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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CIDADE DAS TREVAS / Dean Koontz
A CIDADE DAS TREVAS / Dean Koontz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Em Frankenstein - O Filho Pródigo, Dean Koontz começou a contar uma nova versão do clássico da literatura gótica, na qual o demoníaco Victor Frankenstein continua a tentar criar uma raça de seres perfeitos, e apenas Deucalião, o seu primeiro "monstro", parece ser capaz de lhe fazer frente.
Em A Cidade das Trevas, a saga do criador e da criatura continua. Os espécimes da Nova Raça, as mais recentes criaturas de Victor Helios (antes Frankenstein), são na verdade assassinos perfeitos, e começam a espalhar um reino de terror pela cidade de Nova Orleães. A medida que Deucalião, com a ajuda de dois detectives, tenta impedi-los, vai descobrindo que estas criaturas podem ser assustadoramente semelhantes a seres humanos - sobretudo na sua tendência para a crueldade...

 


 


1.

Tendo ganhado vida numa trovoada, tocado por qualquer estranho raio que animou em vez de incinerar, Deucalião nascera numa noite de violência.
Uma sinfonia tresloucada dos seus gritos angustiados, dos berros de triunfo do seu criador; o zumbido e ronronar e crepitar da maquinaria bizarra ecoava nas frias paredes de pedra do laboratório no velho
moinho de vento.
Quando despertou para o mundo, Deucalião estivera acorrentado a uma mesa. Foi a primeira indicação de que fora criado para escravo.
Ao invés de Deus, Victor Frankenstein não via razão para dar livre--arbítrio às suas criações. Como todos os utópicos, preferia a obediência ao pensamento independente.
Aquela noite, mais de duzentos anos antes, lançara o mote de loucura e violência que caracterizaria a vida de Deucalião por muitos anos. O desespero fomentara a fúria. Nas suas fúrias, ele matara, selvaticamente.
Passadas todas estas décadas, ele adquirira autocontrolo. A dor e a solidão tinham-lhe ensinado a piedade, depois, ele aprendera a compaixão. Encontrara o seu caminho para a esperança.
Não obstante, em certas noites, sem causa imediata, a fúria domina-o. Sem qualquer razão concreta, a raiva cresce dentro dele como uma onda gigante que ameaça varrê-lo além da prudência, além da discrição.
Esta noite em Nova Orleães, Deucalião percorreu uma viela no perímetro do Bairro Francês, com vontade de matar. Os tons de cinzento, de azul, de preto só eram animados pelo carmesim dos seus pensamentos.
O ar estava quente, húmido e vibrante de jazz abafado que as paredes de bares famosos mal conseguiam conter.
Em público, ele ficava nas sombras e andava por ruas esconsas, porque o seu tamanho imponente fazia dele alvo de interesse. Assim como o seu rosto.
Da escuridão ao lado de um caixote do lixo, saiu um homem enrugado e encharcado em rum.
- A paz de Cristo, irmão.

10
Embora tal saudação não sugerisse um ladrão a monte, Deucalião virou-se para a voz na esperança de que o estranho tivesse uma faca ou uma pistola. Mesmo na sua fúria, precisava de justificação para a violência.
O mendigo não brandiu mais do que uma palma suja virada para cima e um mau hálito contundente.
- Só preciso de um dólar.
- Não compras nada com um dólar - observou Deucalião.
- Deus te abençoe se fores generoso, mas só peço um dólar.
Deucalião resistiu ao impulso de agarrar a mão estendida e de a partir pelo pulso, como se não passasse de um galho seco.
Antes pelo contrário, afastou-se e não olhou para trás, nem quando o mendigo lhe rogou uma praga.
Quando passava pela entrada da cozinha de um restaurante, a porta abriu-se. Saíram dois homens hispânicos de calças e camisolas brancas, um a oferecer o maço de tabaco aberto ao outro.
Deucalião foi revelado pela lâmpada de segurança por cima da porta e por outra directamente em frente da primeira.
Os dois homens imobilizaram-se ao vê-lo. Metade da sua cara parecia normal, até bonita, mas na outra havia uma tatuagem complicada.
O padrão fora desenhado e aplicado por um monge tibetano perito em agulhas. Contudo, dava a Deucalião um aspecto feroz, quase demoníaco.
Aquela tatuagem era, com efeito, uma máscara destinada a distrair o olhar das feições estragadas debaixo dela, estrago esse feito pelo seu criador, num passado distante.
Apanhado na luz cruzada, Deucalião fora suficientemente revelado para os dois homens detectarem, se não mesmo compreenderem, a radical geometria por baixo da tatuagem. Contemplaram-no, mais do que com
medo, com um respeito solene, como se testemunhassem uma aparição espiritual.
Ele trocou a luz pela sombra, aquela viela por outra, a raiva a avolumar-se em fúria.
As mãos enormes tremiam, contorciam-se como se precisassem de estrangular. Cerrou-as em punhos, meteu-as nos bolsos do casaco.
Mesmo naquela noite estival, no ar sufocante do bayou, ele usava um casaco comprido preto. O calor e o frio não o afectavam. Nem a dor, nem o medo.
Quando estugou o passo, o casaco amplo ondulou como uma capa. Com um capuz, poderia ter passado pela própria Morte.

11
Talvez a compulsão assassina estivesse entretecida no mais fundo do seu ser. A carne dele era a carne de inúmeros criminosos, cadáveres roubados ao cemitério de uma prisão imediatamente a seguir ao enterro.
Dos seus dois corações, um viera de um incendiário louco que deitava fogo a igrejas. O outro pertencera a um pedófilo.
Mesmo num homem criado por Deus, o coração pode ser falso e malévolo. O coração por vezes rebela-se contra tudo o que a mente conhece e defende.
Se as mãos de um padre sabem fazer trabalho pecaminoso, o que se poderá esperar de mãos de um estrangulador condenado? As mãos de Deucalião tinham vindo exactamente de tal criminoso.
Os olhos cinzentos haviam sido arrancados ao cadáver de um homem que matava com um machado. Ocasionalmente, passava por eles uma suave pulsação luminosa, como se aquela trovoada sem precedentes que o engendrara
tivesse deixado para trás os seus raios.
O cérebro enchera outrora o crânio de um delinquente desconhecido. A morte apagara qualquer recordação dessa vida passada, mas talvez os circuitos cerebrais permanecessem mal ligados.
Agora a fúria crescente levava-o a ruas mais ínvias, do outro lado do rio, em Algiers. Aqueles caminhos tenebrosos estavam juncados de empreendimentos ilegais.
Um quarteirão miserável albergava um bordel mal disfarçado de clínica de massagens e acupunctura; uma loja de tatuagens; um clube de vídeo pornográfico; e um bar cajun roufenho. A música zydeco atroava.
Nos carros estacionados ao longo da viela por detrás destas casas, os chulos conviviam enquanto esperavam para recolher os lucros das raparigas que forneciam ao bordel.
Dois malandros de camisa havaiana e calças de seda brancas, a deslizarem em patins, vendiam cocaína cortada com Viagra em pó à clientela do bordel. Estavam com uma promoção de ecstasy e anfetaminas.
Havia quatro motos Harley Davidson em fila atrás do clube de vídeo pornográfico. Parecia que motoqueiros duros serviam de seguranças do bordel. Ou dos traficantes. Talvez de todos.
Deucalião passou entre eles, uns repararam nele, outros não. Para ele, um casaco preto e sombras ainda mais negras podiam ocultar tão bem quanto um manto de invisibilidade.

12
O misterioso relâmpago que lhe dera vida também lhe transmitira um entendimento da estrutura quântica do universo, e talvez de algo mais. Depois de passar dois séculos a explorar e gradualmente a aplicar
tais conhecimentos, Deucalião podia, quando assim entendia, mover-se no mundo com uma facilidade, uma graça, uma dissimulação que os outros consideravam desconcertante.
Uma discussão entre um motoqueiro e uma jovem esbelta na porta das traseiras do bordel atraiu Deucalião como o sangue na água atrai um tubarão.
Embora trajada para provocar, a rapariga parecia nova e vulnerável. Podia muito bem ter dezasseis anos.
- Deixa-me ir, Wayne - pediu ela. - Não quero isto.
Wayne, o motoqueiro, agarrou-a pelos dois braços e empurrou-a contra a porta verde.
- Depois de alinhares não há como não querer.
- Só tenho quinze anos.
- Não te rales. Envelheces depressa.
No meio das lágrimas, ela disse:
- Nunca pensei que pudesse ser assim.
- O que é que pensaste que podia ser, minha cabra estúpida? Richard Gere é Um Sonho de Mulher?
- Ele é feio e cheira mal.
- Joyce, filha, eles são todos feios e cheiram todos mal. Depois do número cinquenta, já nem dás por isso.
A rapariga viu Deucalião primeiro, e os seus olhos arregalados fizeram Wayne virar-se.
- Solta-a - aconselhou Deucalião.
O motoqueiro - maciço, com um rosto cruel - não ficara impressionado.
- Sai bem depressa daqui, Cavaleiro Solitário, e pode ser que leves os cojones contigo.
Deucalião agarrou no braço direito do adversário e dobrou-o para trás tão de repente, com tal violência, que o ombro se partiu com um estalo audível. Atirou aquela bisarma para longe dele.
Depois de voar um pouco, Wayne aterrou de frente, o berro abafado pela boca cheia de alcatrão.
Uma pisadela forte na nuca do motoqueiro bastaria para lhe partir a coluna. Ao recordar-se de multidões com archotes e forquilhas noutro século, Deucalião dominou-se.

13
E virou-se ao ouvir o ruído de uma corrente.
Outro aficionado das motas, um grotesco de ar lúbrico com tachas na sobrancelha, tachas no nariz, tachas na língua e barba ruiva eriçada, juntou-se temerariamente à refrega.
Em vez de se desviar da corrente, Deucalião avançou para o agressor. A corrente passou ao lado do seu braço esquerdo. Ele agarrou-a, puxou o Barba Ruiva e fê-lo perder o equilíbrio.
O motoqueiro tinha rabo-de-cavalo. Serviu de pega.
Deucalião levantou-o, esmurrou-o, atirou-o dali para fora.
Na posse da corrente, avançou para um terceiro rufia, deu-lhe com ela nos joelhos.
O homem gritou e caiu. Deucalião ajudou-o a levantar-se, segurando-o pelo pescoço, pela braguilha, e atirou-o contra o quarto dos quatro meliantes.
Bateu-lhes com as cabeças na parede ao ritmo da banda que tocava no bar, criando grande desgraça e talvez algum remorso.
Os clientes que passavam do clube porno para o bordel e para o bar já tinham fugido da viela. Os traficantes de rodinhas já tinham zarpado com a mercadoria.
Em rápida sucessão, os chulos arrancaram nos seus carros. Ninguém na direcção de Deucalião. Faziam inversão de marcha da viela para fora.
Um Cadillac todo artilhado bateu num Mercedes amarelo.
Nenhum dos condutores parou para dar ao outro o nome da sua seguradora.
Em momentos, Deucalião e a rapariga, Joyce, ficaram sozinhos com os motoqueiros incapacitados, embora seguramente observados por gente atrás de portas e janelas.
No bar, a banda de zydeco tocava sem vacilar. O ar denso e húmido parecia brilhar com a música.
Deucalião levou a rapariga até à esquina, onde a viela se cruzava com a rua. Nada disse, mas Joyce não precisou de que a encorajassem a ficar a seu lado.
Embora fosse com ele, estava claramente aterrada. E com um bom motivo.
A acção na viela não diminuíra a fúria dele. Quando estava senhor de si, a mente de Deucalião era uma velha mansão de séculos repleta de experiências ricas, pensamentos elegantes, reflexões filosóficas.

14
Agora, porém, era um matadouro com muitas divisões, escuro de sangue e frio com a ânsia de matar.
Quando passaram debaixo de um candeeiro, a pisar as sombras tremeluzentes projectadas pelas traças mais acima, a rapariga olhou para ele. Ele sentiu que ela estremecera.
Parecia tão perplexa quanto assustada, como se tivesse acordado de um pesadelo e ainda não distinguisse entre o que poderia ser real e o que poderiam ser resquícios do sonho mau.
Na obscuridade entre candeeiros, quando Deucalião lhe pôs uma mão no ombro, quando trocaram sombras por sombras e o zydeco evanescente pelo jazz mais alto, a perplexidade dela aumentou, e o medo também.
- O que... O que é que aconteceu? Isto é o Bairro.
- A esta hora - avisou ele, acompanhando-a a atravessar Jackson Square, depois da estátua do general - o Bairro não é mais seguro para ti do que as vielas. Tens sítio para onde ir?
Com os braços em redor do corpo como se o ar do bayou tivesse passado a um gelo árctico, ela respondeu:
- Casa.
- Aqui na cidade?
- Não. Lá em cima em Baton Rouge. - Estava à beira das lágrimas. - A casa já não me parece uma seca.
A inveja temperou a raiva feroz de Deucalião, pois ele nunca tivera casa. Sítios onde ficara, mas nenhum deles um verdadeiro lar.
Um desejo louco e criminoso de acabar com a rapariga rugiu nas grades da cela mental onde ele tentava manter encarcerados os seus impulsos bestiais, acabar com ela porque ela podia ir para casa de um modo
que ele nunca poderia.
E perguntou:
- Tens telefone?
Ela assentiu e tirou um telemóvel do cinto entrançado.
- Diz à tua mãe e ao teu pai que vais esperar por eles naquela catedral ali - disse ele.
Acompanhou-a à igreja, parou na rua, encorajou-a a avançar, e tratou de estar fora dali antes de ela se virar e olhar para ele.

2.
Na sua mansão do Garden District, Victor Helios, anteriormente Frankenstein, começou aquela bela manhã de Verão a fazer amor com a sua nova mulher, Erika.
A sua primeira mulher, Elizabeth, fora assassinada duzentos anos antes nas montanhas da Áustria, no dia do casamento. Hoje em dia, ele raramente pensava nela.
Sempre se orientara para o futuro. O passado aborrecia-o. Além disso, não valia a pena rememorar grande parte dele.
Contando com Elizabeth, Victor desfrutara de - ou, em alguns casos, tolerara - seis esposas. Os números dois a seis tinham-se chamado Erika.
As Erikas eram idênticas na aparência porque tinham sido todas criadas no seu laboratório em Nova Orleães e amadurecidas nos tanques de clonagem. Assim poupava-se à despesa de um guarda-roupa novo de cada
vez que uma delas tinha de ser descartada.
Apesar de ser extremamente rico, Victor abominava desperdiçar dinheiro. A sua mãe, embora uma inútil, incutira-lhe a necessidade da poupança.
Aquando da morte da mãe, ele não quisera ter a despesa de uma cerimónia fúnebre nem de um caixão de pinho. Sem dúvida que a própria mãe teria aprovado o simples buraco no chão, quatro palmos abaixo de
terra, e não sete, para reduzir a paga do coveiro.
Embora as Erikas parecessem idênticas entre si, os números de um a quatro tinham tido defeitos diferentes. Ele continuava a refiná-las e a melhorá-las.
Ainda na noite anterior, matara Erika Quatro. Mandara o cadáver para um aterro mais a norte, gerido por uma das suas empresas, onde as primeiras três Erikas e outras desilusões estavam enterradas sob um
mar de lixo.
A paixão dela por livros resultara em demasiada introspecção e encorajara-a a ter um espírito independente que Victor se recusava a tolerar. Além disso, ela sorvia a sopa.
Não há muito, ele mandara a nova Erika sair do tanque, onde tinham sido electronicamente carregadas universidades inteiras de instrução digitalizada no seu cérebro, o qual era uma esponja.
Sempre optimista, Victor acreditava que Erika Cinco se revelaria uma criação perfeita, digna de o servir durante muito tempo. Linda, sofisticada, erudita e obediente.

16
Decerto mais lúbrica do que as Erikas anteriores. Quanto mais ele a magoava, mais avidamente ela reagia.
Como era da Nova Raça, podia desligar a dor quando quisesse, mas ele não lho permitia no quarto. Ele vivia para o poder. O sexo, para ele, só era satisfatório se ele pudesse magoar e oprimir a sua parceira.
Ela aguentava as agressões dele com uma submissão erótica magnífica. As muitas nódoas negras e contusões dela eram, para Victor, prova da sua virilidade. Ele era um garanhão.
Tal como todas as suas criaturas, ela tinha a fisiologia de uma semideusa.
As feridas dela sarariam e a sua perfeição física seria restaurada numa hora ou duas.
Exausto, deixou-a na cama, a chorar. Chorava não só devido às dores como também por vergonha.
A sua mulher era a única da Nova Raça concebida com capacidade para sentir vergonha. A humilhação dela completava-o.
Tomou duche com muita água quente e um sabonete com aroma a verbena feito em Paris. Sendo frugal no destino a dar a mães e esposas mortas, podia dar-se a alguns luxos.

3.
Depois de encerrar o caso de um assassino em série que se revelara um detective da polícia da sua própria divisão, com habituais perseguições e saltos e tiroteios, Carson OrConnor só se fora deitar às
sete da manhã.
Quatro horas morta para o mundo no vale dos lençóis e um duche rápido: seria o máximo de tempo livre que ela poderia esperar durante um longo período. Felizmente, estava exausta de mais para sonhar.
Enquanto detective estava habituada a fazer horas extraordinárias sempre que um inquérito chegava ao auge, mas aquela missão não era um caso de homicídio típico. Poderia muito bem ser o fim do mundo.
Ela nunca antes passara pelo fim do mundo. Não sabia o que esperar.
Michael Maddison, seu colega, estava à espera no passeio quando, ao meio-dia, ela encostou o carro à civil em frente ao prédio onde ele morava.
Michael preferia um apartamento incaracterístico num edifício igualmente simples, num quarteirão discreto junto ao Veterans Bou-levard. Dizia que o sítio era "muito zen" e alegava precisar de um retiro
minimalista após um dia passado no eterno carnaval de Nova Orleães.
Vestia-se para o Apocalipse da mesma maneira que se vestia todos os dias. Camisa havaiana, calças caqui, blusão desportivo.
Só no calçado fizera uma concessão para o dia do juízo final. Em vez dos Rockport pretos do costume, os sapatos eram brancos. Tão brancos que pareciam radiosos.
O ar sonolento ainda o fazia parecer mais delicioso do que de costume. Carson tentou não ligar.
Eram colegas, não eram amantes. Se tentassem ser as duas coisas, acabariam mortos mais cedo ou mais tarde. Na polícia, atirar a matar e atirar-se a alguém não se misturam.
Depois de entrar no carro e fechar a porta, Michael perguntou:
- Viste alguns monstros ultimamente?
- No espelho da casa de banho esta manhã - respondeu ela, e acelerou rumo à estrada.
- Pareces óptima. A sério. Não pareces nem metade do quão mal eu me sinto.
- Sabes há quanto tempo é que não vou arranjar o cabelo?

18
- Tu tens tempo para ir ao cabeleireiro? Achava que lhe pegavas fogo e que queimavas um bocado de vez em quando.
- Belos sapatos.
- A caixa dizia que são fabricados na China, ou talvez fosse Tailândia. Tudo é feito noutro sítio hoje em dia.
- Nem tudo. Onde é que achas que o Harker foi feito?
O detective Jonathan Harker, que se revelara o assassino em série a que a comunicação social chamara "o Cirurgião", também se revelara não ser humano. Não se tinha deixado abalar por uma caçadeira de calibre
12 nem por uma queda de quatro andares.
Michael disse:
- Não estou a ver o Helios a criar a sua Nova Raça na salinha da mansão que tem no Garden District. Talvez a Biovision seja a fachada.
Biovision, uma empresa de biotecnologia de ponta fundada por Helios quando este chegara a Nova Orleães, mais de vinte anos antes, detinha várias patentes que o enriqueciam a cada ano que passava.
- Todos aqueles empregados - disse Carson - todos aqueles serviços em outsourcing a entrarem diariamente, não se poderia gerir um laboratório secreto de criação de gente no meio disso tudo.
- Pois. Para começar, sendo um corcunda zarolho embuçado numa capa, o Igor daria nas vistas quando fosse buscar café à máquina da copa. Não vás tão depressa.
A acelerar, Carson disse:
- Portanto, ele tem outras instalações algures na cidade, provavelmente propriedade de uma empresa fictícia com sede nas Ilhas Caimão ou coisa assim.
- Detesto esse tipo de trabalho de investigação.
Queria ele dizer que isso implicava investigar milhares de empresas em Nova Orleães, fazer uma lista daquelas que tivessem propriedade estrangeira ou de outro modo suspeita.
Embora Carson também não gostasse de sessões à secretária, tinha paciência para esse trabalho. Todavia, desconfiava de que não tinha tempo.
- Aonde vamos? - perguntou Michael, enquanto a cidade lhes passava ao lado como um borrão de tinta.
- Se vamos à Divisão passar o dia sentados em frente a um computador, deixa-me já aqui.
- Ai sim? E que vais fazer?

19
- Sei lá. Arranjar alguém a quem dar tiros.
- Não há-de tardar até teres montes de gente a quem dar tiros.
A gente que o Victor fez. A Nova Raça.
- É um bocadinho deprimente ser da Velha Raça. É como ser o microondas do ano anterior, antes de lhe juntarem o microchip que o faz cantarolar músicas do Randy Newman.
- Mas quem é que quer um microondas a cantar Randy Newman?
- Quem é que não quer?
Carson poderia ter zarpado com o sinal vermelho se um camião TIR não estivesse a passar o cruzamento. A avaliar pelos anúncios pintados nas laterais do camião, ia carregado de doses de carne com destino
ao McDonald's. Ela não queria acabar em hambúrgueres.
Estavam na Baixa. As ruas estavam apinhadas.
A estudar os magotes de peões, Michael perguntou-se:
- Quanta gente nesta cidade será gente a sério? Quantas serão... criações do Victor?
- Mil - respondeu Carson -, dez mil, cinquenta mil, ou talvez apenas cem.
- Mais de cem.
- Pois.
- Helios acabará por se aperceber de que já o topámos.
- Ele já deve saber - calculou ela.
- Sabes o que isso faz de nós?
- Pontas soltas - disse ela.
- Soltíssimas. E ele parece ser gajo que gosta de tudo embrulhadinho.
Ela disse:
- Calculo que tenhamos vinte e quatro horas de vida.


4.
Esculpida em mármore, desgastada por décadas de vento e chuva, a Virgem Maria estava num nicho, alcandorada sobre os degraus da fachada das Mãos da Misericórdia.
O hospital há muito que fechara. As janelas entaipadas. No portão da vedação de ferro forjado, um sinal identificava o edifício como armazém particular, fechado ao público.
Victor passou pelo hospital e entrou no parque de estacionamento subterrâneo de um prédio com cinco andares, onde ficava a contabilidade e os recursos humanos da Biovision, a empresa por ele fundada. Estacionou
o Mercedes no espaço que lhe estava reservado.
Só ele tinha chave para a porta de aço pintado ali próxima. Para lá dela ficava uma sala vazia, com cerca de um metro quadrado, paredes e chão de cimento.
Em frente à porta da rua, outra porta controlada por um teclado instalado na parede. Victor introduziu o código e soltou a tranca electrónica.
Passado o umbral, um corredor com quarenta e dois metros percorria o recinto do hospital e ligava aos edifícios adjacentes. Tinha quase dois metros de largura, dois metros e meio de altura, paredes de
tijolo e madeira e chão de cimento.
A passagem fora escavada e erigida por membros da Nova Raça, sem plantas sujeitas a aprovação pública nem alvarás de construção, nem cotas pagas a sindicatos. Victor podia entrar e sair das Mãos da Misericórdia
no mais completo sigilo.
No fim do corredor, introduziu o código noutro teclado e abriu uma porta para uma sala de arquivo nas profundezas do hospital. Filas e filas de armários metálicos continham cópias de segurança em papel
dos registos informáticos dos seus muitos projectos.
Regra geral, Victor gostava de portas escondidas, passagens secretas, e da ocultação que fazia necessariamente parte de qualquer plano para destruir a civilização e governar o mundo. Nunca deixara de ter
a proverbial criança dentro de si.
Todavia, naquela ocasião, estava irritado com o facto de só poder chegar ao seu laboratório por aquela via sinuosa. Tinha um dia cheio pela frente e, pelo menos, uma crise a precisar de atenção urgente.

21
Da sala de arquivo entrou na cave do hospital, onde reinava o sossego e, apesar das luzes do corredor, a penumbra. Fora ali que outrora ele orquestrara as suas experiências mais revolucionárias.
Andara fascinado pela possibilidade de as células cancerosas, as quais se reproduzem a uma velocidade estonteante, poderem ser controladas para fomentar o rápido desenvolvimento de clones num útero artificial.
Tivera esperança de forçar o crescimento de um embrião até à idade adulta em questão de semanas ao invés de anos.
Tal como acontece quando alguém trabalha nos limites extremos da ciência conhecida, as coisas tinham corrido mal. Ficara não com um Novo Homem, mas sim com um tumor ambulatório agressivo, em rápida mutação
que era, para resumir, espantosamente inteligente.
Visto que dera vida à criatura, sentira-se no direito de esperar ao menos uma réstia de gratidão da parte dela. Nada.
Haviam morrido ali quarenta das criações de Victor, a tentarem conter aquela malignidade poderosa. E a gente dele não era fácil de matar. Quando tudo parecera perdido, a atrocidade fora subjugada e depois
destruída.
O fedor tinha sido pavoroso. Volvidos todos aqueles anos, Victor sentia que ainda lhe cheirava.
Um segmento com seis metros da parede do corredor desabara na confusão. Depois desse buraco irregular ficava a sala da incubação, escura e cheia de detritos.
Passado o elevador, metade da largura do corredor continha pilhas de entulho escolhidas e ordenadas: cimento partido, barras de ferro vergadas, estruturas de aço embrulhadas como se fossem cordas.
Victor organizara mas não mandara levar dali aquele entulho e aquela ruína, deixara-a para nunca mais se esquecer de que até um génio do seu calibre pode, por vezes, ser esperto de mais para o seu próprio
bem. Quase morrera ali, naquela noite.
Agora subia o elevador até ao rés-do-chão, para onde mudara o seu principal laboratório depois de o tumor ingrato ter sido destruído.
Os corredores estavam sossegados. Trabalhavam oitenta membros da Nova Raça naquelas instalações, mas estavam todos ocupados nas tarefas que lhes tinham sido atribuídas. Não perdiam tempo a conversar ao
pé do garrafão de água.
O laboratório imenso estava repleto de máquinas fantásticas que teriam intrigado qualquer homem comum, mas também qualquer

22
membro de um departamento de ciência de Harvard ou do MIT. O estilo era Art Déco digno de uma ópera, o ambiente hitleriano.
Victor admirava Hitler. O Führer sabia o que era talento quando o tinha diante de si.
Nos anos 30 e 40 do séc. XX, Victor trabalhara com Mengele e outros, na privilegiada classe científica de Hitler. Lograra progressos consideráveis no seu trabalho antes da lamentável vitória dos Aliados.
Pessoalmente, Hitler era encantador e contava histórias divertidas. Tinha uma higiene pessoal exemplar, parecia sempre muito asseado e cheirava a sabonete.
Vegetariano e amigo dos animais, Hitler tinha um lado terno. Não tolerava ratoeiras. Insistia que os roedores fossem capturados sem violência e libertados no campo.
O problema com o Führer era que as suas raízes estavam na arte e na política. O futuro não pertencia a artistas nem a políticos.
O novo mundo não seria erigido pelo nacional-socialismo-comunismo. Nem pelo capitalismo, já agora.
A civilização não seria reformulada nem sustentada pelo Cristianismo nem pelo Islamismo. Nem por cientologistas nem pelos patetas alegres adeptos da nova religião encorajada pelo Código Da Vinci, deliciosamente
solipsista e paranóica.
O amanhã pertencia ao cientismo. Os padres do cientismo não eram meros clérigos a executar rituais; eram deuses, tinham poder de deuses. O próprio Victor era o seu Messias.
Quando atravessou o vasto laboratório, as máquinas de aspecto sinistro emitiam zumbidos oscilantes, pulsações abafadas. Tique-taques e silvos.
Victor ali sentia-se em casa.
Os sensores detectaram a sua chegada à mesa, e o ecrã do computador iluminou-se. No monitor apareceu o rosto de Annunciata, a sua secretária nas Mãos da Misericórdia.
- Bom dia, senhor Helios.
Annunciata era muito bela mas não era real. Era uma personalidade digital a três dimensões com voz artificial mas maravilhosamente rouca, que Victor concebera para humanizar um ambiente de trabalho de
outro modo sombrio.
- Bom dia, Annunciata.
- O cadáver do detective Jonathan Harker foi trazido pela sua gente do gabinete do médico-legista. Encontra-se à sua espera na sala de dissecção.

23
Havia um termo com café quente e um prato com bolachas de noz--pecã e pepitas de chocolate na mesa de Victor. Ele pegou numa bolacha.
- Continua.
- Randal Seis desapareceu.
Victor franziu o sobrolho.
- Explica-te.
- A contagem da meia-noite encontrou o quarto dele vazio.
Randal Seis era uma das muitas experiências que residia actualmente nas Mãos da Misericórdia. Tal como os cinco antecessores, fora criado autista com tendências obsessivo-compulsivas.
A intenção de Victor ao conceber aquela criatura doente fora determinar se tal distúrbio no desenvolvimento poderia ter utilidade. Ao controlar uma pessoa autista por via de um distúrbio obsessivo--compulsivo
cuidadosamente arquitectado, poder-se-ia concentrá-lo numa série de funções geralmente atribuídas a máquinas nas modernas unidades fabris. Um operário assim poderia realizar uma tarefa repetitiva durante
horas seguidas, semanas sem fim, sem erros nem tédio.
Ligado cirurgicamente a um tubo de alimentação, e com um cateter para eliminar a necessidade de pausas para ir à casa de banho, o operário poderia revelar-se uma alternativa económica aos robôs fabris
que se encontravam actualmente em algumas linhas de montagem. A alimentação diária dele poderia ser uma qualquer mistela nutricional pela módica quantia de um dólar. Não receberia salário, férias, regalias
médicas. Não seria afectado por cortes de energia.
Quando se gastasse, seria simplesmente destruído. E um novo operário ligado à linha de montagem.
Victor continuava convencido de que, com o tempo, tais máquinas de carne e osso se revelariam muitíssimo superiores a muito do equipamento fabril corrente. É dispendioso e complexo produzir robôs para
linhas de montagem. A carne é barata.
Randal Seis era agorafóbico o bastante para ser incapaz de sair dos seus aposentos de moto próprio. Ficava aterrorizado só de passar o umbral da porta.
Quando Victor precisava de Randal para uma experiência, os auxiliares levavam-no para o laboratório de maca.
- Não pode ter saído sozinho - disse Victor. - Além disso, não pode ter saído do edifício sem activar um alarme qualquer. Está por aí algures. Mande a segurança rever as gravações de ontem, do quarto dele
e dos corredores principais.

24
- Sim, senhor Helios - disse Annunciata.
Considerando o alto grau de interacção verbal que ela tinha com Victor, Annunciata poderia parecer, a um estranho, uma manifestação de inteligência artificial. Embora interagisse através de um computador,
as suas funções cognitivas ocorriam de facto num cérebro orgânico da Nova Raça que se encontrava num tanque hermeticamente selado, com uma solução de nutrientes, na sala de rede, onde ela estava ligada
ao sistema de processamento de dados do edifício.
Victor imaginava o dia em que os habitantes do mundo fossem todos da Nova Raça, aos milhares em dormitórios, cada qual supervisionado e servido por um cérebro sem corpo como Annunciata.
- Entretanto - disse Victor -, vou estudar o cadáver de Harker. Localize o Ripley e diga-lhe que preciso da ajuda dele na sala de dissecção.
- Sim, senhor Helios. Helios.
Prestes a dar outra dentada na bolacha, ele hesitou.
- Porque é que fez isso, Annunciata?
- O quê, senhor?
- Repetiu o meu nome desnecessariamente.
No monitor, a testa lisa dela enrugou-se com a perplexidade.
- Repeti, senhor?
- Sim, repetiu.
- Não tive noção de o fazer, senhor Helios. Helios.
- Acabou de o fazer outra vez.
- O senhor tem a certeza?
- Que pergunta impertinente, Annunciata.
Ela fez um ar devidamente repreendido.
- Lamento, senhor.
- Analise os seus sistemas - ordenou Victor. - Talvez haja algum desequilíbrio na sua fonte de nutrientes.


5.
Jack Rogers, o médico-legista, tinha um gabinete repleto de livros, dossiês e recordações macabras, onde tudo, e a qualquer momento, poderia fazer submergir um visitante incauto.
A recepção, contudo, era mais consentânea com a ideia que o público fazia de uma morgue. Decoração minimalista, superfícies estéreis, o ar condicionado sempre no FRESCO.
A secretária de Jack, Winona Harmony, governava este domínio exterior com uma eficiência impassível. Quando Carson e Michael entraram, o cimo da secretária de Winona estava vazio - sem fotografias, sem
recordações -, exceptuando uma pasta com os apontamentos de Jack, a partir dos quais ela dactilografava relatórios de autópsia oficiais.
Uma negra rechonchuda e simpática com cerca de cinquenta e cinco anos, Winona parecia deslocada naquele espaço espartano.
Carson desconfiava de que havia fotografias da família, peluches, saquinhos de cheiro e almofadinhas com frases animadoras a ponto cruz nas gavetas da secretária de Winona, entre outros artigos de que
ela gostasse mas achasse impróprio exibir na recepção de uma morgue.
- Vejam só - disse Winona quando eles entraram.
- Se não é o orgulho dos Homicídios.
- Eu também vim - disse Michael.
- Ah, tu és mesmo jeitoso - disse-lhe Winona.
- Apenas realista. Ela é a detective, eu sou o cómico.
Winona perguntou:
- Carson, miúda, como é que aguentas tanta jeitosice o dia todo?
- De vez em quando bato-lhe com a pistola.
- Não deve fazer efeito nenhum - disse Winona.
- Pelo menos - contrapôs Carson - ajuda-me a manter a forma.
- Viemos por causa de um cadáver - disse Michael.
- Temos uma carrada - disse Winona. - Uns têm nomes, outros não.
- Jonathan Harker.
- Um dos vossos - observou Winona.
- Sim e não - retrucou Michael. - Teve um distintivo como o nosso e duas orelhas mas, para além disso, não temos muito em comum com ele.
- Quem diria que um assassino psicopata como o Cirurgião se revelaria polícia - comentou Winona.

26
- Onde é que o mundo vai parar?
- Quando é que o Jack fará a autópsia preliminar? - perguntou Carson.
- Já fez. - Winona tocou no dossiê cheio de apontamentos ao lado do computador.
- Estou a passá-la agora.
Carson ficou espantada. Tal como ela e Michael, Jack Rogers sabia que algo de extraordinário se passava em Nova Orleães, e que alguns dos seus cidadãos eram mais do que humanos.
Ele autopsiara um homem que tinha dois corações, crânio denso como um capacete, dois fígados e várias outras "melhorias".
Carson e Michael tinham-lhe pedido que empatasse o relatório até poderem abarcar a situação que enfrentavam - e, em poucas horas, para desânimo de Jack, o cadáver e todos os registos da autópsia tinham
desaparecido.
Agora presumia-se que ele tomava grandes medidas de segurança com o corpo de Jonathan Harker, que era outro dos da Nova Raça de Victor. Carson não compreendia porque é que ele revelaria a natureza inumana
de Harker a Winona.
Menos compreensível ainda era a calma de Winona, o seu sorriso descontraído. Se estava a dactilografar o relatório da autópsia de um monstro, parecia não dar por nada.
Tão perplexo quanto Carson, Michael perguntou:
- Começou agora mesmo?
- Não - respondeu Winona -, estou quase a terminar.
- E depois?
- E depois o quê?
Carson e Michael entreolharam-se, e ela disse:
- Precisamos de ver o Jack.
- Está na Sala de Autópsias número 2 - respondeu Winona. - Estão a preparar-se para abrir um reformado cuja mulher parece ter-lhe dado gumbo de lagostim estragado.
Carson disse:
- Ela deve estar destroçada.
Winona abanou a cabeça.
- Está detida. No hospital, quando lhe disseram que ele tinha morrido, ela desatou a rir à gargalhada.

6.
Deucalião raramente precisava de dormir. Embora tivesse passado fases da sua vida em mosteiros e em meditação, embora soubesse dar valor ao sossego, o seu estado mais natural parecia ser o movimento circular
inquieto, típico de um tubarão.
Tinha estado num movimento constante, quase sempre, desde que salvara a rapariga naquela viela em Algiers. A raiva passara-lhe, mas a inquietude não.
No vácuo deixado pela evanescência da raiva instalava-se uma nova prudência. Esta não era medrosa por natureza, mas sim um desassossego decorrente da sensação de ter negligenciado algo de significado importante.
A intuição sussurrava-lhe com urgência mas, de momento, a sua voz era um murmúrio sem palavras que lhe fazia erguer as defesas mas não o conseguia esclarecer.
De madrugada, voltara ao Luxe Theater. O cinema fora-lhe deixado em testamento por um velho amigo dos anos que Deucalião passara em feiras de aberrações.
Esta herança - e a descoberta de que Victor, o seu criador, não morrera há duzentos anos, mas que estava vivo - tinha-o levado do Tibete à Luisiana.
Deucalião sentira, não raro, que o destino lhe comandava a vida. Os acontecimentos em Nova Orleães pareciam ser a prova concreta disso.
Um palácio Art Déco erigido nos anos 20 do séc. XX, o Luxe, agora dneclube, estava em declínio. Só abria as portas três noites por semana.
O apartamento dele no cinema era humilde. Todavia, qualquer coisa maior do que a cela de um monge lhe parecia extravagante, apesar do seu próprio tamanho.
Enquanto percorria os corredores desertos do velho edifício, o auditório, o mezanino, o balcão, a recepção, os pensamentos dele, mais do que correrem a toda a brida, ricocheteavam como bolas numa máquina
de flippers.
Na sua inquietude, debatia-se por congeminar maneira de chegar a Victor Helios, outrora conhecido como Frankenstein. E de o destruir.
Como os membros da Nova Raça, que Victor engendrara naquela cidade, Deucalião fora criado com uma injunção contra o deicídio. Não podia matar o seu criador.

28
Dois séculos antes, levantara a mão contra Victor - e quase morrera quando dera por si incapaz de assestar o golpe. Metade do seu rosto, a metade disfarçada pela tatuagem, fora destruída pelo seu amo.
As outras feridas de Deucalião saravam sempre em minutos, talvez porque Victor, naquele tempo, fora capaz de lhe incutir tal resistência, ou talvez porque a imortalidade lhe chegara por via do relâmpago
que o atingira, junto com outros dons. A única ferida que não sarara perfeitamente, em que a carne e o osso não se tinham restaurado na perfeição, fora aquela que o criador lhe infligira.
Victor pensava que o seu primogénito morrera há muito, tal como Deucalião partira do princípio que o seu criador morrera no séc. XVIII. Caso se revelasse a Victor, Deucalião poderia ser imediatamente atacado
outra vez - e desta, poderia não sobreviver.
Dado que os métodos de criação de Victor tinham melhorado drasticamente desde os primeiros tempos - bastava de profanar campas e de costurar carnes -, o mais provável era que a sua Nova Raça estivesse
programada para morrer a defender o criador.
Com o tempo, se Carson e Michael não conseguissem desmascarar Victor, talvez só o conseguissem deter pela morte. E para chegar a ele, poderiam ter de enfrentar um exército de Novos Homens e Novas Mulheres
que seriam quase tão difíceis de matar como robôs.
Deucalião sentia uma mágoa considerável, e até alguns remorsos, por ter revelado a verdade de Victor aos dois detectives. Assim fazia-os correr um risco extraordinário.
Esta mágoa suavizava-se, até certo ponto, pelo facto de eles correrem perigo de morte por si só, sem o saberem de antemão, como qualquer residente humano da cidade de Nova Orleães, ainda que existissem
muitos outros.
Perturbado por estes pensamentos - e assombrado pela sensação iniludível de que havia uma verdade importante a escapar-lhe, uma verdade que ele tinha de enfrentar com urgência -, Deucalião acabou por chegar
à sala de projecção.
Jelly Biggs, outrora anunciado nas feiras como o homem mais gordo do mundo, estava menos volumoso, era agora apenas gordo. Estava a procurar qualquer coisa para ler nas pilhas de livros de capa mole ali
guardadas.
Atrás da sala de projecção ficava o apartamento de duas divisões de Jelly. Deucalião herdara-o junto com o cinema, num empreendimento tangencial que Jelly geria mais ou menos.

29
- Quero um romance policial em que toda a gente fume como uma chaminé - disse Jelly - beba álcool e nunca tenha ouvido falar de vegetarianismo.
Deucalião perguntou:
- Há um momento em todas as histórias policiais, não há?, em que o detective sente que a revelação está debaixo do seu nariz, mas não a consegue ver.
A descartar um livro atrás do outro, Jelly respondeu:
- Não quero um detective indiano, nem um detective paraplégico, nem um detective com distúrbios obsessivo-compulsivos, nem um detective que seja um cozinheiro de estalo...
Deucalião examinou uma pilha de livros diferente daquela onde Jelly procurava, como se a ilustração de uma capa ou um título apelativo lhe aguçasse o instinto rombo num significado acutilante.
- Não tenho nada contra indianos, paraplégicos, obsessivo-com-pulsivos, ou cozinheiros - disse Jelly - mas quero um tipo que não perceba nada de Freud, que não tenha tido aulas de sensibilidade, que dê
um murro na tromba a alguém que olhe para ele de viés. Será pedir muito?
A pergunta do gordo era retórica. Nem sequer esperou resposta.
- Dêem-me um herói que não pense muito - continuou Jelly -, que se entregue intensamente a muita coisa, mas que saiba que está para morrer e não ligue pevas a isso. A morte bate à porta, e o nosso homem
abre-a de rompante e diz: "Nunca mais chegavas!"
Talvez inspirado por algo que Jelly dissera, ou pelas capas dos livros cheias de cores garridas, Deucalião compreendeu de súbito o que o instinto estivera a tentar dizer-lhe. O fim estava ali.
Menos de meio dia antes, na casa de Carson O'Connor, Deucalião e os dois detectives tinham combinado aliar-se para resistir a Victor Helios e finalmente destruí-lo. Tinham reconhecido que aquela missão
exigiria paciência, determinação, astúcia, coragem - e que poderia demorar muito tempo também.
Agora, menos por raciocínio dedutivo do que por intuição, Deucalião soube que não tinham tempo nenhum.
O detective Harker, membro da Nova Raça de Victor, entrara numa espiral de loucura homicida. Havia razões para crer que não faltariam outros da sua gente a desesperarem também, e psicologicamente frágeis.
Mais, algo fundamental correra mal na biologia de Harker. As caçadeiras não o tinham abatido. Algo que nascera dele, uma estranha

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criatura anã que irrompera de dentro dele, destruíra-lhe o corpo nas sezões do parto.
Estes factos não eram, só por si, prova que justificasse a conclusão de que o império dos desalmados de Victor estivesse prestes a ruir violentamente. Porém, Deucalião sabia que sim. Sabia.
- E - disse Jelly Biggs, ainda a remexer nos livros - dêem-me um vilão de que eu não deva ter pena.
Deucalião não tinha poderes paranormais. Todavia, por vezes, o conhecimento brotava dentro dele, clarividência e compreensão profundas que ele reconhecia como verdades, e de que cuja fonte não duvidava
nem questionava. Ele sabia.
- Não quero saber se ele mata e come gente porque teve uma infância má - barafustava Jelly. - Se matar boa gente, quero que haja boa gente a juntar-se e a dar-lhe um enxerto de porrada. Não quero essa
boa gente a ver se ele faz terapia.
Deucalião virou costas aos livros. Não temia nada que lhe pudesse acontecer. No entanto, pela sina de outrem, pela cidade, sentia-se tomado de pavor.
O ataque de Victor à natureza e à humanidade avolumara-se numa tempestade perfeita. E agora o dilúvio.

7.
As calhas da mesa de dissecção de aço inoxidável ainda não estavam molhadas, e o chão de mosaicos brancos brilhantes da Sala de Autópsia número 2 continuava impecável.
Envenenado por gumbo, o velhote jazia nu e expectante face ao bisturi do médico-legista. Tinha um ar perplexo no rosto.
Jack Rogers e o seu jovem assistente, Luke, estavam de bata vestida, luvas calçadas e prontos a cortar.
Michael perguntou:
- Todos os velhotes nus são uma excitação ou ao fim de algum tempo parecem-se todos uns com os outros?
- Com efeito - respondeu o médico-legista -, cada um deles tem mais personalidade do que o típico polícia de homicídios.
- Isso doeu. Achei que o Jack só cortava mortos.
- Aliás - disse Luke -, este será bastante interessante, porque a análise do conteúdo do estômago será mais importante do que de costume.
Por vezes, Carson tinha a impressão de que Luke gostava demasiado do seu trabalho.
E disse:
- Achei que tinham o Harker em cima da mesa.
- Já está, já foi despachado - disse Luke. - Começámos cedo e estamos a avançar.
Para quem tinha ficado profundamente abalado com a autópsia que fizera a um da Nova Raça pouco mais de um dia antes, Jack Rogers parecia extraordinariamente calmo perante um segundo encontro com um deles.
Enquanto dispunha as ferramentas aguçadas do seu ofício, Jack disse:
- Mando-lhes o relatório preliminar por mensageiro. Os perfis enzimáticos e outras análises químicas seguem depois, quando me chegarem do laboratório.
- Preliminar? Perfis? Fala como se isto fosse procedimento padrão.
- Porque é que não havia de ser? - perguntou Jack, já concentrado nas lâminas reluzentes, pinças e fórceps.
Com os seus olhos de mocho e feições ascéticas, Luke parecia sempre marrão, ligeiramente tímido. Porém, agora olhava Carson com uma intensidade de falcão.

32
Carson disse para Jack:
- Já lhe disse ontem à noite, ele é um deles.
- Deles - disse Luke, e assentiu com ar sério.
- Saiu qualquer coisa do Harker, uma criatura qualquer. Rasgou-lhe o peito para sair. Foi isso que o matou.
- O que o matou foi cair do telhado do armazém - disse Jack Rogers.
Impaciente, Carson disse:
- Jack, por amor de Deus, você viu o Harker caído naquela viela ontem à noite. O abdómen dele, o peito dele... estavam como que rebentados.
- Consequência da queda.
Michael disse:
- Eh lá, Jack, as entranhas do Harker tinham desaparecido.
Por fim, o médico-legista olhou para eles.
- Um truque de luz e sombra.
Nascida no bayou, Carson nunca vira um Inverno tão mau. Um vento em Janeiro no Canadá não poderia ter sido mais frio do que o arrepio que ela sentiu no sangue, pela espinha.
- Quero ver o corpo - disse ela.
- Entregámo-lo à família - disse Jack.
- Que família? - inquiriu Michael. - Ele foi clonado num caldeirão ou noutra porcaria qualquer. Ele não tinha família.
Com uma solenidade que não era apanágio dele, Luke declarou:
- Tinha-nos a nós.
Os vincos e as rugas da cara de cão de Jack estavam como no dia anterior, a papada também, mas aquele não era Jack.
- Tinha-nos a nós - repetiu ele.
Quando Michael levou a mão ao outro lado do corpo, por baixo do casaco, para pegar na pistola que tinha no coldre ao ombro, Carson deu um passo atrás, e mais outro, na direcção da porta.
O médico-legista e o assistente não se aproximaram, ficaram a vê-los à distância.
Carson esperava encontrar a porta trancada, mas esta abriu-se.
Passado o umbral, no corredor, ninguém lhes atalhou o caminho.
Carson saiu da Sala de Autópsia número 2. Michael seguiu-a.

8.
Erika Helios, há menos de um dia saída do tanque de criação, achou o mundo um lugar assombroso.
E feio também. Graças à sua fisiologia excepcional, a dor que ficara dos golpes castigadores de Victor dissipou-se num longo duche quente, embora a vergonha não desaparecesse com a mesma facilidade.
Tudo a maravilhava, e muito a encantava - como a água. Caía da cabeça do chuveiro em correntes cintilantes, reluzindo com reflexos das luzes do tecto. Jóias líquidas.
Gostava da maneira como a água fazia pocinhas no chão de mármore dourado até escoar pelo ralo. Translúcida mas visível.
Erika também apreciava o aroma subtil da água, a frescura. Inspirou fundo o sabonete perfumado, as nuvens vaporosas de fragrância tranquilizante. E depois do sabonete, o cheiro da pele era muito agradável.
Instruída mediante carregamento de dados directamente no cérebro, acordara com um conhecimento integral do mundo. Porém, os factos não eram experiência. Os biliões de dados transmitidos ao seu cérebro
tinham pintado um mundo fantasmagórico, comparado com a profundidade e genialidade da coisa propriamente dita. Ela só aprendera no tanque uma única nota arrancada a uma guitarra, quando muito um acorde,
enquanto o mundo real era uma sinfonia de complexidade e beleza espantosas.
A única coisa até então que lhe parecia feia era o corpo de Victor.
Nascido de homem e mulher, herdeiro das maleitas da carne mortal, ele tomara medidas extraordinárias ao longo dos anos para prolongar a sua vida e manter o vigor. O corpo dele estava repleto de cicatrizes,
de excrescências nodosas.
A repulsa dela era ingrata e imprópria, e Erika envergonhava-se disso. Victor dera-lhe vida e só pedira em troca que ela o amasse, ou algo de parecido.
Embora tivesse ocultado o asco, ele devia tê-lo sentido, pois irritara-se com ela durante o sexo. Batera-lhe algumas vezes, chamara-lhe nomes e, no geral, fora bruto.
Mesmo só com o carregamento de dados directamente no cérebro, Erika sabia que o que tinham feito não era sexo ideal - nem sequer normal.

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Apesar do facto de ter falhado na primeira sessáo de sexo que eles tinham tido, Victor ainda mostrara alguma ternura para com ela. No fim, dera-lhe uma palmada no rabo afectuosamente - ao invés da raiva
com que lhe batera anteriormente - e dissera "foi bom".
Ela sabia que ele estava só a ser simpático. Não fora nada bom. Ela tinha de aprender a ver a arte no corpo feio dele, tal como as pessoas, evidentemente, viam arte nos quadros feios de Jackson Pollock.
Dado que Victor esperava que ela estivesse preparada para as conversas intelectuais nas suas festas periódicas com as elites da cidade, tinham sido carregados volumes de crítica de arte no cérebro dela,
quando estava a acabar de se formar no tanque.
Muito disso não parecia fazer sentido nenhum, coisa que ela atribuiu à sua ingenuidade. Tinha um QI elevado; logo, com mais experiência, viria sem dúvida a compreender como é que o feio, o mau e o mal
concebido poderiam ser arrebatadoramente belos. Só precisava de alcançar a perspectiva correcta.
Esforçar-se-ia por ver a beleza na carne torturada de Victor. Seria boa esposa, e eles seriam felizes como Romeu e Julieta.
Milhares de alusões literárias tinham sido incluídas nas suas instruções por carregamento, mas não os textos dos livros, peças e poemas de onde vinham. Ela nunca lera Romeu e Julieta. Só sabia que eram
amantes famosos numa peça de Shakespeare.
Teria gostado de ler as obras a que poderia aludir com tanta facilidade, mas Victor proibira-lho. Era evidente que Erika Quatro se tornara uma leitora voraz, passatempo que a metera, de algum modo, em
sarilhos tremendos, e a Victor não restara alternativa senão acabar com ela.
Os livros eram perigosos, uma influência corruptora. Uma boa esposa devia evitar os livros.
De banho tomado, a sentir-se bonita num vestido de Verão de seda amarela, Erika saiu da suíte principal para explorar a mansão. Sentia-se como a narradora sem nome e heroína de Rebecca, pela primeira vez
a percorrer as salas belíssimas de Manderley.
No corredor do andar de cima, encontrou William, o mordomo, ajoelhado a um canto, a arrancar os próprios dedos à dentada, um por um.

9.
No carro à paisana, a acelerar, em busca do que ela queria sempre em momentos de crise - boa comida cajun - Carson disse:
- Mesmo que tu fosses mãe do Jack, mesmo que fosses mulher dele, não saberias que o tinham substituído.
- Se isto fosse um romance gótico sulista - disse Michael - e eu fosse mãe dele e mulher dele, ainda acharia que era o Jack.
- Era o Jack.
- Não era o Jack.
- Eu sei que não era ele - disse Carson, impaciente - mas era ele.
Tinha as palmas das mãos húmidas e pegajosas do suor. Limpou-as, uma de cada vez, às calças de ganga.
Michael disse:
- Portanto, o Helios não está só a engendrar a sua Nova Raça e a infiltrá-la na cidade, com biografias e credenciais falsificadas.
- Ele também pode duplicar gente a sério - disse ela.
- Como é que é possível?
- Fácil. Como a Dolly.
- Qual Dolly?
- A ovelha Dolly. Lembras-te quando, aqui há uns anos, uns cientistas clonaram uma ovelha em laboratório? Chamaram-lhe Dolly.
- Era uma ovelha, por amor de Deus. Aquilo era um médico-legista. Não me digas que é "fácil".
O sol incandescente do meio-dia reflectia-se no pára-brisas e nas partes metálicas do trânsito da rua, e parecia que todos os carros estavam prestes a explodir em chamas, ou a derreter-se numa poça de
prata no alcatrão.
- Se ele consegue duplicar o Jack Rogers - disse ela -, pode duplicar qualquer um.
- Tu até podes nem ser a verdadeira Carson.
- Eu sou a verdadeira Carson.
- Como é que eu hei-de saber?
- E como é que eu hei-de saber, se fores à casa de banho e sair de lá um monstro armado em Michael?
- Nunca seria tão engraçado como o verdadeiro Michael - disse ele.
- O novo Jack é engraçado. Lembras-te de ele dizer que o velhote na mesa de autópsia tinha mais personalidade do que polícias de homicídios?

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- Isso não foi propriamente hilariante.
- Mas, saído do Jack, teve graça.
- O verdadeiro Jack não tinha assim tanta graça, para começar.
- E o que quero dizer - explicou ela. - Eles podem ter a graça que entenderem.
- Seria um pavor, se eu achasse que era verdade - disse Michael. - Mas aposto o meu próprio coiro em como se te impingirem um monstro armado em Michael, será tão espirituoso como um cepo.
Naquele bairro de casinhas de estilo antigo, algumas continuavam a ser residências particulares, outras haviam sido convertidas em casas comerciais.
A casinha azul e amarela na esquina parecia a casa de alguém, ignorando o sinal de néon azul na grande janela da frente: PETISCOS FANTABULOSOS, NA certa, o que se traduzia do dialecto cajun em "boa comida,
de verdade".
Michael preferia ler "boa comida, sem tretas" para que, de vez em quando, pudesse dizer "vamos comer sem tretas".
Carson não fazia ideia se o nome jurídico do restaurante era Petiscos Fantabulosos, ou se era apenas um slôgane. As baratas ementas fotocopiadas não tinham nomes.
Havia casas devolutas nos lotes adjacentes, mas os antigos carvalhos permaneciam de pé. Estavam carros estacionados à sombra dessas árvores.
O tapete de folhas mortas parecia montinhos de cascas de noz que crepitavam debaixo dos pneus do carro, e depois debaixo dos pés de Carson e Michael a caminho do restaurante.
Se Helios conseguisse abolir a humanidade e substituí-la por multidões obedientes e unívocas, deixaria de haver coisas como Petiscos Fantabulosos, na Certa. Não haveria excentricidades nem encanto no novo
mundo que ele desejava.
Os polícias viam o pior das pessoas, e depois ficavam cínicos, se não mesmo amargos. Todavia, de súbito, a humanidade imperfeita e tola parecia bela e preciosa a Carson, tanto quanto a natureza e o próprio
mundo.
Escolheram mesa na esplanada, à sombra de um carvalho, longe da maioria dos comensais. Pediram almôndegas de lagostim e salada de quiabos fritos, seguido de jambalaia de camarão e presunto.
Era um almoço de negação. Se ainda conseguissem almoçar em condições, decerto que o fim do mundo não estava iminente e eles não estavam como mortos.

