceu contigo ontem, na medida em que percebi o que estava a acontecer, e controlei isso. E uma parte de mim, uma pequena parte, sentiu vontade de permanecer nessa ilusão e esquecer o resto.

Zoe olhou para trás e viu a simpatia, a compreensão no rosto de Malory. A tensão que sentia nos ombros dissolveu-se.

- Estava mesmo a precisar de ouvir isso. Imenso. Eu não quis o James, Mal, na realidade não, mas parte de mim ainda se lembrava de até que ponto eu o tinha desejado.

- Eu sei. Sei exactamente o que isso é.

"É verdade", pensou Zoe. Ela e Dana eram as únicas que podiam saber verdadeiramente.

- Uma parte de mim sentiu o mesmo, teve o mesmo anseio. E teria sido tão fácil voltar até lá e acreditar que tudo podia ser diferente.

- Mas tu não voltaste atrás.

- Não - afirmou ela, começando a mudar o lençol da mesa de tratamentos, ajustando a almofada e alisando o algodão. - Tudo menos essa pequena parte sabia que eu não queria que as coisas acontecessem de outro modo. Eu não desejava verdadeiramente o rapaz que não era capaz de cuidar de mim ou do seu próprio filho. Mas tinha de me lembrar, tinha mesmo de me lembrar dele e do que senti por ele. Para me poder despedir.

- E desejas o homem que está disposto a cuidar de ti e do teu filho?

- Desejo - Zoe sentiu uma palpitação por baixo do coração enquanto escolhia o creme hidratante que iria aplicar em Dana.

- Só não pareço acreditar que nenhum dos dois seja capaz de fazer as coisas resultarem. Deita-te de costas - pediu ela quando Dana voltou. - E não é só isso, não é só não acreditar em nós.

com um ar eficiente, ajustou a toalha que cobria Dana dos seios até às virilhas, e aqueceu a loção nas mãos.

- Se der esse último passo com ele, não estarei a pô-lo em perigo? É uma espécie de dilema. Quando amamos uma pessoa queremos protegê-la. Para o proteger não posso permitir-me amá-lo. Pelo menos inteiramente.

- Se o amas, devias respeitá-lo o suficiente para saber que ele se protegerá a si mesmo.

Zoe olhou para Dana.

- Eu respeito-o.

- Não me parece. Estás sempre a pensar que ele ainda te vai deixar ficar mal, a ti ou ao Simon. Que irá desaparecer. Estás a falar com uma pessoa que já passou por isso. Estás a pensar que não devias confiar nele a cem por cento porque vais precisar de ter alguma reserva quando ele se pisgar. Não quero dizer com isto que não tens o direito de o fazer. Há muita coisa em risco.

- E qual é o maior risco que a Zoe corre? Em termos pessoais?

- analisou Malory. - A única coisa que te recusas a arriscar?

- O Simon.

- Exacto.

- Eu sei que o Bradley não o vai magoar - afirmou Zoe, enquanto fazia a loção penetrar no corpo de Dana. - Só que, quanto mais o Simon contar com ele para o tipo de coisas que um rapaz procura num pai, maior será o choque se as coisas não resultarem. Ele já teve de viver com a situação de não ter pai. Sempre foi assim. Não devido a um divórcio ou a uma morte; ele nunca teve pai. Por mais que eu lhe tenha amenizado as coisas, por mais que ele saiba que o amo, e que estou sempre disponível

para ele, o Simon sempre soube que houve alguém que não o quis, que se recusou a estar presente. Nunca mais quero que ele se sinta indesejado.

- E, para impedir que isso aconteça, preferes sacrificar-te. Preferes lutar - acrescentou Malory. - Por mais que te custasse, por mais que sofresses com isso, preferias opor-te. Porque, de todas as escolhas que fizeste, o Simon é a mais importante. É essa a tua chave.

- O Simon? - repetiu Zoe quando Dana se sentou. - Oh, desculpa, de barriga para baixo. Estou com a cabeça em água.

- A Mal conseguiu captar qualquer coisa - afirmou Dana, virando-se, mas apoiando a cabeça no punho. - Somos nós as chaves, nós as três. Isso tem sido salientado vezes sem conta. Mas, das três de nós, a Zoe é aquela que, digamos, se recriou numa criança. A parte de Zoe no Simon. A Zoe é a chave; aliás, o Simon é a chave.

- O Kane não lhe pode tocar. - O receio parecia querer irromper, sufocando-a. - A Rowena disse que o protegeria.

- Podes contar com isso - garantiu Dana, olhando por cima do ombro. - Se ele pudesse fazer alguma coisa em relação ao Simon, já tinha tentado.

- Acho que talvez não seja apenas a Rowena a protegê-lo acrescentou Malory. - Acho que eles estão a fazer tudo o que pode ser feito do outro lado. Não vão deixar que nada volte a acontecer. com essa força toda, e a nossa, nada pode tocar no Simon.

- Se acreditasse no contrário, largava a demanda em três tempos - confessou Zoe, fazendo uma pausa ao ver Malory assentir.

- E o Kane não pode deixar de saber isso, caso contrário teria feito todos os possíveis para ameaçar o Simon. Se não o fez é porque não pode. bom - começou ela, respirando fundo e soltando a respiração. - bom, vamos trabalhar a partir dessa ideia. Se o Simon é a chave, ou se faz parte dela tal como faz parte de mim, será que isso não me leva de volta às opções que tomei em relação a ele? Se o tive foi por opção, e se fiquei com ele também foi por opção: a melhor que já tomei. Só que eu já lá voltei. E, embora ache que isso foi importante, não possuo a chave.

- Tu fizeste outras escolhas - salientou Dana. - Seguiste noutras direcções.

- Também já recapitulei algumas delas. Fiz uma espécie de viagem, creio eu - prosseguiu ela, enquanto acabava de aplicar a loção no corpo de Dana. - Recordei, voltei a ver e a pensar em tudo isso. Tem sido bom para mim, afinal de contas, pois serviu para me fazer valorizar as minhas escolhas e para ver que os erros que cometi não foram assim tão graves. Queres virar-te? Vou buscar-te o roupão.

- Tu vieste até ao Vale - começou Dana. - Arranjaste emprego, compraste uma casa. Que mais?

Malory levantou a mão enquanto Zoe ajudava Dana a vestir o roupão.

- Não vou dizer que todas essas coisas não sejam importantes, e talvez uma das alternativas passe justamente por rever alguns dos pormenores. Contudo, podíamos encarar isto de outro ângulo. E se algumas das respostas tiverem a ver com as escolhas do Simon?

- Ele é um miúdo - comentou Dana, esfregando uma mão no antebraço para admirar o trabalho de Zoe. -A maior escolha que faz é o jogo de vídeo que quer jogar.

- Não - contrapôs Zoe, pensativa, abanando a cabeça. - Não, as crianças têm muitas opções. Sejam elas certas ou erradas. Algumas delas dizem-lhes apenas respeito a elas, e empurram-nas numa determinada direcção. Os amigos que fazem. Se lêem um livro sobre um piloto de um bombardeiro e se decidem que querem vir a pilotar um avião. Neste momento, em muitos aspectos, o Simon está a decidir o tipo de homem que virá a ser.

- Então, talvez precises de analisar melhor algumas dessas opções - sugeriu Malory.

Uma decisão com a qual Simon estava particularmente contente de momento tinha a ver com a escolha do nome Homer para o cachorro. O nome aliava algumas das suas coisas preferidas: basebol, uma personagem dos desenhos animados e um cão. Lá fora, no ar frio e seco do Outono, enquanto via Moe perseguir

uma bola de ténis e Homer correr atrás de Moe, Simon pensou que a vida era o máximo.

Além disso, os homens chegavam daí a pouco para ver o jogo enquanto a mãe e as amigas se dedicavam a actividades femininas. E ele podia comer batatas fritas até rebentar.

Pegou na bola que Moe largou aos seus pés, e fartou-se de dançar e fingir que atirava a bola para fazer os cães ficarem doidos antes de a largar disparada na direcção das árvores.

Quando chegasse à escola no dia seguinte, ia falar de Homer a todos os amigos. Se calhar, se não fosse muito lamechas, podia pedir a Brad que lhe tirasse uma fotografia, para poder mostrar a toda a gente.

Olhou para trás, na direcção do rio, enquanto os cães rebolavam um com o outro. Gostava imenso de ali estar. Também gostava da sua casa, e do jardim e tudo. E de viver ao lado dos Hanson. Mas, caramba, gostava mesmo era de estar ali, com o bosque para explorar e o rio mesmo ao lado.

Se ficassem mais tempo por ali, seria mesmo fixe convidar os amigos para irem lá dormir. Bolas, eles iam ficar doidos com a sala de jogos. E podiam construir um forte no bosque, e talvez pudessem ir andar de barco no rio durante o Verão. Se a mãe não se passasse com a ideia.

Talvez até pudesse pô-la em prática depois de voltarem para casa. Podia pedir a Brad, e este havia de o ajudar a convencer a mãe. Isso também era fixe, ter outro homem para poder fazer equipa contra ela.

Era mais ou menos o mesmo que ter um pai. Ele também não se preocupava muito com isso, mas devia ser assim. Mais ou menos.

De qualquer modo, ia ser o máximo dos máximos passar ali o Dia de Acção de Graças, com toda a gente em casa, os homens todos a discutir acerca do jogo, e ele a comer tarte de abóbora até se fartar.

A mãe fazia uma tarte de abóbora deliciosa, e dava-lhe sempre bocadinhos de massa para fazer bonecos.

Pensou se Brad acharia isso lamechas.

 

Olhou para a casa, e desatou a correr quando viu Brad a sair.

- Ei! Queres jogar à bola? O Moe anda a ensinar o Homer a apanhar.

- Quero - respondeu ele, enfiando na cabeça de Simon o gorro que trouxera. - Está a ficar frio.

- É capaz de nevar. Talvez a neve atinja dois metros de altura e amanhã não haja escola.

- Sonhar não faz mal a ninguém - comentou Brad, pegando na bola e atirando-a de uma maneira que Simon achava incrível.

- Se a neve atingir dois metros de altura, podes não ir trabalhar?

- Se a neve atingir os dois metros de altura, farei questão de não ir trabalhar.

- E podemos beber chocolate quente e jogar dez milhões de jogos de vídeo?

- Combinado.

- Usas preservativo quando fazes sexo com a minha mãe? Todo o sangue da cabeça de Brad lhe caiu até às solas dos pés.

- O quê?

- É que se não usas podes fazer um bebé. Casavas com ela se fizesses um bebé?

- Santa Mãe de Deus.

Simon sentia uma comichão na parte de trás da garganta, uma espécie de nervoso. Todavia, não podia deter o fluxo das palavras: elas tinham de ser proferidas.

- O sujeito que me fez com ela não casou com ela, e acho que a magoou. Agora tenho de ser eu a tomar conta dela, por isso, se não casares com ela se fizeres um bebé, não podes ter sexo. Como sentia a barriga às voltas, Simon olhou para baixo e deu um grande chuto na bola. - Precisava de dizer isto.

- Tudo bem. bom, acho que preciso de me sentar - replicou Brad, antes que a geleia em que os seus joelhos se tinham transformado se derretesse. - Podíamos ir até lá dentro e... sentar-nos todos a conversar.

- Eu sou o homem da casa - afirmou Simon em voz baixa.

- Tu és um homem e pêras, Simon. - Num gesto que esperou que servisse de apoio aos dois, Brad pousou uma mão no ombro do rapaz. - Vamos até lá dentro sentar-nos a conversar acerca de tudo isso.

Brad pediu a Deus sabedoria e tudo o mais que pudesse ajudá-lo, enquanto despiam os casacos. Achou que a cozinha era o lugar ideal, visto poderem ocupar-se a beber e a comer, ou a fazer qualquer coisa que tornasse a conversa menos horrível para ambos.

Embora lhe apetecesse imenso uma cerveja, serviu Coca-Cola para ambos.

- Vamos falar de sexo - começou.

- Eu percebo de sexo. A mãe diz que não dói, mas às vezes as pessoas gritam e fazem barulhos porque é divertido.

- Boa - conseguiu Brad comentar passado um instante, e preocupou-se com o facto de poder ouvir as suas células cerebrais a definharem. - A tua mãe e eu... Bem... Os adultos, os adultos solteiros e saudáveis muitas vezes têm relacionamentos que... que se lixe. Olha para mim.

Brad esperou que Simon erguesse a cabeça. Todas as dúvidas, o desafio e a determinação estavam claramente estampadas no seu rosto. Exactamente igual à mãe.

- Eu estou apaixonado pela tua mãe. Faço amor com ela porque ela é linda, e eu quero estar com ela dessa maneira. Quero estar com ela de todas as maneiras e feitios porque estou apaixonado por ela.

- Ela também está apaixonada por ti?

- Não sei. Tenho esperanças.

- Tu dás-te comigo para ela se apaixonar por ti?

- Bem, sabes, é um grande sacrifício para mim, já que és tão feio e cheiras tão mal. Além disso és baixo, e isso é mesmo muito chato. Mas faço o que for preciso.

Os lábios de Simon tremeram.

- Tu ainda és mais feio.

- Só porque sou mais velho - afirmou, pousando a mão em cima da mão do rapaz. - E, de algum modo, apesar de todos os teus defeitos, também estou apaixonado por ti.

As emoções percorreram a garganta de Simon, parecendo inundar-lhe o rosto.

- Isso é mesmo estranho.

- Podes crer! Quero-vos a vocês os dois mais do que alguma vez desejei alguma coisa.

- Como uma família?

- Exactamente dessa maneira.

Simon olhou para a mesa. Havia tantas coisas que queria dizer, que queria perguntar, mas queria fazê-lo da maneira certa.

- Casavas com ela mesmo que não fizessem um bebé? "Afinal a conversa não está a ser assim tão má", pensou Brad.

- Eu gostava de fazer um bebé, já que abordaste o assunto. Mas... Espera aí, quero mostrar-te uma coisa. Eu volto já.

Sozinho, Simon esfregou os olhos com força. Estava com receio de desatar a chorar, de começar a balbuciar como uma menina, ou coisa do género. Quando se tinha uma verdadeira conversa de homem para homem, como o pai do Chuck lhes chamava, não se podia desatar a chorar assim sem mais nem menos.

O rapaz bebeu um gole de Coca-Cola mas não conseguiu acalmar a barriga. Andava tudo às voltas dentro dele. Tentou acalmar-se ao ouvir os passos de Brad, e enxugou a cara.

Brad voltou a sentar-se.

- Isto tem de ficar só entre os dois, Simon. Preciso que me dês a tua palavra de honra.

- Como um segredo?

- Sim. É importante.

- Está bem. Eu não conto a ninguém - garantiu Simon e, com ar solene, cuspiu na palma da mão e estendeu-a.

Durante alguns instantes, Brad não conseguiu fazer outra coisa além de ficar a olhar. 'Algumas coisas não mudam", pensou, vagamente reconfortado. Imitou o gesto de Simon, e uniram as palmas das mãos.

Sem dizer nada, Brad pousou uma pequena caixa em cima da mesa, e abriu-a para mostrar a Simon o anel que estava lá dentro.

- Isto era da minha avó. Ela deu-mo quando ela e o meu avô fizeram cinquenta anos de casados.

- Uau! Devem ser mesmo velhos.

Os lábios de Brad tremeram, mas ele manteve a voz firme.

- Bastante. Era o seu anel de noivado, e ele ofereceu-lhe outro nessa data. Quis que eu ficasse com o primeiro, e que o desse à mulher com quem viesse a casar. Diz que o anel dá sorte.

De lábios franzidos, Simon espreitou para dentro da caixa e ficou a ver o anel a brilhar.

- É mesmo brilhante.

Brad virou a caixa para poder observar o anel antiquado com pequenos diamantes em forma de uma pequena flor.

- Acho que é uma coisa de que a Zoe iria gostar. É delicado, diferente, já deu provas. Tenciono oferecer-lho no sábado.

- Porque é que estás à espera? Podias dar-lho quando ela chegar a casa.

- Ela ainda não está preparada. Ainda precisa de algum tempo

- explicou Brad, olhando para o rapaz. - Ela precisa de encontrar a chave, Simon, até sexta. Não quero pressioná-la nem fazer nada que possa distraí-la até esse dia.

- E se ela não a encontrar?

- Não sei. Temos de acreditar que vai conseguir. Seja como for, vou dar-lhe isto no sábado e pedi-la em casamento. Estou a dizer-te isto não só porque és o homem da casa e mereces conhecer as minhas intenções, mas também porque tu e a Zoe são unha e carne. Tens direito a ter uma opinião neste assunto.

- Vais tomar bem conta dela? "Oh, que criança maravilhosa!"

- O melhor que puder.

- Tens de lhe trazer presentes de vez em quando. Podes fazê-los, como eu, mas não te podes esquecer. Em especial no dia de anos dela.

- Não me vou esquecer. Prometo.

Simon fez rodar o copo.

- Se ela aceitar e vocês se casarem, o nome dela vai ficar igual ao teu?

- Espero que ela aceite. Os Vane têm muito orgulho no seu nome. Teria um grande significado para mim se ela aceitasse.

O rapaz voltou a fazer girar o copo, e fitou-o intensamente.

- O meu também vai ficar igual ao teu?

Tudo no interior de Brad se acendeu como uma grande vela de amor.

- Espero que também aceites, porque isso significará para toda a gente que és da minha família. Simon, se ela aceitar e nos casarmos, chamas-me pai?

O coração de Simon bateu com tanta força que ele o ouviu soar nos ouvidos. Levantou os olhos e sorriu.

- Chamo.

Quando Brad estendeu os braços, o rapaz reagiu naturalmente e acolheu-se no seu abraço.

Havia tantas coisas em que pensar, e todas elas pareciam amontoar-se dentro da sua cabeça enquanto ela conduzia ao longo do rio. O dia estava quase a chegar ao fim, pelo que restavam apenas cinco. Mais cinco dias para encontrar a chave, para abrir a última fechadura. Cinco dias para perscrutar a sua mente, o seu coração, a sua vida.

Nada era como antes. E quando a semana chegasse ao seu termo, tudo voltaria a mudar. "Tantas direcções novas", pensou, "tantos caminhos, quando antigamente a estrada era tão a direito."

Ganhar a vida para construir um lar. Transformar esse lar de maneira a que ela e o filho pudessem viver uma vida feliz e saudável, uma vida normal. Por mais árduo que às vezes fosse, acabara por ser relativamente simples. Era acordar de manhã, dar o primeiro passo, e seguir em frente até estar tudo feito.

E voltar a fazer tudo outra vez, com algumas variações, no dia seguinte.

As coisas tinham resultado, e tinham resultado bem.

"Porém, era verdade, não era?", reconheceu ela quando abrandou para virar numa curva. Era verdade que, no fundo, ela continuara a querer mais. As pequenas coisas, as coisas bonitas que via nas lojas. Encontrara maneira de as ter, aprendendo a fazê-las. Cortinas engraçadas, um arranjo de mesa, um jardim que durava da Primavera até ao Inverno.

E as coisas grandes. O fundo para os estudos universitários que criara para Simon e ia aumentando um pouco a cada mês que passava. O negócio que montara.

Portanto, embora o seu caminho fosse em linha recta, ela tinha estado sempre atenta aos desvios.

Bem, e agora tinha seguido por um deles.

