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A CHAVE DO ENIGMA / Rabindranath Tagore
A CHAVE DO ENIGMA / Rabindranath Tagore

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CHAVE DO ENIGMA

 

Krishna Gopal Sarcar, zemindar (1) de Jhikracota, entregou os seus bens ao filho mais velho e, como convém a um bom hindu, retirou-se para Kasi, cidade santa de Benares, para consagrar o resto da sua vida aos deveres religiosos. Todos os pobres e deserdados da vizinhança choraram ao vê-lo partir. Todos foram unânimes em dizer que uma tal piedade e uma tal generosidade eram raras naqueles tempos degenerados.
Seu filho, Bipin Bihari, jovem educado segundo os métodos modernos, possuía o diploma de bacharel em Letras. Usava óculos e barba comprida, e juntava-se raramente aos seus conterrâneos. A sua vida privada era irrepreensível. Não fumava nem jogava. Era de uma grande força de vontade, apesar do seu aspecto amável e jovial. Os seus rendeiros foram informados desta faceta do seu carácter. Contrariamente ao hábito do pai, nunca permitia qualquer redução na renda que lhe era devida, nem admitia um único dia de atraso nos pagamentos.
Ao assumir a gerência das propriedades, Bipin Bihari descobriu que o pai tinha autorizado grande número de brâmanes a ocupar terras sem pagarem renda, ou mediante renda muito inferior à usual. Fraco de carácter, o velho não sabia resistir a certas solicitações importunas.
Bipin Bihari declarou que tal situação não poderia continuar.
Não podia desperdiçar metade das suas rendas. E raciocinou assim: Primeiro: os indivíduos que gozavam de uma concessão para engordarem à sua custa eram um bando de miseráveis inteiramente indignos da sua caridade. A caridade assim praticada só servia para encorajar a preguiça. Segundo: as condições materiais da vida tinham-se tornado bem mais onerosas que dantes. As necessidades aumentavam rapidamente, e a vida custava quatro vezes mais cara. Não podia continuar a distribuir presentes a torto e a direito, segundo o hábito do seu pai. Bem pelo contrário, considerava como um dever estrito obter a restituição na medida do possível.
Assim Bipin Bihari pôs rapidamente em prática os princípios em que se inspirava. Quase tudo voltou à posse de Bipin Bihari. Não respeitou senão uma fraca parte das larguezas do seu pai, e teve o cuidado de tomar disposições convenientes para que mesmo estas fossem consideradas temporárias.
O correio de Benares levara a Krishna Gopal as queixas dos seus rendeiros. Alguns deslocaram-se para lhe expor pessoalmente as suas razões. Krishna Gopal escreveu ao filho significando-lhe o seu descontentamento. Bipin Bihari respondeu-lhe dizendo que os tempos estavam mudados. «Outrora - dizia - o zemindar encontrava alguma compensação para as suas liberalidades nos presentes tradicionais que recebia dos rendeiros; mas decisões recentes declararam essas disposições como ilegais, e agora o zemindar devia contentar-se com a renda estipulada». E prosseguia: - «se não vigiamos com atenção o pagamento daquilo que nos é devido, que nos ficara? Se os rendeiros não nos fornecem qualquer prestação suplementar, como poderemos fazer-lhes concessões? Eis por que as nossas relações só podem revestir carácter estritamente comercial. Ficaremos arruinados se persistirmos em distribuir presentes e fazer doações, e teremos dificuldades cada vez maiores em conservar as nossas propriedades e manter a nossa situação».
Krishna Gopal atormentava-se ao pensar como os tempos tinham mudado. «Ai - pensava - a nova geração tem mais senso prático talvez que a minha. Nossos velhos métodos estão postos de parte. Se intervenho, o meu filho é capaz de se recusar a continuar a gerir os meus bens e de insistir em que eu tome o seu lugar. Prefiro abster-me disso. Prefiro consagrar ao serviço de Deus os últimos dias de vida que me restam».