37
- Quanto tempo leva a fazer um Jack Rogers? - perguntou Michael depois de a empregada levar as ementas.
- Se o Helios conseguir fazer qualquer um do dia para a noite, se estiver assim tão avançado, estamos lixados - disse Carson.
- O mais certo é estar a substituir regularmente gente importante na cidade, e o Jack já estar na lista dele.
- Portanto, quando o Jack fez a primeira autópsia num dos da Nova Raça e se apercebeu de algo estranho, o Helios finalizou o Jack dele mais depressa do que tencionava.
- Gostaria de crer que sim - disse Michael.
- Eu também.
- Porque nós não somos nenhuns figurões. Na listinha dele, os nossos nomes não constam ao lado do presidente da câmara e do chefe da polícia.
- Ele não teria razão para começar a engendrar uma Carson e um Michael - concordou ela. - Até ontem, se calhar.
- Acho que nem agora ele se dará a esse trabalho.
- Porque é mais fácil mandar matar-nos simplesmente.
- Muito fácil.
S Será que ele substituiu o Luke, ou ele terá sido sempre um deles?
- Acho que nunca houve um Luke verdadeiro - disse Michael.
- Ouve só a nossa conversa.
- Pois é.
- Quando é que vamos começar a usar chapéus de folha de alumínio para nos protegermos de telepatas extraterrestres?
O ar denso caía como sarja ensopada, quente e húmido e sobrenaturalmente quieto. Por cima deles, os ramos dos carvalhos nem se mexiam. Parecia que o mundo inteiro estava paralisado por uma expectativa
terrível.
A empregada levou-lhes as almôndegas de lagostim e duas garrafas de cerveja gelada.
- A beber em serviço - disse Carson, espantada consigo própria.
- Não vai contra as regras da esquadra durante o Armagedão -garantiu Michael.
- Ainda ontem não acreditavas em nada disto, e eu quase pensei estar a perder a sanidade mental.
- Bem, a única coisa em que não posso acreditar - atalhou Michael - é que o Drácula e o Homem-Lobo ainda não tenham aparecido.
Comeram as almôndegas e a salada de quiabos fritos num silêncio intenso mas agradável.

38
Antes de chegar a jambalaia, Carson perguntou:
- Pronto, por clonagem ou sei lá quê, ele pode fazer um duplo fisicamente perfeito do Jack. Mas como é que o filho da puta faz do Jack dele médico-legista? Quer dizer, como é que ele lhe dá uma vida inteira
de conhecimentos, de recordações, do Jack?
- Isso ultrapassa-me. Se soubesse, teria o meu próprio laboratório secreto, e estaria prestes a dominar o mundo.
- Só que o teu mundo seria melhor do que este - disse ela.
Ele pestanejou, admirado, boquiaberto.
- Ena.
- Ena o quê?
- Isso foi querido.
- O que é que foi querido?
- O que acabaste de dizer.
- Não foi nada querido.
- Foi, pois.
- Foi nada.
- Nunca foste querida comigo antes.
- Se disseres essa palavra mais uma vez - ameaçou ela - dou-te cabo dos tomates, juro.
- Pronto.
- A sério.
Num sorriso, ele disse:
- Eu sei.
- Querido - proferiu ela com desprezo, e abanou a cabeça em desagrado. - Tem cuidado senão ainda te dou um tiro.
- É contra o regulamento, mesmo durante o Armagedão.
- Sim, mas tu vais estar morto dentro de vinte e quatro horas, seja como for.
Ele olhou para o relógio.
- Menos de vinte e três, agora.
A empregada chegou com os pratos de jambalaia.
- Trago mais duas cervejas?
Carson disse:
- Por que raio não?
- Estamos a comemorar - disse Michael à empregada.
- Faz anos?
- Não - respondeu ele -, mas poder-se-ia dizer que sim, já que ela está a ser tão querida comigo.

39
- São um casal muito engraçado - disse a empregada, e foi buscar as cervejas.
- Engraçado? - rosnou Carson.
- Não lhe dês um tiro - pediu Michael. - Ela deve ter três filhos e uma mãe inválida para sustentar.
- Então é melhor ter tento na língua - sentenciou Carson.
Noutro silêncio, comeram a jambalaia e beberam cerveja até que, finalmente, Michael disse:
- Provavelmente, todos os importantes no governo da cidade são gente do Victor.
- Podes apostar.
- O nosso próprio e amado chefe.
- Deve ser réplica há anos.
- E se calhar metade dos efectivos da polícia.
- Se calhar mais de metade.
- A agência local do FBI.
- São dele - previu ela.
- O jornal, a comunicação social local?
- Dele.
- Quer sejam todos dele, quer não, desde quando é que tu confias num jornalista?
- Uns ingénuos - anuiu ela. - Todos querem salvar o mundo, mas acabam todos a deitar mais achas para a fogueira.
Carson olhou para as suas próprias mãos. Sabia que eram fortes e capazes; nunca a tinham deixado ficar mal. Contudo, naquele momento pareceram-lhe delicadas, quase frágeis.
Passara grande parte da vida, a melhor parte da sua vida, em campanha para redimir a reputação do pai. Ele também fora polícia e fora abatido por um traficante. Dizia-se que ele era corrupto, que estava
relacionado com o tráfico de droga, que fora morto pela concorrência, ou por qualquer negócio gorado. A mãe dela morrera no mesmo atentado.
Ela sempre soubera que a história oficial era mentira. O pai descobrira algo que os poderosos queriam manter em segredo. Agora ela perguntava-se se não teria sido um poderoso - Victor Helios.
- Então o que podemos fazer? - perguntou Michael.
- Tenho andado a pensar nisso.
- Também achei - disse ele.
- Matamo-lo antes de ele nos poder matar.

40
- É fácil falar.
- Mas se estiveres disposto a morrer para o apanhar, será fácil de fazer.
- Estou disposto - disse Michael só não estou ansioso.
- Não vieste para a polícia por causa das regalias da reforma.
- Tens razão. Eu só queria oprimir o povo.
- Violar-lhes os direitos civis - disse ela.
- É coisa que me deixa sempre todo excitado.
Carson alertou:
- Vamos precisar de armas.
- Nós temos armas.
- Vamos precisar de armas maiores.

10.
A educação de Erika no tanque não a preparara para lidar com um homem a comer os próprios dedos. Se ela se tivesse matriculado numa universidade real em vez de virtual, talvez soubesse de imediato o que
fazer.
William, o mordomo, era da Nova Raça, pelo que não era fácil comer os próprios dedos. Tinha de se afincar bastante.
Todavia, as mandíbulas e os dentes dele eram formidavelmente aperfeiçoados, tal como a densidade dos ossos dos dedos. Caso contrário, a tarefa teria sido não apenas difícil, mas completamente impossível.
Depois de amputar o mindinho, o anelar, e o dedo médio da mão esquerda, William investira no indicador.
Os três dedos cortados jaziam no chão. Um dobrado de forma que parecia chamar Erika.
Como outros da sua têmpera, William podia, mediante simples força de vontade, suprimir qualquer sensibilidade à dor. Era evidente que o fizera. Não gritava, nem sequer gemia.
Ia resmungando enquanto mastigava. Quando conseguiu amputar o dedo indicador, cuspiu-o e disse freneticamente:
- Tiquetaque, tique. Tiquetaque, tique. Tiquetaque, tiquetaque, tique, tique, tique!
Se ele fosse da Velha Raça, a parede e a alcatifa estariam ensopadas de sangue. Apesar de as feridas começarem a sarar mal ele as fazia, estava uma confusão à sua volta.
Erika não conseguia imaginar por que razão o mordomo ajoelhado estaria entretido naquela automutilação, o que esperava alcançar, e estava siderada com o descaso dele pelo dano que já fizera na propriedade
do seu amo.
- William - começou ela. - William, em que é que está a pensar?
Ele não respondeu nem olhou para ela. Antes pelo contrário, o mordomo meteu o polegar esquerdo na boca e continuou aquele exercício em ablação de dedos.
Como a mansão era muito grande, e como Erika não poderia saber se havia outros membros do pessoal ali perto, teve relutância em chamar por socorro, pois poderia ter de gritar muito para se fazer ouvir.
Sabia que Victor preferia que a esposa fosse sofisticada e senhoril em todas as circunstâncias públicas.

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Todos os membros do pessoal eram, como William, da Nova Raça. Não obstante, tudo o que ficasse fora de portas da suíte principal seria, sem dúvida alguma, território público.
Por conseguinte, ela voltou ao telefone que tinha no quarto e carregou na função CHAMADA DE DIFUSÃO, no teclado dedicado ao sistema de intercomunicação. Assim poderia fazer-se ouvir em todas as divisões
da casa.
- Fala a senhora Helios - começou ela. - O William está a arrancar os próprios dedos à dentada no corredor do andar de cima, e eu preciso de auxílio.
Quando Erika voltou ao corredor, o mordomo terminara o polegar esquerdo e começara no mindinho da mão direita.
- William, isso é irracional - avisou ela. - O Victor concebeu-nos genialmente, mas não nos podem crescer partes se as perdermos.
A repreensão dela não o afectou. Depois de cuspir o dedo mindinho, William começou a abanar o corpo para a frente e para trás, ainda ajoelhado.
- Tiquetaque, tiquetaque, tique, tique, TIQUE, TIQUE!
A urgência da voz dele desencadeou ligações entre associações implantadas no cérebro de Erika, e ela disse:
- William, pareces o Coelho Branco, com o relógio de bolso na mão, a correr pelo prado fora, atrasado para o chá com o Chapeleiro Louco.
Erika pensou em agarrar na mão que ainda tinha quatro dedos e em prendê-lo o melhor que pudesse. Não tinha medo dele, mas não queria parecer atrevida.
A sua educação dentro do tanque incluíra entradas de dados exaustivas sobre as minúcias do porte e das boas maneiras. Em qualquer situação social, de um jantar a uma audiência com a Rainha de Inglaterra,
Erika era a etiqueta personificada.
Victor insistira numa esposa ponderada com modos sofisticados. Era pena que William não fosse a Rainha de Inglaterra. Nem o Papa.
Felizmente, Christine, a governanta-mor, devia estar por ali perto. Apareceu a subir a escada apressadamente.
A governanta não fez um ar chocado. Manteve uma expressão sombria mas completamente controlada.
Quando se aproximou, tirou um telemóvel do bolso da farda e marcou um número com uma só tecla.
A eficiência de Christine perturbou Erika. Se houvesse um número para onde ligar a reportar que um homem estava a arrancar os dedos à dentada, ela própria deveria ter conhecimento dele.

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Talvez nem todos os dados carregados tivessem encontrado o caminho para o cérebro dela, como deveria ser. Mas que ideia perturbante.
William parou de se abanar para trás e para a frente e pôs o anelar direito na boca.
Apareceram outros criados na escada - três, quatro, cinco. Subiram, mas mais devagar do que Christine.
Todos tinham um ar assombrado. Não quer dizer que parecessem fantasmas, mas sim que pareciam ter visto um fantasma.
Não fazia sentido nenhum, claro. Os da Nova Raça eram ateus por desígnio e livres de toda a superstição.
Christine disse para o telemóvel:
- Senhor Helios, fala a Christine. Temos outra Margaret.
No seu vocabulário, Erika não tinha definição para Margaret, além do facto de ser nome de mulher.
- Não, senhor - disse Christine -, não é a senhora Helios. E o William. Está a arrancar os próprios dedos à dentada.
Erika ficou admirada por Victor pensar que ela se pudesse sentir propensa a arrancar os próprios dedos. Tinha a certeza de que não lhe dera razões para que ele esperasse tal coisa dela.
Depois de cuspir o dedo anelar, o mordomo começou a abanar-se de um lado para o outro outra vez e a trautear:
- Tiquetaque, tiquetaque...
Christine chegou o telemóvel a William, para que Victor pudesse ouvir a ladainha.
Os outros cinco criados tinham chegado ao cimo da escada. Estavam especados no corredor, calados, solenes, como testemunhas.
Para o telemóvel mais uma vez, Christine disse:
- Vai começar agora no oitavo dedo, senhor Helios. - Pausa para escutar.
- Sim, senhor.
Quando William parou de trautear e pôs o dedo médio da mão direita na boca, Christine agarrou-lhe numa mão cheia de cabelo, não para pôr termo àquela automutilação, mas sim para lhe segurar a cabeça e
poder assim chegar-lhe o telemóvel ao ouvido.
Após um momento, William retesou-se e pareceu escutar atentamente Victor. Parou de mordiscar. Quando Christine lhe largou o cabelo, ele tirou o dedo da boca e olhou para ele, perplexo.

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Pássou-lhe um tremor pelo corpo, e mais outro. Ainda de joelhos, caiu de lado.
Ficou ali de olhos abertos, fixos. A boca aberta também, encarnada como uma ferida.
Ao telemóvel, Christine disse:
- Está morto, senhor Helios. - E depois:
- Sim, senhor. - E depois:
- Assim farei, senhor.
Christine desligou e olhou solenemente para Erika.
Todos os empregados olhavam para Erika. Pareciam assombrados, deveras. Ela sentiu um arrepio de medo.
Um bagageiro chamado Edward disse-lhe:
- Bem-vinda ao nosso mundo, senhora Helios.

11.
A meditação faz-se melhor com quietude, embora haja homens de certo temperamento, com grandes problemas para resolver, que costumam pensar melhor a dar um longo passeio.
Deucalião preferia não passear de dia. Mesmo na descontraída Nova Orleães, onde a excentricidade florescia, ele atrairia demasiada atenção em público, em plena luz do dia.
Com os seus dons poderia, a qualquer altura do dia, dar um único passo e estar em qualquer lugar a oeste de onde esse sol chegava, caminhar na obscuridade anónima de outras paragens.
Porém, Victor estava em Nova Orleães, e ali a atmosfera de cataclismo iminente aguçava o raciocínio de Deucalião.
Por conseguinte, caminhava nos cemitérios da cidade, banhados pelo sol. Na sua maioria, as compridas alamedas relvadas deixavam-no ver grupos de turistas e outros visitantes antes de estes se aproximarem.
Os jazigos com três metros de altura eram como prédios nos quarteirões apinhados de uma cidade em miniatura. Era-lhe fácil esgueirar--se entre eles e afastar-se de qualquer potencial encontro.
Ali os mortos eram enterrados em criptas acima do solo porque o lençol de água estava tão perto da superfície que os caixões não permaneceriam enterrados nas campas, viriam à tona em tempo chuvoso. Alguns
jazigos eram simples como casas corridas, outros enfeitados como mansões do Garden District.
Tendo em conta que ele fora feito com cadáveres e lhe tinham dado vida mediante ciência obscura - e talvez também por forças sobrenaturais -, não era irónico, mas sim lógico, que Deucalião se sentisse
mais à vontade naquelas alamedas dos mortos do que nas ruas da cidade.
No Cemitério de St. Louis número 3, que Deucalião percorreu primeiro os jazigos maioritariamente brancos que reluziam debaixo de um sol inclemente, como que habitados por gerações de espíritos radiosos
que permaneciam após os seus corpos serem reduzidos a osso e pó.
Aqueles mortos tinham sorte, comparados com os mortos-vivos que eram os da Nova Raça. Tais escravos sem alma ansiavam pela morte - mas haviam sido criados com uma injunção contra o suicídio.
Era inevitável que invejassem homens a sério, os que tinham livre--arbítrio, e o ressentimento deles só poderia avolumar-se até ser uma raiva irreprimível. Tendo-lhes sido recusada a autodestruição, só

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poderiam virar-se para fora, mais cedo ou mais tarde, e destruir todos aqueles que invejavam.
Se o império de Victor estivesse à beira do colapso, tal como o instinto dizia a Deucalião, era imperativo encontrar a sua sede de operações.
Todo e qualquer membro da Nova Raça saberia onde, pois o mais provável era ter nascido lá. Se estava disposto a divulgá-lo ou se era capaz de o fazer, isso já era outra questão.
Como primeiro passo, Deucalião tinha de identificar alguns membros da Nova Raça na cidade. Devia abordá-los à cautela e avaliar a profundidade do seu desânimo, determinar se esse sentimento já redundara
em desespero, o qual é vigoroso no acto e temerário nas consequências.
Mesmo entre os escravos com maior autodomínio fervilha um desejo - mesmo que não seja uma capacidade - de rebelião. Por conseguinte, alguns desses escravos de Victor, todos inimigos da humanidade, poderiam
encontrar a força de vontade e determinação no desespero de o trair em pequenos nadas.
Todo e qualquer membro do pessoal doméstico e paisagista da residência de Victor seria da Nova Raça. Porém, seria arriscado de mais tentar chegar a qualquer um deles.
As suas criaturas seriam infiltradas pela Biovision, embora a maior parte dos empregados fosse gente verdadeira. Victor não se arriscaria a misturar o seu trabalho sigiloso com investigação que fosse do
domínio público. Contudo, passar o arrastão no mar de Novos Homens empregados da Biovision levaria muito tempo e implicaria que Deucalião se expusesse demasiado.
Talvez os membros da Nova Raça se pudessem reconhecer quando se encontrassem. Todavia, Deucalião não os conseguia distinguir de gente a sério à primeira vista. Teria de os observar, de interagir com eles,
no intuito de os identificar.
Indubitavelmente que muitos políticos e altos funcionários da cidade eram gente de Victor, quer originais, quer réplicas que tomavam o lugar de gente real. A sua posição de destaque e a atenção e a segurança
de que gozavam só poderiam dificultar a abordagem.
Metade, ou mais, dos efectivos das forças policiais da cidade seriam membros da Nova Raça. Deucalião também não queria procurar nessas fileiras, porque não seria nada sensato chamar a atenção da polícia.
Quando Deucalião saiu do St. Louis número 3 e se dirigiu ao Cemitério Metairie, o qual se gabava das últimas moradas mais espampa-

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nantes da Grande Nova Orleães, o sol estava no zénite e projectava sombras em perfis estreitos de contornos afiados como lâminas.
Victor teria gente em cargos fulcrais na organização da cidade -procuradores e advogados de defesa - no mundo académico local, no sistema médico... e decerto na comunidade religiosa também.
Em tempos de crise existencial e pessoal, as gentes viravam-se para os seus sacerdotes, pastores, rabis. Victor ter-se-ia apercebido da quantidade de informações valiosas que se pode recolher num confessionário,
ou numa conversa altamente sigilosa de um cidadão com o seu conselheiro espiritual.
Além disso, o simples facto de ter as suas criaturas sem alma a fazerem sermões e a celebrarem missa agradaria a Victor pela deliciosa zombaria.
Mesmo alguém tão grande e de aspecto tão ameaçador como Deucalião poderia contar com um ouvido compreensivo por parte dos homens do clero, reais ou impostores. Estariam habituados a confortar os marginalizados
da sociedade e recebê-lo-iam com menos desconfiança e alarme do que outros.
Como a principal religião em Nova Orleães era o Catolicismo, Deucalião começaria com os dessa fé. Não faltavam igrejas por onde escolher. Numa delas poderia encontrar um padre que, ao identificar a sede
das operações de Victor, traísse o seu criador com a mesma frequência com que zombava de Deus.

12.
Na sala de segurança nas Mãos da Misericórdia uma parede com monitores de alta definição exibia imagens dos corredores e quartos daquela imensa instituição com uma clareza tal que quase pareciam tridimensionais.
Victor não pensava que a sua gente tivesse direito à privacidade. Nem mesmo à vida.
Nenhum deles tinha direitos, fossem eles quais fossem. Tinham uma missão, que consistia na concretização da visão de Victor para um mundo novo, e tinham obrigações, e tinham os privilégios que ele lhes
concedesse. Direitos, não.
Werner, chefe da segurança nas Mãos da Misericórdia, era um bloco de músculo tão sólido que até um chão de cimento se teria ido abaixo com o peso dele. Contudo, nunca levantara pesos, nunca treinara. O
seu metabolismo aperfeiçoado mantinha-lhe a forma física, e bruta, em perfeitas condições, quase independentemente do que ele comesse.
Tinha um problema com ranho, mas estavam a resolver isso.
De vez em quando - não era sempre, não era frequente, mas amiúde e o bastante para ser um incómodo - as membranas mucosas das cavidades nasais produziam muco a um ritmo prodigioso. Nessas ocasiões, era
costume Werner gastar três caixas de lenços de papel por hora.
Victor poderia ter destruído Werner, despachado o cadáver para o aterro, e instalado Werner Dois no cargo de chefe da segurança. Porém, aqueles ataques de ranho deixavam-no perplexo e intrigado. Preferia
manter Werner, estudar-lhe os ataques, e gradualmente manipular-lhe a fisiologia de modo a resolver o problema.
Ao lado de um Werner actualmente sem ranho na sala da segurança, Victor observava um banco de monitores onde as gravações de vigilância revelavam o caminho que Randal Seis tomara para fugir do edifício.
Poder absoluto exige adaptabilidade absoluta.
Cada revés tem de ser encarado como oportunidade, ocasião de aprendizagem. A obra visionária de Victor não podia ser abalada por desafios, devia sair deles sempre fortalecida.
Havia dias mais assolados por desafios do que outros. Aquele parecia ser um deles.

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O corpo do detective Jonathan Harker aguardava na sala de dissecação, ainda por examinar. O corpo de William, o mordomo, já vinha a caminho.
Victor não estava preocupado. Estava entusiasmado.
Estava tão entusiasmado que até sentia as artérias carótidas internas pulsarem-lhe no pescoço, as carótidas externas pulsarem-lhe nas têmporas, e os músculos dos maxilares já lhe doíam por ter os dentes
cerrados na expectativa de enfrentar aqueles desafios enfurecedores.
Randal Seis, arquitectado nos tanques para ser autista grave, agorafóbico intenso, conseguira, não obstante, sair da sua cela. E seguira uma série de corredores até aos elevadores.
- O que está ele a fazer? - perguntou Victor.
Com esta pergunta referia-se ao vídeo que mostrava Randal a avançar num corredor de maneira peculiar, hesitante, às arrancadas. Por vezes dava uns passos de lado, a estudar o chão, antes de avançar novamente,
mas depois movia-se de lado para a direita.
- Parece que está a aprender uma dança, senhor - respondeu Werner.
- Que dança?
- Não sei que dança, senhor. A minha instrução foi sobretudo em vigilância e combate violento extremo. Qualquer dança aprendi.
- Nenhuma dança - corrigiu Victor. - Porque é que o Randal quereria dançar?
- Há pessoas que querem.
- Ele não é uma pessoa.
- Pois não, senhor.
- Não o concebi com vontade de dançar. Ele não está a dançar. Parece mais que está a evitar pisar qualquer coisa.
- Sim, senhor. As frinchas.
- Quais frinchas?
- As frinchas entre os mosaicos do chão.
Quando o fugitivo passou directamente debaixo de uma câmara, a observação de Werner revelou-se correcta. Passo a passo, Randal tivera paulatinamente o cuidado de colocar cada pé dentro de cada um dos mosaicos
de vinilo com quase um metro quadrado.
- E um comportamento obsessivo-compulsivo - disse Victor -, coerente com os defeitos de desenvolvimento que eu lhe dei.
Randal saiu do campo de visão de uma câmara e apareceu no de outra. Entrou num elevador. Desceu para o andar de baixo do hospital.
- Ninguém fez tentativa alguma de o impedir, Werner.

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- Não, senhor. A nossa missão é impedir entradas não autorizadas. Nunca nos mandaram ligar a alguém que saia sem autorização. Ninguém do pessoal, ninguém dos recém-criados, sairia daqui sem a sua autorização.
- O Randal saiu.
A franzir o sobrolho, Werner disse:
- Não é possível desobedecer-lhe, senhor.
No andar de baixo, Randal evitava as frinchas e chegava à sala do arquivo. Escondia-se entre os armários metálicos.
A maioria dos da Nova Raça era criada na Misericórdia e depois infiltrada na população da cidade. Outros, porém, como Randal, eram experimentais, e Victor destinava-os à destruição quando concluísse a
experiência de que eram alvo. Randal nunca estivera destinado ao mundo fora daquelas paredes.
Werner avançou na gravação de vigilância até o próprio Victor aparecer, a entrar na sala dos arquivos pelo túnel secreto que ligava o antigo hospital ao estacionamento subterrâneo do edifício adjacente.
- Passou a ser um renegado - disse Victor em tom sombrio. -Escondeu-se de mim.
- Não é possível desobedecer-lhe, senhor.
- Ele obviamente sabia que estava proibido de sair.
- Mas não é possível desobedecer-lhe, senhor.
- Cale-se, Werner.
- Sim, senhor.
Depois de Victor passar pela sala dos arquivos e entrar no andar de baixo das Mãos da Misericórdia, Randal Seis saiu do esconderijo e avançou para a porta da rua. Introduziu o código e saiu para o túnel.
- Como é que ele sabia o código? - inquiriu Victor.
As arrancadas como se tivesse sezões, Randal percorreu o túnel até à outra porta e tornou a introduzir o código de abertura.
- Como é que ele sabia?
- Peço autorização para falar, senhor.
- Diga lá.
- Quando ele estava escondido na sala dos arquivos, ouviu o tom de cada tecla que o senhor premiu no teclado antes de o senhor vir do túnel.
- Quer dizer que ouviu pela porta.
- Sim, senhor.
- Cada número tem um tom diferente - disse Victor.

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- Ele não teria de aprender antes qual o número que cada tom representa.
Na gravação de vigilância, Randal entrou no armazém vazio do edifício adjacente. Após alguma hesitação, passou ao estacionamento subterrâneo.
A última câmara apanhou Randal a subir ponderosamente a rampa de acesso. O rosto era marcado pela ansiedade, mas, de algum modo, ultrapassara a agorafobia e aventurava-se num mundo que entendia ameaçador
e de uma escala esmagadora.
- Senhor Helios, sugiro revisão dos protocolos de segurança e modificação dos nossos sistemas electrónicos, para impedir saídas não autorizadas bem como entradas não autorizadas.
- Faça isso - mandou Victor.
- Sim, senhor.
- Temos de o encontrar - disse Victor, mais para si do que para Werner. - Ele saiu com intenções específicas. Destino. E tão incapacitado em termos de desenvolvimento, tão condicionado, que só pode ter
conseguido isto com um impulso desesperado a movê-lo.
- Poderei sugerir, senhor, que revistemos a cela dele com o mesmo rigor da polícia no local de um crime. Poderemos encontrar pistas para o objectivo, o destino dele.
- É melhor que encontremos - avisou Victor.
- Sim, senhor.
Victor foi até à porta, hesitou, olhou para trás, para Werner.
- Como está de muco?
O chefe da segurança esteve tão perto de sorrir como jamais estaria.
- Muito melhor, senhor. Nos últimos dias, qualquer ranho não tive.
- Ranho algum - corrigiu Victor.
- Não, senhor. Como disse, não tenho ranho qualquer.

13.
Carson O'Connor mora numa casa branca simples, que ganha alguma graça com uma varanda que rodeia três dos lados.
Há carvalhos cobertos de musgo a dar sombra à propriedade. As cigarras cantam com o calor.
Por respeito às chuvas substanciais de todos os anos e aos Verões compridos e quentes, a varanda e a própria casa estão elevadas quase um metro sobre pilares de cimento, o que abre um espaço exíguo entre
a estrutura e o solo.
Este espaço fica oculto atrás de uma saia de treliça. Regra geral, não há lá nada, tirando aranhas.
Vivem-se tempos invulgares. Agora as aranhas partilham o seu reduto com Randal Seis.
Ao atravessar a cidade vindo das Mãos da Misericórdia, especialmente quando uma trovoada fez o céu desabar sobre a terra em relâmpagos incandescentes, Randal foi afectado por demasiado barulho, demasiados
estímulos visuais, olfactivos, sonoros, tácteis. Jamais sentira um terror tão cego.
Quase vazara os olhos, quase espetara um pau afiado nos ouvidos para destruir a audição, poupando-se assim a uma sobrecarga sensorial. Felizmente que resistiu a tais impulsos.
Embora pareça ter dezoito anos, está vivo e fora do tanque há apenas quatro meses. Durante esse todo tempo, viveu num único espaço, regra geral num único canto desse espaço.
Randal não gosta de agitação. Não gosta que lhe toquem nem de ter de falar com alguém. Abomina a mudança.
Todavia, ali está ele. Despojou-se de tudo o que conhecia e acolheu um futuro ignoto. Esta proeza deixa-o orgulhoso.
O espaço exíguo deixa-o à vontade. É o mosteiro, o eremitério dele.
Na sua maioria, os únicos cheiros são a terra nua debaixo dele, a madeira crua em cima, os pilares de cimento. Ocasionalmente, chega--lhe uma brisa de jasmim, embora seja um odor mais rico de noite do
que de dia.
Pouca luz entra nos interstícios da treliça. As sombras são profundas mas, como ele é da Nova Raça, com visão melhorada, consegue ver muito bem.

53
Da rua só lhe chegam ruídos de trânsito ocasionais. De cima, de dentro de casa, ouvem-se passadas de vez em quando, tábuas a ranger, música abafada num rádio.
As suas companheiras, as aranhas, não têm cheiro que ele possa detectar, não fazem barulho e andam na sua vida.
Randal poderia contentar-se assim durante muito tempo, não fosse o facto de o segredo para a sua felicidade residir na casa por cima, e de ser imperioso possuí-lo.
Num jornal, viu uma fotografia da detective Carson O'Connor com o irmão, Arnie. Arnie é autista, como Randal Seis.
A natureza fez de Arnie autista. Randal ganhou esse distúrbio das mãos de Victor. Não obstante, ele e Arnie são irmãos de infortúnio.
De acordo com a fotografia do jornal, Arnie, de doze anos, estivera com a irmã numa acção de caridade que revertia a favor da investigação sobre o autismo. Arnie sorria. Parecia feliz.
Durante os seus quatro meses de vida nas Mãos da Misericórdia, Randal nunca foi feliz. A ansiedade corrói-o a cada minuto, a cada dia, umas vezes mais insistente do que outras, mas sempre a mordê-lo, a
devorá-lo. Vive miseravelmente.
Nunca imaginou que a felicidade fosse possível - até ver o sorriso de Arnie. Arnie sabe algo que Randal desconhece. O autista Arnie tem uma razão para sorrir. Talvez muitas razões.
São irmãos. Irmãos de infortúnio. Arnie irá partilhar o seu segredo com o irmão Randal.
Caso Arnie se recuse a partilhar, Randal arrancar-lhe-á o segredo. Há-de consegui-lo de uma maneira ou de outra. Matará para o alcançar.
Se o mundo além da treliça não fosse tão atordoante, tão cheio de sons e movimentos, Randal Seis rastejaria simplesmente para fora dali. Entraria na casa por uma porta ou uma janela, e conseguiria o que
pretende.
Contudo, após a viagem das Mãos da Misericórdia e o suplício da trovoada, ele não aguenta tanto estímulo sensorial. Tem de arranjar maneira de entrar em casa a partir daquele espaço exíguo.
De certeza que as aranhas o fazem com frequência. Ele será uma aranha. Ele irá rastejar. Ele irá encontrar um caminho.

14.
Nicholas Frigg percorria as encostas de terra que serpenteavam entre e em redor dos lagos de desperdício e lixo, gerente da lixeira e senhor de tudo o que contemplava.
Por cima das calças de ganga calçara galochas até ao meio da coxa, amarradas com correias ao cinto. Naquele calor abrasador, andava de tronco nu, não usava chapéu, e deixava que o sol o torrasse até ficar
castanho como uma côdea de pão.
Não se ralava com melanomas. Ele era da Nova Raça, e o cancro não o podia atingir.
As malignidades que o roíam eram a alienação, a solidão e uma percepção deveras aguda da sua escravidão.
Naqueles montes, significativamente a nordeste do Lago Pontchar-train, o lixo chegava da grande cidade e de outras cidades, sete dias por semana, numa caravana infindável de semi-reboques com martelos
hidráulicos que expeliam blocos compactados de lixo para os abismos fumegantes do aterro.
Os misantropos e os cínicos poderiam dizer que, fosse qual fosse a cidade, Nova Orleães ou Paris ou Tóquio, a definição do seu lixo deveria incluir os piores exemplos da humanidade que andava pelas ruas.
E, claro, as lendas urbanas de cada cidade incluíam histórias de como a Máfia se desfazia de testemunhas e outros incómodos nas lixeiras onde os operários eram membros de sindicatos controlados por mafiosos.
As funduras pútridas da Gestão de Resíduos Crosswoods até continham milhares de corpos, muitos dos quais haviam parecido humanos quando lá tinham sido secretamente enterrados ao longo dos anos. Uns eram
humanos, cadáveres daqueles que haviam sido substituídos por réplicas.
Outros eram experiências goradas - e muitos não pareciam humanos de todo - ou membros da Nova Raça que, por uma variedade de razões, tinham sido destruídos. Estavam enterradas quatro Erikas naqueles reservatórios
de lixo.
Todos os trabalhadores da lixeira eram da Nova Raça. Reportavam a Nick Frigg, e ele reportava ao seu criador.
A Crosswoods era propriedade de uma empresa do estado do Nevada, a qual pertencia a uma holding nas Baamas. Essa holding, por seu turno, era um activo num fundo sedeado na Suíça.

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Os beneficiários desse fundo eram três nativos da Austrália que moravam em Nova Orleães. Os australianos eram, com efeito, membros da Nova Raça, por seu turno, propriedade de Victor.
No cume - ou talvez no fundo - desta pirâmide de astúcia estava Nick, senhor do lixo e supervisor do cemitério secreto. Mais do que a maioria dos seus congéneres, gostava do seu trabalho, embora não fosse
propriamente o que ele queria da vida.
A panóplia de odores, a série infindável de fedores repugnantes para um homem comum, era uma fantasmagoria de fragrâncias para Nick. Respirava fundo e lambia o ar, e saboreava as minúcias de cada aroma.
Mediante introdução de certos genes caninos, o criador de Nick dera-lhe um sentido de olfacto com aproximadamente metade da sensibilidade do de um cão, ou seja, ele gozava de percepções olfactivas dez
vezes mais poderosas do que as de um ser humano normal.
Para um cão, há poucos cheiros que causem repulsa. Muitos são agradáveis, e quase todos são interessantes. Até o fedor das entranhas e o miasma maduro da decomposição eram intrigantes, se não mesmo apetitosos.
E assim são, na verdade, para Nick Frigg.
Este dom do olfacto transformava um trabalho sujo num potencialmente delicioso. Embora Nick tivesse motivos para crer que Victor era um Deus duro, se não mesmo cruel, ali estava uma razão para pensar que
ele afinal se importava com as suas criaturas.
Nick e o seu faro marchavam nas encostas, amplas o bastante para lá caber um monovolume, a observar os semi-reboques a descarregarem no perímetro exterior da fossa oriental, duzentos metros à sua esquerda.
Aquele buraco com fundura de dez andares já estava cheio a dois terços, com o lixo dos últimos anos.
Buldózeres - alcunhados por Nick e sua gente de "galeões do lixo" - cavalgavam no mar de lixo e distribuíam-no mais irmãmente na fossa do que os camiões o deixavam.
A direita de Nick ficava a fossa ocidental, mais pequena do que a oriental, mas de algum modo mais cheia.
Ao fundo da encosta, a sul, dois recintos anteriores já estavam repletos e tinham sido tapados com dois metros e meio de terra. Os tubos para a exaustão do gás metano pontuavam esses montes cobertos de
erva.
A norte das actuais duas fossas, procedia-se à escavação de uma nova lixeira oriental, há já dois meses. Os ruídos arrastados e resmoneantes das máquinas que revolviam a terra ecoavam naquelas alturas.


56
Nick virou costas ao oriente atarefado e observou a sossegada fossa ocidental, de onde tinham sido desviados os semi-reboques que lá chegavam nesse dia.
Aquela paisagem lunar de lixo comovia-lhe os dois corações como nenhuma outra coisa conseguia fazer. Caos compactado, resíduos, ruína e destruição: aqueles ermos tóxicos e lúgubres tocavam naquela parte
dele que poderia albergar uma alma, se ele fosse da Velha Raça. Sentia-se em casa como nunca sentiria na floresta ou num prado, ou até numa cidade. A desolação, a imundície, o bolor, o ranço, as cinzas,
o lodo, clamavam por ele como o mar clama por um marinheiro.
Daí a umas horas, chegaria uma carrinha de Nova Orleães carregada de cadáveres. Três deles, burocratas citadinos assassinados e substituídos por réplicas, dois deles agentes da polícia que tinham tido
o mesmo fim.
Nem um ano antes, tais entregas davam-se duas vezes por mês. Actualmente, duas vezes por semana, por vezes com mais frequência ainda.
Viviam-se tempos empolgantes.
Além dos cinco humanos mortos, a carrinha trazia três enganos, criaturas engendradas nas Mãos da Misericórdia que não tinham cumprido as esperanças de Victor. Eram sempre interessantes.
Depois do crepúsculo, quando toda a gente dentro do perímetro vedado da Gestão de Resíduos Crosswoods fosse da Nova Raça, Nick e sua equipa carregariam os humanos mortos e os enganos para a fossa ocidental.
Numa cerimónia que, gradualmente, se tornara mais rica com os anos, iriam enterrá-los naquele lamaçal de lixo.
Embora aqueles enterros nocturnos ultimamente se tivessem multiplicado, ainda deixavam Nick entusiasmado. Ele próprio estava proibido de matar; e não podia matar membros da Velha Raça enquanto não chegasse
o dia em que Victor desencadeasse a Ultima Guerra. Nick adorava a morte mas não podia alcançá-la nem perpetrá-la. Entretanto, podia andar a vau naquele mar de lixo e porcaria, enfiar os mortos em buracos
nauseabundos onde ficariam a inchar e a amadurecer, inebriado pelos vapores da decomposição - uma regalia adicional que ele muito estimava.
De manhã, os magotes de semi-reboques seriam encaminhados para a fossa ocidental, e as cargas que lá depositassem seriam espalhadas por aquelas campas novas, como mais uma camada num bolo.

57
Nick contemplou a lixeira ocidental, ansioso pelo pôr do Sol, e um bando de corvos gordos e reluzentes, alimentados a lixo, levantou voo subitamente. Os pássaros elevaram-se nos ares como um só e guincharam
em uníssono, descendo para ele e depois subindo rumo ao sol.
A cerca de cinquenta metros da encosta onde Nick estava, tremia uma extensão de seis metros densamente apinhada de lixo, e depois pareceu rolar, como se houvesse algo a mexer-se dentro dela. Talvez fosse
um bando de ratazanas logo abaixo da superfície.
Ultimamente, o pessoal de Nick falava em movimentos rítmicos e pulsações em ambas as fossas, e isso já uma dúzia de vezes, diferentes do inchaço e do abatimento habituais inerentes à expansão e posterior
exaustão das bolsas de metano.
Ainda há menos de um dia, depois da meia-noite, se tinham ouvido ruídos estranhos na fossa oriental, quase como vozes, gritos torturados. Com lanternas, Nick e a sua equipa tinham ido em busca da fonte,
que parecia mudar de direcção repetidamente e que depois se aquietava, antes de a poderem situar.
Agora a lixeira latejante estava sossegada. Ratazanas. Decerto eram ratazanas.
Não obstante, curioso, Nick desceu a parede íngreme da encosta de terra, rumo à fossa ocidental.

15.
Aubrey Picou reformara-se de uma vida de crime para passar mais tempo a tratar do jardim.
Morava numa alameda banhada pela sombra dos carvalhos em Mid-City, numa casa histórica que exibia uma das colecções de ferro forjado mais complexas - vedação, balaustradas das varandas - de uma cidade
onde já de si abundava tal filigrana pesada.
O alpendre da frente, drapeado com latadas e enfeitado com fetos e avencas pendurados em cestos, tinha dois bancos de balouço brancos e cadeiras de balouço de verga, mas as sombras não pareciam mais frescas
do que a entrada castigada pelo sol.
A criada, Lulana St. John, abriu-lhes a porta quando tocaram à campainha. Era negra, com cinquenta e tal anos, com largura e personalidade igualmente portentosas.
Depois de lançar um olhar de censura a Carson, de tentar reprimir um sorriso quando olhou para Michael, Lulana disse:
- Tenho diante de mim dois funcionários públicos conhecidos que fazem o trabalho de Nosso Senhor mas que, por vezes, cometem o erro de usar as tácticas do demo.
- Somos dois pecadores - admitiu Carson.
- "Assombrosa graça" - disse Michael -, "a tua doçura salva um desgraçado como eu".
- Filho - disse Lulana -, desconfio de que te tens na boa conta de te achares salvo. Se cá vieram incomodar o senhor, peço que olhem para dentro de vocês e encontrem a parte que anseia por manter a paz.
- É a parte que eu tenho maior - disse Michael -, mas aqui a detective O'Connor geralmente só quer dar porrada.
Lulana disse para Carson:
- Lamento dizer, menina, que essa é a sua fama.
- Hoje não - garantiu Carson. - Viemos cá pedir um favor ao Aubrey, se não se importa de nos anunciar. Não temos nada contra ele.
Lulana observou-a solenemente.
- Nosso Senhor deu-me um excelente nariz para tretas e, de momento, não cheira a nada. Vantagem a sua não me ter brandido o distintivo, e ter dito "se não se importa".
- Por insistência minha - disse Michael - a detective O'Connor anda a tirar um curso pós-laboral de etiqueta.

59
- É tolinho - disse Lulana para Carson.
- Pois é.
- Depois de passar a vida a comer com as mãos - disse Michael -ela já consegue pegar no garfo, e em muito pouco tempo.
- Filho, és mesmo tolinho - disse-lhe Lulana - mas por razões que só Nosso Senhor sabe, e contra a minha vontade, sempre tive um fraquinho por ti. - Lulana afastou-se do umbral da porta.
- Limpem os pés e entrem.
O vestíbulo estava pintado de cor de pêssego com lambris brancos e frisos brancos no tecto. O chão de mármore branco com losangos pretos tinha sido polido de tal modo que até parecia molhado.
- O Aubrey já encontrou Jesus? - inquiriu Carson.
A fechar a porta da frente, Lulana respondeu:
- Este senhor ainda não acolheu Nosso Senhor, mas apraz-me dizer que já conseguiu olhá-Lo nos olhos.
Embora só fosse paga para ser criada, Lulana esmerava-se como guia espiritual do patrão, cujo passado conhecia e cuja alma a afligia.
1 O senhor está a jardinar - disse ela. Podem esperar por ele na salinha ou irem ter com ele às rosas.
- As rosas, por quem é - asseverou Michael.
Nas traseiras da casa, na imensa cozinha, a irmã mais velha de Lulana, Evangeline Antoine, cantava baixinho "A Sua Lamparina Vencerá Todas as Trevas" enquanto encaixava massa de tarte numa forma.
Evangeline era cozinheira de Aubrey e também servia de coro aos esforços incansáveis de Lulana para salvar a alma do patrão. Era mais alta do que a irmã, magra, mas os olhos brilhantes e o sorriso evidenciavam
o parentesco.
- Detective Maddison - disse Evangeline estou tão contente que ainda não tenha morrido.
- Eu também - disse ele. - Que tarte está a fazer?
- Creme de canela e pralinê com cobertura de nozes-pecãs fritas.
- Ora isso é que vale mesmo uma cirurgia coronária quádrupla.
- O colesterol - sentenciou Lulana - não pega quando se tem bom feitio.
Levou-os pela porta das traseiras até ao terraço, onde Moses Bien-venu, motorista e biscateiro de Aubrey, estava a pintar belíssimos balaústres brancos por baixo de um corrimão preto.

60
A sorrir, disse:
- Detective O'Connor, estou espantado por ver que ainda não matou o senhor Michael.
- Tenho boa pontaria - garantiu ela - mas ele mexe-se depressa.
Bem constituído mas não gordo, alto, robusto, com mãos que mais pareciam pratos, Moses servia de diácono na igreja e cantava no mesmo coro que as irmãs, Lulana e Evangeline.
- Vieram ver o senhor mas não o vão incomodar - disse Lulana ao irmão.
- Se te parecer que o incomodam, mesmo assim, pega-lhes pelos colarinhos e põe-nos na rua.
Quando Lulana entrou, Moses disse:
- Ouviram o que ela disse. Podem ser da polícia, mas por estas bandas ela é a lei. A Lei e o Caminho. Eu ficarei muito grato se não me fizerem levá-los daqui pelos colarinhos.
- Se dermos connosco a perder a compostura - disse Michael -pegamos no colarinho um do outro e pomo-nos na rua.
A apontar com a trincha, Moses disse:
- O senhor Aubrey está ali depois da fonte pagã, entre as rosas. E não gozem com o chapéu dele, se fazem favor.
- O chapéu? - perguntou Michael.
- A Lulana insiste em que ele ponha chapéu para passar o dia inteiro no jardim. Ele está quase careca, e ela aflige-se que ele arranje cancro no alto da cabeça. Ao princípio, o senhor Aubrey odiava o chapéu.
Só há pouco tempo se habituou.
Carson disse:
- Achei que nunca veria o dia em que alguém se armaria em patrão do Aubrey Picou.
- A Lulana não é patrão - contrapôs Moses. - Mas acha que amor firme conduz à obediência.
Um caminho de tijoleira ia dos degraus do terraço das traseiras, atravessava o relvado, rodeava a fonte pagã e continuava até ao jardim das rosas.
A fonte de mármore tinha três esculturas em tamanho natural. Pã, uma forma masculina com patas e cornos de bode, tocava flauta e perseguia duas mulheres nuas - ou perseguiam-no elas - em torno de uma coluna
decorada com videiras.
- O meu olho para antiguidades é infalível - disse Michael - mas tenho quase a certeza de que aquilo é Las Vegas do séc. XVIII.

61
As roseiras cresciam em filas, com coxias de granito decomposto entre elas. Na terceira de quatro coxias estava um saco de adubo, um vaporizador e bandejas com ferramentas de jardinagem ordeiramente dispostas.
Também lá estava Aubrey Picou, debaixo de um chapéu de palha com uma aba larga a ponto de poder albergar esquilos em corridinhas circulares.
Antes de reparar neles e levantar a cabeça, estava a trautear qualquer coisa. Parecia "A Sua Lamparina Vencerá Todas as Trevas".
Aubrey tinha oitenta anos e cara de bebé: cara de bebé de oitenta anos, mas ainda assim cor-de-rosa, rechonchuda, que dava vontade de beliscar. Mesmo à sombra profunda do toucado anticancro, os olhos azuis
brilhavam de boa disposição.
- De todos os polícias que conheço - disse Aubrey - eis os dois de quem gosto mais.
- E gosta de mais alguns? - perguntou Carson.
- Nem um dos sacanas, não - respondeu Aubrey.
- Mas mais ninguém me salvou a vida.
- Para que é o chapéu estúpido? - perguntou Michael.
O sorriso de Aubrey passou a uma careta.
- Que importa que eu morra de cancro? Tenho oitenta anos. Tenho de morrer de alguma coisa.
- A Lulana não quer que você morra antes de encontrar Jesus.
Aubrey suspirou.
- Com aqueles três a mandarem nisto, tropeço em Jesus de cada vez que me viro.
- Se alguém o puder redimir - disse Carson - só poderá ser a Lulana.
Aubrey parecia ter vontade de mandar alguma farpa, mas limitou-se a suspirar.
-Nunca tive consciência. Agora tenho. É mais chatinha do que este chapéu absurdo.
- Para que é que usa o chapéu se não gosta dele? - perguntou Michael.
Aubrey olhou para casa.
- Se eu o tirar, ela vê. E depois não me deixa comer a tarte da Evangeline.
- A tarte de creme de canela e pralinê.
- Com cobertura de nozes-pecãs fritas - completou Aubrey. - Adoro essa tarte. - E suspirou.


62
- Está farto de suspirar - comentou Michael.
- Tornei-me num tolinho, não foi?
- Você era um tolinho - disse Carson. - Só ficou um bocadinho mais humano.
- É desconcertante - disse Michael.
- A quem o dizes - anuiu Aubrey. - O que os traz por cá?
Carson respondeu:
- Precisamos de armas, grandes, ruidosas, de mandar portas abaixo.

16.
Glorioso, o cheiro: pungente, invasivo, penetrante.
Nick Frigg imaginou que o cheiro das fossas lhe saturava a carne, o sangue, os ossos, da mesma forma que o cheiro de nogueira a arder penetrava até nos pedaços mais grossos de carne num fumeiro.
Deleitava-se com a ideia de cheirar até ao âmago todas as variedades de decomposição, como a morte por que ansiava e que não podia ter.
Com as galochas até às coxas, Nick palmilhava a fossa ocidental, latas vazias de tudo a tilintarem à passagem, caixas de ovos vazias e embalagens de bolachas a crepitarem debaixo dos pés, rumo ao sítio
onde a superfície do lixo inchara e rolara e assentara. Parecia que essa peculiar actividade cessara.
Embora compactado pelos galeões do lixo que percorriam aquelas paragens desoladas, o campo de lixo - entre dezoito e vinte metros de fundura naquela fossa - mexia-se ocasionalmente debaixo de Nick, pois
estava cheio de pequenas concavidades, dada a sua natureza. Muito ágil, com reflexos rápidos como um relâmpago, ele raramente se desequilibrava.
Quando chegou ao local do movimento que vira da encosta elevada, a superfície não lhe pareceu significativamente diferente dos cinquenta metros de resíduos por onde ele tinha andado. Latas amolgadas, vidros
partidos, inúmeras peças de plástico, desde garrafões de lixívia a brinquedos partidos, correntezas de acessórios paisagísticos a ganharem bolor - palmeiras, ramos de árvores, relva -, sacos de lixo cheios
com um nó no pescoço...
Viu uma boneca com as pernas torcidas e a testa rachada. Fingindo que tinha debaixo do pé uma criança verdadeira da Velha Raça, Nick espezinhou até despedaçar aquela cara sorridente.
Virou-se lentamente 360 graus e estudou o lixo com mais atenção.
Farejou, farejou, usou o olfacto geneticamente melhorado que possuía para buscar uma pista que conduzisse à causa daquele movimento oscilante tão invulgar naquele mar de lixo. Saía metano das profundezas
da fossa, mas o cheiro não parecia mais intenso do que de costume.
Ratazanas. Cheirava-lhe a ratazanas ali perto. Numa lixeira, não era maior admiração do que sentir o fedor do lixo. O aroma almiscarado dos roedores pontuava a totalidade do recinto vedado da Gestão de
Resíduos Crosswoods.

64
Detectou montinhos de indivíduos desses em seu redor, mas não lhe cheirava a um bando tão grande que, a mexer-se como que por um túnel, fosse capaz de desestabilizar a superfície do campo de lixo.
Nick percorreu a área adjacente, à procura, a farejar, e depois agachou-se - as galochas de borracha chiaram - e aguardou. Imóvel.
A escuta. A respirar tranquila mas profundamente.
Os ruídos dos semi-reboques a descarregarem na fossa oriental esbateram-se gradualmente, bem como o rugido distante dos galeões do lixo.
Como se quisesse ajudá-lo, o ar parecia pesado e suspenso. Não havia brisa alguma a sussurrar aos ouvidos para o distrair. O sol brutal instaurava o silêncio naquele dia.
Em alturas como aquela, o fedor doce da fossa podia levá-lo a uma espécie de estado zen de observação descontraída mas intensa.
Perdeu a noção do tempo, sentiu-se tão maravilhado que nem sabia quantos minutos teriam passado até ouvir a voz, e só teve a certeza de que ela falara várias vezes quando a assimilou.
-Pai?
Suave, trémula, num timbre indefinido, a pergunta de uma só palavra poderia ter sido feita por homem ou por mulher.
Nick e o seu faro aguardaram, farejaram.
- Pai, Pai, Pai...?
Desta vez a pergunta parecia vir simultaneamente de quatro ou cinco indivíduos, homens e mulheres.
Quando observou o campo de lixo, Nick viu que permanecia sozinho. Como seria possível, não o sabia, mas as vozes deviam ter saído dos resíduos compactados debaixo dele, erguendo-se das fendas em... Onde?
-Porquê, Pai, porquê, porquê, porquê...?
O tom perdido e suplicante sugeria um infortúnio obstinado, e ecoava no desespero reprimido do próprio Nick.
- Quem és tu? - perguntou.
Não houve resposta.
- O que és tu?
Um tremor perpassou o campo de lixo. Breve. Subtil. A superfície não inchou nem rolou como antes.
Nick sentiu a presença misteriosa a retirar-se.
Pôs-se de pé e inquiriu:
- O que queres?
O sol abrasador. O ar parado. O fedor.
Nick Frigg estava sozinho, o lamaçal de lixo mais uma vez firme debaixo dos seus pés.

17.
Num arbusto com rosas cor-de-rosa, amarelas e brancas, Aubrey Picou escolheu uma para Carson e tirou os espinhos do caule.
- Chama-se a esta variedade Perfume Francês. Devido a esta mescla de cores excepcional, é a rosa mais feminina do meu jardim.
Michael divertiu-se a ver Carson pegar na rosa com muita falta de jeito, embora já não tivesse espinhos. Ela não era do tipo rosas e folhos. Era mais do tipo calças de ganga e pistolas.
Apesar da sua cara inocente e do chapéu de palha mole, o senhor daquele jardim parecia deslocado entre as rosas, tal como Carson.
Durante décadas de actividade criminosa, Aubrey Picou nunca matara ninguém, nunca ferira ninguém. Nunca roubara, nunca violara, nunca extorquira ninguém. Muito simplesmente fornecia a outros criminosos
os meios para fazerem tudo isso com mais facilidade e eficiência.
A sua agência de documentação produzira documentos falsos da mais elevada qualidade: passaportes, certidões de nascimento, cartas de condução... Vendera milhares de armas no mercado negro.
Quando indivíduos com talento para estratégia e táctica iam falar com Aubrey, sobre ideias de assalto com carro blindado ou esquemas para assaltar um grossista de diamantes, ele facultava o capital de
risco para preparar e executar a operação.
O seu pai, Maurice, fora advogado especializado em levar os júris a concederem exorbitantes compensações financeiras a clientes duvidosos em casos discutíveis de danos pessoais. Havia quem lhe chamasse
Maurice Leiteiro pela sua capacidade de espremer baldes de lucro de jurados estúpidos como vacas.
O Leiteiro tinha posto o filho a estudar Direito em Harvard com a esperança de que Aubrey apreciasse o novo campo - na altura - da litigação de casos populares, com má ciência e bom teatro de tribunal
para aterrorizar grandes empresas e as levar quase à falência com acordos na ordem dos biliões de dólares.
Para grande desapontamento de Maurice, o filho achara a lei uma seca, mesmo quando praticada com todo o desprezo, e decidira que poderia fazer igual dano à sociedade a partir de fora do sistema jurídico.
Embora pai e filho tivessem andado de relações cortadas algum tempo, Maurice acabara por se orgulhar do rapaz.

66
O filho do Leiteiro só fora acusado duas vezes. Conseguira iludir qualquer condenação em ambas. Em ambas as vezes, depois de o porta--voz do júri proferir o veredicto de inocência, os jurados levantaram-se
e aplaudiram Aubrey.
Para impedir uma terceira acusação pendente, Aubrey dera provas ao estado em segredo. Depois de denunciar dezenas de rufias sem que estes soubessem, reformara-se aos setenta e cinco anos, com a reputação
intacta entre a classe criminosa e seus admiradores.
- Já não me meto em armas - disse Aubrey.
- Nem do tipo grande, ruidoso, que deita portas abaixo, nem de quaisquer outros.
- Sabemos que se reformou...
- De verdade - garantiu Aubrey.
-... mas ainda tem amigos em todos os sítios errados.
- Esta rosa chama-se Veludo Negro - disse Aubrey. - O vermelho é tão escuro que parece preto em certos sítios.
- Não queremos tramá-lo - disse Carson. - Não há procurador algum que queira gastar milhares de horas a processar um jardineiro octogenário.
Michael disse:
- Além disso, você fingiria ter Alzheimer e poria o júri em prantos.
- A Perfume Francês não pertence a um ramo destes - disse Aubrey para Carson -, mas a Veludo Negro parece-me uma rosa mais ao teu jeito.
- Precisamos de duas pistolas Desert Eagle, calibre 50, Magnum.
Impressionado, Michael perguntou a Carson:
- É disso que precisamos?
- Eu disse ruidosas, não disse? Se tiveres dois corações e levares um balázio deste calibre, hão-de parar os dois.
Aubrey deu uma rosa Veludo Negro a Carson, que a aceitou com relutância. Ficou com uma flor em cada mão, e um ar perplexo.
- Porque é que não requisitam à polícia? - perguntou Aubrey.
- Porque vamos matar um homem que sairia de um julgamento livre e risonho, se o levássemos a tribunal - mentiu ela.
À sombra do chapéu, os olhos de Aubrey brilharam de interesse.
- Não trazemos escutas - assegurou Carson. - Pode revistar-nos.
- Não me importava nada de te revistar, querida - disse Aubrey -, mas não seria por causa de escutas. Tu não falarias assim se tivesses.