Parou o automóvel em casa de Brad, viu o automóvel de Flynn e o de Jordan. Isso fê-la sorrir. O seu desvio não trouxera apenas para a sua vida duas mulheres que aprendera a amar, mas também três homens interessantes. E, em menos de três meses, eles tinham-se tornado mais próximos do que a sua própria família.

Zoe estacionou, e esperou que a culpa viesse pegada a esse pensamento. Quando sentiu que não vinha, recostou-se no assento e considerou. Não, ela não sentia a menor culpa. Apercebeu-se de que fora ela que criara aquela família. E devido a qualquer milagrosa volta do destino, essas pessoas compreendiam-na de uma maneira que a sua própria família nunca conseguira compreender. De uma maneira que provavelmente nunca viria a compreender.

Ela podia amar a mãe, as irmãs e o irmão; partilhava centenas de recordações e de momentos com eles, tanto bons como maus. No entanto, ela não sentia, não podia sentir, a mesma ligação, a mesma intimidade com eles que sentia com a família que criara.

"Eles são a minha mais-valia", pensou.

Nada conseguiria apagar o que tinham construído juntos ao longo dos últimos três meses. Acontecesse o que acontecesse a seguir, ela teria sempre a sua mais-valia.

Quase esfuziante com essa sensação, saiu do carro e encaminhou-se em direcção à casa. Era bom percorrer aquele caminho,

era fácil e natural dirigir-se para a porta sem saber muito bem o que esperar quando a abrisse.

Cães a correr, três homens e um rapaz em coma futebolístico, uma catástrofe masculina na cozinha. Pouco importava o que viria a encontrar, visto que, fosse o que fosse, ela fazia parte disso.

Zoe parou, desconcertada. Ela fazia parte daquilo, parte do que estava a acontecer dentro de casa. E do homem a quem ela pertencia. Lentamente, Zoe voltou para as margens do rio, virou-se e olhou.

Recordou-se da primeira vez que vira a casa, de ter estacionado o carro só para ficar a admirá-la. Na altura não conhecia Brad; na realidade, não conhecia nenhum deles. Porém, a casa tinha-lhe chamado a atenção.

Ela tinha imaginado como seria viver ali, dentro de algo tão magnificamente desenhado. Ter uma parte daquele lugar, daquele bosque e daquele rio tão perfeitos, poder chamar-lhes seus. E, ao entrar, tinha-se sentido inundada de encantamento e de prazer. Tinha sido o calor e o espaço a atraí-la. Lembrou-se de estar à janela do salão a pensar como seria fantástico viver ali, e poder olhar por aquela janela sempre que lhe apetecesse.

Era o que acontecia agora. Já podia fazê-lo.

A demanda trouxera-a até ali, a ela e ao filho, para viver naquela casa com o homem a quem ela pertencia. com o homem que a amava.

Ele amava-a.

Ofegante, Zoe comprimiu os dedos contra os lábios. "Será que isto é uma encruzilhada", pensou, "ou o destino final?"

Ansiosa por descobrir, correu em direcção à casa. Escancarou a porta e ficou muito quieta, a tentar interpretar o que sentia.

"Calma", pensou, "e conforto." E excitação, expectativa. Uma espantosa mistura de consolo e alegria. Ali, sim, havia qualquer coisa. Algo que podia pertencer-lhe.

Moe apareceu a correr, e ela riu-se quando ele saltou para lhe pôr as patas nos ombros em sinal de cumprimento.

- Nunca mais aprendes - disse ela, e deu-lhe uma esfregadela contente antes de o puxar para baixo e pegar no cachorrinho que lhe saltava por cima dos pés.

- Vamos lá ver onde estão os nossos homens - afirmou, colocando Homer ao ombro como um bebé, e dando-lhe palmadinhas enquanto se encaminhava para a barulhenta sala de jogos.

Eles estavam, tal como ela suspeitara, espalhados por todo o lado, numa intensa cena de domingo à tarde tipicamente masculina. O jogo de futebol devia ter acabado, mas havia um novo jogo em curso, visto Flynn enfrentar o seu filho no que parecia ser uma partida feroz de Mortal Kombat.

Jordan estava estirado numa cadeira, com uma garrafa de cerveja a pender dos dedos, e as longas pernas esticadas sobre uma carpete cheia de bocados de batata frita, partes do jornal de domingo e pêlo de cão.

Brad tinha ocupado o sofá e, com uma tigela de nachos equilibrada sobre a barriga, parecia dormir uma sesta, apesar dos apitos e dos sons de batalha vindos do ecrã e do chão.

Corada, cheia de amor por todos eles, Zoe dirigiu-se a Jordan. Ele fez-lhe um sorriso mandrião, e ergueu o sobrolho enquanto ela lhe prendia os cabelos escuros nas mãos e se dobrava para lhe dar um beijo firme e longo.

- Olá, lindo.

- Olá, linda.

Soltando uma gargalhada devido à sua expressão de perplexidade, ela deu meia-volta. Aninhou-se ao lado de Flynn e, enquanto Simon observava de olhos esbugalhados, prendeu o braço à volta do pescoço de Flynn, puxou-o numa espécie de movimento de dança e comprimiu entusiasticamente os lábios contra os dele.

- Então, mãe?

- Espera pela tua vez. Olá, giraço - disse para Flynn.

- Olá para ti também. A Mal tomou o mesmo que tu?

A seguir agarrou em Simon e apertou-o nos braços enquanto ele fingia debater-se. Encheu-lhe a cara de beijos, e a seguir fez um mmmmm exagerado sobre os seus lábios.

- Olá, meu filho.

- Bebeste alguma coisa, mãe?

- Não - respondeu ela, fez-lhe cócegas nas costelas e pôs-se de pé.

Brad ficou onde estava, mas agora os seus olhos estavam abertos e fixos nos dela. com um sorriso lento, ela arregaçou as mangas enquanto atravessava a sala.

- Estava a ver quando é que chegava a minha vez.

- Guardei-te para o fim.

Ela pegou nos nachos e pousou-os em cima da mesa. Sentou-se em cima da anca dele e agarrou-lhe a camisola, puxando-o para si.

- Anda cá, e dá-me cá esses teus lábios sensuais.

Por detrás dela, Simon rebolou pelo chão, fazendo ruídos como se estivesse para vomitar até Moe se sentar em cima dele.

Terminou o beijo com um beliscão provocante no lábio inferior

e sussurrou:

- Acabamos isto mais logo.

E a seguir deu-lhe um ligeiro empurrão para ele voltar a deitar-se.

- Bem! - exclamou, levantando-se e esfregando as mãos como se tivesse acabado de concluir uma tarefa. - Vejam se se mantêm por aqui depois de acabarem. Tenho que fazer lá em cima.

E saiu da sala num passo saltitante, sentindo-se a rainha do mundo.

 

Capítulo 17

Brad não sabia exactamente o que lhe teria acontecido, mas teve a certeza de que a mudança lhe agradara. O que quer que lhe pusera aquele ar tão sensual no rosto e lhe transformara a voz num ronronar risonho não podia ser nada de mal.

Que tipo de rituais femininos exóticos e estranhos ela e as outras teriam executado enquanto ele estivera a ver futebol?

Imaginou que talvez os praticassem uma vez por semana.

Na primeira oportunidade, ia apanhá-la e garantir que ela cumpria a promessa de terminar o que começara por um longo beijo ardente.

Mas, pelo andar das coisas, isso não ia acontecer tão cedo.

Quando Flynn e Jordan saíram, Simon disse que estava cheio de fome. O facto de o rapaz ter passado o dia a comer permanentemente não parecia ter tido a menor importância. Estava esfomeado; os cães estavam esfomeados. Podiam cair todos para o lado e morrer se não comessem já. Para os aguentar, Brad enfiou o resto de um saco de fritos de milho nas mãos de Simon e enxotou os três dali para fora.

No entanto, de Zoe nem sinal há mais de uma hora. A mulher tinha entrado de repente, excitara-o e voltara a sair a correr, deixando o seu sabor nos lábios dele.

Simon não era o único que estava faminto.

Sem vontade de esperar que ela voltasse a ir ter com ele, Brad subiu as escadas e bateu à porta do quarto, que estava fechada.

- Entra.

Quando ele abriu a porta, viu-a sentada na cama, rodeada de pilhas de papel e blocos de apontamentos, livros da biblioteca e o computador portátil emprestado. Mesmo assim, tinha um ar sensual - ele duvidava que ela conseguisse parecer menos do que isso - e muito concentrado.

- O que aconteceu? - perguntou-lhe ele.

- A secretária não aguentava com isto tudo. E a cama é grande

- explicou ela. Tinha um lápis atrás de cada orelha e mascava ociosamente noutro lápis. - Estou a dar mais uma vista de olhos a tudo, do princípio ao fim. De repente fiquei cheia de energia e de ideias - afirmou, estremecendo como se não conseguisse mantê-las todas no lugar. - Estou a ver se consigo organizá-las, mas as coisas estão sempre a sobrepor-se umas às outras.

Observando-a, ele sentou-se na beira da cama.

- Pareces entusiasmada.

- E estou. A ideia ocorreu-me quando vinha para cá, e pensei que, se voltasse a analisar cada uma das pistas, cada uma das vias, cada... Onde está o Simon?

- Está lá fora com os cães.

- Começa a ficar tarde. Não estava a prestar atenção. Era melhor prepararmos qualquer coisa para o jantar, e pô-lo na cama a dormir.

- Espera aí. Diz-me só aonde tencionas chegar com tudo isto.

- Isso é uma das coisas que ainda tenho de perceber. Aonde tenciono chegar? Já te digo enquanto trato do jantar.

- Não precisas de tratar do jantar - disse ele enquanto ela arrumava as suas coisas e se afastava da cama. Ele estendeu a mão, tirou-lhe o lápis da orelha e atirou-o para cima dos papéis. - Há comida que chegue para fazermos um ataque ao frigorífico.

- Consigo pensar melhor se estiver ocupada, e os ataques não fazem parte do acordo. Além de que gosto de trabalhar na tua cozinha - acrescentou ela, saindo do quarto. - Essa é uma das coisas acerca das quais preciso de conversar contigo.

- Queres conversar comigo acerca da cozinha?

- Em parte por isso. Faz parte do todo - detectando a expressão de pura perturbação masculina, ela desatou a rir às gargalhadas.

- Não entres em pânico. Não me vou transformar numa Malory. A tua cozinha está óptima tal como é agora. Por acaso, esta é a casa mais maravilhosa que já vi.

Ao descer, Zoe passou os dedos ao longo do corrimão.

- Está tudo como deve estar. Adoro a minha casa. Ela é tão importante para mim. Ainda há algumas manhãs em que acordo e dou um abraço a mim mesma por ela ser minha.

Zoe entrou na cozinha. E soltou um suspiro muito longo e sonoro.

- Nós, bem... já fizemos um ataque considerável.

- Estou a ver. - Havia pratos, copos, garrafas de gasosa e de cerveja, sacos de batatas fritas e outros componentes de uma tarde masculina espalhados por cima das bancadas e da mesa. Bem - disse ela, arregaçando as mangas.

- Espera um minuto. Espera. - Bastante embaraçado por ter deixado a casa chegar àquela desordem, ele agarrou-lhe o braço.

- Por falar em acordos, não deves fazer aquilo que me compete.

- Não estou a fazer aquilo que te compete - emendou ela. Depois de o enxotar, pegou num saco meio vazio de tacos e dobrou-o na ponta. - Estou a fazer aquilo que vos competia a todos, para compensar terem o Simon à perna o dia inteiro enquanto andei por fora a fazer outras coisas. Tens molas da roupa?

- Molas da roupa? - perguntou ele, tentando encontrar alguma ligação com aquilo de que estavam a falar. - Vais pendurar roupa?

- Não. Estas batatas ficam mais frescas se forem fechadas. Podes comprar aquela espécie de molas que fazem para fechar sacos, mas as molas da roupa também servem.

Divertido, Brad pôs as mãos nos bolsos.

- Acho que não tenho molas em stock, de momento. Podemos encomendá-las para ti.

- Eu tenho as minhas. Amanhã trago algumas - disse ela e, com movimentos rápidos e eficientes, enrolou e guardou alguns

sacos, amachucando e deitando fora outros. E começou logo a lavar os pratos. - Um homem com uma casa tão bonita como esta não devia deixá-la chegar a este estado. Imagino que a sala de jogos pareça um campo de batalha.

Brad começou a fazer tilintar os trocos dentro dos bolsos.

- É possível. Tenho uma equipa de limpeza - começou ele, parando ao ver o olhar gélido que ela lhe lançou por cima do ombro. - Vou ter de aspirar?

- Não, mas o Simon sim, para te agradecer o dia. Entretanto, estava a falar acerca das casas. O Flynn tem uma casa excelente. Imagino que a deve ter comprado por ela ter feito vibrar alguma coisa dentro dele e por fazê-lo sentir-se confortável. Por fazê-lo sentir-se em casa. Ele não fazia grande coisa com a casa antes de a Malory aparecer, mas havia qualquer coisa ali que lhe dizia que era aquela a casa certa, a casa dele.

- Certo, estou a acompanhar o teu raciocínio.

Depois de empilhar os pratos, ela pegou num pano e pôs-se a limpar as bancadas.

- Também há o Pico. É um lugar fantástico. Mágico. Mas é igualmente um lar. Era um lugar que tinha um significado especial para o Jordan, mesmo em criança. Alguma coisa a que ele aspirava. Ele e a Dana vão comprá-lo.

Zoe despejou vários goles de cerveja morna no lava-loiças e atirou as garrafas para dentro do eco-ponto. Enquanto a observava, Brad teve a certeza de que nunca tinha visto uma divisão ser arrumada tão depressa.

- Eu nunca poderia viver num lugar como aquele - prosseguiu ela. - É demasiado grande, demasiado imponente, demasiado tudo. No entanto, percebo que é o lugar certo para eles.

Tirou uma panela do armário, mediu a água a olho e pousou a panela num bico do fogão. Enquanto ia falando, foi tirando os legumes, e o saco de carne selado que tinha posto a marinar nessa manhã.

-Além disso, há a Indulgence. Assim que a vi, percebi que era o lugar ideal. O lugar onde eu podia fazer alguma coisa. Onde a

 

Mal, a Dana e eu podíamos fazer alguma coisa. Era uma ideia louca, se pensarmos bem.

Zoe cortou pimentos e cenouras em juliana com o que pareceu a Brad a perícia de um experiente chefe de cozinha.

- Porquê?

- Por pôr tanta coisa debaixo do mesmo tecto, com o mínimo de dinheiro disponível. E comprar a casa, em vez de tentar alugá-la. Só que eu quis comprá-la, quis tê-la, no preciso momento em que a vi.

- Não disseste que foi uma ideia louca vocês entrarem em negócios num prazo de tempo tão curto depois de se conhecerem. Nem que foi uma ideia louca aceitar tanto trabalho.

- Não são essas para mim as loucuras - replicou ela, enquanto cortava tiras de cebola e picava alho. - Nunca houve qualquer dúvida para mim, para a Malory e para a Dana. Além de que trabalhar foi o que eu sempre fiz. Era aquela casa, Bradley. Ela tinha para mim a mesma magia que a minha casa. Foi por isso que eu pensei, pensei verdadeiramente durante algum tempo que seria lá que encontraria a chave.

- Agora já não pensas isso.

- Não, não penso.

Zoe passava de uma tarefa para outra sem quebrar o ritmo, medindo o arroz, cortando os tomates em cubos, cortando a carne. "Parece poesia em movimento", pensou.

- A chave da Malory estava lá. No quadro, sim, mas ela teve de pintar o quadro naquela casa. E a da Dana estava no Pico... ou no livro Sentinela Fantasma, que foi baseado no Pico. Se pensarmos nas pistas delas não podemos deixar de ver que elas vão dar até lá. Através das ligações que estabelecem em relação ao lugar, através das ligações ao Flynn e ao Jordan.

Ela deitou um pouco de óleo em cima de uma frigideira.

- O quadro da Malory. O livro da Dana. Mas elas também precisavam daquela casa.

- E no teu caso?

- No meu caso não é tanto uma coisa. É uma espécie de viagem com diversos caminhos. Alguns pelos quais segui, outros pelos quais não segui, e os porquês dessas escolhas, talvez. E é uma luta, uma espécie de combate - explicou ela, acrescentando o alho e a cebola. - Talvez se trate de perceber que as opções que tomei eram tão importantes como as que não tomei. Acho que talvez só possamos ver claramente para onde nos dirigiremos a seguir, se virmos onde estivemos e porquê.

Ele precisou de lhe tocar, de senti-la sob a palma da mão durante alguns instantes. Passou-lhe os dedos pelo cabelo, percorrendo a longa linha adorável do pescoço. E obteve por resposta o sorriso ausente de uma mulher ocupada.

- Em que direcção estás a ir, Zoe?

- Não posso dizer que saiba, neste momento, pelo menos ainda não tenho a certeza. Mas sei onde me encontro agora. Nesta casa. Nesta casa que fez vibrar qualquer coisa em mim da primeira vez que a vi. E aqui estou eu, a fazer o jantar na cozinha, e o Simon está lá fora a brincar com os cães. Eu tenho uma ligação a esta casa. A este lugar. A ti.

- Ela é suficiente para ficares?

A carne que ela começara a introduzir na placa escorregou-lhe dos dedos e caiu dentro do óleo.

- Isso é uma maneira certinha de me fazeres dispersar - disse ela; pegou noutra fatia e fez um esforço para se concentrar. Bradley. Eu não posso... não posso afastar-me assim tanto do caminho. Fiz algumas promessas a mim mesma quando o Simon nasceu. Fiz-lhe promessas a ele.

- Eu quero fazer-tas a ti.

- Só tenho até sexta-feira para acabar isto - apressou-se ela a dizer. - Só mais meia dúzia de dias. Se não conseguir, sinto que sou capaz de nunca mais voltar a fazer nada de jeito - explicou ela, olhando-o com ar de súplica. - Eu vejo o rosto dela a dormir, Bradley. Vejo-as a todas, à espera de que eu conclua a demanda.

- Não és a única pessoa que está a travar um combate, Zoe. Eu estou tão metido nisto como tu. E raios me partam se consigo perceber se o facto de te amar é uma arma ou uma praga.

-Alguma vez te interrogas, em algum momento de tranquilidade, se achas que me amas por o meu rosto figurar no retrato?

Ele começou a responder, mas parou e limitou-se a responder-lhe a verdade pura e simples.

- Interrogo.

- Eu também. Uma coisa que sei é que não te quero perder. Não quero correr o risco de perder o que tenho neste momento fazendo ou pedindo promessas que talvez nenhum de nós seja capaz de cumprir mais tarde.

- Estás sempre à espera de que eu te deixe ficar mal, Zoe. Vais ter muito que esperar.

Surpreendida, ela virou-se.

- Eu não. Não estou... E...

Começou ela, interrompendo o que ia a dizer quando Simon apareceu à porta das traseiras.

- Estou esfomeado.

- O jantar está pronto dentro de dez minutos - retorquiu ela, e fez-lhe uma festa no cabelo. - Vai lavar as mãos. Perdi-me disse ela para Brad enquanto Simon debandava rodeado pelos cães. - Estava para te perguntar se podia procurar em tua casa.

A irritação estampou-se-lhe no rosto.

- Estás a testar a minha paciência, Zoe.

- Imagino que sim - respondeu ela tranquilamente, e voltou-se para acabar de saltear a carne e os legumes. - E compreendo perfeitamente que te apeteça dar-me um chuto no rabo. Mas tenho muitas coisas importantes à espera neste momento, e não quero perder nenhuma.

