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A Chave do Poder / K. H. Scheer
A Chave do Poder / K. H. Scheer

 

 

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A Chave do Poder

 

Tanto tempo gasto para uma ação inútil...

Uma espaçonave arcônida encalhada na Lua, descoberta por Perry Rhodan, foi o ponto de partida para a unificação política da Humanidade e a pedra angular do Império Solar.

O fato de que este Império — minúsculo em comparação com as demais potências do Universo — ainda continua existindo e ainda não se transformou num inferno atômico, ou não foi degradado a uma simples colônia de Árcon, só pode ser atribuído às magistrais jogadas dos terranos, aglutinados em torno de Perry Rhodan, no grande xadrez das Galáxias — e também à sorte, que como fato permanente é exclusiva dos fortes.

No entanto, a fantástica linha da sorte, que, conjugada com os inteligentes esforços de Rhodan, conseguiu até hoje ocultar a posição da Terra nas Galáxias, parece ter chegado ao ponto de ruptura iminente...

Os recrutas de Árcon — disfarce adotado pelos terranos comandados por Atlan — estão prestes a cair sob o poder do cérebro positrônico...

 

                                          

 

Era um homem alto, esbelto e ágil. A pele marrom-avermelhada fazia supor que se tratava de um zalita, ou seja, de um longínquo descendente daqueles arcônidas que há muitos milênios emigraram para o sistema planetário de Voga, situado a 3,14 anos-luz de Árcon, a fim de se fixarem no quarto mundo do sistema. Com o correr do tempo, a cor da pele e do cabelo dos arcônidas se modificou, mas os zalitas conservaram o sangue arcônida.

— Breheb-Toor...! — gritou o homem alto em voz de comando.

Duzentos arcônidas coloniais, que eram zalitas tal qual o oficial que se encontrava à sua frente, pareceram ter sofrido um choque elétrico. Os corpos endireitaram-se com tamanha rapidez e precisão que davam a impressão de serem controlados eletronicamente por uma série de chaves automáticas.

O oficial virou-se. Aproximou-se de mim a passos curtos e com o corpo rígido. Trazia sobre o uniforme de fibra sintética o símbolo do Grande Império: três planetas gravitando em torno de um sol reluzente.

O rosto escuro estava semi-encoberto pela protuberância larga do capacete de rádio de uso obrigatório quando em serviço. Só vi um par de olhos cinzentos, o nariz afilado e a boca enérgica.

Parou a três metros de mim. Fez sua apresentação no mais puro arcônida, no qual ressoava um ligeiro sotaque zalita.

Mantinha a mão direita cerrada comprimida contra o ombro esquerdo. Não havia nada que pudesse revelar ao observador, que esse oficial do espaço na verdade era um terrano. Ninguém, nem mesmo os cinqüenta zalitas genuínos, que pertenciam ao grupo, seriam capazes de notar que o imediato do couraçado arcônida novinho em folha, chamado Kon-Velete, não era outro senão Perry Rhodan, administrador do Império Solar.

Aqueles que tinham conhecimento desse fato sabiam ficar calados. Também segui o velho costume: coloquei a mão sobre o ombro esquerdo e agradeci.

Atrás dos homens enfileirados, o gigantesco vulto esférico da Kon-Velete, uma nave de oitocentos metros de diâmetro, subia ao céu da lua Naator, coberto de nuvens esparsas. Tratava-se do único satélite do quinto planeta de Árcon, que servia de abrigo temporário, para fins de treinamento militar, às tropas auxiliares recrutadas por ordem do regente.

A postura regulamentar rígida de Rhodan descontraiu-se. Antes de caminhar de volta para a tropa, dando seus passos ridiculamente curtos, lançou-me mais um olhar de advertência. Levava a sério as normas prevalentes em Zalit.

Estreitei a capa em torno do ombro. Um vento gelado fustigava a grande planície, cujo solo pedregoso e desértico fora totalmente modificado por meio da aplicação de uma camada de aço plastificado de um metro de espessura.

O espaçoporto criado por essa forma trazia a designação Na-IV. Há pouco menos de 24 horas, tempo-padrão, recebera ordem de transferir a Kon-Velete para essa área, o que indicava que a partida era iminente.

Virei-me e cumprimentei os dois oficiais arcônidas que pareciam congelados. Estavam sentados num planador de campo de repulsão aberto e a ocupação deles consistia em inspecionar as tripulações das numerosas espaçonaves.

Usei o rádio de capacete para, na qualidade de comandante do novo couraçado, anunciar que minha unidade estava preparada para decolar. O mais velho dos dois levantou a mão a título de cumprimento. Era o Almirante Senekho. Era um homem de corpo esguio, que estava sentado ao lado do robô-motorista. Todavia, era um dos raros arcônidas que ainda possuíam inteligência e iniciativa suficientes para cumprir as tarefas de comandante de uma base avançada da frota.

— Boa sorte, Capitão Ighur — disse a voz saída dos fones de meu rádio de capacete. — O senhor levará a glória de Árcon para a imensidão do espaço. O senhor decolará com a esquadrilha de unidades pesadas. Aguarde o sinal. Mais uma vez, boa sorte.

O jovem oficial que se encontrava ao lado de Senekho cumprimentou-me com um gesto apático. Depois disso, assinalou meu nome na lista que trazia na mão.

O planador foi saindo com um leve zumbido. Fitei-o com uma sensação amarga, até que parasse junto ao comandante da nave mais próxima. Era um cruzador pesado da classe fabricada por robôs.

“Quer que eu leve a glória de Árcon para o espaço”, pensei. “A glória de Árcon...”

Aquele homem, que devia ter cerca de dez mil anos menos que eu, nem desconfiava de que fora almirante muito antes dele e ocupara as funções de chefe de uma esquadrilha arcônida. Naquela época, quando os respiradores de metano atacaram o império cósmico, realmente se tratava de defender a concepção de força ligada ao Grande Império. E então não tínhamos necessidade de recorrer aos povos auxiliares para tripular as unidades de nossa frota. Dispúnhamos de vinte bilhões de arcônidas, todos eles especialistas altamente qualificados nos respectivos setores. Ninguém teria tolerado a presença de um robô ou de uma inteligência estranha nas salas de comando ou nos controles principais de uma nave. Se exigíssemos do técnico mais jovem que se submetesse às ordens de um não-arcônida, o resultado teria sido um motim.

E agora? Furioso e triste ao mesmo tempo fitei a tripulação de robôs, assinalada por cores diferentes, que se enfileirara atrás dos homens que deveriam guarnecer minha nave.

Cada uma dessas máquinas teria sua tarefa específica a bordo. Uma série de programações tinha sido realizada; o “adestramento” das criaturas metálicas insensíveis fora uma tarefa penosíssima.

Ao menos tinha um consolo. Ao contrário dos outros comandantes — cuja triste sorte era lamentável — teria a bordo duzentos homens que realmente seriam criaturas vivas, com os quais se poderia falar, rir e, se necessário, gritar. Cento e cinqüenta dentre eles eram elementos altamente qualificados da Patrulha Espacial Solar. Tratava-se de astronautas com os quais se poderia contar em qualquer missão, por mais difícil e arriscada que fosse, pois não entrariam em pânico ao primeiro impacto. Não conheciam choques nervosos nem deserções provocadas pelo medo. Além desses cento e cinqüenta homens, havia cinqüenta zalitas verdadeiros, que me haviam sido entregues há várias semanas. Os novos couraçados deviam levar a bordo pelo menos duzentos seres pensantes, pois durante as lutas travadas nas frentes de bloqueio, situadas junto às zonas de descarga dos druufs, se constatara que as tripulações exclusivamente robotizadas eram incapazes de enfrentar a situação.

Nem eu nem Perry Rhodan gostamos de levar esses soldados a bordo. Devíamos manter um controle rígido e ininterrupto sobre nossos atos, a fim de evitar que cometêssemos qualquer erro cujas conseqüências seriam graves. Uma única palavra inglesa proferida por nós bastaria para provocar espanto e desconfianças. Ainda trazíamos viva a lembrança dos atentados por meio dos quais conseguimos fazer com que nossos homens se saíssem bem nos testes médicos e psicológicos.

Para completar o azar, havia entre os zalitas dois oficiais, aos quais tive de entregar posições importantes. Afinal, tivemos de apresentar-nos sob o disfarce dessa gente, e por isso não tinha nenhum motivo plausível para rejeitar esses homens, que eram considerados muito competentes.

Só com grande dificuldade consegui afastar as preocupações. Estávamos num ambiente estranho, cercados por nossos piores inimigos, que, à menor suspeita sobre nossa verdadeira origem, golpeariam sem piedade.

Recentemente o gigantesco computador de Árcon III incluíra uma nova disciplina no programa de treinamento da frota. Seu nome era o seguinte: “Tática de Guerra Terrana.”

Quando ouvi falar nisso pela primeira vez, tive uma sensação nada agradável. Concluí que o regente iniciara os preparativos para a conquista do sistema solar, embora ainda não soubesse onde encontrar a Terra.

Dentro de poucos meses, o perigo dos druufs desapareceria, já que a zona de descarga se aproximava de nova fase de estabilização. Os estranhos, vindos de outra dimensão temporal, não teriam mais nenhuma possibilidade de atacar o espaço einsteiniano. Se soubessem que suas chances se acabariam dentro de poucos meses, o computador-regente de Árcon poderia contar com uma situação bem difícil. Já se sabia que os druufs atacavam com gigantescas frotas robotizadas. Quando esses ataques cessassem, o cérebro positrônico passaria a interessar-se pela Terra, que começava a incomodá-lo. Quando isso acontecesse, a descoberta de nossa posição galáctica seria apenas uma questão de tempo.

Foi justamente por sabermos disso que decidimos pôr o regente fora de combate, desde que conseguíssemos desligá-lo ou fazê-lo voar pelos ares. Naquele momento ainda parecia que a operação, que Rhodan preparara com enormes esforços e a um custo elevadíssimo, estava fadada ao fracasso.

Estávamos no dia 18 de março de 2.044 do calendário terrano. Decoláramos no dia 21 de janeiro com a Drusus e o cruzador ligeiro Califórnia. Uma vez preparado o terreno, pretendíamos arriscar uma tentativa de derrotar o computador.

Um ataque aberto seria uma loucura rematada. Na época, o computador mantinha quase sessenta mil naves de guerra nas proximidades da zona de descarga. Nossa única chance seria inutilizá-lo numa ação de comando.

E foi assim que, quando ainda se encontravam na Terra, cento e cinqüenta homens pertencentes ao comando foram transformados em zalitas. Também eu recebera a pele típica marrom-avermelhada e os longos cabelos cor de cobre que, conforme o ângulo de incidência da luz, emitiam um brilho esverdeado.

Ouvi uma ligeira tosse nos meus fones. Rhodan, que se encontrava à esquerda dos homens enfileirados, lançou-me mais um olhar de advertência. Voltara a apresentar a expressão pensativa, o que naquele momento representava um comportamento totalmente inadequado.

Voltei a cumprimentar os homens enfileirados e ordenei pelo rádio de capacete:

— Embarque a tripulação, Major Sesete!

Rhodan virou-se. Sua voz de comando ressoou sobre toda a área. Duzentos homens uniformizados marcharam em direção às comportas inferiores do couraçado, que se encontravam abertas. Foram seguidos por mais de mil robôs, entre os quais se viam as novas máquinas de guerra, destinadas a operações de desembarque. Tratava-se de gigantes metálicos dotados de armas giratórias e quatro braços de quatro juntas. Com seus quase três metros de altura sobressaíam entre as outras máquinas.

Parei junto a uma coluna telescópica de apoio e contemplei a tropa altamente disciplinada. Esforçamo-nos ao máximo para aprender os regulamentos militares dos zalitas.

Pousáramos em Voga IV por meio de um transmissor de matéria colocado às escondidas no planeta. O agente cósmico Jeremy Toffner levara-nos a Tagnor, capital do planeta, onde encontramos uma base de operações sob as cavernas da arena.

A partir dali, a operação começou a tornar-se perigosa. Pouco tempo antes, um almirante espacial chamado Calus chegara ao planeta. O computador-regente incumbira-o de recrutar astronautas zalitas para prestarem serviço na frota de Árcon. Para todos os efeitos práticos, era Calus quem mandava em Voga IV, motivo por que procuramos substituí-lo por outro homem.

Depois de prolongados preparativos, realizados por nossa equipe científica, conseguimos introduzir no palácio do governo de Tagnor o sargento Osega, sob a máscara de Calus. O verdadeiro Calus era nosso prisioneiro.

Dali em diante não houve o menor problema em fazer os cento e cinqüenta terranos disfarçados passarem por zalitas. Tínhamos documentos impecáveis, com os quais conseguimos enganar a comissão de recrutamento dos arcônidas.

Em meados de fevereiro de 2.044, uma nave transportadora da frota de Árcon levou-nos à grande lua do planeta Naat, onde surgiram outras dificuldades. O computador-regente incumbira os médicos galácticos do exame das novas tropas espaciais. Não foi nada fácil enganar os aras e introduzir dados individuais falsos nos registros automáticos.

De qualquer maneira, conseguimos fazer isso. Mas poucas semanas depois, a catástrofe foi evitada por pouco.

No planeta distante de Zalit, situado a 3,14 anos-luz do sistema de Árcon, um grupo zalita de revoltosos foi bem sucedido numa tentativa de assassinato do comandante arcônida Calus. Com isso, o sargento Osega perdeu a vida.

No último instante, os mutantes e cientistas de nossa equipe, que tinham ficado em Zalit, conseguiram remover o cadáver de Osega. Se o tivessem enviado para Árcon, sem dúvida teriam percebido que uma pessoa totalmente estranha fora vitimada pelo atentado.

Escapamos por pouco, mas o incidente nos ensinou que o destino é imprevisível. Quando chegamos a Zalit, tínhamos certeza absoluta de que, dentro de poucas semanas, conseguiríamos chegar a Árcon III, onde passaríamos à execução de nosso plano.

Nenhuma dessas previsões se realizara. Enfrentamos verdadeiras montanhas de dificuldades. Constantemente tivemos de contentar-nos com soluções parciais. A cada dia defrontávamo-nos com situações não previstas em nosso programa.

Por algumas semanas ficamos presos na grande lua do quinto planeta de Árcon. Logo após a chegada entregaram-nos um couraçado da Frota Imperial, recém-saído do estaleiro. Fui nomeado comandante, já que em Zalit fora provido com a necessária documentação.

Mas, se pensávamos que logo seguiríamos viagem, mais uma vez estávamos enganados. Os vôos de treinamento seguiram-se numa série ininterrupta. Tivemos de treinar o vôo em todos os tipos de formação, e, simultaneamente, devíamos tomar cuidado para que os zalitas não ouvissem nenhuma palavra que pudesse trair-nos.

Nossos especialistas ficaram ocupados durante quinze dias com a programação dos robôs. Os deveres tomavam todo nosso tempo, e assim não tínhamos tempo para refletir detidamente sobre nossos planos.

Esperando firmemente que as coisas ainda acabassem dando certo, entregamo-nos inteiramente ao serviço militar. A disciplina era rígida e os castigos muito rigorosos. Os arcônidas sempre souberam lidar com os povos auxiliares, que sempre executavam o serviço mais ou menos coagidos. Deles não se podia esperar que trabalhassem com muito entusiasmo.

Hoje finalmente recebi ordem para levar o couraçado com a tripulação já treinada a Árcon, onde provavelmente seria realizado mais um exame de aptidão. Senti um calafrio ao pensar no perigo que esse exame poderia acarretar. Os homens mais importantes do Império Solar encontravam-se a bordo de uma nave que voaria diretamente para a toca do leão.

A esta hora já me sentia muito satisfeito por termos deixado na base de Zalit o rato-castor Gucky, Goratchim, um mutante de duas cabeças e as mutantes do sexo feminino. Se tivéssemos trazido essas pessoas na missão que estávamos realizando, provavelmente haveria dificuldades insuperáveis. Gucky e Goratchim de forma alguma poderiam ser disfarçados para se parecerem com os nativos de Zalit.

Os últimos contingentes de robôs passaram por mim. Tratava-se das máquinas especiais do comando de controle de vazamentos. Todas essas máquinas tinham uma faixa vermelha no peito.

Perry Rhodan encontrava-se ao pé da escada rolante. A Kon-Velete era uma nave nova e potente, mas não possuía o menor conforto. Até mesmo as instalações do camarote do comandante eram grosseiras, e para os nossos padrões, as instalações sanitárias deixavam muito a desejar.

Ao que parecia, o computador-regente de Árcon não achava necessário modificar as gigantescas linhas de montagem de Árcon III pelo simples fato de que de repente as novas naves espaciais seriam tripuladas por seres vivos.

Quando o último robô desapareceu, lancei um ligeiro olhar para o alto. As escotilhas blindadas da comporta de ar, que estavam abertas, ficavam a 22 metros acima do lugar em que nos encontrávamos. Só lá começava o abaulamento da calota polar. O gigante de oitocentos metros era uma nave que deixaria qualquer comandante orgulhoso.

Nunca teria contado com a possibilidade de algum dia encontrar-me novamente na sala de comando de um veículo espacial arcônida. Minha longa peregrinação pela história da Terra chegara ao fim. Uma nova época iria começar. Perto de mim estava um homem que, em poucos decênios, fizera do primitivo mundo terrano um planeta de importância galáctica.

Antes de dirigir-se a mim, Rhodan verificou os controles de seu transmissor de capacete. Se tal aparelho continuasse ligado durante uma de nossas palestras confidenciais, isso poderia significar nosso fim.

Também verifiquei o meu. Estava desligado. Os três sentinelas apareceram na comporta de ar. Aqueles homens pertenciam ao nosso comando. O Tenente Olavson fez um gesto tranqüilizador em nossa direção.

Lancei mais um olhar desconfiado em torno. Os cruzadores pesados do quarto grupo estavam pousados à nossa direita e esquerda. Tinham uma tripulação de apenas cinqüenta homens. Era pouco para aquelas naves, que mediam seus quinhentos metros de diâmetro, e que por isso perdiam muito em eficiência.

Face à degenerescência completa de minha raça, o robô-regente sofria a falta de pessoal. Procurava substituir pela quantidade a perda de potência combativa resultante da deficiência de pessoal.

— Decolaremos dentro de trinta e dois minutos — disse em voz baixa, dirigindo-me a Rhodan.

O vento cortante penetrou na boca aberta, fazendo com que os dentes doessem.

Perry limitou-se a acenar com a cabeça. Não era seu costume falar sobre assuntos que já haviam sido discutidos inúmeras vezes. Naquela altura, a única coisa que importava era levar nosso comando a um lugar em que pudesse entrar em ação.

Havíamos feito tudo que estava ao nosso alcance. Só nos restava confiar nas boas graças do destino. Já não tínhamos condições de intervir de forma decisiva nos acontecimentos que nos esperavam.

— Mais três zalitas adoeceram — informou. — Bell acaba de receber o aviso. Não suportam o clima daqui. Como se sente?

Fitou-me atentamente. Sem dúvida meu rosto mostrava sinais de tensão nervosa.

— Tudo bem — respondi para esquivar-me. — Procure não esquecer-se novamente de fazer continência.

Quando já me encontrava na escada rolante, que seguia muito devagar, ainda o ouvi praguejar. As três sentinelas entraram em posição de sentido. O berreiro de Olavson me fez estremecer. Não sabia dirigir-se a mim em tom normal. Não fazia mal, pois o regulamento zalita exigia esse volume de voz.

Agradeci e entrei à frente de Rhodan no elevador axial, que parou automaticamente no hall da sala de comando.

Perry caminhou na minha frente, abriu as pesadas escotilhas blindadas e voltou a apresentar-se. Só depois pude entrar. Aos poucos, o cerimonial começava a aborrecer-nos. Os zalitas o haviam copiado das antiqüíssimas normas arcônidas. No entanto, com o tempo, tal cerimonial foi levado a tamanho exagero que já não me sentia muito bem com isso.

Além dos nossos homens, estavam presentes dois “genuínos”. Face à rigorosa disciplina militar, existente em Voga IV, consideravam-me uma espécie de ser superior. O Tenente Kecc, oficial de plantão do posto de observação, continuava como uma estátua junto à sua cadeira giratória, embora os terranos já estivessem sentados.

O rosto furioso de Rhodan dava a entender que esse cerimonial lhe causava repugnância. O outro zalita estava sentado junto aos controles automáticos dos campos antigravitacionais. Por lá não poderia ocorrer nenhuma dificuldade, pois, independentemente de sua atuação, o dispositivo inteiramente positronizado corrigiria qualquer discrepância.

Olhei atentamente em torno. Os rostos com os quais já estava familiarizado revelavam, com uma franqueza maior ou menor, que aqueles homens já achavam-se saturados do jogo de esconder que vinha se prolongando por algumas semanas.

Conhecia perfeitamente os problemas psicológicos e sabia que tais dificuldades representavam uma pesada carga para todos. Por isso resolvi transmitir uma informação ambígua:

— O Grande Coordenador de Árcon manda dizer que, dentro de algumas horas, deveremos pousar em Árcon III. Depois disso terá início o treinamento tático final.

Acho que daqui a trinta dias, no máximo, seremos enviados ao front. Viva o Grande Império!

Os dois zalitas repetiram as últimas palavras em voz extremamente alta. Os terranos não pareciam tão entusiasmados. Eram detalhes que dariam a um atento observador muito que pensar. Ainda bem que os zalitas genuínos não eram tão fanáticos como pareciam ser. Sabia que pelo menos quarenta deles haviam sido coagidos à prestação do serviço militar.

John Marshall, comandante do Exército de Mutantes, acenou com a cabeça de forma quase imperceptível. Verificara os impulsos mentais dos zalitas. Ao que parecia, tudo estava em ordem quanto a eles.

A fim de receber as instruções para a decolagem, Rhodan plantou-se à minha frente. Transmiti-as em palavras fortes e lacônicas. Fitou-me com uma expressão tão fria que até parecia que eu era culpado por ainda não termos chegado ao planeta de Árcon. Afinal de contas, a operação em que estávamos empenhados não era nenhum piquenique.

Aliás, essa ação baseava-se exclusivamente numa suposição que há poucos meses ainda me parecera uma certeza. Mas as dificuldades que estávamos encontrando eram tamanhas que os cálculos e as conclusões daquele tempo, a meu ver, se tornaram altamente duvidosos. Quando pensava nisso, quase chegava a sentir náuseas. Esforçava-me constantemente para que ninguém desconfiasse de que não acreditava mais nos meus prognósticos.

Era evidente que não poderíamos derrotar o regente numa luta aberta. Também já se haviam passado os tempos em que a penetração no sistema do sol branco de Árcon, embora perigosa, ainda era possível. O regente mandara fechar hermeticamente esse setor espacial.

Face a isso só havia uma maneira de destruir o computador-regente, cujo poder já se vinha tornando exclusivamente ditatorial. Teríamos de aproximar-nos discretamente, golpeá-lo e aguardar os acontecimentos.

Na fase de planejamento não deixara de informar Rhodan de que uma fuga de Árcon não mais teria qualquer possibilidade de êxito. Já conseguira fugir uma vez. Mas, na época, os preparativos do regente ainda não estavam concluídos. Agora as coisas eram diferentes.

