Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CIDADE DAS SOMBRAS / Jeanne DuPrau
A CIDADE DAS SOMBRAS / Jeanne DuPrau

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CIDADE DAS SOMBRAS

 

                               AS INSTRUÇÕES

Quando a cidade de Ember acabou de ser construída e ainda não era habitada, o mestre-de-obras e o assistente, ambos cansados, sentaram-se para falar do futuro.

— Não devem sair da cidade pelo menos durante duzentos anos — disse o mestre-de-obras. — Ou talvez duzentos e vinte.

— Será tempo suficiente? — perguntou o seu assistente.

— Deve ser. Não é possível saber com certeza.

— E quando chegar o momento — disse o assistente —, como é que as pessoas saberão o que fazer?

— Forneceremos instruções, é claro — respondeu o mestre-de-obras.

— Mas quem guardará as instruções? Em quem podemos confiar para mantê-las seguras e em segredo durante todo esse tempo?

— O presidente da cidade guardará as instruções — disse o mestre-de-obras. — Vamos pô-las numa caixa com um fecho de abertura controlada por um relógio, regulado para se abrir na data certa.

— E diremos ao presidente o que está na caixa? — perguntou o assistente.

— Não, apenas que se trata de uma informação de que eles não necessitarão e que não devem ver até a caixa se abrir por si própria.

— Então, o primeiro presidente passará a caixa ao seguinte e esse ao seu sucessor e assim por diante ao longo dos anos, e todos eles manterão segredo, durante todo esse tempo?

— O que mais podemos fazer? — perguntou o mestre-de-obras. — Não há certezas neste empreendimento. Talvez nessa altura já não exista ninguém na cidade, nem qualquer lugar seguro para regressar.

Assim, a caixa foi entregue à primeira presidente de Ember com a recomendação de que a guardasse com muito cuidado e ela jurou solenemente não revelar o segredo. Quando envelheceu e chegou o momento de deixar o seu cargo, explicou o caso da caixa ao seu sucessor, que também guardou o segredo cuidadosa­mente, assim como o presidente seguinte. Tudo correu como planejado durante muitos anos. Mas o sétimo presidente de Em­ber era menos honrado do que os seus antecessores e encontrava-se numa situação desesperada. Estava doente — tinha a doença da tosse, que era comum então na cidade — e pensou que talvez a caixa contivesse o segredo que lhe salvaria a vida. Tirou-a do seu esconderijo na cave da Câmara de Reuniões e levou-a para casa, onde se atirou a ela com um martelo.

Mas já lhe faltavam as forças. Só conseguiu amassar um pouco a tampa. E, antes de voltar a pôr a caixa no seu esconderijo se­creto ou falar dela ao seu sucessor, morreu. A caixa acabou num armário, enfurnada por trás de alguns velhos sacos e trouxas de roupa. Ali ficou, sem que ninguém reparasse nela, ano após ano, até chegar o seu momento e a fechadura se abrir silenciosamente.

 

                             DIA DA ATRIBUIÇÃO DE SERVIÇO

Na cidade de Ember, o céu estava sempre escuro. A única luz provinha de grandes focos montados nos edifícios e no topo dos postes no meio das praças maiores. Quando as luzes estavam acesas, projetavam um clarão amarelado sobre as ruas; as pessoas que passavam debaixo delas lançavam nos passeios som­bras compridas, que se encurtavam e alongavam de novo. Quan­do as luzes estavam apagadas, entre as nove da noite e as seis da manhã, a cidade ficava tão escura que era como se as pessoas andassem com vendas nos olhos.

Por vezes, ficava escuro no meio do dia. A cidade de Ember era velha e tudo o que existia nela, incluindo as linhas de eletricidade, estava precisando de conserto. Por isso, de vez em quando as luzes tremeluziam e se apagavam. Para os habitantes de Ember, esses momentos eram terríveis. Ao pararem no meio da rua ou ficarem imóveis como estátuas nas suas casas, com medo de se moverem nas trevas absolutas, recordavam de algo que preferiam não pensar: que, um dia, as luzes da cidade poderiam se apagar e nunca mais voltar a acender.

Mas na maior parte do tempo a vida prosseguia como sempre. As pessoas crescidas trabalhavam e os mais novos, até atingirem a idade de doze anos, iam à escola. No último dia do seu último ano, que se chamava Dia da Atribuição de Serviço, eram-lhes atribuídos trabalhos.

Os alunos finalistas ocupavam a Sala Oito da Escola de Ember. No Dia da Atribuição de Serviço, no ano 241, esta sala, normal­mente bastante ruidosa logo de manhã, estava mergulhada em silêncio. Os vinte e quatro alunos estavam todos sentados muito direitos e quietos nas carteiras, que já eram pequenas demais para eles. Esperavam.

As carteiras estavam dispostas em quatro filas de seis, umas atrás das outras. Na última fila estava sentada uma menina magra que se chamava Lina Mayfleet. Enrolava uma madeixa do seu cabelo escuro e comprido em volta do dedo, enrolava e desen­rolava, uma e outra vez. Por vezes arrancava um fio da sua capa esfarrapada ou abaixava-se para puxar as meias, que tinham perdido o elástico e teimavam em escorregar para os tornozelos. Batia com um dos pés no chão, discretamente.

Na segunda fila encontrava-se um menino chamado Doon Har­row. Estava sentado com as costas curvadas, os olhos bem fechados, se concentrando, e as mãos juntas com força. Seu cabelo parecia desgrenhado, como se já não o penteasse há uns tempos. Tinha sobrancelhas escuras e grossas, que normalmente lhe davam um ar sério, e, quando ele estava ansioso ou zangado, se uniam, formando um traço contínuo por cima dos olhos. O seu casaco de bombazina castanha era tão velho que mal se via o cane­lado.

Tanto a menina como o menino estavam formulando desejos ur­gentes. O desejo do Doon era muito específico. Repetia-o uma e outra vez, mexendo os lábios ligeiramente, como se, dizendo-o mil vezes, pudesse torná-lo realidade. Lina não estava formulando seu desejo em palavras, mas em imagens. Via-se correndo pelas ruas da cidade com um casaco vermelho. Tentava tornar esta imagem tão viva e real quanto possível.

Lina ergueu os olhos e olhou à sua volta. Despediu-se silenciosamente de tudo o que lhe era familiar há tanto tempo. Adeus à planta da cidade de Ember na sua moldura de madeira cheia de marcas e ao armário em cujas prateleiras estavam O Livro dos Números, O Livro das Letras e O Livro da Cidade de Ember. Adeus às gavetas do armário etiquetadas «Papel Novo» e «Papel Velho». Adeus aos três candeeiros no teto, que, onde quer que uma pessoa estivesse sentada, pareciam sempre lançar a sombra da cabeça sobre o papel em que se estava escrevendo. E adeus à professora, a Srta. Thorn, que tinha terminado o seu discurso do Último Dia na Escola, desejando-lhes sorte na vida que esta­vam prestes a iniciar. Agora, como já não tinha mais o que dizer, estava de pé junto à sua mesa, com o xale esfiapado em volta dos ombros. E o presidente, o convidado de honra, não tinha chegado ainda.

Alguém arrastou o pé no chão para trás e para a frente. A Srta. Thorn suspirou. Depois, a porta se abriu com um rangido e o presidente entrou na sala. Parecia aborrecido, como se os alunos é que tivessem chegado tarde.

— Bem-vindo, Senhor Presidente Cole — disse a Srta. Thorn. Estendeu-lhe a mão.

O presidente sorriu.

— Srta. Thorn — disse, envolvendo a mão dela nas suas. — Saudações. Mais um ano.

O presidente era um homem enorme e muito pesado, e tinha uma barriga tão grande que os braços pareciam uns apêndices pequenos balançando ao lado do corpo. Numa das mãos trazia um saquinho de pano.

Avançou com passos pesados para a parte da frente da sala e olhou para os alunos. O seu rosto cinzento e balofo parecia ser revestido por algo mais rígido do que pele normal; raramente mostrava animação, além de um sorriso, que trazia agora afivelado.

— Jovens da Classe mais Avançada — começou o presidente. Interrompeu-se e esquadrinhou a sala durante algum tempo; o seu olhar parecia vir de um ponto muito lá atrás, dentro da sua cabeça. Acenou lentamente com a cabeça. — Hoje é o Dia da Atribuição de Serviço, não é? É. Primeiro, acabamos os es­tudos. Em seguida, servimos a nossa cidade — mais uma vez passou um olhar pelas filas de alunos e mais uma vez acenou com a cabeça, como se alguém tivesse confirmado o que ele acabara de dizer. Pôs o saquinho em cima da mesa da Srta. Thorn e pousou a mão em cima. — E que serviço será, heim? Talvez cada um esteja fazendo essa pergunta a si mesmo — sorriu mais uma vez e as suas grandes bochechas dobraram-se como cor­tinados.

As mãos de Lina estavam frias. Aconchegou a capa aos ombros e meteu as mãos entre os joelhos. Por favor apresse-se, Senhor Presidente, pediu mentalmente. Por favor, deixe-nos escolher e acabar com isto de uma vez.

Doon estava pensando a mesma coisa, mas não pedia por favor.

— Algo a não se esquecer — disse o presidente, erguendo um dedo. — O emprego que lhes será atribuído hoje será por três anos. Em seguida virá a Avaliação. Desempenham bem o trabalho? Ótimo. Podem continuar a fazê-lo. Desempenham-no insatisfatoriamente? Há uma necessidade maior noutro local? Serão deslocados. É extremamente importante — disse ele, apontando para os alunos — que todo... o trabalho... de Ember... seja realizado. Seja realizado em condições.

Pegou o saquinho e desatou os cordões.

— Muito bem. Vamos começar então. Um processo simples. Vem um de cada vez. Coloca a mão no saco. Tira um papel. Lê-o em voz alta — sorriu e acenou com a cabeça. O seu queixo duplo avançou e recuou — Quem quer ser o primeiro?

Ninguém se mexeu. Lina fitou o tampo da sua carteira. Houve um longo silêncio. Depois, Lizzie Bisco, uma das me­lhores amigas de Lina, pôs-se de pé.

— Eu gostaria de ser a primeira — disse na sua voz ofegante e aguda.

— Muito bem. Avance.

Lizzie foi para junto do presidente. Devido ao seu cabelo ruivo, parecia uma faísca brilhante ao lado dele.

— Agora escolha — disse o presidente, estendendo a mão com o saco aberto e pondo a outra mão atrás das costas, como se quisesse mostrar que não interferiria no processo.

Lizzie colocou a mão no saco e tirou um quadradinho de papel muito bem dobrado. Desdobrou-o cuidadosamente. Lina não conseguia ver a expressão do rosto de Lizzie, mas ouviu o tom decepcionado da sua voz quando ela leu em voz alta:

— Funcionária do Depósito de Abastecimento.

— Muito bem — disse o presidente. — Um emprego de importância vital.

Lizzie voltou desconsolada para o seu lugar. Lina sorriu-lhe, mas ela respondeu com uma careta de azedume. Fun­cionária do Depósito de Abastecimento não podia ser considerado um mau emprego, mas era bastante monótono. A funcionária do Depósito de Abastecimento ficava sentada num balcão comprido, recebia encomendas dos lojistas de Ember e mandava buscar tudo o que era necessário na vasta rede de armazéns por baixo das ruas de Ember. Nos armazéns havia produtos de todos os tipos — comida enlatada, peças de vestuário, cobertores, lâm­padas, medicamentos, tachos e panelas, resmas de papel, sabão, mais lâmpadas —, tudo aquilo de que os habitantes de Ember pudessem necessitar. Os funcionários ficavam sentados com os seus livros-razão à frente deles todo o dia, regis­trando as encomendas que chegavam e os produtos que saíam. Lizzie não gostava de ficar parada; um outro trabalho seria mais adequado para ela, pensou Lina — mensageira, talvez, o emprego que Lina pretendia. Os mensageiros corriam pela cidade todo o dia, iam a todos os lados, viam tudo.

— O seguinte — disse o presidente.

Desta vez, levantaram-se duas pessoas ao mesmo tempo, Orly Gordon e Chet Noam. Orly sentou-se logo outra vez e Chet aproximou-se do presidente.

— Escolha, jovem — disse o presidente.

Chet escolheu. Desdobrou o seu papel.

— Ajudante de eletricista — leu, e o seu rosto abriu-se num sorriso. Lina ouviu alguém inspirar rapidamente. Quando olhou para Doon, viu-o cobrindo a boca com a mão.

Nunca se sabia que trabalhos estariam vagos em cada ano. Em alguns anos havia vários trabalhos bons, como ajudante das es­tufas, assistente de guardião do tempo ou mensageiro, e nenhum trabalho ruim. Noutros anos encontravam-se uma mistura de em­pregos tais como trabalhador do Sistema de Canalizações, separador de lixos e raspador de bolor. Mas havia sempre pelo menos uma ou duas vagas de assistente de eletricista. Resolver pro­blemas de eletricidade era o trabalho mais importante em Ember e um número maior de pessoas trabalhava nesse setor do que em qualquer outro.

Orly Gordon foi a seguinte. Ficou com o trabalho de as­sistente de reparações de construções, que era um bom emprego para ela. Ela era uma menina forte e gostava de trabalhos pesados. Vindie Chance ia ser ajudante de estufas. Ao voltar ao seu lugar, deu um sorriso rasgado à Lina. Vai trabalhar com a Clary, pensou Lina. Que sorte! Até então, ninguém recebera um trabalho ruim mesmo. Talvez este ano não houvesse nenhum trabalho ruim.

Esta idéia animou-a. Além disso, tinha chegado a um ponto em que a expectativa estava lhe dando dor de estômago. Por isso, quando Vindie se sentou — ainda antes do presi­dente dizer: «O seguinte!» —, Lina levantou-se e avançou.

O saquinho era de um tecido verde desbotado, com um cordão preto para fechá-lo. Lina hesitou por uns instantes e depois meteu a mão dentro do saco e roçou os dedos pelos papelinhos. Sentindo-se como se estivesse para pular de um prédio alto, pegou num papel.

Desdobrou-o. As palavras estavam escritas em tinta preta, em maiúsculas pequenas e cuidadas. TRABALHADORA DO SISTEMA DE CANALIZAÇÕES, era o que dizia. Ela fitou aquelas palavras.

— Em voz alta, por favor — disse o presidente.

— Trabalhadora do sistema de canalizações — disse Lina num murmúrio sufocado.

— Mais alto — disse o presidente.

— Trabalhadora do sistema de canalizações — disse Lina mais uma vez, em voz alta e embargada.

Na sala ouviram-se suspiros de pena. Com os olhos pregados no chão, Lina voltou para o seu lugar e sentou-se.

Os trabalhadores do sistema de canalizações trabalhavam por baixo dos armazéns, no labirinto subterrâneo de túneis onde se situavam os canos de água e dos esgotos de Ember. Passavam o dia consertando vazamentos e substituindo juntas de canos. Os trabalha­dores se molhavam e passavam frio; podia até ser perigoso. Um rio subterrâneo com uma corrente forte passava pelo Sistema de Canalizações e, de vez em quando, alguém caía nele e desapa­recia. Ocasionalmente, as pessoas também se perdiam nos túneis, quando se afastavam demais.

Desolada, Lina fitou a letra B que alguém tinha gravado no tampo da sua carteira há muito tempo. Qualquer outra coisa teria sido preferível a trabalhadora no Sistema de Canalizações. Aju­dante das estufas era a sua segunda escolha. Pôs-se a imaginar com desânimo o ar quente e o cheiro de terra das estufas, onde poderia ter trabalhado com Clary, a gerente das estufas, alguém que ela conhecia desde sempre. Também teria lhe agradado ser assistente médica, colocando ataduras em ferimentos e ossos quebrados. Até mesmo varredora de ruas ou puxadora de carroças teriam sido melhor. Pelo menos assim poderia ficar na superfície, com espaço e pessoas à sua volta. Pensou que trabalhar no Sistema de Canalizações devia ser como estar enterrada viva.

Um a um, os outros alunos foram escolhendo os seus em­pregos. Nenhum ficou com um emprego tão horrível quanto o de Lina. Por fim, a última pessoa levantou-se de seu lugar e dirigiu-se para a frente da sala.

Era Doon. Tinha as sobrancelhas escuras franzidas, numa expressão de grande concentração. As mãos estavam fechadas em punho ao lado do corpo, viu Lina.

Doon meteu a mão no saco e tirou o último papelinho. Fez uma pausa, agarrando-o com força.

— Vamos lá — disse o presidente. — Leia.

Desdobrando o papel, Doon leu:

— Mensageiro — e franziu a testa, amarfanhou o papel e atirou-o no chão.

Lina respirou fundo; toda a turma se mexeu no lugar, com a surpresa. Porque é que alguém ficaria zangado por ter tirado o emprego de mensageiro?

— Mau comportamento! — berrou o presidente. Com os olhos esbugalhados e uma expressão ameaçadora disse: — Vá para o teu lugar imediatamente.

Doon deu um pontapé no papel amarrotado, atirando-o para um canto. Em seguida foi em dois passos para a sua car­teira e atirou-se no assento.

O presidente inspirou e piscou os olhos, furioso.

— Uma vergonha — disse, olhando com severidade para Doon. — Uma exibição infantil de mau-humor! Os estudantes deveriam ficar contentes por trabalharem para a sua cidade. Em­ber prosperará se todos os cidadãos... fizerem... o seu... me­lhor — enquanto falava, de dedo em riste, percorria lentamente com os olhos os rostos dos alunos.

Subitamente, Doon falou.

— Mas Ember não está prosperando! — gritou. — Tudo está cada vez pior!

— Silêncio! — berrou o presidente.

— Os cortes de energia! — gritou Doon. Saltou do seu lugar. — Agora, a luz anda sempre falhando! E a falta de produtos, há falta de tudo! Se alguém não fizer alguma coisa, vai acontecer algo terrível!

Lina escutava-o com o coração batendo com força. O que estava acontecendo com Doon? Porque é que ele parecia tão incomo­dado? Estava levando as coisas a sério demais, como sempre.

A Srta. Thorn dirigiu-se ao lugar de Doon e pôs-lhe a mão no ombro.

— Agora sente-se — disse em voz baixa. Mas Doon ficou de pé.

O presidente parecia furioso. Durante uns momentos não disse nada. Depois sorriu, mostrando uma fila muito reta de dentes cinzentos.

— Srta. Thorn — disse. — E quem afinal é este jovem?

— Sou Doon Harrow — disse Doon.

— Não o esquecerei — disse o presidente.

Olhou longamente para Doon e depois voltou-se para a turma e sorriu mais uma vez.

— Parabéns a todos — disse. — Bem-vindos à força de trabalho de Ember. Srta. Thorn. Turma. Obrigado.

O presidente cumprimentou a Srta. Thorn e foi em­bora. Os alunos pegaram seus casacos e bonés e saíram da sala em fila. Lina percorreu o Átrio Largo com Lizzie, que disse:

— Pobre de você! Eu pensei que tinha ficado com um trabalho ruim, mas o seu é o pior. Sinto-me cheia de sorte, comparada contigo.

À porta da escola, Lizzie despediu-se e foi embora correndo, como se a má sorte de Lina fosse uma doença que ela pudesse pegar.

Lina deixou-se ficar na escada durante uns momentos, olhando para a Praça Harken, onde as pessoas passavam apressadas, entrouxadas nos seus casacos e xales, ou falavam umas com as outras nos círculos de luz junto aos enormes lampiões. Um rapaz com um casaco vermelho de mensageiro corria em direção à Câmara de Reuniões. Na Rua Otterwill, um homem puxava uma carroça cheia de sacos de batatas. E nos edifícios em toda a volta da praça, filas de janelas iluminadas brilhavam com um brilho amarelo e dourado.

Lina suspirou. Era aqui que ela queria estar, aqui em cima, onde tudo acontecia, não debaixo do solo.

Alguém bateu em seu ombro. Sobressaltada, voltou-se e viu Doon atrás de si. O seu rosto magro parecia pálido.

— Troca comigo? — pediu ele.

— Trocar?

— Sim, trocar de emprego. Não quero perder o meu tempo sendo mensageiro. Quero ajudar a salvar a cidade, não andar em corridinhas transmitindo fofocas.

Lina estava boquiaberta.

— Prefere trabalhar no Sistema de Canalizações?

— O que eu queria era ser ajudante de eletricista — disse Doon. — Mas o Chet não troca, claro. O trabalho no Sistema de Canalizações é o segundo melhor.

— Mas por quê?

— Porque o gerador está no Sistema de Canalizações — disse Doon.

Lina sabia do gerador, evidentemente. De uma forma misteriosa, transformava a corrente do rio em energia para a ci­dade. Ouvia-se o seu ressoar surdo quando se estava na Praça Plummer.

— Preciso ver o gerador — disse Doon. — Tenho... tenho algumas idéias quanto ao assunto — enfiou as mãos nos bolsos. — Então — disse —, troca comigo?

— Sim! — gritou Lina. — Ser mensageira é tudo que eu mais quero!

E não era de modo algum um trabalho inútil, na sua opinião. Não se podia esperar que as pessoas atravessassem meia cidade cada vez que queriam se comunicar com alguém. Os mensageiros estabeleciam ligações entre as pessoas. De qualquer forma, quer fosse importante ou não, o trabalho de mensageira era, por acaso, o ideal para Lina. Ela adorava correr. Podia correr para sempre. E adorava explorar todos os cantos e esquinas da cidade, que era o que um mensageiro fazia.

— Então está bem — disse Doon.

Entregou-lhe seu papel amarrotado, que devia ter ido apanhar no canto da sala. Lina meteu a mão no bolso, tirou o seu papel e entregou-o.

— Obrigado — disse ele.

— De nada — disse Lina.

Foi invadida por uma onda de felicidade, e a felicidade dava-lhe sempre vontade de correr. Desceu os degraus de três em três e correu pela Rua Broad em direção a sua casa.

 

                         UMA MENSAGEM PARA O PRESIDENTE

Muitas vezes, Lina ia da escola para casa por caminhos diferentes. Por vezes, só para variar, dava a volta na Praça Sparkswallow ou ia até mais acima, passando pelas lojas de conserto de calçados na Rua Liverie. Mas hoje tomou o caminho mais curto, porque estava ansiosa para chegar em casa e contar as suas novidades.

Corria depressa e sem problemas pelas ruas de Ember. Todas as esquinas, todos os becos, todos os edifícios lhe eram fami­liares. Sabia sempre onde se encontrava, embora a maior parte das ruas tivesse mais ou menos a mesma aparência. Todas eram ladeadas por velhos prédios de pedra de dois andares, cujas janelas e portas não eram pintadas há muito tempo. No térreo havia lojas; por cima das lojas encontravam-se os aparta­mentos onde viviam as pessoas. Todos os prédios, no local de junção da parede e do telhado, estavam equipados com uma fila de focos — grandes candeeiros em forma de cone que lançavam um forte clarão amarelo.

Paredes de pedra, janelas iluminadas, formas entrouxadas de pessoas agasalhadas — Lina passava por elas voando. Sentia uma imensa força nas suas pernas delgadas, como se fossem a madeira de um arco, flexível e elástica. Dardejava por entre os obstá­culos — peças de mobiliário quebradas, deixadas na rua em mon­tes para os lixeiros, fogões e frigoríficos que já não tinham conserto, vendedores ambulantes sentados no passeio com a mer­cadoria espalhada à sua volta. Saltava por cima de brechas e buracos.

Quando chegou à Rua Hafter, abrandou o passo. Esta rua estava envolvida em sombra. Quatro dos lampiões estavam avariados e não tinham sido consertados ainda. Por um instante, Lina pensou no boato que tinha ouvido sobre as lâmpadas: constava que alguns tipos de lâmpadas estavam completamente esgotados. Ela estava acostumada que houvesse falta de coi­sas — todo mundo estava —, mas não de lâmpadas! Se as lâmpa­das para a iluminação pública se esgotassem, as únicas luzes seriam as dos interiores dos prédios. O que aconteceria então? No es­curo, como as pessoas poderiam se orientar nas ruas?

Em algum lugar dentro de si sentiu um sombrio receio. Pensou no desabafo de Doon nas aulas. Será que as coisas estavam realmente assim tão ruins como ele dissera? Lina não queria acreditar. Afastou esse pensamento.

Ao virar para a Rua Budloe acelerou de novo o passo. Passou por uma fila de clientes à espera para entrarem no mercado de verduras, com suas sacolas de compras penduradas nos braços. Na esquina da Rua Oliver evitou um grupo de lavadeiras que caminhavam a custo com sacos de roupa lavada e alguns carregadores levando uma mesa quebrada. Passou por um varredor de ruas, que estava deslocando poeira de um lado para o outro com a sua vassoura.

Tenho tanta sorte, pensou, fiquei com o trabalho que queria. E, ainda por cima, graças a Doon Harrow.

Quando eram menores, Lina e Doon eram amigos. Juntos, exploravam os becos escusos e os limites pouco ilumi­nados da cidade. Mas quando estavam no quarto ano tinham começado a se afastar um do outro. Tudo começou num dia du­rante um intervalo das aulas, quando os alunos da turma estavam brincando nas escadas da frente da escola.

— Eu consigo descer três degraus de uma vez — gabava-se alguém.

— Eu consigo pular num pé só! — dizia outro aluno. Os outros se juntavam ao coro:

— Eu consigo fazer o pino contra a coluna!

— Eu consigo saltar por cima do caixote de lixo!

Logo que uma das crianças fazia uma coisa, todas as outras a imitavam, para provar que também eram capazes de fazê-la.

Lina conseguia fazer tudo, mesmo quando os desafios se tornavam mais insensatos. Um dia, ela disse aos gritos o mais insensato de todos:

— Eu consigo subir no poste de luz!

Por um segundo, todos ficaram pasmos olhando para ela. Mas Lina atravessou a rua correndo, tirou os sapatos e as meias e enrolou-se em volta do metal frio do poste. Fincando os pés descalços, foi subindo aos poucos. Não chegou muito alto, porque largou o poste e caiu de costas. As outras crianças riram e ela também.

— Eu não disse que subia até o alto — explicou ela. — Só disse que subia o poste.

Os outros avançaram para tentar cometer a mesma proeza. Lizzie não queria tirar as meias — tinha os pés muito frios, disse ela — e por isso escorregava. Fordy Penn não tinha força suficiente para conseguir tirar os dois pés do chão. A seguir foi a vez de Doon. Descalçou os sapatos e as meias e arrumou-os muito direitinhos na base do poste. Depois anunciou, com os seus modos sérios:

— Vou chegar até lá em cima — e, agarrando-se ao poste, começou a subir, usando os pés para se impulsionar e com os joelhos voltados para fora. Içou o corpo, deu mais uma guinada com os pés — já tinha ultrapassado o ponto que Lina tinha conseguido atingir — mas, de repente, as mãos escorregaram pelo poste e ele caiu na vertical. Aterrissou de traseiro, ficando com as pernas no ar. Lina riu. Não devia; talvez ele tivesse se machucado. Mas era um espetáculo tão engraçado que ela não conseguiu resistir.

Doon não tinha se machucado. Podia ter se levantado e, com uma careta, se afastado. Mas levava tudo a sério. Quando ouviu as risadas de Lina e dos outros, ficou com o rosto ensombrado. A irritação borbulhava nele como água fervente.

— Não se atreva a rir de mim — disse à Lina. — Eu fiz melhor do que você! De qualquer maneira, foi uma idéia estúpida, uma idéia estúpida mesmo, subir o poste... — acrescentou.

E, enquanto ele estava aos berros, todo corado, a professora, a Sra. Polster, saiu para as escadas e viu-o. Agarrou Doon pelo colarinho e levou-o ao gabinete do diretor da escola, onde ele ouviu uma reprimenda que, na sua opinião, não merecia.

Depois desse dia, Lina e Doon quase nem olhavam um para o outro quando se cruzavam no átrio. Ao princípio era porque estavam furiosos ainda devido ao que tinha acontecido. Doon não gostava que rissem dele; Lina não gostava que berrassem com ela. Ao fim de algum tempo, a recordação do incidente do poste elétrico desvaneceu-se, mas, nessa altura, já estavam habituados a não serem amigos. Quando chegaram aos doze anos, não passavam de colegas de turma. Lina era amiga de Vindie Chance, Orly Gordon e, acima de tudo, da ruiva Lizzie Bisco, que conseguia correr quase tão rapidamente quanto Lina e falava três vezes mais depressa.

Agora, enquanto ia para casa a toda velocidade, Lina sentiu uma imensa gratidão para com Doon e formulou o desejo de que não lhe acontecesse nada de mal no Sistema de Canalizações. Talvez os dois voltassem a ser amigos. Ela gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre o Sistema de Canalizações. Sentia uma certa curiosidade.

Quando chegou à Rua Greystone, passou por Clary Laine, que ia provavelmente a caminho das estufas. Clary acenou-lhe e perguntou:

— Que emprego? — e Lina respondeu:

— Mensageira! — e continuou a correr.

Lina morava na Praça Quillium, por cima da loja de linhas da sua avó. Quando chegou à loja, entrou de rompante e gritou:

— Vovó! Sou mensageira!

A loja da vovó fora em tempos um local muito bem ar­rumado, onde cada novelo e cada carretel de linhas tinham o seu lugar nos cubículos que forravam as paredes. Todas as lãs e linhas eram de roupas velhas, surradas demais para continua­rem a ser usadas. A vovó desfazia camisolas e descosia as costuras de vestidos, casacos e calças; dobava as lãs em novelos e enrolava as linhas em carretéis e as pessoas compravam os novelos e os carretéis de linha para costurarem roupas novas.

Mas agora a loja estava numa enorme confusão. Dos cubículos pendiam fios soltos e por dobar e os castanhos, cinzentos e púrpuras estavam misturados com os ocres, os verdes-olivas e os azuis-escuros. Muitas vezes, os clientes da vovó tinham que passar meia hora desembaraçando a lã da cor de ferrugem da lã cor de lama ou tentando encontrar o fio de uma meada toda emba­raçada. A vovó não ajudava muito. Na maior parte dos dias cochilava por trás do balcão na sua cadeira de balanço.

Era onde estava quando Lina entrou de rompante com as suas novidades. Lina viu que a vovó tinha se esquecido de prender o cabelo nessa manhã — estava todo espetado em volta da cabeça, num emaranhado branco e crespo.

A vovó levantou-se com um ar sobressaltado.

— Você não é mensageira, querida, é estudante — disse.

— Mas, vovó, hoje era o Dia da Atribuição de Serviço. Era o dia de saber o meu emprego. E sou mensageira!

Os olhos da vovó iluminaram-se e ela assentou uma palmada no balcão.

— Me lembrei! — gritou. — Mensageira, que emprego bacana! Vai ser uma ótima mensageira.

A irmãzinha de Lina saiu com passos incertos da parte de trás do balcão. O seu rosto era redondo e os olhos castanhos também eram redondos. No topo da cabeça tinha uma madeixa de cabelo castanho atada com um pedaço de fio vermelho. Agarrou-se aos joelhos de Lina.

— Uí-na, Uí-na! — disse.

Lina inclinou-se e pegou nas mãos da irmã.

— Poppy! A sua irmã arranjou um bom emprego! Está contente, Poppy? Está toda orgulhosa?

Poppy disse algo que soava como «Tentetentetente!». Lina riu, pegou a irmã e pôs-se a dançar com ela pela loja.

O amor que Lina sentia pela sua irmãzinha era como uma dor no peito. A criança e a vovó eram toda a família que lhe restava. Há dois anos, numa altura em que a doença da tosse alastrava pela cidade mais uma vez, seu pai tinha morrido. Alguns meses depois a mãe, ao dar à luz a Poppy, morrera também. Lina sentia a falta dos seus pais com uma dor que era tão aguda como o que sentia por Poppy, mas diferente, porque era uma sensação de vazio.

— Quando começa? — perguntou a vovó.

— Amanhã — disse Lina. — Apresento-me na estação de mensageiros às oito horas.

— Vai ser uma mensageira famosa — disse a vovó. — Veloz e famosa.

Levando Poppy consigo, Lina saiu da loja e subiu as escadas para o apartamento. Era um apartamento pequeno, somente com quatro aposentos, mas havia tantas coisas nele que pode­riam encher vinte. Coisas que tinham pertencido aos pais de Lina, aos avós dela e até mesmo aos avós dos pais — coisas velhas, quebradas, lascadas, esfiapadas, que tinham sido remendadas e consertadas dezenas ou centenas de vezes. Os habitantes de Em­ber raramente jogavam alguma coisa fora. Usavam ao máximo tudo o que possuíam.

No apartamento de Lina, havia camadas de tapetes e carpetes no fio cobrindo o chão, tornando-o macio, mas incerto. Encos­tado a uma parede encontrava-se um sofá baixo e mole com pés de madeira em forma de bolas e em cima do sofá havia cobertores e almofadões, tantos que era preciso atirar alguns no chão para uma pessoa poder se sentar. Na parede em frente havia duas mesas desengonçadas, sobre as quais se encontrava uma miscelânea de pratos e garrafas, xícaras e tigelas, garfos e colheres desemparelhados, montinhos de papel usado, pedaços de fio de embrulho em novelos emaranhados e alguns lápis já muito pequenos. Havia quatro candeeiros, dois altos, no chão, e dois pe­quenos, em cima das mesas. E perto do teto, em fileiras incertas, casacos, xales, blusas e camisolas estavam pendurados em ganchos, e havia prateleiras com tachos e panelas, frascos com etiquetas ilegíveis e caixas de botões e alfinetes.

Onde não havia prateleiras, as paredes tinham sido deco­radas com coisas bonitas — uma etiqueta de uma lata de pês­segos, algumas flores amarelas secas, uma tira de tecido de cor púrpura, já desbotado, mas ainda bonito. Havia também desenhos. Lina tinha-os feito a partir da sua imaginação. Eram imagens de uma cidade parecida com Ember, mas os seus edifícios eram mais elegantes e altos e tinham mais janelas.

Um dos desenhos tinha caído no chão. Lina pegou-o e voltou a espetá-lo na parede. Deixou-se ficar por uns instantes olhando para as imagens. Tinha desenhado sempre a mesma cidade. Por vezes desenhava-a vista de longe, outras vezes es­colhia um dos seus edifícios e desenhava-o em pormenores. Punha escadarias e lampiões e carroças. Às vezes tentava desenhar as pessoas que viviam na cidade, embora não fosse lá muito boa para desenhar pessoas — as cabeças saíam sempre peque­nas demais e as mãos pareciam aranhas. Um dos desenhos retratava uma cena em que os habitantes da cidade saudavam Lina à sua chegada — ela era a primeira pessoa de fora da cidade que viam. Discutiam uns com os outros para decidir quem seria o primeiro a convidá-la para a sua casa.

Lina imaginava esta cidade com tal clareza que quase acre­ditava que ela era real. Mas sabia que não podia ser. O Livro da Cidade de Ember, que todas as crianças estudavam na escola, ensi­nava outra coisa: «A cidade de Ember foi construída para nós há muito tempo pelos construtores», dizia o livro. «É a única luz no mundo escuro. Para além de Ember, a escuridão se alastra para sempre em todas as direções.»

Lina já tinha ido até à fronteira de Ember. Nas imediações da lixeira fitara as trevas para além da cidade — as Regiões Desconhecidas. Nunca ninguém penetrara nas Regiões Desco­nhecidas — ou, pelo menos, ninguém tinha ido longe e regres­sara. E também jamais nenhuma pessoa das Regiões Desconhecidas chegara a Ember. Tanto quanto se sabia, a escuridão estendia-se a perder de vista. Mesmo assim, Lina queria que a outra cidade existisse. Na sua imaginação, ela era tão bela! E parecia tão real! Por vezes ansiava por ir para lá e levar consigo todas as pessoas de Ember.

Mas agora não estava pensando na outra cidade. Hoje sentia-se feliz por estar exatamente onde estava. Sentou Poppy no sofá.

— Espere aqui — disse.

Foi para a cozinha, onde havia um fogão elétrico e um frigo­rífico que já não funcionava e onde guardavam copos e pratos, para mantê-los fora do alcance de Poppy. Por cima do frigorífico havia prateleiras com mais panelas e frascos, mais colheres e facas, um relógio de corda que a vovó sempre se esquecia de dar corda e uma longa fila de latas. Lina tentava manter as latas arrumadas por ordem alfabética, de forma a poder encontrar rapidamente o que queria, mas a vovó andava sempre a desarrumá-las. Agora, viu Lina, havia feijões no fim da fila e tomates no início. Pegou uma lata que dizia BEBIDA DE BEBE e um frasco de ce­nouras cozidas, abriu-os, verteu a bebida numa xícara e pôs as cenouras num pratinho e levou a xícara e o prato até o sofá onde Poppy ainda estava sentada.

Poppy deixou escorrer a bebida de bebê pelo queixo. Co­meu algumas das cenouras e enfiou outras entre as almofadas do sofá. Naquele momento, Lina sentia-se quase perfeitamente feliz. Não havia necessidade de pensar no destino da cidade agora. Amanhã seria uma mensageira! Limpou a mancha alaranjada do queixo de Poppy.

— Não se preocupe — disse. — Está tudo bem.

 

A sede dos mensageiros ficava na Rua Cloving, perto dos fundos da Câmara de Reuniões. Quando Lina chegou na manhã seguinte foi recebida pela Capitã Mensageira Allis Fleery, uma mulher ossuda com olhos claros e cabelo da cor de poeira.

— A nossa nova colaboradora — disse a Capitã Fleery aos outros mensageiros, um grupo de nove pessoas, que sorriram e acenaram com a cabeça à Lina. — Tenho o seu casaco bem aqui — disse a capitã.

Entregou à Lina um casaco vermelho como o que todos os mensageiros usavam. Era só um bocadinho grande.

Da torre do relógio da Câmara de Reuniões veio uma badalada profunda e reverberante.

— Oito horas! — gritou a Capitã Fleery. Acenou com o seu braço comprido — Cada um ao seu posto!

Enquanto o relógio batia as outras sete badaladas, os men­sageiros dispersaram em todas as direções. A capitã voltou-se para Lina.

— O seu posto — disse — é a Praça Garn.

Com um aceno de cabeça, Lina preparava-se para partir quando a capitã a agarrou pelo colarinho.

— Ainda não te disse quais são as regras — disse ela. Ergueu um dedo torto. — Primeira: quando um cliente te der uma men­sagem, repita-a para confirmar que está correta. Segunda: use sempre o casaco vermelho para as pessoas te identificarem. Terceira: corra tão depressa quanto possível. Os teus clientes pagam vinte cêntimos por cada mensagem, independentemente da distância.

Lina acenou com a cabeça.

— Eu sempre corro depressa — disse.

— Quarta — prosseguiu a capitã. — Entregue a mensagem somente à pessoa a que se destina, a mais ninguém.

Lina voltou a acenar com a cabeça. Saltava de um pé para o outro, ansiosa por começar a trabalhar. A Capitã Fleery sorriu.

— Vá — disse, e Lina meteu pé na estrada. Sentia-se forte, veloz e segura. Olhou de relance para o seu reflexo na vitrine de uma loja de reparação de mobiliário. Gos­tava do aspecto do seu cabelo escuro e comprido esvoaçando atrás de si, das suas pernas compridas com meias pretas e do seu casaco vermelho. O seu rosto, que nunca parecera especialmente digno de nota, tinha uma espécie de beleza, por ela estar com um ar tão feliz.

Mal entrou na Praça Garn, uma voz gritou:

— Mensageiro!

O seu primeiro cliente! Era o velho Natty Prine, a chamá-la do banco onde sempre se sentava.

— Esta mensagem é para Ravenet Parsons, Praça Selverton, número dezoito — disse ele. — Ora, abaixe-se aqui.

Ela abaixou-se e aproximou o ouvido dos bigodes dele. O velho disse numa voz lenta e rouca:

— Tenho o fogão avariado, não venha jantar. Ora, repita.

Lina repetiu a mensagem.

— Muito bem — disse Natty Prine.

Deu vinte cêntimos à Lina e ela atravessou a cidade correndo até a Praça Selverton. Aí encontrou Ravenet Parsons, que também estava sentado num banco de jardim. Transmitiu-lhe a mensagem.

— Velho cabeça de nabo — resmungou ele. — Velho e pre­guiçoso cara de pulga. Ele não quer é cozinhar. Não tem resposta.

Lina voltou correndo para a Praça Garn e no caminho passou por um grupo de crentes. Estavam de pé numa roda, de mãos dadas, e cantavam uma das suas canções alegres. Lina tinha a impressão de que, ultimamente, havia mais crentes do que nunca. Não sabia no que acreditavam, mas o que quer que fosse devia torná-los felizes — estavam sempre sorrindo.

A sua cliente seguinte foi a Sra. Polster, a professora da turma do quarto ano. Na aula da Sra. Polster decoravam excertos de O Livro da Cidade de Ember todas as semanas. A Sra. Polster tinha pautas nas paredes para tudo, com o nome de todos os alunos. Quando um aluno fazia algum trabalho corretamente, ela punha uma pinta verde ao lado do seu nome. Quando errava, pu­nha uma pinta vermelha.

— Aquilo que precisam aprender, meninos — dizia sempre, na sua voz sonante e clara —, é a diferença entre o que é correto e o que é errado em todas as áreas de suas vidas. Assim que tenham aprendido a diferença... — neste ponto parava, apontava para a turma e a turma terminava a frase: — ...devem sempre escolher o que é correto.

A Sra. Polster sabia qual era a escolha acertada para todas as situações.

Agora, aqui estava mais uma vez a Sra. Polster, pairando sobre Lina enunciando claramente a sua mensagem.

— Para Annisette Lafrond, Rua Humm, número trinta e nove, o seguinte — disse ela. — A minha confiança em ti dimi­nuiu consideravelmente desde que ouvi falar das atividades ver­gonhosas em que se envolveu na quinta-feira passada. Repita, por favor.

Só depois de três tentativas é que Lina acertou.

— Uh... oh, uma pinta vermelha para mim — disse ela. A Sra. Polster não pareceu achar graça.

Lina teve dezenove clientes nessa primeira manhã. Alguns deles tinham mensagens normais: «Não posso vir na quinta-feira.» «Compre meio quilo de batatas quando voltar para casa.» «Por favor venha consertar a porta da rua.» Outros tinham mensagens que não faziam qualquer sentido, como a da Sra. Polster. Mas não importava. A parte maravilhosa do trabalho de mensageira não era as mensagens, mas os lugares onde tinha de ir. Podia entrar nas casas de pessoas que não conhecia e em becos escon­didos e pequenos quartos nos fundos das lojas. Em apenas algumas horas, descobriu todo o tipo de coisas estranhas e inte­ressantes.

Por exemplo: a Sra. Sample, a costureira de remendos, tinha que dormir no sofá porque o seu quarto estava todo cheio até o teto com roupas para remendar. A Dra. Felinia Tower tinha o esqueleto de uma pessoa pendurado na parede da sua sala de estar, com os ossos todos amarrados com barbante preto.

— É para eu estudar — disse ela, quando viu que Lina não tirava os olhos do esqueleto. — Tenho de saber como é a estru­tura das pessoas.

Numa casa na Rua Calloo, Lina entregou uma mensagem a um homem com um aspecto preocupado, cuja sala de estar es­tava completamente às escuras.

— Estou poupando as lâmpadas — disse o homem.

E quando Lina levou uma mensagem ao Café Can, desco­briu que em certos dias o quarto dos fundos era utilizado como local de reunião das pessoas que gostavam de conversar sobre Grandes Tópicos.

— Acreditam que um Ser Invisível nos vigia permanen­temente? — ouviu alguém perguntar.

— Talvez — respondeu outra pessoa. Fez-se um longo silêncio. — Ou talvez não.

Era tudo interessante. Lina adorava aprender coisas novas e adorava correr. E nem mesmo se sentia cansada ao fim do dia. Correr fazia-a sentir-se forte e mais generosa, fazia-a gostar dos locais que atravessava correndo e das pessoas cujas mensagens en­tregava. Quem lhe dera poder trazer a todas as pessoas as boas notícias que tanto ansiavam por ouvir.

Ao fim da tarde, um homem novo veio falar com ela; andava como que aos solavancos, de lado. Era uma pessoa com um aspecto estranho — tinha um pescoço muito comprido com uma depressão no meio e dentes tão grandes que parecia que estavam tentando escapar da boca. O seu cabelo escuro e espesso des­pontava da cabeça em tufos desgrenhados.

— Tenho uma mensagem para o presidente, na Câmara de Reuniões — disse ele. Fez uma pausa, para que a importân­cia do que dissera fosse compreendida. — O presidente — disse. — Entendeu?

— Entendi — disse Lina.

— Muito bem. Ouça com atenção. Diga-lhe: Entrega às oito. De Looper. Repita.

— Entrega às oito. De Looper — repetiu Lina. Era uma mensagem fácil.

— Certo. Não requer resposta.

Entregou-lhe vinte cêntimos e ela desatou a correr a toda velocidade.

A Câmara de Reuniões ocupava um dos lados da Praça Harken, que era a praça central da cidade. A praça era pavimentada de pedra. Havia alguns bancos pregados ao chão aqui e ali e um par de murais para afixar avisos. Os degraus da Câmara de Reuniões eram largos e a grande porta era ladeada por colunas grossas. O gabinete do presidente ficava na Câmara de Reuniões, assim como os gabinetes dos funcionários que estavam encar­regados de registrar os edifícios com janelas quebradas, os candeeiros de iluminação pública que necessitavam de conserto e o número de habitantes da cidade. Havia ainda o gabinete do guardião do tempo, que tinha a seu cargo o relógio da cidade. E os gabinetes dos guardas que faziam cumprir as leis de Ember e ocasional­mente punham batedores de carteira ou pessoas que se envolviam em brigas na Cela da Prisão, uma pequena estrutura de um andar com um telhado inclinado, que formava uma saliência ao lado do edifício da Câmara.

Lina subiu as escadas correndo e entrou num átrio amplo. A esquerda havia uma mesa onde um guarda se encontrava sentado: «Barton Snode, Guarda Assistente» dizia o crachá que trazia ao peito. Era um homem grande, de ombros largos, braços musculosos e pescoço grosso. Mas a cabeça parecia não pertencer ao corpo — era pequena e redonda coberta por um tufo de cabelo extremamente curto. Tinha o maxilar infe­rior saliente e movia-o de um lado para o outro, como se estivesse mastigando alguma coisa.

Quando viu Lina, parou de mastigar em seco por um mo­mento e curvou os lábios num sorrisinho.

