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Series & Trilogias Literarias
Léa, intrépida heroína de Bicicleta Azul, está de volta à França: terá de reunir seus esforços novamente, para mais uma aventura! A guerra de independência da Argélia, que desponta na capital, Argel, trará vários conflitos internos ao país. Léa e François, seu eterno companheiro, serão desafiados novamente pelos infortúnios da guerra e projetado no coração de acontecimentos dramáticos que, mais uma vez, irão testá-los duramente, colocando à prova tanto suas convicções quanto seu amor.
Capítulo 1
Léa estava estirada na espreguiçadeira, à sombra da tília do pátio. A
fumaça do cigarro, que ela segurava com a ponta dos dedos, subia lentamente
em direção ao céu. Do terraço inclinado de vinhas chegavam os risos e gritos
das crianças. Ela suspirou de bem-estar e pensou: "Estou em casa".
Sempre que voltava a Montillac, experimentava a sensação muito forte de
pertencer àquela terra que a tinha visto nascer. O charme desse cantinho da
região de Bordeaux aquietava suas angústias. Ela revia os momentos felizes de
sua infância: a época da vindima, as perseguições no meio das vinhas, as
brincadeiras de esconde-esconde com Mathias, o cúmplice, o confidente dos
primeiros anos... Mathias que a tinha amado e que, por despeito, se engajara
na Waffen SS.
Durante todos esses anos, ela o tinha banido da memória. Hoje, pela
primeira vez, conseguia pensar nele sem irritação e sem ódio; seus sofrimentos
faziam com que compreendesse o que ele havia suportado. Afugentou essas
lembranças tristes e tentou recuperar o bem-estar daquela tarde. Ela estava
aqui, viva, em casa, cercada pelas pessoas que amava. Ficar lembrando o
passado não é bom, só serve para reviver o sofrimento. Ela tinha desejado uma
vida cheia de aventuras; agora estava cansada. Sentia a necessidade de se
aquietar num lugar; de fazer as coisas banais de todos os dias, como sua mãe
havia feito, como fazia sua irmã Françoise que, de manhã à noite, se dedicava
sem descanso à casa e às pessoas que moravam nela.
Uma inquietação tomou conta dela: por que se enganar? Esta vida calma
não era para ela. Muito rápido, depois de poucos dias naquele lugar — tão
amado —, uma sensação de tédio foi aos poucos tomando conta dela e
deixando-a desamparada; ela não fazia mais parte desta natureza, deste lugar,
sentia-se rejeitada, do outro lado do espelho. Um frio enorme a invadiu então e
lançou-a, como quando ela era adolescente, nas vinhas e nos bosques que
cercam Montillac, ao pé da cruz de Verdelais, ao longo das estradas e caminhos
percorridos outrora na sua bicicleta azul, presente do décimo aniversário, à
procura de algo que não sabia o que era...
Já fazia seis meses que voltara para a França e reencontrara o marido e os
filhos. Nos primeiros tempos, com a alegria do reencontro, ela pouco pensou em
Cuba e na Sierra Maestra. Mas, com o passar dos dias, a lembrança de Camilo
lhe apertava o coração. Mal humorada, ela se irritava com François por não
poder falar de seu amante na frente dele. A felicidade de revê-lo foi obscurecida
pelo sofrimento de deixar o comandante sedutor. Estaria François a par dessa
paixão? Não teria Ramón Valdés contado alguma coisa para ele? É claro que ela
podia ter conversado com Charles sobre os momentos intensos ou dolorosos
passados junto aos guerrilheiros, mas o medo de fazê-lo reviver a dor causada
pela morte de Carmen, a garota que ele amava, morta durante a batalha de
Santa Clara, fizera com que as palavras ficassem presas nos lábios dela. Nunca
mais ele havia pronunciado o nome dela. Entretanto, Léa sabia que ele
guardava na carteira três fotos manchadas de lágrimas, tiradas por Ernesto
Guevara.
— Mamãe! Mamãe! Por que não ficamos aqui para sempre?
Camille, ofegante, seguida de Claire e da prima Isabelle, jogou-se no colo
da mãe. Léa deu um beijo no rosto vermelho da filha.
— Porque nós moramos em Paris.
— Eu gosto mais de Montillac. É mais divertido e não tenho que ir para a
escola...
— Ah! Então é por isso, sua danadinha preguiçosa!
— Ela não é má, a Camille. — Declarou uma garota linda de olhos
puxados.
Léa olhou-a com ternura. Essa menina, que poderia ter criado um
constrangimento entre ela e François, na verdade reforçara o amor deles. Em
momento algum ele recriminou-a pelo nascimento dela, nem falava de sua
ligação com Kien, o pai da menina. Muitas vezes, ela tinha a impressão de que
ele gostava mais de Clarinette, como ele a chamava, do que de Adrien e Camille.
Ele desculpava tudo que ela fazia, cedia a todos os caprichos dela sob o
olhar aprovador de Philomène, a assain que cuidava dela desde Hanói. Camille
se ressentia às vezes dessa preferência declarada, mas, como todos os membros
da família, era envolvida pelo charme da caçula. A própria Françoise, que havia
repreendido Léa duramente quando ela voltou da Indochina com esse bebê tão
diferente dos irmãos, não resistia mais a um sorriso ou a um beijo da
"chinesinha", como diziam as pessoas da região.
— Crianças! hora do lanche!
— Já vamos, mamãe!
— Já vamos, tia Françoise!
As três meninas correram para a cozinha, aos gritos.
Na cozinha, sentadas diante da mesa comprida, coberta com uma toalha
xadrez branca e vermelha, as primas davam grandes dentadas em fatias de pão
com manteiga, sobre as quais Françoise havia espalhado raspas de chocolate.
— Eu quero mais. — Disse Claire, com a boca cheia.
— Acabe primeiro essa aí. — Ordenou Isabelle, com a autoridade dos seus
doze anos.
— Tome, minha princesa. — Disse Philomène em vietnamita, dando outra
fatia de pão à criança.
Claire pegou-a com um ar de triunfo.
— Você faz tudo que ela quer. — Gritou Camille, irritada. — Você sabe
muito bem que ela não vai comer. É só para nos provocar.
— Não, não é assim, ela está com fome.
— Eu também estou com fome! Estou com tanta fome que sou capaz de
devorar todas as pessoas metidas que se empanturram de pão com manteiga!
Nham... Nham... Eu vou morder você!
Claire foi levantada da cadeira por um garoto de uns quinze anos, tão loiro
quanto ela era morena.
— Pare, Pierre! Pare! — Gritava a pequena, que se debatia rindo.
— Sr. Pierre! Largue-a, ela vai se engasgar. — Guinchava Philomène,
tentando arrancar a menina dos braços do primo.
Isabelle e Camille começaram a rir da bagunça, e a confusão foi tamanha
que Alain Lebrun, que trabalhava nas caves ali ao lado, veio ver o que estava
acontecendo.
— O que é isso? Por que tanto barulho? Dá para ouvir vocês lá em
Verdelais!
— E por que não em Saint-Macaire ou Langon, desde que se esteja lá? —
insinuou Françoise, sem perder a calma.
— Meninas, vocês viram meu Pilote? — Perguntou um garoto que acabava
de entrar.
— Nós não gostamos do Pilote, preferimos Fillette.
— Desculpe, Adrien, fui eu que peguei.
— Tio Alain! Você lê Pilote?!
— Não só o Pilote, mas também Mickei, Spirou e Tintim... — Revelou
Françoise, com um sorriso provocador.
Essa importante revelação impôs o silêncio. Incrédulos, Adrien e Camille
olhavam para o tio com curiosidade, enquanto Isabelle e Pierre estouravam de
rir diante do ar desconcertado do pai. — Você esconde bem o jogo, papai. E eu
que achava que você só lia livros sobre as vinhas, a criação de cavalos, de
galinhas, a administração agrícola ou, em último caso, Le chnsseurfrançais...
Mas, não! Você lia escondido nossas histórias em quadrinhos que você só
critica... Muito interessante! E a mamãe, que sabia de tudo! A gente pensa que
tem pais sérios e descobre que são uns garotos. Agora entendo por que as
revistinhas desapareciam misteriosamente... E a gente acusando as meninas!
— Revoltou-se Pierre, com um tom falsamente severo.
— Mas, papai, por que você não nos contou que gostava das historinhas?
Nós teríamos entendido...
— É bobagem ler escondido. — acrescentou Isabelle.
— E você nunca leu nada escondido? — Cochichou Léa, que acabava de
entrar, no ouvido da sobrinha.
O vermelho que tomou conta do rosto da menina lhe respondeu.
Como todos falavam e riam ao mesmo tempo, Françoise, com as mãos
tapando as orelhas, não conseguia se fazer ouvir. O toque do telefone fez
algumas vozes se calarem. Alain foi atender e voltou em seguida.
— É para você. — Disse ele a Léa.
— Quem é?
— Não entendi o nome, tem um chiado na ligação.
Léa saiu e foi pegar o aparelho na mesinha, perto da porta da sala de
jantar.
— Alô, é Léa Tavernier. Quem fala?
— O general Salan... Eu queria falar com seu marido.
— François não está aqui, está em Paris.
— Eu liguei para a casa de vocês, mas ninguém atende.
— Tente no Hotel Lutécia... Quando não estamos juntos, ele se hospeda lá.
— Está bem, obrigado... E a senhora, como vai? Já se acostumou à vida
nova?
— Bem, general, a nossa vida na França é na verdade muito mais calma...
— Quando a senhora voltar a Paris, minha esposa e eu gostaríamos muito
de revê-la... Até logo.
— Até logo, general.
Pensativa, Léa pousou o fone. Não estava gostando nem um pouco desse
telefonema do general Salan.
Não via com bons olhos qualquer ligação de François com o antigo
comandante em chefe da Argélia, nomeado governador militar de Paris, pelo
general De Gaulle, no começo do ano. Conhecia suas posições a favor da
Argélia francesa, e nem ela nem François concordavam com elas. Desde que
voltara, Lea recusara-se a se interessar pelo que acontecia na Argélia.
Até que, num certo dia do mês de junho...
Era um lindo dia, e os calçadões do Flore e do Deux Magots fervilhavam de
pessoas que queriam aproveitar o sol. Ela entrou na Divan, a livraria da Praça
Saint-Germain-des-Près onde ela dava uma passadinha toda semana.
— Bom dia, senhora Tavernier. — Disse o vendedor que sempre a atendia.
— A senhora já leu o Nabokov e o Mauriac?
— Sim, e gostei muito de Lolita.
— E do Bloc-notes?
— Também, mas por razões diferentes... Só conhecia os romance de
Mauriac, que, aliás, adoro. Eu costumava ler principalmente, porque ele
também é da região de Bordeaux. Mas, aprendi muitas coisas lendo o Bloc-
notes. O que mais me emociona é a ligação dele com sua terra, Malagar: sem
dúvida porque sinto o mesmo pela minha, Montillac. Ele usa as palavras que
eu usaria se tivesse o talento dele... Veja só, leia...
Ela tirou o livro da bolsa, abriu-o rapidamente numa página cuja pontinha
ela tinha dobrado, para marcar, e mostrou ao rapaz a passagem sublinhada
que ela havia decorado:
Amar fisicamente sua terra é, na verdade, ninar nela a imagem do homem
que, ao longo dos séculos, lhe impuseram aqueles que torturaram e
massacraram, mas que também penaram na obscuridade, deram testemunho
de verdade, doando suas vidas — de modo que, acreditando nisso ninar senão
teria certa luz sobre as colinas e os cumes, um certo aroma de folhas molhadas
e de bruma, os telhados antigos que se tornaram violeta com a chuva é, afinal,
o homem da minha terra que eu amo. Sinto, sempre o mesmo, porque a besta
que tortura é de todas as épocas. Em compensação, os melhores entre aqueles
que os precederam não eram mais santos que os de agora, e eu sei o nome de
alguns...
Ela não percebeu o olhar atento e escrutinador do livreiro enquanto ela
guardava o livro.
— Com licença. — Ele disse simplesmente.
Em seguida, foi para o fundo da loja, de onde voltou com um livro
cuidadosamente embrulhado. Deu-o a ela, cochichando:
— Tome, leia este aqui... Depois me diga o que achou.
Achando graça, ela respondeu em voz baixa:
— É como a História de O?
— Leia...
— Está bem... Quanto lhe devo?
— Nada, é um presente...
Léa olhou para ele surpresa. Depois, bruscamente, reviu-se em outra
livraria, no começo da guerra, encontrando Raphael Malh pela primeira vez,
Raphaël que lhe recomendou aquele livro horrível, A escola de cadáveres.
Outras lembranças rapidamente se juntaram a essa, todas elas horrorosas. Ela
estremeceu imperceptivelmente.
— A senhora não está se sentindo bem? — Preocupou-se o vendedor.
— Não é nada... o calor, sem dúvida... Até logo e... obrigada!
— Vou ficar esperando que a senhora me diga o que achou do livro.
Léa concordou com a cabeça. Lá fora, o calor era tremendo. Nem um só
lugar nos calçadões dos cafés; ela foi para dentro do Flore, cujo salão estava
quase vazio e onde a penumbra dava uma impressão de frescor.
Instalou-se numa cadeira vermelha, pediu um chá gelado e acendeu uma
cigarrilha. Por uns instantes, fechou os olhos, as costas apoiadas no encosto.
Com o barulho do copo pousando na mesa, abriu-os de novo, ligeiramente sem
graça. Foi então que seu olhar se cruzou com o de um homem em quem ela não
havia reparado na entrada. O desconhecido, com um perfil de ave de rapina,
sorriu para ela, o que imediatamente a incomodou; ela não estava com humor
para agüentar a menor manifestação de interesse. Com um certo nervoso,
rasgou o papel que embrulhava o presente do livreiro: era um livro muito fino,
chamado A gangrena, publicado pela Minuit. "Um título nada atraente",
pensou.
Mais tarde, quando o fechou, à beira da náusea, uma lágrima pingou na
mesa. Ela levou as mãos ao rosto para disfarçar a perturbação e enxugar os
olhos.
— Traga um conhaque para a senhora! — Ordenou, junto dela, uma voz
que a assustou.
Ela afastou os dedos e reconheceu o homem que sorria para ela há pouco,
depois se endireitou num reflexo de irritação, quando ele se sentou ao lado
dela.
— Não diga nada... Eu a observei enquanto lia e vi a que ponto você se
emocionou.
— E o que você tem a ver com isso?
— Eu compartilho dos mesmos sentimentos.
Ela considerou-o com um pouco menos de irritação e, sem uma palavra,
pegou o copo que o garçom acabava de colocar na mesa e engoliu de uma só
vez.
— Você tem fogo?
Por uns instantes, ela inalou profundamente a fumaça. O álcool e o tabaco
pouco a pouco acalmaram sua angústia e sua cólera.
— Você acha que tudo isso é verdade? — Perguntou ela, com a voz fraca.
O homem sorriu de novo, acendendo um cigarro.
— Infelizmente, sim... e você sabe que é. Você apenas gostaria de que a
persuadissem do contrário! É preciso se acostumar com isso, tortura-se
alegremente tanto na França como na Argélia, com as bênçãos do governo!
— Eu não imaginava que fosse assim... Esses jovens argelianos, torturados
pela polícia... Esses de que se fala no livro, o que foi feito deles? Não existem
franceses que tentem ajudá-los?
— Existem.
— Gostaria de conhecê-los.
— Esqueça. Uma mulher bonita como você deve ter outras formas de se
divertir do que brincar de guerra...
O rosto de Léa ficou subitamente vermelho.
— Mas que medíocre! Você tem idéias prontas sobre as mulheres. Para
você, só somos boas para fazer amor e filhos?! Me deixe em paz!
— Não se aborreça... Não queria perturbá-la, apenas preveni-la. Guarde
esse livro, ele acaba de ser apreendido pela polícia. Exibi-lo em público pode ser
tornado, na melhor das hipóteses, como provocação e, na pior, como
propaganda em favor dos militantes argelianos.
— E daí? Pode ser uma forma de ajudá-los.
— Nesse caso, há meios mais eficazes...
— Quais, por exemplo?
— Venha amanhã ao bar do Pont-Royal, às dez horas e eu explicarei. Meu
nome é Roger Vailland.
— O escritor?
— O próprio, para servi-la... E não diga que já leu algum dos meus livros.
— Eu não li Laloi, mas já li Berni tuasque e Drôle de jeil; gostei muito...
— Nunca pensei que fosse conhecer uma de minhas leitoras... Se,
amanhã, a política aborrecê-la, poderemos falar de literatura. Você leu as
Memórias do cardeal de Bernis?
— Não, quem é?
— Um amigo de Madame de Pompadour e de Voltaire. Aceito na Academia
Francesa com vinte e nove anos, ministro, embaixador, ordenou- se padre para
receber o título de cardeal... Você também, quando sorri, tem essas covinhas
que lhe conquistaram a amizade da amante de Luís XV. Ouça. — Acrescentou
Vailland, aproximando-se:
Assim como Hebe, a jovem Pompadour
Tem ditas covinhas no rosto;
Ditas covinhas charmosas onde o prazer brinca,
Que foram feitas pela mão do Autor...
— Esqueci a seqüência... ah, não:
"Como ela é bela!...
Ele quer morrer sobre sua boca charmosa:
Feliz ainda de morrer como semi-conquistador..."
Acabando essas palavras, ele depositou um beijo em sua nuca.
— Calma, senhor libertino, a poesia não dá todos os direitos e, além disso,
esta aqui nem é tão impressionante...
— Não, mesmo! Não, mesmo! É muito açucarada, reconheço; além disso,
Frederico II falava de sua "estéril abundância". Muitos ornamentos, flores.
Voltaire o chamava de "Babet, a florista"... Mas, suas memórias são uma obra-
prima.
— Você parece conhecê-lo bem.
— Muito bem... Escrevi um Elogio ao cardeal de Bernis; vou lhe oferecer
um exemplar.
Léa levantou-se.
— Já vai? Você virá amanhã?
Sem responder, ela lhe estendeu uma mão que ele beijou.
À noite, em casa, ela perguntou a François se ele havia lido as memórias
do cardeal de Bernis.
— Sim, meu pai tinha uma bela edição; não sei o que foi feito dela... Por
quê? Você agora está interessada na literatura do século XVIII?
— Não, mas conheci Roger Vailland que me falou delas.
— Muito bem! Madame se lança à conquista do meio literário parisiense!
Depois dos Barbudos, você vai conhecer os revolucionários de salão... Cuidado,
eles são mais ferozes que seus amigos guerrilheiros... Mas, tenho certeza de que
eles vão ter trabalho com você. — Acrescentou, abraçando-a.
— Me deixe...
Ela se soltou com tal brutalidade que ambos se surpreenderam.
— Desculpe-me. — Ela balbuciou.
François olhou-a com uma espécie de ternura inquieta; ele tinha medo
desses pensamentos negros em que, de repente, ela se afundava e que a
levavam de volta aos acontecimentos cruéis que ela vivera na guerra, e depois
na Argentina e na Indochina. Ele sentia-se responsável por alguns deles.
Certamente, não conseguiu mantê-la longe da violência, do ódio e da morte, e
ela sofreu as conseqüências dos engajamentos políticos dele, envolvendo-se,
muitas vezes, involuntariamente. Menos em Cuba. Dessa vez, ele não teve nada
a ver com as aventuras revolucionárias dela. Pensando nisso, sentia-se mal; se
não tivesse se apressado a atender ao chamado do general De Gaulle, pedindo
que ele fosse para a Argélia, teria podido ajudá-la a encontrar Charles e evitado
que ela se enfiasse na Sierra, em companhia de homens cobertos de sujeira; o
que não a impediu de achá-los charmosos. Assim como ele, ela tinha o dom de
estar à frente de situações inverossímeis, das quais ela se saía relativamente
bem, graças a uma energia e uma coragem que, desde o começo, fizeram-no
admirá-la mais. Cada vez que voltavam à vida "normal", ela se esforçava, no
entanto, para pôr de lado os episódios dolorosos que tinham vivido, assumindo
a aparência de uma mulher que cuidava dos filhos, do marido, da casa,
interessada na moda, louca por cinema e teatro, gostando de dançar... Ela
acrescentava a isso, às vezes, uma pontinha de futilidade, o que o irritava um
pouco, mas que ele desculpava. Quando ela voltou, eles se encontraram com o
mesmo frenesi de antes.
Seus corpos se tomaram com a mesma volúpia, maravilhados um com o
outro. O tempo, que normalmente mata o desejo dos amantes, parecia tê-los
poupado disso. Léa não se questionava nada, achava tudo normal, segura de
sua beleza e do amor deles. François, por sua vez, espantava-se de ainda sentir
tanta felicidade e tanto prazer em possuí-la, depois de tanto tempo. Alguns dias
depois, no entanto, começou a perceber nela um nervosismo crescente, uma
curiosidade nova a respeito dos acontecimentos na Argélia.
Fazia perguntas sobre a política do general De Gaulle, sobre seu
envolvimento com ele; suas respostas, ele percebia, não a convenciam.
— Você leu este livro? — Perguntou-lhe ela, mostrando seu exemplar de A
gangrena.
— Sim... Foi seu amigo Roger Vailland que a aconselhou a ler?
— Não, mas isso não tem importância. O que você achou dele?
— O mesmo que você.
Ela levantou os ombros.
— E De Gaulle, o que ele acha?
— Não sei... Mas posso perguntar na próxima vez que o encontrar.
— Pare de brincar, por favor! É sério, o que está neste livro... Escute um
pouco, é história de refrescar a memória...
Aonde ela queria chegar? Seu brusco interesse pelas torturas da polícia o
inquietava. Febril, ela folheava o livro. Ela se pôs a ler, com um brilho
desafiador no olhar:
"O careca me fixou com um olhar de ódio e me disse:
— Agora, tire a sunga.
— Não.
Ele me bateu com toda a força durante quase dez minutos. Eu caí,
desmaiado. Quando voltei a mim, estava nu em pêlo, estendido no chão. Dez
pares de olhos estavam voltados para mim. Deviam ser três ou quatro da
manhã. Eles amarraram minhas mãos aos pés com trapos e introduziram uma
barra de mais ou menos dois metros entre as articulações dos braços e os
joelhos, colocaram uma a barra sobre dois pedaços de madeira colocados na
ponta de duas mesas. Eu estava "no espeto", cabeça tombada e pernas no ar.
Eu tinha ficado com o careca e um ajudante. O careca trouxe, da sala vizinha,
um dínamo, que colocou em cima de uma das mesas.
O ajudante começou a girar a manivela e o careca aplicou os eletrodos no
meu sexo.
Desmaiei em poucos minutos..."
— Pare! — Gritou François, com a voz dura e tensa que ele tem nos
momentos difíceis, enquanto tentava tirar o livro dela.
Léa se esquivou e continuou a ler:
"Um inspetor urinou no tacho. Colocaram os eletrodos nas minhas
gengivas. Pensei que a minha cabeça fosse explodir. Na sessão seguinte do
tacho, eu quis me afogar, mas tudo que consegui foi beber daquela coisa
repugnante..."
Desta vez, François, muito pálido, arrancou-lhe o livro das mãos.
— Você fica chocado, não é, que seus companheiros da DST se dediquem a
práticas dignas da Gestapo e dos porcos que torturaram Sarah?
— Cale-se!
— Por que eu me calaria? Odeio a tortura mais que tudo no mundo. Eu vi
o que fizeram a Camille, no forte de Ha e não consigo esquecer que foram os
horrores que Sarah suportou que fizeram com que ficasse parecida com seus
algozes. É por isso que ela se matou: para não ficar como eles! Este que está
contando a história se chama Benaissa Souami e é estudante. Não foram os
nazistas que o torturaram, a ele e a seus amigos, mas os policiais franceses,
aqui na França, em Paris, na Rua Saussaies!
Ela parou, pálida, subitamente envelhecida. François avançou para tomá-
la nos braços; ela recuou.
— Isso lhe parece normal, que os inspetores da DST torturem pessoas em
plena Paris? Não dizendo nada, você se torna cúmplice desses atos. Você sabe!
"Lá vamos nós de novo", pensou ele. Era preciso desviá-la do projeto que
ele sentia se formar na cabeça dela.
— Você tem razão, muitos estão denunciando, a começar por Mauriac...
— Isso não basta. É preciso ajudar esses pobres coitados!
Para não responder, ele acendeu um cigarro.
— Você não acha?
A campainha do telefone adiou a resposta: era Adrien, perguntando
quando os pais iriam se juntar a eles em Montillac.
— Na semana que vem. — Garantiu o pai.
Eles jantaram com uns amigos na Closerie des luas e terminaram a noite
indo dançar na Discotèque, na Rua Saint-Benoft. Maravilhosa no seu casaco de
peles negro, Léa ria à toa e parecia ter esquecido a discussão da tarde. A
noitada se prolongou. Eles beberam muito. Fizeram amor com raiva, sem uma
palavra, procurando marcar o corpo um do outro.
No dia seguinte, Léa foi ao bar do Pont-Royal. Sentado a uma mesa perto
da escada, Roger Vailland, que conversava animadamente com dois homens e
uma mulher morena com os cabelos cuidadosamente puxados e presos num
coque, não tomou logo conhecimento dela. Ela se sentou no bar e pediu um gim
tônica. Era a primeira vez que vinha a esse lugar, freqüentado por editores e
escritores, atores e jornalistas.
Todas as mesas estavam ocupadas. Numa delas, reconheceu Françoise
Sagan conversando com Juliette Gréco.
— Desculpe-me... Faz muito tempo que você chegou? — Roger Vailland
perguntou, preocupado.
— Não, acabo de chegar... Você estava numa conversa tão animada que
não quis incomodar.
— Pois devia! Venha, vou lhe apresentar meus amigos. A propósito, qual é
o seu nome?
— Léa Tavernier.
— Casada?
— Sim.
— Léa, permita-me apresentar minha mulher, Elisabeth, e meus amigos
Vincent e Guillaume.
Os dois homens levantaram-se e cumprimentaram-na. Elisabeth Vailland
estendeu uma mão mole, examinando-a dos pés à cabeça.
— Encantadora... — Murmurou entre dentes.
Léa sentou-se, enquanto o barman trazia o pedido. Roger Vailland
ofereceu-lhe um cigarro.
— Obrigada, prefiro o meu. — Disse ela, acendendo uma cigarrilha.
Durante alguns instantes, eles ficaram olhando-a fumar, em silêncio.
— Contei a meus amigos nossa conversa de ontem. Antes de continuar,
gostariam de saber um pouco mais sobre você. — Disse o escritor.
— Compreendo... O que querem saber? Minhas opiniões políticas, minha
atitude durante a guerra, minhas atividades depois, minha vida privada?
— Seria bom. — Disse secamente Elisabeth.
Léa olhou-a friamente, soltando a fumaça na sua direção.
— Durante a guerra, participei das ações da Resistência na região de
Bordeaux e, depois, tive que sair de lá para não ser presa... Alistei-me como
motorista da Cruz Vermelha e fui parar em Berlim, pouco antes da chegada das
tropas soviéticas. Na Alemanha, assisti à abertura do campo de Bergen-Belsen,
onde encontrei uma amiga judia, deportada, que consegui mandar para
Londres...
— O que aconteceu com ela? — Perguntou Guillaume.
— Depois do julgamento de Nuremberg, partiu para a Argentina, a procura
de criminosos de guerra.
— E você?
— Fui com ela.
— Você está pálida, querida. — Preocupou-se Elisabeth Vailland. — Beba
qualquer coisa...
Léa esvaziou seu copo e pousou-o desajeitadamente, derrubando um
pouco de líquido. Por que estava ela falando de Sarah a esses desconhecidos?
Por que, depois de tantos anos, esse sofrimento à lembrança da amiga? Ela fez
menção de levantar.
A mão longa e fina de Guillaume pousou sobre a sua.
— Continue. — Pediu docemente.
Léa abaixou a cabeça e disse com a voz estrangulada:
— Sim, ela morreu lá, depois de encontrar um de seus torturadores.
— Ela fazia parte de uma rede de Vingadores?
— Sim.
— Você se lembra dos nomes?
— Samuel e Daniel Zederman, Amos Dayan, Uri ben Zohar.
— Eu conheci Uri ben Zohar. — Disse Guillaume, como se falasse consigo
mesmo. — Ele me contou as circunstâncias da morte de seu amigo Amos
Dayan. Sua amiga se chamava Sarah Mulstein, não é? E ela era filha do famoso
maestro Israel Lazare?
— Isso mesmo. — Murmurou Léa, com o coração disparado.
Nos olhares fixos nela, Léa podia ler uma incredulidade espantosa: de
repente, eles não a viam mais como uma mulher bonita, elegante e desocupada,
procurando talvez no engajamento um derivativo para o tédio mundano, mas
como uma combatente, que já tinha passado por algumas provas.
— O que você fez depois? — Perguntou Vincent, que até então não tinha
aberto a boca.
Ele tinha uma voz bonita. Léa encarou-o: não propriamente bonito, mas
charmoso, o olhar vivo e inteligente, como de um lagarto gentil. Essa imagem a
fez sorrir...
— Eu me casei e me juntei a meu marido na Indochina. — Respondeu ela.
— Ele estava no exército?
— Não, ele estava encarregado de entrar em contato com Ho Chi Mi.
— Oficialmente?
— É lógico que não!
— Você se lembra, Hen... hum... Guillaurne, que você me fez ler os poemas
de Ho Chi Mi e de uma quantidade de outros revolucionários, quando fomos
visitar você em Roma? — Perguntou Elisabeth, virando- se em direção àquele a
quem ela quase chamou por outro nome.
Com os olhos semicerrados, ela murmurou:
Passei por muitos montes, ultrapassei muitos cumes;
Os caminhos planos, no entanto, mais difíceis de percorrer!
Encontrei tigres que não me fizeram mal;
Encontro um homem e eis que ele me prende...
— Eu tenho boa memória, não é? — Guillaurne sorriu, ajustando os
óculos de madrepérola.
Sou um homem honesto e minha alma é tranqüila:
Acusam-me de ser um chinês tenebroso!
O caminho da vida é sempre perigoso,
Mas, viver sua vida é muito difícil.
Continuou Léa, que estourou de rir, vendo as caras espantadas deles.
Comunicativo, esse riso alegre contagiou todos, a tal ponto que todas as
conversas se interromperam e todos os olhares se voltaram para eles. O
primeiro a recuperar o fôlego, com os olhos ainda cheios de lágrimas, foi Roger
Vailland:
— Você é impressionante! Você passa do choro à alegria, da Argentina à
Indochina com uma facilidade incrível... Não ficaria nada surpreso se você
dissesse que foi o próprio Ho Chi Mi que lhe deu os poemas para ler!
— O que é a pura verdade.
— Agora você está exagerando! — Disse Vailland em meio a outro acesso
de riso.
Logo, o riso descontrolado tomou conta de todos no local. Nunca se soube,
na história do Pont-Royal, de loucura igual, atingindo tanto a clientela como os
garçons. A hilaridade atingiu o auge, quando surgiu no alto da escada a
pequena silhueta de Jean-Paul Sartre, cujos olhos, por trás das grossas lentes
dos óculos, exprimiam um enorme espanto.
— Eu vou fazer xixi nas calças! — Exclamou Elisabeth, levantando-se
precipitadamente.
Vincent levantou-se também e foi na direção de Sartre, sacudindo-se de
espasmos.
— O que é tão engraçado? Vocês são loucos de se exporem aqui! Parece
que querem ser presos...
Incapaz de responder, Vincent o fez voltar atrás. Pouco a pouco, a calma
se restabeleceu no bar. Todos enxugavam os olhos, retomavam o fôlego, pediam
mais uma bebida... Ainda se ouviam, aqui e ali, alguns soluços, alguns
suspiros. Elisabeth voltou, com o rosto úmido.
— Que calor! — Exclamou ela, deixando-se cair numa poltrona. — Roger;
estou morrendo de sede, peça alguma coisa.
Léa quis outro gim tônica, enquanto os outros repetiram o uísque.
— Seu amigo foi embora? — Perguntou Léa.
— Eu vou ver onde ele está. — Respondeu Guillaurne, levantando- se. —
Gostei muito de conhecer você. Espero ter o prazer de revê-la.
Guillaume disse alguma coisa no ouvido de Vailland e dirigiu-se para o
fundo do estabelecimento.
— É uma saída cômoda para os casais ilegítimos... e para escapar aos
curiosos. — Confiou-lhe o escritor em voz baixa.
— E vai dar aonde?
— No hotel ao lado...
— De fato, muito prático... Também preciso ir embora. Mas não
conversamos sobre o motivo de eu estar aqui.
— É o que você pensa!
— Você... você quer dizer que Vincent e Guillaume, como vocês os
chamam, estão interessados no que conversamos hoje?
— Sim... Mas falemos de outra coisa, falemos de amor: "Em matéria de
amor, o francês é um jogador, um amador com tudo que isso comporta de
ciência, de diletantismo e de desapego. O francês é galante, quer dizer que ao
contrário dos outros amantes, ele não é aborrecido..."
— Você acha? — Interrompeu Léa. — Eu acho que ele é muito falador,
tentando sempre justificar seu desejo pelas grandes frases, pelas grandes
teorias sobre o amor, a libertinagem...
— E, pum! — Lançou Elisabeth, com uma risadinha.
— ...ao passo que seria muito mais simples dizer a uma mulher que ele a
deseja!
— Uma vez que, se dizemos a uma mulher, sem mais nem menos: "Cara
senhora, gostaria de fazer amor com a senhora", ela responderia
imediatamente: "Pois, não, senhor. Quando o senhor deseja?"
Essa brincadeira irritou Léa, que sempre vivera longe dos salões
parisienses e do discurso dos intelectuais. Espontânea, ela dizia de boa vontade
o que pensava, pouco se preocupando com a interpretação que dariam,
arriscando-se a passar na melhor das hipóteses, por uma desmiolada e, na
pior, por uma mulher provocante. A atitude de Roger Vailland perturbou-a,
entretanto. Ele tinha um jeito de olhá-la que despertava nela o desejo de
provocá-lo, O que ela fez:
— Tudo depende do homem e das circunstâncias...
— Eis aí um motivo bem banal. — Zombou Elisabeth.
— Concordo. — Replicou Léa. — Mas essa banalidade se verifica a cada
vez que um homem e uma mulher estão em presença um do outro e que um
dos dois sente desejo pelo outro.
O escritor inclinou-se para ela e cochichou:
— As circunstâncias atuais lhe parecem propícias?
— Não. — Respondeu Léa mais bruscamente do que gostaria. —
Desculpem, preciso ir embora. — Acrescentou, levantando-se.
Roger Vailland pôs-se instantaneamente de pé.
— Onde posso encontrá-la?
— Babilônia 20.38.
Capítulo 2
Sentado na calçada de um café, na esquina da Rua Soufflot com o Bulevar
Saint-Michel, um homem jovem e barbudo lia o jornal Le Monde, indiferente
aos três estudantes que tentavam, em vão, chamar sua atenção. Um garçom,
com um longo avental branco amarrado na cintura, colocou uma xícara de café
diante dele. O rapaz levantou a cabeça e agradeceu com um sorriso. No
cruzamento Rostand, um raio de sol fez nascer um arco-íris nos jatos de água
da fonte e revelou o tom vermelho das árvores do Luxemburgo. A primeira vista,
a multidão que se apressava pela avenida parecia mais jovem, mais alegre.
Feliz, ele bebia seu café em pequenos goles. Apoiou a xícara e esticou suas
longas pernas. Era a primeira vez, desde seu retorno à França, que
experimentava alguma coisa parecida com o sentimento de felicidade, a
sensação tangível de estar vivo. Ele teve a impressão de ouvir a risada de
Camilo Cienfuegos, ajudando-o a se levantar quando se feriu levemente em
Santa Clara...
— Vipes, es el mas importante.
Lembrando-se do guerrilheiro cubano, ele passou a mão na barba: ainda
não tivera a coragem de tirá-la...
O rapaz pagou a conta, pegou seus livros e seu jornal e dirigiu-se para a
Sorbonne.
Charles d'Argilat tinha um encontro com um de seus colegas da Faculdade
de Direito. Eles tinham trocado algumas impressões a respeito dos
acontecimentos na Argélia. Os dois estavam de acordo com uma reação a
muitos aspectos e tinham até entrado numa briga com os partidários da Argélia
francesa. Os golpes dados e recebidos em defesa da Argélia argeliana. haviam
aproximado os dois. Patrick Bernard, dois anos mais velho que ele, devia em
breve partir para lutar na Argélia.
De pé nos degraus da capela da Sorbonne, um homem de cabelos brancos,
vestido com um elegante sobretudo de lã bege, aberto no peito todo ornado de
medalhas, discutia com os estudantes que conversavam em pequenos grupos,
diante do estabelecimento. Fragmentos de frases chegavam a Charles que,
automaticamente, diminuiu o passo: "... a vocação civilizadora da França...
salvemos essa terra francesa... a honra do exército... a grandeza de nossa
missão... as débeis tentativas árabes..."
— Não suje as orelhas ouvindo essa porcaria, Charles!
— Olá, Patrick... Não concordo: é preciso conhecer as intenções dos
adversários para melhor combatê-los.
— Pode ser, mas essas aí, nós já conhecemos; meu avô materno tem os
mesmos propósitos que o sujeito das medalhas. Quando vamos almoçar na
casa dele, aos domingos, para agradar à minha mãe, nem lhe conto como ele e
meu pai discutem! Uma vez, quase se pegaram aos socos, por causa do livro de
Alleg. Meu avô disse que não passava de um monte de mentiras propagadas
pelos comunistas para sujar a França. Meu pai retrucou que teve que cuidar
dos homens que haviam sido "interrogados" pela polícia; estavam num estado
que fizeram-no lembrar-se dos métodos utilizados pela Gestapo. À menção da
Gestapo, meu avô pulou sobre meu pai. Mamãe, minha avó, minha irmã e eu
tivemos um trabalhão para separá-los! E na sua casa, como é?
— Meus pais estiveram na Indochina, onde denunciaram muitas vezes a
atitude da França com relação aos vietnamitas. Meu padrasto estava em Dien
Bien Phu no momento de sua queda. Foi aprisionado nos campos vietnamitas e
viu morrer muitos companheiros. Após sua libertação, defendeu a causa de Ho
Chi Mi. Quanto à Argélia, ele acredita que sua independência é inevitável.
— Mas você não me disse que o general De Gaulle mandou-o à Argélia
para checar as possibilidades de sua volta ao poder?
— Sim, mas ele foi reticente quanto aos métodos empregados. E, apesar de
sua admiração pelo general, não admitiu que fomentasse ou deixasse fomentar
um golpe de estado para voltar ao poder.
— E agora?
— Não sei... Acredito que deseja participar das negociações de paz que
acontecerão entre os dois países.
— E sua mãe?
Charles teve um gesto de irritação que não escapou a seu colega.
— Prefiro que a deixemos fora de tudo isso... Você fez contato com o
representante da FLN?
— Sim, está feito. Aliás, temos um encontro num café árabe da Rua
Xavier-Privat, na rua Saint-Séverin.
Sempre conversando, os dois jovens atravessaram o Bulevar Saint
Germain. Na entrada da rua da Harpe, estavam três militares segurando
metralhadoras na altura do peito. Na Rua Saint-Séverin, um outro grupo de
soldados percorria as calçadas em grandes passadas. Vistos de fora, os cafés e
restaurantes árabes da Rua Xavier-Privat pareciam desertos. De vez em
quando, uma silhueta coberta por um mantô de lã branca, como ainda usavam
os velhos argelianos, saía de um portão para entrar num bar. Um cheiro de
lingüiça misturado com o de carneiro assado escapava das espeluncas nas
quais, por trás dos vidros sujos, se adivinhavam vários fregueses.
— É aqui. — Indicou Patrick, empurrando a porta pintada de azul de um
botequim.
Assim que entraram, o barulho da conversa parou. Dezenas de olhos
negros os encararam. No fundo do estabelecimento, houve até uma agitação de
raiva. Imediatamente, Charles ficou em guarda pronto para responder ao
primeiro gesto de hostilidade, quando um homem de uns trinta anos levantou-
se e veio em direção a eles com os braços abertos. Os olhares se desviaram em
seguida e as conversas recomeçaram.
— Venham, vocês estão sendo esperados lá em cima.
Eles subiram uma escada estreita em caracol, com degraus escorregadios
e um corrimão negro de gordura.
Foi preciso abaixar a cabeça para entrar numa sala enfumaçada onde
estavam um francês e um argeliano. O argeliano, com um belo rosto de
intelectual, fez sinal para sentarem. Charles e Patrick sentaram-se num sofá
coberto de mantas coloridas. O que os havia levado até ali saiu, depois de ter
pronunciado algumas palavras em árabe. O argeliano tirou os óculos e limpou-
os cuidadosamente com um lenço quadriculado.
Um longo silêncio se instalou, interrompido somente pelo retorno daquele
que os havia recebido e que trazia, numa bandeja de cobre, uma chaleira e uns
copos. O perfume picante de menta encheu a sala quando o chá fervendo foi
servido nos pequenos recipientes. A atmosfera se descontraiu.
— Sheik Hassan, eis meus amigos Patrick, Bernard e Charles d'Argilat,
que desejam se juntar a nossa luta.
— Você explicou que riscos correrão, se forem presos?
— Sim, Leclaire foi muito claro a respeito disso...
— Por que vocês querem nos ajudar?
A resposta de Patrick explodiu, seca e rápida:
— Por uma questão de justiça!
O sheik abaixou a cabeça para dissimular um sorriso, O movimento não
escapou a Charles. Ele bebeu um gole do chá fervendo a fim de esconder, por
sua vez, a expressão de gozação que, involuntariamente, fez tremer seus lábios.
— E você, meu jovem, por que razão está aqui?
Havia severidade no tom do argeliano. Charles sentiu que da resposta
dependeria sua aceitação entre aqueles que defendiam a causa da
independência da Argélia.
— Porque acho justa a guerra do povo argeliano e não quero me tornar
cúmplice, pelo meu silêncio, dos crimes que os franceses cometem — Mas você
é muito jovem.
— O que ele não diz é que combateu na guerrilha, em Cuba, ao lado de
Fidel Castro! — Exclamou Patrick.
— Cale-se! — Disse Charles.
— Mas, por que esconder que você tem experiência com armas, que lutou
corajosamente, que foi ferido e que recebeu cumprimentos de Castro e do Che?
Diante do ar de dúvida que seu interlocutor exibia, Patrick acrescentou:
— Não foi dele que ouvi tudo isso, mas de sua mãe e de seu irmão.
Um silêncio tenso caiu sobre o pequeno grupo.
— É verdade o que seu amigo está contando? — Perguntou o argeliano.
— Sim, é.
Sob o olhar do sheik Hassan, Charles se sentiu avaliado como jamais fora
por aqueles que se tornaram seus companheiros na Sierra Maestra.
Calmamente, ele esperava o resultado desse exame.
— Como você se juntou a Fidel Castro?
— Eu estudava Direito na Universidade de Havana. Devido às
manifestações de estudantes que aconteciam todos os dias, o governo fechou-a.
Como eu era estrangeiro, era mais fácil me deslocar sem chamar a atenção da
polícia. Depois de algumas ações dirigidas contra o governo de Batista, fiquei
visado. Minha família conseguiu me fazer partir para Miami, de onde voltei
clandestinamente para me juntar a Fidel Castro.
O argeliano balançou a cabeça, favoravelmente impressionado pela
sobriedade da resposta do jovem francês.
— Jacques Leclaire será sua ligação com a organização. É ele que lhes
transmitirá as senhas e lhes dará as missões a executar. De início, vocês serão
encarregados de se infiltrar na Faculdade de Direito e nos relatar o estado de
espírito de seus colegas. Em seguida, terão que fazer deslocamentos, pela
França e para o estrangeiro, a fim de recolher os fundos reunidos para ajudar a
FLN. Não venham mais aqui, o lugar está vigiado. Se eu tiver necessidade de
ver um de vocês, Leclaire indicará um local de encontro. Alguma pergunta?
— Logo vou receber ordens de partir para a Argélia. Em hipótese alguma
vou pegar em armas contra nossos irmãos argelianos Assim, como fazer? —
Inquietou-se Patrick.
— Um padre chamado Martin vai procurá-lo. Ele porá você em contato
com rapazes que estão na mesma situação e que se encontram na Suíça e na
Alemanha. Até lá, não faça nada que possa chamar a atenção das autoridades.
Quando eles desceram e atravessaram a sala, alguns dos clientes sorriram
para eles. Um velho com um turbante e uma túnica branca levantou-se e,
pegando cada um pelos ombros, apertou-os contra o peito, murmurando:
— Obrigado.
Emocionados, sem uma palavra, os dois jovens saíram para a rua deserta.
Depois de alguns instantes, sempre em silêncio, eles se acharam no Bulevar
Saint-Germain, onde se despediram, marcando encontro para o dia seguinte.
Na Rua de l'Université, Claire se jogou nos braços de Charles, dando gritos
de alegria que fizeram a assain vir correndo, aflita.
— Saia daqui! — Gritou para ela a criança, enquanto se abraçava às
pernas do rapaz.
Charles pegou-a, levantando-a acima de sua cabeça, para o grande prazer
da menina que gritava como louca.
— Senhor Charles! Largue-a, você vai deixá-la cair! — Suplicava a
vietnamita.
— Mesa! Crianças, vão lavar as mãos. — Anunciou Léa.
François, que saía de seu escritório, agarrou-a pela cintura e puxou-a.
— Que cheirosa! O que você fez hoje?
— Não é da sua conta. — Provocou ela. — Por acaso perguntei com quem
você esteve na noite passada?
— Você sabe muito bem: eu estava com o general Salan.
— A noite toda?
Enquanto falavam, dirigiam-se para a sala de jantar onde Charles e as
crianças já estavam instalados.
— Sim, senhora. Ele insistiu que nós descêssemos ao gabinete do
marechal Juin, bem embaixo do que ele ocupa nos Invalides. Ficamos quase
duas horas falando sobre a situação da Argélia. O marechal, que nasceu em
Bône, falou sem esperança sobre o futuro desse país. Para ele, o inimigo está
instalado na França, à espreita...
— Pare, você vai me fazer chorar com pena desses pobres militares!
— Não caçoe. Há neles uma profunda amargura e uma grande tristeza.
Juin parecia falar consigo mesmo quando disse, sei até de cor: "Eu, um
veterano do exército da África, que cresci no seio dele com muito orgulho, um
velho soldado, a quarta geração de franceses a servi-lo, militares que se
acreditavam até aqui indefectivelmente presos à Argélia, sua verdadeira pátria.
Seria horrível ver um dia a França reduzida às suas fronteiras de 1815, à queda
de Napoleão, com todas as conseqüências infelizmente previsíveis de tal
abandono!"
— Tenha dó, parece que você concorda com ele...
— Concordar, não, mas eu o compreendo.
— Eu os compreendi! — Exclamou Adrien, imitando a voz do general De
Gaulle, de pé, com os braços erguidos.
— Os franceses da Argélia, a maioria — continuou François, ignorando seu
filho, apesar do riso geral —, nunca colocou os pés na França, muitos nem têm
família na metrópole. Para eles, o fim da Argélia francesa é um mundo inteiro,
seu mundo, que desaparece.
— Mamãe, estamos com fome! — Queixou-se Camille.
— Desculpem, queridos... Philoméne, sirva as crianças, por favor.
— Eu não quero sopa. — Reclamou Claire. — Eu quero macarrão.
— Tome primeiro a sopa. Depois, tem macarrão gratinado. — Cochichou a
babá.
— Que chique! — Concluiu a menina, mergulhando a colher na sopa.
Durante um breve instante, a mesa ficou silenciosa.
— Sua matrícula na faculdade já está feita? — Perguntou François a
Charles.
— Sim, tudo em ordem... Parece muito diferente de Havana! Um ambiente
sério...
— Vai ser diferente mesmo — Brincou Léa. — Você vai finalmente estudar
de verdade... Adrien, pare de chatear sua irmã!
— Mas, mamãe, foi Camille que começou...
— Não é verdade! É sempre ele que me enche.
— Basta! Terminem de jantar e cama!
— Ah, não, mamãe! Eu queria escutar o general De Gaulle na televisão.
— Ah, meu Deus, eu esqueci completamente! — Exclamou François,
levantando-se precipitadamente.
Ele entrou na sala onde reinava o aparelho novo que ele ligou. Léa,
Charles e as crianças vieram atrás. De repente, o general apareceu na tela da
RTF; vestido com um terno sóbrio, ele estava sentado em seu gabinete, sob o
revestimento dourado do Palácio Élysée: "... Porque resolver a questão
argeliana, não é apenas restabelecer a ordem ou dar às pessoas o direito de
dispor delas mesmas. Também é, sobretudo, tratar de um problema humano.
Lá, vegetam populações, dobrando a cada trinta e cinco anos, numa terra em
grande parte não cultivada e desprovida de minas, usinas, fontes de energia,
três quartos dos quais estão mergulhados numa miséria que é como sua
própria natureza..."
— E o petróleo de Hassi-Messaoud?! — Indignou-se Charles.
— Faz muito tempo que ele está falando? — Interessou-se Camille.
— Ele ia começar às oito horas; como são oito e quinze, faz quinze
minutos. — Falou Adrien, instalando-se no sofá ao lado da irmã, que gritou:
— Chegue para lá! Você ocupa o sofá inteiro...
— Fiquem quietos! — Gritou o pai.
"... O petróleo de Hassi-Messaoud chegará na costa, em Bougie. Em um
ano, o de Edjelé atingirá o golfo de Gabés. Em 1960, o gás de Hassi R'Mel
começará a ser distribuído em Argel e Oran, e pouco depois em Boné..."
— Olhe aí a sua resposta! — Replicou François em direção a Charles, sem
deixar de olhar a televisão.
— E você acha que ele vai deixar o petróleo para os argelianos?
— Fique quieto! Me deixe escutar...
"... Agora já se pode divisar o dia em que os homens e as mulheres que
vivem na Argélia estarão em condições de decidir seus destinos, de uma vez por
todas, livremente, com conhecimento de causa. Em vista de todos os dados,
argelianos, nacionais e internacionais, considero necessário que esse recurso à
autodeterminação seja, a partir de hoje, proclamado. Em nome da França e da
República, pelo poder que a Constituição me atribui de consultar os cidadãos,
desde que Deus me dê vida e o povo me escute, estou disposto a perguntar aos
argelianos, em seus doze departamentos, o que querem definitivamente ser e a
pedir a todos os franceses que aprovem essa escolha. Naturalmente, a pergunta
será feita aos argelianos individualmente. Porque, desde que o mundo é mundo,
nunca houve unidade nem, menos ainda, soberania argeliana. Cartagineses,
romanos, vândalos, bizantinos, árabes da Síria, árabes de Córdoba, turcos,
franceses invadiram sucessivamente o País, sem que tenha havido, em
momento algum, sob forma alguma, um Estado argeliano. Quanto à data da
votação, ela será marcada no momento apropriado, o mais tardar quatro anos
depois do retorno efetivo da paz..."
— Quatro anos! — Gritou Charles. — Ele acha que ainda vão esperar
quatro anos!
— Enfim! — Suspirou François. — Uma autêntica política do general de
Gaulle!
— Você acha que os argelianos vão ter enfim sua independência? —
Perguntou Léa.
— Em todo o caso, a autodeterminação abre o caminho: cabe aos
argelianos escolherem.. Mas tenho medo da reação dos pés-pretos, dos radicais
e do exército...
— Na maioria, o exército é a favor da Argélia francesa, assim como os
europeus de lá, enquanto a FLN reclama a independência...
— Como reclamavam os vietnamitas... Será preciso um novo Dien Bien
Phu para que o governo francês compreenda que a França não tem nada que
fazer na Argélia? — Revoltou-se Léa, cortando o que Charles dizia.
— Minha querida. — Replicou François. — A situação militar não é a
mesma que no Vietnã. Na Argélia, o exército domina o terreno. Os homens do
General Challe obtiveram muitas vitórias...
— ... e continuam a pôr fogo nas vilas, a atirar em tudo que se mexe e a
torturar os prisioneiros! — Empolgou-se Léa.
— "Não quero mais essas histórias de tortura", disse De Gaulle ao delegado
geral, numa de suas visitas à Argélia. Foi o próprio Paul Delouvier que me
contou isso, depois de um encontro com Georges Pompidou. O substituto de
Salan considerou sempre impossível que de Gaulle fizesse uma política em
favor da Argélia francesa. Ele chegou a declarar ao general que a Argélia seria
independente. "Em vinte e cinco anos, Delouvrier, em vinte e cinco anos", ele
teria respondido.
— O povo argeliano não vai esperar vinte e cinco anos. — Resmungou
Charles.
— Também acho. — Acrescentou François. — Mas, fique quieto, não se
ouve nada...
"Três soluções convenientes serão o objeto da consulta. Ou: a secessão, na
qual alguns acreditam encontrar a independência. A França deixaria, então, os
argelianos que exprimissem o desejo de se separar dela..."
— Mas é exatamente isso que eles pedem! — Exclamou Charles.
"... Sendo a Argélia atualmente o que é, e o mundo, o que nós sabemos, a
secessão acarretaria uma miséria espantosa, um terrível caos político, o
assassinato generalizado e, logo depois, a ditadura belicosa dos comunistas..."
— E, dá-lhe nos comunistas! — Ironizou Charles.
"...Mas, é preciso que esse demônio seja exorcizado, e que seja pelos
argelianos. Porque, se por infelicidade tal fosse mesmo a vontade deles, a
França deixaria imediatamente de consagrar milhares de homens valorosos a
servir uma causa sem esperança. Naturalmente, aqueles argelianos, de
qualquer origem, que quisessem permanecer franceses, permaneceriam de
qualquer modo e a França providenciaria, se necessário, o agrupamento e o
estabelecimento deles. Por outro lado, todas as disposições seriam tomadas
para que a exploração, o transporte e o embarque do petróleo do Saara, que são
obras da França e interesse do Ocidente, sejam assegurados, não importa o que
aconteça... Ou: o afrancesamento completo..."
— Você vê que ele só se interessa pelo petróleo! Autodeterminação, tudo
bem, mas cuidado! Se vocês escolherem a secessão, como ele diz, deixaremos
vocês se degolarem uns aos outros e, enquanto isso, embarcamos o seu
petróleo...
— Charles, você raciocina muito mal... de Gaulle é o Chefe de Estado;
qualquer coisa que proponha dificilmente será aceita tanto na Argélia como na
metrópole. Ele não pode dizer: "Tomem a sua independência e fiquem com tudo
que nós investimos na Argélia!" Os franceses e a opinião internacional não
compreenderiam. — Explicou François.
"...tornando-se parte integrante do povo francês que se estenderia, a partir
de então, de Dunquerque a Tamanrasset. Ou: o governo dos argelianos pelos
argelianos, apoiado pela França e em estreita união com ela na economia, na
educação, na defesa, nas relações exteriores..."
— Léa, não tem nada para beber? — Perguntou François.
— Eu também tenho sede. — Sussurrou Camille, encolhendo-se de
encontro ao pai.
— Então, venha me ajudar. — Disse Léa à filha, que a seguiu a
contragosto.
Elas voltaram pouco depois, trazendo copos e garrafas.
— Coca para as crianças, uísque para os grandes! — Anunciou Camille;
passando os copos que tilintavam com as pedras de gelo.
— Obrigado, meu amorzinho.
— O que mais disse o grande homem? — Quis saber Léa, deixando- se cair
no sofá, ao lado de François.
— Ouça! — Intimou ele.
"... O destino dos argelianos pertence aos argelianos, não mais imposto
pela espada e pela metralhadora, mas conforme a vontade que expressarão pelo
sufrágio universal. Com eles e por eles, a França garantirá a liberdade de sua
escolha..."
— Teus companheiros dos Invalides devem estar verdes diante da TV. —
Debochou Léa.
François, com a expressão preocupada, não respondeu.
— Você acha que isso vai dar certo? — Perguntou Charles.
— Se todos tiverem boa vontade, é possível... — Comentou ele, com os
olhos presos na tela.
"... a rota está traçada. A decisão, tomada. A jogada é digna da França.
Durante o Hino Nacional, cada um ficou perdido em seus pensamentos. Adrien
foi o primeiro a se levantar e se aproximou do pai.
— Papai, você vai voltar para a Argélia?
— Não sei... Se me mandarem, eu vou.
Ele fingiu ignorar o olhar sombrio que Léa lançou-lhe.
Capítulo 3
— Madame Tavernier?
— Sim, bom dia.
— Não sei se você se lembra de mim, sou Vincent, nós nos conhecemos há
três meses, no Pont-Royal...
— Sim, eu me lembro.
— Podemos nos encontrar rapidamente?
— Mas...
— Não posso dizer nada pelo telefone. Venha em uma hora ao bar da Rua
Seine, não é longe da sua casa. Eu a espero lá. Até já.
Inquieta, Léa desligou: o que queria dela o gentil lagarto?
Ela havia encontrado novamente Roger Vailland no Drugstore da Charnps-
Élysées, poucos dias depois daquele primeiro encontro no bar do Pont-Royal.
Ele lhe ofereceu o Elogio ao cardeal de Becais e ela riu de sua pose de libertino
a qualquer propósito que tanto seu olhar brilhante quanto suas mãos
desmentiam... Infelizmente, o escritor disse algumas frases desiludidas sobre a
Argélia que a decepcionaram. Eles se despediram friamente. Como ela passou o
verão em Montillac, não teve mais notícias dele. No dia seguinte ao discurso do
general De Gaulle, ele veio novamente à tona, através de Vincent. Se a
autodeterminação, que ouviu dizer de Françoise abria a porta para a
independência da Argélia desse certo, ela não tinha mais nenhuma razão para
querer ajudar os argelianos. No entanto, ela não escutou a voz que lhe dizia
para ficar fora disso tudo, que ela sabia melhor do que ninguém aonde isso
podia levar, que ela devia isso a seus filhos muitas vezes negligenciados, a
François que a amava, que ela tinha certamente adquirido o direito de viver em
paz, que ajudar os argelianos em guerra contra a França era talvez uma espécie
de traição...
Ela foi levada pela curiosidade.
A chuva da noite tinha lavado o céu e as ruas de Paris. Era uma daquelas
manhãs de outono em que a luz gruda marcas de alegria nas fachadas, em que
o ar traz o cheiro de cogumelos. Tudo parecia leve, fácil, amável. Uma vontade
de correr tomou conta de Léa. Na esquina da Rua Saints-Pères, ela parou,
ofegante. "Não tenho mais idade para isso!", pensou ela. Os olhares cúmplices e
eloqüentes de três operários, encostados no balcão de um bar, fizeram com que
ela esquecesse o tempo que passa...
Na Rua Jacob, diminuiu o passo para contemplar as vitrinas dos
antiquários e das galerias de quadros em cujos vidros se refletia sua fina
silhueta. Ela teve um sobressalto; por um instante, um vulto surgiu ao lado do
seu. Ela se voltou: ninguém. Passou a mão na testa, repentinamente
assustada, e apoiou-se na fachada de uma loja. Onde foram parar a bela luz, a
alegria do dia, o aroma de bosque? Um fantasma afastou-os...
— Laure... — Murmurou ela.
Léa estremeceu com a lembrança de sua irmã assassinada nesse bairro
que, no entanto, ela ainda amava. "A erva tornou-se negra". — Pensou ela. Um
soluço lhe subiu à garganta. Ela se pôs a caminho, apressando o passo.
Vincent esperava na sala dos fundos do estreito bar, diante de uma xícara
vazia.
— Obrigado por ter vindo. Quer um café?
Léa aceitou.
— George, dois expressos! Mas... você chorou? — Preocupou-se ele de
repente, seguindo com o dedo a marca da lágrima. Ela recuou e passou a mão
no rosto com um gesto brusco.
— O que você tem de tão urgente para me dizer?
— Você ainda está com a mesma disposição que no nosso primeiro
encontro?
— O discurso do general De Gaulle não mudou tudo?
— É muito cedo para dizer... Enquanto isso, preciso da sua ajuda.
— De que se trata?
— Posso estar me arriscando em lhe contar isso. Mas, hoje, não tenho
escolha. Um de nossos carregadores de malas foi preso antes de poder pegar o
pacote que era sua incumbência. Se a polícia interrogá-lo com os seus métodos
habituais, ele dará o endereço... Não posso ir lá pessoalmente porque sou
conhecido tanto pela zeladora como pelos policiais que vigiam o prédio. Para
você, ao contrário, será fácil.
— Onde está esse pacote?
— No consultório do dr. Colin, na Avenida da República, nº13. É um
clínico geral que atende muita gente; você passará despercebida.
— Quando devo ir lá?
— Agora... Pegue esta bolsa; ponha o dinheiro dentro.
— O dinheiro?
— O que é coletado para a FLN.
— Mas o que devo fazer com ele?
— Levá-lo à Suíça.
— À Suíça?!
— Sim, é isso; um correspondente alemão vai encontrá-la na Estação de
Lausanne.
— Mas... não posso partir assim! Como vou explicar essa viagem?
— Aqui estão os cafés! — Anunciou o dono do bar. — Um croissant para a
senhora?
— Não, não, obrigada.
Léa quebrou um pedacinho de açúcar com os dentes. Havia uma espécie
de ternura no olhar que Vincent pousava nela.
— Há um trem às treze horas, partindo da Estação de Lyon; aqui está sua
passagem. Não se esqueça do passaporte. Você tem tempo de passar em casa
para pegá-lo, com mais algumas coisas.
— Você parece muito seguro de que vou aceitar...
— Não, mas espero ardentemente que o faça. Eu já disse: não tenho outra
escolha. Se não recuperarmos esse dinheiro, são muitos milhões que cairão nas
mãos da polícia...
— Mas, e a alfândega?
— O fiscal desse trem é dos nossos. Ele vai cuidar da bagagem durante a
viagem e entregará a você na chegada. Nosso correspondente local vai estar
perto do quiosque de jornais e estará lendo France Soir. Você vai se aproximar
e dizer a ele: "Eu venho da parte de Vincent." Ele responderá: "Da Rua das
Acácias?" Então, você lhe dará a bolsa.
— E se ele não estiver lá?
— Você vai para o Hotel Metrópole e pergunta, na recepção, pelo sr. Jean;
é o contador do hotel. Ele lhe dará um quarto e dirá o que fazer em seguida.
Mas isso não será necessário...
— Que organização! — Ironizou ela.
— Sim e não. Não passamos de amadores da ação clandestina... Mas nós
nos divertimos bastante...
— Vocês... vocês se "divertem"!
— É menos monótono que trabalho de escritório... Não, estou brincando.
Meus camaradas me criticam bastante por isso.
— No fundo, por que você faz tudo isso?
— Porque isso me dá prazer!
Léa caiu na risada antes de concluir:
— Gosto da sua resposta... Você não procurou embrulhar sua mercadoria
com o papel gasto da ideologia. Você age assim porque isso o "diverte", como
você diz, e porque isso lhe parece justo. E pronto.
— O riso lhe cai bem.
— Não mude de assunto... Estou enganada?
— Não, está perto da realidade... Então você aceita?
— Sim.
Pouco antes das treze horas, Léa subiu no trem com destino a Lausanne.
Rapidamente, passou a bolsa e seu conteúdo ao fiscal que marchava na frente
do comboio. Em seguida foi para o vagão restaurante onde se acomodou e
comeu com muito apetite.
No mesmo dia Charles tinha recebido de Leclaire a ordem de ir a Lyon para
buscar o jornal clandestino de Francis Jeanson, Vérité pour. Chegando ao
destino, ele subia ainda para a plataforma, quando o comboio começou a
andar. Teve um sobressalto: por um instante, pensou reconhecer Léa por trás
da janela de um vagão de primeira classe. Mas não, a essa hora, ela estaria em
casa, na Rua de Le Université; além disso, nesta manhã mesmo, tinham
tomado café da manhã juntos. Logo, ele se persuadiu de que tinha sonhado, ou
que era alguém muito parecido com ela.
No bairro Saint-Jean, ele encontrou logo o endereço que lhe tinham dado e
onde lhe entregaram os jornais. Andou um pouco à toa pelas ruas antigas,
depois tomou tranqüilamente o caminho da estação para pegar o expresso das
dezessete e trinta.
Quanto à Léa, à meia-noite ela estava de volta em casa. Na entrada
encontrou um recado que François tinha deixado, recomendando que não o
esperasse para jantar; ele voltaria tarde. As crianças estavam dormindo. Sob a
porta do quarto de Charles via-se um raio de luz; ela bateu, depois girou a
maçaneta. O rapaz, esticado na cama, estava tão absorto na leitura que nem se
mexeu.
— Isso parece muito interessante...
Ele pulou, juntou as folhas.
— Eu não ouvi você... Eu e as crianças nos perguntávamos onde você teria
ido. Claire não queria se deitar sem lhe dar um beijo.
Ele se levantou, aproximou-se e deu-lhe um beijo no rosto.
— Eu fui ao cinema...
— Ver o quê?
— Les liaisons dangereuses.
— O filme de Vadim?... E é bom?
— É...
— Mas?
— Não tem nada a ver com o livro.
— Como sempre... Seria melhor se você tivesse ido ver o filme Billy Wilder,
Quanto mais quente melhor; Marilyn Monroe está espetacular!... Você jantou?
— Não, mas não tenho fome... É bom isso que você está lendo?
— Nada apaixonante: é o programa da faculdade.
— Ah... Boa noite, meu querido. Vou beijar as crianças antes de me
deitar... Até amanhã, durma bem.
— Você, também, durma bem.
Depois que a porta fechou, ele permaneceu de pé um instante, pensativo.
A visão da estação em Lyon voltou-lhe à memória...
Quando François voltou, perto de uma hora da manhã, Léa fingiu que
dormia.
No dia seguinte, ela ligou para Vincent para dizer que tudo tinha corrido
bem.
— Eu sei, mas não ligue mais para esse número... Estou de mudança. Ele
desligou. Algumas horas mais tarde, ele ligou:
— Venha amanhã à loja de carvão da Rua Mouffetard; é uma loja no
começo da rua, não há como se enganar.
Antes que ela tivesse tempo para dizer uma palavra, ele desligou de novo.
Depois do almoço, Charles levou os exemplares de Vérité pour a Leclaire,
num bar da Champs-Élysées freqüentado pela juventude dourada dos bairros
ricos, o Pam-Pam.
As moças, quase todas maravilhosas, fumavam rindo muito alto, enquanto
os rapazes comparavam seus sapatos novos, organizavam o próximo jogo ou
discutiam sobre o último Chabrol, Les Cousins, que recebeu o prêmio de
melhor filme no último festival de Berlim. Essa exposição de futilidade divertia
Charles e irritava Jacques.
Ele resmungava contra esses filhinhos de papai, esses garotos ricos.
Ostensivamente, abriu o Humanité, que depois de ter criticado duramente a
autodeterminação proposta por de Gaulle, agora voltava atrás.
— Não compreendo a atitude dos comunistas, e você? — Perguntou
Charles.
— Eu também não. — Replicou Jacques Leclaire. — Mas Thorez e o
Partido devem saber o que fazem... Correu tudo bem em Lyon?
— Tudo.
— Você podia hospedar um amigo argeliano durante alguns dias?
— Não sei: eu moro com meus pais... Há um quarto de empregada
desocupado, ele serve de depósito...
— É exatamente o que precisamos: numa rua bem burguesa, não irão
procurar nosso amigo! Os esconderijos de Saint-Denis foram tomados pela
DST. Todo o quarteirão árabe, perto da basílica, está agora vigiado pelo
exército. É preciso desconfiar da empregada...
— É uma boa mulher.
— Não duvido, mas as empregadas são as primeiras a serem interrogadas
pela polícia... Você precisa de uma mãozinha para tornar o quarto habitável?
— Não... Mas é garantido que o seu amigo só vai ficar por pouco tempo?
Não quero que minha família tenha problemas por causa disso.
— "Isso", como você diz, é um membro da FLN que arrisca a sua pele na
França.
— Ah! Agora estou mais tranqüilo! — Ironizou Charles.
— Você vai ser avisado do dia e da hora da chegada dele; será no correr da
semana... Bom, vou embora, tenho um outro encontro.
— Deixe. — Disse Charles, empurrando a mão de Leclaire que já segurava
uma nota. — É por minha conta.
— Então, obrigado... Até logo.
Na mesa vizinha, uma garota mastigava o seu canudinho, com o olhar
vago, girando automaticamente o copo vazio entre os dedos. Os cabelos
escuros, longos e volumosos, escondiam parte de seu rosto. Perto dela, o último
romance de Raymond Queneau de que todo mundo falava, Zazie dans le metro.
Ela virou a cabeça e plantou seus olhos nos dele. Com o choque desse olhar
azul, Charles sentiu-se corar por baixo da barba. Desde que voltou de Cuba, ele
não tinha praticamente dirigido a palavra a nenhuma garota da sua idade.
Levou alguns segundos para perceber que ela falava com ele.
— Você vem sempre aqui? Eu nunca o vi...
— É a primeira vez. — Balbuciou ele.
— Eu venho aqui todos os dias na mesma hora... É um tédio!
— Então, por que você vem?
— Não sei... O que você faz?
— Sou estudante...
— Deixe-me adivinhar... Letras?... Matemática?... Medicina?... Não? Você
tem cara de médico, no entanto... Ah, já sei: Filosofia!
— Não, Direito.
— Para ser advogado como meu pai? É sinistro...
A empolgação dela o fez sorrir.
— Não ria, eu sei do que estou falando!
— Não duvido... Você quer beber alguma coisa?
— Por que não... Um gim-fizz, então... Como é o seu nome? O meu é
Marie-France.
— Charles d'Argilat... Garçom! Por favor, dois gim-fizz.
O bar estava lotado, as luzes da cidade tinham se acendido sem que os
dois jovens percebessem.
— Marie-France, você viu a hora? Vão nos matar!
Ela fez uma careta para o rapaz bonito e elegante, de vinte e poucos anos,
que acabava de falar com ela.
— Pare de bancar a educada. — Ordenou ele num tom gentil. —
Prometemos à mamãe chegar na hora do jantar. Do jeito que está o trânsito, só
chegaremos para a sobremesa!...
Mas, você não me apresenta?
— Charles d'Argilat, futuro advogado... Meu irmão, Jean-Marie Duhamél.
Os dois rapazes trocaram um enérgico aperto de mão.
— Sinto muito, mas teremos que nos conhecer melhor numa outra
ocasião. Marie-France, vamos, estacionei em lugar proibido...
— Já vou. Adeus... Até logo!
Charles olhou-a partir com um aperto no coração. Ele resistiu ao desejo de
correr atrás dela para pedir seu endereço.
— Volte amanhã, ela vem todos os dias. — Sugeriu o garçom, um homem
de cabelos grisalhos que limpava a mesa.
Charles sorriu: amanhã, iria revê-la amanhã...
— Eu me pergunto o que uma garota tão delicada pode encontrar num
lugar como este. — Acrescentou o garçom a meia-voz, como se falasse consigo
mesmo.
As luzes da Champs-Élysées nunca brilharam tanto. Nas calçadas, os
pedestres felizes da vida, exibiam grandes sorrisos. Os veículos, imobilizados
por um congestionamento, tocavam com suas buzinas uma música alegre. Na
rotatória, os canteiros exalavam perfume. As castanheiras dos jardins ao longo
da "mais bela avenida do mundo" deixavam generosamente cair seus frutos.
Charles pegou uma castanha. Ao contato com sua casca lisa, ele se reviu,
menino, oferecendo-a sua mãe. Na Place de Ia Concorde, o céu invadia todo o
espaço. No Sena, os bateau mouches levavam turistas maravilhados. Paris,
nesta noite, tinha vaidades de uma jovem mulher, ávida por agradar.
De um barco vinha o som de um acordeão. Charles se inclinou no
parapeito da ponte; era um rapaz que tocava um refrão. Diante da Assembléia
Nacional, carros da CRS estacionavam e soldados, armas a postos, vigiavam as
redondezas. De repente, toda a doçura sumiu. Um carro que passava soletrou
com a buzina "Ar-gé-lia fran-ce-sa", "Ar-gé-lia fran-ce-sa"; logo, outros se
juntaram a ele sob os olhos vigilantes dos militares e dos policiais. No Bulevar
Saint-Germain, uma patrulha parou-o e pediu seus documentos.
— Vá para casa. — Aconselhou o oficial. — O clima não está bom, neste
momento, em Paris.
Quando ele chegou em casa, Léa e as crianças tinham acabado de jantar.
— Por que você não telefonou para me dizer que chegaria tarde? — Léa o
repreendeu. — Eu estava preocupada...
— Desculpe, não vi o tempo passar. Vim a pé desde a Champs-Élysées; o
céu estava magnífico!
Léa observou-o atentamente; um brilho completamente novo parecia
flutuar no olhar dele. Ela ficou feliz e, com um tom mais brincalhão, perguntou
se ele tinha jantado.
— Não, mas não estou com fome... Onde está François?
— O general De Gaulle mandou chamá-lo há mais ou menos meia hora.
O diretor do gabinete do Presidente da República, René Brouillet,
introduziu François Tavernier no Salão Dourado, gabinete do general de Gaulle
no primeiro andar do Palácio Elysée.
— Boa noite, Tavernier. Estou feliz em vê-lo... Mas, sente-se, só vou
demorar um instante...
Como em todas as vezes que se encontrou na presença do homem da
França livre, François ficou emocionado. E, nesta noite, assim como em 1943
em Londres, como em 1944 na Rua Saint-Dominique, como em 1958 na Rua de
Solferino, ou em Colombey-les-Deux-Èglises, ele se perguntava com uma ponta
de angústia e um orgulho que o incomodava: "O que ele espera de mim?" O
Chefe de Estado terminou de assinar, levantou os olhos, ajustou os óculos e
considerou seu interlocutor em silêncio, com as mãos finas repousando abertas
diante dele.
— Tavernier, apelo novamente a você. Você vai voltar à Argélia. Preciso
saber o que se trama lá. A minha volta, só se fala de complôs, criticam minha
política sem refletir sobre as conseqüências que sua rejeição pode trazer à
França e à sua posição no mundo. Na Argélia, excitando e explorando a emoção
daqueles de origem francesa, os ativistas já falam em se insurgir. Um "front
nacional francês" organiza-se lá na clandestinidade, sob a direção de Ortiz.
Gritam: "Precisamos de uma Charlotte Corday!" O grande jornal dos pés-pretos,
Médio d'Alger, que até agora mostrava disposições moderadas com relação a
mim, adota agora um tom mais hostil. No meio de cultura argelino, os
funcionários e oficiais, mantêm contatos aborrecidos pelo excesso de lealdade
às instituições. "Podíamos encontrar", cochicham eles em seus gabinetes e
refeitórios, "um meio de obrigar o general a se arrepender". Na própria França,
Georges Bidault, com alguns parlamentares, funda a "União pela Argélia
francesa", onde se concentram os agitadores habituais dos grupos ditos de
"extrema direita". De qualquer modo, a Argélia francesa é uma gozação, e
aqueles que preconizam a integração são uns imprestáveis! E me criticam por
ter lançado, há um ano, o plano de Constantine!...
Esgotado e cheio de dúvidas, de Gaulle levantou os braços.
— Isso deu a impressão de que o senhor ia fazer a Argélia francesa. —
Insinuou François.
O general lançou-lhe vim olhar sem o menor sinal de afabilidade.
— Fiz isso porque só se pode sair dessa caixa de escorpiões fazendo a
Argélia evoluir completamente. A Argélia de antigamente morreu e quem não
compreende isso morre com ela. É preciso tentar lutar contra o processo de
redução da Argélia a uma situação de miséria. É claro que a pacificação
também precisa fazer progressos na região. Mas ela não será jamais definitiva
se a Argélia não se transformar. Tento transformá-la. A unidade, a igualdade de
direitos, as eleições que dão aos muçulmanos o direito de votar para designar
seus representantes, a abertura das funções públicas aos muçulmanos, o
respeito de cada comunidade, o que são, senão a integração, mas uma
integração realista? Mas não se deve ficar só nas palavras. É possível integrar
os indivíduos; mesmo assim, apenas numa certa medida. Não se integram os
povos, com seus passados, suas tradições, suas lembranças comuns de
batalhas ganhas ou perdidas, seus heróis. Você acredita que seja possível entre
os pés-pretos e os árabes? Você acha que eles têm o sentimento de uma pátria
comum, capaz de superar todas as divisões de raças, de classes, de religiões?
Você acha que eles têm realmente a vontade de viver juntos?
— A integração é uma brincadeira de mau gosto por permitir que os
muçulmanos, que são maioria na Argélia, na proporção de dez para um,
tornem-se minoria na República francesa, de um para cinco. É um passe de
mágica infantil! As pessoas imaginam que podem pegar os argelianos com esse
truque? Você já pensou que os árabes se multiplicarão por cinco e, depois, por
dez, enquanto a população francesa permanece praticamente estável? Haverá
duzentos, depois quatrocentos deputados árabes em Paris? Você pode imaginar
um presidente árabe no Elysée?
O general de Gaulle levantou-se, deu alguns passos, depois parou diante
de uma tapeçaria de Gobelins representando dom Quixote.
— Minha cidade não se chamará mais Colombey-les-Deux-Églises, mas
Colombey-les-Deux-Mosquées! — Resmungou ele.
François, imitando-o, tinha se levantado; o General fez sinal para que ele
se sentasse e tomou assento numa poltrona perto dele.
— É melhor para a França uma Argélia argeliana no seio da comunidade
do que uma Argélia francesa no seio da França, que nos derrubaria para
sempre. Se a Argélia permanecesse francesa, teríamos que assegurar aos
argelianos o mesmo padrão de vida dos franceses, o que está fora de alcance.
Se eles se separam da França, terão que se contentar com um nível de vida
muito inferior...
— Como tem sido desde a conquista... O general ignorou a interrupção.
— ...Pelo menos, não poderão se queixar da França e terão uma satisfação
de dignidade, a de receber o direito de governarem a si mesmos. A colonização
acarretou sempre um desgaste de soberania. Mas, hoje em dia, além disso, ela
acarreta despesas gigantescas de nível econômico e social. A colônia tornou-se
para a metrópole não mais uma fonte de riqueza, mas uma causa de
empobrecimento e de atraso. As exigências dos nativos para seu progresso
social aumentaram, o que é perfeitamente natural. O lucro deixou de
compensar os custos. Mas, se ela custa tão caro, por que mantê-la, se a
maioria da população não quer mais isso?
— Na sua opinião, o petróleo não conta mais?
— Não se iluda. O petróleo e o gás não serão suficientes para pagar o
esforço que a Argélia exige de nós.
Ele levantou-se, afastou-se alguns passos e veio sentar-se novamente.
— O drama argeliano não se limita à própria Argélia ou às relações da
Argélia com a França. Ele afeta os próprios franceses. Contamina toda a
França. Mina a situação da França no mundo. É como uma cruz. É preciso
livrar-se dela. Essa é minha missão. E não é nada divertida. Ponha-se no meu
lugar! Não faço isso com alegria! Você vai para Argel. Delouvrier e Challe estão
preocupados, sua presença vai tranqüilizá-los...
— General, o senhor superestima minha importância...
O Presidente da República lançou-lhe um olhar sombrio e replicou
secamente:
— Não é de você que se trata, mas de de Gaulle. Quero saber até que ponto
o exército se comprometeu com os radicais. Sei que posso contar com Challe e
Massu; são soldados disciplinados. Mas, há os coronéis... Não acredito numa
rebelião dos oficiais... Já avisei a Delouvrier da chegada de um observador. O
delegado geral facilitará sua missão de modo discreto. Oficialmente, você está a
serviço do governo, para inspecionar o gasoduto de Bougie e visitar os poços de
petróleo de Edjelé e de Hassi-Messaoud...
— Mas, general, o senhor esteve lá em dezembro passado!
— E daí? Os trabalhos devem ter avançado, desde então! François não
pôde deixar de rir com essa observação.
— Vejo, pela sua expressão, que isso tudo não o desagrada.
— General, posso fazer uma pergunta?
— Faça.
— Por que o senhor me escolheu de novo? Não há, ao seu redor, homens
devotados, prontos a fazer qualquer coisa pelo senhor e mais competentes em
política?
De Gaulle levantou-se, apoiando os dois punhos na mesa de trabalho.
Aproximou-se de François que, por sua vez, também se levantou.
— Exatamente. — Confiou ele, segurando-lhe o braço. — Eles são muito
próximos, muito preocupados em me agradar. São políticos. Você, não. Você
jamais militou por mim, mas respondeu "presente" quando apelei a você.
Alguns militantes do RPFiS acreditam que têm direitos sobre mim, ao passo
que me devem tudo. No passado, suas observações me foram preciosas.
Diante da porta, o general estendeu-lhe a mão, uma mão quase mole, com
uma leve pressão, que sempre surpreendia.
— Tavernier, como na caça, não vou lhe desejar boa sorte. François
encontrou-se no salão dos ajudantes de campo, onde Brouillet o aguardava.
— Aqui estão suas passagens de avião; você parte depois de amanhã, às
dezessete e trinta. Uma verba para as despesas será remetida para o diretor dos
gabinetes civil e militar, Michel-Jean Maffart, em Argel. É claro que a maior
discrição...
— Não é preciso dizer. — Concordou François, ironicamente.
Saindo da Avenida Marigny, François dirigiu-se, com o passo enérgico,
para a Champs-Élysées. Na altura do teatro, parou, depois caiu na gargalhada:
"A velha raposa me pegou de novo!"
Capítulo 4
Os dias lindos se sucediam. Este verão de 1959 estava excepcional. Os
jornais comentavam sobre o recorde de novecentas horas de sol em Paris, no
mês de junho, julho e agosto, e do resultado sem precedentes das colheitas de
trigo e de batatas. As mulheres usavam vestidos leves, as calçadas dos cafés
não esvaziavam nunca e os vendedores de sorvetes ganhavam uma fortuna. As
pessoas se acotovelavam na piscina Deligny, onde os corpos ganhavam um
bronzeado digno da Cote d'Azur. O nível do Sena estava baixo e, de suas águas
negras, agitadas pela passagem dos barcos e dos bateaux-mouches, subia o
mau cheiro de lodo, de peixe morto e de combustível dos barcos. Apenas as
árvores tinham uma aparência triste. As folhas, prematuramente amareladas,
caíam tecendo, ao longo das alamedas do Luxembourg, um tapete farfalhante
que as crianças dispersavam, numa nuvem de poeira, pisando com força.
Atravessando o jardim, Léa teve vontade de fazer o mesmo. No alto da Rua
Soufflot, o Panthéon se destacava, sombrio, contra o céu de um azul insolente.
Na Praça da Contrescarpe, uma cantora de rua massacrava uma canção de
Edith Piaf, enquanto uma velha jogava migalhas para os pombos que se
juntavam em volta dela. Na parte baixa da Rua Mouffetard, Léa comprou um
cesto de uma cigana que tinha se instalado perto do jardinzinho da Igreja
Saint-Médard. Enquanto procurava uma moeda para pagar, a mulher agarrou-
lhe a mão esquerda e segurou-a firmemente. Léa tentou se soltar, mas não
conseguiu.
— Não é de mim que você deve ter medo, minha bela. — Disse a cigana,
abrindo-lhe os dedos. — Mas de você... Seu marido e você estarão, os dois, às
voltas com forças malignas... Você corre o risco, sim, corre o risco de perdê-lo...
e você vai se envolver em acontecimentos cuja importância não compreende...
Alguém próximo a você, um jovem, corre grande perigo... Seus filhos também...
e, sua mão está tremendo... Existem lembranças terríveis dentro de você?...
Mortes, sim, muitas mortes... amor, muito amor também... O amor que pode
ser mais forte que a morte, você sabe... Você tem, dentro de si, uma grande
força... Mas, apesar desse amor, você também sente uma enorme solidão... Vejo
um homem muito alto, muito só... Dele dependem muitas coisas boas e más...
Há muito ódio em volta dele, muito... traições também... A força que você
possui, conserve-a, é seu trunfo mais poderoso... Você vai receber uma notícia
muito triste... Longe, um avião... sim, um avião que cai!... Não, ele aterrissa,
um belo homem desce... sorri... tiros!... Oh!...
A mulher, alta e forte, vestida com uma saia florida de cores vivas, largou
bruscamente a mão de Léa. Com a ponta do lenço que lhe cobria os cabelos,
enxugou o rosto, onde o suor brotava. Seu olhar fixo parecia perdido numa
visão da qual não conseguia se livrar. Após um momento, balançou a cabeça e
encarou Léa que, perturbada, desviou os olhos. Por fim, a cigana deu um
sorriso sem alegria.
— Esqueça o que eu disse, não sei o que me aconteceu... Deve ser essa
droga de igreja que me faz ter visões! É um endereço maldito, eu sei. Mas, é
mais forte que eu, eu sempre volto... E nem é um bom ponto para vender... No
entanto, não deixo de fazer uma prece na capela da Virgem e de lhe oferecer
uma vela... e também à Terezinha do Menino Jesus.
Sempre falando, ela recolhia suas coisas. Léa não se mexia. A mulher
pegou-lhe o braço.
— Vá embora... Você tem mais o que fazer do que ficar escutando uma
velha louca!
— O que você quis dizer quando falou dos meus filhos?
— Ah, nada... Foi só para deixar você curiosa e lhe arrancar uns trocados.
Léa fuçou na bolsa e tirou algumas notas.
— Tome... Conte tudo.
A cigana empurrou o dinheiro.
— Não quero!
— Pegue... Você fez seu trabalho sujo de feiticeira... Agora, pegue!
— O que está acontecendo aqui? A adivinha está importunando a
senhora? — Perguntou um policial gordo, seguido de outro mais magrinho.
— Não. Ela recusa que eu a pague...
— A senhora tem sorte! Essa gente... são todos ladrões! Guarde seu
dinheiro. De qualquer jeito ela está errada: não é permitido se instalar na frente
da igreja... Vamos, andando, dê o fora!
Resmungando, a mulher recolheu seus cestos e, depois, com um último
olhar, jogou um para Léa:
— Este aqui é seu; você pagou por ele... Quanto ao resto, esqueça, você
não me deve nada.
Um enorme cansaço invadiu Léa. Automaticamente, ela se dirigiu para o
pórtico da Igreja Saint-Médard. Assim que o atravessou, um frio úmido a
invadiu. Desde o começo da nave, pairava no ar um cheiro de poeira misturado
com incenso. Diante de um confessionário de madeira escura, havia um
pequeno grupo de mulheres ajoelhadas. A cena lhe lembrava a Igreja de
Verdelais onde, em criança, ela ia fazer companhia à Santa Exupérance, aquela
pequena mártir que devia se aborrecer, esticada sozinha na sua caixa dourada,
tão comovente no seu vestido de cetim branco; mais tarde, era ainda a
Exupérance que ela vinha confiar seus sofrimentos... Ao pé do altar sobre o
qual brilhava a luz vermelha, símbolo da presença divina, Léa elevou os olhos.
Sentou-se, procurando as palavras de uma prece, sentindo um enorme vazio.
Quando saiu para a alegre luminosidade desse final de manhã de outono,
as flores expostas por uma vendedora trouxeram um sopro tardio de primavera.
Os gritos dos comerciantes que vendiam suas mercadorias, o cheiro dos frangos
assando, o de pão quente, o forte mau cheiro que cercava a peixaria, o aroma
do café fresco torrado, o riso das donas de casa por causa das brincadeiras dos
camelos, toda essa agitação ruidosa, perfumada e colorida serenou Léa. Essa
abundância de víveres tinha qualquer coisa de obscena, mas sua trivialidade
lhe dizia que continuava a pertencer ao mundo dos vivos, e isso a tranqüilizava
um pouco.
No balcão da loja de carvão, açougueiros com os aventais sujos de sangue
se acotovelavam com operários em uniformes de trabalho; era a hora do
aperitivo. Sentadas nas duas mesas do estabelecimento, jovens vendedoras
bebiam café, cochichando confidências que as faziam estourar de rir. Léa
deslizou entre os fregueses e chegou ao fundo do botequim, à procura de
Vincent.
— Até que enfim!... Eu já ia embora.
A voz que se dirigia a ela vinha de um cubículo mal iluminado, que não
havia percebido antes porque estava disfarçado por uma pequena escada em
caracol. Ela se sentou numa banqueta, encostada numa cortina pesada, do
mesmo tom vermelho que o assento e olhou ao redor com uma curiosidade não
disfarçada. Depois do exame, perguntou:
— Você vem sempre aqui?
— Isso não é importante.
— Você está aborrecido?
— O problema também não é esse: você deve compreender que a falta de
pontualidade pode ter graves conseqüências. É imprudente ficar muito tempo
num lugar de encontro.
— Desculpe... Encontrei uma cigana que me fez previsões horríveis...
Vincent encarou-a com um olhar incrédulo. Ela continuou:
— Eh... eu sei muito bem que são bobagens, mas o que ela disse, tive a
impressão de que ela via realmente... Ah! Não me olhe com esse ar de pena! Ela
me disse que meus filhos corriam perigo... Eu sempre tive medo por eles, você
sabe...
A lágrima que rolou pela face dela acalmou a irritação que Vincent sentia
crescer nele. Ele abraçou-a carinhosamente.
— Você se comporta como uma garotinha sentimental! Eu pensando que
você fosse a mulher forte de que falam as Escrituras, e você acredita nas
bobagens da primeira pitonisa que aparece e que só quer o seu dinheiro!
— Ela não quis...
— E, como num romance de quinta categoria, você concluiu que o que ela
dizia era verdade!
— Você tem razão... Deve ser por causa do clima que reina em Paris,
nossos encontros secretos, minhas mentiras, essa guerra que não termina
nunca... Apesar do meu atraso, posso beber alguma coisa?
— Eu recomendo o Chablis do proprietário.
— Que venha o Chablis.
Vincent fez sinal ao bigodudo cinqüentão, de boina na cabeça, que servia
no balcão, em mangas de camisa. Pouco depois, ele trazia três copos e uma
garrafa.
— É por minha conta! — Declarou ele, sentando-se em frente a eles. Vocês
me contam as novidades... Armande! Traga a lingüiça, por favor.
Uma mulher alta e magra, toda vestida de preto, cabelos grisalhos
puxados num coque severo, veio colocar na mesa uma vasilha com patês,
queijinhos muito secos, grandes fatias de pão com manteiga e lingüiça seca.
— Estou com um pouco de fome, vocês não? — Perguntou, tirando do
bolso um canivete que ele abriu batendo no joelho.
— Eu estou! — Exclamou Léa.
— Muito bem! Gosto das mulheres que sabem se portar à mesa...
Experimente este patê de lebre, foi a patroa mesma que fez.
— Você acha que isso vai bem com o Chablis?. — Perguntou Léa,
segurando a vasilha.
— Mas ela entende do assunto, a sua amiga! Termine o seu copo...
Armande! Traga o saca-rolha e uma garrafa do vinho da família. É meu irmão
que faz e, cada vez que eu o bebo, me vejo, pequenininho, tomando conta das
ovelhas de minha avó com o velho Mareei... Na mochila, o velho Mareei tinha
sempre uma garrafa de vinho, do vinho de meu avô. Foi com ele que tomei meu
primeiro porre... eu devia ter seis ou sete anos! Ah! Esse vinho... ele tem o
cheiro da terra e do suor daqueles que cuidam dela!
Ele abriu a garrafa sem rótulo que a mulher havia trazido, cheirou a rolha,
derramou um pouco no fundo do copo, levou-o às narinas, girou-o contra a luz.
Por fim, bebeu. Armande, Vincent e Léa permaneceram em suspenso,
esperando o veredicto.
— Deus é grande!
Todos deixaram escapar um suspiro de alívio.
— Armande, pegue um copo, vamos brindar à memória de meu avô!
— Ah, Hilaire, não sei se devo... bem, só um dedinho. — Concedeu a
mulher.
Ela fez uma careta que a deixou vinte anos mais nova.
— Tem mais fregueses chegando. — Acrescentou ela rapidamente. Todos
levantaram os copos em memória do avô.
— Hum... ele me lembra o vinho de Montillac — Apreciou Léa. — Parece de
Bordeaux.
— Com os pedregulhos a mais! Ele vem da costa de Duras... Você
conhece?
Se ela conhecia? As caminhadas... os saltos de pára-quedas... os maquis...
as corridas pelos campos de tabaco e de vinhas... Duras, La Réole, Saint-
Macaire, Verdelais...
Toda a sua juventude!
Durante um momento eles saborearam em silêncio o vinho do irmão e a
vasilha de Armande.
— Tiveram notícias de seu filho? — Perguntou Vincent.
Hilaire fechou o canivete depois de limpá-lo cuidadosamente no avental
azul.
— Armande, mostre a carta do menino.
Hesitando, a mulher tirou do bolso de sua blusa preta duas páginas
dobradas em quatro; como se fosse a contragosto, estendeu-as ao marido. Seu
olhar contrito cruzou com o de Léa que, embaraçada, desviou o seu; havia
naqueles olhos todo o medo e o desespero de uma mãe. Hilaire colocou os
óculos, desdobrou cuidadosamente as folhas quadriculadas, cobertas por uma
letra grande e feia.
Queridos pais,
Estou escrevendo à luz de minha lanterna, enquanto espero meu turno de
guarda. A noite está fria e magnífica. O céu está cheio de estrelas cadentes:
parecem fogos de artifício. Bom, estou exagerando um pouco, mas é bonito
assim mesmo. Em noites como esta, a guerra parece absurda. Me lembro do
vovô que gostava tanto de se deitar ao ar livre, nas noites de verão, enrolado na
sua pele de cabra e fumando seu cachimbo. Ele teria gostado desta aqui.
Obrigado pelo pacote; não tanto pelo conteúdo, mas pelo carinho que
vocês tiveram em fazê-lo, que me dá vontade de chorar. Penso em vocês todos
os dias e amo vocês cada vez mais. Esta guerra, a distância me mostraram que
pais maravilhosos vocês são. Mamãe, a tristeza da sua última carta me fez
sofrer. Tudo está calmo no setor e o moral está alto. Então, eu lhe peço, não se
preocupe tanto. Dividi as coisas com meus companheiros, mas foi o seu patê
que fez mais sucesso; o próprio chefe disse que nunca tinha comido nada
parecido. Muito bem, mãezinha, você não perdeu o jeito! Obrigado, papai, pelos
recortes de artigos do Monde e do Humanité que você mandou. Genial a sua
idéia de colocar dentro da Sciences et Vie! Tive uma sensação estranha quando
li; parecia que eles falavam de uma outra guerra. Fiquei com um gosto ruim na
boca. E verdade que os jornalistas escrevem tranquilamente instalados atrás de
suas mesas e descrevem uma guerra — uma "operação de manutenção da
ordem", como eles dizem — da qual não conhecem nada. Deviam vir ver um
pouco como é! Em vinte meses, não vimos ninguém. Mas, eles não são bobos
para vir nos atacar porque estamos num lugar alto, e eles ficariam muito
expostos. Passamos os dias esperando. Esperando o quê? Que aconteça enfim
alguma coisa que acabe com esse tédio. Para matá-lo, o tédio, temos a cerveja.
Bebem-se muitos litros. Falta pouco para que partir numa operação seja quase
como partir numa excursão, pelo tanto que estamos de saco cheio! Quando
saímos de nosso buraco, parecemos animais, prontos a atirar em tudo que se
move, tamanho nosso medo. Apesar de tudo preferimos isso a esse tédio
viscoso que nos deteriora o espírito, a esse medo de um ataque dos fells que
nos faz cagar nas calças.
Mas, por que estou falando disso, nesta noite tão bonita e tão gostosa?
Desculpem, eu adoro vocês, mas é minha vez de fazer a guarda.
Um beijo carinhoso.
Seu filho que pensa todos os dias em vocês,
Raymond.
Com os mesmos gestos cuidadosos, o pai dobrou a carta do filho, dobrou
as hastes dos óculos e enxugou o bigode com as costas da mão. Levantou-se
pesadamente dando de ombros e foi para trás do balcão, onde devolveu a carta
à mãe.
— Eles só têm esse filho; o mais velho foi fuzilado pelos alemães e o
segundo morreu em um campo de concentração. — Comentou secamente
Vincent.
Os dois ficaram em silêncio, perdidos em seus pensamentos; depois:
— Preciso que você vá a Lille buscar o dinheiro recolhido. De carro, é coisa
de um dia.
— Como você sabe que eu tenho um carro?
Ele ignorou a pergunta.
— Além disso, você pode hospedar um amigo argeliano? Você deve ter um
ou dois quartos de empregada numa casa como a sua... o que você acha?
— Estou pensando... não é muito fácil o que você está me pedindo, desde a
guerra, não faço outra coisa senão me meter nas situações mais inverossímeis.