Brad recordou-se de como o rosto dela se iluminara quando ela voltara a casa nessa tarde. "Para que é que hei-de de diminuir aquela luz", perguntou a si mesmo, "apenas porque me sinto frustrado, ou mesmo zangado, por ela não se atirar para os meus braços e dar-me tudo o que quero, tudo numa grande bandeja?"

- Reservo-me o direito de dar o chuto na mesma. Porque é que me perguntas se podes procurar dentro de casa, se tu estás... se vives aqui?

- Referia-me a vasculhá-la, como fiz na minha e na Indulgence. De alto a baixo, o que poderia implicar procurar em espaços íntimos - explicou ela, tirando um prato para onde deitou o arroz. Acho que a chave está nesta casa, Bradley. Não, não é isso. Eu sei que está. Sinto-o.

Eficientemente, Zoe cobriu o monte de arroz com o conteúdo da frigideira.

- Houve qualquer coisa que se abriu para mim hoje ao chegar, como que uma revelação, tenho a certeza disso. Não sei onde nem como, mas sei que é assim.

Brad olhou para ela, e olhou para a frigideira. Em menos de trinta minutos, pelos seus cálculos, ela informara-o de mais uma fase da demanda, conseguira irritá-lo, diverti-lo, recusara uma proposta e cozinhara uma refeição que parecia deliciosa.

Seria alguma surpresa o fascínio que ela exercia sobre ele?

- Quando queres começar?

Eles lançaram mãos à obra duas horas depois de Simon estar na cama, e começaram no piso inferior. Zoe procurou em todos os cantos do salão, deslocou móveis, enrolou carpetes, vasculhou gavetas e armários. Munida de uma lanterna, procurou na lareira e experimentou cada pedra, tacteando sobre a comija.

Iniciou o mesmo procedimento na sala de jantar, mas parou e olhou para Brad com ar de quem pede desculpas.

- Importavas-te que fizesse isto sozinha? Talvez seja preciso ser só eu a procurar.

- Talvez estejas a guardar demasiadas coisas para fazeres sozinha, mas tudo bem. vou lá para cima.

"Estou a tratar de uma coisa muito importante", reconheceu Zoe quando ele a deixou. E se calhar, estava a contar demasiado com a sua paciência. Apesar disso, não sabia que mais havia de fazer, ou de que modo havia de fazê-lo.

Para já, as suas necessidades, e as dele, iam ter de esperar até ela concluir a demanda, e até aquilo que ela amava estar em segurança.

Dirigiu-se para o aparador e passou as mãos pela madeira. "Cerejeira", pensou. Uma madeira quente e rica, e as curvas do desenho tornavam a peça elegante, ao passo que as costas, revestidas com um espelho, lhe acrescentavam brilho.

Brad dispusera algumas peças sobre ele: uma taça espessa de vidro verde baço, uma travessa colorida que devia ser francesa ou italiana, dois castiçais para velas largas, e um prato de latão com o rosto de uma mulher gravado na tampa. "Peças adoráveis, artísticas", pensou ela. "O tipo de coisas que Malory podia vender na galeria."

Levantou a tampa do prato e encontrou algumas moedas lá dentro. "Moedas estrangeiras", descobriu deliciada. Libras irlandesas, francos franceses, liras italianas, ienes. "Que maravilha", pensou, "ter estas moedas abandonadas, oriundas de lugares tão fascinantes, atiradas para dentro de um prato."

Talvez até nem se lembrasse de que ali estavam, o que era ainda mais espantoso.

Ela fechou a tampa, e afastou a vaga culpa de espreitar para dentro de espaços íntimos enquanto abria a segunda gaveta.

Era uma gaveta de talheres, forrada a veludo grená. Pegou numa colher e virou-a à luz. Parecia-lhe antiga, como algo que tivesse sido usado durante várias gerações e se tivesse mantido polido e pronto a usar.

"O ideal para o Dia de Acção de Graças", decidiu, e voltou a arrumá-la, enquanto verificava cuidadosamente cada ranhura.

Encontrou porcelana na base do aparador, um elegante conjunto branco. Enquanto procurava, ia mentalmente elaborando uma mesa natalícia com os pratos e as taças, as travessas e outras peças que encontrava arrumadas nos escaparates e mesas de apoio.

Suspirou ao ver os linhos e adamascados e um conjunto de anéis para guardanapos brancos, cor de osso. Todavia, não encontrou chave alguma.

Estava a procurar entre os livros da biblioteca quando o relógio sobre a comija da lareira bateu a uma. "Basta!", disse para si mesma. "Já chega por uma noite! Não posso desanimar."

A questão era que, como se deu conta ao apagar os candeeiros, ela não se sentia desanimada. Aliás, sentia-se no limiar de qualquer acontecimento. Como se tivesse descrito uma curva ou aflorado o topo de uma montanha. "Pode não ser ainda a etapa final", pensou enquanto subia as escadas. "Porém, agora estou centrada no objectivo."

Foi ao quarto de Simon, e aconchegou-lhe automaticamente a roupa. Moe levantou a cabeça; encontrava-se aos pés da cama, onde se espreguiçou, farejando-a e abanando a cauda antes de voltar outra vez a ressonar. O cachorrinho dormitava com a cabeça na almofada ao lado de Simon. Pensou que não devia encorajar aquele tipo de situação, mas, sinceramente, não sabia bem porquê.

Eles pareciam sentir-se tão bem juntos. Inofensivos e protegidos. Se Simon fazia parte da demanda, como Malory acreditava, talvez a chave se encontrasse ali, naquele quarto onde o rapaz dormia.

Durante alguns instantes, Zoe permaneceu sentada na beira da cama, absorta, a fazer-lhe festas nas costas.

A luz da Lua em quarto minguante entrava coada pelo vidro da janela e banhava com o seu brilho pálido o rosto do filho. "Ainda há luz", disse para si mesma, "portanto ainda há esperança." E Zoe agarrava-se a ela.

Levantou-se e saiu do quarto silenciosamente.

Olhou para a porta do quarto de Brad. Durante o que restava da noite, ia gozar da sua companhia.

Mas, primeiro, foi ao seu quarto, e escolheu loções e aromas para se preparar para ele. Podia não ser capaz de lhe dar tudo o que ele queria, ou parecia querer, no entanto, aquilo podia oferecer-lhe.

Podiam oferecê-lo um ao outro.

Sentiu prazer em massajar a loção aromática na pele, enquanto imaginava as mãos e a boca dele percorrendo-lhe o corpo. Agradava-lhe sentir-se de novo completamente feminina. Não apenas uma pessoa, não apenas uma mãe, mas uma mulher que podia dar e receber prazer de um homem.

 

Havia uma sabedoria que ela não sentira quando era mais nova, um desejo e uma confiança que não sentia com mais ninguém.

Usando apenas um roupão, levou uma vela branca que espalhava pelo ar o aroma do jasmim em flor.

Não bateu à porta, mas penetrou em silêncio no escuro do quarto dele, atravessando o fino raio prateado do luar que entrava pelas cortinas abertas.

Nunca tinha entrado naquele quarto, e indagou se ele saberia, tal como ela, que aquilo constituía mais um passo para ela. Viu o brilho do contorno arredondado da madeira na cabeceira e nos pés da cama, e sentiu o contacto macio da carpete por debaixo dos pés descalços.

Abriu o roupão e deixou-se vibrar com a sensação de o ver cair a seus pés. Cuidadosamente, pousou a vela em cima da mesa-de-cabeceira, levantou os lençóis e meteu-se na cama ao lado dele.

Apercebeu-se de que nunca o tinha visto a dormir e, desejosa de o fazer, esperou que os seus olhos se adaptassem ao contraste de luz e sombras. Agradava-lhe a maneira como os cabelos lhe tombavam sobre a testa, e o facto de ele não parecer menos belo em repouso do que acordado.

Desta vez, o Príncipe Encantado ia ter um tratamento para acordar.

"Interessante", pensou, enquanto passava um dedo ao de leve sobre o ombro dele. Nunca tinha seduzido um homem para ele acordar. Era uma proposta excitante, que lhe permitia deter totalmente o controlo da situação, pelo menos de momento.

O acordar deveria ser rápido, tórrido e chocante? Lento, sonhador e romântico? Deveria ser doce ou subtil? Cabia-lhe a ela a decisão, a criação. E, acima de tudo, a dádiva.

Abrindo os lençóis, Zoe mudou de posição, colocando-se por cima dele, e desfrutou do erotismo durante mais alguns instantes, antes de pôr os lábios em acção.

"Lentamente", pensou. Lentamente, para o fazer acordar de excitação e prolongar aquele fascinante interlúdio. A pele dele

estava quente e macia, e o seu corpo firme. E ela podia deliciar-se à sua vontade.

Brad estava a sonhar com ela, via-a a sair das sombras da floresta, com o seu corpo esguio em liberdade. Sonhava com a sua gargalhada sonora ao voltar-se para ele, afastando-se depois, e os dedos dela acariciaram-lhe o rosto. E ela atraía-o para a floresta, onde o solo banhado pelo luar estava coberto de flores.

Zoe deitou-se nesse mar florido. Na escassa luz da floresta os seus braços ergueram-se, parecendo brilhar como se estivessem cobertos de ouro em pó.

Os lábios dela foram ao encontro dos seus, e afastaram-se novamente, deixando neles um sabor provocante.

Ele ia acordando a pouco e pouco, sempre a desejar mais. Até que a encontrou.

A boca dela estava outra vez junto à dele, e, enquanto ela segredava o nome dele, as suas respirações tornaram-se apenas uma. Quando a respiração dele se transformou então num gemido, ele mergulhou no aroma dela.

- Aí tens - murmurou ela, prendendo-lhe ligeiramente o queixo com os dentes. - Tenho estado a abusar horrivelmente de ti.

- Tens dez anos para parar, senão chamo a Polícia.

Mais leve agora, ela arranhou as unhas na barriga dele, e abafou uma gargalhada quando ele conteve uma imprecação.

-Shhh... Não podemos fazer barulho. Não quero que o Simon nos ouça.

- Pois é. Não queremos que ele nos ouça aqui a divertir-nos proferiu ele, ainda com a cabeça a funcionar a meio-gás, embora já conseguisse ver o rosto dela, e a surpresa estampada nele. - O Simon falou nisso por acaso.

- Oh, céus! - exclamou ela, mas teve de contrair os lábios e comprimir uma mão por cima deles para não se rir. - Oh, meu Deus.

 

- Shhh... - recordou-lhe Brad, e rolou para cima dela, comprimindo-a contra o colchão. - Onde é que nós íamos?

- Eu tinha-me enfiado na tua cama a meio da noite e tinha-te acordado.

- Ah, sim? Por acaso gostei bastante dessa parte - comentou ele, e o sorriso foi instantâneo. - Agora já estou acordado - afirmou, deslizando para tomar o seu seio entre os lábios.

Zoe sentiu uma onda de calor na barriga.

- Nota-se.

E ela arqueou o corpo, cavalgando a alegria daquela sensação, antes de rolar outra vez para cima dele.

- Mas acho que ainda estou longe de ter chegado ao fim. Acariciaram-se, enterrando-se por debaixo dos cobertores,

emaranhando-se neles. Contendo o riso, abafando a respiração, atormentavam-se mutuamente. Deram prazer um ao outro até sentirem os corpos molhados e a tremer, até a ligeireza da diversão atingir uma maior intensidade.

Ergueram-se os dois, ajoelhados na cama desfeita, muito juntos. com a respiração ofegante, o seu corpo voltou a contorcer-se num arco, descrevendo uma ponte muito erótica, e prendeu as pernas à volta dele.

À luz ténue do quarto minguante, uniram-se. Completaram o acto. Deslizando, ela voltou para junto dele, comprimindo coração contra coração, boca contra boca, e ficaram os dois enroscados enquanto se esvaíam de prazer.

- Não saias - pediu ela, enterrando-se contra o ombro dele. Não saias ainda.

- Nunca mais - proferiu ele, quase num delírio, roçando os lábios pelos cabelos e pelo rosto dela. - Eu amo-te, Zoe. Sabes disso. Tu amas-me. Eu sei. Porque não o dizes?

- Bradley - porque não havia ela de o dizer, que se lixassem as consequências? Porque não havia de tomar aquilo que desejava tão ardentemente? Zoe virou a cabeça, e esfregou o rosto no ombro dele.

E viu, à ténue luz do luar, o retrato pendurado por cima da lareira do quarto.

Depois do Feitiço. "É esse o título do quadro", recordou-se Zoe. As Filhas do Vidro deitadas nas suas urnas transparentes.

Não estavam mortas. "É muito pior do que isso", pensou, e sentiu um arrepio.

Porque não havia de o dizer? Elas eram um dos motivos, e Zoe sabia-o. Porém, não constituíam o motivo principal. Kane não podia ver o que existia dentro dela... o que estava no seu íntimo. Não podia ver nem entender.

Por isso, ela tinha de o deixar aí, e manter Bradley o mais seguro possível, durante mais alguns dias.

- Penduraste o quadro ali.

- Raios te partam, Zoe - disse ele, puxando-a novamente para si, e lançou outra imprecação ao ver a súplica no rosto dela. Sim, pendurei-o ali.

E a seguir soltou-a.

Zoe tocou-lhe com uma mão no ombro.

- Eu sei que te estou a pedir demasiado.

- Estás a testar a minha paciência, bolas!

- Se calhar estou. Não sei - afirmou ela, passando os dedos pelos cabelos. - Isto foi tudo tão rápido para mim. Tão rápido e tão intenso que às vezes parece que não consigo seguir os meus próprios sentimentos. Mas sei que não te quero magoar. Não quero discutir contigo. Eu tenho de deixar as coisas correrem ao meu ritmo, e isso, em parte, está dependente delas - confessou, apontando para o retrato antes de se levantar para vestir o roupão. Não posso fazer nada contra isso.

- Pensas que, por haver algumas semelhanças entre as minhas origens e as do James, também te vou abandonar?

- Pensei - retorquiu ela, olhando para baixo enquanto apertava o roupão, e dirigindo depois a atenção para ele. - Eu pensei isso. E pensei que talvez me sentisse atraída por ti devido a essas semelhanças. Mas agora já sei que nenhuma dessas coisas é verdade. Ainda tenho muita coisa a resolver, Bradley. Só te peço que esperes até que isso aconteça.

Ele permaneceu em silêncio durante alguns instantes, e levantou-se para ir acender um interruptor. A luz iluminou o retrato.

- Quando o vi pela primeira vez, foi como se me tivessem prendido pelo pescoço. Apaixonei-me, fiquei doido de desejo, ou lá que raio foi, por aquele rosto. Pelo teu rosto, Zoe. Quando te vi pela primeira vez, tive exactamente a mesma reacção. Só que eu não te conhecia. Não sabia o que existia dentro de ti. Não sabia como funcionava a tua mente ou o teu coração, o que te fazia rir ou o que te irritava. Não sabia que gostavas de rosas amarelas e sabias coser tão bem à máquina. Não conhecia dezenas dos teus pormenores que entretanto vim a conhecer. O que eu senti por aquele rosto não é nem uma sombra do que sinto pela mulher a quem ele pertence.

Zoe receou não conseguir falar.

- A mulher a quem ele pertence nunca conheceu ninguém como tu. Nunca esperou conhecer.

- Vê se resolves a situação, Zoe. Porque, se não resolveres, sou eu quem vai fazê-lo por ti.

Ela soltou uma pequena risada.

- Não, nunca conheci mesmo ninguém como tu. Esta é uma semana enorme para mim, e quando chegar ao... - começou ela, parando para olhar novamente para o retrato.

- Oh, meu Deus, as coisas serão assim tão simples? Será que ela já lá estava?

Sem conseguir parar de tremer, Zoe dirigiu-se para a lareira e, quando olhou para o quadro, o seu olhar fixou-se nas três chaves que Rowena pintara, espalhadas no chão ao lado das urnas.

Trepou para cima da lareira, susteve a respiração e pôs-se de pé.

Os seus dedos embateram contra a tela.

Tentou mais uma vez, começando por fechar os olhos e imaginando os dedos a entrarem para dentro do quadro e fechando-se sobre a chave, tal como acontecera com Malory.

Todavia, o retrato manteve-se sólido, e as chaves não revelaram mais que a sua forma e cor.

- Pensei... - confessou, desanimada, dando um passo atrás. Durante alguns instantes, pensei que talvez... Isso agora parece tão estúpido.

- Não parece nada. Eu também experimentei - declarou ele, e aproximou-se dela, pondo-lhe os braços à volta da cintura. Várias vezes.

- A sério? Mas não és tu quem tem de encontrá-la.

- Quem sabe? Desta vez pode ser diferente. Ela fixou os olhos no retrato.

- Não é nenhuma daquelas. A Rowena pintou aquelas chaves há alguns anos. E elas estão... bem, estão desesperadas, não é? E perdidas. Não existe ali esperança nem concretização. Porque elas estão deitadas num local onde nenhum mortal as pode encontrar e nenhum deus pode ajudá-las. Não é o desespero que leva à minha chave. É suplantá-lo. Isso já percebi.

Porém, nessa noite, enquanto dormia, sonhou que entrava no retrato e caminhava ao lado dos pálidos invólucros das filhas dentro das suas urnas de vidro. Sonhou que pegava nas três chaves e as levava até à Caixa das Almas, onde as luzes azuis vibravam com um clarão serpenteante.

Embora tivesse introduzido cada uma das chaves na sua fechadura, nenhuma delas girou.

E foi desespero o que sentiu quando aquelas luzes azuis se apagaram, e o vidro da prisão onde estavam encerradas ficou preto.

Capítulo18

Malory apressou-se a ir até à Indulgence na manhã seguinte, acenando com um de vários exemplares do Dispatch.

- O artigo! O nosso artigo vem na edição da manhã.

Olhou para a direita, para a esquerda e para o cimo das escadas, e soltou o ar quando viu que ninguém aparecia. O artigo que Flynn escrevera sobre a Indulgence e as suas "inovadoras proprietárias" - oh, adorara aquela parte - era notícia de primeira página no Vale, e será que as suas sócias não vinham?

com o casaco a adejar atrás de si, correu para a secção de Dana. Como sempre, a visão das cores, dos livros, das mesas bonitas, das coisas, deu-lhe vontade de desatar a dançar de alegria. Por isso, foi a dançar até à sala ao lado, e sorriu ao ver Dana atrás do balcão com o auscultador no ouvido.

Acrescentando um pequeno salto e um gingado à dança, acenou com o jornal, posto o que Dana assentiu e prosseguiu a conversa.

- Exacto. Sim, tenho esse em stock. com certeza. Posso... sim... bom, não... hum, hum - disse ela, reagindo, mostrando-se satisfeita e meneando as ancas quando Malory bateu com o artigo no balcão à frente dela. - Deixe-me só transferir-lhe a chamada para o cabeleireiro.

Dana respirou fundo e olhou para o novo sistema telefónico.

- Deixe-me ver se consigo fazer isto bem; por favor, não desligue - pediu, e começou a carregar em vários botões, fazendo figas e pousando o auscultador.

Daí a alguns instantes ouviu o toque suave do telefone do piso superior.

- Obrigado, Jesus. Não vais acreditar, Mal.

- Esquece. Olha para isto. Olha só, olha - repetiu ela, apontando com o dedo para o jornal.