— Bom dia — disse. — O que a traz aqui hoje?

— Tenho uma mensagem para o presidente.

— Muito bem, muito bem — disse Barton Snode, içando-se da cadeira. — Por aqui.

Acompanhou Lina por um corredor e abriu uma porta com uma tabuleta que dizia «Sala da Recepção».

— Aguarde aqui, por favor — disse ele. — O presidente está no seu gabinete na cave tratando de assuntos particulares, mas não demora.

Lina entrou.

— Vou avisar o presidente — disse Barton Snode. — Por favor, sente-se. O presidente já vai recebê-la. Ou daqui a pouco — acrescentou e saiu, fechando a porta. Um segundo mais tarde, a porta abriu-se de novo e a cabeça pequena e peluda do guarda voltou a aparecer. — Qual é a mensagem? — pergun­tou ele.

— Tenho de entregá-la ao presidente em pessoa — disse Lina.

— Claro, claro — disse o guarda.

A porta fechou-se mais uma vez.

Ele não parece saber o que fazer, pensou Lina. Talvez seja novo no emprego.

A Sala da Recepção tinha um ar velho e gasto, mas via-se que em tempos tinha sido bastante imponente. As paredes eram vermelho-escuras, com manchas acastanhadas onde a tinta estava descascando. Na parede da direita havia uma porta fechada. Uma feia passadeira castanha cobria o chão e havia um cadeirão de braços grande forrado com um tecido vermelho que dava comichão só de olhar para ele e várias outras cadeiras menores. Sobre uma pequena mesa havia um bule e algumas xícaras e numa mesa maior no meio da sala encontrava-se exposto um exemplar de O Livro da Cidade de Ember, aberto como se alguém fosse lê-lo. Havia retratos de todos os presidentes da cidade desde o princípio dos tempos pendurados nas paredes, trespassando com os seus olhares solenes pedaços de vidro velho de janelas.

Lina sentou-se no grande cadeirão de braços e pôs-se à es­pera. Não vinha ninguém. Levantou-se e pôs-se a andar pela sala. Debruçou-se sobre O Livro da Cidade de Ember e leu algumas frases: «Os cidadãos de Ember talvez não tenham luxos, mas a previdência dos construtores, que encheram os armazéns no início do tempo, assegurou que terão sempre quanto baste, e quanto baste é tudo aquilo de que uma pessoa sensata ne­cessita.»

Saltou algumas páginas. «O relógio da Câmara de Reuniões», leu, «mede as horas do dia e da noite. Não deve jamais permitir-se que pare. Sem ele, como saberíamos quando ir para o trabalho e quando ir para a escola? Como saberia o diretor da luz quando acender as luzes e quando apagá-las? A missão do guardião do tempo é dar corda ao relógio todas as semanas e colocar a tabuleta da data na Praça Harken todos os dias. O guardião do tempo deve desempenhar estes deveres escrupulosamente.»

Lina sabia que nem todos os guardiões do tempo eram tão escrupulosos quanto deviam. Tinha ouvido falar de um, há alguns anos, que muitas vezes se esquecia de mudar a tabuleta da data, que às vezes anunciava «Quarta-feira, Semana 28, Ano 227» vários dias consecutivos. Tinha havido guardiões do tempo que se esqueciam de dar corda ao relógio, e ele parava no meio-dia ou na meia-noite durante horas, o que resultava num dia muito longo ou numa noite muito comprida. O resultado era que ninguém mais sabia exatamente que dia da semana era ou há quantos anos exatamente a cidade tinha sido construída — dizia-se que este ano era o ano de 241, mas poderia bem ser 245 ou 239 ou 250. Enquanto as badaladas graves do relógio soassem todas as horas e as luzes se acendessem e apagassem mais ou menos regu­larmente, não parecia ter importância.

Lina deixou o livro e pôs-se a olhar para os retratos dos presidentes. O sétimo, Podd Morethwart, era o seu tetravô — ou talvez tetratetravô. Tinha um ar pouco interessante, pensou Lina. O seu rosto era comprido e tinha as faces escalavradas, a boca com os cantos decaídos e uma expressão perdida nos olhos. O retrato de que mais gostava era o da quarta presidente, Jane Larket, que tinha um sorriso sereno e cabelo preto encrespado.

E continuava a não vir ninguém. Não se ouvia qualquer som do átrio. Talvez tivessem esquecido dela.

Lina foi até a porta fechada na parede do lado direito. Abriu-a e viu umas escadas para cima. Enquanto estava à espera, talvez pudesse ir ver para onde conduziam. Começou a subir as escadas. No alto do primeiro lance havia uma porta fechada. Cautelosamente abriu-a. Viu outro átrio e mais portas fe­chadas. Fechou a porta e continuou a subir as escadas. Os seus passos no soalho soavam altos e ela receava que alguém a ouvisse e viesse ralhar com ela. Não havia dúvida de que não devia estar ali. Mas não veio ninguém e ela continuou a subir, passando por mais uma porta fechada.

A Câmara de Reuniões era o único edifício de Ember com três andares. Lina sempre quisera subir ao telhado e olhar lá de cima para a cidade. Talvez dali fosse possível ver para além da cidade, avistar as Regiões Desconhecidas. Se a cidade ilumi­nada dos seus desenhos realmente existia, devia ser em algum lugar para lá dos limites de Ember.

Ao alto das escadas deu com uma porta que dizia «Telhado» e empurrou-a. Um ar gélido roçou-lhe a pele. Estava no exterior. À sua frente havia uma superfície plana de cascalho e a cerca de dez passos via-se a parede alta da torre do relógio.

Aproximou-se do beiral do telhado. Daí avistava-se toda a cidade de Ember. Lá em baixo estava a Praça Harken, onde as pessoas andavam de um lado para o outro e, vistas de cima, pare­ciam todas mais redondas do que altas. Para lá da Praça Harken, as janelas iluminadas dos prédios formavam um padrão de xadrez amarelo e preto, fila após fila, em todas as direções. Tentou ver mais longe, até às Regiões Desconhecidas, mas não conseguia. Nas fronteiras da cidade, as luzes eram tão distantes que forma­vam uma espécie de neblina. Não conseguia ver nada para além delas a não ser um negrume.

Ouviu um grito vindo da praça lá em baixo.

— Olhem! — disse alguém em voz baixa, mas penetrante. — Há alguém no telhado!

Lina viu algumas pessoas pararem e olharem para cima.

— Quem é? O que é que ela está fazendo lá em cima? — gri­tou alguém.

Foram-se juntando mais pessoas, até se formar uma multidão na escadaria da Câmara de Reuniões.

Eles me vêem!, pensou Lina, o que a fez rir. Acenou para a multidão e dançou alguns passos da Dança Corridinho Pé de Inseto, que aprendera no Dia do Baile da Praça Cloving, e eles riram e deram mais uns gritos.

Mas nesse momento a porta atrás de si abriu-se de repente e um guarda enorme, com uma barba negra muito espessa, correu na sua direção.

— Alto! — berrou, embora ela não pudesse ir para lugar nenhum. Agarrou-lhe o braço. — O que está fazendo aqui?

— Foi só por curiosidade — disse Lina na sua voz mais inocente. — Queria ver a cidade do telhado.

Leu o crachá que o guarda trazia ao peito. Dizia «Redge Stabmark, Guarda Chefe».

— A curiosidade só traz problemas — disse Redge Stab­mark. Espiou lá para baixo, para a multidão. — Causou um distúrbio — acrescentou; puxou-a até à porta e empurrou-a pelos três lances de escadas abaixo.

Quando entraram na sala de espera, Barton Snode estava parado, com um ar atrapalhado e mastigando em seco. Ao seu lado estava o presidente.

— Uma criança causando problemas, Senhor Presidente Cole — disse o guarda chefe.

O presidente lançou um olhar furibundo à Lina.

— Eu me lembro da sua cara. Do Dia da Atribuição de Ser­viço. Que vergonha! Comportar-se assim no seu novo trabalho!

— Eu não tinha a intenção de causar problemas — disse Lina. — Vinha à sua procura para lhe entregar uma mensagem.

— Meto-a na Cela da Prisão por um ou dois dias? — per­guntou o guarda chefe.

O presidente franziu a testa. Pensou por uns momentos.

— Qual é a mensagem? — disse.

Baixou-se para que Lina pudesse falar ao seu ouvido. Ela reparou que ele cheirava um bocadinho a nabos cozidos demais.

— Entrega às oito — segredou Lina. — De Looper.

O presidente deu um sorrisinho. Voltou-se para o guarda.

— Foi só uma brincadeira de criança — disse. — Vamos deixar passar, desta vez. A partir de agora — disse à Lina — porte-se bem.

— Sim, Senhor Presidente — disse Lina.

— E você — disse o presidente, voltando-se para o guarda assistente e apontando para ele seu dedo grosso — vigie os visitantes muito... mais... cuidadosamente.

Barton Snode piscou os olhos e acenou com a cabeça.

Lina correu para a porta. Lá fora, a pequena multidão ainda estava na escadaria da câmara. Alguns deram-lhe vivas quando ela saiu. Outros olhavam-na carrancudos e resmungavam «malandrice» e «tolice» e «exibicionista». Subitamente, Lina sentiu-se embaraçada. Não tivera a intenção de se exibir. Passou pela mul­tidão apressadamente, entrou na Rua Otterwill e desatou a correr.

Não viu Doon, que se encontrava entre as pessoas que tinham estado a observá-la. Ele ia a caminho de casa, depois do seu primeiro dia no Sistema de Canalizações, quando se deparou com o grupo de pessoas rindo e olhando para o telhado da Câmara de Reuniões. Estava cansado e enregelado. Tinha o fundo das calças molhado e lama agarrada aos sapatos e lhe sujando as mãos. Quando ergueu os olhos e viu aquela pequena figura ao lado da torre do relógio, percebeu imediatamente de que era Lina. Viu-a erguer o braço, acenar e saltitar e, por um segundo, perguntou-se qual seria a sensação de estar lá em cima, olhando para toda a cidade, rindo e acenando. Quando Lina desceu, ele queria falar com ela. Mas sabia que estava com um aspecto sujíssimo e que ela lhe faria perguntas a que ele não queria res­ponder. Por isso afastou-se. Caminhando depressa, dirigiu-se para casa.

 

                                   NAS PROFUNDEZAS DE EMBER

Nessa manhã, Doon tinha chegado ao Sistema de Canali­zações cheio de expectativa. Entrara por fim no mundo de trabalho a sério, onde teria a oportunidade de fazer algo de útil. O que tinha aprendido na escola, com o seu pai e através das suas próprias investigações — tudo poderia agora ser aplicado para um bom fim.

Empurrou a porta pesada do Sistema de Canalizações e entrou. Havia um cheiro forte de umidade e borracha bolorenta, que lhe parecia agradável e interessante. Percorreu em grandes passadas um corredor onde se encontravam impermeáveis ama­relos pendurados em ganchos nas paredes. Ao fundo do corredor havia uma sala cheia de gente, com algumas pessoas sentadas em bancos calçando botas de borracha até os joelhos, outras ves­tindo os seus impermeáveis, outras ainda afivelando os cintos de ferramentas. Uma barulheira atordoante enchia a sala. Doon ficou à porta, olhando, ansioso por se juntar ao grupo, mas sem saber o que fazer.

Após uns instantes, um homem destacou-se do grupo. Esten­deu-lhe a mão.

— Lister Munk, diretor do Sistema de Canalizações — disse. — É o novo rapaz, não é? Qual é o tamanho do seu calçado? Grande, médio ou pequeno?

— Médio — disse Doon e Lister arranjou-lhe um imper­meável e um par de botas. As botas eram tão velhas que a bor­racha verde estava toda rachada, como se várias teias de aranha a cobrissem. Lister deu também a Doon um cinto de ferramen­tas no qual havia chaves-inglesas e martelos, novelos de arame e fita e tubos de uma mistela escura.

— Hoje você vai para o Túnel Noventa e Sete — disse Lister. — Arlin Froll desce contigo e mostra-lhe o que tem que fa­zer — acrescentou, apontando para uma garota baixa, com um ar delicado e uma trança comprida de cabelo louro-branco. — Talvez ela não pareça uma especialista, mas é.

Doon afivelou o cinto de ferramentas e vestiu o imper­meável, que, por alguma razão, cheirava a pés suados.

— Por aqui — disse Arlin, sem cumprimentá-lo nem sorrir. Abriu caminho por entre a multidão de trabalhadores em direção a uma porta que dizia «Escada» e abriu-a.

Os degraus de pedra eram tão íngremes que Doon não con­seguia ver o fundo das escadas. De ambos os lados havia uma parede de pedra de cor vermelho-escura, reluzente de umidade. Não havia corrimão. De um arame singelo ao longo do teto pendiam lâmpadas de alguns em alguns metros. A água acumu­lava-se em pequenas poças em todos os degraus nas partes gastas pelos anos.

Começaram a descer. Doon concentrou-se nos seus pés — as botas desajeitadas tornavam difícil não tropeçar. Quan­do chegaram mais abaixo, Doon começou a ouvir um bramido surdo, tão surdo que lhe parecia escutá-lo mais com o estômago do que com os ouvidos. Foi se tornando cada vez mais alto — seria uma máquina qualquer? Talvez o gerador?

A escada terminava numa porta que dizia «Túnel Principal». Arlin abriu-a e, ao entrarem, Doon percebeu que o som que ouvia não provinha de uma máquina. Era o rio.

Ficou imóvel, olhando fixamente para ele. Tal como a maior parte das pessoas, nunca tivera a certeza do que era realmente um rio — só sabia que era água que corria por si só. Imaginara que seria como o esguicho límpido e estreito que saía da torneira da cozinha, mas maior, e horizontal em vez de vertical. Mas isto era completamente diferente — não um esguicho de água, mas quilolitros e quilolitros a jorrarem. Tão largo como a rua mais larga de Ember, em golfadas e redemoinhos, o rio rugia e a sua superfície turbulenta era como um vidro líquido e negro com pintas de luz. Doon nunca tinha visto nada que corresse tão velozmente e nunca ouvira um rugido assim tão atroante, de fazer parar o coração.

O caminho onde se encontravam tinha cerca de um metro e oitenta de largura e estendia-se a perder de vista ao longo do rio, em ambas as direções. No muro ao longo do caminho havia aberturas que, pensou Doon, deviam dar para os túneis que se ramificavam por todo o lado debaixo da cidade. Uma fiada de luzes como a das escadas pendia do teto abobadado.

Doon sabia que estava por baixo da fronteira norte de Ember. Na escola ensinavam a identificar as direções desta ma­neira: o norte era a direção do rio; o sul era a direção das estu­fas; o leste era a direção da escola; e o oeste era a outra direção, sem nada em especial a assinalá-la. Todos os túneis do Sistema de Canalizações eram ramificações do túnel principal, a sul, na direção da cidade.

Arlin virou-se para Doon e gritou-lhe ao ouvido.

— Primeiro vamos ao início do rio — disse ela.

Com Arlin à frente indicando o caminho, subiram o túnel principal durante muito tempo. Passaram por outras pessoas de impermeáveis amarelos, que cumprimentavam Arlin com um aceno de cabeça e olhavam de relance para Doon com curio­sidade. Ao fim de cerca de quinze minutos chegaram ao extremo leste do Sistema de Canalizações, onde o rio brotava com tal pressão de um despenhadeiro fundo que a sua água escura se tornava branca, e enchia o ar com tantos borrifos que Doon ficou com o rosto todo molhado.

Na parede à sua direita havia uma porta dupla larga.

— Vê aquela porta ali? — berrou Arlin, apontando para ela.

— Vejo — Doon berrou em resposta.

— É a sala do gerador.

— Podemos ir lá dentro?

— É claro que não! — disse Arlin. — É preciso ter auto­rização especial — acrescentou e apontou na direção de onde tinham vindo pelo túnel principal. — Agora vamos até o fim do rio — disse.

Regressaram por onde tinham vindo, passando pela porta das escadas, até à fronteira oeste do Sistema de Canalizações. Ali, o rio corria para um buraco imenso na parede e desaparecia na escuridão.

— Para onde vai? — perguntou Doon. Arlin encolheu os ombros.

— De novo para o solo, acho eu. Agora vamos encontrar o Túnel Noventa e Sete e meter mãos à obra — disse. Tirou um pedaço de papel dobrado do bolso. — Este é o mapa — disse. — Você também tem um no bolso do seu impermeável. Temos que usar o mapa para nos orientarmos aqui dentro.

O mapa parecia a Doon uma imensa centopéia — o arco do rio no alto da página era o corpo da centopéia e os túneis pendiam dele como centenas de pernas muito compridas e todas emaranhadas umas nas outras.

Para chegarem ao Túnel 97 seguiram uma rota complicada, percorrendo corredores com canos sujos e ferrugentos nas pa­redes, que transportavam a água para todos os prédios de Ember. Havia poças de água no chão do túnel e pingava água em trilhos acastanhados pelas paredes. Tal como no túnel principal, havia uma fiada de lâmpadas ao longo do teto, que proporcio­navam uma iluminação fraca. Doon entreteve-se calculando a profundidade a que se encontrava. Do rio ao teto do túnel prin­cipal deviam ser cerca de nove metros, pensou ele. Por cima encontravam-se os armazéns, que ocupavam um espaço com seis metros de altura pelo menos. Por conseguinte, isso significava que ele estava a quinze metros de profundidade, com toneladas de terra e rochas e prédios acima dele. Esta idéia fez com que endireitasse os ombros. Olhou de relance para cima, como se todo aquele peso pudesse cair-lhe na cabeça.

— Aqui estamos — disse Arlin. Estava ao lado de uma fuga na parede de onde jorrava um jato d’água. — Temos que rodar a válvula para desligar a água, desmontar o cano, pôr um conector novo e voltar a montar tudo.

Meteram mãos à obra com chaves-inglesas, martelos, anilhas e uma mistela preta e ficaram completamente enchar­cados. Levaram uma grande parte da manhã para completar a tarefa, o que provou a Doon que a cidade estava ainda em piores con­dições do que suspeitara. Não somente a luz estava prestes a falhar de vez e os mantimentos quase a se esgotar, como também o sistema de fornecimento de água se encontrava em crise. A ci­dade encontrava-se nas últimas, e o que se estava fazendo para solucionar a crise?

Quando chegou o intervalo para o almoço, Arlin tirou o seu lanche de um bolso no cinto de ferramentas e foi se encontrar com uns amigos alguns túneis à frente.

— Você fica aqui e espera até eu voltar — disse. — Se ficar andando por aí, é capaz de se perder.

Mas, mal ela desapareceu, Doon se meteu à caminho. Recorrendo ao mapa, encontrou o caminho de volta ao túnel principal e depois correu na direção da fronteira leste. Não ia esperar por uma autorização especial para ver o gerador. Tinha certeza de conseguir encontrar uma maneira de entrar sozinho — e conseguiu. O que fez foi ficar por perto da porta e esperar que alguém saísse. Pouco depois, uma mulher forte com o lanche na mão abriu a porta e afastou-se. Nem reparou nele. Antes da porta se fechar, Doon entrou às escondidas.

Foi recebido por um som tão horrendo que recuou uns passos cambaleando. Era um ruído de arrebentar com os ouvidos, um ronco, uma moedeira, um grito, atravessado por um raque-raque rouco e sublinhado por um chaque-chaque surdo. Doon tapou os ouvidos com as mãos e avançou. A sua frente estava uma gi­gantesca máquina negra, da altura de dois andares. Vibrava com tal força que parecia que iria explodir a qualquer momento. Várias pessoas com auscultadores andavam atarefadas à sua volta. Ninguém reparou em Doon.

Doon bateu no ombro de um dos trabalhadores, que deu um salto e se virou de repente. Era um homem de idade, com o rosto escuro e cheio de rugas.

— Quero aprender tudo sobre o gerador! — berrou Doon, mas de pouco lhe valeu. Ninguém conseguiria se fazer ouvir naquela barulheira. O homem deu-lhe um olhar furioso, fez o gesto de enxotar com as mãos e voltou para o seu trabalho.

Doon deixou-se ficar observando a cena durante algum tempo. Ao lado da enorme máquina havia escadinhas com rodas, que os trabalhadores empurravam para a frente e para trás e a que subiam para chegarem às partes mais altas. Por toda a sala, latas e ferramentas com um ar oleoso cobriam o chão. Contra as pare­des havia caixotes enormes com todos os tipos de cavilhas e para­fusos e alavancas e tubos e canos, todos negros de velhos e misturados numa grande confusão. Os trabalhadores corriam entre os caixotes e o gerador ou simplesmente ficavam olhando para aquela coisa a trepidar.

Após alguns minutos, Doon foi embora. Estava hor­rorizado. Toda a sua vida tinha estudado a forma como as coisas funcionavam — era um dos seus passatempos preferidos. Con­seguia desmontar um velho relógio e voltar a montá-lo exata­mente como anteriormente. Sabia como funcionavam as torneiras na cozinha. Tinha consertado a descarga muitas vezes. Cons­truíra uma carroça com pedaços de um cadeirão velho. Até fazia uma idéia vaga de como funcionava o frigorífico. Orgulhava-se do seu talento em coisas mecânicas. Havia somente uma coisa que não entendia mesmo: a eletricidade. Como era a energia que corria pelos fios até às lâmpadas? De onde vinha? Tinha achado que, se pudesse dar uma olhada no gerador, obteria a pista que lhe faltava. A partir dela poderia começar a trabalhar na solução que manteria as luzes de Ember acesas.

Mas uma olhadela no gerador tinha demonstrado a sua tolice. Contara ver algo cujo mecanismo conseguisse compreen­der — uma roda girano, uma vela de ignição, alguns fios que conduzissem de um ponto para outro. Mas esta monstruosa coisa atroante — perguntava-se se haveria alguém que compreendesse o seu funcionamento. Dava a impressão de que os trabalhadores apenas tentavam evitar que explodisse em mil pedaços. E tinha razão.

Quando chegou o fim do dia e estava lá em cima tirando as botas e o impermeável, viu o homem velho da sala do gerador e foi falar com ele.

— Podia me explicar o gerador? — perguntou. — Podia explicar como funciona?

O homem velho suspirou.

— Tudo o que sei é que o rio o faz funcionar.

— Mas como?

O homem encolheu os ombros.

— Quem sabe? Só nos compete evitar que vá abaixo. Se uma parte se avaria, temos que substituí-la. Se uma parte emperra, temos que oleá-la — disse. Passou as mãos pela testa, num gesto de cansaço, deixando um trilho de óleo preto. — Já trabalho no ge­rador há vinte anos. Sempre foi funcionando, mas este ano... Não sei. A coisa parece que avaria de dois em dois minutos. — O seu rosto fendeu-se num sorriso irônico. — É claro, andam dizendo que as lâmpadas talvez se esgotem antes disso, e então não im­portará se o gerador funciona ou não.

Esgotarem-se as lâmpadas, esgotar-se a energia, esgotar-se o tempo — a crise estava mesmo dobrando a esquina. Era sobre isso que Doon estava pensando quando parou junto à Câmara de Reuniões a caminho de casa e viu Lina no telhado. Parecia tão livre e feliz lá em cima! Doon não sabia porque ela tinha subido no telhado, mas não ficou surpreendido. Era o tipo de coisa que ela fazia, aparecer em lugares inesperados, e agora que era mensageira podia ir a todo o lado. Mas como conse­guia mostrar-se tão despreocupada quando tudo estava desmo­ronando?

Encaminhou-se para casa. Viviam num apartamento de três cômodos por cima da loja do seu pai na Praça Greengate — a loja de pequenos objetos, que vendia coisas como pregos, alfi­netes, clipes, molas, tampas de frascos, maçanetas, pedaços de arame, cacos de vidro, pedaços de madeira e outras coisas peque­nas que talvez pudessem ter alguma utilidade. A loja de pequenos objetos tinha se estendido para o apartamento. Na sala da frente, onde outras pessoas talvez colocassem um bule bonito em cima de uma mesa, ou algumas abóboras ou tomates agradáveis à vista numa prateleira, tinham baldes, caixas e cestos cheios de objetos que não cabiam na loja, coisas que o pai de Doon tinha recolhido, mas que não organizara ainda para vender. Muitas vezes, estes objetos também andavam espalhados pelo chão. Era fácil tropeçar nalguma coisa neste apartamento e não era nada boa a idéia de andar descalço.

Hoje, Doon não passou pela loja para ver o seu pai antes de subir para casa. Não estava com disposição para conversas. Tirou dois baldes cheios de objetos do sofá — a maior parte parecia ferraduras de cavalos — e atirou-se para cima das almofadas. Tinha sido estúpido ao pensar que conseguiria com­preender o gerador só com um olhar, quando outras pessoas trabalhavam nele a vida inteira. Tinha que admitir que o problema era que sempre se achara mais esperto do que as outras pessoas. Não duvidava de que poderia aprender tudo o que havia para saber sobre a eletricidade e ajudar a salvar a cidade. Queria ser a pessoa a fazê-lo. Imaginara muitas vezes a cerimônia na Praça Harken, organizada para lhe agradecer por salvar Ember, com toda a população assistindo e o seu pai sentado na primeira fila, com um sorriso de orgulho estampado no rosto. O pai de Doon andava sempre lhe dizendo:

— Você é um bom rapaz e esperto. Tenho certeza de que, um dia, ainda há de vir a fazer grandes coisas.

Mas Doon ainda não tinha feito nada de especial até agora. Ansiava por fazer alguma coisa verdadeiramente importante, como descobrir o segredo da eletricidade e, com o seu pai na assistência, ser recompensado pela sua contribuição. O tamanho da recompensa não interessava. Um pequeno diploma bastava ou talvez um crachá para pôr no peito.

E agora andava enterrado na lama do Sistema de Canalizações, remendando canos que voltariam a ter vazamentos numa questão de dias. Era ainda mais inútil e aborrecido do que ser mensageiro. Esta idéia enfureceu-o. Sentou-se, agarrou a sola de um sapato que estava dentro de um balde aos seus pés e arremessou-o com toda a força. Atingiu a porta no momento em que ela se abria. Doon ouviu um estrondo seco e um «Ui!» alto ao mesmo tempo. E depois viu o rosto comprido, magro e cansado do seu pai à entrada.

A fúria de Doon esvaiu-se.

— Oh, acertei você, pai. Desculpa.

O pai de Doon massageou o lado dolorido da cabeça. Era um homem alto, calvo como uma batata sem casca, com testa alta e queixo comprido. Os seus olhos eram cinzentos e tinham uma expressão bondosa e ligeiramente indecisa.

— Acertou em cheio minha orelha — disse ele. — O que foi?!

— Senti-me furioso de repente — disse Doon. — Atirei uma sola velha destas.

— Estou vendo — disse o pai. Tirou algumas tampas de garrafa de cima de uma cadeira e sentou-se. — Tem a ver com o seu primeiro dia de trabalho, filho?

— Tem — disse Doon.

O pai do Doon acenou com a cabeça.

— E se me contasse o que se passou? — disse.

Doon contou-lhe. Quando acabou de falar, o pai passou a mão pela careca, como se estivesse arrumando o cabelo que não tinha. Suspirou.

— Bem — disse. — Tenho de admitir que soa bastante mal. Especialmente quanto ao gerador; más notícias. Mas o Sistema de Canalizações foi o trabalho que te coube na sorte, não há como dar volta nisso. O que te cabe é o que te cabe. Mas o que você faz com o que te cabe... Essa é que é a questão, não acha?

Olhou para Doon e sorriu um pouco tristemente.

— Acho que sim — disse Doon. — Mas o que é que eu posso fazer?

— Não sei — disse o pai. — Pensará em alguma coisa. Você é um rapaz esperto. O mais importante é prestar atenção. Prestar muita atenção a tudo, reparar naquilo em que mais ninguém repara. Dessa maneira saberá o que mais ninguém sabe, o que é sempre útil — acrescentou. Tirou o casaco e pendurou-o num gancho na parede. — Como está a minhoca? — perguntou.

— Ainda não olhei para ela — disse Doon.

Foi ao seu quarto e trouxe de lá uma pequena caixa de madeira coberta com um velho lenço. Pousou a caixa na mesa, tirou o lenço de cima e ele e o pai debruçaram-se e puseram-se a olhar lá para dentro.

Duas folhas de couve um pouco murchas cobriam o fundo da caixa. Em cima de uma das folhas encontrava-se uma minhoca com cerca de dois centímetros e meio de comprimento. Alguns dias antes do fim das aulas, Doon encontrara a minhoca numa folha de couve que estava cortando para o jantar. Era de um verde-claro, macia como veludo e tinha pernas minúsculas e curtas.

Doon sempre se sentira fascinado por insetos. Anotava o resultado de suas observações num caderno que intitulara Coisas Que Rastejam e Voam. Cada página do caderno estava dividida em duas colunas. Na da esquerda fazia os seus desenhos com um lápis afiado como uma agulha: asas de traças com o seu padrão ramificado de veias; patas de aranhas, que tinham pêlos muito pe­quenos e pés minúsculos como garras; besouros, com as suas pinças e armaduras brilhantes. Na coluna da direita escrevia o que observava sobre cada inseto. Apontava o que comia, onde dormia, onde punha os ovos e — quando sabia — quanto tempo vivia.

Era difícil obter estas informações sobre insetos que se des­locavam rapidamente, como as traças e as aranhas. Para aprender alguma coisa sobre eles, tinha de se contentar com o que vislum­brava das suas vidas vividas em liberdade. Se os pusesse numa caixa, andavam aos tropeções durante alguns dias e depois mor­riam.

Esta minhoca, contudo, era diferente. Parecia perfeitamente satisfeita vivendo na caixa que Doon lhe fizera. Até agora, só fazia três coisas: comia, dormia (parecia dormir, embora Doon não conseguisse ver se ela fechava os olhos — ou mesmo se tinha olhos) e expelia umas bolinhas pretas de cocô Era tudo.

— Já a tenho há cinco dias — disse Doon. — Desde então dobrou de tamanho. E comeu dois centímetros e meio quadrados de folha de couve.

— Está tomando nota disso tudo?

Doon acenou que sim.

— Talvez encontre alguns insetos interessantes no Sistema de Canalizações — disse o pai de Doon.

— Talvez — disse Doon.

Mas a si mesmo disse, não, isso não basta. Não posso andar me arrastando no Sistema de Canalizações, consertando vazamentos, procurando insetos e fazendo de conta que não há nenhuma emer­gência. Tenho que descobrir alguma coisa importante lá em baixo, algo que ajude. Tenho mesmo. Tenho mesmo, seja como for.

 

                                     ALGO PERDIDO, NADA ACHADO

Um dia, quando Lina já era mensageira há várias semanas, ao regressar para casa descobriu que a vovó tinha atirado todas as almofadas do sofá no chão, rasgara um canto do forro do sofá e estava tirando um bocado do enchimento.

— O que está fazendo? — gritou Lina.

A vovó olhou para cima. Tinha tufos do enchimento do sofá agarrados na parte da frente do vestido e no cabelo.

— Alguma coisa se perdeu — disse ela. — Acho que talvez esteja aqui dentro.

— O que é que se perdeu, vovó?

— Não me lembro bem — disse a velha senhora. — Uma coisa importante.

— Mas, vovó, está estragando o sofá. Onde é que nós nos vamos sentar?

A vovó rasgou mais um pedaço do forro do sofá e arrancou mais um bocado de enchimento.

— Não importa — disse. — Eu volto a pôr tudo no lugar depois.

— Vamos pôr tudo no lugar agora — disse Lina. — Não parece que o que se perdeu esteja aí.

— Você não sabe — disse a vovó num tom sombrio. Mas acocorou-se, com um ar cansado.

Lina começou a arrumar aquela confusão.

— Onde está o bebê? — perguntou. A vovó fitou Lina com um olhar vazio.

— O bebê?

— Não se esqueceu do bebê?

— Oh, sim. Ela... Acho que está lá em baixo na loja.

— Sozinha?

Lina pôs-se de pé e correu pelas escadas. Foi encontrar Poppy sentada no chão da loja, toda enredada num emaranhado de fios de lã amarela. Mal viu a irmã, começou a guinchar.

Lina pegou Poppy e pôs-se a desembaraçar os fios, falando num tom calmo, embora estivesse tão perturbada que até lhe tremiam as mãos. Era um perigo que a vovó tivesse se esquecido do bebê. Poppy podia cair pelas escadas e machucar-se. Podia ir para a rua e se perder. Ultimamente, a vovó andava muito esquecida, mas esta era a primeira vez que tinha se esque­cido completamente de Poppy.

Quando voltaram para cima, a vovó estava ajoelhada no chão recolhendo tufos brancos do enchimento e enfiando no bu­raco que fizera no sofá.

— Não estava ali dentro — disse triste.

— Mas o que é que não estava aí dentro?

— Perdeu-se há muito tempo — disse a vovó. — O meu pai me contou.

Lina suspirou de impaciência. Cada vez mais, a mente da sua avó parecia encalhada no passado. Ela sabia explicar as regras do jogo de bolinhas de gude, que jogara pela última vez aos oito anos, ou contar o que tinha acontecido no Dia das Canções quando tinha doze anos ou com quem dançara no Baile da Praça Cloving quando tinha dezesseis anos, mas esquecia-se do que lhe acontecera dois dias antes.

— Ouviram-no falar disso quando morreu — disse ela à Lina.

— Ouviram quem falar?

— O meu avô. O sétimo presidente.

— E o que ouviram dizer?

— Ah — disse a avó, com um olhar vago. — Esse é que é o mistério. Ele disse que não conseguia encontrá-lo. «Agora está perdido», disse ele.

— Mas o que era?

— Ele não disse.

Lina desistiu. De qualquer forma, não importava. Talvez a coisa perdida fosse a meia do velho senhor ou a sua escova de cabelo. Mas, por alguma razão, aquela história tinha se metido na cabeça da vovó.

Na manhã seguinte, a caminho do trabalho, Lina parou na casa da vizinha, Evaleen Murdo. A Sra. Murdo tinha modos brus­cos e era magra e reta como um prego, mas era uma pessoa bondosa, embora sem sorrisos. Até a alguns anos tinha uma loja que vendia papel e lápis. Mas quando o papel e os lápis come­çaram a escassear, a loja teve que fechar. Agora passava os dias sentada à janela do primeiro andar, vigiando as pessoas que passavam na rua com os seus olhos de águia.

Lina disse à Sra. Murdo que a sua avó andava um pouco esquecida.

— Não se importa de dar uma olhada de vez em quando para ver se está tudo bem? — pediu.

— Claro, com certeza — disse a Sra. Murdo, acenando firmemente com a cabeça duas vezes.

Lina foi trabalhar mais descansada.

Nesse dia, Lina recebeu uma mensagem de Arbin Swinn, o gerente do Mercado de Verduras da Rua Callay para transmitir à amiga de Lina, Clary, que era a gerente das estufas. Lina ficou contente por ser a emissária desta mensagem, embora à sua alegria se misturasse alguma tristeza. O seu pai tinha trabalhado nas estufas. Ainda lhe parecia estranho não vê-lo lá.

As cinco estufas produziam todos os produtos alimentares frescos de Ember. Situavam-se para lá da Praça Greengate, num dos extremos da cidade. Não havia nada mais ali a não ser as lixeiras, montes enormes e fedorentos de lixo se desintegrando, num terreno rochoso iluminados por focos colocados a grande altura em postes.

Antes, ninguém ia às lixeiras a não ser os recolhedores de lixo, que iam despejá-lo ali. De vez em quando, duas ou três crianças iam para lá brincar, subindo pelos lados dos montes e atirando-se abaixo deles. Lina e Lizzie costumavam ir brincar lá quando eram mais novas. Ocasionalmente des­cobriam um tesouro — algumas latas vazias, um chapéu velho ou um prato rachado. Mas nada mais disto era possível. Agora havia guardas de serviço nas lixeiras, para evitar que as pessoas andassem remexendo no lixo. Recentemente tinha sido criado um cargo oficial chamado escolhedor de lixo. Todos os dias, um grupo de pessoas esmiuçava os montes à procura de algo que pudesse ser útil. Regressavam com pernas de cadeiras quebradas, que podiam ser utilizadas para consertar caixilhos de janelas, pregos dobrados que podiam se transformar em ganchos para pendurar roupa, até mesmo trapos imundos, que podiam ser lavados e usados para remendar buracos em persianas ou colchões. Lina nunca tinha pensado no assunto, mas agora questionou-se sobre a razão de ser dos separadores de lixos. Será que eram necessários porque em Ember tudo estava realmente se esgotando?

Para lá dos montes não havia nada de nada — ou antes, somente as vastas Regiões Desconhecidas, onde a escuridão era absoluta.

Do fundo da Rua Diggery, Lina avistou as estufas compridas e baixas. Pareciam grandes latas que tivessem sido cortadas ao meio e postas de lado. Começou a respirar mais depressa. As es­tufas eram como uma espécie de lar para ela.

Sabia que o mais provável era encontrar Clary em algum lugar por perto da Estufa 1, onde ficava o escritório, e, por isso, foi para onde se dirigiu primeiro. Havia um pequeno barracão de fer­ramentas ao lado da porta da Estufa 1; Lina espiou lá para dentro, mas viu apenas ancinhos e pás. Abriu a porta da estufa. Um ar quente, que cheirava a pele de animais engolfou-a, e sen­tiu-se inundada por todo o seu amor por este lugar. A força do hábito a fez olhar para o teto, como se ainda pudesse ver seu pai em cima de uma escadinha tratando do sistema de rega, dos ter­mômetros e das luzes.

A luz da estufa era mais branca do que a luz amarelada dos lampiões de Ember. Provinha de longos tubos colocados em todo o comprimento do teto. A esta luz, as folhas das plantas eram de um verde tão brilhante que quase ofuscavam Lina. Nos dias em que Lina vinha para cá com seu pai, passava horas percorrendo os caminhos de cascalho entre os canteiros de legumes, cheirando as folhas, metendo os dedos na terra e aprendendo a dis­tinguir as plantas pelo seu aspecto e cheiro. Havia os feijões e as ervilhas com as suas gavinhas encaracoladas, o espinafre verde-escuro, a alface aos folhos e as couves duras, de um verde-pálido, algumas tão grandes como a cabeça de um bebê recém-nas­cido. Do que ela gostava mais era de esfregar as folhas da planta do tomate entre os dedos e sentir o cheiro pungente de pó.

Um caminho longo e direto conduzia de uma extremidade do edifício à outra. Mais ou menos a meio do caminho estava Clary acocorada junto a um canteiro de cenouras. Lina correu para ela e Clary sorriu, sacudiu a terra das mãos e er­gueu-se.

Clary era alta e forte e tinha mãos grandes e ossudas. Tinha um queixo quadrado e ombros também quadrados, cabelo cas­tanho com um penteado curto e quadrado. Olhando para ela, poderia pensar-se que era uma pessoa brusca e pouco simpáti­ca — mas a sua personalidade era precisamente o oposto. Sentia-se mais à vontade com plantas do que com pessoas, era o que dizia sempre o pai de Lina. Era forte, mas tímida, uma pessoa com muitos conhecimentos, mas de poucas palavras. Lina sempre gostara dela. Mesmo quando ela era pequena, Clary não a tratava como um bebê, mas dava-lhe tarefas para fazer — apanhar cenouras, tirar minhocas das couves. Desde que os seus pais tinham morrido, Lina já viera muitas vezes falar com Clary, ou trabalhar em silêncio ao seu lado. Clary demonstrava sempre simpatia para com Lina e trabalhar com as plantas fazia-a esquecer-se da sua dor.

— Bem — disse Clary. Sorriu à Lina, limpou as mãos nas suas calças já bem sujas e sorriu mais uma vez. Por fim, disse: — É mensageira.

— Sou — disse Lina — e tenho uma mensagem para você. É de Arbin Swinn. «Por favor, acrescente mais quatro caixotes à minha encomenda, dois de batatas e dois de couves.»

Clary franziu a testa.

— Não posso fazer isso — disse. — Quer dizer, posso man­dar as couves, mas só um caixote pequeno de batatas.

— Por quê? — perguntou Lina.

— Bem, temos um problema com as batatas.

— O que é? — perguntou Lina.

Clary tinha o hábito de responder às perguntas da forma mais concisa possível. Tinha que perguntar e perguntar, até ela compreender que realmente queria saber e não estava só sendo bem-educada. Depois, explicava tudo, e então é que se via o quanto ela sabia e como gostava do seu trabalho.

— Eu mostro — disse ela.

Dirigiu-se para um canteiro onde as folhas verdes estavam pintalgadas de preto.

— Uma nova doença. Nunca vi antes. Quando se cavam as ba­tatas, elas estão moles por dentro e cheiram mal. Vou jogar fora todas as batatas deste canteiro. Só há mais alguns canteiros que não estão contaminados.

A maior parte dos habitantes de Ember comia batatas em todas as refeições — em purê, cozidas, estufadas, assadas. Antigamente, também costumavam comer batatas fritas, quando os óleos alimentares ainda não tinham se esgotado.

— Eu ficaria com muita pena se deixássemos de ter batatas — disse a Lina.

— Eu também — disse Clary.

Sentaram-se na borda do canteiro de batatas e conversaram durante algum tempo, sobre a avó de Lina e Poppy, sobre os problemas que Clary estava tendo com as colméias e o sistema de rega da estufa.

— Não funciona em condições desde que... — Clary hesitou e olhou de relance para Lina. — Desde há muito tem­po — disse. Não queria dizer «desde que o seu pai morreu».

Lina compreendeu. Levantou-se.

— Tenho que ir — disse. — Tenho que levar a resposta a Arbin Swinn.

— Espero que volte sempre — disse Clary. — Pode vir sempre que... Pode vir quando quiser.

Lina agradeceu e voltou-se para ir embora. Mas, já à porta da estufa, ouviu passos apressados e um estranho som agudo, como de alguém soluçando. Ou antes, ouviu um soluço e depois um gemido, soluços e a seguir um grito, e depois mais soluços, cada vez mais alto. Olhou para trás na direção dos fundos das estufas, para a lixeira.

— Clary — chamou —, há qualquer coisa...

Clary saiu da estufa e pôs-se também a escutar.

— Está ouvindo?

— Estou — disse Clary. Franziu a testa. — Receio que seja... É alguém que... — disse e olhou com atenção para o lugar de onde vinha o som de choro. — Sim... aqui vem ele.

— Agarrou o ombro de Lina com a sua mão forte por um mo­mento. — É melhor ir embora — disse. — Eu trato disto.

— Mas o que é?

— Não interessa. Vá.

Mas Lina queria ver o que era. Quando Clary se afastou, es­condeu-se atrás do barracão de ferramentas. Daí pôs-se a observar.

O ruído aproximava-se. Por trás das lixeiras, apareceu uma pessoa. Era um homem correndo aos tropeções, abanando os braços. Parecia estar prestes a cair, como se mal conseguisse levantar os pés. Na verdade, quando se aproximou caiu mesmo. Tropeçou numa mangueira e desabou no chão como se os seus ossos tivessem se dissolvido.

Clary abaixou-se e disse-lhe alguma coisa numa voz baixa demais para Lina conseguir ouvi-la.

O homem estava ofegante. Quando se voltou e sentou, Lina viu que tinha o rosto arranhado e os olhos arregalados de medo. Os seus gemidos tinham se transformado em soluços. Lina reconheceu-o. Era Sadge Merrall, um dos funcionários do De­pósito de Abastecimento. Era um homem calado, com um rosto comprido e um ar permanente de preocupação.

Clary ajudou-o a se pôr de pé. Os dois dirigiram-se lentamente para a estufa e, ao aproximarem-se, Lina conseguiu ouvir o que o homem estava dizendo. Falava muito depressa, numa voz fraca e trêmula, quase sem pausas para respirar:

— ...Tinha certeza que conseguiria. Disse a mim mesmo: «Só um passo depois do outro, só isso, um passo depois do outro.» Eu sabia que estaria escuro. Quem não sabe? Mas pensei: «Bem, o escuro não faz mal a ninguém.» Continuo a ir para frente, pensei...

Cambaleou e encostou-se à Clary.

— Cuidado — disse Clary.

Chegaram à porta da estufa e Clary começou a abri-la com dificuldade. Sem pensar, Lina saltou do seu esconderijo de trás do barracão de ferramentas e abriu-lhe a porta. Clary deu-lhe um olhar reprovador, mas não disse nada.

Sadge não tinha parado de falar.

— ...Mas, então, quanto mais avançava, mais escuro era, e não se pode continuar a andar assim por entre um escuro de breu, não é? Era como um muro. Eu bem me virava para olhar para as luzes da cidade, porque era só o que se via, e depois dizia a mim mesmo: «Não olhe para trás, continue a avançar.» Mas estava sempre tropeçando e caindo... O terreno lá fora é acidentado, esfolei as mãos — disse. Ergueu uma das mãos e fitou os ar­ranhões vermelhos, de onde pingavam gotas de sangue.

Ampararam-no até o gabinete de Clary e ajudaram-no a sentar-se na cadeira dela. Ele continuava a divagar.

— «Seja corajoso», disse a mim mesmo. Continuei a avançar, mas subitamente, pensei: «Sabe-se lá o que pode haver aqui fora! Pode haver um buraco com trezentos metros de profundidade bem à minha frente. Pode haver... uma coisa que morda.» Te­nho ouvido histórias... Ratazanas do tamanho de caixotes de lixo... Tinha mesmo que sair dali. Por isso, dei meia-volta e desatei a correr.

— Pronto, deixe pra lá — disse Clary. — Já passou. Lina, arranje-lhe água.

Lina encontrou uma xícara e encheu-a na pia ao canto. Sadge pegou na xícara com mãos trêmulas e bebeu a água de um só trago.

— O que é que estava procurando? — perguntou Lina. Sabia o que ela teria ido procurar, se tivesse ido para fora da cidade. Já tinha pensado sobre o assunto vezes sem conta.

Sadge olhou-a fixamente. Parecia ter de refletir sobre a pergunta. Por fim, disse:

— Estava à procura de qualquer coisa que pudesse nos ajudar.

— E o que seria?

— Não sei. Como uma escada que levasse a algum lugar, talvez. Ou um edifício cheio de... não sei, coisas úteis.

— Mas não encontrou nada? Nem viu nada? — perguntou Lina, decepcionada.

— Nada! Nada! Não há nada lá fora! — disse ele. A sua voz transformou-se num grito e estava de novo com um olhar enlouquecido. — Ou, se há, nunca conseguiremos chegar lá. Nunca! Não sem uma luz — disse e respirou fundo. Durante algum tempo ficou olhando fixamente para o chão. Depois levantou-se. — Acho que já estou recomposto. Vou embora.

