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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CHAVE DA LUZ / Nora Roberts
A CHAVE DA LUZ / Nora Roberts

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A tempestade precipitava-se sobre as montanhas, despejan­do torrentes de chuva que atingiam o solo com o som agu­do do metal a bater na pedra. Os clarões dos relâmpagos faiscavam com a ira de um pelotão de artilharia a abrir fogo con­tra o troar de canhão da trovoada.

Havia uma espécie sinistra de maldade no ar, um acesso de mau humor e de rancor que parecia ferver a alta temperatura.

O ambiente estava perfeitamente de acordo com o estado de espírito de Malory Price.

Não perguntara a si mesma que mais poderia correr mal? Ago­ra, em resposta a essa questão gasta e completamente retórica, a Natureza - em toda a sua ira maternal - mostrava-lhe até onde as coisas podiam piorar.

Ouvia-se um silvo ameaçador algures no capô do seu querido Mazda, e ainda tinha dezanove mensalidades por pagar. E, para fazer esses pagamentos, tinha de manter o emprego.

Malory odiava o emprego.

Não fazia parte do plano de vida de Malory Price, que começa­ra a esboçar aos oito anos. Vinte anos mais tarde, esse esboço transformara-se numa lista pormenorizada e organizada, com tí­tulos, subtítulos e notas remissivas. E ela revia-o meticulosamente no primeiro dia de cada ano.

Porém, devia adorar o emprego. Era o que dizia, muito expli­citamente, sob o título CARREIRA.

 

 

 

 

 

 

 

Trabalhava n’A Galeria há sete anos, o último dos quais como gerente, o que estava perfeito. E adorara tudo aquilo - estar cercada de obras de arte, ter praticamente carta branca na disposição, aquisição, promoção e elaboração de exposições e ou­tros eventos.

No entanto, começara a encarar a galeria como se lhe perten­cesse, e sabia muito bem que o resto do pessoal, os clientes, artis­tas e artesãos sentiam exactamente o mesmo.

James R. Horace podia ser o dono da pequena e elegante gale­ria de arte, mas nunca punha em questão as decisões de Malory e, nas suas cada vez mais raras visitas, elogiava-a sempre, impre­terivelmente, pelas aquisições, pelo ambiente e pelas vendas.

Fora perfeito, e era exactamente isso que Malory pretendia da sua vida. Afinal de contas, se não fosse perfeita, de que valeria?

Tudo se alterara quando James decidira acabar com cinquenta e três anos de vida de solteirão e adquirir uma mulher jovem e sensual. Uma mulher, pensava Malory com os seus olhos azuis semicerrados de ressentimento, que decidira fazer da galeria o seu animal de estimação.

Pouco importava que a nova Sra. Horace não tivesse a mínima noção de arte, negócios, relações públicas ou de como lidar com os empregados. James tinha um fraquinho pela
sua Pamela, e o emprego de sonho de Malory transformara-se num pesadelo.

”Mas estou a conseguir lidar com o assunto”, pensou Malory enquanto olhava pelo pára-brisas fumado e encharcado pela água da chuva. Tinha elaborado uma estratégia: limitar-se-ia a esperar que Pamela saísse. Permaneceria calma e senhora de si até aque­le bocado de entulho passar e o caminho ficar novamente livre.

Só que aquela excelente estratégia fora por água abaixo. Malory perdera a cabeça quando Pamela contrariara as suas ordens du­rante uma exposição de vitrais, pondo a galeria até então perfeita e esteticamente organizada de pernas para o ar com uma quantida­de enorme de lixo e tecidos horrorosos.

”Há coisas que consigo tolerar”, disse Malory para si mesma, ”mas levar uma bofetada de mau gosto no meu próprio espaço não é uma delas.”

Por outro lado, desatar aos berros com a mulher do patrão não era o caminho para a segurança no trabalho. Em especial utilizando palavras como míope e bimba[1] vulgar.

Um relâmpago rasgou o céu acima da elevação à sua frente, e Malory estremeceu, tanto por recordar o seu mau humor quanto devido ao clarão. Fora uma péssima jogada da sua parte, que apenas demonstrava o que podia acontecer quando se cedia à má disposição e aos impulsos.

Para piorar as coisas, Entornara café com leite em cima do fato Escada[2] que Pamela trazia vestido.

Contudo, isso tinha mesmo acontecido quase por acaso.

 

Por mais que James gostasse dela, Malory sabia que o seu sus­tento estava preso por um fio muito ténue. E quando esse fio se partisse, ela afundar-se-ia. Não havia uma galeria de arte em cada canto e em cada esquina numa bonita cidade pitoresca como Pleasant Valley. Teria de encontrar outra área de trabalho, ou mudar de residência.

Nenhuma das opções a deixava com um sorriso na cara.

Adorava Pleasant Valley, adorava estar rodeada pelas monta­nhas da região Oeste da Pensilvânia. Adorava a sensação de viver numa pequena cidade, a mistura de exotismo e sofisticação que atraía os turistas, e as multidões em debandada que abandona­vam a vizinha Pittsburgh para passar fins-de-semana cheios de imprevisto.

Mesmo quando era criança e vivia nos subúrbios de Pittsburgh, Pleasant Valley era exactamente o tipo de lugar onde se imagina­ra a viver. Sentia a falta das montanhas, com os seus matizes e sombras, e das ruas limpas de uma cidade no vale, da simplicida­de do ritmo de vida e da afectuosidade dos vizinhos.

A decisão de se unir um dia à estrutura de Pleasant Valley fora tomada quando tinha catorze anos e passara lá um fim-de-semana grande com os pais, durante as férias.

Tal como decidira, enquanto deambulava pela galeria nesse Outono distante, que um dia viria a fazer parte daquele espaço.

Como é evidente, na altura pensara que os seus quadros viriam a ser exibidos na galeria, porém esse era um ponto da lista que se vira obrigada a apagar, em vez de riscar depois de concretizado.

 

Malory nunca viria a ser artista. Porém, precisava de estar envolvida e rodeada de arte.

Apesar disso, não queria voltar a viver na cidade. Queria man­ter o seu encantador apartamento espaçoso a dois quarteirões d’A Galeria, com vista para os Apalaches, com o velho soalho a ranger, e as paredes cobertas de obras de arte criteriosamente seleccionadas.

Contudo, a esperança de que isso acontecesse parecia agora tão sombria como o céu no meio do temporal.

”Isto quer dizer que não fui inteligente a gerir o meu dinhei­ro”, reconheceu Malory com um suspiro sonoro. Não via porque havia de o deixar parado num banco, quando ele podia ser trans­formado em algo de bonito para ver ou usar. Até ser gasto, o dinheiro não passava de papel. Mais, tinha tendência para gas­tar uma grande quantidade de papel.

A sua conta bancária estava em baixo. Novamente. Ultrapas­sara o limite dos cartões de crédito. Idem. ”Porém”, fez questão de recordar a si mesma, ”tenho um guarda-roupa excelente. E o início de uma impressionante colecção de arte.” Que teria de vender, peça por peça e muito provavelmente por um valor infe­rior, para ter um telhado onde se abrigar caso Pamela decidisse abrir guerra.

No entanto, talvez aquela noite viesse a proporcionar-lhe al­gum tempo extra e boa vontade. Não tinha querido ir ao cocktail do Pico do Guerreiro. ”Um nome fantasioso para uma velha es­pelunca sinistra”, pensou. Noutra altura ter-se-ia sentido entusias­mada com a oportunidade de espreitar para dentro daquela grande casa velha no cimo da cordilheira. E cruzar-se com pessoas que podiam ser patronos de arte.

Porém, o convite fora demasiado estranho - escrito com uma caligrafia elegante num papel pesado, cor de pedra, tendo por logótipo uma chave de ouro dourada em jeito de cabeçalho. Apesar de estar agora dentro da sua malinha, com o pó-de-arroz, o batom, o telemóvel, os óculos, uma caneta nova, cartões-de-visita e dez dólares, Malory recordou o convite:

 

Agradecemos o prazer da sua companhia num cocktail e convívio às oito da noite de 4 de Setembro, no Pico do Guerreiro, Você é a chave. A fechadura aguarda.

 

”É ou não é estranho?”, perguntou Malory a si própria, e ran­geu os dentes quando o automóvel oscilou com uma súbita raja­da de vento. Com o rumo que a sua sorte estava a tomar, só se fosse um estratagema para levar a cabo um esquema piramidal qualquer.

A casa estava vazia há vários anos. Ela sabia que fora compra­da recentemente, mas os pormenores eram escassos. Uma organi­zação denominada Triad, segundo se recordava. Partiu do princípio de que se trataria de algum tipo de empresa com o intuito de transformá-la num hotel ou numa mini-estância.

Tal não explicava por que motivo teriam convidado
a gerente d’A Galeria, e não o dono e a sua mulher metediça. Pamela sen­tira-se bastante despeitada - e isso já era alguma coisa.

Apesar disso, Malory teria dispensado muito bem a noite. Não tinha namorado - outro aspecto da sua vida que constituía um aborrecimento nos últimos tempos - e ir sozinha de automóvel para as montanhas em direcção a uma casa tirada de um filme de terror de Hollywood, no seguimento de um convite que a deixa­va embaraçada, não estava na sua lista de coisas divertidas para fazer no meio da semana.

Não havia qualquer número ou outro contacto para R. S. F. R e sentiu isso como algo de arrogante e grosseiro. A resposta nula que tencionava dar ao convite teria sido igualmente arrogante e grosseira, mas James vira o envelope em cima da sua secretária.

James ficara entusiasmadíssimo, esfusiante com a ideia de ela ir, e pressionara-a para lhe descrever o interior da casa com todos os pormenores. E recordara-lhe que, se conseguisse introduzir discretamente o nome d’A Galeria de vez em quando na conver­sa, isso viria a favorecer os negócios.

Se conseguisse arranjar novos clientes, talvez pudesse fazer esquecer o incidente do Escada e o comentário da bimba.

O automóvel de Malory subiu ruidosamente a estrada estreita que atravessava a densa floresta escura. Sempre pensara naquela montanha e naquele bosque como uma espécie de efeito Sleepy Hollow[3] que assombrava o seu belo vale. Porém, naquele preciso momento, com o vento, a chuva e a escuridão, os aspectos me­nos serenos desse velho conto estavam talvez demasiado em evi­dência para que ela conseguisse ter paz de espírito.

Se o que quer que motivava a sua impetuosidade era a sério, poderia acabar desfeita à beira da estrada, aninhada dentro do automóvel a ouvir os gemidos e as vergastadas do temporal e a imaginar cavaleiros sem cabeça enquanto esperava por um rebo­cador que não podia pagar.

Como é evidente, a solução era não se deixar ir abaixo.

Pareceu-lhe ver vestígios de luzes a brilhar por entre a chuva e o arvoredo, mas o limpa-pára-brisas estava a trabalhar no máxi­mo e, mesmo assim, mal conseguiam afastar aquele dilúvio.

Quando voltou a cair um relâmpago, agarrou o volante com mais força. Gostava tanto de uma boa trovoada como qualquer pessoa, mas preferia apreciá-la num lugar protegido, fosse onde fosse, com um bom copo de vinho.

Não podia deixar de estar perto. Até onde podia ascender uma única estrada antes de começar a descrever o seu caminho des­cendente do outro lado da montanha? Sabia que o Pico do Guer­reiro ficava no cimo da cordilheira, como que guardando o vale mais abaixo. Ou elevando-se soberanamente acima do vale, de­pendendo do ponto de vista. Não se cruzava com nenhum auto­móvel há vários quilómetros, o que só provava que qualquer pessoa com miolos não andaria a conduzir no meio daquele temporal.


A estrada bifurcava-se e o caminho que ficava para a direita estendia-se por entre enormes pilares de pedra. Malory abrandou para admirar os guerreiros em tamanho natural, de pé sobre cada um dos pilares. Talvez fosse da tempestade, da noite ou do seu estado de espírito receoso, mas pareciam mais humanos do que feitos de pedra, com os cabelos a esvoaçar em torno dos rostos temerários e as mãos empunhando espadas. Por entre o clarão do relâmpago quase conseguia ver-lhes os músculos rete­sados dos braços e do amplo peito despido.

Teve de combater a tentação de sair do carro para ver melhor ao perto. Mas o frio que lhe percorreu a espinha ao passar os portões de ferro abertos fê-la olhar para os guerreiros acima dela com um misto de temor e de admiração pela perícia do escultor.

Depois carregou no travão[4] e derrapou na gravilha[5] da estrada. O coração subiu-lhe à garganta quando olhou para o gamo arro­gantemente erguido um metro à frente do pára-choques, com as linhas excêntricas da casa estendendo-se por detrás dele.

Por alguns instantes pensou que o veado também era uma escultura, embora não pudesse entender o que levaria alguma pessoa no seu perfeito juízo a colocar uma escultura no meio de uma estrada. Por outro lado, a sanidade não parecia ser um ter­mo operativo para quem optasse por viver na casa da cordilheira.

Porém, os olhos do veado brilharam, emitindo um tom azul-safira à luz dos faróis, e a sua cabeça ornamentada por hastes majestosas virou-se ligeiramente. ”Com realeza”, pensou Malory, hipnotizada. A chuva escorria-lhe pelo pêlo, e no seguinte clarão de luz esse pêlo parecia branco como a Lua.

O veado olhou para ela, mas não havia nenhum vestígio de receio, nem uma réstia de surpresa no seu olhar. Havia, se pos­sível, uma espécie de desdém divertido. Depois, limitou-se a afastar-se, por entre a cortina de chuva e os rios de névoa, e desapareceu.

- Ena[6]! - exclamou Malory, suspirando prolongadamente, e es­tremecendo no calor do automóvel. - E mais uma vez: Ena! - murmurou, ao olhar para a casa.

Já tinha visto fotografias daquela casa, e quadros também. Vira a sua silhueta no topo da cordilheira que se erguia sobre o vale.

Porém, era completamente diferente vê-la de perto no meio de um temporal.

Era algo entre um castelo, uma fortaleza e uma casa de horro­res, concluiu.

Era feita de pedra negra, com ressaltos e torreões, picos e ameias ora empilhados ora dispersos, como se alguma criança muito inte­ligente e endiabrada os tivesse disposto a seu capricho. Contra aquela superfície negra, as janelas longas e estreitas, talvez cente­nas delas, reluziam, emitindo todas um brilho dourado.

Alguém não estava muito preocupado com a conta da electri­cidade.

O nevoeiro pairava em torno da sua base como um fosso de névoa.

No choque do clarão seguinte, vislumbrou um estandarte bran­co com a chave dourada a abanar erraticamente, pendendo
de um dos pináculos superiores.

Malory aproximou um pouco mais o carro. Havia gárgulas sa­lientes ao longo das paredes e por cima das goteiras. A água das chuvas saía em esguicho pelas bocas abertas e vertia pelas garras, enquanto as figuras a olhavam de cima com um esgar.

Ela parou o carro em frente da superfície de pedra de um pórtico amplo e considerou, muito seriamente, enfrentar a tem­pestade e voltar para trás.

Chamou-se a si mesma ”cobarde”, ”criança imbecil”. Pergun­tou a si mesma onde teria perdido o seu sentido de aventura e de diversão.

Os insultos resultaram tão bem que em breve estava a bater com os dedos no manípulo da porta do automóvel. Ao ouvir uma batida rápida no vidro saiu-lhe um grito pela boca.

O rosto pálido e ossudo, rodeado por uma capa preta, que a olhou transformou o grito numa espécie de lamento com a respira­ção suspensa.

”As gárgulas não ganham vida”, garantiu a si mesma, repetindo as palavras dentro da cabeça enquanto descia prudentemente o vidro cerca de meio palmo.

- Bem-vinda ao Pico do Guerreiro - bramiu a voz masculina aci­ma do barulho da chuva, exibindo um sorriso com muitos dentes. -Pode deixar as chaves no carro, menina, que eu vou estacionar-lho.

Antes de conseguir pensar em trancar os fechos já ele lhe tinha aberto a porta, protegendo-a do vento e da chuva com o corpo e o maior guarda-chuva que ela já tinha visto.

-Vou acompanhá-la à porta para não se molhar.

Que sotaque seria aquele? Inglês? Irlandês? Escocês?

- Obrigada - disse ela e tentou sair do carro, mas sentiu-se presa. O pânico transformou-se em embaraço quando se aperce­beu de que ainda tinha de desapertar o cinto de segurança.

Livre, aconchegou-se por debaixo do guarda-chuva, tentando normalizar a respiração enquanto ele a acompanhava até às por­tas duplas da entrada. Eram bastante amplas e exibiam batentes de prata baça do tamanho de travessas de peru, com a forma de cabeças de dragões.

”Que recepção!”, pensou Malory um segundo antes de uma das portas se abrir, deixando sair a luz e o calor do ambiente.

A mulher tinha uns belos cabelos lisos da cor do fogo, que envolviam um rosto pálido com curvas e ângulos perfeitos. Os seus olhos verdes dançavam como se estivesse perante uma brin­cadeira privada. Era alta e magra, envolta num vestido de noite de um negro fluido. Um amuleto de prata com uma pedra clara e bojuda[7] pendia-lhe entre os seios.

Os seus lábios, tão vermelhos como os cabelos, curvaram-se quando ela estendeu uma mão reluzente de anéis.

”Parece”, pensou Malory, ”uma personagem acabada de sair de um conto de fadas muito sensual.”

- Menina Príce. Seja bem-vinda. Está uma tempestade encan­tadora, mas certamente desagradável para se ficar na rua. Entre.

A mão era quente e forte, e manteve-se firme em torno da mão de Malory enquanto a mulher a conduzia
para o átrio.

A luz tombava de um lustre de cristal com pendentes tão finos que pareciam feitos de açúcar reluzente sobre as curvas e contra-curvas da prata.

O chão era de mosaicos, e nele estavam representados os guer­reiros do portão e o que parecia ser um grande número de figuras mitológicas. Malory não podia ajoelhar-se a estudá-lo como lhe teria apetecido, e teve de se conter para não emitir um gemido orgásmico perante os quadros que enchiam as paredes cor de manteiga derretida.

- Fico muito contente por ter conseguido fazer-nos compa­nhia esta noite - prosseguiu a mulher. - Eu sou a Rowena. Por favor, deixe-me levá-la até à salinha. A lareira está muito agradá­vel. Embora ainda estejamos no princípio do ano, a tempestade já se estava a fazer esperar. Foi difícil chegar cá?

- Foi um desafio, Sr.a...

- Rowena. Apenas Rowena.

- Rowena. Será que posso dispor de alguns momentos para me recompor antes de ir ter com os outros convidados?

- Com certeza. Na casa de banho - apontou para uma porta escondida por debaixo do grande lanço da escadaria principal. -A salinha fica no primeiro piso à sua direita. Esteja à vontade.

- Obrigada - Malory entrou e achou que a expressão ”casa de banho” era fraca para designar aquele espaço amplo e luxuoso.

Da meia dúzia de velas em cima da bancada de mármore ema­nava luz e aroma. Toalhas de mãos grená debruadas a renda de linho cru estavam dispostas ao pé do lavatório de dimensões ge­nerosas. A torneira reluzia em tons de ouro sob a forma elegante de um cisne.

 

Ali, os mosaicos representavam uma sereia sentada sobre as rochas, a sorrir para um mar azul enquanto penteava os seus ca­belos em tons de fogo.

Desta vez, depois de verificar para ter a certeza de que trancara a porta, Malory ajoelhou-se mesmo para observar a perícia dos artesãos.

”Que belo!”, pensou enquanto passava as pontas dos dedos pelos ladrilhos. Eram certamente antigos, e magnificamente exe­cutados.

Haveria coisa mais poderosa do que a capacidade de criar beleza?

Malory pôs-se de pé e lavou as mãos com um sabonete que tinha um leve aroma a rosmaninho. Demorou-se alguns instantes a admirar a colecção de ninfas e sereias de Waterhouse emoldu­radas nas paredes antes de tirar o pó-de-arroz de dentro da mala.

Não havia grande coisa a fazer em relação aos cabelos. Embora os tivesse puxado para trás, prendendo-os na nuca com um gan­cho cristalino, o mau tempo tinha desalinhado os seus caracóis louro-escuros. ”um visual”, pensou, enquanto punha pó-de-arroz no nariz. Um pouco artístico e descuidado. Não era ele­gante como o da ruiva, mas ficava-lhe bastante bem. Voltou a pôr batom, satisfeita por o rosa-pálido ter sido um bom investimento. As cores mais subtis ligavam melhor com o tom leitoso da sua pele.

Pagara demasiado dinheiro pelo fato de cocktail. Não pudera deixar de ser. Porém, uma mulher tinha direito a ter algumas fra­quezas, recordou para si mesma enquanto endireitava as finas lapelas de cetim. Além disso, o azul-ardósia ficava a matar com os seus olhos, e as linhas do fato compunham a imagem num estilo simultaneamente profissional e elegante. Fechou a mala e ergueu o queixo.

- Muito bem, Mal, vamos a isso.

Saiu da divisão, obrigando-se a não voltar a descer até ao átrio em bicos de pés para admirar os quadros.

Os saltos dos sapatos ecoavam no chão de mosaicos. Sempre apreciara aquele som. Poderoso. Feminino.

E ao passar o primeiro arco à direita, deixou escapar um suspi­ro de espanto sem conseguir suprimi-lo.

Nunca tinha visto nada assim, nem dentro nem fora dos mu­seus. Antiguidades tratadas com tanto carinho que as superfícies brilhavam como espelhos; tonalidades ricas e profundas que de­nunciavam a mão de um artista; tapetes, almofadas e cortinados que constituíam verdadeiras obras de arte tal como os quadros e a estatuária. Na parede do fundo havia uma lareira tão grande que seria possível estar lá dentro de braços esticados. Contornada a malaquite, continha inúmeros toros que soltavam línguas de fogo vermelhas e douradas.

Era o ambiente ideal para uma mulher que parecia saída de um conto de fadas.

Apetecia-lhe passar horas naquele lugar, a saborear todo aquele maravilhoso misto de luz e cor. A mulher pouco à vontade, enco­lhida dentro do automóvel, estava esquecida há muito.

- Foram precisos cinco minutos para que os meus olhos dei­xassem de estar esbugalhados depois de entrar.

Malory deu um pulo, e a seguir virou-se e olhou para a mulher que se encontrava de pé, emoldurada dentro do caixilho da ja­nela lateral.

Esta era morena, com os densos cabelos castanhos deslizando entre o maxilar e os ombros numa curva elegante. Devia ter um bom palmo acima do metro e sessenta e quatro de Malory, e belas curvas proporcionais à altura. Tudo isto dentro de umas cal­ças pretas justas e de um casaco a três quartos por cima de um top branco que lhe assentava muito bem.

Tinha uma taça de champanhe numa mão e estendeu a outra enquanto atravessava a sala. Malory reparou que os seus olhos eram castanho-escuros, profundos e directos. O seu nariz era fino e direito, e os lábios grandes mantinham o tom natural. Pequenos vestígios de sardas flutuaram-lhe no rosto quando ela sorriu.

- Eu sou a Dana. Dana Steele.

- Malory Price. Prazer em conhecê-la. Bonito casaco,

- Obrigada. Senti-me muito aliviada quando a vi chegar. Este lugar é formidável, mas já estava a ficar com receio de vir a ficar para aqui sozinha. Já passam cerca de quinze minutos da hora marcada - afirmou, batendo no vidro do relógio com a ponta dos dedos. -Acha que alguns dos outros convidados já terão chegado?

- Onde está a mulher que foi ter comigo à entrada? A Rowena? Dana contraiu os lábios enquanto dirigia o olhar para o arco.

- Limita-se a entrar e a sair, com um ar encantador e misterioso. Informaram-me de que o nosso anfitrião não tarda a chegar.

- Quem é o nosso anfitrião?

- Sabe tanto como eu. Donde será que a conheço? - acres­centou Dana. - Do Vale?

- Possivelmente. Sou gerente d’A Galeria - ”por enquanto”, pensou.

- É isso. Fui a uma ou duas inaugurações. E de vez em quando entro e fico a olhar avidamente para tudo aquilo. Trabalho na biblioteca. Sou bibliotecária.

Viraram-se as duas quando Rowena entrou. Embora ”desli­zou” fosse uma expressão mais adequada, na opinião de Malory.

- Estou a ver que já se apresentaram. Excelente. Posso arran­jar-lhe alguma bebida, menina Price?

- Posso tomar o mesmo que ela.

- Perfeito - no preciso momento em que ela disse aquilo, uma empregada de uniforme entrou com duas taças numa bandeja de prata. - Por favor, sirvam-se de canapés e façam de conta que estão em vossa casa.

- Espero que o mau tempo não impeça os outros convidados de virem - afirmou Dana.

Rowena limitou-se a sorrir.

-Estou certa de que todas as pessoas que esperamos não tarda­rão a chegar. Só lhes peço que me dêem mais alguns instantes.

- Tudo bem, só que isto é um pouco estranho - comentou Dana, servindo-se de um canapé ao acaso, e descobrindo que era um folhado de lagosta. - Delicioso, mas estranho.

-Fascinante - comentou Malory, bebendo um gole de champa­nhe enquanto passava os dedos por uma escultura em bronze representando uma fada numa posição reclinada.

- Ainda estou a tentar perceber porque terei sido convidada. -Já que ali estavam, Dana tirou mais um canapé. -Mais ninguém da biblioteca foi convidado. Pelo menos, não sei de ninguém que tenha recebido um convite. Afinal de contas, começo a pensar que devia ter convencido o meu irmão a acompanhar-me. É um excelente detector de embustes.

Malory deu por si a sorrir.

- Não a acho parecida com nenhuma bibliotecária que tenha conhecido. Também não tem ar de bibliotecária.

- Queimei todas as minhas peças da Laura Ashley há dez anos atrás - explicou Dana, e encolheu ligeiramente os ombros. Irre­quieta, movendo-se irritadamente, batia com os dedos na taça de cristal. - Vou dar-lhe mais dez minutos e a seguir vou-me em­bora.

- Se você for, eu também vou. Preferia voltar para o meio do temporal se mais alguém fosse para o Vale.

-Também digo - Dana franziu o sobrolho em direcção à jane­la e viu a chuva bater do outro lado do vidro. - Raio de noite! E foi um raio de dia! É o cúmulo ter de vir a conduzir até aqui e voltar no meio de tanta confusão para tomar dois copos de vinho e comer meia dúzia de canapés.

-Você também? - perguntou Malory, deambulando em direc­ção a uma pintura maravilhosa de um baile de máscaras. O qua­dro
fez-lhe lembrar Paris, embora nunca lá tivesse estado a não ser em sonhos. - Só vim aqui esta noite na esperança de estabele­cer alguns contactos para a galeria. Segurança profissional - acres­centou, erguendo a taça como se estivesse a fazer um brinde. -Porque o meu emprego está numa situação bastante precária.

- O meu também. Entre alguns cortes orçamentais e casos de favoritismo, a minha posição acabou por ser repensada. As mi­nhas horas de trabalho ficaram reduzidas a vinte e cinco por sema­na. Como é que querem que eu sobreviva? E o meu senhorio acaba de me anunciar que a renda vai aumentar a partir do pró­ximo mês.

- Tenho um silvo no meu carro... e gastei o dinheiro da revi­são nestes sapatos.

Dana olhou para baixo e comprimiu os lábios.

- São espantosos. O meu computador pifou esta manhã. Divertida, Malory afastou-se do quadro e ergueu o sobrolho para Dana.

- Eu chamei cadela à nova esposa do meu patrão e a seguir entornei-lhe café com leite em cima de seu vestido de marca.

- Pronto, ganhou - no espírito da boa camaradagem, Dana deu um passo em frente e fez tilintar a sua taça contra a de Malory. - O que me diz a irmos procurar a deusa galesa e descortinar o que vem a ser isto?

- Será esse o sotaque? Galês?

- Lindo, não acha? Mas seja como for, creio...

A sua voz desvaneceu-se quando ouviram distintamente o dique de sapatos de salto alto sobre o chão de mosaicos.

A primeira coisa em que Malory reparou foi nos cabelos. Eram pretos e curtos, com uma espessa franja cortada de forma tão direita que parecia ter sido usada uma régua. Por baixo, os olhos amarelo-acastanhados eram grandes, fazendo-a pensar novamente no pintor Waterhouse e nas suas fadas. Tinha um rosto triangular, reluzindo com o que poderia ser excitação, nervos, ou uma maquilhagem de excelente qualidade.

Pelo modo como ela manuseava a sua malinha preta, Malory optou pelos nervos.

Vinha de vermelho, vermelho de semáforo, num vestido dimi­nuto que aderia ao seu corpo curvilíneo e exibia umas pernas espantosas. Os sapatos de salto alto que se tinham ouvido contra o chão de mosaicos tinham bem uns dez centímetros de altura e eram afiados como punhais.

- Olá - proferiu, na sua voz ofegante, com o olhar a vaguear pela sala. - Hum! Ela disse-me para entrar.

- Bem-vinda à festa. Qualquer que seja o motivo. Dana Steele, e a minha companheira igualmente estupefacta desta noite, Malory Price.

- Eu sou a Zoe. McCourt - disse ela, dando mais um passo prudente como se esperasse que alguém lhe dissesse que se enganara e a mandasse sair dali - Santo Deus! Este lugar pare­ce um filme. É, hum, lindo e tudo o mais, mas estou sempre à espera de que me apareça pela frente aquele sujeito assusta­dor de smoking.

- Vincent Price? Não é da família - informou Malory com um sorriso.
- Imagino que não esteja mais informada sobre o que se passa do que nós.

- Não. Julgo que devo ter sido convidada por engano mas... - começou, olhando um pouco de soslaio quando um criado en­trou com mais uma taça em cima de uma bandeja. - Ah, obriga­da - tirou a taça de cristal delicadamente, e a seguir limitou-se a sorrir para o líquido borbulhante. - Champanhe. Só pode ter sido engano. Mas não consegui resistir à oportunidade de vir. Onde estão os outros?

- Boa pergunta - respondeu Dana, virando a cabeça de lado, encantada e divertida, enquanto Zoe bebia um pequeno gole de champanhe, para experimentar. - Vocês são do Vale?

- Sim. Bem, pelo menos há dois anos.

- Três em três - murmurou Malory. - Conhecem mais alguém que tenha sido convidado para vir?

- Não. Por acaso, perguntei no emprego, e deve ter sido por isso que fui despedida. Aquilo é para comer?

- Foi despedida? - perguntou Malory trocando olhares com Dana. - Três em três.

- A Carly... a dona do salão de cabeleireiro onde eu trabalho. Trabalhava - corrigiu Zoe, dirigindo-se para a bandeja de canapés.

- Ela ouviu-me falar nisto com uma das minhas clientes e ficou danada. Caramba, são mesmo bons.

A sua voz entretanto regularizara e, quando Zoe parecia estar mais descontraída, Malory pensou ter detectado um ligeiríssimo desapontamento.

- De qualquer modo, a Carly já andava atrás de mim há vários meses. Acho que este convite, como ela não recebeu nenhum, deve ter-lhe feito subir a mostarda ao nariz. Quando dou por mim, está ela a dizer que desapareceu da caixa uma nota de vinte. Nunca roubei nada na vida. A cabra!

Bebeu outro gole de champanhe, desta vez com mais en­tusiasmo.

- E depois, bâm! Estou no olho da rua. Mas não tem importân­cia. Não vai ter importância nenhuma. Hei-de arranjar outro emprego. De qualquer modo, odiava trabalhar lá. Meu Deus!

”É claro que importa”, pensou Malory. O brilho nos olhos de Zoe, que continha tanto de medo como de raiva, mostrava que aquilo tinha muita importância.

- É cabeleireira.

- Sou. Consultora dermatológica e capilar, se quiserem pôr a coisa de uma maneira mais pomposa. Como não sou do tipo de pessoa que é convidada para festas elegantes em lugares finos, julgo que deve ter sido engano.

Reflectindo, Malory abanou a cabeça.

- Não me parece que uma pessoa como a Rowena cometa erros. Nunca.

- Bem, não sei. Estive para não vir, mas depois pensei que isto talvez me animasse. Depois, o meu carro voltou a não querer pegar. Tive de pedir emprestado o carro da babysitter.

- Tem um bebé? - perguntou Dana.

- Já não é bebé. O Simon tem nove anos. É o máximo. Se fosse só por mim não me preocupava com o emprego, mas tenho uma criança para sustentar. Além de que não roubei a porra dos vinte dólares... ou vinte cêntimos. Não sou nenhuma ladra.

Recompôs-se, toda corada.

- Desculpem.
Lamento imenso. Deve ter sido o champanhe a soltar-me a língua.

- Não se preocupe - afirmou Dana, esfregando uma mão ao longo do braço de Zoe. - Quer ouvir uma coisa estranha? O meu emprego, e o meu salário, também ficaram reduzidos ao mínimo. Não sei que raio irei fazer. E a Malory acha que também está prestes a ser despedida.

- A sério? - Zoe passou o olhar de um rosto para outro. - Isso é muito estranho.

- E nenhuma pessoa nossa conhecida foi convidada para vir aqui esta noite - lançando um olhar desconfiado em direcção à porta, Malory baixou o tom de voz. - Pelo que parece, fomos mesmo escolhidas.

- Eu sou bibliotecária, você é cabeleireira, ela é gerente de uma galeria de arte. O que será que temos em comum?

- Estamos todas desempregadas - respondeu Malory, de so­brolho franzido. - Ou quase. Isso só por si já é estranho, se pensar­mos que o Vale tem uma população de cerca de cinco mil pessoas. Que hipóteses têm três mulheres que esbarram com uma porta em termos profissionais, no mesmo dia, na mesma cidade de pro­víncia? Em segundo lugar, somos todas do Vale. Somos todas mulheres, aproximadamente da mesma idade? Vinte e oito.

- Vinte e sete - corrigiu Dana.

- Vinte e seis... vinte e sete em Dezembro - emendou Zoe a tremer. - Isto é demasiado estranho - os seus olhos arregalaram-se quando olhou para a taça meio vazia, e pousou-a rapidamente.

- Não acham que pode haver algo de errado em tudo isto, não?

- Não me parece que vamos ser drogadas e vendidas a uma rede de escravatura branca - o tom de Dana era seco, mas ela também pousou o copo. - As pessoas sabem que estamos aqui, não é verdade? O meu irmão sabe que eu vim cá, e o pessoal do trabalho.

- O meu patrão, a mulher. A sua patroa - disse Malory para Zoe. - A sua babysitter. Seja como for, caramba, estamos na Pensilvânia; não estamos, sei lá, no Zimbabwe.

- Sugiro que vamos à procura da misteriosa Rowena para tentar­mos obter algumas respostas. Estamos juntas nisto, não estamos?

- Dana assentiu para Malory, e a seguir Zoe fez o mesmo.

Zoe engoliu em seco.

-Minhas queridas, sou a vossa nova melhor amiga - para selar as suas palavras, pegou na mão de Dana, e depois na de Malory.

- Prazer em vê-las.

As mãos delas ainda estavam unidas quando se viraram para fitar o homem que se encontrava na entrada. Ele sorriu, e entrou na sala.

- Sejam bem-vindas ao Pico do Guerreiro.

 

Por alguns instantes, Malory pensou que um dos guerreiros do portão ganhara vida. O homem tinha as mesmas agrestes feições viris e a mesma constituição física robusta. Os seus cabelos, negros como a tempestade, estavam penteados para trás em ondas que se afastavam do rosto forte que parecia escul­pido.

Os seus olhos eram de um azul-nocturno. Malory sentiu-lhes a força, e uma onda de calor percorreu-lhe
a pele quando os seus olhos se cruzaram.

Não era uma mulher fantasista. Tudo menos isso, disse para si mesma. Mas o temporal, a casa, a pura ferocidade daquele olhar fê-la sentir que ele conseguia ver tudo o que lhe passava pela mente. Tudo o que alguma vez lhe passara pela mente.

Depois o olhar dele abandonou o dela, e o momento passou.

- Eu chamo-me Pitte, Obrigado por honrarem com a vossa presença o que passa a ser, a partir de agora, a nossa casa.

Pegou na mão de Malory que estava livre e levou-a aos lábios. O toque era frio, e o gesto simultaneamente cortês e digno.

- Menina Price - Malory sentiu os dedos de Zoe soltarem-se dos seus, e a seguir Pitte avançou na direcção dela, e ergueu tam­bém os dedos dela. - Menina McCourt - e depois de Dana. -Menina Steele.

O troar da tempestade fez Malory estremecer, e a sua mão agarrou novamente a mão de Zoe. Ele era apenas um homem, tranquilizou-se. Aquilo era apenas uma casa. E alguém tinha de repor tudo na ordem normal.

- Tem uma casa interessante, sr. Pitte - conseguiu dizer.

- Tenho. Querem sentar-se? Ah, Rowena. Já conhecem a mi­nha companheira - afirmou, dando o braço a Rowena quando ela se pôs a seu lado.

”Ligam bem um com o outro”, concluiu Malory, ”como duas faces da mesma moeda.”

- A lareira, acho eu - sugeriu Rowena, apontando para lá. -Está uma noite medonha. Vamos pôr-nos à vontade.

- Julgo que ficaríamos mais à vontade se percebêssemos o que se passa - proferiu Dana, assentando firmemente no chão as suas botas altas, sem fazer cedências[8]. - O motivo pelo qual nos cha­maram até aqui.

- Certamente. Mas o lume está tão agradável. Não há nada como um bom champanhe, boa companhia e um bom lume numa noite de temporal. Diga-me, menina Price, o que achou do que viu da nossa colecção de obras de arte?

- Impressionante. Eclética - lançando uma olhadela a Dana, que vinha atrás, Malory deixou Rowena conduzi-la em direcção a uma poltrona ao pé da lareira. - Devem ter gasto com ela um tempo considerável.

O riso de Rowena ondulou como neblina sobre as águas.

- Ah, considerável. O Pitte e eu apreciamos a beleza, em to­das as suas formas. Aliás, podia dizer que a veneramos. Tal como a Malory, dada a sua escolha profissional.

- A arte vale por si mesma.

- Sim. É a luz de tudo. E, Pitte, temos de ver se a menina Steele visita a biblioteca antes de o serão terminar. Espero que dê a sua aprovação - fez um vago gesto para o empregado que en­trou com um jarro de cristal cheio de champanhe. - O que seria o mundo sem livros?

- Os livros são o mundo - cheia de curiosidade, prudente, Dana sentou-se.

- Penso que deve ter havido algum erro - afirmou Zoe, descon­certada, fitando os rostos dos prementes, um após outro. - Eu não percebo nada de arte. De arte a sério, pelo menos. E livros... quer dizer, eu leio mas...

- Por favor, sente-se - pediu Pitte, empurrando-a delicada­mente até uma poltrona. - Fique à vontade. Espero que o seu filho esteja bem de saúde.

Zoe ficou tensa, e os seus olhos castanho-escuros assumiram uma viva tonalidade felina.

- O Simon está óptimo.

- A maternidade é uma espécie de arte, não lhe parece, meni­na McCourt? Uma obra em progressão do tipo mais vital e essen­cial. Exige valor e dedicação.

- Têm filhos?

- Não. Não recebemos esse dom - enquanto falava, a mão dele roçou ao de leve na mão de Rowena, erguendo-se depois para fazer um brinde. - A vida. E a todos os seus mistérios - os olhos dele brilhavam sobre a borda da taça. - Não têm nada a temer. Ninguém aqui vos deseja nada senão saúde, felicidade e êxito.

- Porquê? - inquiriu Dana. - Não nos conhecem, embora pa­reçam saber muito mais sobre nós do que nós sabemos a vosso respeito.

- É uma investigadora, menina Steele. Uma mulher inteligente e directa que procura respostas.

- Ainda não obtive nenhuma. Pitte sorriu.

- A minha maior esperança é que as encontrem todas. Para começar, gostaria de lhes contar uma história. Parece ser a noite ideal para histórias.

O homem recostou-se. A sua voz, tal como a de Rowena, era forte e musical, vagamente exótica. ”O tipo de voz”, pen­sou Malory, ”adequada para contar histórias em noites de tem­pestade.”

Devido a essa característica, Malory descontraiu-se um pou­co. Afinal, que mais tinha para fazer senão estar ali sentada na­quela casa maravilhosa ao pé de um lume crepitante, a ouvir um homem belo e estranho tecer uma fábula enquanto ela ia beben­do goles de champanhe?

 

Deixou de ter vontade de comer ou de beber, e não encontrava o menor atractivo em tudo o que as jovens deusas lhe ofereciam. Os pais, preocupados por verem o filho em tão grande sofrimen­to, começaram a enfraquecer. Não queriam oferecer o filho ao mundo dos mortais, mas trouxeram a donzela para o seu mundo.

- Raptaram-na? - interrompeu Malory.

- É possível que o tenham feito - respondeu Rowena, voltan­do a encher as taças. - Mas o amor não pode ser roubado. É uma escolha. E o jovem deus desejava o amor.

- E obteve-o? - indagou Zoe.

- A donzela do mundo dos mortais optou, e amou, e trocou o seu mundo pelo dele - continuou Pitte, pousando as mãos nos joelhos. - A ira rebentou no mundo dos deuses, no mundo dos mortais e no semimundo das fadas. Nenhum mortal podia atraves­sar a Cortina. Porém, essa regra essencial tinha sido infringida. Uma mulher do mundo dos mortais fora trazida para o mundo deles, fora desposada e tivera relações carnais com o seu futuro rei sem nenhum motivo mais importante do que o amor.

- E existe alguma coisa mais importante do que o amor? -perguntou Malory, recolhendo um olhar lento e silencioso de Pitte.

- Alguns não quiseram dizer nada, outros teriam respondido:
a honra, a verdade e a lealdade. Outros responderam mesmo e, pela primeira vez na memória dos deuses, houve discussão, rebe­lião. A balança abanou. O jovem rei-deus, já coroado, era forte e suportou tudo isso. E a donzela do mundo dos mortais era bela e verdadeira. Alguns viram-se tentados a aceitá-la, outros congeminavam em segredo.

A sua voz pareceu assumir um tom de ultraje cortante, uma súbita brusquidão e frieza que fez Malory pensar uma vez mais nos guerreiros de pedra.

- As batalhas travadas ao ar livre podiam ser dominadas, po­rém, outras iam sendo congeminadas em câmaras secretas, e es­sas consumiram o mundo até aos alicerces. Aconteceu que a mulher do rei-deus deu à luz três crianças, três filhas, semideusas com almas mortais. À nascença, o pai ofereceu a cada uma um amuleto de pedra, para protecção. Elas aprenderam a viver de acor­do com as leis do mundo do pai, e também com as do mundo da mãe. A sua beleza e a sua inocência amaciaram muitos corações e fizeram mudar de opinião muitas mentes. Durante alguns anos, a paz voltou a reinar. E as filhas transformaram-se em jovens mulhe­res, dedicadas umas às outras, cada uma com um talento que am­pliava e completava os das irmãs.

Parou mais uma vez, como que para se recompor.

- Elas não faziam mal a ninguém, limitavam-se a trazer luz e beleza a ambos os lados da Cortina. No entanto, as sombras per­maneciam. Uma delas ambicionava o que elas possuíam e ne­nhum deus podia reclamar como seu. Através da feitiçaria, através da inveja, apesar de todas as precauções, as jovens foram levadas até ao semimundo. O feitiço mergulhou-as num sono eterno, uma morte em vida. Enquanto dormiam, foram levadas de volta para o outro lado da Cortina, e as suas almas mortais foram encerradas numa caixa com três fechaduras. Nem o poder do pai delas é suficiente para as abrir. Até as chaves rodarem, a primeira, a se­gunda e a terceira, as filhas ficarão presas num sonho encantado, e as suas almas choram numa prisão de vidro.

- Onde se encontram as chaves? - perguntou Malory. - E porque é que a caixa não pode ser aberta por magia, já que foi assim encerrada?

- O lugar onde elas se encontram é um mistério. Foram feitos muitos feitiços e muitas magias para abrir a caixa, mas todos fa­lharam... Porém, existem algumas pistas. As almas são mortais, e apenas mãos mortais podem rodar as chaves.

- O meu convite dizia que eu sou a chave - declarou Malory e, olhando de relance para Dana e Zoe, obteve sinais que confir­mavam o mesmo. - O que é que nós temos a ver com uma lenda mitológica?

- Tenho uma coisa para vos mostrar - disse Pitte, levantando-se e apontando para o arco. - Espero que vos interesse.

- O temporal está a piorar - comentou Zoe, lançando uma olhadela para as janelas. - Tenho de ir para casa.

- Por favor, peço-lhe.

- Sairemos todas juntas - informou Malory, dando um apertão tranquilizador no braço de Zoe. - Só vamos ver o que ele tem para nos mostrar. Espero que depois volte a convidar-me - pros­seguiu ela, enquanto se encaminhava para a entrada, reunindo-se a Pitte e a Rowena. - Gostava de conhecer melhor a vossa colecção de obras de arte, e talvez retribuir o favor proporcionan­do-vos uma visita guiada à galeria.

- É sempre bem-vinda - retorquiu Pitte, pegando-lhe ao de leve no braço e conduzindo-a pelo amplo corredor. - Seria um enorme prazer para a Rowena e para mim poder conversar sobre a nossa colecção com alguém que a compreende e aprecia.

Virou em direcção a outro arco e disse:

- Espero que compreendam e apreciem esta obra de arte. Por cima de outra lareira onde o fogo bramia estava um qua­dro que ia até ao tecto.

As cores eram tão vivas, tão ricas, o estilo tão ousado e forte, que o coração de amante de arte de Malory se sobressaltou. No retrato viam-se três mulheres, jovens, belas, com vestidos de noi­te fluidos em tons de safira, de rubi e de esmeralda. A de azul, com caracóis dourados até à cintura, estava sentada num banco em tor­no de um tanque. Empunhava uma pequena harpa dourada.

Sentada nos mosaicos prateados a seus pés, a rapariga de ver­melho tinha um pergaminho e uma pena no colo, e a mão pousa­da no joelho da irmã - pois certamente eram irmãs. Ao lado delas, a rapariga de verde estava de pé, e tinha um cachorrinho preto aninhado no braço e uma pequena espada de prata no flanco. As raparigas estavam rodeadas de flores espalhadas pelo solo, num arranjo pungente.

Havia árvores com frutos que mais pareciam jóias a penderem dos ramos, e no céu azul-celeste viam-se aves e fadas em pleno voo.

Encantada, Malory avançou até meio da divisão para observar melhor o quadro, e o seu coração teve um novo sobressalto, des­ta vez maior. A rapariga de azul tinha a cara dela.

Mais nova, pensou, parando abruptamente. Certamente mais bonita. Tinha uma pele luminosa, os olhos mais profundos, mais azuis, e os cabelos mais luxuriantes e românticos. Porém, não havia maneira de negar a forte semelhança nem mesmo, obser­vou quando se recompôs, as parecenças entre as outras duas rapa­rigas do retrato e as outras convidadas.

- Uma obra magnífica. Uma obra-prima - comentou Malory, e ficou surpreendida com a calma da sua voz, por entre o zunido que ouvia dentro da cabeça.

- São parecidas connosco - as palavras de Zoe denotavam surpresa quando se colocou ao lado de Malory. - Como é isso possível?

- Boa pergunta - e as de Dana desconfiança. - Como pode­mos ter sido usadas como modelos do que é, evidentemente, um retrato das três irmãs da história que acabou de nos contar?

- Este quadro foi pintado antes de vocês nascerem. Antes de os vossos pais, dos vossos avós e daqueles que lhes deram origem terem nascido - Rowena aproximou-se do retrato e permaneceu à frente dele com as mãos cruzadas à altura da cintura. - A idade pode ser comprovada através de análises. Não é verdade, Malory?

- Sim. É possível autenticar a idade aproximada mas, seja qual for a idade, não respondeu à pergunta da Zoe.

O sorriso que se espalhou pelo rosto de Rowena parecia con­ter um misto de aprovação e divertimento.

- Não, não respondi. Que mais vêem no quadro?

Malory abriu a carteira e tirou de lá um par de óculos rectangu­lares de armação preta. Colocou-os e procedeu a uma observa­ção mais minuciosa.

- Uma chave, no canto esquerdo do céu. Parece ser uma ave até se observar melhor. Uma segunda chave, no ramo de uma árvore, quase escondida por entre as folhas e os frutos. E a terceira, que mal se vê sob a superfície do tanque. Há ali uma sombra, nas árvores. Tem a forma de um homem, ou talvez de uma mu­lher. Parece unicamente uma sugestão de algo escuro a observá-las. Vejo outra sombra a deslizar para o mosaico prateado da ponta. Uma cobra. Ah, e acolá, mesmo ao fundo.

 

Malory ficou absorta no quadro, deixou-se perder e subiu para cima da lareira.

- Ali está um casal, um homem e uma mulher, a beijarem-se. A mulher está sumptuosamente vestida, e o tom púrpura simboli­za que se trata de uma mulher importante. E o homem está vesti­do de soldado. Um guerreiro. Há um falcão na árvore, mesmo por cima deles. Um símbolo de infortúnio pendente. E o céu aqui é mais escuro, sugerindo uma tempestade. Uma ameaça. As ir­mãs não estão cientes dessa ameaça. Olham em frente, todas juntas, com a coroa que simboliza a sua posição social a brilhar à luz do Sol que ilumina esta zona em primeiro plano. Há uma sensação de companheirismo e afectuosidade entre elas, e esta pomba branca, à beira do tanque, simboliza a pureza delas. Cada uma usa um amuleto, da mesma forma e tamanho, com uma pedra da mesma cor do vestido. Elas representam uma unidade, embora sejam individualmente distintas. É uma obra magnífica. Quase podemos vê-las respirar.

- Tem bom olho - comentou Pitte, tocando no braço de Rowena e acenando para Malory. - Esta é a obra-prima da colecção.

- No entanto - salientou Dana -, ainda não responderam à pergunta.

- A magia não conseguiu quebrar o feitiço que encerrou as almas das filhas do rei numa caixa de vidro. Chamaram-se feiticei­ros e bruxas vindos de todos os mundos. Contudo, não havia magia que pudesse anular a praga. Então rogaram outra praga. Neste mundo, em cada geração nascem três mulheres que aca­bam por se reunir a dada altura no mesmo lugar. Não são irmãs, não são deusas, mas simples mortais. E são as únicas que podem libertar as inocentes.

- E querem que acreditemos que somos nós essas três mulhe­res? - perguntou Dana, de sobrolho erguido. Sentia comichão na garganta, mas não tinha
vontade de rir. - Que por acaso somos parecidas com as mulheres do retrato?

- Nada acontece por acaso. E o facto de acreditarem ou não pouca importância tem - Pitte estendeu as mãos na direcção delas. - Vocês foram as escolhidas, e eu fui encarregue de vo-lo comunicar.

- Bom, já nos comunicou, e agora...

- E de vos fazer uma proposta - prosseguiu, antes que Dana pudesse concluir a sua frase. - Cada uma de vocês terá uma fase da Lua para encontrar uma das três chaves. Se durante os próxi­mos vinte e oito dias a primeira falhar, a questão fica encerrada. Se a primeira conseguir, é a vez da segunda. Mas, se a segunda falhar durante o seu período de tempo, a questão fica encerrada. Se conseguirem trazer as três chaves até aqui antes do final da terceira Lua, receberão um bónus.

- Que tipo de bónus? - perguntou Zoe.

- Um milhão de dólares. Cada uma.

- Não diga! - troçou Dana, e a seguir olhou para as outras duas companheiras. - Ora, vamos embora, meninas. Isto é pura e simplesmente um absurdo. É muito fácil para ele atirar dinheiro ao ar como confetti quando nós é que vamos andar às cegas à procura de três chaves que nem existem.

- E se existissem... - de olhos a brilhar, Zoe virou-se para Dana. - Se existirem, não aceitarias a oportunidade de as encontrar? A hipótese de ganhar tanto dinheiro?

- Que hipótese? O mundo é enorme. Como esperas encon­trar uma pequena chave de ouro?

- Cada uma receberá, por seu turno, um guia - informou Rowena, e apontou para uma pequena arca. - Isso é uma coisa que podemos fazer, se concordarem. Podem trabalhar em conjun­to. Na realidade, é o que esperamos que façam. Terão de estar todas de acordo. Se alguma recusar o desafio, nada feito. Se to­das aceitarem o desafio e as condições, cada uma receberá vinte e cinco mil dólares. Serão vossos quer fracassem quer sejam bem sucedidas.

- Espere aí, espere aí - disse Malory, levantando a mão e tiran­do os óculos. - Espere - repetiu. - Quer dizer que, se concordar­mos em procurar as chaves, única e simplesmente procurá-las, recebemos vinte e cinco mil dólares? Limpinhos?

- A quantia será depositada numa conta à vossa escolha. De imediato - afirmou Pitte.

- Oh, meu Deus! - exclamou Zoe, apertando as mãos. - Oh, meu Deus - repetiu, e sentou-se pesadamente. - Isto só pode ser um sonho.

- Um esquema, queres tu dizer. Qual é o truque? - indagou Dana. - Qual é o pormenor em letras pequenas?

- Se fracassarem, qualquer uma de vós, a penalização para todas será um ano das vossas vidas.

- O quê, na prisão? - perguntou Malory.

- Não - Rowena fez sinal a um criado para entrar com um carrinho de café. - Um ano das vossas vidas deixará de ter exis­tência.

- Puf! - afirmou Dana, e fez estalar os dedos. - Como que por magia.

- As chaves existem. Não nesta casa - murmurou Rowena -, mas neste mundo, neste lugar. Até aí podemos ir.
Porém, não podemos dizer mais nada, embora possamos oferecer algumas orientações. A demanda não é fácil, por isso a vossa tentativa será recompensada. Caso sejam bem sucedidas, a recompensa será maior. Se falharem, há uma penalização. Por favor, aproveitem para debater a proposta. Pitte e eu vamos deixá-las a sós.

Saíram da sala, e Rowena virou-se para trás para fechar a por­ta de correr.

- Isto - começou Dana tirando um duchaise em miniatura da bandeja das sobremesas - é uma casa de doidos. E se alguma de vocês estiver a pensar alinhar com estes loucos ainda é pior do que eles.

- Deixem-me dizer só uma coisa - começou Malory, servin­do-se de café e de dois cubos de açúcar e mexendo o café. -Vinte e cinco mil dólares. Para cada uma.

- Não estás a imaginar que eles vão depositar setenta e cin­co mil deles só por nós dizermos que vamos procurar as cha­ves. As chaves que abrem a caixa com as almas de um trio de semideusas.

Malory reflectiu se havia de comer um éclair em miniatura.

- Só há uma maneira de descobrir.

- Elas são parecidas connosco - sem ligar ao café e aos boli­nhos, Zoe mantinha-se por baixo do quadro, e olhava para cima. - São tão parecidas.

- Pois são, e isso é pura e simplesmente sinistro - Dana acenou quando Malory levantou a cafeteira. - Para quê pintar­mos às três juntas? Nunca nos tínhamos conhecido. E a ideia de ter alguém a observar-nos, a tirar-nos fotografias ou a fazer esboços de nós ou coisa do género para fazer este retrato é assustadora.

- Este quadro não foi pintado por capricho, nem se trata de uma obra de execução apressada - Malory passou a chávena de café a Dana. - É uma obra-prima... a perícia, a perspectiva, o pormenor. O artista ou a artista foi alguém que se empenhou totalmente para fazer este quadro, alguém com um talento incrí­vel. E é uma obra que deu imenso trabalho. Para estratagema, é bastante elaborado. Além disso, qual seria o sentido disso? Eu estou falida. E vocês?

Dana soprou para o ar.

- Não estou muito longe.

- Eu tenho algumas poupanças - afirmou Zoe. - Mas se não arranjar outro emprego acabarei por gastá-las num instante. Não percebo grande coisa do assunto, mas não me parece que estas pessoas pudessem querer os nossos tostões.

- De acordo. Queres café?

- Obrigada - Zoe virou-se para as outras duas mulheres e es­tendeu as mãos. - Olhem, vocês não me conhecem, nem têm qualquer motivo para se preocuparem, mas este dinheiro dava-me imenso jeito - disse Zoe, e aproximou-se mais delas. - Vinte e cinco mil dólares seriam uma espécie de milagre. Segurança para o meu filho, uma oportunidade de fazer aquilo que sempre quis: ter o meu salão de cabeleireira. A única coisa que temos de fazer é dizer que sim. E se formos procurar umas chaves? Não é nada de mal.

 

- Não há chaves nenhumas - insistiu Dana.

- E se houver? - Zoe pousou a chávena sem
beber. - Devo dizer que a ideia dos vinte e cinco mil dólares me ajuda a abrir a mente a outras possibilidades. E um milhão? - perguntou, aba­fando uma pequena gargalhada. - Nem consigo imaginar. Até me faz doer a barriga.

- Era como uma caça ao tesouro - murmurou Malory. - Era capaz de ser divertido. Deus sabe como podia ser lucrativo. Vinte e cinco mil resolviam-me a vida, e isso constitui uma grande prio­ridade em termos práticos neste preciso momento. Também po­dia montar a minha galeria de arte. Não tinha de ser como A Galeria, mas apenas uma pequena casa que exibisse o trabalho de alguns artistas e artesãos.

Estava a avançar dez anos na ordem do seu plano de vida, mas Malory não se importava de ser flexível.

-As coisas não são assim tão simples. Ninguém nos põe dinhei­ro nas mãos só porque decidimos levar qualquer coisa a cabo - afirmou Dana, abanando a cabeça. - Tem de haver mais alguma coisa por detrás de tudo isto.

- Talvez eles acreditem. Na história - acrescentou Malory. - Se tu acreditasses, vinte e cinco mil dólares não representariam mais que uns trocos. Estamos a falar de almas - incapaz de se contro­lar, virou novamente a cara para olhar para o retrato. - Uma alma vale mais do que vinte e cinco mil dólares.

O entusiasmo pulsava agora dentro dela como uma bola de um vermelho-vivo. Nunca tinha tido uma aventura, e muito me­nos uma que desse dinheiro.

- Eles têm dinheiro, são excêntricos, e acreditam. A questão é que alinhar nisto dá um bocado a ideia de que somos nós que os estamos a aldrabar. Mas hei-de suplantar essa impressão.

- Alinhas[9] nisto? - perguntou Zoe, agarrando-lhe o braço. -Alinhas?

- Não é todos os dias que nos pagam para trabalhar para os deuses. Vá lá, Dana, descontrai-te.

As sobrancelhas de Dana uniram-se e, na sua testa, formou-se uma teimosa ruga vertical entre elas.

- Vou meter-me em sarilhos[10]. Não sei onde nem como, mas isto não me parece boa ideia.

- O que é que fazias com vinte e cinco mil? - perguntou Malory, num tom ronronante, e ofereceu mais um duchaise.

- Investia tudo o que pudesse para criar uma livraria - soltou um suspiro nostálgico, que também era um sinal de que estava a ceder, - Serviria chá da parte da tarde, e vinho à noite. Organiza­ria sessões de leitura. Caramba...

- Não é estranho estarmos todas em crise profissional, e que­rermos ter um negócio só nosso? - perguntou Zoe, olhando outra vez para o quadro com um ar desconfiado, - Não vos parece estranha?

- Não é mais estranho do que estar aqui dentro desta fortaleza a discutir sobre uma caça ao tesouro. Bem, estou num dilema -murmurou Dana. - Se disser que não, vocês as duas ficam com a vida arrumada. Mas o facto de dizer que sim faz-me sentir uma idiota. Aliás, acho mesmo que sou uma idiota.

- Ai sim? - com um acesso de riso, Zoe pôs os braços à volta de Dana. - Isto é o máximo! É de mais!

- Tem calma - pediu Dana, enquanto se ria às gargalhadas e dava palmadinhas nas costas de Zoe. - Creio que está na altura de fazer a citação adequada: ”Uma por todas e todas por uma.”

- Eu tenho uma melhor - declarou Malory, erguendo nova­mente a taça para fazer um brinde. - ”Mostrem-me o dinheiro.”

Como se aquilo fosse uma deixa, as portas abriram-se. Rowena foi a primeira a entrar.

- Sentamo-nos?

- Decidimos aceitar o... - começou Zoe, e olhou para Dana.

- O desafio.

- Muito bem - disse Rowena, cruzando as pernas. - Devem querer ler os contratos.

- Os contratos? - repetiu Malory.

- Naturalmente. O nome é importante. A assinatura e a pro­messa são algo de necessário a todos. Escolheremos a primeira chave quando assim o desejarem.

Pitte tirou algumas folhas de dentro de uma escrivaninha, e entregou um conjunto a cada uma das mulheres.

- São contratos simples, creio eu, e estão de acordo com as condições que já discutimos. Se escreverem aí onde desejam que o dinheiro seja depositado, procederemos imediatamente à trans­ferência.

- Não se importam que nós não acreditemos nelas? - pergun­tou Malory, erguendo uma mão para o retrato.

- Desde que dêem a vossa palavra de honra de que aceitam as condições, isso é suficiente para nós - disse-lhe Rowena.

- É bastante directo, para uma questão tão extravagante - co­mentou Dana. E prometeu a si mesma que mostraria o contrato a um advogado no dia seguinte, para ver se era legal.

Pitte passou-lhe uma caneta.

- Tão directo como vocês. Se e quando chegar a vossa vez, sei que farão tudo o que puderem.

Os clarões dos relâmpagos faiscavam do outro lado do vidro enquanto os contratos levavam as assinaturas e, a seguir, as contra-assinaturas.

- Vocês foram as escolhidas - disse Rowena enquanto se levan­tava de novo. - Agora é convosco. Pitte?

Ele voltou para a escrivaninha e pegou numa caixa entalhada. -Aqui dentro estão três discos. Um deles tem uma figura de uma chave. A que escolher esse disco é a que irá iniciar a demanda.

- Espero que não seja eu - com uma risada trémula, Zoe en­xugou as mãos húmidas na saia. - Desculpem. Estou só um boca­do nervosa - explicou, fechando os olhos e estendendo a mão para a caixa. Enquanto mantinha o disco apertado dentro da mão, olhou para Malory e para Dana. - Vamos olhar todas ao mesmo tempo. Está bem?

- Está bem. Vamos a isso - Dana estendeu a mão e manteve o disco virado para ela enquanto Malory pegava no último.

- Pronto.

Estavam em círculo, de frente umas para as outras. De seguida estenderam os discos.

- Ena, pá! - exclamou Malory, e aclarou a garganta. - Que sorte - sussurrou, ao ver a chave dourada gravada no disco bran­co que lhe coubera na rifa.

- A Malory é a primeira - afirmou Rowena, dirigindo-se para ela. - O seu prazo começa amanhã ao nascer do Sol e termina à meia-noite do próximo dia vinte e oito.

- Mas vou receber um guia, não é verdade? Um mapa ou qualquer coisa do género?

Rowena abriu a pequena arca e tirou de lá de dentro um pa­pel, que entregou a Malory. A seguir, esta leu as palavras que lá estavam escritas.

- ”Deve procurar a beleza, a verdade e a coragem. Uma sozi­nha não se aguentará. Duas sem a terceira ficarão incompletas. Procure no interior e descubra que ainda há mais a saber. Procu­re o que o escuro encobre mais frequentemente. Procure no ex­terior, onde a luz vence as sombras, como o amor vence a mágoa. Vertem-se lágrimas prateadas pela canção que ela aí cria, pois a canção vem das almas. Olhe adiante e, no meio, veja onde a beleza floresce e a deusa canta. Poderá haver medo, poderá haver dor, mas o coração verdadeiro a ambos vence. Quando encon­trar o que procura, o amor quebrará o feitiço, e o coração irá forjar a chave, trazendo-a à luz.”

Malory aguardou um instante.

- É tudo? É esta a pista?

- Ainda bem que não fui a primeira - constatou Zoe.

- Esperem... não me podem dizer mais nada? A Rowena e o Pitte já sabem onde as chaves estão, não sabem?

- Isto é tudo o que temos autorização para lhe dar, mas já tem tudo aquilo de que precisa - explicou Rowena, que pousou as mãos nos ombros de Malory, dando-lhe depois dois beijos. - Deus a abençoe.

 

Mais tarde, Rowena pôs-se de pé e deixou o fogo aquecer-lhe as mãos enquanto fitava o quadro. Sentiu Pitte aproximar-se para se colocar atrás de si, e virou o rosto para a sua mão quando ele lhe afagou a face.

- Tinha mais esperanças antes de elas chegarem - disse-lhe ele.

- Elas são inteligentes e desembaraçadas. Nunca são escolhi­das pessoas que não estejam à altura.

- Mas nós permanecemos no mesmo lugar, ano após século, após milénio.

- Não - disse ela, e virou-se para ele, abraçou-o e apertou o seu corpo contra o dele. - Não desesperes, meu amor querido, antes de a demanda começar.

- Tantos inícios, mas nunca se vê o fim - comentou ele, incli­nando a cabeça para lhe afagar as sobrancelhas com os lábios. - Este lugar faz-me sentir encerrado.

- Fizemos tudo o que podíamos - disse ela, pousando o rosto sobre o peito dele, reconfortada pelo batimento regular do seu coração. - Tem um pouco de fé. Elas agradaram-me - acrescen­tou, e pegou-lhe na mão enquanto se encaminhavam em direc­ção às portas.

- São bastante interessantes. Para mortais - retorquiu ele. Quando passaram pelo arco, o fogo crepitante desapareceu e as luzes apagaram-se, deixando atrás um rasto de luz dourada no escuro.

 

Ela não podia dizer que isso não fosse previsível. E James até fora bastante amável; chegara mesmo a ser paternal. Mas ir para a rua era ir para a rua, como quer que isso acontecesse.

O facto de estar preparada, mesmo com a milagrosa almofada dos vinte e cinco mil
dólares já depositados na conta - algo que confirmara nessa manhã - não tornava o facto de ter sido despedi­da menos terrível ou humilhante.

- As coisas mudam - dissera James R. Horace, todo aperaltado como sempre, de laço e óculos sem armações, numa entoação melodiosa.

Desde que Malory o conhecia, nunca o ouvira elevar a voz. Podia ser distraído, ocasionalmente negligente em relação a as­pectos práticos no que dizia respeito ao negócio, mas era impre­terivelmente afável.

Mesmo naquela situação, o seu rosto exibia uma expressão paciente e serena. ”Um pouco como um anjo envelhecido”, pen­sou Malory.

Embora a porta do gabinete estivesse fechada, o resto do pes­soal da galeria não tardaria a saber o resultado da reunião.

- Gosto de me ver como uma espécie de pai substituto e, como tal, só quero o melhor para ti.

- Sim, James. Mas...

Se não nos dirigirmos para lado nenhum, ficamos parados. Sinto que, embora isto possa vir a custar-te de início, Malory, em breve verás que foi a melhor coisa que te aconteceu.

”De quantos clichés”, pensou Malory, ”precisava um homem para atenuar o impacto de um soco?”

- James, eu sei que a Pamela e eu não nos temos dado às mil maravilhas - ”aceito o cliché, e ponho-me ao teu nível.” - Como recém-chegada, é natural que ela esteja um pouco na defensiva, enquanto que eu tenho tendência para ser territorial. Peço imen­sa desculpa por ter perdido a cabeça. O facto de ter entornado o café foi um acidente. Sabes que eu nunca...

- Pronto, pronto - disse ele, acenando com as mãos no ar. - Com certeza que foi. Nem tenciono pensar mais no assunto. Isso são águas passadas. Mas a questão, Malory, é que a Pamela quer assumir um papel mais activo no negócio, abanar um pouco as coisas.

O desespero provocou-lhe uma cólica.

-James, ela alterou completamente a sala principal, misturou peças. Arranjou tecido, lamé dourado, James, e dispô-lo sobre o nu art déco como se fosse um sari. Não só a passagem ficou inter­rompida pelos novos acrescentos, como o resultado foi, bom, piroso[11]. Ela não tem a menor noção de arte e de espaço. Ela...

- Pois é, pois é - a voz dele não sofreu a mínima alteração, nem a expressão do seu rosto. - Mas ela há-de aprender. E acho que ensiná-la vai ser um prazer. Aprecio o interesse dela no meu negócio, e o seu entusiasmo: tal como sempre apreciei o teu, Malory. Mas a questão é que me parece que já nos ultrapassaste. Está na altura de abrires as asas. Alargares os teus horizontes. Correres alguns riscos.

Malory sentiu um nó na garganta, e a sua voz soou mais grossa quando conseguiu falar.

- Eu adoro a galeria, James.

- Eu sei. E és sempre bem-vinda. Sinto que está na altura de te ajudar a sair do ninho. Como é natural, quero que fiques numa situação confortável enquanto decides o que gostarias de fazer a seguir - afirmou, e tirou um cheque do bolso interior do casaco. - Um mês de salário deve ajudar a aguentar as coisas.

”O que hei-de fazer? Para onde hei-de ir?” Um frenesim de per­guntas esvoaçavam à volta da sua cabeça como aves aterrorizadas.

- Este foi o único lugar onde trabalhei.

- É exactamente a isso que me refiro - declarou, pousando o cheque em cima da secretária. - Espero que saibas como gosto de ti, e que podes vir ter comigo sempre que quiseres, seja em que altura for, se precisares de algum conselho. Embora seja pre­ferível mantermos isso entre nós. De momento, a Pamela está um pouco arreliada contigo. - Deu-lhe um beliscão na bochecha, como um avô, uma palmadinha na cabeça, e seguiu o seu caminho.

Por mais paciente e plácido que fosse, James era igualmente um fraco. Fraco e, embora ela detestasse ter de admiti-lo - em­bora odiasse aperceber-se disso ao fim de tantos anos -, egoísta. Só uma fraqueza egoísta permitiria despedir uma empregada efi­ciente, criativa e leal por causa de um capricho da esposa.

Sabia que não valia a pena chorar, mas mesmo assim chorou um pouco enquanto estava no pequeno escritório que ela pró­pria decorara, a empacotar os seus objectos pessoais. O seu tem­po de vida, em termos de carreira, cabia num único caixote de arrumações.

Aquilo devia-se, mais uma vez, ao seu lado prático. E, con­cluiu mais, patético.

Agora tudo ia ser diferente, e ela ainda não estava pronta. Não tinha nenhum plano, nenhum projecto, nenhuma lista que lhe indicasse o que viria a seguir. Não ia acordar no dia seguinte, tomar um pequeno-almoço leve e frugal, e vestir-se para ir para o trabalho com a roupa escolhida nessa noite.

Via à sua frente uma sucessão de dias sem propósito, sem qual­quer plano, como uma paisagem de um desfiladeiro sem fundo. E a preciosa ordem da sua vida encontrava-se algures naquele vazio.

Aquilo aterrorizava-a, mas o orgulho seguia a par do medo. Por isso, Malory recompôs a maquilhagem e manteve o queixo erguido e os ombros direitos enquanto transportava o caixote para fora do escritório, descendo com ele as escadas. Fez os possíveis por exibir um sorriso quando Tod Crist correu até ao fundo das escadas.

Era baixo e elegante, com a sua camisa preta e as suas calças de marca. Duas pequenas argolas de ouro reluziam no seu lóbulo esquerdo. Tinha uns cabelos louros com madeixas que lhe da­vam pelos ombros, aspecto que Malory sempre invejara. O rosto angélico que emolduravam atraía senhoras idosas e de meia-idade como as canções das sereias atraíam os marinheiros.

Tod entrara para a galeria um ano após a chegada de Malory e, desde então, sempre fora seu amigo, confidente e parceiro de mexericos.

- Não vás. Nós damos cabo da bimba. Um pouco de arsénico no café com leite da manhã, e está arrumada - disse ele, pegan­do-lhe no caixote. - Mal, amor da minha vida, não me podes deixar aqui sozinho.

- Fui despedida. Um mês de salário, uma palmadinha na ca­beça, e uma homilia - tentou impedir as lágrimas de lhe ofusca­rem a visão enquanto olhava para o belo átrio amplo com fios de luz coada tombando sobre o soalho de carvalho reluzente. - Meu Deus, o que é que hei-de fazer amanhã quando não puder vir para aqui?

- Ora, querida. Dá-me cá isso - pegou no caixote e deu-lhe um empurrãozinho com ele. - Lá para fora, para podermos taga­relar.

- Não vou tagarelar mais - afirmou ela, mas teve de morder o lábio quando este começou a tremer.

- Eu vou - prometeu ele, e continuou a empurrá-la até ela sair pela porta. Pousou o caixote numa das mesas de ferro do belo pórtico, sob a bela cobertura, e passou os braços à volta dela. -Não aguento isto! Nada será como dantes sem ti aqui. Com quem é que vou fazer fofocas, quem irá consolar o meu coração quan­do um sacana qualquer mo destroçar? Já deves ter reparado que o problema sou eu.

Tod conseguiu fazê-la rir.

- Vais continuar a ser o meu melhor amigo, não vais?

- Claro que vou. Não vais fazer nenhuma loucura como mu­dar para a cidade, espero - recuou um passo para analisar a cara dela. - Nem andar com más companhias e ir trabalhar para uma loja de brindes de um centro comercial.

Malory sentiu um peso cair em força - cabum - no seu estô­mago. Aquelas eram as duas únicas opções razoáveis que tinha de sobreviver. Mas como ele parecia estar prestes a chorar, pô-las de lado só para o animar.

- Por amor de Deus. Ainda não sei ao certo o que irei fazer. Mas tenho uma coisa... - pensou na sua noite estranha, e na chave. - Mais tarde conto-te. Tenho uma coisa que me vai man­ter ocupada por algum tempo, e a seguir... não sei, Tod. Está tudo a correr mal.

Afinal de contas, talvez fosse tagarelar um pouco.

- Nada está a correr como devia, por isso não sei como será. Ser despedida não estava no Plano de Vida da Malory Price.

- Isto é só uma fase - disse ele, para a tranquilizar. - O James anda numa espécie de névoa sexual. Pode ser que ainda venha a si. Podias dormir com ele - acrescentou, inspirado. - Eu podia dormir com ele.

- Tenho uma coisa a dizer em relação a essas duas sugestões. Nojo.

- Profundo e verdadeiro. E se eu aparecesse em tua casa mais logo, e te levasse chinês e uma garrafa de vinho barato?

- És um querido.

- Planeamos a saída da Pamela e planeamos o teu futuro. Queres que te leve a casa, amorzinho?

- Não, obrigada. Eu estou bem. Isso vai-me dar tempo para pôr as ideias em ordem. Diz adeus a... toda a gente. Neste mo­mento não consigo enfrentar ninguém.

- Não te preocupes.

Malory tentou não se preocupar enquanto se dirigia para casa. Tentou ignorar o pânico que a assolava a cada passo que dava para longe da rotina e em direcção àquele desfiladeiro grande, demasiado grande.

Era nova, formada, trabalhadora. Tinha dinheiro no banco. Tinha toda a vida à sua frente, como uma tela em branco. A única coisa que precisava de fazer era escolher as tintas e seguir em frente.

Porém, naquele momento, precisava de pensar noutro assun­to. Noutra coisa qualquer. Tinha um mês para decidir. E uma ta­refa intrigante para executar durante esse período. Não era todos os dias que nos pediam para encontrarmos uma chave misteriosa e ocuparmo-nos da salvação das almas.

Estava decidida a alinhar com isso até conseguir fazer um esbo­ço do resto da sua vida. Afinal, dera a sua palavra de honra, e por isso era melhor começar a ver se conseguia honrá-la. Fosse como fosse. Depois de ir para casa e afogar as tristezas numa embala­gem de gelado Ben and Jerry’s.

Quando chegou à esquina, olhou para trás, nostálgica e triste, na direcção da galeria. Quem queria ela enganar? Aquela fora a sua casa.

Deu um passo, acompanhado de um longo suspiro. E aterrou em peso de rabo no chão.

O que quer que tinha chocado contra ela fizera cair ao chão o caixote, e caiu-lhe em cima. Ouviu um grunhido, e o que lhe pareceu ser um chicote. Sem fôlego e com o que parecia uma pequena montanha em cima do peito, olhou para cima e obser­vou uma face preta e peluda.

Enquanto tentava recuperar o fôlego, uma língua enorme saiu para fora e lambeu-a de alto a baixo.

- Moe! Pára, senta, sai! Bolas. Caramba, peço imensas des­culpas.

Malory ouviu a voz, o leve pânico patente nela, enquanto re­cuava e virava a cabeça para tentar evitar a língua.

Subitamente, a enorme massa preta que a agarrava pareceu ganhar braços. Depois apareceu uma segunda cabeça.

Esta era humana, e muito mais atraente do que a primeira, apesar dos óculos de sol que pendiam sobre um nariz aquilino e o sorriso amarelo nos lábios.

- Está bem? Não ficou magoada?

O homem afastou aquele peso maciço, e a seguir introduziu o corpo entre eles, como uma parede de defesa.

- Consegue sentar-se?

A pergunta era inútil, dado que ele começara já a puxá-la, fazendo-a passar daquela posição incómoda para uma posição sentada. O cão tentou meter o focinho entre os dois, mas foi afastado com uma cotovelada.

- Deita-te, és mesmo um desastre. Não é para si - acrescentou com um rápido sorriso encantador, enquanto afastava os cabelos de Malory do rosto. - Desculpe. Ele é inofensivo; só que é desa­jeitado e parvo.

- O que... o que é?

- O Moe é um cão; pelo menos é o que se diz. Nós pensamos que é o resultado de um cruzamento entre um cocker spaniel e um mamute. Peço imensa desculpa. A culpa foi minha. Não esta­va a prestar suficiente atenção, e ele fugiu-me.

Ela fez deslizar o olhar para a direita, onde o cão, se é que aquilo era um cão, estava deitado, a abanar uma cauda do tama­nho do braço dela com um ar tão inocente quanto uma coisa tão estranha conseguia ser.

- Não bateu com a cabeça. Pois não?

- Penso que não - deu pelo dono de Moe a olhar
para ela com uma intensidade silenciosa que lhe provocou um arrepio de calor pela pele. - O que foi?

 

Ela era linda como um bolo enfeitado. Todos aqueles cabelos louros num torvelinho, a pele branca como natas, a boca semelhan­te a um botão de rosa num leve amuo sensual. Os seus olhos eram azuis, e belos, apesar das faíscas de mau humor que lançavam.

Ele por pouco não lambeu os lábios quando ela lhe franziu o sobrolho e levantou a mão para afastar todo aquele emaranhado de cabelo.

- Para onde está a olhar?

- Só estava a ver se você não tinha nenhum X nos olhos. Deu uma grande queda. A propósito, belos olhos. Eu sou o Flynn.

- E ou estou farta de estar sentada no passeio. Não se importa!

- Ah, não - ele levantou-se, tomou-lhe as duas mãos nas suas e ajudou-a a pôr-se de pé.

Era um homem mais alto do que ela pensara, e deu imediata­mente um passo atrás, de maneira a não ter de levantar a cara para o fixar. O sol reflectia-se nos seus cabelos - um monte de espessos cabelos castanhos ondulados com madeixas cor de ave­lã. As suas mãos continuavam agarradas às dela, com força suficien­te para ela sentir a aresta de calosidades.

- Tem a certeza de que está bem? Sente-se segura? Deu um tombo valente.

-Eu sei - tinha a consciência dolorosa da parte da sua anatomia que embatera primeiro contra o passeio. Malory pôs-se de cócoras e começou a recolher as coisas que tinham caído do caixote.

- Eu apanho - ofereceu-se ele, pondo-se de cócoras ao lado dela apontando um dedo ao cão que tentava avançar para eles com o mesmo vigor de um elefante a caminhar em bicos de pés na planície africana.

- Senta, senão não tens biscoito.

- Leve o seu cão. Não preciso de ajuda - ela pegou na bolsa dos cosméticos e atirou para dentro do caixote. E quando viu que tinha lascado uma unha, apeteceu-lhe enroscar-se numa bola de lamentos e de auto-comiseração. Em vez disso, optou pelo mau humor.

- Não pode andar na rua com um cão desse tamanho se não consegue controlá-lo. Ele é apenas um cão, não sabe como deve proceder, mas você tem de saber.

- Tem razão. Tem toda a razão. Eh... isto deve ser seu - disse ele, entregando-lhe um soutien preto sem alças.