- Ah, isso - enquanto olhava para Malory, que ficara de boca aberta, Dana tirou cinco exemplares do Dispatch de debaixo do balcão. - Comprei cinco exemplares. Já li o artigo duas vezes. Queria voltar a lê-lo mas tenho estado ocupada a atender o telefone. Mal, o... meu Deus, agora acho que é o teu.

- O meu quê?

- O teu telefone - respondeu Dana, e deu a volta ao balcão, agarrou no braço de Malory e arrastou-a até ao outro lado da casa. - Só cheguei há dez minutos, e os telefones já estavam a tocar. A Zoe disse... bem, não interessa. Atende.

- O meu telefone está a tocar - disse Malory em voz baixa, e pôs-se a olhar para ele como se se tratasse de um dispositivo extraterrestre.

- Olha para isto - pediu Dana, aclarando a garganta e pegando no auscultador. - Bom-dia, Indulgence, daqui fala d'A Galeria. Sim, é só um momento, por favor, Vou transferi-lo para a sr.a Price.

Dana carregou no botão de espera.

- Sr.a Price, tem uma chamada.

- Tenho uma chamada. Muito bem - disse Malory, limpando as palmas das mãos no casaco. - Eu sei fazer isto. Se passei anos a fazer isto para outra pessoa, também posso fazê-lo para mim proferiu, e atendeu a chamada. - Bom-dia. Daqui fala Malory Price.

Três minutos mais tarde, ela e Dana saíam da sala para o corredor a dançar a polca.

- Somos um sucesso! - exclamou Dana. - Somos um sucesso e ainda nem abrimos as portas. Vamos chamar a Zoe.

- Achas que podemos deixar os telefones?

- Eles voltam a ligar - afirmou Dana, a rir como doida, enquanto puxava Malory pelas escadas acima.

Zoe estava sentada, recostada numa das cadeiras do cabeleireiro, com uma expressão de choque no rosto. Ainda num estado

de espírito esvoaçante, Dana atirou-se para cima de uma cadeira e começou a girar com toda a força.

- Somos um êxito.

- Tenho marcações - explicou Zoe, com ar desanimado. - Já quase não tenho vagas para sábado, e há dois tratamentos de manicura, um de pedicura, corte e coloração, e duas massagens para sexta. Tenho um tratamento de rosto para uma mãe e uma filha marcado para a próxima semana. Para a próxima semana.

- Temos de festejar - decidiu Malory. - Porque é que não temos champanhe por aqui? Podíamos fazer Mimosas se tivéssemos champanhe e sumo de laranja.

- O telefone estava a tocar quando eu entrei - prosseguiu Zoe com o mesmo tom de voz ensonado. - Ainda nem eram nove horas, e o telefone já estava a tocar. Toda a gente diz que leu o artigo do jornal. Quero casar com o Flynn e ter filhos com ele. Desculpa, Malory, mas tem de ser.

- Põe-te na fila - proferiu Malory, pegando no jornal que Zoe tinha em cima da bancada. - Olhem só para nós. Não estamos o máximo?

Levantou a página do jornal que trazia a fotografia das três, com os braços na cintura umas das outras, no corredor que unia as três empresas.

- Price, McCourt e Steele - leu -, a beleza e a inteligência subjacentes à Indulgence.

- Devo dizer que ele fez um excelente trabalho com o artigo comentou Dana, inclinando-se por cima do ombro de Malory para dar mais uma vista de olhos. - Ficámos muito bem, mas, bem, nós somos mesmo assim. Só que ele conseguiu passar a mensagem em relação à casa. O factor diversão. Depois ainda há o factor regional feminino, a revitalização do património, o empurrão à economia do Vale, blá, blá, blá. As pessoas interessam-se por essas coisas.

- E estamos muito sensuais - acrescentou Zoe. - O que não faz mal nenhum. Li o artigo antes do pequeno-almoço, e depois tive de parar no caminho para voltar a lê-lo.

- Vou mandar emoldurá-lo - afirmou Malory. - Podemos pendurar uma fotocópia na cozinha - disse ainda, tirando um bloco da carteira para anotar. - Ah, já que estou com a mão na massa, temos de ver que refrescos iremos servir na inauguração, na sexta-feira. Eu trato dos bolos e pastéis. Dana, tu ficas com as bebidas, e a Zoe com a fruta e os queijos.

- Tenho o telefone a tocar outra vez - avisou Zoe, e chocou toda a gente ao desatar a chorar.

- Então?! Toma conta dela - disse Malory, apontando para Dana. - Eu vou atender - e disparou a correr para a recepção enquanto Dana tirava vários lenços da caixa que se encontrava na bancada e os enfiava nas mãos de Zoe.

- Desculpa. Desculpa. Porque é que eu estou sempre a fazer isto?

- Não te preocupes. Vá lá, deixa sair tudo.

Zoe não conseguia parar, e só conseguiu sufocar um soluço e acenar com a mão quando Malory voltou.

- Vamos até à cozinha tomar um chá - disse Malory e, bruscamente, puxou Zoe, pô-la de pé e, enfiando-lhe um braço à volta da cintura, ajudou-a sair do salão de cabeleireiro.

- Pronto, já estou melhor. Meu Deus, que burrice - desculpou-se Zoe, e assoou o nariz com toda a força. - Não sei o que é que me deu.

- É capaz de ser o facto de teres um negócio quase a inaugurar, uma demanda a chegar ao fim do prazo, um homem... E isso tudo junto está a trazer um bocadinho de stresse à tua vida. Pronto, querida, vamos todas descontrair.

- Sinto-me tão estúpida - disse Zoe, ainda a soluçar, e deixou Malory ajudá-la a sentar-se numa cadeira da cozinha. - Que motivos tenho eu para chorar? É tudo formidável, é tudo maravilhoso as lágrimas voltaram a surgir, e ela limitou-se a pousar a cabeça na mesa e a deixá-las correr. - Estou com um medo de morte.

- Não te preocupes - de pé ao lado dela, Malory esfregava-lhe os ombros enquanto Dana punha a chaleira ao lume. - Tens bons motivos para ter medo, querida.

 

- Só não tenho é tempo para ter medo. Tenho o meu salão de cabeleireiro. Passei dez anos a pensar em como havia de chegar até aqui, e agora isso tornou-se realidade. Tenho o telefone a tocar. Se isto me faz sentir tão feliz, porque é que estou tão destroçada?

- Eu também estou com medo.

Zoe levantou a cabeça, e piscou o olho a Malory.

- Estás?

- Aterrorizada. Quando comecei a ler o artigo do Flynn, fiquei com um zunido nos ouvidos e um sabor metálico na parte de trás da garganta. Quanto mais feliz me sentia, mais alto era o zunido e mais saliva engolia para anular o sabor.

- Eu estou sempre a acordar a meio da noite - confessou Dana, afastando-se do fogão. - Começo a pensar "vou abrir uma livraria", e começo a sentir as borboletas a acordarem dentro da barriga e a darem uma festa.

- Oh, graças a Deus - insultuosamente aliviada, Zoe comprimiu as têmporas com os dedos. - Graças a Deus! Comigo fica tudo bem quando estou a fazer qualquer coisa ou a pensar em tudo o que tenho para fazer. Mas, às vezes, quando paro e vem tudo ter comigo, só me apetece fechar-me dentro de um armário escuro e confortável e chorar. E, ao mesmo tempo, apetece-me pôr-me a fazer rodas. Estou a ficar doida.

- Estamos todas no mesmo barco - concluiu Dana -, e chamam-lhe neurose.

Zoe conseguiu esboçar um sorriso quando Dana pousou as chávenas coloridas em cima da mesa.

- Fico muito contente por vocês as duas também estarem doidas. Estava a sentir-me tão parva. Mas há mais. Acho que já sei onde está a chave. Embora não exactamente - comunicou de repente, quando as mãos de Malory lhe saltaram para os ombros. - Acho que está em casa do Bradley. Há qualquer coisa na casa, e ontem, quando coloquei essa possibilidade na minha cabeça, ela revelou-se. Parece-me uma hipótese válida. E por causa disso, por sentir que estou a um passo de encontrá-la, sinto-me toda virada do avesso.

- Por estares quase a encontrá-la? - indagou Malory. - Ou por ela pertencer ao Brad?

- Pelos dois motivos - respondeu Zoe, pegando na chávena e segurando-a com as duas mãos. - Está tudo a chegar a uma conclusão. A demanda, este espaço. Tenho andado tão concentrada nessas duas coisas desde Setembro que, agora que elas estão tão perto de estarem concluídas, sei que tenho de começar a ver para além delas, tenho de começar a ver o que acontece a seguir. E não consigo ver nada. O facto de ter este, aliás, estes grandes propósitos ajudou-me a avançar. Agora vou ter de enfrentar os resultados.

- Não vais ter de enfrentá-los sozinha - recordou-lhe Malory.

- Eu sei. Esse é outro aspecto da questão. Estou habituada a lidar com as coisas sozinha. Na minha vida nunca me senti tão perto de ninguém, à excepção do Simon, como me sinto de vocês as duas. É um dom incrível. Aqui estão duas mulheres maravilhosas, e ainda por cima são minhas amigas. São a minha família.

- Caramba, Zoe - proferiu Dana, pegando num dos lenços de papel amachucados. - Vais pôr-me também a chorar.

- O que eu queria dizer é que ainda me estou a habituar a saber que vos tenho. A perceber que posso pegar no telefone quando precisar de estar convosco, ou pura e simplesmente ir fazer-vos uma visita. Vir até cá para vos ver. Que posso dizer-vos que me sinto com medo, triste ou contente, ou que preciso de ajuda... seja o que for, vocês estão presentes.

Zoe acalmou a garganta arranhada com o chá, e pousou a chávena.

- E depois há os homens. Nunca tive amigos homens. Amigos a sério. Como o Flynn e o Jordan... com quem posso conversar ou sair, rir e saber que não existe outra coisa entre nós além da amizade. Saber que o Simon pode estar com eles, ter esse tipo de influência adulta masculina, é mais uma dádiva extraordinária.

- Ainda não falaste do Brad - salientou Malory.

- Ando a pensar nisso. Estou nervosa e entusiasmada com o facto de poder encontrar a chave. com a certeza de que vou

 

encontrá-la, e de que ela está relacionada com o Bradley. Ao mesmo tempo, a certeza de que ela está relacionada com ele assusta-me como tudo.

- Zo, já pensaste que talvez seja o medo que te está a impedir de encontrar a chave?

Ela olhou para Dana e assentiu.

-Já, mas não consigo livrar-me dele. Ele acha que está apaixonado por mim.

- Porque qualificas as coisas? - inquiriu Malory. - Porque não te limitas a dizer que ele está apaixonado por ti?

- Porque desejo demasiado que isso aconteça. E não o desejo apenas para mim, mas também para o Simon. Eu sei que isso faz parte. O Bradley é maravilhoso para o Simon, mas ainda é tudo, bem... É tudo novo entre eles. A realidade é que ele tem quase dez anos, e é filho de outro homem.

Sem dizer nada, Dana foi até um armário, abriu-o e tirou de lá a sua caixa de bombons de emergência. A seguir, colocou-o na mesa à frente de Zoe.

- Obrigada - disse Zoe, escolheu um chocolate ao acaso e soltou um suspiro. - Se o Bradley me ama, vai aceitar o Simon. Vai ser sempre bom e meigo para ele. No entanto, não haverá nada a faltar aí, a tal ligação indissolúvel?

- Não sei - respondeu Malory, passando a mão por entre os seus caracóis. - Mas diria que vão ter de ser eles a resolver isso.

- Sim, mas o Simon está habituado a sermos só dois, a ter toda a minha atenção centrada nele, a fazer o que eu digo: ou a tentar fazer aquilo que eu digo. Para as coisas resultarem, ele vai precisar de tempo para ver o Bradley como algo mais do que um amigo com uma sala de jogos porreira. Tempo para se habituar ao facto de haver outra pessoa com verdadeira autoridade sobre ele, tal como o Bradley se tem de habituar ao facto de ter um filho já crescido. Se eu der o salto que quero, vou acabar por juntá-los, possivelmente antes de eles estarem preparados.

- Isso é sensato - comentou Malory, cedendo à tentação e pegando num dos chocolates. - É lógico. Só que, às vezes, este tipo de situações não é nem uma coisa nem outra.

Zoe inspirou.

- Há mais coisas. A Rowena e o Pitte também me disseram que, quanto mais eu gostasse do Bradley, mais o Kane o iria perseguir.

- Então estás a protegê-lo ao retraíres-te - concluiu Dana, erguendo o sobrolho. - Isso vai irritar o Brad. Eu sei bem que, se fosse o Jordan que estivesse em causa, provavelmente tentaria fazer o mesmo, porque adoro aquele parvalhão.

- Tenho pensado muito em tudo isto. Deverei proceder assim ou assado? Se tomar esta opção, o que poderá acontecer? Se tomar aquela... - Zoe encolheu os ombros com ar fatigado. - Há demasiadas coisas em risco. Está tudo em risco, por isso não posso limitar-me a agarrar-me a uma coisa só por ela ser muito bonita e atraente. Tenho de medir as consequências.

- Se calhar, devias acrescentar algo mais à mistura - advertiu Malory, e pousou a mão na mão de Zoe. - És capaz de estar a hesitar em agarrar numa coisa bonita e atraente para não teres de desistir de outras coisas se o fizeres.

- De que é que tenho de desistir?

- Da casa que arranjaste sozinha, e da vida que tinhas. Da família que criaste com o Simon. A forma de tudo o que tens agora alterar-se-á para sempre, se estenderes a mão para agarrar mais uma coisa. É uma proposta assustadora, Zoe. Se não estenderes a mão, podes perdê-lo. Se o fizeres, podes perder o que tinhas. Tens de decidir o que é que tem mais valor para ti.

- Não sou só eu. Nem sequer eu, o Simon e o Bradley - afirmou Zoe, enquanto levava a chávena para o lava-loiça. - A minha chave tem a ver com a coragem. Mas será a coragem de tentar obter qualquer coisa, ou a coragem de fugir disso? Já lemos o suficiente acerca dos deuses para sabermos que nem sempre são bons. Nem sempre são justos. E querem que lhes paguemos.

Zoe voltou para o seu lugar.

- Se falharmos, a penalidade, antes de ser revogada, teria sido a perda de um ano das nossas vidas. Nem sequer teríamos sabido qual. Até podia ter sido este ano que está a passar. Há uma espécie de crueldade refinada em tudo isso. Mal, tu conseguiste uma coisa que desejaste durante toda a vida. Eles deixaram-te pegar-lhe, senti-la, saboreá-la. Mas, para encontrar a chave, tiveste de devolvê-la. E isso magoou-te.

- Sim, magoou.

- E tu ias morrendo, Dana, para encontrares a tua. Eles alteraram as regras, e tu podias ter morrido.

- E não morri.

- Mas podias ter morrido, e imaginas que os deuses teriam vertido uma lágrima?

- A Rowena e o Pitte... - começou Malory.

- Para eles é diferente. Já vivem entre nós há milhares de anos e, em alguns aspectos, são tão insignificantes como nós. Mas os que se encontram do outro lado da Cortina, os que conseguem espreitar através dela, será que se importam que sejamos felizes para sempre?

Dito isto, voltou a sentar-se.

- Como é que nós as três nos juntámos? Como tivemos tempo para procurar as chaves? Perdemos os nossos empregos. Um emprego de que eu precisava, empregos de que cada uma de vocês gostava. Eles retiraram-nos isso de maneira a sermos mais úteis, e depois acenaram com dinheiro diante dos nossos olhos só para nós assinarmos o contrato. A motivação podia ter sido nobre e altruísta, mas eles manipularam-nos.

- Tens razão - concordou Dana. - Não discuto.

- Isso permitiu-nos conseguir esta casa - prosseguiu Zoe. Mas fomos nós que a comprámos. Fomos nós que assumimos o risco e que trabalhámos para isso. Se este lugar é um milagre, isso deve-se ao nosso esforço.

Assentindo, Malory recostou-se na cadeira.

- Continua.

- Está bem. Tu e o Flynn. Conheceste-o quando o conheceste porque ele tinha uma ligação a isto. Apaixonaste-te por ele, e ele por ti. Mas se não te tivesses apaixonado, mesmo assim, não terias deixado de fazer a escolha que fizeste no sótão. Não terias aceitado a ilusão, por mais que a desejasses, sacrificando outras almas. Eu sei porque te conheço. Se gostasses do Flynn como eu, como um amigo, como uma espécie de irmão, terias procedido da mesma maneira.

- Espero que sim - retorquiu Malory. - Quero pensar que sim.

- Eu sei que sim. Senão, o vosso sentimento teria sido algo mais transitório, que se teria desvanecido depois de o teu mês ter chegado ao fim, em vez de se tornar mais profundo. Eles não se preocuparam com a tua felicidade, mas apenas com as hipóteses de seres bem sucedida ou de fracassares.

- Isso até pode ser verdade, mas as coisas que vivi e as opções que tomei durante aquele mês faziam parte de tudo o que construí com o Flynn.

- Apesar disso, foram vocês que o construíram - salientou Zoe.

- O Jordan voltou para o Vale nesta altura porque também estava ligado a isto. Era uma peça que tinha de ser acrescentada. Tu precisavas de resolver os teus sentimentos em relação a ele, Dana, isso era fundamental. No entanto, podias tê-los resolvido de maneira diferente com os mesmos resultados. Podias ter-lhe perdoado. Podias ter chegado à conclusão de que não o amavas, mas davas valor à vossa história comum. Mais à amizade do que à paixão. Podias ter desistido do que existia entre vocês e, mesmo assim, ter encontrado a chave. Tu não começas a pensar em flores de laranjeira por os deuses te terem sorrido.

- As flores de laranjeira talvez sejam um exagero, mas tudo bem, estou a seguir o teu raciocínio - afirmou Dana, com ar ausente, enquanto pegava num chocolate e o mordiscava ao mesmo tempo que ia reflectindo. - Desde que feches o círculo, foi isso que nos disseram desde o início. Cada uma de nós é uma chave. Portanto, bem vistas as contas, o que retirarmos ou não daí é única e simplesmente responsabilidade nossa.

- Mas eles manipulam - acrescentou Zoe. - Foram eles que nos reuniram e introduziram os aspectos circunstanciais. O Bradley pode muito bem ter voltado para o Vale; é a casa dele, e ele tem ambições a concretizar aqui. Porém, sem tudo isto eu nunca o teria conhecido. A Malory podia ter conhecido o Flynn em qualquer altura, mas é pouco provável que eu tivesse conhecido o Bradley Charles Vane IV E o que é que me atraiu para ele? O retrato. Manipularam os sentimentos dele.

Ela ficava a ferver só de pensar naquilo. com os olhos em fogo, triturou o chocolate.

- Eu sei que agora não se trata de um quadro. Mas, para eles, a mudança que se operou nele foi um incidente. Nós tínhamos de ser empurrados um para o outro para eu ir ao encontro da chave, ou para me afastar dela. Dependendo de que lado uma pessoa se quiser colocar. Quer a encontre quer não, a minha utilidade está a chegar ao fim, e a dele também. Julgam que lhes interessa que essa utilidade envolva sofrimento, dor e perda?

A fúria dela começou a aumentar, modificando-lhe a voz.

- Eles estão-se nas tintas que isso signifique que o coração dele, ou o meu, acabe por ficar destroçado. Não é bem provável que essa mágoa até seja necessária para se dar esse último passo? Perda e desespero, era o que estava na minha pista. E sangue prosseguiu ela. - Porém, não será o dele. Recuso-me a correr esse risco, nem que seja para salvar três almas.

