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A Cidade dos Proscritos / Willian Voltz
A Cidade dos Proscritos / Willian Voltz

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A Cidade dos Proscritos

 

Pelos padrões cósmicos, os homens do planeta Terra ainda são principiantes no cenário galáctico. Assim mesmo Perry Rhodan e seus companheiros dedicados conseguiram transformar o Império Solar da Humanidade, até o ano 2.400, no principal poder político, econômico e militar da Via Láctea. Existem 1.112 planetas e 1.017 sistemas solares colonizados pelo homem. 1.220 mundos, além de numerosas luas e estações espaciais espalhadas por várias partes da Galáxia são usadas como bases do comércio ou da frota solar. Com a inclusão do grupo estelar autônomo Presépio na constelação de Câncer e a exploração das Plêiades, pertencentes à constelação do Touro, surgiu um império compacto, que a frota solar protege sem dificuldade e percorre com rapidez.

Nestas condições não é de admirar que em agosto de 2.400 Perry Rhodan suba a bordo da Crest II, a nova nave-capitânia da frota solar, para resolver um velho problema: a busca do planeta Kahalo, cuja posição no interior da concentração central da Via Láctea nunca pôde ser determinada exatamente.

Durante as buscas a Crest encontra o hexágono solar, entra no campo de ação dum gigantesco transmissor — e é arremessada no abismo que separa as galáxias, indo parar num sistema solar artificial, situado a 900.000 anos-luz da Terra.

Segundo ensina a experiência, os mundos deste sistema parecem reservar perigos mortais para os visitantes terranos — mas quando Perry Rhodan encontra A Cidade dos Proscritos, descobre novos amigos.

 

                                

 

A caçada começou ao nascer do sol.

Jelo Três Luas deu início à mesma, acendendo o grande fogo na periferia da cidade. As chamas azuis formavam um contraste fantasmagórico com a luz do sol geminado que surgia no horizonte. Inúmeros olhos fitavam o fogo a partir da cidade. Numa questão de minutos o mesmo transformou-se numa parede chamejante. Nestes olhos lia-se a expectativa provocada pelas lutas que se seguiriam, mas os mesmos também refletiam o medo e o ódio contra o inimigo.

Parado junto ao grande fogo, Jelo Três Luas sentia o calor agradável que as chamas transmitiam a seu velho corpo. A cidade desapareceu diante de seus olhos. Recordou os tempos em que ele mesmo participara da caçada. Sentiu uma coisa que poderia ser alegria, mas esta não encontrou expressão em seu rosto endurecido. Fora caçado inúmeras vezes, mas sempre se revelara mais astucioso que seus perseguidores. Naturalmente também figurara como caçador. Era um caçador implacável e temido, que nunca voltara sem uma vítima.

Jelo Três Luas movimentou as grandes orelhas em direção à cidade. Estava tudo em silêncio. Até parecia que a cidade estava paralisada. Mas as aparências enganavam. No momento em que o sol geminado aparecera no horizonte, as lutas tiveram início em toda parte.

Através das chamas do grande fogo Jelo Três Luas viu uma nuvem de pó que se levantava. A mesma parecia rastejar em sua direção, vinda da saída da cidade. Jelo não fez o menor movimento. Era muito velho para ser sorteado. Não pertencia à caça nem aos caçadores. Como um dos caçadores mais bem sucedidos de outros tempos, cabia-lhe a honra de acender o grande fogo.

Um veículo achatado saiu da nuvem de pó. As rodas pequenas levantavam areia, e dali a pouco Jelo Três Luas ouviu o ruído do motor.

Ficou olhando para o fogo, até ter a impressão de que a cidade se dissolvia nas chamas azuis. Seus olhos ardiam. Com a maior calma tirou uma pequena pá da armação sobre a qual ardia o fogo e pôs-se a cavar um buraco.

Quando estava quase pronto, o veículo parou bem perto do grande fogo e três seres grandes saíram do mesmo.

Com um gesto indiferente Jelo Três Luas atirou fora a pá e entrou no buraco que acabara de cavar.

Os seres que acabavam de chegar eram tão parecidos que ninguém conseguiria distingui-los. Mas isso não representava nenhuma dificuldade para os habitantes da cidade, pois o trio vermelho sempre andava junto. Nunca se vira um dos três vermelhos só. Agiam como se fossem uma única criatura.

Jelo Três Luas pôs a cabeça para fora do buraco. Olhava ora para a cidade, ora para o fogo, ora para o trio vermelho.

O trio vermelho aproximou-se do buraco que Jelo Três Luas acabara de cavar. Jelo Três Luas sentiu a influência hipnótica pouco intensa que partia do trio, e que servia para livrá-lo de todo o medo.

Acontece que não estou com medo, pensou Jelo Três Luas.

— A caçada começou — disse um dos membros do trio vermelho.

Jelo Três Luas disse que sim.

De repente sentiu uma vontade indomável de saltar do buraco para participar de mais uma caçada. Mas este sentimento passou logo, dando lugar ao cansaço que a proximidade acalentadora do fogo provocara nele.

— Você está velho! — constatou o porta-voz do trio vermelho. — Não é mais capaz de cuidar de si. Transformou-se num peso para a cidade.

— Sim — respondeu Jelo Três Luas.

— Não foi morto durante as últimas caçadas — disse o membro do trio vermelho. — Sabe que é difícil alimentar mais que determinado número de habitantes da cidade.

— Sei — respondeu Jelo Três Luas.

Olhou para o fogo, para seu fogo. As chamas pareciam transformar-se em figuras grotescas que se inclinavam diante dele, para prestar uma homenagem à sua valentia.

— Você recebeu uma grande honra — disse o membro do trio vermelho.

Os três seres pertencentes ao trio vermelho puxaram as armas.

— Boa caçada! — disseram.

— Boa caçada! — disse Jelo Três Luas.

Três raios alaranjados precipitaram-se sobre ele e o envolveram. Jelo Três Luas caiu lentamente sobre o rosto.

Uma rajada de vento atiçou o grande fogo, e as chamas subiram trêmulas ao céu tingido com as cores da alvorada.

 

Ao ver que os cientistas sacudiam a cabeça, Perry Rhodan compreendeu que mais uma tentativa fracassara. Não havia como desvendar os segredos da usina de energia do planeta Sexta.

O Dr. Spencer Holfing, físico-chefe da Crest II separou-se do grupo de cientistas e aproximou-se de Rhodan, que estava conversando com o engenheiro-chefe da nave-capitânia, o major Bert Hefrich.

Holfing era um homem gordo com cabelos brancos como neve. Era um dos melhores físicos que a Humanidade já tinha produzido.

— Não tem o aspecto dum homem bem sucedido — disse Hefrich em tom sarcástico.

— Não — confirmou Rhodan. — Nem esperava que os cientistas descobrissem a pedra filosofal dentro de alguns dias.

O major Hefrich teve a impressão de que as palavras de Rhodan encerravam uma recriminação implícita e preferiu ficar calado.

— Conseguimos pesquisar mais algumas máquinas a partir de suas funções, senhor — disse Holfing a título de introdução, quando já se encontrava perto dos dois homens. — Mas nem por isso se pode afirmar que compreendemos inteiramente o funcionamento das instalações. Pelo contrário. Com cada máquina que conseguimos compreender, o quadro se complica.

Rhodan nunca esperara que uma raça capaz de criar estações de transmissores como esta pudesse construir máquinas que não fossem complicadas. A única coisa que tinham descoberto era que todos os maquinismos instalados em Sexta se assemelhavam aos que Rhodan e Atlan haviam encontrado no planeta Kahalo. Os cientistas explicavam a semelhança dizendo que Kahalo era uma estação de transmissor piramidal situada entre o gigantesco hexágono solar da Galáxia e Kahalo. Ninguém sabia se Kahalo era uma estação intermediária importante ou não.

— Sabem do que vivo me lembrando, senhores? — perguntou Rhodan. — Antes que Rhodan e Hefrich tivessem tempo para refletir sobre a pergunta, Rhodan deu a resposta. — No mistério galáctico, que tivemos de desvendar nos primórdios da astronáutica, entre os anos de 1.971 e 2.000. Ao que parece, o caminho de Andrômeda está cheio de armadilhas, que só podem ser enfrentadas por seres com capacidade superior. Quanto a nós, já poderíamos ter falhado em Power, se Icho Tolot não nos tivesse ajudado.

— Isso não é motivo para desanimarmos — disse Holfing. — Temos motivos para supor que esta estação de transmissor, que abrange um sistema solar inteiro, representa a prova mais difícil.

— Por que pensa assim? — perguntou Hefrich.

— É simples — respondeu Holfing. — A raça que construiu estas instalações maravilhosas não poderia saber quais seriam os seres que um dia se disporiam a sair de nossa Galáxia e viajar para Andrômeda. Quer dizer que deviam estar preparados para qualquer eventualidade. A escala das formas de vida admitidas pela bioquímica moderna vai dos humanóides aos respiradores de metano, até chegar às criaturas que nos são completamente estranhas. Os seres que construíram os transmissores não poderiam ter previsto que os primeiros a arriscarem o salto para Andrômeda seriam humanóides. Por isso teriam de criar armadilhas que se revelassem eficazes para qualquer forma de vida. A privação de líquidos que nos atingiu em Power pode, em certas circunstâncias, ser completamente indiferente para uma raça que se tenha desenvolvido num planeta quente.

— Já sei aonde quer chegar — interveio Rhodan. — Quer dar a entender que outras armadilhas que possam existir não nos afetarão.

Holfing confirmou com um gesto.

— Não quero minimizar o perigo — disse. — Certamente ainda nos defrontaremos com situações piores que a que encontramos em Power, mas temos motivo para supor que algumas das estações pelas quais teremos de passar não são perigosas para nós.

— Se é que um dia chegaremos lá...— observou o major Hefrich.

— Vamos voltar para a Crest — sugeriu Rhodan. Encontravam-se na ante-sala da estranha usina de energia de Sexta. Desde o dia 30 de agosto de 2.400 os cientistas estavam tentando solucionar o enigma do comando do transmissor. Já era o dia 12 de setembro, e ainda não haviam conseguido. Rhodan não pretendia perder mais tempo em Sexta. Ao que tudo indicava, não havia como ir adiante.

— Talvez o senhor esteja interessado em ouvir minha opinião pessoal — disse Holfing quando estavam saindo da usina de energia. A Crest II estava estacionada na ampla área contígua à usina, com os campos defensivos ativados e os canhões preparados para disparar.

— Pode falar — pediu Rhodan.

— Todo mundo sabe que é difícil defender e fortalecer o Império Solar — principiou Holfing.

— Já encontramos uma pista que talvez nos leve para Andrômeda. — Holfing fez um gesto embaraçado, passando as mãos pelos cabelos brancos.

— Às vezes também chego a ter medo diante da simples idéia de irmos para Andrômeda. O vazio imenso que nos separa da galáxia vizinha me leva a sugerir que não devemos arriscar-nos a aceitar o desafio que Andrômeda representa para qualquer pessoa de mente aberta.

Rhodan sorriu.

— Compreendo seus sentimentos, doutor. Desde que existe, a Humanidade sempre teve medo diante de cada passo em direção ao futuro.

Todavia, apesar de todas as resistências, já atingimos este lugar. E contentar-se com o que já foi alcançado não corresponde à mentalidade humana.

— O senhor vê alguma utilidade no avanço — ou na tentativa do avanço — para Andrômeda?

— Gostaria de responder com outra pergunta. Se não formos para Andrômeda, não existe a possibilidade de que um dia venha alguém de lá? E este alguém não poderá ter intenções que atrapalham nossos planos?

— Acho que só a história poderá responder a esta pergunta — disse Holfing em tom pensativo.

Entraram no barco espacial que estava à sua espera junto à estação e voltaram à Crest II. Absorto em seus pensamentos, Rhodan contemplava a paisagem estranha que se estendia em baixo deles. Que povo seria este que um dia tinha construído uma estação por ali? Será que alguma outra forma de vida já tentara atravessar o abismo intergaláctico?

O piloto fez o barco espacial entrar no hangar da Crest II. Os homens sentiram-se satisfeitos por ficarem sujeitos novamente às condições normais de gravidade. Com uma força gravitacional que quase chegava a dois gravos, a permanência na superfície de Sexta sem o uso de qualquer recurso técnico não se tornava nada agradável.

No momento em que Rhodan entrou na sala de comando da nave-capitânia, a nave dos posbis, chamada Box-8323, que estava estacionada no espaço, deu o alarme. Não era um alarme de emergência, mas sem dúvida acontecera uma coisa imprevista que levara os posbis a entrar em contacto com seus aliados.

Rhodan foi informado de que os cinco planetas nos quais ainda não haviam descido já não estavam envoltos pelos campos defensivos verdes. Segundo as informações dos posbis, os mesmos tinham desaparecido de repente.

Diante disso, Rhodan imediatamente deu ordem para que as pessoas mais importantes comparecessem à sala de comando. O coronel Cart Rudo recebeu ordem para preparar a nave para a decolagem.

Rhodan informou os homens que apareceram na sala de comando sobre os acontecimentos que tinham sido observados pelos posbis.

— Devemos concluir que o caminho está livre — disse Atlan. — Se os campos defensivos dos diversos planetas foram desativados, podemos pousar com a nave.

— Parece tentador, não parece? — perguntou Rhodan com um sorriso.

— Acha que pode ser uma armadilha? :— perguntou Melbar Kasom. — Neste caso, a julgar pelo rumo que os acontecimentos tiveram até aqui, somente um planeta deveria ter sido liberado: aquele em que pretendem destruir-nos.

— Talvez possam destruir-nos em todos os mundos do sistema — disse Gucky, que estava entrando naquele momento e acompanhara a conversa por via telepática.

— Provavelmente — confirmou Rhodan. — De qualquer maneira, não acredito que os campos defensivos tenham desaparecido por acaso ou em virtude de alguma avaria nas instalações. Foram desativados, porque alguém que não sabemos quem é não tem mais possibilidade de atacar-nos em Sexta. Por isso querem atrair-nos para outro planeta.

— Quer dizer que devemos manter-nos afastados dos cinco mundos? — perguntou o arcônida com uma ponta de ironia.

— Não se esqueça de que queremos encontrar um meio de sair daqui — lembrou Rhodan. — Para isso somos obrigados a sair à procura de novas possibilidades.

— Vamos decolar, coronel — disse, dirigindo-se ao coronel Rudo.

Dali a instantes a Crest II levantou-se da superfície do planeta Sexta. Perry Rhodan ainda não sabia muito bem o que fazer. Sem dúvida não seria recomendável fazer a nave pousar num mundo escolhido ao acaso. Mandou que o coronel Rudo levasse a nave para fora do círculo formado pela família planetária. Ali, se necessário, a Crest II poderia colocar-se rapidamente em segurança. Até parecia Uma ironia do destino, mas o fato era que a Crest II dependia justamente do sistema de sóis geminados que representava um perigo para ela. As distâncias que separavam a nave de sua galáxia de origem e de Andrômeda eram muito grandes. Por isso a tripulação não tinha alternativa senão tentar com toda cautela a solução dos problemas que resultavam da situação.

A Crest II aproximava-se do quarto planeta em tamanho do sistema de Gêmeos. Gucky chegou perto de Rhodan.

— Estou captando impulsos mentais — informou. — Devem vir do mundo do qual nos estamos aproximando.

Rhodan fitou-o com uma expressão de incredulidade. Não esperara que nessa região pudesse haver alguma forma de vida orgânica. Ao que tudo parecia indicar, as estações do transmissor estavam guarnecidas exclusivamente por robôs.

— Tem certeza? — perguntou Rhodan em tom desconfiado.

Gucky piscou os olhos. Parecia ofendido.

— Talvez você ainda não se tenha dado que as experiências que colhi durante a vida permitem que eu exclua a hipótese dum engano — disse em tom arrogante.

— Ele tem razão! — gritou Geco, que continuava sentado. — Também sinto os fluxos mentais.

Rhodan fez um sinal para Rudo. O homem nascido em Epsal sabia perfeitamente o que significava o mesmo. A nave-capitania aproximou-se lentamente do mundo do qual provinham os fluxos mentais que acabavam de ser captados pelos ratos-castores.

Rhodan não fez mais nenhuma pergunta aos mesmos. Não queria perturbar sua concentração. Se houvesse algum imprevisto, eles o informariam.

O tempo foi passando e a tensão na sala de comando crescia cada vez mais. Os tripulantes da nave ainda se lembravam muito bem dos horrores que tinham atravessado em Power. Não era de esperar que no sistema em que estavam fossem encontrar coisas agradáveis.

Depois de algum tempo Gucky disse:

— Estou recebendo um número tão grande de impulsos confusos que não posso dizer quem ou o que vive lá em baixo.

— O que significa isso? — perguntou Icho Tolot.

— Pode significar que lá em baixo estão reunidos representantes de vários povos inteligentes — respondeu Gucky.

— Quarta parece ser o único planeta em que existe vida — disse Rhodan. — Isso me deixa mais tranqüilo, pois prova que este planeta apresenta condições de vida.

— Pois para mim isso não representa nenhuma vantagem — disse a voz retumbante de Tolot. — Pelo contrário. Acho que devemos manter-nos afastados deste planeta.

Rhodan sacudiu a cabeça.

— Não — disse. — Se por aqui existem seres inteligentes, os mesmos certamente estão informados sobre as funções do transmissor. Desta forma poderemos colher informações.

— Se é que estão dispostos a dá-las — observou Atlan.

— Sem dúvida — disse Rhodan. Vamos esperar para ver como eles nos recebem.

A voz de Atlan não se alterou, mas Rhodan conhecia o amigo há muito tempo para perceber o tom de desaprovação em que foi formulada a pergunta do arcônida.

— Pretende pousar com a Crest?

— Não, pois neste caso estaríamos nos entregando com tudo que temos a um eventual inimigo. Por isso mesmo só faremos sair uma nave-girino, que será uma espécie de vanguarda em Quarta.

Ninguém teve qualquer objeção. Diante das experiências colhidas, parecia perfeitamente razoável manter a Crest como uma espécie de garantia no espaço.

Realizaram-se análises da atmosfera de Quarta. A interpretação dos resultados revelou que se tratava dum mundo quente, muito semelhante à Terra. Quarta possuía grandes mares e somente três continentes, um dos quais não era maior que a Austrália. A gravitação era ligeiramente superior à da Terra, mas a diferença era insignificante e dificilmente representaria um obstáculo. Ao que parecia, a atmosfera era respirável.

Os impulsos mentais captados pelos ratos-castores eram cada vez mais precisos, mas nem assim os mesmos conseguiram identificar tendências definidas. A “confusão mental”, conforme dizia Gucky, levava a supor que em Quarta havia várias formas de vida.

Rhodan não fez nenhum esforço para descobrir o motivo. O número das explicações possíveis praticamente chegava ao infinito. Se não descessem em Quarta, nunca descobririam a verdade.

Rhodan escolheu a tripulação da nave-girino. Além de Atlan e do halutense Icho Tolot iria ele mesmo, Melbar Kasom, Ivã Goratchim, um mutante de duas cabeças, Gucky e mais cinqüenta especialistas da Crest II.

Desta vez o capitão Sven Henderson ficaria no comando da nave-girino C-5.

Rhodan fez questão de que sua esposa e os mutantes Wuriu Sengu, Ralf Marten e Geco ficassem na Crest II, pois queria dispor duma reserva operacional, caso os ocupantes da nave-girino precisassem de auxílio.

A despedida da esposa não foi mais demorada que a dos homens que se encontravam na sala de comando, e que não o acompanhariam. Mory Rhodan-Abro sabia perfeitamente que seu marido seria obrigado a fazer certas coisas que colocavam em perigo sua vida. O orgulho de Rhodan nunca lhe permitira oferecer aos astronautas a espaços regulares o espetáculo duma despedida sentimental.

Dessa forma a saída da nave foi uma operação corriqueira.

A C-5 saiu pela eclusa e a nave-mãe ficou em posição de espera no espaço. Além disso, a nave dos posbis chamada Box-8323 descrevia uma órbita em torno do planeta. Os canhões de conversão da nave fragmentária estavam preparados para disparar. O barco espacial de sessenta metros de diâmetro não poderia gozar duma proteção mais eficiente. Era bem verdade que no interior do sistema de Gêmeos qualquer tipo de proteção se tornava bastante duvidosa. Ninguém sabia o que estava para acontecer, e era perfeitamente possível que tanto a Box-8323 como a Crest II desaparecessem do espaço antes que os homens do Império Solar pudessem disparar um tiro.

A nave-girino penetrou na atmosfera quente de Quarta. Era um procedimento que fora treinado inúmeras vezes pelos astronautas, mas desta vez parecia haver algo de diferente no mesmo. Talvez fosse o sentimento de perigo iminente que se espalhava entre os homens.

O capitão Henderson deu duas voltas em torno do planeta antes que descobrissem a gigantesca metrópole no menor dos continentes. A cidade cobria praticamente todo o continente, estendendo-se de praia a praia que nem uma porção de aço derretida, misturada com concreto, vidro, plástico, madeira e inúmeros outros materiais.

Mas o que impressionava Rhodan e seus companheiros não era tanto o tamanho da cidade, mas antes seu aspecto.

As primeiras observações revelaram que os edifícios que se estendiam lá em baixo eram bastante estranhos. Milhares de arquitetos de vários povos pareciam ter realizado uma competição para descobrir a forma ideal. Não havia um estilo definido; as construções da cidade eram dos tipos mais diferentes. O espetáculo parecia encerrar uma ameaça, mas, além disso, havia o fascínio do incompreensível. Cada construção parecia ser um desafio, uma súplica muda para todo forasteiro para que também levantasse sua construção na bizarra confusão.

De certa forma a cidade estava, marcada pela vontade de sobreviver das inteligências desconhecidas, embora ninguém soubesse quem eram as mesmas e o que estavam fazendo naquele lugar.

— Que acha, senhor? — perguntou Melbar Kasom.

— Que cidade! — disse Rhodan.

Estas palavras exprimiam tudo que podia ser dito, não tanto pelo sentido, mas pelo tom em que foram proferidas.

— O que vamos fazer? — perguntou Henderson, dando a impressão de que de repente se sentira perplexo.

Rhodan examinou os rostos dos outros homens que se encontravam na sala de comando e percebeu que os mesmos se sentiam tão confusos quanto o capitão.

— Desça mais um pouco — ordenou Rhodan.

— Estes edifícios confirmam as emanações mentais que captei — observou Gucky. — Lá embaixo deve haver indivíduos de muitos povos.

— Vamos voltar? — perguntou Icho Tolot.

Rhodan compreendeu que o halutense não tinha o desejo de bater em retirada. Provavelmente estava interessado em saber até onde o terrano queria chegar. Se seguissem sua mentalidade, o gigante teria avançado sozinho contra a cidade. Quanto a isso, Rhodan não tinha a menor dúvida. Mas Tolot achou que não seria justo querer influenciar os terranos. Talvez não se tratasse dum sentimento de justiça, mas duma posição inabalável mantida por qualquer halutense. Quem sabe? — Pensou Rhodan. — O halutense falava muito e sabia quase tudo, mas ninguém sabia nada a seu respeito. Ou melhor, só se sabia aquilo que a criatura queria revelar.

Rhodan fazia votos de que ainda conseguisse derrubar esta muralha de precaução benevolente de que Tolot se cercava. Mas no momento o mais importante era informar-se sobre os acontecimentos que se desenrolavam em Quarta.