67
- Para as Eagles, quero cem cartuchos de calibre 50 AE, peso 325 -disse Carson -, pontas duplas ocas.
- Formidável. Estás a falar de uma velocidade de canhão de talvez 500 metros por segundo - disse Aubrey.
- Queremos estes tipos bem mortinhos. Também vamos precisar de duas caçadeiras. Queremos usar balas e não chumbo de caça.
- Balas, não chumbo de caça - anuiu Michael, a assentir, como se estivessem perfeitamente combinados, como se ele não estivesse meio apavorado de morte.
- Grande potência de paragem - comentou Aubrey com ar aprovador.
- Grande - repetiu Michael.
- Semiautomáticas para podermos disparar uma segunda volta com uma só mão - continuou Carson.
- Talvez uma Urban Sniper. Que comprimento tem o canhão dessa?
- Quarenta e cinco centímetros - respondeu Aubrey.
- Queremo-la serrada a 35, mas precisamos destas depressa, não há tempo para esperar por retoques.
- Depressa como?
- Hoje. Cedo. Agora. Urban Sniper, SGT, Remington - teremos de levar qualquer caçadeira credível que já tenha sido modificada com essas especificações.
- E hão-de querer uma funda tripartida para cada uma - disse Aubrey -, para poderem trazê-las ao ombro e dispararem da anca.
- Com quem é que vamos falar? - perguntou Carson, ainda com uma rosa em cada mão como se estivesse numa manife para acabar com todas as guerras.
Aubrey continuou absorto a podar as rosas - clique-clique, clique--clique, clique-clique -, a estudar Carson e Michael mais meio minuto, e depois disse:
- É muita munição para ir atrás de um só tipo. Quem é ele, o Anti-cristo?
- Está bem protegido - respondeu ela. - Vamos ter de passar por alguma gente para chegar a ele. Mas são todos uns trastes também.
Pouco convencido, Aubrey Picou disse:
- Há polícias a ficarem corruptos o tempo todo. Dada a falta de apoio que têm e a porcaria que aturam, quem é que os pode censurar? Mas vocês dois, não. Vocês dois não se deixam corromper.
- Lembra-se do que aconteceu ao meu pai? - perguntou Carson.

68
Aubrey respondeu:
- Foi tudo uma farsa. O teu pai não virou a casaca. Foi bom polícia até ao fim.
- Eu sei, mas obrigada por dizê-lo, Aubrey.
Quando ele inclinou a cabeça para um lado debaixo do chapéu, parecia o Truman Capote travestido para ir almoçar.
- Estás a dizer-me que sabes quem é que lhe fez a folha, e à tua mãe?
- Estou - mentiu ela.
- Quem premiu o gatilho ou quem deu a ordem?
- Estamos no cimo da cadeia alimentar com este gajo - disse ela.
A olhar para Michael, Aubrey disse:
- Portanto, quando o mandares abaixo, vai ser notícia.
Estar caladinho e fazer um ar parvinho já livrara Michael de muitos sarilhos. Encolheu os ombros.
Aubrey não ficou satisfeito.
- O mais certo é vocês morrerem a fazer isso.
- Ninguém vive para sempre - disse Michael.
- A Lulana diz que sim, todos nós. Seja como for, isto é vingança da O'Connor. Porque é que tu havias de morrer por isso?
- Somos colegas - respondeu Michael.
- Não é isso. Os colegas não se matam uns pelos outros.
- Acho que nos podemos safar - disse Michael.
Um sorriso matreiro roubou a anterior inocência ao rosto rechonchudo do velhote.
- Também não é isso.
A fazer uma careta, Carson pediu:
- Aubrey, não o faça falar.
- Só preciso de ouvir uma coisa que dê credibilidade ao empenho dele.
- Isto não vai sobrar para si - prometeu ela.
- Talvez não, talvez sim. Estou quase convencido. Sei os teus motivos, querida. Quero ouvir os dele.
- Não digas - avisou ela a Michael.
- Bem, ele já sabe - atalhou este.
- É isso mesmo. Ele já sabe. Não precisa que tu lhe digas. Está só a ser desprezível.
- Ora, querida, não sejas antipática com o coitado do Aubrey. Michael, por que raio é que tu queres fazer isso?

69
- Porque...
- Não - interrompeu Carson.
- Porque a amo.
Carson disse:
- Merda.
Aubrey Picou riu-se, encantado.
- Sou taradinho por romances. Dá-me o teu número de telemóvel, e o homem da mercadoria liga-te dentro de duas horas, diz-te onde e como.
- Aubrey Picou, devia obrigá-lo a comer estas rosas - disse Carson, a abanar Perfume Francês e Veludo Negro na cara dele.
- Tendo em conta que ficaram com o gosto das tuas mãozinhas doces, acho que ia gostar.
Ela atirou as rosas para o chão.
- Só por isso já me deve uma. Quero pedir-lhe emprestado dinheiro para pagar as armas.
Aubrey riu-se.
- Porque é que eu faria uma coisa dessas?
- Porque lhe salvámos a vida. E eu não tenho vários milhares debaixo do colchão.
- Querida, não tenho fama de ser generoso.
- Faz parte do que a Lulana tem tentado dizer-lhe.
Ele franziu o sobrolho.
- Isso faz de mim parte ainda mais envolvida.
- Não, se o empréstimo ficar selado com um aperto de mão. Sem papelada.
- Não me referia à legalidade, mas sim moralmente.
Michael achou que estava a ouvir mal. A palavra não poderia ter sido moralmente.
- Fazer a ligação para o negócio não é assim tão mau - disse Aubrey -porque não levo comissão, não ganho nada com isso. Mas se financiar, mesmo livre de juros...
Carson ficou mesmo admirada.
- Livre de juros...
- Parece que tenho alguma responsabilidade nisso. - Por baixo do chapéu mole, ele agora parecia mais preocupado do que absurdo.
- Este Jesus mete medo.
- Medo?
- Quer dizer, se ele for verdadeiro como a Lulana diz...

70
- Verdadeiro?
-... então tem de se pensar nas consequências.
- Aubrey - disse Carson - sem ofensa, mas tendo em conta a vida que você teve, não me parece que o velho Jesus que mete medo vá fazer grande alarido se você me emprestar dinheiro para isto.
- Talvez não. Mas tenho andado a tentar mudar a pessoa que sou.
- Ai tem?
Aubrey tirou o chapéu, limpou a testa suada com um lenço e tornou logo a pôr o chapéu.
- Todos sabem quem eu era, mas a Lulana, a Evangeline e o Moses tratam-me com respeito.
- E não é por terem medo que você mande partir-lhes as rótulas.
- Exactamente. É espantoso. Têm sido todos tão bons para mim sem razão que, passado um tempo, também quero ser bom para eles.
- Coisa insidiosa - comentou Michael.
- Pois é - anuiu Aubrey. - É mesmo. Deixa-se entrar gente desta na nossa vida, e, mal damos por ela, estamos a dar dinheiro para a caridade.
- Você não fez isso - disse Carson.
- Sessenta mil só este ano - afirmou Aubrey, com ar encabulado.
- Nem pensar.
- O orfanato precisava desesperadamente de consertos, alguém tinha de se chegar à frente.
- Aubrey Picou a ajudar um orfanato - disse Michael.
- Fico grato se não comentarem com ninguém. Tenho de proteger a minha reputação, se não os velhos ainda pensam que fiquei senil ou mole.
- Somos um túmulo - prometeu Carson.
O semblante de Aubrey animou-se.
- E se fizermos assim: eu dou-lhes o dinheiro, sem empréstimo nenhum. Vocês usam-no como quiserem e, um dia, quando estiverem mais desafogados, em vez de mo devolverem, dão-no a uma caridade de que gostem.
- Acha que isso vai enganar Jesus? - perguntou Michael.
- Devia - respondeu Aubrey, contente consigo mesmo.
- Seja como for, será como se eu desse uma pipa de massa a uma escola de surdos, e o director da escola ficasse com um bocadinho, e usasse essa massa para pagar uma ménage a trois com duas putas.
- Estás a perceber isto? - perguntou Michael a Carson.

71
- É demasiado metafísico para mim.
- A questão é - começou Aubrey - o bocadinho e as putas não seriam culpa minha, só porque eu daria dinheiro a uma escola de surdos.
- Em vez de lhe pagarmos o que me emprestar, quer que eu dê a uma escola de surdos? - perguntou Carson.
- Seria simpático. Não te esqueças de que terás de responder tu por aquilo que fizeres com ele entretanto.
- Você saiu-me um verdadeiro teólogo - comentou Michael.

18.
Depois de o corpo do mordomo William e todos os dedos arrancados terem sido levados da mansão por dois homens das Mãos da Misericórdia, a governanta-mor, Christine, e a criada do terceiro andar, Jolie,
limparam o sangue do corredor.
Erika sabia que, enquanto dona da casa, não deveria ajoelhar-se para ajudar. Victor não gostaria nada.
Como as diferenças de classe a impediam de ajudar, Erika não sabia o que fazer; assim sendo, ficou por ali a ver.
O sangue no chão de mogno saiu facilmente, claro, mas Erika ficou admirada quando também saiu da parede pintada e do tapete persa antigo sem deixar resíduos visíveis.
- O que é que estão a usar para tirar as manchas? - perguntou ela, a apontar para as garrafas plásticas com que Christine e Jolie estavam armadas.
- Foi o senhor Helios quem inventou - respondeu Jolie.
- Deve ter ganhado uma fortuna com isso.
- Nunca foi comercializado - disse Christine.
- Ele criou-o para nós - revelou Jolie.
Erika ficou siderada por Victor ter tempo para criar produtos novos para a lida doméstica, tendo em conta tudo o resto que tinha na cabeça.
- Os outros detergentes - explicou Christine -, mesmo que limpem as manchas visíveis a olho nu, deixam proteínas do sangue nas fibras têxteis que qualquer equipa da polícia técnica poderá identificar.
Este apaga tudo.
- O meu marido é muito inteligente, não é? - perguntou Erika, com algum orgulho.
- Extremamente - respondeu Christine.
- Extremamente - anuiu Jolie.
- Queria muito agradar-lhe - disse Erika.
- Será boa ideia - disse Jolie.
- Acho que lhe desagradei esta manhã.
Christine e Jolie trocaram olhares, mas nenhuma delas respondeu a Erika.
E esta disse:
- Ele bateu-me enquanto fazíamos sexo.

73
Depois de lidar com as manchas, Christine mandou Jolie continuar com as suas tarefas matinais na suíte principal. Quando ela e Erika ficaram sozinhas no corredor, disse:
- Senhora Helios, desculpe ser tão directa, mas não deve falar da sua vida privada com o senhor Helios em frente da criadagem.
Erika franziu o sobrolho.
- Não devo?
- Não. Nunca.
- Mas porquê?
- Senhora Helios, decerto a matéria da conduta social fez parte do seu carregamento de maneiras e etiqueta.
- Bem, acho que sim. Quer dizer, se você diz que deve ter sido.
- Deve ter sido de certeza. Não deve falar da sua vida sexual a ninguém, tirando ao senhor Helios.
- E que ele bateu-me durante o sexo, até me mordeu uma vez, e chamou-me nomes feios. Fiquei tão envergonhada.
- Senhora Helios...
- Ele é bom homem, um grande homem, e eu devo ter feito algo de muito mau para o fazer magoar-me, mas não sei o que foi.
- Lá está a senhora - disse Christine com impaciência - a falar da sua vida privada com o senhor Helios.
- Tem razão, pois estou. Mas se a Christine me ajudasse a compreender o que foi que eu fiz para desagradar ao meu marido, seria bom para mim e para o Victor.
O olhar de Christine foi acutilante e não vacilou.
- A senhora sabe que é a quinta Erika, não sabe?
- Sei. E estou decidida a ser a última.
- Então talvez seja melhor não falar de sexo, nem sequer com ele.
- Nem sequer com o Victor? Mas como é que vou descobrir em que foi que lhe desagradei?
Christine agudizou o olhar já de si penetrante.
- Talvez não lhe tenha desagradado.
- Então porque é que ele me bateu e me puxou os cabelos e me beliscou...
- Lá está a senhora.
Frustrada, Erika disse:
- Mas tenho de falar com alguém sobre isto.
- Fale com o espelho, senhora Helios. E a única conversa segura que pode ter sobre o assunto.

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- Em que é que isso é produtivo? Um espelho é um objecto inanimado. A menos que seja mágico, como na Branca de Neve e os Sete Anões.
- Quando olhar para si própria ao espelho, senhora Helios, pense no que sabe sobre sadismo sexual.
Erika ponderou naquilo.
- Acho que não está nos meus conhecimentos programados.
- Então o melhor a fazer é instruir-se... e aguentar. Agora, se não precisa de mais nada, tenho várias tarefas a desempenhar.

19.
O ruído suave do computador debaixo dos dedos ágeis de Vicky Chou, a escrever uma carta, era o único som naquela tarde de Verão. De cada vez que parava de escrever, o silêncio parecia tão fundo como a
surdez.
A mais leve brisa de ar quente fazia ondular as cortinas na janela aberta, mas não criava sussurro algum. Lá fora, até faltava o canto dos pássaros àquele dia. O trânsito que passava tinha a graciosidade
muda de um barco-fantasma a vogar sem vento num mar de vidro.
Vicky Chou trabalhava em casa, a transcrever documentos médicos. A casa era a de Carson O'Connor, onde comia e dormia de borla em troca dos cuidados que prestava ao irmão desta, Arnie.
Havia amigos dela que achavam aquele acordo estranho, e que Vicky escolhera mal. Na verdade, ela sentia-se mais do que compensada, pois Carson salvara a sua irmã, Liane, de cumprir prisão perpétua por
um crime que não cometera.
Aos quarenta e cinco anos, Vicky estava viúva havia cinco; nunca tivera filhos, e uma das regalias de morar ali era sentir-se parte de uma família. Arnie era como um filho para ela.
Embora autista, o rapaz raramente causava problemas. Era reservado, sossegado e enternecedor, à sua maneira. Ela preparava-lhe as refeições mas, de resto, ele desembaraçava-se bem.
Quase nunca saía do quarto, e nunca saía de casa, excepto se Carson o quisesse levar a algum lado. Mesmo assim, era com relutância.
Vicky não tinha de se preocupar com fugas. Quando fugia, Arnie vagueava por lugares interiores que tinham mais interesse do que o mundo real.
Não obstante, o silêncio começou a parecer feérico, e ela sentiu-se estranha, a cada pausa que fazia na escrita.
Por fim, levantou-se da cadeira e foi ver Arnie.
O quarto de Vicky no andar de cima era espaçoso, mas o de Arnie - em frente ao dela - tinha o dobro do tamanho. Tinham deitado abaixo uma parede para lhe dar espaço e mandado fazer uma casa de banho só
dele.
A cama e a mesa-de-cabeceira estavam a um canto. Aos pés da cama, uma televisão e um leitor de DVD numa mesinha com rodas.

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O castelo ocupava grande parte do quarto. Quatro mesas baixas formavam uma plataforma com três metros e meio por dois e meio onde Arnie montara uma maravilha com peças da Lego, inteligentemente concebida
e executada ao mais ínfimo e obsessivo pormenor.
Da barbacã às muralhas, ameias, contrafortes, cripta, torres de menagem, paliçada, ala interna, aquartelamentos e estábulos e oficina de ferreiro, aquela maravilha de nove metros quadrados parecia ser
a defesa de Arnie contra um mundo assustador.
O rapaz estava sentado na cadeira giratória onde se deslocava quando mexia no castelo, ou onde ficava apenas a contemplá-lo com ar sonhador. Qualquer outra pessoa além de Arnie acharia a obra concluída,
mas ele não estava satisfeito; trabalhava nela todos os dias, acrescentava-lhe majestade e melhorava as defesas.
Embora tivesse doze anos, Arnie parecia mais novo. Era magro e pálido como uma criança nórdica no final de um Inverno longo e escuro.
Não olhou para Vicky. Não gostava de contacto visual, e ainda menos que lhe tocassem.
Contudo, havia uma gentileza nele, um anseio, que a comovia. E sabia mais do mundo e da sua gente do que ela ao princípio julgara.
Num dia mau, quando Vicky estava com saudades de Arthur, o falecido marido, quase insuportavelmente, embora não exprimisse de um modo aberto a sua tristeza, Arnie reagira à disposição dela e falara, sem
a olhar. "Não te deixes sentir sozinha, ele não gostaria que sentisses."
Embora ela tivesse tentado continuar a conversa, ele não dissera mais nada.
Nesse dia, ela apercebera-se de um aspecto mais misterioso, no autismo em geral e no caso de Arnie em particular, do que até então compreendera. O isolamento dele estava além do poder que Vicky tivesse
para curar, mas ele falara para a consolar na sua solidão.
Ela já gostava do menino antes desse momento. Depois, passara a amá-lo.
Agora, ao vê-lo a compor o castelo, disse:
- Acho sempre que está perfeito como está... mas tu arranjas sempre maneira de o melhorar.
Ele não reagiu, mas ela sentiu que ele a ouvira.
Vicky deixou-o sossegado e voltou ao corredor. Ficou ao cimo da escada, a escutar o silêncio persistente lá em baixo.

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Arnie estava onde devia estar, seguro. Todavia, o sossego não parecia pacífico, parecia prenhe, como se engendrasse uma ameaça e fosse dar-se um parto ruidoso.
Carson dissera que ela e Michael andavam a trabalhar num caso que "poderia chegar a nossa casa", e tinha-a avisado para ter cuidado com a segurança. Por conseguinte, ela trancara as portas da rua e não
deixara janelas nenhumas abertas no andar de baixo.
Embora soubesse que não se esquecera de fechadura nem tranca alguma, o silêncio lá em baixo chamava-a, avisava-a.
Desceu a escada e deu a volta à sala, ao quarto e casa de banho de Carson, à cozinha, viu se todas as portas e janelas ainda estavam trancadas. Encontrou tudo como se lembrava de ter deixado.
As persianas a meio e as cortinas corridas deixavam o andar de baixo na penumbra. De cada vez que Vicky acendia um candeeiro para facilitar a inspecção, apagava-o antes de sair.
O quarto de Carson era a única parte do andar de baixo com ar condicionado. Estava montado na janela e só se poderia tirar com grande barulho, nenhum intruso poderia passar despercebido. De momento, o
ar condicionado estava desligado; como os outros nos quartos de Vicky e Arnie, só era usado para facilitar o sono.
Com as janelas fechadas, aquelas divisões de baixo estavam quentes, abafadas. Na cozinha, Vicky abriu a porta do congelador, não por querer tirar alguma coisa, mas só para sentir a frescura no rosto.
De volta ao andar de cima, viu que a quietude da casa a continuava a incomodar. Parecia o silêncio de um machado que se levanta alto mas que ainda não desferiu o seu golpe.
Ridículo. Estava a assustar-se com nada. Arrepios em plena luz do dia.
Vicky ligou o leitor de CD e, como Carson não estava em casa, levantou o volume mais um bocadinho do que o habitual.
O disco era uma antologia de êxitos de vários artistas. Billy Joel, Rod Stewart, The Knack, Supertramp, BeeGees, Gloria Gaynor, Cheap Trick.
A música da sua mocidade. Arthur pedira-a em casamento. Tão felizes juntos. O tempo na altura nada significava. Achavam que viveriam para sempre.
Vicky voltou à carta que estava a escrever, e cantou também, mais bem-disposta com a música e as recordações de dias mais felizes, o silêncio perturbante banido dali.

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Com o chão da casa em cima dele, rodeado do cheiro de terra nua e cogumelos húmidos, imerso na obscuridade, qualquer um teria passado da sensação de claustrofobia para o pânico de ser enterrado vivo. Todavia,
Randal Seis, filho da Misericórdia, sente-se protegido, confortável até.
Escuta a mulher descer a escada e percorrer as divisões da casa como se procurasse algo. Depois volta ao andar de cima.
Quando ouve a música que lhe chega lá de cima, sabe que chegou a sua oportunidade. A coberto do rock's and róll, o barulho que ele fizer a entrar na residência O'Connor não chamará a atenção de ninguém.
Já explorou exaustivamente aquele espaço exíguo, admirado pelo quão aventureiro se sentia. Quanto mais se afasta das Mãos da Misericórdia em termos de tempo e distância, mais a sua agorafobia se desvanece
e mais ele deseja expandir limites.
Ele está a desabrochar.
Além dos pilares de cimento que sustentam a casa, o espaço exíguo tem canalizações, canos de esgoto, tubos com cabos eléctricos. Todos estes serviços perfuram o chão da estrutura.
Mesmo que Randal possa desmontar uma daquelas condutas, não há ponto de penetração nenhum por onde ele se possa esgueirar.
Também encontrou um alçapão. Tem cerca de um metro quadrado.
As dobradiças e a tranca ficam do outro lado, ele não lhes chega. O mais certo será a porta abrir-se para cima e para dentro.
Perto do alçapão, adjacente ao tubo do gás, sai de casa uma tubagem flexível com vinte centímetros de diâmetro, e serpenteia pelo espaço exíguo. A ponta mais distante da tubagem encaixa num recorte na
treliça que rodeia a casa.
Randal parte do princípio de que seja uma entrada de ar ou uma válvula de ventilação para um sistema de aquecimento a gás.
São provas que indicam que o alçapão abre para onde está uma caldeira. Um técnico de reparações poderia usá-lo para se mexer entre o equipamento lá em cima e as ligações debaixo do chão.
Na casa lá em cima, autista mas capaz de um sorriso deslumbrante, Arnie O'Connor possui o segredo da felicidade. Se o rapaz não lho ceder, Randal Seis arrancar-lho-á.
Deitado de costas, Randal puxa os joelhos ao peito e faz força com os pés no alçapão. No intuito de o arrombar com o mínimo de ruído

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possível, vai carregando cada vez mais. A tranca e as dobradiças chiam com a pressão.
Quando se ouve uma canção particularmente barulhenta e a música aumenta num crescendo, ele redobra o esforço, e o alçapão abre-se com um ruído de parafusos a rasgarem a madeira, um estalido de metal a
vergar-se.
A felicidade não tarda a ser dele.

20.
Depois da reunião com Victor, Cindi queria ir ao centro comercial, mas Benny queria falar de métodos de decapitação.
Segundo os seus bilhetes de identidade, Cindi e Benny Lovewell tinham vinte e oito e vinte e nove anos, respectivamente, embora tivessem saído dos tanques de criação há dezanove meses.
Eram um casal giro. Mais concretamente, tinham sido feitos para serem um casal giro.
Atraentes, bem vestidos, cada qual com um sorriso deslumbrante, voz melodiosa, riso contagioso. Falavam bem e eram educados, e costumavam dar-se bem com quem quer que conhecessem.
Cindi e Benny eram dançarinos fabulosos, embora a dança não fosse a actividade que mais apreciassem. O seu maior prazer advinha da matança.
Os membros da Nova Raça estavam proibidos de matar, excepto quando para isso fossem mandados pelo seu criador. Os Lovewells recebiam frequentemente ordens para o fazer.
Quando um membro da Velha Raça estava prestes a ser substituído por uma réplica, Cindi e Benny eram os últimos rostos sorridentes que essa pessoa veria.
Aqueles que não estivessem para ser substituídos por gente engendrada, mas que se tivessem tornado, de algum modo, ameaças para Victor - ou o tivessem ofendido - também estavam destinados a conhecer os
Lovewells.
Por vezes, tais encontros começavam num clube de jazz ou num bar. Ao alvo pareceria ter feito novas amizades - até ao fim da noite, em que por um aperto de mão ou um beijinho de despedida escalava com
espantosa rapidez um garrote violento.
Outras vítimas, ao verem os Lovewells pela primeira vez, não tinham grande hipótese de os conhecer, mal tinham tempo de retribuir o seu sorriso deslumbrante, antes de serem esventrados.
Naquele dia de Verão abrasador, antes de terem sido convocados às Mãos da Misericórdia, os Lovewells estavam mortos de tédio. Benny aguentava bem o tédio, mas Cindi por vezes sentia-se impelida a actos
irreflectidos.
Depois da reunião com Victor, em que tinham recebido a ordem de matar os detectives O'Connor e Maddison em vinte e quatro horas,

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Benny queria começar imediatamente a arquitectar a coisa. Tinha esperança de que pudessem fazer aquilo de maneira a poderem desmembrar vivo pelo menos um dos polícias.
Proibidos de matar como lhes aprouvesse, os outros membros da Nova Raça viviam com a inveja do livre-arbítrio de que gozavam os membros da Velha Raça. Esta inveja, carregada de amargura de dia para dia,
exprimia-se num desespero e numa raiva reprimida que não tinha consolo.
Enquanto assassinos experientes, Cindi e Benny tinham consolo, consolo em barda. Ele geralmente podia contar com Cindi para sentir a avidez com que ele próprio começava qualquer trabalho.
Todavia, naquela ocasião, ela insistira em ir às compras primeiro. Quando Cindi insistia em alguma coisa, Benny fazia-lhe sempre a vontade porque ela era tão chatinha que até Benny, com a sua elevada tolerância
ao tédio, lamentava que o criador o tivesse programado como incapaz de suicídio.
No centro comercial, para consternação de Benny, Cindi levou-o logo à Tots and Tykes, uma loja que vendia roupa para crianças e bebés.
Benny desejou que aquilo não resultasse num rapto outra vez.
- Não devíamos ser vistos aqui - avisou ele.
- Não seremos. Não trabalha cá nenhum dos nossos, e nenhum dos nossos teria motivo para vir aqui às compras.
- Nós também não temos motivo.
Sem lhe responder, ela entrou na Tots and Tykes.
Enquanto Cindi remexia em vestidinhos e outras peças nas mesas e nos cabides, Benny seguia-a, a tentar avaliar se ela poderia ficar louca, como antes.
A admirar um vestidinho amarelo com folhos no colarinho, ela perguntou:
- Não é amoroso?
- Amoroso - anuiu Benny. - Mas ficaria muito melhor em cor-de--rosa.
- Parece que não têm em cor-de-rosa.
- É pena. Cor-de-rosa ficaria fantástico.
Os membros da Nova Raça eram encorajados a fazerem sexo uns com os outros, de toda a maneira e feitio, com a frequência e a violência que entendessem. Era a sua única fonte de prazer e desafogo.
Todavia, eram incapazes de se reproduzirem. Os cidadãos daquele admirável mundo novo seriam todos criados em tanques, amadu-

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recidos até à idade adulta e instruídos mediante carregamento de dados directamente no cérebro, em quatro meses.
Actualmente, eram criados cem de cada vez. Não tardaria a que os viveiros de tanques começassem a produzi-los aos milhares.
O criador reservara toda e qualquer criação biológica para si mesmo. Não acreditava em famílias. As relações familiares distraíam as pessoas da maior obra para a sociedade no seu todo, de alcançarem um
triunfo total sobre a natureza e de estabelecerem uma utopia.
- Como será o mundo sem crianças? - devaneou Cindi.
- Mais produtivo - respondeu Benny.
- Monótono - disse ela.
- Mais eficiente.
- Vazio.
As mulheres da Nova Raça eram concebidas sem qualquer instinto maternal. Não deveriam ter desejo algum de dar à luz.
Algo de errado se passava com Cindi. Invejava as mulheres da Velha Raça pelo seu livre-arbítrio, mas ainda se ressentia mais da sua capacidade de trazer crianças a este mundo.
Entrou na secção outra cliente, grávida.
A princípio, o rosto de Cindi animou-se ao ver a barriga grande da mulher, mas depois toldou-se num esgar de ciúmes malvados.
Benny pegou-lhe num braço, levou-a para outra parte da loja, e disse:
- Controla-te. As pessoas ainda reparam. Parece que a queres matar.
- E quero.
- Lembra-te do que és.
- Estéril - disse ela amargamente.
- Não. Assassina. Não podes fazer o teu trabalho se anunciares o teu ofício na cara.
- Está bem. Larga-me o braço.
- Acalma-te. Aguenta-te.
- Estou a sorrir.
- Sorriso amarelo.
Ela ligou o deslumbramento completo.
- Muito melhor - observou ele.
Cindi pegou numa camisolinha cor-de-rosa com borboletas coloridas aplicadas e mostrou-a a Benny:
- Não é linda?

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- Linda - anuiu ele. - Mas ficaria melhor em azul.
- Não vejo em azul.
- Devíamos ir trabalhar.
- Quero dar mais uma volta por aqui.
- Temos trabalho a fazer - recordou ele.
- E temos vinte e quatro horas para o fazer.
- Quero decapitar um deles.
- Claro que queres. Queres sempre. E havemos de o decapitar. Mas primeiro quero encontrar um fatinho de renda mesmo fofo ou coisa assim.
Cindi tinha defeito. Queria desesperadamente um bebé. Era perturbada.
Se Benny não tivesse a certeza de que Victor destruiria Cindi e criaria uma Cindi Dois, já teria reportado o seu desvio há meses. Todavia, temia que Victor achasse que sofriam ambos do mesmo e também o
destruísse a ele.
Não queria ser desligado e enterrado num aterro enquanto o Benny Dois gozava à grande.
Se ele tivesse sido como outros da sua laia, a ferver de raiva e proibido de a exprimir satisfatoriamente, Benny Lovewell teria ficado contente com a sua própria destruição. A destruição teria sido a única
esperança de paz.
Porém, ele podia matar. Podia torturar, mutilar, desmembrar. Ao invés de outros da Nova Raça, Benny tinha uma razão para viver.
- Isto é tão fofo - disse Cindi, a mexer num fatinho de marinheiro para uma criança de dois anos.
Benny suspirou.
- Queres levá-lo?
- Quero.
Em casa tinham uma colecção secreta de roupa de bebés e crianças pequenas. Se alguém da Nova Raça descobrisse, Cindi teria muitas explicações a dar.
- Está bem - disse ele. - Mas depressa, antes que nos vejam, e vamo-nos embora daqui.
- Depois de acabarmos com a O'Connor e o Maddison - disse ela -podemos ir para casa tentar?
Tentar significava tentar ter um bebé.
Tinham sido criados estéreis. Cindi tinha vagina mas não tinha útero. Esse espaço reprodutivo estava dedicado a outros órgãos, exclusivos da Nova Raça.

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O sexo entre eles não resultaria num bebé, assim como não resultaria num piano de cauda.
Não obstante, para a apaziguar, para a amolecer, Benny disse:
- Claro. Podemos tentar.
- Vamos matar a O'Connor e o Maddison - disse ela - e cortá-los o quanto quiseres, e fazer as coisas todas giras que tu gostas de fazer, e depois vamos fazer um bebé.
Era louca, mas ele tinha de a aceitar como ela era. Se a pudesse matar, já o teria feito, mas só podia matar aqueles que lhe mandassem directamente.
- Parece-me boa ideia - disse ele.
- Seremos os primeiros da nossa espécie a conceber.
- Vamos tentar.
- Serei uma mãe maravilhosa.
- Vamos comprar o fato de marinheiro e sair daqui.
- Talvez tenhamos gémeos.

21.
Erika almoçou sozinha numa sala de jantar onde cabiam dezasseis convivas, na presença de obras de arte que ascendiam a três milhões de dólares, com um ramo fresco de lírios e antúrios no centro de mesa.
Quando terminou, foi à cozinha, onde Christine estava ao lava-louça, a lavar os pratos do pequeno-almoço.
Toda a comida naquela casa era servida num de vários serviços Limoges, e Victor não permitia que tal porcelana fina fosse para a máquina de lavar. Todas as bebidas eram servidas em cristais Lalique ou
Water-ford, os quais também implicavam lavagem à mão.
Se algum prato ficasse rachado ou um copo lascado, teria de ir para o lixo. Victor não tolerava imperfeições.
Embora certas máquinas fossem necessárias e até benéficas, a maioria daquelas inventadas para substituir a criadagem de uma casa era vista com escárnio por Victor. Os seus padrões de serviço tinham sido
formados noutro século, quando as classes mais baixas sabiam servir, devidamente, as necessidades dos seus superiores.
- Christine?
- Sim, senhora Helios?
- Não se aflija. Não vou debater os meus problemas sexuais consigo.
- Muito bem, senhora Helios.
- Mas tenho curiosidade quanto a umas coisas.
- Decerto que tem, senhora. Tudo é novo para si.
- Porque é que o William estava a arrancar os próprios dedos?
- Ninguém poderá saber ao certo, excepto o próprio William.
- Mas não foi racional - insistiu Erika.
- Sim, reparei nisso.
- E sendo da Nova Raça, ele é racional em todas as coisas.
- E esse o conceito - disse Christine, mas com uma inflexão estranha na voz, que Erika não soube interpretar.
- Ele sabia que os dedos não lhe voltavam a crescer - continuou Erika. - É como se ele estivesse... a cometer suicídio, dentada por dentada, mas nós não temos a capacidade da autodestruição.
A passar um espanador molhado dentro de um bule de porcelana belíssimo, Christine disse:

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- Ele não teria morrido por não ter dez dedos, senhora Helios.
- Sim, mas sem dedos, não poderia servir de mordomo. Ele devia saber que iria ser destruído.
- No estado em que a senhora o viu, o William não estava capaz de ter astúcia.
Além disso, e como ambas sabiam, a injunção contra o suicídio incluía a incapacidade de arquitectar circunstâncias que levassem à própria destruição.
- Quer dizer... que o William estava a ter uma espécie de esgotamento? - A ideia deixou Erika arrepiada. - Decerto é impossível.
- O senhor Helios prefere o termo interrupção de funções. O William sofreu uma interrupção de funções.
- Parece muito menos grave.
- Parece, não é?
- Mas o Victor não o destruiu.
- Não o destruiu, pois não?
Erika disse:
- Se um da Velha Raça fizesse tal coisa, diríamos que tinha enlouquecido.
- Sim, mas somos em todos os aspectos superiores a eles, e há muitos termos aplicáveis a eles que não nos podem descrever. Precisamos de uma nova gramática de psicologia.
Mais uma vez, Christine falava num tom curioso, a sugerir que queria dizer mais do que na verdade dizia.
- Não... não compreendo - disse Erika.
- Compreenderá. Quando viver tempo suficiente.
Ainda tentando abarcar aquilo, ela perguntou:
- Quando ligou ao meu marido para informar que o William estava a arrancar os dedos à dentada, a Christine disse: "Temos outra Margaret." O que queria dizer?
Christine enxaguou um prato e colocou-o cuidadosamente no escorredor.
- Até há poucas semanas, a Margaret era a cozinheira da casa. Estava cá havia quase vinte anos, como o William. Após um... episódio... tiveram de a levar. Está a ser preparada uma nova Margaret.
- Que episódio?
- Uma manhã, ela ia fazer panquecas e começou a bater com a cara na grelha quente e untada.
- A bater com a cara?

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- Repetidamente, ritmicamente. De cada vez que a Margaret levantava a cara da grelha, dizia "tempo", e antes de bater com ela outra vez, repetia a palavra. "Tempo, tempo, tempo, tempo" - com a mesma urgência
com que a senhora ouviu o William dizer "tiquetaque, tiquetaque".
- E intrigante - disse Erika.
- Deixará de ser... depois de a senhora viver tempo suficiente.
Frustrada, Erika pediu:
- Fale comigo frontalmente, Christine.
- Frontalmente, senhora Helios?
- Acabei de sair do tanque e sou uma ingénua - eduque-me. Está bem? Ajude-me a compreender.
- Mas a senhora teve carregamento de dados directamente no cérebro. De que mais poderá precisar?
- Christine, não sou sua inimiga.
Christine virou costas ao lava-louça e limpou as mãos a um pano.
- Eu sèi que não é, senhora Helios. E também não é minha amiga. A amizade é parecida com o amor, e o amor é perigoso. O amor distrai o trabalhador de dar o seu máximo, assim como o ódio distrai. Na Nova
Raça não há amigos nem inimigos.
- Não... Não tenho essa atitude no meu programa.
- Não está no programa, senhora Helios. E o resultado natural do programa. Somos todos trabalhadores de igual valor. Trabalhadores numa grande causa, subjugando a natureza inteira, construindo a sociedade
perfeita, a utopia - e depois rumo às estrelas. O nosso valor não está em feitos individuais, mas sim no que alcançarmos enquanto sociedade. Não é assim?
-É?
- Ao invés de nós, senhora Helios, a senhora pode sentir humildade, e vergonha, porque o nosso criador gosta dessas qualidades numa esposa.
Erika sentiu que vinha aí uma revelação à qual gostaria de se furtar. Porém, fora ela, e não Christine, quem abrira aquela porta.
- As emoções são coisas engraçadas, senhora Helios. Talvez seja melhor, afinal, estar limitado apenas a inveja, raiva, medo e ódio -porque são sentimentos circulares. Estão sempre a virar-se sobre si mesmos,
como uma cobra que morde a cauda. Não resultam em mais nada, e impedem a mente de ter esperança, o que é essencial quando a esperança nunca se poderá alcançar.

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Abalada pela sombra que toldava a voz e os olhos de Christine, Erika sentiu-se tomada por compaixão para com a governanta, e pôs uma mão no ombro da mulher.
- Mas a humildade e a vergonha - continuou Christine - podem tornar-se em piedade, quer ele queira que a senhora a sinta, quer não. Piedade e depois compaixão. Compaixão e depois mágoa. E tanto mais. A
senhora será capaz de sentir muito mais do que nós sentimos. A senhora aprenderá a ter esperança.
Erika sentiu um peso no coração, uma opressão, mas ainda não sabia descortinar-lhe a natureza.
- Ser capaz de ter esperança será terrível para si, senhora Helios, porque o seu destino é fundamentalmente idêntico ao nosso. A senhora não tem livre-arbítrio. A sua esperança nunca será alcançada.
- Mas o William... como é que isso explica o William?
- Tempo, senhora Helios. Tempo, tempo, tiquetaque, tiquetaque. Estes corpos espantosos, resistentes à doença, que nós temos; quanto tempo nos disseram que podem durar?
- Talvez mil anos - respondeu Erika, pois era esse o número no pacote de consciência de si carregado na sua instrução.
Christine abanou a cabeça.
- Pode aguentar-se a falta de esperança... mas não durante mil anos. Para o William, para a Margaret... vinte anos. E depois eles sofreram uma... uma interrupção de funções.
O ombro duro da governanta não amolecera com o toque da sua senhora. Erika tirou a mão.
- Mas quando se tem capacidade de esperança, senhora Helios, mas se sabe sem dúvida alguma que esta nunca se poderá alcançar, não me parece que se possa aguentar vinte anos. Não me parece que se possa
aguentar cinco.
Os olhos de Erika varreram a cozinha. Olhou para a água cheia de detergente no lava-louça. Para os pratos no escorredor. Para as mãos de Christine. Por fim, tornou a olhar Christine nos olhos. E disse:
- Tenho muita pena por si.
- Eu sei - disse Christine. - Mas eu não sinto nada por si, senhora Helios. Nem nenhum dos outros sentirá. Significa que a senhora está... exclusivamente só.

22.
A Outra Ella, um restaurante-bar num bairro conhecido por Fau-bourg Marigny, uma zona agora tão pitoresca e simbólica quanto o Bairro Francês outrora fora, era propriedade de uma mulher chamada Ella Fitzgerald.
Não era a famosa cantora. Era uma antiga prostituta e madame que poupara e investira os lucros da carne.
Tal como Aubrey Picou indicara, Carson e Michael pediram ao bar-man para falar com Godot.
Uma mulher idosa pousou a cerveja que estava a beber no balcão, girou no banco alto e tirou-lhes uma fotografia com o telemóvel.
Irritada, Carson disse:
- Oh avozinha, não sou nenhum ponto de interesse turístico.
- Vai-te lixar - disse a mulher. - Se eu tivesse a certeza de que ia agora a passar uma carruagem turística lá fora, punha-te na rua e metia-te a cabeça dentro do cu da mula.
- Querem falar com Godot - explicou o barman -, têm de passar aqui pela Francine.
- Vocês têm menos importância para mim - disse a velha para Carson - do que o jantar que vomitei ontem à noite.
Enquanto enviava a fotografia a alguém, Francine sorria para Michael. Tinha pedido os dentes emprestados à Criatura do Pântano.
- Carson, lembras-te de quando te viste ao espelho esta manhã e não gostaste?
Carson retrucou:
- De repente sinto-me linda.
- Toda a vida - disse Francine para Carson - conheci tipas de mamas arrebitadas como tu, e nem uma das cabras tinha miolos maiores do que um grão-de-bico.
- Bem, aí a senhora engana-se redondamente - disse Michael. - Apostámos, e a minha amiga fez uma ressonância magnética, onde se viu que tem o cérebro do tamanho de uma noz.
Francine fez-lhe outro sorriso desdentado e amarelo.
- Tu és mesmo giro. Até te podia comer.
- Sinto-me lisonjeado - disse ele.
- Lembra-te do que aconteceu ao jantar dela ontem à noite - recordou Carson.


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Francine largou o telemóvel. Pegou num BlackBerry no balcão, onde recebeu um SMS, evidentemente em resposta à fotografia.
Michael disse:
- A Francine é perita em telecomunicações, nada no fluxo de informação como peixe na água.
- E tu tens um belo cu - disse Francine. Pousou o BlackBerry, girou no banco alto para sair, e disse:
- Anda comigo, giraço. Tu também, cabra.
Michael começou a andar atrás da velha, olhou para Carson e disse:
- Anda lá, cabra, isto vai ser engraçado.

23.
Para ajudar a rastrear e, por fim, a acabar eficientemente com os detectives O'Connor e Maddison, um dos sequazes de Victor - Dooley Snopes - fixara um emissor-receptor magnético ao motor do carro da polícia,
ligara-o ao cabo da bateria, enquanto o carro estivera estacionado em frente à casa da O'Connor, enquanto ela dormia naquela manhã de Verão.
Dooley não fora programado como assassino, embora bem o desejasse. Em contrapartida, era uma espécie de bufo com muitos conhecimentos técnicos.
Cindi Lovewell passou por Dooley, sentado dentro do seu PT Cruiser estacionado no Faubourg Marigny. Os Lovewells tinham um jipe de luxo - um Mercury Mountaineer com vidros fumados - para facilitar o transporte
discreto de cadáveres.
Cindi gostava do carro, não só por ter muita potência e se portar bem, mas também por ter bastante espaço para os filhos que ela esperava ter.
Quando fora necessário ir à Gestão de Resíduos Crosswoods, a norte do Lago Pontchartrain, levar dois cadáveres, poderia ter sido muito mais agradável se fosse uma aventura em família. Poderiam ter parado
pelo caminho para fazer um piquenique.
No lugar do passageiro à frente, a estudar o pontinho vermelho que piscava perto do centro do mapa da cidade que tinham no sistema de navegação por satélite, Benny disse:
- Os polícias devem ter estacionado em... - Benny olhou para as viaturas estacionadas por onde estavam a passar e tornou a olhar para o ecrã -... Aqui mesmo.
Cindi passou devagar por um carro à civil, um chaço já muito usado. A gente de Victor estava sempre mais bem equipada do que as chamadas autoridades.
Estacionou numa berma assinalada a vermelho perto do fim do quarteirão. A carta de condução de Benny estava em nome do doutor Benjamim Lovewell, e o Mountaineer tinha matrícula de médico. Benny tirou do
porta-luvas um cartão onde se lia MÉDICO DE SERVIÇO, e pendurou-o no retrovisor.
Quando perseguem um alvo, os assassinos profissionais têm de poder estacionar com o máximo de conveniência possível. E quando

92
a polícia vê um carro acelerado com matrícula de médico, parte do princípio de que o motorista se dirige ao hospital.
Victor não gostava que as suas finanças se gastassem em bilhetes de estacionamento e multas de trânsito.
Quando passaram pelo carro, a pé, rumo ao PT Cruiser, Dooley já saíra do carro ao encontro deles. Se fosse cão, seria galgo: magro, pernalta, de focinho pontiagudo.
- Entraram n'A Outra Ella - disse Dooley, e apontou para o restaurante em frente. - Nem há cinco minutos. Já mataram alguém hoje?
- Ainda não - respondeu Benny.
- Mataram alguém ontem?
- Há três dias - respondeu Cindi.
- Quantos?
- Três - disse Benny. - As réplicas estavam prontas.
Os olhos de Dooley estavam escuros de inveja.
- Quem me dera matar alguém. Quem me dera matá-los a todos.
- Não é a tua função - disse Benny.
- Por enquanto - contemporizou Cindi, referindo-se ao dia em que os contingentes da Nova Raça seriam suficientes para declarar guerra aberta, em que a maior carnificina da história humana assinalaria a
rápida extinção da Velha Raça.
- É tudo muito mais difícil - disse Dooley - quando temos de os ver à nossa volta, vê-los andarem com as suas vidinhas como bem lhes apetece.
Passou por eles um jovem casal, a orientar dois filhos muito lourinhos, um casalinho.
Cindi virou-se para os ver. Apetecia-lhe matar os pais naquele momento, mesmo ali no passeio, e ficar com as crianças.
- Calma - disse Benny.
- Não te preocupes. Não vai haver outro incidente - garantiu Cindi.
- Acho bem.
- Que incidente? - perguntou Dooley.
Em vez de lhe responder, Benny disse:
- Podes ir. Agora já é connosco.

24.
Frandne estalava os lábios ocasionalmente por cima daqueles dentes amarelos, enquanto levava Carson e Michael pelo restaurante fora, por uma cozinha apinhada, até uma despensa, e por uma escada íngreme
acima.
Chegaram a um patamar com uma porta azul. Francine tocou a uma campainha ao lado da porta, mas não se ouviu som algum.
- Não dês isso de borla - aconselhou ela a Michael. - Muitas senhoras não se importariam nada de te sustentar com todo o estilo.
Olhou para Carson e resfolegou com desagrado.
- E fica longe desta - continuou Francine. - Ela ainda te congela os tomates como se os mergulhasses em nitrogénio líquido.
Deixou-os no patamar e começou a descer a escada, algo periclitante.
- Podias empurrá-la - disse Michael a Carson -, mas seria mau.
- Na verdade - disse Carson -, se a Lulana aqui estivesse, até ela me diria que Jesus não se importaria nada.
A porta abriu-se e eles viram um tipo saído da Guerra das Estrelas: baixinho como R2-D2, careca como Yoda e feio como Jabba the Hutt.
- Vocês foram mesmo recomendados pelo Aubrey - disse ele -, de maneira que não vou tirar-lhes os brinquedos de matar que trazem debaixo dos bracinhos esquerdos, nem o de cano curto que a menina tem enganchada
no cinto acima do rabo.
- E boa tarde para si também - disse Michael.
- Sigam-me como os patinhos seguem a mãe, porque se fizerem um gesto errado, ficam mortinhos e a fazer tijolo.
A sala além da porta azul só tinha duas cadeiras de espaldar alto.
Havia um gorila sem pêlo, de calças pretas, suspensórios, camisa de cambraia branca, chapéu de abas reviradas a toda a volta, sentado numa das cadeiras. No chão ao lado da cadeira estava um livro - um
volume do Harry Potter - que ele evidentemente largara quando Francine tocara à campainha.
Em cima das pernas, uma semiautomática de calibre 12, e as duas mãos em cima dela, numa posição que não enganava ninguém. Não lhes estava a apontar a caçadeira, mas poderia rebentar-lhes com o bucho antes
de eles sacarem das suas armas, e rebentar-lhes as caras para compor, ainda antes de os corpos deles tombarem no chão.
A andarem como patinhos, Carson e Michael seguiram obedientemente o líder atarracado por outra porta e entraram numa sala com

94ão de linóleo rachado, lambris azuis, paredes cinzentas e duas mesas de póquer.
Em redor da mesa mais próxima estavam três homens, uma mulher e um travesti asiático.
Parecia a abertura de uma anedota mesmo boa, mas Michael não se conseguia lembrar de nenhum final jeitoso.
Dois dos jogadores bebiam Coca-Cola, dois tinham latas de Dr. Pepper, e no lugar do travesti estava um copo de licor e uma garrafa de licor de anis.
Nem um dos jogadores de póquer pareceu ligar a Carson e Michael. Nem a mulher nem o travesti lhe piscaram o olho a ele.
No meio da mesa estavam pilhas de fichas de póquer. Se as verdes fossem de cinquenta e as pretas das centenas, devia haver oitenta mil dólares só naquela mão.
Estava outro gorila sem pêlo perto de uma janela. Unha a arma num coldre à cinta, e não a largou enquanto Carson e Michael passavam pelo seu posto.
Uma terceira porta dava para uma sala de conferências muito puída que cheirava a cancro do pulmão. Doze cadeiras em redor de uma mesa estragada com catorze cinzeiros em cima.
A cabeça da mesa estava um homem com cara alegre, olhos azuis muito vivos e bigode. O chapéu de palhinha assentava-lhe no cimo das orelhas de abano.
Levantou-se quando se aproximaram, e viu-se que usava as calças acima da cintura, entre o umbigo e o peito.
A mãe pata disse:
- Senhor Godot, embora cheirem ao pior tipo de beatos, estes vieram recomendados pelo Aubrey, portanto não me aperte os tomates se tiver de os estripar como peixes antes de isto acabar.
A direita do homem com orelhas de abano, e ligeiramente atrás dele, estava o Pé Grande num fato de linho branco com risquinhas azuis. Fazia com que os gorilas anteriores parecessem chimpanzés.
Pé Grande estava com ar de quem os poderia matar e depois comer, à mais ligeira provocação.
Godot, por outro lado, foi hospitaleiro. Estendeu a mão direita e disse:
- Os amigos do Aubrey são meus amigos, especialmente quando vêm com dinheiro vivo.
Michael apertou a mão e disse:
- Contava que tivéssemos de esperar pelo senhor Godot, e não o contrário. Espero que não tenhamos chegado tarde.

95
- Pontualíssimos - garantiu Godot. - E quem poderá ser esta coisinha que enche o olho?
- Esta coisinha que enche o olho - disse Carson - é quem traz o dinheiro vivo.
- Ficaste ainda mais bonita - disse Godot.
Carson tirou dois rolos gordos de notas de cem dólares dos bolsos do casaco, e Godot pousou em cima da mesa uma das malas que tinha no chão ao lado da cadeira.
Pé Grande continuou com ambas as mãos livres.
Godot abriu a mala e exibiu duas caçadeiras Urban Sniper com porta-cartuchos a tiracolo e fundas tripartidas. Os canos tinham sido serrados a 35 cm. Com as armas vinham quatro caixas de balas, e não chumbo
de caça, a única coisa que a Sniper disparava.
Carson disse:
- O senhor Godot é um recurso de respeito.
- A Mãezinha queria que eu fosse pregador, e o Paizinho, paz à sua alma, queria que eu fosse soldador como ele, mas revoltei-me por ser um desgraçado de um cajun, e procurei a minha felicidade, e aqui
estou.
A segunda mala era mais pequena do que a primeira. Unha duas Desert Eagles de calibre 50 Magnum com acabamentos de titânio dourado. Ao lado das armas estavam as caixas de munições solicitadas e dois cartuchos
sobresselentes para cada uma.
- Estão preparados para o coice que esse monstro lhes dá? - perguntou Godot.
Receoso das armas grandes, Michael respondeu:
- Não, senhor, estou a contar que me faça cair de cu.
A divertir-se, Godot disse:
- Estou preocupado com esta senhora aqui, filho, e não com uma bisarma como tu.
- A Eagle é suavezinha - disse Carson -, dá menos coice do que o senhor pensa. É um abalo, claro, mas eu aguento-me. A dez metros, podia descarregar as nove balas que o cartucho tem entre a sua virilha
e o seu pescoço, nem mais alto, nem mais ao lado.
Esta afirmação fez com que Pé Grande avançasse, de má catadura.
- Sossega - disse Godot ao guarda-costas.
- Ela não fez ameaça nenhuma. E só gabarolice.
Carson fechou a mala que tinha as pistolas e perguntou:
- Não vai contar o dinheiro?

96
- Tu és a mais rija que eu vi em muito tempo, mas também tens algo de santa. Seria uma surpresa muito má se eu descobrisse que me tinhas roubado um bocadinho que fosse.
Carson não pôde deixar de sorrir.
- Estão aí os dólares todos.
- Senhor Godot - disse Michael foi um alívio fazer negócio consigo, sabendo que estamos a lidar com verdadeiros seres humanos.
- Mas que simpático da sua parte - retrucou Godot -, simpático, e parece sentido do fundo do coração.
- E é - disse Michael é mesmo.

25.
Randal Seis está de pé no armário da caldeira no rés-do-chão, a ouvir Billy Joel cantar no andar de cima.
O armário mede cerca de dois por dois. Mesmo a chama azul do gás e a luz fraca que entra por debaixo da porta chegam para que ele possa avaliar o espaço.
Finalmente encontra-se em casa do autista sorridente, Arnie O'Connor. O segredo da felicidade está ao seu alcance.
Aguarda naquela obscuridade acolhedora, enquanto as canções se sucedem. Desfruta do seu triunfo. Está a habituar-se ao novo ambiente. Está a organizar o próximo passo.
E também tem medo. Randal Seis nunca esteve numa casa. Até duas noites antes, morava nas Mãos da Misericórdia. Entre isso e aquela casa, passara um dia escondido num contentor do lixo, mas um contentor
do lixo não é o mesmo que uma casa.
Para além da porta daquele armário está um sítio tão estranho para ele como um planeta numa outra galáxia.
Ele gosta do que lhe é familiar. Receia o que é novo. Detesta mudanças.
Assim que abrir aquela porta e passar o umbral, tudo diante dele será novo e estranho. Tudo ficará diferente para sempre.
A tremer no escuro, Randal quase acredita que a sua cela nas Mãos da Misericórdia e até as experiências tortuosas a que o Pai o sujeitava poderão ser melhores do que o que tem pela frente.
Não obstante, passadas três canções, ele abre a porta e olha para o espaço em frente, os dois corações a baterem descompassados.
O sol que bate numa janela de vidro fosco derrama a sua luz sobre duas máquinas que ele reconhece dos anúncios das revistas e das buscas na Internet. Uma máquina lava roupa. A outra seca.
Dos armários fechados por cima das máquinas chega-lhe o cheiro a lixívia e detergente.
Diante dele está a lavandaria. Uma lavandaria. Naquele momento, não lhe ocorre nada que sugira mais lancinantemente a doce banalidade da vida quotidiana.
Mais do que tudo, Randal Seis quer uma vida banal. Não quer ser - não pode ser - da Velha Raça, mas quer viver como eles, sem tormentos incessantes, com a sua quota-parte de felicidade.

98 | Dean Koontz
A experiência da lavandaria é progresso bastante para um só dia. Fecha a porta silenciosamente e fica dentro do armário escuro da caldeira, contente consigo mesmo.
Revive o momento delicioso em que contemplou as superfícies esmaltadas das máquinas de lavar e secar, e o grande cesto de plástico com o que poderia ser várias peças de roupa amarrotada.
A sala da lavandaria tem chão de vinilo em mosaico, como os corredores e a maioria dos quartos nas Mãos da Misericórdia. Ele não estava à espera de mosaicos de vinilo. Achara que tudo seria loucamente
diferente do que ele conhecia.
Os mosaicos de vinilo nas Mãos da Misericórdia são cinzentos com manchinhas verdes e cor-de-rosa. Na lavandaria são amarelos. Aqueles dois estilos de pavimento são diferentes, mas também idênticos.
Enquanto a música que lhe chega lá de cima da casa vai mudando, Randal vai ficando envergonhado pela sua timidez. Espreitar por uma porta na lavandaria dos O'Connor não é nenhuma proeza heróica.
Está a iludir-se. Está a sucumbir à sua agorafobia, ao seu desejo autista de reduzir os estímulos sensoriais.
Se avançar àquele ritmo agonizante, precisará de seis meses para entrar em casa e encontrar Arnie.
Não pode viver debaixo da estrutura, no espaço exíguo, durante tanto tempo. Para começar, tem fome. O seu corpo superlativo é uma máquina que precisa de combustível.
Randal não se importa de comer aranhas, roedores, minhocas e cobras que encontre debaixo da casa. Todavia, a avaliar pelas criaturas que encontrou entretanto, nas horas que passou nesse espaço exíguo,
aquele reino sombrio não tem nem uma ínfima fracção da caça de que ele precisa para seu sustento.
Torna a abrir a porta.
A maravilhosa lavandaria. A espera.
Sai do armário da caldeira e fecha suavemente a porta atrás de si. Não há palavras para a excitação que sente.
Nunca andou em mosaicos de vinilo amarelo. Funcionam da mesma maneira que os cinzentos. As solas dos sapatos dele chiam muito baixinho.
Há uma porta aberta entre a lavandaria e a cozinha.
Randal Seis pára neste novo umbral, maravilhado. Uma cozinha é tudo - mais! - o que ele pensava ser, um lugar cheio de conveniências e com um encanto esmagador.