Crest, o cientista arcônida, e eu afirmáramos que nossos veneráveis antepassados nunca deixariam de incluir, na construção do computador-regente, um dispositivo de segurança no qual se pudesse confiar. Certamente tratava-se de um relê sobreposto que apagava todas as programações do cérebro positrônico, assim que o funcionamento deste deixasse de inspirar confiança e não atendesse aos objetivos dos construtores arcônidas.

Não havia dúvida de que esse momento havia chegado. O regente funcionava praticamente como se estivesse em curto-circuito. Seus atos eram tão contraditórios que o dispositivo de segurança, com cuja presença Crest e eu contávamos, já deveria ter intervindo. Não sabíamos explicar por que isso não tinha acontecido.

Só iniciamos nossa operação porque acreditávamos que devia haver um caminho. E foi assim que nos colocamos na situação em que nos encontrávamos.

Mas há algum tempo senti que os membros do comando terrano já não confiavam cem por cento em mim... Tudo acontecera de forma inteiramente diferente das nossas previsões. E agora viamo-nos obrigados a desempenhar corretamente o papel de uma tripulação colonial fiel e submissa, cujos cento e cinqüenta membros dificilmente seriam capazes de conduzir uma nave espacial.

Partiríamos para nossa destruição ou para a vitória. Não havia outra alternativa. Na fase dos preparativos, em Zalit, ainda poderíamos desistir e bater em retirada. Mas agora estávamos na armadilha. Minhas dúvidas sobre os argumentos, que antes pareciam tão lógicos, me corroíam os nervos.

Ao que tudo indicava, Rhodan já percebera alguma coisa, pois do contrário não teria perguntado constantemente pela minha saúde.

Um forte estrondo abalou a Kon-Velete e arrancou-me das reflexões martirizantes. Três luzes vermelhas acenderam-se no setor de controle 18. Ouvi Bell praguejar em zalita e vi os olhos de Rhodan chamejarem de raiva. O rosto abatido de um zalita surgiu numa das telas do sistema de intercomunicação da nave.

— Não venha me dizer nada — gritou Bell em tom furioso. — Faça as chaves automáticas engatarem de novo. Quantas vezes ainda lhe terei de explicar como são ligados os projetos antigravitacionais? Nunca ligue todos de uma só vez, seu idiota. Estamos registrando um pique de carga de cerca de oito mil ampères. Vamos logo; engate as chaves automáticas.

— As chaves de segurança estão trancadas — respondeu o zalita, todo trêmulo.

Bell descontrolou-se. Rhodan e eu esforçamo-nos para não perder o autocontrole. Era sempre a mesma coisa com essa gente, embora eles devessem ter bastante experiência para evitar isso. Toda a aparelhagem do novo couraçado trabalhava com o máximo possível de tensão, a fim de que a amperagem pudesse ser mantida em nível baixo. Até parecia que um engenheiro zalita nunca era capaz de compreender isso. Faziam as ligações como se só trabalhássemos com dispositivos de dez mil volts, nos quais a amperagem fatalmente teria de ser bastante elevada.

— Faça a ligação manual das chaves automáticas — ordenou Rhodan em tom áspero. — Mande alguns técnicos para baixo e destaque dois operadores eletrônicos para acompanhá-los. Ande logo. E apresente-se a mim assim que estivermos no espaço.

O zalita ponderou que, ainda no dia anterior, tinha havido dois acidentes no equipamento elétrico, o que não deixava de ser verdade. De qualquer maneira, porém, a trava das chaves de segurança tinha de ser aberta com a mão. Enquanto isso não fosse feito, elas não reagiriam aos impulsos teleguiados.

A notícia de que as chaves estavam em ordem só foi transmitida a dois minutos da decolagem. Antes, as chaves de segurança de deslocaram mais três vezes, o que constituía prova inequívoca de que, no setor 18, a sobrecarga era um fato freqüente, e, face a isso, os quadros de chave sempre reagiam através do dispositivo de travamento. As chaves só voltavam a ligar-se três vezes. Se até lá o defeito não tivesse sido corrigido, o dispositivo automático de segurança as desligava definitivamente. Se isso acontecesse no curso de uma batalha, a conseqüência poderia ser a destruição da nave.

Desde o momento em que voamos, com uma tripulação composta parcialmente de zalitas, começamos a compreender por que a frota de bloqueio do computador-regente sofrerá perdas tão pesadas. Os druufs estavam em situação de inferioridade numérica, mas suas tripulações eram muito melhores.

Face à minha natureza e à dos terranos, procurávamos constantemente corrigir esse tipo de falha. Esforçamo-nos para provar aos zalitas que estas podiam ser evitadas. Os técnicos do nosso comando fitaram-me com uma expressão de espanto quando, alguns dias antes, expliquei-lhes que o maior ou menor grau de treinamento dos colonos de Árcon nos era totalmente indiferente. Em hipótese alguma poderíamos tirar qualquer proveito de seus treinamentos.

Até mesmo Rhodan cedeu a custo â lógica das minhas palavras. Não compreendia como a gente pode mostrar-se indiferente às repetidas negligências. A meticulosidade dos amigos do Império Solar começava a incomodar-me. Ficavam muito nervosos quando um zalita não queria ou não conseguia compreender. Paciência: os humanos eram assim mesmo. Quase tudo que faziam tinha uma boa base.

Quando, à direita e à esquerda do lugar em que nos encontrávamos, dois cruzadores pesados do quarto grupo ergueram-se do solo, ainda pensava nesse fato incontestável. Ouvi o rugido dos mecanismos propulsores, que, apesar da redução do volume dos microfones, ainda era quase insuportável. Um gigante após o outro rompia o fino envoltório atmosférico da lua. Finalmente chegou nossa vez.

Estava sentado numa poltrona de encosto alto, destinada ao comandante da Kon-Velete. À minha frente estavam montados os controles principais. Se necessário, poderia paralisar com um só movimento de chave as instalações mais importantes do couraçado.

Rhodan estava sentado à minha direita e Bell à esquerda. Cabia-lhes pilotar a gigantesca esfera de aço, na parte em que a aparelhagem automática não cuidava disso.

Uma tela iluminou-se e nela surgiu o rosto enrugado do Almirante Senekho.

— Decolagem permitida — anunciou. — Reunir-se no setor três e seguir a rota em formação. Siga as instruções da nave capitania. Boa sorte. Desligo.

Rhodan fitou-me. Acenei com a cabeça. O vôo em formação seria desagradável. Mas seria totalmente ilusório contarmos com qualquer outra possibilidade. Sozinhos nunca chegaríamos a Árcon.

Dali a dez segundos, nossos mecanismos propulsores começaram a trovejar. Erguemo-nos do solo com um valor de compensação gravitacional correspondente a cem por cento do nível de Naator. Rhodan mantinha as pontas dos dedos sobre os controles manuais, uma vez que havíamos verificado que os dispositivos automáticos sincronizados destinados à coordenação do empuxo dos vários bocais de jato não funcionavam com a necessária precisão. Durante os vôos experimentais, houvera desvios que chegavam a 1,85 graus. Apesar disso, o defeito ainda não fora removido. Isso constituía mais uma prova de que a fabricação em escala gigantesca, realizada por ordem do regente, não era um processo perfeito. Por certo, as linhas automáticas de montagem estavam precisando de uma revisão.

Avançamos para o espaço a uma aceleração reduzida e, nas proximidades da fortaleza espacial Naat-V, reunimo-nos ao grupo de naves que se mantinha em posição de espera. A Kon-Velete era considerada a nave-guia do quarto grupo de cruzadores pesados. Isso bastou para convencer-me que, logo após nossa chegada a Árcon, um comodoro subiria a bordo. Não era muito provável que eu fosse nomeado para o posto de chefe de esquadrilha.

Senti-me dominado pelo ódio e pela amargura. Há dez mil anos partira desse sistema solar para cumprir as ordens do Grande Conselho. Só me haviam pedido que fosse dar uma olhada num sistema distante, a fim de verificar qual era o motivo dos constantes pedidos de socorro dos colonos ali radicados.

O vôo de rotina transformara-se num desterro... Finalmente estava regressando, mas o velho Árcon deixara de existir. Meus veneráveis antepassados há muito tinham desaparecido, e tive a sensação de não passar de um remanescente inútil, cujos anseios e esperanças se tornaram impossíveis.

O império cósmico era governado por um computador. Nessas condições, de nada me adiantaria a alegação orgulhosa e soberba de ser Atlan, membro da família dos Gonozal. Minha família provavelmente já caíra no esquecimento. Ninguém se lembraria de que dela já haviam saído imperadores. Meu elevado grau de príncipe de cristal não causaria maior impressão, nem o cargo de almirante da Frota Imperial. Por isso só me restava esperar que não me subordinassem a algum oficial tolo e arrogante, com uma educação supersofisticada e imbuído de pensamentos reveladores de decadência e inaptidão para a vida. Acontece que esse perigo existia, motivo por que, desde logo, começava a preparar-me para o inevitável.

Num gesto instintivo pus a mão no peito, onde meu ativador de vibrações celulares pulsava sob o fino tecido de plástico do uniforme zalita. Graças a ele, possuía uma imortalidade relativa, embora ainda não soubesse como o aparelho funcionava. Ele me foi entregue, há muito tempo, por um ser coletivo, altamente desenvolvido, que também se sentia ameaçado pelas mesmas inteligências que me perseguiam. Ao suspender por meio de um misterioso micro-conjunto o processo de envelhecimento natural de meu corpo, esse ser fizera de mim o representante para a defesa dos seus interesses.

Fiz um grande esforço de concentração. Os olhares perscrutadores de Rhodan deixaram-me envergonhado. Parecia saber exatamente o que acontecia na minha mente.

— Será dentro em breve — disse em voz baixa.

O sentido dessa frase lacônica era tão profundo que me fez estremecer.

O que seria feito da minha teoria? Será que realmente havia um dispositivo de segurança no maior computador da Via Láctea? Em caso afirmativo restaria saber em que hipótese esse dispositivo entraria em funcionamento e o que deveria ser feito para ativá-lo.

Eram muitas perguntas para as quais não havia respostas. Só tínhamos certeza absoluta de uma coisa: quando estivéssemos em Árcon, não haveria mais nenhum caminho de volta.

A esquadrilha continuou a entrar em formação. Assim que o grupo de 68 unidades ficou completo, recebemos ordem de partida. Aceleramos a apenas 1.002 km/seg. Até então nunca se havia conseguido constituir uma formação dotada de boa manobrabilidade, com uma aceleração mais elevada. Neste ponto, as velhas tripulações de robôs mereciam mais confiança que os zalitas.

Não gostei nem um pouco do sorriso irônico de Bell. Os terranos não deveriam acreditar que eram o máximo em perfeição.

Era claro que cada um deles valia mais do que cinqüenta colonos treinados. Mas nem por isso tínhamos motivo para acreditar que o problema poderia ser resolvido apressadamente. Até agora a sorte nos tinha favorecido; só isso. Em todas as hipóteses, alguém conseguira remover no último instante um perigo que surgia de repente. O papel principal fora desempenhado pelos nossos mutantes. Se não fossem suas capacidades supersensoriais, a missão em que estávamos empenhados seria totalmente impossível. Restava saber se em Árcon III conseguiriam a consagração final. Face a certas circunstâncias irremovíveis, Gucky e Goratchim tiveram de ser deixados de fora.

Betty Toufry e Ishy Matsu também tiveram de permanecer no labirinto cavernoso, situado sob a arena zalita.

Rhodan ligou o piloto automático. Reclinou-se confortavelmente na poltrona, abrangeu com um só olhar as telas da galeria de visão global e dirigiu o rosto para mim.

— É uma beleza irreal, não é? — observou. A expressão de seus olhos era indiferente. Parecia enxergar através de meu corpo.

O grupo estelar M-13 realmente era lindo. Neste setor, as estrelas ficavam muito mais perto umas das outras que nas outras áreas da Galáxia. Segundo as concepções arcônidas, o grupo M-13 representava a espinha dorsal do Universo, muito embora se situasse nos confins da Galáxia. Tratava-se da célula-máter do Grande Império. Foi aqui que teve início o processo de conquista, colonização e... submissão. Era meu mundo natal. Restava-me saber como seria recebido agora. Sentia-me mais desamparado que um filho extraviado, pois por aqui não havia mais ninguém que pudesse lembrar-se de mim.

 

Fomos tratados como um bando de moleques vagabundos que devem dar-se por satisfeitos por não serem presos.

As belas recordações de Árcon foram desaparecendo, para ceder lugar a uma raiva surda.

O setor lógico de meu segundo cérebro não dava mais nenhum sinal de sua existência. Em compensação, as reações de minha memória fotográfica eram mais freqüentes e intensas. Um arcônida de posição elevada — cujo cérebro tivesse recebido um ativamento especial, mediante licença do conselho médico — não seria capaz de esquecer qualquer coisa. Foi por isso que o deserto de aço de Árcon III me pareceu tão familiar.

Nada mudara naquele planeta que meus antepassados haviam trazido para junto do planeta-irmão, usando gigantescos campos gravitacionais, a fim de transformá-lo num mundo de armamento.

Era o maior dos três que, dispostos em forma de triângulo, circulavam em torno do grande sol branco.

Árcon I, conhecido como o mundo de cristal, continuava reservado às finalidades residenciais. Árcon II voltara a ser considerado o mais importante dos mundos mercantis do Império. Ali pousavam constantemente as naves mercantes de todas as raças conhecidas. Todavia, não obtivemos permissão para visitar as ruas comerciais que abrangiam verdadeiros mundos. Triste e martirizado por uma dor penetrante, lembrei-me dos silos e depósitos recheados, nos quais eram guardadas as mercadorias de toda parte da Galáxia.

Ao que parecia, tudo isso tinha chegado ao fim. O computador-regente restringira o comércio ao estritamente necessário, fazendo com que este se dedicasse, quase exclusivamente, à aquisição das necessárias matérias-primas.

Árcon III, que era o mundo da frota e dos gigantescos estaleiros, precisava de quantidades imensas de materiais, para satisfazer a voracidade constante das linhas de montagem.

O mundo dos arcônidas continuava a ser uma maravilha galáctica. Nenhuma outra raça jamais conseguira arrancar de suas órbitas dois astros naturais e colocá-los em outra posição. Desde o momento em que meus antepassados conseguiram essa dificílima realização científica, a falta de espaço deixou de representar um problema para nosso povo.

A isso, seguira-se o tempo das grandes emigrações. O império cósmico foi-se formando.

O sol de Voga, não muito distante, foi nosso primeiro objetivo. Mas, menos de quinhentos anos depois do início da colonização, os descendentes dos colonizadores já deixaram de ser considerados arcônidas puros. As influências ambientais sobre o corpo e a mente que ali se verificaram, aconteceram em quase todos os outros lugares.

O número exato dos descendentes dos arcônidas era desconhecido. Porém, segundo as estimativas, o número das inteligências espalhadas pela Galáxia devia chegar a cinqüenta trilhões.

Estes descendentes desligaram-se de Árcon. Na maioria das vezes, nem sequer sabiam de onde tinham vindo. Em virtude disso ocorreram encarniçadas guerras coloniais, nas quais a luta sempre girava em torno de pretensões de posse e de arrojadas pretensões de autonomia.

Agora estávamos recebendo as conseqüências desse estado de coisas. Pela primeira vez senti na própria carne o tratamento que costumava ser dispensado a uma criatura subdesenvolvida. Se as pessoas que escarneciam de nós fossem arcônidas com elevados dotes espirituais, minha vida não seria tão insuportável. Acontece que as pessoas que lidavam conosco eram cabeças-de-vento, cuja atividade mental se reduzia ao anseio de executar pela forma mais rápida e confortável as missões que lhes eram atribuídas pelo regente.

O comodoro da quarta esquadrilha, cuja chegada eu esperava, subiu a bordo duas horas depois de nosso pouso em Árcon III. Aquele homem ainda jovem — rosto inexpressivo e olhos apagados, que às vezes pareciam sonhadores — considerava-se um semideus.

Se alguma vez entendera algo de astronáutica moderna parecia ter esquecido tudo que sabia. No início eu o odiei, mas depois tive pena dele. A primeira medida por ele adotada consistiu em mandar levar para bordo um simulador portátil. Tive que tomar uma atitude enérgica para evitar que esse aparelho, destinado à reprodução de combinações idiotas de reflexos luminosos, fosse colocado na sala de comando. Jamais me esqueceria do olhar aniquilador que o arcônida me lançou, e sempre me lembraria do rosto pálido e dos punhos cerrados de Rhodan.

Era esse degenerado, lacaio de um gigantesco autômato, que comandava a quarta esquadrilha, que sempre contava com dezessete naves de guerra.

Seu nome era Gailos. Nunca ouvira falar em sua família. Aquele homem era um exemplo vivo da transformação sofrida pelo povo arcônida, que de uma comunidade altiva passara à categoria de um grupo de fracalhões presunçosos. No entanto, Gailos ainda devia pertencer aos membros mais ativos da raça dos arcônidas, pois do contrário o regente não o teria investido nas funções de comodoro.

Durante quinze dias, sob as ordens desse homem, realizamos manobras espaciais em condições de batalha. Pela primeira vez tivemos permissão para manejar os controles de armamento e realizar ataques simulados contra unidades dirigidas por robôs. O resultado dessas manobras provocou uma atitude imprudente dos terranos, que, vez por outra, soltavam algumas risadinhas escondidas.

Depois de conhecer o grau de “competência” de nosso novo comandante, Rhodan resolveu arriscar uma ação que durante semanas não tínhamos arriscado.

Durante a confusão inextricável, surgida durante um malogrado ataque em cunha, Rhodan ligou o dispositivo automático de hipersalto, sob os olhares atônitos dos companheiros. Sem dúvida pretendia realizar a título experimental uma transição a pequena distância, a fim de verificar se poderia confiar no novo couraçado. Provavelmente mais tarde saberia culpar Gailos pelo “salto involuntário”.

Mas não houve nenhum salto, pois a Kon-Velete não estava em condições de realizar qualquer transição. Os conversores de campos estruturais não deram sinal de sua presença, e as luzes de controle nem sequer chegaram a acender-se. Compreendemos que o computador-regente era muito cauteloso.

Pela primeira vez deveríamos pousar em Árcon III. Quatorze dias já se haviam passado, e ainda não tinha surgido qualquer possibilidade de cuidar de nossa tarefa propriamente dita. Isso acontecia pelo motivo muito simples de que não obtínhamos licença.

Nossos alojamentos ficavam bem embaixo do pavimento de aço do espaçoporto A-R-145. Assim que a nave pousava éramos obrigados a sair de bordo e desaparecer nas entranhas do planeta da guerra.

Uma vez que a superfície de Árcon III também foi-se tornando muito pequena, meus remotos antepassados começaram a escavar o interior desse mundo. Era por isso que as unidades energéticas, de controle e de comando, muitas vezes ficavam até seis mil metros abaixo da superfície. A rigor, Árcon III não passava de um astro perfurado e escavado, em que todas as coisas tinham um aspecto puramente finalista.

De início, a permanência nos subterrâneos era um verdadeiro pesadelo para os terranos. Mas acabaram por conformar-se com o inevitável e procuraram encontrar alguns atrativos nessa prisão.

Muito embora o ambiente fosse antinatural e pouco agradável para meus amigos, não deixava de ter seu fascínio. Árcon III fora preparado para rechaçar qualquer ataque vindo do espaço. Lá embaixo, Rhodan e seus colaboradores viram como se faz para transformar um planeta comum numa fortaleza galáctica de primeira categoria.

Finalmente Gailos fez uma débil alocução aos comandantes das unidades, transmitida pelo intercomunicador, e ordenou o fim das manobras, o que nos fez suspirar aliviados.

Reginald Bell, oficial da Kon-Velete, inchou visivelmente as bochechas vermelhas e lançou um olhar para Gailos, que me fez sentir calafrios.

Lancei um sinal de advertência para Bell, e ele cerrou os enormes punhos. Depois de Rhodan, Bell era o homem dotado de maior dose de sangue-frio em toda a frota solar, muito embora às vezes costumasse disfarçar essa qualidade. Naquele instante, porém, estava próximo a um colapso nervoso.

A falha do dispositivo automático de hipersalto representara um choque para ele e para outros homens. Até então contáramos com a possibilidade de, em caso de perigo, realizar um hipersalto e desaparecer com a Kon-Velete.

Agora até essa saída fora fechada. Provavelmente o conversor estrutural só era liberado pelo regente, quando a nave se dirigisse ao campo de batalha. Ao que tudo indicava, não confiava nos seus aliados, mesmo se tratando dos zalitas, seus vizinhos mais próximos.

Já nos acostumáramos a não fazer observações na presença de estranhos e a evitar conversas comprometedoras. Rhodan formulara uma advertência enfática nesse sentido, pois era possível que houvesse algum dispositivo de vigilância controlado por robôs.

Se a programação tão antiga do computador-regente fazia com que fosse desconfiado a ponto de desligar o hiperpropulsor até mesmo durante manobras muito importantes, devia-se contar com a existência de outras medidas de segurança.

Fiquei satisfeito ao ver que Bell conseguia controlar-se. Provavelmente estivera prestes a dirigir uma observação mordaz a Gailos. Rhodan voltara a ficar sentado, que nem uma estátua, na poltrona do imediato. Ao que parecia, dedicava seu interesse exclusivamente aos controles de seu setor.

Observei-o discretamente, até que a sala de máquinas chamasse pelo videofone. O engenheiro-chefe, também era um terrano disfarçado, informou que, a uma velocidade altamente relativista, o consumo de substância de apoio de radiações ficava 6,85 por cento acima do normal.

Confirmei a notícia importante e olhei para Gailos. O comodoro estava comodamente deitado em sua poltrona reclinada. O rosto exprimia tédio. Quando, em conformidade com os regulamentos, me plantei à sua frente para repetir a informação, ele girou a cabeça e suspirou.

De acordo com os usos arcônidas deveria chamá-lo de Alteza, tratamento que lhe cabia na qualidade de chefe de esquadrilha. Em compensação ele, com um desprezo patente, nos dava o tratamento de você.

Quando vi seu rosto presunçoso tão perto de mim senti-me tomado pelo ódio.

Durante minha longa peregrinação pela Terra, chegara a curvar-me diante de reis bárbaros e príncipes ignorantes, que poderiam ser humilhados por qualquer rapazola arcônida mediante duas ou três perguntas. O comportamento pedante dessa gente me fizera sorrir. Porém, imbuído da sensação de minha infinita superioridade, curvei a cabeça e, tal qual os outros, desfiava as frases costumeiras. Pouco me importava que, às vezes, fosse tratado como escravo, ou que, num convencimento ridículo, me considerassem como indivíduo de classe inferior.

Mas agora as coisas eram diferentes! Tornava-se quase impossível manter uma certa calma diante de um homem pertencente ao meu povo, que se interessava exclusivamente pelo bem-estar e, nos palácios do planeta de cristal, costumava entreter-se em apaixonadas conversas sobre incompreensíveis “obras de arte”. O soldado mais insignificante de minha antiga nave capitania valia mais que cem parasitas do tipo de Gailos.