Com um andar hesitante, desceu o caminho e saiu da estufa.

— Bem — disse Clary. — Sinto que isto tenha acontecido enquanto você estava aqui. Estava com receio de que se assustasse, por isso te mandei embora.

Mas Lina estava cheia de perguntas, não de medo. Já ouvira contar histórias de pessoas que tentavam sair da cidade e pene­trar nas Regiões Desconhecidas. Ela mesma já pensara em fazê-lo — de fato, fizera a si própria as mesmas perguntas que Sadge. Imaginara que sairia para o escuro e chegaria a um muro no qual encontraria uma porta que dava para um túnel e ao fundo do túnel haveria uma outra cidade, a cidade de luz com que sonhava. Bastava ter coragem para sair de Ember e entrar na escuridão e depois continuar a avançar.

Talvez fosse possível, se pudesse levar uma luz para iluminar o caminho. Mas em Ember não havia luzes que pudessem ser transportadas. As luzes do exterior estavam fixas aos seus postes ou aos telhados das casas; as luzes domésticas pendiam do teto ou tinham um plugue para ligar à tomada. Ao longo da História de Ember, várias pessoas espertas tinham tentado inventar uma luz transportável, mas sem êxito. Uma vez, um homem tinha conse­guido incendiar a ponta de uma vara de madeira encostando-a ao disco do fogão elétrico. Atravessara a cidade correndo com a vara em chamas, tencionando utilizá-la para iluminar o caminho. Mas quando chegou aos montes de lixo a tocha já tinha apagado. Outras pessoas aproveitaram a sua idéia — uma mulher que vivia na Rua Dedlock, muito perto da fronteira da cidade, conseguiu entrar nas Regiões Desconhecidas com uma vara em chamas. Mas a vara ardeu rapidamente e, antes dela chegar longe, a chama queimou-lhe as mãos e ela atirou-a no chão. Todas as pessoas que tentavam penetrar nas Regiões Desconhe­cidas regressavam dentro de poucas horas, tendo fracassado na sua expedição.

Lina e Clary ficaram à porta aberta da estufa vendo Sadge encaminhar-se lentamente na direção da cidade. Quando ele se aproximou dos montes de lixo, dois guardas que estavam sentados no chão puseram-se de pé. Aproximaram-se de Sadge e agarraram-no pelos braços, um de cada lado.

— Oh! — disse Clary. — Aqueles guardas andam sempre à procura de confusão.

— Mas Sadge não violou nenhuma lei — disse Lina.

— Não importa. Precisam de qualquer coisa para fazer. Vão se divertir lhe pregando um susto — disse Clary. Um dos guardas estava acenando com o dedo a Sadge e lhe dizendo alguma coisa numa voz tão alta que Lina quase conseguia ouvir o que dizia.

— Pobre homem — disse Clary com um suspiro. — É a quarta pessoa este ano.

Os guardas agora acompanhavam Sadge, um de cada lado. Entre eles, Sadge parecia um homem pequeno e sem forças.

— O que acha que existe nas Regiões Desconhecidas, Clary?

Clary fitou o chão, onde a luz da estufa lançava as sombras compridas e estreitas de ambas.

— Não sei. Nada, eu acho.

— E acha que Ember é a única luz no mundo escuro?

Clary suspirou.

— Não sei — disse. Olhou longamente para Lina. Os seus olhos, pensou Lina, pareciam um pouco tristes. Eram de um castanho muito escuro, quase da cor da terra do canteiro do jardim.

Clary meteu a mão no bolso e tirou alguma coisa.

— Olhe — disse. Na palma de sua mão havia um feijão branco. — Algo nesta semente sabe como fazer um pé de feijão. Como é que sabe?

— Não sei — disse Lina, olhando fixamente para o feijão duro e achatado.

— Sabe, porque contém vida — disse Clary. — Mas de onde vem a vida? O que é a vida?

Lina via que as palavras borbulhavam na cabeça de Clary; tinha os olhos brilhantes, as faces coradas.

— Tome o exemplo de um candeeiro. Quando se liga, ganha vida, por assim dizer. Acende-se. Isso é porque está ligado a um fio que está ligado ao gerador que está produzindo eletricidade, mas não me pergunte como. Mas uma semente de feijão não está ligada a nada. Nem as pessoas. Não temos tomadas e fios que nos liguem a geradores. O que faz funcionar as coisas vivas encontra-se, de alguma forma, dentro delas — disse. Franziu a testa e as suas sobrancelhas transformaram-se num único traço escuro por cima dos olhos. — O que eu quero dizer — acrescentou por fim — é que acontece algo que nós não compreendemos. Dizem que os construtores fizeram a cidade. Mas quem fez os construtores? Quem fez a nós? Penso que a resposta deve estar em algum lugar fora de Ember.

— Nas Regiões Desconhecidas?

— Talvez. Talvez não. Não sei — disse e esfregou as mãos num gesto que significava «vamos lá voltar ao trabalho».

— Clary, sabe o que eu penso? — disse Lina rapidamente. O coração começou a bater mais depressa. Nunca tinha contado isto a ninguém. — Na minha cabeça vejo outra cidade.

Lina olhou para Clary, para ver se ela ia rir dela ou sorrir de uma forma demasiado compreensiva. Clary não o fez e ela continuou a falar.

— Não é como Ember; é branca e brilhante. Os edifícios são altos e parece que faíscam. Tudo está iluminado, não só dentro dos edifícios, mas em volta deles também, até mesmo no céu. Eu sei que é só a minha imaginação, mas dá a sensação de ser real. Eu penso que é real mesmo.

Clary disse:

— Huum — e depois perguntou: — E onde seria essa tal cidade?

— Isso é que eu não sei. Ou como chegar lá. Penso que há uma porta num lugar qualquer, talvez nas Regiões Desconhe­cidas, uma porta que dá para fora de Ember e depois, para lá da porta, há uma estrada.

Clary encolheu os ombros.

— Não sei — disse. — Tenho que voltar para o trabalho. Mas olha, toma isto — disse e passou para as mãos de Lina a se­mente de feijão, tirou um vaso pequeno de uma prateleira, encheu-o com terra e também deu à Lina. — Coloque o feijão aqui dentro e regue-o todos os dias — disse. — Não parece prestar para nada, é como uma pedrinha branca, mas dentro dela há vida. Deve ser uma espécie de pista, não lhe parece? Se ao menos conseguíssemos descobrir como...

Lina aceitou a semente e o vaso.

— Obrigada — disse.

Queria dar um abraço em Clary, mas não o fez para não em­baraçá-la. Em vez disso disse-lhe adeus e voltou a correr para a cidade.

 

                                     NA RUA NIGHT

A vovó estava com a mente cada vez mais confusa. Lina chegava em casa à noite e ia encontrá-la revistando os armários da cozinha rodeada por latas e frascos destampados ou puxando as roupas de cama para trás e tentando levantar o colchão com os seus braços magricelas.

— Era uma coisa importante — dizia —, a coisa que se perdeu.

— Mas se não sabe o que era — dizia Lina —, como é que vai saber o que é quando a encontrar?

A vovó não tentava responder a esta pergunta. Enxotava Lina com as mãos e dizia:

— Deixa estar, deixa estar, deixa estar — e continuava a procurar. Ultimamente, a Sra. Murdo passava uma grande parte do tempo sentada à janela da casa delas em vez de ficar na sua. Dizia à vovó que vinha só lhe fazer companhia.

— Eu não quero que ela venha me fazer companhia — quei­xava-se à vovó à Lina e Lina dizia:

— Talvez ela se sinta sozinha, Vovó. Deixe-a vir.

Lina gostava bastante de ter a Sra. Murdo lá em casa — era um bocadinho como ter uma espécie de mãe. Ela não se pare­cia nada como a mãe de Lina, que era uma pessoa sonhadora e distraída. A Sra. Murdo parecia uma mãe, mas de um tipo muito diferente. Fazia-as tomar um bom desjejum todas as manhãs — normalmente, batatas com molho de cogumelos e chá de beterraba. Punha os comprimidos de vitaminas de cada pessoa numa fila ao lado do prato e verificava se os to­mavam. Quando a Sra. Murdo estava lá em casa, os sapatos eram arrumados no lugar, tudo o que se entornava em cima dos móveis era limpo e Poppy andava sempre com roupas asseadas. Lina podia ficar sossegada quando a Sra. Murdo estava por perto. Sabia que havia alguém tomando conta de tudo.

Todas as semanas, Lina — como todos os trabalhadores entre as idades de doze e quinze anos — tinha a quinta-feira de folga. Numa dessas quintas-feiras, quando estava na fila do mercado da Praça Garn na esperança de conseguir arranjar um saco de nabos para o jantar dessa noite, escutou uma conversa perturbadora entre duas pessoas que estavam atrás dela.

— O que eu queria — dizia uma das vozes — era tinta para a minha porta da rua. Já não é pintada há muitos anos. Está cin­zenta e com a tinta descascando, horrível. Ouvi dizer que uma loja na Rua Night tinha tinta. Eu gostaria de arranjar tinta azul.

— Azul seria bonito — disse a outra voz, num tom sonhador.

— Mas quando cheguei lá — continuou a primeira voz — o homem disse que não tinha tinta, nunca tinha tido tinta. Um homenzinho desagradável. Só tinha uns lápis de cor.

Lápis de cor! Lina já não via lápis de cor em nenhuma loja há séculos. Uma vez tinha tido dois lápis vermelhos, um azul e um castanho. Pintara com eles até ficarem tão pequenos que não conseguia segurá-los na mão. Agora, só tinha um lápis dos normais, que estava se gastando muito rapidamente.

O que mais queria era ter lápis de cor para fazer os desenhos da cidade imaginária. Tinha a sensação de que era um lugar cheio de cor, embora não soubesse de que cores seria. Havia outras coisas, é claro, em que poderia gastar melhor o dinheiro. O único casaco que a vovó tinha estava cheio de buracos e com as costuras se desfazendo. Mas a vovó raramente saía, pensou Lina. Ou estava em casa ou na loja. Não precisava mesmo de um casaco novo, não é? Além disso, quanto poderiam custar uns lápis? Era bem capaz de ter dinheiro para comprar um casaco para vovó e ainda alguns lápis.

Por isso, nessa tarde dirigiu-se à Rua Night. Levou Poppy. Ela já sabia andar de cavalinho — enlaçava as pernas em volta da cintura de Lina e agarrava-lhe o pescoço com os seus dedinhos fortes.

Na Rua Budloe, havia longas filas de pessoas com as suas trouxas de roupa suja nas lavanderias. Os lavadores mexiam as roupas nas má­quinas de lavar com varas compridas. Em tempos idos, as próprias máquinas é que davam voltas na roupa, mas nenhuma funcionava mais.

Lina virou para a Rua Hafter, onde os quatro lampiões ainda estavam avariados e havia uma equipe de cons­trução consertando um telhado parcialmente caído. Orly Gordon chamou-a do alto de uma escadinha e Lina olhou para cima e acenou-lhe. Mais à frente passou por uma mulher que andava vendendo cordas e barbantes e por um homem que levava uma car­roça cheia de cenouras e beterrabas para os armazéns de mer­cearias. Ao canto, um grupo de crianças pequenas brincava com uma bola de trapos. Hoje, as ruas estavam muito movimentadas. Andando depressa, Lina furava por entre as pessoas.

Mas ao entrar na Rua Otterwill viu algo que a fez andar mais devagar. Havia um homem aos gritos nas escadas da Câmara de Reuniões e juntara-se uma multidão à sua volta. Lina aproxi­mou-se e quando viu quem era sentiu um baque no peito. Era Sadge Merrall. Agitava os braços de um modo estranho e tinha os olhos arregalados. Saía-lhe uma torrente de palavras da boca, numa voz acelerada e aguda.

— Eu estive nas Regiões Desconhecidas! — berrava. — Não há nada, nada, nada lá! Acharam que alguma coisa lá fora poderia nos salvar? Ah! Só há escuridão e monstros, escuridão e terríveis buracos profundos, escuridão a perder de vista! As ratazanas são do tamanho de casas! As rochas são afiadas como navalhas! A es­curidão nos tira o ar! Não há esperança para nós lá fora, oh não! Não há esperança, não há esperança!

Continuou a falar desta maneira durante algum tempo e depois tombou no chão. As pessoas que estavam a ouvi-lo olha­ram umas para as outras e abanaram a cabeça.

— Enlouqueceu — Lina ouviu alguém dizer.

— Sim, completamente — disse outra pessoa. Subitamente, Sadge voltou a pôr-se de pé e continuou com a sua terrível gritaria. A multidão recuou um passo. Algumas pes­soas afastaram-se às pressas. Outras aproximaram-se de Sadge, falando num tom de voz calmo. Agarraram-lhe o braço e leva­ram-no pelas escadas abaixo, ainda aos gritos.

— Quem é? Quem é? — disse Poppy na sua vozinha aguda e penetrante.

Lina afastou-se daquele triste espetáculo.

— Chiu, Poppy — disse. — É um pobre desgraçado. Não está se sentindo bem. Não olhe.

Encaminhou-se para a Rua Night, que era paralela à Praça Greengate. Na rua, um homem com cabelo fino estava sentado no chão tocando flauta feita de um pedaço de cano e cinco ou seis crentes rodeavam-no, batendo palmas e cantando.

— Em breve, em breve, virá em breve — cantavam. O que viria em breve? Isto era o que Lina perguntava a si própria, mas não parou para fazer a pergunta a ninguém.

Passadas duas esquinas, chegou a uma loja sem tabuleta na vitrine. Devia ser esta, pensou.

A princípio, pareceu-lhe estar fechada. A vitrine encon­trava-se às escuras. Mas a porta abriu-se quando ela a empurrou e uma campainha ligada ao puxador tilintou. Dos fundos da loja veio um homem de cabelo preto com dentes grandes e um pes­coço comprido.

— Sim? — disse ele.

Lina reconheceu-o logo. Era o homem que tinha mandado uma mensagem para o Presidente no seu primeiro dia de trabalho. Chamava-se Hooper, não, Looper, era isso.

— Tem lápis à venda? — perguntou ela.

Parecia improvável. As prateleiras da loja estavam praticamente vazias, à exceção de algumas resmas de papel usado.

Poppy contorceu-se às costas de Lina e choramingou.

— Às vezes — disse Looper.

O choramingar de Poppy transformou-se num choro de­satado.

— Está bem, pode descer para o chão — disse-lhe Lina. Colocou-a no chão, onde ela deu uns passos pouco seguros.

— O que eu gostaria de ver — disse Lina — eram os seus lápis de cor. Se tiver.

— Temos alguns — disse Looper. — São um pouco caros — acrescentou. Sorriu, pondo à mostra os dentes salientes.

— Poderia vê-los? — disse Lina.

Ele foi ao compartimento nos fundos da loja e regressou pouco depois com uma pequena caixa, que pousou em cima do balcão. Tirou-lhe a tampa. Lina debruçou-se para olhar lá para dentro.

Dentro da caixa havia pelo menos uma dúzia de lápis de cor — vermelho, verde, azul, amarelo, púrpura, cor de laranja. Nem sequer tinham sido afiados uma única vez; as pontas estavam rombas. Tinham borrachas na outra ponta. O coração de Lina pôs-se a bater mais depressa.

— Quanto custam? — perguntou ela.

— Provavelmente são caros demais para você — disse o homem.

— Talvez não — disse Lina. — Eu tenho emprego.

— Ótimo, ótimo — disse o homem, sorrindo mais uma vez. — Não vale a pena se ofender. — Pegou no lápis amarelo e rodou-o entre os dedos. — Cada lápis — disse — custa cinco dólares.

Cinco dólares! Por sete comprava-se um casaco — um casaco velho e remendado, mas quente.

— É muito caro — disse Lina.

Ele encolheu os ombros e começou a pôr a tampa na caixa.

— Mas talvez... — Lina pensava a toda velocidade. — Deixe-me olhar outra vez para eles.

Mais uma vez, o homem levantou a tampa e Lina debruçou-se sobre os lápis. Pegou um. Estava pintado de azul-forte e na ponta romba via-se a pinta azul do grafite. A borracha cor-de-rosa tinha uma banda de metal brilhante a segurá-la. Era tão bonito! Eu podia comprar só um, pensou Lina. Depois, podia poupar mais um bocadinho e comprar um casaco para a vovó no mês que vem.

— Decida-se — disse o homem. — Tenho outros clientes que estão interessados, se você não está.

— Está bem. Levo um. Não, espere.

Era como fome o que sentia. Como quando às vezes a sua mão se estendia, sem ela querer, para agarrar um pedaço de co­mida. Era um impulso forte demais para poder resistir.

— Levo dois — disse e sentiu-se atordoada, quase como se fosse desmaiar, ao pensar no que estava fazendo.

— Que dois? — disse o homem.

Havia mais cores naquela caixa de lápis do que em toda a cida­de de Ember. As cores de Ember eram todas parecidas — edi­fícios cinzentos, ruas cinzentas, céu negro; até mesmo as cores das roupas das pessoas estavam desbotadas com o uso e eram verde-lama e vermelho-ferrugem e azul-acinzentado. Mas estas cores eram tão vivas como as folhas e as flores na estufa.

A mão de Lina pairava sobre os lápis.

— O azul — disse ela. — E... o amarelo. Não, o... o....

O homem pigarreou, impaciente.

— O verde — disse Lina. — Levo o azul e o verde.

Tirou-os da caixa. Tirou o dinheiro do bolso do casaco, entre­gou-o ao homem e meteu os lápis no bolso. Agora pertenciam-lhe; tinha uma sensação de alegria intensa e desafio. Voltou-se para sair e foi quando viu que a irmã já não estava na loja.

— Poppy! — gritou. Girou sobre si mesma. — Viu mi­nha irmãzinha sair? — perguntou ao homem. — Viu para que lado foi?

Ele encolheu os ombros.

— Não reparei — disse.

Lina correu para a rua e olhou para ambos os lados. Viu muitas pessoas, algumas crianças, mas não Poppy. Dirigiu-se a uma mulher de idade.

— Viu uma menina pequena, um bebê, andando sozinha? Com um casaco verde, com capuz? — A mulher velha olhou para Lina com um olhar mortiço e abanou a cabeça.

— Poppy! — chamou Lina. — Poppy!

A sua voz era um grito. Uma menina assim tão pequena não podia ter ido longe, pensou. Talvez na direção da Praça Greengate, onde havia mais pessoas circulando. Lina desatou a correr.

E depois as luzes tremeluziram uma vez, tremeluziram outra vez e se apagaram. A escuridão ergueu-se à sua frente como um muro. Tropeçou, equilibrou-se e deixou-se ficar imóvel. Não conseguia ver absolutamente nada.

Ouviram-se gritos de alarme por toda a rua e depois fez-se silêncio. Lina estendeu os braços. Estava de frente para a rua ou para um prédio? Invadiu-a uma sensação de terror. Não devo me me­xer, pensou. As luzes voltarão a se acender dentro de poucos segundos, sempre voltam. Mas pensou em Poppy, sozinha naquela escuridão, e sentiu as pernas falharem. Tenho que encontrá-la.

Deu um passo. Como não esbarrou contra nada deu mais um passo e os dedos da sua mão direita bateram contra alguma coisa dura. A parede de um prédio, pensou. Com a mão contra a parede virou-se para a esquerda e deu mais um passo. Depois, subita­mente, sua mão tocou o ar vazio. Devia estar na Rua Dedlock. Ou será que já tinha passado a Rua Dedlock? Não conseguia man­ter na mente uma imagem clara das ruas. A escuridão não parecia encher apenas a cidade à sua volta, mas também a sua cabeça.

Com o coração batendo com força no peito esperou. Vol­tem luzes, implorou. Por favor, voltem. Queria chamar Poppy, dizer-lhe para que não se mexesse, que não tivesse medo, ela já ia buscá-la. Mas a escuridão esmagava-a e não era capaz de encon­trar a própria voz. Mal conseguia respirar. Queria arrancar a escuridão dos olhos, como se ela fosse as mãos de outra pessoa.

Ouvia sons abafados à sua volta — gemidos, um arrastar de pés. A distância, alguém gritou de uma forma incoerente. Quan­tos minutos já teriam se passado? O corte de energia mais longo durara três minutos e catorze segundos. Este estava certamente demorando mais tempo.

Poderia suportá-lo bem se estivesse sozinha. Era a idéia de Poppy, perdida, que não conseguia agüentar — e perdida porque Lina tinha prestado mais atenção a uma caixa de lápis. Oh, tinha sido egoísta e gananciosa, e agora estava tão arrependida! Obri­gou-se a avançar mais um passo. Mas depois pensou: e se estiver me afastando de Poppy? Começou a tremer e sentiu uma sensação de alguma coisa afundar e dissolver-se dentro dela, o que significava que estava prestes a chorar. Sentiu as pernas moles como papel molhado e deixou-se escorregar para o chão até ficar sentada no passeio, com a cabeça pousada nos joelhos. Tremendo, com um redemoinho de terror sem palavras na cabeça, esperou.

Passou-se um tempo infinito. Ouviu um gemido em algum lugar à sua esquerda. Uma porta fechou-se com estrondo. Alguns passos, que pararam logo. Na cabeça de Lina pairava o princípio da pior pergunta: E se as luzes nunca...? Abraçou os joelhos com força e obrigou-se a não terminar a pergunta. As luzes voltarão, disse a si própria, as luzes voltarão, voltarão.

E, subitamente, voltaram.

Lina pôs-se de pé num salto. Ali estava a rua mais uma vez e as pessoas olhando para cima com a boca aberta. A toda volta, as pessoas começaram a chorar, a gemer ou a rir de alívio. Depois, de repente, todos se apressaram para ir para a segurança dos seus lares, para o caso das luzes voltarem a se apagar.

Lina correu na direção da Praça Greengate, detendo todas as pessoas que passavam.

— Viu uma menina pequena sozinha, mesmo antes das luzes se apagarem? — perguntava. — De casaco verde com ca­puz? — acrescentava, mas ninguém lhe prestava atenção.

No lado da praça onde ficava a Rua Bee havia algumas pes­soas falando todas ao mesmo tempo e gesticulando. Lina correu para elas e fez a sua pergunta.

As pessoas pararam de falar e fitaram-na.

— Como é que poderíamos ter visto alguém? As luzes estavam apagadas — disse Nammy Proggs, uma mulher idosa muito pequenina, tão curvada que tinha que virar a cabeça de lado para olhar para cima.

Lina disse:

— Não, ela desapareceu antes das luzes se apagarem. Saiu de junto de mim. Talvez tenha vindo nesta direção.

— Não se deve tirar os olhos de um bebê — ralhou Nam­my Proggs.

— Tem de se estar sempre vigiando os bebês — disse uma das mulheres que tinha estado a cantar com os Crentes.

Mas uma outra pessoa disse:

— Oh, um bebê? De casaco verde? — e dirigiu-se para a porta aberta de uma loja e perguntou: — Aquele bebê está aí? — e da porta veio uma pessoa com Poppy pela mão.

Lina correu na sua direção e pegou-a no colo. Poppy pôs-se a chorar.

— Já está tudo bem — disse Lina, abraçando-a com força.

— Não se preocupe queridinha. Só esteve perdida um ins­tante, agora está tudo bem. Eu estou com você, não se preocupe — acrescentou.

Quando olhou para cima, para agradecer à pessoa que tinha encontrado Poppy, viu um rosto que reconhecia. Era Doon. Estava como da última vez que o vira, mas tinha o cabelo mais desgrenhado. Vestia o casaco castanho grande demais que sempre usava.

— Ela vinha pela rua acima sozinha — disse ele. — Nin­guém sabia a quem pertencia, por isso eu a levei para a loja do meu pai.

— Pertence a mim — disse Lina. — É minha irmã. Fiquei com tanto medo quando ela se perdeu! Pensei que poderia cair e se machucar, ou ser atropelada ou... De qualquer maneira, muito, muito obrigada por tê-la recolhido.

— Qualquer pessoa faria o mesmo — disse Doon. Franziu a testa e pôs-se a olhar para o passeio.

Poppy tinha se acalmado e estava toda enroscada contra o peito de Lina com o polegar na boca.

— E o seu emprego... como vai? — perguntou Lina.

— O Sistema de Canalizações?

Doon encolheu os ombros.

— Vai bem — disse. — Interessante, de qualquer forma.

Ela ficou à espera, mas parecia que era tudo quanto ele ia dizer.

— Bem, obrigada mais uma vez — disse ela. Pôs Poppy nas costas.

— Teve sorte que Doon Harrow estivesse por perto — disse Nammy Proggs, que tinha estado a observá-los com a cabeça de lado. — É um rapaz de bom coração. Tudo o que se avaria na minha casa, ele conserta — disse. Seguindo Lina a manquejar, acenou-lhe com o dedo e acrescentou: — Veja se vigia esse bebê com mais cuidado.

— Não devia deixá-la sozinha — acrescentou o tocador de flauta.

— Eu sei — disse Lina. — Têm razão.

Quando chegou em casa, deitou a irmã cansada na cama do quarto que partilhavam. A vovó estivera tirando uma soneca na sala da frente e nem dera conta do corte de energia. Lina disse-lhe que a luz tinha ido abaixo por uns minutos, mas não mencionou o desaparecimento de Poppy.

Mais tarde, no seu quarto, com Poppy adormecida, tirou os dois lápis de cor do bolso. Não eram tão maravilhosos como tinham parecido. Com eles na mão, recordou a sensação de de­sejo que sentira naquela loja empoeirada e a essa sensação mistu­ravam-se o medo, a vergonha e a escuridão.

 

                                     A CAIXA NO ARMÁRIO

Era estranho que as pessoas não comentassem muito o corte de energia. Normalmente, as falhas de eletricidade provo­cavam discussões animadas, com grupos de pessoas nas esquinas dizendo umas às outras:

— Onde é que você estava quando aconteceu? O que é que se passa com os eletricistas, devíamos mandá-los para a rua e contratar pessoal novo — e coisas do gênero. Desta vez era precisamente o oposto. Quando Lina foi trabalhar na manhã seguinte, a rua estava estranhamente silenciosa. As pessoas caminhavam depressa, com os olhos pregados no passeio. Os que paravam para conversar falavam em voz baixa e depois apressavam-se a ir para os seus destinos.

Nesse dia, Lina foi portadora da mesma mensagem doze vezes. Todos os mensageiros a estavam transmitindo. Era simplesmente o seguinte, a ser passado de pessoa em pessoa: sete minutos. O corte de energia durara mais do dobro do que qualquer dos anteriores.

O medo tinha se instalado na cidade. Lina sentia-o como uma aragem gélida. Compreendia agora que era verdade o que Doon tinha dito no Dia da Atribuição de Serviço. Ember cor­ria um grave perigo.

No dia seguinte apareceu um aviso em todos os murais da cidade.

 

                       Reunião da Cidade

Solicita-se o comparecimento de topos os cidadãos na praça Harken amanhã às 18.00 para que seja transmitira uma informação importante.

               Presidente Lemander Cole

 

Que tipo de informação importante?, interrogou-se Lina. Boas notícias ou más? Estava impaciente por ouvi-las.

No dia seguinte, as pessoas encaminharam-se para a Praça Harken vindas das quatro direções, apinhando-se tão juntas que mal tinham espaço para se mexerem. As crianças estavam de cavalinho nos pais. As pessoas mais baixas tentavam furar para a frente. Lina avistou Lizzie e disse-lhe olá. Viu também Vindie Chance, que tinha trazido o irmão pequeno. Lina tinha deci­dido deixar Poppy em casa com a vovó. Não queria correr o risco de perdê-la no meio de uma multidão destas.

O relógio da cidade começou a dar as horas. Soaram seis badaladas e um murmúrio de expectativa varreu a multidão. As pessoas punham-se nas pontas dos pés, esticando o pescoço para ve­r melhor. A porta da Câmara de Reuniões abriu-se e o presi­dente saiu, ladeado por dois guardas. Um dos guardas passou-lhe um megafone e o presidente começou a falar. A sua voz saía do megafone pouco clara e cheia de interrupções.

— Povo de Ember — disse ele. Fez uma pausa. A multidão ficou em silêncio, esforçando-se para ouvi-lo.

— Povo de Ember — disse o presidente mais uma vez. Olhou de um lado para o outro. Os raios de luz refletiam-se na sua ca­beça calva. — A nossa cidade tem experimentado algumas ligeiras dificuldeches. Estes tempos requerem ande pacense de doche noche.

— O que é que ele disse? — segredavam as pessoas, aflitas.

— O que é que ele disse? Não consegui ouvi-lo.

— Ligeiras dificuldades — disse alguém. — Requer grande paciência de todos nós.

— Mas estou aqui hoje — prosseguiu o presidente — para sossegá-los. Os tempos difíceis passarão. Estamos azen tocho zi chefor suche.

— O quê? — ouviram-se de novo os murmúrios alarmados.

— O que é que ele disse?

Os que se encontravam mais à frente transmitiram a men­sagem às filas traseiras.

— Fazendo todos os esforços — disseram. — Todos os esforços.

— Mais alto! — gritou alguém.

A voz do presidente trovejou através do megafone, mais alta, mas ainda menos clara.

— Or oiça sível! — disse ele. — Pá nique. Num vemos em pá nique. Num há são parapá nique.

— Não conseguimos ouvi-lo! — gritou alguém.

Lina sentiu uma agitação à sua volta e ouviu resmungos. Alguém empurrou-s pelas costas, fazendo-a dar um passo em frente.

— Ele disse que não devemos entrar em pânico — disse al­guém. — Disse que o pânico é a pior coisa possível. Não há razão para entrar em pânico, disse ele.

Nas escadas da Câmara de Reuniões, os dois guardas aproxi­maram-se um pouco mais do presidente. Ele ergueu o megafone e começou de novo a falar.

— As sul chões! — berrou. — Tom sem cão dache.

— As soluções — disseram as pessoas à frente para os que estavam atrás — estão a ser encontradas, disse ele.

— Mas que soluções? — gritou uma mulher que estava ao lado de Lina. Outras pessoas na multidão repetiam o que a mu­lher dissera:

— Que soluções? Que soluções? — e os gritos transfor­maram-se num coro cada vez mais alto.

Mais uma vez, Lina sentiu a pressão das pessoas que avan­çavam na direção da Câmara de Reuniões. Acotovelavam-na, empurravam-na, esmagavam-na. Seu coração começou a bater com força. Tenho que sair daqui!, pensou.

Esquivando-se dos braços das pessoas, começou a furar por onde podia, tentando chegar ao fim da multidão. O barulho aumentava cada vez mais e espalhava-se por todo lado. A voz do presidente chegava em ondas de sons incompreensíveis e, na multidão, as pessoas berravam com fúria ou gritavam com receio de serem esmagadas. Alguém pisou Lina e quase chegaram a arrancar-lhe o lenço. Durante alguns segundos receou ser espe­zinhada. Mas por fim soltou-se e correu para os degraus da escola. Dali, viu que os dois guardas estavam empurrando o presidente para dentro da Câmara de Reuniões. A multidão urrava e algumas pessoas começaram a atirar tudo o que conseguiam colocar as mãos — pedras, papéis amarrotados, até mesmo os próprios chapéus.

 

Do outro lado da praça, Doon e o seu pai abriam caminho a custo pela Rua Gilly.

— Ande mais depressa — disse o pai de Doon. — Não queremos ser apanhados nesta multidão — acrescentou.

Atravessaram a Rua Broad e tomaram o caminho mais longo para casa, pelas vielas estreitas atrás da escola.

— Pai — disse Doon enquanto andavam depressa —, o presidente é um tolo, não acha?

Por uns momentos, o seu pai não respondeu. Depois, disse:

— Está numa situação difícil, filho. O que quer que ele faça?

— Pelo menos que não minta — disse Doon. — Se en­controu mesmo uma solução, devia ter-nos dito. Não devia fingir que encontrou uma solução quando não é verdade.

O pai de Doon sorriu.

— Isso seria um bom começo — concordou.

— Fico tão furioso com a maneira como ele fala conosco! — disse Doon.

O pai de Doon pôs-lhe a mão nas costas e dirigiu-o para a esquina.

— Muitas coisas andam deixando-o furioso ultimamente — disse.

— E tenho boas razões para isso — disse Doon.

— Talvez. O problema com a fúria é que ela se apodera de nós. E depois uma pessoa já não é senhora de si mesma. É a fúria que passa a mandar.

Doon continuou a andar em silêncio. Interiormente, soltou um gemido. Sabia o que o pai ia dizer e não lhe apetecia nada ouvi-lo.

— E quando é a fúria que manda, o resultado...

— Eu sei — disse Doon. — São conseqüências não inten­cionais.

— E são. Como acertar a orelha do seu pai com uma sola de sapato.

— Foi sem querer.

— Exatamente o que eu queria dizer.

Continuaram desceno a Rua Pibb. Doon enfiou as mãos nos bolsos do casaco e olhou carrancudo para o caminho. O pai tem é bom gênio, pensou. É tão inofensivo como um copo de água. Não é capaz de entender.

 

Lina corria. Já afastara do pensamento o discurso do pre­sidente. Passou a toda velocidade pelas pessoas que voltavam para as suas lojas na Rua Otterwill e foi escutando pedaços de conversas.

— Espera que a gente acredite... — dizia uma pessoa.

— Só quer manter a calma — dizia outra.

— ...a caminhar para um desastre... — disse uma terceira. Todas as vozes tremiam de fúria e receio.

Lina não queria pensar sobre o assunto. Os seus pés matraqueavam as pedras do passeio, o cabelo esvoaçava. Ia para casa, faria uma sopa de batatas quentinha para as três e depois ia pegar os lápis e desenhar.

Subiu as escadas ao lado da loja de dois em dois e entrou de rompante no apartamento. Havia alguma coisa no chão bem aos seus pés e ela tropeçou e caiu, aterrissando de quatro. Fitou a cena à sua frente. Junto à porta aberta do armário havia um gran­de monte de casacos, botas, malas e caixas, com o conteúdo todo espalhado e misturado. Do interior do armário vinha o som de pancadas e coisas chacoalhando.

— Vovó?

Mais pancadas. A cabeça da vovó assomou à porta do armário.

— Já devia ter procurado aqui há tempos — disse ela. — É aqui que devia estar, claro. Devia ver o que há aqui dentro!

Lina olhou à sua volta para a incrível confusão. Neste armário tinham-se arrumado as coisas sem utilidade de décadas, enfurnadas em caixas de papelão, enfiadas em velhas fronhas e sacos de roupa suja e amontoadas numa pilha tão comprimida que não se podia tirar uma coisa sem vir todo o resto atrás. A prateleira por cima do varão dos casacos estava tão sobrelotada como o espaço por baixo, principalmente com roupas velhas, cheias de buracos de traça e carcomidas de mofo. Quando era menor, Lina tinha tentado fazer umas explorações neste ar­mário, mas nunca chegara muito longe. Puxava por um velho lenço que se desfazia nas mãos, ou abria uma caixa e des­cobria que estava cheia de tachas de passadores. Não demorava muito para meter tudo à toa dentro do armário e desistir.

Mas a vovó estava revirando o armário como devia ser. Grunhia e arquejava enquanto desembaraçava as coisas bem enfurnadas no armário e as atirava para trás de si. Era evidente que estava se divertindo muito. Lina viu um saco de farrapos tombando do armário e depois um velho sapato castanho sem cadarços.

— Vovó — disse Lina, subitamente preocupada —, onde está Poppy?

— Oh, está aqui! — disse a vovó das profundezas do armário. — Está me ajudando.

Lina levantou-se do chão e olhou à sua volta. Logo viu Poppy. Ela estava sentada atrás do sofá, no meio da confusão. Tinha uma caixa pequena de um material escuro e brilhante na sua frente. Tinha uma tampa com dobradiças, que estava aberta para trás.

— Poppy — disse Lina —, deixe-me ver isso.

Debruçou-se. Havia uma espécie de mecanismo na aresta da tampa — uma espécie de fecho, pensou Lina. A caixa era muito bem feita, mas tinha sido danificada. Havia amassados e ar­ranhões na sua superfície dura e lisa. Parecia destinar-se a guardar algo valioso. Mas agora estava vazia. Lina pegou-a e tateou seu interior. Não havia nada lá dentro.

— Havia alguma coisa nesta caixa, Poppy? Encontrou algu­ma coisa dentro?

Mas Poppy só pairava, toda contente. Estava mastigando um papel amarrotado. Tinha também pedaços de papel nas mãos, que estava rasgando. Espalhados à sua volta havia mais pedaços de papel. Lina pegou num deles. Estava coberto por letras maiúsculas pequeninas e perfeitas.

 

                             UMA MENSAGEM CHEIA DE BURACOS

Foi a letra que despertou a curiosidade de Lina. As palavras não estavam escritas à mão ou, se estavam, era a caligrafia mais perfeita e regular que ela já vira. Parecia-se mais com as letras impressas em latas de comida ou dos lados dos lápis. Não tinha sido a mão de uma pessoa que escrevera aquelas palavras. Uma máquina qualquer. Era a escrita dos construtores. E, por isso, este pedaço de papel também devia ter vindo dos construtores.

Lina apanhou todos os pedaços de papel do chão e obrigou Poppy a abrir as mãos e a boca para lhe tirar os papéis amar­rotados e mastigados. Pôs tudo na caixa amassada e levou-a para o seu quarto.

Nessa noite, a vovó e o bebê já dormiam pouco depois das oito horas. Lina tinha quase uma hora para examinar o seu achado. Tirou os pedaços de papel da caixa e espalhou-os em cima da mesa do seu quarto. O papel era grosso; a orla de cada pedaço ras­gado era uma franja de fibras emaranhadas. Havia muitos pedaços pequenos e um pedaço grande com tantos buracos que parecia uma renda. Os pedaços mastigados já não tinham salvação possível — eram quase como pasta de papel. Mas Lina estendeu o pedaço grande que parecia renda e viu que numa das margens, ainda in­tacta, havia uma coluna de números. Reuniu todos os pedaços secos e examinou-os durante muito tempo, tentando descobrir onde encaixavam no pedaço maior. Depois de dispô-los tão bem quanto conseguiu, foi isto que apareceu:

 

Instru        ara Egres

 

Este doe       ofic           em

strita segur           período de

nos.

Prepara       feitos para

habi      cidade.

segu   fo

 

  1. Exp

ri     s  ema de               liza

 

  1.                  ped assinalada por

E junto ao

   ord      r

 

  1. Descer os degraus na  argem  o io

       ao    ord      apr

dois

   aixo.

 

  1.            ostas para a

ág a,    encontrar      porta do    talei dos bar

   cha                            rás d    pequen

pa nel de aço    direita                . Tir

     ave, abrir po

 

  1.              arco, aprovisionado com

   uip          nec

proa à ré

               etros e dez.

 

  1. U              ordas, baixa

             gua. Dirigir-se    o aix . Us      re

   evi         oche      e manobrar            oeir

 

  1.            aprox. 3 horas.

Desem

                       Seguir           cami

 

Lina só conseguia decifrar o sentido de algumas palavras aqui e ali. Mesmo assim, havia algo de excitante neste documento em pedaços. Não se assemelhava a nada que ela já tivesse visto. Olhou fixamente para a primeira palavra no topo da página, «Instru», e subitamente descobriu o que devia ser. Vira-a muitas vezes na escola. Era com certeza o início da palavra «Instruções».

O coração começou a bater-lhe no peito como um punho numa porta. Tinha encontrado alguma coisa. Tinha encontrado algo estranho e importante: instruções para fazer alguma coisa. Mas o quê? E que pena que Poppy tivesse encontrado o papel primeiro e o tivesse estragado!

Lina lembrou-se de que talvez fosse disto que a vovó andava falando há tanto tempo. Talvez fosse esta a coisa que estava perdida. Mas, claro, como não sabia o que tinha se perdido, a vovó não teria reconhecido a caixa quando a viu. Devia tê-la jogado para fora do armário com a mesma falta de cuidado com que ati­rara todas as outras coisas. De qualquer maneira, não importava se esta era ou não a coisa de que ela andava à procura. Era um mistério, fosse lá o que fosse, e Lina estava decidida a re­solvê-lo.

O primeiro passo era colar os pedaços de papel. Eram tão leves que um bafo poderia espalhá-los pelo ar. Lina tinha ainda um bocadinho de cola num frasco velho. Com mil cuidados, pôs uma gota de cola em cada um dos pedaços e colou-os a uma das poucas folhas inteiras, verdadeiros tesouros, que ainda tinha guardadas. Cobriu-a com outra folha e pôs a caixa por cima, para fazer peso. Mal terminou, as luzes se apaga­ram — tinha se esquecido de ir olhando para o relógio que tinha no parapeito da janela. Teve que se despir e entrar na cama às escuras.

Estava tão excitada que pouco dormiu nessa noite. Com os pensamentos em turbilhão, tentava imaginar qual seria a mensa­gem que descobrira. Tinha certeza de que estava relacionada de alguma forma com a salvação da cidade. E se as instruções fossem para reparar a eletricidade? Ou para fazer uma luz transportável? Isso alteraria tudo.

Quando as luzes se acenderam de manhã, antes de Poppy acordar, Lina ainda teve alguns minutos para estudar o quebra-cabeças. Mas faltavam tantas palavras! Como é que conseguiria deslindar o sentido de tal confusão? Enquanto vestia o casaco vermelho e amarrava os cadarços esfiapados e cheios de nós dos seus sapatos, pensou no assunto. Se o papel era impor­tante, não devia guardar segredo. Mas a quem poderia falar? Talvez à capitã mensageira. Ela saberia de coisas assim, como documentos oficiais.

— Capitã Fleery — disse Lina quando chegou ao traba­lho —, acha que teria tempo de vir a minha casa logo? Só por uns minutos? Encontrei uma coisa que gostaria de lhe mostrar.

— O que encontrou? — perguntou a Capitã Fleery.

— Um papel escrito. Acho que talvez seja importante.

A Capitã Fleery ergueu as sobrancelhas finas.

— Importante, como?

— Bem, não tenho certeza. Talvez não seja. Mas não se importaria de dar uma olhada?

Nesse fim de tarde, a Capitã Fleery acompanhou Lina a sua casa e olhou com atenção para os pedaços de papel. Debruçou-se sobre a mesa e examinou as palavras escritas.

— Segu? — disse ela. — Ostas? Tir? Gua? Mas que palavras são estas?

— Não sei — disse Lina. — As palavras estão todas incom­pletas porque a Poppy andou mastigando o papel.

— Estou vendo — disse a Capitã Fleery. Espetou um dedo no papel. — Parecem instruções para alguma coisa — disse. — Uma receita, suponho eu. «Pequena panela de aço» deve ser o recipiente em que se cozinha.

— Mas quem é que poderia ter uma letra assim tão pequena e perfeita?

— Era a forma como se escrevia antigamente — disse a Capitã Fleery. — Pode bem ser uma receita muito, muito antiga.

— Mas então porque é que a teriam guardado nesta caixa tão bonita? — Lina mostrou a caixa à Capitã Fleery. — Acho que meteram o papel aqui dentro por uma razão qualquer. E não se fecha uma coisa à chave a não ser que seja importante...

Mas a Capitã Fleery não parecia ter ouvido Lina.

— Ou talvez seja um caderno de escola — disse ela. — O tra­balho de casa de alguém que não chegou a entregá-lo.

— Mas já viu papel assim como este alguma vez? Não lhe parece que é de outro lugar, não daqui?

A Capitã Fleery endireitou as costas e, com uma expressão intrigada, disse:

— Não existe mais nenhum lugar a não ser este. — Pôs as mãos nos ombros de Lina. — Você, minha querida, está se deixando levar pela imaginação. Anda muito cansada, Lina? Sente-se ansiosa? Eu poderia reduzir seu horário de trabalho durante uns tempos.

— Não — disse Lina. — Eu estou bem. Estou mesmo, sério. Mas não sei o que vou fazer com o... — e apontou para o papel.

— Não se incomode — disse a Capitã Fleery. — Não pense no assunto. Jogue o papel fora. Está se preocupando demais. Eu sei, eu sei, todos andamos preocupados, há tanto com que nos preocupar, mas não podemos deixar que nos pertur­be — acrescentou. Olhou longamente para Lina. Os seus olhos eram da cor da água de lavar louça. — Vem ajuda por aí — disse.

— Ajuda?

— Sim. Vêm nos salvar.

A Capitã Fleery inclinou-se para Lina e baixou a voz, como se fosse contar-lhe um segredo.

— Quem construiu a nossa cidade, querida?

— Os construtores — disse Lina.

— Então. E os construtores virão de novo e irão nos indicar o caminho.

— Vão?

— Muito em breve — disse a Capitã Fleery.

— Como sabe?

A Capitã Fleery endireitou-se de novo e pôs a mão sobre o peito.

— Sei aqui dentro — disse. — E vi em sonhos. Todos nós, os crentes.

Então é nisso que eles acreditam, pensou Lina — e a Capitã Fleery pertence ao grupo. Lina perguntou-se como a Capitã Fleery poderia ter tanta certeza do que iria acontecer só por ter tido um sonho. Talvez para ela fosse o mesmo que a cidade cheia de luz para Lina — ela queria que fosse verdade.

O rosto da capitã iluminou-se.

— Já sei o que pode fazer, querida. Venha a um dos nossos encontros. Levantaria seu ânimo. Nós cantamos.

— Oh — disse Lina —, obrigada, mas não sei se... Talvez um destes dias — acrescentou. Tentou ser delicada, mas sabia que não iria. Não queria ficar de braços cruzados à espera que os construtores chegassem. Tinha outras coisas para fazer.

A Capitã Fleery deu-lhe uma palmadinha no braço.

— Sem compromisso, querida — disse. — Se mudar de idéia, diga-me. Mas siga o meu conselho: esqueça o seu projetozinho de resolver esse quebra-cabeça. Deite-se e tire uma soneca. Dormir desanuvia as idéias — disse. Do seu rosto estreito derramava-se compreensão por Lina. — Tire uma folga amanhã.

Ergueu a mão em sinal de despedida e desceu as escadas.

Lina aproveitou o dia de folga para ir ao Depósito de Abas­tecimento falar com Lizzie Bisco. Lizzie era ágil e esperta. Talvez tivesse alguma boa idéia.

No Depósito de Abastecimento encontrava-se um grande número de lojistas em filas desordenadas que se estendiam até à porta. Impacientes, aos empurrões e às cotoveladas, resmungavam uns com os outros. Lina pôs-se na fila, mas eles estavam tão histéricos que ela se sentiu um pouco assustada. Deviam ter mesmo certeza de que as reservas estavam se esgotando, pensou, e estão decididos a arranjar o que for possível antes que seja tarde demais.