A C-5 continuou a perder altitude e os astronautas viram que as aparências os haviam enganado. A cidade não cobria toda a superfície do continente, mas estendia-se por uma área tão ampla que quando vista de grande altura só poderia despertar essa impressão.

— Vamos chamá-la de Bigtown — sugeriu Rhodan. — É o único nome adequado que me ocorre no momento.

— É o melhor — concordou Ivã Goratchim.

As construções, que às vezes eram fantásticas, tornavam-se cada vez mais nítidas. Finalmente descobriram uma coisa parecida com uma fábrica de robôs.

Rhodan dirigiu-se a Gucky.

— Que tal um pequeno salto de reconhecimento, pequeno?

Gucky esfregou as patas. Rhodan não pôde deixar de sorrir.

— Só a fábrica — advertiu.

— Naturalmente — respondeu Gucky e desapareceu.

Até parecia que o salto de teleportação era um sinal secreto, pois os homens que se encontravam na sala de comando começaram a falar todos ao mesmo tempo. Cada um expôs as teorias a respeito de Bigtown que tinha elaborado, até que Rhodan interrompesse as discussões com algumas ordens.

— Mantenha a posição atual até o regresso de Gucky, capitão — disse, dirigindo-se a Henderson.

O comandante da nave-girino fez as necessárias manipulações. A C-5 manteve-se calmamente suspensa sobre a cidade, sem que acontecesse nada de extraordinário. Bigtown não tomava conhecimento da presença da nave desconhecida. Isto pode ser tudo, menos tranqüilizador, pensou Rhodan. Qualquer ação da parte dos desconhecidos poderia ter-lhes dado alguma indicação sobre o comportamento que deveriam adotar. Mas Bigtown jazia imóvel à luz do sol que nascera há poucas horas, e que ainda continuava perto da linha do horizonte.

Rhodan olhou para o relógio. Já fazia quatro minutos que Gucky tinha saído. Não havia motivo para preocupar-se com o rato-castor, mas de vez em quando o mesmo assumia certos riscos com os quais Rhodan não concordava.

O capitão Henderson apontou para a tela panorâmica.

— Veja lá embaixo, senhor! — exclamou em tom exaltado. — Perto da costa, onde quase não existe nenhum edifício.

Rhodan concentrou sua atenção no lugar indicado.

— Um fogo — disse, depois de fitar atentamente o ponto. — Um fogo azul. Tenho a impressão de que está sob controle. Parece que não se espalha.

Enquanto Rhodan ainda refletia sobre o significado das chamas azuis, Gucky voltou.

— Então? — perguntou Rhodan.

— Trata-se de fábricas inteiramente automatizadas — disse o rato-castor. — Parece que se destinam à fabricação de alimentos químicos na base da fotossíntese.

Três homens começaram a gritar ao mesmo tempo. Rhodan virou-se abruptamente e olhou para os rastreadores. Viu imediatamente o que tinha acontecido. E percebeu que tinham cometido um erro. Um erro que ninguém tinha previsto e incluído nos planos.

O campo defensivo verde voltara a envolver Quarta.

E a C-5 encontrava-se no interior do campo.

Isto significava que não poderiam voltar ao espaço. E não era só. Nenhuma nave poderia chegar a Quarta, nem a Crest II e nem a nave fragmentária.

A armadilha colocada pelos desconhecidos acabara de fechar-se.

 

O momento de pânico foi curto e só atingiu metade da tripulação. Aqueles homens experimentados começaram a agir imediatamente, embora soubessem que em última análise só lhes restava aguardar o próximo lance do inimigo desconhecido.

Viram que a precaução de Rhodan, que resolvera guardar a Crest II e a nave dos posbis como reserva operacional, fora completamente inútil. O que poderiam fazer as duas naves, se não tinham possibilidade de chegar ao lugar em que estava a C-5? Mas Rhodan não perdeu tempo com auto-recriminações. Sabia que a bordo das duas naves fariam tudo para ajudar os ocupantes da nave-girino. Mas Rhodan não tinha a intenção de esperar que alguém lhe desse apoio. Por enquanto estavam em plena forma e tinham condições de defender-se.

— Vamos dar o fora daqui, capitão! — gritou para Henderson. — Tentaremos pousar em um dos continentes desconhecidos. Talvez lá possamos fazer alguma coisa.

Henderson confirmou o recebimento da ordem e tentou acelerar a nave-girino. Mas dali a pouco mostrou-se preocupado.

— Não conseguimos sair daqui — resmungou em tom contrariado. — Até parece que alguém nos está segurando.

Rhodan olhou para a cidade enorme que se estendia embaixo da pequena nave. Estavam sendo retidos por meio dum campo energético. De qualquer maneira, o inimigo não parecia ter a intenção de destruí-los imediatamente.

A nave-girino começou a movimentar-se lentamente. Henderson pôs-se a praguejar baixinho. O barco espacial da Crest II estava sendo atraído lentamente para a superfície do planeta, sem que eles pudessem fazer qualquer coisa para impedi-lo. Rhodan mandou que o capitão abandonasse suas tentativas inúteis.

Gucky fez alguns esforços desesperados para atravessar o campo defensivo de Quarta e chegar a bordo da Crest II, mas não foi bem-sucedido. Estava bastante deprimido quando voltou para a C-5.

À medida que a nave de sessenta metros de diâmetro perdia altitude, sua descida tornava-se mais rápida. Um raio sangrador, que tinha origem em Bigtown, retirou toda a energia dos mecanismos da nave. Muito preocupados, os homens que se encontravam na sala de comando viam os edifícios crescer cada vez mais. A C-5 foi obrigada a dirigir-se ao lugar em que ardia o fogo. Por lá não havia nenhum edifício.

Com a velocidade que a nave estava desenvolvendo, o pouso forçado haveria de provocar avarias graves. Henderson percebeu perfeitamente e tentou colocar a nave novamente sob controle. Mas as energias usadas pelos desconhecidos eram mais fortes.

Já tinham descido tanto que só viam uma das costas do continente.

— Atar cintos! — ordenou Rhodan. Em todas as partes da nave começou a desenvolver-se uma atividade febril destinada a reduzir a violência do impacto.

Rhodan perguntou-se por que não os tinham destruído no ar, já que pretendiam fazer com que se despedaçassem de encontro à superfície de Quarta.

A C-5 continuou a descer, até que o fogo azul parecia envolvê-la. Rhodan fazia votos de que sobrevivessem ao impacto. A cidade transformou-se numa massa escura, que parecia estar coberta pelas chamas azuis.

O impacto fez com que Henderson parasse de praguejar. As colunas de apoio vergaram e a nave tombou. O canhão polar de grosso calibre foi arrancado dos suportes e destruiu o convés superior. Em sua maioria os tripulantes perderam os sentidos.

Icho Tolot, que estava preparado para o pouso forçado, passou os olhos pela sala de comando. Procurou reprimir a satisfação profunda que lhe causava o curso da operação, pois não era capaz de imaginar que os terranos compartilhassem sua alegria pela extraordinária aventura. Viu Melbar Kasom levantar-se. Os outros pareciam estar feridos ou inconscientes.

Kasom foi para perto de Rhodan e sacudiu-o até que o terrano magro levantasse a cabeça.

Rhodan fez um gesto fraco. Tolot compreendeu imediatamente o que desejava. Aproximou-se de Rhodan e levantou-o com a maior facilidade.

— Vamos para fora. Venha conosco, Kasom.

O especialista da USO contemplou o rosto desfigurado de Rhodan, mas ao ver o rosto decidido do mesmo, resignou-se e acompanhou Tolot, que carregava Rhodan pela sala de comando como se fosse uma criança. Quando saíram, encontraram-se com um médico que tinha uma ferida aberta na cabeça. Ele mesmo nem parecia perceber. Estava acompanhado por dois robôs médicos, que carregavam materiais de primeiros socorros. Fitou Tolot como se quisesse detê-lo, mas o halutense afastou-o com um movimento suave.

— Cuide dos homens que estão na sala de comando, doutor — disse Rhodan em tom tranqüilizador.

O médico enxugou o sangue da testa e desapareceu na entrada da sala de comando. Ao sentir o cheiro de queimado, Kasom tossiu. A C-5 crepitava por todos os cantos. As avarias eram piores do que Rhodan acreditara. Para seu espanto o elevador antigravitacional estava funcionando. Desceram ao porão de carga. Uma vez lá, Rhodan pediu que fosse colocado no chão. Tolot fitou-o com uma expressão desconfiada, mas o terrano devia ter-se recuperado bem depressa, ou então sabia disfarçar muito bem sua fraqueza.

Encontraram-se com um grupo de sete homens, que tentava abrir caminho entre os destroços espalhados pelo convés de carga. Dois dos homens estavam feridos. Quando viram Rhodan, começaram a gritar. Ao que parecia, havia outros feridos entre os volumes jogados no chão. Rhodan mandou que cuidassem dos mesmos. A eclusa estava aberta. Certamente alguém a abrira nos momentos de pânico que se seguiram ao pouso. Ar quente penetrava no recinto. Rhodan viu uma superfície de areia clara e o suporte quebrado de uma coluna de apoio, cujas travessas penetravam em parte no compartimento de carga. Icho Tolot afastou os destroços que lhes barravam o caminho como se fossem pedaços de papel. Aquilo que o halutense deixou para trás não escapou às mãos enormes de Kasom. Desta forma conseguiram chegar à eclusa. Rhodan percebeu ao primeiro relance que nem se podia pensar em colocar o passadiço. Mas isso não tinha muita importância, já que com o tombamento da C-5 a escotilha da eclusa ficara a apenas alguns metros da superfície de Quarta.

Kasom saltou para fora. Tolot pegou Rhodan e seguiu o ertrusiano. A nave tombada formava um quadro triste. Mas Rhodan não ficou contemplando esse quadro por muito tempo. Olhando por entre as colunas de apoio entortadas, viu a paisagem estranha que se descortinava lá adiante. O grande fogo formava uma parede que os separava de Bigtown, impedindo-os praticamente de ver qualquer coisa. O ar era quente e abafado, e o cheiro do fogo ardia em sua garganta toda vez que respiravam. Rhodan tinha certeza de que o halutense não era afetado por isso, mas ele e Kasom estavam sofrendo muito.

— Precisamos chegar ao outro lado do fogo — insistiu Rhodan. Mais uma vez o halutense foi na frente, a fim de remover eventuais obstáculos. Em comparação com o colosso de pele negra, até mesmo Kasom parecia um homem fraco.

Tolot quebrou uma travessa e virou-se para os dois homens que o acompanhavam. Sorriu, exibindo uma fileira de dentes mais duros que aço terconite. Um ser que no lugar do estômago sensível possuía uma espécie de conversor orgânico capaz de digerir quase tudo precisava mesmo de dentes dessa espécie.

Chegaram perto do fogo.

Tolot parou. Iluminado pelas chamas, parecia um urso prestes a atacar. Seus braços preênseis apontaram para uma interrupção na superfície de areia.

— Um buraco — disse em tom tranqüilo e saiu caminhando em direção ao mesmo.

Rhodan e Kasom apressaram o passo para permanecer ao lado do halutense. Chegaram à borda da escavação quase ao mesmo tempo que ele.

Um ser de pouco mais de um metro estava deitado na mesma, com o rosto virado para baixo. Seu corpo peludo estava coberto por flocos de areia e cinza. Rhodan franziu a testa. Não sabia o que pensar deste fogo. Haveria uma ligação entre ele e a criatura deitada no buraco, que parecia estar morta? Será que estavam presenciando uma cerimônia de sepultamento?

Tolot saltou para dentro da cova e virou o corpo do desconhecido.

Viram um rosto infantil, emoldurado por cabelos cinza-azulados. Finalmente Rhodan viu os pontos de penetração de armas energéticas. Ao que parecia, alguém disparara contra o desconhecido à queima-roupa. Rhodan começou a sentir enjôo.

— Está morto — disse Tolot com a voz apagada. — Mataram-no a tiros.

Sua voz exprimia a raiva que sentia contra aqueles que haviam feito uma coisa dessas. Ao saltar da cova, Tolot segurava um objeto que parecia uma pá.

— Cavou sua própria sepultura — constatou Kasom. — Depois foi morto.

— Não vamos tirar conclusões apressadas — advertiu Rhodan. — Talvez seja um criminoso que foi executado neste local. Não podemos afirmar sem mais aquela que houve um assassinato.

Tolot começou a fechar a cova. Só levou alguns minutos. Rhodan deixou-o à vontade. Olhava para Bigtown. Os telhados claros cintilavam à luz do sol. No alto de dois edifícios maiores viam-se várias luzes que giravam lentamente. Os edifícios tinham sido construídos em degraus e se pareciam com enormes tortas de aniversário com velas no topo. Um anel de casas em forma de S cercava a cidade. A figura mais estranha era uma espécie de touca que repousava sobre uma única haste. Quem tinha construído aquilo não devia possuir apenas grandes conhecimentos; também dispunha de recursos imensos.

Tolot e Kasom alisaram a cova fechada, pisando na areia que a cobria. Finalmente o halutense enfiou a pá na areia.

— Simpatizei com o morto — disse.

Para um halutense isso significava uma prova de simpatia bastante expressiva.

— Está chegando alguém — disse Kasom. — Vem da cidade. Vejo uma nuvem de poeira.

Os homens estacaram em meio aos movimentos. Um veículo passou entre as casas em S e seguiu em campo aberto, em direção ao local da queda. Ainda estava muito longe, e por isso os homens não puderam ver quem estava na direção.

Rhodan e Kasom examinaram suas armas. Tolot pôs os braços no chão. Rhodan compreendeu imediatamente quais eram as intenções do halutense.

— Vamos esperá-los aqui — apressou-se em dizer.

Tolot hesitou um pouco, mas voltou a endireitar o corpo. Rhodan sentiu a impaciência do gigante. A queda da C-5 parecia não justificar o envio de uma grande escolta. Será que neste planeta a chegada de uma nave desconhecida provocava tão pouco interesse?

Rhodan fazia votos de que Gucky não demorasse a aparecer. As faculdades telepáticas bastante acentuadas do rato-castor representariam uma possibilidade de se comunicarem com outros seres inteligentes.

— Há três caras nesse veículo — disse Tolot, que enxergava melhor que os outros. — Parece que não estão com muita pressa.

Como se explicava que uma cidade na qual deviam viver uns cinqüenta milhões de seres só enviasse três habitantes ao seu encontro?

Finalmente Rhodan também conseguiu distinguir os três desconhecidos. Estavam agachados tão juntinhos que se tinha a impressão de que apesar do calor precisavam aquecer-se uns nos outros. Eram criaturas grandes, cobertas de pêlos ruivos. No seu aspecto exterior não se distinguiam um do outro. O veículo corria sobre rodas pequenas, permitindo que fosse usado também em terreno montanhoso. Rhodan registrou cuidadosamente todos os detalhes. Muitas vezes justamente os aspectos que pareciam mais insignificantes acabavam por tornarem-se importantes. Os três habitantes de Bigtown pareciam tão convencidos da própria força que não julgaram necessário tomar qualquer medida para proteger-se. Só pararam o veículo quando já estavam perto do pequeno grupo. O ronco do motor cessou.

Os três seres foram descendo lentamente do carro. Carregavam armas em forma de haste, que balançavam desleixadamente de um lado para outro. Pareciam totalmente despreocupados. Ficaram parados junto ao carro e fitaram os três náufragos.

Tolot apontou para o buraco que acabara de fechar.

Os seres desconhecidos não lhe deram atenção. Quase no mesmo instante em que o halutense fez seu movimento zangado, Rhodan sentiu uma pressão hipnótica de pequena intensidade que partia dos três habitantes de Bigtown. Estava acostumado a ataques paranormais dessa espécie, e por isso os mesmos não podiam afetá-lo. Tolot era imune a esse tipo de ação. E em Tolot os impulsos também não produziram nenhum efeito. Os desconhecidos continuaram a esforçar-se para hipnotizar os homens da C-5. Quando perceberam que suas tentativas não estavam dando resultado, modificaram seu comportamento.

Atiraram em Tolot.

Provavelmente escolheram justamente o halutense porque queriam dar uma prova de força atacando o maior dos inimigos. Mas isso só lhes rendeu uma vergonhosa derrota. Tolot soltou um rugido de desprezo, aproximou-se dos desconhecidos e levantou os braços num gesto de ameaça. Os atacantes logo se recuperaram da surpresa. Saltaram para dentro do carro, cuja parte superior efetuou um giro. Uma abertura surgiu na mesma, que se dirigiu para Tolot.

— Fique onde está! — gritou Rhodan. — O que adiantará sua força se eles resolverem atirar em nós?

O halutense fez um gesto de concordância. Rhodan observou atentamente os movimentos dos desconhecidos. Quando viram que Tolot não continuava a caminhar em sua direção, um dos desconhecidos colocou sua arma no chão do carro e saiu com as mãos estendidas. Era um gesto simples, mas bem claro, com o qual a criatura desconhecida queria mostrar que estava disposta a negociar. Rhodan respirou aliviado.

O negociador cocou a parte posterior do crânio. Estava aborrecido. Ao que parecia, a tarefa não lhe agradava nem um pouco. Desenhou um círculo na areia com uma das garras em que terminavam os dedos dos pés. Depois apontou para a cidade.

Rhodan compreendeu imediatamente. O círculo representava a cidade de Bigtown.

Antes que pudessem continuar a comunicar-se por esse meio, Gucky materializou entre Rhodan e Kasom. Os três desconhecidos não se mostraram impressionados diante do aparecimento do rato-castor. Não pareciam atribuir muita importância ao aspecto do mutante, nem à forma pela qual surgira entre eles.

— Acabamos de iniciar nossa palestra, pequeno — disse Rhodan. — Você pode ajudar antes que haja um conflito.

Gucky deu alguns passos arrastados em direção ao veículo. Fez um gesto grandioso.

— Estes são os senhores de Bigtwon — disse. — São conhecidos como o trio vermelho.

O contacto telepático parecia funcionar muito bem.

Mas Rhodan perguntou-se como as três criaturas tinham conseguido dominar uma cidade desse tamanho, com tantos habitantes.

— Descubra o que querem de nós — pediu Rhodan, dirigindo-se a Gucky.

— Estão nos cumprimentando — disse Gucky. — E querem saber que crime cometemos para termos sido trazidos para cá.

Kasom e Rhodan entreolharam-se com uma expressão de perplexidade.

— Que crime cometemos? — repetiu Rhodan. — O que é que estes caras querem saber mesmo?

O mutante apontou para Bigtown.

— Se compreendi corretamente a mensagem do trio vermelho, ali só vivem proscritos. O planeta Quarta é um gigantesco local de concentração para os criminosos de todos os povos de Andrômeda. São obrigados a passar o resto de seus dias aqui.

Rhodan franziu a testa. Uma cidade de cinqüenta milhões de criminosos! Restava saber o que vinha a ser um crime para as pessoas que tinham trazido os prisioneiros a este lugar.

— Se não pudermos provar a prática dum crime, seremos mortos — apressou-se Gucky a dizer.

— Está bem — disse Rhodan. — Diga-lhes que roubamos.

— Querem saber o que roubamos.

Rhodan apontou para os destroços da C-5.

— Aquilo — disse.

Ao que parecia, o trio vermelho deu-se por satisfeito com a explicação, pois mudou de assunto.

— Acabam de nos dar permissão de ficarmos em Quarta — disse Gucky. — Mas exigem que vivamos segundo suas leis. E estas leis parecem ser bastante arbitrárias. Por aqui existem temporadas de caça, durante as quais existem dois grupos escolhidos por sorteio: os caçadores e a caça. Fazem questão de que participemos do sistema.

— Naturalmente — disse Tolot, muito contente.

— Seremos caça, até que estejamos adaptados ao ambiente — disse Gucky. — Avisam que a partir deste momento qualquer caçador poderá matar-nos, se tiver vontade.

Rhodan sentiu-se aborrecido. Nem pensava em participar de um jogo desumano como este. Se os habitantes de Bigtown costumavam matar-se uns aos outros, isso era problema deles. A tripulação da C-5 não participaria dessa atividade. Rhodan imaginava que a explicação para o poder do trio vermelho devia ser procurada neste jogo. Provavelmente os outros seres que viviam por ali andavam tão ocupados com as lutas que travavam entre si que não tinham tempo para interessar-se pelos chefes.

— E se nos recusarmos? — perguntou Rhodan.

— Nesse caso seremos mortos.

— Diga-lhes que temos armas muito perigosas. — respondeu Rhodan. — Tolot é praticamente indestrutível.

— Eles têm meios de liquidar-nos — disse Gucky. — Pouco adiantará se não conseguirem dominar o halutense. Saberão colocar os outros fora de ação. Sugiro que façamos de conta que aceitamos suas condições. Que procurem caçar-nos. Vamos defender-nos e aproveitaremos o tempo que nos resta para procurar a usina energética de Quarta.

Rhodan pôs-se a refletir. Gucky não deixava de ter razão. Tolot era o único que estava em condições de defender-se. Os outros tripulantes estavam à mercê dos donos de Bigtown. Enquanto existisse o campo defensivo verde, não havia possibilidade de obterem auxílio da Crest II.

Estavam isolados.

— Tente conseguir um prazo — disse Rhodan. dirigindo-se ao rato-castor. — Diga-lhes que concordamos com tudo que querem, mas que precisamos de algumas horas para preparar-nos.

Gucky dirigiu a indagação telepática ao trio vermelho. A resposta que obteve não foi nada satisfatória.

— Não nos concedem nenhum prazo, Perry. Querem que dois de nós os acompanhem à cidade. Os outros serão caçados imediatamente.

Rhodan passou a examinar os membros do trio vermelho. Eram seres altos e esbeltos. Seu corpo estava coberto por pêlos vermelhos. Os braços e as pernas eram curtos e possuíam várias articulações. Os crânios esféricos muito pequenos eram dominados pelos olhos atentos.

Rhodan compreendeu que dali não poderia esperar nenhuma compaixão. Esses seres não recuariam de suas exigências. Provavelmente estavam em condições de conseguir pela violência tudo que queriam. Rhodan achou preferível não arriscar um ataque à tripulação da C-5.

— Está bem — disse. — Kasom e eu iremos à cidade. Enquanto isso as coisas terão de ser colocadas em ordem por aqui. Tolot ficará de sentinela. Gucky, tome todas as providências para que os homens estejam preparados para qualquer eventualidade. Atlan distribuirá as armas. Fiquem aqui por enquanto, a não ser que aconteça alguma coisa que os obrigue a afastar-se da nave destroçada.

Gucky confirmou com um gesto.

— Se houver alguma novidade por aqui, irei à cidade para avisar você e Kasom.

Rhodan caminhou resolutamente na direção do veículo do trio vermelho. Tolot ficou em silêncio, enquanto via Rhodan e Kasom entrarem no carro. Era impossível adivinhar o que estava pensando de tudo isso.

Kasom e Rhodan acomodaram-se no assento traseiro. O trio vermelho ficou agachado bem juntinho na parte dianteira do veículo. As armas foram enfiadas descuidadamente embaixo do assento. O carro arrancou. Uma nuvem de poeira levantou-se. Passaram pelo grande fogo. Rhodan teve de segurar-se para não perder o equilíbrio com o deslocamento vertiginoso do veículo.

Olhou para trás e viu a C-5. Gucky tinha desaparecido, mas Tolot continuava no mesmo lugar. Provavelmente seguia o veículo com os olhos e sentia-se triste por ter perdido uma aventura. Cada vez que havia um acidente no terreno o carro dava um salto. O uivo do motor era tão forte que Kasom e Rhodan não puderam conversar. Os corpos dos membros do trio vermelho balançavam.