Repeti a informação sobre o consumo excessivo de massa de apoio.

— Reabasteceremos a nave — disse o comandante em tom sonolento.

— Alteza, se formos enviados à frente de combate dificilmente teremos oportunidade para fazer isso.

Ao que parecia, estava refletindo. Mais uma vez ouvi um profundo suspiro.

— Ora, Ighur, acho que teremos sim. Realmente houve um consumo excessivo? E, o que é mais importante, as microfitas com a nova obra-prima de Askor, por mim solicitadas, ainda não chegaram?

— Não, Alteza.

— Isso é um insulto — resmungou Gailos. Suas mãos finas seguravam as braçadeiras da poltrona. — Farei uma queixa. Aliás, nesta sala de comando há um cheiro desagradável. Qual é a causa? Será que terei de suportar tudo isso?

Para conservar o autocontrole, fechei os olhos por um segundo. Ainda bem que meu velho mestre Tarts não estava vendo uma coisa dessas. Também fora um arcônida. Mas que arcônida!

— Este cheiro é muito comum nas salas de comando, Alteza. As telas automáticas esquentam e os isoladores aquecidos desprendem um fluido peculiar.

— É uma coisa horrível. Realmente, uma coisa horrível. Ajude-me a levantar.

Estendeu a mão, e puxei-o para fora da poltrona. Quando se encontrava de pé à minha frente, parecia ainda mais esguio e... insignificante, embora tivesse o meu tamanho. Num gesto furioso esfregou o pulso esquerdo.

— Ao que parece, os zalitas ainda não aprenderam como se deve tratar um arcônida — disse com certo tom áspero na voz.

Olhei para seu braço, que fora cingido com pouca força.

— Queira desculpar, Alteza.

Fitou-me e sua raiva foi-se desvanecendo. Fez um gesto condescendente e deu-me as costas. Saiu todo empertigado, sem olhar para trás. Os dois robôs pesados, designados e programados especialmente para servirem de guardas pessoais do comodoro, seguiram-no prontamente. O importante problema, ligado à massa de apoio, deixara de ser solucionado.

O zalita, junto aos controles do campo antigravitacional, fitou-me. Em seu rosto havia uma palidez cadavérica. O homem a seu lado sorriu discretamente; era um terrano disfarçado.

Sem dizer uma palavra, sentei na poltrona do comandante, situada à frente dos controles principais, e chamei a sala de máquinas. Quando contei ao engenheiro-chefe a conversa durante a qual se aludira a um possível reabastecimento, ele arregalou os olhos. No entanto, conseguiu controlar-se e apenas acenou com a cabeça.

Enquanto isso, o quarto grupo de cruzadores pesados aproximava-se de Árcon III. Pouco antes do pouso, Rhodan ligou o ampliador automático de observação ótica externa.

As telas setoriais apresentavam vistas parciais da superfície do planeta. A única coisa avistada foram gigantescos espaçoportos e conjuntos de edifícios que o olhar não conseguia abranger. Não havia praticamente nenhuma área livre. O mundo da guerra era uma única metrópole compacta, na qual não crescia nenhuma planta e não havia um único regato que alegrasse os olhos.

Árcon III era um deserto de aço. Não havia nenhuma possibilidade de comparar esse planeta a qualquer outro. Se alguém interrompesse as comunicações com esse mundo, o enorme potencial produtivo faria com que as provisões se esgotassem em menos de um mês.

No passado, esse fato levara várias vezes as outras potências a realizar bloqueios interestelares, mas nem assim se conseguiu vencer o Grande Império. Lembrava-me perfeitamente dos comboios formados por ocasião da revolta dos nopoletas, a fim de proteger a artéria vital de Árcon. Nossos inúmeros inimigos nunca conseguiram realizar, por uma hora que fosse, um bloqueio eficaz de nosso sistema. Atualmente nem se podia pensar nessa possibilidade. A vinte e oito mil anos-luz, um inimigo não arcônida ameaçava os povos humanóides da Via Láctea. O regente aproveitara-se da situação para enviar à frente de combate todas as raças revoltadas contra o poder do Império.

A unidade forçada entre povos, antes inimigos, foi motivo bastante para que Perry Rhodan resolvesse imediatamente fazer alguma coisa contra o regente.

O que havíamos conseguido até então? Apenas arriscáramos a vida para conseguir o privilégio de realizar vôos de manobra em um dos couraçados do computador!

Se dependesse de Bell, teríamos subjugado os cinqüenta zalitas a bordo e procuraríamos destruir com as armas da Kon-Velete o gigantesco envoltório energético que protegia o autômato.

Precisamos de muito tempo e paciência para provar-lhe, com base em exemplos flagrantes, que nem mesmo mil supercouraçados com tripulações de primeira ordem seriam capazes de uma façanha dessa natureza.

Bell voltou a lançar um olhar ansioso para as telas iluminadas. Os numerosos espaçoportos estavam abarrotados de naves de guerra de todos os tipos. As fábricas de Árcon trabalhavam a plena potência.

Como o comodoro Gailos não desse mais sinal de sua presença, assumi o comando sobre o pequeno grupo. Liguei o equipamento de hipercomunicação e controlei a regulagem automática da freqüência de nosso grupo. Nesse instante, recebemos um chamado da estação retransmissora A-R-145.

Tratava-se apenas de um terminal secundário do grande cérebro positrônico. Em cada espaçoporto de Árcon III, havia uma unidade de comando desse tipo, que transmitia as ordens e decisões menos importantes aos comandantes das unidades estacionadas na respectiva área.

Uma figura vermelha e triangular surgiu na tela. Levantei-me e, seguindo estritamente o figurino, fiquei em posição de sentido. Era o verdadeiro chefe do Grande Império que estava falando.

— Sou o Capitão Ighur, regente — disse em voz alta.

O setor acessório do cérebro preferiu não formular qualquer indagação sobre o comodoro. Ao que parecia, sabia perfeitamente como costumam agir os arcônidas de seu tipo.

— Ordem coletiva 12345 — disse a voz monótona que saía do grande alto-falante do receptor especial.

O triângulo vermelho permaneceu na tela. Era o símbolo da unidade retransmissora A-R-145.

Rhodan comprimiu a chave da registradora automática. Qualquer ordem coletiva teria de ser conservada nos registros de bordo.

— A fita está correndo, regente — anunciei.

— As manobras estão encerradas. O quarto grupo de cruzadores pesados é transferido para o espaçoporto A-3. Preparar as unidades para um vôo não tripulado de sessenta horas. Os tripulantes sairão de bordo. Concedemos uma licença de cinqüenta horas. As instalações destinadas aos zalitas poderão ser visitadas. As ordens dos oficiais-robôs devem ser cumpridas. Alguma pergunta?

Fiz um esforço para não demonstrar a esperança que me empolgava.

— O Comodoro Gailos não responde, regente. Posso assumir o comando provisório do grupo?

— Permissão concedida. Sua Alteza está repousando. Desligo.

O triângulo vermelho foi desaparecendo. A estação retransmissora A-R-145 interrompera a ligação.

Preferi não olhar em torno com uma expressão de triunfo. Aliás, era possível que, embora pudéssemos desfrutar a primeira licença, minha alegria fosse prematura. Aquela licença poderia significar tudo ou nada.

Os comandantes das outras dezesseis unidades haviam acompanhado a transmissão da ordem coletiva. Submeteram-se imediatamente ao meu comando.

Penetramos na atmosfera densa de Árcon e passamos pelos postos de defesa. Numa altitude de oitenta quilômetros, passamos a ser dirigidos pelo dispositivo automático de telecomando A-3. Nenhum comandante podia pousar a seu bel-prazer. Tratava-se de mais uma medida de segurança concebida pelo cérebro positrônico.

Com isso fiquei livre da responsabilidade de pilotar a nave. Notei a expressão tensa do rosto de Rhodan. Seus ombros estavam levemente encolhidos. Até parecia que retesava o corpo para dar um salto.

Enquanto os microfones externos transmitiam o rugir e assobiar das moléculas de ar deslocadas à força, Rhodan virou a cabeça. Havia em seus olhos a expressão rígida que indicava uma forte tensão interior.

Não reagiu ao meu olhar indagador. Bell também parecia inquieto. Marshall, o telepata, fitava-nos atentamente. Parecia ter notado que os pensamentos de Rhodan se atropelavam...

Num gesto quase imperceptível, apontei para a tela iluminada do receptor especial. Enquanto estivesse em andamento a manobra de teledireção, seria uma insensatez proferir qualquer palavra comprometedora. Sem dúvida, o retransmissor automático A-3 ouvia tudo.

Com certa impaciência esperávamos o ruído do impacto das placas de apoio sobre o pavimento do espaçoporto. Ao ouvir esse ruído, tinha-se a impressão de que a nave se esfacelaria.

Dali a menos de cinco minutos, as luzes vermelhas acenderam-se. O dispositivo automático acabara de escamotear as colunas telescópicas de apoio. A Kon-Velete pousou com um rugido final dos mecanismos propulsores instalados na protuberância equatorial da nave.

A posição de Rhodan continuava inalterada, mas um sorriso enigmático brincava em seus lábios. Percebi que devia ter notado alguma coisa que me escapara. O que seria?

Depois disso, os controles de rotina mantiveram-nos ocupados durante quinze minutos. Em seqüência, os setores foram anunciando sua paralisação. No fim, apenas o gerador especial, destinado ao suprimento energético de emergência da sala de comando, continuava a zumbir. O silêncio passou a reinar na gigantesca esfera de aço que trazia o nome Kon-Velete.

Levantei e coloquei-me à frente da tela. O sinal de identificação do comando automático A-3 consistia numa série de ondulações verde-claras.

— Sou o Capitão Ighur, regente — anunciei. — Nave preparada para ser introduzida no estaleiro.

A estação anunciou imediatamente:

— A tripulação zalita abandonará a nave. Não é permitido portar armas. Desligo.

Naturalmente lá fora já estaria esperando um comando de robôs que nos conduziria para baixo da superfície.

A operação de desembarque dos tripulantes cabia ao imediato. Rhodan entrou imediatamente em atividade, muito embora desse a impressão de que não conseguia livrar-se das reflexões em que estava mergulhado.

Por um instante prestei atenção às suas ordens, proferidas em tom de exagerada compenetração. Depois chamei o Comodoro Gailos pelo videofone. O sinal de ocupado iluminou-se na tela. Ao que tudo indicava, Gailos não fazia nenhuma questão de apoiar ativamente as instruções do regente.

“Aliás”, pensei, “como comandante de grupo, eleja não tem nada com isso. O controle das atividades que se desenrolam no interior da nave cabe ao comandante da mesma.”

Bell gritou em voz rouca um comando de atenção. Cumprimentei ligeiramente e atravessei a comporta blindada dos fundos, onde meu robô de serviço já me aguardava. Ordenei-lhe que arrumasse meus reduzidos pertences, a fim de levá-los posteriormente aos alojamentos ainda desconhecidos.

Na entrada do elevador central, um comando de guardas, chefiado pelo Tenente David Stern, se mantinha à espera. O rosto do jovem oficial estava pálido como cera.

Passei perto dele e Stern cochichou apressadamente:

— Gailos já saiu, Sir. Estou preocupado com o equipamento especial. Não será possível que sejamos revistados mais uma vez, já que não temos permissão para levar armas? Talvez queiram verificar se estamos cumprindo as instruções.

Lancei um rápido olhar para a objetiva de videofone mais próxima. Era possível que estivesse em funcionamento. Sempre que uma nave pousava em Árcon III, as paredes passavam a ter olhos e ouvidos. Era ao menos o que se dizia.

Comecei a realizar um controle minucioso dos botões do elevador. Fiz uma repreensão em voz alta e contrariada já que, na minha opinião, a placa de revestimento do painel de chaves não estava corretamente parafusado.

No curso dessa manobra, cochichei algumas palavras para Stern. Se falasse muito alto a bordo do couraçado, nossa vida poderia correr perigo.

— Os homens voltaram a tirar os objetos dos esconderijos?

— Assim que recebemos instruções para pousar. Está tudo conosco. Se nos revistarem...

Calou-se, e seu rosto ficou ainda mais pálido. Os outros três homens do comando de guardas fitaram-se com uma expressão ansiosa. No entanto, eu sentia que a decisão se aproximava a passos de gigante...

— Fique aqui e espere por Rhodan — disse em voz baixa. — Comunique-lhe seus receios. Se houver um controle, verei o que posso fazer. Os mutantes deverão espalhar-se entre os outros, a fim de poderem intervir sempre que seja necessário. Cale-se.

Saltei para dentro do campo antigravitacional reluzente. Uma vez lá embaixo, constatei que os cinqüenta zalitas genuínos já se retiravam de bordo. Com isso, Rhodan criara para seus homens a possibilidade de fazerem mais uma verificação de seu equipamento especial.

Ao lembrar-me do que aqueles cento e cinqüenta homens, pertencentes ao comando, traziam sob os uniformes, meu nervosismo cresceu. Estive presente quando os laboratórios mais eficientes da Terra iniciaram a “produção em massa”. Os cientistas de Swoon, que eram os microtécnicos mais competentes da Galáxia, haviam desempenhado um papel relevante nessa tarefa.

Rhodan conseguira aquilo que me parecera impossível. Nos uniformes especiais dos membros do comando, havia tantos esconderijos que seu conteúdo seria suficiente para derrotar um exército convencional.

Naturalmente não nos poderíamos ter lançado à missão sem contar com uma série de armas eficientes. Apesar disso, quando imaginei o que aconteceria se o equipamento fosse descoberto, comecei a tremer.

Aguardei junto à grande comporta inferior da nave até que os tripulantes entrassem em forma. Rhodan fez a apresentação. Seu rosto estava rígido. O Comodoro Gailos não apareceu mais. Por certo já se instalara confortavelmente em seus alojamentos.

Dali a menos de dois minutos, chegaram os veículos abertos que nos transportariam. Possuíam grandes plataformas de carga com assentos de plástico e eram teleguiados. As ordens subseqüentes da estação re-transmissora foram recebidas por intermédio de meu rádio de capacete.

Deveríamos subir aos veículos e aguardar os acontecimentos. Para os oficiais da Kon-Velete, havia um carro especial.

Rhodan mandou que os homens subissem aos grandes veículos. Alguns olhares significativos foram suficientes para fazer surgir em meu interior o tipo de rigidez emocional que costumava envolver-me nos momentos de perigo. Então havia chegado a hora da decisão!

Bell subiu depois de mim ao carro achatado, que deslizava sobre um campo energético. Ao contrário dos veículos de carga, este possuía um piloto robotizado. Seria muito arriscado discutirmos a situação.

Ao chegar, Rhodan inclinou-se sobre mim. Notei que sua arma de impulsos se encontrava sob o uniforme.

— Como é que se reconhece uma espaçonave cujos hiperpropulsores estejam prontos para entrar em funcionamento? — perguntei em voz baixa.

Olhei em torno. O espaçoporto A-3 era imenso e impossível de ser abrangido com a vista, tal qual os outros do mesmo tipo. As unidades grandes e pequenas da frota arcônida estavam estacionadas em todos os cantos, mas por mais boa vontade que tivesse, não seria capaz de dizer quais delas estavam em condições de realizar um hipervôo.

Dirigi os olhos para a abóbada energética azulada e luminosa, que, além dos limites do campo de pouso, enchia o horizonte, subindo ao céu azul e tremeluzente de calor do planeta Árcon III.

Era o maior campo defensivo que vira em toda minha vida. Embaixo estava abrigado o computador-regente de Árcon. As medições realizadas por Rhodan em tempos passados provavam que o envoltório cobria uma superfície de cerca de dez mil quilômetros quadrados. Isso correspondia a um quadrado de cem quilômetros de lado.

Era duvidoso que houvesse uma possibilidade de destruí-lo!

Nunca conseguiríamos saber com exatidão onde ficavam os pontos vulneráveis e como deveríamos fazer para atingir num golpe de surpresa os pontos vitais do mecanismo.

Enquanto não descobríssemos um meio de introduzir uma arma eficiente na abóbada que cobria todo o conjunto, tais reflexões seriam totalmente estéreis. Tinha certeza absoluta de que a detonação de uma bomba em seu campo defensivo seria totalmente inútil.

Punha toda minha esperança nos dois teleportadores que participavam de nosso comando. Se estes homens não conseguissem penetrar rápida e discretamente no gigantesco mecanismo, teríamos de procurar outro meio. Há algumas semanas, o problema do suprimento de energia, que era minha especialidade, vinha ocupando meus pensamentos.

Sabia perfeitamente que um computador com essas dimensões precisava de várias unidades geradoras, pois seu consumo de energia era enorme. Conhecia suficientemente meus antepassados para saber que eles haviam providenciado um suprimento de emergência, que entraria em funcionamento automaticamente assim que surgisse qualquer perigo. A sobrevivência do regente dependeria única e exclusivamente de um perfeito suprimento energético. Mas como funcionava, ninguém sabia...

Nosso carro deu partida. Os quatro veículos de carga, cada um com cinqüenta homens, seguiram-nos de perto. Rhodan providenciara para que os verdadeiros zalitas seguissem num veículo distinto. Dessa forma, os homens de nosso grupo teriam oportunidade para uma ligeira troca de idéias. Face a uma modulação temporária das vibrações cerebrais, que Harno realizara em Rhodan enquanto ainda nos encontrávamos em Zalit, os reduzidos dons telepáticos do mesmo tornaram-se suficientes para captar mensagens expedidas pelos mutantes. Dessa forma não dependíamos das comunicações de rádio.

Passamos silenciosamente junto a um grupo de supercouraçados, que também acabavam de pousar, e que pertenciam a uma esquadrilha recém-formada. Os gigantes de 1.500 metros de diâmetro também tinham tripulações coloniais. Não saberia dizer quais seriam os resultados dessa miscelânea numa luta contra um inimigo bem treinado.

Apesar da situação confusa, esforcei-me para raciocinar de modo lógico. Lutei energicamente contra os sentimentos conflitantes, que sempre me diziam que a eliminação total do computador-regente poderia significar a destruição da Galáxia.

O que aconteceria se realmente conseguíssemos colocar o cérebro fora de ação? Qual seria a atitude dos numerosos povos coloniais e das oprimidas raças estranhas, que naquele instante lutavam na frente de combate, em defesa do Império, com espaçonaves mais ou menos aperfeiçoadas? O que viria a seguir, se o sistema de comunicações, controlado pelo computador, deixasse de funcionar de repente? E se as linhas de aprovisionamento, todas controladas a distância, entrassem em colapso?

E os bilhões de inteligências estranhas se submeteriam às ordens de um arcônida que já deveria estar morto? De que meios disporia para obrigá-los a obedecer? Poderia contar com os tripulantes zalitas que se encontravam a bordo dos couraçados?

Por outro lado, nunca poderia programar adequadamente os bilhões de robôs pertencentes a cerca de dez mil tipos diferentes. Nem mesmo uma equipe científica de cem mil homens seria capaz disso.

Minha inteligência dizia que a destruição do regente seria uma espécie de suicídio... E se o deixássemos intacto, dentro de nove meses a Terra e todo o sistema solar seriam destruídos!

Fitei Rhodan de lado. Ao que parecia, só pensava numa eventual fuga e procurava descobrir quais eram as naves capazes de realizar hipervôos. Provavelmente ainda não compreendera que não havia possibilidade de fugir de Árcon por essa forma. Há cerca de setenta e cinco anos, ele o conseguira. Mas as condições daquela época eram diferentes.

Procurei afastar os pensamentos relativos à utilidade ou à inutilidade de nossa operação. Procurei ater-me à idéia originária, logicamente bem fundada, segundo a qual meus veneráveis antepassados nunca teriam deixado de prover esse gigantesco cérebro positrônico de um dispositivo de segurança. Precisávamos descobrir quando e em que condições, tal mecanismo entraria em ação para desligar o regente. Depois disso, todos os problemas estariam resolvidos.

Estremeci. Poucas centenas de metros à minha frente, surgiu uma achatada abóbada de aço que se erguia repentinamente sobre o pavimento de metal plastificado. Se houvesse algum controle, este seria realizado nas comportas pressurizadas e à prova de radiações, existentes na entrada dos alojamentos subterrâneos.

Tateei discretamente a coxa direita, onde se encontrava uma arma. O trabalho dos cientistas terranos era tão perfeito que seria praticamente impossível descobrir as peças de equipamento por meio de um simples processo de apalpamento.

Seu procedimento baseava-se nos padrões humanos. Pensavam como policiais terranos, que por tradição examinavam qualquer pessoa suspeita com as ferramentas que a natureza lhes havia dado: as mãos.

Acontece que não se lembraram de que, num mundo noventa e nove por cento automatizado, não havia a menor possibilidade de aplicar esse método. Sempre que em Árcon III se realizavam verificações desse tipo, a pessoa era enviada simples e racionalmente através de uma comporta de raios X.

Se isso acontecesse, restava saber se o revestimento interno do uniforme resistiria às radiações. Caso esse tipo de proteção desse certo, ainda restaria esperar que o observador não soubesse interpretar devidamente as sombras que haveriam de surgir na tela.

Subitamente a testa de Rhodan cobriu-se de uma fina camada de suor. Por estranho que pudesse parecer, isso fez com que seu autocontrole vacilante logo se estabilizasse. Olhei tranqüilamente para as portas blindadas que se abriam à nossa frente.

Essa entrada existente na superfície era apenas uma entre muitas. Se possuía uma comporta de raios X, ainda restaria saber se o respectivo equipamento estava em funcionamento.

O motorista robotizado parou o veículo a poucos metros da parede que se erguia ao céu. Desci para receber os tripulantes.

Rhodan, Bell e os oficiais de patente mais elevada do couraçado colocaram-se atrás de mim. Examinei as numerosas objetivas do sistema ótico de teleobservação. As lentes reluzentes estavam embutidas de ambos os lados da entrada,

Franzi a testa, numa expressão de contrariedade, pisquei para o sol de Árcon que nos fustigava impiedosamente e, num gesto violento, acionei a chave do transmissor de capacete.

— Capitão Ighur ao regente — disse em tom muito áspero. — O contrato de prestação de ajuda que celebrei com o Almirante Calus não me obriga a expor-me por horas a fio aos raios de um sol escaldante. Exijo que sejamos introduzidos imediatamente nos subterrâneos e abrigados em alojamentos climatizados, pois do contrário sentir-me-ei desligado do contrato. Parece que alguém se esqueceu de que não estamos acostumados a temperaturas como esta. Meus homens mostram sinais de esgotamento. Câmbio.

Vi Bell arregalar os olhos. Rhodan pigarreou, mas logo compreendeu a situação. Devíamos encontrar um meio de passar pela comporta o mais depressa possível.

Os membros do comando tinham ouvido minhas palavras. Pareciam prender a respiração. Os cinqüenta zalitas genuínos fitaram-me com uma expressão de veneração. Na opinião desses, assumira um risco muito grande.

Depois de alguns segundos, recebemos a resposta do cérebro.

— Comece a introduzir os homens. Sua observação relativa a uma eventual insubordinação foi registrada.