99
Randal pode facilmente deixar-se inebriar pelo ambiente, mas deve ficar sóbrio e cauteloso, preparado para bater em retirada se ouvir alguém chegar.
Até poder localizar Arnie e arrancar-lhe o segredo da felicidade, Randal quer evitar ficar cara a cara com alguém. Não sabe bem o que aconteceria em tal encontro, mas tem a certeza de que as consequências
não seriam agradáveis.
Embora tenha sido criado para ser autista e servir nas experiências do Pai, o que o distingue dos outros da Nova Raça, Randal tem grande parte da programação deles. Por exemplo, é incapaz de se suicidar.
Não tem autorização para matar, excepto quando o criador assim lho ordenar. Ou em autodefesa.
O problema é que Randal sente um medo terrível dentro do seu autismo. Facilmente se sente ameaçado.
Escondido no contentor do lixo, matou um sem-abrigo que lá fora à procura de latas de refrigerante e outros pequenos tesouros.
O vadio até podia não lhe querer mal nenhum, até podia não ser capaz de lhe fazer mal nenhum, mas Randal puxara-o de cabeça para dentro do contentor, partira-lhe o pescoço e enterrara-o debaixo dos sacos
do lixo.
Tendo em conta que basta a novidade para o assustar, a mais ínfima mudança para o abalar, qualquer encontro com um estranho só poderá resultar num acto violento de autodefesa. Não tem preocupações morais
a esse respeito. Eles são da Velha Raça e devem todos morrer, mais cedo ou mais tarde.
O problema é que partir a espinha a um vadio num beco deserto não chama a atenção de ninguém; mas matar alguém dentro de sua casa será uma barulheira que revelará a sua presença a outros residentes e,
possivelmente, até aos vizinhos.
Não obstante, como tem fome e como o frigorífico tem de certeza algo mais saboroso do que aranhas e minhocas, ele sai da lavandaria e entra na cozinha.

26.

Cada um com uma mala cheia de armas, Carson e Michael saíram d'A Outra Ella.
Enquanto filha de um detective de quem se dizia ter-se tornado corrupto, Carson acreditava ser alvo do escrutínio dos colegas, mais do que qualquer outro polícia. Compreendia isso, levava a mal - e tinha
consciência suficiente de que poderia estar a imaginar coisas.
Acabadinha de lidar com a desbocada Francine e o cordial Godot, a atravessar o passeio rumo ao carro à civil, Carson observou a rua, um pouco desconfiada de que a Divisão de Assuntos Internos, depois de
vigiar o local, poderia aparecer a qualquer momento para prender gente.
Todo e qualquer transeunte parecia estar interessado em Carson e Michael, olhar com desconfiança para as malas que eles carregavam. Parecia que dois homens e uma mulher do outro lado da rua olhavam com
particular intensidade.
Porque é que alguém sairia de um restaurante com malas? Ninguém comprava comida tão volumosa.
Guardaram as malas na bagageira do carro e Carson, ao volante, saiu do Faubourg Marigny e entrou no Bairro sem ser detida.
- E agora? - perguntou Michael.
- Damos uma volta.
-Fixe.
- Pensamos nisto.
- Pensamos em quê?
- Na cor do amor, no som que uma mão sozinha faz a bater palmas. Em que te parece que temos de pensar?
- Não me apetece pensar - disse ele. - É por pensarmos que ainda acabamos mortos.
- Como é que apanhamos o Victor Frankenstein?
- Helios.
- Helios, Frankenstein, ainda é o mesmo Victor. Como é que apanhamos o Victor?
Michael disse:
- Se calhar sou supersticioso, mas preferia que o Victor tivesse outro nome.
- Porquê?
- Um vencedor é alguém que derrota o adversário.

101
- Lembras-te do gajo que prendemos no ano passado por duplo homicídio na loja de antiguidades da Royal?
- Lembro. Tinha três testículos.
- Mas o que é que isso tem a ver? - perguntou ela, impaciente. -Não sabíamos disso até o prendermos, acusarmos e recebermos o exame médico da cadeia.
- Não tem nada a ver com nada - admitiu ele. - E só um pormenor que fica na memória.
- O que eu quero dizer é que o gajo se chamava Champ Champion, mas que ainda assim era um falhado.
- O nome dele era Shirley Champion, o que explica tudo.
- Mudou o nome legalmente para Champ Champion.
- Cary Grant nasceu Archie Leach. O único nome que importa é aquele com que se nasce.
1 Eu encosto à berma, tu baixas o vidro e perguntas a quem passar se viu algum filme do Archie Leach. Para ver quantos nomes com que se nasce importam.
- Marilyn Monroe... Ela chamava-se na vida real Norma Jean Mor-tenson - disse ele - e por isso é que acabou por morrer de overdose.
- Esta é uma daquelas alturas do mês em que tu ficas impossível de aturar?
- Sei que tu é que costumas fazer isso - disse Michael. - E a Joan Crawford? Nasceu Lucille Le Sueur, o que explica porque é que batia nos filhos com cabides.
- O Cary Grant nunca bateu em ninguém com cabides, e teve uma vida fabulosa.
- Pois, mas foi o maior actor da história do cinema. As regras não se aplicam a ele. Victor e Frankenstein são dois nomes do mais poderoso que já ouvi, e ele nasceu com eles. Não me importa o que possas
dizer, sentir-me-ia mais à vontade se a mãe dele lhe tivesse chamado Nancy.
- O que é que eles estão a fazer? - perguntou Cindi, impaciente, a olhar outra vez para o mapa da cidade no ecrã do tabliê.
Benny não tirava os olhos do ecrã enquanto Cindi conduzia.
- No final de cada quarteirão, ela dá outra volta, para a frente e para trás, em ziguezague, às voltas, como um rato cego num labirinto.
- Talvez saibam que estão a ser seguidos.

102ão podem saber - disse ele. - Não nos vêem.
Ao serem capazes de seguir o carro à civil através do emissor--receptor que Dooley fixara secretamente por baixo do capô, os Lovewells não precisavam de estar sempre a vê-lo. Podiam fazer uma perseguição
mais descontraída, à distância de vários quarteirões, e até seguir os detectives em ruas paralelas.
- Eu sei como ela se sente - disse Cindi.
- Como?
- Como um rato cego num labirinto.
- Eu não disse que ela se sentia assim. Não sei como ela se sente. Eu disse que é assim que ela conduz.
- A maior parte do tempo - disse Cindi -, eu sinto-me como um rato cego num labirinto. E ela não tem filhos, como eu.
- Quem?
- A detective O'Connor. Tem idade para já ter tido meia dúzia de filhos, pelo menos, mas não tem. É estéril.
- Não tens como saber se ela é estéril.
- Mas sei.
- Talvez ela não queira filhos.
- É mulher. Quer filhos.
- Tornou a virar, desta vez à esquerda.
-Vês?
- Vejo o quê?
- Ela é estéril.
- E estéril por ter virado à esquerda?
Solenemente, Cindi sentenciou:
- Como um rato cego num labirinto.
Carson virou à direita na Chartres Street e passou pela Casa de Napoleão, uma ruína magnífica.
- Apanhar Victor na Biovision está fora de questão - disse ela. -Muita gente, muitas testemunhas, provavelmente nem todas são gente feita por ele.
- Podíamos alvejá-lo no carro, a sair ou a entrar.
- Numa via pública? Se conseguirmos não morrer a fazer isto, não quero acabar na penitenciária das mulheres com as tuas antigas namoradas todas.
- Descobrimos-lhe a rotina - propôs Michael - e encontramos o sítio menos público do caminho.

103
- Não temos tempo para lhe descobrir a rotina - recordou ela. -Agora somos um alvo. Ambos sabemos disso.
- O laboratório secreto de que falámos antes. O sítio onde ele... cria.
- Também não temos tempo para descobrir isso. E para mais, deve ter uma segurança melhor do que a Reserva Federal.
- A segurança da Reserva Federal deve ser uma coisa sobrevalorizada. Os vilões passaram-na no Çoldfinger.
- Nós não somos vilões - contrariou ela - e isto não é nenhum filme. O melhor sítio para o apanhar é em casa dele.
- É uma mansão. Tem montes de pessoal.
- Teremos de passar por eles, direitos a ele, entrar à bruta e em grande - disse ela.
- Não somos a força de intervenção.
- E também não somos polícias de giro.
- E se houver pessoal que seja da nossa espécie? - alvitrou Michael.
- Não há-de haver ninguém. Ele não havia de querer gente nossa a servi-lo, onde poderiam ver ou ouvir qualquer coisa. Serão todos parte da Nova Raça.
- Não podemos ter cem por cento de certeza.
Na Decatur Street, em Jackson Square, onde os coches formavam fila para fazerem o giro turístico ao Bairro Francês, uma das geralmente plácidas mulas afastara-se da berma. O condutor e um polícia andavam
atrás dela a pé, enquanto a mula puxava a sua carroça enfeitada em círculos e impedia o trânsito.
- Se calhar foi a velha Francine que enfiou alguém pelo rabo da mula acima - sugeriu Michael.
Não se deixando demover, Carson disse:
- Portanto, temos de apanhar o Victor em casa dele, no Garden District.
- Talvez fizesse mais sentido sairmos de Nova Orleães. Podíamos ir para um sítio onde ele não nos possa encontrar, teríamos mais tempo para pensar nisto.
- Pois. Aliviar a pressão. Tirar uma semana para pensar mesmo. Até duas. Até podíamos não voltar.
- E seria assim tão mau? - perguntou ele.
- A única coisa necessária para o triunfo do mal...
-... é os homens bons nada fazerem. Pois. Já me tinhas dito.
- E de quem é a frase?
- Acho que foi o Tigger, mas também pode ter sido o Pooh.

104
O condutor do coche agarrou no freio da mula. Esta acalmou-se e deixou-se levar de volta à berma. O trânsito engarrafado começou a avançar.
Carson disse:
- Ele sabe que estamos de olho nele. Mesmo que saíssemos da cidade, ele não pára enquanto não nos encontrar, Michael. Passaríamos a vida a fugir.
- Parece-me romântico - disse ele em tom sonhador.
- Não vás por aí - avisou ela. - O jardim das rosas do Aubrey não era sítio para falar nisso, e isto agora é pior.
- Vai haver sítio para isso alguma vez?
Ela conduziu em silêncio mais um pouco, virou à direita na curva seguinte, e depois disse:
- Talvez. Mas só se conseguirmos abater o Helios antes de a gente dele nos esventrar e nos atirar para o Mississipi.
- Tu sabes mesmo dar esperança a um gajo.
- Agora cala-te com isso. Cala-te. Se ficarmos todos derretidos um com o outro, desconcentramo-nos. Se nos desconcentrarmos, morremos.
-
É uma pena que o resto do mundo nunca veja este teu lado ternurento.
- Estou a falar a sério, Michael. Não quero falar de nós os dois. Nem sequer fazer piadas sobre isso. Temos uma guerra para vencer.
- Está bem. Pronto. Já ouvi. Vou reprimir-me. - Michael suspirou. - O Champ Champion tinha três testículos, e eu não tarda nada que não tenha nenhum, hão-de mirrar todos.
- Michael - disse ela em tom de advertência.
Ele suspirou outra vez e calou-se.
Dois quarteirões mais à frente, ela lançou-lhe uma olhadela. Era amoroso. E sabia disso.
A reprimir-se também, Carson disse:
- Temos de arranjar um sítio seguro para verificarmos as armas novas, carregá-las a elas e a nós com os cartuchos sobresselentes.
- O City Park - sugeriu ele. - Segue pela estrada de serviço onde encontrámos o contabilista morto há dois anos.
- O tipo nu que foi estrangulado com as contas do Carnaval.
- Não, não, esse era arquitecto. Estou a falar do gajo vestido de cobói.
- Ah pois, o fato de cobói de cabedal preto.
- Era azul-cobalto - corrigiu Michael.

105
- Se assim o dizes. Tens mais tino para a moda do que eu. O cadáver estava bem perto da estrada de serviço.
- Não me refiro a onde encontrámos o cadáver - disse Michael. - Onde encontrámos a cabeça.
- Passa-se por um maciço de pinheiros.
- E depois alguns carvalhos.
- E depois descampado. Já me lembro. E um sítio bom.
- É muito bom - anuiu Michael - e não fica perto de trilhos para corredores. Teremos privacidade.
- O assassino teve privacidade, sim senhor.
- Ah, pois teve - disse Michael.
- Quanto tempo levámos a apanhá-lo, quatro semanas?
- Pouco mais de cinco.
- Foi um tiro do caraças, aquele com que o apanhaste - disse Carson.
- Fez ricochete mesmo na lâmina do machado.
- Não gostei nada de ficar a jeito dos salpicos.
- A limpeza a seco tirou as manchas dos miolos?
- Quando lhes disse o que era, nem sequer quiseram tentar. E era um casaco novo.
- A culpa não foi minha. Aquele tipo de ricochete é obra de Deus.
Carson descontraiu-se. Assim estava melhor. Nada de falar em romances, distracções, nervoso-miudinho.

27.
Na sala de dissecção de aço inoxidável e mosaicos cerâmicos, quando Victor examinou o cadáver do detective Jonathan Harker, descobriu que aproximadamente vinte quilos da substância do corpo haviam desaparecido.
Do tronco pendia um cordão umbilical rasgado. Junto com o abdómen rebentado e a caixa torácica rachada, aquilo sugeria que uma forma de vida inesperada - chamemos-lhe parasita - se formara dentro de Harker,
chegara a um estado em que podia viver independente do hospedeiro, e se libertara, destruindo Harker pelo caminho.
Era um acontecimento perturbador.
Ripley, que manobrava a câmara de vídeo portátil com que habitualmente se registavam as autópsias, ficara claramente abalado com as implicações de tal descoberta.
- Senhor Helios, ele deu à luz.
- Eu não lhe chamaria dar à luz - disse Victor, sem disfarçar o aborrecimento.
- Não somos capazes de reprodução - disse Ripley. A voz e os modos dele sugeriam que a ideia de outra forma de vida ter saído de dentro de Harker era o equivalente a uma blasfémia.
- Não é reprodução - contrariou Victor. - E doença.
- Mas senhor... uma doença móvel e que se sustenta a si própria?
- Eu queria dizer mutação - explicou Victor, impaciente.
No tanque, Ripley recebera instrução exaustiva sobre a fisiologia da Velha Raça e da Nova Raça. Deveria ser capaz de compreender aquelas matizes biológicas.
- Um ser parasita desenvolveu-se a partir da carne do Harker -disse Victor - e quando pôde viver independente dele... separou-se.
Ripley parou de filmar e ficou boquiaberto de espanto, pálido de agitação. Tinha umas sobrancelhas fartas que lhe davam um ar de espanto cómico.
Victor não se lembrava porque é que decidira conceber Ripley com tais sobrancelhas. Eram absurdas.
- Senhor Helios, desculpe a franqueza, mas está a dizer que foi sua intenção que um ser mutante brotasse de dentro do Harker? Para que fim, senhor?

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- Não, Ripley, claro que não era minha intenção. Há uma expressão na Velha Raça útil para esta situação: acontece.
- Mas, senhor, desculpe, o senhor é o criador da nossa carne, dono e senhor. Como é que pode haver algo na nossa carne que o senhor não compreenda... ou preveja?
Pior do que a expressão cómica que as sobrancelhas davam a Ripley, era o facto de fomentarem um semblante de exagerada censura.
Victor não gostava que o censurassem.
- A ciência avança em grandes saltos, mas por vezes também dá alguns passos atrás.
- Atrás? - Tendo sido devidamente doutrinado dentro do tanque, Ripley por vezes tinha dificuldade em encaixar as suas expectativas na vida real. - A ciência em geral, senhor, sim, por vezes falha. Mas
o senhor não. O senhor não, e a Nova Raça também não.
- O importante a reter é que os saltos em frente são muito maiores do que os retrocessos, e mais numerosos.
- Mas isto é um grande retrocesso, senhor, não é? A nossa carne... descontrolada?
- A sua carne não está descontrolada, Ripley. Onde é que foi arranjar esse pendor melodramático? Está a passar vergonha.
- Lamento, senhor. Mas decerto não compreendo. Decerto que, quando tiver um momento para reconsiderar, terei a equanimidade que o senhor tem neste assunto.
- O Harker não é sinal do que está para vir. Ele é uma anomalia. Ele é uma singularidade. Não vai haver mais mutações como a dele.
Talvez o parasita não se tivesse apenas alimentado das entranhas de Harker, mas tivesse também incorporado os dois corações dentro dele, bem como os pulmões e vários outros órgãos internos, partilhando-os
a princípio e depois apoderando-se deles. Era o que faltava ao cadáver.
Segundo Jack Rogers - o verdadeiro médico-legista, agora morto e substituído por uma réplica -, os detectives O'Connor e Maddison alegavam ter visto sair de dentro de Harker uma criatura que parecia um
troll, como se saísse de um casulo. Tinham-na visto desaparecer numa boca de esgoto.
Quando acabou a autópsia de Harker e de tirar amostras para estudo posterior, Victor já estava de muito mau humor.
Enquanto embalavam os restos mortais de Harker e os punham de lado a fim de serem expedidos para Crosswoods, Ripley perguntou:
- Aonde está o outro ser que saiu do Harker, senhor Helios?

108
- Fugiu para uma boca de esgoto. Morreu.
- Como é que sabe que morreu?
- Porque sei - disse Victor duramente.
Viraram-se para a mesa de autópsia onde estava o mordomo William.
Embora acreditasse que o episódio dos dedos arrancados à dentada resultasse apenas de colapso psicológico, Victor não deixou de abrir o tronco do mordomo e de fazer o inventário dos órgãos, para garantir
que não saíra dele nenhum outro ser. Não encontrou provas de mutação.
Com uma serra concebida por si, com uma lâmina de diamante tão afiada que podia cortar os ossos densos do Novo Homem, abriram o crânio de William. Tiraram-lhe o cérebro e puseram-no numa solução de conservação,
dentro de uma caixa Tupperware, para mais tarde dissecar e estudar.
Era evidente que Ripley não se sentia alarmado com o destino de William, como se sentira com o de Harker. Já vira aquele tipo de coisa.
Victor engendrara um ser perfeito com uma mente perfeita, mas o contacto com a Nova Raça, a imersão naquela sociedade doente, por vezes corrompia os nascidos nos tanques.
Tal continuaria a ser um problema ocasional até que a Velha Raça fosse erradicada e, com ela, a ordem social e a moral pré-darwiniana criada por ela. Na sequência da Ultima Guerra, sem o paradigma da Velha
Raça para os confundir e seduzir, a gente de Victor existiria para todo o sempre com perfeita saúde mental, do primeiro ao último.
Quando terminaram com William, Ripley disse:
- Senhor Helios, desculpe, mas não consigo deixar de pensar - será possível que o que aconteceu ao Harker me aconteça a mim?
- Não, já lhe disse, ele era uma singularidade.
- Mas, senhor, desculpe se pareço impertinente... Todavia, se o senhor não esperava que acontecesse da primeira vez, como pode ter a certeza de que não acontece segunda vez?
A tirar as luvas de borracha cirúrgicas, Victor respondeu:
- Que diabo, Ripley, pare lá com as sobrancelhas.
- As sobrancelhas, senhor?
- Você sabe o que eu quero dizer. Pode limpar isto.
- Senhor, é possível que a consciência do Harker, a essência da sua mente, se tenham transferido para o outro ser?
A despir a bata que usara por cima da roupa, e avançando para a porta da sala de dissecção, Victor respondeu:

109
- Não. Foi uma mutação parasita, o mais provável será algo com uma sensibilidade animal muito rudimentar.
- Mas, senhor, se a tal coisa afinal não for uma coisa, se for o próprio Harker, e se agora morar nos esgotos, será livre.
A palavra livre deixou Victor de sobreaviso, e virou-se para fixar Ripley.
Quando Ripley se apercebeu do erro, o medo baixou-lhe as sobrancelhas das alturas absurdas a que tinham chegado, e franziram-se no sobrolho.
- Não pretendo sugerir que o que aconteceu ao Harker seja de algum modo desejável.
- Não pretende, Ripley?
- Não, senhor, de modo nenhum. Um horror, o que lhe aconteceu.
Victor fitou-o. Ripley não se atreveu a dizer mais nada.
Após um longo silêncio, Victor disse:
- Além das suas sobrancelhas, Ripley, você é demasiado excitável. De uma maneira irritante.

28.
A avançar hesitantemente na cozinha em estado de perplexidade, Randal Seis imagina que deve ser assim que um monge devoto se sente num templo, num altar consagrado.
Pela primeira vez na sua vida, Randal está dentro de uma casa. As Mãos da Misericórdia eram a sua cela, mas nunca foram o seu lar. Apenas um lugar. Não despoletava nele emoção alguma.
Para a Velha Raça, a casa é o centro da existência. A casa é o primeiro refúgio de - e última defesa contra - desapontamentos e terrores da vida.
O coração da casa é a cozinha. Ele sabe isto porque leu numa revista de decoração e noutra sobre cozinha ligeira.
Além disso, Martha Stewart disse que era assim, e Martha Stewart é, por decisão da Velha Raça, a derradeira autoridade na matéria.
Nas noites de convívio, os amigos e os vizinhos vão gravitando para a cozinha. Algumas das recordações mais felizes de uma família são momentos de união na cozinha. Segundo os filósofos da Velha Raça,
não há nada que exprima o amor como o forno, e o forno fica na cozinha.
As persianas estão a meio. O sol do fim de tarde que chega às janelas foi filtrado pelos carvalhos lá fora. Contudo, Randal vê o suficiente para explorar o espaço.
Abre silenciosamente armários, descobre pratos, taças, pires, copos. Nas gavetas encontra panos dobrados, talheres, facas e uma colecção enigmática de utensílios e engenhocas culinárias.
Regra geral, entre imagens novas e objectos desconhecidos, Randal é acometido de um ataque de pânico. Não raro, é obrigado a refugiar-se num canto e a virar costas ao mundo para poder sobreviver ao choque
de tantos estímulos sensoriais.
Por alguma razão, a riqueza avassaladora da nova experiência naquela cozinha não o afecta desse modo. Em vez de pânico, ele sente... deslumbramento.
Talvez seja por estar numa casa, finalmente. A casa de uma pessoa é inviolável. Um santuário. Uma extensão da personalidade, diz Martha. A casa é o mais seguro de todos os lugares.
Ele está no coração daquela casa, no espaço mais seguro do lugar mais seguro, onde se criarão tantas recordações felizes, onde a partilha e a troca e o riso ocorrem diariamente.

111
Randal Seis nunca se riu. Sorriu, uma vez. Quando chegou à casa dos O'Connor, quando saiu da tempestade e rastejou para debaixo da casa, no escuro entre as aranhas, sabendo que acabaria por chegar a Arnie,
ele sorriu.
Quando abre a porta da despensa, fica siderado com a quantidade e variedade de comidas enlatadas e embaladas nas prateleiras. Nunca se atrevera a imaginar tal abundância.
Nas Mãos da Misericórdia, levavam-lhe as refeições e os lanches à cela. A ementa era planeada por outrem. Não lhe davam comida a escolher - tirando a cor, na qual ele insistia.
Ali, as opções diante dele são esmagadoras. Só em sopa enlatada, vê seis variedades.
Quando vira costas à despensa e abre a porta de cima do frigorífico, as pernas tremem-lhe e os joelhos vacilam. Entre outras coisas, o congelador tem três embalagens de gelado.
Randal Seis adora gelado. Nunca se farta de comer gelado.
A excitação inicial dá lugar a um desapontamento agudo quando se apercebe de que nenhuma das opções se traduz em baunilha. Há chocolate com amêndoas. Chocolate com menta. Há sorvete de banana e morango.
Na sua maioria, Randal só comeu comida branca e verde. Quase toda branca. Esta restrição das cores na comida é uma defesa contra o caos, uma expressão do seu autismo. Leite, peito de frango, peru, batatas,
pipocas (sem manteiga, porque a manteiga as torna demasiado amarelas), maçãs descascadas, peras descascadas... Ele tolera vegetais verdes como alface e aipo e feijão-verde, e também fruta verde, como uvas.
As deficiências nutricionais de tal dieta branca e verde são colmatadas com cápsulas brancas de vitaminas e sais minerais.
Nunca comeu nenhum sabor de gelado além de baunilha. Sempre soube que há outros sabores, mas sempre os achou repugnantes.
Todavia, os O'Connors não têm baunilha.
Por momentos sente-se derrotado, e cai no desânimo.
Tem fome, está esfomeado e, como nunca antes, apetece-lhe fazer uma experiência. Para surpresa sua, dá consigo a tirar a caixa de chocolate e menta do congelador.
Nunca comeu nada que fosse castanho. Escolhe o chocolate com menta em vez do chocolate com amêndoas porque parte do princípio de que vai haver bocadinhos de verde, o que talvez torne o gelado tolerável.

112
uma colher da gaveta dos talheres e leva a caixa de gelado para a mesa da cozinha. Senta-se, a tremer de expectativa.
Comida castanha. Poderá não sobreviver.
Quando tira a tampa da caixa, Randal descobre que a menta está em riscos de verde vivo, entremeados na massa castanha fria. Aquela cor conhecida encoraja-o. A caixa está cheia, e ele tira uma colherada.
Levanta a colher e falta-lhe a coragem de a levar à boca. Precisa de quatro tentativas antes de triunfar à quinta.
Não é nojento. É delicioso.
Galvanizante de delicioso. Randal leva outra colherada à boca sem hesitação. E outra.
Enquanto come, sente uma paz, uma satisfação, que nunca sentiu antes. Ainda não está feliz mas, como compreende o conceito de felicidade, está mais perto desse estado desejado do que jamais estivera, nos
seus quatro meses de vida fora do tanque.
Tendo chegado ali em busca do segredo da felicidade, Randal encontrou outra coisa primeiro: um lar.
Sente que ali é o seu lugar, de uma maneira que nunca foi nas Mãos da Misericórdia. Sente-se tão seguro ali que até pode comer comida castanha. Talvez depois até coma o sorvete de banana e morango amarelo
e cor-de-rosa. Tudo e mais alguma coisa, por mais ousado que seja, lhe parece possível dentro daquelas quatro paredes que o abrigam.
Quando chega a meio da caixa de chocolate e menta, Randal sabe que nunca sairá dali. Aquela é a sua casa.
Ao longo da História, os homens da Velha Raça morreram - e mataram - para proteger as suas casas. Randal Seis sabe um pouco de História, os dois gigabytes habituais carregados no tanque.
Ser arrancado daquele sítio e lançado no mundo garrido e ruidoso seria equivalente à morte. Por conseguinte, qualquer tentativa de o obrigar a sair de sua casa será considerada uma agressão assassina,
justificando assim reacção rápida e letal.
Aquela é a sua casa. Com todas as suas forças, Randal há-de defender o seu direito a ela.
Ouve passos a descer a escada.

29.
Gunny Alecto, motorista de um galeão do lixo, entrou na barraca que serve de gabinete ao gerente, sentou-se à beira da secretária de Nick Frigg e disse:
- Rã racha radar ráfia ragu.
Nick não respondeu. Ela estava só a ter dificuldade em começar; se ele tentasse adivinhar a palavra que ela queria, só a confundiria mais ainda.
Raiva raça rasca rap rato. Ratazana! - Gunny encontrara o nome que queria.
- Já reparaste nas ratazanas?
- O que tem?
- O que tem quem?
- As ratazanas, Gunny.
- Também reparaste?
- Reparei em quê?
- As ratazanas desapareceram - disse ela.
- Desapareceram para onde?
- Se eu soubesse não te vinha perguntar.
- Perguntar o quê?
- Onde estão as ratazanas?
- Sempre tivemos ratazanas - disse Nick.
Ela abanou a cabeça.
- Aqui não. Agora não. Já não.
Gunny parecia uma estrela de cinema, embora imunda. Nick não sabia porque é que Victor a fizera tão linda e depois a mandara para a lixeira. Talvez o contraste entre o aspecto dela e o trabalho o divertisse.
Talvez a tivesse feito à imagem de uma da Velha Raça que o rejeitara ou granjeara a sua antipatia de outro modo.
- Porque é que não vais lá procurar elefantes? - sugeriu Gunny.
- Mas de que é que estás a falar... elefantes?
- Hás-de encontrar tantos como encontras ratazanas. Quando remexo no lixo, geralmente assusto bandos delas, mas não vejo uma há três dias.
- Se calhar estão a escavar mais fundo na fossa, enquanto a enchemos mais.
- Então temos cinco? - inquiriu Gunny.

114
- Cinco ratazanas?
- Ouvi dizer que hoje chegam cinco mortos da Velha Raça.
- Pois. E mais três enganos - disse Nick.
- Vai ser giro esta noite - disse ela. - Hoje está mesmo calor.
- Verão na Luisiana, de que é que estás à espera?
- Não me estou a queixar - disse ela. - Gosto do sol. Quem me dera que houvesse sol à noite.
- Não seria noite se houvesse sol.
- É esse o problema - anuiu Gunny.
A comunicação com Gunny podia ser um desafio. Era espampanante, e não ficava atrás de ninguém a conduzir galeões do lixo, mas os seus processos mentais, como se via pela conversa, nem sempre seguiam um
padrão linear.
Toda a gente na Nova Raça tinha patente. No topo, os Alfas, a elite. Seguiam-se os Betas e os Gamas.
Enquanto gerente da lixeira, Nick era Gama. Toda a gente da sua equipa era Ipsilon.
Os Ipsílones tinham sido concebidos e programados para trabalho braçal. Estavam um ou dois níveis acima das máquinas de carne sem consciência que um dia substituiriam muitos robôs de fábrica.
Não era permitida inveja de classes entre os da Nova Raça. Cada um fora programado para se contentar com a patente com que nascera e para não desejar ascensão.
Claro que continuava a ser permissível desdenhar e sentir-se superior aos da patente inferior. O desprezo pelos subalternos era um substituto sadio da perigosa ambição.
Ipsílones como Gunny Alecto não recebiam a riqueza do carregamento de dados directamente no cérebro concedida a um Gama como Nick, tal como ele recebera menos do que os Beta, e muito menos do que qualquer
Alfa.
Além de serem menos instruídos do que as outras patentes, os Ipsílones por vezes pareciam ter problemas cognitivos que traduziam cérebros menos bem concebidos do que as classes superiores.
- Embaços endachos engaços. Enganos! Os enganos. Temos três, disseste tu. Como são eles?
- Ainda não os vi - respondeu Nick.
- Devem ter ar de estúpidos.
- De certeza que sim.
- Enganos com ar de estúpidos. Vai ser giro esta noite.

115
- Estou ansioso - disse Nick, e era a verdade.
- Para onde achas que foram?
- Os distribuidores puseram-nos nas arcas.
- Às ratazanas? - perguntou ela, perplexa.
- Achei que te referias aos enganos.
- Referia-me às ratazanas. Tenho saudades das pequenitas. Não achas que aqui há gato, pois não?
- Não vi gatos nenhuns.
- Isso explicaria a falta de ratazanas - disse ela. - Mas se não viste nenhuns, a mim chega-me.
Se Gunny tivesse sido despachada para viver entre membros da Velha Raça, poderia não ter passado por um deles - ou ter sido considerada deficiente mental.
Todavia, enquanto membro da equipa da Crosswoods, não tinha vida fora da lixeira. Morava dentro de portas, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, num beliche de uma das caravanas que serviam
de dormitórios.
Apesar dos seus problemas, era uma excelente operadora de buldózer, e Nick estava contente por contar com ela.
Gunny levantou-se da beira da secretária de Nick e disse:
- Bom, de volta à fossa, e depois vai ser giro esta noite, hã?
- Vai ser giro esta noite - concordou ele.

30.
Depois da sua conversa com Christine na cozinha, Erika Helios percorria as divisões da mansão que ainda não conhecia.
O luxuoso cinema em casa era estilo Belle Epoque russa como os palácios de São Petersburgo. Victor especificara aquele estilo opulento em honra do seu malogrado amigo, José Estaline, ditador comunista
e visionário.
Zé Estaline adiantara vastos recursos para financiar pesquisa sobre a Nova Raça depois do triste colapso do Terceiro Reich, o qual fora um revés terrível para Victor. Zé estivera tão confiante na capacidade
de Victor de fabricar uma variedade inteiramente controlável e obediente de seres humanos melhorados que mandara matar quarenta milhões de cidadãos, por vários meios, ainda antes de a tecnologia dos tanques
de clonagem ter sido aperfeiçoada.
Desejoso de viver para sempre, Zé submetera-se a algumas das mesmas técnicas com que Victor sustentara a sua vida há - na altura - quase dois séculos. Infelizmente, Estaline deve ter sofrido de um tumor
cerebral não diagnosticado ou coisa assim porque, no período em que passou por esses procedimentos de extensão da vida, ficara cada vez mais desligado da realidade e paranóico.
Com o tempo, haviam nascido pêlos nas palmas das mãos de Estaline - coisa que nunca acontecera a Victor. Mais, Estaline fora tomado de ataques de violência imprevisíveis, por vezes dirigida a quem o rodeava,
outras a peças de mobiliário, uma vez ao seu par de botas preferido.
Os associados mais íntimos do ditador envenenaram-no e inventaram uma história para encobrir o facto de perpetrarem um golpe. A injustiça assolara Victor mais uma vez, e o financiamento secara às mãos
dos sovinas que se sucederam ao coitado do Zé.
No tanque, Erika recebera toda a rica história do seu marido; porém, estava proibida de falar nisso a alguém que não fosse o próprio Victor. Fora-lhe concedido tal conhecimento apenas para poder compreender
as suas lutas épicas e a glória da sua existência.
Depois do cinema em casa, ela explorou a sala de música, o átrio de recepções, a sala de estar formal, a sala de estar informal, a caixa de jóias que era a sala de pequeno-almoço, a sala dos troféus, a
sala de bilhar, a piscina interior com cobertura de azulejo, e chegou por fim à biblioteca.

117
A visão de tantos livros deixou-a pouco à vontade, pois sabia que os livros eram corruptores, talvez mesmo malignos. Tinham sido a morte de Erika Quatro, a qual absorvera através deles conhecimentos perigosos.
Não obstante, Erika tinha de se familiarizar com a biblioteca porque haveria serões de confraternização em que Victor receberia convivas importantes da Velha Raça - na sua maioria, políticos poderosos
e capitães de indústria - na biblioteca para um conhaque e outras bebidas, depois do jantar. Enquanto anfitriã, teria de se sentir à vontade ali, apesar dos temíveis livros.
Enquanto percorria a biblioteca, atreveu-se a tocar num livro de vez em quando, para se habituar ao seu toque sinistro. Até tirou um da prateleira e o examinou, com os dois corações acelerados.
Caso um convidado uma noite dissesse, querida Erika, não se importa de me passar esse livro com uma encadernação tão bonita, gostaria de o ver, ela teria de estar preparada para apresentar o volume com
a casualidade de um encantador de serpentes veterano a pegar num espécime.
Christine sugerira que Erika procurasse nas várias prateleiras de psicologia e se informasse sobre sadismo sexual. Todavia, ela não se conseguia obrigar a abrir um livro.
Enquanto percorria aquela vasta sala, a meter a mão por baixo de uma prateleira, a sentir a sensação acetinada do acabamento luxuoso da madeira, descobriu um interruptor escondido. Já lhe mexera antes
mesmo de se aperceber do que fazia.
Uma parte das prateleiras revelou-se uma porta oculta, a qual se abriu nas dobradiças. Mais além ficava uma passagem secreta.
No tanque, ela não fora informada da existência daquela porta oculta e do que estava para além dela. Mas também não fora proibida de explorar.

31.
Depois de acender as luzes da cozinha antes de preparar o jantar, Vicky Chou lavou as mãos no lavatório e descobriu que o pano sujo tinha de ser mudado. Limpou as mãos mesmo assim, antes de ir buscar um
pano limpo à gaveta.
Foi à lavandaria e abriu a porta. Sem acender a luz, atirou o pano para o cesto da roupa suja.
Detectou um ligeiro cheiro a bolor, e tentou não se esquecer de inspeccionar a sala logo na manhã seguinte. Os espaços mal ventilados como aquele precisavam de cuidados especiais, no clima húmido do bayou.
Pôs duas bases na mesa. Juntou talheres para si e para Arnie.
A urgência com que Carson saíra de casa, depois de dormir a manhã inteira, sugeria que não iria jantar a casa.
O prato de Arnie era diferente do de Vicky: maior, rectangular e não redondo, dividido em quatro compartimentos. Ele não gostava que as diferentes comidas se misturassem.
Não tolerava coisas cor-de-laranja e verdes no mesmo prato. Embora cortasse a carne e outras comidas sozinho, insistia que o tomate fosse cortado em bocadinhos.
- Mole - dizia ele, a fazer caretas de nojo quando confrontado com um bocado de tomate que precisasse de faca. - Mole, mole.
Não faltavam autistas com muito mais regras do que Arnie. Como o rapaz falava muito pouco, Vicky conhecia-o mais pelas excentricidades do que pelas palavras, e tendia a achá-las mais comoventes do que
frustrantes.
Num esforço de conviver com Arnie sempre que possível, insistia o mais que podia em fazer as refeições com ele, e sempre com a irmã, quando Carson estava em casa. Por vezes a insistência de Vicky não o
convencia, e ela tinha de o deixar comer no quarto, perto do castelo de legos.
Depois da mesa posta, ela abriu o congelador para tirar uma caixa de batatas raladas - e viu que a caixa de gelado de chocolate e menta não estava bem guardada. A tampa estava meio de fora; tinha ficado
uma colher lá dentro.
Arnie nunca fizera uma coisa daquelas. Geralmente, esperava que lhe levassem comida; raramente se servia. Tinha apetite, mas não muito interesse no que comia, ou quando.
Nas ocasiões em que atacava a despensa ou o frigorífico, Arnie era arrumadinho. Nunca deixava migalhas nem nada entornado.

119
Os elevados padrões de higiene culinária do rapaz raiavam a obsessão. Nunca provava nada do prato de outrem, nem sequer da irmã, nunca de outro garfo ou colher que não fosse o seu.
Era inimaginável para Vicky que ele comesse da embalagem. E se o tivesse feito no passado sem ela saber, nunca deixara lá a colher.
Sentiu-se inclinada a pensar que Carson tivera desejos súbitos, mesmo antes de sair de casa à pressa.
Quando Vicky olhou melhor, porém, descobriu que o gelado estava mole à superfície, e brilhante. A caixa estivera fora do congelador algum tempo - e fora lá posta minutos antes.
Vicky fechou a tampa como devia ser, fechou a porta do congelador, levou a colher para o lava-louça, e lavou-a.
Pôs a colher na máquina da louça e chamou:
- Arnie? Onde estás, fofinho?
A porta das traseiras tinha as duas trancas que ela pusera, mas Vicky não deixou de ficar inquieta. O rapaz nunca antes saíra de casa, mas também nunca antes deixara a colher dentro de uma caixa de gelado.
Da cozinha, Vicky passou por um corredor até à sala. As persianas e cortinas multiplicavam as sombras. Vicky acendeu um candeeiro.
- Arnie? Estás cá em baixo, Arnie?
A casa não tinha nada que se comparasse com um vestíbulo, era mais uma alcova de entrada numa ponta da sala. A porta da frente também continuava duplamente trancada.
Por vezes, quando Carson tinha um caso exigente e Arnie tinha saudades da irmã, o rapaz gostava de se sentar sossegado na poltrona do quarto dela, entre as coisas dela.
Não estava lá.
Vicky subiu e ficou aliviada por encontrá-lo na segurança do seu quarto. Arnie não reagiu à entrada dela.
- Fofinho - disse ela -, não devias comer gelado tão perto da hora do jantar.
Arnie não respondeu, mas encaixou uma peça da Lego nos contrafortes do castelo, o qual estava a modificar.
Considerando as severas limitações com que o miúdo vivia, Vicky tinha relutância em ralhar com ele. Não insistiu no gelado, mas disse:
- O jantar deve estar pronto daqui a quarenta e cinco minutos. É um dos teus favoritos. Vais comer lá abaixo?
A única resposta de Arnie foi olhar para o relógio digital que tinha na mesa-de-cabeceira.

120
- Optimo. Vamos comer juntos um belo jantar, e depois leio-te mais uns capítulos de Podkayne de Marte, se quiseres.
- Heinlein - disse o rapaz baixinho, quase com reverência, o nome do autor do romance.
- Isso mesmo. Quando deixámos o coitado do Podkayne, estava metido num lindo sarilho.
- Heinlein - repetiu Arnie, e depois continuou a trabalhar no castelo.
Outra vez no andar de baixo, depois do corredor, Vicky fechou o armário dos casacos, o qual estava entreaberto.
Chegara ao umbral da porta da cozinha quando se apercebeu de que havia no vestíbulo o mesmo cheiro a bolor que sentira na lavandaria. Virou-se, olhou para trás e farejou.
Embora a casa estivesse em cima de pilares, o ar que circulava debaixo da estrutura não impedia que as colónias de fungos, na sua maioria bolores, conspirassem para invadir as divisões mais elevadas. Medravam
naquele espaço exíguo e escuro. Os pilares de cimento puxavam água da terra por osmose, e os bolores subiam por essas superfícies húmidas acima, lançando tentáculos na direcção da casa.
Na manhã seguinte ela ia mesmo fazer uma inspecção aturada de cada canto sombrio nos armários do rés-do-chão, armada com o melhor limpa-bolores que jamais se vira.
Em adolescente, Vicky lera uma história de O. Henry que a deixara com uma fobia eterna por bolores. Numa estalagem, no calor húmido e na escuridão atrás de um radiador antigo, um trapo imundo manchado
de sangue, colonizado pelo bolor, ganhara vida de algum modo, uma vida estúpida mas ávida e, uma noite, como uma ameba silenciosa e serpenteante, partira em busca de outra vida, com o candeeiro desligado
e sufocara o hóspede enquanto dormia.
Vicky Chou não se via propriamente como Sigourney Weaver em Aliens ou Linda Hamilton no Exterminador, mas estava sombriamente decidida a combater qualquer bolor que lhe ameaçasse o território. Naquela
guerra infindável, ela não queria estratégias de retirada; o único resultado aceitável de cada batalha era a vitória total.
Outra vez na cozinha, tirou a caixa de batatas raladas do congelador. Pulverizou um tabuleiro de forno com margarina líquida e espalhou nele as batatas.
Ela e Arnie iriam jantar juntos. Depois Podkayne de Marte. Ele gostava que ela lhe lesse, e ela gostava da hora do conto tanto quanto ele. Eram como família. Aquele seria um belo serão.

32.
Deucalião passara a tarde a andar de igreja em igreja, de catedral em sinagoga, mas em mais lado nenhum, tirando partido do seu entendimento especial do tempo e do espaço para passar de nave para nave,
de um sítio de católicos para outro de protestantes, para outro ainda de católicos, pelos muitos bairros e muitas fés da cidade, de santuário a nártex, a sacristia. Também entrou secretamente em reitorias
e presbitérios e vicariatos, a observar os clérigos no seu trabalho, em busca daquele com que sentisse a certeza de que pertencia à Nova Raça.
Alguns destes homens do clero - e uma mulher - suscitaram-lhe desconfiança. Se fossem monstros a um ponto ainda maior do que ele era, escondiam-no bem. Eram mestres da mascarada, em privado e em público.
Dados os seus cargos, é evidente que estariam entre o melhor que Victor produzisse, os Alfas, excepcionalmente inteligentes e astutos.
Na Nossa Senhora das Mágoas, o padre pareceu-lhe errado. Deucalião não conseguia determinar o motivo da sua suspeita. Intuição, além do mero conhecimento e da razão, dizia-lhe que o padre Patrick Duchaine
não era filho de Deus.
O padre tinha cerca de sessenta anos, cabelo branco e rosto bondoso, um clone perfeito, talvez, de um padre verdadeiro que agora apodrecia numa campa qualquer.
Na sua maioria, indivíduos sozinhos, apenas uns casais, mais velhos do que novos, menos de duas dúzias de paroquianos, tinham aparecido para as vésperas. A missa ainda não tinha começado e eles sentaram-se
em silêncio, sem perturbar o sossego da igreja.
De um lado da nave, os vitrais cintilavam à luz quente do sol que se punha. Padrões geométricos coloridos derramavam-se sobre os fiéis, os assentos.
A Nossa Senhora das Mágoas abria os confessionários todas as manhãs antes da missa e nas tardes, como aquela, em que se celebrassem as vésperas.
Deucalião ficou do lado menos iluminado da nave, fora do brilho dos vitrais, entrou num confessionário, fechou a porta e ajoelhou-se.
Quando o padre abriu o painel que tapava a rede entre eles e convidou à confissão, Deucalião perguntou baixinho:
- O seu deus mora no Céu, padre Duchaine, ou no Garden District?

122
O padre nada disse por momentos, e depois respondeu:
- Parece a pergunta de um homem particularmente perturbado.
- Um homem não, padre. Mais do que um homem. E menos do que um homem. Como o padre, parece-me.
Após uma hesitação, o padre inquiriu:
- Porque veio cá?
- Para o ajudar.
- Porque é que eu precisaria de ajuda?
- Porque sofre.
- Este mundo é um vale de lágrimas para todos nós.
- Podemos mudar isso.
- Não está nas nossas mãos mudar. Só podemos aguentar.
- O padre prega a esperança, mas não tem nenhuma para si.
O silêncio do padre condenava-o e identificava-o.
Deucalião disse:
- Deve ser muito difícil para si garantir aos outros que Deus terá misericórdia das suas almas imortais, sabendo como sabe que, mesmo que Deus exista, o padre não tem alma à qual Ele possa conceder a Sua
graça e a vida eterna.
- O que pretende de mim?
- Uma conversa particular. Consideração. Discrição.
O padre Duchaine hesitou e depois disse:
- Venha à reitoria depois da missa.
- Estarei à espera na sua cozinha. O que lhe trago, padre, é a esperança que nunca pensou poder ser sua. Só tem de ter a coragem de acreditar nela e de a agarrar.

33.
Carson estacionou o carro na berma da estrada de serviço, e eles levaram as malas por entre um maciço de pinheiros, subiram um declive soalheiro, entraram num bosque de carvalhos frondosos. Além dos carvalhos
havia uma vasta extensão descampada.
Com o dobro do tamanho do Central Park de Nova Iorque, o City Park servia uma população que era apenas uma fracção daquela de Manhattan. Por conseguinte, dentro dele havia lugares solitários, especialmente
nas últimas horas pardacentas de uma tarde de Verão abrasadora.
Do outro lado do prado, não se via vivalma a percorrê-lo ou a comungar com a natureza, ou a brincar com um cão, a atirar um disco, a desfazer-se de um cadáver.
Michael pousou a mala e apontou para uma clareira relvada a três metros dos carvalhos.
- Foi ali que encontrámos a cabeça do contabilista, encostada àquela pedra. E coisa que nunca mais se esquece.
- Se a Hallmark fizesse postais adequados à ocasião - disse Carson -mandava-te um todos os anos.
- Fiquei impressionado ao ver o ângulo gingão com que ele usava o chapéu de cobói - recordou Michael -, especialmente dadas as circunstâncias.
- Não era o primeiro encontro deles? - perguntou Carson.
- Era. Foram a uma festa de máscaras juntos. Por isso é que ele estava trajado com o fato de cobói azul-cobalto cravejado de brilhantes.
- As botas dele tinham incrustações de madrepérola.
- Eram umas belas botas. Aposto que ele ficava todo fixe com o corpo e a cabeça juntos, mas claro que nunca conseguimos ver o efeito.
- E chegámos a saber qual a máscara do assassino? - perguntou ela, enquanto se ajoelhava nas folhas mortas e estaladiças do carvalho e abria a mala.
- Acho que foi de toureiro.
- Cortou a cabeça do cobói com um machado. Um toureiro não anda de machado.
- Pois não, mas ele andava sempre com um machado na mala do carro - recordou ele.
- Provavelmente ao lado da caixa de primeiros socorros. É possível um primeiro encontro correr mal a ponto de acabar em decapitação?

124
Michael abriu a mala que tinha as caçadeiras, e respondeu:
- O problema é toda a gente ter expectativas altíssimas quanto a um primeiro encontro. É inevitável ficar desapontado.
Enquanto Michael verificava as caçadeiras Urban Sniper, e encaixava em cada uma a funda tripartida, Carson abria o canhão de cada pistola e inseria um cartucho.
Tirando os barulhinhos que ela e Michael faziam, reinava um silêncio de catedral naquele bosque, e cobria o prado mais além.
Carson carregou os cartuchos de nove balas das duas Desert Eagle Magnum com calibre 50 Action Express.
- Antes de entrarmos na casa dele à saraivada - disse ela -, temos de ter a certeza de que o Helios lá está. Só teremos uma hipótese de o apanhar desprevenido.
- Tenho estado a pensar no mesmo. Temos de nos mancomunar com Deucalião nisto. Ele pode ter alguma ideia.
- Achas que o Arnie corre perigo? - perguntou Carson, aflita.
- Não. Nós somos a ameaça para o Helios, não é o Arnie. E ele não vai tentar calar-te através do teu irmão. Há-de achar que é mais fácil acabar connosco.
- Espero que isso seja assim - disse ela. - Serve-me de consolo.
- Ah pois, não há nada que me deixe tão bem-disposto como ser o alvo principal de um arqui-inimigo.
- Olha só, o Godot pôs dois coldres para as Eagles, de borla.
- De que estilo?
- Bainhas à cinta.
- Personalizadas para a arma? - perguntou ele.
- Sim.
- Dá cá. Esse monstro há-de causar uma sensação estranha ao ombro.
- Vais sair daqui com a Eagle à cinta? - perguntou ela.
- Não é assim tão fácil tirá-la da mala, pois não? Se o Helios tiver gente, seja lá o que forem, atrás de nós, poderemos precisar destes monstros muito antes de chegarmos a casa dele.
Enquanto Michael carregava as caçadeiras, Carson carregava quatro cartuchos sobresselentes para as Magnuns 50.
Amarraram as bainhas à cinta e encaixaram as Eagles. Ambos escolheram a anca esquerda, para poderem sacar a tiracolo, debaixo do blusão.
Na anca direita, cada qual pendurou uma bolsa com dois cartuchos sobresselentes para a Eagle e oito balas para a Urban Sniper.

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Os blusões desportivos serviam para tapar; mas aquele peso novo ia parecer estranho durante algum tempo.
Fecharam as malas e penduraram as caçadeiras no ombro direito - canos para baixo. Plegaram nos dois cartuchos quase vazios e arrepiaram caminho pelo bosque.
Quando chegaram a dois terços da encosta aberta entre os carvalhos e os pinheiros, pousaram as malas e voltaram-se para trás.
- Temos de sentir a besta - disse Carson.
- Um tiro com cada, e depois vamo-nos daqui antes que venham os guardas-florestais.
A terra que se erguia à frente deles travaria as balas e impediria ricochetes.
Pegaram nas Eagles com ambas as mãos e dispararam quase em simultâneo. O barulho parecia o de uma zona de guerra.
Buracos na terra e na erva assinalavam o impacto, como se dois golfistas invisíveis e furiosos tivessem arrancado torrões.
Carson sentiu o coice até aos ombros; mas segurou o cano para baixo.
- Barulho suficiente? - perguntou Michael.
- Ainda não ouviste nada - disse ela, e guardou a Eagle no coldre.
Pegaram nas caçadeiras que tinham ao ombro, e as rajadas gémeas
pareceram trovões que rasgavam o ar. Pareciam vibrar no chão debaixo dos pés deles.
- Sentes-te bem? - perguntou ele.
- Sinto-me óptima.
- Uma bala assim arranca a perna a um homem.
- Uma perna das deles, se calhar não.
- Seja o que for que lhes faça, não os deixará a rir. E melhor despacharmo-nos.
Penduraram as armas ao ombro outra vez, pegaram nas malas, e estugaram o passo rumo às sombras cálidas entre os pinheiros.

34.
Cindi Lovewell estacionou o Mountaineer à beira da estrada de serviço, cem metros atrás do carro à civil, desligou o motor e baixou os vidros.
- Eles não estão dentro do carro - disse Benny. - Aonde achas que foram?
- Devem ter ido ao mato urinar - respondeu Cindi. - Aquela gente não tem o nosso autodomínio.
- Não acho que seja isso - disse Benny. - Pelo que sei da biologia deles, os homens da Velha Raça só têm problemas urinários quando forem velhos e tiverem próstatas inchadas.
- Então se calhar foram ao mato fazer um bebé.
Benny convenceu-se a ter paciência.
- Não se vai ao mato fazer bebés.
- Ai vai sim. Fazem bebés em todo o lado. No mato, no campo, no barco, no quarto, na mesa da cozinha, na praia ao luar, na casa de banho dos aviões. Andam a fazer bebés em todo o lado, o tempo todo, milhões
e milhões de bebés novos a cada ano.
- O método de reprodução deles é rude e ineficaz, se pensarmos bem nisso - disse Benny. - Os tanques são um sistema melhor, mais limpo, mais manejável.
- Os tanques não fazem bebés.
- Fazem cidadãos adultos produtivos - disse Benny. - Toda a gente nasce em condições de servir a sociedade. É muito mais prático.
- Eu gosto de bebés - disse Cindi teimosamente.
- Pois não devias - avisou Benny.
- Mas gosto. Gosto dos dedinhos, dos pezinhos, dos rostinhos vermelhos enrugados, dos sorrisinhos desdentados. Gosto do quão macios são, do cheiro que têm, de como...
- Andas outra vez obcecada - disse ele, nervoso.
- Benny, porque é que não queres um bebé?
- É uma violação de tudo o que somos - disse ele, exasperado. - Para nós, seria contranatura. Eu só quero, quero mesmo, matar gente.
- Eu também quero matar gente - garantiu ela.
- Não sei bem se queres mesmo.
Ela abanou a cabeça e lançou-lhe um olhar desapontado.
- Isso não é justo, Benny. Tu sabes que eu quero matar gente.

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- Achava que querias.
- Mas posso esperar pelo dia em que os pudermos matar a todos. Mas não queres criar também?
- Criar? Não. Porque haveria de querer? Criar? Não. Não quero ser como eles, com bebés e livros e impérios empresariais...
Benny foi interrompido por duas explosões quase simultâneas, duras e monocórdicas, distantes mas inconfundíveis.
- Tiros - disse Cindi.
- Dois. Para lá dos pinheiros.
- Achas que se mataram? - perguntou ela.
- Porque é que haveriam de se matar?
- As pessoas matam-se. O tempo todo.
- Eles não se mataram - disse ele, mas era uma esperança sua, e não uma convicção.
- Acho que se mataram um ao outro.
- Se se mataram um ao outro - disse ele -, vou ficar passado.
Mais dois tiros, outra vez quase em simultâneo, mas mais altos do
que os anteriores, e caracterizados por um rugido cavo, e não um latido monótono, ecoaram nos pinheiros.
Aliviado, Benny disse:
- Não se mataram um ao outro.
- Talvez alguém ande a disparar sobre eles.
- Mas porque estás tão negativa? - inquiriu ele.
- Eu? Eu sou positiva. Sou pela criação. A criação é uma coisa positiva. Quem é que é contra a criação?
Seriamente intrigado com o destino dos dois detectives, Benny olhava pelo pára-brisas para o bosque distante.
Ficaram calados um minuto, e depois Cindi disse:
- Precisamos de uma alcofa.
Ele recusava-se a alinhar nessa conversa.
- Temos andado a comprar roupa - disse ela - quando há tanta coisa de que precisamos primeiro. Não comprei fraldas nenhumas, mantas, nada.
Mais espesso do que o ar húmido, um manto de desespero começou a descer sobre Benny Lovewell.
Cindi disse:
- Não vou comprar leite em pó enquanto não souber se consigo dar de mamar. Quero muito amamentar o nosso bebé.
Dos pinheiros emergiram dois vultos.

128
Mesmo com a sua vista melhorada, àquela distância Benny precisou de um momento para ter a certeza da identidade deles.
- São eles? - perguntou ele.
Após ligeira hesitação, Cindi respondeu:
- São.
- Sim! Sim, são eles. - Benny estava tão contente por estarem vivos e por ainda ter hipótese de os matar.
- Que trazem eles? - perguntou Cindi.
- Não consigo perceber.
- Malas?
- Pode ser.
- Onde é que foram arranjar malas no mato? - inquiriu Cindi.
- Se calhar tiraram-nas às pessoas que mataram.
- Mas o que é que essa gente estaria a fazer com malas no mato?
- Quero lá saber - disse Benny. - Sabe-se lá porque é que fazem o que fazem? Não são como nós, não são uma espécie completamente racional. Vamos matá-los.
- Isto é o sítio indicado? - perguntou Cindi, mas deu à chave.
- Estou prontíssimo. Preciso disto.
- E campo aberto - disse ela. - Não poderemos demorar-nos a fazer da maneira mais satisfatória.
De má vontade, Benny acedeu:
- Tens razão. Pronto, pronto. Mas podemos dominá-los, deixá-los inconscientes e levá-los para um sítio sossegado.
- Além do Warehouse Arts District, onde nem tudo são casas de gente "bem". Aquela fábrica abandonada. Tu sabes.
- Onde matámos o chefe da polícia e a mulher, na noite em que as réplicas ficaram prontas - disse Benny, a saborear a recordação.
- Matámo-los bem mortinhos - disse Cindi.
- Matámos, não matámos?
- Lembras-te de como ele gritou quando lhe tirámos o escalpe a ela como se fosse uma casca de laranja? - perguntou Cindi.
- Dir-se-ia que um chefe da polícia tem de ser mais rijo.
Cindi levou o Mountaineer para a estrada de serviço e disse:
- Podes desmembrá-los aos dois ainda vivos, e depois sabes que mais?
- Que mais? - perguntou ele, quando se acercaram do carro estacionado, onde os detectives tinham acabado de guardar as malas no banco de trás.
- Mesmo ali no sangue e tudo - disse Cindi - vamos fazer um bebé.