Mortificada, Malory tirou-lho da mão e enfiou-o no caixote.

- Vá-se embora. Vá para muito, muito longe.

- Ouça, deixe-me levar-lhe as suas...

- Leve o seu cão imbecil - vociferou ela e, levantando o caixote em peso, afastou-se dali com o máximo de dignidade que conse­guiu reunir.

Ele ficou a vê-la afastar-se enquanto Moe se arrastava para encostar o seu peso considerável contra a perna do dono. Com ar ausente, Flynn ia dando palmadinhas na enorme cabeça e apre­ciando o oscilar indignado das ancas femininas dentro da saia curta. Duvidava que aquela malha na meia estivesse lá antes do seu encontro com Moe mas, do seu ponto de vista, ela não diminuía­ em nada aquele
par de pernas magníficas.

- Linda - disse ele em voz alta quando ela embateu contra um prédio a meio do quarteirão. - E, completamente enfurecida - acrescentou, lançando uma olhadela a Moe, de ar sorridente e esperançoso. - Bom trabalho, parvalhão.

Depois de um duche quente, uma mudança de roupa e uma taça medicinal de gelado de bolacha[12], Malory dirigiu-se para a biblioteca. Não tomara quaisquer decisões - afinal de contas, eram sócias - na noite anterior. Como Malory era a primeira, ia ter de tomar o assunto em mãos.

Precisavam de marcar uma reunião, investigar a pista, tentar encontrar algum plano de acção. Não tinha verdadeiramente es­perança de ganhar um milhão de dólares, mas também não ia deitá-los a perder ou andar com a palavra atrás.

Não conseguia recordar-se da última vez que estivera numa biblioteca. Por qualquer motivo, entrar ali fê-la sentir-se nova­mente uma estudante, cheia de ingenuidade, esperança e vonta­de de aprender.

A área principal não era grande, e as mesas estavam quase todas livres. Viu um homem mais velho a ler o jornal, meia dúzia de pessoas a deambular pelas prateleiras e uma mulher com um bebé na recepção.

A sala estava tão cheia, que o toque de um telefone parecia um grito. Malory olhou na direcção do som, e da ilha central formada pelo balcão. Dana estava aí sentada, com o auscultador no ouvido, enquanto os seus dedos dedilhavam sobre o teclado.

Contente por não ter de ir à procura dela pelo edifício, Malory avançou na sua direcção. Acenou com a mão para Dana quando ela a cumprimentou e concluiu o telefonema.

 

- Estava à espera de que aparecesses. Só não esperava era que viesses assim tão cedo.

- Agora sou uma mulher ociosa.

- Oh - a cumplicidade amenizou a expressão de Dana. - Puse­ram-te na rua?

- Na rua, deram-me um par de patins, um chuto no rabo, e ainda fui atirada ao chão pelo cão de um imbecil quando ia para casa. Bem vistas as coisas, foi um dia péssimo, mesmo com a ampliação da minha conta bancária.

- Devo dizer que não queria acreditar. Os dois tipos do Pico sempre são de fiar.

- Sorte a nossa. Mas ainda assim, temos de merecê-lo. Eu sou a primeira, por isso acho que tenho de começar por algum lado.

- Vou ajudar-te. Jan? Podes substituir-me? - quando se levan­tou, Dana recolheu uma pilha de livros que estavam por debaixo da bancada da recepção. - Vem comigo - pediu a Malory. - Há uma boa mesa ao pé da janela onde podes trabalhar.

- Trabalhar em quê?

- Investigação. Tenho vários livros sobre mitologia celta, deu­ses e deusas, contos e lendas. Optei pelos Celtas, porque a Rowena é do País de Cales e o Pitte é irlandês.

- Como sabes que é irlandês?

- Não sei. Pareceu-me irlandês. E, neste momento, sei pouco ou nada sobre os mitos celtas, e imagino que aconteça o mesmo contigo e com a Zoe.

- Não sei nada de nada.

Dana pousou os livros com um barulho surdo.

- Então temos de ver se conseguimos encontrar alguma pista. Daqui a algumas horas acabo o trabalho, e aí posso dar-te uma ajuda. E também posso chamar a Zoe, se quiseres.

Malory olhou para a pilha de livros.

- É capaz de ser boa ideia. Não sei por onde começar.

- Escolhe um. Vou arranjar-te um bloco de apontamentos.

Decorrida uma hora, Malory também precisava de uma aspiri­na. Quando Zoe se apressou a ir sentar-se na mesa ao lado dela, tirou os óculos e esfregou os olhos cansados.

- Boa. Reforços - afirmou, empurrando um livro até à outra extremidade da mesa.

- Desculpa ter-me demorado tanto. Tive coisas para fazer. Fui comprar ao Simon um jogo de vídeo que ele queria muito. Eu sei que não devia ter gasto esse dinheiro, mas apeteceu-me arranjar-lhe qualquer coisa, só por piada. Nunca tinha tido tanto dinhei­ro na vida - murmurou. - Eu sei que tenho de ter cuidado, mas se não pudermos fazer uma ou outra coisa por prazer, qual é o gozo?

- Não precisas de te justificar perante mim. Depois de estares a trabalhar nisto durante um bocado, vais perceber que o mere­ceste. Bem-vinda ao mundo doido dos Celtas. A Dana é capaz de ter mais algum bloco de apontamentos.

- Eu trouxe o meu - de dentro de uma carteira enorme, Dana tirou um bloco de apontamentos novo, da espessura de um tijo­lo, e uma caixa de lápis afiados com a ponta em bico. - É mais ou menos o mesmo que voltar à escola.

O optimismo ansioso de Zoe atenuou o mau humor de Malory.

- Queres trocar bilhetinhos e conversar acerca dos rapazes? Zoe limitou-se a sorrir e a abrir o bloco.

- Vamos encontrar a chave. Eu sei.

Quando Dana se reuniu a elas, Malory já tinha escrito páginas inteiras de apontamentos em escrita estenográfica que aprendera na universidade, acabara com a tinta da caneta e pedira dois lápis a Zoe.

- Porque não nos mudamos para a casa do meu irmão? - su­geriu Dana. - Fica mesmo ali na esquina. Como ele está a traba­lhar, não vai atrapalhar nada. Podemos descontrair um pouco, e tu podes dar-me algumas noções sobre o assunto.

- Por mim, tudo bem - tensa de estar sentada há tanto tempo, Malory pôs-se de pé.

- Só posso ficar cerca de uma hora. Sempre que posso, gosto de estar em casa quando o Simon chega da escola.

- Então vamo-nos embora. Sou eu quem leva estes livros - declarou Dana, começando a recolhê-los. - Todos podemos le­var livros para casa para fazer investigações pessoais; preciso de tê-los de volta dentro de pouco tempo, e no mesmo estado de conservação em que estavam quando os levaram.

- Ela é mesmo uma bibliotecária - comentou Malory, enfian­do os livros debaixo do braço.

- Podes crer - retorquiu Dana, avançando à frente. - Vou ver o que consigo encontrar na Internet, e através de contactos com outras bibliotecas.

- Não sei o que conseguiremos retirar destes livros.

Dana pôs os óculos de sol, e a seguir baixou-os e olhou para Malory por cima da armação.

- Qualquer coisa que valha a pena pode ser encontrada nes­tes livros.

- Ora, lá estás tu a transformar-te na Bibliotecária Assustadora. O que precisamos é de encontrar a pista certa.

- Sem recolhermos informações acerca da história e das per­sonagens, não temos bases para começar.

- Temos quatro semanas inteiras - lembrou Zoe, tirando igual­mente da mala os seus óculos de sol. - É tempo de sobra para descobrir montes de coisas e procurar em imensos lugares. O Pitte disse que as chaves estavam por estes lados. Por isso, não temos de nos preocupar em procurar no mundo inteiro.

- Por estes lados tanto pode ser no Vale, como nas montanhas. Pode referir-se a todo o estado da Pensilvânia - comentou Malory, abanando a cabeça perante aquela vastidão e desordem. - O Pitte e a amiga deixaram muitas coisas em aberto. Mesmo que a chave esteja por perto, pode estar numa gaveta empoeirada, no fundo do rio, num cofre bancário, ou enterrada por debaixo de uma rocha.

- Se fosse fácil, já alguém ateria encontrado - salientou Zoe. -E o grande prémio não seriam três milhões de dólares.

- Não liguem à minha má disposição.

- Desculpa, mas há mais uma coisa que faz pensar. Não con­seguia dormir ontem à noite, só de dar voltas à cabeça em rela­ção a todo este assunto. É tudo tão irreal. Mas mesmo que se ponha essa ideia de lado durante um bocado, mesmo que sejamos optimistas e digamos que vamos encontrar a chave, como sabemos que é a tua chave, e não uma das outras duas?

- Interessante - constatou Malory, mudando os livros de posi­ção enquanto viravam a esquina. - Porque é que os Gémeos Esqui­sitos não terão pensado nisso?

- Imagino que devem ter pensado. A questão é que primeiro temos de aceitar que é tudo real.

Dana encolheu os ombros.

- Todas temos dinheiro no banco, e estamos carregadas de livros sobre mitos celtas, isso para mim é suficientemente real.

- Se for tudo verdade, a Malory só pode encontrar a primeira chave. Mesmo que as outras duas estivessem mesmo à frente dela, ela não as encontraria. E nós também não, antes de ser a nossa vez de procurar.

Dana parou, inclinou a cabeça de lado e observou Zoe.

- Acreditas mesmo em tudo isto?

Zoe corou, mas encolheu os ombros com ar negligente.

- Gostava de acreditar. É tão fantástico e importante. Nunca fiz nada que fosse fantástico ou importante - acrescentou, olhan­do para o estreito edifício vitoriano pintado num tom azul-pálido com um rebordo creme com ornamentações salientes. - É esta a casa do teu irmão? Sempre pensei que era bem bonita.

- Ele tem andado a arranjá-la a pouco e pouco. É mais ou menos um passatempo.

Subiram a escada de tijolo. De ambos os lados, a relva estava verdejante e aparada, mas carecia de flores, na opinião de Malory. Cor, forma e textura. E de um banco velho no pórtico, ao lado de um grande pote de cobre cheio de ervas e flores raras.

”Sem elas a casa parece solitária, como uma mulher atraente”, pensou, ”que tenha sido deixada à espera de alguém.

Dana tirou uma chave da mala e abriu a porta.

- O máximo que posso dizer acerca da casa é que teremos sossego - declarou ao entrar, e a sua voz fez eco. - E privacidade.

O átrio estava vazio, à excepção de meia dúzia de caixotes atirados para um canto. A escada de caracol ascendia descrevendo uma bela curva extravagante, com uma cabeça de grifo no pilar.

O átrio dava para uma salinha de paredes pintadas num tom verde-escuro semelhante ao da água do rio, que ligava bem com a tonalidade quente do soalho cor de mel. Porém, as paredes, tal como o pátio, estavam nuas.

Havia um enorme sofá no meio da sala, do tipo que parecia gritar para Malory: ”Foi um homem que me comprou!” Embora parte do verde do seu padrão ligasse bem com as paredes, tinha um horrível desenho axadrezado sem gosto e era demasiado gran­de para o encanto potencial da divisão.

Havia uma espécie de grade de cerveja a servir de mesa.

Podiam ver-se mais caixotes, um dos quais estava pousado na encantadora lareira de pequenas dimensões com uma cornija[13] ornamentada com entalhes, que Malory conseguiu imaginar acom­panhada de um quadro fabuloso.

- Tão... - começou Zoe, dando uma volta de trezentos e ses­senta graus. - Imagino que ele acabou de se mudar para cá.

- Ah, sim. Anda a mudar-se há um ano e meio - replicou Dana, pousando os livros sobre a grade.

- Ele mora aqui há mais de um ano? - aquilo fazia pura e simplesmente doer o coração de Malory. - E a única peça de mobiliário é este sofá verdadeiramente pavoroso?

- Então devias ver o quarto dele em casa dos meus pais. Ao menos, isto está arrumado. De qualquer modo, ele tem meia dúzia de coisas minimamente decentes no piso superior. É lá que ele vive. É provável que não haja comida, mas deve haver café, cer­veja, Coca-Cola. Alguém quer?

- Coca-Cola Light? - perguntou Malory. Dana torceu o nariz.

- Ele é homem.

- Exacto. Vou pisar o risco e tomar uma bebida a sério.

- Pode ser Coca-Cola - concordou Zoe.

- Vou lá acima. Vão-se sentando. O sofá é um pavor mas é confortável.

- Que desperdício de tanto espaço maravilhoso - proferiu Malory -, para um homem que não se importou de gastar dinhei­ro com uma coisa destas - afirmou, atirando-se para cima do sofá. - Tudo bem, é confortável, mas não deixa de ser feio.

- Consegues imaginar-te a viver num sítio como este? - per­guntou Zoe, dando subitamente meia-volta. - Parece uma casa de bonecas. Bom, uma casa de bonecas em tamanho grande, mas igualmente querida. Eu passava todo o tempo que tivesse à procura de tesouros para trazer para cá, e também mudava as pinturas e os tecidos.

- Eu também - concordou Malory, inclinando a cabeça. Nem nos seus melhores dias, pareceria tão moderna e exótica como Zoe com umas calças de ganga e uma camisa de algodão. Pôs-se a fazer contas para saber que idade ela teria quando teve o filho. E nessa mesma idade, Malory andava a comprar o vestido ideal para o baile do liceu[14] e a preparar-se para a admissão à faculdade.

E no entanto, ali estavam as duas, na sala quase vazia de um estranho e a partilhar praticamente os mesmos pensamentos.

- É esquisito pensar na quantidade de coisas que temos em comum. E também é estranho que vivamos numa cidade relati­vamente pequena e nunca nos tenhamos encontrado antes da noite de ontem.

Zoe sentou-se na outra ponta do sofá.

- Onde arranjas o cabelo?

- Na Carmine, no centro comercial.

- É um bom cabeleireiro. Ao Hair Today, cá na cidade, onde eu trabalhava, quase só lá vão mulheres que querem o mesmo semana após semana - comentou, revirando os seus grandes olhos castanho-escuros. - Percebo perfeitamente que arranjes o cabelo fora da cidade. Tens uns cabelos excelentes. A tua cabeleireira alguma vez te sugeriu que cortasses uns centímetros?

- Cortar? - perguntou Malory, levando instintivamente a mão aos cabelos. - Cortar?

- Só uns centímetros, para lhes retirar algum peso. Tens uma cor fantástica.

- É natural. Bem, realço-a um pouco de vez em quando - confessou, e a seguir desatou a rir e deixou tombar a mão. -Tenho a impressão de que estás a olhar para o meu cabelo da mesma maneira que eu olho para esta casa. A pensar no que farias com ele se te dessem carta branca.

- Coca-Cola e bolachinhas - anunciou Dana, que trazia um trio de latas e um pacote de bolachas de chocolate compradas no supermercado. - Então, o que temos até agora?

- Não encontrei nenhuma referência a três filhas de um jovem deus com uma mulher mortal - começou Malory, abrindo a lata e bebendo um gole, embora tivesse preferido um copo com gelo. -Credo, isto é mesmo doce quando não se está habituado a beber. Também não encontrei nada sobre almas encerradas ou chaves. Havia um monte de nomes estranhos como Lug e Rhianna, Anu e Danu. Histórias de batalhas, vitórias e morte.

Tirou o bloco de apontamentos e abriu-o na primeira página bem organizada. Bastou uma olhadela para Dana sorrir, deixan­do ver as covinhas da cara.

- Aposto que foste aluna de Excelente durante todo o liceu. Boas notas, Quadro de Honra. A lixar[15] o nível do resto da turma.

- Porquê?

- És demasiado bem organizada. Até fizeste sublinhados e tudo - comentou, tirando-lhe o bloco. - E quadros cronológicos! Ta­belas!

- Cala-te lá - rindo-se de si própria, Malory recuperou o bloco de apontamentos. - Como estava a dizer antes de ter sido alvo de troça pelo meu organizado estilo de investigação, os deuses celtas morrem; embora pareçam voltar, na realidade podem ser mor­tos.

E, ao contrário do que sei acerca dos deuses das mitologias grega e romana, estes não habitam no topo de nenhuma monta­nha mágica. Vivem na Terra, entre as pessoas. Sujeitos a montes de medidas políticas e protocolos.

Dana sentou-se no chão.

- Alguma coisa que pudesse servir de metáfora para as chaves?

- Se surgiu, não me chamou a atenção.

- Os artistas eram deuses, e guerreiros - acrescentou Zoe. -Ou vice-versa. Quer dizer que a arte, a música, as histórias, e tudo o mais, eram importantes. Tal como o número três. Portan­to, parece que a Malory é a artista...

O comentário provocou um súbito baque no coração de Malory.

- Não, eu vendo arte.

- Tu conheces bem a arte - emendou Dana. - Tal como a Dana conhece bem os livros e eu sei ser mãe.

- Muito bem - afirmou Dana, radiante, dirigindo-se a ela. -Assim cada uma de nós tem um papel a desempenhar. O Pitte falou em beleza, verdade e coragem. Em termos de pintura, Malory - vamos simplificar chamando-as, para já, pelos nossos nomes -, a Malory estava a tocar um instrumento. Música-arte-beleza. Eu empunhava um pergaminho e uma pena; livro-conhecimento-verdade. E a Zoe tinha a espada e o cachorrinho. Inocência-protecção-coragem.

- O que significa que...? - inquiriu Malory.

- Podemos dizer que a primeira chave, a nossa chave, está num lugar qualquer que tenha a ver com arte e/ou beleza. É essa a pista.

- Excelente. Vou já buscá-la quando for para casa - disse Malory, afastando um livro com o pé. - E se eles tiverem inventado tudo? A história toda?

- Recuso-me a acreditar que tenham inventado tudo só para nos porem a vasculhar à procura de umas chaves - comentou Dana, e mordiscou uma bolacha com ar meditativo. - Independen­temente de acreditarmos ou não, eles acreditam que isto é ver­dade. Portanto, tem de haver alguma origem, alguma base para esta lenda, mito ou história que nos contaram ontem à noite. Se houver alguma origem, está num livro. Algures.

- Por acaso... - começou Zoe, hesitante e prosseguindo de­pois - o livro que estava a ler referia que muitos dos mitos e lendas celtas não chegaram a ser escritos. Foram transmitidos oral­mente.

-Aqueles malditos bardos - murmurou Dana. - Olhem, o Pitte e a Rowena devem ter ouvido isto algures[16], e quem lhes contou recebeu a informação de outra pessoa qualquer. A informação anda a circular por aí, e a informação é o meu deus.

- Se calhar, o que temos de fazer é recolher informações sobre o Pitte e a Rowena. Afinal, quem é que eles são? - perguntou Malory, estendendo as mãos. - De onde vêm? Onde vão arranjar dinheiro suficiente para o distribuírem por aí às mãos largas?

- Tens razão - Dana suspirou, aborrecida consigo mesma. -Tens toda a razão; já devia ter pensado nisso. Acontece que conheço­ uma pessoa que nos pode ajudar a fazer isso enquanto investigamos o mito - comunicou, e lançou uma olhadela para a entrada ao ouvir a porta abrir-se. - E aí vem ele.

Ouviram um baque, uma restolhada e um palavrão.

O barulho foi suficientemente familiar para fazer Malory pres­sionar os dedos contra as têmporas.

-Virgem Santíssima!

Enquanto ela proferia aquelas palavras, o cão entrou a correr dentro da sala. A sua cauda abanava como uma bola demolidora, e a língua pendia para fora da boca. E os seus olhos reluziram como estrelas ao detectarem Malory.

O cão desatou a soltar latidos capazes de dar cabo dos ouvi­dos de qualquer um, e depois saltou para o colo dela.

 

Flynn viu três coisas quando se precipitou para dentro da sala atrás do seu cão: a irmã sentada no chão a rir como uma doida; uma morena com ar espertalhão na ponta do sofá, a tentar heroicamente desalojar Moe dali; e, para sua sur­presa e prazer, a mulher em que passara a maior parte do dia a pensar, praticamente soterrada sob o peso de Moe e dos seus disparatados acessos de afecto.

- Pronto, Moe, para baixo. A sério. Já chega - não esperava que Moe lhe prestasse atenção. Mesmo assim, tentava sempre; o cão nunca lhe ligava nenhuma. No entanto, parecia ser o procedimento adequado a tomar enquanto agarrava o cão à volta da enorme barriga.

Tinha de se baixar - bem, talvez não tanto quanto se baixou. Mas ela tinha uns olhos azuis lindíssimos, mesmo quando lançavam faíscas na sua direcção.

- Viva! Prazer em voltar a ver-te.

Os músculos do rosto dela comprimiam-se enquanto apertava o animal.

- Tira-o daqui!

- Estou a tentar.

- Ei, Moe! - gritou Dana. - Bolacha!

O truque resultou. Moe saltou por cima da grade, e tirou da mão de Dana a bolacha que esta agarrava no ar, aterrando depois no chão. Teria sido uma aterragem graciosa se ele não tivesse escorregado vários palmos sobre o chão liso.

- Resulta sempre - afirmou Dana, levantando o braço. Moe avançou novamente, acabada que estava a primeira bolacha, e insinuou-se por baixo dela.

- Ena. É mesmo um cão grande - comentou Zoe, que se aproxi­mou e estendeu uma mão, sorrindo depois quando Moe a lam­beu deliciado. - Que simpático.

- Patologicamente simpático - criticou Malory, sacudindo com a mão os pêlos do cão que tinham passado para a sua alva camisa de linho. - Já é a segunda vez que ele aterra em cima de mim hoje.

- Ele gosta de mulheres - explicou Flynn, tirando os óculos de sol e pousando-os em cima da grade. - Não chegaste a dizer-me o teu nome.

- Ah, vocês são o idiota e o seu cão. Já devia saber. Ela é a Malory Price - apresentou Dana. - E a Zoe McCourt. O meu irmão, Flynn.

- O Michael Flynn Hennessy? - perguntou Zoe, aninhando-se para fazer uma festa na orelha de Moe e olhando para Flynn por baixo da franja, - M. F. Hennessy, do Valley Dispatch?

- Culpado.

- Li muitos dos teus artigos, e nunca perco a tua coluna. Gos­tei da da semana passada sobre a futura pista
de esqui de Lone Ridge e o respectivo impacto ambiental.

- Obrigado - replicou ele, inclinando-se para tirar uma bola­cha. - Isto é alguma reunião de um clube de leitura, e vai haver bolo?

- Não. Mas se tiveres um minuto, podes sentar-te connosco - convidou Dana, dando uma palmadinha no soalho. -Vamos pôr-te ao corrente de tudo.

- Está bem - respondeu ele, mas sentou-se no sofá. - Malory Price? D’A Galeria, certo?

-Já não - retorquiu ela, com uma careta.

- Fui lá meia dúzia de vezes mas não te encontrei. Não escre­vo sobre arte e entretenimento. Já percebi qual é o meu erro.

Os olhos dele, reparou Malory, eram da mesma cor das pare­des. Do mesmo tom das tranquilas águas de um rio.

- Duvido que tenhamos alguma coisa a oferecer que possa complementar a decoração.

- Odeias o sofá, não é verdade?

- ”Odiar” é uma expressão demasiado branda.

- É muito confortável.

Olhou para Zoe após aquele comentário e sorriu.

- É um sofá para dormir a sesta. Como dormimos de olhos fechados, o aspecto não interessa. Mitologia Celta - leu Flynn, inclinando a cabeça para ler os títulos das obras espalhadas por cima da grade. - Mitos e Lendas dos Celtas - pegou num livro, revirou-o nas mãos e olhou para a irmã. - O que se passa?

- Eu contei-te que ia àquele cocktail no Pico do Guerreiro? O rosto dele ficou tenso no mesmo instante em que o seu sorriso afável se desvaneceu.

- Pensei que não tinhas ido depois de eu te ter dito que havia ali qualquer coisa estranha visto nenhuma pessoa com quem falei ter recebido um convite.

Dana pegou na sua lata de Coca-Cola e lançou-lhe um olhar ligeiramente interessado.

- Achas mesmo que te dou ouvidos? - Não.

- Então está bem. Vou contar-te o que aconteceu.

Mal tinha começado a falar quando ele desviou o olhar dela, e aqueles olhos verdes fixaram-se no rosto de Malory.

- Recebeste um convite?

- Recebi.

- E tu - perguntou, acenando para Zoe. - O que fazes, Zoe?

- De momento, sou uma cabeleireira desempregada mas...

- Casada?

- Não.

- E tu também não - proferiu, olhando novamente para Malory. - Nada de aliança. Nem de vibração a dizer ”sou casada”. Há quanto tempo é que vocês as três se conhecem?

- Pára com a entrevista, Flynn. Deixa-me contar-te o que acon­teceu.

Dana recomeçou novamente, e desta vez ele avançou uma perna para fora do sofá e tirou um bloco de apontamentos do bolso das calças. Tentando tudo para parecer que não estava minimamente interessada no que ele estava a fazer, Malory desviou o olhar para baixo e para a esquerda.

Ele recorria à estenografia, reparou. E era estenografia a sério, e não algum tipo de versão abastardada, como a dela.

Tentou decifrar a escrita estenográfica à medida que Dana ia falando, mas ficou um pouco zonza.

-As Filhas do Vidro - murmurou Flynn, e continuou a rabiscar.

- O quê? - sem reflectir, Malory aproximou-se
e cravou-lhe os dedos no pulso. - Conheces esta história?

- Pelo menos uma versão dela - como já conseguira captar a atenção dela, mudou o peso do corpo de modo a virar-se na sua direcção. O seu joelho tocou no dela. - A minha avó irlandesa contou-me montes de histórias.

- Porque não reconheceste a história? - perguntou Malory a Dana.

- Ela não teve a mesma avó que eu.

- Na realidade, somos meios-irmãos - explicou Dana. - O meu pai casou-se com a mãe dele quando eu tinha oito anos.

- Ou a minha mãe casou-se com o pai dela quando eu tinha onze anos. É tudo uma questão de ponto de vista - Flynn esten­deu a mão para brincar com as pontas dos cabelos de Malory, e fez um sorriso quando ela lhe afastou os dedos. - Desculpa. Tens tanto cabelo; é irresistível. Seja como for, a minha avó gostava de contar histórias, por isso ouvi imensas. Esta faz-me lembrar As Filhas do Vidro, o que não explica porque é que vocês as três terão sido convidadas para ir ao Pico ouvir um conto de fadas.

- Temos de encontrar as chaves - afirmou Zoe, e lançou uma olhadela ao relógio.

- Têm de encontrar as chaves para libertar as almas delas? Fixe - comentou ele, estendendo as pernas para pousar os pés na gra­de, e cruzando-as de seguida. - Então, tenho o dever de pergun­tar como, quem e quando.

- Se conseguires estar calado durante cinco minutos, eu conto-te - prometeu Dana, e a seguir pegou na lata de Coca-Cola e bebeu-a até ao fim. - A Malory é a primeira. Tem vinte e oito dias, a partir de hoje, para encontrar a primeira chave. A seguir, ou é a vez da Zoe, ou a minha. A mesma coisa. E por fim, é a vez da última de nós.

- Onde está a caixa? A Caixa das Almas?

Dana franziu o sobrolho quando Moe se afastou dela para ir cheirar os pés de Malory.

- Não sei. Devem ser eles que a têm. O Pitte e a Rowena. Se não tiverem, as chaves não lhes servirão para nada.

- Estás a dizer que acreditas nisto? Tu, que vives com os pés assentes na realidade? E vais passar as próximas semanas à procu­ra das chaves para abrir uma caixa mágica que contém as almas de três deusas.

- Semideusas - emendou Malory, enxotando Moe com o pé para o afastar. - E não é uma questão daquilo em que acredita­mos. Trata-se de um negócio.

- Eles pagaram vinte e cinco mil a cada uma - acrescentou Dana. - Adiantados.

- Vinte e cinco mil dólares? Estão a gozar!

- O dinheiro foi depositado nas nossas contas bancárias. Já verificámos - descontraída, Malory estendeu a mão para tirar uma bolacha. Moe pousou imediatamente a pesada cabeça no seu joelho. - Podes chamar o teu cão?

- Enquanto tiveres bolachas, não. Essas duas pessoas, que vocês não conhecem, deram a cada uma vinte e cinco mil notas para procurarem chaves mágicas? Tinham alguns feijões à venda? Ou uma galinha dos ovos de ouro?

- O dinheiro é verdadeiro - afirmou Malory com ar rigoroso.


- E se vocês não conseguirem? Qual é a penalização?

- Perdemos um ano.

- O quê, ficam ligadas a eles durante um ano?

- Retiram-nos um ano - explicou Zoe, olhando de novo para o relógio. Tinha mesmo de ir.

- Que ano?

A rapariga dirigiu-lhe um olhar vazio.

- Bem... O último ano, suponho. Quando formos velhas.

- Ou este ano - disse ele, pondo-se de pé. - Ou o ano seguin­te. Ou há dez anos atrás, se quisermos dar para o estranho, que é o que isto é, raios.

- Não. Isso não é possível - replicou Zoe, toda pálida, abanan­do a cabeça. - Não pode ser um ano anterior. Isso alteraria tudo. E se fosse o ano em que tive o Simon, ou o ano em que engravidei?

-Isso não é possível.

- Pois não, não é, porque nada disto é possível - declarou Flynn, abanando a cabeça enquanto baixava o olhar para a irmã. Onde andas com a cabeça, Dana? Não te ocorreu que se não encontrarem as chaves essas pessoas podem fazer-vos mal? Nin­guém dá tanto dinheiro a umas estranhas. O que significa que vocês não são estranhas para eles. Por qualquer motivo, eles conhe­cem-vos. Andaram a investigar-vos.

-Tu não estavas lá - disse Dana. - Excêntricos é um termo que se aplica decididamente a eles, Psicóticos já não.

- Além de que eles não têm nenhuma razão para nos fazerem mal.

Ele virou-se outra vez para Malory. Não, agora já não estava com um ar afável, reparou ela, mas sim aborrecido. E prestes a ficar enfurecido.

- E há algum motivo para eles vos atirarem um monte de di­nheiro?

-Tenho de ir andando - disse Zoe, e a sua voz tremeu quando ela agarrou na carteira. - Tenho de ir ter com o Simon. O meu filho.

Zoe foi-se embora, e Dana pôs-se de pé.

- Muito bem, Flynn. Já conseguiste pregar um susto valente a uma mãe solteira - e saiu disparada atrás de Zoe, esperando con­seguir tranquilizá-la.

Ele enfiou as mãos nos bolsos e olhou fixamente para Malory.

- Estás assustada?

- Não, mas também não tenho um rapaz de nove anos a meu cargo. E não acredito que o Pitte ou a Rowena queiram fazer-nos mal. Além disso, sei tomar conta de mim.

- Porque será que as mulheres dizem sempre isso depois de se meterem numa grande alhada?

- Porque os homens vêm sempre atrás delas a tornar as coisas piores. Eu vou procurar a chave, como concordei fazer. Vamos todas. Tu também o farias.

Malory tinha-o onde queria. Flynn remexeu as moedas que tinha dentro do bolso, e reflectiu. Acalmou.

- O que é que eles vos disseram que aconteceria se encontras­sem as chaves?

-As almas seriam libertadas. E cada uma de nós receberia um milhão de dólares. E sim, eu sei que isso parece ridículo. Só quem lá esteve é que sabe.

- Se acrescentares que neste momento essas três deusas estão a dormir em camas de cristal num castelo por detrás da Cortina dos Sonhos, acho que só mesmo quem lá esteve é que sabe.

- Eles têm um quadro das Filhas do Vidro. São parecidas con­nosco. É um quadro extraordinário. Eu conheço arte, Hennessy, e isto não é nenhuma obra forjada. É um raio de uma obra-prima. Não pode deixar de ter algum significado.

O rosto dele passou a revelar o seu interesse.

- Quem o pintou?

- Não estava assinado, pelo menos que eu me apercebesse disso.

- Então como sabes que é uma obra de arte?

- Porque sei. É a minha profissão. Quem o pintou possui um enorme talento, e um grande amor e respeito pelo tema. Isso é uma coisa que se nota. E se eles quisessem fazer-nos mal, por­que não haviam de ter feito alguma coisa ontem à noite, quan­do estávamos lá as três? A Dana já lá estava, sozinha com eles, antes de eu chegar. Porque não haviam de lhe dar uma marretada na cabeça e acorrentá-la nas masmorras, e depois fazer o mes­mo comigo e com a Zoe? Ou de pôr alguma droga no vinho? Já pensei em tudo isso; já coloquei a mim mesma todas essas ques­tões. E vou dizer-te porquê. Porque eles acreditam em tudo o que nos contaram.

- E isso serve para aliviar a tua consciência? Tudo bem, quem são eles? De onde vêm? Como cá chegaram? Porque vieram até cá? Isto não é propriamente nenhum Centro Místico.

- Porque não tentas descobrir isso em vez de assustares as pessoas? - indagou Dana ao chegar.

- A Zoe está bem? - perguntou-lhe Malory.

- Está, está óptima, agora que passou a ter visões de alguém a usar o filho dela como sacrifício humano - desabafou Dana, e deu um murro no ombro de Flynn.

- Ei, se não queriam que ninguém vos apontasse as falhas do projecto, não deviam ter combinado a festa em minha casa. Por isso, contem-me tudo o que sabem sobre essa Rowena e esse Pitte.

Ele foi tirando apontamentos, com o cuidado de reter quais­quer comentários sarcásticos quanto à falta de informações.

- Alguém ainda tem o convite? Pegou no que Malory tirou da mala.

- Vou ver o que consigo descobrir.

-A história da tua avó dizia alguma coisa acerca do lugar onde as chaves estavam escondidas?

- Não, dizia apenas que não podiam ser devolvidas pela mão dos deuses. O que deixa um enorme leque de possibilidades em aberto.

Flynn aguardou que Malory saísse, e fez um sinal com o dedo, convidando Dana a segui-lo até à cozinha.

Em termos de divisões, aquela era das piores, com os seus antigos apliques em tons de cobre, bancadas brancas com man­chas douradas e o chão de linóleo a imitar tijoleira.

- Quando é que tencionas fazer alguma alteração nesta divi­são? É pavorosa.

- Cada coisa a seu tempo, minha linda, cada coisa a seu tem­po - disse ele. A seguir, tirou uma cerveja do frigorífico e acenou-lhe com ela.

- Pode ser, porque não?

Ele tirou uma segunda, e abriu as cápsulas com o abridor de parede em forma de loura de biquini com um sorriso cheio de dentes à mostra.

- Então, conta-me lá o que sabes acerca da sensualíssima Malory Price de grandes olhos azuis.

- Só a conheci ontem à noite.


- Hum.,. hum - proferiu ele, com a cerveja na mão. - As mu­lheres sabem muita coisa acerca das outras. É mais ou menos telepático. Quanto mais uma mulher gosta ou detesta outra, mais sabe acerca dela. Têm sido feitos vários estudos científicos para comprovar esse fenómeno. Fala, senão não há cerveja.

Ela não queria particularmente a cerveja até ele a usar como isco.

- Porque queres saber alguma coisa especificamente acerca dela? Porque não acerca da Zoe?

- O meu interesse na Zoe é mais académico. Só posso dar início ao romance insensato e apaixonado que tenho em mente com a Malory quando conhecer todos os seus segredos e desejos.

- Vais fazer-me vomitar, Flynn.

Ele limitou-se a bater com os dedos na cerveja, e bebeu lenta­mente um grande gole, enquanto mantinha a cerveja dela fora do seu alcance.

- Eu não sou o teu cão disparatado a suplicar por biscoitos. Só te vou dizer isto para poder sentar-me a rir quando ela te der uma tampa. Gosto mesmo dela - acrescentou, estendendo a mão para a cerveja. - Parece-me esperta, ambiciosa, parece-me que tem uma mente aberta sem ser ingénua. Trabalhou n’A Galeria, e acaba de ser despedida devido a uma discussão com a nova mulher-troféu do patrão. Como a Malory chamou bimba à nova mulher dele, diria que nem sempre terá grande tacto e diplomacia, mas não deixa de chamar as coisas pelos nomes. Gosta de roupas de qualidade e sabe usá-las; gasta demasiado dinheiro com elas, e é por isso que estava falida antes do golpe de sorte desta ma­nhã. Não tem nenhum relacionamento de momento e gostava de montar o seu negócio.

- Fim das hostilidades - afirmou ele, e bebeu outro longo gole de cerveja. - Então ela não anda com ninguém. E é corajosa. Não só prega uma desanda à mulher do patrão, como conduz sozi­nha, à noite, até à casa mais assustadora do Oeste da Pensilvânia.

- Eu também.

- Não posso ter nenhum romance louco e apaixonado conti­go, minha querida. Era capaz de ser errado,

- Pronto, agora é que me fizeste ficar enjoada.

Porém, ela riu-se quando ele se debruçou para ela e lhe deu um beijo na cara.

- Porque não te mudas para cá durante uma ou duas sema­nas?

Os seus olhos cor de chocolate tornaram-se sombrios.

- Pára de tomar conta de mim, Flynn.

- Não posso.

- Se não me mudei quando estava falida, porque havia de o fazer agora que estou cheia de massa? Sabes que gosto de ter o meu espaço, e tu também. Tal como ele é. E os espíritos do Pico do Guerreiro não vão descer de lá e assombrar-me à noite.

- Se fossem espíritos, não me preocupava - porém, como a conhecia, Flynn resolveu tranquilizá-la, - Podias dizer à tua nova amiga Malory que eu sou um homem fantástico. Muito inteligen­te, sensível e culto.

- Queres que lhe minta?

- És má, Dana - disse ele, e bebeu mais um gole de cerveja. - És mesmo má.

Quando ficou sozinho, Flynn instalou-se no seu estúdio no andar
de cima. Preferia o termo ”estúdio” a ”escritório”, pois escri­tório implicava trabalho. Não havia maneira de contorná-lo. Num estúdio, uma pessoa podia... estudar, dormitar ou ler, ou olhar para o vazio e perder-se em pensamentos. É certo que se podia trabalhar, só que isso não era uma exigência.

Flynn decorara a divisão com uma grande secretária robusta e duas cadeiras de cabedal largas onde ele achava que uma pessoa podia afundar-se até desaparecer.

Também tinha arquivos, mas disfarçara-os dentro de umas ar­cas robustas. Uma das paredes estava coberta de fotografias emol­duradas de modelos atraentes dos anos 40 e 50.

Quando tudo o resto falhava, podia pôr o trabalho de lado e dedicar-se a admirá-las, passando assim uma agradável hora de solidão.

Ligou o computador, passou por cima de Moe, que lá se tinha deitado no meio do chão, e tirou uma segunda cerveja do mini-frigorífico que instalara por debaixo de uma bancada de trabalho.

Achara essa ideia bastante inteligente.

A seguir sentou-se, fez rolar a cabeça como um pugilista antes de um combate, e começou a surfar na Net com grande afinco.

Se havia alguma coisa no cibermundo acerca dos novos residen­tes do Pico do Guerreiro, não conseguiu encontrar nada.

Como sempre, foi aliciado pelo canto das sereias informáticas. A cerveja aqueceu. Uma hora transformou-se em duas, e as duas passaram a três antes de Moe resolver a questão dando um em­purrão na cadeira que a fez cair e lançou Flynn até ao meio da divisão.

- Raios partam, sabes que odeio isso. Só preciso de mais al­guns minutos.

Porém, Moe já tinha ouvido aquilo, e protestou atirando as patas pesadas e um monte de peso contra as pernas de Flynn.

- Está bem, podemos ir dar uma voltinha. E se passarmos pela porta de uma certa loura, podemos entrar e partilhar as informa­ções que acabámos de recolher. E se isso não resultar, vamos bus­car uma pizza, para não perder tudo.

A palavra ”pizza” fez Moe disparar em direcção à porta. Quan­do Flynn chegou ao rés-do-chão, o cão já se encontrava à porta, com a trela entre os dentes.

Estava uma tarde agradável para dar um passeio. Tranquila, sossegada, com a sua pequena cidade-postal aninhada ao sol de fim de Verão. Em momentos como esse, quando o ar era suave e a brisa perfumada, sentia-se feliz por ter tomado a decisão de ter tomado a seu cabo o Dispatch no lugar da mãe, em vez de sair dali para deixar obra feita em algum jornal de uma grande cidade.

Muitos dos seus amigos tinham ido para a cidade, e a mulher que ele julgava amar trocara-o por Nova Iorque.

Achou que foi uma grande vitória quando ela a abriu para o deixar entrar.

- Já experimentaste uma escola para cães? - indagou.

-Ah, bem, tentei, mas houve um incidente. Não gostamos de falar nisso. Tens uma casa espectacular.

”Com estilo, artística e feminina”, decidiu ele. Não, feminina,
cheia de bibelôs mas feminina, ousada, única, fascinante.

As paredes eram de um rosa forte e profundo, e constituíam um pano de fundo vibrante para os quadros. Ela preferia telas antigas, ou reproduções suficientemente parecidas com os origi­nais. Tecidos suaves e esculturas elegantes.

E tudo limpo como se estivesse novinho em folha.

A casa tinha um cheiro feminino, de mulher de classe, devido aos lírios e às pétalas de flores secas que as mulheres passam a vida a pôr em taças. E, supôs, da mulher em si.

Tinha a música baixa. O que seria aquilo... Annie Lennox, a cantar astutamente a meia voz, falando de sonhos de doçura.

Flynn teve a impressão de que tudo aquilo revelava um gosto muito específico e elevado.

Aproximou-se de um quadro onde uma mulher se erguia de uma superfície de água azul-escura. O quadro dava uma sensa­ção de velocidade, de sensualidade, e de poder.

- Ela é bonita. Vive no mar ou na terra?

Malory ergueu o sobrolho. Ao menos, ele tinha feito uma per­gunta inteligente.

- Penso que ainda tem de escolher - respondeu, observando-o enquanto ele deambulava pela sala. Parecia mais... bem, mais viril, imaginou, ali em casa dela do que quando estava no passeio ou a esgueirar-se pela sala praticamente despida da sua própria casa.

- O que vieste aqui fazer?

- Em primeiro lugar, vim porque me apetecia voltar a ver-te.

- Porquê?

- És mesmo bonita - como ele achava simultaneamente relaxante e divertido olhar para ela, prendeu os polegares nos bolsos da frente das calças e limitou-se a olhar.

- Talvez aches que é um motivo superficial, mas agrada-me pensar que é apenas básico. Se as pessoas não gostassem de olhar para coisas atraen­tes, a arte não existiria.

- Quanto tempo demoraste a elaborar isso? O sorriso dele foi rápido e apreciativo.

- Tempo nenhum. Sou muito rápido. Já jantaste?

- Não, mas tenho planos. Que outro motivo te trouxe até cá?

- Vamos concluir primeiro esta parte. Ainda não jantaste ama­nhã à noite. Queres jantar comigo?

- Não me parece boa ideia.

- Porque estás chateada comigo? Ou porque não estás interes­sada?

- És mesmo chato.

Aqueles olhos de águas tranquilas namoriscavam os dela.

- Quando me conheceres deixas de achar isso. Pergunta a alguém.

Não, ela tinha a sensação de que ele não continuaria a ser chato. Seria divertido e interessante. E perigoso. Além disso, por mais atraente que fosse, não fazia nada o seu género.

- Já tenho sarilhos que cheguem para ir sair com um homem com um péssimo gosto para peças de mobiliário e um gosto questionável para animais de estimação.

Ao dizer isto olhou para o pátio, e não conseguiu deixar de rir quando viu o focinho feio de Moe todo espalmado contra o vidro.

- Não odeias verdadeiramente os cães.

- É claro que não odeio cães. Eu gosto de cães - declarou ela, inclinando a cabeça para observar aquele focinho peludo. - Acho que aquilo não é um cão.

- Juraram-me que era quando o fui buscar ao canil. Os olhos dela suavizaram-se.

- Foste buscá-lo ao canil.

Ena, uma brecha no muro de defesa.

- Nessa altura ele era muito mais pequeno. Fui fazer uma ma­téria sobre o abrigo, e ele veio ter comigo com ar brincalhão eolhou para mim como se dissesse: ”Olha, estava à espera de que aparecesses. Vamos para casa.” Estava perdido.

- De onde vem a palavra ”Moe”?

- Ele é parecido com o Moe. Sabes, o Moe Howard. - Ao ver o seu rosto inexpressivo, Flynn afirmou com um suspiro: - Mulheres... nem sabem o que perdem, no que toca à comédia corajosa e inteligente dos Três Estarolas.

- Sim, sim, sabemos o que perdemos. E perdemos de propósito - ao aperceber-se de que estavam próximos, ela deu ostensivamente um passo atrás. - Era mais alguma coisa?

- Comecei a investigar aquelas pessoas com quem vocês estão enredadas. O Liam Pitte e a Rowena O’Meara. Pelo menos, são os nomes que eles usam.

- Porque não hão-de ser esses os nomes deles?

- Porque quando recorri às minhas incríveis capacidades e talentos, não encontrei registos de ninguém com esses nomes que corresponda aos novos proprietários do Pico do Guerreiro. Nem números da segurança social, nem números do passaporte, nem cartas de condução nem contratos empresariais. Não existe nenhum rasto empresarial desta tríade. Pelo menos, nada que vá dar a eles.

- Eles não são americanos - começou ela, soltando depois um suspiro. - Pronto, não existem números de passaporte. Talvez ainda não os tenhas encontrado, ou talvez eles tenham usado outros números para comprarem a casa.

- Talvez. Vai ser interessante descobrir isso, porque neste momento parece que eles apareceram pura e simplesmente do nada.

- Gostava de saber mais alguma coisa acerca das Filhas do Vidro. Quanto mais souber sobre elas, mais hipóteses terei de descobrir a chave.

- Vou telefonar à minha avó, e arranjar mais pormenores sobre a lenda. Posso dar-te mais informações amanhã ao jantar.

Malory observou-o, e depois voltou a olhar em direcção ao cão. Flynn estava disposto a ajudar, e ela tinha unicamente quatro semanas. Em termos pessoais, estava disposta a manter um relacionamento simples. Amigável mas simples. Pelo menos até decidir o que fazer com ele.

- Vai ser uma mesa para dois ou para três?

- Dois.

- Está bem. Podes vir-me buscar às sete.

- Óptimo.

- E podes sair por esse lado - sugeriu ela, apontando para a

porta do pátio.

- Tudo bem - replicou ele, dirigindo-se para a porta, e depois olhou para trás. - És mesmo bonita - comentou, abrindo a porta apenas o suficiente para se esgueirar lá para fora.

Ela viu-o soltar o cão, e viu-o tropeçar arrastado pelo peso deste quando Moe se levantou para lhe beijar prodigamente o rosto. Esperou que ambos saíssem para se desatar a rir.

 

Malory encontrou facilmente a casinha de Zoe. Era um pequeno cubo numa vertente estreita de relvado. Porém, fora pintada num alegre tom amarelo com um rebor­do branco-vivo. Havia um canteiro de flores coloridas de cada lado da porta.

Mesmo que Malory não soubesse a morada nem tivesse reco­nhecido o carro de Zoe estacionado ao lado do passeio, teria conhecido a casa pelo rapaz que se encontrava no jardim, a atirar uma bola ao ar com toda a força para depois correr a apanhá-la.

Era quase assustadoramente parecido com a mãe. Os cabelos escuros, os olhos de pestanas compridas num rosto de duende. Tinha uma constituição franzina, de calças de ganga rasgadas e uma T-shirt dos Pittsburgh Pirates.

Quando o rapaz avistou Malory, ficou de pé, com as pernas abertas, apertando ligeiramente a bola contra a cavidade da luva.

Tinha o ar prudente e um pouco arrogante de um rapaz a quem tinham martelado constantemente ”não fales com estra­nhos”, embora fosse suficientemente crescido, e inteligente, para lidar com qualquer estranho.

- Tu deves ser o Simon. Eu sou a Malory Price, uma amiga da tua mãe - disse ela, e manteve um sorriso no rosto enquanto o rapaz a olhava de alto a baixo... e desejou perceber mais alguma coisa de basebol do que o facto de esse desporto envolver um certo número de homens a atirar, bater e tentar apanhar uma bola e correr em torno de um campo.

- Ela está lá dentro. Posso ir chamá-la. - A maneira de o fazer foi correr para a porta e gritar: - Mãe, está aqui uma senhora que quer falar contigo!

Daí a alguns instantes, Zoe abriu o mosquiteiro, e ficou de pé a limpar as mãos num pano da louça. De algum modo, apesar dos calções largos, da camisa velha e dos pés descalços, continuava a conseguir ter um ar exótico.

-Oh. Malory - cumprimentou, erguendo uma mão para apertar um dos botões da camisa. - Não estava à espera...

- Se for má altura...

- Não, não, claro que não. Simon, apresento-te a menina Price. Uma das senhoras com quem vou trabalhar durante algum tempo.

- Sim. Olá. Posso ir até à casa do Scott? Já acabei de cortar a relva.

- Parece-me muito bem. Queres comer qualquer coisa pri­meiro?

- Não - ao ver o sobrolho arqueado da mãe, ele sorriu, exibin­do um dente em falta e um súbito encanto surpreendente, - Quer dizer, não obrigado.

- Então vai lá. Divirtam-se.

- Boa! - exclamou ele, e desatou a correr, parando quando ela proferiu o nome dele num tom que Malory deduziu que as mães desenvolviam durante as alterações hormonais da gestação.

O rapaz revirou os olhos, mas fez questão de o fazer quando estava de costas para Zoe. Depois lançou a Malory um sorriso rápido e sincero,

- Prazer em conhecê-la, e tudo o mais.

- Prazer em conhecer-te e tudo o mais para ti também, Simon. E ele desapareceu, como um prisioneiro que tivesse fugido de uma prisão.

- Ele é lindo.

Perante
a afirmação de Malory, o rosto de Zoe iluminou-se de orgulho e de prazer.

- É mesmo, não é? Ás vezes, ponho-me ao pé da janela quan­do ele está no jardim e fico a olhar para ele. É o meu mundo.

- Nota-se. E agora estás preocupada com o facto de aquilo que fizemos poder prejudicá-lo de algum modo.

- Preocupar-me com o Simon faz parte do meu trabalho. Des­culpa, podes entrar. Eu costumava passar os sábados no cabeleirei­ro, por isso resolvi aproveitar este para ficar a trabalhar em casa.

- Tens uma casa bonita - afirmou Malory, passando a porta e olhando em volta. - Uma casa muito bonita.

- Obrigada - Zoe olhou igualmente em redor, grata por já ter acabado de limpar a sala. As almofadas estavam dispostas sobre as capas azul-vivas do sofá, e a velha mesinha de apoio que ela restaurara estava sem pó e tinha em cima um trio de jarras com margaridas de fim de Verão apanhadas do seu canteiro. O tapete que a sua avó tecera quando Zoe era criança acabara de ser aspi­rado.

- Isto é lindo - disse Malory aproximando-se para ver as gravu­ras emolduradas de paisagens estrangeiras agrupadas numa pa­rede.

- São apenas postais que resolvi reunir e emoldurar. Peço sempre às clientes para me trazerem um postal quando vão de viagem.

- Interessante e divertido.

- Sabes, gosto de arranjar as coisas. Encontrá-las em vendas de jardim ou nos mercados e trazê-las para casa para as consertar. Ao mesmo tempo fazemos com que passem a ser nossas, e não nos custam dinheiro nenhum. Ah, queres beber alguma coisa?

- Queria, se não for um incómodo.

- Não. Imagino que já não tinha um sábado de folga desde... - começou ela - ... sempre - concluiu. - É bom estar em casa e ter companhia.

Malory teve a sensação de que estava prestes a ser convidada a sentar-se quando Zoe voltasse para a cozinha. Para evitar isso, encaminhou-se em direcção à porta.

- Foste tu que plantaste as flores?

- O Simon e eu - sem outra alternativa, Zoe abriu caminho a Malory em direcção à cozinha. - Não tenho refrigerantes. Sinto muito, mas não posso tê-los em casa por causa do Simon. Tenho um pouco de limonada.

- Excelente.

Era evidente que apanhara Zoe a meio de uma grande limpe­za de cozinha, mas aquela divisão emanava o mesmo encanto casual da zona de lazer.

- Adoro isto - declarou Malory, passando um dedo pela tinta verde-menta de um armário. - Mostra bem o que se consegue fazer com imaginação, gosto, e algum tempo.

- Ena! - exclamou Zoe, tirando do frigorífico um jarro de vidro baixo. - Isso vindo de uma pessoa como tu é mesmo um elogio. Quer dizer, de uma pessoa conhecedora de arte. Gostava de ter coisas bonitas, mas não deixar de ter um espaço onde o Simon pudesse correr como qualquer rapaz. E a casa tem o tamanho exacto para os dois. Estou-me nas tintas para o milhão de dólares.

Pousou os copos na bancada, e abanou a cabeça.

- Caramba, que ideia tão parva. É claro que o milhão de dóla­res me interessa. O que quero dizer é que não preciso de um milhão. Só preciso do suficiente para nos sentirmos à vontade. Só me meti nisto porque me parecia muito interessante, e porque os vinte e cinco mil me pareceram um milagre.

- E porque aquela noite no Pico do Guerreiro foi tão impressio­nante, tão dramática? Como se fôssemos as estrelas do nosso pró­prio filme.

- Sim - proferiu Zoe com uma gargalhada, enquanto servia a limonada. - Também fiquei a pensar em tudo aquilo, mas nunca me ocorreu, nem por um minuto sequer, que estaríamos a correr qualquer risco.

- Não sei se estamos. Só me preocupo com isso quando souber­mos mais alguma coisa. Mas eu não tenho uma criança em que pensar. Lembrei-me de passar por cá para dizer que, se quiseres recuar, eu entendo.

- Tenho andado a pensar nisso. Uma das vantagens das gran­des limpezas é servirem para pensar. Queres levar as limonadas até ao pátio das traseiras? Tenho lá algumas cadeiras. É um lugar agradável.

Saíram, e o lugar era bonito - o pátio limpo, duas cadeiras de madeira pintadas no mesmo tom amarelo-solar da casa, e um grande ácer[17] que dava sombra.

Mal se sentaram, Zoe soltou um suspiro profundo.

- Se o Pitte e a Rowena forem dois doidos que nos escolheram por qualquer motivo, não temos maneira de fugir. Não adianta. E se forem, faz todo o sentido tentarmos tudo para descobrir as chaves. Se não forem, mesmo assim devemos manter a nossa palavra.

- Parece que estamos em sintonia. Eu estou a pensar voltar lá para conversar outra vez com eles, tentar ficar com mais alguma impressão. Daqui a um ou dois dias - informou Malory, abanan­do a cabeça -, depois de, espero, termos descoberto mais algu­ma coisa. Sei que a Dana deve andar enfiada nos livros, e o Flynn já anda a procurar na Internet. Se encontrar alguma coisa, conta-me esta noite ao jantar.

- Jantar? Vais jantar com o Flynn?

- Parece que sim - respondeu Malory, franzindo o sobrolho enquanto bebia a limonada. - Cinco minutos depois de sair do meu apartamento, fiquei a pensar como me terá convencido.

- Ele é giríssimo.

- Qualquer tipo ficaria giro ao pé daquele cão grande e feio.

- E estava a namoriscar contigo - acrescentou Zoe, gesticulando com o copo, fazendo o gelo tilintar. - Boa!

- Isso já eu percebi. Namoriscar é algo que não está nos meus planos durante as próximas semanas, se é que quero concentrar-me em encontrar a primeira chave.

- Namoriscar com um sujeito engraçado é um efeito secundá­rio positivo - comentou Zoe com um suspiro, e a seguir reclinou-se e mexeu os dedos dos pés, que pintara de cor-de-rosa-vivo. - Pelo menos, acho que ainda me lembro de que era, num passa­do sombrio e muito distante.

- Deves estar a brincar - surpreendida, Malory olhou para o rosto de Zoe, sensual como o de uma fada. - Os homens devem estar sempre a fazer-se a ti.

- A intenção inicial desvanece-se assim que descobrem que tenho um filho - disse ela, encolhendo os ombros. - E não estou interessada em ter nenhuma amizade colorida. Já passei por isso.

- Neste preciso momento, não estou interessada é em ter ne­nhum caso sério. Preciso de descobrir o que hei-de fazer com a minha vida. Este golpe de sorte não dura para sempre mas dá-me tempo para decidir se quero mesmo ter um negócio e o que fazer para isso.

- Isso é outra coisa em que pensei hoje. Vou ter de voltar a trabalhar. Mas a ideia de ter um novo emprego, com pessoas novas,­ no centro comercial... - começou Zoe, enchendo as boche­chas e soprando com força. - E a última coisa que quero é tentar montar um cabeleireiro aqui em casa. Quando uma pessoa faz isso ninguém, a leva a sério. Começam a pensar que tratar dos cabelos é um passatempo, e não um emprego. Além disso, a casa deixa de ser o lugar onde vivemos, e não vou tirar isso ao Simon, como aconteceu comigo.

- A tua mãe fez isso à vossa casa?

- Roulote - respondeu Zoe, encolhendo os ombros. - Foi o melhor que pôde, tendo em conta que vivíamos a quilómetros de distância de Nenhures, no Oeste da Virgínia. O meu pai foi-se embora quando eu tinha doze anos, e eu era a mais velha dos quatro.

- Isso é duro. Lamento muito.

- Foi duro para todos, mas como eu disse, ela fez o melhor que pôde. Só que eu espero sair-me melhor.

- Eu diria que o facto de teres criado uma casa bonita e um lar para ti e para o teu filho significa que te estás a sair optimamente.

A cor desvaneceu-se-lhe do rosto.

- Obrigada. Seja como for, lembrei-me de começar à procura, para ver se conseguia encontrar um sítio para alugar onde pudes­se montar um salão.

- Se encontrares algum, vê se consegues arranjar uma loja para mim e para as minhas obras de arte - lembrou Malory, pousando o copo com uma gargalhada. - Ou então, podíamos aliar-nos e montarmos um negócio as duas. Arte e beleza numa só loja. Te­nho de ir.

Dito isto, levantou-se.

- Vou ver a Dana, e a seguir vou para casa fazer um brainstorming, a ver se me surge alguma ideia acerca daquela estúpida pista. Queres combinar encontrarmo-nos as três um dia da próxi­ma semana de manhã? Fazemos uma reunião.

- Por mim tudo bem, desde que consigamos encaixar o en­contro nos horários do Simon.

-Conseguimos. Eu ligo-te.

Ela não sabia se aquilo podia ser considerado um brainstorming, mas ao menos era um caminho.

Malory analisou a pista linha a linha, à procura de metáforas e sentidos ocultos, duplos sentidos e associações. Depois voltou a considerar o assunto no seu todo.

Havia referências a deusas. E as próprias chaves libertariam as almas aprisionadas. ”Bem vistas as coisas”, decidiu,
”isto é uma espécie de referência religiosa.”

Com essa ideia em mente, passou o resto do dia a visitar todas as igrejas e templos do Vale.

Voltou para casa de mãos a abanar, mas sentiu que tinha feito algo de positivo com o seu dia.

Vestiu-se para o jantar, resolvendo manter um ar simples com um top preto sem mangas, umas calças pretas curtas e um blusão elegante cor de morango.

As sete em ponto, estava a pôr umas sandálias de salto e a preparar-se para ficar à espera. Pela sua experiência, era a única que costumava fazer questão de ser pontual.

Por isso, foi uma surpresa agradável ouvir bater à porta en­quanto verificava o que levava na mala.

- És pontual - disse para Flynn quando abriu a porta.

- Por acaso, já cá estive há dez minutos atrás, mas não queria parecer ansioso - revelou, estendendo-lhe um pequeno ramo de rosas-bebés quase da mesma cor que o blusão dela. - Estás um espanto.

- Obrigada - respondeu ela, e observou-o enquanto cheirava os botões de rosa. ”Ele é mesmo giro”, pensou. Com ou sem cão. - Vou pô-las em água. A propósito, boa escolha.

- Foi o que eu achei. O Moe queria comprar rebuçados, mas eu preferi as flores.

Ela parou.

- Ele não está lá fora, pois não?

- Não, não. Está em casa, entretido com biscoitos e a marato­na do Bugs Bunny no Cartoon Network. O Moe é doido pelo Bugs.

- Acredito - disse ela, dispondo as flores numa jarra de vidro transparente. - Queres tomar uma bebida antes de saírmos?

- Depende. Consegues andar três quarteirões em cima desses sapatos ou preferes ir de automóvel?

- Consigo andar três quarteirões em cima dos sapatos. Sou uma mulher profissional.

- Não duvido. E como eu não consigo, gostava de fazer aquilo em que ando a pensar fazer desde que aterrei em cima de ti.

Flynn aproximou-se. Pelo menos, foi isso que Malory viria a pensar mais tarde, quando o seu cérebro voltou outra vez a funcio­nar normalmente. Ele limitou-se a aproximar-se dela, as suas mãos percorreram-lhe o corpo, os ombros e o pescoço, e envolveram-lhe o rosto.

Foi tudo muito lento, tudo muito suave. Depois, a sua boca estava colada à dela, apreciando docemente o tempo. Sem saber como, ela acabou por ficar encostada à bancada, apertada entre esta e o corpo dele. Sem saber como, as mãos dela apertaram-lhe as ancas, e os seus dedos cravaram-se-lhe na carne.

E sem saber como, ela entregou-se àquele beijo sem um único murmúrio de protesto.

Os dedos dele voltaram a percorrer-lhe os cabelos, e mordiscou-lhe o lábio inferior, de uma forma provocadora. Quan­do o ritmo da respiração dela aumentou, o tom do beijo passou da temperatura amena do flirt para um calor tórrido.

- Ei. Espera aí - pediu ela, conseguindo detectar o eco de alarme dentro da cabeça, embora o seu corpo permanecesse co­lado ao dele.

- Está bem. Daqui a um minuto.

Ele precisava de mais um minuto dela,
do seu sabor, e do seu toque. Estava a sentir mais do que esperara, e já esperara bastante.

Havia algo de pungentemente erótico no sabor dela, como se a sua boca fosse um aperitivo raro que mal conseguira provar. E algo tão suave na sua textura, todas aquelas nuvens de cabelos dourados, todas aquelas curvas e reentrâncias adoráveis.

Ele roçou novamente os seus lábios contra os dela, e depois recuou.

Ela olhou para ele, com aqueles olhos azuis que ele constatara serem irresistíveis e estavam agora grandes e atentos.

- Talvez... - começou ela, e esperou que a longa inspiração suave lhe voltasse a nivelar o tom de voz. - Talvez seja melhor irmos andando.

- Sim - concordou ele, oferecendo uma mão para verificar, lisonjeado, que ela não só a evitava como passava à volta dele para ir buscar a mala. - Achei que, se te beijasse já, não ia pensar nisso durante o jantar nem distrair-me durante a conversa.

Ele dirigiu-se para a porta e abriu-a.

- O problema é que, agora que te beijei, provavelmente vou pensar em beijar-te novamente durante o jantar e distrair-me na mesma da conversa. Portanto, se reparares que estou a ficar absorto, já sabes onde e porquê.

-Julgas que não sei porque disseste isso - afirmou ela, avançan­do com ele para a ofuscante luz nocturna. - Ao dizeres isso, estás a plantar uma semente na minha cabeça para eu não parar de pensar em ti a beijares-me durante todo o jantar. Ou pelo menos é esse o plano.

- Caramba, és mesmo boa. Se és suficientemente rápida a deslindar os truques baixos dos homens no que diz respeito ao sexo, para ti o enigma da chave deve ser uma brincadeira de crianças.

- Seria de esperar que assim fosse. Mas a verdade é que tenho mais experiência com os truques baixos dos homens no que diz respeito ao sexo do que com os enigmas de deusas e feitiços da mitologia.

- Não sei porquê - disse ele, agarrando-lhe na mão e sorrindo perante o olhar de viés que ela lhe lançou - mas isso parece-me muito excitante. Se te tentar embebedar ao jantar contas-me es­sas experiências? É capaz de haver alguns truques que me te­nham escapado.

- Primeiro ofereces-me um Martini, e depois logo se vê.

Ele escolhera um dos restaurantes mais bonitos da cidade e reservara uma mesa no terraço das traseiras, com vista para as montanhas.

Quando ela deu o primeiro gole no seu Martini começou no­vamente a descontrair.

- Gostava de falar acerca da chave. Se vir a tua atenção a dispersar, dou-te um pontapé por debaixo da mesa.

- Combinado. Primeiro só queria dizer-te uma coisa.

- Desembucha.

Ele inclinou-se para ela, e respirou fundo.

- Cheiras maravilhosamente bem. Por sua vez, ela debruçou-se para ele.

- Eu sei. Então, tens interesse em saber o que fiz hoje? - pergun­tou ela, aguardou um pouco, e
a seguir deu-lhe um pequeno pontapé no tornozelo.

- O quê? Sim. Desculpa.

Malory ergueu o copo para beber mais um gole e ocultar a dispersão.

- Primeiro fui ver a Zoe.

Era ela que dominava o rumo da conversa, parando quando serviram o primeiro prato.

-A casinha amarela - disse Flynn, assentindo ao trazer à men­te o aspecto da casa. - Dantes era cor de cocó de cão. Ela conse­guiu mesmo dar-lhe a volta. Pensando bem, já vi o miúdo no jardim.

- O Simon. É igualzinho a ela. Chega a ser assustador.

- Por falar nisso, teria conseguido comprovar esse facto assim que a conheci se tivesse conseguido tirar os olhos de ti por dois minutos.

Os lábios dela estremeceram, e caramba, sentia-se mesmo li­sonjeada.

- És muito bom nisso... tanto no sentido de oportunidade como no conteúdo.

- Sim, é um dom.

- A seguir fui a casa da Dana. Estava a pensar, enterrada no meio de um monte de livros.

- Duas das suas coisas preferidas.

- Ela ainda não conseguiu localizar nenhuma versão d’As Fi­lhas do Vidro, mas anda a tentar. Depois tive uma ideia. As deu­sas implicam adoração. Todas as leituras que tenho feito indicam que muitas igrejas foram construídas em locais de adoração pa­gãos. A maioria dos feriados cristãos coincide com os antigos feria­dos pagãos, que se baseavam nas estações, na agricultura e tudo o mais. Por isso, resolvi ir à igreja. Com efeito, fui a todas as igre­jas e templos num raio de trinta e dois quilómetros.

- É uma associação interessante. Denota um pensamento cla­ro e adequado.

- Esse é um dos meus maiores dons. Investiguei a pista por todos os lados. Procurei no interior, no exterior, deusas que can­tam, etc. E continuei à procura. Não estava à espera de entrar e encontrar a chave à minha espera numa pia de água benta. Mas achei que talvez visse nela o símbolo, sabes? Alguma coisa entalha­da num vitral ou num ornamento. Mas não encontrei.

- Mesmo assim, foi uma boa ideia.

- Talvez tivesse sido melhor ideia voltar àquela casa e ir falar novamente com o Pitte e a Rowena.

- Talvez. Queres saber o que encontrei?

- Quero.

Flynn aguardou que servissem as entradas, e olhou para o pra­to de peixe dela e para o seu bife.

- O que achas de comer peixe e carne ao mesmo tempo?

- É agradável - respondeu Malory, cortando uma porção da sua refeição e passando-a a Flynn, recebendo também parte do prato dele.

- Sabes que isto é capaz de se transformar num caso sério? Tu e eu? Há montes de gente que detesta partilhar comida. Nunca consigo nada assim - disse ele, mostrando o bife. - Quer dizer, isto é comida. É para comer. Que diferença faz que tenha estado primeiro no prato de outra pessoa?

- Isso é um elemento interessante a ter em conta numa rela­ção potencial. Então diz lá, o que é que descobriste?

- Falei acerca da história com a minha avó. Havia
alguns por­menores de que não me lembrava bem. Em primeiro lugar, hou­ve uma dissenção nas tropas pelo facto de o rei-deus ter escolhido como rainha uma comum mortal. O contacto com os mortais era aceite, mas ele trouxe-a do outro lado da Cortina Magnética, ou da Cortina dos Sonhos. Pode ter ambos os nomes. E aceitou-a como esposa. Por esse motivo, alguns deuses afastaram-se do jo­vem rei e da sua esposa mortal, e estabeleceram as suas próprias regras.

- Política.

- Nunca se pode fugir dela. Como é natural, isso não agradou muito ao rei. Existem outras versões da história, cheias de guer­ras, intrigas e heróis, e isso leva-nos às filhas. Amadas pelos pais, e pelos súbditos que eram leais ao rei e à sua esposa. Qualquer uma delas era bela, como seria de esperar, e qualquer uma tinha poder: um talento. Uma era artista, outra servia de bardo[18], e outra era guerreira. Extremamente dedicadas umas às outras, cresce­ram no reino, ensinadas por uma jovem deusa da magia, e guarda­das pelo deus guerreiro de maior confiança do rei. Quer a sua mestra, quer o seu guardião deviam estar com elas a todo o mo­mento, para as manterem a salvo das congeminações que as ro­deavam.

- No quadro havia duas figuras, um homem e uma mulher, em pano de fundo. Pareciam beijar-se.

Flynn gesticulou com o garfo, e a seguir continuou a cortar o bife.

- Isso tem a ver com o que vem a seguir. Os conselheiros do rei tentavam convencê-lo a fazer as filhas casar com três deuses importantes da facção contrária. Porém, o rei auto-proclamado da facção contrária não estava disposto a abandonar o trono. Fora corrompido pelo poder, e a sua sede de poder, de domínio absoluto sobre aquele mundo infernal, por assim dizer, e pelo mundo mortal, consumia-o. Queria matar as filhas, mas sabia que, se o fizesse, só os seus mais devotos seguidores não se virariam contra ele. Por isso, congeminou um plano, e as duas pessoas que estavam mais perto delas acabaram por ajudá-lo, apaixonando-se.

- Eles traíram as filhas?

- Não propositadamente - respondeu Flynn, voltando a en­cher os copos de vinho. - Por distracção. Por olharem um para o outro e negligenciarem os seus cargos. E como as filhas eram jovens mulheres, e gostavam dos seus guardiães, facilitaram as suas escapadelas de tempos a tempos. E no dia em que ficaram desprotegidas, foi-lhes lançado um feitiço.

- Roubaram-lhes as almas.

- É mais do que isso. Não comes o resto do bife?

- Hum - proferiu ela, lançando uma olhadela para o prato. -Não. Queres?

- É para o Moe. Se volto de mãos a abanar, fica amuado - explicou, pediu ao empregado para pôr os restos numa caixa e sorriu para Malory. - Sobremesa?

- Não. Só café. Conta-me o resto.

- Dois cafés, um leite-creme com açúcar queimado e duas colheres. - Não podes recusar um leite-creme - disse para Malory,
e a seguir inclinou-se para a frente com o intuito de prosseguir a história. - O rei maléfico é esperto, e é um feiticeiro. Não se importa de chacinar inocentes, e vira contra o rei bondoso as suas próprias escolhas e opções políticas. Se uma mortal pode ser rainha, se três meias-mortais são dignas desse alto cargo, que os mortais o provem. Apenas três mortais poderão quebrar o feitiço. Até então, as filhas ficarão adormecidas - desarmadas. Se três mulheres mortais, cada uma representando uma das filhas, con­seguirem encontrar cada uma das chaves, a Caixa das Almas será aberta, as almas das filhas serão reabilitadas e o reino voltará a ver a união.

- E se não conseguirem?

- Na versão mais popular, segundo a minha avó, o rei maléfico estabelece um limite de tempo: um milénio para cada filha. Se as chaves não forem encontradas e a caixa aberta durante esse perío­do, será ele o único governante, tanto do mundo dos deuses como do dos mortais.

- Nunca entendi porque é que alguém há-de querer governar o mundo. Isso parece-me ser uma grande dor de cabeça - co­mentou ela, franzindo os lábios quando pousaram o prato de lei­te-creme entre os dois. Flynn tinha razão: não ia ser capaz de resistir. - O que aconteceu aos amantes?

- Também existem várias versões dessa parte da história - res­pondeu ele, mergulhando a colher numa das pontas do prato enquanto Malory ia comendo do outro lado. - Na versão da mi­nha avó, o rei enlutado condena os amantes à morte, mas a espo­sa intervém, pedindo misericórdia. Foram expulsos para lá da Cortina dos Sonhos, e proibidos de regressar até encontrarem as três mortais que conseguissem não só as almas das filhas mas tam­bém as suas.

- O Rowena e a Pitte acharão que são a mestra e o guardião? Flynn ficou contente por as conclusões de ambos serem as mesmas.

- Era essa a minha ideia. Tens um par de doidos entre mãos, Malory. E um belo conto de fadas. Romântico e colorido. Mas quando as pessoas começam a projectar-se a si mesmas e às ou­tras nos respectivos papéis, entra-se num antro de loucos.

- Estás a esquecer-te do dinheiro.

- Não, não estou. O dinheiro é o que me preocupa. Setenta e cinco mil significa que isto para eles não é um jogo, nem uma diversão. Eles estão metidos nisto a sério. Ou acreditam mesmo no mito, ou estão a preparar o terreno para um embuste. Malory brincou com mais uma colher de leite-creme.

- Com os vinte e cinco mil, tenho cerca de vinte e cinco mil, duzentos e cinco dólares, incluindo os vinte que encontrei num bolso do blusão esta manhã. Os meus pais são pessoas da classe média. Não são ricos nem influentes. Não tenho quaisquer ami­gos ou amantes ricos ou influentes. Não tenho nada que mereça nenhum embuste.

- Talvez eles andem à procura de outra coisa qualquer, algu­ma coisa em que não pensaste. Mas voltemos aos amantes por mais um instante. Tens alguns pobres
desgraçados?

Ela bebeu um gole de café enquanto o ia analisando por cima da borda da chávena. O Sol tinha-se posto enquanto jantavam. A luz que os iluminava era agora a de uma vela que tremeluzia entre eles.

- De momento, não.

- Que coincidência. Eu também não.

- Eu ando à procura de uma chave, Flynn, e não de um amante.

- Partes do princípio que a chave existe.

- Parto, sim. Se não partisse, não me dava ao trabalho de a procurar. E dei a minha palavra de honra em como a encontraria.

- Eu ajudo-te a encontrá-la.

Ela pousou novamente a chávena.

- Porquê?

- Por muitas razões. Em primeiro lugar, sou um tipo natural­mente curioso e, seja como for que tudo isto acabe, não deixa de ser uma história interessante - Flynn passou a ponta do dedo pelas costas da mão dela, e o leve arrepio subiu-lhe delicada­mente pelo braço acima. - Em segundo, a minha irmã está envolvi­da. E em terceiro, isso vai permitir-me estar ao pé de ti. Além do mais, segundo me parece, vais conseguir resistir-me tanto como a esse leite-creme.

- Isso é autoconfiança ou presunção?

- É única e simplesmente o destino, querida. Olha, porque não voltamos para minha casa e... Ora bolas, não estava a pensar beijar-te até me lançares esse olhar atrevido. Agora fizeste-me perder o fio do raciocínio.

- Eu não estou com dificuldade nenhuma em segui-lo.

- Tudo bem, não era essa a minha ideia, mas alinho nisso com todo o gosto. O que ia sugerir era que podíamos voltar para casa e prosseguir com a investigação. Posso mostrar-te o que descobri até ao momento, que é basicamente nada. Não consigo desco­brir quaisquer dados sobre os vossos benfeitores, pelo menos sob os nomes que eles usaram para comprar o Pico, ou sob quaisquer variações deles.

- Para já, tenciono deixar a investigação para ti e para a Dana - declarou ela, encolhendo os ombros. - Tenho outras pistas a seguir.

-Tais como?

- A Lógica. As deusas. Há algumas lojas da Nova Era por aqui. Vou até lá. Além disso, ainda há o quadro. Vou descobrir quem pintou o retrato, ver que outros quadros existem do mesmo pin­tor ou pintora, e onde poderão estar. Quem os tem, como os adquiriu. Preciso de ir novamente até ao Pico do Guerreiro, para ter mais uma conversa com o Pitte e a Rowena, e ver mais uma vez o quadro. Observá-lo melhor.

- Eu vou contigo. Aí há uma história qualquer, Malory. Isto pode ser um enorme estratagema, o que daria uma excelente reportagem, e eu tenho o dever de divulgá-lo.

Ela endireitou-se no lugar.

- Não tens a menor prova de que o Pitte e a Rowena não sejam genuínos; podem ser lunáticos, isso sim, mas não são ban­didos.

- Calma - disse ele, estendendo uma mão para apaziguar as coisas. - Não vou escrever nada antes de reunir todos os factos. E não posso reunir todos os factos antes de conhecer todos os intervenientes. Preciso de um passe para entrar naquela casa. E esse passe és tu. Em troca do bónus dos meus excelentes dotes de investigação e a minha determinação de jornalista farejador. Ou vou contigo, ou convenço a Dana a levar-me até lá.

Malory tamborilou com um dedo na mesa enquanto considera­va as alternativas.

- Eles são capazes de não querer falar contigo. Aliás, podem nem gostar que te tenhamos metido nisto, mesmo que seja a um nível periférico.

- Deixa isso comigo. Meter-me em lugares onde não me que­rem faz parte do meu trabalho.

- Foi isso que te levou a minha casa ontem à noite?

- Au! Porque não vamos até lá amanhã de manhã? Posso ir buscar-te às dez.

- Está bem - que mal teria deixá-lo acompanhá-la?

- Não precisas de me acompanhar à porta - avisou Malory quando se aproximavam do seu prédio.

- Claro que preciso. Sou um tipo antiquado.

- Não és nada - murmurou ela enquanto abria a carteira, à procura da chave. - Não te vou convidar a subir.

-Tudo bem.

Ela lançou-lhe um olhar de esguelha quando estavam quase a chegar ao pé da porta.

- Dizes isso como se fosses um homem afável e descontraído, e também não és nada assim. Isso não passa de um truque.

Ele sorriu.

- A sério?

- Sim. És teimoso, metediço e chegas a ser arrogante. Só te consegues safar porque, a seguir, pões esse grande sorriso encanta­dor e essa pose de quem não faz mal a uma mosca. Mas isso não passam de ferramentas para te ajudarem a conseguir o que pre­tendes.

- Óptimo, consegues ver-me como se fosse transparente - enquanto a observava, Flynn ia enrolando à volta do dedo um caracol dos cabelos dela. - Agora, tenho de te matar ou de me casar contigo.

- E o facto de seres estranhamente atraente não te torna me­nos irritante. É aí que o plano vai por água abaixo.

Ao ouvir aquelas palavras, ele envolveu-lhe o rosto entre as mãos e comprimiu entusiasticamente os lábios contra os seus. A onda de calor disparou imediatamente a partir da barriga, e pareceu sair pelo topo da nuca.

- Nem isso - conseguiu ela acrescentar. Enfiou a chave no buraco da fechadura e empurrou a porta. A seguir, fechou-lha na cara. Passado um instante, escancarou-a novamente. - Obrigada pelo jantar.

Ele deu suavemente meia volta sobre os calcanhares quando a porta se lhe fechou na cara pela segunda vez. Enquanto se afasta­va ia assobiando, a pensar que Malory Price era o tipo de mulher capaz de tornar a vida de um homem bastante interessante.

 

Dana bebeu de um trago a primeira chávena de café enquanto estava de pé, totalmente despida, no meio da sua pequena cozinha, de olhos fechados e com o cérebro parado. Engoliu-o até à última gota, quente, escuro e forte, antes de soltar um ligeiro gemido de prazer.

Bebeu a segunda chávena a caminho do duche.

Não se arreliava demasiado com as manhãs, acima de tudo porque nunca estava suficientemente acordada para
se aborrecer com elas. A sua rotina raramente tinha variações. O despertador tocava, e ela desligava-o com uma palmada, e a seguir rolava para fora da cama e ia a cambalear até à cozinha, onde a máqui­na de café automática já tinha a primeira chávena pronta.

Uma chávena e meia mais tarde, a sua visão já era suficiente­mente nítida para poder tomar um duche.

Depois de acabar o duche ficava com os circuitos ligados, e estava demasiado acordada para se sentir amuada por isso. Bebia a segunda metade da segunda chávena e ouvia o noticiário da manhã enquanto se vestia.