— Isso não me importa nem um pouco — respondi em tom ainda mais agressivo. — Não estou interessado em arruinar nossa saúde antes do tempo. Apelo para o senso lógico do regente. Ele quer soldados descansados e robustos, ou um grupo de homens febris e esgotados?

— Entrem — respondeu a estação retransmissora A-3.

Não falou mais em insubordinação.

— Descer, ficar à vontade e entrar em passo de corrida — berrou Rhodan num volume de voz que me fez dar um passo para o lado. — Os ocupantes do veículo da frente entrarão em primeiro lugar. Rápido! Já disse que deverão correr.

Os cinqüenta zalitas genuínos começaram a correr como se o demônio estivesse atrás deles. Nossos homens seguiram-nos. Dali a alguns segundos, comprimiram-se pelas entradas, que mediam cerca de três metros de largura. A confusão era tamanha que nem se poderia pensar mais num exame eficiente de raios X.

Meu coração batia forte e lentamente. O sangue parecia correr pesadamente pelas veias. Mantive-me junto à entrada. Coloquei a capa de oficial em cima do capacete de metal plastificado e fiquei de costas para o sol.

Era possível que vez por outra os terranos fossem um tanto levianos. Mas não se podia negar que sabiam representar. O berreiro de Rhodan e Bell fez com que os soldados avançassem ainda mais furiosamente.

Fiquei satisfeito ao notar que alguns homens robustos seguraram oito ou dez zalitas genuínos. Aqueles homens desarmados serviriam de proteção contra o eco.

Assim que um grupo dos nossos homens tinha passado pelo aparelho de raios X, nitidamente perceptível, empurrava os zalitas para trás. Os nativos de Voga IV eram recebidos e utilizados imediatamente por outros terranos.

Rhodan, Bell e eu agimos no momento exato. Quando a passagem ficou quase livre, apenas nove zalitas que tinham ficado para trás encontravam-se à frente da barreira de raios X. Fiz um sinal para Bell. Esses zalitas teriam de proteger-nos.

A voz de Bell realmente me doeu nos ouvidos. Nunca o ouvira gritar dessa forma. Avançou que nem um louco para aquele grupo de coitados e lhes fez um sermão. Embora a situação fosse muito séria, tive de esforçar-me para não rir.

— Parem! — esbravejou. — Quem mandou que passassem antes de nós? Quem foi, seus vermes? São ordens do imediato, entenderam? Não fiquem parados por aí. Entrem em forma! É claro que devem virar o rosto para mim! Isso é uma posição de sentido que se apresente? Atenção!

Quando passei majestosamente pela entrada, Bell entesou o corpo. Os nove zalitas ficaram parados que nem estátuas, exatamente entre o lugar pelo qual passávamos e o aparelho de raios X. Rhodan seguiu-me tão perto que deu algumas pisadelas dolorosas nos meus calcanhares.

Bell continuou a praguejar em zalita antes de virar-se e correr apressadamente atrás de nós. Só depois disso, entraram os maltratados nativos de Voga IV que, segundo parecia, não compreendiam o que estava acontecendo. Ainda não conheciam os terranos!

Nossos homens já estavam enfileirados no amplo hall de entrada. Vez por outra, um deles “desmaiava”. Um sargento caiu segundo os planos, enquanto quatro homens gemeram e viraram os olhos, arrancando os capacetes.

— Água! Queremos água fresca! — gritei. — Maldito sol! Era só o que faltava. Major Sesete, cuide dos doentes. Ou será que eles só estão fingindo?

A posição de sentido de Rhodan era impecável. O suor corria-lhe por baixo da borda saliente do capacete.

— Estes homens são das zonas montanhosas de Takotre, comandante — disse em voz alta. — Daqui a pouco estarão recuperados.

Lancei um olhar ligeiro para as teleobjetivas do regente. A cena era impressionante, e também era verdadeira...

Um cérebro mecânico que substituía a sensibilidade humana pela lógica era fácil de ser enganado por essa forma.

A mensagem esperada chegou a seguir, mas desta vez foi transmitida pelos grandes alto-falantes do sistema de intercomunicação. A voz metálica parecia sair diretamente da parede de aço.

— As pessoas afetadas pelo calor precisam de algum tratamento, Capitão Ighur?

— Se o regente demorasse mais um minuto, precisariam! — exclamei em tom furioso. — Mas acredito que agora não haja necessidade. Depois de chegarmos aos alojamentos, apresentarei um relatório sobre o estado de saúde dos homens. Para onde iremos?

— Pavimento 14, Bloco C-436-8. Use o elevador — disse a voz retumbante saída dos alto-falantes.

A estação retransmissora A-3 desligou. Respirei profundamente. Ao que tudo indicava, não precisávamos contar com outro controle.

Lancei um olhar discreto para os nove zalitas que nossos homens haviam usado de forma tão hábil como proteção de eco. Ao que parecia, não compreendiam por que Bell gritara para eles. Talvez acreditassem se tratar de engano.

Marshall, o telepata, piscou para tranqüilizar-me. Recebera ordens terminantes para manter-se informado sobre o conteúdo da mente dos membros estranhos da nossa tripulação.

Mais atrás, abriram-se as portas largas de um grande elevador.

— Entrar em grupos — ordenei. — Sesete, cuide disso. Roake, o senhor ficará aqui até que o último homem tenha entrado no elevador.

Rhodan e Bell logo reiniciaram suas atividades. Os outros oficiais da nave seguiram-me para dentro da grande gôndola, que, à direita e à esquerda da entrada, era flanqueada por armas de radiações controladas a distância. Qualquer pessoa que quisesse penetrar nas instalações subterrâneas de Árcon teria de comunicar-se com as estações automáticas competentes.

Não se via mais ninguém. Nem sequer haviam mandado robôs. As escotilhas de aço da comporta já se haviam fechado atrás de nós. Com isso, praticamente estávamos tão longe do campo aberto do espaçoporto como quem se encontra num outro mundo.

Enquanto descíamos em alta velocidade, não proferimos uma única palavra. Segundo os costumes arcônidas, não era de bom tom que os oficiais conversassem na presença do comandante. Seria ainda mais incabível dirigir a palavra ao mesmo. Havia muitos detalhes aos quais devíamos prestar atenção. Qualquer erro poderia trair-nos. Evidentemente para os terranos era muito difícil acostumar-se a essas regras. Durante as primeiras semanas de nossa atuação por várias vezes enfrentáramos situações bastante perigosas por desatenção.

 

Os algarismos luminosos nos diversos pavimentos foram passando por nós. Assim que chegou a indicação de que o décimo quarto pavimento estava próximo, a velocidade do elevador reduziu-se. A gôndola, sustentada por um campo magnético, parou com um forte solavanco. As portas abriram-se.

Fui o primeiro a sair para a profusa luminosidade. Senti-me ofuscado ao fitar o branco sol atômico. Suas fortes radiações ultravioletas eram tão intensas quanto as do astro natural. Por isso as inteligências estranhas, não acostumadas a essas radiações, arriscavam-se a sofrer queimaduras de sol. Até mesmo meus amigos terranos tiveram de familiarizar-se com a idéia de que, quando se encontrassem bem abaixo da superfície de Árcon III, teriam de cuidar para evitar uma exposição excessiva.

Mais à frente vi um arcônida de meia-idade que usava a capa violeta dos cientistas. Estava confortavelmente deitado numa poltrona e parecia sentir tédio.

Quando a campainha do elevador soou pela segunda vez e os homens pertencentes ao primeiro grupo penetraram no hall da comporta, o arcônida virou lentamente a cabeça. Vi um par de olhos que piscavam preguiçosamente.

À frente do cientista, encontrava-se um receptor portátil de imagens simultâneas, em cuja tela surgia uma multidão profusa de figuras coloridas. Ao que tudo indicava, o homem estava absorto no jogo que, para mim, não tinha o menor sentido. Só agora pareceu notar nossa presença.

O segundo grupo, comandado por Reginald Bell, chegou ao lugar em que nos achávamos. As ordens do meu imediato, proferidas em voz alta, incomodaram o arcônida. Seu rosto contorceu-se numa expressão de repugnância. Finalmente lançou-nos um olhar cheio de recriminação. Até parecia que havíamos cometido um crime de lesa-majestade.

— Cale-se! — gritei para Bell. — Não vê que Sua Alteza está descansando? Comporte-se!

Desta vez, seu olhar foi mais benevolente. Aproximei-me do arcônida, caminhando devagar e com um sorriso no rosto. Sem dizer uma palavra, coloquei a mão sobre o peito, a título de cumprimento.

O arcônida acenou lentamente com a cabeça.

— Isso não poderia ser evitado, comandante? — indagou em tom dolente.

— Alteza, sou o Capitão Ighur, comandante do couraçado Kon-Velete, da frota de Sua Regência. Peço desculpas pela descortesia que acaba de ser cometida. Recebi ordens para apresentar-me no pavimento quatorze, juntamente com meus homens.

Os robôs de guerra postados em todos os cantos permaneceram imóveis. Ao que tudo indicava, estavam submetidos ao velho cientista. Neste meio tempo, Rhodan também havia aparecido. A tripulação estava completa. Seu pigarro discreto revelava que a presença do arcônida o deixava espantado. Desde quando o regente dera para guarnecer posições-chave com criaturas vivas? Contara antes com a presença de um comando de robôs.

O rosto enrugado daquele homem magro demonstrou sinais de interesse.

— Você teve uma boa educação, Ighur? — perguntou.

Inclinei ligeiramente a cabeça. Meu comportamento estava trazendo os primeiros frutos.

— Atrevo-me a dizer que sim, Alteza.

— Qual foi a escola?

— A Academia Galatonáutica de Iprasa, Alteza — disse, embora fosse uma mentira.

Fazia votos de que a antiqüíssima escola superior ainda existisse.

— Ah, Iprasa! Então é este o motivo do seu comportamento agradável. Oportunamente deveríamos conversar sobre as diretrizes filosóficas de Testro.

Sabia perfeitamente que essa oportunidade nunca chegaria. Além disso, não tinha a menor idéia de quem era esse Testro.

— Será uma honra, Alteza. Permita que lhe solicite a indicação dos alojamentos. Meus homens estão sofrendo os efeitos do calor.

— Calor? — repetiu o velho em tom de espanto. — Oh, esses bárbaros! Está falando em calor. Onde está o aparelho?

Sem olhar, tateou as largas braçadeiras da poltrona, onde estava embutida a programação. Enquanto fazia isso, já voltara a olhar com uma expressão de fascínio para a tela de imagens simultâneas, onde surgiam novas amostras.

— Este jovem Oscer é admirável — disse num sopro de enlevo. — A idéia do desenho de figuras sem sombras, no interior de uma bola de gelo flutuante é sublime. Acho que o nome dele ainda ficará conhecido. Não acha também?

Acenei fortemente com a cabeça. O olhar do arcônida tornou-se mais brando.

— Está bem. Leve seus homens para o conforto das salas refrigeradas. Como se pode falar em calor! Aqui faz um frio terrível.

Antes que ele pudesse perder-se novamente no enlevo artístico, a estação re-transmissora A-3 entrou em cena. De repente os robôs de vigilância começaram a movimentar-se. O arcônida nem percebeu que fora privado do comando.

— Sigam-me — disse a voz metálica saída da fenda de uma pesada máquina de guerra.

Esse robô era mais perigoso que mil arcônidas do tipo do cientista.

Ao deixarem a comporta de segurança do 14o pavimento, nossos homens esforçaram-se para não fazer o menor ruído. Bell lançou um olhar ao meu companheiro de raça que me fez enrubescer de vergonha.

Numa disposição amarga decidi que faria tudo que estivesse ao meu alcance para modificar esse estado de coisas pouco dignificante.

Não houve outro controle. Diante da comporta surgiu a gigantesca abóbada de uma cidade subterrânea. Aqui os edifícios não haviam sido construídos no estilo afunilado peculiar dos arcônidas. A arquitetura era inteiramente finalista e por isso mesmo independente das contingências do tempo.

Havia ruas largas com fitas transportadoras e um número tão elevado de indicações luminosas que a visão das mesmas nos confundia. O teto abobadado do pavilhão imitava o céu natural tanto na cor como no formato. Um branco e ofuscante sol atômico fornecia luz, calor e os indispensáveis raios ultravioletas numa dosagem vigorosa.

Vi inteligências vindas de todas as partes dos setores da Via Láctea. No entanto, ao que tudo indicava, nesse setor residencial só haviam sido abrigados seres que respiravam oxigênio. Os grandes letreiros revelavam claramente que por aqui reinava uma gravitação artificial de 0,95G. Via-se que o regente fazia tudo que estava ao seu alcance para proporcionar aos povos auxiliares, abrigados no 14o pavimento, condições de vida que se aproximassem o mais possível àquelas a que estavam acostumados.

Sabia que cada pavimento fora especialmente instalado para atender às necessidades das pessoas que ali residissem. Evidentemente nós, os zalitas, pertencíamos ao grupo de inteligência de 0,95G e da mistura gasosa de oxigênio e hélio.

Senti tonturas ao pensar nas múltiplas tarefas que talvez teria de cumprir sem o auxílio do computador-regente. No momento, pareciam-me impossíveis...

Levei algum tempo para compreender o ruído uniforme, que sobrepujava todas as outras impressões. Era um rumorejar surdo, que parecia provir de todos os cantos da cidade subterrânea e enchia quase fisicamente o enorme espaço oco.

Parei por um instante para escutar melhor. Rhodan também inclinou a cabeça. Os homens começaram a inquietar-se.

Não consegui identificar a fonte do ruído monótono. Depois de prestar atenção por algum tempo, o rumorejar parecia confundir-se com os anúncios dos alto-falantes e o linguajar caótico dos numerosos povos não-arcônidas que, segundo tudo indicava, também estavam desfrutando uma licença.

O robô de guerra enxotou um grupo de seres de três olhos, os naats. Eles fitaram nossa formação em atitude agressiva. Gritaram pragas e insultos. Fiquei satisfeito por não ter de entrar em contato com estes seres constantemente irritáveis, vindos do planeta ciclópico de Naat.

Mais uma vez esforcei-me para descobrir a causa do ruído monótono. Foi então que, depois de um longo período de inatividade, o setor lógico de meu segundo cérebro, ativado há milhares de anos, voltou a chamar.

“São unidades energéticas. Trata-se do ruído típico dos conversores termais. O espaçoporto A-3 é um dos seis campos de pouso que cercam a cúpula energética do cérebro positrônico em forma de raio.”

Encolhi-me instintivamente. Só agora me dei conta de que a cada passo que dávamos, chegávamos mais perto das áreas vitais do regente. O 14o pavimento, em que nos encontrávamos, ficava cerca de 1.800 metros abaixo da superfície. Se os boatos que corriam correspondiam à verdade, os elementos de controle mais importantes do cérebro positrônico atingiam camadas ainda mais profundas.

Concluí que provavelmente ficaríamos nas proximidades das instalações energéticas. Rhodan parecia ter a mesma idéia. Alcançou-me com alguns passos largos e colocou-se a meu lado. Por aqui praticamente não havia nenhum perigo. Era a primeira oportunidade que tínhamos para falarmos à vontade. O robô de guerra continuava a caminhar à nossa frente. Aproximamo-nos de um anteparo energético que reluzia numa tonalidade azulada. Atrás deste, reinavam condições de vida diferentes das que prevaleciam na parte da cidade em que nos encontrávamos.

— Sabe que as áreas residenciais subterrâneas cercam o “coração” do regente?

Estas palavras foram proferidas antes em tom de constatação que de pergunta. Fiz que sim. O rosto de Rhodan continuava inexpressivo. Ao que parecia, depois da morte de Thora, ele já não sabia rir.

— O.K. Só quis mencionar o fato. Posteriormente falaremos a este respeito. Sugiro um encontro para discutirmos a situação.

— Tenho certeza de que os alojamentos são vigiados.

— Meus especialistas encontrarão um meio de pôr fora de ação os aparelhos de escuta. É claro que isso terá de ser feito discretamente. Concederam-nos cinqüenta horas de licença. Duas horas já se passaram. Começaremos a agir imediatamente.

Olhei rapidamente em torno. Os rostos de nossos homens exprimiam uma grande dose de resolução. Bell fez um ligeiro sinal para mim. Depois de nosso pouso em Árcon III, suas faces carnudas pareciam mais firmes. Tive a impressão de que estava disposto a assumir qualquer risco.

— É um caso típico de precipitação terrana — respondi em tom áspero. — A paciência não é característica de vocês.

— Temos apenas cinqüenta horas de licença — disse Rhodan, insistindo em sua opinião. — Se até lá não conseguirmos, seremos embarcados e enviados à frente de combate dos druufs. Se isso acontecer, estaremos novamente no lugar em que começamos. Tenho certeza de que a permanência de cinqüenta horas da Kon-Velete em Árcon III será aproveitada para pôr em ordem o mecanismo hiperpropulsor. É o prazo de que podemos dispor. Estamos perto do regente. Será agora ou nunca.

O bárbaro tinha razão, mas eu não estava disposto a reconhecer o fato. Sentia pavor diante do que estava para acontecer, não pelo perigo ligado a isso, mas pelas conseqüências catastróficas que provavelmente resultariam da destruição do cérebro positrônico.

Não mencionei meus temores. Não adiantava desgastar ainda mais os nervos de Rhodan. Era um terrano, que não sabia conservar o retraimento ponderado dos homens da minha espécie.

Uma faixa abriu-se no anteparo energético que havíamos avistado. Atravessamos a mesma e, de repente, a temperatura tornou-se mais baixa. Os primeiros zalitas foram aparecendo. Com o tempo fomos descobrindo um número cada vez maior de homens uniformizados, todos vindos de Voga IV. Ao que parecia estávamos no distrito reservado às tripulações zalitas.

O sol atômico, que se deslocava no céu artificial, já não era tão intenso. Atravessamos um túnel largo e, atrás dele, surgiu um segundo pavilhão, também gigantesco.

Os tripulantes e oficiais faziam continências rígidas e respeitosas. O robô que nos conduzia parecia receber novas instruções de sua estação programadora. De repente parou, colocou-se à minha frente e anunciou:

— O senhor poderá tomar a estrada rolante cinco para chegar ao bloco C-436, comandante. Solicita-se que se dirija ao seu alojamento e elabore um relatório sobre o estado de saúde de seus homens.

Dei minha ordem em voz alta e clara:

— Major Sesete, providencie tudo que se torna necessário. Robô, onde fica a cantina dos oficiais?

— A mesma forma um anexo do bloco C-436, comandante. Os controles automáticos dos alojamentos já foram devidamente programados. O senhor tem direito de licenciar seus tripulantes segundo seu critério. Documentos especiais lhes serão fornecidos. Pede-se que forneça a toda pessoa licenciada um comprovante do qual conste o nome, nave a que pertence, o respectivo número de código e o prazo da licença, indicado segundo o tempo-padrão de Árcon.

Era só o que eu queria saber. De repente os olhos de um soldado que se encontrava próximo de mim pareciam chamejar. Por espantoso que fosse, tive a impressão de que de repente esse homem adquirira a capacidade de refletir a luz. Preparou os lábios para um dos seus assobios típicos, mas absteve-se do mesmo porque um zalita não assobia.

A máquina de guerra afastou-se. Todos saíam de seu caminho a contragosto, já que a mesma inspirava medo. Um comandante zalita cumprimentou-nos de longe. Sorri, inclinei a cabeça e levantei a mão direita a título de cumprimento. Torcia para que não pretendesse arrastar-me para alguma iniciativa de caráter social. Entre os oficiais da frota zalita reinava uma estranha sociabilidade, que ultimamente já estava se tornando um exagerado sentimento de classe. Foi só por isso que pude atrever-me a usar palavras tão grosseiras para com a estação retransmissora A-3. Sem dúvida, o regente sabia que os oficiais da frota espacial zalita eram os seres que mais se aproximavam dos arcônidas.

Rhodan deu as instruções que se tornavam necessárias.

Enquanto isso, passei por uma rua que nesse trecho estava flanqueada por uma fileira de lojas automáticas. Aqui podia-se comprar qualquer coisa.

A grande placa de uma casa de armas divertiu-me bastante. Podiam-se adquirir os produtos mais belos e sofisticados da tecnologia arcônida. Apenas, tais artefatos só eram entregues ao freguês quando este se encontrasse novamente na superfície.

Parei por um instante diante da vitrine de plástico e examinei as mercadorias expostas. Fiquei surpreso ao notar que, naquele momento, estava recuperando a calma e o equilíbrio.

Permaneci em atitude rígida. Depois de algum tempo, esforcei-me para vasculhar minha vida psíquica. Ainda desta vez, o setor de memória de meu cérebro não me abandonou. Tive a impressão de cair num abismo do passado que media dez mil anos da contagem de tempo terrana.

Era isso mesmo. Pouco antes da minha partida com a esquadrilha arcônida de elite, quando ainda era um jovem almirante, eu me encontrara à frente da mesma loja. Porém, naquela época, não havia qualquer restrição de vendas.

Éramos atendidos e orientados por especialistas que dispunham de treinamento científico. Agora só havia diante da vitrine dois robôs revestidos de plástico, que exibiam um sorriso estereotipado.

Ao fitá-los atentamente, notei que uma modificação se realizava no meu interior. Tive a impressão de libertar-me subitamente de uma camisa-de-força que me cingira por milênios. Tratava-se de uma camisa-de-força feita de angústia, decepção, humilhação e de uma saudade ardente do mundo natal.

Dei mais um olhar para a peça mais bela exposta na vitrine. Tratava-se de um radiador térmico — muito caro — de cabo muito fino e com um dispositivo de mira infravermelha.

Antes de minha partida, adquirira uma arma igual a esta. Hoje a mesma jazia no fundo de um oceano do planeta Terra, onde eu a perdera quando fugia para a cúpula de aço submarina.

Afastei-me com o coração triste. Fui seguindo lentamente os homens que de repente — certamente por ordem de Rhodan — pareciam muito alegres e expansivos. Estavam de pé sobre uma fita transportadora em movimento e gritavam para os zalitas, que retornavam, observações que me fizeram sorrir.

Eram homens rudes, mas honestos. Conhecera seus remotos antepassados, que não eram diferentes. Apenas sabiam menos.

Se conseguíssemos destruir o computador-regente, decidi firmemente que seria um bom e honesto amigo dos terranos, pois ainda precisavam de auxílio. Árcon e Terra formariam uma dupla praticamente invencível.

“Ele desconfiará!”, anunciou de repente o setor lógico de meu cérebro.

Senti os olhos umedecerem de nervosismo. Naturalmente o setor lógico de meu segundo cérebro formulara uma avaliação que podia não soar bem, mas encerrava uma lógica incontestável.

Suponhamos que eu me colocasse no lugar do regente. O que será que Rhodan acharia disso?

Eu conhecia a posição da Terra, e sabia das qualidades e das fraquezas humanas.

Não pensaria fatalmente que eu pudesse estar empenhado em subjugá-lo, e com ele todo o Império Solar? Ou que, antecipadamente, eu tomasse certas providências para os terranos não se tornarem muito arrogantes?