Parece que atraio os problemas! Detesto confusão, no entanto, aonde quer que
eu vá sou constantemente envolvida...
— Os homens não são impotentes a não ser que admitam que o são...
— Por que você diz isso?
— Não sou eu, é Jean-Paul Sartre.
— O que Sartre tem a ver com isso?
— Mais do que você pensa.
— Ele também disse: "O destino que carrego é muito pesado para minha
juventude, ele a quebrou."
Vincent olhou-a com o ar tão surpreso que ela riu.
— Gostaria tanto de escapar a esse destino e conhecer enfim a alegria de
viver! Mas como viver feliz quando em seu próprio país, acontecem coisas que
você não pode aceitar? Seu amigo ficará muito tempo em minha casa?
— Se o esconderijo for seguro, uns dez dias no máximo.
— Quando você precisa do quarto?
— Em quarenta e oito horas.
— Bom, ele estará pronto.
— Você é maravilhosa! Lúcida e corajosa...
— Inconsciente, diria meu marido...
— A propósito o que ele pensa da política do general De Gaulle?
— Evitamos falar nisso. Apesar da minha admiração pelo homem do 18 de
junho, não consigo evitar um certo desagrado com o De Gaulle presidente da
República; o que entristece François. Não que ele seja um partidário
incondicional de De Gaulle, mas ele lhe é reconhecido por ter rejeitado a
derrota. Sem ele, François gosta de lembrar, nós teríamos sido tratados como
vencidos em 1945 e ocupados pelos americanos... Enfim, para responder à sua
pergunta, ele é evidentemente favorável à independência da Argélia, como era à
da Indochina. Mas, daí a abrigar na casa dele militantes argelianos...
— Compreendo... Bom, assim que o quarto estiver pronto, ligue para
Catherine neste número, dizendo que o vestido está pronto.
— Só isso?
— Ela vai dizer o que você deve fazer. Se tiver qualquer coisa urgente para
me dizer deixe um recado aqui... Bom, agora vá. Ei, não esqueça seu cesto...
Saindo, Léa acenou amigavelmente para Armande e Hilaire.
A multidão de donas de casa tinha desaparecido e só algumas
retardatárias apressavam agora o passo. Os comerciantes cobriam suas bancas
com lonas de cores desbotadas e abaixavam as grades das lojas; para eles
também era hora de ir almoçar.
Chegando em casa, Léa encontrou no console do vestíbulo, um bilhete de
François; ele pedia que ela se arrumasse porque, esta noite, iriam jantar
romanticamente no Maxim's. Feliz, ela foi para o quarto. "O que faço com o meu
cabelo?", pensou ela, puxando-o para cima diante do espelho. Mentalmente,
passou em revista seus vestidos preferidos: "Qual deles?"... De repente, sua
alegria sumiu: "O que ele quer me contar?" Atirou-se na cama, subitamente
desanimada. Por alguns minutos, pensamentos sombrios a invadiram.
— Que merda! — Gritou ela levantando-se bruscamente.
Tirou o vestido e atirou os sapatos de salto alto, colocou jeans, sandálias,
escolheu uma camisa que amarrou na cintura. No quartinho de despejo, pegou
vassoura e panos, depois abriu uma gaveta na cozinha, à procura das chaves
dos quartos de empregada. Onde diabos ela as teria colocado?... Irritada, fuçou
em todas as gavetas sem sucesso. Talvez Philomène tenha precisado delas...
Pegou a escada de serviço e subiu os andares. As lajotas quebradas do sexto
andar não tinham sido trocadas e as paredes do corredor pediam uma boa
pintura. Um barulho de móvel arrastado veio do cômodo que servia de depósito;
mais uma das manias de Philomène: arrastar! Ela ouviu vozes; Philomène deve
ter pedido ajuda à zeladora... Léa girou a maçaneta.
Por um breve instante, os três ficaram se olhando, fixos no mesmo
espanto. Calmamente, Léa fechou a porta.
— Eu... eu vou explicar — gaguejou Charles.
— Não precisa, acho que já compreendi.
Sob seus olhares espantados, ela caiu na gargalhada.
— O que há de tão engraçado? — Perguntou Charles, desconcertado.
— Não faça essa cara, ou não vou conseguir parar de rir! — Disse Léa no
meio da risada. Eu também vou explicar... Mas, primeiro, apresente-me seu
amigo... desculpe, senhor, mas creio que estamos numa situação bastante
ridícula...
— Ridícula? — Repetiu um rapaz moreno com um belo rosto fino.
— Sim, e você vai ver por quê... Bem, vamos sentar... vamos, não fiquem
plantados assim... vocês preferem ficar de pé? Como queiram... Imagine,
Charles, que eu vinha arrumar este quarto porque queria acolher um amigo...
mais precisamente, um compatriota do senhor... vamos, recupere-se, querido!
— O quê?... mas, então... era você que estava no trem em Lyon, no outro
dia?
— Hein? Você também estava lá?... Eu preferia que você não se metesse
nisso.
— E eu, também!... Enfim, apresento Ali, que vai passar alguns dias...
— Ali, como é original... Bem, sr. Ali, estou no momento numa situação
embaraçosa: prometi hospedar alguém, e você está aqui. Como fazer?
— Léa, por favor, pare de falar assim. Você pode ver muito bem que
embarcamos na mesma aventura...
— Por que você não me disse nada?
— Porque você teria tentado me dissuadir.
— É lógico!... Eu não fui tirá-lo de Sierra Maestra para você se complicar
em Paris hoje em dia. Você sabe, é muito grave o que estamos fazendo. E nem
tenho certeza de que estamos certos de ficar do lado dos que nos combatem.
— Madame, não é o povo francês que combatemos, mas um sistema
perverso, estabelecido pela colonização, que explora sem escrúpulos um outro
povo e o mantém na ignorância e na miséria. A guerra da Argélia não é a guerra
dos árabes contra os europeus, nem dos muçulmanos contra os cristãos.
Também não é a guerra do povo argeliano contra o povo francês. É a guerra de
uma nação que luta por sua independência, para viver livremente na terra de
seus ancestrais, como seres humanos e não como escravos.
Vocês, franceses, passaram por isso não faz muito tempo... Uma grande
parte da humanidade tremeu recentemente por causa da onda do nazismo. Os
países mais visados por essa manifestação uniram-se e engajaram-se não
apenas para libertar seus territórios ocupados, mas para ferir literalmente o
nazismo, liquidar os regimes que deram origem a ele. Bem, os povos africanos
devem também se lembrar que foram confrontados por uma forma de nazismo,
uma forma de exploração do homem, de liquidação física e espiritual,
lucidamente conduzida. Homens argelianos e mulheres argelianas tombam
todos os dias, ceifados pelo furor homicida de uma soldadesca descontrolada.
A guerra não é condenável porque o exército francês se desonra com ela e
os convocados aprendem a ser fascistas. A guerra da Argélia não é a vergonha
da França.
A guerra da Argélia é primeiramente a infelicidade do povo argeliano!
Pálido, com os olhos queimando de paixão, o jovem argeliano calou-se,
sem fôlego. Léa e Charles não ousavam olhar para ele. Argumentos parecidos
Léa já tinha ouvido da boca de vietnamitas e ela só podia estar de acordo com
eles; apesar da amargura que sentia vendo a França ser comparada à
Alemanha nazista. Não encontrava palavras para justificar seu próprio país,
que chamava de "pacificação" ou de "manutenção da ordem" uma guerra sem
piedade, contra um povo cujo único erro era não querer depender de ninguém.
Ali recolheu uma bolsa e uma maleta velhas.
— Vou embora.
— Fique! — Exclamou Léa.
Indeciso, a mão na maçaneta da porta, o rapaz interrogava Charles com o
olhar, o qual, por sua vez, examinava Léa.
— Obrigado. — Murmurou ele enfim, abraçando-a.
— Em vez de nos emocionarmos, que tal ver o que podemos fazer no outro
quarto?
*
A luz rosada deixava todas as mulheres bonitas. Léa, em particular, estava
maravilhosa no seu longo tubinho preto, que revelava toda a elegância de sua
silhueta.
Ela havia prendido os cabelos para cima. Contra seu pescoço fino
balançavam longos brincos de brilhantes. O jantar estava extraordinário e o
Châteu-Lafite 1947, uma maravilha.
— Adoro estar aqui com você. Me faz lembrar de muitas coisas... Você se
lembra?
François pegou a mão dessa mulher tão linda, tão comovente, pela qual ele
morreria. Ele não se cansava de vê-la viver, sempre com um medo, dentro dele,
de perdê-la ou de que ela se apaixonasse por outro. Ele ficara sabendo da
ligação dela com Camilo Cienfuegos, mas ele mesmo não tinha sido sempre fiel.
Porém, quando ela voltou, ele compreendeu que ela tinha amado, talvez ainda
amasse, o sedutor comandante. Ele não tentou saber mais. Por medo? Amor
próprio? O fato é que, desde que percebeu que ela parecia se afastar dele
quando ele falava da guerrilha, não fez mais perguntas.
— Vamos dançar — Convidou ela com um sorriso maravilhoso. Eles se
levantaram e dirigiram-se para a pista. Os homens seguiam Léa com os olhos,
enquanto suas acompanhantes demoravam os olhos nos ombros largos de
François.
Bem apertados um contra o outro, eles dançaram uma música lenta.
Depois, o ritmo se tornou mais lascivo, a cadência se acelerou. Os quadris de
Léa ondulavam.
Ela não pôde ignorar o efeito que produziu no seu cavalheiro. Com um riso
gutural, ela acentuou o rebolado.
— Pare. — Cochichou ele, beijando-a no pescoço. — Você vai me fazer
gozar!
Ela jogou a cabeça para trás, os olhos semicerrados.
— Como você é bonita!
A música parou pouco depois. Eles voltaram para a mesa. Por um
momento ainda, permaneceram em silêncio, encarando-se, como se quisessem
guardar para sempre a imagem um do outro. O chef dos vinhos aproximou-se,
trazendo uma garrafa de champanhe.
— Aqui está o Dom-Pérignon que o senhor pediu, sr. Tavernier. Quando a
rolha saltou e as taças se encheram, eles as levantaram.
Durante toda a operação, não tiraram os olhos um do outro. O que leram
nesse olhar encheu-os de uma felicidade tão intensa que extraíram dela um
sentimento de força.
Os aplausos, à entrada de uma famosa dupla de comediantes, forçaram-
nos a voltar à realidade.
— O que você tem para me dizer? — Pronunciou Léa ternamente.
— Você adivinhou?
— Sim. Eu o conheço bem, você sabe... Quando você parte?
Apesar da aparente segurança, sua voz tremeu ligeiramente nas últimas
palavras. Novamente, François odiou-se, chamou-se de imbecil, de canalha,
quando se ouviu responder:
— Amanhã.
Ela apoiou os dois punhos, um de cada lado do corpo, no veludo do
assento, subitamente invadida por uma angústia, sentindo a própria pulsação
nas têmporas. Ficou assim por um momento interminável, imóvel, o corpo
tenso, os olhos brilhantes. A fim de disfarçar a emoção que causava o
sofrimento contido de sua mulher, François acendeu um charuto.
Automaticamente, a mão direita de Léa pousou no lado da fronte, e seus dedos
começaram a bater num ritmo todo próprio.
Os dois sabiam que não havia nada a acrescentar e que nada de bom
poderia vir de uma nova separação. Era mais forte que eles, acima mesmo do
amor. Ambos eram levados a fazer escolhas que sabiam serem perigosas. Mas
precisavam do perigo como outros precisam de paz e segurança.
Nessa noite, o prazer teve gosto de lágrimas.
Capítulo 5
Já era noite quando o Caravelle, vindo de Paris, pousou no aeroporto de
Maison-Blanche, em Argel. François tomou um táxi e rumou para o Hotel
Saint-George. Na cidade, as rajadas de um vento vindo do deserto agitavam as
palmeiras e levantavam a poeira das ruas. Os pedestres avançavam curvados,
rente aos muros. No hall do hotel reinava uma afabilidade efervescente; todo
mundo parecia se conhecer e se cumprimentar alegremente. O argeliano que
carregava a bagagem parou diante do porteiro; o homem contemplava com um
olhar complacente a multidão de europeus endomingados que se agitavam no
seu estabelecimento.
— Ah, sr. Tavernier, nós o aguardávamos. Seja bem-vindo... Ahmed, leve a
mala do senhor ao quarto 113... Bem, o senhor não é supersticioso, não é?
François não respondeu. No salão vizinho, uma orquestra tocava. Apesar
dos ventiladores, fazia muito calor, e muitos homens vestidos de branco
enxugavam o rosto ou a nuca. Uma mulher com um decote profundo, cercada
por uma nuvem de perfume forte e adocicado, empurrou François; ela ria das
brincadeiras de um homem gordo, com roupas vistosas, o perfil gordo de
imperador romano misturado com espanhol. Seus olhos eram sombreados por
olheiras escuras, cujo efeito devia ser irresistível sobre certas mulheres...
François reconhecera Joseph Ortiz, dono do café Fórum, com quem
cruzara, no ano anterior, nos corredores do Governo Geral, em companhia de
Pierre Lagaillarde e do general Massu. Ortiz também o viu; largou o braço de
sua companheira e dirigiu-se a ele, com os braços abertos.
— Tavernier!... É uma surpresa vê-lo aqui! Você veio tomar a temperatura
de Argel para fazer um relatório ao General? Bem, eu o autorizo a lhe dizer, da
parte dos partidários da Frente Nacional Francesa, que nós somos contra a
autodeterminação, mas a favor da união dos componentes das populações da
Argélia e do Saara, pela integração territorial definitiva dos departamentos
argelianos e do Saara, pela reforma das instituições e manutenção dos ideais de
13 de maio...
— Por favor, Ortiz, guarde sua propaganda, não estou interessado!
— Vá brincando, Tavernier. — Reprovou o dono do café. — Se você ficar
em Argel, você irá de espanto em espanto. E o General, também! A simples
palavra "autodeterminação" me faz pular; e, acredite, muitos estão assim, tanto
civis quanto militares. Chegamos ao famoso direito dos povos de dispor deles
mesmos. Mas, em função de que critério?
As minorias, tendo tornado os territórios salubres, tendo fundado ao preço
de sangue e de lágrimas um país rico e próspero, fatores que permitiram aos
nativos crescerem e multiplicarem-se (você sabia que a população muçulmana
quintuplicou-se desde 1830?), vão ver sua nacionalidade de franceses depender
do resultado do voto! É inaceitável!
— É o que se chama democracia...
— Dane-se a democracia! Você acha que a chegada do seu de Gaulle ao
poder foi democrática?
— As formalidades foram respeitadas...
— Bobagem! De Gaulle beijou a França, mas não vai beijar a Argélia
francesa!
— No entanto, é graças à Argélia que ele é hoje Presidente da República.
Ortiz deu um profundo suspiro.
— Como se eu não soubesse. -Disse ele, enxugando o rosto molhado de
suor com um lenço de seda branca.
Diante da expressão despeitada do Presidente da Frente Nacional
Francesa, François teve muita dificuldade em se manter sério. No entanto, não
era o momento de dar as costas a esse personagem que tinha acesso a todos os
ambientes argelianos e cuja lábia fazia maravilhas junto aos ativistas de todo o
tipo e que gozava de proteção tanto da polícia como de informantes na Casbah.
— Vamos, não se preocupe tanto... Vamos ao bar, eu lhe ofereço um
drinque.
— Por que não bebemos à Argélia francesa?
— Se você insiste! — Replicou François, desviando-se da mulher
excessivamente perfumada.
O bar estava lotado com a fina flor da sociedade argeliana. Alguns oficiais
conversavam animadamente com o deputado Pierre Lagaillarde e o tenente
Bernard Many, duas figuras importantes do 13 de maio. Foi Jean Pouget que
apresentou Many a François; o comandante fizera-lhe uma exposição sobre
esse suboficial que ele apreciava, apesar de suas simpatias pelos deputados Le
Pen e Demarquel, e das relações que ele mantinha com os antigos combatentes
da LVF e da divisão Charlemagne. Many jamais se recuperara da morte de seu
pai, conhecido pelo nome de Paul Riche, que foi, entre 1941 e 1944, redator
chefe do Pilori, depois, diretor do Appel, publicações nas quais denunciara
aqueles que considerava responsáveis pela guerra: os judeus e os franco-
maçons. Na Liberação, Paul Riche entregou-se e ficou preso durante cinco anos
em Fresnes, sendo depois fuzilado em 1949. Louco de ódio, não desejando
senão vingança, seu filho começou então a freqüentar os ambientes de extrema
direita, chegando mesmo a vender nas ruas de Paris um dos jornais desses
grupos, Parole frmiçnise. Denunciado, por sua vez, nas colunas do Humanitâ,
"o filho do assassino" rapidamente conquistou uma mistura de inimigos entre
os comunistas, os judeus, os franco-maçons e os gaullistas. Apesar disso, o
jovem Many havia observado bem as ordens de Pouget, no dia 13 de maio, e se
encontrava, camuflado, em companhia de Lucien Neuwirth e de François
Tavernier quando eles tomaram as instalações da Rádio Argel. O que ele não
faria em nome da Argélia francesa? Aceitar até o retorno ao poder daquele que,
segundo ele, mandara fuzilar seu pai! Quando alguém argumentava que de
Gaulle não estava mais à frente do governo naquele momento, ele dava as
costas, com ar de quem sabe muito bem.
Havia poucas mulheres no bar do Saint-George. François instalou-se
numa banqueta em frente ao balcão de mogno.
— O que você vai beber? — Perguntou a Ortiz.
— Um conhaque... sem gelo.
— E a senhora?
— O mesmo. — Disse, de maneira afetada, a mulher. — Jo, você não me
apresentou o senhor...
— Desculpe-me... Sr. Tavernier, Madame Jeanne Pérez.
François inclinou-se, antes de se dirigir ao barman.
— Três conhaques sem gelo, por favor... Você é parente do doutor Jean-
Claude Pérez?
— Não, mas conheço bem Jean-Claude; ele é uma das figuras populares
da nossa comunidade. Todo mundo gosta dele, é um filho de Bab el-Oued...
Enquanto esperavam as bebidas, François observava em volta. Além de
Pierre Lagaillarde e Bernard Many, reconheceu o coronel Gardes, que
conhecera no gabinete de imprensa do general de Lattre, na Indochina. Depois
da partida de de Lattre, ele o encontrou em companhia do general Saiam. O
coronel estava em Hanói no momento da libertação do campo número 1. Eles
trocaram algumas palavras sobre as condições de detenção nos campos
vietnamitas. Gardes mostrou-se muito interessado nos métodos que os
comissários políticos vietnamitas empregavam para quebrar o moral dos
prisioneiros e levá-los a admitir que não passavam de "porcos a serviço do
imperialismo".
François lembrava-se de ter lhe contado o suplício ao qual tinha sido
submetido depois de uma tentativa de fuga: cotovelos e punhos amarrados nas
costas com uma corda que passava pelo pescoço e cujo nó se apertava a cada
movimento dos braços; atacado à noite por nuvens de mosquitos, ele não podia
se defender sem se enforcar.
Essa tortura durou oito dias. Depois, foram as formigas, depois o cercado
de porcos, a noite, meio selvagens, que só aguardavam um momento de
fraqueza do prisioneiro para se jogarem sobre ele e devorá-lo. Ele devia sua
sobrevivência a um velho que, todas as noites, lhe trazia, às escondidas, um
bolo de arroz e ficava lá por um tempo, mantendo os porcos à distância, para
que ele pudesse dormir uma hora ou duas. Um dia, no entanto, tiraram-no da
pocilga. Apesar de procurar pelos campos, jamais reencontrou esse bom
homem.
— Os conhaques, senhor. — Disse o barman, apoiando os copos no
balcão.
— Tim-tim! — Exclamou Ortiz.
François se contentou com um "obrigado" e bebeu de um gole só.
— Eis o que eu chamo de beber. Admirou-se o dono do Forniu, engolindo o
seu. — Barman, por favor, outra rodada... Coronel, o senhor toma um drinque
conosco?
Gardes parou diante deles, cumprimentou Jeanne Pérez e estendeu a mão
a Joseph Ortiz.
— Não há como recusar. Mas... Tavernier!... Que surpresa!... Quando você
chegou?
— Há uma meia hora... Prazer em revê-lo, coronel.
— Seria indiscreto perguntar o que você veio fazer em Argel?
— Não, venho ver Delouvrier.
Gardes e Ortiz trocaram um olhar que não escapou a François.
— Certamente, é o General que o envia — Resmungou Ortiz.
— É verdade? — Inquietou-se Gardes, com um tom de voz em que se
sentia a desconfiança.
— Vocês sabem muito bem que não faço política.
— Isso não é uma resposta!
— Desculpe, caro amigo, mas não posso lhe dar outra... Como estão os
negócios? — Perguntou, virando-se para Ortiz.
— Como você quer que estejam, com a FLN jogando bombas por todo o
lado e com o toque de recolher?
— Não para todos, pelo que vejo...
— Vá debochando... Noites como esta são raras hoje em dia. Mas, isso vai
mudar, dou-lhe minha palavra!
— Como?
— Você verá... Mas, preciso ir; tenho uma reunião.
— Tão tarde?
— Não existe hora para os bravos... Boa noite, Tavernier. E, obrigado pelo
drinque!
Seguido de Jeanne Pérez, ele sumiu rapidamente.
— Ele não mudou, sempre garganteiro. — Observou François, virando-se
para Jean Gardes. O senhor parece preocupado, ou estou enganado?
— Não é para menos! Com sua política, o general de Gaulle nos conduz à
catástrofe.
Seus olhos brilharam como os de um homem devorado pela febre; suas
faces encovadas começavam a se cobrir com uma barba cerrada. Ele parecia
nervoso, ainda que controlado.
— Os muçulmanos não são capazes de decidir por si mesmos; a
autodeterminação seria um erro. Como de Gaulle declarou que havia três
soluções: a secessão, o afrancesamento completo ou o governo dos argelianos
pelos argelianos; nós escolhemos o afrancesamento. O exército também. É
preciso obrigar os franceses da Argélia a aceitar a integração completa. É
preciso que mudem a forma de pensar, os muçulmanos devem se tornar iguais
a eles. Aliás, essa também é a opinião do general Challe...
Enquanto escutava, François raciocinava rapidamente. Gardes acabava de
lhe passar uma informação importante: Challe, o comandante em chefe do
exército na Argélia, não obedecia completamente, segundo ele, às orientações
de Paris.
— Não é verdade, Gardes! Você sabe muito bem que pessoas como Ortiz,
para falar apenas dele, não concordarão nunca que os muçulmanos tenham os
mesmos direitos que eles.
— O que era verdade em 58 não é mais hoje em dia. As coisas mudaram,
você vai perceber logo... Mas, o que aconteceu com Delbecque, Neuwirth e seus
outros companheiros gaullistas? Ouvi dizer que estão se pegando...
— É preciso não acreditar em tudo que se ouve no Lipp ou no restaurante
de sua mãe...
— Você sabe tão bem quanto eu, Tavernier, que diante de uma boa mesa,
depois de duas ou três taças de um bom vinho, um drinque, um charuto; as
línguas se soltam como por milagre. O restaurante da rua Bac é freqüentado
apenas por funcionários, jornalistas e políticos. Lá, estamos entre nós...
— Não duvido. Além de ter uma excelente cozinha, o Ministères tornou-se,
concordo, uma fantástica fonte de informações e o endereço ideal para lançar
falsos boatos...
O coronel Gardes acusou o golpe. Chefe do quinto gabinete, responsável
pela ação psicológica em Argel, ele sabia muito bem disso tudo.
— Se tiver tempo venha me visitar. — Interrompeu ele, estendendo a mão
a François. — Você verá como trabalhamos. No momento, desculpe, o trabalho
me espera.
Os dois homens apertaram as mãos, e Gardes deixou o Saint-George junto
com Bernard Mamy. Chegando ao quarto, François perguntou-se se eles iriam
encontrar-se com Ortiz...
Na manhã seguinte, a campainha do telefone despertou François; era Léa.
— Bom dia, querida... Sabia que você é o galo mais bonito que eu
conheço? -Disse alegremente, bocejando.
— Ah, desculpe! Pensei que você já tivesse acordado faz tempo...
— Pôr que? Que horas são?
— Quase nove horas.
— Pelo amor de Deus! Tenho entrevista marcada com Delouvrier às dez.
Desculpe, mas preciso desligar... Está tudo bem? As crianças?... Eu ligo esta
noite, tudo bem?
Um beijo... Te amo!
Ele desligou o telefone e correu para o banheiro. Meia hora depois, pegava
um táxi.
— Para a sede do Governo Geral, e rápido!
No primeiro andar do GG, um oficial o esperava. O homem bateu à porta,
entrou na frente dele e anunciou-o. François entrou, por sua vez, no gabinete
vermelho de Salan e de Soustelle.
O velho e brilhante diretor geral de impostos que ele conhecera no gabinete
de Georges Pompidou, quando este último dirigia o gabinete do general Charles
de Gaulle, havia perdido sua soberba. Fazia apenas um ano que Paul
Delouvrier fora nomeado delegado geral na Argélia, substituindo o general
Salan. Parecia ter diminuído de altura e seu terno, muito bem cortado, estava
largo para ele. Seu rosto, normalmente franco e aberto, enfeitado por um fino
bigode, a larga testa desguarnecida, estava agora pálido e tenso. Levantou-se à
entrada de François e veio em direção a ele, apoiando-se numa bengala.
— Bom dia, Tavernier. Prazer em vê-lo... Está estranhando minha
bengala? Herança de uma fratura de fêmur, que me faz sofrer bastante; devia
voltar a Paris para operar.
Mas, agora não é o momento, acredite... Bom, sente-se e vamos direto ao
assunto. O general de Gaulle encarregou-o de uma missão; sem dúvida da
mesma natureza daquela de que me encarregou quando era presidente do
conselho: observar tudo na Argélia e fazer-lhe um relatório pessoal.
— É mais ou menos isso. — Respondeu ele, entregando a ordem de missão
assinada pela mão do Chefe de Estado.
Paul Delouvrier leu rapidamente.
— Bem, desejo-lhe boa sorte! -Disse ele, devolvendo o documento. — Foi
em seguida a essa primeira missão que fui nomeado... Portanto, pode ser que
esteja na frente de meu sucessor! Se for assim, ficarei contente...
— Eu, não... De qualquer modo, não há nenhuma possibilidade: não tenho
nem competência nem gosto pelas funções de delegado geral.
— Eu também não tinha! Entretanto, você está aqui... Já em 57, 58, você
veio para a Argélia a pedido do General, não foi? E, acredito que você teve
alguma coisa a ver com o retorno dele à chefia do Estado...
— É um velho hábito meu: não consigo resistir a ele... Delouvrier riu,
nervoso.
— Você ainda tem senso de humor, Tavernier. Com um ano de Argélia,
perdi o meu. Se você estivesse no meu lugar, acho que também perderia...
Tavernier, estou preocupado, muito preocupado. E já falei sobre isso com o
Presidente da República, principalmente no que se refere ao exército, mas por
pouco ele não riu na minha cara: "Mas, Delouvrier, é lógico que os oficiais
obedecerão. Quando um militar se mete a fazer política, só faz bobagem. Veja o
Dreyfus! O negócio deles é luta local." De todos os lados, entretanto, me
chegam informações alarmantes. Alguma coisa está acontecendo em Argel
mesmo. O anúncio do projeto de autodeterminação mergulhou a população
européia da cidade no abatimento, depois na irritação, e por todos os lados os
ativistas se agitam. Os oficiais, sob o pretexto de buscar informações,
comprometem-se com eles, quando não levam, eles próprios, informações... Os
do 5- gabinete são abertamente hostis à política do General, e temo a atitude
deles. Pedi a transferência de alguns deles e, no entanto, ainda estou
aguardando. Os ativistas também se armam, e Massu, o bravo Massu, está
comprometido com eles, mesmo que não se dê conta disso... Quando
recomendo-lhe que seja prudente, ele me responde: "em caso de confusão, eles
me informarão". O imbecil! Os coronéis divertem-se a custa dele! Ortiz, o dono
do Fórum, o manipula e se vangloria de "um pacto feito com Massu". O homem
da batalha de Argel acredita sinceramente que sua popularidade será suficiente
para manter a ordem e que Ortiz e os seus são "pessoas valentes,
profundamente patriotas". Como fazê-lo compreender que está num jogo
perigoso com pessoas mais espertas que ele?
O delegado geral calou-se e considerou longamente seu interlocutor como
se esperasse uma resposta; ela não veio. Ele levantou-se e aproximou-se da
janela, mancando; dali, via-se a cidade branca. François juntou-se a ele. Do
mar, cor de chumbo sob o céu cinzento, parecia subir uma ameaça. As
palmeiras dobravam-se sempre com as rajadas de vento. Com os olhos fixos,
Delouvrier disse, como se falasse sozinho:
— "Nós devemos tirar a Argélia da miséria", disse-me o General, "para lhe
dar a possibilidade de escolher". Escolher o quê? E como? Entre os árabes e os
pés-pretos da Argélia francesa... Qual Argélia ele quer?... E o Saara, o gás do
Saara?... "Vocês são a França na Argélia..." Esta situação é lamentável!
O delegado geral devia estar exausto para se mostrar assim tão derrotista.
Esse homem inteligente, habitualmente tão seguro de si, de raciocínio rápido e
que tinha aceitado esse posto com completo conhecimento de causa, mostrava-
se, sem dúvida pela primeira vez na vida, desamparado. Fazendo um esforço
sobre si mesmo, endireitou-se, voltou-se para o visitante, forçando-se mesmo a
sorrir.
— Desculpe-me, não costumo me deixar levar... Devo estar cansado para
fazer isso! Esqueça o que eu disse, está bem? Você receberá toda a ajuda para
cumprir a missão que o General lhe confiou, e meu diretor de gabinete, Michel-
Jean Maffart, facilitará sua tarefa em tudo que for possível; ele é de minha
inteira confiança... Quando você vai ver o general Challe?
— Nesta tarde mesmo.
— Bem... É um antigo membro da Resistência, como nós. Tem feito um
bom trabalho desde que está aqui, e nossa colaboração é estreita. "Jamais
haverá algo entre mim e Challe..." Alguma pergunta?
— Sim... O que o senhor pensa realmente da situação? Quero sua opinião
pessoal e não aquela que sua função dita. Dou-lhe minha palavra de honra de
que nada do que o senhor disser sairá desta sala.
Com os olhos brilhantes, Delouvrier sustentou o olhar, tentando ler nele a
verdadeira natureza do que enfrentava. Seu exame deve ter parecido
satisfatório; deu um sorriso amigável, o primeiro desde o começo da entrevista.
— Tenho muita estima por você, Tavernier, mas o que dizer que você ainda
não saiba?... A Argélia está perdida para a França... Ninguém aqui quer admitir
isso...
Estou sozinho... e... não confio mais em ninguém... Entretanto, pode
garantir ao General; cumprirei o meu dever.
François não duvidava disso e lamentou não poder dar a ele algum
conforto.
— Quando poderei ver Maffart?
— Ele está em seu gabinete, aguardando você... Esta noite, minha mulher
e eu receberemos alguns amigos no palácio de Verão; gostaria de ir?
— Com prazer... Como vai a sra. Delouvrier?
— Muito bem, apesar da gravidez avançada...
— Eu não sabia... Parabéns!
— Até a noite, então; não é preciso traje especial, é um jantar íntimo...
Oito e meia, está bem?
— Perfeitamente. Obrigado... Até a noite, senhor delegado.
— Minha secretária vai acompanhá-lo.
Saindo da entrevista com Maffart, François ficou pensativo. O diretor dos
gabinetes civil e militar mostrou-se, no entanto, calmo e cortês. Com ar de
sono, por trás de seus óculos de armação fina, ele respondeu calmamente às
perguntas do enviado do general de Gaulle, não se permitindo senão uma ou
duas observações pessoais perspicazes.
François sentiu que, sob sua aparente indolência, os cabelos de um loiro
pálido, a expressão de papel machê, escondia-se um trabalhador infatigável, de
inteligência aguda. Maffart só aceitara deixar a Corte de contas e o Conselho de
Estado por amizade a Delouvrier, mas com a condição de "poder partir a
qualquer momento se não estivesse mais de acordo e também com a condição
de não ter de fazer o contrário do que você disse". Quando saiu de lá, François
sentiu que ia se entender com esse homem gorducho.
Tavernier atravessou a Praça Clemenceau, chamada de Fórum pelos
argelinos. Era a hora do anisete e havia muita gente no Bulevar Marechal-Foch.
Quando passava em frente a Fórum, alguém o chamou lá de dentro. François
parou e viu Ortiz, vestido com um terno escuro, que vinha em direção a ele.
— Bom dia, Tavernier. Seu encontro com o delegado geral correu bem?
Você não acha que ele está um pouco deprimido, o pobre homem?
Aparentemente, Joseph Ortiz estava bem informado.
— Deprimido?... Não, não achei. Com um pouco de dor, talvez, por causa
da perna... Mas, quanto ao resto, pareceu-me dos mais determinados...
— Ah, bom! — Disse Ortiz, mal disfarçando a contrariedade. Depois
recompondo-se, acrescentou:
— Se você não tiver nenhum compromisso para o almoço, eu o convido.
Ademais, você não pode recusar: isso também faz parte de sua missão, não é?
Decididamente, todo mundo sabia bem qual era sua missão! Difícil
manter-se incógnito em Argel...
— Não, não tenho compromisso para o almoço... Aceito de bom grado.
Ortiz entrou na frente e levou-o a uma mesa de canto.
— É meu lugar habitual: daqui, vejo tudo que se passa, tanto dentro,
quanto fora...
Um garçom trouxe dois copos de anisete e um prato de amendoins. Uma
grande animação reinava na sala; clientes entravam e saiam, cumprimentando-
se ruidosamente de uma mesa para outra. Todos pareciam se conhecer e
alguns deles deviam estar se perguntando quem poderia ser aquele frangaou
sentado na mesa do dono. Em todo caso, para ter sido convidado, devia ser
alguém importante; o grande Jo não se sentava com qualquer um.
— Posso? — Perguntou um rapaz frágil, de rosto pálido.
Sem esperar resposta, sentou-se ao lado de Ortiz, na frente de François
Tavernier, a quem examinou com um ar insolente.
— Claro, filho, você é bem-vindo... Mustapha! Um anisete para meu
amigo... Tavernier, apresento-lhe meu amigo Jean-Jacques Susini, nossa
cabeça pensante. É estudante de medicina e fundou seu próprio movimento, o
movimento nacionalista estudantil, mas não hesitou em juntar-se às fileiras da
FNF, onde faz um trabalho notável.
Olhe bem para ele, Tavernier, você ainda vai ouvir falar dele!
— Não duvido. — Respondeu François, com um sorriso irônico que, de
outras vezes, já lhe rendera sólidas inimizades.
Ele também examinou o estudante precocemente calvo, cujos olhos
brilhantes fixavam sempre os seus.
— O que era necessário, veja bem, Tavernier, é que o exército tomasse o
poder para garantir nossa presença aqui, na Argélia. — Continuou Ortiz, dando
uma piscada para seu jovem companheiro.
— Você acha que o exército está pronto para um golpe de Estado? —
Espantou-se François.
— O exército, assim como os pés-pretos, sente-se traído por de Gaulle. "Ele
não combateu depois de tantos anos sobre o solo argeliano, que é terra
francesa e cujo desenvolvimento ele assegurou, instruindo e cuidando de suas
populações, para abandoná-lo nas mãos dos comunistas ou de um punhado de
terroristas que o farão voltar à ignorância e à barbárie! Jamais aceitaremos
isso!" É preciso que você e a banda gaullista no poder estejam bem conscientes
disso! — Exclamou Susini.
— Nós recusamos qualquer solução que não leve à integração! —
Exclamou, por sua vez, Ortiz. — Qualquer outra fórmula desencadearia um
processo irreversível, levando à independência. E isso, nós não queremos.
Resistiremos com todas as forças. Esta terra é nossa, não a
abandonaremos jamais! Entre a mala e o caixão, escolhemos o caixão!
— Está muito claro. — Soltou displicentemente François, tragando seu
cigarro.
— O povo da Argélia está conosco. — Acrescentou Ortiz.
— Você quer dizer os europeus. O que você faz com os oito milhões de
muçulmanos? — Objetou François.
— A grande maioria dos muçulmanos está conosco. Eles sabem que não
ganham nada se separando da França. — Respondeu logo Ortiz.
— Se você diz... — Constatou simplesmente François.
Um argeliano, carregando uma bandeja muito pesada, aproximou-se da
mesa e colocou os pratos.
— Isso parece muito bom — Disse Tavernier, aproximando o nariz do que
tinha sido posto diante dele.
— É uma especialidade da casa... Você vai adorar! — Afirmou Ortiz, com
um ar satisfeito.
Durante alguns minutos, os três homens comeram em silêncio, bebendo
um vinho tinto de perfume inebriante.
— Você pretende ficar muito tempo por aqui? — Perguntou
repentinamente Susini.
— Depende...
— Você deveria ir assistir a uma de nossas reuniões. — Disse o dono do
Fórum. — Você compreenderia melhor a situação.
— Na verdade, isso muito me interessa — Admitiu François.
— Vamos fazer em breve uma reunião no Majestic. Pedi a Massu que
ponha a sala à nossa disposição. Ele concordou, com a condição de que não
ataquemos o Chefe de Estado; o que prometi a ele. "Lembrem-se, acrescentou
ele, do que eu disse um dia: sei que vocês podem tomar a Argélia, mas eu a
retomarei em vinte e quatro horas." Então, respondi: "Eu sei, meu general, que
se eu decidisse jogar a FNF, o senhor saberia quarenta e oito horas antes,
porque seria a seu pedido ou o senhor teria sido transferido.
Foi o senhor mesmo que me disse que já tentaram destituí-lo e que, em
Paris, estavam contra os métodos que emprega para lidar com os rebeldes: o
senhor incomoda o poder, porque é muito ouvido aqui, tem muito prestígio
junto a todas as populações deste país. Temo que de Gaulle não o considere
mais como 'seguro'. Mas, no dia do seu afastamento, toda a Argélia devia se
levantar, porque esse será o sinal precursor da aplicação de novas medidas
favoráveis aos rebeldes. — Sim, me disse ele, você está certo."
Nos propósitos de Joseph, François via delinearem-se as premissas de um
complô político contra o general de Gaulle. Ficou espantado, contudo, com a
importância que Massu parecia atribuir ao movimento de Ortiz. Decidiu
procurar o vencedor da batalha de Argel e ouvir dele, pessoalmente, o que
pensava.
Depois do café, do licor e dos charutos, Tavernier despediu-se polidamente
de seu anfitrião e de Susini.
Capítulo 6
Paris, 18 de outubro de 1959.
Meu amor,
Parece que faz muitos meses que você partiu, de tal forma o tempo voa.
Deveria ter insistido em acompanhá-lo: não conheço a Argélia, seria a
oportunidade... Mas, já ouço você reclamando: "Ah, ela sabe escolher o
momento! Sempre querendo ir aonde não deve... A aventura cubana não
bastou... Madame procura emoções fortes...
Ela gosta do cheiro de poeira, do suor dos combatentes... Muito bonito!"
Não, não é dos combatentes que eu sinto falta, mas de você, querido. "Ah,
estou desconfiado: quando ela me chama de meu querido, é encrenca, na
certa!..."
Fique tranqüilo: tudo está bem, aqui. Charles retomou o curso, Adrien,
Camille e Claire estão tão bagunceiros como sempre, Philomène é
decididamente um amor e, em Montillac, onde as colheitas foram curtas, o
vinho será maravilhoso, mas pouco. Para escapar ao tédio, levo uma vida bem
social. Teatro: assisti, no teatro Montparnasse, a uma representação de Beckett
ou 1'Honneur de Dieu, de Jean Anouilh. Durante toda a peça, pensei em meu
tio Adrien. Como sinto falta dele, às vezes!... Fui convidada para a première de
Nègres, de Jean Genet. Talvez você já esteja de volta. Aí, iremos juntos. Cinema:
assisti à Intriga Internacional, um bom Hitchcock, e o último Bergman, muito
intelectual para mim. Fui ver Quanto mais quente melhor pela terceira vez:
adoro esse filme! Vernissages: nada de excepcional... Grandes costureiros:
você não vai acreditar, fiz umas loucuras! Mas para compensar um pouco
essas futilidades, vou de vez em quando ao bar do Pont-Royal para conversar
sobre literatura ou política. Fui com Charles ouvir uns cantores jovens, podia
ser mãe deles...
Ele adora um tal de Claude Moine e seu grupo, os Five Rocks, que se
apresentam no Golf-Drouot, o novo templo da juventude francesa. Entretanto,
não chega aos pés do Rei! Mas, quem poderia igualar-se a Elvis Presley?
Mudando de assunto completamente: você está sabendo da demissão de
seus "cúmplices"do 13 de maio, Delbecque, Thomazo, Biaggie Cathala, da UNR?
Na verdade, foram nove que se afastaram do movimento, mas esqueci o nome
dos outros. Eles saíram, alegando "a impossibilidade em que estavam de se
pronunciar sobre o afrancesamento, única solução capaz, segundo eles, de
manter a Argélia francesa". Não compreendo: esse Léon Delbecque me parecia
um homem inteligente; como pode se enganar dessa maneira? Preciso que você
me explique. Fala-se muito, também, no Pont-Royal, das declarações feitas na
Assembléia por um outro de seus acólitos, Lucien Neuwirth, anunciando que
"comandos de assassinos atravessaram a fronteira espanhola para matar
personalidades suspeitas de não serem favoráveis à Argélia francesa, esperando
com isso impressionar suficientemente a população, para que não intervenha".
E para piorar, ele acrescenta (palavras dele): "dezoito meses depois de uma
revolução pacífica, sem uma gota de sangue, pode ser que estoure um conflito
interno fratricida". O mais engraçado — modo de falar! — é que os fatos
acabam de lhe dar razão:
François Mitterrand, senador de Nièvre, escapou ontem, em plena Paris, de
um atentado. Perseguido por seus agressores, ele teve que abandonar o carro e
refugiar-se nos jardins do Observatório; diversas balas atingiram seu carro
vazio. Haverá uma relação entre o caso e as declarações de Eucien Neuwirth? É
o que todo mundo aqui, no Pont-Royal, na Flore e na cervejaria Eipp, se
pergunta. Roger Vailland diz que é lorota, que se trata de uma armação.
Aguardemos... Você, que conhece bem François Mitterrand, o que acha? Ele
seria capaz de maquinar uma coisa dessas?
E você, vai ficar ainda muito tempo em Argel? As crianças sentem muito a
sua falta, você sabe. Sem falar de mim...
Aqui, o tempo continua bom, e Paris tem ares de festa.
Dê notícias logo, cuide-se bem e não vá, como é seu costume, jogar-se na
boca do lobo.
Volte logo, estou com saudades. Te amo,
Léa.
Ornar, o militante argeliano mandado por Vincent, tinha se instalado no
quarto de empregada da Rua de Le Umversité, no dia seguinte à chegada de Ali.
Devia ser pouco mais velho que Charles e se dizia estudante de Belas Artes.
Dois dias depois, partiu para a Bélgica, deixando-lhe alguns livros e uma tela
para desenhos. Léa se pôs a desejar que ele não voltasse.
A campainha da porta de serviço assustou-a; a essa hora, quem poderia
ser? Ela ouviu a voz de Philomène:
— Aguarde, vou ver se madame está.
— Quem é? — Perguntou Léa, entrando na cozinha.
— Um senhor que não conheço. Um árabe, parece...
A jovem mulher avançou para a porta entreaberta; Ali estava parado no
vão da porta, vestido com seu terno muito apertado.
— O que você quer? É muito imprudente vir aqui!.. Philomène, está na
hora de cuidar das crianças, não é?
— Ainda é cedo, madame....
— Faça o que estou mandando!
Reclamando, a vietnamita saiu da cozinha.
— Entre logo. — Disse Léa. Ali entrou na cozinha.
— O que aconteceu, de que você precisa?
— Eu tenho uns documentos para entregar a uns amigos. Mas, não
conheço Paris, então...
— Então, o quê? Você acha que vou entregar por você?
— Não, eu...
— Qual é o endereço de seus "amigos"?
— Bem... não sei se posso dizer...
— Perfeito! Então não diga nada. — Respondeu Léa de mau humor.
— Desculpe-me... Eu sei que você já se arriscou me abrigando aqui e lhe
sou muito grato, mas vou esperar por Charles...
— Deixe Charles fora disso, por favor. Diga a mim aonde é preciso ir —
Replicou ela com um tom sem apelação.
Ali examinou-a demoradamente.
— Posso fazer uma pergunta?
Léa concordou com a cabeça.
— Por que você nos ajuda?
Ela deu um suspiro profundo e olhou o argeliano dentro dos olhos.
— Para ficar em paz comigo mesma, talvez. Minha família e eu sofremos
muito com a ocupação alemã... Sei que não se pode comparar, mas...
— Você acha mesmo? — Perguntou ele, com uma ironia que não escapou à
jovem mulher.
— Não, não se pode. — Respondeu ela duramente — Há mais de cem anos
que os franceses se instalaram na Argélia, ajudaram-na a se desenvolver,
criaram estradas, escolas, hospitais,...
— Você repete as bobagens que aprendeu na escola. Há mais de cem anos
que a França ocupa a Argélia, que a explora. Vamos falar do desenvolvimento!
Somente os europeus fazem uso dele: franceses, mas também judeus, malteses,
italianos, corsos, espanhóis! Quanto à escola, ela só nos faz sentir mais
duramente a que ponto não somos importantes. Só nos ensinam o suficiente
para nos tornarmos bons escravos, que sabem ler e escrever, para as
necessidades do mestre!
Ele se calou bruscamente, sufocando de rancor e de ódio.
— Não acredito! E acho muito desagradável que você diga que meu país se
comporta em relação a vocês como o ocupante nazista se comportou na
França!... Os franceses não são nazistas, afinal!
— É o que você acha! — Ele deixou escapar.
Eles se confrontaram durante alguns segundos. Léa virou o rosto.
— Dê-me o endereço.
— É Rua Goutte-d'Or, 23, um café mouro. Lá você deve perguntar por
Ibrahim. Vão responder: "Qual?" Então você dirá: "Ibrahim d'Oram, o vendedor
de peixe".
— Só isso?
— Vão fazê-la esperar um pouco, depois uma mulher virá lhe oferecer chá
de hortelã; você aceitará. Mais tarde, ela vai levá-la a outro endereço. Chegando
lá, encontrará um homem caolho; diga-lhe que fui eu que a mandei e entregue
os papéis. Vá de metrô. Na volta, assegure-se de não estar sendo seguida; se
não tiver certeza, vá até o Mercado Saint Pierre, entre numa loja e compre um
retalho de qualquer tecido. Somente depois, pegue o metrô novamente. Você
compreendeu tudo?
— Não sou idiota.
O rosto severo de Ali se iluminou com um sorriso.
— Isso eu já tinha percebido.
Léa sacudiu os ombros e pegou o envelope pesado das mãos de seu
interlocutor.
— Estarei de volta às sete horas.
A Rua Goutte-d'Or era suja, entupida de camelos, de mulheres com véus
seguidas por uma fileira de crianças barulhentas e chorosas, de homens
desempregados e de carros amassados. Na entrada da rua, policiais seguiram
com o olhar essa elegância européia cuja presença destoava de tal bairro. Léa
achou logo o bar. Depois de empurrar a porta, parou por um instante,
incomodada pelo excesso de fumaça que havia lá dentro. Dirigiu-se ao balcão,
seguida por dezenas de olhos negros e cobiçosos, e dirigiu-se ao homem que
automaticamente enxugava um copo. Nesse momento, podia-se ouvir uma
mosca voar.
— Por favor, quero falar com Ibrahim.
— Qual?
— Ibrahim d'Oram... o vendedor de peixe.
O homem encarou-a, desconfiado, depois recolocou o copo sobre o zinco.
— Espere, vou ver.
Dizendo algumas palavras em árabe para os fregueses, ele saiu. As
conversas recomeçaram. Pouco à vontade, nessa atmosfera pesada, Léa
começou a achar que estava demorando muito, quando percebeu uma mulher
perto dela. De onde tinha saído?
— Você quer chá de hortelã? — Perguntou com uma voz doce a recém-
chegada.
— Sim, com prazer.
Léa bebeu com cuidado alguns goles da bebida muito quente que a mulher
havia servido.
— Está muito bom, obrigada.
Com essa observação, os olhos delineados de preto que a encaravam
brilharam de prazer. Pouco depois, a mulher fez sinal discretamente para que
Léa a seguisse. Saíram, mas não andaram mais que vinte passos na rua.
— É aqui. — Murmurou a argeliana — No segundo andar. Estão
esperando.
Léa hesitou ao pé da escada escura que a mulher lhe tinha indicado antes
de desaparecer. A entrada era mal iluminada por uma lâmpada que pendia,
solitária, na ponta de um fio. Criou coragem e subiu os degraus. No segundo
andar, encontrou-se diante de muitas portas: qual seria a certa? Uma delas se
abriu e o homem, que há pouco enxugava os copos, convidou-a a entrar. Ela se
encontrou no meio de caixas, tonéis, cestos de palha e utensílios de cozinha em
folha-de-flandres.
— Venha — Ordenou uma voz vinda de outro cômodo.
Léa forçou caminho entre os pacotes de mercadorias. À sua frente, um
homem muito gordo estava sentado atrás de uma mesa coberta de pastas.
Ele era caolho.
— Foi Ali quem me mandou.
— Por que ele não veio pessoalmente?
— Ele não conhece Paris e ...
— Isso não é motivo! Diga-lhe que não gostei nada disso. Bem, você tem
alguma coisa para mim?
Ela tirou o envelope da bolsa e entregou-o a ele. Ele o rasgou sem uma
palavra e conferiu rapidamente o conteúdo, pareceu satisfeito. Com a voz um
pouco menos arrogante falou:
— Diga àquele que o enviou que ele fez um bom trabalho. Você pode ir.
"Que cara grosseiro!" — Pensou indo embora.
— Diga-lhe que faça logo contato comigo. — Ela ouviu atrás de si —
Quanto a você, esqueça que veio aqui.
— Com prazer! — Devolveu ela, saindo do primeiro cômodo.
A noite começava a cair e os cafés tinham acendido seus letreiros,
iluminando a calçada e parte da rua. Não se via mais nem uma mulher:
somente homens, alguns andando de mãos dadas. Nem um só europeu... Léa
acelerou o passo. No Bulevar Magenta havia muita gente: operários e
empregados voltavam, apressados, do trabalho. Ela se lembrou, então, da
recomendação de Ali e olhou em volta: se alguém a estivesse seguindo, como
saber? Atravessou o bulevar e se dirigiu para o Mercado Saint-Pierre.
Lá, entrou na primeira loja, demorou um pouco diante das prateleiras,
apalpou tecidos, verificou preços. Em outra, depois do que podia parecer uma
profunda reflexão, comprou três metros de cetim vermelho. Com o pacote
embaixo do braço, foi enfim para a estação do metrô.
Chegando na Rua de Le Université, ela subiu, sem passar pelo
apartamento, diretamente para o sexto andar, para dar conta de sua missão a
Ali. Bateu à porta do quarto de empregada e entrou, interrompendo a conversa
animada entre Ali e Charles.
— Finalmente, você chegou! — Exclamou este último.
— Tudo correu bem. — Anunciou ela de uma só vez, ignorando a bronca
de Charles. — Mas o caolho não gostou muito de me ver no seu lugar. Ele pede
que você entre logo em contato com ele...
— É tudo?
— Ele me pareceu satisfeito com o que havia no envelope.
— Só faltava não ficar! — Resmungou Charles, repentinamente fora de si.
— Ei, o que há? Parece que você está com raiva...
— Estou mesmo! Ali traiu minha confiança!
— Mas... — Tentou o jovem argeliano.
— Ah, cale-se, por favor! Você é um tratante!... Eu tinha avisado para não
envolvê-la nisso e que já era bastante grave ela hospedá-lo!
— Eu não tinha escolha!
— Devia ter falado comigo! Eu teria ido, eu!
— Você sabe muito bem que não podia: você está visado...
— O quê? — Gritou Léa. Charles fulminou-o com o olhar.
— Deixe, são só bobagens.
— Talvez, mas eu não podia me arriscar a ver esses papéis caírem nas
mãos da polícia.
— Vocês querem me dizer o que está acontecendo? — Gritou Léa. — Por
que ele disse que você está visado?
— Mas, não, não é nada...
— Como "nada"?
— Ah, eu fui preso, outro dia, enquanto distribuía folhetos de propaganda
contra a tortura... Mas me soltaram depois de duas horas.
— Sim, mas agora você está fichado. Sabem o seu endereço e a polícia
pode vir dar uma batida a qualquer momento. — Objetou Ali. — Pela segurança
de vocês, e também pela minha, preciso partir.
— Para onde? — Preocupou-se Léa.
— Em caso de urgência, sei aonde ir... Devo ir embora ainda esta noite. —
Disse ele com determinação. — Obrigado por tudo. Agora, se me der licença,
preciso arrumar minhas coisas. Assim que possível, darei notícias... Ah,
Charles, fique, por favor: tenho ainda umas coisas para lhe dizer...
Ali corou quando Léa o beijou nas duas faces.
Subitamente cansada, ela desceu pesadamente as escadas que levam ao
apartamento. Quando entrou, os três filhos se precipitaram na direção dela.
— Onde você estava, mamãe? Precisei da sua ajuda na redação...
— Mamãe, você teve notícias do papai?
— Papai! Eu quero meu papai! — Gritou Claire, vindo se encolher contra a
mãe.
— Vocês me sufocam, crianças! Deixem-me ao menos tirar o casaco... Com
um volteio, eles o tiraram, jogaram numa cadeira da entrada e arrastaram-na
para o salão.
Lá, ela foi obrigada a sentar-se numa poltrona.
— Você quer beber alguma coisa, mamãe? — Perguntou Camille. Um
porto? Um martini?
— Um porto, por favor.
Charles chegou. Logo, Adrien monopolizou-o. Claire subiu para os joelhos
da mãe e enfiou o narizinho no pescoço dela.
— Você é tão cheirosa, mamãe.
Uma onda de emoção subiu para a garganta dela. Apertou o corpinho
contra o seu. Como ela amava esta criança! Muitas vezes, quando a olhava, o
rosto de Nhu-Mai, a jovem vietnamita virtuosa, ressurgia. Ela a revia, magra,
no palco do teatro de Hanói, tirando do violino acordes tão belos e poderosos
que o tempo parecia parar.
Léa se esforçava para reter essa imagem da amiga desaparecida. Em vão. A
imagem terrível se interpunha, da violinista com as mãos arrancadas,
arrastando-se apoiada pelos cotovelos, suplicando aos gritos que ela ouviria
para sempre: "Léa, estou mal... tenho medo... é horrível... meu fuzil, pegue-o...
mate-me, Léa, não me deixe assim, mate-me... se você gosta de mim, eu
suplico, minha amiga, mate-me!" Torniquetes improvisados com fibras de
plantas trançadas impediam o sangue de jorrar.
Mas, de joelhos, a jovem virtuose estendia seus membros privados das
mãos: "Nunca mais! Nunca mais poderei tocar... Por piedade, Léa... meu fuzil,
pegue meu fuzil!"
Tremendo, Léa empurrou Claire e colocou as mãos nos ouvidos, depois
sobre os olhos: não ouvir mais aquele tiro!... Não ver mais o sorriso, o atroz
sorriso de gratidão de Nhu-Mai!
— Mamãe... O que você tem? Eu machuquei você? Por que você está
chorando? — Inquietou-se a pequena Claire... — Lomène! philomène! —
Chamou ela em desespero.
— Meu tesouro, o que aconteceu?... Você caiu? — Perguntou a assam,
precipitando-se em direção à criança.
— Não, é mamãe que está mal...
A vietnamita inclinou-se sobre Léa. Não era a primeira vez que via a patroa
naquele estado. Há muito tempo, compreendera que esses acessos de tristeza
estavam ligados ao que ela devia ter vivido na Indochina, que a sua própria
presença ou a de Claire às vezes reavivavam.
— Venha. — Disse à menina. — Vamos preparar o jantar juntas. Mamãe
precisa descansar.
Mais uma vez, Léa foi grata a Philomène por seu tato e discrição.
Aproveitou essa trégua para se refrescar e ajeitar a maquiagem no quarto.
Quando voltou para a sala, Camille a esperava com um copo na mão.
— Eu me perguntava por onde você andou. Você parece muito cansada...
— Só um pouco de enxaqueca; vai passar.
— Seria melhor tomar uma aspirina, em vez do porto.
— Como você é sensata, minha querida! Bebo à saúde da mais sensata e
mais maravilhosa das filhas. À Camille, que eu amo!
— À minha saúde também, mamãe! À minha saúde! — Gritava Claire, que
havia escapado de Philomène.
— Lindinha, não se esgoele desse jeito. Lógico que eu bebo à sua saúde,
assim como à de Adrien, de Charles, de Philomène, de todos os que amamos...
— E também à de papai. — Acrescentou Claire, muito meiga.
— A papai! — Exclamou Camille.
Léa levantou o copo, sorrindo. Uma felicidade quente envolveu-a,
examinando suas filhas, tão diferentes uma da outra, e que nutriam pelo pai
um amor tão especial.
Charles terminou de pôr em ordem seus papéis, queimando na lareira da
sala os que pareciam comprometedores. Esperava estar enganado, mas tinha a
impressão de que vinha sendo seguido. Relatou isso a seus companheiros, que
o aconselharam a se afastar do grupo por um tempo. O domicílio de alguns
deles já tinha sido revirado pela polícia. Por sorte, só encontraram documentos
sem importância. Entretanto, no último número de Vérité poui o editorial
começava com esta frase, no mínimo, desenvolta: "Parece que a polícia se
interessa cada vez mais por nós...". Era verdade. Além disso, toda a Saint-
Germain-des-Prés fervilhava de informações fantasiosas que, por não serem
confirmadas, não deixavam de atiçar a psicose da vigilância policial ou da
prisão iminente dos que militavam contra a guerra na Argélia. Nos cafés
freqüentados pelos intelectuais e militantes, encontrava-se, através dos olhares
furtivos e senhas, o ambiente de medo e suspeita que predominava durante a
Ocupação.
Charles temia ver os policiais da DST aparecerem na Rua de Le Université.
Abriu-se a esse respeito com Léa que limitou-se a levantar os ombros:
— Não há nada aqui que possa interessar à polícia...
— E se Ornar precisar voltar?
— É um estudante e seus documentos estão em ordem. Temos o direito de
alugar um quarto a um estudante, não temos?
— Não brinque com as palavras, por favor. Pense nas crianças e em
François... Se ele souber que você presta serviços para os caras da FLN...
— E você vem me dar sermão! François compreenderia.
— Não tenho tanta certeza: mesmo que ele seja favorável à independência,
não deixará de pensar que é uma traição transportar fundos para eles. Esse
dinheiro serve para comprar armas para os que nos combatem na Argélia,
sabia? Você parece esquecer que neste momento ele está lá, a pedido de De
Gaulle, e que uma dessas armas pode matá-lo...
— Cale-se!
Os traços de Léa fixaram-se numa expressão de horror, enquanto uma
grande palidez tomou conta de seu rosto. Charles se arrependeu imediatamente
de suas palavras.
Desajeitadamente, tentou atenuar o efeito delas. Tomou entre as suas as
mãos daquela que havia substituído sua mãe; estavam geladas.
— Eu queria deixá-la com medo e consegui!
Ela procurou refúgio nele. Ternamente, ele a tomou em seus braços.
— Por que é preciso que François e eu estejamos sempre em situações
impossíveis? Toda a nossa vida tem sido contrariada por dilemas parecidos e,
sem descanso, somos confrontados com escolhas que nos expõem ao perigo...
Tenho medo, Charles, se você soubesse como tenho medo!
Ele a acalmou, dando-lhe beijinhos nos cabelos. Hoje ele se sentia
responsável por essa mulher que havia salvado sua vida muitas vezes. Por
inúmeras vezes, ele havia pensado no destino singular desses dois seres que
tinham dedicado tantos cuidados ao menino que ficara órfão tão cedo. Esse
homem e essa mulher o haviam querido como se fosse um de seus próprios
filhos. Em todas as épocas, a vitalidade deles, sua exigência, seu senso de
justiça tinham-nos levado a tomar partido. Muitas vezes, foram arrastados para
fora dos caminhos da lei, tendo como única regra uma certa idéia de honra.
Honra, uma palavra que, no entanto, eles não empregavam nunca, sem dúvida
por recearem ou não gostarem de grandiloqüência... E ele, desde a Indochina,
tremia sem cessar por eles, esforçando-se para imitá-los, para combater ao lado
deles, mas também para protegê-los. Sabia agora que tinha o mesmo gosto que
eles pelo risco e pela ação.
Léa soltou-se delicadamente.
— Não se preocupe, meu grandão. Estou um pouco cansada, é só.
Ele a levantou nos braços e rodou com ela pela sala. Como gostava quando
ela o chamava de "meu grandão"!
— Ponha-me no chão! Você vai me deixar cair... Eu sou muito pesada!
— Você é leve como uma pluma... O quê? Você ri? É bom ouvir você rindo!
:
Quando ele parou de brincar, eles balançaram e se abraçaram, esperando
passar a vertigem. Depois, calmamente, decidiram o que fazer caso tivessem
problemas.
Vincent tinha sumido do mapa. Uma jovem, enviada por ele, encontrara-se
com Léa a fim de lhe comunicar que ela o substituía e que a encarregaria em
breve de uma nova missão.
Na Cervejaria Lipp, a conversação de todos os clientes girava em torno do
"discurso" de François Mitterrand que o Express acabava de publicar. Sob o
título "O que tenho a dizer", Mitterrand reagia aos ataques da imprensa a
respeito do que ela chamava de "caso do Observatório", e a sua audiência com
um juiz devido a tal caso.
Nesse dia, o tom se elevava entre partidários do antigo Ministro do Interior
de Pierre Mendes France e os que apoiavam Robert Pesquet, antigo deputado, e
de seu advogado, Jean-Louis Tixier-Vignancour. Para alguns, Pesquet havia
atraído Mitterrand para uma armadilha, fazendo com que ele acreditasse que
assassinos atentavam contra sua vida; para outros, o próprio Mitterrand havia
fomentado o pseudo-atentado. Alguns acreditavam num complô tramado pelos
partidários da Argélia francesa ou pelos grupos de extrema direita. Discutia-se
de uma mesa a outra, e os garçons, com seus longos aventais brancos,
apressavam-se no meio de uma indescritível confusão.
Ao pé da pequena escada em caracol, dois homens, ambos condecorados
com a Legião de Honra, insultavam-se. Tanto de uma parte como de outra,
choviam injúrias, sob o olhar plácido do dono do estabelecimento. Léa
perguntava-se se o mesmo estaria acontecendo em todos os restaurantes do
bairro.
— É assim todos os dias? — Cochichou Françoise no ouvido dela.
— Felizmente, não! •- Replicou Léa à irmã, que tinha vindo a Paris para
consultar um médico. — Desculpe, eu devia ter levado você a um lugar mais
calmo... Achei que você ia se divertir... Tem certeza de que não quer que eu vá
com você ao médico?
— Não, você é muito gentil, mas não é necessário. Você vai passar o Natal
em Montillac?
— Ainda não sei. Depende de François.
— As crianças contam com a presença dos primos, você sabe. Ficarão
decepcionados de passar o Natal sem eles...
Léa sorriu para a irmã. Como ela tinha mudado, desde o verão! No seu
rosto mais magro, a tez doentia, os olhos descorados pareciam se extinguir. A
cabeleira castanha se enchia agora de fios prata. Seus gestos, outrora tão
seguros, estavam hesitantes. O medo lhe apertava o coração. Para esconder
esse brusco ataque de angústia, ela esvaziou de uma só vez seu cálice de
riesling.
— Você quer sobremesa? — Perguntou automaticamente.
— Não, obrigada, não tenho tempo. A consulta é às três horas. Françoise
tomou um táxi diante do restaurante. "Contanto que não seja grave", pensou
Léa enquanto olhava o carro se afastar.
Umas gotas de chuva começavam a cair. Quando preparava-se para
atravessar o Bulevar Saint-Germain, um homem agarrou-a pelo braço e puxou-
a para baixo do guarda-chuva dele.
— Seria uma pena danificar um tailleur tão bonito... Eu vi você no bar do
Pont-Royal em companhia de Roger Vailland.
— É possível.
Na altura do café Deux Magots, ela se voltou:
— Obrigada, já cheguei.
— Espere, não tenha pressa.
— Estão me esperando, desculpe.
Léa se enfiou no estabelecimento, desceu para o subsolo e entrou no
banheiro feminino. Ofegante, olhou-se no espelho, acima da pia: quem era essa
mulher de olhos assustados que a encarava? Por que tinha sentido tanto medo
ao lado do desconhecido? Sua intuição lhe dizia que estava em perigo... "Eu
estou louca! É por causa desse maldito clima que pesa sobre Paris". Uma
campainha de telefone tocou no vestíbulo. A porta se abriu um pouco.
— Senhora Tavernier, não é? — Perguntou a responsável pelos banheiros.
Alguém a chama ao telefone.
Léa deteve-se um segundo no lavabo.
— Atenda na cabine dois.
— Alô?
— Léa?
— Sim.
— É Vincent. Estou na cervejaria em frente. Eu vi você com um homem:
cuidado, esse tipo é provavelmente um agente da DST. Suba, pegue uma mesa
e beba um café tranqüilamente; nós vigiamos o fulano. Eu ligo de novo.
Assustada, Léa desligou e ficou por alguns segundos apoiada na divisória.
— A senhora não está se sentindo bem? — Preocupou-se a mulher que lhe
havia dado o recado.
Sem responder, Léa procurou na bolsa e depositou umas moedas no pires
destinado a esse fim. Ela encontrou um lugar nos fundos — dali podia vigiar a
entrada — e pediu o primeiro café. Já estava no segundo, quando o garçom
escorregou-lhe um pedaço de papel na mão. Ela desdobrou e reconheceu a letra
de Vincent:
Pegue o metrô na Estação Mabillon, desça na Sèvres-Babylones, entre no
Bon-Marché. Encontro na seção de lingerie. Escolha algumas roupas de baixo e
vá experimentá-las no provador. Não tenha pressa: alguém virá procurá-la.
Nervosa, ela amassou o bilhete e jogou-o dentro da bolsa, chamou o
garçom e pagou a conta.
Lá fora, o céu estava cinzento, os carros buzinavam, os pedestres se
acotovelavam como sempre, e o relógio da Igreja Saint-Germain-desPrés
marcava três e meia. Ela teve a impressão de que fazia muito tempo que tinha
estado com Françoise...
Não havia nenhum homem na seção de lingerie. Algumas senhoras de
idade examinavam umas combinações cor-de-rosa ou umas cintas cor da pele.
Um pouco além, duas freiras apalpavam o tecido de camisolas brancas muito
sérias sob o olhar de vendedoras que se pareciam com as clientes. Léa se sentiu
deslocada.
— Posso ajudá-la, senhora? — Perguntou uma delas, com uma expressão
que tentava em vão tornar amável.
— Sim, por favor. Queria experimentar uns sutiãs.
— Que modelo?
— Não sei, estou em dúvida... Mostre-me alguns... Você não tem outro...
um pouco mais decotado, talvez?
Léa tinha a impressão de que nunca mais ia sair daquele provador
minúsculo. Quantos modelos ela já tinha experimentado? Quinze? Vinte? De
seu lado, a vendedora tinha cada vez mais dificuldade em conter a impaciência
e afastava-se de novo, reclamando. Uma mão afastou a cortina; uma garota, de
boina, com o dedo nos lábios, deslizou para dentro.
— Você é muito sortuda! — Murmurou com uma cara de admiração.
Léa arrumou as rendas da combinação.
— Está tudo bem: foi alarme falso. Você pode fazer o transporte. As senhas
continuam as mesmas... Depois desta missão, e por medida de segurança, não
vamos chamá-la por algum tempo.
Ela falava com um tom determinado, demonstrando uma autoridade que,
no entanto, era desmentida pelo rostinho bonito, emoldurado por cabelos
negros e cacheados. Não devia ter mais de vinte anos. Léa sorriu-lhe
gentilmente.
— Bom, vou embora; senão, chego atrasada ao ensaio... Sou atriz. Boa
sorte! Cuidado.
Aliviada, Léa acabou de se vestir e saiu, no momento em que a vendedora
voltava com outro modelo na mão.
— Ah... não, obrigada, não achei nada mesmo que me agradasse...
Desculpe.
Ela sentiu que a empregada da loja se continha para não explodir.
Esperta, dirigiu-lhe seu sorriso mais amável...
Afobada, Léa fechou o porta-malas do carro, onde acabava de colocar dois
sacos pesados cheios de dinheiro coletado para a FLN. Ninguém a tinha visto
deixar o apartamento e entrar na garagem do prédio onde ficava o Versailles de
François. Um pouco antes, depois de trocar o elegante tailleur por jeans e um
pulôver, seus finos escarpins por um par de sapatos esporte, ela jogou na mala
uns produtos de higiene e algumas mudas de roupa, pegou o passaporte, os
documentos do carro e uma certa quantia de dinheiro. Deixou um bilhete na
mesa da cozinha, avisando que estaria fora por alguns dias e que daria notícias
logo.
O trânsito estava pesado, ao longo do trajeto. Léa dirigiu por um tempo à
toa por Paris, a fim de disfarçar, caso estivesse sendo seguida; não percebeu
nada de anormal.
Somente quando viu a placa de Strasbourg é que se lembrou de que a irmã
estava hospedada na casa dela e que só iria embora para Montillac no dia
seguinte. Imaginou a decepção da irmã, talvez até a raiva ou a mágoa, quando
não a encontrasse de manhã. "Eu nunca estou onde deveria estar. Tenho
certeza de que ela precisa de mim, neste momento!", atormentou-se ela,
acelerando.
Já era noite quando entrou em Strabourg. Sem muita dificuldade,
encontrou o Hotel Chapeau Rouge, em frente à garagem onde devia deixar o
carro. Um quarto no nome de sra. Robert tinha sido reservado por uma noite.
Um rapaz se encarregou dos dois sacos e da bagagem.
— A senhora carrega chumbo aqui! — Suspirou ele, colocando os volumes
no porta-bagagem do quarto.
Uma boa gorjeta compensou-o pelo esforço. Depois de hesitar um pouco,
Léa desistiu de ligar para Françoise para explicar sua ausência, com medo de
que a linha estivesse sob escuta. Comeu uma refeição leve e deitou-se. Quando
o telefone tocou, teve a impressão de que acabara de se deitar.
— Bom dia, senhora, são sete horas. Deseja tomar o café da manhã no
quarto? — Anunciou uma voz com sotaque alsaciano.
Pouco depois, Léa passava sem problemas pela alfândega francesa e,
depois, pela alemã. O dinheiro devia ser levado a Frankfurt, no restaurante da
estação.
Era a primeira vez que voltava à Alemanha depois do processo de
Nuremberg. À medida que avançava nesse país que mostrava ainda, em alguns
lugares, as marcas da guerra, um tremendo mal-estar a invadira.
Involuntariamente, sua boca encheu-se de saliva, um suor frio porejava entre
seus seios. Depois, foi como se uma mão lhe apertasse a nuca, e dedos se
crisparam no volante, as juntas embranquecidas. Cada nome de cidade ou
cidadezinha escrito em letras góticas caía nela como um golpe.
"O que está acontecendo comigo?", alarmou-se. Seguiu um pouco ainda,
antes de parar o carro no acostamento, tomada pela náusea. Encostada na
porta do Versailles, limpou os lábios, olhando ao redor, indiferente à chuva que
caía. Os caminhões, com os faróis acesos, passavam à toda velocidade,
espirrando jatos de água.
— É porque estou na Alemanha. — Articulou, enfim, à meia-voz...
Esgotada, entrou de novo no carro, incapaz de se livrar das imagens que agora
brotavam de sua memória: o campo de Bergen-Belsen, um universo inusitado,
povoado de seres esqueléticos que se moviam com um barulho tão uniforme
que parecia o ruído de milhares de insetos... Ela penetrou nesse lugar,
tropeçando nos cadáveres em poses obscenas... Depois, aquela voz
imperceptível que subia daquele amontoado imundo: "Léa... Léa..."
— Não! — Gritou ela, caindo em lágrimas sobre o volante.
Quando voltou a erguer a cabeça, a garganta e os olhos ardiam e ela teve a
sensação de ter-se perdido num denso nevoeiro, de tanto que os vidros
embaçados a isolavam do mundo.
O contato aguardado no restaurante da estação estava lá. Léa entregou-lhe
os sacos, mas recusou-se a passar a noite na cidade, conforme previsto. Nada
pôde fazê-la mudar de idéia. Era quase meia-noite quando passou a fronteira
de volta. Na saída de Strasbourg, encheu o tanque e pegou a estrada para
Paris.
Maldita chuva! Não se enxergava nada a vinte metros de distância, os
faróis dos carros que vinham em sentido contrário a cegavam. Tinha a
impressão de que não avançava e que estava dirigindo há horas. Estava muito
quente dentro do carro, muito abafado; o torpor a invadiu pouco a pouco.
Reduziu a velocidade para acender um cigarro, mas apagou logo em seguida,
enjoada. Foi só o tempo de dar um olhada para o cinzeiro e, no último segundo,
percebeu um caminhão parado no acostamento. Ela desviou por pouco.
Assustada com a guinada, freou; tarde demais. Na entrada da curva logo a
seguir, sua lateral direita bateu num marco que mal saía do mato. Com o
choque, o carro atravessou a pista, bateu numa árvore, deu um cavalo-de-pau
e veio parar sua corrida louca sob o pára-choque do peso-pesado estacionado.
Capítulo 7
A comunicação se estabeleceu entre François Tavernier e o general Challe,
comandante em chefe do exército da Argélia. O aperto de mão entre eles foi
franco e cordial.
Nomeado para este posto por De Gaulle, esse general da aeronáutica tivera
problemas no início para se impor aos oficiais do exército, que viam com maus
olhos a chegada ao comando de um militar de outra arma; ao fim de alguns
meses, entretanto, perceberam que tinham se enganado. Esse homem, com
ombros de lutador, calmo e tenaz, que fora chefe de uma rede da Resistência na
região de Avignon, condecorado com a Distinguished Service Order por ter
transmitido a Londres a ordem de Batalha da Lxiftiuaffe no momento do
desembarque, obtivera na luta contra a FLN um sucesso que lhe valera os
cumprimentos do Presidente da República. A autodeterminação anunciada pelo
Chefe de Estado com suas três opções, deixava-o perplexo. Que queria
exatamente De Gaulle? Quando esteve em Paris pela última vez, em 19 de
setembro, ele tentava dizer ao General a solução para a qual ele se inclinava. O
Chefe de Estado permaneceu impassível.
Sentado em seu gabinete do Governo Geral, em frente ao de Paul
Delouvrier, Maurice Challe, fumando um cachimbo de haste curva, considerava
seu interlocutor com simpatia.
— Os muçulmanos precisam de nós para sua segurança e sua promoção.
Os europeus vêem em nós apenas a garantia de sua segurança. Obtivemos
grandes resultados, o General sabe. Graças a meus harkis fizemos um bom
trabalho, controlamos e protegemos algumas cidades.
Desde que assumi, dobrei os efetivos, não se faz bem a guerra se não for
com os autóctones. Dar três fuzis aos camponeses e ir embora é dar três fuzis à
FLN. Dar trinta e cuidar do vilarejo, dar-lhe um apoio real e atento, é criar uma
autodefesa que expulsará os rebeldes. É ganhar para a nossa causa uma vila
com a qual poderemos contar. Desde minha chegada, organizei "comandos de
caça", composto de convocados e harkis solidamente enquadrados, que
perseguem as unidades de rebeldes; são verdadeiros caçadores, rápidos e
eficazes. As tropas muçulmanas se instalaram com suas famílias nos lugares
de onde podem vigiar a região em volta e de onde partem à caça dos fells. Você
está pensativo, Tavernier?
— Não creio que seja uma boa solução, meu general.
— O quê?! — Exclamou Challe, bufando. — Você está duvidando dos
resultados obtidos?
— Não, mas da necessidade deles.
Um silêncio pesado caiu entre os dois homens. Challe inclinou-se para
pegar o cachimbo.
— É o que pensa De Gaulle? — Soltou ele, de repente.
François Tavernier acendeu lentamente o cigarro, antes de responder.
— E eu sei? Ele não é homem de revelar seu pensamento a qualquer um
que...
— Você não é qualquer um!
— Você também não. E, no entanto, não sabemos nem um nem outro o
que pensa realmente o Presidente da República no que se refere ao futuro da
Argélia. O que digo representa apenas minha opinião, e não compromete senão
a mim.
— Mas ele não o encarregou de uma missão?
— Sim... E daí?
O general Challe encarou-o espantado de início, depois caiu na risada.
— E daí?... Você tem muito peito! É a opinião dele que me importa, não a
sua.
— Pergunte a ele.
— Prefiro não... Ainda posso ouvi-lo dizer, quando assumi minhas funções:
"Challe, não se impõem condições a De Gaulle!"
O comandante em chefe levantou-se, caminhou um pouco pelo escritório,
fumando sempre seu cachimbo apagado, depois parou bruscamente diante de
François:
— Você me diria francamente o que pensa no fundo?
— Se você me perguntasse...
— Estou perguntando.
— Parece que nem o governo nem o exército aprenderam nada com a
guerra da Indochina...
— Não é a mesma coisa!
François ignorou a interrupção.
— ... tanto num caso como no outro, uma nação colonizada luta por sua
independência. O povo vietnamita já ganhou a sua. Agora é a vez dos
argelianos, alguns dos quais combateram na Indochina, do lado do exército
francês e acham-se agora do lado da ALN. A vitória dos vietnamitas encheu-os
de idéias... Um bom número de nossos dirigentes recusa-se a enxergar a
realidade: a Argélia será independente. Ainda posso ouvir a voz de Mitterrand
— quando era Ministro do Interior declarando pelo rádio em 1954: "A Argélia é
a França, e a França não reconhece para si uma autoridade diferente dela."
Também a de Mendes, o honesto Mendes France, afirmando alguns dias mais
tarde na assembléia nacional: "Os departamentos da Argélia fazem parte da
República. São franceses há muito tempo; sua população, que desfruta da
cidadania francesa e é representada no Parlamento, tem dado provas
suficientes de sua ligação com a França para que a França não permita que se
discuta sua unidade. Entre ela e a metrópole, não se admite secessão. Isso deve
ficar claro para sempre e para todos na Argélia, na metrópole e também no
estrangeiro..."
— Muito bem! Que memória!... Mas não sabia que você era comunista. É
verdade que o general De Gaulle foi o primeiro a chamá-los ao poder.
— Eles não estavam do nosso lado na Resistência?
— Do nosso lado? É fácil dizer! Mas voltando à sua missão: você pretende
falar de independência com seus interlocutores?
— Não. Apenas falei o que penso no fundo, como você me pediu. Vejo que
você não gostou... Esqueça, portanto, o que eu disse. Menos, talvez, com
relação aos harkis: não convoque mais esses pobres diabos, é a própria alma
que eles vendem... Bem, desculpe-me, deixe pra lá. Nem você nem eu
mudaremos o rumo das coisas...
Eles se despediram, apertando-se as mãos, descontentes um com o outro.
Voltando ao Saint-George, François não conseguia comunicar-se com
Paris.
— Acontece. — Comentou placidamente a telefonista — Tente mais tarde...
Da janela de seu quarto dominava-se Argel, obscurecida pela garoa, cujas
luzes começavam a se acender. "Sinistro", pensou. Tomou um banho e desceu
para o bar, querendo tomar um drinque, na esperança de mudar seus
pensamentos. Algumas mulheres que acabavam de tomar chá lançaram-lhe
olhares gulosos que fizeram com que ele se sentisse pior. Grosseiramente,
virou-lhes as costas, acomodou-se no bar e pediu um uísque. O que teria dado
nele para se revelar daquele jeito? O general Challe tinha a tarefa de pacificar a
Argélia, não de levá-la à independência. Divulgando sua opinião sobre o
assunto, rompera o laço de simpatia que se havia estabelecido no início da
conversa. Que imbecil! Quando aprenderia a fechar a boca?! Lembrava-se agora
do tom de ligeiro desprezo que assumira o general de Lattre ao comentar a sua
atitude a respeito do futuro da Indochina: "Você tem o comportamento de um
subtenente!" Na época, isso o irritara, mas, pensando agora, compreendia o que
de Lattre quis dizer: para um homem de sua experiência, ele havia conservado
uma forma muito juvenil e idealista de ver as coisas... O mau humor foi o único
motivo real para François chegar atrasado na casa do delegado geral.
— Não o esperávamos mais. — Acolheu-o amavelmente Paul Delouvrier. —
Nenhum contratempo, espero.
— Não... Apenas não consegui falar com minha mulher. Desculpem, por
favor.
— Você está completamente desculpado. — Disse a sra. Delouvrier, vindo
ao encontro dele. — Seja bem-vindo, sr. Tavernier... Creio que já conhece
Michel-Jean Maffart?
Apresento-lhe Jean Poincaré, diretor de assuntos políticos... Agora,
senhores, se quiserem, podemos ir para a mesa. O general Challe se juntará a
nós para a sobremesa.
Irritado com a idéia de reencontrar Challe, François teve um pouco de
dificuldade para acompanhar a conversa. Apesar da presença da sra.
Delouvrier, cuja gravidez adiantada não podia ser ignorada, só se falou de
atentados, complôs e represálias. O mínimo que se podia dizer é que o
otimismo não reinava naquela mesa!
— Entre as três opções propostas por De Gaulle quanto à
autodeterminação, qual ele prefere na sua opinião, Tavernier? — Lançou
Poincaré, à queima-roupa.
François não se apressou a responder.
— Nosso anfitrião, que conversa regularmente com o Presidente da
República, saberá melhor do que eu responder a essa pergunta...
— Mas, como enviado do General, você deve ter alguma idéia.
— Uma idéia, talvez, mas não a certeza. Prefiro, se vocês não se importam,
não responder. Considerem que minha missão proíbe...
Um silencio incômodo instalou-se entre os convidados. Por sorte, um
empregado desviou a atenção vindo anunciar ao delegado que o chamavam ao
telefone. Ele voltou, um pouco depois, contrariado.
— O general Challe ficou preso no bairro Rignot. Ele pede, querida, que
não o leve a mal.
— Pobre Maurice, ele quase não se distrai... Senhores, é minha vez de
pedir que me desculpem, mas preciso ir descansar. Já pedi que sirvam café e
licores na biblioteca...
Sr. Tavernier, gostei muito de revê-lo e espero encontrá-lo de novo em
breve.
Depois da partida da dona da casa, Delouvrier ofereceu charutos aos
convidados; Maffart preferiu seu cachimbo. Durante alguns instantes, os
quatro homens fumaram em silêncio.
— Gostaria de mudar de hotel. — Declarou repentinamente François. — É
muito longe do centro de Argel. Alguma sugestão?
Não sabendo a quem se dirigia a pergunta, Delouvrier, Maffart e Poincaré
se interrogaram com o olhar; Maffart se decidiu primeiro:
— O Saint-George é um hotel agradável, muito calmo e...
— Exatamente, é muito chato.
— Então, meu caro — Sugeriu o delegado geral. — é para o Aletti que você
deve ir. Você entra e sai à vontade, jornalistas do mundo inteiro se hospedam
regularmente nele, lá se encontram as mulheres mais bonitas de Argel e, se
você gosta de jogar, existe um cassino. Quanto ao show do cabaré, dizem que é
excelente.
— Não vou ter muito tempo para aproveitar tudo isso, mas o endereço está
mais de acordo com meu gosto. Hospedei-me lá em 58. E, depois, estarei mais
perto do GG.
— Como quiser. Vou pedir à minha secretária para cuidar disso.
— Agradeço... No momento, permitam-me que me retire.
— Meu motorista vai levá-lo.
— Não é preciso...
— É muito difícil encontrar um táxi à noite. Vou mandar chamar meu
motorista.
Depois de se despedir de Maffart e Poincaré, François encontrou
Delouvrier no hall do Palácio de Verão.
— O que você fez a Challe? — Perguntou o delegado, segurando-o pelo
braço. — Ele parecia furioso com você.
— Não sei... Ah, talvez os harkis...
— Como assim?
— Eu dei a entender que é arriscado continuar a recrutar esses infelizes.
Paul Delouvrier olhou-o fixamente.
— Não admira que esteja furioso. Você tocou num dos orgulhos dele: o
grande número de harkis engajados no exército desde a chegada dele. Ele
acha...
—... que só se faz bem a guerra com os autóctones. Foi o que me disse, na
verdade.
— E você não concorda com ele?
— Não, senhor delegado. Não gosto muito que se forcem os homens a
combater seus próprios compatriotas. O senhor sabe, como eu, que continuar a
recrutá-los é, no final, condená-los à morte.
Os olhares dos dois interlocutores se encontraram; eles se entenderam.
Quando Tavernier foi embora, Delouvrier permaneceu por uns instantes
na escadaria externa, pensativo. Mas, quando virou-se para voltar à sala, a dor
na perna ficou mais forte. Apoiou-se completamente na bengala para dar os
poucos passos que o separavam da sala.
Já fazia três dias que François não tinha notícias de Léa; quando
conseguia fazer a ligação, ninguém atendia ou então havia tanto chiado que ele
nem conseguia reconhecer a voz de quem atendia.
Sua mudança para o Aletti foi tranqüila. Como esperava, o ambiente era
bem menos afetado que no Saint-George; Delouvrier tinha razão de achar que
ele se sentiria mais à vontade ali. O serviço era rápido, o pessoal, amável e a
cozinha, aceitável.
Seu quarto — na verdade, uma suíte — dava para o Bulevar Carnot, em
frente à estação marítima. No dia da mudança, ele notou logo num canto do
hall, um garoto de olhos vivos encarregado de engraxar os sapatos dos clientes.
Ele se sentara numa das poltronas altas, estofadas de couro vermelho,
esperando que o jovem engraxate terminasse de atender um homem gordo com
brilhantina nos cabelos, usando um fino bigode preto. Com os sapatos
brilhando, o indivíduo jogou uma nota amassada na direção do jovem
empregado e foi embora sem uma palavra. François surpreendeu a expressão
de ódio do garoto. Com o insulto do gesto, o menino apertou, como se quisesse
quebrá-la, sua escova de lustrar. Quando, afinal, abaixou-se para recolher o
dinheiro que caíra no chão, François viu que uma lágrima corria no rosto dele.
Tossiu, então, para chamar a atenção do menino, que levantou a cabeça com
um sorriso de encomenda, embora o rancor brilhasse ainda nos olhos úmidos.
— Bom dia, senhar, quer engraxar sapato? — Perguntou ele, parodiando
exageradamente a maneira de falar dos muçulmanos de Argel.
— Pois não.
O engraxate deu um sorriso sem alegria e sentou-se no banquinho, dobrou
a perna das calças de seu novo cliente e começou a limpar a lama dos saltos
dos sapatos.
"Que idade terá ele? A mesma de Adrien?", pensou François. Ele tinha um
rosto bonito, emoldurado pelo cabelo castanho. As mãos, ágeis e finas, se
ocupavam com gestos precisos.
— Bem, eles estavam mesmo precisando de um pouco de graxa! São
sapatos muito bonitos, é preciso cuidar bem, o senhor sabe...
— Ué, perdeu o sotaque?
Um rubor brusco invadiu suas faces morenas.
— Senhar, estar contente? Querer outra coisa?
François inclinou-se para ele.
— Por que você fala desse jeito ridículo?
— É assim que eles gostam que se fale...
— Quem?
— As pessoas daqui.
— Eu não sou daqui.
— Isso eu já tinha percebido... e não apenas por causa dos sapatos. —
Lançou ele, dessa vez com uma risada mais alegre.
— Como você se chama?
— Mohamed... quer dizer, é como me chamam aqui.
— Por que "aqui"? Não é seu nome verdadeiro?
— Meu nome verdadeiro?... Eles estão pouco se lixando! Para eles, somos
todos Mohamed.
— Não para mim. Então, diga, qual é seu nome?
O menino examinou-o demoradamente com o olhar, antes de responder:
— Béchir... Béchir Souami — Cochichou afinal, olhando em volta.
— Obrigado pela confiança. Eu sou François Tavernier. — Vou ficar aqui
por alguns dias.
Incrédulo, Béchir olhava para a mão estendida para ele. Depois de um
tempo, limpou a mão desajeitadamente nas calças antes de estendê-la também.
— Você veio da França? De Paris? — Falou para disfarçar seu embaraço.
— Sim.
— Meu pai conheceu a França, ele diz que é um país tão bonito quanto a
Argélia... Ele esteve na guerra, sabe? Ele foi até ferido na Itália: uma mina
arrancou-lhe a perna. Ganhou uma medalha por isso... Como diz minha irmã,
não adianta nada!... Você esteve na guerra?
François balançou a cabeça.
— E agora?
— Agora?
— Aqui, você veio para a guerra?
Tavernier compreendeu que sua resposta seria fundamental para seu
interlocutor.
— Não, queria que houvesse paz entre nossos dois países.
Seu novo companheiro endireitou-se, com o olhar mais penetrante.
— Nossos dois países?... Você quer dizer que, para você, a Argélia não é...
a França?
Podia-se perceber quase uma súplica na voz do jovem argeliano.
— Sim. — Ele se ouviu responder.
"Decididamente, de Lattre tinha razão!", pensou François ao mesmo tempo
em que falava.
O rosto sério e tenso que o encarava pareceu se iluminar de dentro para
fora. O olhar orgulhoso, os ombros estreitos do garoto se endireitaram.
— Que idade você tem? — Perguntou Tavernier, quase com carinho.
— Quinze anos.
— Tenho um filho um pouco mais novo que você, sabe? Faz muito tempo
que você trabalha aqui?
— Dois meses, apenas. Antes, o meu primo é que era o engraxate do hotel.
Eu vinha ajudá-lo de vez em quando para ganhar uma graninha; ele me
ensinou o trabalho. Então, quando ele morreu, o gerente propôs que eu o
substituísse. Eu não queria, queria continuar estudando, mas meu pai insistiu.
Eu não podia recusar: nós somos pobres, e tive que deixar a escola. Os colegas
me passam as lições, mas não é a mesma coisa, só estudo quando tenho
tempo...
— Mohamed! Você não percebe que está aborrecendo este senhor com sua
conversa?... Desculpe, senhor.
O porteiro estalou os dedos, enquanto o garoto ficou duro no lugar.
Tavernier saiu tranqüilamente da poltrona, procurou no bolso e tirou uma
nota, que entregou a Béchir.
— Muito bem, garoto, e obrigado. Você é um engraxate de primeira! Você
deve ter orgulho dele. — Concluiu François, dirigindo-se intencionalmente ao
porteiro.
O homem ficou todo orgulhoso.
— Obrigado, senhor. Nosso gerente é muito exigente com os funcionários.
— Já tinha percebido; meus cumprimentos. Até logo... Mohamed.
Com um sorriso conivente, Béchir deu uma piscadela para ele.
No dia seguinte, por indicação do porteiro, nervoso por não conseguir os
jornais que procurava, François foi à Rua Charras, onde algumas livrarias
também vendiam jornais. Mas, lá, como em toda parte, a censura dominava.
Impossível encontrar l'Humanité, l'Express ou Le Monde. Ele se conformou com
Le Figaro e Paris-Match, depois dirigiu-se ao caixa. Diante dele, um rapaz
esperava para pagar o livro que tinha na mão.
— Saia! Deixe passar o senhor. — Rosnou a mulher do caixa, apontando
com a mão o cliente europeu.
— Acho que é a vez dele. Eu espero.
O adolescente virou-se e François reconheceu o engraxate do Aletti;
estendeu-lhe a mão.
— Era o que faltava!... Mas, ele está com o senhor?
— Sim... Vejo que você encontrou o livro que queria. Com os jornais,
senhora, quanto devo?
A mulher colocou o livro numa sacola de papel e cobrou, sem uma palavra
gentil. Saindo, François aproximou-se do ouvido de Béchir:
— Eles são todos assim?
— Mais ou menos... — Respondeu o adolescente, rindo. — Eu vou pagar o
livro.
— Deixe-me oferecê-lo, é um prazer para mim.
— De jeito nenhum!
— Vamos, não seja bobo... Você mora por aqui?
— Não, na Rua Chameau, na Casbah.
Um jipe parou perto deles, com um guincho dos freios. Quatro soldados
saltaram dele, empunhando suas armas.
— Não vamos ficar aqui! — Soltou Béchir, pegando a Rua CharlesPéguy.
François imitou-o. Caminhões do exército fechavam agora a Rua Charles-
Péguy. Eles passaram por uma multidão de soldados, mulheres com véus,
garotos espertos, operários de uniforme, estudantes bagunceiros... Na Rua Isly,
ainda havia muita gente. O tempo estava fresco, apesar do sol que brilhava no
céu de um azul insolente. Eles andaram por um tempo em silêncio.
— Eu... posso lhe oferecer um chá de hortelã? — Perguntou Béchir
timidamente.
— Boa idéia.
Eles passaram por uns prédios protegidos por cercas de arame farpado.
Paraquedistas montavam guarda. Um deles detinha uma pedestre toda
envolvida em tecidos brancos, enquanto outro fuçava na sacola de palha dela.
Indiferentes, os pedestres se apressavam em direção a seus destinos. A
campainha do bonde obrigou-os a dar passagem.
Mais além, diante das lojas da moda, mulheres européias comentavam os
modelos expostos.
— Oh! É a última moda!
— Dizem que Brigitte Bardot usa o mesmo...
— As mulheres... todas iguais! — Considerou Béchir com um tom de
superioridade masculina.
François se divertiu com a observação.
— Diga-me, o que você sabe sobre as mulheres? O adolescente lançou-lhe
um olhar indignado.
— Bem, eu tenho uma irmã, e ela só se guia pelas revistas da moda. Ela e
minha mãe tentam copiar os vestidos que elas vêem na Elle... Olhe! Estou
dizendo! Lá está ela, com as amigas, falando sobre moda...
Em frente à vitrina de uma loja elegante que exibia vestidos de noite, três
mocinhas morenas, com vestidos claros e casacos curtos de lã, conversavam
animadamente.
Béchir aproximou-se discretamente do grupo.
— Eu o vi pelo vidro! — Exclamou uma delas, virando-se.
— O que você está fazendo aqui? Devia estar no hospital...
— Temos uma hora de intervalo... E você, não devia estar no trabalho, em
vez de passear pelas ruas?
François aproximou-se também.
— Ei, parem de brigar! — Cortou uma das duas outras garotas. — Você
não percebeu que ele não está sozinho? — Acrescentou ela em árabe.
A que brigava com Béchir observava-o, agora, desconfiada. Ela era linda,
com olhos muito claros, protegidos por longos cílios, um nariz charmoso e uma
boca com lábios grossos. Seus cachos negros, presos por uma fivela no alto da
cabeça, enfeitavam um rosto de traços infantis que lembravam o do garoto.
— Quem é? — Cochichou ela.
— É o francês que conheci ontem no Aletti...
Um sorriso luminoso embelezou-a ainda mais. Ela estendeu a mão com
um gesto completamente espontâneo.
— Bom dia, muito prazer em conhecê-lo... Meu irmão me falou de você,
ontem à noite. Eu me chamo Malika e estas são minhas amigas Aicha e Fátima.
Nós três somos alunas no hospital Maillot.
— Bom dia, senhoritas.
— Bom dia — Responderam em coro as duas amigas.
— Vamos beber um chá de hortelã, vocês querem vir conosco?
— Não, obrigada. — Recusou educadamente Malika. — Nós não temos
tempo, já devíamos ter voltado ao hospital... Vamos, meninas, depressa! Olhem
o bonde...
Elas correram ao mesmo tempo, fazendo sinal com a mão. Depois de vê-las
pegar o bonde, François e Béchir puseram-se a caminho. Se eles pudessem se
ver nesse momento, talvez percebessem o sorriso vaidoso que se espalhou em
seus lábios, aquele tipo de sorriso que os homens às vezes exibem, quando
pensam ou falam de mulheres.
— Ainda falta muito para o chá de hortelã?
— Não, é na Rua Bône, em frente ao mercado da Lyre...
Conforme se aproximavam, a multidão composta principalmente por
muçulmanos ficava mais compacta. As mulheres, algumas com véus, levavam
sobre a cabeça pesados cestos. Outras seguravam pela mão crianças que só
queriam escapar.