Quando Lina se aproximou do início da fila, ouviu a mesma conversa várias vezes.

— Desculpe — dizia o funcionário quando o lojista pedia dez carteiras de agulhas de cotura, uma dúzia de copos ou vinte em­balagens de lâmpadas. — Há uma grande falta desse produto. Só posso lhe dar um. — Ou então o funcionário dizia: — Desculpe. Está completamente esgotado.

— Para sempre?

— Para sempre.

Lina sabia que nem sempre tinha sido assim. Quando Em­ber era ainda uma cidade nova, os armazéns estavam cheios. Continham tudo o que os cidadãos poderiam que­rer — em tal quantidade que parecia que as reservas nunca se esgotariam. A avó de Lina tinha lhe contado que as crianças da escola faziam sempre uma visita guiada aos armazéns. Apanhavam um elevador ao nível da rua até um túnel longo em curva, com portas de ambos os lados e outros túneis a partir dele em várias direções. O guia conduzia a visita ao longo dos corredores compridos, abrindo uma porta depois da outra.

— Esta zona — dizia — é a dos produtos enlatados. A seguir é a do material escolar. E depois desta curva temos os utensílios de cozinha. A seguir vem a seção de ferramentas de carpintaria.

A cada porta, as crianças apinhavam-se para espiar lá para dentro.

— Cada sala tinha uma coisa diferente — disse a vovó à Lina. — Caixas de tubos de pasta de dentes numa. Caixas de óleo alimentar. Sabonetes. Caixas de comprimidos (só para vitaminas havia vinte salas). Numa sala havia centenas de latas de frutos em conserva empilhadas. Existia uma coisa chamada ananás, lembro-me especialmente dessa.

— O que era ananás? — perguntou Lina.

— Era amarelo e doce — disse a vovó, com uma expressão sonhadora nos olhos. — Comi-o quatro vezes antes de se esgotar.

Mas estas visitas guiadas tinham acabado muito antes de Lina nascer. Já não dava gosto ver os armazéns, diziam as pessoas. A maioria das prateleiras poeirentas estava vazia. Constava-se que em algumas das salas não havia nada. Uma criança que visse as salas onde o leite em pó costumava ser armazenado ou as salas com ligaduras, meias, alfinetes, blocos de notas ou — acima de tudo — as dúzias de salas onde em tempos se armazenavam mi­lhares de lâmpadas, não sentiria, como as gerações anteriores, que a riqueza de Ember era infinita. Hoje em dia, se as crianças fizessem uma visita guiada aos armazéns, sentiriam medo.

Enquanto aguardava a sua vez na fila para a seção de Lizzie, Lina ia pensando sobre tudo isto. Quando chegou a sua vez, debruçou-se sobre o balcão, apoiou os cotovelos e segredou:

— Lizzie, pode vir me encontrar quando acabar o trabalho? Espero por você na porta.

Lizzie acenou que sim, cheia de curiosidade. Às quatro horas, Lizzie saiu correndo da porta do escritório. Lina disse:

— Vem até minha casa um bocadinho? Quero te mostrar uma coisa.

— Claro — disse Lizzie e, enquanto andavam, ela foi falando. — Dói-me o pulso até, de tanto escrever o dia todo — disse. — Tem de se escrever com uma letra muito miudinha para poupar papel, por isso fico sempre com uma cãibra horrível no pulso e nos dedos. E as pessoas são de uma grosseria! Hoje estavam piores do que nunca. Eu disse a um sujeito: «Não pode levar quinze latas de milho, só pode levar três», e ele disse: «Olha aqui, não me venhas com essa, eu vi um monte de latas no mercado da Rua Pott ontem», e eu disse: «Sim, por isso é que já não há muitas hoje», e ele disse: «Não me venha com esperteza, cabeça de cenoura.» Mas o que é que eu posso fazer? Não posso desencantar latas de milho no ar.

Atravessaram a Praça Harken, contornaram a Câmara de Reu­niões e desceram a Rua Roving, onde três dos focos luminosos estavam desligados, transformando-a numa caverna escura.

— Lizzie — disse Lina, interrompendo a torrente de pala­vras —, é verdade o que dizem sobre as lâmpadas?

— É verdade o quê?

— Que já não há muitas.

Lizzie encolheu os ombros.

— Não sei. Quase nunca nos deixam ir lá embaixo aos arma­zéns. O que vemos são os relatórios que os transportadores en­tregam: quantos garfos há na sala 1146, quantos puxadores de porta na 3291, quantos sapatos de criança na 2249...

— Mas quando vê o relatório das salas das lâmpadas, o que é que diz?

— Esse nunca vejo — disse Lizzie. — E alguns outros, como o relatório das vitaminas, só algumas pessoas podem ver.

— Quem?

— Oh, o presidente e, claro, o velho Cara de Banha — disse Lizzie, e Lina olhou para ela sem compreender. — Sabe quem é, Farlo Batten, o chefe dos armazéns. Ele é tão mesquinho, Lina, se o conhecesse, o detestaria com certeza. Marca falta de atraso quando chegamos nem que seja dois minutos depois das oito horas, e espia por cima dos nossos ombros quando estamos escrevendo, o que é horrível porque ele tem mau hálito, e passa um dedo pelo que escrevemos e diz: «Esta palavra é ilegível, aquela palavra é ilegível, estes números são ilegíveis.» É a palavra preferida dele, ilegível.

Quando chegaram à rua de Lina, ela assomou à porta da loja de lãs e, depois de dizer olá à vovó, subiram as escadas para o apartamento. Lizzie estava dizendo como lhe custava passar o dia todo de pé, como lhe causava dores nos joelhos e os sapatos lhe apertavam. Parou de falar o tempo suficiente para cumpri­mentar Evaleen Murdo, que estava sentada à janela com Poppy no colo, e começou outra vez a falar quando Lina a levou para o quarto.

— Lina, onde é que você estava quando houve o corte de energia? — perguntou, mas continuou a falar sem esperar pela resposta. — Eu estava em casa, felizmente. Mas foi assustador, não foi?

Lina acenou que sim. Não queria falar do que tinha acontecido naquele dia.

— Detesto aqueles cortes de energia — continuou Liz­zie. — Diz-se que vai haver cada vez mais e que um dia destes... — parou de falar, franziu a testa e recomeçou: — Seja como for, não me aconteceu nada de mal. Depois do corte de energia, levantei-me e arranjei um penteado totalmente novo.

Lizzie parecia à Lina um relógio com corda demais, muito acelerado. Ela sempre tinha sido um bocadinho assim, mas hoje estava pior do que nunca. O seu olhar saltitava de um lado para o outro e não parava de mexer na bainha da camisa. Parecia mais pálida do que habitualmente. As sardas sobressaíam-lhe no nariz como marcas de sujeira.

— Lizzie — disse Lina, chamando-a para junto da mesa ao canto do quarto —, quero te mostrar...

Mas Lizzie não estava ouvindo.

— Tem tanta sorte em ser mensageira, Lina — disse ela. — É divertido? Quem me dera ser mensageira. Com certeza seria ótima. O meu emprego é tão aborrecido!

Lina voltou-se e olhou para ela.

— Não há mesmo nada de que goste nele?

Lizzie deu um sorrisinho de lábios fechados e olhou de lado para Lina.

— Há uma coisa — disse.

— O quê?

— Não posso dizer. É segredo.

— Oh — disse Lina. Então, não devia ter mencionado nada, pensou.

— Talvez um dia eu te diga — disse Lizzie. — Não sei.

— Bem, eu gosto do meu trabalho — disse Lina. — Mas aquilo de que queria falar era do que encontrei ontem. É isto.

Pegou na caixa e tirou o papel que cobria o documento em pedaços colados. Lizzie deu uma olhada.

— É uma mensagem que alguém te entregou? Que se rasgou?

— Não, estava no nosso armário. A Poppy andou mastigando, por isso está toda em pedaços. Mas olhe para a letra. Não é estranha?

— Hum — disse Lizzie. — Sabe quem tem uma letra lindíssima? A Myla Bone, que trabalha comigo. Tem que ver, faz uns rabiscos nos efes e nos jotas e umas curvas todas bem feitas nas maiúsculas. Claro, o Cara de Banha acha-a hor­rível, diz que é ilegível...

Lina voltou a cobrir os pedaços colados do documento com a folha. Perguntou-se porque achara que Lizzie se interessaria pelo que ela tinha encontrado. Sempre se divertira com Lizzie. Mas divertiam-se brincando — de esconder, de cabra-cega, nos tipos de jogos em que se corre e trepa. Lizzie nunca se inte­ressara especialmente por coisas escritas.

Por isso, Lina voltou a pôr o documento no seu lugar e sen­tou-se no chão com Lizzie. Ouviu, ouviu, até Lizzie esgotar sua tagarelice.

— É melhor eu ir andando — disse Lizzie por fim. — Gostei de te ver, Lina. Tenho saudades suas — acrescentou. Pôs-se de pé e penteou o cabelo com os dedos. — O que é que queria me mostrar? Ah, sim, o tal papel todo bem escrito. Muito bonito. Que sorte tê-lo encontrado. Venha me visitar outra vez, está bem? Aquele escritório me aborrece de morte.

Lina preparou sopa de beterraba para o jantar e Poppy entornou a dela e fez uma poça vermelha na mesa. A vovó fitava o prato, mexendo a sopa com a colher, mas não comia. Não se sentia lá muito bem, disse à Lina; pouco depois, foi se deitar. Lina arrumou rapidamente a cozinha. Mal acabasse o trabalho doméstico poderia ir estudar o documento. Lavou as roupas de Poppy. Coseu os botões que tinham caído do seu casaco de mensageira. Apanhou os farrapos e sacos e caixas que a vovó tinha atirado do armário para o chão. E depois de fazer tudo isto e deitar Poppy, ainda tinha quase meia hora para estudar os fragmentos de papel.

Sentou-se à sua mesinha e descobriu o documento. Com os cotovelos a ladeá-lo e o queixo apoiado nas mãos, examinou-o atentamente. Embora Lizzie e a Capitã Fleery não lhe tivessem prestado qualquer atenção, Lina continuava pensando que esta folha toda rasgada devia ser importante. Por que outra razão a teriam guardado numa caixa com um fecho tão seguro? Talvez devesse mostrar o documento ao presidente, pensou com relu­tância. Não gostava do presidente. E também não confiava nele.

Mas, se este documento fosse importante para o futuro da cidade, era ele quem devia ser informado da sua existência. É claro que Lina não podia pedir ao presidente que viesse a sua casa. Imagi­nou-o subindo as escadas respirando a custo, entrando pela porta com dificuldade, olhando reprovadoramente à desarrumação da casa, evitando as mãos pegajosas de Poppy — não, não podia ser.

Mas ela também não queria levar o documento cuidado­samente colado à Câmara de Reuniões. Era frágil demais. Decidiu que a melhor coisa a fazer era escrever uma carta ao pre­sidente. E foi o que se pôs a fazer.

Encontrou meia folha de papel pouco estragada e, com um lápis normal (não ia gastar os lápis de cor escrevendo ao presi­dente), escreveu:

 

Caro Presidente Cole,

Descobri um documento que estava no armário. São instruções para alguma coisa. Acho que é importante, porque está escrito numa letra muito antiga. Infelizmente, a minha irmã mastigou-o, por isso não está completo. Mas ainda é possível ler algumas partes, como por exemplo:

 

assinalado com E

encontrar porta de ba

panela pequena de aço

Eu mostro este documento se quiser vê-lo.

Atenciosamente

Lina Mayfleet, Mensageira

Praça Quillium 34

 

Dobrou a carta ao meio e escreveu «Presidente Cole» na frente. A caminho do trabalho no dia seguinte levou-a à Câmara de Reuniões. Não havia ninguém sentado à mesa do guarda, por isso Lina deixou a carta de forma que o guarda a visse quando chegasse. Depois, sentindo que tinha cumprido o seu dever, dirigiu-se para o seu posto.

Passaram-se vários dias. As mensagens que Lina transmitia estavam cheias de preocupação e receios. «Tem Bebida de Bebê sobrando? Não consigo encontrá-la na loja.» «Já ouviu o que an­dam dizendo sobre o gerador?» «Não podemos ir hoje à noite, o Vovô B. não quer sair da cama.»

Todos os dias, quando chegava em casa do trabalho, Lina per­guntava à vovó:

— Veio alguma mensagem para mim?

Mas nunca havia nada. Talvez o presidente não tivesse rece­bido sua carta. Talvez a tivesse recebido e não tivesse pres­tado atenção. Ao fim de uma semana, Lina decidiu que estava cansada de esperar. Se o presidente não estava interessado no que ela tinha encontrado, pior para ele. Ela estava interessada. Desco­briria sozinha do que se tratava.

Por duas vezes durante essa semana, enquanto Poppy e a vovó dormiam, teve algum tempo livre. Passou-o copiando o do­cumento, para o caso de acontecer alguma coisa ao frágil original. Levou muito tempo. Usou uma das poucas folhas que lhe res­tavam — uma etiqueta velha de uma lata de ervilhas, ligeiramente rasgada. A cópia era tão exata quanto possível, com as partes que faltavam entre as letras cuidadosamente assinaladas com tra­vessões. Guardou-a debaixo do colchão da sua cama.

Agora, tinha finalmente uma noite livre. Poppy e a vovó estavam dormindo e o apartamento estava arrumado. Lina sentou-se à mesa e descobriu o documento em pedaços colados. Prendeu o cabelo para não lhe cair no rosto e pôs ao seu lado um pedaço de papel — em branco, a não ser por uns garranchos de Poppy — para escrever o que ia decodificando.

Começou pelo título. Já tinha adivinhado a primeira palavra. Tinha de ser Instruções. A palavra seguinte poderia ser para. A se­guir vinha Egres — não tinha a certeza do que fosse. Talvez o nome de alguém. Egresman. Egreston. Instruções para Egreston. Decidiu abreviar o título para As Instruções.

Passou à primeira linha. Este doc ofic provavelmente significava Este documento oficial. Talvez segur significasse seguro. Ou segurança. A seguir vinham as palavras período de nos e cidade. Mas depois faltavam tantas palavras!

Estudou a linha a seguir ao número 1. Exp. Podia ser expectativa, expedição ou tantas outras coisas. Avançou para ri. Podia ser parte de uma palavra como cria ou ria. O que é que seriam ema e liza? Estavam tão próximas que talvez formassem parte de uma só palavra. O que é que terminava em -ema? Tema, pensou Lina. Gema. Esquema. O que terminava em -liza?. Baliza era o que lhe ocorria imediatamente. Tema de baliza. Esquema de baliza. Nada que fizesse sentido.

Talvez não fosse baliza. Que outras palavras terminavam em -liza? Começando pelo princípio do alfabeto, Lina passou em revista todas as palavras que rimavam com baliza. A maior parte não fazia sentido: caliza, daliza,faliza, galiza, jaliza... Isto não ia dar certo, pen­sou ela toda triste. Oh... canaliza! A palavra podia ser canaliza.

Então o que seria a primeira parte? Tema de canaliza? Gema de canaliza? Mas talvez houvesse mais letras entre as palavras. Tema de canalizações? Se tema de canalizações?

De repente descobriu o que era. Sistema de Canalizações. Sistema de Canalizações! Tinha de ser isso. Algo na mensagem era sobre o Sistema de Canalizações.

Lina voltou a olhar para Exp e ri. Ri! Podia ser rio! Percor­reu rapidamente a página com os olhos. Na linha 3 viu argem o io — parecia margem do rio. A palavra porta, na linha quatro, saltou-lhe à vista, completa no seu pedacinho de papel. Lina respirou fundo. Uma porta! E se fosse a porta que ela queria encontrar, a que conduzia à outra cidade? Talvez afinal a sua cidade fosse real e estas fossem as instruções para encontrá-la!

Tinha vontade de pular da cadeira e gritar. A mensagem tinha alguma coisa a ver com o rio, uma porta e o Sistema de Canalizações. E quem é que ela conhecia que trabalhasse no Sis­tema de Canalizações? Doon, claro.

Recordou o seu rosto magro e sério e os olhos penetrantes por baixo das sobrancelhas escuras. Recordou a forma como se debruçava sobre o trabalho na escola, agarrando o lápis com força, e como, durante os intervalos, ia ficar sozinho num canto examinando uma traça, uma minhoca ou um relógio des­montado. Essa era pelo menos uma das coisas de que ela gostava em Doon: a sua curiosidade. Prestava atenção nas coisas.

E também se preocupava com as coisas. Lina ainda se lem­brava dele no Dia de Atribuição de Serviço, tão furioso com o presidente, tão ansioso por trocar o seu bom emprego pelo dela, que era ruim, para poder ajudar a salvar a cidade. E tinha levado Poppy para a loja do seu pai no dia do corte de energia, para ela não ter medo.

Porque é que ela tinha deixado de ser amiga de Doon? Re­cordava vagamente o incidente do poste de luz. Parecia agora uma tolice de há muito tempo. Quanto mais pensava sobre Doon, mais lhe parecia que ele era a pessoa — a única pessoa — que poderia se interessar pelo que ela tinha encon­trado.

Cobriu as instruções com a folha e pôs a caixa por cima. Vou falar com Doon, pensou. Amanhã é quinta-feira — o dia de folga de ambos. Ia falar com ele amanhã e pedir ajuda.

 

                                   EXPLORAÇÕES

Ultimamente Doon dera para vagar pelo Sistema de Cana­lizações sozinho. Ia para o túnel que lhe competia e fazia o seu trabalho rapidamente — depois de uma pessoa se habituar a utilizar as ferramentas, as escovas e os tubos de cola, não era difícil. A maior parte dos trabalhadores fazia o trabalho rapidamente e depois juntava-se em pequenos grupos jogando cartas, fazendo cor­ridas de salamandras ou mesmo só conversando ou dormindo.

Mas Doon não se interessava por nada disso. Se tinha que estar no Sis­tema de Canalizações, pelo menos não perderia o seu tempo. Desde o corte de energia prolongado, tudo parecia mais urgente do que nunca. Sempre que as luzes pareciam falhar, ele receava que o velho gerador estivesse dando um último tremor e parasse de vez.

Por isso, enquanto os outros descansavam, ele se dirigia para as zonas-limite do Sistema de Canalizações para ver o que era possível ver.

— Preste atenção — dissera-lhe seu pai, e era o que ele fazia. Orientava-se pelo mapa quando podia, mas em alguns locais ele não era claro. Havia até túneis que não apareciam no mapa. Para não se perder, ia deixando uma trilha de coisas à sua passagem, anilhas, parafusos, pedaços de arame, o que tivesse no seu cinto de fer­ramentas, e depois as recolhia ao regressar.

O seu pai tinha pelo menos um bocadinho de razão: pres­tando atenção, havia coisas interessantes no Sistema de Canaliza­ções. Já tinha encontrado três novos animais rastejantes: um besouro preto do tamanho da cabeça de um alfinete, uma traça com asas peludas e, o melhor de tudo, um animal com um corpo mole e brilhante e uma pequena concha com um padrão em espiral às costas. Logo depois de ter encontrado este último, quando estava sentado no chão olhando fascinado para o bichi­nho subindo-lhe pelo braço, dois trabalhadores passaram por ele e o viram. Desataram às gargalhadas.

— É o menino dos bichos! — disse um deles. — Está apanhando bichos para o almoço dele!

Furioso, Doon pôs-se de pé de um salto e desatou a gritar. O movimento súbito fez com que o bicho caísse de seu e ele sentiu alguma coisa se esmagando debaixo do pé. Os trabalhadores folgazões não notaram — disseram mais algumas piadas e continuaram a andar —, mas Doon adivinhou logo o que tinha feito. Levantou o pé e olhou para o bicho es­magado.

Conseqüências não intencionais, pensou desanimado. Estava furioso com a sua fúria, com a forma como o invadia e se apode­rava dele. Raspou os pedaços de concha e da substância viscosa da sola do sapato e pensou: «Desculpe. Não era minha intenção matá-lo».

Nos dias seguintes, Doon avançou cada vez mais pelo Sis­tema de Canalizações, mantendo a esperança de encontrar algu­ma coisa que fosse não só interessante, mas também importante. Mas o que encontrava não parecia nada importante. Uma vez deu com um velho alicate que alguém tinha deixado cair sem querer. Por duas vezes encontrou uma moeda. Descobriu um armário de materiais que parecia ter sido completamente esquecido, mas nele só havia caixas de tampões e anilhas e uma lancheira enferrujada com restos secos do que, em tempos, devia ter sido o almoço de alguém.

Encontrou um outro armário de ferramentas no extremo sul do Sistema de Canalizações — pelo menos era o que lhe parecia. Ficava ao fundo de um túnel e tinha uma corda atravessada; numa tabuleta podia se ler: «Desabado. Proibida a entrada.» Mesmo assim, Doon entrou, passando por baixo da corda. Não encontrou qualquer sinal de desabamento, mas não havia luzes. Avançou às apalpadelas cerca de vinte passos e nesse ponto o túnel terminava numa porta trancada — não conseguia vê-la, mas tocou-a. Voltou para trás, passou por baixo da corda e continuou a andar. A pouca distância encontrou um postigo no teto do túnel — um painel quadrado de madeira que, pensou ele, devia dar nos armazéns. Se tivesse alguma coisa para subir, poderia alcançar e tentar abri-lo, mas ficava a cerca de trinta centímetros acima de sua mão estendida. De qualquer maneira, provavelmente estaria trancado. Pensou se os construtores teriam utilizado passagens como esta durante a construção da cidade para se deslocarem mais facilmente de um lugar para outro.

Nos dias em que a tarefa que lhe cabia ficava mais próxima do túnel principal, por vezes caminhava ao longo do rio depois de acabar o trabalho. Nunca se aproximava do limite leste, onde se encontrava o gerador; não queria pensar no gerador. Em vez disso, encaminhava-se na direção oposta, onde o rio jorrava para fora do Sistema de Canalizações. Nesta parte, o caminho era menos plano e mais acidentado. Aqui, a margem do rio eram montinhos de pedregulhos que pareciam nascer do solo como fungos. Doon gostava de se sentar nestes montinhos e passar os dedos pelas estranhas fissuras e buracos que deviam ter sido talhadas de alguma forma pela corrente da água. Em alguns lugares havia incisões que quase pareciam uma espécie de escrita.

Mas o que Doon não encontrava eram coisas importantes. Parecia que, afinal, o Sistema de Canalizações não tinha qualquer interesse para uma pessoa que quisesse salvar a cidade. No gerador nem valia a pena pensar. Doon jamais compreenderia a eletricidade. Antes, pensava que poderia utilizar a eletricidade para criar uma luz transportável, se estudasse muito. Desmontava lâmpadas; desmontava as tomadas na parede para ver como se enrolavam os fios lá dentro e tomava choques que lhe trespas­savam o corpo todo. Mas quando tentava enrolar os fios que tinha exatamente da mesma maneira não acontecia nada. Era o que passava pelos fios que fazia a luz, compreendeu por fim, e não fazia idéia do que fosse.

Agora, só conseguia imaginar duas opções: desistir e não fazer nada ou começar a tentar criar um tipo diferente de luz trans­portável.

Doon não queria desistir. Por isso, numa das quintas-feiras, o seu dia de folga, foi à Biblioteca de Ember à procura de infor­mações sobre fogo.

A biblioteca ocupava um edifício inteiro num dos lados da Praça Bolbollio. A porta ficava ao fundo de um corredor pe­queno no meio do edifício. Doon desceu o corredor, empurrou a porta e entrou. Não havia mais ninguém na biblioteca a não ser o bibliotecário, o velho Edward Pocket, que estava sentado à sua escrivaninha escrevendo alguma coisa com um lápis minúsculo na mão enclavinhada. A biblioteca tinha duas salas grandes, uma para ficção, que eram histórias que as pessoas in­ventavam, e a outra para fatos, que era informação sobre o mundo real. As paredes de ambas as salas estavam forradas com prateleiras e na maioria das prateleiras havia centenas de maços de folhas. Cada maço estava amarrado com pedaços de barbante forte. Os maços estavam encostados uns aos outros e empilhados de forma desordenada. Alguns eram grossos e outros tão finos que bastava um clipe para segurar as folhas. As páginas dos maços mais antigos estavam amareladas e retorcidas, com as margens ondu­ladas e incertas.

Estes eram os livros de Ember, escritos ao longo dos anos pelos cidadãos. Nas suas páginas de escrita cerrada, continham muito do que era imaginável e tudo o que era sabido.

Edward Pocket olhou para cima e acenou com a cabeça para Doon, que era um dos freqüentadores mais assíduos da bi­blioteca. Ele retribuiu o aceno. Entrou na sala dos fatos e dirigiu-se para a seção F das prateleiras. Os livros estavam arrumados por assunto, mas, mesmo assim, não era fácil encontrar o que se pretendia. Um livro sobre traças, por exemplo, poderia se encontrar em T de traça ou I de inseto ou B de bichos. Até podia estar em V de Voadores. Normalmente tinha que se esquadrinhar toda a biblioteca para se ter certeza de encontrar todos os livros sobre o assunto pretendido. Mas, como estava procurando informação sobre fogo, Doon achou que poderia começar pela letra F.

O fogo era uma raridade em Ember. Quando havia um in­cêndio, devia-se a algum acidente — alguém deixava por esque­cimento um pano de cozinha muito perto de um disco ligado no fogão, ou um fio de um eletrodoméstico esfiapava-se e soltava-se uma faísca que ateava fogo aos cortinados. Nessas ocasiões, os cidadãos acorriam apressados com baldes de água e o fogo era rapidamente apagado. Evidentemente, era possível provocar o fogo de propósito. Podia se aproximar uma lasca de ma­deira ao disco de um fogão até ela ficar em chamas; e então, por um momento, a madeira crepitava com um brilho intenso, emitindo uma luz alaranjada.

A questão era encontrar maneira de fazer a luz durar. Com uma luz que se mantivesse acesa, poderia penetrar nas Re­giões Desconhecidas e ver o que havia lá. Descobrir uma ma­neira de explorar as Regiões Desconhecidas era a única coisa que ocorria a Doon.

Tirou um livro da prateleira F. Chamava-se Fungos. Voltou a pô-lo no seu lugar. O livro seguinte chamava-se Como Reparar Mobiliário. Voltou a pôr esse livro também no lugar. Tirou Doenças Físicas, Fios e Seus Usos, Como Aceitar o Fracasso e Receitas de Frutos Enlatados antes de encontrar por fim um livro chamado Tudo sobre o Fogo. Sentou-se a uma das mesas quadradas da biblioteca para lê-lo.

Mas a pessoa que tinha escrito o livro sabia tanto sobre o fogo como Doon. O livro consistia principalmente numa descrição dos perigos do fogo. Um capítulo bastante longo era sobre um edifício na Praça Winifred que tinha se incendiado há quarenta anos e como todas as portas e mobiliário tinham ardido, en­chendo o ar de fumaça durante dias. Uma outra parte era sobre o que fazer se o forno pegasse fogo.

Doon fechou o livro e soltou um suspiro. Não valia a pena. Até ele próprio poderia escrever um livro melhor do que aquele. Levantou-se e pôs-se a vagar pela biblioteca. Por vezes, poderiam se encontrar coisas úteis escolhendo livros à sorte. Já tinha feito isso muitas vezes — estender o braço e pegar num livro qualquer — na esperança de dar por acaso com a infor­mação de que precisava. Poderia ser alguma coisa que outra pessoa tivesse escrito sem se aperceber do seu significado, só uma ou duas frases que seriam como um clarão no espírito de Doon, acrescentando-se a coisas que ele já sabia, de forma a fornecer-lhe a solução para tudo.

Embora encontrasse muitas vezes coisas interessantes nestas suas buscas, nunca dera com nada de importante. Hoje estava sendo a mesma coisa. Encontrou uma série chamada Palavras Misteriosas do Passado, que leu durante algum tempo. Era sobre palavras e expressões tão antigas que o seu significado tinha caído no esquecimento. Leu algumas páginas.

 

Céus!

Indica surpresa.

O significado de «céus» não é claro. Talvez seja um sinônimo de «focos de luz».

 

Cama de gato

Significa «algo sem sentido, confuso», embora ninguém saiba o que é um gato e onde se deitaria.

 

Marcar gol

Indica grande sucesso. Talvez se refira a um hábito primitivo de deixar marcas.

 

Todos no mesmo barco

Significa «todos com o mesmo problema». O significado de «barco» é desconhecido.

 

Interessante, mas sem qualquer utilidade. Voltou a pôr o livro na prateleira e estava para ir embora quando a porta da biblioteca se abriu e Lina Mayfleet entrou.

 

                         A PORTA NO TÚNEL VEDADO

Lina viu Doon imediatamente — ele estava com o braço erguido pondo um livro numa prateleira. Doon também a viu, quando se voltou; e arregalou os olhos quando ela se diri­giu a ele toda apressada.

— Seu pai me disse que estava aqui — disse ela. — Doon, eu encontrei uma coisa. Quero te mostrar.

— Para mim? Por quê?

— Acho que é importante. Tem a ver com o Sistema de Canalizações. Vem até minha casa ver?

— Agora? — perguntou Doon. Lina acenou que sim.

Doon agarrou seu velho casaco castanho e seguiu Lina. Saíram da biblioteca e atravessaram a cidade até à Praça Quillium.

A loja da vovó estava fechada e às escuras quando chegaram e por isso, ao entrarem a casa, Lina ficou surpreendida ao ver Evaleen Murdo sentada no seu lugar à janela.

— A sua avó está no quarto dela — disse a Sra. Murdo. — Como não se sentia bem, pediu-me para vir até aqui.

Poppy estava sentada no chão batendo com uma colher na perna de uma cadeira.

Lina apresentou Doon e depois levou-o para o quarto que partilhava com Poppy. Ele pôs-se a olhar à sua volta e Lina sentiu-se subitamente embaraçada ao ver o seu quarto atra­vés dos olhos dele. Era um quarto pequeno e muito atravancado. Havia duas camas estreitas, uma escrivaninha muito pequena a um canto e um banco de quatro pernas. Das paredes pendiam roupas penduradas em ganchos, e mais roupas espalhavam-se numa gran­de desarrumação pelo chão. Abaixo da janela havia uma mancha castanha causada pelas sementes de feijão que estavam num vaso no parapeito da janela. Lina regava o vaso todas as noites por­que tinha prometido à Clary que o faria, mas continuava não passando de terra lisa e pouco promissora.

Em duas prateleiras ao lado da janela Lina tinha todas as suas coisas importantes: os pedaços de papel que ia arranjando para os seus desenhos, os lápis, um lenço com um fio de prata entretecido no padrão. Nas partes das paredes onde não havia ganchos nem prateleiras tinha colado alguns dos seus desenhos.

— O que são aqueles desenhos? — perguntou Doon.

— São da minha imaginação — disse Lina, sentindo-se ligeiramente embaraçada. — São imagens de... outra cidade.

— Ah. Inventadas por você.

— Mais ou menos. Às vezes sonho com ela.

— Eu também faço desenhos — disse Doon. — Mas dese­nho outro tipo de coisas.

— Como por exemplo?

— Principalmente insetos — disse Doon.

Falou-lhe da sua coleção de desenhos e da minhoca que an­dava observando naquele momento.

Para Lina, isto parecia muito menos interessante do que uma cidade por descobrir, mas não o disse. Dirigiu-se para a escrivaninha com Doon.

— Aqui está o que queria te mostrar — disse.

Levantou a caixa de metal. Antes de ter tempo de pegar nos papéis que estavam por baixo, Doon tirou-lhe a caixa das mãos e começou a examiná-la.

— De onde isto veio? — perguntou ele.

— Estava no armário — disse Lina.

Falou-lhe da busca desordenada da vovó e de como ela tinha encontrado a caixa aberta e Poppy com papel na boca. En­quanto falava, Doon virou a caixa de todos os lados, abriu e fechou a tampa e olhou com atenção para o fecho.

— Há um mecanismo estranho aqui — disse ele. Bateu com os nós dos dedos num pequeno compartimento de metal na parte frontal da caixa. — Gostaria de vê-lo por dentro.

— E aqui está o que estava na caixa — disse Lina, tirando o papel de cima da manta de retalhos de pedacinhos de papel. — Ou o que resta do que estava lá dentro.

Doon debruçou-se sobre o papel, com as mãos uma de cada lado da folha.

Lina disse:

— Chama-se «Instruções para Egreston». Ou talvez «Egresman». Seja como for, é o nome de uma pessoa. Talvez um presi­dente ou um guarda. Eu a chamo só de «As Instruções». Falei disso ao presidente, pensei que talvez fosse importante. Escrevi-lhe uma carta, mas ele não respondeu. Não me parece que es­teja interessado.

Doon não disse nada.

— Não precisa evitar respirar em cima dela — disse Lina. — Eu colei os pedaços. Olhe — disse ela, apontando para uma palavra. — Esta palavra deve ser Sistema de Canalizações. E esta, rio. E olhe para esta: porta.

Doon não respondeu. Uma madeixa de cabelo tinha-lhe caído para a frente e Lina não conseguia ver a expressão de seu rosto.

— A princípio — prosseguiu Lina — pensei que deveriam ser instruções para fazer alguma coisa. Como consertar a eletricidade, talvez. Mas depois pensei: e se fossem instruções para ir para outro lugar? — Como Doon não dizia nada, Lina con­tinuou a falar: — Quero dizer, um outro lugar que não seja aqui, como por exemplo outra cidade. Eu acho que estas instruções dizem: «Desça ao Sistema de Canalizações e procure uma porta.»

Doon afastou o cabelo da testa, mas continuou debruçado sobre o papel. Fitava as palavras incompletas e franzia as sobran­celhas.

— «Ord» — murmurou. — «Pequena panela de aço.» O que é que isso poderia significar?

— Uma panela para cozinhar? — disse Lina. — Mas não sei para que é que haveria uma panela no Sistema de Canali­zações.

Doon não respondeu. Parecia estar falando consigo mesmo. Continuou a ler, traçando com um dedo as linhas de palavras.

— «Abrir» — murmurou. — «Seguir.» Por fim, voltou-se e olhou para Lina.

— Acho que tem razão — disse. — Eu acho que isto é importante mesmo!

— Oh, tinha certeza de que ia concordar! — gritou Lina. Estava tão aliviada que as palavras saíam-lhe numa corrente. — Por­que você leva as coisas a sério! Você disse a verdade ao presidente no Dia da Atribuição de Serviço. Eu não queria acreditar, mas depois deu-se o corte de energia e eu soube... Soube que as coisas estavam tão mal como você tinha dito — confessou, e parou de falar, sem fôlego. Apontou para uma palavra no documento. — Esta porta — disse — tem que ser uma porta que dá para a saída de Ember.

— Não sei — disse Doon. — Talvez. Ou uma porta que dê para alguma coisa importante, mesmo que não seja isso.

— Mas tem de ser isso mesmo. Que outra coisa poderia ser suficientemente importante para a fecharem numa caixa tão es­pecial?

— Bem... Poderia ser um compartimento com ferramen­tas especiais ou qualquer coisa assim... — disse Doon. Fez uma expressão de surpresa. — Por acaso, eu vi uma porta onde não esperava encontrar porta nenhuma, no Túnel Trezentos e Cinqüenta e Um. Estava trancada. Pensei que seria um velho armário de ferramentas. Será do que fala aqui?

— Deve ser! — gritou Lina. Seu coração começou a bater mais depressa.

— Mas não era perto do rio — disse Doon com um ar de dúvida.

— Isso não importa! — disse Lina. — O rio atravessa o Sistema de Canalizações, é tudo. Deve ser qualquer coisa assim: «Desça até o rio, depois vá por aqui, depois por ali...»

— Talvez — disse Doon.

— Tem de ser mesmo! — gritou Lina. — Eu sei que é com certeza! É a porta para sair de Ember.

— Não sei se isso faz sentido — disse Doon. — Uma porta no Sistema de Canalizações só pode dar para algum lugar subter­râneo e como é que isso poderia...

Lina não tinha paciência para ouvir os raciocínios de Doon. Apetecia-lhe dançar em volta do quarto, tal era a sua excitação.

— Temos que descobrir — disse. — Devemos descobrir já!

Doon parecia sobressaltado.

— Bem, eu posso ir outra vez tentar abrir aquela porta — dis­se. — Antes estava fechada, mas acho que...

— Eu também quero ir — disse Lina.

— Quer descer ao Sistema de Canalizações?

— Quero! Pode conseguir me fazer entrar?

Doon pensou por uns instantes.

— Acho que sim. Se vier bem na hora da saída e esperar do lado de fora, eu me escondo até todo mundo ter ido embora e depois abro-lhe a porta.

— Amanhã?

— Está bem. Amanhã.

Lina passou em casa no dia seguinte, só o tempo suficiente para tirar o casaco de mensageira, e depois atravessou a cidade correndo até o Sistema de Canalizações. Doon veio encontrá-la na porta e ela o seguiu até o interior, onde ele lhe deu um im­permeável e um par de botas. Desceram a longa escada de pedra e, quando entraram no túnel principal, Lina ficou parada olhando para o rio.

— Não sabia que o rio era assim tão grande — disse, quando recuperou a fala.

— É — disse Doon. — Dizem que a cada meia dúzia de anos alguém cai lá dentro. O rio engole a pessoa e a corrente a arrasta.

Lina estremeceu. Estava frio lá em baixo, um frio que a trespassava e ela sentia no corpo, no sangue, nos ossos.

Doon avançou pelo caminho ao lado do rio. Depois de algum tempo chegaram a uma abertura na parede por onde en­traram, deixando o rio para trás. Doon seguia à frente indicando o caminho pelos túneis em ziguezague. Chapinhavam com as botas de borracha em poças de água. Lina pensou como seria horrível trabalhar lá em baixo o dia todo, todos os dias. Era um lugar assustador, um lugar que não parecia próprio para pessoas. Aquele rio negro... Era como uma coisa de pesadelo.

— Aqui tem que abaixar a cabeça — disse Doon. Tinham chegado a um túnel vedado por uma corda.

— Mas aqui não há luz — disse Lina.

— Pois é — disse Doon. — Temos que ir pelo tato. Não fica longe.

Passou por baixo da corda e entrou, e Lina fez o mesmo. Avançaram no escuro. Lina mantinha uma das mãos apoiada ao muro úmido e dava passos cautelosos.

— É bem aqui — disse Doon. Tinha parado um pouco à frente de Lina. Ela se aproximou. — Estenda as mãos — disse ele. — Vai sentir a porta.

Lina tocou numa superfície lisa e dura. Havia um puxador de metal redondo e abaixo do puxador o buraco de uma fe­chadura. Parecia uma porta normal — nada como a entrada para um novo mundo. Mas era isso que tornava tudo tão excitante — nunca nada era como se esperava.

— Vamos experimentá-la — segredou ela. Doon agarrou o puxador e girou-o.

— Está trancada — disse.

— Há uma panela em algum lugar?

— Uma panela?

— As instruções diziam «pequena panela de aço». Talvez a chave esteja dentro dela.

Tatearam o espaço à sua volta, mas não havia nada — so­mente as paredes rochosas. Bateram nas paredes, escutaram à porta, rodaram o puxador e puxaram-no e empurraram-no. Por fim, Doon disse:

— Bem, não conseguimos entrar. Acho que o melhor é irmos embora.

E foi então que ouviram o ruído. Era um ruído de algo sendo arranhado e raspado e parecia vir de algum lugar próximo. Lina susteve a respiração. Agarrou o braço de Doon.

— Depressa — segredou Doon.

Avançou para o túnel iluminado e Lina o seguiu. Passaram por baixo da corda, dobraram uma esquina e depois pararam e ficaram muito quietos à escuta. Um som forte de algo sendo ras­pado. Um baque. Uma pausa... e depois o som do impacto de algo caindo, um suspiro curto e explosivo e uma palavra resmun­gada numa voz rouca e baixa.

Depois, passos lentos se aproximando.

Encostaram-se à parede e ficaram imóveis. Os passos pararam por um instante e ouviu-se mais um grunhido. A seguir, os passos continuaram, mas pareciam estar se afastando. Pouco depois, a alguma distância, ouviu-se um outro som: o tilintar de uma chave rodando na fechadura e o estalido de um fecho se abrindo.

Lina fez uma careta de surpresa. Alguém tinha descido o túnel vedado e abrira a porta! Encostou os lábios à orelha de Doon.

— Vamos tentar ver quem é? — segredou.

Doon abanou a cabeça.

— Acho que é melhor não irmos — disse. — É melhor irmos embora.

— Poderíamos ir só espiar ali da esquina.

A tentação era forte demais. Avançaram muito lentamente até à esquina do túnel. Dali viam a entrada para o túnel vedado. Sustendo a respiração, ficaram à espreita.

Passado um minuto ouviram um baque e um estalido — a porta sendo trancada — e passos mais uma vez, agora rápidos. Uma perna comprida passou por cima da corda e a pes­soa a quem pertencia virou-se e afastou-se. Só o viram de costas — tinha um casaco escuro e cabelo também escuro e desgre-nhado. Andava com um movimento sacudido que pareceu fami­liar à Lina. Em poucos segundos tinha desaparecido nas sombras.

 

Quando saíram do Sistema de Canalizações, tiraram as botas e os impermeáveis e foram correndo até a Praça Plummer, onde se sentaram num banco de jardim e começaram a falar cheios de animação.

— Alguém chegou lá antes de nós! — disse Lina. Doon disse:

— Ele andava devagar quando entrou, como se estivesse à procura de alguma coisa. E andou depressa ao sair...

— Como se tivesse encontrado alguma coisa! O que seria? De­testo não saber!

Doon levantou-se de um salto. Começou a andar de um lado para o outro à frente do banco.

— Mas como é que ele arranjou a chave? — perguntou. — Terá descoberto instruções como as que você encontrou? E como é que ele entrou no Sistema de Canalizações? Não me parece que trabalhe lá.

— Há alguma coisa familiar na forma como ele anda — dis­se Lina. — Mas não sei por quê.

— Bem, seja como for, ele abriu a porta e nós não conse­guimos — disse Doon. — Se vai mesmo dar em algum lugar, se dá para a saída de Ember, ele vai dizer a todos da cidade logo. Vai ser um herói — acrescentou Doon, voltando a sen­tar-se. — Se ele descobriu a saída, nós ficaremos contentes, claro — disse, com um ar abatido. — Não importa quem a encontre, desde que ajude a cidade.

— Tem razão — disse Lina.

— Mas eu pensei que seríamos nós a descobri-la — disse Doon.

— Pois é — disse Lina, pensando que bom teria sido poder anunciar a toda cidade a sua descoberta.

Ficaram sentados sem falar durante algum tempo, ocupados com seus pensamentos. Passou um homem puxando uma carroça cheia de pedaços de madeira. Uma mulher debruçou-se de uma janela iluminada na Rua Gappery e chamou uns menininhos que estavam brincando na Praça. Dois guardas com seus uniformes vermelhos e castanhos atravessaram lentamente a praça, rindo. O relógio da cidade bateu seis badaladas, que Lina sentiu, como um estremecimento, debaixo das costelas.

Doon disse:

— Acho que o que temos a fazer agora é esperar para ver se anunciam alguma coisa.

— Acho que sim — disse Lina.

— Talvez afinal aquela porta não seja nada de especial — dis­se Doon. — Talvez seja só um velho armário de ferramentas fora de uso.

Mas Lina não estava disposta a acreditar nisso. Talvez não fosse a saída de Ember, mas era mesmo assim um mistério — um mistéri o relacionado, tinha certeza, com o mistério mais im­portante que estavam tentando resolver.

 

                                CÉU AZUL E DESPEDIDA

Lina dormiu mal nessa noite. Teve sonhos assustadores em que alguma coisa perigosa se escondia no escuro. Quando as luzes se acenderam de manhã e ela abriu os olhos, a pri­meira coisa em que pensou foi na porta no Sistema de Canaliza­ções — e logo a seguir sentiu um baque de decepção, porque a porta estava trancada e outra pessoa, não ela, sabia o que havia para lá dela. Foi acordar a vovó.

— Hora de levantar — disse, mas a vovó não respondeu. Estava deitada com a boca entreaberta e respirando de uma forma estranha e rouca.

— Não me sinto muito bem — disse por fim a vovó numa voz fraca.

Lina pousou a mão na testa da vovó. Estava quente. Tinha as mãos muito frias. Foi chamar a Sra. Murdo apressadamente e depois correu até à Praça Cloving para dizer à Capitã Fleery que não iria trabalhar hoje. A seguir foi correndo até à Rua Oliver, ao consultório da Dra. Tower, e pôs-se a bater à porta até a mé­dica abrir.

A Dra.Tower era uma senhora magra com cabelo despenteado e olheiras. Quando viu Lina, pareceu ficar ainda mais cansada.

— Doutora Tower — disse a Lina —, minha avó está doente. Pode vir vê-la?

— Vou já — disse ela. — Mas não posso prometer curá-la. Estou com falta de medicamentos.

— Mas venha vê-la. Talvez ela não precise de medicamentos.

Lina acompanhou a médica até sua casa, a alguns quar­teirões de distância. Quando viu a vovó, a médica suspirou.

— Como está, Vovó Mayfleet? — perguntou.

A vovó olhou para a médica com um olhar mortiço.

— Acho que estou doente — disse.

A Dra. Tower pousou a mão na sua testa. Pediu-lhe que colocasse a língua de fora e auscultou-a.

— Tem febre — disse a médica à Lina. — Vai ter que ficar em casa com ela hoje. Faça uma sopa. Dê-lhe água para beber. Coloque panos umedecidos em água fria na testa — recomen­dou. Tomou a mão ossuda da vovó na sua mão áspera e roxa. — O melhor que tem a fazer hoje é dormir — disse. — A sua netinha amiga tomará conta de você.

E durante todo esse dia foi o que Lina fez. Preparou uma sopa aguada de espinafres e cebola e deu para vovó na boca. Acariciou-lhe a testa, segurou-lhe a mão e falou-lhe sobre assuntos agra­dáveis. Tentou manter Poppy o mais sossegada possível. Mas, enquanto fazia tudo isto, não conseguia deixar de recordar os tempos da doença de seu pai, quando ele parecia desfalecer como um candeeiro a apagar-se e o som de sua respiração era como água a gorgolejar num cano entupido. Embora tentasse não recordar, lembrava-se também da noite em que seu pai soltara o último suspiro e daquela manhã, alguns meses mais tarde, em que a Dra. Tower saíra do quarto de sua mãe com um bebê chorando e uma expressão carregada, anunciando más notícias.