O veículo corria em direção a Bigtwon, uma cidade habitada por cinqüenta milhões de criminosos. Rhodan sabia que seria difícil acostumar-se à idéia de que a partir desse momento a tripulação da C-5 pertencia ao grupo dos proscritos.

 

A sorte favorecera o batedor errático, fazendo com que fosse incluído, no grupo dos caçadores. Dessa forma podia ir praticamente para onde quisessem. Qualquer criatura que vivesse em Bigtown sabia que os caçados preferiam recolher-se aos esconderijos que a cidade oferecia, até que a época da caça passasse. Naturalmente havia exceções. Às vezes a caça era mais forte que o caçador e esperava tranqüilamente a chegada daqueles que queriam matá-la em combate.

O batedor errático não se preocupou com o caráter condenável dessas leis. Fora banido neste planeta por ter devorado a cria de outro Batedor Errático. Ainda sentia certa euforia ao lembrar-se desse festival de comilança.

Mas chegara o tempo em que ele mesmo teria de pôr seus ovos. Há algumas semanas, quando notara os primeiros sinais do início da postura, quase se sentira desesperado. Onde encontraria gelo seco num mundo quente como este, para depositar seus ovos? Começara a fabricá-lo. Mas os espiões do trio vermelho, que estavam em toda parte, tinham vindo para destruir suas instalações. Em Bigtown ninguém devia solucionar seus problemas de reprodução com meios técnicos, pois com isso chegaria o dia em que os membros de alguns povos alcançariam uma vantagem sobre os outros. Com isso a estrutura cuidadosamente montada da cidade se teria desestabilizado. Os seres que viviam em Bigtown tinham de contentar-se com as temporadas de caça para descarregar as emoções reprimidas. Afinal, não era nada fácil conviver com centenas de espécies diferentes num espaço muito reduzido.

Como caçador, o Batedor Errático tinha permissão para procurar suas vítimas em qualquer lugar. Durante a última temporada de caça também pertencera ao grupo dos caçadores e matara três shingels. Eles o tinham enfrentado, e durante a luta um conjunto de edifícios se incendiara. Finalmente conseguira prendê-los no elevador antigravitacional. Provocara um curto-circuito no fusível central. O elevador caíra diretamente do andar superior. O batedor errático desceu numa corda e encontrou os shingels mortos.

Mas desta vez ele não estava caçando. Saíra à procura de gelo seco. Até então não tivera muita esperança de encontrá-lo. Mas o pouso forçado daquela espaçonave dava-lhe novas esperanças. Se conseguisse matar os tripulantes, poderia subir a bordo e construir uma máquina de gelo sem que o trio vermelho percebesse.

A nave devia ter tocado o chão nas imediações do grande fogo. O batedor errático felicitou-se porque sua toca residencial ficava num setor da cidade em que pudera acompanhar a queda da nave. Se estivesse do lado oposto do continente, provavelmente não teria percebido nada.

O grande fogo ardia durante toda a temporada de caça. As vítimas só sairiam dos esconderijos quando o mesmo se apagasse.

As dores fustigaram o corpo enorme do Batedor Errático. O tempo de postura estava se aproximando. Precisava apressar-se. Perguntou-se quantos seres amedrontados estariam acompanhando seu caminho desde o momento em que saíra de sua toca residencial. Os batedores erráticos eram caçadores temidos, porque costumavam lutar sem temer a morte. Mas o batedor errático não queria saber de ninguém.

Ao sair da cidade, o batedor errático encontrou um dos fiscais nomeados pelo trio vermelho para impedir que alguém violasse as leis. O fiscal era um hugna, cujo corpo brilhante lembrava uma roda de fogo. O hugna usava um envoltório transparente para permitir a respiração, pois para ele a atmosfera de oxigênio era veneno. Dirigiu sua lanterna tradutora para o batedor errático.

Algumas letras luminosas iluminaram-se.

— Aonde vai? — leu o batedor errático.

Em Bigtown havia mais de trinta mil fiscais. Na opinião do batedor errático seria pouco provável que o hugna o denunciaria ao trio vermelho pelo simples motivo de que estava saindo da cidade. Isto não era muito comum, mas acontecia de vez em quando.

— Vou caçar fora da cidade — respondeu o batedor errático, procurando controlar o nervosismo.

O hugna podia ouvi-lo, mas era incapaz de gerar qualquer som, por mais leve que fosse.

As letras luminosas confundiram-se e foram substituídas por outras.

— Nome?

Sem dizer uma palavra, o batedor errático mostrou seu bilhete de rifa ao fiscal, onde estava gravado seu nome, sua nacionalidade e a função que lhe tinha sido atribuída durante a caçada. O hugna modificou a posição de sua faixa ocular em forma de bastão. Outras letras apareceram na lanterna.

— Prossiga! — leu o batedor errático, aliviado. — Boa caçada!

— Boa caçada! — respondeu Krash-Ovaron.

Apressou-se para deixar para trás os últimos edifícios. Provavelmente ficaria admirado se pudesse adivinhar os pensamentos do hugna. O pretenso fiscal não se sentia menos aliviado que Krash-Ovaron, mas, além disso, sentia-se alegre porque seu plano fora bem-sucedido. Uma vítima disfarçada de fiscal tinha uma boa chance de escapar aos caçadores. Mas o hugna sabia que não poderia usar este disfarce durante toda a temporada de caça, pois se o trio vermelho descobrisse, mandaria matá-lo.

Krash-Ovaron atingiu o campo aberto. Não olhou para trás. O grande fogo azul podia ser visto de longe. Pôde distinguir a espaçonave desconhecida bem ao lado do mesmo. Não era grande. Tanto melhor. Quanto menor o número dos desconhecidos, mais depressa terminaria a luta.

De repente Krash-Ovaron viu uma nuvem de poeira. Parou abruptamente. Alguma coisa se movia entre a nave e o grande fogo. Será que os recém-chegados já estavam a caminho da cidade? Krash-Ovaron chiou, aborrecido. Fazia votos de que não estivesse chegando tarde.

Dali a instantes percebeu que o veículo que avistara era o carro do trio vermelho que se aproximava do local do acidente, vindo de Bigtown. Krash-Ovaron não assumiu nenhum risco. Agachou-se numa depressão do terreno. O trio vermelho cuidara dos desconhecidos mais depressa do que ele esperara. O batedor errático esperara que o trio deixasse os prisioneiros ir à cidade sem aviso prévio.

Krash-Ovaron pôs-se a refletir intensamente sobre quanta coisa os desconhecidos já poderiam ter descoberto a respeito das condições reinantes no planeta dos proscritos.

O trio vermelho tinha por hábito informar os recém-chegados sobre as leis que vigoravam em Bigtown. Mas nem sempre eram sinceros. Tudo dependia de que os seres com que estivessem lidando fossem julgados mais ou menos importantes. O batedor errático estava decidido a levar avante seu plano, houvesse o que houvesse. Era o último de seu povo que restava em Quarta. Se não conseguisse pôr seus ovos, não haveria esperança de perpetuar sua espécie neste mundo.

Por que o planeta-penitenciária tinha que ser justamente um mundo com uma atmosfera tão quente que não podia haver formações de gelo? O instinto natural do batedor errático revelou-se mais forte que o raciocínio prudente. A qualquer momento Krash-Ovaron sacrificaria a vida para salvar sua prole.

Grudado ao solo, esperou que o carro do trio vermelho desaparecesse entre os edifícios da cidade. Os senhores de Bigtown levavam dois desconhecidos consigo. Os recém-chegados não pareciam perigosos, mas Krash-Ovaron sabia perfeitamente que o aspecto exterior duma criatura não permitia qualquer conclusão sobre suas faculdades.

Krash-Ovaron saiu do seu abrigo. Seus olhos, que pareciam bolas de gude salientes e bem afastadas na testa chata, dançavam irrequietamente de um lado para outro. Não havia nenhum sinal de perigo. As dobras da pele que cobria as pernas de salto de Krash-Ovaron contraíram-se. Agachado como estava, o batedor errático parecia um enorme batráquio. Mas sua cabeça afinava para baixo, dando a impressão de que Krash-Ovaron possuía barba.

O batedor errático foi-se aproximando da nave caída, dando saltos enormes. Dali a pouco reconheceu uma figura solitária entre a nave e o fogo. Ao que tudo indicava, os proscritos haviam colocado uma sentinela. O ser que ali estava era do mesmo tamanho de Krash-Ovaron, mas menos largo. Krash-Ovaron não se iludiu, pois sabia perfeitamente que não poderia aproximar-se da nave sem ser descoberto. Teria de recorrer a alguns truques para conseguir acesso à mesma. Teria de evitar de qualquer maneira que a sentinela avisasse os outros ocupantes do veículo.

O batedor errático sentiu-se amargurado ao lembrar-se do castigo que o mantinha preso a este mundo pelo resto da vida. Ali a luta pela vida era mais dura que em seu mundo.

O desconhecido que estava parado à frente da nave destroçada permanecia imóvel. Parecia uma estátua que refletisse a luminosidade do fogo. Os saltos de Krash-Ovaron foram-se tornando menores. Reduziu a velocidade por meio das robustas pernas dianteiras, que também podiam ser usadas como braços preênseis. Nuvens de areia levantaram-se. O batedor errático fez de conta que estava interessado somente no fogo. Coordenava seus movimentos de maneira a fazer a sentinela acreditar que viera para cuidar do fogo.

O guarda não parecia perigoso. Krash-Ovaron começou a sentir-se mais seguro. Já se encontrava perto do fogo. O desconhecido permanecia imóvel. Parecia interessado exclusivamente na cidade. O batedor errático começou a mexer na armação sobre a qual Jello Três Luas tinha acendido o fogo. O calor lhe dava enjôos, mas não desistiu. Desta forma conseguiu chegar ao outro lado das chamas. O guarda dos novos prisioneiros de Bigtown não podia saber que saltos Krash-Ovaron era capaz de dar. O batedor errático esforçou-se para dar a impressão de que seus movimentos eram pesados. Lançou mais um olhar para a nave. Não notou o menor movimento.

Só terei um salto, pensou Krash-Ovaron.

Com o maior cuidado, como se cada contração dum tendão pudesse revelar suas intenções, o gigantesco sapo encolheu-se. Como estava sentado bem à frente do fogo, o guarda não podia perceber seus preparativos, pois as chamas certamente o ofuscariam, se é que estava olhando para Krash-Ovaron.

Uma onda de calor passou por cima do batedor errático. Por um instante os contornos de sua vítima desmancharam-se.

É agora. — pensou Krash-Ovaron, numa súbita decisão.

Empurrou o corpo, que formava uma massa compacta de músculos e carnes. Ainda durante o salto admirou-se com a força que conseguira desenvolver.

O desconhecido que estava lá em baixo parecia voar em sua direção. Na verdade, era Krash-Ovaron que atravessava o ar em alta velocidade. O impacto derrubaria qualquer criatura do tamanho do guarda.

Durante o salto Krash-Ovaron inclinou-se ligeiramente para o lado, para fazer com que sua vítima perdesse o equilíbrio. Finalmente orientou seu vôo em direção ao desconhecido, que não esboçara nenhum gesto de defesa.

No mesmo instante soltou um grito de raiva e decepção. No lugar em que há um instante estivera o guarda só havia o solo nu. O batedor errático não teve tempo para refletir sobre o erro que poderia ter cometido. Bateu no chão com um baque surdo. Levou uma pancada que o fez rodopiar e provocou uma dor lancinante em suas costas. Um líquido verde saiu dos poros de excitação. Viu o inimigo atrás de si. Era uma grande sombra escura, muito mais ligeira que qualquer outra criatura que já tinha visto.

O fato de ficar simplesmente deitado no chão salvou a vida do batedor errático. O guarda mantinha-se na expectativa. Enquanto procurava dominar a dor, Krash-Ovaron esperava o golpe final. Fizera uma caçada e perdera. Isso só podia significar a morte. Mas não aconteceu nada!

Krash-Ovaron começou a nutrir novas esperanças. Será que haveria uma possibilidade de negociar com estes seres? Era possível que nem conhecessem as leis que vigoravam na cidade.

Viu um grupo de desconhecidos saído da nave e aproximar-se dele. Eram menores que o guarda. Provavelmente o ser que derrotara o batedor errático era um robô.

Krash-Ovaron refletiu instantaneamente! Enquanto estivesse vivo, teria uma chance de conquistar a nave. A vitória fácil alcançada pelo guarda poderia levar os recém-chegados a subestimar Krash-Ovaron.

Bastante preocupado, o batedor errático procurou prestar atenção ao que se, passava em seu interior. Era necessário salvar a prole. Fazia votos de que a luta não tivesse prejudicado os ovos, que eram bastante sensíveis.

Krash-Ovaron foi-se levantando bem devagar, para que seus movimentos não fossem mal interpretados. Era um dos caçadores mais temidos de Bigtown. Atravessara sete temporadas de caça, ora como caçador, ora como caça. E mais uma vez voltaria à cidade como vencedor. Mas isto só depois de encontrar um lugar para depositar seus ovos.

Os desconhecidos estavam conversando. Carregavam objetos metálicos, que sem dúvida eram armas. O batedor errático fez de conta que estava quase morto. Aquelas criaturas deveriam ser levadas a acreditar que ele não lhes poderia fazer mais nada.

— Nada feito, meu chapa! — disse uma voz bem em meio aos seus pensamentos.

Uma criatura pequenina abriu lugar entre os desconhecidos. Possuía pêlos e fitava Krash-Ovaron com seus olhos brilhantes. Um dente-roedor muito feio completava o quadro extraordinário.

Telepatia. — pensou Krash-Ovaron e bloqueou seus pensamentos.

Quanta coisa a pequena criatura já teria descoberto? O batedor errático chegou à conclusão de que teria de modificar seus planos. Ao que parecia, aquela nave tinha trazido indivíduos de vários povos. Parecia haver uma espécie de aliança entre os criminosos. Krash-Ovaron percebeu que a criatura peluda procurava penetrar em seus pensamentos.

No momento não havia esperanças para ele.

Acontece que ainda não utilizara a arma mais terrível de que dispunha.

 

Nem por um instante Mory Rhodan-Abro deixou perceber o quanto se sentira assustada com o súbito aparecimento do campo energético que cercava o planeta Quarta. Os ocupantes da C-5, entre os quais estava seu marido, estavam isolados em Quarta. Naquele momento nem a Crest II nem a nave dos posbis poderiam prestar-lhes qualquer ajuda.

Mory compreendeu que a nave-girino tinha caído numa armadilha.

No mesmo instante os chefes que não tinham ido a Quarta reuniram-se na sala de comando da nave-capitânia.

Se um desses chefes tinha pena da jovem mulher, ele não mostrou. Todos tratavam a esposa de Rhodan como se fosse um homem, e realmente a mesma nada ficava a dever aos homens em coragem e resolução.

— A nave-girino pilotada pelo capitão Henderson entrou numa armadilha — principiou em tom indiferente. — Sabemos que dificilmente teremos uma possibilidade de atravessar o campo defensivo. Seria muito perigoso tentarmos novamente com bombas de gravitação. Além disso, Geco é fraco demais para saltar sozinho através da brecha.

O rato-castor esboçou um protesto, mas o mesmo não parecia muito convicto.

— Você terá sua chance, Geco — prometeu Mory. — Exploraremos qualquer possibilidade de entrar em contato com os homens que estão isolados.

— Posso fazer uma sugestão? — perguntou o capitão Don Redhorse.

— O senhor quer fazer uma tentativa de chegar a Quarta numa segunda nave-girino — conjeturou Mory Rhodan-Abro.

O índio cheiene acenou tranqüilamente com a cabeça. Seus cabelos negro-azulados brilharam à luz dos controles. Era um dos últimos índios de raça pura que ainda existiam na Terra.

— Acho que não vale a pena — disse Mory.

Os murmúrios de aprovação mostravam que ninguém estava muito entusiasmado com o plano. O índio calou-se numa atitude resignada.

— De qualquer maneira deveríamos ficar nas proximidades do planeta — sugeriu o tenente Huise. — É possível que o campo energético acabe desativado por qualquer motivo, e nesse caso poderemos tomar nossas providências.

— Admiro seu otimismo — disse o coronel Rudo, embora seu rosto perfeitamente controlado não mostrasse nenhum sinal de admiração pela atitude do imediato da Crest II. — Mas acho que no presente caso o mesmo é exagerado. Não temos motivo para supor que o campo energético possa deixar de existir. Neste caso também poderíamos acreditar que um dia o sol geminado deixará de brilhar.

— Naturalmente esperaremos — disse Mory. — Mas nem por isso permaneceremos inativos.

— O que pretende fazer? — perguntou Rudo.

— Antes de mais nada, Geco tentará atravessar o campo defensivo sem Gucky e as bombas. Depois disso pediremos aos posbis que cuidem do assunto. Talvez um dos robôs consiga atravessar o campo defensivo.

Outras sugestões foram apresentadas, mas não demorou que todos compreendessem que, por mais arrojados que fossem os planos, a situação era desesperadora. Não havia uma chance real de chegar ao lugar em que estava a C-5. Era possível que naquele momento a tripulação da nave nem estivesse mais viva. As discussões sobre as condições que Rhodan poderia ter encontrado em Quarta eram intermináveis. Mas ninguém conseguiu sair do terreno das suposições.

Finalmente a sugestão de Mory Rhodan-Abro, segundo a qual Geco deveria arriscar uma tentativa de atravessar o campo defensivo num salto de teleportação, foi aceita.

O rato-castor desapareceu. Era uma figura pequena e corpulenta, que parecia débil demais para fazer qualquer coisa.

Ninguém se admirou quando Geco reapareceu dali a pouco. Fez um gesto ligeiro. Qualquer uma das pessoas que se encontravam na nave seria capaz de interpretar o mesmo.

É impossível, significava o gesto.

— Quem sabe se posso repetir minha sugestão? — perguntou Redhorse em meio ao silêncio. Sua figura alta e esbelta parecia contrair-se numa expectativa tensa, impressão que era reforçada pelo brilho dos olhos.

— Deixe os aparatos bélicos guardados na gaveta — disse o coronel Rudo com um ligeiro sarcasmo. — Se Geco não conseguiu, o senhor também não conseguirá com a nave-girino.

— De qualquer maneira estou à disposição — disse Redhorse laconicamente.

— Parece que realmente teremos de esperar até que o campo defensivo que cerca Quarta entre em colapso — constatou Mory Rhodan-Abro com a voz tranqüila. No seu íntimo os homens admiraram a firmeza que estava demonstrando.

O capitão Redhorse virou-se e foi saindo com as pernas duras. Talvez estivesse aborrecido.

Quem seria capaz de dizer, quando se tratava dum índio?

 

O ruído do motor cessou no momento em que o carro subiu numa fita transportadora que o levou adiante. Vista de dentro da cidade, a variedade dos edifícios parecia, ainda mais grotesca que do lado de fora. A cidade fervilhava das mais diversas formas de vida. Em toda parte lutava-se.

Rhodan viu dois seres em forma de cobra, cujo corpo era defendido por ferrões, lutarem por um objeto que devia ser uma arma. O trio vermelho não se mostrou nem um pouco impressionado com o acontecimento. Na parte dianteira do veículo havia um sinal luminoso, diante do qual todos os outros se afastavam para dar-lhe passagem. O veículo e seus ocupantes não foram molestados. Lutava-se até mesmo no interior de muitos edifícios. Em certa altura o veículo foi obrigado a sair da esteira transportadora, porque havia uma criatura gigantesca em seu caminho. O monstro estava morto. A língua cor de rosa cheia de cicatrizes pendia para fora da boca. Em suas costas via-se o ser que dominara aquela criatura. Tratava-se dum homem-pássaro magro e ossudo. Ao ver o trio vermelho, desapareceu às pressas.

Rhodan perguntou-se como o pássaro poderia ter matado aquele monstro.

O carro rangia e balançava enquanto corria ao lado da fita. Dali a pouco uma horda de seres das espécies mais variadas barrou-lhes o caminho. Ao que parecia, eram espectadores da luta que estava sendo travada no meio do círculo formado por seres vivos.

O trio vermelho acionou o sinal luminoso, mas não conseguiu dispersar a multidão. Ninguém parecia notar a presença do veículo. Com a maior tranqüilidade um dos senhores de Bigtown pôs a mão em baixo do assento e tirou a arma. Fez um disparo em cima das cabeças dos espectadores.

A multidão abriu alas. Dois paquidermes de estatura baixa lutavam entre as esteiras transportadoras. Seus pés revolviam o chão. Era uma luta de vida e morte.

O carro arrancou. Muitos pares de olhos ardentes acompanharam-no.

— Parece que aqui todos lutam contra todos, senhor — disse Melbar Kasom. — E o governo aprova isso.

Apontou para o trio vermelho.

— São criminosos, que além de tudo possuem uma mentalidade que não conseguimos compreender — respondeu Rhodan. — Aquilo que para nós é uma crueldade, para eles pode ser um prazer.

Kasom sacudiu o corpo. Não queria aceitar a idéia de que os habitantes duma cidade se viviam caçando impiedosamente. Rhodan fazia votos de que lhe poupassem o dissabor de ter de participar do caos.

Atrás deles a multidão de espectadores voltou a fechar-se. A luta prosseguiu. Por algum tempo o veículo avançou na esteira transportadora sem que nada o detivesse. Atravessaram um bairro mais calmo, com edifícios baixos enfeitados por parques nos quais se viam lagos e chafarizes. Mas esse quadro pacato não podia ocultar os acontecimentos que se desenrolavam em Bigtown. O trio vermelho atravessou o parque. Rhodan viu o cadáver dum ser desconhecido junto a um grande chafariz. Chamou a atenção de Kasom para o mesmo.

— Precisamos descobrir quanto tempo dura a temporada de caça — resmungou o ertrusiano. — isso não pode continuar assim até que todos se tenham matado uns aos outros.

Rhodan procurou controlar o sentimento de repugnância que lhe provocavam os habitantes de Bigtown. O importante era compreender esses seres, saber de que natureza era o impulso que os levava a agir assim.

Pelas leis humanas o procedimento dos proscritos de Quarta era condenável, mas quem seria capaz de dizer se as leis humanas se aplicavam a eles?

Atrás do parque a esteira transportadora penetrava num túnel iluminado. O trio vermelho dirigiu o veículo para lá. Encontraram-se com outros veículos. Em baixo do teto do túnel um grupo de seres com o aspecto de morcegos lançava um ataque aéreo contra um carro parado, em cujo interior um humanóide de ombros largos lutava pela vida de arma em punho. No momento em que o veículo do trio vermelho estava passando, o humanóide conseguiu atingir um dos inimigos. o morcego-gigante, ou fosse lá o que fosse, soltou um grito de desespero e foi descendo, batendo fortemente as asas. Passou tão perto por cima do carro que seus ocupantes tiveram de encolher a cabeça. O trio vermelho acelerou. O grasnar dos morcegos acompanhou o carro até o lugar em que o túnel descrevia uma curva fechada.

Depois de algumas centenas de metros surgiu uma bifurcação. Para um dos lados o caminho estava livre, enquanto para o outro havia uma barreira. O trio vermelho dirigiu o carro para a barreira. Pouco antes de atingir a mesma, acenderam três vezes o sinal luminoso. A barreira abriu-se. Rhodan viu os canos ameaçadores de armas automáticas saírem da parede de ambos os lados da mesma. Gostaria de saber o que aconteceria com as pessoas não convidadas que se atrevessem, a entrar ali.