- Zoe - começou Malory, falando com prudência. - Se vocês já se amam, isso não significará que já construíram o vosso próprio destino?

- Achas? Ou será essa a minha ilusão, o que vou ter de sacrificar? Mas há mais uma parte da pista: como hei-de olhar para a deusa, saber quando devo pegar na espada, ou quando devo pousá-la? Deverei lutar pelo que desejo para mim, ou desistir disso pelo todo?

- As tuas suposições são razoáveis e bastante lógicas; são questões razoáveis e lógicas - começou Dana, antes que Malory tivesse oportunidade de protestar. - Nós não temos de gostar deles,

mas devíamos dar-lhes valor. Ninguém prometeu que, no final, íamos todas aterrar numa grande taça de pétalas de rosa. O que nos prometeram foi uma grande taça de dinheiro.

- O dinheiro que se lixe - disparou Malory.

- Gostava de te poder mandar morder a língua, mas infelizmente sinto o mesmo. Apesar de tudo - salientou Dana -, embora a Zoe tenha apresentado suposições lógicas e razoáveis, deixou de fora as partes que dizem respeito à esperança, à alegria e à realização pessoal. Os caminhos que unem essas duas vertentes.

- Estou sentada no cerne dessa alegria, esperança e realização neste preciso momento, com vocês as duas - confessou Zoe, estendendo os braços para abarcar aquela divisão e tudo o que elas tinham construído. - Embora não queira ignorar tudo isso, tenho de ser realista. Tenho de o ser, porque quero acreditar, quase mais do que consigo suportar, que quando chegar ao fim de tudo isto, com a maldita chave na mão, vou ter oportunidade de... de conseguir mais.

- O que é que vem a seguir? - perguntou-lhe Dana.

- Preciso que vocês pensem nisso. Foram as únicas que tiveram as outras chaves na mão. Dana, tu, o Jordan e o Flynn conhecem a casa do Bradley praticamente tão bem como ele. Aceito todas as ajudas possíveis.

A seguir, Zoe levantou-se.

- Mas, neste preciso momento, é melhor começarmos outra vez a atender telefonemas.

Já só havia uma réstia de Lua, apenas uma estreita fatia a flutuar no céu negro. Por mais que desejasse, desesperadamente, que aparecesse uma tempestade cheia de nuvens maléficas para cobrir até essa fatia, Zoe não conseguia deixar de olhar para a luz que se desvanecia.

Tinha procurado por toda a parte. Havia alturas em que tinha a certeza de que os seus olhos ou os seus dedos já haviam passado sobre aquele brilho dourado. Porém, não conseguia vê-lo ou tocá-lo.

Se não conseguisse fazê-lo nas próximas quarenta e oito horas, tudo pelo qual Malory e Dana tinham passado, tudo o que tinham conseguido, teria sido em vão.

As Filhas do Vidro permaneceriam para sempre imóveis e vazias dentro das suas urnas de cristal.

Embrulhada dentro de um casaco, sentou-se na varanda das traseiras, a tentar agarrar-se a esse último veio de esperança.

- Ela está aqui. Sei-o. O que me terá escapado? O que será que devia ter feito?

- Os mortais - proferiu Kane atrás dela - olham para aquilo a que chamam os céus e perguntam o que devem fazer, o que devem pensar.

Enquanto Zoe permanecia imóvel, ele passou-lhe a ponta dum dedo ao longo da base do pescoço. Zoe sentiu o toque como uma linha de gelo.

- Isso diverte-me.

As suas botas macias não faziam o menor som enquanto ele descrevia um círculo à volta dela para se ir encostar descontraidamente à balaustrada.

"A beleza dele é de cortar a respiração", pensou ela. "Foi feito para o escuro. Para as noites de Lua nova, para as tempestades."

 

- Fracassaste - anunciou ele num tom objectivo.

- Não fracassei - replicou ela, com o frio a penetrar-lhe nos ossos, de tal maneira que teve de se impedir de tremer. - Ainda há tempo.

- Mas ele escoa-se, minuto a minuto. E quando aquela última fatia de Lua se tiver desfeito, tudo será meu. E tu não terás nada.

- Não devias ter vindo aqui vangloriar-te antes do tempo proferiu ela, sentindo vontade de se levantar, de se pôr de pé com ar de desafio, mas sentia as pernas moles. - Dá azar.

- Isso é uma crença humana, uma das vossas inúmeras muletas. A tua espécie precisa delas - afirmou ele, fazendo deslizar os dedos pelo fio de prata de onde pendia o seu amuleto, impelindo-o a oscilar de um lado para o outro.

- Porque nos odeias?

- O ódio é um sentimento. Sentes alguma coisa pelo insecto que esmagas debaixo do pé? Para mim ainda significas menos do que isso.

- Eu não converso com insectos. Porém, aqui estás tu. A irritação estampou-se-lhe no rosto, e fê-la reagir.

- Como tinha dito, vocês divertem-me. Tu, em especial, das três que a Rowena e o Pitte lançaram nesta demanda votada ao fracasso. A primeira... tinha estilo e uma mente brilhante. A segunda... havia ali fogosidade e inteligência.

- Elas venceram-te.

- Ah, sim? - perguntou ele, e desatou-se a rir, num riso suave e ridículo, enquanto fazia oscilar o pendente. - Não te parece que, ao fim de tanto tempo, eu possa ter querido divertir-me um bocado? Se tivesse acabado logo com tudo, não teria tido o prazer de vos ver, as três, a fazerem planos e congeminações e a felicitarem-se. Se tivesse acabado logo com tudo, não teria tido o prazer de te ver esbracejar, como te vejo agora. Tu apenas me interessaste porque não tinhas a inteligência e o estilo das tuas companheiras. Não tinhas estudos nem educação.

Kane mudou de posição, erguendo um pouco mais o pendente.

- Diz-me, onde estarias agora se não tivesses recebido aquele convite para ires ao Pico do Guerreiro? com certeza não estarias nesta casa, com este homem. Um homem que, quando o... brilho deste objectivo mútuo se ensombrar, te verá como realmente és. E se vai ver livre de ti, como os outros. Mas disso já tu sabes.

O movimento lento e constante do pendente de prata provocou-lhe uma sensação de leveza na cabeça.

- Tu não sabes nada acerca de mim. Nem acerca dele.

- Sei que tu és um fracasso. E quando falhares a tua demanda, os outros também ficarão a saber. Foi uma crueldade da Rowena e do Pitte terem-te envolvido nisto, e terem colocado em ti tantas expectativas. Terem-te metido no meio destas pessoas - prosseguiu ele, enquanto uma névoa, formada por ténues nuvens azuis, começava a reunir-se ao longo das tábuas da varanda. - Pessoas

que têm muito mais para dar do que tu. Foi uma crueldade terem-te dado a saborear o que a vida poderia vir a ser, para depois passares o resto dos teus dias sequiosa por obtê-lo.

- Os meus amigos...

- Amizade? Outra ilusão dos mortais, e tão falsa como a sorte. Abandonar-te-ão quando caíres, e tu vais cair. Uma mão como a tua nunca poderia fazer girar a chave.

A voz dele era consoladora, agora que ele se endireitava, aproximando-se dela com o amuleto a oscilar, de um lado para o outro, um pêndulo reluzente.

- Sinto alguma compaixão por ti. O suficiente para te propor uma compensação. Das coisas que a Rowena e o Pitte introduziram tão descuidadamente na tua vida, qual delas gostarias de manter? O teu pequeno negócio, esta casa, o homem? Escolhe uma, e eu concedo-ta.

Ele estava a hipnotizá-la. Zoe sentia-se desvanecer, sentia a névoa deslizar sobre a pele. Um frio gelado. Era tão fácil deixar-se atordoar por aquelas promessas trauteadas, aceitar qualquer coisa. Sentiu as mãos hirtas, geladas e inúteis, mas cerrou os punhos até sentir a ferroada das unhas contra as palmas das mãos.

Num impulso vingativo, ela afastou o olhar do pendente e olhou-lhe no rosto.

- És um mentiroso - disse ela, e a sua respiração soltou-se, libertando-lhe dolorosamente os pulmões enquanto ela se levantava a custo. - És um mentiroso e um aldrabão.

Kane bateu-lhe, fazendo-a cair. Embora não tivesse visto o que acontecera, sentiu-o como um golpe de gelo cortante contra o rosto. Sem pensar, cavalgando a sua ira, saltou para a frente e cravou as unhas no rosto dele.

Viu o choque: um instante de incredulidade total brilhou-lhe nos olhos. Zoe viu o sangue nascer nos sulcos que lhe rasgavam a pele.

Depois ele voltou a empurrá-la contra a parede da casa, prendendo-a aí com uma rajada de vento tão cortante que ela chegou a ver os cristais de gelo, pretos como o ónix, a rodopiar.

 

E ele levantou-se, enorme dentro das suas vestes ondulantes, com sangue na cara.

- Podia matar-te com um pensamento.

"Não, não pode; não pode. Senão já o teria feito. É um mentiroso", recordou-se ela, num frenesi. E um abusador. Mas ele podia fazer-lhe mal, santo Deus, se podia. E ela sentiu a dor, dilacerante e nítida, dentro do peito.

- Vai para o inferno! - gritou-lhe ela. - Não és bem-vindo.

- Quando tudo estiver concluído, vais perder tudo. E eu hei-de acrescentar a tua alma aos meus despojos.

Como se alguém tivesse desligado um interruptor, o vento abrandou. Zoe caiu para a frente, de gatas, ofegante e a tremer de pavor.

Olhou, espantada, para a madeira da varanda, e tentou aclarar a mente. Quando levantou a cabeça, viu que a noite se transformara numa manhã coberta por um manto de névoa. Por entre a neblina matinal, à beira das árvores, havia um gamo cujo pêlo parecia emitir um reflexo dourado. O colar de jóias em torno do seu pescoço dardejava por entre a névoa, e os seus olhos ardiam num fogo verde.

Os mantos de neblina juntaram-se como que para formar uma cortina, e quando voltaram a separar-se ele já se tinha ido embora.

- Ainda não estou acabada - proferiu em voz alta pelo consolo de ouvir a sua própria voz. Kane tinha-a enganado, fazendo-a sair do tempo, fazendo-a perder horas preciosas, mas ela ainda não estava acabada.

Quando se levantou, e olhou para as mãos, viu que tinham sangue.

O sangue dele.

- Magoei-o. Magoei o sacana.

 

As lágrimas escorriam-lhe pelo rosto quando ela avançou aos tropeções em direcção à casa. A sua visão fraquejou. Pareceu-lhe ouvir alguém gritar, um grunhido ameaçador e um golpe. Formas e sons fundiam-se num vazio negro.

Ao mesmo tempo que a névoa deslizava pela varanda, também se espalhou pela cama onde Brad dormia. Regelando-o. Prendendo-o. Brad virou-se no sono, e estendeu a mão à procura de calor e consolo. À procura de Zoe.

Porém, encontrava-se sozinho.

No escuro. A floresta soltava um cheiro a podridão, varrida por um vento cortante. Não conseguia ver o caminho, mas apenas as monstruosas formas das árvores, deformadas e torcidas, como num pesadelo. Os espinhos das roseiras-bravas dilaceravam-lhe a carne, cortavam-lhe as mãos como dentes vorazes.

Sentia o cheiro do seu próprio sangue, do seu próprio suor. E de qualquer coisa mais selvagem.

Estava a ser alvo de uma perseguição.

Detectou um movimento rápido por entre os arbustos, e viu sombras. "Não estou apenas a ser perseguido", pensou enquanto se debatia para se ver livre das roseiras-bravas. "Estou a ser alvo de sarcasmo." O que quer que ali estivesse queria tanto o seu medo como a sua morte.

Tinha de sair dali, fugir, antes que aquilo que o perseguia se cansasse do jogo. Quando isso acontecesse, saltar-lhe-ia em cima e dilacerá-lo-ia em pedaços.

"salva-te." Ouviu sussurrar dentro do cérebro, num tom suave, tranquilizador, enquanto avançava aos tropeções em direcção a uma clareira. "Não é a tua luta. Vai-te embora."

Claro. Era isso. Devia ir-se embora. Atordoado, desorientado, correu para uma ténue réstia de luz. Começou a correr em direcção a ela quando ouviu o uivo do predador atrás de si.

O brilho era uma porta, e Brad sentiu-se expirar aos safanões, aliviado, enquanto corria para ela. Escancarou a porta quando sentia já a respiração quente daquilo que o perseguia na parte de trásdo pescoço.

A luz inundou a escuridão. E a cor, e o movimento. Estava à porta das instalações da sua empresa em Nova Iorque, com a respiração ofegante por ter estado a correr. O sangue das feridas que tinha nas mãos caiu no chão de carvalho encerado.

Pelas amplas janelas triplas, viu a linha do horizonte, todas aquelas lanças reluzentes que se erguiam no céu da manhã.

Uma jovem loura, num elegante fato preto, passou por ele e dirigiu-lhe um sorriso caloroso.

- Seja bem-vindo, dr. Vane.

- Sim - replicou ele, e sentiu os lábios tensos. Porque faria tanto frio lá dentro? - Obrigado.

Michael, o seu assistente, apressou-se a ir ter com ele. Trazia suspensórios vermelhos por cima de uma camisa azul e um bloco de apontamentos espesso.

- Aqui tem o seu plano diário, dr. Vane. O café está em cima da sua secretária. É melhor irmos começando.

- Tenho de... - sentiu o cheiro do café, e da loção de barbear de Michael. Ouviu um telefone tocar. Confuso, ergueu o braço e viu o sangue pingar da ferida que tinha na palma da mão. - Estou a sangrar.

- Ah, nós tratamos disso. Basta vir até aqui. Entre.

- Não - respondeu ele, e vacilou. As náuseas deram-lhe a volta à barriga e o suor escorreu-lhe pelo rosto, com o esforço. Não - repetiu. Agarrado ao umbral da porta para manter o equilíbrio, olhou para o escuro atrás de si. - Isto não existe. É mais uma treta...

Brad parou ao ouvir o grito de Zoe. Cheio de tonturas, afastou-se da porta.

- Vai morrer aí- gritou Michael atrás dele, segundos antes de a porta se fechar. Alguém disparara uma bala.

Brad mergulhou no escuro, e chamou por Zoe. Não conseguia ver; embora tentasse freneticamente abrir caminho por entre as roseiras-bravas, não conseguia ver mais nada a não ser aquele constante véu negro.

Não conseguia encontrá-la, nunca mais a encontraria. E aquilo que se encontrava no escuro iria matá-los aos dois, porque ele não se tinha mantido a seu lado.

"Ela só quer o teu dinheiro. Um pai rico para o bastardo do filho."

- Isso é uma mentira das piores - disse ele, exausto e enjoado, caindo de joelhos. Estava a deixar-se apanhar, a deixar-se acreditar nas mentiras.

Aquilo tinha de parar.

Brad lançou a cabeça para trás e cerrou os punhos.

- Isto não é verdade. Isto não está a acontecer. Raios, eu estou em casa. E ela também.

Acordou, quase sem ar, com os últimos véus de névoa a desaparecer e Moe parado aos pés da cama, a uivar como um lobo.

- Está bem, Moe. Céus! - exclamou, ainda um pouco abalado, e estendeu a mão para fazer uma festa ao cão, mas sentiu uma dor que lhe fez estremecer a mão. Quando a virou, viu o sangue espalhado pela palma, a sair de várias feridas. - Bem, parte disto foi real.

Respirou fundo, e passou a mão ensanguentada pelos cabelos. E no momento seguinte deu um pulo da cama. A Zoe. Se o sangue era mesmo real, os gritos dela talvez também fossem.

Correu para o quarto dela, e abriu a porta. À luz suave da manhã, percebeu que ninguém dormira na cama dela. Conduzido pelo pânico, dirigiu-se para o quarto de Simon, e estremeceu de alívio ao ver o rapaz enroscado ao lado do cachorro.

- Fica com ele - ordenou Brad a Moe, empurrando-o para dentro do quarto. - Fica com ele - repetiu, e desceu as escadas a correr para ir à procura de Zoe.

Gritando por ela, precipitou-se para dentro do salão mesmo a tempo de a ver entrar aos trambolhões, vinda da varanda.

Quando Zoe abriu os olhos, viu o rosto de Brad, pálido, muito pálido, com os cabelos desgrenhados em volta.

- Tens de cortar o cabelo - tartamudeou.

- Santo Cristo, Zoe! - exclamou ele, agarrando-lhe na mão com força suficiente para esfregar osso contra osso. - Que raio foste fazer lá para fora?

O que é que aconteceu? Não, não fales disse ele, desviando-se da sensação de pavor total. - Deixa-te estar

deitada. Vou buscar-te água.

Foi depressa até à cozinha, encheu um copo e agarrou-se à bancada enquanto tentava regularizar as pulsações.

Obrigando-se a respirar longa e profundamente, lavou o sangue das mãos, e a seguir pegou no copo de água e voltou para junto dela.

Zoe estava agora sentada, e as cores tinham-lhe voltado ao rosto. Brad nunca tinha visto ninguém tão pálido como ela estava quando entrara.

- Tem calma - disse ele. - Bebe devagar.

Ela assentiu, embora fosse difícil obedecer quando tinha a garganta a arder.

- Eu estou bem.

- Não estás nada bem - afirmou ele. Embora não gritasse, a sua voz parecia uma bofetada. - Tu desmaiaste. Tens uma ferida na cara e sangue nas mãos. Não estás nada bem.

"É surpreendente como ele consegue fazer isto", pensou ela. Como ele conseguia, sem levantar a voz, fazer com que a raiva e a autoridade remetessem a outra pessoa à sua insignificância.

- Não é o meu sangue. É o dele - afirmou Zoe, recuperando as forças ao voltar a vê-lo. Ao perceber o que tinha feito. - Arranhei a cara do sacana. Tenho umas unhas fortes, e usei-as para rasgar a cara àquele filho-da-mãe. Sinto-me óptima.

Ela entregou a Brad o copo vazio e, como achou que ambos precisavam, beijou-o no rosto.

- Desculpa ter-te assustado. Estava... oh! - com um tom de preocupação, ela agarrou-lhe rapidamente na mão. - Estás todo arranhado e ferido.

- Tive uma pequena aventura no bosque enquanto tu te dedicavas... ao que quer que fosse que estavas a fazer.

- Ele veio provocar-nos aos dois - proferiu Zoe baixinho. Mas nós estamos aqui, estamos vivos, não estamos? - perguntou, levando aos lábios a mão ferida de Brad. - Vamos limpar estes golpes, e já me contas o que te aconteceu. Eu conto-te o que me aconteceu, mas primeiro quero que saibas uma coisa.

Ela envolveu-lhe o rosto com as mãos e fitou-o bem nos olhos.

- Quero que saibas que vai correr tudo bem. Vai correr tudo bem. Vamos para a cozinha. Quero lavar as mãos, pôr um penso nas tuas e fazer café.

Ela respirou fundo e pôs-se de pé. Tinha as pernas firmes, reparou com um certo orgulho. E estava decidida.

- Conversamos acerca do resto enquanto eu trabalho.

- Enquanto trabalhas?

- Tenho um peru para rechear.

Capítulo 19

Não entendo como podes estar tão calma - disse Malory enquanto lavava arandos frescos no lava-loiça da cozinha.

- Ora, não é a primeira vez que asso um peru - retorquiu Zoe, disparando um sorriso por cima do ombro e continuando a preparar os inhames.