Velhas senhoras européias, quase todas vestidas de preto, deslizavam
entre os grupos: algumas delas eram seguidas por um rapaz carregado de
compras. Ali, também, soldados ajudados por homens de uniforme controlavam
os pedestres: parecia que uma bomba estava escondida não se sabia onde... Do
lado de fora do mercado, vendedoras de laranjas, de limões, de tâmaras, de
folhas de hortelã ou de flores vendiam suas mercadorias aos gritos. O chão
coberto de detritos era escorregadio. Da sua gaiola de vime, um galo
espetacular lançou um cocoricó que, por um segundo, dominou o tumulto. Um
pouco além, outro lhe fez eco. Carroças, puxadas por mulas magras, abriam
caminho com dificuldade por entre a multidão. Homens montados em seus
asnos, em cujos flancos balançavam pesados fardos, tentavam também
avançar. O cheiro de carneiro assado impregnava o ar, dominando todos os
outros. Eles viraram enfim para uma rua, lotada de gente também, onde os
cafés mouros encostavam-se uns nos outros. Béchir afastou a cortina de contas
pendurada na porta de um deles. Todas as mesas estavam ocupadas por
homens, na maior parte idosos; quase todos estavam de turbante. Conforme
entraram, as conversas se interromperam. Um velho, com uma longa túnica
cinza, levantou-se e veio na direção deles.
— Não se preocupe, meu tio, é um amigo. — Tranqüilizou-o o adolescente.
Sem um sorriso, o velho olhou com desprezo para François, depois se
voltou para Béchir, olhando-o com ternura.
— Se você diz, meu filho... Espero que não esteja enganado.
Ele não acrescentou nada, dirigiu-se para a porta e saiu. Os três velhos,
que pouco antes conversavam com ele, levantaram-se por sua vez e liberaram
uma mesa onde os copos de chá que eles não tinham terminado ainda soltavam
fumaça; o proprietário veio tirá-los. Os recém-chegados sentaram-se e ficaram
em silêncio até que ele voltasse; ele trouxe uma chaleira imponente de metal e
dois copos limpos. O calor do líquido âmbar proporcionou-lhes uma sensação
de bem-estar. Sorriram um para o outro com o olhar. Pouco a pouco, os olhares
se desviaram e as conversas recomeçaram.
— Por que você me trouxe aqui, Béchir? Não tenho a impressão de ser
bem-vindo...
— Mas é para que o reconheçam!
François ficou perplexo.
— Logo, por toda a Casbah, saberão que você veio aqui comigo. —
Explicou Béchir. — Se você é amigo, será protegido em caso de necessidade. Se
não...
Ele passou firmemente uma mão pelo pescoço. O gesto era explícito. O riso
de François surpreendeu os fregueses.
— Estou prevenido, é muito gentil da sua parte!
— Não é para rir. — Chocou-se Béchir, vermelho.
— Tem razão... Bebamos este chá antes que ele esfrie... Hum! Está
excelente!
A expressão enfezada com a qual Béchir bebia agora o rejuvenescia; ele
parecia agora o que era: um garoto que queria brincar com os adultos.
— Posso ver o livro que compramos?
Béchir passou-lhe a sacola.
— Você lê Camus?... Você gosta?
— Você parece espantado... Pensa certamente como eles, que alguém como
eu não é capaz de gostar da sua amada literatura?... Bem, eu li tudo de Camus!
Eu o admiro, mas também o odeio. Acho que compreendo o que ele quer dizer,
e o que ele diz faz com que eu me sinta próximo dele. Mesmo sabendo que é
daqueles que vivem na nossa terra considerando que estão na deles...
— Esses aí ajudaram a desenvolver o seu país, você sabe...
— Sim, alguns... Para outros, foi apenas um meio de sujeitar as
populações frágeis porque eram incultas. E, depois, roubaram-lhes as terras,
mantiveram-nos ignorantes! Ah, sei o que você vai dizer: que é graças à escola
francesa que hoje posso ler Camus e manter esta conversa. É verdade, e minha
irmã e eu somos gratos por isso. Sim, a escola nos abriu a mente, ensinou-nos
as leis da República, a Declaração dos Direitos do Homem... e que nossos
ancestrais eram os gauleses! Mas o que eu não compreendo é porque nós, os
muçulmanos, não temos as mesmas oportunidades, quando terminamos o
colegial, que os jovens europeus. Por quê? Será que não somos mais iguais,
será que somos menos franceses do que nos disseram?
François virou o rosto. O que este garoto dizia hoje era o mesmo que
denunciavam outrora seus amigos vietnamitas, Lien, Bernard ou Kien. De
todos os países colonizados pela França vinham as mesmas queixas. Surgia a
mesma amargura, o mesmo ódio. Com seus ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade, os herdeiros da Revolução Francesa introduziram primeiro o
fermento da contestação e, depois, o da rebelião entre as nações conquistadas.
Hoje, não havia mais o que fazer. O exemplo vietnamita estava presente no
espírito de todos os combatentes argelianos: eles também se batiam por sua
independência. Mas aqui, nesta Argélia sob domínio francês há mais de cem
anos, os laços foram tecidos com colonos vindos da Europa: franceses,
certamente, mas também espanhóis, turcos, portugueses, italianos, gregos...
sem falar da comunidade judaica, instalada no país desde antes da conquista.
Não é possível compartilhar o mesmo sol, as mesmas paisagens, o mesmo
trabalho, os mesmo jogos, os mesmos temores e, para alguns, os mesmos
bancos de escola sem, com o tempo, se conhecer, se estimar ou se odiar como
em nenhum outro lugar do mundo. Muitas gerações conviveram aqui, tanto
bem como mal. Os filhos dos europeus cresceram felizes neste país magnífico,
sem querer ver que os filhos de seus vizinhos árabes andavam muitas vezes
descalços, vestidos com trapos. Enquanto crianças, brincavam e aprendiam a
ler juntos. Adolescentes, sem que nada fosse dito, seus caminhos se separavam
e cada um seguia por seu lado. Isso parecia natural aos pés-pretos; não para
jovens muçulmanos que se sentiam rejeitados por uma vida que lhes parecia
mais fácil do que a de seus pais. No blecpo os meninos europeus invejavam às
vezes os filhos dos trabalhadores rurais que não iam à escola. Sonhavam em,
como aqueles, sair pelo deserto ou pela montanha, perseguindo animais
lendários, agarrados à crina de montarias loucas. Todos tinham em comum a
paixão por este país, o mais lindo do mundo aos olhos deles. O que não estava
longe da verdade...
— Você não diz nada... está aborrecido?
— Não, pensava neste país que Camus e você amam tanto.
— Eu sei que ele o ama. Em janeiro de 1956, eu estava com minha irmã
no Círculo do Progresso, na praça do Governo, na sala de onde ele lançou seu
"Apelo à trégua civil", apesar das tentativas das autoridades para impedi-lo.
Corriam boatos de que iam prender Camus. Para uns, seria a FLN; para outros,
os radicais. Um grupo, composto principalmente por jovens árabes, verificava
os convites e as identidades. Havia umas mil pessoas, entre europeus —
principalmente mulheres — e muçulmanos — entre eles, nenhuma mulher, a
não ser minha irmã, que tinha conseguido os convites com o médico com quem
trabalhava. Do lado de fora, sob as janelas, em frente a um cordão de CRS, a
multidão européia gritava: "Camus, traidor! Camus, rua! Mentes, morte!" e
cantavam a Marselhesa. Um pouco afastados, alguns brandiam cruzes celtas.
Mais além, a massa imóvel e negra dos árabes só era percebida sob as manchas
luminosas dos postes. Quando escureceu, perto das cinco horas, Camus subiu
no estrado sob aplausos. Atrás de uma mesa comprida, estavam o doutor
Khaldi, o pastor Capieu e um padre branco cujo nome esqueci. Emmanuel
Robles, que presidia a reunião, recebeu-o. O sheik Tayeb el-Okbi chegou numa
maca. Camus abaixou-se para abraçá-lo. Uma cadeira ainda estava vazia: era
para Ferhat Abbas, que não tinha chegado.
Depois de algumas palavras de Robles, Camus começou a falar. Estava
muito pálido. Eu só tinha doze anos, e minha irmã quinze, mas não
esquecemos nada daquela noite.
No começo, parecia que ele procurava as palavras, ouvia-se mal. Pouco a
pouco, sua voz firmou-se: "Eu não sou um político, minhas posições e meus
gestos estão longe das tribunas públicas." Ele disse que sentia a infelicidade
argeliana como uma tragédia pessoal, que uma coisa pelo menos nos reunia, o
amor por nossa terra comum... que esta guerra era uma guerra fratricida... que
se cada um, árabe e francês, fizesse o esforço de refletir sobre os motivos do
adversário, uma discussão poderia se estabelecer... que a solidariedade entre
franceses e árabes era inevitável tanto na morte como na vida, na destruição
como na esperança... que nossas diferenças deveriam nos ajudar em vez de nos
opor... Depois, Ferhat Abbas chegou, abraçou Camus e sentou-se ao lado dele.
Camus continuou, disse que a reivindicação de dignidade dos árabes era
justificada... que os franceses da Argélia também tinham direito à segurança e
à dignidade em nossa terra comum... Eu ouvia tudo isso, mas me dizia:
"Ele nos fala de seu país, mas esse país é meu! Nós não somos irmãos,
nossa pele é diferente, nossos cabelos também, nós não rezamos ao mesmo
Deus, nossas mães usam véus, as deles não, nós não vamos às mesmas praias
e nós somos empregados deles..." Não ouvi mais. Olhava pela janela. Estava
muito quente; Camus enxugava o rosto.
Malika ouvia atentamente, de boca aberta. Isso me incomodava, depois
pensei que ela era mais velha, que sem dúvida compreendia coisas que eu não
entendia, ela me explicaria tudo que isso significava. Creio que dormi um
pouco... Dei um pulo quando minha irmã me apertou o braço. Olhei para ela e
vi que ela chorava. Camus falava alto: "... Para merecer um dia viver como
homens livres, quer dizer, como homens que se recusam tanto a praticar como
a sofrer o terror." A assistência levantou-se e aplaudiu. Eu também. Malika,
não.
— Por que não?
Antes de responder, Béchir examinou atentamente o rosto de seu novo
amigo como se procurasse ler nele.
— Malika deveria ser homem, você sabe. Para uma mulher, ela sabe
refletir.
— Eu pensava que ela só se interessasse por moda... Foi o que você me
disse há pouco.
— Sim, sim, eu sei... É isso que é difícil de entender: de um lado, ela sonha
com lindos vestidos; de outro, está pronta a morrer pela Argélia.
Perplexo, balançou a cabeça, pensando no insondável mistério feminino.
— Creio que as mulheres não param de surpreender você, Béchir. —
Interrompeu François, fingindo falar sério. — De fato, você sabe por que Malika
chorou durante o discurso de Camus?
— Na hora, devo confessar que não entendi. Emmanuel Robles deu a
palavra a outras pessoas, todas disseram alguma coisa, menos Ferhat Abbas, o
que espantou todo mundo. Quando terminou, saímos sem problemas. Na rua,
havia ainda alguns entusiasmados lançando ofensas a Camus. Em grupos, os
árabes voltaram à Casbah. Malika me levava pela mão, resmungando: "Ele não
confia em nós... não acredita que nós podemos viver sem eles... no fundo, ele
nos despreza...".
Andávamos tão depressa que senti uma pontada do lado, pedi a ela que
fosse mais devagar. Então, ela parou, colocou as mãos nos meus ombros e, me
sacudindo, falou:
"Ele disse que se nossos dois povos se separarem, a Argélia se tornará um
campo em ruínas por um longo tempo... Eu o detesto... Ele fala de "vítimas
inocentes"... mas somos nós as vítimas inocentes! Por que não poderíamos viver
e prosperar sem eles? Diga, por quê?" No fim, ela gritava. Supliquei a ela que se
calasse, mostrando que uma patrulha poderia nos ouvir e nos levar presos...
Isso a trouxe de volta à razão. Voltamos para casa sem falar. Estava tão
cansado por todos os acontecimentos que dormi sem tirar a roupa. No dia
seguinte, ela se recusou a responder às minhas perguntas. Não falamos mais
sobre isso até o começo deste ano, três anos depois que tudo aconteceu.
— O que aconteceu para que vocês voltassem a falar sobre o assunto?
— Um colega da escola me emprestou, às escondidas, As Crônicas
Argelianas, esse livro está mais ou menos proibido aqui. Li numa noite e passei
para minha irmã. Depois, copiamos diversas passagens antes de devolver o
livro.
François não conseguia esconder seu espanto: esse livro, de que se falou
tanto na época de sua aparição, em 1958, ele não tinha lido. Ouvindo o seu
jovem companheiro, percebeu que não saberia nada de algumas realidades
argelianas se não o lesse.
— O que Malika achou dele? — Perguntou, curioso.
— Como eu, ficou muito perturbada com a leitura. Mas não ousamos, eu
acho, confessar um ao outro tudo que achamos. No entanto, ela reconheceu
que Albert Camus não devia desprezar os árabes e que, naquela ocasião, ela se
enganara.
— Foi legal da parte dela reconhecer isso... E você, o que achou? Dessa
vez, Béchir ficou um tempo em silêncio. Tavernier o observava, cada vez mais
surpreso com sua inteligência e sua maturidade.
— Acho que, se estivesse no lugar dele, pensaria como ele. — Respondeu,
com esforço.
Essa honestidade tocou François profundamente. Uma súbita deflagração
abalou as paredes do café. De uma vez, os fregueses se levantaram, lançaram
olhares para todos os lados, depois se precipitaram para fora, derrubando as
mesas. O proprietário os seguiu.
— É ali! É ali! — Gritou Béchir, apontando com o indicador.
Lá fora, as pessoas corriam em todas as direções e algumas bancas de
legumes e frutas, derrubadas pelos que corriam, rolaram pelo chão. Perto dali,
uma senhora se enroscou nos véus e caiu, enquanto um bebê seminu, de pé no
meio do tumulto, chorava abandonado. As aves que tinham escapado das
gaiolas piavam, enquanto se dispersavam, e um velho mendigo cego girava em
todos os sentidos, atropelado pelas pessoas. Um cachorro se pôs a uivar, os
homens fechavam os punhos. Aproximadamente uma dúzia de pessoas
ensangüentadas caía por terra. Outras, abestalhadas, contemplavam-nas sem
fazer nada. François abaixou-se perto de uma jovem cujo vestido florido estava
empapado de sangue. Seus olhos arregalados fixavam a massa informe em que
se tinham tornado suas pernas. Perto dela, uma mulher gorda estendia diante
de si os cotos dos braços de onde o sangue jorrava. Um homem, ferido na
cabeça, olhava para ela sem acreditar no que via. Logo, as sirenes dos carros de
polícia atravessaram a gritaria. Béchir puxou firmemente seu amigo francês
pela manga:
— Rápido! Vamos embora, o bairro vai ser cercado!
Eles deixaram o lugar do atentado alguns segundos antes da chegada em
massa dos policiais e militares.
Capítulo 8
Parece que ela está voltando a si... — Olhe, ela está mexendo os dedos...
Ah! Ela abriu os olhos... Léa, você me ouve?
A jovem mulher, estendida no leito de hospital, teve a impressão de voltar
de muito longe. Durante a longa viagem que acabara de fazer, tinha tido a
impressão de que uma voz querida a chamava... Lentamente, virou a cabeça,
dois vultos se inclinavam sobre ela. Um sorriso vago acabou se desenhando nos
seus lábios.
— Acho que ela quer dizer alguma coisa...
— Você acha que ela está nos reconhecendo?
A porta do quarto abriu-se e um homem vestido de branco entrou, seguido
por uma enfermeira. Depois de um rápido cumprimento, aproximou-se do leito,
examinou a ferida.
— Agora, acho que se pode dizer que ela está fora de perigo. — Afirmou,
endireitando-se.
— Ah! Obrigada, doutor. — Murmurou Françoise, contendo as lágrimas.
— Quando ela poderá sair? — Perguntou Charles.
— Calma, rapaz! A senhora Tavernier precisa agora de muito repouso. Ela
falou alguma coisa?
— Ainda não.
— Bem, vocês podiam sair por um momento? Vamos trocar os curativos.
— François...
— Doutor! Doutor, ela falou!
— François... — Repetiu Léa, num murmúrio. Charles segurou-lhe a mão.
— Léa, sou eu... você me reconhece?
— Não insista, por favor, você vai cansá-la... Volte amanhã, ela estará bem
melhor. Ela escapou por um triz, não sei como não morreu!
Françoise e Charles deixaram o quarto a contragosto. No corredor, o rapaz
enlaçou afetuosamente a irmã de Léa.
— Que medo eu tive! — Murmurou ele, como se falasse consigo mesmo.
Françoise suspirou. De repente, uma dor brutal assaltou-a. Ela
estremeceu.
— O que há com você? Você está muito pálida... Já passou, você ouviu o
médico: Léa está salva...
— Sim. — Ela deixou escapar, antes de desmaiar.
Assim que voltou de seu curto desmaio, Françoise exigiu que Charles não
falasse mais sobre isso, argumentando que se tratava de um incidente sem
gravidade, sem dúvida devido à emoção e ao cansaço. Voltando à Rua de Le
Université, ela foi logo para o quarto, deixando a Charles a tarefa de anunciar
às crianças o restabelecimento de Léa.
Uma vez sozinha no quarto, Françoise esticou-se na cama, fechou os olhos
e respirou profundamente, na esperança de aliviar o mal que a corroia por
dentro. De suas pálpebras, escaparam lágrimas que corriam pelo rosto.
— Meu Deus, me ajude! — Suplicou à meia-voz.
Depois de uns instantes, levantou-se curvada pelo sofrimento, chegou ao
banheiro. No espelho, seu reflexo a assustou. Levou as mãos ao rosto e
explodiu em soluços.
Os gritos de alegria das crianças chegaram até ela. Endireitou-se e
enfrentou sua imagem... Por quanto tempo ficou assim a se encarar? Abriu a
torneira de água fria.
Ao contato com a água, seus traços se distenderam. Abriu o chuveiro e se
despiu. Uns vinte minutos depois, vestida com um roupão, instalou-se na
escrivaninha que pertencera outrora à mãe e pôs-se a escrever:
Querido Alain,
Enfim, uma boa notícia: Léa está fora de perigo e, segundo o médico, agora
é só uma questão de dias. Desde o acidente, não conseguimos falar com
François, não sei a quem me dirigir para saber onde ele se encontra. Mas, no
final, talvez seja melhor assim; se tivéssemos falado com ele ontem, nós o
teríamos apavorado à toa. Nesses dias difíceis, Charles deu um apoio incrível. É
impressionante como esse garoto é maduro.
Espero estar logo de volta: tenho muitas saudades de você e das crianças.
E sinto muito pelo excesso de trabalho que minha ausência causa a todos.
Quanto ao resto, ainda não tive a oportunidade de lhe contar as
conclusões do especialista que vim consultar; não vou poder esconder por
muito tempo, elas não são boas. Não queria alarmar você tão cedo, mas será
preciso tomar decisões com relação a Montillac. Desculpe, meu querido marido,
por lhe causar essa nova dor, a você que tem sido tão bom para mim. Você
casou comigo, aceitando uma criança que não era sua e a quem você dedicou
uma ternura igual à que dedica aos nossos. Por nós, você enfrentou as
insinuações mais baixas. Nunca serei grata o bastante por tanta bondade e
tanto amor. Graças a você, fui feliz como nunca pensei que seria. Agradeço-lhe
mil vezes.
Sei que nem sempre foi fácil viver comigo, tão mandona, e qualquer outro
teria brigado comigo muitas vezes. Você tem sido sempre cheio de indulgência e
ternura.
Hoje, faça-me o favor de aceitar estas palavras, que vão fazê-lo sofrer,
porque não tive a coragem de contar de viva voz. Temo que, pessoalmente, seu
sofrimento me prive de toda a coragem. O medo de perder Léa me fez esquecer
por um tempo minha doença e as preocupações que ela acarreta. Agora, que ela
está fora de perigo, isso volta com toda a força. Aliás, devo voltar ao médico
amanhã; ele vai dizer se é possível operar. Na verdade, ele não me deu muitas
esperanças quanto a uma possível intervenção, muitos órgãos já estariam
atingidos.
Fiquei tão feliz de ouvir ontem a voz das crianças. O que vai ser delas? Não
se aborreça comigo por escrever isso, sei que você cuidará bem delas, mas é tão
duro saber que não as verei crescer... Bom, agora estou sendo egoísta.
Desculpe, querido.
A jornada no hospital foi longa e estou muito cansada. Vou acabar,
portanto, esta carta triste. Por favor, não me ligue quando recebê-la; o som da
sua voz me tiraria o pouco de valentia que me resta. É lógico que contarei a
você o resultado da consulta de amanhã.
Beije as crianças com muito carinho por mim, diga-lhes que está tudo bem
e que eu voltarei logo.
Sua mulher que o ama,
Françoise.
P.S.: Tome cuidado para que as crianças não leiam esta carta. Obrigada.
Esgotada pelo esforço, Françoise largou a caneta. Assustou-se com umas
batidinhas na porta.
— Tia Françoise, abra! — Gritou Claire.
— Entre, querida, está aberta.
A menina entrou precipitadamente no quarto, plantou-se diante da tia e
cruzou os braços na altura do peito.
— Por que você não me disse logo que mamãe estava melhor?
— Que diferença faria se eu dissesse ou Charles...
— Porque você é grande.
— Vamos, deixe de ser teimosa e venha me dar um beijo.
A menina se jogou nos braços que se abriam para ela. Françoise apertou o
corpinho que tremia.
— Não chore mais, acabou, sua mamãe vai voltar logo...
— E meu papai?
— Seu papai também, claro.
— Ah, bom! — Tranqüilizou-se Claire, fungando. — Vou contar para a
Lomène.
Ela saiu correndo, atropelando de passagem Adrien e Camille que
esperavam na entrada do quarto.
— Podemos entrar, tia Françoise?
— Só um pouquinho, crianças, preciso descansar.
— Quando poderemos ir ver mamãe? — Impacientou-se Adrien.
— Daqui a dois ou três dias, acho... Depende do médico.
— Diga, ela falou com você?
"Não", respondeu com a cabeça, cerrando os dentes para não soltar o grito
de dor que lhe subia à garganta. Com a mão, Françoise fez sinal para que
saíssem. Decepcionados, deixaram o quarto e fecharam a porta atrás de si.
Dois dias mais tarde, Adrien e Camille foram autorizados a ir ver a mãe.
Léa recebeu-os sentada na cama, amparada por travesseiros. Por um momento,
eles permaneceram na porta, intimidados pela extraordinária palidez da
paciente e pelo volumoso curativo que lhe rodeava a cabeça.
— Entrem, meus amores... Parece que estão com medo de mim! — Ela os
encorajou, com uma voz ainda fraca.
Eles se precipitaram juntos.
— Cuidado, com calma. — Refreou Françoise que os acompanhava. Eles se
aproximaram cuidadosamente do leito.
— Venham me dar um beijo...
Ela os apertou contra si mesma, fechando os olhos para saborear melhor a
felicidade.
— Você volta logo para casa?
— Está doendo?
— Quando você volta?
— Claire não está nada contente, ela quer saber por que não pode vir.
— Olhe, mamãe, eu trouxe flores...
— E eu, tangerinas!
— Obrigada, queridos.
— Bom, crianças, agora chega, vocês vão cansar sua mãe... — Cortou
delicadamente a tia.
— Deixe, Françoise, é tão bom vê-los... Obrigada por cuidar deles, você
está tendo tanto trabalho... A propósito, como está tudo em Montillac? Alain e
as crianças não estão achando ruim a sua ausência prolongada?... E você, e os
exames? Você parece esgotada...
— Está tudo bem... Alain deseja que você se recupere logo... Vamos, não se
preocupe com nada, pense apenas em ficar boa logo.
— Você conseguiu falar com François?
— Não, impossível encontrá-lo. Ontem, afinal, mandei um despacho para o
endereço do Governo Geral, em Argel, para contar do acidente; acrescentei logo
que você está fora de perigo.
— Estou louca para vê-lo... Adrien, me diga, como vai a escola?
— Bem, mamãe. Só tenho problemas com o professor de matemática, ele
não me suporta.
— Não será porque você não estuda o suficiente?
— É lógico que é isso. — Interveio Camille. — Ele não pára de dizer que a
matemática não serve para nada.
— Cale-se! — Falou ele entre os dentes. — A senhorita faz fofoca porque
tira dez em tudo...
Léa fechou os olhos, a cabeça girando um pouco.
— Camille, Adrien, vão brigar no corredor. — Cortou Françoise. Beijem sua
mãe e saiam, eu já vou também.
— Ah, não! Acabamos de chegar...
— Vamos, andem, obedeçam à sua tia! -Apoiou delicadamente Léa. —
Vocês voltam amanhã.
Eles a beijaram e depois saíram contrariados. Françoise puxou uma
cadeira e sentou-se na cabeceira da irmã.
— Léa, preciso voltar para Montillac...
— Ah, por favor, fique mais um pouco... Preciso de você aqui.
— Lá, também, eles precisam de mim.
— É verdade, desculpe, só penso em mim...
— Sim, é verdade... — Provocou-a Françoise, rindo. Léa pegou a mão da
irmã e levou-a aos lábios.
— Como você se parece com mamãe, quando sorri!
Elas ficaram um tempo sem se falar, olhando-se com ternura.
— Afinal, Léa, você vai me contar o que estava fazendo naquela estrada, no
meio da noite?
A acidentada fechou os olhos e não respondeu.
— A polícia veio nos perguntar se nós não sabíamos da sua viagem...
Logicamente, não pudemos responder. Você vai receber logo a visita deles, com
certeza.
— Quando você pensa em partir? — Esquivou-se Léa.
— No fim de semana... Quando você sair, por que não vem para Montillac,
para acabar de se recuperar?
— Obrigada, vou falar com François... De qualquer jeito, iremos no Natal.
— Natal? Falta muito para o Natal...
— Por que você diz isso? São só dois meses.
— É muito, dois meses!
Léa observou a irmã, com espanto. Por que essa expressão triste e
indiferente ao mesmo tempo? Um medo estranho tomou conta dela. O que
poderia preocupá-la agora que ela, Léa, estava fora de perigo? Léa percebeu
então a expressão cansada, a cor acinzentada, os olheiras profundas que lhe
tomavam todo o rosto. De repente, lembrou-se de que já tinha reparado que ela
não estava bem, quando almoçaram no Lipp. Com um sobressalto, Léa
endireitou-se bruscamente, mas caiu de novo sobre os travesseiros, tomada
pelas vertigens.
— Léa! — Gritou Françoise, inclinando-se para ela. — Desculpe, querida,
estou cansando você... Eu vou embora, não fale mais... Chega por hoje...
Descanse, eu volto amanhã.
Depositou um beijo na testa úmida e deixou o quarto o mais discretamente
possível.
Quando a porta fechou, Léa permaneceu por um bom tempo imóvel,
tentando controlar a ansiedade que crescia nela. Logo se pôs a chorar.
— Oh, sra. Tavernier, o que se passa? Por que está chorando? Está com
dor? — Preocupou-se a enfermeira, que Léa não ouvira entrar. — Não é preciso
ficar assim, o doutor não vai gostar... Se a senhora não se comportar, ele vai
proibir as visitas... Vamos, agora se acalme... Eu vou lhe dar um sedativo.
No dia seguinte, foi Charles que trouxe as crianças. Desta vez, só
permitiram que eles ficassem alguns minutos.
— Por que Françoise não veio? — Inquietou-se logo Léa.
— Ela passou mal, ontem à noite, quando voltou para casa. O médico veio,
não quis nos dizer nada. Em compensação, pediu o número de telefone do tio
Alain. — Explicou Charles.
— Meu Deus!
— Não se preocupe, vamos, ela já estava muito melhor hoje de manhã. Um
bom dia de repouso e ela estará nova!
A enfermeira entrou para indicar que a visita acabara. Léa os viu partir
com um certo alívio.
Na semana seguinte, uma ambulância levou Françoise de volta para
Montillac. François, que tinha afinal chegado à metrópole, veio buscar Léa no
hospital.
— Nunca mais me deixe sozinha... — Murmurou ela, encolhendo-se entre
os braços dele.
Um mês depois, toda a família Tavernier acompanhava, em Verdelais, o
enterro de Françoise. Diante da sepultura aberta, onde já repousavam seu pai,
sua mãe e sua irmã Laure, Léa teve a impressão de que esses seres amados a
chamavam. Tomada por um medo irracional, ela se enganchou, febril, no braço
de François. Um dia, próximo talvez, seria a sua vez. Uma vontade de fugir
tomou conta dela. Seus terrores infantis voltaram, pavores que só seu pai teria
o poder de acalmar. Ela largou o braço do marido e afastou-se. Tropeçou no
piso inclinado do cemitério e dirigiu-se para o caminho cheio de pedras que
levava ao calvário. Ao longo do caminho, o ar tinha cheiro de musgo e de
cogumelos, as árvores tinham perdido as folhas e, em alguns lugares, a pedra
de que eram feitas as capelas da via sacra se desmanchavam. Reinava nesse
lugar uma desolação que lembrava a ela os piores momentos da guerra. Tiros,
ao longe, sobressaltaram-na. Ela apressou o passo, parando por uns momentos
para recuperar o fôlego. Como quando era adolescente, sentou-se nos degraus
ao pé da cruz, de frente para essa paisagem amada. Uma silhueta clara vinha
subindo na direção dela, carregando um cesto pesado: era Françoise trazendo o
piquenique... Léa se endireitou: não, hoje, só havia os corvos voando por cima
das vinhas desnudas e, ao longe, uma fumaça...
Na volta do enterro, a família, os vizinhos e os conhecidos reuniram-se em
Montillac, onde, segundo a tradição, serviu-se um lanche. Alain ia de um para
o outro, qual uma alma penada. Impressionadas, as crianças de Françoise e de
Léa estavam quietas, num canto da sala. Léa subiu para se deitar no antigo
quarto.
Foi sem a menor alegria que começaram a se preparar para o Natal.
Sentada perto da lareira da sala, onde queimava um fogo de galhos de videira,
Léa folheava, com o ar ausente, antigos exemplares de Le Monde. De repente,
deu um grito. François e Charles que, sem entusiasmo, jogavam uma partida
de damas, levantaram a cabeça.
— O que foi, minha querida? Está se sentindo mal?
Pálida, com lágrimas nos olhos, Léa estendeu-lhes o jornal à guisa de
resposta. François percorreu as duas páginas abertas sem perceber nada.
— Eu não vejo...
Léa arrancou o jornal da mão dele para mostrar a pequena nota que ele
não tinha visto. Dessa vez, François leu em voz alta: "As buscas para encontrar
o comandante Camilo Cienfuegos foram abandonadas. Conduzidas
pessoalmente por Fidel Castro e pelo comandante Ernesto Che Guevara, por
terra e por mar, elas não chegaram a encontrar os restos do avião no qual o
herói da Revolução embarcou, vindo de Camagüey."
— Foi mais ou menos na época do seu acidente. — disse Charles. Você
estava no hospital e eu não quis contar naquele momento: você não teria
agüentado... Por falar nisso, você recebeu uma carta de Cuba, acho que é do
Che...
Léa precipitou-se para o monte de envelopes que tinha ficado na beira da
lareira. Entre as cartas de pêsames que ninguém tinha ainda tido a coragem de
abrir, encontrou a de Che e rasgou nervosamente o envelope.
Querida Léa,
Não há mais nenhuma esperança de encontrar vivo nosso companheiro,
meu amigo e meu irmão. Camilo desapareceu no céu de Cuba, não o veremos
mais. Quem o matou? Ou melhor, poderíamos nos perguntar quem eliminou
seu ser físico? Porque a vida de homens como ele tem seu prolongamento no
povo; ela só acaba quando o povo assim decide.
Foi o inimigo que o matou, porque desejava sua morte; porque não existem
aviões seguros, porque os pilotos não podem adquirir toda a experiência
necessária; porque, sobrecarregado de trabalho, ele desejava chegar o mais
rápido possível em Havana... e o que o matou, foi também o caráter dele.
Camilo não media o perigo, ele o utilizava como uma diversão, ele jogava
com ele, ele o toureava, atraía e manobrava; na sua mentalidade de
guerrilheiro, nenhum obstáculo podia interromper nem alterar a linha que ele
se tinha traçado. Partiu no momento em que todo o povo o conhecia, admirava
e amava.
Dois dias antes de sua morte, triste pela traição de Huber Matos, que ele
próprio quis prender, ele me falou de você. Um dia, talvez, terei a oportunidade
de lhe contar quais foram as palavras dele. Saiba apenas que ele a amava e
desejava a sua felicidade. Todos, aqui, sofrem com a ausência dele e nada mais
será como antes para nenhum de nós. Multidões de pessoas foram para a beira
do mar para jogar flores em memória dele. Todos tinham lágrimas nos olhos.
"Foi o melhor que morreu", diziam algumas senhoras, mandando beijos para o
céu. Elas têm razão: Camilo era o mais puro de nós, o mais generoso, o mais
corajoso. Não havia cálculos políticos nele, apenas o desejo profundo de tornar
feliz e livre o povo cubano. Deu sua vida por isso. A nossa vai seguir sem ele, a
serviço da Revolução. Espero que a sua encontre um sentido, nessa França
envolvida muma guerra fratricida. Um novo ano vai começar sem ele, e me
parece desde já difícil.
Acredite em minha amizade fiel,
Seu amigo,
Ernesto.
A carta escorregou da mão de Léa; François recolheu-a sem uma palavra,
dobrou-a e recolocou-a no envelope. Que palavras de consolo poderia dizer a
esta mulher que era sua esposa e que chorava pelo amante? O ciúme mordia-
lhe o coração. Também não fez nenhum gesto quando Léa se levantou e se
dirigiu a passos lentos para a porta que dava para o jardim. Lá fora, o ar fresco
de dezembro atingiu-a; ela tremeu, apertou o xale em volta dos ombros e
desceu a passos lentos para o terraço. Um triste sol de inverno acabava de se
apagar, enquanto a neblina flutuava sobre o Garonne. Ao longe, um cachorro
latia. Ela apoiou as mãos na pedra fria da balaustrada; o contato áspero
acalmou-a. No seu espírito atormentado, o rosto de Françoise e o de Camilo se
superpunham. Sua irmã e seu amigo cubano se encontrariam em algum lugar?
Alguém se aproximou. Por que não a deixavam tranqüila?
— Venha, é preciso entrar agora -- Sugeriu docemente Charles.
Léa virou-se e ficou de frente para esse homem que ela tinha visto nascer.
Ele parecia muito grande, nesse crepúsculo! Ela reviu o pai dele, de pé no
mesmo lugar. Jogou-se contra ele.
Ficaram assim abraçados durante muito tempo, unidos na mesma dor.
Afinal, ele afastou-a com delicadeza.
— Agora, venha... As crianças estão aflitas.
Léa deixou-se levar e subiu de volta para a casa que brilhava na noite
negra.
O retorno para Paris, no carro novo de François, deu-se numa atmosfera
melancólica; os três viajantes trocaram poucas palavras. Charles avisou que
partiria no mesmo dia para encontrar seus amigos que praticavam esportes de
inverno e quis saber onde eles passariam o 31 de dezembro. Adrien, Camille e
Claire estavam em Montillac, a pedido de Alain, para fazer companhia aos
primos. Inconscientemente, Léa estava aliviada de se separar deles por algum
tempo; ela ainda se sentia fragilizada pelo acidente. Sentia a necessidade de
ficar só com François. Pressentia que acabava de entrar numa fase decisiva de
sua vida. Somente ele podia ajudá-la a ver claro.
Ela ainda não tinha acabado de desfazer as malas quando alguns policiais
civis se apresentaram à Rua de Le Université; eles pediram para falar com a
sra. Tavernier.
Léa recebeu-os acompanhada pelo marido. Educadamente, os polícias
fizeram perguntas sobre as circunstâncias nas quais o acidente aconteceu, e
sobre as razões que motivaram a viagem. Ela respondeu que a vontade de ver
uma exposição em Strasbourg era o único motivo. Quanto ao acidente
propriamente dito, ela não se lembrava de nada: a sonolência, sem dúvida... Os
inquiridores fingiram que acreditaram e se retiraram sem insistir.
Assim que a porta se fechou atrás deles, François, que não havia dito nada
até então, exigiu dela a verdade. Quando ela terminou de falar, ele ficou em
silêncio por muito tempo, uma ruga de preocupação marcava-lhe a testa.
Depois, de repente, ele explodiu:
— Você é completamente maluca! Você me coloca numa situação
insustentável frente ao general de Gaulle! Pense um pouco, a mulher de seu
enviado especial na Argélia serve à FLNL. Você já pensou nas conseqüências de
um ato tão insensato? A França está em guerra, e você não encontra nada
melhor para fazer do que ajudar aqueles que a combatem!... Você compreende
que, com o dinheiro que você transportou, eles compraram armas que matam
os jovens franceses? É como se você armasse o braço que vai matar Charles!
"Charles!"..., Léa pensou ficar louca. Com palavras parecidas, o jovem não
tinha lhe dito mais ou menos a mesma coisa?
— Você não tem o direito de me dizer isso!
— Não tenho o direito?!... Você o salvou das mãos dos homens de Batista,
mas estará lá para salvá-lo das balas da FLN quando ele for mandado para a
Argélia?
— Ele não irá para a Argélia!
— E como ele vai fazer para não ir?
— Ele desertará. François olhou-a desolado, — É tudo em que você
consegue pensar?
— Dezenas de jovens convocados fazem isso. Logo, serão milhares...
— Talvez, mas, no estado atual das coisas, ele pode ser mais útil na
Argélia do que desertando.
— Como assim?
— Ele pode levar seus companheiros a refletir sobre a inutilidade dessa
guerra e dos meios para executá-la.
— Mas, que jogo você faz?
— Eu não jogo! Eu tento compreender e contribuir para uma solução justa
e clara, tanto para os franceses da Argélia como para os muçulmanos.
— Mas você sabe muito bem que a totalidade do governo, começando pelo
Primeiro-Ministro, é favorável à Argélia francesa!
— E daí? Não quer dizer que será para sempre. Lembre-se do discurso do
General a respeito da autodeterminação. Uma votação vai decidir o destino da
Argélia.
— E será como na Indochina... Você acredita nisso, nas eleições?
— Sim. E se não o fizesse, não acreditaria que a França é um país
democrático...
— Sempre as palavras!
— Não, a realidade... De qualquer modo, peço que você rompa relações
com esses que a envolveram nessa aventura. Você agora está fichada na DST,
seus menores gestos vão ser vigiados, seus menores movimentos serão
controlados. Os policiais não acreditaram numa única palavra do que você
disse sobre a viagem a Strasbourg. Se você não pensa em mim e nas
conseqüências que tudo isso pode ter no meu futuro, pense pelo menos nas
crianças, que vão ter dificuldades para entender por que sua mãe está na
prisão! Porque, caso você não saiba, eles também prendem os que transportam
as malas... Léa passou a mão pela testa.
— Não faça essa cara... Eu sei bem que você é levada por um sentimento
de justiça. Mas não acho que você escolheu o melhor jeito de manifestar sua
solidariedade com o povo argeliano.
— O que poderia fazer, então? — Perguntou ela desamparada.
No meio de sua tristeza, Léa não percebeu a ternura que se divisava no
rosto do marido. Se ela tivesse visto, nesse momento, teria se jogado em seus
braços para procurar refúgio.
"Como protegê-la de si mesma?" — Perguntava-se François, olhando para
ela, ao mesmo tempo tão forte e tão frágil. A maternidade não tinha lhe trazido
nenhuma serenidade.
Persistia sempre, nela, essa dificuldade de se acomodar numa felicidade
simples. Ele se culpava por não ter sabido dar-lhe um sentimento de
segurança. Envolveu-a, sem querer, em suas aventuras que a tinham impedido
de se tornar adulta. Essas atividades loucas fizeram com que ela pensasse que
podia mudar o rumo das coisas.
Sua generosidade a lançava à frente de perigos que ela só superava graças
a uma furiosa vontade de viver e a uma coragem absurda. "Diabo de mulher".
Ele conteve o desejo de puxá-la para si; devia mostrar-se firme se queria que
ela renunciasse a se envolver mais no problema argeliano.
— Esta noite, há um jantar no palácio Élysée, para o qual fomos
convidados. É preciso causar boa impressão. Conto com você para ser das mais
elegantes... A mais bela. — Acrescentou ele ternamente.
— É mesmo indispensável?... Podíamos nos desculpar com o luto, as
conseqüências de meu acidente...
— Não. Você precisa enfrentar. Não é o momento de desistir. Sua ausência
nesse jantar seria interpretada como uma confissão. Mas, se você for, poderão
pensar que você não tem nada a temer. E, depois, o fato de ser recebida na
Presidência da República talvez a proteja um pouco.
— Você acha? — Murmurou ela.
— Sim — Respondeu ele simplesmente, puxando-a para si. — Não tenha
medo, eu estou aqui... Estarei sempre aqui. — Cochichou ele, nos cabelos dela.
Desde sua entrada nos salões do Elysée, Léa, o corpo modelado por um
longo de veludo rubi, atraiu todos os olhares. Seus cabelos presos para cima
destacavam seu pescoço e disfarçavam as cicatrizes, seqüelas do acidente. Seus
brincos compridos de brilhante, que balançavam com o movimento dela,
enfeitavam com um ornamento suplementar cada um de seus gestos. O general
e a sra. de Gaulle reservaram-lhe uma acolhida amável e perguntaram por sua
saúde. Para o jantar, o protocolo a tinha colocado na mesa de André Malraux,
ao lado de Jean Sainteny que lhe deu notícias de seu amigo Ho Chi Minh;
segundo ele, o presidente vietnamita preocupou-se mesmo com ela... À sua
esquerda, jantava o ministro de assuntos Estrangeiros, Maurice Couve de
Murville; ele também se mostrou dedicado.
— Teve notícias de Cuba? — Perguntou ela.
— O que quer dizer?
— Encontraram o avião do Comandante Cienfuegos?
— Não, que eu saiba... Mas, por que essa pergunta? Ah, tinha me
esquecido!... Desculpe-me... Você estava na Sierra Maestra, não é? Deve ter
sido uma experiência incrível. Você acha que Castro vai ficar no poder?
— Espero que sim, pelos cubanos.
— É um poder frágil... Não acho que os Estados Unidos vão aceitar por
muito tempo, na sua porta, um Estado comunista. — Interveio André Malraux.
— Fidel Castro não é comunista! — Protestou Léa.
— Será. — Afirmou o autor de A Condição Humana.
— Senhor Ministro, eu não tenho a sua experiência, mas posso lhe
garantir que os comunistas são minoria em Cuba.
— Por enquanto, madame, por enquanto...
— Posso fazer-lhe uma pergunta, senhor ministro?
— Por favor.
— O que o senhor pensa da tortura?
Um silêncio incômodo caiu. Cotovelos apoiados na mesa, o queixo
repousando nas mãos cruzadas, o rosto agitado por tiques, o Ministro de
Estado encarregado dos Assuntos Culturais examinava essa mulher que
acabava de lhe fazer, aqui neste local, uma pergunta tão insolente.
Jean Sainteny tentou distrair a atenção:
— Senhor ministro, permita-me...
Léa cortou-lhe a palavra:
— O senhor não deveria denunciar práticas, como fez na guerra da
Espanha? Calando-se, o senhor trai sua obra...
— Léa!...
— É na França que se tortura, não na China, na Espanha ou na
Alemanha, mas a dois passos daqui!
Ofegante, ela se calou. Todos os convidados a contemplavam com espanto.
A reprovação estava em todos os olhares. Todos espiavam a reação de André
Malraux; ela não veio.
— Minha obra... — Disse ele somente, antes de voltar a comer.
Léa interrogou com o olhar cada um dos outros convidados, esperando que
um deles retomasse esse assunto inquietante. As conversas particulares
recomeçaram pouco a pouco.
— Com licença.
Ela se levantou. Sainteny e Couve de Murville acompanharam o gesto.
— Não se incomodem... Preciso tomar ar...
No hall, ela pediu seu casaco. François, que a tinha visto sair da mesa,
veio juntar-se a ela.
— O que se passa?
— Nada... Desculpe, não me sinto bem... Estou sufocando!
O porteiro abriu-lhe a porta. Ela desceu os degraus quase correndo.
François alcançou-a e segurou seu braço com força.
— Volte!
— Não, está acima das minhas forças.
Eles deram ainda alguns passos no pátio, sob o olhar curioso das
sentinelas.
— Faça um esforço... Eu peço encarecidamente.
— Me dê as chaves do carro.
Ele as estendeu para ela, olhando-a fixamente, depois virou-se, sem uma
palavra, e voltou para o palácio iluminado.
Por muito tempo ela rodou sem destino pelas ruas de Paris, vazias por
causa do frio. Teve vontade de beber um drinque forte, se possível num lugar
quente, cheio de desconhecidos. A Praça de Letoile estava deserta. Na Champs-
Élysées, os veículos eram raros. Parou diante da Drugstore. O calor
reconfortou-a. Comprou uns jornais, folheou uns livros na livraria sem que a
vendedora, mergulhada na leitura de um livro, levantasse os olhos. No bar,
pediu um café e um conhaque. Alguns homens desacompanhados tentaram em
vão atrair a atenção dela. Ela virava negligentemente as páginas de uma
revista, quando a vendedora da livraria veio se sentar perto dela; pouco depois,
o garçom pousou diante da vendedora um hambúrguer acompanhado de um
copo de Coca-Cola. Ela agradeceu com um sorriso, engoliu algumas bocadas,
depois abriu o livro de novo.
— Vai esfriar. — Disse gentilmente o rapaz.
Sem interromper a leitura, a moça fez sinal de que não tinha importância.
Sem querer, Léa, que tinha assistido à cena, ouviu-se perguntar:
— O que você está lendo?
A moça levantou os olhos embaçados.
— Le dernier des justes, de André Schwarz-Bart... — Ele recebeu o
Goncoúrt.
Ela bebeu um gole de Coca e voltou ao livro.
Uma loira, nem jovem nem velha, muito maquiada, veio lhe dirigir uma
palavra. Confusa, a moça levantou-se e saiu rapidamente, depois de fazer um
sinal com a cabeça para Léa.
Um grupo de jovens entrou, comentando ruidosamente o último filme de
King Vidor, Salomão e a rainha de Sabá. Eles se acomodaram, como
freqüentadores habituais, chamaram o garçom pelo nome. Por um instante, Léa
invejou a juventude deles, a insolência... Um deles olhou-a com uma
insistência que, em outras circunstâncias, teria achado divertida. Isso, porém,
não passou despercebido a uma das acompanhantes do rapaz. Ela lançou um
olhar assassino a Léa que, imediatamente, sentiu-se velha. O casaco de peles
que a envolvia escorregou. O rapaz se precipitou, recolheu prestativamente o
casaco e recolocou-o nos ombros de Léa.
— Você é muito bonita. — Murmurou ele.
Léa sorriu, tocada apesar de tudo pelo cumprimento e afastou-se.
Pensativa, subiu os degraus que levavam à livraria. Desta vez, encontrou a
vendedora encarapitada numa escada. Ela procurava um livro para um cliente
que, sem pudor, se deleitava com a visão das coxas que a saia levantada
descobria. Ela desceu com as mãos vazias.
— Não, não tenho mais... Quer que encomende?
— Não, não vale a pena... Eu volto outro dia.
A jovem levantou os ombros e virou-se para Lèa que tinha perguntado:
— Você tem aquele livro que estava lendo há pouco?
— Le dernier des justes? ... Sim, claro.
Ela pegou-o numa pilha, enquanto Léa passava em revista as novidades.
— Vou levar este aqui, também. — Disse ela, dando-lhe Le diner en ville,
de Claude Mauriac. Você já leu?
— Ainda não... Parece que não é mau; ganhou o prêmio Médicis.
— Ah, eu não sabia... Quanto devo?
Quando saiu da Drugstore, um vento glacial apressou-a para o carro.
Saindo, teve a impressão de reconhecer seu admirador perto dali. Os sinais
abriram um atrás do outro; em pouco tempo ela estava na Rua de Le
Université. O apartamento pareceu sinistro e frio. Ela jogou o casaco numa
poltrona e foi para o quarto.
François ainda não tinha voltado.
Capítulo 9
Léa
Quando você receber esta carta, estarei a caminho da Argélia. Pensava
aproveitar a ausência das crianças para passar alguns dias namorando você.
Sua atitude incompreensível me tirou toda a vontade. Sei que passou por
momentos difíceis, mas isso não é razão para se comportar como você fez. Sua
falta de consciência ultrapassa os limites do admissível. O General limitou-se a
lamentar seu ''mal-estar", perto de mim. Em compensação, o Ministro do
Interior me falou das preocupações do pessoal dele com relação às suas más
companhias e os interesses que você possa ter. Garanti a ele que não havia
necessidade de se preocupar, e que você tinha, no máximo se mostrado
imprudente. Quanto às suas tomadas de posição, disse-lhe que elas
simplesmente expressavam em voz alta as perguntas que todos os franceses se
faziam ao ler os jornais.
Assim como os policiais que foram em casa, ele fingiu acreditar.
Entretanto, e como já avisei, eles agora têm você na mira. Somente as relações
que eu mantenho em Elysée impediram-nos de interrogá-la mais.
Se você quiser, e para afastar qualquer nova tentação, pode juntar-se a
mim na Argélia. Não que eu deseje isso de verdade, mas, ao menos, poderei
tomar conta de você. Se você se decidir vir, avise-me no hotel Aletti, e tomarei
as providências necessárias. Caso contrário, cuide bem das crianças ou arrume
um amante para passar o tempo...
Se surgir a oportunidade, pense também no nosso futuro... se é que você
acha que temos um.
François
Foi a primeira notícia dele que Léa recebeu, depois daquela lamentável
noite no Palácio de L'Élysée. Ele não apareceu mais em casa. Durante esses
dois dias de silêncio absoluto, Léa se enclausurou em casa, comendo massas e
algumas conservas abertas ao acaso. A leitura dessa nota deixou-a
assombrada. François nunca dirigira a ela palavras tão duras. "Ele não me ama
mais", pensou ela, "não conto mais com ele. Mas, também, é culpa dele, ele
nunca está aqui". Depois do assombro, veio a raiva: "Ele merecia que eu
desembarcasse em Argel... Não! Ele ficaria contente. Eu devia seguir seu
conselho e arrumar um amante!" Num outro momento, afinal, ela calculou a
enorme confusão que havia causado... Jogou-se na cama e derramou-se em
lágrimas.
Naquela quarta-feira, 31 de dezembro, uma multidão febril se acotovelava
no Bulevar Haussmann, entre o Printemps e a Galeria Lafayette. Mulheres
carregadas de pacotes amontoavam-se nos pontos de ônibus e de táxis. Outras,
tensas, subiam e desciam as escadas do metrô, cuidando e repreendendo as
crianças que as acompanhavam. Léa, que tinha vindo comprar meias, desistiu.
Abandonando a esperança de tomar um táxi, voltou para a Ópera. Diante do
Palácio Garnier, os pedestres congelados atravessavam a praça, curvados
contra o vento. E... nada de táxi à vista. Para escapar do frio, Léa entrou no
café de Ia Paix. Muitos haviam tido a mesma idéia que ela, e o lugar estava
lotado. Por sorte, uma mesa se esvaziou diante dela. Ela se sentou ao mesmo
tempo que um homem que devia estar esperando pela mesma oportunidade; ele
se levantou imediatamente, pedindo desculpas. Depois de uma longa espera,
ela pediu um chocolate quente. A enxaqueca a impedia de pensar. Com os
cotovelos na mesa, segurou a cabeça entre as mãos. A seus pés, percebeu então
um livro. Pegou-o e olhou ao redor, à procura do dono. Tratava-se do
Almanaque Hachette para o ano de 1960. Folheou-o automaticamente,
lembrando-se dos de sua infância. Na página do "Ano Político Francês", alguém
havia escrito atravessado: Preciso vê-la. Esteja em casa a partir das dezoito
horas.
Ela teve imediatamente a impressão de que essa mensagem lhe era
destinada. De novo, olhou ao redor; nenhum rosto, nenhuma silhueta
conhecida. Depois de beber seu chocolate, ela saiu, deixando o livro na mesa.
Atravessava a porta do café quando um garçom chamou-a.
— Senhora! Esqueceu seu livro.
— Não é meu. Achei-o no chão...
Ela pegou um táxi que acabava de deixar uns passageiros.
— É melhor estar em casa, não é minha senhora? — Recebeu-a o
motorista, esfregando as mãos. — Para onde devo levá-la?
*
Às dezoito e trinta, o telefone tocou.
— Léa?
— Sim.
— Você está sozinha?
— Quem é?
— Você ainda tem o cesto que comprou na Rua Moufettard?
— Você!...
— Não diga meu nome. Um amigo a espera no bar do Pont-Royal.
— Mas...
Já tinham desligado. "Não vou", decretou ela.
Uma hora mais tarde, ela descia os degraus do estabelecimento.
Nessa cidade em festa, somente duas mesas estavam ocupadas. Numa
delas, Roger Vailland lia Le Monde. Ela sentou-se na frente dele. Ele levantou a
cabeça e sorriu.
— Que prazer revê-la, minha cara. Você sumiu... Soube que você foi vítima
de um acidente. Felizmente, como constato, não foi nada grave, você continua
sedutora.
— É com você o meu encontro?
— Talvez, não sei... Você vê alguém mais?
— Pare, você não é engraçado.
— Você já me disse isso... Vou acabar ficando sem graça.
— Só por isso?
— É verdade... O que você vai fazer no réveillon?
Uma vaga tristeza tomou conta dela. Ela confessou com uma voz cansada:
— Não sei...
Os olhos do escritor brilhavam. Decididamente, esta mulher lhe agradava
muito. Ela não tentou, como muitas outras teriam feito, inventar desculpas;
confessou simplesmente: "Não sei".
— Então você vai comigo à casa de uns amigos... Eles gostarão muito de
recebê-la.
— Se você quer... Mas, no momento, eu beberia alguma coisa.
— Ah, desculpe... Francis! Traga uma taça de champanhe para a senhora,
por favor... Aliás, champanhe está bom para você?
Léa aprovou com a cabeça. Depois de beber um gole, ela perguntou:
— Por que você me fez vir aqui?
— Não fui eu.
— Quem, então?
— Você saberá hoje à noite...
— Não quero fazer mais nada para seus amigos.
— De que amigos você está falando? E você? Você tem amigos? Com um
erguer dos ombros, ela ignorou a pergunta.
— Você tem fogo?
Francis aproximou-se para lhes propor uma outra dose. Oferta da casa,
por ocasião da Saint-Sylvestre. Eles aceitaram e brindaram à saúde do bannan,
que aproveitou para anunciar:
— Hoje, fechamos mais cedo...
— O quê? Você está nos mandando embora!
— Sr. Vailland, o senhor sabe que não é isso, mas, meu réveillon é no
subúrbio...
— Tudo bem, Francis, nós já vamos... Divirta-se e até o ano que vem!
— Até lá, sr. Vailland, até lá, senhora. E feliz ano novo! Apressado, ele os
acompanhou até a porta.
— Eu passo para apanhá-la às dez horas. — Disse Roger Vailland, à guisa
de despedida.
Quando ela pôs a chave na fechadura, o telefone começou a tocar.
— Alô?
Do outro lado da linha, Adrien, Camille e Claire brigavam para falar com a
mãe.
Depois que desligou, a vida lhe parecia a mais doce. Ela se despiu, tomou
um banho demorado e fez-se a pergunta angustiante: "O que vou vestir?"
O grupo de convidados era elegante, mas descontraído. Algumas mulheres
bonitas, um casal de homossexuais célebres, dois ou três escritores, alguns
homens muito seguros de si e um jovem tímido se espremiam no grande
apartamento de uma condessa cujo sotaque cantante revelava sua origem
italiana. Vestida com um extravagante vestido de renda preto e dourado, uma
longa piteira entre os dedos, ela recebeu calorosamente Léa, e até beijou-a.
— Você é a pessoa de quem Roger me falou tanto, não é? Mas ele ficou
abaixo da realidade: você é ainda muito mais bonita do que o retrato que ele
descreveu! Além do mais, você é perturbadora... Fico muito feliz de conhecê-la.
Esteja em casa. É tudo sem cerimônia, como vocês dizem: cada um se serve...
Roger, vá buscar alguma coisa de beber para nossa amiga.
A condessa afastou-se para receber novos convidados. Léa olhou em volta,
procurando um rosto conhecido. Elisabeth Vailland conversava com o jornalista
Lucien Bodard, com quem ela cruzara muitas vezes na Indochina. Ambos
cumprimentaram-na com um movimento de cabeça e Léa sorriu para eles.
— Pronto. — Sussurrou Roger Vailland, entregando-lhe o copo. — Que este
ano veja a concretização dos meus desejos!
Léa levantou o copo sem perguntar quais poderiam ser os desejos dele,
depois se sentou afastada, numa sala pequena que dava para o terraço; o
cômodo era iluminado apenas por um conjunto de velas colocado sobre a mesa.
Com quem estaria François, nesta noite? Com o que se ocupava, em vez de
estar aqui, ao lado dela?... Passou uma mão cansada pelo rosto e suspirou.
— Minha avó dizia: "Coração que suspira não tem aquilo a que aspira!" É o
seu caso, linda senhora? — Perguntou uma voz de homem, vinda do terraço.
Pela porta-balcão aberta, uma corrente de ar inclinava a chama das velas
que tremeu um pouco, ainda, depois que a porta foi fechada. Léa recolheu os
pés para perto dela e se encolheu contra as almofadas do sofá. O homem da
frase original veio sentar-se perto dela.
— Vejo que você recebeu meu recado...
— Quê? Era você, há pouco?... Não o reconheci.
— Isso prova, pelo menos, que meu disfarce é bom... Tive muito medo por
causa do seu acidente, sabe? Enfim, vejo que não é, para você, mais do que
uma péssima lembrança; fico feliz por isso... A polícia não lhe causou
problemas, eu espero. Muitos camaradas foram presos...
Léa virou-se para ele.
— Mas você não foi preso.
— De que maneira você diz isso! Parece até que você lamenta... Uma
pequena risada sem alegria lhe respondeu. Léa esvaziava o copo, quando
Vailland entrou, com um prato na mão; estendeu para ela.
— Estes canapés de salmão estão deliciosos, eu recomendo... Ah, você já
está aí, eu não tinha notado... Viu como consegui trazê-la? Faça bom uso dela,
mas não a monopolize demais... Bom, deixo vocês sozinhos.
— Por que você queria me ver? — Voltou ela ao assunto.
Vincent hesitou antes de responder, olhou ao redor, depois se aproximou
dela.
— Eu tenho agora uma missão muito importante para lhe confiar...
— Nem pensar! Prometi a meu marido manter-me longe de tudo isso. Além
do mais, a polícia está me vigiando...
— Eu sei... Mas, acredite, não tenho escolha.
— Sinto muito, ache outra pessoa. — Cortou Léa, levantando-se. Ele a
segurou pelo braço e forçou-a a olhar para ele.
— Trata-se da vida de um homem! Com raiva, Léa soltou-se.
— E na minha vida, você pensa?
Duramente, eles se enfrentaram com o olhar. Vincent foi o primeiro a
desviar o seu. Seus traços tensos, as olheiras profundas revelaram muito
cansaço. Fazia meses que ele mudava de esconderijo sem parar, para escapar
da polícia, ficando na Suíça a maior parte do tempo. Léa sabia que ele era
sincero na sua luta. Mas, para ela, no momento, devia haver outra forma de
mostrar sua solidariedade com o povo argeliano; as palavras de François a
respeito de Charles voltavam-lhe à memória. Por que, desta vez também, ele
não está do seu lado, para ajudá-la a raciocinar?
— De que se trata? — Ela se ouviu perguntar, no entanto, como se
estivesse num sonho.
O telefone tocou arrancando-a de um sono agitado. Com um sobressalto,
jogou-se para fora das cobertas e procurou o interruptor às apalpadelas. Uma
nova enxaqueca lhe perfurava a cabeça. "Com certeza, bebi demais", pensou,
enquanto atendia ao telefone, afinal. Um chiado insuportável prejudicava a
ligação.
— Alô? Léa?... Alô?...
— François?!
— Feliz Ano Novo, querida!
— Ah, obrigada, obrigada! Para você também, bom ano, meu amor! Estou
tão feliz de ouvir você!
— Liguei muitas vezes... Você não estava...
— Não agüentei ficar sozinha, ontem à noite. Fui para a casa de uns
amigos... E você? Alô? Alô?... Você está ouvindo?
— Muito mal... Eu ligo de novo mais tarde... Um beijo, volte a dormir, meu
amor.
Depois de novos ruídos, a comunicação cortou-se. Léa voltou a dormir em
seguida, desta vez, serena.
Quando acordou de verdade, eram duas da tarde. A dor de cabeça tinha
desaparecido. Ela se levantou, cheia de um bem-estar que não sentia há muito
tempo. Cantando, foi para o banheiro, engoliu um copo enorme de água fresca,
escovou os dentes e, depois, os cabelos.
— Ai! — Fez ela.
Ela tinha esquecido os ferimentos recentes.
Encheu a banheira, jogou sais perfumados e voltou ao quarto, de onde
ligou para Argel. Impossível conseguir linha. Após várias tentativas, desistiu.
Durante esse tempo, no banheiro, a água começara a transbordar. Ela
enxugou, esvaziou um pouco a banheira e mergulhou, sentindo o perfume de
rosas que tinha invadido a atmosfera. Pousou a nuca na beirada de louça com
um gemido de prazer. Seu corpo parecia flutuar num leito de pétalas. Com
todas as forças, desejou que este ano fosse a imagem daquele momento.
A campainha da porta interrompeu seu devaneio. No primeiro de janeiro,
quem poderia ser? Ela saiu da água contrariada, envolveu-se num roupão
atoalhado e, descalça, foi abrir. Um homem de mais ou menos quarenta anos,
de cabelos crespos levemente grisalhos, vestido com um sobretudo cinza e um
terno riscado, um cachecol no pescoço, estava parado da soleira da porta, com
um ramo de violetas na mão.
— Eu venho da parte de Vincent. — Disse ele, sem ousar olhar para ela.
Todo o sentimento de euforia abandonou-a.
— Eu não o esperava tão cedo.
Afastou-se para deixá-lo passar. Ele deu uns passos no vestíbulo,
examinando o ambiente.
— Você está sozinha? — Informou-se, segurando o buquê.
— Você sabe que sim.
— Às vezes, acontecem mudanças.
— Obrigada, em todo o caso, elas são perfumadas. Você não foi seguido,
pelo menos?
— Acho que não, a rua estava deserta.
— Se você me dá licença, vou me vestir... Enquanto isso, sente-se na sala.
É à esquerda.
Alguns minutos depois, ela voltou. O vestido de lã crua que ela vestira
rapidamente, com um cinto de couro, acentuava o seu corpo magro. Por cima,
ela colocou um manto de tweeá, enfeitado com uma gola de raposa
avermelhada. Na cabeça, colocou uma touca da mesma pele.
Uma vez na rua, ela pegou-o pelo braço.
— Vamos passear como velhos amigos, não é?
— Sim, é assim mesmo...
Sem pressa, eles se dirigiram para o Sena. Ao longo do cais, pouquíssimas
pessoas passeavam sob o sol de inverno. A cidade inteira parecia em repouso.
Eles pararam para ver passar um bâteau-mouche que subia o rio. O homem
aproveitou para dar uma olhada atrás deles; não viu nada suspeito. Voltaram a
andar e chegaram, assim, até a Bücherie; encontraram um lugar perto da
lareira, onde ardia um bom fogo. Pediram chocolate e doces. Depois do frio, o
calor do lugar deixou-os, pouco a pouco, entorpecidos. Para combater um
pouco a sonolência, falavam de vez em quando sobre algum assunto inofensivo.
Passou-se uma hora. Quando decidiram sair, já era quase noite e o frio tinha
piorado. No Bulevar SaintMichel, entraram num cinema onde passava La vadie
et le prisonnier, um filme com Fernandel. Tinha acabado de começar, mas
havia pouca gente no cinema. Pouco depois, alguém se sentou atrás deles. Léa
sentiu seu companheiro ficar tenso. Poucos minutos depois, ele cochichou:
— Podemos ir.
— Eu gostaria de ver o fim do filme!
— Não temos tempo... Venha.
Lá fora, uma mulher com um lenço na cabeça veio ao encontro deles.
— Como estou contente em vê-los! — Exclamou ela, tomando Léa e o
homem pelo braço.
Léa reconheceu a condessa italiana. O trio atravessou o bulevar.
— Meu carro está estacionado na Rua Saint-André-des-Arts... Ah! Paris
não é mais o que era! Os parisienses se comportam como marmotas, no
inverno, ficam fechados em casa, no calor... Rápido, o tanque está cheio. Vocês
vão a Valenciennes, passam para a Bélgica, a fronteira lá é menos vigiada. Em
Charleroi, vocês vão ao café Progrès, da mulher de um ex-lutador de boxe,
Chérif Attal. Um companheiro vai cuidar de vocês. Ele vai lhes emprestar um
carro com placa da Alemanha e vocês irão para Colônia. Lá, ficarão no hotel
que ele vai indicar; os quartos estarão reservados. No dia seguinte, virão buscar
Akim, e você, Léa, pegará o avião de volta a Paris. Alguma pergunta?... Bom
aqui está o carro, os documentos estão dentro, no quebra-sol... Vão, boa
viagem, rápido!
Léa quase não dirigira depois do acidente. Durante algum tempo, dirigiu
lentamente, cheia de apreensão. Aos poucos, a confiança voltou. O trânsito
estava livre, o carro, bom de dirigir. Ligou o rádio; Akim cochilava. A passagem
pela fronteira deu-se sem incidentes. No Progrès, uma mulher loira atendeu-os
por trás do balcão, acolheu-os sorrindo e propôs que comessem alguma coisa.
Por cima do bar, entre duas bandejas de cobre entalhado, havia a foto de um
rapazote disfarçado de Gilles de Binche. Um colosso de cabelos bem curtos,
pele morena, entrou no café.
— Você é Chérif Attal? — Perguntou Akim.
— Sou eu, meu irmão — Respondeu sorrindo o antigo boxeador. Às três
horas da madrugada, eles deixaram Charleroi em companhia daquele que devia
conduzi-los. Lá pelas seis horas, chegaram nos arredores de Colônia. No meio
da manhã e sem voltar a ver Akim, Léa deixou o hotel e tomou o avião do meio-
dia.
No final do dia, ela abria a porta de casa, quando ouviu o trompete de
Louis Armstrong vibrando no apartamento. Na sala, Charles e uma garota
morena separaram-se bruscamente quando ela apareceu.
— Ah... desculpem! Eu não sabia que você já tinha chegado... Pode abaixar
um pouco o som, por favor?
Charles virou o botão da vitrola, ajudou Léa a tirar o manto e beijou-a,
enfim, desejando-lhe feliz ano novo.
A jovem os observava e seus grandes olhos azuis iam de um ao outro.
Charles, segurando Léa pela cintura, aproximou-se dela.
— É dela que lhe falei, minha mãe adotiva... Léa, apresento-lhe Marie
France Duhamel, uma amiga.
— Uma amiga?... Seja bem-vinda, senhorita.
— Bom dia... A senhora é mesmo muito bonita.
— Ah, obrigada... Charles, você voltou antes do previsto?
— Sim, estava cheio dos esportes de inverno... E você, o que aconteceu?
Liguei ontem para avisá-la... Quer chá? Está pronto...
— Com prazer.
O rapaz foi à cozinha para pegar uma xícara. As duas mulheres se
avaliaram em silêncio. "Muito miúda essa menina", considerou Léa. "Não gosto
dela", concluiu Marie-France, por sua vez.
Charles voltou com a xícara e serviu o chá.
— Está um pouco forte para você, não é?... Quer que eu ponha um pouco
de água quente?
— Não, está bom assim... Vocês se conhecem há muito tempo?
— Dois meses, mais ou menos... Marie-France mora em Neuilly, está na
faculdade de Letras... Que tal jantarmos juntos, os três?
— Boa idéia! Sou eu que convido... Vamos comer no restaurante chinês da
Rua Cujas? Vocês concordam?... É só o tempo de eu me trocar...
Depois do jantar, que, no final, se revelou alegre e animado, eles foram
ouvir jazz perto da Igreja Saint-Julien-le-Pauvre. Quando saíram da cave, o
bairro estava cercado pela polícia que verificava a identidade dos pedestres; na
Rua Saint-Jaques, prendiam sem rodeios, qualquer pessoa que se parecesse
um pouco com os da África do Norte.
— Mas, é injusto! — indignou-se Marie-France.
— Senhorita, houve um acerto de contas entre árabes. Da próxima vez, são
pessoas como você que eles matarão! Vamos, andando. — Ordenou o policial,
devolvendo-lhes os documentos.
— Vou levar Marie-France em casa. Tomamos um táxi e eu deixo você no
caminho.
Chegando em casa, Léa tentou ligar para Argel. A essa hora, François
devia estar no hotel.
— O sr. Tavernier está fora por uns dias. Quer deixar recado?
— Não vale a pena...
Ela desligou, desamparada.
As crianças voltaram de Montillac no dia 3 de janeiro e se prepararam,
sem entusiasmo, para voltar às aulas. Claire, normalmente barulhenta,
permanecia pensativa.
Na sala, ela havia colocado a boneca numa caixa de sapatos e, fazendo de
conta que ela estava morta, dizia que ia enterrá-la.
— Em Montillac, ela não parava de enterrar flores, pedaços de madeira e
até um camundongo que ela encontrou preso na ratoeira. Cansamos de dizer a
ela que com isso fazia os primos sofrerem, ela não ligava e continuava. —
Contou Camille.
Léa olhava, perplexa, essa menininha de cabeleira negra que, agachada,
fingia recitar preces acompanhadas de muitos sinais da cruz.
— Ela não pode compreender... — Murmurou Léa.
— Mamãe, quando você morrer, vão colocá-la numa caixa de madeira
como tia Françoise? — Perguntou a pequena.
O que responder? Camille veio em seu socorro com uma franqueza
desarmante.
— Já dissemos que sim! E, além disso, não é numa caixa de madeira que
se colocam os mortos, mas num caixão... Não aborreça a mamãe, você já torrou
a nossa paciência com isso!
— Mas eu não quero que a mamãe fique num caixão com terra por cima!
— Gritou Claire, explodindo em soluços.
A mãe pegou-a no colo e tentou consolá-la. Apesar de seus esforços, o
choro da criança aumentava.
— Eu não quero! Eu não quero! — Soluçava ela.
Philomène apareceu na sala, alarmada pelos gemidos da criança.
— Minha princesa, o que aconteceu?... Você se machucou?
— Não, é a mamãe.
— O que tem a mamãe?
— Eu não quero que ela morra, com a terra por cima. — Gemeu ela mais
alto.
A vietnamita ajoelhou-se diante da pequena mestiça.
— Meu tesouro, eu estou aqui e vou impedir a morte de levar sua mamãe.
— Você... você pode fazer isso? — Tentou se assegurar, levantando a
cabeça.
— Meu bem, você sabe que a Philomène faria qualquer coisa para que você
não sofra.
Mais tarde, Léa se lembraria das palavras da babá. A criança jogou-se no
colo de Philomène.
— Você promete?
— Sim, meu amor.
— Obrigada, Lomène. Se você não deixar, ela não virá pegar minha
mamãe.
Comovidas, as duas mulheres se olharam com carinho. Léa ficava
comovida com o amor que a vietnamita dedicava à pequena. Em troca, esta lhe
era reconhecida por permitir amar a criança como se fosse sua. Fortalecida pela
promessa, Claire seguiu sua assam sem reclamar mais. Camille saiu com ela.
Ficando sozinha, Léa teve a impressão de que a morte a rodeava. Pensou
de novo em Françoise, criticando-se novamente por não ter prestado atenção na
doença dela, de não a ter acompanhado até o fim. Imagens de sua infância feliz
amontoavam-se em sua cabeça, antes de serem suplantadas pelas da guerra e
depois pelo tormento humilhante infligido a Françoise. Ela ainda chorava
devido a essas tristes lembranças, quando o telefone tocou. Enxugando as
lágrimas, atendeu.
— Léa?...
— François!... Oh, eu queria tanto que você estivesse aqui... Sinto tanto a
sua falta... se você soubesse...
— O que aconteceu? Você está chorando?
— Não... quer dizer... é Claire...
— O quê? Aconteceu alguma coisa?
— Não, mas ela não pára de falar em morte.
— Mas é normal. Ela está na idade em que se começa a fazer esse tipo de
perguntas.
— Mas ela é tão pequena...
O riso de François, na outra ponta da linha, tranqüilizou-a um pouco.
— O que você quer? Hoje em dia as crianças crescem rápido! Não precisa
se preocupar... Fale de você, agora. Como está? A cabeça ainda dói?
— Não, acabou, está tudo bem agora... E você? Eu liguei para o hotel,
disseram que você tinha ido viajar...
— É isso mesmo, estou em Oran agora.
— Quando você volta?
— Estarei em Argel dentro de dez dias.
— E em Paris?
— Não sei... A situação está muito tensa, espero que antes do fim do mês.
— Falta muito, é muito tempo sem você!
— Eu também acho, mas... Bom, preciso desligar, tenho muito que fazer.
Dê um beijo nas crianças e no nosso Charles. Cuide-se bem e, principalmente,
tenha juízo.
Léa desligou sorrindo.
No bar do Pont-Royal, só se falava do acidente de carro que acabava de
custar a vida de Albert Camus e de Michel Gallimard, que estava dirigindo.
Francis, o barman, não parava de repetir, com os olhos vermelhos:
— Ele veio aqui há quinze dias... Que tragédia, mas que tragédia! Tanto os
que o amavam, como os que não amavam manifestavam uma tristeza sincera.
O próprio Roger Vailland, que outrora qualificara Camus expressamente de
"chato, completamente desprovido de humor", ficou prostrado. Rugas
profundas no seu rosto acusavam seus sentimentos. Roger Vadim, sentado na
mesma mesa, falava pelos dois; era visível que Vailland não o escutava. A
chegada de Léa não arrancou dele nem um sorriso. Ele bebeu de uma vez sua
dose de uísque e fez sinal a Francis para servir outra.
— Deixe-nos sozinhos, por favor. — Disse ele a seu companheiro de mesa.
Um pouco surpreso, Vadim afastou-se depois de cumprimentar Léa e
acomodou-se no bar.
— Parto amanhã para Meillonnas; vou terminar meu romance. Em Paris,
me distraio muito... Quando eu tiver terminado, você poderia ir me ver;
Elizabeth ficaria muito contente...
— É mesmo?... Não acredito!
— Você está enganada; Elizabeth e eu partilhamos tudo. Ela adora me ver
fazer amor com outra mulher e participa espontaneamente das minhas
brincadeiras... Você já acariciou outra mulher?
Léa sentiu que ficava vermelha e chamou-se de idiota.
— Você corou?... Que charme! — Exclamou Vailland.
— Esses jogos amorosos podem diverti-lo, mas eles fazem você se sentir
feliz ou infeliz?
— Eu nunca consigo ser completamente infeliz, porque assim que me
acontece algo desagradável, penso imediatamente que isso me dará matéria-
prima para algum romance.
— Que cínico!
— Você está enganada de novo: não sou cínico, sou libertino...
— ... de olhar frio, eu sei.
— Você não sabe nada, você não passa de uma burguesinha. Tenho todos
os motivos para não ser infeliz. Não tenho preocupações com dinheiro; a falta
de dinheiro é a causa mais comum de infelicidade. Tenho uma mulher que me
respeita, não me atormenta quando eu desejo outras mulheres; a tirania das
mulheres é, depois da falta de dinheiro, a causa mais habitual de infelicidade.
Eu escrevo. É minha vocação e mesmo que não precisasse ganhar a vida,
escreveria os mesmos livros: a falta de vocação ou a obrigação de se consagrar
a um trabalho que não corresponda à sua vocação é a terceira causa da
infelicidade dos homens.
— E isso vale para as mulheres, na sua opinião?
— Elas são feitas para a felicidade dos homens, que condicionam a sua...
— Bela profissão de fé! Permita-me discordar de você... Você se diz
libertino, tudo bem, mas nada impede que uma mulher seja libertina e trate os
homens como vocês tratam as mulheres. Você se esquece de Madame de
Mertetuil, a heroína de Ligações Perigosas...
— Madame de Merteuil não é um exemplo a ser seguido. Além disso, ela
paga caro por sua conduta!
— Sem dúvida, mas o romance, assim como a adaptação que você acaba
de fazer com Vadim, continuam sendo obras de homens satisfeitos consigo
mesmos...
— Você acha?
O riso de Léa explodiu, claro e feliz. Clientes do bar se viravam com um ar
de reprovação.
— Tenho certeza. Mas que importância tem isso?... No final vocês fazem o
que querem.
— Certamente, eu faço o que quero. Tudo que quero. — Respondeu ele,
suspirando. — Eu me prendo ao conforto... eu queria lutar. Mas não sei mais
contra quem lutar...
Não se pode fazer a guerra pelo único prazer de encontrar a fraternidade
do combate.
Repentinamente abatido, chamou o barman e pediu outro uísque.
— É o sucesso que torna você melancólico?... Nesses tempos que correm, o
que não falta são combates...
— Eu saí do partido comunista e não se pode dizer que sinta falta dele... E,
no entanto!... Tenho necessidade daquela fraternidade...
Levantando os olhos para um homem alto, elegantemente vestido, ele
exclamou:
— Ah! Você chegou!... Boa noite, Jean-Claude, sente-se. Você conhece a
sra. Tavernier?
— Não tenho esse prazer.
— Léa, apresento-lhe Jean-Claude Fasquelle, um de meus editores e, no
entanto, meu amigo.
— Boa noite, senhora. Entendo que Roger tenha querido guardá-la
somente para ele. — Disse o recém-chegado.
Ele beijou a mão que Léa estendeu e sentou-se sem parar de olhá-la.
— Eu a empresto, se você quiser. — Propôs Vailland.
Léa fulminou-o com o olhar, enquanto o editor assumia uma expressão
indignada, desmentida por seus olhos brilhantes.
— Não antes que nós tenhamos brincado com ela. — Sussurrou Elizabeth
que acabava de se juntar a eles.
Por um instante, Léa admirou a facilidade com que eles falavam de sexo e
lamentou não ter essa desenvoltura. A atitude deles a perturbava, mas por
nada no mundo queria que eles percebessem.
Levantou-se:
— Desculpe-me, brincaremos em outra ocasião.
Capítulo 10
Naquele final de manhã de 12 de janeiro de 1960, o general Massu,
comandante do exército e subprefeito de Argel, marchava de um lado para
outro no seu gabinete, no Quartel Pélissier, próximo da Casbah. Com o rosto
vermelho e olhos arregalados, ele revelava a seu interlocutor sua decepção e
sua raiva.
— O exército tem a força... Ele não a mostrou até agora porque a ocasião
não se apresentou, mas intervirá se a situação exigir e restabelecerá o poder...
Não compreendemos mais a política do Velho... O exército não podia esperar tal
atitude da parte dele. Isso não vale apenas para a política argeliana. O Plano de
Constantine parece agora sem sentido, uma vez que está claro que os povos
africanos só o utilizam para abandonar cedo ou tarde a Comunidade... Nossa
maior decepção é que de Gaulle tornou-se um homem de esquerda...
— Não é a impressão que eu tenho. — Disse François Tavernier.
— Sua impressão... Estou pouco ligando para ela, estou falando da
realidade... Ele era o único à nossa disposição. O exército fez uma besteira!
— Você quer dizer que o exército não obedeceria às ordens do Chefe de
Estado em caso de rebelião dos radicais?
— Não me faça dizer o que eu não disse, Tavernier, não sou fascista, e isso
o Velho sabe. Gostaria que o governo nos ajudasse a ver claramente o futuro,
para que conseguíssemos manter a Argélia francesa. O Velho não compreende
os muçulmanos. Nos países islâmicos não há livre arbítrio individual. Os
muçulmanos se determinam coletivamente a favor de posições determinadas
por minorias, porque elas são abençoadas por Alá. A autodeterminação foi
traduzida pela FLN como sendo uma promessa de independência. Isso lançou
as massas muçulmanas na indeterminação. Se continuarmos no caminho em
que estamos, isso será visto como fraqueza. É convincente que o exército
francês faça os colonos se constituírem em organizações paramilitares, e que
forneça armas a esses grupos...
— Mas isso é uma loucura! Ortiz e suas milícias já estão armados até os
dentes! Você vai deflagrar a guerra civil!
— Eu não, Tavernier, eu não. Mas, não esqueça que nós — o exército
estamos na Argélia e que não a abandonaremos jamais!
Massu deu um soco na mesa, contornou-a, puxou com raiva uma cadeira
sobre a qual se deixou cair.
— Eu sou a tampa da panela que contém a fervura argeliana. — Suspirou,
esfregando seu grande nariz.
Tavernier não simpatizava com esse que o Canard enchainé chamava de
"duque de Argel" e que o Express tratara de torturador na época da batalha de
Argel. Entretanto, quase teve pena da sua confissão em face da complexidade
da política do homem ao qual ele devotava uma admiração e uma fidelidade até
então sem limites. Percebia-se que estava abalado, invadido pela dúvida: "O
exército talvez tenha cometido um erro." Essa idéia era insuportável ao
companheiro da Libertação, ligado desde 1940 à França livre e que tinha
entrado em Paris, em agosto de 1944, ao lado do general Leclerc.
O general Massu levantou-se com um salto.
— E como se eu já não tivesse chateações que cheguem, um de meus
homens foi intimado a testemunhar, em Rennes, nessa droga de caso Audin! O
pequeno Charbonnier está no hospital, ferido a serviço da França. Mas, em
Paris, eles estão pouco se lixando! Na ocasião, eles bem que gostaram que
alguém se encarregasse do serviço sujo.
E, agora, meus oficiais são convocados diante de um juiz de instrução. É o
cúmulo!
Alguém bateu à porta.
— Entre! — Gritou Massu. Um capitão entrou.
— - O que há? — Grunhiu o general — Fale, em nome de Deus! — É um
jornalista alemão que insiste...
— Ele que vá se foder! Eu já disse que não. Não vou mudar de idéia por
um alemão.
— Desculpe, meu general, mas o general Lancrenon acaba de me ligar: o
Quai d'Orsay insiste para que o senhor o receba. De seu lado, o general
Challe...
— O quê? O general Challe?
— Ele recebeu o jornalista, meu general, ele também insiste.
— Bem, se todos insistem, vou recebê-lo, mas... não mais que cinco
minutos... Como se chama ele?
— Kempski, meu general. É um ex-paraquedista.
— Que venha o seu "pára-jornalista alemão". Esta noite, vou a Tizi Ouzou,
amanhã a Orléansville. Diga-lhe para vir depois de amanhã, às onze horas.
— Está bem, meu general. Bateram novamente.
— Vá abrir — Ordenou Massu ao capitão.
Um oficial de baixa estatura, de rosto enérgico, entrou.
— Argoud, eis o enviado do general de Gaulle, François Tavernier. Trate-o
como convém, mostre-lhe tudo que ele quiser ver... e mais um pouco! Tavernier,
o coronel Argoud é meu Chefe de Estado-Maior, ele tem minha completa
confiança. Obrigado pela visita.
François saiu, seguido pelo coronel Argoud. O coronel Broizat, em cujo
gabinete eles se encontravam, levantou-se para saudá-lo.
— Então, sempre na luta, Tavernier?
— E você, sempre anticomunista, Broizat? O coronel devi um pequeno
sorriso.
— Você não mudou nada, desde 58.
— Você também não, Broizat, você também não. Até logo, eu espero!
Tavernier e Argoud deixaram o gabinete.
— Ele está bem cercado, o seu chefe. Não se pode vê-lo sem passar pelo
gabinete de um e outro.
— É melhor assim. O que você quer ver? — Perguntou ele abruptamente.
— Gostaria de acompanhá-lo nas visitas, digamos no próximo domingo.
O coronel olhou-o fixamente.
— Não é aos domingos — continuou Tavernier — que você visita os
setores?
— Quem lhe disse isso?
— Tudo se sabe em Argel, você sabe disso. Quero descobrir pessoalmente o
estado de espírito dos soldados e o das populações nativas.
— Você não ficará decepcionado... O moral das tropas está muito baixo, a
disciplina está relaxando, os atentados e assassinatos de colonos se
multiplicam.
— Mas... e o Plano Challe?
— Esse plano procede de uma análise incorreta do problema. Ele se traduz
por um desperdício de meios e de tempo. Mas, seria injusto negar-lhe os
resultados. Os rebeldes sofreram perdas sérias, mas eles rapidamente adaptam
sua organização. Se o general Challe aplicasse os mesmos meios, com a mesma
determinação, à conquista da população, ganharia a partida mais cedo.
Lançada sobre um objetivo secundário, sua manobra só pode dar resultados
parciais. O general Challe aborda o problema com uma óptica de aviador. Ele
não tem, da guerra revolucionária, senão uma idéia livresca. Para ele, a guerra
da Argélia compete apenas à técnica militar, enquanto, para mim, ela é um
problema humano. Se ele continuar nesse rumo, certamente perderá a guerra.
Com a cabeça levantada para seu interlocutor, Argoud olhava direto nos
olhos dele. Tavernier não podia deixar de sentir uma certa admiração por esse
homem que falava tão francamente, qualidade rara num militar conversando
com um civil. "Massu tem influência sobre ele", pensou antes de dizer:
— Meu coronel, agradeço pela sua franqueza. Para domingo que vem, está
bem?
— O capitão Ettori passará para pegá-lo às cinco horas, domingo de
manhã, em seu hotel. Voltaremos só de noite. Ponha uma roupa confortável.
Deixando o quartel Pélissier, François atravessou a Praça Jean-Mermoz,
caminhou ao longo do muro do Liceu Bugeaud e dirigiu-se para o jardim
Marengo, cujas altas palmeiras balançavam-se suavemente. Com os livros
embaixo do braço, alguns alunos passeavam pelas alamedas bem cuidadas. Os
jardineiros trabalhavam aqui e ali. Havia no ar aquela doçura que anuncia a
primavera. François sentou-se e acendeu um cigarro. A entrevista com o
general Massu deixara nele uma impressão desagradável. Para que o fiel
soldado tivesse tais idéias, era preciso que seu moral estivesse muito baixo.
Como estaria o dos coronéis, tenentes, da própria tropa? Quando esteve em
Paris, fizera a de Gaulle um relatório desanimador sobre o estado de espírito
dos militares e dos civis; hoje, esse relatório parecia aquém da realidade. O
General, depois de escutar, lhe dissera:
— Você está exagerando. Eu não o mandei ir lá para que, na volta, você
viesse chorar no meu ombro, como Challe e Delouvrier.
François pulara da cadeira.
— Meu General, não venho chorar no seu ombro, mas dar-lhe conta de
uma situação explosiva. Os oficiais...
— Os militares não têm "desconfiômetro". Volte à Argélia e informe-se.
— É perda de tempo, meu general, uma vez que o senhor não leva em
conta as minhas informações.
— Não discuta, faço delas o uso que me convém. Até logo, Tavernier, gostei
muito de revê-lo.
A lembrança dessa entrevista fez com que ficasse mais preocupado ainda:
"Ele está pouco se lixando para nós", pensou, jogando fora o cigarro. Um garoto
que passava recolheu-o.
— Senhor, não jogar a bituca no jardim. — Repreendeu-o Béchir,
sentando-se perto dele.
— Ah, é você? Você me seguiu?
— Não, foi por acaso. Vim ver um colega, o que me passa as lições.
Também encontrei meu professor; ele me disse que é uma pena que eu não
venha mais à escola, mas que posso vir pedir explicações sempre que precisar.
Vê-se que ele não é daqui...
— De onde ele é?
— De Bordeaux, eu acho... Por que você está rindo?
— Você fala como se Bordeaux ficasse no fim do mundo.
— Eu quis dizer que ele não se parece com os pés-pretos.
— Eu tinha entendido. Você não trabalha mais no hotel?... Tenho a
impressão de que já faz um tempo que não o vejo.
— Precisei ficar em casa. Volto ao trabalho amanhã.
— Estou com fome. Vamos almoçar? Indicaram-me um restaurante de
frutos do mar, perto da praia Nelson.
— Todos eles vendem peixe, na praia Nelson — declarou Béchir rindo.
— Melhor, podemos escolher.
O restaurante talvez não fosse aquele recomendado pelo porteiro do hotel,
mas era excelente. François e Béchir traçaram um magnífico prato de frutos do
mar e atacaram o peixe grelhado.
— Hum, muito bom. — Grunhiu Béchir, com a boca cheia.
— Bem melhor que em Paris. — Constatou François.
O proprietário, com o largo ventre acinturado por um avental que já fora
branco, aproximou-se com um sorriso radiante, esfregando as mãos.
— É um prazer ver um metropolitano comer com bom apetite. E o vinho?
Gostou?... Ele lembra o vinho de Cassis, não acha? — Perguntou com forte
sotaque marselhês.
— Excelente! Você é de lá?
— Sim e não. Nasci aqui, mas meu pai é de Cassis. Um de meus primos
ficou com as vinhas. Compro quase todo o vinho dele. Saboroso, perfumado,
desce redondo, um odor de charneca, é a Provence. O vinho daqui é bom,
mas... como dizer? Falta alguma coisa: a fineza... não, a sutileza.
François gostou de conversar com aquele bom homem que se afastou,
pouco depois, para receber novos clientes.
— São médicos. — Cochichou Béchir, inclinando-se por cima da mesa. O
mais alto, lá atrás, é o doutor Duforget, o chefe da minha irmã.
— Você o conhece?
— Um pouco, encontrei-o no hospital, num dia em que fui procurar
Malika. Ele fez elogios a ela, Malika ficou toda vermelha.
— Ele parece ser um bom sujeito. — Constatou François. — Você quer
sobremesa?
— Posso? — Perguntou ele, com uma expressão gulosa.
Ele devorou sua musse de chocolate com um prazer evidente.
François pediu café e acendeu um charuto. Desde que voltara à Argélia, só
tinha visto o jovem engraxate de passagem. No dia seguinte à morte de Albert
Camus, o garoto confessara seu sofrimento e sua perturbação, dizendo:
— Foi melhor para ele, talvez... e para nós. Ele havia preferido a mãe à
justiça. Nós, aqui, sabemos o que isso significa, uma mãe, e teríamos
provavelmente feito a mesma coisa. Só Malika não concorda: "É de justiça que
precisamos, não de nossas mães", não cansa ela de repetir.
Pensativo François olhou para ele antes de perguntar:
— Como está o clima na Casbah?
Béchir refletiu um pouco antes de responder:
— As pessoas estão com medo. No fim do dia, antes mesmo do toque de
recolher, não há mais ninguém nas ruas. Mas, à noite, as pessoas pulam de
um terraço para outro, ouvem-se cochichos. Tudo volta a ficar silencioso
ouvindo a patrulha passa, até os cachorros se calam. Às vezes, os soldados
arrombam uma porta e revistam uma casa, ouvem-se os gritos das mulheres.
Quase sempre levam os homens para interrogá-los. Alguns voltam, outros não.
A maior parte dos que voltam contam que foram torturados e os que não
contam carregam sinas de ter sido. Outro dia, um amigo do meu pai, cujo filho
juntou-se à FLN, chorava contando o que sofreu: "É uma vergonha", disse ele,
"mas se eu soubesse onde meu filho estava, teria contado para que eles
parassem. E eu ainda tenho sorte, não tenho filhas. Um velhote que estava
preso comigo, cujo rosto era um sofrimento só, me contou que eles tiraram a
roupa da filha diante dele para fazê-lo falar e ela gritava que ele não contasse
nada.
Depois, como ele se manteve calado, eles a violaram com uma garrafa.
Você compreende que homens façam coisas assim? — Mergulhado no desgosto
e na cólera, François tinha cerrado os punhos enquanto ouvia o relato do
menino. Ele sabia que era tudo verdade.
— Voltando à sua pergunta... — Continuou Béchir. — Os argelianos
acham que os europeus estão armando alguma coisa. Muitas armas circulam
neste momento entre eles.
Eles têm o apoio do exército. Há cada vez mais oficiais entre os radicais.
— Como você sabe?
— Tenho olhos e ouvidos, sem contar que eles não escondem nada.
— Com licença...
Aquele que Béchir tinha apontado como chefe de sua irmã estava em pé
diante deles. Era um homem tão alto que se curvava um pouco. Cabelos
grisalhos e óculos de miopia tornavam seu olhar triste. Ele falava com uma voz
suave.
— Com licença. — Repetiu. — O senhor permite? Você não é o irmão de
Malika?
— Sim.
— Estou preocupado com sua irmã, há algum tempo ela falta bastante. Há
algum problema em casa?
François sentiu que Béchir ficou tenso.
— Não, está tudo bem!
— Ah! Bem, ela deve vir falar comigo se houver algum problema. Desculpe,
senhor, não me apresentei: sou o dr. Duforget.
— Muito prazer... François Tavernier. — Disse esticando a mão. — O
senhor disse que a irmã de Béchir falta muito?
— Sim... E eu não entendo: é uma garota responsável e gosta muito do
trabalho. Não deve ser nada grave, provavelmente um namorico. Até logo,
senhor, até logo, rapaz.
Quando o dr. Duforget voltou para sua mesa, Béchir olhou para François
com raiva.
— O que minha irmã faz não é da sua conta! Não quero que você se meta
na nossa vida.
— Não quis ser indiscreto. Mas, você não se preocupa com essas faltas?
— Preciso ir trabalhar. — Replicou ele, levantando-se.
— Espere! A conta, por favor...
Assim que pagou, François juntou-se a ele na avenida. Tomaram um
ônibus que os deixou na frente do Hotel Aletti, sem que Béchir abrisse a boca.
Sem se despedir, o garoto entrou precipitadamente no hall. François entrou
logo depois. Dando-lhe a chave, o porteiro disse:
— Tenho dois recados para o senhor.
Um era de Léa, o outro, do coronel Gardes. Tanto um como o outro pediam
que ele ligasse.
Ninguém atendeu ao telefone na rua de l'Université. No 5º Gabinete, onde
Gardes era o chefe, responderam que o coronel não estava, mas que tomariam
nota do recado.
François esticou-se na cama. O que será que Gardes queria? Ele sabia da
importância política do 5a Gabinete; era o serviço encarregado de cuidar e de
controlar o moral do exército e da população. Desde o 13 de maio, sua ação era
guiada por uma única palavra de ordem: "A Argélia é a França." O 5º Gabinete
expunha as vantagens dessa postura por meio de slogans pintados; podia-se ler
nos muros: "A França representa trabalho, pão, paz, felicidade", "A FLN
representa fome e morte", ou ainda, "Todos os franceses são iguais". Cartazes
de propaganda e programas de rádio completavam o sistema. Assim, Gardes,
forçado a admitir a autodeterminação, não apresentava senão uma das três
opções oferecidas. Suas próprias funções justificavam seus contatos com os
movimentos civis patrióticos. Challe, o comandante em chefe, não o tinha
encarregado de criar uma Federação das unidades territoriais e de autodefesa?
"Eles brincam com fogo", pensou François, antes de cochilar.
À noite, no bar do hotel onde algumas moças muito maquiadas esperavam,
fazendo poses provocantes, que um cliente as convidasse para tomar um
drinque. François, que já estava no terceiro uísque, observava a atitude delas
com um ar ausente. Uma delas aproximou-se e perguntou:
— Você me oferece alguma coisa?
— Se você quiser. — Respondeu ele com um tom indiferente.
— Champanhe, por favor. — Pediu ela ao barman. François fumava sem
olhar para a moça.
— Tim-tim. — Ela fez, levantando a taça que o garçom acabava de encher.
François levantou a dele sem nem mesmo responder nem dar uma olhada.
— Você é sempre assim, tão calado?
— Depende. — Disse ele, levantando os olhos.
Ela seria mais bonita sem essa maquiagem e esses cabelos descoloridos
que contrastavam com o negro dos seus olhos. Quase magra, não devia agradar
aos homens daqui, mas era mais elegante que suas companheiras. Uma blusa
amarela de mangas curtas e bufantes e uma saia xadrez amarela e branca lhe
davam um ar juvenil. Seu rosto exprimia tédio e cansaço. Ela não devia ter
muito mais que vinte anos.
— Por que você me examina desse jeito? Algo errado?... Ah! Enfim um
sorriso!... Você fica mais bonito quando sorri. Eu me chamo Gilda... Por que
você está rindo?
— Aposto que esse não é o seu nome.
Ela hesitou entre o riso e a raiva; o riso ganhou.