Com um pão torrado e a terceira chávena de café, sentava-se com o livro que andava a ler naquele momento.

Só tinha acabado de ler a segunda página quando as batidas na porta interromperam o mais sagrado dos seus rituais.

- Raios.

Dana marcou a página. O aborrecimento desvaneceu-se um pouco quando abriu a porta a Malory.

- Vejam só se não é a madrugadora jovial?

- Desculpa. Como disseste que ias trabalhar esta manhã, achei melhor aparecer cedo.

- Também já estava a pé - replicou Dana, encostando-se por alguns instantes contra a aduela para observar o minúsculo pa­drão de xadrez verde da camisa de algodão macio precisamente da mesma cor das calças de pregas de Malory. Tal como os traves­sões cinzento-pombo que ela usava eram exactamente da mes­ma cor e da mesma textura que a carteira que trazia ao ombro.

- Vestes-te sempre assim? - indagou Dana.

- Assim como?

- Na perfeição.

Com uma risadinha, Malory baixou a cabeça e observou-se.

- Acho que sim. É uma compulsão.

- Fica-te bem. Provavelmente acabarei por te odiar por isso. Mas podes entrar.

A sala era uma biblioteca compacta e informal. Havia livros empilhados nas prateleiras que se estendiam do chão até ao tecto ao longo de duas paredes, pousados sobre as mesas como moti­vos ornamentais e agrupados pela sala como soldados. Impressionaram Malory, parecendo-lhe representar mais do que conhecimento ou entretenimento, e ainda mais do que histórias e informação. Constituíam motivos de cor e textura, num esquema decorativo escolhido ao acaso, embora de certo modo elaborado.

A pequena extremidade da sala em forma de L continha ainda mais livros, além de uma pequena mesa com os restos do pequeno-almoço de Dana.

Com as mãos nas ancas, Dana observou Malory a perscrutar o seu espaço. Já conhecia a reacção habitual.

- Não, ainda não os li todos, mas hei-de ler. E não, não sei quantos são. Queres café?

- Deixa-me só perguntar uma coisa. Alguma vez usas os servi­ços da biblioteca?

- Claro, mas preciso de os ter. Se não tiver vinte ou trinta livros aqui, prontinhos para ler, começo a ficar neurótica. É essa a mi­nha compulsão.

- Certo. Dispenso o café, obrigada. Já tomei um. Dois, e estou em pulgas.

-Dois, e mal consigo construir frases completas! Um pãozinho?

- Não, mas come tu. Queria apanhar-te antes de ires para o trabalho. Contar as últimas.

- Conta - pediu Dana, apontando para a segunda cadeira à mesa, e depois sentou-se para acabar o pequeno-almoço.

- Vou ao Pico do Guerreiro esta manhã. Com o Flynn. O lábio de Dana contraiu-se num sorriso.

- Logo vi que ele se ia meter. E atirar-se a ti.

- Alguma dessas coisas é um problema para ti?

- Não. Ele é mais inteligente do que parece. Esse é um dos moti­vos pelos quais as pessoas se abrem com ele. Se ele não se tivesse metido, eu tê-lo-ia aliciado até ele nos ajudar. Quanto ao facto de se atirar a ti, devia ter pensado que ele ou te ia escolher a ti ou à Zoe. O Flynn gosta muito de mulheres, e elas gostam muito dele.

Malory pensou no modo como ele avançara pela sua cozinha adentro, e na maneira como ela se derretera como manteiga.

- Há verdadeiramente uma reacção química, mas ainda não percebi se gosto dele ou não.

Dana deu uma dentada no pão estaladiço.

- É melhor deixares-te ir. Ele vai acabar por te cansar, que é outra coisa em que costuma ser bastante bom. Parece um raio de um collie.

- Perdão?

- Sabes como eles guardam as ovelhas? - perguntou Dana, mo­vendo a mão livre em ziguezague para demonstrar. - Como as em­purram permanentemente, até elas se dirigirem para onde o collie quer que elas vão? O Flynn é assim. Podes pensar, não, eu quero ir para ali, e ele pensa, bem, é melhor ires para acolá. E tu acabas por ir para acolá antes de te aperceberes que foste levada a isso.

Dana lambeu queijo-creme do dedo.

- E o inferno de tudo isso é que, quando dás por ti acolá, quase sempre reparas que estás melhor. Ele mantém-se sempre à superfície nunca dizendo que a ideia foi dele.

”Afinal de contas, fui jantar com ele, não era verdade?”, pen­sou Malory. Beijara-o - duas vezes. Três, se pensasse no assunto em termos técnicos. E ele não só ia ao Pico do Guerreiro com ela, como ia lá levá-la. Hum.

- Não gosto de ser manipulada.

A expressão de Dana era algo entre o sorriso e a compaixão.

- Bom, logo se vê como é que as coisas correm - concluiu, e levantou-se para arrumar a sua louça. - O que esperas obter da Rowena e do Pitte?

- Não espero obter deles nada de especial. O que me interes­sa é o quadro - respondeu Malory, seguindo Dana até à cozinha. Não a surpreendeu encontrar igualmente livros naquela divisão, empilhados na copa, no lugar onde qualquer cozinheiro guarda­ria artigos de cozinha.

- O quadro tem a sua importância - prosseguiu, enquanto Dana lavava os pratos. - Pelo que diz, e quem o criou.

Aproveitou para explicar o resto da lenda tal como Flynn lha contara ao jantar.

- Quer dizer que eles assumem os papéis da mestra e do guardião.

- É essa a teoria - confirmou Malory. - Estou interessada em saber como irão reagir quando eu abordar esse assunto. E posso usar o Flynn para os distrair o tempo suficiente para dar outra vista de olhos ao quadro e tirar-lhe algumas fotografias. Isso pode levar a outros quadros com temas semelhantes, e talvez ajude alguma coisa.

- Hoje de manhã vou fazer uma busca sobre arte mitológica - afirmou Dana, e olhou para o relógio. - Tenho de ir andando. Nós as três devíamos reunir-nos para falar acerca disto assim que pudermos.

- Vamos lá ver o que descobrimos hoje.

Saíram as duas juntas, e Malory parou no passeio.

- Dana. Não será uma loucura fazer tudo isto?

- Tens toda a razão. Telefona-me assim que voltares do Pico.

O trajecto no domingo de manhã foi mais agradável e menos sujeito às agruras do clima. Como passageira, Malory teve a oportu­nidade de se regalar com a paisagem e pensar como seria viver no alto de uma montanha onde o céu parecia estar a um palmo de distância e o mundo se estendia a seus pés como uma paisa­gem pintada.

Uma vista digna dos deuses, imaginou. Ampla e impressionante. Não duvidava que Pitte e Rowena tinham escolhido aquele cená­rio tanto pela sua força como pela privacidade que oferecia.

Dentro de poucas semanas, quando aquelas montanhas de contornos elegantes sentissem o frio do Outono, as cores deslum­brariam a vista e tirariam o fôlego a quem as visitasse.

Mantos de neblina pairariam sobre elas de manhã, imiscuin­do-se nas dobras e profundezas entre os montes, espalhando-se como poças reluzentes até o sol os dissolver.

E ainda assim, a casa permaneceria, negra como a noite, com as suas linhas elegantes desenhadas contra o céu. Guardando o vale. Ou vigiando-o. ”O que verá esta casa”, pensou ela, ”ano após ano ao longo de tantas décadas?”

”O que saberá?”

A pergunta provocou-lhe um arrepio, uma súbita noção aguda do terror.

- Frio?

Ela abanou a cabeça, e abriu a janela. De repente, o automó­vel parecia quente e abafado.

- Não. Estou a atemorizar-me a mim mesma, é só isso.

- Se não quiseres ir lá agora...

- Eu quero ir. Não tenho medo de dois ricaços excêntricos. Na verdade, até gostei deles. E quero ver outra vez o quadro. Não consigo deixar de pensar nele. Para onde quer que a minha mente se dirija, está sempre a voltar àquele quadro.

Malory olhou pela janela, para os bosques densos, cobertos de folhagem.

- Gostavas de viver aqui? -Não.

Intrigada, ela olhou para ele.

- Foste muito rápido.

- Sou um animal social. Gosto de ter gente por perto. O Moe era capaz de gostar - Flynn olhou pelo retrovisor para Moe, de nariz espalmado contra a estreita nesga de vidro, com as orelhas ao vento.

- Não consigo entender porque trouxeste o cão.

- Ele gosta de andar de carro.

Malory virou-se para trás, para observar a expressão beatífica de Moe.

- Nota-se. Alguma vez pensaste tosquiá-lo para o pêlo não estar sempre a tapar-lhe os olhos?

- Não fales em cortar nada - começou Flynn, fazendo uma careta ao dizer a palavra. - Ainda não ultrapassámos a questão da castração.

Ele abrandou enquanto seguiam ao longo do muro que delimi­tava a propriedade. Depois parou para observar os guerreiros gémeos que ladeavam o portão de ferro.

- Não parecem muito afáveis, Vim acampar para aqui uma ou duas vezes com alguns amigos quando andava no liceu. Nessa altura a casa estava vazia, por isso saltávamos o muro.

- Entraste na casa?

- Nem com uma grade de cerveja teríamos coragem para tan­to, mas divertimo-nos imenso a assustarmo-nos. O Jordan disse que viu uma mulher no parapeito, ou lá como se chama. Jurou que era verdade. Mais tarde, veio a escrever um livro acerca dela, por isso, creio que deve ter visto alguma coisa. O Jordan Hawke - acrescentou Flynn. - És capaz de ter ouvido falar nele.

- O Jordan Hawke escreveu sobre o Pico do Guerreiro?

- Chamou-lhe...

- A Espera do Fantasma. Eu li o livro - com um arrepio de fascínio a percorrer-lhe a espinha, Malory olhou por entre as gra­des dos portões. - Pois é. Fez uma descrição perfeita. Bem ele é um excelente escritor! - E, olhando para Flynn com ar desconfia­do: - És amigo do Jordan Hawke?

- Desde miúdos. Crescemos no Vale. Julgo que tínhamos dezasseis anos... eu, o Jordan, e o Brad, bebíamos cerveja no bosque, enxotávamos mosquitos do tamanho de pardais, e fartávamo-nos de contar mentiras cheias de imaginação sobre as nos­sas proezas sexuais.

- É ilegal beber aos dezasseis anos - comentou Malory afecta­damente.

Ele mudou de posição no assento e, apesar das lentes escuras dos óculos de sol, ela conseguiu ver o riso nos olhos dele.

- A sério? O que é que nos terá passado pela cabeça? Seja como for, dez anos mais tarde, o Jordan escrevia o seu primeiro best-seller, o Brad estava a gerir o império da família: nem mais nem menos que o negócio de madeiras e a cadeia de lojas HomeMakers do Bradley Charles Vane IV, e eu tencionava ir a Nova Iorque para o entrevistar como repórter máximo do Times.

As sobrancelhas dela arquearam-se.

- Trabalhaste para o New York Times?

- Não. Nunca cheguei a ir. Apareceu sempre alguma coisa a impedir - recordou, com um encolher de ombros. - Vejamos o que consigo fazer para passarmos o portão.

Quando ele se preparava para sair do carro, o portão abriu-se com uma espécie de silêncio sobrenatural que o fez sentir um arrepio no pescoço.

- Devem mantê-lo bem lubrificado - murmurou. - E penso que alguém deve saber que já chegámos.

Sentou-se novamente ao volante e continuou a conduzir.

A casa parecia tão estranha, impressionante e espantosa de dia como na noite do temporal. Não havia nenhum veado esplen­doroso a recebê-la, mas a bandeira com o emblema da chave esvoaçava, branca e altiva, e rios de flores corriam mais abaixo. As gárgulas mantinham-se coladas à pedra, fazendo Malory imaginar ­
que podiam saltar a qualquer momento, e não propriamente por diversão, sobre qualquer visitante.

- Nunca cheguei tão perto da casa à luz do dia - afirmou Flynn, saindo lentamente do automóvel.

- É assustadora.

- Sim, mas de uma maneira agradável. É magnífica, como algo que pudéssemos esperar encontrar à beira de um precipício so­bre o mar. Só é pena não ter fosso. Isso era realmente o máximo.

- Espera até veres o interior - Malory pôs-se ao lado de Flynn, e não levantou qualquer objecção quando ele lhe pegou na mão. A comichão que sentia na base da garganta fazia-a sentir-se tola e feminina.

- Não sei porque estarei tão nervosa - deu Malory por si a murmurar, e a mão dela estremeceu dentro da dele quando a grande porta de entrada se abriu.

Rowena estava de pé, com a silhueta recortada contra a impo­nente entrada. Usava umas calças cinzentas simples com uma camisa confortável da cor da floresta. Os cabelos tombavam-lhe sobre os ombros, tinha os lábios por pintar e os pés descalços. No entanto, apesar do ar casual do traje, não deixava de ter um ar exótico, como uma rainha estrangeira numas férias de repouso.

Malory captou o brilho dos diamantes que reluziam nas ore­lhas dela.

- Muito prazer - cumprimentou Rowena, estendendo uma mão com anéis que emitiam um brilho elegante. - Tenho muito gosto em voltar a vê-la, Malory. E trouxe-me uma bela surpresa.

- Flynn Hennessy. É irmão da Dana.

- Seja bem-vindo. O Pitte não demora nada. Está só a acabar um telefonema - comunicou, fazendo-lhes um gesto para en­trarem.

Flynn teve de resistir para não se pôr a olhar para o átrio.

- Não parece ser o tipo de lugar onde existam telefones.

A gargalhada de Rowena era quase inaudível, como um gato a ronronar.

- Apreciamos as vantagens da tecnologia. Entrem, venham tomar um chá.

- Não queremos incomodá-la - começou Malory, mas Rowena dissuadiu-a de prosseguir.

- Os convidados nunca incomodam.

- Como descobriu o Pico do Guerreiro, Sra...

- Rowena - respondeu ela, dando suavemente o braço a Flynn enquanto os conduzia até à sala. - Chame-me Rowena. O Pitte está sempre atento aos lugares interessantes.

- Viajam muito?

- Viajamos, sim.

- Por trabalho, ou por prazer?

- O trabalho sem prazer não faz grande sentido - replicou Rowena, fazendo deslizar um dedo pelo braço dele com ar brinca­lhão. - Querem sentar-se? Ah, aí vem o chá.

Malory reconheceu a criada da sua primeira visita. Trouxe o carrinho do chá em silêncio, e saiu do mesmo modo.

- Qual é a vossa área de negócios? - inquiriu Flynn.

- Oh, fazemos um pouco disto e daquilo, e mais uma ou outra coisa. Leite? - perguntou ela a Malory enquanto a servia. - Mel, limão?

- Um pouco de limão, obrigada. Tenho imensas perguntas.

- Estou certa de que sim, bem como o seu atraente compa­nheiro. Como gosta do chá, Flynn?

- Pode ser simples.

- É americano. E em que trabalha, Flynn?


Ele pegou na chávena delicada que ela lhe estendia. O seu olhar era firme, e, subitamente, muito frio.

- Tenho a certeza de que já está informada acerca disso. Não escolheu a minha irmã à sorte. Sabe tudo o que precisa de saber acerca dela, e isso inclui-me a mim.

- É verdade - Rowena acrescentou leite e mel ao seu chá. Em vez de se mostrar insultada ou entristecida, parecia satisfeita. - A imprensa deve ser uma área muito interessante. Tanta informa­ção a recolher, e a difundir. Imagino que deve ser preciso inteli­gência para saber executar as duas tarefas. E aí vem o Pitte.

Este entrou na sala, na opinião de Flynn, como um general. Avaliando o campo, apalpando o terreno, delineando a sua abor­dagem. Por mais cordial que fosse o seu sorriso, Flynn teve a cer­teza de que havia um soldado de aço por detrás dele.

- Menina Price. É um prazer voltar a vê-la - declarou, pegan­do-lhe na mão e aproximando-a até esta ficar a dois dedos dos seus lábios, num gesto que parecia demasiado fluído para não ser natural.

- Obrigada por nos ter recebido. Apresento-lhe o Flynn. - Sim. Sr. Hennessy - acrescentou, inclinando a cabeça.

- Como está?

- Bem, obrigado.

- Os nossos amigos têm perguntas e preocupações a apresen­tar-nos - comunicou-lhe Rowena enquanto lhe passava a cháve­na de chá que servira entretanto.

- Como é natural - retorquiu Pitte, sentando-se. - Devem estar a pensar, imagino eu, se não seremos... - começou, lançando o seu olhar medianamente curioso para Rowena.

- Loucos - completou ela, erguendo depois uma travessa. - Scones.

-Ah, sim, loucos-repetiu Pitte, servindo-se de um scone e de uma generosa colher de natas batidas. - Posso garantir-lhes que não, mas, pensando bem, também diria a mesma coisa se fôssemos. Portanto, isso de pouco vos serve. Diga-me, menina Price, tem sentido alguma hesitação em relação ao nosso acordo?

-Aceitei o vosso dinheiro e dei-vos a minha palavra de honra.

A expressão dele atenuou-se um pouco.

- Sim. Para alguns, isso pouca diferença faria.

- Para mim faz toda a diferença.

- Isso pode mudar - interrompeu Flynn. - Dependendo de onde vem esse dinheiro.

- Está a sugerir que podemos ser criminosos? - a irritação aflorava agora no fluxo de sangue que cobriu as faces de Rowena, lisas como o gelo. - É uma grande falta de delicadeza vir a nossa casa acusar-nos de sermos ladrões.

- Os jornalistas não são conhecidos pela delicadeza, nem os irmãos quando estão a cuidar das irmãs.

Pitte murmurou qualquer coisa em voz baixa numa língua es­trangeira, e passou os seus longos dedos pelas costas da mão de Rowena, como um homem que tentasse acalmar um gato que estivesse prestes a atacar.

- Entendido. Acontece que tenho alguma habilidade em ter­mos monetários. O dinheiro vem parar às nossas mãos por meios absolutamente legais. Não somos nem loucos
nem criminosos.

- Quem são vocês? - indagou Malory antes que Flynn tivesse oportunidade de abrir novamente a boca. - De onde vêm?

- O que lhe parece? - perguntou Pitte em voz baixa, em tom de desafio.

- Não sei. Mas creio que julgam representar a mestra e o guardião que não conseguiram proteger as Filhas do Vidro.

Um sobrolho arqueou-se ligeiramente.

- Já aprendeu muito desde a última vez que aqui esteve. Ain­da vai aprender mais?

- Tenciono fazê-lo. Vocês podem ajudar-me.

- Não temos liberdade para fornecer qualquer tipo de auxílio. Mas vou dizer-lhe uma coisa. Não só mestra e guardião, como companheiros e amigos desses seres preciosos e, por conseguin­te, tanto mais responsáveis.

- Isso é só uma lenda.

A intensidade dos olhos de Pitte diminuiu, e ele voltou a recos­tar-se.

- Deve ser, visto que essas coisas se encontram para além dos limites da vossa mente e das fronteiras do vosso mundo. Mesmo assim, juro-lhes que as chaves existem.

- Onde está a Caixa das Almas? - perguntou-lhe Flynn.

- Em segurança.

- Posso ver novamente o quadro? - perguntou Malory, virando-se agora para Rowena. - Gostava que o Flynn o visse.

- Com certeza - respondeu ela, levantando-se para os condu­zir à sala dominada pelo retrato d’As Filhas do Vidro.

Malory ouviu Flynn reter o fôlego, e a seguir estavam os dois a caminhar juntos em direcção ao quadro.

-Ainda é mais extraordinário do que me recordava. Pode di­zer-me quem o pintou?

- Alguém - disse Rowena em voz baixa - que conhecia o amor, e o sofrimento.

- Alguém que conhece a Malory, e a minha irmã, e a Zoe McCourt.

Rowena soltou um suspiro.

- Você é um cínico, Flynn, e ainda por cima desconfiado. Mas como se colocou no papel de protector, perdoo-lhe por isso. Não desejamos nada de mal à Malory, à Dana ou à Zoe. Antes pelo contrário.

Alguma coisa no seu tom fez com que ele desejasse acreditar nela.

- É bastante desconcertante ver o rosto da minha irmã neste quadro.

- Você faria tudo o que fosse necessário para mantê-la de saú­de e em segurança. Consigo entender esse tipo de lealdade e amor. Admiro-o e respeito. Ela não corre qualquer perigo que venha de mim ou do Pitte. Isso posso jurar-lhe.

Nesse momento, Flynn virou-se, alertado pelo que não fora dito.

- E de outras pessoas?

- A vida é um jogo - limitou-se Rowena a afirmar. - O seu chá está a arrefecer.

Ela virou-se para a porta no preciso momento em que Pitte se aproximava.

- Parece que está lá fora um cão muito grande e muito infeliz.

A irritação e as palavras desagradáveis não provocaram a me­nor reacção em Flynn, mas aquela simples afirmação fê-lo estre­mecer.

- É meu.

- Tem um cão? - a mudança de tom de Rowena foi quase de miúda. Tudo nela pareceu tornar-se leve e luminoso, e abrir-se numa profusão de bolhas quando ela pegou na mão de Flynn.

- Ele chama-lhe cão - comentou Malory, quase sem fôlego. Flynn lançou-lhe apenas um olhar pesaroso antes de se dirigir a Rowena.

- Gosta de cães?

- Gosto. Muito. Posso conhecê-lo?

- Claro.

- Ah, enquanto vais apresentar o Moe à Rowena e ao Pitte, por sua conta e risco, posso aproveitar para me refrescar? - pergun­tou Malory, apontando casualmente para a casa de banho. - Ain­da me lembro onde é.

- Com certeza - pela primeira vez desde que Malory a conhe­cera, Rowena parecia distraída. Quando saíram do vestíbulo, esta tinha já uma mão pousada no braço de Flynn. - De que raça é?

- Isso é um assunto discutível.

Malory esgueirou-se para a casa de banho e contou até cinco. Devagar. Com o coração a bater, abriu ligeiramente a porta e fez os possíveis para espreitar para o corredor. Movendo-se agora com rapidez, voltou a correr para a sala onde se encontrava o retrato, e tirou da carteira a máquina fotográfica digital pelo cami­nho.

Tirou meia dúzia de fotografias da obra na sua totalidade, e depois algumas fotografias de pormenor. Com uma olhadela cul­pada por cima do ombro, enfiou a máquina na carteira e tirou os óculos, um saco de plástico e uma pequena faca para recolha de tinta.

Com um zunido nos ouvidos, subiu para cima da lareira e, com muito cuidado, raspou alguns flocos de tinta para dentro do saco.

Ao todo, o processo demorou menos de três minutos, mas apesar disso, as suas palmas das mãos ficaram húmidas de suor, e as pernas fracas e a tremer quando acabou a operação. Recom­pôs-se durante mais alguns instantes, e com o que esperava ser um ar descontraído e à vontade, saiu da sala e foi até ao exterior da casa.

Quando chegou lá fora, nem queria acreditar. Havia uma Rowena real e esplendorosa sentada no chão com uma monta­nha de cão esparramada no colo.

E não parava de se rir.

- Oh, ele é maravilhoso. É um grande querido. És um lindo menino - disse ela, enquanto inclinava a cabeça para fazer fes­tas no pêlo de Moe. A cauda do cão matraqueava como um martelo pneumático. - Foi ele que veio ter consigo, ou o con­trário?

- Foi mais ou menos recíproco. - Um amante de cães reconhe­ce outro. Enfiando os dedos nos bolsos, Flynn observou as exten­sas zonas de relvado e de bosque. - Um lugar tão grande como este, montes de espaço para correr... Podiam ter cães.

- Pois é. Ora - Rowena baixou outra vez a cabeça e começou a esfregar Moe na barriga.

- Viajamos muito - explicou Pitte, pousando uma mão na ca­beça de Rowena para lhe fazer uma festa,

- Quanto tempo tencionam ficar aqui?

- Quando os três meses chegarem ao fim, vamo-nos embora.

- Para?

- Depende. A ghra.

[19]- Pois é. Pois é - Rowena acariciou Moe durante mais alguns instantes, e depois, com um suspiro nostálgico, pôs-se de pé. -Tem muita sorte em possuir este bem na sua vida. Espero que o acarinhe.

- Sim.

- Vejo que está a falar a verdade. Você pode ser cínico e des­confiado, mas um cão destes sabe reconhecer um bom coração.

- Pois sabe - concordou Flynn. - Acredito nisso.

- Espero que o traga consigo se voltar cá. Assim, ele poderá dar umas boas corridas. Adeus, Moe.

Moe sentou-se e levantou uma pata enorme com uma digni­dade invulgar.

- Ena! Esta é nova - comentou Flynn, piscando os olhos quando Moe permitiu delicadamente a Rowena que lhe apertasse a pata. - Ei, Mal! Viste...

 

Quando ele proferiu o nome dela, a cabeça de Moe virou-se, e o cão desatou a correr na direcção de Malory, que soltou um grito de aflição enquanto se preparava para o ataque.

Rowena proferiu uma ordem, uma palavra indecifrável num tom calmo e severo. Moe parou a poucos centímetros dos pés de Malory, e sentou-se em peso, levantando a pata de imediato.

- Bom - exclamou Malory, respirando aliviada. - Assim gosto mais. - Baixou-se e pegou, agradecida, na pata que o cão lhe estendia. - Muito bem, Moe.

- Como é que conseguiu fazer isso? - indagou Flynn.

- Tenho jeito para animais.

- Estou totalmente de acordo. Que língua era aquela, gaélico?

- Hum, hum.

- Tem piada. O Moe entender uma ordem em gaélico quando, na maior parte das vezes, ignora as que lhe são dadas em inglês comum.

- Os cães têm uma percepção que vai além das palavras - afirmou, estendendo a mão na direcção da mão de Flynn.

- Espero que voltem todos. Gostamos de ter companhia.

- Obrigada pelo vosso tempo - Malory dirigiu-se para o auto­móvel com Moe caminhando alegremente a seu lado. Assim que se sentou, pousou a carteira no chão com o ar de quem tem um segredo a ocultar.

Rowena riu-se, mas o som do seu riso tornou-se um pouco triste quando Moe pôs a cabeça de fora da janela de trás. Ergueu uma mão para acenar, e encostou-se a Pitte quando Flynn se afastou.

- Sinto verdadeiramente esperança - murmurou. - Não me lembro da última vez que senti verdadeiramente esperança. Isso... assusta-me. Na realidade, assusta-me sentir isso.

Pitte envolveu-a com o braço, e apertou-a contra si.

- Não chores, meu amor.

- Que tolice - comentou, secando uma lágrima. - Chorar por causa do cão de um estranho. Quando voltarmos para casa...

Ele virou-a e envolveu-lhe o rosto com as mãos. O seu tom de voz era suave, embora de certo modo premente.

- Quando voltarmos, terás uma centena de cães. Um milhar.

- Basta-me um - declarou ela, pondo-se em bicos de pés para aflorar os seus lábios.

Dentro do automóvel, Malory soltou um longo suspiro.

- Pelo tom de alívio, parto do princípio que tiraste as foto­grafias.

- Tirei. Senti-me uma ladra de arte internacional. Acho que tenho de dar algum crédito ao Moe por ter distraído as atenções. Então, diz-me lá o que achaste deles.

- São espertos, manhosos e cheios de segredos. Mas não pare­cem ser loucos. Estão habituados a ter dinheiro: dinheiro a sério. Estão habituados a beber chá em chávenas antigas trazidas
por uma criada. São educados, cultos e um pouco snobes em relação a isso. A casa está apinhada de coisas elegantes. Como só cá estão há algumas semanas, não mobilaram as salas com coisas compradas aqui. Mandaram vir tudo de barco. Penso que é mais ou menos isso.

De sobrolho franzido, Flynn tamborilou com os dedos no vo­lante.

- Ela passou-se com o Moe.

- O quê?

- Derreteu-se toda no preciso momento em que o viu. Bem sei que ele tem montes de charme, mas ela derreteu-se. Conhe­ço bem este tipo de mulher. Tranquila, confiante, distante. O tipo de mulher que é sexy por saber que manda. A subir a Madison Avenue com uma carteira Prada na mão, ou a dirigir uma reunião da administração em L. A. Poder, dinheiro, inteligência e bom aspecto, tudo envolvido em sexo.

- Estou a ver. Achaste-a sexy.

- Em última análise, tive essa sensação, por isso, sim. Mas de­vias ter visto a cara dela quando o Moe saltou para fora do carro. Todo o verniz e o brilho desapareceram. Iluminou-se como uma manhã de Natal.

- Quer dizer que gosta de cães.

- Não, foi mais do que isso. Não foram aquelas festinhas que as mulheres elegantes fazem aos cães. Foi cair no chão, rebolar em cima da relva e desatar a rir com o corpo todo. Então, porque será que não tem um?

- Talvez o Pitte não queira ter cão. Flynn abanou a cabeça.

- Tu és mais observadora do que isso. O tipo era capaz de abrir uma veia se ela lhe pedisse. Há algo de estranho na maneira como ela levou o Moe a dar a pata. Há algo de estranho em tudo aquilo.

- Não duvido. Mas vou concentrar-me no quadro, pelo me­nos até um de nós ter outra opinião. Deixo-te ocupado com a Rowena e o Pitte.

- Tenho de assistir a uma reunião da câmara municipal esta noite. Que tal reunirmo-nos amanhã?

Ele manobra. Conduz. Malory pensou nas palavras de Dana e lançou-lhe uma olhadela de desconfiança.

- Define ”reunirmo-nos”.

- Adapto a definição àquilo que quiseres.

- Eu tenho quatro semanas, menos, aliás, para encontrar a chave. De momento estou desempregada e vou ter de descobrir o que irei fazer, pelo menos em termos profissionais, durante o resto da vida. Acabei há pouco tempo um relacionamento que não estava a dar em nada. Tudo somado, é mais do que óbvio que não tenho tempo para namorar e explorar um novo relaciona­mento pessoal.

- Espera aí - afirmou ele, encostando à berma da estrada serpenteante e tirando o cinto de segurança. Inclinou-se, pegou-lhe nos ombros e aproximou-se o máximo que podia enquanto os seus lábios se enlevavam brincando com os dela.

Um foguetão de calor disparou-lhe pela coluna acima, deixan­do uma sensação dolorosa na barriga.

- Tens, eh, mesmo muito jeito para isso - conseguiu ela dizer depois de recuperar o fôlego.

- Costumo praticar sempre que posso - para prová-lo, beijou-a novamente. Desta vez mais devagar. Mais profundamente. Até a sentir estremecer. - Só queria
que acrescentasses isto à tua equação.

- Eu especializei-me em Belas-Artes. A Matemática não é o meu maior trunfo. Volta aqui mais um instante - disse ela, e, agar­rando-o pela camisa, puxou-o para si e deixou-se ir.

Tudo dentro dela soltava faíscas. Sangue, ossos e cérebro.

Se aquilo era ser guardada como uma ovelha, pensou vaga­mente, não tinha de se importar por que caminhos ele a levava.

Quando as mãos dele lhe apertaram os cabelos, sentiu uma onda de força e de ansiedade tão potente como uma droga.

- Não podemos fazer isto - constatou, mas entretanto ia-lhe tirando a camisa de dentro das calças, ansiosa pelo contacto com a sua carne.

- Eu sei. Não podemos - concordou ele, tentando desapertar o cinto de segurança dela. - Vamos parar um bocado.

- Está bem, mas primeiro... - começou ela, levando a mão dele até ao seu seio, e gemendo com a sensação de que a palma da mão dele lhe tocava o coração.

Ele mudou-a de posição, e praguejou ao bater com o cotovelo no volante. E Moe, encantado com a perspectiva de um combate de luta livre, enfiou a cabeça por entre os assentos e lambuzou-os de beijos,

- Oh, meu Deus! - exclamou Malory, limpando a boca, dividida entre o riso e o choque. - Espero mesmo, a sério, que aquilo tenha sido a tua boca.

- E eu idem - afirmou ele, tentando recuperar o fôlego, en­quanto olhava para ela. Os seus cabelos estavam sensualmente revoltos, o rosto corado e a boca apenas um pouco inchada devi­do ao seu ataque.

Com a palma da mão, afastou o focinho de Moe e vociferou uma breve ordem para ele se sentar. O cão voltou para cima do assento e gemeu como se lhe tivessem batido.

Malory abanou a cabeça e disse:

- Não tencionava avançar assim tão rapidamente. E eu tenho sempre um plano.

- Lá passou algum tempo desde a última vez que experimentei fazer isto num automóvel parado à beira da estrada.

- Eu também - disse ela, virando-se na direcção dos ruídos patéticos vindos do banco detrás. - Dadas as circunstâncias...

- Pois. É melhor não. Eu quero fazer amor contigo - disse ele, aproximando-a de si. - Quero tocar-te. Sentir o teu corpo mover-se sob as minhas mãos. Eu quero mesmo, Malory.

- Preciso de pensar. Isto é tudo tão complicado, que preciso de pensar no assunto - a verdade era que ela tinha mesmo de pensar no facto de quase ter rasgado as roupas daquele homem no assento da frente de um automóvel, à beira de uma estrada pública em pleno dia.

- A minha vida está um caco, Flynn - a ideia deprimiu-a o suficiente para fazer as suas pulsações abrandarem. - Seja qual for a equação estraguei algumas coisas, e preciso de recuperar. Não me dou bem com situações de ruptura. Por isso, vamos abran­dar um pouco.

Ele prendeu um dedo no V da blusa dela.

- Quanto tempo é um pouco?

- Ainda não sei. Oh, não consigo aguentar - exclamou ela, e
deu meia volta, debruçada no assento. - Não chores, meu bebé grande - disse, e esfregou o pêlo entre as orelhas de Moe. - Ninguém se zangou contigo.

- Fala por ti - resmungou Flynn.

 

Sinto o sol, quente e ligeiramente fluido como uma cascata tranquila deslizando de um rio dourado. Os seus raios tombam sobre mim como numa espécie de baptismo. Sinto o cheiro a rosas, lírios, e alguma flor de aroma mais semelhante ao das especiarias, a cortar a doçura. Ouço o barulho da água, gotejando e caindo com um barulho divertido, elevando-se e voltando à origem.

Todas essas coisas deslizam sobre mim, ou então sou eu que deslizo sobre elas, embora não veja nada além de um branco denso. Como uma cortina que não consigo abrir.

Porque será que não tenho medo?

Ouço risos a flutuar na minha direcção. Vivos, descontraídos e femininos. Há neles uma alegria juvenil que me faz sorrir, que me traz à garganta um fio de gargalhadas. Quero encontrar a fonte desse riso e juntar-me a ele.

Vozes agora, aquele tagarelar rápido de pássaro, mais uma vez jovem e feminino.

Os sons vão e vêm, flúem e refluem. Estarei a vaguear na direc­ção deles ou a afastar-me?

Muito lentamente, a cortina vai-se tornando menos densa. Agora é só uma névoa, suave como chuva sedosa com a luz do sol a brilhar através dela. E do outro lado, vejo cores. Cores tão fortes e vivas, que rasgam aquela neblina rarefeita e me ofuscam os olhos.

As lajes são de um prateado reluzente, e explodem em clarões faiscantes com os raios de sol nos sítios onde a espessa folhagem verde e os rebentos cor-de-rosa-forte não têm sombra nem abrigo. As flores nadam nas poças ou dançam em camas rodopiantes.

Há três mulheres, aliás, três raparigas, juntas em torno da fonte que faz ecoar a sua alegre melodia. O que ouço é o seu riso. Uma tem uma pequena harpa na mão, e a outra uma pena. Mas elas riem-se do cachorro irrequieto que a terceira tem no colo.

São tão bonitas! Há nelas uma inocência comovente que se adequa perfeitamente ao jardim onde passam aquela tarde gloriosa. Depois vejo a espada embainhada na anca de uma delas.

Inocente, talvez, mas forte. Há força naquela imagem; sinto o seu clarão reluzindo agora no ar.

E mesmo assim não tenho medo.

Chamam ao cachorro Diarmait, e pousam-no no chão para ele poder brincar em torno da fonte. Os seus latidos de excitação parecem sinos. Vejo uma rapariga passar o braço a volta da cintu­ra de outra, e a terceira pousar a cabeça no ombro da segunda. Aí, tornam-se uma só. Uma espécie de tríade. Um todo compos­to por três partes a tagarelar acerca do novo cachorrinho, rindo-se enquanto ele rebola alegremente no meio das flores.

Ouço-as dizer nomes que sei que conheço, de algum modo, e olho na mesma direcção que elas olham. Ao longe, à sombra de uma árvore que deixa pender os seus ramos graciosos sob o peso de frutos que parecem jóias, vê-se um casal enlevado num beijo apaixonado.

Ele é alto e moreno, e há nele uma força que sinto poder ser terrível quando provocado. Porém, ela também dá a sensação de algo mais.

Estão imensamente apaixonados. Sinto essa necessidade, esse calor dentro deles, a latejar como uma ferida.

Será que o amor é assim tão doloroso?

As raparigas soltam um suspiro. E anseiam. Um dia, esperam. Um dia irão amar assim - desejo e romance, medo e alegria, tudo misturado numa mesma entidade voraz. Conhecerão o sabor dos beijos de um amante, e a emoção do seu toque.

Um dia.

Estamos, todos nós, apanhados nesse abraço premente, absorvi­dos pela nossa inveja e pelos nossos sonhos. O céu escurece. As cores tornam-se mais sombrias. Sinto agora o vento. Frio, frio enquanto rodopia sem parar. O súbito troar dos seus gritos nos meus ouvidos. Os rebentos de flor caem dos ramos, as flores voam como balas reluzentes.

Agora tenho medo. Agora sinto temor mesmo antes de ver a forma preta e sinuosa da serpente deslizar pelas lajes prateadas, antes de ver a sombra esgueirar-se das árvores e erguer a caixa de vidro que traz nos seus braços negros.

As palavras saem num jacto. Por mais que aperte as mãos con­tra os ouvidos, continuo a ouvi-las dentro da cabeça.

”Tomai nota deste tempo e desta hora em que liberto o meu terrível poder. As almas mortais das três filhas pertencer-me-ão para sempre. Os seus corpos jazem num sono eterno, aprisionadas que estão as suas almas do outro lado deste vidro. O feitiço manter-se-á firme e profundo a menos que as seguintes coisas venham a acon­tecer. Três chaves encontradas, e na fechadura colocadas, apenas por mãos mortais rodadas. Três mil anos para aprender. Um instan­te a mais, e as almas no fogo se consumirão.

Este teste, esta demanda, serve para provar o valor dos mor­tais. Com estas palavras faço rodar as chaves, e com a minha arte as encerro. Estas fechaduras vou selar, e estas chaves forjar, para às mãos do destino as atirar.”

O vento esmorece, e o ar fica calmo. Sobre as lajes banhadas pela luz do sol, jazem as três raparigas, de olhos fechados como que dormindo, de mãos dadas.

A seu lado encontra-se uma caixa de vidro, com os seus pai­néis claros selados a chumbo e o seu trio de fechaduras de ouro cintilantes. Cálidas luzes azuis dançam num frenesim dentro dela, parecendo bater contra as paredes de vidro como asas prisioneiras.

Três chaves encontram-se espalhadas à volta dela.

E ao vê-las, começo a chorar.

 

Malory ainda estava a tremer quando abriu a porta a Zoe.

- Vim o mais depressa que consegui. Ainda tive de ir levar o Simon à escola. Parecias tão preocupada ao telefone. O que...

- A Dana ainda não chegou. Preferia só contar isto uma vez. Fiz café.

- Óptimo - disse Zoe, pousando uma
mão no ombro de Malory para a fazer sentar-se. - Eu vou buscá-lo. Estás com ar de ainda precisar de recuperar o fôlego. A cozinha é por aquele lado?

- É - agradecida, Malory recostou-se, e esfregou a cara com as mãos.

- Queres contar-me como correu o teu encontro com o Flynn no outro dia?

- O quê? Ah. Bem. Excelente - respondeu ela, e a seguir dei­xou tombar as mãos e pôs-se a olhar para elas como se perten­cessem a outra pessoa. - Ele parece quase normal sem o cão. Agora deve ser a Dana.

- Eu vou abrir. Deixa-te estar sentada - ofereceu-se Zoe, cor­rendo para fora da cozinha e dissuadindo Malory antes que esta conseguisse levantar-se.

- Digam lá, onde é o fogo? - inquiriu Dana. -A seguir parou e pôs-se a cheirar. - Café. Não me obriguem a suplicar.

- Eu vou buscar. Senta-te aqui ao pé da Malory - acrescentou Zoe, quase sem fôlego.

Dana deixou-se cair numa poltrona, enrugou os lábios e lan­çou um olhar duro e demorado para Malory.

- Estás com péssimo aspecto.

- Obrigadinha.

- Ei, não deves estar à espera de beijos e abraços quando me obrigas a sair da cama e a chegar aqui em vinte minutos, só com tempo para tomar uma chávena de café. Além disso, é tranquilizante saber que não sais da cama já com o teu aspecto maravi­lhoso. O que se passa?

Malory olhou para Zoe quando esta regressou com três cane­cas de café espesso numa bandeja.

- Tive um sonho.

- Eu também estava a ter um sonho óptimo. Penso que era com o Spike da Buffy, a Caçadora de Vampiros e um barril enor­me de chocolate preto, até tu telefonares a interrompê-lo.

- Dana - pediu Zoe, abanando a cabeça, e sentando-se no braço da poltrona de Malory. - Um pesadelo?

- Não. Pelo menos... não. Mal acordei, dactilografei-o - co­meçou Malory, erguendo-se para tirar uns papéis de cima da mesa. - Nunca tinha tido um sonho tão pormenorizado. Pelo menos, nunca me lembrei dos pormenores tão nitidamente depois de acordar. Anotei-o porque queria ter a certeza de não me esque­cer de nada. Mas não me vou esquecer. Seja como for, vai ser mais fácil se ambas o lerem.

Entregou às duas as folhas dactilografadas, pegou no seu café e dirigiu-se para as portas do pátio.

Lá vai estar mais um dia magnífico, imaginou. Outro belo dia de fim de Verão com o céu claro e uma brisa quente. As pessoas iam andar pela cidade a apreciar o clima enquanto tratavam dos seus assuntos. As suas tarefas normais do quotidiano, no mundo nor­mal de todos os dias.

E nunca se esqueceria do som daquele vento do sonho, da sensação daquele súbito vento agreste.

- Ena, pá. Já percebi porque é que isto te abalou assim tanto - comentou Dana, pondo as folhas de lado. - Mas a origem do sonho parece-me muito clara. O Flynn contou-me que vocês ontem voltaram a ver o quadro. Isto está tudo na tua mente, e o teu subconsciente fez-te entrar lá dentro.

- É assustador - afirmou Zoe, apressando-se
a concluir as últi­mas frases antes de se levantar. Aproximou-se de Malory e esfre­gou as mãos nos ombros desta. - Não admira que tenhas ficado tão perturbada. Ainda bem que nos telefonaste.

-Não se tratou de um sonho. Eu estive lá - garantiu ela, aque­cendo as mãos na caneca de café enquanto se virava. - Eu entrei dentro do quadro.

- Bem, minha querida, baixa um pouco a fasquia - sugeriu Dana, estendendo-lhe uma mão. - Estás a identificar-te demasiado com a história, mais nada. Um sonho forte e muito vivo pode fazer-nos entrar nele a sério.

- Não espero que acreditem em mim, mas vou dizer em voz alta o que tenho andado a pensar desde que acordei.

Acordara, recordou, a tremer de frio, com o barulho daquele vento terrível ainda a zunir-lhe nos ouvidos.

- Eu estive lá. Senti o cheiro das flores e o calor. E depois o frio e o vento. Ouvi-as gritar - Malory fechou os olhos e combateu um novo ataque de pânico.

Ainda as ouvia gritar.

- E senti... uma força no ar, uma pressão. Quando acordei, ainda tinha os ouvidos a zunir. Elas falavam gaélico, mas consegui entendê-las. Como será isso possível?

- Pensaste que entendias...

- Não! - exclamou ela, abanando veementemente a cabeça para Zoe. - Eu percebia. Quando chegou a tempestade, quando tudo entrou num estado de descontrolo, ouvi-as chamarem pelo pai. Chi athair sinn. Pai, ajuda-nos. Fui ver no dicionário hoje de manhã, mas eu percebia. Como podia perceber?

Malory respirou fundo para tentar regular a respiração.

- Os nomes delas eram Venora, Niniane, e Kyna. Como podia eu sabê-lo?

Voltou para trás e sentou-se. O alívio de dizer tudo aquilo fez com que ela se acalmasse. As pulsações regularizaram-se, e o rit­mo da sua voz também.

- Elas estavam cheias de medo. Num momento eram apenas umas raparigas a brincar com o seu cachorrinho, num mundo que parecia tão perfeito e pacífico. E no momento seguinte, o que fazia delas humanas fora-lhes arrancado. Isso magoou-as, e eu não pude fazer nada.

- Não sei o que pensar disto - concluiu Dana após alguns instantes. - Vou tentar seguir um raciocínio lógico. Para começar, sentiste-te atraída pelo quadro, e sabemos que a lenda tem ori­gem celta. Nós somos parecidas com as raparigas do quadro, por isso identificamo-nos com elas.

- Como é que eu podia saber gaélico? Como podia saber os nomes delas?

Dana franziu o sobrolho enquanto bebia o café.

- Não consigo explicar isso.

- Vou dizer-vos mais uma coisa que sei. O que quer que fe­chou as almas delas é escuro, poderoso e invejoso. Não quer que nós ganhemos.

- A caixa e as chaves - interrompeu Zoe. - Tu viste-as. Sabes que aspecto têm.

- A caixa é muito simples, e muito bonita. De vidro selado a chumbo, com uma tampa alta e arqueada, com três fechaduras na parte da frente. As chaves assemelham-se ao logotipo dos con­vites, ao emblema da bandeira da casa. São pequenas. Devem ter pouco mais de oito centímetros, diria eu.

- Mesmo assim, não faz sentido - insistiu Dana. - Se eles tives­sem as chaves, para que as esconderiam? Porque não se limitariam a entregá-las às pessoas certas e pronto?

- Não sei - respondeu Zoe, esfregando as têmporas. - Deve haver algum motivo.

- Disseste que sabias os nomes que elas chamaram ao casal de apaixonados por debaixo da árvore - recordou Dana.

- Rowena e Pitte - disse Malory, deixando tombar as mãos. - Rowena e Pitte - repetiu. - Eles também não conseguiram impe­di-lo. Aconteceu tudo tão repentinamente e com tanta violência.

Inspirou devagar e profundamente.

- E agora a parte mais desconcertante. Eu acredito em tudo isto. Não me importo que possa parecer doida. Isto aconteceu. Eu entrei para dentro do quadro, passei pela Cortina dos Sonhos e vi como tudo se desenrolou. Tenho de encontrar a chave. Dê por onde der, tenho de encontrá-la.

Depois de uma reunião matinal do pessoal com donuts de geleia e uma jornalista chateada por terem cortado cinco centí­metros do seu artigo sobre a moda de Outono, Flynn foi refugiar-se no seu gabinete.

Como o seu pessoal consistia em menos de trinta pessoas, in­cluindo a ansiosa miúda de dezasseis anos a quem ele pagava para escrever uma coluna semanal sobre a perspectiva juvenil, ter um jornalista amuado constituía um grande problema.

Folheou as mensagens, atirou-se a um artigo sobre a vida noc­turna do Vale, aprovou meia dúzia de fotografias para a edição do dia seguinte e verificou as contas da publicidade.

Ouvia um ou outro telefone tocar e, mesmo com a porta fecha­da, o matraquear surdo dos dedos nos teclados. O rádio da Polí­cia em cima do seu armário emitia bipes e ruídos de estática, e a televisão apertada entre dois livros em cima de uma estante esta­va sem som.

Flynn tinha uma janela aberta e conseguia ouvir o leve zunido do trânsito matinal e o esporádico barulho surdo que vinha de algum carro com a aparelhagem demasiado alta.

Aqui e ali ouvia uma porta ou gaveta a ser fechada com es­trondo na divisão contígua. Rhoda, a jornalista de sociedade/moda/ intriga, continuava a fazer ouvir o seu aborrecimento. Sem olhar pelo vidro, via-a mentalmente a atirar-lhe setas.

Ela, e mais de metade do pessoal, trabalhava para o jornal desde que ele era miúdo. E muitos deles, pelo que sabia, continua­vam a encarar o Dispatch como o jornal da mãe dele.

Se não do avô dele.

Havia alturas em que se ressentia disso, alturas em que deses­perava com isso, e alturas em que isso pura e simplesmente o divertia.

Não conseguia perceber a reacção que estava a ter de mo­mento. A única coisa que conseguia pensar era que Rhoda o as­sustava.

O melhor que tinha a fazer era não pensar nisso, nem pensar nela, e dedicar-se a acabar o artigo
que redigira sobre a reunião da noite anterior. Um semáforo proposto num cruzamento junto ao Mercado, um debate sobre o orçamento e a necessidade de consertar os passeios da Rua Principal. E uma discussão bastante bem humorada acerca da noção altamente controversa de insta­lar parquímetros na Rua Principal tendo em vista ajudar a pagar essas reparações.

Flynn fez os possíveis por injectar alguma energia no assunto sem deixar de se manter fiel ao código de objectividade jornalística.

O Dispatch não era propriamente o Daily Planet, reflectiu. Mas lá por isso, ele também não era propriamente o Perry White. Ninguém à sua volta alguma vez lhe chamaria chefe. Mesmo sem os amuos periódicos de Rhoda, não estava certo de que alguém, incluindo ele próprio, acreditasse verdadeiramente que era ele que mandava.

A sombra da sua mãe continuava a pairar por ali. Elizabeth Flynn Hennessy Steele. Até o nome dela fazia sombra.

Flynn amava-a. Era evidente que sim. Até gostava dela a maior parte do tempo. Tinham medido forças permanentemente durante o crescimento dele, mas o filho sempre a respeitara. Não se podia deixar de respeitar uma mulher que geria a sua vida e o seu negócio com tal fervor, e esperava que os outros fizessem o mesmo.

Tal como era preciso reconhecer que ela saíra desse mesmo negócio quando a necessidade assim o exigira. Mesmo que o ti­vesse largado nas mãos relutantes do filho.

Ela largara tudo, incluindo, pensou com uma olhadela circuns­pecta para a secretária de Rhoda, repórteres mal-humorados.

Reparou que Rhoda estava a limar as unhas em vez de traba­lhar. Era uma forma de picá-lo. ”Lima para aí à vontade”, pensou. ”Não é hoje que nos pegamos, velho morcego rabugento.”

Mas esse dia não tardará a chegar.

Estava absorto a ajustar o formato da página 1 da secção B quando Dana entrou.

- Nem se bate à porta. Nem se espreita. Entra-se a abrir e pronto.

- Eu não entrei a abrir. Preciso de conversar contigo, Flynn - ela atirou-se para cima de uma cadeira, e a seguir olhou em volta. - Onde está o Moe?

- Hoje é dia de o Moe ficar no jardim. -Ah, é verdade.

- E tu podias passar por lá, e ficar um bocadinho com ele esta tarde. E depois podiam fazer um jantar, para eu ter uma refeição quente quando chegasse.

- Está bem, pode ser.

- Escuta, tive uma manhã difícil. Tenho um raio de uma dor de cabeça e preciso de acabar esta formatação.

Dana franziu os lábios enquanto ele a observava.

- A Rhoda anda outra vez a chatear-te?

- Não olhes - vociferou Flynn antes que Dana tivesse tempo de virar a cabeça. - Só vais incitá-la a fazer pior.

- Porque não a pões na rua, Flynn? Aceitas demasiado.

- Ela está no Dispatch desde os dezoito anos. É muito tempo. Mas agora, embora aprecie que me tenhas vindo dizer como lidar com os problemas dos meus empregados, preciso de acabar isto.

Dana limitou-se a esticar as suas pernas infindáveis.

-
Ela desta vez esticou mesmo a corda, não?

- Porra! - proferiu ele, soprando ar, e escancarou a gaveta da secretária para tirar um frasco de aspirinas.

- Tens feito aqui um bom trabalho, Flynn.

- Sim, sim - murmurou ele, enquanto tirava uma garrafa de água de outra gaveta.

- Cala-te lá! Estou a falar a sério. Tu és bom naquilo que fazes. Tão bom como a Liz. Talvez melhor em algumas áreas, porque és mais acessível. Além de que és melhor escritor do que qualquer dos teus jornalistas.

Ele olhou para ela enquanto tomava a aspirina.

- Porque é que estamos a falar nisto?

- Estás mesmo com um ar abatido - ela não conseguia supor­tar vê-lo verdadeiramente infeliz. Irritado, confuso, chateado, ou amuado, tudo bem. Mas magoava-a ver-lhe a tristeza estampada no rosto. - Esta terra precisa do Dispatch, e o Dispatch precisa de ti. Não precisa da Rhoda. E aposto que é o facto de saber isso que a corrói.

- Achas? - aquela ideia atenuava um pouco as coisas. - A parte de corroê-la.

- Podes crer. Sentes-te melhor?

- Sinto - tapou a garrafa de água e voltou a pô-la na gaveta. -Obrigado.

- A minha segunda boa acção do dia. Acabei de passar uma hora em casa da Malory, e outros vinte minutos às voltas a tentar decidir se havia de passar por aqui ou manter isto só entre nós.

- Se tiver a ver com penteados, ciclos menstruais ou as pro­moções no centro comercial, pode ficar só entre vocês.

- Isso é tão, mas tão sexista, que nem sequer vou... que promo­ções?

- Vê o anúncio no Dispatch de amanhã. A Malory tem algum problema?

- Boa pergunta. Ela teve um sonho, só que não acredita que tenha sido um sonho.

Dana começou a contar a conversa antes de procurar na car­teira o relato escrito de Malory.

- Estou preocupada com ela, Flynn, e também começo a estar preocupada comigo, porque ela quase me conseguiu convencer de que tem razão.

- Espera aí um bocado - ele leu o texto duas vezes, e recos­tou-se outra vez na cadeira, a olhar para o tecto. - E se ela tiver razão?

A exasperação irrompeu pela sua voz.

- Vou ter de começar a fazer de Scully para a tua Mulder? Estamos a falar de deuses, bruxaria e captura de almas.

- Estamos a falar de magia, de possibilidades. E as possibilida­des devem ser sempre exploradas. Onde está ela agora?

- Disse que ia até à galeria fazer investigação sobre o quadro.

- Óptimo. Então está a cumprir o plano.

- Tu não a viste.

- Não, mas vou ver. E tu? Descobriste alguma coisa?

- Estou a investigar algumas vias.

- Muito bem, vamos encontrar-nos todos em minha casa esta noite. Avisa a Zoe, que eu digo à Mal - quando Dana lhe franziu o sobrolho, ele limitou-se a sorrir. - Foste tu quem veio ter comigo, linda. Agora estou metido nisto.

 

- Fico mesmo em dívida para contigo...

- Oh, querida, qualquer dia em que consiga fazer alguma coi­sa por detrás das costas da bimba nazi é um dia de festa.

Mesmo assim, por precaução, Tod lançou uma vista de olhos para a direita e para a esquerda antes de abrir a porta do que fora em tempos o escritório de Malory e pertencia agora aos domínios de Pamela.

- Oh, meu Deus, o que é que ela fez ao meu espaço?

- Horroroso, não é? - proferiu Tod, com um estremeção. -Parece que as paredes vomitam Luís XIV. A minha única satisfação é ela ter mesmo de olhar para isto quando aqui entra.

A divisão estava completamente atafulhada. A secretária curvilínea, as mesas, as cadeiras e duas otomanas disputavam o espaço em cima de uma carpete cheia de vermelhos e dourados. As paredes estavam cobertas de quadros postos em realce por espessas molduras douradas cheias de ornamentos, estatuária, taças e caixas ornamentais, objectos em vidro e todo o tipo de bricabraque a cobrir toda a superfície.

Cada peça por si só era um pequeno tesouro, reparou Malory. Mas colocá-las todas naquele espaço reduzido fazia com que ele parecesse uma venda de garagem sofisticada.

- Como é que ela consegue que alguém faça seja o que for?

- Tem os seus escravos e capangas: ou seja, eu, a Ernestine, a Julia e o Franco. A Simone Legree senta-se no seu trono e começa a dar ordens. Tiveste sorte em conseguires fugir, Mal.

- Talvez.

Mas mesmo assim, tinha sido penoso voltar a passar por aque­la porta, sabendo que já não pertencia àquele lugar. Sem saber onde era o seu lugar.

- Onde é que ela está neste momento?

-A almoçar no clube - respondeu Tod, e olhou para o relógio. -Tens duas horas.

- Não preciso de tanto. Preciso da lista de clientes - decla­rou, dirigindo-se para o computador que estava em cima da se­cretária.

- Uuuu, vais roubar-lhe clientes mesmo à frente do nariz?

- Não. Hum, é uma ideia feliz, mas não. Estou a tentar locali­zar o artista que pintou um quadro específico. Preciso de ver quem temos em arquivo que compre esse estilo. Depois preciso dos nossos ficheiros sobre pinturas de temas mitológicos. Raios, ela mudou o meu código de acesso.

- É meu.

- Ela usa o teu código de acesso?

- Não. M-E-U - informou Tod, abanando a cabeça. - Foi ela quem o anotou para não se esquecer... depois de se esquecer de outros dois códigos de acesso. E eu encontrei o apontamento, por acaso.

- Adoro-te, Tod - exclamou Malory enquanto escrevia o có­digo.

- O suficiente para me explicares o que se passa?

- Mais que suficiente mas estou mais ou menos limitada em relação ao assunto. Primeiro preciso de falar com umas pessoas. - Ela foi rápida a localizar a lista pormenorizada de clientes, e copiou-a para a disquete que trouxera. - Juro que não vou usar isto para nada de ilegal ou pouco ético.

- Tenho imensa pena.

Ela desatou a rir, e a seguir abriu a carteira para lhe proporcio­nar uma visão da fotografia impressa.

- Reconheces este quadro?


- Hum, não. Embora o estilo me sugira alguma coisa.

- Exacto. Há qualquer coisa no estilo. Não consigo propria­mente dizer o que é, mas é algo conhecido. - Depois de copiar o ficheiro, passou para outro ficheiro localizado noutro disco. - Se te lembrares diz-me qualquer coisa. De dia ou de noite.

- Parece urgente.

- Se não estou a ter um episódio psicótico, é muito bem capaz de ser.

- Isto tem alguma coisa a ver com M. F. Hennessy? Andas a trabalhar em alguma história para o jornal?

Ela arregalou os olhos.

- Onde é que arranjaste essa ideia?

-Viram-te a jantar com ele no outro dia. Eu ouço tudo - acres­centou Tod.

- Não tem nada a ver com ele, pelo menos directamente. E não, não estou a escrever nenhuma história. Conheces o Flynn?

- Só em sonhos. É uma brasa.

- Bem... parece que estamos a andar juntos. Não era para ser assim, mas parece que é.

- Beijo tórrido?

- Vários.

- Pontuação?

- Máxima.

- Sexo?

- Quase, mas a cabeça fria prevaleceu.

- Bolas!

- Além de que ele é divertido, interessante e meigo. Bastante mandão de um modo muito inteligente, por isso só se repara de­pois de estar tudo decidido. Esperto e, julgo eu, tenaz.

- Parece perfeito. Posso ficar com ele?

- Lamento, amigo, mas talvez tenha de mantê-lo - comunicou ela, tirando a disquete, fechando cuidadosamente os documentos e desligando o computador. - Missão cumprida sem perdas humanas. Obrigada, Tod - disse ela e, pondo os braços à volta dele, deu-lhe um grande beijo repenicado. - Tenho de ir trabalhar nisto.

Malory sentou-se no seu apartamento, verificou sistematica­mente os dados, interrelacionou-os e eliminou outros até ter uma lista que lhe permitisse trabalhar. Quando saiu para ir a casa de Flynn, reduzira a lista de clientes em setenta por cento.

Dana já lá estava quando ela chegou.

-Já jantaste?

- Não - respondeu Malory, procurando Moe prudentemente. - Esqueci-me.

- Ainda bem. Encomendámos pizza. O Flynn saiu com o Moe para o passeio diário. Importas-te que eu lhe tenha contado o teu sonho?

- Não. Fomos nós que o metemos nisto.

- Tudo bem. Entra e põe-te à vontade. Vamos tomar vinho. Mal se tinha instalado quando Zoe chegou com Simon a rebo­que.

- Espero que não se importem. Não consegui encontrar ne­nhuma ama.

- Eu não preciso de nenhuma ama - declarou Simon.

- Eu preciso de uma ama - afirmou Zoe, pendurando-lhe um braço à volta do pescoço. - Ele tem trabalhos de casa, por isso, se houver algum canto onde os possa fazer, trouxe as algemas.

Dana piscou um olho ao rapaz.

- Vamos pô-lo nas masmorras. Podemos torturá-lo e a seguir dar-lhe pizza?

- Nós já...

- Eu posso comer pizza - interrompeu Simon. E soltou um ber­ro quando Moe apareceu, vindo do fundo da casa. - Ena! Isto é que é um cão!

- Não, Simon...

No entanto, rapaz e cão já estavam os dois a brincar, apanha­dos na balbúrdia do amor à primeira vista.

- Olha, Flynn, vê o que a Zoe nos trouxe. Vamos ter de o pôr a fazer os trabalhos de casa.

- Sempre quis fazer isso a alguém. Tu deves ser o Simon.

- Hum... hum. Este cão é o máximo, senhor.

- O cão é o Moe, e eu chamo-me Flynn. Zoe, o Simon pode levar o Moe até lá fora para correrem os dois como doidos duran­te um bocado?

- Pode. Vinte minutos, Simon, e depois tens de ir estudar. -Boa!

- Mesmo lá atrás - disse-lhe Flynn. - Há lá uma bola com marcas de dentes e coberta de baba. Ele gosta que lhe atirem a bola para a ir buscar e trazer de volta.

- És divertido - decidiu Simon. - Anda, Moe!

- Pizza - anunciou Dana quando a campainha tocou. - Queres chamá-lo?

- Não, ele está bem. Acabou mesmo agora de comer três do­ses de esparguete.

- Flynn, sê um cavalheiro. Paga lá a pizza.

- Porque é que tenho de ser sempre eu o homem? - pergun­tou, e a seguir olhou na direcção de Malory e sorriu. - Ah, já sei porquê.

Dana sentou-se no chão com um bloco de apontamentos em branco no colo.

- Vamos ter de nos organizar. É a bibliotecária em mim que o exige. Zoe, serve-te de vinho. Cada um de nós pode relatar o que descobriu, pensou ou especulou desde a última vez que estive­mos juntos.

- Eu não descobri nada de especial - começou Zoe, tirando uma pasta de dentro da sua bolsa de lona. - Mas passei os meus apontamentos todos à máquina.

- Que linda menina - deliciada, Dana pegou na pasta, e bateu na primeira caixa de piza quando Flynn pousou duas delas na mesinha de apoio. - Estou esfomeada.

- Há novidades - informou Flynn, sentando-se no sofá ao lado de Malory, virando o rosto dela na sua direcção e aplicando-lhe um beijo longo e firme. -Viva.

- Caramba, não tenho também direito a um?

Em resposta a Zoe, ele mudou de posição e inclinou-se para ela, mas Zoe limitou-se a sorrir e a dar-lhe um pequeno empurrão.

- É melhor ficar-me pelo vinho.

- Se o Flynn já tiver parado de beijar as meninas... - começou Dana.

- O que só sucederá quando exalar o último suspiro.

- Vamos parar com isto - ordenou Dana. - Já sabemos da experiência da Mal. Tenho aqui o relato dactilografado que vou acrescentar ao conjunto de apontamentos e outros dados.

- Eu arranjei mais coisas. - Como a pizza estava ali, Malory tirou uma fatia da caixa e pousou-a num prato de papel. -Tenho uma lista de pessoas, clientes que consegui através da galeria, que compraram ou mostraram interesse no tema clássico e/ou mitológico na arte. Também iniciei uma busca de estilos seme­lhantes, mas isso ainda vai demorar algum tempo. Tenciono come­çar a fazer os questionários amanhã.

- Eu posso ajudar - ofereceu-se Zoe. - Estava a pensar que talvez devêssemos fazer uma busca de quadros que incluam o elemento da chave. Como tema.

- Muito bem - reconheceu Malory, rasgando uma folha do rolo de papel higiénico, a servir de guardanapo.

- Eu amanhã tenho algumas entrevistas, mas vou ver o que posso arranjar.

- Eu tenho andado a trabalhar na pista - referiu Dana, pegan­do no seu copo de vinho. - Estava a pensar se devíamos pegar em algumas das expressões-chave e fazer uma busca por nomes de lugares. Como restaurantes ou lojas. A Deusa Que Canta, por exemplo. Não encontrei nada em relação a isso, mas é o tipo de coisa que pode aparecer como nome de uma loja, de um restau­rante ou de algum lugar.

- Nada mau - comentou Flynn, servindo-se de outra fatia de pizza.

- E tenho mais dados - porém, não disse nada enquanto pega­va na caixa e bebia o vinho. - Passei algum tempo na Internet a procurar os três nomes que a Malory ouviu na... no sonho. ”Niniane” aparece algumas vezes. Algumas lendas referem-na como a feiticeira que encantou Merlin, do rei Artur, e o prendeu na cave de cristal. Há outra referência segundo a qual ela era a mãe de Merlin. Mas quando a reuni às outras duas, encontrei um pequeno site esotérico relacionado com a adoração das deusas. Apresenta uma variante d’As Filhas do Vidro... e chama-as por esses nomes.

- São mesmo os nomes delas. Não vão imaginar que seja coin­cidência o facto de eu os ter sonhado e vocês os terem encontra­do hoje.

- Não - respondeu Dana cuidadosamente. - Mas não será possível que tenhas encontrado o mesmo site e os nomes te te­nham ficado na cabeça?

- Não. Senão, tê-los-ia escrito. Ter-me-ia lembrado. Antes do sonho, nunca os tinha ouvido.

- Muito bem - disse Flynn, batendo com a palma da mão no joelho. - Primeiro, quero dizer-vos que não encontrei nenhum registo de qualquer empresa de navegação ou de mudanças que tenha servido o Pico do Guerreiro. Nem qualquer registo de algu­ma empresa de navegação que tenha enviado mobília para nenhuns clientes sob o nome de Tríade.

- Eles têm de ter trazido as coisas para aqui de qualquer ma­neira - protestou Dana. - Não bastou baterem os calcanhares dos seus chinelos de rubi.

- Só vos estou a fornecer os factos. A empresa imobiliária tam­bém não lhes tratou de nada. Neste ponto, ainda não encontrei nenhuma pista que associe a Rowena ou o Pitte ao Pico. Não digo que ela não exista - prosseguiu, antes que Dana tivesse tem­po de protestar. - Só estou a dizer que não descobri nenhuma através dos recursos lógicos.

- Acho que vamos ter de pensar nos ilógicos.

Flynn mudou de posição para lançar um olhar irritado a Zoe.

- Isso. Mas tenho mais um passo lógico a dar. Quem é que eu conheço que coleccione arte a sério, alguém que possa usar como fonte? Os Vane. Por isso, fiz um telefonema ao meu velho amigo Brad. Acontece que ele volta dentro de poucos dias.

- O Brad vai voltar para o Vale? - perguntou Dana.

- Vai tomar conta da sede da HomeMakers. O Brad tem a paixão dos Vane pela arte.

Já lhe descrevi o quadro, ou pelo me­nos comecei a descrever. Ainda não tinha acabado quando ele me deu o título. As Filhas do Vidro.

- Não, não pode ser. Eu teria ouvido falar nele - contrapôs Malory, levantando-se e começando a andar de um lado para o outro. - Quem é o artista?

- Ninguém sabe ao certo.

- Não é possível - prosseguiu Malory. - Um grande talento como aquele, eu não podia deixar de o conhecer. Teria visto ou­tras obras do mesmo artista.

- Talvez não. Segundo o Brad me disse, parece que ninguém sabe muito acerca do artista. A tela As Filhas do Vidro foi vista pela última vez numa casa particular em Londres. Onde, segun­do todos os relatos, foi destruída durante os bombardeamentos Em 1942.

 

Malory fechou-se no seu apartamento durante dois dias. Afundou-se em livros, chamadas telefónicas e mensagens electrónicas. Decidira que era uma tolice andar à pro­cura de uma dezena de perspectivas e suposições diferentes. Era melhor - bastante melhor - conduzir a busca com a ajuda da tecnologia e da lógica sistemática.

Ela não conseguia funcionar, pura e simplesmente não conseguia pensar, em desordem. E era por isso, reconheceu enquanto etiquetava sistematicamente mais um ficheiro, que falhara como artista.

A arte, a criação da arte verdadeira, exigia uma misteriosa ca­pacidade inata para prosperar no caos. Ou pelo menos era essa a sua opinião. Conseguir ver, compreender e sentir dezenas de for­mas, texturas e emoções ao mesmo tempo.

Além disso havia ainda, como era evidente, a questão sumária de se ter talento para transferir essas emoções para a tela.

Faltava-lhe o dom, a todos os níveis, ao passo que o artista de As Filhas do Vidro o possuía a rodos.

O quadro do Pico do Guerreiro, ou outra obra do mesmo ar­tista, era o caminho. Estava agora certa disso. Caso contrário, por­que estaria sempre a ter de voltar a ele? Porque teria entrado nele, de algum modo, em sonhos?

Porque teria sido escolhida para encontrar a primeira chave, pensou, se não fosse pelo seu conhecimento e contactos no mundo da arte?

Fora-lhe dito para olhar para o interior e para o exterior. Para o interior daquele quadro, ou de outro do mesmo artista? Será que olhar para ”o exterior” era ver o que rodeava o quadro?

Malory abriu um ficheiro e observou novamente o quadro. O que rodeava as filhas? Paz e beleza, amor e paixão - e a amea­ça da sua destruição. ”Além do método para os recuperar”, pensou. Uma chave no ar, nas árvores, na água. Como tinha a certeza absoluta de que não ia apanhar uma chave mágica no ar ou numa árvore, o que significaria aquilo? E qual daquelas árvores seria a sua?

Demasiado literal? Talvez. Possivelmente, o ”interior” signifi­caria que devia olhar para dentro de si e observar os seus senti­mentos em relação ao quadro, tanto as suas reacções emocionais como intelectuais.


”Onde a deusa canta”, reflectiu enquanto se levantava do meio da pilha de documentos que constituíam a sua investigação para se pôr a andar de um lado para o outro. No sonho ninguém canta­va. Porém, a fonte fizera-a pensar na música. Talvez a expressão tivesse alguma coisa a ver com a fonte. Talvez a água fosse a chave.

E, sentindo-se frustrada, pensou que podia não ter saído do apartamento, mas mesmo assim continuava a andar às voltas. Só faltavam três semanas.

O seu coração deu um salto ao ouvir a rápida batida nas por­tas do pátio. Lá estava o homem com o cão do outro lado do vidro. Instintivamente, passou uma mão pelos cabelos que pren­dera num rabo-de-cavalo algures nessa manhã. Não se incomodara a pôr maquilhagem nem a tirar as calças de algodão largas e a camisa de alças com que dormira.

Não só não estava no seu melhor, como tinha a certeza de ter mergulhado no seu pior aspecto em termos pessoais.

Quando abriu a porta, percebeu que Flynn verificara isso quan­do assentou nela o seu olhar severo e lhe disse:

- Precisas de sair, querida.

Malory sentiu, de facto, o rosto dispor-se num amuo.

- Estou ocupada. Estou a trabalhar.

- Pois é - anuiu ele, e lançou uma olhadela aos montes arruma­dos de materiais de pesquisa que cobriam a mesa da sala de jantar, a bonita cafeteira e a chávena de porcelana. Havia pequenos recipientes, todos no mesmo plástico vermelho, com lápis, clipes e post-its.

Um pisa-papéis de vidro cheio de fitas coloridas prendia algu­mas folhas dactilografadas. Havia uma caixa de arrumações enfiada por debaixo da mesa, e ele imaginou que ela colocava lá dentro todos os dias tudo o que estivesse relacionado com aquele tema, e voltava a tirar tudo cá para fora todas as manhãs.

Flynn achava aquilo surpreendente, e estranhamente encan­tador. Mesmo sozinha e no meio do trabalho, mantinha as coisas arrumadas.

Moe bateu-lhe com a cauda na perna, e preparou-se para sal­tar. Como já reconhecia o sinal, Malory estendeu uma mão.

- Nada de saltos - ordenou, fazendo Moe vacilar, desejoso de obedecer.

Como recompensa, deu-lhe uma palmadinha de parabéns na cabeça.

- Não tenho...

- Não digas a palavra - avisou Flynn. - Não digas palavras relacionadas com comida. Senão ele perde a cabeça. Anda em­bora, está um tempo óptimo lá fora - sugeriu, e pegou na mão de Malory. - Vamos dar um passeio.

- Estou a trabalhar. E tu, porque é que não estás?

- Porque já passa das seis, e gosto de fingir que tenho vida própria fora do jornal.

- Já passa das seis? - perguntou ela, olhando para o relógio, mas depois lembrou-se de que não o tinha posto essa manhã. Mais um sinal de que o rumo eficiente da sua vida descarrilara. -Não me tinha apercebido que era assim tão tarde.

- E é por isso que precisas de ir dar um passeio. Apanhar ar fresco e fazer exercício.

- Talvez, mas não posso sair neste estado.

- Porque não?

- Estou de pijama.

- Não parece ser um pijama.

- Mas é, e não vou sair assim; além disso, tenho o cabelo horrível e estou sem maquilhagem.

- Não é preciso vestir nada de especial para ir passear o cão. - Apesar disso, ele era um homem que tinha mãe e irmã, e conhecia bem as regras. -Mas se quiseres mudar de roupa, posso esperar.

Já tinha lidado com mulheres suficientes para saber que a es­pera podia demorar entre dez minutos e o resto da sua vida. Como aprendera a encarar o processo de preparação feminina como uma espécie de ritual, não se importou. Isso dava-lhe a oportuni­dade de se sentar no pátio, com Moe deitado a seus pés, a rabis­car ideias para artigos no seu bloco de apontamentos. Na sua opinião, o único tempo que era desperdiçado era aquele em que não se fazia nada com ele. Se esse nada fosse olhar para o céu e deixar a mente vaguear por qualquer corrente do momento, tudo bem.

Mas como essa corrente consistia na maneira de voltar a pôr as mãos em Malory, imaginou que seria mais produtivo canalizar as suas energias para o trabalho.

Como Brad estava de regresso ao Vale, o Dispatch ia precisar de fazer um artigo sólido sobre ele, sobre os Vane e a Home-Makers. A história da família e o seu negócio, o rosto desse negó­cio no ambiente económico actual, e quaisquer planos para o futuro.

Podia ser mesmo ele a tratar disso, aliando os seus interesses profissionais e pessoais. Tal como estava a fazer com Malory. Por isso, começou a anotar diversos aspectos que a descrevessem.

”Loura, inteligente, bonita” estavam no topo da lista.

- Olha, já é um início - disse para Moe. - Ela foi escolhida por algum motivo, e esse motivo tem de ter alguma coisa a ver com quem ou com o que é que ela é. Ou não é.

”Organizada. Artística.

Nunca conhecera ninguém que conseguisse aliar essas duas características.

”Solteira. Desempregada.”

Hum. Talvez devesse fazer um artigo sobre pessoas solteiras na casa dos vinte ou dos trinta no Vale. O namoro numa pequena cidade de província dos Estados Unidos. Se entregasse aquilo a Rhoda, ela era capaz de voltar a falar com ele.

Levantou a cabeça ao detectar um movimento pelo canto do olho, e viu Malory sair pela porta do pátio. Não demorara tanto a transformar-se como imaginara.

Pôs-se de pé, e levou a mão agarrada à trela de Moe antes que o cão se lembrasse de saltar para cima de Malory.

- Estás com óptimo aspecto. E cheiras ainda melhor.

- E gostava de continuar assim - afirmou, inclinando-se para bater com um dedo ao de leve no focinho de Moe. - Por isso, nada de saltos.

- Que tal irmos dar um passeio até ao rio? Aí, ele pode correr como um doido.

Ela tinha de lhe dar crédito por isso. Flynn conseguira transfor­mar um passeio com o cão num encontro de namorados, e fize­ra-o com a maior ligeireza. Com tanta,
aliás, que ela só se apercebeu disso quando se encontravam sentados em cima de um cobertor à beira do rio a comer frango assado enquanto Moe corria por ali a ladrar aos esquilos, todo esperançado.

Mas era difícil uma pessoa queixar-se quando o ar estava fres­co, a luz assumia uma tonalidade mais suave e o Sol se afundava no Ocidente. Quando ele tombava por detrás daqueles montes, tudo ficava suave e cinzento, e ainda mais frio. Ia precisar do blusão leve que trouxera - no mínimo, precisaria dele se ficassem a ver as primeiras estrelas.

Há quanto tempo não via as estrelas surgirem?

Já que ali estava, pensou se aquela hibernação forçada, por mais breve que tivesse sido, teria conseguido mais do que criar um impasse na sua mente.

Não era isolacionista. Precisava de estabelecer contacto com as pessoas. Conversas, estímulos, som e movimento. E o facto de se aperceber disso levava-a a entender até que ponto precisava de fazer novamente parte da força de trabalho.

Mesmo que ganhasse o milhão de dólares ao fim daquele estra­nho arco-íris, não deixava de ter de trabalhar. Só para repor a energia diária.

- Tenho de reconhecer que estou feliz por me teres tirado de casa.

- Não és nenhuma habitante das cavernas. - Procurou outra coxa dentro do recipiente enquanto ela lhe franzia o sobrolho. -Tu és um animal social. Pensa na Dana, por exemplo: ela é mais uma habitante das cavernas do que um animal social. Se a deixas­sem em paz, ficava completamente feliz por entre montanhas de livros e uma cafeteira cheia de café. Pelo menos durante algumas semanas. Depois precisava de sair para apanhar ar. Eu ficaria doí­do ao fim de um ou dois dias. Preciso de mudar. E tu também.

- Tens razão. E não sei bem como me sinto por teres desco­berto isso tão cedo.

- Cedo é relativo. Passei, hum, cerca de um ano a pensar em ti durante a semana passada. Dada a proporção de tempo e de energia dispendidos. Há muito que não pensava tanto numa mulher, se é nisso que estás a pensar.

- Não sei no que estou a pensar. Sei, sim - corrigiu. - Porque não falaste na chave, nem me perguntaste o que tenho andado a fazer para a encontrar?

- Porque já te dedicaste a isso o suficiente. Se quisesses abor­dar o assunto, já o terias feito. Não és tímida.

- Tens razão. Porque me trouxeste até aqui, longe da cidade?

- É sossegado. Tem uma boa vista. O Moe gosta. Há uma proba­bilidade mínima de conseguir ter-te nua em cima deste cobertor...

- Pensa antes quase nula.

- Esse quase é o suficiente para manter a esperança. - Mergu­lhou um garfo de plástico na salada de batata que tinham trazido do take-away. - E queria ver se o Brad já terá chegado - acrescen­tou, olhando por cima da faixa de água até à casa irregular de madeira na outra margem. - Não me parece.

- Sentes a falta dele.

- Acertaste.

 

Ela apanhou uma folha de relva e passou-a ociosamente pelos dedos.

- Tenho algumas amigas dos tempos da universidade. Éramos muito chegadas, e imagino que todas pensávamos que ficaríamos próximas para sempre. Agora estamos todas dispersas e mal nos vemos. Uma ou duas vezes por ano é tudo o que conseguimos. Falamos pelo telefone ou enviamos mensagens electrónicas de vez em quando, mas não é o mesmo. Sinto a falta deles. Sinto a falta das pessoas que éramos quando éramos amigas, e dessa te­lepatia que se desenvolve de maneira a saber o que o outro está a pensar, ou o que faria nesta ou naquela situação. Também te acontece o mesmo?

- Bastante - respondeu ele, aproximando a mão para brincar com as pontas dos seus cabelos tal como ela brincava com a folha de relva com ar ausente. - Mas voltamos a ser miúdos quando estamos juntos. Nenhum de nós tem muito jeito para telefone­mas. Talvez por o Brad e eu acabarmos por passar ao telefone a maior parte do nosso dia de trabalho. O correio electrónico ser­ve. Então o Jordan é o rei das mensagens electrónicas.