A esteira transportadora terminou. O carro passou a deslocar-se com seus próprios meios pelo chão liso, que descia lenta, mas constantemente. Apesar disso a temperatura continuou a ser agradavelmente quente. A intervalos regulares havia lâmpadas que iluminavam o túnel. O trio vermelho e os dois náufragos não se encontraram com ninguém. De vez em quando aparecia um corredor lateral, mas os senhores de Bigtown não tomavam conhecimento dessas alternativas que lhes permitiriam mudar de direção. Inúmeros nichos recheados com aparelhos misteriosos despertaram a atenção de Rhodan.

Ao que tudo indicava, estavam sendo levados bem para baixo da superfície de Quarta.

Finalmente o túnel desembocou num pavilhão. Durante toda a viagem o trio vermelho não tinha trocado uma única palavra. Mesmo assim seus membros pareciam saber o que fazer.

Sem que o quisessem. Rhodan e Kasom adaptaram-se a esse silêncio. Além disso, a idéia de que se afastavam cada vez mais da C-5 deixou-os deprimidos. Bem, se necessário Gucky saberia encontrá-los, mesmo em baixo da superfície.

O que mais espantou Rhodan foi o sentimento de segurança demonstrado pelo trio vermelho. Tinha-se a impressão de que a confiança desses seres provinha duma força superior, sobre a qual Rhodan não sabia nada. Às vezes Rhodan tinha a impressão de que havia alguma coisa que comandava as ações do trio vermelho. Mas certamente estava enganado. Afinal, o trio se apresentara como o grupo que governava Bigtown.

O carro atravessou o pavilhão até parar à frente duma entrada triangular.

Os membros do trio vermelho saltaram do carro. Com um gesto convidaram seus prisioneiros a seguir seu exemplo. Não se ouvia o menor ruído. Os três soberanos de Bigtown aproximaram-se do portão pontudo e este afundou no chão.

Um pavilhão abobadado apareceu atrás do mesmo. Ao contrário do outro, era tão claro que até se podia ter a impressão de que os raios do sol geminado chegavam lá. Rhodan e Kasom entraram atrás do trio vermelho.

A primeira impressão que Rhodan experimentou foi a de estar sendo observado por centenas de pares de olhos. Mas não eram olhos. Eram telas de imagem ovais e cintilantes, que cercavam quase todo o pavilhão a dois metros de altura. Em todos os aparelhos Rhodan viu setores de Bigtown. Do lugar em que estavam os membros do trio vermelho poderiam observar tudo que desejassem — o que certamente não era pouco.

O pavilhão estava cheio de máquinas e aparelhos. Uma estátua que mostrava um dos membros do trio vermelho dava um aspecto, irreal ao recinto repleto de produtos da tecnologia.

Os membros do trio vermelho pararam junto a uma mesa alongada. Um deles pegou um objeto em forma de ovo que, depois de levantado, permaneceu ligado à mesa por meio dum cabo.

É um microfone, pensou Rhodan.

O membro do trio vermelho disse algumas palavras incompreensíveis para dentro do microfone.

Dali a pouco uma criatura de membros delicados com olhos grandes e úmidos veio dos fundos do recinto. Era do tamanho dum ser humano, mas muito magro. Apesar do calor, a criatura parecia sentir frio. Suas mãos finas apalparam a mesa, como se fosse cega.

— Sou o intérprete — disse o ser.

Sua voz parecia entrecortada. Cada palavra que proferia parecia exigir um grande esforço. Por um instante Rhodan ficou tão perplexo que não pôde concentrar-se na resposta. Os membros do trio vermelho mantinham-se na expectativa.

— Como funciona isso? — perguntou Rhodan finalmente. — Por meio da telepatia?

— Não — respondeu o ser. — Todo cérebro emite ondas. Tenho a percepção das mesmas sob a forma de símbolos. Mas não compreendo tudo.

— Pelo amor de Deus — disse a voz retumbante de Kasom. — Um conversor de símbolos vivo. Os posbis deveriam ver isso.

Os membros do trio vermelho não pareciam satisfeitos com o curso que estava tomando a conversa. Falavam exaltadamente com o intérprete. O ser parecia encolher sob o efeito de sua voz. Kasom fez menção de interferir, mas Rhodan o deteve.

— Meu nome é Blan — disse o intérprete. — Pediram que lhes dissesse que o trio vermelho não acredita que vocês sejam criminosos. Deve haver outros motivos para sua presença neste planeta.

— Se há! — pensou Rhodan, mas logo reprimiu este pensamento. — Gostaríamos que alguém nos explicasse os motivos por que fomos trazidos para cá — disse em voz alta.

Um sorriso triste apareceu no rosto de Blan. Rhodan enxergou a si mesmo e a Kasom nos olhos do intérprete, como se estes fossem um espelho, de tão grandes e brilhantes que eram os mesmos. O que quer que eles tivessem visto, não devia ter sido uma coisa agradável.

— Os senhores podem saber por que estão aqui — disse Blan. Havia um tom de compaixão em sua voz. Já parecia saber qual era o destino que aguardava os dois homens que estavam â sua frente. Provavelmente já vira estas coisas mais de uma vez. — Os senhores terão de provar que realmente são criminosos banidos — prosseguiu Blan. — Como afirmam ser ladrões, terão de cometer um furto.

Rhodan e Kasom entreolharam-se. Rhodan sentiu repugnância pelos métodos do trio vermelho, que decidia arbitrariamente sobre quem podia ser admitido em Quarta.

Os membros do trio vermelho falaram insistentemente com Blan.

— O que vamos fazer, senhor? — perguntou Kasom.

— Esperar — respondeu Rhodan. — Por enquanto não temos certeza do que exigirão de nós. Se a situação ficar difícil, ainda poderemos inventar alguma coisa.

Blan recebeu um desenho que lhe foi entregue pelo trio vermelho. Entregou-o a Rhodan. Este recebeu a folha. Viu um edifício desenhado com traços finos. Rhodan mexeu com os dedos e o quadro modificou-se. Ao que parecia, o mesmo era formado por numerosas camadas finíssimas. Viu uma sala, em cujo centro havia um pedestal. Sobre este pedestal havia um bloco triangular de pedra ou metal.

— Os senhores terão de encontrar esta casa — disse Blan. — Mas isso não basta. Também terão de encontrar esta pedra e trazê-la para cá, para provar que realmente são ladrões competentes.

— Como poderíamos encontrar esta casa numa metrópole? — perguntou Rhodan em tom desconfiado, — Somos estranhos aqui, mas até mesmo para uma pessoa da cidade o problema seria insolúvel.

— E verdade — disse Blan. — Mas não tenho nenhuma influência sobre as decisões do trio vermelho.

— O que acontecerá se não formos bem sucedidos? — resmungou Kasom.

Blan baixou a cabeça. O gesto disse mais que muitas palavras.

— De quanto tempo dispomos? — perguntou Rhodan.

— O tempo durante o qual estiver aceso o grande fogo azul, que é o tempo da caça — respondeu Blan. — Quando o fogo se apagar, deverão estar de volta.

— Por quantos dias fica aceso o fogo? — perguntou Kasom.

— Três — respondeu Blan. — Metade de um dia já passou.

Rhodan examinou o desenho. Uma ligeira fricção trouxe de volta o edifício. Tratava-se duma estranha construção. Parecia uma pirâmide sem ponta. Em cada uma das quatro faces havia saliências arredondadas.

— A pedra é vigiada — disse Blan.

— É vigiada? — repetiu Rhodan. — Quem são os vigias?

O intérprete deu um passo para trás e permaneceu calado. Kasom quis segui-lo, mas as armas dos membros do trio vermelho o detiveram. Rhodan colocou no bolso o desenho que deveria levá-los à pirâmide, mas tinha suas dúvidas de que conseguissem chegar lá. O que estaria acontecendo neste meio-tempo a bordo da C-5?

Será que a tripulação já estava sendo caçada? Rhodan tinha certeza de que por enquanto a nave-girino era um lugar seguro.

Antes que pudesse prosseguir em suas reflexões, levou uma pancada. Virou-se, furioso, mas olhou bem para dentro da abertura do cano duma arma. Os membros do trio vermelho apontavam para a saída, que continuava aberta.

— Temos de sair — disse Rhodan.

— Mas não temos nenhuma chance — exclamou Kasom, amargurado. — Como podem exigir que façamos uma coisa impossível?

— Não se esforce para compreender o que acontece neste mundo — recomendou Rhodan ao especialista da USO. — Os criminosos têm suas próprias leis.

As mãos enormes de Kasom desceram junto aos quadris.

— Nem sequer possuímos armas — disse enquanto iam andando.

— Sem dúvida o trio vermelho espera que também as roubemos — disse Rhodan em tom irônico.

Quando estavam saindo do pavilhão abobadado, Rhodan lançou mais um olhar para trás. Teve a impressão de ver numa das telas o edifício em forma de pirâmide que teriam de procurar.

Rhodan concentrou seus pensamentos no local em que caíra a nave-girino. Precisava estabelecer contacto telepático com Gucky. O rato-castor era a única chance de encontrarem a pirâmide e conseguirem a pedra. Mas seus esforços não deram resultado.

Gucky não respondeu.

Rhodan informou o ertrusiano sobre o curso que estavam tomando os acontecimentos. O especialista fez um gesto nervoso, passando a mão pela mexa de cabelo em forma de foice.

— Alguma coisa deve ter acontecido — conjeturou. — Quem sabe se a C-5 não foi atacada?

Rhodan mordeu os lábios. O que fariam se Gucky, que era seu único elemento de ligação com a nave-girino, tivesse sido posto fora de ação? Ninguém mais estaria em condições de comunicar-se com eles.

— Acho que não vamos iniciar imediatamente as buscas da pirâmide — disse Rhodan.

— O que pretende fazer?

— Temos de voltar ao local da queda. Precisamos descobrir o que aconteceu.

Kasom resmungou.

— Isso representa uma perda de tempo muito grande, senhor. Sem dúvida o rato-castor vai responder logo.

Chegaram ao túnel. Rhodan parou.

— O senhor tem razão, Kasom — disse em tom pensativo. — Se alguém conseguiu pôr Gucky fora de combate, pouco poderemos fazer. Vamos cuidar da nossa tarefa. Só nos resta fazer votos de que Gucky não demore a responder.

Saíram caminhando pelo túnel a passos amplos até atingir a barreira junto à bifurcação. Assim que os dois homens apareceram, o obstáculo deslizou para o lado. Rhodan apontou para a grade reluzente que ia desaparecendo na parede.

— Estamos sendo observados — constatou. — Provavelmente estão em condições de acompanhar cada passo que damos. Mas acabarão se cansando. Não consigo imaginar que a única coisa que tenham a fazer é espionar-nos.

Mal deixaram a barreira para trás, a grade voltou a fechar o caminho que levava para as profundezas. Os dois astronautas não perderam tempo. Saltaram para cima da esteira transportadora que levava para cima. No túnel estava tudo em silêncio. Quando tinham percorrido algumas centenas de metros, encontraram-se com um carro que ia em sentido contrário. O veículo estava completamente vazio.

De repente Kasom segurou o braço de Rhodan.

— Está ouvindo, senhor? — chiou.

Rhodan sabia que o especialista da USO possuía ouvidos muito aguçados. Concentrou-se no trecho do túnel que tinham pela frente. De repente ouviu.

Era o grasnado dos morcegos.

— Será que ainda estão lutando? — perguntou Kasom.

Saíram da esteira e ficaram parados entre as duas faixas deslizantes. Não havia outro caminho para cima além do que passava pelos gigantes voadores.

— Caso ainda estejam ocupados, não se interessarão por nós — disse Rhodan.

Kasom abriu as mãos que nem um jogador que quer mostrar a carta ruim que acaba de receber.

— Sem armas não conseguiremos passar — afirmou.

Rhodan olhou para o túnel bem iluminado. A qualquer momento esperava ver a sombra duma criatura voadora no teto. Mas o único sinal da presença dos monstros era o grasnado que eles emitiam.

— Vamos, Kasom — pediu Rhodan. — Aqui não podemos ficar.

Voltaram a subir na esteira transportadora e deixaram que esta continuasse a levá-los para cima. Atingiram a curva atrás da qual deviam estar os morcegos. O corpo de Kasom enrijeceu. A esteira transportadora começou a agitar-se ao entrar na curva.

A primeira coisa que Rhodan viu foi o carro do humanóide desconhecido, que quando eles chegaram ao túnel estava lutando contra os monstros voadores. O veículo estava tombado entre as duas faixas, de rodas para cima. O humanóide estava pendurado por cima dos assentos caídos. Suas mãos continuavam a segurar a arma, e uma trilha larga e escura provava que lutara até o fim amargo.

Dois morcegos estavam sentados nos eixos do carro. Eram silhuetas escuras que contrastavam com a claridade do túnel. Grasnavam e dobravam as asas, dando a impressão de que queriam testar sua capacidade de voar. Três seres da mesma espécie sobrevoavam o campo de batalha. Os assentos do veículo tinham sido esfacelados pelas garras e bicos dos morcegos, e o enchimento saía em toda parte. Num ponto a esteira transportadora tocava no carro, provocando um som arrastado, que dava a impressão de que alguém estava arrastando um objeto pesado em solo pedregoso.

Kasom soltou uma praga ertrusiana e saltou da esteira transportadora. Rhodan imediatamente seguiu seu exemplo. Estavam testemunhando um espetáculo que só se tornara possível porque as leis que vigoravam em Quarta eram brutais e desumanas. Rhodan teve de fazer um grande esforço para controlar a raiva que ameaçava apoderar-se dele. Obrigou-se a encarar a cena com a objetividade dum observador da Via Láctea, que se deparou com uma civilização que não consegue compreender.

Os três morcegos passavam preguiçosamente por cima do carro.

De que planeta teriam sido trazidos estes seres?

— E agora? — cochichou Kasom.

— E possível que por enquanto a vontade de caçar destes monstros tenha sido saciada — disse Rhodan. — Procuraremos chegar o mais perto possível do carro. Talvez consigamos apoderar-nos da arma.

Kasom acenou com a cabeça. Parecia zangado. Rhodan gostaria que Tolot estivesse com eles, ou ao menos Gucky.

— Já! — resmungou Rhodan.

E os dois saíram correndo.

Os dois morcegos que estavam pousados sobre os eixos do veículo emitiram sons estridentes e levantaram vôo. Por enquanto pareciam indecisos. Circulavam com os outros em baixo do teto do túnel. Davam a impressão de não saber o que fazer diante dos recém-chegados.

Kasom e Rhodan tornaram a decisão mais fácil para eles. Com alguns saltos enormes o ertrusiano conseguiu chegar junto ao veículo. Arrancou a arma da mão do morto e atirou-a para Rhodan, que com grande agilidade a pegou no ar. Imediatamente pôs-se a examinar o mecanismo. Não encontrou nenhum gatilho, mas quando tocou um botão situado na parte inferior da coronha, um raio chamejante saiu do cano.

Os morcegos soltaram gritos e foram descendo lentamente.

Pela primeira vez Rhodan viu o desconhecido de perto. Sua pele era prateada, e não possuía pêlos nem cabelos. Até mesmo depois de morto irradiava uma dignidade tranqüila.

À sua frente Kasom deu um salto enorme para cima da esteira transportadora. Um morcego precipitou-se em sua direção com as garras de fora. A cabeça tinha certa semelhança com a dum lobo, e esta semelhança só diminuía um pouco quando o bico curto e muito robusto se abria. Rhodan preferiu não atirar, pois com a arma desconhecida facilmente poderia atingir o ertrusiano. Kasom abaixou-se. O pássaro soltou um grasnado furioso ao passar por cima do ertrusiano. Por pouco não bateu na parede do túnel. Kasom atirou-se para a frente, tão depressa que Rhodan mal pôde acompanhar o movimento. Kasom segurou o atacante com ambas as mãos de trás. O ser começou a gritar. As penas voaram.

Neste momento Rhodan levou uma pancada nas costas e cambaleou de encontro ao carro. Deixou-se cair instintivamente. Isto o salvou do bico do atacante, que estava prestes a golpear. Rhodan rastejou para baixo do carro e levantou a arma. A presença do desconhecido morto com a pele de prata deixou-o nervoso. Um dos inimigos apareceu na esteira transportadora do outro lado. Rhodan fez pontaria e atirou. O monstro caiu da esteira e foi parar no chão. Ouviram-se grasnados furiosos vindos do teto do túnel.

Rastejando que nem uma cobra, Rhodan foi para o outro lado do carro. Viu Kasom deitado na esteira que levava para cima. O ar estava impregnado do cheiro de carniça. Os grasnados enchiam os ouvidos de Rhodan.

— Depressa, senhor! — gritou Kasom formando um funil com as mãos.

Rhodan pôs-se de pé de um salto. Virou-se abruptamente e disparou contra duas sombras que desciam sobre ele em mergulho. Chegou a ver os inimigos como que numa radiografia quando os mesmos foram envolvidos pelo feixe energético chamejante. Kasom já tinha avançado cinqüenta metros sobre a esteira. Rhodan voltou a atirar, mas os atacantes estavam cada vez mais perto. De repente tudo eram monstros grasnando em torno dele. Sentiu o sangue martelar em suas veias. Apertava constantemente o botão acionador, sem ter tempo de fazer pontaria. Finalmente segurou o cano superaquecido de sua arma e ficou brandindo a coronha em cima da cabeça. Atingia um atacante após o outro. O impulso do próprio movimento arrastou-o por alguns segundos para fora do círculo dos morcegos. Respirava com a boca. Quase não se deu conta de que Kasom saltou da esteira com um grito de raiva e veio correndo para apoiá-lo.

O braço de Rhodan foi atingido por uma bicada. As garras dum morcego arranharam sua blusa. Mas durante todo o tempo sentiu-se dominado por uma resolução selvagem que o impelia a chegar vivo à superfície deste mundo. A lembrança do morto de pele de prata dava-lhe novas forças. Kasom chegou ao local de combate. Investiu contra as aves com as mãos nuas.

De repente tudo terminou. Ouviram-se grasnados decepcionados vindos dos fundos do túnel. Kasom ficou parado ao lado do carro, com os ombros caídos. Os corpos de quatro morcegos estavam caídos entre as duas esteiras.

— Foram embora — disse Kasom com a voz tranqüila.

Rhodan passou a mão pela nuca que ardia. As feridas produzidas pelo inimigo doíam. Foi para perto do homem de pele de prata e inclinou-se sobre ele. Qual teria sido o golpe do destino que tinha levado este ser para Quarta? Provavelmente todas as formas de vida que se encontravam neste mundo poderiam contar sua história. E quase sempre seria uma história infeliz, pensou Rhodan.

Ouviu Kasom aproximar-se.

Por alguns segundos contemplaram o morto sem dizer uma palavra. Rhodan teve a sensação dolorosa do abismo que se abria entre ele e essa criatura. O que teria sentido o homem de pele de prata antes de morrer?

Rhodan ergueu o corpo.

— A ânsia da liberdade vive em toda criatura inteligente — disse. — Não importa de que galáxia tenha vindo.

— Liberdade — repetiu Kasom com a voz triste. — Parece que no mundo em que estamos esta palavra não existe.

Voltaram à esteira transportadora, que os levou rapidamente em direção à superfície. Dali a pouco chegaram ao extenso parque. O calor quase chegava a ser insuportável. Um silêncio deprimente espalhava-se por toda parte.

Rhodan fez o possível para manter-se na sombra das árvores. Esperava ser atacado a qualquer momento. O ruído da água dos chafarizes soava como o murmúrio de vozes distantes. O sol geminado ardia no céu. Em Quarta era meio-dia.

A busca das pirâmides teve início.

 

Os dedos do capitão Henderson passaram pelo teclado da tela de observação como se estivessem tocando as cordas dum instrumento musical. Atlan viu que o oficial estava decidido a disparar de dentro da nave-girino contra a criatura estranha que estava do lado de fora, e também notou a perplexidade que o comportamento estranho do batráquio gigante provocava em Henderson.

— De uma coisa temos certeza — disse Atlan em voz tranqüila, fazendo com que Henderson virasse a cabeça. — Esta criatura quer entrar na nave. Nem mesmo o ataque de Tolot conseguiu demovê-lo desse plano.

— Depois que montou o para-bloqueio, não consigo chegar mais a ele — observou Gucky em tom contrariado. — O bloqueio é tão forte que até me impede de entrar em contacto com Perry.

Num gesto nervoso, Henderson umedeceu os lábios ressequidos com a língua. Bem que gostaria que não o tivessem impedido de abrir fogo contra a criatura estranha que estava lá fora.

A única coisa que Gucky conseguira descobrir fora que o habitante de Bigtown sentia um desejo intenso de entrar na nave. O rato-castor não sabia dizer por quê. Além disso, o intenso para-bloqueio impedia o desenvolvimento das atividades do mutante em bases paranormais.

Icho Tolot continuava ao ar livre, embora a eclusa tivesse sido precariamente fechada. Oferecera-se voluntariamente para vigiar o batráquio.

— Precisamos descobrir o que esta criatura quer fazer no interior da nave-girino — disse Atlan. — Não devemos ver no ataque a Tolot uma prova de que veio somente para matar-nos. Deve haver uma possibilidade de entrar em contacto com esse cara.

Gucky caminhava nervosamente pela sala de comando. Insistia em que fizessem alguma coisa. No momento não tinha possibilidade de usar suas energias psíquicas. O para-bloqueio do desconhecido era mais forte que o de vários antis reunidos.

— Não está em condições de enfrentar Tolot — constatou Henderson, satisfeito. — Enquanto nosso amigo halutense estiver lá fora, nada nos poderá acontecer.

Atlan percebeu que a velha desconfiança voltava a tomar conta dele. Os halutenses não tinham lutado do lado do império arcônida durante a grande guerra do metano? Atlan não confiava em Tolot. O que aconteceria se o gigante se aliasse com o desconhecido?

— Tolice — disse o setor lógico de sua mente. — Tolot encontra-se na mesma situação forçada que nós. Se um dia quiser sair daqui, terá de apoiar-nos.

Atlan voltou a controlar-se.

— Precisamos fazer alguma coisa — decidiu.

Ouviu Henderson respirar aliviado e sorriu.

Provavelmente o capitão se sentiria decepcionado quando descobrisse que não era ele que iria sair. Atlan decidira que ele mesmo faria uma tentativa. Precisava entrar em contacto com o batráquio gigante.

O capitão Henderson enfiou a arma ostensivamente no cinto.

— Vamos com calma, capitão — recomendou Atlan. — O senhor é um jovem arrojado, mas acho que isto aqui é um serviço para mim.

Henderson teve de fazer um grande esforço para dissimular a decepção.

— Vou sair — anunciou o arcônida. — Desarmado.

Esperou que a tempestade de protestos amainasse.

— Uma negociação sensata nunca é conduzida com armas — acrescentou. — Além disso, Tolot estará a meu lado.

Não deu tempo para que os companheiros formulassem novas objeções; retirou-se da sala de comando. No seu íntimo confessou que o objetivo principal que tinha em vista era o rompimento do para-bloqueio. Tinham de encontrar um meio de entrar em contacto com Rhodan através de Gucky. Era possível que Kasom e o terrano já estivessem em perigo, sem que pudessem dar-lhes qualquer ajuda.

Quando estava passando pela eclusa reparada com grande dificuldade, Atlan viu que Icho Tolot tinha desaparecido. Também não viu o batedor errático. Mas viu duas esferas luminosas de mais de dois metros de diâmetro suspensas sobre a areia, junto ao grande fogo.

No mesmo instante o arcônida ouviu a voz do capitão Henderson em todos os alto-falantes do sistema de intercomunicação.