Com uma estranha clarividência constatei que fatalmente haveria de chegar o dia em que surgiria uma crise entre mim e Rhodan. Afastei o problema, por considerá-lo de importância secundária. Se não conseguíssemos colocar fora de ação o computador-regente, as reflexões deste tipo forçosamente seriam estéreis.

Quando saltei para a fita transportadora, lancei mais um olhar saudoso para a casa de armas. Quando entrei pela primeira vez na loja, fui atendido por uma jovem arcônida.

Sorri de mim para mim, pois lembrei-me de que procurara descobrir um pretexto para encontrar-me com ela, antes de minha partida.

O que teria sido feito dela? Onde estariam seus restos mortais? Era pouco mais jovem que eu. Seu rosto marcante surgiu com toda nitidez diante dos olhos do meu espírito. Prendera a respiração ao ver-me entrar na loja, pois o distintivo que trazia no peito identificara-me como príncipe de cristal e futuro soberano do império cósmico.

Alguém esbarrou em mim. Um tenente zalita desculpou-se com a voz assustada. Caíra na fita.

Acenei com a cabeça, em atitude distraída, e o tenente afastou-se apressadamente e um tanto temeroso.

Era a primeira vez que sentia com tamanha intensidade como tinha ficado velho, terrivelmente velho. Vi grandes povos e culturas aparecerem e desaparecerem. Vi o berço e o túmulo de um império romano e procurei desesperadamente salvar a vida de mártires cristãos, até descobrir que estes não precisavam mais de mim.

Ao regressar, sentira-me cansado e desgastado, mas agora o afluxo de recordações parecia provocar uma completa modificação dos meus sentimentos.

Com um desejo de gula e com o pavor da velhice que receia perder as últimas coisas belas que se lhe oferecem, agarrei a vida que, para mim, se identificava com Árcon. Estava disposto a lançar mão de todos os recursos ao meu alcance e fazer cessar a indignidade de um governo exercido por um computador.

Perry Rhodan, aquele homem jovem, incansável e carregado de energia do planeta Terra me apontara o caminho correto. Não devia desistir.

Olhei para o relógio. Três horas de nossa preciosa licença já se haviam passado. Estava na hora de agir. O misterioso ativador celular pulsava sobre meu peito. Ele me conferiu força e resolução, tal qual fizera nos milênios antecedentes.

Um jovem tenente zalita recuou diante de mim. Fitou-me com uma expressão de pavor. Percebi que meu rosto retratava meus sentimentos. Provavelmente, eu o fitara com uma expressão cruel.

 

Os alojamentos eram essencialmente práticos e por isso não tinham nenhuma beleza. Percebia-se que o 14o pavimento servia exclusivamente à permanência transitória das tripulações cujas naves estavam nos estaleiros para serem preparadas para o hipervôo.

Fui o único que recebeu um quarto individual. Os tripulantes dormiam em salões e os oficiais em quartos de quatro pessoas.

Para nós isso não tinha qualquer inconveniente. Fora surpreendentemente fácil separar os zalitas genuínos dos membros de nosso comando. Uma hora após nossa chegada, os cinqüenta nativos de Zalit obtiveram os atestados de licença e foram dispensados. Saíram exultantes, e, depois de tanto tempo, finalmente tínhamos nosso sossego.

Na sala 18-B havia sessenta camas pneumáticas. O aparelho de ar condicionado fazia tamanho barulho que mal se conseguia entender o que o vizinho dizia.

Não descobrimos qualquer aparelho de teleobservação. Apesar disso, continuamos a cuidar-nos. Toda vez que tratávamos palestras confidenciais, fazíamos um sinal para o “comando do barulho”, formado às pressas. Quando isso acontecia, o sargento Huster, um gigante ruivo de potentes órgãos vocais entoava um canto de guerra zalita que fazia doer os ouvidos.

De uma hora para cá, Rhodan aprendera a sorrir de novo. Lia-se em seu rosto o alívio que sentia por estarmos prestes a atingir o objetivo. Os mutantes acabavam de anunciar que estavam prontos para entrar em ação.

Tanaka Seiko, um japonês esbelto, que agora era ruivo, utilizara sua capacidade de localizador para examinar todas as freqüências. Chegou à conclusão de que os robôs postados no bloco C-436 não haviam recebido instruções especiais. Não suspeitavam de nós, e o exame de raios X na comporta de entrada não trouxera maiores conseqüências...

Limitei-me a entregar o relatório, elaborado às pressas, sobre o estado de saúde do pessoal. Depois disso, a estação retransmissora voltou a chamar para ordenar em termos lacônicos que não permitisse a saída dos indivíduos afetados pelo calor.

O sargento Huster, que exibira um desmaio tão pitoresco no interior da comporta, praguejou em voz alta. Era o chefe da terceira equipe e especialista na montagem de bombas-relógio. Portanto, não poderíamos deixar de levá-lo.

Há dez minutos os teleportadores Ras Tschubai e Tako Kakuta haviam retornado da primeira missão especial executada em Árcon III. Face à ausência de Gucky, eram os únicos teleportadores de que poderíamos dispor.

Estávamos reunidos na sala 18-B. Em meu quarto achava-se sentado um homem que há algum tempo fora escolhido como meu sósia. Usava meu uniforme, enquanto eu envergara o uniforme dele. Rhodan, Reginald Bell e mais alguns dos oficiais pertencentes ao comando também haviam trocado de identidade. Passamos a ser simples tripulantes, cuja presença no alojamento 18-B não provocaria nenhuma estranheza, mesmo que fosse realizada uma teleobservação.

Dessa forma fizéramos tudo para podermos iniciar a execução do plano. Reunidos em torno de uma das mesas hexagonais, fazíamos o papel de pessoas aborrecidas, que, em virtude da teimosia do comandante, não obtiveram licença para sair. Há vários dias era esta a primeira oportunidade de discutirmos seriamente a ação a ser realizada.

No rosto de Rhodan havia uma estranha expressão pensativa. Não constatei nada do nervosismo, que, segundo a lógica, deveria surgir antes de uma ação dessa envergadura.

Meu segundo cérebro recordou-me o sorriso que Rhodan exibira antes do pouso...

Num ponto mais afastado, os homens do “comando do barulho” cantavam uma canção que falava na amplidão do espaço e num pouso forçado, realizado num mundo estranho. A voz potente de Huster sobrepujava nossa palestra. Assim, passamos a conversar tranqüilamente.

Rhodan olhou cautelosamente para trás e disse:

— Sua teoria é correta, Atlan!

Minha atenção foi aguçada por estas palavras. Qual teria sido a descoberta de Rhodan?

— Que teoria? — perguntei.

— A que diz respeito ao dispositivo de segurança. Quando o autômato A-R-145 nos deu ordem para pousar, a atitude indolente do Comodoro Gailos só provocou no regente uma observação no sentido de que Sua Alteza estava descansando. Depois disso, você obteve o comando sobre o grupo. Isso prova a modificação da atitude do regente perante os verdadeiros arcônidas

— Que modificação? — perguntei.

— Você não estava presente há cerca de setenta anos, quando cheguei pela primeira vez a Árcon. Naquela época, até mesmo os arcônidas, que ocupavam posições elevadas, recebiam um tratamento muito grosseiro. O Imperador que residia no mundo de cristal era comandado que nem um recruta. E, naquele tempo, não havia nenhum arcônida que ocupasse um posto-chave como o de Gailos. Uma observação tão suave e discreta diante do comportamento de um oficial, que põe em risco a segurança da nave, teria sido impossível. Em hipótese alguma, o regente se teria limitado a dizer que Sua Alteza está descansando. Compreendeu a diferença?

Lancei um olhar rápido para Bell. O mesmo parecia um tanto pensativo e disse era voz baixa:

— Eu me lembro. Perry tem razão. O regente tratava os arcônidas como se fossem escravos. Crest e Thora receberam um péssimo tratamento.

Ao ouvir o nome de sua falecida esposa, Rhodan estremeceu de forma quase imperceptível. Huster entoou outra canção. Refleti com extrema rapidez.

— Quer dizer que, desses fatos, você conclui que o regente recebeu novas instruções sobre o tratamento a ser dispensado aos arcônidas cultos?

— Exatamente.

— De quem?

Rhodan fitou-me com uma expressão irônica. O olhar que lançou para o relógio não poderia deixar de ser notado.

— Foi do célebre dispositivo de segurança embutido no “coração” do regente. Sem dúvida passou a vigorar uma programação especial, que obriga o computador a adotar atitudes discretas e corteses.

Percebi a lógica de Rhodan. A mesma que lhe ajudara a construir o Império Solar. E nada me impedia de adotar sua teoria, nem que fosse apenas para tranqüilizar-me. Mas tive a impressão de haver um fator que Rhodan deixara de considerar.

— Ainda temos quinze minutos — constatei. — Minha alusão dizia respeito antes a uma lógica puramente mecânica do regente que a uma programação especial. Ele deve ter constatado que nada conseguirá se recorrer exclusivamente ao arbítrio brutal. Ainda acontece que, atualmente, ele se defronta com o perigo representado pelos druufs, e muitos povos auxiliares passaram a guarnecer as naves do Império. Tais povos submetem-se a contragosto aos robôs que costumam exercer o comando. Por isso, o cérebro chegou à conclusão de que não poderia dispensar a colaboração dos verdadeiros arcônidas.

— Mesmo conhecendo o estado de decadência dos mesmos?

— Perfeitamente. O regente agarra-se a uma palha. Foi por isso que assumiu uma atitude tão discreta diante do comportamento de Gailos.

— Isso é discutível — ponderou John Marshall em tom pensativo. — Uma ou outra das duas hipóteses pode ser correta. Procurei investigar a mente dos arcônidas que se encontram por aqui. Também não sabem por que de repente passaram a ocupar posições importantes. E não estão nada satisfeitos com isso.

O Tenente David Stern, que, no momento, exercia as funções de oficial de dia, entrou na sala. Levantamo-nos abruptamente e fizemos continência. Stern fez um gesto indiferente. Huster prosseguiu no seu canto de guerra.

Observei o jovem tenente, que passava lentamente pelos corredores, observando atentamente os homens. Estava acompanhado por duas sentinelas.

Representava muito bem. Vez por outra, parava e repreendia os homens. Foi-se aproximando do nosso grupo. Ao chegar perto de nós, disse em voz baixa:

— Estamos preparados, Sir.

— Emita os certificados de licença — respondeu Rhodan sem mexer-se. — Falou com Ras Tschubai?

— Sim, Sir. Tudo preparado. Estamos informados.

— Sairemos dentro de cinco minutos. Faça um breve discurso no hall. O senhor assumirá o comando aqui. Siga as indicações de Marshall; manterei contato telepático com ele. Se alguma coisa sair errada, proceda em conformidade com o plano.

Stern prosseguiu até sair pela segunda porta. Sabia que não haveria como voltar atrás. Os dois teleportadores tinham verificado de onde vinha aquele ruído monótono.

Alguns quilômetros ao norte do nosso bloco residencial, os pavilhões terminavam em paredes de rocha nua. Havia duas portas blindadas que constituíam o único acesso aos recintos os quais nos últimos milênios provavelmente só foram visitados por robôs especializados.

E naqueles pavilhões, que pelos nossos cálculos deviam ficar bem embaixo da extremidade da abóbada energética, funcionavam gigantescos conjuntos geradores.

O fato não bastaria para convencer-me de que se tratava das unidades energéticas que abasteciam o cérebro positrônico. Acontece que as cavernas proibidas dispunham de uma proteção adicional, fornecida pelos campos defensivos. Sabia perfeitamente que esse procedimento não era usual. O suprimento de força, destinado aos inúmeros estaleiros espaciais e às fitas transportadoras das ruas e estradas, provinha de uma usina estelar central. E nessas usinas nunca vira portas blindadas fechadas, quanto mais campos defensivos. Por isso a usina descoberta por Kakuta e Tschubai devia revestir-se de uma importância toda especial.

Como não tivéssemos descoberto nenhuma possibilidade de destruir o computador-regente, só nos restava atingir sua “artéria vital”.

Dali a três minutos, o Tenente Stern voltou a entrar na sala. Um soldado mandou que se fizesse silêncio. Levantamo-nos e ficamos em posição de sentido. Stern disse em voz alta:

— Concedo licença a parte da tripulação. Os que forem chamados deverão apresentar-se para receber suas identidades.

Rhodan, Bell e eu fomos chamados em primeiro lugar. Adiantamo-nos, pegamos as placas luminosas que eu antes assinara e, em obediência às instruções, penduramo-las ao pescoço por um barbante muito fino. Os inúmeros guardas-robôs, espalhados pelo setor residencial, costumavam verificar os impulsos dessas plaquetas. Quem usasse esse signo de identificação não seria molestado, desde que os dados codificados e inseridos em tais plaquetas estivessem corretos. No momento em que entramos em nossos alojamentos, o aparelho que registrava os dados fora-me entregue por um robô. Neste ponto, tudo parecia estar em ordem.

Depois de algum tempo havia dez homens à frente do tenente. Entre eles, encontravam-se os mutantes Tschubai, Kakuta, Seiko e Okura. O comando do sargento Huster juntou-se ao grupo.

Seria absurdo tentarmos realizar a tarefa com mais de dez homens. Afinal, teríamos de entrar nas usinas energéticas.

Stern examinou-nos com um olhar crítico. Finalmente disse em tom de ameaça:

— Peço que se comportem decentemente lá fora. Nada de brigas! Quero vê-los de volta dentro de oito horas. Sigam-me!

Virou-se abruptamente e saiu.

— Por que é que vocês têm direito de licença e nós não temos? — resmungou um dos tripulantes. — Tragam alguma coisa para nós.

Preferi não responder. Bell e Huster cuidariam disso. Chegamos ao grande hall e descemos no elevador, onde tivemos de passar por um posto de sentinelas robotizadas. Stern já nos esperava.

Mandou que entrássemos em forma e transmitiu suas instruções.

— Não quero ouvir queixas — concluiu.

— Dêem o fora!

Passamos pela comporta robotizada sem que ninguém nos detivesse. Apenas notei que os tateadores de identificação da máquina se dirigiam para as plaquetas bem visíveis, que trazíamos penduradas ao pescoço.

Lá fora fomos recebidos pelo barulho da cidade subterrânea. Outras tripulações zalitas surgiam dos blocos residenciais vizinhos. As conversas começaram. Todos procuravam orientar-se.

Entramos discretamente em meio aos grupos que enxameavam por ali. O rosto rígido de Rhodan revelava que mantinha contato com o mutante John Marshall, que ficara para trás. Ao que parecia, o contato estava sendo bem sucedido, embora a capacidade telepática de Rhodan não fosse muito pronunciada. Em compensação a faculdade de Marshall era muito forte.

— O.K., tudo perfeito — disse Rhodan.

— Vamos começar. Ras, vá à frente.

O africano robusto, cuja pele estava vermelha como a nossa, olhou ligeiramente para trás. Por aqui dificilmente haveria veículos. Apenas os arcônidas tinham permissão para usar planadores. Nós dependíamos das numerosas fitas transportadoras que, de qualquer maneira, também serviam para levar-nos até perto do local desejado. Eu as preferia aos veículos, pois permitiam que nos deslocássemos sem chamar a atenção.

Ras fez um sinal.

A marcha para o desconhecido iria começar...

 

O sentido das grandes placas indicadoras era inconfundível. Não traziam nenhum letreiro, mas qualquer criatura medianamente inteligente compreenderia imediatamente o significado dos símbolos pintados nas mesmas. Eram relâmpagos vermelhos e reluzentes, iguais aos que costumam ser usados na Terra a título de advertência.

Aqui terminava a cidade subterrânea. O último edifício ficava a cem metros do lugar em que nos encontrávamos. Nossa posição era perigosa. Se alguém tivesse a idéia de perguntar o que estávamos procurando tão perto da parede de rocha compacta, não saberíamos o que responder.

Rhodan e Bell desapareceram juntamente com os dois mutantes. Ao longo dos anos Ras Tschubai e Tako Kakuta haviam aprendido, por meio de um treinamento rigoroso, a transportar cargas pesadas. Suas energias mentais deviam ser muito desenvolvidas.

Encostamo-nos fortemente ao nicho formado por uma tubulação das instalações de ar condicionado, que saía da parede em ângulo reto.

Huster tirou a arma de radiações. Estava encostado à coluna de apoio juntamente com os dois especialistas em armamentos e observava o trecho de caminho que tínhamos deixado para trás.

— Tudo quieto, Sir — disse em voz baixa. — Na verdade, está quieto demais. Não estou gostando.

Não consegui reprimir um riso nervoso. Huster acertara em cheio ao proferir essa observação. Por que a parede com as duas portas perfeitamente visíveis não era vigiada? Por que resolveram contentar-se com as placas indicadoras, que realmente eram bastante claras?

Não encontrei explicação satisfatória. Em compensação, a sensação de perigo tornava-se cada vez mais intensa.

O ar começou a tremeluzir bem à minha frente. O corpo esguio de Kakuta foi adquirindo forma em meio à luminosidade, até surgir nitidamente diante de mim. Ainda não conseguia formar uma idéia exata das faculdades espantosas dessas pessoas, que conseguiam exclusivamente por meio da energia de seus cérebros, funcionar como transmissores de matéria.

Dali a alguns segundos, chegou Ras Tschubai. Os dois se haviam transformado nos elementos mais importantes da operação.

Voltei a guardar a arma e perguntei em tom apressado:

— Como estão as coisas por lá? Tudo em ordem?

— Continua tudo como era por ocasião do primeiro salto de reconhecimento. Não vimos nenhuma pessoa, e também não há robôs.

Tschubai notou o brilho de desconfiança dos meus olhos. Já um tanto inseguro, asseverou:

— É isso mesmo, Sir. O chefe está esperando. Vamos embora?

Coloquei-me atrás de Tschubai e enlacei-lhe firmemente os ombros. Antes que pudesse preparar-me para o acontecimento improvável, senti uma dor de desmaterialização perfeitamente suportável. Aquele homem sabia criar um campo de dissolução da quinta dimensão, que funcionava como um conversor estrutural.

Não tive tempo para dar atenção à dor. A luz voltou a surgir à frente dos meus olhos. Até parecia que nada tinha acontecido.

— O.K., logo estarei de volta — disse alguém.

Um tanto confuso, passei as mãos pelo rosto e olhei em torno. Meu primeiro movimento foi em direção à arma. Logo ouvi o rumorejar surdo, que aqui, para além da barreira, era muito mais forte.

Atrás de uma gigantesca base de conversor de alta-tensão, feita de plástico blindado, Bell observava os arredores. Bem atrás de nós, percebia-se o uivo da turbina do equipamento de refrigeração. Mais adiante viam-se os primeiros reatores de fusão dispostos em fila. Tratava-se de tipos muito modernos, aos quais estavam diretamente acoplados os conversores termais, que transformavam a energia térmica liberada pelo processo em eletricidade.

Estava perfeitamente familiarizado com a luminosidade branco-azulada dos condutores, que doía nos olhos.

Bem acima de nós, havia um sol artificial. No entanto, neste pavilhão, o mesmo apoiava-se em mais de vinte colunas gigantescas, de alguns metros de diâmetro, feitas de aço de Árcon.

— Fantástico, não é? — gritou Rhodan. — É a usina energética mais perfeita que já vi. Produz cerca de dois milhões de quilowatts por reator. Tudo muito bem montado, e provido com excelentes dispositivos de segurança. Para onde vai toda essa energia?

Bell avançou até o primeiro reator, com a arma levantada. Mas não se via nenhuma pessoa estranha.

Voltou a olhar para o teto onde, segundo tudo indicava, estavam montados os projetores do campo energético. O campo vermelho reluzente estendia-se junto às paredes e terminava próximo dos pólos invisíveis existentes no soalho. Atrás desse campo viam-se as portas blindadas que fechavam as duas entradas. A parede de rocha, que separava a usina do setor residencial, devia ter uns cem metros de espessura. Sem o auxílio dos teleportadores nunca teríamos entrado ali. Transformados em impulso hiperenergético, atravessamos sem dificuldades a matéria sólida.

Antes que pudesse prestar esclarecimentos a Rhodan, os mutantes voltaram. Desta vez trouxeram o sargento Huster e Tanaka Seiko.

— Está na hora, Sir — disse Huster. — Lá fora as coisas estão ficando perigosas. Um comando de robôs está se aproximando. Ao que parece trata-se de uma inspeção de rotina.

Mantivemo-nos calados até que os últimos homens pertencentes ao nosso grupo estivessem perto de nós. Também eles conseguiram vencer o percurso sem maiores dificuldades.

— O que está esperando?

Estremeci involuntariamente. A voz de Rhodan parecia fria como gelo. Huster acenou com a cabeça.

A microbomba, que deveria destruir a usina, estava dividida em seis peças. Os homens tiraram essas peças dos bolsos dos uniformes.

Huster não se interessou mais por nós. Com uma calma incrível pôs-se a montar a bomba ultratérmica, cuja energia seria liberada exclusivamente sob a forma de calor. Funcionava com base num processo de catalise do carbono de elevada potência, que faria surgir um sol artificial no pavilhão em que estavam instaladas as máquinas.

Mais uma vez lembrei-me do caos que poderia surgir depois da destruição do computador-regente. Os mutantes Seiko e Okura esforçaram seus estranhos sentidos para captar coisas que, para nós, sempre seriam imperceptíveis. Já eu via-me diante da indagação se realmente deveríamos arriscar a detonação da bomba.

Rhodan lançou-me um olhar pensativo. Falou quase sem mover os lábios.

— Não podemos evitar isso, amigo.

Será que você está disposto a tolerar o domínio do regente por mais tempo?

Esbocei um sorriso triste. Era claro que Rhodan pensava principalmente na Terra. Respondi em voz baixa:

— Vamos desencadear o inferno, não só nestes pavilhões, mas em toda a Via Láctea. Não gostaria de bancar o pacificador depois que o regente tiver sido colocado fora de ação.

Percebi que Rhodan já identificara meus temores. Seria mesmo de admirar que um homem inteligente como ele não tivesse extraído suas conclusões.

— Um dia isso terá de acontecer de qualquer maneira. Você deve ser bastante inteligente para compreender que é preferível enfrentarmos o tumulto agora que daqui a alguns anos. Por enquanto ainda poderei usar o poder da Terra para ajudá-lo. Se esperarmos muito, você ficará só.

Senti um hálito quente no rosto.

— Poder? Você está falando em poder? Você pode ser imortal, terrano insignificante, mas você nunca possuiu um poder de verdade. Para isso, ainda lhe faltam alguns séculos de evolução ininterrupta. Será que você já se esqueceu dos golpes que sofreu nos últimos meses? Como pretende vencer o caos que deverá surgir? Com uns poucos couraçados de grande porte?

Sacudi a cabeça. Sentia-me desanimado. De repente achei que seria uma insensatez destruir o regente. Rhodan conservou a calma.

— Tudo dependerá de você, arcônida! Se souber guardar o segredo da posição galáctica da Terra, seremos seu corpo de bombeiros. Posso oferecer-lhe uma coisa que você não possui: tripulações bem treinadas e altamente capacitadas. Será que isso não representa nada?

— Isso representa muito, mas não é o bastante — respondi. — Além disso, estamos discutindo sobre a divisão de uma presa que ainda não capturamos.