Ao fim da tarde, a vovó começou a ficar inquieta. Ergueu-se num cotovelo.

— Encontramos? — perguntou à Lina. — Chegamos a encontrá-la?

— Encontramos o quê, vovó?

— A coisa que estava perdida — disse a vovó. — A coisa velha que o meu avô perdeu...

— Sim — disse Lina. — Não se preocupe, vovó, a encontramos, está num lugar seguro.

— Oh, ainda bem!

A vovó recostou-se nas almofadas e sorriu para o teto.

— Que alívio — disse.

Tossiu um par de vezes, fechou os olhos e adormeceu.

Lina não foi trabalhar no dia seguinte também. Foi um dia muito longo. A vovó cochilou quase todo o tempo. Poppy, encantada por ter Lina em casa para brincar com ela, ficava sempre a tentá-la com coisas que encontrava — panos de pó, colheres, sapatos desemparelhados — e batendo com elas nos joelhos de Lina, dizendo:

— Binca com ito! Binca com ito!

Lina brincava com Poppy de boa vontade, mas ao fim de algum tempo cansou de bater com colheres e puxar panos e fazer sapatos de pião.

— Vamos fazer outra coisa — disse à Poppy. — Vamos de­senhar?

A vovó tinha comido uma tigela de sopa ao jantar e ador­mecera, por isso Lina pegou seus lápis de cor e duas etiquetas de latas de conserva que tinha guardado — eram brancas nas costas e serviam bem como papel de desenho, se fossem bem alisadas. Com a faca de cozinha mais afiada que tinham, aguçou os lápis. Deu o lápis verde à Poppy e ficou com o azul e alisou a outra etiqueta em cima da mesa.

O que desenharia? Pegar num lápis era como abrir uma torneira na sua cabeça, pela qual a imaginação corria como água. Sentia que as imagens estavam prontas para sair. Era uma espécie de pressão, como água num cano. Pensava sempre que faria um desenho maravilhoso, mas o que desenhava de fato nunca cor­respondia à sensação que tinha. Era como quando tentava contar um sonho — as palavras nunca captavam realmente a verdadeira sensação que dera.

Poppy agarrava o lápis com força e fazia rabiscos à sorte.

— Oia! — gritou.

— Muito lindo — disse Lina. A seguir, sem ter uma idéia clara do que faria, começou a desenhar. Começou no lado es­querdo da etiqueta da lata. Primeiro desenhou um cubo alto e estreito — um edifício. Depois, mais cubos ao lado — um grupo de edifícios. A seguir desenhou algumas pessoas minúsculas andando na rua ao lado dos prédios. Era o que desenhava quase sempre — a outra cidade — e, a cada vez que a desenhava, ti­nha a mesma sensação frustrante: havia mais par desenhar. Havia outras coisas nesta cidade, havia coisas maravilhosas — mas Lina não conseguia imaginar o que fossem. Só sabia que a cidade tinha uma claridade diferente da de Ember. Mas não sabia de onde provinha essa claridade.

Desenhou mais edifícios e também as janelas e as portas; pôs lampiões; acrescentou uma estufa. Cobriu a folha de um lado ao outro com edifícios de diferentes tamanhos. Todos os edifícios eram brancos, porque essa era a cor do papel.

Pousou o lápis por um momento e examinou o que já tinha desenhado. Chegara a altura de preencher o céu. Nos desenhos que fazia com os lápis normais, o céu era da sua verdadeira cor, preto. Mas desta vez pintou-o de azul, visto que estava desenhando com o lápis azul. Metodicamente, enquanto Poppy fazia ra­biscos ao seu lado, Lina coloriu o espaço acima dos edifícios, traçando linhas curtas de um lado para o outro, até todo o céu ficar azul.

Recostou-se na cadeira e olhou para o seu desenho. Não seria estranho, pensou, ter um céu azul? Mas gostava do seu aspecto. Seria lindo — um céu azul.

Poppy tinha começado a fazer buracos no papel com o lápis. Lina dobrou o seu desenho e pegou no de Poppy.

— É hora de jantar — disse.

 

No meio da noite, Lina acordou subitamente, julgando ter ouvido alguma coisa. Teria sido um sonho? Ficou muito quieta, com os olhos abertos na escuridão. O som ouviu-se de novo, um apelo numa voz fraca e trêmula:

— Lina...

Levantou-se e dirigiu-se para o quarto da vovó. Embora sempre tivesse vivido na mesma casa, ainda lhe custava orientar-se à noite, quando a escuridão era total. Era como se as pare­des tivessem se deslocado ligeiramente e a mobília tivesse sido mudada de lugar. Mantendo-se junto às paredes, Lina avançou às apalpadelas. Aqui estava a porta do seu quarto. Aqui estava a cozinha e a mesa — estremeceu de dor ao bater com o dedão do pé numa das pernas da mesa. Avançando um pouco mais, chegaria à parede do outro lado e à porta do quarto da vovó. A voz da avó era como uma linha fina no ar escuro.

— Lina... Venha me ajudar... Preciso...

— Já vou, vovó — disse ela.

Tropeçou em alguma coisa — num sapato, talvez — e caiu contra a cama.

— Já estou aqui, vovó! — disse.

Pegou na mão da vovó — estava muito fria.

— Sinto-me tão estranha! — disse a vovó. A sua voz era um murmúrio. — Sonhei... Sonhei com o meu bebê... Ou o bebê de alguém...

Lina sentou-se na cama. Com mil cuidados, tateou o con­torno do corpo da vovó até chegar aos ombros. Ali, seus dedos ficaram emaranhados nas madeixas compridas do cabelo da vovó. Pousou um dedo contra o lado da garganta da vovó para sentir a pulsação, como a médica lhe tinha ensinado. Estava ace­lerada, como uma borboleta que se machucou e bate as asas em círculos irregulares.

— Quer água, vovó? — perguntou Lina. Não sabia que outra coisa poderia fazer.

— Não, água não — disse a vovó. — Fique comigo um bocadinho.

Lina sentou-se em cima da perna dobrada e puxou um pedaço do cobertor para se cobrir. Pegou de novo a mão da vovó e acariciou-a com suavidade.

Durante muito tempo não disseram nada. Lina escutava a respiração de sua avó. Inspirava profundamente, com um estreme­cimento, e soltava o ar com um suspiro. A seguir fazia uma longa pausa antes de respirar de novo. Lina fechou os olhos. Não valia a pena ficar com eles abertos — não conseguia ver nada no escuro. Só tinha consciência da mão fria e magra de sua avó e do som de sua respiração. De vez em quando, a vovó murmurava algumas palavras incompreensíveis e Lina fazia-lhe uma carícia na testa e dizia:

— Não se preocupe, está tudo bem. Já é quase de manhã — embora não soubesse se era verdade.

Ao fim de muito tempo, a vovó mexeu-se ligeiramente e pareceu despertar.

— Vá para a cama, querida. Eu já estou bem — disse. A sua voz era clara, mas muito fraca. — Vai dormir, vai.

Lina debruçou-se e pousou a cabeça no ombro da vovó. O cabelo macio da vovó fazia-lhe cócegas no rosto.

— Então está bem — murmurou. — Boa noite, vovó.

Apertou o ombro da vovó com suavidade e ao levantar-se sentiu-se invadida por uma onda de terrível solidão. Queria ver o rosto da vovó. Mas a escuridão escondia tudo. Talvez faltasse ainda muito tempo até chegar a manhã — ela não sabia quanto. Voltou às apalpadelas para a cama e caiu num sono profundo; e, quando, horas mais tarde, o relógio da torre bateu seis badaladas e as luzes se acenderam, Lina entrou, cheia de receio, no quarto de sua avó. Encontrou-a, muito pálida e imóvel, já sem vida.

 

                             AS MERCEARIAS DE LIZZIE

Lina passou todo esse dia na casa da Sra. Murdo, que era tal e qual como a dela, mas mais arrumada. Havia um sofá grande e um sofá pequeno, forrados com um tecido listrado e cheio de borboto, e uma mesa grande, mas a mesa da Sra. Murdo não era instável como a da casa de Lina. Em cima da mesa havia um cesto e dentro do cesto três nabos, que numa das pontas eram da cor da alfazema e na outra brancos. A Sra. Murdo devia tê-los posto ali, pensou Lina, não só porque iria cozinhá-los para o jantar, mas também porque eram muito bonitos.

Lina sentou-se de lado no sofá com as pernas estendidas e a Sra. Murdo cobriu-a com um fofo cobertor cinzento-esverdeado.

— Já vai ficar quentinha — disse, entalando o cobertor em volta das pernas de Lina.

Lina não sentia frio, mas estava triste, o que, de certa ma­neira, era a mesma coisa. A sensação que o cobertor lhe dava era boa, como se alguém a estivesse abraçando. A Sra. Murdo deu à Poppy um cachecol roxo e comprido para ela brincar e fez uma sopa de cogumelos e batatas muito cremosa e Lina ficou o dia todo aconchegada debaixo do cobertor. Pensou na avó, que tivera uma vida longa e quase sempre feliz. Chorou um bocadinho e adormeceu. Acordou e brincou com Poppy. Aquele dia estava sendo estranho, mas reconfortante, como um descanso entre o final de uma fase e o início da seguinte.

Na manhã do dia seguinte, Lina levantou-se e preparou-se para ir trabalhar. A Sra. Murdo fez-lhe um desjejum de chá de beterraba e purê de espinafre.

— O Dia das Canções está vindo aí — disse ela à Lina en­quanto comiam. — Sabe a sua parte?

— Sei — disse Lina. — Lembro-me bem dela do ano passado.

— Eu gosto bastante do Dia das Canções — disse a Sra. Murdo.

— Eu adoro. — disse Lina. — Acho que é o meu dia preferido do ano.

Uma vez por ano, os habitantes da cidade reuniam-se para cantar as três grandes canções de Ember. Só de pensar nisso, Lina até se sentia melhor. Acabou de tomar o desjejum e vestiu o casaco vermelho.

— Não se preocupe com a Poppy, eu tomo conta dela — dis­se a Sra. Murdo quando Lina se dirigia para a porta. — Quando voltar ao fim da tarde, conversaremos sobre o que fazer.

— O que fazer? — disse Lina.

— Bem, vocês duas não podem viver sozinhas, não é?

— Não podemos?

— Claro que não — disse a Sra. Murdo com firmeza. — Quem tomaria conta de Poppy enquanto você anda entregando mensagens? Têm que se mudar para a minha casa. Afinal, tenho um quarto vago, que, diga-se de passagem, é bem bom. Ora, venha ver.

Abriu uma porta no outro lado da sala de estar e Lina espiou lá para dentro. Nunca tinha visto um quarto assim tão bonito e acolhedor. Havia uma cama grande e cheia de altos e baixos, com um cobertor de um azul desbotado e quatro almofadas fofas à cabeceira. Ao lado da cama havia uma cômoda com os puxadores das gavetas em forma de lágrima e um espelho aparafusado ao tampo. Os tapetes no chão eram todos de diferentes tons de azul e verde e ao canto havia uma mesa quadrada com um ar sólido e uma cadeira cujas costas eram como uma escadinha.

— Este vai ser o seu quarto — disse a Sra. Murdo. — Seu e da Poppy. Vão ter que dormir na mesma cama, mas ela é grande.

— É lindo — disse Lina. — A Sra. é muito boa.

— Bem — disse a Sra. Murdo num tom despachado —, é uma questão de bom senso. Vocês precisam de um lugar onde ficar. Eu tenho espaço aqui em casa. Vá lá então, e nos vemos esta noite.

 

Três dias depois de Lina e Doon terem visto o homem no Sistema de Canalizações, não houvera ainda quaisquer avisos especiais. Por conseguinte, se aquele homem descobrira uma saída de Ember, estava guardando segredo da novidade. Lina não conseguia compreender por quê.

Enquanto corria pela cidade entregando mensagens no pri­meiro dia em que regressou ao trabalho, parecia-lhe que as pes­soas estavam ainda mais deprimidas do que antes. Havia filas longas e silenciosas nos mercados e juntavam-se grupos de pessoas nas praças conversando em voz baixa. Muitas lojas — parecia cada dia em maior número — tinham tabuletas penduradas nas vitrines dizendo «Fechado» ou «Aberto apenas Segunda e Terça». De vez em quando as luzes tremeluziam e as pessoas pa­ravam e olhavam para cima com receio. Quando o tremeluzir parava e as luzes continuavam acesas, as pessoas respiravam fundo e continuavam a andar.

Lina entregava as mensagens como habitualmente, mas interiormente sentia-se estranha. Por onde quer que corresse, ouvia na sua cabeça as mesmas palavras, como um ritmo de tam­bores: sozinha no mundo, sozinha no mundo. Não era exatamente verdade. Tinha Poppy. Tinha amigos. E tinha a Sra. Murdo, que era algo entre uma amiga e uma pessoa da família. Mas sentia-se como se subitamente tivesse ficado mais velha nos últimos três dias. Passara a ser uma espécie de mãe. O que acon­tecesse à Poppy agora era mais ou menos da sua responsabilidade.

Com o avançar do dia, deixou de pensar sozinha no mundo e começou a pensar sobre a sua nova vida na casa da Sra. Murdo. Pensou no quarto azul e verde e começou a planejar como disporia os seus desenhos nas paredes. O que tinha pintado com o lápis azul ficaria especialmente bem, porque combinava com a cor dos tapetes. Podia trazer as almofadas de casa e juntá-las às que tinham na cama, e assim ficaria com seis — e talvez con­seguisse encontrar uns velhos vestidos ou camisas azuis e fazer fronhas para elas. O quarto azul e verde, o apartamento ar­rumado, as refeições prontas e os cobertores aconchegados à noi­te — tudo isto lhe dava uma sensação de conforto, quase de luxo. Sentia-se grata pela bondade da Sra. Murdo.

Ainda não estou preparada para ficar sozinha no mundo, pensou.

Ao fim da tarde, Lina recebeu uma mensagem para entregar na Rua Lampling. Depois de entregar a mensagem, ao regressar à rua, avistou Lizzie saindo do Depósito de Abasteci­mento — o seu cabelo ruivo era inconfundível.

— Lizzie! — chamou Lina.

Lizzie não devia tê-la ouvido. Continuou a andar. Lina chamou-a mais uma vez.

— Lizzie, espera!

Desta vez era óbvio que Lizzie a tinha ouvido, mas, em vez de parar, começou a andar mais depressa. O que estaria acontecendo com ela? Lina não sabia. Correu atrás dela e agarrou-lhe o casaco pelas costas.

— Lizzie, sou eu!

Lizzie parou e rodou sobre os calcanhares.

— Oh! — exclamou. Estava corada. — É você. Olá! Eu pensei que era... Não sabia que era você — disse. Sorria com um ar simpático, mas havia uma expressão preocupada em seus olhos.

— Eu ia para casa — disse ela. Levava contra o peito um saco pequeno muito cheio.

— Eu te acompanho — disse Lina.

— Oh! — disse Lizzie. — Oh, está bem — acrescentou, mas não parecia contente.

— Lizzie, aconteceu uma coisa muito triste — disse Lina. — A minha avó morreu.

Lizzie olhou-a de soslaio rapidamente, mas não parou de andar.

— Que pena — disse. — Pobre de você.

O que se passava com Lizzie? Normalmente, ela se interessava muito pelas desgraças das outras pessoas. Conseguia até condoer-se sinceramente, quando não estava preocupada demais com os seus próprios problemas.

Lina mudou de assunto.

— O que leva no saco? — perguntou.

— Oh, são só umas mercearias — disse Lizzie. — Passei pelo mercado hoje depois do trabalho.

— Passou?

Lina estava intrigada. Tinha visto Lizzie nem há dois minutos saindo do escritório dos armazéns.

Lizzie não respondeu. Começou a andar e a falar bastante depressa.

— Tivemos muito movimento hoje. Trabalhar é duro mesmo, não é, Lina? Eu acho que o trabalho é mais duro do que a escola, e menos interessante. Faz-se a mesma coisa todos os dias. Fico tão cansada! Você não, correndo o dia todo?

Lina ia dizer que gostava de correr e quase nunca ficava cansada, mas Lizzie nem esperou que ela respondesse.

— Oh, bem, pelo menos há algumas coisas boas. Aposto que não adivinha, Lina? Tenho um namorado. Conheci-o no tra­balho. Ele gosta mesmo de mim, diz que o meu cabelo é exatamente da cor de um disco quente e vermelho de um fogão.

Lina riu.

— É verdade, Lizzie — disse. — A sua cabeça parece que está em fogo.

Lizzie riu também e enfiou os dedos no cabelo para lhe dar mais volume. Uniu os lábios e pestanejou.

— Ele diz que sou tão bonita como um tomate vermelho.

Iam atravessando a Praça Torrick agora. Estava apinhada de gente. As pessoas tinham acabado de sair do trabalho e faziam fila à porta das lojas ou caminhavam apressadas com embru­lhos nas mãos. Havia algumas crianças sentadas no passeio jogando um jogo qualquer.

— E quem é o seu namorado? — perguntou Lina.

Mas nesse momento Lizzie tropeçou. Até ali tinha dado ares de ser uma grande beleza, caminhando com passos elegantes sem prestar atenção aos pés, e a ponta do seu sapato ficou encravada num desnível do passeio. Cambaleou e ao cair largou o saco, que tombou no chão e ficou de lado, e algumas latas saíram do saco. Rolaram pelo passeio em todas as direções.

Lina agarrou o braço da Lizzie.

— Machucou-se? — perguntou.

Mas Lizzie correu atrás das latas tão depressa que era evi­dente que não tinha se machucado. Querendo ajudá-la, Lina cor­reu também atrás das latas. Duas tinham rolado para baixo de um banco. Uma outra ia na direção de umas crianças, que estavam agora de pé olhando para os movimentos esquisitos, como uma aranha, de Lizzie. Lina apanhou as latas que estavam debaixo do banco e o que viu cortou-lhe a respiração. Uma delas era uma lata de pêssegos. «Pêssegos», dizia no rótulo, que tinha também uma imagem de um globo amarelo. Ninguém que ela conhecesse via uma lata de pêssegos a anos. Olhou para a outra lata. Era igualmente inacreditável — «Creme de Milho», dizia. Lina lembrava-se de ter comido creme de milho uma vez, como uma iguaria especial, quando tinha cinco anos.

Ouviu-se um grito. Ela olhou para cima. Uma das crianças tinha pegado uma lata.

— Olhem para isto! — gritou o garoto e as outras crianças juntaram-se à sua volta. — Purê de maçã! — disse ele, e as crianças murmuraram «Purê de maçã, purê de maçã» como se nunca tivessem ouvido aquelas palavras.

Lizzie estava de pé. Tinha todas as latas, com exceção das duas nas mãos de Lina e daquela que a criança tinha apanhado. Dei­xou-se ficar parada por uns instantes, olhando de Lina para as crianças. Depois sorriu, um sorriso vivo e falso.

— Obrigada por me ajudarem — disse. — Achei estas latas nas prateleiras de trás no mercado. Que surpresa, heim? Podem ficar com essas.

Acenou com as costas da mão na direção das crianças e tam­bém de Lina e depois foi embora, segurando o saco pela abertu­ra, de forma que ele pendia ao seu lado e batia contra suas pernas.

Lina não a seguiu. Foi para casa, pensando no saco cheio de latas de Lizzie. Pura e simplesmente não era possível encontrar latas de pêssegos, purê de maçã e creme de milho nas prateleiras de trás dos mercados. Lizzie estava mentindo. E se ela não tinha encontrado as latas num mercado, de onde teriam vindo? Havia apenas uma resposta: dos armazéns. Lizzie as tinha arranjado de alguma maneira, porque trabalhava no escritório dos armazéns. Teria pago? Quanto? Ou será que as tinha tirado sem pagar?

A Sra. Murdo tinha feito um estufado de beterraba e feijões para o jantar dessa noite. Quando Lina lhe mostrou as duas latas, ela susteve a respiração com a surpresa.

— Onde arranjou isso? — perguntou.

— Foi uma amiga — disse Lina.

— E onde é que a sua amiga as arranjou?

Lina encolheu os ombros.

— Não sei.

A Sra. Murdo franziu a testa, mas não fez mais perguntas. Abriu as latas e banquetearam-se nessa noite: creme de milho com o estufado e pêssegos para a sobremesa. Era a melhor re­feição que Lina comia há muito, muito tempo — mas o prazer que lhe deu ficou um pouco estragado por ela não saber de onde as latas tinham vindo.

 

Na manhã seguinte, Lina dirigiu-se para a Rua Bond. Hoje, antes de começar a entregar as mensagens, ia ter uma conversa com Lizzie.

Avistou-a a meio quarteirão de distância do escritório dos armazéns. Ela ia andando despreocupada, olhando as vitrines. Tinha um cachecol verde comprido enrolado em volta do pescoço.

Lina correu rapidamente até ela.

— Lizzie — disse.

Lizzie rodou nos calcanhares. Quando viu Lina, estre­meceu. Não fez nada, só deu meia-volta e continuou a andar.

Lina agarrou numa das pontas do cachecol verde e puxou-o para obrigar Lizzie a parar.

— Lizzie! — disse. — Pára!

— Para quê? — disse Lizzie. — Eu vou para o trabalho.

Tentou libertar-se mas não conseguiu, porque Lina estava agarrando a ponta do seu cachecol firmemente.

Lina falou em voz baixa. Havia pessoas em volta delas — um par de homens de idade encostados a uma parede, um grupo de crianças tagarelando mais à frente, trabalhadores se dirigindo para os armazéns — e ela não queria que ninguém a ouvisse.

— Tem que me dizer onde arranjou aquelas latas — disse.

— Eu já te disse. Encontrei-as numa prateleira de trás no mercado. Largue o cachecol.

Lizzie tentou soltar o cachecol das mãos de Lina, mas ela continuava a agarrá-lo.

— Não encontrou nada — disse Lina. — Em nenhum mercado iriam esquecer de coisas assim. Conte-me a verdade — disse e deu um puxão na ponta do cachecol.

— Pára com isso! — disse Lizzie.

Estendeu a mão e agarrou uma madeixa do cabelo de Lina. Lina gritou e puxou com mais força o cachecol, e as duas envolveram-se numa briga, agarrando o cabelo e os casacos uma da outra. Esbarraram contra uma mulher, que ralhou com elas, toda zangada, e por fim caíram no chão, tombando com força no passeio.

Lina foi a primeira a rir. Aquilo era tão parecido com o que costumavam fazer na brincadeira, correndo uma atrás da outra e gritando e rindo. Agora, aqui estavam outra vez, já quase meninas crescidas, engalfinhadas no passeio.

Após um momento, Lizzie riu também.

— Sua boba! — disse. — Está bem, eu digo. De qualquer maneira, queria te contar — Lizzie debruçou-se para a frente, com os cotovelos nos joelhos e baixou a voz. — Bem, é as­sim — disse. — Há um funcionário dos armazéns chamado Looper. É carregador. Conhece-o? Estava dois anos à nossa frente na escola. O Looper Windly.

— Sei quem é ele — disse Lina. — Levei uma men­sagem dele no meu primeiro dia de trabalho. Alto, com um pescoço comprido e magricela. Dentes grandes. Com um ar esquisito.

Lizzie parecia magoada.

— Bem, eu não o descreveria dessa maneira. Acho-o atraente.

Lina encolheu os ombros.

— OK — disse. — Continue.

— O Looper explora os armazéns. Entra em todas as salas que não estão trancadas. Quer saber qual é a verdadeira situação, Lina. Não é como a maior parte dos trabalhadores, que só fazem o trabalho que lhes compete e depois vão para casa. Quer des­cobrir coisas.

— E o que é que ele descobriu? — perguntou Lina.

— Descobriu que ainda há restos de algumas coisas raras, só algumas coisas em salas aqui e ali que ficaram esquecidas. Sa­be, Lina — disse ela —, há tantas salas lá em baixo! Algumas delas, muito longe da parte central, aparecem no livro-razão como «Vazias» e por isso ninguém mais vai lá. Mas Looper descobriu que nem todas estão vazias.

— E então tem tirado coisas.

— Só algumas! E não muitas vezes.

— E anda lhe dando algumas delas.

— Anda. Porque gosta de mim.

Lizzie deu um sorrisinho e cruzou os braços.

Estou vendo, pensou Lina. Ela sente um fraquinho pelo Looper.

— Mas o Looper anda roubando — disse Lina. — E, Lizzie, ele não anda só roubando coisas para você. Ele tem uma loja! Anda roubando coisas e vendendo por preços exorbitantes!

— Não anda nada — disse Lizzie, mas parecia preocupada.

— Anda. Eu sei por que comprei uma coisa há algumas semanas. Ele tem uma caixa cheia de lápis de cor.

Lizzie resmungou:

— Ele nunca me deu lápis de cor.

— Não devia andar lhe dando nada nem vendendo coisas. Não lhe parece que todo mundo devia saber da existência desta comida que ele encontrou?

— Não! — gritou Lizzie. — Se só resta uma lata de pês­segos, só uma pessoa fica com ela, não é? Então para que todo mundo deveria saber? Acabariam lutando por ela. Que van­tagem isso teria? — perguntou Lizzie e, estendendo o braço, pousou a mão no joelho de Lina. — Ouça — disse. — Eu peço ao Looper para arranjar coisas boas para você também. Sei que ele faz, se eu pedir.

Sem pensar, Lina disse:

— Que tipo de coisas boas?

Os olhos de Lizzie brilharam.

— Há duas embalagens de papel colorido, ele me disse. E xa­rope para tosse. E há três pares de sapatos de senhora.

Era um verdadeiro tesouro. Papel colorido! E xarope para a tosse, para curar a doença, e sapatos... Ela já não tinha sapatos novos há quase dois anos. O coração de Lina desatou a bater com força. O que Lizzie dissera era verdade: se todo mundo soubesse que havia ainda algumas coisas maravilhosas nos armazéns, as pessoas iam lutar entre si para ficarem com elas. Mas... e se nin­guém soubesse? Que diferença faria se ela ficasse com o papel colorido ou com os sapatos? De repente, desejou com tal inten­sidade ter aquelas coisas que até se sentiu tonta. Imaginou uma cena — as prateleiras na casa da Sra. Murdo cheias de coisas boas e elas três mais felizes e seguras do que as outras pessoas.

Lizzie aproximou-se mais e baixou a voz.

— O Looper encontrou uma lata de ananás. Eu ia dividi-la com ele, mas te dou um bocadinho para provar se prometer não contar a ninguém.

Ananás! Aquela coisa deliciosa há muito desaparecida que sua avó tinha lhe falado. Haveria alguma coisa de errado em provar um bocadinho, só para ver como era?

— Já provei pêssego, purê de maçã e uma coisa chamada cocktail de frutos — disse Lizzie. — E ameixas secas e creme de milho e molho de framboesa e espargos...

— Isso tudo? — Lina estava admirada. — Então ainda existem muitas coisas especiais assim?

— Não — disse Lizzie. — Não muitas. Para dizer a ver­dade, já acabamos com todas essas.

Você e o Looper?

Lizzie acenou com a cabeça, sorrindo toda satisfeita.

— O Looper diz que, já que vai acabar tudo logo, porque é que não haveríamos de viver tão bem quanto pudermos agora?

— Mas, Lizzie, por que é você a ter isso tudo? Por que você e não outras pessoas?

— Porque fomos nós que as encontramos. Porque temos acesso.

— Não acho que seja justo — disse Lina.

Lizzie falou como se estivesse se dirigindo a uma criança pouco esperta.

Você também pode ficar com algumas coisas. É o que estou lhe dizendo. Ainda sobraram algumas coisas boas.

Mas não era nessa injustiça que Lina estava pensando. No que pensava era que apenas duas pessoas estavam tendo as coisas que todo mundo gostaria de ter. Ela não sabia como poderia resolver a questão. Não era possível dividir uma lata de purê de maçã entre todas as pessoas da cidade. Mesmo assim, havia algo de errado em uma pessoa se apoderar das coisas boas só porque podia. Não só parecia uma injustiça para com todas as outras pessoas, mas também, de certa forma, mau para a pessoa que o fazia. Lina recordou a ganância que sentira quando Looper tinha lhe mostrado os lápis de cor. Não era uma sensação agra­dável. Ela não queria querer tanto uma coisa assim.

Levantou-se.

— Eu não quero nada do Looper.

Lizzie encolheu os ombros.

— OK — disse, mas havia uma expressão consternada no seu pequeno rosto pálido. — O problema é seu.

— De qualquer maneira, obrigada — disse Lina e atravessou a Praça Torrick, caminhando depressa a princípio e depois desatando a correr.

 

                               UMA DESCOBERTA TERRÍVEL

Cerca de uma semana depois de Doon e Lina terem visto o homem saindo da porta misteriosa, Doon foi encarregado de consertar um entupimento no Túnel 207. Foi fácil. Desmon­tou o cano, enfiou uma escova fina e comprida por ele abaixo e um jato de água esguichou em seu rosto. Depois de ter voltado a montar o cano, não tinha mais nada para fazer. Por isso decidiu ir até o Túnel 351 dar mais uma olhada na porta trancada. Era estranho, pensou, que não tivesse sido anunciada ainda a descoberta de uma saída de Ember. Talvez, afinal, aquela porta não fosse o que eles pensavam.

Dirigiu-se então para o terminal sul do Sistema de Canali­zações. Quando chegou ao corredor vedado por uma corda no Túnel 351, passou por baixo dela e caminhou no escuro às apalpadelas. Tinha certeza de que a porta estaria trancada como de costume. Ia pensando em outras coisas. Pensava na sua minhoca verde, que andava se comportando de forma estranha: recusava-se a comer e ficava pendurada na parede lateral da caixa com o queixo encolhido. E pensava em Lina, que já não via há vários dias. Perguntava-se como estaria. Quando chegou à porta, estendeu a mão para o puxador distraidamente e o que sentiu surpreendeu-o de tal maneira que retirou a mão imedia­tamente, como se tivesse sido picado. Voltou a estender a mão, desta vez cuidadosamente. Havia uma chave na fechadura!

Durante um longo momento, Doon ficou imóvel como uma estátua. Em seguida, pôs a mão no puxador e rodou-o. Muito devagar empurrou a porta. Ela abriu para dentro silen­ciosamente.

Doon abriu a porta somente uns centímetros, o suficiente para espiar lá para dentro. O que viu cortou-lhe a respiração.

Não havia uma estrada, corredor ou escada por trás da porta. Deparou-se com uma sala bem iluminada, cujo tamanho não conseguia calcular, porque estava muito cheia de coisas. Em todos os lados haviam caixotes e caixas, sacos e trouxas e pacotes. Havia pirâmides de latas, montes de roupas, filas de frascos e garrafas, torres de embalagens de lâmpadas. As pilhas de coisas chegavam ao teto baixo e estavam encostadas às paredes, atravancando toda a sala com exceção de um pequeno espaço livre no meio. Nesse pequeno espaço tinha sido montada uma sala de estar. Havia um carpete esverdeado em cima da qual se encontravam um cadeirão e uma mesa. Sobre a mesa haviam pratos sujos de restos de comida e no cadeirão em frente a Doon estava sentada uma pessoa esférica, cuja cabeça estava tombada para trás, de forma que a única coisa que Doon con­seguia ver era o seu queixo apontando para cima. A esfera mexeu-se e resmungou qualquer coisa e, mesmo antes de recuar e fechar a porta atrás de si, Doon vislumbrou uma orelha carnuda, um naco de bochecha cinzenta e uma boca entreaberta, de lábios arroxeados.

 

Nesse dia, Lina teve mais mensagens para transmitir do que nunca. Tinha havido cinco cortes de energia seguidos durante a semana. Foram todos relativamente curtos — o mais longo durou quatro minutos e meio, ouvira dizer — mas nunca ti­nham havido tantos cortes assim, tão próximos uns dos outros. Todo mundo estava nervoso. As pessoas que normalmente iriam a pé para a casa de alguém enviavam mensagens. Freqüentemente, nem saíam à rua, antes chamando o mensageiro da porta de suas casas.

Às cinco horas, Lina já tinha transmitido trinta e nove men­sagens. A maioria era mais ou menos a mesma coisa: «Não vou ao encontro esta noite, decidi ficar em casa.» «Não vou trabalhar amanhã.» «Em vez de se encontrar comigo na Praça Cloving, porque não vem até minha casa?» Os cidadãos de Ember reco­lhiam-se às suas casas, metiam-se na sua toca. Havia menos pes­soas em grupos conversando junto aos lampiões nas praças. Em vez disso, paravam o tempo suficiente para trocarem algumas palavras sussurradas e depois continuavam a andar apressados.

Lina ia a caminho de casa, da casa da Sra. Murdo — ela e Poppy tinham se mudado para lá com todos os seus perten­ces —, quando ouviu passos apressados atrás de si. Assustada, voltou-se e viu Doon correndo na sua direção.

No princípio, ele estava tão ofegante que nem conseguia falar.

— O que foi? O que foi? — disse Lina.

— A porta — disse ele, respirando a custo. — A porta no Túnel 351. Abri-a.

O coração de Lina deu um salto no peito.

— Abriu?

Doon acenou com a cabeça.

— E é a saída? — segredou Lina muito depressa.

— Não — disse Doon. Olhou para trás. Agarrando o braço de Lina, puxou-a para um lugar mais escuro na rua. — Não dá para a saída de Ember — segredou. — Dá para uma sala grande.

O rosto de Lina ensombrou-se.

— Uma sala? E o que tem dentro?

— Tudo. Comida, roupa, caixas, latas. Lâmpadas, montes delas. Tudo. Pilhas e pilhas até o teto. — Arregalou os olhos. — E havia alguém lá no meio daquilo tudo, dormindo.

— Quem?

Uma expressão de horror perpassou no rosto de Doon.

— O presidente — disse. — Escarrapachado num cadeirão grande, com um prato vazio na frente dele.

— O presidente! — murmurou Lina.

— Sim. O presidente tem uma sala de tesouros secreta no Sistema de Canalizações.

Olharam um para o outro sem falar. Depois Doon ba­teu com o pé no passeio com toda força. Ficou todo corado.

— É essa a solução de que ele anda sempre falando. E uma solução para ele, não para todos nós. Apodera-se de tudo aquilo de que precisa e nós ficamos com os restos! Ele não quer saber da cidade. Só quer saber da barriga balofa dele!

Lina sentiu-se tonta, como se tivesse levado uma pancada na cabeça.

— O que vamos fazer? — disse.

Não conseguia pensar, estava completamente atordoada.

— Contar a todo mundo! — disse Doon. Tremia de raiva.

— Dizer a toda a cidade que o presidente anda nos roubando!

— Espere, espere — Lina pôs a mão no braço de Doon e concentrou-se por uns instantes. — Vamos — disse por fim. — Vamos até a Praça Harken. Eu também tenho uma coisa para te contar.

No extremo norte da Praça Harken um círculo de Crentes estavam batendo palmas e cantando uma de suas canções. Ultimamente pareciam cantar mais alto e com mais alegria do que nunca. As suas vozes eram estridentes.

— Virá em breve para nos salvar! — berravam. — Dia feliz, feliz!

Perto dos degraus da Câmara de Reuniões estava acontecendo algo pouco comum. Cerca de vinte pessoas andavam em voltas com grandes cartazes pintados em tábuas velhas e bandeiras feitas de lençóis. Os cartazes diziam «QUE soluções, Presidente Cole?» e «Queremos RESPOSTAS!». De vez em quando, os manifes­tantes gritavam estas palavras de ordem. Lina perguntava-se se o presidente estaria prestando atenção.

Doon e Lina encontraram um banco vazio no lado sul da Praça Harken e sentaram-se.

— Agora, ouça — disse Lina.

— Eu estou ouvindo — disse Doon, embora ainda estivesse corado e com uma expressão de raiva estampada no rosto.

— Ontem encontrei Lizzie saindo dos armazéns — disse Lina. Falou sobre as latas e o novo amigo de Lizzie, Looper, e o que Looper andava fazendo.

Doon deu um murro na coxa.

— Então já são dois — disse.

— Espere, há mais. Lembra-se como eu pensei que havia qualquer coisa de familiar no homem que saiu da porta? Lem­brei-me do que era. Era a maneira como ele andava, como se estivesse inclinado para o lado, e também o cabelo, aquele cabelo preto todo despenteado e espetado. Eu o vi duas vezes. Não sei como não me lembrei logo quem ele era; talvez fosse porque só o tinha visto de frente. Transmiti uma mensagem dele no meu primeiro dia de trabalho.

Doon estava sacudido de impaciência.

— Bem, quem era, quem era?

— Era Looper. O Looper, que trabalha nos armazéns. O namorado de Lizzie. E, Doon — Lina inclinou-se para a frente —, foi uma mensagem para o presidente que ele me man­dou transmitir, e era o seguinte: «Entrega às oito.»

Doon abriu a boca com a surpresa.

— Então isso quer dizer...

— Ele anda levando coisas dos armazéns para o presidente. E também anda dando algumas coisas para Lizzie e vendendo outras na loja dele.

— Oh! — exclamou Doon. Deu uma palmada na cabeça.

— Porque é que eu não entendi antes? Há um postigo no teto perto do Túnel 351. Deve dar direto nos armazéns. É por ali que o Looper entra! Foi isso que ouvimos naquele dia, lembra-se? Uma espécie de raspada, era o postigo se abrindo. Depois um baque, um saco com coisas caindo, e a seguir um som como de alguém dando um salto e aterrissando com força no chão.

— E depois andando lentamente...

— Porque ia carregado!

— E andando depressa ao sair, porque tinha deixado tudo para o presidente — disse Lina e respirou fundo. Seu coração batia com força e tinha as mãos frias. — Temos que pensar no que fazer — disse. — Se isto fosse uma situação normal, seria ao presidente que teríamos de contar o que está acontecendo.

— Mas é o presidente que está cometendo o crime — disse Doon.

— Então deveríamos dizer aos guardas, acho eu — disse Lina. — Eles são as autoridades mais importantes depois do presi­dente. Embora eu não goste muito deles — acrescentou, lembrando-se de como tinha sido empurrada com maus modos pelas escadas do telhado da Câmara de Reuniões.

— Mas você tem razão — disse Doon. — Deveríamos dizer aos guardas. Eles podem descer ao Sistema de Canalizações e ver que es­tamos contando a verdade. E depois podem prender o presidente e voltar a pôr as coisas todas nos armazéns, e depois podem dizer a toda a cidade o que tem acontecido.

— É uma idéia muito melhor — disse Lina. — E depois você e eu podemos voltar a nos concentrar naquilo que é mais im­portante.

— O quê?

— Decifrar as instruções. Agora que sabemos que a porta que encontramos não era a verdadeira, temos que encontrar a por­ta certa.

— Não sei — disse Doon. — Podemos estar completa­mente enganados quanto às instruções. Podem bem ser sobre um armário de ferramentas velhas do Sistema de Canalizações — fez uma careta. — Instruções para Egreston. Quem é Egreston? Ou Egresman? Ou seja lá quem for? Não poderia ser só um tipo especialmente estúpido do Sistema de Canalizações que precisava de instruções para se orientar? — Doon abanou a cabeça. — Não sei. Acho que, talvez, as instruções não passam de uma cama de gato.

— Cama de gato? O que é isso

— Quer dizer uma coisa sem sentido, confusa. Li essa expres­são num livro na biblioteca.

— Mas não podem ser coisas sem sentido! Senão, porque teriam sido guardadas numa caixa assim? Com a fechadura esquisita?

Mas Doon não queria pensar nas instruções naquele momento.

— Tratamos disso amanhã — disse. — Agora vamos procurar os guardas.

— Espere — disse Lina, agarrando a manga do casaco de Doon. — Tenho mais uma coisa para te dizer.

— O quê?

— A minha avó morreu.

— Oh! — Doon ficou com um ar abatido. — Isso é muito triste — disse. — Sinto muito.

Ao ouvir estas palavras de simpatia, Lina ficou com os olhos marejados de lágrimas. Doon pareceu ficar perturbado por um momento e depois deu um passo em frente e abraçou-a. Apertou-a contra o peito tão depressa e com tal força que ela até tossiu, e depois desatou a rir. Percebeue naquele momento que Doon — aquele rapaz magro e de olhos escuros, com um feitio problemático, um horrível casaco castanho e um grande coração — era a pessoa que conhecia melhor. Era o seu melhor amigo.

— Obrigada — disse ela. — Bem — acrescentou com um sorriso —, vamos lá então falar com os guardas.

Atravessaram a praça e subiram os degraus da Câmara de Reu­niões. Sentado à grande mesa da recepção junto à porta do gabi­nete do presidente estava o guarda assistente, Barton Snode, o mesmo que Lina encontrara da primeira vez que tinha estado ali. Snode estava com um ar aborrecido. Tinha os cotovelos apoiados na mesa e o seu queixo movia-se muito lentamente de um lado para o outro.

— Senhor Guarda — disse Doon —, precisamos falar com o senhor.

O guarda olhou para cima.

— Com certeza — disse. — Digam lá então.

— Em particular — disse Lina.

O guarda pareceu ficar confuso. Os seus olhos pequeninos varreram o átrio.

— Aqui temos privacidade — disse. — Só estou eu aqui.

— Mas qualquer pessoa poderia entrar aqui — disse Doon. — O que temos para lhe dizer é secreto e muito impor­tante.

— Muito importante? — disse Snode. — Secreto? — O seu rosto animou-se. Com um grunhido, levantou-se da cadeira e encaminhou-os para um corredor estreito ao lado do átrio prin­cipal. — O que é? — disse.

Eles contaram tudo. Enquanto falavam, interrompendo-se um ao outro para se assegurarem de que não estava falhando qualquer pormenor, as sobrancelhas do guarda erguiam-se gradualmente cada vez mais.

Você viu a tal sala? — disse. — Isto é verdade? Tem certeza? — perguntou. Começou a mastigar em seco mais de­pressa. — Quer dizer que o presidente... Quer dizer que o presidente é...

Nesse momento, mais à frente no corredor, abriu-se uma por­ta. Dela saíram três outros guardas, entre os quais o guarda che­fe — Lina reconheceu-o pela barba. Avançaram a grandes pas­sadas, falando uns com os outros em voz baixa e, ao passarem, o guarda chefe lançou um olhar rápido à Lina. Será que me reco­nhece?, pensou Lina. Não sabia.

Barton Snode acabou a frase num sussurro abafado.

— Quer dizer... que o presidente anda roubando?

— É verdade — disse Doon. — Pensamos que devia ser informado, porque quem mais poderia prender o presidente? E, depois de ter feito isso, os guardas podem voltar a pôr todas as coisas que ele roubou no lugar de onde vieram.

— E depois podem dizer à cidade que tem que se arranjar um novo presidente — disse Lina.

Barton Snode encostou-se pesadamente contra a parede e esfregou o queixo com a mão. Parecia estar refletindo.

— Tem de se fazer alguma coisa — disse. — Isto é chocante, chocante. — Começou a andar em direção à sua mesa e Doon e Lina seguiram-no. — Vou tomar nota — disse ele, tirando um lápis da gaveta da mesa. Lina viu-o escrever lentamente num pedaço de papel: «Presidente roubando. Sala secreta.»

Quando acabou de escrever, soltou um suspiro de satisfação.

— Muito bem — disse. — Serão tomadas medidas, podem ter certeza. Alguma medida será tomada. Muito em breve.

— Ótimo — disse Doon.

— Obrigada — disse Lina, e voltaram-se para ir embora. Os três guardas encontravam-se junto à porta principal da Câmara de Reuniões quando Doon e Lina se encaminharam para a saída. O guarda chefe afastou-se para lhes dar passagem e eles saíram para os degraus largos da frente. Lina olhou por cima do ombro. Antes da porta se fechar, viu que o guarda chefe avançava na direção da mesa de recepção, onde Bar­ton Snode estava de pé, inclinado para a frente, com os olhos brilhando cheios de notícias importantes.

 

                           DECIFRAR A MENSAGEM

Doon dirigiu-se para casa e Lina foi na direção oposta e atravessou a Praça Harken. O pequeno grupo de Cren­tes tinha ido embora, mas os manifestantes com os seus cartazes ainda continuavam a andar para a frente e para trás. Alguns deles ainda erguiam o punho e gritavam, mas a maioria desfilava silen­ciosamente, com um ar de cansaço e desânimo. Lina também se sentia um pouco como eles. Quando Doon lhe dissera que tinha visto uma porta, ela tivera certeza de que a porta que ele encontrara era a mesma referida nas instruções. Depositara grande esperança naquela porta no Sistema de Canali­zações. Mas a esperança fizera-a tirar conclusões precipitadas. Apressara-se demais. Apressava-se demais sempre. Por vezes era bom, mas outras vezes não.

Agora Doon achava que, afinal, as instruções não eram nada de importante. Ela não queria que ele tivesse razão. Não acredi­tava que tivesse razão, nem agora. Mas os seus pensamentos eram como um emaranhado de fios. Precisava falar com uma pessoa inteligente e sensata que a ajudasse a deslindar a meada. Encaminhou-se para a Rua Glome.

Embora já fossem quase seis horas, encontrou Clary ainda no seu gabinete de trabalho, na extremidade mais afastada da Es­tufa 1. Era uma divisão pequena e atravancada. Vasos e pás empi­lhavam-se em cima de uma mesa alta num dos lados. Por cima da mesa havia prateleiras apinhadas de frascos de sementes e caixas de barbantes, arame e vários tipos de pós. A mesa de Clary era desengonçada, onde se acumulavam pedaços de papel, todos com anotações na sua letra certa e redonda. Duas cadeiras desengonçadas emparelhavam com a mesa desengonçada, uma de cada lado. Lina sentou-se em frente de Clary.

— Tenho que te dizer umas coisas importantes — disse. — E são todas secretas.

— Está bem — disse Clary. — Eu consigo guardar segredo.

Estava com uma camisa remendada, que tinha sido azul em tempos, mas agora era cinzenta. Tinha o cabelo curto e castanho escondido atrás das orelhas e um pedacinho de folha espetado no lado direito. Cruzou os braços em cima da mesa. Tinha um ar quadrado e sólido.

— A primeira coisa — começou Lina —, é que encontrei as instruções. Mas a Poppy as tinha mastigado.

— As instruções — disse Clary. — Não sei o que isso é.

Lina explicou. Prosseguiu contando tudo — como tinha mostrado as instruções a Doon, o que tinham deduzido, como ele revistara o Sistema de Canalizações e descobrira a porta, e o que tinha visto quando abriu a porta.