— Volte, senhor! — gritou Henderson em tom de súplica. — Volte antes que seja tarde.

Atlan fitou as esferas luminosas com uma expressão de incredulidade. Esforçou-se para compreender o que tinha acontecido. Ouvira o pânico na voz de Henderson.

Viu a maior das duas esferas aproximar-se da nave-girino. A outra ficou para trás. Dançava nervosamente junto ao fogo. De repente adquiriu pernas. Começou a apagar-se e transformou-se na figura de Icho Tolot, que foi caindo lentamente.

Atlan soltou um grito de alerta e correu de volta para o interior da nave. A esfera maior, que o seguia de perto, só se deteve diante da eclusa fechada.

 

Aquele chafariz não era diferente de inúmeros outros que havia no parque. No entanto, Rhodan ficou parado quando casualmente lançou um olhar para a estátua. A obra de arte não combinava com a impressão geral causada pelo chafariz.

— O que houve, senhor? — perguntou Kasom e ficou parado ao lado de Rhodan.

— Este chafariz — disse Rhodan, apontando discretamente para a estátua. — Há algo de errado com o mesmo.

A parte superior do chafariz era formada por uma bacia oval e um pedestal. Em cima do pedestal via-se a figura dum réptil. Da parte interior da bacia partiam jatos de água em direção à estátua. O líquido escorria em filetes cintilantes pela superfície bronzeada.

— Nos outros chafarizes deste modelo os jatos de água encontram-se no centro — lembrou Rhodan. — Esta criatura não combina com o pedestal em que está colocada.

— Pode ser — disse Kasom em tom desconfiado. — Mas por que vamos preocupar-nos com isso? Afinal, os habitantes de Bigtown não podem construir seus chafarizes de acordo com nossas instruções.

Rhodan sacudiu a cabeça. Olhava fixamente para o chão. Ainda estavam a trinta metros do chafariz.

— Essa estátua nem é uma estátua — disse.

— Acha que é uma coisa viva?

— Acho — respondeu Rhodan, preparando discretamente a arma de que acabavam de apoderar-se. — Parece uma armadilha.

O misterioso chafariz ficava no meio do gramado. Do outro lado via-se uma encosta florida. O gramado estava cercado por árvores não muito grandes. Não havia nenhum caminho, mas em vários lugares a grama apresentava rastros de criatura que passavam por ali com muita freqüência.

— Vamos voltar — sugeriu o ertrusiano.

— Nesse caso seríamos perseguidos — respondeu Rhodan em tom indiferente. — Vamos seguir na mesma direção.

— Parece ser um réptil blindado — disse Kasom em tom nervoso. — Se realmente é um ser vivo, sabe perfeitamente como fingir-se de morto. Não está sentindo impulsos, senhor?

— Não — respondeu Rhodan. — Mas isso não significa absolutamente nada.

Prosseguiram. O solo fofo abafava os ruídos. Quando se encontravam a quinze metros do poço, a falsa estátua saltou de cima do pedestal e de dentro da bacia atirou com uma pequena arma de cano largo. A água transbordou por cima da borda da bacia, e a energia liberada pelo tiro evaporou os pingos de água que se juntavam em torno dos bocais dos jatos. Nuvens esbranquiçadas subiram ao ar.

Ao primeiro movimento do réptil, Rhodan e Kasom tinham-se atirado ao chão. O tiro passou por cima dos dois. Rhodan também atirou. Viu o atacante cair lentamente para dentro da bacia. Ouviu-se o ruído da queda na água. Kasom levantou-se de um salto e saiu correndo em direção ao chafariz. Rhodan continuou deitado, com a arma apontada. No momento em que o ertrusiano estava chegando ao chafariz, a cabeça do réptil voltou a aparecer. O cano feio da arma energética também veio à tona.

Kasom não perdeu tempo. Bateu com ambas as mãos na água. Uma torrente de água cobriu o inimigo. O réptil virou a arma, para atirar em Kasom. Rhodan viu-a perfeitamente entre dois jatos de água. Fez pontaria e atirou. O réptil também disparou mais um tiro, mas este só atingiu o pedestal, que rachou com um forte estalo e caiu dentro da bacia. Kasom saltou para cima do chafariz e foi para perto da figura imóvel. Só depois que ele fez um sinal Rhodan levantou-se e também se aproximou.

Kasom estava completamente molhado. Fez um sinal com a arma do inimigo.

— Só está inconsciente — disse. — Se o deixarmos na água, morrerá afogado.

— Tire-o, Kasom — disse Rhodan prontamente.

O ertrusiano hesitou. A lembrança do que aquele ser pretendera fazer ainda estava muito viva em sua mente.

— Não somos habitantes de Bigtown — disse Rhodan com a voz tranqüila.

— Naturalmente, senhor — respondeu Kasom, mas havia um tom de desaprovação em sua voz. Puxou o ser inconsciente para a borda da bacia. Tratava-se dum réptil que caminhava ereto, com placas fortes nas costas e olhos escuros, que ficavam no alto da testa. Na altura do peito e nas juntas a blindagem era menos forte. Os braços e as pernas pareciam feitas de espirais isoladas, mas isso era uma ilusão provocada pelo estranho desenho da blindagem.

Kasom saltou para o chão e tirou o desconhecido da bacia. O ser recuperou os sentidos e tossiu um litro de água fedorenta sobre Kasom. De repente parecia dar-se conta da presença do inimigo. Seu primeiro movimento foi em direção ao alforje em que guardara sua arma.

Kasom sorriu e levantou a peça de que acabara de apoderar-se, para que o desconhecido pudesse ver.

— Quextrel — disse o réptil, deu uma cuspidela e fez uma mesura.

Depois deu uma cabeçada no estômago de Kasom, que estava totalmente perplexo. Kasom berrou que nem um touro enfurecido e cambaleou. Rhodan segurou a arma do homem de pele de prata pelo cano e brandiu-a. Antes que a falsa estátua do chafariz pudesse voltar ao ataque, foi atingida na nuca pela coronha da arma. A criatura caiu ao chão.

Kasom respirava com dificuldade. Fitou Rhodan com uma expressão de ressentimento e apontou a arma de que acabara de apoderar-se para o inimigo, que começava a levantar-se.

— Não — disse Rhodan.

O ser sacudiu o corpo. Olhava ora para Kasom, ora para Rhodan. Finalmente juntou as mãos em garra, que possuíam quatro articulações. Era um gesto tão humano que Rhodan teve a impressão de que dali a pouco ouviria sons humanos. Mas o réptil manteve-se calado. Não tentou mais nenhum ataque.

Rhodan apontou para o outro lado do gramado e deu um ligeiro empurrão no réptil, para fazê-lo andar.

— Bronk! — chiou o desconhecido.

Kasom ficou esfregando o estômago e contemplou o habitante de Bigtown com uma expressão desconfiada.

Finalmente o ser ficou apontando ora para Rhodan, ora para Kasom.

— Grenzter Barget — disse em tom enfático.

— O quê? — perguntou Kasom, estupefato.

— Parece que ele quer dizer que você e eu devemos dar o fora — se é que realmente pode ser chamado de ele. Certamente quer voltar ao chafariz.

— O pedestal foi destruído — lembrou Kasom. — Quer outra coisa de nós. É a criatura mais malvada, traiçoeira...

— Está bem, está bem — interrompeu Rhodan apressadamente. Segurou o ertrusiano pelo ombro. — Vamos embora, Kasom.

Deixaram o chafariz para trás. Kasom olhava constantemente para trás.

— Está nos seguindo — disse o ertrusiano depois de algum tempo.

Pararam até que o réptil os alcançasse. O ser passava a mão pelo rosto e dizia:

— Bronk! — mostrando uma fileira de dentes amarelos.

— Acho que já sei o que ele quer — disse Rhodan.

— Quer a nós — disse Kasom em tom azedo. — Mortos.

Rhodan apontou para si mesmo e para Kasom. Finalmente apontou para o réptil.

— Bronk — disse o desconhecido, com um gesto de satisfação. — Bronk! Bronk!

— Bronk, Bronk! — resmungou Kasom. — Será que ele não sabe dizer outra coisa?

— Ele nos acompanhará — disse Rhodan. — Parece que seu código de honra o obriga de servir a qualquer pessoa que o tenha derrotado sem matá-lo.

Kasom fez uma careta.

— Ele simplesmente quer nos matar — profetizou. — Vamos mandá-lo embora.

— Não — decidiu Rhodan. Tirou do bolso o desenho da pirâmide. Ficou esfregando o mesmo até que surgisse o quadro que ele queria e mostrou-o ao réptil. Os olhos escuros do desconhecido ficaram grudados no desenho. Parecia que estava refletindo. Finalmente acenou com a cabeça. Seu braço apontou na direção do sol que já estava bem baixo.

— Ele sabe onde é — constatou Rhodan, satisfeito. — Ele nos levará para lá. — Deu uma palmadinha no ombro do ex-inimigo. — Vamos andando, Bronk. Você irá na frente.

O réptil deu uma cuspidela bem na ponta da bota de Kasom, grunhiu em tom de desprezo e saiu troteando pelo gramado.

— Que bandido! — gritou Kasom. — Acabamos de unir-nos a um criminoso.

— Ele nos levará à pirâmide — disse Rhodan. — Isso é muito importante.

Kasom sacudiu a cabeça. Parecia desconfiado. Espremeu a jaqueta molhada com as mãos. Bronk parecia conhecer muito bem a cidade, pois caminhou resolutamente em direção às árvores que cercavam o parque.

— Está desarmado — disse Rhodan em tom triste. — Se cairmos numa armadilha, estará perdido.

— Será que terei que devolver-lhe esta arma? — perguntou Kasom, indignado.

Rhodan deu uma gargalhada.

— De forma alguma. Mas precisamos arranjar alguma coisa com que nosso amigo possa defender-se.

Kasom murmurou algumas palavras que soavam como humanitarismo exagerado. Quando chegou ao fim do gramado, Bronk parou e esperou que os dois homens o alcançassem. Sua garra apontava para as copas das árvores. Rhodan viu que havia cabanas construídas nos galhos. Bronk deu um pontapé em uma das árvores. Um rosto enrugado apareceu na abertura de uma das cabanas. No mesmo instante um bombardeio de objetos redondos atingiu o chão. Kasom levantou a arma, mas Bronk deu um grito e Rhodan abaixou o braço do ertrusiano. O réptil apressou-se em recolher as esferas. Rhodan viu que eram nozes. Bronk soltou um grunhido de triunfo e quebrou uma noz entre os dentes. Entregou uma metade a Rhodan e a outra a Kasom.

— Um homem sensato não ficará satisfeito com uma coisa dessas. Além disso, acredita que esta noz esteja envenenada — disse o ertrusiano.

Mais uma noz estalou entre os dentes de Bronk. Mastigando ruidosamente, o criminoso fez descer os pedaços goela abaixo. Mesmo a contragosto, Kasom pos-se a comer.

— É uma maneira estranha de arranjar alimento — disse.

Bronk quebrou mais quatro nozes entre os dentes e destruíu-as.

— É um aperitivo — disse Kasom em tom de desprezo.

Continuaram andando. Atrás do parque entraram numa rua larga, pela qual passavam pelo menos sete esteiras transportadoras. De ambos os lados da rua viam-se construções ovais com telhados achatados. Enormes armações metálicas estavam montadas sobre os telhados. Em sua opinião devia tratar-se de antenas, embora não acreditasse que em Bigtown ainda se precisasse de modelos monstruosos como este. Bronk subiu numa esteira transportadora situada no centro da rua, que levava para o centro da cidade. Nas faces externas das casas havia estranhos símbolos, pintados com tinta luminosa. Havia janelas, mas estas antes pareciam vigias e eram muito grossas. As esteiras estavam vazias, a rua parecia deserta.

— Não estou gostando — anunciou Kasom ao saltar na esteira atrás de Bronk e Rhodan. — Está quieto demais.

Quando tinham percorrido quatro quarteirões, a esteira parou. Bronk pos-se a praguejar nervosamente e fez um sinal com a mão, mas Rhodan e Kasom ficaram sem saber o que tinha acontecido. De repente Rhodan viu um tanque sair duma casa que ficava mais à frente. Tratava-se dum veículo enorme, com uma cúpula bem no centro. Parecia possuir inúmeras rodas com propulsão independente, pois passou sem a menor dificuldade sobre as frestas que havia entre as esteiras. Seu movimento era completamente silencioso. Os olhos penetrantes de Rhodan viram imediatamente que as casas e o tanque deviam pertencer aos mesmos seres. A cor e o formato eram semelhantes. A cúpula se parecia com os vigias que apareciam nas paredes das casas.

Bronk apontou para o tanque. Depois saiu da esteira e correu para outra, que ainda estava funcionando. Gritou para os dois homens. Ao que parecia, queria levá-los a seguir seu exemplo.

O tanque acabara de atingir a esteira central e mudou de direção. Havia uma nítida ameaça em seu avanço silencioso. Rhodan teve a impressão de ver um movimento em baixo da cúpula, mas talvez fosse apenas um reflexo provocado pelo sol. Rhodan perguntou-se se o veículo que se encontrava à sua frente era dirigido por robôs, ou se possuía tripulantes. Achou que a última hipótese era a mais provável. Alguém resolvera sair da casa com a antena gigantesca para fazer uma expedição de rapina. Rhodan não tinha muita vontade de ser a vítima dessa atividade. Não perdeu tempo. Seguiu Bronk para cima da outra esteira.

De repente o tanque precipitou-se para a frente. Duas hastes saíram de reentrâncias existentes na face dianteira do veículo. Cada uma delas estava equipada com garras metálicas de três articulações. As hastes possuíam várias juntas, motivo por que poderiam alcançar praticamente qualquer ponto dentro dum certo raio em torno do tanque.

Kasom esqueceu a desconfiança que lhe inspirava o réptil. No momento havia um inimigo mais poderoso. Depois de lançar mais um olhar para o monstro que se aproximava em alta velocidade, o especialista da USO também se pos a salvo na outra esteira. O veículo mudou de rumo com uma agilidade inacreditável. Dali a alguns segundos todas as esteiras transportadoras pararam. Rhodan olhou para trás e chegou à conclusão de que, se ficassem na rua, o tanque acabaria por alcançá-los. Bronk parecia ser da mesma opinião. Saltou de cima da esteira e saiu correndo entre a amurada que limitava a rua e a fileira de casas. A frente de cada casa havia uma interrupção na amurada. Percorreram cerca de cinqüenta metros, enquanto o perseguidor ia chegando cada vez mais perto. Bronk parou. Respirava com dificuldade. Estendeu a mão e apontou para a arma de Rhodan. Este sabia que estava entregando a vida nas mãos dum desconhecido, mas entregou a estranha arma a Bronk. Este não perdeu tempo. Assim que pos as garras na arma, virou-se e apontou para uma das vigias da casa mais próxima. Disparou um tiro que chamuscou a parede da casa bem em cima da janela.

O tanque parou imediatamente. Bronk fez um gesto ameaçador com a arma. Fez um sinal para que Rhodan e Kasom olhassem pela janela. Rhodan deu alguns passos inseguros para atender ao pedido. A parede da casa ainda estava aquecida pelo tiro que Bronk acabara de disparar. Rhodan aproximou o rosto da vigia e viu um brilho luminoso. Teve a impressão de que estava vendo um líquido leitoso transparente. Finalmente recuou.

Era mesmo um líquido.

Viu uma criatura boiando no mesmo.

A criatura era parecida com um girino. Como a vigia aparentemente deformava os objetos, Rhodan não tinha certeza se a boca larga e flácida era apenas uma ilusão ótica. O ser movimentava-se preguiçosamente em seu elemento. Aproximou-se da vigia. Rhodan fitou um par de olhos frios e duros, que pareciam perfurá-lo. A pele escamosa da estranha criatura era da cor do marfim velho. Possuía membros parecidos com barbatanas, quatro ao todo, em cujas extremidades havia saliências rachadas. Rhodan virou a cabeça para outro lado. Bronk apontou para o tanque e depois para a casa. Queria dar a entender que no interior do veículo havia outro ser da mesma espécie. O risco que estavam correndo seus semelhantes levara-o a interromper a caçada.

— Em comparação com aquilo nosso amigo Bronk é uma beleza — disse Kasom, depois de dar uma olhada no interior da casa.

Como vira que seu método fora bem sucedido, o réptil resolveu aplicá-lo de novo. Mais uma vez fez pontaria para a janela. Mas não houve necessidade de acionar a arma. O tanque fez meia-volta e foi-se afastando. No mesmo instante as esteiras transportadoras voltaram a funcionar.

— Trexnat — disse Bronk, satisfeito.

Devolveu a arma a Rhodan e sacudiu-se.

— Este cara é da pesada — disse Rhodan. — Se não fosse ele, nunca teríamos passado por aqui.

Kasom resmungou. Parecia contrariado. Ao que parecia, não conseguia livrar-se da antipatia que sentia por Bronk. A esteira transportadora levou-os pela rua sem outros incidentes. Atravessaram vários cruzamentos, onde as esteiras transportadoras corriam em níveis diferentes, evitando os problemas de trânsito. Os encontros com seres estranhos eram cada vez mais freqüentes. Mas não houve outros ataques.

De ambos os lados da rua havia grandes edifícios, que pareciam ter sido construídos exclusivamente de vidro. Mas o material era opaco que nem o aço ou a pedra. Nos telhados viam-se delgados planadores aéreos, que pareciam tão frágeis que Rhodan não se sentia disposto a voar neles. As sombras dos edifícios cobriam a rua. Uma música abafada, formando uma melodia lenta e triste, vinha não se sabia de onde. Cada edifício parecia possuir vários alto-falantes. Rhodan perguntou-se quem seria a criatura que tinha composto essa música ou estava tocando a mesma. Estava imbuída de solidão. Era possível que para outros seres exprimisse alegria e vida.

Atingiram um lugar em que todas as esteiras transportadoras estavam avariadas. A rua gemia. As esteiras saltavam sobre suportes soltos, deslizavam junto a amuradas entortadas e saíam das trilhas rolantes. No meio da rua havia uma cratera que as esteiras superavam com grande dificuldade. Uma luta impiedosa devia ter sido travada nesse lugar.

Kasom chamou a atenção de Rhodan para um avião escuro, que estava pousando num telhado situado à sua direita. Dois seres, dos quais só reconheceram os contornos, saltaram do mesmo. Dali a instantes começou uma batalha bem no alto.

Dali a pouco as esteiras voltaram a penetrar em terreno normal. A via deslizava calmamente, que nem uma onda que ninguém pode deter em sua caminhada em direção à margem.

Mas a calma era enganadora.

O ataque que se seguiu foi tão surpreendente que nem mesmo o esperto Bronk teve tempo para esboçar uma reação.

Ouviu-se um plope bem atrás de Rhodan.

Ele virou-se abruptamente, e o movimento instintivo salvou-o da segunda campânula de vidro que caiu sobre a esteira. Ouviu Bronk dar um grito e viu-o mergulhar em baixo da esteira. Não teve tempo para perguntar-se que destino tinha tomado o réptil. Kasom estava agachado em baixo da primeira campânula e martelava desesperadamente as paredes da mesma. A campânula tinha pouco mais de três metros de altura e dois e meio de diâmetro. A ponta estava ligada por meio dum laço com um estranho avião. A máquina praticamente só consistia em duas barras com uma tábua apoiada nas mesmas e um bloco de motor preso nessa tábua.

— Propulsão antigravitacional — constatou Rhodan.

Kasom parou de martelar as paredes da campânula. Revirou os olhos e caiu. Parecia que só estava inconsciente.

Outro avião apareceu. Rhodan encostou-se à campânula em baixo da qual Kasom estava preso. Gostaria que Bronk estivesse ali. O réptil refugiara-se em baixo da esteira.

Rhodan lançou um olhar hesitante para o céu. Havia três veículos aéreos em cima dele. Três planadores. Isso significava que havia mais três campânulas de vidro.

Rhodan esforçou-se para pôr em ordem os pensamentos que se atropelavam.

Não havia atacante que não pudesse ser derrotado. Se não fosse assim, o equilíbrio de forças em Bigtown estaria irremediavelmente perturbado.

Um dos planadores antigravitacionais colocou-se bem ao lado da máquina que prendera Kasom. A outra campânula foi descendo lentamente sobre a esteira transportadora. Tocou na parede da campânula que já tinha produzido o resultado que se esperara da mesma. Foi descendo cada vez mais. Rhodan sentiu que o suor começava a sair por todos os poros de seu corpo.

— Bronk! — gritou desesperado. Não se atrevia a sair do lugar em que estava e disparar um tiro. A campânula teria caído imediatamente em cima dele. E no interior da armadilha o disparo dum tiro seria suicídio.

No auge da angústia. Rhodan tentou estabelecer contacto telepático com Gucky. Mas não conseguiu alcançar o rato-castor. A campânula estava tão perto que poderia tocá-la com a mão.

Nesse instante alguém agarrou-o pelo pé, puxou-o violentamente e derrubou-o.

 

A idéia de que deixara escapar sua chance quase deixou Krash-Ovaron louco. Percebeu que o vigia dos desconhecidos estava rematerializando do cares. No mesmo instante ele também voltou a transformar-se em matéria Ainda conseguiu chegar à eclusa da nave, mas ali a tensão se tornou tão intensa que não conseguiu resistir à mesma. Percebeu que estava saindo lentamente do cares para voltar a transformar-se naquilo que realmente era: um batedor errático.

Deixara que o segundo desconhecido que aparecera em cena desviasse sua atenção e o vigia escapara ao controle do cares. Dali em diante só cometera erros.

Krash-Ovaron bateu violentamente no chão. Muito tempo se passaria antes que tivesse forças para instaurar outro cares, um novo plano existencial na dimensão n. Sua arma mais poderosa acabara por voltar-se contra ele mesmo, pois dali em diante os desconhecidos se tornariam mais cautelosos, podendo chegar até a matá-lo. Seu fim não tinha muita importância, mas acontecia que o mesmo envolvia o fim de sua prole — e esta idéia era insuportável, fazendo com que se contorcesse como quem sente dores lancinantes.

Notou que o vigia se aproximara. O robusto desconhecido observava-o com a maior tranqüilidade, dando a impressão de que estava indeciso sobre o que fazer em seguida.

De repente Krash-Ovaron sentiu uma saudade imensa dos grandes campos gelados de seu mundo. A sentença que o obrigava a passar o resto da vida em Quarta parecia pior que a condenação à morte. Por que tivera de estragar o futuro em troca duma embriaguez instantânea.

O batedor errático levantou-se num desespero selvagem e atirou-se contra a eclusa fechada da nave. O vigia dos desconhecidos continuava a observá-lo. Krash-Ovaron fitou-o. Que criatura estranha! Provavelmente estaria em condições de enfrentar os melhores caçadores da cidade.

O desconhecido fez um movimento. Apontou para a cidade. Era um gesto de intimação. O vigia estava pedindo que Krash-Ovaron se retirasse.

— Preciso desta nave — disse Krash-Ovaron em tom insistente, mas no mesmo instante compreendeu que para o vigia suas palavras não passavam de sons ininteligíveis.

O braço do vigia continuava a apontar implacavelmente para a cidade. Krash-Ovaron sentiu as ondas de dor que fustigavam seu corpo. A época da postura estava se aproximando. Precisava encontrar um lugar antes que a temporada de caça chegasse ao fim, pois do contrário morreria juntamente com sua prole.

O desconhecido aproximou-se lentamente. Parecia ser uma criatura muito decidida.

Krash-Ovaron reconheceu que só lhe restava uma possibilidade de modificar a situação a seu favor. Tinha de desmontar o para-bloqueio e pedir ajuda aos desconhecidos.