- Não sei como é que ela consegue ser tão enérgica - comentou Dana, olhando para a montanha de batatas que ainda tinha para descascar. - Era de esperar que um jogo malévolo com um deus feiticeiro perverso, um feitiço e cozinhar para um batalhão lhe estragasse o bom humor, mas não, a nossa Zoe hoje está na sua melhor forma.

- É Dia de Acção de Graças.

- O que me obriga a abordar a questão - começou Dana, franzindo o sobrolho à sua faca de descascar. - Porque é que estamos as três aqui a fazer o trabalho todo enquanto os homens estão a preguiçar como reis?

- Quero que estejamos as três sozinhas durante um bocado disse Zoe a Dana. - E esta era a maneira mais simples.

Dana pôs de lado mais uma batata.

- Se tu o dizes.

- Ter o Bradley a observar-me como um falcão faz-me ficar nervosa.

- Um homem tem alguns direitos quando uma mulher lhe cai nos braços - salientou Malory.

- Eu entendo-o. E não deixa de ser interessante o facto de ele estar lá para me amparar. Não acham? Romântico, até, mas interessante.

Estava no quarto a dormir, e eu fiquei lá fora durante... sei lá quanto tempo. Horas. Pareceram minutos, mas foram horas. Zoe olhou para a porta para ver se não aparecia ninguém.

- Mas também, ele não esteve apenas a dormir... o Kane pô-lo a correr no escuro e fê-lo cortar as mãos. Tentou fazê-lo voltar para Nova Iorque dentro da cabeça dele, onde está tudo arrumado, tudo no seu lugar.

- Mas ele não foi - disse Malory, pousando o escorredor de arandos no lava-loiça. - No limiar, no momento da decisão, ele optou.

- E conseguiu, e eu também, ao dilacerar a cara ao Kane. É por causa dessas decisões que ambos podemos sentir-nos tão bem hoje.

- Gostava de ter assistido - afirmou Dana, voltando a atacar as batatas. - É a única coisa que lamento.

- Foi óptimo - garantiu-lhe Zoe. - Não sei se alguma vez tinha feito uma coisa que me tivesse dado uma sensação tão grande de poder. Mas, depois de tudo isso, o Bradley desce as escadas mesmo a tempo de me impedir de cair redonda no chão.

Zoe baixou a faca com um barulho seco.

- O Kane tentou mantê-lo afastado, prendê-lo naquela ilusão.

- Não queria um homem a interferir - comentou Malory num tom de azedume -, enquanto atormentava a senhora.

- Pois não, e acho que também não queria que estivéssemos juntos enquanto me fazia sentir um fracasso.

- Não me parece que te sintas nenhum fracasso.

- Ele puxou todos os cordelinhos, isso tenho de reconhecer. Mas já não é o primeiro a puxá-los, e entretanto também aprendi a defender-me. Começou por trabalhar as minhas inseguranças e os meus sentimentos, e a seguir tentou subornar-me. Como isso não resultou, ficou irritado.

- Irritado - repetiu Malory, aproximando-se para passar levemente os dedos sobre a ferida no rosto de Zoe. - Minha querida, ele feriu-te.

- Talvez, mas garanto-vos que ele ficou bastante pior - acrescentou, atirando a cabeça para trás e expirando sonoramente. Se estivesse a pensar em condições, teria continuado. Um bom pontapé nos tomates. Se é que ele os tem. Eu magoei-o, e o Brad derrotou-o. Obrigámo-lo a fugir. E isso fez-me ganhar o dia.

Ao ver o brilho nos olhos de Zoe, Malory soltou um suspiro.

- Eu sei. Eu sei que já não tenho muito tempo. Uma parte de mim deseja passar esta casa a pente fino como uma louca, à procura da chave. Mas isso não resolve nada. Não sei qual é a solução; apenas sei que não é essa. Por isso, vou fazer o jantar do Dia de Acção de Graças, um maravilhoso jantar do Dia de Acção de Graças. Porque me sinto em casa. Sinto-me bem com todos vocês, e estou grata por isso.

Dana pousou a faca de descascar batatas.

- Ele atacou-te no ponto certo.

- Talvez - reconheceu Zoe. - Atacou-me no ponto fulcral. A pobre da Zoe McCourt, que engravidou do primeiro rapaz que sorriu para ela. A miúda que abandonou o liceu para esgravatar tostões que lhe permitissem comprar as fraldas para o bebé que criou sozinha. Como é que ela julga que é capaz de fazer alguma coisa de importante?

Zoe atirou os inhames para dentro de uma caçarola.

- Porque eu sou capaz disso, e essa é que é a verdade. Vamos beber vinho.

- Isso é que é falar - comentou Dana e, embora trocasse olhares com Malory por detrás das costas de Zoe, tirou uma garrafa de Pinot Grigio.

- Hoje ainda tenho muito para fazer - comunicou Zoe enquanto tirava copos do armário. - Além de preparar esta refeição convosco e de a comer. Tenho coisas para fazer, coisas para dizer. Mas primeiro ainda tenho de arrumar tudo muito bem na minha cabeça.

Pousou os copos e inclinou a cabeça ao olhar pela janela e ver Brad e Simon seguindo por um dos caminhos que passavam por entre os arbustos do jardim em direcção às árvores.

 

- Que diabo andarão eles a fazer?

Dana pousou a mão no ombro de Zoe quando esta se inclinou para servir o vinho.

- Só te sei dizer o que não estão a fazer. Não estão a descascar batatas.

- O que é que ele traz na mão? - interrogou-se Zoe, com ar ausente, enquanto erguia o copo de vinho e mudava de posição para ver melhor. O seu filho dançava à volta de Brad, e os cães corriam para trás e para diante, à espera de brincar. - Parece... bem, por amor de Deus.

Observou, confusa, enquanto Brad pendurava o alimentador de pássaros num ramo, pendendo sobre o seu encantador arbusto ornamental. A seguir pegou no filho dela ao colo, para Simon poder deitar as sementes pela abertura.

- Por amor de Deus - repetiu. Como se estivesse num sonho, Zoe pousou o vinho e dirigiu-se para a porta, saindo para a rua.

- Que raio vem a ser aquilo? - perguntou Dana.

- É algo que me ultrapassa - disse Malory, a sorrir, com o nariz espalmado contra o vidro. - O que é aquilo? Porque é que eles estarão a pendurar uma bota numa árvore?

Zoe não se tinha lembrado de levar um casaco, mas também não se importava de sentir um pouco de vento. Este trazia-lhe as gargalhadas de Simon, que corria para longe, na brincadeira com os cães. E o coração dela estava demasiado quente para que aquele gelo conseguisse tocá-lo.

Brad estava no caminho, de mãos nos bolsos, e olhava para o alimentador de aves com um sorriso nos lábios. Ao ouvir os passos dela, virou-se para a cumprimentar.

- O que é que achas?

Ela tinha ajudado a construí-lo, orientando Simon ao longo das várias etapas até transformar a bota de cowboy vermelho-viva num alimentador de pássaros, ajudando-o a manter as mãos firmes enquanto cortava o buraco no cabedal e vendo-o medir as tiras de restos de madeira para fazer o pequeno telhado inclinado.

"O Simon ficou tão orgulhoso", recordou, "tão contente por mais ninguém na sua turma ter um trabalho como este."

Ele tinha-lhe dito que podiam pendurá-lo no quintal lá de casa depois de receber a nota e de o trazer para casa.

"Para casa", pensou ela.

- O Simon ofereceu-to? - perguntou ela, cuidadosamente.

- Sim. Ele recebeu a nota máxima por ele, sabes?

- Sim, eu sei.

- Pensámos... que raio estás tu a fazer aqui fora sem casaco? a bufar de impaciência, ele tirou o seu casaco. Ela permaneceu em silêncio enquanto ele lhe enfiava as mãos nas mangas de cabedal macias.

- Estava a ver-vos da cozinha. Estava a ver-vos pendurar isso no teu belo jardim, por detrás da tua casa encantadora.

- Certo - obviamente confuso, ele ergueu o ombro. - E?

- Ele ofereceu-te o alimentador de pássaros e tu penduraste-o

- disse ela, com as lágrimas a fazer-lhe cócegas na base da garganta. - Bradley, isto deve ser a coisa mais tola que já viste na tua vida. É uma bota velha com um buraco. Vais vê-la de cada vez que olhares pela janela, e toda a gente a vai ver.

- É essa a ideia - replicou ele, recuando um passo e olhando para a bota com um ar radiante. - É linda!

- Bradley, preciso de te perguntar uma coisa. Estava a pensar, esta manhã, depois do que aconteceu... estava a pensar como havia de arranjar maneira de te perguntar. Mas pensei que precisava de conversar com o Simon primeiro, explicar-lhe, e ver como ele...

Ela olhou novamente para o alimentador e sorriu.

- Mas agora estou a ver que não preciso de falar com ele nem de lhe explicar nada. Ele já fez a sua escolha.

- O que é que me querias perguntar? - inquiriu ele, dando um puxão na bota, só para a ver balouçar.

- Queria perguntar-te se queres casar comigo - revelou ela, e sentiu a coragem evaporar-se quando a mão dele caiu e ele ficou a olhar para ela. Mas Zoe ergueu-lhe a mão entre as suas. - Pensei

que era melhor esperar até estar tudo resolvido, para ter uma longa conversa com o Simon e... mais isto e aquilo. E até deixar de sentir tanto receio em relação ao que podia acontecer se perguntasse. Mas acho que estava errada ao pensar na espera, e em não te dizer que te amo, muito. Tanto que ainda fiquei com mais receio, a ponto de ter medo de confiar em mim mesma, ou em ti. Ou mesmo no Simon. E, meu Deus, só queria que dissesses qualquer coisa que me fizesse calar.

- Bem, isto é muito súbito. Espera aí um bocadinho.

De todas as coisas que ela esperara - do melhor ao pior -, nenhuma delas incluía que ele desaparecesse e se pusesse a chamar por Simon. O fogo subiu-lhe às faces ao mesmo tempo que sentia um gelo na barriga. Não sabia se isso seria resultado da vergonha, da dor ou da raiva. Apertou o casaco dele com força à sua volta enquanto o via inclinar-se para Simon.

Não conseguia ouvir o que diziam; apenas reparou que isso fez com que Simon assentisse rapidamente, desse um pequeno grito de guerra e voltasse a correr para dentro de casa.

com os polegares apertados dentro dos bolsos da frente, Brad voltou para junto de Zoe. A sua expressão era simultaneamente delicada e agradável.

- Vejamos, onde é que nós íamos? Vieste pedir-me em casamento por eu ter pendurado no jardim o alimentador de pássaros que o Simon me deu.

- Sim. Não. Raios te partam, Bradley, escusas de me obrigar a fazer figura de parva. As únicas pessoas a quem o Simon oferece as coisas que faz além de mim são os Hanson, e fá-lo porque os vê como se fossem avós dele. Ele deu-te isso porque gosta de ti, e eu pensei... Tu penduraste-o.

- Por acaso, gostei dela - comentou, sem conseguir deixar de sorrir como um tolo quando bateu com o dedo na bota de couro vermelho. - Não sei se te escapou o seu toque artístico, mas, seja como for...

- Não me venhas falar de toque artístico. Deixa-me dizer-te uma coisa, Bradley Charles Vane IV: se te estás a preparar para

recuar em todas essas conversas acerca de estares apaixonado por mim, não sabes com quem te meteste.

O sorriso permaneceu estampado no rosto dele enquanto a fitava.

-Não?

- Para mim, o casamento não é nenhuma piada: é aquilo que espero do homem que amo e que diz que me ama. O meu filho merece ter um pai, e não apenas alguém que queira brincar aos relacionamentos. Nenhum de nós vai mudar.

Brad assentiu.

- Acho que já percebi.

- Está aqui! Está aqui! - gritou Simon, ao sair disparado de casa. - Estava no mesmo sítio onde... - começou, parando ao ver o olhar de aviso que Brad lhe lançara. Porém, embora olhasse para o chão, os seus ombros abanavam com o riso.

- Gostava de saber qual é a piada.

- É um pequeno assunto de homens entre mim e o Simon disse-lhe Brad, tirando desajeitadamente a caixa que Simon apertava na mão. - É que o Simon e eu estivemos a conversar sobre um certo assunto há pouco tempo, e...

- Tu disseste que tinhas de esperar até... - erguendo os ombros sob o olhar meigo de Brad, Simon esgravatou com a ponta do pé no chão. - Está bem, está bem, mas despacha-te.

- Chegámos a um acordo - prosseguiu Brad. - E como as questões de ambos os lados se resolveram, achei que estava certo mostrar-lhe isto, para ele ter a certeza das minhas intenções.

Brad levantou a caixa e abriu a tampa.

- Era da avó dele, e... bolas, não posso dizer nada? - queixou-se Simon quando Brad o mandou calar.

- Primeiro vamos ver o que a tua mãe tem a dizer.

Olhar para aquele anel era o mesmo que olhar para as estrelas. Delicado e brilhante, e belo. A única coisa que Zoe conseguiu fazer foi abanar a cabeça, desnorteada.

- Tinhas tanta coisa para dizer há um minuto atrás - salientou Brad. - Qualquer coisa acerca da minha proposta e das tuas expectativas.

Mas talvez seja melhor responder à tua primeira pergunta. Sim - disse ele, e tirou o anel da caixa. - Absolutamente sim. Quero ser o teu marido, e amar-te todos os dias da tua vida.

- Põe-lhe o anel no dedo - exigiu Simon. - Tens de pôr-lhe o anel no dedo, e a seguir tens de beijá-la.

- Eu sei qual é a ordem.

- Vocês... vocês os dois... já tinham falado acerca disto? conseguiu Zoe perguntar.

- Exacto. Quando um miúdo ganha um pai novo, há algumas coisas que precisa de saber. - Brad trocou com Simon uma olhadela que fez o coração de Zoe brilhar tanto como o anel. - E quando um homem ganha um filho, há certas coisas que precisa de dizer.

- São assuntos de homens - explicou-lhe Simon. - Tu não ias entender.

- Oh! - exclamou Zoe, sentindo o riso a borbulhar por entre as lágrimas, dentro da garganta. - Então, está bem.

- Zoe? Dá-me a tua mão.

Ela olhou primeiro para ele; olhou para dentro dos seus olhos.

- Ele é a coisa mais preciosa para mim - confessou ela, pousando a mão direita no ombro de Simon e dando a Brad a esquerda. - Agora pertencemos-te os dois.

- Pertencemos uns aos outros.

O afecto reinava quando o anel deslizou no dedo dela, numa adorável sensação de alegria, ao contornar-lhe o dedo.

- Serve. É tão bonito. Nunca vi nada assim tão bonito.

- Eu já vi - disse ele, e os seus olhos fixaram-se nos dela enquanto ele a beijava.

- Já te posso chamar pai? - perguntou Simon, puxando pela manga de Brad. - Posso, ou ainda tenho de esperar?

Quando Brad pegou em Simon ao colo, o coração de Zoe, já cheio de alegria, transbordou.

- Não precisas de esperar. Nem nós - com a mão livre, Brad pegou em Zoe ao colo, fazendo com que os três formassem um só. - Não temos de esperar por nada.

Quando se ouviram gritos de excitação vindos de dentro de casa, Zoe olhou para lá. Estavam todos na varanda, a aplaudir.

- Fui eu que lhes disse - confessou Simon. - Quando fui buscar o anel.

- Venham para casa! - gritou Dana, com as mãos em forma de concha. - Precisamos de champanhe, e é para já.

- Quero ver a rolha saltar - exclamou Simon, a rir, e correu para dentro de casa.

Zoe tinha a impressão de que tudo luzia como se tivesse levado um banho de ouro. com a mão apertada na mão de Brad, descreveu o primeiro passo no caminho que ia dar à casa.

Simon trepou para a varanda. O cachorro falhou um degrau e caiu, e Moe pôs-se a correr em círculo à volta dele. Zoe viu Flynn dar um soco amigável no ombro de Jordan. E Malory pôr o braço à volta da cintura de Dana.

Quando os seus dedos se uniram, sentiu a mão de Brad quente contra a sua.

E então percebeu.

- Oh! Oh, é evidente. Que simplicidade - a compreensão pareceu iluminá-la como aquela encantadora luz dourada, fazendo-a rodopiar. Quando ela encostou o corpo contra Brad, soltou gargalhadas de alegria pura.

- Tão perfeito e tão simples. Despacha-te.

Dito isto, pôs-se a correr, arrastando-o pelo caminho. Um caminho que ela escolhera, e o filho dela também. Um caminho que alterava tudo, e que os levava até casa.

- A chave - proferiu, de lágrimas a brilharem sobre as pestanas, e mesmo assim continuou a rir enquanto subia para a varanda com o homem que amava, com o seu filho, com a sua família.

- Já sei onde ela está.

Manteve-se de mão dada a Brad enquanto se encaminhava para a porta.

"A porta da cozinha", pensou. A que era usada para a família, para os amigos, para os que viviam na casa. A porta de todos os dias, que nunca lhe seria fechada.

Aninhando-se, levantou o tapete. Por debaixo dele, a chave emitiu o seu reflexo dourado contra a madeira.

- Bem-vinda a casa - disse baixinho, enquanto pegava nela.

- Agora é a minha casa, viste? - com a chave pousada em cima da palma da mão, virou-se para Brad. - Eu tinha de acreditar nisso, esperar e aceitar isso. Tudo isso. Enfrentei-o aqui, ontem à noite, quando me sentia tão em baixo, tão receosa, tão cansada. Mas enfrentei-o, e ele não me conseguiu fazer desistir. E encontrei-a porque lutei por ela. E por ti, e por mim.

Zoe fechou os dedos em torno da chave.

- Vencemo-lo.

O vento ergueu-se num longo uivo. Bateu contra a varanda com força suficiente para a arrastar, para a fazer cair. Por entre o seu bramido, ela ouviu os gritos, o barulho do vidro a estilhaçar-se.

Ela rebolou para o lado e viu os amigos espalhados pela varanda, viu Brad usar o corpo para proteger Simon do vidro e dos estilhaços que voavam pelo ar. E viu o nevoeiro azul deslizar pelo chão em direcção a eles.

Sentia a chave dentro da sua mão latejante, o coração a bater freneticamente.

Kane seria capaz de matar por causa dela, Zoe sabia-o. Destrui-los-ia a todos para parar aquele bater do coração. A rastejar pelo chão, aproximou-se de Brad e de Simon.

- Ele está ferido? Meu amor, estás ferido?

- Mãe!

- Ele está bem! - gritou Brad. - Vai lá para dentro. Vai para dentro de casa.

"Da sua casa", recordou-se, assustada mas firme. O sacana não voltaria a entrar na sua casa, nem a tocar naquilo que era seu. Introduziu a chave na mão de Brad, e fechou-lhe os dedos em torno dela.

- Protege-os. Chamem a Rowena. A Dana e a Malory podem chamar a Rowena.

"Se ela lhes der hipótese", pensou Zoe, e, agarrando-se, rebolou para fora da varanda. Mantinha o punho cerrado como se levasse consigo um bem precioso. Sem ligar aos gritos atrás de si,

pôs-se de pé. Dobrada contra a fúria do vento, avançou a custo em direcção às árvores.

Ele havia de ir atrás dela, o que lhes daria algum tempo. Enquanto acreditasse que era ela quem tinha a chave, ela seria o foco da sua atenção. Agora os outros não significavam nada para ele. Eram insectos, recordou-se, tentando abraçar-se a um tronco de árvore para conseguir manter o equilíbrio. Ele agora não iria perder tempo a enxotar insectos.