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Ele sentia-se de excelente humor. Não ia deixar que ela o estragasse.
- Está bem, pronto - disse.
- Sangue, sangue mesmo fresco, às vezes usa-se nos rituais mais eficazes - disse ela.
- Claro que se usa. Avança antes de eles entrarem no carro. Que rituais?
- Rituais de fertilidade. A Velha Raça é fértil. Se nos comermos no sangue deles, cobertos do sangue quente deles, talvez também fiquemos férteis.
Os polícias viraram-se para ver o Mountaineer, e Benny animou-se com a perspectiva da violência, mas não pôde deixar de repetir:
- Rituais de fertilidade?
- Vudu - disse Cindi. - O culto a Ibo do vudu.
-Ibo?
- Je suis rouge - disse ela.
- Isso parece francês. Não fomos programados com francês.
- Quer dizer "Eu, que sou vermelho" ou, mais precisamente, "Eu, o vermelho". É o que Ibo chama a si próprio.
- Ibo outra vez - disse Benny.
- Ele é o deus maligno do culto de sacrifícios de sangue do vudu. Vamos matar estes dois e depois fazer um bebé deitados no sangue deles. Louvado seja Ibo, glória a Ibo.
Cindi conseguira distrair Benny da presa deles. Benny olhava para ela, perplexo e aterrado.

35.
Quando Erika Helios entrou na passagem secreta, a porta das estantes fechou-se automaticamente atrás de si.
- Parece um romance de Wilkie Collins - murmurou ela, referindo-se à obra de um escritor vitoriano que nunca lera.
A passagem, com cerca de um metro e vinte de largo, tinha chão de cimento, paredes de cimento e tecto de cimento. Erika sentiu como se tivesse entrado num búnquer debaixo de uma cidade devastada pela guerra.
Parecia haver sensores de movimento a controlarem as luzes porque, quando ela parava quieta durante algum tempo, a avaliar a sua descoberta, a passagem ficava às escuras. Quando Erika estendeu um braço,
as luzes voltaram.
O corredor estreito só tinha uma direcção e terminava numa porta de aço imponente.
Como Victor adorava engenhocas e coisas técnicas, Erika calculou que a porta tivesse fecho electrónico. O estilo de Victor seria equipá-la com um scanner que lesse palmas das mãos ou padrões na retina,
permitindo assim acesso apenas a si próprio.
Antes pelo contrário, a porta tinha cinco trancas de aço com dois centímetros e meio de espessura. Uma no lintel, outra no umbral e três na ombreira do lado direito, do lado oposto às dobradiças maciças.
A contemplar aquela barreira, Erika pensou que poderia ser insensato abri-la. O espaço mais além não era uma caixa, e a porta não era uma tampa, mas foi-lhe inevitável pensar em Pandora, a primeira mulher,
cuja curiosidade a levou a abrir a caixa onde Prometeu fechara todos os males que poderiam afligir a humanidade.
Este mito fê-la hesitar um pouco, porque a humanidade - outro termo para Velha Raça - estava condenada, fosse como fosse. Ela própria poderia um dia receber ordens para matar quantos encontrasse.
Além disso, Samuel Johnson - fosse lá quem fosse - dissera: "A curiosidade é uma das características certas e permanentes de uma mente vigorosa."
Tendo em conta o peso daquela porta e o tamanho das trancas a fechá-la, devia haver algo de importância considerável para Victor além dela. Se Erika queria ser a melhor esposa possível - e a derradeira
Erika a erguer-se dos tanques - devia compreender o marido, e para

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o compreender, devia saber tudo sobre o que ele mais estimava. O que quer que estivesse além daquela barreira, a qual parecia a porta de um cofre, era claramente de grande valor para ele.
Erika tirou a tranca do lintel, e depois aquela que chegava ao chão de cimento. Uma por uma, puxou as trancas da ombreira.
Aquela laje de aço abriu-se diante dela, para dentro do espaço seguinte, onde uma fileira de luzes no tecto se acendeu automaticamente. Quando passou o umbral, Erika viu que a porta, a qual se mexia suave
e silenciosamente nas dobradiças enormes, media cerca de vinte centímetros de espessura.
Deu consigo noutra passagem curta com cerca de três metros e meio de comprimento, a qual terminava numa porta idêntica à primeira.
Ao longo deste segundo corredor, dezenas de bastões metálicos eriçavam-se nas paredes. A esquerda, parecia serem de cobre. A direita, eram de outro metal, talvez aço, talvez não.
Ouvia-se um zumbido suave e ululante na passagem. Parecia sair dos bastões metálicos.
A instrução carregada no cérebro de Erika focara principalmente música, dança, alusões literárias e outros temas que a garantissem como anfitriã luminosa quando Victor recebesse membros politicamente importantes
da Velha Raça, coisa que faria até à altura em que pudesse eliminá-los. Erika não percebia muito de ciência.
Não obstante, desconfiou de que, quando fosse necessário - por qualquer razão - passaria uma poderosa corrente eléctrica pelos bastões metálicos que estavam alinhados dos dois lados da passagem, talvez
electrocutando ou vaporizando completamente quem quer que fosse apanhado entre eles.
Nem um membro da Nova Raça sairia ileso.
Quando deu dois passos além do umbral, a matutar nesta descoberta, surgiu um raio laser azul de uma engenhoca no tecto, que a varreu de cima abaixo, e de baixo para cima, como se avaliasse o formato dela.
O laser apagou-se. Um instante depois, os bastões pararam de zumbir. Fez-se um pesado silêncio no corredor.
Erika teve a impressão de que fora considerada aceitável. O mais certo era não ser electrificada como uma torrada queimada se continuasse.
Caso estivesse enganada, os passos hesitantes não a poupariam da destruição; logo, avançou ousadamente, deixando aberta a porta atrás de si.

132
O seu primeiro dia na mansão - que começara com a fúria de Victor no quarto de casal, seguindo-se o episódio de William a arrancar os próprios dedos à dentada, e continuara com a perturbante conversa que
tivera com Christine na cozinha - não fora acolhedor como ela poderia ter esperado. Talvez com aquilo o dia tivesse guinado para melhor. O facto de não ser electrocutada pareceu-lhe bom sinal.

36.
- Glória a Ibo - repetiu Cindi que ele aprove o sabor do meu sangue.
Não importava quão ansioso se sentira por capturar e matar os detectives momentos antes, Benny Lovewell ficara subitamente desanimado da ideia.
Cindi deixara-o siderado com aquela bizarra conversa de vudu, coisa que ele nunca antes ouvira da boca dela. Cindi apanhara-o desprevenido.
De repente, não soube se poderia confiar mais nela. Eles eram uma equipa. Precisavam de se mover como um só, sincronizados, com todo o ímpeto.
Quando o carro deles desacelerou ao acercar-se do carro à civil, Benny disse:
- Não pares.
- Deixa o homem comigo - disse ela. - Não me há-de ver como ameaça. Hei-de derrubá-lo tão depressa e com tanta força que ele nem saberá o que lhe aconteceu.
- Não, continua, não pares, acelera - instou Benny.
- O que queres dizer com isso?
- O que é que eu disse? Se alguma vez quiseres fazer um bebé comigo, é melhor acelerares
Tinham quase parado ao lado do carro.
Os detectives estavam a olhar para eles. Benny sorriu e acenou, o que lhe pareceu acertado fazer até o fazer de facto, mas depois parecia apenas que chamava as atenções sobre si, pelo que desviou rapidamente
o olhar, apercebendo-se de que poderia ter levantado suspeitas.
Antes que parassem por completo, Cindi acelerou, e mergulharam no parque, pela estrada de serviço.
Cindi olhou para o carro que se desvanecia no espelho retrovisor, depois para Benny, e perguntou:
- Mas o que foi aquilo?
- Foi acerca do Ibo - respondeu ele.
- Não compreendo.
- Tu não compreendes? Tu não compreendes? Eu é que não compreendo. Je suis rouge, deuses malignos, sacrifícios de sangue, vudu?

134
- Nunca ouviste falar em vudu? Foi importante na Nova Orleães do séc. XIX. Ainda existe, e de facto...
- Mas não aprendeste nada no tanque? - perguntou ele. - Não há outro mundo além deste. E essencial para a nossa crença. Somos estritamente racionalistas, materialistas. Estamos proibidos de qualquer superstição.
- Eu sei disso. Achas que não sei disso? A superstição é um dos principais defeitos da Velha Raça. Têm cabeças fracas, cheias de tolices e medo e disparates.
Benny parafraseou o que ela dissera quando se tinham acercado do carro:
- "Louvado seja Ibo, glória a Ibo." A mim não parece nada materialista. E que não me soa mesmo nada.
- Queres acalmar-te? - pediu Cindi. - Se fosses da Velha Raça, não tardaria nada que te rebentasse um vaso sanguíneo.
- É para aí que vais quando às vezes sais? - inquiriu ele. - A uma catedral de vudu?
- Não há nada que se pareça com catedrais de vudu. Coisa mais ignorante. Se for ao estilo haitiano, chama-se ao templo houmfort.
- Então vais a um houmfort - disse ele lugubremente.
Longe da vista do carro, Cindi saiu da estrada de serviço e estacionou na erva. Deixou o motor a trabalhar e o ar condicionado também.
E disse:
- A Zozo Deslisle vende gris-gris na sua casinha em Treme e faz sortilégios e conjuros. Ela é uma bocor do culto a Ibo, com mucho mojo, sim senhoras.
- Quase nada disso fez sentido - disse Benny. - Cindi, mas tu apercebeste-te do sarilho em que te meteste, do sarilho em que nos metemos? Se algum dos nossos descobrir que te deu para a religião, serás
destruída, e eu provavelmente também. As coisas correm-nos bem: autorização para matar, com cada vez mais trabalhos. Somos a inveja da nossa gente, e tu vais estragar tudo com as tuas superstições malucas.
- Não sou supersticiosa.
- Ai não?
- Não sou nada. O vudu não é superstição.
- É religião.
- É ciência - disse ela. - É verdade. Funciona.
Benny gemeu.

135
- Devido ao vudu - disse ela - eu vou acabar por ter um filho. É apenas uma questão de tempo.
- Eles poderiam estar inconscientes na bagageira neste momento - disse Benny. - Poderíamos ir a caminho daquela fábrica velha.
Ela abriu a mala e tirou uma bolsinha de algodão branco com um cordel encarnado a atá-la.
- Tem raízes de Adão e Eva. Duas. Cosidas uma à outra.
Ele nada disse.
Ainda de dentro da mala, Cindi tirou um frasquinho.
- Mistura de Judas, que são flores em botão do Jardim de Gilead, folha de prata em pó, sangue de um coelho, essência de Van Van, pó de...
- E o que é que se faz com isso?
- Mistura-se meia colher de chá num copo de leite quente e bebe--se todas as manhãs, de pé em cima de um polvilho de sal.
- Parece-me assaz científico.
O sarcasmo não passou despercebido a Cindi.
- Como se tu soubesses tudo sobre ciência. Não és nenhum Alfa. Não és nenhum Beta. Es Gama como eu.
- Exacto - disse Benny. - Gama. Não sou nenhum Ipsilon ignorante. E também não sou um supersticioso da Velha Raça. Sou um Gama.
Ela guardou as raízes de Adão e Eva e a Mistura de Judas na mala, e fechou-a.
- Não sei o que hei-de fazer - disse Benny.
- Temos uma missão, lembras-te? Matar O'Connor e Maddison. Não sei porque é que ainda não o fizemos.
Benny olhava pela janela para o parque.
Nunca, desde a saída do tanque de criação, se sentira tão lúgubre. Ansiava por estabilidade e controlo, mas encontrava-se num torvelinho de caos.
Quanto mais matutava no dilema, mais depressa se afundava numa poça de desânimo.
A ponderar na sua obrigação para com Victor, Benny perguntou-se porque teria sido concebido como materialismo personificado e depois obrigado a preocupar-se com mais alguém além de si próprio. Porque é
que teria de se preocupar com mais do que as suas próprias necessidades - além do facto de o criador o destruir em caso de desobediência? Porque haveria de se importar com a ascensão da Nõva Raça, visto
que este mundo não tinha significado transcendente algum? De que servia aniquilar a humanidade e dominar toda a natureza, de que

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servia depois aventurarem-se nas estrelas, se toda a natureza - até ao fim do universo - era apenas uma máquina estúpida sem finalidade na sua concepção? Para quê lutar por ser o rei de nada?
Benny fora criado para ser um homem de acção, sempre em movimento, a agir e a matar. Não fora concebido para pensar assim tanto em questões filosóficas.
- Deixa a reflexão para os Alfas e os Betas - disse ele.
- Deixo sempre - disse Cindi.
- Não estou a falar contigo. Estou a falar comigo.
- Nunca te ouvi a fazer isso antes.
- Estou a começar.
Ela franziu o sobrolho.
- Como é que hei-de saber se estás a falar comigo ou contigo?
- Não hei-de falar comigo assim tanto. Talvez nunca mais. Não tenho assim tanto interesse em mim.
- Seríamos ambos mais interessantes se tivéssemos um bebé.
Ele suspirou.
- O que tiver de ser, será. Vamos destruir quem nos mandarem até o nosso criador nos destruir a nós. Está fora das nossas mãos.
- Não está fora das mãos de Ibo - disse ela.
- Ele que é vermelho.
- Exacto. Queres ir comigo conhecer a Zozo Deslisle e arranjar um gris-gris da felicidade?
- Não, só quero amarrar aqueles polícias e esventrá-los e ouvi-los berrar enquanto lhes torço as tripas.
- Tu é que me disseste que acelerasse - recordou ela.
- Enganei-me. Vamos à procura deles.

37.
Victor estava sentado à secretária no laboratório principal, na pausa para as bolachinhas, quando o rosto de Annunciata apareceu no ecrã do computador, em toda a sua pormenorizada glória digital.
- Senhor Helios, o Werner pediu-me que lhe dissesse que está na cela do Randal Seis e que está a explodir.
Embora Annunciata não fosse uma pessoa a sério, apenas uma manifestação de software complicado, Victor retrucou, irritado:
- Você está a portar-se mal outra vez.
- Perdão?
- Isso não pode ter sido o que ele lhe disse. Reveja a mensagem e transmita-a correctamente.
Werner conduzira pessoalmente as buscas na cela de Randal e encarregara-se de ver tudo o que houvesse no computador de Randal.
Annunciata tornou a falar:
- Senhor Helios, o Werner pediu-me que lhe dissesse que ele está na cela do Randal Seis e que está a explodir.
- Contacte o Werner e peça-lhe que repita a mensagem, e depois volte cá quando a souber correctamente.
- Sim, senhor Helios.
Com a última bolacha de manteiga de amendoim a caminho da boca, Victor hesitou, à espera que ela repetisse Helios, mas não.
Quando o rosto de Annunciata se desvaneceu no ecrã, Victor deu a dentada final e depois empurrou-a com café.
Annunciata voltou.
- Senhor Helios, o Werner repete que está, de facto, a explodir, e que deseja sublinhar a urgência da situação.
Victor levantou-se e atirou a caneca do café à parede, a qual se estilhaçou com um ruído satisfatório.
Secamente, disse:
- Annunciata, vejamos se você acerta em alguma coisa. Chame a limpeza. Entornou-se café no laboratório principal.
- Sim, senhor Helios.
A cela de Randal Seis ficava no segundo andar, o qual servia de dormitório para todos os da Nova Raça que tivessem saído dos tanques, mas que ainda não estivessem preparados a ser mandados para o mundo
além das paredes das Mãos da Misericórdia.

138
Enquanto subia no elevador, Victor tentava dominar-se. Ao fim de duzentos e quarenta anos, já devia ter aprendido a não deixar que aquelas coisas lhe dessem cabo dos nervos.
A sua maldição era ser perfeccionista num mundo imperfeito. Consolava-se com a convicção de que, um dia, a sua gente seria refinada ao ponto de corresponder aos seus próprios e elevados padrões.
Até então, o mundo continuaria a torturá-lo com as suas imperfeições, como sempre torturara. Ele faria muito melhor em rir-se da idiotice, em vez de se sentir enraivecido por ela.
Victor não se ria muito. Aliás, não se ria mesmo nada actualmente. A última vez que se lembrava de ter rido a bom rir fora em 1979, com Fidel em Havana, a respeito de um trabalho fascinante de cérebro
aberto que implicava prisioneiros políticos com quocientes de inteligência particularmente elevados.
Quando chegou ao segundo andar, Victor ia preparado para se rir com Werner do erro de Annunciata. Werner não tinha sentido de humor, claro, mas saberia fingir uma gargalhada. Por vezes, a pretensa jovialidade
podia levantar a moral quase tão alto quanto a genuína.
Quando Victor saiu da alcova do elevador para o corredor principal, porém, viu uma dúzia dos da sua gente reunida no átrio, à porta da cela de Randal Seis. E teve uma sensação de alarme perante aquele
ajuntamento.
Apartaram-se para o deixar passar, e ele deparou com Werner deitado de costas no chão. O maciço e musculoso chefe da segurança tinha rasgado a camisa; a contorcer-se, a fazer caretas, abraçava-se a si
mesmo como que desesperado por conter o próprio torso.
Embora tivesse exercido a sua capacidade de desligar a dor, Werner suava em bica. E parecia aterrorizado.
- O que se passa consigo? - inquiriu Victor quando se ajoelhou ao lado de Werner.
- A explodir. Estou a ex, ex, explodir.
- Que absurdo. Não está nada a explodir.
- Parte de mim quer ser outra coisa - disse Werner.
- Não diz coisa com coisa.
A bater os dentes, Werner perguntou:
- O que vai ser de mim?
- Tire os braços, deixe ver o que se passa.
- O que sou eu, porque sou eu, como é que isto acontece? Pai, diga-me.

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- Não sou seu pai - disse Victor, cortante. - Tire os braços dafrente!
Depois de Werner destapar o torso do pescoço ao umbigo, Victor
viu a carne a pulsar e a latejar como se o esterno tivesse amolecido como matéria adiposa, como se dentro dele se mexessem numerosas serpentes em nós corredios e soltos, atando-se e desatando-se, flectindo
os corpos sinuosos numa tentativa de se separarem do hospedeiro e de irromperem para fora dele.
Siderado e assombrado, Victor pôs uma mão no abdómen de Werner, para determinar por toque e palpação a natureza daquele caos interno.
Instantaneamente, descobriu que o fenómeno não era o que parecia. Não havia nenhuma entidade separada a mexer-se dentro de Werner, nem uma colónia de cobras inquietas, nem qualquer outra coisa.
Aquela carne nascida do tanque transmutara-se, ficara amorfa, gelatinosa, um pudim de carne firme mas inteiramente maleável que parecia debater-se por se transformar em algo... Algo diferente de Werner.
O homem começou a arquejar. Saiu dele uma série de ruídos sufocados, como se algo lhe tapasse a garganta.
Hemorragias como estrelas rebentaram-lhe nos olhos, e ele lançou um olhar desesperado e carmesim ao seu criador.
Agora os músculos dos braços começavam a endurecer e a torcer--se, a desabar e a transformar-se. O espesso pescoço latejava, inchava, e o rosto começava a deformar-se.
O colapso não ocorria a nível fisiológico. Era metamorfose celular, a mais fundamental biologia molecular, a transformação não só de tecidos mas também de essência.
Debaixo da palma da mão e dos dedos abertos de Victor, a carne do abdómen moldava-se - moldava-se sozinha - numa mão interrogativa que o agarrou, sem ameaçar, quase com ternura mas, chocado, ele largou-a,
e encolheu-se.
Victor pôs-se de pé num salto e gritou:
- Uma maca! Despachem-se! Tragam uma maca. Temos de pôr este homem no isolamento.

35.
Quando Erika soltou as cinco trancas de aço da segunda porta que mais parecia um cofre, ocorreu-lhe se alguma das quatro Erikas anteriores teria descoberto aquela passagem secreta. Preferiu pensar que,
caso tivessem descoberto, não tinha sido no seu primeiro dia na mansão.
Embora tivesse accionado o interruptor escondido na biblioteca por acaso, começara a interpretar a sua descoberta como consequência de uma curiosidade animada e admirável, como diria Samuel Johnson, anteriormente
citado. Quis acreditar que a sua curiosidade era mais animada e mais admirável do que a de qualquer outra das suas antecessoras.
Enrubesceu ao sentir este desejo nada modesto, mas não deixava de o sentir. Desejava tanto ser boa esposa, e não falhar como elas tinham falhado.
Se outra Erika tivesse encontrado a passagem secreta, poderia não ter tido a ousadia de entrar. Se tivesse entrado, poderia ter hesitado em abrir até a primeira das duas portas de aço, quanto mais a segunda.
Erika Cinco sentia-se aventureira, como Nancy Drew, ou - melhor ainda - Nora Charles, a esposa de Nick Charles, o detective da obra O Homem Sombra, de Dashiell Hammett, outro livro ao qual poderia aludir
inteligentemente sem arriscar a vida a lê-lo.
Depois de correr a primeira das cinco trancas, ela hesitara, a saborear o suspense e a excitação.
Era indubitável que o que estava além daquele portal se revestia de uma importância tremenda para Victor, talvez de tal significado que poderia explicá-lo, ao homem, em pormenor, e revelar a verdadeira
natureza do seu coração. Nas duas horas que se seguissem, ela poderia aprender mais sobre o seu genial mas enigmático marido do que num ano de convivência.
Erika esperava encontrar um diário com os seus mais ternos segredos, esperanças, observações ponderadas sobre a vida e o amor. Na verdade, era irrealista supor que as duas portas de aço e um túnel de electrocussão
tivessem sido instalados meramente para garantir que o diário de Victor pudesse estar num sítio mais seguro do que numa gaveta da mesa-de-cabeceira.
Não obstante, Erika desejava intensamente descobrir tal relato sentido e manuscrito da vida dele, para o poder conhecer, conhecê-lo até

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ao âmago, para melhor o servir. Ficou algo admirada - mas agradavelmente - ao ver-se tão romântica.
O facto de as trancas estarem do lado de fora das portas não lhe passara despercebido, e fez a inferência óbvia: a intenção era aprisionar algo.
Erika não era destemida, mas também ninguém lhe poderia chamar cobarde. Como todos os da Nova Raça, possuía força, agilidade, astúcia prodigiosas e uma confiança ferozmente animal nas suas capacidades
físicas.
Seja como for, ela vivia cada minuto por tolerância do seu criador. Se alguma vez viesse a ouvir, da boca de Victor, a ordem para se auto-destruir, obedeceria sem hesitar, tal como fora programada.
O mordomo William recebera tais instruções por telefone e, mesmo em tal estado alterado, fizera o que lhe mandavam. Tal como podia desligar a dor - como todos eles podiam em momentos de crise - também
podia encerrar todas as funções nervosas autónomas quando assim lho ordenavam. Num instante, William parara os próprios corações e a respiração, e morrera.
Não era truque que pudesse usar para cometer suicídio. Apenas uma instrução ritual, e com as palavras certas, proferida pela voz do criador poderia accionar esse gatilho.
Quando a existência depende integralmente de tal tolerância, quando a vida está por um fio que pode ser cortado pela simples tesoura de palavras duras, não se pode sentir grande receio do que estiver além
de duas portas de aço trancadas.
Erika abriu a segunda porta, e as luzes acenderam-se de imediato para iluminar o espaço além. Passou o umbral e deu consigo numa salinha de estar vitoriana e acolhedora.
Sem janelas, aquele espaço com dois metros quadrados tinha chão de mogno polido, um tapete persa antigo, papel de parede William Morris e tecto em painéis de mogno. A lareira de madeira de nogueira exibia
azulejos William de Morgan em redor da caixa de fogo.
Emoldurado por um par de candeeiros com quebra-luzes de seda xantungue, um sofá bem estofado com almofadas decorativas com motivos japoneses oferecia a Victor sítio para repousar e deixar a sua mente genial
congeminar novos esquemas exclusivos da sua inteligência.
Numa poltrona com banqueta, Victor poderia reflectir sentado, se assim lhe aprouvesse, debaixo de um candeeiro de pé alto com quebra--luz de continhas.

142
Sherlock Holmes ter-se-ia sentido em casa em tal espaço, ou H.G. Wells, ou G.K. Chesterton.
O centro de tudo, quer visto do confortável sofá, quer da poltrona, era uma imensa caixa de vidro: quase três metros de comprido, metro e meio de largura, quase um metro de profundidade.
Tal objecto fora feito o mais possível para se encaixar na decoração vitoriana. Assentava sobre uma série de pés de bronze em forma de garra. Os seis painéis de vidro eram biselados nas arestas para atrair
a luz e tinham um caixilho de ouropel ricamente trabalhado. Parecia um guarda-jóias gigantesco.
A encher a caixa, uma substância de cor vermelho-dourado que desafiava o olhar a defini-la. Tanto parecia ser líquida e circularem nela correntes subtis, como se assemelhava a um denso vapor, talvez um
gás, movendo-se em volutas preguiçosas ao longo do vidro.
Misterioso, aquele objecto atraía Erika tal como os olhos lustrosos de Drácula atraíram Mina Harker para o seu potencial fim, num romance de que as alusões literárias possíveis não seriam nada consentâneas
com um jantar formal no Garden District, mas que ainda assim tinha sido carregado no repertório de Erika.
Por refracção, aquele fluido ou vapor absorvia a luz dos candeeiros e brilhava calorosamente. Tal luminosidade interior revelou um vulto escuro suspenso no meio da caixa.
Erika não conseguia ver os mais ínfimos detalhes do objecto encerrado ali mas, por alguma razão, pensou num escaravelho petrificado em resina de antanho.
Quando se acercou da caixa, pareceu-lhe que a sombra dentro dela se mexia, mas o mais certo era ter imaginado movimento.

39.
Do City Park, Carson rumou ao Garden District para percorrer as ruas à volta da residência de Victor.
Ainda não estavam preparados para abrir caminho à saraivada de balas na mansão e dar caça a Frankenstein, mas precisavam de avaliar o território e descortinar vias de fuga na - improvável - eventualidade
de conseguirem, não só, matar Victor, mas sair de sua casa vivos.
Pelo caminho, Carson comentou com Michael:
- Aquela gente dentro do Mercury Mountaineer branco, lá atrás no parque, já os viste em algum lado?
- Não, mas ele acenou.
- Acho que já os vi em algum lado.
- Onde?
- Não me recordo bem.
- A que te referes? Pareceram-te dúbios?
Carson olhou para o espelho retrovisor e respondeu:
- Não gostei do sorriso dele.
- Em Nova Orleães não matamos gente só por ter um sorriso fingido.
- O que é que andavam a fazer numa estrada de serviço? Aquilo é só para o pessoal do parque, e não era uma viatura do parque.
- Nós também não somos pessoal do parque. Nestas circunstâncias, é fácil ficar paranóico.
- É estúpido não ficar paranóico - disse ela.
- Queres lá voltar, achá-los e matá-los?
- Se calhar sentir-me-ia melhor - disse ela, e tornou a olhar para o espelho.
- Queres ligar ao Deucalião, combinar um encontro?
- Estou a tentar imaginar como é que o monstro de Frankenstein original compra um telemóvel.
- E do Jelly Biggs, o antigo feirante que mora no Luxe, o amigo do tipo que deixou o cinema ao Deucalião.
- Mas quem é que chama Jelly Biggs ao filho? Condenaram-no à badochice.
- Não é o nome verdadeiro dele. É o nome de feira, do tempo nos espectáculos de aberrações.
- Mas ele ainda o usa.

144
- Parece que, se andarem nas feiras muito tempo, os nomes artísticos soam melhor do que os nomes verdadeiros.
- Qual era o nome artístico do Deucalião? - perguntou Michael.
- O Monstro.
- Só pode ter sido antes do politicamente correcto. O Monstro: abala o amor-próprio a qualquer um. Hoje em dia chamar-lhe-iam Diferente.
- Ainda é um estigma.
- Pois. Chamar-lhe-iam Beleza Invulgar. Tens o número?
Ela debitou-o enquanto Michael marcava os algarismos no aparelho.
Ele aguardou, escutou, e depois disse:
- Olá, fala o Michael. Temos de nos encontrar. - Deixou contacto e desligou a chamada.
- Monstros: são todos uns irresponsáveis. Ele não tem o telemóvel ligado. Foi para o correio de voz.

40.
No armário dos casacos do corredor entre a cozinha e a sala, Randal Seis ainda não está exactamente contente, mas está satisfeito, pois sente-se em casa. Por fim, tem uma casa.
Antigos hospitais convertidos em laboratórios para clonagem e engenharia biológica não têm, na experiência dele, armários para casacos. A própria existência de um armário para casacos se traduz em casa.
A vida no bayou não implica nenhuma colecção de sobretudos e parcas. Pendurados no varão estão apenas blusões leves com fecho.
Há artigos encaixotados no chão do armário, mas ele tem espaço suficiente para se sentar, se quiser. Todavia, está demasiado entusiasmado para se sentar, e fica de pé no escuro, praticamente a tremer de
expectativa.
Fica satisfeito se tiver de ficar de pé no armário horas, se não mesmo dias. Até aquele espaço estreito é preferível à cela das Mãos da Misericórdia e às máquinas temíveis aonde o criador o algemava amiúde
para conduzir testes lancinantes.
Aquilo que o tenta a abrir a porta é, primeiro, a cantoria feliz da mulher e o tilintar delicioso do trabalho na cozinha. Randal Seis também se deixa cativar pelo aroma de cebolas a frigirem em margarina,
faz-lhe água na boca.
Tendo ingerido comida castanha, talvez possa comer praticamente qualquer coisa em segurança.
Sem se aperceber realmente do que está a fazer, como que meio hipnotizado pelos cheiros e ruídos domésticos, Randal abre mais a porta e aventura-se no corredor.
O umbral da cozinha fica a menos de cinco metros. Ele vê a mulher a cantar ao fogão, de costas para ele.
Agora poderia ser boa altura para se aventurar mais na casa em busca de Arnie O'Connor. O graal da sua demanda está próximo: o autista sorridente com o segredo da felicidade.
A mulher ao fogão fascina-o, porém, pois deve ser a mãe de Arnie. Carson O'Connor é irmã do rapaz, mas aquela não é Carson, não é a pessoa da fotografia no jornal. Numa família da Velha Raça, há sempre
uma mãe.
Randal Seis, filho das Mãos da Misericórdia, nunca conheceu mãe nenhuma. Entre a Nova Raça, não há tais criaturas. Em contrapartida, há o tanque.

146o se trata apenas de uma forma feminina diante dele. Trata-se de um ser de grande mistério, o qual pode criar vida humana dentro do seu corpo, sem nenhuma da maquinaria imponente necessária a produzir
um da Nova Raça no laboratório.
Com o tempo, quando a Velha Raça estiver finalmente morta, o qual será num futuro não muito distante, as mães como aquela mulher serão figuras míticas, seres de folclore e lenda. Ele não pode deixar de
a contemplar com assombro.
Ela suscita as sensações mais estranhas a Randal Seis. Uma reverência inexplicável.
Os cheiros, os ruídos, a beleza mágica da cozinha atraem-no inexoravelmente para aquele umbral.
Quando ela se afasta do fogão e passa a uma tábua de cortar ao lado do lava-louças, ainda a cantar baixinho, a mulher não o apanha pelo canto do olho.
De perfil, a cantar, a preparar o jantar, ela parece tão feliz, até mais feliz do que Arnie parecia na fotografia.
Quando Randal chega à cozinha, ocorre-lhe que aquela mulher poderá ser o segredo da felicidade de Arnie. Talvez aquilo que é necessário para a felicidade seja uma mãe que nos carregou dentro de si, que
nos dá valor como decerto dá à própria carne.
Da última vez que Randal Seis viu o seu tanque de criação foi quatro meses antes, no dia em que emergiu dele. Não há motivos para reencontro.
Quando a mulher se afasta dele e volta ao fogão mais uma vez, ainda sem acusar a presença dele, Randal sente-se assolado por sentimentos que nunca antes sentiu, que não consegue definir, para os quais
não tem palavras descritivas.
Sente-se esmagado por um anseio, mas não sabe do quê. Ela atrai-o como a gravidade atrai a maçã que cai da árvore.
Randal atravessa a cozinha na direcção dela, e apercebe-se de que uma das coisas que quer consiste em ver-se reflectido nos olhos dela, o seu rosto nos olhos dela.
Não sabe porquê.
E quer alisar o cabelo na testa dela. Quer que ela lhe sorria.
Não sabe porquê.
Fica logo atrás dela, a tremer com uma emoção que nunca antes irrompeu dentro dele, sensações para as quais nunca se apercebera ter capacidade.

147
Por momentos, ela continua alheada da presença dele, mas depois há algo que a alerta. Vira-se, alarmada, e grita de surpresa e medo.
Trouxe uma faca da tábua de cortar para o fogão.
Embora a mulher não faça tentativa alguma de usar a arma, Randal agarra-lhe na mão esquerda, pela lâmina, a cortar-se, tira-lhe a faca da mão e atira-a para a outra ponta da cozinha.
Com o punho direito, bate-lhe na cabeça, bate-lhe até ela cair no chão.

41.
A seguir às vésperas, na reitoria da Igreja de Nossa Senhora das Mágoas, Deucalião viu o padre Duchaine servir um café rico e preto em duas canecas. Tinha-lhe oferecido natas e açúcar, mas ele recusara.
Quando o padre se sentou à mesa em frente de Deucalião, disse:
- Faço-o tão forte que fica quase amargo. Tenho afinidade pelo amargor.
- Desconfio de que todos os nossos têm - comentou Deucalião.
Tinham-se deixado de cortesias no confessionário. Conheciam-se um ao outro pela essência do que eram, embora o padre Duchaine não soubesse pormenores da criação do seu convidado.
- O que aconteceu à sua cara? - perguntou ele.
- Irritei o meu criador e tentei levantar a mão contra ele. Ele implantara no meu crânio um engenho do qual eu nada sabia. Ele usava um anel especial que podia emitir um sinal e assim activar o engenho.
- Agora estamos programados para nos desligarmos, como electrodomésticos activados pela voz, quando ouvimos certas palavras na sua voz inconfundível.
- Eu venho de um tempo mais primitivo na obra dele. O engenho dentro do meu crânio era para me destruir. Funcionou pela metade, e fez de mim um monstro mais óbvio.
- E a tatuagem?
- Dissimulação bem-intencionada mas insuficiente, passei a maior parte da minha vida em circos de aberrações, em feiras e afins, onde quase toda a gente era marginal de qualquer espécie. Porém, antes de
chegar a Nova Orleães, passei alguns anos num mosteiro tibetano. Um amigo lá, monge, fez a sua arte na minha cara antes de eu me vir embora.
Depois de beber lentamente um gole da sua beberagem amarga, o padre de cabelos brancos perguntou:
- Primitivo a que ponto?
Deucalião hesitou em revelar as suas origens, mas depois apercebeu-se de que o seu tamanho invulgar, a pulsação periódica de algo parecido como calor a incandescer-lhe nos olhos e o estado cruel do seu
rosto eram suficientes para o identificar.
- Mais de duzentos anos. Sou o primeiro dele.
- Então é verdade - disse Duchaine, uma sombra ainda mais escura a toldar-lhe o olhar.

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- Se você é o primeiro e viveu tanto tempo, nós podemos durar mil anos, e a terra é o nosso inferno.
- Talvez sim, talvez não. Eu vivi séculos não porque ele soubesse, naquele tempo, conceber-me com imortalidade. A minha longevidade e muito mais ficaram-me do relâmpago que me deu vida. Ele pensa que eu
morri há muito tempo... E não desconfia de que eu tenha um destino.
- A que se refere... Relâmpago?
Deucalião bebeu café. Depois de pousar a caneca em cima da mesa, recostou-se em silêncio algum tempo, antes de responder:
- O relâmpago é apenas um fenómeno meteorológico, mas eu não me refiro só a uma trovoada quando digo que o raio que me animou surgiu de um espaço mais elevado.
Enquanto o padre Duchaine ponderava nesta revelação, o seu rosto anteriormente pálido mostrou alguma cor.
- A longevidade e muito mais ficaram-lhe do relâmpago. Muito mais... E um destino? - O padre inclinou-se para a frente na cadeira. - Está a dizer-me... que lhe foi concedida uma alma?
- Não sei. Alegar que se tem uma poderá ser um acto de soberba imperdoável em alguém cujas origens são tão desgraçadas quanto as minhas. Só posso confirmar que me foi dado a saber certas coisas, que fui
abençoado com um certo entendimento da natureza e das suas leis, conhecimento que nem Victor jamais alcançará, nem mais ninguém deste lado da morte.
- Então I disse o padre -, tenho diante de mim uma Presença. -E a caneca entre as suas mãos tremeu em cima da mesa junto com ele.
Deucalião disse:
- Se o padre já se interroga quanto à verdade que poderá haver na fé que defende aqui - e desconfio de que, apesar da sua programação, o padre já se interrogou - terá considerado a possibilidade de haver
sempre, a todas as horas, uma Presença consigo.
Quase derrubando a cadeira quando se pôs de pé, Duchaine disse:
- Parece-me que preciso de algo mais forte do que café. - Foi à despensa e voltou com duas garrafas de brande.
- Com o nosso metabolismo, é preciso bastante para toldar o raciocínio.
- Para mim, não - recusou Deucalião. - Prefiro clareza.
O padre encheu metade da caneca vazia com café, e terminou com a bebida branca. Sentou-se. Bebeu. E disse:

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- Você fala de um destino, e a mim só me ocorre o que o traria a Nova Orleães duzentos anos depois.
- A minha sina é detê-lo - revelou Deucalião. - Matá-lo.
A cor que surgira nas faces do padre agora fugia.
- Nenhum de nós pode levantar a mão contra ele. O seu rosto castigado é prova disso.
- Não podemos. Mas há quem possa. Aqueles que nasceram de homem e mulher não lhe devem obediência alguma... Nem misericórdia.
O padre bebeu mais café com cheirinho.
- Mas estamos proibidos de o revelar, proibidos de conspirar contra ele. São ordens programadas em nós. Não temos capacidade de desobedecer.
- Essas interdições não foram instaladas em mim - disse Deucalião. - Sem dúvida que lhe ocorreram mais tarde, talvez no dia do casamento, há duzentos anos... Quando lhe matei a mulher.
Quando o padre Duchaine juntou brande à bebida, o gargalo da garrafa bateu na beira da caneca.
- Seja lá qual for o deus que se adora, a vida é um vale de lágrimas.
- Victor não é deus algum - insistiu Deucalião. - Nem sequer é um falso deus, nem metade de um homem. Com a sua ciência perversa e desígnios temerários, fez de si mesmo menos do que era quando nasceu,
diminuiu-se de uma maneira que nem a alimária mais baixa e vil da natureza poderia alcançar por muito que se degradasse e humilhasse.
Cada vez mais agitado apesar do brande, Duchaine disse:
- Mas não há nada que você me possa pedir que eu possa fazer, partindo do princípio de que eu possa desejá-lo. Não posso conspirar.
Deucalião terminou o café. Arrefecera e ficara ainda mais amargo.
- Não lhe peço que faça nada, nem que levante a mão, nem que conspire contra ele.
- Então porque cá veio?
- Tudo o que quero de si é aquilo que até um falso padre pode dar aos seus paroquianos muitas vezes ao dia. Só lhe peço que me faça uma fineza, uma pequena fineza, e depois vou-me embora para não mais
voltar.
A avaliar pelo semblante aterrado, o padre Duchaine mal dispunha de recursos para fazer a revelação que dele brotava:
- Já me permiti pensamentos odiosos sobre o nosso criador, seu e meu. E ainda há duas noites, dei guarida a Jonathan Harker. Sabe quem ele era?

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- O detective que se transformou em assassino.
- Sim, deu nas notícias todas. Mas as notícias não disseram que... Harker era um de nós. A psicologia e a fisiologia dele estavam em colapso. Ele estava... a mudar. - Duchaine estremeceu. - Não conspirei
com ele contra Victor. Mas dei-lhe guarida. Porque... porque por vezes me interrogo quanto à Presença de que falámos.
- Uma pequena fineza - insistiu Deucalião -, não peço mais que uma pequena fineza.
- Então de que se trata?
- Diga-me onde o fizeram, o nome do sítio onde ele trabalha, e eu vou-me.
Duchaine entrelaçou as mãos no colo, como se orasse, embora a posição mais parecesse hábito do que devoção. Olhou para as mãos uns momentos, e por fim disse:
- Se lhe disser, quero algo em troca.
- E o que poderia ser isso? - perguntou Deucalião.
- Você matou a mulher dele.
-Sim.
- Portanto você, o primeiro, não foi criado com interdição de matar.
- Só ele está a salvo de mim - explicou Deucalião.
- Então eu conto-lhe o que você deseja saber... Mas só se me der umas horas para me preparar.
Por momentos, Deucalião não compreendeu, mas depois fez-se luz.
- O padre quer que eu o mate.
- Não sou capaz de pedir tal coisa.
- Compreendo. Diga-me o nome do sítio, e eu voltarei quando o padre entender, para... terminar a nossa conversa.
O padre abanou a cabeça.
- Receio que, depois de ter o que pretende, não cá volte. E preciso de um tempo para me preparar.
- Preparar em que sentido?
- Isto poderá parecer-lhe uma tolice, da boca de um falso padre sem alma. Mas quero dizer missa pela última vez e rezar, embora saiba que não há razão para que me ouçam com ouvidos compassivos.
Deucalião levantou-se da cadeira.
- Não vejo tolice nenhuma nesse pedido, padre Duchaine. Poderá ser a coisa menos tola a pedir. Quando pretende que eu volte, daqui a duas horas?

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- Não é uma coisa terrível que lhe peço, pois não?
- Não sou nenhum inocente, padre Duchaine. Já matei. E decerto que, depois de si, matarei outra vez.

42.
Lulana St. John e a irmã, Evangeline Antoine, levaram ao pastor Kenny Laffite duas tartes de creme de pralinê e canela com cobertura de nozes-pecãs fritas.
Evangeline fizera duas para o patrão, Aubrey Picou. Por sua generosa autorização, ela fizera mais duas para o sacerdote.
O senhor Aubrey manifestara vontade de comer as quatro tartes sozinho, mas reconhecera que isso seria gula, a qual era - para sua recente e admirada descoberta - um dos sete pecados capitais. Além disso,
coitado do senhor Aubrey, sofria de cãibras intestinais que poderiam não piorar com duas daquelas ricas delícias, mas que decerto acabariam com ele se entendesse devorar quatro.
O dia de trabalho de Lulana e Evangeline terminara. O irmão delas, Moses Bienvenu, fora para casa ter com a esposa, Saffron, e os dois filhos, Jasmilay e Harry.
Ao fim da tarde e ao serão, a única pessoa que tomava conta do senhor Aubrey era Meshach Bienvenu, irmão de Lulana, Evangeline e Moses. Como uma mãe-galinha atrás do pintainho, o bom do Meshach trataria
de que o patrão tivesse boa comida e conforto e, no que fosse possível ao senhor Aubrey, rectidão.
As irmãs costumavam levar petiscos ao pastor Kenny porque ele era um excelente homem de Deus, porque era uma bênção para a igreja delas, porque tinha um apetite sadio, porque não era casado. Aos trinta
e dois anos, verdadeiramente devoto, encantador e bem--parecido para alguns, era um peixe mais graúdo do que duas banheiras cheias de lampreias.
Em termos românticos, as irmãs não tinham interesse nenhum nele. Era novo de mais para elas. Além disso, Lulana era casada e feliz, e Evangeline era viúva e feliz.
Todavia, tinham uma sobrinha que daria a esposa perfeita para um homem do clero. Chamava-se Esther, era filha da irmã mais velha delas, Larissalene. Assim que Esther concluísse os três meses que faltavam
de um período de dezasseis meses de ortodontia exaustiva para corrigir uma afecção infeliz, a doce rapariga ficaria apresentável.
Lulana e Evangeline, com um belo historial de casamenteiras, preparavam o caminho para Esther, com tartes e bolos deliciosos, bolachas,

154
pães e queques: um caminho mais certo do que aquele aberto com folhas de palmeira e pétalas de rosa.
Ao lado da igreja, o presbitério era uma encantadora casa de tijolo com dois pisos, não tão grande que embaraçasse Nosso Senhor, nem tão humilde que não fosse apelativa para um pregador. O alpendre frontal
estava repleto de cadeiras de baloiço de espaldar alto e ripinhas, e enfeitado com cestos pendurados com musgo, o qual assumia tons fúcsia com cascatas de flores carmesim e púrpura.
Quando as irmãs, cada qual com uma bela tarte na mão, subiram os degraus do alpendre, encontraram a porta da frente escancarada, e era assim que o pastor Kenny a costumava deixar quando estava em casa.
Era um clérigo muito acolhedor com um estilo descontraído e, fora da missa, gostava de usar sapatos de ténis brancos, calções caqui e camisas de algodão grosso.
Pela porta de rede, Lulana não via nada de útil. Ainda faltava pelo menos uma hora para o crepúsculo tardio do meio do Verão, mas o sol já se fazia avermelhado, e os raios que penetravam nas janelas pouco
mais iluminavam do que sombras, tornando-as cor de púrpura. Nas traseiras, na cozinha, via-se luz.
Quando Evangeline estendeu a mão para tocar à campainha, ouviu-se um grito de dentro do presbitério. Parecia uma alma penada, aumentou de volume, tremeu e desvaneceu-se.
Lulana, a princípio, achou que tinham entrado quando o pastor Kenny estava a dar conforto a um membro do rebanho que sentisse remorsos ou estivesse de luto.
Depois ouviu-se o estranho grito outra vez e, pela porta de rede, Lulana vislumbrou uma figura gemebunda a sair da arcada da sala para o vestíbulo. Apesar das sombras, lobrigou que o homem atormentado
não era nenhum pecador angustiado nem paroquiano enlutado, mas sim o próprio reverendo.
- Pastor Kenny? - chamou Evangeline.
Atraído pelo chamamento, o clérigo avançou à pressa pelo corredor, na direcção delas, a agitar os braços no ar como se houvesse mosquitos.
Não lhes abriu a porta, espreitou pela rede com ar de quem vira, momentos antes, o demónio.
- Fui eu, não fui? - perguntou ele, arquejante e angustiado. - Sim, sim, fui eu. Fui eu só por ser eu. Só por ser eu, fui eu. Só por ser o pastor Kenny Laffite, fui eu. Fui eu.

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Havia algo no ritmo e na repetição das palavras que lembrava a Lulana os livros infantis do Dr. Seuss, com os quais ela se debatera em pequena.
- Pastor Kenny, o que se passa?
- Sou quem sou. Ele não, eu sou. Por isso fui eu, fui eu - declarou ele, e afastou-se da porta de rede para fugir do vestíbulo, a agitar os braços no ar.
Depois de pensar um momento, Lulana disse:
- Irmã, creio que somos precisas aqui.
Evangeline disse:
- Não tenho dúvidas, minha querida.
Fazendo-se convidada, Lulana abriu a porta de rede, entrou no presbitério e segurou a porta para a irmã.
Ouvia-se a voz do sacerdote nas traseiras da casa:
- O que farei? O quê, o que farei? Qualquer coisa, qualquer coisa, é isso o que farei.
Atarracada e robusta como um rebocador, o seu peito imponente a cortar o ar como a proa corta a água, Lulana avançou pelo corredor fora, e Evangeline, como um navio de grandes mastros, seguiu-lhe o rasto.
Na cozinha, o reverendo estava de pé no lava-louças, a lavar vigorosamente as mãos.
- Não, não, não, mas eu fiz. Não, mas fiz.
Lulana abriu o frigorífico e encontrou espaço para as duas tartes.
- Evangeline, há aqui mais nervoso miudinho do que Deus fez erva. Talvez não seja necessário, mas é melhor termos leite a jeito.
- Deixa comigo, irmã.
- Obrigada, irmã.
Saíam nuvens de vapor do lava-louça. Lulana viu que, por baixo da água corrente, as mãos do reverendo estavam afogueadas.
- Pastor Kenny, daqui a nada vai escaldar-se.
- Só por ser, eu sou. Eu sou o que sou. Sou o que fiz. Fui eu, fui eu.
A torneira estava tão quente que Lulana teve de lhe tocar com um pano na mão para a fechar.
O pastor Kenny tentou abri-la outra vez.
Ela deu-lhe uma palmadinha na mão, como faria afectuosamente a uma criança para esta não se portar mal.
- Ora, pastor Kenny, seque as mãos e venha sentar-se à mesa.

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Sem pegar no pano, o reverendo virou costas ao lava-louça mas também não foi para a mesa. Com pernas bambas, a escorrer água das mãos encarniçadas, dirigiu-se ao frigorífico.
Gemia e rabujava, como quando o tinham ouvido ainda no alpendre da casa.
Ao lado do frigorífico havia um cepo de facas na parede. Lulana acreditava que o pastor Kenny fosse um homem bom, um homem de Deus, e não tinha medo dele mas, naquelas circunstâncias, pareceu-lhe boa ideia
afastá-lo das facas.
Com um rolo de papel absorvente, Evangeline andava atrás deles a limpar a água que caía no chão.
Lulana pegou no braço do sacerdote, orientou-o o melhor que pôde, e disse:
- O pastor Kenny está perturbado, está completamente fora de si. Tem de se sentar e acalmar os nervos, deixar entrar a paz.
Embora ele parecesse abalado ao ponto de não se aguentar de pé, ainda deu a volta à mesa, e mais meia, com ela, antes de Lulana o conseguir sentar numa cadeira.
Ele soluçava mas não chorava. Era terror, e não desgosto.
Evangeline já encontrara uma panela grande, a qual encheu de água quente no lava-louça.
O sacerdote levou as mãos fechadas em punhos ao peito e começou a balouçar-se para a frente e para trás na cadeira, a voz entrecortada pela tristeza.
- Tão súbito, tudo tão súbito, apercebi-me do que sou, do que fiz, do sarilho em que me meti, grande sarilho.
- Agora estamos aqui, pastor Kenny. Se contar o que o perturba, será menos peso em cima de si. Conte-me a mim e à Evangeline, e o que o perturba pesará um terço do que pesa agora.
Evangeline pusera a panela em cima do fogão e acendera o gás. Agora tirava um pacote de leite do frigorífico.
- Conte os seus problemas a Deus, e eles saem-lhe de cima dos ombros, sem peso nenhum. Decerto que não preciso de lhe dizer a si como eles vão sair.
Depois de abrir as mãos e de as levar ao nível dos olhos, o pastor contemplava-as, horrorizado.
- Não, não, não, não, não, NÃOl
O hálito dele não cheirava a álcool. Lulana não queria pensar que ele pudesse ter inalado algo menos sadio do que o doce ar de Deus,

157
mas se o reverendo fosse cocainómano, Lulana calculou ser melhor descobrir mais cedo e não mais tarde, quando os dentes de Esther estivessem certinhos e o namoro tivesse começado.
- Temos mais sins do que nãos - disse Lulana, a tentar chegar a ele.
- Mas há nãos suficientes para eu precisar que o pastor explique. Não o quê, pastor Kenny?
- Matarás - respondeu ele, e estremeceu.
Lulana olhou para a irmã. Evangeline, de pacote de leite na mão, ergueu o sobrolho.
- Eu matei, matei. Matei, matei.
- Pastor Kenny - começou Lulana -, sei que é um homem amável e bondoso. Seja o que for que o pastor pensa que fez, tenho a certeza de que não é tão mau como o pinta.
Ele baixou as mãos. Por fim, olhou para ela.
- Eu matei-o.
- Quem é que matou? - perguntou Lulana.
- Nunca tive hipótese - sussurrou o homem perturbado. - Ele nunca teve hipótese. Nenhum de nós teve hipótese.
Evangeline encontrou um boião e começou a deitar nele leite do pacote.
- Ele está morto - disse o reverendo.
- Quem? - insistiu Lulana.
- Ele está morto, e eu estou morto. Estive morto desde o princípio.
No telemóvel de Lulana estavam guardados os muitos contactos da sua grande família, mais aqueles de uma família de amigos ainda maior. Embora o senhor Aubrey - Aubrey Picou, seu patrão - andasse a encontrar
o caminho da redenção mais depressa do que pensava (mas mais devagar do que Lulana desejava), continuava a ser um homem de passado dúbio que, um dia, poderia vingar-se dele; por conseguinte, na lista telefónica
dela estavam os números do escritório, do telemóvel, e de casa, de Michael Maddison, não fosse o senhor Aubrey precisar de um polícia para o ouvir com imparcialidade. Lulana escreveu o nome de Michael,
escolheu o número do telemóvel e fez a chamada.

43.
Na sala de estar vitoriana sem janelas, entre as duas portas de cofre, Erika rodeou a imensa caixa de vidro, a estudar cada pormenor. A princípio parecera-lhe um grande guarda-jóias, e ainda parecia; mas
agora também parecia um caixão, embora muito grande e muito pouco convencional.
Ela não tinha motivos para crer que lá estivesse dentro um corpo. No centro da caixa, o vulto disfarçado pelo líquido - ou gás - ambari-no não tinha braços, pernas, feições que se distinguissem. Era apenas
uma massa escura sem detalhes; podia ser qualquer coisa.
Se a caixa tivesse de facto um corpo lá dentro, o espécime era grande: cerca de dois metros e meio de extensão, quase um metro de largura.
Erika examinou o caixilho de ouropel por baixo do qual se uniam as faces de vidro, em busca de arestas que indicassem dobradiças ocultas. Não encontrou nada. Se o topo da caixa fosse uma tampa, abria-se
de uma maneira que lhe escapava.
Quando bateu com os nós dos dedos no vidro, o som indicou-lhe uma espessura de, pelo menos, dois centímetros e meio.
Erika reparou que, debaixo do vidro, mesmo no sítio onde ela batera com os nós dos dedos, o âmbar - fosse qual fosse a sua natureza -abria covinhas como a água abre quando cai uma pedra. A covinha tingiu-se
de azul safira, formou um anel e dissolveu-se na superfície; o tom ambarino restabeleceu-se a seguir.
Erika tornou a usar os nós dos dedos, com o mesmo efeito. Depois de bater três vezes seguidas, apareceram três anéis azuis concêntricos, dissolveram-se, desvaneceram-se.
Embora os nós dos dedos tivessem feito um brevíssimo contacto, o vidro parecera-lhe frio. Quando abriu a palma da mão contra ele, descobriu que estava gelado, embora alguns graus acima do ponto de congelação
da sua pele.
Quando Erika se ajoelhou no tapete persa e espreitou para debaixo da caixa, entre os pés primorosamente esculpidos em forma de garras, viu fios eléctricos e tubos de várias cores e diâmetros, os quais
saíam do fundo da caixa e desapareciam pelo chão adentro. Tal indicava a presença de outra sala debaixo daquela, embora a mansão não tivesse cave, ao que Erika sabia.

159
Victor era dono de uma das maiores propriedades do bairro e, de facto, geminara duas casas grandes de uma maneira tão elegante que até ganhara louvores dos conservacionistas da História. Toda a reconstrução
interior fora empreendida por membros da Nova Raça, mas nem toda fora reportada ao - nem autorizada pelo - pelouro da habitação da edilidade.
O genial marido de Erika conseguira mais do que universidades de cientistas inteiras. As suas proezas eram tanto mais notáveis quanto ele tivera de trabalhar na clandestinidade - e, desde a lamentável
morte de Mao Tse-Tung, sem subsídios de governo algum.
Erika pôs-se de pé e rodeou a caixa de vidro mais uma vez, a tentar determinar se havia pés e cabeça, como em qualquer cama ou caixão. O design do objecto não lhe dava pistas nenhumas mas decidiu por fim,
impelida pela intuição, que a cabeça da caixa deveria ser a ponta mais longe da porta da sala.
Erika inclinou-se, aproximou-se mais e espreitou no topo da caixa, observando atentamente aquele miasma cor de âmbar, cada vez mais perto, na esperança de lhe ocorrer a mais ínfima sugestão de contorno
ou textura no vulto sombrio dentro da sua mortalha líquida.
Quando os lábios dela não estavam a mais de cinco centímetros do vidro, ela disse baixinho:
- Olá, olá, olá aí para dentro.
Dessa vez aquilo mexeu-se de certeza.