Clary fez uma expressão de desagrado e abanou a ca­beça.

— Isso é muito grave — disse. — E triste também. Lembro-me de quando o presidente assumiu o cargo. Sempre se com­portou como um tolo, mas nem sempre foi má pessoa. Sinto pena que o seu lado pior tenha triunfado — acrescentou. Os olhos castanho-escuros de Clary pareceram ficar mais fundos e tristes. — Há tanta escuridão em Ember, Lina. Não só aqui fora, mas dentro de nós tam­bém. Todo mundo tem alguma escuridão dentro de si. É como um animal faminto. Quer mais e mais e mais com uma força terrível. E quanto mais se lhe dá, tanto maior e mais faminta se torna.

Lina sabia do que Clary estava falando. Sentira essa sensação na loja de Looper, enquanto admirava os lápis de cor. Por um momento sentiu pena do presidente. A sua fome crescera de tal forma que não podia ser saciada. O seu corpo enorme não con­seguia contê-la. Fazia-o esquecer de todo o resto.

Clary respirou fundo e alguns dos pedaços de papel na sua mesa esvoaçaram. Enfiou os dedos no cabelo, sentiu o pedaço de folha e tirou-o. Depois disse:

— Quanto a essas instruções...

— Oh, sim — disse Lina. — Talvez sejam importantes, ou talvez não. Já não sei.

— Gostaria de vê-las, se não se importar.

— É claro que pode vê-las, mas tem que vir comigo a mi­nha casa.

— Vou agora, se lhe convém — disse Clary. — Ainda dá tempo antes das luzes se apagarem.

Lina acompanhou Clary pelas escadas e levou-a para o seu novo quarto na casa da Sra. Murdo.

— Bonito quarto — disse Clary, olhando à sua volta com interesse. — E vejo que tem um rebento.

— Um o quê? — disse Lina.

— O seu feijão — disse Clary, apontando para o pequeno vaso com terra no parapeito da janela.

Lina debruçou-se para ver aquilo de que Clary estava falando. Era verdade, a terra tinha uma pequena saliência. Tocou na parte mais elevada, afastou a terra com os dedos e pôs a des­coberto um laço verde-claro. Parecia um pescoço, como se um ser no feijão estivesse tentando escapar, mas não tivesse conseguido soltar a cabeça ainda. É claro que ela já sabia que as plantas nasciam de sementes. Mas ter posto aquele feijão branco e acha­tado na terra, quase o ter esquecido e vê-lo agora abrindo caminho para o ar...

— Está nascendo! — disse ela. — Está ganhando vida!

Clary acenou com a cabeça e sorriu.

— Ainda me causa surpresa sempre que o vejo — disse.

Lina tirou as instruções da caixa e Clary sentou-se à mesa para estudar o documento. Examinou os pedaços de papel du­rante muito tempo, sublinhando as linhas com o dedo, mur­murando as partes de palavras.

— O que decifraram até agora parece fazer sentido — disse.

— Acho que ema liza deve ser Sistema de Canalizações. E argem o io deve ser margem do rio. Por isso esta parte aqui deve ser margem do rio... depois há um espaço grande... ao ord. Ord de quê? E quer dizer margem do rio ao como em ir pela margem do rio até ao...?

— Eu acho que sim — disse Lina.

— Ou quer dizer ir pela margem do rio até chegar à água? Talvez ord seja a borda da água.

— Não pode querer dizer isso. A margem é a pique, como uma parede. Não se poderia descer até à borda da água, cairia lá dentro — Lina imaginou a água escura e rápida e estremeceu.

— Esta palavra — disse Clary, espetando o dedo no papel. — Talvez não seja borda, talvez seja outra coisa qualquer. Talvez seja corda. Ou ordem. Não fazem muito sentido. Mas podia ser rebordo ou a bordo.

Lina viu que Clary tinha a mesma dificuldade em decifrar o quebra-cabeça que ela. Suspirou e sentou-se aos pés da cama.

— Não há esperança — disse.

Clary endireitou-se de repente.

— Não diga isso. Este pedaço de papel é a coisa mais cheia de esperança que eu já vi. Sabe o que é esta palavra? — disse, e apontou para o topo do papel, para Egres.

— É o nome de alguém, não é? O título podia ser Instruções para Egreston, ou talvez Egresman, ou uma coisa assim. A pessoa para quem eram as instruções.

— Não me parece — disse Clary. — Se acrescentarmos um «s» e um «o» a esta palavra, onde está este pedaço rasgado, ficamos com Egresso. Sabe o que quer dizer essa palavra?

— Não — disse Lina.

— Quer dizer saída. Quer dizer saída! O título deste do­cumento é Instruções para Egresso.

Quando Clary foi embora, faltava ainda uma hora para as luzes se apagarem. Lina atravessou a cidade correndo até à Praça Greengate. Olhou de relance para a vitrine da loja de pequenos objetos, onde o pai de Doon estava tirando qualquer coisa de uma prateleira, e depois subiu as escadas apressadamente e bateu à porta do apartamento de Doon. Logo em seguida, ouviu passos rápidos e Doon abriu a porta.

— Tenho uma coisa importantíssima para te contar — disse Lina, ofegante.

— Então, entre.

Lina atravessou a sala atravancada e foi pôr-se ao lado de um candeeiro. Tirou do bolso um pedacinho minúsculo de papel onde tinha escrito Egres.

— Olha para esta palavra — disse.

— É do título das instruções. O nome de alguém — disse Doon.

— Não — disse Lina. — É Egresso, com dois esses. Mostrei as instruções à Clary e ela me disse o que significa. Quer dizer «saída».

— A saída! — exclamou Doon.

— Sim! A saída. São instruções para sair de Ember!

— Então existe mesmo — disse Doon.

— Existe sim. Temos que decifrar o resto. Ou tudo o que seja possível decifrar. Pode vir comigo agora?

Doon entrou no seu quarto, saiu com o casaco e desataram a correr.

— Ora, bem — disse Lina. Estavam no chão do quarto azul e verde na casa da Sra. Murdo. — Vamos lá ler a primeira linha.

— Sublinhou-a com o dedo lentamente.

 

  1. Exp

ri       s   ema de               liza

 

— Sabemos que ema de liza é Sistema de Canalizações — dis­se ela. — Exp pode ser expandir ou explorar ou expor...

— Há um espaço grande entre Exp e o resto — disse Doon. — Deve haver mais palavras.

— Mas quem sabe o que serão? Vamos avançar — disse Lina, afastando o cabelo despenteado do rosto. — Olha para o número dois.

 

  1. ped assinalada por

E junto ao

   ord     r

 

Lina apontou para ped.

— O que será?

— Talvez pedal — disse Doon. — Uma parte de uma máquina, como por exemplo um gerador. Ou talvez seja pedido. Ou podia ser...

— Aposto que é pedra — disse Lina. — Há muitas pedras no Sistema de Canalizações.

Doon teve de admitir que talvez fosse essa a interpretação correta.

— Então — disse — seria a pedra assinalada por um E... — enrugou a testa, olhando para a parte seguinte. — Isto deve ser ao bordo do rio. Pedra assinalada por E junto ao bordo do rio.

Olharam um para o outro encantados.

— E de Egresso — exclamou Lina. — Saída! Debruçaram-se de novo sobre o documento. — Não restam muitas palavras na linha seguinte — disse Doon.

 

  1. Descer os degraus na   argem   o   io

       ao     ord     apr

dois

   aixo.

 

— Só esta parte, que deve dizer, margem do rio até bordo... qualquer coisa.

— Borda da água faz sentido. Mas logo a seguir a ord apr. O que será?

Doon sentou-se nos calcanhares e olhou para o teto, como se a resposta pudesse se encontrar ali. Lina murmurou:

— Margem do rio até ord, ord — pensou no que Clary dissera sobre aquela linha. — Talvez seja rebordo — disse. — Margem do rio até rebordo. Pode ser que haja um rebordo lá em baixo junto à água.

— É isso, deve estar certo. Há uma pedra assinalada por um E e na margem do rio, nesse ponto, há um rebordo. Acho que estamos conseguindo decifrar isto.

Mais uma vez debruçaram-se sobre a folha, com as cabeças juntas.

— OK — disse Doon. — Linha quatro.

 

  1. ostas para a

ág a,     encontrar     porta do   talei dos bar

   cha                           rás d   pequen

pa nel de aço   direita               . Tir

     ave, abrir po

 

— É aqui que diz «porta» — disse Lina. — A porta deve ficar junto ao rebordo. Acha que faz sentido?

— E há a tal panela de aço pequena. O que será que quer dizer? O que é que uma panela pode ter a ver com seja lá o que for?

— Mas olha, olha — disse Lina, espetando o dedo no papel com toda a força. — Aqui diz cha e aqui diz ave. Estão falano de uma chave!

— Mas a porta dá para onde? — disse Doon, sentando-se. — Não se lembra que já pensamos nisto antes? Uma porta na margem do rio ia dar debaixo do Sistema de Canalizações.

Lina pôs-se a pensar.

— Talvez dê para um túnel comprido que vá para fora de Ember e depois suba gradualmente até dar saída para outra cidade.

— Que outra cidade? — Doon olhou para os desenhos colados nas paredes do quarto de Lina. — Oh — disse. — Quer dizer, aquela cidade.

— Bem, poderia ser.

Doon encolheu os ombros.

— Suponho que sim. Ou poderia ser outra cidade exatamente como a nossa.

Era um pensamento deprimente. Ambos se sentiram um bocadinho desanimados com aquela idéia. Por isso voltaram à tarefa de decifrar o documento.

— Linha seguinte — disse Lina.

Mas Doon voltou a se sentar nos calcanhares. Olhando sem ver, sorria.

— Tive uma idéia — disse. — Se encontrarmos mesmo a saída, vamos ter que anunciar a notícia a todo mundo. Não seria uma maravilha se pudéssemos fazer o anúncio no Dia das Can­ções? Ficarmos em frente da cidade toda e dizer que a tínhamos encontrado?

— Seria — disse Lina. — Mas já é daqui a dois dias.

— Pois é. Temos que nos apressar.

Estavam mais uma vez debruçados sobre os fragmentos cola­dos quando Doon se lembrou de ver as horas. Era um quarto para as nove. Mal teria tempo de chegar em casa.

— Volte amanhã — disse Lina. — E, enquanto estiver no trabalho, procure uma pedra assinalada por um E.

Nessa noite, Doon teve dificuldade para adormecer. Não conseguia encontrar uma posição confortável na cama. Parecia estar cheia de saliências e rugas e chiava e gemia a cada vez que ele se mexia. Deu tantas voltas na cama que os ruídos acordaram o pai, que veio ao seu quarto e perguntou:

— O que se passa, filho? Foi um pesadelo?

— Não — disse Doon. — Não consigo dormir.

— Está preocupado? Com medo de alguma coisa?

Doon queria dizer sim, pai. Estou preocupado porque o presidente da nossa cidade está se apoderando das coisas de que as pessoas precisam, e tenho medo porque qualquer dia as luzes podem se apagar para sempre. Sinto-me preocupado e receoso a maior parte do tempo, mas também me sinto excitado, porque acho que existe mesmo uma saída, e talvez a possamos encontrar; e todas essas sensações andam às voltas na minha cabeça, o que torna difícil adormecer.

Podia ter contado tudo ao pai. Ele reagiria com grande excitação. Iria ajudá-los a decifrar as instruções e a denunciar os roubos do presidente; desceria com ele ao Sistema de Canali­zações e ajudaria a procurar a pedra assinalado com um E. Mas Doon queria manter segredo por hora. Amanhã, os guardas anunciariam que um rapaz novo e esperto descobrira o crime do presidente e o seu pai, ao ouvir a notícia juntamente com os outros habitantes de Ember, se voltaria para a pessoa ao seu lado e diria:

— É do meu filho que estão falando. Do meu filho!

Por isso, em resposta à pergunta do seu pai, simplesmente disse:

— Não, pai, eu estou bem.

— Bem, nesse caso vê se consegue dormir sossegado — dis­se o pai. — Boa noite, filho — acrescentou e fechou a porta.

Doon alisou o cobertor e puxou-o até o queixo. Fe­chou os olhos. Mas continuava não conseguindo dormir.

Então, experimentou um método que já tinha funcionado em ocasiões anteriores. Escolhia um lugar que conhecia bem — a escola, por exemplo — e imaginava-se a percorrê-lo, registrando todos os pormenores à sua passagem. Muitas vezes distraía-se sem querer; mas forçava-se a regressar à viagem imaginária e algo nesta atividade mental o tornava sonolento. Nesta noite decidiu reviver a sua exploração do Sistema de Canalizações. Concen­trou-se nesta tarefa mental durante muito tempo, imaginando com toda a clareza possível tudo o que vira nesse reino subter­râneo — a longa escadaria, os túneis, a porta, o caminho ao longo do rio, as rochas ao longo do caminho. Sentiu o sono se avizinhando, uma sensação de peso nos braços e nas pernas, mas, quando estava quase adormecendo, viu mentalmente os rochedos irregulares que ladeavam o rio na extremidade oeste do Sistema de Canalizações, os rochedos cujas fendas e estrias lhe tinham lembrado uma espécie de escrita. Seus olhos se abriram no escuro, o coração começou a bater com força e desistiu de tentar dormir, ficando num estado de terrível impaciência du­rante o resto da noite.

 

                                           A SAÍDA

O dia seguinte era o Dia do Ensaio das Canções. Todo mundo estava dispensado do trabalho a partir do meio-dia para ensaiar para o Dia das Canções. Foi uma manhã pouco movi­mentada para os mensageiros. Lina teve muito tempo para ficar sentada pensando, no seu posto na Praça Carn. Pousou os coto­velos nos joelhos e o queixo nas mãos e pôs-se a olhar fixamente para o pavimento em frente do banco onde estava sentada, liso de tão gasto pelos muitos pés que já tinham passado por ali. Pen­sou no presidente, lá na sua sala cheia com os produtos roubados, se empanturrando de pêssegos e espargos e envolvendo seu corpo enorme em roupas novas e elegantes. Pensou no grande monte de lâmpadas e abanou a cabeça, perplexa. Mas o que é que ele achava? Se ainda tivesse lâmpadas quando todo mundo em Ember já as tivesse esgotado, que prazer lhe daria ficar na sua sala ilu­minada enquanto o resto da cidade se encontrava mergulhada no escuro? E quando a eletricidade se acabasse de vez, todas as suas lâmpadas seriam inúteis. O que tinha não poderia salva­-lo — como é que podia se esquecer disso? Devia estar pensando da mesma maneira que o Looper: a situação era deses­perada, por isso aproveitaria ao máximo enquanto podia.

Recostou-se no banco, estendeu as pernas e respirou fundo. Dali a pouco tempo, os guardas iriam entrar de repente na sala secreta e prender o presidente, que estaria se empanturrando com coisas roubadas. Talvez já o tivessem feito. Talvez a notícia incrível fosse divulgada hoje: Presidente Detido! Roubando os Cidadãos! Talvez anunciassem no Dia das Canções, para que todo mundo pudesse ouvir.

Como não vinha ninguém com mensagens para entregar, Lina abandonou seu posto ao fim de algum tempo e encontrou um degrau onde se sentar numa travessa da Rua Calloo. Puxou o cabelo para trás e fez uma trança para evitar que lhe caísse no rosto. Em seguida tirou do bolso uma cópia das instru­ções, que tinha feito antes de enviar a carta ao presidente. Desdo­brou o papel e começou a lê-lo com atenção.

Era o que estava fazendo quando, pouco antes do meio-dia, levantou a cabeça e viu Doon correndo na sua direção. De­via ter vindo diretamente do Sistema de Canalizações — tinha uma grande mancha de água numa das pernas das calças. Falou apressadamente, cheio de excitação.

— Tenho andado à sua procura por todo o lado! — disse. — Encontrei-o!

— Encontrou o quê?

— O E! Quer dizer, parece um E. Tem que ser um E, embora ninguém adivinhasse, se não andasse à procura dele...

— Está falando da pedra assinalada por um E? No Sistema de Canalizações?

— Sim, sim, encontrei-a! — disse, de pé em frente à Lina, com a respiração entrecortada e um brilho nos olhos. — Já a tinha visto, mas não pensei que fosse um E, só um garrancho que parecia qualquer coisa escrita. Há uma série de rochas que parecem todas cobertas com letras.

— Que rochas? Onde é?

Lina estava de pé agora, aos pulos de tão excitada que se sentia.

— Na extremidade oeste do rio. Perto de onde o rio entra naquele buraco grande na parede do Sistema de Canaliza­ções — disse Doon, e fez uma pausa para recobrar o fôlego. — E ouça — acrescentou —, poderíamos ir lá agora mesmo.

— Agora?

— Sim, por causa dos ensaios. Todo mundo vai para casa, por isso o Sistema de Canalizações vai ficar fechado e vazio.

— Mas, se está fechado, como é que nós entramos?

Com um sorriso, Doon tirou uma grande chave do bolso.

— Entrei escondido no escritório quando estava de saída e trouxe a chave extra de empréstimo — disse. — O Lister, que é o diretor do Sistema de Canalizações, estava no banheiro ensaiando as canções. Não vai dar pela falta da chave hoje. E amanhã todo mundo está de folga — disse, e começou a andar, cheio de impaciência. — Então? Vamos!

O relógio da cidade deu a primeira de doze badaladas. Lina enfiou a sua cópia das instruções no bolso.

— Vamos lá.

 

O Sistema de Canalizações estava vazio e em silêncio. Lina e Doon subiram o corredor, passando pelas filas de botas e impermeáveis pendurados em ganchos. Não levaram botas nem impermeáveis. Tinham certeza de que o túnel em que esta­vam prestes a entrar não pertencia ao Sistema de Canalizações; não haveria água pingando nem estaria forrado de canos com vazamentos.

Desceram a comprida escadaria e saíram para o túnel prin­cipal, onde o rio caudaloso corria ao longo do caminho, com a sua superfície escura salpicada de pontos luminosos.

Doon ia à frente, avançando ao longo da margem do rio. Quando se aproximaram da extremidade oeste, Lina viu os rochedos que Doon tinha descrito. Tinham estranhas formas bojudas retalhadas por linhas, como o rosto de uma pessoa muito velha. Para além dos rochedos, avistava-se o lugar onde o rio desaparecia num grande buraco na parede do Sistema de Canali­zações.

Doon ajoelhou-se ao lado de um grupo de rochas. Passou um dedo pela sua superfície irregular.

— Olha aqui — disse.

Lina abaixou-se e olhou com atenção para as linhas profun­damente gravadas. A princípio teve dificuldade em ver o E, porque estava rodeado por um emaranhado de outras linhas e porque estava contando ver um E escrito com linhas retas. Mas logo que o viu — um E escrito com linhas curvas, dese­nhado — teve certeza de que tinha sido gravado na rocha de propósito: ocupava um lugar central na rocha e suas linhas eram fundas e regulares.

— Então daqui temos que olhar lá para baixo, para o rio — dis­se Doon. — Era o que diziam as instruções, pela margem do rio até o rebordo.

Deitou-se de barriga para baixo ao lado da rocha e rastejou para a frente até à beira do caminho. Lina olhava para ele, ansiosa. Ele tinha os cotovelos voltados para fora e a sua cabeça, inclinada para baixo, estava quase invisível. Ficou nesta posição durante alguns segundos, intermináveis. Em seguida gritou:

— Sim! Vejo alguma coisa! — e pôs-se de pé de um salto. — É a sua vez — disse. — Olhe para a margem do rio bem abaixo de nós.

Lina seguiu-lhe o exemplo. Deitou-se no chão e rastejou até ficar com a cabeça a pender da beira do caminho. A cerca de dois metros e meio abaixo, viu a água negra correndo com força. Encostou o queixo ao peito e olhou para a margem do rio. Era uma parede a pique, de rocha lisa e lustrosa devido aos borrifos de água, e, a princípio, foi tudo quanto viu. Mas continuou a olhar e, pouco depois, conseguiu ver umas grades de ferro curtas aparafusadas à margem, umas depois das outras, quase diretamente debaixo do lugar onde se encontrava. Eram como os degraus de uma escada. Deu-se conta de que era mesmo uma escada. As barras eram uma maneira de descer a margem do rio. Uma maneira não muito convidativa — pareciam escor­regadias e a corrente lá em baixo era terrivelmente rápida. E, devido à penumbra e aos borrifos de água, não conseguia ver se havia mesmo um rebordo no fundo ou não. Mas o E era claramente um E, e as barras eram claramente uma escada. Devia ser o lugar certo.

— Quem vai primeiro? — disse Doon.

— Vai você — disse Lina, pondo-se de pé e afastando-se.

— Está bem.

Doon voltou-se de forma a ficar de costas para o rio e começou a descer pelas rochas cautelosamente, procurando o primeiro degrau com o pé. Lina ficou a vê-lo desaparecer de sua vista aos poucos. Após alguns momentos ouviu a voz dele chamá-la lá de baixo:

— Estou aqui em baixo! Desce você agora!

Lina voltou-se de costas, tal como Doon, e ficou com um pé balançando no vazio, abaixando-o até chegar ao primeiro degrau da escada. Passou o peso para esse pé, agarrou-se com os dedos frios a uma saliência na rocha e desceu lentamente até ter os dois pés assentados no degrau. O coração batia com tal força que receava que a fizesse soltar os dedos da sa­liência.

Agora tinha que descer. Procurou com o pé o degrau seguinte, encontrou-o e desceu. Seria fácil se não fosse o rio lá em baixo à espera de engoli-la.

— Está quase lá! — disse Doon. A sua voz vinha de um ponto bem abaixo de onde Lina se encontrava. — Há um rebordo. Mais um degrau e estará nele.

E Lina encontrou, uma superfície sólida sob o seu pé. Durante um segundo ficou imóvel, ainda agarrada à escada. A água em turbilhão estava alguns centímetros abaixo.

Não pense nisso, disse a si mesma. Deu dois passos laterais, de forma a ficar ao lado de Doon, e ali, em frente deles, encontrava-se um espaço retangular escavado na parede do rio, semelhante ao átrio de um edifício. Tinha cerca de dois metros e meio de largura por dois metros e meio de altura e não era visível de qualquer outro lugar no Sistema de Canalizações. Tinha de se descer até o rio para vê-lo.

Entraram neste átrio e avançaram uns passos. Do túnel por trás deles vinha luz suficiente para se ver.

Lina parou.

— Ali está a porta! — disse.

— O quê? — disse Doon.

A água precipitava-se de forma tão ruidosa que eles tinham que gritar para se fazerem ouvir.

— A porta! — berrou Lina, toda contente.

— Sim! — gritou Doon. — Estou vendo!

Ao fundo havia uma porta larga e sólida. Era de um cinzento-pardo, salpicada de manchas esverdeadas e acastanhadas que pareciam bolor. Lina tocou-a com as palmas das mãos. Era de metal e fria. A porta tinha um puxador de metal e, bem abaixo do puxador, uma fechadura.

Lina meteu a mão no bolso das calças, à procura de sua cópia das instruções. Desdobrou o papel e Doon espiou por cima do ombro dela. Juntos tentaram ler à luz fraca do túnel principal.

— É esta a parte, bem aqui — disse ela, apontando:

 

  1. Descer os degraus na   argem   o   io

       ao     ord     apr

dois

   aixo.

 

  1. ostas para a

ág a,     encontrar     porta do   talei dos bar

   cha                           rás d   pequen

pa nel de aço   direita               . Tir

     ave, abrir po

 

Lina sublinhou a linha número 3 com um dedo.

— Isto deve dizer: Qualquer coisa, qualquer coisa margem do rio para o rebordo aproximadamente a dois metros e meio abaixo. É o que acabamos de fazer agora mesmo. E a seguir a linha quatro é qualquer coisa sobre... de costas para a água, encontrar a porta... qualquer coisa. E depois cha rás deve ser a chave por trás e a seguir vem a pequena panela de aço. Vê alguma panela pequena de aço?

Doon estava estudando o papel ainda.

— Diz direita. Devemos olhar para a direita da porta.

E encontraram com facilidade o que procuravam. Não era uma panela, mas sim um pequeno quadrado de aço embutido na parede.

— Um painel de aço — disse Lina.

Tateou o painel e sentiu uma reentrância na sua superfície. Quando a pressionou, o painel abriu-se de forma fácil e silen­ciosa, como se sentisse alívio por ter finalmente sido encontrado. Dentro, havia uma chave prateada pendurada num gancho.

Lina estendeu a mão, mas recolheu-a logo em seguida.

— Pego? — disse. — Ou pega você?

— Pega você — disse Doon.

Ela tirou a chave do gancho e meteu-a na fechadura. Rodou-a e ouviu-se um estalido. Pôs a mão no puxador e empur­rou, mas não aconteceu nada. Empurrou com mais força.

— Não se mexe — disse.

— Talvez abra para fora — disse Doon.

Lina puxou. Mesmo assim a porta não se abria.

— Tem que abrir — disse ela. — Nós abrimos com a chave! Puxou e empurrou e forçou o puxador — e a porta se mexeu, não para fora ou para dentro, mas para o lado.

— Oh! É assim que abre! — gritou Lina.

Puxou o puxador para a esquerda e, com um rangido, a porta deslizou para uma ranhura na parede. Por trás dela havia um espaço mergulhado em total escuridão.

Ficaram olhando. Lina contava ver qualquer coisa quando a porta se abrisse. Tinha achado que haveria luz para lá da porta e um caminho ou uma estrada.

— Entramos? — perguntou Lina. Doon acenou com a cabeça.

Lina avançou um passo. O ar tinha um cheiro úmido e abafado. Voltou-se para a direita e pôs a mão direita contra a parede. Era macia e plana. O chão também era plano.

— Talvez haja um interruptor — disse ela.

Tateou a parede bem ao lado da porta, desde o chão até onde conseguia chegar, mas não encontrou nada.

Doon virou-se para a esquerda e tateou o outro lado, com o mesmo resultado.

— Nada — disse.

Muito lentamente, mantendo a mão encostada à parede e batendo com o pé no chão cautelosamente antes de cada passo que davam, Doon e Lina avançaram em direções opostas. Chegaram cada um a uma esquina e dobraram-na. Agora, esta­vam penetrando cada vez mais na escuridão. Tiveram ambos o mesmo pensamento: será que a saída de Ember é um túnel com­prido e escuro? Teremos que avançar quilômetros e quilômetros no escuro?

Mas, subitamente, Lina soltou um grito de surpresa.

— Há qualquer coisa aqui no chão — disse. Tinha batido com o pé contra um objeto duro. Ajoelhou-se e tocou-o cau­telosamente com as mãos. Era um cubo de metal, com cerca de trinta centímetros quadrados. — É uma caixa, eu acho. Duas caixas — acrescentou, enquanto tocava no seu achado.

No escuro, Doon deu um passo na direção de Lina e bateu com os joelhos contra uma aresta dura.

— Há alguma coisa aqui também — disse. — Mas não é uma caixa — acrescentou, apalpando-a. — É grande e tem uma aresta curva.

— As caixas são bem pequenas, podemos pegar ne­las — disse Lina. — Olha, vamos levá-las para onde há mais luz e ver o que são. Venha me ajudar.

Doon aproximou-se de Lina e pegou numa das caixas. Voltaram para trás e pousaram as caixas a cerca de um metro da margem do rio. Eram de um metal verde-escuro e tinham uma asa de metal cinzenta no tampo e uma espécie de fecho no lado. Os fechos abriram-se com facilidade. Lina e Doon abri­ram os tampos das caixas e olharam para dentro delas.

O que viram intrigou-os e desiludiu-os. A caixa de Lina estava cheia de paus brancos e lisos, com cerca de vinte e cinco centí­metros de comprimento. Da ponta de cada um deles pendia um pedacinho de barbante. Na caixa de Doon havia dúzias de caixinhas embrulhadas num material escorregadio. Abriu uma delas e en­controu uma grande quantidade de paus pequenos, cada um com uma pinta azul na ponta. Ambas as caixas tinham uma etiqueta no interior da tampa. A etiqueta da caixa de Lina dizia «Velas». A etiqueta na caixa de Doon dizia «Fósforos» e, por baixo, havia uma tira branca de um material áspero e arenoso com cerca de dois centímetros e meio de largura.

— O que quer dizer «Velas»? — disse Lina, intrigada. Tirou um dos paus da caixa. Era macio, quase oleoso.

— E o que quer dizer «Fósforos»? — disse Doon. — «Fós­foros»? — repetiu e tirou um pau de uma das caixinhas. A parte azul na ponta não era de madeira. — Será uma coisa com que se pode escrever? Como um lápis? Talvez escreva em azul.

— Mas qual é o interesse de uma caixa cheia de lápis assim tão pequeninos? — perguntou Lina. — Não compreendo.

Doon olhou com atenção para o pauzinho com a ponta azul.

— Não vejo que outra coisa possa ser — disse por fim. — Vou tentar escrever qualquer coisa com ele.

— Em quê?

Doon olhou à sua volta. O chão estava úmido demais devido aos borrifos do rio para se poder escrever nele. — Podia tentar escrever no papel das instruções — disse.

Lina deu-lhe o papel. Cuidadosamente, ele passou a ponta azul do pau na margem da folha. Não deixou marca. Passou-a no seu próprio braço. Também não deixou qualquer marca.

— Tente esta coisa branca — disse Lina, apontando para a tira branca na parte interior do tampo da caixa.

Doon raspou a ponta azul na superfície áspera. A ponta do pau incendiou-se de imediato. Doon soltou um grito e atirou o pau, que caiu no chão a cerca de um metro, onde ficou ardendo durante um momento e depois se apagou.

Olharam um para o outro, de bocas abertas com o espanto. Havia um cheiro estranho e acre no ar, que fazia cócegas no nariz.

— Faz fogo! — disse Doon. — E luz!

— Deixe-me experimentar um — disse Lina.

Tirou um pauzinho da caixa e raspou-o na tira áspera. Fez-se uma chama viva, mas ela conseguiu segurá-lo durante um momento. Depois, ao sentir o calor nos dedos, largou o pau incandescente, que caiu no rio.

— Paus de fogo — disse Doon. — É isso que vai salvar Ember?

— Não sei como — disse Lina. — São tão pequenos. Apa­gam-se tão depressa — acrescentou. Estremeceu. As coisas não estavam correndo como ela esperava. Pegou num dos objetos brancos. — E estas coisas, para que servem?

Doon sacudiu a cabeça, perplexo.

— Talvez uma vela seja uma espécie de suporte — disse. — Talvez tenha que se atar o pau ao barbante e assim pode-se segurá-lo durante mais tempo enquanto ele arde.

— Mesmo assim, apagaria-se depressa — disse Lina.

— Pois é — disse Doon. — Mas não sei que outra coisa possa ser. Vamos experimentar.

A muito custo, enrolaram o barbante de um dos paus brancos em volta de um dos paus com ponta azul. Lina segurou no pau branco enquanto Doon raspou a ponta azul do pau pequeno até fazer chama. Ficaram olhando para a chama, que fazia som­bras com movimento por trás deles. A madeira ficou negra e o pau queimado desfez-se e caiu no chão. Mas a luz não se apagou. O barbante tinha pegado fogo. Faiscou e soltou fumaça e depois começou a arder, enchendo o pequeno espaço com uma luz quente.

— É a luz móvel — disse Doon, pasmo.

Toda a excitação que Lina sentira antes voltou a invadi-la.

— E agora, e agora — disse —, podemos voltar lá para dentro e ver o que está lá.

Desceram o corredor até a porta e entraram. Lina segurava a luz móvel com o braço estendido. À luz trêmula, viram um objeto de metal prateado. Andaram lentamente à sua volta, a tentarem descobrir o que era. Era comprido e baixo, enchendo o centro da sala. Uma das pontas era aguçada. A outra era plana. O centro aberto era cruzado por duas tiras de metal. Havia quatro cordas fortes amarradas ao exterior, uma em cada ponta e uma de cada lado. E no seu interior, no chão, encontravam-se duas varas com uma das pontas achatada.

— Olha — disse Lina. — Há uma palavra aqui no lado.

Pondo-se de cócoras junto à ponta aguçada, aproximaram a chama da palavra. Em letras pretas e quadradas, dizia «BAR­CO».

— Barco — repetiu Doon. — O que é que isso quer dizer?

— Não sei — disse Lina. — E aqui está outra palavra, nestas varas: Remos. A única vara que conheço é a que a Sra. Polster usa para os alunos que se portam mal na escola.

Mais uma vez, tirou a cópia das instruções do bolso e consultou-a, lendo-a à luz da chama.

— Olha — disse —, aqui mesmo: arco deve ser barco.

 

  1. arco, aprovisionado com

   uip           nec

proa à ré

               etros e dez.

 

— E a parte seguinte deve dizer aprovisionado com o equi­pamento necessário — disse Doon. — Deve ser o que está nas caixas.

— E depois há isto — Lina sublinhou a linha seguinte com o dedo.

 

  1. U               ordas, baixa

             gua. Dirigir-se   o aix . Us     re

   evi         oche       e manobrar             oeir

 

— Esta palavra deve ser cordas — disse ela. — Depois, baixar... e depois... será que estas palavras são «com a caixa»? Talvez diga «dirigir-se com a caixa»?

— Isso não faz sentido — disse Doon. — Dirigir-se com a caixa para quê? — Franziu a testa e depois, inspirando rapida­mente, disse: — Rio abaixo. As palavras devem ser rio abaixo. Deve dizer qualquer coisa como: Usar as cordas para baixar o barco e dirigir-se rio abaixo. — Olhou para Lina e falou num tom encantado: — O barco é para andar na água. É um meio de transporte.

Ficaram olhando um para o outro à luz trêmula, tentando compreender o que aquilo significava. Não havia um túnel para sair de Ember. A saída era o rio. Para sair de Ember, tinham de ir pelo rio abaixo.

 

                                         UMA CORRIDA DESESPERADA

— Mas isto não pode estar certo — disse Doon. — Se o rio é a saída de Ember, porque é que só há um barco? Só tem lugar para duas pessoas.

— Não sei — disse Lina. — É estranho mesmo.

— Vamos dar mais uma olhada.

Puseram-se de pé. Doon voltou ao lugar onde tinham pou­sado as caixas e pegou outra vela. Levou-a para a sala onde se encontrava o barco, acendeu-a e o espaço ficou bem iluminado. Viram logo uma coisa em que não tinham reparado antes: numa das paredes havia uma porta quase a toda largura da sala. Quan­do se aproximaram, viram que, tal como a outra, era uma porta deslizante. Doon pôs a mão no puxador que estava à di­reita, puxou para o lado e a porta abriu-se suavemente, deixando à vista mais escuridão.

Entraram. Pelo eco de suas vozes calcularam que se encon­travam numa sala enorme, embora o teto fosse baixo — viam-no bem acima das suas cabeças. A luz da vela incidia em algo brilhante e, à medida que iam avançando, viam que a sala estava cheia de barcos, filas e filas de barcos, todos iguais ao que se en­contrava na primeira sala.

— Deve haver centenas de barcos — segredou Lina.

— Que cheguem para todo mundo, acho eu — disse Doon.

Andaram por ali durante algum tempo, mas não havia real­mente muito o que ver. Todos os barcos eram iguais. Em cada um havia duas caixas de metal e dois remos. Aquele espaço era frio e o ar estava pesado. A chama das velas mal ardia. Por isso voltaram para a sala menor e fecharam a porta atrás de si.

— Suponho que este primeiro barco é uma espécie de amos­tra — disse Lina. — Ficamos sabendo o que são as coisas por meio das etiquetas. Barco. Remos. Velas. Fósforos.

Voltaram para a margem do rio. Lina apagou a vela e come­çou a fechar as caixas que tinham aberto. Doon apagou também a sua vela.

— Vou levá-la comigo, para examiná-la mais tarde. Também levo uns fósforos — disse, tirando uma carteira de fósforos da caixa e metendo-a dentro da camisa, contra o peito.

Lina voltou a pôr as caixas na sala onde se encontrava o barco e fechou a porta. Depois, lado a lado no rebordo, Lina e Doon olharam para baixo. A menos de trinta centímetros, o rio corria com toda a força. A uma curta distância, mergulhava no buraco negro da parede e desaparecia.

— Bem — disse ele —, encontramos.

— Encontramos — repetiu Lina, num tom de voz en­cantado.

— E amanhã, no início das Canções — disse Doon —, ficamos de pé na Praça Harken e contamos a todo mundo.

Quando saíram do Sistema de Canalizações, já eram quase seis horas. Não tinham percebido a passagem do tempo lá em baixo. Tanto o pai de Doon como a Sra. Murdo deviam estar se perguntando onde estariam eles. Pararam por um momento junto a um lampião, o tempo suficiente para combinarem uma hora para se encontrarem no dia seguinte e planejarem o anúncio da novidade. Depois apressaram-se para ir para casa. Quando o pai de Doon lhe perguntou porque chegara tão tarde, ele disse que o ensaio das canções tinha se prolongado por muito tempo. Queria anunciar ao seu pai, aos gritos: — Descobrimos a saída! Estamos salvos! —, mas conteve-se, para não estragar o seu mo­mento de glória no dia seguinte. Amanhã, quando seu pai o visse nos degraus da Câmara de Reuniões, ficaria tão comovido com a surpresa e o orgulho que até sentiria uma fraqueza nos joelhos e as pessoas à sua volta teriam de ampará-lo para ele não cair.

E o anúncio sobre o ladrão do presidente! Também se faria amanhã, provavelmente. Doon quase tinha se esquecido disso, com a excitação de encontrar os barcos. A detenção do presi­dente e o salvamento da cidade, ambos ao mesmo tempo! Ia ser um dia inacreditável. Estes pensamentos impediram Doon de adormecer até quase de manhã.

 

O Dia das Canções era feriado em toda a cidade; todas as lojas e outros negócios fechavam. Isto significava que Doon não teria que ir trabalhar. O seu pai também não tinha que ir para a loja, mas ia abri-la, de qualquer forma. Quando não estava na loja tratando da mercadoria não sabia o que fazer.

Doon demorou-se a tomar o seu desjejum de palitos de cenoura e purê de nabos, à espera que o pai saísse de casa. Queria preparar-se para a viagem rio abaixo. Provavelmente, só partiriam dali a alguns dias — ele e Lina fariam o seu anúncio hoje à noite e as pessoas precisariam de tempo para organizarem tudo antes de deixarem a cidade —, mas sentia-se excitado demais para ficar sentado sem fazer nada.

Mal o pai de Doon saiu, ele tirou a fronha do travesseiro. Seria o seu saco de viagem. Meteu nela a vela e os fósforos. Meteu também a chave que tinha tirado do escritório do Sistema de Canalizações. Meteu um pedaço grande de corda que tinha encontrado nas lixeiras e guardava há anos e uma garrafa de água. Meteu um canivete velhíssimo que o seu pai lhe tinha dado e já estava na família há várias gerações, e que usava para cortar a franja do cabelo quando ela estava tão crescida que lhe fazia cócegas nas pálpebras. Meteu algumas peças de vestuário, para o caso de se molhar, e papel e lápis para poder escrever o diário de sua viagem. Juntamente com estas coisas enfiou um cobertor pequeno — talvez fizesse frio na nova cidade — e comida: seis cenouras, uma porção de vitaminas, algumas ervilhas e cogumelos embrulhados numa folha de alface, duas beterrabas cozidas e dois nabos também cozidos. Devia ser o suficiente. Com certeza que, quando chegassem ao lugar para onde iam, as pessoas que ali viviam lhes dariam alguma coisa para comer. Atou as pontas da fronha com um nó e depois desatou-o. Podia querer acrescentar mais alguma coisa.

De pé no meio do apartamento olhou à sua volta para a confusão de objetos. Não havia nada mais que ele quisesse le­var — não, havia mais uma coisa. Voltou ao seu quarto. Tirou de baixo da cama as páginas do seu livro de insetos. Folheou-o. A aranha branca. A traça com o padrão em ziguezague nas asas. A abelha, com riscas castanhas e amarelas no abdômen. Olhou para os desenhos durante muito tempo, tentando memo­rizar a sua beleza e estranheza. Minúsculas franjas de pêlos, pinças em miniatura, membros articulados. Deveria levar o livro? Talvez não existissem animais como estes no lugar para onde iam. Talvez não voltasse a ver coisas assim.

Mas não, o deixaria ficar — o seu saco de viagem tinha que ser pequeno e leve. Voltou a pôr o livro de insetos debaixo da cama e tirou a caixa onde guardava a minhoca verde. Afastou o lenço para ver a sua prisioneira mais uma vez. Vários dias antes, a minhoca tinha feito uma coisa curiosa: envolvera-se num co­bertor de fios. Desde então, estava suspensa, imóvel, num pedaço de talo de couve. Doon andava a vigiá-la atentamente. Ou estava morta ou estava passando por um processo de mudança sobre o qual Doon tinha lido num livro da biblioteca, mas que custava a acreditar — a passagem de animal rastejante para animal voador. Até o momento, a minhoca envolvida no seu cobertor não tinha dado sinais de vida.

Mas viu que agora estava se contorcendo. O fardo enfaixado no cobertor de fio, do feitio de um comprimido grande de vi­taminas, agitava-se levemente de um lado para o outro, em seguida ficava imóvel e depois agitava-se para a frente e para trás. Havia qualquer coisa fazendo pressão na parte superior e, pouco depois, os fios dessa parte se romperam e despontou um botão escuro e peludo. Doon continuou a olhar, com a respira­ção suspensa. A seguir vieram duas pernas como cabelos, que se agarraram ao cobertor e começaram a tentar desfiá-lo. Dentro de alguns minutos, o animal inteiro tinha saído do casulo. Egresso, pensou Doon, com um sorriso. A princípio, as asas do animal estavam completamente achatadas contra o seu corpo, mas não tardaram a abrir-se e Doon viu aquilo em que a sua minhoca se transformara: uma borboleta com asas castanho-claras. Pegou a caixa e levou-a até à janela. Abriu a janela e segurou a caixa. A borboleta agitou suas patas cobertas de penugem e deu alguns passos na folha de couve murcha. Durante vários minutos ficou imóvel, com as asas a tremerem ligeiramente. E depois esvoaçou no ar, subindo cada vez mais alto até não ser mais que um ponto pálido contra o céu escuro.

Doon ficou olhando a borboleta desaparecer. Sabia que tinha presenciado uma coisa maravilhosa. Qual era o poder que trans­formara a minhoca numa borboleta? Era maior do que qualquer poder que os construtores tiveram, disso tinha certeza. Em comparação com ele, o poder que governava a cidade de Ember era fraco — e estava prestes a esgotar-se.

Durante alguns minutos ficou junto à janela, olhando para a praça e pensando mais uma vez sobre o que levar para a viagem. Deveria meter no saco coisas como pregos e arame? Precisaria de dinheiro? Deveria levar sabão?

A seguir riu e deu uma palmada na própria cabeça. Estava sempre se esquecendo que toda a população da cidade o acom­panharia na viagem. Se precisasse de alguma coisa que não tivesse, alguém com certeza lhe emprestaria.

Assim, deu um nó na fronha e estava quase fechando a janela quando avistou três homens fortes, com o uniforme vermelho e castanho dos guardas da cidade, entrarem na praça em grandes passadas. Pararam e olharam à sua volta por uns instantes. Depois, um deles foi falar com a velha corcunda Nammy Proggs, que estava perto da entrada da loja de pequenos objetos. O guarda era alto como uma torre e ela virou a cabeça de lado e olhou para cima. Doon ouvia a voz do guarda claramente:

— Andamos à procura de um rapaz chamado Harrow.

— Por quê? — disse Nammy.

— Anda espalhando boatos maliciosos — foi a resposta. — Sabe o seu paradeiro?

Nammy hesitou por um momento e depois disse:

— Foi para as lixeiras a um minuto.

O guarda acenou com a cabeça e fez sinal aos colegas. Foram embora a marchar.

Espalhando boatos maliciosos! Doon estava tão abismado que ficou imóvel como uma pedra durante um longo minuto. O que é que eles queriam dizer? Mas só havia uma resposta. Tinha de ser o que ele e Lina tinham contado ao guarda assistente sobre o presidente. Porque é que estavam dizendo que era um boato ma­licioso? Era a verdade! Doon não compreendia.

Mas compreendeu que Nammy Proggs tinha feito um favor. Devia ter percebido que os guardas não estavam com boas intenções. Tinha-o protegido, pelo menos por hora, ao mandar os guardas para o lugar errado.

Doon tentou refletir com calma. Porque é que os guardas pensavam que ele e Lina estavam mentindo? Obviamente, não tinham revistado a sala no Túnel 351. Se o tivessem feito, sabe­riam que ele e Lina tinham dito a verdade.

Só lhe ocorria uma outra hipótese. Os guardas — pelo menos alguns deles — já sabiam o que o presidente andava fazendo. Sabiam e queriam que continuasse em segredo. E por quê? Era óbvio: os guardas também andavam tirando coisas dos armazéns.

Tinha que ser essa a resposta. Por um momento, o medo que sentira ao ver os guardas deu lugar a um sentimento de raiva. Uma onda quente de fúria, já sua conhecida, invadiu-o e teve vontade de agarrar um punhado de pregos do seu pai ou de cacos de louça e atirá-los contra a parede. Mas ao mesmo tempo ocorreu-lhe uma idéia: se os guardas andavam atrás dele, também procuravam a Lina. Tinha que ir avisá-la. Correu pelas escadas abaixo, com a raiva a dar-lhe energia para ir a toda velocidade.

 

Depois de Doon e Lina terem descoberto a sala cheia de barcos, esta regressara à casa da Sra. Murdo com o som do rio ainda nos ouvidos. Era como uma voz enorme e cheia de força, a rugir muito alto. Dentro de si, Lina sentia uma espécie de impulso para responder, como se ela também contivesse uma gota da mesma força. Ia viajar pelo rio — custava-lhe a acreditar — e talvez o rio a levasse à cidade brilhante dos seus sonhos ou nau­fragassem. O que imaginara antes — um caminho liso e pouco acidentado conduzindo à saída — parecia-lhe agora uma criancice. Como poderia o caminho para um novo mundo ser tão fácil? Receava viajar no rio, mas sentia-se pronta. Estava ansiosa para partir.

Nessa noite dormiu no bonito quarto azul e verde, na cama grande com seus altos e baixos, com Poppy a seu lado. Sentia-se em segurança. A Sra. Murdo veio lhes aconchegar a roupa. Sentou-se na cama e cantou uma canção estranha à Poppy — algo sobre «deixa a baga do loureiro, deixa dormir a menina, que está no sono primeiro».