— Terminarei dentro de quinze minutos, Sir — interrompeu o sargento Huster em tom indiferente. Para ele o caso já estava resolvido. — Poderia informar em que lugar deverá ser detonada a bomba?

Examinou-me prolongadamente. Não conseguiu reprimir um sorriso muito ligeiro. Bell fez um sinal para mim. Estava de pé, com as pernas bem abertas, no corredor largo que separava as fileiras de reatores.

— Então? — perguntou Rhodan. Assustei-me diante de tamanha força de decisão. Fitei prolongadamente seus olhos frios e virei-me. Com um gesto lento peguei minha arma térmica e fui caminhando na direção de Bell. Rhodan seguiu-me. Subitamente Tanaka Seiko disse:

— Estou captando vibrações estranhas, Sir. Não sei de que se trata.

Parei. Rhodan virou-se apressadamente. Bem à minha frente o conversor do primeiro reator rumorejava. Huster não se deixou perturbar pelo ruído. Aos poucos, a microbomba — construída na Terra e testada num planeta desabitado — foi adquirindo forma.

— De que tipo são as vibrações, Tanaka? — perguntou Rhodan.

O mutante, que possuía a capacidade de identificar radiações energéticas de qualquer tipo, como se fosse um receptor mecânico, abanou as mãos finas num gesto de insegurança.

— São vibrações de ondas extremamente curtas, quase imperceptíveis. Trata-se de um efeito que se mantém constante. Não são sinais de rádio, embora a freqüência seja semelhante à de um hipertransmissor.

Lançou um olhar para Son Okura, nosso visor de freqüência, mas o mutante parecia indeciso. A atitude de Rhodan demonstrava um nervosismo repentino.

Bell aproximou-se. Segurava a arma de radiações.

— O que houve? O que estão esperando? Este pavilhão é muito grande, e atrás dele deve haver outros. Na minha opinião, aqui praticamente não corremos o menor perigo. Vamos dar uma olhada por aí?

Tratava-se da pergunta típica de um homem que pensava em termos pragmáticos. Quando viu o rosto de Rhodan, seus olhos estreitaram-se.

— Algum problema?

— Tanaka informa a presença de uma radiação energética não identificada.

— E daí? Bem em cima de nossas cabeças ficam os primeiros quadros de controle do cérebro positrônico. Quem sabe que tipo de energia é utilizado por lá?

— Acho que as coisas não são tão simples assim — ponderei. — Esta operação, que parecia tão difícil, está se tornando um verdadeiro passeio. Não pensem que meus antepassados foram uns tolos. Os homens que construíram o cérebro positrônico devem ter tomado suas providências para resguardar a segurança do computador. Há por aqui alguma coisa que não tem a menor lógica.

— Afinal, tivemos de romper um campo defensivo situado atrás de uma grossa parede de rocha — disse Bell.

— É verdade. Mas no meu entender, esse dispositivo de segurança não é suficiente. O campo energético é relativamente fraco. Bastaria um canhão de radiações de tamanho médio para neutralizá-lo.

— Para isso, teria de colocar o canhão aqui embaixo — disse Rhodan, refletindo em voz alta. — Lembro-me perfeitamente de que nem sequer tivemos permissão para levar nossas armas de serviço.

— Antigamente não era assim, embora o cérebro já existisse, ou ao menos parte dele. Sargento Huster, espere um momento. Vamos examinar a área. Venha comigo.

Fiz um sinal para o mutante e voltei a tirar a arma. Imaginei que Rhodan deveria trazer na ponta da língua a indagação sobre quem dava ordens por ali. Huster lançou um olhar para Rhodan. Este limitou-se a acenar com a cabeça. Com o rosto indiferente, o sargento colocou de lado a bomba ultratérmica. Mas não conseguiu reprimir estas palavras:

— Tudo preparado para colocar em funcionamento o dispositivo de detonação retardada. Basta desparafusar o mecanismo.

Dali a alguns segundos estávamos desenvolvendo uma atividade febril, que contrastava fortemente com a atitude que até então vínhamos mantendo. Alguma coisa fora descoberta; alguma coisa que não conseguíamos explicar.

Andamos pelos corredores. O pavilhão, de formato ligeiramente elíptico, tinha pelo menos dois mil metros de comprimento. Isso explicava a presença das gigantescas colunas de apoio. A capacidade geradora total da usina seria suficiente para abastecer um planeta industrial do tamanho da Terra.

A manutenção dos condutos energéticos isolados exigia cerca de cinco por cento da potência total. Tratava-se de um dado experimental fixado através de um compromisso entre os engenheiros especializados em alta potência.

No meu tempo já costumávamos aceitar consideráveis perdas de energia, apenas para podermos dispensar os antiquados condutos de cabos.

À medida que avançávamos, o rugido tornava-se mais forte. Aproximamo-nos de uma estação conversora cujas grades energéticas, muito próximas umas das outras, achavam-se separadas por finos campos energéticos de isolamento.

Quando paramos, estávamos ofegantes por causa da corrida prolongada. O sargento Huster e os dois especialistas em armamentos foram os únicos que não nos acompanharam. Atrás do setor em que ficava o monstruoso conversor, o pavilhão estreitava-se num túnel muito alto, que provavelmente levava a outra abóbada de pedra. A passagem não estava fechada por portas de aço ou grades energéticas.

Só podíamos comunicar-nos aos gritos. Naquele momento, quase todos os conversores transferiam as sobras de energia para gigantescas baterias de acumuladores. Era um sinal de que o consumo estava sendo reduzido progressivamente. Seria uma coincidência?

Comecei a refletir intensamente. Bell também estava nervoso. Se durante a execução da tarefa que nos impuséramos, ele se defrontasse com um contingente de robôs que oferecesse uma resistência encarniçada, isso provavelmente não o preocuparia muito. Acontece que não via um único vigia orgânico ou robotizado. Não consegui livrar-me da impressão de que já havíamos sido descobertos. Por que a gigantesca usina estava sendo desativada progressivamente?

— Quero fazer uma pergunta! — gritei para Rhodan, apontando para um dos reatores que estava sendo desligado. — Suponhamos que isto seja a usina energética central do cérebro positrônico, e que o computador não possa funcionar sem ela. Como se explica que o regente se dê ao luxo de desligar um reator após o outro e conduzir as sobras de energia para os acumuladores?

Rhodan empalideceu. Olhou para trás com uma expressão de ansiedade. Provavelmente já formulara a mesma pergunta para si mesmo. Os reatores paralisados depunham contra a hipótese de que o computador não poderia dispensar a usina em que nos encontrávamos.

Bell girou sobre os calcanhares e saltou para abrigar-se. Acontece que os três vultos que se aproximavam rapidamente eram apenas o sargento Huster e os dois especialistas que o acompanhavam.

Pararam ofegantes e Huster gritou:

— Sir, o campo energético que corre junto à parede está adquirindo uma coloração azul muito intensa. Receio que alguém nos tenha colocado numa tela.

A entrada do túnel era abobadada. Tinha cerca de trinta metros de altura e igual largura. Não víamos o que havia atrás do estranho campo defensivo, já que o túnel descrevia uma curva.

— É isso! — disse Tanaka Seiko. Seu rosto estava contorcido e coberto de suor. — Sir, as estranhas vibrações que acabo de captar vêm de lá. É uma coisa horrível. Sinto dores terríveis na cabeça. Sir, quase não agüento mais.

Naquele instante, o infalível setor lógico de minha mente finalmente deu um sinal de sua presença.

“Trata-se de um campo energético de categoria superior, uma criação recente, que ainda lhe é desconhecida. Atrás dele começa o setor pertencente ao computador.”

— Bell, fique aqui — gritei. — Bell, ninguém conseguirá atravessar isso. Nós nos enganamos. A usina energética que ficou para trás é uma obra de camuflagem. Nossos antepassados não se esqueceram de proporcionar uma proteção real ao regente.

Vamos voltar, senão estaremos irremediavelmente na armadilha. Ouça: os últimos reatores acabam de ser desligados. Depois disso, a usina ficará morta. E então a situação se tornará séria. Não vá, Bell!

Rhodan encontrava-se no meio da entrada do túnel, com os punhos cerrados numa raiva impotente. Compreendera perfeitamente que aquilo que eu acabara de dizer era verdade. O leve campo defensivo, situado atrás da parede dianteira, representava apenas uma manobra diversionista.

O rugido cessou por completo. Um silêncio medonho tomou conta da abóbada de pedra, antes tão barulhenta. As palavras de Rhodan, proferidas em voz alta, doíam no ouvido:

— Sargento, ligue o detonador. Regule o mecanismo de tempo para cinco minutos. Tako, leve a bomba para o outro lado do anteparo energético. Coloque-a em qualquer lugar, no pavilhão que fica atrás do mesmo, e volte imediatamente. Vamos; apresse-se!

Lancei um olhar apavorado para aquele homem. Será que ele ainda sabia o que estava fazendo?

Nem por um instante, Huster perdeu sua calma espantosa. Com um giro da chave especial, ajustou o mecanismo de tempo.

— Os cinco minutos estão correndo, Sir — disse com uma tranqüilidade férrea.

O teleportador Tako Kakuta não disse uma única palavra. Sabia que não podíamos perder tempo. Alguma coisa tinha de ser feita. Provavelmente a vigilância automática só esperara todos os reatores serem desligados e os dutos de injeção da massa de reação catalítica serem esvaziados. Do contrário, uma eventual batalha no local causaria um terrível incêndio atômico, já que o processo de fusão da massa físsil tinha início a menos de quarenta mil graus centígrados.

Tako comprimiu contra o corpo o objeto oco de cerca de cinqüenta centímetros de comprimento. Seu aspecto não revelava o tremendo potencial destrutivo que encerrava.

Os olhos do mutante fitavam o anteparo energético com uma expressão distante. Tal anteparo era misterioso. Emitia um brilho prateado, entremeado vez por outra por uma luminosidade azulada, e constituía um obstáculo aparentemente intransponível em nosso caminho. Realizei um esforço desesperado, para estimular minha memória, geralmente infalível. De repente senti fortes dores de cabeça.

Era inútil. Nunca vira uma tessitura energética como esta. Provavelmente esse campo defensivo fora criado pelos últimos cientistas de escol que ainda se mantinham mentalmente ágeis, isso há alguns milhares de anos depois do tempo em que passei a ser considerado morto e desaparecido. Não conseguia imaginar de que tipo seria a novidade por eles criada.

De repente, o corpo de Tako desapareceu como se nunca tivesse estado a apenas dois metros do lugar em que me encontrava. Rhodan olhou para o relógio.

— O.K.! — disse em tom frio, mas não teve tempo de fornecer esclarecimentos.

Terríveis gritos de dor fizeram-nos estremecer. Olhamos em torno, perplexos, mas não vimos ninguém que pudesse ter emitido esses sons de indizível sofrimento. Mas o autor dos mesmos só poderia ter sido um ser vivo.

Os gritos cresceram em intensidade até transformarem-se num guincho estridente e prolongado. No lugar em que o teleportador se desmaterializara, surgiu uma espiral luminosa tremeluzente.

Essa espiral parecia descrever um rapidíssimo movimento de rotação, e era dela que saíam os gritos.

— Tako! — exclamou Rhodan. Esteve a ponto de precipitar-se sobre a confusa figura energética, mas tive tempo de puxá-lo pelos ombros. Cambaleou e foi cair aos meus pés.

Estupefatos, fitamos o incompreensível. Aos poucos, o corpo de Tako foi saindo daquele turbilhão de energia. À medida que seus contornos se definiam, os gritos de dor iam diminuindo.

De repente, o teleportador estava deitado à nossa frente. Seu rosto estreito achava-se contorcido, e seus olhos pareciam retratar um saber misterioso.

Quando começamos a erguê-lo voltou a gritar, embora agora já se esforçasse para não dar mostras muito evidentes de sua angústia. Encostou-se à parede, choramingando e tremendo por todo o corpo. Suas mãos agitavam-se violentamente. Continuava a segurar a perigosa bomba. Nada parecia ter mudado.

De repente Tako calou-se. Os olhos angustiados pareciam a única coisa viva em seu corpo.

— O que houve, rapaz? — gritou Rhodan em tom nervoso.

O sargento Huster deu um enorme salto e caiu pesadamente ao chão. Segurou a bomba e, com dois movimentos ligeiros, desligou o mecanismo de tempo. Sua testa estava coberta de suor. Ao que parecia, agira no último instante. Porém não disse uma única palavra.

O teleportador respirava com dificuldade. Depois de algum tempo, disse:

— Foi uma coisa horrível. Alguma coisa segurou-me, brincou comigo, fez-me descrever um movimento de rotação e atirou-me para trás. Senti tudo, Sir; não deixei de perceber o menor detalhe. Nunca mais quero passar por esta experiência.

Gemia, contorcia-se no solo e procurava cravar as unhas no revestimento de plástico blindado.

O rosto de Rhodan estava cinzento. Lançou-me um olhar indagador. Queria uma explicação. E eu podia dá-la.

— Trata-se de um campo estrutural estável, que provavelmente funciona com base numa inversão hipergravitacional dos pólos. É uma energia que repele o fluxo de impulsos de um corpo desmaterializado da mesma forma como um campo magnético comum repele uma nuvem de gases ionizados. Nunca conseguiremos atravessar isso, Perry! Já compreendo como meus antepassados protegeram o cérebro. Provavelmente este campo energético é uma das últimas criações de meu povo. Não posso dar uma explicação precisa. Não há nenhum meio de atingir o regente.

Tako foi-se acalmando aos poucos. Totalmente exausto, descansava nos braços de Huster. Ras Tschubai fitava o companheiro em silêncio. Ao contemplar o campo energético tão próximo e aparentemente tão inofensivo, uma ligeira expressão de medo surgiu em seus olhos.

Dali a três segundos, o grande pavilhão de reatores começou a retumbar. O silêncio foi interrompido pelos passos pesados de um contingente de robôs.

— Marshall já está informado — disse Rhodan. — O comando de recepção está esperando. Ras, leve em primeiro lugar Huster e depois os dois especialistas. Manteremos a posição por aqui. Vamos logo: comece. Pelo amor de Deus, apresse-se como nunca!

Huster levantou-se e saltou sobre as costas do mutante. No mesmo instante, desapareceu.

— Bell, Atlan, Okura e Seiko, vamos abrigar-nos atrás dos conversores. Tako, já está em condições de saltar?

O teleportador esgotado respondeu que não. Parecia desanimado. Não formulamos outras perguntas. Quando saímos correndo, Ras Tschubai já estava de volta. Trabalhava com uma rapidez incrível.

— Levarei duas pessoas de cada vez — gritou atrás de nós. — Não haverá problema.

Rhodan limitou-se a fazer um gesto. No momento em que me abriguei atrás do pesado pedestal de plástico blindado que sustentava o conversor, os primeiros robôs de guerra apareceram mais ao longe.

Em virtude do estreitamento afunilado do gigantesco pavilhão, nossa posição era mais favorável. Atrás de nós começava o túnel relativamente estreito, e à nossa frente havia apenas dois corredores largos, que se juntavam perto da última fileira de conversores para formar um único.

Esperei até ter uma visão nítida das primeiras máquinas de guerra. O regulador de intensidade de minha arma de impulsos estava na posição três. Vi Rhodan esticar o braço para a frente. Apertamos o gatilho quase ao mesmo tempo.

À medida que os robôs que se aproximavam inexoravelmente explodiam, raios ofuscantes cruzavam o recinto. Aconteceu o que tinha de acontecer.

Depois de algumas salvas, o calor começou a tornar-se insuportável. Um enorme conversor foi-se inclinando lentamente até encostar no aço borbulhante, onde provocou uma chuva de fagulhas. Outros conversores também explodiram. Quando Rhodan começou a abrir fogo contra os acumuladores pendurados sobre os conversores, o caos foi completo.

Meus disparos foram dirigidos para o lugar em que os corredores se cruzavam. Os feixes energéticos bem abertos atingiram o chão e transformaram o metal plastificado num mingau de lava do qual subiam vapores venenosos.

Subitamente houve um silêncio total. Os robôs tinham desaparecido e a parte de trás da estação de conversores estava transformada num montão de destroços. Compreendi que o cérebro positrônico que comandava a ação levaria algum tempo para digerir o fato de uma resistência tão violenta. Daqui a alguns minutos, as máquinas de guerra receberiam novas instruções.

Vi Rhodan através dos vapores corrosivos. Ele estava cutucando o mutante Son Okura com o pé e apontava para trás. Também olhei para lá.

Ras Tschubai já havia voltado. Os peritos em armamentos já haviam desaparecido, e a figura contorcida do infeliz teleportador Kakuta estava pendurada nas costas de Tschubai.

Assim que Okura chegou ao lugar em que estava Ras, agarrou-se a ele. No mesmo instante, os três corpos desapareceram numa ligeira luminosidade. Agora éramos apenas quatro. Ras teria de saltar mais duas vezes para colocar-nos em lugar seguro.

Rhodan fez um sinal para mim. Recusei com um gesto violento e apontei para Bell e Tanaka Seiko.

Demorou alguns segundos até que Ras voltasse. Provavelmente nunca trabalhara tão depressa. Vi que os lábios de Bell se moviam. Certamente não concordava em ser levado antes de nós.

Mais uma vez percebi a luminosidade tremeluzente. À nossa frente, o chão borbulhava. Atingido pelo calor, um conversor cedeu à força da gravidade e caiu.

Os segundos transformaram-se numa eternidade. Nossas armas apontavam ameaçadoramente para a frente. Vi um forte lampejo na bruma que se estendia entre os conversores ainda intactos. Com um forte estrondo atingiu a base de plástico blindado. A energia liberada ergueu-me do solo. Caí pesadamente. Haviam disparado uma arma de choque. Era nossa única chance. Se o robô que comandava a ação quisesse conservar a usina energética, não poderia permitir que seus robôs nos imitassem, disparando armas térmicas.

Olhei para trás. Ainda não havia o menor sinal de Ras Tschubai. Olhei para o relógio e notei que apenas vinte segundos se haviam passado desde sua última aparição. Precisaria pelo menos de trinta segundos. E era duvidoso que agüentasse mais uma viagem. Justamente os teleportadores eram muito sensíveis e psiquicamente vulneráveis. Se Tschubai conseguisse dar conta da última parte de sua tarefa, teríamos de dispensar sua colaboração ao menos por quinze horas.

Rhodan gritou alguma coisa para mim. Não compreendi suas palavras, mas um olhar bastou para fazer-me entender a situação. Um monstro mecânico cercado por um campo defensivo azulado aproximou-se lenta e inexoravelmente através do regato de metal derretido. Atrás dele vinham outros robôs do mesmo tipo. Era o fim.

Fiz três disparos rápidos contra o atacante que vinha na frente. O único resultado foi o aumento do calor, que se tornou insuportável. Meu uniforme ficou chamuscado. Um cheiro repugnante penetrou-me pelo nariz e pela boca. A tosse me sacudiu e meus olhos lacrimejaram.

Voltei a disparar. Subitamente vi Rhodan saltar. Deslizava rente ao chão, a fim de não enfiar a cabeça nos grossos rolos de gases. Segui-o imediatamente. Ras Tschubai aparecera bem no fundo do túnel, junto ao misterioso campo energético colorido.

Quando atingimos o lugar em que se encontrava o teleportador, as primeiras máquinas de guerra, protegidas por campos defensivos, chegaram ao lugar em que estivéramos abrigados e pararam. Rhodan enlaçou o pescoço de Ras Tschubai. Segurei-o por trás.

Notei que o rosto do mutante estava desfigurado pelo cansaço. Ao que parecia, o sucessivo transporte de dois homens de cada vez levara-o aos limites de sua capacidade.

Senti a dor ligeira da desmaterialização e, a seguir, uma maravilhosa lufada de ar fresco. Compreendi que por enquanto estávamos em segurança.

Fungava, jogado ao chão, e tive a impressão de que iria morrer sufocado. Alguém gritou meu nome. Era o Tenente Stepan Potkin, que, com o auxílio do hipno André Noir, acabara de esvaziar a pequena sala anexa de um dos alojamentos, a fim de proporcionar-nos um local de chegada.

— Tudo bem, Sir. Estão todos aqui. Como se sente?

Ouvi a voz rouca de Rhodan. Tudo indicava que seu pulmão também se enchera de substâncias venenosas.

— Uniformes novos; rápido! Os nossos estão meio tostados. Como estão as coisas por aqui? Já deram o alarma?

— Não senhor, parece que ninguém sabe o que aconteceu por lá. Sou de opinião que...

Nunca conheceríamos a opinião de Potkin. Os apitos arcônidas, altos e estridentes, que abafavam todos os outros ruídos, reduziram-no ao silêncio.

A esta altura, mais de quarenta mil zalitas licenciados, que se encontravam no amplo pavilhão residencial, estremeceram. Ergueram as cabeças e fixaram os olhos nos tetos e nas paredes, onde estavam instalados os aparelhos de alarma.

Fitamo-nos em silêncio e Bell disse em voz alta:

— Ah, já perceberam que não estamos mais lá. É interessante!

Olhou atentamente em torno. Os apitos continuavam a produzir o ruído que sacudia os homens até a medula dos ossos.

Ergui-me lentamente. A tosse foi diminuindo.

 

Em meio à terrível confusão que se estabeleceu imediatamente após o início do alarma, chegamos sãos e salvos ao bloco C-43-8. Os alto-falantes mandaram que todos os zalitas licenciados saíssem imediatamente das amplas ruas, lojas e locais e se apresentassem à portaria robotizada dos seus alojamentos. O prazo concedido aos quarenta mil habitantes de Voga IV foi de quinze minutos.

Naturalmente toda essa gente não teve possibilidade de regressar aos seus alojamentos num prazo tão reduzido. Rhodan e eu entramos no edifício poucos segundos antes do término do prazo. Graças às nossas plaquetas de licença conseguimos entrar sem dificuldades. Notamos, porém, que houve algo lamentável...

Quando os robôs começaram a disparar, ainda estava com o pé do lado de fora da pesada porta. Ainda agora sinto o rugido das pesadas armas energéticas, cujo furacão atômico matou mais de cem zalitas. Se não tivéssemos conseguido entrar no último instante, nosso destino teria sido semelhante ao destes homens.

O regente não tinha a menor contemplação. Qualquer pessoa, que, depois de findo o prazo concedido, ainda se encontrasse nas ruas, era morta a tiros.

Já vira muitos massacres cruéis durante minha longa vida, mas o que estava presenciando agora era o mais chocante de todos. Um autômato construído por meus veneráveis antepassados acabara de executar um assassinato em massa. Em última análise me cabia uma responsabilidade indireta por esse massacre.

Quando tirei apressadamente o uniforme de tripulante e voltei a colocar as vestes de comandante, que estavam sendo usadas por meu sósia, tive a impressão de estar reduzido a uma insensibilidade total.

Rhodan e Bell também, estavam trocando seus uniformes. Nossos “representantes” desapareceram e voltamos a ocupar nossos lugares.

Os membros do grupo de recepção de Potkin ofereceram seu relato. As notícias inquietantes circularam aos cochichos. Tako Kakuta, que continuava tão debilitado que não conseguia manter-se de pé, acabara de receber as primeiras injeções aplicadas pelo pessoal da equipe médica. Não estava passando bem.