Enquanto a chave não estivesse na fechadura, ela teria de arrastar consigo a batalha.

A névoa enroscou-se à volta dos seus tornozelos, e parecia picar e puxar, e ela sentiu pânico suficiente para a sacudir e desatar a gritar. Quando voltou novamente a sentir os joelhos, o cheiro nauseabundo encheu-lhe a boca e os pulmões. Sufocada, levantou-se e desatou a correr.

O vento agora não soprava tão forte, mas o frio... oh, o frio parecia arame farpado e penetrava no cabedal do casaco de Brad, dentro da camisola e da própria carne. A neve começou a cair em flocos grandes e sujos.

Ele estava a levá-la novamente até à primeira ilusão. Zoe levou a mão à barriga, esperando estar grávida, porém, apenas sentiu os músculos contraídos.

"O Kane está a brincar comigo", concluiu. O seu ego exigia-o. Estava a divertir-se. Certo de que a derrotaria a qualquer momento, de que conseguiria obter a chave e vencer.

Desorientada, ela avançou pela neve aos tropeções, rezando para não estar a descrever o caminho de volta até à casa. Precisavam de algum tempo. Ela tinha encontrado a chave. Se conseguissem levá-la até à Caixa das Almas, Simon poderia abri-la. Aquilo não podia deixar de ser verdade. Ele pertencia-lhe. Nascera do seu sangue, dos seus ossos. Da sua alma.

Quando a fechadura estivesse aberta, todos ficariam a salvo. Tinha de manter Kane longe dos outros até estar tudo concluído.

Um relâmpago negro disparou pelo céu, lançando fogo a seus pés. Zoe soltou um grito, atirando-se para longe, ficando quase engasgada com o fumo.

Quando conseguiu levantar-se, ele impediu-lhe o caminho, com as suas vestes negras a adejar, vários centímetros acima da neve suja.

- Uma cobarde, afinal - atacou ele, ainda com as marcas das unhas dela no rosto. - Abandonas o teu filho, os teus amigos, o teu amante, e foges como um coelho para te salvares.

Ela deixou as lágrimas caírem, quis que ele as visse, e que as tomasse por uma súplica. E colocou a mão fechada atrás das costas, como se escondesse alguma coisa.

- Não me faças mal.

- Há poucas horas ofereci-te aquilo por que o teu coração ansiava. E tu, como me retribuíste?

- Assustaste-me - ela precisava de uma arma, mas receava afastar os olhos dos dele enquanto a procurava.

- É bom que sintas medo. É bom que supliques. Se o fizeres, talvez eu te poupe.

- Farei tudo o que quiseres, desde que me deixes em paz.

- Entrega-me a chave de tua livre vontade. Vem até aqui e pousa-a na minha mão.

"De minha livre vontade", pensou ela. Era esse o truque. Ele não podia tirar-lha. Nem naquele momento.

- Se eu ta der, tu matas-me.

- E se não ma deres... - começou ele, deixando a ameaça pairar no ar. - Porém, se a deres - passa-a da tua mão para a minha -, pouparei a tua alma. Sabes o que é viver sem alma? Permanecer gelado e vazio durante séculos, enquanto a tua... essência se mantém viva, presa e impotente. Estás disposta a correr esse risco por uma coisa que não tem nada a ver contigo?

Ela deu um passo em frente, como se lhe tivessem batido.

- A Rowena e o Pitte disseram que tu não podias fazer verter o nosso sangue, mas tu fizeste-o.

- O meu poder está para além deles. É maior do que tudo - as pupilas dele pareceram faiscar em vários tons quando ele deu o passo seguinte. - O rei é fraco e tolo, pouco mais do que um mortal na sua dor e sofrimento. A guerra está praticamente ganha.

Hoje mesmo chegará ao fim, e eu governarei. Todos os que lutaram contra mim, todos os que tentaram deter-me hão-de pagar caro por isso. O meu mundo vai ficar novamente unido.

- É a dor que te dá poder. E o sofrimento. É assim a tua alma?

- Inteligente, para uma simples mortal - reconheceu ele. - As trevas sempre abafarão a luz. Eu escolho a sua força, e enquanto aqueles que tentam preservar essa luz estão distraídos na batalha e na política, na diplomacia e nas regras de combate, eu uso as trevas. É por isso que aqui estou e farei o que for preciso até estar tudo terminado. A ninharia que tu, ou eles, fizerem para me impedir de avançar é pouco mais que um adiamento. Agora a chave.

- Não podes ficar com ela.

A raiva explodiu dentro dele. Ela tentou equilibrar-se enquanto ele erguia uma mão, pronto para desferir o golpe.

Brad saltou de trás da cortina de neve. Zoe viu o brilho de uma faca, viu-a dar um golpe, mas não conseguiu perceber onde. Ela precipitou-se para a frente, e depois voltou para trás quando Brad foi empurrado contra ela.

- Não te atrevas.

Zoe viu que Kane sangrava; o sangue vermelho-vivo ficava ainda mais nítido contra o preto. Depois, Brad atirou-a para trás dele.

- E tu? - contrapôs ele. - Atreves-te a lutar com um homem, ou só lutas com mulheres? - perguntou Brad, virando a faca na mão.

- Ou com mortais - acrescentou Pitte, avançando por entre a neve. - Atreves-te a lutar com um dos teus semelhantes, Kane, com poderes semelhantes, uma luta de deuses?

- com todo o prazer.

- Para trás, mulher - vociferou Pitte para Rowena, quando ela se colocou a seu lado.

- Sim - concordou Kane, erguendo o braço. - Para trás. Uma onda de choque fez vibrar o ar. Zoe sentiu o seu corpo levantar-se do chão e ser engolido por ela, aterrando de costas na margem do rio. Abalada, rebolou no chão, cheia de dores. Viu

Brad a poucos metros dali, com a boca a sangrar enquanto rastejava em direcção à faca que lhe voara da mão.

Acariciando o braço latejante, Zoe pôs-se de pé. Então viu Rowena imóvel, deitada, talvez morta, sobre a neve suja. A força que Kane libertara fora dirigida a ela, apercebeu-se Zoe.

Pitte ainda estava de pé, a sangrar, e prosseguia o combate. O ar estava cheio de faíscas e de fumo, crepitante de luzes, relâmpagos no escuro e um hediondo som de laceração.

- Não te levantes - ordenou Brad, cuspindo sangue, e agarrando na faca.

Embora se lançasse contra Kane, a parede de neve e nevoeiro repelia-o.

- Vai até ao Pico! - gritou para Zoe. - Acaba com isso.

- Não há tempo. - "As trevas abafam a luz", pensou enquanto rastejava em direcção a Rowena. Sentia-a definhar, mirrar. Os seus dedos tremiam quando pegou na mão de Rowena. Estava tão fria, mas ainda tinha pulsações.

"Um deus também pode respirar", pensou. "Um deus também pode morrer."

Agarrou desesperadamente na mão, olhou para onde Pitte caíra com um joelho no chão, deu meia-volta e ia sendo atingida por um golpe mortal.

- Ajuda-me - pediu Zoe. - Ajuda-me a detê-lo - pediu, enquanto arrastava a cabeça de Rowena pela neve, abanando-a enquanto Brad continuava a tentar derrubar a parede.

Se conseguisse reanimar Rowena, e Rowena conseguisse aliar os seus poderes aos de Pitte, ainda podiam ganhar. Sem querer utilizar a neve que Kane criara, rastejou até ao rio e mergulhou as mãos na água.

Ela viu o reflexo na sua superfície, a jovem deusa guerreira com o seu rosto.

- Ajuda-me! - repetiu Zoe, mergulhou a mão na água e retirou de lá uma espada.

A espada emitia o seu brilho prateado contra a luz sombria e, exposta ao vento que assobiava, cantou. O poder, límpido como a água, percorreu-a na sua totalidade.

Agarrando o punho com ambas as mãos, Zoe tentou pôr-se de pé. E, erguendo a espada acima da cabeça, atacou. Um grito de guerreiro saído da sua garganta - um som que não lhe pertencia totalmente - fez Kane rodopiar em direcção a ela.

Sentiu um safanão, uma espécie de choque eléctrico, quando atravessou a parede. As faíscas dispararam ao chocar com a luz. Ouvia milhares de gritos dentro da sua cabeça, e a pele ardia-lhe como se tivesse sido queimada. Quando Kane ergueu os braços para lutar, ela mergulhou a lâmina no seu coração.

O chão abriu-se-lhe por debaixo dos pés, e os seus braços tremeram com o choque do frio. Viu o rosto dele transfigurar-se. A fúria, o choque e o medo dissiparam-se quando os olhos dele se encheram de sangue. O seu maxilar alongou-se, e as suas faces ficaram escavadas quando a ilusão de beleza se desvaneceu.

Os cabelos ficaram grisalhos e transformaram-se em novelos finos, e quando os seus lábios se descarnaram, ela viu dentes afiados como sabres.

Embora cambaleasse por causa do esforço, manteve a mão bem firme na espada enquanto ele tombava. Ofegante, Zoe ficou ainda a vigiá-lo, e a ver morrer um deus.

Kane desapareceu no meio da névoa, ou a névoa desapareceu com ele, até não existir mais nada além da sombra dele sobre a neve. Depois a sombra derreteu-se e ela permaneceu de pé, empunhando uma espada com a ponta cravada no chão.

- Boa luta, mãezinha - com a voz carregada de dor, Pitte ajoelhou-se à frente dela, pegou-lhe na mão e beijou-lhe os dedos. Devo-te mais do que a vida.

- A Rowena... ela não está bem.

- Eu trato dela - disse ele e, com um esforço evidente, pôs-se de pé e limitou-se a sorrir quando ela lhe estendeu a espada. Agora pertence-te - afirmou, e encaminhou-se para o lugar onde a companheira se encontrava.

 

- Zoe - proferiu Brad, com o rosto cheio de sangue e de fumo, enquanto lhe acariciava os cabelos e o rosto, abraçando-a depois, com um ruído sufocado. - Zoe.

- Eu estou bem. Tu é que estás ferido. Estás ferido? O Simon? Ele apertou-a quando ela tentou fugir.

- Está seguro. Juro-te. Fiz questão que ele permanecesse em segurança antes de vir atrás de ti. Confia em mim.

Ela deixou a espada cair no chão e envolveu-o com os braços.

- com todas as minhas forças.

Capítulo 20

Embora não fosse assim que ela planeara passar o grande feriado americano, parecia adequado celebrá-lo no Pico do Guerreiro.

Os pormenores para transportar tudo, tratar da comida e dos preparativos acalmaram-na. Embora esperasse que a chave fosse o principal assunto do dia, Rowena tinha outros planos.

- Isto é um ritual importante para ti e para os teus amigos comentou Rowena na ampla sala de jantar, enquanto punha os pratos na enorme mesa. - Não podemos deixá-lo passar em claro.

- Isto é um banquete - disse-lhe Zoe e, sem conseguir conter-se, aproximou-se para fazer uma festa nos cabelos de Rowena. Não precisas de fazer isto. Ainda estás um pouco pálida. Temos montes de pessoas para ajudar. Porque não te vais deitar um bocadinho?

- Quero participar - respondeu ela e, com um ar pensativo, descreveu um círculo à volta de um dos pratos. - Preciso de tempo para recuperar, e alguma coisa para fazer até ter a mente mais tranquila. Deves entender isso.

- Entendo, claro - replicou Zoe surpreendida e emocionada, e esfregou o ombro de Rowena quando esta se encostou contra ela.

 

- Pensei, por alguns instantes... pensei que tudo estava perdido. A força dele estava tão carregada de ódio e de raiva. Não estava preparada para isso. Talvez não pudesse estar. Tudo o que sei, tudo o que sou... e não consegui detê-lo. Até o Pitte teria tombado.

- Mas não tombou. Não tombámos.

- Não. Aprendemos uma lição de humildade.

- Rowena, ela deu-me a espada. Como é que isso foi possível?

- Tal como subestimei o poder do Kane, ele também subestimou o poder do rei. O seu poder, a sua paciência, o seu propósito. Ele deu-te a espada de Kyna, através da imagem dela.

Rowena continuou a pôr a mesa.

- Só agora é que isso me é dado a ver. Consigo ver que a batalha no meu mundo, pelo meu mundo, nunca terminou. Kane recuperou forças enquanto nós procurávamos as escolhidas. Negociou com as forças mais negras, trocou a sua alma por poder enquanto os seus seguidores usavam o poder, a intriga e a sabotagem para manter o rei e os seus leais súbditos ocupados a defender o equilíbrio por detrás da Cortina.

Ainda com os movimentos um pouco rígidos, Rowena deu a volta à mesa.

- Muita coisa se perdeu desde que nos enviaram para aqui. Porém, isso nunca significou a derrota. Como eu temia - afirmou ela, olhando para Zoe -, talvez o meu receio me tenha enfraquecido quando cheguei a lutar contra o Kane. Mas o meu rei não é fraco. O Kane tomou por fraqueza a sua capacidade de amar, o seu afecto e compaixão, e esqueceu a sua sabedoria e o seu enorme poder.

- Eu vi-o - proferiu Zoe, baixinho. - Vi-o, um gamo dourado com um colar de jóias. Esta manhã, parado à porta de casa, a observar-me.

- Ele andou a observar-nos a todos, mais do que me apercebi. Esperou, ansiou, lutou e planeou durante três mil anos quem seriam aquelas que poderiam libertar as suas filhas. Vocês foram as únicas que conseguiram. Isso só me foi dado entender neste momento. Todos estes anos, os fracassos, os preparativos, tudo apontava na vossa direcção.

Suavemente, Rowena alisou um guardanapo.

- Se tu, se qualquer uma de vocês, tivesse virado costas, não teria havido outra oportunidade. Se eu soubesse... se eu soubesse,

não sei se teria conseguido suportar. É por isso que não podia saber.

Sentindo de repente as pernas a fraquejar, Zoe amparou-se nas costas de uma cadeira.

- É um risco muito grande para se correr com três mulheres da Pensilvânia.

Os lábios de Rowena encurvaram-se, mas o sorriso não alcançou o olhar.

- Eu diria que os deuses escolheram muito bem.

- A espada... eu já tinha encontrado a chave. Tinha completado a minha demanda. Compreendo que o Kane tenha tentado impedir-nos de a usar, que aquilo que crescera dentro dele, ou o que ele decidira usar, lhe permitisse tentar impedir-nos de usar a chave. No entanto, uma vez encontrada a chave, o resto estava nas mãos dos deuses, não é verdade?

- Tu terias feito o que foste escolhida para fazer - concordou Rowena.

- Então para que me entregou ele a espada? Porque não ta deu a ti ou ao Pitte? Ou não matou ele o Kane?

- Ele não podia combater o Kane neste campo, neste lugar. Para isso, é preciso escolher um campeão.

- Então, o Pitte, ou tu. -Não.

As lágrimas reluziram por um instante nos seus olhos, e depois desapareceram. Quando ela falou, a sua voz emitia uma enorme força.

- Porque nós não temos perdão.

Rowena pousou o último prato na mesa e recuou para a admirar.

- Não é altura para tristezas. Temos muito que agradecer. Tenho passado o mínimo de tempo possível na cozinha. Diz-me o que fazemos a seguir?

"É preciso fazer uma coisa", pensou Zoe. Porém, sorriu porque sabia que Rowena ficaria contente com isso.

- Alguma vez fizeste puré de batata?

-Não.

- Anda. Eu ensino-te.

Reuniram-se em torno da mesa, com o fogo a crepitar e as velas acesas. Qualquer tristeza que Rowena sentisse foi muito bem mascarada pelo riso e pela conversa. O champanhe reluzia nos copos, que nunca estavam vazios. As taças e travessas passavam de mão em mão num infindável carrossel de abundância.

- Deves querer bastante disto - disse Zoe a Pitte enquanto lhe oferecia puré. - Foi a Rowena que o fez.

As sobrancelhas dele ergueram-se.

- Como?

- Da mesma maneira que as mulheres o fazem há muitos anos. Do outro lado da mesa, Rowena inclinou a cabeça.

- O Pitte está a pensar se há-de correr esse risco. O meu corajoso guerreiro não sabe se o vão obrigar a comer uma pasta e se se verá forçado a fingir que é ambrósia.

Como que para demonstrar a sua coragem, ou o seu amor, Pitte serviu-se de um montinho de puré.

- Tens um anel - disse para Zoe, acenando para o anel de diamantes que ela trazia no dedo.

- Tenho - por prazer, Zoe mexeu os dedos e viu o anel faiscar.

- És um homem afortunado - disse para Bradley.

- Sou. Tenho de levar aquele anão horrível com ela - acrescentou, e deu uma piscadela de olho a Simon. - Mas acho que ela merece o sacrifício.

- Tantos casamentos - anunciou Rowena. - Tantos planos. As datas já estão marcadas?

- Temos andado um pouco ocupados - começou Flynn. Malory olhou para ele e revirou as pestanas.

- Agora não estamos ocupados.

- Ah! - exclamou ele, e empalideceu ligeiramente. - Acho que não. Bem... Não sei. Eh...

O facto de ter tantas atenções viradas para ele fê-lo sentir-se desconfortável.

- Porque é que estão a olhar para mim? Somos três dentro deste barco.

- Parece que és tu quem está ao leme, pá - afirmou Jordan, e continuou a comer peru.

- Bolas! O Natal está à porta. Podíamos apontar para essa altura.

- Cedo de mais - avisou Malory, abanando a cabeça. - Temos... oxalá tenhamos... o corrupio das festas na Indulgence. Além de que ainda não escolhi o vestido. E depois há as flores, a papelada, o tema, o...

- Isso deve levar uns três ou quatro anos. Excelente puré disse Flynn para Rowena.

- Obrigada.

- Não vai nada levar três ou quatro anos. Sou uma mulher muito organizada, que trabalha por objectivos. Lá por querer um grande casamento e querer que tudo corra na perfeição, não quer dizer que não consiga fazê-lo num prazo de tempo razoável. Deixa-te de piadinhas, Hennessy.

- O Dia de São Valentim.

- O quê?

Era maravilhoso ver os seus grandes olhos azuis ficarem absortos.

- 14 de Fevereiro - inspirado, ele pegou-lhe na mão e beijou-a. - Casa comigo, Malory. Sê a minha companheira.

- Acho que vou vomitar - resmungou Jordan baixinho, e levou uma cotovelada de Dana nas costelas.

- O Dia dos Namorados - tudo dentro de Malory se derreteu.

- Oh, isso é mesmo perfeito. É tão lindo. Sim! - exclamou ela, virando-se na cadeira para lhe dar um abraço. - E nunca terás nenhuma desculpa para te esqueceres do nosso aniversário.

- Sempre senão...

- Muito bem, grandalhão - proferiu Dana, usando novamente o cotovelo. - Põe-te a andar. Que mal tem o que ele disse? Lamechices à parte.

- Sim! - exclamou Malory novamente, com o rosto iluminado. -Vamos fazer uma cerimónia conjunta. Todos nós. Um casamento triplo no Dia de São Valentim. É o ideal. É... acertado.

- Para mim, pode ser - afirmou Brad, olhando para Zoe. - O que é que dizes?

- Digo que forma um círculo amoroso.

- Tenho de ir de fato? - inquiriu Simon.

- Sim - respondeu a mãe, com ar decidido.

- Logo vi - resmungou Simon, enquanto os projectos de casamento voavam pela mesa.