II

Os acontecimentos seguiram o curso normal. Bipin Bihari pôs os negócios em ordem à custa de muitos processos acompanhados de meios mais ou menos legais. A maior parte dos rendeiros submeteu-se com receio. Um somente resistia: - era o chamado Azimuddin, filho de Mirza Bibi.
Bipin ficou muito descontente com ele. Compreendia que o pai tivesse concedido aos brâmanes domínios livres de toda a renda, mas que tal maometano ocupasse terras tão vastas, umas gratuitamente e outras mediante rendas insignificantes, parecia-lhe um enigma indecifrável. Que era aquele homem mais que os outros? O filho da viúva de um maometano de baixa condição, que tomava ares importantes e desafiava todo o mundo, sob pretexto de ter aprendido a ler e escrever na escola da aldeia. Não era isto intolerável?
Bipin inquiriu, junto dos seus empregados, da origem das concessões atribuídas a Azimuddin. Tudo quanto estes puderam informar foi que Babu Krishna Gopal tinha feito a concessão à família do maometano em época muito recuada, mas o motivo daquela liberalidade não se sabia. Foram de opinião de que a viúva tinha ganho, sem dúvida, a compaixão do benévolo zemindar, comovendo-o com a sua dor e a sua penúria.
Para Bipin, aqueles favores pareciam absolutamente imerecidos. Não conhecera a situação digna de piedade daquela gente. O seu desafogo e a sua arrogância de agora levaram-no à conclusão de que, sem pudor, tinham enganado seu pai, criatura de coração compassivo.
Azimuddin, por seu lado, possuía uma natureza obstinada. Jurou que preferia perder a vida a restituir um palmo que fosse das suas terras. Foi então que se romperam as hostilidades.
A pobre viúva, sua mãe, empregava todos os esforços para acalmar o filho.
- Não é bom lutar contra um zemindar - dizia ela -; a sua bondade permitiu-nos viver durante muito tempo; vale mais continuar a depender dele do que vermo-nos privados dos seus favores. Devolve-lhe uma parte das terras, como ele deseja.
- Oh, mãe! - protestou Azimuddin - que percebes destas questões? Rogo que te cales!
Azimuddin perdeu, um após outro, todos os processos que lhe foram intentados. Quanto mais perdia, mais obstinado se mostrava. Para salvar os bens, arriscou tudo quanto possuía.
Uma tarde, Mirza Bibi colheu alguns frutos e alguns legumes do seu pequeno jardim e, a ocultas do filho, foi avistar-se com Bipin Babu. Ergueu para ele os olhos cheios de ternura maternal e disse-lhe:
- Meu filho, que Alá te abençoe. Não arruines Azim, porque farias uma má acção. Confio-o aos teus cuidados. Aceita-o como se ele fosse um dos que o teu dever te obriga a proteger, como se ele fosse um irmão mais novo pouco favorecido. A tua fortuna é enorme; não o prives duma pequena parcela, ó meu filho!
A atitude familiar da velha tagarela irritou Bipin:
- Que conheces de todas estas coisas, boa mulher? Se tens observações a fazer, manda-me o teu filho.
Mirza Bibi teve de se resignar e voltou para casa, enxugando as lágrimas ao avental durante todo o percurso e rezando em silêncio a Alá.

 

III

O fastidioso processo arrastava-se, indo do juízo criminal para o juízo civil, para ser, enfim, julgado no Tribunal Superior, onde Azimuddin obteve um êxito parcial. Mas os dezoito meses de querela arruinaram-no. Estava completamente endividado. Seus credores aproveitaram a ocasião para fazer executar as decisões dadas em seu favor, e fixou-se a data da venda em hasta pública dos raros objectos que ainda lhe restavam. Era uma segunda-feira. O mercado da aldeia realizava-se à beira de uma pequena ribeira engrossada pelas águas das chuvas recentes. As compras e as vendas faziam-se num vaivém incessante, ora em terra, ora nos barcos. Estava-se no mês de Asadh e o comércio de frutos de jaqueira fazia-se em grande escala; havia também uma grande quantidade de hilsas, variedade de peixes. O céu cobriu-se de nuvens. Com receio da chuva, os mercadores estenderam oleados e linhagens sobre as mercadorias.
Azimuddin estava presente, mas sem dinheiro algum consigo. Trazia um prato de bronze e um cutelo que tencionava empenhar para comprar o necessário. Os mercadores recusavam-se a vender-lhe a crédito.
Ao fim da tarde, Bipin Babu, que passeava acompanhado dos seus servidores armados de bastões, foi atraído pelo barulho e dirigiu-se ao mercado. Aí parou um instante diante da barraca de Dwari, o mercador de óleo de palma, para lhe perguntar amigavelmente como iam os seus negócios. De repente, Azimuddin levantou o cutelo e precipitou-se sobre Bipin Babu, rugindo como um tigre. Os presentes seguraram-no, desarmaram-no rapidamente e entregaram-no à polícia. Depois deste incidente o movimento do mercado tomou o curso habitual.
Pode-se afirmar que Bipin Babu se regozijou no íntimo com este incidente. Não era provável que o animal cercado voltasse a atacar o caçador. «Apanhei-te enfim», dizia Bipin rindo à sucapa.
Quando as mulheres da casa de Bipin souberam do acontecimento, exclamaram com horror:
- Que miserável! O céu permitiu que o agarrassem a tempo!
E sentiam-se consoladas ao pensar que o homem sofreria um castigo amplamente merecido.
Na mesma noite, na outra extremidade da aldeia, uma sombra da morte pairava sobre a humilde morada da viúva, desprovida de pão e privada do filho. Os outros podiam esquecer os incidentes do dia à custa duma boa refeição e duma noite bem passada, mas para ela, um tal acontecimento ultrapassava em importância tudo quanto pudesse conceber deste vasto mundo. Ai! que podia ela opor ao destino? Um corpo descarnado e cansado, e um coração de mãe sem qualquer aparo e quase morto de terror.