Krash-Ovaron estremeceu.

Jurou que todos morreriam, já que o obrigavam a renunciar à sua dignidade.

 

Rhodan viu o rosto de Bronk na extremidade da esteira transportadora. O réptil apoiava-se com ambas as mãos. Rhodan estava deitado sobre a esteira. A campânula transparente foi descendo rapidamente sobre ele. Mas agora viu-se que era uma vantagem que descesse tão perto da primeira. Como as armadilhas eram redondas, elas só se tocavam num ponto. A pessoa que pilotava o estranho avião não tinha possibilidade de evitar que a campânula que descia balançasse para o outro lado.

O planador antigravitacional voltou a levantar a armadilha. Rhodan imediatamente deslizou alguns metros. Bronk saltou para cima da esteira. Outro avião aproximou-se, mas o réptil agiu com uma rapidez incrível. Tirou um objeto semelhante a um estilete do alforje em que costumava guardar a arma e investiu com o mesmo contra a campânula sob a qual Kasom estava preso. Rhodan ficou espantado ao notar que na superfície transparente surgiam aberturas. O estilete de Bronk ficou incandescente, dando a impressão de que era alimentado por alguma fonte de energia. Kasom começou a mexer-se.

Mais um planador aproximou-se. Bronk deu um salto e voltou a desaparecer, em baixo da esteira. Rhodan saltou atrás da criatura, mas foi parar entre as faixas e, impotente, teve de assistir Bronk e a campânula com Kasom serem carregados. Ficou aliviado ao notar que o avião seguia a primeira armadilha, permitindo que voltasse a subir na esteira. O planador mantinha-se na expectativa, suspenso sobre a primeira campânula. Ao que tudo indicava, o piloto queria evitar que Bronk voltasse, a investir contra a campânula. Fungando fortemente, Rhodan conseguiu pôr-se de pé. Viu que Kasom estava se levantando. Provavelmente recebia oxigênio pelos buracos que Bronk tinha aberto. Rhodan levantou a arma do homem de pele de prata e fez pontaria cuidadosamente para a corda que ligava a campânula ao planador. Acionou a arma. O planador foi-se afastando. Fumaça levantou-se em torno da campânula. Rhodan já estava receando que tivesse colocado Kasom numa posição difícil, quando o ertrusiano saiu da nuvem de vapores e abriu fogo contra um dos planadores com a arma de Bronk.

O réptil voltou a saltar para cima da esteira e executou uma espécie de dança marcial ao ver Kasom. Rhodan apressou-se em chegar ao lugar em que estavam seus companheiros. Os planadores antigravitacionais retiraram-se. Não pareciam interessados em tentar de novo.

— Depois que a ligação entre a campânula e o planador foi interrompida, a armadilha dissolveu-se — informou Kasom. — E olhe que era mais duro que aço.

Rhodan lembrou-se da estranha arma de Bronk. De que teria sido feita a mesma, já que com ela o réptil podia abrir buracos nas armadilhas dos desconhecidos?

A esteira continuou a transportar as três criaturas desiguais. Rhodan lamentava que não conseguiam comunicar-se com Bronk. As informações do mesmo poderiam ser muito valiosas.

Dentro de alguns minutos chegaram a um grande cruzamento. Bronk saltou de cima da esteira. Apontou para um túnel que passava por baixo da rua, levando à cidade.

— Vamos, Kasom — disse Rhodan.

O ertrusiano já parecia ter esquecido a desconfiança que nutrira pela estranha criatura, pois não formulou nenhuma objeção. No interior do túnel encontraram-se com alguns cidadãos de Bigtown, mas não foram atacados. Quando saíram do túnel, Rhodan viu uma rua estreita, na qual não havia esteiras transportadoras. Viu alguns veículos parados nas entradas das casas. Nessa rua predominavam as construções abobadadas. Bronk olhou em torno, desconfiado. Resmungou baixinho e pediu que os dois homens se apressassem. Rhodan acreditava que o réptil receava um ataque. Mas não aconteceu nada. Finalmente Bronk levou-os para uma rua transversal.

Por um ligeiro instante Rhodan teve a impressão de estar olhando para dentro dum canal luminoso, mas esta impressão logo cedeu diante da certeza de que este efeito era provocado pelos arcos luminosos que se estendiam por cima da rua. Esta subia levemente. No fim da rua, em cima duma colina, ficava a pirâmide.

As construções que ficavam de ambos os lados da rua eram versões menores do gigantesco complexo.

— Ternt — disse Bronk com a maior calma e deu uma cuspidela. — Ternt Davor.

Pôs a mão no alforje em que guardava a arma e tirou um estilete. Desenhou um traço no chão. Apontou para a pirâmide que se encontrava à sua frente. Sacudiu violentamente a cabeça.

Rhodan compreendeu.

— Não vai acompanhar-nos até a pirâmide. — disse, dirigindo-se a Kasom.

Kasom lançou um olhar pela rua das pirâmides, na qual parecia não haver nenhuma criatura viva.

— Será que está com medo? — perguntou o ertrusiano.

Rhodan deu de ombros. Como poderia saber quais eram os sentimentos de Bronk? Colocou suavemente a mão nas costas do réptil e olhou para a pirâmide.

— Bronk — disse com a voz tranqüila.

Os olhos escuros da criatura pareciam querer perfurá-lo. Pela primeira vez deu-se conta das inúmeras linhas muito finas que havia no rosto de Bronk. Por mais estranho que pudesse ser esse rosto, ele mostrava inteligência — e bondade. Era uma coisa que Rhodan nunca teria esperado. Pensara que o réptil fosse uma criatura fria e interesseira, mas viu-se obrigado a rever sua opinião. Achava quase impossível que essa criatura fosse a mesma que ficara de pé no chafariz, para espreitá-los e matá-los. Bronk era um criminoso e estava sujeito às leis bárbaras de Bigtown. Será que podia ser condenado por isso?

Rhodan despertou de suas reflexões quando viu Bronk sacudir levemente a cabeça.

— Ternt Davor Grovat — disse com a voz triste.

— Devolva-lhe sua arma — ordenou Rhodan ao ertrusiano. — Não merece que o deixemos desarmado.

Kasom estendeu a arma em direção ao réptil. Bronk hesitou. Finalmente pegou-a com um movimento rápido. Voltou a guardá-la no alforje. Rhodan ficou espantado ao ver Bronk sentar antes do traço que ele mesmo fizera no chão.

— Será que pretende esperar-nos? — perguntou Kasom.

— Parece que sim — respondeu Rhodan. — Esta área parece deserta, mas isso não significa nada. Provavelmente já estão informados sobre nossa chegada. Precisamos tentar entrar na grande pirâmide sem a ajuda de Bronk.

A luz dos arcos voltaicos era tão forte que os dois homens se sentiram ofuscados quando penetraram na rua. Bronk manteve-se imóvel no chão, seguindo-os com os olhos. Os edifícios menores que se viam de ambos os lados da rua pareciam não ter janelas. Eram feitos dum material desconhecido, tão bem polido que a luz se refletia no mesmo, dando a impressão de que se tratava de metal polido. Em todas as pirâmides viam-se saliências e abaulamentos para os quais não havia explicação. Os edifícios não terminavam em ponta, pois eram achatados.

— Por que será que estes caras que estão nas pirâmides desperdiçam a energia, iluminando o ambiente em pleno dia? — perguntou Kasom, apenas para quebrar o silêncio.

Rhodan, que não tirava os olhos da grande pirâmide, preferiu ficar em silêncio. Quem sabe se os habitantes desse bairro não eram muito exigentes?

— Não estou gostando — observou Rhodan. — Isto está muito quieto.

Rhodan não tinha como contestar o ertrusiano. Tinha a impressão de que inúmeros olhos os acompanhavam. Alguém parecia observar cada passo que davam. Os arcos voltaicos ficavam tão perto um do outro que davam a impressão de ser um teto — um teto feito de luz. Não se via o céu. No início da rua um pontinho escuro cintilava no meio da escuridão. Era Bronk, o réptil.

Com isso Rhodan deu-se conta de que já tinham avançado bastante pela rua. Mas parecia que ainda não se tinham aproximado da grande pirâmide. A rua subia de forma quase imperceptível. Será que aquele edifício era o monumento de alguma religião desconhecida, que se erguia sobre as outras construções? Ou será que ali viviam aqueles que governavam os arquitetos desconhecidos? Rhodan obrigou-se a reprimir estes pensamentos. As inúmeras respostas que podiam ser dadas a estas perguntas tornavam problemática a elaboração duma teoria. A única coisa que podiam fazer era prosseguir e esperar que alguma coisa acontecesse.

Seus passos não provocaram nenhum ruído. E quando falavam, a força de sua voz parecia perder-se em algum lugar. Tinha-se a impressão de que as palavras eram apenas cochichadas.

— O senhor quer mesmo que prossigamos, senhor? — perguntou Kasom. — Não consigo livrar-me da impressão de que estamos entrando numa armadilha diabólica.

— Pode ser — reconheceu Rhodan.

O especialista da USO suspirou, mas seguiu o terrano. Rhodan fez mais uma tentativa de entrar em contacto com o rato-castor, mas também desta vez não conseguiu nada. Gucky não devia encontrar-se mais nas proximidades de Bigtown, ou então alguma circunstância desconhecida o impedia de estabelecer contacto telepático com Rhodan. Nenhuma das duas hipóteses poderia contribuir para melhorar a situação dos dois homens.

Rhodan levantou os olhos para os arcos voltaicos.

— Nem podemos saber quando começa a anoitecer — disse. — O sol já deve ter desaparecido.

Tinham percorrido os últimos cem metros bem mais depressa, mas a pirâmide que se erguia em cima da colina não parecia ter aumentado de tamanho. Kasom estreitou os olhos.

— Que acha, senhor? — perguntou.

Rhodan não precisou de maiores explicações para compreender o que o ertrusiano queria dizer. Quase não se via mais o começo da rua, mas a grande construção ainda parecia bem distante.

— Talvez seja uma ilusão ótica. É possível que a luz das lâmpadas e a curvatura da rua produzam um efeito ilusório. — Rhodan mordeu o lábio. — Logo saberemos se conseguimos chegar mais perto da pirâmide.

— É uma miragem — resmungou Kasom, irritado. — Até parece que estamos morrendo de sede e pouco antes do fim pensamos que há um oásis no meio do deserto.

— Tolice — objetou Rhodan. — Esta pirâmide existe. Bronk trouxe-nos para esta rua. Não devemos permitir que as aparências nos enganem.

Prosseguiram sem dizer uma palavra. O silêncio reinante na rua era deprimente.

— Será que não deveríamos examinar uma das pirâmides menores? — perguntou Kasom em tom impaciente, depois que tinham caminhado algum tempo sem que o quadro se modificasse.

— O objeto que teremos de entregar ao trio vermelho fica lá em cima — respondeu Rhodan. — Por que vamos perder tempo, examinando as outras construções?

Mais uma vez prosseguiram. Quando Rhodan estava prestes a aceitar a sugestão de Kasom, teve a impressão de que de repente atravessara uma parede cintilante. No mesmo instante a grande pirâmide parecia dar um salto para a frente e estava a apenas algumas centenas de metros. Rhodan respirou aliviado. Sua suspeita, de que tinham sido enganados por um truque técnico sofisticado, acabara de confirmar-se. Teve de confessar que isso representava uma boa proteção contra os intrusos que tentassem penetrar no edifício. Nem todo mundo teria bastante energia para caminhar constantemente em direção a uma coisa que parecia estar sempre à mesma distância.

— Pelos planetas do Universo — exclamou Kasom, esfregando o estômago. — Bem que gostaria de devorar um quartinho de boi — disse. — Uma coisa destas sempre me dá fome.

Rhodan teve a delicadeza de abster-se da observação de que quase tudo provocava fome em Kasom. Limitou-se a ressaltar que na situação em que se encontravam seria muito difícil conseguir um boi.

— Naturalmente, senhor — suspirou Kasom, resignado. — Já estou acostumado às curas de jejum.

Levaram apenas alguns minutos para percorrer o resto do caminho. Vista de perto, a pirâmide era menos imponente, mas suas características estranhas reforçaram-se.

O edifício parecia ter sido feito duma só peça compacta. As saliências semi-esféricas pareciam fundir-se com as superfícies laterais sem a menor solução de continuidade. O edifício emitia um brilho azulado, mas em vários lugares havia círculos vermelhos que se pareciam com poças de sangue.

A pirâmide ficava exatamente no centro da colina. Gigantescos arcos voltaicos cobriam toda a área como se fossem um teto abobadado. A iluminação era tão bem distribuída que não havia sombras. Tinha-se a impressão de que não havia nenhum acesso além da rua.

A colina estava cercada por pirâmides menores e arcos voltaicos, que impediam a visão para Bigtown. Em torno do edifício monumental o chão estava revestido por uma massa escura. Parecia tudo muito limpo. O silêncio evocava a imagem dum gigantesco mausoléu em Rhodan.

— E agora? — perguntou Kasom, deprimido.

Rhodan obrigou-se a desprender o olhar da pirâmide. Pôs-se a refletir. Por enquanto não tinham sido atacados e ninguém tentara impedi-los de caminhar em direção à pirâmide. Não havia motivo para supor que isso fosse mudar.

— Precisamos encontrar um meio de entrar — disse Rhodan em tom decidido.

Seu corpo magro entesou-se.

— Tenho a impressão de que deve haver uma entrada — disse Kasom. — Se andarmos em torno do edifício, talvez descubramos alguma coisa.

Não demoraram a descobrir que estavam enganados. As quatro faces da pirâmide eram exatamente iguais. Não se notava a menor diferença.

— Será que a entrada fica no topo achatado? — Kasom fitou seu companheiro com uma expressão indagadora.

— Tem uma idéia de como podemos chegar lá em cima?

— Não — confessou Kasom. — Poderia arriscar a escalada, se encontrasse algum apoio na superfície lisa.

Rhodan apontou para as saliências abauladas.

— Tenho a impressão de que ali encontraremos o que estamos procurando.

Aproximaram-se da pirâmide, permanecendo sempre lado a lado.

Neste instante a luz apagou-se.

Subitamente viram-se envolvidos por uma escuridão completa.

— Senhor — disse Kasom, aflito.

— Tudo bem — tranqüilizou Rhodan. — Não vamos perder os nervos. Alguém quer nos meter medo.

Rhodan continuou a caminhar em direção à pirâmide, arrastando o ertrusiano. Finalmente sentiu que seus pés estavam tocando a face do edifício.

— Devemos estar mais ou menos no lugar em que existe uma saliência mais em cima — lembrou Rhodan. — Kasom, vamos tentar subir para lá, tomando um pequeno impulso. Se conseguir chegar, segure-se. Espero que poderei segui-lo.

— Acha conveniente que nos separemos? — perguntou a voz de Kasom em meio à escuridão.

— Quer esperar até que volte a clarear? — perguntou Rhodan em tom irônico.

Deu um passo para o lado para dar lugar ao ertrusiano. No mesmo instante o ertrusiano passou correndo.

Rhodan ouviu-o praguejar, e logo alguém escorregou em sua direção, esbravejando sempre.

— Isso é muito escorregadio — resmungou Kasom, zangado. — Não consigo segurar-me.

— Tente de novo — ordenou Rhodan.

Kasom praguejou de novo e voltou ao ponto de partida. Tomou impulso. Desta vez não escorregou. Rhodan ouviu-o fungar satisfeito.

— Consegui! — exclamou Kasom. — Vamos! É sua vez, chefe.

Que sensação esquisita, pensou Rhodan. Teria de saltar para a escuridão, sem ter um alvo à vista. Recuou alguns metros e saiu em disparada. Quando atingiu a parede da pirâmide, passou a correr mais devagar e por pouco não caiu para trás. Mas logo sentiu a mão de Kasom, que o agarrou de lado. Rhodan sentiu que estava sendo puxado para cima. O ertrusiano rosnava que nem um urso. Puxou Rhodan para a saliência sobre a qual estava parado.

Antes que Rhodan pudesse respirar aliviado, o chão começou a mover-se sob seus pés. Rhodan teve a impressão de que a saliência sobre a qual se encontravam estava afundando na pirâmide. Começou a ficar mais frio. Rhodan estendeu as mãos, mas só conseguiu apalpar o vazio.

— Esta coisa está se movimentando — constatou Kasom. — Vamos saltar?

— Não — recusou Rhodan. — Vamos aguardar os acontecimentos.

Os abalos foram-se tornando cada vez mais fortes. Rhodan segurou-se em Kasom, que por sua vez teve de esforçar-se para não perder o apoio sobre o suporte semi-esférico.

— Estamos descendo — constatou Kasom. — Para onde será que eles nos levarão?

Um sorriso ligeiro apareceu no rosto de Rhodan.

— Seja qual for o lugar ao qual estamos sendo transportados, tenho certeza de que por lá não encontraremos quartos de boi assados.

 

O capitão Noro Kagato entrou no camarote e fechou a porta bem devagar. Redhorse estava sentado à mesa, sobre a qual havia várias garrafas e canecos.

— Está bancando o curandeiro? — perguntou Kagato em tom amável.

— Não; estou me embriagando — respondeu Redhorse sem levantar os olhos.

— Com álcool? — perguntou Kagato em tom de repugnância. — Como conseguiu arranjar isso?

Redhorse apontou para o sortimento de garrafas.

— Quem conhece um pouco de química pode preparar os melhores coquetéis com as substâncias encontradas em nosso laboratório.

O pequeno japonês, chefe do comando de robôs, lançou um olhar indeciso para o amigo. Conhecia Redhorse e tinha suas dúvidas de que o mesmo realmente iria embriagar-se. Provavelmente só resolvera dedicar-se a essa atividade para distrair seus pensamentos.

Redhorse ofereceu um caneco a Kagato.

— Experimente — pediu.

Kagato segurou o caneco e cheirou seu conteúdo.

— Isto parece explosivo — disse. — Quer fazer alguém ir pelos ares?

Esvaziou o caneco e mudou de cor.

— Tenho a impressão de que o senhor não é tão bom em química como acreditava — constatou Kagato em tom indiferente.

De repente o capitão Redhorse deu uma pancada na mesa.

— Ficamos parados por aí, enquanto a esta hora a C-5 e seus tripulantes já podem ter ido para o inferno — gritou em tom exaltado. Mas logo voltou a controlar-se. — Acho que o senhor compreende o que quero dizer.

— Numa situação destas ninguém gosta de permanecer inativo — confirmou Kagato.

Antes que Redhorse pudesse responder, os alto-falantes do sistema de intercomunicação fizeram-se ouvir.

— Atenção, todos os oficiais, compareçam imediatamente à sala de comando! — disse a voz retumbante de Rudo. — Parece que o campo defensivo em torno de Quarta está desmoronando.

Redhorse tirou as pernas compridas de baixo da mesa e saiu correndo em direção à porta.

— Vamos, Kagato! — gritou para o japonês.

O comandante de robôs exibiu um sorriso silencioso. Pegou um dos canecos que se encontravam sobre a mesa e brindou para o amigo.

— Às vezes a gente trai seus princípios — disse.

Dali a instantes seguiu Redhorse com as pernas cambaleantes e os olhos lacrimejantes. O amigo já estava correndo em direção ao elevador antigravitacional.

 

— ...e que transformar a C-5 num posto gelado — concluiu Gucky, depois que o batráquio gigante tinha levantado o para-bloqueio.

— Quer dizer que está preocupado com sua prole — disse Atlan em tom pensativo. — Pois bem. Não podemos fazer nada por essa criatura. Procure explicar-lhe.

— Pensará que estou mentindo — disse Gucky. — No momento isso não importa. Agora, que o para-bloqueio do desconhecido não existe mais, preciso cuidar de Perry.

Atlan parecia hesitar.

— Por enquanto Perry não pediu socorro.

— Como podemos saber? — objetou Gucky. — É bem possível que o chefe tenha tentado por várias vezes estabelecer contacto conosco enquanto este batráquio me impedia de desenvolver minhas energias paranormais.

— É verdade — confessou Atlan. — Acho que você deveria teleportar para Bigtown, para ver o que aconteceu por lá. Tenha cuidado.

Gucky confirmou com um gesto e desmaterializou. Atlan saiu da C-5 em companhia do mutante Ivã Goratchim. A criatura desconhecida estava sentada perto da eclusa, numa atitude de expectativa.

— O rato-castor já lhe explicou que não podemos fazer nada por ele — disse Tolot ao ver os dois. — Mas ao que parece não quer dar o fora.

Atlan olhou para o sol que já estava descendo na linha do horizonte. Teve pena do batráquio que era obrigado a procurar gelo seco num mundo como este.

— Na cidade deve haver possibilidade de fabricar gelo — disse, pensando em voz alta. — Por que essa criatura resolveu vir para cá?

— É bem possível que nem todos os cidadãos possam dispor dos recursos existentes na cidade — disse Tolot. — Afinal, nem todo terrano pode viajar numa espaçonave sempre que tem vontade.

Atlan deu uma risada.

— Como pode saber disso, Tolot? De qualquer maneira, sua objeção tem razão de ser. Bem que gostaria de ajudar essa criatura. Infelizmente não temos nenhum meio de levá-lo daqui.

— Para um arcônida seus pensamentos são bastante humanos — respondeu Tolot com certa aspereza na voz.

Mais uma vez a barreira do passado ergueu-se entre eles. Atlan deu as costas a seu interlocutor. No seu íntimo reconheceu que o mesmo tinha razão. Vivera tanto tempo entre os terranos que adotara suas concepções morais. Na verdade, só continuava a ser arcônida pela origem.

— Quer que eu espante esta criatura? — perguntou Ivã Goratchim, o mutante de duas cabeças.

Atlan respondeu que não.

— Vamos esperar a volta de Gucky.

Icho Tolot aproximou-se. Sua voz parecia apaziguadora.

— Acho que o senhor pode lidar sozinho com este batráquio. Vou dar uma olhada na cidade.

— Sozinho?

— Sozinho — confirmou o halutense.

— Irei com o senhor — decidiu Atlan. — Avisarei o capitão Henderson de que o acompanharei.

— Como queira — respondeu Tolot em tom amável.

Atlan comunicou seus planos ao comandante da nave-girino caída. Henderson não fez nenhuma objeção, mas via-se que gostaria de ir também.

— Vou carregá-lo — ofereceu Tolot assim que Atlan voltou. — Desta forma iremos mais depressa.

Atlan acomodou-se sobre os braços curtos do halutense. Mandou que o mutante de duas cabeças ficasse de olho no ser estranho vindo de Bigtown. Depois disso Tolot saiu andando. Depois de pouco tempo começou a correr tão depressa que o vento quente ardia no rosto de Atlan.

Não demoraram a atingir os primeiros edifícios da cidade.

 

O estranho meio de transporte parou abruptamente. Rhodan pôs-se a escutar a escuridão.

— Fico me perguntando para onde fomos levados — disse Kasom. Sua voz parecia oca, dando a impressão de que se encontravam num recinto abaulado.

Rhodan saiu tateando da plataforma semi-esférica. Seus pés tocaram chão plano. Dali só se poderia concluir que não se encontravam mais sobre a superfície externa da pirâmide. Não sabia como, mas o fato era que tinham entrado na construção.

— Desça daí, Kasom — pediu Rhodan.

— Vamos caminhar ao acaso pela escuridão? — perguntou o especialista da USO.

— Precisamos encontrar um meio de orientar-nos. E antes de mais nada temos que descobrir se existe uma saída desta sala. Ou seja lá o que for.