44.
Nick-nariz-de-cão estava à beira da fossa, a farejar o fedor que lhe chegava com a brisa leve que se fazia sentir ao crepúsculo.
Mais de uma hora antes, o último camião do dia descarregara a sua carga, e a Gestão de Resíduos Crosswoods fechara portas até de madrugada. Agora era um mundo único em si, um universo rodeado por vedações
metálicas encimadas por arame farpado.
Na noite que se avizinhava, os membros da equipa de Nick Frigg eram livres de serem eles próprios. Podiam fazer o que quisessem, sem se preocuparem que um camionista da Velha Raça visse comportamentos
que traíssem a sua pose de funcionários do saneamento.
Na fossa ocidental abaixo dele, membros da equipa espetavam archotes montados em estacas na zona em que os enterros se iam realizar. Depois de a noite cair, acenderiam a lamparina a óleo no topo de cada
estaca.
Com a sua vista melhorada, Nick e sua gente não precisavam de tanta luz assim mas, para aquelas cerimónias, os archotes davam o mote. Até os da Nova Raça, até os Gamas como Nick e até os rasteiros Ipsílones
como a equipa em que ele mandava se deliciavam com a encenação.
Talvez especialmente os Ipsílones. Eram mais inteligentes do que animais, claro, mas de certo modo eram animais na sua simplicidade e excitabilidade.
Por vezes parecia a Nick Frigg que quanto mais aqueles Ipsílones viviam ali na Crosswoods, com pouco contacto com Gamas além dele mesmo, sem contacto algum com Betas e Alfas, mais simplórios e animalescos
se tornavam, como se, na ausência de classes superiores da Nova Raça para servirem de exemplo, não conseguissem agarrar-se ao mais parco conhecimento e aos mais modestos padrões de comportamento que lhes
tinham sido carregados no cérebro enquanto estavam nos tanques.
Após os enterros, a equipa iria festejar, beber bastante e fazer sexo. Comeriam avidamente a princípio, e depressa estariam a disputar comida, a empanturrarem-se com deleite. O álcool correria directamente
da garrafa para a boca, sem misturas, não diluído, para aumentar e acelerar o efeito. O sexo seria ávido e egoísta, depois insistente e irritado, depois selvático, não ficaria desejo algum por realizar,
sensação alguma por experimentar.

161
Encontrariam alívio da solidão, da insignificância. Porém, o alívio só se fazia sentir enquanto comiam, enquanto bebiam, enquanto fornicavam. Depois, a angústia voltaria a abater-se sobre eles como um
martelo, a carregar mais fundo no prego. Coisa de que se esqueciam sempre. Porque precisavam de se esquecer.
Naquele momento, Gunny Alecto e outros colegas estavam na câmara frigorífica, a carregar os cinco corpos humanos e os três enganos para cima de duas carrinhas de caixa aberta com tracção às quatro rodas
que os levaria ao local da cerimónia. Os cadáveres da Velha Raça numa carrinha, os enganos noutra.
Os mortos da Velha Raça seriam transportados com menos respeito do que os enganos recebidos, aliás, sem respeito de espécie alguma. Os seus corpos seriam sujeitos a indignidades grotescas.
Na estrutura de classes da Nova Raça, os Ipsílones não tinham ninguém em relação a quem se sentirem superiores - excepto os da Velha Raça. E naquelas cerimónias de enterro, exprimiam um ódio de tal pureza
e tal apuro amadurecido que ninguém na História da Terra jamais desprezara com mais intensidade, odiara com mais ferocidade, abominara o inimigo com maior fúria.
Ia ser uma noite muito divertida.

45.
Nas Mãos da Misericórdia, não havia sala de isolamento, das três disponíveis, preparada para conter uma doença mortal, pois Victor não se interessava pela engenharia de microrganismos. Não havia perigo
algum de criar acidentalmente um novo vírus ou uma nova bactéria mortal.
Por conseguinte, a câmara de seis metros por cinco que ele escolheu para Werner não tinha uma estrutura de pressão positiva para impedir a fuga de micróbios e esporos a rodeá-la. Também não tinha sistema
de ventilação autónomo.
A sala de isolamento destinava-se somente a conter qualquer variante da Nova Raça - Victor fazia experiências exóticas - que ele desconfiasse que pudesse revelar-se difícil de gerir, e outras que mostrassem
inesperadamente um comportamento anti-social de natureza letal.
Assim sendo, as paredes, o tecto e o chão da câmara eram de cimento reforçado por aço com uma grossura de 45 centímetros. As superfícies interiores tinham sido revestidas com três camadas sobrepostas de
placas de aço com 6,35 milímetros.
Caso necessário, poderia enviar-se uma carga eléctrica letal a essas placas de aço, bastava carregar num interruptor na sala de observação adjacente.
O único acesso à câmara de isolamento fazia-se por um módulo de transição entre esta e a sala de observação.
O pessoal por vezes chamava-lhe túnel de ar, embora este termo impreciso irritasse Victor. Não havia mudanças de atmosfera quando se usava o módulo de transição, e nem sequer havia a mais simples reciclagem
de ar.
O módulo tinha duas portas de aço redondas que tinham sido feitas para os cofres de um banco. Era mecanicamente impossível ter as duas portas abertas ao mesmo tempo; logo, quando a interior se abria, alguém
prisioneiro na câmara de isolamento poderia chegar ao vestíbulo, mas não poderia sair para a sala de observação.
Deitado numa maca, com a carne a passar por um colapso celular, se não mesmo uma reorganização molecular, Werner tinha passado a grande velocidade pelos corredores da Misericórdia, pela sala de observação,
pelo módulo e ficara na câmara de isolamento, e Victor estivera

163
o tempo todo a berrar ordens aos maqueiros, "despachem-se, mais depressa, malditos, corram!"
O pessoal até poderia ter pensado que o seu criador fora acometido de um pânico cego, mas Victor não podia ligar ao que o pessoal pensava. Werner estava seguro naquela célula que mais parecia uma fortaleza,
e nada mais importava.
Quando a mão que se formara na carne amorfa do peito de Werner se agarrara à mão de Victor, fizera-o com ternura, suplicante. Porém, não se devia tomar esta docilidade inicial como previsão fiável de uma
transformação benigna.
Nunca, jamais, em tempo algum acontecera uma coisa daquelas. Nem devia ser possível um tal colapso da integridade celular, acompanhado de uma reforma biológica autónoma.
O bom senso sugeria que uma metamorfose assim radical, a qual só podia incluir, obviamente, mudanças nos tecidos cerebrais, implicaria a perda de uma percentagem significativa dos dados e da programação
directamente carregados no cérebro que Werner recebera no tanque, incluindo talvez a interdição de matar o seu criador.
Era imperioso manter a prudência e uma pressa responsável - e não pânico. Homem de visão científica inigualável, Victor previra de imediato a pior hipótese e agira com uma calma admirável, mas com alacridade,
para reagir ao perigo e conter a ameaça.
Tentou não se esquecer de fazer circular um memorando nesse sentido, pelas Mãos da Misericórdia, antes do final do dia.
Iria ditá-lo a Annunciata.
Não, iria escrevê-lo e distribuí-lo pessoalmente, e para o diabo com Annunciata.
Na sala de observação, onde Victor se reunira com Ripley e quatro efectivos, havia um banco de seis ecrãs rectangulares de alta definição, cada qual com as imagens de circuito fechado de uma das seis câmaras
no isolamento, as quais mostravam que Werner continuava num estado de uma plasticidade perturbante. De momento, tinha quatro pernas, não tinha braços, e um corpo mal definido, em contínua mutação, de onde
irrompia uma cabeça vagamente parecida com a de Werner.
Muito agitada, a coisa movia-se aos safanões na câmara de isolamento, a ganir como um animal ferido e por vezes a dizer, Pai? Pai? Pai?
Aquilo do pai irritava Victor sobremaneira, era-lhe quase insuportável. Não gritou Cala-te, cala-te, cala-te para os ecrãs só para evitar a necessidade de acrescentar um segundo parágrafo ao memorando.

164
não queria que pensassem nele como pai deles. Não eram da sua família; eram as suas invenções, as suas criações e, de certezinha, propriedade sua. Era criador, dono e senhor, e até líder deles, se assim
quisessem pensar nele, mas não era pater familias.
A família era uma instituição primitiva e destrutiva porque se queria acima do bem da sociedade no seu todo. A relação pai-filho era contra-revolucionária e tinha de ser erradicada. Para as suas criações,
a raça inteira seria a família, cada qual irmão ou irmã de todos os outros, a fim de que não houvesse relação nenhuma em particular diferente das outras ou mais importante do que as outras.
Uma raça, uma família, uma grande colmeia a zumbir em uníssono, sem as distracções da individualidade e da família, poderia alcançar qualquer coisa a que se propusesse e a que dedicasse a sua energia infindável,
livre de emoções pueris, de toda a superstição, poderia conquistar qualquer desafio que o universo lhe reservasse. Uma espécie dinâmica, imparável, de determinação até então inimaginável, a ganhar cada
vez mais ímpeto, correria, correria, para a glória, glória atrás de glória, em nome dele.
Ripley ergueu as suas sobrancelhas ridículas quando viu um Werner de quatro pernas muito trémulo, de cujas costas começava a brotar algo que pareciam braços, mas que não eram, e disse:
- Como o Harker.
Victor repreendeu-o de imediato.
- Não é nada como o Harker. O Harker foi uma singularidade. O Harker deitou cá para fora um segundo "eu" parasita. Não está a acontecer nada assim ao Werner.
Siderado pelas imagens chocantes nos ecrãs, Ripley insistiu:
- Mas, senhor Helios, parece que ele está...
- O Werner não está a deitar cá para fora um segundo "eu" parasita - retrucou Victor secamente. - O Werner está a passar por uma metamorfose celular catastrófica. Não é o mesmo. Não é o mesmo de modo algum.
O Werner é uma singularidade diferente.

46.
Cindi e Benny Lovewell, ela crente na ciência do vudu e ele não, restabeleceram contacto com os detectives O'Connor e Maddison pelo sinal do emissor-receptor por baixo do capô do carro de serviço. Apanharam
o rasto aos seus alvos - mas continuaram sem contacto visual - no Garden District.
Durante longos minutos, os polícias percorreram os mesmos poucos quarteirões, às voltas, e depois mudaram de sentido, percorrendo território idêntico na direcção oposta, primeiro um circuito e depois o
outro.
- Como um rato cego num labirinto - disse Cindi solenemente, identificando-se com a ausência de filhos de O'Connor, tal como antes.
- Não - discordou Benny -, isto é diferente.
- Tu não podes compreender.
- Tenho a mesma capacidade de entendimento que tu.
- Mas nisto não tens. Não és mulher.
- Bom, se for necessário ter alguma vez tido útero para ser mulher, então tu também não és mulher. Tu não tens útero. Não foste concebida para ter bebés e não podes ficar grávida de maneira nenhuma.
- Veremos o que Ibo tem a dizer sobre isso - retrucou ela com presunção. - Je suis rouge.
A observar o ponto que piscava no ecrã, Benny comentou:
- Andam tão devagar...
- Queres fazer contacto, barrar-lhes o caminho, deitá-los abaixo e levá-los?
- Aqui não. Isto é o tipo de bairro em que as pessoas chamam a polícia. Acabaríamos numa perseguição. - Depois de observar o ecrã mais um minuto, ele disse:
- Andam à procura de alguma coisa.
- De quê?
- Como é que hei-de saber?
- É pena que a Zozo Deslisle não esteja aqui - disse Cindi. - Ela tem visão vudu. Basta-lhe olhar para esse ecrã para saber o que querem eles.
- Enganei-me - disse Benny. - Não estão à procura de nada. Encontraram o que queriam, e agora estão a vigiar.
- A vigiar o quê? Os ladrões é que vigiam bancos. Não há bancos nenhuns neste bairro, só casas.

166
Benny semicerrou os olhos a contemplar o ecrã e sentiu uma resposta a provocá-lo num cantinho da sua cabeça. O alvo acelerou abruptamente. O ponto vermelho fez inversão de marcha no ecrã e começou a mexer-se
mais depressa.
- O que é que estão a fazer agora? - perguntou Cindi.
- São polícias. Se calhar receberam uma chamada de urgência. Segue-os. Não deixes que nos vejam, mas tenta não passar de um quarteirão de distância. Talvez surja oportunidade.
Um minuto depois, Cindi disse:
- Vão a caminho do Bairro Francês. É demasiado público para nós.
- Não os percas, seja como for.
Os detectives não pararam no Bairro Francês. Seguiram a curva do rio pelo Faubourg Marigny e entraram num bairro chamado Bywater.
O ponto no ecrã parou e, quando os Lovewells apanharam o carro à civil, já o crepúsculo alaranjado se fazia sentir, estava estacionado ao pé de uma igreja, em frente a uma casa de tijolo com dois pisos.
O'Connor e Maddison não se viam em parte alguma.

47.
Carson estava sentada à mesa da cozinha, em frente a Lulana St. John e numa linha oblíqua com o pastor Kenny Laffite.
Michael ficou-se pelo fogão, onde Evangeline aquecia um boião cheio de leite dentro de uma panela com água.
- Se o aquecesse directamente na panela - explicou ela a Michael - podia escaldá-lo.
- E depois fica coalhado, não fica? - perguntou ele.
Ela fez uma careta.
- Queimado no fundo e com nata por cima.
O reverendo estava sentado com os braços em cima da mesa, a olhar para as próprias mãos, horrorizado.
- Apercebi-me de repente que o fiz. Só por ser eu, matei-o. E matar é proibido.
- Pastor Laffite - começou Carson -, não é obrigado, por lei, a responder às nossas perguntas sem a presença de um advogado. Quer ligar ao seu advogado?
- Este bom homem não matou ninguém - protestou Lulana.
- Fosse o que fosse que aconteceu, foi um acidente.
Carson e Michael já tinham passado rapidamente revista à casa e não tinham encontrado cadáver algum, nem sinais de violência.
- Pastor Laffite - continuou Carson -, olhe para mim, se faz favor.
O reverendo continuava a olhar para as mãos. Tinha os olhos arregalados, mais abertos não poderiam estar, e nem piscavam.
- Pastor Laffite - disse ela -, queira desculpar, mas o senhor parece alheado e excitado ao mesmo tempo. Preocupa-me que o pastor tenha tomado recentemente alguma droga ilegal.
- No momento em que acordei - disse o reverendo - ele morreu, ou não tardaria a morrer. Só por acordar, matei-o.
- Pastor Laffite, compreende que o que me disser agora poderá ser usado contra si em tribunal?
- Este bom homem não vai a tribunal coisa nenhuma - retrucou Lulana. - Está apenas confuso. Por isso é que eu quis vocês dois e não outros. Sabia que vocês não se iriam precipitar.
Os olhos do pastor ainda não tinham piscado. E também não se viam lágrimas. Já deviam ter começado a lacrimejar só de não piscarem.

168
Do fogão, Michael perguntou:
- Pastor, quem é que matou?
- Matei o pastor Kenny Laffite - respondeu o reverendo.
Lulana recebeu a surpresa com algum entusiasmo, deitou a cabeça para trás, deixou a boca abrir-se, levou a mão ao peito.
- Louvado seja Deus, pastor Kenny, o senhor não se pode ter matado a si mesmo. Está aqui sentado connosco.
Ele passou de alheado a excitado, outra vez.
- Vêem, vêem, vêem, é assim, é fundamental. Não tenho ordem para matar mas, pelo simples facto da minha existência, pelo simples facto, sou pelo menos responsável, em parte, pela morte dele, pelo que no
mesmíssimo dia da minha criação, violei logo o meu programa. O meu programa tem defeito. Se o meu programa tem defeito, que mais poderei fazer que não devo fazer, que mais, que mais, que mais?
Carson olhou para Michael.
Michael estivera descontraidamente encostado ao balcão. Endireitara-se, os braços pendentes ao lado do corpo.
- Pastor Kenny - disse Lulana, e pegou-lhe numa mão -, o pastor anda numa inquietação terrível, a tentar recolher fundos para a remodelação da igreja, em cima de todas as outras obrigações...
- Cinco casamentos num mês - acrescentou Evangeline. Segurou no boião cheio com uma pega e deitou leite num copo.
- E três funerais, ainda por cima.
Carson afastou a cadeira da mesa quando Lulana disse:
- E teve de fazer esse trabalho todo sem o consolo de uma esposa. Não admira que ande cansado e preocupado.
A deitar açúcar no leite, Evangeline disse:
- O nosso próprio tio Absalom trabalhou até ficar esquelético, sem o consolo de uma esposa, e um dia começou a ver fadas.
- E com isto ela não quer dizer homossexuais - explicou Lulana a Laffite -, mas aquelas criaturinhas com asas.
Carson levantou-se da cadeira e recuou um passo da mesa quando Evangeline, a deitar várias gotas de extracto de baunilha no leite, disse:
- Não é vergonha nenhuma ver fadas. O tio Absalom só precisava de descansar, que cuidassem dele, e ficou bom, nunca mais viu fadas.
- Não devo matar gente mas, pelo simples facto da minha existência, matei Kenny Laffite - disse Kenny Laffite - e quero mesmo matar mais.

169
- Isso é o cansaço a falar - disse Lulana, e deu-lhe palmadinhas na mão. - Cansaço maluco, mais nada, pastor Kenny. Não quer nada matar mais.
- Quero - discordou ele. Fechou os olhos e deixou pender a cabeça. - E agora que o meu programa tem defeito, talvez mate. Quero matá--los a todos aqui, e talvez mate.
Michael impediu Evangeline de levar o copo de leite para a mesa.
Carson levou a mão direita ao lado oposto do corpo, onde tinha a Desert Eagle no coldre na anca esquerda, agarrou-a com as duas mãos, e disse:
- A Lulana disse que vieram cá para trazer duas tartes ao pastor Laffite.
Os olhos cor de melaço de Lulana estavam arregalados e fixos na arma dourada.
- Carson O'Connor, está a exagerar e não é nada seu. Este coitado...
- Lulana - Carson interrompeu com a mais ínfima dureza na voz -, porque não nos vai buscar uma tarte ao frigorífico e nos corta umas fatias?
Com a cabeça ainda pendente, o queixo no peito e os olhos fechados, Laffite disse:
- O meu programa está a falhar. Sinto isso a acontecer... Uma espécie de enfarte em câmara lenta. Linhas de código instalado a cair, a tombar, como uma fila comprida de pássaros electrificados a caírem
do fio da luz.
Evangeline Antoine disse:
- Irmã, se calhar a tarte é boa ideia.
Quando Lulana, depois de muito pensar, empurrou a cadeira e se levantou, o telemóvel de Michael tocou.
Laffite levantou a cabeça mas não abriu os olhos. O movimento rápido destes por detrás das pálpebras era o de um homem a sonhar profunda e nitidamente.
O telemóvel de Michael tocou outra vez, e Carson disse:
- Não deixes entrar em correio de voz.
Quando Lulana avançou, não para o frigorífico, mas sim para a irmã, e para fora da linha de fogo, Laffite disse:
- Que estranho, uma coisa destas acontecer a um Alfa.
Carson ouviu Michael indicar a morada do presbitério ao telemóvel.

170
Com os olhos ainda a revirarem-se e a mexerem-se por detrás das pálpebras, Laffite disse:
- "Porque aquilo que temia me sobreveio; e o que receava me aconteceu."
- Job, capítulo 3, versículo 25 - disse Lulana.
- "Sobrevieram-me o espanto e o tremor, e todos os meus ossos estremeceram."
- Job 4, versículo 14 - disse Evangeline.
Para chegarem à porta do alpendre das traseiras ou à porta do corredor, as irmãs teriam de passar a linha de fogo. Juntaram-se no canto da cozinha que acharam mais seguro.
Tendo terminado a chamada, Michael pôs-se à esquerda de Carson, entre Laffite e as irmãs, com a sua própria Magnum 50 em ambas as mãos.
- "Ajunta-me este povo - disse Laffite - e os farei ouvir as minhas palavras, e aprendê-las-ão, para me temerem todos os dias que na Terra viverem."
- Deuteronómio - disse Lulana.
- Capítulo 4, versículo 10 - acrescentou Evangeline.
- Deucalião? - murmurou Carson, a respeito da chamada.
- Pois.
Laffite abriu os olhos.
- Revelei-me a vós. Mais provas de que o meu programa está a falhar. Temos de andar em segredo no meio de vós, nunca revelando a nossa diferença nem o nosso objectivo.
- Na boa - disse-lhe Michael. - Não temos problemas com isso. Fique aí sentado um bocadinho, pastor Kenny, fique aí sentado a ver os passarinhos a caírem do arame.

48.
Randal Seis está zangado consigo próprio por ter matado a mãe de Arnie.
- Estúpido - diz ele. - Estúpido.
Não está zangado com ela. Não vale a pena estar zangado com alguém morto.
Não tencionava bater-lhe mas, de repente, deu consigo a fazer isso, da mesma maneira que partiu o pescoço do vadio dentro do contentor do lixo.
Agora sabe que não corria perigo. A autodefesa não exigia medidas tão extremas.
Depois da sua existência protegida nas Mãos da Misericórdia, Randal precisa de mais experiência no grande mundo para poder avaliar devidamente a seriedade de uma ameaça.
Depois descobre que a mãe de Arnie está apenas inconsciente. Isto invalida a necessidade de estar zangado consigo próprio.
Embora tenha estado zangado consigo próprio menos de dois minutos, a experiência foi lancinante. Quando são os outros a zangarem-se connosco - como Victor costuma zangar-se - podemos voltar ao nosso mundo
interior e fugir deles. Quando estamos zangados connosco, não vale a pena voltar ao nosso mundo interior porque, por mais fundo que se vá, o "eu" zangado ainda lá está.
O corte da faca na mão dele já parou de sangrar. A laceração fechará completamente em duas ou três horas.
Os salpicos de sangue no chão e nos electrodomésticos perturbam Randal Seis, pois estragam a atmosfera quase espiritual que reina ali. É uma casa, e a cozinha é o seu coração, e deve reinar sempre uma
sensação de calma e de paz.
Com papel absorvente e um frasco de detergente, Randal Seis limpa o sangue.
Com o cuidado de não lhe tocar na pele, pois não gosta de sentir a pele de outrem, Randal amarra a mãe à cadeira com tiras de pano que rasgou da roupa suja que está dentro do cesto na lavandaria.
Quando termina de a prender, a mãe recobra os sentidos. Está ansiosa, agitada, cheia de perguntas e ilações e súplicas.
A estridência da voz dela e a tagarelice frenética enervam Randal. Ela faz a terceira pergunta antes de ele poder responder à primeira.

172
As exigências dela para com ele são demasiadas, e a quantidade de dados que ela emite, excessiva para a capacidade dele de processamento.
Em vez de lhe bater, Randal desce o corredor até à sala, onde se deixa ficar um pouco. Já é lusco-fusco. A sala está quase às escuras. Não há nenhuma mãe tagarela e excitada. Em meros minutos, Randal sente-se
muito melhor.
Volta à cozinha e, assim que lá chega, a mãe começa a tagarelar outra vez.
Quando ele lhe manda estar calada, ela fala ainda mais, e as súplicas redobram de urgência.
Ele quase deseja estar outra vez por baixo da casa com as aranhas.
Ela não está a portar-se como uma mãe. As mães são calmas. As mães têm as respostas todas. As mães amam-nos.
Regra geral, Randal Seis não gosta de tocar nos outros nem que lhe toquem. Aquilo é diferente. Aquilo é uma mãe, mesmo que ela, de momento, não se esteja a portar como mãe.
Ele coloca a mão direita debaixo do queixo dela e obriga a boca a fechar-se e, ao mesmo tempo, aperta-lhe o nariz com a mão esquerda. Ela debate-se, a princípio, mas depois fica quieta quando se apercebe
de que ele tem muita força.
Antes que a mãe desmaie por falta de oxigénio, Randal tira a mão do nariz e deixa-a respirar. Porém, continua a fechar-lhe a boca.
- Chiu - faz ele. - Calada. Randal gosta de sossego. Randal assusta--se facilmente. O barulho mete medo ao Randal. Muita conversa, muitas palavras metem medo ao Randal. Não assustes o Randal.
Quando ele sente que ela está pronta a cooperar, tira-lhe a mão da boca. Ela não diz nada. Está ofegante, quase arquejante, mas deixou-se de conversas, por agora.
Randal Seis apaga o bico de gás no fogão para que as cebolas não se queimem na frigideira. Tal constitui um nível mais alto de envolvimento com o seu ambiente, ao qual não está habituado, uma sensibilização
de questões periféricas, e fica contente consigo próprio.
Talvez descubra talento para a cozinha.
Tira uma colher de sopa da gaveta dos talheres e a caixa de gelado de morango e banana do congelador. Senta-se à mesa da cozinha, em frente à mãe de Arnie, e serve-se daquela delícia cor-de-rosa e amarela
da própria caixa.
Não é melhor do que comida castanha, mas também não é pior. Apenas diferente, ainda maravilhoso.

173
Sorri para ela porque aquele lhe parece um momento doméstico - talvez até um momento importante no relacionamento - que exige um sorriso.
Todavia, é evidente que ela fica abalada pelo sorriso dele, talvez por saber ver que é calculado e nada sincero. As mães sabem.
- Randal vai fazer perguntas. Tu respondes. Randal não quer ouvir as tuas perguntas demasiadas, barulhentas. Apenas respostas. Respostas curtas, sem tagarelice.
Ela compreende. Faz que sim com a cabeça.
- Chamo-me Randal. - Como ela não responde, ele perguntou:
- Ah. E tu como te chamas?
- Vicky.
- Por agora, Randal vai chamar-te Vicky. Não faz mal que o Randal te chame Vicky?
-Não.
- Tu és a primeira mãe que o Randal conhece. Randal não quer matar mães. Queres que eu te mate?
- Não, por favor, não.
- Há muita gente a querer que os matem. Gente da Misericórdia. Porque não se conseguem matar a si próprios.
Randal pára para levar mais gelado à boca.
A lamber os lábios, continua:
- Isto sabe melhor do que aranhas e minhocas e ratos teriam sabido. Randal gosta dentro de casa mais do que debaixo da casa. Gostas mais dentro de casa do que debaixo da casa?
- Sim.
- Já estiveste num contentor do lixo com um vadio morto?
Ela olha para ele e nada diz.
Ele parte do princípio de que ela está a tentar recordar-se mas, passado um bocado, pergunta:
- Vicky? Já estiveste num contentor do lixo com um vadio morto?
- Não, não estive.
Randal Seis nunca teve tanto orgulho em si mesmo como neste momento. É a primeira conversa que tem com alguém além do seu criador na Misericórdia. E está a correr tão bem.

49.
O problema do excesso de produção de muco que durou a vida inteira de Werner era um incómodo menor, comparado com suas as actuais atribulações.
Na sala de observação, Victor, Ripley e quatro auxiliares pasmados observavam os seis ecrãs de circuito fechado, enquanto o chefe da segurança cambaleava pela sala de isolamento sobre quatro patas. As
duas pernas traseiras estavam iguais ao princípio deste episódio. Embora as pernas dianteiras se parecessem deveras com as traseiras, a articulação dos ombros mudara drasticamente.
Os poderosos ombros pareciam os de um felino na selva. Enquanto Werner rondava inquieto dentro da outra sala, a sua metamorfose continuava, e as quatro pernas começaram a parecer cada vez mais felinas.
Como em qualquer felídeo, desenvolvera-se um cotovelo no término posterior do músculo do ombro para complementar uma estrutura da articulação da perna dianteira que incluía um joelho, mas um pulso mais
flexível do que seria um tornozelo.
Isto intrigava Victor, pois concebera Werner com material genético seleccionado de uma pantera, a fim de lhe aumentar agilidade e velocidade.
As pernas traseiras tornavam-se mais felinas, desenvolviam um longo metatarso acima dos dedos dos pés, um calcanhar a meio caminho da perna e um joelho perto do tronco do corpo. A relação entre a garupa,
a coxa e o flanco oscilava, e as proporções alteravam-se.
Nas pernas traseiras, os pés humanos dissolviam-se completamente em estruturas como patas, de dedos toscos com garras impressionantes. Todavia, nas pernas dianteiras, embora se formassem esporões nas quarteias,
persistiam elementos da mão humana, mesmo que os dedos agora terminassem em bainhas de garras e garras propriamente ditas.
Todas estas transformações se apresentavam claramente para observação, pois Werner não estava a ganhar pêlo. Era glabro e cor--de-rosa.
Embora esta crise ainda não tivesse passado - aliás, parecia ainda no início -, Victor conseguiu imbuir as suas observações de um frio desprendimento científico, agora que Werner estava contido e a ameaça
de violência iminente fora eliminada.

175
Ao longo das décadas, Victor aprendera amiúde mais com os reveses do que com os numerosos sucessos. O fracasso poderia ser um pai legítimo para o progresso, especialmente os fracassos dele, os quais tinham
mais probabilidades de adiantar a causa do conhecimento do que os maiores triunfos de cientistas menores.
Victor estava fascinado pela arrojada manifestação de características não humanas para as quais ele não havia incluído genes. Embora a musculatura do chefe da segurança tivesse sido melhorada com material
genético oriundo de uma pantera, este não encerrava em si código que se traduzisse em patas felinas, e certamente não fora composto para ter cauda, a qual começava agora a formar-se.
A cabeça de Werner, ainda reconhecível, mexia-se num pescoço mais grosso e sinuoso do que qualquer homem jamais tivera. Os olhos, quando se fixavam numa câmara, pareciam ter as íris elípticas de um gato,
embora não lhe tivessem sido enxertados nos cromossomas genes inerentes à visão felina.
Tal indicava que Victor errara em algo que fizera em Werner ou que, de algum modo, a carne espantosamente amorfa de Werner conseguia extrapolar todo e qualquer pormenor de um animal a partir de meros vestígios
da sua estrutura genética. Embora fosse um conceito ultrajante, liminarmente impossível, ele inclinava-se para essa segunda explicação.
Além da cobertura da metamorfose de Werner, que mais parecia licantropia, com seis câmaras, os microfones da câmara de isolamento levavam a sua voz à sala de observação. Não se sabia se Werner tinha noção
da amplitude das mudanças físicas que lhe assolavam o corpo, pois infelizmente as suas palavras eram ininteligíveis. Eram mais gritos do que outra coisa.
A avaliar pela intensidade e natureza dos gritos, a metamorfose acarretava angústia mental e uma agonia física implacável. Era evidente que Werner já não tinha capacidade para desligar a dor.
Quando, de súbito, se ouviu uma palavra distinta - "Pai, Pai" -Victor desligou o áudio e contentou-se com imagens mudas.
Os cientistas em Harvard, Yale, Oxford e todas as universidades de grande investigação do mundo, andavam há alguns anos a fazer experiências com cruzamento de genes de várias espécies. Tinham inserido
material genético de aranhas em cabras, que depois produziam leite cheio de teias de aranha. Tinham gerado ratos com pedaços de ADN humano, e havia várias equipas a concorrer para serem as primeiras a
produzir um porco com cérebro humano.

176
- Mas apenas eu - declarou Victor, a olhar para os seis ecrãs - criei uma quimera da mitologia antiga, a besta de muitas partes que funciona como uma criatura só.
- E ele funciona? - perguntou Ripley.
- Pode ver tão bem quanto eu - replicou Victor, impaciente. - Corre a grande velocidade.
- Em círculos torturados.
- O corpo dele é forte e flexível.
- E está a mudar outra vez - salientou Ripley.
Werner também tinha parte aranha dentro de si e parte barata, para aumentar a ductilidade dos tendões, para investir o colagénio com maior capacidade tensora. Agora estes elementos aracnídeos e insectíferos
pareciam exprimir-se às custas da pantera.
- Caos biológico - sussurrou Ripley.
- Tome atenção - aconselhou Victor. - Nisto encontraremos pistas que levarão inevitavelmente aos maiores avanços da história da genética e da biologia molecular.
- E temos a certeza absoluta - perguntou Ripley - de que as portas do módulo de transição concluíram o ciclo de encerramento?
Todos os outros quatro auxiliares responderam em uníssono:
- Sim.
A imagem num dos seis ecrãs desvaneceu-se em cinzento e materializou-se o rosto de Annunciata.
Victor pensou que ela aparecera por engano, e quase gritou para ela se ir embora.
Antes que pudesse falar, contudo, ela disse:
- Senhor Helios, um Alfa pediu uma reunião de urgência consigo.
- Que Alfa?
- Patrick Duchaine, reitor da Nossa Senhora das Mágoas.
- Passe a chamada para estas colunas.
- Ele não telefonou, senhor Helios. Ele está à porta da Misericórdia.
Como actualmente as Mãos da Misericórdia se apresentavam ao mundo como armazém particular com poucos afazeres diários, quem nascia ali não voltava por um motivo qualquer, não fosse o fluxo de visitas trair
o embuste. A visita de Duchaine era uma infracção do protocolo que só podia traduzir-se em notícias de natureza importante.
- Mande-o cá - disse Victor para Annunciata.
- Sim, senhor Helios. Sim.

50.
Laffite abriu os olhos.
- Revelei-me a vós. Mais provas de que o meu programa está a falhar. Temos de andar em segredo no meio de vós, nunca revelando a nossa diferença nem o nosso objectivo.
- Na boa - disse-lhe Michael. - Não temos problemas com isso. Fique aí sentado um bocadinho, pastor Kenny, fique aí sentado a ver os passarinhos a caírem do arame.
Quando Michael proferiu estas palavras, menos de um minuto depois de terminar a conversa com Deucalião ao telemóvel, o gigante entrou na cozinha do presbitério pelo corredor do piso de baixo.
Carson habituara-se de tal modo às chegadas inexplicáveis e partidas misteriosas daquela bisarma que a Desert Eagle que segurava com ambas as mãos não se mexeu um milímetro, continuou apontada ao peito
do reverendo.
- O que foi, chamou-me do alpendre da frente? - perguntou Michael.
Imenso, temível, tatuado, Deucalião fez sinal com a cabeça para Lulana e Evangeline e disse:
- "Porque Deus não nos deu o espírito de temor, mas de fortaleza, e de amor, e de moderação."
- Timóteo - disse Lulana, trémula -, capítulo 1, versículo 7.
- Posso parecer um demónio - disse Deucalião às irmãs, para as descansar -, mas se alguma vez fui um, agora já não sou.
- Ele é dos bons - disse Michael. - Não sei nenhum versículo da Bíblia para a ocasião, mas garanto que ele é dos bons.
Deucalião sentou-se à mesa, na cadeira onde Lulana estivera.
- Boa noite, pastor Laffite.
Os olhos do reverendo estavam vítreos, como se olhasse para o véu que separa este mundo do outro. Agora fixava-os em Deucalião.
- Não reconheci Timóteo 1, versículo 7 - disse Laffite. - O meu programa continua a falhar. Estou a perder quem sou. Diga-me outro versículo.
Deucalião recitou:
- "Eis que ele é só vaidade. As suas obras não são coisa alguma; as suas imagens de fundição são vento e coisa vã."
- Não conheço - disse o pastor.

178
- Isaías 41, 29 - disse Evangeline -, mas ele mudou um pouco o versículo.
Para Deucalião, Laffite disse:
- Escolheu um versículo que descreve... Helios.
- Sim.
Ocorreu a Carson que ela e Michael poderiam baixar armas, mas decidiu que, se fosse sensato fazê-lo, Deucalião já os teria aconselhado a descontrair. Ficou de prevenção.
- Como é que pode saber de Helios? - perguntou Laffite.
- Fui o primeiro. Tosco, pelos vossos padrões.
- Mas o seu programa não falhou.
- Nem sequer tenho um programa nessa acepção.
Laffite estremeceu violentamente e fechou os olhos.
- Algo me escapou. O que terá sido?
Os olhos dele mexeram-se rapidamente para cima e para baixo, outra vez, de um lado para o outro, por baixo das pálpebras.
- Posso dar-lhe o que o pastor mais quer - disse-lhe Deucalião.
- Creio... sim... Acabei de perder a capacidade de desligar a dor.
- Nada tema. Fá-lo-ei sem dor. Quero algo de si em troca.
Laffite nada disse.
- Proferiu o nome dele - disse Deucalião - e mostrou que, em alguns aspectos, o seu programa já não o limita. Diga-me... o sítio onde nasceu, onde ele trabalha.
A voz ligeiramente mais grossa, como se lhe faltassem parcelas de QI, Laffite respondeu:
- Sou filho da Misericórdia. Nado e criado na Misericórdia.
- O que significa isso? - insistiu Deucalião.
- As Mãos da Misericórdia - explicou Laffite. - As Mãos da Misericórdia e os tanques do Inferno.
- E um antigo hospital católico - explicou Carson. - As Mãos da Misericórdia.
- Encerraram-no quando eu era pequeno - disse Michael. - Agora é outra coisa, um armazém. Emparedaram as janelas todas.
- Podia matá-los a todos agora - disse Laffite, mas não abriu os olhos. - Costumava querer matá-los a todos. Tanto, queria-o tanto.
Lulana começou a chorar baixinho, e Evangeline disse:
- Dá-me a mão, irmã.
Para Carson, Deucalião disse:
- Leve as senhoras daqui. Leve-as a casa agora.

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- Um de nós pode levá-las a casa - sugeriu Carson - e fica cá outro para lhe servir de reserva.
- Isto é entre mim e o pastor Laffite. Tenho de lhe fazer uma fineza, uma pequena fineza para um longo descanso.
Michael guardou a Magnum no coldre e disse:
- Minhas senhoras, levam as tartes de pralinê convosco. Não provam sem dúvida alguma que cá estiveram, mas devem levá-las mesmo assim.
Quando as mulheres tiraram as tartes do frigorífico e Michael as levou para fora da cozinha, Carson continuou de arma apontada a Laffite.
- Encontrar-nos-emos depois em sua casa - disse-lhe Deucalião.
- Daqui a pouco.
- "Havia trevas sobre a face do abismo" - disse Laffite com voz mais grossa. - É um versículo, ou não me recordo de nada?
- Génesis 1, versículo 2 - explicou Deucalião. Depois fez um gesto para Carson se ir embora.
Ela baixou a arma e saiu com relutância.
Quando entrou no corredor, ainda ouviu Laffite dizer:
- Ele diz que viveremos mil anos. Sinto que já os vivi.

51.
Na sala de estar secreta, Erika pensou em falar outra vez para o ocupante da caixa de vidro.
Era inquestionável que ele se tinha mexido: um espasmo sombrio dentro da sua mortalha ambarina de líquido ou de gás. Reagira à voz dela, ou o movimento fora oportuno mas não passara de uma coincidência.
A Velha Raça tinha um ditado: não há coincidências.
Todavia, eram supersticiosos, e irracionais.
Tal como lhe haviam ensinado no tanque, o universo não passa de um mar de caos em que acasos fortuitos colidem com casualidades e criam pedaços de coincidências sem sentido como estilhaços de balas nas
nossas vidas.
O objectivo da Nova Raça consiste em imprimir ordem à face do caos, em manejar o espantoso poder destrutivo do universo e obrigá--lo a servir as suas necessidades, trazer sentido a uma criação que tem
carecido dele desde tempos imemoriais. E o sentido que a Nova Raça imporá à criação é o sentido do seu criador, a exaltação do seu nome e do seu rosto, a concretização da sua visão e de todos os seus desejos,
a satisfação da Nova Raça alcançável apenas pela perfeita implementação da sua vontade.
Esta crença, parte da programação básica, surgia na mente de Erika palavra por palavra, com música recordada de Wagner e imagens de milhões da Nova Raça a marcharem em cadência. O seu genial marido poderia
ter sido poeta, se a mera poesia não fosse indigna do seu génio.
Depois de falar para o ocupante da caixa de vidro, Erika sentira um medo primordial que parecia sair-lhe do sangue e dos ossos, e retirara-se para a poltrona, onde ainda estava sentada, a ponderar as suas
opções e também a analisar a sua motivação.
Ficara abalada pela amputação que William fizera dos próprios dedos e pela sua destruição. Ficara ainda mais comovida com a revelação que Christine fizera de como ela, Erika, recebera uma vida emocional
mais rica - humildade, vergonha, potencial para sentir piedade e compaixão - do que era concedido a outros da Nova Raça.
Victor, cujo génio era incomparável em toda a História, devia ter tido boas razões para limitar todos os outros da sua gente ao ódio, à inveja, à ira, a emoções que só se viravam contra si próprias e que
não

181
levavam à esperança. Ela era a sua humilde criatura, de valor apenas no quanto pudesse servi-lo. Ela não tinha perspicácia, conhecimento e amplitude de visão necessários para imaginar que tivesse algum
direito de questionar os desígnios dele.
Ela própria tinha esperança em muitas coisas. Mais importante do que tudo, esperava ser uma esposa melhor, melhor a cada dia, e ver a aprovação nos olhos de Victor. Embora tivesse acabado de sair do tanque
e ainda não tivesse vivido muito, não conseguia imaginar uma vida sem esperança.
Se conseguisse ser melhor esposa, se conseguisse deixar de ser espancada durante o sexo, se um dia ele a estimasse, tinha esperança de lhe poder pedir que deixasse Christine e os outros terem esperança
como ela tinha, e que ele lhe concedesse este pedido e desse vidas mais agradáveis à sua gente.
- Sou a Rainha Ester do Rei Assuero - disse ela, comparando-se com a filha de Mardoqueu. Ester convencera Assuero a poupar o seu povo, os Judeus, de ser aniquilado às mãos de Hamã, príncipe no seu reino.
Erika não sabia a história toda, mas tinha confiança de que a alusão literária, uma de milhares no seu repertório, fosse fidedigna e que ela, de acordo com a sua programação, a tivesse empregado devidamente.
Logo.
Ela tinha de tentar que Victor a estimasse. Para isso, tinha de o servir sempre na perfeição. Para cumprir esse objectivo, tinha de saber tudo sobre ele, não só a mera biografia que recebera no carregamento
de dados directamente no cérebro.
Tudo implicava necessariamente o ocupante do tanque, o qual fora evidentemente encarcerado por Victor. Independentemente do medo profundo que lhe suscitara, ela tinha de voltar à caixa de vidro, enfrentar
o caos dentro dela e imprimir-lhe ordem.
A cabeça do caixão - pois parecia-se cada vez mais com um caixão, em vez de um guarda-jóias - Erika tornou a baixar o rosto ao nível do vidro, no ponto directamente acima de onde imaginava que o rosto
do ocupante aguardasse submerso em âmbar.
Tal como antes, mas com menos cadência na voz, disse:
- Olá, olá, olá aí para dentro.
O vulto escuro mexeu-se outra vez, e desta parecia que as ondas sonoras da voz dela enviavam pulsações azuis pela caixa, tal como os seus nós dos dedos tinham feito antes.

182
Os lábios dela estavam quinze centímetros acima do vidro quando ela falara. Aproximou-se mais. Sete centímetros.
- Sou a Rainha Ester do Rei Assuero - afirmou.
As pulsações assumiram um tom azul mais intenso, e parecia que o ocupante sombrio se erguia para mais perto da parte de baixo do vidro, e ela lobrigou a sugestão de um rosto, mas sem pormenores.
Tornou a dizer:
- Sou a Rainha Ester do Rei Assuero.
Do azul latejante, do rosto invisível, chegou-lhe uma voz, sem perder clareza alguma por causa do vidro:
- Tu és a Erika Cinco, e és minha.

52.
Depois de a língua negra da noite lamber os últimos resquícios de púrpura no horizonte, as lamparinas a óleo acenderam-se em cima das estacas na fossa ocidental.
Como dragões-fantasma, asas e caudas de luz alaranjada corriam pelo campo de lixo, e as sombras saltavam.
Estavam treze dos catorze efectivos da equipa de Nick com ele na fossa, todos de galochas até às coxas, caras brilhantes, perfilados e expectantes ao longo do caminho que o par de carrinhas de caixa aberta
faria até ao local do enterro.
A seu lado estava Gunny Alecto, os olhos cintilantes com os reflexos do lume.
- Sela selecta selim selote selva selvagens. Selvagensl Aí vêem os selvagens mortos, Nick. Tens as tuas coisas?
- Tenho.
- Tens as tuas coisas?
Ele mostrou o balde, igual ao balde dela, igual ao balde que todos eles tinham.
A primeira das carrinhas desceu a encosta da fossa e resmungou ao longo da desolação, incontáveis variedades de lixo esmagadas e crepitantes debaixo das rodas.
Cinco estacas robustas, com dois metros de altura, erguiam-se da caixa aberta. A cada estaca fora amarrado um dos membros da Velha Raça, substituído por réplicas. Três eram burocratas da cidade, dois agentes
da polícia. Duas mulheres; três homens.
Os cadáveres estavam despojados de qualquer roupa. Tinham-lhes pregado os olhos bem abertos para dar a impressão de que assistiriam à sua humilhação.
As bocas dos mortos estavam escancaradas com paus porque os torcionários gostavam de imaginar que eles lhes pediam clemência ou, pelo menos, que gritavam.
Um dos homens fora entregue desmembrado e decapitado. A equipa da Crosswoods juntara as partes com uma alegria maliciosa, a cabeça virada ao contrário, os genitais comicamente reposicionados.
Quando a carrinha se aproximou, a equipa reunida começou a vaiar os mortos entusiasticamente, com gargalhadas fingidas e apupos, mais ruidosos do que propriamente falados.

184
Os Ipsílones, os mais vis daquela rígida ordem social, não podiam sentir desprezo por ninguém da sua raça, apenas pelos homens e mulheres de coração único que alegavam ser filhos de Deus, mas que não sabiam
desligar a dor e morriam com tanta facilidade. Com vaias e risos venenosos, aqueles produtos simplórios dos tanques exprimiam o seu ódio e assim reclamavam a sua superioridade.
Quando a carrinha parou, a equipa olhou excitada para Nick, que estava a meio da fila. Sendo Gama entre Ipsílones, ele tinha de dar o exemplo, embora fossem eles, e não ele, a ter concebido aquela cerimónia,
a elaborar os seus ritos.
Do balde tirou uma massa informe e infecta. Nunca falta numa lixeira fruta e hortaliça podre, imundície de infinita variedade, a decompor-se aqui e a rançar ali. Durante o dia, ele recolhera tais coisas.
Agora, com um grito de desprezo, atirava a primeira mão-cheia a um dos cadáveres na carrinha.
O impacto da porcaria provocou vivas entre os Ipsílones. Seguindo o exemplo dele, agarraram em fétidas mãos-cheias dos seus baldes e bombardearam os mortos ali expostos.
Enquanto os cadáveres de olhos esbugalhados e bocas escancaradas aguentavam aquela saraivada, as vaias e os apupos da equipa de torcionários ganhavam em maldade, perdiam oralidade, ganhavam intensidade.
As gargalhadas ficaram tão estridentes que já nem fingiam alegria alguma, e depois demasiado amargas para se confundirem com gargalhadas de todo.
Depois de os Ipsílones esgotarem munições, descartaram os baldes vazios e atiraram-se à carrinha, a rasgarem fervorosamente as amarras que seguravam os cadáveres às estacas. Depois de soltarem cada corpo
manchado e a escorrer porcaria, atiravam-no da carrinha para uma cova ali perto, a qual iria servir de vala comum.
Embora Nick Frigg não subisse para o pelourinho aberto com a sua equipa histérica, a raiva e o ódio desta excitavam-no, inflamavam o seu próprio ressentimento contra aquela gente presumivelmente feita
por Deus, que alegava ter livre-arbítrio, dignidade e esperança. Aplaudia os cidadãos de Crosswoods e abanava o cabelo oleoso e desferia punhadas no ar da noite, e sentia-se poderoso com a ideia de que
um dia, em breve, a sua gente se revelaria em toda a sua ferocidade desumana e mostraria à Velha Raça, contente consigo mesma, a rapidez com que o seu livre-arbítrio lhe podia ser retirado, a brutalidade
com que a sua dignidade podia ser destruída, a devas-

185
tação que a sua ridícula esperança podia sofrer, até ser extinta para sempre.
Chegara o momento da matança simbólica.
Depois de os cinco cadáveres estarem fora da carrinha, os Ipsílones, motorista incluído, correram para a vala comum numa massa ululante.
Ansiavam por matar, cobiçavam a matança, viviam com uma necessidade de matar que era intensa ao ponto da angústia, mas estavam proibidos de desafogar a sua ira até o criador a tal os autorizar. A frustração
das suas vidas agrilhoadas diariamente aliava-se aos juros acumulados da sua raiva, até ficarem ricos dela, cada qual um tesouro de ira.
Na matança simbólica, gastavam meros cêntimos desse capital acumulado. Espezinhavam, pontapeavam, calcavam, apoiavam os braços nos ombros uns dos outros e dançavam em círculos de quatro e seis, entre os
mortos e certamente em cima dos mortos, como martelos ritmados e ferozes, enchendo a noite alumiada pelos archotes com batuques temíveis, quando de facto não passavam do barulho das botifarras.
Embora sendo Gama, Nick-nariz-de-cão estava contagiado pela excitação dos Ipsílones, e também lhe fervia no sangue uma fúria, e juntou-se a eles na dança da morte, formando um círculo na convicção de que
qualquer Beta faria o mesmo, ou até qualquer Alfa, pois aquela era a expressão não só da frustração da classe mais baixa da Nova Raça, mas também do anseio e dos desejos reprimidos de todos os filhos da
Misericórdia, feitos com obras diferentes e carregados com programas diversos, mas que eram um só, no ódio e na ira.
A guinchar, a uivar, a berrar, as caras suadas toldadas pelo desejo, iluminadas pelos archotes, espezinhavam o que tinham vaiado antes, matando ritualmente aqueles que já estavam mortos, o fogo de barragem
dos seus pés a fazer tremer a noite com a promessa da guerra final que está para vir.

53.
Do outro lado da rua e a meio quarteirão de distância, Cindi e Benny Lovewell viram O'Connor e Maddison a saírem com duas negras do presbitério e a escoltá-las até ao carro, estacionado debaixo de um candeeiro.
- Acabaremos provavelmente por matar uma ou as duas mulheres quando agarrarmos nos polícias - disse Cindi.
Tendo em conta que não estavam autorizados a matar mais ninguém além dos detectives, Benny disse:
- É melhor esperarmos.
- O que trazem as mulheres? - perguntou Cindi.
- Tartes, parece-me.
- Porque é que trazem tartes?
- Se calhar foram apanhadas a roubá-las - alvitrou Benny.
- As pessoas roubam tartes?
- Aquela espécie de pessoas rouba. Roubam de tudo.
Ela perguntou:
- Mas a O'Connor e o Maddison não são detectives de homicídios?
- são.
- Então porque é que haviam de ir prender ladras de tartes?
Benny encolheu os ombros.
- Sei lá. Se calhar as mulheres mataram alguém por causa das tartes.
A franzir o sobrolho, Cindi disse:
- É possível, acho eu. Mas tenho a sensação de que nos escapa alguma coisa. Nenhuma delas parece uma assassina.
- Nós também não - recordou Benny.
- Se mataram mesmo por causa das tartes, porque é que as deixaram ficar com elas?
- O sistema jurídico deles não me faz grande sentido - disse Benny. - Eu quero lá saber das mulheres ou das tartes. Só quero arrancar as tripas à O'Connor e ao Maddison.
- Pois eu também - disse Cindi. - Lá por querer um bebé, não quer dizer que já não goste de matar.
Benny suspirou.
- Não queria dizer que estavas a ficar mole nem nada assim.
Depois de as mulheres e as tartes estarem no banco de trás, O'Connor pôs-se ao volante e Maddison no lugar do pendura.

187
- Segue-os sem nos verem - disse Benny. - Queremos poder avançar depressa se houver oportunidade.
O carro da polícia à civil saiu da berma e, quando deixaram de o ver na curva, Cindi seguiu-o no Mountaineer.
Em vez de levarem as negras para uma cela da polícia, os detectives percorreram apenas dois quarteirões, até outra casa em Bywater.
Mais uma vez estacionados a meio quarteirão de distância e do outro lado da rua, na sombra entre dois candeeiros, Cindi disse:
- Isto não presta. Em metade destas casas, as pessoas estão sentadas no alpendre. Há muitas testemunhas.
- Pois há - anuiu Benny. - Até podíamos apanhar a O'Connor e o Maddison, mas acabaríamos numa perseguição policial.
Tinham de ser discretos. Se as autoridades os identificassem como assassinos profissionais, deixariam de poder fazer o seu trabalho. Deixariam de estar autorizados a matar mais gente, aliás, o criador
acabaria por destruí-los a eles.
- Olha só estes tansos. O que é que estão a fazer sentados no alpendre em cadeiras de balouço? - inquiriu Cindi.
- Sentam-se e bebem cerveja ou limonada, ou sei lá, e alguns fumam, e conversam uns com os outros.
- Conversam de quê?
- Sei lá.
- São tão... dispersos - observou Cindi. - De que servem as vidas deles?
- Ouvi um deles dizer que o objectivo da vida é viver.
- Ficam ali sentados. Não estão a tentar apoderar-se do mundo nem ganhar domínio total sobre a natureza, nem nada.
- Já são donos do mundo - recordou Benny.
- Por enquanto.

54.
Sentado à mesa da cozinha do presbitério com a réplica do pastor Laffite, Deucalião perguntou:
- Quantos da sua gente foram infiltrados na cidade?
- Só sei o meu número - respondeu Laffite numa voz que ia engrossando paulatinamente. Estava sentado a olhar para as mãos, as quais estavam com a palma para cima na mesa, como se lesse duas versões do
futuro.
- 1987. Deve haver muitos mais depois de mim.
- Qual é o tempo de produção da gente de Victor?
- Da gestação à maturidade, ele conseguiu um máximo de quatro meses no tanque.
- Quantos tanques há em funcionamento nas Mãos da Misericórdia?
- Eram cento e dez.
- Três colheitas por ano - calculou Deucalião - vezes cento e dez. Pode produzir trezentos e trinta por ano.
- Não tantos. Porque de vez em quando ele faz... outras coisas.
- Que outras coisas?
- Não sei. Boatos. Coisas que não são... humanóides. Novas formas. Experiências. Sabe o que me apetecia?
- Diga lá - encorajou Deucalião.
- Um último bocadinho de chocolate. Gosto muito de chocolate.
- Onde é que o tem?
- Há uma caixa no frigorífico. Eu ia buscá-la, mas estou a começar a ter dificuldade em reconhecer relações de espaço. Não sei se consigo andar devidamente. Teria de rastejar.
- Eu vou buscar - disse Deucalião.
Foi buscar os chocolates ao frigorífico, tirou a tampa da caixa e pô-la na mesa em frente de Laffite.
Quando Deucalião se sentou outra vez, Laffite estendeu a mão para tirar um chocolate, mas ficou além e à esquerda da caixa.
Gentilmente, Deucalião orientou a mão direita de Laffite até aos chocolates e depois viu o pastor apalpá-los, quase como se fosse cego, antes de escolher um.
- Diz-se que ele está pronto a instalar um viveiro fora da cidade - revelou Laffite. - Na próxima semana, ou na semana a seguir.
- Viveiro?

189
- Um viveiro para a Nova Raça, dois mil tanques todos debaixo do mesmo tecto, disfarçado de fábrica ou estufas.
Como Laffite não conseguia levar a mão à boca, Deucalião levou--lhe o chocolate aos lábios.
- Isso dá uma capacidade de produção de seis mil.
O pastor Laffite tornou a fechar os olhos e mastigou o chocolate com gosto. Tentou falar enquanto comia, mas já não parecia capaz disso.
- Não tenha pressa - disse Deucalião. - Desfrute.
Depois de engolir o chocolate e de lamber os lábios, ainda de olhos fechados, Laffite disse:
- Está a construir-se outro viveiro que estará pronto no primeiro dia do ano, com ainda maior quantidade de tanques.
- Sabe o horário de Victor nas Mãos da Misericórdia? Quando é que ele lá vai? Quando é que ele sai?
- Não sei. Ele passa lá a maior parte do tempo, mais do que em qualquer outro lugar.
- Quantos de vocês trabalham nas Mãos da Misericórdia?
- Oitenta ou noventa, parece-me. Não tenho a certeza.
- A segurança deve ser rigorosa.
- Todos os que lá trabalham também são uma máquina de matar. Apetecia-me outro chocolate.
Deucalião ajudou-o a encontrar a caixa e a levar outro bocado à boca.
Quando Laffite não estava a comer chocolate, os olhos reviravam--se e mexia-se por detrás das pálpebras. Com chocolate na boca, os olhos aquietavam-se.
Quando acabou de comer, Laffite perguntou:
- Pensa que o mundo é mais misterioso do que deveria ser?
- Quem disse que não deveria ser?
- O nosso criador. Mas dá consigo a pensar nas coisas?
- Em muitas coisas, sim, dou - respondeu Deucalião.
- Eu também penso. Pergunto-me. Acha que os cães têm alma?