— O que você aposta?
— Um jantar.
— Se eu perder, não tenho condições de lhe pagar um. O barman inclinou-
se para François.
— Senhor, alguém o chama na recepção.
— Está bem. Ponha isso na minha conta. Desculpe-me, senhorita.
— E o nosso jantar?
— Eu perdi?
— Sim, eu me chamo mesmo Gilda.
— Então, Gilda, fica para outra vez.
No hall, um CRS entregou-lhe um bilhete:
— Da parte do coronel Gardes. François leu: Espero você no quartel
Rignot, meu estafeta vai levá-lo.
Gardes O Estado-Maior de Argel encontrava-se ao lado do Hotel Saint-
George, bem perto do Palácio de Verão, e ocupava uma bela vila mourisca. O
CRS que acompanhava François fez sinal para seu colega encarregado de
controlar os visitantes de que tudo estava certo. François espantou-se que os
militares fossem protegidos pelos CRS. Eles atravessaram um pátio plantado de
palmeiras e penetraram na vila.
— Entre, Tavernier. Obrigado por vir tão rápido.
Gardes tirou o cachimbo da boca, passou a mão pelos cabelos estilo
escovinha e pousou no seu interlocutor seus olhos castanhos que mostravam
inteligência.
— Eu tenho por você, Tavernier, uma grande estima. Conheço sua atuação
na Resistência e, depois, na Indochina. Sei menos da sua atuação de agora,
mas, julgando pelo que sei, você é ouvido pelo general de Gaulle, que o aprecia
e não hesita em lhe confiar missões delicadas. Você podia informar-lhe que
estamos sentados num barril de pólvora e que cabe somente a ele impedir a
explosão? Com sua tripla escolha, o chefe de governo questiona o espírito do 13
de maio que proclamava a integração numa Argélia francesa. Muitos, aqui,
vêem nisso uma traição. Somente o afrancesamento pode permitir a igualdade
de todos e o exército se acredita capaz de convencer os pés-pretos a renunciar a
alguns de seus privilégios. Como diz o general Challe, "é preciso obrigar os
franceses da Argélia a aceitar a integração real. É preciso mudar a mentalidade
deles. Os muçulmanos devem ser iguais a eles.
— Você sabe muito bem que são apenas palavras: nenhum pé-preto
admite ser igual a um muçulmano. Há muitos anos eles vivem uns ao lado dos
outros, nunca juntos.
— Isso era verdade até há algum tempo. Pouco a pouco, as coisas estão
mudando. Em cada bairro, cada vilarejo, organizamos reuniões entre europeus
e muçulmanos; a cada vez, todos saem com um conhecimento melhor do outro,
um desejo de se unirem pelo bem de todos.
François escutava-o fascinado. Ele tinha diante de si um homem sincero,
animado por aquilo que acreditava ser sua missão: conservar a Argélia para a
França, certo de respeitar, assim, o compromisso assumido com as populações
argelianas — todas as populações argelianas, sem distinção. No estado atual
das coisas, ele temia um derramamento de sangue e é por isso que tentava
fazer com que François desse conta dessa situação ao presidente da República.
Uma situação cuja gravidade, segundo o coronel, o presidente se recusava a
ver.
— Meu coronel, agradeço a confiança. Mas, como muita gente aqui, você
exagera a importância do meu papel junto ao general de Gaulle. Ele não me
ouve mais do que ouve Delouvrier ou o general Challe. Não sei nada das suas
intenções verdadeiras, a não ser que ele quer a autodeterminação e que nada
nem ninguém, na minha opinião, o fará mudar de idéia.
Após um longo silêncio, Gardes se levantou, com o rosto tenso e estendeu
a mão para François Tavernier.
— Agradeço. — Disse ele com a voz crispada.
No pátio, lâmpadas fracas iluminavam o caminho. No posto de guarda,
François encontrou o CRS que o esperava perto de um veículo militar. Sem
uma palavra, sentou-se ao lado dele.
Chegando ao hotel, encontrou novo recado de Léa, anunciando que viria
na semana seguinte. Ele ligou, para fazê-la mudar de idéia. Ela tinha ido ao
cinema, disseram as crianças que, apesar da hora, quiseram todas falar com
ele, uma de cada vez.
Ele pediu um sanduíche e vinho no quarto e deitou-se pensando em Léa.
Capítulo 11
François Tavernier não tinha visto Paul Delouvrier nem o general Challe
desde seu retorno a Argel. No dia seguinte a seu encontro com Massu e Gardes,
telefonou para o Governo Geral a fim de marcar uma entrevista com o ministro.
Disseram-lhe que ele seria informado da sua petição. A mesma resposta da
parte do alto comando: as visitas do enviado do general de Gaulle pareciam não
ser desejadas!
Decidiu ir aos arredores de Argel. Atravessando o hall, procurou com o
olhar o jovem engraxate; não devia ter chegado ainda. Lá fora, o tempo estava
fresco, mas ensolarado. Dirigiu-se ao Bulevar Carnot, onde sabia que havia um
ponto de táxi. Lembrava-se de ter tomado, uma vez, o táxi de um motorista
conversador e simpático que lhe afirmara conhecer Argel e seus arredores como
a palma da mão.
— Pergunte por Joseph Benguigui. — Dissera ele. — Todo mundo aqui me
conhece.
François aproximou-se do primeiro carro e reconheceu justamente esse
motorista.
— Bom dia, Benguigui, você está com o dia livre?
— Bem que eu achei que conhecia o senhor de algum lugar! Pelo dia, faço
um preço fechado. Suba... Prefere sentar na frente? Como quiser. Aonde
vamos?
— Queria fazer um tur por Bouzaréah, El-Biar, Saint-Eugéne,
Birmandreis...
— Isso é uma boa rodada. Por onde quer começar?
— Tanto faz.
— Vamos passar em frente ao mar e subir até a Basílica de NotreDame-
d'Afrique. De lá se vê o vale de Consuls, Saint-Eugène e o mar. O senhor vai
ver, é magnífico.
Eles rodaram ao longo da Corniche até a ponta Pescade, chegaram a
Bouzaréah e à alta Corniche, descobrindo ravinas e colinas. Em baixo, os
pastores guardavam seus rebanhos de carneiros, tocando flauta. A medida que
subiam, o perfume dos pinheiros e dos ciprestes ficava mais forte. Vilas se
aninhavam por entre a vegetação.
Nos terraços dos bairros árabes, mulheres estendiam a roupa. Garotos
brincavam na poeira e acenavam para o carro. O motorista respondia os
cumprimentos. Do belvedere de Notre-Dame-d'Afrique, só se via o mar, imenso,
no qual os navios de linha, os militares, os veleiros pareciam brinquedos. Tudo
parecia tão calmo!
— Quando se vê tanta beleza criada por Deus, fica difícil compreender por
que os homens se matam em vez de agradecer ao senhor por terlhes dado este
mundo maravilhoso.
— Murmurou Benguigui, como se falasse consigo mesmo.
Após um momento de silêncio, perguntou a François.
— O senhor não acha?
François olhou para o homenzinho parrudo de rosto limpo, ar esperto e
esperando uma resposta que aparentemente ele considerava importante.
— Você tem razão... Mas alguns querem essa beleza só para si. O
motorista lançou-lhe um olhar triste.
— O senhor acha que não compartilhamos o suficiente com os
muçulmanos?
— Em vista do que está acontecendo, isso me parece evidente. A você,
não?
O homem apoiou-se no parapeito e deixou os olhos percorrerem a
imensidão marinha antes de responder:
— Não somos muitos na comunidade judaica a pensar assim. Quanto aos
católicos e outros, eles são menos numerosos ainda a querer a integração real
dos árabes. No entanto, era preciso fazer isso para que pudéssemos continuar a
viver neste país. Veja o senhor: meus ancestrais já estavam aqui bem antes da
conquista. Judeus, nós nos tornamos franceses em 1870, graças ao decreto
Crémieux. Os muçulmanos não, esses só são franceses quando se trata de
morrer pela França. E isso, veja bem o senhor, não é justo! O senhor já os viu,
os velhos combatentes, no monumento aos mortos, com todas as
condecorações? Eles são lembrados no 11 de novembro e no 14 de julho, e é
como se isso bastasse em termos de gratidão. Ficam contentes que a França
reconheça seus méritos, além do que, todas essas condecorações enfeitam a
paisagem. O senhor sabe, são milhares que não voltaram dos combates na
Itália, na Alsácia e em outros lugares. Outros lutaram na Indochina, e os que
voltaram não esqueceram o que viram lá, na terra dos vietnamitas. Isso lhes
deu idéias de independência e mostrou-lhes que um povo determinado, que
luta por sua liberdade, pode vencer um exército poderoso.
— Eu estive na Indochina e compreendo o que você quer dizer. Você tem
razão, alguns de nós alertaram o Governo naquela época. Infelizmente, não
fomos ouvidos.
— Fala-se na cidade que foi o general de Gaulle que o mandou aqui. Se for
verdade, conte-lhe o que se passa aqui. Mas... por que o senhor ri?... Eu disse
alguma coisa engraçada?
— Não ligue... É que todo mundo me diz isso.
— Então?
— Então?... O que você quer que eu responda?... Você ouviu o discurso do
General no rádio? Bem, ele não muda de idéia.
— No fundo, estou de acordo. Os argelianos devem poder decidir por si
mesmos seu destino. Em palavras, ele tem razão, é muito bonito, mas na
realidade, aqui, o senhor sabe o que acontece. A população muçulmana tem
medo das represálias da FLN porque depende totalmente dela. Ela também tem
medo do exército, dos pés-pretos, do desemprego, da miséria. Por outro lado, os
europeus também vivem com medo: dos atentados, e de serem expulsos de seu
país.
— Você pensa como eles?
— Sim e não. Temo que seja tarde demais para que possamos viver juntos
normalmente... Muita incompreensão, injustiça, desprezo, insultos e massacres
cavaram um fosso imenso. E, no entanto... Talvez seja possível depois da
independência da Argélia.
Era a primeira vez que François ouvia semelhante discurso da parte de um
argeliano não muçulmano. Ele esperou:
— Há muitos de vocês que acreditam que a independência poderia permitir
que os europeus continuassem a viver em sua terra natal?
O motorista deu um suspiro profundo.
— Não muitos, senhor, não muitos... Depois, cortando a conversa,
perguntou:
— Continuamos o passeio?
No carro, permaneceram em silêncio. A estrada que subia para a vila de
Bouzaréah estava em péssimo estado, obrigando o motorista a fazer acrobacias
para evitar os buracos. François limitou-se a se agarrar à porta do carro. Eles
pararam na praça da igreja e subiram a pé o caminho do Observatório, de onde
se via toda a cidade e a região em volta, do Cabo Matifou a Sidi-Ferruch. O sol
de inverno desenhava cada contorno com uma nitidez fotográfica.
Eles desceram para o forte de Sidi ben-Nour, por caminhos quase
impraticáveis.
"Eu vou acabar deixando por aqui meus amortecedores e meu cano de
escapamento", pensou Joseph Benguigui, agarrando o volante.
Passaram perto do cemitério de El-Kettar. Ali, os pobres vindos do bled
amontoavam-se numa favela. Enroladas em seus haik, as mulheres iam ao
cemitério para pegar água que o guarda cobrava delas. As crianças, mal
vestidas, andavam descalças. Não havia homens, a não ser velhos sentados nas
pedras ou mesmo no chão, com as costas apoiadas contra as paredes de zinco
expostas ao sol. Uns carros militares, saindo da caserna de Orléans, obrigaram-
nos a esperar que passasse o último.
Assim que a nuvem de poeira dissipou-se, eles seguiram atrás deles. Os
prédios da guarda móvel estavam cercados com arame farpado. No grande
Estádio Marechal Leclerc, alguns jovens jogavam futebol, enquanto outros
praticavam corrida. Passaram embaixo do Koudia-esSebaoun. No cume ficava o
Forte Empereur, onde o marechal de Bourmont havia recebido a capitulação do
dey de Argel.
— Você ouviu falar de Maurice Audin? — Perguntou François de repente.
— Aquele jovem universitário comunista que foi preso em 57 pelos
paraquedistas do lu RCP e que foi morto ao tentar fugir?
— Como você pode estar certo da fuga se o corpo nunca foi encontrado?
Isso não lhe parece estranho?
Joseph Benguigui levantou os olhos para o céu.
— Há tantas coisas estranhas que acontecem em Argel!... Veja, nós não
estamos muito longe do lugar de onde ele teria fugido, no bairro de Frais-
Vallon, que estava em obras naquela ocasião. Ele quase não mudou desde
então, só duas ou três vilas a mais.
— Você pode me mostrar o lugar?
O motorista deixou a Avenida Georges-Clemenceau, virou duas vezes à
direita e parou na Rua Verdun.
— Como o senhor pode ver, a rua é em declive. Mas isso não é nada,
comparado com as ruas novas que a cortam em ângulo reto. Elas próprias se
acham em níveis diferentes e só se tem acesso a elas pelas escadas ou
atravessando as moitas de espinhos por caminhos muito incômodos.
— Você parece conhecer bem.
— Eu não lhe disse que conheço Argel e seus arredores como a palma da
minha mão? É meu trabalho. Mas, voltando a Audin, foi na curva mais alta que
ele teria saltado do jipe; levavam-no ao centro de triagem de El-Biar, na Vila
Marsilia, que serve de estacionamento para o 1Q RCP, situado na Rua
Faidherbe, paralela à Rua Verdun.
Percebendo a fuga do prisioneiro, o sargento teria disparado na sua
direção uma rajada de metralhadora enquanto ele escalava uma paliçada, atrás
da qual se estende um terreno baldio muito acidentado e inclinado; depois, não
o tendo atingido, se teria lançado em perseguição dele pelas ruas mal
iluminadas. Porque, eu lembro ao senhor, era de noite! Segundo os militares,
eles teriam perdido o rastro de Maurice Audin na ravina de FraisVallon.
— Você não parece acreditar muito no que conta.
— A gente tem que ficar com o pé atrás! O senhor acredita que um homem
que foi interrogado com os métodos usados no centro de El-Biar estaria em
condições de correr rápido o suficiente para escapar de seus perseguidores
num lugar tão acidentado como este que o senhor vê? Não, de dia já seria
improvável. De noite, é impossível.
François deu uns passos examinando o local. Benguigui tinha razão:
mesmo para um homem em excelentes condições físicas teria sido difícil
escapar num lugar tão acidentado. Tanto na França como em Argel, ninguém
acreditava na tese da fuga, defendida pelo próprio Massu.
— Uma coisa é certa: nem sua mulher nem seus filhos voltaram a vê-lo. —
Acrescentou o motorista.
— Esse assunto parece tê-lo interessado particularmente.
— Sim, não gosto que me façam de bobo.
— Como assim?
— Levo com freqüência no meu táxi oficiais e suboficiais. Eles conversam
sem se preocupar com o motorista: que importância tem um chofer de táxi? Um
dia, levei dois de volta para El-Biar, estavam completamente bêbados. Eles se
gabavam de poder fazer falar não importa quem. Falavam mesmo de um de
seus clientes, que se chamava Alleg.
— Henri Alleg, o amigo de Audin?
— Não sei se era o mesmo, mas era esse o nome com certeza.
— Você comentou isso com alguém?
— Toquei levemente no assunto uma ou duas vezes, disseram-me que era
melhor que eu me calasse. Entendi o recado. O que o senhor quer? Entre os
árabes que obedecem à FLN, o exército que tenta fazê-los falar, os europeus que
se recusam a ver a realidade que está na cara deles e continuam a se achar a
nata do mundo, não há lugar para o simples bom senso... Mas, eu falo demais,
afinal, eu nem o conheço...
— Eu também não o conheço e, no entanto, escolhi confiar em você.
— E fez bem.
— Não se pode desconfiar o tempo todo. Você tem algum amigo entre os
muçulmanos?
Um véu de sofrimento encobriu os olhos de Benguigui. Depois de um curto
silêncio, ele respondeu com a voz alterada:
— Sim, eu tinha um amigo... Sua família morava perto da minha... Seu pai
era açougueiro e o meu tinha uma loja de ferragens; eles não se visitavam, mas
prestavam serviços um ao outro. Nossas mães lavavam a roupa juntas e nós,
garotos, brincávamos juntos. Com Habib — esse era o nome dele —, eu
partilhava tudo. Ele largou a escola para trabalhar com o pai e, depois, houve a
guerra. Voltamos a nos encontrar no exército de De Lattre, nas margens do
Rhin, com soldados que, como nós, vinham de além-mar. Alguns já tinham
lutado na África e na Itália. Foi terrível, senhor... Os companheiros tombavam
como moscas. Nós fomos ambos feridos com poucos dias de diferença e nos
encontramos no hospital de Strasbourg. Ao fim de um mês, mandaram-nos
para Paris, depois Marselha e depois Argel. Para nós, a guerra terminara.
Casei-me com uma prima e assumi a loja de meu pai. Habib quis retomar
seu trabalho de açougueiro, mas os ferimentos que sofrera nos braços e nas
pernas impediam-no de carregar os pedaços pesados. Achou um emprego no
porto. Foi aí que começou a mudar. Eu só o via de vez em quando; a cada vez
que nos encontrávamos, ele me fazia discursos políticos. Até o dia em que me
disse que se juntara à FLN. Tentei dissuadi-lo; ele me respondeu que, no seu
lugar, eu teria feito o mesmo. O que poderia lhe responder? Isso foi em 55. Não
voltei a vê-lo por dois anos. Mais tarde, em 57, em plena batalha de Argel,
numa noite, ele bateu à minha porta. Abri, ele estava ferido. Durante uma
semana, minha mulher e eu cuidamos dele, escondido. Nessa época,
conversamos muito, como nos velhos tempos. Antes de partir para encontrar os
rebeldes, ele teimou em ir beijar a mãe... Foi então que o prenderam...
Abateram-no como a um cão. O pai foi preso, nunca mais o viram. Quanto à
mãe, ficou louca.
Vou vê-la de vez em quando, ela fala do filho como se ele estivesse vivo.
Quando saio de lá, estou completamente abalado.
Joseph Benguigui tirou do bolso um lenço grande como uma toalha de
mesa e assoou o nariz ruidosamente.
— Desculpe-me. — Disse, dobrando cuidadosamente o lenço.
François deu-lhe um tapinha no ombro.
— Agradeço a sua confiança.
— Sou eu quem agradece... Faz bem falar, mesmo a um desconhecido.
Veja bem, senhor, aqui, todo mundo desconfia de todo mundo. Bem, agora
chega! Estou com fome. Tenho um conhecido que tem um pequeno restaurante
em El-Biar; não é o Coq Hardi, mas é bom. O que acha?
— Ótima idéia, você é meu convidado.
— De jeito nenhum, sou eu quem paga.
— Está certo, mas da próxima vez é por minha conta.
Eles voltaram para o carro e pegaram a avenida Georges-Clemenceau.
— É ali que torturam. — Disse sobriamente Benguigui, apontando um
grande prédio de concreto.
François olhou para a fachada feia em frente à qual os paraquedistas
montavam guarda.
Depois do anisete, serviram-lhes cordeiro assado, acompanhado de
pimentão e tomate, tudo regado com um tinto de Mascara. Doces empapados
de mel vieram em seguida, depois café, servido em pequenas xícaras.
Satisfeitos, eles fumaram em silêncio.
Eles deixaram El-Biar lá pelas três horas da tarde, pegando o bulevar
Gallieni e passaram pelo bosque de Boulogne para chegar a Beimandreis. A
baía de Argel aparecia e desaparecia conforme os meandros da estrada, com
uma beleza surpreendente à luz que começava a declinar. Atravessaram bairros
europeus, calmos e luxuosos, subúrbios humildes, os bairros pobres árabes e
as favelas miseráveis. Passaram ao lado da ravina da Femme-sauvage, pouco a
pouco invadida pela sombra da colina.
— Desde que eu era muito pequeno, este lugar me dá medo. —
Confidenciou o chofer. — O senhor quer passar pelo Clos-Salembier e Belcourt
e ir até o Ruisseau antes de passar pelo jardim de Essai?
— Vamos pelo porto.
— Muito bem, patrão!
A baía parecia se incendiar, a cidade branca tinha ficado rosa, depois
laranja; o mar parecia a palheta de um pintor fauvista, enquanto o céu se tingia
de todos os tons de violeta, do mais claro ao mais escuro. Lá embaixo, as luzes
da cidade começavam a acender. Joseph Benguigui dirigia lentamente,
emocionado pelo esplendor com o qual não se acostumava nunca. Perto dele,
François Tavernier imaginava Léa a seu lado, ela que amava tanto o pôr-do-sol.
Ele podia revê-la, após a guerra, em algumas tardes de verão em Montillac, de
pé, o rosto voltado para o astro avermelhado, aureolada pela luz do poente,
braços esticados, as palmas das mãos abertas, como para atrair para si os
últimos raios e guardar o calor deles.
Nesses momentos, ela parecia que se iluminava por dentro, enquanto a
penumbra invadia pouco a pouco a paisagem, deixando-a luminosa e mais
forte.
Passando diante da garagem de Agha, François virou-se para o motorista e
disse:
— Preciso de sapatos para caminhada e de roupas confortáveis para ir ao
bled. Conhece algum lugar onde eu possa comprar essas coisas?
— No Borelli, eles são especialistas em roupas esporte e equipamento
colonial. Fica a dois passos daqui. Quer ir lá?
— Vamos.
Pegaram o Bulevar Laferrière e depois a Rua Isly onde pararam ao fim de
alguns metros.
— Quer que eu o acompanhe? — Perguntou Benguigui.
— Se não for incômodo. Você pode me ajudar.
Entraram na loja. Em seguida, um vendedor veio atendê-los.
— Bom dia, senhores... Ah, Joseph! Que prazer em vê-lo! — Os dois
homens se abraçaram.
— David, meu primo. — Falou Joseph Benguigui, virando-se para
François. — Ele vai cuidar do senhor como faria comigo. Não é, David? É um
cliente simpático. Mostre-lhe o que você tem de melhor.
Quando François saiu da loja, estava equipado dos pés à cabeça, pronto
para enfrentar o bled. A noite tinha caído. A multidão, que há pouco era densa,
tinha se dispersado.
— Logo, não haverá quase ninguém nas ruas. — Constatou o motorista,
colocando os pacotes no porta-malas.
— Eu lhe ofereço um drinque no bar do hotel.
— : Não há como recusar... Mas não se sinta obrigado! — Não, é um
prazer. Vamos a pé.
— Já o alcanço. Não posso deixar o táxi aqui. Vou estacionar na estação.
Eu levo os pacotes.
— Como quiser: espero no bar.
Assim que entrou no hotel, Béchir precipitou-se para ele, com uma escova
na mão.
— Senhor, senhor... preciso falar com o senhor!
— O que aconteceu? — Perguntou François, sorrindo.
— Mohamed, o sr. Santoni está esperando! — Grunhiu o porteiro,
avançando na direção dele.
François sentiu que seu jovem companheiro ia rechaçar o guardião severo.
Segurou-lhe o braço.
— Acabe seu trabalho. Eu venho vê-lo depois. Olhe, meus sapatos
precisam de um pouco de graxa. Até logo!
Béchir obedeceu.
— Ah, esses jovens! — Suspirou o porteiro. — É preciso estar sempre de
olho neles.
Joseph Benguigui entrou no hall, carregando os pacotes.
— Coloque-os ali, o sr. Georges mandará levá-los ao meu quarto. — Disse
François Tavernier, dirigindo-se para o bar.
O motorista de táxi seguiu-lhe os passos.
— Pois não, senhor. — Respondeu o porteiro, inclinando levemente o
corpo.
Quando se instalaram no bar, Tavernier cruzou com o olhar suplicante do
engraxate.
— Desculpe-me. — Disse ele ao acompanhante. — Peça um uísque para
mim, já volto.
Deixou-se cair na cadeira que acabava de ser desocupada pelo cliente
anterior e pousou os sapatos empoeirados no apoio de pés. Automaticamente,
Béchir começou a limpar a poeira.
— Então, o que você precisa me dizer?
— Malika desapareceu!
— Desde quando?
— Já faz quatro dias.
— Sua família foi à polícia?
Ele fez que não com a cabeça.
— Mas é a primeira coisa a fazer!
— Minha mãe diz que seria uma vergonha para a família.
François contentou-se em levantar os ombros, quando viu uma lágrima
correr pelo rosto do garoto.
— Por que você não me contou antes?
— Eu achava que ela ia voltar. — Gaguejou ele.
— Bom... vou tentar ajudá-lo... Mas você precisa me dizer tudo o que sabe
sobre sua irmã, inclusive o que você acha que não deve revelar. Quando você
acaba o trabalho?
— Em uma hora...
— Diga um lugar onde podemos nos encontrar.
— Na frente da escola da Rua Liberte. É ao lado. Você tem um carro?
— Não, mas podemos pegar um táxi. Vamos, não faça essa cara, nós
vamos encontrar sua irmã...
Depois, examinando os sapatos:
— Muito bem! Estão impecáveis. Obrigado, Mohamed. Um rápido e pálido
sorriso iluminou o rosto de Béchir.
Sentado no bar, Joseph Benguigui estava tendo dificuldade para se
desembaraçar de duas freqüentadoras do local.
— Ah! Chegou!... Pensei que o senhor tinha se esquecido de mim. Essas
franguinhas queriam me fazer companhia. Mas eu sou um homem casado!
— O que não o impede de conversar. — Disse uma delas.
— Deixem-nos, senhoritas, nós precisamos conversar. Joseph... você
permite que eu o chame de Joseph? Eu sou François.
— Tudo bem, senh... desculpe, François!
— Bem, posso lhe falar em confiança?... Ótimo! Pode ser que eu precise de
você esta noite. É possível?
— Desde que não se trate de transportar um cadáver, tudo é possível. Vou
lhe dar meu telefone: 367-16. Não hesite em me chamar.
— Obrigado, à sua saúde! — François esvaziou o copo de um gole só. - —
A mesma coisa. — Disse ao Benguigui. Os dois homens beberam em silêncio,
por uns instantes.
— Não é possível! — Exclamou de repente Benguigui.
— O que foi?
— Você vê aquela mocinha, ali: ela é do meu bairro. Eu a conheço desde
criança.
— Gilda?
— Você a conhece?
— Não faça essa cara... Não como você imagina! Fizemos uma aposta e eu
perdi. Ela se chama mesmo Gilda?
— Sim, a mãe dela leu um romance cuja heroína tinha esse nome. Achou
que era chique. Mas, depois do filme com Rita Hayworth, não achou mais.
— Ela é judia?
— Infelizmente! É uma vergonha para a família e para o bairro!
— Você não está exagerando um pouco?
— Bem que eu gostaria, porque é uma boa garota. Quando os pais e a
irmã morreram, num acidente de carro, ela se recusou a ir morar com uma tia.
Ela se mudou. Mais tarde, um dia, eu a vi entrar aqui, tinha virado loira. Disse-
me bom dia gentilmente, mas não tinha mais o mesmo olhar. Tentei conversar
com ela e saber como estava, mas disse que não era da minha conta. Eu, tudo
o que falava, era por amizade...
A moça veio na direção deles, vestida dessa vez com uma saia preta e uma
camisa branca, com a gola levantada.
— Boa noite, senhor. Boa noite, Joseph. Não sabia que vocês se
conheciam.
— Boa noite, Gilda! — responderam em coro.
Capítulo 12
François encontrou Béchir no lugar combinado.
— Não vamos ficar aqui. — Disse Béchir. — Vamos para o porto.
Na parte de baixo da rampa Chasseloup-Laubat, embaixo de um poste com
a lâmpada quebrada, adivinhavam-se as siluetas de homens acocorados.
François diminuiu o passo; o lugar era ideal para uma agressão. Ele lamentou
não estar armado. Béchir sentiu sua preocupação.
— São amigos. — Afirmou ele, aproximando-se do grupo. Quatro
argelianos, vestidos como europeus se levantaram.
— Aqui está o homem de que falei. — Disse em árabe.
— Um cão de roumi — Disse um deles, cuspindo no chão.
— Nem todos os roumis são cachorros. — Disse, para apaziguar, um
homem que parecia mais velho que os companheiros.
— Vamos para o hangar — sugeriu um deles.
O cadeado aberto, todos se enfiaram lá dentro. Um cheiro forte de peixe
empesteava a atmosfera. Com a porta fechada, alguém acendeu um lampião e
colocou-o sobre uma caixa diante da qual puxaram um banco. Fizeram sinal
para que Tavernier se sentasse. Um homem de uns trinta anos tomou a
palavra:
— Sabemos que Malika foi levada, quando saía do hospital, pelos boinas-
verdes da Legião.
— Como vocês podem ter certeza? — Perguntou François.
— Malika estava junto com a enfermeira chefe, sra. Zanetti, que mora em
Bal el-Oued, e elas acabavam de atravessar o Bulevar Champagne, na altura da
Rua Normandie, quando um jipe parou junto delas. Três paraquedistas
desceram, com as armas apontadas para elas, depois um Peugeot 203 chegou
com outros militares. Um oficial perguntou: "Você é Malika Souami?" "O que
vocês querem com ela? perguntou a sra. Zanetti. Nesse momento, Malika se pôs
a correr na direção do hospital; um dos paraquedistas alcançou-a e deu-lhe
uma bofetada. Um outro se aproximou e eles a forçaram a subir no carro que
partiu em seguida. A sra. Zanetti perguntou-lhes por que estavam fazendo
aquilo. "Temos ordens, ela trabalha para FLN! Volte para casa e fique de bico
fechado, ou você também será presa!"respondeu o oficial. Depois, subiram no
jipe e foram embora. Voltando para casa, a sra. Zanetti não disse nada; foi só
depois de dois dias que ela contou ao dr. Duforget, que avisou a família. Graças
a ele, soubemos que ela fora levada à Vila Sesini. Ele acredita que ela ainda
está lá.
— É preciso tirá-la de lá! — Suplicou Béchir.
François refletiu rapidamente. Ele conhecia a reputação sinistra da Vila
Sesini, sobre a qual circulavam relatos assustadores. Situada entre os bairros
Belcourt e Redoute, ela era ocupada pelos legionários. Entre eles, muitos eram
alemães. Alguns se diziam alsacianos, outros não escondiam que tinham
pertencido à SS durante a Segunda Guerra Mundial.
O nome do coronel Gardes lhe veio à cabeça: como chefe do 5º Gabinete,
mesmo que não soubesse nada sobre a prisão da jovem argeliana, poderia obter
informações.
— Vocês sabem por que ela foi presa?
O mais velho falou:
— Ela foi denunciada, suspeitam que ela faz parte da Frente.
— É verdade?
— Não podemos lhe dizer nada...
— Chega! — Inflamou-se o que tinha cuspido. — Para ele, todos os árabes
são da FLN! Se o roumi é como nos descreveu nosso irmão, ele sabe!
— Não sei, mas imagino... — Confirmou François, como se falasse sozinho.
— Ela sabe de coisas que possam interessar aos seus seqüestradores?
— A maior parte das pessoas que eles prendem e torturam não sabe de
nada. Eles fazem isso por prazer. No caso de Malika...
— Ela participou de algum atentado?
— Não, nunca! — Gritou Béchir. — Ela dizia que uma enfermeira não pode
fazer isso.
— Ainda bem que não são todas como ela. — Falou com desprezo o
homem da cuspida.
— O que vocês esperam de mim?
— Que você a tire da prisão. Vá ver o general Massu, dizem que é seu
chapa.
— Para lhe dizer: "Entregue-me a moça que seus paraquedistas levaram?"
Ele vai rir na minha cara. Não, tenho uma idéia melhor. Béchir, venha comigo.
— Aonde vocês vão?
— Não posso dizer nada por enquanto. Vocês precisam confiar em mim: é
pegar ou largar.
Uma raiva tangível subiu do pequeno grupo de argelianos.
— De acordo. — Disse o mais vingativo. — Mas se você nos trair... O gesto
de sua mão diante do pescoço não precisava de nenhuma explicação.
— Vocês sabem onde me encontrar. — Disse ele, pegando Béchir pelo
ombro.
Um dos homens foi abrir e lhes fez sinal para saírem depois de verificar
que o caminho estava livre.
Uma chuva fina e fria caía. A intervalos regulares, a luz do farol de
Amirauté clareava o cais e os muros. Os degraus das escadas eram
escorregadios, o corrimão colava nos dedos. Rajadas de vento despenteavam as
palmeiras da Praça Aristide-Briand e faziam redemoinhos no chão. Alguns CRS
estacionaram diante do palácio de justiça.
— Você tem como entrar no hotel sem ser visto? — Perguntou François.
— Sim, tenho a chave de uma porta de serviço que dá na rua Waisse. Em
princípio, essa porta não é vigiada, está sempre fechada. É uma das saídas de
emergência.
François deixou-o e caminhou a passos largos para a entrada principal do
hotel.
No All do Aletti, correspondentes de guerra americanos conversavam com
um deputado muçulmano, enquanto um repórter alemão falava com Joseph
Ortiz. Do bar vinham fragmentos de conversas animadas pontuadas por
explosões de risos. François deu uma olhada para lá, ao passar. Pegou a chave
e viu Gardes em companhia de Argovid num dos salões. Voltou para a
recepção.
— Dê-me um pedaço de papel, por favor.
— Pois não, senhor.
Ele rabiscou algumas palavras e estendeu o bilhete para o funcionário.
— Peça para entregar ao coronel Gardes que se encontra no salão.
— Sim, senhor.
"É um sinal de sorte que Gardes esteja aqui!", pensou ele no elevador.
No andar, um casal alegre saiu de um quarto. Passando perto dele, os
jovens deram-lhe um encontrão, pouco antes de entrar no elevador. Quando ia
colocar a chave na fechadura, percebeu que a porta da rouparia estava
entreaberta.
— Estou aqui . — Cochichou uma voz.
— Pode vir. — Respondeu François. — Não há ninguém.
Béchir pulou fora e veio juntar-se a ele no quarto.
— Você demorou. — Disse ele ofegante.
— Sente-se. A pessoa que eu queria ver está aí em baixo. Ele vai me ligar...
O toque do telefone fez o argeliano pular. François atendeu.
— Alô... Gardes?... Obrigado por ligar. Preciso vê-lo imediatamente, é
importante... Você está com Argoud... sim, eu sei... Dê uma desculpa... Estou
no meu quarto... Você sobe?... Ótimo, número 315... Obrigado!
Ele desligou, satisfeito.
— Volte para a rouparia, ele não deve ver você. Espere...
François abriu a porta e puxou Béchir.
— Tem muita gente no corredor... Muito tarde, olhe o elevador! Esconda-se
no banheiro.
Pouco depois, batiam à porta.
— Entre. Obrigado por ter vindo. Eu ia tomar alguma coisa, quer?
— Como quiser. Mas vamos logo ao que interessa, não quero deixar o
coronel Argoud esperando muito tempo.
François serviu uísque em dois copos. Deu um ao coronel e bebeu o seu de
um gole só antes de falar.
— Preciso de sua ajuda.
O coronel olhou para ele sem dizer uma palavra e sentou-se numa
poltrona.
— Uma jovem argeliana que eu conheço foi levada pelos legionários que a
conduziram à Vila Sesini. Você sabe o que isso significa.
Gardes esvaziou seu copo, impassível.
— Essa jovem se chama Malika Souami, é enfermeira ou aluna de
enfermagem no Hospital Maillot. Uma européia estava com ela no momento da
prisão; ela poderá confirmar os fatos... Isso lhe diz alguma coisa?
— Eu não sou informado de tudo que acontece em Argel. Com relação à
prisão dessa moça, não ouvi nada. Dou-lhe minha palavra.
— E eu não duvido dela. Em compensação, você pode melhor do que
ninguém se informar.
O coronel Gardes levantou-se e olhou François no fundo dos olhos.
— Eu posso, de fato. Não aprovo certos métodos de interrogatório e os que
são empregados na Vila Sesini me repugnam particularmente. Entretanto, se
levaram essa moça, devem ter suas razões. Ela pertence à FLN?
— Não sei de nada, mas é disso que a acusaram, por denúncia.
— Por que você se interessa por ela?
— É uma boa moça. Seu irmão mais novo trabalha aqui; é um garoto
inteligente que lê Camus...
— Ah, bom... se ele lê Camus!
— Não brinque, é com pessoas como eles que se deve construir a Argélia
de amanhã, aquela com que você sonha.
— A Argélia dos meus sonhos... será francesa ou não será. Você disse que
ela trabalha no Hospital Maillot?... Em que departamento?
— No do dr. Duforget.
— Duforget?
— Você conhece?
— Somente de nome. Você sabia que ele é a favor dos árabes?
"Só faltava essa!", pensou François, exagerando seu espanto:
— Tem certeza?
— Alguns afirmam isso, assim como dizem que ele cuida de fdlaghcis no
serviço.
— Isso me parece impossível.
— Você acha? Afinal, é um médico... Vou me informar sobre sua protegida
esperando que não seja tarde demais... Eu ligo assim que souber de alguma
coisa.
— Coronel, agradeço muito. Mas vou lhe garantir uma coisa: se algo
acontecer a ela, eu mesmo contarei tudo aos jornalistas lá embaixo.
— É uma ameaça, Tavernier?
— Não contra você, coronel. Vi sujeiras demais na Indochina e não
encobrirei com meu silêncio o que vier a conhecer aqui. Acredito que você me
compreende.
Os dois homens se encararam, tão determinados um quanto o outro. Ao
mesmo tempo, estenderam-se as mãos. François foi abrir a porta do banheiro.
— Você ouviu?
Sem responder, como uma criança, Béchir jogou-se nos braços de
François que, emocionado, passou as mãos nos cabelos dele.
— Calma, camarada, não vamos comemorar tão cedo.
— Você tem razão, meu irmão, mas recuperei a esperança. Por que você
disse a ele que eu leio Camus?
— Não sei... à toa!
— E o que fazemos, agora?
— Esperamos.
— Vai demorar?
— Não sei. Pare de fazer perguntas. Vou tomar um banho e, depois, deitar.
Você devia fazer o mesmo.
— Posso tomar um banho no banheiro?... Em casa, você sabe, nos
lavamos numa bacia...
*
O toque do telefone arrancou-os brutamente do sono. Não sabendo onde
estava, Béchir deu um pulo do sofá no qual estava cochilando. François
acendeu a abajur perto da cama e pegou o fone.
— Alô... — Disse com uma voz pastosa.
Béchir vestiu-se sem tirar os olhos do novo amigo que não dizia uma
palavra. Quando, enfim, desligou com um simples obrigado, François ficou
pensativo por um momento, passando a mão no queixo onde a barba começava
a crescer.
— Então? — Grunhiu Béchir, impaciente.
François levantou-se e esticou o corpo sem se preocupar com a nudez.
— Eu estava dormindo tão bem! — Disse ele coçando a cabeça enquanto
se dirigia para o banheiro.
— Então? — Repetiu o argeliano.
— Ela está lá mesmo. O coronel foi pessoalmente à Vila Sesini. O oficial da
guarda reconheceu que havia uma terrorista lá com esse nome. Acrescentou
que ela estava bem e que sua prisão era segredo. Gardes pediu para vê-la. O
oficial não permitiu, dizendo que era ordem de seu superior. Combinamos de ir
juntos à vila às nove horas.
— Posso ir junto?
— Claro que não! Deixe os adultos cuidarem disso e volte a dormir.
Magoado, Béchir esticou-se no sofá sem tirar a roupa e puxou a coberta
sobre as orelhas. Quando acordou, já era dia claro. Em cima da cama
desarrumada havia um bilhete de François: Acho que estarei de volta no final
da manhã. Cuide-se e não se deixe ver pela arrumadeira.
Béchir rasgou o bilhete e saiu do hotel sem ser notado. Dirigia-se a
Casbah, quando notou que três garotos de doze ou treze anos o seguiam
enquanto chutavam uma lata de conserva. Eram muitos, agora, nas ruas de
Argel, esses garotos cujos pais vindos do bled se amontoavam nas favelas. Mal
vestidos, geralmente, mendigavam ou roubavam nos mercados, deslizavam
pelas ruas da Casbah, escapando dos soldados, refugiando-se nos fundos das
lojas ou nos terraços. As mulheres, geralmente com pena, davam de comer a
eles. A FLN servia-se deles para espionar ou para ficarem à espreita quando
havia reuniões clandestinas. Um desses bandos tinha por chefe um Kabyle,
pequeno, que não devia ter mais de treze anos. Ninguém sabia de onde ele
tinha vindo, ele nunca falava do passado e não respondia a nenhuma pergunta.
O que era surpreendente é que ele sabia ler. Em troca de um canto para
dormir, ele lia os jornais que havia roubado para um público composto de seus
comparsas ou de mulheres analfabetas da Casbah. É sem dúvida por isso que o
chamavam de Al-Alem. Todos o temiam e respeitavam desde que apunhalou o
dono de um café em Belcourt, assassino de um velho muçulmano venerado por
todos. Após uma breve investigação, a polícia arquivou o caso. No que lhes dizia
respeito, a justiça tinha sido feita, consideraram os muçulmanos.
Béchir sentou-se num dos bancos da Praça Bresson, não sabendo bem o
que deveria fazer. Ele se perguntava se François teria conseguido se aproximar
de Malika. "Que horas ele tinha dito? Nove horas?" O relógio da Igreja Saint-
Augustin bateu onze horas. Os garotos que o seguiam pararam não muito longe
e jogavam um jogo de dados, trazido pelos soldados negros americanos em
1942, quando os aliados desembarcaram na África do Norte. Com um gesto
brusco, eles viraram a lata de conserva que lhes servia de copo, batendo com
ela na calçada na qual jogavam os dados, gritando e empurrando os passantes.
Os europeus desciam da calçada para evitá-los.
"Não faz muito tempo, eu também jogava aí", pensou ele. Indeciso, olhou
em volta, depois interpelou em árabe um dos garotos que jogava e que, depois
de um momento de hesitação, veio até ele.
— É por minha causa que vocês estão aí?
— Você vê mais alguém por aqui? Respondeu o garoto, de mais ou menos
doze anos, com uma longa cabeleira suja, puxando para cima uma calça
disforme segura com um barbante.
— Quem lhes pediu para tomar conta de mim?
— Não podemos contar. — Respondeu um outro garoto que Béchir ainda
não tinha visto, mas em quem ele reconheceu Al-Alem.
— Estamos aqui para protegê-lo. — Continuou ele.
Béchir levantou os ombros: sabia que não arrancaria mais nada deles.
— Estou com fome. — Disse Al-Alem. — Você não tem nada para
mastigar?
Essa pergunta fez com que ele se lembrasse de que também não tinha
comido nada desde a véspera.
— Eu também estou com o estômago nas costas. Que tal sardinhas
assadas?
Al-Alem assobiou para os companheiros, foi até eles e cochichou qualquer
coisa. Os garotos se afastaram dando pontapés na lata de conserva.
— Mandei-os embora; agora você está sob a minha proteção. Você fuma?
— Perguntou, oferecendo um pacote de Bastos todo amarrotado.
— Não, obrigado.
— Pegue um! — Ordenou ele.
Surpreso, Béchir obedeceu. Dois policiais passaram por eles.
— Você vê rebeldes em todo lado. — Disse o mais velho com um forte
sotaque de Marselha. — Já lhe disse: os que fumam não são. A FLN proibiu
cigarro e álcool. Os que desobedecem, cortam-lhes o nariz e os lábios.
— Que animais! — Exclamou o mais jovem, que tinha sotaque parisiense.
— Você só descobriu isso agora? É preciso desconfiar, eles não são como
nós...
— Vamos, circulando, bando de vagabundos, aqui não é lugar para vocês.
Al-Alem levantou o braço na frente do rosto, como para se proteger.
— Não tô fazendo nada, patrão.
— Fora daqui, já disse!
— Tudo bem, patrão. Já tô indo, patrão... Obrigado patrão...
Béchir puxou a manga de Al-Alem que o seguiu se contorcendo, sob o
olhar satisfeito dos policiais.
— Largue. — Ordenou Al-Alem depois de alguns passos.
— Não seja idiota, eles ainda nos observam.
— Um dia, ainda apago um deles.
— Cale a boca! Você quer ou não quer as sardinhas?
— De acordo, vamos. Você sabe onde, pelo menos?
— No mercado de peixe, elas são mais baratas.
As ruas mostravam ainda os vestígios da chuvarada da noite. O sol, por
trás das nuvens, custava para sair. Béchir tremeu. Seu companheiro não
parecia sentir frio apesar da roupa leve e da camisa desabotoada.
— Quantos anos você tem? — Perguntou Al-Alem.
— Quase dezesseis, e você?
— Também. Não me olhe desse jeito! E sei que sou um aborto da
natureza... Mas não me queixo: dá azar. É melhor você ficar de antena ligada:
você tem a cara de que eles não gostam, a cara de quem pensa.
— E você, por acaso não pensa?
— Penso, talvez mais que você, mas eles não sabem disso. Seria necessário
que fossem inteligentes e que nos vissem de outra forma. Você anda bem
vestido, com a cabeça levantada e é um moleque bonito: tudo ao contrário de
mim. Para eles, sou invisível. Quando apunhalei o porco gordo de Belcourt, não
fugi, passei de fininho até o terraço e fiquei olhando. Ah! Se você os visse
correndo para todos os lados, os roumis! "Saia daqui, garoto", me disse um
deles; "não é um espetáculo para você". Quando a polícia chegou, eu ainda
estava lá. Os guardas passaram na minha frente, então fui embora.
— Por que você está me contando isso?
— Para que você saiba com quem está lidando e para mostrar que você,
também, não deve confiar nas aparências.
— Vou me lembrar... Dizem que você sabe ler: é verdade?
— A gente não é tão ignorante quanto eles gostariam. Aprendi a ler para
combatê-los. Você não?
— Nunca pensei nisso, para mim parecia normal ir à escola.
— Você parece minha irmã falando...
Béchir calou-se bruscamente, os punhos se fecharam.
— Eu sei do que você está falando. Eu conheço sua irmã; ela me empresta
uns livros... Você ficou espantado?
"Não", ele fez com a cabeça.
— E uma boa garota, a sua irmã. Vamos tirá-la de lá.
— Como você sabe?... A Vila Sesini é muito bem guardada!
— Eu sei de muitas coisas... Se seu amigo roumi falhar, talvez eu tenha
um jeito. Mas, deixe para lá... Não vou dizer mais nada!
Béchir deixou-se cair num degrau da escada que levava ao cais do
mercado de peixe e segurou a cabeça com as mãos.
— Pare, você parece uma menina! — Disse Al-Alem, sentando-se perto
dele.
— Dane-se. — Gemeu o outro, levantando o rosto coberto de lágrimas.
Ficaram em silêncio, indiferentes às pessoas que subiam e desciam a escada,
empurrando-os, às vezes, com seus pacotes. Al-Alem acendeu um cigarro e
passou-o ao companheiro, depois de ter dado duas tragadas. Enxugando o
rosto com as mãos, Béchir aceitou. Pouco a pouco, a fumaça tranqüilizou-o.
— Obrigado. — Disse, levantando-se. — Vamos comer as sardinhas? Como
moleques que eles ainda eram, desceram a escada aos pulos, apostando quem
chegava primeiro lá embaixo. Al-Alem ganhou de longe.
No cais, comerciantes, compradores, vendedores de sardinhas,
muçulmanos, militares e europeus formavam uma multidão confusa e
diversificada. O cheiro de assado dominava o dos peixes frescos que pulavam
ainda nas bancas. No chão coberto de escamas, vísceras, espinhas e cabeças de
peixe, as pessoas escorregavam. Sobre braseiros improvisados, velhos
argelianos assavam as sardinhas, em grupos de cinco, em forma de leque. Em
seguida, as vendiam embrulhadas em jornal. Alguns ofereciam também lula na
tinta, que eles chamavam de "sépias". Por alguns francos a mais, o cozinheiro
escolhido por Béchir servia as sardinhas numa grande fatia de pão.
Esfomeados, foi por pouco que não comeram até as cabeças.
— Mais? — Perguntou Béchir.
— Não dá para recusar, meu irmão!
Quando saíram do cais do mercado de peixe e subiram as escadas, a vida
lhes parecia menos dura.
— Eu lhe ofereço um chá de hortelã. — Declarou Al-Alem, fazendo pose.
Entraram num café mouro, na parte baixa da Casbah, se instalaram num
banco encostado na parede. Perto deles, alguns velhos de túnica jogavam
dominó. Eles fecharam os olhos bebericando o chá quente.
— Preciso voltar ao meu trabalho no hotel e ver se o francês voltou. Você
não vai mesmo me dizer por que está tomando conta de mim?
— Mais tarde, meu irmão.
— Eu ... eu queria dizer... não é fácil... mas... Agradeço a sua companhia.
Al-Alem ficou rubro de surpresa ou de prazer e respondeu com um tom rude:
— Não perca tempo com bobagens. — O aperto de mão que eles trocaram
desmentia essas palavras.
— Volto de noite para saber das novidades. — Prometeu Al-Alem, partindo
por sua vez.
O coronel Gardes e François Tavernier encontraram-se na hora
combinada, na Vila Sesini. Essa magnífica casa mourisca, rodeada por um
jardim, era, desde a batalha de Argel, ocupada pelos militares e servia de centro
de interrogatórios. Sua reputação era tal que os próprios europeus abaixavam a
voz quando se referiam a ela.
Um capitão recebeu-os num gabinete confortável e disse estar a par do
motivo que os trazia ali. Uma canção da moda vinha da sala vizinha. Segundo
ele, a garota de que se tratava tinha estado ali, mas havia sido transferida na
véspera, à tarde, para El-Biar, outro centro de interrogatórios. Ele explicou
ainda que o suboficial com quem o coronel Gardes conversara não tinha dado
essa informação porque acabava de entrar no serviço.
— Você está zombando de mim? — Replicou friamente Gardes.
— Eu não ousaria meu coronel.
— Qual foi a razão da transferência?
— Complementação de informação, meu coronel.
— Entendo. Qual foi o motivo da prisão?
— Terrorismo, pertencer à FLN, meu coronel.
— Ela falou?
— Não, meu coronel.
— Quem se encarregou do interrogatório?
— Eu, meu coronel.
— De que modo?
— Nada de muito grave.
— Você pode, portanto, me dar sua palavra de oficial que essa moça não
sofreu maus tratos?
Antes de responder, o capitão acusou uma leve hesitação.
— Evidentemente, meu coronel.
— Gostaria de visitar suas instalações. Nova hesitação, desta vez mais
acentuada.
Deixando a Vila Sesini, Gardes e Tavernier estavam pálidos. Eles sabiam,
no entanto, que não lhes tinham mostrado senão uma parte das salas
reservadas aos interrogatórios.
O que tinham visto bastava para dar uma idéia do modo como eram
conduzidos. Numa das salas, flutuava no ar o mau cheiro de carne queimada,
sangue e excrementos. Numa espécie de tablado imundo, estavam fixadas
correias de couro. Acima, pendia um fio elétrico com um tubo isolante
terminando numa placa de compensado de onde saíam dois fios desemcapados.
Num canto, no chão de cimento, baldes cheios de água suja, um funil
grande, alguns trapos e uma espécie de gaiola fechada com cadeado.
— Para que é isso? — Perguntou o coronel.
— Para trancar os recalcitrantes.
No carro que os levou de volta para o Centro de Argel, os dois homens
ficaram muito tempo em silêncio.
— Devemos ir a El-Biar. — Disse enfim Tavernier.
— Sim. — Murmurou Gardes.
Cada um deles mergulhou novamente em suas reflexões.
— Mas, enfim... — Explodiu François — Você pode me dizer a quem
respondem esses sinistros oficiais? Você não diz nada?... Não é por ordem dos
próprios chefes que eles torturam? Com certeza você está a par! Assim como
Challe, Massu e Delouvrier!
— Não é tão simples assim.
— O que você quer dizer?
— É uma herança da batalha de Argel. Na época, era preciso obter
informações por qualquer meio, a fim de impedir novos atentados. Lembre-se
das bombas do Otomatic, da Cafeteria, do Milk-bar, do Coq Hardi, do estádio de
El-Biar, do cassino da Corniche... Todos aqueles jovens estropiados, as moças
com as barrigas rasgadas, as pernas arrancadas, as cabeças estouradas!...
Ofegante, com os olhos fundos, Gardes calou-se por uns instantes.
— - Eu sei de tudo isso e é assustador, como foram assustadoras as
expedições punitivas dos ultras no Clos-Salembier, em Belcourt, os setenta
mortos no atentado da Rua Thèbes, na Casbah! Mas é preciso acabar com essa
escalada, e não é aplicando os métodos de Massu que vocês impedirão novos
atentados! — Exclamou François.
— Eu sei tão bem quanto você. Já lhe disse: deploro esses métodos, mas
não é a você que vou contar da dificuldade que é controlar as ações dos homens
que viram o que a FLN fez com seus companheiros.
— Conheço esse argumento e eu mesmo já estive a dois dedos de
interrogar de modo "eficaz" um porco que me caiu nas mãos. O que ele tinha
feito merecia mais do que a morte e, fazendo-o falar, talvez eu tivesse salvado
algumas vidas. Não saberei nunca. Não tive coragem para isso. Mergulhei no
desgosto e na raiva, mas também no medo de me rebaixar ao nível daquele
animal. Atirei nele... E não lamento.
— Sem dúvida você fez bem, mas nem todos têm seu sangue-frio.
— Não chamaria de sangue-frio... E, depois, merda, por que estou lhe
contando minha vida? Deve ser por causa do ambiente... Como você vai
proceder em El-Biar?
— Vou pedir que me entreguem a garota.
Alguns paraquedistas montavam guarda diante do prédio de concreto,
perto da praça El-Biar que dominava a baía de Argel. Diante do coronel eles se
fixaram numa posição de sentido impecável. Tavernier e Gardeni atravessaram
um pátio lotado de jipes e caminhões militares. Um subtenente veio recebê-los
ao pé da escada.
— O comandante vai recebê-los.
Eles o seguiram. No primeiro andar, uma porta abriu-se bruscamente,
deixando ver um jovem argeliano. Enquanto era empurrado para o corredor,
eles perceberam seu rosto ensangüentado e suas roupas rasgadas. Ele
estremeceu e arriou aos pés de Tavernier. Um paraquedista saiu e desferiu-lhe
um pontapé nas costelas.
— Levante-se miserável!
François ajudou-o a se levantar. O muçulmano olhou assustado para
aquele civil indulgente e, estendendo para eles as mãos algemadas, implorou:
— Ajude-me, senhor!
O subtenente pegou-o pelo braço e puxou-o de volta para a sala, gritando:
— Cretino, eu lhe disse para ficar quieto!
O que havia chamado o árabe de miserável fechou a porta.
— Ele carregava explosivos com ele. — Disse o subtenente. No segundo
andar, um tenente aguardava.
— Bom dia, meu coronel, o comandante o espera. Este homem está com o
senhor?
— É evidente. — Grunhiu Gardes.
O tenente os fez entrar numa sala mobiliada com peças metálicas e
cadeiras desconfortáveis. Sentado atrás da mesa, o comandante os olhou
entrar, depois se levantou.
Bateu os calcanhares e saudou militarmente seu superior. O coronel
respondeu negligentemente à saudação e foi direto ao assunto:
— Você sabe por que estou aqui? Devem ter-lhe avisado lá da Vila Sesini.
— Sim, meu coronel.
— Muito bem. Mande buscar a garota.
— Mas, meu coronel, é que...
— Que?
— Ela está passando um pouco mal.
— Duvido. Tragam-na aqui, não partirei sem ela... Então, o que espera
para dar as ordens?... Amenos que prefira que eu fale com o general Massu ou
o general Challe.
O comandante pegou o telefone.
— Ela estará aqui em alguns minutos. -Anunciou ele.
Era um homem de mais ou menos quarenta anos, meio atarracado,
cabelos escovinha, traços flácidos e olhar furtivo, que tinha muitas
condecorações penduradas na farda camuflada.
O tempo que decorreu pareceu muito longo para os três. Afinal, bateram à
porta.
— Entre!
Um paraquedista entrou na sala sustentando uma mulher que entrou
curvada. Os cabelos desgrenhados cobriam seu rosto. O paraquedista a fez
sentar numa cadeira.
— Está bem, pode sair. — Ordenou o comandante.
François aproximou-se dela e afastou os cabelos.
— Meu Deus. — Murmurou ele.
Quase não reconheceu, naquele rosto inchado, coberto de um suor frio, os
bonitos traços da irmã de Béchir. Ajoelhou-se diante dela e levantou-lhe
gentilmente o queixo.
— Malika, acabou.
A garota abriu os olhos com dificuldade e olhou-o sem parecer reconhecê-
lo. De sua boca inchada, com os lábios cortados, saía uma espécie de gemido.
Um filete de sangue correu pelo queixo.
— Que animais! — Cuspiu François, com um soluço na voz. Pegou um
lenço para enxugar o pobre rosto.
— É ela, mesmo? — Perguntou o comandante.
De um salto, Tavernier ergueu-se, agarrou o oficial pela camisa e deu-lhe
um murro na cara.
Gardes se interpôs e forçou-o a largar a presa.
— Calma, isso não resolve nada! Quanto a você... — Disse, dirigindo-se ao
comandante que colocava um lenço no nariz. — Esqueça este incidente.
— Esquecer?... Mas ele atingiu um oficial no exercício de suas funções.
Vou fazer a pele dele!
— Basta! Ou enfio no seu rabo um relatório que o deixará encostado por
muito tempo!
— Eu só obedeço ordens, coronel.
— O emprego de tortura foi proibido pelo general De Gaulle. — Declarou
François enquanto massageava a própria mão.
— De Gaulle é um pé no saco!
— Cuidado com o que diz, comandante! Chame uma ambulância.
— Uma ambulância?
— Sim, e rápido!
Com o lenço sempre no nariz, o comandante acabou por concordar.
— Ela chegará em dez minutos.
Um quarto de hora depois, a pedido de Tavernier, uma ambulância
transportava a jovem argeliana para o Hospital Maillot.
Capítulo 13
Sozinho, no consultório do doutor Duforget, François fumava nervoso. Há
uma hora Malika Souami estava nas mãos dos médicos. Uma batida na porta;
uma enfermeira entrou.
Era uma européia, de uns cinqüenta anos, rosto simpático, com uma
blusa branca que lhe apertava o opulento peito; parecia perturbada.
— Desculpe. — Disse ela com um forte sotaque de pé-preto. — Foi o
senhor que trouxe Malika?
— Como ela está?
Incapaz de responder, a mulher deixou-se cair numa cadeira, chorando.
— Ela...? — Perguntou François.
— Não. — Quase gritou a enfermeira. — Ela vai sair desta! É que, é tudo
minha culpa.
— Sua culpa?
— Sim... Eu estava com ela quando foi levada... Eu deveria ter avisado a
família imediatamente, o hospital... Mas tive medo, senhor, tive medo. Se
tivesse falado naquele momento, talvez tivessem podido evitar esse horror todo.
— A senhora é a sra. Zenatti?
— Sim, senhor. Malika trabalhava sob minhas ordens. Gosto muito dela;
ela tem a idade da minha filha mais nova e... por minha causa...
A porta abriu-se de novo. A enfermeira levantou-se.
— Não chore, sra. Zenatti, tudo vai ficar bem. Dei-lhe um calmante, ela vai
dormir. Quando acordar é que vai ser difícil. — Disse o dr. Duforget.
— Eu sei, doutor. O que posso fazer?
— Não muito, por enquanto. É preciso avisar a família.
— Eu faço isso, é o mínimo que posso fazer. Se não fosse a minha
covardia...
— Vamos, não chore mais, não foi culpa sua...
— Agradeço por me dizer isso, doutor, mas minha consciência diz o
contrário.
O médico pôs a mão no ombro dela.
— A senhora é uma boa mulher, sra. Zenatti. Não se julgue muito
rigidamente. Estamos todos vivendo momentos difíceis e ninguém sabe o que
será levado a fazer. Vejo a senhora amanhã.
A enfermeira saiu. O dr. Duforget foi sentar-se atrás da mesa e segurou a
cabeça com as duas mãos. Após alguns instantes, levantou o rosto e olhou
François com um ar esgotado.
— Pobre garota! — Disse ele. — Foi muita sorte você conseguir arrancá-la
das mãos dos carrascos... Que porcos!
— Ela está gravemente ferida?
— Tudo depende do que se entende por "gravemente"... Ela tem várias
costelas quebradas: pontapés... Queimaduras de cigarros nos seios, na parte de
dentro das coxas. O cara que fez isso deve ser um artista, queimou de forma
regular e profunda para obter um resultado harmonioso... Essa menina
maravilhosa! Ele deve ter se divertido em marcá-la assim... Eles a violentaram
um de cada vez, pela frente, por trás, e de novo. Sem a sua intervenção,
acabariam matando-a e jogando o cadáver no mar, amarrado a um bloco de
concreto. É assim que fazem quando as vítimas ficam muito arrebentadas.
— Ela falou?
— Um pouco. Está morta de vergonha. Ela era virgem. Para uma
muçulmana isso é uma desonra. Pediu que você cuide do irmão dela. Ela
acrescentou que, ainda que você esteja no lado inimigo, ela confia em você e lhe
agradece.
François sorriu de um jeito cansado.
— Gostaria de falar com ela.
— Amanhã, talvez, se ela quiser. Desculpe-me, tenho outros pacientes
para atender. Se precisar de mim, aqui está meu telefone particular. Ah, uma
coisa: você me disse que foi graças à intervenção do coronel Cardes que
conseguiu a libertação de Malika? É surpreendente! Ele está sempre na
companhia de Ortiz e de seus comparsas.
— E sua função de comando que exige isso.
— Sem dúvida, mas ele não deveria se comprometer com essas pessoas,
são fascistas.
— Não acredito que ele esteja do lado deles. Mas ele é totalmente favorável
à Argélia francesa e defende a integração.
— Ele só sabe falar. Faz parte daquele grupo de homens inteligentes,
incapazes de ver a realidade que está na cara deles. Mas, afinal, hoje, ele salvou
a vida de uma mulher.
— Ele ficou louco quando nos trouxeram Malika. Fez o gesto de levar a
mão à arma; os outros fizeram o mesmo. Por um momento, achei que iam se
matar. O ódio entre eles era palpável. Quando nos despedimos, tinha
envelhecido dez anos. Ele me disse: "Como poderemos nos perdoar essas
coisas?"
— Talvez esse drama lhe abra os olhos... Ligue amanhã para saber
notícias. Até logo!
— Até logo, doutor.
A noite havia caído. Uma chuva tornara irreal o halo de luz das lâmpadas
dos postes. Indiferente aos carros que buzinavam, François Tavernier
caminhava pela Avenida Malakoff. Na altura do Bulevar Guillemin, um Peugeot
203 barrou-lhe a passagem. Mergulhado em seus pensamentos, não percebeu e
tentou contornar o veículo, quando três homens de cabeça raspada saíram do
carro, pegaram-no e empurraram- no. Só se deu conta da armadilha tarde
demais e se amaldiçoou por se deixar apanhar. Um cara grande, com olhos
pequenos de porco, vestindo um casaco de camurça marrom, atingiu-o no
estômago.
François teve a impressão de que o punho lhe atravessava o corpo. Um
outro com um paletó apertado, bateu-lhe com uma barra de ferro nas costas.
Com o choque, ele caiu de joelhos. O terceiro levantou-o pelo colarinho. Tinha
um olhar de assassino.
— Não gostamos que se metam nos nossos assuntos. — Disse ele com um
sotaque sul-americano, enquanto colocava a ponta de sua faca na garganta de
François.
Tavernier levantou bruscamente os cotovelos para tentar se livrar.
Conseguiu por um instante, mas o homem da faca retomou a vantagem,
ajudado pelos companheiros. Eles bateram na vítima com toda a força sem que
nenhum motorista parasse.
— Larguem, ele já teve sua conta. — Declarou o homem do sotaque, que
parecia ser o chefe. — Cuidado! Vamos!
Um táxi deu marcha à ré, buzinando, O Peugeot saiu e costurou por entre
os carros. O chofer do táxi parou, desceu do carro e inclinou-se sobre François
que tentava se levantar.
— O número... Você anotou a placa? — Gaguejou ele, antes de desmaiar.
Quando voltou a si, reconheceu o rosto do dr. Duforget.
— Tudo bem? Eles não demoraram muito para reagir! Você não está muito
bonito, mas não tem nada quebrado... Foi só um aviso. Da próxima vez, pode
ser mais sério. Quer passar a noite aqui?
— Não obrigado, vou voltar para o hotel.
— Como quiser. O motorista de táxi que o trouxe vai levá-lo.
Duforget ajudou-o a se levantar.
— Tem certeza de que está bem?
Apesar do rosto inchado e dos lábios machucados, François conseguiu
sorrir. Deu alguns passos. Teve a impressão de que um carro havia passado
por cima dele. Vestiu o paletó, ajudado pela enfermeira.
— Obrigado, tudo bem.
O médico abriu a porta da enfermaria.
— Ei, eles fizeram um bom trabalho! — Exclamou Joseph Benguigui.
— Bem que achei tê-lo reconhecido um pouco antes de desmaiar. Obrigado
pela mãozinha.
— Por nada.
— Você anotou o número?
— Não deu tempo, mas acho que consigo reconhecer o calhambeque: o
pára-choque direito da frente estava amassado e o farol quebrado. Além disso,
tenho uma vaga idéia de onde procurar... Eu o acompanho.
No Aletti, o porteiro aproximou-se de François.
— Meu Deus, sr. Tavernier, o que aconteceu?
— Nada de mais. Onde está o jovem engraxate?
— Ele saiu mais cedo. Nesses últimos tempos, não está muito atento ao
trabalho. Estamos pensando em mandá-lo embora. Tem muitos querendo o
lugar dele.
— Você faria mal de demiti-lo. — Disse François contendo seu mau
humor. — É um garoto inteligente, que faz seu trabalho muito bem.
— Era verdade, senhor, até pouco tempo atrás. Precisa de alguma coisa?
— Sim, mande subir uma refeição e mande alguém para pegar minha
roupa para lavar.
— Sim, senhor. Num minuto.
— Ainda precisa de mim? — Perguntou Benguigui.
— Não, obrigado. Vou precisar muito de você amanhã de manhã.
— Sem problemas. De qualquer modo vou passar para saber de você. Até
lá, vá para a cama.
Uma vez no quarto, François se despiu. No espelho do banheiro, examinou
os ferimentos: um olho semifechado, uma maçã do rosto arrebentada, a boca
parecendo uma bunda de macaco, uma mancha roxa surgindo na altura do
estômago e as costas marcadas pela barra de ferro.
"Escapei por um triz", pensou enquanto abria as torneiras do chuveiro.
Deixou a água correr sobre o corpo por muito tempo, dando suspiros de prazer
e de dor.
Estava acabando de se secar quando bateram à porta. Colocou um roupão
e foi abrir. Era o rapaz para pegar suas roupas sujas. Assim que ele saiu,
bateram de novo; um garçom entrou, empurrando uma mesa servida.
— Tomei a liberdade de acrescentar uma garrafa de vinho. — Anunciou o
empregado, mostrando o que trouxera.
— Fez muito bem, obrigado.
— Posso entrar?
No enquadramento da porta, via-se o coronel Gardes.
— Entre, coronel. Que bons ventos o trazem?
O garçom sorriu, fechando a porta atrás de si.
Descalço, com os cabelos molhados, François examinou o bar. Pegando
uma garrafa de uísque, perguntou:
— Aceita uma dose?
— Se você quiser... Acabei de saber que você foi vítima de uma agressão.
— Isso o espanta?
A título de resposta, Cardes levantou os ombros.
— Você acha que foram os da Vila Sesini ou os de El-Biar que fizeram
isso?
— Não tenho idéia. Um deles tinha um forte sotaque sul-americano,
argentino, acho. Todos eles tinham a cabeça raspada.
— Nesse caso, acho que são os da Vila Sesini, que está nas mãos de
alguns elementos da Legião. O que você pretende fazer?
— Como assim?
— Vai dar queixa?
— Não me faça rir, faz minha boca doer! Você sabe muito bem que não
adianta nada. E você, não teve problemas?
— Não. Dei contas de nossa aventura ao general Challe. Estava saindo de
seu gabinete quando me contaram o que havia acontecido com você. Voltei
imediatamente para informá-lo. Ficou bobo.
— Ele é muito bom!
— Não, não, ele foi sincero. Ele se irritou com você por causa dos harkis,
mas, quando falamos sobre isso, ele me disse: "E se Tavernier estiver certo?" Eu
sei que, depois que vocês conversaram, isso não sai da cabeça dele. Como está
a garota?
— Não muito mal, segundo o dr. Duforget. Pobre garota...
Durante um momento, os dois homens beberam em silêncio. Gardes
aproximou-se da porta que se abria para o porto molhado pela chuva.
— Quando você volta para a França? — Perguntou, virando-se.
— Você está querendo se livrar de mim?
— Entenda como quiser. Mas, você não está mais seguro em Argel.
— Quem pode dizer que está seguro nesta cidade? Ninguém, você sabe.
Tenho um encontro com Argoud, no domingo, ele vai me levar no seu passeio
dominical.
— Estou informado.
— E, depois, não quero perder o que vai acontecer.
— O que quer dizer?
— Os boatos, meu caro, os boatos de que você sonha com um diretório
Salan-Zeller-Jouhaud para comandar um golpe a fim de derrubar de Gaulle.
Fala-se muito disso nas reuniões de seus amigos da Frente Nacional Francesa a
que você comparece às vezes. Você não obteve do general Challe a autorização
para criar uma interfederação das unidades territoriais e de autodefesa, para as
quais alugaram um local espetacular no Bulevar Laferrière? Você não fez ser
eleito presidente dessa inter- federação, o comandante Sapin- Lignières, cujas
opiniões de extrema direita são conhecidas, e para o posto de secretário geral,
um fabricante de chinelos de Bab el-Oued, chefe adjunto das UTs e
comandante do exército clandestino da FNF, o capitão Ronda? O que significa
dizer que Joseph Qrtiz é o verdadeiro chefe. Armas circulam, grupos de
combate são recrutados, Argel está dividida em três setores prontos para a
insurreição, tudo isso sob os olhos do exército, talvez até com sua ajuda... E o
coronel Godard, chefe da segurança, naturalmente informado disso tudo, deixa
rolar. Assim como o general Massu, aliás...
O coronel Gardes ouvia, lívido, com os maxilares cerrados.
— Isso tudo acompanhado do ranger de dentes dos outros grupinhos de
direita. — Continuou François. — Para alguns, Ortiz seria um agente pago pelo
serviço secreto americano, procurando principalmente desestabilizar De Gaulle.
Para outros, seria um agente duplo participando de um complô governamental.
Quer mais, ainda? Fala-se muito dele! Mas tudo isso, você sabe. Cardes,
você colocou a mão numa engrenagem e vai disparar acontecimentos que não
conseguirá mais controlar...
— O exército controla tudo. Nada se faz sem seu consentimento.
François olhou demoradamente seu interlocutor.
— Você percebe o que falou? — Disse, esgotado. — Deixe-me sozinho,
agora, preciso descansar... Ah, mais uma pergunta: por que você me ajudou a
salvar a garota?
— Questão de humanidade. E, depois, eu lhe disse, não gosto desses
métodos. Isso basta como explicação?
Sem responder, François estendeu-lhe a mão.
Depois da partida de Cardes, Tavernier serviu-se de uma dose de uísque
que bebeu de um trago antes de se deitar e mergulhar num sono cheio de
pesadelos.
Levantou-se, na manhã seguinte, em pior estado que na véspera.
Arrastou-se até o banheiro e contemplou seu rosto deformado. Tomou duas
aspirinas e enfiou-se no chuveiro. O corpo machucado distendeu-se pouco a
pouco. Pelo telefone, pediu um bom café.
Estava esvaziando a segunda xícara quando bateram de leve na porta.
"Béchir", pensou.
Era ele mesmo e François o fez entrar. Qualquer sinal de infância tinha
desaparecido do seu rosto. Os belos olhos negros exibiam uma expressão dura,
a boca, uma dobra amarga: ele sabia o que tinha acontecido à irmã.
— Quer café? — Ofereceu François.
Ele aceitou com um aceno de cabeça.
Posso pegar um croissrnit?
— Sirva-se.
Alimentado, o jovem engraxate pareceu mais relaxado.
— A sra. Zenatti veio ver meus pais, ontem à noite. — Falou com um
tremor na voz. — Minha mãe não pára de chorar... Meu pai, esse, está morto de
vergonha e diz que não tem mais filha... E Malika?...
— Vamos ligar para o hospital para ter notícias.
Quando François desligou, parecia perplexo.
— Então? Como ela está?
— Tem um pouco de febre e chama pela mãe.
— Vou buscá-la.
— Vou com você!
Béchir hesitou um instante.
— Venha, talvez você consiga explicar a meu pai que não foi culpa dela.
Nas ruas da Casbah, as mulheres cuspiam à passagem de François
Tavernier e os homens esboçavam gestos ameaçadores. Por diversas vezes,
Béchir teve que falar com eles para que os deixassem prosseguir no caminho.
Dos cafés mouros escapavam, a despeito da proibição da FLN, trechos de
músicas árabes e as batidas secas do dominó. Diante de um açougue, o sangue
dos carneiros recentemente degolados formava pequenas poças ao redor das
quais zumbiam as moscas. Panelas de alumínio e pratos de louça colorida
pendiam do balcão de uma loja de ferragens. Um alfaiate, inclinado sobre sua
máquina, costurava à toda velocidade uma peça de tecido. Todo um povo vivia
ali, amontoado. Nos muros, grandes números pintados com piche lembravam
baratas gigantes. Ao longo das fachadas leprosas, com suas cores apagadas,
onde às vezes se abria uma janela, corriam valetas de água suja. A medida que
eles entravam mais na antiga vila turca, a miséria se mostrava, o cheiro de
mofo pegava na garganta. Velhos descarnados, sentados nos degraus das
escadas, eram empurrados por garotos vestidos com trapos. Por trás dos
balcões estreitos com grades de madeira, adivinhavam-se as silhuetas de
mulheres. Um vento leve inflava a roupa estendida nos terraços.
— A Rua Charneau ainda está longe? — Inquietou-se François, ofegante,
coberto de suor e cheio de dores.
— Não, estamos quase chegando. — Respondeu Béchir.
Alguns instantes depois, ele acrescentou:
— É aqui.
O adolescente empurrou uma porta pesada sobre a qual estava pregada
uma mão de fatina de bronze opaco, subiu uns degraus, virou à direita numa
passagem escura, depois, seguido por François, passou por uma segunda
porta. Numa peça iluminada por uma janela com barras, estava uma mulher
sem idade, um menino e um homem alto. Seus olhares viraram para os que
chegavam, O homem mostrou seu rosto emaciado, levantou-se de uma poltrona
quebrada. François reparou que ele tinha uma perna de pau. Veio até eles, com
uma bengala na mão.
— Por que você trouxe este roumi à minha casa? — Perguntou ele em
árabe a Béchir.
— Pai, ele é o francês de que lhe falei. Foi ele quem salvou Malika.
— Não pronuncie mais este nome na minha frente! Não conheço nenhuma
Malika. Tive uma filha, mas ela morreu.
A mãe deixou escapar um soluço. O pai virou-se para ela:
— Mulher, não mostre o rosto a um estrangeiro.
Com um gesto apavorado, ela puxou um pedaço de tecido para a frente da
boca.
— Não devia ter escutado você. Por sua causa, mulher, as crianças se
afastaram de nós, estudaram na escola dos franceses, esquecendo nossos
sagrados preceitos, vestindo-se como eles...
— Mas, pai... — Interrompeu Béchir. — Você foi à guerra com eles, por
eles.
— Você vê o resultado hoje! Por causa deles, sou inválido. Eu achava que
depois da guerra eles nos considerariam como iguais. Olhe para nós: nunca
fomos tão miseráveis, tão pouco respeitados. A cada dia, eles se abatem mais
sobre nosso povo. Não bastou a eles reduzir-nos a escravos, considerar-nos
como carne de canhão, a que se coloca na linha de frente nas guerras sujas
deles! O que querem é nos reduzir a nada... Nada conta para eles, nem a dor de
uma mãe, nem o sofrimento de um pai, nem a desonra da família... Para eles,
meu filho, nós não existimos como seres humanos. Nem os animais deles, eles
tratam dessa maneira. Malditos sejam!... Eu sei... — Continuou ele em francês
— Que o senhor foi bom para meu filho. Não deveria. Isso lhe deu esperanças e
amoleceu o coração dele. Sua bondade chegou tarde demais.
— Compreendo sua ira, mas seus filhos estão são e salvos. Sua filha
precisa agora de todo o carinho...
— Não me fale mais de filha!
— O senhor já disse. Não a renegue, não acrescente isso ao sofrimento
dela, ela não merece. Ela chama pela mãe.
— Senhor, não temos mais nada a nos dizer. Deixe-nos.
— Pai!...
— Cale-se ou eu o pego!
— Por piedade! — Gritou a mãe, jogando-se aos pés do marido.
François recuou até a porta.
Na passagem escura, uma mão agarrou seu braço.
— Não tenha medo, sou amigo de Béchir.
Sem mais explicações, ele se deixou guiar pela mão desconhecida.
Depois de descer umas escadas e de subir outras, François encontrou-se
num terraço varrido no momento pela chuva. Numa das extremidades, havia
um abrigo de tábuas, coberto por telhas onduladas de zinco.
— Venha. — Ordenou seu guia enquanto afastava uma cortina feita de
sacos de juta grosseiramente costurados.
François inclinou-se para entrar no recinto. Seu anfitrião acendeu um
lampião e virou-se para ele. Era um garoto a quem ninguém daria mais do que
doze anos. Nos seus olhos faiscava um brilho malicioso.
— Seja bem-vindo a meu palácio! — Declarou o adolescente apresentando-
lhe o lugar com um gesto largo. — A casa é sua. Eu me chamo Al-Alem. Você é
François Tavernier, Béchir me falou de você.
— É por causa de todos estes livros que o chamam de Al-Alem? —
Perguntou François, apontando as caixas de madeira que faziam o papel de
biblioteca.
— Não tem importância... Eu estava encarregado de vigiá-lo, até de matá-
lo, se necessário. Os irmãos não acreditam em sua... como dizer? Neutralidade.
Sim, é isso: neutralidade! Eles acham que você está de conchavo com os que
nos combatem e que queria usar Béchir para saber o que se passa na Casbah.
Eu também pensava assim. Mas, depois do que você fez ontem, estão em
dúvida... Quanto aos do outro lado, não gostaram nada de você ter tirado
Malika das mãos deles: não foi por acaso que o pegaram! Eles não estavam
num 203 vermelho escuro, os caras que pegaram você?
— Parece que sim. Você sabe quem são?
— Se são quem penso, são muito perigosos. Gostam de torturar, são
assassinos. Tem um grandão com olhos muito pequenos, um com má
aparência e um outro que tem o jeito e a voz de cantor de tango, como os que se
vêem nos filmes... A não ser que, quase sempre, tem a cabeça raspada a zero.
— São esses mesmos. O que mais você sabe deles?
— O cantor de tango é espanhol ou alguma coisa assim, os outros dois são
alemães. Eles pertencem à Legião.
— Quem comanda, na Vila Sesini?
— Ninguém sabe com certeza... Posso tentar descobrir, se você quiser...
Você tem um cigarro?
François tirou o maço do bolso e estendeu-o a seu interlocutor.
— Americanos! É diferente do meu Bastos. — Alegrou-se o garoto,
acendendo um no lampião.
— Fique com o maço. — Disse François, acendendo o seu também.
— Obrigado... Você é corajoso, não teve medo de vir aqui. Já faz muito
tempo que não se vê um moumi no pedaço.
— Nem mesmo um soldado?
— Isso não conta e não se vêem muitos deles... Psiu!... Ah, é Béchir.
A cortina se afastou para dar passagem ao rapaz. Pelos olhos brilhantes,
via-se que tinha chorado. François e Al-Alem fingiram não perceber.
— Você demorou. — Disse Al-Alem.
— Meu pai ficou furioso, depois saiu. Precisei consolar minha mãe. Ela me
encarregou de lhe agradecer, por Malika.
— Quando ela vai vê-la?
— Bem que ela queria, mas tem medo de meu pai. E eu, quando poderei
vê-la?
— Vamos perguntar ao dr. Duforget... Agora, preciso voltar, mostre-me o
caminho.
— Eu os acompanho. — Declarou Al-Alem.
Rodeado pelos dois garotos, François desceu os degraus escorregadios da
Casbah. Os olhares não eram mais hostis, no máximo curiosos. Ele
compreendeu que, pela simples presença ao lado dele, os dois jovens argelianos
mostravam aos compatriotas que não era um inimigo. Ele pensava na cara que
fariam Challe e Delouvrier se o vissem ali. "Mais uma vez, pareço estar fazendo
jogo duplo", pensou ele, antes de perder subitamente os sentidos.
*
— Ele está voltando a si. — Constatou uma voz feminina.
François abriu os olhos. Esse simples gesto pareceu-lhe muito difícil.
Parecia que tinha a fronte, a nuca e o peito apertados num torno. Esmagado de
cansaço, tentou levantar-se, mas caiu de novo.
— Fique calmo. — Ordenou a mesma voz. — Beba um pouco, vai lhe fazer
bem.
A bebida quente que o fizeram engolir soltava um vago aroma de hortelã e
de cânfora. Um langor tomou conta dele, pouco a pouco; seu corpo, mais leve, o
deixava. François olhava-o se afastar, feliz por ele...
— Ele vai dormir.
"Tenho fome", pensou François, acordando. Ele se sentia fresco e disposto.
Seu sexo rígido o incomodava; pensou na boca de Léa. Essa lembrança acabou
de lhe pôr as idéias em ordem. Olhou ao redor. Pela janela filtrava-se uma luz
que deixava, apesar de tudo, o cômodo na penumbra. Do lado de fora, a voz do
muezzin chamava para uma prece. Uma porta se abriu, uma mulher entrou e
aproximou-se.
— Parece que você está melhor.
No seu velho rosto tatuado que parecia uma máscara de couro, os olhos
delineados em preto brilhavam com um olhar doce.
— Faz muito tempo que estou aqui? — Perguntou François.
— Quatro dias.
— Que dia é hoje?
— Terça-feira.
— Meu Deus!
Ele ia se levantar, quando percebeu que estava nu.
— Não se agite assim, você vai piorar. Você não parou de delirar durante
três dias.
— Dê-me minhas roupas, preciso ir embora.
— Meu filho vai trazê-las.
— Você tem alguma coisa para comer?
A mulher riu e bateu palmas. Atrás dela, a porta se abriu. François
reconheceu aquele que se fazia chamar de Al-Alem. Um grande sorriso
iluminou seu rosto quando viu François sentado no meio das almofadas.
— Achei que você ia dormir por cem anos! Você parece um bandido, com
esse rosto mal barbeado...
François passou a mão pelo rosto áspero.
— Não devo estar muito bonito. — Concluiu, rindo.
Béchir entrou, por sua vez, trazendo uma bandeja cheia de doces que
apoiou na cama. Seus olhos exprimiam toda a alegria que sentia em ver
François.
— Coma, foi minha mãe que fez esses doces para você.
— Hum... é bom! — Deixou escapar, com a boca cheia e os lábios cheios de
açúcar. — Agradeça a ela por mim... Como está Malika?
Uma sombra de tristeza passou pelos olhos do adolescente.
— Ela ainda está no hospital. Fui vê-la com minha mãe, porque ela ainda
está muito fraca para sair... No hotel, estão todos preocupados e se perguntam
onde você estaria, O coronel Argoud veio ontem; comentou que você não
compareceu ao encontro combinado. O porteiro não soube o que responder e eu
não disse nada.
— Fez bem... Pode me passar minhas coisas, por favor?
— Tome. — Interveio a mulher tatuada. — Eu lavei e passei suas roupas.
— Obrigado, senhora... Poderia se virar?
Ela colocou a mão na frente do rosto e saiu rindo por trás dos dedos. Ele
se desembaraçou, então, das cobertas e levantou-se.
— Por que vocês estão rindo desse jeito?
Os dois garotos caíram na gargalhada, apontando para ele. François
estava tendo uma ereção.
— E isso é engraçado? — Exclamou ele, enfiando as calças.
Vestido, ele mexeu nos bolsos.
— É isso que você procura? — Provocou Béchir, dando-lhe a carteira.
— Obrigado. Queria deixar algum dinheiro para essa mulher pelo trabalho
que dei...
— Não faça isso. — Interrompeu-o Al-Alem. — Ela é pobre, mas é
orgulhosa. A hospitalidade não se paga dessa forma.
— Você tem razão. Você me dirá como posso pagar essa dívida.
De volta ao hotel, François Tavernier experimentou todas as penas do
mundo para se livrar do porteiro.
— Nós achamos que a FLN o tinha apanhado. Todo mundo aqui não fala
de outra coisa...
— Você tem algum recado para mim?
— A sra. Tavernier ligou todos os dias. O general Chaile, o sr. Delouvrier e
o coronel Cardes pediram que o senhor ligasse assim que voltasse.
— Obrigado. Vou subir para o quarto e não quero ser perturbado.
— Sim, senhor.
Ele acabava de sair do banho quando o telefone tocou.
— Eu tinha pedido para não ser perturbado!
— Desculpe, senhor; mas é uma ligação do Governo Geral, parece que é
urgente... — Afirmou a telefonista.
— Está bem, passe a ligação... Alô!
— Tavernier! Até que enfim! Estou sendo bombardeado por pedidos de sua
esposa e do Élysée. Onde diabos você estava? — Perguntou Paul Delouvrier.
— Estava doente...
— Sim, soube o que aconteceu. Sinto muito, mas isso não é razão para
desaparecer desse jeito. Você pode vir imediatamente ao CC?
— É tão urgente assim?
— Sim.
Voltando ao banheiro, François examinou o rosto, que lhe pareceu mais
magro; é verdade que não estava com boa aparência, com aquela barba de
muitos dias e os sinais de equimoses. Os lábios tinham desinchado, mas ainda
estavam sensíveis; desistiu de se barbear. Depois de pronto, compôs a
combinação do pequeno cofre que era disfarçado por um cabide de parede,
pegou sua pistola e verificou se estava carregada antes de colocá-la no cinto,
nas costas. Escondida pelo paletó, era preciso estar atento para perceber a
presença dela.
Quando Tavernier colocava sua capa de chuva, o telefone tocou
novamente. Era o coronel Cardes que lhe pedia para vir logo que possível ao
Quartel Rignot.
Ele fechava novamente a porta do quarto quando o telefone tocou outra
vez. "E três", divertiu-se ele, indo para o elevador.
No Hall, o porteiro precipitou-se:
— Sr. Tavernier, o general Challe...
— Não estou!
Impressionado com tanta desenvoltura, o empregado viu-o enfiar-se no
tambor da porta giratória.
Atravessando a Praça Isly, François Tavernier cruzou com um grupo de
garotos maltrapilhos que com muito barulho, jogavam dados. Entre eles,
reconheceu Al-Alem; o moleque piscou para ele, sem parar de jogar.
A chuva tinha parado, mas o pálido sol de inverno não conseguiu
atravessar as nuvens.
Na Rua Tancréde ele parou embaixo de uma marquise para acender um
cigarro. Cruzando a Rua Négrier, viu que Al-Alem e seu bando ocupavam-se
agora em dar, cada um por sua vez, pontapés numa lata de conserva. A lata
vazia caia no chão com um barulho metálico.
Saindo do elevador da Rua Berthezène, alguns militares se cutucavam
como meninos para mostrar uns aos outros as meninas do liceu; as jovens
fingiam não ver nada. "O eterno jogo da sedução...", pensou François. Atrás de
umas mulheres de Iiayk, acompanhadas pelos filhos, ele colocou uma moeda
na catraca e entrou no elevador; admirado de que fosse preciso pagar para
pegá-lo.
No Governo Geral, François foi recebido por Maffart.
— O senhor Delegado Geral o aguarda.
Sentado atrás de sua mesa, Paul Delouvrier levantou-se. Pegou as muletas
apoiadas na parede e veio ao encontro dele.
— Bom dia, Tavernier. Obrigado por ter vindo logo. Acredite que fiquei
desolado com o que lhe aconteceu. De minha parte, acabo de voltar de
Ghardaia, onde estava convalescendo da minha operação, e encontro Argel em
plena crise.
— O que está acontecendo?
— Você não sabe?
— Eu dormi durante quatro dias...
— Sorte a sua. Eu não prego o olho! Massu foi chamado a Paris, por De
Gaulle, após as declarações que deu a um jornalista alemão. Em Paris, foi uma
tremenda confusão. Esta noite, o Primeiro-Ministro, Michel Debré, telefonou
para o general Challe, que não estava informado de nada. Pouco depois, Challe
fez saber ao assessor de imprensa do Primeiro-Ministro que ele se apressaria
em publicar um desmentido.
— Mas, o que Massu disse de tão perturbador?
— Você o conhece: ele se empolgou criticando a política do General. No
entanto, alega que é vítima de um complô e que suas afirmações foram
adulteradas... É possível, mas isso não poderia ter pior repercussão: a situação
é explosiva e Massu é o único a poder contê-la. Neste momento, os líderes
argelianos estão reunidos com seus parlamentares para deliberar sobre os
atentados da FLN que inundam de sangue a região. Seus eleitores querem
marchar para as prisões de Argel, a fim de fazer, eles mesmos, justiça, e os
colonos levantam as milícias rurais. Estamos à beira da revolução. Assim que
essas pessoas souberem da partida de Massu, deveremos esperar pelo pior.
Challe fala de pôr em ação o plano Balancelie, que prevê trazer para Argel a 10ª
divisão de paraquedistas e de encarregá-la de manter a ordem com os
esquadrões de polícia móvel e da CRS. Ora, essa é a antiga divisão de Massu e
isso não deixaria de ser perigoso: há o risco de confraternização entre os
paraquedistas e a população européia; eles estão em contato desde 1957 e
criaram laços...
— Compreendo sua preocupação, mas em que eu posso ser útil?
— Desde que você chegou, ouviu alguma coisa que possa nos ajudar?
— Nada que vocês já não saibam, eu suponho...
— Devo ir a Paris em companhia de Challe, para a conferência do dia 22.
Venha conosco: juntos, nós três talvez possamos convencer De Gaulle a deixar
Massu ficar aqui.
— O senhor talvez esteja se adiantando: Massu ainda não partiu.
— Prefiro prever o pior. Você viria?
— Duvido que minha presença seja útil.
— Pense no assunto. Por agora, tenho uma reunião sobre manutenção da
ordem com os generais Challe, Costes e Massu, assim como com os coronéis
Gardes e Fonde. Vamos estabelecer as medidas que serão aplicadas na falta
das autoridades convocadas a Paris. Quanto a você, faça de modo a poder ser
localizado rapidamente.
Apoiado na bengala, Delouvrier acompanhou Tavernier até a saída do
gabinete onde os dois homens trocaram um aperto de mão.
Capítulo 14
Léa achou que ia ficar louca: nenhuma notícia de François há uma
semana. Estava cada vez mais difícil esconder sua preocupação das crianças.
Com a intenção de não agravar uma aflição que partilhavam, os dois mais
velhos evitavam fazer perguntas. Não era o caso de Claire, que perguntava
muitas vezes quando o pai voltaria, recusava-se a dormir na sua cama e vinha
se enfiar na da sua mãe para "esperar papai".
Pouco depois da viagem para a Alemanha, ela foi intimada pela DST; eles
achavam que o carro que ela tinha usado havia atravessado a fronteira muitas
vezes por conta da FLN. Fingindo estar aborrecida com as perguntas que lhe
fazia o inspetor que a havia recebido, ela respondia que sua vida particular não
era da conta deles... Sem insistir, o oficial a deixara ir embora, mas Léa sabia
que ele não era bobo e que esse interrogatório visava intimidá-la.
Desde a véspera de Ano Novo, ela não tivera mais nenhum contato com a
organização de ajuda à FLN e estava contente por isso. Nunca se sentira tão
desamparada, não sabendo mais qual era o seu lugar, duvidando do acerto de
suas decisões. Ela sempre vivera com noções simples - "simplistas", como dizia
François: isto está certo, isto não está. Na verdade, seu conceito de bem e de
mal não traduzia senão um desejo de justiça que a empurrava freqüentemente
para engajarnentos contrários ao bom senso. Por muito tempo, na sua vida,
havia seguido em frente sem pensar nas conseqüências, guiada apenas pelo
instinto e pelo impulso de seu coração generoso, esquecendo muitas vezes que
era mãe e que também devia dedicar-se aos filhos.
Jamais se sentira invadida por tamanha solidão. A morte de Françoise
fazia dela a única sobrevivente, com Charles, daquela terra de Montillac pela
qual ela tanto lutara. Não havia mais ninguém, agora, para recordar com ela os
tempos felizes da infância, a lembrança de todas aquelas pessoas amadas que
tinham partido. Nenhuma amiga a quem confiar as dores e os sofrimentos. Ela
precisava, de qualquer jeito, juntar- se a François somente ele poderia ajudá-la
a ver claramente, só ele podia consolá-la. Ela prometia a si mesma que iria
seguir os conselhos dele, tornar-se razoável, não mais se meter em política. Lá,
na Argélia, ela poderia sem dúvida ser mais útil à causa argeliana do que na
metrópole. Com um grito de raiva, Léa jogou na parede a escova que tinha na
mão.
"Mas por que é que eu penso na Argélia? Meu lugar é aqui, junto de meus
filhos... O que acontece comigo, sempre querendo estar em outro lugar? Eu
fujo, fujo sem pensar... Depois da guerra, não estou bem em lugar nenhum.
Cada vez que vou a Montillac, espero encontrar lá a vida de antes: meus pais,
minhas irmãs, meus amigos... Que felicidade quando, atravessando o Garonne
em Langon, vejo os altos ciprestes plantados por papai, as barreiras brancas no
alto da costa, a alameda que leva à casa... Por que essa alegria atenuou-se com
o tempo? Fico feliz de ir lá, mas tenho pressa de ir embora. Essa casa era meu
porto seguro, agora me sinto uma estranha lá; não há nada pior do que isso!
Sempre senti que pertencia àquela terra. A idéia de ser enterrada lá, um dia,
me apaziguava, certa que eu estava de reviver lá, no riso dos que fazem a
colheita, na bruma das manhãs de outono, no vinho espesso e amargo... Basta
fechar os olhos para me ver inteira lá. Montillac está mais presente no meu
espírito do que a realidade, e isso me faz mal..."
Uma batida forte na porta assustou-a.
— Entre!
Charles entrou no quarto, com as roupas em desalinho, o rosto
transtornado. Esquecendo instantaneamente seus pensamentos sombrios, Léa
foi na direção dele e abraçou-o.
— O que aconteceu?
Com os maxilares cerrados, o olhar duro, o jovem, depois de uma breve
hesitação, respondeu:
— Assassinaram Ali!
Ela ouviu novamente a voz ardente do jovem que ela havia abrigado: "A
guerra da Argélia é sobretudo a infelicidade do povo argeliano!"
— Assassinado? Mas por quem?
— Um comando da FLN.
— O quê? Não compreendo...
— Não achei que era necessário contar que Ali era militante do Movimento
Nacional Argeliano, de Messali Hadj. Bem, o MNA e a FLN disputam entre si o
controle da rebelião. Se eu tivesse avisado você, talvez Ali ainda estivesse vivo...
— Você está me dizendo que uma luta de morte acontece entre os
argelianos que, por acaso, lutam todos pela independência de seu país?
— Sim... Eu tinha me esquecido que podiam existir rivalidades tão
implacáveis entre os homens que lutam por uma mesma causa... Sob o
pretexto de traição ou simplesmente de disputa de influência, a FLN manda
abater membros do MNA e vice-versa. Lembra-se do massacre de Mélouza, em
maio de 1957, no qual mais de trezentos argelianos foram mortos em condições
assustadoras? Bem, contrariamente à tese oficial, sabe-se agora que não foi o
fato de essas populações apoiarem a França que provocou aquele ataque
sangrento, mas na verdade o conflito entre a FLN e o MNA. Quando me engajei
do lado dos que lutam pela independência da Argélia, não dei importância para
o que considerava leves divergências entre eles.
Acreditava que os jornais exageravam esses ajustes de contas entre
muçulmanos. Estava errado... Quando você levou os documentos trazidos por
Ali à Goutte-d'Or, um membro da FLN, que com certeza havia visto você com os
portadores de malas, reconheceu-a. Devem ter seguido você e feito um
relatório... Sem saber, tínhamos sob o mesmo teto um membro da FLN e um
outro do MNA! Ali era um dos responsáveis na França pela propaganda de
Messali Hadj. Não ficarei nem um pouco admirado se recebermos de novo a
visita do DST...