— Então vamos andando — disse Kasom, que não parecia muito entusiasmado. — Afinal, é indiferente em que lugar seremos atacados.

Foram avançando metro após metro pela escuridão. Em qualquer lugar poderia haver um abismo à sua frente. Não havia a menor brisa. A imagem dum mausoléu tornava-se cada vez mais intensa na mente de Rhodan. Estremeceu. A idéia de que poderia encontrar-se no mesmo recinto em companhia de muitos mortos não era nada agradável. Mas era apenas uma teoria, que logo poderia ser refutada pelos fatos.

Depois de algum tempo Kasom encontrou uma parede. Rhodan ouviu seu grito de surpresa e colocou-se ao lado do companheiro. O terrano passou cuidadosamente a mão pela parede. O material parecia frio. E tinha-se a impressão de que era tão liso como o da face externa da pirâmide.

— Vamos acompanhar a parede — disse Rhodan. — Deste jeito saberemos de que tamanho é a sala.

Saíram tateando um atrás do outro. Rhodan não sabia quanto tempo se tinha passado quando chegaram a um canto. Dobraram o mesmo e prosseguiram. Rhodan começou a contar os passos. Quando tinham percorrido mais uns duzentos metros, as mãos de Rhodan atingiram o vazio.

Havia uma abertura na parede!

Rhodan atravessou a mesma com as mãos estendidas. Parecia ser um nicho, pois dali a pouco as mãos de Rhodan voltaram a tocar numa substância sólida. Rhodan apalpou toda a parede com os braços abertos, para ver se havia alguma irregularidade na mesma.

Nesse momento alguém o tocou de trás.

Não poderia ter sido Kasom, pois o mesmo estava à sua esquerda.

O estômago de Rhodan contraiu-se. Suas mãos foram caindo lentamente. Kasom parecia ter notado que o companheiro estava hesitando.

— Encontrou alguma coisa, chefe?

A voz do ertrusiano fez com que Rhodan recuperasse a auto-segurança.

— Há mais alguém neste nicho — respondeu, na esperança de que a criatura estranha não compreendesse suas palavras. — Acabo de ser tocado.

Kasom passou por ele.

— Se há alguma coisa por aqui, eu encontro — disse em tom resoluto.

Rhodan engoliu em seco. Nunca tivera medo, nem mesmo no escuro, mas a idéia de que perto dele havia um desconhecido que devia conhecer perfeitamente o lugar deixava-o preocupado.

Ouviu Kasom rastejar pela escuridão.

De repente uma força irresistível o arrastou para o chão. Rhodan quis resistir, mas a força era mais potente. Kasom pôs-se a praguejar. Ouviu-se um forte baque quando o corpo pesado do especialista da USO também tocou o chão.

Fios incandescentes pareciam envolver Rhodan. Penetravam em sua carne e o prendiam como se fosse um casulo. Ouviu Kasom gemer num esforço desesperado de libertar-se.

Rhodan ficou bem quieto. Não demorara a descobrir que, assim que procurasse oferecer resistência, a pressão aumentava. Dali a pouco o ertrusiano também ficou quieto. Ouviram um ruído. Pareciam duas pedras enormes que estivessem sendo esfregadas uma na outra. Rhodan saiu rolando. Não saberia dizer qual era a origem do movimento. Só sentia o corpo escorregar pela superfície lisa. Se o senso de orientação não o enganava, estava sendo transportado através do nicho. Isto significava que a parede junto à qual tinham sido detidos desaparecera. Não teve medo, pois dizia a si mesmo que as criaturas que o tinham amarrado poderiam tê-lo matado se quisessem. Ao que parecia, a intenção dos invisíveis não era esta.

Rhodan ficou deslizando por um tempo enorme, mas finalmente o movimento terminou. Rhodan ficou deitado e esforçou-se para captar qualquer sensação. Mas não ouviu nada além de sua respiração e da de Kasom.

— Estamos numa situação bem difícil — disse Kasom depois de algum tempo. — Sim senhor, entramos mesmo numa armadilha.

Antes que terminasse a frase, o ambiente iluminou-se. Rhodan sentiu-se ofuscado e fechou os olhos. Quando voltou a abri-los viu-se numa superfície dourada que parecia chegar ao infinito. Não conseguia levantar a cabeça, o que era sinal de que a superfície subia à sua frente. Fez um grande esforço para olhar para a direita e viu Kasom. O ertrusiano estava deitado sobre uma chapa fina, da qual saíam inúmeros braços em espiral que enlaçavam seu corpo. Rhodan imaginou que sua situação devia ser a mesma. Quando olhou para Rhodan, Kasom sorriu.

Rhodan olhou para cima, mas a luz ofuscante imediatamente o obrigou a desviar os olhos. Com uma lentidão incrível virou a cabeça para o outro lado. A poucos metros de distância viu o pedestal com o bloco metálico triangular que deveriam levar ao trio vermelho. O objeto parecia estar ao alcance das mãos, mas Rhodan sentia que estava mais longe que nunca.

A superfície dourada enrugou-se junto ao pedestal e um jovem apareceu na mesma. Tinha a figura e o rosto de Rhodan.

Mas movimentava-se como se fosse um estranho.

Kasom emitiu um som rouco quando viu o estranho ser. A imagem de Rhodan lançou uma sombra alongada e distorcida na superfície dourada, e cada um dos seus movimentos parecia fazer estremecer o chão dourado.

O homem aproximou-se e Rhodan percebeu que a duplicata não era exata. Havia muitas diferenças que um observador atento não deixaria de notar. O que mais chamava a atenção era que o estranho ser parecia mais jovem.

O chão voltou a enrugar-se e outro ser apareceu.

— Blan! — exclamou Rhodan em tom de surpresa ao reconhecer o intérprete do trio vermelho.

Os olhos grandes fitaram-no com uma expressão triste. Chispas douradas pareciam dançar nos mesmos.

— Não sou Blan — disse o ser. — Pode chamar-me de Ogil.

Parecia que o trio vermelho não era o único que possuía um intérprete. Mas a presença de Ogil era um sinal de que alguém queria negociar com eles.

O jovem desconhecido que tanto se parecia com Rhodan dirigiu-se a Ogil e disse alguma coisa numa língua completamente estranha.

Os bracinhos magros de Ogil apontaram para o sósia de Rhodan.

— Ele está usando um truque muito simples para não assustá-lo com seu verdadeiro aspecto. — A expressão de seu rosto modificou-se. — Acredita que o senhor deve estar interessado em saber como isto funciona e por isso pede que o senhor se lembre da miragem da pirâmide. Neste setor não existe praticamente nada que eles não possam fazer. Nada do que o senhor vê por aqui deve corresponder necessariamente à realidade. Só as coisas que o senhor sente são verdadeiras. Para uma pessoa não familiarizada é impossível movimentar-se num labirinto ótico.

Rhodan divertiu-se um pouco com as palavras de seu interlocutor.

— Venha cá, Ogil. Quero senti-lo. O intérprete continuou sério.

— Eu sou verdadeiro — asseverou. — Mas não sei dizer se o chão em que estou pisando também é. Pode perfeitamente ser de rocha negra.

— Compreendo — disse Rhodan. — Mas não estou gostando. Isto só pode ter sido construído por uma raça de covardes, que costuma esconder-se atrás de miragens e efeitos luminosos.

Esperava que com estas palavras conseguisse provocar os desconhecidos a ponto de descobrir alguma coisa a seu respeito.

— A covardia é um conceito relativo — disse Ogil. — Poderíamos discutir muito tempo sobre isso, sem chegar a uma conclusão sobre os sentidos em que a palavra pode ser aplicada a diversas formas de vida. Todo ser é corajoso à sua maneira.

— Está bem. Talvez nosso amigo tenha bastante coragem para dizer o que pretende fazer conosco. Pergunte-lhe se sabe que viemos para levar essa pedra.

Ogil conversou algum tempo com o sósia de Rhodan. Finalmente voltou a dirigir-se aos dois prisioneiros.

— A situação é bastante complicada. O objeto que o senhor designou como pedra pode ser tudo, menos uma simples peça de exposição. O senhor pode ver nele a chave com a qual se pode alcançar as estações de energia deste planeta.

Os pensamentos de Rhodan começaram a atropelar-se. Então era por isso que o trio vermelho queria apoderar-se do objeto triangular. Será que os habitantes de Bigtown exerciam seu poder sobre os ocupantes da pirâmide?

— Naturalmente não receberão esta pedra — prosseguiu Ogil. — Mas estão dispostos a libertá-los com um objeto que se assemelha em toda linha com aquele que se encontra neste pedestal. Dessa forma poderão enganar o trio vermelho por algum tempo, até que consigam colocar-se em segurança.

— Tolice — exclamou Rhodan em tom exaltado. — Enquanto existir o campo defensivo em torno de Quarta, não estaremos em segurança. Pergunte a nosso amigo se não pode desligar o mesmo por um breve lapso de tempo.

— Não — respondeu Ogil prontamente. — Não pode proteger as coisas que se encontra no interior da estação contra qualquer tipo de violação. Para ele qualquer tentativa de alterar ou impedir o curso natural dos acontecimentos equivaleria a uma blasfêmia.

— Quer dizer que se trata duma espécie de religião?

— Se quiser usar este nome. Os seres que se encontram aqui servem a estação há várias gerações. Na minha opinião nem sequer compreendem o funcionamento dos diversos aparelhos.

Rhodan fitou atentamente sua imagem, que trazia um sorriso amável no rosto. Compreendeu que, se quisesse penetrar na estação, teria de recorrer à violência. Na situação em que se encontrava isso lhe repugnava, mas não via outra possibilidade de escapar de Quarta.

— O que acontecerá se danificarmos a estação, fazendo com que o campo defensivo entre em colapso? — perguntou, dirigindo-se a Ogil.

— Sem a chave vocês nunca chegarão à estação — respondeu o intérprete laconicamente.

— Quer dizer que teremos de ficar em Quarta para todo o sempre?

— Isso mesmo — confirmou Ogil. — Até que sejam mortos numa caçada.

— Entreguem-nos a imitação da pedra e libertem-nos — pediu Rhodan.

O corpo magro de Ogil contorceu-se, como se estivesse sentindo dores.

— Não, não — balbuciou. — Os senhores não estão dizendo a verdade. São criaturas selvagens e obstinadas, como existem muitas em Bigtown, e que nunca deixarão de lutar para apoderar-se da chave. Afinal, já sabem que é a única possibilidade de chegar à estação.

— Isso mesmo! — disse a voz retumbante de Kasom. — Lutaremos. E haveremos de encontrar um meio de desmascarar esta falsa magia.

Ogil já voltara a controlar-se. O sorriso tinha desaparecido do rosto do desconhecido.

— Parece que ainda não estão compreendendo a situação em que se encontram — disse o intérprete. — Estão irremediavelmente à mercê dos vigias da estação. — Por um instante a superfície dourada sobre a qual estava parada começou a tremer. — Somos obrigados a matá-los.

Kasom soltou um grito e procurou romper as algemas de aço. Mas desistiu ao notar que não estava conseguindo nada.

O chão enrugou-se em torno de Ogil. Dali a pouco o intérprete desapareceu. O sósia de Rhodan sacudiu a cabeça. Parecia pensativo.

De repente Rhodan sentiu que em torno dele começava a esquentar.

Estão aquecendo as placas em que estamos deitados, pensou, apavorado.

O calor aumentava rapidamente.

— Parem! — berrou Kasom. — Chefe, temos que dizer-lhes que concordamos com qualquer coisa.

— Isso não adiantaria — respondeu Rhodan com a voz tranqüila. A parte inferior da placa sobre a qual estava deitado Kasom já estava ficando incandescente. O vigia também mergulhou na superfície dourada.

De repente Rhodan viu um ponto escuro lá em cima, na superfície brilhante. O ponto foi-se aproximando rapidamente. Rhodan arregalou os olhos ao notar que o chão estava sendo virado para baixo. Sentiu enjôo. O dourado desapareceu, dando lugar a um amarelo pálido. Mas o ponto continuava e crescia cada vez mais. O calor aumentava. O ambiente modificou-se por completo.

Só as coisas que sentimos são reais!

O que poderia sentir um homem amarrado a uma placa que ia se aquecendo?

Uma chuva de esferas brilhantes desceu sobre os dois homens. Quando se arrebentaram, transformaram-se em colunas que se estendiam ao infinito.

Mas o ponto continuava. Parecia movimentar-se pelo nada — pelo nada amarelo. Transformou-se numa figura. Numa figura que caminhava em posição ereta, com grossas blindagens nas costas. A figura tremia de medo.

— Bronk! — gritou Rhodan. — Aqui, Bronk!

Parecia que o réptil não o ouviu. Tateava através da sala irreal, que mudava constantemente de aspecto. Rhodan compreendeu. Bronk continuava sentado no início da rua que dava para a pirâmide. Os vigias estavam usando certos efeitos para projetar a imagem do réptil no interior do recinto. Rhodan fechou os olhos.

Alguma coisa o tocou.

Voltou a abrir os olhos e viu o rosto de Bronk. Nos olhos escuros do caçador lia-se a loucura. Bronk segurava um estranho estilete nas garras e mexia com o mesmo nas amarras que prendiam Rhodan.

Rhodan sentia.

Havia uma realidade neste mundo de miragens.

Bronk.

 

Atlan saltou das costas largas do halutense. O sol já se tinha posto atrás da cidade. Dali a pouco começaria o crepúsculo.

— Por aqui as coisas parecem ainda mais complicadas — disse o arcônida de si para si.

— Mais complicadas? — perguntou Tolot em tom de espanto. — O rosto de meu acompanhante desconfiado não parece muito entusiasmado.

Atlan sentiu a ligeira ironia na voz de seu companheiro, mas não deu importância à mesma.

— Pelos meus cálculos, deve haver de sete a oito milhões de edifícios em Bigtown. Estes edifícios são habitados por cerca de cinqüenta milhões de seres de várias espécies. Encontramo-nos em determinado ponto da gigantesca metrópole. Como faremos para descobrir onde estão Rhodan e Kasom?

— Tenho uma antipatia instintiva pelas grandes concentrações populacionais — disse Tolot. — No entanto, não consigo compartilhar seu pessimismo. Afinal, sabemos em que lugar Rhodan desapareceu na cidade. Tudo que temos de fazer é descobrir sua pista. Isto pode parecer difícil, mas neste ponto confio bastante na minha capacidade.

— Pois vamos em frente, detetive — disse Atlan com um sorriso.

— O que vem a ser um detetive?

— Um homem cuja atividade profissional consiste em correr atrás de problemas insolúveis, esclarecer roubos e desmascarar assassinos.

— Está bem — disse Tolot. — Deve ser uma profissão com muitas aventuras.

— Às vezes é bem perigosa — disse Atlan, que não conseguia reprimir a contrariedade que sentia na presença de Tolot.

O que se poderia fazer para evitar que o halutense se alegrasse que nem um menino travesso diante de qualquer aventura que pudesse custar vidas humanas?

— O perigo é a essência da vida genuína — disse Tolot em tom sério. — Como é pobre a criatura que passa seus dias na monotonia da segurança absoluta!

— O senhor só manifesta esta opinião porque é praticamente invencível — observou Atlan.

— Um ser vulnerável evita o perigo sempre que pode. Para um terrano, por exemplo, não existe nada mais atraente que viver em segurança.

— O senhor está enganado — objetou Tolot. — Se essa atitude realmente correspondesse à mentalidade terrana, estes seres não estariam aqui. Seu comportamento é bastante mutável e difícil de compreender. Organicamente pertencem às formas de vida mais débeis da Galáxia. Mas o espírito os impele. O espírito deles não combina com o corpo. Já imaginou um terrano — como Rhodan, por exemplo — que possuísse meu corpo?

Atlan entregou-se a esta idéia, e os dois foram penetrando na cidade.

 

Rhodan saiu cambaleante da chapa incandescente e à sua frente abriu-se um abismo de negrume sem fim. Bronk recaiu numa perspectiva louca, mas quando Rhodan estendeu a mão sentiu a blindagem dura do réptil, sentiu os movimentos apressados com que a criatura se deslocava para o lugar em que estava deitado Rhodan. Rhodan obrigou-se a não tomar conhecimento do abismo que girava juntamente com seu corpo, mas a sensação de ter o nada pela frente era apavorante. Por um ligeiro instante viu os olhos de Bronk iluminar-se em todo tamanho, num assomo de medo. Kasom era um nada insignificante em meio às bolas de fogo que dançavam em torno dele. Paredes desabavam sobre seu corpo, mas ele as cortava que nem uma faca quente que corta uma porção de banha. As paredes alargaram-se, mudaram de posição e caíram vertiginosamente num enorme funil que ameaçava devorar tudo.

O contacto do corpo de Bronk salvou Rhodan da loucura.

Os movimentos convulsivos dos braços e o tremor do corpo mantinham Rhodan de pé. A mesma coisa devia estar acontecendo com o réptil. Uma parede incandescente parecia surgir do nada junto à placa em que estava deitado Kasom. As chamas pareciam flechas de luz, e entre as mesmas Rhodan viu as bocas enormes de monstros gigantescos. Bronk parecia hesitante, mas Rhodan o fez avançar. Atravessaram a parede de fogo e não sentiram nada. A ilusão ficou para trás, mas Kasom continuou. Finalmente Rhodan atingiu-o, inclinou-se sobre ele... e suas mãos tocaram o vazio.

Soltou um grito de dor e decepção. Ele e Bronk tinham sido enganados. Haviam andado atrás da miragem de Kasom.

— Melbar! — gritou Rhodan. — Responda, Melbar!

— Aqui, chefe!

Rhodan virou-se abruptamente. A voz vinha da esquerda. Ouviu Bronk tossir. Parecia o matraquear duma velha máquina. Rhodan voltou para junto do réptil. Voltaram a agarrar-se um ao outro.

— Fique chamando, Kasom — gritou Rhodan, nervoso. — Precisamos encontrá-lo.

Kasom começou a cantar a terceira estrofe da canção O Astronauta. Era uma velha melodia. Bronk não entendia as palavras do ertrusiano mas, por estranho que pudesse parecer, parou de tremer.

O funil que acabara de engolir as paredes desabadas de repente passou a expelir uma massa de rodas que giravam furiosamente. Estas rodas espalhavam-se pelo chão que nem confete, saltavam e rolavam em direção a Rhodan. Surgiu um declive, e as rodas desceram pelo mesmo. Os pés de Rhodan sentiram que não existia nenhum declive, mas os olhos viram a elevação. Instintivamente levantou os pés. As rodas começaram a girar mais depressa. Tudo que havia dentro de Rhodan impelia-o para a fuga, mas este continuava a caminhar na direção da qual vinha o canto de Kasom.

As rodas dissolveram-se pouco antes de atingir Rhodan, afastaram-se como se nunca tivessem existido.

— ...e lá em cima, para o nada, nos leva nossa busca... — cantou Kasom.

Bronk tropeçou quando o chão se transformou num areal cheio de saliências vermelhas. Rhodan cerrou os dentes e fez com que suas pernas atravessassem as excrescências que havia no chão. Um rio caudaloso surgiu bem à sua frente, a corrente espumava junto a seus pés sem que ouvissem nada. Rhodan arrastou Bronk para dentro das águas, e as ondas desapareceram diante de seus pés.

De repente a superfície dourada estava de volta, e com ela o pedestal sobre o qual estava guardado o bloco triangular. Kasom estava deitado na chapa, a apenas dez metros de Rhodan, e cantava com o rosto desfigurado pela dor. Bronk precipitou-se sobre o ertrusiano e utilizou sua estranha faca. Dentro de instantes o ertrusiano ficou livre das amarras. Com um grande esforço pôs-se de pé. Esfregou as pernas, para ativar à circulação.

Suas roupas estavam chamuscadas nas costas.

Bronk voltou a guardar a faca no alforje. Deu uma grande cuspidela na chapa incandescente da qual Kasom acabara de sair. Ouviu-se um chiado.

— Quextrel — disse Bronk em tom devotado.

Kasom levantou a cabeça e aspirou fortemente o ar.

— Senhor — disse, olhando para Rhodan. — Estou sentindo o cheiro de bois assados.

O chão enrugou-se e Ogil apareceu à sua frente. Não deu a menor atenção a Bronk. Dirigiu-se a Rhodan.

— Já desistiu dos seus planos?

Rhodan sacudiu a cabeça. Seria inútil tentar mentir a essa criatura.

— Os vigias da estação poderiam matá-lo imediatamente — disse Ogil. — Mas não o farão, desde que volte espontaneamente à cidade.

Rhodan pôs a mão no ombro duro de Bronk.

— O que acontecerá com ele?

— Ele violou um tabu — respondeu Ogil em tom indiferente. -— Terá de ficar aqui. Sabe de certas coisas sobre a pirâmide que não podem ser espalhadas pela cidade.

— Iremos juntos, ou não iremos — disse Rhodan em tom resoluto.

— O senhor é um homem obstinado — disse Ogil em tom triste.

Disse alguma coisa numa língua desconhecida. No mesmo instante o chão enrugou-se em oito lugares diferentes. Oito robôs pequenos, de aspecto robusto, apareceram. Suas armas estavam apontadas para Rhodan, Kasom e Bronk.

— Talirksa — chiou Bronk.

Ogil, que estivera olhando para os robôs, voltou a fitar Rhodan.

— Então? — perguntou.

— Não somos criminosos banidos — apressou-se Rhodan a dizer. — Será que os vigias da estação estão interessados em saber de onde viemos?

— Eles sabem — respondeu o intérprete. — Vocês vieram do outro lado do grande vazio.

— Podemos ajudá-los — disse Rhodan.

Quem dera que se lembrasse duma coisa capaz de deter as máquinas. — Podemos arranjar espaçonaves para que estejam em condições de abandonar o planeta-penitenciária.

Ogil deu uma risada silenciosa. Rhodan fez um gesto de desprezo em direção aos robôs.

— Provavelmente também são miragens para assustar-nos — disse.

— O senhor ainda viverá bastante para convencer-se de que não é assim — respondeu Ogil em tom indiferente. — Quero dar-lhe mais uma oportunidade de tomar uma decisão. Podem voltar à cidade, mas sem seu amigo.

Passou a usar outra língua, dirigindo-se ao réptil.

Bronk ouviu-o pacientemente. Finalmente inclinou-se para Rhodan e Kasom.

— Derrat Goner — disse em tom solene.

Depois saiu correndo com suas pernas tortas em direção aos robôs. Antes que tivesse percorrido metade do caminho, estes o desmancharam com suas armas energéticas. Transformou-se numa nuvem de poeira luminosa, que foi subindo lentamente ao teto.

— Ele os livrou da decisão — disse Ogil com a maior tranqüilidade.

Rhodan olhou para o lugar em que Bronk estivera segundos antes. Sentia-se vazio por dentro. Teve a percepção das palavras de Ogil como duma coisa que não tinha a menor importância. Só agora sentiu como era forte a ligação que tão depressa se formara entre ele e o réptil.

— Isto é um assassinato — disse Kasom. — Nem mesmo em Quarta pode-se usar outra palavra.

— Seu pensamento guia-se excessivamente pelos fatores emocionais — disse Ogil. — Sejam sensatos, orientando-se pelos fatos. Saiam da pirâmide e procurem encontrar um esconderijo na cidade. Se tiverem sorte, o trio vermelho não os encontrará.

— Perry! — disse uma voz em meio aos pensamentos de Rhodan. — Onde você se meteu?

Rhodan recuperou o auto-controle. Fitou Ogil com os olhos semi-cerrados. O intérprete recuou instintivamente.