Saí de meu quarto individual e dirigi-me ao alojamento dos oficiais. O vozerio exaltado, que enchia todo o bloco, fez com que pudéssemos arriscar uma ligeira conferência sobre a situação.

O sargento Huster, com o rosto obstinado, desmontava sua bomba ultratérmica. Nossos homens formavam em torno dele um círculo no qual se travavam discussões animadas. Dessa forma, Huster estava muito bem abrigado, enquanto se mantinha sentado no chão e decompunha a perigosa arma em suas peças.

Lancei um olhar ligeiro para a sala 18-B, onde o restante dos nossos cento e cinqüenta homens se comprimiam em obediência às ordens que haviam recebido.

Dos cinqüenta zalitas genuínos da minha tripulação só dezoito haviam regressado. Segundo as declarações dos sobreviventes, o Tenente Kecc, operador dos aparelhos de observação, encontrava-se entre os mortos.

Mandei que os trêmulos zalitas se recolhessem ao seu alojamento e ordenei-lhes que mantivessem um silêncio absoluto. Dali a alguns minutos, encontrei-me com os oficiais do estado-maior de Rhodan.

Perry Rhodan mantinha-se de pé junto à feia parede de plástico do alojamento dos oficiais. Recebeu-me com um ligeiro cumprimento. Bell lançou-me um olhar de total resignação e John Marshall fazia esforços desesperados para captar impulsos mentais.

— Não se incomode, John — disse Rhodan com uma voz que soou estranhamente aos presentes. — Por aqui só existem robôs, e estes não pensam. Os poucos arcônidas que se encontram no outro pavilhão residencial não sabem de nada. A ordem de assassinar foi ministrada diretamente pelo regente.

Marshall desistiu. Um homem anunciou que a desmontagem da bomba fora concluída. Rhodan agradeceu com um gesto distraído. Quando passou os olhos por nós, parecia muito tranqüilo.

— Sabem o que significa isso? Desaparecemos misteriosamente da usina de força. Acontece que o regente já calculou que só podemos ter vindo destes alojamentos de soldados. Por isso mandou evacuar as ruas, a fim de iniciar o quanto antes um exame que será bastante embaraçoso para nós. A ordem de disparar resultou de uma espécie de curto-circuito do mecanismo positrônico, que certamente foi causado pelo setor de autoconservação do computador. Já sabe que por aqui existem armas perigosas e procurará localizá-las.

— Teremos de livrar-nos dessas armas — disse Marshall em tom exaltado. — Basta que Ras Tschubai dê alguns saltos para colocá-las num lugar escondido. Depois disso, o regente poderá procurar adivinhar a quem pertenciam.

A idéia era perfeitamente lógica, mas tinha um ponto fraco...

Sabia perfeitamente qual seria a reação do espírito lúcido de Rhodan.

— Você está enganado, John! O regente não esquece nada. Levará apenas alguns segundos para lembrar-se da atuação de nossos mutantes, realizada há cerca de setenta anos, e tirará suas conclusões. A esta hora já deve dispor de provas irrefutáveis de que as pessoas que penetraram na usina não podem ter chegado pelos meios naturais. Dispõe de uma série de dados sobre as operações já realizadas por nossos agentes em todos os pontos do Império. Já sabe que está lidando com terranos. Todas as pessoas que se encontram neste setor da cidade serão submetidas a um exame minucioso. Esconder as armas não adiantará nada.

— É uma teoria um tanto arriscada — ponderou Bell.

— Não é arriscada coisa alguma. Conheço essa máquina. Ela extrairá exatamente as conclusões que acabo de apontar. Atlan, qual é sua opinião?

— É isso mesmo. Ainda que o regente não se lembre do planeta Terra, não deixará de ordenar o exame. E infelizmente não existe nenhum meio de modificarmos a freqüência de nossas vibrações cerebrais humanas ou arcônidas. Se puserem os olhos em nós, estaremos perdidos. As máscaras serão inúteis.

Num gesto nervoso, Rhodan passou a mão pelos cabelos longos. Seu sorriso parecia um tanto forçado.

— Quer dizer que será preferível ficarmos com as armas. Quando formos agarrados, não quero estar desarmado. Alguém vê uma possibilidade de forçarmos passagem para cima?

Potkin deu uma risadinha e sacudiu a cabeça.

— Não existe a menor possibilidade — afirmei, procurando dar um tom tranqüilo à minha voz. — Neste setor só existe uma entrada, que já conhecemos. Não há nenhuma possibilidade de chegarmos aos estaleiros. Mesmo que conseguíssemos chegar lá, qualquer tentativa de escapar seria inútil. As naves são levadas para baixo por meio de gigantescos poços antigravitacionais. E nunca conseguiríamos subir.

Rhodan sentou sobre a cama pneumática. Sabia que o jogo estava perdido. Se o atentado tão cuidadosamente planejado tivesse sido bem sucedido, as coisas seriam muito diferentes. Sem dúvida, em meio ao caos teríamos encontrado uma possibilidade de chegar à superfície, pois o regente já não existiria.

Acontece que agora o computador revidava os golpes com o máximo de rigor. Nem tudo estava perdido, pois ainda nos restava uma saída perfeitamente viável. Hesitei em comunicá-la aos outros.

— Não devemos iludir-nos: fatalmente seremos descobertos. E uma resistência armada até o último homem seria tola e inútil. Se nos apresentarmos imediatamente, seremos prisioneiros do regente. É provável que ele nos solte sem criar maiores problemas, já que não pode dispensar o auxílio da Terra. É apenas uma idéia.

Os olhos de Rhodan brilharam sob o efeito da luz que incidia obliquamente.

— Você acha, arcônida? Será que você realmente acredita nisso? O regente nos receberá e a seguir nos submeterá a um interrogatório extremamente penoso. Descobrirá a posição galáctica da Terra e atacará imediatamente. Há anos não está querendo outra coisa.

Bell fitou-me com os olhos semicerrados. Sua atitude intranqüilizou-me. Senti a cólera apossar-se de minha mente. Alem da situação desesperadora, ainda tinha de enfrentar a desconfiança dos terranos.

— Pois façam o que quiserem, seus heróis de meia-tigela — disse em tom revoltado. — Se quiserem, morram com bandeiras esvoaçantes e gritos de entusiasmo. Vocês são uns idiotas que nunca aprendem. Sabem atirar e enfrentar uma morte insensata, mas não entendem da verdadeira política. Talvez haja um meio de enganar o cérebro.

— Não!

A palavra encheu o pequeno recinto como se tivesse sido transformada num objeto sólido.

Rhodan acabara de tomar uma decisão. Lancei-lhe um olhar furioso e cerrei os punhos. Ninguém dizia uma palavra. Em compensação os olhos frios dos homens pareciam cortar-me em pedaços.

Banquei o irônico e virei-me. Seguiu-se o chamado áspero que já esperava. Esses bárbaros que estavam subindo depressa demais nunca mudariam.

— Aonde vai, arcônida?

Virei a cabeça. O corpo retesado de Rhodan convenceu-me de que o bárbaro já não confiava em mim.

— Vou à cantina — respondi em tom irônico. — Para que tanto nervosismo, imortal? Não está com fome?

Bell sorriu e o corpo de Rhodan descontraiu-se.

— Você é um sujeito muito frio, não é? — perguntou em tom pensativo.

— Só de fora. Receio que, num futuro próximo, meu lindo ativador celular se tornará inútil. A morte acidental constitui um fenômeno exterior, não resultante de qualquer tipo de condicionamento orgânico, motivo por que dificilmente existirá um meio de evitá-la. Se considerarmos que o impacto de uma arma de radiações é um acidente, havemos de compreender o que nos espera. Convém refletir mais um pouco sobre a hipótese da capitulação. Conheço o cérebro e sei que não demorará a tomar suas providências. No momento, todos os zalitas estão presos nos alojamentos. Com isso foi eliminada uma atividade que começava a tornar-se perigosa para o regente. É o primeiro lance de uma série de medidas que se revestem de lógica patente. As medidas posteriores serão muito mais desagradáveis.

A título de cumprimento pus a mão no capacete. Antes que chegasse à porta, os grandes alto-falantes começaram a berrar do lado de fora. Desta vez era o regente “em pessoa”.

Parei para ouvir melhor. Rhodan colocou-se apressadamente a meu lado e abriu a porta com o pé. O anúncio foi feito com um volume tão forte que ninguém poderia deixar de entender as palavras.

— Regente a todos os comandantes zalitas — disse a voz que encheu os pavilhões e corredores. — Coloquem suas tripulações em ordem de marcha. Chamaremos nave por nave e providenciaremos o transporte para a superfície. A partir deste momento todas as licenças estão suspensas. Ninguém pode sair dos edifícios dos alojamentos. As tripulações serão escoltadas por robôs de guerra. Não se admite qualquer pergunta dirigida a mim.

Fitamo-nos com uma expressão de perplexidade. Qual seria a finalidade disso? Será que as instruções que acabavam de ser ministradas também constituíam resultado da lógica mecânica? Se fosse assim, o que pretendia o computador com o transporte? Por que não realizava aqui embaixo os exames individuais que sem dúvida se seguiriam?

Foi meu segundo cérebro quem deu a resposta.

Assim que a mesma chegou ao meu nível de consciência, fiz alguma coisa de que poucos segundos depois me arrependi amargamente. Dirigi-me a Rhodan e expliquei apressadamente o que acabara de apurar:

— O computador está tirando suas conclusões. Não quer assumir o risco de mandar examinar os homens na cidade, pois certamente descobriu que, ao penetrarmos na usina, tínhamos uma arma de elevado potencial destrutivo. Do contrário, tudo isso não faria o menor sentido, pois com os radiadores portáteis não poderíamos prejudicar seriamente o regente, mesmo que conseguíssemos penetrar em suas entranhas mecânicas.

— É uma explicação plausível. Prossiga! — interrompeu Rhodan.

— Em virtude do que acaba de ser dito, está empenhado em afastar todo mundo o mais depressa possível do lugar em que uma pessoa que disponha de meios adequados poderá causar um prejuízo muito maior que na superfície. Por isso aqui embaixo nenhum exame será realizado. Tal exame consumiria tempo, e o computador não está interessado em dar tempo a ninguém. No espaçoporto, o ambiente deverá esquentar.

A expressão do rosto de Rhodan me fez calar. Uma máscara não poderia ser mais rígida e indiferente. Levou apenas três segundos para tomar sua decisão. E quando a anunciou, foi minha vez de empalidecer.

— Sargento Huster!

O perito em armamentos estava parado no corredor. Dirigia o chamado comando explosivo. Apareceu imediatamente e ficou em posição de sentido à frente de Rhodan.

— Perry...! — ponderei em tom exaltado. Alguma coisa parecia comprimir minha garganta. — Perry!

Rhodan não me deu a menor atenção. Começou a falar com a voz monótona.

— Mr. Huster, ordeno-lhe no interesse da Humanidade que monte o mais depressa possível as peças da bomba arcônida, ponha seu mecanismo em condições de funcionamento e coloque o detonador de tempo. Avise assim que esta ordem tenha sido cumprida.

Huster fez continência. Desapareceu antes que tivesse tempo de dizer qualquer coisa. Os cento e cinqüenta homens de nosso comando aglomeraram-se discretamente. A bomba de Árcon, que constituía a arma mais perigosa de meu povo, representava a solução de emergência a que Rhodan resolvera recorrer.

Corri para o corredor e lancei um olhar ligeiro para a sala 18-B. Huster já desaparecera em meio aos homens aglomerados. Provavelmente as peças trazidas apressadamente à luz do dia já estavam chegando às suas mãos.

Quando voltei ao pequeno alojamento dos oficiais, o regente começava a transmitir as primeiras instruções para o transporte dos homens. Os comandantes de dez naves receberam ordens de retirar suas tripulações dos blocos residenciais e conduzi-las em forma para os lugares indicados pelos robôs.

Compreendi que o regente estava agindo muito depressa. A qualquer momento poderia chegar nossa vez. Ninguém sabia qual seria a próxima tripulação que receberia ordem para pôr-se em marcha. Apenas me restava esperar que o regente não desse ao tal do sargento Huster o tempo necessário para concluir a montagem da bomba arcônida.

Quase louco, entrei precipitadamente no alojamento, mas nunca desconfiaria do que me esperava por lá. Provavelmente a idéia logo me teria acudido, se não estivesse tão nervoso. Afinal, conhecia os homens há dez mil anos.

O cano da arma de radiações de Rhodan estava dirigida sobre meu peito. Mais três armas ameaçavam-me. Parei e lancei um olhar de perplexidade para a fluorescência vermelha que saía dos canos.

Finalmente levantei a cabeça.

— Sinto muito — disse Rhodan em tom triste. — Acreditamos que a ordem que acabo de dar talvez possa levá-lo a fazer alguma bobagem. Até que recebamos ordem para pôr-nos em marcha, ficaremos de olho em você. Alguma objeção?

Senti-me chocado pela ironia gelada dessas palavras. Abafei a raiva insensata e esforcei-me ao máximo para manter a calma.i

— Nada de truques — disse Bell em tom amável. — Acho que já nos conhecemos.

Soltei uma risada amarga. Realmente nos conhecíamos.

— Quer dizer que você pretende destruir o planeta da guerra? Já se deu conta de que isso trará uma revolta na Via Láctea? Se as fábricas de naves de Árcon forem destruídas, o Império será um...

— Sei disso.

— Mais de cinqüenta mil mundos coloniais perceberão imediatamente que o império cósmico deixou de existir. Será o caos. Além disso, temos o perigo representado pelos druufs. Será que terei de apresentar mais argumentos, seu arrivista louco?

— Sinto muito. Dentro de alguns meses, o perigo dos druufs desaparecerá por si, em virtude da instabilidade progressiva da frente de superposição. Quanto às revoltas nos setores coloniais do Império Arcônida, acho que conseguiremos vencê-las.

— Para o bem da Terra! — respondi em tom de escárnio.

— Para o bem da Terra, arcônida. Dou-lhe uma chance de construirmos juntos um novo império. De qualquer maneira você se encontra numa posição perdida. Será que já se esqueceu de como são os membros de seu povo? Com eles, você nem sequer conseguiria abafar uma revolta interna. Você há de reconhecer que, na situação atual, a destruição deste gigantesco mundo da guerra é a única saída. Nem mesmo o regente resistirá ao incêndio atômico que começará lavrar depois de detonada a bomba. Seus supercampos protetores desmoronarão e o planeta entrará em ebulição. Antes disso, teremos oportunidade de decolar numa nave. Nenhum ser humano morrerá. O incêndio provocado pela bomba leva algumas horas para disseminar-se pelo planeta. Face a isso, todos terão oportunidade de escapar para o espaço livre. Quem terá de ficar para trás será apenas o regente firmemente ancorado na rocha. Com isso teríamos atingido nosso objetivo.

— Você destruirá o Império — disse em tom insistente. — Você destruirá tudo que criamos e construímos num trabalho de vinte mil anos. Não permitirei que isso aconteça. Não sabe que existem inúmeros povos que só aguardam este momento? Eles cairão sobre nós que nem uma matilha de lobos. As raças não-humanóides terão tempo e oportunidade para fazer prevalecer sua influência.

— É um risco que teremos de aceitar. Você não vai impedir coisa alguma, Atlan.

Dei uma risada sarcástica bem no rosto de Rhodan, que recuou um tanto embaraçado. Interrompeu-me com um sinal e disse com a voz muito tranqüila:

— Atlan, também haveremos de vencer esta barreira que se interpõe no caminho da nossa amizade. Fique tranqüilo e procure raciocinar logicamente sobre os fatos. O regente tem de ser posto fora de ação.

— Mas não nestas condições — gritei fora de mim.

Totalmente exausto, sentei numa cama pneumática.

— Muito bem, arcônida!

Lancei um olhar prolongado para Rhodan, que sentiu o ódio que subitamente começava a tomar conta de mim. Cochichei com os lábios ressequidos:

— Quando lutamos no museu de Vênus, eu deveria ter enterrado a espada em seu pescoço, seu idiota! Se Árcon III for destruído, nos outros dois planetas do sistema surgirão terríveis inundações e tremores de terra. Afinal, você não entende nada do sistema bem elaborado de estabilização recíproca das forças.

Lancei-lhe um olhar de súplica. Será que Rhodan não queria compreender?

— Terminaremos dentro de trinta minutos — disse um homem que olhou ligeiramente para dentro do alojamento.

Comecei a desesperar no meu íntimo. Por que não aparecia nenhum robô de vigilância? Em outras oportunidades os mesmos costumavam aparecer a toda hora. Bell bloqueava a porta. Sabia que atiraria se eu tentasse a fuga.

 

— Mais rápido, mais rápido — ordenou o robô de guerra de três metros de altura, forçando ao máximo seus órgãos vocais biomecânicos.

Há dez minutos não fazíamos outra coisa senão correr. Fomos obrigados a movimentar as pernas até mesmo sobre a rápida fita larga de transporte, muito embora esse meio de transporte de massa corresse à velocidade de quarenta quilômetros por hora sobre os cilindros invisíveis.

Agora estávamos correndo em direção à entrada reluzente de um elevador antigravitacional. Já esperava que não seríamos levados para cima pelo caminho já conhecido, mas nunca pensaria que o regente mandasse conduzir-nos pelos grandes elevadores do estaleiro espacial que ficava próximo aos alojamentos.

De qualquer maneira, o computador teve o cuidado de mandar bloquear os largos corredores, que se estendiam entre as estradas rolantes automáticas, por meio de suas máquinas de guerra. Corremos entre duas fileiras de armas erguidas em atitude ameaçadora, que de repente poderiam despejar sobre nós suas descargas mortíferas.

Fui o quinto a saltar para dentro do campo antigravitacional do elevador. Os terranos, dispostos a qualquer coisa, precipitaram-se atrás de mim. Vi Rhodan lançar um olhar ligeiro para o relógio. Depois, muito preocupado fitou Huster. Porém o sargento apenas acenou-lhe nervosamente com as mãos.

Compreendi que o momento em que a bomba deveria ter detonado automaticamente já passara.

Segurei-me na parede e fiz um esforço para não ser arrastado pois havia ausência de gravidade. Os homens de nosso grupo ainda não estavam todos reunidos. Recebêramos ordens para só subirmos juntos.

— O que houve, Huster? — perguntou Rhodan para o homem gigantesco.

Em seu rosto havia uma expressão tensa.

— Já deveria ter estourado, Sir — disse o especialista em armamentos. Alguém soltava pragas terríveis. Não consegui apurar do que se tratava.

Atrás de nós, algumas máquinas de guerra penetravam no poço de mais de duzentos metros de diâmetro. Fomos impulsionados por meio de um jato de ar comprimido, que nos arrastou violentamente para cima. O enorme poço subia verticalmente em meio à rocha.

Apoiei-me nos ombros largos de um soldado e flutuei para junto de Rhodan. Sua arma já havia desaparecido. Fitou-me com uma expressão que já não era fria, mas desesperada. Segurei seus ombros, e, em virtude disso, começamos a girar.

— Onde mandou o teleportador colocar a bomba? — perguntei apressadamente. — Fale logo. Onde?

— Ele a colocou junto à parede que separa a usina energética. Bem embaixo da curva da grande tubulação.

— Quer dizer que foi colocada justamente no lugar em que o equipamento de vigilância é mais forte. Vocês são uns idiotas! Por que não a deixaram simplesmente no alojamento? Uma bomba arcônida é detonada mediante um elevado dispêndio de energia. É claro que foi localizada e desativada assim que o mecanismo-relógio começou a funcionar.

— Isso é impossível; dispunha de um dispositivo de segurança contra a localização — respondeu Rhodan em tom assustado.

— Você acha mesmo que conhece todos os recursos do grande cérebro? No momento em que o processo de estímulo energético foi iniciado no campo de reflexão da bomba, esta se transformou numa esfera radiante de energia. Com isso superou imediatamente as influências do ambiente, tornando fácil a localização. Já deve ter sido desativada por um comando de robôs.

— Não; não é possível...

— Aposto qualquer coisa. O que me diz? Como foi que não aconteceu nada que indique a ocorrência da detonação final? Perry, pense um pouco. Estamos sendo esperados lá em cima.

Os acontecimentos seguintes foram tão rápidos que mal conseguimos acompanhá-los. Subimos com uma velocidade considerável. De repente, a porta blindada que fechava o poço abriu-se e sentimo-nos ofuscados pela luz do sol.

O campo energético da chegada deteve a queda. Recuperamos nosso peso. Acima de nós estendia-se uma gigantesca abóbada de aço de Árcon. Só vimos cinco dos tripulantes levados para lá antes de nós. Estavam prestes a atravessar, em forma, uma barreira de alta-tensão, atrás da qual se encontrava um rastreador energético montado sobre rodas.

Seria impossível continuarmos com as nossas armas, que funcionavam em base energética. Provavelmente, quando nos aproximássemos a trinta ou quarenta metros, o aparelho extremamente sensível começaria a reagir. Era exatamente o que eu imaginara.

Rhodan disse alguma coisa que não entendi muito bem. Os membros do comando, que haviam chegado juntamente com ele, formaram o círculo e Rhodan pôs a mão no bolso.

Sem dar a menor atenção ao perigo que poderia resultar, trouxera a microbomba nuclear. Tinha formato achatado e era como um estojo de jóias, mas a energia por ela produzida chegava a quinhentas toneladas de TNT. Com um simples movimento de mão, Huster colocou o pequeno mecanismo de propulsão de combustível sólido, que tinha a forma de um bastão, e moveu a pequena alavanca de alumínio que o prendia. Com isso, o corpo achatado transformou-se num microfoguete de vôo estável.

Rhodan inclinou-se sobre a abertura, mandou que dois homens o segurassem pelos pés e estendeu a mão direita para baixo. O chiado agudo do combustível químico foi superado pela confusão de nossas vozes. Percebi apenas o raio ofuscante de gases incandescentes, que passou junto ao rosto de Rhodan. Quando este se ergueu repentinamente e saltou para trás, o estranho projétil já descia pelo grande poço do elevador antigravitacional. Assim que a microbomba atingisse o solo, a uns mil e oitocentos metros de profundidade, haveria uma explosão devastadora.

Os poucos robôs de guerra que nos acompanhavam ainda se encontravam no interior do poço. Estavam esperando que chegássemos em cima. Os cento e cinqüenta homens de nosso comando correram desesperadamente. Em carreira desabalada deslocaram-se ao ponto mais afastado da abóbada, atiraram-se ao solo e arrancaram as armas dos bolsos do uniforme.

Segui-os, também me atirei ao solo e, no mesmo instante, senti-me envolvido pela tormenta atômica.

A bomba já devia ter tocado o chão bem antes, mas provavelmente possuía um detonador de retardamento. Naquele instante, os homens de Rhodan abriram fogo contra os robôs que iam chegando e derrubaram-nos tão depressa que as máquinas não tiveram tempo de esboçar qualquer tipo de defesa.