— Onde ele foi morto?
— Perto do Bulevar Richard-Lenoir. Jogaram-no no Canal Saint Martin
depois de degolá-lo... Vou ter que sair de Paris por uns tempos. Fico
preocupado de deixar você neste momento. François deu notícias?
— Não, ainda nada.
— Você leu os jornais?
— Não, o que há?
— O general Massu foi chamado a Paris. Falam em substituí-lo pelo
general Crépin...
— Isso é ruim?
— Não sei. De Gaulle quase não tem escolha, depois das declarações de
Massu para o Sdodeittsel,e Zeitiing... Essa entrevista, no mínimo, encoraja os
ativistas e revela a confusão em que se encontra o exército.
Léa ficou pensativa por uns instantes.
— O que você acha que eu devo fazer? Por causa das crianças, não sei se
devo me juntar a François na Argélia...
— Você é que sabe. Os filhos nunca a impediram de se lançar de corpo e
alma numa aventura...
— Isso é uma crítica?
— De certa maneira, sim. Você sabe muito bem! Quantas vezes fiquei aflito
com suas ausências! Todas as noites, ficava atento ao menor barulho na
esperança de ouvi-la voltar para casa. Foi a mesma coisa com Adrien, e depois
com Camille. Quantas vezes precisei consolar os dois...
— Você não está sendo muito gentil ao me dizer isso. Ouvindo você, parece
que eu não os amo...
Charles tomou-a nos braços.
— Desculpe, fui injusto. Mas é verdade que por causa dos seus
envolvimentos, nós morríamos de medo de receber a notícia de que algo de
grave tinha lhe acontecido. A notícia de seu acidente nos fez avaliar a angústia
em que vivemos com medo de perdê-la, Léa. — Acrescentou ele, baixinho, junto
aos cabelos dela. — Você é a pessoa que eu mais amo no mundo e, se eu fosse
mulher, iria querer ser como você. Amo tudo em você, até seus defeitos.
Ela se afastou dele, comovida com a ternura e o medo que ele sentia de
perdê-la. Para disfarçar, tentou brincar:
— Eu achei que era Marie-France a mulher que você ama.
O rosto de Charles ficou vermelho e uma onda de alegria tomou conta de
Léa: este homem, que ela vira crescer e que já sofrera tanto, estava amando
novamente.
— Eu a amo, é verdade, mas ela é tão jovem...
— Vocês têm quase a mesma idade!
— Mesmo assim, ela é mais jovem...
Ela riu, ouvindo essa afirmação infantil. Desmanchou com as mãos os
cabelos de Charles, que também riu.
— Pare, você vai me despentear!
Adrien e Camille entraram no quarto, empurrando um ao outro.
— Por que vocês estão rindo? Tiveram notícias de papai? — Perguntaram
em coro.
— Vamos ter logo, queridos — Respondeu Léa apertando-os contra si.
Camille afastou-se.
— Mamãe, você prometeu que nós iríamos fazer compras. Hoje já é quinta-
feira, e eu preciso de sapatos!
— Isso não pode esperar?
— Não! Eu não tenho mais calcinhas, Adrien não tem mais meias e os
vestidos de Claire estão muito pequenos. Philomêne e eu já tínhamos dito isso
bem antes do acidente. Depois, foi a tia Françoise... Bem, agora não podemos
esperar mais!
Charles olhou para ela de um modo irônico. Como ela pudera se
desinteressar a tal ponto das necessidades mais elementares da família?
Em que planeta ela vivia? Nos últimos tempos ela se contentava em dar o
dinheiro das despesas para a sra. Martin, que cuidava da cozinha, ou à
Philomène, sem se preocupar com o resto. Agora, tanta negligência a deixava
envergonhada.
— Muito bem... — Cedeu ela. — Avisem Philomêne que nós vamos todos à
Galeria Lafayette e ao Printemps; vamos almoçar por lá. Vão se vestir, saímos
em dez minutos. E você Charles, suas calças não estão muito velhas?... Aliás,
preciso lhe dizer...
— Continue...
— Tenho uma passagem de avião para amanhã.
Ele a encarou, incrédulo.
— Você... você está brincando?
— Não. A propósito, já avisei a sra. Martin; ela concordou em ficar aqui
durante a minha ausência.
— Então, sua hesitação há pouco era fingimento?
Ela balançou a cabeça.
— Não fique bravo... Sei que agi como uma idiota, mas não sei mais o que
fazen Tenho medo de que, na ausência de François, venham me prender, e
depois... tenho medo por ele... Agora, com o assassinato de Ali...
Arrasado Charles deixou-se cair numa cadeira.
— Você é inacreditável!... Quando vai contar para as crianças? Coitados!
— Pare! O problema é meu.
— Não sei o que dizer.
— Então não diga nada!
Da porta, vieram os chamados de Camille.
— Mamãe! Estamos prontos!
No final do dia, quando voltaram com os braços carregados de pacotes,
estavam todos exaustos, menos Claire. A pequena queria experimentar
novamente todas as roupas novas. Apesar do cansaço, a vietnamita cedeu a
seus caprichos. O jantar, preparado pela sra. Martin, transcorreu em silêncio; o
lugar de Charles estava vazio.
Depois do jantar, Léa foi beijar cada um dos filhos no quarto. Claire já
dormia, com o lenço da mãe enrolado na mão, encostado na boca. Adormecida
sob a franja negra, como se parecia com Lien, a irmã de Kien!
— Desculpe-me, meu bebê. — Cochichou, depositando um beijo na testa
dela.
Quando receberam a notícia, Adrien e Camille fizeram um esforço para se
conter e mostraram à mãe uma expressão serena. Léa, tocada por tanta
coragem e tanto amor, mal conseguiu segurar as lágrimas que lhe enchiam os
olhos.
Cedo, na manhã de 22 de janeiro um táxi levou Léa a Orly. Abordo de um
Caravelle da Air France, fora as comissárias de bordo, só se viam outras duas
mulheres, enfermeiras que voltavam a seus postos. No aparelho, entraram
também deputados argelianos com a expressão preocupada e alguns jornalistas
que iam registrar a explosão da primeira bomba atômica francesa, prevista para
acontecer do lado de Reggane, no Saara, nos primeiros dias de fevereiro. Léa
adormeceu rapidamente, pensando se François iria buscá-la no aeroporto.
Quando abriu os olhos, o avião começava a descer. Pela janelinha, Argel
brilhava ao sol.
No aeroporto Maison-Blanche, Léa esperava na área das bagagens,
inquieta por não ver François. Identificou suas malas na esteira rolante, fez
sinal a um velho carregador para pegá-las e dirigiu-se para a saída.
— Um táxi, madame? — Perguntou o carregador.
— Não, ainda não. Vou esperar mais um pouco...
Assim que terminou a frase, um carro parou bruscamente diante dela,
guinchando os freios. Aporta da frente se abriu e um homem barbudo saiu.
— François!... — Murmurou ela, vendo-o vir em sua direção.
Ele olhou demoradamente para ela, examinando-lhe o rosto. Como em
todas as vezes, ela se sentia transparente sob o olhar dele. "Ele ainda me
ama?", perguntou-se com uma angústia que lhe secava a garganta. Foi então
que ele sorriu. Nesse sorriso e nos olhos brincalhões ela leu a resposta.
Encolheu-se nos braços dele: afinal, ela estava no seu lugar! Mais uma
vez, este homem e esta mulher se encontravam, emocionados pela absoluta
certeza de serem feitos um para o outro, de não poderem viver mais um sem o
outro.
Com gestos ternos, ela passou os dedos pelo rosto ferido. François resistiu
à emoção que o dominou. Saindo do táxi, nesse momento, Joseph Benguigui
contemplou-os benevolente.
Feliz por estar com François, Léa o ouvia, dando apenas umas olhadas
distraídas para a paisagem.
— Por pouco você não me encontrava aqui.
— Como assim?
— Havia, hoje de manhã, uma reunião importante no Élysée, sobre a
Argélia. O Delegado Geral queria a todo custo que eu fosse, mas preferi não
comparecer. Segundo informações que recebi, minha presença não teria servido
para nada. De Gaulle retirou o comando de Massu. Challe e Delouvrier
intercederam por ele, evocando o clima tenso que reina em Argel, mas o
General não quis saber de nada.
— Então, é o fim! — Deduziu Benguigui. — Por que você não me contou
antes?
— Para que você não ficasse falando por aí. Agora não tem mais
importância que você fique sabendo. Quando chegarmos à cidade, o coronel
Argoud e o general Challe terão avisado Ortiz... Minha cara, como de hábito,
você chegou no meio da maior zona. Mas, não faz mal! Estou muito feliz por
você estar aqui...
No hall do Aletti reinava uma atmosfera tensa. Fotógrafos, repórteres do
mundo inteiro se amontoavam, trocando informações. Alguns se preocupavam
em saber onde iriam dormir; não havia mais um só quarto desocupado nos
hotéis de Argel. François e Léa passaram rapidamente pela confusão, atrás de
um empregado que carregava as malas.
— Que clima! — Espantou-se Léa. — É sempre assim?
— Mais ou menos... Os americanos estão aqui por causa da explosão da
bomba A; russos e ingleses também. Quanto aos outros... Parece que o telefone
árabe funcionou; a imprensa ficou sabendo que alguma coisa estava para
acontecer.
Assim que ficaram sozinhos no quarto, François jogou Léa na cama sem se
dar ao trabalho de se despir, desabotoou as calças, afastou a calcinha de seda e
penetrou na carne úmida de sua mulher. Sem tirar os olhos dela, fazia
movimentos gentis. Com o profundo carinho, as pálpebras de Léa se fecharam
como se ela quisesse saborear melhor o momento.
— Olhe para mim. — Murmurou ele.
Os olhos com reflexos lilás abriram-se e mergulharam nos do amante. Seu
olhar falava da alegria de estar abraçada a ele e de senti-lo mexer dentro dela.
— Eu precisava tanto de você! — Confessou ele, gemendo.
*
Violentas batidas no quarto acordaram-nos. François levantou-se com um
pulo e agarrou a pistola que tinha deixado no bolso do paletó.
— Vá para o banheiro. — Intimou a Léa. Quando ela tinha fechado a porta,
ele perguntou:
— Quem é?
— O senhor não atende ao telefone, deve estar fora do gancho... Estão
chamando o senhor com toda a urgência no Palácio de Verão.
— Quem?
— O senhor Delegado Geral, ele mesmo ligou do aeroporto Maison
Blanche.
— Muito bem, obrigado... Chame um táxi.
— Não vai ser preciso, um carro vem pegá-lo.
Pensativo, François recolheu suas roupas espalhadas e entrou no
banheiro.
— O que está acontecendo? — Inquietou-se Léa.
— Não sei. Parece que Delouvrier adiantou seu retorno; ele só devia voltar
no domingo à noite... Fui convocado ao Palácio de Verão.
— Agora?
— Sim... Eu tinha feito reserva no Sept Merveilles, é um dos melhores
restaurantes de Argel. Ligue para este número, é o telefone de Benguigui, o
motorista de táxi.
Diga-lhe para vir apanhá-la lá pelas oito e meia da noite e levá-la. Acho
que não vou me atrasar, mas se eu não tiver chegado, que ele espere com você.
— Mas por quê? Eu posso muito bem esperar sozinha.
— Uma mulher bonita como você, não seria muito prudente... Você
entendeu bem?
— Sim, me dê um beijo...
O carro com François Tavernier entrou no parque do Palácio de Verão ao
mesmo tempo em que a DS do Delegado Geral. O general Challe e Paul
Delouvrier saíram pouco depois. Pela cara deles era fácil adivinhar que a
reunião com o general de Gaulle não tinha corrido bem. Os três homens
apertaram-se as mãos. A sra. Delouvrier veio ao encontro do marido.
— Louise, você pode pedir que nos sirvam bebidas no meu gabinete? —
Disse ele enquanto a beijava.
— Sim — Respondeu ela, antes de voltar para dentro.
Paul Delouvrier apoiava todo o seu peso na bengala para aliviar a perna
que o fazia sofrer. Ele apoiou a maleta de couro na mesa. Tavernier e Challe
seguiram-no.
— Entrem, senhores. — Disse aos colaboradores, a quem a sra. Delouvrier
tinha avisado do retorno dele. — Sentem-se... Como já sabem, o general Massu
foi destituído do cargo, foi substituído pelo general Crépin. Nem o Primeiro
Ministro, nem o Ministro do Exército, nem o general Challe, nem eu mesmo
conseguimos convencer o Chefe de Estado da gravidade da situação. Ele não
quis ouvir nada. Um incidente fortuito e lamentável, cuja exploração diante da
opinião pública criou um problema para o governo, ocasionou a partida do
general Massu da Argélia. Sei o que esse grande soldado representava para
vocês. Sei o que ele era para mim. Sei o que devemos a ele. Devo render-lhe
homenagem por sua atuação na Argélia por três anos, assim como pela
disciplina exemplar com a qual inclinou-se diante da decisão tomada. Seguindo
o exemplo dele, vocês calarão suas lamentações. Vocês compreendem, tenho
certeza, que para afirmar o poder da França, é preciso principalmente
assegurar a autoridade do Estado. Essa autoridade, hoje, não se discute mais.
O poder não recua. De acordo com o comandante em chefe, cuja demissão o
general recusou, decidimos aumentar os reforços que já foram alocados em
Argel e nos arredores, chamando dois regimentos da 10- DP engajados em
Kabylie e o 3 regimento de paraquedistas.
— Não é com alegria no coração que aceito retirar essas unidades do
combate, só por causa de uma pequena agitação civil e local! — Interrompeu
Challe com mau humor.
— Meu general, o descontentamento está no auge, as reuniões se
multiplicam em todos os bairros e os atentados que aconteceram nos últimos
tempos por todo o país levaram a população européia ao limite do nervosismo.
Para ela, a demissão de Massu é sinal de que Paris está pronta para abandonar
a Argélia. Os boatos de uma greve geral circulam e não se pode impedir a
manifestação prevista. A única questão que se coloca de agora em diante é o
número de mortes que se deve esperar...
— Maffart, você tem idéia do que está dizendo? — Exclamou Delouvrier.
— Infelizmente, sim, senhor Delegado...
A entrada de Louise Delouvrier, seguida pelos empregados que carregavam
bandejas, distraiu o ambiente. Alguns procuraram nas bebidas servidas um
conforto ilusório. Quando a sra. Delouvrier saiu, a discussão recomeçou.
— Senhor delegado, neste momento acontece na Casa dos Estudantes
uma reunião da Frente Francesa. Muita gente está lá: perto de duas mil
pessoas, segundo nossas estimativas.
Por falta de lugar, alguns não puderam entrar na sala e estão nas
calçadas. Susini mandou instalar alto-falantes e o dr. Jean-Claude Pérez foi
aclamado pela multidão quando exclamou: "Afinal, a ocasião que esperávamos
nos foi oferecida. Atingiram Massu. Eles não se dão conta das enormes
conseqüências que esse fato vai ter!" O ambiente já tenso atingiu seu paroxismo
quando Jean Jacques Susini apoderou-se do microfone para gritar: "Nós vamos
buscar Massu em Paris. O processo irreversível está agora em andamento.
Entre a República e a Argélia nós escolhemos a Argélia Francesa!". Os oradores
se sucedem aos gritos de "A revolução irá de Argel a Paris!"
e "Chegou a hora de derrubar o sistema!"... Nas ruas dos arredores, as
buzinas tocam marcando o ritmo de "Ar-gé-lia fran-ce-sa, Ar-gé-lia fran-ce-sa".
Outras reuniões acontecem na cidade, a do Comitê dos Ex-combatentes, a dos
Movimentos Nacionais. Não há senão clamores hostis ao Governo,
manifestações da vontade de ir até o fim e acabar com isso.
Maffart fizera esse relatório com uma calma que o suor no seu rosto
desmentia. Um silêncio consternado acolheu o fim da sua exposição.
— E o exército?... — Retomou Challe, hesitante.
— O general Faure voltou de Kabylie. Ele imaginava que durante a sua
ausência e a do Delegado Geral, cabia a ele assegurar a ordem. Quando soube
que o general Dudognon fora nomeado para substituir o senhor, ele deixou o
quartel Rignof. Ele está nos alojamentos Pélissier.
— Você sabe se o general Massu entrou em contato com seu estado maior?
— Não, meu general.
— E Lagaillarde, qual é a dele?
— Ele vai de uma reunião a outra, aspirando os ares...
— Senhores, a hora é grave. — Declarou então Paul Delouvrier. —
Tavernier, você tem algo a acrescentar?
— Eu circulei por Argel pela manhã e no começo da tarde. A população
européia está uma pilha de nervos. Quanto aos muçulmanos, eles tentam
passar despercebidos.
No porto, alguns não foram trabalhar e poucas mulheres são vistas nas
ruas... Se o senhor me autorizar, posso ir a Pélissier e pedir para ver o coronel
Argoud.
— Faça como achar melhor... Tente ver também o coronel Gardes e
arranque o que puder dele. Comigo é inútil, ele não me dirá nada.
Quando Tavernier partiu, o comandante em chefe e o Delegado Geral
deram a seus colaboradores instruções sobre a conduta a seguir durante o
sábado, dia 23.
Apesar da companhia e da conversa pitoresca de Joseph Benguigui, Léa
começava a achar que François estava demorando muito; um garçom veio
trazer um terceiro anisete.
Mesmo diante do avançado da hora, o restaurante Sept Merveilles não
esvaziava. Assistia-se a um desfile de homens de expressão tensa. Alguns se
instalavam numa mesa e continuavam a discutir fazendo muitos gestos. Outros
desapareciam por trás das tapeçarias que separavam a sala de jantar de um
outro cômodo. As vozes se alteravam.
— Aparentemente, a coisa está quente ali! — Observou Benguigui, levando
uma azeitona à boca.
— É uma reunião política? — Perguntou Léa.
— É o que parece... Sim, com certeza... Você vê aquele sujeito de terno
marrom, aquele de barba, é o deputado Pierre Lagaillarde. Seu tio-bisavô, o
deputado Baudin, foi morto em Paris, nas barricadas de 1848. Ele caiu,
atingido no coração, gritando: "Eis como se morre por vinte e cinco francos!"
Não sei se o sobrinho-neto teria a mesma coragem... Olá, Pierrot!
— Olá, Joseph! — Respondeu o deputado. — Boa noite, senhora.
A fumaça dos cigarros subia ao longo dos troncos de buganvílias em volta
dos quais a sala fora construída. Com o jardim que o rodeava, o restaurante
lembrava uma guinguette das margens do Maine; só faltava um acordeão... O
dono, conhecido como "pai César", aproximou-se da mesa.
— Joseph, já são dez horas, a cozinha vai fechar.
— Você tem razão. Vamos pedir, isso fará com que ele chegue. Você pode
preparar uns espetos? Olhe, o que eu disse: ele chegou!
François veio na direção deles.
— Não deveriam ter me esperado.
— O senhor come espetinhos, como seus amigos? — Perguntou o
cozinheiro.
— Sim, com uma garrafa de sua reserva pessoal. — Respondeu François.
— Conte as novidades.
A mão de Léa pousou na de seu marido.
— Desculpe, querida, pelo atraso. Espero que Joseph tenha se comportado
como um cavalheiro...
O barulho das conversas encobriu de uma só vez a resposta de Léa e o
comentário do motorista de táxi. Um garçom trouxe o vinho e uma porção de
aperitivos sobre a qual a jovem mulher se atirou.
— Ela tem bom apetite, a sua mulher. — Constatou Benguigui, com a boca
cheia.
— Estava com uma fome daquelas!
O barulho vindo da sala dos fundos era tal que eles desistiram de
conversar. Também não entenderam o que disse o pai César quando trouxe o
prato de espetinhos, mas a sua expressão estava carregada. Passando por entre
as mesas, ele se dirigiu para as tapeçarias e desapareceu por trás delas. Pouco
depois, todos se olhavam, surpresos pela calma repentina. O pai César
reapareceu e foi para trás do balcão.
Após engolir a último pedaço de carne, François acendeu um cigarro.
— Eu compreendo por que havia tanto barulho. — Disse ele levantando-se.
Ele alcançou um grupo que saía da sala dos fundos.
— Quem é o sujeito que está com Lagaillarde? — Perguntou Léa a
Benguigui.
— Joseph Ortiz, o dono de um café chamado Foriun. É o chefe da Frente
Nacional Francesa. Ele está com uma cara de poucos amigos...
— François parece conhecê-lo bem.
Ortiz apertava a mão do pai César quando percebeu a presença de
François.
— O que você está fuçando aqui? Como se eu já não tivesse problemas
demais com aquele ali. — Acrescentou, mostrando Lagaillarde.
— Estava jantando com minha mulher e um amigo.
— Com sua mulher? É um momento excelente para ela aparecer em Argel!
— O que você quer dizer?
— Não seja idiota, você sabe muito bem o que quero dizer.
— Sr. Jo, o que você vai fazer amanhã? Desencadear a rebelião?
— As circunstâncias não são favoráveis, sr. Tavernier; é o que eu disse ao
"homem da pasta".
— O homem da pasta?
— Lagaillarde! Boa noite, Tavernier, vou me deitar. Cumprimente a sua
senhora por mim.
Joseph Ortiz deixou o restaurante, seguido por seu grupo, e logo depois
por Pierre Lagaillarde. A sala se esvaziou lentamente: a hora do toque de
recolher se aproximava.
Preocupado, François voltou para o seu lugar e pediu um café.
— Vamos levá-la ao hotel. — Disse ele a Léa.
— Você não vai entrar comigo?
— Preciso ir ver alguém.
— Não pode esperar até amanhã?
— Amanhã será muito tarde. Talvez agora já seja... Com um sinal, pediu a
conta.
Um pouco triste e desanimada, Léa fechou a porta do quarto e esticou-se,
completamente vestida, na cama, decidida a esperar pela volta de François.
Após pedir autorização, o oficial de guarda deixou o táxi entrar no pátio da
caserna Pélissier.
— Espere por mim. — Disse François, saindo do automóvel. Desalinhado,
o coronel Argoud examinava um mapa de Argel, preso na parede de sua sala.
— Acabo de receber um telefonema do general Massu. Ele está furioso e
afirma que o general Challe e ele foram vítimas de um complô. Está muito
preocupado com as coisas que estão sendo armadas. Em nome da razão de
Estado, ele me pediu para pregar a calma, mas eu temo que seja tarde demais;
as unidades territoriais só esperam por um sinal de Ortiz. Com a política atual,
vamos perder a Argélia. Sejam militares ou civis, os franceses daqui estão todos
de acordo quanto a isso. A maior parte dos militares não confia mais em de
Gaulle...
— Mas, daí a se unirem aos ativistas...
— Alguns são favoráveis...
— Você, por exemplo?
— Não disse isso... Mas, deixar cair Ortiz e a FNF é correr o risco de
sacrificar o potencial que representa o instinto de conservação dos argelianos, é
correr o risco de perder a Argélia. O exército está dividido. Esses homens são,
no momento, nossa última...
O toque do telefone interrompeu-o. Ele foi para trás da mesa e atendeu.
— Alô!
Enquanto ele falava, François examinou detalhadamente esse
homenzinho, de roupas amassadas, de quem iria talvez depender a posição que
o exército tomaria na rebelião.
Argoud desligou.
— Preciso ir encontrar o general Challe... Aliás, o que você veio me
perguntar?
— Nada, coronel. Só estou aqui como observador...
A testa de Argoud se enrugou.
— Um observador deve ser neutro. Não é o seu caso.
— O que você quer dizer?
— Gardes me pôs a par.
— Na verdade, acho muito difícil permanecer neutro, coronel, diante de
certas coisas. O coronel Gardes, além disso, pareceu partilhar meus
sentimentos.
— Ele, pode ser, mas algumas pessoas acharam que você se meteu em
coisas que não eram da sua conta.
— Você se refere à surra que eu levei?
O coronel Argoud não respondeu.
Uma vez no pátio, os dois homens se separaram.
De pé, ao lado do táxi, Joseph Benguigui queimava um cigarro enquanto
conversava com um sentinela. Vendo o coronel, o soldado ficou em posição de
sentido.
— Descanse, meu filho, obrigado pela companhia. — Disse Benguigui com
uma piscadela cúmplice.
— Por nada, senhor; obrigado pelo Bastos.
O motorista se instalou atrás do volante e François sentou-se ao lado dele.
— Não demorou muito a sua conversa. Melhor assim, porque não tenho
autorização para circular após o toque de recolher... Você ficou sabendo de
alguma coisa?
— Parece que Massu aconselhou Argoud a manter a calma. O coronel foi
agora encontrar-se com Challe... Você me disse há pouco, a caminho daqui,
que de Bab el-Oued a Belcourt os homens das UTs guardaram as armas em
casa. Você acredita que há algo planejado?
— Sim e não.
— Isso não é resposta...
— As unidades territoriais são compostas por bons pais de família que são
mobilizados, um dia a cada vez, para montar guarda ou para missões
paramilitares. As unidades foram criadas por sugestão do general Faure, ao
qual Ortiz devota uma admiração sem limites. Desde o começo do ano, um
pequeno número deles manteve as armas consigo. Na minha opinião, eles não
são perigosos. O perigo vem das UTs de choque, criadas por iniciativa do
coronel Thomazo e que efetuam um período de quatro dias por mês. Elas
conservam as armas, munições e apetrechos militares em casa, e estão sempre
em prontidão para responder ao menor chamado em menos de uma hora. São
cerca de mil e duzentos homens. São todos voluntários preparados para
combater ao lado do exército. O capitão Ronda é o chefe deles. Foi ele quem os
fez aderir em grande número à FNF de Ortiz. Eles usam roupas de combate e
boinas negras. Por seu lado, o dr. Pérez recruta os durões para o OPAS, o
exército clandestino do FNF. É fácil reconhecê-los pela camisa caqui e pela
braçadeira tricolor cortada por uma cruz celta. Há também um certo tenente
Mamy...
— Bernard Mamy?
— Sim, acho que sim... Você o conhece? É um cara esquisito; contam-se
muitas histórias sobre ele. Ele controla os bairros de Montplaisant e Beau-
Fraisier, as favelas daquele canto, onde ele colocou ordem. Os homens o
respeitam e o temem. Ele anda sempre com uma Smith & Wesson na cintura.
Pode ser visto sempre no Bulevar Laterrière, na interfederação das UTs, onde
também se encontram com freqüência os coronéis Gardes e Argoud, o que faz
Ortiz acreditar que o exército está com ele.
— Você acredita nisso?
— Não. Parece que ele havia prometido a Massu avisá-lo com quarenta e
oito horas de antecedência caso fosse decidido iniciar-se a ação. Massu
concordara com isso.
De qualquer modo, o pacto Massu-Ortiz fez alarde e reforçou a FNF, que
viu seus adeptos multiplicarem-se. Com Massu fora de Argel, o principal
interlocutor de Ortiz no exército passou a ser o chefe do 5º Gabinete, o coronel
Gardes.
— E Argoud?
— Argoud também, é claro. Os dois coronéis só pensam em salvar a
Argélia Francesa e para isso pretendem se servir de Ortiz, enquanto este se
serve deles para assegurar sua autoridade. Segundo o que se diz por aí, Gardes
fala de um Diretório Slam-Zeller-Jouhaud que se colocaria no comando de um
golpe para derrubar de Gaulle.
— Ouvi falar disso... O que você acha?
— São apenas boatos. Mas, verdadeiros ou falsos, eles provocam agitação.
Na FNF, eles estão certos da iminência de uma revolução.
— Você parece estar por dentro...
— É natural, faço parte das UTs de meu bairro e ouço o que dizem no meu
táxi ou nos cafés.
— Você guardou suas armas consigo?
— Sim, prefiro tê-las a mão para o caso de...
Não disseram mais nada até chegar ao Aletti, diante do qual se separaram.
Preocupado e ligeiramente deprimido, François Tavernier empurrou a
porta giratória do hotel. Dois ou três jornalistas arrastavam-se ainda pelo hall.
Do Cintra vinha o barulho de vozes. François pensou que um uísque lhe faria
bem. Deixou-se cair numa poltrona, acendeu um cigarro e esticou as pernas.
Deitando a cabeça no encosto, fechou os olhos.
— Posso me sentar com você?
Irritado, ele virou a cabeça e abriu um olho.
— Ah, é você!
— Você parece muito cansado. — Observou Gilda, sentando-se perto dele.
— Quer beber alguma coisa?
— Sim, um suco de laranja.
Ele fez sinal ao barman que veio pegar o pedido.
— Você deveria voltar para casa. — Aconselhou François, reprimindo um
bocejo.
— Mais tarde, estou esperando alguém... Mohamed, o engraxate, estava
procurando por você há pouco.
— Ele não se chama Mohamed, mas Béchir.
— Ah, eu não sabia, todo mundo aqui o chama de Mohamed.
— Ele disse o que queria?
— Não, mas parecia que tinha chorado.
— Eu o verei amanhã. Agora, é muito tarde. Boa noite, vou dormir, você
deveria fazer a mesma coisa...
No quarto, Léa, toda vestida, dormia a sono solto. Ele a cobriu com a
colcha e ficou por um bom tempo contemplando-a com um olhar cheio de
ternura e preocupação.
Depois, ele se deitou com todo o cuidado para não acordá-la.
Capítulo 15
O sol despertou Léa. Durante alguns segundos, com os olhos abertos, ela
se perguntou onde estava. Um movimento ao lado dela, fez com que se
lembrasse de tudo: François dormia ao seu lado. Uma onda de alegria e de
gratidão invadiu-a; eles estavam juntos de novo. Virando para ele, ela
observava o rosto do homem tão amado. Dormindo, os traços do rosto dele
ficavam mais doces e lembravam, apesar da barba, o menino das fotografias de
sua infância. Emocionada, percebeu na cabeleira escura alguns fios de prata.
Há quanto tempo teriam surgido? Ela se admirava da felicidade que sentia só
de olhar para ele, feliz com o desejo que crescia nela.
Delicadamente, ela se levantou, despiu-se e veio se deitar ao lado dele.
Afastou o lençol que o cobria, excitada pelo corpo atlético que a idade ainda não
tinha marcado. Com a ponta dos dedos ela acariciou as cicatrizes de antigos
ferimentos, as novas equimoses e, depois, o falo adormecido. Ele estremeceu ao
contato. A mão se fechou. Com a carícia, o membro endureceu. Os lábios de
Léa se aproximaram, sua boca apertou a doce rigidez. François gemeu. Léa
montou sobre ele, esfregou seu sexo úmido sobre a carne tensa que ela fez
escorregar para dentro de si. Ela manteve ali a sua presa, ficou imóvel por uns
instantes, saboreando o prazer de senti-lo bem no fundo de seu corpo. Ela
adorava cavalgá-lo assim, antes que ele acordasse. Com pequenos golpes, seus
músculos apertavam o pênis endurecido. Um gemido escapou também de seus
lábios, duas mãos pegaram sua cintura e obrigaram-na a se alongar, agarrando
seus seios enquanto os lábios procuravam os seus...
Quando eles se separaram, ofegantes, felizes, o suor ensopava seus
corpos. Ficaram um bom tempo sem se mexer, com os olhos fechados, ouvindo
apenas a batida de seus corações. Nesse tremendo bem-estar, uma última onda
de prazer os fez estremecer. Na mesma hora, viraram a cabeça um para o outro
e se olharam, emocionados, reconhecidos e, depois, caíram numa risada feliz.
Eles acabaram de tomar um copioso café da manhã quando o telefone
tocou; era Paul Delouvrier.
— Você se encontrou com o coronel Argoud, ontem à noite, mas você viu o
coronel Gardes?
— Não, quais são as novidades?
— A manifestação está mantida, e ninguém sabe por quem... De todos os
lados chegam ordens contraditórias. Desde as seis da manhã, as UTs armadas
percorrem as ruas e obrigam os comerciantes a fechar as lojas: "Greve geral",
eles dizem. Segundo os relatórios da polícia, Ortiz não tem nada com isso e
seriam as próprias UTs que teriam organizado esta greve, servindo-se da Frente
Nacional Francesa como escudo. Algumas pessoas acham que elas estariam
obedecendo às ordens do comandante Sapin-Lignières e outras, às do coronel
Gardes... Quanto a este último, você acha que seria possível?
— E o senhor?
— Há uns quinze dias ele foi deslocado em razão de suas atividades
aventureiras, para dizer o mínimo. O serviço de ação psicológica deve ser
reorganizado e o coronel Gardes vai substituir Bigeard em Saída. Mas, até
agora, ele não chegou ao local. Sempre de acordo com os relatos policiais, ele se
encontraria no momento numa vila de El-Biar, em companhia do general
Faure, do chefe do estado maior de Massu, coronel Argoud, do capitão Filippi e
de nosso amigo Ortiz. É preciso que você o encontre e peça que ele vá o mais
rápido possível ao Governo Geral.
— O senhor acha que ele me ouvirá?
— Não tenho idéia...
— Por que o senhor não manda prender toda essa gente boa?
— O general Challe e eu mesmo pensamos nisso. Mas seria desencadear
imediatamente a rebelião, talvez até a insurreição do exército... Duvido que o
apelo pela paz que lancei esta manhã pela rádio de Argel tenha sido ouvido pela
população européia... Muito menos o que o general Challe dirigiu aos militares.
Também não estou certo de que o anúncio oficial da execução, amanhã, de
quatro terroristas da FLN seja capaz de debelar a revolta...
— Também duvido... Isso não o choca, essa retomada de execuções, neste
momento?
— É o que queriam os pés-pretos e o que o Chefe de Estado aceitou. Os
argelianos falavam de invadir a prisão e executarem eles mesmos os
prisioneiros...
— Ceder à pressão popular não é nunca uma boa coisa.
— De qualquer modo, encontre Gardes e descubra quais são as intenções
dele.
Sem responder, François desligou.
— Você está com uma cara! — Observou Léa, aproximando-se.
— Eles me enojam!
— O que está acontecendo?
— Vão jogar quatro cabeças de fellaghas como pasto para o populacho, na
esperança de contê-los. É nojento!
— Acalme-se, nós estávamos tão bem...
François olhou-a: não era capaz de entendê-la, ela o surpreendia sempre.
Estavam à beira de uma revolução e ela não encontrava nada melhor para dizer
do que: "Estávamos tão bem!" Ele deu um pequeno sorriso.
— O que há? Ande, eu conheço você, quando você ri assim é porque acha
que eu disse uma besteira.
— Sim. — Confessou ele, desta vez com uma risada franca e sonora. Léa
encolheu-se nos braços dele.
"No entanto, é verdade que nós estávamos bem", pensou ele, apertando-a
nos braços.
— Eu preciso sair. Você fica me esperando aqui, quietinha.
— Eu gostaria de ir dar uma volta...
— De jeito nenhum! Você não sai daqui até eu voltar. Se eu não chegar
para o almoço, vá até o restaurante do hotel, ou melhor, peça para trazerem o
almoço no quarto.
— Que saco! Olhe que dia lindo!
— Ou você obedece ou tranco a porta! Ela voltou a se deitar, fechando a
cara.
Quando François Tavernier atravessou o hall, Béchir fez sinal que queria
falar com ele. François sentou-se numa das cadeiras em frente ao engraxate
que, automaticamente, levantou a barra das calças e pegou uma escova.
— Malika deve sair hoje do hospital.
— Eu achei que o dr. Duforget queria que ela ficasse um pouco mais.
— Ele queria, mas ontem, quando fui visitá-la, ele me disse que achava
que ela não estava mais em segurança no hospital.
— Ele disse por quê?
— Por causa da manifestação: ele teme que o exército ocupe os prédios
públicos...
"Pronto, começou", pensou François, esgotado.
— O doutor sugeriu que você podia ir pegá-la de táxi... — Continuou
Béchir, enquanto fazia o seu trabalho.
— Para levá-la aonde? Para a sua casa? O garoto balançou a cabeça
tristemente.
— Não, você sabe, meu pai não quer... Falei com Al-Al em, ele tem um
esconderijo, dentro da Casbah, que os homens de Massu nunca encontraram.
— Mas ela ficaria muito mal instalada.
— É verdade, mas não tenho outra alternativa...
— Deixe-me pensar... Quando devemos ir buscá-la?
— Agora.
— Agora?... Essa não!... Bom, espere.
De uma das cabines telefônicas do hall, François Tavernier ligou para
Joseph Benguigui; foi a mulher dele que atendeu: Benguigui tinha saído de
manhã, bem cedo, deixando o táxi em casa. Como François insistiu, a esposa
de Benguigui disse para ele tentar na Novelty, uma cervejaria da Praça Isly.
Quando desligou, François disse a Béchir que ia atrás do motorista e
mandou-o juntar-se à irmã no Hospital Maillot.
No Bulevar Bugeaud, os carros circulavam buzinando as seis notas de "Ar-
gé-lia fran-ce-sa". Os cafés normalmente cheios nessa hora, estavam fechados
e, na frente das lojas, as portas metálicas estavam abaixadas. As UTs,
empunhando suas armas, convergiam para o Foram, cumprimentando os
transeuntes. Devolvendo o cumprimento, os pedestres gritavam "Viva Massu!"
ou "Abaixo de Gaulle!"... Os muçulmanos tinham sumido. Por outro lado, as
bancas de jornais eram pilhadas e rasgavam o Eclio d'Alger, em cuja primeira
página se lia, em letras capitais, embaixo de uma foto de Massu: "O general
Massu, retirado de seu comando, não voltará a Argel". Perto dessa manchete, o
jornal anunciava ainda que quinhentos mineiros se encontravam presos numa
galeria da África do Sul e que as autoridades não tinham nenhuma esperança
de salvá-los; todo mundo em Argel estava pouco ligando para isso nesse final de
manhã de um dia ensolarado...
Não estava calor, mas o céu era de um azul magnífico: no ar flutuava como
que uma expectativa.
Diante do Novelty, os membros de uma pequena tropa composta de civis e
de UT, fardados e com armas, bebiam anisetes enquanto conversavam,
tranqüilos. As vozes se calaram quando perceberam aquele frangciou que vinha
na direção deles, muito seguro de si.
— Bom dia, senhores. Estou procurando Joseph Benguigui, me disseram
que ele deveria estar aqui...
— O que você quer com ele? — Perguntou um homem que parecia Raimu.
— Deixe, Mareei. É um amigo. — Tranqüilizou-o Benguigui, saindo da
cervejaria.
— Eh, Joseph, você tem uns amigos estranhos!
As conversas recomeçaram enquanto o motorista de táxi levava François
pelo braço.
— O que você veio fazer aqui?
— Estava procurando você. E você, o que está fazendo com essa gente?
— "Essa gente" também são meus amigos... Tenho a curiosa impressão de
que alguma coisa não muito católica está sendo tramada: é uma bagunça,
recebemos ordens contraditórias...
Não estou sempre de acordo com as pessoas do meu bairro, mas se a greve
e a manifestação pudessem fazer de Gaulle rever sua autodeterminação...
— Não conte com isso. Preciso buscar Malika no hospital; o dr. Duforget
acha que ela não está mais segura lá.
— Não estou com o meu táxi.
— Eu sei, mas você não poderia pedir emprestado o carro de um de seus
companheiros enquanto eu não consigo alugar um?
— Eu posso, mas não é o momento... E, depois, uma vez fora do hospital o
que você vai fazer com ela?... Não olhe para mim desse jeito: não posso abrigá-
la na minha casa! Imagine a cara da minha mulher se eu levasse outra mulher
para casa... Por que você não pede à sua para recebê-la?
— Eu pensei nisso, mas como fazê-la entrar no hotel?
— Não sei. Por enquanto, vá me esperar na Rua Tanger, vou encontrá-lo lá
em dez minutos.
Na Rua da Lyre, geralmente tão movimentada, os raros transeuntes
apressaram o passo e a maior parte das lojas estava de portas fechadas.
Fazendo um barulho horrível de ferragens, a caminhonete dirigida por
Benguigui soltava uma fumaça negra. Em todo caso ela os levou até Bab el-
Oued onde os garotos brincavam de pega-pega na rua enquanto, das sacadas>
as mães chamavam por eles.
— As pessoas parecem calmas. — Notou François.
— O tempo está bom, algumas vão até fazer piquenique na praia ou nos
parques...
Pouco antes de chegar ao hospital Maillot, foram obrigados a parar, na
altura da rua Riego, onde os paraquedistas controlavam os veículos. Após a
verificação, a caminhonete pôde prosseguir. Na Rua Champagne, um grande
número de caminhões militares estavam estacionados ao longo do muro do
hospital.
No departamento de dr. Duforget, François encontrou Béchir; um
enfermeiro muçulmano lhe fazia companhia.
— O doutor já vem. — Preveniu ele, deixando o cômodo. Ficando sozinhos,
o francês e o jovem argeliano calaram-se, perdidos em pensamentos. François
acendeu um cigarro. Uns dez minutos depois, o médico entrou.
— Obrigado por ter vindo. — Disse ele seriamente.
— O que há?
O dr. Duforget puxou François de lado e falou em voz baixa.
— Ontem, um legionário alemão à paisana tentou entrar no quarto de
Malika. Foi surpreendido por um enfermeiro, um grandalhão, que deu logo o
alarme. Na sua fuga precipitada, o legionário arrebentou-se caindo da escada.
Ficamos sabendo quem ele era, à noite, pelo comandante que veio buscá-lo.
— Que explicações eles deram?
— Nenhuma: segredo militar!
— Do que eles têm medo?
— Sem dúvida de que ela testemunhe sobre o que sofreu.
— Ela faria isso?
— Ainda não, mas estou encorajando-a a fazer. Ainda tenho na memória
os sofrimentos que infligiram a Djamila Bouhired. Um dia, esses porcos ainda
vão ser levados à justiça e pagarão por seus crimes!
— Você tem razão, mas é um pouco prematuro... Tem idéia de algum lugar
para onde eu possa levá-la?
— Não, e, além disso, é melhor que eu não saiba. Estou sendo vigiado ao
mesmo tempo pelo exército e pelos ativistas. Se os amiguinhos do legionário me
interrogarem, não tenho certeza se conseguirei ficar calado: é por isso que
tenho sempre comigo uma cápsula de cianureto... Você me acha fraco, não é?
— Não diga bobagens; ninguém pode saber como reagirá à tortura. Não é
uma questão de coragem; já vi homens se entregarem no primeiro
interrogatório e outros morrerem, após muitas semanas de martírio, sem ter
falado.
A porta se abriu e Malika entrou, amparada por um enfermeiro
muçulmano de impressionante estatura.
— Este é o enfermeiro que surpreendeu o alemão. Como você pode ver, é
um touro... Ele vai acompanhá-los. Seu nome é Yacef e eu desconfio que ele
pertence à FLN. — Disse rapidamente o médico.
Béchir aproximou-se da irmã cujo pobre rosto, ainda inchado, clareou-se
com um sorriso. Ele pegou a mão dela e levou-a aos lábios, tremendo dos pés à
cabeça. Tinham vestido a garota com uma espécie de pijama escuro e com um
manto cinza escuro por cima.
— Uma caminhonete nos aguarda no pátio. Será que conseguimos tirá-la
daqui sem que ninguém perceba? — Perguntou François.
— Já fiz o que era preciso. — Respondeu Yacef.
— Muito bem. — Disse o médico. — Sigam-no. Olhe, aqui estão a
penicilina, as seringas e os remédios necessários. Ela tem que tomar duas
injeções por dia. Se ela piorar, mas só se vocês considerarem o estado dela
preocupante, liguem para mim, eu irei ou mandarei um colega. Boa sorte!
Diante da porta da sala havia uma cadeira de rodas na qual o enfermeiro
fez Malika se sentar. Ele puxou o capuz do manto para cima, cobrindo-lhe o
rosto, e empurrou a cadeira. François e Béchir foram atrás. Pelos corredores,
eles cruzaram com alguns doentes e com os funcionários do hospital; ninguém
prestou atenção neles.
No pátio, Benguigui esperava no volante da caminhonete. Yacef pegou
Malika e sentou-se com ela no banco de trás. A um sinal de François, Béchir
sentou-se ao lado dele, no banco da frente. Lentamente, Benguigui saiu. Assim
que saíram do hospital ele perguntou:
— Aonde vamos?
— Para o Aletti.
— Você está maluco! Está cheio de policiais e de alcagüetes.
— Nós vamos entrar pelo caminho de Béchir.
— Eu estou com a chave. — Acrescentou o garoto. — Para entrar, não é
difícil; é no seu andar que é preciso tomar cuidado.
— Vamos deixar vocês três na entrada de serviço. Depois, eu e Joseph
entramos pela porta principal.
— O que eu faço com a caminhonete?
— É preciso abandoná-la.
— O quê? E o que eu vou dizer ao proprietário?
— Diga que os guardas a requisitaram.
— Ah, bom! Como eu sou babaca de não ter pensado nisso! — Exclamou
Benguigui, com um tom de ironia.
— Não se preocupe, se não encontrarmos mais a caminhonete, eu indenizo
o seu amigo.
Era hora do almoço e o trânsito estava lento. Havia veículos militares
estacionados diante da Prefeitura e da Chefatura de Polícia. Benguigui parou
diante da saída de emergência da Rua Waisse. François desceu e olhou em
volta.
— Vá. — Ordenou a Béchir. — Eu o encontro perto do aparelho de
aquecimento central em vinte minutos.
O rapaz saltou e foi abrir a porta. A um gesto de Tavernier, Yacef desceu
por sua vez, carregando Malika, e enfiou-se para dentro do hotel. Béchir fechou
a porta.
— Não podemos deixar a caminhonete aqui, seria suspeito. Vou estacioná-
la na rua Arago... esperando que um guarda não nos faça circular. — Declarou
Benguigui. — Vá para o hotel, eu encontro você lá.
— Certo, eu espero no Cintra.
Menos de um quarto de horas depois, o motorista sentou-se ao lado de
François e, com o fuzil no ombro, coisa que não parecia surpreender ninguém,
pediu um anisete.
Assim que esvaziou o copo, François arrastou-o para o elevador.
— É preciso avisar Léa. — Disse ele, quando saíram do elevador.
A porta do quarto estava completamente aberta e duas camareiras
acabavam a limpeza.
— Léa!
— A senhora saiu. — Disse uma das empregadas. :
— Ah... está bem. Já terminaram?... Então, dêem licença, por favor. Assim
que elas saíram, ele fechou a porta.
— Aonde ela pode ter ido? — Perguntou ele em voz alta.
— Ela não deve estar muito longe. — Assegurou Benguigui. — É bonzinho
este lugar. — Acrescentou ele, examinando o quarto.
— Fique aqui, eu não tenho a chave: vou procurá-la. Fique de olho e
assobie se houver gente no corredor.
— Ok, chefe!
No subsolo, perto do aquecedor central, estava um calor insuportável.
Béchir, Malika e Yacef estavam encolhidos num canto escuro.
— Malika desmaiou. — Cochichou Béchir a François que acabara de
juntar-se a eles.
— É o calor. — Murmurou Yacef. — Não se preocupe.
— O elevador de carga está ali, ele pára no seu andar, na escada de
serviço. — Mostrou Béchir.
O enfermeiro estava pegando Malika no colo quando um ruído de vozes os
paralisou. Dois europeus dirigiram-se a umas caixas de madeira situadas a
poucos passos deles.
Com um pé-de-cabra, um dos recém chegados tirou a tampa de uma das
caixas.
— Eles cumpriram a palavra: o que tem aqui dá para explodir a cidade
toda. Não podemos ficar aqui. Lá em cima, eles vão perceber nossa ausência. —
Disse ele para o companheiro.
Fecharam a caixa e deixaram no subsolo.
— Vamos, é agora. — Decidiu François, saindo do esconderijo. Entraram
no elevador de carga que subiu lentamente. Béchir tremia de impaciência.
Quando o elevador parou, François saiu em primeiro lugar, entreabriu a
porta que dava para o corredor dos quartos: ninguém, e Benguigui não estava
assobiando. Ele empurrou a porta e fez sinal para que os outros o seguissem.
No quarto, esticada na cama e sem o manto, Malika voltou a si aos
poucos. Os três homens se viraram quando o enfermeiro aplicou-lhe a injeção.
— Agora, ela precisa descansar. Vou embora, mas voltarei esta noite, se
tudo estiver bem, para lhe aplicar a outra injeção. Se ela acordar, dêlhe algo
para beber e para comer, se ela tiver fome; ela não come nada há quatro dias...
Não se esqueçam: por enquanto, é preciso que alguém fique sempre com ela.
— Eu cuidarei dela. — Decidiu Béchir.
— Muito bem, garoto.
Yacef plantou-se na frente de François e do pé-preto, dominando-os com a
sua altura.
— Pena que os roumis não sejam todos como vocês. — Disse, antes de sair
do quarto.
Béchir sentou-se na cama, ao lado da irmã. Dos olhos fechados de Malika
escapavam pesadas lágrimas. O irmão soluçou e murmurou entre os dentes:
— Vou matá-los!
O telefone tocou, assustando-os. François atendeu: era Léa.
— Estou no Hall. — Anunciou ela.
— Espere, já desço.
Ele desligou e dirigiu-se a Béchir:
— Vou colocar o aviso de "Não perturbe". Não abra para ninguém. Quando
voltar, vou bater duas vezes, depois três... Você está com fome?
"Não", respondeu balançando a cabeça.
— De qualquer modo, vou trazer alguma coisa mais tarde... Não se
esqueça: não abra para ninguém e passe o trinco. Você tem certeza de que pode
ficar sozinho?
— Sim, obrigado... Obrigado aos dois!
Sentada numa das poltronas do hall, Léa, vestida com um tailler de um
verde primaveril e calçada com escarpins vermelhos, conversava com três
jornalistas.
— Ah, este é meu marido. — Disse ela, levantando-se. — É a ele que vocês
devem fazer as perguntas... Bom dia, Benguigui.
— Bom dia.
— Fui dar uma volta, esta cidade é magnífica...
— Ela é, senhora. — Confirmou Joseph Benguigui. — François, você ainda
precisa de mim?
— Não, Joseph, obrigado. Ligue para mim hoje à noite, se quiser. Querida,
você já almoçou?
— Não, estava esperando você. Aonde vamos?
— Sr. Tavernier, por favor...
— Vamos ficar aqui, o restaurante do hotel é razoável.
— Sr. Tavernier, pode nos dizer alguma coisa sobre a situação?
— Que "situação"? Estou de férias...
— Mas... Sr. Tavernier, o general de Gaulle...
— Não insistam, não tenho nada a dizer.
— O que você acha do caso Massu?
— Por favor, senhores, minha mulher e eu estamos morrendo de fome e,
como todos sabem, saco vazio não pára em pé...
Ignorando o elevador, eles subiram a pé para o primeiro andar onde ficava
o restaurante. Devido à hora, só havia uma mesa ocupada, onde os repórteres
estrangeiros afogavam o tédio no álcool. O maître levou-os para perto das
janelas de onde se via todo o porto e entregou-lhes o menu.
Como de costume, Léa comeu com bom apetite embora a comida fosse
insípida, bebendo o vinho de Médéa. Depois de algumas garfadas, François
empurrou o prato e acendeu um cigarro. Através da fumaça, ele olhava para
ela, admirando-se de sentir mais uma vez, apesar dos anos, uma ternura, um
desejo inalterado e esse medo persistente de perdê-la.
— Por que você está me olhando assim?
Ele sorriu sem responder. Por sua vez, ela acendeu um cigarro e fixou os
olhos nele. Ficaram os dois um bom tempo a se contemplar, indiferentes às
vozes que se elevavam na mesa vizinha. Uma pergunta do maître trouxe-os de
volta à realidade.
— Querem café?
— Sim, por favor.
— O que você fez de manhã? — Perguntou Léa.
— Fui buscar uma jovem argeliana ferida. Ela está no nosso quarto.
— O quê?!
— Ela não tinha outro lugar para ir... Foi torturada. Consegui que ela
fosse libertada e, depois, tratada, mas aqueles que a torturaram estão atrás
dela, com certeza para eliminá-la.
Um garçom colocou as xícaras diante deles. Léa esperou que ele se
afastasse para perguntar mais.
— Quanto tempo ela vai ficar?
— Não sei... O repórter que ocupa o quarto vizinho do nosso está fora por
uns dias e deixou a chave comigo...
— Por quê?
— Porque eu pedi... Os dois quartos se comunicam, mas o dele dá para
outro corredor. Achei que, em caso de necessidade...
— Vamos ver a sua protegida.
Béchir entreabriu a porta, depois afastou-se completamente para deixá-los
passar. Assustado, alerta, ele viu Léa.
— Não se preocupe, é minha mulher... Léa, apresento-lhe Béchir, o irmão
de Malika. Como ela está?
— Está dormindo, mas geme durante o sono.
Os três se inclinaram à sua cabeceira. Ela abriu os olhos de repente e
levantou-se gritando:
— Não! Não! Me deixem!
Béchir tomou-a nos braços.
— Malika, sou eu...
Louca de pavor, ela se debatia. Léa segurou as mãos quentes da garota e
começou a falar gentilmente com ela. Quando ela se acalmou, Béchir fê-la
deitar-se e afastou-se para esconder as lágrimas. François, por sua vez, abriu a
porta dupla que dava para o quarto contíguo; tinha cheiro de mofo. Passou o
trinco na porta de entrada e voltou para o seu quarto.
— Vamos instalar Malika ao lado, ela estará mais segura ali. — Anunciou
ao jovem argeliano.
— Posso ficar com ela?
— É lógico!
— Você acha que eu poderia ir dizer à minha mãe que está tudo bem?
— Sim, mas cuidado com as UTs!
Béchir agarrou a mão de François e levou-a à testa.
— Deus lhe abençoe. — Agradeceu em árabe.
Ele deixou o quarto com o coração cheio de gratidão.
François pegou a garota e levou-a para o outro cômodo.
— Tenha cuidado. — Recomendou Léa, abrindo a cama. — Agora, deixe-
nos.
— Vou ao CC. Você, não saia daqui.
Ficando sozinha com a menina, Léa preparou um banho e começou a
despi-la. Malika protestou, saindo aos poucos de seu torpor.
— Não se incomode, eu sou mulher...
Cansada demais, a garota abandonou toda a resistência.
— Meu Deus! — Exclamou Léa.
Os seios ornados de arabescos pontilhados, desenhados sem dúvida com a
brasa de um cigarro. Os sinais dos golpes marcavam a carne macia do ventre e
das coxas.
Léa ajudou-a a se levantar. Com as mãos, Malika escondia o sexo. Com
pequenos passos, caminharam até a banheira. Sustentada por aquela mulher
que ela não conhecia, Malika escorregou para dentro da água quente, gemendo.
Mais tarde, com mais confiança, a garota contou, chorando, as sevícias
sofridas na Vila Sesini e falou daquele torturador que a xingava em espanhol,
queimando seu corpo com o cigarro, a música ao fundo para abafar seus gritos.
Com o rosto escondido nas mãos, ela contou como foi violentada, das suas
súplicas, de como o carrasco se divertiu com o espetáculo de sua carne
deflorada, encorajando os companheiros a fazer o mesmo, um depois do outro.
"Vão, caras, eu já abri o caminho: ela é boa, essa vagabunda!" Um atrás do
outro, eles se atiraram sobre ela, até que ela perdeu a consciência. Depois tudo
ficou confuso. Será que ela soltou informações? Ela ignorava. De qualquer
modo, não sabia muita coisa.
As palavras de Malika fizeram ressurgir em Léa terríveis lembranças. Com
gestos e palavras carinhosas ela tentou acalmar a coitada que, exausta, acabou
por dormir, retomada pelo cansaço e pela dor.
Eram dezessete horas quando François chegou à caserna Pélissier, onde
pediu para ser recebido pelo coronel Argoud. Assim que entrou na sala, o
coronel perguntou com um tom arrogante:
— O que você ainda quer de mim?
Ele se espantou de novo com o aspecto frágil e a pequena estatura do
coronel, que parecia flutuar dentro de roupas muito grandes para ele.
— Venho saber das novidades... — Respondeu Tavernier com uma ironia
que atingiu imediatamente o oficial.
— Você vem saber das novidades! ... Você tem culhões! Você, o homem de
De Gaulle!... Ele tem feito umas boas, aliás, o seu chefe: o general Massu me
ligou lá pelas três horas, ligou da casa do cunhado, perturbado com a
entrevista dele com o Velho. Sabe como este o recebeu?... "Eh, bem, Massu, eu
quero manter você, peço para não deixar o exército. Vou lhe dar um bom
posto... " Você imagina o efeito que isso teve nele, o vencedor da batalha de
Argel, aquele que se dizia o fiel mosqueteiro de De Gaulle? Ele constatou com
amargura que o chefe de Estado não compreende nada do problema argeliano.
Foram as palavras dele!
— Ele lhe deu instruções quanto à conduta a manter em caso de
insurreição?
O coronel Argoud mediu seu interlocutor com o olhar.
— Eu lembro que é o general Crépin que, de agora em diante, comanda o
exército de Argel, e que é ele que me dá ordens agora.
— Eu o cumprimento por isso.
— O general Massu considera que é no local que se pode julgar que
conduta adotar.
— Em suma, ele lhe deu carta branca.
Vendo que os maxilares do coronel se cerravam, Tavernier compreendeu
que havia acertado na mosca. Até que ponto Argoud estaria implicado com os
ativistas? Como se respondesse a seus pensamentos, o coronel retomou o tom
de confiança:
— Obtive de Ortiz a promessa de que se limitará, amanhã, a uma
demonstração pacífica, com bandeiras levantadas e sem armas.
— Meus cumprimentos. E, em troca, o que você prometeu?
Novamente, o antigo Chefe do Estado-Maior de Massu acusou o golpe, O
toque do telefone dispensou-o de responder.
— Alô!
Quando desligou, seu rosto tenso estava vermelho. Como se falasse
sozinho, murmurou:
— Lagaillarde mandou levar viaturas carregadas de armas para dentro da
faculdade. O que isso significa?
— Talvez ele esteja organizando sua própria revolução.
— É loucura! Ele não tem trinta homens com ele. — Afirmou com um tom
seco.
— Você sabe muito bem que não é o número que importa... A impressão
que tenho é que está a maior confusão, tanto do lado do exército e do Governo
Geral como do lado dos manifestantes... O que é feito daquele comitê de oficiais
revolucionários com sede em Mustapha e que planejam uma ação contra o
general de Gaulle quando ele for aos Estados Unidos? O general Faure está a
par disso?
— Pergunte a ele!
— Vou perguntar... De fato, você teria ouvido falar de um complô de
tecnocratas, formado nos grupos de trabalho da OTAN e que estariam também
esperando a viagem do Chefe de Estado, no mês de abril, para agir?
— Contra de Gaulle, o que não faltam no momento são complôs, tanto em
Argel como na metrópole: os franco-maçons, os comunistas, os ativistas... Meu
companheiro Gardes pode confirmar isso.
— Gardes... Sim, certamente.
— Desculpe-me, preciso ir ao GG. Quer que o deixe em algum lugar?
— Com prazer.
François reteve um sorriso quando o coronel colocou seu quepe, muito
grande para ele: ele só não caía sobre os olhos graças às orelhas.
Na Rua Bab-el-Oued, pequenos grupos de jovens conversavam
animadamente. Na Praça do Governo, os paraquedistas passavam cantadas nas
jovens, enquanto na Rua Bab-Azoun, alguns homens das unidades territoriais
pareciam voltar para casa. Na frente do Aletti, um pequeno grupo de jornalistas
precipitou-se para o jipe que parava.
— Coronel, a manifestação de amanhã foi proibida?
— Coronel, o senhor tem notícias do general Massu?
— Coronel...
— Desça, Tavernier. Eu o deixo com esses selvagens.
Assim que ele pôs o pé no chão, o jipe arrancou à toda. Um fotógrafo mal
teve tempo de sair da frente.
— Assassino! — Gritou ele, agarrando sua máquina fotográfica.
François subiu os degraus empurrando os jornalistas que haviam caído
sobre ele.
— Seja legal, responda!... Só estamos fazendo nosso trabalho!...
No uni!, o advogado Jean-Baptiste Biaggi conversava com um deputado
argeliano. Junto aos elevadores, duas prostitutas ofereciam seus serviços.
Sem fazer ruído algum, François entrou no quarto, depois naquele onde
haviam acomodado a jovem argeliana. Por um momento, ficou na porta
contemplando as duas mulheres que dormiam, a cabeça de Malika repousando
no ombro de Léa. Delicadamente ele fechou a porta.
Num papel de carta com o símbolo do hotel, ele rabiscou algumas palavras
e saiu de novo.
François Tavernier atravessou a Rua Alfred-Lelluch, subiu a escada que
leva ao Bulevar Bugeaud e dirigiu-se para o Bulevar Laferrière. No meio da Rua
Charles-Péguy, cruzou com o tenente Many que lhe dirigiu um cumprimento
cheio de ironia. No terraço do Otomatic, alguns jovens conversavam bebendo
cerveja. Sentados nos degraus da universidade, os estudantes pareciam estar
montando guarda. Perto do túnel das faculdades, os paraquedistas andavam
para lá e para cá fumando; outros esperavam nos caminhões, enquanto outros
ainda, encostados nos pára-choques dos veículos, trocavam algumas palavras
com quem passava. Alguns aplausos explodiram. A multidão das noites de
sábado não se apressava na Rua Michelet, onde a maioria das lojas continuava
fechada: na "Champs-Élysées" de Argel, pesava aquela atmosfera aborrecida
dos domingos que os prédios no estilo de Haussman acusavam. O sol se punha
por trás das colinas e a sombra invadia pouco a pouco as ruas, trazendo com
ela uma sensação de frio.
Um grupo de rapazes desceu a rua correndo, empunhando bandeiras e
gritando: "Argélia francesa!"
François deu meia-volta e seguiu-os de longe. Na Praça Lyautey, dezenas
de outros jovens desembocavam do túnel das faculdades gritando slogans
hostis ao general de Gaulle. Por cima deles, suspensa na balaustrada da
universidade, flutuava a bandeira francesa.
— Abaixo De Gaulle!... Massu no poder!...
Recém-chegados juntaram-se a eles e começaram a desengatar as hastes
dos trólebus da Rua Charles- Péguy. Alguns, munidos de latas de tinta,
traçavam cruzes celtas nos muros vizinhos; deviam ser algumas centenas.
Entre eles, François percebeu um argelino um pouco mais velho que parecia
guiar os manifestantes. De repente, ele descobriu Pierre Lagaillarde, saído não
se sabe de onde, indo na direção de um homem. Por um momento, os dois
personagens se enfrentaram, acompanhando a discussão com gestos largos.
Subitamente, a mão do deputado levantou-se e se abateu sobre o rosto de seu
interlocutor.
Lagaillarde virou- lhe as costas em seguida para se juntar aos
carregadores de tinta. Um pequeno grupo que tentava subir para o Foruin foi
empurrado de volta pelas CRS, depois tentou atravessar o Bulevar Laferriêre: lá
também, lhe proibiram a passagem.
— Morte para de Gaulle! Moscou para de Gaulle!... — Gritavam os
manifestantes.
Diante do prédio da Companhia Argeliana de Crédito, onde ficava a sede
da Federação das Unidades Territoriais, os territoriais, de fuzil nas costas,
rodeavam Joseph Ortiz e o comandante Sapin-Ligniéres, presidente da
Federação. O dono do Portou falava levantando o queixo:
— Aqui estão, senhores, as instruções que eu tenho para lhes dar como
responsável civil. Elas receberam a aprovação do general Faure, dos coronéis
Argoud e Gardes. Mobilização geral das unidades territoriais, ordem de
convocação individual, em traje habitual e com armas. Os pontos de reunião
serão determinados pelo comandante Sapin-Lignières e pelo capitão Ronda...
Sr. Tavernier, o senhor está aqui como observador?
Ortiz vinha na direção dele, com um sorriso muito caloroso nos lábios; não
havia como evitá-lo!
— Fui pego pela manifestação dos estudantes, estava tentando voltar para
o hotel... Não é nada fácil, com toda essa demonstração de forças!
— Não é prudente ficar passeando por estes lugares: um de meus homens
vai acompanhá-lo...
— Não é necessário, eu conheço o caminho.
Os olhinhos escuros do sr. Jo não tinham nada de amigável.
François desceu primeiro até a Praça do Plateau des Gliêres. No Bulevar
Baudin, os guardas tentavam impedir os jovens de ir para a Grande Poste, onde
alguém já agitava uma bandeira tricolor. A noite caía.
Com grandes passadas, François andava agora sob as arcadas do Bulevar
Carnot, preocupado: Faure, Argoud e Gardes estariam sendo manipulados pelo
chefe da Frente Nacional Francesa? Na altura da delegacia, os guardas
pediram-lhe os documentos.
O Cintra estava com o movimento dos bons tempos. No bar,
correspondentes de imprensa vindos do mundo todo, para dar impressão de
que estavam por dentro dos acontecimentos dos quais eles não sabiam nada,
trocavam informações que eles sabiam serem falsas.
Apoiado no balcão de carvalho, Paul Ribeaud, irmão de Guy, com o qual
François Tavernier participara das manifestações de maio de 58, repórter do
Paris-Matiz, estava numa conversa animada com um advogado argeliano,
secretário do partido de Joseph Ortiz. Mestre Jacques Laquiêre, conhecido por
pertencer ao grupo dos mais extremistas entre os radicais, disfarçava seu olhar
por trás dos óculos escuros. Perto dele, um homem atarracado: um blazer azul
marinho e uma camisa branca se abriam no pescoço largo, tão curto quanto
seu corpo. François teve muita dificuldade para chegar ao balcão, atrás do qual
os dois barmen não paravam.
— Um uísque duplo. — Pediu ele.
Tirou um maço de cigarros do bolso.
— Você tem fogo? — Perguntou a seu vizinho.
— Boa noite, Tavernier. Não sabia que você estava em Argel. — Disse o
repórter, oferecendo a chama de seu isqueiro.
— Obrigado... Eu também não sabia que você estava aqui.
— Não por muito tempo: vou para o Saara.
— Ah! Por causa da bomba...
— Não se pode esconder nada de você! Mas você?...
— Eu me informo.
— A pesca é boa? — Perguntou o advogado.
— Interessante, senhor...?
— Desculpe-me. — Disse Ribeaud. — Apresento-lhe meu amigo, mestre
Jacques Laquiére... Jacques, este é François Tavernier, que é, digamos, muito
querido pelo general de Gaulle. Ele estava com meu irmão e Delbecque junto de
Salan em 1958. E aqui está Jean Brune, o diretor adjunto da Dépêcle
Quotidietine.
Os três homens apertaram-se as mãos. François pegou o copo que o
garçom havia colocado diante dele.
Laquiére examinou-o.
— A sua saúde! — Disse ele levantando o copo e engolindo de uma vez.
— Você faz parte daqueles que trouxeram o general de Gaulle de volta ao
poder? Parabéns! Vê-se hoje o resultado... — Declarou, amargo, o advogado.
— Tenha paciência, isso está apenas começando.
— O que você quer dizer?
— Eu não gosto do que está se preparando. Explora-se a inquietação dos
franceses da Argélia para incitá-los a participar das manifestações de oposição
ao governo, fazendo-os acreditar que o exército está com eles.
— E está! — Empolgou-se Laquière.
— Não tenho tanta certeza.
— Então, os franceses da Argélia lutarão sozinhos para conservar esta
terra para a França!
Jean Brune, que não havia pronunciado nem uma palavra, virou-se para
François Tavernier.
— A guerra da Argélia é uma tragédia calcada num esboço dos tempos
gregos. Não falta nada, nem os heróis que se sucedem, nem os delírios, às vezes
desmesurados, dos grandes papéis, nem as matanças, nem a voz patética do
coro exprimindo súplicas ou anátemas; nem, sobretudo, a fatalidade que pesa
sobre os homens e as multidões e submete-se aos caprichos de uma força
incoerente, mas irresistível. E, no auge do drama, quando a ação armada no
início parece prestes a se resolver num final feliz, acontece um desses golpes de
teatro que, colocando tudo em questão, lança o herói novamente na gehena das
sombras e constrói sua infelicidade sobre a efêmera vitória com a qual pensava
ter selado seu destino!
Surpreso com o tom transbordante de lirismo, François olhou atentamente
para seu interlocutor.
— Isso soa como uma previsão. — Comentou ele.
Os olhos de Brune fixaram-se nos dele; havia nesse olhar uma espécie de
interrogação.
— Então, você fazia parte daquele pequeno comando gaullista despachado
para o local pelo falso eremita de Colombey-les-Deux-Eglises... — Completou o
jornalista com um ar pensativo.
— Pode-se dizer.
— Você está satisfeito com o modo como as coisas se desenrolaram depois
do 13 de maio? Você não tem a impressão de um enorme fracasso? Os
franceses da Argélia não foram consultados em nenhum momento, foram
postos à margem do que constitui hoje a vida deles e representará o futuro de
seus filhos. O exército decidiu por eles e, aos preocupados, afirmou que
garantia tudo. Foi um novo juramento de Sidi-Rhalem... é curioso notar que
quase todos aqueles que, na França, pretendem dar testemunho de amor — os
cristãos que acreditam ter recebido de Cristo a revelação da fraternidade e os
ateus que acreditam ser os herdeiros da Revolução — só tiveram desdém e
gozações pelas confraternizações de maio que, por toda a Argélia, jogaram
milhões de homens, uns contra os outros!
— Você pode honestamente me afirmar que acreditou naquela paródia de
confraternização? — interrompeu-o François.
Jean Brune olhou para ele com tristeza.
— Para mim, senhor, não se tratava de uma paródia. Nem para meus
amigos muçulmanos. E melhor pararmos por aqui, se não se importar. É um
mar maior que o Mediterrâneo que nos separa. A metrópole jamais se esforçou
para nos compreender a apressa-se a liquidar a Argélia sem nem nos consultar.
Este país, foram nossos antepassados que o fizeram e, sem eles, não haveria
aqui senão um monte de pedras. Mas, de que vale lhe explicar tudo isso?... Até
logo, senhor...
Paul Ribeaud e Jacques Laquiére despediram-se também e deixaram o
Cintra. Sozinho, François lamentou não ter podido confessar que podia
compreender o desespero deles, esse medo de perder a terra onde tinham
nascido. Brune tinha razão: esta guerra estava se tornando uma tragédia, mas
não apenas para os pés-pretos.
Capítulo 16
Com a expressão cansada, Gilda aproximou-se de François Tavernier.
— Quer beber alguma coisa? — Ofereceu ele.
— Não, venha depressa. — Soltou ela enquanto percorria a multidão com
um olhar assustado.
— Mas, o que há?
— Venha, estou pedindo!
— Ponha na minha conta. — Disse ao barman antes de segui-la.
Usando os cotovelos, abriram caminho através da multidão. Na frente dos
elevadores, Gilda colou-se nele e cochichou no seu ouvido:
— Agora há pouco, no bar, ouvi uns homens dizerem que iam visitar o seu
quarto. Eu os conheço: pertencem a um bando que faz expedições punitivas
contra os muçulmanos e colocam bombas nas lojas deles...
— Obrigado.
Ignorando o elevador, François subiu a escada de quatro em quatro
degraus. Ofegante, parou atrás da porta do corredor de seu andar e soltou a
trava de segurança de sua arma. Aguçou o ouvido e distinguiu vozes de
mulheres, depois ouviu a porta do elevador se fechar. Somente nesse momento
empurrou a porta.
De onde estava, não podia ver a entrada de seu quarto. Avançou até o
canto do corredor: a uma certa distância, um homem vigiava enquanto um
outro cutucava a fechadura. Era preciso impedi-lo de abrir a porta.
— Boa noite, senhores! Estão procurando alguma coisa?
Aquele que vigiava virou-se lentamente. No mesmo instante, François
percebeu que estava lidando com um assassino. Eles se enfrentaram com o
olhar.
— Meu amigo esqueceu a chave lá dentro.
— Não é possível, vocês devem ter se enganado de quarto...
De um quarto vizinho, saiu um casal.
— Tem razão. — Declarou o comparsa. — O meu é o 215... Desculpe- nos,
senhor, nos enganamos de andar.
— Isso acontece... Querem que eu peça ao porteiro para mandar alguém
ajudá-los?
— O senhor é muito amável, não é preciso... Nós vamos lá embaixo pedir
outra chave.
— Como quiserem. Boa noite, senhores.
Assim que teve certeza de que haviam partido, François girou a chave e
entrou no quarto. Acabando de acordar, Léa ficou de pé.
— Era você que estava mexendo na fechadura?
Ele colocou um dedo sobre os lábios dela e se dirigiu para os fundos do
cômodo.
— É preciso sair daqui. — Disse ele.
— O que você está dizendo?
— Explicarei mais tarde. Enquanto isso, prepare uma mala pequena...
Como está Malika?
— Melhor: nós dormimos a tarde toda... As crianças ligaram: está tudo
bem... Pediram para lhe dar um beijo.
— Eles não têm muita sorte de ter pais como nós!
François pegou o telefone e pediu que ligassem com o bar.
— Gilda está aí?
— Sim, senhor.
— Queria falar com ela, por favor.
— Mas...
— É urgente, ande logo!
Após alguns segundos:
— Alô?
— Gilda?
— Sim.
— Aqui é Tavernier: nós acabamos de nos separar... Você tinha razão.
Obrigado. Na sua opinião, o que eles estavam procurando?
— Não tenho idéia... Tudo que posso dizer é que são especialistas em
explosivos... Já estouraram algumas lojas com explosivos plásticos.
— Há muitos desse gênero?
— Não, acho que não.
— Agora, preste bastante atenção ao que vou pedir: você pode tomar um
táxi e me esperar na saída de emergência do hotel, em quinze minutos?
— Sim... Acho que sim.
— É muito importante!
— Está entendido, estarei lá.
Léa havia colocado jeans, um pulôver e sapatos confortáveis. Numa bolsa
ela jogara seus produtos de higiene, roupas de baixo, duas ou três roupas e os
livros que trouxera de Paris.
— Vou chamar Malika!
Uma batida na porta paralisou-os. François fez sinal para Léa se afastar.
Com a pistola na mão, ele perguntou:
— Quem é?
— Sou eu!
Destrancando a porta, Béchir e o enfermeiro do Hospital Maillot entraram.
— Onde está Malika? — Perguntou imediatamente este último.
— No quarto ao lado.
— Como ela está?
— Melhor, acho. — Respondeu Léa. — Ela comeu um pouco.
— É bom sinal. Vou aplicar a injeção.
Quando eles deixaram o quarto, Béchir pegou a mão de François e levou-a
à testa.
— Não é hora para isso. — Disse, tirando a mão. — Precisamos sair daqui,
não estamos mais seguros.
— E Malika?
— Ela também não pode ficar aqui. É muito arriscado. Na casa de seus
pais, não é mesmo possível?
"Não", fez Béchir com a cabeça.
— Seu pai é um velho louco! A filha corre risco de vida e ele só pensa na
sua pretensa honra...
— Não fale assim de meu pai!
Empinado como um galinho de briga na frente de François, o adolescente
não parecia estar brincando.
— Tudo isso é estúpido!
— Como você pode julgar essas coisas, você, um estrangeiro?
Raiva e soluços se misturavam na voz do jovem argeliano. François
examinou-o e fez um gesto fatalista:
— mcli Aliali...
Algo como um brilho de alegria se acendeu nos olhos do garoto.
— mcli Aliali! — Ele fez eco.
François lhe esfregou amigavelmente a cabeça.
— É preciso que sua irmã vá sem falta para a Casbah: ela estará mais
segura do que aqui. Al-Alem disse que poderia escondê-la...
— Com certeza, mas não será fácil escapar das patrulhas.
— Pedi a Gilda que me esperasse com um táxi diante da porta de
emergência...
— Gilda?!... Você confia numa prostituta?
— Foi ela que me avisou que dois homens tentavam entrar aqui.
— Mas ela não sabia que havia uma muçulmana escondida aqui.
— Tem razão; fui idiota por não ter pensado nisso... Vou ligar para
Duforget... Onde coloquei o número?
— 695-12 — Socorreu-o Yacef que saia do quarto onde Malika estava
deitada.
— O quê?
— 695-12, é a linha direta do doutor.
François passou o número à telefonista. Uma voz de assistente respondeu.
— Alô? Eu queria falar com o dr. Duforget, por favor.
— Não desligue, vou passar...
— Boa noite, doutor. É Tavernier. Precisamos deixar o hotel e os táxis não
são seguros.
— Yacef está com vocês?
— Sim, ainda está aqui.
— Deixe-me falar com ele.
François passou o aparelho para o enfermeiro:
— Ele quer falar com você...
Quando este desligou, parecia preocupado.
— Então? — Impacientou-se Béchir.
— Ele mesmo vem.
— Isso parece não lhe agradar... — Observou François — E perigoso para
ele mostrar-se por aqui: é um antro de inimigos árabes.
— Ele não é árabe...
— Para essa gente, os que os ajudam são piores ainda.
François lembrou-se do comentário do coronel Gardes a respeito de
Duforget: "Dizem que ele presta ajuda à FLN."
— Quais são as instruções?
— Que o encontremos na entrada do Bulevar Carnot; tem menos gente
daquele lado.
— E a escada de serviço desemboca perto da saída. — Acrescentou Béchir.
— Não vai ser preciso passar pelo aquecimento central.
Bateram. Todos ficaram quietos.
— É Benguigui, abram! — Ouviram por trás da porta.
— Yacef, Béchir, vão para perto de Malika! — Ordenou François.
Quando estavam fechados no quarto vizinho, ele abriu. O motorista de táxi
entrou, seu mau humor era evidente.
— Era melhor que eu tivesse quebrado uma perna no dia em que o
conheci! Felizmente encontrei Gilda: ela estava plantada na frente do hotel,
afobada com a idéia de não encontrar um táxi. Você devia mandar alguém que
chamasse menos atenção para cumprir as suas missões...
— Pare de se lamentar! Obrigado, mesmo assim, por ter subido. Uns
homens tentaram entrar aqui...
— Você os viu?
— Sim, um tipo moreno, grandalhão, com ar malvado e um menor, com
certeza pior ainda. Ambos usavam jaquetas de couro.
— Os irmãos Mattei!
— Você os conhece?
— Sim e não... Alguns não hesitam em contratá-los para os mais baixos
serviços. São informantes da polícia e, também, gigolôs: em Belcourt, duas ou
três moças trabalham para eles. Dizem que são os ases dos explosivos
plásticos... O que poderiam querer no seu quarto, ou melhor, quem os terá
mandado aqui?...
Você devia voltar para o Saint-George. Aqui, qualquer um pode entrar e
sair como nada... Eu tenho um primo lá, na recepção: é um cara legal, poderá
ajudar... A menina ainda está aqui?
— Sim, ao lado; seu irmão e o enfermeiro do Hospital Maillot estão com
ela. O dr. Duforget vem buscá-la.
— Desse jeito, esse aí não vai durar muito! Pena, é um bom homem...
— Ele ajuda mesmo a FLN?
— E o que dizem em Argel. Talvez não seja verdade, mas é o que se diz.
Aqui, dá na mesma.
— Você recuperou o táxi?
— Não, mas a caminhonete ainda está estacionada no mesmo lugar. Não
seria muito prudente trazê-la para perto do hotel... A garota consegue andar?
— Eu espero que sim... Ela se chama Malika.
— Bonito nome...
— Vamos descer em dois grupos: você primeiro, com minha mulher e
Béchir, depois Malika, Yacef e eu.
François foi abrir a porta de comunicação. A garota saiu, acompanhada
por Béchir. Ela vestia um mantô comprido de Léa. Um lenço amarrado na
cabeça disfarçava um pouco o rosto inchado, uma bolsa e sapatos elegantes
faziam-na parecer uma européia.
— Sinto muito causar-lhes tanto aborrecimento. — Desculpou-se ela,
sorrindo corajosamente.
— Não pense nisso. Você acha que consegue andar até o carro do dr.
Duforget?
— Sim, dou um jeito.
— Benguigui, saia primeiro; nós seguiremos você com três minutos de
intervalo. Leve minha mulher ao Saint-George e volte aqui. Béchir, você espera
lá embaixo e fica de vigia.
Léa abraçou o marido.
— Tenha cuidado e venha logo encontrar comigo.
O primeiro grupo desceu a escada de serviço sem problemas. Joseph e Léa
saíram do hotel e dirigiram-se à caminhonete, deixando Béchir esperar o dr.
Duforget.
Graças a seu perfeito conhecimento das ruas de Argel, o motorista evitou
os pontos de controle. Fizeram um desvio por Belcourt e pela Redoute para
pegar a avenida Foureau. Na entrada dos jardins que rodeiam o Saint-George,
foram parados pelo serviço de segurança. Um dos empregados reconheceu
Benguigui.
— Boa noite, Joseph. Mas que táxi mais estranho...
— Tive que fazer uma mudança... Você sabe se meu primo David está aí?
— Sim, cruzei com ele quando vinha assumir meu posto. Vejo que você
está em boa companhia...
— Olhe o respeito! É uma amiga e ela vai descer no hotel.
Eles subiram a alameda antes de estacionar.
— Venha. — Disse Benguigui. — Eu a acompanho até o bar, você fica
esperando ali enquanto vou procurar meu primo.
Uma Aronde azul parou na esquina do Bulevar Carnot com a Rua Delcassé
no momento em que cinco ou seis paraquedistas, vindo da chefatura de polícia,
entravam no Hotel Aletti. No interior do estabelecimento, Béchir mal teve tempo
de avisar seus companheiros que se apressavam para sair da escada de serviço.
Ele viu a Aronde estacionada a pouca distância, aproximou-se e reconheceu o
médico dentro dela. Fez sinal para que ele esperasse, depois voltou para trás.
Ajudada por François, Malika percorreu os poucos metros que a separavam do
carro, mordendo os lábios para não gemer.
— Aonde vamos? — Perguntou Duforget.
— Para a Casbah — Respondeu Béchir. — No Túmulo das Duas Princesas.
— Os acessos para a Casbah não estão todos controlados?
— Perto da Rua Heliópolis há uma ruazinha que não deve estar. —
Corrigiu Yacef. — Um de meus primos mora numa casa que fica na esquina
dessa rua. Posso levar Malika para lá enquanto procuramos um esconderijo
mais seguro.
O carro saiu, com os três muçulmanos sentados no banco de trás e os
europeus no da frente. Na Rua Coronel Colonna-d'Ornano, alguns homens das
unidades territoriais estavam junto da Igreja Saint- Augustin, enquanto outros
conversavam diante da Ópera; eles pararam de falar para olhar a Aronde entrar
no Bulevar Gambetta. No Bulevar Victoire, uns soldados de farda camuflada
barravam a rampa Zouaves que vai dar na caserna de Orléans; quando passou,
o dr. Duforget acenou para eles. Eles andaram mais um pouco, depois pararam
na entrada da ruazinha — O sr. Tavernier e eu vamos falar com os
paraquedistas para distrair a atenção deles. Aproveitem para descer
discretamente do carro... e rezem para que eles não vejam nada!
François e o médico levaram algum tempo acendendo um cigarro, depois
caminharam lentamente em direção aos militares. Chegando perto, colocaram-
se na frente deles de modo a impedir que eles vissem o carro.
— Boa noite, senhores. Eu sou médico e preciso ir para o Hospital Maillot;
vocês acham que devo pegar o Bulevar Verdun?
Enquanto Yacef, Béchir e Malika saíam do carro, com cuidado para não
bater a porta traseira, um sargento explicou:
— Eles colocaram uma barreira diante da Barberousse. Se você passar
pela rampa Valée, vai evitar a barreira da caserna Pélissier... Boa sorte,
senhores!
— Obrigado, sargento...
Sem se apressar, eles voltaram para o carro. Yacef os esperava, escondido
pela escuridão da rua.
— Malika está segura por enquanto. Seu irmão foi procurar um amigo e eu
vou ficar com ela até que ele volte. Estarei amanhã no hospital, como sempre...
Obrigado pela ajuda!
Depois que o carro saiu, os dois europeus ficaram algum tempo em
silêncio.
— Onde você quer que eu o deixe? — Perguntou Duforget.
— Perto do Aletti, se for possível...
— Vamos lá.
O médico pegou a Rua Marengo e chegou à Praça Bresson por um
caminho que só ele conhecia.
— Vou deixá-lo aqui; é melhor que não nos vejam juntos... Você sabe onde
está?
— Sim, obrigado.
— Não deixe de me informar sobre a saúde de Malika. Você sabe alguma
coisa sobre a manifestação de amanhã?
— Está tudo muito confuso, mas vai acontecer de qualquer jeito. A questão
que se coloca agora é: quantos mortos?
Duforget tirou os óculos com um gesto cansado e esfregou os olhos de
míope.
— Boa noite, sr. Tavernier... — Concluiu simplesmente, colocando-os de
volta.
— Boa noite, doutor.
A Aronde fez meia-volta e François chegou ao hotel pela rua da Liberté.
No Cintra, havia cada vez mais gente. Encarapitada numa banqueta do
bar, Gilda, com um olhar amedrontado, viu-o atravessar a sala. François fingiu
ignorá-la, pediu um uísque e esperou. Já estava na terceira dose quando
Joseph Benguigui entrou.
— Está tudo em ordem. Meu primo arrumou um quarto para sua mulher;
não é grande, mas a porta é sólida e ele dá para um jardinzinho para onde se
pode ir sem ser notado. Aconselhei a ela que ficasse quietinha lá até que você
desse notícias... Correu tudo bem com Malika?
— Sim, eu lhe agradeço... Como posso encontrar Léa?
— Meu primo a registrou com o nome de Delmas.
— Bem, vou ligar para ela. Espere aqui. Podemos jantar juntos?... O que
você quer beber?
— A mesma coisa que você.
Depois de fazer o pedido, François foi telefonar de uma cabine do hall.
Voltou pouco depois, sorrindo.
— Então?
— Ela está feliz. Já pediu uma refeição e uma garrafa de vinho... Que
mulher estranha!
— Por que você diz isso?
— Não existe outra como ela, para curtir o momento presente. Ela gostou
do quarto e o vinho é bom: não precisa de mais nada no momento...
— Com efeito, é o que se chama boa natureza...
— Sim, mas ao mesmo tempo tem uns medos, uma angústia contra a qual
eu não consigo lutar. No entanto, não paro de me surpreender por essa força,
nela, que acaba sempre dominando sua grande fragilidade...
Bom, eu também estou com fome, aonde podemos ir?
— É muito tarde para o Paris... A esta hora, para comer bem, só no Sept
Merveilles aonde fomos ontem...
— Tudo bem, talvez encontremos de novo Ortiz e seu bando.
— Está com saudade deles?
— Não, mas adoraria saber o que estão tramando!
Eram dez horas da noite e os territoriais tinham voltado para casa; a
maioria, com certeza, levara suas armas. Não se viam nem patrulhas nem
postos de guarda. No céu, as estrelas brilhavam, e poucos veículos circulavam
pelas ruas. Tudo parecia calmo.
Como na véspera, havia muita gente no Sept Merveilles. O dono instalou-
os numa mesa pequena, perto da tapeçaria pesada que fechava o salão e pegou,
ele mesmo o pedido. Enquanto bebia uns goles do vinho capitoso de Médéa,
François olhou em volta. No meio das conversas, distinguiu os nomes de De
Gaulle e de Massu. Depois da entrada, os dois homens atacaram umas
costeletas mal passadas.
— Olhe, é Robert Martel! — Falou Joseph Benguigui, com a boca cheia.
François reconheceu o viticultor da Mitidja, um colono que dirigia a União
Francesa norte-africana, defensor do "Ocidente cristão", que havia escolhido
como emblema o mesmo dos cliouans: um coração vermelho com uma cruz por
cima. Esse ultrafanático havia sido preso em 1957, como Joseph Ortiz, depois
da descoberta, na vila de Sources, de um centro de tortura clandestino onde os
contra-terroristas interrogavam os muçulmanos suspeitos de pertencer à FLN.
Mortos ou desaparecidos, muitos dos infelizes que passaram pela vila nunca
mais voltaram. Nas ruas de Argel falava-se também que Martel tinha algo a ver
com o atentado que causara setenta mortes na Casbah, em 1956...
Depois de cumprimentar muitas pessoas, Martel afastou a cortina que
separava o restaurante propriamente dito da sala dos fundos. Logo em seguida,
François reconheceu a voz de Ortiz.
— Ele tem peito, esse Martel. — Observou Benguigui. — Ele que mandou
distribuir folhetos denunciando o dono do Forum como agente provocador!...
Aliás, você viu este aqui? Vai ser lançado de avião, amanhã de manhã, sobre
Argel; não é de Martel, mas dá algumas informações sobre a manifestação.
François pegou o papel que Joseph lhe estendia e leu:
"Franceses da Argélia, o general Masstt, o último general do 13 de maio, a
última garantia da Argélia francesa e da integração, foi ultrajado e dispensado.
De Gaulle quer ter as mãos livres para liquidar a Argélia, depois a África negra
e para fazer o exército quebrar seus juramentos.
Chegou a hora de vocês se levantarem!
Neste domingo de manhã, às 11 horas, juntem-se aos cortejos que sairão
do campo e dos subúrbios. Todos juntos, atrás de seus territoriais e daqueles
que, há muitos anos, conduzem a luta.
Para que a Argélia francesa viva, como província francesa!
Comitê da convenção dos antigos combatentes.
Federação das UTs e dos grupos de autodefesa.
Comitê da convenção dos movimentos nacionais."
— Olhe o Lagaillarde chegando. — Advertiu Benguigui.
Vestido com um terno marrom de péssimo caimento, o jovem deputado
dirigiu-se apressadamente para a sala dos fundos onde Martel acabara de
entrar. Apesar das conversas em volta, as palavras deles chegaram aos ouvidos
dos dois homens:
— Você faz a sua manifestação ou não faz? De qualquer modo, você faz o
que quiser, estou pouco ligando! Eu cuido do perímetro das faculdades. E se
quiserem me tirar de lá, atiro em tudo o que aparecer! Boa noite.
Ouviram-se exclamações de raiva, barulho de cadeiras derrubadas.
François levantou-se e atravessou, também, a tapeçaria, O dr. Pérez e o
mestre Laquière tentavam desarmar Ortiz que, empunhando uma 7.65 de cano
brilhante, gritava:
— Você não vai fazer isso, Pierrot! Sou eu que estou no comando,
entendeu? Sou eu que comando! Se você organiza um golpe sozinho é só para
roubar meus homens: você não tem tropas. E os seus estudantes estão comigo.
Desta vez você não vai roubar a nossa revolução!
Pérez conseguiu tirar o revólver das mãos dele e Jean-Jacques Susini o
acalmou. Foi então que perceberam a presença de François.
— O que você está xeretando aqui? — Rugiu Ortiz.
— É o espião do Governo Geral! — Lançou Susini.
Ele avançou, ameaçando o intruso.
— Senhores! — Interveio o Mestre Laquiêre. — Fiquem calmos.
Eventualmente, o sr. Tavernier pode nos ser útil...
— como assim? — Gritou o sr. lo. — É um fuçador de merda! Devemos
impedi-lo de ir contar a Delouvrier sobre a nossa reunião...
— Eu os deixo entre amigos. — Ironizou Lagaillarde. — Volto à
Universidade. Vocês sabem onde me encontrar. Boa noite e até amanhã!
— Estou de carro, eu o levo. — Propôs Jean-Claude Pérez.
Os dois homens saíram.
— O que fazemos com ele? — Perguntou Susini, apontando para Tavernier.
— Nada. — Respondeu este último, empunhando sua arma.
Todos se imobilizaram.
— Antes de ir embora, tenho uma coisa a dizer aos senhores: o exército
não estará com vocês. Os que afirmaram o contrário estão mentindo.
— Você ousa me chamar de mentiroso? — Gaguejou Ortiz, sem tirar os
olhos da pistola.
Sem responder, François virou-lhes as costas, saiu da sala e voltou a se
sentar na sua mesa, onde Benguigui torcia as mãos de tanta angústia.
— Você não deveria provocá-los. — Acabou por dizer o motorista de táxi.
— Não passam de garganteiros, eles não são de nada... Você quer
sobremesa?... Não?... Um café?... Garçom!
Dois cafés, por favor... Relaxe. Tome, pegue um charuto, não há nada
melhor para ver as coisas com um pouco mais de otimismo...
Joseph Benguigui aceitou a oferta. Durante uns minutos, ambos
fumaram, perdidos em seus pensamentos.
Quando traziam os cafés, Ortiz e seu bando deixaram a sala dos fundos. O
dono do café Foritm levou um tempo observando Tavernier tranqüilamente
sentado à mesa.
— Que culhões! — Resmungou ele.
Indiferente aos olhares furiosos dos outros, François bebericava seu café,
como quem não quer nada.
Quando, afinal, eles saíram dali, Benguigui, que estivera pronto para
levantar correndo, deixou-se cair no assento, o rosto coberto de suor, com o
olhar abestalhado e o charuto apagado entre os lábios. Tavernier caiu na
gargalhada.
— Dois conhaques, por favor!
O dono do restaurante escolheu o momento para vir até eles, com uma
garrafa e três copos na mão.
— É por minha conta. — Anunciou ele.
Depois de puxar uma cadeira, colocou os copos na mesa, tirou a rolha da
garrafa e encheu-os até a boca.
Levantou imediatamente o seu.
— À sua saúde!
Ele esvaziou o copo e serviu-se novamente.
— Senhor. — Declarou ele, solene, para François. — Foi uma honra
recebê-lo no meu estabelecimento. No entanto, peço-lhe para não voltar mais.
Não haverá mais mesa livre para o senhor... Quanto a você, Joseph, você me
desapontou, nunca teria acreditado que você preferiria um francês da França a
nós!
— Mas, pai César...
— Você sabe que meu filho é responsável pela FNF do centro. Não seria
conveniente que ele encontrasse gaullistas no restaurante do pai, não é?
— Deixe. — Disse François a Joseph, que ia retrucar. — Vamos embora.
Ele chamou o garçom e pagou a conta. Na sala, agora quase vazia, os
últimos clientes interromperam as conversas para vê-los partir.
Saindo do restaurante, Joseph Benguigui deu uma olhada preocupada em
volta. Eles chegaram logo à caminhonete; o Bulevar Télemly estava deserto.
— Não fique com essa cara! — Disse François.
— Queria ver se fosse com você! — Explodiu de repente o motorista. —
Amanhã, toda Argel saberá que o pai César me botou para fora e por que o fez.
Você me colocou em maus lençóis!
— Sinto muito, mas seus amigos estão indo de encontro à catástrofe e você
sabe disso.
— E agora? É o nosso futuro que está em jogo, não o seu! Você chega aqui
sem saber nada dos nossos problemas: é o desespero que joga um monte de
gente nos braços de Ortiz, dos Pérez, dos Martel ou dos Susini... As pessoas
acreditaram no general de Gaulle, quando em Mostaganem, ele gritou: "Viva a
Argélia francesa!" E, hoje, como está escrito no panfleto, o homem que eles
ajudaram a eleger Presidente da República, vai abandonar a Argélia. "Eu
compreendi vocês", ele afirmou no Forum... E nós o aplaudimos e gritamos:
"Viva de Gaulie!" Se ele não acreditava na Argélia francesa, por que nos
enganou? Por que envolver o exército num negócio tão sujo? Por que prosseguir
com o alistamento dos muçulmanos com o objetivo de combater seus próprios
irmãos? Ele também não compreendeu nada do orgulho dos muçulmanos, eles
que lutaram para que a França fosse livre, que teriam então amado tornar-se
franceses como nós, os judeus. Em vez disso, quando a guerra terminou,
mandaram-nos de volta como lixo, dando-lhes como engodo algumas medalhas
e uma pensão magra, desprezando a sentença que concedia nacionalidade
francesa a sessenta mil deles! Lembre-se, foi em 8 de maio de 1945, quando a
França, com o resto do mundo, celebrava a queda do império nazista, que tudo
começou em Sétif, com uma manifestação festiva que virou uma rebelião e,
depois, um massacre: uma centena de mortes do lado europeu contra milhares,
nem se sabe ao certo, do lado árabe... Eu tinha um companheiro muçulmano,
de Djemila, a alguns quilômetros de Sétif; lutamos juntos na Alsácia, onde eu
salvei a vida dele. Alguns dias depois, ele salvou a minha: nós nos sentíamos
devedores um do outro. E, além disso, conversávamos muito sobre o nosso
país... No navio que nos trouxe de volta, fizemos planos, chegamos mesmo a
prometer que nos encontraríamos, esquecendo que éramos um judeu e um
muçulmano. A guerra que havíamos feito juntos, para salvar a "Mãe Pátria"
tornou-nos irmãos unidos para sempre. Separamo-nos com abraços depois de
trocar endereços; ainda não sabíamos o que tinha acontecido em Sétif. Um mês
depois do nosso retorno, recebi uma carta em que ele me contava que toda a
sua família, que trabalhava para um colono nos arredores de Saint-Arnaud,
tinha sido massacrada: a fim de vingar uma européia que havia sido violentada,
os colonos fizeram uma expedição punitiva pela região, fuzilando os árabes que
encontravam pelo caminho, não poupando nem as mulheres nem as crianças.