— O que é a baga do loureiro? — perguntou Lina, mas a Sra. Murdo não sabia.

— É uma cantiga muito antiga — disse. — O mais certo é serem palavras sem sentido.

Deu-lhes boa-noite e saiu para a sala de estar, onde Lina a ouviu cantarolar em voz baixa enquanto arrumava a casa. Era uma pessoa tão arrumada! Nunca deixava as meias nas costas das cadeiras ou o que andava costurando espalhado em cima da mesa. Lina fechou os olhos e esperou pelo sono.

Mas os pensamentos andavam-lhe em tropel na cabeça. Iam acontecer tantas coisas amanhã! Toda a cidade ficaria em tumulto. As pessoas desceriam todas ao Sistema de Canalizações para verem os barcos. Ficariam excitadas, gritariam, ririam, chora­riam, fariam as malas e encheriam as ruas. Se não coubessem todas nos barcos, iria haver distúrbios. Algumas pessoas poderiam se machucar. Ia ser uma verdadeira confusão. Lina tinha que ter o cuidado de não se separar de sua pequena família — a Poppy, a Sra. Murdo e Doon, e talvez também o pai de Doon e a Clary. Não largaria nunca a Poppy, para que nenhum mal pudesse lhe acontecer.

Parecia-lhe que mal tinha fechado os olhos quando sentiu os calcanhares duros de Poppy batendo nas canelas.

— Hóia de levantar! Levantar! — chilreou Poppy.

Saiu da cama, vestiu-se e vestiu Poppy. Na cozinha, a Sra. Murdo estava fazendo purê de batata para o desjejum. Que bom, pensou Lina, ter alguém que lhe fizesse o desjejum — ouvir a água a ferver na panela e encontrar a mesa posta com uma tigela e uma colher e as vitaminas enfileiradas muito direi-tinhas ao lado de uma xícara de chá de beterraba.

Não me importava de viver aqui para sempre, pensou Lina, antes de se lembrar que dentro de um ou dois dias partiriam todos.

De repente, ouviram uma pancada na porta. A Sra. Murdo limpou as mãos e foi ver quem era, mas, antes de ter tempo de dar três passos, as pancadas na porta recomeçaram.

— Já vou, já vou — gritou a Sra. Murdo e quando abriu a porta era Doon.

Tinha o rosto corado e respirava com dificuldade. Trazia a fronha de uma almofada cheia pendurada ao ombro. Olhou da Sra. Murdo para Lina.

— Tenho que falar contigo — disse. — Imediatamente, mas... — lançou um olhar de dúvida à Sra. Murdo. Lina levantou-se da mesa apressadamente.

— Venha para cá — disse, levando-o para o quarto azul e verde.

Depois dela fechar a porta, Doon contou-lhe o que tinha acontecido.

— Eles virão prendê-la também — disse —, a qualquer minuto. Temos que sair daqui. Temos que nos esconder deles.

Lina mal conseguia compreender o que Doon estava dizendo. Estavam metidos em encrenca? Seus joelhos tremeram.

— Esconder? — disse. — Esconder onde?

— Podíamos ir para a escola, ninguém vai estar lá hoje, ou para a biblioteca. Está quase sempre aberta, mesmo nos fe­riados — disse, saltitando com impaciência de um pé para o ou­tro. — Mas temos de ir depressa, temos de ir já. Têm cartazes sobre nós afixados por toda a cidade!

— Cartazes?

— Dizendo às pessoas para nos denunciarem, se nos virem!

Lina sentia-se como se tivesse um enxame de insetos na sua cabeça, a zunirem tão alto que nem conseguia pensar.

— Durante quanto tempo temos que nos esconder? Todo o dia?

— Não sei. Não temos tempo para pensar nisso. Lina, eles podem estar à sua porta neste exato momento!

O tom de urgência da voz de Doon convenceu-a. Ao pas­sarem pela sala de estar, deu um beijo rápido em Poppy e disse:

— Adeus, Sra. Murdo. Temos um trabalho urgente para fazer. Se alguém vier à minha procura, diga que volto mais tarde.

Desceram as escadas sem darem tempo à Sra. Murdo de fazer quaisquer perguntas. Quando chegaram à rua, desataram a correr.

— Para onde vamos? — disse Lina.

— Para a escola — respondeu Doon.

Foram pela Rua Greystone, andando pela sombra sempre que possível. Ao passarem pela sapataria, Lina viu um pedaço de papel branco afixado na vitrine. Olhou para ele e o coração sal­tou-lhe no peito. O seu nome e o de Doon estavam escritos em grandes letras pretas:

 

         Doon Harrow e Lina Mayfleet

         Procurados por espalhar boatos maliciosos,

         Se vê-los, informe o guarda chefe do presidente.

         Não acredite em nada do que disserem.

         RECOMPENSA.

 

Lina arrancou o papel da vitrine, amassou-o e atirou-o no caixote de lixo mais próximo. No quarteirão se­guinte arrancou mais dois cartazes e Doon rasgou um que estava colado num lampião. Mas havia cartazes demais para conseguirem arrancar todos e não tinham tempo a perder.

Correram mais depressa. Neste feriado, as pessoas dormiam até mais tarde e, como as lojas estavam fechadas, as ruas encon­travam-se quase desertas. Mesmo assim, foram pelo caminho mais longo, passando pelas colméias, para evitar a Praça Sparkswallow, onde poderia haver algumas pessoas conversando. Passaram correndo pelas estufas e subiram a Rua Dedlock. Ao atravessarem a Rua Night, Lina olhou para a sua esquerda. A dois quarteirões de distância, um par de guardas atravessava a Praça Greengate. Ela bateu no ombro de Doon e apontou para os guardas. Ele os viu e correram ainda mais depressa. Teriam sido vistos? Lina achava que não; teriam ouvido um grito se os guardas os tives­sem avistado.

Chegaram à escola e entraram pela porta dos fundos. Era estranho estarem ali de novo, assim sozinhos, sem a algazarra e as conversas das outras crianças. O átrio, com as suas oito portas, parecia à Lina menor do que quando estivera estudando ali e também mais desleixado. As traves do assoalho estavam cinzentas do uso e havia uma nuvem de digitais em volta do puxador de cada porta.

Entraram na sala da Srta. Thorn e, pela força do hábito, sentaram-se cada um na sua carteira.

— Não acho que venham nos procurar aqui. Se vierem, podemos nos meter no armário de papel — disse Doon.

Pôs o saco de viagem no chão ao seu lado.

Durante algum tempo ficaram sentados recobrando o fôlego. Como não tinham acendido a luz, a sala estava na pe­numbra — a única luz vinha da parte de baixo da persiana na janela.

— Aqueles cartazes — disse Lina depois de algum tempo.

— Sim. Todo mundo vai vê-los.

— O que farão se nos apanharem?

— Não sei. Qualquer coisa para nos impedir de contar o que sabemos. Talvez nos ponham na Cela da Prisão.

Lina traçou com um dedo o B escavado no tampo da sua carteira. Parecia-lhe que já tinha passado muito tempo desde a última vez que se sentara na carteira.

— Não podemos nos esconder aqui para sempre — disse.

— Não — disse Doon. — Só até chegar a hora das Can­ções. Depois, quando todo mundo estiver reunido na Praça Har­ken, vamos lá e falamos dos barcos e do presidente. Não é? Eu não pensei realmente no que fazer, ainda não tive tempo esta manhã de pensar em nada.

— Mas os guardas estão sempre lá no Dia das Canções, ao lado do presidente — disse Lina. — Nos prenderiam mal abrís­semos a boca.

Doon uniu as sobrancelhas num único traço escuro.

— Tem razão. Então, o que faremos?

Era como estar num beco, pensou Lina. Não havia saída. Com um olhar ausente, fitou as coisas que tinham sido em tem­pos a sua companhia diária — a mesa da professora, as resmas de papel, O Livro da Cidade de Ember na sua prateleira especial. Passaram-lhe pela cabeça as velhas palavras: «Não há outro lugar a não ser Ember. Ember é a única luz no mundo escuro.» Sa­bia agora que isso não era verdade. Havia mesmo um outro lugar — o lugar para onde os barcos os levariam.

Como se tivesse lido seus pensamentos, Doon ergueu a cabeça.

— Poderíamos ir.

— Ir para onde? — disse ela, embora soubesse de imediato o que ele queria dizer.

— Para onde leva o rio — disse ele. Apontou para a fronha transformada em saco. — Fiz as malas esta manhã, estou pronto. Com certeza tenho o bastante para você também.

Lina sentiu o coração encolher-se.

— Irmos sozinhos? — disse ela. — Sem dizer a nin­guém?

— Mas nós diremos! — Doon estava de pé. Foi ao armário e pegou uma folha. — Escreveremos uma carta explicando tudo; uma carta para alguém em quem confiamos, alguém que acredite em nós.

— Mas eu não posso partir assim, sem mais nem menos — disse Lina. — Como poderia deixar Poppy? Sem ao menos me despedir dela? Sem saber para onde vou ou se regressarei? Como é que você poderia ir embora sem se despedir do seu pai?

— Porque — disse Doon —, logo que descobrirem os barcos, todos os habitantes de Ember vão querer ir atrás de nós. Não é como se fôssemos deixá-los para sempre — acrescentou. Atravessou a sala e pôs-se a remexer na mesa da Srta. Thorn. — A quem devemos dirigir a mensagem?

Lina não estava muito convencida de que fosse uma boa idéia, mas naquele momento não conseguia pensar numa solução melhor. Por isso disse:

— Poderíamos escrever à Clary. Ela viu as instruções. Vai acreditar no que dissermos. E vive perto daqui, na Praça Torrick.

— OK — disse Doon. Tirou um lápis da gaveta da mesa. — Realmente — disse — é uma idéia perfeita. Podemos escapar dos guardas e deixar a mensagem. E podemos ser nós os primeiros a chegar à nova cidade! Deveríamos ser os pri­meiros, porque descobrimos o caminho.

— Bem, isso é verdade — disse Lina, e pôs-se a pensar um momento. — Quanto tempo acha que vai levar até os outros descobrirem os barcos e virem nos encontrar? É muita gente para se organizarem — disse, e pôs-se a contar nos dedos todas as coi­sas que teriam que acontecer. — A Clary vai ter que pedir ao chefe do Sistema de Canalizações que vá com ela lá embaixo e encontre os barcos. Depois, vai ter que anunciar a notícia à cidade. Depois, todo mundo em Ember vai ter que fazer as malas, ir até o rio, tirar aqueles barcos todos daquela sala grande e embarcar. Pode bem ser uma grande confusão, Doon. A Poppy vai precisar de mim.

Imaginou multidões frenéticas e Poppy, pequenina e per­dida, no meio delas.

— Poppy tem a Sra. Murdo — disse Doon. — Vai ficar bem. Sério. A Sra. Murdo é muito organizada.

Era verdade. A idéia de levar Poppy na viagem, que entrara rápida como uma flecha na cabeça de Lina, saiu rápida como o vento.

Só estou sendo egoísta, pensou ela, ao querer tê-la comigo. É perigoso demais levá-la. A Sra. Murdo vai trazê-la dentro de um ou dois dias.

Este parecia ser o plano mais ra­zoável, embora a entristecesse tanto que ensombrava a excitação de ir para uma nova cidade.

— E se alguma coisa der errado? — disse ela.

— Nada vai dar errado! É um bom plano, Lina. Chegaremos lá antes de todo mundo; podemos lhes dar as boas-vindas quando chegarem, podemos ser os guias! — disse Doon.

Estava ansioso para se pôr a caminho. Tinha um brilho nos olhos e não parava de saltitar.

— Bom, está bem — disse Lina. — Vamos lá então escrever a mensagem.

Doon escreveu durante muito tempo. Quando acabou, mostrou à Lina o que tinha escrito. Na carta, explicava como encontrar a rocha com o E, como descer até a sala dos barcos, até mesmo como usar as velas.

— Está ótima — disse ela. — Agora temos que ir entregá-la — acrescentou. Fez uma pausa para ver se tinha alguma coragem dentro de si. Descobriu que, além de coragem, sentia também tristeza, medo e excitação. — Eu vou entregá-la — disse. — Afinal, sou mensageira. Conheço caminhos onde ninguém irá me ver — explicou. Ocorreu-lhe uma idéia. — Doon, talvez a Clary esteja em casa! Talvez pudéssemos ficar na casa dela em segurança e ela nos ajudaria a contar o que sabemos e assim não teríamos que ir embora já.

Doon abanou a cabeça.

— Duvido — disse. — Ela deve estar com o grupo das can­ções, ensaiando. Vai ter que colocar a carta debaixo da porta.

Pelo tom de voz de Doon, Lina percebeu que ele não queria realmente que Clary estivesse em casa. O que ele queria mesmo era que os dois fossem sozinhos rio abaixo. Doon olhou para o relógio na parede da escola.

— Passa pouco das duas — disse. — As Canções começam às três. Depois dessa hora, todo mundo vai estar na Praça Harken e as ruas vão ficar vazias. Acho que podemos ir sem perigo para o Sistema de Canalizações nessa hora; porque não vamos por volta das três e quinze?

— Ainda tem a chave?

Doon acenou que sim com a cabeça.

— Então, depois de entregar a carta à Clary volto para cá — disse Lina.

— Está bem. E esperamos até às três e quinze e depois vamos.

Lina levantou-se da carteira pequena demais e foi até a janela. Afastou a persiana um bocadinho e espiou lá para fora. Não havia ninguém na rua. A sala de aulas poeirenta estava mer­gulhada em silêncio. Lina pensou no pai de Doon, que ficaria muito preocupado ao ver o nome de seu filho nos cartazes e ao perceber mais tarde que Doon tinha desaparecido. Pensou na Sra. Murdo, que talvez já tivesse visto os cartazes e ficaria ater­rorizada se os guardas viessem à procura de Lina e se Lina não voltasse para casa ao fim do dia. Tentou não pensar em Poppy; não podia suportar a idéia.

— Dê-me a carta — disse por fim a Doon. Dobrou o papel cuidadosamente e colocou-o no bolso das calças. — Venho já — dis­se; saiu da sala de aulas e desceu o corredor até a porta dos fundos da escola.

Doon foi à janela vê-la se afastar. Puxou a persiana para o lado apenas o suficiente para espiar para a Rua Pibb. Lá ia ela, correndo com grandes passadas, com o cabelo a esvoaçar. Atravessou a Travessa Stonegrit. Antes dela chegar ao outro lado da rua, Doon parou de respirar. Havia dois guardas dobrando a esquina da Rua Knack, bem na frente dela. Um deles era o guarda chefe. Deu um salto para a frente e gritou tão alto que Doon conseguiu ouvi-lo claramente:

— É ela! Agarrem-na!

Lina mudou de direção imediatamente. Desceu outra vez a Rua Pibb, virou para a Rua School, a rua da escola, no sentido da Praça Bilbollio e desapareceu da vista de Doon. Os guardas corriam atrás dela, aos gritos. Doon ficou assistindo à perseguição, horrorizado.

Ela é muito mais rápida do que eles, disse a si mesmo. Não vão apanhá-la — ela conhece lugares para se esconder.

Ficou imóvel como uma pedra junto à janela, mal respirando.

Não vão apanhá-la, pensou. Tenho certeza de que não vão apanhá-la.

 

                                 O DIA DAS CANÇÕES

Quando Lina ouviu os guardas gritarem, ficou aterrorizada. Correu mais depressa do que nunca, com o coração a bater desordenadamente. Atrás dela, os guardas continuavam a gritar e ela sabia que, se houvesse outros guardas nas redondezas, viriam também em sua perseguição. Tinha que encontrar um esconderijo. A sua frente encontrava-se a Praça Bilbollio — ha­veria um lugar onde se esconder? E, como que em resposta, recor­dou as palavras de Doon: «A biblioteca. Está quase sempre aberta, mesmo nos feriados.»

Não tinha tempo para pensar. Não se perguntou se Edward Pocket estaria disposto a deixá-la entrar ou se haveria um bom lugar para se esconder dentro da biblioteca. Correu para a viela que dava para a porta da biblioteca e desceu-a como uma flecha.

Mas a porta da biblioteca não se abria. Lina rodou o pu­xador freneticamente, puxou e empurrou a porta e depois, quando já se ouviam os passos apressados dos guardas entrando na praça, viu o pequeno aviso escrito à mão afixado na porta: «Fechada para o Dia das Canções.» Os guardas estavam agora muito próximos. Se ela corresse, eles a veriam. Encostou-se contra a parede, esperando que eles não se lembrassem de procurá-la na viela da biblioteca.

Mas foi o que fizeram.

— Aqui está ela! — gritou um dos guardas.

Ela tentou passar correndo por ele, mas a viela era estreita demais e o guarda agarrou-a pelo braço. Lina debatia-se, aos puxões e pontapés, mas o guarda chefe chegou neste momento e colocou as mãos nela. Agarrou-lhe o outro braço com dedos duros como ferro.

— Pare de tentar escapar! — gritou ele.

Lina ergueu a mão e agarrou um tufo de sua barba encaracolada. Puxou com toda força e o guarda chefe rugiu de dor, mas não a largou. Impeliu-a para a frente, quase a levantando no ar, e os dois guardas arrastaram-na pela praça de uma forma atabalhoada, de lado, que a fazia tropeçar nos próprios pés.

— Estão me machucando! — disse Lina. — Não me apertem tanto!

— Não venha nos dizer o que devemos fazer — disse o guarda chefe. — Não a largaremos até chegarmos ao lugar para onde vamos te levar.

— E onde é? — disse Lina.

Estava tão furiosa com a sua má sorte que quase se esquecia de sentir medo.

— Vai falar com o presidente, menina — disse o guarda chefe. — Ele decidirá o que fazer contigo.

— Mas eu não fiz nada de mal!

— Andou espalhando boatos maliciosos — disse o guarda. — Contando mentiras perigosas, com a intenção de causar per­turbações da ordem pública.

— Não é mentira! — disse ela.

Mas o guarda agarrou-lhe o braço com ainda mais força e deu-lhe um empurrão que a fez tropeçar.

— Calada! — disse ele, e percorreram o resto do caminho num silêncio sinistro.

Algumas pessoas já se encontravam na Praça Harken, embora os trabalhadores ainda estivessem se preparando para as Canções. Os varredores cruzavam a praça para a frente e para trás, em­purrando as vassouras. Alguém apareceu à janela do segundo andar de um prédio na Rua Gilly e desenrolou uma das bandeiras que eram sempre exibidas no Dia das Canções — um comprido pano vermelho, desbotado após anos de uso, mas com um padrão ainda visível de linhas onduladas representando o rio, a fonte de toda energia. Era para «A Canção do Rio». Também haveria uma bandeira no lado da praça onde ficava a Rua Broad, de um amarelo-dourado bem forte e com um padrão simbolizando uma rede de ruas, que representava «A Canção da Cidade». E outra bandeira no lado da Rua Otterwill para «A Canção das Trevas», que era completamente negra com exceção de uma barra amarela estreita em toda volta.

Os guardas subiram as escadas da Câmara de Reuniões em passo de marcha e entraram pela porta larga. Levaram Lina pelo corredor principal, abriram a porta que ficava ao fundo e deram-lhe um último empurrão que a fez cambalear de forma pouco digna e esbarrar contra as costas de uma cadeira.

Era a mesma sala em que tinha estado naquele dia bem mais feliz — o seu primeiro dia como mensageira. Nada muda­ra — os reposteiros vermelhos esfiapados, os cadeirões forrados com um tecido gasto, o passador horroroso cor de lama. Os retratos na parede olhavam para ela com um ar triste.

— Sente-se ali — disse o guarda chefe.

Apontou para uma cadeira pequena e com um ar descon­fortável em frente do cadeirão maior. Lina sentou-se. Ao lado da cadeira estava a pequena mesa de que ela se lembrava, com o bule de porcelana e um tabuleiro com xícaras lascadas.

O guarda chefe saiu da sala — para ir à procura do presidente, supôs Lina. O outro guarda estava em silêncio, com os braços cruzados sobre o peito. Nada aconteceu durante algum tempo. Lina tentou pensar no que diria ao presidente, mas não con­seguia.

Em seguida, a porta que dava para o átrio da frente abriu-se e o presidente entrou. Era a primeira vez que Lina o via tão próximo desde que viera entregar-lhe a mensagem de Looper. Parecia ainda mais imenso. O seu rosto balofo era da cor de um cogumelo. Usava em terno preto que só cobria a sua imensa barriga o suficiente para conseguir apertar um botão.

Atravessou a sala em passos solenes e sentou-se no cadeirão, enchendo-o completamente. Ao seu lado havia uma mesa e so­bre a mesa encontrava-se uma sineta de metal do tamanho de um punho. O presidente fitou Lina por uns instantes com olhos que pareciam entradas de túneis e depois voltou-se para o guarda.

— Saia — disse, acenando com as costas da mão. — Regresse quando eu tocar a campainha.

O guarda saiu da sala. O olhar do presidente voltou a fixar-se em Lina.

— Não estou surpreendido — disse ele. Ergueu um braço e apontou com o dedo para o rosto de Lina. — Você já esteve metida em confusão antes. Indo onde não devia.

Lina começou a falar, mas o presidente levantou a mão. Era estranhamente pequena, com dedos curtos como vagens com ervilhas maduras.

— Curiosidade — disse o presidente. — Uma qualidade perigosa. Pouco saudável. Especialmente lamentável em alguém tão jovem.

— Tenho doze anos — disse Lina.

— Silêncio! — disse o presidente. — Eu estou falando. Contorceu-se ligeiramente de um lado para o outro, encaixando-se mais firmemente no cadeirão.

Vai ser preciso tirá-lo com uma grua, pensou Lina.

— Ember, como você sabe — prosseguiu o presidente —, está passando por um período difícil. São necessárias medidas extraor­dinárias. É um período em que os cidadãos deveriam ser muito leais. Muito cumpridores da lei. Para o bem de todos.

Lina não disse nada. Observou o duplo queixo do presi­dente avançar e recuar enquanto ele falava e depois desviou os olhos deste espetáculo desagradável e olhou com atenção à sua volta. Estava pensando, refletindo, mas não sobre o que o presidente dizia.

— Os deveres de um presidente — disse o presidente — são... complexos. Não podem ser compreendidos pelo cidadão co­mum, particularmente por crianças. É por isso que... — pros­seguiu, inclinando-se ligeiramente para a frente, com a barriga pousada sobre o regaço — certas coisas têm que permanecer ocultas do público. O público não compreenderia. O público deve ter fé — disse o presidente, erguendo mais uma vez a mão, desta vez com um dedo apontando para o teto — que tudo o que está sendo feito é em seu benefício. Para o seu bem.

— Cama de gato — disse Lina.

O presidente atirou-se para trás. As sobrancelhas cerraram-se sobre seus olhos, transformando-os em fendas escuras.

— O quê? — disse. — Com certeza não te ouvi bem.

— Eu disse cama de gato — disse Lina. — Quer dizer...

— Não se atreva a me dizer o que significa! — gritou o presidente. — A impertinência só pode fazer piorar a sua situa­ção — acrescentou. Respirava com dificuldade e as palavras saíam-lhe espaçadas. — Uma criança a laborar em erro... como você... requer... uma lição forte — agarrou os braços do cadeirão com seus dedos curtos. — Talvez — disse — a sua curiosidade a tenha levado a pensar... na Cela da Prisão. Como será, heim? Escura? Fria? Desconfortável? — deu o sorriso que Lina recordava do Dia da Atribuição de Serviço. Arreganhou os lábios, deixando à mostra os dentes pequenos; as suas bochechas cin­zentas faziam-lhe uma prega no rosto. — Vai ter a oportunidade de descobrir. Poderá ficar... conhecendo intimamente... a Cela da Prisão. Os guardas vão escoltá-la. O seu cúmplice, outro conhe­cido agitador, em breve irá lhe fazer companhia, mal seja loca­lizado.

O presidente voltou-se para procurar a sineta. Era este o mo­mento que Lina estava esperando para tentar fugir — achava que teria alguma chance de sucesso se corresse com rapidez suficiente —, mas aconteceu algo naquele instante que lhe deu um avanço substancial.

As luzes se apagaram.

Desta vez não tremeluziram, apenas se abateu uma escuridão súbita e total. Por sorte, Lina já tinha planejado o que fazer e sabia exatamente por onde ir. Levantou-se de um salto, der­rubando a cadeira. Fez um gesto largo com o braço e derrubou também a mesa ao lado da cadeira. A mobília tombando, o bule quebrando e os gritos furiosos do presidente fizeram um tal barulho que nem se ouviu o som dos passos de Lina correndo para a porta das escadas. Estaria trancada? Pousou a mão no puxador. Os grunhidos e gemidos que vinham da sala davam a entender que o presidente estava tentando a custo levantar-se do cadeirão. Lina rodou o puxador, puxou-o e a porta se abriu. Fechou-a atrás de si e subiu as escadas de dois em dois. Mesmo na escuridão total não era difícil subir escadas. Na sala, a sineta badalava sem parar e o presidente berrava, furioso.

Quando chegou ao primeiro patamar, ouviu os berros dos guardas. Houve um estrondo — alguém devia ter tropeçado na cadeira ou na mesa tombadas.

— Onde ela está? — gritou alguém.

— Deve ter fugido pela porta! — disse uma voz. Saberiam por que porta? Lina não ouvia passos atrás de si. Se conseguisse chegar ao telhado — e se, do telhado, pulasse para o telhado da Cela da Prisão e dali para a rua — talvez esca­passe. Tinha uma ardência insuportável nos pulmões, a respiração queimava-lhe a garganta, mas subia sem parar e, quando chegou lá em cima, saiu apressadamente pela porta do telhado e continuou a correr.

E foi então que a luz voltou. Era como se o corte de energia tivesse acontecido de propósito para ela.

Tenho tanta sorte, pensou, uma sorte tão extraordinária! A sua frente estava a torre do relógio. Andou à sua volta até chegar ao outro lado. Desta vez, não ia dançar no telhado.

Havia um parapeito pequeno em toda a volta do edifício. Lina aproximou-se cautelosamente, espiou lá para baixo e viu um enxame de pessoas se juntando na Praça Harken. Bem por baixo de onde Lina se encontrava ficava a entrada da Câmara de Reuniões e, enquanto ela estava olhando, dois guardas saí­ram correndo e desceram as escadas. Ótimo — tinham ido na direção errada! Deviam pensar que ela fugira para o meio da multidão. Por hora estava a salvo. O relógio da torre começou a dar as horas. Três badaladas. Era hora de começarem as Canções.

Lina fitou a multidão lá em baixo, reunida para cantar suas canções. As pessoas estavam tão juntas que ela só via os rostos voltados para o céu, com as luzes fortes e brilhantes a iluminarem-nos. Estavam em silêncio, à espera que o mestre das canções aparecesse nos degraus da Câmara de Reuniões. O silêncio era estranho, como se toda a cidade estivesse sustendo a respiração. Em todos os anos em Ember, pensou Lina, este silêncio antes das Canções era um dos momentos mais excitantes. Recordava-se de outros anos, quando vinha com os seus pais e era pequena demais para ver o sinal do mestre das canções, pequena demais para ver fosse o que fosse a não ser as costas e as pernas das pessoas, e esperava que soasse a primeira nota. Todos os anos, naquele momento, sentia um aperto no coração. O som erguia-se em ondas à sua volta, como água, quase como se fosse capaz de levantá-la do chão.

Agora, subitamente, esse momento chegou de novo. De cen­tenas de vozes ergueram-se as primeiras notas de «A Canção da Cidade», profundas e fortes. Lina sentiu as mesmas sensações dos anos anteriores: um estremecimento dentro de si, como se uma corda abaixo das costelas estivesse a ser dedilhada, e uma mistura de alegria e tristeza a invadi-la. Os acordes profundos e atroantes da canção encheram a Praça Harken. Lina sentia que quase poderia dar um passo em frente e andar no ar, de tão sólido que estava com o som.

«A Canção da Cidade» era a mais longa — havia versos sobre «ruas de luz e paredes de pedra», «cidadãos com corações fortes», «abundância infinita nos armazéns». (Não era verdade, pensou Lina.) Mas, por fim, ouviram-se os últimos acordes de «A Canção da Cidade». Os cantores sustentaram a nota final, que se tornava cada vez mais fraca, e depois fez-se silêncio mais uma vez. Lina olhou para as ruas iluminadas a estenderem-se em todas as direções, as ruas que conhecia tão bem. Amava a sua cidade, embora ela estivesse velha e quase em ruínas. Olhou para cima, para o relógio da torre: passavam dez minutos das três. Doon estaria nesse momento se preparando para ir para o Sistema de Canalizações. Ela não sabia se ele a tinha visto sendo apanhada pelos polícias — se tinha, estaria se perguntando se a teriam pren­dido na Cela da Prisão. E pensando se deveria tentar libertá-la ou ir para o rio sozinho.

Lina tinha que se apressar e ir encontra-lo — mas uma tristeza a impedia, como uma pedra pesada no peito. Encostou o rosto nas palmas das mãos e pressionou com força os olhos fechados. Como poderia partir de Ember e deixar Poppy? Por­que, se fosse, teria que deixar Poppy, não era? Como poderia levá-la numa viagem assim tão perigosa?

«A Canção do Rio» sobressaltou-a quando começou — as vozes dos homens, baixas e atroantes, inchadas de força, e depois as vozes das mulheres a sobreporem-se, com uma melodia com­plicada que parecia lutar contra a corrente. Lina ficou escutando, incapaz de se mexer. «A Canção do Rio» dava-lhe uma sensação de inquietude — sempre tivera esse efeito sobre ela. Com o seu ritmo atroador e constante, parecia impeli-la para a frente, di­zendo: «Desça o rio, parta, vá agora.» Continuando a ouvir a canção, sentia cada vez mais algo semelhante ao movimento do rio no seu estômago, uma sensação agitada, de enjôo.

A seguir veio «A Canção das Trevas», a última das três canções e a mais nostálgica e majestosa. A alma de Ember estava nesta canção. Os seus acordes tremendos continham toda a dor e toda a força do povo da cidade. A canção atingiu o clímax: «Trevas como uma noite sem fim», cantaram as centenas de vozes, de forma tão potente que o ar pareceu estremecer.

E nesse momento as luzes apagaram-se mais uma vez. As vozes vacilaram, mas somente por um instante. Em seguida, ergueram-se de novo na escuridão, ainda mais fortes do que antes. Lina cantou também. Pôs-se muito ereta e cantou com toda a força na escuridão profunda e palpável.

As últimas notas ecoaram e desvaneceram-se num terrível silêncio. Lina ficou completamente imóvel.

Acabará assim, pensou, no final da última canção? Sentiu a pedra fria da torre do relógio atrás de si. Esperou.

E então ocorreu-lhe uma idéia que a fez arrepiar-se. E se ela gritasse, agora, no silêncio? E se dissesse: Ouça, povo! Encontramos a saída de Ember! É o rio, descemos o rio! Podia anunciar a notícia assombrosa, tal como ela e Doon tinham planejado fazer, e então — então, o que aconteceria? Os guardas correriam para o telhado e a prenderiam? As pessoas na praça pensariam que sua notícia não passava de um desejo infantil ou escutariam o que ela tinha a dizer e se salvariam? Sentia as palavras se atropelarem na garganta, de tanto que queria dizê-las. Inspirou fundo e debruçou-se para a frente.

Mas, antes de ter tempo de começar a falar, um tumulto de vozes ergueu-se lá em baixo. Alguém gritou: «Não se mexam!», e outra pessoa soltou um gritinho. O coro transformou-se num rugido e a escuridão foi trespassada por gritos vindos de todos os lados. A multidão estava entrando em pânico.

Não havia qualquer hipótese de ser ouvida agora. Lina agarrou-se ao parapeito da torre do relógio como se o tumulto lá em baixo pudesse fazê-la cair. Esforçou-se por ver na escuri­dão. Sem luz não podia ir a lugar nenhum. Luzes, voltem, rezou. Voltem agora.

E então viu alguma coisa. A princípio, julgou que seus olhos estavam lhe pregando uma peça. Fechou-os bem fechados e abriu-os de novo. Ainda estava lá: um minúsculo ponto de luz se movendo. Viu-o a avançar lentamente em linha reta. Seria na Estrada River, a estrada do rio? Era impossível dizer. Mas subitamente soube o que era. Era Doon, com uma vela. Doon avançando no escuro na direção do Sistema de Canali­zações.

E ela também queria ir. Sentiu o desejo invadi-la, de ir encontrá-lo correndo e encontrar a saída de Ember, o caminho para o novo lugar. Escutou os gritos e gemidos das pessoas aterrori­zadas na praça lá em baixo. Pensou na Sra. Murdo lá em baixo no escuro, sendo empurrada de um lado para o outro, com os braços em volta de Poppy, tentando protegê-la, e de repente tudo lhe pareceu claro. Lina sabia o que faria — se as luzes voltassem a acender, se este não fosse o último corte de energia na his­tória de Ember. Olhando para a luz minúscula a seguir o seu curso constante, formulou um desejo com toda a força do seu coração e da sua mente.

Nesse momento, os focos de luz tremeluziram — ouviu-se um grande grito de esperança da multidão — e a luz voltou. Lina correu para o parapeito dos fundos do telhado, saltou sem problemas para o telhado da Cela da Prisão e, não avistando quaisquer guardas no ajuntamento de pessoas que estava agora avançando pela rua, saltou dali para o chão e juntou-se à multidão. Desceu a Rua Greystone na mesma velocidade das outras pessoas, para não dar na vista. Quando chegou à zona dos caixotes do lixo por trás da Câmara de Reuniões, acocorou-se e escondeu-se. Seu coração batia com força, mas agora sentia-se forte e decidida. Tinha um plano. Mal avistasse a Sra. Murdo e Poppy indo para casa, iria pô-lo em marcha.

 

                                       PARTIDA

Às três e vinte, Doon pegou o saco de viagem, saiu da escola pela porta dos fundos e começou a subir a Rua Pibb. Ia depressa — as luzes tinham se apagado durante alguns minutos bem antes das três horas e ele se sentia nervoso por estar na rua. Planejava tomar o caminho mais longo para o Sistema de Canalizações, até os limites da cidade, para evitar quaisquer guardas que ainda pudessem andar à sua procura.

Tinha muito receio do que pudesse ter acontecido à Lina. Não saberia o que teria acontecido até chegar ao Sistema de Canalizações e ela aparecer ou não. A única coisa que podia fazer agora era correr.

Desceu a Rua Knack a toda a velocidade. Era estranho estar na cidade com as ruas completamente desertas. Sem pessoas passando pela frente e por trás, as ruas pareciam mais largas e escuras. Nada se movia, a não ser ele mesmo, a sua sombra e o seu reflexo de passagem nas vitrines das lojas por onde passava. Na Praça Selverton viu um mural onde tinha sido afixado o cartaz com o seu nome e o de Lina. Toda cidade já deveria ter visto estes cartazes. Era famoso, pensou com ironia, mas não da forma que pretendia. Afinal, não haveria um momento de glória nos degraus da Câmara de Reuniões. Em vez de fazer seu pai orgulhar-se dele, ia causar-lhe uma preocupação terrível.

Este pensamento entristeceu-o de tal maneira que sentiu os joelhos fraquejarem. Como podia desaparecer sem uma palavra? Mas agora era tarde demais, não podia voltar atrás. Se ao me­nos houvesse uma maneira de lhe enviar um recado — e, de repente, percebeu que havia. Parou, procurou no saco o papel e o lápis que tinha trazido e escreveu: «Pai, encontramos a saída — afinal era no Sistema de Canalizações! Ficará sabendo de tudo amanhã. Beijos, Doon.» Dobrou o papel em quatro partes, escre­veu «Entregar a Loris Harrow» em grandes letras na parte de fora e pregou o recado ao mural. Pronto! Era a melhor solução possível. Teria que confiar que alguém entregaria seu recado.

Ouviu à distância o som tênue das canções. Pôs-se a escutar — era «A Canção do Rio» que acabava. «Muito lá em baixo, como o sangue da terra/Do centro de lugar nenhum, a correr sem parar», cantou baixinho. Como todos os outros habitantes de Ember, sabia de cor a letra das três canções. Cantou em voz baixa, acompanhando os outros cantores distantes:

«Gerando a luz que ilumina a cidade,

Tão velho que ninguém lhe recorda a idade,

Mais veloz que tudo o que há no mundo,

O rio vem e vai lá no fundo.»

Subiu a Rua Rim até a Estrada River, a estrada do rio. Estava a meio caminho. Os cantores atacavam as primeiras notas de «A Canção das Trevas». Era a sua preferida, com as suas harmo­nias fortes e profundas — Doon sentia muito por não estar cantando com os outros. Subiu a Praça da Estrada River do lado da Rua Pott, onde havia mais um cartaz, pendurado torto de um mural, e dirigia-se para a Rua North quando subitamente as luzes tremeluziram e se apagaram.

Parou de imediato. Ficar imóvel e esperar — foi a sua reação automática. À distância, ouviu uma quebra na canção e algumas vozes assustadas a interromperem o fluxo de som, mas logo em seguida voltaram a cantar, num desafio à escuridão. Por um mo­mento, todos os pensamentos abandonaram a mente de Doon; não havia nada nela a não ser as palavras desassombradas da canção:

 

             «Negra como o sono e, qual sonho, profunda

               A escuridão alastra como noite eterna.

               Mas nas ruas da cidade de Ember

               Brilha a nossa luz, forte e serena.»

 

Cantou de pé e imóvel na escuridão. Quando a canção che­gou ao fim, esperou. Com certeza as luzes não tardariam a acen­der. O silêncio continuou durante alguns minutos e depois, lá ao longe, mas muito claramente, ouviu-se um grito. Mais gritos e berros se seguiram, sons de pânico. Doon também sentia o pânico, como uma mão que o agarrava e lhe dava vontade de saltar e de se atirar contra o escuro.

Mas subitamente, com um clarão de alegria, lembrou-se que não precisava esperar que as luzes voltassem a acender. Ti­nha o que nenhum cidadão de Ember jamais tivera — uma forma de ver no escuro. Pousou seu saco de viagem, desatou o nó e remexeu dentro dele até sentir a vela. No fundo, a um canto, encontrou a pequena carteira de fósforos. Riscou um fósforo contra o pavimento e ele acendeu logo. Chegou a chama ao fio da vela e o fio começou a arder. Tinha uma luz. Tinha a única luz em toda a cidade.

A luz da vela não se projetava a grande distância, mas era o suficiente para iluminar, pelo menos, o passeio à sua frente. Percorreu lentamente a Rua Pott e em seguida virou à esquerda para a Rua North. Ao fundo da rua viu o muro do escritório do Sistema de Canalizações.

Quando chegou à entrada do Sistema de Canalizações, não havia ninguém lá. Uma pequena nuvem de traças começou a esvoaçar em volta da chama da vela, mas não havia nenhum outro movimento na Praça Plummer. Só lhe restava esperar. Doon apagou a vela — não queria gastá-la toda, para o caso do corte de energia se prolongar por muito tempo — e sentou-se no passeio, pousando sua trouxa e encostando-se a um dos grandes contentores de lixo. Aguardou, escutando os gritos distantes — e por fim as luzes piscaram, piscaram mais uma vez e acenderam-se.

Não via Lina em lugar nenhum. E se os guardas a tivessem encontrado e levado... Mas Doon preferia não pensar nisso por hora. Esperaria durante algum tempo — talvez o corte de energia a tivesse atrasado, se é que vinha a caminho. Não via a torre do relógio daqui, mas, provavelmente, ainda não eram quatro horas.

E se ela não viesse? As Canções tinham acabado, as pessoas dispersavam pela cidade e os guardas, sem dúvida, não tardariam a retomar a busca. Doon cruzou os braços e encostou-os com força ao estômago, tentando evitar a sensação de enjôo que o as­saltava.

Se ela não viesse, Doon tinha duas hipóteses: podia ficar na cidade e fazer o possível por salvar Lina ou podia meter-se no barco sozinho e esperar que Lina conseguisse de alguma forma libertar-se sozinha e dizer às pessoas que havia uma saída de Ember. Nenhum destes planos lhe agradava; queria descer o rio, mas queria fazê-lo com Lina.

Doon pôs-se de pé e pegou o seu saco de viagem mais uma vez. Estava inquieto demais para continuar sentado. Desceu a Rua Gappery e olhou em ambas as direções. Não se via uma única pessoa. Foi até à Rua Plummer, pensando que talvez Lina viesse pelas zonas limítrofes da cidade, como ele próprio, para evitar ser vista. Mas não estava ninguém lá; não viu ninguém ao passar pela Rua Subling e ir até à fronteira da cidade. Tinha que decidir o que fazer.

Foi pôr-se à porta do Sistema de Canalizações.

Pense, disse a si mesmo. Pense! Nem sequer tinha certeza de conseguir fazer a viagem pelo rio sozinho. Como poria o barco na água? Poderia içá-lo sem ajuda? Por outro lado, como poderia socorrer Lina se ela estivesse nas garras dos guardas do presidente? O que poderia fazer que não resultasse também na sua própria captura?

Sentia-se enjoado. Tinha as mãos frias. Avançou um passo e esquadrinhou a praça mais uma vez. Nada se mexia, a não ser as traças em volta das luzes.

E, nesse momento, Lina apareceu correndo pela Rua Gap­pery abaixo. Atravessou a praça e ele desatou também a correr ao seu encontro. Ela abraçava uma trouxa ao peito.

— Vim, cheguei, quase não consegui — disse ela, respi­rando com tanta dificuldade que mal conseguia falar. — E olha — disse, afastando para trás o cobertor que cobria sua trouxa. Doon viu um caracol de cabelo castanho e dois olhos arregalados e cheios de medo. — Trouxe Poppy — disse Lina.

Doon estava tão contente por ver Lina que nem se im­portou que Poppy viesse com eles, tornando ainda mais peri­gosa uma viagem que já era muito arriscada. O alívio e a excitação apoderaram-se dele. Iam partir! Iam partir!

— OK! — disse. — Vamos lá!

Com a chave que tinha tirado do escritório, abriu a porta do Sistema de Canalizações e passaram apressadamente pelos imper­meáveis amarelos pendurados nos ganchos e pelas filas de botas de borracha. Doon foi correndo ao escritório do Sistema de Canalizações, onde voltou a pôr a chave no seu lugar, e depois abriram a porta das escadas e começaram a descer. Lina ia devagar por causa de Poppy, que se agarrava ao seu pescoço, mais calada do que o habitual, porque pressentia a estranheza e im­portância do que estava acontecendo. Ao fundo das escadas, entraram no túnel principal e avançaram pelo caminho para oeste até chegarem à rocha assinalada.

— Como é que vamos conseguir levar a Poppy lá para baixo? — perguntou Doon.

— Eu a levo apertada ao peito — disse Lina. Pousou Poppy e tirou o casaco e a blusa que trazia vestidos. Com a ajuda de Doon, transformou a blusa numa espécie de alça para Poppy, atando as mangas por trás do pescoço. Em seguida, voltou a vestir o casaco e abotoou-o.

Doon olhou com um ar de dúvida para esta solução volu­mosa.

— Vai conseguir descer, levando-a assim ao peito? Vai conseguir agarrar-se aos degraus com ela agarrada em você?

— Vou — disse Lina. Agora que tinha Poppy consigo, sentia-se mais uma vez cheia de coragem. Conseguiria fazer o que fosse preciso.

Doon desceu primeiro. Lina seguiu-o.

— Fique muito quieta, Poppy — disse. — Não se mexa.

Poppy obedeceu, mas, mesmo assim, não era fácil descer a escada com o peso extra. Os braços de Lina tinham o compri­mento certo para rodear Poppy e permitir se agarrar à escada. Desceu muito lentamente. Quando chegou ao rebordo, deu um passo para o lado, agarrou a mão que Doon lhe estendia e, com um profundo suspiro de alívio, avançou para a entrada.

Foram até o fundo do átrio de entrada e Doon abriu o painel de alumínio e tirou a chave. Abriu a porta que dava para a sala onde se encontrava o barco e entraram. Doon tirou a vela do saco e acendeu-a. Lina desenfaixou Poppy e sentou-a nos fundos da sala.

— Não se mexa daí — disse.

Poppy enfiou um dedo na boca e Doon e Lina puseram mãos à obra.

O saco de viagem de Doon foi arrumado na parte pontiaguda do barco, que lhes parecia ser a parte da frente. Puseram as caixas de velas e os fósforos na parte de trás. Era evidente que esse era o lugar que lhes competia; encaixavam direitinho.

As varas chamadas «Remos» eram um mistério. Lina achava que talvez fossem armas destinadas a protegerem-se de seres hostis. Doon achava que talvez coubessem atravessadas no barco e fossem uma espécie de amurada para se encostarem, mas não conseguia encaixá-las dessa maneira. Por fim, decidiram deixar os remos no fundo do barco e tentar descobrir durante a viagem para que serviam.

Doon pingou umas gotas de vela derretida no chão e fixou a vela, para ficar com as duas mãos livres.

— Vamos ver se conseguimos levantar o barco — disse.

Com Doon na parte de trás e Lina na frente, desco­briram que conseguiam levantar o barco com facilidade. Era incrivelmente leve, até mesmo com as caixas e o saco de viagem lá dentro. Voltaram a pousá-lo. O passo seguinte era metê-lo na água de alguma maneira e depois entrarem nele.

— Não podemos atirá-lo na água — disse Lina. — O rio o engoliria logo.

— Deve ser para isso que servem as cordas — disse Doon. — Baixamos o barco agarrando as cordas. E atamos as cordas a qualquer coisa para impedi-lo de se mexer.

— A quê?

— Devem ter posto um gancho na parede, ou qualquer coisa assim, para amarrarmos a corda — disse Doon.

Saiu da sala, voltou para a borda do rio e ajoelhou-se. Debruçando-se, tateou ao longo da margem. A princípio, só sentiu o rochedo liso e escorregadio. Passou a mão para a frente e para trás, para cima e para baixo. A água do rio salpicava-lhe os dedos. Por fim sentiu alguma coisa — uma barra de metal presa ao muro perto do rio, como os degraus da escada que tinham descido.

— Encontrei-o — gritou. Pôs-se de pé e regressou à sala do barco. — Vamos levar o barco lá para fora — disse.

Ele e Lina levantaram-no e, avançando com passos curtos, transportaram-no até à entrada. Quando saíram da sala, Poppy começou a chorar.

— Não chore! — disse Lina. — Não saia daí! Nós voltamos já.