- Falei com ele durante uns noventa segundos numa sessão de autógrafos, em Pittsburgh, há cerca de quatro anos. Todo moreno e bonito, com um brilho perigoso nos olhos.

- Gostas de perigo?

Aquilo fê-la desatar-se a rir. Flynn estava sentado num cober­tor desmazelado, a comer frango do recipiente, enquanto aquele cão enorme e tonto ladrava para um esquilo que se encontrava a uns três metros mais acima, numa árvore.

Daí a pouco, estava deitada de costas, com o corpo contra o dele, e o riso morreu-lhe na garganta.

A boca dele era mesmo perigosa. Que tolice a sua ter-se es­quecido disso. Por mais afável e descontraído que parecesse à superfície, havia tempestades dentro dele. Tempestades quentes e fortes, capazes de desfazer os incautos antes de se lembrarem de procurar abrigo.

Portanto, ela não pensou em nada, mas ele que atacasse. E que a sua parte secreta, a parte que ela nunca arriscara expor, saltasse cá para fora. E conquistasse, ao mesmo tempo que era conquistada.

- Como está a ser para ti? - murmurou ele enquanto firmava aquela boca surpreendente no pescoço dela.

- Até aqui, tudo bom.

Ele levantou a cabeça e pôs-se a olhar para ela. E o seu cora­ção estremeceu-lhe no peito.

- Qualquer coisa aqui. Qualquer coisa grande, aqui.

- Não me parece...

- Parece, sim - a impaciência, forte e inesperada, saltou cá para fora. - Tu podes não querer pensar nisso; também não te­nho muito jeito para estas coisas, mas pensas. Odeio usar uma metáfora tão óbvia, mas é como quando se põe uma chave na fechadura. Estou a ouvir o raio do clique.

Ele levantou-se e passou uma mão pouco firme pelos cabelos.

- Não estou preparado para ouvir nenhum raio de clique. Ela sentou-se rapidamente, e apressou-se a sacudir
a parte da frente da saia. Sentia-se desconcertada por achar a irritação dele simultaneamente irritante e excitante.

- Julgas que eu quero ouvir algum clique? Neste momento tenho que chegue na cabeça para ainda estar a ouvir os teus cliques. Preciso de encontrar a chave. Tenho de resolver isto. Preci­so de arranjar emprego. E nem quero uma porcaria qualquer, quero...

- O quê? O que é que queres?

- Não sei - respondeu ela, pondo-se dificilmente de pé. Ha­via fúria dentro dela. Não sabia de onde vinha nem para onde teria de se orientar. Afastando-se, olhou para a casa do outro lado do rio, e cruzou os braços sobre o peito com firmeza. - E eu sei sempre o que quero.

- Nesse aspecto, estás um ponto acima de mim - declarou ele, levantando-se sem ir para junto dela. O que quer que bombea­va dentro dele: raiva, carência, medo, era demasiado instável para correr o risco de lhe tocar.

 

A brisa brincava com as pontas dos cabelos dela, tal como ele fizera antes. Todas aquelas nuvens em tons de ouro velho que se iam desfazendo, como que saídas de um quadro. Ela parecia tão esguia, tão perfeita, ali parada, um pouco afastada dele, enquan­to o Sol mergulhava no horizonte, fazendo disparar uma fina li­nha de fogo ao longo da crista de montes a oeste.

- A única coisa que tenho a certeza absoluta de querer... de alguma vez ter querido - apercebeu-se ele - és tu.

Ela olhou para trás quando um par de asas nervosas começou a agitar-se na sua barriga.

- Não imagino que seja a única mulher com quem quiseste dormir.

- Não, por acaso, a primeira foi a Joley Ridenbecker. Tinha treze anos. E esse desejo particular nunca se concretizou.

- Agora estás a gozar.

- Não estou nada. A sério - asseverou ele, enquanto avançava para ela, falando num tom de voz suave. - Eu quis a Joley, tanto quanto sabia o que isso significava aos treze anos. Era uma sensa­ção intensa, ou mesmo dolorosa, e mais ou menos doce. Por fim, acabei por descobrir o que isso significava. Entretanto, fui desejan­do outras mulheres. Cheguei a amar uma, e é por isso que conheço a diferença entre querer uma mulher, e querer-te a ti. Se fosse apenas sexo, não me chateava.

- Não tenho culpa que te chateies - afirmou ela, em tom de admoestação. - Além disso, não tens ar de estar chateado nem falas como se estivesses chateado.

- Costumo tornar-me muito sensato quando estou seriamente aborrecido. É uma praga - confiou-lhe ele, pegando na bola que Moe lhe lançou aos pés, e atirando-a com um forte impulso do braço. - E se julgas que é uma alegria ver os dois lados da ques­tão, ver a validade de cada extremo, deixa que te diga que é uma grande chatice.

- Quem foi ela?

Flynn encolheu os ombros, pegou na bola que Moe lhe devol­veu e voltou a atirá-la.

- Não interessa.


- Eu diria que interessa. Ainda.

- As coisas não resultaram.

- Bom. Tenho de ir andando - disse ela, afastando-se para se ajoelhar em cima do cobertor e arrumar os restos do piquenique inesperado.

- Isso é uma capacidade que admiro, e ninguém o faz como uma mulher. O ”vai-te lixar” implícito - explicou ele, e fez nova­mente a bola disparar no ar para Moe a ir buscar. - Ela deixou-me. Ou eu não fui com ela. Depende do ponto de vista. Passá­mos juntos quase um ano. Ela era jornalista da rádio local, passou a pivot aos fins-de-semana, e depois a pivot das notícias da noite. Ela era boa, e começámos a ter todo o tipo de conversas e deba­tes sobre o impacto e o valor dos nossos meios noticiosos específi­cos. O que é mais sexy do que parece. Seja como for, planeámos casar-nos e irmos viver para Nova Iorque. Um dia. Só que depois ela recebeu uma proposta de uma filial de lá. E foi. Eu fiquei.

- Porque é que ficaste?

- Porque sou a porra do George Bailey. -A bola saiu-lhe nova­mente disparada das mãos como um foguete.

- Não compreendo.

- No filme Do Céu Caiu uma Estrela, George Bailey desiste dos seus sonhos de viagem e aventura para ficar na sua terra natal e salvar o património. Eu não sou nenhum Jimmy Stewart, mas o Dispatch passou mesmo a ser o meu patrimônio. O meu padras­to, o pai da Dana, tem estado doente. A minha mãe passou para mim as responsabilidades de editor geral. Parti do princípio que se tratava de um cargo temporário, até o Joe recuperar a saúde. Contudo, os médicos, e a minha mãe, não queriam que ele se expusesse ao frio do Inverno. E eles queriam, e mereciam, gozar a sua reforma. Se eu não a substituísse no jornal, ela ameaçava fechá-lo. E a minha mãe não faz ameaças em vão.

Com uma gargalhada mal-humorada, Flynn voltou a atirara bola. - Podes crer que não. Ou ficava um Flynn a gerir o Valley Dispatch, ou deixava de haver Dispatch.

”Michael Flynn Hennessy”, pensou ela. Queria dizer que Flynn era um apelido e um legado.

- Se ela soubesse que querias algo de diferente... Ele tentou esboçar um sorriso.

- Ela não queria algo de diferente. Eu podia ter-me ido embo­ra, ter limpo as botas e ido com a Lily para Nova Iorque. E todas as pessoas que trabalham no jornal teriam perdido o emprego. Metade delas, talvez mais, teriam sido seleccionadas por alguém que criasse outro jornal. Ela sabia que eu não podia partir.

Ele observou a bola na mão, fê-la girar lentamente, e proferiu também lentamente:

- De qualquer modo, ela nunca gostou da Lily.

- Flynn...

Ele cedeu ao desespero e excitação de Moe e atirou a bola.

-Antes que dê um ar lamentável e patético... nessa altura eu queria ir. Nessa altura, eu amava a Lily. Mas não a amei o suficien­te para fazer as malas e partir quando ela me deu o ultimato. Ela não me amou o suficiente para ficar, nem para me dar tempo para resolver as coisas por aqui e depois ir ter com ela.

”Isso queria dizer que afinal não se amavam”, pensou Malory, mas permaneceu em silêncio.

- Menos de um mês depois de chegar a Nova Iorque, ela telefo­nou a acabar o namoro. Precisava de se concentrar na sua carreira e não conseguia aguentar o stress de um relacionamento, muito menos à distância. Eu devia ser livre para sair com outras pessoas e fazer a minha vida, e ela ia casar-se com a sua profissão. E no prazo de seis meses ela estava casada com um executivo da NBC News e a subir constantemente na hierarquia. Ela conseguiu o que queria, e, bem vistas as coisas, eu também consegui.

Flynn voltou para junto de Malory. O seu rosto recuperara a calma, e os seus olhos verdes profundos estavam agora cristali­nos, como se nunca tivessem sido tomados pela fúria.

- A minha mãe tinha razão... e odeio verdadeiramente essa parte. Mas ela tinha razão. Aqui é o meu lugar, e estou a fazer exactamente o que quero.

- O facto de veres isso diz muito mais acerca de ti do que acerca de qualquer um deles.

Ele atirou a bola uma última vez.

- Fiz-te ter pena de mim.

- Não - respondeu ela, embora tivesse. - Fizeste-me sentir respeito por ti - acrescentou ela, pôs-se de pé e deu-lhe um beijo no rosto. - Acho que me lembro dessa Lily das notícias locais. Ruiva, não era? Com imensos dentes.

- Deve ser a Lily.

- Tinha uma voz demasiado nasal e um queixo fraco. Ele debruçou-se e deu-lhe igualmente um beijo na cara.

- Gostei muito de ouvir o que me disseste. Obrigado.

Moe correu de volta e lançou a bola para o chão, para o meio dos dois.

- Durante quanto tempo é que ele vai continuar nisto? - per­guntou Malory.

- Durante uma eternidade, ou então até me cair o braço. Malory deu um bom chuto na bola com o pé.

- Está a ficar escuro - constatou quando Moe desatou a correr alegremente atrás da bola. - Devias levar-me a casa.

-Ou podia levar o Moe a casa e irmos os dois... ah, já percebi pela maneira como arqueaste as sobrancelhas e contraíste o lá­bio, que estás com a cabeça numa lástima. Ia dizer que podíamos ir ao cinema.

- Não ias nada.

- Ia mesmo. Com efeito, até tenho a secção dos cinemas no carro, para tu veres.

Estavam outra vez bem, segundo se apercebeu, e apeteceu-lhe dar-lhe um beijo - desta vez um beijo de amizade. Em vez disso, entrou na onda e alinhou no jogo.

- Tu tens o jornal inteiro no carro porque é o teu jornal.

- Como queiras, mas deixo-te escolher na mesma.

- E se for um filme sobre arte legendado?

- Ficarei a sofrer em silêncio.

- Tu já sabes que esses filmes não passam nas salas de cinemas daqui, não é verdade?

- Isso não tem nada a ver com o assunto. Anda, Moe, vamos dar um passeio.

”Fez-me bem”, reflectiu Malory, ”afastar-me do enigma e dos problemas por uma noite.” Nessa manhã sentia-se mais fresca e mais optimista. E era bom sentir-se interessada e atraída por um homem complicado.

”Ele é mesmo complicado”, pensou. Tanto mais, porque dava a impressão, pelo menos de início, de ser uma pessoa simples. E isso transformava-o noutro enigma a resolver.

Ela não podia negar aquele clique de que ele falara. Porque havia de o fazer? Não era jogadora no que dizia respeito aos rela­cionamentos: era prudente. Isso significava que precisava de des­cobrir se o clique era meramente sexual ou envolvia mais alguma coisa.

”Enigma número três”, proclamou para si enquanto se acoco­rava[20] para prosseguir a sua pesquisa.

O primeiro telefonema da manhã deixara-a estupefacta. Pou­co depois de desligar, andava a vasculhar nos seus antigos livros de História de Arte.

A porta da casa dos Vane estava aberta. Uma quantidade de homens corpulentos carregava mobílias e caixotes para dentro, ou carregava mobílias e caixotes para fora. Só de olhar para eles, Flynn começou a sentir dores nas costas.

Recordou-se do fim-de-semana alguns anos antes, quando ele e Jordan se tinham mudado para um apartamento. Como eles, com a ajuda de Jordan, tinham transportado um sofá que pesava tanto como um Honda até ao cimo de três lanços de escadas.

’”Aquilo é que eram tempos”, recordou Flynn. Graças a Deus já tinham passado.

Moe saltou para fora do carro atrás dele e, sem esperar por um convite, desatou a correr direito à casa. Deu-se um choque, e ouviu-se um insulto. Enquanto corria apressadamente para lá, Flynn só rezava para que nenhuma das antiguidades dos Vane tivesse caído ao chão.

- Meu Deus. É a isto que chamas um cachorro?

- Ele era um cachorro... há um ano atrás - afirmou Flynn, olhando para o seu amigo mais antigo, que estava a ser cumpri­mentado e lambuzado pelo seu cão. E o seu coração alegrou-se.

- Peço desculpa pelo... foi um candeeiro?

Brad olhou para a porcelana partida, espalhada pelo átrio.

- Era, há um minuto. Muito bem, grandalhão. Senta.

- Lá para fora, Moe. Atrás do coelho!

Em resposta, Moe soltou meia dúzia de latidos e disparou por­ta fora.

- Que coelho?

- O que vive nos sonhos dele. Olá - cumprimentou Flynn, que se aproximou, esmagando cacos por debaixo dos pés, e aper­tou Brad num grande abraço. - Estás com bom ar. Para um cinzentão.

- Quem é que é um cinzentão?

O amigo não podia ter um ar mais distinto desse tipo de pes­soa, com as calças de ganga coçadas e a camisa de ganga que usava para trabalhar. ”Parece alto, esguio e em forma”, pensou Flynn. O menino de ouro dos Vane, o príncipe da família, que se sentia tão feliz a gerir uma equipa de construção como numa reunião da administração.

Talvez mais feliz.

- Passei por cá ontem à noite, mas a casa estava deserta. Quan­do é que chegaste?

- Tarde. Vamos sair do caminho - sugeriu Brad enquanto os homens transportavam outro carregamento. Abanando um pole­gar, conduziu os homens até à cozinha.

A casa encontrava-se sempre mobilada e à disposição do pes­soal executivo ou das visitas importantes da empresa familiar. Em tempos fora a sua moradia no Vale, um lugar que Flynn conhece­ra tão bem como se fosse a sua casa.

A cozinha fora remodelada desde os tempos em que se lembra­va de ir até lá pedir bolachas, mas a vista que se tinha das janelas para a zona em torno da casa era a mesma. Bosques e água, e as montanhas que se erguiam mais além.

Algumas das melhores partes da sua infância estavam associa­das àquela casa. Tal como se encontravam ligadas ao homem que era agora o seu proprietário.

Brad serviu café, e levou Flynn até à rua.

- Que tal a sensação de estar de volta? - perguntou-lhe Flynn.

- Ainda não sei. Estranha, principalmente - respondeu, incli­nando-se sobre a balaustrada para ver o horizonte.

Estava tudo igual. Nada estava na mesma.

Voltou-se para trás, um homem que se sentia bem onde esta­va. Tinha uma camada ou duas de grande cidade no bucho, tam­bém se sentia bem com isso.

Os seus cabelos eram de um louro escurecido pelos anos, tal como as covinhas das bochechas estavam agora mais parecidas com rugas. Para seu grande alívio. Os olhos eram de um cinzento de pedra por debaixo das sobrancelhas direitas. Tinham tendência para olhar intensamente, mesmo quando o resto da cara sorria.

Flynn sabia que não era a boca que revelava o estado de espírito de Brad. Eram os olhos. Quando estes sorriam, era a sério.

E agora estavam a sorrir.

- Meu grande cabrão[21]. Prazer em ver-te.

- Nunca imaginei que voltasses, nem daqui a muito tempo.

- Nem eu. As coisas mudam, Flynn. Tem de ser. Durante os últimos anos já estava com saudades de casa. Como vão as coisas contigo, Sr. Editor Geral?

- Vão bem. Parto do princípio de que vais assinar o nosso jornal. Faço questão de tratar disso - acrescentou, com um sorri­so. - Pomos uma bonita caixa vermelha ao lado da caixa de cor­reio. A distribuição matinal aqui costuma ser às sete.

- Inscreve-me.

- É o que farei. E vou querer entrevistar Bradley Charles Vane IV na primeira oportunidade.

- Merda! Dá-me ao menos tempo para me instalar antes de ter de vestir a farpela da empresa.

- Que tal na próxima segunda-feira? Eu vou ter contigo. -Caramba, estás mesmo igual ao Clark Kent. Não, pior, à Lois Lane, sem as pernas magníficas. Não sei o que tenho para segun­da-feira, mas vou pedir à minha assistente para marcar.

- Óptimo. E se comprássemos umas cervejas e puséssemos a escrita em dia hoje à noite?

- Eu posso tratar disso. Como está a tua família?

- A Mãe e o Joe estão na maior em Phoenix.

- Por acaso, estava mais a pensar na deliciosa Dana.

- Não vais começar outra vez a andar atrás da minha irmã.
É embaraçoso.

- Ela anda com alguém?

- Não, não anda com ninguém.

- Continua bem feita? Flynn vacilou.

- Pára com isso, Vane.

- Adoro azucrinar-te o juízo com isso - e, com um suspiro, Brad estava em casa. - Embora seja divertido, não foi por isso que te pedi para apareceres. Há uma coisa que acho que vais querer ver. Reflecti um bocado quando me falaste naquele negócio em que a Dana e as amigas se meteram.

- Sabes alguma coisa sobre aquela gente do Pico do Guerreiro?

- Não. Mas percebo de arte. Anda. Mandei pô-lo na sala gran­de. Tinha acabado de o desencaixotar quando te ouvi chegar.

Seguimos ao longo do caminho e contornámos a casa até às portas de vidro duplas debruadas com painéis gravados.

A sala grande exibia um tecto elevado com um varandim em redor, e uma generosa lareira com cornija de granito verde, revestida a carvalho dourado. Havia espaço para dois sofás, um no centro da sala, e o outro escondido numa confortável zona de convívio ao longo da parede do fundo.

O resto do espaço era ocupado por um arco amplo, onde se encontrava o piano, e onde Brad passara inúmeras horas de tédio a praticar.

Aí, encostado contra a parte anterior de uma segunda lareira, estava o quadro.

Os músculos da barriga de Flynn ficaram lassos.

- Meu Deus. Oh, meu Deus.

- Chama-se Depois do Feitiço. Comprei-o num leilão há cer­ca de três anos. Lembras-te de te ter dito que comprei um qua­dro por uma das figuras representadas ser igual à Dana?

- Não liguei particularmente a isso. Estavas sempre a aborre­cer-me em relação à Dana - queixou-se, inclinando a cabeça para ver o quadro com atenção. Embora não percebesse de arte e apesar do seu limitado poder de observação, era capaz de apostar tudo em como a mão que pintara aquela obra fora a mesma que criara a do Pico do Guerreiro.

Porém, não havia ali alegria ou inocência. O tom era sombrio, uma espécie de luto, tendo por única luz, pálida, o brilho das três urnas onde três mulheres pareciam dormir.

O rosto da irmã dele, o de Malory, e o de Zoe.

- Tenho de fazer um telefonema - disse Flynn, endireitando-se e pegando no telemóvel. - Há uma pessoa que precisa de ver isto imediatamente.

 

EIa não gostava que a mandassem apressar-se, e muito menos sem que lhe dessem um bom motivo para isso. Pelo que, por uma questão de princípio, Malory levou o seu tempo a chegar à casa dos Vane.

Tinha muito em que pensar, e o pequeno trajecto pelo campo era o ideal para dar alguma ordem a esses pensamentos.

Além disso, gostava de percorrer no seu pequeno automóvel a estrada serpenteante que seguia ao longo do rio, e ver a maneira como o sol iluminava com os seus raios as folhas acima dela, salpi­cando padrões de luz na estrada.

Se soubesse pintar, faria um estudo sobre isso, única e simples­mente sobre a maneira como a luz e as sombras brincavam sobre algo tão simples e comum como uma estrada de província. Se soubesse pintar, pensou uma vez mais, coisa que não sabia, ape­sar de todo o desejo, de todo o estudo e de todas as tentativas feitas ao longo dos anos.

No entanto, havia uma pessoa que sabia, e bem.

Devia ter tentado contactar Dana e Zoe antes de ir até lá. Na realidade, era com elas que estava a trabalhar, e não com Flynn. Ele era... uma espécie de acessório, disse para si mesma. Um acessório bastante atraente, sexy e interessante.

Caramba, como ela adorava acessórios.

Porém, os seus pensamentos não estavam a tomar o rumo mais produtivo.

Desligou o rádio e mergulhou no silêncio. O que tinha a fazer era encontrar Dana e Zoe, e contar-lhes o que tinha descoberto. Se dissesse aquilo em voz alta, talvez conseguisse decifrar o seu significado.

Porque, naquele momento, não fazia a menor ideia do que seria.

A única coisa que sabia, no seu íntimo, era que aquilo era importante. Se não era a resposta, seria uma das migalhas que acabariam por levar a ela.

Virou para um caminho de acesso. Ali não havia portões. Nem muros. E os Vane eram suficientemente ricos para os terem. Pen­sou porque não teriam optado por comprar o Pico do Guerreiro em vez de construírem uma casa ao pé do rio, não muito longe da cidade.

Depois a casa apareceu, respondendo à pergunta. Era bonita, e era de madeira. Um barão das madeiras dificilmente construiria ou compraria uma casa de pedra ou de tijolo. Em vez disso, opta­ria por construir, como fizera, para mostrar o potencial artístico do seu produto.

A madeira tinha o tom dourado do mel, salientada por uma armação de cobre que adquirira um tom verde de sonho devido aos efeitos do tempo e do clima. A casa tinha uma complexa disposição de varandas e varandins salientes em ambos os pisos. Meia dúzia de telhados baixos ou elevados, todos com uma espé­cie de simetria engenhosa que trazia harmonia ao todo.

O terreno era informal, tal como era adequado ao sítio e ao estilo da casa, embora Malory imaginasse que cada arbusto, cada árvore ou canteiro de flores tivesse sido meticulosamente seleccio­nado e projectado.

Malory aprovava a meticulosidade no projecto e na execução.

Parou ao lado de uma camioneta das mudanças, e estava pres­tes a sair quando ouviu os entusiasmados latidos de prazer.

- Oh, não, desta vez não. Já te conheço, amigo - declarou, estendendo a mão para a caixa que estava no chão a seu lado, de onde tirou um grande biscoito para cães.

Quando o focinho conhecido de Moe se espalmou contra a janela do carro, ela baixou o vidro.

- Moe! Apanha o biscoito! - exclamou, projectando o biscoi­to o mais longe possível.

Enquanto o cão corria atrás do biscoito, ela esgueirou-se do carro e desatou a fugir para dentro de casa.

- Bom trabalho - comentou Flynn, que foi ter com ela à porta.

- Aprendo rapidamente.

- Contava com isso. Malory Price. Brad Vane. Já está compro­metida - acrescentou Flynn num subtil tom de aviso, ao vislum­brar o brilho nos olhos de Brad.

- Ah, sim? Percebo perfeitamente - afirmou Brad, sorrindo para Malory. - Mesmo assim, prazer em conhecer-te, Malory.

- O que estão para aí a dizer?

- É linguagem de homens - explicou-lhe Flynn, baixando a cabeça para a beijar. - Só estava a pôr o Brad a par dos últimos acontecimentos. A Dana e a Zoe vêm a caminho?

- Não. A Dana está a trabalhar, e não consegui encontrar a Zoe. Deixei mensagens para as duas. O que se passa?

- Vais querer vê-lo tu mesma.

- Ver o quê? Fazem-me vir até aqui... sem ofensa - acrescen­tou ela para Brad -, tens uma casa maravilhosa; não me dão qual­quer explicação... E eu estava ocupada. O factor tempo...

- Começo a pensar que o tempo é mesmo um factor - disse-lhe Flynn, conduzindo-a para a sala grande.

- Desculpa a desarrumação. Tenho muita coisa para fazer sair, e muita coisa para fazer entrar, ainda hoje - desculpou-se Brad, e deu um pontapé num bocado de candeeiro partido. - O Flynn disse-me que eras gerente da galeria de arte da cidade.

- Sim, até há pouco tempo. Oh, que sala fabulosa - exclamou ela, e parou, absorvida pelo espaço. - Precisa de quadros, escul­tura, mais cor e textura. Um lugar assim tão bonito merece obras de arte.

Se tivesse cartão verde e um orçamento ilimitado, transforma­ria aquele salão numa sala de exposições.

-Deves estar ansioso por desembalar as coisas, instalar-te e... oh, meu Deus!

O choque tomou-a assim que viu o quadro. A explosão de estupefacção provocada pela descoberta aumentou-lhe a tensão arterial, fê-la tirar os óculos da mala e pôr-se de joelhos à frente do quadro para o observar em pormenor.

As cores, as pinceladas, a técnica, inclusivamente o meio. Os mesmos. ”Os mesmos”, pensou, ”do outro quadro.” As três perso­nagens principais eram as mesmas.

- Depois do roubo das almas - recordou. - Elas estão aqui, nesta caixa, sobre o pedestal, em segundo plano. Meu Deus, ve­jam como a luz e a cor parecem pulsar dentro do vidro. É genial. Ali, em segundo plano, as duas figuras do primeiro quadro, de costas viradas para cá. Partem. Foram expulsas. Estão prestes a atravessar a névoa. A Cortina dos Sonhos. As chaves.

Malory penteou os cabelos para trás e prendeu-os com uma mão enquanto analisava a pintura com mais atenção.

-Onde estarão as chaves? Ali! Mal se vêem, numa correia que a figura feminina tem na mão. Três chaves. Ela é a guardiã.

Ansiosa por ver mais em pormenor, tirou uma pequena lupa com punho de prata de dentro de uma bolsa de feltro que trazia na mala.

- Ela traz uma lupa na mala - proferiu Brad, estupefacto. –Sim - assentiu Flynn, rindo como um tolo. Não– é o máximo? Concentrada no quadro, Malory desligou-se dos comentários atrás de si e espreitou pela lupa.

- Sim, sim, é o mesmo tipo de chave. Não foram fundidas com o fundo como no outro quadro. Desta vez não são símbolos, mas sim objectos reais. É ela que tem as chaves.

Baixou a lupa, e afastou-se um pouco para poder ter uma vi­são de conjunto.

-A sombra continua nas árvores, mas já se encontra mais afas­tada. Mal se lhe vê a forma. O trabalho está concluído, mas mes­mo assim ele não deixa de rondar. Será que se regozija com o mal delas?

- Quem é ele? - quis saber Brad.

- Silêncio. Ela está a trabalhar.

Malory introduziu novamente a lupa dentro da bolsa e guar­dou-a na mala.

- Que quadro tão triste, que melancolia na luz, na linguagem corporal dos dois que caminham em direcção à cortina de névoa. As personagens principais nas suas urnas de cristal parecem serenas, mas não estão. Aquilo não é serenidade; é vazio. E há tanto desespe­ro na luz que vem de dentro da caixa. É doloroso, e brilhante.

- Será do mesmo artista? - perguntou-lhe Flynn.

- Certamente que sim. Não se trata de nenhum estudante: aqui não há mímica, nem homenagem. Mas isto é só uma opi­nião - concluiu, assentando o peso sobre os calcanhares. - Não sou nenhuma autoridade.

”Mas enganas bem”, pensou ele.

- Entre ti e o Brad, suponho que temos toda a autoridade de que necessitamos.

Entretanto, ela esquecera-se de Brad, e corou um pouco, en­vergonhada. Limitara-se a absorver o quadro, ajoelhando-se pe­rante ele como que em súplica.

- Desculpa - ainda de joelhos, olhou para ele. - Entusiasmei-me. Podes dizer-me onde o adquiriste?

- Num leilão, em Nova Iorque. Numa pequena casa. A Banderby’s.

-Já ouvi falar neles. E o artista?

- Desconhecido. Só se consegue ver parte da assinatura: mais concretamente uma inicial. Pode ser um R, ou um P, seguido do símbolo da chave.

Malory inclinou-se para observar o canto inferior esquerdo.

- Mandaste datá-lo e autenticá-lo?

- Claro. Século XVII. Embora o estilo pareça ser mais contem­porâneo, o quadro foi sujeito a todo o tipo de análises. Se conhe­ces a Banderby’s, sabes que são meticulosos e fiáveis.

- Sim. Sim, eu sei.

- E também mandei fazer análises por minha conta. É um hábi­to meu - acrescentou Brad. - Os resultados foram coincidentes.

- Tenho uma teoria - começou Flynn, mas Malory dissuadiu-o com um gesto.

- Posso perguntar porque o compraste? A Banderby’s não é conhecida por ter pechinchas, e trata-se de um artista desconhe­cido.

- Um dos motivos foi o meu choque por a figura do meio ser tão parecida com a Dana - era verdade, pensou Brad, embora não fosse toda a verdade. - Comecei por ser atraído pelo quadro em geral, pela força que ele emana, e depois foi esse pormenor. E... - aí, Brad teve uma hesitação, e o seu olhar percorreu o quadro. Depois, sentindo-se disparatado, encolheu os ombros. - Era como se ele falasse comigo. Desejei tê-lo.

- Sim, eu entendo isso - disse ela, e tirou os óculos, dobrou-os e guardou-os cuidadosamente na caixa, introduzindo depois esta na mala. - O Flynn deve ter-te falado do quadro do Pico do Guer­reiro.

- Pois falei. E quando vi este, imaginei...

- Chiu - pediu Malory, e a seguir deu-lhe um safanão no joe­lho e estendeu-lhe a mão para ele a ajudar a pôr-se de pé. - Só pode fazer parte de uma série. Há outro quadro que vem antes, depois ou entre ambos. Mas têm de ser três. De certeza que são três. Três chaves, três filhas. Nós as três.

- Bom, agora somos cinco - comentou Brad. - Mas sim, estou a seguir o teu raciocínio.

- Seguiste-me quando eu disse a mesma coisa há meia hora atrás - queixou-se Flynn. - Essa é a minha teoria.

- Desculpa - disse Malory e, desta vez, deu-lhe uma palmada no braço. - Tenho a cabeça a andar à roda. Ainda consigo ver as partes, mas já não vislumbro a forma, ou em que direcção se movem. O que significam. Importas-te que nos sentemos?

- Façam favor. Peço desculpa - de imediato, Brad pegou-lhe no braço e conduziu-a até um sofá. - Posso trazer-vos alguma coisa para beber?

- Tens brandy? Eu sei que é cedo, mas apetecia-me mesmo um bocadinho de brandy.

- Eu vou buscar.

Flynn sentou-se ao lado dela quando Brad saiu da sala.

- O que foi, Mal? De repente, ficaste um pouco pálida.

- Aquilo magoa-me - explicou, olhando de novo para o qua­dro, e fechou os olhos quando estes ficaram marejados de lágrimas. - Embora o quadro deslumbre a minha mente e o meu espí­rito, faz-me sofrer olhar para ele. Eu vi aquilo acontecer, Flynn. Senti aquilo a acontecer-lhes.

- Vou guardá-lo.

- Não, não - pediu ela, pegando-lhe na mão, e o seu contacto reconfortou-a. - A arte deve tocar-nos seja de que modo for. É esse o seu poder. Como será o terceiro? E quando?

- Quando?

Ela abanou a cabeça.

- Até onde poderá ir a tua mente? Começo a descobrir até que ponto irá a minha. Contaste tudo ao Brad?

- Contei - havia qualquer coisa, reparou ele enquanto a fita­va. Algo que ela não tinha a certeza de poder comunicar. - Podes ter confiança nele, Malory. Podes confiar em mim.

- A questão é se algum de vocês irá confiar em mim depois de vos contar o que descobri esta manhã, e o que julgo que isso significa. O teu velho amigo pode pôr-me delicadamente na rua e fechar-me a porta.

- Nunca poria na rua uma mulher bonita - asseverou Brad, que se aproximava trazendo um copo de balão com brandy. En­tregou-lho, e sentou-se perto da mesinha de apoio, virado para ela. - Vá, deita tudo cá para fora.

E foi o que ela fez, depois de beber o brandy como se fosse uma pequena dose de remédio. A bebida deslizou-lhe suavemente pela garganta e acalmou o seu estômago irrequieto.

- É um crime tratar um Napoleon de um modo tão negligente. Obrigada.

- Conhecedora de brandy - disse ele para Flynn. A cor come­çava a voltar-lhe ao rosto. Para lhe dar a oportunidade de recupe­rar melhor, Brad deu uma cotovelada ao amigo. - Como é que conseguiste que uma mulher com gosto e com classe olhasse para ti mais do que uma vez?

- Mandei o Moe deitá-la abaixo e prendê-la no chão. Isso está melhor, Mal?

- Está - respondeu ela, soltando um suspiro. - Está. O teu qua­dro é do século XVII. Essa questão é absolutamente conclusiva?

- Exacto.

- Descobri esta manhã que o quadro do Pico do Guerreiro pertence ao século XII: pode ser até anterior, mas posterior nunca.

- Se obtiveste essa informação do Pitte ou da Rowena... - começou Flynn.

- Não. Pedi-a ao Dr. Stanley Bower, de Filadélfia. É um perito, e meu conhecido. Enviei-lhe amostras do quadro.

- Como é que obtiveste as amostras? - indagou Flynn.

O rosto dela ficou ainda mais corado, embora isso não se de­vesse ao brandy. Ela pigarreou e ajustou a alça da carteira.

- Tirei-as quando foste até lá comigo na semana passada. En­quanto tu e o Moe os distraíam. Foi completamente inadequado, sem qualquer respeito pela ética. Mas fi-lo.

- Fixe - o tom de voz de Flynn revelava admiração pura. -Então isso significa que ou os peritos do Brad ou o teu estão enga­nados, ou tu estás enganada em relação ao facto de ambos terem sido feitos pelo mesmo artista. Ou então...

- Ou então os peritos estão certos, e eu também - concluiu Malory, pousando a mala e cruzando as mãos firmemente no colo. -O Dr. Bower teria de fazer análises mais profundas e detalhadas para comprovar a data, mas nunca se enganaria por uma questão de séculos. Eu vi os dois quadros, ao perto. Tudo o que sei diz-me que foram pintados pela mesma mão. Sei que isto pode parecer loucura. Eu sinto que é loucura, mas acredito. Quem criou o retrato do Pico do Guerreiro fê-lo no século XII, e foi o mesmo artis­ta que pintou o quadro do Brad quinhentos anos mais tarde.

Brad dirigiu o olhar para Flynn, surpreendido por o amigo não estar de olhos esbugalhados ou a sorrir. Em vez disso, o rosto de Flynn mantinha uma expressão serena e meditativa.

- Queres acreditar que o meu quadro foi executado por um artista com quinhentos anos?

- Mais antigo, suponho. Muito mais antigo do que isso. E julgo que o artista pintou ambos de memória. Estás a repensar fechar a porta? - perguntou-lhe Malory.

- Estou a pensar que vocês os dois se viram apanhados numa fantasia. Uma história romântica e trágica sem qualquer base real.

- Tu não viste o quadro. Não viste As Filhas do Vidro.

- Não, mas ouvi falar na obra. Todas as referências apontam para Londres, durante os bombardeamentos, altura em que foi destruída. A explicação mais provável é o quadro que está no Pico ser uma cópia.

- Não é. Deves achar que estou a ser teimosa. Talvez esteja - reconheceu Malory -, mas neste momento não. Também não sou uma pessoa caprichosa; pelo menos não estou a ser.

Malory voltou a atenção para Flynn, e a sua voz assumiu um tom premente.

- Flynn, tudo o que eles me contaram, tudo o que nos conta­ram, a mim, à Dana e à Zoe nessa primeira noite era absolutamen­te verdade. E o mais surpreendente foi o que não nos contaram. A Rowena e o Pitte, a mestra e o guardião, são as figuras que se en­contram em segundo plano em ambos os quadros. Eles estiveram lá, na realidade. E foi um deles que pintou as duas obras.

-Acredito em ti.

A respiração dela soltou-se, aliviada, perante a simples fé de Flynn.

- Não sei o que isso significa, ou de que modo pode ajudar, mas foi pelo facto de saber isto, e acreditar nisto, que fui escolhi­da. Se eu não encontrar a chave, a Dana e a Zoe não encontram as suas depois de mim, e aquelas almas ficarão encerradas a gritar dentro da caixa. Para sempre.

Ele estendeu uma mão e passou-a pelos cabelos dela.

- Nós não vamos permitir que isso aconteça.

- Com licença - disse Zoe, hesitante, à entrada da sala. Estava atrapalhada para não passar as mãos pelo lambrim de cetim ou tirar os sapatos e percorrer o soalho lustroso descalça.

Apetecia-lhe correr para cada uma das janelas para ver a vista.

- Os homens lá fora disseram que podia entrar. Hum, Flynn? O Moe anda a rebolar à volta de qualquer coisa que tem grandes parecenças com um peixe morto.

- Merda! Volto já, Zoe, Brad - apresentou ele, e correu lá para fora.

Brad levantou-se. Não sabia como conseguira fazê-lo, quando os seus joelhos se tinham desvanecido. Ouviu a sua própria voz, um pouco mais fria do que o habitual, um pouco afectada, sobre o rugido do sangue dentro da sua cabeça.

- Entra, por favor. Senta-te. Posso arranjar-te alguma coisa?

- Não, obrigada. Desculpa, Malory, vim assim que ouvi a tua mensagem. Há algum problema?

- Não sei. Aqui o Brad acha que me faltam alguns parafusos, e eu até o compreendo.

- Isso é ridículo - no seu instantâneo salto de defesa, Zoe esque­ceu-se do encanto da casa, do encanto distante do homem. O seu sorriso prudente em jeito de desculpa transformou-se numa censura gélida quando ela atravessou a sala para se colocar ao lado de Malory. - E se disseste uma coisa dessas, não só te enga­nas como és mal-educado.

- Por acaso, ainda não o afirmei. E dado que não conheces as circunstâncias...

- Não é preciso. Conheço a Malory. E se és amigo do Flynn, não devias arreliá-la.

- As minhas desculpas - de onde teria vindo aquele tom emproado e superior? Como lhe surgira na boca a voz do seu pai?

- A culpa não é dele, Zoe. A sério, Quanto a estar arreliada, não sei se é bem isso - Malory penteou os cabelos para trás e, levantando-se, apontou para o quadro. - Devias dar-lhe
uma vis­ta de olhos.

Zoe aproximou-se. E a seguir engoliu em seco.

-Oh! Oh - e os seus olhos encheram-se de lágrimas cálidas. - É tão bonito. É tão triste. Mas tem a ver com o outro. Como é que este veio aqui parar?

Malory passou-lhe um braço à volta da cintura, de maneira a ficarem as duas juntas.

- Porque é que achas que tem a ver com o outro?

- São as Filhas do Vidro depois de... do feitiço, ou da praga. A caixa, com as luzes azuis. É igualzinha à tua descrição, do so­nho. E é o mesmo; o mesmo... não sei como dizê-lo. É como se fosse um conjunto, ou parte de um conjunto, pintado pela mes­ma pessoa.

Malory olhou para Brad por cima do ombro, e ergueu o so­brolho.

- És especialista em arte? - perguntou Brad a Zoe.

- Não - respondeu ela, sem se dar ao trabalho de olhar para ele, e num tom indiferente. - Sou cabeleireira, mas não sou estúpida.

- Não queria sugerir isso...

- Não, mas querias dizê-lo. Será que o quadro pode ajudar a encontrar a chave?

- Não sei. Mas ele tem algum significado. Tenho uma máquina digital no carro. Posso tirar-lhe algumas fotografias?

- À vontade - respondeu Brad, enfiando as mãos nos bolsos quando Malory saiu apressadamente, deixando-o a sós com Zoe. - De certeza que não queres nada? Um café?

- Não, estou bem. Obrigada.

- Eu, hum, só entrei depois da primeira bobina - começou ele. - Podiam dar-me algum tempo para me pôr a par.

- Tenho a certeza de que o Flynn te vai contar tudo o que precisares de saber - retorquiu ela atravessando a sala, recorren­do à desculpa de ir à procura de Malory para poder ir ver a adorá­vel vista do rio.

Como seria poder estar ali sempre que quisesse, ver a água e as luzes, os montes? ”Libertador”, imaginou. ”E pacífico.”

- A Malory disse-me que acredita que as Filhas do Vidro exis­tem na realidade. Em alguma realidade. E que as pessoas que vocês conheceram no Pico do Guerreiro têm vários milhares de anos de idade.

Zoe voltou-se para trás sem um piscar de olhos.

- Se ela acredita nisso é porque tem bons motivos. E confio nela o suficiente para também acreditar. E agora, também me vais dizer que me falta algum parafuso?

A irritação dominava o rosto dele.

- Eu nunca lhe disse isso. Pensei, mas não o disse. E também não to vou dizer a ti.

- Mas é o que estás a pensar.

- Sabes, eu só tenho dois pés, mas mesmo assim parece-me que não conseguimos acertar.

- Duvido que dancemos juntos em breve, por isso não estou nada preocupada com os teus pés. Gosto da tua casa.

- Obrigado, eu também. Zoe...

-Tenho comprado muita coisa na HomeMakers. Para mim, os valores a manter e o melhor serviço encontram-se nas lojas de bairro.

- Folgo em sabê-lo.

- Espero que não tenciones fazer grandes alterações por cá, mas não me importava nada que houvesse um pouco mais de variedade nos produtos sazonais. Sabes, plantas
para canteiros, pás de neve, mobiliário de exteriores.

Os lábios dele contraíram-se.

- Terei isso em mente.

- E não fazia mal nenhum acrescentar mais um ou dois caixas aos sábados. Há sempre filas para pagar.

- Anotado.

-Vou montar o meu negócio, por isso presto atenção à maneira como as coisas são geridas.

- Vais abrir o teu salão de cabeleireiro?

- Vou - respondeu ela com firmeza, apesar do nó que sentiu no estômago. - Estava à procura de um espaço quando ouvi a mensagem da Malory a pedir-me para vir até cá.

E porque seria que Malory não voltava? Estava a ficar sem va­por, agora que a irritação se dissipara um pouco. Não sabia sobre que assunto havia de conversar com um homem que vivia numa casa como aquela, e que ajudava a gerir um enorme aglomerado de empresas nacionais. Se é que ”aglomerado” era a palavra indicada.

- No Vale?

- O quê? Ah, sim, estou à procura de um estabelecimento na cidade. Não estou interessada em espaços pequenos, e quero ficar perto de casa para poder ter mais disponibilidade para o meu filho.

- Tens um filho? - perguntou ele, dirigindo o olhar para a sua mão esquerda, e quase respirando de alívio ao ver que não tinha aliança.

A única coisa em que Zoe reparou foi na olhadela rápida. Aí, endireitou as costas e ficou tensa.

- Sim. O Simon é meu filho.

- Desculpem ter demorado tanto - disse Malory quando regres­sou. - O Flynn teve de amarrar o Moe a uma árvore do jardim. Vai dar-lhe banho, seja qual for a vantagem que isso traz. Vai passar a ser um cão molhado e tremendamente malcheiroso em vez de ficar apenas tremendamente malcheiroso. Ele mandou-me pedir-te se tinhas champô ou sabão que lhe pudesses dis­pensar.

- Eu arranjo qualquer coisa. Entretanto podes ir tirando as foto­grafias.

Malory apontou a máquina fotográfica e aguardou que os pas­sos de Brad deixassem de se ouvir.

- Quais deuses qual carapuça - murmurou para Zoe.

- O quê?

- Bradley Charles Vane IV. O aspecto dele dá cabo das hormonas de qualquer mulher.

- O aspecto é genético - comentou Zoe, quase de nariz emproado. - A personalidade e os bons modos desenvolvem-se.

- Os genes deviam estar num bom dia quando ele foi concebido - afirmou Malory, baixando a máquina. - Devo ter-te dado im­pressão de que ele me estava a arreliar. A verdade é que não estava.

- Talvez sim, talvez não. Mas é um snobe arrogante.

- Ena, pá! - exclamou Malory, piscando os olhos perante a veemência do tom de voz de Zoe. - Não achei. Nem imagino o Flynn a ser amigo de alguém que se enquadre na categoria de snobe. Arrogante já é outra coisa.

Zoe sacudiu um ombro.

- Já me cruzei com pessoas do género dele. Estão mais interessadas em ter bom ar do que em serem humanas. De qualquer modo, não é ele que interessa, mas sim o quadro.

- Também acho. E o que tu disseste em relação a ele fazer parte de um conjunto. Parece-me que isso deve ser verdade, e que existe mais um quadro. Tenho de encontrá-lo. Algo nele, ou relacionado com ele, vai encaminhar-me para a chave. É melhor ir vasculhar nos livros.

- Queres ajuda?

- Toda a que for possível.

- Eu volto já. Tenho uma ou duas coisas para fazer, e depois passo por tua casa.

Mais ou menos na mesma altura em que Brad descobriu um frasco de champô, ouviu o motor de um carro a arrancar. Foi até à janela, e praguejou ao ver Zoe e Malory descerem o caminho de acesso à casa.

No que diz respeito a primeiras impressões, fora extremamen­te descuidado. Não costumava afastar as mulheres à primeira vis­ta. No entanto, o primeiro contacto com uma mulher também não costumava atingi-lo como um murro desferido com toda a força. Bem vistas as coisas, tinha a desculpa de não se encontrar na sua melhor forma.

Desceu as escadas e voltou para o salão, em vez de seguir até ao jardim. Ficou a olhar para o quadro tal como da primeira vez que o vira na casa de leilões. Tal como olhara para ele inúmeras vezes desde que o comprara.

Teria dado todo o dinheiro que lhe pedissem, só para o ter.

Era verdade o que dissera a Malory e a Flynn. Comprara-o porque ele era magnífico, poderoso, compulsivo. Ficara intrigado pelo rosto de uma figura, pela semelhança em relação à sua ami­ga de infância.

Todavia, tinha sido outro rosto do quadro a deslumbrá-lo, a consumi-lo. A desfazê-lo. Bastara um olhar para aquele rosto, para o rosto de Zoe, para ele ficar apaixonado para lá de toda a razão.

E isso já era suficientemente estranho quando a mulher era única e simplesmente uma figura num quadro. Como as coisas se tinham tornado mais complicadas e impossíveis agora que sabia que ela existia na realidade...

Foi pensando no assunto enquanto ia pondo a casa em or­dem. Continuou a pensar nisso mais tarde, quando ele e Flynn treparam o muro que cercava o Pico do Guerreiro.

Abriram cada um uma cerveja, e puseram-se a observar a exóti­ca silhueta desenhada contra um céu sombrio.

Havia luzes nas janelas aqui e ali, mas enquanto bebiam as suas cervejas em silêncio, não viram qualquer figura passar por detrás dos vidros.

- Eles devem saber que aqui estamos - disse Flynn passado um bocado.

- Se levarmos à letra a teoria da tua namorada, e os considerar­mos deuses celtas com uns milhares de anos no bucho, sim, de certeza que sabem que estamos aqui.

- Tu dantes tinhas uma mente aberta - comentou Flynn.

- Ah, não. Nem por isso. O Jordan é que costumava engolir qualquer história deste género que lhe contassem.

- Tem-lo visto ultimamente?

- Há um ou dois meses. Como ele viaja muito, não consegui­mos encontrar-nos tanto como antigamente. Porra, Flynn! - ex­clamou, passando um braço à volta do ombro
do amigo. - Tive mesmo saudades vossas, meus grandes sacanas.

- Igualmente. Vais dizer-me o que pensaste da Malory?

- Com classe, intelectual, e muito, muito tórrida... apesar do seu gosto dúbio em relação aos homens.

Flynn bateu com os calcanhares dos ténis velhos contra a pe­dra do muro.

- Estou meio doido por ela.

- Doido a sério, ou doido para curtir com ela?

- Não sei. Ainda não descobri - respondeu, observando a casa e a fatia de Lua que pairava acima dela. - Espero que à segunda seja de vez, porque também preferia não estar assim tão doido neste ponto.

- A Lily era uma oportunista social com uma grande prateleira.

- Meu Deus, Vane - disse Flynn, sem saber se havia de se rir ou de dar ao amigo um empurrão de cima do muro de dois me­tros. Por isso, não disse nada e ficou a matutar. - Eu estava apaixo­nado por ela. Ia casar com ela.

- Mas agora não estás, e não casaste. Sorte a tua. Ela não me­recia, Flynn.

Flynn mudou de posição. Não conseguia ver bem os olhos de Brad. A sua cor fundia-se com a noite.

- Não merecia o quê?

- Não te merecia.

- Isso não é uma coisa que se diga assim sem mais nem menos.

-Vais-te sentir melhor em relação ao assunto quando reconhe­ceres que tenho razão. Agora voltemos ao que interessa. Gostei dela, da tua Malory, se é isso que queres ouvir.

- Embora aches que não regula bem da cabeça.

- Estamos a pisar um terreno pantanoso”, pensou Brad, embo­ra se tratasse de uma conversa com um amigo.

- Penso que ela se encontra em circunstâncias extraordinárias e se viu envolta em misticismo. E porque não?

Flynn não conseguiu deixar de sorrir.

- Estás apenas a ser diplomático: isso é o mesmo que dizeres que ela não regula bem.

- Uma vez deste-me um murro na cara por eu ter dito que a Joley Ridenbecker tinha dentes de castor. Não quero ir às reuniões de segunda-feira com um olho negro.

- Estás a ver? És um cinzentão. Se eu reconhecer que a Joley tinha dentes de castor, acreditas em mim se te disser que nunca conheci ninguém com menos quociente de loucura do que a Malory Price?

- Está bem, eu acredito em ti. E reconheço que essa história dos quadros é intrigante - acrescentou Brad, gesticulando com a cerveja e voltando a beber. - Também gostava de ver o que está ali dentro.

- Podemos ir até lá e bater à porta.

- À luz do dia - decidiu Brad. - Numa altura em que não tenhamos bebido.

- É capaz de ser melhor.

- Entretanto, podias-me falar mais sobre a Zoe?

- Não a conheço há muito tempo, mas fiz algumas investiga­ções. Sobre ela e sobre a Mal. Para o caso de a Dana se ver envol­vida num estratagema esquisito - Ela mudou-se para o Vale há três anos, com o filho.

- Marido?

- Não. Mãe solteira. Parece-me ser boa pessoa. Já conheci o miúdo. É inteligente, normal, atraente. Trabalhou no Hair Today, um cabeleireiro de senhoras no Mercado.
Dizem que é boa pro­fissional, fiável e com boa apresentação. Foi despedida no mes­mo dia que a Malory, e por volta da mesma altura em que reduziram drasticamente as horas de trabalho da Dana na bibliote­ca. Mais uma coincidência estranha. Ela comprou uma casinha de bonecas quando se mudou para cá. Aparentemente, tem sido ela a fazer a maioria das remodelações.

- Namorado?

- Que eu saiba, não. Ela... espera aí. Fizeste duas perguntas. Marido e namorado. A minha intuição aguda de jornalista leva-me a concluir que estás a pensar em curtir.

- Ou coisa do género. É melhor ir andando. Tenho um monte de coisas para fazer nos próximos dias. Mas há mais uma coisa - disse Brad, bebendo mais um gole de seguida. - Como é que vamos sair de cima do muro?

- Boa pergunta - respondeu Flynn, franzindo os lábios e olhan­do para o chão. - Podíamos ficar aqui sentados a beber até cair.

Brad soltou um suspiro e bebeu o último gole da garrafa. -Tenho um plano.

 

Malory estava quase a sair do chuveiro quando ouviu bater à porta. Apertou o roupão, pegou numa toalha e enrolou-a na cabeça enquanto se apressava a ir abrir. - Tod. É cedíssimo.

- Vou a caminho do café para ver o pessoal trabalhador antes de ir para a galeria - replicou ele, e olhou por cima do ombro direito dela, por cima do esquerdo, e a seguir fez um olhar lúbrico.

- Tens companhia?

Malory escancarou a porta, convidativa.

- Não. Estou completamente sozinha.

- Oh, que pena.

- A quem o dizes - comentou ela, prendendo melhor as pontas da toalha. - Queres beber café aqui? Já pus a cafeteira ao lume.

- Só se me ofereceres um café com leite magro e um bolinho de avelã.

- Sinto muito, mas acabaram-se.

- Bem, então é melhor dar-te a boa notícia e pôr-me a andar - mesmo assim, atirou-se para cima de uma poltrona.

- Oh! Botas novas?

- Fabulosas, não são? - perguntou ele e, esticando as pernas, virou o pé para a esquerda e para a direita para as admirar. -Custaram-me os olhos da cara, como é evidente, mas não lhes consegui resistir. Dei uma saltada ao Nordstrom no sábado. Que­rida, não podes deixar de lá ir - comentou, sentando-se e pegan­do-lhe na mão enquanto ela se enroscava no canto do sofá. - A caxemira! Há uma camisola com capuz cor de pervinca que é mesmo a tua cara.

- Cor de pervinca? - indagou ela, com um suspiro profundo, como uma mulher nas mãos de um amante experiente. - Não digas caxemira cor de pervinca quando estou a meio de uma moratória em termos de compras.

- Mal, se não fores tu a tratar de ti, quem irá tratar?

- Isso é verdade. É bem verdade - anuiu ela, franzindo o lá­bio. - O Nordstrom?

- E há um conjunto de malha com camisola e casaco num tom de pêssego forte que foi mesmo feito para ti.

- Sabes que não consigo resistir a conjuntos de malha, Tod. Estás a dar cabo de mim.


-Eu paro, eu paro - disse ele, erguendo as mãos. -Mas vamos ao nosso boletim matinal. A Pamela meteu-se numa alhada das boas.

- Ena! - exclamou Malory, contorcendo-se para ajeitar o cor­po nas almofadas. - Conta-me tudo. Não poupes os pormenores.

- Como se pudesse. Bom. Comprámos um bronze art déco, uma figura feminina com um vestido esvoaçante, uma faixa de penas na cabeça, pérolas, umas sandálias lindas e um cachecol enorme. É absolutamente encantadora. Inteligente, com porme­nores magníficos e um sorriso tímido no rosto que parece convi­dar: ”Vamos dançar o charleston, rapagão.” Apaixonei-me.

- Telefonaste para a Sr.a D. Karterfield, de Pittsburgh?

- Ah, estás a ver! - exclamou ele, disparando um dedo para o ar, como se quisesse provar o seu argumento. - Isso era o que tu farias, ou terias feito, se ainda lá estivesses. Que era onde devias estar.

- Isso é escusado.

- Como é evidente, liguei à Sr.a D. Karterfield que, como seria de esperar, nos pediu que aguardássemos que ela viesse pessoalmente ver a obra. Na semana seguinte. E o que acontece quando a nos­sa querida Sr.a D. Karterfield vem de Pittsburgh à galeria para ver uma figura art déco!

- Compra-a. Geralmente acompanhada de mais uma peça. Se vem com uma amiga, que é habitualmente o caso, massacra o juízo da amiga até ela comprar também alguma coisa. Quando a Sr.a D. Karterfield vem à cidade é sempre um bom dia.

- A Pamela vendeu a estátua.

Malory demorou dez segundos a recuperar a voz.

- O quê? O quê? Como? Porquê? A Sr.a D. K é um dos nossos melhores clientes. Ela compra sempre as estátuas de bronze art déco sem pestanejar.

Os lábios dele franziram-se num sorrisinho irónico.

- Um pássaro na mão. Foi o que a tansa me respondeu quan­do eu descobri. E como é que descobri? Vou-te dizer - explicou, com um tom triunfante na voz. - Descobri quando a Sr.a D. K entrou inesperadamente ontem à tarde para ver a estátua. Mal podia esperar, segundo me afirmou. E trouxe duas amigas. Duas, Mal. Estava capaz de chorar.

- O que aconteceu? O que é que ela disse?

- Levei-a a vê-la, e havia uma placa a dizer Vendido por de­baixo do pedestal. Parti do princípio que devia ser um erro, mas fui verificar. A Pamela vendeu-a nessa manhã, aparentemente enquanto eu estava lá dentro ao telefone, a tentar consolar o Alfred por a Pamela, a Megera, o ter acusado de cobrar dinheiro a mais pelo embalamento dos nus de mármore.

- O Alfred? Cobrar de mais? - Malory comprimia as têmporas com as mãos. - Não consigo entender.

- Foi horrível, pura e simplesmente horrível. Demorei vinte minutos para o dissuadir, e mesmo assim não fiquei com a certe­za de que ele não entrava por ali adentro e a desancava com o martelo. Se calhar, devia tê-lo deixado - considerou Tod, afastan­do depois o pensamento com ambas as mãos. - Seja como for, enquanto eu estava ocupado com
o Alfred, a Pamela vendeu o Déco da Sr.a D. K a um estranho. A um tipo qualquer, a uma pessoa da rua!

Ao dizer isto, voltou a recostar-se e espalmou uma mão no peito.

-Ainda não posso acreditar. A Sr.a D. K ficou arreliadíssima, como é natural, e pediu para falar contigo. Aí, tive de lhe dizer que já não trabalhavas connosco. E então, foi merda da grande. Da gran­de, mesmo.

- Ela perguntou por mim? Que querida.

- Ainda foi mais querida. Depois a Pamela apareceu. E come­çaram as duas a discutir. Caramba, que discussão. A Sr.a D. K só per­guntava como é que um artigo que tinha sido reservado por ela podia ser vendido. A Pamela ficou toda arrogante e respondeu que não era política da galeria guardar uma peça sem um depó­sito em dinheiro. Estás a imaginar?

- Um depósito em dinheiro? - horrorizada, Malory só conse­guia arregalar os olhos. - De um dos nossos clientes mais antigos e de maior confiança?

- Exacto! Depois, a Sr.a D. K disse: ”Bem, sou cliente d’A Galeria há quinze anos e a minha palavra sempre foi o suficiente. Onde está o James?” E a Pamela disse: ”Peço perdão, mas a gerente sou eu.” E a Sr.a D. K só lhe disse que se o James pôs uma imbecil na gerência devia ser porque estava senil.

- Oh, boa, Sr.a D. K!

- Entretanto, a Julia foi chamar o James e disse-lhe que havia um problema bicudo. A Pamela e a Sr.a D. K estavam quase a chegar a vias de facto por causa da estátua quando ele apareceu a correr. Tentou acalmar as duas, mas elas estavam demasiado acesas. A Sr.a D. K disse que nunca mais queria lidar com aquela mulher. Adorei a maneira como ela disse aquilo. Aquela mulher. Parecia cantado. E a Pamela respondeu que A Galeria é um negócio, e não pode ser gerida com base nos caprichos de uma cliente.

- Oh, meu Deus.

- O James ficou frenético e prometeu à Sr.a D. K que ia resolver o assunto, mas ela entretanto já estava furiosa. Tinha um ar absolutamente lixado. Disse-lhe que não voltava a pôr os pés na galeria enquanto aquela mulher estivesse associada a ela. E que, vais adorar isto, se ele deixou uma jóia como a Malory Price cair-lhe por entre os dedos, merece perder a clientela. E saiu disparada porta fora.

- Ela chamou-me uma jóia - deliciada, Malory deu um abraço a si própria. - Adoro-a. Isto é mesmo bom, Tod. Fizeste-me co­meçar bem o dia.

- E ainda há mais. O James ficou lixado. Qual foi a última vez que viste o James lixado?

- Hum. Nunca.

- Certo! - exclamou Tod, disparando um dedo para o ar. - Estava branco como a cal das paredes, com os lábios tensos e franzidos. E disse para a Pamela, de dentes cerrados - e Tod jun­tou os dentes para demonstrar - Preciso de conversar contigo, Pamela. Lá em cima.”

- O que é que ela respondeu?

- Bem, saiu dali disparada até lá acima, e ele foi atrás dela. A seguir, fechou a porta, o que foi uma grande decepção. Não ouvi praticamente nada do que eles disseram, embora tenha su­bido as escadas e ficado por lá escondido na esperança de ouvir alguma coisa. Mas percebeu-se nitidamente quando ela come­çou a discutir. ”Eu estou a fazer alguma coisa de jeito com esta galeria”, dizia ela. ”Tu disseste que era eu a gerente. Estou farta que me atirem a Malory Price à cara a todo o instante. Porque não te casaste com ela em vez de mim?”

- Oh - proferiu Malory, imaginando aquele cenário durante alguns instantes. - Pfff...

- A seguir, ela começou a chorar e a dizer que se fartava de trabalhar e ninguém apreciava o seu esforço. E disparou porta fora. Ia sendo apanhado. Foi tudo tão extenuante, tão estranha­mente hilariante.

- Chorar? Raios partam! - uma minhoquinha de compaixão trepou pelo peito de Malory. - Eram lágrimas sentidas, ou única e simplesmente lágrimas de uma pessoa que está lixada?

- Lágrimas de quem se sente lixado.

- Então está bem - retorquiu, esmagando a minhoca sem dó nem piedade. - Provavelmente ainda vou para o inferno por me alegrar tanto com isto.

- Arranjamos todos um apartamento. Mas enquanto continuas neste mundo mortal, acho que o James te vai convidar a regres­sar. Na realidade, Mal, tenho a certeza disso.

- A sério? - perguntou Mal, com um sobressalto. - O que é que ele disse?

- Não foi tanto o que disse, mas antes o que não disse. Ele não foi atrás da chorosa Pamela para lhe enxugar as lágrimas. Com efeito, passou o resto do dia na galeria, a passar os olhos pelas contas. E estava com um ar maldisposto quando saiu. Eu diria que o reino de terror da Pamela está a chegar ao fim.

- Que dia excelente - comentou Malory, soltando um longo suspiro. - É mesmo um dia magnífico!

- E agora tenho de ir andando. Não te preocupes - acrescen­tou, ao levantar-se. - Vou-te enviando boletins para te manter informada. - E entretanto, o quadro em que estavas a pensar? Aquele retrato?

- O quê? Ah, sim. O que tem?

- Lembras-te que ambos pensámos que ele tinha algo de co­nhecido? Já me lembrei. Não te recordas há cinco anos, daquele óleo sobre tela por assinar? Do jovem Artur da Bretanha, prestes a tirar a Excalibur de um altar de pedra?

Uns dedos gélidos roçaram-lhe a base do pescoço quando o quadro lhe veio à mente.

- Meu Deus. Já me lembro. Claro que me lembro. A cor, a inten­sidade, a maneira como a luz brilhava em torno da espada.

- Tem decididamente o mesmo estilo e pertence à mesma escola do que me mostraste. Até é capaz de ser do mesmo artista.

- Sim... Sim, é capaz de ser. Como é que o adquirimos? Atra­vés de uma agência, não foi? Na Irlanda. O James andou a fazer compras na Europa durante várias semanas. E essa foi a melhor peça que ele trouxe. Quem o comprou?

-Até a minha memória de elefante tem limites, mas fui procu­rar.
A Julia vendeu-o ao Jordan Hawke. O escritor? É um rapaz da zona, ou pelo menos era. Vive em Nova Iorque, acho eu.

A barriga dela deu lentamente uma longa volta.

- O Jordan Hawke.

- Podias contactá-lo através do seu editor, se quiseres falar com ele acerca do quadro. Bem, tenho de voar, minha linda - disse ele, e inclinou-se para lhe dar um beijo. - Diz-me assim que o James te telefonar para se prostrar aos teus pés. Quero todos os pormenores.

Havia meia dúzia de pessoas nos teclados e nos telefones quan­do Malory chegou ao terceiro nível do Dispatch, onde Flynn tinha o seu gabinete. Viu-o imediatamente através das paredes de vidro.

Deslocava-se para a frente e para trás à frente de uma secretá­ria, enquanto passava uma mola Slinky prateada de uma mão para a outra. E parecia estar a falar sozinho.

Ela pensou como ele conseguia suportar a falta de privacidade no trabalho, aquela constante sensação de estar exposto. E o ba­rulho! Com todo aquele matraquear, toques de telefone, conver­sas e bipes, ver-se-ia doida para formular uma única ideia criativa.

Não sabia com quem havia de falar. Ninguém dava particular­mente o ar de ser assistente ou secretária. E apesar do boneco retro com que Flynn brincava, Malory apercebeu-se subitamente de que ele era um homem ocupado. Um homem importante. E não um homem a quem ela devesse aparecer assim sem avisar.

Enquanto estava para ali parada e indecisa, Flynn estava sen­tado na ponta da secretária, passando a mola Slinky[22] da mão direi­ta para a esquerda e vice-versa. Tinha os cabelos desalinhados, como se tivesse passado algum tempo entretido com eles antes de pegar no brinquedo.

Usava uma camisa verde-escura enfiada por dentro de umas calças de caqui casuais e, muito possivelmente, os mais velhos sapatos de desporto que ela vira.

Sentiu um breve formigueiro na barriga, seguido de uma pe­quena dor surda e inesperada mesmo abaixo do coração.

 

”Sentir-me atraída por ele é normal”, disse para si mesma. Era aceitável. Mas não podia deixar a atracção subir àquele ní­vel tão rapidamente. Não era inteligente, não era seguro. Nem sequer era...

Então ele olhou pelo vidro, e os seus olhos encontraram-se durante uma fracção de segundo antes de ele sorrir. E o formiguei­ro, a dor surda, tornaram-se mais intensos. Flynn abanou o pulso, a mola Slinky tombou e, com a mão livre, ele fez-lhe um gesto para que avançasse.

Malory abriu caminho pelo meio das secretárias e do barulho. Quando passou pela porta aberta do gabinete, viu com alívio que ele não estava a falar sozinho, mas sim a falar para um telefone em alta voz.

Por hábito, ela fechou a porta atrás de si e, ao olhar para o lugar de onde vinha um ressonar heróico, viu Moe esparramado de barriga para cima entre dois armários.

”O que fazer com um homem que levava este cão tonto para o trabalho?”, pensou. Embora a pergunta mais adequada fosse talvez, o que fazer para resistir a um homem desses?

Flynn levantou um dedo para pedir mais um minuto, e ela aproveitou o tempo para observar o seu local de trabalho. Havia um enorme quadro de cortiça numa parede, cheio de bilhetes, artigos, fotografias e números de telefone. Os dedos dela move­ram-se em ânsias de o organizar, bem como ao labirinto de pa­péis que lhe cobriam a secretária.

Havia prateleiras cheias de publicações, diversas das quais pareciam ser boletins de Direito e de Medicina. Havia listas tele­fónicas de vários condados da Pensilvânia, livros de citações fa­mosas, e guias de cinema e de música.

Além da mola Slinky, ele tinha um ió-ió e várias figuras de acção. Podia ver algumas placas e prémios - atribuídos ao jornal e a Flynn pessoalmente, todos empilhados, como se ele não tivesse tido tempo de os pendurar. Ela também não sabia onde os teria pendurado, já que o reduzido espaço das paredes fora ocupado pelo quadro de cortiça e por um calendário de parede de iguais dimensões, referente ao mês de Setembro.

Ela virou-se quando ele acabou a chamada. E recuou quando ele avançou na sua direcção. Flynn parou.

- Problema?

- Não. Talvez. Sim.

- Escolhe uma - sugeriu ele.

- Senti um formigueiro na barriga quando te vi. O sorriso dele abriu-se.

- Obrigado.

- Não. Não. Não sei se estou preparada. Tenho imensas coisas na cabeça. Não vim aqui para te falar nisso mas vês... já me distraí.

- Não te esqueças do que estavas a dizer - disse-lhe ele quan­do o telefone voltou a tocar. - Hennessy. Hum... hum. Hum... hum. Quando? Não, não há problema - prosseguiu, ao mesmo tempo que rabiscava num papel tirado do meio do monte. - Eu trato disso.

Pousou o auscultador e, a seguir, desligou o telefone.

- É a única maneira de matar a fera. Fala-me mais nesse formi­gueiro.

- Não. Nem sei porque te falei nisso. Vim por causa do Jordan Hawke.

- O que se passa com ele?

- Ele comprou um quadro à galeria há uns cinco anos atrás...

- Um quadro? Estás a falar do mesmo Jordan Hawke?

- Sim. O quadro do jovem Artur prestes a tirar a espada da pedra. Acho, tenho quase a certeza, que foi pintado pelo mesmo artista que executou o quadro do Pico do Guerreiro e o quadro do teu outro amigo. Preciso de vê-lo outra vez. Existe um propósito por detrás disto. Tudo tem um propósito. Podes pôr-te em con­tacto com ele?

Como a sua mente percorria todos os detalhes e possibilida­des a um ritmo alucinante, Flynn voltou a pegar na mola Slinky.

-Sim. Se ele estiver em viagem, é capaz de demorar um boca­do, mas hei-de acabar por localizá-lo. Nem sabia que o Jordan tinha estado na galeria.

- O nome dele não faz parte da nossa lista de clientes, por isso deduzo que deve ter sido um negócio único. Para mim, isso ain­da faz com que assuma mais importância.

A excitação subia-lhe pela garganta e borbulhava-lhe na voz.

- Flynn, eu própria estive para comprar aquele quadro. Na altura estava acima das minhas possibilidades, mas eu andava a fazer contas e mais contas para justificar a compra. Foi vendido na manhã do meu dia de folga, mesmo antes de eu tencionar ir ter com o James e pedir-lhe para o pagar a prestações. Só posso acreditar que isto queira dizer alguma coisa.

- Eu entro em contacto com o Jordan. Imagino que o deve ter comprado para alguém, Ele não gosta muito de ter coisas, ao con­trário do Brad. Costuma viajar quase sem nada e manter as aqui­sições no mínimo.

- Preciso de ver novamente o quadro.

-Já percebi. Vou tratar do assunto. Vou tentar descobrir algu­ma coisa hoje e ponho-te a par de tudo amanhã ao jantar.

- Não, isso não é boa ideia. É mesmo muito má ideia.

- Jantar é má ideia? As pessoas têm abraçado o conceito da refeição da noite ao longo da história. Há documentação a comprová-lo.

- Nós jantarmos é que é mau. Preciso de fazer abrandar as coisas.

Ele pousou o brinquedo. Mudou o corpo de posição, e quan­do ela também ia para alterar a sua, de maneira a manter a distân­cia entre os dois, agarrou-lhe na mão e puxou-a para si.

- Há alguém a pressionar-te?

- Há uma coisa - declarou ela, e as suas pulsações começaram a fraquejar: nos pulsos, na garganta, e mesmo na parte de trás dos joelhos, que começaram subitamente a tremer, Havia algo no cálculo frio que ela viu nos olhos dele, alguma coisa a recordá-la que ele tendia a pensar dois ou três passos mais adiante. - Olha, o problema é meu, e não teu, e... Pára - ordenou quando ele lhe envolveu a nuca com a mão que tinha livre - Isto não é lugar para...

- Eles são jornalistas - afirmou ele, inclinando a cabeça na direcção da parede de vidro entre o seu gabinete e a saia de edição. - E, como tal, sabem muito bem que eu beijo mulheres.

- Acho que me apaixonei por ti.

Ela sentiu a mão dele estremecer, e a seguir ficar mole. Viu a diversão e a intenção no rosto dele transformarem-se numa ex­pressão de choque puro. E os demónios gémeos da mágoa e da irritação espicaçaram o coração dela.

- Pronto. Agora também passou a ser problema teu - comen­tou ela, afastando-se dele... bastara uma simples questão, e ele deixara de lhe tocar.

- Malory...

- Não quero ouvir. Não preciso de te ouvir dizer que é muito cedo, que estou a ir demasiado depressa, nem que não tens em vista este tipo de relacionamento. Não sou estúpida. Conheço todas as deixas. E não estaria nesta posição agora se tivesses acei­te um não.

- Espera aí - o pânico varria-lhe o rosto e a voz. -Vamos parar um segundo.

- Podes parar - a humilhação suplantava rapidamente a má­goa e a raiva. - Podes demorar uma semana. Demora o resto da vida. Mas fá-lo num lugar onde eu não esteja.

Dito isto, ela precipitou-se para fora do gabinete. Ainda toma­do por um acesso de terror paralisante, ele não pôs a hipótese de segui-la.

Apaixonada por ele? Ela não devia apaixonar-se por ele. De­via deixá-lo seduzi-la e fazerem amor, ser suficientemente sensa­ta para manter as coisas simples. Devia ser prudente, prática e suficientemente esperta para o impedir de se apaixonar por ela.

Ele planeara tudo, e agora ela dava-lhe cabo dos planos. Fize­ra a si mesmo promessas muito específicas quando o seu noivado fora quebrado. A primeira das quais era não voltar a colocar-se numa posição semelhante - uma posição em que ficava vulnerá­vel aos desejos e caprichos de outra pessoa. Ao ponto de os seus próprios desejos acabarem por ficar arruinados.

A sua vida não era nada como ele imaginara. As mulheres - a mãe, Lily - tinham alterado o rumo da sua vida. Mas raios par­tam, ele agora gostava da vida que levava.

- Mulheres! - proferiu, desgostoso, e deixou-se cair na cadei­ra por detrás da secretária. - Não há quem as entenda!

- Homens! Querem tudo à maneira deles!

Dana ergueu o seu copo de vinho na direcção de Malory.

- Canta, irmã.

Algumas horas depois de se ter esgueirado do gabinete de Flynn, Malory consolava o seu orgulho ferido com um bom Pinot Crigio, companhia feminina e tratamentos de beleza no conforto do lar.

Embora houvesse alguns assuntos para conversar, não conse­guia pensar em quadros, em chaves ou no destino antes de comu­nicar a sua tristeza.

- Tanto me faz que ele seja teu irmão. Não deixa de ser um homem.

- Pois é - anuiu Dana, olhando para o vinho com ar sombrio. - Lamento dizê-lo mas é. Come mais batatas fritas.

- Aceito - com os cabelos afastados de um rosto coberto com uma máscara de limpeza de argila verde, Malory bebeu um gole e comeu. Observou as pregas de papel de alumínio que Zoe colo­cava nos cabelos de Dana. - Se calhar, também devia fazer ma­deixas.

- Não precisas - retorquiu Zoe, enquanto pintava outra sec­ção dos cabelos de Dana. - Precisas de forma.

- Forma implica tesoura.

- Nem vais reparar que o cortei, a não ser pelo facto de ficar melhor e de te fazer sentir melhor.

- Primeiro deixa-me beber mais um bocado. E ver como fica a Dana depois de te atirares ela.

- Não digas a palavra ”atirar” numa frase em relação ao meu cabelo - advertiu Dana. - Sempre nos vais contar sobre o que é que tu e o Flynn discutiram?

Malory fungou.

- Ele só quer sexo. É típico.

- Porco - comentou Dana, estendendo a mão para a caçarola das batatas fritas. - Sinto mesmo a falta de sexo.

- Eu também - disse Zoe, e colocou outro quadrado de pa­pel de alumínio. - Não é só o sexo, mas o que acontece até lá e o que se segue. A excitação, os nervos e a antecipação. E, de­pois, toda aquela pele, os movimentos e a descoberta durante, e a sensação de se estar saciado e de pairar a seguir. Sinto bas­tante a falta disso.

- Preciso de mais uma bebida - comunicou Malory, pegando na garrafa. - Não tenho sexo há quatro meses.

- Eu bato-te aos pontos - afirmou Dana, erguendo a mão. -Sete meses e meio, e continua a contar.

- Suas depravadas - disse Zoe, com uma gargalhada. - Expe­rimentem um ano e meio.

- Oh, isso dói - exclamou Dana, e pegou na garrafa para en­cher o seu copo e o de Zoe. - Não, obrigadinha, mas acho que não me apetece experimentar um ano e meio de celibato.

- Não é assim tão mau se uma pessoa se mantiver ocupada. Já volto outra vez a ti - disse Zoe, dando uma palmadinha no om­bro de Dana. - Descontrai-te um pouco enquanto tiro a máscara da Malory.

- O que quer que me faças, vê se fico linda. Quero que o Flynn sofra da próxima vez que me vir.

- Está garantido.

- És muito querida em fazer tudo isto.

- Eu gosto. É bom para praticar.

- Não digas ”praticar” quando estou cheia de folha de alumí­nio na cabeça - queixou-se Dana, enquanto se ocupava com as batatas fritas.

- Vai ficar óptimo - assegurou Zoe. - Quero ter um cabeleirei­ro com todo o tipo de serviços, e preciso de garantir que sei fazer todos os tratamentos que quero proporcionar. Hoje vi um prédio lindíssimo.

O seu rosto adquiriu uma expressão melancólica enquanto ela limpava e enxugava a pele de Malory.

- É demasiado grande para o que preciso, mas era mesmo incrível. Dois pisos com um grande espaço no sótão. Uma casa de madeira no limite da zona comercial e residencial de Oak Leaf Drive. Tem um maravilhoso pórtico coberto, e até tem um jardim nas traseiras, onde é possível montar mesas e bancos. Tec­tos altos, soalhos de ácer maciço a precisar de obras. As divisões do primeiro piso têm todas ligação umas com as outras. Um espa­ço contínuo e agradável, que mantém a intimidade.

- Não sabia que andavas à procura de casa - afirmou Malory.

- Só ando a ver. Este foi o primeiro lugar que vi e me cativou. Sabes?

- Sim, eu sei. Se for grande de mais e gostares mesmo, podias arranjar alguém para o partilhar e instalar lá outro negócio.

Depois de tirar a máscara, Zoe começou a aplicar um creme hidratante.

-Já pensei nisso. Aliás, tenho uma ideia louca. Não me digam que sou maluca antes de acabar. Cada uma de nós disse que queria ter o seu próprio espaço.

- Oh, mas...

- Só depois de eu acabar - disse Zoe, interrompendo Malory enquanto aplicava o creme dos olhos. - O piso térreo tem duas maravilhosas encantadoras janelas em arco. Ideais para montra. Há um átrio central e, de cada um dos lados, umas salas bonitas. Se alguém estivesse interessado em abrir uma galeria de bom gosto para vender arte e artesanato locais não poderia encontrar me­lhor lugar. Ao mesmo tempo, do outro lado desse átrio existe um encantador conjunto de salas que daria uma excelente livraria, com espaço para um pequeno café ou sala de chá.

- Não ouvi falar em nenhum cabeleireiro - salientou Dana, atenta à conversa.

- No piso superior. Quando alguém entrar para arranjar o cabe­lo ou as mãos, ou apreciar qualquer dos maravilhosos tratamen­tos e serviços que disponibilizarmos, terá de passar pela galeria e pela livraria, tanto à entrada como à saída. É a altura ideal para se escolher uma magnífica prenda para a tia Mary, ou escolher um livro para ler enquanto se está a arranjar o cabelo. Ou mesmo beber um bom copo de vinho ou uma chávena de chá antes de se ir para casa. Está lá tudo, num único espaço fabuloso.

- Tens mesmo andado a pensar - proferiu Malory, num mur­múrio.

- Tenho, pois. Até tenho um nome para o espaço. Indulgence[23]. As pessoas precisam de dar um prazer a si mesmas de tempos a tempos. Podíamos criar pacotes e promoções de serviços integra­dos. Eu sei que é uma ideia em grande, especialmente por não nos conhecermos há muito tempo. Parece-me que podia resultar. Imagino que podia ser fantástico. Vão lá dar uma vista de olhos antes de dizerem que não.

- Eu gostava de ver o espaço - replicou Dana. - Sinto-me infelicíssima no trabalho. E para quê andar infeliz?

Malory quase podia ver a energia e o entusiasmo da ideia sair do corpo de Zoe, em ondas. Porém, havia uma dúzia de comen­tários racionais que podia tecer, salientando o motivo pelo qual a ideia podia não ser assim tão boa, mas sim uma catástrofe.

Embora não se sentisse com coragem para o fazer, achou-se na obrigação de recuar prudentemente.

- Não quero ser desmancha-prazeres, mas tenho a certeza de que me vão convidar a voltar para a galeria. Aliás, o meu patrão telefonou-me esta tarde a pedir-me para ir lá falar com ele amanhã.

- Oh. Boa. Isso é óptimo - comentou Zoe, colocando-se por detrás da cadeira de Malory e começando a passar os dedos pe­los cabelos de Malory para lhe sentir o peso e a textura. - Sei que adoras trabalhar lá.