Os pais dele e três de seus irmãos foram mortos, as irmãs foram violentadas
antes de serem degoladas. Na carta, ele jurava vingá- los e me dizia
terminantemente para não tentar encontrá-lo: para ele, eu estava morto.
Escrevi em seguida para lhe dizer o quanto sentia, o quanto me envergonhava
de tudo aquilo; logicamente, nunca recebi resposta, mas soube que nas fileiras
da ALN, onde ele entrou, ele é dos que não poupam ninguém: tornou-se um dos
matadores da FLN e não duvido que se cair nas mãos dele, ele me matará...
Estou lhe contando isso, porque você não é daqui e porque eu tenho uma dor
enorme no coração por causa de toda essa confusão... Nós não soubemos viver
juntos, e isso Deus não nos perdoará jamais... Mas, desculpe-me por aborrecê-
lo com minhas lamentações... Eu... eu... deixo você no Saint-George?
— Você vai à manifestação amanhã?
— Então talvez nos encontremos lá.
Naquele domingo, 24 de janeiro de 1960, o tempo estava magnífico em
Argel quando Léa acordou.
— François...
Surpresa pelo silêncio, ela se levantou. Procurando-o com o olhar,
descobriu um pequeno bilhete pousado no travesseiro ao lado dela:
Minha querida,
Você dormia tão bem que não tive coragem de acordá-la. Vou me encontrar
com Challe e Delouvrier. O dia vai ser difícil. Seria prudente que você não
saísse do hotel, mas eu sei que você só faz o que lhe dá na cabeça. Pense no
seu velho marido e nas crianças...
Te amo,
François.
Léa pediu o café da manhã, decidida a não dar a menor bola para essa
recomendação. Depois de comer, tomou um banho rápido, vestiu um pulôver
leve, um terninho preto, calçou um par de sapatos simples e práticos. Numa
bolsa à tiracolo, colocou os documentos, os cigarros, um pouco de dinheiro e
amarrou um lenço de seda em volta do pescoço.
Na recepção, pediu um mapa da cidade. Depois de consultá-lo, desceu até
a Avenida Foureau e seguiu caminhando decidida até o centro de Argel. No céu,
nenhuma nuvem, mas um sol primaveril que vinha acariciar os galhos das
árvores. Levantando a cabeça, percebeu um pequeno avião que voava por cima
da cidade soltando milhares de pedaços de papel: "Panfletos, sem dúvida",
pensou ela. Rapidamente, uma esquadrilha de caça veio rodear o aparelho;
agrupados, eles desapareceram ao longe.
Diante do Palácio de Verão, militares montavam guarda. Mais longe,
outros esperavam, sentados nos caminhões. Na Rua Michelet, mulheres e
crianças com roupas de domingo, caminhavam, felizes.
Completamente à vontade, Léa observava tudo que acontecia ao seu redor:
se não fossem esses grupos de homens armados e esses soldados de uniformes
coloridos que trocavam brincadeiras uns com os outros, podia-se pensar que
era domingo de manhã em qualquer cidadezinha da França.
Os passageiros de um Simca azul, equipado com um alto-falante, uma
bandeira tricolor flutuando na janela, chamavam a população para se reunir às
onze horas no Platô Glières. Os territoriais, também de uniforme, obrigavam as
raras lojas ainda abertas a fechar. Um jovem munido de um rádio transistor fez
sinal para os que passavam para virem escutar a mensagem do Governo Geral
que a France-V irradiava; Léa aproximou-se.
"... Um panfleto distribuído esta manhã convida a população a se rebelar.
Para enganar os argelianos, criar tumultos que alguns acreditam subversivos,
espalham os boatos mais absurdos. Tudo isso é inventado para envenenar
Argel. A autoridade da França, aqui, não pode tolerar isso. O exército, que está
a serviço da França, não vai tolerar isso. Os responsáveis por essa
manifestação cometem um erro trágico. Eu rogo-lhes que se contenham a fim
de evitar um derramamento de sangue. A autoridade e o exército cumprirão o
seu dever."
Um leve instante de silêncio seguiu o apelo de Delouvrier, depois o dono do
radinho gritou:
— Abaixo De Gaulle! Viva a Argélia francesa!
— O exército está conosco! — Respondeu a assistência.
Uma mulher encarava Léa com insistência; incomodada, ela se afastou
para continuar seu caminho. Uma dezena de civis armados, usando
braçadeiras com a cruz celta, passou por ela correndo. Um jipe ocupado por
militares de farda camuflada diminuiu a velocidade quando passou por eles;
trocaram cumprimentos.
Policiais estavam estacionados na altura do Bulevar Victor-Hugo. Um
garoto esbarrou em Léa, gritando:
— O REP barrou a entrada da Télemly!
Na entrada dos túneis das faculdades, a multidão aumentava de minuto a
minuto.
Alguém gritou:
— Lagaillarde está falando! Lagaillarde está falando!
Levada pela multidão, Léa encontrou-se em frente à Universidade, cujo
terraço avançava por cima do telhado de um café, o Otornatic, sobre o qual se
agitava um barbudo com uniforme de paraquedista, uma metralhadora
pendurada no corpo, uma granada pendurada na lateral da roupa; ela
reconheceu o deputado que havia visto no Sept Merveilies.
— "... Os homens fechados dentro das faculdades estão decididos, ao preço
de suas vidas, a obter do Governo a afirmação de que a Argélia permanecerá
francesa. Sem segundas intenções políticas, tendo como única ambição
continuar em comunhão íntima com o exército eles apreendem as incertezas
deste dia. Querem apenas constituir uma força imóvel e silenciosa que não
sairá de seu perímetro. Pronta a morrer aí caso seja atacada. Mas ela quer
forçar os poderes públicos da metrópole à tomada de consciência que há um
ano e meio se espera em vão..."
Nesse momento um coronel da polícia intimou que ele se calasse e se
apresentasse ao general Chalie.
— Viva a Argélia francesa! — Gritou, então, a multidão.
Lagaillarde saudou com a mão, deixou o telhado do Otornatic e disparou
para os jardins da Universidade.
Mais além, as pessoas se acotovelavam na esquina da Rua Charles Péguy
com o Bulevar Laferriére, diante do prédio da Companhia argeliana, cuja
entrada estava encimada por uma bandeira branca sobre a qual as palavras
Argélia francesa estavam escritas em letras azuis e vermelhas. No balcão, perto
de um grande retrato do general Massu, um homem se agitava, agarrado ao
microfone:
—... O grande dia chegou. Estamos aqui para que viva a Argélia francesa e
só sairemos quando o general Massu estiver de volta!
— Massu!... Massu!...
— Alions, enfanfs de la patrie...
A Marselhesa brotou da multidão, Léa estremeceu.
No alto da escada monumental que conduzia ao Governo Geral, os
caminhões da polícia e da CRS fechavam o acesso ao Foram. Três helicópteros
pretos voavam em círculos sobre o Platô Glières, enchendo o ar com um
barulho ensurdecedor.
Deixando o Hotel Saint-George, François Tavernier foi a pé para o Quartel
Rignot, onde se encontravam o general Chalie e Paul Delouvrier; os CRS ainda
guardavam os prédios. No interior da vila do estado-maior das várias armas, o
comandante em chefe e o general residente se inclinavam sobre um grande
mapa da cidade.
— As barreiras cedem uma após a outra. — Suspirou Maurice Challe
fumando seu cachimbo. — "Não vai acontecer nada", me disse há três dias o
general De Gaulle. Crépin não tem competência, é de Massu que precisamos.
Os pés-pretos se consideram o símbolo da Argélia francesa e a última muralha
antes do ultimato: "partam ou morram". O sangue vai correr em Argel...
Lagaillarde está entrincheirado nas faculdades. Deve haver mais de mil pessoas
no Platô Glières...
— Isso não é nada perto das cem mil esperadas por Ortiz. — Observou
François.
— Está certo, mas se nós não tivéssemos bloqueado as passagens da
Mitidja e dos bairros da periferia de Hussein-Dey e Maison-Carrée, seriam
efetivamente cem mil a gritar "Viva Massu!" e "Abaixo De Gaulle!"...
— O pior seria a confraternização entre o exército e a população. —
Corrigiu Delouvrier.
— Eu tenho confiança no exército. — Afirmou Challe.
— E, depois, os paraquedistas é que são responsáveis pela manutenção da
ordem. — Declarou Michel-Jean Maffart, chefe de gabinete de Delouvrier. —
Não há nenhuma razão para pensar que eles ficarão neutros diante da
manifestação. Ortiz é considerado um falastrão, incapaz de ser um organizador
sério. Não é como Lagailiarde que, felizmente, controla apenas pessoas muito
jovens. O risco não é maior do que nas dez manifestações anteriores. O coronel
Godard assegurou-nos que não há nada a temer, que ele tem a situação sob
controle. É o Chefe da Segurança, ele sabe do que está falando. Ele e Gardes
estão perfeitamente informados das operações conduzidas pela Frente Nacional
Francesa.
— E isso basta para tranqüilizá-los? — Inquietou-se François.
Maffart levantou os ombros, depois atendeu o telefone que não parava de
tocar. Quando pousou o fone, sua testa estava coberta de suor.
— Há milhares de pessoas vindo da ponta Pescade, de Saint-Eugène e de
Bab el-Oued!
— Gostaria de ir ver pessoalmente. -Decidiu François. -Você pode me
arrumar um veículo?
— Sargento! — Chamou Challe. — Você conhece bem Argel, não é? Pegue
um jipe e leve o sr. Tavernier aonde ele desejar. Pegue salvo-condutos.
— Às suas ordens, meu general.
— E traga-me Ortiz e Lagaillarde! — Acrescentou o general.
— Aonde vamos? — Perguntou o jovem sargento, sentando-se ao volante
do jipe.
— À caserna Pélissier.
— Não vai ser fácil, há barricadas por todo lado...
— Vamos tentar assim mesmo, veremos... Como é o seu nome?
— Dubois, senhor, Roger Dubois... Vamos tentar pela Télemly?
Na altura do parque de Galland, eles foram parados pelos paraquedistas
do 1º REP.
— Podem ir. — Disse o tenente quando viu os salvo-condutos.
Tiveram que fazer novas paradas na curva Lafayette, depois na do Sept
Merveilles. Contornaram o estádio para chegar à Avenida Marechal de
Bourmont. Diante da caserna de Orléans havia dezenas de veículos militares
estacionados. Os policiais rodeavam a prisão e a chefatura de polícia. Não se
ouvia um barulho vindo da Casbah. Na parte de baixo do Bulevar Verdun, eles
encontraram os primeiros manifestantes que agitavam bandeiras tricolores.
Vindo da Avenida Bouzaréah, eles se chocaram com os paraquedistas que
tentaram contê-los a coronhadas; alguns, feridos nas mãos e no rosto,
recebiam os primeiros cuidados dispensados por umas moças. Entre o liceu
Bugeaud e a caserna Pélissier, uma grande barreira, feita por paraquedistas de
capacete "à Bigeard", impedia a travessia da Praça Jean Mermoz.
De braços dados, territoriais uniformizados, mas desarmados, avançavam
para a barricada. Com todas as condecorações à mostra, os antigos
combatentes iam na frente, empunhando as bandeiras de seus regimentos.
Atrás deles, milhares de argelianos, alguns com mulher e filhos, gritavam
slogans hostis a De Gaulle, exigindo o retorno de Massu. Era toda a população
européia de Argel que se reunia para dizer não à política da França:
combatentes de duas guerras, UTs, civis, jovens e velhos se comprimiam na
frente dos paraquedistas que partilhavam suas convicções. Olharam-se,
sorriram. A uma só voz, os manifestantes recomeçaram:
— Argélia francesa!... Argélia francesa! O exército conosco!...
Os paraquedistas não sabiam mais qual era o dever deles: para eles
também a Argélia só podia ser francesa. Sem pensar, recuaram com as
metralhadoras no peito. As jovens se grudaram no pescoço deles, os velhos
combatentes os abraçavam: "Somos todos irmãos! Esta terra é nossa para
sempre!" A Marselhesa explodiu, os olhos se molharam: "Vamos todos para o
Platô Glières!"
Após uma simulação de resistência, as barreiras que os paraquedistas
defendiam abriram-se uma depois da outra diante do fluxo humano. Se os
CRSs e os policiais permaneciam distantes, tal não era o caso dos
paraquedistas que a multidão ovacionava; entre estes últimos, alguns
chegavam a dizer: "Estamos com vocês!"
— É impressionante. — Resmungou o sargento Dubois que havia
conseguido levar o jipe à frente do cortejo.
— Acelere e deixe-me na parte de baixo do Platô Gliéres. — Limitou-se a
dizer François Tavernier.
— O que devo fazer agora? — Perguntou o suboficial, alguns instantes
mais tarde, estacionando o veículo.
— Me dê as chaves e volte para o quartel Rignot.
— Mas... o que o general Challe vai dizer?
— Vá, é uma ordem!
Contrariado, o sargento obedeceu. François escorregou para o lugar do
motorista e saiu bruscamente sob o olhar de um destacamento de CRS que
controlava o Bulevar Baudin, deixando a Dubois a tarefa de explicar-lhes a
situação. Ele desceu a rampa Tafourah, atravessou a rua Bapaume, percorreu
enfim a Rua Beaucaire até o cais Bizerte. "Eu tenho uma pequena oficina no
cais", confidenciou-lhe um dia Joseph Benguigui, "onde faço alguns consertos
de vez em quando. Aqui está a chave, talvez lhe seja útil um dia...". O portão de
ferro deslizou sobre os trilhos, revelando um lugar amplo, onde ele colocou o
carro.
Como um fluxo irresistível, a multidão que descia de Bab el-Oued
caminhava em direção ao centro de Argel. Lá pelo meio-dia, ela invadiu o
Bulevar Laferriêre até o prédio do Correio, em cujas escadarias gesticulavam
alguns jovens exibindo suas braçadeiras com a cruz celta. Diante deles, na
Praça Charles-Péguy, Joana d'Arc, em seu cavalo, empunhava uma bandeira
francesa, assim como um cartaz onde se lia em letras vermelhas: "Argélia,
província francesa".
Léa voltava em direção ao monumento aos mortos, de onde examinava a
massa branca que dominava os canteiros do Bulevar Laferrière. Sobre o baixo-
relevo circular, soldados com capacetes, de um lado, e soldados com turbantes,
de outro, vinham ao encontro de uma mãe e sua filhinha que lhes ofereciam
flores. Mais para cima ainda, três cavaleiros em suas montarias com a cabeça
abaixada, um ao lado do outro, sustentavam com os braços levantados uma
estátua representando um morto. No centro, uma mulher jovem, simbolizando
a França, tinha à sua esquerda um spalzi e à sua direita, sob a cabeça da
estátua, um soldado vestido com um longo capote. Léa pensou num grande
bolo em camadas que escorriam, bonito apesar de tudo. Os degraus em volta do
monumento eram rodeados por paredes de mármore nas quais figuravam,
gravados, os nomes dos milhares de mortos argelianos da Primeira e Segunda
Guerra. Um oficial da polícia veio na direção dela, correndo. - — A senhora não
pode ficar aqui. É proibido!
O homem demonstrava tamanho nervosismo que ela obedeceu
imediatamente e desceu a escadaria. No Bulevar Pasteur, um empurra-empurra
jogou-a na direção da entrada de um prédio de estilo mourisco. Dali, alguns
militares contemplavam o movimento da rua, como se fosse um espetáculo. Um
tenente puxou-a para dentro.
— Você devia voltar para casa, isto aqui pode acabar mal.
— Obrigada, mas prefiro ficar... Na verdade, por que vocês não reagem se
acham que a coisa vai degenerar?
— Nós obedecemos ordens.
— Ah... O que é isto aqui?
— Aqui é a sede do Bled, o jornal dos soldados.
Através da porta de vidro, Léa arriscou uma olhada para fora.
— Parece mais calmo, agora. Vou embora.
— Tenha cuidado, seria uma pena se acontecesse algo a uma mulher tão
bonita...
Saindo, Léa sorriu para o soldado.
— Ei, volte quando quiser; pergunte pelo tenente Pascal... Bernard Pascal!
Na Avenida Pasteur as mulheres repreendiam os homens:
— É hora do almoço, vamos para casa!
Léa achou engraçado, sem dúvida, estavam mesmo na França, onde a
hora das refeições é sagrada, principalmente o almoço de domingo. Casais
rodeados pelos filhos deixaram a manifestação e, logo, a maioria eram só
rapazes, que haviam ficado, dispostos a bater-se furiosamente com as forças da
ordem.
Capítulo 17
Somente a algumas centenas de metros do lugar onde se encontrava Léa,
François chegava ao QG da Frente Nacional Francesa. Ele ergueu os olhos para
o balcão enfeitado com uma bandeirola tricolor com as palavras: "Argélia
Francesa"; o coronel Gardes e Joseph Ortiz estavam lado a lado. Ortiz estendia
os braços para a multidão que, agrupada diante do prédio, o aplaudia com
todas as forças. François mostrou seu salvo-conduto aos territoriais armados
que guardavam a entrada. Subiu a escada de quatro em quatro até o andar
onde Jean-Jacques Susini e o sr. Pérez acolheram-no friamente.
— Estou procurando você há dois dias. — Disse ele a Gardes.
— Bem, agora me encontrou... Que posso fazer por você?
— Sua presença neste lugar responde às perguntas que eu me fazia...
O coronel pegou-o pelo braço e puxou-o para um canto da sala.
— Não confie nas aparências. — Confidenciou ele, sem olhar para o
interlocutor. — Estou aqui a serviço.
— Se você diz... — Soltou François com uma desenvoltura que já ofendera
mais de uma pessoa.
Cardes tirou o quepe e enxugou a testa.
— O que você veio fazer aqui? — Perguntou ele.
— O general Challe deseja que Ortiz vá vê-lo.
— Eu sei.
— E o que ele decidiu?
— Pergunte a ele... Ortiz! O sr. Tavernier quer saber se você vai responder
ao chamado do comandante em chefe.
— Você está encarregado de me escoltar? Decididamente, estou muito
requisitado... Já informei aos membros do meu gabinete diretor e aos
representantes do Comitê da Convenção dos movimentos nacionais aqui
presentes sobre esse "convite". Eles temem que seja uma armadilha... Você
pode me garantir que não é uma cilada?
— Esse tipo de coisa não faz parte dos hábitos do general Chaile.
Um capitão aproximou-se do dono do café.
— O carro que deve levá-lo já chegou.
— Obrigado, Filippi. — Respondeu o sr. Jo.
Ele foi para o balcão e dirigiu-se à multidão:
— Fui convocado por Challe. Se eu não voltar em uma hora, vocês sabem o
que devem fazer!
— Não vá! — Gritaram de volta os manifestantes.
— Esta não é a grande rebelião esperada. — Constatou François, tomando
Cardes como testemunha. — Nada a ver com a hecatombe de 13 de maio.
Tenho a impressão de que isto não vai ser como vocês esperavam.
O coronel, com os maxilares travados, não respondeu nada e saiu da sala.
Acompanhado pelo capitão Filippi, Ortiz entrou no banco de trás de um
203 preto, conduzido por um militar e cujo motor não havia sido desligado.
Tavernier sentou-se ao lado do motorista. Alguns militantes puseram-se na
frente do carro para impedi-lo de sair.
— Jo! Não vá, é uma cilada... — Gritavam.
— Não se preocupem, amigos. Estarei de volta em uma hora. — Assegurou
ele, inclinado para fora da janela do carro.
Dois territoriais montados nos pára-lamas dianteiros do Peugeot abriam
passagem fazendo gestos com os braços. O motorista ia lentamente entre duas
alas de rostos hostis. Na Avenida Pasteur, já havia muito menos gente. Viraram
à direita na Rua Edouard-Cat, depois pegaram a Rua Berthezéne onde havia
barreiras de arame farpado a cada vinte metros. Havia soldados postados na
grande escadaria que levava ao Fortim, enquanto muitos caminhões estavam
estacionados do lado direito da rua. Depois de contornar o Governo Geral, o
carro entrou no pátio de honra e parou diante da entrada do prédio. Por todo
lado, soldados de capacete, armados, mantinham-se perto de metralhadoras
prontas para atirar. Ortiz examinou com um olhar preocupado essa
demonstração de força. No interior do CC, os CRSs montavam guarda, de
metralhadoras no ombro.
— O general Challe foi para o quartel Rignot; ele os espera lá. — Anunciou
um oficial ao dono do Fórum.
No Bulevar Télemly, o 203 passou por uma fileira de carros ocupados por
famílias que iam fazer um piquenique nas praias ou nos bosques em volta de
Argel. O trânsito estava lento. François percebeu a expressão desanimada de
Ortiz que exclamou repentinamente:
— Que tristeza! Eles vão se divertir enquanto uma manifestação se
desenrola para que a Argélia continue sendo da França. Eles não se dão conta
de que dessa manifestação dependem o destino deles e o de seu país! Para eles,
hoje, é principalmente um belo domingo de sol. Que egoísmo, mas também, que
medo! "Os outros que se virem, eu não quero saber de política!" Como se todos,
na nossa Argélia, do mais humilde ao mais rico, não dependêssemos da
evolução política!
Ele se encolheu contra a porta do carro, remoendo sua decepção.
Enfiando o dedo na ferida, Tavernier virou-se para ele e sussurrou, com
pena:
— Só se pode contar consigo mesmo...
Ortiz rugiu ao mesmo tempo em que o sangue lhe subia ao rosto:
— Cale a boca!
No quartel Rignot, alguns oficiais conversavam na frente da escadaria
externa. Entre eles, o general Challe, de cabeça descoberta, mordia um
sanduíche. Vendo-os, veio até o chefe da FNF e lhe estendeu a mão.
— Bom apetite, general. — Disse Ortiz.
— Obrigado... Já almoçou?
— Não tive tempo.
— É servido? — Propôs Chalie, partindo seu lanche ao meio.
— Com prazer, general.
— Siga-me.
Os dois homens entraram na sala dos ajudantes de campo.
— Então, como vai a sua manifestação?
— Sob a pressão do movimento popular, ela era inevitável, general.
— Respondeu o sr. Jo, com a boca cheia.
— Até onde pretende ir, Ortiz? Não se esqueça de que sou responsável pela
ordem e que ela será mantida custe o que custar. Você sabe quais são minhas
ordens? Se atacarem os edifícios públicos, se atirarem contra as forças da
ordem, mandarei abrir fogo.
— Nós só queremos obrigar o governo a mudar de política e nos mandar
Massu de volta. E, depois, queremos criar a "Argélia francesa" diante do
monumento aos mortos!
— Vocês não devem se aproximar do Fortim com homens armados,
brandindo emblemas fascistas. Faça-os voltar para casa.
— Mas... eles não vão obedecer!
— Sr. Ortiz, gostaria que o senhor fizesse as coisas de tal modo que a
multidão não fosse para o Fórum.
— Para isso, seria necessário que eu pudesse garantir a eles que o exército
ficará na Argélia. O senhor pode me garantir isso, general?
— Com certeza, senhor. O Chefe de Estado e o Primeiro-Ministro acabaram
de me reafirmar isso. Diga isso a seus amigos. Diga-lhes também para não
invadirem os prédios públicos. Com essa condição, vocês podem prosseguir
com a manifestação e continuar a exigir o retorno de Massu. De uma certa
forma, esse movimento popular me faz um favor, porque confirma o que afirmei
ao general De Gaulle sobre o estado de espírito dos habitantes de Argel. Se
vocês se contiverem, se a manifestação não ultrapassar a Avenida Pasteur, ela
não será dispersada pela força. Mas seria melhor que ela terminasse logo...
Tenho a sua promessa?
— Tem, general. Os manifestantes não ultrapassarão a Avenida Pasteur.
— Bem, volte para a sua gente. Tente convencê-los e ligue para mim lá
pelas catorze e trinta.
— Tentarei, general.
— Vá; eu tenho a sua promessa, você tem a minha.
Um aperto de mão selou o "acordo".
No pátio, François Tavernier terminava de engolir um sanduíche na
companhia do capitão Filippi, que o deixou imediatamente para ir ao encontro
de Ortiz.
— Então?
— A manifestação está autorizada. Somente dei minha palavra de honra
que nós não marcharíamos para o Foruin... Vamos voltar para a Rua Charles-
Péguy.
Um jovem soldado da aeronáutica abordou François:
— Senhor, o comandante em chefe o chama.
No gabinete, Challe mastigava a haste de seu cachimbo.
— Quais são as suas impressões? — Lançou ele sem preâmbulos.
— Ao mesmo tempo boas e más: boas, porque afinal há menos gente do
que o previsto; as barreiras impedem que os colonos venham para Argel; más,
porque os paraquedistas deixaram passar os argelianos, o que os autoriza a
pensar que o exército está com eles. A presença do coronel Gardes ao lado de
Ortiz apenas confirma isso. Muitas armas estão circulando, basta que um
agitador...
— Eu sei disso tudo, mas conto com o general Fonde, com quem acabo de
falar pelo telefone. Ele ordenou aos regimentos de paraquedistas que vão para o
centro: o coronel Bonnigal ficará com o 3º RPI da marinha diante da caserna
Pélissier, o coronel Broizat e seu RC vão barrar o Bulevar Baudin na altura da
Maurétania, e o coronel Dufour e seu REP farão o mesmo na altura do Parque
Galland. O plano de Fonde é usar os regimentos de camuflados e o de policiais
do Forum para agir como proteção contra a multidão de manifestantes e
empurrá-los para o oeste da cidade pela Rua Isly e a rampa Bugeaud, que
foram deixadas abertas.
— O plano parece bom, mas você tem certeza quanto aos paraquedistas?
— Não tenho certeza de nada nem de ninguém. Como você observou, basta
uma provocação para que aconteça o pior. Você deveria voltar para Paris e
expor a situação ao general de Gaulie.
— Isso não mudaria nada, você sabe muito bem.
— Está certo... Não foi por falta de insistir que ele nos devolvesse Massu e
de adverti-lo de que o sangue ia correr em Argel. "Não vai acontecer nada", me
respondeu ele... Você veio com Ortiz, o que foi feito do sargento Dubois e do
jipe?
— Ele me espera no porto. — Mentiu ele, perguntando-se por onde andaria
o suboficial. — Aliás, vou voltar para lá.
Eles se separaram com um aperto de mão.
Quando François Tavernier voltou para o pátio, o 203 que o tinha trazido
já fora embora. Contrariado, olhou em volta. Uma moto parou diante da
escadaria; o estafeta que a dirigia entrou precipitadamente no prédio. Sem a
menor hesitação, François montou na moto e saiu do quartel Rignot sob a
indiferença geral.
Um pouco mais tarde, ele passou sem problemas pelo controle dos
paraquedistas do 1 REP. Fora os veículos militares e alguns raros pedestres, a
Rua Michelet abria-se diante dele, quase deserta. François desceu a rampa até
a Praça Lyautey. No começo da Rua Charles-Péguy, na esquina com a
Universidade, alguns jovens puseram uns carros atravessados na rua,
colocando sobre eles umas pranchas que haviam arrancado da paliçada que
fechava o canteiro do crédito agrícola. Outros se ocupavam em arrancar o
pavimento com a ajuda de barras de ferro, enquanto um grandalhão fazia
buracos na rua. Impossível passar. François fez meia-volta e, subindo a rua
Michelet, conseguiu chegar ao Platô Gliéres pelo Bulevar Baudin. Os argelinos,
voltando do almoço, tornavam-se cada vez mais numerosos. Do QG de Ortiz, os
alto- falantes difundiam música militar. As famílias sentadas nos gramados, ao
sol, trocavam informações: "As tropas de uma zona se rebelaram e vêm se
juntar a nós!"... "Houve um atentado em Paris contra de Gaulle!"... "A multidão
invadiu a Chefatura de Polícia em Oran!"... Os garotos corriam de um grupo ao
outro, distribuindo folhetos. Um menino de uns treze anos ofereceu um a
François:
Nós estamos contra a parede, de frente para os que querem nos liquidar. É
o dia do grande combate. O exército assume suas responsabilidades. Nós
assumimos as nossas.
Como o daquela manhã, este panfleto estava assinado conjuntamente
pelas unidades territoriais, pelos antigos combatentes e pelos movimentos
nacionais.
Ele amarrotou o papel e enfiou-o no bolso. Uns territoriais de boina preta,
habitualmente encarregados de "pacificar" os bairros difíceis, subiam o Bulevar
Laferriére, em filas de dois, sob a aclamação da multidão. A confusão foi
tamanha que François resolveu abandonar a moto. Na Rua Monge, ele
empurrou-a para dentro de um prédio e escondeu-a embaixo da escada. Uma
menininha de uns três ou quatro anos ficou olhando para ele enquanto
chupava o dedo. Ele se aproximou dela e abaixou-se para ficar no nível dela.
— Psiu!... — Fez ele, com um dedo sobre os lábios.
Os helicópteros pretos voavam ainda por cima dos manifestantes.
Agora, já havia milhares deles, talvez mesmo dezenas de milhares. Diante
do prédio onde estava localizado o QG de Ortiz, gritos hostis se elevavam de
uma massa compacta:
— Fora de Gaulle. O exército conosco!...
O chefe da Frente Nacional Francesa apareceu no balcão, uma ovação
formidável subiu da multidão:
— Viva a Frente Nacional!... Viva Ortiz!... Viva Massu!... Aquele que "havia
almoçado com o general Challe" — boato espalhado por seus amigos para
reforçar a idéia de que o exército caminhava com os manifestantes — estendeu
as mãos para pedir silêncio. Pouco a pouco, o rugido acalmou-se.
— Argelianos, argelianas, chegou a hora de dizer não à política do
abandono. Sabotaram o nosso 13 de maio. Nós, patriotas de Argel,
defenderemos até o fim a Argélia francesa. O mundo inteiro tem os olhos
voltados para nós. Não basta mais gritar "Argélia francesa". O marechal Foch
dizia às suas tropas, na véspera da batalha de Mame: "Vocês devem defender
cada metro do território: aquele que recuar é um traidor." Bem, para vocês
também, povo de Argel, a hora do heroísmo talvez tenha soado! É preciso que
vocês demonstrem heroísmo e não recuem nem um metro. Paris atira em nós
pelas costas. Paris destituiu o general Massu. Paris envia seus mercenários
contra o povo de Argel em vez de mandá-los para o djehel combater os
assassinos aos quais se propõe a paz dos bravos. Viva o general Massu! Viva a
Argélia francesa!
— Viva o general Massu! Viva a Argélia francesa! — Repetiu a multidão
que, num mesmo impulso, cantou a Marselhesa e depois o Canto dos
Africanos.
Ao redor de François, mulheres, parecendo mamas italianas, algumas
carregando uma criança, outras, idosas e vestidas de preto, parecendo
camponesas da Córsega, mocinhas com vestidos claros, velhotes de capacete na
cabeça ou de chapéu na mão, homens na força da idade, estudantes ou
empregados — todos punham na voz a força de seu amor por este país que lhes
dera tanto. Em alguns rostos, lágrimas corriam.
Léa havia entrado no restaurante do Hotel Albert, na esquina da Avenida
Pasteur com o Bulevar Laferrière. Na sala lotada, os freqüentadores de domingo
não haviam alterado em nada seus hábitos; cumprimentavam-se, iam de uma
mesa a outra, fazendo comentários sobre os acontecimentos do dia. As
mulheres endomingadas encararam Léa quando ela entrou na sala, com o
maître em seus calcanhares.
— Mas... Senhora, eu insisto, não há mais nenhuma mesa desocupada...
— E esta aqui, perto da janela?
— Ela também está reservada, senhora.
Léa sentou-se.
— Este lugar está perfeito para mim. Traga-me o cardápio, por favor.
— Senhora!
— Não esqueça a carta de vinhos.
Escarlate, o maître afastou-se. No mesmo instante, uma mulher gorda, de
cabelos brancos presos num coque no alto da cabeça, entrou acompanhada por
dois jovens, visivelmente irmão e irmã. Vestida com um elegante conjunto
cinza, ela se dirigiu para a janela, depois parou, surpresa, diante da mesa que
Léa ocupava.
— Esta senhora quis se sentar de qualquer jeito... — Tentou explicar- se o
maître.
Léa levantou-se.
— Desculpe, senhora, mas não havia outro lugar.
— Você está sozinha?
— Sim.
— Então, não é nada grave. É uma mesa para quatro e nós somos apenas
três. Sente-se.
— Agradeço muito. — Disse Léa, sentando-se. — Permita-me apresentar-
me: Léa Tavernier... cheguei de Paris.
— Já suspeitava... Seja bem-vinda. Eu sou a sra. Martel-Rodriguez. Estes
são meus netos, Héléne e Serge... Você chegou em Argel numa hora ruim. Há
quanto tempo está aqui?
— Há dois dias.
— É muito pouco, evidentemente, para ter uma idéia... Recomendo as
codornas recheadas com foiegras, são excelentes.
— Obrigada, vou seguir o seu conselho.
Em pouco tempo, elas conversavam como velhas conhecidas sob o olhar
estupefato dos funcionários e dos outros clientes.
— Nós despertamos a curiosidade.., principalmente você, minha cara. Não
estamos acostumados a ver uma mulher jovem e bonita sozinha num
restaurante...
— A senhora morreria de fome se não estivesse acompanhada?
A sra. Martel-Rodriguez caiu numa gargalhada que surpreendia pela
juventude.
— Claro que não. Estou habituada a fazer coisas sozinha há muito tempo
e a não dar satisfação a ninguém. Mas, aqui, as mulheres raramente vão
desacompanhadas a lugares públicos, isso não é bem visto. O que você quer?
Nós somos do Mediterrâneo... Fale-me de Paris: faz uma eternidade que não
vou lá... Mas, o que você está olhando?
— Desculpe, eu me perguntava, vendo tanta gente lá fora, como irá
terminar este dia...
Sua interlocutora lançou-lhe um olhar agudo, depois deu uma olhada para
os jardins que subiam até o monumento aos mortos. Nas escadarias que
ficavam ao lado dos canteiros, as famílias faziam piquenique, alguns
bebericavam uma cerveja.
— Fale-me de Paris. — Insistiu a argeliana.
Por muitas vezes, amigos e conhecidos paravam diante da mesa, obrigando
Léa a parar de falar. A cada vez, a sra. Martel-Rodriguez a apresentava.
— Uma amiga, sra. Tavernier.
— Sua avó conhece todo mundo. — Observou Léa ao ouvido de Hélène.
— É natural. — Respondeu a garota, orgulhosa. — Nós pertencemos a
uma das famílias mais antigas da Argélia.
— Essa não é a única razão. — Respondeu o garoto. — Vovó é muito
respeitada, ela é amada por todos porque faz muita caridade.
A sra. Martel-Rodriguez pediu ao maître que lhe servisse vinho, depois,
virando-se para Léa, completou:
— Meu avô instalou-se na Argélia logo após a conquista. Era um pequeno
vinicultor alsaciano, que trabalhava duro. Chegou com a mulher que esperava
um filho. Escolheram estabelecer-se em Blinda onde, pouco depois, meu pai
nasceu. Minha avó era uma mulher simples e boa que ajudava o marido no
trabalho, apesar de ficar grávida várias vezes em seguida. Ela morreu quando
meu pai tinha apenas oito anos, deixando cinco crianças, das quais três eram
mulheres. Meu avô mandou chamar uma de suas irmãs, Marthe, para cuidar
das crianças. Ele nunca voltou a se casar. Pouco a pouco, aumentou seus
domínios e tornou-se um dos colonos mais importantes da região. Todos
temiam e respeitavam aquele homem justo, porém severo...
— Como você, vovó. — Deixou escapar Hélène.
Ignorando a interrupção, a sra. Martel-Rodriguez prosseguiu:
— Meu pai, seu irmão e suas irmãs foram educados no temor a Deus, na
observância dos Dez Mandamentos e no amor pela Pátria. Graças à tia, não
sofreram muito com a perda da mãe. Mais tarde, um preceptor veio da França
para instruí-los. Alguns anos mais tarde, esse homem casou-se com a tia
Marthe, com a qual teve três filhos. As duas famílias acomodavam-se na
enorme propriedade construída por meu avô, no meio das vinhas e dos
pomares. Os trabalhadores dos campos, os pastores e suas famílias viviam
numa vila, construída para eles, que compreendia uma escola e uma capela.
Nada faltava aos nossos árabes e, se uma de suas crianças mostrava disposição
para os estudos, meu avô custeava as despesas. Assim, um deles tornou-se
médico, um outro, professor, outros, suboficiais ou contramestres. As meninas,
por sua vez, aprendiam a costurar, cozinhar e a cuidar de crianças. Meu pai
viveu livre e feliz, preferindo a caça e os cavalos aos estudos, os amigos
muçulmanos aos europeus. Com doze anos, falava árabe melhor que francês.
Seu irmão desapareceu no mar durante um naufrágio. Com a morte de meu
avô, ele assumiu o controle dos negócios e casou-se, com mais de quarenta
anos, com a única herdeira de uma rica família de colonos espanhóis. Quando
reuniram as terras, elas se estendiam por uma superfície tão grande quanto a
de um dos departamentos da França. Minha mãe, Juanita, morreu poucos anos
depois do meu nascimento, depois de vários abortos. Foi a mulher de meu tio
que me criou. Cresci feliz, como um animalzinho em liberdade, no meio de um
monte de primos. Infelizmente, quando eu tinha doze anos, meu pai, apesar de
me adorar, enviou-me para um convento de Strasbourg para que me
transformassem numa moça educada. O pretenso garoto que era eu sofreu
muito com essa nova vida, feita de obrigações que eu considerava
insuportáveis. Eu não tolerava o frio, a falta de sol, só vivia esperando as férias
que me levariam de volta ao meu maravilhoso país. Durante dois meses, então,
eu fazia uma provisão de lembranças e, a cada retorno à França, eu desejava
morrer. No quarto ano de meu exílio, fiquei tão gravemente doente que me
consideraram condenada à morte, e levaram-me de volta para casa a fim de que
eu desse meu último suspiro junto aos meus. Meu pai chorava e me pedia
perdão. Um velho marabu da região, estimado por todos, veio me ver e
aconselhou a meu pai que me instalasse embaixo dos eucaliptos e deixasse a
natureza agir... O bom homem tinha razão: recuperei aos poucos a saúde. Meu
pai ficou tão feliz que deu uma festa que durou uma semana inteira e sobre a
qual os jornais falaram por muito tempo. Foi nessa festa que conheci um primo
afastado, do lado da minha mãe, Miguel Rodriguez. Seis meses depois, com
apenas dezessete anos, casei-me com ele. Durante alguns anos, nossa
felicidade foi completa. Dei-lhe três filhos e depois veio a guerra. Dois anos
mais tarde, meu marido foi morto no comando de seus homens. Cinco
membros da família sacrificaram sua vida pela França. Meu pai, ainda que
muito idoso, dirigia toda a propriedade. Ele decidiu me introduzir
progressivamente no trabalho e fazer de mim sua futura sucessora.
Quando ele morreu, com quase cem anos, ele considerava que eu tinha me
tornado sua digna herdeira. Foi graças a esse trabalho e a meus filhos que
pude superar o sofrimento que me causou a perda de meu marido. Além disso,
por uma carta que li depois de sua morte, meu pai me confidenciava que ele
compreendera logo que só o amor que eu sentia por nossa terra poderia me
salvar do desespero... Você está pensativa?
— Escutando a senhora, eu pensava em meu pai, que também me
transmitiu o amor por nossa terra. Montillac — é esse o nome de nossa
propriedade — continua sendo a única referência permanente da minha
existência. Se a perdesse, tenho a impressão de que perderia mais do que a
vida...
A sra. Martel-Rodriguez olhou para ela com uma emoção que não tentou
disfarçar. Pousou delicadamente a mão sobre a de Léa e disse gentilmente:
— Agora, você pode compreender o sentimento que temos com a idéia de
perder nosso país.
Léa sentiu que entrava num terreno perigoso e que não podia responder
francamente sem ferir sua interlocutora.
Ela retirou a mão e perguntou:
— A senhora se incomoda se eu fumar?
— De jeito nenhum, eu também fumo.
Unindo o gesto à palavra, a sra. Martel-Rodriguez tirou da bolsa um estojo
de charutos de prata e praticamente se desculpou:
— Meu pai só fumava havanas; ele me transmitiu seu vício... Você deve
achar que, para uma mulher, não é conveniente. Mas, na minha idade, não se
deve ligar para as convenções. Não lhe ofereço, imagino que não deve gostar...
— Ao contrário, gostaria muito de fumar um. Gosto do que não é
conveniente...
De novo, a risada tão jovem explodiu. Elas prepararam os charutos e
acenderam. Fumaram com volúpia, sob os olhares reprovadores dos outros
clientes. Percebendo isso ao mesmo tempo, elas trocaram um olhar cúmplice.
— Você é a primeira mulher que eu conheço que fuma charutos. Faz muito
tempo?
— Não muito. Foi em Cuba que comecei.
— Vovó, podemos ir dar uma volta? — Perguntou Hélêne.
— Desculpem-me, queridos, devo estar amolando vocês com minhas
histórias. Vão, mas tenham cuidado: há cada vez mais gente... São bons
garotos. — Acrescentou ela, vendo-os sair. — Você quer mais um café?
— Com prazer... Permite?
Léa olhou para o relógio: eram dezesseis e trinta.
— Não vi o tempo passar! Com licença, preciso telefonar.
— Vá, mas volte logo: gosto muito de você...
Uma dezena de jornalistas e fotógrafos andavam para lá e para cá diante
da recepção, esperando que completassem as ligações que haviam pedido.
Quando Léa pediu, a telefonista respondeu:
— Vai demorar muito, senhora.
Ela desistiu e foi até a porta: o Bulevar Laferriêre havia desaparecido sob a
maré humana de onde vinham, às vezes, os gritos de "Argélia francesa!"... Nas
escadarias, acima do monumento aos mortos, destacavam- se as silhuetas de
capacete das forças da ordem. Léa voltou para a sala e percebeu que ninguém
tinha saído do lugar. Ela sentou-se.
— Você parece preocupada...
— É que há realmente muita gente, agora.
— Melhor! Quanto mais gente, mais o Governo será obrigado a nos ouvir.
— A senhora não teme algum incidente?
— O que importa a perda de algumas vidas se a Argélia continuar
francesa?
"Ela me mataria", pensou Léa, "se ela soubesse que eu ajudei a FLN".
Serge e Hélène reapareceram, afobados.
— Vovó, estão montando uma barricada na frente da Universidade!
Na sala, algumas exclamações escaparam e alguns senhores se
precipitaram para a Avenida Pasteur. Depois de uns dez minutos, eles
voltaram.
— Estão fazendo outra barricada na rua Charles-Péguy e estão arrancando
o pavimento das ruas!
— Eu vi metralhadoras no balcão de Ortiz!
— Vão ordenar aos CRSs que carreguem!
— A greve geral ilimitada foi proclamada!
— Todos às barricadas! — Exclamou um jovem brandindo seu revólver.
— Vamos para casa. — Insistiu uma mulher, puxando o marido pela
manga.
A saída deles foi seguida por outros.
— Os covardes! — Disse entre os dentes a sra. Martel-Rodriguez.
Um muçulmano abriu caminho na multidão; sua presença no meio dos
europeus destoava. Apavorado, ele se plantou diante da mesa.
— Madame! Madame! Vamos embora!
— De jeito nenhum: eu fico! Mustapha é meu motorista. — Disse ela para
Léa. — Está a meu serviço há cinqüenta anos, faz parte da família.
— Madame! — insistiu o motorista. — É preciso ir embora, pense nas
crianças!
— Você tem razão, leve-as com você.
— Queremos ficar! — Gritaram os irmãos.
— Na ausência de seus pais, eu sou responsável por vocês. Portanto,
obedeçam sem discussão!
— Madame...
— Basta! Mustapha, leve-os e peça a seu filho que tome conta deles.
Venha me buscar lá pelas dezenove horas. O carro ainda está na Rua Mogador?
— Sim, madame.
— Passe pela Tagarins para evitar as barricadas.
Sozinhas, as duas mulheres ficaram um longo momento pensativas.
— Em que você está pensando, minha cara? — Perguntou a mais velha.
— Nessa manifestação popular da qual foram excluídos os muçulmanos.
— Isso é só aparência Você sabe, a maioria quer que a Argélia continue
francesa. Se eles não estão presentes, hoje, é porque o exército os teria
rechaçado. Você não é daqui, não pode compreender os laços profundos que
nos unem, apesar das nossas diferenças. Acredite, os árabes não ganhariam
nada com a independência... Uma independência aliás, que só é reclamada por
um número muito pequeno deles. É preciso não esquecer que essas
populações, árabes e berberes, sempre foram colonizadas: romanos, turcos,
franceses se sucederam sobre essa terra por séculos. A independência faria
com que voltassem rapidamente para a sujeira e a ignorância.
Esteja certa de que nós fizemos um bom trabalho. Mas, você não parece
convencida...
— Desculpe-me, mas sempre achei que cabia a cada povo dispor de si
mesmo...
— Isso é válido, sem dúvida, para os povos civilizados, não para essa
gente... Se você ficar por um tempo na Argélia, vou levá-la para conhecer minha
propriedade, mas também o Oranais e a IKabylie. Você verá que, apesar de
tudo que fizemos por eles, são poucos os árabes que não vivem como animais...
Vou lhe dar meu cartão. Quando estou em Argel, moro na vila de Hydra;
gostaria muito de recebê-la. Em que hotel você está hospedada?
— No Aletti... não, no Saint-George.
— Você não sabe em que hotel está?
— Mudei ontem. Agora estou no Saint-George.
— É um lugar agradável... Desculpe-me, preciso ir; preciso ir ver o que
está acontecendo... Não, deixe, você é minha convidada; não é todos os dias que
encontro uma mulher que fuma charutos e que acho simpática... apesar de
certas divergências de que eu desconfio!
— Obrigada!
As duas mulheres apertaram-se as mãos diante da entrada do
estabelecimento. Logo, a silhueta da sra. Martel-Rodriguez sumiu na multidão.
Capítulo 18
Diante do correio, na esquina da Rua Isly, umas picaretas haviam entrado
em ação e arrancavam partes do calçamento. Uma cadeia humana se formara,
ao longo da qual rapazes e moças iam passando os paralelepípedos de mão em
mão. Logo, uma nova barricada se ergueu, depois outra na Rua Bugeaud.
Cinco barricadas, algumas reforçadas com sacos de areia, tábuas, bancos
públicos ou móveis de bares, foram levantadas no perímetro entre o correio e a
universidade.
Reinava uma disciplina militar, dizia-se, no interior da Universidade, onde,
sempre conforme o boato, teriam armazenado muitas armas, entre as quais
doze metralhadoras. Os jovens lançavam insultos na direção dos policiais
agrupados em cima das escadarias que rodeavam o monumento aos mortos.
O sol se punha por trás das colinas.
François Tavernier custou para passar pela guarda que barrava o acesso
ao prédio da Companhia argeliana. No calor dos corredores, o bafo de
transpiração, de cerveja, de fumaça ou da graxa das armas pegava na garganta.
Os homens carregavam metralhadoras. Uma UT, inclinando- se no alto da
rampa, gritou:
— É no terceiro!
A porta do gabinete de Joseph Ortiz estava aberta.
—... e é preciso colocar os antigos combatentes, com suas bandeiras, na
frente da barricada. — Dizia nesse momento o coronel Gardes, cuja barba
começava a azular o queixo.
— Logo vai escurecer. — Cortou François, entrando. — É o momento para
dispersar a manifestação.
— Está tudo bem, já coloquei metralhadoras e caixas de granadas numa
sala vazia da faculdade, tudo sob a guarda de quatro territoriais.
— Informou de uma vez Bernard Mamy que acabava de entrar no gabinete.
— Lagaillarde anunciou que atiraria em qualquer coisa que se aproximasse a
menos de trinta metros das faculdades... Oi, Tavernier. Bom dia! Você está
conosco?
— Posso telefonar? — Perguntou François, à guisa de resposta.
— Para informar o governo! — Rugiu Ortiz, avançando, cheio de ameaças.
— Apenas ao Saint-George, para ter notícias de minha mulher...
Com um gesto irritado, o próprio sr. Jo discou o número: 653-00.
— Ela desapareceu? — Ironizou quando François, contrariado, desligou.
Este fez um gesto fatalista e saiu para o balcão. Alguns vultos se
deslocavam no telhado dos prédios em volta do Bulevar Laferrière. A sombra se
estendia sobre o Platô Glières, enquanto as primeiras lâmpadas se acendiam.
Milhares de homens, mulheres e crianças ainda esperavam. Quantos seriam ao
certo? "Trinta mil", avaliou François; bem longe dos cem mil previstos. Ele
voltou para dentro no momento em que Ortiz dava ordens a Mamy:
— Vá ao Maurétania ver o que o coronel Broizat está fazendo; é preciso que
ele venha e coloque seus homens como tampão entre a multidão e a barricada.
— Já vou. — Confirmou o tenente.
François saiu em seguida. O relógio do correio marcava dezoito e cinco. No
Bulevar, ele deu uma olhada na direção do monumento aos mortos. Lá, uma
onda de ansiedade percorreu a multidão e alguém gritou:
— Os CRSs estão carregando!
Abrindo caminho com os cotovelos, François tentou subir na direção da
Avenida Pasteur. De capacete, com a lateral dos mosquetões para a frente a fim
de empurrar os manifestantes, os guardas avançavam sob uma chuva de
projéteis e injúrias. No meio do tumulto ouviu-se o toque de um clarim. Um
tenente-coronel do corpo da guarda destacou-se das fileiras e gritou:
— Dispersar!
A multidão respondeu lançando gritos, pedras e garrafas vazias na direção
da tropa. Uma granada, vinda não se sabe de onde, rolou no calçamento no
espaço que separava os guardas da população. De algum lugar um tiro soou.
Coronhas para cima, os militares carregaram. Do túnel das faculdades, uma
rajada de metralhadoras atingiu muitos deles. Do telhado da caserna de
Douanes, dos prédios ao redor das escadarias do monumento aos mortos e do
Bulevar Laferrière, de trás das barricadas partiram muitos tiros. Três rajadas
de metralhadoras, vindo do telhado da Companhia argeliana, atingiram muitos
membros das forças de ordem. Tombavam civis e militares. Os guardas usaram
então gás lacrimogêneo, O pânico tomou conta da multidão que recuou para as
ruas transversais, procurando refúgio até nas entradas dos prédios.
— Estão nos bombardeando com morteiro! — Babava um homem.
François conseguiu atravessar o jardim correndo em ziguezague.
Um pneu cheio de explosivos desceu a avenida Pasteur e veio estourar
contra a calçada. Os guardas empurrados pelos manifestantes, se esgoelavam:
— Onde estão os paraquedistas?
Um tiroteio pesado, diante do prédio do Bled impediu-os de prosseguir.
Alguns, isolados, foram pegos pela multidão. Umas mulheres, inclinadas em
seus balcões berravam:
— Morte!... Acabem com eles!
Sem pensar nos riscos, François acabava de arrancar das mãos dos
amotinados um jovem policial atingido na cabeça. Arrastou-o até o Bled: os
militares abriram a porta.
— Deite-se no chão! — Ordenaram a François.
François só teve tempo de se jogar de barriga no chão; algumas balas
furaram as paredes do jornal.
Aproveitando uma breve calmaria, ele se levantou e precipitou-se para o
que parecia comandar a carga.
— Mande tocar o cessar fogo!
— Tenente-coronel Debrosse, eu obedeço a ordens!
— Mas é um massacre!
Uma moça desabava não muito longe dali. Uma mulher idosa inclinou-se
sobre ela, em seguida, e olhava para ela assustada. Sem demora, François
arrastou-a para o Albert para deixá-la abrigada.
— Está tudo perdido! Os franceses atiram nos franceses! — Esganiçava-se
ela, apavorada.
No hall do hotel reinava a maior confusão: policiais e civis feridos
aguardavam socorro, territoriais armados corriam para os andares de cima e os
funcionários, assustados, não sabiam como manter uma aparência de ordem.
Na sala de refeições, uma mulher de cabelos brancos apertava contra o corpo
um adolescente que tinha a camisa empapada de sangue, enquanto outra
mulher, mais jovem, tentava estancar a hemorragia. À procura de um pano, ela
se virou.
— François!
Léa ficou em pé diante dele, os cabelos despenteados, as mãos cobertas de
sangue. Quantas vezes eles tinham se encontrado assim, no meio de
acontecimentos fatais?
— Precisamos de um médico! — Ela gritou.
— Eu sou médico, senhorita — Apresentou-se um elegante senhor.
Afastando os lados da camisa, ele examinou rapidamente os ferimentos.
— Até que enfim, doutor! — Suspirou a sra. Martel-Rodriguez. — É meu
neto... Diga-me que não é grave!
— Ponha-o sobre uma mesa. — Ordenou o médico.
François e Léa levantaram o jovem que gemia.
— Cuidado. — Implorou a avó.
— Pode me ajudar? — perguntou o médico a Léa.
— Em hipótese alguma, não saia daqui. — Recomendou-lhe François,
depositando um beijo nos cabelos dela.
— Fique! — Suplicou ela.
— Senhorita, preste atenção no que está fazendo!
— Desculpe, doutor...
Lá fora, o tenente gritava no rádio:
— Estão atirando de todo lado! Os paraquedistas não estão aqui! Mande
soar o cessar fogo!
Um corneteiro, trêmulo, soprou seu instrumento. O silêncio se
restabeleceu pouco a pouco, mas uma nova rajada de metralhadora cortou-o
secamente.
O tenente Marny tentava também arrastar um capitão da polícia
desarmado pelo ódio popular. François precipitou-se para dar-lhe uma mão.
Juntos, conseguiram escolta-lo até o Bled. Quando estavam saindo,
encontraram Lagaillarde, sempre com roupa de paraquedista, boina vermelha
na cabeça, metralhadora cruzada no peito, atrás do qual gritava um oficial.
— É o capitão Léger, chefe dos "uniformes azuis". — Revelou Mamy a
Tavernier.
— Nós já nos conhecemos.
— Então, você está contente, Lagaillarde? — Gritava Léger. — Que
sacanagem o que você fez!
— Ah, sim, evidentemente. Replicou o deputado, enquanto olhava em
volta, afobado.
— Volte para o lugar de onde veio! Você já fez muita besteira!
Ao redor, os manifestantes, certos de que as forças de ordem haviam
atirado primeiro, atingiam com pedradas e socos os policiais feridos que
encontravam. De todo lado se ouvia:
— Policiais assassinos!
François tentava interferir.
— Capitão, ajude-me a salvar estes pobres coitados!
Léger e Mamy vieram em socorro, sob os insultos das mulheres.
— Porcos! Vira-casacas!
No hall do Bled os três homens respiraram por um instante. Tavernier e
Léger trocaram um aperto de mão.
— Parece que você tem o dom de estar sempre metido em todas as
confusões!... Você veio aqui para observar os resultados do 13 de maio? Não
foram muito felizes, não é? Na Indochina, a zona não era tão grande, não é? —
Perguntou o oficial.
— O fim de uma guerra, ou o fim de uma época, é sempre uma zona. —
Respondeu François com um tom plácido. — Podemos conversar sobre isso
mais tarde, se você quiser. É preciso impedir a multidão de massacrar os
guardas que ainda estão lá fora.
Ele se precipitou para fora. Léger e Mamy seguiram-lhe os passos.
Novamente o clarim soou. No silêncio que se seguiu ouviam-se gritos e
gemidos. Depois, os tiros recomeçaram. Três policiais caíram nos degraus do
correio. Atirados pelas janelas, uns tijolos de explosivo plástico com
detonadores enfiados neles explodiram.
— Parem de atirar! — Gritava a plenos pulmões um civil. — Estamos
atirando uns nos outros!
Fazia vinte minutos que a matança havia começado. Mas, onde estavam os
paraquedistas previstos pelo general Challe?
Vindo do Bled, um apelo angustiado partiu de um alto-falante:
— Cessar fogo! Cessar fogo!
Da janela de seu apartamento, situado na esquina da Avenida Pasteur com
o Bulevar Laferrière, uma mulher de roupão atirava com uma pistola nas forças
de ordem; uma rajada de metralhadoras dirigida a sua veneziana forçou-a a se
retirar.
Os policiais conseguiram chegar ao Platô Glières onde acreditavam
encontrar os paraquedistas do coronel Broizat. Um caminhão saiu da rua
Tafourah: quatro territoriais de boina preta saltaram dele e correram para o
canto da Rua Alfred-Lelluch para montar uma metralhadora. Uma rajada
atingiu os guardas que recuaram deixando numerosos mortos.
Os boinas pretas subiram de volta no caminhão que se afastou na direção
de Bab el-Oued. Uns argelianos escondidos por trás das janelas atiravam com
suas armas nos feridos que se arrastavam no chão. Abatidos como coelhos, na
frente dos prédios os que escapavam se escondiam nos jardins, outros
tentavam se refugiar atrás dos portões de carros, agredindo aqueles que
tentassem impedi-los. Um policial, cercado por civis, foi primeiro coberto de
pancadas e depois, pendurado no alto de uma escadaria. Na fumaça
avermelhada das granadas patinavam aqueles que jaziam por terra.
No alto do Bulevar Laferriére, o tenente-coronel Debrosse deu a ordem de
retirada. Ao mesmo tempo, um jipe saindo dos túneis das faculdades parou na
Avenida Pasteur diante do monumento aos mortos. Um coronel, de boina verde
na cabeça, desceu e avançou levantando os braços: os tiros diminuíram e,
depois, pararam. Os legionários do 1 REP do coronel Dufour juntaram-se a ele,
enquanto os boinas-vermelhas do coronel Broizat desembocavam a passos
lentos no Platô Glières. Os manifestantes da barricada da Rua Charles-Péguy
aplaudiram. Um jovem brandindo uma bandeira maculada com o sangue de
um de seus companheiros colocou-a sobre a barricada diante da qual ele havia
tombado. Os paraquedistas se espalharam sem dar um tiro, prestando socorro
aos policiais que haviam se refugiado nos prédios vizinhos e que a multidão
queria linchar. Eles recolheram os feridos dos dois lados. Pessoas
transtornadas corriam para todos os lados, outras giravam sem sair do lugar,
tomadas por uma crise de nervos, mulheres gritavam de terror, crianças
choravam, pais juravam vingança diante de um filho morto. O tenente Jean-
Marie Èjarque, originário de Frontignan, estirado no hall do Bled, deu seu
último suspiro depois de pronunciar estas palavras: "Morro desesperado! Há
vinte e quatro meses que luto contra os fellaghas na Argélia francesa. E tombo
aqui, em Argel, atingido por balas francesas atiradas por pessoas que gritam
'Argélia francesa!'... Eu não compreendo!"
Ninguém compreendia. Os policiais gritavam que tinham sido traídos:
"Mandaram-nos para uma emboscada, nossos chefes disseram que a multidão
não estava armada..." O exército acusava Ortiz de ter mandado atirar sobre as
forças de ordem. O dono do café Formiz criticava Chalil por não ter respeitado o
"acordo" deles. Lagaillarde afirmava:
"Meus homens não atiraram." Os provocadores disfarçados de policiais,
haviam atirado pelas costas nos homens que desciam as escadarias do
monumento aos mortos, enquanto outros foram vistos, misturados aos
manifestantes, atirando nos militares ou soltando pneus carregados de
explosivos... Para os manifestantes, estava claro que os policiais haviam atirado
primeiro neles. Para os militares, o primeiro tiro partira da direita da Avenida
Pasteur, do lado da Universidade. Mas, uma evidência se impunha a todos:
"alguém" quis que o sangue francês corresse em Argel. Quem? Ortiz e seu
partido? O Élysée? A FLN? O serviço secreto americano?
As sirenes das ambulâncias rasgavam a noite que acabava de cair. No
Hospital Mustapha, cirurgiões e enfermeiras, sobrecarregados de trabalho,
tentavam dar conta da quantidade de vítimas...
Às vinte horas contavam-se quatorze mortos e cento e vinte três feridos
entre os policiais; seis mortos e vinte e quatro feridos entre os civis.
A rádio de Argel divulgou um comunicado do general Challe:
"Enquanto o exército e seus comandantes tudo fizeram, durante todo o dia
24, para manter a ordem, sem molestar os manifestantes, ao cair da noite, os
amotinados que haviam pacientemente esperado para atingir seus maus
propósitos atacaram e atiraram nas forças de ordem. Essas forças, que até
agora protegeram a Argélia dos fellaghas, contam mortos e feridos. A rebelião
não triunfará contra o exército francês. Vou mandar vir para Argel os
regimentos do interior. A ordem será mantida com a concordância do Delegado
Geral do Governo; declaro a cidade em estado de sítio. Qualquer reunião de
mais de três pessoas está proibida. É tudo."
O exército controlava no momento a região situada entre o Governo Geral e
as primeiras barricadas. Mas, aquilo em que o alto comando não acreditava,
estava acontecendo: rebelados e paraquedistas confraternizavam. Numerosos
oficiais pensavam que havia chegado a hora de forçar o Chefe de Estado a
pronunciar as palavras que eles esperavam há muitos meses.
Ninguém, aliás, respeitava o toque de recolher decretado às vinte horas,
curiosos iam até as barricadas para "ver o que estava acontecendo", garrafas
térmicas com café circulavam de mão em mão, trocavam-se cigarros e
informações na mais completa bagunça. O coronel Dufour foi visto entrando no
QG de Ortiz, que o recebeu impondo condições:
"Primeiramente, todos os corrompidos fora. Em segundo lugar, um governo
de salva-guarda nacional. Em terceiro, não ter mais nada que ver com a
Delegação Geral." Lagaillarde, por sua vez, concordava em encontrar-se com o
general Gracieux, comandante do 10º DP, mas advertia: "General, eu não
atiraria no senhor. Mas, se os paraquedistas receberem essa ordem, não
poderei, como faço neste momento, impedi-los de desertar e de me juntar a
eles." Por seu lado, o general Gracieux prometera não empreender nenhum
ataque durante a noite contra o campus da faculdade.
Os paraquedistas haviam invadido o hall do Bled e o do Albert, onde as
enfermeiras ministravam os primeiros cuidados aos feridos antes de
transportá-los para as ambulâncias. Com o rosto cansado, Léa tentava
reconfortar uma mulher jovem que fora atingida nas pernas e que não parava
de chamar pelo filho, perdido durante uma agitação de pânico. Os carregadores
de macas afinal levaram-na para a ambulância; Léa, apesar de tudo, viu-a
partir com alívio.
Logo, só restavam sobre o piso do hotel alguns frascos de sangue e lençóis
sujos. Léa deixou-se cair numa das poltronas do hall e fechou os olhos. O
porteiro, em mangas de camisa, encarou-a com admiração; não era sempre que
se via uma mulher agir com tanta eficácia. Ele dirigiu algumas palavras ao
maître, que, também em mangas de camisa, autorizou. Ele desapareceu e
voltou, pouco depois, trazendo uma garrafa. Um garçom o seguia com copos.
Os dois homens se aproximaram de Léa que, adivinhando a presença deles,
abriu os olhos; ela sorriu, mas seu rosto estava exausto.
— A senhora devia beber alguma coisa, vai lhe fazer bem...
— É uma idéia excelente. — Respondeu ela, endireitando-se. — Você teria
um cigarro?
Quando François conseguiu voltar ao Albert, encontrou Léa cercada de
paraquedistas e de funcionários do hotel, bebendo e fumando, como se fossem
os melhores amigos do mundo, e comentando triste- mente os acontecimentos
do dia. Ele se juntou a eles, pensando que mais tarde teria tempo de ir ao
quartel Rignot. Todos eles elogiavam a coragem da mulher dele, sua boa
vontade, sua habilidade. Os dois se olharam com aquela expressão de
cumplicidade que, somente eles sabiam, significava: "Em que nos metemos de
novo?" Erguendo os copos, caíram na gargalhada ante o olhar surpreso e um
pouco chocado da assistência. Atrás deles, alguém anunciou:
— O Delegado Geral está falando no rádio!
Todos se viraram para o aparelho que o recepcionista acabava de colocar
no balcão: "... nós fizemos de tudo para evitar o que aconteceu: o
derramamento de sangue. Como eu disse e repeti, como todo mundo
compreendeu e ouviu, as forças armadas, com uma profunda tristeza no
coração e depois de terem demonstrado uma grande paciência durante todo o
dia, tiveram que cumprir seu dever. Eu me inclino diante de todas as vítimas:
as das forças de ordem e aquelas cujo patriotismo arrastou-as para um erro
trágico. A ordem ainda não foi restabelecida: alguns se obstinam em querer
"sua" insurreição, coisa que os líderes da manifestação desta manhã nunca
desejaram. Vocês ouviram há pouco o general Challe. Que todos compreendam
afinal a inutilidade de tal loucura. Que todos se dediquem a fazer os
desesperados voltar à razão. Apelo aos que foram eleitos, às personalidades
importantes, aos pais dos estudantes, e que, todos juntos, obtenhamos a paz
para continuar a luta..."
Com raiva, uma mão interrompeu o discurso de Delouvrier.
— Palavras! Sempre palavras! — Soltou o maîre, enquanto enxugava a
testa.
Foi o único comentário.
O capitão Léger, que trocara sua farda por uma de paraquedista,
atravessou a porta de entrada correndo.
— Tavernier! Estão chamando você no quartel Rignot. Muito bem e
obrigado por sua ajuda! É raro que os políticos participem dos acontecimentos
quando existe algum risco de se machucarem.
François ergueu os ombros.
— Vamos, o general Challe o espera.
— Já vou. Antes, vou acompanhar minha mulher... Léa, apresento- lhe o
capitão Léger.
— Boa noite, capitão; o coronel Leroy já havia me falado de você.
Léger observou atentamente aquela linda mulher; ele tinha certeza de que
nunca a tinha encontrado.
— Boa noite... A senhora esteve na Indochina?
— Por favor. — Interrompeu François. — Vocês conversarão sobre suas
guerras numa outra ocasião. Léger, nos encontramos lá!
— Não posso largá-lo de jeito nenhum!
— Como quiser, mas preciso recuperar a moto que peguei "emprestada" de
um ordenança... Venha.
— E onde está essa moto?
— Em algum lugar na rua, lá pela Avenida Laferrière.
— E você acha que vai encontrá-la?
— Naturalmente. Espere aqui, querida.
— Eu vou com você.
— Pode ser perigoso.
— Dane-se!
— Senhora, seu marido está certo...
— Meta-se com seus assuntos!
— O que eu queria dizer...
Enquanto falavam, atravessavam a Avenida Pasteur, congestionada agora
com veículos militares e ambulâncias. O capitão Léger assobiou. Dois homens
— dois árabes vestidos de uniforme azul — apareceram ao lado dele, como num
passe de mágica. Automaticamente, Léa notou os cabelos cheios de brilhantina
de um deles parecendo urna armadura.
— Você, sempre com seus anjos da guarda. — Constatou François.
— Como você observou, não ando sem eles.
Na frente do Bled, que se tornara o QG dos paraquedistas retiravam os
últimos feridos.
No Bulevar Laferrière, tropeçava-se em todo tipo de objetos: calçados,
garrafas vazias, cartuchos de balas, roupas, pedaços de pneus de madeira ou
de ferragens... Páginas de jornais voavam para o porto cujas luzes se refletiam
na água. Para lá do Platô Gliêres, tudo parecia calmo.
Diante da barricada da Rua Charles-Péguy, uns jovens usando um tipo de
uniforme aguardavam na frente do QG de Ortiz, pedindo para se alistar nas
fileiras dos revoltosos. Sob o olhar dos paraquedistas que não se moviam, as
armas circulavam.
O capitão Léger e seus homens tiveram que forçar a entrada do prédio,
defendido por UTs armadas, onde François havia abandonado a motocicleta.
Para a grande surpresa deles, ela se encontrava ainda embaixo da escada,
exatamente onde ele a tinha deixado.
— Eu vou com você. — Advertiu o capitão montando na garupa.
François teve que instalar Léa na frente dele.
— Você é um grude, meu velho! — Lançou ele enquanto partia.
A vista do capitão Léger, as barragens levantavam-se uma após a outra.
Chegando rapidamente ao Hotel Saint-George, François acompanhou Léa até o
quarto. Sem urna palavras ela encolheu-se no peito dele. Ele também não disse
nada; tanto um como o outro sabiam que era inútil, e que mais uma vez o
destino os tinha conduzido infalivelmente para o centro de acontecimentos
sangrentos. François não acreditava na Argélia francesa. Ele admirava De
Gaulle sem ser gaullista, persuadido de que somente o General era capaz de
tirar a França do imbróglio argeliano ao mesmo tempo em que lamentava que o
Chefe de Estado se mostrasse tão pouco claro a respeito de suas intenções.
Quanto a Léa, ela se sentia um joguete das circunstâncias, embora
reconhecesse que muitas vezes agia por vontade própria: ajudar a FLN como ela
havia feito, por urna preocupação instintiva de justiça, mostrava mais um ideal
adolescente do que um engajamento maduro e refletido.
— Nós jogamos com nossas vidas como se isso fosse valorizá-las mais. —
Disse ela, como se falasse sozinha.
François afastou-a à distância de um braço. Ele olhava intensamente para
esta mulher que por tantas vezes tivera medo de perder. O que ela acabava de
dizer era a mais pura verdade: ambos se expunham deliberadamente ao perigo,
assim como esses loucos que jogam a roleta russa, sem pensar, nesses
momentos, um no outro. Mais grave: eles o faziam sem se preocupar com os
filhos que, desde que nasceram, viviam na angústia de vê-los desaparecer.
"Precisávamos nos tornar responsáveis", pensou ele.
O absurdo de seu pensamento arrancou dele um riso que também
considerou idiota. Léa, sem dúvida, pensou a mesma coisa, pois declarou:
— Nós somos dois imbecis!
Tavernier encontrou Léger no bar do hotel e pediu um uísque duplo.
— Problemas? — Perguntou o capitão.
— Não lhe acontece às vezes de se considerar um imbecil?
— Não muito.
— Você acredita nisso?
— Em quê?
— Deixe para lá, não tem importância...
— Acabe sua bebida, estão nos esperando.
— Que esperem! Não são uns minutos a mais ou a menos que mudarão o
rumo das coisas!
— O que você quer dizer?
— Nada, capitão, nada. Bobagens... Vamos?
Lá fora, os "anjos da guarda" esperavam pelo chefe.
— Bem, rapazes, venham conosco até o quartel Rignot.
No quartel general, a atmosfera estava elétrica. Uma delegação de eleitos
de Argel deixava o lugar, acompanhada por Phlippe Thibaud, diretor de
informações do Governo Geral.
— Você já viu... — Lançou ele na direção de François. — Uma
manifestação em que as forças de ordem, que atiram contra a multidão, sofrem
nove décimos das perdas?
Quando Tavernier entrava no gabinete onde estavam os responsáveis
militares por Argel, ele ouviu o general Challe dizer ao telefone:
— ... posso dar a ordem de acabar com as barricadas à força. Duas
hipóteses: ou me obedecem ou não me obedecem. Se não me obedecerem é a
anarquia. Não posso me arriscar.
— É espantoso! É impensável! Se atacarmos, serão muitas mortes. É
impossível atacar! — Exclamou o general Crépin.
— Quanto a mim, não estou muito certo de que a ordem seria executada.
Meu maior medo, no momento, é ver os oficiais de minha divisão juntarem-se
aos que estão nas faculdades. — Disse o general Gracieux.
François aproximou-se do coronel Argoud, que estava mais decomposto do
que nunca.
— Como estão as coisas? — Perguntou ele.
— O general Chalie, considerando que o coronel Fonde era o principal
responsável pela situação, retirou-lhe o comando do setor "Argel Sahel".
Entregou a seqüência das operações ao general Gracieux, comandante da 10ª
divisão de paraquedistas. — Expôs o coronel com uma voz seca.
— O que quer dizer que Argel está nas mãos dos paraquedistas. Belo
golpe!
— Não tenho nada com isso.
— Pode ser, mas confesse que isso vem a calhar...
Sem responder, Argoud se virou. Mas, quando o general Gracieux se
dirigiu, com a mão estendida, para François, o coronel Fonde se interpôs entre
eles.
— Se os paraquedistas tivessem obedecido, se eles tivessem mantido
estritamente as barragens, não teria havido manifestação e a multidão não teria
vindo gritar "o exército está conosco!"... Seus paraquedistas engoliram as
mentiras de Ortiz e de seu bando segundo as quais foram os policiais que
atiraram, e eles acreditam que são os únicos bons sujeitos da Argélia. Você
contribuiu para isso, general. Agora, então, vire-se!
Fonde saiu, empurrando seu substituto.
— Boa noite, Tavernier. Como vão as coisas desde a Indochina? —
Cumprimentou-o Gracieux, como se não tivesse acontecido nada.
— Bem, general. Fico feliz em vê-lo.
— Eu também, Tavernier, ainda que seja nessas circunstâncias... Achava
que você estava vivendo tranqüilo, à sombra dos coqueiros cubanos, e encontro
você aqui, mergulhado nesta encrenca! Você deve gostar disso: nunca vi um
civil embarcar como você para qualquer lugar onde as coisas estejam fervendo
para a França!
— São as circunstâncias, meu general...
— Elas têm costas largas, as circunstâncias!
Um capitão fez sinal a Gracieux, que se inclinou para escutá-lo. François
aproveitou para se dirigir ao general Challe, sentado atrás de sua mesa, com o
cachimbo apagado na boca; ele parecia esgotado. Os dois homens se olharam
friamente. François sentou-se sem que mandassem.
— Suponho que o Presidente da República foi informado da situação...
Quais são as instruções dele?
Os dentes do general morderam nervosamente a haste do cachimbo e seu
rosto assumiu uma expressão assassina.
— O general De Gaulle deixa a nosso encargo escolher os meios, contanto
que tudo esteja em ordem amanhã de manhã... quer dizer, hoje! "Empreguem a
persuasão se for possível, a força se for necessário. Lembrem- se de que vocês
representam o Estado." São as palavras dele. Ele não se dá conta! Mas, em
nome de Deus, para que você serve? Você não podia explicar a ele?
François cortou-o:
— General, você e Delouvrier foram os últimos a se encontrar com o Chefe
de Estado e falar da tensão que aumentou nos últimos tempos. Ele não os
ouviu. Como você pode acreditar que ele ouviria a mim?
— Então, para que ele o mandou aqui?
Era também o que François se perguntava... Não recebendo uma resposta,
Challe continuou com um tom mais calmo:
— O Delegado Geral tenta, neste momento, obter do general de Gaulle que
ele fale e se declare determinado a impor uma solução francesa à Argélia...
— O que vocês entendem por isso?
— Que De Gaulle e seu governo decidam-se de uma vez por todas,
mostrando-se claros e precisos, que eles declarem que querem a opção francesa
para a Argélia. E a revolta acabará por si mesma...
Delouvrier irrompeu, brandindo umas folhas de papel cobertas por uma
letra redonda, quase feminina, rasurada em alguns pontos.
— Eu tenho o texto do apelo do Presidente da República! Discuti cada
termo com o Primeiro-Ministro.
— Quando será divulgado? — Perguntou em seguida o general Challe.
— Às duas horas da manhã da metrópole. E em Arge — É preciso ver com
a France-V... Enquanto esperamos vou ler para os senhores:
"A rebelião que acabou de estourar em Argel é um golpe dado na França
diante do mundo. Um golpe dado na Argélia. Um golpe dado na França no seio
da França. Com o Governo, com a concordância do Parlamento, chamado e
sustentado pela nação, assumi a Chefia do Estado para levantar nosso país e,
notadamente, para fazer triunfar na Argélia dilacerada, unindo todas as
comunidades, uma solução que seja francesa.
Digo com toda a lucidez e com toda a simplicidade que, se falhar em
minha tarefa, a unidade, o prestígio, o destino da França, serão ao mesmo
tempo comprometidos. E, principalmente não haveria mais nenhuma chance
para ela de prosseguir sua grande obra na Argélia.
Conjuro aqueles que se levantam em Argel contra a pátria extraviados que
devem estar por mentiras e calúnias, a voltar à ordem nacional. Nada está
perdido para um francês, quando ele se junta à sua mãe, a França.
Exprimo minha confiança profunda em Paul Delouvrier, Delegado Geral;
no general Challe, comandante em chefe; nas forças que estão sob suas ordens
para servir a França e o Estado; à população argeliana tão querida e tão
sofrida.
Quanto a mim, cumprirei o meu dever.
Viva a França!"
Delouvrier levantou a cabeça. Percebia-se a emoção que ele sentia ao ler a
mensagem do Chefe de Estado.
Ele pareceu surpreso com o silêncio da assistência.
— Obtive, enfim, do Presidente as palavras tão esperadas e é esse o efeito
que elas têm sobre vocês?! - Exclamou o Delegado Geral, visivelmente
desapontado.
— Não há nada de novo nisso. — Disse finalmente Argoud.
— Merda, então! — Exclamou Challe. — O que lhe falta?
— O general deveria ter dito: "a solução mais francesa". — Insistiu Argoud.
Paul Delouvrier largou-se numa cadeira, esgotado.
— Você também pensa assim? — Perguntou a François.
— Não. Mas esse apelo é inútil: ele não será ouvido nem pelos revoltosos
nem pela população. O senhor deveria advertir o general De Gaulle.
— Ligue você; eu não vou acordá-lo novamente, de jeito nenhum.
— Nós sabemos, o senhor e eu, que isso não adiantaria nada. Vou fazer
um relatório que ele receberá de manhã.
— Exijo tomar conhecimento dele.
— Eu também! — Acrescentou o general Challe.
— Como quiserem, senhores. Posso dispor de um lugar tranqüilo para
trabalhar?
Perto da meia-noite, em Paris, para onde o Chefe de Estado tinha voltado
de Colombey-les-Deux-Eglises, acompanhado da sra. de Gaulle, o general
encontrou o Primeiro-Ministro, Michel Debré, no Palácio do Élysée. Pierre
Guillaumat, Ministro do Exército, e o Ministro do Interior, Pierre Chatenet,
foram imediatamente convocados.
Na Universidade e na Companhia Argeliana, os revoltosos se instalaram,
aguardando. Junto a Lagaillarde, os sentinelas, em impecáveis uniformes de
paraquedistas, montavam guarda, enquanto junto a Ortiz, bebiam e jogavam
cartas, com as armas à mão. Corria o boato de que Massu estava para voltar...
A noite estava fria e o céu, estrelado. Por trás das barricadas, haviam
acendido fogueiras em volta das quais os revoltosos vinham se aquecer. Os
policiais, por sua vez, haviam voltado para o recinto do Governo Geral. Quanto
aos paraquedistas, eles acampavam nas ruas em volta, dormindo um pouco
nos seus sacos de dormir.
Um pouco depois das duas horas da manhã, as comunicações telefônicas
entre a França e a Argélia foram cortadas.
Capítulo 19
O sol se levantava naquela manhã de segunda-feira sobre aquilo que a
imprensa chamaria de "campo entrincheirado".
As últimas fogueiras se apagaram, paraquedistas e rebeldes partilhavam
café e sanduíches num ambiente de camaradagem. Mulheres, mães, esposas,
filhas dos "combatentes" das barricadas traziam croissants quentes, garrafas
térmicas com chá ou café. O dia ia ser lindo: a greve geral havia sido decretada,
as escolas fechadas, os veículos de transporte público tinham ficado nas
garagens, a atividade no porto era inexistente. Apesar das vítimas da véspera,
flutuava no ar um clima de férias. No terraço no QG de Ortiz, o cano da
metralhadora continuava apontando para o prédio do Governo Geral, as
bandeiras francesas tremulavam, enquanto os alto-falantes difundiam sempre
música militar. À medida que a manhã avançava, as famílias vinham dar apoio
aos "heróis", com os braços carregados de comidas e de bebidas. Brincando,
comentavam o apelo de de Gaulle. Ouviu-se mesmo um coronel de
paraquedistas exclamar: "É preciso explorar o que os civis fizeram. Não é a hora
de quebrar a máquina que vai levar o Governo à composição." Em volta dele,
todos aplaudiram.
No quartel Rignot, François Tavernier havia terminado de redigir seu
relatório e mandou que uma secretária datilografasse antes de mostrá-lo a
Challe e Delouvrier. Quando procurava um lugar para se refrescar, chocou-se
com o comandante em chefe que saía de um banheiro, enxugando o rosto. Os
dois homens, que não haviam pregado o olho durante a noite, trocaram um
aperto de mão sem pronunciar uma única palavra.
François fechou a porta do banheiro. O espelho, em cima da pia,
mostrava-lhe a imagem de um sujeito de olhos vermelhos, expressão cansada,
barba cerrada. "Que cara!", pensou ele, abrindo a torneira. A água tinha gosto
de ferro, mas estava fresca e afugentou por um momento o sono. Ele estava
descontente com seu relatório, que, parecia- lhe, só dava uma idéia aproximada
da gravidade da situação. Como fazer o Chefe de Estado compreender que
muitos oficiais se mostravam não somente favoráveis à rebelião, mas que
muitos tinham mesmo encorajado e, alguns, suscitado? Não eram os fascistas
de Ortiz nem os loucos por guerra de Lagaillarde que ele temia, mas os
coronéis, fanáticos pela Argélia francesa, os Gardes, Argoud, Broizat, Meyer
etc., que, segundo ele, só esperavam a oportunidade para tomar o poder. Se De
Gaulle estava resignado à independência da Argélia, como pensava François, o
que será que pretendia?
Sem dúvida, o homem do 18 de junho sabia o que estava fazendo, mas as
sutilezas políticas escapavam ao temperamento direto de um Tavernier, e este
não ignorava que seu relatório pareceria simplista aos olhos do Presidente da
República. Voltando para a mesa da secretária, ele releu o texto, fez algumas
correções e pediu à funcionária que mandasse cópias para o general Challe
assim como a Paul Delouvrier.
Dos jardins do quartel Rignot ele podia ver o telhado do Hotel Saint
George. Imaginou Léa dormindo e teve desejo de apertá-la em seus braços.
Voltou ao hotel a pé.
Encontrou-a sentada na cama, tomando o café da manhã. A felicidade que
se estampou no rosto dela quando o viu, comoveu-o. Ele tirou a bandeja dos
joelhos dela, afastou as cobertas e deitou-se do lado dela.
— Eu quero você. — Murmurou ele no pescoço dela.
*
Enquanto ele tomava banho e se barbeava, Léa tentava ligar para Paris;
ela precisava ouvir a voz das crianças.
— Toda comunicação com a metrópole está suspensa até segunda ordem.
— Informou a telefonista.
Ela desligou, com um aperto no coração.
Saindo nu do banheiro, deixando um rastro de água nos ladrilhos,
François percebeu as sobrancelhas franzidas e o ar triste de Léa.
— O que aconteceu?
— Não se pode falar com Paris.
— Eu sei.
— Isso vai demorar muito?
— Não tenho idéia... Você devia voltar para a França.
— Aconteceu algo de novo durante a noite?
— Não que eu saiba... mas Lagaillarde ameaça explodir tudo se for
atacado, e Ortiz deve acreditar que tem a vitória nas mãos. Quanto aos
paraquedistas presentes diante das barricadas, não se deve contar com eles
para atacar... Eu ficaria mais tranqüilo se você não estivesse aqui.
— Eu sei, meu querido, mas prometi àquela velha senhora cujo neto foi
ferido ontem, que iria visitá-la hoje.
— De jeito nenhum, é muito perigoso ir à cidade...
— Ela não mora no centro, mas em Hydra. Prometi que iria, e vou.
François sabia que a menos que a amarrasse na cama, ela iria. De
repente, sentiu-se muito cansado.
— Prometo ter cuidado. Não vai me acontecer nada, ela vai mandar o
motorista assim que eu chamar.
— Se é assim... mas me deixe o nome dela, o endereço e o telefone.
— Claro. E você, o que vai fazer?
— Vou voltar ao quartel Rignot.
— Por favor, não faça essa cara. Me dê um beijo!
A limusine andava lentamente sobre o cascalho da alameda que conduzia
à suntuosa vila mourisca da família Martel-Rodriguez. Dali, dominava-se a baía
de Argel. Nos jardins plantados com essências raras havia uma calma que
surpreendia a visitante. No pátio de piso quadriculado onde predominava o
azul, o barulho de uma fonte acentuava essa impressão de paz e bem-estar. Um
empregado muçulmano, com um bigode impressionante, inclinou-se diante
dela; ele estava acompanhado da filha, vestida com roupas knbyle.
— Saida vai levá-la para junto de madame.
Léa seguiu-a, admirando a luxuosa simplicidade do lugar, os tapetes
magníficos e as suntuosas composições florais. Saida bateu a uma pesada
porta de madeira trabalhada com madrepérola e marfim, depois se afastou para
deixá-la entrar. A sra. Martel-Rodriguez estava no fundo de um cômodo
enorme, no centro do qual reinava uma cama com baldaquim de onde pendia o
tule branco de um mosquiteiro. Vestida com uma túnica de lã branca bordada
em prata, ela veio até Léa, com os braços abertos e beijou-a nas duas faces.
— Obrigada, mil vezes, por ter vindo, cara amiga.
— Como está seu neto?
— Melhor, graças a Deus; a noite foi boa. O médico que saiu daqui afirmou
que ele está fora de perigo.
— Ele não está no hospital?
— Não. Eu insisti para que ele fosse cuidado em casa; não gosto de
hospitais. Meu pai mandou construir uma enfermaria-modelo para a nossa
gente. Temos um médico na propriedade e três enfermeiras se revezam à
cabeceira dele.
— Ele tem mais sorte que os infelizes de ontem!
— Certamente, mas ele teve sobretudo a sorte de você estar lá, sem a sua
intervenção, a hemorragia teria sido fatal, com certeza. Eu lhe serei
eternamente grata. Vou, no entanto, acender umas velas à Madame África...
Pela sua cara surpresa, imagino que você não sabe do que estou falando: é
assim que, católicos, judeus ou muçulmanos, chamamos a Virgem Negra da
Basílica Nossa Senhora da África. Madame África cria essa união tão pregada
por Mohamed Duval...
— Quem é Mohamed Duval?
— O Arcebispo de Argel, monsenhor Duval, que nós chamamos assim
porque alguns o acham muito ligado aos muçulmanos.
— E ele é?
— Com certeza, não mais do que deve ser um servidor de Deus cristão. Ele
gosta de dizer "que um homem que sofre, seja qual for sua origem, seja qual for
a sua condição, é Jesus Cristo". Acho que ele tem razão...
Você ouviu falar do apelo do general De Gaulle?
— Não.
— Não consigo compreender esse homem: eu o encontrei em Argel, em
1943, numa recepção na vila dos Oliviers. Ainda posso vê-lo passando, rijo,
com um passo decidido, um cigarro entre os dedos, seu nariz comprido, suas
grandes orelhas e aquele bigode ridículo. Na minha família, éramos todos
gaullistas; o que estava longe de ser o caso de toda a colônia: as pessoas, na
maioria, eram adeptas de Pétain. Encontrei-o novamente, em Paris, em 1946 e,
pela última vez, na sua primeira visita de 1958 à Argélia. De todas as vezes, tive
a mesma impressão: um homem solitário, que não ouve ninguém, tendo de si
mesmo o mais alto conceito, e da nação francesa, uma visão idealizada,
voluntariamente idealizada. Portanto, falsa.
— Não terá sido isso, precisamente, que permitiu que ele cumprisse seu
destino?
— O dele, sem dúvida, mas e o da França, e o da Argélia Ele não nos vê
como nós somos, ele não compreende as humildes motivações dos homens
deste país. Ele tem sonhos de grandeza quando nós só pedimos um cotidiano
pacato, harmonioso. Ele ama uma França abstrata. Não conhece a terra como a
conhece um camponês ou aquele que fez um jardim de um pedaço do deserto.
— Você fala de um cotidiano harmonioso, mas não é assim para a
população muçulmana...
A sra. Martel-Rodriguez fez um gesto irritado que endureceu os traços de
seu rosto ainda bonito, depois respondeu secamente:
— Você fala como os franceses da França. O cotidiano dos muçulmanos é
difícil, é verdade, mas seria muito mais se nós não estivéssemos aqui. Nós
trouxemos tudo, construímos tudo, aqui: as estradas, as escolas, os hospitais.
Nós cultivamos esta terra, nós a tornamos rica e próspera. Deixe-a nas mãos
dos árabes e só crescerão pedras! A maior parte deles são pessoas sujas e
vagabundas, O islã os embrutece: veja a condição das mulheres... Você
aceitaria ser tratada como uma besta de carga, não ter o direito de sair sozinha
na rua, de estudar, ser obrigada a criar uma enormidade de filhos?... Não, não
é? Graças a nós, algumas meninas podem ir à escola. Porque, veja, não é
inteligência que lhes falta, mas a vontade de aprender. Na minha casa, todo
mundo sabe ler e escrever e, seguindo o que faziam meu pai e meu avô, ajudo
aqueles ou aquelas que querem prosseguir nos estudos. Tenho atualmente em
Montpellier quatro garotos e duas garotas na universidade.
— Muito bem, dou-lhe os parabéns. Mas, e os outros, todos os outros, o
que acontece com eles?
— Até que colocassem na cabeça deles essa idéia de independência, eles se
tornavam aquilo que haviam sido seus pais, reconhecidos pelo que fazíamos
por eles.
— E, para a senhora, isso é justo e bom?
— Não há justiça neste mundo, minha criança. Devemos aceitar a vida que
nos é dada...
— Se você tivesse nascido no meio desfavorável, tenho certeza de que não
aceitaria seu destino e que faria de tudo para escapar dele.
— Isso é natural.
— E por que não deveria ser assim para eles?
Visivelmente incomodada, a sra. Martel-Rodriguez pegou um cigarro numa
cigarreira de prata que ela ofereceu a sua interlocutora. Léa serviu-se e
acendeu o seu com o isqueiro que a proprietária do lugar lhe estendia.
A jovem empregada entrou; atrás dela um doméstico empurrava um
carrinho coberto de guloseimas e de bebidas. Léa aceitou um café.
— Eu insisto, experimente estes doces, você nunca comeu nada parecido
em nenhum lugar: eles são leves como uma carícia. São feitos por Farida.
Farida tem a minha idade, nós crescemos juntas e é a melhor doceira de
Argel... Saïda, peça a Farida para vir aqui.
— Senhora, não duvido que eles sejam excelentes, mas não gosto muito de
doces...
— Chame-me de Jeanne, por favor... Você acha que não gosta de doces
simplesmente porque nunca experimentou estes aqui... Ah! Farida! Entre.
Uma mulher gorda, com um vestido florido, o rosto tatuado, a cabeça
coberta com um lenço listrado que escondia parte de seus cabelos negros e
frisados, apareceu.
— Você me chamou? — Perguntou ela à patroa. — Os doces não estão
bons?
— Excelentes, como sempre. Mas, eu queria que uma amiga de Paris a
conhecesse.
— Ela gosta de meus doces?
— Ainda não comi. — Confessou Léa, pegando um do qual voou uma
nuvem de açúcar.
A sra. Martel-Rodriguez e Farida observavam, esperando a aprovação. Léa
não precisou se esforçar para cumprimentar a cozinheira: ela tinha a impressão
de que um mel untuoso se espalhava nela.
— É bom. — Gemeu ela, com um sorriso.
A patroa e a empregada trocaram um olhar satisfeito. Seria por causa da
corpulência da empregada? Emanava de toda a sua pessoa uma força
tranqüila. Ela se movia silenciosamente, com delicadeza. Seus olhos escuros
examinavam a visitante sem o menor disfarce.
— É uma bela mulher. — Considerou ela, balançando a cabeça.
— E acredite. — Continuou a sra. Martel-Rodriguez dirigindo-se a Léa. —
Ela sabe o que diz: é uma das casamenteiras mais respeitadas... Obrigada
Farida. Não preciso mais de você.
Quando ela saía, Léa teve a impressão de ver um rápido brilho de ódio no
olhar da mulher; o que ela esqueceu em seguida.
— O que você achou dela? Considero-a uma amiga; ela morreria por mim.
Sem mim, estagnaria numa maloca, depois de pôr no mundo uma dezena de
filhos. Quando seu pai quis casá-la, o meu se opôs, a fim de que ela
permanecesse exclusivamente a meu serviço. Ela jamais lamentou isso.
Ela tomou um gole de chá, enxugou os lábios com um guardanapo
bordado.
— Vou fazer umas visitas no hospital. — Continuou ela. — Você quer me
acompanhar?
— Eu gostaria muito.
— Depois podemos almoçar em Madrague. É um lindo porto de
pescadores, com restaurantezinhos agradáveis.
— Se você quer.
— Perfeito... Estarei pronta em dois minutos.
Um quarto de hora depois, as duas mulheres estavam a caminho do
hospital Mustapha.
*
Recém-barbeado, François examinou os rostos cansados do comandante
em chefe e do Delegado Geral. Este mancava novamente: a dor na perna tinha
voltado.
— Nós lemos seu relatório. — Começou Paul Delouvrier. — Ele é objetivo.
Mas não aprovamos a conclusão: "Deixe a situação deteriorar" , você escreveu.
— Estou certo de que é o que o general De Gaulle vai fazer.
— Mas, é uma loucura! — Exclamou, muito vermelho, o general Challe.
— Eu não acho...
Um tenente entrou, trazendo um despacho. Depois de saudar, dirigiu-se a
François.
— Tenho uma mensagem do Presidente da República para o sr. Tavernier.
— Dê! — Ordenou Challe, estendendo a mão.
O tenente obedeceu.
"O que será que o velho quer de mim?", pensou François.
— O Chefe de Estado ordena que você volte imediatamente a Paris.
— Anunciou ele, passando a mensagem.
François pegou-a e leu; a ordem era clara: ele devia embarcar
imediatamente.
— Um aparelho pronto para decolar espera-o em Maison-Blanche.
Depois, virando-se para o tenente, acrescentou:
— Que uma viatura esteja pronta também para levar o sr. Tavernier ao
aeroporto, e que se previna o piloto e a tripulação do avião.
— Preciso passar no Saint-George para pegar algumas coisas e avisar
minha mulher... Ah, senhor Delegado, posso lhe pedir para cuidar da
segurança dela na minha ausência?
— Nem precisa pedir. Vou propor a ela que venha se instalar na minha
residência.
— Agradeço-lhe.
— Tente convencer o General a voltar atrás quanto à nação: é a única
maneira de se recuperar a ordem. — Disse Challe.
François não respondeu; cumprimentou e saiu.
*
Os barcos de pesca que balançavam na enseada Madrague pareciam
brinquedos. Velhos de túnica e turbante contemplavam o mai agachados na
soleira da porta de suas casas. Outros jogavam dominó, sentados em
banquinhos, bebendo de vez em quando um gole de chá. Garotos mergulhavam
dos barcos, enquanto mulheres vestidas de branco, das quais só se viam os
olhos, cuidavam de crianças que rolavam na areia. Algumas perseguiam cães
esquálidos que primeiro fugiam latindo e depois voltavam. Charretes puxadas
por burros passavam. Uns patrões de pescadores, europeus, bebericavam um
anisete na companhia de cinco jovens já bem bêbados. O chamado do muezim
espalhou-se pelo porto: uns homens se levantaram e dirigiram-se sem pressa
para a mesquita. Jeanne Marte-Rodriguez e Léa acabavam de almoçar.
— Você está muito calada. — Observou a argeliana. — Não gostou do
lugar?
— Achei uma delícia, tão calmo... Tem-se a impressão de estar a
quilômetros de Argel.
— A Argélia, antes, era assim em todos os lugares: doçura de viver... Eu
vinha sempre aqui com meu pai, quando era criança. Nós tínhamos um barco
no qual íamos pescar. O barco ainda existe, mas, depois da morte de meu
marido, não tive mais vontade de subir a bordo... Você está pensativa... Está
preocupada? Confie em mim, adoraria ajudá-la.
— Agradeço... Como posso dizer?... Eu me sinto tão estranha a isto tudo, a
este país, a estes acontecimentos, mas, ao mesmo tempo...
— Continue.
— Jeanne, eu gostaria que você não se equivocasse comigo... Não penso
como você... Veja bem, eu estava ainda em Cuba no ano passado e vi a alegria
de um povo...
— Você compara a Argélia com Cuba?! Desculpe-me, mas não concordo...
— Tanto num caso como no outro, é a guerra dos pobres contra os ricos,
dos oprimidos contra os opressores...