Quando a refeição chegou ao fim, reuniram-se todos na sala onde o retrato das filhas pairava acima deles. O fogo ardia na lareira, emitindo chamas vermelhas e douradas. Uma centena de velas espalhava o seu brilho magnífico.

- Estou nervosa - confessou Zoe em voz baixa, e procurou a mão de Brad. - É uma parvoíce estar nervosa nesta altura.

Ele levou-lhe a mão aos lábios.

- Foi um árduo dia de trabalho, campeã.

Ela desatou a rir mas a sua barriga deu uma volta quando Pitte ergueu a Caixa das Almas.

- Uma artista, uma estudiosa e uma guerreira - afirmou, pousando a caixa no seu pedestal enquanto as luzes vibravam no seu interior. - Lá dentro e cá fora, o espelho e o seu reflexo. Através dos seus corações, das suas mentes, da sua valentia, a última fechadura poderá ser aberta.

Dito isto, afastou-se, como um soldado, enquanto Rowena ocupava o seu lugar para que a caixa fosse aberta.

- Por favor - pediu a Zoe -, envia-as para casa.

A sua barriga acalmou, e o coração começou a bater com naturalidade quando ela atravessou a sala. Sentia a forma da chave na mão, e o seu calor, enquanto olhava para a fechadura derradeira. E para as luzes que adejavam como asas do lado de dentro do vidro.

Respirou fundo, susteve a respiração, introduziu a chave na fechadura e fê-la girar.

Sentiu um calor espalhar-se pelos seus dedos. A luz irrompeu, branca, pura e reluzente. com espanto, viu a tampa da caixa abrir-se, viu o vidro como que explodir sem som, fazendo subir cristais pelo ar em espiral.

As três luzes azuis libertaram-se, rodopiaram e descreveram um círculo, unidas pelo seu brilho como caudas de cometa. O ar reluziu, branco e azul.

Deslumbrada, ouviu Simon gritar:

- Ei, que fixe!

Zoe estendeu a mão, fascinada, para tocar numa dessas luzes rodopiantes.

Por um instante, ela permaneceu na sua palma da mão. A sua beleza, a sua alegria penetraram nela com tanta força, tanta intimidade, que ela ficou estupefacta.

Ficou a olhar, confusa, ao ver Malory e Dana, tal como ela, de mãos estendidas, cada uma com uma luz azul vibrante na palma da mão.

"Tocámos em almas", percebeu.

Depois as luzes pareceram dar um salto, correndo de mão em mão numa espécie de loucura feliz, rodopiando sedutoramente em torno dos homens, brincando animadamente e rindo com Simon, acima das cabeças dos cães, para depois dispararem até Rowena e Pitte, e ficarem a pairar no lugar onde estes se tinham ajoelhado num sinal de reverência.

- Isto é tão bonito - exclamou Malory, agarrando na mão de Zoe e alcançando a mão de Dana. - Nunca tinha visto nada tão belo.

Mais uma vez, as três luzes ergueram-se num círculo perfeito, e depois separaram-se, dispararam em direcção ao retrato e entraram nele.

O quadro iluminou-se, e as suas cores, já de si bastante ricas, ficaram mais profundas. Zoe era capaz de jurar que, por um instante apenas, ouviu três corações começarem de novo a bater.

A seguir, ficou tudo em silêncio.

- Elas já estão em liberdade - afirmou Rowena, com a voz a vibrar sob as lágrimas. - Chegaram a casa.

A seguir, dirigiu-se até às três mulheres.

- Esta é uma dívida que nunca poderá ser paga. O que vos oferecemos é apenas uma lembrança - afirmou, aproximando-se para beijar cada uma delas no rosto. - Sentem-se, por favor. Sei que têm muito que fazer amanhã, mas ainda temos uma ou duas coisas a conversar.

- Não sei se conseguirei dizer coisa com coisa neste preciso momento - desculpou-se Zoe, levando as mãos à boca e olhando para o retrato. - Se é que alguma vez virei a conseguir.

- Champanhe - disse Rowena, atirando a cabeça para trás e desatando a rir. - Vamos beber champanhe para festejar este grande dia. Para festejar a nossa alegria e a vossa fortuna.

Deu meia-volta para ir buscar as taças que Pitte começara já a servir.

- Ao Dia de Acção de Graças - disse ela, e o seu rosto reluzia quando ela distribuiu os copos. - Oh, e que dia para estarmos gratos. Na vida tudo acaba sempre por cumprir o seu destino. E vocês acabaram de encontrar o vosso.

- Vamos resolver as questões relacionadas com o negócio começou Pitte. - Os fundos serão transferidos para as vossas contas de imediato, como ficou combinado.

- Não - afirmou Dana, sentando-se a beber o seu champanhe, e vendo o olhar de soslaio de Zoe quando Pitte pestanejou.

- Perdão?

- Querem mais? - num gesto de aceitação, Rowena ergueu o braço. - Não me digas que um acordo é um acordo - afirmou ela, antes que Pitte tivesse oportunidade de falar. - Se elas querem mais do que a quantia acordada, receberão mais.

- Não - repetiu Dana. - Não queremos mais. Não queremos dinheiro nenhum - explicou ela, erguendo um dedo no ar, na direcção de Brad. - Sr. Negócios?

- As partes prescindem do pagamento - começou Brad. Estava a divertir-se, adorava aquelas mulheres. - Depois de terem debatido os termos contratuais, chegaram a um acordo, unânime, e recusam qualquer remuneração monetária.

A seguir, estendeu um papel que redigira à pressa, seguindo as instruções das três mulheres, assinado por elas, do qual ele, Flynn, Jordan e Simon eram testemunhas.

- Este documento, embora informal, é explícito e válido. Estendeu-o, e esperou que Pitte se aproximasse para o recolher.

- O pagamento tinha ficado acordado - começou este último.

- Isso foi antes - replicou Malory, olhando para o retrato.

- Antes de vos conhecermos, a vocês e a elas. Quando isto ainda era uma espécie de desafio. Não podemos aceitar dinheiro por isto.

- Nós aceitámos um adiantamento - afirmou Dana. - E não iremos devolvê-lo porque, bem, já foi gasto - explicou ela, encolhendo os ombros com ar descontraído. - Mas não vamos enriquecer à custa das almas delas.

- O dinheiro não significa nada para nós - começou Rowena.

- Não - disse Zoe, acenando com a cabeça. - Mas significa alguma coisa para nós, portanto não podemos aceitar. O caminho que seguirmos a partir daqui, o que fizermos a partir de agora, é por nossa conta, e em conjunto. É essa a nossa decisão, e... esperamos que a respeitem - concluiu.

- A honra - comentou Pitte devagar - não tem preço. Sinto-me humilde perante a vossa.

- Bebamos - com um sorriso nos lábios, Dana ergueu o seu copo. - Vai ser a primeira vez que bebo para festejar o facto de ter recusado um milhão.

Rowena encaminhou-se até Zoe.

- Queria dar-te uma palavrinha, a sós.

Rowena tinha estado à espera e, embora Zoe estivesse de pé, permaneceu no mesmo lugar.

- Vais conceder-me uma dádiva, como fizeste quando a Malory e a Dana encontraram as chaves delas. Não é verdade?

- É - disse Rowena, subindo e baixando as sobrancelhas. Aqui? Ali?

- Por favor.

- Muito bem. Sabes que a dívida é profunda. Como foste a última, sabes melhor a profundidade e a impossibilidade de pagar o que foi feito. No entanto, se houver alguma coisa que queiras e eu te possa dar, é teu.

- A Malory e a Dana não pediram nada.

- Não. Mesmo assim...

- Mas eu vou pedir.

- Ah! - exclamou Rowena, contente, e pegou-lhe na mão. O que queres?

- Visto que abrimos a caixa... Ainda que te peça algo que não tenhas...

- Eu tenho muitas possibilidades-afirmou Rowena, com uma gargalhada. - Prometo-te.

- Mas se não puderes, dadas as circunstâncias, existem outras pessoas que sabem o que aconteceu aqui, o que eu fiz, e talvez elas possam dar-me o que pretendo.

- Estás a intrigar-me - comunicou Rowena, inclinando a cabeça. - Creio que podes pedir tudo o que quiseres. Como te disse, o nosso rei ama as suas filhas, e não iria deixar de te pagar por tudo o que fizeste. O que desejas, Zoe?

- Que tu e o Pitte possam voltar para casa.

Os dedos de Rowena ficaram sem força dentro da mão dela, e soltaram-se.

- Não estou a entender.

- É isso o que eu quero. Foi o que decidi pedir, mesmo antes de saber que era isso que elas queriam - afirmou, apontando para o retrato. - Elas tocaram-nos, e nós os seis fomos um nesse instante. É isso o que nós queremos.

Pitte avançou e pousou uma mão no ombro de Rowena.

- Somos os únicos responsáveis pela nossa prisão.

- Não, o responsável é o Kane - interrompeu Dana. - E agrada-me pensar que ele está a penar no inferno. Vocês já pagaram pela vossa responsabilidade no assunto. As filhas compreendem isso.

- Disseste-me que os deuses não têm perdão - prosseguiu Zoe. - Porém, as mais prejudicadas nunca vos atribuíram as culpas pelo sucedido. E vocês mantiveram o vosso acordo, a vossa palavra e a vossa honra durante três mil anos. Quaisquer regras que tenham infringido destinaram-se apenas a salvar vidas depois de o Kane ter pisado o risco. Peço que vocês não sejam punidos por isso.

- Isso não é uma coisa... - lançando um olhar de impotência em direcção a Pitte, Rowena abanou a cabeça.

- Se eu fosse a ti não discutia com ela - disse Brad, fazendo uma festa rápida nos cabelos de Simon e dirigindo uma olhadela afectuosa em direcção a Zoe. - É uma mulher muito determinada.

- E generosa - mais que comovida, Rowena levou a mão ao coração. - Porém, não temos poder para aquilo que nos pedes.

- O rei tem. Achas que ele me vai dizer que não? Achas que lhes vai dizer que não? - decidida, Zoe apontou para o retrato.

- Se disser, pode ser um rei mas não percebe patavina de justiça.

- Cuidado - numa atitude pouco afirmativa, Pitte ergueu uma mão, em sinal de aviso. - Até um guerreiro deve ter cuidado ao falar de um rei.

"Há alturas em que devemos pousar a espada", pensou Zoe. "E há alturas em que devemos lutar." Zoe resolveu pôr-se de pé.

- Ele entregou-me uma espada, e eu usei-a. Lutei pelas filhas dele e ajudei a salvá-las.

Descrevendo um círculo, foi estudando os rostos dos amigos, da sua família.

- Toda a gente nesta sala trabalhou, correu riscos e lutou para as libertar, para as mandar para casa. É esse o pagamento que eu quero. É este o equilíbrio da justiça. Se ele é um rei, se é um pai, há-de conceder-mo.

Ouviu-se o ribombar de um trovão, não apenas lá fora mas, ao que parecia, também dentro da própria sala. O grande casarão oscilou e as chamas da lareira soltaram faíscas.

- Caramba! - exclamou Dana, engolindo em seco, e enfiou a mão dentro da mão de Jordan. - Espero que aquilo seja um sim.

No mesmo instante, Rowena apertou-se contra Pitte. As palavras que ela proferiu eram estranhas, carregadas de emoção, tal como as dele quando lhe respondeu.

Uma sensação de paz total espelhou-se-lhe no rosto antes de ele o mergulhar nos cabelos dela.

- Eu diria que aquilo foi um grande sim - deduziu Jordan. - És uma mulher de armas, Zoe.

- Bem - começou ela, e pegou no copo, divertida por ver os seus próprios dedos a tremer. - Viva!

- Em todos os anos desde que cheguei - afirmou Pitte em voz baixa -, em todas as horas e dias infindáveis em que senti vontade de voltar, nunca me apercebi de que viria a sentir falta de alguma coisa neste mundo. Vou sentir a tua falta - disse e, com Rowena apertada a seu lado, curvou-se para beijar Zoe. - Vou sentir a falta de todos vós.

- Nós não vos esqueceremos - prometeu Rowena, afastando-se de Pitte para fazer uma vénia profunda, e desatou a rir quando Moe se aproximou para lhe dar uma lambidela na cara. - E há muitas coisas de que vou sentir a falta. Toma conta deles, meu belo guerreiro - pediu, e deu um beijo no focinho de Moe. Tomem conta uns dos outros. Os deuses estão gratos a todos vós.

Rowena endireitou-se e fez um sorriso magnífico.

- Irmãos, irmãs. Amigos. Os nossos agradecimentos e as nossas bênçãos para vós - proferiu, e estendeu a mão para Pitte.

Os seus dedos uniram-se, e eles desvaneceram-se.

No dia seguinte, às vinte para as sete da tarde, Dana fechou a porta da Indulgence à chave. Virando-se, sorriu para as amigas e deixou-se cair no chão.

- Têm a certeza de que não falta ninguém? Têm a certeza de que só estamos cá nós? - perguntou Zoe.

- Só estamos cá nós - garantiu-lhe Malory.

- Santíssimo Deus! - gritou, e deu um salto no ar. - Conseguimos!

- Conseguimos, demos e vendemos - afirmou Dana, do chão.

- Nunca me tinha sentido tão cansada em toda a minha vida. Sou capaz de ficar aqui a dormir até amanhã.

- Somos um êxito. Viram? Viram que tudo resultou? - com um tom de voz animado, Malory girou sobre si própria. - Exactamente como nós esperávamos. Uma das tuas clientes que veio à manicura comprou a minha taça de vidro castanha.

- E duas das tuas clientes de obras de arte reservaram um pacote completo no spa.

- Eu vendi livros a toda a gente e mais alguma - acrescentou Dana a cantar, enquanto fingia dormir sobre as mãos unidas.

- E acho que todas passaram pela minha loja ao sair do cabeleireiro da Zoe. E adoraram. Quantas vezes ouviram as pessoas dizer que estava tudo tão bonito, tão animado, que era a melhor coisa que podia acontecer no Vale?

- Perdi-lhes a conta - confessou Dana, erguendo a cabeça. Vou precisar de outra vendedora. A Joanne e eu não conseguimos aguentar.

- Eu vou ter de encomendar mais mercadoria - comunicou Zoe, olhando para as escadas. - Se calhar, era melhor ir agora lá acima fazer o inventário.

- Que se lixe o inventário - disse Malory, agarrando-lhe no braço. - Vamos festejar. Há champanhe na cozinha.

- Bebi mais champanhe nos últimos três meses do que em toda a minha vida - confessou Dana, soltando um suspiro. - Mas não importa. Quem é que me ajuda a ir até lá acima?

Zoe pegou-lhe num braço, Malory no outro, e as duas puseram-na de pé.

- Graças a Deus não precisamos de ir para a casa cozinhar lembrou Zoe. - Temos todas comida que chegue. Estou ansiosa

por contar ao Bradley e ao Simon como correu o dia. O que eles viram esta manhã não foi nada.

- Espero conseguir convencer o Jordan a massajar-me os pés durante uma hora - afirmou Dana na cozinha, espreitando para dentro do frigorífico à procura do champanhe.

- Não se esqueçam de que temos de começar a fazer os planos de casamento no domingo. Fevereiro chega num instante.

- Esclavagista - comentou Dana, aparecendo com a garrafa na mão. - O que é isso, Zoe?

- Estava em cima do balcão - a caixa que ela trazia estava envolta em papel prateado, com uma fita dourada. Havia três chaves douradas presas ao laço. - Este não é o teu papel de embrulho, pois não, Malory?

- Não, mas é lindo. Devia tentar descobrir de onde veio. Mas não é nada que nenhum dos meus clientes tenha deixado para trás.

- Talvez tenha sido um dos rapazes que entrou sem nós vermos e que a deixou para nós - sugeriu Dana, apalpando a caixa antes de ir buscar os copos. - Seria simpático.

- Só há uma maneira de descobrir - disse Zoe, pegando cuidadosamente no papel pelas pontas. - Não posso rasgá-lo; é demasiado bonito.

- Não tenhas pressa. Assim cria mais expectativa - disse Malory, encostada à bancada enquanto Dana abria o champanhe. - Meu Deus, estou exausta, mas sinto-me o melhor possível. É quase como se tivesse tido um dia de sexo fenomenal.

Malory olhou para Zoe enquanto esta abria a tampa da caixa.

- O que será?

- Há três caixas mais pequenas cá dentro. E um bilhete. Primeiro, Zoe tirou as caixas.

- São para nós. Cada uma tem um dos nossos nomes. Céus, as caixas parecem ser mesmo de ouro.

Dana pegou na sua, e soltou um grito quando Malory lhe bateu na mão.

- Não abras ainda. Vamos ler o bilhete.

- Ena, és tão rigorosa. O que é que diz, Zoe?

- Oh! Oh! É da Rowena - exclamou, e ergueu o bilhete para todas conseguirem reunir-se a ler à sua volta.

"Minhas queridas amigas,

Sei que este bilhete vos vai encontrar felizes e de saúde, e fico contente por isso. O Pitte e eu enviamo-vos o nosso amor e a nossa gratidão. Ainda há trabalho a fazer no nosso mundo, mas o equilíbrio já está a ser restaurado. As celebrações começaram. Embora as sombras nunca se desvaneçam na totalidade, é devido a elas que a luz brilha.

Envio-vos este bilhete sentada no jardim, a ouvir as vozes que estiveram tanto tempo silenciadas. Há alegria nelas, e em mim.

Estas prendas são das filhas, que desejaram dar-vos uma lembrança para celebrar e honrar o laço que vos une.

Quero que saibam que no dia dos vossos casamentos irão haver celebrações aqui, deste lado da Cortina, e que os deuses vos abençoam, a vós e aos vossos.

Envio o meu amor para vocês, para os vossos homens e para todos os que vos forem queridos.

Rowena"

- Ela parece... estar em paz - comentou Malory, com um suspiro. - Estou tão feliz por ela.

Zoe pousou o bilhete e roçou os dedos nele.

- Devíamos abrir as caixas em conjunto.

Pegaram nas caixas, assentiram, e abriram as tampas articuladas.

- Oh! - tal como as outras, Zoe ergueu o pendente preso num longo fio. - Os pendentes que elas traziam no retrato. Aqueles que a Rowena disse que tinha sido o pai a oferecer-lhes - lembrou, e tocou suavemente o verde-profundo do cabochão de esmeralda.

- São sofisticados - comentou Malory, espantada, e olhou para a rica tonalidade da safira. - Absolutamente lindos.

- E pessoais - concluiu Dana, pegando no seu rubi. - Uma espécie de herança familiar. Sabem, talvez seja um pouco ultrapassada aquela tradição de usar algo antigo, algo novo e algo emprestado no dia do casamento. Mas isto é mesmo antigo. Acho que devíamos todas usá-los no casamento.

- Acho uma excelente ideia. Zoe?

- É uma ideia excelente - afirmou e, passando-o pela cabeça, manteve a mão a envolver a pedra. - Acho que devíamos fazer um brinde. Cada uma pensa numa coisa?

- À beleza - anunciou Malory, erguendo a sua taça. - À verdade e à coragem.

- Às Filhas do Vidro - acrescentou Dana.

- E que diabo! A nós - afirmou Zoe, erguendo a sua taça. Quando fizeram tilintar o cristal, a névoa prateada da Cortina dos Sonhos encerrou-se suavemente. Por algum tempo.

 

 

                                                                  Nora Roberts

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                                   

O melhor da literatura para todos os gostos e idades