- Aquilo era como se fosse a minha casa - confessou Malory, erguendo uma mão e cobrindo com ela a mão de Zoe. - Sinto mui­to. Parecia mesmo uma excelente ideia. Uma ideia divertida, mas...

- Não te preocupes.

- Ei! - exclamou Dana, acenando. - Ainda se lembram de mim? Eu continuo interessada. Posso ir dar uma vista de olhos à casa amanhã. Talvez consigamos pôr as duas a ideia em prática.

- Excelente. Mal, vamos molhar o cabelo.

Malory sentia-se demasiado culpada para discutir, e por isso sentou-se estoicamente, de cabelos molhados, enquanto Zoe ia cortando aqui e ali.

- É melhor contar-vos porque passei pelo jornal esta manhã para ver o Flynn, a quem deixei de falar.

Zoe continuou a cortar enquanto ela lhes falava do quadro d’A Galeria e do alívio que sentira por ele ter sido pintado pelo mesmo artista.

- Não vão descobrir quem o comprou - prosseguiu. - O Jordan Hawke.

- O Jordan Hawke? - perguntou Dana, quase soltando um guincho. - Raios partam, agora apetece-me chocolate. Tens de ter algum.

- Abastecimento de emergência, gaveta de produtos de charcutaria do frigorífico. Qual é o problema?

- Estivemos meio envolvidos há um milhão de anos atrás. Raios, raios, raios! - repetiu Dana enquanto abria à força a gaveta e tirava de lá dois chocolates Godiva. - O teu chocolate de emergência é Godiva’?

- Porque não ter o melhor quando estamos na pior?

- Está bem visto.

- Tiveste um envolvimento com o Jordan Hawke? - quis saber Zoe. - Romântico?

- Foi há muitos anos, quando eu ainda era nova e parva - respondeu Dana, e a seguir abriu o chocolate e deu-lhe uma gran­de dentada. - Separámo-nos mal, ele foi-se embora. Acabou-se a história. Sacana, parvalhão, imbecil - e deu mais uma mordidela. - Pronto, já está.

- Lamento muito, Dana. Se soubesse... Bem, não sei o que teria feito. Preciso de ver o quadro.

- Não tem importância. Já passou. Já passou há muito - repe­tiu ela, mas voltou a pegar no chocolate e deu mais uma dentada.

- Preciso de dizer uma coisa, e és capaz de precisar de mais um chocolate de emergência a seguir. Não há coincidências nisto. Não consigo encarar tudo de um modo muito racional. Nós as três... e o Flynn, teu irmão. O Flynn tem dois melhores amigos. E um desses amigos é um antigo amante teu. Forma-se um círculo muito estreito.

Dana olhou para ela.

- Deixa que te diga que odeio essa parte. Tens mais alguma garrafa deste vinho?

- Tenho. Na prateleira em cima do frigorífico.

- Ou vou a pé para casa, ou telefono ao Flynn para me vir buscar. Mas tenciono sair daqui com um pifo.

- Eu levo-te a casa - ofereceu-se Zoe. - Pifa-te à vontade... desde que estejas pronta para sair às dez.

- O teu cabelo está fantástico - comentou Malory, ligeiramen­te zonza por tentar acompanhar Dana na bebida, enquanto apon­tava para o novo penteado da amiga.

As suaves madeixas louras acentuavam o tom de pele moreno de Dana e os olhos escuros. Em resultado de qualquer magia feita pelos dedos de Zoe, os longos cabelos lisos pareciam mais macios e lustrosos.

- Concordo plenamente. Estou esgazeada.

- O meu também está fabuloso. Zoe, és genial.

- Pois sou - toda corada com o êxito, Zoe assentiu para as duas. - Usa aquela amostra de creme nocturno que te dei duran­te os próximos dias - aconselhou Malory. - Depois diz-me o que te parece. Anda embora, Dana, vamos lá ver se te consigo pôr dentro do carro.

-’Tá. Gosto muito de vocês - com um sorriso ébrio e sentimen­tal, Dana atirou-se para os braços de cada uma à vez. - Não con­sigo pensar em ninguém com quem preferisse estar nesta alhada.

E quando isto acabar, devíamos marcar cabeleireiro e uma noite de copos uma vez por mês. Como um clube literário.

- Boa ideia. Boa noite, Mal.

- Precisas de ajuda para a levar?

- Não - Zoe envolveu um braço de apoio em torno da cintura de Dana.

-Já está. Eu sou mais forte do que pareço. Depois tele­fono-te amanhã.

- Eu também! Já te disse que o Jordan Hawke é um sacana?

- Só para aí umas quinhentas vezes - retorquiu Zoe, enquanto conduzia Dana para o carro. - Podes voltar a dizer-me a caminho de casa.

Malory fechou a porta, trancou-a cuidadosamente, e dirigiu-se para o quarto. Incapaz de resistir, pôs-se em frente ao espelho a experimentar o novo corte, a brincar com o cabelo e a inclinar a cabeça.

Não sabia dizer ao certo o que Zoe fizera, mas fosse o que fosse estava bem.

Imaginou que talvez compensasse manter-se calada, para va­riar, em vez de estar sempre a dar indicações à cabeleireira.

Se calhar, devia sentir-se culpada e beber vinho sempre que ia ao cabeleireiro.

Podia experimentar o mesmo noutras áreas da sua vida. Quan­do ia ao dentista, quando pedia um prato no restaurante, ou com os homens. Não, com os homens, não. Olhou-se ao espelho com ar crítico. Se não se desse indicações aos homens, eram eles que nos davam a nós.

Além disso, não queria pensar em homens. Não precisava de­les. Nem gostava de homens naquele momento.

De manhã, passaria uma hora a tentar resolver o enigma da chave. A seguir vestir-se-ia com todo o cuidado, com um ar mui­to profissional. Iria de fato, decidiu. O cinzento de pombo com madrepérola. Não, não, o vermelho. Sim, o fato vermelho. Forte e profissional.

Correu para o roupeiro e inspeccionou a roupa, que estava precisamente disposta por funções e por cores. Com o fato verme­lho na mão, voltou até ao espelho a dançar, e pô-lo à sua frente.

”James”, começou, tentando fazer uma expressão compreen­siva embora distante, ”lamento imenso saber que a galeria tem andado num pé-de-vento sem a minha presença. Voltar? Bem, não sei se isso é possível. Tenho várias propostas em mãos. Oh, por favor, não fiques aborrecido. Isto é muito embaraçoso.

Malory deu mais volume aos cabelos.

”Sim, eu sei que a Pamela é o diabo. Todos sabemos isso. Bom, imagino que, se as coisas estão assim tão mal, vou ter de te aju­dar. Pronto, pronto, não chores. Vai correr tudo bem. Vai correr outra vez tudo na perfeição. Tal como deve ser!’’

Soltou uma risadinha e, contente por em breve tudo voltar a ficar bem na sua vida, foi preparar-se para ir para a cama.

Despiu-se e ordenou a si mesma que arrumasse as roupas em vez de as atirar pelo quarto. Quando ouviu bater à porta, não vestia mais nada além de uma camisa de noite de seda branca. Partindo do princípio de que seria uma das amigas que se tivesse esquecido de alguma coisa, rodou a chave e abriu a porta.

E pestanejou perante um Flynn de rosto sombrio.

- Quero falar contigo.

- Talvez eu não queira falar contigo - retorquiu, tentando enunciar cada palavra em vez de as pronunciar num registo mais fluido.

- Precisamos de resolver isto se vamos... - começou ele, olhan­do-a de alto a baixo, os cabelos maravilhosamente penteados, o rosto radiante, as curvas esguias sob a camisa de seda justa. E o olhar vago e vidrado dos olhos dela.

- O que foi? Estás bêbeda?

- Estou meio bêbeda, o que é unicamente da minha conta. A tua irmã está completamente bêbeda, mas escusas de te preo­cupar com a Zoe, que não está nada bêbeda e foi levá-la a casa.

- São precisas muitas cervejas ou uma garrafa de vinho para a Dana ficar completamente bêbeda.

- Penso que tens razão, e neste caso era vinho. Agora que já esclarecemos este assunto, recordo-te que estou apenas meio bêbeda. Entra e tira partido de mim.

Ele soltou uma espécie de gargalhada e decidiu que o melhor lugar para as suas mãos - bem, não propriamente o melhor, mas o mais inteligente - eram os bolsos.

- É um convite encantador, querida, mas...

Ela resolveu o problema agarrando-lhe na camisa com firmeza e dando-lhe um bom puxão.

- Entra - repetiu, e firmou a boca na sua.

 

Flynn deu por si encostado contra a porta, a tropeçar nos próprios pés quando ela se fechou atrás de si. A maior parte do sangue que tinha na cabeça escoara-se enquanto ela lhe inspeccionava o pescoço com a boca e os dentes.

- Ena, pá! Espera. Mal.

- Não quero esperar - as mãos dela mantinham-se tão ocupa­das como os lábios. Teria verdadeiramente pensado que não gosta­va de homens? A verdade era que gostava daquele. Tanto que lhe apetecia engoli-lo em mordidelas rápidas e vorazes. - Porque é que as pessoas dizem sempre que se deve esperar? Quero que tu... - começou e, firmando-lhe os dentes no lóbulo da orelha, sussurrou um pedido fantasioso.

- Oh, meu Deus.

Ele não tinha bem a certeza se aquilo seria uma oração de agradecimento ou um pedido de auxílio. No entanto, estava cer­to de que a sua força de vontade tinha um poder bastante limita­do, e caminhava para ele a passos largos.

-Pronto, pronto, vamos ter só um bocadinho de calma, Malory - ela encostou-se mais a ele, e quando os seus dedos ansiosos foram percorrendo o corpo dele cada vez mais e mais para baixo, sentiu os olhos revirarem-se lentamente. - Pára aí.

- Já parei - disse ela, atirando a cabeça para trás para lhe lan­çar um sorriso maldoso.

- Ah! Ah! Pois paraste - ele fechou as mãos sobre os pulsos dela e, com bastante pena sua, ergueu-lhe as mãos ocupadas até aos seus ombros.

Estava sem fôlego e com um tesão descomunal.

- Temos duas alternativas. Ou tu me odeias amanhã de ma­nhã, ou então sou eu que te odeio a ti - os olhos dela soltaram faíscas ao olhar para ele, e os seus lábios curvaram-se num sorriso felino que o fez ficar com a garganta seca. - Meu Deus, ficas mesmo bonita meio despida. Devias deitar-te.

- Está bem - replicou ela, comprimindo-se contra ele e dando um ligeiro golpe de ancas. - Vamos deitar-nos.

Ele sentia na barriga um emaranhado de nós de prazer escor­regadios.

- Vou ter de me afastar da bela mulher embriagada.

- Hum... hum - disse ela, pondo-se outra vez de pé para roçar os lábios contra os dele, e sentir o desesperado bater do seu cora­ção. - Não vais conseguir passar por esta porta. Eu sei o que estou a fazer, e sei o que quero. Isso assusta-te?

- Bastante, sim. Querida, eu vim conversar contigo, acerca de uma coisa de que não me consigo lembrar de momento. Porque não nos preparas um café, e depois...

- Parece que tenho de fazer tudo - disse ela e, num movimen­to fluído, tirou a camisa pela cabeça e atirou-a para o lado.

- Oh, meu Deus!

O corpo dela estava rosado e branco - delicioso - com aquela elegante nuvem de cabelos a brincar sobre os seios. Os olhos dela, de um azul profundo e, de súbito, amplamente conhecedo­res, fixaram-se nos seus enquanto ela voltava a aproximar-se.

Tinha passado os braços em torno do pescoço dele, e a sua boca era agora uma tentação tórrida e sedosa sobre a sua.

- Não tenhas medo - murmurou ela. - Eu trato bem de ti.

- Aposto que sim - de algum modo, as mãos dele tinham-se perdido na massa sensual dos seus cabelos. O corpo dele era um labirinto de dores e necessidades, e a razão não conseguia en­contrar a porta de saída. - Malory, não sou nenhum herói.

- Quem precisa de heróis? - perguntou ela e, com uma garga­lhada, mordiscou-lhe o maxilar. - Vamos ser imorais, Flynn. Va­mos ser mesmo imorais.

-Se pões as coisas nesses termos... - disse ele, fazendo-a girar e invertendo as posições de maneira a ela ficar presa entre a por­ta e o corpo dele. - Espero bem que te lembres da ideia, e que eu tentei...

- Cala-te e possui-me.

Já que ia para o inferno, fazia questão que a viagem valesse a pena. Com as mãos nas ancas dela, fê-la ficar em bicos de pés, e vislumbrou a luz do triunfo no seu rosto um instante antes da sua boca esmagar a dela.

Era como ter um fusível na mão, só relâmpagos e faíscas, uma mulher perigosa que conhecia o seu poder. Que estava a testar o dele. A pele dela estava já corada e quente, e quando ele lhe tocou, os sons suaves que lhe saíram da garganta não eram gemi­dos mas incitações. Já em estado de desespero, ele enterrou o rosto nos cabelos dela e introduziu uma mão entre as suas coxas.

Ela pareceu entrar em erupção. Um grito gutural, uma unha fincada nas costas, umas ancas movendo-se como se soltassem relâmpagos. A seguir, ela puxava-lhe já a camisa pela cabeça e arranhava-lhe os ombros com os dentes enquanto as suas mãos rápidas lhe tiravam as calças de ganga com um puxão.

- Na cama - embora tivesse visões tórridas e eróticas em que a possuía contra a porta, o prazer terminaria depressa de mais nessa posição. Em vez disso, envolveu-a num abraço e atirou fora os sa­patos quando chocaram os dois contra uma esquina da parede.

Ela não se importou de saber onde caíram. Só queria
continuar a sentir aquela chicotada de prazer, continuar a sentir aquele maravilhoso latejar de prazer dominar-lhe o corpo. Rodopiava em direcção a um mundo louco de sensações requintadas, e cada toque, cada sabor, acrescentava ainda mais prazer.

Queria sentir os músculos dele estremecerem, sentir o calor sair-lhe em catadupa pelos poros. E saber, no seu íntimo, que fora ela que provocara essa sensação.

Caíram sobre a cama, enlouquecidos e sem fôlego, e rebola­ram, num emaranhado erótico de pernas e braços sobre os boni­tos cobertores em tom pastel.

Ela riu-se quando ele entrelaçou as mãos nas suas e lhe puxou os braços acima da cabeça.

- Tenho de abrandar um pouco - conseguiu dizer a custo. Ela arqueou-se na sua direcção.

- Porque?

- Porque te vou fazer algumas coisas, e isso leva o seu tempo. Ela passou a língua pelo lábio de cima.

- Por onde queres começar?

A barriga dele contraiu-se até à dor. Baixou a cabeça para come­çar pela boca dela. Carnuda e macia, quente e húmida. Absorveu aquela droga até ficarem os dois a tremer. Introduziu a língua na cavidade do pescoço dela, onde as suas pulsações galopavam. A seguir desceu, muito lentamente, até aos seus seios delicados e aromáticos. E quando lhe apanhou o mamilo entre os dentes e puxou, ela começou a gemer.

Ela entregou-se ao prazer, à pura bênção de se deixar saborear e explorar. O corpo dela estava aberto a ele, àquela boca voraz, àquelas mãos que procuravam. Quando ele a levantou, ela sol­tou-se, galopando o golpe quente do ar para cair novamente, puxando-o para mais perto.

Ela via-o à luz que vinha do átrio, e o seu coração batia des­compassado ao ver a intensidade no seu rosto enquanto olhava para ela. O seu corpo foi percorrido por sensações de amor e prazer. Ali estava uma resposta, a resposta a pelo menos uma pergunta.

Ele estava-lhe destinado. E ela ergueu-se, enrolando-se à sua volta com uma espécie de alegria esfuziante.

As suas bocas encontraram-se uma vez mais, num profundo beijo tremente que fez o coração dele disparar dentro do peito.

Ela cheirava a algo secreto, a sedução. A sua respiração rápida e cativante cortava-o como pequenas facas de prata. Apetecia-lhe enterrar-se dentro dela até o mundo acabar. E quando as mãos dela lhe percorreram o corpo, quando aqueles suaves sons de aprovação ecoaram na sua garganta enquanto ela o explorava, ele pensou se o mundo não teria mesmo acabado.

Ela arranhou-lhe a barriga com as unhas e fê-lo estremecer como um garanhão.

-Quero-te. Quero-te dentro de mim. Diz-me que me queres.

- Quero. Quero-te - respondeu ele, baixando uma vez mais a boca até à sua. - Malory. Desde o primeiro minuto.

Os lábios dela franziram-se sob os seus.

- Eu sei - disse ela, arqueando as ancas. - Agora.

Ele animou-se, e a seguir uma réstia de sanidade cortou a lou­cura.

- Oh, céus. Preservativo. Carteira.

Calças. Onde estão as mi­nhas calças?

- Hum. Está tudo bem - garantiu ela, rolando por cima dele e mordiscando-lhe o ombro, enquanto abria a gaveta da mesa-de- cabeceira.

- Preservativo. Gaveta. Mesa-de-cabeceira.

- Já terei dito que adoro mulheres práticas e preparadas?

- Queres que te dê uma ajuda?

Ela demorou todo o tempo do mundo, até ele ter de lançar mão ao preservativo ainda enrolado, para não trepar as paredes.

”Esta mulher tem umas mãos perigosas”, pensou, controlando um gemido.

Umas magníficas mãos perigosas.

Ela subiu para cima dele, com os cabelos para trás. E sorriu.

- Agora - disse.

Ele moveu-se mais depressa, fazendo-a cair de costas e colan­do-lhe o corpo ao seu.

- Agora - repetiu ele, e penetrou-a mais profundamente.

Ele viu as ondas de choque afluírem-lhe ao rosto, sentiu-as vibrar dentro dele. E estremeceram os dois, cada um apanhado no fio da navalha.

E com os olhos presos nos dele, ela começou a mover-se. Uma subida, uma queda, tão suave, tão fluida que era como deslizar sobre seda. O nome dela ecoava-lhe dentro da cabeça, como uma canção, ou uma oração. Ele agarrou-se ao seu eco, agarrou-se aos últimos restos de controlo enquanto ela se estilhaçava à sua volta.

Depois ela desfaleceu. Oh, meu Deus, era a sensação mais maravilhosa. Perder-se para depois se encontrar. Sentia a mente numa névoa. E com um último suspiro fluido, escalou a última cordilheira.

Prendendo-o bem firme, ela levou-o consigo.

Ele não tinha vontade de pensar. Naquelas circunstâncias, o pensamento não seria produtivo. Seria muito melhor para todas as partes envolvidas se ele mantivesse a mente absolutamente em branco e se limitasse a gozar a sensação superior de ter uma mu­lher suave e sexy a seu lado.

Se não pensasse, talvez conseguisse mantê-la ali durante o tem­po suficiente para voltar a fazer amor com ela. Depois seguir-se-ia outro período de ausência de pensamento.

Quem sabia durante quanto tempo conseguiria manter esse padrão? Talvez indefinidamente.

Quando ela se moveu por debaixo dele, espreguiçando-se preguiçosamente, isso pareceu ter boas probabilidades de acon­tecer.

- Apetece-me beber água - disse ela, passando-lhe uma mão pelas costas. - Tens sede?

- Se isso implicar mexer-me durante os próximos cinco ou dez anos, não.

Ela deu-lhe um pequeno beliscão.

- Eu tenho sede. Por isso, vais ter de te mexer.

- Está bem - disse ele, mas continuou a acariciar-lhe os cabe­los durante mais um pouco. - Eu vou lá.

- Deixa estar - declarou ela, dando-lhe um pequeno empur­rão e esgueirando-se de debaixo dele. - Eu vou.

Malory parou ao pé do armário à saída, e ele teve um vislum­bre de algo esguio e sedoso a pairar sobre aquele belo corpo antes de ela sair porta fora.

”Talvez esteja a sonhar. Talvez isto seja uma mera fantasia, e eu esteja, de facto, no meu quarto, com o Moe no chão a ressonar.”

Ou talvez não.

Sentou-se e esfregou as mãos na cara. E, infelizmente, come­çou a pensar. Tinha ido até lá porque ficara aborrecido, lixado e, de um modo geral, confuso com a cena que tinham tido no seu gabinete nessa manhã.

E agora ali estava, nu, na cama dela, e tinham acabado de ter um sexo incrível. Quando ela estava embriagada. Bem, não pro­priamente embriagada mas pelo menos debilitada.

Devia ter-se ido embora. Devia ter encontrado suficiente for­ça moral para se afastar de uma mulher nua e cheia de desejo quando as inibições dessa mulher nua e cheia de desejo tinham sido apagadas pelo álcool.

E o que era ele, um santo?

Quando ela voltou sem mais nada além de um robe verme­lho, ele disse-lhe num tom de crítica.

- Eu sou um ser humano. Sou um homem.

- Sim. Parece-me que isso ficou comprovado sem sombra de dúvidas - afirmou ela, sentando-se na beira da cama e oferecen­do-lhe o copo que trouxera.

-Tu estavas nua - acrescentou, pegando no copo e bebendo a água. - Estavas a provocar-me. Ela ergueu a cabeça.

- E o que queres dizer com isso?

- Se estiveres arrependida...

- Porque haveria de estar? - perguntou ela, pegando outra vez no copo e engolindo o pequeno gole que ele deixara. - Tinha-te onde queria. Eu tinha bebido, Flynn, mas sabia o que estava a fazer.

- Então está bem. Está bem. É que, depois do que disseste esta manhã...

- Que estou apaixonada por ti? - indagou ela, pousando o copo na base que se encontrava sobre a mesa-de-cabeceira. -Estou apaixonada por ti.

Ele foi percorrido por várias emoções, todas demasiado tórri­das e rápidas para que conseguisse decifrá-las. Porém, a culminar sobre todas elas estava o medo puro e simples.

-Malory - como ela continuava a observá-lo com uma paciên­cia silenciosa, o medo começou a subir-lhe à garganta. - Escuta, eu não te quero magoar.

- Então não magoes - pediu ela dando-lhe um breve aperto na mão para o consolar. - Por acaso, tens muito mais com que te preocupar do que eu.

- Tenho?

- Tens, sim. Eu amo-te, o que significa, muito naturalmente, que quero que me ames também. Eu nem sempre consigo o que quero, mas geralmente consigo arranjar maneira de lá chegar. Quase sempre, aliás. Portanto, na minha opinião acabarás por te apaixonar por mim. Como essa ideia te assusta, tens mais com que te preocupar do que eu.

Ela passou-lhe uma mão pelo peito.

- Estás em muito boa forma para alguém que trabalha sentado à secretária.

Ele pegou-lhe na mão antes que ela se dirigisse mais para baixo.

- Vamos concentrar-nos neste assunto. A questão do amor não está nos meus planos.

- Tiveste uma má experiência - recordou ela, inclinando-se para lhe dar um beijo ao de leve. - Esse tipo de coisas deixa marca. Sorte a tua. Sou bastante paciente. E meiga - acrescentou ela, virando de posição e montando
em cima dele. - E muito, muito determinada.

- Caramba, Malory...

- Porque não te limitas a deitar-te e a sentir os benefícios de seres cortejado?

Excitado, corado, agradecido, ele deixou-a voltar a incitá-lo.

- É um bocado difícil deitar abaixo esse tipo de argumentos.

- Além de ser uma perda de tempo - acrescentou ela, desa­pertando o robe e deixando-o deslizar sobre os ombros. As suas mãos subiram-lhe pelo peito acima e envolveram-lhe o rosto an­tes de ela o beijar até à insensatez.

- Vou casar contigo - murmurou ela. E desatou-se a rir quan­do o seu corpo estremeceu de choque. - Não te preocupes. De­pois habituas-te à ideia.

Ainda a rir-se, ela aplacou o seu protesto ininteligível com os lábios.

Ela sentia-se tão bem. ”Não foi só o sexo”, pensou Malory enquanto cantava no chuveiro. Embora o sexo constituísse uma parte impossível de negligenciar. Sentia-se sempre bem, confian­te, orientada, quando tinha um objectivo claro e bem definido.

A demanda da chave era tão nebulosa, que dava origem a tanta confusão como energia. Todavia, convencer Flynn de que tinham sido feitos um para o outro era claro como a água. Ali estava um objectivo ao qual não podia resistir.

Não fazia a menor ideia do que a levara a apaixonar-se por ele, e era isso que lhe dizia que o sentimento era verdadeiro.

Ele não se adaptava nada à imagem do seu homem de sonho. Não cozinhava refeições deliciosas nem falava francês (ou italia­no) fluentemente, nem adorava passar o tempo livre em museus. Não usava fatos elegantes nem lia poesia.

Pelo menos, não lhe parecia que lesse.

Sempre planeara apaixonar-se por um homem que tivesse alguns desses atributos. E, como era natural, na sua descrição o homem adequado iria cortejá-la, encantá-la, seduzi-la, e depois afirmar o seu amor eterno num momento perfeitamente român­tico.

Antes de Flynn, Malory analisara e dissecara todo e cada um dos seus relacionamentos, e apontara todas as falhas, até fazer uma dúzia de buracos no seu tecido.

E, afinal de contas, isso não tivera a menor importância, pois nenhum deles era certo.

Com Flynn, não sentia o desejo de se preocupar com as fa­lhas. A única coisa que sabia era que o seu coração cedera quan­do ela menos esperava. E isso agradava-lhe.

Tinha de reconhecer que também lhe agradava a ideia de ele estar assustado. Era intrigante e, ao mesmo tempo, era um desa­fio ser a caçadora, para variar. Ser a agressora, e fazer um homem ficar ligeiramente abananado com a sua honestidade.

Quando ele conseguira por fim sair da cama aos trambolhões, por volta das três da manhã, sentira o seu medo e a sua confusão a par do desejo de ficar.

Decidira deixá-lo amadurecer o assunto durante algum tempo.

Divertiu-se a telefonar à florista local e a encomendar uma dúzia de rosas vermelhas para serem entregues no escritório dele. Quase saiu a dançar do seu apartamento para ir ter com James.

- Bem, estamos muito animadas e atrevidas esta manhã - co­mentou Tod quando ela entrou na galeria num passo cadenciado.

- Estamos mesmo, não estamos? - proferiu ela, escondendo o rosto por detrás da mão e lançando-lhe um beijo ruidoso. - Ele está?     

- Lá em cima. Está à tua espera. Meu amor, estás com um ar fabuloso. Comestível. - Sinto-me bastante comestível - declarou ela, dando-lhe uma palmadinha na cara e subindo as escadas com ligeireza. Bateu à porta do escritório e entrou. - Olá, James.

- Malory - cumprimentou ele, e levantou-se da secretária de mãos estendidas para ela. - Muito obrigado por teres vindo.

- Não ia deixar de vir - disse ela, aceitando a cadeira que ele lhe apontou. - Como vão as coisas?

Ele sentou-se com uma expressão de dor no rosto.

- Já deves saber do problema que a Pamela teve com a Sr.a D. K. Um terrível mal entendido, que receio poder ter custado à gale­ria uma cliente preciosa.

Malory forçou-se a mostrar preocupação, apesar da sua men­te saltar de alegria.

- Sim, tenho muita pena que as coisas tenham... - não digas ”ido por água abaixo”, ordenou a si própria, e prosseguiu sem perder o ritmo - sido um pouco difíceis durante esta transição.

- Sim. Difíceis. A Pamela tem muito entusiasmo em relação à galeria, mas infelizmente ainda se encontra na fase de aprendiza­gem. Reconheço que lhe concedi demasiada autonomia depres­sa de mais.

Para se impedir de erguer os braços no ar, Malory cruzou lenta­mente as mãos sobre o joelho.

- Ela tem uma visão muito precisa das coisas.

- Sim. Sim - anuiu ele, preocupado, enquanto brincava com a caneta dourada e com a gravata. - Creio que os trunfos dela talvez residam numa área mais periférica, e não na das relações com os clientes. Apercebo-me de que há uma certa fricção entre as duas.

Controlada, Malory fez questão de se recordar do que aconte­cera.

- Eu também tinha uma visão muito precisa que, infelizmente, colidia com a dela. Por isso, sim, houve uma fricção considerável.

- Bom - prosseguiu ele, aclarando a garganta. - Sou capaz de ter deixado a Pamela influenciar-me nesse aspecto. Senti, muito sinceramente, que talvez fosse altura de pores os teus talentos à prova, de experimentares outras coisas. No entanto, vejo que não tomei em conta o teu afecto e lealdade para com a galeria, nem até que ponto o facto de seres tirada do ninho, por assim dizer, podia perturbar-te.

- Reconheço que perturbou - afirmou ela, temperando, po­rém, a afirmação com o mais doce dos sorrisos.

- Tenho pensado em tudo isto durante as últimas duas sema­nas. Gostava muito que voltasses a trabalhar connosco, Malory. Que voltasses a assumir o teu cargo de gerente. Com um aumen­to de salário de dez por cento.

- Isto é tão inesperado - proferiu, mas teve de imaginar
que tinha o rabo colado à cadeira para não dar um salto e fazer uma dança de vitória. - E sinto-me lisonjeada. No entanto... posso ser sincera?

- Com certeza.

- A fricção de que falámos não vai deixar de existir. Tenho de reconhecer que não estava feliz aqui há vários meses. O facto... de me teres feito sair do ninho - revelou - foi doloroso e assusta­dor. Mas uma vez lá fora, tive a oportunidade de olhar para trás e perceber que o ninho começava a ficar... digamos que um pou­co cheio de mais.

- Eu compreendo - disse James, erguendo as mãos e juntan­do-as depois sob o queixo. - Prometo que a Pamela não irá inter­ferir com a tua autoridade, nem com as regras que vigoram nesta casa há muito tempo. Terás a última palavra, acima de mim cla­ro, no que diz respeito a aquisições e exposições, artistas repre­sentados, etc, tal como dantes.

Era exactamente aquilo que ela queria. Mais do que isso, aper­cebeu-se ao contabilizar o bónus do salário. Ia regressar à activi­dade que sabia fazer melhor, e com considerável recompensa financeira, e ia ter a satisfação pessoal, embora pouco atraente, de pôr a Pamela fora de jogo.

Ganharia sem ter disparado um único tiro.

- Obrigada, James. Não imaginas o que significa para mim saber que me queres de volta, que tens confiança em mim.

- Excelente, excelente - disse-lhe ele, radiante. - Podes co­meçar já, hoje até, se te der jeito. Faz de conta que as duas últi­mas semanas não chegaram a existir.

Faz de conta que não chegaram a existir.

Ela sentiu uma ferroada na barriga. Depois, subitamente, foi como se a Malory sensível se tivesse posto de lado, e uma Malory destemida tivesse tomado conta das ocorrências.

- Mas eu não posso voltar. Sempre sentirei gratidão por tudo o que me ensinaste, por todas as oportunidades que me deste, a última das quais foi pores-me fora da porta para eu criar a minha zona de conforto. Vou abrir o meu próprio negócio.

”Oh, meu Deus”, pensou. ”Vou abrir o meu próprio negócio.”

- Não será um espaço tão grande como A Galeria. Mais pe­queno, mais... - estava quase para dizer ”acessível” mas depois arrepiou caminho. - Vou concentrar-me principalmente nos ar­tistas e artesãos locais.

- Malory, deves ter consciência do tempo e energia que esse tipo de coisas consome. - Não havia dúvida: James estava a en­trar em pânico.

- Eu sei. Já não me preocupo tanto em assumir riscos como dantes. Com efeito, até estou entusiasmada pela perspectiva de os assumir. Mas obrigada, só te posso agradecer por tudo o que fizeste por mim. Agora tenho mesmo de ir.

Levantou-se rapidamente, com receio de mudar de ideias. Ali estava a sua rede de segurança, estendida por baixo dela, pronta para a amparar. E ela fugia dali e saltava para o chão duro, muito mais abaixo.

- Malory, gostava que demorasses algum tempo a reflectir nes­te assunto.

- Sabes o que acontece quando olhamos sempre antes de sal­tar? - perguntou ela, tocando-lhe na mão antes de desaparecer porta fora. - Nunca chegamos a saltar.

Malory não perdeu tempo. Procurou a morada que Zoe lhes dera, e parou em fila dupla atrás do carro de Dana.

”A localização é boa”, verificou, reassumindo o seu lado práti­co. Havia alguns transeuntes a passar por ali, e um número razoá­vel de lugares de estacionamento para quem precisasse.

A casa era um encanto. ”Acolhedora”, pensou. E as três em conjunto iam certamente conseguir pô-la bonita. Pintar o pórti­co, plantar algumas trepadeiras. Zoe já devia ter um monte de ideias acerca disso.

A entrada precisava de ser substituída ou remodelada. Anotou esse pormenor no bloco de apontamentos que trouxera consigo. Canteiros nas janelas? Sim, com plantas sazonais.

E a entrada não ficaria mais atraente com um vitral na porta em vez do vidro vulgar? Qualquer coisa desenhada especifica­mente para elas. Tinha alguns contactos nessa área.

Enquanto continuava a tirar notas, abriu a porta da casa.

O átrio podia ser um espaço de apresentação dos três negócios. Sim, havia maneira de fazer isso recorrendo a expositores bem colocados, para manter o ar simpático e informal ao mesmo tem­po que anunciavam os seus produtos e serviços.

A iluminação era boa, e o soalho um tesouro depois de arranjado. Quanto, às paredes, bom, uma pintura resolveria o pro­blema.

Deambulou por ali, encantada com as divisões. Pareciam ter todas ligação umas com as outras. Tal como Zoe afirmara.

Uma excelente maneira de combinar os diversos serviços.

Depois de preencher várias páginas com apontamentos estava prestes a sair no preciso momento em que viu Dana e Zoe desce­rem as escadas.

- Em última análise, gostaria de pôr um duche sueco e um gabinete de aromaterapia na casa de banho principal - explicava Zoe. - Mas para já... Olá, Malory.

- Olá - retorquiu Malory, baixando o bloco de apontamentos.

- Também entro.

- Eu sabia! - com um salto, Zoe correu pelas escadas e abra­çou-a. - Eu sabia. Viste a casa? Já viste bem? Não é o máximo? Não é perfeita?

- Sim, sim, e sim. Ainda não fui lá acima, mas a parte de bai­xo... adorei - declarou.

Dana ficou parada nas escadas, com os lábios franzidos e um ar meditativo.

- O que é que te fez mudar de ideias?

- Não sei. Pelo menos de algum modo lógico ou razoável. Quando o James me ofereceu o emprego de volta, com um au­mento, pensei: ”Graças a Deus, agora vai tudo voltar ao normal.”

- Malory soltou um suspiro e, agarrando o bloco contra o peito, descreveu um círculo. - Depois, sei lá, ouvi-me a mim mesma dizer que não podia voltar, que ia montar o meu próprio negó­cio. Acho que percebi que não quero que as coisas voltem ao normal. Quero fazer isto, e quero fazê-lo convosco. É tudo o que sei.

- Temos de ter a certeza. Zoe, diz-lhe o que me contaste. Em relação à casa.


- Bem, o dono está disposto a alugá-la, mas andam à procura de um comprador. A questão é que a aquisição faz mais sentido em termos financeiros.

- Comprá-la? - o abismo que estava prestes a saltar aumentou de repente. - Por quanto?

Zoe referiu um valor, e apressou-se a acrescentar quando viu Malory empalidecer:

- Mas isso é só o preço inicial. Além de que andámos a fazer algumas contas, e se comparares o valor da hipoteca às taxas de juro actuais ao longo de trinta anos com a renda mensal que eles pedem, a diferença não é assim tão grande. Além de que houve uma queda das taxas de juro.

-Não comecem com a quebra das taxas de juro - avisou Dana-, senão os vossos cérebros começam a derreter e a sair pelos ouvi­dos. Acreditem no que vos digo, a coisa é possível.

- Precisamos de um advogado para fazer o contrato da socie­dade - prosseguiu Zoe. - A seguir reunimos o dinheiro. Temos que chegue para a entrada, especialmente se começarmos já a negociar. Pedimos empréstimo para a casa e para os custos iniciais. Isso é possível.

- Acredito em ti. Acho que é por isso que me dói a barriga - disse Malory, comprimindo uma mão contra a barriga, e depois olhou para Dana. - Compramos?

-Valha-me Deus. Compramos - concordou ela.

- Acho que devíamos apertar as mãos, ou coisa assim - lem­brou Zoe, estendendo a sua.

- Esperem aí, antes disso deixem-me dizer-vos uma coisa - pediu Malory, pigarreando. - Tive sexo com o Flynn ontem à noi­te. Três vezes.

- Três? - perguntou Dana, sentando-se abruptamente nas esca­das. - Ah, boa, Flynn!

- Sentes-te bem em relação a isso?

- Eu sou irmã dele; não sou mãe - afirmou, mas esfregou as têmporas. - Não estavas bêbeda ontem à noite?

- Não, tu é que estavas. Eu estava só tocada. E devo acrescen­tar, para que conste, que, ao ver que eu estava tocada, ele ten­tou, com bastante veemência, ser um cavalheiro e voltar atrás.

- Que querido - disse Zoe.

- Mesmo depois de eu me despir e de lhe saltar à espinha.

- Isso é... Ena!

Malory soltou uma gargalhada e deu uma palmadinha no om­bro de Zoe. Porém, Dana manteve-se em silêncio.

- Não me despi e lhe saltei para cima por estar com um pifo[24] e, eh, excitada. Estou apaixonada por ele. Sei tanto acerca desse facto como sei que quero comprar esta casa com vocês as duas. É algo que sei, algures no meu íntimo. Sei-o. Estou apaixonada por ele, e vou-me casar com ele.

- Malory! Isso é maravilhoso! - deixando-se levar pelo seu coração romântico, Zoe abraçou a amiga. - Estou tão contente por ti!

- Não comecem já a atirar os botões de flor de laranjeira. Ain­da tenho de o convencer que não pode viver sem mim - decla­rou, e deu um passo em frente. - Estou apaixonada por ele, Dana.

-Já percebi.

- Eu sei que isto é capaz de complicar a nossa amizade, e qualquer relação de negócios que possamos vir a ter.

- E se complicar?


- Nesse caso, terei pena. Recuarei da amizade. Recuarei dos negócios. Mas manterei o Flynn, quer ele queira, quer não.

Os lábios de Dana estremeceram quando ela se pôs de pé.

- Acho que ele está feito. Vamos apertar as mãos a selar este negócio e arranjar um advogado, ou quê?

 

Ela não sabia bem o que estava a sentir. Não tinha a certeza do que estava a fazer. Porém, pequenos obstáculos como esses nunca tinham impedido Dana de avançar. Assim que pôde, entrou em contacto com Flynn. Não o encontrou no jornal, e seguiu-lhe o rasto até ao veteri­nário, onde lhe disseram que ele e Moe tinham saído quinze mi­nutos antes. A irritação provocada por esse facto induziu-a a estar zangada com ele, embora não tivesse qualquer motivo concreto para isso.

Todavia, assim que chegou a casa dele, já se sentia divertida com o seu mau humor.

Bateu com a porta e avançou rapidamente para a sala de estar, onde o irmão e o seu cão estavam esparramados como dois de­funtos.

- Preciso de conversar contigo, Casanova.

- Não grites - pediu Flynn, sem sair do sofá. No chão a seu lado, Moe gemia. - O Moe foi levar vacinas. Estamos os dois traumatizados. Sai. Volta amanhã.

- Agora, neste preciso momento, antes que eu arranje um objecto contundente para te espetar no traseiro. Qual é a ideia de dares uma queca[25] na Malory quando sabes perfeitamente que ela tem de manter a mente firme no objectivo?

- Não sei. Talvez o facto de ter tropeçado e caído em cima do seu corpo nu. E não foi uma queca. Protesto contra a expressão ”queca”, motivo pelo qual, aliás, não é da tua conta.

- É da minha conta a partir do momento em que ela passou a ser minha parceira de negócios. E, antes disso, já éramos parceiras de outro tipo, e é da minha conta porque gosto muito dela, e ela está apaixonada por ti. Isso demonstra uma notável falta de gosto, mas não deixa de ser isso mesmo.

A sensação de culpa provocou-lhe secretamente uma dor na barriga.

- Não tenho culpa que ela ache que está apaixonada por mim.

- Eu não disse que ela ”acha”. Ela não é nenhuma imbecil, apesar do seu péssimo gosto no que diz respeito aos homens. Ela conhece a sua mente e o seu coração. E se não tiveres em conta os sentimentos dela antes de abrires o fecho das calças...

-Poupa-me, por amor de Deus - disse ele, sentando-se e pou­sando a cabeça entre as mãos. - Ela não me quer ouvir. E foi ela que abriu o fecho.

- E tu foste um mero observador inocente.

- Escusas de estar a praguejar comigo por causa disto. Já pra­guejei o suficiente comigo mesmo, e não serviu de nada. Não sei que raio hei-de fazer.

Ela sentou-se à mesa, inclinada na direcção dele.

- O que é que queres fazer?

- Não sei. Ela enviou-me flores.

- Perdão?

- Enviou-me uma dúzia de rosas vermelhas esta manhã. O car­tão dizia: ”Pensa em mim.” Como diabo não havia de pensar nela?

- Rosas? - a ideia divertiu-a.
- Onde é que elas estão? Ele mudou de posição.

- Eh. Pu-las no quarto. Pateta. Esta inversão de papéis não está nada bem. Não é natural. Acho que vai contra todas as regras científicas. Preciso de voltar a pôr as coisas no lugar. Dê por onde der. Em ordem. Pára de sorrir para mim.

- Foste apanhado.

- Não fui apanhado. E essa é outra expressão contra a qual só posso objectar. Uma pessoa com uma licenciatura em Ciências de Documentação devia conseguir encontrar expressões mais adequadas.

- Ela é a pessoa ideal para ti - comentou Dana, e deu-lhe um beijo na cara. - Parabéns. Já não estou zangada contigo.

- Estou-me nas tintas que estejas zangada. E a questão não é quem é a pessoa ideal para mim. Eu é que não sou ideal para ninguém. Sou um tonto. Sou desrespeitador e egoísta. Gosto de ter uma vida livre e sem qualquer estrutura.

- Que és um parvo, está fora de questão. Mas não és desres­peitador nem egoísta. A cabra desrespeitadora e egoísta da Lily é que te meteu essas ideias na cabeça. Se acreditares nisso és única e simplesmente estúpido.

- Quer dizer que desejas que a tua nova amiga fique com um tonto imbecil?

- Talvez queira isso mesmo. Eu amo-te, Flynn.

- Bem, ando a ouvir muito isso nos últimos tempos - comuni­cou, batendo-lhe com um dedo no nariz. - Eu também.

- Não, diz: ”Amo-te.”

- Deixa-te disso.

- Diz, Flynn. Solta-te.

- Amo-te. Agora desanda daqui para fora. -Ainda não acabei.

Ele resmungou, e deixou-se cair outra vez no sofá.

- Estamos a tentar dormir a sesta, para a nossa sanidade mental.

- Ela nunca te amou, Flynn. Ela gostava de ti quando estavas no Vale. Gostava que a vissem contigo, e gostava de te dar cabo dos miolos. Tu podes ser estúpido, mas és muito inteligente em algumas áreas. Ela usou-te.

- E achas que isso me faz sentir melhor? O facto de saber que fui usado?

- Deve fazer-te parar de te sentires culpado pelo que aconte­ceu com a Lily.

- Não me sinto culpado. Odeio mulheres - concluiu ele, exi­bindo os dentes num sorriso perverso. - Só quero dar-lhes umas quecas. Agora importas-te de sair?

- Tens rosas vermelhas no quarto.

- Oh, meu Deus.

- Foste apanhado - repetiu ela, espetando-lhe um dedo na barriga.

Flynn assumiu aquele toque fraternal como um homem.

- Deixa-me perguntar-te uma coisa. Alguém gostava da Lily?

- Não.

Ele soltou um silvo e olhou para o tecto.

- Era só para saber.

A batida na porta fê-lo praguejar e fê-la dar um salto.

- Eu abro - cantou ela. - Talvez sejam mais flores. Divertida, Dana abriu a porta. E foi a sua vez de praguejar, com mais imaginação e perversão do que Flynn.

- Ei, belos lábios!

Jordan Hawke, belo como o diabo e duplamente nefasto na opinião de Dana, piscou-lhe o olho e voltou a entrar na sua vida.

Por um breve momento de obstinação, ainda pensou bater-lhe. Em vez disso agarrou-lhe o braço e imaginou-se a enrolá-lo como nos desenhos animados.

- Ei. Ninguém te convidou para entrar.

- Agora moras aqui? - perguntou ele, movendo o corpo com lentidão e à-vontade. Sempre fora gingão. Tinha quase mais quinze centímetros do que ela, o que outrora a excitava, mas que agora só lhe causava irritação.

Jordan não se tornara mais gordo, nem mais feio, nem fora vítima do padrão masculino habitual de calvície. E isso não era mesmo uma pena? Não, continuava elegante e bonito, e aquela farta e espessa cabeleira negra continuava a envolver sensualmente um rosto bronzeado e ossudo, salientado por uns esfuziantes olhos azuis. Os lábios eram cheios e esculpidos e, Dana tinha motivos para o saber, muito inventivos.

Estes últimos curvavam-se agora num preguiçoso sorriso de troça que lhe deu vontade de os manchar de sangue.

- Que bom ar, Dana - comentou ele, passando-lhe uma mão pelos cabelos e fazendo-a recuar instintivamente a cabeça.

- Tira a mão. E não, não estou a viver aqui. O que é que queres?

- Um encontro com a Julia Roberts, uma oportunidade de improvisar com o Bruce Spríngsteen e a Street Band, e uma cerveja bem gelada. E tu?

- Ler os pormenores da tua morte lenta e dolorosa. O que é que vieste cá fazer?

- Aparentemente, irritar-te. Mas isso é apenas um bónus. O Flynn está?

Jordan não esperou pela resposta, limitando-se a afastar-se dela e dirigindo-se para a sala. Moe levantou-se e emitiu uma rosnadela pouco convincente.

- Isso, Moe - incitou Dana, toda animada. - Ataca. Obviamente indiferente ao facto de ser atacado por uma enor­me massa canina, Jordan pôs-se de cócoras.

- Então este é que é o célebre Moe.

Passado o trauma veterinário, Moe começou numa restolhada. Ergueu-se, assentou as duas patas da frente nos ombros de Jordan, e deu-lhe um beijo de boas-vindas.

Dana não conseguiu deixar de ranger os dentes enquanto o riso de Jordan se reunia aos latidos alegres de Moe.

- És um grande matulão. Olha só para o teu focinho - comen­tou, e esfregou o pêlo de Moe, coçou-lhe as orelhas e lançou uma olhadela em direcção a Flynn. - Como vai isso?

- Bem. Não sabia que vinhas tão cedo.

- Arranjei algum tempo. Cerveja?

- Sim.

- Não queria interromper esta reunião tão calorosa e emotiva - afirmou Dana num tom de voz que era um martelo de gelo apontado à base do pescoço de Jordan. - Mas que raio vem a ser isto?

- Vim passar algum tempo com amigos, na minha cidade natal - respondeu Jordan, pondo-se de pé. - Continuo a poder acam­par aqui?

- Absolutamente - replicou Flynn, sentando-se no sofá. - Pra­zer em ver-te, pá.

- Também. Grande casa. Belo cão. Péssimo sofá.

Com uma gargalhada, Flynn deu um abraço ao seu amigo mais antigo.

- É mesmo bom voltar a ver-te.

Por alguns instantes, por um segundo, enquanto via os dois homens abraçarem-se, o coração de Dana enterneceu-se. Por mais que tivesse a dizer sobre Jordan Hawke, e a lista era extensa, ele sempre tivera uma relação estreita com Flynn. Tanto de irmão, supunha ela, como de amigo.

A seguir, aqueles olhos azuis tórridos cruzaram-se com os seus e voltaram a esturrar-lhe o coração.

- Então e essa cerveja? Podemos jogar à apanhada enquanto me contas como te viste envolvida à procura de chaves imagi­nárias.

Dana lançou um olhar acusatório ao irmão, e a seguir empi­nou o queixo.

- Ao contrário de vocês os dois, tenho mais que fazer.

- Não queres ver o quadro?

Aquilo quase a fez parar, mas o facto de ceder à curiosidade teria estragado a sua saída. Prosseguiu até à porta e saiu sem olhar para trás.

Ela tinha mesmo coisas para fazer. A primeira das quais era fazer um boneco de cera com a figura de Jordan e cravar-lhe alfinetes nas áreas mais sensíveis.

- Tinhas mesmo de a chatear? - perguntou Flynn.

- Eu chateio-a só de respirar - constatou, e o facto de saber isso fê-lo sentir um buraco na barriga. - Porque é que ela não mora aqui? A casa é suficientemente grande.

- Não quer - respondeu Flynn e, encolhendo os ombros, con­duziu Jordan até à cozinha. - Quer ter o seu próprio espaço e blá, blá, blá. Sabes como é a Dana. Quando tem uma ideia fixa ninguém a consegue demover.

- A quem o dizes.

Como Moe andava a saltitar em volta deles, Flynn procurou um biscoito e atirou-lho antes de ir buscar as cervejas.

- Trouxeste o quadro?

- Trouxe. Não sei o que ele te irá revelar.

- Nem eu. Só espero que revele alguma coisa à Malory.

- E quando é que eu vou conhecer essa tal Malory? - pergun­tou Jordan, debruçado sobre a bancada.

- Não sei. Brevemente.

- Pensei que esse acordo tinha um prazo - disse Jordan.

- Sim, sim. Ainda temos algumas semanas.

- Algum problema, pá?

- Não. Talvez. Envolvemo-nos nisto, e as coisas estão a ficar sérias depressa de mais. Não consigo pensar.

- Como é que ela é?

- Esperta, divertida, sexy.

- Puseste sexy em terceiro lugar - salientou Jordan, gesticulan­do com a cerveja. - Isso é uma coisa séria. Que mais?

- Determinada, diria eu - acrescentou, e começou a andar de um lado para o outro. - Com uma espécie de natureza organiza­da. Honesta. Não muito disposta a brincadeiras. Com os pés na terra. Tem mesmo os pés na terra, e é por isso que o facto de se envolver nesta história da chave faz com que tudo seja possível. Tem olhos azuis. Uns grandes olhos azuis - descreveu Flynn, sol­tando um suspiro.

- Mais uma vez, o aspecto físico vem em último lugar. Estás apanhado por ela.

Pouco à vontade, Flynn ergueu a cerveja.

- Há vários graus para se estar apanhado.

- É verdade, mas se ela te deixa assim tão preocupado, diria que já estás afundado até aos joelhos, e a ir cada vez mais fundo. Porque não lhe telefonas? Ela pode vir dar uma vista de olhos ao quadro, e eu assim tenho oportunidade
de a ver.

- Vamos esperar até amanhã.

- Tens medo dela. Emendo: estás afundado até à cintura, e a ir cada vez mais fundo.

- Cala-te. Só me parece que seria mais inteligente o Brad tra­zer também o quadro dele, e darmos-lhes os três uma olhadela. Para ver o que nos ocorre sem o elemento feminino.

- Por mim, tudo bem. Tens alguma coisa que se coma?

- Nada de especial, mas tenho todas as casas de pronto a co­mer e distribuição ao domicílio memorizadas no telefone. É só escolher.

- Surpreende-me. Vou buscar as minhas coisas.

As coisas não pareciam assim tão diferentes desde a sua juven­tude, tirando o facto de a sala de estar onde estavam estirados pertencer a um deles e não a um dos pais.

Como a escolha ficara a cargo de Flynn, estavam a comer co­mida italiana, mas a cerveja passara a uma garrafa de Johnnie Walker Blue, que Brad trouxera.

Os quadros encontravam-se colocados lado a lado contra a parede, e os três homens estavam sentados no chão. Moe ocupa­ra o sofá.

- Não percebo grande coisa de arte - começou Flynn.

- Mas sabes do que gostas - concluiu Brad.

- Não ia vergar-me a um cliché.

- Por acaso, a afirmação é válida - concordou Jordan. - Pela sua própria natureza, a arte é subjectiva. A Lata de Sopa Campbell de Andy Warhol, A Persistência da Memória de Dali, a Mona lisa de Da Vinci. Está tudo em quem vê.

- É impossível compararmos os Nenúfares de Monet com a Dama de Azul de Picasso, como comparar Dashiell Hammett e Steinbeck. A questão reside no estilo, no objectivo e na per­cepção.

Flynn revirou os olhos na direcção de Brad.

- O que eu ia dizer antes de vocês iniciarem esse pequeno improviso intelectual é que me parece que foi a mesma pessoa a pintar todos os quadros. Ou se se tratou de duas pessoas diferen­tes, uma estava a copiar o estilo da outra.

- Oh - proferiu Brad, rodando a bebida no copo e sorrindo. -Muito bem. Alinho com essa hipótese. E o que é que isso nos revela?

- Irá revelar-nos muito se mandarmos analisar o quadro do Jordan. Já sabemos que o de Pico do Guerreiro e o do Brad foram pintados com mais de quinhentos anos de distância. Precisamos de saber onde encaixa o do Jordan.

- Século XV.

Flynn voltou a cabeça e olhou para Jordan.

- Já o mandaste datar?

- Um ou dois anos depois de o comprar. Precisei de pôr algu­mas coisas no seguro. Acabei por saber que valia várias vezes mais do que o que paguei por ele. É um bocado estranho, se pensarmos que A Galeria tinha fama de ser cara.

- Porque é que o compraste?

- Não sei quantas vezes já perguntei isso a mim mesmo. Nem sei porque fui até lá naquele dia. Não era uma das minhas para­gens habituais. Até que vi o quadro, e ele conquistou-me. Esse momento, esse instante imediatamente antes do destino se cum­prir, entre a inocência e o poder. Ele está prestes a puxar a espa­da. Sabemos isso. E nesse preciso momento, o mundo altera-se. Camelot nasce, e o destino de Artur fica selado. Ele irá unir um povo, ser traído por uma mulher e um amigo, e gerar o homem que o irá matar. Nesse momento, ele é um rapaz. No momento seguinte, será rei.

- Há quem diga que ele já nasceu rei.

Jordan abanou a cabeça perante a afirmação de Brad.

- Só depois de pôr as mãos na bainha da espada. Ele podia ter-se afastado dela. Não sei se não o teria feito se soubesse o que o esperava. Glória e grandeza, é certo, e um pouco de paz, mas depois ilusão, decepção e guerra. E uma morte precoce.

- Bem, isso é animador - disse Flynn, começando a servir-se de outra bebida. Mas depois parou e voltou a olhar para os qua­dros. - Espera aí. És capaz de ter levantado uma ponta do véu. No outro quadro, temos os resultados desse momento do destino a que te referias. Será que o rei-deus teria casado com a mulher mortal e concebido as três filhas se conhecesse o seu destino? Será que o nosso caminho tem a ver com escolhas?

- E se for? - indagou Brad. - Isso não nos diz grande coisa.

- Dá-nos um tema. E se dermos um salto assumindo que os quadros são pistas para a localização das chaves, temos de seguir esse tema. Talvez a primeira se encontre num lugar onde foi to­mada uma decisão que alterou o rumo de várias vidas.

- Flynn - começou Jordan, hesitante, rodando a bebida no copo. - Acreditas mesmo que essas chaves existem?

- Acredito. E se vocês tivessem estado presentes desde o iní­cio, já teriam chegado à mesma conclusão, isto é impossível de explicar, Jordan, tal como não consegues explicar por que motivo aquele rapaz era a única pessoa no mundo capaz de tirar a Excalibur da pedra.

- E tu? - perguntou Jordan a Brad.

- Estou a tentar manter alguma abertura mental. Têm de acres­centar as coincidências, ou o que parecem ser coincidências. Tu e eu somos donos destes quadros. Voltámos para o Vale, e eles também. O Flynn está envolvido, em termos pessoais, com duas das mulheres convidadas a irem ao Pico do Guerreiro. O Jordan e a Dana foram namorados. E eu comprei o quadro porque me senti atraído por aquele rosto, o rosto da Zoe. Ia ficando de ras­tos. E vamos manter esse pequeno facto só entre nós.

- Estás interessado na Zoe? - perguntou Flynn.

- Estou, o que é óptimo, já que ela parece ter-me detestado à primeira vista. Algo que não consigo compreender - acrescentou com algum calor. - As mulheres não me detestam logo à primeira.

- Não, geralmente ainda leva algum tempo - concordou Jordan. - Só depois é que te detestam.

- Antes pelo contrário. Sou bastante suave. Em geral.

- Sim, ainda me lembro como foste suave com a Marsha Kent.

- Eu tinha dezassete anos - argumentou Brad. - Vai-te lixar.

- Ainda tens a marca do pé dela no rabo? - indagou Jordan.

- Ainda tens a da Dana nos tomates? Jordan estremeceu.

- Olho por olho, dente por dente. Pergunta: Aquele quadro é tão parecido com as outras duas como se parece com a Dana?

- Ah, sim - disse-lhe Flynn. - Os cabelos são diferentes, mas os rostos são iguais.

- Não há nenhuma questão de idade?

- Nenhuma.

Jordan manteve-se em silêncio durante alguns instantes, com o copo na mão, enquanto analisava o rosto de Dana. Tão parado, tão pálido e vazio.

- Está bem, dou um passo ao lado da lógica e entro no jogo. Somos seis pessoas para três chaves. E o quê, pouco mais de duas semanas para encontrar a primeira? - inquiriu, pegando outra vez na garrafa. - Vai ser facílimo.

”Além do enigma a resolver”, pensou Flynn, ”é bom ter os amigos de volta.” Agradava-lhe saber que, enquanto rastejava para a cama de madrugada, Jordan estava a rastejar para cima do col­chão do quarto que se encontrava livre, e Brad quinava já no sofá do piso inferior, guardado por Moe.

Sempre lhe tinha parecido que não havia nada que não pudes­sem fazer juntos. Quer se tratasse de combater invasores extrater­restres, aprender a tirar o soutien a uma rapariga só com uma mão, ou fazer corta-mato num Buick em segunda-mão. Sempre se tinham ajudado uns aos outros.

Quando a mãe de Jordan morrera, ele e Brad tinham estado presentes, a fazer vigília durante aquelas infindáveis noites no hospital.

Quando Lily o deixara, a única constante de que Flynn estive­ra certo fora a presença dos amigos.

”Em períodos bons ou menos bons”, pensou sentimentalmen­te, ”já nos valemos uns aos outros.” A distância física nunca tivera a menor importância.

Mas era melhor, muito melhor, tê-los por perto. Devido à sua proximidade, a primeira chave estava quase descoberta.

Fechou os olhos e adormeceu instantaneamente.

 

A casa estava às escuras, e muito fria. Conseguia ver o seu pró­prio bafo enquanto deambulava sem rumo pelos corredores escuros que davam voltas e reviravoltas. Ouviu o bramido da tempesta­de, que rebentou e rugiu, fazendo estremecer o ar e emitindo um clarão rápido e furioso, percorrendo a escuridão num ziguezague.

No sonho, sabia que percorria os corredores do Pico do Guer­reiro. Embora mal pudesse ver, reconheceu a casa e vislumbrou a curva do corredor, a sensação da parede sob os seus dedos tacteantes. Embora nunca lá tivesse andado.

Via a chuva lá fora, a vergastar a janela do segundo piso, o brilho azul sob os clarões dos relâmpagos. E depois viu o fantas­ma do seu próprio rosto, desfocado no vidro.

Chamou, e ouviu o eco da sua voz. Sempre repetido, como uma onda a rolar. Ninguém respondeu. No entanto, sabia que não estava só.

Havia alguém a percorrer aqueles corredores com ele. Escondi­do atrás dele. Fora de vista, fora do seu alcance. Havia uma coisa escura a empurrá-lo pelas escadas acima.

O medo tomou-lhe o coração.

Havia portas de ambos os lados do corredor, mas estavam to­das fechadas. Experimentou cada uma delas, fazendo girar a maça­neta com os dedos retesados do frio.

O que quer que o perseguia aproximou-se. Ouvia agora a sua respiração, horrível, qualquer coisa líquida que empurrava o ar e se fundia com a sua respiração ofegante.

Tinha de sair, de fugir dali para fora. Então começou a correr, avançando pelo escuro trespassado pela trovoada enquanto aquilo que o perseguia continuava a segui-lo, fazendo um ruído leve de passos rápidos como pequenas garras.

Debruçou-se de um parapeito e viu o clarão dos relâmpagos, que faziam a pedra fumegar. O ar queimava e gelava, e a chuva magoava-o como se caísse em cacos de vidro.

Sem ter para onde ir, com o medo a contorcer-se-lhe dentro da barriga como uma cobra, virou-se para lutar.

Porém, a sombra era enorme e estava demasiado perto. E co­briu-o antes que ele tivesse tempo de erguer os punhos. O frio trespassou-o, fazendo-o cair de joelhos.

Sentiu algo a ser arrancado - uma dor lancinante e indizível, um choque de terror. E percebeu que era a sua alma.

Flynn acordou a tremer de frio, todo empapado dos terrores nocturnos e com o sol a banhar-lhe o rosto.

Sentou-se, quase sem conseguir respirar, já tivera a sua conta de pesadelos, mas nunca tivera nenhum tão intenso. Nunca tive­ra nenhum em que sentisse verdadeiramente dor.

Ainda a sentia, pensou enquanto rangia os dentes ao sentir os golpes aguçados no peito e na barriga.

Tentou convencer-se de que aquilo se devera à mistura da pizza com o uísque da noite anterior. Todavia, não conseguiu acredi­tar nisso.

Quando a dor abrandou, deslizou da cama com ligeireza, diri­giu-se para a casa de banho com o passo prudente de um velho e ligou a torneira de água quente do chuveiro. Estava gelado.

Estendeu a mão para abrir a porta espelhada do armário dos remédios e tirar de lá uma aspirina, e viu a sua cara.

A palidez da pele e a expressão de choque dos olhos já eram suficientemente impressionantes. Porém, não eram nada em com­paração com o resto.

Estava todo empapado em suor. Tinha os cabelos ensopados e a pele perlada de suor. Como um homem acabado de sair de um temporal, pensou, e, quando se baixou para se sentar na sanita, as suas pernas fraquejaram.

Aquilo não tinha sido um pesadelo. Estivera mesmo dentro do Pico do Guerreiro. Estivera no parapeito da janela. E não estivera sozinho.

Aquilo não era uma mera demanda de chaves mágicas. Era mais do que um enigma a descobrir, tendo por recompensa um pote de ouro.

Havia ali mais alguma coisa. Algo de poderoso. Escuro e po­deroso.

Estava disposto a descobrir o que se passava antes que algum deles se afundasse mais.

Entrou no chuveiro e deixou-se ficar debaixo da água quente até esta penetrar o frio que sentia nos ossos. Depois, já mais cal­mo, engoliu a aspirina e vestiu as calças do fato de treino.

Ia descer e fazer café, e a seguir estaria capaz de reflectir. Quando tivesse as ideias claras, iria ter com os seus dois amigos e pedir-lhes uma opinião.

Talvez estivesse na altura de irem os três até ao Pico do Guer­reiro e sacarem a verdade a Rowena e a Pitte.

Já ia a meio das escadas quando a campainha tocou, e Moe saiu a correr disparado como um demónio.

- Pronto, pronto. Cala-te lá o– Johnnie Walker não fizera Flynn ficar de ressaca, mas o pesadelo acabara por provocar o mesmo efeito. Agarrou Moe pela coleira e puxou-o enquanto abria a porta com a outra mão.

Ela parecia um raio de Sol. Foi essa a sua única ideia clara ao olhar para Malory. Vestida com um belo fato azul que deixava ver as pernas, Malory dirigiu-lhe um sorriso. Depois deu um passo em frente e envolveu-o num abraço.

- Bom-dia - cumprimentou ela e, pressionando os lábios con­tra os seus, conseguiu inclusivamente escoar essa ideia.

Os dedos de Flynn largaram a coleira de Moe, e a seguir afastaram-se dela e subiram para mergulharem nos cabelos de Malory. As dores e o temor com que acordara desapareceram igualmente.

Nesse preciso momento, sentiu que nada voltaria a estar fora do seu alcance.

Moe desistiu de tentar meter-se entre os dois, e começou aos saltos e a ladrar para chamar a atenção.

-Santo Deus, Hennessy, não podes fazer o teu cão... - come­çou Jordan, do cimo das escadas. Por baixo dele estava o amigo e a mulher, banhados pelo sol da manhã. E absortos um no outro.

A questão é que, mesmo depois de Flynn se soltar do abraço e olhar para cima, mantinha o olhar de um homem que se tivesse afogado pela terceira vez. Num mar de beatitude.

- Viva. Desculpem a interrupção. Deves ser a Malory.

- Sim, devo ser - respondeu ela, ainda com o cérebro entor­pecido por causa do beijo, mas com a certeza absoluta de estar a olhar para um homem belíssimo que não trazia mais nenhuma peça de roupa além de uns boxers. - Peço desculpa. Não sabia que o Flynn estava acompanhado... ah! - exclamou, quando o cérebro acordou. - Tu és o Jordan Hawke. Sou uma grande admira­dora.

- Obrigado.

-Espera - disse Flynn, erguendo a mão quando viu que Jordan estava a descer. - Podias ir vestir umas calças.

- Está bem.

- Entra. Tenho de pôr o Moe na rua. - Com um puxão, Flynn conseguiu arrancá-la do lugar onde ela ficara parada a olhar para Jordan. Mas depois ela recuou, mantendo-se à porta da sala.

Brad estava deitado no sofá de barriga para baixo, com um braço e uma perna caídos. Estava vestido com a mesma indumentária que Jordan, embora os seus boxers fossem brancos.

Era interessante reparar, pensou Malory, que o rebento da famí­lia Vane tinha um traseiro magnífico.

- Uma festa de pijama?

- Os homens não têm festas de pijama. Limitamo-nos a ficar na conversa. Moe - gritou Flynn para o cão, que se aproximara para lamber a parte da cara de Brad que não estava esmagada contra as almofadas. - O Brad sempre dormiu como uma pedra.

- É o que parece. É bom teres os teus amigos de volta.

- Pois é - replicou ele, empurrando-a para a cozinha. Moe foi mais rápido e ficou a dançar à porta das traseiras como se estives­se à espera há várias horas. O cão saiu de rompante assim que Flynn abriu a porta.

- Queres que faça um café? - ofereceu-se Malory.

- Quero. Fazes?

- Faz parte do serviço - como a lata do café já estava em cima da bancada, ela limitou-se a pôr café suficiente para uma cafetei­ra cheia. - Se te casares comigo, faço café todas as manhãs. É claro que espero que tu leves o lixo para a rua todos os dias - acrescentou, com um sorriso por cima do ombro. - Acho que as tarefas domésticas devem ser partilhadas.

- Hum... hum.

- Além disso, há o sexo ilimitado.

- Isso é um grande bónus.

Ela desatou a rir enquanto media a água.

- Gosto de te pôr nervoso. Acho que nunca tinha feito ne­nhum homem ficar nervoso. Pensando bem... - começou ela, ligando a máquina do café e virando-se para ele. - Acho que nunca me tinha apaixonado por nenhum. Pelo menos assim.

- Malory...

- Eu sou uma mulher muito determinada, Flynn.

- Ah, sim, isso é uma coisa que não deixa margem para dúvi­das - comentou ele, recuando enquanto ela se aproximava na sua direcção. - Só acho que devíamos...

- O quê? - perguntou ela, fazendo deslizar as mãos pelo peito dele.

- Vês? Deixo de me lembrar das coisas assim que começas a olhar para mim.

- Considero isso um bom sinal - comentou ela, aflorando-lhe os lábios ao de leve.

- Isto já começa a ser um hábito - disse Jordan, ao entrar.

- Desculpem.

- Não faz mal - respondeu Malory, passando os dedos pelos cabelos enquanto se virava para procurar canecas de café limpas.

- Só passei por cá para pedir o Flynn em casamento. É um prazer conhecer mais um dos seus amigos. Ficas muito tempo por cá?

- Depende. O que é que ele respondeu quando te propuseste?

- Ah, ele não consegue dizer uma frase completa quando eu falo de amor e de casamento. Estranho, não é, dado ser um jornalista?

- Eu ainda aqui estou, sabias? - salientou Flynn.

- Isso é café? - perguntou Brad, cambaleante. Piscou o olho ao ver Malory e voltou a sair. - Desculpem.

Divertida, ela limpou as canecas.

- Esta casa está cheia de homens atraentes, e já os vi todos despidos. Não há dúvida de que a minha vida mudou. Como tomas o café, Jordan?

- Pode ser simples - respondeu ele, encostando uma anca à bancada enquanto ela servia o café. - O Flynn disse que eras inteligente, divertida e sexy. Tinha razão.

- Obrigada. Tenho de ir. Tenho um encontro para assinar uns papéis.

- De quê? - indagou Flynn.

- Os papéis da sociedade com a Dana e a Zoe. Pensei que a Dana te tinha contado.

- Contado o quê?

- Que vamos comprar a casa e fazer negócio juntas.

- Que casa? Que negócio?

- A casa de Oak Leaf. É o nosso negócio. Negócios, suponho. A minha galeria, a livraria da Dana, e o cabeleireiro da Zoe. Va­mos chamar-lhe Indulgence.

- Apelativo - opinou Jordan.

- Nem acredito que me estou a meter nisto assim - confessou ela, comprimindo a mão contra a barriga. - É tão pouco habitual em mim. Estou aterrorizada. Bom, não quero chegar tarde - profe­riu, e deu um passo em frente, pegou no rosto estupefacto de Flynn e deu-lhe mais um beijo, - Eu depois telefono-te. Espera­mos que faças uma matéria sobre a nossa nova empresa. Prazer em conhecer-te, Jordan.

- O prazer foi todo meu - disse ele, e ficou a vê-la sair. - Belas pernas, olhos de morrer, e com luz suficiente para iluminar uma gruta escura. Tens aqui um fio eléctrico em acção, pá.

Os lábios dele ainda vibravam com o beijo dela.

- Agora que a tenho, o que é que hei-de fazer com ela?

- Depois logo descobres - replicou Jordan, afastando-se para ir acabar de beber o café. - Ou então descobre ela.

- Pois é - disse Flynn, esfregando uma mão no coração. Sentia uma pontada. Era capaz de ser esse o resultado de tocar num fio eléctrico. - Preciso de mais café, e depois tenho de conversar contigo e com o Brad. Não vão acreditar no sonho que tive on­tem à noite.

 

-Não posso acreditar que não to tenham mostrado - afirmou Dana, tirando da mala a chave da casa de Flynn. - Nem eu. Nem me lembrei disso - acrescen­tou Malory, enquanto a irritação a impelia do automóvel para a porta da casa de Flynn. - Parti do princípio que o Jordan o tinha mandado vir de barco. Além de que estavam os três meio despi­dos. Fiquei distraída.

- Não te recrimines - disse Zoe, dando-lhe uma palmadinha nas costas. - De qualquer modo, vais poder vê-lo agora.

- Eles devem andar a tramar alguma - murmurou Dana. -Tenho esse pressentimento. Quando se juntam os três, andam sempre a tramar alguma - acrescentou, abrindo a porta e empur­rando-a. A seguir, aguardou um pouco.

- Não está ninguém em casa.

- Eles estavam a acabar de se levantar quando aqui estive, há cerca de duas horas - esclareceu Malory, entrando sem hesita­ções. - E, agora que penso nisso, o Flynn parecia andar a tramar alguma.

- Vão tentar manter-nos à parte - sugeriu Dana, preparada para disparatar contra todos os homens em geral e voltando a guardar as chaves na mala. - É o comportamento típico da espé­cie. ”Oh, nós sabemos; não te preocupes, minha linda.”

- Odeio isto - irritada, Zoe soltou um silvo por entre os den­tes. - Sabem quando o mecânico nos faz um sorriso amarelo e até que depois explica o problema ao nosso marido?

Dana inspirou ar pelo nariz.

- Isso dá cabo de mim.

- Se me perguntam, o Bradley Vane é o culpado disto tudo - acusou Zoe, pondo as mãos nas ancas. - É mesmo do tipo de tentar mandar em tudo e em todos. Topei-o logo.

- Não, deve ser o Jordan - sugeriu Dana, e deu um pontapé a um sapato que se encontrava no seu caminho. - É um instigador.

- O Flynn é o responsável por isto - discordou Malory. - Esta é a casa dele, são os amigos dele e... oh, meu Deus!

A luz iluminava de viés os dois quadros, colocados desajeitada­mente contra a parede, no mesmo lugar onde Flynn os deixara. Ao vê-los, o seu coração contraiu-se de admiração e inveja.

Avançou lentamente na direcção deles, como se se tratasse de um amante que a deslumbrasse e fizesse vibrar de excitação. Doía-lhe a garganta quando se ajoelhou no chão à frente deles.

- São lindos - comentou Zoe, por detrás dela.

- São mais do que isso - contrapôs Malory, erguendo o retrato de Artur e inclinando-o para a luz. - Isto não é apenas talento. O talento pode ser técnico, atingir um tipo de perfeição em ter­mos de equilíbrio e de proporções.

Ela aproximava-se daquilo, pensou, quando pintava. Só lhe faltava a perfeição técnica. E estava a quilómetros da magia que transformava uma imagem em arte.

-Quando conseguimos pegar nesse talento e levá-lo para além da técnica e da emoção, isso é génio - prosseguiu. - Levá-lo a transmitir uma mensagem, ou pura e simplesmente beleza. Quan­do se consegue isso, ilumina-se o mundo. Não sentem o coração dele a bater? - perguntou enquanto estudava o jovem Artur. - Os seus músculos a tremerem enquanto pega na bainha da espada? É essa a força do artista. Dava tudo, mas tudo, para conseguir criar uma coisa como esta.

O seu corpo foi percorrido por um tremor como que provoca­do por duas cobras gémeas, uma fria e a outra quente. Por um único instante, os seus dedos pareceram queimar. E durante esse instante algo se abriu e se iluminou dentro dela, e ela viu como isso era possível. Isso tinha de ser feito. Como podia fazer verter o seu talento sobre a tela.

Essa percepção fê-la quase chorar, deixou-a sem fôlego. E desapareceu no instante seguinte.

- Mal? Malory? - perguntou Zoe, anichada, pegando-lhe nos ombros. - O que foi?

- O quê? Nada. Fiquei zonza por um segundo.

- Ficaste com os olhos esquisitos. Estavam enormes e escuros.

- Devia ser da luz - retorquiu ela, mas sentia-se estranhamente tonta quando abriu a mala para tirar a lupa.

Recorrendo à luz natural, iniciou um lento e cuidadoso estudo de cada uma das obras.

Havia uma sombra, uma mera sugestão de forma escondida ao fundo, bem ao fundo da folhagem verde da floresta. E duas figuras - um homem e uma mulher - olhando o rapaz, a espada e a pedra, em segundo plano. De uma corrente colocada ao peito da mulher pendiam três chaves de ouro.

- O que te parece? - inquiriu Dana.

- Parece-me que temos várias alternativas - reflectindo nelas, Malory sentou-se e fez rolar os ombros. - Podemos convencer o Brad e o Jordan a enviar estes quadros a peritos para comprovar se terão mesmo sido pintados pelo mesmo artista. E ao fazê-lo, arriscar que toda esta questão saia cá para fora.

- Qual é a outra alternativa? - perguntou-lhe Zoe.

- Podemos confiar na minha palavra. Tudo o que sei, tudo o que estudei e aprendi me diz que foi a mesma pessoa a pintá-los. A mesma pessoa que pintou o retrato do Pico do Guerreiro.

- Se optarmos por essa, o que podemos fazer? - indagou Dana.

- Descobrir o que os quadros nos querem dizer. E voltar ao Pico do Guerreiro. Perguntar à Rowena e ao Pítte como é que pelo menos estas duas obras foram feitas com mais de um século de distância.

- Há mais uma coisa - apressou-se Zoe a dizer. - Aceitar a magia. Acreditar.

- Tenho sempre tempo para receber três homens bonitos - proferiu Rowena, quase a ronronar, enquanto conduzia Flynn, Brad e Jordan para a sala onde As Filhas do Vidro eram o motivo dominante.

Fez uma pausa, e esperou que todas as atenções estivessem focadas na obra.

- Imagino que o quadro lhe interesse, sr. Vane. A sua família tem uma colecção de arte bastante extensa e eclética, segundo ouvi dizer.

Brad olhava para o quadro, para a figura que carregava a peque­na espada e o cachorrinho. Os olhos de Zoe olharam para ele.

- Sim, interessamo-nos por arte.

- E esse interesse passou para si?

- Passou. Com efeito, creio ter outro quadro deste mesmo artista.

Ela sentou-se com um sorriso secreto a brincar-lhe nos lábios enquanto alisava as longas pregas do vestido branco.

- Não me diga. O mundo é pequeno.

- E está cada vez mais pequeno - afirmou Jordan. - Julgo pos­suir outro quadro que talvez tenha sido pintado pelo mesmo ar­tista.

- Fascinante. Ah! - exclamou ela, enquanto uma criada trazia um carrinho de chá. - Café? Parti do princípio que preferiam café. Os homens americanos não são grandes apreciadores de chá, pois não?

- Não perguntou qual era o motivo dos outros quadros - inda­gou Flynn, sentando-se ao lado dela.

- Estou certa de que me irá informar. Natas, açúcar?

- Simples. Isso parece-me ser uma perda de tempo quando tenho a certeza de que já sabe. Quem é o artista, Rowena?

Ela serviu o café com mão firme, despejando o líquido até um dedo da borda da chávena e mantendo o olhar ao nível do de Flynn.

- Foi a Malory que lhes pediu para virem até cá hoje?

- Não. Porquê?

- A demanda é dela, bem como as perguntas. Estas questões estão sujeitas a regras. Se ela lhe tiver pedido para vir em repre­sentação dela, o caso muda de figura. Trouxe o seu cão?

- Sim, está lá fora.

O rosto dela inundou-se de felicidade.

- Não me importo que ele entre.

- Vestido branco, grande cão preto. Não sei se quer pensar melhor. Rowena, não foi a Malory que nos pediu para virmos até cá, mas ela e as outras sabem que estamos a ajudá-las a investigar.
Elas não se importam.

- Mas não lhes disseram que vinham falar comigo. Os homens às vezes cometem o erro de partir do princípio que uma mulher quer ver-se livre de algumas ninharias e responsabilidades. - O seu rosto tinha uma expressão franca e amigável, e a voz assumiu um tom de riso. - Porque será?

- Não viemos até cá discutir a dinâmica homem-mulher - co­meçou Jordan.

- Que mais existe? Homem com homem, mulher com mu­lher, certamente - prosseguiu Rowena, estendendo as mãos com um gesto elegante. - Porém, tudo se resume ao facto de sermos pessoas, e do que elas representam umas para as outras. O que fazem por e para as outras. Embora a arte, de uma forma ou de outra, seja apenas uma representação disso. Se a Malory tiver alguma preocupação ou alguma questão relacionada com o qua­dro ou os quadros, deve manifestá-la. Não é o Flynn que vai encon­trar a chave por ela. A chave não lhe foi destinada.

- Ontem à noite sonhei que estava nesta casa. Só que não foi um sonho. Foi mais do que isso.

Flynn viu os olhos dela mudarem, tornarem-se escuros devido ao choque. Ou a outra coisa qualquer, algo mais forte do que isso.

- Um sonho desses não é invulgar, dadas as circunstâncias.

- Só estive na salinha e em duas outras divisões desta casa. Pelo menos até ontem à noite. Posso dizer-lhe quantos quartos existem no segundo piso, e que há umas escadas na ala leste até ao terceiro, que tem um pilar com um dragão entalhado. Não consegui vê-lo bem no escuro, mas senti-o.

- Esperem um pouco. Por favor.

Rowena levantou-se rapidamente e saiu depressa da sala.

- Isto é um negócio muito estranho - comentou Jordan, olhan­do para as bolachas atraentes dispostas sobre um prato de vidro. -Há algo de familiar naquela mulher. Já a vi noutro lugar qualquer.

- Onde? - inquiriu Brad.