IV

Três dias tinham decorrido. O incidente do mercado ia ser julgado e o tribunal quis ouvir as declarações de Bipin. Até então nenhum zemindar comparecera no recinto destinado às testemunhas, mas Bipin não se prendia com essas ninharias.
Á hora marcada, Bipin chegou ao tribunal com grande pompa, no seu palanquim. Usava turbante e grossa corrente de ouro pendia-lhe da cintura. O juiz convidou-o a sentar-se junto dele, sob o dossel. A sala estava cheia. Há muitos anos que o público não assistia a debate tão sensacional.
Alguns instantes antes de abrir a audiência, um servidor veio dizer algumas palavras ao ouvido de Bipin Babu. Este último saiu muito agitado, tendo pedido ao juiz que esperasse uns momentos. Fora, estava o seu velho pai debaixo de um banian (2), descalço, vestindo a túnica de penitente onde o nome do Deus Krishna estava impresso, com umas contas na mão e a fronte compassiva.
Bipin, embaraçado pelas calças muito justas, tocou com a fronte os pés de seu pai, em saudação respeitosa. Nesse gesto, o turbante desfez-se-lhe e o relógio, escapando-se-lhe da algibeira, ficou a balouçar no ar, da direita para a esquerda. Bipin compôs o turbante e convidou o pai a entrar em casa do seu advogado, perto dali.
- Não, obrigado, - respondeu Krishna Gopal - dir-te-ei aqui mesmo o que tenho a dizer-te.
Entretanto foi-se juntando uma multidão de curiosos que os criados de Bipin dispersaram a golpes de bastão.
Então Krishna Gopal disse ao filho:
- Deves fazer o possível para que Azim seja absolvido, e restituir-lhe os bens que lhe tiraste.
- Foi para isso, pai, que fizeste a viagem de Benares até aqui? - replicou Bipin, vivamente surpreendido. - Podes dizer-me que motivo te levou a fazer a essa gente favores especiais?
- De que te serve saber, meu filho?
Bipin insistiu:
- Ouve, pai: anulei muitas das tuas liberalidades porque entendi que os seus titulares não as mereciam. Entre eles encontravam-se numerosos brâmanes cuja defesa entendeste não dever tomar. Donde vem este teu vivo interesse em favor desses maometanos? Depois de tudo quanto se passou, se abandono o meu processo contra Azim, e se, além disso, lhe restituo as terras, que dirá o público?
Krishna Gopal ficou por um momento silencioso; depois, pelos dedos débeis passou as contas do rosário e murmurou em voz trémula:
- Se tiveres que explicar a tua conduta ao público, dirás que Azimuddin é meu filho... e teu irmão!
- O que? - fez Bipin surpreendido - do seio duma maometana?
- Assim é - respondeu o velho, agastado.
Bipin ficou por algum tempo mudo de espanto, depois, disse:
- Vem a minha casa, pai, e mais tarde trataremos deste assunto.
- Não, meu filho, - respondeu o velho. - Eu abandonei o mundo duma vez para sempre para servir o meu Deus e não posso entrar na tua casa. Retiro-me. Deixo ao teu cuidado o procederes segundo o sentimento do teu dever.
Abençoou o filho, reteve a custo as lágrimas e afastou-se com passo vacilante.
Bipin, aturdido, não sabia o que dizer nem o que fazer. «Era assim a piedade das velhas gerações!» disse ele. E pensou com orgulho quanto ultrapassava o pai em educação e moralidade. «Vejam» - continuou - «o resultado duma vida que não foi norteada por nenhum princípio».
Voltando ao Tribunal, viu Azimuddin entre dois guardas, esperando ouvir ler a sentença. Parecia velho e magro; seus lábios estavam pálidos e os olhos tinham um brilho estranho. Vestia pobremente. «Ele, meu irmão!» pensou Bipin; e estremeceu de horror.
O juiz e Bipin eram velhos amigos. Azimuddin foi absolvido e entrou, ao fim de pouco tempo, na posse dos seus bens. Não compreendia a causa dessa reviravolta e o público mostrava-se igualmente surpreendido.
Contudo, a novidade de que Krishna Gopal tinha chegado antes de ser lida a sentença espalhou-se rapidamente. Os habitantes da aldeia trocavam entre si olhares de entendimento. Os advogados, com a sua habitual penetração, souberam descobrir a chave do enigma. Um deles, Ram Taran Babu, era devedor a Krishna Gopal da sua educação e do início da sua carreira. Por uma razão ou por outra, tinha sempre suspeitado da sinceridade da virtude e da piedade do seu benfeitor. Agora, tinha a certeza de que um inquérito sério desmascararia todos os homens chamados piedosos.
«Podem os homens rezar as suas contas durante toda a vida» - pensou com alegria - «que, afinal, são como eu sou. A única diferença que separa o homem bom do homem mau, é que o primeiro sabe dissimular, enquanto o segundo age abertamente». Ao descobrir que a piedade tão afamada de Krishna Gopal, as suas esmolas e a sua magnanimidade se reduziam a um manto de disfarce, Ram Taran Babu encontrava a solução do problema que o preocupara durante muitos anos. E, por um encadeamento de razões que ignoramos, o fardo do reconhecimento pareceu-lhe cada vez mais leve. E isso, para ele, era dum conforto muito apreciável...

(1) Proprietário rural.
(2) Figueira da Índia.

 

                                                                                            Rabindranath Tagore

 

 

Carlos Cunha        Arte & Produção Visual

 

 

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