O próximo alvo a explodir foi a barreira de alta-tensão com o instrumento de observação montado sobre rodas. Os robôs, que se encontravam ao lado da tal barreira, perderam o equilíbrio em virtude da onda de compressão. Antes que conseguissem recuperá-lo, estavam transformados num montão de destroços incandescentes.

De repente não parecia haver mais nada que nos ameaçasse. A entrada estava aberta à nossa frente. Vi alguns zalitas que fugiam apavorados. Haviam chegado antes de nós.

— Fiquem deitados — gritou Rhodan. — Daqui a pouco vai explodir.

Imaginava perfeitamente o estrago da explosão. Segurei-me firmemente a uma das travessas, que apoiavam a abóbada, e comprimi o rosto contra o solo. O chão estremeceu sob o efeito de uma terrível detonação.

Do grande poço do elevador saiu uma coluna de fogo surpreendentemente fraca. Em compensação, o abalo foi tão forte que me senti arrancado da travessa em que me segurava. Fui atirado sobre o material liso do piso.

A onda de compressão saiu do poço do elevador com um enorme rugido e arrancou a abóbada. Uma chuva de peças fumegantes foram lançadas das profundezas.

O terrível trovejar parecia não terminar nunca. Mais uma onda de compressão atingiu-nos e outra coluna de fogo, mais forte, saiu do poço do elevador, que se transformou na boca de um gigantesco canhão.

Rhodan parecia ter contado com isso.

A borda do poço de elevador desmoronou. Os últimos destroços foram atirados das profundezas trovejantes. A abóbada, que cobria a saída do poço, estava transformada num montão de destroços. Grandes aberturas surgiram nas paredes. Rhodan foi o primeiro a pôr-se de pé. Saltou para uma das fendas e olhou para fora. Já estávamos jogando com as cartas abertas.

— Vejo naves, muitas naves — gritou em tom exaltado. — Procuraremos atingir a mais próximas delas. Aconteça o que acontecer, não poderemos permitir que nos peguem.

Sabíamos que, apesar do êxito momentâneo, não tínhamos a menor chance. Mesmo que conseguíssemos decolar com uma das naves, seríamos atingidos assim que esta se erguesse do solo. Era inútil, mas de qualquer maneira corremos.

Saltei para a forte luminosidade do sol de Árcon e tive a impressão de que meu sangue iria gelar nas veias. A menos de um quilômetro do lugar em que me encontrava, a gigantesca abóbada energética do computador-regente erguia-se para o céu límpido. A comporta por nós destruída ficava muito perto do campo defensivo.

Os cento e cinqüenta homens tresloucados correram como nunca haviam corrido. Os zalitas genuínos ficaram para trás, totalmente perturbados. Não estavam compreendendo mais nada. Segui Rhodan, pois não tinha outra alternativa. Quando nos encontrávamos a uns cem metros da nave cobiçada, que era um cruzador ligeiro da frota arcônida, seus mecanismos propulsores entraram em atividade. Ergueu-se com um forte rugido, deixando atrás de si uma cauda escaldante.

De repente, as pernas de Rhodan pareciam ceder. Dobraram-se lentamente e, depois de algum tempo, o terrano caiu ao chão, onde ficou deitado, completamente imobilizado. Seus olhos apáticos fitaram o cruzador que se afastava vertiginosamente. As outras unidades também foram decolando. O rugido surdo dos mecanismos propulsores parecia um canto da morte.

Rhodan continuava deitado no mesmo lugar. Sua boca estava muito aberta. Respirava pesadamente. A muralha reluzente da abóbada energética ficava a menos de quinhentos metros. À medida que as naves decolavam, o campo de visão se ampliava, até que nos víssemos sós diante da barreira que cobria toda a linha do horizonte.

Os outros membros do comando também cessaram a corrida vertiginosa. Fungavam e olhavam em torno. Finalmente viram o que eu já havia descoberto.

Bem ao longe, a cerca de três quilômetros de distância, numerosos vultos escuros saíam da porta blindada, que poucas horas antes usáramos para entrar na cidade subterrânea. Visto de longe, o panorama se parecia com um formigueiro que estivesse expelindo em rápida seqüência seus habitantes enfurecidos.

Depois de algum tempo, a corrente compacta subdividiu-se. Logo compreendemos que os robôs estavam formando linhas de tiro.

Um silêncio deprimente reinava em torno de nós. O rugido dos propulsores chegara ao fim. O enorme espaçoporto parecia deserto. Ainda não ouvíamos os passos pesados dos robôs. Quando ouvíssemos, seria tarde.

Bell procurou orientar-se. Apontou para uma muralha de plástico blindado.

— Aquilo nos servirá de refúgio. Vamos abrigar-nos.

Aproximou-se de Rhodan, segurou-o embaixo dos braços e ergueu-o violentamente.

— Por que diabo as naves robotizadas não atiraram? Por quê? Bastaria uma salva para liquidar-nos.

— Eles nos querem vivos, meu caro — respondi. — É bom acostumar-se à idéia. Provavelmente os robôs de guerra usarão apenas armas de choque.

Lançou-me um olhar desesperado. Finalmente um sorriso martirizado apareceu em seu rosto.

— O.K. Deixe que venham. Ainda vê uma possibilidade de fugirmos?

— Devíamos capitular. Por que sacrificar os homens?

O corpo de Rhodan entesou-se.

— Ninguém revelará a posição galáctica da Terra.

Sabia perfeitamente que se tratava de um argumento válido.

— Para isso você teria de matar seus soldados e no fim a si mesmo. Uma vez que os robôs usarão exclusivamente armas de choque, não teremos outra alternativa. Se não fizer o que estou dizendo, acabaremos caindo mais cedo nas mãos do regente.

Rhodan fez como se não tivesse ouvido as últimas palavras por mim proferidas. Provavelmente recuava diante da conclusão que se impunha. Esperava que as máquinas de guerra acabassem atirando com armas mortíferas.

Corremos mais uns cento e cinqüenta metros, saltamos por cima da muralha de plástico blindado pintada de vermelho, que tinha quase dois metros de altura, e abrigamo-nos.

A uns cinqüenta metros atrás de nós, começava a área de perigo propriamente dita. Não seria recomendável aproximar-se a menos de trezentos metros do campo energético, no qual sem dúvida reinava uma tensão elevada.

Ficamos deitados por algum tempo, até que Ras Tschubai se aproximasse do lugar em que nos encontrávamos. Fez continência para Rhodan e anunciou em tom singelo:

— Sir, tentarei atravessar o campo energético com algumas bombas manuais. Talvez consiga.

Rhodan fitou-o em silêncio. Ainda sem dizer uma palavra, entregou ao teleportador cinco dos artefatos explosivos.

Esperamos que Ras se concentrasse. Quando saltou, houve o fenômeno luminoso que já conhecíamos. Logo após o salto voltamos a ouvir os terríveis gritos que já ouvíramos poucas horas antes.

Demorou bastante até que a espiral energética se desmanchasse, liberando o corpo de Tschubai que se materializava lentamente. Quando nossos médicos lhe aplicaram as primeiras injeções de analgésico ainda estava gritando.

— Um campo energético em forma de favo — disse John Marshall em tom indiferente. — Será que esse campo é constante, ou só é ativado quando o cérebro se vê diante de uma ameaça mais grave?

Rhodan não respondeu. Fitei-o de lado e assustei-me, quando ouvi as ordens por ele emitidas.

As microbombas foram saindo dos bolsos chatos do uniforme. Os suportes com pequenos trilhos de lançamento e os propulsores de combustível sólido com as aletas estabilizadoras foram colocados. Cada um de nós possuía uma bomba desse tipo, com exceção daqueles que tiveram de utilizar o lugar disponível em seus uniformes para transportar outras peças.

Bell e Rhodan fizeram pontaria, regularam os parafusos dióptricos de aspecto primitivo para a distância adequada e puxaram o gatilho.

Com um chiado, os pequenos projéteis saíram numa parábola ampla. Atingiram o solo bem à frente das linhas de robôs e explodiram numa ofuscante reação nuclear.

O processo de fusão era livre de radiações, motivo por que só teríamos de recear as energias térmicas liberadas na explosão e as ondas de compressão. O furacão escaldante uivou acima das nossas cabeças e os cogumelos atômicos escuros subiram acima do campo de pouso. Os destroços foram chovendo e finalmente o silêncio voltou a reinar.

Levantamo-nos do paredão, que proporcionava uma proteção ideal, e olhamos para a frente. Duas crateras chatas e liquefeitas abriam-se no revestimento de plástico. Provavelmente numerosas máquinas de guerra haviam sido derretidas. Porém, de ambos os lados da cratera aberta pela explosão, os outros robôs continuavam a marchar com uma tranqüilidade mecânica. A perspectiva da destruição não os atemorizava.

Naquela altura, já não podíamos usar as armas pesadas. O alvo estava próximo demais.

Bell escondeu o rosto nos braços entrecruzados. Dava a impressão de estar dormindo. Os ombros trêmulos eram o único sinal de que esse homem também tinha sentimentos. Voltei-me para Rhodan. A fim de prosseguir na resistência insensata, Perry estava tirando sua arma de impulsos térmicos.

— Você seria capaz de assassinar seus homens para evitar que eles revelem a posição da Terra?

— Assassinar? — repetiu Rhodan em tom de perplexidade. — Nunca usei essa palavra. Nós nos defenderemos. Haja o que houver. Todos possuímos um bloqueio hipnótico que entrará em ação na hipótese de um interrogatório psíquico. Você saberá proteger-se. Se o regente recorrer à tortura física naturalmente passaremos momentos bem desagradáveis.

— Se é assim, por que tem receio de que alguma declaração possa prejudicar a Terra?

Rhodan deixou cair a cabeça e respondeu em voz baixa:

— Não confio muito nos bloqueios hipnóticos. Se o regente recorrer aos médicos galácticos...

Compreendi perfeitamente. Os sentimentos de Rhodan arrastavam sua mente de um lado para outro. Sabia que o jogo estava perdido. Dali a alguns segundos, os homens começaram a atirar.

Por algum tempo prestei atenção aos estalos ininterruptos das armas energéticas. Vi os feixes de raios serem desviados pelos campos defensivos individuais dos robôs. Finalmente estes abriram fogo contra nós. Atiravam com armas de choque relativamente inofensivas, conforme previra. O cérebro nos queria vivos, e conseguiria.

Bati no ombro de Rhodan e levantei-me. O paredão protegia-me contra os disparos dos robôs. Só quem subisse ao mesmo para lutar poderia ser atingido.

Segurei a microbomba na mão esquerda e saí caminhando em direção ao campo defensivo do cérebro.

 

Empurrei a chave do meu transmissor de capacete para a esquerda e liguei a faixa de freqüência pela qual me comunicara com o regente logo após o pouso.

Por estranho que pudesse parecer, a serenidade da idade avançada manifestou-sede uma forma que nunca teria esperado. Estava disposto a desistir. Porém, antes disso, fazia questão de mostrar quem era e de onde vinha, e provar ser infinitamente superior àquele artefato construído por homens como eu. Queria fustigar e humilhar uma máquina, ofendê-la com meu intelecto causticante, muito embora não houvesse nada que pudesse ser fustigado, humilhado ou ofendido.

Apesar disso comecei a falar como se me dirigisse a um ser humano. Era uma loucura, mas apenas tive, numa área recôndita de minha mente consciente, uma percepção débil dessa situação.

— Regente, aqui o comandante do couraçado Kon-Velete. Você me conhece pelo nome de Ighur. Acontece que este nome é falso. Utilizei meu saber para trazer para Árcon III um grupo de terranos, pois já não estava disposto a tolerar esse seu regime tirânico.

“Sou Atlan, príncipe de cristal do Império, membro da família reinante de Gonozal, sobrinho e sucessor de Sua Alteza, o Imperador Gonozal VII, Almirante da Frota do Império, chefe da 18a esquadrilha de combate, comandada por Sakal; vencedor de vinte e sete batalhas travadas nas proximidades do setor de nebulosas. Subjuguei o sistema de Iskolart, pertencente a Maahk e situado na área das manchas escuras.

Ainda sou membro do Grande Conselho de Árcon, beneficiário do processo de ativação cerebral em virtude de decisão do Alto Grêmio, inventor e fabricante de uma arma que decidiu a guerra do metano. Exijo a submissão e obediência que cabe a uma máquina construída por meus descendentes.”

Parei. Meu corpo foi sacudido por uma gargalhada de louco. Inclinei-me para a frente, apoiei as mãos nos joelhos e refleti sobre os argumentos que ainda poderia oferecer. Aquilo que restava do meu raciocínio lógico informou-me de que provavelmente acabara de perder o controle sobre minha mente.

Prossegui em tom áspero e com uma fria voz de comando:

— Acabo de dizer que você, cérebro positrônico, só assumiu o poder porque eu, o Almirante Atlan, fiquei retido no sistema solar dos terranos em virtude de uma série de circunstâncias adversas. Recebi um aparelho que me garantiu a imortalidade. Voltei para exigir obediência. Suspenda imediatamente todas as hostilidades em curso contra minha pessoa, abra o campo defensivo para dar-me passagem e entregue-me seu centro de programação. Declaro-o incapaz para dirigir os destinos do Império. Ordeno-lhe que cesse imediatamente todos os procedimentos oficiais, dê instruções aos comandantes das espaçonaves que operam na frente dos druufs para que se mantenham em posição de espera e expeça uma proibição de entrada no sistema de Árcon aplicável a toda e qualquer nave. Será que você compreendeu, servo de meu povo?

Ao proferir as últimas palavras, encontrava-me a apenas dois metros da linha vermelha. Naquele momento, meu espírito se desanuviou e percebi nitidamente os absurdos que acabara de dizer. Deixara-me envolver por um entusiasmo insensato, provocado pelas palavras grandiloqüentes e pelas frases que deveriam soar tolas e ridículas.

Esperei pelo raio energético que me envolveria. Aproximara-me demais do campo energético. Senti vergonha dos amigos, que provavelmente haviam escutado minhas falas idiotas pelos rádios de capacetes. Sentiriam pena de mim, e isso me doía. Seria capaz de suportar qualquer coisa, menos a compaixão.

Fui caminhando devagar, aproximando-me cada vez mais da mortífera abóbada energética. Quando me vi bem perto da mesma, ouvi um forte estalo no meu receptor de capacete. Uma voz metálica começou a falar.

— Dispositivo de segurança A-l falando, Alteza. Os dados fornecidos foram conferidos nos arquivos e chegou-se à conclusão de que são exatos. A medição de suas vibrações cerebrais coincide com os dados armazenados. Reconheço em Vossa Alteza o príncipe de cristal do Império e o futuro soberano de Árcon. O computador, que costuma ser chamado de regente, acaba de ser desligado. Os setores que cuidam da segurança do Império continuam a funcionar. Os ataques contra seus subalternos foram suspensos. Tais medidas são adotadas em virtude da programação de segurança Sêneca, que me obriga a entregar o poder de comando absoluto a um arcônida de raça pura, desde que este se apresente com o poderio no olhar e no espírito, e seja capaz como os antigos, puro como os antigos e animado de um desejo ínfimo de pugnar pela existência do Grande Império. Essas condições acabam de ser cumpridas. O serviço do cérebro positrônico está concluído. Aguardo as instruções de Vossa Alteza.

Avancei mais alguns metros aos tropeções. A barreira energética abriu-se à minha frente. Ultrapassei-a, sem compreender o que estava acontecendo. Não sabia muito bem o que a voz acabara de dizer.

Alteza...? Não era este o título do Imperador? Será que o dispositivo de segurança A-l era tão poderoso que podia paralisar o gigantesco cérebro?

Devia estar sonhando...

Perplexo, fitei um veículo que se aproximava. Dois robôs saltaram e ficaram em posição de sentido. Subitamente o silêncio passou a reinar atrás de mim. Ninguém estava atirando.

— Vossa Alteza está esgotado — disse um dos robôs em tom submisso. — Podemos tocar em seu corpo?

Gaguejei um sim. Os robôs me colocaram em seus braços de aço, levaram-me para o planador de campo de repulsão e saíram em carreira desabalada. Uma abóbada de aço abriu-se. No setor médico de Árcon, fui recebido por cinco máquinas especiais. Tratava-se de construções altamente sofisticadas cujos rostos de plástico exibiam um sorriso devoto. No meu tempo, os robôs sempre foram assim. Nunca os conhecera de outra forma...

E o chamado regente também não passava de um robô, apesar do seu tamanho.

— Esperem — disse, falando com dificuldade.

As máquinas recuaram imediatamente. Fiquei sabendo já estar inserido no cérebro dos robôs. Não podia ser um sonho.

Ouvi fortes gritos saídos do meu receptor de capacete. Rhodan chamava com a voz muito nervosa.

— Atlan! Você me ouve, Atlan? Atlan, o que aconteceu? O ataque foi suspenso e estou recebendo pelo rádio um pedido para locomover-me até a área situada atrás do campo defensivo. A voz diz que você teria dado ordens para isso. Atlan, qual é o jogo? Trata-se de um truque? Você me ouve? Responda, Atlan. Atlan...!

Logo compreendi que não estava louco. Minha mente continuava a funcionar; os órgãos dos sentidos trabalhavam.

Alguns robôs especializados se mantinham em atitude respeitosa. Ergui-me lentamente. Fora colocado numa maça, e saí da mesma com um brusco movimento.

— Dispositivo de segurança A-l, desejo que os impulsos emitidos por meu transmissor de capacete sejam captados, ampliados e irradiados aos meus amigos.

Aguardei ansiosamente pela resposta, que foi imediata.

— Ordem cumprida, Eminência. Amplificador funcionando.

Passei pelos robôs e falei para dentro do microfone de capacete:

— Atlan para Perry Rhodan! Não é nenhum truque! Repito: Não é nenhum truque. Traga os homens para dentro da área e aguarde novas notícias. Dei ordem para que as hostilidades sejam suspensas imediatamente. Os robôs se mantêm quietos?

Alguém respirava forte e apressadamente. Depois de algum tempo ouvi a resposta.

— Sim! Será que você enlouqueceu? — perguntou Rhodan. — Prenderam-no e o obrigaram a...

— Não fizeram outra coisa senão prestar a obediência devida a um príncipe de cristal do Império — disse.

Sentia minha mente tranqüila e equilibrada. Subitamente tudo se tornara claro.

— Atlan, você está sonhando! Alguma coisa está errada!

— Está tudo certo. Apenas nossa operação estava errada, porque não correspondia à realidade dos fatos. O dispositivo de segurança existe, conforme supúnhamos. A elite dos cientistas arcônidas nunca teria deixado de instalá-la. O autômato A-l acaba de entrar em ação. O regente deixou de existir na forma que conhecemos. Transformou-se num simples cérebro mecânico, que tem de submeter-se às minhas ordens tal qual a mais insignificante das máquinas. Mandarei apagar as programações já superadas e utilizarei as faculdades, sem dúvida estupendas, do cérebro de acordo com uma visão atualizada. Daqui por diante, um arcônida comandará tudo.

— Acho que estou enlouquecendo! — disse uma voz arranhenta.

Só podia ser Reginald Bell.

— Também acreditei que estivesse ficando louco — respondi com um sorriso de alívio. O ativador celular pulsava sobre meu peito. O fluxo de impulsos estimulantes atingia todas as fibras de meu organismo.

— O que houve de errado? — perguntou Rhodan.

— Nosso procedimento estava totalmente errado. Foi tudo em vão, os esforços, perigos e canseiras. A única coisa que eu deveria ter feito era descer da nave logo após o pouso e colocar-me à frente do campo energético. O dispositivo de segurança, que funciona há cinco mil anos, teria realizado imediatamente um tateamento a distância das minhas vibrações cerebrais, e chegaria à conclusão de que não sou um arcônida novo e degenerado, mas um dos homens que fundaram o Império e construíram o computador-regente. Teria sido tão fácil, terrano! Até poderia ter vindo ao planeta numa pequena nave, sem ser molestado, desde que, previamente, tivesse chamado o regente pelo rádio e lhe tivesse fornecido minha identidade. O dispositivo de segurança exercia a vigilância de todas as mensagens recebidas, e forçosamente me teria reconhecido. Não me envolveria no menor perigo. Perry, dê-se por satisfeito porque sua bomba de Árcon foi descoberta em tempo.

Houve um silêncio prolongado. Indaguei junto a A-l se minhas suposições eram corretas. A resposta veio sob a forma de um vigoroso ‘Sim, Eminência’.

— Entrem e aguardem atrás da barreira energética — disse. Voltei a sentir-me dominado pelo cansaço. — Descansem. Providenciarei alimento e bebidas. Assim que tiver tomado as providências necessárias, voltarei a chamar.

— Que providências necessárias são estas, Atlan?

— Deixe de desconfianças, bárbaro. Você nunca aprende. Será que pensa que pretendo matá-lo o mais depressa possível?

Mandei que a abóbada energética fosse fechada novamente, o que provocou uma exclamação nervosa.

— Fique tranqüilo, Perry — disse com um suspiro. — Este cérebro é tão precioso que não quero deixá-lo desprotegido. Controle-se e procure dominar o nervosismo. Vencemos, entendeu? Vencemos!

Desliguei e ordenei a um robô que me levasse à sala de controle do dispositivo de segurança.

Ao passar pelas amplas salas cheias de instalações extremamente complexas, senti-me orgulhoso e feliz. Aquela maravilha, que só estava falhando em virtude de uma programação já superada, fora construída pelos homens e mulheres de meu povo. Era-me de direito tomar posse da mesma.

Para mim, já não havia nenhum regente, mas para as outras inteligências, ele deveria continuar a existir. Por enquanto tais inteligências não deveriam saber que as medidas por ele tomadas já estavam sendo submetidas a um controle inteligente.

Planos, planos gigantescos foram amadurecendo em meu cérebro antes que chegasse ao dispositivo de segurança. Entrei na sala de programação cujas paredes estavam revestidas de enormes telas.

— Seja bem-vindo, Alteza. — disse a mesma voz cheia.

O rosto de um cientista arcônida surgiu numa das telas.

— Esta é a gravação em vídeo, realizada segundo o dispositivo de segurança Sêneca. Quando você me ouvir, provavelmente já estarei morto há muito tempo. Todavia, a freqüência de minha voz continua à disposição do mecanismo de segurança A-l. Sou Epetran, cientista-chefe do Conselho. As ordens transmitidas a A-l determinam que o poder seja entregue a um arcônida que tenha conservado a atividade, força física e psíquica, e cujo grau de inteligência seja ao menos de cinqüenta lerc. Esperamos que um dia a decadência que está tendo início seja detida. Se o rebaixamento do nível espiritual ultrapassar o nível perigoso, o grande cérebro assumirá o comando da história do Grande Império até que apareça alguém que seja como nós. Não sei quando isso acontecerá, mas tenho certeza de que um dia surgirá uma pessoa que seja como os antigos. Quando isso acontecer, A-l assumirá minha voz e falará em conformidade com sua programação. É o que está acontecendo neste momento. Mais uma vez, seja bem-vindo, Alteza!

Meus antepassados não se haviam esquecido de nada. Na verdade, eram meus descendentes. Para um imortal torna-se difícil estabelecer essas distinções sutis...

 

                                                                                            K. H. Scheer

 

 

                      

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