- Não sei. Hei-de lembrar-me. Tem um olhar impressionante. Um rosto daqueles não é coisa que se esqueça. E porque é que se terá assustado com o teu sonho? Porque ela assustou-se mesmo, embora o tenha feito com muita classe.

- Teve medo - aventou Brad, aproximando-se do retrato. -Passou de astuta a assustada num abrir e fechar de olhos. Ela conhe­ce a solução dos quadros, e estava a divertir-se a brincar connosco, até o Flynn lhe atirar com a aventura que teve em sonhos.

- E eu ainda nem cheguei à melhor parte - lembrou Flynn, levantando-se para explorar a sala antes de Rowena voltar. - Há aqui algo que não joga bem.

- Tiveste essa impressão?

Flynn lançou uma olhadela a Jordan enquanto abria um pe­queno armário laçado.

- Não é só isso. Ela é uma mulher controlada - asseverou ele, apontando com um polegar na direcção da porta. - Calma, con­fiante, segura de si. A mulher que saiu daqui disparada não era nenhuma dessas coisas. Meu, há aqui bebidas de categoria.

- Deseja tomar alguma coisa, Sr. Hennessy?

Embora vacilasse um pouco, Flynn virou-se para a porta e fa­lou para Pitte sem mudar de tom.

- Não, obrigado. Ainda é um pouco cedo para mim - respon­deu, fechando o armário. - Como tem passado?

Rowena pousou uma mão no braço de Pitte antes de ele ter tempo de responder.

- Termine - ordenou a Flynn. - Termine o sonho.

- Vamos fazer troca por troca - sugeriu Flynn, inclinando a cabeça e voltando a sentar-se no sofá. - Vocês querem ouvir o resto do sonho, e nós queremos saber dos quadros. Eu mostro o que tenho, e vocês mostram-nos o que têm.

- Está a negociar connosco?

Flynn estava surpreendido com o tom de ofensa e de surpresa na voz de Pitte.

- Estou.

- Não é permitido - mais uma vez, Rowena pousou uma mão no braço de Pitte. No entanto, pelo olhar impaciente que este lhe dirigiu, Flynn não podia contar que ela o impedisse de reagir por muito mais tempo. - Nós não podemos dar-vos respostas só por vocês pedirem. Existem limites. Existem caminhos. É importante sabermos o que lhe aconteceu.

- Dêem-me algo em troca.

Pitte vociferou qualquer coisa e, embora aquela língua fosse um mistério para Flynn, sabia reconhecer uma praga. A seguir viu-se um clarão, uma faísca no ar. Desconfiado, Flynn olhou para o colo, e para os maços de notas de cem dólares atadas que agora lá estavam.

-Ah. Belo truque.

- Deve estar a brincar - afirmou Jordan, que entretanto dera um salto para a frente e pegara num maço de notas. Com as notas na palma da mão, passou os dedos por elas e deu-lhes uma palmadinha enquanto olhava para Pitte. - Agora é que têm mesmo de nos dar algumas respostas.

- Pretendem mais? - indagou Pitte, e Rowena virou-se para ele com uma espécie de fúria feminina surpreendente.

As palavras que gritaram um para o outro eram ininteligíveis. ”Gaélico”, pensou Flynn. ”Possivelmente galês.” Mas a ideia era bastante clara. A ira deles fez abanar a sala.

- Pronto, façam lá as pazes - com três passos determinados, Brad avançou e colocou-se entre os dois. - Isto não nos leva a lado nenhum - a sua voz era calma e controlada, e fez com que ambos lhe arreganhassem os dentes. Mesmo assim, manteve-se onde estava e lançou um olhar a Flynn. - O nosso anfitrião acaba de tirar... quanto?

- Parecem ser cerca de cinco mil.

- Cinco mil dólares do meio do nada... e caramba, tenho al­guns accionistas que teriam muito que conversar consigo. Ao que parece, ele acha que tu queres dinheiro em troca de uma infor­mação. É verdade?

- Por mais que me custe recusar cinco mil dólares mágicos, não - Flynn reconheceu que aquilo doía, mas pousou o maço em cima da mesa. - Estou preocupado com três mulheres e muito preocupado comigo. Quero saber o que se passa.

- Conte-nos o resto, e nós contar-lhe-emos o que pudermos. Conte-nos de livre vontade - acrescentou Rowena, avançando na direcção de Flynn. - Preferia
não ter de o obrigar a fazê-lo.

Já irritado, Flynn inclinou-se para a frente.

- Obrigar-me?

Quando ela falou, a sua voz era o frio do Inverno contra o calor da voz dele.

- Meu querido, eu podia fazê-lo grasnar como um pato, mas como imagino que o seu amigo corajoso e sensato diria, esse inci­dente não adiantaria de nada. Imagina que lhe desejamos algum mal, a si ou às suas mulheres? Não é verdade. Não desejamos mal a ninguém. Isso posso dizer-lhe com toda a sinceridade. Pitte - proferiu, mudando o ângulo da cabeça. - Insultaste o nosso convidado com esta exibição grotesca. Pede desculpa.

- Desculpa?

- Sim - respondeu ela, sentando-se de novo e sacudindo as saias. espera.

Pitte mostrou os dentes. Bateu com os dedos nas coxas, impa­ciente.

- As mulheres são a nossa praga.

- São mesmo, não são? - concordou Jordan.

- Peço desculpa se o ofendi - disse, e sacudiu um pulso. O dinheiro desapareceu. - Assim está melhor?

- Como não existe nenhuma maneira razoável de responder a essa pergunta, fá-lo-ei com outra pergunta. Quem diabo são vocês? - inquiriu Flynn.

- Não estamos aqui para responder às suas perguntas - disse Pitte, avançando em direcção à cafeteira de prata e servindo-se numa chávena de Dresden. - Até um jornalista... que te avisei que ia ser um aborrecimento - acrescentou para Rowena como um aparte -, devia conhecer certas regras de comportamento quando é convidado a ir a casa de alguém.

- Porque não nos dizem quem são? - começou Flynn, mas teve de parar quando um latido alegre ecoou na sala poucos se­gundos antes de Moe chegar. - Oh, merda!

- Aqui está ele! - exclamou Rowena, limitando-se a estender os braços em sinal de boas-vindas e envolvendo-o num abraço, enquanto as mulheres entravam na sala. - Que agradável, que bom. Parece uma festa.

- Desculpem vir interrompê-los - disse Malory, inspeccionan­do a sala e fixando o olhar em Flynn. - Mas há algumas pessoas que pensam que devem ocupar o lugar das mulheres.

- Isso não é bem verdade.

- Não digas. Então qual é a verdade?

- Estamos a seguir uma pista, mais nada. Vocês estavam ocupa­das a meter-se em sociedades, a comprar casas.

- Eu tenho andado metida em muitas coisas nos últimos tem­pos. Talvez devêssemos discutir o facto de me ter metido contigo na cama.

As garras gémeas da vergonha e da irritação espicaçaram-no enquanto se punha de pé.

- Com certeza que sim. Se calhar, podemos é encontrar uma altura e um lugar mais adequados para isso.

- Como podes falar de adequação quando tu e a tua equipa da testosterona tentam assumir as minhas responsabilidades, a minha tarefa? Lá por eu estar apaixonada por ti, por dormir conti­go, isso não significa que aceite ficar a olhar enquanto tu tomas conta da minha vida.

- Quem é que está a tomar conta da tua vida? - perguntou ele, com a frustração a fazê-lo tombar os braços. - Tu é que já planeaste a minha vida toda. Eu estou metido nisto, Malory, quer queira quer não. E vim até cá tentar perceber o que isso significa. E se as coisas estiverem a seguir o rumo que julgo estarem, tu estás fora. Todas vós - vociferou, disparando olhares contundentes a Dana e a Zoe. - Fora.

- Quem fez de ti patrão? - perguntou Dana. - Tu nunca man­daste em mim, nem quando tinha dez anos. Não é agora que o vais fazer.

- Ai não, então olha. Parecem achar que isto é um jogo - lançou para Rowena, num tom acusador. - Ou mesmo uma es­pécie de demanda romântica. Mas não me disseram o que podia estar em jogo.

- De que é que estás a falar? - perguntou Malory, agarrando-lhe no ombro.

- Dos sonhos - ignorando Malory, Flynn continuou a falar com Rowena. - São avisos, não são?

- Não chegou a acabar de nos contar. Talvez seja melhor sen­tarem-se todos, e começar a contar do princípio.

- Tiveste um sonho? Igual ao meu? - indagou Malory, agarran­do-o novamente. - Porque é que não me contaste?

- Cala-te um minuto, raios - para tentar recuperar a paciên­cia, ele empurrou-a contra o sofá. - Fica calada - ordenou -, não quero que digas nada antes de eu terminar.

Começou pelo princípio, com ele a vaguear pela casa, com a sensação de estar a ser observado, perseguido. Relatou a experiên­cia do parapeito, o medo e a dor, e terminou ao acordar na sua cama, ensopado em água.

- Ele... aquilo... queria a minha alma, e estava a dizer-me que podia ser esse o preço por eu estar metido nisto.

- Não é assim que deve ser - afirmou Pitte, firmando uma mão na mão de Rowena e falando com ela como se não estivesse mais ninguém na sala. - Não é assim que deve ser. Eles não de­vem ser prejudicados. Essa foi a primeira promessa, e a mais sa­grada.

- Não sabemos. Se não pudermos passar para lá da Corti­na, não saberemos qual é a situação actual. Se ele tiver quebrado a promessa, deve acreditar que pode fugir às consequências. Deve acreditar... que são eles - disse ela, num murmúrio. Isto– é possí­vel e eles podem ser bem sucedidos. Ele abriu a Cortina para os impedir. Ele passou.

- Se eles falharem...

- Não podem falhar - declarou ela, e deu meia volta, com a determinação estampada no rosto. - Nós proteger-vos-emos.

- Protegem? - abalada, Malory cruzou as mãos no colo, apertando os dedos até a dor abandonar a sua cabeça. - Tal como protegeram as Filhas do Vidro? Mestra e guardião. De algum modo, é o que são - disse ela, levantando-se e dirigindo-se para o retrato. - Vocês estão aqui - afirmou, apontando para o casal em se­gundo plano. - E aqui, nesta sala. Neste lugar. E acham que o que se encontra acolá, nas sombras das árvores também aqui está. Não revela o seu rosto.

- Tem mais do que um - disse Rowena num tom terra-a-terra que era absolutamente arrepiante.

- Foi a Rowena que pintou este quadro, e os outros
dois que temos em mãos.

- Pintar é uma das minhas paixões - confirmou Rowena. -Uma das minhas constantes. Pitte - proferiu, virando-se para ele. - Eles já sabem tudo isto.

- Eu não sei nada - declarou Dana.

- Venham até aqui, ao lado cínico da sala - convidou Jordan.

- O que a Malory sabe é que interessa neste momento - co­municou Rowena, estendendo uma mão. -Todas as minhas capa­cidades serão usadas para vos manter a salvo.

- Não basta - disse Flynn, abanando a cabeça. - Ela vai sair disto. Vão todos sair. Se quiserem o vosso dinheiro, podemos...

- Com licença, eu posso falar por mim. O problema não é a devolução, pois não? - perguntou ela a Rowena. - Não há ma­neira de voltar atrás, de dizer, uh - oh, afinal a parada é mais alta do que previa; acabou-se o jogo.

- O acordo foi estabelecido.

- Sem especificação total - acrescentou Brad. - O contra­to que estas mulheres assinaram convosco não tem validade legal.

- Não se trata de uma questão legal - afirmou Malory, impacien­te. - Trata-se de uma questão moral. Mais do que isso, o que está em causa é o destino. Por mim, enquanto tiver consciência disso, faço parte da demanda. Até as quatro semanas chegarem ao fim. E se encontrar a primeira chave, uma delas será a próxima - pros­seguiu, olhando para Dana e para Zoe. - Uma delas correrá o mesmo risco na próxima fase da Lua.

- Sim.

- Vocês sabem onde as chaves se encontram - vociferou Flynn. - Entreguem-lhas. Ponham termo a isto.

- Imagina que, se isso fosse possível, permaneceríamos nesta prisão? - num gesto que revelava simultaneamente desprezo e amargura, Pitte deixou cair os braços. - Ano após ano, século após século, milénio após milénio, presos num mundo que não é o nosso, julgam que vivemos convosco por opção? Que coloca­mos os nossos destinos, os destinos daqueles que estão a nosso cargo, nas vossas mãos por vontade própria? Estamos aqui presos, presos a esta missão. E agora, o mesmo se passa convosco.

-Vocês não podem voltar para onde deviam estar - depois do troar da voz de Pitte, o tom suave da voz de Zoe foi como um golpe de martelo. - Mas nós estamos no nosso lugar. Não tinham o direito de nos aliciar a tomar parte nisto sem nos avisarem dos perigos.

- Não os conhecíamos - confessou Rowena, estendendo as mãos.

- Para dois deuses, há muita coisa que vocês não sabem e não conseguem fazer.

Os olhos de Pitte fumegaram quando se virou para Flynn.

- Talvez queiram uma demonstração daquilo de que somos capazes.

De punhos cerrados, Flynn deu um passo adiante.

- Com certeza.

- Cavalheiros - pediu Rowena, e o seu suspiro profundo pare­cia um riacho de água fria destinado a baixar a temperatura da sala. - O ser do sexo masculino, qualquer que seja a sua origem, mantém-se infelizmente imprevisível em algumas áreas. Não é o vosso orgulho e a vossa masculinidade que estão aqui em risco, tanto
num caso como noutro. Flynn, em qualquer mundo que habitemos, existem leis inseridas no seu tecido.

- Rasguem o tecido. Infrinjam a lei.

- Se estivesse na minha mão entregar-vos as chaves neste momento, isso não resolveria nada.

- As chaves não funcionariam - declarou Malory, recolhendo um aceno de aprovação de Rowena.

- Tu compreendes.

-Acho que sim. Se este feitiço... é um feitiço?

- Essa é a palavra mais simples para o descrever - concordou Rowena.

- Se ele for quebrado, terá de o ser por nós. Mulheres. Mulhe­res mortais. Usando a nossa inteligência, o nosso espírito e a nos­sa energia, os recursos que temos neste mundo. Caso contrário, nenhuma chave abrirá a caixa. Porque... somos nós as verdadei­ras chaves. A resposta está em nós.

- Estás tão perto da resposta - Rowena levantou-se, com a emoção a aflorar-lhe o rosto, e pousou as mãos nos braços de Malory. - Mais perto que qualquer outra.

- Mas ainda não suficientemente perto. E metade do meu tem­po já se esgotou. Preciso de vos colocar algumas questões. Em particular.

- Ei, uma por todas - recordou-lhe Dana. Malory emitiu um pedido mudo. - Está bem, está bem. Esperamos-te lá fora.

- Eu fico contigo - ofereceu-se Flynn, pousando uma mão no ombro de Malory, mas ela afastou-a.

- Eu disse que era uma conversa em particular. Não quero que fiques.

O rosto dele ficou branco e frio.

- Muito bem, então saio do teu caminho.

Com uma mágoa evidente, Rowena deu um pequeno empur­rão a Moe para o mandar embora. Franziu o sobrolho ao ouvir a porta bater atrás de Flynn.

- O teu homem tem um coração sensível. Mais fácil de magoar do que o teu.

- Ele é o meu homem? - perguntou Malory, mas abanou a cabeça antes de Rowena ter tempo de responder. - Vamos co­meçar pelo princípio. Porque me levaram para trás da Cortina?

- Ele queria mostrar-te os seus poderes.

- Quem é ele?

Rowena hesitou, prosseguindo unicamente quando Pitte as­sentiu.

- É Kane, um feiticeiro. A figura escura.

- A das sombras, aquela que vi no meu sonho. O que roubou as almas.

- Ele mostrou-se para tu teres medo. E só te tenta assustar porque podes ser bem sucedida.

- Porque é que ele magoou o Flynn?

- Porque tu o amas.

-Amo? - perguntou Malory, cuja voz se tornou mais grossa da emoção. - Ou será que me levaram a acreditar nisso? Não será apenas mais um truque?

- Ah - proferiu Rowena, expirando. - Talvez não estejas tão perto como eu julgava. Não conheces o teu coração, Malory?

- Só o conheço há duas semanas, e sinto que a minha vida nunca mais será a mesma se ele não fizer parte dela. Mas será que o sentimento é verdadeiro? Ao fim das minhas quatro sema­nas, será que ainda sentirei o mesmo? - interrogou-se, levando uma mão ao coração. - Ou será que esse sentimento me irá ser roubado? Será pior roubarem-nos a alma do que o coração?

- Penso que não, pois ambos se alimentam
mutuamente. E não te posso dar a resposta, pois tu já a possuis. Se optares por ver.

- Então diz-me uma coisa. Será que ele fica em segurança se eu me afastar dele? Se lhe fechar o meu coração, será que ele fica em segurança?

- Eras capaz de desistir dele para o proteger? - perguntou Pitte.

- Sim.

Pensativo, encaminhou-se para o armário laçado, abriu-o e tirou dela uma garrafa de brandy.

- E serias capaz de lho dizer?

- Não, ele nunca...

- Ah, então irias enganá-lo - com um ligeiro sorriso, Pitte ser­viu um copo de balão com brandy. - E justificar a mentira dizen­do que isso era para bem dele. Mulheres... sejam de que mundo forem, não deixam de ser previsíveis - afirmou, fazendo uma vé­nia irónica a Rowena.

- O amor - corrigiu esta - é uma força constante em qualquer universo. As tuas decisões, as tuas opções, devem ser tomadas unicamente por ti - disse para Malory. - Mas o teu homem não te vai agradecer qualquer sacrifício que faças para o proteger - repli­cou, fazendo por sua vez uma vénia a Pitte. - Nunca agradecem. Agora vai - despediu-se, passando a mão pelo rosto de Malory. -Repousa um pouco a tua mente até conseguires ter pensamentos claros. E prometo que faremos tudo para te proteger a ti, ao teu homem e aos teus amigos.

- Eu não as conheço - começou, apontando para o retrato. -Mas conheço aquelas pessoas lá fora. E devo dizer-te que, se tiver de optar, escolherei aquelas que conheço.

Pitte aguardou que ficassem a sós para servir um segundo copo de brandy a Rowena.

- Amei-te ao longo de várias eras e de vários mundos.

- E eu a ti, meu amor.

- Porém, nunca te entendi. Podias ter respondido à pergunta que ela fez acerca do amor, e ter-lhe aliviado a mente.

- Ela será mais sábia, e mais feliz, depois de a descobrir por si própria. O que podemos fazer por eles?

Pitte inclinou-se, e comprimiu os lábios contra o sobrolho dela.

- O nosso melhor.

 

Preciso de tempo”, reconheceu Malory. Parecia andar na montanha-russa desde o primeiro dia do mês e, embora tivesse sido emocionante percorrer aquelas descidas a pique e aquelas curvas abruptas, precisava de descansar.

”Nada na minha vida voltou a ser o mesmo”, pensou enquan­to entrava no seu apartamento. Sempre contara com a sua coerên­cia, e esse simples elemento escoara-se-lhe por entre os dedos.

Ou fora posto impulsivamente de lado.

Não tinha a galeria. Não estava completamente certa de estar na posse da sua sanidade. Numa daquelas curvas e descidas, deixa­ra de ser a sensata e fiável Malory Price e tornara-se uma Malory Price irracional, emocional e caprichosa - uma mulher que acre­ditava em magia, e no amor à primeira vista.

Muito bem, talvez na terceira visão, corrigiu enquanto fechava as cortinas e se metia na cama. Mas isso era, essencialmente, a mesma coisa.

Pegara em dinheiro que poderia ter-lhe bastado
para viver durante vários meses e investira-o numa empresa com duas mulhe­res que conhecia há menos de quatro semanas.

”E confio nelas implicitamente”, admitiu. ”Sem reservas.”

Estava prestes a embarcar no seu próprio negócio, sem capital, sem qualquer plano sólido, nenhuma rede de segurança. Ao con­trário de toda a lógica, essa ideia fazia-a sentir-se feliz.

E no entanto, sentia a cabeça a latejar e o estômago às voltas. Por pensar que, afinal, talvez não estivesse apaixonada. Que a confiança e o prazer beatíficos que sentira em Flynn podiam consti­tuir uma mera ilusão.

Se essa ilusão se estilhaçasse, receava vir a sofrer para o resto da vida.

Ajeitou a almofada por debaixo da cabeça, enrolou-se numa bola e suplicou para que o sono viesse.

Estava um dia quente de sol quando Malory acordou, e o ar cheirava a rosas de Verão. Deixou-se ficar aconchegada durante alguns instantes. Os lençóis quentes guardavam ainda o ténue cheiro do seu homem, o suave sabor do silêncio.

Rolou na cama, preguiçosa, e piscou os olhos. Havia qualquer coisa estranha a toldar-lhe a mente. Não era propriamente desagra­dável, mas apenas estranha.

O sonho. Um sonho estranhíssimo.

Sentou-se na cama e espreguiçou-se, sentindo a pressão sau­dável dos músculos. Nua, e sentindo-se à vontade com esse fac­to, saiu da cama e cheirou as rosas amarelas sobre o toucador antes de pegar no robe. Parou à janela para admirar o jardim e respirar o aroma que pairava no ar. Abriu mais a janela e deixou o som do canto dos pássaros segui-la até fora do quarto.

A sensação de estranheza começou a desvanecer-se - como acontece com os sonhos - enquanto ela descia suavemente as escadas, deixando deslizar uma mão pela madeira lisa do corri­mão. As luzes cristalinas que vinham da janela acima da porta bailavam sobre o chão. Mais flores, exóticos conjuntos de orquí­deas, erguiam-se na jarra antiga sobre a mesa da entrada.

As suas chaves estavam pousadas ao lado delas, na pequena taça de mosaicos que comprara para o efeito.

Deambulou pela casa até à cozinha, e não conseguiu deixar de sorrir. Ele estava ao fogão, a pôr uma fatia de pão mal cortada na caçarola. Tinha um tabuleiro a seu lado, onde já colocara um copo de pé alto com sumo de laranja, uma rosa num solitário e a sua bonita chávena de café.

A porta das traseiras encontrava-se aberta. Através dela, ouviu os pássaros que continuavam a cantar, e os felizes latidos ocasio­nais do cão. Radiante, saiu para o ar livre, e depois pôs os braços a volta da cintura dele e deu-lhe um beijo no pescoço.

- Cuidado. A minha mulher pode acordar a qualquer instante.

- Vamos correr esse risco.

Ele virou-se e apanhou-a com um beijo longo e firme. O cora­ção dela deu um pulo, e o seu sangue disparou, ao mesmo tempo que pensava: ”Perfeito! É tudo tão perfeito!”

- Ia fazer-te uma surpresa - disse Flynn, enquanto lhe passava as mãos pelas costas para a deixar passar. - Pequeno-almoço na cama. O Hennessy Especial.

- Podes transformá-la numa surpresa ainda melhor, tomando o pequeno-almoço comigo.

- Era capaz de me deixar convencer. Espera um bocadinho - pediu ele, e a seguir pegou numa espátula e virou a fatia de pão.

- Hum... já passa das oito. Não devias ter-me deixado dormir até tão tarde.

- Não te deixei dormir grande coisa a noite passada - comen­tou ele, e piscou-lhe o olho. - Era justo que te deixasse recuperar um pouco esta manhã. Tens trabalhado de mais, Mal, a fazer os preparativos para a tua exposição.

- Estou quase pronta.

- E quando acabares, vou levar a minha mulher incrivelmente bela e talentosa a fazer umas férias bem merecidas. Lembras-te daquela semana que passámos em Florença?

Dias cheios de sol, noites cheias de amor.

- Como poderia esquecer? Tens a certeza de que consegues marcar férias? Não sou a única pessoa que tem estado ocupada por estes lados.

- Havemos de arranjar tempo - declarou ele, enquanto dispu­nha o pão num prato. - Podias trazer guardanapos de papel, e metíamo-nos na cama por uma hora... ou duas.

Começaram a ouvir-se choros de criança ensonada pelo monitor de bebé em cima da bancada. Flynn olhou para lá.

- E daí, talvez não.

- Eu vou lá. Vem ter comigo lá acima.

Ela subiu rapidamente as escadas, e parte da sua mente re­conhecia os quadros que ornamentavam as paredes. A cena de rua que pintara em Florença, a paisagem marítima de Outer Banks, o retrato de Flynn sentado à secretária do seu gabinete.

Virou para o quarto do bebé.

Aí, as paredes também estavam decoradas com quadros. As vivas cenas de conto de fadas que pintara durante todo o período em que estivera grávida.

E no berço, com as suas rocas brilhantes, o seu menino chora­va de impaciência, pedindo atenção.

- Pronto, meu querido. A mamã está aqui - consolou-o, e pegou-lhe ao colo, apertando-o contra si.

”Tem os cabelos do pai”, pensou enquanto o embalava e fazia barulhos para o distrair. E já estavam a ficar escuros, com aquelas madeixas cor de avelã quando a luz batia neles.

Era tão perfeito. De uma perfeição sem igual.

Porém, quando estava a levá-lo para a bancada onde lhe muda­va as fraldas, perdeu a força nos joelhos.

Qual era o seu nome? Qual era o nome do bebé? Em pânico, apertou-o mais contra si, e rodopiou quando ouviu Flynn aproxi­mar-se.

- Estás tão bonita, Malory. Amo-te.

- Flynn - havia algo de estranho nos olhos dela. Era como se conseguisse ver através dele, como se ele estivesse a esfumar-se. - Passa-se algo de estranho.

- Não há nada estranho. Está tudo como deve ser. Está tudo como tu querias que fosse.

- Talvez.

Subitamente, viu um clarão, e deparou consigo de pé num atelier cheio de luz. Havia telas empilhadas contra as paredes ou pousadas em cavaletes. Viu outra tela, de cores e formas muito vivas. Tinha um pincel na mão, e mergulhava-o na paleta.

- Fui eu que pintei isto - murmurou enquanto olhava para a tela. Era uma floresta com uma névoa de luz verde. A figura que percorria o caminho estava sozinha. Não solitária, pensou, mas sozinha. Via-se uma casa ao fim do caminho, e ainda havia algum tempo para apreciar o sossego e a magia dos bosques.

 

Aquilo saíra da sua mão. Da sua mente, do seu coração. Era capaz de senti-lo, tal como conseguia sentir e recordar cada pin­celada em cada tela do quarto.

A sua força, a sua glória, toda a dor e todo o prazer que ti­nham implicado.

- Eu sou capaz de fazer isto - com uma espécie de alegria frenética, continuou a pintar. - Tenho de fazer isto.

A alegria era como uma droga, e ela desejava-a. Sabia fazer as misturas de cores exactas, quando aplicar as tintas e quando in­troduzir alterações de pormenor.

Como criar aquela luz, aquela sombra, de maneira a que quem olhasse sentisse que podia entrar no quadro, percorrer aquele caminho e encontrar a casa mais ao fundo.

Porém, enquanto pintava, as lágrimas começaram a correr-lhe pelo rosto.

- Isto não é real.

- Podia ser.

O pincel tombou no chão, fazendo salpicar a tinta, quando ela saiu a correr do atelier.

 

Ele estava ao lado dela, inundado pela luz do sol. E mesmo assim estava escuro. Os cabelos, negros e brilhantes, tombavam como asas sobre os seus ombros. Os olhos eram de um cinzento de pedra impressionante. Umas maçãs do rosto salientes sulca­vam-lhe o rosto, e a sua boca era cheia e atraentemente maldosa.

”Que belo”, pensou. ”Como pode ele ser belo?”

- Julgavas que eu parecia um demónio? Algum ser saído de um pesadelo? - a diversão dele só lhe conferia ainda mais encan­to. - Porque havia de parecer? Fizeram-te pensar mal de mim.

- És o Kane - sentia o medo bem perto, com as mãos engalfinhadas no seu pescoço. - Foste tu que roubaste as almas das Filhas do Vidro.

- Isso não é da tua conta - a sua voz era igualmente bela. Melodiosa, tranquilizadora. - Tu és uma mulher vulgar num mun­do vulgar. Não sabes nada de mim nem dos meus. Não te desejo mal nenhum. Antes pelo contrário. - Com uma graciosidade de bailarino, vagueou pela sala, e as suas botas suaves não emitiam o menor ruído contra o chão salpicado de tinta. - Esta obra é tua.

- Não.

- Ah, sim, tu sabes - afirmou, erguendo uma tela e observan­do as linhas sinuosas de uma sereia reclinada sobre um rochedo. - Tu recordas-te de teres pintado este quadro, e os outros. Agora já sabes como é a sensação de ter esse poder. A arte transforma os homens em deuses - concluiu, pousando outra vez a tela. -Ou as mulheres. O que julgas que somos, no meu mundo, senão artistas e bardos, mágicos e guerreiros? Queres manter esse po­der, Malory?

Ela tentou enxugar as lágrimas, e viu a sua obra através delas.

- Quero.

- Podes tê-lo na totalidade, e mais ainda. O homem que que­res, a vida, a família. Posso dar-te tudo isso. A criança que tiveste nos braços? Tudo isso pode ser real, tudo pode ser teu.

- Por que preço?

- Tão pouco - respondeu ele, fazendo deslizar um dedo pelo seu rosto humedecido, e a lágrima que roubou reluziu na ponta do seu dedo. - Tão pouco. Basta permaneceres dentro deste so­nho. Acordares e dormires dentro dele, caminhares, falares, co­meres e amares. Tudo o que desejares estará aqui à tua disposição. A perfeição... sem dor, sem morte.

Ela exalou um suspiro e estremeceu.

- Não há chaves neste sonho.

- És uma mulher inteligente. Para quê preocupares-te com chaves, com deusas bastardas que não têm nada a ver contigo? Para quê arriscares a tua vida e a daqueles que amas em prol de umas raparigas tolas que nunca deviam ter nascido? Serias capaz de desistir do teu sonho por causa de umas estranhas?

- Eu não quero um sonho. Quero a minha vida. Não troco a minha vida por ilusões.

A pele dele ficou branca, e os olhos negros.

- Então perdes tudo!

Ela soltou um grito quando ele se lançou a ela, e outro ainda quando o frio a trespassou. Depois ficou a salvo, livre, e acordou, ofegante, na sua cama.

Ouviu alguém bater à porta, aos gritos. O terror saiu com ela da cama. Conseguiu chegar à sala aos tropeções, e viu Flynn do outro lado das portas do pátio, prestes a bater com uma das suas

cadeiras contra o vidro.

Ao vê-la, pousou a cadeira no chão e abriu a porta num rom­pante.

- Quem está aí? - perguntou ele, agarrando-a pelos ombros, erguendo-a no ar e afastando-a do caminho, - Quem te fez mal?

- Não está cá ninguém.

- Estavas a gritar. Ouvi-te gritar - declarou ele, avançando a correr para o quarto, de punhos a postos.

- Tive um pesadelo. Foi apenas um sonho mau. Só cá estou eu. Preciso de me sentar - afirmou ela, apoiando uma mão no sofá e baixando-se.

Ele também sentia as pernas um pouco trémulas. Malory grita­ra como se alguém estivesse a despedaçá-la. Flynn também sabo­reara o terror na noite anterior, mas isso não fora nada, comparado com o que chocara contra ele do outro lado da porta de vidro.

Dirigiu-se apressadamente à cozinha e trouxe um copo de água.

- Toma, bebe um pouco de água. Devagar.

- Eu fico bem daqui a nada. Acabei de acordar, e ouvi-te aos berros e aos murros. Ainda estou um bocado confusa.

- Estás a tremer - constatou ele e, olhando em redor, viu uma manta de lã. Pousou-lha sobre os ombros e sentou-se no sofá ao lado dela. - Conta-me o teu sonho.

Ela abanou a cabeça.

- Não. Não quero pensar nem falar nisso agora. Só quero ficar um bocado sozinha. Não te quero aqui.

- É a segunda vez que me dizes isso hoje. Mas desta vez não pode ser. Com efeito, vou telefonar ao Jordan a dizer-lhe que durmo aqui esta noite.

- O apartamento é meu. Só cá fica quem eu convidar.

- Estás novamente enganada. Despe-te e mete-te na cama. Eu faço-te uma sopa ou coisa parecida.

- Não quero sopa, não te quero a ti. E de certeza que não quero receber mimos.

- Então que raio é que queres? - perguntou ele, pondo-se de pé num acesso de fúria e de frustração. - Num momento não me largas, a dizer-me que estás apaixonada por mim e que queres passar o resto da vida comigo. E no momento seguinte, mandas-me dar uma curva. Estou mais que farto de mulheres, dos seus sinais ambíguos, das suas mentes caprichosas e do raio de expectativas­ que elas têm em relação a mim. Neste preciso momento, vais fazer o que eu disse, que é meteres-te na cama enquanto eu te preparo qualquer coisa para comer.

Ela ficou a olhar para ele. Veio-lhe à garganta uma dúzia de palavras maldosas, mas perdeu-as por entre um acesso de choro.

- Oh, meu Deus - exclamou Flynn, esfregando as mãos na cara. - Bonito serviço. Podes limpar as mãos à parede, Hennessy.

Foi até à janela e ficou a olhar para a rua enquanto ela chorava baba e ranho atrás dele.

- Desculpa. Não sei o que hei-de fazer contigo. Não posso prender-te. Se não me queres aqui, tudo bem. Vou ligar à Dana. Mas não quero que fiques sozinha.

- Também não sei o que hei-de fazer comigo - confessou ela, abrindo a gaveta para tirar um maço de lenços de papel. - Se te dei sinais ambíguos, não foi de propósito - afirmou ela, enxugan­do o rosto, mas as lágrimas teimavam em continuar a correr. -Também não tenho uma mente caprichosa... pelo menos não tinha. E não sei quais são as minhas expectativas em relação a ti. Já nem sei que raio de expectativas tenho em relação a mim mes­ma. Dantes tinha. Tenho medo. Tenho medo do que está a aconte­cer à minha volta e dentro de mim. E tenho medo porque já não sei o que é real. Não sei se tu estás mesmo aqui.

Ele voltou para junto dela e sentou-se.

- Eu estou aqui - afirmou, pegando-lhe firmemente na mão entre a sua. - Isto é real.

- Flynn - começou ela, acalmando-se enquanto fitava as suas mãos unidas. - Durante toda a vida desejei certas coisas. Quis pintar. Desde que me lembro que quero ser artista. Uma artista maravilhosa. Estudei e trabalhei. E nunca me aproximei disso. Não tenho esse dom. - Malory fechou os olhos. - E aceitar isso cus­tou-me mais do que posso exprimir - já mais calma, expirou e olhou para ele. - O melhor que consegui fazer foi trabalhar com obras de arte, estar perto delas, encontrar algum objectivo para esse amor - concluiu, levando a mão ao coração. - E era boa nisso.

- Não achas que há alguma nobreza em fazeres aquilo em que és realmente boa, mesmo que não tenha sido a tua primeira escolha?

- É agradável poder pensar assim. Mas é muito duro desistir de um sonho. Creio que sabes o que isso é.

- Sei, eu sei o que isso é.

-
A outra coisa que eu queria era amar alguém, e ser amada. De um modo absoluto. Saber que, quando fosse para a cama à noite e quando acordasse de manhã, essa pessoa estaria comigo, compreendendo-me e desejando-me. Também nunca tive muita sorte nessa área. Podia conhecer uma pessoa, e até parecíamos acertar. Mas nunca sentia isso no íntimo. Nunca sentia esse impul­so, ou o fogo que se vai transformando nessa maravilhosa sensa­ção de calor. Como quando se sabe que uma pessoa é aquela que esperávamos. Até tu apareceres. Não digas nada - pediu, muito depressa. - Deixa-me acabar.

Malory pegou novamente na água e humedeceu a garganta.

- Quando uma pessoa leva a vida inteira à espera de uma coisa e depois a encontra, é como se tivesse havido um milagre. Todas as partes de nós que ficaram à espera abrem-se e come­çam a vibrar. Antes podia-se estar bem, podia-se ser bom. Tinha-se um objectivo e um rumo, e estava tudo bem. Mas depois passa a ser mais do que isso. E a pessoa não consegue explicar o que mudou, mas sabe que, se o perder, nunca mais conseguirá preencher da mesma maneira os espaços que ficaram vazios.

Nunca mais. Isso é aterrorizador. Tenho medo de que isto que sinto dentro de mim não seja mais que um embuste. Tenho medo de acordar amanhã e perceber que o que vibra cá dentro parou. Que ficou tudo em silêncio. Tenho medo de deixar de sentir o que sinto. De não sentir o que passei a vida à espera de sentir.

Os olhos dela estavam outra vez secos e tinha a mão firme quando pousou a água.

- Consigo muito bem suportar que não me ames como eu te amo. Existe sempre a esperança de que me venhas a amar. Mas não sei se suportarei não te amar. Seria como... como se me ti­vessem roubado algo de muito íntimo. Não sei se aguentaria vol­tar a ser como era.

Ele passou uma mão pelos cabelos dela, e a seguir aproximou-a de si, de maneira que a cabeça dela repousasse sobre o seu ombro.

- Nunca ninguém me amou do modo como estás a falar. Não sei o que fazer com isso, Malory, mas também não quero perder isso.

- Eu vi o que o futuro podia reservar-nos, mas não era a reali­dade. Era um dia normal, tão perfeito como uma jóia na palma da minha mão. E eu quero-o.

Ele afastou-se um pouco e virou o rosto para ela.

- O sonho? Ela assentiu.

- Abandoná-lo magoou-me mais do que tudo o que alguma vez conheci. É um preço muito elevado, Flynn.

- Podes contar-me?

- Acho que vou ter de o fazer. Senti-me cansada. Senti-me como se tivesse acabado de sofrer um enorme desgaste emocio­nal. Só me apetecia deitar-me e deixar a sensação desaparecer.

Malory descreveu-lhe o sonho, o momento em que acordara com aquela sensação de bem-estar absoluto, a sensação de deambular por uma casa cheia de amor, de o encontrar na cozi­nha a preparar-lhe o pequeno-almoço.

- Isso devia ter-te dado uma pista. Eu, a cozinhar? Só podia ser uma ilusão.

- Estavas a fazer-me pão frito. É o meu petisco preferido quan­do acordo tarde. Falámos em irmos de férias, e lembrei-me de todos os outros lugares onde tínhamos ido e o que tínhamos fei­to. Essas recordações estavam dentro de mim. Até que o bebé acordou.

- Bebé? - perguntou ele, totalmente pálido. - Tínhamos...havia... um bebé?

- Fui lá acima buscá-lo ao berço.

- Ele?

- Sim, ele. Nas paredes do corredor havia quadros pintados por mim. Eram maravilhosos, e eu lembrava-me de os ter pintado. Tal como me recordava de ter pintado os do quarto do bebé. Peguei nele, tirei-o do berço, e senti um grande amor, um imenso amor por ele. Estava cheia de amor por ele. E depois... depois apercebi-me de que não sabia o seu nome. Não tinha nome para ele. Sentia a sua forma nos meus braços, e a suavidade e o calor da pele dele, mas não sabia o nome dele. Tu apareceste à porta, e eu via através de ti. E percebi que aquilo não era real. Nada daquilo era real.

Malory teve de se levantar, de se mexer. Avançou para as jane­las e voltou a abrir os cortinados.

- Quando comecei a sentir dores, estava no meu atelier. No meu atelier, rodeada das minhas obras. Sentia o cheiro a terebin­tina. Tinha um pincel na mão, e sabia utilizá-lo. Sabia tudo o que sempre tinha querido saber. Era uma sensação muito forte, como ter nos braços aquela criança que tinha saído de dentro de mim. E igualmente falsa. E ele estava lá.

- Quem é que estava lá?

Ela respirou fundo e virou-se.

- Chamava-se Kane. O ladrão de almas. Falou comigo. Disse-me que podia ter tudo aquilo: a vida, o amor, o talento. Tudo isso podia vir a ser realidade. Se eu me mantivesse dentro do sonho, nunca teria de desistir de nada. Nós amar-nos-íamos. Teríamos um filho. Eu pintaria. Tudo seria perfeito. Bastava viver den­tro do sonho, que ele se tornaria realidade.

- Ele tocou-te? - perguntou Flynn, correndo para ela como se quisesse tactear o seu corpo em busca de quaisquer ferimentos. -Magoou-te?

- Uma ou outra palavra - respondeu ela, novamente calma. -A opção era minha. Apeteceu-me ficar, mas não consegui. Eu não quero um sonho, Flynn, por mais perfeito que ele seja. Se não for real, não significa nada. E se eu tivesse ficado, isso não seria ape­nas uma maneira de prescindir da minha alma?

- Tu gritavas - desconcertado, Flynn encostou a testa contra a dela. - Tu gritavas.

- Ele tentou tirar-ma, mas ouvi-te gritar por mim. - Porque vieste até cá?

-Tu estavas irritada comigo. Não queria que estivesses.

- Aborrecida - corrigiu ela, e pôs os braços à volta dele. -Ainda estou, mas para minha irritação, é um pouco difícil passar por tudo isto. Quero que fiques. Tenho medo de dormir, medo de voltar lá e, desta vez, não ter forças para voltar a sair.

- Tu tens força suficiente para isso. E se precisares,
eu ajudo a tirar-te de lá.

- Isto pode também não ser real - começou ela, aproximando os lábios dos dele. - Mas eu preciso de ti.

- Isto é real - replicou ele, erguendo as mãos dela e beijando-as à vez. - Essa é a única certeza que tenho no meio desta con­fusão toda. O que eu sinto por ti, Malory, é verdadeiro.

- Se não consegues dizer-me o que sentes, então demonstra-mo - pediu ela, puxando-o para si. - Mostra-mo agora.

Todas aquelas emoções, necessidades, dúvidas e desejos em conflito misturaram-se num beijo. E ao aceitá-las, ao aceitá-lo, ela sentiu-se mais tranquila. A ternura perpassava-o quando lhe pegou ao colo e a aninhou nos seus braços.

- Quero que fiques em segurança. Por mais que isso te irrite - confessou enquanto a levava para o quarto e a pousava na cama, onde começou a despi-la. - Não vou sair do teu caminho, se sentir que isso é necessário.

- Não preciso que tomes conta de mim - recordou ela, levan­do uma mão ao rosto dele, - Só preciso que olhes para mim.

- Malory, ainda não parei de olhar para ti desde o princípio, mesmo quando não estás por perto.

Ela sorriu e arqueou o corpo para ele conseguir despir-lhe a blusa.

- Embora isso seja estranho., não deixa de ser simpático. Dei­ta-te ao pé de mim.

Ficaram lado a lado, com os rostos perto um do outro.

- Neste momento sinto-me bastante segura, e isso não é parti­cularmente irritante.

- Talvez te sintas até demasiado segura - aventou ele, passan­do a ponta do dedo sobre a saliência do mamilo dela.

- Talvez - proferiu ela, e suspirou quando ele lhe começou a roçar o nariz pelo pescoço. - Isso não me assusta nada. Vais ter de te esforçar muito mais.

Ele rebolou para mais perto dela, encostou-a contra a cama e prendeu-lhe a boca entre os seus lábios.

- Oh. Muito bem - comentou ela, a custo.

Malory tremia, apenas o suficiente para o excitar, e a sua pele estava quentíssima. Ele podia mergulhar nela, nos seus sabores e texturas. Podia perder-se naquele desejo premente de lhe dar prazer.

Estava preso a ela. Talvez o estivesse mesmo antes de a conhe­cer. Será que todos os erros que ele cometera, todas as mudanças de direcção tinham servido unicamente para o conduzir até àquele tempo e àquela mulher?

Haveria outra alternativa?

Ela sentiu-o afastar-se.

- Não. Não te vás embora - suplicou-lhe. - Deixa-me amar-te. Eu preciso de te amar.

Passou os braços à volta dele e usou a boca para o seduzir. De momento, podia trocar o orgulho pelo poder sem a menor hesita­ção. Enquanto o seu corpo se movia sinuosamente sob o dele, ela sentiu-o estremecer.

As mãos descreviam carícias. Os lábios cediam. Gemidos ofe­gantes soltavam-se no ar, que se tornara escuro e espesso. Longos beijos preguiçosos aumentavam de intensidade e acabavam em arquejos de prazer.

Ele agora estava com ela, preso num ritmo demasiado primá­rio para lhe conseguir resistir. O martelar do seu coração ameaça­va dilacerar-lhe o peito, e mesmo assim não era de mais.

Apetecia-lhe saborear todos os seus aromas, afundar-se naquele mar de desejo. Num momento ela suplicava e cedia; no momento seguinte, estava tão tensa como um punho cerrado. Quando ela proferiu o nome dele entre suspiros, ele pensou que ia enlouquecer.

Ela levantou-se e subiu para cima dele. Entrelaçando as mãos nas suas, fê-lo penetrar dentro de si, deixando-se deslizar deva­gar, num movimento tão lento que o sistema de excitação do parceiro ficou completamente desnorteado.

- Malory.

Ela abanou a cabeça, ao mesmo tempo que se curvava para roçar os lábios nos dele.

- Deseja-me.

- Muito.

- Deixa-me possuir-te. Fica a ver-me enquanto te possuo. Ela endireitou-se e começou a acariciar o peito, passando as mãos pelos seios e pelos cabelos. E deu início à sua cavalgada.

Uma vez mais, ele sentiu-se fustigado pelo ardor da paixão, numa explosão do fogo que lhe amolecia e quase derretia os os­sos. O corpo dela erguia-se sobre o seu, esguio e incansável, alvo e dourado. Ela envolveu-o, possuiu-o, fê-lo chegar a um êxtase de loucura.

O vigor e o prazer esgotavam-na por completo. Ela jogava ambos os trunfos com a máxima agilidade e intensidade, até a visão se perder numa confusão de cores. Viva, era a única coisa em que ela pensava. A chama de ambos estava bem acesa. O san­gue corria-lhe nas veias, sob o impulso do seu coração arrebata­do. Luzia-lhe na pele o suor próprio de um corpo saudável. Sentia na boca o sabor do corpo dele, sentia-o palpitar na verdadeira essência do seu ser.

A vida era aquilo.

Agarrou-se a esse pensamento e concentrou-se nele, mesmo quando o êxtase ascendeu a limites difíceis de suportar. Até o corpo dele acabar por se afundar e ela se soltar.

Ele compensou-a com a sopa, apesar de reparar que ela acha­va graça a vê-lo todo atarefado a mexer a panela no fogão da sua casa. Flynn pôs música a tocar e manteve a luz baixa. Não para criar um ambiente de sedução, mas porque queria a todo o custo que ela ficasse descontraída.

Tinha algumas perguntas, muitíssimas perguntas ainda, a fazer acerca do sonho que ela tivera. Debatia-se com a luta entre o lado dele que achava um dever humano fazer essas perguntas, e o outro lado que queria aconchegá-la debaixo da roupa, em paz e sossego, mais algum tempo.

- Podia ir num instante a rua - sugeriu -, buscar uns vídeos. Podemos ir comer uns legumes fora.

- Não vais a lado nenhum - replicou ela, e enroscou-se mais a ele no sofá. - Não precisas de me distrair, Flynn. Mais cedo ou mais tarde, temos de falar no assunto,

- Não é preciso ser agora.

- Pensava que um jornalista procurava esquadrinhar todos os factos que lhe convinha publicar, e muito mais do que isso.

- Já que o Dispatch não vai querer publicar um artigo sobre mitologia celta no Vale enquanto esta história toda não acabar, não há pressa nenhuma.

- E se estivesses a trabalhar para o New York Times?

- Isso era diferente - respondeu ele, afagando-lhe o cabelo e bebendo um gole de vinho. - Era capaz de ser cínico e duro e espicaçar-te a ti ou a qualquer outra pessoa para conseguir a histó­ria. E, provavelmente, já andava com os nervos em franja e stressado de todo. Talvez até tivesse problemas com o álcool. Devia estar a caminhar para o meu segundo divórcio. Acho que talvez preferisse bourbon, e ter uma ruiva por companheira.

- O que é que pensas que teria acontecido realmente, se tives­ses ido para Nova Iorque?

- Não faço ideia. Agrada-me pensar que teria feito um bom trabalho. Um trabalho interessante.

- Não sentes que o teu trabalho aqui é importante?

- É de alguma utilidade.

- De grande utilidade. Não só por distrair as pessoas e mantê-las informadas dentro da tradição da continuidade, mas também por dar emprego a muitas delas. As pessoas que trabalham no jornal, que o distribuem, e respectivas famílias. Para onde teriam ido se tivesses partido?

- Eu não era a única pessoa capaz de gerir o jornal.

- Talvez fosses a única talhada para isso. Se pudesses, ias-te embora agora?

Ele reflectiu na questão.

- Não. Fiz uma opção. A maior parte das vezes, sinto-me satis­feito por ter tomado esta decisão. Quase sempre, acho eu.

- Eu não sabia pintar. Ninguém me disse que não tinha jeito, nem me convenceram a desistir da pintura. A verdade é que eu não tinha grande talento. É diferente quando temos talento mas alguém nos diz que não podemos fazer uma coisa.

- Não foi bem assim.

- Então, como foi?

- Tens de entender a minha mãe. Tem sempre tudo muito bem planeado. Quando o meu pai morreu, com certeza que a sua morte lhe deve ter atrapalhado o Plano A.

- Flynn.

- Não estou a dizer que não o amava, ou que não chorou a sua morte. Chorou. Chorámos todos. Ele fazia-a rir. Conseguia sempre fazê-la rir. Julgo que depois de o termos perdido passei um ano sem a ouvir rir-se, pelo menos a valer.

- Flynn - aquele desabafo desgostou-a. - Lamento muito.

- Ela é dura de roer. Se há coisa que se pode dizer de Elizabeth Flynn Hennessy Steele é que não tem nada de frágil.

- Tu gostas muito dela - afirmou Malory, roçando-lhe leve­mente os cabelos. - Não sabia.

- Claro que gosto, mas nunca me vais ouvir dizer que era fácil viver com ela. De qualquer modo, quando ela se arrancou da­quele estado, estava na hora de executar o Plano B. Em grande medida, o plano consistia em passar-me o jornal quando chegas­se o momento certo. Não havia grande problema em eu assumir o lugar, uma vez que já calculava que seria esse o meu destino dali a muito, muito tempo. E que trataria disso, e dela, quando tivesse de
o fazer. Eu gostava de trabalhar para o Dispatch, o que me permitia não só apurar os meus conhecimentos de jornalismo mas também de edição.

- Mas tu querias fazer isso em Nova Iorque.

- Achava-me importante de mais para uma cidade atrasada como o Vale. Tinha muito para dizer, muito para fazer. Pulitzers para ganhar. Entretanto, a minha mãe casou-se com o Joe. É um tipo porreiro, o pai da Dana.

- E ele é capaz de fazer rir a tua mãe?

- É. É capaz. Formámos uma família simpática, os quatro. Não sei se naquela altura terei dado o devido valor a esse aspecto. Com o Joe por perto, imaginava que me livraria de parte da pres­são que me era imposta. Suponho que todos imaginávamos que durante alguns anos eles se encarregariam de manter a actividade do jornal.

- O Joe é jornalista?

- É. Durante vários anos, trabalhou para o jornal. Costumava dizer por piada que casara com a chefe. Eles também formavam uma bela equipa, por isso parecia que iria correr tudo às mil maravilhas. Depois da faculdade, pensei em completar a minha for­mação com uns dois anos mais de experiência aqui, e a seguir dar uma oportunidade a Nova Iorque e oferecer a minha competên­cia e os meus serviços inestimáveis. Conheci a Lily, e isso parecia a cereja em cima do bolo.

- O que é que aconteceu?

- O Joe adoeceu. Ao olhar para trás, imagino que a minha mãe ficou desvairada perante a ideia de poder perder outra pes­soa que amava. Ela não é muito dada a manifestações de afecto. É uma pessoa franca e um pouco contida, mas consigo ter essa percepção um pouco tardia. E não posso imaginar o que isso re­presentaria para ela. Entretanto, eles acabaram por ter de ir mo­rar para outro lado. Ele tinha melhores hipóteses de viver mais tempo se saíssem deste clima e se afastassem do stress. Por conse­guinte, ou eu ficava, ou o jornal fechava.

- Ela contava que ficasses.

Flynn lembrou o que dissera relativamente às suas expecta­tivas.

- Pois, para cumprir o meu dever. Durante um ano fiquei cha­teado com ela, e depois fiquei irritado ainda outro ano. Ao tercei­ro, a dada altura consegui resignar-me. Não sei bem quando é que esse sentimento se transformou em... suponho que se pode dizer satisfação. Mas mais ou menos na altura em que dei por mim satisfeito comprei a casa. Depois, arranjei o Moe.

- Eu diria que já não fazes parte dos planos da tua mãe e estás por tua conta.

Ele soltou uma gargalhada meio contrafeita.

- Sua filha-da-mãe. Suponho que sim.

 

Havia pouquíssimos motivos que levassem Dana a deixar-se arrancar da cama. O trabalho, como é óbvio, era o principal incentivo. Porém, quando ela tinha uma ma­nhã de folga o passatempo preferido era dormir.

Desistir desse prazer a pedido de Flynn era, em sua opinião, a demonstração máxima da afeição fraternal. E devia render-lhe
pontos consideráveis, que resgataria posteriormente em caso de necessidade.

Às sete e meia, ela bateu à porta de casa de Malory, envergando uma T-shirt do Croucho Marx, calças de ganga rasgadas, e um par de Oakleys.

Como já conhecia bem a irmã, Flynn abriu a porta e, num impulso, passou-lhe uma chávena de café fumegante para as mãos.

- És um amor. És uma jóia. És a minha arca do tesouro pessoal.

- Não me iludas! - Ela entrou em casa a passos largos, sentou-se no sofá e começou a inalar o vapor do café. - Onde está a Mal?

-Ainda está a dormir.

- Tens pãezinhos?

- Não sei. Não fui ver. Devia ter ido ver - ofereceu-se ele prontamente. - Sou um egoísta dum raio, só penso em mim.

- Desculpa, mas devias dar-me o prazer de dizer isso.

- Foi só para te poupar tempo e energia. Tenho de ir. Tenho de estar no jornal daqui a... merda, vinte e cinco minutos - disse ele ao olhar para o relógio.

- Diz-me só porque estou no apartamento de Malory, a tomar café e à espera de que haja pão, se ela está a dormir.

- Não tenho tempo para entrar em pormenores. Ela teve uma noite difícil e não quero que fique sozinha. Não pode ser, Dana.

- Céus, Flynn, o que foi? Alguém lhe bateu?

- É como se tivesse batido. Emocionalmente falando. E não fui eu - acrescentou enquanto se dirigia para a porta. - Não saias de ao pé dela, está bem? Eu ponho-me na alheta logo que puder, mas hoje é a apresentação da lista preliminar de candidatos. Dei­xa-a dormir e depois, não sei, mantém-na ocupada. Eu depois telefono.

Ele já passara a porta do quintal e se afastava a passos largos e Dana ainda o seguia de olhar carrancudo.

- Para jornalista, és seguramente parco em explicações - resol­vida a aproveitar-se o melhor possível da situação, preparou-se para atacar a cozinha de Malory.

Entusiasmada, ia a dar a primeira dentada num pãozinho com sementes de papoila quando Malory entrou.

De olhar apático, observou Dana. Um pouco pálida. Rosto bastante vincado. Imaginava que a responsabilidade das rugas caberia a Flynn.

- Olá. Queres a outra metade?

Visivelmente grogue, Malory limitou-se a fazer vista grossa.

- Olá para ti também. Onde está o Flynn?

- Teve de sair à pressa. Foi tratar de uma reportagem sobre candidatos e coisas do género. Queres antes café?

- Quero - respondeu ela, esfregando os olhos e fazendo um esforço para pensar. - O que é que fazes aqui, Dana?

- Não faço a mínima ideia. O Flynn ligou-me há cerca de qua­renta minutos, a uma hora que nem lembra ao diabo, e pediu-me para vir cá a casa. Não adiantou pormenores, mas perdeu algum tempo a justificar-se, por isso levantei o rabo da cama e vim até aqui de rastos. O que se passa?

- Suponho que esteja preocupado comigo - reflectiu um pouco, e acabou por concluir que não se importava particularmente com isso. - É amoroso.

- Então vamos - sugeriu Malory, erguendo a mão para bater à porta, mas Dana afastou-a com uma cotovelada.

- Eu não bato à porta do meu irmão - afirmou, e enfiou a chave na fechadura. - Não quero saber dos idiotas que possam lá estar a morar com ele.

Irrompeu pela casa fora, preparada para um confronto. Contra­riada por ser tão facilmente reduzida à sua insignificância por não o ver, bateu com a porta.

- Dana.

- Ups! Escapou-me - de polegares enfiados nos bolsos, entrou na sala e deambulou por ali. - Estão exactamente onde os deixá­mos - declarou, apontando com a cabeça para os quadros. - E sabes que mais? Também não lhes noto diferença nenhuma. Por hoje, a missão está cumprida. Vamos às compras, ou a qualquer lado.

- Quero examiná-los de forma mais minuciosa, e passar uma vista de olhos pelos apontamentos. Mas não há nenhum motivo para ficares aqui sem fazer nada.

- Prometi ao Flynn.

- O Flynn preocupa-se sem necessidade.

- Pois sim, mas eu prometi - declarou e, ao sentir um movi­mento no vão da porta atrás de si, assumiu uma atitude rígida. -Além de que, ao contrário de algumas pessoas, cumpro as mi­nhas promessas.

- E guardas rancor com igual fervor - comentou Jordan. - Olá, minhas senhoras! Em que posso servi-las?

- Gostava de voltar a examinar os quadros e os meus aponta­mentos - disse-lhe Malory. - Espero que não te importes.

- Quem é ele para se importar? A casa não é dele.

- É bem verdade - a figura alta e robusta de Jordan, de calças de ganga pretas e a T-shirt da mesma cor, estava apoiada na om­breira da porta. - Fiquem à vontade.

- Não tens nada melhor para fazer do que andares por aí escon­dido? - atirou-lhe Dana. - Algum livro para fingir que escreves, algum editor para esfolar?

- Conheces os assalariados da ficção comercial tão bem como eu. Arrasamos com eles em duas semanas, e depois andamos na vadiagem à conta dos direitos.

- Se quiserem discutir os dois, não me importo, a sério, não quero saber disso para nada - declarou Malory, e despejou a pasta recheada de apontamentos no tabuleiro de papéis. - Mas tal­vez pudessem continuar com a discussão noutra sala.

- Não estamos a discutir - retorquiu Jordan. - São só os preli­minares.

- Deves estar a sonhar.

- Stretch, geralmente nos meus sonhos apareces com menos roupa. Se precisares da minha ajuda para alguma coisa, diz, Malory - ofereceu ele, e depois endireitou-se e afastou-se a passos largos.

- Volto já - prometeu Dana, e foi disparada atrás dele, como um foguete. - Na cozinha, engraçadinho - indicou, desatando a correr, e pôs-se a ranger os dentes enquanto esperava que ele aparecesse.

Ele andava sempre no seu passo certo, pensou, sempre o fize­ra. A sua irritação ia aumentando na proporção da lentidão dele. Preparava-se para largar a primeira salva quando ele se aproxi­mou, se agarrou às suas ancas, e cobriu com a dele a sua boca espantada.

Uma lufada de calor percorreu o corpo dela.

Acontecia sempre isso.

O ardor, o fogo e a esperança todos reunidos numa espécie de cometa fundido, que explodia no cérebro e lhe deixava o sis­tema de rastos.

Dessa vez, não. Nunca mais voltaria a acontecer.

Dana empurrou-o com força, obrigando-o a recuar um passo. Não ia dar-lhe uma bofetada. Seria um acto demasiado previsível e feminino. Porém, esteve quase a dar-lhe um murro.

- Desculpa. Pensava que me tinhas chamado para vir aqui com essa intenção.

- Experimenta outra vez, e ficas a sangrar de vários ferimentos fatais.

Ele encolheu os ombros e deambulou até chegar à cafeteira.

- Enganei-me.

- É verdade. Maldito sejas! Todos os direitos que tinhas de me tocar expiraram há muito. Talvez faças parte deste circuito por­que por acaso compraste a porcaria do quadro, e é só por isso que te tolero. E porque és amigo do Flynn. Mas, enquanto aqui estiveres, tens de te sujeitar às regras.

Ele encheu duas canecas de café, e colocou a sua na bancada.

- Explica-me essas regras em pormenor.

- Nunca mais me tocas. Se eu estiver a um passo de me meter à frente da porcaria de um autocarro, nunca estendas o braço para me puxar para o passeio.

- Muito bem. Preferes ser atropelada por um autocarro a dei­xares que te toque. Certo. Mais?

- És um grande filho-da-mãe!

A expressão de um sentimento que poderia ser de pesar per­passou pelo semblante de Jordan.

- Eu sei. Vamos recuar um pouco. O Flynn ocupa um lugar importante nas nossas vidas, e isso é um aspecto importante para ele. Aquela mulher que está lá dentro é importante para ele e é importante para ti. Quer queiramos quer não, estamos todos uni­dos nesse sentimento. Por isso, vamos procurar resolver este dile­ma. Esta manhã ele veio aqui e, passados cerca de três minutos, saiu. Nessa altura, não consegui sacar dele grande coisa, nem quando telefonou ontem à noite, a não ser que Malory tenha problemas. Dá-me mais pormenores.

- Se a Malory quiser que saibas, ela conta-te. ”Entrega-lhe um ramo de oliveira”, pensou ele, ”e ela crava-to pela garganta abaixo.”

- Continuas um osso duro de roer.

- Isto é um assunto privado - disse bruscamente. - E um as­sunto do foro íntimo. Ela não te conhece bem. - Apesar das inú­meras promessas solenes, sentiu os olhos inundarem-se de lágrimas. - Nem eu.

Aquele olhar único de manifesta tristeza abriu-lhe um buraco no coração.

- Dana.

Quando ele deu um passo para se aproximar, ela fez um esfor­ço para deitar a mão e tirar uma faca de pão da bancada.

- Se pões outra vez as mãos em cima de mim corto-tas rente aos pulsos.

Ele ficou parado onde estava e enfiou as mãos nos bolsos.

- Porque é que não ma espetas no coração e acabas com isso? -A única coisa que quero é ver-te longe de mim. O Flynn não quer que a Malory fique sozinha. Passa a ser o teu turno, porque eu vou-me embora.

- Se vou fazer de cão de guarda, era bom conhecer o inimigo contra o qual a guardo.

- Feiticeiros maus e poderosos. - Com um puxão, abriu a por­ta das traseiras. - Se lhe acontecer alguma coisa, não só te enterro aquela faca no coração, como o corto aos pedaços e os dou ao cão para comer.

- Sempre tiveste uma imaginação muito fértil - proferiu num tom arrastado depois de ela bater com a porta.

Passou a mão pela barriga. Ela deixara-lhe as vísceras atadas em nós - outra coisa para a qual tinha um jeito dos diabos. Olhou para a chávena de café em que Dana nem sequer tocara. Embora soubesse que isso não passava de um gesto simbólico idiota, pe­gou na chávena e deitou o café pela pia abaixo.

”Pelo cano abaixo. Tal e qual como nós.

Malory examinou os quadros até ficar com a visão toldada, Tirou mais alguns apontamentos, e depois estendeu-se no chão para concentrar o olhar no tecto. Baralhou tudo o que sabia na cabeça, na expectativa de que um novo desenho mais explícito tomasse forma.

Uma deusa que canta, jogos de luz e sombra, o que sentia no seu mundo íntimo e no mundo exterior. Observar, e ver o que não vira. O amor forjava a chave.

O inferno.

Três quadros, três interpretações. Quereria isso dizer que em cada quadro havia uma pista, um sinal, uma orientação para se chegar a cada uma das chaves? Ou haveria um repositório nos três quadros a indicar o caminho para a primeira chave? Para a sua?

Em qualquer caso, havia algo que lhe escapava.

Todos os quadros continham elementos comuns. O tema da lenda, como é evidente. O tema recorrente da floresta e das som­bras. A figura encapuçada junto delas.

Devia ser Kane.

Porque estaria Kane representado no retrato de Artur? Será que ele estivera realmente presente no evento, ou será que a sua inclusão, bem como a de Rowena e de Pitte, tivera um sentido meramente simbólico?

Porém, mesmo com esses elementos comuns, o retrato de Artur não parecia fazer parte do que tinha a certeza de ser um conjun­to. Haveria outro quadro d’As Filhas do Vidro, para completar a tríade?

Onde poderia encontrá-lo, e o que é que o quadro lhe diria se o encontrasse?

Deu meia volta e examinou novamente o retrato do jovem Artur. Lá estava a pomba branca no canto superior direito. Um símbolo de Guinevere? O princípio do fim daquele momento maravilhoso?

Traição por amor. As consequências do amor.

Será que, naquele momento, ela não estava a enfrentar as consequências do amor, bem no seu íntimo? Tal como o coração, também a alma era um símbolo de amor e de perfeição. Emo­ções, poesia, arte, música. Magia. Elementos anímicos.

Sem a alma não haveria consequências, nem perfeição.

Se a deusa sabia cantar, isso não significava que ainda possuía alma?

A chave devia estar num lugar onde a arte, ou o amor, estives­sem presentes. Perfeição ou música. Ou num lugar onde se tives­se tomado a decisão de guardar ou rejeitar esses elementos.

Num museu, então? Numa galeria? ”A Galeria”, pensou, pon­do-se subitamente de pé.

- Dana!

Saiu a correr em direcção à cozinha, parando abruptamente ao avistar Jordan sentado à mesa manchada, a trabalhar num pe­queno computador portátil.

- Desculpa. Pensava que a Dana estava aqui.

- Há horas que ela se foi embora.

- Horas? - Malory passou a mão pelo rosto como se estivesse a despertar de um sonho. - Perdi a noção do tempo.

- Acontece-me com frequência. Queres um café? - pergun­tou, olhando de soslaio para a cafeteira vazia sobre a bancada. - Só precisas de o fazer.

- Não, preciso mesmo é de... Estás a trabalhar. Desculpa a interrupção.

- Não tem importância. Estou num daqueles dias dedicados à fantasia de arranjar uma profissão alternativa. Ser, por exemplo, lenhador no Yukon ou trabalhar num bar numa estância de vera­neio tropical.

- Alternativas muito distintas.

- Qualquer delas parece ser bastante mais divertida do que aquilo que faço.

Malory reparou na chávena de café vazia, no cinzeiro meio cheio ao lado do portátil grotesco, na mesa de piquenique em segunda mão, numa cozinha excessivamente feia.

- Talvez o ambiente não seja particularmente propício à criatividade.

- Quando o trabalho corre bem, até se pode estar no esgoto com um bloco e um Ticonderoga.

- Imagino que sim, mas não sei se não te terás instalado neste...­ compartimento infeliz por estares a tomar conta de mim.

(Marca de lápis tradicionais, com borracha na ponta. (N. da T.)

- Depende - replicou ele, recostando-se para descontrair en­quanto remexia no maço de cigarros cada vez mais reduzido. - Se não te importares, claro. Se isso te chateia, tenho muita pena, mas não sei do que estás a falar.

Ela levantou a cabeça.

- E se eu dissesse que tinha de sair agora, que queria ir à rua ver uma coisa?

Ele brindou-a com um sorriso condescendente, daqueles que imaginava poderem passar por inocentes num rosto menos per­verso.

- Diria: ”Não te importas que te siga de perto? Talvez me faça bem sair de casa por algum tempo. Aonde vamos?”

- A galeria. Ocorreu-me que a chave deve estar ligada à arte, ao belo, aos quadros. Nesta zona, é o lugar onde é mais lógico ir procurar.

- Ah, pois. Vais entrar num local público, durante as horas de serviço, e ninguém se vai importar que vasculhes o material e/ou as zonas de serviço.

- Bom, se pões as coisas nesses termos - reduzida à sua insig­nificância, sentou-se ao lado dele, mantendo uma certa distân­cia. -Achas que toda esta história não passa de uma grande tolice?

Jordan relembrou a imagem de alguns milhares de dólares a aparecer e a desaparecer.

- Não necessariamente.

- E se te dissesse que podia ter um esquema para entrar na galeria depois das horas de serviço?

- Diria que se não fosses uma mulher criativa dotada de um espírito flexível e disposta a correr alguns riscos, não terias sido escolhida para participar nesta missão.

- Agrada-me essa descrição. Não sei se sempre se aplicou bem à minha pessoa, mas agora aplica-se. Preciso de fazer uns telefonemas. E já agora, Jordan? Penso que o facto de um ho­mem desperdiçar um dia a tomar conta de uma estranha, só porque um amigo lho pediu, revela um forte sentido de carácter e de lealdade.

 

Malory pegou nas chaves de Tod, e retribuiu-lhe o gesto com um forte abraço.

- Fico a dever-te um grande favor.

- Eu diria que sim, mas fico à espera de alguma explicação para isto.

-Assim que puder. Prometo.

- Toda esta situação está a assumir contornos realmente estra­nhos, querida. Em primeiro lugar, és despedida, em seguida ace­des aos ficheiros da Pamela. Recusas um convite para voltares a casa e à família com um aumento considerável. E agora vais an­dar por aí escondida depois da galeria fechar.

- Sabes que mais? - perguntou ela, fazendo tilintar as chaves na mão. - Essa não é a parte mais estranha. Posso dizer-te unica­mente que se trata de uma missão importante, e que a desempe­nho com a melhor das intenções. Não vou prejudicar a galeria, nem o James e, especialmente, não te vou causar quaisquer pro­blemas.

- Nunca imaginei que o fizesses.

- Devolvo-te as chaves esta noite. Na pior das hipóteses, ama­nhã de manhã cedo.

Tod relanceou o olhar pela janela e viu Flynn a caminhar vaga­rosamente no passeio.

- Isto não tem nada a ver com fetiches ou fantasias sexuais?

- Não.

- Bom, é pena. Vou-me embora. Vou tomar um belo Martini, ou talvez dois, e varrer tudo isto completamente da minha cabeça.

- Faz isso mesmo.

Tod preparava-se para sair, mas depois deteve-se e olhou no­vamente para ela.

- Seja o que for que estás a fazer, Mal, tem cuidado.

- Terei, prometo.

Ela esperou um pouco e ficou a ver Tod parar para conversar com Flynn, seguindo depois para um passeio a pé. Malory abriu a porta, fez um gesto a Flynn para entrar, e depois fechou-a e mar­cou o código de segurança. - O que é que o Tod te disse?

- Que se eu te metesse nalguma espécie de sarilho, me pendu­rava pelos tomates e a seguir me retalhava várias partes do corpo com uma tesoura de mãos.

- Ui! Essa é boa.

- Podes crer - afirmou, e espreitou pela janela para se certifi­car de que Tod se tinha ido embora. - E deixa que te diga. Se estivesse a pensar em meter-te nalguma espécie de sarilho, essa imagem teria um efeito dissuasor bastante forte.

- Bem vistas as coisas, parece-me que era eu quem te podia causar algum problema. Neste caso, há uma questão legítima, a da justiça penal, e está em jogo a tua reputação enquanto editor e chefe de redacção do Dispatch. Não és obrigado a fazer isto.


- Conta comigo. As tesouras de mãos não são aquelas peque­nas e aguçadas, de pontas curvas?

- É isso mesmo.

Ele assobiou de um só fôlego.

- Pois, já receava isso. Por onde começamos?

- Pelo andar de cima, acho eu. E depois à descida vamos en­trando e procurando por todo o lado. Partindo do princípio de que as chaves estão representadas nos quadros nas devidas pro­porções, devem ter cerca de oito centímetros.

- É uma chave pequena.

- Sim, uma chave francamente pequena. A extremidade para abrir tem uma única ranhura muito simples - prosseguiu ela, entre­gando-lhe um pequeno desenho. - A outra ponta é decorada com este motivo complexo. Trata-se de um motivo celta, uma tripla espiral designada por triskeles. A Zoe descobriu o motivo num dos livros da Dana.

- Vocês as três formam uma bela equipa.

- Parece que sim. A chave é dourada, provavelmente de ouro de lei. Nem me passa pela cabeça que, se a virmos, não sejamos capazes de a identificar.

Ele lançou uma olhadela pela sala de exposições principal, com os seus tectos abobadados e o seu espaço generoso. Como era evidente, era ali que se encontravam os quadros, algumas esculturas e outras obras de arte. Vitrinas e mesas próprias para expor peças. Gavetas, arcas e contadores com inúmeros cubículos.

- Há aqui uma série de lugares onde se podia esconder uma chave.

- Espera até entrarmos nas zonas destinadas a arrecadação e expedição de mercadorias.

Iniciaram as buscas pelos gabinetes. Malory afastou o senti­mento de culpa por remexer nas gavetas, vasculhando em objec­tos pessoais. Não era o melhor momento para apelar à sensibilidade, disse para consigo. Pôs-se de gatas à volta da secre­tária de James para procurar lá debaixo.

- Achas mesmo que pessoas como a Rowena e o Pitte, ou outro deus qualquer encarregue de esconder chaves, seriam ca­pazes de colar a chave secreta no fundo de uma gaveta?

Ela dirigiu-lhe um olhar amuado, e voltou a colocar a gaveta no lugar.

- Penso que não nos podemos dar ao luxo de descurar nenhu­ma possibilidade.

”Está com um ar mesmo engraçado”, pensou ele, ”sentada no chão com o cabelo preso atrás, deixando ver o rosto e a boca de rabugenta.” Imaginou se não se teria vestido de preto por achar que era a cor indicada para as circunstâncias.

Seria mesmo coisa dela.

- Dava jeito, mas contemplaríamos todas essas possibilidades mais depressa se convocássemos a equipa completa.

- Não posso pôr para aqui um grupo de pessoas a passear de um lado para o outro. Não tenho esse direito. - E o sentimento de culpa pelo que estava ali a fazer arranhou-lhe a consciência, como se de unhas danificadas se tratasse. - Já não é nada bom tu estares aqui. Não podes usar nada do que aqui vês nos teus artigos.

Ele agachou-se ao lado dela, fixou o seu rosto com um olhar transfigurado entre frio e desolado.

- É isso que pensas?


- Não me parece assim tão insensato o facto de essa ideia me ter passado pela cabeça - afirmou ela, levantando-se para tirar um quadro da parede. - És jornalista - prosseguiu, enquanto exami­nava a moldura e observava o verso. - Eu devo muito a esta casa, ao James. Só estou a dizer que não o quero ver envolvido nisto.

Voltou a pendurar o quadro e escolheu outro.

- Devias fazer uma lista por escrito dos temas sobre os quais seria correcto, ou não, eu escrever. Na tua opinião.

- Escusas de ficar irritado.

- Fico, sim. Investi grande parte do meu tempo e energia nesta história, e nunca divulguei uma única palavra. Não ponhas a mi­nha ética em causa, Malory, lá porque estás a pôr a tua. E nunca mais me digas o que posso, ou não, escrever.

- É apenas uma maneira de dizer que este assunto não é para divulgar.

- Não é, não. É uma questão de confiança e respeito por al­guém que se confessa amar. Vou começar a procurar na sala se­guinte. Penso que trabalhamos melhor separados.

”Como é que consegui”, interrogou-se, ”deixar este homem completamente transtornado?” Retirou o último quadro da pare­de e esforçou-se por se concentrar no trabalho.

Era evidente que Flynn estava hipersensível. O pedido que lhe fizera era perfeitamente razoável, e se ele queria ficar amuado por causa disso, o problema era dele.

Passou os vinte minutos seguintes a vasculhar a sala ao milíme­tro, consolando-se a si mesma com a convicção de que ele tivera uma reacção exagerada.

Depois disso não falaram durante uma hora, e apesar de se­rem duas pessoas a realizar o mesmo trabalho no mesmo espaço, conseguiram evitar qualquer contacto.

Sensivelmente na altura em que iniciavam a busca no andar principal, já tinham adquirido um certo ritmo, mas continuavam sem falar um com o outro.

Tratava-se de um trabalho monótono e frustrante. Verificar, um a um, todos os quadros, esculturas, pedestais e peças de arte. Examinar a escada de fio a pavio, de gatas, ao longo do corrimão.

Malory seguiu sozinha para o armazém. Sentiu um misto de pena e emoção ao deparar com peças adquiridas recentemente, ou ao ver outras que tinham sido vendidas desde que deixara a galeria, à espera de serem encaixotadas e expedidas.

Antigamente, era informada de todos os passos e procedimen­tos, e tinha o direito de adquirir peças e negociar o preço. Bem no íntimo, sentia que a galeria lhe pertencera. Era incapaz de contar as vezes que ficara ali fechada depois das horas de serviço, como agora. Naquela época ninguém teria posto em causa a sua presença no edifício. Não teria havido necessidade de mendigar as chaves a um amigo, nem de se sentir culpada.

E de duvidar da ética do seu comportamento, reconheceu.

Não teria sentido este sofrimento terrível, apercebeu-se en­tão. O desgosto por lhe ter sido roubada aquela parte da
sua vida. Talvez tivesse cometido uma loucura ao recusar a oferta de aceitar novamente aquela vida. Talvez estivesse a cometer um erro enorme ao desviar-se do mundo sensível, palpável. Podia voltar a falar com James, e dizer-lhe que mudara de ideias. Podia voltar a entrar naquela rotina e ter as regalias que sempre tivera.

Porém, nunca mais seria o mesmo.

Era essa a causa do sofrimento. A sua vida mudara de forma irreversível. E ela nem tivera tempo de lastimar a perda. Fazia-o agora, em cada peça que tocava, em cada minuto que passava no espaço que constituía dantes a parte mais importante da sua vida.

Revisitou inúmeras recordações, muitas das quais faziam par­te da rotina quotidiana e que, naquela época, não tinham o me­nor significado. Como tudo o resto, até lhe ter sido roubado.

Subitamente, Flynn abriu a porta.

- Aonde queres que... - começou, interrompendo o discurso quando ela se virou para ele. Os seus olhos conservavam-se se­cos, mas devastados pela dor. Segurava nos braços uma escultura de pedra natural, como se pegasse numa criança ao colo.

- O que é?

- Sinto tantas saudades desta casa. É como se alguma coisa ti­vesse morrido. - Com um cuidado extremo, voltou a colocar a escultura numa prateleira. - Adquiri esta peça há cerca de quatro meses. É de um artista recente. É um jovem dotado de toda a pu­jança e carácter que seria de esperar, pelo que se percebe do seu trabalho. É natural de uma pequena cidade de Maryland, e teve alguma sorte a nível local, mas nenhuma galeria importante mos­trou interesse nas suas obras. Foi uma sensação bastante gratificante poder proporcionar-lhe a primeira oportunidade a sério, e pensar no que ele poderia fazer, no que nós poderíamos fazer no futuro. Passou a ponta do dedo pela pedra.

- Houve alguém que comprou a peça. Não tive nada a ver com essa parte do processo, nem sequer conheço o nome indicado na factura. Já não me pertence.

- Sem a tua intervenção, a peça não estaria aqui nem teria sido vendida.

- Talvez, mas esse tempo acabou. Já não tenho lugar aqui. Peço desculpa pelo que te disse há pouco. Desculpa se te ma­goei.

- Esquece isso.

- Não - disse ela, tomando o fôlego. - Não quero dizer com isto que não tenha sentido alguma ansiedade em relação à forma como poderias, eventualmente, tratar toda esta história. Não posso afirmar que confio em ti sem reservas. Esse sentimento interfere no meu amor por ti e não o consigo explicar. Tal como não consi­go explicar como sei que a chave não está aqui, ou como o soube no preciso momento em que aqui entrei e que o Tod me deu as chaves. Apesar disso, tenho de procurar, de acabar o trabalho que comecei. Mas a chave não está aqui, Flynn. Neste momento, não há nada para mim neste lugar.

 

Flynn fechou a porta do gabinete, sinal de que estava a es­crever e não queria ser incomodado. Não é que alguém prestasse grande atenção àquele sinal, mas era uma questão­ de princípio,

Geralmente começava por deixar fluir livremente a ideia a desenvolver na coluna do jornal, uma espécie de corrente de pensamento copiosa que, numa segunda passagem, canalizaria e trataria de uma forma mais disciplinada.

O que definiria um artista? Artistas seriam apenas os seres que criavam obras que se entendia serem belas ou arrojadas, que da­vam vida a uma obra que fazia mexer as pessoas por dentro? No mundo da pintura, da música, da literatura ou do teatro?