55.
Ao fundo dos degraus do alpendre de Lulana, com o doce aroma a jasmim no ar da noite que começava, Carson disse às irmàs:
- É melhor não contarem a ninguém o que aconteceu no presbitério.
Como se não confiasse na firmeza das próprias mãos, Lulana agarrava a tarte de pralinê com as duas.
- Quem era o gigante?
- Não acreditaria se lhe contasse - respondeu Carson - e não lhe faria bem nenhum.
Agarrada à outra tarte, Evangeline perguntou:
- O que se passava com o pastor Kenny? O que lhe vai acontecer?
Em vez de lhe responder, Michael disse:
- Para vossa paz de espírito, saibam que o pregador há muito encontrou a sua última morada. O homem a que chamaram pastor Kenny esta noite... Não têm motivos para fazer luto por ele.
As irmãs entreolharam-se.
- Aconteceu uma coisa estranha ao mundo, não aconteceu? - perguntou Lulana a Carson, mas era evidente que não esperava resposta. - Esta noite naquela casa, senti a expectativa mais fria a arrepiar-me toda,
como se fosse... O fim dos tempos.
Evangeline disse:
- Se calhar é melhor rezarmos, irmã.
- Mal não faz - disse Michael. - Pode ajudar. E comam um bocado de tarte.
A desconfiança fez Lulana semicerrar os olhos.
- Senhor Michael, parece-me que quer dizer para comermos um bom bocado de tarte enquanto ainda temos tempo.
Michael evitou responder, mas Carson disse:
- Comam um bocado de tarte. Comam dois.
Outra vez no carro, Carson afastou-se da berma e Michael perguntou:
- Viste o Mercury Mountaineer branco a meio quarteirão de distância, do outro lado da rua?
-Vi.
- Tal como aquele no parque.
A estudar o espelho retrovisor, ela disse:
- Pois. E tal como aquele ao fundo da rua do presbitério.
- Fiquei a pensar se terias visto esse.

191
- O quê, de repente fiquei ceguinha?
- Vêm atrás de nós?
- Ainda não.
Carson virou à direita na esquina.
Michael virou-se no assento para ver a rua escura por onde tinham passado e disse:
- Ainda não vêm. Bom, deve haver mais de um Mountaineer branco numa terra tão grande.
- E hoje é um daqueles dias anormais em que calha cruzarmo-nos com todos.
- Se calhar devíamos ter pedido ao Godot granadas de mão - sugeriu Michael.
- Ele deve fazer entregas.
- E provavelmente embrulha. Para onde vamos?
- Minha casa - respondeu Carson. - Afinal, talvez seja boa ideia que a Vicky leve o Arnie para qualquer lado.
- Como uma terrinha simpática no Iowa.
- E de volta a 1956, quando o Frankenstein era só o Colin Clive e o Boris Karloff, e Mary Shelley apenas romancista, em vez de profeta e historiadora.

56.
Nos seis ecrãs de circuito fechado, a manifestação insectóide da entidade Werner, ainda na posse de algumas características humanas, amarinhava pelas paredes de aço da câmara de isolamento, por vezes cautelosamente
como um predador a rondar a presa, outras rapidamente como uma barata assustada, agitada e a tremer.
Victor não podia ter imaginado que as notícias trazidas pelo padre Duchaine ganhassem às imagens dos monitores, mas quando o padre descrevera o encontro com o homem tatuado, a crise com Werner tornou-se
num mero problema, comparado com a espantosa ressurreição do primeiro homem que ele criara.
Inicialmente céptico, Victor insistira para que Duchaine descrevesse o homem imponente que se sentara para tomar café com ele na cozinha da reitoria, particularmente do lado estragado do rosto. Aquilo
que o padre vira, por baixo do disfarce insuficiente da complexa tatuagem, eram danos de natureza e grau que nenhum homem comum poderia ter aguentado e ter-lhes sobrevivido. Mais, combinava com o semblante
quebrado que Victor mantivera na sua imaginação, e a memória deste era excepcional.
Mais ainda, o retrato falado que o padre Duchaine fizera da metade sã do mesmo rosto não poderia ter veiculado melhor a beleza masculina que Victor tivera a bondade de conceder à sua primeira criatura
há tanto tempo, e num continente tão distante que, por vezes, tais acontecimentos lhe pareciam um sonho.
A sua bondade fora paga com traição e com o assassínio da sua noiva, Elizabeth. A Elizabeth perdida nunca teria sido tão maleável e lúbrica quanto as esposas que ele entretanto criara para si; não obstante,
o seu assassínio selvático fora uma impertinência imperdoável. Agora aquele desgraçado ingrato rastejava outra vez, cheio de ilusões de grandeza, a dizer baboseiras sobre um destino, com a tolice de crer
que, num segundo confronto, poderia não apenas sobreviver mas também triunfar.
- Achei que ele tinha morrido no gelo - disse Victor. - No gelo polar. Achei que ficara congelado para toda a eternidade.
- Vai voltar à reitoria daqui a hora e meia - disse o padre.
Victor disse aprovadoramente:
- Trabalho inteligente, Patrick. Ultimamente não tem estado nas minhas boas graças, mas isto serve de alguma redenção.

193
- Na verdade - disse o padre, incapaz de fitar o criador - achei que o poderia trair, mas no fim não consegui conspirar contra si.
- Claro que não. A sua Bíblia diz-lhe que os anjos rebeldes se viraram contra Deus e foram expulsos do Céu. Mas eu fiz criaturas mais obedientes do que o Deus do mito se revelou capaz de fazer.
Nos ecrãs, o insecto Werner saltitava por uma parede fora e agarrava-se bem ao tecto, como um pêndulo trémulo.
- Senhor - disse Duchaine, nervoso -, vim cá dar-lhe estas notícias mas também pedir-lhe... Pedir-lhe que me conceda a graça que o seu primogénito me prometeu.
Por momentos, Victor não percebeu a que graça se referia ele. Quando assimilou, sentiu-se tomado pelo mau génio.
- Quer que eu acabe com a sua vida?
- Liberte-me - suplicou Patrick baixinho, a olhar para os monitores de modo a não fitar os olhos do criador.
- Dou-lhe a vida, e onde está a sua gratidão? O mundo não tarda a ser nosso, a natureza subjugada, o rumo de todas as coisas mudado para sempre. Fiz de si parte desta grande aventura, mas você prefere
virar costas. Não me diga que está iludido a ponto de pensar que a religião que tem pregado falsamente poderá ter algum fundo de verdade?
Ainda concentrado no fantasmagórico Werner, Duchaine respondeu:
- Senhor, pode libertar-me em poucas palavras.
- Não há Deus, Patrick, e se houvesse, Ele não teria lugar no paraíso para gente como você.
A voz do padre tomava agora um tom humilde mas de um tipo que Victor não apreciava.
- Senhor, não preciso do paraíso. As trevas e o silêncio eternos bastam-me.
Victor odiou-o.
- Talvez pelo menos uma das minhas criaturas seja mais patética do que qualquer coisa que eu tenha pensado poder criar.
Quando o padre não reagiu, Victor ligou o áudio da câmara de isolamento. A coisa Werner ainda berrava de terror, de dor, de uma forma aparentemente extrema. Uns guinchos pareciam os de um gato agonizante,
outros estridentes e sobrenaturais como a linguagem de insectos num frenesim; outros ainda pareciam humanos como quaisquer gritos saídos de um asilo de loucos criminosos.
Victor ordenou a um auxiliar:
- Abra a porta mais próxima do módulo de transição. O padre Duchaine gostaria de dar os seus conselhos sagrados ao pobre Werner.

194
A tremer, o padre Duchaine disse:
- Mas com poucas palavras, o senhor pode...
- Posso - interrompeu Victor. - Poderia. Mas investi tempo e recursos em si, Patrick, e você revelou-se um retorno do investimento inaceitável. Deste modo, pelo menos, poderá fazer-me um derradeiro serviço.
Preciso de saber a perigosidade do Werner, partindo do princípio de que ele é perigoso para alguém além de si mesmo. Entre lá e arme-se em padre. Não preciso de relatório escrito.
A porta mais próxima do módulo estava aberta.
Duchaine atravessou a sala. No limiar, parou para contemplar o criador.
Victor não conseguiu interpretar a expressão no rosto ou nos olhos do padre. Embora tivesse criado cada qual com cuidado e soubesse a estrutura dos seus corpos e das suas mentes, talvez melhor do que se
conhecia a si mesmo, por vezes alguns da Nova Raça eram um mistério para ele como qualquer um da Velha Raça.
Sem mais palavras, Duchaine entrou no módulo de transição. A porta fechou-se atrás dele.
A voz de Ripley soava a um espírito adormentado quando disse:
- Ele está no túnel de ar.
- Não é um túnel de ar - corrigiu Victor.
Um dos auxiliares disse:
- Porta mais próxima trancada, porta mais longe a abrir-se.
Momentos depois, o insecto Werner parava de berrar. Pendente do tecto, a coisa parecia agudamente, tremulamente, alerta, por fim distraída dos seus queixumes.
O padre Patrick Duchaine entrou na câmara de isolamento.
A porta mais longe fechou-se, mas nenhum dos auxiliares seguiu o procedimento habitual de anunciar o encerramento do módulo. A sala de observação caíra num silêncio que Victor nunca ouvira.
Duchaine falou, não com o monstro suspenso acima dele, mas para uma das câmaras e, pela lente, para o criador.
- Eu perdoo-te, Pai. Não sabes o que fazes.
Nesse instante, antes que Victor pudesse retrucar furiosamente, o insecto Werner revelou-se tão letal quanto se poderia ter imaginado. Que agilidade. Que mandíbulas e pinças exóticas. Que persistência
maquinal.
Sendo da Nova Raça, o padre estava programado para lutar, e era terrivelmente forte, e resistente. Em consequência dessa força e resistência, a sua morte não foi fácil, mas sim lenta e cruel, embora tenha
recebido, por fim, a graça que pedira.

57.
A olhar para as pálpebras do pastor Laffite, cujos olhos se mexiam nervosamente por detrás delas, Deucalião disse:
- Muitos teólogos defendem que os cães e alguns outros animais têm almas simples, sim, embora ninguém possa dizer se são imortais.
- Se os cães tiverem alma - sugeriu Laffite - talvez nós também possamos ser mais do que máquinas de carne feitas.
Deucalião ponderou naquilo.
- Não lhe darei falsas esperanças... Mas posso oferecer-lhe outro chocolate.
- Coma um comigo, sim? Assim é uma comunhão muito solitária.
- Está bem.
O pastor desenvolvera uma ligeira paralisia na cabeça e nas mãos, diferente dos tremores nervosos anteriores.
Deucalião escolheu dois chocolates dentro da caixa. Pôs o primeiro nos lábios de Laffite, e o pastor aceitou.
O dele revelou-se com recheio de coco. Em duzentos anos, não havia nada que ele tivesse provado mais doce do que aquilo, talvez porque as circunstâncias eram, comparativamente, tão amargas.
- De olhos fechados ou abertos - disse o pastor Laffite - estou a ter alucinações terríveis, imagens vívidas, horrores tais que não tenho palavras para os descrever.
- Então não demoremos mais - disse Deucalião, empurrou a cadeira e levantou-se.
- É dor - disse o pastor -, dor aguda que não consigo reprimir.
- Não lhe causarei mais dor - prometeu Deucalião. - A minha força é muito superior à sua. Será rápido.
Quando Deucalião passou para trás da cadeira de Laffite, o pastor estendeu os braços às cegas e agarrou-lhe na mão. Depois fez algo que nunca ninguém teria esperado de um membro da Nova Raça, algo que
Deucalião sabia, por mais séculos que passassem, nunca mais poder apagar da sua memória.
Embora o programa do pastor Laffite estivesse a fugir-lhe, embora estivesse a enlouquecer - ou talvez por isso mesmo - levou as costas da mão de Deucalião aos lábios, beijou-a ternamente e sussurrou:
- Irmão.

196mentos depois, Deucalião partia o pescoço ao reverendo, quebrava-lhe a espinha com tal força que se seguiu morte cerebral instantânea, garantindo que aquele corpo quase imortal não poderia reparar a
lesão.
Não obstante, Deucalião permaneceu algum tempo na cozinha, como que a fazer luto.
A noite adensava-se nas janelas. Lá fora estava uma cidade, apinhada. Contudo, Deucalião nada pôde ver além do vidro, apenas uma profunda escuridão, um negrume implacável.

58.
Depois de a coisa desconhecida dentro da caixa de vidro dizer o nome dela e estabelecer o seu domínio sinistro sobre ela, Erika não ficou na sala de estar vitoriana secreta.
Não lhe agradou a rispidez daquela voz. Nem a confiança que demonstrava.
No limiar da sala, quase correu arrojadamente para a passagem, antes de se aperceber de que as varas que saíam das paredes estavam a zumbir outra vez. Uma saída à pressa resultaria num concurso entre o
seu corpo genialmente concebido e talvez vários milhares de volts de electricidade.
Por mais extraordinariamente rija e resistente que ela fosse, Erika Helios não era nenhuma Scarlett O'Hara.
E Tudo o Vento Levou abordava uma época anterior à corrente eléctrica doméstica e, logo, Erika não sabia bem se esta alusão literária seria adequada, mas ocorrera-lhe mesmo assim. Claro que não lera o
romance; mas talvez este tivesse uma cena em que Scarlett O'Hara fosse fulminada por um raio numa trovoada e sobrevivesse ilesa.
Erika passou cautelosamente o limiar e aguardou, tal como fizera ao entrar na outra ponta daquela passagem. Tal como antes, apareceu um laser azul no tecto, e percorreu-a. O sistema de identificação reconhecera
quem ela era ou, o mais provável, reconhecera o que ela não era: não era a coisa dentro da caixa de vidro.
As varas pararam de zumbir e deixaram-na passar em segurança.
Erika fechou rapidamente o maciço portal de aço e correu as cinco trancas. Em menos de um minuto, pusera-se do lado de fora da barreira de aço seguinte e fixara-a também.
Os seus corações sincronizados, não obstante, continuavam a bater com força. Erika ficou pasmada por ter ficado tão perturbada com algo tão pequeno como uma voz incorpórea e uma ameaça velada.
Aquele medo súbito, persistente, desproporcionado perante a causa, assemelhava-se a uma reacção supersticiosa. Ela, claro, estava isenta de toda a superstição.
A natureza instintiva da sua reacção levava-a a desconfiar de que, subconscientemente, ela sabia o que estava aprisionado na substância ambarina dentro da caixa de vidro, e que o seu medo decorria deste
conhecimento profundamente arreigado.

198 j Dean Koontz
Quando chegou ao fim da passagem inicial, onde entrara originalmente por uma secção giratória nas estantes, encontrou um botão que abria essa porta secreta por detrás da parede.
Assim que voltou à biblioteca, Erika sentiu-se muito mais segura, apesar de estar rodeada por tantos livros cheios de material com alto potencial de corrupção.
No canto havia um bar cheio de copos e taças de cristal e as melhores bebidas para adultos. Enquanto anfitriã soberbamente programada, ela sabia como fazer qualquer coquetel que lhe pedissem, embora ainda
não tivesse estado numa situação social que implicasse tal competência.
Erika estava a beber conhaque para acalmar os nervos quando, por detrás dela, Christine disse:
- Senhora Helios, desculpe a observação, mas desconfio de que o senhor Helios ficaria aborrecido de a ver a beber directamente do decantador.
Erika não se apercebera de que estivera a fazer semelhante faux pas mas, quando lhe chamaram a atenção, viu que estava, de facto, a emborcar Rémy Martin directamente do magnífico decantador Lalique, e
até a babar-se com ele.
- Tinha sede - disse ela, mas voltou a pôr o decantador em cima do balcão, rolhou-o e limpou o queixo com um guardanapo.
- Temos estado à sua procura, senhora Helios, para saber do jantar.
Alarmada, a olhar para as janelas e a ver que já se fizera noite, Erika disse:
- Oh. Não me diga que fiz o Victor esperar?
- Não, senhora. O senhor Helios precisa de trabalhar até mais tarde e jantará no laboratório.
- Compreendo. Então que devo fazer?
- Servimos-lhe o jantar onde a senhora entender.
- Bem, a casa é tão grande, tem tantos sítios.
- Sim.
- Posso jantar em algum sítio que tenha conhaque, exceptuando aqui na biblioteca com estes livros todos?
- Podemos servir conhaque com o seu jantar em qualquer ponto da casa, senhora Helios, embora eu sugira que com uma refeição seria mais apropriado beber vinho.
- Bem, pois claro que seria. E eu gostaria de beber uma garrafa de vinho com o jantar, uma garrafa apropriada e adequada ao que o cozi-

199
nheiro tiver confeccionado. Escolha uma garrafa apropriada para mim, se faz favor.
- Sim, senhora Helios.
Aparentemente, Christine não tinha vontade de ter outra conversa tão íntima e intensa como a que tinham tido na cozinha, ao princípio do dia. Parecia querer manter a relação delas em termos formais daí
em diante.
Encorajada por isto, Erika decidiu exercer autoridade enquanto dona da casa, mas graciosamente.
- Mas sirva-me também, se faz favor, Christine, uma garrafa decantada de Rémy Martin, e poupe trabalho levando-ma ao mesmo tempo que me leva o vinho. Não se incomode com mais viagens.
Christine observou-a por momentos e perguntou:
- Gostou do seu primeiro dia aqui, senhora Helios?
- Tem sido um dia cheio - respondeu Erika. - A princípio, parecia uma casa tão sossegada, quase se esperaria que fosse monótona, mas parece que há sempre algo a acontecer.

59.
Embora a sessão de perguntas e respostas com a mãe de Arnie comece bem, Randal Seis rapidamente esgota o seu acervo de sugestões de conversa. Come quase metade do gelado de morango e banana antes que lhe
ocorra outra pergunta.
- Parece estar assustada, Vicky. Está assustada?
- Estou, meu Deus, estou.
- Porque é que está assustada?
- Estou amarrada a uma cadeira.
- A cadeira não lhe faz mal. Não acha que é tolice estar assustada por causa de uma cadeira?
- Não faças isto.
- Não faço o quê?
- Não me gozes.
- Quando é que o Randal a gozou? O Randal nunca a gozou.
- Não tenho medo da cadeira.
- Mas acabou de dizer que tinha.
- Tenho medo de ti.
Ele fica genuinamente admirado.
- Do Randal? Porquê ter medo do Randal?
- Tu bateste-me.
- Uma vez.
- Com força.
- Não morreste. Vês? O Randal não mata mães. O Randal decidiu gostar de mães. As mães são uma ideia maravilhosa. O Randal não tem mãe nem pai.
Vicky não diz nada.
- E não, o Randal não os matou. O Randal foi assim como que feito por máquinas. As máquinas não ligam como as mães ligam, e não têm saudades quando nos vamos embora.
Vicky fecha os olhos, como os autistas por vezes fazem quando há muita coisa para processar, uma quantidade temível de coisas.
Todavia, ela não é autista. É mãe.
Randal fica admirado por estar a lidar tão bem com aqueles novos desenvolvimentos, e a falar tão bem. Parece que a sua mente está a sarar.
Contudo, o aspecto de Vicky é perturbante. Tem o rosto encovado. Parece doente.

201
- Está doente? - pergunta ele.
- Tenho tanto medo.
- Páre de ter medo, está bem? O Randal quer que seja mãe dele. Está bem? Agora não pode ter medo do seu próprio filho, Randal.
Acontece a coisa mais espantosa: correm lágrimas pelas faces de Vicky.
- Que doçura - diz Randal. - E uma mãe muito boa. Seremos felizes. O Randal vai chamar-lhe Mãe, e não Vicky. Quando é que faz anos, Mãe?
Em vez de responder, ela chora. É tão emotiva. As mães são sentimentais.
I Devia fazer um bolo para os seus anos - diz ele. - Vamos festejar. O Randal sabe o que são festas, nunca foi a nenhuma, mas sabe.
Ela deixa cair a cabeça, ainda a chorar, o rosto molhado pelas lágrimas.
- O primeiro aniversário do Randal é daqui a oito meses - informa ele. - O Randal só tem quatro meses de idade.
Randal vai guardar o resto do gelado de morango e banana no congelador. Depois fica ao lado da mesa, a olhar para ela.
- A Mãe é que é o segredo da felicidade. O Randal não precisa que o Arnie lho conte. O Randal agora vai ver o irmão.
Ela levanta a cabeça, de olhos arregalados.
- Ver o Arnie?
- O Randal tem de saber se podem ser dois irmãos ou se é um irmão a mais.
- O que queres dizer, um irmão a mais? De que estás a falar? Porque é que queres ver o Arnie?
Ele encolhe-se com a rajada de palavras dela, com a urgência delas; parecem tinir-lhe nos ouvidos.
- Não fale tão depressa. Não faça perguntas. O Randal é que faz perguntas. A Mãe responde.
- Deixa o Arnie em paz.
- O Randal pensa que há felicidade que chegue para dois, mas talvez o Arnie não pense assim. O Randal tem de ouvir o Arnie dizer que não faz mal dois irmãos.
- O Arnie quase nunca fala - disse ela. - Consoante a disposição, até pode nem te ligar nenhuma. Ele desliga-se. E como se o castelo fosse a sério e ele estivesse dentro dele, isolado. Até pode nem te
ouvir.

202
- Mãe, está a falar muito, alto de mais, depressa de mais. Falar alto e depressa é feio.
Randal passa para o corredor.
- Randal, desamarra-me. Desamarra-me imediatamente!
- Agora não está a portar-se como boa mãe. Os gritos assustam o Randal. Os gritos não são felicidade.
- Está bem. Pronto. Devagar e com calma. Por favor, Randal. Espera. Por favor, desamarra-me.
No umbral da porta, ele olha para trás.
- Porquê?
- Para eu te levar a ver o Arnie.
- O Randal pode muito bem encontrá-lo.
- As vezes ele esconde-se. É muito difícil encontrá-lo quando ele se esconde. Eu sei os esconderijos preferidos dele todos.
A olhar para ela, ele sente-se enganado.
- Mãe, vai tentar fazer mal ao Randal?
- Não. Claro que não. Porque é que te haveria de fazer mal?
- Por vezes as mães fazem mal aos filhos. Há uma página Web dedicada a isso - www.homicidalmothers.com.
Agora que pensa nisso, Randal apercebe-se de que os pobres filhos são apanhados desprevenidos. Confiam na sua mãe. Ela diz que os ama, e eles confiam nela. Depois ela corta-os aos bocados na cama ou leva-os
para um lago e afoga-os.
- O Randal espera que seja boa mãe - diz ele. - Mas talvez seja preciso responder a mais perguntas antes de o Randal a desamarrar.
- Está bem. Volta cá. Pergunta o que quiseres.
- O Randal tem de falar com o Arnie primeiro.
Ela diz qualquer coisa, mas ele não liga. E entra no corredor.
Nas costas dele, a Mãe está a falar depressa outra vez, cada vez mais depressa, e depois começa a gritar.
Randal Seis já esteve naquela sala de estar. Quando a Mãe recobrou os sentidos, falou com ele de tal maneira que ele teve de ir ali acalmar--se. Agora ali está outra vez, a acalmar-se.
Tem esperança de que ele e a Mãe não estejam já numa relação disfuncional.
Passados um ou dois minutos, quando se sente preparado, vai em busca de Arnie. Vai a pensar se este novo irmão será Abel ou Caim, altruísta ou egoísta. Se ele for como Caim, Randal Seis sabe o que fazer.
Será autodefesa.

60.
Carson estacionou no acesso a sua casa, desligou o motor e os faróis, e disse:
- Vamos buscar as caçadeiras.
Tinham guardado as caçadeiras e as malas na bagageira antes de saírem com Lulana e Evangeline do presbitério para as levarem a casa.
Depois de pegarem apressadamente nas Urban Snipers, foram para a dianteira do carro e agacharam-se, protegidos por ele. Carson espreitou pelo lado do condutor, para ver a rua.
- O que vamos fazer para o jantar? - perguntou Michael.
- Não podemos gastar o tempo que gastámos ao almoço.
- Apetecia-me uma baguete de marisco.
- Desde que esteja embrulhada para comer pelo caminho.
Michael disse:
- A coisa de que vou ter mais saudades se morrer é da comida de Nova Orleães.
- Talvez haja comida que se farta do Outro Lado.
- Só não hei-de ter saudades nenhumas do calor e da humidade.
- Estás assim tão confiante?
A noite levou até eles o ruído de um motor que se aproximava.
Quando a viatura passou por eles, Carson disse:
- Porsche Carrera GT, preto. Tem caixa de seis velocidades. Dá para imaginares a velocidade a que eu chegaria com um daqueles?
- Tanta que eu estaria sempre a vomitar.
- Não é a minha condução que te há-de matar - disse ela. - Há-de ser um monstro qualquer.
- Carson, se isto alguma vez acabar e sairmos disto vivos, achas que podemos deixar de ser polícias?
- E o que faríamos?
- E se fossemos tratadores de animais ao domicílio? Podíamos andar de carro o dia todo, a dar banho ao cão. Trabalho fácil. Sem pressões. Até podia ser giro.
- Depende do cão. O problema é ter uma carrinha para andar com o equipamento. As carrinhas são para totós. Não vou conduzir carrinha nenhuma.
Ele disse:
- Podíamos abrir um bar gay.

204
- Gay porquê?
- Não teria de me ralar com homens a meterem-se contigo.
- Não me importava de ter uma loja de dónutes.
- Poderíamos ter uma loja de dónutes e ter armas na mesma? -perguntou ele.
- Não vejo nada contra.
- Sinto-me mais à vontade com armas.
O ruído de outro motor fê-los calarem-se.
Quando a viatura apareceu, Carson disse:
- Mountaineer branco. - E encolheu a cabeça para não ser vista.
O Mountaineer abrandou mas não parou, e passou pela casa.
- Achas que vai ser aqui?
- Eles hão-de gostar do ambiente - previu ela. - Mas não hão-de vir ainda. Andaram à procura de oportunidade o dia todo. Têm paciência. Hão-de levar tempo a fazer o reconhecimento.
- Dez minutos?
- Provavelmente - anuiu ela. - Nunca menos de cinco. Vamos tirar a Vicky e o Arnie daqui, e é para ontem.
Quando o Mountaineer desapareceu da vista, eles correram para as traseiras da casa. A porta da cozinha estava trancada. Carson remexeu nas chaves que tinha no bolso do casaco.
- O casaco é novo? - perguntou ele.
- Já o usei algumas vezes.
- Vou tentar não espalhar miolos por cima dele.
Ela destrancou a porta.
Na cozinha, Vicky Chou estava sentada à mesa, amarrada a uma cadeira.

61.
Benny e Cindi andavam sempre com pistolas, mas preferiam evitar usá-las sempre que possível.
A questão não era o barulho. As armas tinham silenciadores. Podia dar-se três tiros na cara a um tipo que, se as pessoas da sala ao lado ouvissem alguma coisa, achariam que alguém espirrara.
Podiam tentar alvejar para ferir; mas os da Velha Raça sangravam e não tinham a capacidade dos da Nova Raça para selar uma ferida quase com a mesma rapidez com que se fecha uma torneira. Quando se chegava
com a presa ferida a um sítio sossegado a fim de a torturar e ter algum divertimento, o mais habitual era estarem mortos ou em coma.
Havia quem gostasse de desmembrar e decapitar cadáveres, mas Benny Lovewell não. Sem os gritos, mais valia estar a trinchar um frango assado.
Uma vez, quando uma mulher ferida a tiro tivera a falta de consideração de morrer antes de Benny poder começar a arrancar-lhe os braços, Cindi fingira gritar, tal como imaginava que a vítima tivesse feito,
sincronizando os gritos com a serra de Benny, mas não fora a mesma coisa.
Apontado aos olhos, gás pimenta podia incapacitar qualquer membro da Velha Raça o suficiente para poder ser subjugado. O problema era que as pessoas ficavam cegas com uma única rajada de gás e gritavam
e praguejavam sempre, chamando assim a atenção, o que era inconveniente.
Em vez disso, Victor dera a Benny e Cindi latinhas semelhantes às de gás pimenta, mas que deitavam clorofórmio. Quando atingidas na cara, a maioria das pessoas inalava com a surpresa - e caía inconsciente
antes de dizer mais do que merda, quando dizia alguma coisa. O clorofórmio actuava até cinco ou seis metros de distância.
Também tinham Tasers, em forma de varinhas e não de pistola. Era apenas para trabalhos à queima-roupa.
Tendo em conta que O'Connor e Maddison eram polícias e que já estavam de sobreaviso com o que sabiam acerca do filho da Misericórdia que morrera, Jonathan Harker, não seria fácil aproximarem-se deles.
Depois de estacionar do outro lado da rua de O'Connor, Cindi comentou:
- Aqui as pessoas não estão sentadas nos alpendres.

206
- E um bairro diferente.
- O que é que estão a fazer?
- Que interessa?
- Provavelmente a fazerem bebés.
- Deixa lá isso, Cindi.
- Também podíamos adoptar.
- Deixa de sonhar. Nós matamos para o Victor. Não temos emprego. E preciso ter emprego a sério para adoptar.
- Se me tivesses deixado ficar com aquele que tirámos, agora seríamos felizes.
- Tu raptaste-o. Toda a gente no mundo à procura do fedelho, e tu achas que podes andar a passeá-lo de carrinho no centro comercial!
Cindi suspirou.
- Partiu-me o coração quando tivemos de o deixar naquele parque.
- Não partiu coração nenhum. A nossa gente não é capaz desse tipo de emoção.
- Pronto, fiquei irritada.
- Como se eu não soubesse. Pronto, entramos, deitamo-los abaixo, amarramo-los, depois tu levas o carro às traseiras da casa e carregamo--los como lenha.
A estudar a casa dos O'Connor, Cindi disse:
- Mas parece manhoso, não parece.
- Parece completamente manhoso. Entrar e sair em cinco minutos. Vamos lá.

62.
Quando eles entraram pela porta das traseiras com as caçadeiras pendentes nos ombros, Vicky sussurrou:
- Ele está dentro de casa.
Carson abriu uma gaveta, tirou uma tesoura e sussurrou também:
- Quem?
- Um anormal qualquer. Muito estranho - respondeu Vicky, e Carson atirou a tesoura a Michael.
Quando Michael apanhou a tesoura, Carson passou para a porta de dentro.
Vicky sussurrou:
- Está à procura do Arnie.
Quando Carson verificou o corredor, Michael fez dois cortes nos trapos que amarravam Vicky e largou a tesoura.
- Agora já podes fazer o resto, Vic.
O corredor estava deserto, um candeeiro aceso na outra ponta da sala de estar.
- Está armado? - perguntou Carson.
- Não - respondeu Vicky.
Michael fez sinal de que queria ir à frente.
A casa era de Carson. Foi ela à frente, com a caçadeira assestada na anca.
Carson viu o armário dos casacos. Nada, só casacos.
O anormal não estava na sala. Carson passou para a direita, Michael para a esquerda, até serem dois alvos em vez de um só, e pararam.
Decisões. Mais à direita, além da sala, ficava a suíte de Carson, quarto e casa de banho. A esquerda a porta da frente e a escada para o segundo andar.
A porta do quarto de Carson estava fechada. Não havia ninguém no primeiro lanço de escadas.
Com os olhos, Michael indicou para cima.
Ela concordou. Por alguma razão, o anormal andava à procura de Arnie, e Arnie estava no segundo andar.
Junto à parede, onde a escada faria menos barulho, Carson subiu primeiro, empunhando a caçadeira com as duas mãos.
Michael foi atrás, subiu de costas, para cobrir o espaço abaixo deles.

208
Ela não se atrevia a pensar em Arnie, no que poderia estar a acontecer-lhe. O medo pela própria vida agudiza as sensações. O temor adormenta-as. Pensa no anormal, pensa em detê-lo.
A casa estava tão sossegada. Como no poema de Natal. Nem um rato se ouvia.
Ninguém no segundo lanço de escadas. Luz no corredor do patamar. Não se viam sombras a mexer.
Quando ela chegou lá acima, ouviu a voz de um estranho no quarto de Arnie. Carson chegou à porta aberta e viu o irmão na cadeira rotativa de escritório, completamente fixo no castelo de legos.
O intruso devia ter dezoito ou dezanove anos, robusto. Estava de frente para Arnie, a poucos metros dele, de costas para Carson.
Se tivesse de disparar, não seria um tiro desimpedido. Uma bala da Urban Sniper poderia varar o anormal e atingir Arnie.
Ela não sabia quem ele era. Mais importante, não sabia o que ele era.
O intruso dizia:
- O Randal pensou que poderia partilhar. Mas agora o castelo, a casa, o gelado, a Mãe... O Randal quer tudo só para ele.
Carson esgueirou-se para a esquerda da porta quando sentiu Michael no corredor atrás de si.
- O Randal não é o Abel. O Randal é o Caim. O Randal já não é Seis. Doravante... Randal O'Connor.
Ainda em movimento, em círculos, Carson perguntou:
- O que estás aqui a fazer?
O intruso virou-se suavemente, mas tão depressa que parecia um bailarino, ou algo que fora... Bem concebido.- Carson.
- Não te conheço.
- Sou o Randal. Tu serás irmã do Randal.
- De joelhos - mandou ela. - De joelhos, depois deitado no chão, de cara no chão.
- Randal não gosta que falem alto. Não grites com o Randal como o Victor faz.
Michael disse:
- Filho da puta. - E Carson disse:
- Arnie, recua na cadeira, afasta-te na cadeira.
Embora Arnie não se tivesse mexido, Randal mexeu-se. Deu um passo na direcção de Carson.
- És boa irmã?

209
- Não te aproximes. Põe-te de joelhos. De joelhos JÁ!
- Ou és uma irmã má que fala alto e muito depressa? - perguntou Randal.
Ela chegou-se mais à direita, mudou a linha de fogo para Arnie ficar fora dela.
- Achas que eu não sei que tens dois corações? - perguntou ela. -Achas que não os posso abater com uma rajada deste mata-touros?
- És uma irmã muito, muito má - disse Randal, e lançou-se sobre ela.
Foi tão rápido que quase deitava a mão à caçadeira. A rajada fez
tremer as janelas, o cheiro da pólvora atingiu-a na cara, o sangue jorrou do ferimento de saída nas costas dele e salpicou o castelo.
Randal devia ter recuado ou cambaleado. Devia ter tombado.
Ela apontara demasiado baixo, falhara um coração, ou os dois. Mas assim à queima-roupa, tinha de ter destruído metade dos órgãos internos dele.
Ele pegou no cano da caçadeira, puxou-o para cima quando ela premiu o gatilho, e a segunda rajada abriu um buraco no tecto.
Quando ela tentou agarrar-se à caçadeira, ele puxou-a para si, quase a agarrava antes de ela largar tudo, cair no chão, rebolar para longe.
Carson dera a Michael um tiro desimpedido. Ele disparou dois.
O barulho foi tanto que os ouvidos dela tiniam e continuaram a tinir quando ela se encostou a uma parede, olhou para cima, viu Randal no chão - graças a Deus, no chão - e Michael a avançar cautelosamente
para ele.
Carson pôs-se de pé e sacou da Magnum 50 do coldre na anca esquerda, certa de que não precisaria, mas Randal ainda estava vivo. Em mau estado, no chão sem se levantar, mas vivo depois de três tiros de
uma Urban Sniper, à queima-roupa, no tronco.
Ele levantou a cabeça, olhou para o quarto, rebolou de costas, piscou os olhos para o tecto, e disse:
- Casa. - E foi-se.

63.
A porta das traseiras estava aberta. Benny e Cindi hesitaram, mas ele avançou com arrojo e rapidez, e ela foi atrás.
Estava uma mulher asiática na cozinha, junto à mesa, a desatar um bocado de pano rasgado do pulso esquerdo. Piscou os olhos quando os viu e disse:
- Merda...
Cindi foi rápida. O jacto de clorofórmio atingiu a mulher no nariz. Ela ofegou, sufocou, babou-se e tombou no chão.
Tratariam dela depois. Ela ficaria inconsciente talvez quinze minutos, talvez mais.
Embora a asiática não constasse da lista deles, ela vira-lhes a cara. Também teriam de a matar.
Não fazia mal. Havia muito espaço na bagageira do Mercury Mountaineer, e Benny amolara recentemente as suas ferramentas de corte preferidas.
Benny fechou e trancou a porta das traseiras. Não queria facilitar a ninguém entrar por detrás deles.
Uma vez, num trabalho, aparecera-lhes uma rapariguinha de quatro anos, vinda da casa ao lado, e Cindi insistira em adoptá-la.
Agora Cindi tinha o clorofórmio na mão direita e o Taser na esquerda. Benny só confiava no clorofórmio.
Não estavam preocupados com armas típicas da divisão de polícia. As armas básicas da polícia, actualmente, eram de 9 mm. Ele e Cindi poderiam enfrentar bastante fogo de 9 mm, se fosse necessário.
Além disso, se andassem furtivamente, as suas presas nem teriam hipótese de sacar das armas.
Havia uma lavandaria ao lado da cozinha. Deserta.
O corredor para a frente da casa passava por um armário para casacos. Ninguém sabia que eles lá estavam, pelo que não estaria ninguém escondido no armário, mas não deixaram de verificar. Só casacos.
Quando chegaram à sala, ouviu-se uma arma disparada no andar de cima. Foi ruidosa, como se tivesse caído um roupeiro no chão. Parecia que a casa inteira tremera.
Cindi olhou para o clorofórmio que tinha na mão. Olhou para o Taser.

211
Ouviu-se outro tiro.
Cindi guardou o Taser no bolso de dentro do casaco, passou o clorofórmio para a mão esquerda e sacou da pistola.
Lá em cima, a arma possante ouviu-se mais duas vezes, e Benny sacou da sua arma também. Era semiautomática de 9 mm, mas esse calibre seria mais problemático para O'Connor e Maddison do que para os Lovewells.
Quem era o intruso, como entrara dentro de casa, porque parecia querer Arnie especificamente - nada disso importava tanto quanto o facto de ser da Nova Raça, e de o caso de polícia de Carson lhe ter entrado
em casa no sentido mais literal, tal como ela receava desde o princípio.
As paredes da sua casa, as trancas nas portas, não davam mais segurança do que o castelo de legos de Arnie. Talvez o destino daquela cidade, do mundo, nas mãos de Victor Helios, fosse tal que nunca mais
voltaria o tempo em que eles pudessem passar um momento de paz na sua casa. Já lá não podiam ficar.
E tinham de sair depressa.
Os vizinhos podiam não ser capazes de identificar a localização exacta dos quatro tiros de caçadeira. Não obstante, naquele bairro um tiroteio nunca passaria despercebido.
Não tardaria a que um ou dois carros-patrulha passassem por ali, em busca de algo suspeito. Carson preferia evitar até o encontro mais amigável com as fardas. Não queria ter de explicar armas para as quais
não dispunha de prova de compra nem licença da divisão.
Além disso, a farda já não lhe suscitava confiança nenhuma. A Nova Raça tinha-se infiltrado na irmandade da polícia; e aqueles leais a Helios poderiam ter recebido ordens - ou recebê-las a qualquer momento
-para fazer da eliminação de Carson e Michael sua prioridade.
Carson pegou na Urban Sniper que Randal lhe tirara das mãos. Tirou dois cartuchos da bolsa que tinha na anca direita, inseriu-os na câmara para que a arma ficasse carregada outra vez e disse:
- Ainda bem que usámos balas.
- O chumbo grosso não o teria abatido - anuiu Michael, e começou a recarregar a sua arma.
- Talvez os tiros façam hesitar aqueles dois do Mountaineer.
- Ou fazê-los vir a correr.
- Pegamos na Vicky, saímos pela porta da frente. O carro dela está na berma. Vamos nele.
A recarregar a Sniper, Michael disse:
- Achas que eles puseram um "olho que tudo vê" no nosso carro?
- Acho. Andam a seguir-nos remotamente.
Arnie levantara-se da cadeira. Estava a olhar para o castelo salpicado de sangue.

213
Carson disse:
- Querido, temos de ir embora. Agora.
Era só o que lhes faltava, que Arnie se armasse em teimoso. Regra geral, era dócil, cooperante, mas tinha momentos de obstinação, os quais se podiam dever a experiências traumáticas e barulhos.
Quatro rajadas de caçadeira e um intruso morto no chão cumpriam os dois critérios, mas parecia que Arnie compreendera que a sua sobrevivência dependia de ter coragem para não se refugiar ainda mais na
sua concha. Dirigiu-se de imediato à porta.
Michael disse:
- Fica atrás de mim, Arnie. - E abriu caminho para o corredor.
A olhar para o intruso, meio à espera de o ver pestanejar e sacudir o efeito de levar repetidamente com uma caçadeira, aliviada por ver goradas tais expectativas, Carson saiu atrás de Arnie do quarto deste,
do seu refúgio, com um medo desesperado de não ser capaz de o proteger mais, agora que Nova Orleães se tornara na cidade das trevas.

Benny começou a subir a escada, e atrás dele Cindi sussurrou:
- Se houver um bebé em casa, levamo-lo.
Ele continuou a andar, de costas para a parede da escada, a subir os degraus de lado.
- Não há bebé nenhum em casa.
- Mas se houver.
- Não viemos cá por causa de um bebé.
- Também não viemos cá por causa da cabra que está na cozinha, mas temos de a levar.
Ele chegou ao patamar, espreitou para o segundo lanço de escada. Não havia ninguém no corredor lá em cima, tanto quanto Benny podia ver.
Atrás dele, ela não desistia:
- Se levarmos o bebé, podes matá-lo junto com os outros.
Cindi era doida, estava a dar com ele em doido. Benny recusou-se a entrar naquela discussão com ela, especialmente no meio de um trabalho.
Além disso, se levassem o bebé, ela não o deixaria matá-lo. Assim que o tivesse, quereria ficar com ele e vestir-lhe roupas tolinhas.
Seja como for, não há bebé nenhum em casa!
Benny chegou ao cimo do segundo lanço. Ainda de costas para a parede, esticou a cabeça, lobrigou a esquina - e viu Maddison a sair

214
de caçadeira em punho, um rapaz atrás dele, e O'Connor atrás do rapaz com uma caçadeira também.
Maddison viu-o, Benny encolheu-se, e onde a parede virava a esquina da escada para o corredor, uma rajada de caçadeira rebentou com o estuque, os lambrins, e encheu-o de gesso em pó e lascas de madeira.
Benny caiu de joelhos, arriscou-se a levar chumbo outra vez, mas mais abaixo, onde Maddison não contaria com ele, e disparou três tiros sem fazer pontaria, antes de recuar para a escada.

Três tiros de pistola, todos aleatórios, mas um deles perto o bastante para silvar como uma vespa ao lado de Carson, sugeriam a sensatez de uma mudança de planos.
Só pelo vislumbre que tivera dele, Carson reconheceu o homem na escada. Era o tipo do Mountaineer, aquele que lhes sorrira e acenara.
Calculou que houvesse dois na escada, a mulher atrás dele. Calculou que fossem ambos da Nova Raça e que estivessem ambos armados com pistolas.
Para abater Randal, ela e Michael tinham tido de lhe rebentar com os órgãos internos, destruir os dois corações e partir a espinha com três tiros à queima-roupa das Urban Snipers.
Aqueles dois golem na escada seriam, no mínimo, tão difíceis de matar quanto ele fora. E, ao invés de Randal, estavam armados e parecia que tinham treino paramilitar ou, pelo menos, experiência.
Sem Arnie a ter em conta, Carson poderia ter confiado na potência do armamento, poderia ter-se lançado escada abaixo, mas com o rapaz em que pensar, ela não podia lançar os dados sequer.
- Para o quarto da Vicky - disse ela a Michael, agarrou no braço de Arnie e bateu em retirada para o fundo do corredor.
Michael recuou do cimo da escada e disparou dois tiros para desencorajar outra rajada de pistolas.

A junção das paredes do corredor e da escada sofrera um ataque da caçadeira tal que o canto metálico por baixo do estuque ficara exposto, estalado, saído como a mola de um relógio, e os estilhaços tinham
pulverizado a cara de Benny e ficado lá cravados.
Por momentos, achou que eles se iam lançar temerariamente sobre a escada. Depois ouviu a porta bater, e não houve mais tiros.

215
Pôs-se de pé, saiu da escada e deu com o corredor superior deserto.
- Eram as armas que eles estavam a experimentar no mato - observou Cindi quando subiu também.
A tirar bocados de metal da cara, Benny concordou:
- Pois, também achei.
- Queres desistir, atacá-los noutra altura quando tiverem baixado a guarda?
- Não. Têm um miúdo com eles. Isso complica as coisas, limita-lhes as opções. Vamos dar cabo deles agora.
- Miúdo? Têm um miúdo?
- Não é bebé. Deve ter doze, treze anos.
- Oh. Velho de mais. Também o podes matar - disse ela.
Infelizmente, agora que a situação deflagrara, Benny não contava poder capturar O'Connor e Maddison vivos. Aquele trabalho não lhe daria oportunidade de exercer as suas artes de talhante como tanto gostava,
e para as quais não lhe faltava talento.
Havia três divisões lá em cima. Uma porta entreaberta. Benny deu--lhe um pontapé. Casa de banho. Ninguém.
No chão do segundo quarto, um corpo caído numa poça de sangue.
Nesse quarto também estava um modelo gigantesco de um castelo, quase do tamanho de uma carrinha monovolume. Nunca se sabia o que se podia encontrar nas casas da Velha Raça.
Portanto, a porta que Benny ouvira a bater devia ser a última do corredor.

Carson apressou-se a recarregar a caçadeira, e Michael empurrou a cómoda contra a porta trancada, para esta aguentar melhor o embate.
Quando se virou e lhe tirou a arma, ela disse:
- Podemos sair pela janela, para o telhado do alpendre, e depois descer.
-Ea Vicky?
Embora lhe custasse verbalizar a ideia, Carson disse:
- Fugiu quando a viram ou eles apanharam-na.
Carson deu a mão a Arnie e levou-o para a janela aberta; um dos golem no corredor atirou-se contra a porta. Ela ouviu a madeira a estalar, e uma dobradiça cedeu com estrépito.
- Carson! - avisou Michael. - Não vai aguentar dez segundos.

216
Ela virou-se quando a porta acusou mais um embate. Estremeceu violentamente, e uma dobradiça saltou.
Não havia homem comum que pudesse arrombar uma porta assim com aquela facilidade. Era como a carga de um rinoceronte.
Empunharam ambos as caçadeiras.
A porta era de madeira de carvalho maciça. Quando os golem entrassem, iriam usá-la para escudo. As balas das caçadeiras entrariam, mas fariam menos dano do que tiros desimpedidos.
Ao terceiro embate, a segunda dobradiça soltou-se e a tranca estalou.
- Aí vêm eles!

65.
Depois de ficar sentado uns minutos com o cadáver da réplica do pastor Laffite, Deucalião saiu da cozinha do presbitério e entrou na cozinha de Carson O'Connor, onde Vicky Chou jazia inconsciente, num
fedor a clorofórmio.
Um estrépito tremendo no andar de cima indicava problemas maiores, e ele saiu da cozinha para o corredor do segundo andar a tempo de ver um tipo a bater com o ombro na porta de um quarto, enquanto uma
mulher observava.
Surpreendeu a mulher, tirou-lhe a pistola da mão, atirou-a para longe, levantou a mulher no ar e atirou-a ainda para mais longe.
Quando o tipo tentou arrombar a porta outra vez e pareceu que esta saía dos gonzos, Deucalião agarrou-o pelo pescoço e pelos fundilhos das calças. Levantou-o no ar, virou-o e bateu com ele na parede oposta
à do quarto onde ele estivera a tentar entrar.
A força do impacto foi tal que a cara do homem entrou pelo estuque adentro e bateu num tabique. Deucalião continuou a empurrar, o tabique cedeu, assim como o resto da estrutura da parede, até a cabeça
do assassino ficar dentro do quarto de Arnie, mesmo que o corpo permanecesse no corredor.
A mulher gatinhava na direcção da arma, e Deucalião deixou o homem com a cabeça na parede, como se estivesse dentro de uma guilhotina, e foi atrás dela.
Ela agarrou na pistola, rebolou de lado e disparou contra ele. Atingiu-o, mas era apenas uma bala de 9 mm, e ele apanhou-a no esterno sem danos de maior.
Deucalião deu um pontapé na arma, provavelmente partindo o pulso à mulher, e deu-lhe um pontapé nas costelas, e outro, na certeza de que até as costelas da Nova Raça se podiam partir.
Nessa altura, já o homem tirara a cabeça da parede. Deucalião sentiu-o mexer e virou-se. Deparou com uma cara zangada coberta de gesso, um nariz partido e ensanguentado e um olho crivadinho de lascas de
madeira.
O assassino ainda mexia, e depressa, mas Deucalião não se limitou a esquivar-se. Do mesmo modo que viajara da cozinha do presbitério para a cozinha dos O'Connor num único passo, saltou cinco metros para
trás, e deixou o agressor a cambalear e a apalpar o ar.

218
A mulher batera em retirada, largara a pistola, recuara para a escada. Deucalião pegou nela e ajudou-a, atirando-a pelo primeiro lanço abaixo até ao patamar.
Apesar de ser o futuro do planeta e o flagelo da mera humanidade, o super-homem da Nova Raça com a cara branca de estuque e o olho armado em paliteiro estava farto. Fugiu do corredor rumo ao quarto de
Arnie.
Deucalião foi atrás dele a tempo de o ver atirar-se da janela para o pátio.

De pé no quarto de Vicky, a ouvir o estrondo no corredor, Michael perguntou:
- O quê, estão a lutar um com o outro?
Carson disse:
- Há alguém a dar uma abada.
-A Vicky?
Não baixaram as caçadeiras, aproximaram-se da cómoda que fazia de barricada, contra a qual a porta solta estava agora meramente apoiada.
Quando um silêncio súbito se seguiu ao estrondo, Carson inclinou a cabeça para um lado, pôs-se à escuta e depois perguntou:
- E agora?
- Apocalipse - disse Deucalião por detrás deles.
Carson virou-se de um salto e viu o gigante ao lado de Arnie. Não lhe pareceu que ele tivesse entrado pela janela aberta.
O rapaz tremia como se tivesse paralisia cerebral. Tinha tapado o rosto com as mãos. Demasiado barulho, demasiadas coisas novas e estranhas.
- Está tudo a desabar - disse Deucalião. - Por isso é que fui convocado a este sítio, nesta altura. O império de Victor está a rebentar-lhe na cara. De manhã, não haverá lugar algum seguro nesta cidade.
Tenho de levar o Arnie.
- Levá-lo para onde? - perguntou Carson, aflita. - Ele precisa de paz e sossego. Precisa de...
- Há um mosteiro no Tibete - disse Deucalião, e pegou em Arnie ao colo sem esforço algum.
- Tibete?
- O mosteiro é como uma fortaleza, semelhante ao castelo dele. Tenho lá amigos que saberão como acalmá-lo.

219
Alarmada, Carson protestou:
- Tibete? Não, caraças. Mais valia ser na Lua!
- Vicky Chou está na cozinha, inconsciente. É melhor tirar daí a cómoda e sair daqui - aconselhou Deucalião.
- A polícia deve estar a chegar, e vocês não sabem quem eles são na verdade.
O gigante virou-se como que para levar Arnie pela janela aberta mas, no próprio acto de se virar, já desaparecera.

Talvez tivessem passado quatro minutos desde que Carson disparara o primeiro tiro contra Randal no quarto de Arnie. Talvez nenhum dos vizinhos tivesse chamado a polícia durante um minuto, levando esse
tempo a decidir se fora o escape de um camião ou o cão a soltar gases. Talvez tivessem feito a chamada há três minutos.
Naquela cidade, o tempo médio de resposta da polícia a uma chamada sobre tiros, quando não se via gente a disparar nem se sabia a localização exacta, era de cerca de seis minutos.
Com três minutos para saírem dali, Carson não tinha tempo para se preocupar com Arnie no Tibete.
Michael tirou a cómoda do caminho e a porta caiu dentro do quarto. Passaram por cima dela para o corredor e correram para a escada.
Vicky, a tresandar a clorofórmio, não ajudava nada sem recobrar os sentidos. Carson pegou nas duas caçadeiras, e Michael levou Vicky ao colo.
Quando Carson destrancou a porta das traseiras e a abriu, parou no umbral, virou-se para olhar para a cozinha.
- Posso nunca mais voltar a este sítio.
- Não é propriamente Tara - disse Michael, impaciente.
- Eu cresci nesta casa.
- E que belo trabalho fizeste. Agora é altura de passar à frente.
- Sinto que devia levar alguma coisa.
- Depreendo que tenhas ouvido o Deucalião dizer "Apocalipse". Para isso, não precisas de nada, nem sequer de uma muda de roupa interior.
Ela segurou-lhe a porta para ele sair com Vicky, hesitou antes de a fechar e depois apercebeu-se do que precisava: as chaves do carro de Vicky.
Estavam penduradas no chaveiro da cozinha. Carson entrou, agarrou nas chaves e saiu sem ponta de sentimentalismos.
Apressou-se atrás de Michael, pela escuridão de um dos lados da casa, alerta para a possibilidade de o casal do Mountaineer ainda estar por ali, passou por Michael no jardim da frente e abriu a porta de
trás do Honda de Vicky, para ele a poder lá deitar.
O carro estava estacionado debaixo de um candeeiro. Com tanta agitação, decerto que alguém os observava. Provavelmente teriam de mudar de carro daí a uma ou duas horas.

221
Carson e Michael assumiram as posições do costume: ela ao volante, ele no lugar do morto, o qual não seria literalmente o lugar do morto naquela noite, pois ele tinha na mão as duas Urban Snipers ainda
fumegantes.
O motor ronronou, Carson baixou o travão de mão, e Michael disse:
- Mostra lá esse jeitinho para a Fórmula 1.
- Tu queres finalmente que eu meta prego a fundo, e num Honda com cinco anos.
Atrás deles, Vicky começou a ressonar.
Carson queimou borracha para sair da berma, passou pelo sinal de STOP no fim do quarteirão, e guinou à esquerda na esquina, para experimentar a resistência do Honda ao capotamento.
A mais de dois quarteirões de distância, no caminho, vinha um carro-patrulha com as luzes a piscar.
Carson virou à direita numa viela, não largou o acelerador, derrubou um caixote do lixo, tirou uma das sete vidas a um gato, e disse:
- O cabrão do Frankenstein. - E zarpou do bairro para fora.

67.
Quando a exuberante dança da morte terminou, Gunny Alecto e outro motorista de um galeão do lixo deitaram um metro de lixo para tapar a vala comum onde estavam os restos mortais dos cinco da Velha Raça
lá enterrados.

A luz dos archotes, o campo de lixo brilhava como um mar de dobrões de ouro, e a equipa excitada parecia suar ouro derretido, enquanto se acalmavam, com algum esforço, para a cerimónia mais solene que
se avizinhava.
Pouco depois da alvorada, todos os camiões que lá entrassem descarregariam ali na fossa ocidental durante, pelo menos, uma semana, e não tardaria a que os restos brutalizados ficassem fundos de mais para
serem descobertos por acaso, e além de qualquer exumação fácil.
Quando a tarefa terminou, Gunny foi ter com Nick, linda como uma estrela de cinema e imunda e a sorrir com um deleite tenebroso.
- Foram triturados como baratas? - perguntou ela, toda excitada.
- Ai foram de certezinha - respondeu Nick.
- E foram esmagados?
- Esmagadinhos.
- Coisa mais sexy - exclamou ela.
- Tu é que és sexy.
- Um dia, só havemos de meter nestas fossas gente dessa, camiões deles. Vai ser cá um dia, Nick. Não vai ser cá um dia?
- Apanho-te mais tarde - disse ele, e meteu a mão entre as galochas até à anca, no gancho das calças de ganga dela.
-Eué que te apanho! - exclamou ela, e agarrou-o da mesma maneira, com uma ferocidade que o excitava.
Nick-nariz-de-cão nunca se fartava do fedor dela, e enterrou a cabeça no cabelo dela, a rugir enquanto ela se ria.
O segundo camião descia agora a encosta da fossa e aproximava-se da equipa lá perfilada. Na área aberta estavam dispostos os três enganos mortos, consequências de experiências que não tinham conduzido
aos resultados esperados.
Victor Helios não lhes chamava enganos, nem ninguém nas Mãos da Misericórdia o fazia, tanto quanto Nick soubesse. O termo fazia parte da cultura da Crosswoods, tal como as cerimónias da equipa.