— Mas eles eram mais pobres ainda antes da nossa chegada! Nós também
éramos pobres, mas trabalhamos duro para construir este país. Nós,
opressores? Desculpe-me, mas você é de uma ingenuidade desconcertante. Foi
a imprensa parisiense de esquerda que lhe deu essas idéias? Não passam de
mentiras! Você é comunista?... Você acha isso engraçado?
— Sim... Cada vez que alguém sonha em voz alta com um mundo melhor é
logo taxado de comunista... Não, eu não sou comunista. Utopista, talvez... De
qualquer modo, queira você ou não, a Argélia será independente.
Uma grande palidez tomou conta do rosto de sua companheira cujos olhos
se encheram de lágrimas. Léa podia sentir o sofrimento dela: ela se lembrava de
seu próprio medo ante a idéia de perder Montillac. Mas ela se revoltava contra
seu egoísmo e sua inconsciência. Emocionada, no entanto, tomou entre as suas
a mão que agora tremia. Inconscientemente, a sra. Martel-Rodriguez retirou-a.
— Se você soubesse como me faz sofrer... — Disse ela com uma voz
trêmula. — Este é o meu país, e eu sempre acreditei que a Argélia era a França.
Eu sou francesa, amo o meu país, mas, se tivesse que escolher, escolheria a
Argélia... Vou, aliás, confessar-lhe uma coisa que não diria nunca aos meus
amigos da Argélia: se, por infelicidade, a França se separasse da Argélia, eu
ficaria aqui e assumiria a nacionalidade argeliana. Mas, antes de chegar a esse
ponto, eu lutaria de todos os modos para impedir que esta terra que é minha,
onde meus avós e meu pai repousam, não caia nas mãos da FLN!
Com essas últimas palavras, sua voz voltou a ficar firme. Ela tirou da
bolsa o estojo de pó e passou um pouco, a fim de disfarçar os traços do seu
sofrimento.
A tarde já estava avançada, quando Léa voltou ao hotel. O porteiro
entregou-lhe um envelope com seu nome junto com a chave: o Delegado Geral e
a senhora pediam-lhe que se aprontasse para vir instalar-se na casa deles. O
que isso significava?
Ela teve a resposta lendo a carta deixada, em seu quarto, por François. Ela
esticou-se na cama, invadida pela tristeza e pelo cansaço. Adormeceu.
Com o passo decidido, Léa atravessou o hall e aproximou-se do jovem que
o porteiro tinha lhe indicado.
— Boa noite, senhor. Eu sou a sra. Tavernier. Agradeça ao senhor e à
senhora Delouvrier pelo convite amável, mas prefiro ficar aqui esperando a
volta de meu marido.
— Mas, senhora, eu recebi ordens...
— Não se preocupe. Aqui está uma carta na qual explico as razões de
minha recusa. Leve-a ao sr. Delegado. Até logo e obrigada.
Depois, ela voltou para o quarto, de onde ligou para Joseph Benguigui.
François tivera a boa idéia de deixar-lhe o número do telefone do motorista de
táxi. Foi ele que atendeu.
— Você podia vir me buscar? — Perguntou ela imediatamente.
— Seu marido precisa de mim?
— Não, ele foi para Paris, mas me deixou seu telefone... Você vem?
— É hora do toque de recolher, é melhor não sair do hotel. Além disso, na
cidade está tudo fechado...
— Se você não pode vir, eu me viro sozinha!
— Seja razoável: você não vai encontrar nenhum táxi e, se sair, será
imediatamente presa por uma patrulha de paraquedistas ou da polícia. Você
parece não se dar conta de que há uma revolução lá fora! Se estiver tudo calmo,
passo para pegá-la amanhã de manhã... Alô Você está aí? Alô!
— Sim, alô... Você teve notícias de Malika?
— Nenhuma; os muçulmanos estão enfiados em casa.
— Bem... Então, boa noite.
De mau humor Léa desligou.
Ela caminhava de um lado para o outro há algum tempo, quando teve a
impressão de ter ouvido um barulhinho na janela. Ficou quieta, depois afastou
a cortina, quando viu um rosto entre as laranjeiras.
Afinal, reconheceu Béchir. Abriu a janela. Ele pôs um dedo nos lábios.
— O que você está fazendo aqui? — Cochichou ela.
— Estou procurando seu marido.
— Ele está a caminho de Paris... Tem alguém com você?
— Sim, um amigo; foi ele que me mostrou o caminho para chegar aqui.
— O que você quer com François?
— Não posso dizer nada a você. Quando ele volta?
— Amanhã, eu acho.
— Espero que não seja tarde demais...
— De que se trata? Você não quer dizer?... Azar o seu!... Como vai a sua
irmã?
— Não muito bem.
— Alguém está cuidando dela?
— Sim, Al-Alem e eu.
— Al-Alem... Quem é?
— Eu. — Disse um garoto, aproximando o rosto das grades. — Yacef, o
enfermeiro, não pôde vir.
— Mas é preciso chamar um médico!
Ao mesmo tempo em que pronunciava essas palavras, ela percebeu a
estupidez do seu raciocínio.
— Então, eu vou com vocês. — Disse ela.
Os dois adolescentes se olharam. Al-Alem inclinou a cabeça em sinal de
assentimento.
— Ao lado do seu quarto, há uma porta que dá para o jardim. Está aberta,
já verifiquei. Se tiver algum medicamento, traga. Nós esperamos.
Num piscar de olhos, Léa trocou-se, enfiou uma calça jeans, um pulôver e
um blusão de couro, depois jogou alguns produtos de toilette na bolsa. Quando
ela ia sair, voltou e rabiscou algumas palavras no verso da carta de François.
Capítulo 20
Após a partida de Léa, Charles havia deixado o apartamento da Rua de
l'Université para se instalar num estúdio mobiliado, na Rua Linné, alugado de
um amigo ator também ele "carregador de valises" na época. O jovem, sabendo
que estava visado pela DST, tomara essa decisão a fim de que as crianças não
fossem testemunhas de eventuais batidas policiais ou de interrogatórios.
Ainda bem que agiu assim: no dia seguinte à sua mudança, uns
investigadores se apresentaram à Rua de l'Université. A sra. Martin e
Philomène não puderam explicar nada sobre os motivos da ausência dele.
— Ele está com o general De Gaulle! — Afirmara Claire, depois de se enfiar
entre as pernas de sua assam.
— Por que você diz isso? — Perguntou, então, um dos investigadores.
— Porque meu papai e minha mamãe trabalham para ele na Argélia.
Os policiais olharam um para o outro: eles não ignoravam que François
Tavernier era encarregado oficialmente de uma missão pelo Chefe de Estado,
mas também sabiam que sua mulher era suspeita de ter transportado fundos
para a FLN; somente a ausência de provas concretas havia impedido que a
prendessem. Quando souberam que ela fora se juntar ao marido na Argélia,
eles se perguntaram sobre o objetivo dessa viagem. No momento, ainda
ignoravam os motivos. Quanto a esse assunto, porém, o chefe da DST, Roger
Wybot, havia recomendado-lhes que procedessem com a maior prudência:
levando em conta seu passado, não era impossível que Léa Tavernier também
estivesse em missão ultra-secreta. Além disso, Jean Sainteny havia dado
garantias do patriotismo dela; assim como o general Salan, aliás. Dois
testemunhos que era preciso levar em conta. Quanto a seu filho adotivo, eles o
pegariam, mais cedo ou mais tarde...
Deixaram, portanto, a Rua de l'Université pedindo às duas mulheres que
os avisassem se recebessem notícias de Charles.
Dois dias mais tarde, Charles mostrava sua nova casa à Marie-France
Duhamel. A garota insistiu em fazer algumas transformações. Num piscar de
olhos, as cortinas duplas foram trocadas, a cama transformou-se num divã
coberto com um forro e enfeitado com almofadas, um tapete caucasiano
disfarçava o piso sombrio, as luzes das lâmpadas foram filtradas com lenços de
seda laranja, a mesa de trabalho desapareceu sob as cores quentes de um
kilirn, ramos de flores apareceram nos vasos e um autêntico Matisse,
emprestado da coleção de seu pai, representando uma cena oriental foi preso à
parede em frente à estante de livros. O triste apartamentozinho mobiliado
transformou-se num agradável estúdio; somente o banheiro e a cozinha
escaparam à renovação. Marie France quis fazer uma festa de inauguração.
Apaixonado, Charles não ousou recusar-lhe o prazer.
Foi na época dos esportes de inverno que eles se tornaram amantes. Desde
então, eles se encontravam quase todos os dias no quarto que o rapaz ocupava
na Rua de l'Université. A vida mundana dos pais dela, a cumplicidade com seu
irmão Jean-Marie e de sua melhor amiga, Caroline, facilitavam os encontros. A
turma do Pampam rapidamente adotara Charles. Ele também havia acabado
por se ligar a esses garotos mimados — esses "blusões dourados", como os
chamavam seus amigos comunistas — que aproveitavam sem culpa o dinheiro
de seus pais, sem esquecer de fazer com que os amigos menos favorecidos
também aproveitassem. Eles se mostravam generosos com desenvoltura e, por
mais de uma vez, Charles pegou um carro emprestado sem que eles fizessem
nenhuma pergunta. Nas primeiras vezes, sentiu algum escrúpulo em
transportar, nos carros de seus novos amigos, os fundos destinados à FLN ou
as publicações proibidas. Mas, seus companheiros, engajados como ele na rede
de ajuda à Frente, logo persuadiram-no a não se incomodar com isso. Um dia,
o proprietário de um Dauphine novinho em folha insistiu que ele o
experimentasse numa viagem a Genebra; oferta que Charles agarrou
imediatamente: precisava justamente ir buscar um estoque do jornal
clandestino da FLN, impresso na Suíça. Ao mesmo tempo, ele seguia o curso da
Faculdade de Direito, de maneira irregular; logo, seus professores chamaram a
atenção dele por isso. Por sorte, um deles, um amigo de Roland Dumas que
havia conhecido em companhia de Francis Jeanson, percebera esse rapaz tão
diferente dos outros estudantes e tomou-se de simpatias por ele, a ponto de lhe
ministrar seus ensinamentos fora da universidade.
Do seu lado, Marie-France ignorava completamente o engajamento político
de seu amigo. Para ela, a guerra da Argélia não era real; ela sabia apenas que
os rapazes de mais de vinte anos eram convocados para manter a ordem do
outro lado do Mediterrâneo. Sua mãe preocupava-se com seu irmão, mas
contava com as relações do marido para ver o filho isento do serviço militar...
Charles se espantava com o pouco interesse que Jean-Marie e seus amigos
tinham pela vida política de seu país e pelo que acontecia pelo mundo. Eles só
se interessavam por carros, pelos últimos discos ou filmes da moda, pela última
moda, pelas festas e bailinhos do fim de semana e pelas férias que passariam
em Deauville ou Saint-Tropez. Eles se diziam gaullistas e anticomunistas,
porque seus pais eram, e não pensavam no futuro senão em termos de festas e
flertes.
Assim que se conheceram, Charles tentara abordar a questão dos
acontecimentos na Argélia, mas logo desistiu: tinha a impressão de que falava
uma língua estrangeira... Não podia deixar de estabelecer uma comparação com
os cubanos e cubanas da mesma idade que ele conhecera na Universidade de
Havana e ao lado dos quais ele mais tarde lutou.
Ocasionalmente, Jean-Marie Duhamel dera-lhe um começo de resposta a
respeito dessa indiferença.
— As histórias de guerra enchem o saco! E o exemplo dos adultos não nos
dá vontade de nos engajarmos: durante a Ocupação, nossos pais só pensavam
em comer e, como tinham dinheiro, podiam conseguir alimentos no mercado
negro. No nosso meio, éramos mais favoráveis a Pétain, o vencedor de Verdun;
depois, mais tarde, quando a coisa começou a ficar feia para os alemães,
começamos a achar de Gaulle legal. Em volta de mim, não havia nem
resistentes nem colaboracionistas. Foi só depois do fim da guerra que alguns
passaram a dizer que haviam sido maquis ou que tinham escondido judeus. Foi
também nesse momento que os negócios começaram: os milionários ficaram
bilionários e os obscuros sucateiros tornaram-se proprietários de castelos. O
dinheiro passou a correr de monte. É claro, houve a volta dos prisioneiros, dos
deportados que tentaram contar o que tinham vivido; ninguém queria escutar,
ninguém queria acreditar: o que eles contavam era horrível demais, impensável
para aqueles que só tinham sofrido com a falta de manteiga e de carvão...
Então, os "fantasmas" se calaram, para não incomodar, por uma espécie de
vergonha de terem voltado vivos do inferno no qual os outros se recusavam a
acreditar. Um banqueiro judeu, amigo de meu avô e que morava perto de nós,
estava entre os que haviam escapado. Meus pais o receberam com grandes
pompas — pegava bem, naquele momento, ter um velho deportado entre suas
relações... Posso ver aquele velho magro, muito alto e curvado, tentando
explicar a meus pais e a meu avô o que tinham sido as câmaras de gás e os
cadáveres congelados que jogavam nos fornos crematórios. Eles se olhavam,
como se dissessem: "Ele está maluco."
No entanto, os jornais da época exibiam, na primeira página, esses montes
de corpos descarnados entre os quais era difícil distinguir os homens das
mulheres! O infeliz, percebendo o efeito produzido no seu auditório, levantara
as mãos manchadas, com as veias saltadas e deixara-as cair pesadamente
sobre as coxas. Eu estava perto dele e pude notar que uma lágrima corria no
seu rosto enrugado. Tive vontade de vomitar e saí da sala. Um mês depois, ele
se suicidou. Tratei de esquecer logo aquele velho repetitivo e de aproveitar a
vida graças ao dinheiro de meus pais. Às vezes, pergunto-me o que eles tentam
se fazer perdoar, satisfazendo todos os nossos caprichos. E, no entanto, você
vê, não tenho o menor desejo de ser como eles. Eu os desprezo e me desprezo
por aceitar essa vida boa. Tenho medo de ficar como meu pai e seus amigos
industriais ou financistas. Vou lhe fazer uma confidência: não pedi a renovação
de minha dispensa e alistei-me nos paraquedistas; devo partir daqui a duas
semanas. É o único modo que encontrei para escapar deles. Não diga nada a
Marie-France. Você me dá a sua palavra de honra?
Charles deu, com sinceridade: ele compreendia as motivações de seu
amigo. Tentou explicar que se tratava de uma guerra injusta, mas recebeu uma
resposta que deixou-o pensativo:
— Por que, para você existem guerras justas?
Essa pergunta, aparentemente banal, mergulhara Charles num delírio
melancólico: ele revia Ernesto Guevara e Camilo Cienfuegos trocando um olhar
amigável e cúmplice após os combates vitoriosos, ou rindo como garotos
brincalhões com seus homens, sujos e barbudos como eles. Eles estavam certos
de que a "sua" guerra era justa.
Depois, com a felicidade de amar novamente, esquecera
momentaneamente os propósitos daquele que ele chamava de "meu cunhado", e
suas reflexões sobre a legitimidade das guerras...
A turma do Pam-Pam veio toda à festa organizada por Charles e Marie-
France. A banheira, cheia de gelo, servia de geladeira para as garrafas de
champanhe e de Coca-Cola. Jean-Marie se encarregara da música. Os discos de
quarenta e cinco rotações se empilhavam nos toca-discos que ele trouxera.
Patrick Bernard tinha vindo com sua irmã Catherine e uma amiga dela,
Christine, com a qual Charles já transportara fundos. Todos se apertavam no
estúdio. As músicas lentas sucediam aos cha-cha-chas. Marie-France dançava,
com a cabeça apoiada no ombro de Charles. Alguém pediu um rock-and-roll.
Jean-Marie agarrou a irmã pela cintura e os dois jovens deram uma
demonstração que foi vivamente aplaudida.
Charles sentou-se no sofá, perto de Patrick.
— Você não dança? — Perguntou ele.
— Você chama isso de dançar? — Disse seu amigo.
— Não seja estraga-prazeres...
— Você é completamente doido por dar uma festa deste tipo. Com esta
barulheira, os vizinhos vão acabar chamando os guardas.
— Não, fique tranqüilo, nós falamos com eles.
Lá pelas duas da manhã, entretanto, duas batidas na porta interromperam
a festa: era apenas a visita de dois policiais bonachões, mandados pela
delegacia da praça do Panthéon por causa dos telefonemas de um coronel
reformado e da viúva de um notário, ambos bastante conhecidos pela polícia
das redondezas por suas costumeiras queixas... Os policiais fizeram-nos
observar que eles também haviam sido jovens, mas os moradores do prédio
tinham direito de repouso. De comum acordo, a turma resolveu continuar a
festa na Rua Montagne-Sainte-Geneviéve, numa espelunca recentemente
descoberta por Jean-Marie.
A tropa toda desceu as escadas fazendo muito barulho. Marie-France e
Charles, ajudados por Patrick, esvaziaram os cinzeiros e recolheram os copos
espalhados. Antes de sair, Charles abriu completamente as janelas. Foi então
que percebeu, na calçada da frente, no canto de um portão de carros, um
homem vestido com um impermeável de gola levantada que, abrigando-se do
vento, tentava acender um cigarro. Charles recuou: acabava de reconhecer um
de seus "seguidores" habituais. Eles não haviam levado muito tempo para
encontrar o rastro dele! Descendo a escada, discretamente avisou Patrick. Na
rua, os dois amigos deram o braço a Marie France, um de cada lado. Apesar
dos casacos quentes, eles foram surpreendidos pelo frio. Atrás deles, o homem,
de impermeável pôs-se a andar. "Pobre coitado", pensou Charles, "ele deve
congelar!" Na rua Écoles, uma ambulância passou a toda velocidade; não havia
trânsito algum.
Quanto aos parisienses, deviam estar no quentinho, embaixo das
cobertas...
Havia uma fumaça tão espessa flutuando no ar do estabelecimento da Rua
Montagne-Sainte-Geneviéve que eles hesitaram por um momento antes de
juntar-se aos companheiros. Lá no fundo, eles haviam descoberto uma mesa,
uns banquinhos e algumas cadeiras com as pernas bambas, tudo
grosseiramente pintado com um verde berrante. Os jovens se sentaram em
volta da mesa, ainda cheia de copos sujos. Um garçom em mangas de camisa,
um avental azul amarrado na cintura, veio pegar os pedidos:
— Cerveja ou vinho tinto! — Anunciou ele, recolhendo os copos.
Na pista minúscula, os casais dançavam uma valsinha popular ao som de
um acordeão. Mulheres de idade indefinida, sem dentes, cabelos opacos e
crespos, apertadas nos seus vestidos de cores vivas, provocavam os homens
que faziam cara de maus. Jean-Marie levantou-se e tirou uma delas para
dançar.
Ela aceitou com um sorriso de triunfo que expôs uma dentadura frouxa.
Charles, incomodado, enlaçou Marie France.
— Que lugar miserável é este?
— Você não gosta?
Ele não respondeu. Um movimento dos dançarmos deixou ver uma parte
do balcão de zinco: o policial de impermeável estava com os cotovelos lá. O mais
importante: finja que não está nem aí! Quando a valsa terminou, eles voltaram
a se sentar. Diante deles, a espuma vazava das canecas. Beberam; a cerveja era
boa e gelada.
Lá pelas três da madrugada, a sala começou a se esvaziar. Patrick Bernard
e seus companheiros aproveitaram para se despedir. Logo, só havia na sala
alegre turma, uns bêbados refestelados num canto e o policial. Os garçons
começaram, então, a virar as cadeiras por cima das mesas, sinal de que iam
fechar em breve. Após uma última rodada, Jean Marie pediu a conta e pagou,
proclamando solene:
— Vocês são meus convidados!
Voltaram para a rua Linné onde tinham deixado os carros, ainda
escoltados pelo policial. Na altura da estação de metrô "Jussieu", ele jogou-se
dentro de um carro que partiu em seguida. Quando os amigos foram embora,
Marie France e Charles subiram para o estúdio.
— Você não tinha fechado a porta? — Perguntou ela.
— Sim, lógico. — Disse ele, empurrando a porta.
— Meu Deus! O que aconteceu? — Exclamou a jovem.
Tudo tinha sido revirado: móveis esvaziados, cortinas rasgadas, colchão e
almofadas cortados, livros jogados para fora das estantes, páginas rasgadas...
Eles deram alguns passos, sobre os cacos de louça quebrada, até o meio do
desastre, abestalhados, levantando automaticamente uma luminária,
pendurando uma roupa, colocando um livro na prateleira. Com os olhos cheios
de lágrimas, Marie-France afundou-se numa poltrona cujo assento tinha sido
destruído.
— Quem pode ter feito isso? — Repetia ela sem parar.
Charles fechou as janelas sem dizer nada. Este saque era um aviso, prova
de que a DST estava bem informada sobre ele. Além disso, nos últimos tempos,
muitos membros da rede Jeanson tinham sido presos. Ele se lembrava da
assembléia geral da qual havia participado, em Enghien, onde Francis Jeanson
dava orientações a seguir caso fossem presos: "Se vocês perceberem que a
polícia não tem muita coisa contra vocês, neguem tudo e tentem sair dessa.
Caso contrário, assumam politicamente os atos de que a justiça os acusa. Não
acredito que haja uma caçada iminente; de Gaulle não tem interesse em abrir
um processo público contra os franceses ligados à Frente. Isso seria desastroso
frente à opinião internacional."
Enquanto isso, o cerco se fechava em volta dos "carregadores de valises".
Era preciso evitar, de qualquer modo, que Marie-France fosse envolvida nisso.
— Você vai voltar para casa.
— Mas é preciso dar queixa à polícia!
— Mais tarde... Vou chamar um táxi.
— Cortaram o fio do telefone.
Era verdade.
— Venha, vamos até o Bulevar Saint-Germain. Lá, encontraremos um táxi.
Depois que o carro se afastou, Charles ficou por um bom tempo à beira da
calçada, perplexo, perguntando- se o que fazer. Ninguém os tinha seguido. Sem
dúvida, eles consideravam que aquilo bastava por esta noite. Cansado,
enregelado, decidiu ir para a rua de l'Université e caminhou pelo cais deserto.
Um vento polar soprava; o Sena tinha uns reflexos inquietantes. Quando
chegou ao apartamento, tropeçou num carrinho largado no chão, bateu numa
poltrona de onde caiu uma bola que ficou pulando várias vezes na entrada: ele
ia acordar todo mundo na casa! Prestou atenção, ninguém se mexeu. Na ponta
dos pés, entrou no seu quarto e jogou-se na cama, completamente vestido.
Foi só no dia seguinte, no final da manhã, que Charles se resolveu a dar
queixa. O comissário, visivelmente por dentro dos acontecimentos da noite,
assistiu pessoalmente ao seu depoimento.
— Nós temos um relatório feito por dois de nossos homens, que foram à
sua casa por conta de uma baderna. Você tem certeza de que não foram seus
amigos barulhentos que quiseram lhe pregar uma peça? — Declarou ele ao
rapaz.
Ele ficou quieto e assinou o depoimento depois de relê-lo cuidadosamente.
Lá fora, o frio atingiu-o novamente, O termômetro havia caído para -14°
em Paris, e -20° em Savoie.
Apesar do seu casaco forrado de pele e de suas luvas de lã, ele tremia de
frio. Atravessou a praça do Panthéon. Diante da Igreja Saint-Étienne-du-Mont,
um carro fúnebre esperava, enquanto os agentes funerários batiam os pés e as
mãos para tentar se esquentar. Ele entrou num bistrô em frente à Escola
Politécnica e pediu um chocolate quente. Ele se perguntava se seria prudente ir
à Avenida Villiers, onde deveria pegar o boletim de informação e propaganda,
Vérité pour, que já estava no número quinze.
Desde que saiu da delegacia, não percebeu ninguém o seguindo. Mas isso
não queria dizer nada: os caras da DST estavam ficando cada vez mais difíceis
de se perceber. Decidiu deixar o calor do café para voltar à Rua Linné. À luz do
dia, a desordem do apartamento e os estragos feitos pelos policiais pareciam
irreparáveis; não havia sobrado nada do lindo cantinho ajeitado por Marie-
France.
Atrás dele, alguém soltou uma exclamação; era a zeladora que vinha trazer
a correspondência.
— Então foi isso, o barulho que ouvi depois que vocês saíram!
Decididamente, os ladrões não respeitam mais nada... Vou buscar uma lata de
lixo para ajudá-lo a juntar tudo que vai ser jogado fora. Ah! Olhe, sua
correspondência!
Ele pegou duas cartas e um jornal de estudantes, que a rede usava para se
comunicar com seus membros.
Ele o folheou, leu alguns dos pequenos anúncios e achou enfim o que
procurava: "Três cômodos para alugar na Avenida Villiers; visitas no local às
quinze horas." Isso significava que o encontro estava mantido para a hora
prevista, ou seja, às dezoito horas.
A zeladora voltou.
— Desculpe-me, sra. Bertin, mas eu preciso chamar alguém para trocar a
fechadura. A sra. pode começar a limpar?
— Não se preocupe, vou fazer o possível. Você deveria mandar colocar uma
porta blindada, é mais firme.
— Vou seguir o seu conselho. Obrigado.
Um chaveiro da Rua Arènes prometeu passar lá naquela tarde mesmo.
Charles tomou o metrô, desceu na "Bastille", depois dirigiu-se para um café,
onde, às vezes, se encontravam os membros da rede, o Tambour de la Bastille.
Àquela hora, os clientes acabavam de almoçar. Ele subiu para o primeiro andar
e passou de uma sala a outra, à procura de um rosto conhecido. Na última,
reconheceu duas garotas com quem tinha ido à reunião da Enghien. A que
estava de frente para ele levantou a cabeça e também o reconheceu. Pelo olhar
dela, ele adivinhou imediatamente que não devia se aproximar. Sentou-se em
outra mesa, perto da janela. Não longe dali, um homem sozinho fumava seu
cachimbo e um outro, perto da saída, lia o France-Soir. O garçom veio pegar o
pedido.
— Um sanduíche de presunto e uma cerveja.
As duas jovens levantaram-se, colocaram seus mantôs e saíram sem nem
olhar para ele. Pouco depois, o leitor do France-Soir desceu. O garçom trouxe o
pedido, que Charles pagou logo. Ele começava a comer quando o do cachimbo
levantou-se e esticou o braço para pegar o chapéu. Por um instante, Charles
pôde ver a cartucheira de couro pela abertura do paletó. O lugar estava ficando
perigoso. Ele terminou de comer e levantou-se sem esperar o troco. No térreo,
funcionários e clientes amontoavam-se nas janelas.
— O que está acontecendo? — Perguntava um senhor idoso e baixinho,
esticando-se na ponta dos pés.
— A polícia acaba de prender duas terroristas.
— Terroristas, aqui, em Paris?
— Sim, senhor, e elas saíram daqui!
— O quê? Duas mulheres!... Não acredito... Que tempos!
O carro não oficial no qual elas foram levadas afastou-se, precedido por
um outro carro de polícia. Os dois inspetores entraram num Simca cinza cuja
placa Charles decorou imediatamente.
Ele pegou o metrô na Bastille e mudou na Étoile, desceu em Monceau,
depois percorreu o resto do caminho a pé, assegurando-se de que não estava
sendo seguido; não percebeu nada de suspeito. Na Avenida Villiers, comprou
jornais num quiosque e sentou-se num café perto do lugar onde ia ser feita a
entrega do Libertú pour; tinha duas horas para matar antes do encontro. Pediu
um café e um pacote de Gauloises. Três quartos de hora depois, levantando a
cabeça do jornal, percebeu que o Simca cinza que ele vira na praça da Bastille
estava estacionado na frente do prédio vizinho àquele aonde ele devia ir.
Dobrou os jornais, pagou a conta e ficou preparado para fugir. Dois outros
carros não oficiais pararam em fila dupla diante do prédio.
Alguns homens desceram e se dirigiram para a entrada; deviam ser quase
dezessete horas. Um carro de polícia parou, então, na altura do café e dois
policiais saíram dele.
— Não me admiraria nem um pouco se eles dessem uma batida aí em
frente: já faz três dias que vigiam o pedaço — Declarou o dono do café,
observando a cena.
Ao mesmo tempo, os passageiros do Simca deixaram o veículo; Charles
identificou sem surpresa os inspetores que haviam agido no Tambour de la
Bastilie. Os policiais juntaram-se aos colegas. Pouco depois, saíram do prédio,
trazendo aquele que devia entregar os jornais a Charles. Os policiais fardados
rodearam-nos e pegaram o suspeito, levando-o para o carro. Quando o grupo
passava na frente do café, Charles viu que o rapaz tinha o rosto cheio de
sangue.
— Eles não foram nada delicados. — Resmungou o dono do café.
O motorista do carro ligou a sirene e partiu. Os carros não oficiais
desapareceram atrás dele.
Charles pediu para telefonar: ligou para Marie-France dizendo-lhe que ia
se ausentar por uns tempos e desligou sem lhe dar tempo de fazer nenhuma
pergunta.
Saiu do café.
No metrô lotado, Charles refletia sobre que conduta adotar. A fim de
afastar eventuais perseguidores ele mudou de direção por diversas vezes.
Quando desceu, na Estação Austerlitz, pegou a Rua Buffon: nessa artéria longa
e estreita, ele pôde verificar que não estava sendo seguido. Um vento glacial
soprava na Rua Geoffroy-Saint-Hilaire. Diante das grades do Jardim Botânico,
parou para amarrar o cordão do sapato.
Quando se endireitou, percebeu, estacionado junto ao seu prédio, o Simca
cinza. Dois homens estavam colocados, um de cada lado do portão de carro,
enquanto outros haviam entrado pela porta principal. Com o coração aos pulos,
ele ficou imóvel por uns instantes. A zeladora que acabava de sair para a
calçada, gesticulava para os inspetores que estavam na frente da porta. Logo, o
resto do grupo saiu e enfiou-se nos carros, deixando apenas um homem de
guarda. Charles atravessou o cruzamento e entrou na rua Monge: ele precisava
ir para aquele bistrô da Rua Mouffetard de que Vincent lhe havia falado,
acrescentando que só fosse lá em caso de extrema necessidade.
Quando chegou lá, os comerciantes da rua estavam baixando as portas de
ferro de suas lojas, e os raros transeuntes apressavam-se na direção de
Gobelins. No café de Hilaire, os últimos fregueses terminavam de beber.
— Estamos fechando. — Disse o dono quando o viu entrar.
— Estou congelando, você pode me servir um café, por favor?
— Eu sirvo. — Respondeu Armande, dirigindo-se ao marido. — Não vamos
deixar o garoto sair desse jeito num frio destes...
— Obrigado, senhora. — Disse Charles, aproximando-se do balcão.
— Sirva-lhe também um armagnac, isso vai esquentá-lo.
Logo só estavam os três.
— Está melhor? — Perguntou Armande, olhando para ele de um jeito terno
que o marido logo percebeu.
Ele veio colocar a mão carinhosamente no ombro dela.
— Você está pensando no nosso garoto? — Murmurou ele.
Já fazia três semanas que eles tinham recebido do filho uma carta da qual
cada passagem lhes doía no coração:
Queridos pais,
Não sei se vocês vão receber esta carta, mas não agüento mais: o que
estamos passando aqui é impossível de se contar. Quem acreditaria em nós?
Temos tido uns embates terríveis. Cinco de nossos camaradas foram mortos
numa emboscada e, dois dias depois, outros quatro deles foram feitos
prisioneiros. Foram encontrados com os olhos vazados, o nariz e as orelhas
cortadas e o sexo arrancado, enfiado na boca. Pensamos que íamos ficar
loucos. É preciso ser pior que um animal para fazer isso. Todos os rapazes
choravam: "Vamos acabar com esses porcos!" — gritou o capitão. Quando a
noite caiu, deram-nos de beber e nós sujamos nossos rostos com cinza. Fomos
a uma vila onde costumamos comprar legumes e carne. Acabamos por
conhecer todos os habitantes; alguns deles conhecemos até pelo nome. Fomos
até lá. Nessa vila só há mulheres, velhos e crianças: os homens juntaram-se
todos à ALN, nos disseram. Quando chegamos lá, tudo estava escuro e
silencioso, com exceção de alguns carneiros que berravam. Entramos, colados
nos muros. Um cachorro latiu, depois outro. Um velho saiu para ver o que
havia. O tenente saltou sobre ele e apunhalou-o. Foi o sinal. Nós nos
precipitamos para dentro das casas, umas doze, talvez, e lá nós atiramos em
tudo que se mexia: tanto nas pessoas como nos animais. No começo houve
gritos, choros e gemidos... depois, nada mais. Quanto tempo aquilo durou? Não
tenho idéia. Estávamos como bêbados. Depois, pusemos fogo nas casas. Diante
das chamas cantamos e dançamos como selvagens. Voltamos para o
acampamento esgotados e dormimos como não fazíamos há muito tempo. Ao
acordar, nós nos encaramos, assustados, sem compreender: estávamos
cobertos de sangue. Quando a memória voltou, não ousávamos olhar um para
o outro. O capitão e o tenente, que estavam no mesmo estado que nós,
reagiram primeiro e mandaram que tirássemos a roupa. Nos chuveiros, do lado
de fora das barracas, a água que corria a nossos pés era vermelha. Um de nós
derramou gasolina na farda e pôs fogo. Sem combinar nada, todos fizemos a
mesma coisa; os oficiais também. Desde essa noite horrível em que
massacramos uma centena de pessoas, não somos mais os mesmos. Alguns
ficam deitados por horas, outros, como eu, não se lavam mais, não comem
mais, não dormem mais... Se eu não temesse causar a vocês um sofrimento
maior ainda, eu me ofereceria como voluntário para as operações "comando" e
torceria para ser morto.
Perdoem o mal que faço a vocês revelando todo esse horror, mas precisava
contar a alguém.
Se vocês lerem estas linhas, não me julguem: a visão de nossos
companheiros massacrados nos fez perder a cabeça.
O filho indigno e infeliz que os ama,
Ramond.
— Mais um café? — Perguntou a mulher.
— Não, obrigado... Eu sou amigo de Vincent...
— Da Rua das Acácias?
— Sim... E preciso avisá-lo: a polícia prendeu dois de nossos camaradas
na Bastilie e aquele que eu deveria encontrar na Avenida Villiers. Meu
apartamento foi saqueado a noite passada e está sendo vigiado. Não posso
voltar lá...
— Você tinha documentos em casa?
— Não, só alguns livros proibidos... Eu tinha levado tudo para a casa de
um amigo...
— Vamos avisá-lo... Você tem onde dormir esta noite? Não? Bem, fique no
quarto do nosso filho; dá para entrar pelo pátio. Fica no térreo e dá para a rua
de trás... Armande, prepare um sanduíche e leve para ele. Ah, preciso saber o
seu nome.
— Charles d'Argilat, mas meu codinome é Ernesto.
Antes de sair, Hilaire apagou as luzes e desligou a chapa. Lá fora, o piso
escorregadio brilhava.
Ainda estava escuro, na manhã seguinte, quando Charles deixou o quarto
de Raymond com o objetivo de encontrar Adrien no liceu Montaigne. Pouco
depois das oito horas, os alunos começavam a se reunir diante das grades do
Luxembourg. Um guarda, encarregado de cuidar do trânsito, estava no lugar.
Charles viu Adrien chegar pela rua Guynemer. Andou até ele.
— Continue, não pare... Não vire a cabeça!
— Charles?!...
— Escute, preciso ser rápido: a polícia está atrás de mim. Vou precisar
sumir por uns tempos. Avise François e Léa, mas cuidado com o que vai dizer.
Assim que possível darei notícias. Eles não precisam se preocupar... Os
policiais voltaram lá em casa?
— Não, não depois que você foi embora.
— Posso lhe pedir um favor?
— Sim, claro.
— Não pare, já disse... Bem, eu tenho dinheiro numa das gavetas da
minha escrivaninha, e alguns papéis.
Pegue esta chave. Ponha tudo num envelope; eu tenho uns grandes na
gaveta... Você pode levar para mim no final da tarde na igreja da rua
Mouffetard?
— Aquela na pracinha?
— Sim. Eu espero a partir das dezessete horas. Vou ficar perto do
confessionário. Tome cuidado para não ser seguido.
— Não esquente a cabeça... Parece que estamos num autêntico romance
policial. Volto para casa ao meio-dia para pegar suas coisas. Tenho um colega
que mora em Gobelins; vou com ele no final das aulas e encontro você na
igreja.
— O importante é que você não fale comigo: sente-se na minha frente e
passe-me o envelope. Bom, vou embora. Tenha cuidado... Dê um beijo nas
crianças e em Philomène por mim... Obrigado!
Sem se voltar, Charles apertou o passo e passou por ele.
Dois dias depois, tendo recuperado o envelope, o rapaz deixou a França,
munido de documentos falsos com o nome de Christophe Roussel. Mais uma
vez, "o senhor Jo" tinha feito um bom trabalho.
Capítulo 21
Um carro aguardava François Tavernier na saída do avião; no interior dele
estava Georges Pompidou. Os dois homens apertaram-se cordialmente as mãos.
Pouco antes de embarcar, François ficara sabendo que o ex-chefe de gabinete
do Presidente de Gaulle havia sido encarregado por ele de estabelecer contatos
secretos com os representantes do MNA e do GPRA. Pompidou pudera
encontrá-los graças à mediação dos doutores Popie e Morinaud, dois advogados
argelianos considerados liberais, por ocasião de uma discreta estadia em Argel,
em março de 1959; sua qualidade de procurador do Banco Rothschild havia
pernitido que ele circulasse nos meios de negócios sem chamar a atenção. Essa
viagem havia sido para ele a oportunidade de preparar uma próxima entrevista
com o doutor Ahmed Bournendjel, um importante representante da FLN.
— Como está meu antigo colega de preparatório para o curso superior? —
Perguntou Pompidou, acendendo um cigarro.
— Paul Delouvrier? A perna o faz sofrer bastante.
Pompidou lançou-lhe um olhar divertido e continuou:
— Isso acabará se arranjando. O importante é que ele não perca a calma...
Li o seu relatório: e então?
— Tenho dificuldades de ver com clareza: alguns chefes militares esperam
o desenrolar dos acontecimentos para se declararem a favor da insurreição;
pelo menos é a impressão que tenho. Os coronéis, por sua vez, estão muito
animados e vão tentar certamente influenciar as decisões do General. Por outro
lado, os ativistas das barricadas só contam com o apoio de uma parte da
população européia, e não têm nenhum Governo Provisório da República
Argeliana.
apoio da população muçulmana, fora os antigos combatentes muçulmanos
de plantão, que aparecem em todas as manifestações... Em compensação, eles
estão armados e não hesitarão, em caso de ataque, em abrir fogo contra as
forças da ordem; pelo menos é o que afirma alto e forte Pierre Lagaillarde. As
tais forças da ordem não podem mais ser recrutadas entre os paraquedistas,
que se declaram como unha e carne com os rebeldes. Seus chefes foram muito
claros quanto a isso: "Nós não vamos atirar!" Dar-lhes essa ordem a partir de
uma autoridade mais alta seria empurrá-los para uma maior confraternização e
significaria, em caso de desobediência, um vexame para o Governo.
— O que você sugere?
— Esperar, tentando descobrir quem são os principais atores.
— Você vai dizer isso tudo ao Presidente da República. — Concluiu,
preocupado, Georges Pompidou.
Fechando os olhos, ele mergulhou em seus pensamentos. Respeitando o
seu silêncio, François aproveitou para refletir sobre o seu iminente encontro
com de Gaulle, depois seu espírito voou em direção a Léa...
Assim que chegou ao Élysée, Tavernier foi recebido pelo Chefe de Estado,
que o acolheu como o habitual:
— Fico feliz em vê-lo, Tavernier.
O general de Gaulle havia lido atentamente o relatório de François. Pediu
alguns esclarecimentos e depois, levantando-se, declarou:
— É preciso pôr um fim nessa espécie de quermesse escandalosa! Mas,
sem ignorar a possibilidade do pior, há mais uma tentativa de me intimidar do
que um ardor propriamente dito. Acredito que os rebeldes não têm no momento
outro objetivo senão me obrigar a voltar atrás quanto à autodeterminação.
Estou decidido a espremer o abscesso, a não fazer concessão alguma e a obter
do exército uma completa obediência. É preciso acabar com a revolta e castigar
os que a promoveram. Você partirá esta noite para Argel em companhia do
Primeiro-Ministro. Adeus, Tavernier.
A entrevista, que não durou mais do que vinte minutos, deixou Tavernier
amargo e insatisfeito. Na ante-sala ele cruzou com René Brouillet a quem
perguntou se estava informado sobre a visita de Michel Debré a Argel.
— Isso foi decidido num conselho de ministros. — Confirmou o chefe de
gabinete do Presidente da República.
— A partida está prevista para que horas?
— Vinte e trinta, em Villacoublay.
— Isso me dá uma hora para ir ver meus filhos... Você pode pôr um veículo
e um motorista à minha disposição?
— Certamente, vou dar as ordens necessárias.
Um pouco mais tarde, François apertava os três filhos nos braços.
— Papai está aqui! Papai está aqui!... — Gritava Claire, rodando sem
parar.
— Onde está mamãe? — Perguntou de repente Camille.
Não foi fácil explicar que ele voltaria para Argel naquela noite mesmo. Os
mais velhos contiveram-se a fim de esconder a decepção, mas Claire explodiu
em soluços, dizendo que ele era "um malvado". Philomène veio pegá-la e tentou
consolá-la. Essa cena quase fez François arrepender-se da visita; Camille
adivinhou e veio abraçar-se com ele.
— Ela é pequena, você sabe. Não fique bravo com ela, não é culpa dela...
Ela chama por vocês todos os dias.
"Que situação", lamentava François, beijando os cabelos da filha.
— Charles não está aqui? — Perguntou ele, de repente.
O incômodo de Adrien era visível. François afastou Camille delicadamente
e aproximou-se do filho. Adrien abaixou a cabeça, mas Camille correu em ajuda
ao irmão.
— Ele partiu, não se sabe para onde!
— Adrien, se for alguma coisa grave, você precisa me contar.
O garoto levantou a cabeça e olhou o pai nos olhos, sem responder. Por
um segundo, François pensou ver Béchir diante dele. Nesse olhar orgulhoso, o
pai percebeu que o filho não falaria nada.
— Se tiver a oportunidade, diga a Charles que ele pode contar comigo e
que eu o amo.
O rosto de Adrien crispou-se, os olhos encheram-se de lágrimas.
— Como é que ele pode contar com você? — Explodiu ele. — Você não está
aqui nunca! Mamãe e você agem como se nós não existíssemos. Por causa de
vocês, estamos sempre com medo. Camille não se queixa, mas tem pesadelos
todas as noites. Para que ela consiga dormir, vou para a cama dela acalmá-la.
Aí, sou eu que não durmo mais...
— Cale-se, Adrien! — Interrompeu a irmã.
— Por que eu me calaria? Estou de saco cheio! Cheio de não saber o que
vocês estão fazendo! Cheio de que a polícia venha aqui! Cheio de que Charles, o
único que nos compreende, seja afinal como vocês, e que se meta a brincar de
guerra! Mas, logo, vou fazer como vocês, vou fazer como ele! Assim vocês vão
ver, vão ter medo também!
François abraçou-o. Como ele tinha crescido!...
— Por favor, não chore mais!
Adrien afastou-se bruscamente.
— Deixe-me... Volte para a sua guerra, já que é só isso que interessa a
vocês.
A porta do quarto dele bateu. Desamparado, François afundou-se no sofá,
segurando a cabeça com as mãos.
Papai! Vai ficar tudo bem... Adrien preocupa-se demais com você, com
mamãe e, agora, com Charles...
François soluçou quando abraçou a filha.
— Ah, papai, não chore!
O toque da campainha sobressaltou-os. A Sra. Martin foi abrir.
— Estão chamando o Senhor.
O motorista da Presidência vinha avisar que estava na hora de pegar o
caminho para o aeroporto de Villacoublay.
Camille compreendeu. Foi pegar o sobretudo do pai e seu cachecol.
— Vá, eu explico para eles. — Disse ela corajosamente abrindo a porta. Dê
um beijo em mamãe por nós...
Voltem logo. — Acrescentou ela.
Quando ele saiu, ela colou o ouvido na porta para ouvir o barulho
decrescente dos passos de seu pai.
Quando a escada voltou a ficar silenciosa, ela se deixou arriar no chão e,
silenciosamente, se pôs a chorar.
No avião que o levava de volta, François Tavernier expôs brevemente a
situação a Michel Debré. O Primeiro-Ministro que, até pouco tempo atrás, fazia
parte dos ferozes defensores da Argélia francesa, denunciando violentamente a
política argeliana da quarta República no Courrier de la colêre, ficou
impressionado. Seu rosto, normalmente pálido, encheu- se de manchas
vermelhas. Percebia-se que ele se sentia dilacerado pelos acontecimentos. Cinco
pessoas, além de Tavernier, o acompanhavam nessa viagem:
o Ministro do Exército, Pierre Guillaumat, o secretário geral dos assuntos
argelianos, Roger Moris, seu chefe de gabinete, Pierre Racine, e também os
generais Nicot e Martin; este último voltava a seu posto em Argel. Ninguém a
bordo tentava disfarçar a preocupação.
— É visível... — Observou Michel Debré. -- Que um número muito grande
de franceses da Argélia rejeitam qualquer mudança, inclusive aquela que
permitiria aos argelianos mais afrancesados ter acesso realmente às
responsabilidades. A recusa à menor mudança é um fato desanimador. Tudo e
que se pode dizer, o dinheiro que se pode gastar em favor do progresso
econômico e social, não conta. Para os chefes militares, uma espécie de
imprecisão do pensamento faz com que, se a solução fosse aceita, seria de fato
remetida para lá dos combates, quer dizer para o dia da paz, e a luta "contra a
subversão nacional" sufocaria tudo em alguns, inclusive a visão do interesse
francês. O que fazer?
Ninguém respondeu. Cada um deles tremia de frio no seu canto, perdidos
em seus pensamentos.
O avião pousou no aeroporto de Maison-Blanche pouco depois da meia-
noite. Na impossibilidade de deixar seus postos, nem o comandante em chefe
nem o Delegado Geral estavam presentes para receber o Primeiro-Ministro.
Michel-Jean Maffart recebeu-os em nome deles. Desviando o caminho, para
evitar o centro de Argel, Michel Debré e seus acompanhantes foram levados ao
quartel Rignot onde o ambiente era tenso. A ansiedade e a falta de sono
apareciam em todos os rostos.
De uma vez, o Primeiro-Ministro transmitiu as ordens dadas pelo Chefe de
Estado: acabar logo com aquilo, dispersar os rebeldes pela força se necessário,
até mesmo abrindo fogo. Não se podia admitir que a insurreição dominasse a
cidade e desafiasse o destino da República.
— Vocês não compreendem a situação! — Arrebatou-se Paul Delouvrier, no
auge do nervosismo. — Nós vamos todos ser massacrados! Vocês não têm
nenhuma idéia da violência que reina em Argel. A Argélia é atualmente o país
de medo. Os franceses têm medo. Os muçulmanos têm medo. O exército tem
medo de se desonrar... É um clima de loucura!
— Eu não posso transmitir as ordens do Governo sem saber, primeiro, se
elas poderão ser executadas e sem a opinião dos generais que terão que aplicá-
las. — Determinou o general Challe, mordendo a haste do cachimbo. — Meus
coronéis não tomam partido pela revolta, mas se recusarão a atirar na
multidão.
Todos observavam Michel Debré cuja palidez havia aumentado. A custa de
um esforço considerável, ele articulou com uma voz tranqüilizadora:
Continuem, senhores, eu estou aqui para me informar e conversar com os
senhores.
Os generais Crépin, Faure, Dudognon, Gracieux, Lancrenon e Martin
esperavam no escritório ao lado; eles iam poder "informar" o chefe de Governo.
Delouvrier retirou-se em companhia de Pierre Racine para escrever, disse ele,
ao general de Gaulle. François Tavernier apressava- se a fazer o mesmo,
quando Debré mandou-o ficar. Sentado, o Ministro do Exército, que não havia
pronunciado uma única palavra, tomava notas.
Os generais foram recebidos um a um. Quando o último saiu, o rosto
arredondado do Primeiro-Ministro estava pálido; Guillaumat, branco, fechava
sua caneta; Challe, lívido, abaixava a cabeça; quanto ao secretário de assuntos
argelianos, seu rosto havia se tornado cinzento.
"Parece uma reunião de fantasmas", pensou François.
Ele próprio estava branco como um lençol, porque a evidência se impunha:
o exército não obedeceria. E, como se fosse preciso aumentar mais ainda o
buraco, os coronéis iam se encarregar disso: eram catorze, esperando para
serem atendidos. Eram três horas da madrugada.
Todos se exprimiam, enunciando verdades dolorosas. O coronel Argoud
resumiu assim o estado de espírito dos companheiros:
— Qualquer solução pela força está excluída. Os insurrectos estão
absolutamente determinados. Eles sabem que são apoiados pelo conjunto da
população européia. A maioria dos comandantes de unidades se recusam a
obedecer. Seria um crime se as tropas francesas atirassem nos franceses
apenas porque eles querem continuar sendo franceses. É essencialmente um
problema de confiança. Os europeus e, mais ainda, os muçulmanos não têm
mais confiança na palavra da França e até, eu confesso, depois de 6 de
setembro, na do general de Gaulle. Guardando, com efeito, tanto uns como os
outros, a lembrança de vinte e cinco anos de traições em cadeia, eles
interpretaram a autodeterminação como o início de uma nova traição.
— O que se deve fazer, na sua opinião? — Grunhiu Michel Debré,
esforçando-se para aparentar uma calma que o tremor de suas mãos
desmentia.
— Fazer o general voltar atrás quanto à autodeterminação.
— E se ele se recusar?
— Então, seria a hora de o general Challe tomar conta de tudo a seu
modo.
— E se ele se recusar?
— Então não vejo outra saída senão recorrer a uma junta de coronéis,
quaisquer que sejam eles.
— E se a França não ceder?
— Eu não compreendo por que o destino de cinqüenta e cinco milhões de
homens deve depender do orgulho de um único. Os maiores homens de Estado
souberam mudar de opinião. O general de Gaulle se engrandeceria se
modificasse sua linha de conduta.
Um silêncio glacial pontuou a declaração do coronel Argoud. Emocionado,
Michel Debré concluiu com um tom que ele tentava manter firme:
— Fiquei profundamente perturbado com tudo que acabo de ouvir.
Ninguém partilha mais do que eu os sentimentos dos franceses da Argélia. A
política de autodeterminação foi contestada. Mas, nas atuais circunstâncias
nacionais e internacionais, ela é a única que garante as chances da França
aqui. Eu concordo com vocês. Mas, compreendam que o general de Gaulle não
pode renunciar à autodeterminação.
E preciso salvar a unidade da nação e a unidade do exército. A ordem
pública não pode ser perturbada, o Estado não pode ser dominado por
agitações de rua...
Os coronéis permaneceram como estátuas. Michel Debré estendeu- lhes a
mão; o coronel Boissieu recusou-se a apertá-la. O Primeiro-Ministro deixou a
sala para reunir-se aos eleitos da Argélia. Ali, também, palavras ferinas o
aguardavam. O deputado Marc Auriol pronunciou-se duramente desta forma:
— Estão debochando da verdade. Têm medo de dizer à nação que o
governo da 5 República tem sangue nas mãos. Mostram-lhe os acontecimentos
de Argel como obra de um punhado de extremistas, mas o senhor sabe muito
bem, sr. Primeiro-Ministro, que é todo o povo de Argel que se levantou contra a
política indeterminada do Governo, política que já durou muito e já fez muito
mal.
Com uma voz inalterada, Michel Debré respondeu laconicamente:
— Transmitirei suas preocupações ao general de Gaulle.
Quando os deputados partiram, ele largou-se pesadamente na cadeira:
compreendia os motivos dos que se rebelaram; ele também não os havia
partilhado outrora? Exausto, olhava para a frente, com os olhos brilhando de
amargura contida. Um ajudante de campo entrou, trazendo café. Depois de
beber uma xícara, Michel Debré levantou-se e declarou:
— Gostaria de ir ver as barricadas.
Sem acreditar no que ouviam, tentaram dissuadi-lo. Corria o boato de que
Pierre Lagalliarde tinha um plano para seqüestrar o Primeiro Ministro...
François entrou com ele no carro de Michel-Jean Maffart. Três outros veículos
levaram o Ministro do Exército, que continuava sem pronunciar uma palavra,
Pierre Racine, o general Nicot e diversos oficiais. Um caminhão da CRS os
seguia.
Eram cinco horas da madrugada quando o cortejo deixou o quartel Rignot
para pegar a Rua Michelet até a Rua Richelieu. Desembocando no Bulevar
Baudin, os veículos atravessaram o Platô Glières antes de subir o Bulevar
Laferrière até o correio, onde os paraquedistas montavam guarda. Os vestígios
do enfrentamento da noite de domingo ainda eram visíveis, as pedras do
calçamento tinham desaparecido e galhos de árvores cobriam o chão. De modo
regular, o farol do Amirauté varria a cena, indiferente. De onde estavam os
carros, Michel Debré podia observar a bancada da Rua Charles-Péguy,
iluminada pelas fogueiras dos rebeldes, e os paraquedistas, sentados ou de pé,
que deveriam montar guarda. À luz dos faróis, ele viu um homem escalar a
barricada e oferecer um café a um paraquedista. O militar bebeu, apertou a
mão do civil e devolveu o copo.
— Vocês permitem isso? — Perguntou espantado aos oficiais que o
acompanhavam.
Até que o avião decolasse, o Primeiro-Ministro continuou tenso. Quando o
aparelho subiu, a aurora apontava.
Voltando ao quartel Rignot, François Tavernier e Michel-Jean Maffart
cruzaram com Paul Delouvrier que acompanhava o médico-chefe do Hospital
Maillot.
—... é um choque nervoso que se manifesta dessa forma. Em dois ou três
dias, ele estará bem.
— Dois ou três dias! — Exclamou Delouvrier.
Assim que o médico partiu, ele se aproximou dos dois homens,
preocupado:
— Alguém está doente? — Inquietou-se Tavernier.
— Ainda bem que foi depois da partida do Primeiro-Ministro!... O general
Challe encontra-se impossibilitado de andar, precisei carregá-lo nas costas
(Deus, como ele é pesado!) e, com a ajuda dos guardas de plantão, coloquei-o
na cama. Tiramos os sapatos dele: as solas dos pés estavam em carne viva.
"Alergia às meias de nylon", disse-me ele. Mas o médico que chamei foi
categórico: foi um choque nervoso que acabou com os pés dele... Você acredita
nisso? Justo agora que a revolução ameaça a cidade?
Ele se virou e se afastou, apoiado na bengala.
— Vão descansar um pouco, senhores. — Acrescentou ele de longe. Apesar
de a situação ser dramática, François teve que fazer um esforço para se manter
sério: o destino da Argélia estava nas mãos de dois estropiados...
— Desculpe, senhor Delegado, mais uma coisa: eu sei que não é o
momento, mas gostaria de agradecer à sra. Delouvrier e ao senhor por terem
recebido minha mulher... Como ela está? — Perguntou ele, alcançando- o.
— Sua mulher?... Não tenho a menor idéia! Ela se recusou a vir instalar-se
em nossa casa, com não sei qual pretexto. Mesmo assim, mandei Poincaré ir
vê-la para insistir que viesse: ela não estava mais no hotel.
Como você, ela só faz o que lhe dá na cabeça... Vocês foram feitos um para
o outro!
Cerrando os punhos, François acusou o golpe.
— Com a sua permissão, vou procurá-la.
O Delegado Geral levantou os ombros e entrou na vila com Maffart em
seus calcanhares. François saiu do quartel Rignot e, a pé, foi para o Hotel
Saint-George. O sol se erguia em Argel.
Já fazia mais de uma hora que eles caminhavam e Léa começava a se
sentir cansada. A fim de evitar as patrulhas, os jovens argelianos contornaram
as artérias principais, subiram umas escadas, desceram outras, sem encontrar
viva alma.
— Ainda falta muito? — Murmurou a jovem mulher.
— Não. — Respondeu Béchir em voz baixa. — Nós já passamos o pior.
Assim que atravessarmos a Rua Porte- Neuve, estaremos em segurança.
Eles se encontravam, agora, no coração da Casbah. Só se ouviam os
miados de gatos e o latido de cachorros que, sem dúvida, disputavam o lixo.
Depois das largas ruas iluminadas da cidade européia, as ruelas sombrias da
antiga cidade turca impressionavam Léa: ela se via prisioneira de um enorme
labirinto do qual somente Béchir e Al-Alem detinham o fio. Ela conteve um grito
quando, de uma janela, alguém atirou um pouco de água suja que veio
respingar na parede, muito perto dela. Por uns momentos, fragmentos de vozes
ou de choro de uma criança lembravam que a vida pululava nesse labirinto de
ruas.
Numa espécie de corredor, tão estreito que tinham que passar um de cada
vez, Al-Alem, que ia na frente, parou e, tateando, explorou a parede.
— É aqui. — Cochichou ele.
Girou uma chave sem fazer barulho e, depois, uma porta de ferro se abriu
sem fazer o menor guincho. Al- Alem fez os companheiros passarem na frente
dele. Na mais completa escuridão, Léa apalpou uma parede úmida de onde
vinha um cheiro de mofo. Parecia que estavam numa cripta e ela agarrou a mão
de Béchir.
— Acenda a luz. — Ordenou Al-Alem em voz baixa.
À luz tremeluzente da lanterna que Béchir segurava, Al-Alem abaixou-se,
pegou um pouco de terra e salpicou, pelo lado de fora, na fechadura e na porta;
assim parecia que ninguém abria aquela porta há séculos. Apesar da luz fraca,
Léa percebeu que a ferrugem roia o metal.
Depois de fechar a porta, subiram uma escada íngreme, abaixando a
cabeça. Al-Alem levantou uma placa de ferro, arrastou-a para o lado e passou
para o lado de fora. Estendeu a mão a Léa. "Preciso emagrecer", pensou ela
enquanto passava com dificuldade pela abertura estreita. Béchir juntou-se a
eles e ajudou o companheiro a recolocar a placa. Diante deles, descortinava-se
a baía de Argel, cujas luzes cintilavam sob o céu estrelado.
— Não é hora de admirar a paisagem! — Repreendeu-os o guia. —
Venham!
Ele abriu o cadeado que fechava a porta de uma espécie de barraco de
zinco e de pranchas cobertas com piche. Suspensa, uma lâmpada a óleo
iluminava uma parte do local onde se distinguia uma forma esticada sobre
almofadas; Béchir aproximou-se.
— Malika?...
— É... é você? — Perguntou uma voz fraca.
— Sim... Suas mãos estão queimando!
— Ela veio?
— Estou aqui. — Tranqüilizou-a Léa, ajoelhando-se à beira da cama.
Ela colocou a mão fresca na testa da doente; uma febre alta a abatia.
— Quando foi que ela tomou a última injeção de penicilina?
— Antes de ontem.
— O enfermeiro não veio mais?
— Não. Nós o esperamos ontem, durante todo o dia e, esta manhã, Al-Alem
foi dar uma volta pelos lados do Hospital Maillot. Ninguém viu Yacef e o doutor
Duforget não estava lá...
— Era preciso achar outro médico!
— Eu tentei. — Afirmou Al-Alem. — Mas estava cheio de militares, e os
enfermeiros corriam para todos os lados. Eles acabaram me vendo e me
puseram para fora de lá.
— Vocês têm penicilina?
— Sim, Yacef trouxe várias caixas.
— Me dê e vá ferver água.
Al-Alem pegou água de um tonel, pôs a panela de esmalte num aquecedor
a álcool e acendeu. Léa esmagou dois comprimidos de aspirina em meio copo de
chá frio. Com a ajuda de Béchir, que segurava a irmã, ela fez Malika beber.
— Pegue a agulha e a seringa, ponha água... Você tem éter?
Al-Alem mostrou a garrafa de álcool para o aquecedor.
— Serve. — Disse ela, jogando um pouco nas mãos. — Agora, saiam.
Pouco depois, ela juntou-se aos garotos que fumavam, agachados, as
costas encostadas contra a mureta do terraço. Ela se sentou perto deles.
— O que significa "Al-Alem"?
— O Sábio.
— Ah... Você tem um cigarro?
Com o rosto voltado para as estrelas, eles fumaram.
Durante dois dias, Malika lutou contra a morte; Léa cuidou e lavou o corpo
martirizado, trocou suas roupas sujas, não se permitindo senão alguns
minutos de repouso. Al-Alem e Béchir seguiam suas instruções sem discutir.
Por momentos, ela revia o rosto emaciado de sua irmã falecida, no qual se liam
tantos sofrimentos suportados. Mais uma vez, ela lamentou não ter
acompanhado Françoise nos seus últimos momentos. "Eu não estive à altura
dela", lastimava-se ela.
Na manhã do terceiro dia, a febre caiu e, de noite, havia desaparecido.
Esgotada, Léa dormiu por doze horas de uma só vez. Quando acordou, no
dia seguinte, perto do meio-dia, fazia quatro dias que ela tinha saído do Hotel
Saint-George. Será que Béchir tinha conseguido aproximar-se de François,
como ela havia pedido? A chuva batucava no zinco do barraco.
— Tome. — Disse uma mulher, oferecendo um copo de chá a Léa.
— O quê?... Onde está Malika? — exclamou ela, levantando-se.
— Estou aqui. — Disse a menina, saindo de um canto escuro, enrolada
numa túnica de lã branca. — Esta é minha mãe. Beba. Depois, nós vamos a
um banho turco, é ao lado.
— Ah, sim, vai nos fazer bem... Como você se sente?
— Tão bem quanto possível.
— Por que fala assim tão tristemente?
— Eu preferia ter morrido! — Lançou Malika.
Uma onda de raiva invadiu Léa que se conteve para não jogar o copo de
chá no rosto dela. A mãe interveio.
— Você não tem o direito de dizer isso, minha filha. Você deve a sua vida a
Alá e a esta mulher. Você deve agradecer.
— Desculpe-me, eu sou ingrata. — Disse Malika, levando as mãos de Léa
aos lábios.
Léa beijou-a e sorriu.
No vapor da sauna, os corpos nus das duas mulheres moviam-se com uma
lentidão irreal. As tensões, as angústias desapareceram sob as mãos da
massagista que não demonstrava nenhuma surpresa com a presença da
européia, nem com a visão das queimaduras da argeliana. A pedido da mãe, um
lençol estendido separava-as das outras banhistas. Com os olhos semicerrados,
Malika, a pele untada com um óleo perfumados deixou-se pentear pela
assistente da massagista. Seu rosto emagrecido havia recuperado a beleza e as
marcas dos golpes tinham quase desaparecido.
Quando as três mulheres, enroladas num Iiaïk, deixaram o banho turco,
sentiam-se como purificadas. Lá fora, Béchir e Al-Alem esperavam por elas.
— Você viu meu marido? — Perguntou Léa ao jovem engraxate.
— Não, mas encontrei seu amigo, o motorista de táxi: ele vai lhe dar
notícias de você. Tome, trouxe jornais.
— Ah, que bom, obrigada.., O que vai acontecer com Malika, agora?
— Ela vai ficar ainda por uns dois ou três dias na casa de Al-Alem. Depois,
veremos...
— Gostaria que você me levasse para conhecer a Casbah.
— É muito perigoso, poderiam perceber que você não é muçulmana...
— Vestida deste jeito, eu me pareço com qualquer mulher daqui.
— Para os franceses, talvez, mas não para nós. Seu modo de andar não é
igual, seus gestos são mais vivos...
É uma coisa que se percebe logo.
— Vou pedir à sua irmã que me mostre como fazer...
— É melhor perguntar à minha mãe. Malika nunca usou o véu...
No meio da multidão densa que andava pelas ruas, as mulheres
apertavam o passo. Somente os homens pareciam passear, conversando diante
das lojas, sentando-se na frente de um café, jogando damas ou xadrez.
— Vamos beber um chá de hortelã? — Sugeriu Léa, parando diante de um
boteco de onde saía uma música árabe.
— Venha, estão nos olhando. Uma mulher jamais entraria num café!
"Decididamente, este país não foi feito para mim", decretou ela, seguindo os
passos de seu companheiro.
Capítulo 22
O Hotel Saint-George parecia uma fortaleza sitiada, guardas armados
defendiam a entrada, cercada com fileiras de arame farpado. Foi preciso que
François Tavernier ameaçasse voltar com os paraquedistas para que os
cérberos consentissem em entreabrir as grades, não sem antes pedir
autorização à direção.
Ele subiu correndo a alameda que levava aos prédios. O mesmo circo
repetiu-se na entrada do hall. Tendo-o reconhecido, o porteiro precipitou-se tão
rápido quanto permitia a sua dignidade.
François pediu a chave e cortou de uma vez as lamentações do homem
com respeito a Léa. No quarto, encontrou logo o bilhete dela, rabiscado no verso
do dele. Com raiva, amassou o recado:
em que vespeiro ela teria se metido agora? Sem se despir, esticou-se na
cama. Quando o telefone tocou, ele teve a impressão de que acabava de pegar
no sono. Era do quartel Rignot, de onde o chamavam por ordem do general
Challe. Consultou o relógio: oito horas. Depois de se barbear e tomar um
banho, ligou para Joseph Benguigui que estava dormindo:
— Joseph, você poderia tentar encontrar o pequeno engraxate do Aletti? É
muito importante.
Ligue para mim no quartel Rignot ou deixe um recado no hotel. Obrigado.
Ele desligou sem lhe dar tempo para pedir qualquer explicação.
No quartel general, Tavernier encontrou o general Challe na cama, com os
pés protegidos do contato com o lençol por um arco. Junto com Paul
Delouvrier, Maffart e Poincaré, ele estava ouvindo o editorial da estação de
rádio, transmitindo em ondas curtas, de que dispunham agora os rebeldes: "a
Voz da Argélia, província francesa", transmitia desde o amanhecer um boletim
de informações com o objetivo de atingir os ouvintes da metrópole.
— Ele ousou chamar isso de "apelo ao povo da França. Os franceses falam
aos franceses!" — Rugiu o comandante em chefe, dirigindo-se ao recém-
chegado.
— Não se preocupe, meti general. — Acalmou Poicaré. — O transmissor
deles é muito fraco para atingir a França.
— E não é falando aos franceses de Jules Moch, de Le Troquer, de Pflimlin,
de Frey, de Neuwirth ou de Mitterrand que eles perigam de interessar alguém.
— Acrescentou Michel-Jean Maffart.
— Calem-se! — gritou Delouvrier.
"... Amigos da metrópole que ouvem a voz de Argel nós vamos contar a
vocês, simplesmente, o que acontece aqui. No fundo, é simples. Lembrem-se da
liberação de nossas cidades e povoados em 1944. As bandeiras francesas
estavam em todas as janelas, vocês aclamavam os libertadores, vocês choravam
os desaparecidos também, mas, todos juntos, na alegria da renovação, vocês
acreditavam no futuro e estavam prontos para construí-lo. Argel está assim
hoje. A população muçulmana e a cristã confraternizam, os rebeldes, é assim
que os chamam, confraternizam com o exército. É a grande manifestação, que
nada impedirá..."
— Mentirosos! — Gritou Challe.
— Não se agite desse jeito. — Acalmou-o Delouvrier. — Você vai se
machucar.
"... O 13 de maio foi traído, mas nosso 14 de julho, o de 24 de janeiro de
1960, triunfará além dos mares e continentes. Franceses, francesas, nós somos
jovens, nós queremos que a justiça, a paz e a fraternidade sejam mais fortes
que a política, o dinheiro, o poder pessoal e os slogans eleitoreiros. Chaban-
Delmas, Debré que mantêm na prisão homens simples, que vocês empurraram
para o contra-terrorismo, Frey, Edgar Faure e todos os delinqüentes da Quarta,
dêem lugar às forças vivas da nação. Nós somos a verdadeira democracia e é
por isso que a censura governamental bloqueia todas as informações de Argel.
Um Governo que tem medo da verdade é um Governo vencido. Que ele caia,
como caíram Hitler, Mussolini e o Estado francês de 1940!"
— Desligue isso! — Gritou o general, tentando levantar-se.
"...a grande França de nossos pais..."
Paul Delouvrier desligou o botão do aparelho; Maurice Challe caiu de volta
na cama, com um grito abafado.
Naquele mesmo momento, Joseph Ortiz batizava a barreira da Rua
Charles-Péguy de "barricada Hernandez", em homenagem a Roger Hernandez,
abatido durante as trocas de tiros. Uma enorme multidão se comprimia sob o
balcão do QG de Ortiz, de onde o professor Méningaud lia e comentava os
jornais.
— Qualquer um que questione a soberania francesa sobre a Argélia
cometerá um crime, e os franceses que se opuserem a isso estarão agindo em
legítima defesa!
Os aplausos explodiram.
— Bravo! — Confirmou a assistência.
— Sabem quem escreveu isso? em 1957?... Michel Debré!
— Uuuu!... Traidor!
Durante esse tempo, no Hospital Mustapha, os homens de Lagaillarde
penetravam no pavilhão penitenciário, desarmavam os policiais de plantão e
liberavam os homens condenados no chamado "caso da bazuca", atentado
perpetrado em 1957 contra o general Rodier. Os prisioneiros, que haviam sido
transferidos da penitenciária Berrouaghia para o Hospital Mustapha por
motivos de saúde, trocaram imediatamente o pijama pelo uniforme de
paraquedistas. Com exceção de Philippe Castille, condenado a dez anos de
trabalhos forçados, que desapareceu assim que foi libertado, todos os ex-
detentos juntaram- se ao campo entrincheirado de Lagaillarde.
Em diferentes bairros de Argel aconteciam cerimônias fúnebres das
vítimas civis. O Governo Geral temia que as cerimônias se transformassem em
pretexto para novas manifestações. A polícia, com a ajuda do exército,
dispersava sem incidentes os agrupamentos que encontrava. Na cidade, onde a
convocação para a greve geral obtivera sucesso, as bandeiras do porto estavam
a meio pau e um tecido negro flutuava no mastro dos navios. A população,
ainda sob o choque, enterrava seus mortos com calma e dignidade.
No final da tarde, aquele que era chamado de o "Fidel Castro da Argélia"
concordou em se apresentar no balcão da Federação das unidades territoriais
ao lado de Ortiz. Esse encontro foi obra do coronel Gardes, que preconizava a
aproximação dos chefes da insurreição. Para as negociações com o exército e as
autoridades, convencionou-se que Ortiz trataria das questões políticas e
Lagaillarde, das questões militares.
À noite, soube-se que o comandante da reserva Sapin-Ligniéres, presidente
da associação das UTs, cuja sede havia se tornado o campo entrincheirado de
Joseph Ortiz, fora nomeado como chefe das vinte e duas unidades territoriais
da Grande Argel pelo general Crépin, com a ordem de uni-las tarefa difícil,
senão impossível de realizar, uma vez que esses homens encontravam-se
dispersados pelos quatro cantos da cidade, mobilizados na tropa de Ortiz,
assegurando um policiamento por conta própria, ameaçando aqueles que se
recusavam a contribuir para o "esforço de guerra" em favor dos defensores das
barricadas, ou simplesmente porque tinha ficado em casa...
Por seu lado, Lucien Neuwirth, secretário geral do grupo parlamentar UNR,
tentava negociar com Lagaillarde por intermédio do diretor da televisão de
Argel, tarefa executada de acordo com o Primeiro-Ministro. Mas, o chefe do
"reduto" das faculdades recusava-se a "parlamentar com politiqueiros".
Durante todo o dia, os coronéis tentaram recrutar homens entre os
rebeldes da comunidade muçulmana, que, até então, tinham-se mantido à
parte. A ambição deles era conseguir fazer um novo 13 de maio, onde houvera a
confraternização das duas comunidades. Se isso acontecesse de novo, se
milhares de muçulmanos descessem às ruas para pedir a integração, isso sem
dúvida obrigaria o general de Gaulle a voltar atrás quanto à autodeterminação.
Era esse principalmente o sonho do coronel Cardes, auxiliado pelo capitão
Léger e pelos "azuis", que se esforçavam sem descanso junto às associações de
antigos combatentes, indo de Casbah ao QG de Ortiz, do bulevar Laferrière ao
campo de Lagaillarde, a fim de acertar os detalhes de uma união entre os
homens das barricadas e os árabes.
Tanto em Paris como em Argel corriam os mais variados boatos que
encontravam ouvidos prontos para escutá-los. Durante a noite, um emissário
do Primeiro-Ministro desembarcou em Argel para saber se os coronéis haviam
mesmo constituído uma junta com o objetivo de tomar o poder; surpresos, os
tais coronéis asseguraram ao enviado do Governo sua absoluta lealdade.
Entretanto, o general Crépin mandou vir para Argel um regimento de
atiradores senegaleses a fim de assegurar a guarda de seu QC da caserna
Pélissiei depois ameaçou mandar ele mesmo seus negros para atacar o campo
entrincheirado. De fato, Lagaillarde e Ortiz eram os donos de Argel. Todos,
rebeldes e militares, muçulmanos e pés-pretos, esperavam agora o discurso que
o general de Caulle devia dirigir à nação no dia 29 de janeiro.
Eram quatro horas da manhã quando François voltou para o Hotel Saint-
George; nem Léa nem Joseph Benguigui haviam dado notícias.
Ao amanhecer, o general de Gaulle ligou para Paul Delouvrier e mandou
que ele enviasse o general Crépin, o único, disse ele, em quem ainda confiava.
Nesse mesmo dia, o coronel Cardes apresentava-se à Rua Saint-Dorninique, em
Paris, no Ministério do Exército, onde Pierre Guillaumat exigia uma explicação
de seus laços com Ortiz.
Durante a noite, em Argel, as barricadas foram reforçadas e novas armas,
apesar das barreiras, conseguiram chegar às mãos dos rebeldes. A imprensa
argeliana expunha em grandes letras, a seguinte manchete:
"A Casbah solidária para manter a Argélia francesa": os antigos
combatentes tinham sido mobilizados. Na praça do Governo, eles esperavam,
armados com suas bandeiras, pela chegada dos muçulmanos. Somente uns
trinta se apresentaram.
No quartel Rignot, o mal-estar crescia: acabavam de saber que em
presença de Ortiz e de Lagailiarde acontecera no interior do campo
entrincheirado, atrás da barricada da Rua Charles-Péguy, o içamento da
bandeira ao som do clarim, e que os rebeldes apresentaram armas enquanto,
do outro lado da barricada, os paraquedistas haviam ficado em posição de
sentido diante da bandeira tricolor que se elevava. O Delegado Geral temia
agora a influência dos coronéis sobre o comandante em chefe. Ele convocou o
coronel Argoud na esperança de descobrir suas intenções.
— Você não precisa temer nada nas próximas horas; estamos aguardando
o discurso do general de Gaulle.
Se for bom, tudo volta ao normal. Se for mau, será para você a hora da
verdade. Você será o nó da situação. Se assumir a chefia da insurreição, nós
obedeceremos. Nós, militares, não queremos o poder.
Queremos a Argélia francesa.
— Meu coronel, basta conhecer o general de Gaulle para saber que ele não
recuará e que seu discurso não será "bom" no sentido que vocês esperam. No
que concerne a mim, verei, no momento apropriado, qual será minha atitude.
A François Tavernier, convocado também, ele confessou haver ligado para
o Élysée e ter revelado que não lhe parecia mais necessário que o posto de
comando se encontrasse em Argel.
— Você quer dizer que deixa o caminho livre para os rebeldes?
— Não, mas se eu ficar, vou me tornar prisioneiro deles. E se tornar
pública essa impotência, não serei compreendido nem por Paris nem por Argel.
Com meias palavras, para evitar indiscrições, expliquei minha decisão ao
general de Gaulle; ele me disse para fazer como achasse melhor, mas que
fizesse logo. Pedi, portanto, ao general Challe que considerasse essa disposição,
insistindo no fato de que ele e eu estamos "envenenados" pelas idas e vindas
que se sucedem aqui. Contei-lhe meu desejo de instalar meu comando em
condições mais calmas. "Você acha? Isso me parece deserção", disse-me ele.
Respondi que ele tinha aquela noite para refletir e que voltaríamos a conversar
hoje. Por mim, está tudo decidido. Qual é a sua opinião?
— Se já está tudo decidido, você não precisa da minha opinião.
— Mesmo assim?
— Essa decisão me parece sábia e espero que o general Challe a adote.
Entretanto, você corre o risco de que os paraquedistas e os rebeldes
interpretem isso como uma forma de abandono, abrindo-lhes todas as portas
dos prédios públicos.
— Obrigado, Tavernier, fico feliz com a sua aprovação. Não se preocupe
com o resto; já tomei algumas precauções. Estou preparando para amanhã um
discurso que, espero, será ouvido por todos os protagonistas. Você talvez fique
espantado com o seu conteúdo... Mas, como você vê, estou calmo, bem de corpo
— ou melhor, quase, fora a minha perna — e de espírito, e nada me impedirá
de cumprir meus compromissos.
Descobria-se em Paul Delouvrier uma nova postura, uma determinação e
uma autoridade renovadas. O cansaço dos últimos dias parecia haver
desaparecido. François considerou-o com simpatia e respondeu- lhe:
— Não duvido, senhor Delegado.
— Já encontrou sua mulher?
— Ainda não.
— Sinto muito, principalmente porque, em razão das circunstâncias, não
posso lhe ser útil. Sinceramente, lamento muito... Você tem pelo menos uma
idéia de onde ela se encontra?
— Na Casbah.
— Na... na Casbah! Mas o que ela está fazendo lá? É extremamente
perigoso!
François esboçou um gesto fatalista.
— Você falou sobre isso com o coronel Godard? Afinal, ele é o responsável
pela segurança...
— Não. Fique fora disso tudo, eu me viro...
— Se você tiver novidades, ponha-me a par: vou jantar no Palácio de
Verão; minha mulher insistiu em ficar em Argel com nosso filho mais novo.
Naquela quinta-feira, 28 de janeiro, o mundo inteiro tinha os olhos presos
em Argel. Agora, fazia cinco dias que o centro da cidade estava paralisado pelas
barricadas e pela greve geral, e os víveres começavam a faltar. "O exército vai
juntar-se oficialmente à rebelião?", era essa a pergunta que todos se faziam.
"Se o Governo não renunciar à autodeterminação, não poderei responder
pelas tropas sob meu comando", informava o relatório cotidiano do general
Gracieux, enviado naquele dia ao general Challe.
Na metrópole, assim na Alemanha, algumas unidades se diziam prontas a
se por à disposição do general Challe, o único, segundo os militares, capaz de
salvar o exército de uma nova "guerra espanhola". Em Oran, em Constantine,
em Mostaganem, haviam estourado incidentes quando os muçulmanos
gritaram "Viva De Gaulle!", "Viva a FLN!"... O comandante supremo das forças
aliadas na Europa, general Norstadt, havia até publicado um comunicado
nestes termos: "É do interesse de todos os países da OTAN que se apresente
uma solução para a crise argeliana. A situação na Argélia constitui para um
membro da OTAN um acontecimento grave que interessa a toda a Aliança."
Por outro lado, dezenas de mensagens de apoio chegavam todos os dias ao
Élysée e numerosas prisões eram feitas nos meios de extrema direita, tanto em
Paris como no interior.
No pátio do Hospital Maillot, o funeral de catorze policiais mortos no
domingo à noite desenrolava-se na presença de seus colegas. Durante a
emocionante cerimônia, o general Morin, comandante da polícia, depositou
uma medalha sobre cada um dos caixões expostos, recobertos pela bandeira
tricolor. A cidade estava mergulhada num clima febril. As tropas estavam
divididas: os navos da Casbah ameaçavam atirar nos paraquedistas, os
fuzileiros navais, de tomar de assalto as barricadas, e Lagaillarde, de fazer tudo
saltar pelos ares. Quanto aos paraquedistas, verdadeiros senhores da situação,
estavam divididos entre juntar-se aos rebeldes ou permanecer fiéis a de Gaulle.
Junto às autoridades, a ameaça de Lagaillarde era levada a sério; ele havia
declarado: "Se atirarem em mim, faço toda a Argel ir pelos ares. Tenho vinte
garrafões de ácido fluorídrico. Haverá cem mil mortos."
Mais uma vez, tentaram fazer os muçulmanos sair de seus bairros e
confraternizar com os revoltosos das barricadas; vieram poucos mais que na
véspera: uma centena, no máximo.
No quartel Rignot, Paul Delouvrier e Maurice Challe tomavam as últimas
medidas necessárias para a sua "evasão". Fora decidido que eles iriam para
Reghaïa, a uns trinta quilômetros de Argel, na base dos caça- bombardeiros
cujo chefe, general Martin, comandante da aviação na Argélia, era amigo do
comandante em chefe. Num conselho de guerra restrito, ficou estabelecido que
Challe partiria primeiro com seu Estado- maior e que Delouvrier o seguiria,
depois de gravar seu discurso.
No final da manhã, o coronel Argoud apresentou-se, rodeado pelos outros
coronéis, trazendo um manifesto que eles desejavam entregar ao comandante
em chefe, com o propósito de "continuar a exprimir a opinião de todo o
exército". Responderam-lhes que o general Challe, doente, encontrava-se
incapacitado de recebê-los. Decepcionados, voltaram para a caserna Pélissier.
Depois do almoço, Challe, de pantufas, entrou no carro em companhia do
coronel Boissieu. Escoltado por motocicletas e seguido por dois caminhões de
comandos do ar, ele foi levado para a droppping zone do quartel Bimandreis,
onde um helicóptero o aguardava.
Aliviado por ver o general Challe se afastar, François Tavernier voltava-se
para o Delegado Geral quando vieram avisá-lo que um motorista de táxi insistia
em vê-lo. François desabalou-se para a entrada do quartel Rignot, diante da
qual Joseph Benguigui esperava. Empurrando os sentinelas que demoravam a
abrir as grades, ele gritou:
— E então?... Você a encontrou?
— Suba!
— Mas... Ah, merda!
Ele se sentou ao lado do motorista, que arrancou em seguida.
— Então? — Repetiu François.
— Encontrei o engraxate do Aletti. Não foi fácil para ele me achar...
— Estou pouco ligando! Onde está Léa?
— Com a irmã do engraxate.
— Malika?
— Sim, ele veio procurar sua mulher para que ela cuidasse da menina.
— Por que ela não telefonou?
— Não há muitos aparelhos telefônicos na Casbah... Ela havia pedido ao
engraxate que me avisasse para que eu lhe desse o recado. Ele só conseguiu
fazer isso hoje de manhã...
— Como ela está?
— Bem; ela passeia pela Casbah, disfarçada de molikerc... E você acha
graça?
— Eu imagino!... Há, há, há!... Isso é a cara da Léa! Há, há, há!...
Benguigui lançou-lhe um olhar furibundo.
— Não é nada engraçado! Vocês são completamente irresponsáveis, vocês
dois! Apesar da batalha de Argel e da prisão dos seus chefes, a FLN ainda está
fortemente implantada na Casbah. Se souberem que uma européia passeia por
lá e, pior, que ela é casada com o enviado do general de Gaulle, ela se arrisca a
passar um mau bocado!
— Você tem razão, desculpe. Mas, não fico surpreso de que ela esteja lá: o
bilhete que ela me deixou dava a entender isso.
O carro deu uma guinada, uma roda bateu na calçada.
— Meu Deus! Olhe para a frente, você vai nos matar — Você sabia? Eu não
compreendo nada...
— Não é nada... Aonde nós vamos?
— O garoto espera você no jardim Marengo, no lugar que você sabe...
— Sei.
— Se me tivessem dito que eu levaria os recados de um muçulmano
nessas circunstâncias...
— Você ainda está em contato com seus camaradas das barricadas?
— Eles não são todos "meus camaradas", mas alguns deles, com certeza,
são sinceros; eles estão seriamente persuadidos de que da atitude deles
depende o futuro de seus filhos. Eu sei muito bem que estão enganados, mas
como dizer isso a eles? São pessoas simples, como eu, que amam este país que
é tanto deles como dos muçulmanos. O que fazer? Não há solução... Os árabes
jamais se unirão a Ortiz e seu bando, a Lagaillarde e seus pseudo-
paraquedistas. E o que vai acontecer é que nós, passada a euforia, não teremos
mudado. Seremos ainda o que nós somos: os pequenos brancos. Às vezes,
gostaria de juntar- me a eles: acreditar, acreditar ainda e sempre na Argélia
francesa! Mas, não acredito mais e... você contribuiu muito para me abrir os
olhos.
— Ah, muito pouco... Lembre-se das nossas conversas: você já estava
terrivelmente lúcido e suas idéias nunca foram as de um "pequeno branco". —
Amenizou François, pondo-lhe a mão no ombro.
— Tudo bem, tudo bem. — Resmungou Benguigui, afastando-se do gesto
amigável. — Não é hora para nos emocionarmos... Você, que está entre os
manda-chuvas, o que vai acontecer agora?
— O Delegado Geral preparou um discurso que irá ao ar a qualquer
momento.
— Um discurso?... Estou de saco cheio de discursos! Isso não adianta
nada... E o que diz, esse discurso?
— Ainda não sei de nada.
Na Praça Jean-Mermoz, diante do quartel Pélissier, protegido por sacos de
areia e cercas de arame farpado, caminhões militares estavam estacionados.
Sentados nos degraus do Liceu Bugeaud, fechado por causa da greve, os alunos
desocupados observavam os acontecimentos. Os militares pararam o táxi e
examinaram os documentos dos ocupantes. Como o salvo-conduto estava em
ordem, mandaram-nos seguir em frente.
— Ele podia ter escolhido um outro lugar. — Resmungou Benguigui,
pegando a Rua Sidi-Abderrahman.
O carro parou ao lado das grades. No jardim, as mães passeavam com
seus filhos.
— O que faço agora?
— Espere, por favor. Preciso voltar ao quartel Rignot.
Béchir estava no lugar onde eles já se haviam encontrado antes. François
sentiu por ele um daqueles impulsos de simpatia que ele raramente sentia. O
garoto veio na direção dele, com um sorriso nos lábios.
— Fico feliz em revê-lo! — Disseram ao mesmo tempo.
Rindo da coincidência, sentaram-se num banco.
— Você não devia ter envolvido Léa nisso tudo. — Repreendeu-o, no
entanto, François.
— Eu sei, mas não tinha escolha. Malika delirava, Yaef não voltou mais e
Al-Alem e eu não sabíamos aplicar injeções.
— E o doutor Duforget?
— Impossível chegar perto dele, o Hospital Maillot está nas mãos dos
militares e não é bom, para um árabe, andar por lá. Se não fosse a sua mulher,
Malika teria morrido. Sua mulher é uma pessoa incrível!
— Eu sei.
— Minha mãe veio ficar conosco.
— Fico feliz por vocês... Quando Léa volta da Casbah?
— Amanhã, eu acho. Depende de Al-Alem...
— Por quê?
— Porque ele é o único entre nós que sabe evitar os soldados assim como
os membros da Frente.
— Você jura que Léa não corre nenhum risco?
— Juro! Ela é muito bonita, a sua mulher...
— Ei, olhe lá! Você não vai ficar apaixonado?
O rosto moreno de Béchir ficou rubro. Para manter a compostura, ele se
levantou e mudou de assunto:
— No rádio estão anunciando que o Delegado Geral vai fazer um discurso.
Você acha que é importante?
— Ouça e depois você me diz o que achou. Agora, preciso ir. Você pode
dizer a Léa que eu estarei com certeza no quartel Rignot?... Ah! Diga também
que estou com saudades e que a amo.
— Até que enfim! Os paraquedistas queriam me fazer sair... Aonde vamos?
Ao quartel Rignot?
— Não, primeiro à caserna Pélissier.
— Eles não vão nos deixar entrar.
— Veremos...
Às sentinelas, François mostrou seu salvo-conduto assinado pelo
comandante em chefe e pelo Delegado Geral. como não havia ordens a esse
respeito, deixaram-no entrar.
— Este senhor está comigo. — Assegurou ele, designando Benguigui.
— Ele entra no pátio com o carro. — Acrescentou As portas se abriram.
— Tenho a impressão de estar me jogando na boca do lobo... Por que você
quer que eu o acompanhe até aqui? — Gaguejou seu acompanhante.
— Para que você possa ouvir o discurso de Delouvrier e para que eu tenha
testemunha...
No interior dos prédios, numa atmosfera carregada de eletricidade,
choviam perguntas, ordens e contra- ordens no meio de idas e vindas
constantes. Por todo lado as portas batiam, os telefones tocavam, os rádios
chiavam. No gabinete do coronel Argoud, as caras estavam fechadas.
— Bom dia, coronel. — Impôs-se de cara Tavernier. — Permita-me
apresentar-lhe um amigo, o sr. Joseph Benguigui. Achei que você nos receberia
para escutar o discurso do Delegado.
— Como se você já não conhecesse o conteúdo! — Repeliu vigorosamente
Argoud.
— Qual é o seu jogo? — Interpelou um dos outros coronéis presentes.
— Nenhum, senhores. Estou aqui como observador. E como vocês, estou
impaciente para ouvir o sr. Delouvrier...
Um tenente ligou o rádio. A voz grave do Delegado Geral encheu o cômodo.
Todos ficarem quietos.
Naquele momento, por todos os lados, nos cafés, nas barricadas, no QG de
Ortiz, assim como no de Lagaillarde, nas casernas e nos postos avançados,
tanto em Argel como no Bled, todo mundo corria para perto de um rádio.
"O Chefe de Estado me disse, vocês se lembram, quando me nomeou para
o meu cargo na Argélia: "Você é a França na Argélia". Hoje, essa frase nobre
traça minha linha de conduta. A França não abdica. Eu não abdicarei.
O general de Gaulle também me disse: "Um chefe é aquele que decide". Eu
decidi: ordenei ao general Challe que fosse para o QG de onde ele pudesse
efetivamente comandar.
Argelianos, argelianas e vocês, todos os argelianos que querem que a
Argélia permaneça francesa, oficiais, suboficiais do exército francês, vocês,
soldados da França, não fiquem assombrados, ouçam.
Vocês vão compreender. Escutem-me, vou demorar. Mas, a hora é tão
grave, o instante tão dramático que é preciso me ouvir até o fim. O general
Challe e eu unimos nosso destino e juramos deixar nossa vida, se for preciso,
nesta terra para salvar a Argélia, poupando a França.
Vou me dirigir primeiramente à metrópole. [...] Os homens, na hora da
verdade [...] querem morrer para permanecer franceses. Não há exército
insubmisso, o general Challe já disse: o exército é o exército do Governo e da
República. Há homens resolutos, oficiais e soldados, decididos eles também a
morrer, uma vez que morrem todos os dias nos combates contra a rebelião. E
esses dois grupos de homens estão frente a frente, levados a esse ponto por um
equívoco trágico, uns porque crêem que não vão mais ser franceses, os outros
porque devem obedecer.
[...] É preciso compreender, franceses da metrópole, que cada um que vive
neste momento na Argélia tem um drama de consciência. [...] Para saber se o
exército vai obedecer, seria preciso interrogar um por um, oficiais e soldados.
Ontem, fiz secamente uma pergunta: "De Gaulle ou derramamento de
sangue?" a muitos oficiais de Argel.
Vi, o rosto desses soldados leais à República, crispados pela indecisão. Vi
em seus olhos o brilho da crise de consciência e lágrimas em muitos desses
paraquedistas, valentes homens de guerra. Eis a verdade, franceses da
metrópole, eis a situação. Não é possível continuar com o drama, porque cada
um deles sabe que para a solução de sua crise pessoal está em suspenso ou a
desordem e o caos na Argélia, ou a secessão com a metrópole, ou a queda do
regime e a desordem na França. Pensem nessa situação, homens da metrópole.
[...] Pensem também que os "colonialistas" — como vocês chamam — são
mortos na Argélia.
Eles foram mortos em 13 de maio, quando a igualdade política com os
muçulmanos foi aceita por eles. É claro que os comportamentos não mudaram
todos, eu sei, e sabem principalmente os muçulmanos. A igualdade social vai
demorar a acontecer, mas enfim, os europeus aceitaram — e foi esse o brilho, o
milagre fulgurante do 13 de maio, não compreendido ainda exatamente na
metrópole — que sua dominação política local acabe. Eles aceitaram isso
porque tinham a certeza, naquele dia, de permanecer franceses. A integração é
isso. O resto é para os professores de direito constitucional.
Eis as verdades que eu queria dizer à opinião pública da metrópole.
Dirijo-me agora ao exército a quem o general Challe vai dar ordens
imediatamente depois de mim.
Conheço agora o exército da Argélia que é, pelos oficiais, todo o exército
francês, pelos soldados, o exército da nação francesa. Há cinco anos nesta terra
e antes, na Indochina, ele submeteu-se ao duro aprendizado da guerra
revolucionária. Para os metropolitanos — salvo para os muçulmanos da
metrópole —, esta guerra revolucionária é um mito. Para nós, é a vida de todos
os dias. Isso, eu aprendi.
[...] Mas o drama de hoje, para vocês, homens do exército, o drama mais
terrível, é este aqui: unidade do exército ou unidade da República e da França?
A qual chefe obedecer? Aquele em que o exército confia para manter sua
unidade ou aquele que é constitucionalmente o chefe dos exércitos e a
expressão da unidade da pátria?
[...] Mas, aqui, escutem-me bem: não se pode mais refazer o 13 de maio.
Vocês não poderão refazer o 13 de maio. Não existe mais de Gaulle na reserva.
E se o Presidente da República voltasse para Colombey, a França perdoaria o
seu exército? Seriam necessários dois séculos para curar esse divórcio, e a
grandeza da França, que não pode existir sem seu exército, acabaria.
Eis o seu dilema, homens do exército. E só há um método para sair disso,
um só e único: é preciso obedecer ao general Challe, que obedece ao Presidente
da República.
Mas, e a Argélia, diriam vocês, e a Argélia? Vocês querem dizer que o Chefe
de Estado quer liquidar com a Argélia?
Como podem vocês acreditar nisso?
Vocês estão presos num círculo vicioso: vocês sabem que na guerra
subversiva, para ganhar a guerra, é preciso conquistar a população. E vocês
se empenharam nisso. Mas os muçulmanos lhes parecem hesitantes. Vocês os
julgam pelos métodos da França. Minha convicção é mais simples: "Para que
nós sejamos conquistados, é preciso que vocês ganhem a guerra."
[...] Mas, escutem bem, eu suplico: o general De Gaulle é o único que
permite sair desse círculo vicioso. Ele venceu diplomaticamente a FLN no
exterior, e ganhou a confiança dos muçulmanos do interior. Se vocês romperem
com de Gaulle, vocês rompem com os muçulmanos.
[... Exército da Argélia! Isto é uma súplica, mas é também uma ordem:
sigam o general Challe, sigam de Gaulle! Os muçulmanos estão aí.
É a vocês que me dirijo agora, compatriotas muçulmanos. Já disse a vocês
o quanto os amava, como acreditava compreendê-los, vocês também divididos.
mesmo os oportunistas, eu os compreendo: quem vai ganhar?
O medo, o medo visceral, esse câncer da Argélia! Existem muçulmanos que
têm medo. Existem europeus que têm medo. Há o exército que tem medo de
não ganhar a guerra. Há o medo dos terroristas. Há o medo de que de Gaulle
abandone, em espírito, a Argélia. Há o medo de que a França não deixe.
E, sim, muçulmanos, são vocês que têm mais medo. São vocês que mais
sofrem. Mas de Gaulle deu a vocês a dignidade, a igualdade, a liberdade. Ele
deu tudo isso a vocês, mas vocês ainda não tomaram. O que estão esperando?
[...] O que fazer para pegar essas coisas? Gritem vocês o que pensam. Nas
cidades e no campo, saiam em cortejo, livremente, espontaneamente e gritem:
"De Gaulle! Viva de Gaulle!"
Gritando assim, ninguém poderá dizer que foi forçado: de Gaulle é o único
chefe inconteste entre os muçulmanos. Gritar "De Gaulle!" é para vocês a
verdadeira libertação: vocês terão a maioridade. Com suas vidas, a de suas
mulheres, a de seus filhos, vocês saberão salvar a Argélia, e a FLN terá de
curvar-se, desaparecer, sem que vocês se arrisquem a cair sob uma
preponderância política dos europeus que estes últimos abandonaram em 13
de maio, como eu lembrei há pouco.
[...] Então, suplico, meus compatriotas muçulmanos: gritem o nome do
homem que transformou vocês em homens maiores, em homens modernos. Do
homem que conservará sua conquista pela presença definitiva da França, aqui
votado por vocês. Gritar "De Gaulle!" é a paz e a união, é o fim do pesadelo de
hoje e de amanhã, é a reconciliação final com os europeus, é a grandeza de sua
pátria; a pequena que é a Argélia, e a grande que é a França.