Nesse caso, isso não faria com que o resto do mundo se limitasse ao papel de público? Observadores passivos, cujo único contributo consistia em aplaudir ou criticar?

O que seria do artista sem o público?

A ideia fugia um pouco à linha habitual da sua coluna, pensou Flynn, mas andava às voltas na sua cabeça desde aquela noite em que ele e Malory tinham revistado a galeria. Era altura de deitar tudo cá para fora.

Ainda recordava a expressão de Malory naquele armazém. Com uma figura de pedra nos braços e a expressão de dor a inundar-lhe o olhar. Nos três dias seguintes ela mantivera uma certa dis­tância em relação a ele e às outras pessoas. Ah, não se cansava de protestar que andava ocupada, que prosseguia vários caminhos na sua busca, que estava a pôr a vida em ordem.

Apesar disso, na sua opinião, a vida de Malory nunca fora pro­priamente caótica.

Contudo, ela recusava-se a sair de casa e não o deixava ir a casa dela.

Podia ser que a coluna representasse uma espécie de mensa­gem para ela.

Rodou os ombros, e tamborilou com os dedos na beira da secretária até a mente se voltar a desviar para o trabalho, buscan­do as palavras certas.

A criança que aprendia pela primeira vez a formar o seu nome com letras não seria uma espécie de artista? Um artista que vai explorando as capacidades do intelecto, da coordenação de movi­mentos e do ego. Quando a criança empunhava aquele lápis gor­do, ou o lápis de cera, e a seguir desenhava aquelas letras no papel, não estaria a criar, através de linhas e curvas, um símbolo de si mesma? É isto que eu sou, e não há ninguém igual a mim.

A arte está presente na afirmação e na obra feita.

E o que dizer da mulher que à noite era capaz de servir uma refeição quente na mesa? Para um chefe de mesa francês, isso seria um feito prosaico, mas para aqueles que lutavam em vão para seguir as instruções indicadas numa lata de sopa instantâ­nea, apanhar um rolo de carne, puré de batata e feijão-verde em cima da mesa era, sem sombra de dúvida, uma arte magnífica e misteriosa.

- Flynn?

- Estou a trabalhar - retorquiu secamente, sem levantar os olhos.

- Não és o único - disse Rhoda, e fechou a porta atrás de si, avançou com ar solene e sentou-se numa cadeira. Cruzou os bra­ços sobre o peito e fuzilou Flynn com o olhar por detrás da arma­ção quadrada dos óculos.

Porém, sem a presença de um público atento e disponível para consumir a arte, esta passa a ser igual aos restos congelados que se deitam no lixo...

- Que diabo!

Num impulso, ele afastou-se do teclado.

- O que é?

- Cortaste dez linhas ao meu artigo.

Sentiu um formigueiro nas mãos, teve vontade de pegar na mola Slinky e envolver com ela o pescoço magricela de Rhoda.

- E então?

- Disseste que publicavas cento e vinte linhas completas.

- E o que tu tinhas era cento e dez linhas de matéria e dez linhas de palha. Cortei a palha. O artigo era bom, Rhoda. Agora, ficou melhor.

- Quero saber por que razão estás sempre a implicar comigo, porque cortas sempre os meus artigos. Quase nunca pões uma marca nos artigos do John ou da Carla, e o meu trabalho está cheio delas.

- John dedica-se à página desportiva. Há mais de dez anos que se dedica ao desporto, já conseguiu reduzir o desporto a uma ciência.

Arte e ciência - reflectiu Flynn - e tomou uma breve nota para se lembrar de introduzir o tema na coluna. E o desporto... Se observássemos bem a forma como um lançador esculpia a terra na elevação em que assenta os pés até encontrar a forma, a textu­ra, a inclinação exactas ele...

- Flynn!

- O que é? - respondeu bruscamente, rebobinando a fita que rodava na sua cabeça. - E eu publico os artigos da Carla sempre que ela precisar. Rhoda, agora eu também tenho um prazo para cumprir. Se quiseres continuar esta conversa, marcamos uma hora amanhã.

Os lábios de Rhoda contraíram-se numa expressão de desa­grado.

- Se não resolvermos este assunto agora, amanhã já não venho.

Em lugar de procurar chegar à personagem dos filmes de ac­ção de Luke Skywalker, de imaginar o cavaleiro Jedi a puxar do seu sabre luminoso e, numa rajada, apagar o sorriso superior afec­tado do rosto de Rhoda, Flynn sentou-se novamente.

”Já é tempo”, decidiu, ”de ser eu a fazer este trabalho.”

- Muito bem. Em primeiro lugar, posso dizer-te que já estou cansado das tuas ameaças de te pores a andar. Se não te sentes satisfeita aqui, nem com a forma como dirijo o jornal, então vai-te embora.

O rubor tingiu-lhe o rosto de vermelho.

- A tua mãe nunca,..

- Eu não sou a minha mãe. Entendido? Sou o director do Dispatch. já há quase quatro anos que sou responsável pelo jor­nal e tenciono continuar a fazê-lo por muito tempo. Vais ter de te habituar à ideia.

Nesse momento, os olhos dela inundaram-se de lágrimas e, uma vez que Flynn as considerava um golpe baixo, esforçou-se por ignorá-las.

- Mais alguma coisa? - perguntou ele friamente.

- Já trabalho aqui desde o tempo em que ainda nem sabias ler a porcaria do jornal.

- Talvez seja esse o teu problema. Convinha-te mais quando era a minha mãe a responsável. Agora, dá-te mais jeito continuar a pensar que eu sou um empregado eventual incómodo,
e ainda por cima incompetente.

A boca de Rhoda abriu-se de espanto numa expressão que parecia de sincero abalo.

- Não te considero incompetente. Penso unicamente que...

- Que não me devia meter no teu trabalho - afirmou ele, nova­mente com um tom jovial, embora a expressão permanecesse fria. - Que eu devia fazer o que tu dizes, em vez de proceder de outra forma. Isso nunca vai acontecer.

- Se achas que não faço um bom trabalho...

- Senta-te - ordenou-lhe quando ela estava prestes a levantar-se. Já conhecia o esquema. Ela era capaz de fazer uma tempes­tade, atirar com tudo o que apanhasse à mão e fuzilá-lo com o olhar através da divisória de vidro, e depois garantir que o artigo seguinte entrava discretamente, poucos minutos antes do prazo combinado.

- Por acaso, até acho que fazes um bom trabalho. Não é que essa opinião te interesse alguma coisa, vinda de mim, uma vez que não confias nem respeitas a minha competência nem a mi­nha autoridade. Suponho que a situação seja complicada para ti, já que tu és jornalista, nós somos a única empresa do ramo na cidade, e sou eu o responsável. Não vejo que algum desses facto­res possa vir a alterar-se. Da próxima vez que te pedir cento e vinte linhas, tu dás-me as cento e vinte linhas com um conteúdo sólido, e não vamos ter problemas - prosseguiu ele enquanto ia batendo com a ponta do lápis na beira da secretária e ela o fitava, embasbacada.

Perry White, reflectiu, talvez tivesse resolvido melhor o assun­to, só que ele imaginava-se num campo de basebol.

- Mais alguma coisa?

- Vou tirar o resto do dia de folga.

- Não vais, não - emendou ele, chegando a cadeira giratória novamente para perto do teclado. - Quero esse artigo sobre a expansão da escola primária pronto em cima da minha secretária por volta das duas horas. Fecha a porta quando saíres.

Flynn voltou ao seu trabalho de escrita, satisfeito ao ouvir a porta fechar-se no trinco em vez de bater bruscamente. Esperou trinta segundos, e depois desviou a cadeira o suficiente para conse­guir espreitar pela divisória de vidro. Rhoda estava sentada à se­cretária, como que imobilizada.

Detestava confrontos daquele género. Aquela mulher costuma­va dar-lhe pastilhas elásticas à socapa[26] sempre que ele ia ao jornal depois das aulas e se punha a entrar nos gabinetes. Era um infer­no, concluiu, coçando a têmpora a fingir que se concentrava no trabalho. Aquela coisa de ser adulto era um verdadeiro inferno.

À tarde, deu uma escapadela de uma hora para se encontrar com Brad e Jordan no Main Street Diner. O lugar não mudara muito desde que se costumavam juntar ali os três depois dos jo­gos de futebol, ou a altas horas da noite, para umas conversas da treta acerca de miúdas e projectos de vida.

O ar estava ainda empestado pelo cheiro a frango frito típico da casa, e a estante de quatro prateleiras onde se
expunham as diárias do dia ainda se encontrava no balcão. Enquanto Flynn olhava para o hambúrguer que pedira por hábito, ia pensando se teria sido o jantar que ficara preso ao passado, ou ele próprio.

Franziu o sobrolho, ao olhar para a sanduíche de peru que Brad pedira.

- Troca comigo.

- Queres a minha sanduíche?

- Quero a tua sanduíche, pois. Troca comigo - para resolver a questão, Flynn encarregou-se de trocar os pratos.

- Se não querias um hambúrguer, porque é que pediste?

- Porque sou uma vítima dos hábitos e costumes.

- E comeres a minha sanduíche resolve o problema?

- É um princípio. Esta manhã, também comecei a cortar com os hábitos ao apertar com a Rhoda lá no jornal. Quando ela recu­perar do choque, tenho a certeza absoluta de que vai começar a preparar a minha transferência.

- Porque é que quiseste a sanduíche dele em vez da minha? -perguntou Jordan.

- Não gosto de Reubens.

Jordan pensou melhor, e a seguir trocou de prato com Brad.

- Caramba! Já acabámos de brincar à dança dos pratos? - per­guntou Brad lançando um olhar mal-humorado para o Reuben, acabando depois por concluir que tinha realmente muito bom aspecto.

Embora estivesse já com vontade de recuperar o hambúrguer, Flynn deitou uma olhadela para a sanduíche de peru.

- Acham que o facto de ficarmos toda a vida na nossa cidade natal nos faz ficar demasiado presos ao passado, resistentes às mudanças e à evolução e, por isso, com pouca capacidade de viver como adultos maduros?

- Não sabia que este encontro se ia transformar numa discus­são filosófica - porém, com vontade de brincar, Jordan pensou na pergunta enquanto punha ketchup em cima do hambúrguer. -

Eu diria que ficar na terra onde nascemos é um sinal de que nos sentimos lá bem e que criámos raízes e relações fortes. Ou então, que somos demasiado preguiçosos ou tolerantes para nos arran­carmos de lá.

- Agrada-me a vida aqui. Demorei algum tempo a chegar a essa conclusão. Até há bem pouco tempo, fui bastante tolerante em relação à forma como as coisas corriam. Mas desde o princí­pio deste mês, mais coisa menos coisa, pus a tolerância para trás das costas.

- Por causa das chaves? - perguntou Brad. - Ou da Malory?

- Uma coisa está ligada à outra. As chaves, que grande aven­tura! Sir Galaaz e o Santo Graal, Indiana Jones e a Arca Perdida.

- Elmer Fudd e Bugs Bunny - acrescentou Jordan.

- Claro, é tudo a mesma coisa. - ”Podemos sempre contar com Jordan para nos dar força”, pensou Flynn. - Nenhuma das nossas vidas vai sofrer um revés se não encontrarmos as chaves. É verdade que não.

- Um ano - disse Brad. - Na minha opinião, trata-se de uma pena bastante pesada.

- Está bem, claro - concordou Flynn, tirando uma batata frita do pequeno monte ao lado da sanduíche. - Mas custa-me muito ver a Rowena ou o Pitte castigarem estas mulheres.

- Talvez não sejam eles a fazer os estragos - comentou jordan.

- Eles podem ser unicamente o veículo, por assim dizer, que con­duz ao prémio ou ao castigo. Porque é que partimos do princípio de que também interferem nas decisões?

- Estou a tentar ter um pensamento positivo - replicou Flynn.

- Mas a ideia de virmos a encontrar as chaves, e do que aconte­cerá a seguir, é bastante atraente.

- Aliada ao facto de ser um enigma, e de ser difícil como o diabo virar as costas a um enigma.

Flynn inclinou a cabeça para Brad num gesto de aprovação, e mudou de posição na cadeira.

- E depois há a questão da magia. A aceitação de que a magia, que certos tipos de magia, são reais. Que não constituem uma ilusão, mas representam antes um forte abanão na ordem natu­ral. Não acham que isso é fixe? É um tipo de crença que, ao tornarmo-nos adultos, abandonamos por completo. A eventual crença no mundo da fantasia. E esta história fez-nos regressar a esse mundo.

- Queres encarar este caso como uma dádiva, ou como um fardo? - indagou Jordan. - Pode ser visto das duas maneiras.

- Mais uma vez, obrigado, Grande Optimista. Pois é, eu tam­bém sei isso. Estamos a chegar ao fim do prazo. Falta pouco mais de uma semana. Se não a encontrarmos, talvez paguemos por isso, ou talvez não. Porém, nunca saberemos.

- Não podes descartar as eventuais consequências do fracasso - salientou Brad.

- Estou a tentar convencer-me de que ninguém vai tramar as vidas de três mulheres inocentes pelo facto de elas terem tentado e falhado.

- Se voltares ao princípio desta história toda, concluis que as vidas de três mulheres inocentes, semideusas ou não, estavam já tramadas pelo simples facto de existirem - afirmou Jordan, deitan­do sal no que restava das batatas fritas de Flynn. - Desculpa, pá.

- Falta ainda acrescentar que as mulheres representadas no quadro são parecidas com as mulheres que conhecemos - decla­rou Brad, tamborilando com os dedos na mesa. - Há uma razão para isso, e essa razão coloca-as no centro de toda a trama.

- Não deixarei que aconteça nada à Malory. Nem a qualquer uma delas - replicou Flynn.

Jordan pegou no copo de chá gelado.

- Até que ponto estás preso a ela?

- Isso é outra questão. Ainda não descobri a resposta.

- Bom, nós podemos dar uma ajuda - ofereceu-se Jordan, piscando o olho a Brad. - Para que servem os amigos? Que tal é o sexo?

- Porque é que para vocês isso vem sempre em primeiro lugar? - protestou Flynn. - É sempre o mesmo modelo a vida inteira.

- Porque eu sou homem. E se pensas que as mulheres não colocam o sexo nos primeiros lugares da lista és um triste idiota, digno de dó.

- É fantástico - comentou Flynn, reparando na expressão cada vez mais sarcástica de Jordan. - Quem te dera a ti teres sexo desta qualidade com uma mulher linda. Mas isso não é a única coisa que existe entre nós. Temos conversas a sério, tanto vesti­dos como despidos.

-Incluindo
conversas ao telefone? - perguntou Brad. - Daque­las que duram mais de cinco minutos?

- Sim, e daí?

- Estou só a fazer a lista. Já cozinhaste algum prato para ela? Não me refiro a um petisco qualquer, mas sim a uma refeição a sério, feita no fogão.

- Fiz-lhe uma sopa quando...

- Isso já conta. Já a levaste a ver um filme para miúdas?

De sobrolho franzido, Flynn pegou num triângulo da sanduíche.

- Não sabia que havia filmes classificados para miúdas - afir­mou, e voltou a pousar a sanduíche no prato. - Bem, já. Uma vez, mas foi...

- Não precisas de explicar. Nesta parte do interrogatório, só se responde verdadeiro ou falso. Podemos avançar para a disserta­ção - declarou Jordan. - Imagina a tua vida, digamos, daqui a cinco anos. Será suficiente? - perguntou a Brad.

- Alguns exigem dez, mas creio que podemos ser mais tole­rantes. Para mim, cinco anos já chegam,

- Muito bem. Imagina a tua vida daqui a cinco anos. És capaz de visualizar o contexto sem a presença dela?

- Se nem tenho a certeza do que estarei a fazer daqui a cinco dias como é que posso imaginar a minha vida daqui a cinco anos?

Porém, isso não era verdade. Via a sua casa aliada a alguns dos projectos a longo prazo que concebera para ela. Conseguia imagi­nar-se no jornal, a passear com Moe, com Dana. E via Malory em todos esses contextos. A descer as escadas da casa, a passar pelo jornal para se encontrar com ele, a correr com Moe da cozinha.

Empalideceu um pouco.

- Ena, pá!

- Ela está sempre presente, não está? - perguntou Jordan.

- Está mesmo.

- Parabéns, meu! - exclamou Jordan, dando-lhe uma palma­da no ombro, - Estás apaixonado.

- Espera aí! E se não estiver preparado?

- Azar o teu - replicou Brad.

A sorte era algo que Brad conhecia perfeitamente, e concluiu que a sua lhe batera à porta quando saiu do jantar e reconheceu Zoe parada no semáforo.

Ela ia de óculos de sol escuros, daqueles que envolvem o rosto, e mexia os lábios de uma forma que lhe permitia supor que ia a cantar dentro do automóvel, a acompanhar o som da aparelhagem.

Não seria propriamente andar a persegui-la se, por acaso, pe­gasse no carro, se metesse no meio do trânsito a alta velocidade e fosse atrás dela. O facto de ele interromper o curso de uma camio­neta de entregas era perfeitamente casual.

Era razoável, e mesmo importante, que se conhecessem melhor. Dificilmente poderia ajudar Flynn se não conhecesse as mulheres a quem o amigo estava ligado.

Isso fazia todo o sentido.

Não tinha nada a ver com obsessão. Lá por ter comprado um quadro que representava o seu rosto e não conseguir tirar esse rosto da cabeça, isso não queria dizer que estivesse obcecado.

Estava única e simplesmente interessado.

E se ia ensaiando a meia voz meia dúzia de frases para meter conversa, isso devia-se unicamente ao facto de perceber a importância ­da comunicação. É claro que não se sentia nervoso por falar com uma mulher. Falava com mulheres a toda a hora.

Na realidade, eram as mulheres que falavam com ele. Era con­siderado um dos melhores partidos - e só Deus sabe quanto odiava esse termo - da região. As mulheres desviavam-se do caminho para lhe falar.

Se Zoe McCourt não era capaz de gastar cinco minutos numa conversa educada, bom, quem saía a perder era ela.

No momento em que ela arrumou o carro numa estrada de acesso, ele ficou numa pilha de nervos e irritação. O olhar vaga­mente incomodado que ela lhe lançou quando ele parou atrás dela só contribuiu para piorar ainda mais as coisas.

Com a sensação de ter sido insultado e de fazer figura de par­vo, desceu do carro.

- Vens a seguir-me? - perguntou ela.

- Desculpa? - numa atitude defensiva, a voz dele soou fria e monótona. - Parece-me que sobrevalorizas os teus encantos. O Flynn está preocupado com a Malory. Quando te vi pensei que talvez me pudesses dizer como ela tem passado.

Zoe continuou a observá-lo, meia desconfiada, enquanto abria a bagageira do automóvel. As calças de ganga que trazia eram bastante justas, o que lhe proporcionava a visão atraente de nádegas femininas bem firmes. Vestia um blusão vermelho curto, que lhe assentava bem, e uma camisola às riscas, igualmente acon­chegada, que terminava dois dedos acima do cós das calças.

Brad reparou, com algum fascínio, que o umbigo dela fora furado, ostentando uma placa de prata minúscula. Sentiu as pon­tas dos dedos a aquecer na ânsia de lhe tocar.

- Acabei de passar por lá para a ver.

- Hã? Quem? Ah, a Malory - Agora era atrás do pescoço que sentia calor, e amaldiçoava-se por isso. - Como é que ela está?

- Tem um ar cansado e está um pouco em baixo.

- Sinto muito - afirmou, avançando um passo quando ela co­meçou a descarregar a mala do carro. - Eu dou-te uma ajuda.

- Eu consigo sozinha.

- Não tenho dúvidas disso - declarou ele, resolvendo a ques­tão tirando-lhe das mãos os dois pesados álbuns de amostras de papel de parede. - Mas não vejo razão nenhuma para teres de os carregar. Está a remodelar a casa?

Ela tirou para fora um álbum de amostras de tinta, uma pequena caixa de ferramentas, que ele lhe tirou das mãos, um bloco e umas amostras de azulejos.

- Fizemos o contrato para comprar esta casa. Vamos abrir aqui o negócio. Precisa de umas obras.

Ele começou a andar, deixando-a a fechar a mala do carro. Sim, realmente a casa precisava de obras, mas tinha um aspecto resistente, e o lote de terreno estava bem implantado. Uma exce­lente localização e estacionamento razoável.

- A casa parece ter uma estrutura sólida - comentou ele. -Mandaste examinar os alicerces?

- Mandei.

-A instalação eléctrica?

Ela tirou do bolso as chaves que fora buscar ao agente imobi­liário.

- Lá por ser mulher, isso não significa que não saiba comprar uma casa. Fui ver uma série de casas, e em termos de preço esta era a mais vantajosa, além de ser a mais bem localizada. As obras de que precisa são, na sua maioria, de cosmética.

Zoe abriu a porta de rompante.

- Podes deixar as coisas aí no chão. Obrigada. Eu digo à Malory que perguntaste por ela.

Brad continuou a andar, de maneira a que ela se visse obriga­da a recuar. Embora isso lhe exigisse um certo esforço, não dei­xou que o olhar se desviasse novamente para o umbigo dela.

- Ficas sempre irritada quando alguém te tenta ajudar?

- Fico sempre irritada quando alguém julga que não consigo resolver as coisas sozinha. Olha, não tenho assim tanto tempo para tratar do que vim aqui fazer. Tenho de começar já.

- Então saio já do teu caminho.

Enquanto ele vagueava pela zona da entrada, ia examinando o tecto, o chão, as paredes.

- Belo espaço.

Não detectou vestígios de humidade, mas sentia-se um ambien­te claramente frio. Não sabia bem se isso se deveria a alguma avaria da caldeira ou à mulher que soprava uma aragem gélida.

- Qual é a parte que te compete?

- O andar de cima.

- Muito bem - disse ele, e começou a subir a escada, intima­mente divertido com a impaciência demonstrada na sua respira­ção contida. - Bela escada. Não há nada que não fique bem com madeira de pinho clara.

Parte do corrimão precisava ser substituída, reparou. E a jane­la de cortinados duplos ao cimo da escada também precisava de melhorias. Ela teria de resolver esse problema, arranjando uma janela de vidros duplos para proteger do sol excessivo.

As paredes estavam encardidas pelo tempo, e havia algumas rachas da construção de origem. No entanto, isso constituía um problema fácil de resolver.

Agradava-lhe a divisão e a distribuição das salas, e imaginou se ela iria retirar todas as portas ocas ou se as substituiria por outras mais sólidas que tivessem mais a ver com o estilo da casa.

E o que iria ela fazer quanto à iluminação? Apesar de não perce­ber nada de salões, era lógico que devia ser fundamental dispor de uma iluminação forte.

- Com licença. Preciso da caixa de ferramentas.

- O quê? Ah, desculpa - disse ele, entregou-lhe a caixa e a seguir passou os dedos pelo remate da janela lascado e com a tinta a sair. - Sabes, podias aplicar cerejeira aqui, para fazer con­traste. Várias madeiras diferentes, com o veio natural à mostra, com­binam bem com tons quentes. Não vais cobrir o soalho, pois não?

Ela tirou a fita métrica da caixa.

- Não.

Porque é que ele não se ia embora? Ela tinha muito que fazer, muito em que pensar. E, sobretudo, queria ficar sozinha na sua casa maravilhosa, a fazer projectos, a tomar decisões e a imaginar em sonhos como tudo iria ficar depois do trabalho terminado.

As cores, as texturas, os tons, os cheiros. Tudo.

E ali estava ele, no meio do caminho, a andar de um lado para o outro. No esplendor de toda a sua masculinidade perturbante, dentro do seu fato impecável e dos seus sapatos caros. Ele cheirava, ah, como era suave o cheiro a perfume, a sabonete e a loção de barbear.

Provavelmente, pagara mais por uma barra de sabão do que ela pelas calças e pela camisola que trazia. E imaginava que podia andar por ali às voltas, a perfumar o ar dela, a fazê-la sentir-se desajeitada e inferior.

- Que projectos tens para esta sala?

Ela anotou as medidas, e continuou de costas viradas para ele.

-Aqui fica o salão principal. Destina-se ao tratamento do cabe­lo, das mãos e maquilhagem - como ele não respondia, viu-se obrigada a olhar para trás. Brad estava parado a observar o tecto. - O que foi?

- Há umas pequenas luzes de presença. São muito práticas, mas têm um ar engraçado. Têm a vantagem de poderem ser co­locadas em várias direcções. Queres dar aqui um toque divertido ou requintado?

- Não vejo motivo para não se aliar as duas coisas.

- Bem visto. Cores suaves ou carregadas?

- Carregadas aqui, e suaves nas salas de tratamento. Olha, Bradley...

- Ai! Parecias mesmo a minha mãe - exclamou ele, que entre­tanto se agachara para folhear à pressa um álbum de amostras e lhe dirigiu um breve sorriso. -Vocês, mulheres, têm algum centro de formação onde aprendem a desenvolver esse tom devasta­dor?

- Os homens não estão autorizados a receber informações. Se te contasse, teria de te matar. E nem sequer tenho tempo para isso. Daqui a um mês fechamos o negócio da casa, e quero ter os projectos já definidos para começarmos assim que for possível.

- Eu posso ajudar-te.

- Sei muito bem o que estou a fazer e como quero fazê-lo. Não sei porque partes do princípio...

- Um momento. Credo, estás mesmo melindrada. - Não seria lógico imaginar que uma mulher que usava calças tão justas e que enfeitava o umbigo devia ser um pouco mais acessível?

- Eu traba­lho neste ramo, lembras-te? - lembrou, batendo ao de leve no logotipo da HomeMakers gravado no álbum de amostras. Não– é só por isso, mas gosto de dar o meu contributo para se tirar o máximo partido da capacidade de utilização de uma casa. Posso disponibilizar-te a mão-de-obra e os materiais necessários.

- Não ando à procura de ajuda.

Ele pôs o álbum de lado e, com toda a calma, pôs-se de pé.

- Falei em disponibilizar e não em ajudar. O que é que eu tenho, para te pôr sempre de pé atrás?

- Tudo. Não é justo - comentou ela, encolhendo os ombros, - Mas é verdade. Não entendo as pessoas da tua condição, por isso tenho uma tendência para desconfiar delas.

- Pessoas da minha condição?

- Pessoas ricas e privilegiadas que dirigem os grandes impérios americanos. Desculpa, estou certa de que terás algumas qualida­des muito apreciáveis, senão não eras amigo do Flynn. Mas nós dois não temos nada em comum. Além disso, neste momento tenho mais que fazer e não tenho tempo para brincadeiras. Por isso, é melhor esclarecermos desde já as coisas para depois seguir­mos a nossa vida. Não vou para a cama contigo.

- Muito bem, a partir daqui é óbvio que a minha vida deixou de ter sentido.

Sentiu vontade de sorrir perante aquela resposta, esteve quase a fazê-lo, mas tinha fortes razões para crer que as pessoas da laia dele eram bastante astuciosas.

- Não me digas que não tinhas uma certa esperança em ir para a cama comigo?

A cautela, ele retomou o fôlego antes de falar. Zoe pendurara a haste dos óculos de sol no decote em V da camisa, e aqueles seus olhos penetrantes, cor de avelã, fixavam directamente os seus.

-Ambos sabemos que não há qualquer hipótese de eu respon­der correctamente a essa pergunta. Essa é a mãe de todas as per­guntas embaraçosas. Há outras que se enquadram nessa categoria, por exemplo: Fico gorda com esta roupa? Achas que ela é bonita? E se não sabes a resposta, decerto não serei eu que ta vou dar.

Aí, ela teve de morder os lábios para reprimir o riso.

- A última não é bem uma pergunta.

- Não deixa de ser um mistério e uma armadilha. Por isso, só te vou dizer que te acho muito atraente. E temos muito mais em comum do que imaginas, a começar pelo círculo de amigos. Es­tou disposto a ajudar-vos, a ti, à Malory e à Dana, a arranjar a casa. Nenhuma das três tem de fazer amor comigo em troca dis­so. Apesar disso, se quiserem juntar-se as três e organizar uma orgia com todo o requinte, não direi que não. Entretanto, vou deixar-te voltar ao trabalho.

Preparava-se já para sair quando, ao descer a escada, afirmou casualmente:

- A propósito, para o mês que vem a HomeMakers vai fazer uma promoção de produtos para tratamento de paredes: papel e tintas. Quinze a trinta por cento de desconto em toda a gama.

Zoe correu apressada até ao cimo da escada.

- Em que altura do mês?

- Depois logo te digo.

Com que então, ela não ia fazer amor com ele. Brad abanava a cabeça enquanto se dirigia para o carro. Tratara-se de uma afir­mação infeliz da sua parte. Era evidente que não percebia que, se havia uma única coisa a que um Vane era incapaz de resistir era um desafio directo.

A intenção dele era apenas convidá-la para jantar fora. Ago­ra, enquanto observava as janelas do segundo andar, concluiu que precisava de um pouco mais de tempo, e de definir uma estratégia.

Zoe McCourt estava prestes a ser conquistada.

Zoe tinha mais em que pensar. Já estava a ficar atrasada, mas isso não era novidade. Parecia haver sempre um monte de coisas para fazer, para não se esquecer, ou para preparar no preciso momento em que estava para sair de casa.

- Dá esses biscoitos à mãe do Chuck. Ela depois faz a distribui­ção - pediu Zoe, e virou no acesso a dois quarteirões de distância da sua casa, lançando um olhar severo ao filho. - A sério, Simon.


Não tenho tempo de ir lá levá-los. Se me chego à porta, ela pren­de-me ali uns vinte minutos, e eu já estou atrasada.

- Pronto, está bem. Podia ter vindo a pé.

- Pois, mas se viesses não te podia fazer isto - salientou ela, e a seguir agarrou-o e enterrou-lhe os dedos nas costelas até o fazer gritar.

- Mãe!

- Simon! - exclamou ela, no mesmo tom desesperado.

Ele ia a rir-se enquanto saiu do carro e puxou a mochila do banco traseiro.

- Obedece à mãe do Chuck, e não obrigues as pessoas a fica­rem levantadas toda a noite. Tens o número de telefone da Malory?

- Sim, tenho o telefone da Malory. E sei ligar o 112 e fugir de casa, se lhe deitar fogo quando estiver a brincar com fósforos.

- Seu espertalhão! Vem cá dar-me um beijo.

Fez um grande alarde, a arrastar os pés, de cabeça pendurada para esconder o sorriso contrafeito, à medida que se aproximava da janela do carro.

- Despacha-te lá, senão ainda nos vêem.

- Diz que não te estava a dar um beijo, que estava aos gritos contigo - sugeriu ela, e deu-lhe um beijo, resistindo à tentação de o abraçar. - Até amanhã. Diverte-te, querido.

- Tu também, querida - afirmou, reprimindo o riso e dispa­rando a correr direito a casa.

Com o natural instinto maternal, ela fez marcha-atrás para sair do acesso, ao mesmo tempo que ia vigiando o seu menino até ele entrar em casa são e salvo.

Em seguida, dirigiu-se para a casa de Malory para, pela pri­meira vez em adulta, passar uma noite fora de casa.

 

Malory estava ciente do que se passava. Ninguém que­ria que ficasse sozinha, e as suas novas amigas estavam preocupadas com ela. Zoe ficara tão excitada com a ideia de passar uma noite fora de casa só com mulheres, que Malory não fora capaz de recusar.

O próprio facto de ter sentido vontade de recusar, de ter von­tade de se refugiar sozinha na sua toca, obrigou-a a admitir a necessidade de mudar de atitude.

Nunca fora uma rapariga solitária nem muito dada à melanco­lia. Quando tinha algum problema, saía de casa, procurava ver gente, comprar coisas, dar uma festa. A proposta de Zoe de se juntarem pela noite fora constituiu um estímulo para Malory se sentir levada a fazer tudo aquilo. Comprou comida e velas novas com aroma a limão. E ainda sabonetes perfumados e toalhas novas todas bonitas para as convidadas, sem esquecer um bom vinho.

Fez uma limpeza ao apartamento que andara a negligenciar, espalhou pot-pourri pelas taças e vestiu-se e penteou-se da forma cuidada com que as mulheres se arranjam para outras mulheres.

Na altura em que Dana chegou, já dispusera queijo, fruta e bolachas na mesa, acendera as velas e ligara a música com o vo­lume reduzido.

- Ena! Que requinte por aqui. Devia ter-me vestido um pouco a rigor.

- Estás óptima! - convencida a mostrar-se animada, Malory inclinou-se
para beijar o rosto de Dana. - Quero agradecer o que vocês estão a fazer.

- A fazer o quê?

- Virem aqui a casa fazer-me companhia, darem-me força. Tenho-me sentido um pouco em baixo nos últimos dois dias.

- Nenhuma de nós contava com o dispêndio de energia que este programa exigiria - explicou, entregando a Malory um saco de compras e pousando a maleta de fim-de-semana. - Comprei mantimentos extra. Vinho, Cheez-brie, trufas de chocolate e pipo­cas. Sabes, os quatro grupos principais de alimentos - brincou Dana, passando rapidamente os dedos pela selecção de filmes junto do espaço de entretenimento. - Alugaste toda a espécie de filmes para miúdas disponíveis no mercado?

- Tudo o que há actualmente disponível em DVD. Que dizes a um pouco de vinho?

-Já que tanto insistes... Perfume novo?

- Não, deve ser das velas.

- É agradável. Foi a Zoe. Podes servir outro copo.

Zoe entrou pela porta do quintal, carregada de sacos que pou­sou no chão.

- Biscoitos - anunciou, quase sem fôlego. - Vídeos, aromaterapia e bolo de café para de manhã.

- Bom trabalho - comentou Dana, e a seguir tirou-lhe um dos sacos da mão e deu-lhe um copo de vinho. Depois, aproximan­do-se um pouco mais, perguntou: - Como é que consegues que as tuas pestanas fiquem assim todas enfarruscadas e pontiagudas?

- Já te mostro. Tem piada. Hoje passei lá por casa para tirar umas medidas e ver umas amostras integradas no espaço e na luminosidade própria. Se quisermos ver depois, tenho uns álbuns com amostras de papel de parede e tinta ali no carro. O Bradley Vane apanhou-me quando estava lá em casa. Que consta por aí a respeito dele?

- Rapaz próspero com consciência social - respondeu Dana, atacando o brie. - Estrela do desporto no secundário e na facul­dade. Qualquer modalidade. Estudante do quadro de honra sem ser imbecil. Quase comprometido umas duas vezes, mas conseguiu sempre saltar a corda antes de dar o nó. É amigo do Flynn quase desde que nasceu. Tem um corpo estupendo que tive a felicidade de ver em diversas situações. Estás interessada em veri­ficar com teus próprios olhos?

- Dessa maneira, não. Não tenho tido grande sorte com os homens, por isso, o único que vai fazer parte da minha vida nos próximos tempos é o Simon. Oh, adoro esta canção - afirmou, descalçando os sapatos para dançar. - Então, Mal? Como vão as coisas com o Flynn?

- Bom, gosto muito dele, o que torna a situação muito exasperante. Quem me dera saber dançar assim.

- Assim como?

- Pernas bem alongadas e ancas soltas.

Marca de bolachas. (N. da T.)

- Então vem cá - convidou Zoe, pousando o vinho e esten­dendo as mãos. - Vamos praticar. Faz uma de duas coisas. Finge que ninguém está a ver, ou finge que está um homem extrema­mente sensual a ver. De qualquer modo, seja qual for o teu esta­do de espírito, limita-te a soltar-te.

- Porque é
que as mulheres acabam sempre a dançar umas com as outras? - interrogou-se Malory enquanto tentava rebolar as ancas isoladamente do resto do corpo, como Zoe parecia fazer.

- Porque temos mais jeito para isso.

- Na realidade - começou Dana, servindo-se de um pequeno cacho de uvas brancas - é uma espécie de ritual social, sexual. A fêmea actua, seduz e provoca, o macho observa, deixa-se levar pela imaginação e escolhe. Ou é escolhido. Quer sejam os tam­bores da selva ou a Dave Mathews Band, vai tudo dar ao mesmo.

- Vais dançar? - perguntou-lhe Malory.

- Claro - retorquiu Dana, levantando-se e arrancando outra uva. Ancas e ombros entraram num ritmo insinuante enquanto seguia direita a Zoe. Envolveram-se numa dança que, na opinião de Malory, era um hino ao sexo e à liberdade.

- Agora é que eu estou completamente ultrapassada.

- Estás a ir muito bem. Solta os joelhos. E por falar em rituais, tenho umas ideias. Mas... - começou Zoe, pegando outra vez no vinho. - Acho que devíamos beber mais um copo antes de as trazer à baila.

- Não podes fazer isso - queixou-se Dana. -Detesto isso. Qual é a ideia? - pegou no copo de Zoe e bebeu um gole apressado. - Olha, já bebi mais. Diz lá.

- Está bem. Vamos sentar-nos.

Recordando o seu papel de anfitriã, Malory trouxe o vinho e o tabuleiro da comida para a mesa da sala de estar.

- Se este ritual tiver alguma coisa a ver com depilar as pernas com cera, primeiro tenho de beber muito mais.

- Não - garantiu Zoe, a rir-se. - Mas tenho uma técnica prati­camente indolor com cera quente. Consigo aplicar-te uma brasi­leira sem verteres uma única lágrima.

- Uma brasileira?

- Para limpar a zona das virilhas. Deixa apenas uma pequena tira bem definida para poderes usar a tanga mais minúscula sem ficares com um ar, digamos, descuidado.

- Ah! - exclamou Malory, cruzando instintivamente as mãos sobre o sexo. - Nem que uses morfina e algemas.

- A sério, o segredo está no pulso - passou Zoe a explicar. -Ora bem. Voltando ao que estava a dizer - prosseguiu -, sei que todas nos temos dedicado à leitura e pesquisa no sentido de tentar­mos arranjar teorias e ideias para ajudar a Malory a encontrar a primeira chave.

- E foram ambas fantásticas. Sinceramente. Tenho a sensação de que descurei alguma coisa, um pormenor insignificante capaz de decifrar todo este mistério.

- Talvez tenhamos descurado todas alguma coisa - contrapôs Zoe. - A lenda em si. Mulher mortal une-se a um deus celta e torna-se rainha. O poder no feminino. Tem três filhas. Mais uma vez, mulheres. Um dos seus guardiães também é uma mulher.

- Bom, trata-se de um palpite com cinquenta por cento de hipóteses - salientou Dana. - Mesmo em relação a deuses.

- Espera aí! Então, diz-se que quando as suas almas são rouba­das ou apanhadas na armadilha de um
homem, são três seres humanos, mulheres, que têm de encontrar e devolver as chaves.

- Desculpa, Zoe, não estou a acompanhar o teu raciocínio. Já sabemos tudo isso - afirmou Malory, e estendeu a mão para tirar uma uva com um ar indiferente.

- Levemos o raciocínio um pouco mais longe. Na cultura celta, os deuses são, digamos, mais terrenos do que, por exemplo, os deuses gregos e romanos. Parecem-se mais com magos e feiticei­ros do que... qual é a palavra? Seres omniscientes. Não é assim? -perguntou Dana.

- É

- Estão ligados à Terra, à Natureza. Tal como as bruxas. Existe a magia negra e a magia branca, mas ambas recorrem aos elementos e às forças naturais. E é aqui que temos, digamos, de sair da caixa.

- Desde 4 de Setembro que não estamos metidas na caixa - salientou Dana.

-E se nos tivessem escolhido por sermos... porque somos bruxas? Malory franziu o sobrolho ao ver o nível de vinho no copo de Zoe.

- Que quantidade de vinho tiveste de beber para chegares a essa conclusão?

- Não, pensa bem nisto. Nós somos parecidas com elas. Tal­vez estejamos de algum modo ligadas por laços consanguíneos, ou coisa do género. Talvez possuamos certos poderes, só que nunca soubemos.

- A lenda fala em mulheres mortais - lembrou-lhe Malory.

- As bruxas não são necessariamente imortais. São única e simplesmente pessoas mais dotadas. Tenho-me dedicado à leitu­ra desses temas. Na tradição wicca, a bruxa feminina tem três estádios. A donzela, a mãe e a mulher velha. E elas veneram a deusa. Elas...

- Wicca é uma religião recente, Zoe - lembrou Dana.

- Mas as suas raízes são antigas. E o número três é um número mágico. Há três mulheres como nós.

- Estou convencida de que, se fosse bruxa, de certeza que sabia - afirmou Malory, reflectindo no assunto enquanto bebia um gole de vinho. - E se esse facto escapou de algum modo ao meu conheci­mento durante quase trinta anos, o que deverei fazer agora em rela­ção ao assunto? Invocar algo por artes mágicas, lançar um feitiço?

- Transforma o Jordan num ser com traseiro de cavalo. Des­culpa - admitiu Dana, encolhendo os ombros quando Malory a olhou fixamente. - Era apenas um devaneio.

- Podíamos experimentar. Todas juntas. Trouxe alguns artefac­tos - revelou Zoe e, num ápice, pôs-se de pé e abriu a mala.

- Velas para rituais - enumerou, vasculhando à procura de mais.

- Incenso. Sal de mesa.

- Sal de mesa? - contrafeita, Malory pegou na caixa azul-escura de Morton[27] e pôs-se a olhar para a rapariga alegre com o chapéu-de-chuva.

- Com o sal podemos formar um círculo protector. Tem o con­dão de afastar os espíritos malignos. Varas para queimar. Uma espécie de vara mágica. Comprei um taco de basebol e cortei-o em pedaços para fazer as varas.

- Martha Stewart encontra-se com Glenda, a Bruxa Boa - co­mentou Dana, pegando na varinha de madeira e agitando-a no ar. - Não devia espalhar um pó mágico?

- Bebe mais vinho - ordenou Zoe. - Cristais. Ametista e quartzo rosa e esta bola enorme - apresentou, exibindo o globo terrestre.

- Onde arranjaste todo este espólio? - inquiriu Malory.

- Na loja new age do centro comercial. Cartas de tarot: as cartas celtas, por parecerem as mais adequadas. E...

- Um tabuleiro de Ouija! - exclamou Dana, apoderando-se dele. - Ena, pá! Desde miúda que não via um tabuleiro destes.

- Descobri-o na loja de brinquedos. Não lhes ligam nenhuma na loja new age.

- Quando era miúda demos uma festa de pijama. Ficámos todas empanturradas de Pepsi e M&Ms, e acendemos velas. To­das perguntaram o nome do rapaz com quem iam casar. A mim,

saiu PTZBAH - confessou Dana, e soltou um suspiro romântico.

- Foi mesmo um encanto. Vamos jogar primeiro ao Ouija- suge­riu Dana. - Em memória dos velhos tempos.

- Está bem, mas temos de jogar como deve ser. Temos de levar isto a sério - pediu Zoe, levantando-se para apagar as luzes e desligar a música.

- Será que o Ptzbah ainda está presente no meu caminho? - perguntou Dana, e escorregou para o chão para abrir a caixa.

- Espera. Temos de criar o ritual. Arranjei um livro. Sentaram-se no chão, em círculo.

- Primeiro, temos de purificar o espírito - ensinou Zoe. - Visualizar a abertura dos nossos chacras.

- Nunca abri os meus chacras em público - afirmou Dana, rindo-se à socapa, reincidente, até Malory lhe dar uma palmada no joelho.

- A seguir, acendemos as velas rituais. A branca simboliza a pureza. A amarela apela à memória. E a roxa concede poder - disse Zoe, mordendo os lábios enquanto ia acendendo os pa­vios com todo o cuidado. - Coloca os cristais. Ametista para... bolas! - Tentou alcançar o livro e foi folheando as páginas. -Aqui está. A ametista corresponde à intuição. Bem como o incen­so. O quartzo rosa desenvolve os poderes psíquicos e a capacida­de de adivinhação.

- Isto é lindo - concluiu Malory. - Transmite muita tranquilidade.

- Parece-me que devíamos trabalhar alternadamente com as cartas de tarot e experimentar talvez entoar alguns cânticos, mas primeiro vamos fazer isto, para dar uma alegria à Dana - sugeriu Zoe, colocando o tabuleiro no meio delas e fixando o ponteiro no centro.

- Precisamos de nos concentrar - recordou. - Concentremos a mente e os nossos poderes numa única pergunta.

- Pode ser acerca do amor da minha vida? Estou ansiosa pelo Ptzbah.

- Não - proferiu Zoe, reprimindo uma gargalhada e procuran­do assumir um ar severo. - Este assunto é muito sério. Queremos saber a localização da primeira chave. Deve ser a Malory a fazer a pergunta, mas tanto eu como tu temos de pensar nela.

- Devíamos fechar os olhos - lembrou Malory, e depois esfre­gou os dedos nas calças e respirou fundo. - Estão prontas?

Colocaram os dedos sobre o ponteiro e ficaram sentadas em silêncio.

- Não devíamos invocar o Além ou outra entidade do género? - murmurou Malory. - Manifestar o nosso respeito, pedir que nos guiem? O quê?

Zoe abriu um olho.

- Talvez devêssemos evocar as entidades por detrás da Corti­na dos Sonhos.

- Habitantes - sugeriu Dana. - É uma boa palavra. Evocar os que habitam por detrás da Cortina dos Sonhos, a pedir que nos guiem.

- Muito bem, aqui vai. Tudo em silêncio; fiquem tranquilas. Concentrem-se - Malory guardou silêncio durante dez segundos.

- Evocamos as entidades que habitam por detrás da Cortina dos Sonhos, para nos ajudarem e guiarem na nossa busca.

- Diz-lhes que és uma das escolhidas - proferiu Zoe pelo can­to da boca, mas Dana mandou-a calar-se.

- Sou uma das eleitas, uma das que procuram as chaves. O tem­po é escasso. Peço-vos que me indiquem o caminho para a cha­ve, a fim de podermos libertar as almas de... Dana, não empurres o ponteiro.

- Não estou a empurrar, a sério.

Com a boca seca, Malory abriu os olhos e viu o ponteiro tre­mer sob os seus dedos.

- As velas - murmurou Zoe. - Credo! Olhem para as velas. -As chamas ardiam bem alto, num trio dourado e esguio ponteado a vermelho. A luz começou a vacilar, como se palpitasse. Uma espécie de aragem fria soprou pela sala, fazendo as chamas evoluir numa estranha dança.

- Mas que loucura! - exclamou Dana. - É uma perfeita loucura.

- Está a mexer-se. O ponteiro fez um movimento brusco, com os dedos trémulos de Malory sobre ele. Esta não ouvia nada a não ser o rugido do sangue a palpitar dentro da sua cabeça, enquanto via o ponteiro deslizar de uma letra para outra.

A Tua Morte

A respiração de Malory ainda estava sufocada na garganta quan­do a sala se abriu subitamente numa explosão de luz e vento. Ouviu alguém gritar, e levantou rapidamente um braço para pro­teger os olhos de uma forma saída de um turbilhão de ar.

O tabuleiro desfez-se em estilhaços como se fosse feito de vidro.

- Estão a brincar a quê? - perguntou Rowena, que se encon­trava de pé no meio delas, com o salto agulha do sapato enfiado num fragmento do tabuleiro. - Não têm o bom senso suficiente para não abrirem uma porta a mistérios que não conseguem en­tender nem dos quais são capazes de se defender?

Com um suspiro de tédio, deu um passo para sair do círculo com elegância, e pegou no vinho.

- Gostava de tomar um copo, por favor.

- Como é que entraste aqui? - Como é que soubeste? - Malory levantou-se com esforço nas suas perneiras elásticas.

- É uma sorte para vocês eu ter sabido e aparecido - apanhou o sal e endireitou a caixa coberta pelos restos do tabuleiro.

- Ah, agora, precisamente no momento certo.

- Junta tudo com a vassoura - ordenou Rowena a Zoe. - De­pois, queima isso tudo. Agradecia muito um copo de vinho - pediu, entregando a garrafa a Malory e sentando-se no sofá.

Contrariada, Malory arrastou-se até à cozinha e arrancou um copo de vinho do armário. Com um passo solene, voltou à sala e colocou bruscamente o copo na mão de Rowena.

- Não te convidei para vires cá a casa.

- Pelo contrário, convidaste-me a mim, e a qualquer um que quisesse entrar pela porta aberta.

- Então somos bruxas.

A expressão de Rowena alterou-se ao examinar o rosto em­bevecido de Zoe.

- Não da forma como pretendes fazer crer - o seu tom de voz era agora mais calmo, de uma mestra paciente a responder à alu­na ávida de saber. - Mesmo assim, todas as mulheres possuem alguns poderes mágicos. No entanto, os vossos poderes em con­junto triplicam, pelo que reuniram capacidade e vontade suficien­tes para transmitirem um convite. Eu não fui a única a responder ao convite. Sentiram a presença dele - disse para Malory. - Antes, sentiram a presença dele.

- Kane - colocou os cotovelos em forma de taça e arrepiou-se, ao recordar o frio a penetrar-lhe o corpo. - Foi ele que mo­veu o ponteiro, e não nós. Ele esteve a brincar connosco.

- Ele ameaçou a Malory - esquecida do arrepio de frio, Zoe pôs-se logo de pé. - Que vais fazer para resolver isso?

- Tudo o que puder.

- Talvez não chegue - contrapôs Dana, estendendo a mão e apertando a de Malory. - Eu ouvi-te gritar. Vi a tua cara quando gritaste. Tu sentiste algo que eu e Zoe não sentimos, e era um medo terrível. O teu sofrimento era terrível.

- É o frio. É... não sou capaz de descrever.

- A ausência de toda e qualquer sensação de calor - murmu­rou Rowena. - De toda e qualquer forma de esperança e de vida. Mas ele não te pode tocar, a não ser que o permitas.

- Que o permita? Como é que ela... - interrompeu Zoe, e olhou para o tabuleiro quebrado aos seus pés. - Meu Deus. La­mento muito. Mal, peço-te imensas desculpas.

- A culpa não é tua. Não - garantiu ela, pegando na mão de Zoe, e assim ficaram as três ligadas por alguns instantes.

Ao vê-las, Rowena sorriu, com o olhar fixo no vinho. - Estávamos à procura de respostas, e tu tiveste uma ideia que superou tudo o que eu consegui nos últimos dois dias. Tentámos chegar a algum lado. Talvez tenha sido o lado errado - acrescen­tou, procurando atingir de novo Rowena -, mas isso não te dá o direito de nos insultares.

-Tens toda a razão. Peço desculpa - disse, e inclinou-se para barrar uma bolacha de água e sal com brie, batendo com o dedo ao de leve no baralho de tarot. A luz vacilou sobre as suas cabe­ças, e a seguir apagou-se. - As cartas não vos fazem mal ne­nhum. Podem servir para desenvolverem as vossas capacidades de leitura, ou para vos ajudarem a descobrir que possuem esse dom.

- Tu... - proferiu Zoe, comprimindo os lábios. - Se não tives­ses aparecido naquela altura...

- É meu dever, e meu desejo, proteger-vos do perigo. Sempre que puder e da forma como puder. Agora tenho de ir e deixar-vos entregues ao vosso serão. Rowena
levantou-se e deitou um olhar à sala. Tens uma casa bonita, Malory. Condiz contigo.

Sentindo-se ingrata e infantil, Malory suspirou, meia irritada.

- Porque não ficas um pouco e acabas de tomar o vinho? O rosto de Rowena foi tomado pela surpresa.

- És muito simpática. Teria imenso gosto. Já há muito tempo que não me sentava na companhia de mulheres. Sentia a falta disso.

Não era assim tão estranho, depois do constrangimento inicial, ter uma mulher que vivera milhares de anos ali sentada na sua sala a beber o seu vinho.

E, no momento em que começaram a provar as trufas, tornou-se evidente que as mulheres - sejam elas deusas ou humanas - eram iguais por dentro.

- Raramente dou grande atenção ao cabelo - disse Rowena enquanto Zoe, com a escova, lhe armava a farta cabeleira num penteado ao alto. - Não faz parte dos meus talentos, por isso geralmente uso o cabelo caído. Já o cortei uma vez ou outra, mas arrependo-me sempre.

- Nem toda a gente pode usar um penteado tão simples como o teu e manter esse ar majestoso.

Enquanto Zoe trabalhava, Rowena olhou-se atentamente no espelho de mão, fazendo depois descair o vidro a fim de exami­nar a sua estilista.

- Gostava muito de ter o teu cabelo. É formidável.

- Não eras capaz de fazer isso? Digo eu, se quisesses adoptar um certo visual, não eras capaz de... - começou Zoe, agitando os dedos, o que provocou o riso de Rowena.

- Não tenho esse condão.

- E o Pitte? - perguntou Dana, rodando o corpo estendido no sofá. - Qual é a especialidade dele?

- Ele é um guerreiro, a quem não falta orgulho, arrogância e determinação. Capaz de enlouquecer e excitar qualquer mulher - acrescentou, baixando o espelho. - Zoe, és uma artista.

- Ora. Gosto de brincar com o cabelo - comentou, e a seguir deu um passo em frente de Rowena e soltou umas farripas a emol­durar-lhe o rosto. - Um belo visual para aquela reunião impor­tante da administração ou para a farra a seguir à atribuição dos Oscars. Sensual, feminina e poderosa. Com aquele ar de quem não se podia preocupar menos com o penteado.

- Desculpe, mas não posso deixar de perguntar - começou Dana -, como é estar com o mesmo homem, digamos, pratica­mente para sempre?

- Ele é o único homem que desejo - respondeu Rowena.

- Ora, ora. Nos dois milénios passados, deves ter imaginado centenas de fantasias com outros homens.

- Claro que sim - confessou Rowena, pousando o espelho, e os seus lábios arquearam-se num sorriso vago. - Houve uma vez um jovem empregado de mesa, em Roma. Que rosto e que físi­co! Possuía uns olhos tão escuros, que quase me parecia vislum­brar mundos inteiros submersos no seu olhar. Serviu-me um café e um queque. Chamou-me bella donna com um sorriso cheio de segundas intenções. Enquanto eu ia comendo o queque, imaginava ­
que lhe mordiscava aquele lábio inferior tão apetitoso.

Ela comprimiu os seus, e depois riu-se.

- Pintei o retrato dele no meu estúdio e deixei que me namo­rasse descaradamente. E depois de uma sessão inteira a persuadi-lo, era capaz de afastar Pitte do que estivesse a fazer e seduzia-o.

- Nunca o enganaste.

- Eu amo o meu homem - limitou-se Rowena a declarar. -Estamos ligados um ao outro, corpo, coração e alma. Há uma magia nesta relação, mais poderosa do que um feitiço, mais cruel do que uma praga - dito isto, levantou-se, e colocou uma mão sobre a mão de Zoe. - Tu amaste um rapaz e ele deu-te um filho. Por essa razão, amá-lo-ás para sempre, apesar de ele ser um ho­mem fraco e de te ter traído.

- O Simon é toda a minha vida.

- E construíste uma vida feliz e dedicada. Também sinto inveja de ti pelo teu filho. Tu - afirmou, levantando-se para se aproxi­mar, quase roçando os dedos pelos cabelos de Dana. - Amaste uma pessoa que já não era um rapaz, mas ainda não era bem um homem. Por esse motivo, nunca lhe perdoaste.

- Porque haveria de perdoar?

- Fica sempre a dúvida - replicou Rowena.

- E eu? - perguntou Malory. Rowena, sentando-se no braço do sofá, tocou-lhe com uma mão no ombro.

- Tu amas tanto o homem, com tal intensidade e ardor, que duvidas do teu próprio coração. Por esse motivo és incapaz de confiar nele.

- Como posso confiar em algo que não faz sentido?

- Enquanto sentires necessidade de te interrogar, não irás obter a resposta - afirmou e, inclinando o corpo, aflorou a testa de Malory com os lábios. - Agradeço por me teres recebido em tua casa, por terem partilhado comigo estes vossos momentos. Toma, aceita isto.

Estendeu a mão, e ofereceu a Malory a pedra azul-clara que guardava na mão.

- O que é isso?

- Um pequeno talismã. Esta noite, coloca-o sob a almofada. Vais dormir bem. Tenho de ir. Esboçou um leve sorriso, levando a mão ao cabelo enquanto se levantava e cruzava a sala em direcção à porta de vidro. - O que irá o Pitte achar do meu cabelo? Boa-noite - despediu-se, e abriu a porta, mergulhando na escuri­dão da noite.

Zoe aguardou três segundos, e depois foi a correr até à porta. Emoldurando o rosto com as mãos, encostou-o junto ao vidro.

- Bolas! Imaginava que ela ia desaparecer pelos ares ou coisa do género, mas vai só a andar. Como uma pessoa normal.

- Ela tem um ar perfeitamente normal - comentou Dana, mudando de posição para chegar às pipocas. - Isto, para uma deusa com alguns milhares de anos já contados.

- Mas triste - disse Malory, virando a pedra azul na mão. -Tem todo aquele ar sofisticado e divertido na aparência, mas sob essa capa esconde-se uma grande tristeza. Ela foi sincera, ao di­zer que sentia inveja de ti por teres o Simon, Zoe.

- É uma ideia estranha - comentou Zoe, e voltou para o seu lugar, escolheu uma escova, um pente de cabo e molas, seguindo depois para trás do sofá. - Ela vive, de facto, naquele castelo enor­me, rodeada de tantas coisas lindas - começou, e pôs-se a esco­var o cabelo de Dana. - É uma mulher bonita e culta, penso eu. E rica, e tem um homem que adora. Tem viajado bastante e é capaz de pintar aqueles quadros maravilhosos.

Dividiu o cabelo de Dana em secções, e começou a fazer tranças.

- Porém, sente inveja de uma pessoa como eu porque tenho um filho. Acham que ela não pode ter filhos? Não me apeteceu perguntar: é uma questão tão pessoal. Mas admiro-me que não possa ter. Se ela tem poderes para fazer tudo o que faz, porque não havia de ter um bebé?

- Talvez o Pitte não queira ter filhos - respondeu Dana, enco­lhendo os ombros. Há algumas pessoas que não querem. O que estás a fazer aí atrás, Zoe?

- Um penteado novo. Estou a entretecer umas tranças finas. Deve ficar um penteado jovem e excitante. Tu queres?

- Quero o quê?

- Queres ter filhos?

Dana ia mascando pipocas ao mesmo tempo que reflectia nessa possibilidade.

- Quero. Gostava de ter um casal. Suponho que, se nos próxi­mos dois anos não encontrar um homem com quem aguente vi­ver por muito tempo, acabo por recorrer à produção independente. Sabem como é, fazer amor com a Medicina.

- Eras capaz de fazer isso? - fascinada, Malory chegou ao fun­do da taça. - Criar um filho sozinha. Quero eu dizer, voluntaria­mente - acrescentou, erguendo o olhar para Zoe. - Percebes o que quero dizer.

- Claro que era - replicou Dana, e colocou a taça entre as duas. - Porque não? Sou saudável. Acho que desempenhava bem o papel de progenitora; tenho muito para dar a uma criança. Pri­meiro, teria de ter a certeza de que dispunha de uma sólida segu­rança financeira, mas quando estiver a chegar, vá lá, aos trinta e cinco e não tiver nenhum homem à vista, cometo essa proeza.

- Isso acaba por excluir a parte romântica do acto - comentou Malory.

-Talvez, mas obtêm-se resultados. Tens de ver a questão numa perspectiva mais alargada. Se desejas uma coisa, se a desejas do fundo do coração, não podes deixar que nada te impeça de a conseguir.

Malory pensou no seu sonho, na criança que segurava nos braços. Na luz que iluminava a sua vida, o seu coração.

- Mesmo que se deseje muito uma coisa, não deixa de haver limites.

- Bom, é totalmente desaconselhável matar alguém ou recor­rer a um certo tipo de violência. Refiro-me apenas a tomar deci­sões importantes, e depois seguir o nosso caminho e aceitar as consequências. E tu, Zoe? Cairias de novo no mesmo? Em criar um filho sob tua inteira responsabilidade? - perguntou Dana.

- Não me parece que estivesse disposta a fazer isso novamen­te. É duro. Não temos ninguém com quem partilhar o peso da responsabilidade e, por vezes, parece quase impossível uma úni­ca pessoa aguentar esse peso. E sobretudo
não há ninguém que olhe para a criança e sinta o mesmo que tu. Ninguém com quem partilhar esse amor e orgulho e, sei lá, esse espanto.

- Tiveste medo? - perguntou-lhe Malory.

-Ah, sim, tive. Ainda tenho medo. Julgo que é lícito ter medo por ser uma missão tão importante. Queres ter filhos, Mal?

- Quero - respondeu, enquanto roçava suavemente a pedra por entre os dedos. - Mais do que imaginava.

Por volta das três da manhã, Dana e Zoe dormiam na cama de Malory, que arrumava os restos da festa e estava demasiado in­quieta para conseguir deitar-se no sofá. Havia demasiados pensa­mentos, demasiadas imagens a assaltarem-lhe o espírito.

Uma vez mais, examinou a pequena pedra azul. Talvez desse resultado. Já aceitara objectos bem maiores para curar as insónias que a afligiam do que um pedaço de rocha para colocar sob a almofada.

E daí, talvez não. Provavelmente não aceitara nenhum deles, pelo menos daquela maneira profunda de que Dana falava. Sen­tia-se exausta, mas não ia colocar a pedra debaixo da almofada, dando a si mesma a oportunidade de tentar adormecer.

Reclamava o seu amor por Flynn mas ia esperando, ocultando uma pequena parte do seu ser à espera de que esse sentimento passasse. E, por outro lado, sentia-se incomodada e magoada pelo facto de ele não continuar pura e simplesmente apaixonado por ela, de modo a que a relação ficasse equilibrada.

Afinal, como podia manter o seu equilíbrio, fazer planos e ter as ideias arrumadas, se as coisas entre eles tinham mudado?

Cada coisa no seu lugar, não é assim? Tudo tem a sua medida. E se o outro não encaixa bem, não somos nós os únicos que va­mos mudar. Essa obrigação também cabe ao outro.

Com um suspiro, Malory deixou-se cair no sofá. Prosseguira ar­duamente uma carreira no mundo da arte, pois, embora o destino não tivesse colaborado dotando-a de talento, não estava disposta a admitir que desperdiçara tantos anos de estudo e de trabalho.

Ela contribuíra para que as circunstâncias se encaixassem.

Ficara na galeria por comodismo, por ser a atitude mais sensa­ta e conveniente. Barafustara porque um dia se tinham metido no seu caminho, Porém, não levara o incidente muito a sério. Era um risco demasiado elevado, uma grande confusão. Se Pamela não tivesse surgido no seu caminho, ainda lá estaria.

Então, porque ficara tão melindrada com Pamela com todas as fibras do seu ser? É verdade que a mulher era atrevida e tinha pêlo na venta, mas uma mulher com um temperamento mais flexí­vel do que Malory Price teria arranjado maneira de contornar o problema. Ficara melindrada com Pamela, acima de tudo porque pusera em causa o equilíbrio das coisas, alterara as regras.

Ela própria é que não se adaptara.

Agora, restava-lhe aquela actividade que estava a iniciar com Dana e Zoe. Fora a única a mostrar-se pouco interessada no pro­jecto.
Ah, finalmente acabara por fazer o que era devido mas, desde esse momento, quantas vezes pusera em causa a sua deci­são? Quantas vezes pensara em abandonar o projecto por ter difi­culdade em ver como resolver tudo da melhor forma?

E nem sequer dera um passo para avançar com o projecto. Não voltara ao prédio nem fizera quaisquer planos, nomeadamente pôr as antenas de fora para sondar alguns artistas ou artesãos.

Que diabo! Nem sequer enviara pelo correio o pedido de licen­ça de início de actividade porque, uma vez feito isso, ficaria com­prometida.

Estava a usar a chave como uma desculpa para não dar o pas­so final. Ora, ela estava à procura da chave, e dedicava todo o seu tempo e energia a essa busca. Se havia coisa que levava a sério era o sentido de responsabilidade.

Mas naquele preciso momento, sozinha e desperta às três da manhã, era altura de admitir um facto inegável. Embora a sua vida pudesse ter-se alterado em inúmeros aspectos estranhos e fascinantes, ela só por si não mudara absolutamente nada.

Colocou a pedra debaixo da almofada.

- Ainda há tempo - murmurou, enroscando-se para ador­mecer.

 

Quando acordou, o apartamento estava silencioso como uma tumba. Permaneceu imóvel durante alguns instantes, a ob­servar o raio de luz que entrava pela abertura estreita dos cortinados do pátio e que reluzia no chão.

Manhã”, pensou. Plena manhã. Não se lembrava de ter ador­mecido. Melhor ainda, muito melhor, não se lembrava de ter dado reviravoltas na cama para ver se conseguia adormecer.

Lentamente, deslizou uma mão por debaixo da almofada, à procura da pedra. Franziu o sobrolho, às apalpadelas, e sentou-se na cama para levantar a almofada. Não estava lá pedra nenhuma. Procurou debaixo do travesseiro, no chão, debaixo do sofá, mas sentou-se outra vez, irritada e confusa.

As pedras não podiam desaparecer assim sem mais nem menos.

Ou então talvez pudessem. Depois de cumprirem o seu objec­tivo. A verdade é que se tinha fartado de dormir. De acordo com o prometido. Na realidade, sentia-se óptima. Como se tivesse tido umas férias fabulosas e relaxantes.

”Tudo bem, obrigada, Rowena.”

Esticou os braços e respirou fundo, sentindo o aroma inconfun­dível do café.

A menos que o presente incluísse um café matinal, já havia mais alguém a pé.

Foi até à cozinha e deparou com uma surpresa agradável. O bolo de café da Zoe estava em cima do balcão, sobre um prato bonito e envolto em película aderente. A cafeteira estava quente e quase cheia, e o jornal da manhã encontrava-se irrepreen­sivelmente dobrado entre os dois.

Malory pegou no bilhete entalado debaixo do prato do bolo e leu-o, escrito na letra um tanto exótica de Zoe, uma mistura entre o cursivo e a letra de imprensa.

”Bom dia! Tive de ir andando - tenho uma conferência de professores às dez.”

”Dez”, pensou Malory olhando distraidamente para o relógio da cozinha. Ficou boquiaberta ao reparar que eram quase onze.

”Não pode estar certo. Ou será que está?”

”Não quis acordar ninguém, tentei não fazer muito barulho.”

- Deves mover-te como um fantasma - comentou Malory em voz alta.

”A Dana tem de estar no trabalho às duas. De qualquer modo, pus o despertador para ela no teu quarto. Programei-o para o meio-dia para ela não ter de andar à pressa, e ter tempo para tomar o pequeno-almoço.

Diverti-me à grande. Só queria dizer às duas que, aconteça o que acontecer, fico feliz por vos ter encontrado. Ou que nos tivés­semos encontrado. Independentemente do resultado, estou imen­samente grata por serem minhas amigas.

Para a próxima, talvez nos possamos encontrar em minha casa.

Um beijo, Zoe.”

”Acho que vai ser um dia cheio de surpresas.”

Com um sorriso nos lábios, Malory colocou o bilhete num sítio onde Dana pudesse encontrá-lo. Esperando prolongar o bom humor, cortou uma fatia de bolo e encheu uma chávena de café. Colocou-as num tabuleiro, juntou o jornal e um pequeno copo de sumo, e levou tudo para o seu pátio.

O Outono ameaçava fazer a sua entrada. Sempre gostara do suave cheiro a fumo que a estação trazia consigo, quando as fo­lhas começavam a sugerir as tonalidades quentes que assumiam depois.

”Tenho de arranjar uns vasos com crisântemos”, pensou ao par­tir um pedaço do bolo de café. Já estava atrasada. ”E algumas abó­boras e cabacinhas para as decorações festivas.” Também apanharia algumas folhas; folhas de ácer depois de ficarem escarlates.

Podia arranjar mais algumas coisas e fazer qualquer coisa di­vertida para o pórtico de entrada da casa de Flynn.

Foi bebendo o café enquanto dava uma vista de olhos pela primeira página. Agora que conhecia Flynn, ler o jornal da ma­nhã era uma experiência diferente. Gostava de imaginar o que ele decidia, para onde iam as coisas e como as misturava todas - contos, anúncios, fotos, disposição gráfica, cores - e transformava tudo num conjunto coerente.

Foi debicando o bolo e bebendo pequenos goles de café, e depois sentiu que o seu coração teve um pequeno sobressalto quando chegou à coluna dele.

Era mesmo estranho ela já a ter visto. Semana após semana. E o que lhe ocorrera? Um tipo giro, olhos bonitos, ou qualquer coisa igualmente banal e inócua. Lia a coluna dele, e tanto podia concordar com ele como não. Não reparava no trabalho e no esforço que ele lhe dedicava, ou no que o levava a escrever sobre um determinado tema nessa semana.

Porém, as coisas eram diferentes agora que o conhecia, agora que podia ouvir a sua voz proferiras palavras que ia lendo. Conse­guia vislumbrar a sua cara e as suas expressões. E ter algumas opiniões sobre as elucubrações da sua mente tão flexível.

”O que define o artista?”, leu.

Depois de acabar de ler a coluna, quando se preparava para voltar a lê-la uma segunda vez, já se apaixonara novamente por ele.

Flynn estava sentado na ponta de uma secretária e escutava enquanto um dos seus repórteres lhe sugeria uma ideia para um artigo sobre um tipo da zona que coleccionava palhaços.

Palhaços empalhados, estatuetas de palhaços, pinturas de pa­lhaços. Palhaços de porcelana, de plástico, palhaços com cães. Palhaços que dançavam, cantavam ou guiavam pequenos carros para palhaços.

- Tem mais de cinco mil palhaços, para já não falar da enorme quantidade de documentação.

Por alguns instantes, Flynn desligou-se da conversa já que a ideia de ter cinco mil palhaços em casa era ligeiramente aterradora. Imaginou-os agrupados num exército de palhaços a desencadear uma guerra com garrafas gaseificadas e tacos de borracha.

Todos aqueles enormes narizes encarnados, todas aquelas gargalhadas dementes. Todos aqueles esgares enormes e assusta­dores.

- Porquê? - perguntou Flynn.

- Porquê?

- Porque é que ele tem cinco mil palhaços?

- Oh! - exclamou Tim, um jovem repórter que costumava usar suspensórios e muito gel no cabelo, e remexeu-se ruidosa­mente na cadeira.

- O pai dele iniciou a colecção mais ou menos nos anos 20. É uma questão de geração. Ele começou a colaborar, para aí nos anos 50, e depois a colecção foi-lhe toda parar às mãos quando o pai morreu. Parte da colecção é digna de estar num museu. Este material pode valer umas massas no eBay.

- Está certo, vai lá dar uma vista de olhos. Leva um fotógrafo. Quero uma fotografia da colecção inteira com o sujeito ao lado. E outra dele com as peças mais interessantes. Ele que te conte a história ou o significado das peças mais especiais. Joga com a relação pai-filho, mas o cabeçalho tem de ostentar números e os valores máximo e mínimo de algumas peças. É capaz de resultar no suple­mento do fim-de-semana. E, Tim, tenta eliminar os ”percebeste” ou ”gostaste” da entrevista.

- Entendido.

Flynn ergueu o olhar para ver Malory de pé no meio das se­cretárias com um enorme vaso de crisântemos cor de ferrugem. Qualquer coisa no brilho do seu olhar fez com que o resto da sala se desvanecesse.

- Viva! A jardinar?

- Talvez. Vim em má altura?

- Não. Não te vás embora. O que é que achas dos palhaços?

- Coléricos quando são pintados em veludo negro.

- Boa! Tim? - chamou. - Tira algumas fotos de pinturas de palhaços sobre veludo negro. Do sublime ao ridículo e vice-versa - acrescentou Flynn. - É capaz de resultar.

Ela entrou no gabinete à frente dele, e colocou as flores no parapeito da janela.

- Eu queria...

- Espera - pediu ele, erguendo um dedo enquanto se virava para a chamada que vinha da sua linha dos casos de polícia.

- Não te esqueças do que ias a dizer - pediu, e espreitou pela porta.

- Shelly, há um AT, a quinhentos metros do Crescent. Esqua­dra da zona e emissores a responder. Leva o Mark.

- AT? - repetiu Malory quando ele se virou para ela.

- Acidente de Trânsito.

- Oh! Esta manhã estava exactamente a pensar nos malabaris­mos que tens de fazer para compor o jornal todos os dias - do­brou-se para acariciar Moe, que ressonava. - E isto sem deixares de conseguir ter vida própria.

- É uma força de expressão.

- Não, tens uma vida óptima. Amigos, família, uma profissão que te agrada, uma casa, um cão pateta. Admiro isso - declarou ela, e endireitou-se. - Admiro-te.

- Ena! Deves ter-te divertido imenso a noite passada.

- Diverti-me. Eu depois conto-te, mas não quero, como hei-de dizer, desvalorizar o meu protagonismo.

- Esquece o protagonismo.

- Combinado - afirmou, e depois passou por cima do cão e pousou as mãos nos ombros de Flynn. E ao inclinar-se, deu-lhe um beijo. Um beijo muito terno e prolongado. - Obrigada.

A sua pele começou a sentir prazer.

- Porquê? Porque se foi realmente bom, talvez devesses voltar a agradecer-me.

- Está bem - desta vez, cruzou as mãos por detrás da sua ca­beça e acrescentou um pouco mais de calor ao gesto de ternura.

Do lado de fora do gabinete, rebentaram os aplausos.

- Meu Deus, tenho de arranjar persianas para este gabinete - afirmou, e experimentou o truque psicológico de fechar a porta. - Não me importo de ser considerado o herói, mas não sei propriamente que dragão é que terei morto.

- Li a tua coluna esta manhã.

- Sim? Habitualmente, quando alguém gosta da minha colu­na, limita-se a dizer: ”Bom trabalho, Hennessy.” Gosto mais do modo como tu expressas a admiração.

- ”Não é só o artista que pega no pincel e a sua visão que pintam um quadro” - citou. - ”São aqueles que olham e vêem o poder e a beleza, a força e a paixão, que dão vida às pinceladas e à cor.” Obrigada.

- Não tens de quê.

- Sempre que começar a sentir pena de mim por não estar a viver em Paris e a contribuir para fazer girar o mundo da arte, vou recortar a tua coluna e lembrar-me do que tenho. E de quem sou.

- Acho que és extraordinária.

- Eu hoje também. Acordei a sentir-me tão bem como não me sentia há já muitos dias. É espantoso o que pode fazer uma noite de bom sono, ou uma pedrinha azul debaixo da almofada.

- Não estou a perceber.

- Não tem importância. É só uma coisa que a Rowena me deu. Ela foi ter connosco ontem à noite.

- Ai sim? E o que é que trazia vestido? Ainda a rir-se, sentou-se na beira da secretária.

- Não ficou o tempo suficiente para a festa de pijama, mas chegou mesmo na hora H. Estivemos as três a brincar com um tabuleiro de Ouija.

- Estás a gozar comigo.

- Não estou. A Zoe era da opinião que talvez fôssemos três bruxas, mas não tinha a certeza. E talvez fosse por isso que fomos escolhidas... e, por acaso, na altura isso até fazia algum sentido. De qualquer maneira, as coisas começaram a ficar muito estra­nhas. Chamas de vela a erguerem-se, vento a soprar. Foi aí que apareceu o Kane. A Rowena disse que tínhamos aberto uma por­ta, como se fosse um convite.

-Caramba, Malory! Com mil diabos! O que é que vocês anda­ram a fazer... a brincar com forças místicas? Ele já te tentou uma vez. Podias ter-te magoado.

”Ele tem um rosto extraordinário”, pensou. ”Que belo rosto. Consegue passar de interessante a divertido e, de um momento para o outro, ficar furioso.”

- Isso foi uma coisa que a Rowena deixou bem clara na noite passada. Não há razão nenhuma para te zangares comigo agora.

- Só agora é que tenho a opção de me zangar contigo.

- Lá isso é verdade...

Resmungou quando Moe, despertado pelo tom de voz de Flynn, tentou saltar-lhe para o colo.

- Tens toda a razão: não devíamos ter brincado com uma coi­sa que não conhecemos. Sinto muito, acredita; é uma coisa que não tenciono repetir.

Ele aproximou-se para lhe dar um jeito rápido ao cabelo.

- Estou a tentar arranjar uma discussão. O mínimo que podias fazer era colaborar.

- Hoje estou demasiado contente contigo para isso. Podemos tentar marcar qualquer coisa para a próxima semana. Além do mais, só passei por cá para te trazer as flores. Já te tomei bastante tempo.

Olhou para as flores: o segundo ramo de flores que ela lhe trazia.

- Hoje estás mesmo contente!

- E há alguma razão para não estar? Sou uma mulher apaixona­da, que acha que tomou as decisões certas sobre...

- Sobre? - adiantou ele quando o olhar dela se tornou eva­sivo.

- Sobre algumas opções - murmurou. - Momentos de deci­são, momentos de verdade. Porque não terei pensado nisso an­tes? Talvez isso tenha tido alguma coisa a ver com a tua casa, mas a minha percepção de sonho da perfeição fê-la mudar. Fez com que tudo se encaixasse. Mais eu do que tu. Ou então isso não tem nada a ver com o assunto. Talvez sejas apenas tu.

- O quê?

- A chave. Preciso de revistar a tua casa. Achas que vai ser difícil?

-Ah... Já impaciente, Malory tentou afastar a hesitação dele.

- Olha, se tens objectos pessoais ou embaraçosos escondi­dos, como revistas com mulheres nuas ou objectos sexuais fantasiosos, dou-te a oportunidade de os esconderes. Ou prome­ter-te ignorá-los.

- As revistas com mulheres nuas e os objectos sexuais estão todos guardados no cofre. Sinto muito, mas não te posso dar o segredo.

Ela aproximou-se dele, e tacteou-lhe o peito com as mãos.

- Sei que te estou a pedir demasiado. Não gostava nada que alguém espiolhasse a minha casa sem eu estar presente.

- Também não há muito para espiolhar. Só não quero é que se desiludam quando descobrirem que a minha roupa interior afinal está toda num farrapo.

- Não sou tua mãe. Avisas o Jordan que vou até lá?

- Ele hoje foi a um lado qualquer - disse Flynn enquanto tirava do bolso o porta-chaves e removia a chave de casa da corrente.

- Achas que ainda lá estarás quando eu chegar?

- Podia muito bem ainda lá estar quando chegares.

- Porque não? Depois telefono ao Jordan e digo-lhe para não entrar. Ele esta noite podia ir dormir com o Brad, e eu ficava contigo toda só para mim.

Malory pegou na chave, e roçou levemente os lábios contra os dele.

- Fico em pulgas.

O brilho malévolo do olhar dela ainda lhe mantinha um sorri­so nos lábios uma hora depois da sua partida.

Malory subiu apressadamente os degraus que iam dar à porta da casa de Flynn. ”Tenho de ser sistemática, lenta e cuidadosa”, disse para si mesma.

Podia ter pensado naquilo antes. Era como ligar os pontos.

As pinturas reflectiam momentos de mudança, de destino. Claro que a sua vida mudara depois de se apaixonar por Flynn. ”E esta é a casa de Flynn”, pensou ao entrar. Ele não dissera que a tinha comprado quando aceitara o seu destino?

Ficou para ali especada, absorta naqueles pensamentos, a ten­tar respirar a atmosfera da casa. Dentro de casa? Lá fora no jar­dim?

Ou seria mais metafórico, no sentido em que já se começava a ver dentro daquela casa?

Luz e sombras. A casa estava cheia de ambas.

Só devia estar agradecida por a casa não se encontrar atafulhada de coisas. O estilo espartano de Flynn iria tornar a busca bem mais fácil.

Começou pela sala de visitas, dirigindo-se, sem pestanejar, para o sofá. Procurou debaixo das almofadas, encontrou oitenta e nove cêntimos em trocos, um isqueiro Bic, uma edição de bolso de um romance do Robert Parker e migalhas de bolachas.

Sem conseguir aguentar aquilo, foi à procura do aspirador e de um pano de pó, e começou a limpar à medida que ia avan­çando.

Aquela operação, de dois em um, reteve-a na cozinha por mais de uma hora. Quando acabou, suava por todos os poros e a cozinha estava toda a brilhar, mas não encontrara nada parecido com uma chave.