223
Os cinco membros da Velha Raça tinham sido amarrados a estacas na última etapa até à cova, para melhor os poderem aviltar com lixo, mas os enganos jaziam numa espessa cama de ramadas de palmeira, as quais
chegavam semanalmente às centenas, se não mesmo aos milhares, em maciços das aparas que ficavam das acções de paisagismo.
Seriam enterrados separadamente dos cinco cadáveres da Velha Raça, e com todo o respeito, embora não houvesse orações, claro. Os enganos tinham saído dos tanques de criação, tal como qualquer outro membro
da equipa. Embora pouco se parecessem com o modelo humano, eram de certa forma parentes da equipa. Era fácil imaginar que Gunny ou o próprio Nick, ou qualquer um deles, tivesse saído ao engano também,
e tivesse sido mandado para ali como lixo, em vez de ser guardião do lixo.
Quando o camião parou, Nick e os catorze efectivos subiram para a caixa aberta. Não iam com a disposição ruidosa com que tinham abordado o primeiro camião a chegar, para escortanhar corpos e atirá--los
de lá para fora, mas sim com curiosidade e algum receio, e algum assombro.
Alguém da Velha Raça, nos tempos em que as feiras tinham espectáculos de aberrações, poderia ter olhado para um espécime deformado em palco e dito baixinho para si próprio, Se não fosse pela graça de Deus,
seria eu. A equipa de Nick também se sentia imbuída, em parte, deste sentimento, embora carecesse da piedade que um frequentador de feiras de aberrações pudesse ter sentido. Não havia, em nenhum deles,
a sensação de que a misericórdia divina os tivesse poupado das torturas que aqueles enganos tinham sofrido. Para eles, não passava de pura sorte que tivessem saído das máquinas e dos processos do criador
enquanto criaturas funcionais, para enfrentarem as angústias e torturas que eram comuns a toda a sua gente.
Todavia, e embora não tivessem nos corações espaço para o conceito de transcendência, embora estivessem proibidos de qualquer superstição, e se rissem da ideia que a Velha Raça tinha do sagrado na natureza,
ajoelharam-se entre os enganos jazentes, deslumbrados com as feições torcidas e macabras, tocando hesitantemente nos corpos grotescos, e sentiram-se invadidos por uma espécie de maravilhamento animalesco,
um arrepio de mistério e um reconhecimento do desconhecido.

68.
Além das janelas do Mosteiro de Rombuk, os altos picos dos Himalaias cobertos de neve desapareciam na beleza terrível e turbulenta das nuvens negras como frigideiras de ferro fundido muito passadas pelo
lume.
Nebo, um monge idoso num hábito de lã com capuz, mas de cabeça rapada descoberta, levou Arnie e Deucalião por um corredor de pedra em que o efeito das superfícies duras se suavizava com mandalas pintadas,
com a doce fragrância do incenso e com a luz macia dos círios gordos em altares e nichos nas paredes.
No que tocava à decoração e aos serviços disponíveis, as celas dos monges oscilavam entre o severo e o austero. Talvez um autista considerasse apelativa tal simplicidade, até calmante, mas ninguém em Rombuk
deixaria que uma criança de visita, fossem quais fossem as suas preferências, ocupasse uma das celas normais.
Aqueles homens santos eram conhecidos pela sua bondade e hospitalidade, além da sua espiritualidade, e tinham alguns quartos para visitas. Nestes, a mobília e os serviços eram para os convidados que ainda
não tinham sentido - e que poderiam nunca sentir - necessidade de abandonar o conforto em busca da pura meditação.
Deucalião deixara Rombuk poucos dias antes, depois de lá viver durante anos. A sua estadia fora, de longe, a mais longa de qualquer visita na história do mosteiro, e ele ganhara mais amigos dentro das
suas paredes do que em qualquer outro lugar, excepto nas feiras.
Não esperava voltar durante largos meses, ou mesmo nunca. Todavia, ali estava, menos de uma semana depois de partir, embora nem sequer ficasse de um dia para o outro.
O quarto para onde Nebo os levou era três ou quatro vezes maior do que o tamanho de uma cela normal. Havia grandes tapeçarias nas paredes e um tapete vermelho cornalina feito num tear abafava os passos.
A cama de dossel tinha cortinas para maior privacidade, havia assentos confortavelmente estofados e uma grande lareira de pedra com uma placa decorativa de bronze derramava uma luz encantadora que dava
mais ou menor calor, bastando ajustar uma série de respiradouros.
Nebo acendeu velas pelo quarto fora e tirou roupa de cama de uma arca para a fazer; Deucalião sentou-se com Arnie num sofá em frente à lareira.

225
À luz do lume, fez ao rapaz os truques com a moeda que haviam criado tal ligação entre eles no seu primeiro encontro. As moedas cintilantes desapareciam, reapareciam e esfumavam-se para sempre no ar, e
Deucalião contou a Arnie a situação em Nova Orleães. Não duvidava de que o rapaz compreendesse, e não foi condescendente, pois contou a verdade, e não hesitou em revelar até o possível custo da coragem,
para a irmã de Arnie.
Era um rapaz inteligente, aprisionado pelo seu distúrbio mas sensibilizado para o mundo, um rapaz que via mais fundo nas coisas do que muita gente livre das suas inibições. A viagem quântica de Nova Orleães
ao Tibete não o alarmara, antes pelo contrário, galvanizara-o.

À chegada, olhara fundo nos olhos de Deucalião e dissera, com mais compreensão do que espanto:
-Oh.
E depois:
- Sim.
Os olhos de Arnie acompanhavam as moedas com uma vivacidade invulgar, mas também deu ouvidos a Deucalião, e não pareceu ter medo do potencial tenebroso de acontecimentos iminentes do outro lado do mundo.
Antes pelo contrário: quanto mais compreendia do confronto que fervilhava em Nova Orleães, e compreendia o empenho da irmã na resistência ao mal, mais calmo ficava.
À chegada, quando soube que Arnie ainda não jantara no lado do globo que estava às escuras, Nebo mandou preparar uma refeição adequada àquele hemisfério banhado pela manhã. Chegava agora um jovem monge
com um cesto de bom tamanho, de onde começou a dispor petiscos generosos numa mesa apoiada num cavalete, junto à única janela do quarto.
Em vez do castelo de legos onde o rapaz passara grande parte dos seus dias, Deucalião sugeriu a Nebo que lhe levassem quebra-cabeças da colecção de divertimentos simples que o mosteiro tinha, em particular
uma imagem de mil peças de um castelo na Renânia, com que ele próprio se entretivera mais de uma vez, em jeito de meditação.
Agora, com o rapaz ao lado da mesa, a olhar para a apelativa variedade com que podia tomar o pequeno-almoço - incluindo queijo cor--de-laranja mas nada de verde -, chegava outro monge com quatro quebra-cabeças.
Quando Deucalião os viu com Arnie, e explicou que se poderia considerar a imagem de um quebra-cabeças a versão bidi-

226
mensional de um conjunto de legos, o rapaz animou-se ao ver a fotografia do castelo.
Ajoelhado diante de Arnie para o poder olhar nos olhos, Deucalião segurou-o pelos ombros e disse:
- Não posso ficar mais tempo contigo, mas voltarei. Entretanto, ficas a salvo com Nebo e seus irmãos, os quais sabem que até os marginais entre os filhos de Deus não deixam de ser filhos Dele e, por isso,
os amam como a si mesmos. A tua irmã tem de ser a minha paladina porque eu não posso levantar a mão contra o meu criador, mas farei tudo em meu poder para a proteger. Não obstante, o que será, será, e
cada um de nós terá de enfrentá-lo à sua maneira, com a coragem que puder, como ela sempre fez, e sempre fará.
Deucalião não ficou admirado quando o rapaz o abraçou, e retribuiu o amplexo.

69.
Liane, irmã de Vicky, a quem Carson salvara da prisão numa falsa acusação de homicídio, morava num apartamento no Faubourg Marig-ny, perto do Bairro Francês.
Liane foi abrir a porta com um gato de chapéu. Ela segurava no gato, e o gato tinha o chapéu posto. O gato era preto, e o chapéu era uma boina de tricô azul com uma borla encarnada.
Liane estava com óptimo aspecto, o gato parecia envergonhado, e Michael disse:
- Isto explica o rato que acabámos de ver com uma barrigada de riso.
Depois de recobrar os sentidos no carro, Vicky aguentava-se de pé, mas não estava nada com bom aspecto. Depois de fazer uma festinha ao gato e de entrar, disse à irmã:
- Olá, fofa. Acho que vou vomitar.
- A Carson não autoriza esse tipo de coisa em casa dela - disse Michael - por isso aqui estamos. Assim que a Vicky vomitar, levamo-la de volta.
- Ele nunca muda - disse Liane para Carson.
- Nunca. É um rochedo.
Vicky decidiu que precisava de uma cerveja para acalmar o estômago, e mandou toda a gente para a cozinha.
Quando Liane largou o gato, este sacudiu a boina em desagrado e fugiu da cozinha para chamar a APAV.
Ela ofereceu bebidas, e Carson pediu:
- Qualquer coisa com cafeína que chegue para ter um ataque cardíaco.
Quando Michael corroborou a sugestão, Liane foi buscar dois Red Bulis ao frigorífico.
- Bebemos da lata - disse Michael. - Não somos efeminados.
Depois de emborcar metade da garrafa de cerveja, Vicky perguntou:
- O que aconteceu lá em casa? Quem era o Randal? Quem eram os dois que me deixaram às escuras? Disseste que o Arnie está a salvo, mas onde?
- História comprida - respondeu Carson.
- Eram um casal tão querido - disse Vicky. - Não se espera que um casal tão querido nos borrife com clorofórmio.

228
Sentindo que a expressão história comprida, de Carson, embora tivesse um manancial de informação, não iria contentar Vicky, Michael adiantou:
- Uma coisa que esses dois eram: assassinos profissionais.
Passado o perigo de vomitar, Vicky ficou com o tom vermelho acobreado da raiva nos asiáticos.
- O que é que assassinos profissionais faziam na nossa cozinha?
- A razão para teres de sair de Nova Orleães alguns dias - disse Carson.
- Sair de Nova Orleães? Mas devem ter ido lá matar-te, não a mim.
Eu nunca hostilizo as pessoas.

- Nunca - anuiu Liane. - E um amor de pessoa.
- Mas tu viste-lhes as caras - recordou Carson a Vicky. - Agora estás na lista deles.
- Não me podes arranjar protecção policial?
Michael disse:
- Dir-se-ia que sim, não é?
- Não confiamos em ninguém da divisão - revelou Carson. - Há corrupção envolvida no caso. Liane, podes levar a Vicky para fora da cidade, por uns dias?
Liane falou para a irmã:
- Podíamos ir ver a Tia Leelee. Ela anda sempre a convidar-nos.
- Gosto da Tia Leelee - disse Vicky -, tirando quando ela começa com a mudança dos pólos planetários.
- A Tia Leelee acha que - explicou Liane -, por causa da má distribuição da população mundial, o desequilíbrio vai causar uma mudança no pólo norte magnético, e destruir a civilização.
Vicky continuou:
- E passa horas a falar da necessidade premente de mudar dez milhões de pessoas da índia para o Kansas. Tirando isso, é divertida.
- Onde mora a Leelee? - perguntou Carson.
- Shreveport.
- Achas que a distância chega, Michael?
- Bem, não é o Tibete, mas terá de servir. Vicky, precisamos de ficar com o teu carro.
Vicky franziu o sobrolho.
- Quem é que vai conduzir?
- Eu - prometeu Michael.
- Está bem, pronto.

229
- Vai ser o máximo passar uns dias com a Tia Leelee - disse Liane.
- Partimos amanhã de manhãzinha.
- Têm de partir agora - disse Carson. - Numa hora.

- E assim tão grave? - perguntou Vicky.

- É assim tão grave.
Antes de Carson e Michael se irem embora, os quatro abraçaram-se, mas o gato humilhado não quis mostrar os bigodes.
Na rua, a caminho do carro, Carson atirou a chave a Michael, e ele perguntou:
- O que é isto? - E atirou-lhe a chave de volta.
- Prometeste à Vicky que conduzias tu - disse ela, e tornou a atirar-lhe a chave.
- Não prometi, só disse "Eu".
- Não me apetece conduzir. Estou preocupada com o Arnie.
Ele tornou-lhe a atirar a chave.
- Ele está a salvo, está óptimo.

- E o Arnie. Está apavorado, está esmagado por tanta novidade, e pensa que eu o abandonei.
- Não pensa nada que tu o abandonaste. O Deucalião tem uma espécie de ligação com o Arnie. Tu viste. O Deucalião há-de conseguir fazê-lo compreender.
Carson atirou-lhe a chave e disse:
- Tibete. Nem sequer sei como chegar ao Tibete.
- Vais a Baton Rouge e viras à esquerda. - Michael pôs-se à frente dela, impedindo-lhe o acesso à porta do passageiro no Honda.
- Michael, estás sempre a carpir da minha condução, é a tua hipótese. Aproveita.
O facto de ela entregar a chave era sinal de desânimo. Ele nunca a vira desanimada. Preferia-a quezilenta.
- Carson, ouve, se o Arnie estivesse aqui, no meio do colapso da Nova Raça, se for isso que está a acontecer, estarias dez vezes mais preocupada.
- E depois?
- E depois não fiques preocupada com o Tibete. Não te armes em gaja.
- Oh - fez ela. - Isso foi mauzinho.
- Pois parece ser isso que está a acontecer.
- Não é isso que está a acontecer. Isso foi muito mau.
- Eu cá sou frontal. Parece que te estás a armar em gaja comigo.

230
- Nunca desceste tão baixo, homem.
- A verdade tem muita força. Há gente mole e vulnerável de mais para lidar com a verdade.
- Sacana manipulador.
- Paus e pedras.
- Posso muito bem chegar a paus e pedras - disse ela. - Dá cá a porcaria da chave.
Ela tirou-lha da mão e foi para a porta do condutor.
Depois de apertarem o cinto, quando Carson pôs a chave na ignição, Michael disse:
- Tive de dar forte e feio. Tu quereres que eu conduza... apavorou-me.
- A mim também - disse ela, e deu à chave.
- Tu chamarias demasiado a atenção sobre nós: montes de gente atrás de nós a buzinar, a tentar obrigar-te a chegar ao limite de velocidade.

70.
Deucalião entrou na cozinha do padre Patrick Duchaine directamente do Mosteiro de Rombuk, preparado para libertar o padre do seu vale de lágrimas, tal como prometera, embora já soubesse das Mãos da Misericórdia
pelo pastor Laffite.
O padre deixara a luz acesa. As duas canecas de café e as duas garrafas de brande estavam em cima da mesa onde Deucalião as deixara quase duas horas antes, salvo que uma das garrafas estava agora vazia
e a outra com um quarto a menos.
Deucalião sentira-se mais afectado pela ajuda que dera a Laffite do que esperara; a preparar-se para se sentir ainda mais abalado pelo acto de fazer a Duchaine essa mesma graça, serviu-se generosamente
do brande na caneca de onde bebera café antes.
Levara a caneca aos lábios mas ainda não bebera quando o seu criador saiu do corredor e entrou na cozinha.
Embora Victor parecesse admirado, não parecia espantado para quem deveria pensar que a sua primeira criatura morrera dois séculos antes.
- Então chamas a ti próprio Deucalião, filho de Prometeu. É presunção... ou escarneces do teu criador?
Deucalião poderia não ter esperado sentir medo cara a cara com aquele megalomaníaco, mas sentia.
Todavia, mais do que medo, a raiva subiu dentro dele, raiva de uma natureza especial que ele sabia alimentar-se de si própria até chegar a um volume crítico e ser capaz de sustentar uma reacção em cadeia
de extrema violência.
Tal fúria já outrora fizera dele um perigo para os inocentes, até ter aprendido a controlar o mau génio. Agora, na presença do criador, só ele, mais ninguém, correria perigo pela sua raiva desenfreada,
pois esta poderia tirar-lhe o autodomínio, deixá-lo descuidado, vulnerável.
A olhar para a porta das traseiras, Victor perguntou:
- Como é que passaste pelas sentinelas?
Deucalião pousou a caneca com tanta força que o brande intocado se entornou por cima da mesa.
- Mas que visão que tu és, a tatuagem armada em máscara. Crês mesmo que isso faz de ti uma abominação menor?
Victor deu mais um passo para a cozinha.

232
Para seu desgosto, Deucalião deu consigo a dar um passo atrás.
- E todo vestido de preto, é estranho aqui no bayou - observou Victor. - Estás de luto por alguém? É pela companheira que quase te fiz na altura, mas que decidi destruir?
As mãos enormes de Deucalião fecharam-se em punhos. Ansiava por atacar, mas não podia.
- És mesmo brutamontes - disse Victor. - Quase tenho vergonha de admitir que te fiz. As minhas criaturas são muito mais elegantes actualmente. Bem, todos temos de começar por algum lado, não temos?
Deucalião disse:
- És louco e sempre foste.
- Ele fala! - observou Victor, fingindo-se encantado.
- O fazedor de monstros passou a ser o monstro.
- Ah, e acha-se espirituoso também - continuou Victor. - Mas ninguém me pode censurar pelas tuas aptidões para a eloquência. Só te dei a vida, não te dei nenhum livro de citações, embora deva dizer que
parece que te dei mais vida do que me apercebi na altura. Duzentos anos, mais. Trabalhei tanto comigo próprio para durar tanto tempo, mas para ti teria esperado uma longevidade mortal.
- O único dom que me deste foi o infortúnio. A longevidade foi um dom do relâmpago naquela noite.
- Sim, o padre Duchaine disse que acreditavas nisso. Bem, se tiveres razão, talvez toda a gente deva ficar no campo durante uma trovoada, à espera de ser fulminada e de viver para sempre.
A vista de Deucalião tinha-se toldado paulatinamente com o avolumar da raiva, e a recordação do relâmpago que, por vezes, pulsava nos seus olhos latejava agora como nunca. O sangue acelerado cantava--lhe
aos ouvidos, e ouviu-se a respirar como um cavalo cansado.
A divertir-se, Victor disse:
- Tens as mãos tão cerradas que ainda fazes sangue nas palmas com as tuas próprias unhas. Um ódio assim não é sadio. Descansa. Não tens vivido para este momento? Goza-o, porque não?
Deucalião abriu as mãos como leques.
- O padre Duchaine diz que o relâmpago também te concedeu um destino. A minha destruição. Bem... Aqui estou.
Embora detestasse admitir a sua impotência, Deucalião evitou o olhar penetrante do criador ainda antes de se aperceber disso.
- Se tu não podes acabar comigo - disse Victor - então é melhor eu terminar o que não logrei fazer há tanto tempo.

233
Quando Deucalião olhou outra vez, viu que Victor sacara de um revólver.
- Magnum 357 - explicou Victor. - Carregada com balas duplas de ponta oca com 159 grãos. E sei exactamente para onde apontar.
- Nessa noite - disse Deucalião -, na trovoada, quando recebi o meu destino, também me foi dado um entendimento da natureza quântica do universo.
Victor tornou a sorrir.
- Ah. Uma versão incipiente do carregamento de dados directamente no cérebro.
Deucalião ergueu uma mão onde se via uma moeda entre o indicador e o polegar. Atirou-a ao ar, e a moeda desapareceu entretanto.
O sorriso do criador enrijeceu.
Deucalião mostrou e atirou ao ar outra moeda, a qual subiu, subiu, não desapareceu, e desceu, e quando bateu na mesa da cozinha e fez ping!, foi Deucalião quem desapareceu.

71.
Carson a conduzir, Michael ao lado: pelo menos havia uma coisa neste mundo que ainda batia certo.
Ele ligara para o telemóvel de Deucalião e ouvira, claro, o correio de voz de Jelly Biggs. Deixou mensagem a pedir uma reunião no Luxe Theater, à meia-noite.
- O que fazemos até lá? - perguntou Carson.
- Achas que podemos arriscar uma ida ao meu apartamento? Tenho lá algum dinheiro. E podia meter umas coisas na mala.
- Passamos por lá, a ver no que dá.
A acelerar, Carson perguntou:
- Como pensas que o Deucalião faz aquelas coisas tipo Houdini?
- Não me perguntes a mim. Sou um desastre em prestidigitação. Sabes aquele truque com miúdos, em que se finge tirar-lhes o nariz, e se o mostra a sair do nosso punho, mas é com o polegar que fazemos?
- Sei.
- Sempre olharam para mim como se eu fosse um anormal, a dizerem "é só o estúpido do teu polegar".
- Nunca te vi na palhaçada com miúdos.
- Tenho uns amigos que já trataram de ter filhos - disse ele. - Já servi de babysitter num aperto.
- Aposto que tens jeito para miúdos.
- Não sou o Dinossauro Barney, mas aguento-me.
- Deve suar como um porco naquele fato.
- Não há dinheiro que pague fazer de Barney, para mim - disse ele.
- Eu detestava o Poupas quando era pequena.
- Porquê?
Carson respondeu:
- Ele era apenas uma seca com a mania.
- Sabes de quem é que eu tinha medo quando era pequenito? Do Urso Snuggle.
- Eu conheço?
- Daqueles anúncios a amaciador para a roupa que passavam na televisão. Alguém dizia que tinha um roupão muito macio, ou as toalhas, e via-se o Snuggle escondido atrás de uma almofada, ou debaixo de uma
cadeira, aos risinhos.
- Estava contentinho por as pessoas estarem satisfeitas.

235
- Não, eram risinhos de maníaco. E tinha os olhos vidrados. E como é que entrava naquelas casas todas para se esconder aos risinhos?
- Estás a dizer que deviam ter acusado o Snuggle de arrombar casas?
- Completamente. A maioria das vezes que se ria, tapava a boca com uma pata. Sempre achei que ele não queria que se lhe vissem os dentes.
- O Snuggle tinha maus dentes? - perguntou ela.
- Calculei que eram fileiras de colmilhos malvados que ele escondia. Quando eu tinha quatro, ou talvez cinco anos, costumava ter pesadelos em que estava na cama com um urso de peluche, e era o Snuggle,
e ele tentava morder-me a jugular e sugar-me o sangue todo.
Ela disse:
- Há tanta coisa em ti que, de repente, faz muito mais sentido agora.
- Se calhar, um dia, se deixarmos de ser polícias, podemos abrir uma loja de brinquedos.
- Podemos ter uma loja de brinquedos e ter armas?
- Não vejo nada contra - sentenciou ele.

72.
Sentada à mesa da cozinha do apartamento de Michael Maddison, Cindi Lovewell tirava as últimas lascas de madeira do olho esquerdo de Benny com uma pinça.
Ele perguntou:
- Que tal está?
- Um nojo. Mas há-de sarar. Vês alguma coisa?
- Tudo desfocado desse olho. Mas vejo bem do direito. Já não estamos assim tão giros.
- Voltaremos a estar. Queres beber alguma coisa?
- Que tem ele?
Ela foi ver ao frigorífico.
- Nove tipos de refrigerantes e cerveja.
- Quanta cerveja?
- Duas de seis.
- Fico com uma delas - disse Benny.
Ela levou as duas embalagens de seis cervejas para a mesa. Torceram as caricas de duas garrafas e emborcaram Corona.
O pulso dela já estava praticamente sarado, embora ainda lhe parecesse algo fraco.
A casa de Maddison pouco maior era do que um estúdio. A cozinha abria para a zona de refeições e a sala de estar.
De onde estavam viam a porta da frente. Ouviriam a chave na fechadura.
Maddison morreria a dois passos do umbral da porta. Talvez a cabra estivesse com ele, e o trabalho ficaria arrumado.
Sendo O'Connor estéril, Cindi sentia pena dela mas, ainda assim, queria-a bem mortinha.
Benny abriu outra garrafa de cerveja e perguntou:
- Quem era o gajo tatuado?
- Tenho estado a pensar nisso.
- Não era da Velha Raça. Tem de ser um de nós.
- Era mais forte do que nós - recordou ela. - Muito mais forte. Deu-nos uma abada.
- Um modelo novo.
- Não me pareceu nada modelo novo - disse ela. - Estou a pensar em vudu.

237
Benny gemeu.
- Não penses em vudu.
Por vezes, Benny não parecia ter a imaginação típica de um Gama. Cindi disse:
- A tatuagem da cara dele parecia uma espécie de veve.
- Nada disso faz sentido.
- Veve é um motivo que representa a figura e o poder de uma força astral.
- Estás outra vez armada em esquisita.
- Alguém nos fez um bruxedo valente e conjurou um deus Congo ou Petro, e mandou-o atrás de nós.

- O Congo é em Africa.
- O vudu tem três ritos ou divisões - explicou Cindi com toda a paciência. - Rada invoca os poderes dos deuses benévolos.
- Ouve só o que estás para aí a dizer.
- Congo e Petro apelam para os poderes de dois grupos diferentes de deuses malévolos.
- Disseste que o vudu era uma ciência. Os deuses não são ciência.
- São, se trabalharem de acordo com leis fiáveis como as da Física - insistiu ela.
- Alguém conjurou Congo ou Petro e o mandou perseguir-nos, e tu viste o que aconteceu.

73.
Erika Helios terminara de jantar e estava, há algum tempo, a beber conhaque na sala de estar formal, a desfrutar do ambiente e a tentar não pensar na coisa dentro da caixa de vidro, quando Victor chegou
a casa, vindo das Mãos da Misericórdia, tendo decidido, evidentemente, não varar a noite a trabalhar.
Quando deu com ela na sala de estar, ela cumprimentou-o.
- Boa noite, querido. Que bela surpresa, quando eu achava que só o veria amanhã.
A olhar para a louça suja, ele perguntou:
- Está a jantar na sala?
- Queria jantar num sítio onde pudesse beber conhaque, e a Christine disse que eu podia beber conhaque onde me aprouvesse, e aqui estou. Foi muito agradável. Devíamos ter visitas e fazer um jantar na sala
uma noite destas.
- Ninguém janta numa sala de estar formal - disse ele, acutilante.
Erika apercebeu-se de que ele estava de mau humor, mas parte da função de uma boa esposa consiste em melhorar o humor do marido, pelo que apontou para uma cadeira ali perto e disse alegremente:
- Porque não puxa a cadeira e se senta comigo e toma um conhaque? Verá que é mesmo um sítio encantador para jantar.
A pairar sobre ela, de má catadura, ele trovejou:
- Está a jantar numa sala de estar formal sentada a uma escrivaninha francesa do séc. XVIII que vale trezentos mil dólares? - O mau humor passara abruptamente a algo pior.
Assustada e confusa, mas na esperança de se explicar de maneira a conquistar-lhe o coração, ela disse:
- Oh, eu sei a história da peça, querido. Estou bem programada em antiguidades. Se nós...
Ele agarrou-a pelo cabelo, obrigou-a a levantar-se, e bateu-lhe na cara uma, duas, três vezes, com toda a força.
- Estúpida e inútil como as outras quatro - declarou ele, a vociferar de tal maneira que até lhe cuspiu na cara.
Quando a largou, Erika cambaleou e segurou-se a uma mesinha, derrubou uma jarra chinesa, a qual caiu no tapete persa, e se estilhaçou.

239
- Desculpe - disse ela. - Peço imensa desculpa. Não compreendi que não era para comer na sala. Agora vejo que foi uma tolice. Hei-de ponderar mais seriamente na etiqueta antes de...
A ferocidade com que ele a atacou foi muito maior do que qualquer coisa que ele tivesse demonstrado antes, do que qualquer coisa que ela pudesse ter imaginado que viria a suportar.
Bateu-lhe com as costas da mão, bateu-lhe com o cutelo das duas mãos, esmurrou-a com os punhos, até lhe mordeu, É claro que ela não se defendeu, É claro que ele a proibiu de desligar a dor. E a dor foi
imensa.
Ele era selvático e cruel. Ela sabia que ele não seria cruel se ela não o merecesse. Quase pior do que a dor era a vergonha de o ter desapontado.
Quando, por fim, ele a deixou caída no chão e saiu da sala, ela ficou lá muito tempo, a respirar superficialmente, cautelosamente, porque lhe doía se respirasse fundo.
Por fim, soergueu-se o bastante para se sentar encostada ao sofá. Daquela perspectiva reparou, chocada, na quantidade de coisas finas e caras manchadas com o sangue dela.
Erika apercebeu-se de que o seu genial marido não inventara o detergente milagroso apenas para as raras ocasiões em que um mordomo arrancasse os próprios dedos à dentada.
Se ela queria ser a derradeira Erika, teria mesmo de aprender com aquela experiência. Teria de meditar em tudo o que dissera, e na natureza exacta do castigo que ele lhe dera. Se ela se concentrasse numa
análise ponderada do incidente, decerto viria a ser melhor esposa.
Todavia, era claríssimo que o desafio que Erika enfrentava era maior do que assimilara a princípio.

74.
Os três enganos foram tirados das camas de ramos de palmeira no camião, embrulhados em lençóis e levados à luz dos archotes para uma cova pouco funda no campo de lixo, a fim de serem enterrados a uma distância
decente dos cinco membros da Velha Raça.
Era uma cerimónia mais solene do que a dança da morte, e não era visceralmente excitante. Parte da equipa já estava desassossegada quando os três cadáveres amortalhados foram deitados no que seria a sua
campa comum.
A seguir a este enterro, a equipa - igual número de mulheres e homens - iria para os chuveiros lavar-se e desinfectar-se. Lá começaria o sexo, e continuaria pelo banquete da noite, noite fora até de madrugada.
Curiosamente, embora a dança da morte lhes devesse ter desafogado tanta agressão reprimida, era frequente que a raiva voltasse com energia renovada mais tarde, e que o sexo ficasse cada vez mais selvático.
Nick-nariz-de-cão só lamentava que os outros sentissem necessidade de tomar banho antes de se lançarem uns aos outros em diversas combinações. Ele adorava o cheiro de Gunny Alecto, em particular, quando
ela estava cheiinha de porcaria. Depois da ensaboadela, continuava desejável, mas menos.
Quando Gunny conduziu o seu galeão do lixo rumo aos enganos, para lhes deitar uma camada de lixo por cima, a expectativa do banquete e da orgia apagaram-se abruptamente da cabeça de Nick quando apareceu
uma coisa pálida, de muitos braços e pernas, mais estranha do que ele jamais vira, do fundo do campo de lixo. Rápida como uma aranha, mas como se fosse uma enorme montagem de braços e pernas e cabeças
e troncos humanos sem lógica nenhuma, agarrou nos três enganos e arrastou-os para baixo, para baixo e para longe da vista, e o campo de lixo estremeceu debaixo dos pés.


75.
No laboratório principal das Mãos da Misericórdia, um Ipsilon chamado Lester, do pessoal da limpeza, estava a fazer a manutenção diária a um ritmo afadigado.
Quando o senhor Helios lá estava, Lester não podia limpar o laboratório. O senhor Helios não gostava que um esbirro de pano do pó e vassoura em punho o distraísse.
Lester não se importava nada. Ficava sempre nervoso ao pé do seu criador.
Como o senhor Helios passava mais tempo dentro daquelas paredes do que fora, pois trabalhava a horas irregulares, sempre que o seu grande génio o impelia, a rotina das tarefas de Lester naquela parte do
edifício tinha de se fazer a diversas horas do dia. Ele preferia a noite, como agora, quando não entrava ninguém do pessoal no laboratório principal, na ausência do criador.
Talvez as máquinas complexas e fantásticas, com finalidades que escapavam à sua compreensão, lhe devessem infundir medo, mas não, antes pelo contrário.
Zumbiam, borbulhavam, tilintavam, sussurravam quase como vozes a contarem segredos, cacarejavam, ocasionalmente apitavam, mas sem se parecer com um alarme, tartamudeavam e murmuravam melodiosamente. Lester
achava aqueles ruídos reconfortantes.
Não sabia porque haveria de se sentir reconfortado. Não pensava nisso, nem tentava compreender.
Lester não tentava compreender grande coisa, tirando a necessidade de fazer o seu trabalho. O trabalho era a vida dele, como convinha a alguém da sua condição.
Quando não estava a trabalhar, achava que o tempo lhe pesava. Por vezes ficava horas sentado, a coçar o braço até fazer sangue, e depois via-o a sarar, arranhava-o outra vez, via-o a sarar, arranhava outra
vez... Noutras alturas, ia para um sítio privado no nível mais baixo do edifício, onde estava o entulho que o criador não deixava limpar, e ficava diante da parede de cimento, a bater ritmicamente nela
com a cabeça até lhe passar o ímpeto de o fazer.
Comparado com o trabalho, as horas de lazer pouco atractivo tinham. Ele sabia sempre o que fazer com o tempo durante o trabalho.

242
A única outra coisa na sua vida além do trabalho e do lazer era o desmaio ocasional, um fenómeno recente. De vez em quando acordava, como se tivesse adormecido em pé, e dava consigo em sítios estranhos,
sem lembrança alguma de como chegara ali ou do que estivera a fazer.
Por conseguinte, tentava trabalhar a maior parte do tempo, a limpar o que limpara ainda nem uma hora antes, para ajudar o tempo a passar.
Naquela noite, a limpar o chão à volta da secretária do criador, o ecrã do computador acendeu-se subitamente. Apareceu a cara de Annunciata.
- Senhor Helios, Helios, o Werner pediu-me que lhe dissesse que está na cela do Randal Seis e que está a explodir, explodir.
Lester olhou para o rosto no ecrã. Não sabia o que dizer, e continuou a limpar.
- Senhor Helios, o Werner deseja sublinhar a urgência, urgência, urgência da situação.
Parecia que havia qualquer coisa mal, mas não era nada a ver com Lester.
- Senhor Helios, um Alfa pediu uma reunião de urgência, urgência, urgência consigo.
A ficar nervoso, Lester disse:
- O senhor Helios não está cá.
- Senhor Helios. Constou-me que o Werner, que o Werner, que o Werner, está preso na Sala de Isolamento número 2.
- Vai ter de ligar mais tarde - disse Lester.
- Instruções? - pediu Annunciata.
- O quê?
- Pode dar-me instruções, senhor?
- Eu sou o Lester - disse ele. - Não dou instruções, recebo-as.
- Entornaram café no laboratório principal.
Lester olhou em redor, preocupado.
- Onde? Não vejo café nenhum.
- Café a explodir, explodir, no laboratório principal.
As máquinas zumbiam e borbulhavam como sempre. Gases e líquidos coloridos fervilhavam e cintilavam em esferas de vidro, em tubos, como fervilhavam e cintilavam sempre. Não havia nada a explodir.
- Annunciata - disse Annunciata severamente -, vejamos se você acerta em alguma coisa.

243
- Não há nada a explodir - garantiu Lester.
Annunciata disse:
- Werner, é café na Sala de Isolamento número 2. Analise os seus sistemas, Annunciata, analise, analise.
- Não estou a perceber nada - disse Lester. - Está a deixar-me nervoso.
- Bom dia, senhor Helios. Helios.
- Vou limpar na outra ponta do laboratório - declarou Lester.
- Werner preso, preso, preso. Analise. Vejamos se você acerta em alguma coisa.

76.
Carson encostou o Honda de Vicky à berma, em frente ao prédio de Michael. Não puxou o travão de mão nem desligou o motor.
Ficaram a olhar para o prédio um minuto. Estrutura simples, pisos e pisos de apartamentos, não parecia ameaçar ninguém. Era um prédio grande, estúpido, contente, onde ninguém seria perseguido nem morto
por máquinas de carne implacáveis.
- Como é que é o ditado acerca de voltar a casa?
- Que nunca mais se pode voltar a casa.
- Isso. Nunca mais se pode voltar a casa.
- Thomas Wolfe - disse ela.
- Seja quem for. Estou mesmo a sentir uma vibração "nunca mais podes voltar a casa".
- Eu também.
- Ainda bem que calcei os sapatos brancos novos esta manhã. Teria tido pena de não os estrear.
- São giros - disse Carson, e saiu da berma. - Tu tens sempre o visual certo.
- Tenho?
- Sempre.
- Que simpática. Que coisa simpática de se dizer. Desculpa lá há bocado, quando eu disse que te estavas a armar em gaja comigo.
- Aguas passadas.
- Tens fome?
- Aquele Red Buli abriu-me o apetite.
- Eu cá tenho um apetite do tipo "o que queres jantar antes de te amarrarmos à cadeira eléctrica". Quero comer tudo antes de ligarem o interruptor. Estou faminto.
- Queres ir buscar baguetes?
- Para começar.
Seguiram mais algum tempo em silêncio, mais do que era habitual neles, pelo menos do que era habitual em Michael, até ela dizer:
- Sabes o plano que tínhamos, de entrar na mansão do Helios aos tiros, para o abater?
- Tenho estado a matutar nessa estratégia também.
- Foi preciso dois de nós para matar o gajo no quarto do Arnie, e foi por pouco. E depois aquele casal...

245
- Fred e Ginger.
- Pareciam dançarinos, não pareciam? Pronto, Fred e Ginger. Não sei bem se poderíamos tê-los aguentado se o Deucalião não tivesse aparecido.
- Todo o pessoal naquela mansão vai ser difícil de abater como aqueles dois.
Após mais um silêncio, Michael disse:
- Se calhar devíamos ir a Shreveport ver a Tia Leelee.
- O Deucalião há-de ter alguma ideia quando nos encontrarmos no Luxe.
- Ele ainda não ligou. Não tem o telemóvel ligado, e depois esquece--se de ver o correio de voz.
- Dá-lhe lá um desconto, sim? - pediu Carson. - Ele é mais estilo séc. XVIII.

77.
Tiraram os candeeiros a petróleo de cima das duas estacas e levaram-nos para o buraco no campo de lixo, por onde a mãe de todos os enganos saíra para surripiar os três cadáveres amortalhados.
A luz revelou a boca de um túnel, com cerca de dois metros e meio de diâmetro, que fazia um ângulo para as profundezas da fossa. Parecia que o lixo compactado que formava as paredes dessa passagem fora
revestido por uma espécie de cola, que brilhava à luz dos candeeiros.
- Mas que coisa, hã, Nick? - perguntou Gunny Alecto. - Não foi uma coisa?
- Foi uma coisa - anuiu Nick Frigg -, só não sei o quê.
- Mas que noite - disse ela, toda excitada.
- Que noite - anuiu ele.
- Vamos atrás dela - propôs ela.
- Lá abaixo atrás dela? Estava mesmo a pensar nisso.
A vida na Crosswoods era boa, com as cerimónias de matanças simbólicas, cada vez mais, o tempo todo, mas a verdade era que eles não tinham grandes novidades na vida. O sexo, todos embrulhados e mais alguns
todas as noites, e as danças da morte, e de vez em quando enganos sempre diferentes das coisas que eles já tinham visto: mas mais nada.
Até os Ipsílones, simples no seu funcionamento e dedicados ao trabalho - e especialmente um Gama como Nick - podiam ansiar por variedade, por algo novo. Ali estava algo novo, sim senhor.
Dois da equipa tinham ido a correr à caravana que servia de armazém buscar quatro lanternas compridas com potentes feixes de luz. Já estavam de volta, e um deles, Hobb, perguntava:
- Vamos lá abaixo, Nick?
Em vez de responder logo, Nick pegou numa lanterna, acendeu-a e ajoelhou-se à boca do túnel. O feixe de luz varreu a escuridão e ele viu que, a cerca de trinta metros da entrada - e nessa altura talvez
três metros abaixo da superfície do campo de lixo - a passagem virava à esquerda, para baixo e para longe da vista.
Ele não tinha medo do que pudesse haver lá em baixo. Não morreria facilmente, e não se importava de morrer.
Quando inspirou, gostou mesmo do cheiro rico que ressumava das profundezas do poço. Complexo, conhecido, mas muito mais intenso do que a mistela à superfície. Cambiantes.

247
Além dos mil odores do lixo, e ele sabia identificar cada qual separadamente, e saboreá-los por si só, Nick detectou um aroma completamente novo, uma fragrância misteriosa e cativante, e deduziu que seria
a marca do aglomerado colossal de enganos que se revelara fugazmente.
- Vamos descer - declarou ele. - Mas todos, não. Apenas quatro.
- Leva-me, Nick, leva-me - pediu Gunny Alecto.
- Já disse que te levava - disse ele. - Queres ir, Hobb?
Os olhos de Hobb piscavam de excitação.
- Oh, se quero. Conta comigo, Nick. Há sempre fornicação e comida, há sempre isso, mas nunca houve nada disto.
Hobb era homem, e Nick escolheu uma mulher para perfazerem quatro. Azazel era gira, menos do que Gunny, mas aguentava-se bem e safava-se bem e deixava um tipo derreado e a precisar de sarar.
Nick calculou que, se descessem ao fundo da fossa e não encontrassem a mãe de todos os enganos, ainda assim se poderiam comer uns aos outros, lá em baixo naquele fedor, coisa que seria novidade, e melhor
do que nunca.
Gunny, Azazel e Hobb pegaram cada qual numa lanterna.
A descida do túnel era íngreme, mas eles podiam muito bem fazê-la a pé.
- Vamos procurar a coisa que come ratazanas - disse Gunny.
- Vamos ver o que anda ela a fazer lá em baixo.

78.
Manchada de sangue mas já sem sangrar, despenteada, a roupa rasgada, nada apresentável caso aparecessem convidados inesperados, magoada e dorida mas a sarar, Erika foi ao armário das bebidas. E tirou uma
garrafa de Rémy Martin.
Quase que nem se lembrou do copo. Depois decidiu que, se Victor a visse a beber da garrafa, haveria sarilho.
Foi à sala de bilhar porque, embora soubesse agora que não podia jantar na divisão que lhe aprouvesse, acreditava que podia beber em qualquer lado, já que a etiqueta que lhe fora carregada no cérebro nada
dizia em contrário.
Para ter algo que fazer, ligou a televisão e viu o que estava a dar em alguns canais. Entediada, estava quase a desligar quando apanhou a última meia hora de uma série chamada Donas de Casa Desesperadas,
que achou interessantíssima.
Como a série que se seguia não lhe interessou, Erika desligou o plasma e saiu da sala de bilhar. Entrou num alpendre envidraçado, onde não acendeu a luz, sentou-se às escuras, a olhar para os campos a
perder de vista, onde as árvores se destacavam à luz estrategicamente colocada pelos paisagistas.
Enquanto bebericava conhaque, desejou que o metabolismo magnífico que o seu genial marido lhe dera não processasse o álcool com tal eficiência. Erika duvidava de alguma vez conseguir ficar com a sensação
que lhe parecia advir do álcool, e por que ela ansiava. Queria... ver as coisas desfocadas.
Talvez estivesse mais inebriada do que pensava, pois ao fim de algum tempo vislumbrou o que lhe pareceu ser um anão albino todo nu a saltitar pelo campo fora. Saiu das sombras por baixo de uma magnólia
para o coreto e desapareceu nele.
Depois de Erika ter consumido pensativamente mais uns goles de conhaque, a sentir-se cada vez mais contemplativa, o albino tornou a aparecer, a saltitar do coreto para a pérgula cheia de latadas por onde
se chegava ao lago, cuja superfície parecia a de um espelho.
Não se poderia deixar de pensar, quem estivesse programada com uma enciclopédia de alusões literárias, que devia haver uma donzela algures por ali a fiar palha até fazer ouro, pois decerto que aquele era
Rumpelstiltskin que vinha buscar o seu pagamento.

79.
O Luxe Theater, um palácio Art Déco que há muito perdera o seu brilho, fazia ciclos de cinema, exibia filmes antigos no ecrã gigante apenas três noites por semana. Dado ser agora a sua casa e a sua sede
de operações, Deucalião encerrara o negócio no dia anterior, inteiramente no intuito de salvar o mundo.
Encontraram-se à meia-noite no átrio, onde Jelly Biggs montara uma mesa desdobrável perto do bar. Numa taça enorme em cima da mesa, Jelly deitou Dum-Dums, bolachas NECCO, Raisinets, Goobers, Sky Bars,
saquinhos de Planters e outras guloseimas.
A selecção de bebidas parecia limitada, especialmente comparada com o habitual num cinema em pleno funcionamento. Não obstante, Carson conseguiu beber uma Coca-Cola de baunilha enquanto Deucalião e Jelly
bebiam cerveja de malte; Michael ficou deliciado por lhe servirem duas garrafas de Yoo-hoo de chocolate.
- Se a vitória favorecer o exército com mais açúcar no sangue -disse ele -, já ganhámos esta guerra.
Antes de debaterem táctica e estratégia, Deucalião relatou as circunstâncias de Arnie no Tibete. Carson tinha muitas perguntas, mas ficou consideravelmente aliviada.
A seguir a estas boas notícias, Deucalião contou o encontro que tivera com o seu criador na cozinha do padre Duchaine. Tal ocorrência garantia que Helios, anteriormente Frankenstein, ficaria mais alerta
face às ameaças contra si, o que dificultava o sucesso da conspiração deles.
A primeira pergunta em cima da mesa partiu de Carson, a qual queria saber como chegar a Victor com munições suficientes para a guarda pretoriana dele não o poder salvar.
- Desconfio - disse Deucalião - de que por mais organizados que sejamos, a oportunidade irá apresentar-se de um modo que não podemos prever. Já lhes disse que o império dele está a desabar, e creio que
isto se revela mais verdadeiro a cada hora que passa. Ele continua arrogante como era há duzentos anos. Mas já não tem, e isto é fulcral, já não tem medo do fracasso. É impaciente, sim, mas não tem medo.
Apesar de todos os reveses, progrediu aturadamente durante tanto tempo que crê na inevitabilidade da sua visão. Por conseguinte, está cego quanto à podridão de cada pilar que lhe sustenta o reino.

250y Biggs abriu um saquinho de Good & Plenty e disse:
-Já não sou gordo a ponto de poder ganhar a vida numa feira, mas ainda sou uma aberração por natureza. E uma coisa que as aberrações gordas das feiras não são é corajosas. Nem por sombras vocês me podem
querer a atacar a cidadela convosco, nem por sombras eu faria tal coisa. Portanto não me vou preocupar com a forma como se mete munições numa arma pendurada a tiracolo. O que me preocupa é... Se o império
dele estiver a desabar, se ele estiver a perder o controlo sobre as suas criaturas... O que é que vai acontecer a esta cidade quando uns milhares de coisas sobre humanas se descontrolarem? E se vocês conseguirem
matá-lo, elas não se descontrolarão ainda mais depois de ele morrer?
- Não sei o terror que vai ser - respondeu Deucalião. - Mas mais terrível do que qualquer coisa que possamos conceber. Dezenas de milhares morrerão às mãos da Nova Raça antes de eles serem destruídos.
E de nós quatro nesta mesa, não creio que haja mais do que um vivo no final, mesmo que triunfemos.
Ficaram calados um bocado, a contemplar a sua mortalidade, e depois Carson virou-se para Michael.
- Não me falhes, jeitoso. Diz lá uma chalaça.
- Por uma vez na vida - disse Michael -, não me ocorre nenhuma.
- Oh, Deus - fez ela. - Estamos mesmo na merda.

80.
Durante algum tempo, enquanto Erika observava o jardim no alpendre envidraçado e numa névoa de Rémy Martin, o anão albino todo nu saltitava de um lado para o outro pelo campo fora, uma figura fantasmagórica,
quase meio invisível, salvo quando passava perto das luzes fortes do jardim.
Podia estar à procura de alguma coisa embora, visto ter acabado de concluir o seu primeiro dia fora do tanque, Erika não tivesse experiência mundana bastante para saber de que é que um anão albino poderia
andar à procura numa propriedade do Garden District.
Ele poderia querer familiarizar-se com a propriedade, nos preparativos para qualquer golpe que quisesse dar. Erika não fazia a mais pálida ideia de que golpe se poderia tratar, salvo que, no seu acervo
de alusões literárias relativas a anões malévolos, tal poderia implicar um caldeirão de ouro ou um primogénito, ou uma princesa encantada, ou um anel com poderes mágicos.
Poderia andar em busca de um esconderijo antes do amanhecer. Não havia dúvida de que a sua espécie não tolerava a luz do sol. Além disso, estava todo nu, e havia leis contra atentados ao pudor.
Depois de observar o anão frenético algum tempo, ele apercebeu-se da presença dela, finalmente. Como ela estava sentada no alpendre às escuras e não se mexia, tirando para encher o copo de conhaque ou
para o levar à boca, não era fácil dar com ela.
Quando a viu, o anão pôs-se de frente para o alpendre a uma distância de doze metros, a saltitar num pé e no outro, por vezes a bater no peito com ambas as mãos. Estava agitado, possivelmente perturbado,
e parecia não saber o que fazer agora que o tinham visto.


Nick Frigg liderou Gunny, Hobb e Azazel pelo túnel abaixo, cada vez mais fundo na fossa de lixo. Os feixes de luz das lanternas reflectiam--se nas superfícies curvas e vidradas.
Nick desconfiava de que o vidrado que segurava as paredes de lixo poderia muito bem ser material orgânico segregado pela mãe de todos os enganos. Quando cheirara o vidrado, parecera-lhe diferente mas também
semelhante ao cheiro das teias de aranha e casulos, diferente mas semelhante ao odor da cera da colmeia e do excremento das termiteiras.

252
Num quarto de hora, ele viu que o túnel serpenteava e virava e se cruzava consigo mesmo como o buraco de uma minhoca. Deviam ser quilómetros, não só na fossa ocidental mas também na oriental, e talvez
nas antigas fossas já cheias, tapadas com terra e cobertas de erva.
Ali por baixo da Crosswoods estava um mundo de passagens secretas que se construíam há muito. O labirinto parecia demasiado complexo para ser a toca de uma única criatura, por mais diligente que esta fosse.
Os quatro exploradores aproximavam-se de cada curva cega na expectativa de descobrirem uma colónia de formas de vida bizarras ou até estruturas de arquitectura peculiar.
Uma vez, ouviram vozes. Numerosas. Femininas e masculinas. Distantes e ritmadas. O túnel infindavelmente sinuoso distorcia os cânticos além de toda a compreensão, embora uma palavra lhes chegasse intacta,
repetida como a resposta repetitiva aos versos de uma longa ladainha: Pai... Pai... Pai.

Nas Mãos da Misericórdia, Annunciata falava para um laboratório deserto, pois agora até Lester, do pessoal da manutenção, partira para trabalhar noutras divisões ou, talvez, para se ir sentar a arranhar-se
até fazer sangue.
- Urgência, urgência, urgência. Preso. Analise os seus sistemas. Acerta em alguma coisa. Talvez haja algum desequilíbrio na sua fonte de nutrientes. Abrir a porta interior?
Quando fazia uma pergunta, aguardava pacientemente pela resposta, mas esta nunca se ouvia.
- Tem instruções, senhor Helios? Helios?
A sua cara no ecrã desenhava um semblante interrogativo.
Por fim, o ecrã do computador da secretária de Victor no laboratório principal escureceu.
Em simultâneo, o rosto de Annunciata materializou-se num dos seis ecrãs da sala de observação junto à Sala de Isolamento número 2.
- Abrir a porta interior? - perguntou ela.
Não havia pessoal que lhe respondesse. Estavam em salas distantes ou ocupados de qualquer outra maneira.
Dado que ninguém lhe respondia às perguntas, ela sondou a memória que tinha de instruções passadas que se pudessem aplicar à situação em apreço:

253
- Abra a porta mais próxima do módulo de transição. O padre Duchaine gostaria de dar os seus conselhos sagrados ao pobre Werner.
A porta mais próxima ronronou, suspirou com o quebrar de um selo e escancarou-se.
Nos ecrãs, a coisa Werner, depois de andar a correr pelas paredes num frenesim, aquietou-se de súbito, alerta.
- Abrir a porta mais longe? - perguntou Annunciata.
Sem resposta.
- Ele está no túnel de ar - disse ela.
Depois corrigiu-se:
- Não é um túnel de ar.
A coisa Werner era agora singular de aparência e tão insólita que um colégio inteiro de biólogos, antropólogos, entomólogos, herpetólogos e afins poderia passar anos a estudá-la sem determinar o significado
da sua linguagem corporal e expressões faciais (na medida em que tinha face). Todavia, nos ecrãs, vista de vários ângulos, a maioria dos leigos diria que parecia ávida.
- Obrigada, senhor Helios. Obrigada. Obrigada. Obrigada, senhor Helios. Helios. Helios.

Bucky Guitreau, o actual procurador da cidade de Nova Orleães e réplica da Nova Raça, estava a trabalhar no seu escritório em casa quando a mulher, Janet, também réplica, entrou e disse:
- Bucky, acho que há linhas de código na minha programação básica a desaparecerem.
- Todos temos dias em que nos sentimos assim - garantiu ele.
- Não - contrapôs ela. - Devo ter perdido uma parte significativa. Ouviste tocarem à campainha há minutos?
-Ouvi.
- Era o rapaz das pizas.
- Mandámos vir piza?
- Não, era para os Bennets, aqui ao lado. Em vez de mandar lá o rapaz da piza, matei-o.
- O que queres dizer, mataste-o?
- Arrastei-o para o vestíbulo e estrangulei-o.
Alarmado, Bucky saiu de trás da secretária.
- Mostra-me.

254
Foi atrás dela até ao vestíbulo. Jazia no chão um rapaz de vinte e tal anos.
- A piza está na cozinha, se te apetecer - disse Janet.
Bucky disse:
- Estás muito calma com isto tudo.
- Estou, não estou? Foi muito giro. Nunca me senti tão bem.
Embora ele devesse ter cuidado com ela, recear pela própria vida, e preocupar-se com o efeito daquilo no grande desígnio do seu criador, Bucky admirava-a. E invejava-a.
- Perdeste decididamente linhas de código - disse ele. - Não sabia que era possível... O que vais fazer agora?
- Acho que vou ali ao lado matar os Bennets. E tu o que vais fazer?
- Eu devia dar parte de ti, para seres destruída - respondeu Bucky.
- E vais?
- Talvez haja algo errado comigo também.
- Não me vais entregar?
- Não me apetece nada - disse ele.
- Queres vir comigo e ajudar a matar os Bennets?
- Estamos proibidos de matar até recebermos ordens.
- Eles são da Velha Raça. Há tanto tempo que os odeio.
- Bem, eu também os odeio - disse ele. - Mas...
- Fico cheia de tesão só de falar nisso - disse Janet -, tenho de lá ir neste instante.
- Eu vou contigo - disse Bucky. - Não me parece que consiga matar alguém. Mas é engraçado... Acho que consigo ficar a ver.

Passado algum tempo, o anão albino todo nu atravessou o relvado escuro até à grande janela do alpendre mesmo diante de Erika e observou-a.
Anão não era bem o termo. Erika não achava que houvesse um termo certo, mas troll parecia-lhe mais descritivo do que anão.
Embora a coisa dentro da caixa de vidro a tivesse assustado, ela não ficara perturbada com aquela criatura. A ausência de medo deixava-a perplexa.
O troll tinha olhos grandes, invulgarmente expressivos. Eram feéricos e belíssimos.
Sentiu uma compaixão inexplicável por ele, uma ligação.

255
O troll encostou a testa ao vidro e disse audivelmente, em voz rouca:
- Harker.
Erika pensou naquilo um momento.
- Harker?
- Harker - repetiu o troll.
Caso ela tivesse entendido bem, a resposta necessária era esta:
- Erika.
- Erika - repetiu o troll.
- Harker - disse ela.
O troll sorriu. O sorriso revelou-se uma ferida feia na cara dele, mas ela não vacilou.
Parte das suas obrigações era ser a anfitriã perfeita. A anfitriã perfeita recebe todos os convivas com igual graciosidade.
Bebericou o conhaque e, por minutos, ficaram a olhar um para o outro pela janela.
Depois o troll disse:
- Odeio-o.
Erika ponderou nisto. Decidiu que, se perguntasse a quem se referia o troll, a resposta poderia obrigá-la a dar parte da criatura a alguém.
A anfitriã perfeita não deve ser abelhuda. Mas deve prever as necessidades dos convivas.
- Espera aqui - disse ela. - Volto já.
Foi à cozinha, pegou num cesto na despensa, encheu-o com queijo, carne assada, pão, fruta e uma garrafa de vinho branco.
Achou que o troll se teria ido embora quando voltou, mas ele continuava à janela.
Quando ela abriu a porta do alpendre e saiu, o troll assustou-se e saltitou pelo relvado fora. Não fugiu, parou a observá-la a alguma distância.
Ela pousou o cesto, voltou ao alpendre, sentou-se como antes e encheu o copo de conhaque.
Hesitante a princípio, depois com ousadia súbita, a criatura foi até ao cesto e levantou a tampa.
Quando compreendeu a natureza da oferta, pegou no cesto e correu para o fundo da propriedade, desvanecendo-se na noite.
A anfitriã perfeita não entra em mexericos sobre os convivas. Nunca deixa de guardar segredo e respeitar confidências.
A anfitriã perfeita é criativa, paciente, e tem boa memória - tal
como a esposa sensata.

 

 

                                                    Dean Koontz         

 

 

 

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