Transportaram o barco até à borda da água e pousaram-no cuidadosamente, com a ponta da frente na direção em que corria o rio. Doon pôs-se mais uma vez de joelhos e procurou a barra de metal com a mão.

— Passe-me a ponta da corda — disse.

Que corda? Lina pensou por um segundo. Apercebeu-se de que tinha de ser a que estava amarrada ao lado do barco mais próximo dela — esse seria o lado mais próximo da margem do rio quando pusessem o barco na água. Desdobrou a corda, deu a volta ao barco com ela e passou a ponta a Doon, que, deitado de bruços com a cabeça pendurada sobre o rebordo, atou a corda ao degrau de metal na parede. Em seguida pôs-se de pé e enxugou a água do rosto.

— Agora — disse Doon — podemos pôr o barco na água.

Ouviu-se novo choro vindo da sala do barco.

— Eu já vou — gritou Lina, desatando a correr. Pegou Poppy e falou-lhe ao ouvido, no tom de voz que usava para suge­rir um jogo excitante: — Nós vamos partir para uma aventura, Poppy. Vamos fazer uma corrida, uma corrida na água! Vai ser divertido, queridinha, você vai ver — disse.

Apagou a vela que Doon tinha deixado na sala e levou Poppy no colo até o rio.

— Estamos prontos? — disse Doon.

— Acho que sim.

Adeus a Ember, pensou Lina. Adeus a todos, adeus a tudo. Por um instante, passou-lhe pela mente uma imagem dela mesma chegando à cidade luminosa dos seus sonhos, mas desvane­ceu-se logo. Não fazia idéia do que a esperava.

Pousou Poppy contra a parede da entrada.

— Sente-se aqui — disse-lhe. — Não se mexas até eu dizer — acrescentou.

Poppy ficou sentada, de olhos arregalados, com as pernas rechonchudas esticadas à sua frente.

Lina agarrou a corda da parte de trás do barco. Doon agarrou a corda da parte da frente. Içaram o barco e esticaram as cordas de lado para o lançarem por cima da água. O barco incli­nou-se de um lado para o outro de uma forma alarmante.

— Solte-o! — gritou Lina.

Ambos largaram a corda e o barco caiu e bateu na água com um chape. Saltou, oscilou e tentou soltar-se das amarras, mas o nó que Doon tinha dado não se desfez. O barco ficou no lugar, à espera deles.

— Aqui vou eu! — gritou Doon. Debruçou-se, agarrou o rebordo do barco com uma das mãos, voltou-se de costas e entrou. O barco oscilou com seu peso. Doon cambaleou, mas logo em seguida conseguiu equilibrar-se. — Tudo em ordem! — gritou. — Passe-me a Poppy!

Lina levantou Poppy, que desatou aos berros e aos pon­tapés ao ver o barco aos pulos e a corrente forte do rio. Mas Lina passou Poppy para os braços estendidos de Doon. Um segundo depois saltou ela própria e depois os três foram atirados para o chão do barco pela violenta oscilação.

Doon conseguiu pôr-se de pé. Puxou a corda que segurava o barco à margem até chegar à parte onde tinha dado o nó. Teve dificuldade em desatá-lo. A água borrifava-lhe no rosto. Desemba­raçou o nó, soltou-o, puxou a corda — e o barco disparou rio abaixo.

 

                                 PARA ONDE VAI O RIO

Durante um segundo, Lina viu passarem as margens do rio. A sua frente estava a abertura do túnel, como uma enorme boca. Mergulharam nela e deixaram a luz do Sistema de Canali­zações para trás. Na escuridão total, o barco inclinava-se e balançava e Lina, no fundo dele, era projetada de um lado para o outro, enquanto agarrava Poppy com um braço e tentava segurar-se com a outra mão. Doon bateu contra ela e ela foi bater contra as caixas. Poppy berrava como uma possessa.

— Doon! — gritou Lina e ele berrou de volta:

— Segure-se! Segure-se! —, mas ela não conseguia manter-se agarrada ao rebordo do barco e andava aos tombos de um lado para o outro. Receava que Poppy batesse contra o banco de metal ou se soltasse do seu braço e caísse no rio.

O barco colidiu contra alguma coisa e estremeceu, e depois avançou a toda velocidade. Era como se estivessem sendo engo­lidos, esta corrida no escuro, com o rio a rugir como mil vozes.

As pernas de Lina estavam entrelaçadas nas de Doon e Poppy agarrava-lhe o pescoço com tal força que ela mal conseguia respirar. Mas a escuridão era o mais terrível de tudo — andar a tal velocidade no escuro.

Fechou os olhos. Se iam chocar contra uma parede ou mer­gulhar num buraco sem fundo, não havia nada que ela pudesse fazer. A única coisa que podia fazer era agarrar Poppy com força. Foi o que fez, durante um período de tempo que lhe pareceu muito longo.

E por fim a corrente tornou-se mais lenta e o barco deixou de oscilar com tanta força. Lina conseguiu se sentar e perce­beu que Doon também estava se mexendo. Os berros de Poppy transformaram-se em choramingos. Estavam ainda em total escuridão, mas Lina sentia que havia espaço acima e em volta deles. Onde estavam? Tinha de ver.

— Doon! — disse. — Você está bem? Consegue encontrar uma vela?

— Vou tentar — disse Doon.

Lina sentiu-o passar por ela na direção da parte de trás do barco e ouviu o ruído da caixa sendo arrastada do seu lugar debaixo do banco.

— Não consigo encontrar o fecho! — disse Doon. Um minuto depois acrescentou: — Pronto, já o encontrei. Isto são os fósforos, por isso estas devem ser as velas — disse.

Mais sons de coisas sendo arrastadas e de pancadas. O barco deu um solavanco, Lina deslizou para a frente. Doon deslizou também e bateu contra as costas dela. Soltou um berro de irritação.

— Deixei cair o fósforo! Espere aí, quase consegui — disse. Passaram-se longos segundos, cheios de movimentos e ruídos.

Depois, acendeu-se uma luz e o rosto de Doon apareceu nas sombras acima dela. Aproximou o fósforo de uma vela e a luz ficou mais firme.

Não passava de uma pequena chama, mas lançava cintilações de luz nas paredes do túnel e na superfície sedosa do rio. Lina viu que o túnel tinha um teto em abóbada, como os túneis do Sistema de Canalizações, mas era muito mais largo do que eles. O rio corria por ele como uma estrada móvel.

— Acende outra vela? — pediu Lina.

Doon acenou com a cabeça e voltou-se para as caixas, mas, mais uma vez, o barco colidiu com alguma coisa, fazendo com que um esguicho de água os fustigasse e apagasse a vela.

Só depois de alguns minutos Doon conseguiu acendê-la de novo, e passaram-se mais alguns minutos até ficarem com duas velas acesas ao mesmo tempo. Encaixou uma delas no espaço entre o banco e o lado do barco e segurou a outra. Estava com o cabelo colado à testa, escorrendo água. O seu casaco castanho tinha um rasgão no ombro.

— Assim é melhor — disse ele.

Era melhor — não só tinham luz para verem, como a corrente era mais lenta e o barco avançava com mais suavidade. Lina pôde soltar-se dos braços de Poppy e olhar à sua volta. A frente via-se que o túnel fazia uma curva. O barco deslizou para a curva, bateu contra a parede, endireitou-se e ganhou velocidade.

— Passe-me uma vela também — disse ela.

Doon deu a vela que tinha na mão à Lina e acendeu outra. Encontraram lugar para encaixar as três velas na estrutura do barco de modo a ficarem com as mãos livres. Durante algum tempo, avançaram quase em silêncio pelo rio, que era agora quase tão liso como uma placa de vidro.

Então, subitamente, a corrente abrandou ainda mais e o túnel alargou-se.

— Entramos numa sala — disse Lina.

Lá muito em cima, avistava-se um teto em abóbada. Do teto pendiam colunas de pedra e da água erguiam-se também colunas de pedra, projetando longas sombras que se viravam e combinavam à medida que o barco ia flutuando por entre elas. Brilhavam à luz da vela, cor-de-rosa, verde-pálido e prateadas. As suas estranhas formas cheias de grumos pareciam algo mole que tivesse sido congelado — como torres de purê de batata, pensou Lina, que tivessem se transformado em pedra.

De vez em quando o barco batia contra uma destas colunas e eles descobriram que podiam usar um dos remos para se sol­tar. Assim atravessaram a sala para o outro lado, onde a passagem se estreitava outra vez e a corrente era mais rápida.

Muito mais rápida. Era como se o barco estivesse sendo puxado por mãos cheias de força. A água voltou a ficar revolta e o seu chapinhar contra o barco apagou as velas. Lina e Doon aninharam-se no fundo do barco com Poppy entre eles, abraçados a ela. De dentes cerrados e olhos bem fechados, não tardou a não haver nada nas suas mentes a não ser os balanços e mergulhos do barco, e nada nos seus corpos a não ser o esforço que faziam para não serem projetados para fora do barco. Uma vez, o som do rio aumentou até ser um estrondo, a frente do barco inclinou-se para baixo e eles foram arremessados com tal violência que parecia que estavam caindo por escadas abaixo — mas só durou alguns segundos e, logo em seguida, continuaram a descer o rio como antes.

Lina perdeu a conta do tempo. Mas, um pouco mais tarde, talvez alguns minutos, talvez uma hora, a corrente abrandou. As velas que tinham colado ao barco tinham caído no rio, por isso Doon acendeu outras. Viram que tinham chegado a um outro lago. Neste não havia colunas de pedra cheias de grumos; nada interrompia a superfície larga e parada da água, que se estendia perante seus olhos à luz trêmula das velas. O teto era liso e ficava apenas a cerca de três metros acima de suas cabeças. O barco vogava na água como se tivesse perdido o sentido de di­reção. Empurrando um remo contra as paredes, Doon guiou o barco em volta da margem do lago.

— Não vejo por onde o rio continua — disse Doon. — Você vê?

— Não. A não ser que seja ali, onde corre para aquela fenda pequena — disse Lina, apontando para uma brecha na parede com alguns centímetros de largura.

— Mas o barco não cabe ali.

— Não, a abertura é muito pequena.

Com o remo, Doon fez avançar o barco. Suas sombras se moviam com eles ao longo das paredes.

— Quéo ir para casa — disse Poppy.

— Já estamos quase chegando — disse Lina.

— O que é certo é que não podemos voltar por onde viemos — disse Doon.

— Não.

Lina colocou a mão na água. Era tão fria que lhe fez disparar uma dor pelo braço acima.

— Será que isto é o fim? — disse Doon. Sua voz parecia sem expressão neste espaço fechado.

— O fim? — Lina tremeu de medo.

— Queria dizer o fim da viagem — disse Doon. — Talvez seja para sairmos do barco ali — disse, apontando para uma rocha grande com um declive para a zona escura num dos lados do lago. Em toda a volta, as rochas erguiam-se direto da água.

Manobrou o barco na direção da rocha em declive. Neste ponto, o barco tocava no fundo — a profundidade era mínima.

— Eu saio e vou ver se isto dá em algum lugar — disse Lina. — De qualquer maneira, quero pôr os pés em terra firme.

Passou Poppy para Doon e levantou-se. Com uma vela nas mãos, passou um pé pelo rebordo do barco, saltou para a água fria e caminhou até a margem.

O caminho não parecia nada promissor. O chão inclinava-se para cima e o teto inclinava-se para baixo. Para avançar, Lina tinha que se curvar. Alguns metros à frente, havia um amontoado de penedos bloqueando o caminho. Lina ladeou os penedos com dificuldade, voltando-se de lado para se enfiar num espaço estreito, e avançou, com a vela à sua frente. Isto não vai dar em lugar nenhum, pensou. Estamos presos.

Mas alguns passos à frente percebeu que podia endi­reitar-se de novo e após mais alguns passos dobrou uma esquina e subitamente a luz da vela iluminou um caminho largo, com um teto alto e o chão liso. Lina soltou um grito:

— Aqui está! — disse. — Está aqui! Há um caminho!

A voz de Doon chegou de muito longe. Lina não conse­guia entender o que ele estava dizendo. Voltou-se e dirigiu-se de novo para o barco, e, quando o avistou, gritou mais uma vez:

— Descobri um caminho! Um caminho!

Doon saltou do barco e veio até à margem com Poppy no colo. Pousou-a e a seguir ele e Lina seguraram o barco e içaram-no tanto quanto podiam pelo declive da rocha. Poppy estava toda animada. Gritava cheia de alegria, agitando os punhos como se fossem pauzinhos, e marchava, encantada por estar de novo de pé. Encontrou um seixo e atirou-o na água, chilreando toda feliz com o chape-chape.

— Quero ver o caminho — disse Doon.

— Suba por ali — disse Lina — e contorne aquele monte de pedras. Eu fico aqui e vou tirando as coisas do barco.

Doon partiu, levando outra vela da caixa que estava no bar­co. Lina sentou Poppy numa espécie de nicho formado por um penedo redondo e um buraco na parede.

— Não saia daqui — disse.

Em seguida, tirou a trouxa de Doon de baixo do assento do barco. Estava úmida, mas não encharcada. Talvez a comida não tivesse estragada ainda. De repente, sentiu-se cheia de fome. Lembrou-se que não tinha jantado. Já devia ser o meio da noite, ou talvez até mesmo a manhã do dia seguinte.

Levou a trouxa de Doon para a margem, juntamente com as caixas de velas e fósforos e, quando estava a pousá-las, Doon regressou. Tinha um brilho nos olhos, com o reflexo de uma chama minúscula a bailar nas pupilas.

— É o caminho, com toda a certeza — disse. — Conse­guimos — acrescentou. Desviou o olhar. — O que a Pop­py tem nas mãos? — perguntou.

Lina rodou nos calcanhares. Poppy tinha nas mãos uma coisa escura e retangular. Não era uma pedra. Era mais como uma espécie de pacote. Ela estava espetando os dedos no pacote e puxando-o. Levou-o à boca como se tencionasse despedaçá-lo com os dentes — e Lina deu um salto.

— Pára! — gritou.

Poppy, apanhada de surpresa, deixou cair o pacote e come­çou a chorar.

— Pronto, pronto — disse Lina, pegando no que Poppy estivera prestes a mastigar. — Vamos jantar. Pronto, vamos jantar então. Com certeza está cheia de fome.

À luz da vela de Doon, com Poppy a contorcer-se no regaço de Lina, examinaram o que a menina tinha encontrado. O pacote estava embrulhado num tecido escorregadio e esverdeado e atado com um barbante. Não estava muito bem embrulhado; parecia que alguém o tinha feito às pressas. O tecido estava solto e tinha man­chas de bolor esbranquiçado.

Lina tirou o barbante com cuidado. Estava parcialmente apodrecido; numa das pontas tinha uma pequena fivela quadrada, coberta de ferrugem. Desembrulhou o pacote.

Doon susteve a respiração.

— É um livro — disse. Aproximou a vela e Lina abriu a capa castanha. No interior, as páginas tinham linhas de um azul desmaiado no sentido horizontal e alguém escrevera nessas linhas em tinta preta, numa letra inclinada que não era uniforme como a dos livros da biblioteca, mas desalinhada, como se a pessoa que escrevera estivesse com pressa.

Doon sublinhou com o dedo a primeira linha.

— Diz: Informam-nos que... passamos?... Não, partimos. Informam-nos que partimos esta noite.

Olhou para cima e fitou Lina.

— Partimos? — disse Lina. — De onde?

— De Ember? — perguntou Doon. — Será que alguém veio por este caminho antes de nós?

— Ou seria alguém que partiu da outra cidade?

Doon voltou a olhar para o livro. Folheou-o — tinha muitas páginas.

— Vamos guardá-lo — disse Lina. — Vamos lê-lo quando chegarmos à nova cidade.

Doon acenou com a cabeça.

— Vai ser mais fácil ver quando chegarmos lá.

Por isso, Lina embrulhou o livro de novo e atou-o cuidadosamente à trouxa de Doon. Sentaram-se no parapeito da rocha durante algum tempo comendo a comida que Doon tinha trazido. As velas encaixadas nos espaços do barco ainda ardiam de forma constante e a sua luz era agradável, como a luz das lâm­padas em Ember. Projetava formas douradas na superfície parada do lago.

Doon disse:

— Vi os guardas correndo atrás de você. Conte-me o que aconteceu.

Lina contou.

— E a Poppy? O que disse à Senhora Murdo?

— Contei-lhe a verdade. Quer dizer, espero que seja a ver­dade. Encontrei-a quando ia a caminho de casa depois das Can­ções. Ela tinha visto os cartazes, estava aterrorizada, mas, antes dela começar a fazer perguntas, eu disse que tinha que me dar a Poppy. Disse que ia levá-la para um lugar seguro. Porque foi isso que eu percebi de repente lá em cima no telhado da Câmara de Reuniões, Doon. Antes, achava que tinha que deixar a Poppy porque, assim, ela ficaria em segurança com a Senhora Murdo. Mas quando as luzes se apagaram compreendi de repente que não existe segurança em Ember. Não por muito tempo. Para ninguém. Eu não podia deixá-la ficar. O que quer que nos aconteça agora, é melhor do que o que vai acon­tecer lá.

— E explicou isso tudo à Senhora Murdo?

— Não. Estava cheia de pressa para encontrá-lo no Sistema de Canalizações e sabia que tinha que ir enquanto havia muita gente nas ruas, porque assim era mais difícil os guardas me verem. Só lhe disse que ia levar Poppy para um lugar seguro. A Senhora Murdo entregou-me, mas disse qualquer coisa como: «Onde? E por quê?» E eu disse: «Vai ficar sabendo dentro de alguns dias. Não se preocupe», e depois desatei a correr.

— Então deu a carta a ela? — disse Doon. — A carta que era para Clary?

— Oh! — exclamou Lina, fitando-o com uma expressão de pânico. — A mensagem para Clary! — disse. Meteu a mão ao bolso e tirou o pedaço de papel amarrotado. — Esqueci completamente! Só pensei em trazer Poppy e ir encontrá-lo.

— Então ninguém sabe que há uma sala cheia de barcos.

Lina abanou a cabeça, com os olhos arregalados.

— Como é que vamos voltar para trás?

— Não podemos.

— Doon — disse Lina —, se nós tivéssemos dito a algumas pessoas... Se não tivéssemos decidido fazer as coisas em segredo e anunciar a novidade no Dia das Canções...

— Eu sei — disse Doon. — Mas não o fizemos. Não contamos nada e agora ninguém sabe. Bem, eu deixei uma men­sagem para o meu pai — acrescentou. Contou à Lina como tinha pregado a sua mensagem de última hora ao mural da Praça Selverton. — Disse que tínhamos encontrado a saída e que era no Sistema de Canalizações. Mas isso não é de grande ajuda.

— A Clary viu as instruções — disse Lina. — Ela sabe que existe um egresso. Talvez o encontre.

— Ou talvez não.

Não havia nada a fazer e por isso voltaram a arrumar os mantimentos na fronha de Doon e prepararam-se para prosseguir viagem. Lina fez uma espécie de trela para Poppy com a corda de Doon. Amarrou uma ponta em volta da cintura de Poppy e a outra em volta de sua própria cintura. Encheu os bolsos com carteiras de fósforos e Doon pôs todas as velas que sobraram no seu saco — para o caso de chegarem à nova cidade à noite. Encheu seu cantil com água do rio, acendeu uma vela para si próprio e outra para Lina e, assim equipados, deixaram o barco e subiram pelo rochedo acima até o caminho.

 

                           UM MUNDO DE LUZ

Ao passarem de lado junto às rochas na entrada do caminho, Doon julgou ver a luz da vela refletir-se num lugar brilhante na parede. Parou para olhar e, quando viu do que se tratava, gritou para Lina, que vinha alguns passos atrás:

— Há um aviso!

Era um aviso encaixilhado, preso à pedra, uma folha impressa por trás de um vidro. A umidade tinha se infiltrado debaixo do vidro e manchara o papel, mas, com as velas juntas, eles conse­guiram ler o que estava escrito.

Bem-vindos, Refugiados de Ember! Esta é a etapa final de sua viagem. Preparem-se para uma escalada que demorará várias horas. Encham seus cantis com água do rio. Desejamos-lhes boa sorte. Os construtores

— Estão à nossa espera! — disse Lina.

— Bem, escreveram isto há muito tempo — disse Doon. — As pessoas que puseram isto aqui já devem ter morrido.

— É verdade. Mas desejaram-nos boa sorte. Faz-me sentir como se estivessem olhando por nós.

— Sim. E talvez os seus tetranetos estejam lá para nos da­r as boas-vindas.

Animados, começaram a subir o caminho. As velas lançavam uma luz fraca, suficiente para ver que o caminho era bastante largo. O teto era alto. O caminho parecia ter sido construído para um grande grupo de pessoas. Em alguns lugares, o chão estava sulcado por trilhos paralelos, como se uma carroça de algum tipo tivesse passado por ali. Depois de caminharem durante algum tempo, perceberam que estavam andando em ziguezagues. O caminho avançava numa direção e, depois de algum tempo, virava para a direção oposta.

À medida que iam avançando, falavam cada vez menos; o caminho era muito íngreme e eles precisavam de todo o fôlego só para subi-lo. O único som era o dos seus passos. Revezando, Lina e Doon levavam Poppy de cavalinho — ela tinha se cansado de caminhar logo no início e choramingara até a pegarem no colo. Pararam por duas vezes para descansar, encostando-se às paredes do caminho e bebendo água do cantil de Doon.

— Há quantas horas acha que estamos andando? — perguntou Lina.

— Não sei — disse Doon. — Talvez duas. Talvez três. Já devemos estar quase chegando.

Continuaram a subir. As primeiras velas há muito que tinham ardido até o último centímetro, assim como as segundas. Por fim, quando as terceiras velas já estavam reduzidas pela metade, Lina notou que o ar tinha um cheiro diferente. O odor de rocha do túnel, frio e pungente, transformara-se em algo mais suave, um cheiro estranho e maravilhoso. Ao dobrarem uma esquina, sentiram uma baforada deste ar suave e suas velas se apagaram.

Doon disse:

— Eu arranjo um fósforo — mas Lina disse:

— Não, espere. Veja.

Não estavam em escuridão total. Uma vaga névoa de luz bri­lhava no caminho à sua frente.

— São as luzes da cidade — murmurou Lina. Lina pousou Poppy.

— Depressa, Poppy — disse, e Poppy começou a correr, não se afastando de Lina.

O cheiro estranho e maravilhoso no ar era cada vez mais forte. O caminho acabou alguns metros à frente e perante eles apareceu uma abertura semelhante à entrada enorme de uma porta. Sem uma palavra, Lina e Doon deram as mãos e Lina agarrou a mão de Poppy. Quando chegaram à saída e olharam lá para fora, não viram uma nova cidade, mas algo infinitamente mais estranho: uma terra mais vasta e espaçosa do que jamais tinham sonhado, cheia de ar que parecia ter movimento e iluminada por um círculo de prata brilhante pendurado num céu negro e imenso.

A seus pés, o chão estendia-se numa colina extensa e leve­mente ondulada. Não era de pedra nua, como em Ember; algo macio o cobria, como cabelo prateado, que lhes chegava aos joelhos. Ao fundo da encosta havia um grupo de formas escuras e redondas e outra encosta elevava-se para além delas. À distância, até onde sua vista abrangia, a terra estendia-se em elevações ondulantes, com tufos de sombra nos lugares mais baixos entre elas.

— Doon! — gritou Lina. — Mais luzes! — e apontou para o céu.

Ele olhou para cima e viu-as — centenas e centenas de mi­núsculos pontos de luz, espalhados como sal derramado na escuridão.

— Oh! — murmurou.

Não havia nada mais a dizer. A beleza destas luzes deu-lhe um nó na garganta.

Avançaram alguns passos. Doon inclinou-se para tocar nos fios que cresciam do chão, quase mais altos do que Poppy; eram frescos, lisos, macios e estavam úmidos.

— Respire — disse Lina.

Abriu a boca e inspirou uma grande golfada de ar. Doon fez o mesmo.

— É doce — disse ele. — Tão cheio de aromas. Estenderam as mãos à sua frente para passarem pelos longos caules enquanto caminhavam por entre eles. O ar soprava contra seus rostos e nos seus cabelos.

— Ouve aqueles sons? — disse Doon.

Um som agudo, fino e chilreado vinha de um lugar próximo. Repetia-se sem parar, como uma pergunta.

— Ouço — disse Lina. — O que será?

— Uma coisa com vida, acho eu. Talvez uma espécie de inseto.

— Um inseto que canta — Lina voltou-se para Doon. À luz prateada, o seu rosto estava cheio de sombras. — É tudo tão estranho aqui, Doon, e tão enorme. Mas eu não estou com medo.

— Não, eu também não. É como um sonho.

— Um sonho, é isso. Talvez seja por isso que parece familiar. Eu poderia ter sonhado com este lugar.

Caminharam até chegar ao lugar onde as formas escuras se erguiam do chão. Eram plantas, descobriram, mais altas do que eles, com caules tão duros e grossos como paredes de casas e folhas que se estendiam por cima de suas cabeças. Na encosta ao lado destas plantas sentaram-se.

— Acha que há uma cidade aqui, em algum lugar? — per­guntou Lina. — E pessoas?

— Não vejo nenhuma luz — disse Doon —, nem mesmo à distância.

— Mas com este candeeiro de prata no céu, talvez não pre­cisem de luzes.

Doon acenou com a cabeça em sinal de dúvida.

— As pessoas precisam de mais luz além desta — disse. — Como é que se pode ver para trabalhar? Como é que podem cultivar alimentos? É uma luz bonita, mas não é suficientemente forte para se viver.

— Então o que vamos fazer, se não houver cidade nem pessoas?

— Não sei. Não sei.

Doon não estava com disposição para pensar. Estava cansado de tentar compreender as coisas. Primeiro queria olhar para este mundo novo e apreciar o seu aroma e o seu aspecto e só mais tarde tentar compreendê-lo.

Lina sentia o mesmo. Parou de fazer perguntas, pôs Poppy no seu regaço e olhou em silêncio para a paisagem luminosa. Depois de algum tempo percebeu que estava acontecendo algo estranho. Com certeza que, quando tinha se sentado, o cír­culo de prata estava bem acima do ramo mais alto da planta grande. Agora, o ramo cortava o círculo em dois. Perante os seus olhos, o círculo começou a descer muito lentamente, até ficar escondido, com exceção de um raio de luz por detrás das folhas.

— Está se mexendo — disse ela a Doon.

— Está mesmo.

Um pouco depois, pareceu-lhe que estava vendo mal. Havia uma névoa no céu, especialmente em volta das margens. Demorou algum tempo até compreender o que estava provocando a névoa.

— Luz — disse.

— Estou vendo — disse Doon. — Está ficando mais bri­lhante.

A margem do céu tornou-se cinzenta e depois cor de laranja pálida e depois de um carmim ardente. A terra destacava-se contra o céu, uma longa linha negra e ondulada. Um ponto nesta linha tornou-se tão brilhante que mal conseguiam olhar para ele, tão brilhante que parecia roubar um pedaço da terra. O ponto subiu cada vez mais alto até verem que era um círculo de fogo, primeiro de um cor de laranja escuro e depois amarelo, e brilhante demais para se poder fitá-lo. A cor escorria do céu e tingia a terra. A luz cintilava no cabelo macio das colinas e brilhava por entre as folhas rendadas enquanto todos os tons de verde ganhavam vida à sua volta.

Voltaram os rostos para o calor deslumbrante. O céu erguia-se em abóbada por cima deles, mais alto do que poderiam jamais ter imaginado, de um azul-claro pálido. Lina sentiu que uma tampa que a cobrira toda a vida tinha sido retirada de súbito. A luz e o ar percorriam-na como uma canção, como uma das canções de Ember, mas cheia de alegria. Olhou para Doon e viu que ele sorria e chorava ao mesmo tempo e percebeu que ela também sorria e chorava.

Tudo à sua volta ganhava vida. Dos ramos vinha uma algazarra maravilhosa — trinados, pipilos, gorjeios, chamados agudos e penetrantes. Insetos?, pensou Doon, imaginando, pasmo, os insetos que emitiriam tais sons. Mas então viu algo voando de um ramo cheio de folhas e se precipitando para baixo, rasando o chão e produzindo um som claro e doce enquanto voava.

— Viu aquilo? — disse à Lina, apontando. — E há outro! E outro ali!

— Ali, ali, ali, ali! — repetiu Poppy, saltando do regaço de Lina e andando em círculos apontando em todas as direções.

Agora enchiam o ar. Eram grandes demais para serem in­setos. Um deles pousou perto, num galho. Olhou para eles com dois olhos negros e brilhantes e, abrindo a boca, que era aguçada como um espinho, soltou um trinado.

— Está falando conosco — disse Doon. — O que será?

Lina abanou a cabeça. No galho, o pequeno animal mudou a posição dos pés, que eram como garras, bateu suas asas castanhas e soltou novo trinado. Depois saltou para o ar e desapareceu.

Eles também se levantaram de um salto e puseram-se a explo­rar o novo mundo. O chão estava cheio de insetos — tantos que Doon só ria, de tão pasmo que estava. Havia flores por entre as fitas verdes e corria um ribeiro no sopé da colina. Vaguearam pelas encostas atapetadas de verde, correndo, deslizando e gritando sempre que faziam uma nova descoberta, até ficarem exaustos. Depois, sentaram-se à entrada do caminho para comer o que restava de seus mantimentos. Desataram a trouxa de Doon e Lina gritou de súbito:

— O livro! Esquecemos do livro!

Ali estava ele, embrulhado no seu pano verde manchado.

— Vamos lê-lo em voz alta enquanto comemos — disse Doon.

Lina abriu o frágil caderno e pousou-o no chão à sua frente. Pegou uma cenoura numa das mãos e com a outra marcou a página. Foi isto que ela leu.

 

                             A ÚLTIMA MENSAGEM

Sexta-feira

Disseram-nos que partiríamos hoje a noite. Eu sabia que seria em breve — o treino já terminou há mais de um mês — mas parece imprevisto, é como um choque. Porque é que eu concordei em fazer isto? Sou uma mulher velha, cansada demais para começar uma nova vida. Quem me dera ter recusado quando me pediram.

Pus tudo o que consegui na minha mala de viagem — ves­tuário, calçado, um par de óculos extra. Não tragam livros, disseram eles, nem fotografias. Disseram-nos para não contarmos nada, nunca mais, sobre o mundo do qual viemos. Mas eu vou levar este caderno, de qualquer maneira. Decidi escrever tudo o que acontecer. Algum dia, alguém poderá querer saber.

 

Sábado

Fui para a estação da estrada-de-ferro ontem, como me mandaram, e apanhei o trem que me mandaram apanhar. Levou-nos pelo Vale da Primavera e eu olhei pela janela para os campos e casas do lugar do qual estava me despedindo — o meu lar, o lar da minha família há várias gerações. Viajamos durante duas horas, até o trem chegar a uma estação nas montanhas. Quando cheguei, eles estavam à minha espera — três homens de terno — e me levaram de automóvel para um edifício grande, onde me conduziram por um corredor para uma sala grande cheia de outras pessoas — todas com malas de viagem, a maioria de cabelos grisalhos ou brancos. Aqui estamos á espera há mais de uma hora.

Eles passaram anos e anos elaborando este plano. Suposta­mente, garantirá que, aconteça o que acontecer, as pessoas não desaparecerão da face da Terra. Algumas pessoas dizem que, de qualquer maneira, isso nunca acontecerá. Eu não tenho tanta certeza assim. O desastre parece iminente. Tudo se resolverá, dizem-nos, mas só algumas pessoas acreditam neles. Porque, se tudo se resolverá, vemos as coisas piorarem dia a dia?

E, claro, este plano é a prova de que eles pensam que o mundo está condenado. Os melhores cientistas e engenheiros foram con­vocados para o elaborarem. Têm sido feitos esforços extraordiná­rios — esforços que teriam sido mais benéficos noutras áreas. Eu acho que é a solução errada. Mas eles me perguntaram se eu estava disposta a ir — imagino que fosse por eu ter passado a minha vida toda numa fazenda e, por isso, saber como produzir alimentos. Apesar das dúvidas que me assaltavam, disse que sim. Não sei bem por que.

Somos uma centena, cinqüenta homens e cinqüenta mulheres. Temos todos pelos menos sessenta anos. Haverá também uma centena de bebês — dois bebês para cada casal de «pais». Não sei ainda com qual destes cavalheiros serei emparelhada. Não nos conhecemos uns aos outros. Foi assim que eles planejaram; dis­seram que, desta forma, haveria menos recordações entre nós. Querem que esqueçamos tudo sobre a vida que levamos e os lugares onde vivemos. Os bebês devem se criar sem saber da existência de um mundo exterior, para não sentirem pena do que perderam.

Ouço alguns ruídos do outro lado da sala. Parece-me que são os bebês chegando... Sim, aí vêm eles, cada um deles trazido por um dos homens de terno cinzento. São tantos! Tão pequenos! Rostinhos enrugados, mãos minúsculas acenando. Tenho que parar por aqui. Vão distribuí-los.

 

Mais tarde

Vamos de novo de viagem, desta vez de ônibus. E de noite, acho eu, embora seja difícil ter certeza, porque cobriram as janelas do ônibus por fora. Não querem que saibamos para onde estão nos levando.

Tenho um bebê no regaço — uma menina. Tem um rosto cor-de-rosa cheio de vida e nenhum cabelo. Stanley, que está sen­tado a meu lado, tem ao colo um bebê do sexo masculino, com pele morena e uns tufos de cabelo preto. Stanley e eu somos os guardiões destas crianças. A nossa tarefa é criá-los neste novo lugar para onde vamos. Quando chegarem aos vinte anos, mais ou menos, nós já não seremos vivos. Eles ficarão sozinhos, construindo um novo mundo.

Stanley e eu demos a estas crianças o nome de Estrela e Bosque.

 

Domingo

Os ônibus pararam, mas ainda não permitiram que nós saíssemos. Ouço cigarras cantando e sinto cheiro de erva, por isso devemos estar no campo, e deve ser de noite. Estou muito cansada.

Que tipo de lugar será este, a salvo das catástrofes na Terra? A única coisa que suspeito é que deve ser subterrâneo. A idéia enche-me de temor. Vou tentar dormir um pouco.

 

Mais tarde

Não houve oportunidade para dormir. Mandaram-nos descer dos ônibus e saímos para uma paisagem de colinas ondulantes, ao luar.

— É o caminho para a entrada — disseram-nos, apontando para uma abertura escura na colina onde nos encontrávamos.

— Formem uma fila, por favor.

Foi o que fizemos. Não se ouvia nada, a não ser o choro de alguns bebês. Se os outros eram como eu, estavam se despedindo do mundo. Abaixei-me para tocar na erva e inspirei fundo para cheirar o perfume da terra. Varri com os olhos as colinas prateadas, e pensei nos animais que vagueavam nas sombras ou dormiam em suas tocas, e nos pássaros nos ramos das árvores, com a cabeça enfiada debaixo da asa. Por fim, ergui os olhos para a Lua, que nos sorria a uma longa e fria distância. A Lua ainda estará aqui quando eles saírem, pensei. A Lua e as colinas, pelo menos.

A abertura dava para um corredor sinuoso que descia a pique cerca de um quilômetro e meio. Foi bastante custoso; já não tenho força nas pernas. Avançávamos muito lentamente. A última parte foi a pior: descemos uma encosta rochosa, onde facilmente se poderia tropeçar e cair. Esta encosta dava para um lago. Na mar­gem, o nosso grupo de pioneiros idosos reuniu-se. Havia barcos a motor equipados com lanternas à nossa espera.

— Quando chegar o momento das pessoas deixarem este lugar, é por aqui que virão? — perguntei ao nosso piloto, que tinha um rosto bondoso. Ele disse que sim.

— Mas como saberão que existe uma saída se ninguém lhes disser? — disse eu. — Como saberão o que fazer?

— Vão ter instruções — disse o piloto. — Não terão acesso às instruções até chegar o momento certo. Mas, quando precisarem delas, as instruções estarão lá.

— Mas e se não as encontrarem? E se não voltarem a sair?

— Eu acho que voltarão. As pessoas arranjam solução para tudo.

Foi tudo o que disse. Estou escrevendo estes apontamentos enquanto o nosso piloto carrega o barco. Espero que ele não note.

 

— Acaba aqui — disse Lina, olhando para cima.

— Ele deve ter notado — disse Doon. — Ou ela tinha medo que ele percebesse e por isso decidiu esconder o diário em vez de levá-lo com ela.

— Deve ter tido a esperança de que alguém o encontrasse.

— Alguém como nós — Doon pôs-se a pensar. — Mas poderíamos não tê-lo encontrado, se não fosse a Poppy.

— Não. E não saberíamos que somos daqui.

O círculo de fogo subira no céu e o ar estava tão quente que eles tiraram o casaco. Distraidamente, Doon escavou o chão, que era macio e se esfarelava.

— Mas qual foi o desastre que aconteceu neste lugar? — disse. — Não me parece em ruínas.

— Deve ter acontecido há muito, muito tempo — disse Lina. — Será que ainda vivem pessoas aqui?

Ficaram sentados olhando para lá das colinas, pensando na mu­lher que tinha escrito naquele caderno.

Como seria a sua cidade? pensou Lina. Como Ember, de certa forma, supunha. Uma cidade com problemas, onde as pessoas discutiam as soluções.

Uma cidade moribunda. Mas era difícil imaginar uma cidade como Ember aqui, neste belo lugar cheio de luz. Como poderia alguém ter permitido que um tal lugar fosse danificado?

— O que faremos agora? — perguntou Lina. Voltou a em­brulhar o caderno no seu pano e colocou-o de lado. — Não podemos voltar a subir o rio e dizer a todos para vir para cá.

— Não. Nunca conseguiríamos fazer o barco andar contra a corrente.

— Então estamos aqui sozinhos para sempre?

— Talvez haja outra entrada, um caminho que dê para ir a pé para Ember. Ou talvez haja outro rio que corra na outra direção. Temos velas, poderíamos atravessar as Regiões Desconhecidas se descobríssemos o caminho para chegar até lá.

Era o único plano que lhes ocorria. Por isso, durante todo o dia procuraram uma outra entrada. No sopé da colina, desco­briram um buraco por onde um ribeiro corria para o escuro. Podia-se beber a água, mas o buraco era pequeno demais para poderem se enfiar por ele. Havia ravinas cheias de arbustos e Lina e Doon rastejaram por entre as folhas e ramos espi­nhosos, mas não encontraram quaisquer aberturas. Os inse­tos zuniam em volta de seus tornozelos e passavam junto aos olhos; a terra castanha manchava suas mãos e entravam pedras nos sapatos. Suas roupas grossas, escuras e surradas encheram-se de espinhos e, como, de qualquer maneira, estavam cheios de calor, despiram a maior parte. Nunca tinham sentido tanto calor na pele e um ar tão suave.

Quando o círculo brilhante se encontrava no alto do céu, sentaram-se à sombra de uma das plantas altas na encosta da colina, num lugar onde havia uma clareira no mato espesso. Poppy adormeceu, mas Lina e Doon ficaram sentados olhando para a terra à sua frente. Havia verde por todo lado, em tons variados, como uma versão enorme, brilhante e maravilhosa dos passadores que cobriam o chão das casas em Ember. Ao longe, Lina viu uma linha fina e cinzenta traçada como o risco de um lápis sobre um fundo verde. Apontou-a a Doon e ambos olha­ram para ela com atenção, mas estava muito longe para se poder ver claramente.

— Será uma estrada? — disse Lina.

— Talvez — disse Doon.

— Talvez afinal haja pessoas aqui.

— Espero que sim — disse Doon. — Há tantas coisas que quero saber.

Estavam ainda a fitar a tira cinzenta à distância quando ouvi­ram alguma coisa se mexendo no mato perto deles. Houve um restolhar de folhas. E um som de alguma coisa raspando e ar­rastando. Ficaram imóveis e com a respiração suspensa. O som de algo se arrastando parou e depois começou outra vez. Seria uma pessoa? Deveriam dizer alguma coisa? Mas, antes de te­rem tempo de decidir o que fazer, um animal avançou para a clareira.

Era mais ou menos do tamanho de Poppy, mas mais próximo do chão, porque caminhava em quatro pernas. Seu pêlo era da cor de ferrugem. O rosto era um triângulo comprido, tinha as orelhas espetadas e olhos negros brilhantes. Avançou alguns passos a trote, concentrado no que estava fazendo. Nas traseiras do corpo, balançava-se uma cauda grossa e com um ar macio.

De repente, viu-os e estacou.

Lina e Doon ficaram completamente imóveis. E o animal também. Depois deu um passo na sua direção, parou, pôs a cabeça de lado, como que para ver melhor, e avançou mais um passo. Eles viam claramente o brilho do pêlo e uma centelha de luz nos olhos.

Durante um longo momento, ficaram assim, paralisados, a fitarem-se. Depois, sem pressa, o animal se afastou. Enfiou o nariz nas folhas que cobriam o chão, voltando na direção dos arbustos, e, quando ergueu novamente a cabeça, viram que tinha alguma coisa presa nos seus dentes brancos, algo redondo e arroxeado. Com um último olhar na direção deles, saltou para os arbustos com a cauda abanando e desapareceu.

Lina respirou fundo e voltou-se para olhar para Doon, que estava boquiaberto. Numa voz trêmula, ele disse:

— Foi a coisa mais maravilhosa que vi em toda a minha vida.

— Foi mesmo.

— E ele nos viu — disse Doon e Lina acenou com a cabeça.

Ambos sentiram — tinham sido vistos. O animal era total­mente estranho, não se assemelhava a nada que qualquer um deles conhecesse, e, no entanto, quando se olharam, uma espécie de reconhecimento perpassou entre eles.

— Agora sei — disse Doon. — Este é o mundo a que pertencemos.

Alguns minutos depois, Poppy acordou e começou a cho­ramingar, e Lina deu-lhe as últimas ervilhas da trouxa de Doon.

— O que acha que era aquilo na boca do animal? — perguntou Lina. — Seria alguma coisa que nós pudéssemos comer, um fruto de algum tipo? Era parecido com as imagens dos pêssegos nas latas, a não ser na cor.

Puseram-se de pé e começaram a explorar o que os rodeava; pouco depois encontraram uma planta cujos ramos estavam car­regados de frutos roxos, do tamanho de beterrabas pequenas, mas mais moles. Doon colheu um e cortou-o com sua faca. Tinha um caroço dentro. Escorreu-lhe sumo vermelho pelas mãos. Com receio, tocou-o com a ponta da língua.

— É doce — disse.

— Se o animal pode comer, talvez nós também possamos — disse Lina. — Experimentamos?

Comeram-no. Nunca tinham comido nada tão bom. Lina tirou os caroços e deu pedaços dos frutos à Poppy. Escorria-lhes sumo pelo queixo. Depois de comerem cinco ou seis cada um, lamberam os dedos pegajosos e começaram de novo a explorar o que os rodeava.

Subiram a encosta onde se encontravam, abrindo caminho por entre flores que lhes chegavam à cintura e, perto do alto, encontraram uma espécie de reentrância no chão, como se um pedaço de terra tivesse ruído. Desceram pela reentrância e ao fundo encontraram uma fenda da altura de uma pessoa, mas menos larga do que uma porta. Lina entrou de lado e desco­briu um túnel estreito.

— Mande Poppy entrar — disse ela a Doon — e venha você também.

Mas estava escuro lá dentro e Doon teve que voltar ao lugar onde tinha deixado sua trouxa para ir buscar uma vela. À luz da vela, avançaram lentamente até chegarem a um lugar onde o túnel terminava abruptamente. Não terminava numa parede, mas antes com um súbito vazio enorme que os fez suster a respiração e dar um passo atrás. Alguns passos à frente de onde se encon­travam, havia um precipício tão íngreme que dava tonturas.

Olharam lá para baixo, para uma caverna tão enorme que parecia quase do tamanho do mundo aqui fora. Lá em baixo, bem no fundo, brilhava um grupo de luzes.

— É Ember — segredou Lina.

Viam as minúsculas ruas iluminadas se cruzando, e as praças, pequenas lascas de luz, e o topo escuro dos edifícios. Para lá dos limites da cidade encontrava-se a imensa escuridão.

— Oh, a nossa cidade, Doon. A nossa cidade fica no fundo de um buraco! — disse Lina. Fitou o espaço ao fundo do pre­cipício e tudo aquilo em que acreditara sobre o mundo come­çou lentamente a desintegrar-se. — Nós estávamos debaixo da Terra — disse. — Não era só o Sistema de Canalizações. Era tudo! — acrescentou. Mal conseguia compreender o sentido do que estava dizendo.

Doon pôs-se de quatro, inclinado à beira do precipício. Firmou a vista, tentando decidir se os pontos minúsculos que via eram pessoas.

— O que estará acontecendo lá?

— Acha que ouviriam se gritássemos?

— Acho que não. Estamos longe demais aqui em cima.

— Talvez se eles olhassem para o céu vissem a nossa vela — disse Lina. — Mas não, acho que não veriam. Os candeeiros das ruas dão luz demais.

— Temos que arranjar uma maneira de nos comunicarmos com eles — disse Doon, e foi então que ocorreu a idéia à Lina.

— A nossa mensagem! — gritou ela. — Poderíamos lhes enviar a nossa mensagem!

E foi o que fizeram. Do bolso, Lina tirou a mensagem que Doon tinha escrito, a que deveria ter sido entregue à Clary explicando tudo. Numa letra muito pequena, conseguiram escrever o seguinte no alto da página:

 

Caro Povo de Ember

Descemos o rio no Sistema de Canalizações e descobrimos o caminho para outro lugar. Aqui é tudo verde e muito grande. A luz vem do céu. Devem seguir as instruções nesta mensagem e vir pelo rio. Tragam comida. Venham assim que puderem.

Lina Mayfleet e Doon Harrow

 

Embrulharam a mensagem na camisa de Doon e puseram uma pedra dentro. Depois puseram-se em fila na beira do pre­cipício, com Doon no meio, de mãos dadas com Poppy e Lina. Lina fez pontaria para o centro da cidade, muito lá em baixo. Com toda a sua força, atirou a mensagem para a escuridão e ficaram a vê-la cair até o fundo.

 

A Sra. Murdo, caminhando ainda mais depressa do que de costume para manter o ânimo, estava atravessando a Praça Harken quando uma coisa veio cair a seus pés no passeio com um es­trondo terrível. Que estranho, pensou ela, abaixando-se para pegar a coisa. Era uma espécie de trouxa. Começou a abri-la.

 

                                                                                Jeanne DuPrau  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"