Mudou de táctica, e resolveu subir ao piso superior. Tinha co­meçado e acabado o seu sonho no andar de cima, recordou. Talvez isso tivesse algum simbolismo. E de certeza que as coisas não se encontrariam no mesmo estado deplorável da cozinha.

Uma olhadela rápida pela casa de banho fê-la desistir da ideia. ”Até o amor - por um homem e pela arrumação - tem os seus limites”, decidiu, e fechou a porta sem entrar.

Entrou no estúdio e ficou imediatamente encantada. Todos os pensamentos sombrios que o tinham condenado como um ser desleixado desapareceram.

Não estava limpo. Deus sabe como precisava de uma boa lim­peza, e havia pêlo de cão amontoado nos cantos em quantidade suficiente para fazer um tapete. No entanto, as paredes tinham uma cor luminosa, a secretária era uma beleza, e os posters emol­durados denotavam um gosto muito especial por arte e por estilo que ela, até então, achava que ele não possuía.

- Tens imensos dons, não tens?” Passou os dedos pela secretá­ria, impressionada com as pilhas de pastas e divertida com as pinturas abstractas.

Era um bom local de trabalho.
Um bom lugar para reflectir, imaginou. Ele não se ralava nada com o estado da cozinha. O sofá era apenas um sítio para uma sesta, para esticar as pernas ou para ler um livro. Porém, dava especial atenção aos espaços que o rodeavam quando eram importantes para ele.

Beleza, conhecimento, coragem. Fora-lhe dito que precisava dessas três coisas. No sonho havia beleza - amor, um lar, arte. Depois, o conhecimento de que tudo não passava de uma ilusão. E por fim, a coragem para estilhaçar essa ilusão.

Talvez isso fizesse parte do processo.

E o amor acabaria por forjar a chave.

Bem, ela amava Flynn. Aceitava amar Flynn. Então, por onde andava o raio da chave?

Deu uma volta, e depois andou de um lado para o outro a examinar a sua colecção de arte. Mulheres de capa de revista. ”Ele é um tipo tão... especial”, pensou. ”Um tipo muito inteligente.”

Havia um toque sexual nas fotografias, mas com uma inocên­cia subjacente. As pernas da Betty Grable, a melena da Rita Hayworth, o rosto inesquecível de Monroe.

Lendas, tanto pela beleza como pelo talento. Deusas do ecrã.

Deusas.

Os seus dedos tremeram quando tirou a primeira gravura da parede.

Não podia ter-se enganado. Só podia ser aquilo.

No entanto, examinou todas as gravuras, todas as molduras, e a seguir cada milímetro da sala, e não encontrou nada.

Recusando-se a desanimar, sentou-se à secretária. Estava qua­se. Faltava-lhe um pequeno passo, mas estava quase. Agora tinha a certeza de que as peças estavam lá todas. Só lhe faltava encon­trar a peça certa para conseguir encaixá-las todas de seguida.

Precisou de sair para apanhar ar e refrescar as ideias.

E entretanto, faria qualquer coisa de normal.

Não, nada de normal. Algo de inspirado. Algo de artístico.

Flynn decidiu que tinha chegado a altura de inverter os papéis e retomar a situação onde tinham começado e, por isso, parou a caminho de casa para lhe comprar flores. Havia um cheiro a Outono no ar, e a geada crestara já as cores das árvores. O verde das colinas circundantes tingia-se de brumas avermelhadas, dou­radas e cor de ferrugem.

Sobre essas colinas surgiria uma Lua em quarto minguante.

Será que ela pensou nisso e se preocupou?

Claro que sim. Seria impossível para uma mulher como Malory pensar de outro modo. Mesmo assim, estava feliz quando fora ao seu gabinete. Tencionava mantê-la assim.

Podia levá-la a jantar fora. Possivelmente até Pittsburgh, para mudar de ambiente. Uma viagem longa, um jantar exótico: isso iria seduzi-la, fá-la-ia pensar noutra coisa... quando subiu os de­graus da entrada, apercebeu-se que havia algo de diferente.

Cheirava... bem.

”Um leve aroma a limão”, pensou ao aproximar-se da sala de visitas. Com especiarias à mistura. Veladamente feminino. Será que as mulheres exsudavam aromas quando permaneciam numa casa durante algumas horas?

-Mal?

-Aqui! Na cozinha!

O cão apareceu primeiro, teve direito a um biscoito, a uma festa, e a um dedo em riste a apontar-lhe a porta do quintal. Flynn não tinha a certeza do que lhe fazia crescer água na boca, se os aromas que saíam do forno, se os da mulher que estava de avental branco com peitilho.

Meu Deus, quem diria que um avental podia ser sexy?

- Viva! O que estás a fazer?

- A cozinhar - respondeu, e fechou a porta para o quintal. - Sei que é uma maneira excêntrica de usar uma cozinha, mas podes chamar-me doida. Flores?

O seu olhar tornou-se meigo, quase húmido.

- São bonitas.

- E tu também. A cozinhar?

Desistiu imediatamente e sem remorsos dos seus planos origi­nais de irem jantar fora.

- Será que isso se assemelha vagamente a um jantar?

- Acho que sim - pegou nas flores, e mandou-lhe um beijo por cima delas.

- Decidi maravilhar-te com os meus talentos culinários, e fui à mercearia. Não tinhas aqui nada que eu pudesse qualificar de comida decente.

- Flocos de cereais. Há montes de flocos.

- Eu reparei - como ele não tinha nenhum vaso, ela encheu um jarro de plástico com água para pôr as flores. O facto de não lhe parecer um gesto servil fê-la sentir-se orgulhosa.

- Também me pareceu que não tinhas aqui os utensílios habi­tuais para preparar uma refeição. Nem sequer uma simples co­lher de pau.

- Não percebo porque é que fazem colheres de madeira. Será que ainda não progredimos o suficiente para não andarmos a roubar madeira às árvores para fazermos utensílios? - pegou numa que estava em cima do balcão e franziu o sobrolho.

- Há qualquer coisa diferente. Qualquer coisa mudou.

- Está limpo.

O rosto dele revelava o seu choque enquanto passeava pela cozinha.

- Está mesmo limpo. Como conseguiste? Contrataste uma briga­da de duendes? Quanto é que levam à hora?

- São pagos em flores - cheirou-as, e reconheceu que afinal fica­vam amorosas no jarro de plástico. - E tu és pago como deve ser.

- Andaste a fazer limpezas. Que... estranho.

- Pode parecer pretensioso, mas entusiasmei-me.

- Não, não é a palavra ”pretensioso” que me vem à cabeça, mas sim ”Ena, pá!” Achas que me devo sentir envergonhado?

- Se não te sentires, eu também não.

- Combinado - puxou-a para si, e esfregou o rosto contra o dela. - E estás a fazer comida. De forno!

- Quis desanuviar um bocado a cabeça.

- Também eu. Estava a pensar que podíamos ir a um daqueles restaurantes privados de luxo, mas baralhaste-me o jogo todo.

- Então, podes voltar a baralhar. Guarda esse trunfo na manga, e joga-o quando te apetecer. Fazer arrumações ajuda-me a pôr a cabeça em ordem, e há muito que arrumar nesta casa. Não en­contrei a chave.

- Já percebi. Sinto muito.

- Mas estou quase - afirmou, olhando para o vapor que saía do tacho como se a resposta pudesse surgir daí. - Acho que me está a faltar um dado importante. Bom, depois falamos nisso. O jan­tar está quase pronto. Não queres servir o vinho? Acho que liga bem com o rolo de carne.

- Claro - replicou ele, pegou na garrafa de vinho que ela tinha deixado a respirar sobre a bancada, e voltou a pousá-la.

- Rolo de carne? Fizeste rolo de carne.

- E um pouco de puré de batata - acrescentou, enquanto montava a batedeira que trouxera da sua cozinha. - E feijão-verde. Pareceu-me que ia bem, tendo em conta a tua coluna de hoje. E parti do princípio que, por teres usado a refeição, deves gostar de rolo de carne.

- Sou homem. Nós adoramos rolo de carne. Malory... Ridiculamente emocionado, acariciou-lhe a face.

- Devia ter-te trazido mais flores.

Ela desatou-se a rir, e começou a tratar das batatas que tinha cozido.

- Estas servem perfeitamente. É a primeira vez que faço rolo de carne. Sou mais aquele tipo de mulher que faz frango frito ou esparguete com molho de qualquer coisa. Mas a Zoe deu-me esta receita que jura que sai sempre bem e é ideal para uma refeição a dois. Diz que o Simon a devora.

- Vou tentar lembrar-me de a mastigar.

Então, pegou-lhe no braço de modo a que ela se virasse para ele. Aproximou-se e deslizou os dedos pelo seu corpo acima até lhe acariciarem o maxilar. Encostou suavemente os lábios aos seus, levando-a a beijá-lo como se estivesse a conduzi-la para uma cama de penas.

O coração dela deu um pulo, lento e preguiçoso, no preciso momento em que as brumas começaram a tremeluzir-lhe no cére­bro. A espátula de borracha que tinha na mão deslizou-lhe por entre os dedos enquanto todo o seu corpo se derretia nele, con­tra ele.

Ele sentiu-a estremecer, entregar-se, e retribuiu. Quando a lar­gou, os olhos dela estavam azuis e enevoados. Era uma mulher que tinha o poder de fazer sentir um homem como um deus, pensou.

- Flynn...

Os seus lábios comprimiram-se quando os passou pela testa dela.

- Malory...

- Eu... esqueci-me do que estava a fazer. Ele dobrou-se para apanhar a espátula.

- Acho que estavas a fazer puré de batata.

- Claro. Batata. - Um pouco zonza, dirigiu-se para o lava-loiça a fim de lavar a espátula.

- Isto é de certeza a coisa mais bonita que alguém já fez por mim.

- Amo-te - afirmou, cerrando os lábios e olhando para a janela. - Não digas nada. Não quero que as coisas se tornem incómodas para nenhum de nós. Tenho pensado muito nisso. Sei que me apressei e fui insistente. Não é nada o meu estilo - agora falava com alguma brusquidão, enquanto se dirigia para a batedeira.

- Malory...

- Não precisas de dizer nada. Neste momento, já é bastante que aceites e te divirtas talvez um bocado. Acho que o amor não deve ser uma arma, ou um instrumento, ou um peso, A sua bele­za reside na dádiva, sem quaisquer compromissos. Tal como este jantar.

Ela sorriu, embora a enervasse o modo calmo como ele a fitava.

- Então, porque é que não serves o vinho e depois lavas a louça? Sim, divertimo-nos os dois.

- Fica combinado.

”Posso esperar”, pensou Flynn. Talvez a ideia fosse esperar. Em todo o caso, as palavras na sua cabeça pareciam desajustadas em comparação com a simplicidade das palavras dela.

Iam então divertir-se os dois com um jantar preparado na cozi­nha, agora estranhamente caseira e com flores frescas dentro de um jarro de plástico.

O início reflectiu os sentimentos de ambos. Não era interes­sante constatar como conseguiam completar-se mutuamente?

- Se tiveres feito uma lista de coisas que eu devia ter aqui, posso comprá-las.

Ela arqueou as sobrancelhas, aceitou o vinho que ele lhe ofere­cia, e depois tirou do bolso do avental um pequeno bloco de apontamentos.

- Já está quase cheio. Tencionava esperar que te rendesses perante a delícia da carne e das batatas.

Folheou o bloco de apontamentos, e reparou que as compras estavam ordenadas sob títulos específicos. Alimentos, Produtos de Limpeza - com os subtítulos Cozinha, Casa de Banho, Lavandaria - Necessidades Gerais. Meu Deus, aquela mulher era irresistível.

- Será que tenho de pedir um empréstimo?

- Encara isto mais como um investimento. - Tirou-lhe o bloco das mãos, e enfiou-o no bolso do peitilho para se concentrar nas batatas.

- A propósito, gosto muito da arte que tens no teu estúdio.

- Arte? - indagou ele, e fez uma pausa. - Ah, as minhas meni­nas. Gostas mesmo?

- Inteligente, nostálgica, sexy, com estilo. Tudo junto faz uma grande sala, que reconheço ter constituído um certo alívio, tendo em conta o resto da casa. O suficiente para não me sentir depri­mida quando a minha cabeça não parava de dar voltas por não ter encontrado a chave.

Pôs o feijão-verde temperado com basílico dentro de uma das suas taças, e passou-lha para ele se servir.

- Monroe, Cable, Hayworth e assim por diante. Deusas do ecrã. Deusa, chave.

- Boa associação.

- Sim, pareceu-me que sim, mas não tive sorte nenhuma. Passou-lhe a taça com o puré de batata, e a seguir, calçando as luvas que trouxera, tirou o rolo de carne do forno.

- De qualquer modo, acho que estou no caminho certo, e além disso, tive a oportunidade de ver o teu espaço de reflexão.

Malory sentou-se e examinou a mesa.

- Espero que estejas com fome.

Serviram o jantar. A primeira dentada no rolo, Flynn soltou um suspiro.

- Ainda bem que mandaste o Moe lá para fora. Odiaria atormentá-lo com isto, pois não teria direito a nada. Os meus parabéns à artista.

Malory descobriu que sentia prazer em observar alguém que se ama a comer aquilo que nós cozinhámos. Prazer em compar­tilhar uma simples refeição numa mesa da cozinha ao fim do dia.

Nunca se coibira de jantar sozinha, ou na companhia de um amigo. Mas agora era fácil ver-se a partilhar com ele aquele
mo­mento, noite após noite, ano após ano.

- Flynn, disseste que quando aceitaste ficar no Vale compraste esta casa. Tinhas, ou tens um projecto para ela? Que decoração ou ambiente queres que ela tenha?

- Não sei se se poderá chamar um projecto. Gostei do ar da casa, do estilo e do quintal enorme. Há qualquer coisa nos quin­tais grandes que me faz sentir próspero e seguro.

Calou-se durante uns segundos.

- Acho que, mais tarde ou mais cedo, vou ter de esvaziar esta sala e abri-la para o novo milénio. E acabar por comprar mobília para o resto da casa. Mas parece que nunca me chego a decidir. Acho que é por viver só com o Moe.

Serviu mais vinho para os dois.

- Caso tenhas algumas ideias, estou aberto a sugestões.

- Ideias não me faltam, e sou um perigo quando desato a língua. Mas não foi isso que te perguntei. Eu tinha um projecto para a casa que comprámos: a Dana, a Zoe e eu. Mal entrei naquela casa, vi logo como ia funcionar, o que era preciso fazer, o que podia fazer para melhorá-la. E depois nunca mais lá voltei.

- Tens andado muito ocupada.

- Não é isso. Não voltei lá deliberadamente. Nem parece meu. Normalmente, quando tenho um projecto, não descanso enquanto não começo a concretizá-lo, a brincar com as coisas, a arruma­das, a fazer listas. Dei o primeiro passo. Fiz o que devia, mas fui incapaz de dar o passo seguinte.

- É um grande compromisso, Mal...

- Não tenho medo de compromissos. Caramba, até anseio por eles! Mas tenho tido um bocado de medo deste. Vou até lá amanhã para ver a casa. Ao que parece, os antigos inquilinos dei­xaram muita tralha no sótão. A Zoe pediu-me para dar uma vista de olhos antes de começar a deitar coisas fora.

- Mas que tipo de sótão? Um daqueles escuros e assombra­dos, ou daqueles grandes e divertidos, tipo sótão da avozinha?

- Não faço ideia. Ainda não fui lá - reconheceu, sentindo-se envergonhada. - Ainda não passei do piso térreo, o que é ridícu­lo, visto ser dona de um terço da casa. Ou vir a ser. Mas isso vai mudar. Nunca tive muito jeito para mudanças.

- Queres que vá até lá contigo? Pelo sim, pelo não, até gostava de ver a casa.

- Estava à espera de que dissesses isso - afirmou, e estendeu a mão para apertar a dele. - Obrigada. Bem, já que me pediste ideias para esta casa, sugiro que comeces pela sala de visitas que, tanto quanto me pareceu, deve ser o espaço onde costu­mas viver.

- Vais voltar a dizer mal do meu sofá, não vais?

-Julgo que não tenho palavras para insultar esse sofá tal como ele merece. Mas acho que agora deves pensar em mesas, candeei­ros, tapetes grandes, cortinas...

- Estava a pensar encomendar tudo isso por catálogo. Ela lançou-lhe um olhar longo e seco.

- Estás a tentar assustar-me, mas não consegues. E já que te ofereceste para me ajudar amanhã, vou retribuir a gentileza. Fico feliz em ajudar-te a transformar
aquele espaço numa sala.

Como já tinha deixado o prato vazio por duas vezes, resistiu para não se servir uma terceira vez.

- Isso é um truque espertalhão para me convenceres a ir a um armazém de móveis?

- Não era mas resultou, não foi? Posso dar-te algumas ideias enquanto lavamos a loiça.

Levantou-se para empilhar os pratos, mas ele pousou a mão sobre a sua.

-Agora vamos ali para dentro, para me mostrares o que há de errado na minha concepção simples e minimalista.

- Só depois de lavar a louça.

- Hum... hum. Agora. - Insistiu ele, e começou a puxá-la para fora da cozinha, divertido com o esgar que ela fazia ao olhar para a mesa.

- Ainda cá estarão quando voltarmos. Confia em mim. Não fará mal nenhum alterar a ordem natural das coisas.

- Claro que faz. Um bocado. Então, só cinco minutos. Uma consulta rápida. Primeiro, acho que te saíste bem quanto às pare­des. É uma sala de boas dimensões, e a cor forte é um comple­mento que poderias realçar com cortinas de outras cores fortes e... O que é que estás a fazer? - perguntou quando ele lhe come­çou a desabotoar a camisa.

- A despir-te.

- Desculpa - disse ela, e afastou-lhe os dedos. - O meu preço por consultas de decoração despida é mais elevado.

- Depois mandas a conta - acrescentou ele, pegando-lhe ao colo.

- Era apenas um truque, não era? Uma armadilha para me despires e ires para a cama comigo.

- E parece que surtiu efeito, não achas?

Dito isto, atirou-a para o sofá e mergulhou para cima dela.

 

Fê-la a rir-se enquanto lhe dava beijos nos maxilares, e debateu-se com ela quando o evitou. - Sabes melhor que o rolo de carne.

- Se isso é o melhor que consegues fazer, acho que vais ser tu a lavar a loiça.

- As tuas ameaças não me assustam - garantiu, fazendo desli­zar os dedos pelas costelas dela, em direcção aos seios. - Algures na cozinha há uma máquina de lavar loiça.

- Claro que há. E tinhas lá guardado um saco de ração para o cão,

- E agora onde está? - perguntou ele, dando-lhe uma dentadinha no lóbulo da orelha.

- Onde devia estar. Na despensa.

Virou ligeiramente a cabeça para lhe facilitar o acesso ao pes­coço.

- É evidente que ignoras que existem caixas muito práticas, atraentes até, feitas para guardar géneros como comida para cão.

- A sério? Parece-me que vou poder ignorar essas coisas, e seres tu a preocupares-te com esses problemas domésticos. Mas agrada-me um desafio a seguir a uma boa refeição. Vamos tirar isto.

Puxou-lhe a camisa, e depois fez um som gutural enquanto passava um dedo sobre a renda cor de salmão do soutien dela.

- Agrada-me. Mas não o vamos tirar já.

- Podemos continuar lá em cima. Limpei por debaixo das al­mofadas, e vi o que este monstro pode engolir. Por este andar, ainda somos os próximos.

- Eu protejo-te.

Substituiu os dedos pelos lábios, e começou a passá-los ao longo da renda e da carne dela.

As enormes almofadas cederam sob o peso deles, aninhando-os ainda mais enquanto ele a explorava. Ela deu umas risadinhas, e debateu-se numa resistência fingida, num jogo erótico que excitava ambos.

A mente dela começou a turvar-se quando ele lhe cravou os dentes no peito.

- O que achas dos brasileiros? Aturdido, levantou a cabeça.

- O quê? O povo ou o caju?

Ela fitou-o, espantada por ter falado alto e deliciada com a sua resposta. A gargalhada, vinda directamente da barriga, fê-la es­tremecer quando o agarrou e lhe cobriu a cara de beijos,

- Nada. Não foi nada. Olha - pediu ela, e puxou-lhe a camisa pela cabeça. - Agora estamos quites.

Adorava o toque da pele dele sob as suas mãos, os ombros possantes, a disposição dos seus músculos. Adorava, oh, sim, ado­rava, a sensação das suas mãos sobre ela. Delicadas ou brutas, nervosas ou mais calmas.

E enquanto a luz do fim da tarde penetrava pelas janelas, en­quanto ele vagueava pelo seu corpo abaixo, ela fechou os olhos e deixou que as sensações tomassem conta dela.

Frémitos e empurrões, calores e suores gelados. Cada sensa­ção era um estremecimento que se diluía numa só dor perma­nente. Os dedos dele dançaram sobre o seu ventre, fazendo-o tremer, antes de lhe puxarem as cuecas pelas coxas e pelas per­nas abaixo.

Então, a sua língua escorregou sobre ela, abaixo dela, dentro dela, levando-a ao êxtase.

Ela gemeu o seu nome enquanto o seu corpo se arqueava de­baixo do dele. Suspirou o seu nome quando pareceu dissolver-se sob as suas mãos.

Ele queria, como o tinha querido naquele momento espanto­so na cozinha, dar-lhe qualquer coisa. Tudo o que ela queria, tudo aquilo de que precisava, mais do que ela poderia imaginar.

Nunca soubera o que era receber amor incondicional, saber que esse amor esperava por ele. Nunca se sentira privado dele, pois nunca soubera da sua existência.

E agora tinha nos braços a mulher que lho oferecera.

Ela era o seu milagre, o seu encantamento. A sua chave.

Pressionou os lábios contra o seu ombro, contra o pescoço, e cavalgou ao ritmo dessas novas e grandes emoções, envolvido no abraço dela.

As palavras passavam-lhe pela mente aos tropeções, mas nenhu­ma era suficiente. Uniu os seus lábios aos lábios dela, aconche­gou-lhe as ancas e penetrou-a.

Quente, descontraída e ensonada, enroscou-se nele. A coisa que mais desejava era não abandonar o seu casulo, aquele maravi­lhoso torpor sexual, deixar-se embalar por ele ao som dos mur­múrios da sua própria pele. Se fosse necessário, as tarefas domésticas que esperassem, eternamente. Enquanto pudesse fi­car ali aconchegada, a sentir o bater do coração de Flynn contra o seu.

Pensou porque não adormeceriam daquela maneira, quentes, nus e entrelaçados com a beleza do acto sexual a pairar sobre eles como nuvens leves e lisas como seda.

Esticou-se sensualmente sob o braço dele quando
ele lhe acari­ciou as costas.

- Mmmm... vamos ficar aqui quietinhos toda a noite, como um casal de ursos na gruta.

- Estás feliz?

Ela ergueu o rosto e sorriu para ele.

- Claro que estou - respondeu, e voltou a enroscar-se nele. -Tão feliz que finjo esquecer-me de que há pratos para lavar e restos de comida para deitar no lixo,

- Não tens andado lá muito feliz nos últimos dias.

- Não. Acho que não. - Ajeitou a cabeça mais confortávelmente por cima do ombro dele. - Sentia que tinha perdido o norte, que tudo à minha volta estava a mudar tão rapidamente, que não conseguia dominar a situação. Depois, ocorreu-me que, se eu não mudasse, ou pelo menos, se não me dispusesse a mu­dar, o norte de pouco serviria. Porque assim não ia a lado ne­nhum.

- Há algumas coisas que quero dizer-te, se é que te sentes com coragem para enfrentar mais mudanças.

Pouco à vontade, dada a seriedade do tom de voz dele, ga­nhou coragem.

- Estou pronta.

- É sobre a Lily.

Sentiu-a tensa, um retesar imediato dos músculos, e pareceu-lhe que tentava voltar a descontrair-se.

- Talvez não seja a melhor altura para me falares sobre outra mulher. Especialmente aquela que amaste e com quem planeaste casar.

- Acho que é. Conhecemo-nos socialmente durante vários meses, e depois intimamente durante quase um ano. Encaixáva­mos perfeitamente a vários níveis. Profissionalmente, socialmen­te, sexualmente...

O seu maravilhoso casulo estava agora a desintegrar-se, e come­çou a sentir frio.

- Flynn...

- Escuta-me com atenção. Foi a relação adulta mais duradoira que tive com uma mulher. Uma relação séria com um plano a longo prazo. Pensei que estávamos apaixonados um pelo outro.

- Ela magoou-te, eu sei. Lamento, mas...

- Chiu - pediu ele, batendo-lhe com um dedo na cabeça. -Não me amava, ou se me amava, esse amor tinha exigências espe­cíficas. Portanto, não poderíamos considerá-lo propriamente uma dádiva.

Calou-se por momentos, seleccionando criteriosamente as palavras.

- Não é fácil olhar para o espelho e aceitar que nos faltou uma peça qualquer, qualquer coisa que fez com que a pessoa que desejavas não te amasse.

Ela tentou manter a calma.

- Não, não é.

- E mesmo quando encaramos o assunto, quando nos aperce­bemos de que não podia dar certo, de que havia qualquer coisa que faltava à outra pessoa, de que todo o conjunto também não funcionava, a nossa auto-estima fica abalada. Isso faz com que não consigamos encarar com toda a confiança uma segunda opor­tunidade.

- Eu percebo isso.

- E acabamos por não ir a lado nenhum - concluiu, fazendo-se eco da anterior afirmação dela. - Um dia destes, o Jordan disse-me uma coisa que me pôs a pensar, a pensar no passado. Pergun­tei a mim próprio se algum dia teria mesmo imaginado uma vida com a Lily. Sabes, se nos imaginaria juntos durante alguns anos. Consegui ver o futuro que nos esperava, a mudança para Nova Iorque. Arranjaríamos empregos de acordo com as nossas qualifi­cações, encontraríamos um sítio para viver, e depois concluí que era tudo. Foi tudo o que consegui ver. Não como viveríamos ou o que faríamos para além dessa imagem vaga, não como seríamos passada uma década. Não era difícil imaginar a minha vida sem ela; mais difícil talvez tenha sido recompor a minha vida depois de ela me ter deixado. Muitas amolgadelas no ego e no orgulho. Mui­ta raiva e dor. E a ressaca de pensar que, afinal, talvez não fosse talhado para essa história do amor e do casamento.

O coração dela contorcia-se pelos dois.

- Não tens de te explicar.

-Ainda não acabei. Estava a recompor-me bastante bem. Ti­nha posto a minha vida em ordem. Não tanto como te possa parecer, mas sentia-me bem. Foi então que o Moe te fez dar aquele trambolhão no passeio, e as coisas começaram a mudar. Não é segredo nenhum que me senti atraído por ti logo à primeira, e que, mais tarde ou mais cedo, esperava que acabássemos nus neste sofá. Mas, ao princípio, era o máximo que conseguia ver em relação às coisas e em relação a mim e a ti.

Desta vez, ele levantou-lhe o rosto. Agora queria que ela olhasse para ele. Queria ver-lhe o rosto.

- Conheço-te há menos de um mês. Em relação a muitas ques­tões essenciais temos opiniões diametralmente opostas. No en­tanto, consigo ver a minha vida ao teu lado, o modo como olhas através de uma janela e vês o teu pequeno mundo a crescer. Posso imaginar o que será daqui a um ano, ou mesmo daqui a vinte, nós os dois juntos, e ver aquilo que construímos.

Passou-lhe os dedos pela cara, apenas para lhe sentir a forma.

- O que não consigo ver é como reconstruir a minha vida a partir deste ponto e vivê-la sem ti.

Viu os olhos dela rasarem-se de lágrimas, viu-as cair.

- Amo-te - proferiu, e limpou-lhe uma lágrima com o polegar. - Não tenho um grande plano estratégico para o que irá aconte­cer a seguir. Sei apenas que te amo.

As emoções brotaram dela, tão luminosas e intensas, que pen­sou se não iriam explodir em luzes coloridas. Horrorizada peran­te a ideia de se descontrolar, fez um esforço para sorrir.

- Tenho um pedido importante a fazer-te. -Tu é que mandas.

- Promete-me que nunca te vais ver livre deste sofá. Ele riu-se e acariciou-lhe o pescoço.

- Ainda te vais arrepender disso.

- Não vou. Não me quero arrepender de nada.

 

Malory sentou-se no alpendre da casa que viria a ser um terço dela e de cada uma das duas mulheres que se tinham tornado suas amigas e sócias.

O céu tinha-se enevoado desde a sua chegada, com nuvens amontoadas sobre nuvens em camadas que irradiavam uma varie­dade infinita de tons de cinzento.

”A tempestade está para chegar”, pensou, e agradou-lhe a ideia de poder ir para dentro com a chuva a bater no telhado. Mas primeiro queria ficar ali sentada enquanto o ar se carregava de electricidade e dessas primeiras ventanias que vergavam as ár­vores.

Mais do que tudo, precisava de partilhar a sua alegria e nervo­sismo com as amigas.

- Ele ama-me - não imaginara que alguma vez se cansaria de dizer aquilo em voz alta. - O Flynn ama-me.

- Que romântico! - exclamou Zoe, tirando um lenço de papel da carteira e assoando-se.

- E foi. Sabem, houve uma altura em que não teria pensado assim. Teria feito um esquema mental muito detalhado. Velas ace­sas, música, e eu e o homem ideal numa sala elegante. Ou cá fora, num cenário espectacular. Tudo tinha de estar enquadrado exactamente desta maneira.

Fez um gesto com a mão e riu-se de si própria.

- É por isso que sei que agora é uma coisa séria. Porque não teve de ser como eu tinha imaginado, elegante e perfeito. Tinha de acontecer. Tinha de ser o Flynn.

- Caramba! Tenho dificuldade em imaginar a tua felicidade com o Flynn - confessou Dana, e pousou o queixo no pulso. -Tudo perfeito, porque também o amas. Mas é o Flynn, o meu tonto favorito. Nunca o tinha imaginado como um ser romântico.

E, virando-se para Zoe, perguntou:

- Mas que raio é que tinha o rolo de carne? Se calhar, é me­lhor pedir-te a receita.

- Eu própria vou voltar a lê-la - afirmou Zoe, dando uma pal­mada no joelho de Malory. - Estou muito feliz por ti. Desde o início que sempre gostei de vos ver juntos.

- Ei, vais viver com ele? - perguntou Dana entusiasmada. - Isso faria com que o Jordan desse corda aos sapatos bastante mais cedo.

- Lamento, mas ainda não chegámos a essa fase. Estamos ain­da em pleno romance. E isso, amigas e vizinhas, é uma mudança radical para mim. Não vou estabelecer prazos nem fazer listas. Vou andar ao sabor dos acontecimentos. Meu Deus, sinto-me capaz de conquistar o mundo! O que me leva à fase seguinte deste nosso encontro. Desculpem não ter participado em nenhum dos planos para esta casa, ou posto em prática ideias para a ar­ranjar ou para a ver acabada.

- Estava a pensar se ainda querias ser fiadora - admitiu Dana.

- Estava a pensar nisso. Desculpem não vos ter dito. Tive de pensar muito bem no que iria fazer e porquê. Agora já sei. Vou abrir o meu próprio negócio, pois quanto mais se adiam os sonhos, menos oportunidades nos surgem de os concretizarmos. Vou fazer sociedade com duas mulheres de quem gosto muito. Não só não vou desapontá-las, como não me vou desapontar a mim mesma.

Levantou-se com as mãos nas ancas, e virou-se para olhar para a casa.

- Não sei se estou pronta para isto, mas estou disposta a tentar. Não sei se vou encontrar a chave durante o tempo que me resta mas sei que, quanto a isso, também não deixarei de tentar.

- Vou dizer-vos o que penso - começou Zoe, levantando-se para se juntar a ela. - Se não fosse a chave, não andarias com o Flynn. Não estaríamos juntas e não teríamos esta casa. Por causa dela tive a oportunidade
de fazer algo de importante para mim, para o Simon. Não conseguiria isso sem vocês as duas.

- Deixem-me começar por dizer que podemos dispensar o abraço de grupo - começou Dana, não deixando, por isso, de avançar em direcção a elas. - Mas eu sinto o mesmo. Sem vocês não teria esta oportunidade. O idiota do meu irmão tem uma senhora de categoria apaixonada por ele. Tudo isso começou com a chave. Digo-te que a vais encontrar.

Olhou para cima quando começou a pingar.

- Agora vamos pirar-nos da chuva. Lá dentro, formaram um semicírculo.

- Juntas ou separadas? - perguntou Malory.

- Juntas - respondeu Zoe.

- Para cima ou para baixo?

- Para cima! - Dana olhou em volta, e viu que todas assentiam com a cabeça. - Disseste que o Flynn passava por cá?

- Sim, por uma hora.

- Podemos utilizá-lo como burro de carga, para tirarmos do sótão o que não nos interessar.

- Há lá coisas que são óptimas! - exclamou Zoe, e o seu rosto brilhou de entusiasmo quando começaram a subir.

- À primeira vista pode parecer sucata, mas se virmos tudo com atenção, é natural que possamos aproveitar algumas coisas. Há uma cadeira velha de vime que podia ser restaurada e pinta­da. Ficava a matar no alpendre. E também há um par de candeei­ros de pé. Os abajures estão uma porcaria, mas os pés podiam ser limpos e levar uma patine.

A sua voz esmoreceu quando Malory subiu as escadas. A janela de cima estava molhada pela chuva e coberta de pó. E o seu coração começou a bater violentamente como um punho contra as costelas.

- É isto - sussurrou.

- Sim, é mesmo isto - afirmou Dana, e pôs as mãos nas ancas enquanto passava os olhos pelo andar de cima. - A casa será nossa e do banco daqui a umas semanas.

- Não, é este o sítio. O sítio onde se passava o meu sonho. É esta a casa. Como pude ser tão estúpida em não perceber? - A excitação perpassava-lhe a voz, apressando-lhe as palavras. - Não era a casa do Flynn, mas a minha. Eu sou a chave. Não foi o que a Rowena disse?

Virou-se para encará-las com os olhos a brilhar.

- Beleza, conhecimento, coragem. Somos nós as três, e este é o sítio. E o sonho era a minha fantasia, a minha ideia de perfei­ção. Portanto esta casa tinha de ser minha.

Apertou a mão contra o coração, como se quisesse impedi-lo de saltar cá para fora.

- A chave está aqui. Nesta casa.

No momento seguinte estava só. A escadaria por detrás dela encheu-se de uma ténue luz azul-clara. Como uma bruma, a luz avançou na sua direcção, rastejou pelo soalho até aos seus pés, até que o frio húmido lhe cobriu os tornozelos. Petrificada pelo choque gritou, mas a sua voz soou oca como um eco trocista.

Com o coração aos pulos, olhou para as salas de cada um dos lados. O nevoeiro, azul e fantasmagórico, serpenteava e subia em espiral pelas paredes, sobre as janelas, impedindo mesmo a en­trada da luz tristonha da tempestade.

”Foge!”, ouviu um grito desesperado, vindo da sua própria mente. ”Foge. Sai já daqui, antes que seja tarde de mais.” Aquela não era a sua luta. Ela era uma mulher banal, que levava uma vida banal.

Agarrou-se ao corrimão e desceu o primeiro degrau. Ainda conseguia ver a porta através daquela cortina azul que devorava rapidamente a luz verdadeira. Do outro lado da porta estava o mundo real. O seu mundo. Bastava-lhe abrir aquela porta e sair em direcção à normalidade, e tudo regressaria ao que era dantes.

Era isso que ela queria, não era? Uma vida normal. O seu sonho não lhe mostrara isso mesmo? Casamento e família. Pão frito ao pequeno-almoço e flores no toucador. Uma vida bonita, feita de coisas simples e construída sobre o amor e o afecto.

Estava à sua espera, para lá daquela porta.

Desceu os degraus como uma mulher em transe. Conseguia ver para lá da porta, quase através da porta, onde estava um dia perfeito de Outono. Árvores douradas pela luz do dia, o ar fresco e acre. E embora o coração continuasse a galopar dentro do seu peito, os lábios curvaram-se num sorriso sonhador quando che­gou à porta.

”Isto está errado”, ouviu dizer a sua própria voz, estranhamente indiferente e calma. - É mais um truque.

Uma parte do seu corpo arrepiou-se, chocado, quando se afas­tou da porta e da vida perfeita que a aguardava lá fora.

”O que está lá fora não é real: isto é a realidade. O teu lugar agora é aqui.”

Espantada por quase ter abandonado as amigas, voltou a cha­mar por Dana e por Zoe. Para onde as teria ele levado? Que ilusão as separara? O medo que sentiu por elas fê-la voltar a subir as escadas à pressa. A sua correria rasgou as brumas azuis, dei­xando atrás de si umas fitas repelentes.

Para se orientar, foi até à janela no cimo das escadas e limpou aquelas brumas geladas. Embora tivesse as pontas dos seus dedos adormecidas, conseguiu ver que o temporal continuava lá fora. A chuva caía intensamente de um céu escuro. O seu carro estava estacionado à porta da garagem, exactamente onde o deixara. Do outro lado da rua, uma mulher com um guarda-chuva encarna­do e um saco com compras corria para casa.

Aquilo era real, declarou Malory para si própria. Era a vida, confusa e inconveniente. E ia regressar a ela. Ia encontrar o seu caminho de volta. Mas primeiro tinha uma tarefa a executar.

Quando se virou para a direita, a sua pele foi percorrida por arrepios gelados. Ansiou por um casaco, por uma lanterna. Pelas amigas. Por Flynn. Tentou não correr, não se apressar às cegas. A sala era um labirinto de corredores inacreditáveis.

Pouco importava. Não passava de mais um truque para a ater­rorizar e confundir. Algures naquela casa encontravam-se as suas amigas e a chave. Estava decidida a encontrá-las.

O pânico espicaçava-lhe a garganta enquanto caminhava.
Ago­ra o ar estava silencioso; até os seus passos solitários eram abafados pela bruma azul. O que haveria de mais assustador para o coração humano do que sentir frio, estar perdido e sozinho? Ele estava a usar tudo isso contra ela, fazendo-a iludir os seus próprios instintos. Porque ele não lhe poderia tocar, a menos que ela o consen­tisse.

”Não me vais obrigar a correr”, gritou ela, ”Sei quem sou e onde estou, e não me vais obrigar a correr.”

Ouviu alguém chamar o seu nome, apenas um sussurro atra­vés do ar pesado. Usando esse som como um guia, virou nova­mente as costas.

O frio intensificou-se, e as brumas húmidas rodopiaram. Sen­tiu a roupa molhada, a pele gelada. ”A voz pode ter sido outro truque”, pensou. Porém, agora não ouvia nada, apenas o sangue a martelar-lhe a cabeça.

Pouco importava a direcção que escolhesse. Podia caminhar interminavelmente em círculos, ou permanecer completamente imóvel, Agora não se tratava de encontrar o seu caminho ou de se perder. O que estava a acontecer naquele momento, concluiu, era nada mais, nada menos que uma batalha de forças.

A chave estava ali. Estava decidida a encontrá-la; e ele estava decidido a impedi-la.

”Deve ser humilhante rebaixares-te tanto com uma mulher mortal. Desperdiçares todo o teu poder e engenho em alguém como eu. E mesmo assim,, o melhor que consegues fazer é inven­tar esta irritante luz azul de efeitos especiais.”

Um brilho colérico e encarnado contornou a bruma. Embora Malory sentisse o coração afundar-se, cerrou os dentes e conti­nuou a caminhar. Talvez não fosse prudente desafiar um feiticei­ro, mas tirando o risco, pensou noutro efeito secundário.

Agora podia ver outra porta de onde emanavam as luzes azuis e encarnadas.

”O sótão”, pensou. Tinha de ser. Não as esquinas e os corre­dores traiçoeiros, mas a verdadeira essência da casa.

Concentrou-se nesse pensamento enquanto avançava. Enquan­to as brumas se moviam, engrossavam e rodopiavam, ela ignorava-as e retinha a imagem da porta na sua mente.

Por fim, ofegante, enfiou uma mão através da bruma e fincou-a na velha maçaneta de vidro.

Um ar quente, uma aragem abençoada, envolveu-a quando conseguiu abrir a porta. No meio da escuridão, começou a subir, perseguida pela névoa azul.

Na rua, Flynn avançava a custo, sujeito à tempestade, inclinan­do-se no assento para espreitar através da cortina de chuva que o limpa-pára-brísas mal conseguia limpar.

No banco de trás, Moe gemia como um bebé.

- Coragem, seu covarde, é só um chuvisco.

Os raios dardejavam o céu negro, seguidos do estrondo da trovoada como o troar de um canhão.

- Ainda por cima com estes relâmpagos!

Flynn disse um palavrão e agarrou-se firmemente ao volante enquanto o carro dava saltos e estremecia.

- E quanto a vento, também não estamos nada mal! - acres­centou. As rajadas de vento quase atingiam a velocidade de um furacão.

Tinha-lhe parecido uma simples tempestade ao sair do seu gabinete. No entanto, o temporal ia piorando a cada metro da estrada. Quando os gemidos do Moe se transformaram em lati­dos de meter dó, Flynn começou a preocupar-se com Malory, ou com Dana ou com Zoe, ou talvez mesmo com as três, caso tives­sem sido apanhadas pela tempestade.

”Devem estar agora em casa”, lembrou-se naquele momento. Porém, era capaz de jurar que a fúria da tempestade piorara bas­tante naquele extremo da cidade. O nevoeiro descera das coli­nas, cobrindo-as de um cinzento espesso e denso como lã. A sua visibilidade diminuiu, obrigando-o a abrandar. Mesmo a baixa velocidade, o carro derrapava perigosamente nas curvas.

- Vamos encostar - disse para Moe. - Encostar e esperar que passe.

A ansiedade percorreu-lhe a espinha, mas em vez de desanu­viar quando estacionou o carro num passeio, cravou-se por de­trás do pescoço como umas garras. O som da chuva a cair como murros no tejadilho do carro parecia martelar-lhe o cérebro.

- Há aqui alguma coisa que não está bem.

Voltou à arrancar, com as mãos comprimidas contra o volante cada vez que o vento abanava o carro. O suor, resultado do esfor­ço e da preocupação, escorria-lhe pelas costas abaixo. Durante os três quarteirões que se seguiram, sentiu-se como um homem a lutar numa guerra.

Houve um pequeno momento de alívio quando localizou os carros no acesso que dava à garagem. ”Elas estão bem”, disse para consigo. ”Estão lá dentro. Não há problema. Sou um tonto.”

- Eu disse-te que não havia motivo para preocupações - afir­mou. E, virando-se para Moe: - Agora tens duas alternativas. Ou te acalmas e entras comigo, ou ficas aqui a ganir e a tremer. A decisão é tua, pá.

Sentiu-se menos aliviado quando estacionou no passeio e olhou para a casa.

Se a tempestade tinha um coração, era ali que ele estava. Nuvens negras fervilhavam sobre a casa, expelindo toda a força da sua fúria. Ali à sua frente, os raios caíam como setas destemi­das no relvado da frente. A relva esturricava-se, fazendo buracos descarnados.

- Malory!

Não soube se falara, se berrara, ou se se teria limitado a gritar interiormente, porém, escancarou literalmente a porta do carro e lançou-se contra a violência surreal da tempestade.

O vento fê-lo recuar devido a uma rajada tão forte que o fez sentir o sabor a sangue na boca. Os relâmpagos ecoavam como morteiros mesmo à sua frente, e o ar tresandava a queimado. Cego pela força da chuva, inclinou-se para a frente e avançou até à casa.

Tropeçou nos degraus e continuou a chamar pelo seu nome vezes sem conta como num cântico, quando viu a luz azul espes­sa em redor da porta principal.

A maçaneta queimava, de tão gelada que estava, e recusava-se a girar na sua mão. Cerrando os dentes, Flynn recuou, e inves­tiu depois contra a porta com o ombro. Uma,
duas vezes e, à terceira investida, arrombou-a.

Saltou lá para dentro, penetrando nessa bruma azul.

- Malory! - gritou, afastando da cara o cabelo encharcado. -Dana!

Voltou-se para trás quando qualquer coisa lhe roçou na perna e levantou os punhos, apenas para os baixar ao verificar que era o cão todo molhado.

- Raios te partam, Moe. Não tenho tempo para...

Interrompeu a frase quando Moe ganiu profundamente, dei­xando escapar um latido mórbido para depois começar a correr pelas escadas acima.

Flynn precipitou-se atrás dele e entrou no seu gabinete.

- Se quiser fazer uma cobertura decente da Festa do Outono, vou precisar da primeira página do suplemento de fim-de-semana e de um editorial sobre as actividades laterais - afirmou Rhoda, cruzando os braços numa atitude de desafio. - A entrevista do Tim com o sujeito dos palhaços tem de passar para a segunda página.

Sentia um ligeiro zumbido nos ouvidos e tinha uma chávena de café na mão. Flynn observou a expressão irritada de Rhoda, Sentiu o cheiro do café e de White Shoulders, o perfume que ela usava habitualmente. Por detrás dele, o scanner emitia um som semelhante ao de um queixume, e Moe ressonava como uma máquina a vapor,

- Isso é uma conversa de merda.

- Não vais a lado nenhum se usares esse tipo de linguagem comigo - ripostou Rhoda com firmeza.

- Não, é mesmo uma conversa de merda. Eu não estou aqui. E tu também não.

-Já é altura de ser tratada com um pouco mais de respeito. Só diriges o jornal porque a tua mãe quis evitar que fizesses figura de parvo em Nova Iorque. Grande repórter citadino. Grande treta. Não passas de um provinciano sem mérito. Sempre o foste, e sempre o serás.

- Vai chatear outro! - respondeu Flynn, atirando o café, cháve­na incluída, à cara dela.

Ela soltou um gritinho, e ele regressou à bruma.

A tremer, virou-se novamente para o lugar de onde vinha o ressonar do Moe.

Por entre aquela bruma envolvente, viu Dana ajoelhada com os braços à volta do pescoço de Moe.

- Meu Deus! Graças a Deus, Flynn! - exclamou, e depois er­gueu-se e abraçou-se a ele tal como tinha feito ao cão. - Não consigo encontrá-las. Não consigo. Eu estava aqui, depois já não estava, agora estou aqui outra vez. - A histeria fazia com que a sua voz soasse estridente e entrecortada - Estávamos as três jun­tas, precisamente aqui, e depois já não estávamos...

- Pára, pára - ordenou-lhe, e a seguir deu-lhe um puxão e começou a abaná-la. - Respira fundo.

- Desculpa, peço-te desculpa - disse a tremer, e esfregou as mãos na cara. - Estava a trabalhar, mas não estava. Não podia ter estado. Parecia que estava anestesiada, fazia as coisas e não conseguia distinguir o que estava errado. Depois ouvi o Moe ladrar. Ouvi-o ladrar, e lembrei-me de que estávamos aqui. A seguir vol­tei e fiquei no meio deste inferno, ou lá o que é, e não conseguia encontrá-las.

Tentou manter a calma.

-A chave. A Malory disse que a chave estava aqui. Acho que ela deve ter razão.

- Sai daqui. Vai lá para fora e espera por mim no carro. Ela respirou fundo e voltou a tremer.

- Estou aterrada, mas não vou deixá-las aqui sozinhas. E a ti também não. Meu Deus, Flynn, estás a sangrar da boca.

Ele limpou-a com as costas da mão,

- Não é grave. Está bem, ficamos juntos - assegurou-lhe, pegan­do-lhe na mão e entrelaçando os dedos nos dedos dela.

Foi aí que ouviram ao mesmo tempo o martelar de punhos contra a madeira. Com Moe mais uma vez à frente, saíram a cor­rer da sala.

Zoe estava do outro lado da porta do sótão, e batia contra ela.

- Aqui! - gritou. - Ela está aqui, sei que está aqui, mas não consigo entrar.

- Afasta-te - ordenou Flynn.

- Sentes-te bem? - perguntou Dana agarrando-lhe o braço. -Estás ferida?

- Não. Dana, eu estava em casa. Na cozinha, a fazer arruma­ções com o rádio ligado. Estava a pensar no que havia de fazer para o jantar. Meu Deus, há quanto tempo foi isso? Há quanto tempo estamos separadas? Há quanto tempo estará ela sozinha lá em cima?

 

Estava com medo. O facto de o admitir e de o aceitar ajuda­va-a. Saber que nunca estivera com tanto medo em toda a sua vida, e aperceber-se de que estava decidida a não ceder.

O ar quente começou a dissipar-se quando a luz adquiriu uma tonalidade azul-escura. Dedos de bruma rastejavam ao longo das traves do tecto, pelas paredes inacabadas abaixo, pelo soalho coberto de pó.

Através dela, via o vapor claro da sua própria respiração.

Real, disse para consigo. Aquilo era real, um sinal de vida. Uma prova da sua condição humana.

O sótão era uma divisão comprida e larga, com duas janelas muito estreitas em cada extremo, e o tecto a afunilar no topo. Porém, conseguiu reconhecê-lo. No seu sonho, havia clarabóias e janelas grandes. As suas pinturas tinham sido empilhadas contra as paredes pintadas num tom creme. O soalho fora varrido e estava salpicado de borrões e gotas de tinta como um arco-íris divertido.

O ar trazia consigo um calor estival e o cheiro a terebintina.

Agora estava húmido e frio. Em vez de telas havia caixotes de cartão empilhados contra a parede. Estavam ali armazenados can­deeiros velhos, cadeiras e despojos de outras vidas. No entanto, conseguia ver - bastante nitidamente - como seria antigamente.

Quando o começou a imaginar, a sua ideia materializou-se.

Acolhedor, inundado de luz, cheio de cor. Ali, na sua mesa de trabalho com os seus pincéis e espátulas, havia uma pequena jar­ra com bocas-de-lobo cor-de-rosa que apanhara no jardim na­quela manhã.

Lembrava-se de ter saído depois de Flynn ter partido para o trabalho, lembrava-se de ter apanhado aquelas flores lindas e amorosas para lhe fazerem companhia enquanto trabalhava.

Trabalhava no seu estúdio, pensou com ar sonhador, onde as telas vazias aguardavam a sua presença.
E como sabia dar-lhes vida!

Dirigiu-se para uma tela assente sobre um cavalete, pegou na paleta e na espátula e começou a misturar as cores.

O Sol entrava pelas janelas. Algumas delas estavam abertas com o objectivo prático de criar correntes de ar, e pelo simples prazer de sentir a brisa. Pela aparelhagem ouvia-se uma música apaixonada. O que pretendia pintar hoje requeria paixão.

Conseguia já visualizá-lo na sua mente, sentia-se invadida pelo seu poder como uma tempestade.

Ergueu o pincel, fê-lo rodopiar, e a cor brotou da primeira pincelada.

O seu coração parecia elevar-se. A dimensão da sua alegria era quase intolerável. Seria capaz de rebentar se não a transferis­se para a tela.

A imagem estava gravada a fogo na sua mente, tal como uma cena gravada no vidro. Pincelada após pincelada, uma cor mistura­da com outra cor, começou a dar-lhe vida.

- Sabes, este sempre foi o meu maior sonho. - Falava como se estivesse a dialogar enquanto trabalhava. - Desde que me conhe­ço, sempre quis pintar. Ter a visão, a habilidade e o talento necessá­rios para ser uma artista importante.

- Agora conseguiste.

Trocou de pincéis, e olhou para Kane antes de se voltar a con­centrar na tela.

- Sim, consegui.

- Foste sensata ao escolher a opção acertada. Trabalhar numa loja! - exclamou, desatando a rir-se e rejeitando a ideia com um trejeito. - Onde está o poder nisso? Onde está a glória de vender aquilo que outros criaram, quando tu própria o podes fazer? Aqui, podes ter e ser o que bem te apetecer.

- Sim percebo. Foste tu que me indicaste o caminho - afirmou ela, e lançou-lhe um olhar atrevido. - Que mais posso eu desejar?

- Queres o homem? - perguntou Kane, encolhendo os om­bros com elegância. - Aqui está ele, acorrentado a ti como um escravo pronto para o amor.

- E se eu tivesse escolhido outra coisa?

- Os homens são criaturas caprichosas. Como é que alguma vez pudeste ter a certeza de que o querias? Pinta o teu mundo como estás a fazê-lo agora nessa tela. Tal como o desejas.

- Fama? Fortuna? Ele franziu os lábios.

- É o que acontece sempre com os mortais. O amor, dizem eles, é mais importante que a própria vida. Mas, no fundo, anseiam é pela riqueza e pela glória. Então fica com tudo.

- E tu? Ficas com o quê?

- Já fiquei.

Ela assentiu com a cabeça e trocou de pincéis.

- Agora desculpa-me. Tenho de me concentrar.

Pintou rodeada pela luz quente do dia, enquanto ouvia a mú­sica bem alto.

Flynn atirou-se contra a porta com o ombro, agarrou a maça­neta e preparou-se para investir novamente. A maçaneta rodou suavemente na sua mão.

Zoe lançou-lhe um sorriso nervoso.

- Devo ter sido eu a estragá-la.

- Fica aqui em baixo.

- Poupa as tuas energias - aconselhou Dana, seguindo atrás dele.

A luz parecia agora ter vida própria, mais espessa e um tanto animada. O ganir de Moe transformou-se
num rosnar arreganhado.

Flynn viu Malory ao fundo do sótão. O alívio que sentiu foi como uma martelada no seu coração.

- Malory! Graças a Deus - exclamou, deu um salto para a frente e embateu contra a parede sólida de bruma.

- É uma espécie de barreira - explicou, falando desatinadamente enquanto a empurrava e batia contra ela. - Ela está ali encurralada.

- E eu acho que nós estamos encurralados aqui - concluiu Zoe, apertando as mãos contra a bruma. - Ela não nos ouve.

- Temos de fazer com que nos ouça - afirmou Dana, e olhou à sua volta, à procura de qualquer coisa para demolir a parede. - Ela deve estar nalgum sítio, na sua cabeça, como dantes. Temos de obrigá-la a ouvir-nos para conseguir sair daquele transe.

Moe amansou, e deu um salto para rasgar e morder a parede de bruma. Os seus latidos ecoavam como disparos mas, mesmo assim, Malory permanecia como uma estátua, de costas viradas para eles.

- Tem de haver outra solução - disse Zoe, ajoelhando-se e tacteando a bruma. - Está gelada. Vê-se que está a tremer de frio. Temos de a tirar dali.

- Malory! - Uma fúria inútil fez com que Flynn batesse com os punhos até ficar com as mãos a sangrar. - Não vou deixar que isto aconteça. Tens de me ouvir. Amo-te. Raios partam, Malory, eu amo-te. Ouve-me.

- Espera! - exclamou Dana, agarrando-o pelo ombro. - Ela mexeu-se. Vi-a mexer-se. Flynn, continua a falar com ela. Não pares.

Tentando acalmar-se, encostou a testa com toda a força con­tra a parede.

- Amo-te, Malory. Tens de nos dar a hipótese de ver como havemos de resolver isto. Preciso de ti ao meu lado, portanto ou sais daí, ou deixa-me entrar.

Malory franziu os lábios perante a imagem que tomava forma na tela.

- Ouviste alguma coisa? - perguntou distraída.

- Não foi nada - proferiu Kane, sorrindo para os três mortais que se encontravam do outro lado da bruma. - Não foi nada. Que estás tu aí a pintar?

- Bem... - começou, apontando-lhe um dedo brincalhão. -Sou uma temperamental. Não gosto que ninguém olhe para o meu trabalho antes de ele estar acabado. É o meu mundo - recordou. E, misturando as cores, acrescentou: - São as minhas regras.

Ele encolheu os ombros com simplicidade e elegância.

- Como queiras.

- Agora não amues. Estou quase a acabar. - Começou a traba­lhar depressa, concentrando-se plenamente em transpor para a tela a imagem que tinha na mente. Era, pensava ela, a sua obra-prima. Nada do que tinha feito até àquele momento era tão im­portante como aquilo. -A arte não está apenas no olhar de quem a observa - afirmou. - Mas sim nele, no artista, no tema, no seu propósito, e naqueles que a vêem.

A sua pulsação tremia e palpitava, mas a mão permanecia fir­me e segura. Por um momento infindável, ignorou tudo menos as cores, as texturas, as formas.

E quando deu uns passos para trás, os seus olhos brilharam de triunfo.

- É a melhor coisa que já fiz - asseverou. - Talvez a melhor coisa que alguma vez venha a fazer. Não faço ideia do que pen­sas disto.

Fez-lhe um aceno convidativo.

- Luz e sombra - disse ela enquanto ele avançava para o cava­lete. - Um olhar intimista sem o parecer. Saído de dentro de mim para o nada, e directamente para a tela. O que me diz o coração. O seu nome será A Deusa Que Canta.

Tinha pintado o seu próprio rosto. O seu rosto e a primeira Filha de Vidro. Estava numa floresta, banhada por uma luz doura­da, suavizada por sombras verdes, com o rio a correr sobre os rochedos como lágrimas.

As suas irmãs estavam sentadas atrás dela, com as mãos apertadas.

Venora, pois sabia que era Venora, segurava a harpa e, com o rosto virado em direcção ao céu, era quase como se se ouvisse a canção que entoava.

- Julgavas que me decidiria por uma fria ilusão quando tenho uma oportunidade de ter a realidade? Julgavas que venderia a minha vida, a alma dela, por um sonho? Kane, subestimas os mortais.

Enquanto ele avançava na sua direcção, com a fúria emitindo chispas como labaredas, ela rezou para que não se tivesse subes­timado, quer a si, quer a Rowena.

-A primeira chave é minha. -Ao falar, estendeu a mão para o quadro, e entrou nele. Uma explosão espantosa de calor percor­reu-lhe o braço quando fechou os dedos em torno da chave que pintara aos pés da deusa.

A chave que brilhava num raio de luz, rasgando as sombras como uma espada dourada.

Sentiu-lhe a forma, a substância, e depois, com um grito de vitória, soltou-a.

- É esta a minha escolha. E tu podes ir para o inferno.

As brumas turvaram-se agitadas quando ela o amaldiçoou. Quando ele levantou a mão para lhe bater, Flynn e Moe irrom­peram pela parede. Com uma artilharia de latidos agudos e en­trecortados, Moe dava saltos.

Kane desvaneceu-se como uma sombra na escuridão, e partiu.

Quando Flynn ajudou Malory a levantar-se, os raios de sol brilhavam nas pequenas janelas e a chuva, lá fora, caía dos beirais num ritmo musical. A sala era apenas um sótão cheio de pó e de objectos abandonados.

A pintura que criara por amor, conhecimento e coragem, ti­nha desaparecido,

- Estás aqui comigo - disse Flynn, afundando a cara nos seus cabelos, enquanto Moe pulava à volta deles. - Agora estás bem. Estás comigo.

- Eu sei, eu sei - afirmou ela, e começou a chorar de mansi­nho ao olhar para a chave que ainda tinha entre os dedos. - Fui eu que a pintei - acrescentou, e mostrou-a a Dana e a Zoe. - Eu tenho a chave.

Como ela insistiu, Flynn levou-a de carro directamente para o Pico do Guerreiro, com Dana e Zoe atrás deles. Ligou o aqueci­mento do carro e embrulhou-a num cobertor que tinha na bagageira e que, infelizmente, cheirava a Moe. Mesmo assim, ela continuava a tremer.

- Precisas de um banho quente, ou coisa do
género. Chá. Sopa - sugeriu, puxando uma mão que ainda estava longe de estar calma e passando-a pelos seus cabelos. - Não sei. Um brandy.

- Farei tudo o que estás a dizer - prometeu ela -, assim que pusermos a chave no seu lugar. Não descanso enquanto a tiver na mão.

Dito isto, cerrou o punho e apertou-a contra o peito.

- Não consigo explicar como posso tê-la na mão.

- Nem eu. Se me explicares, talvez consigamos perceber os dois.

- Ele tentou confundir-me com a maneira como nos separou. Para eu me sentir perdida, sozinha e com medo. Mas ele não podia deixar de ter alguns limites. Não podia manter-nos às três e a ti dentro daquelas ilusões. Todos ao mesmo tempo, não. Somos mais unidos e mais fortes do que ele imaginava. Pelo menos é essa a minha opinião.

- Acredito nisso. Para ajudar, tinha a Rhoda sob o seu con­trolo.

- Acho que o pus suficientemente louco. Eu sabia que a chave estava dentro de casa - confessou, apertando ainda mais o co­bertor contra si, mas não conseguia aquecer-se. - Não estou a contar isto da maneira jornalística mais correcta.

- Não te preocupes com isso. Eu depois corrijo. Como é que conseguiste descobrir?

- Foi no sótão que ele me mostrou todas as coisas que eu tanto desejava. Vi logo que era o lugar do sonho assim que subi as escadas com a Zoe e com a Dana. E o atelier de pintura, do artis­ta, ficava no andar de cima. No sótão. Tinha de ser onde tive aquele momento de decisão, como nas pinturas. Primeiro pensei que tínhamos de vasculhar tudo o que havia lá em cima para encontrarmos algo que tivesse a ver com a pista. Mas era mais do que isso e, ao mesmo tempo, menos. Fechou os olhos e suspirou.

- Estás cansada. Descansa até chegarmos. Podemos falar mais tarde.

- Não, sinto-me bem. Foi tão estranho, Flynn. Quando subi até lá cima e compreendi tudo. O meu lugar: na realidade e no meu sonho. E como ele conseguiu trazer de volta o sonho, como tentou envolver-me nele. Aí, deixei-o pensar que tinha consegui­do. Pensei na pista, e vi a pintura na minha cabeça. Sabia como havia de pintar cada pincelada. O terceiro quadro do conjunto.

- A chave não fazia parte do mundo que ele criou para mim - declarou, virando-se para ele. - Mas sim daquilo que eu criaria, se tivesse coragem para o fazer. Se conseguisse ver a sua beleza e retratá-la. Ele deu-me o poder de trazer a chave para dentro da ilusão,

Para a forjar”, pensou, ”com amor.”

- Agora deve estar danado. Ela riu-se.

- Sim, cada um tem aquilo que merece. Eu ouvi-te.

- O quê?

- Ouvi-te chamar por mim. Todos vocês, mas tu em especial. Não conseguia responder-te. Desculpa, mas sei que temias por mim. Só que eu não podia deixá-lo perceber que eu tinha ouvido.

Flynn estendeu o braço, e cobriu-lhe a mão com a sua.

- Não conseguia agarrar-te. Soube pela primeira
vez o que era sentir medo quando me apercebi que não conseguia agarrar-te.

- Primeiro tive medo, pois pensava que era mais um dos seus truques. Tive medo de deitar tudo a perder se me virasse e olhasse para ti. As tuas pobres mãos - levantou a mão dele, e apertou docemente os lábios contra os nós dos dedos dilacerados. - O meu herói. Heróis - corrigiu, virando-se para trás, na direcção de Moe. Permaneceram de mãos dadas enquanto passavam os portões do Pico do Guerreiro.

Rowena apareceu com as mãos cruzadas na cintura, à frente de uma camisola cor de fogo. Malory conseguiu ver o brilho das lágrimas nos seus olhos quando ela atravessou o alpendre para ir ao seu encontro.

- Sã e salva? - perguntou, tocando no rosto de Malory, e o gelo que Malory tinha sido incapaz de expulsar derreteu-se numa calidez abençoada.

- Sim, estou bem. Tenho...

- Ainda não. As tuas mãos - pediu, pousando as palmas das mãos sob as de Flynn, e ergueu-as. - Vai deixar cicatriz - avisou. -Ali, por debaixo do terceiro nó do dedo da mão esquerda. É um símbolo, Flynn. Mensageiro e guerreiro.

Abriu a porta traseira do carro para Moe poder sair e cumpri­mentá-la abanando a cauda e dando lambidelas.

- Aqui temos o feroz, o valente - apresentou, fez-lhe uma festa e inclinou-se para poder ouvi-lo ladrar e resmungar. - Sim, viveste uma grande aventura - acrescentou, e depois endireitou-se, deixando a mão sobre a cabeça de Moe, enquanto sorria para Dana e Zoe. - E vocês também. Entrem, por favor.

Moe não precisou de ouvir um segundo convite. Deu um pulo sobre as pedras e entrou imediatamente pela porta onde Pitte se encontrava. Pitte ergueu uma sobrancelha quando o cão derra­pou no soalho da entrada, e a seguir olhou para Rowena.

Ela limitou-se a rir e deu o braço a Flynn.

- Se me permites, tenho uma prenda para o leal e corajoso Moe.

- Claro. Adoramos a tua hospitalidade, mas a Malory está mesmo exausta, e por isso...

- Estou óptima. Estou a ser sincera.

- Não vamos demorar-vos - avisou Pitte, indicando-lhes o ca­minho para o que Malory pensou ser uma sala de retratos. - Es­tamos em dívida para convosco, mais do que o dinheiro pode pagar. O que fizeram, independentemente do que trouxer o dia de amanhã, nunca será esquecido - agradeceu e, com um dedo, levantou a cara de Malory e deu-lhe um beijo na boca.

Zoe deu uma cotovelada a Dana.

- Acho que estamos a ser vigarizadas neste negócio de ”uma por todas e todas por uma”.

Pitte olhou em redor, e o seu súbito sorriso nos lábios irradiou encanto.

- A minha mulher é uma criatura ciumenta.

- Nada disso - objectou Rowena, tirando de uma mesa um colar entretecido de cores garridas. - Estes símbolos representam a coragem e um coração verdadeiro. As cores são também sim­bólicas. Encarnado para a coragem, azul para a amizade, preto para a protecção.

Agachou-se para tirar a coleira de Moe, já toda rasgada e des­botada.

O animal ficou quieto durante toda aquela operação, pensou Flynn, com a dignidade inabalável de um soldado ao ser conde­corado com uma medalha.

- Pronto. Ficas lindo! - exclamou Rowena, dando um beijo no focinho de Moe e levantando-se de seguida. - Vais trazê-lo cá para o ver de vez em quando? - perguntou a Flynn.

- Claro.

- Kane não avaliou bem as tuas capacidades. As de todos vós; coração, espírito e união.

- É pouco provável que volte a fazê-lo - sublinhou Pitte, mas Rowena abanou a cabeça.

- É uma ocasião para nos alegrarmos. Tu és a primeira - disse para Malory.

- Eu sei. Queria dar-te isto já - ia para estender a chave, mas deteve-se. - Espera. Queres dizer que sou a primeira? A primeira a encontrar uma chave?

Rowena manteve-se em silêncio e virou-se para Pitte. Dirigiu-se até uma arca de madeira entalhada que se encontrava debai­xo da janela, e levantou a tampa. A luz azul que emanou provo­cou um nó no estômago de Malory. ”Mas é diferente da bruma”, pensou. Aquela era mais profunda, mais luminosa.

Depois retirou da arca uma caixa de vidro cheia dessa luz, e as lágrimas toldaram-lhe a garganta. -A Caixa das Almas.

- És a primeira - repetiu Pitte quando colocou a caixa sobre um pedestal de mármore. - A primeira mortal a rodar a primeira chave.

Virou-se, e ficou ao lado da caixa. ”Agora é o soldado”, pen­sou Malory, ”o guardião.” Rowena colocou-se no outro lado, e os dois ladearam a caixa e as luzes azuis que rodopiavam dentro dela.

- É a ti que compete - disse calmamente Rowena. - Compe­tir-te-ia sempre.

Malory segurou a chave com toda a força. Embora sentisse uma dor terrível no peito, pois parecia incapaz de conter o galope desenfreado do seu coração. Tentou inspirar calmamente, mas o ar saiu escasso e rápido. Quando se aproximou, as luzes parece­ram encher-lhe todo o campo de visão, e depois a sala. E, logo a seguir, o mundo inteiro.

Os seus dedos queriam tremer, mas ela susteve-se. Não queria dar aquele passo com a mão trémula.

Introduziu a chave na primeira das três fechaduras encastoadas no vidro. Viu a luz espalhar-se pelo metal e sobre os seus dedos, brilhante como a esperança. E rodou a chave na fechadura.

Ouviu-se um som - pensou que era um som. Mas não passava de um ténue suspiro. No preciso momento em que o som se desvaneceu, a chave dissolveu-se-lhe nos dedos.

A primeira fechadura desapareceu, ficando apenas as outras duas.

- Desapareceu. Desapareceu sem mais nem menos.

- Um símbolo novo para nós - declarou Rowena, pousando a mão suavemente sobre a caixa. - Para elas. Ficaram dois.

-Nós...

-Estão a chorar dentro daquela caixa de vidro”, pensou Dana. Quase conseguia ouvi-las, o que lhe estilhaçou o coração.

- Agora escolhemos quem vai a seguir?

- Hoje não. Devem repousar as vossas mentes e os vossos corações ­
- aconselhou Rowena. E, virando-se para Pitte: - Deve haver uma garrafa de champanhe no salão. Tratas dos nossos con­vidados? Gostaria de ter uma conversa a sós com Malory antes de irmos ter convosco.

Levantou a caixa de vidro, e voltou a colocá-la cuidadosamente na arca. Quando viu que estava a sós com Malory, virou-se.

- O Pitte diz que temos uma dívida para contigo que nunca conseguiremos pagar. Isso é verdade.

- Concordei em procurar a chave, e fui paga - corrigiu Malory. Olhou para a arca, e imaginou a caixa no seu interior. - Agora parece-me errado ter aceite aquele dinheiro.

- O dinheiro nada significa para nós, garanto-te. Muitos acei­taram-no e nada fizeram. Outros tentaram e não conseguiram. E tu fizeste algo de corajoso e interessante com esse dinheiro.

Aproximou-se ainda mais, e pegou nas mãos de Malory.

- Isso agrada-me. Quando falo na dívida não me refiro a dóla­res e a cêntimos. Se não fosse eu, não existiria nenhuma Caixa das Almas, nem chaves, nem fechaduras. Não terias de enfrentar o que enfrentaste hoje.

- Tu adora-las - declarou Malory apontando para a arca.

- Como irmãs. Jovens, doces irmãs. Bem... - avançou para olhar para o retrato. - Tenho esperança de vê-las assim outra vez. Posso dar-te uma prenda, Malory. Estou no meu direito. Recusas­te o que Kane te ofereceu.

- Não era real.

- Mas pode ser - virou-se. - Posso torná-lo realidade. Aquilo que sentiste, o que soubeste, o que tiveste dentro de ti. Posso dar-te o poder que tiveste na sua ilusão.

Zonza, Malory tacteou o braço de uma cadeira e sentou-se nela devagar.

- Podes dar-me a capacidade de pintar.

- Eu compreendo a necessidade... e as alegrias e as dores de teres essa beleza dentro de ti e de as sentires depois fugir - riu-se. - Ou de lutares para as expulsar, o que não deixa de ser igual­mente brilhante. É tua. É a minha prenda para ti.

Por momentos, essa ideia percorreu todo o corpo de Malory, inebriante como o vinho, sedutora como o amor. E viu Rowena a olhar para ela, tão calma, tão segura, com um leve sorriso nos lábios.

- Dar-me-ias a tua arte - deduziu Malory. - É isso que queres dizer. Dar-me-ias o teu talento, a tua habilidade, a tua visão.

- Seria tua.

- Não, nunca será minha. E eu saberia sempre isso. Eu... pin­tei-as porque conseguia vê-las. Tal como as vi naquele primeiro sonho. Como se estivesse lá, como se fizesse parte do próprio quadro. E pintei a chave. Forjei a chave, fui capaz de o fazer porque amava o suficiente para conseguir desistir dela. Escolhi a luz em vez da sombra. Não é verdade?

- É verdade.

- Ao fazer essa escolha, sabendo que era a acertada, não pos­so ficar com aquilo que é teu. Mas agradeço-te - disse enquanto se levantava. -É agradável saber que posso ser feliz fazendo aquilo que faço. Vou criar uma bela loja e ter um negócio de sucesso.
E uma bela vida - acrescentou.

- Não tenho dúvidas quanto a isso. Então, aceitas? - pergun­tou Rowena com um gesto e um sorriso quando Malory entre­cortou a respiração de espanto.

- A Deusa que Canta - exclamou, e correu para o quadro emoldurado que estava em cima de uma mesa. O quadro que pintei quando o Kane...

- Foste tu quem o pintou - recordou Rowena, reunindo-se a ela e pousando-lhe uma mão sobre o ombro. - Qualquer que tenha sido o truque dele, foi esta a tua visão, foi o teu coração que encontrou a resposta. Mas, se sentires dor ao olhar para este quadro, posso guardá-lo.

- Não, não é nada doloroso. É uma prenda maravilhosa. Isto era uma ilusão, Rowena. Tu trouxeste-a para a realidade. É sóli­da. Existe - afirmou e, tentando recompor-se, recuou alguns pas­sos e olhou Rowena de frente. - Consegues... conseguiste o mesmo com as emoções?

- Estás a perguntar se os teus sentimentos por Flynn são reais?

- Não. Eu sei que são - proferiu, apertando uma mão contra o coração. - Não se trata de uma ilusão. Mas os dele por mim, se são uma espécie de recompensa.., não é justo para ele, e não posso aceitar isso.

- Desistirias dele.

- Não - afirmou, e a sua expressão tornou-se combativa. - De modo nenhum! Conviveria com isso até que ele se apaixonasse por mim. Se consigo encontrar uma chave mística, também pos­so fazer com que o Michael Flynn Hennessy chegue à conclusão de que eu sou a melhor coisa que jamais lhe aconteceu na vida, E sou - acrescentou. - É que sou mesmo!

- Gosto muito de ti - confessou Rowena com um sorriso. - E prometo-te uma coisa. Quando o Flynn voltar a entrar nesta sala, independentemente do que ele sinta ou não, isso será um reflexo genuíno do seu coração. O resto é contigo. Espera aqui, eu vou chamá-lo.

- Rowena? Quando começamos o segundo assalto?

- Dentro em breve - exclamou Rowena ao sair da sala. - Mui­to em breve.

Qual delas seria a próxima? Malory pensou nisso enquanto admirava cuidadosamente o quadro. E qual seria o segundo peri­go? Que perderia ou ganharia ela com a segunda busca?

Tinha perdido um amor, pensou, levantando o seu quadro. Um amor tão fugazmente saboreado. E agora, com Flynn, tinha de arriscar outro. O amor mais importante da sua vida.

-Trouxe-te um bocado deste champanhe muito revigorante - disse Flynn, entrando na sala com duas taças a transbordar. - Es­tás a perder a festa. Até o Pitte se riu. Foi um momento único.

- Precisava só de alguns minutos - explicou, pousando a pin­tura sobre a mesa e segurando num copo.

- O que é isto? Mais um quadro da Rowena? - perguntou Flynn, pondo amistosamente um braço à volta do ombro de Malory, e ela sentiu o corpo dele ficar tenso ao perceber. - É teu? Foi o que fizeste? O quadro com a chave que pintaste no sótão. É este.

Passou os dedos pela chave dourada, acabada de pintar, aos pés da deusa.

- É espantoso.

-Ainda mais quando se entrou no próprio quadro para retirar de lá a chave mágica.

- Não. Quero dizer, sim, está ali. Mas refiro-me ao conjunto. É maravilhoso, Malory. Bolas, é estupendo. E renunciaste a isto - acrescentou, baixinho, olhando a seguir para ela. - Tu é que és espantosa.

- Vou ficar com a pintura. A Rowena bateu com os saltos dos sapatos, torceu o nariz, ou sei lá o que fez, e trouxe-a para aqui para ma dar. O facto de a ter significa muito para mim. Flynn...

Sentiu necessidade de beber um gole de champanhe; precisa­va de criar uma certa distância entre eles. O que quer que tivesse dito a Rowena, percebia agora que estava prestes a fazer uma coisa muito mais desgastante do que fazer sumir um talento com tintas e pincéis.

- Foi um mês muito complicado para todos.

- Em especial para alguns de nós.

- A maior parte dos acontecimentos estão para além do hori­zonte da nossa imaginação, para além de tudo em que podería­mos ter acreditado há umas semanas atrás. E o que aconteceu modificou-me. No bom sentido - acrescentou, virando-se para ele. - Gostaria de pensar que foi no bom sentido.

- Se me vais dizer que deste a volta à chave naquela fechadu­ra e que agora já não me amas, pior para ti. Porque estás presa.

- Não, estou... presa? - repetiu ela - O que queres dizer com presa ?

- A mim, ao meu sofá horroroso, ao meu cão desajeitado. Nem penses que te safas assim, Malory.

- Não faças esse tom de voz comigo - avisou, pousando a taça. - E não penses por um segundo sequer que podes ficar aí especado a dizer-me que estou presa a ti, porque és tu que estás preso a mim.

Flynn pousou a sua taça junto à dela.

- É verdade?

- É absolutamente verdade. Acabei de derrotar um deus celta maléfico. Para mim não passas de uma brincadeira de crianças.

- Queres luta?

- Talvez.

Agarraram-se mutuamente. Com a sua boca colada à dele, ela deixou escapar um suspiro estrangulado. E tentou recuperar o fôlego. Afastou-se um pouco, mas conservou os braços à volta do seu pescoço.

- Sou a pessoa certa para ti, Flynn.

- Então, dá-me mesmo jeito estar apaixonado por ti. És a mi­nha chave, Mal. A única chave para todas as fechaduras.

- Sabes o que quero neste momento? Quero um banho quen­te, um pouco de sopa, e uma sesta num sofá horroroso.

- Hoje é o teu dia de sorte. Consigo arranjar-te isso. Pegando-lhe na mão, levou-a para fora da sala.

Mais tarde, Rowena inclinou a cabeça contra o ombro de Pitte quando viu os carros partirem.

- Grande dia - afirmou. - Sei que isto ainda não acabou, mas hoje é um grande dia.

- Resta-nos pouco tempo antes de começarmos o seguinte.

- Alguns dias, e depois as quatro semanas. Agora Kane olhará para elas com muito mais respeito.

- E nós também.

- Venceu a beleza. Agora o conhecimento e a coragem irão ser postos à prova. Na realidade, há muito pouco que possamos fazer para ajudar. Mas estes mortais são fortes e espertos.

- Criaturas estranhas - comentou Pitte.

- Sim - concordou ela, e sorriu para ele. - Estranhas e infinita­mente fascinantes.

Voltaram para dentro de casa e fecharam a porta. No fim do carreiro, os portões de ferro encerraram-se silenciosamente. Os guerreiros que os ladeavam montariam sentinela até que surgisse a próxima fase da Lua.

 

 

                                                                  Nora Roberts

 

 

 

[1] Bimba em portugalquer dizer “Metida” “Esnobe”

[2] Marca de um vestido de Grife.

[3] Refere-se a A lenda do Cavaleiro Sem Cabeça, de Irving Washington.

[4] Freio

[5] Cascalho

[6] Interjeição, quer dizer: “Eita!”

[7] Rechochuda, com volume. Redondinha.

[8] A expressão quer dizer que ela não se intimidava.

[9] Concordar.

[10] Mexerico, confusão, dificuldade.

[11] Grotesco.

[12] Não faço a mínima idéia do que seja.

[13] Elemento saliente arquitectural que serve para rematar qualquer edifício ou um pedestal; molduras sobrepostas que fazem saliência na parte superior de parede, porta, móvel.

[14] Antiga designação de estabelecimento de ensino secundário; escola secundária oficial;

[15] Gír., causar dano; tramar;prejudicar; v. refl., sofrer contratempo; prejudicar-se; enfurecer-se.

[16] Adv., em alguma parte;em algum lugar.

[17] S. m., género típico das aceráceas; bordo (planta);zelha.

[18] S. m., poeta, trovador.

[19] Expressão que significa "meu amor" em gaélico. (N. da T.)

[20] V. tr., pôr de cócoras, agachar; v. refl., agachar-se.

[21] S. m., Zool., bode;criança que berra muito;Ictiol., nome de um peixe (alcaboz); gír., marido atraiçoado pela mulher;Coimbra, sino que indica haver aulas no dia em que toca, de manhã.

[22] Mola grande que tomba, por inércia, na direcção escolhida. (N. dà T.)

[23] Possível tradução: "Prazeres". (N. da T.)

[24] V. tr., roubar; bifar; surripiar.

[25] Trepada, transa .

[26] S. f., disfarce.loc. adv., à -: sorrateiramente; disfarçadamente.

[27] Marca de sal. (N. da T.)

 

 

 

 

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