[...] Dirijo-me agora aos europeus da Argélia e, sobretudo, aos argelianos.
Se eu tenho que me reunir ao general Challe em seu novo QG para
encontrar, eu também, minha liberdade de comando, eu lhes deixo, argelianos,
o depósito mais sagrado que um homem pode ter: sua mulher e seus filhos.
Cuidem de Mathieu, meu filho mais novo. Quero que ele cresça, como símbolo
da indefectível união da Argélia e da França. Esse depósito sagrado me dá o
direito de falar a vocês de qualquer ponto, de qualquer cidade da Argélia como
se eu não tivesse deixado Argel.
E eis o que tenho a lhes dizer: Dirijo-me a vocês, em primeiro lugar, Ortiz,
Lagaillarde e você, Sapin-Lignières, chefe das UTs, e todos aqueles que estão
trancados dentro das faculdades, como em Alcazar de Toledo, prontos a morrer.
Eu grito à metrópole que saúdo a coragem de vocês, filhos da pátria. E, Ortiz,
Lagaillarde, Sapin-Ligniêres e todos os outros, vocês vão vencer! Amanhã, vocês
vencerão se me escutarem hoje.
Dirijo-me a vocês também, representantes do povo, senadores, deputados,
conselheiros municipais; a você, presidente Bouarahoua, da grande Argel. A
vocês, antigos combatentes Arnould, Mouchan, Martin e todos os outros; a
vocês que formam o conjunto de trabalhadores e da agricultura, sr. Chaulet, sr.
Lamy.
[...] A vocês, povo de Argel, de Bab-el-Oued e de Belcourt, povo de El-Biar.
A vocês, ainda, povo da Casbah e de toda a grande Argel.
[...] Corri o risco terrível de começar a guerra civil na Argélia para evitar a
secessão, a partida de de Gaulle e a guerra civil na França. Corri o risco terrível
de quebrar a unidade do exército. Sim, mas corri esse risco com segurança e
tinha o direito de fazer isso uma vez que deixo aqui, em Argel, minha mulher e
meus filhos, minha própria carne, eu que quero salvar vocês.
Corri esse risco porque, repito, tenho confiança. Tenho confiança de que
vocês me seguirão, que as barricadas — onde as pessoas sonham em se
abraçar uma vez que temem se matar —, que essas barricadas vão cair. Vamos
confraternizar! Vamos confraternizar gritando: "Viva de Gaulle! Viva a França!"
Caindo essas barricadas, elas derrubarão o medo, elas derrubarão a
angústia de todas as mães da França e da Argélia.
Sigam-me, eu suplico. Tudo está tão perto de se perder, tudo: a Argélia, a
França e a vida de vocês, Ortiz e Lagaillarde, suas vidas de que a França
precisa tanto. Tudo. E tudo, entretanto, pode ser retomado, tudo será ganho.
Vamos, eu suplico pateticamente. Se os muçulmanos se determinarem a gritar
"Viva de Gaulle!"
(apesar de vocês, talvez até de boa vontade), então a política de De Gaulle
não oferecerá mais riscos.
Suplico pela última vez: europeus, muçulmanos, meus irmãos, gritem
todos juntos, todos unidos: "Viva de Gaulle! Viva a França!".
[...] Com o chamado do general Gracieux e de seus paraquedistas,
amanhã, depois de amanhã, se vocês quiserem, Challe e Delouvrier estarão em
Argel. Nós visitaremos a Alcazar das faculdades, nós apertaremos a mão de
Ortiz e de Lagailiarde, e a sua, Sapin-Lignières, chefe das UTs. "Nada está
perdido para um francês quando ele se une à sua mãe, a França", disse o
general de Gaulle na noite de domingo. Nós iremos juntos ao monumento aos
mortos, chorar e rezar pelos mortos de domingo, mortos ao mesmo tempo para
que a Argélia seja francesa e para que a Argélia obedeça a de Gaulle. E, no dia
seguinte a esse dia feliz, Challe e Delouvrier irão a Paris para devolver, sem
condições (não se impõem condições ao Chefe de Estado), a Argélia a de Gaulle
e à França.
Pronto. Terminei, após esses dias exaustivos. Massu, o general Massu, que
é leal, me aprovaria, não é coronel Argoud? Aliás, ele vai me aprovar.
Challe e eu colocamos tudo nesse esforço: nosso cérebro, nosso coração,
nossa alma. E este plano está de acordo com a honra, que Deus nos guarde e
que Ele nos ouça, que Ele salve a França e a Argélia!
Ordeno a todas as autoridades civis e militares que realizem, por todos os
meios em seu poder, com todas as forças de sua alma, que realizem este plano
salvador.
A vocês, agora, Crépin, Gracieux, Argoud, a vocês, oficiais SAS e SAU, a
você, Segonzac e sua juventude, a você, Germiny, a você, Bouarahoua, a você,
Ben Keddache, a você, Sayah, a todos vocês, todos cidadãos franceses da
Argélia!
Viva a França!"
Capítulo 23
O discurso de Paul Delouvrier deixou os meios políticos, tanto na Argélia
como na França, estupefatos.
"O poder não recua, ele foge", comentou Louis Cambon, secretário do
grupo parlamentar da Unidade da República, aliás, secretário da RAF5° de
Georges Bidault. "É um discurso num tom exagerado!", exclamou o Ministro da
Informação. "Delouvrier quer opor os muçulmanos e os europeus", considerou
um oficial das UTs. "Ele não deveria ter partido", julgou um outro oficial, "não
se abandona uma cidade em estado de sítio". "Delouvrier é louco! Não são os
argelianos que degolam as crianças, mas os fellaglias!", explodiu um deputado
argeliano. "Essa mensagem é importante. Vou responder amanhã!", evitou
Ortiz, entediado. Quanto a Lagaillarde, ele anunciou que tudo isso não
interessava a ele...
No espírito dos argelianos, as palavras do Delegado Geral tiveram,
entretanto, o efeito de um raio. Ao ouvi-lo, as mulheres choraram e aquelas que
tinham o marido ou o filho engajados na rebelião suplicaram que eles
voltassem para casa. Os homens das barricadas encontravam- se frente ao
exército que se tornava, sozinho, o dono da situação. Todos se perguntavam
quais seriam os motivos reais da partida.
Passados os primeiros momentos de surpresa ou de cólera, os chefes da
rebelião publicaram um comunicado em resposta às palavras de Delouvrier e
do general Challe:
Tranqüilizemos, em primeiro lugar, o Delegado Geral: no que nos diz
respeito, nós nunca maltratamos as crianças nem atiramos nelas. Os
torturadores não se encontram entre nós nem no exército. Ele pode, portanto,
partir tranqüilo, sua família vai recebei" os cuidados aos quais têm direito todas
as famílias francesas.
A menos... a menos que o ser. Delouvrier seja ouvido com muita fidelidade
pela FLN.
Porque, afinal, de modo geral, certas passagens de sua fala soam como um
apelo à rebelião contra os europeus. Mas, nesse sentido também, que o ser.
Delegado Geral parta em paz: com a ajuda do exército, nós manteremos a
ordem.
Além disso, como os muçulmanos conhecem hd muito tempo os seus
amigos, não tem nenhum risco de termos uma disputa fria com eles, nem
qualquer tipo de disputa. Eles sabem bem que o seu destino está ligado
indefectivelmente ao nosso, como sabem também que nós somos os verdadeiros
e únicos defensores deles. Eles não ignoram também que a França é eterna;
seus benefícios já os atingiam quando de Gaulle ainda era um completo
desconhecido e durarão até que ninguém se lembre mais do nome de De
Gaulle.
A França é uma coisa, de Gaulle é outra, completamente diferente. E para
os muçulmanos, assim como para nós, a França, que permanece, vem antes de
um homem, que passa. Portanto, não há dúvidas: sabemos muito bem como
amar" e servir a França; nós já demonstramos. Os antigos combatentes
muçulmanos também.
É por isso que eles estão ao nosso lado na luta.
Para terminar com o ser. Delouvrier", a quem não desejamos mal algum
nem, sobretudo, que ele "perca a vida", como pareceu insinuar, digamos
simplesmente que não apreciamos os chefes que partem nos momentos críticos,
deixando os subordinados na... dificuldade. Mas, quanto a isso também, não
temos medo, há muitos casos em que os subordinados são mais dignos e mais
lúcidos que os "grandes chefes", cuja cabeça, às vezes, se perde nas nuvens.
Um pouco mais tarde, o Comitê dos patriotas fazia, a pedido de Ortiz e de
Lagaillarde, uma correção a esse comunicado: suprimiram "quando de Gaulle
era um completo desconhecido"...
Em Paris, comentava-se duramente a "fuga" do Delegado Geral e o
"abandono do posto frente ao inimigo" do comandante em chefe. O Elysée,
Matignon, o Ministério das Forças Armadas e o do Interior eram palco de
encontros, entrevistas e comunicados febris. Os jornalistas não conseguiam
acompanhar. Os boatos mais loucos circulavam: os paraquedistas se
preparavam para saltar na capital, armas eram despachadas para a Presidência
da República e para os principais ministérios, o toque de recolher ia ser
declarado... Na Chefatura de Polícia, tomavam- se providências para o caso de a
rebelião triunfar, como já davam a entender certos jornais. Antigos chefes da
Resistência declaravam-se prontos a voltar ao serviço para salvar a democracia.
Apelos eram lançados às organizações de esquerda a fim de que se unissem aos
que não aceitavam a ditadura. Os parisienses estocavam provisões e os que
podiam mandavam os filhos para o campo. No exterior, os "acontecimentos" da
Argélia estavam na primeira página de todos os cotidianos. Em Washington e
em Londres, em Moscou como em Bonn, em Roma como em Bruxelas,
esperava-se, de agora em diante, o discurso do general de Gaulle.
No bairro de Bab el-Oued, os territoriais voltavam para as barricadas
brandindo suas bandeiras, saudados pelas buzinas com os famosos "três
longos e três breves", que se tornaram símbolo sonoro dos partidários da
Argélia francesa. Numerosas cruzes celtas tinham sido pintadas nos muros e os
"Viva Massu!", "Abaixo de Gaulle", "Argélia francesa!", "O exército conosco!"
estavam em todas as fachadas. As portas de ferro continuavam abaixadas
diante das lojas e coitados daqueles que tentassem levantá-las: eram xingados
e ameaçados de severas punições.
O lixo, que não era recolhido desde o domingo, amontoava-se diante das
portas dos prédios. Em volta do campo entrincheirado, os paraquedistas, que
deveriam montar guarda e impedir a multidão de penetrar nele, conversavam
com os rebeldes trocando cigarros com eles. Durante o dia, havia tanta gente
em volta do campo quanto lá dentro e, só quando a noite caía, as famílias
voltavam para casa.
Lagaillarde, saindo de seu reduto, era aclamado pela multidão sob o olhar
benevolente dos paraquedistas, enquanto verdadeiras ovações saudavam as
aparições de Ortiz no seu, desde então, célebre balcão. Depois do espanto e da
emoção causados pelas declarações do Delegado Geral e depois do anúncio de
sua "fuga" para o bled, os revoltosos convenceram-se de ter obtido uma vitória:
Argel era deles. O "Fidel Castro" do campo entrincheirado tinha marcado um
ponto sobre Ortiz:
ele mandara interceptar um helicóptero da companhia Gyrafrique, o qual,
exibido no terraço de um anexo das faculdades, desafiava o dono do café Fórum
e os paraquedistas; o aparelho era vigiado dia e noite, e Lagaillarde dera ordens
para atirarem em qualquer um que se aproximasse.
A maior parte das cidades da Argélia tinha aderido à greve e fazia
manifestações de apoio ao movimento de Argel.
Enquanto isso, os combates continuavam no território argeliano: perto de
duzentos e cinqüenta rebeldes haviam sido neutralizados. O fim do mês se
aproximava e o dinheiro começava a faltar na casa dos operários e empregados:
a greve impedia também o transporte de fundos. No QG de Ortiz sucediam-se
industriais, banqueiros e representantes dos trabalhadores. Dono da situação,
o presidente da FNF autorizou os bancos a enviar às pequenas empresas
privadas as quantias que seriam entregues aos assalariados a título de
adiantamentos.
A noite já havia caído, quando Tavernier e Benguigui deixaram a caserna
Pélissier. De comum acordo, decidiram tomar alguma coisa no bar do Hotel
Aletti. Quando entraram no Cintra, ficaram surpresos de não encontrar o
movimento habitual. Gilda e suas companheiras entediavam-se completamente
diante dos copos vazios, Os barmen enxugavam, lentamente, uns copos que já
brilhavam, e um garçom varria a toa; os raros clientes do dia eram
comerciantes do bairro, sem trabalho.
— O que está acontecendo? — Espantou-se Joseph. — Os jornalistas
deram o fora?
— Estão todos no Albert, que eles chamam de "campo entrincheirado da
imprensa". Dali, eles assistem a tudo de camarote, com vista das barricadas, do
Platô Glières, do movimento das tropas... Como no cinema!
— Explicou um barinaiz com irritação.
— Mas vocês estão em greve? — Insinuou François.
— Perfeitamente, nós estamos em greve. Só estamos abertos para
reconfortar os patriotas!
— Então, os jornalistas não fazem falta.
O rosto do garçom tornou-se púrpura e Joseph Benguigui interveio:
— Ei, Georges, sirva-nos um anisete... Oi, Gilda... Você bebe alguma
coisa?
— O mesmo que vocês... como vai sua esposa, sr. Tavernier?
— Bem, obrigado... Você sabe se o engraxate trabalha hoje?
— Não, não o vejo desde a semana passada.
— E aqueles que tentaram entrar no meu quarto, você tornou a vê-los?
Sem responder, a jovem mulher olhou em volta, ansiosa. Um grupo de
territoriais entrou ruidosamente.
— Olá, todo mundo! Olá, meninas!
— Nós ganhamos, o Delegado deu no pé! O corajoso nos deixou seu
filhinho!
— Georges! Você oferece uma dose aos vencedores?
Os homens se sentaram, brincalhões, enquanto os funcionários se
apressavam a servi-los. Pouco à vontade, Benguigui virou as costas para eles.
Gilda agarrou-lhe o braço.
— Está doendo!
Gilda aumentou a pressão; ele se virou.
— Pelo amor de Deus!
Alertado pelo tom de voz angustiado, François se virou também: dois
homens estavam parados na entrada. Ele reconheceu seus visitantes.
— Gino. — Gritou um dos territoriais — o que você explodiu hoje?
Seus companheiros caíram na gargalhada como se fosse uma boa piada.
— A idéia dos pneus. — Continuou o territorial falador. — Foi genial. Só
podia ter vindo de seu irmão e de você.
— É verdade, não há ninguém como eles para fazer bum! — continuou um
gordinho, apertado no uniforme.
— Você fala demais, Paulo. — Repreendeu-o Gino.
— Se não se pode mais brincar...
— Não na frente de estrangeiros!
O silencio caiu imediatamente e todos dirigiram seus olhares para
Tavernier. Perto dele, Gilda tremia.
Involuntariamente, o porteiro salvou a situação.
— Gino! Telefone para você.
Os dois irmãos saíram atrás dele.
— Os pneus cheios de explosivos, foram eles? — cochichou François no
ouvido da jovem cuja tez havia se tornado cinza.
Ela concordou com a cabeça.
— É melhor irmos embora. — Aconselhou Joseph, jogando uma nota no
balcão. — Cuide-se bem, pequena.
Eles atravessaram a Rua Alfred-Lelluch, subiram os degraus e chegaram à
Praça Isly. Sem trocar uma palavra, andaram até o Hotel Albert onde estavam
reunidos jornalistas do mundo inteiro.
— Há um jipe do exército na minha garagem; foi você?
— Merda!... Tinha esquecido completamente.
— E ninguém se deu conta?
— Não. Do jeito que as coisas estão...
— Tavernier!... Você ainda está aqui?
— Como você pode ver... Boa noite, Ribeaud. Apresento-lhe um amigo,
Joseph Benguigui.
— Boa noite... Acabo de chegar de Paris e de saber a novidade da partida
de Delouvrier. Você estava sabendo?
— Não mais que você...
— Duvido muito!
— Acredite no que quiser... E, em Paris, qual é o clima?
— Todo mundo ou tem cagaço ou tem gripe! Mais de duzentos mil
parisienses estão de cama, e os que ainda estão de pé fazem provisões.
— É um velho hábito dos franceses. — Comentou sobriamente François.
— O que você pensa da situação? O que vai acontecer? O que de Gaulle vai
dizer?
— Como você quer que eu saiba? Saberemos logo mais, após o discurso do
General ... Ah, olá, capitão Léger!
O chefe dos "uniformes azuis" vinha na direção dele, seguido por seus
guarda-costas; os três estavam com roupas de paraquedistas.
— Boa noite, Tavernier. Estava justamente procurando por você. Posso
falar-lhe em particular?
— Certamente... Desculpe-me, um momento. — Falou François para seus
acompanhantes.
Léger pegou-lhe o braço e eles se dirigiram para o Bulevar Laferrière. Por
todo o lado, no campo entrincheirado, fogueiras brilhavam. Com exceção dos
que sustentavam as barricadas, os argelinos haviam todos voltado para casa.
— Você teve notícias da sua mulher? — Interrogou abruptamente o
capitão.
François parou, olhou direto nos olhos dele e pensou por uns instantes
antes de responder.
— Por que você está me perguntando isso?
— Não tente bancar o esperto comigo, Tavernier. Sua mulher está
atualmente na Casbah, e você sabe disso.
— E você, como é que sabe?
A Casbah não tem segredos para mim. Circulo por lá como um peixe na
água. Tenho amigos lá dentro, e os que não me conhecem acreditam que eu sou
kahyle.
— Eu tinha esquecido que você fala correntemente árabe e knbyle e que
muitas vezes é considerado muçulmano...
— Há algum tempo, estou de olho num garoto... um yaouleds que parece
ter uns doze anos, mas que na verdade deve ter uns dezesseis ou dezessete.
Chamam-no Al-Alem... Por diversas vezes, escapou de mim Garoto árabe,
empregado com freqüência para pequenos serviços de rua (engraxate,
carregador de água, vendedor de jornais).
por um triz, parece que tem o dom da ubiqüidade: meus homens o vêem
aqui, outros lá... Até agora ninguém conseguiu localizar seu esconderijo, e os
habitantes da Casbah dizem que não o conhecem...
— Talvez seja verdade...
— Besteira!
— E, então, o que você quer com ele?
— Tenho certeza de que ele trabalha para a Frente, é isso, há dois anos,
talvez mais. Gostaria que ele trabalhasse para mim.
Chocado com tanto cinismo, François não conseguiu disfarçar seu
espanto. Deu uma olhada na direção dos dois homens de uniforme que se
mantinham a pouca distância.
— Eu sei que você é especialista em conversões. Esses dois ali, certamente
são ex-membros da FLN, não é?
— Evidentemente. Como você disse, a minha especialidade é transformar
antigos adversários em excelentes colaboradores.
— É o termo apropriado...
— Poupe-me da sua ironia, ela data da Segunda Guerra Mundial!
— Mas, pelo que vejo, ainda é atual...
O capitão Léger deu um pequeno sorriso.
— Bem, voltando à sua mulher, você não fica preocupado, sabendo que ela
está na Casbah?
— Para dizer a verdade, não.
— Você é um cara muito estranho!
— Meu amigo está me esperando.
— Mais uma coisa! Não gostaria que acontecesse algo a uma pessoa tão
bonita... Então, confie em mim e escute: eu sei que ela está cuidando da jovem
argeliana que Gardes e você arrancaram das mãos dos legionários...
— Então, eles eram mesmo da Legião?
O capitão levantou os olhos para o céu.
— Eles estão atrás da garota!
Instantaneamente, a expressão de François se endureceu.
— Como você sabe?
— Meus homens têm seus informantes.
Diante do Correio, os paraquedistas cantavam uma canção de Edith Piaf,
acompanhados pelo acordeão de um deles:
Tu iizefais tozirner la tête,
Mon rnanège à nzoi c'est toi,
J'en tends les flonflons d'la fête
Quand tu me tiens daizs tes bras...
— Gosto muito dessa música. — Suspirou Léger, ouvindo.
"Léa também gosta", pensou François.
— Você tem certeza dessa informação? — Perguntou ele, afinal.
— Sim. Os homens que torturaram a menina são bem conhecidos dos
meus rapazes. Alguns já tiveram negócios com eles. A maior parte deles são
antigos SS que se alistaram na Legião, depois da guerra, para escapar da
prisão ou da morte. São doentes; o tenente, principalmente.., mas esse não é
alemão: é um argentino, alistado naturalmente com um nome falso. Ele esteve
na Indochina, como os outros... O que você tem?... Não está se sentindo bem?
— Ortiz... Jaíme Ortiz...
O capitão nem tentou disfarçar o espanto:
— Sim, é isso mesmo... Você o conhece?
— Vamos tomar um trago... num lugar calmo, se possível.
Léger fez sinal aos guarda-costas; eles se aproximaram, e o capitão
cochichou qualquer coisa para eles.
— Venha. — Decidiu ele, empurrando Tavernier.
— Ei, François, você vai embora? — estranhou Joseph, vindo na direção
deles.
— Quem é esse aí?
— É um amigo, é de confiança. Aliás, gostaria que ele viesse conosco.
— Se você se responsabiliza por ele...
Tavernier aproximou-se do ouvido do motorista de táxi.
— Você pode me acompanhar? Há novidades a respeito de Malika.
— É que... eu não gosto muito desses aí...
— Por favor.
Eles se despediram de Ribeaud, que voltara para o Platô Glibres, que eles
atravessaram. Andaram em silêncio na direção do porto, os dois muçulmanos a
pouca distância deles. O cais de Boulogne estava mal iluminado. Diante de
uma loja, com a porta naturalmente abaixada, o capitão parou, depois bateu.
Ao lado, uma porta entreabriu-se.
— Está fechado!... Ah, capitão, desculpe. Entre!
— Fiquem aí fora e abram o olho. — Ordenou Léger a seus homens.
No corredor, eles tropeçaram em caixas, incomodando um gato que fugiu
miando.
— Sempre uma baderna aqui! — Reclamou Léger.
O que ia na frente respondeu com um resmungo. Ele empurrou, por fim,
uma porta. O lugar era desconcertante: paredes e teto cobertos de cartazes de
filmes; alguns da época do cinema mudo; fotos amareladas de atores ou de
mulheres nuas, propagandas de cigarros e de cerveja. Numa vitrola, girava um
disco de canções árabes. Do teto pendiam lâmpadas pintadas de vermelho e
amarelo que davam ao ambiente uma estranha impressão de intimidade,
suavizando a fisionomia dos fregueses, cujas caras pouco recomendáveis
pareciam saídas de um filme de piratas. Dispostos sobre um piso cujos motivos
desapareciam por baixo do pó e da sujeira, cinco ou seis mesas pesadas,
algumas cadeiras, um balcão de zinco e um aquecedor de ferro completavam a
decoração. Todos os clientes eram visivelmente muçulmanos; eles acolheram o
capitão Léger com palavras amigáveis. Incomodado, Benguigui examinava os
rostos nos quais se liam as marcas de uma vida.
— É este, o seu "lugar tranqüilo"? — Resmungou François.
— Nós vamos para os fundos, lá é mais calmo... O que querem beber:
uísque, conhaque?
— Servem álcool, aqui?
— Não são muçulmanos muito ortodoxos...
— Uísque está bom... duplo!
— Para mim também — acrescentou Benguigui.
— Djamel! Três doses de uísque bem servidas.
— É pra já, capitão.
Léger passou por uma porta, até então dissimulada por uma tapeçaria. A
sala dos fundos só tinha uma mesa, sobre a qual reinava um bonito candelabro
de prata com oito braços. Havia algumas cadeiras encostadas na parede.
— Sentem-se. — Convidou o capitão, puxando uma cadeira para perto da
mesa.
François e Joseph fizeram o mesmo e se sentaram. Djamel entrou com o
uísque e três copos.
— Black and White está bom para vocês? — perguntou ele, abrindo a
garrafa.
— Perfeito, obrigado. Agora, deixe-nos sozinhos. — Agradeceu o capitão.
Ele encheu os três copos até a boca, depois ergueu o seu.
— Saúde!
Após beber, ele atacou o assunto, sem preâmbulos:
— Então, você conhece Jaime Ortiz?
Como François não respondia, ele insistiu:
— Eu preciso saber.
— É um nazista. Eu o conheci na Argentina...
— Em que circunstâncias?
— Eu estava perseguindo criminosos nazistas junto com os israelenses.
— Os Vingadores?
— Sim. Estava com Léa... Um dia, em Mar Del Plata, ela foi com amigos à
estância Ortiz. Acordando assustada, no meio da noite, ouviu falarem alemão.
Intrigada, desceu ao térreo e descobriu uma sala enfeitada com emblemas
hitleristas. Mais tarde, ela encontrou um de nossos companheiros, ferido...
Graças a uma amiga argentina, conseguimos sair de lá. Infelizmente, Jaime
Ortiz e seu bando ficaram sabendo da nossa missão. Voltamos para a França,
deixando para trás alguns amigos mortos... Achávamos que estava tudo
encerrado quando, alguns anos depois, na Indochina, Léa encontrou-se
novamente na presença dele; ele havia se alistado na Legião para escapar à
intimação judicial lançada contra ele. Léa conseguiu de novo escapar dele em
circunstâncias rocambolescas. Mas, sei que nada o impedirá de se vingar. Se
ele souber que Léa se encontra em Argel, a vida dela correrá perigo... E você me
diz que ele está procurando Malika!
— Encontrando Malika, eles cairão em cima de sua mulher... É isso?
Os olhos de Benguigui iam de um para o outro: ele se amaldiçoava por não
ter atendido ao chamado de Léa. Mas, como poderia ele imaginar essa
confusão?
— Você poderia enviar uns homens para protegê-la... — Insinuou ele.
— Já pensei nisso... Diga-me tudo que sabe a respeito de Al-Alem. —
Cortou ele friamente, dirigindo-se a François.
— Tudo que eu sei é que é esse garoto mesmo que as esconde. Eu conheço
o lugar, mas seria incapaz de encontrá-lo novamente. Somente Béchir poderia
nos mostrar...
— O engraxate do Aletti?
Você o conhece?
— Eu sei muito bem quem ele é e saberei rapidamente onde ele mora.
— Respondeu o capitão. — Esperem, já volto.
Durante sua curta ausência, François e Joseph liquidaram seus copos e
voltaram a se servir, sem dizer uma palavra.
Vou mandar meu ajudante em busca de informações. Ele vai avisar os
outros para que sigam nossos legionários... Vou levá-los ao meu QG, na Rua
Émile-Loubat. Meus rapazes nos encontrarão lá... Sr. Benguigui, o senhor
deveria voltar para casa...
— Eu fico com Tavernier, ele pode precisar de mim.
— Obrigado, Joseph, mas não é preciso...
— Veremos, mais tarde. Por enquanto, eu fico com você.
— Como quiser. — Disse Léger.
A noite estava fria. O "chefe dos uniformes azuis" trocou algumas palavras
com um grandalhão que atendia pelo nome de Surcouf, que saiu correndo. Eles
voltaram em direção ao Platô Glières.
Capítulo 24
Pesadas nuvens haviam substituído o sol dos últimos dias.
No amanhecer daquela sexta-feira, 29 de janeiro, um oficial das UTs,
Bonnisseur de la Bath, ocupava a prefeitura da cidade, defendida pelas UTs da
marinha com a ajuda de doze territoriais e dois civis, e colocava a Prefeitura
"sob proteção do povo"; os paraquedistas não intervieram.
Algumas horas mais tarde, Sapin-Lignières instalou ali o seu QG. O
general Gracieux veio lembrar-lhe que, depois de ter assumido o comando dos
territoriais com a missão de reagrupá-los, não havia feito nada até o momento
presente. Ele ordenava agora que os vinte e cinco mil homens colocados sob
seu comando voltassem para suas unidades antes das quatro horas da tarde.
Naquela manhã feia, Joseph Ortiz estava dividido entre o orgulho de ter
forçado as autoridades a fugir e o temor que lhe inspirava o aguardado discurso
do general de Gaulle; um temor que todos compartilhavam. Corria um novo
boato: o coronel Bigeard ia reunir-se ao campo entrincheirado; com ele, não
havia dúvidas: o triunfo da Argélia francesa estava assegurado! Infelizmente
para a insurreição, Bigeard não pôde fazer isso, seu superior hierárquico, o
general Mirambaud, ameaçou-o com o conselho de guerra caso ele
abandonasse seu posto diante do inimigo. Só restava a Bigeard receber seu
substituto, o coronel Gardes, que voltava de Paris e havia recebido ordens para
assumir imediatamente seu posto em Saida, sob pena de sanções. Com a morte
na alma, Gardes "abandonou" seus amigos das barricadas.
Em Reghaia, o novo QG de Challe e Delouvrier colocado sob a proteção dos
comandos do ar e das unidades de golliniers, o general Ely, Chefe do Estado-
Maior do exército, acabava de chegar de Paris, portador das linhas gerais
daquilo que o Chefe de Estado determinaria na sua fala. Recebido na saída do
avião por Paul Delouvrier, pelos generais Challe, Crépin, Olié e Gambiez, Ely
abriu sem perda de tempo a conferência militar que reunia os chefes do
exército. A eles juntaram-se os oficiais superiores presentes em Reghaia, o
almirante Auboyneau, os generais Costes e Gilles. Todos proclamaram
fidelidade a de Gaulle. Examinaram em seguida o problema do campo
entrincheirado, O coronel Argoud, que havia sido forçado a seguir o general
Crépin até Reghara, obteve autorização para negociar com os rebeldes e partiu
imediatamente para Argel.
Outros rumores alarmantes circulavam na Cidade Branca: desta vez, era
certo, o exército decidiria acabar com a insurreição; era apenas uma questão de
horas. No QG de Ortiz assim como no "Alcazar" de Lagaillarde, todos sentiam
que o fim se aproximava.
No começo da tarde, trombas d'água caíram sobre a cidade.
Às dezesseis horas, os chefes da revolta concordaram em participar de
uma conferência pelo armistício que devia se realizar na caserna Pélissier sob a
presidência do general Arfouilloux. Ao redor da mesa, encontraram os coronéis
Argoud, Broizat e Jacquelot. Durante uma hora os participantes deliberaram e
conseguiram chegar a um acordo. Eles assinaram o comunicado que Argoud e
Broizart foram encarregados de levar ao quartel Rignot, ao qual Paul Delouvrier
devia voltar para recebê-lo.
Quando este último tomou conhecimento do comunicado, ficou aterrado
com seu conteúdo.
1. O Delegado Geral e o comandante-em-chefe reconheceu que a ação
levada pela população sob a direção de Ortiz, Lagaillarde e Sapia-Ligniéres
continuam euomieuzente para fortalecer a França da Argélia francesa. Eles se
reunirão todos no monumento aos mortos.
2. Eles se comprometem de caso irrevogável a fazer de tudo para que a
Argélia continue sendo província francesa.
3. Eles se comprometem a fazer com que o Chefe de Estado admita que o
referido único da autodeterminação só compreende uma escolha, a Argélia
francesa ou a independência.
Ely e Challe que, por sua vez, haviam deixado a base aérea do general
Martin para voltar a Argel, ouviram com assombro o comunicado transmitido
pelos coronéis.
— É um texto inaceitável, ridículo e absolutamente contrário às ordens
que recebi! — Explodiu o general Crépin.
— Esses senhores se crêem os vencedores do 13 de maio! — Guinchou
Michel-Jean Maffart.
— Seria preciso adiar o discurso de de Gaulle por vinte e quatro horas. —
Sugeriu o coronel Broizat.
A proposta foi acolhida com um silêncio glacial. Faltavam ainda duas
horas para o discurso tão esperado.
François Tavernier havia passado a noite no QG do capitão Léger, ao pé da
Casbah, onde os europeus não ousavam mais se aventurar e onde, no entanto,
se encontrava Léa... A qualquer preço, era preciso que Jaíme Ortiz não
estabelecesse uma relação entre ela e Malika. Para isso, era preciso pôr a mão
em Béchir e Al-Alem. Até o amanhecer, os "uniformes azuis" se sucederam, não
trazendo nenhuma pista. Entretanto, lá pelas oito horas, Surcouf voltou: uma
européia tinha sido vista numa sauna em companhia de duas muçulmanas. Ele
precisou ameaçar a massagista para obter mais informações e ela acabou por
dizer o nome das que a acompanhavam. Surcouf foi até a casa delas, mas
apenas encontrou lá um inválido que só falava da filha morta... François deixou
escapar um gemido: se o gigante havia descoberto o endereço de Malika, um
homem como o argentino certamente a encontraria.
— Vamos. — Disse ele a Légen — Não, ainda não. Vou colocar alguns
homens em volta da casa. Nós iremos lá esta noite... Você deveria tentar
dormir: sua cara está dando medo... Aonde você vai?
— Vou dar uma volta!
O capitão compreendeu que nada o faria mudar de idéia.
Sob um céu cinzento, tão sombrio quanto o seu humor, François acendeu
um cigarro que jogou fora em seguida; o gosto estava insuportável. Um garoto
mal vestido correu para o cigarro ainda aceso, apanhou-o e levou-o
imediatamente aos lábios com um ar de triunfo; os garotos que o
acompanhavam demonstraram despeito, empurrando-o e xingando-o. Alguma
coisa na atitude do pirralho chamou, no entanto, a atenção de François.
— Vá a catedral, na capela da Virgem... Tome cuidado, os "uniformes
azuis" estão seguindo você. — Ele ouviu, sem perceber quem havia falado.
Os garotos desapareceram, subindo as escadas da Rua Hydre.
Sem apressar o passo, François seguiu seu caminho, atravessou a Praça
Cardinal-de-La Vigerie, onde as pessoas, na maioria muçulmanos, andavam
rápido em direção à praça do Governo; ele deixou para trás a Catedral Sáint-
Philippe e o Palácio de Inverno. Apesar da greve, um grande bazar estava
aberto. Bem perto dali, ele avistou o terraço do café Sahel, vazio, certamente em
razão do mau tempo. Sentou-se numa cadeira. Logo, um garçom veio lhe
perguntar se ele queria tomar o café da manhã.
— Com um café bem grande. — Esclareceu ele.
Ele contemplava a imensa esplanada dominada pela estátua eqüestre do
duque de Orléans, onde se alinhavam, na frente da mesquita Djemaã Djedid,
inúmeros caminhões militares. Soprava um vento frio. Ele levantou a gola do
paletó, gesto inútil que não o protegeu da brisa. O dono do café, europeu, veio
servi-lo pessoalmente.
— Bom dia, senhor. — Disse ele, servindo o café. — Que tempo! Não
duvido nada que ainda chova antes dessa noite... O café está bom? Sou muito
exigente quanto à torrefação. Sem querer me gabar, o do Aletti não é melhor,
não é?... Atualmente há muitos estrangeiros em Argel... Não estou dizendo isso
por sua causa, mas percebi logo que o senhor não é daqui. É que eu conheço
todo mundo por aqui. Quer o jornal? Só tenho o Dépêche de ontem; o de hoje
ainda não chegou. Mohamed! Traga o jornal para este senhor... E os croissants,
o que achou? São como os de Paris, não é verdade?
— Você conhece Paris?
— Não, mas sei que os croissants de lá são bons.
Essa observação fez François dar um sorriso, que o proprietário
interpretou de modo errado:
— É como eu tinha lhe dito: não há melhores! Tome, aqui está o jornal... O
senhor vai me desculpar por não lhe fazer companhia por mais tempo, mas
preciso ir à cozinha. Os empregados, o senhor sabe...
Sob uma grande foto que mostrava os manifestantes, a manchete da
primeira página do Dépêclle era:
"Por todo lado, na Argélia, uma multidão de muçulmanos juntou-se às
manifestações pacíficas, organizadas em volta do monumento aos mortos, para
que a Argélia permaneça francesa." François ficou furioso com tamanha
mentira. Onde os jornalistas tinham visto os muçulmanos junto com os pés-
pretos?
Nas páginas interiores consagradas aos acontecimentos políticos
argelianos — nas quais a censura havia deixado pedaços em branco-, tudo não
passava de apoio à insurreição.
— Eis o Dépêche de hoje. — Anunciou o garçom.
— Obrigado.., sirva-me outro café.
Na primeira página do jornal do dia, além da partida de Challe e de
Delouvrier, continuava a mesma história: o anúncio de que dezenas de
milhares de muçulmanos apoiavam a causa da Argélia francesa. Enquanto
percorria o jornal com os olhos, François tentava descobrir se estava sendo
seguido, sabendo que era quase impossível perceber isso. Pagou a conta,
acendeu um cigarro, levantou-se e pôs-se a andar como se estivesse passeando
sob as arcadas da Rua Bab-Azoun, onde os territoriais obrigavam a fechar as
lojas que não tinham autorização para ficarem abertas. Entrou à direita, numa
rua que era uma escadaria e descobriu uma sinagoga. Será que era a que
Benguigui freqüentava? Benguigui só havia ido embora bem tarde da noite. Ele
atravessou a Rua Charles Aboulker, subiu outros degraus e desembocou na
Rua Lyre.
Virando à direita, ele deveria chegar à catedral. Impossível saber se estava
sendo seguido. Donas de casa das duas comunidades faziam fila na frente de
uma padaria; alguns garotos, chutando uma lata vazia, passavam entre as
pessoas, gritando. Ele apressou o passo. Nas proximidades da catedral, zuavos
montavam guarda.
Estava escuro no interior da igreja. Ele passou diante do púlpito, feito de
um mármore de muitas cores.
Perto do altar da Virgem, umas religiosas rezavam. Em frente a elas, vinha
um murmúrio de um confessionário. Uma freira levantou-se nesse instante e
foi ajoelhar-se no confessionário. François pegou o lugar dela, enquanto uma
mulher idosa acendia uma vela antes de colocá-la no suporte próprio para isso.
Ela resmungou uma curta oração e afastou-se depois de ter feito o sinal da
cruz. Uma outra mulher, bem corpulenta, sentou-se ao lado de François e
apoiou a cabeça nas mãos. Dois padres passaram.
— Venho da parte de Malika. — Ele achou ter ouvido.
Virou-se, mas só viu as religiosas. "Estou ouvindo vozes!", pensou.
— Não se mexa! Eu sou a sra. Zenatti, lembra-se de mim? Malika
trabalhava comigo no departamento do dr. Duforget... Seu irmão Béchir me
encarregou de lhe dizer para ir procurar uma tal de Gilda, no Aletti. Ela estará
lá por volta do meio-dia.
Discretamente, ele deu uma olhada para a mulher que estava perto dele.
— Por que você está fazendo isso?
— Talvez porque eu não soube defender Malika quando a levaram... Agora
vá e que Deus o proteja!
Ele se levantou, deixou cair uma moeda na caixa de esmolas, pegou uma
vela e foi para a capela onde a acendeu: Léa tinha o costume de acender uma
vela em todas as igrejas... Uma religiosa cobriu-o com um olhar aprovador.
Alguns mendigos ocupavam os degraus da escadaria em frente à igreja,
estendendo as mãos e com umas caras lamentáveis. François deu umas
moedas a uma mulher encarquilhada, coberta por um haik sujo por baixo do
qual saíam dois tornozelos roídos por feridas purulentas. Os outros mortos de
fome também pediram; ele os afastou sem brutalidade.
Ele voltou para a Rua Lyre. Os CRSs haviam estacionado diante do
mercado coberto cujas grades ainda estavam fechadas. O relógio marcava onze
e meia. Na Rua Isly, uns jovens distribuíam panfletos chamando as pessoas
para virem se manifestar na barricada Hernandez antes do anunciado discurso
do general de Gaulle. Diante do Hotel Aletti, uns paraquedistas desceram de
dois caminhões e interpelavam um grupo de UT que controlava a Prefeitura e a
Chefatura de Polícia. François entrou no Cintra atrás de dois oficiais de farda
camuflada. O bar havia reencontrado sua clientela dos grandes dias; o barman
exultava.
— Você está com melhor aspecto do que ontem! — observou François,
sentando-se numa banqueta.
— Não se pode dizer o mesmo do senhor; parece que passou a noite fora!
— Respondeu Georges. — Isso não é muito prudente... O que o senhor deseja
tomar?
— Um uísque.
Gilda entrou em companhia de uma garota que ria às gargalhadas. As
duas estavam muito maquiadas, mas François percebeu, sob o excesso de
maquiagem, a palidez de Gilda. Um dos oficiais paraquedistas agarrou-a pela
cintura e puxou-a para ele. Ela se soltou com delicadeza e aproximou-se do bar
com o paraquedista em seus calcanhares. Esse imbecil iria estragar tudo?
François procurava uma forma de intervir, quando o companheiro do
inoportuno chamou-o.
— Ei, ande logo, o coronel está aqui!
Ele saiu com uma cara de garoto decepcionado.
— Bom dia, Gilda. Quer beber alguma coisa? — Perguntou François.
— Tanto faz... Chegue perto de mim.
— Por que você está rindo?
— Finja ser mais atirado: estão olhando para nós.
Contra a vontade, François abraçou-a pela cintura; a moça deu uma
gargalhada exagerada, sob os olhares cúmplices dos funcionários.
— Eu vou para os elevadores. Fique aqui uns dois ou três minutos, depois
venha juntar-se a mim; nós vamos para o seu quarto.
— Mas...
— Por favor, faça o que eu digo. — Suplicou ela, esfregando-se nele.
Ela o deixou e François, fazendo o jogo, deu-lhe um tapa na bunda.
— Oh! — Ela caiu na gargalhada.
Pouco depois, François foi pegar sua chave com o porteiro que, vendo-o,
exclamou:
— Senhor Tavernier! O senhor voltou a ter problemas? Nós ficamos muito
preocupados... Faz três dias que não o vemos. E, o quarto, nós não sabíamos
se...
— Sinto muito que vocês tenham esquentado a cabeça, mas com esses
acontecimentos... você entende?
O porteiro não entendia muito bem, mas uma gorjeta generosa deixou-o
mais compreensivo.
Junto aos elevadores, uma prostituta estava pendurada no pescoço de um
oficial paraquedista um pouco sem graça. Perto dela, Gilda parecia uma
menina fazendo a primeira comunhão. Os dois casais subiram juntos no
elevador e desceram no mesmo andar. Os homens deixaram as mulheres
saírem primeiro, o oficial dirigiu a François um olhar conivente que o
incomodou.
O quarto estava cheirando a fechado. François empurrou delicadamente o
ferrolho e abriu as janelas; um cheiro de poeira molhada entrou. Gilda
arrepiou-se e sentou-se na cama.
— O que você tem para me dizer? — Perguntou François com um tom mais
seco do que ele desejara.
— Béchir espera você esta noite, às dez horas, perto do lugar onde você o
deixou com a irmã dele. Ele me disse que você entenderia. Aceitei transmitir-lhe
esse recado porque gosto muito daquele garoto. E também pelo que aconteceu
com a irmã dele... Além disso, sei que você é amigo de Joseph, que foi sempre
bom para mim. E também porque... você nunca me tratou como... enfim... você
sabe do que eu estou falando... Mas não conte mais comigo: é a ultima vez, é
muito perigoso. Se eles souberem que eu ajudei você, eles me matam!
— "Eles" quem?
— Eles não querem que agente fale com os estrangeiros nem com os
jornalistas... a não ser a trabalho.
— Quem, os gigolôs? — Insistiu ele.
— Não só eles. Não posso falar mais, não insista. Só o fato de estar com
você vai parecer suspeito.
— Mas é "a trabalho", como você disse. — Tranqüilizou-a, pegando- lhe as
mãos.
Ela olhou intensamente para ele, com uma expressão dolorosa.
— Você gostaria.., gostaria que fizéssemos amor?
— Isso seria assim tão desagradável para você?
— Não, não, não é isso... Apenas achei, que nós fôssemos amigos!
Gilda virou-se para esconder as lágrimas. Tocado, François levantou-se.
— Não chore, só queria me assegurar que... Desculpe-me, não queria
magoar você.
Ela soluçava agora como uma criança. Assim como a maioria dos homens,
François se sentia desarmado ante o espetáculo de uma mulher em lágrimas.
Não sabendo o que fazer, foi buscar um copo de água. Gilda agradeceu, bebeu
uns goles e enfiou-se no banheiro. Quando voltou, as lágrimas haviam secado.
Apenas a mancha escura em volta dos olhos denunciava ainda que ela tinha
chorado.
— Preciso ficar mais um pouco. — Desculpou-se ela.
— Eu entendo, é preciso fazer de conta... Tome, pegue isto aqui para que
as coisas fiquem mais verossímeis... Obrigado, Gilda, obrigado pela ajuda. Você
é uma garota formidável!
Com um pequeno sorriso a garota pegou o dinheiro, sem graça. Muito
cansado para recomeçar a conversa, François esticou-se na cama; uns minutos
depois dormia profundamente. Depois de lhe tirar os sapatos, Gilda olhou
demoradamente para ele e, em seguida, saiu do quarto na ponta dos pés.
Capítulo 25
Duas batidas na porta acordaram François, assustando-o. Levou uns
segundos para tomar consciência e perceber que já era de noite. Verificou se a
arma continuava no bolso. Novas batidas.
— Quem é? — Perguntou.
Sou eu, Benguigui.
O motorista de táxi, com as roupas ensopadas entrou.
— Está caindo o mundo!... O capitão Léger está aí em baixo e convida você
para ir ouvir o General junto com ele.
— Ele teve notícias de Léa?
— Acho que não... Você devia jogar uma água no rosto.
Era verdade, ele estava com a cabeça esquisita e tinha um gosto horrível
na boca. Colocou a cabeça embaixo da torneira e depois escovou os dentes.
Calçou os sapatos e passou os dedos pelos cabelos.
— Está bom assim? — Perguntou ao companheiro.
— Não é preciso caprichar muito...
No hall, Léger e seus homens, os três com fardas camufladas, esperavam
perto da saída onde havia um empregado com uma corrente comprida na mão.
— O que você ficou fazendo a tarde toda no hotel? — Perguntou o capitão.
— Dormi.
— Não parece... Achei que você gostaria de ir ao Ortiz para ouvir o nosso
Presidente.
— Você encontrou os garotos da Casbah?
— Ainda não... Venha, estamos atrasados.
Assim que saíram, o empregado trancou a porta com a corrente e colocou
um cadeado.
— É assim desde o começo dos "acontecimentos". — Comentou Benguigui.
A chuva caía forte. Eles correram até o Bulevar Laferrière, cujo acesso aos
civis estava interditado pelos paraquedistas. Léger e seus companheiros
passaram sem dificuldade. Nos jardins do bulevar, uma multidão, abrigada por
guarda-chuvas ou impermeáveis esticados por cima das cabeças, amontoava-se
sob o balcão da Companhia argeliana. No relógio do correio, os ponteiros
marcavam oito horas. Em Argel, em toda a Argélia e na metrópole, rádios e
televisões estavam ligados à espera do pronunciamento do Chefe de Estado. No
imóvel ocupado por Ortiz e os seus, os chefes da rebelião haviam requisitado
um lugar privado no primeiro andar, o Clube dos negociantes. Colocaram um
aparelho de televisão sobre o bar, para que todos pudessem ver.
Quando Léger e os companheiros entraram, o general De Gaulle, de
uniforme, já começara a falar, batendo com o punho na mesa:
—"... Ora, as duas categorias de pessoas não querem essa livre escolha.
Primeiro, a organização rebelde, que só pretende suspender o fogo se eu tratar
com ela, privilegiadamente, do destino político da Argélia, o que significaria
instituí-la como a única representante válida e considerá-la, antecipadamente,
como governante do País. Isso, eu não farei.
Por outro lado, alguns franceses de origem exigem que eu renuncie à
autodeterminação, que eu diga que tudo está feito e que o destino dos
argelianos está a partir de agora decidido. Isso eu também não farei. A
autodeterminação é a única forma de os muçulmanos se livrarem do demônio
da secessão. Quanto as modalidades de tal ou tal solução francesa, entendo
que sejam elaboradas à vontade, desde que a paz retorne. A partir de então,
reservo-me o direito de me engajar no momento apropriado àquela que eu
considerar melhor. Podem acreditar que eu o farei.
O que aconteceu é que alguns, para tentar impor suas pretensões à nação,
ao Estado e a mim mesmo, começaram essa rebelião, atiraram contra as forças
da ordem e mataram bons soldados e pegaram em armas contra a autoridade
da França. Ajudados no início pela incerteza complacente de diversos elementos
militares e aproveitando-se dos temores e paixões febris excitados pelos líderes,
eles obtiveram até agora o apoio de uma parte da população européia,
provocando a greve forçada, a paralisação dos transportes, o fechamento das
lojas. Por esse motivo, uma ruptura da unidade nacional arrisca-se a ocorrer,
sob a indignação da nação francesa e bem no meio da luta contra os rebeldes.
Não existe um só homem de bom senso que não veja as conseqüências que
certamente se produzirão se essa temível secessão acontecer.
Diante do golpe contra a França, dirijo-me primeiramente à comunidade
de origem francesa na Argélia. Ela já me conhece bem há anos. Ela me viu
muitas vezes no meio dela e, principalmente, durante a guerra, quando seus
filhos, em grande número, serviam nas fileiras do exército de libertação, ou
então quando, após o golpe de maio de 1958, assumi a chefia da França para
refazer a unidade dos franceses dos dois lados do Mediterrâneo. Não importa o
que os agitadores tentem fazê-la crer, há entre mim e ela laços excepcionais que
me são muito caros e muito vivos. Sei perfeitamente que serviços ela presta à
França pelo seu trabalho secular na Argélia, que experiências terríveis enfrenta,
por que vítimas comoventes ela chora. Mas, preciso falar a ela claramente e dê
modo direto.
Franceses da Argélia, como podem escutar os mentirosos e conspiradores
que dizem que, concedendo a livre escolha aos argelianos, a França e de Gaulle
querem abandonar vocês, retirar-se da Argélia e deixá-la à rebelião? É
abandonar vocês, é querer perder a Argélia enviar e manter aí um exército de
quinhentos mil homens munidos de um enorme armamento, consentir no
sacrifício de um bom número de seus filhos, destinar, neste ano mesmo, um
orçamento civil e militar de muitos milhões, empreender uma imensa obra de
valorização, tirar do Saara, com muito esforço e a alto custo, o petróleo e o gás
para levá-los até o mar? Como podem vocês duvidar que, se um dia os
muçulmanos decidirem livremente e formalmente que a Argélia de amanhã deve
estar estreitamente unida à França, nada causaria mais alegria à pátria e a dê
Gaulle que vê-los escolher a solução mais francesa? Como podem vocês negar
que qualquer ação de desenvolvimento das populações muçulmanas,
empreendida há dezoito meses, e que, após a pacificação, deverá expandir-se
ainda mais, tende a criar precisamente múltiplos e novos laços entre a França e
os argelianos? Além disso tudo, como vocês não vêem que levantando-se contra
o Estado e contra a nação vocês se prejudicam e, ao mesmo tempo, aumentam
o risco de a França perder a Argélia, justamente no momento em que se
visualiza o declínio da rebelião?
Eu rogo que vocês voltem à ordem.
Em seguida, dirijo-me ao exército que, graças a magníficos esforços, está
conquistando a vitória na Argélia, embora alguns de seus elementos sintam-se
tentados a acreditar que esta guerra é deles, não da França, que eles têm
direito a uma política que não seria a da França.
Digo a nossos soldados: sua missão não comporta nem equívoco nem
interpretação. Vocês devem liquidar com a força rebelde que quer expulsar a
França da Argélia e impor nesse país sua ditadura de miséria e
improdutividade. Pela ação das armas, vocês contribuíram para a
transformação moral e material das populações muçulmanas, para levá-las à
França pelo coração e pela razão. Quando chegar o momento de proceder à
consulta, vocês terão que garantir a liberdade completa e sincera.
Sim! É a sua missão, aquela que a França lhes dá, e é à França que vocês
servem. O exército francês, o que se tornará ele, senão um amontoado
anárquico e insignificante de feudos militares, se acontecer de seus elementos
imporem condições à sua lealdade? Ora, eu sou, como vocês sabem, o
responsável supremo. Sou eu que carrego o destino do País. Devo, portanto, ser
obedecido por todos os soldados franceses. Acredito que serei, porque eu os
conheço, eu os estimo, eu os amo, eu tenho confiança no general que coloquei,
soldados da Argélia, no comando de vocês e, por último, porque, pela França,
eu preciso de vocês.
Agora, escutem bem! Diante da insurreição de Argel e no meio da agitação,
chegada ao extremo, o Delegado Geral, sr. Paul Delouvrier, que é a França na
Argélia, e o comandante em chefe, não quiseram, sob sua própria
responsabilidade, desencadear uma batalha. Mas, nenhum soldado deve, sob
pena de falta grave, associar-se em momento algum, mesmo passivamente, à
insurreição. A ordem pública deverá, afinal, ser restabelecida. Os meios
empregados para que a força permaneça do lado da lei poderão ser de vários
tipos. Mas, seu dever é obter isso. Já dei e volto a dar a ordem.
Enfim, dirijo-me à França. Bem, querido e velho país, eis-nos juntos, de
novo, enfrentando uma dura prova. Em virtude do mandato que o povo me
concedeu e da legitimidade nacional que eu encarno há vinte anos, peço a todos
e todas que me apóiem, não importa o que aconteça.
E, enquanto os culpados, que sonham em ser usurpadores, usam como
pretexto a decisão que tomei com relação à Argélia, que se saiba em todo lado,
que se saiba bem que não voltarei atrás.
Ceder nesse ponto e nessas condições seria queimar na Argélia os triunfos
que ainda temos, mas também seria rebaixar o Estado diante do ultraje que lhe
é feito e a ameaça que é dirigida a ele. Em conseqüência, a França não seria
mais do que um joguete, deslocado no oceano das aventuras.
Mais uma vez, apelo aos franceses, onde estiverem, sejam quem forem,
para que se unam à França.
Viva a República!
Viva a França!"
Apesar das pancadas de chuva, a multidão, estóica, escutara até o fim as
palavras do Presidente da República, transmitidas à rua por alto- falantes.
Quando ele se calou, houve um momento de silêncio, depois, brotando dessa
multidão enregelada e patinando na lama, um imenso clamor subiu:
— Viva a Argélia francesa!
Logo, substituído por gritos de ódio:
— Morte a de Gaulle!
No Clube dos negociantes, os rostos estavam assombrados. Todos sentiam
que o fim era iminente.
Lagaillarde, que havia zombado diversas vezes enquanto escutava o
general de Gaulle, levantou-se e, com o corpo curvado, teve um acesso de tosse.
Depois de trocar algumas palavras com o chefe do FNF, ele voltou para a
faculdade, rodeado por seu pessoal fiel.
O povo, lá fora, voltava-se agora para os paraquedistas que também
tinham ouvido o discurso presidencial. Iriam eles, afinal, juntar-se ao povo
após a confirmação da autodeterminação que acabava de ser feita, ou
obedeceriam àquele que dizia amá-los e tê-los em alta estima? Nada aconteceu,
soldados e oficiais abaixavam as cabeças. Sob a chuva, a assistência via suas
esperanças sumirem.
Depois da partida de Lagaillarde, começaram a beber muito para tentar
apaziguar a cólera e a angústia.
Havia muitos que, curiosos a respeito de sua opinião, enchiam de
perguntas o capitão Léger; seus homens mantinham-se sempre ao lado dele.
Após conversar brevemente com Ortiz, François virou-se para Benguigui e
disse-lhe em voz baixa:
— Vou desaparecer. Dê um jeito para que Léger não perceba minha
partida antes de uns dez minutos...
— Aonde você vai?
— Encontrar Léa. Dez minutos, está bem Conto com você!
Sem lhe dar tempo para responder, François saiu de fininho. Sentados nos
degraus da escada, uns territoriais, abatidos, perguntavam-se se não deveriam
voltar para casa. Uma corrente de água enlameada lavava o Bulevar Laferrière.
François entrou na Rua Charles-Péguy e deu de cara, na Rua Berlioz, com um
grupo de paraquedistas que quiseram examinar seus documentos. Em vista do
salvo-conduto assinado pelo comandante em chefe, eles o deixaram seguir seu
caminho. Ele desceu os degraus da rua e desembocou no Bulevar Baudin onde
havia caminhões militares estacionados. Chovia tanto que os soldados se
haviam refugiado embaixo de lonas. Alguns carros passavam buzinando as seis
notas de Argélia francesa, depois umas ambulâncias, com as sirenes gritando;
minado pela chuva, um prédio desmoronou, soterrando muitas pessoas nos
escombros. Ao longe, ouviam-se as sirenes dos carros de bombeiros. François
correu até o cais e encontrou a garagem do motorista de táxi, cuja chave ele
ainda tinha, O jipe pegou imediatamente. François desceu do carro para fechar
o portão, quando viu um homem vir correndo na direção dele. "Merda!", xingou,
girando a chave.
— Ei, espere por mim!
Joseph Benguigui agarrou-se à lateral do jipe.
— Sou eu. — Disse ele, ofegante.
— O que você está fuçando aqui? — Gritou François.
— Você vai precisar de mim. — Afirmou ele, sentando-se ao lado do
motorista.
— Eu tinha pedido para você segurá-los!
— Não se preocupe, eles estão ocupados por algum tempo... Aonde vamos?
— Para o alto da Casbah.
— Bem que eu imaginei... Sem mim, você iria se perder. Bem, vire à
direita... Continue no cais.
As docas estavam desertas. De vez em quando, ele avistava um vigia que
tentava se abrigar encostado num muro ou sob a cobertura de um armazém...
No Bulevar Amiral-Pierre, eles diminuíram a velocidade quando passaram na
frente da caserna Pélissier.
— A direita. — Disse Benguigui. — Siga a beira do mar!
— Estamos nos afastando da Casbah... — Preocupou-se François.
— Vamos subir por outro caminho... Cuidado com o cruzamento Borély!
Vá em frente, pegue o Bulevar Guillemin... No alto, à direita... A primeira à
esquerda, depois à esquerda... à direita... Vamos contornar a caserna de
Orléans... Que coisa! Cuidado! Você vai nos matar!
Tensos, eles seguiram ainda alguns segundos em silêncio, passaram ao
lado de um estádio, depois passaram a entrada da caserna onde os sentinelas,
encharcados, os ignoraram.
— Pare perto da rampa dos zuavos.
— Como você quer que eu saiba onde é a porra da rampa?
— Ali!... Você está diante do museu Franchet-d"Esperey. Desligue o motor
e desça desengrenado... Pare diante da igreja e apague os faróis.
Vamos fazer o resto do caminho a pé... E, principalmente, não faça
barulho: não estamos longe de Barberousse.
— Não enxergo nada!
— Melhor... Siga-me!
Eles pegaram uma rua estreita que descia entre dois muros de vegetação.
— Nós estamos no Bulevar Victoire, no alto da Casbah. Você sabe onde é?
— Sim... Atenção, alguém está vindo!
Eles se esconderam na sombra.
— Meu Deus! É o 203 que pegou você! — Assustou-se Joseph.
Quatro tipos desceram do Peugeot amassado e desapareceram numa ruela
da Casbah.
— Eles estão procurando Léa, corto meu pescoço se não estão. —
Cochichou François, lançando-se na direção deles.
Seu companheiro o reteve.
— Eles não irão muito longe...
Mal ele dizia isso, os quatro homens já estavam saindo da rua, arrastando
um muçulmano atrás deles.
Jogaram o indivíduo dentro do carro que partiu em seguida; ninguém se
mexeu, nem os policiais de guarda diante da caserna vizinha, nem os zuavos
que ocupavam uma barraca, grudada nas muralhas antigas, que abrigava as
SAU da Casbah superior. Ouvia-se apenas o barulho da chuva nos telhados de
zinco.
Soaram onze horas no relógio da Igreja Saint-Croix. Eles beiravam a
muralha em ruínas. Na Rua Vandales, a luz de um cigarro brilhou; eles ficaram
imóveis.
— Olhe, há alguém ali. — Cochichou François.
— É na entrada da Rua Mameluks. — Disse Joseph. — Cuidado!
Eles se colaram ao muro. Um caminhão da polícia passou. Eles ficaram
um bom tempo sem se mexer. O vulto reapareceu.
— É Béchin — Percebeu François, saindo da penumbra.
Benguigui foi atrás dele, amaldiçoando todos os postes do Bulevar Victoire
que, nesta noite, lhe pareciam mais numerosos que em qualquer rua de Argel...
Béchir também os havia reconhecido.
— Eles pegaram meu pai! — Informou ele de cara. — É preciso tirá-lo de
lá, ele está doente, e eles vão torturá-lo para fazê-lo dizer onde está Malika!
— Ele sabe onde ela está? — Inquietou-se François.
— Não, acho que não. Quando minha mãe os ouviu chegar, ela saiu de
casa por trás e veio me avisar.
— Onde ela está?
— Como eu precisava vir encontrar você, ela foi avisar Al-Alem.
— Preciso ver Léa; leve-me até ela.
— Mas eu não sei onde ela está. Os "uniformes azuis" também estavam
procurando por ela, então Al-Alem levou-a, junto com Malika, para outro
esconderijo... É hora da patrulha, não é bom ficar aqui.
Eles desceram os degraus escorregadios da rua. No momento em que
chegaram à mesquita Djamar-Safir a chuva parou. Eles se agacharam
encostados nos muros veneráveis. Uma patrulha de zuavos subiu a rua Kléber,
depois afastou-se em direção à rua Porte Neuve.
— Agora, podemos ficar tranqüilos. -Afirmou o jovem árabe. — Al-Alem vai
nos encontrar no cemitério Ben- Ali...
— No túmulo das Duas Princesas? — Perguntou Joseph.
— Sim, não é muito longe.
— Eu sei, mas o lugar está vigiado.
— Não agora. — Respondeu Béchir.
Eles andaram pela Rua Kléber, pobremente iluminada, beirando os muros
e enfiando-se nas reentrâncias das portas ao menor barulho. Num cruzamento,
ouviu-se o barulho de uma fonte. Benguigui espirrou.
— Psiu! — Fizeram juntos François e Béchir.
— Estou ficando resfriado.
— Fique quieto! Chegamos à Rua N'Fissa.
Béchir guiou-os até uma porta baixa que se abriu com um chiado
imperceptível. Béchir fechou-a depois que eles passaram. Uns gatos,
incomodados com a intrusão, partiram precipitadamente. Na maior escuridão,
avançaram estendendo as mãos diante de si, tateando o chão com a ponta dos
pés. Uma luz piscou três vezes. Três vezes, Béchir acendeu seu isqueiro. Houve
um barulho de galhos afastados e alguém veio até eles. Joseph Benguigui batia
os dentes. De frio? De medo?
— É você, Béchir? — Cochichou Al-Alem.
— Sim, meu irmão.
— Onde está Léa? — Perguntou François, nervoso.
— Não fale tão alto, os mortos poderiam ouvir suas palavras...
— Vamos dar o fora daqui, não gosto deste lugar... — Gaguejou Joseph.
— Quem é você? — Assustou-se Al-Alem.
— O chofer de táxi, aquele que já nos ajudou.
— E agora? Eu não confio...
— Basta! — Cortou François — Eu confio e é com pessoas como ele que se
deve construir a Argélia de amanhã.
Você é bem inteligente para compreender o que digo... No momento, o que
importa é Léa e Malika... E você, também, Al-Alem, o capitão Léger quer pôr as
mãos em você e convocá-lo para trabalhar para ele.
— Cão maldito! É por causa dele e de seus renegados que os chefes da
Frente foram presos e assassinados... Mas, não sou como eles! Chega de falar
desses chacais; vou levá-los até sua mulher e Malika.
Juntos, eles pegaram a Rua Kléber, desabalando as escadarias da Rua
Affreville, depois a Rua Porte Neuve. Andavam depressa, escorregando nas
pedras molhadas. Na Rua Médée, Béchir puxou Al-Alem pela manga, fazendo-o
parar.
— Você não as levou para a Rua Mer-Rouge?
— Eu não tinha escolha: era lá ou os legionários! — Respondeu ele,
soltando-se.
— Algum problema? — Preocupou-se François.
— Está tudo bem... Mas elas estão num bordel. — Revelou Béchir,
voltando a andar.
— Não é mau, como esconderijo! — Comentou o pé-preto.
Uma portinhola se abriu primeiro na porta onde Al-Alem batera, e depois a
porta se abriu.
— Você vai fazer com que eu seja degolada! — Gritou a matrona que abriu,
vendo os dois europeus.
— Cale-se! Foram eles que salvaram Malika... Este, o maior, é o marido da
francesa.
— Uma belíssima mulher. — Atestou a outra, em tom de conhecedora —
Mas, eu não posso mais escondê-las.
— Mas você tinha prometido...
— Sim, mas isso foi antes de receber a visita de Surcouf. Esse filho da
puta me disse que seu patrão procurava a européia e que ele contava com a
minha ajuda...
— E você vai ajudá-lo?
— Não tenho escolha... Não se preocupe, sei lidar com os homens: vou dar-
lhe um a pista falsa... No entanto, preciso ter cuidado, ele é esperto, o Surcouf!
Você se lembra de Ouria, a garota que trabalhava para eles e que eu recolhi,
pensando que era favorável à Frente? Aquela vagabunda me enganou
direitinho! Bem, agora, desconfio de todas as minhas pensionistas... Bom, não
façam barulho, vou levá-los até suas protegidas.
Batidas violentas abalaram a porta da entrada. A cor da cafetina mudou.
— Abram ou eu vou explodir tudo! — Gritou alguém em francês.
— O que é? — Perguntou, com uma voz de sono, uma das moças, vestida
apenas com um penhoar rosa e transparente.
— Vá para o seu quarto! — Ordenou a proprietária.
Com a voz falsamente adormecida, ela tentou temporizar:
— Estamos fechados, senhores...
Um tiro na porta arrancou-lhe um grito.
— Onde estão Léa e Malika? — Perguntou François.
— Eles não podem encontrá-las... Al-Alem, você conhece a passagem de
Ali-la-Pointe? Vá por lá.
— Eu não vou embora sem Léa! — Decretou François.
Al-Alem interveio:
— Ela tem razão, no lugar em que elas estão, eles não as encontrarão.
Vamos! Espere, escute... Os zuavos!
— É a patrulha. — Afirmou Benguigui.
Por um momento, zuavos e paraquedistas conversaram do outro lado da
porta; finalmente, os paraquedistas desistiram e se afastaram no escuro. Logo,
o silêncio caiu. Joseph Benguigui deixou-se cair numa cadeira que gemeu com
o peso dele.
— Ah!... Escapamos por pouco! — Balbuciou ele.
— É muito perigoso querer tirar as mulheres daqui agora, tentaremos
amanhã. — Decidiu Al-Alem.
— De jeito nenhum! — Explodiu François. — Eu quero ver Léa!
Por um instante, eles se enfrentaram com o olhar. O jovem kabyle fez um
gesto conformado e ordenou à mulher:
— Leve-nos.
Sem replicar, ela se muniu de um lampião de querosene. Eles subiram
umas escadas estreitas, atravessaram quartos, pátios, desceram outros
degraus.
— É lá em cima. — Disse ela, enfim, mostrando um teto revestido de
ladrilhos. — A escada está ao lado.
Béchir foi buscá-la. Al-Alem subiu, afastou um alçapão dissimulado pelas
juntas dos quadrados e desapareceu pela abertura. A espera pareceu longa a
todos. Mas, ao fim de um momento, umas pernas femininas apareceram.
Capítulo 26
François acabou se rendendo aos argumentos de Al-Alem e resignou-se a
sair de Cashah, deixando Léa no seu novo esconderijo. Pegou o jipe, deixou
Joseph, que tremia de frio, em sua casa e, depois, levou o jipe para a garagem
no cais. Subiu de quatro em quatro a escadaria que levava ao Bulevar Baudin.
Havia caminhões militares estacionados ali.
— O que você está fazendo aqui?! — Interpelou-o um oficial de
impermeável e boina vermelha, da janela de um 203 preto.
— Coronel Godard... Você caiu do céu! Estou morrendo de frio, você pode
me deixar no Aletti?
— Você tem peito! Vamos, eu levo, mas em compensação você me oferece
um trago...
— Negócio fechado!
No hotel, não foi nada fácil conseguir que abrissem as portas, trancadas
com cadeados. Um barmen acordou sobressaltado com as batidas na porta do
Cintra, concordou em lhes servir um uísque em troca de uma generosa gorjeta.
— Coronel, como vão as suas negociações com os insurretos?
— Vão indo... — Respondeu Godard, laconicamente.
Somente uma lâmpada, na ponta do longo balcão de madeira, permanecia
acesa, criando uma atmosfera de intimidade que teve sob os dois homens um
efeito apaziguador; eles ficaram ali, como dois amigos, falando de coisas sem
importância e saboreando um último gole.
— Obrigado pela companhia, coronel. Mas, preciso me deitar. Boa noite!
— Boa noite, Tavernier.
Entrando no quarto, François tirou as roupas molhadas e tomou um
banho. Depois de beber um segundo uísque, ele dormiu pouco antes do
amanhecer, com a sensação de estar colado ao corpo da mulher.
Quando acordou, o sol brilhava em Argel.
Paul Ribeaud e François Tavernier encontraram-se no hall. Trocaram
algumas palavras, saíram juntos do hotel e dirigiram-se ao bulevar Laferrière.
Com um forte sotaque alemão, uns paraquedistas de boina verde proibiram-
lhes a passagem. Ribeaud não insistiu e desceu em direção ao Bulevar Baudin.
Do Grill-room onde fora estabelecido o QG do coronel Dufour, comandante do 1
REP, o capitão Léger deu a ordem para deixar Tavernier passar. Os boinas-
verdes afastaram-se e ele encontrou-se com Léger. Os dois homens apertaram-
se as mãos.
— Você me enganou direitinho, ontem à noite. Isso não é muito fácil. Você
foi à Casbah, não é? Pelo menos, encontrou sua mulher?
— Me deixe em paz, Léger. Cuide dos seus assuntos!
— Como quiser... Quer um café?
— A greve terminou?
— O fim está próximo.
— Parece que você lamenta.
O capitão não respondeu. Eles subiram o bulevar até a Avenida Pasteur e
entraram no Albert onde ainda havia muitos jornalistas. Eles tomaram o café
de pé.
— Chegaram novas tropas esta noite e vão substituir a 10ª divisão. Além
disso, o general Cracieux encarregou o coronel Godard de obter a rendição
incondicional do campo entrincheirado. Por fim, as coisas não estão bem entre
Lagaillarde e Ortiz: o primeiro fala de se explodir e levar Argel com ele; quanto
ao segundo, não pára de repetir que foi traído pelo exército. Eles também
trocam insultos: para Ortiz, o chefe do reduto das faculdades é um louco, um
terror... Para Lagaillarde, o dono do café Fortim é um covarde, um frouxo...
— Você acredita que Lagaillarde vá concretizar suas ameaças?
— Eu o conheço bem, ele é bem capaz... Por outro lado, Gracieux ameaçou
com o conselho de guerra todos os oficiais das UTs que não reagruparem os
homens subordinados a eles e que devem agora abandonar as barricadas. Os
paraquedistas receberam ordens de evacuar a multidão do campo
entrincheirado e de rechaçá-la para a Rua Charras que se tornará a única via
de saída.
Alguns caminhões militares barravam as ruas que davam para o Bulevar
Laferrière, no momento, deserto.
Corria um boato em Argel que os "alemães" fechavam a praça. De Belcourt
a Bab el-Oued, os argelianos convergiam para o platô Glières para manifestar
sua solidariedade com os das barricadas. A multidão, cada vez mais compacta,
tentava passar pelas barreiras mantidas pelos "estrangeiros". Duas mil pessoas
conseguiram atravessá-las e foram se amontoar na frente da barricada
Hernandez, onde entoavam novamente o Canto dos Africanos.
Quando Lagaillarde apareceu no balcão, precedendo Ortiz, foi aclamado
por um bom tempo. Fez sinal de que queria falar; o silêncio se impôs
imediatamente.
— Ontem, às catorze e trinta, recebi de Paris um ultimato para capitular
incondicionalmente. Rejeitei esse ultimato que era um insulto aos nossos
mortos e a todos aqueles que, por mais de seis anos, lutam para que a Argélia
continue sendo terra francesa. Os patriotas do campo entrincheirado mandam
uma saudação fraterna ao exército. Assim que a voz da França eterna for afinal
ouvida, assumo o compromisso de honra de colocar essas companhias
operacionais do campo entrincheirado à disposição do alto comando para lutar
contra a rebelião da FLN até a vitória final. Viva a França!
A assistência aclamou-o novamente. Mulheres choravam. Ortiz deixou o
balcão sem tomar a palavra. Do terraço da universidade, o helicóptero branco
decolou, soltando atrás de si panfletos convocando os argelinos a não
abandonar o campo entrincheirado. Rapidamente cercado por dois Sikorsky
com metralhadoras e um Alouette, ele teve que pousar no seu ponto de partida.
Na rádio de Argel, o general Crépin convidou a população a voltar ao trabalho.
— Você tem filhos? — Perguntou Léger à queima-roupa.
— Sim, três.
— Eu tenho dois, um menino e uma menina. Prometi almoçar com eles.
Quer ir comigo?
— Eles estão em Argel?
— Muito perto, em Sidi-Ferruch, onde aluguei uma linda vila que dá para
o mar. Venha, minha mulher vai gostar de conhecê-lo; eu já lhe falei sobre
você...
— Não imaginava que você fosse casado, muito menos, pai de família...
— E você acha que você tem cara de homem casado? — Exclamou o
capitão, rindo.
No final da tarde, quando voltaram para Argel, passaram por Chéragas e
El-Biar a fim de evitar as barragens estabelecidas ao longo da costa. Essas
poucas horas passadas na atmosfera familiar da vila haviam relaxado os dois
homens.
Mas, a vista de Paul-Alain Léger na companhia da mulher e dos filhos
tinha demonstrado mais uma vez a Tavernier a incoerência do comportamento
humano: este homem frio, lutador intrépido, não hesitava em arriscar todos os
dias a sua vida pelo gosto do risco e da aventura, apesar de todo o amor que
tinha pelos seus. "Nós somos loucos", pensou François.
Quando atravessaram El-Bian, Léger perguntou:
— Onde quer que o deixe?
— No quartel Rignot, por favor.
— Vem a calhar, também tenho que ir lá, Tavernier...
— Sim?
— Por que você não confia em mim? Posso ajudá-lo a encontrar a sua
mulher. Quanto mais o tempo passa, mais perigoso é para ela ficar na
Casbah... Por que você não responde?
— Agradeço-lhe muito pelo oferecimento, mas não será necessário.
— Como quiser...
Do quartel Rignot, François ligou para René Brouillet no Élysée. Ele
anunciou ao chefe de gabinete do presidente da República que interrompia sua
missão por motivos pessoais.
— Mas isso é uma loucura! O que vai dizer o General?
Sem dizer mais nada, François desligou. Quando comunicou sua decisão a
Paul Delouvrier, este lhe estendeu a mão:
— Eu compreendo... Falei com o General pelo telefone. "A hora das
discussões terminou", me disse ele. "É preciso saber acabar com esse assunto.
Não se pode ter medo de derramar o sangue quando se quer que a ordem reine
e que o Estado exista."
Uma chuva fria e fina caía agora sobre Argel. Ao redor do campo
entrincheirado, numerosas tropas haviam tomado posição no maior silêncio.
Em pequenos grupos, os territoriais do QG de Ortiz voltavam para casa,
obedecendo às ordens do general Gracieux. Os mais determinados juntaram-se
aos da Universidade. O coronel Godard circulava entre o QG de Ortiz e o
gabinete de Lagaillarde, tentando obter a rendição dos chefes da insurreição.
Por trás das barricadas, brilhavam umas fogueiras, em torno das quais aqueles
que haviam permanecido no lugar esperavam o ataque final.
Quando François teve que deixar a Casbah sem ela, Léa não conseguia
conter as lágrimas. Malika tentou consolá-la, pedindo-lhe perdão por ser a
causa de seu sofrimento.
— Cale-se e deixe-me pensar. — Disse ela bruscamente à jovem argeliana
cujos olhos, por sua vez, se encheram de lágrimas.
Por um momento, Léa se arrependeu. Desde a partida de François e de
seus companheiros, algo lhe dizia que devia sair daquele lugar o mais rápido
possível. Ela não havia gostado dos olhares que a proprietária lançava para ela.
— Você sabe se tem telefone, aqui?
Malika olhou-a, sem compreender.
— Um telefone, sabe o que é?
— Por que você está falando desse jeito comigo?
— Desculpe... acho que não estamos mais seguras neste lugar.
— Eu também tenho essa impressão. — Cochichou a garota.
Elas se olharam com a impressão de terem caído numa armadilha.
— Eu vi um telefone no cômodo de baixo. — Respondeu Malika, a meia
voz.
— Vamos! Pegue as velas.
— Deixe-me ir na frente, vou achar o caminho melhor que você.
Elas, deslizaram para fora do quarto. As pequenas chamas iluminavam
pobremente o corredor e as escadas. No terraço, uma das velas se apagou. Léa
tinha a impressão de que já fazia uma hora que haviam saído do esconderijo.
Flutuava no ar o cheiro misturado de águas servidas, de perfume muito
adocicado e de urina. Malika tropeçou num banquinho; o barulho que ele fez
quando caiu pareceu a elas ecoar por todo o prédio. Elas ficaram paradas e
prestaram atenção. Nada se mexia.
— É aqui. — Cochichou Malika.
— Estou vendo... Você sabe em que ponto de Casbah nós estamos?
— Sim, no alto do bairro, perto do Bulevar Gambetta e do Bulevar Victoire.
— Você sabe de um lugar onde um carro pudesse nos encontrar
facilmente?
Malika refletiu.
— Não sei... tem escadarias para todo lado... A não ser... sim, no bulevar
Gambetta, em baixo, perto do mercado da Lyre.
— E longe daqui?
— Não sei calcular... Uns dez minutos a pé, talvez...
Léa tirou do bolso um cartão de visitas.
— Ilumine para mim. — Disse ela.
Depois de consultar o cartão, ela tirou o aparelho do gancho. Ao terceiro
toque, uma voz atendeu.
— Queria o 330-51, por favor.
— Para quem você está ligando?
— Psiu! Fique quieta... Alô? Eu queria falar com a sra. Martel-Rodriguez...
Por favor é muito importante... Eu sei que é tarde... Diga- lhe que é Léa
Tavernier...
— Mais baixo, vão nos ouvir!
A espera pareceu durar horas.
— Alô!... Alô, Jeanne? É Léa Taverneir. Preciso da sua ajuda. Você pode vir
me buscar na Casbah?... Sim, na Casbah... Estou com uma amiga, nós
estamos correndo perigo, é preciso andar logo... Alô? Sim, atrás do mercado da
Lyre... Você estará lá todos os dias a partir de hoje, entre as dez horas e o meio-
dia? Ah, obrigada, obrigada!
— Cuidado, Léa! Estou ouvindo um barulho. Desligue!
Malika soprou as velas. Uma silhueta feminina atravessou o cômodo, com
um lampião na mão e, logo em seguida, passou de volta; uma porta se fechou.
Com o coração batendo forte, as duas mulheres, agachadas atrás de uma
cadeira de encosto alto, ficaram imóveis por um momento ainda. Léa acendeu a
vela. Na ponta dos pés, elas voltaram para o esconderijo.
De manhã, duas moças lhes trouxeram chá e doces. A mais velha, que
falava francês, interrogou Léa:
— Por que você cuidou de nossa irmã?
— Porque não havia mais ninguém para fazer isso...
— Ela é muçulmana.
— E daí? É um ser humano, como você e eu.
A testa da mulher se franziu e, voltando-se para Malika, ela falou em
árabe, fazendo gestos largos. A mais jovem também se meteu. Malika tentava
interrompê-las.
— O que elas estão dizendo? — Gritou Léa, para se fazer ouvir.
— Elas estão discutindo: Djamila, a mais velha, acha que você está
mentindo, que devem entregar você para a FLN para que eles façam você
confessar suas verdadeiras intenções. Leila, por outro lado, acha que seria
recompensar mal o seu devotamento.
— Diga-lhes para irem embora, elas estão me enchendo.
Foi com grande dificuldade que Malika conseguiu empurrá-las para fora
do quarto.
Em volta delas, a Casbah vibrava de novo com aquelas dezenas de
milhares de vidas embaralhadas pelas ruas. Desde 1945, a população não
cessara de crescer, passando de dez mil a oitenta mil habitantes.
Famílias inteiras, fugindo do bled, tinham se refugiado ali, felizes por
escapar das favelas que proliferavam, desde o começo dos "acontecimentos".
Léa e Malika dirigiam-se para o cômodo onde estava o telefone quando
distinguiram vozes de homens falando em alemão que vinham do pátio. Léa foi
se pendurar por cima da mureta para ver quem era, mas sentiu sua
companheira agarrar na sua roupa. Léa virou-se e mal teve tempo de ampará-la
na queda.
Ajoelhou-se ao lado de Malika e sacudiu-a sem muita gentileza:
— Não é hora para desmaiar!... Leila, venha me ajudar!
A menina pôs um dedo nos lábios e depois cochichou algumas palavras em
árabe.
— Fale francês, eu não compreendo.
— Pára-quedistas procurar Malika. — Articulou ela.
De um salto, Léa levantou-se, deu uma olhada por cima da mureta e
percebeu três paraquedistas conversando com a ajudante da proprietária.
"Malika está voltando a si", constatou ela depois que recuou da mureta.
Quando levantou o rosto, a jovem argeliana derramou-se em lágrimas.
— Eles estão aqui!
— Não tenha medo... Levante-se! Leila vai nos ajudar a sair daqui... Oh!
Djamila!
Quando a viu, Leila pôs-se a tremer e colocou o braço diante do rosto como
uma criança que tenta se proteger das pancadas.
— Não vou bater em você, idiota! Vá pegar uns liaïks. Depressa!... Não
chore mais, minha querida, eles não vão pegar você. Mandei avisar Al-Alem e
ele vai vir com seus garotos.
Leila reapareceu trazendo as roupas brancas.
— Vocês vestem depois. Depressa! — Comandou Djamila, agarrando a mão
de Malika.
Pelos terraços, as quatro mulheres passaram de uma casa a outra,
percorrendo corredores e escadarias.
Atrás delas, outras mulheres logo derrubavam seus cofres, esvaziando o
conteúdo de caixas, colocando o maior número possível de obstáculos no
caminho de eventuais perseguidores.
— Agora enfiem os haïks. — Ordenou Djamila, ajustando ela própria o seu.
Malika ajudou Léa a se enrolar corretamente com o tecido e ajeitou um
lenço bordado sob os olhos da francesa. Djamila empurrou uma porta, saiu e
assegurou-se de que o caminho estava livre.
— Vão! — Encorajou-as.
Léa e Malika encontraram-Se em frente a uma escola, numa rua bem
larga.
— Acho que o mercado da Lyre não está longe. — Calculou a argeliana.
Muita gente passava pelo Bulevar Gambetta. Um bando de garotos
maltrapilhos rodeou-as. No meio deles Léa reconheceu Al-Alem. Elas desceram
alguns degraus. Atrás delas, uns gritos ressoaram; os garotos ficaram imóveis.
— Rápido! Corram! — Esgoelou-se Al-Alem.
A pouca velocidade, um Versailles cinza, conduzido por um muçulmano,
chegava pela Rua Henri-Martin.
Sentada no banco de trás, a sra. Martel-Rodriguez olhava firme para os
pedestres. Léa avistou-a e arrancou o lenço que disfarçava seu rosto. O
Versailles parou, uma porta se abriu. Léa empurrou Malika para dentro do
carro e entrou logo depois. O carro virou diante do Opéra, atravessou a praça
Bresson, pegou a Rua Garibaldi com uma certa velocidade, entrou no Bulevar
Carnot. Nesse momento, os paraquedistas desembocavam diante do mercado
da Lyre.
Os garotos que haviam retardado a perseguição espalharam-se pelas ruas
próximas.
— Obrigada. — Disse simplesmente Léa, encostando a cabeça no ombro de
Jeanne Martel-Rodriguez.
Naquela manhã de domingo, os sinos das igrejas de Argel chamavam os
fiéis para a missa. Nuvens escuras cobriam o céu, um vento frio soprava. No
campo entrincheirado, apesar da proibição publicada por monsenhor Duval,
um altar de improviso havia sido montado para o ofício dominical. A Rádio
Ortiz e a Rádio Legaillarde incitavam os europeus a vir defender os insurretos.
De Belcourt a Bab el-Oued, os argelianos acorriam, mas se chocavam com as
tropas, recentemente chegadas a Argel, que tinham sido dispostas ao redor do
campo entrincheirado, isolado por barreiras de soldados e de veículos militares.
Apesar disso, algumas foram rompidas e a multidão juntou-se aos
rebeldes.
As onze horas, a missa rezada na igreja Saint-Élisabeth e retransmitida
pelo rádio foi difundida através dos alto-falantes do campo entrincheirado
Desafiando a proibição do arcebispo, um padre kabyle, o abade Georges
Dhamar, vigário da Igreja Saint- Martin, veio dar a comunhão. Essas mulheres
e esses homens, unidos pela defesa da Argélia francesa, rezaram e entoaram
cânticos. Joseph Ortiz, de terno escuro, estava recolhido junto à barricada onde
se erguia o altar.
Uma forte explosão dispersou a multidão que achou que era o começo do
ataque. Logo, por trás das barricadas, os insurrectos apontavam as armas para
a tropa. Se um só tiro fosse disparado, seria uma matança. Gesticulando no
balcão para onde tinha ido, Ortiz discursava para os partidários:
— Mantenham o sangue-frio. A FLN acaba de explodir um obus capturado.
Dois soldados franceses foram assassinados. Permaneçam unidos, militares e
civis, nossa união é a melhor proteção contra a FLN!
Nas escadarias da Rua Jean-Macé, um soldado, da Martinica, havia de
fato provocado a explosão das granadas que transportava, matando três de
seus companheiros e ferindo sete pessoas.
No começo da tarde, enquanto prosseguiam as negociações entre os chefes
da rebelião e os coronéis Dufour, Broizat e Godard, a população européia de
Argel vinha de todas as partes, forçando as barreiras montadas pelos soldados,
que desta vez agüentaram. Soube-se que o general Gracieux fora afastado de
suas funções e substituído pelo general Toulouse, ajudante de Crépin.
Sob a ordem de seus oficiais, os territoriais deixaram o QG de Ortiz e
começaram a entrar nos caminhões que esperavam por eles na Rua Charras.
Brigas cada vez mais violentas estouravam por toda a parte, entre
manifestantes e forças da ordem; recolhiam-se os feridos. Algumas centenas de
jovens conseguiram, apesar de tudo, juntar-se às barricadas. As grades, diante
do monumento aos mortos, cederam sob a pressão da multidão que o batalhão
de caça dos Alpes tentava rechaçar. Uma chuva fina começou a cair. O moral
de todos estava muito baixo e todos repetiam as instruções de Paris: acabar
logo com aquilo, se necessário recorrendo às armas. A Rádio Argel lançou então
um apelo aos rebeldes:
"Alguns rebeldes alimentam a ilusão de que uma parte do exército do bled
está pronta a se unir a eles. Isso é, saibam todos, um completo erro. Esse
exército, o exército de vocês, que defende os franceses da Argélia e da
metrópole, os muçulmanos e os europeus, perdeu ontem trinta e um mortos e
trinta e quatro feridos cujo destino teria sido diferente se as forças da ordem
não estivessem, neste momento, montando guarda diante de seus irmãos
inconscientes."
Ao redor de Ortiz, todos debandavam. Suas tropas abandonavam os locais
da Companhia argeliana, deixando atrás de si grandes estragos e todos os tipos
de detritos. Informado, Lagaillarde exigiu daqueles que desejavam abandonar o
"reduto das faculdades" uma atitude digna. Às dezoito e dez, com a bandeira
levantada e em fila de três, quarenta e um territoriais deixaram o bastião, logo
seguidos por outros sessenta. Eram dezoito e vinte e cinco no relógio do correio
e fazia uma semana que os franceses haviam se matado em Argel. A noite
estava escura. Às dezenove horas, os arredores do campo entrincheirado se
despovoavam pouco a pouco. A partir de então, tudo aconteceu muito rápido.
O general Crépin deu ordem para cortar a eletricidade do campo
entrincheirado, onde brilhavam apenas uns braseiros. Uma última reunião
aconteceu às duas horas da manhã no gabinete de Ortiz, na Companhia
argeliana. Nela, o coronel Dufour informou a Lagaillarde, ao tenente Guy Forzy,
a Jean-Jacques Susini e a Joseph Ortiz das disposições acertadas. Esses
homens, esgotados pelos dias sem repouso e pelas noites sem dormir
iluminados por velas enfiadas em garrafas, escutavam a voz rouca do coronel.
— No fundo, vocês ganharam: de Gaulle prometeu que no haveria
negociações políticas com a FLN. Nossas pessoas não importam mais, nossos
sentimentos pessoais também não, mas é preciso preservar a unidade do
exército. Eis o que eu decidi: seus homens ficarão livres, sairão um por um e
com as armas. Serão levados para os caminhões e desarmados em seguida pelo
exército. Eles poderão ir se juntar às famílias ou engajar-se em meu regimento.
São exigências muito razoáveis. Quanto a vocês, Ortiz e Lagaillarde, vocês
ficarão à disposição do Governo.
Com os olhos brilhantes de lágrimas, Lagaillarde pediu para conversar
com os homens que comandava e voltou para a universidade em companhia de
Forzy. Uma hora mais tarde, ele comunicava uma decisão ao coronel Dufour.
— A primeira condição exigida para nossa rendição é que ela se efetue em
condições honrosas. Sairemos do campo em formações constituídas por
companhia e por arma. Vamos nos reunir diante do monumento aos mortos
para uma rápida cerimônia. Em seguida, os que quiserem poderão se engajar
numa formação especial ligada ao 1 regimento de paraquedistas estrangeiros.
Exijo imunidade para todos os meus homens.
O coronel Dufour voltou à Universidade às três horas da madrugada,
trazendo a resposta do general e do comandante em chefe: a imunidade tinha
sido recusada aos chefes, que deveriam se pôr à disposição da justiça; a
cerimônia no monumento dos mortos estava proibida; a contra-gosto foram
aceitos apenas a saída em formação e o engajamento facultativo no 1 REP.
Nas primeiras horas da manhã, Ortiz deixou o campo entrincheirado.
Incrédulos, os territoriais de boina preta que guardavam a barricada da rua
Charles-Péguy, viram-no se afastar, com uma mala grande na mão.
Os soldados, encarregados de impedir o acesso ao campo, deixaram passar
todos que queriam sair.
Ninguém em Argel, iria rever o sr. Jo.
Esgotado, Pierre Lagaillarde havia dormido, velado por uns últimos
companheiros fiéis que tinham jurado preferir morrer a se render. O mais
determinado deles era seu amigo Guy Forzy. Ao acordar, sabendo da partida de
Ortiz, Lagaillarde foi ao gabinete que o chefe da Frente Nacional Francesa
ocupara para destruir alguns documentos. Ele saiu no famoso balcão: o
Bulevar Laferrière parecia um campo de batalha deserto; nos telhados, os
postos de tiro haviam sido abandonados e todas as ruas que davam no bulevar
estavam agora fechadas com arame farpado e caminhões atrás dos quais havia
soldados, prontos a intervir. De repente, em frente ao prédio do Bled, jorrava
dos alto-falantes a música alegre da Ponte sobre o rio Kzvni. Sob o balcão,
estavam jovens militantes da FNF e um punhado de territoriais que não tinham
querido evacuar a barricada Hernandez. Reconhecendo Lagaillarde eles o
aclamaram.
— O que vamos fazer? — Gritou ele.
— Vamos ficar.
— Calma! Disciplina! Sou eu quem comanda! Vocês obedecem a ordens!
Apesar do esgotamento e da amargura, Pierre Lagaillarde voltou para a
faculdade com um passo decidido.
A pequena tropa que o seguia, marchava, sem perceber, no ritmo
assobiado pelos homens do coronel Nicholson...
Os recém-chegados foram recebidos por Jean-Jacques Susini, o dr. Pérez,
o capitão Ronda e o deputado Demarquet; eles também haviam ido para o
"Alcazar".
As nuvens haviam desaparecido e um sol primaveril iluminava o desastre.
Soldados e jovens começavam a demolir a barricada da Rua CharlesPéguy.
Para lá das barreiras que os militares sustentavam, a multidão se comprimia.
Diante do Otomatic, Lagailiarde, de metralhadora cruzada no peito, passava
suas tropas em revista pela última vez. Sob a boina vermelha, sua fisionomia
cansada e seu rosto tenso traíam seu sofrimento. Frente a seus homens, ele
declarou:
— Nós podemos nos olhar nos olhos porque nossa consciência está
tranqüila. É no meio da noite que se deve acreditar na luz. Lembrem-se,
senhores, dos versos de Milton:
Inúmeras legiões urinadas ousavam contestar seu reino,
E preferir, num combate duvidoso nas planícies do céu.
Que importa! Batalha perdida, nada está jamais perdido!
A vontade indomável que jamais morre nem se submete...
— Até agora, eu os conduzi no caminho da honra.
Hoje, a honra é ser digno e obedecer a mim.
Chegou o momento de nos separarmos.
Adeus, meus amigos.
Os olhos dos homens estavam vermelhos. O coronel Dufour avançou,
saudou Lagaillarde e tomou por sua vez a palavra.
— Vocês obtiveram a condição de soldados e serão tratados como
soldados. Somente serão perseguidos aqueles que atiraram nas forças da
ordem, no domingo, porque esses são assassinos. Caminhões esperam vocês na
saída do campo para levá-los a um centro da legião. Peço que não façam
nenhuma manifestação enquanto estiverem sendo levados a Zéralda, base do 1
REP. Os outros, os que preferem voltar para casa, podem fazê-lo. Que
deponham suas armas. Deverão entregá-las aos soldados, aos legionários.
— Companhia! Coluna de dois! Comandou Lagaillarde, assumindo a chefia
de suas tropas.
Escoltados pela bandeira tricolor, os homens se puseram em marcha na
direção da grande barricada, no momento, parcialmente derrubada. Os
habitantes da Rua Charles-Péguy choravam aplaudindo. Os ex- rebeldes
atravessaram a barricada diante da qual os paraquedistas apresentavam
armas. Por sua vez, os oficiais em posição de sentido saudaram aqueles que,
durante uma semana, haviam se mobilizado pela defesa da Argélia francesa.
Nas janelas, as pessoas agitavam bandeiras; algumas gritavam: "Obrigado,
Lagaillarde!"
Eles chegaram ao Bulevar Laferrière onde os veículos do exército os
esperavam. Um homem, usando uniforme de capitão da reserva, exibindo no
peito a Legião de Honra, medalha militar e cruz de guerra, aproximou-se de
Lagaillarde e abraçou-o.
— Muito bem, meu filho, muito bem, Pierrot. Até logo!
O pai, que tinha permanecido ao lado do filho durante toda a semana, no
campo entrincheirado, subiu por sua vez num caminhão que partiu pouco
depois. Um jipe veio parar perto de Lagaillarde e um oficial abriu- lhe a porta.
— Viva Lagaillarde! Viva a Argélia francesa! Abaixo de Gaulle! — Gritava a
multidão reunida nas redondezas.
Parecendo mais um grito de raiva, a Marselhesa explodiu. Perto de
François Tavernier, Joseph Benguigui, que também não podia mais conter as
lágrimas, pôs o braço nos ombros de um velho combatente; o velho soldado
soluçava sem se conter. Um muçulmano de certa idade, perto de François,
puxou-o pela manga.
— Você é o sr. Tavernier?
François fez que sim com a cabeça.
— Tenho uma mensagem para você. — Anunciou ele, passando-lhe uma
folha de papel dobrada em quatro.
Os últimos acordes da Marselhesa extinguiram-se; o sol brilhava. Com o
rosto tomado pela barba, as roupas amarrotadas, François desdobrou o papel.
Reconhecendo a letra, sua vista se turvou.
— Leia. — Pediu ele a Joseph, estendendo-lhe o bilhete.
Meu amor,
Estou com Malika; estamos sãs e salvas. A pessoa que entregou o bilhete
vai conduzi-lo ao lugar onde nos encontramos. Não tenha medo, não é uma
cilada. Você se lembra da argeliana que conheci no Albert? Estamos na casa
dela. Estou esperando! Venha logo! Te amo, Léa.
Régine Deforges
O melhor da literatura para todos os gostos e idades