— Na pirâmide, pequenino — pensou Rhodan intensamente. — Já está na hora de você aparecer por aqui.

Os robôs levantaram as armas e apontaram-nas para Rhodan e Kasom.

— Então? — perguntou Ogil.

— Vamos ficar — respondeu Rhodan.

Ogil levantou o braço. Seus olhos refletiam a luz que vinha do teto. Os robôs mantiveram-se imóveis. O corpo do intérprete balançava ligeiramente. Sua figura delgada parecia uma caricatura.

Gucky materializou bem atrás dele.

Depois disso aconteceram várias coisas ao mesmo tempo. Ogil baixou o braço, sem ver o rato-castor. Rhodan e Kasom atiraram-se no chão. Os robôs atiraram, mas os raios energéticos saídos de suas armas passaram por cima dos prisioneiros.

Rhodan girou o corpo. Viu os robôs subirem do chão sob a influência telecinética do mutante e flutuarem pelo ar, completamente indefesos. Ogil virou lentamente a cabeça. Em seus olhos havia uma expressão de espanto. Tinha-se a impressão de que não compreendia o que estava acontecendo.

Kasom soltou um berro de triunfo. Os robôs começaram a derrubar-se uns aos outros. Seus corpos batiam ruidosamente na superfície dourada.

Ogil desapareceu numa camada enrugada do chão. Rhodan levantou-se de um salto e saiu correndo em direção ao pedestal. Segurou o bloco de metal triangular e tentou levantá-lo, mas o símbolo da pirâmide estava firmemente ancorado nos suportes.

Rhodan tentou girar o bloco. O triângulo cedeu. À medida que girava, aumentava uma abertura que surgira no chão dourado do recinto.

Rhodan continuou a girar. Estava com os olhos arregalados. Segurava a chave da estação de Quarta. Uma abertura quadrada com pelo menos cinqüenta metros de lado foi-se formando. Rhodan viu à sua frente uma claridade radiante. O chão recuou até perto de seus pés.

Rhodan olhou para baixo.

Um poço iluminado abria-se à sua frente. Rhodan notou os movimentos de gigantescas máquinas. O poço passava por diversos pavimentos, dos quais Rhodan só via as bordas.

Kasom desarmou três dos robôs destruídos e entregou as armas a Rhodan.

— Parece que o terceiro pavimento é o mais importante — piou Gucky, nervoso, quando apareceu ao lado de Rhodan.

— Fique aqui, Kasom — ordenou Rhodan. — Eu e Gucky cuidaremos da estação.

Segurou-se em Gucky, e o rato-castor deu início a mais um salto de teleportação. Materializaram entre duas máquinas enormes. Havia um cheiro de óleo queimado no ar. Não se via uma criatura viva.

Rhodan saiu de trás das máquinas. Viu à sua frente um gigantesco pavilhão subterrâneo. Percebeu imediatamente que a construção das máquinas era semelhante à que vira em Sexta. A uns cinqüenta metros do lugar em que se encontrava uma coluna luminosa erguia-se no centro da sala. Era o poço que levava à superfície, passando pelos diversos pavimentos.

Rhodan recuou ao ver um grupo de cinco vigias da estação sair de trás duma máquina. Pela primeira vez viu esses seres em seu verdadeiro aspecto. Tinham alguma coisa de humanóides. Em suas cabeças viam-se duas saliências, que apresentavam um brilho vermelho. Suas figuras pareciam deformadas, dando-lhes a aparência de anões feios.

Rhodan fez recuar Gucky, que tentara passar por ele.

— Ainda não nos viram — cochichou. — Parece que querem vigiar o poço. Certamente esperam que apareçamos por lá.

— Quer que os faça dar um passeio pelo ar? — perguntou Gucky, entusiasmado.

A resposta de Rhodan foi um não decidido.

— Não vamos chamar a atenção deles. Por aqui deve haver muitos desses caras. Não podemos enfrentá-los todos. — Segurou firmemente a arma de que Kasom se apoderara. — Precisamos encontrar o condutor-mestre de energia. Só assim poderemos desmontar o campo defensivo.

Foram para a frente agachados. Chegaram a um corredor intermediário que passava por uma série de máquinas. Em toda parte viam-se controles. As lâmpadas cintilavam, o que lhes dava o aspecto de inúmeros olhos piscando. Por ali não se notava o menor sinal do silêncio que enchia a parte superior da pirâmide. O zumbido dos aparelhos enchia o recinto.

Ouviram-se vozes. No mesmo instante Gucky e Rhodan esconderam-se atrás dum pedestal. Dali a instantes dois guardas passaram correndo. Usavam mantas azuis, que pendiam molemente junto a seus corpos deformados. Rhodan tinha suas dúvidas de que os guardas que apareciam à sua frente mantivessem sua forma primitiva. Provavelmente tinham sofrido mutações em virtude das radiações a que estiveram expostos por algumas gerações.

Os vigias desapareceram. Rhodan e Gucky continuaram a avançar cautelosamente pelo pavilhão. Finalmente depararam-se com um monstro semicircular de metal cintilante, que para Rhodan lembrava as costas dum animal gigantesco. As placas que cobriam o mesmo tinham certa semelhança com placas de cobertura orgânicas. O monstro estava cercado por uma amurada feita de triângulos transparentes, pendurados em fios. Da máquina partiam inúmeros cabos em todas as direções. Em toda parte viam-se luzes de controle. Havia painéis com escalas espalhados a intervalos regulares atrás da amurada, e cada um deles estava cheio de chaves de comando.

— É o coração da estação — cochichou Rhodan, contrariado.

Estavam parados junto a uma coluna que chegavam até o teto. Podiam perfeitamente esconder-se atrás da mesma. Pelo menos trinta vigias da estação estavam patrulhando junto à gigantesca máquina. Todos estavam armados. Sentia-se a atenção concentrada destes seres.

— Posso teleportar para cima da máquina e tentar destruí-la — sugeriu Gucky.

— Nada feito — respondeu Rhodan. — Eles logo o descobririam e atirariam em você. Já foram prevenidos. Provavelmente até sabem que estamos aqui. Só existe uma possibilidade de chegarmos à máquina. Temos de atrair os vigias para outro lugar.

Gucky pôs à mostra um dos dentes roedores.

— O que pretende fazer? — perguntou.

— Você vai distraí-los. Teleporte para as máquinas que ficam lá atrás, no lugar por onde chegamos. Provoque um pouco de confusão. Os vigias serão levados a acreditar que nos enganamos sobre a importância das diversas máquinas e se deixarão atrair para lá. Dessa forma disporei de um pouco de tempo para destruir o conduto principal da máquina, que leva para cima.

Gucky coçou-se atrás das orelhas. Não parecia muito entusiasmado.

— Logo perceberão o que realmente está acontecendo — disse. — O que pretende fazer quando eles voltarem?

— Você terá de voltar antes deles — limitou-se Rhodan a dizer.

— Aposto dez cenouras como não dá certo — disse Gucky.

— Aposta fechada — disse Rhodan.

 

Tolot e Atlan preferiram não usar a esteira transportadora que corria no meio da rua, em direção ao centro da cidade. Caminharam pelo passeio estreito que ficava ao lado da esteira. Passaram por edifícios que pareciam bacias viradas. Ao que parecia, as saídas ficavam no telhado, onde os náufragos viram escotilhas blindadas.

Um ser armado passou pela fita. Não deu atenção a Tolot e ao arcônida. Ao que parecia, o desconhecido estava fugindo. Tolot parou e olhou para trás. Atlan receava que o halutense fosse intrometer-se no assunto, mas quando não viram outra criatura, Tolot prosseguiu.

— A caçada nem é um método tão ruim de manter a ordem na cidade — disse Tolot. — Por aqui indivíduos de muitos povos convivem num espaço reduzido. Se não fossem as caçadas, haveria lutas constantes na disputa pelo poder.

— Você é um anarquista — resmungou o arcônida.

Tolot soltou uma estrondosa gargalhada.

— Acontece que a natureza só conhece a anarquia — disse. — O mais forte sobrevive.

— Conheço muitas formas de vida em que o fraco também tem sua chance. Um povo que; quer fazer jus ao direito de chamar-se de civilizado também deve reservar um lugar para os fracos.

— Naturalmente — disse Tolot. — O senhor está aludindo aos terranos, que neste ponto representam um exemplo formidável. Acontece que os terranos só têm consideração para com os fracos pertencentes às suas próprias fileiras. Os povos estelares que conseguem enfrentar os terranos em igualdade de forças são esmagados e oprimidos.

— Oprimidos não. Nós — Atlan não pôde deixar de sorrir ao perceber que inconscientemente se incluía na raça humana — sempre nos esforçamos para encontrar uma solução pacífica.

— O que é a Galáxia? — perguntou Tolot. — Não é uma gigantesca Bigtown?

Atlan sacudiu a cabeça.

— A Galáxia é...

A seta atingiu-o no braço direito e fê-lo cair de costas para fora da esteira. A segunda seta resvalou no corpo de Tolot. Até parecia que tinha atingido uma superfície metálica. O halutense virou-se abruptamente, mas não viu o atirador. Atlan rastejou para baixo da esteira e fez um sinal para Tolot com o braço que não tinha sido ferido.

Outra seta aproximou-se com um chiado. Tolot foi atingido no peito, mas a seta quebrou-se.

— Lá em cima! — gritou Atlan, que continuava em seu esconderijo.

Na escotilha blindada que havia em cima do telhado da casa mais próxima via-se um ser de aspecto aventureiro. O corpo estava coberto por cabelos compridos, que em vários lugares tinham sido reunidos em trancas. A criatura montara uma espécie de seteira na frente da escotilha e de lá disparava suas setas. Desta forma podia matar seus inimigos de forma completamente silenciosa.

Tolot saiu caminhando tranqüilamente em direção à casa.

O atirador soltou um assobio e disparou outra seta. Desta vez a mesma atingiu a cabeça de Tolot.

Este pegou a seta antes que pudesse cair ao chão e quebrou-a em três pedaços. A criatura que estava no telhado deu um grito de incredulidade e retirou-se para o interior da casa, fechando ruidosamente a escotilha blindada.

— Acho que já pode sair — disse Tolot.

Atlan deixou que o halutense o puxasse para cima do passeio. A seta continuava no interior da ferida. Tolot examinou o braço de Atlan.

— Não parece grave — constatou. — Tomara que a seta não esteja envenenada. Atlan bateu no peito.

— Espero que meu ativador celular também seja capaz de neutralizar os venenos deste planeta.

Tolot segurou a seta e movimentou-a suavemente. Pingos de suor apareceram na testa de Atlan.

— Arranque — disse.

Parecia que Tolot se divertia a valer. Certamente sua sede de aventuras estava sendo saciada em Quarta. Segurava Atlan com uma das mãos, enquanto com a outra arrancava a seta. Atlan dobrou ligeiramente os joelhos. Tolot contemplou a ponta de metal, que tinha dez centímetros de comprimento.

— Se tivesse acertado no seu peito, nem mesmo o ativador poderia salvá-lo — disse.

— O senhor tem uma maneira formidável de encorajar um ferido — disse Atlan em tom sarcástico.

Tolot olhou em torno. Não deu atenção à observação do arcônida.

— Daqui a pouco vai escurecer — disse. — Acho que é preferível que eu o leve de volta à nave-girino. Na situação em que estamos, chegarei mais longe sozinho.

Atlan tapou a ferida com a mão sadia. Quis protestar, mas logo chegou à conclusão de que na C-5 poderiam curá-lo dentro de pouco tempo. Dentro de algumas horas não sentiria mais nada. Além disso, teve de reconhecer que só representaria um peso para Tolot. Sem ele o halutense demoraria menos a descobrir uma pista de Rhodan e Kasom.

— Está bem — disse. — Vamos voltar. Quando estavam saindo da cidade, já estava escuro. Mas o grande fogo aceso por Jelo Três Luas apontava-lhes o caminho.

 

Rhodan sentiu o metal frio através da blusa rasgada e chamuscada. Muito tenso, comprimiu o corpo contra a coluna. Gucky tinha desaparecido para atrair os guardas.

Rhodan não era dado às destruições inúteis, mas na situação em que se encontrava não tinha alternativa, se quisesse encontrar um meio de sair deste mundo. O campo defensivo que envolvia Quarta precisava ser desativado. Afinal, aqueles homens não estavam dispostos a passar o resto dos seus dias num planeta-penitenciária pertencente aos senhores de Andrômeda.

Uma explosão interrompeu seus pensamentos. Gucky estava fazendo um bom serviço. Sua manobra desviacionista consistia num fogo de artifício oferecido do outro lado do pavilhão. Os guardas ficaram nervosos, gritavam palavras uns para os outros e saíram correndo.

Rhodan saiu do esconderijo. Quando se encontrava perto da máquina, levantou a estranha arma. Tivera tempo de sobra para estudar seu mecanismo.

Com a maior tranqüilidade fez pontaria para um conjunto de cabos que levava diretamente do ponto mais alto do maquinismo para o pavimento superior. Sabia perfeitamente que, assim que disparasse o primeiro tiro, teria de contar com a volta dos vigias. Antes de disparar escolheu mais três alvos. A julgar pelos ruídos, Gucky estava criando uma confusão tremenda do outro lado do pavilhão.

Rhodan comprimiu o botão acionador. O cabo derreteu-se em energia pura. Uma nuvem de fumaça subiu ao teto. Rhodan fez girar o braço. Visou o alvo seguinte e voltou a atirar. Numa questão de segundos destruiu sete feixes de cabos. A máquina emitiu um ruído irregular. Sons estranhos vinham do interior do mesmo. Ouviu-se um matraquear. Passos apressados aproximavam-se rapidamente. Rhodan virou a cabeça e viu sete vigias com os olhos arregalados de susto contornarem uma máquina. O terrano deu um salto por cima da amurada que cercava as instalações e abrigou-se. Dois tiros disparados às pressas passaram por cima dele, atingindo uma coluna de apoio. Pingos de metal incandescente caíram ao chão. Por enquanto a máquina o escondia dos seus perseguidores.

— Gucky! — gritou.

O rato-castor apareceu alguns passos à sua frente.

Os vigias passavam junto à amurada. Gritavam e agitavam as armas. Rhodan caiu para a frente e segurou o mutante pela perna. Gucky não perdeu mais tempo. Teleportou com Rhodan diretamente para a cobertura da pirâmide.

Atrás deles a máquina foi destruída numa explosão, fazendo desabar a superfície plana. A pirâmide sofreu um abalo.

Rhodan olhou para a cidade, que se estendia na escuridão da noite. Uma brisa ligeira estava soprando. Gucky desapareceu, mas logo voltou a aparecer com Kasom. O ertrusiano estava inconsciente.

Rhodan sabia que o rato-castor já tinha atingido o limite de suas faculdades paranormais. Enquanto não se recuperasse, não seria capaz de levar todo mundo para a C-5.

Rhodan inclinou-se sobre Kasom para examiná-lo. A respiração do ertrusiano era apressada. Rhodan apalpou sua cabeça e descobriu uma saliência ensangüentada. Sacudiu suavemente o especialista da USO. Depois de algumas tentativas inúteis, Kasom emitiu um som abafado. Finalmente levantou a cabeça. Imediatamente comprimiu a cabeça com as mãos.

— Se estou no paraíso, quero ser levado imediatamente a outro lugar — conseguiu dizer com grande esforço. — Não estou sentindo nenhum cheiro de assado.

— Será que o senhor não pode pensar em outra coisa que não seja comida? — perguntou Rhodan.

— Não senhor — respondeu Kasom e levantou-se.

Rhodan teve de segurá-lo, pois por um instante Kasom esforçou-se em vão para conservar o equilíbrio. Finalmente o ertrusiano voltou a ficar de pé.

— O que aconteceu? — perguntou. Rhodan fez um ligeiro relato da destruição das instalações energéticas.

— Alguma coisa deve ter caído na minha cabeça durante a explosão — disse Kasom. — Será que o campo defensivo já deixou de existir?

— Espero que sim — disse Rhodan. — Se fosse de dia, poderíamos ver a olho nu.

Embora estivesse escuro, Rhodan notou que Kasom estava observando o rato-castor.

— Estamos presos? — conjeturou Kasom.

— Por enquanto sim — respondeu Rhodan. — Gucky esforçou-se demais, mas logo poderá levá-lo à C-5. Informe a tripulação sobre o que aconteceu. Suponho que a Crest já esteja se aproximando, caso o campo defensivo realmente tenha sido destruído.

— Não posso deixá-lo sozinho por aqui, chefe — protestou Kasom.

— Certamente não nos procurarão aqui em cima — disse Rhodan. — O senhor está ferido. Gucky logo terá forças para vir buscar-me. — Apontou para a noite. — Acho que a Crest não demorará a pousar. Quando isso acontecer, também poderemos recorrer a Geco.

— Todas as luzes em cima da pirâmide estão apagadas — constatou Kasom. — Parece que o senhor inutilizou todas as instalações, chefe. — Sua voz assumiu um tom ameaçador. — Eles assassinaram Bronk.

— Sem dúvida o mataram — disse Rhodan.

— Cheguei à conclusão de que em Quarta não podemos aplicar nossas idéias sobre o que é justo e injusto. Para os habitantes de Bigtown suas leis são tão justas como as nossas são para nós.

— Acho que já poderei dar conta de Melbar — interveio Gucky. — Segure-se, Kasom. Vamos partir.

Kasom recuou instintivamente. Rhodan sentiu que o gigante ertrusiano o fitava com uma expressão de dúvida. Mas Gucky saiu caminhando em sua direção, agarrou-se a ele e desmaterializou.

Rhodan ficou só. Olhou para a gigantesca metrópole. Em alguns lugares havia luzes acesas. De vez em quando viam-se raios. Provavelmente alguém estava combatendo. Rhodan teve a impressão de sentir os pensamentos de cinqüenta milhões de seres e uma pressão surda comprimiu seu peito. Não sabia por quê, mas de certa forma sentia-se responsável por esta cidade. O que poderia fazer para ajudar os proscritos de Quarta? Os mesmos tinham sido condenados por juízes que ele não conhecia. Provavelmente um terrano nunca seria capaz de compreender as leis que eles tinham infringido.

Houve um movimento atrás dele. Rhodan virou-se abruptamente e levantou a arma do robô. A escuridão não era completa, e assim pôde distinguir uma figura magra.

— Ogil! — exclamou, surpreso.

O intérprete dos vigias da estação levantou os braços magros.

— Não estou armado. Não atire.

Rhodan baixou a arma. Não sabia por que, mas acreditava no que o cidadão de Bigtown estava dizendo.

— Como conseguiu subir aqui? — perguntou em tom de curiosidade.

Ogil deu uma risadinha parecida com a dum ancião. Mas não havia nenhuma auto-confiança nesta risada, antes um cansaço infinito.

— A estação não existe mais — disse. — Foi totalmente destruída pela explosão. Soube desde o início que o senhor é uma dessas criaturas obstinadas que sempre querem impor sua vontade, custe o que custar. — Subi pela face externa da pirâmide. Não esperava encontrá-lo aqui.

— O que veio fazer aqui em cima? — perguntou Rhodan, desconfiado.

— De noite a cidade é muito bonita — disse Ogil. — Não se percebe nada da maldade e da selvageria que existe nela. O vento é sua respiração, que traz a mim as histórias que aconteceram durante o dia.

— A que espécie pertence o senhor? — perguntou Rhodan em voz baixa.

Ogil fez um ligeiro movimento na escuridão.

— Isso realmente é tão importante? O senhor acredita que alcançou uma vitória. Mas o senhor abandonará este mundo, carregando a derrota.

Imediatamente Rhodan teve a atenção despertada.

— O que quer dizer com isso?

— O senhor não demorará a descobrir — respondeu Ogil em tom de mistério. — Poderia preveni-lo, mas sei que nada o deterá.

— Quer ir conosco?

— Sair da cidade? — Ogil sentou no chão frio e descansou a cabeça sobre os braços entrecruzados. Até mesmo na escuridão Rhodan teve a impressão de ver o brilho de seus olhos enormes.

— Não; não sairei da cidade.

— A que espécie pertence o senhor? — voltou a perguntar Rhodan. — É um dos senhores de Andrômeda?

— Não sou nada — respondeu Ogil com a voz tranqüila. — Posso ir embora sem deixar nada — nem mesmo uma recordação.

— Pois eu me lembrarei do senhor — prometeu Rhodan.

— Para mim isso não significa nada — respondeu Ogil. — O que vem a ser um pensamento no grande vazio entre as galáxias?

 

A Crest II desceu sobre o grande fogo e ficou suspensa sobre a cidade escura. A eclusa do hangar abriu-se. Uma nave-girino comandada pelo capitão Redhorse partiu para a escuridão e foi-se aproximando do local em que caíra a C-5. Mory Rhodan-Abro também se encontrava a bordo.

O capitão Henderson já chamara pelo rádio, fornecendo informações sobre os acontecimentos.

— Tolot trouxe Atlan de volta para a C-5; o arcônida estava ferido — comunicou Henderson. — Mas só se trata dum corte sem maiores conseqüências. Quando o halutense pretendia voltar à cidade, Gucky apareceu com Kasom. O Chefe está bem. No momento encontra-se sobre a pirâmide que fica na cidade e espera que Gucky vá buscá-lo.

Mory respirou aliviada.

— Vamos pousar para recolher todo mundo — informou Redhorse. — Mantenham-se preparados.

— Está bem — confirmou Henderson. — Mas tenha cuidado ao pousar. Por aqui anda uma criatura vinda da cidade, que quer usar a C-5 como local de postura.

Redhorse sorriu.

— Quer que logo mande Geco? — perguntou.

— Gucky faz questão de ir buscar Rhodan pessoalmente — respondeu Henderson. — Quer dizer que não há necessidade de perturbar o sossego de seu rato-castor.

O capitão Redhorse fez a C-3 pousar em segurança do outro lado do grande fogo.

— Tomara que não nos ataquem — disse, dirigindo-se a Mory. — Se o pessoal da cidade descobrir que mais uma nave acaba de pousar, talvez acreditem que se trata duma invasão.

— Estamos abandonando a C-5 — informou Henderson.

— Estamos à sua espera — respondeu Redhorse.

Icho Tolot encarregou-se de vigiar o batedor errático, enquanto os homens da C-5 se transferiam para a C-3. O grande ser não fazia o menor movimento. Ficou deitado na areia como se estivesse morto e acompanhava os acontecimentos. A cidade permaneceu em silêncio. Ninguém parecia interessar-se pela nave que pousara em último lugar.

Mas de repente Redhorse, que estava de pé na eclusa aberta para receber os náufragos, ouviu o ruído dum motor que se aproximava, vindo da cidade.

— É o trio vermelho — conjeturou Atlan, que se encontrava ao lado de Redhorse. — São eles que governam este mundo. Provavelmente vêm para cumprimentar os recém-chegados e informá-los sobre as leis que vigoram em Bigtown.

— Que venham — disse Redhorse em tom zangado. — Nós lhes serviremos uma amostra de nossas leis.

— Não — objetou Atlan. — Quando chegarem, todos estarão na nave, exceto Rhodan. Vamos decolar e sobrevoar a cidade até que Gucky tenha trazido Rhodan.

Redhorse parecia perplexo.

— Tem medo dessas criaturas?

Atlan limitou-se a sacudir a cabeça. Não deu nenhuma explicação ao capitão. Como iria explicar os hábitos dos habitantes de Bigtown a Redhorse?

Os últimos homens foram entrando pela eclusa. O ruído de motor era cada vez mais intenso. Atlan voltou a olhar em torno e puxou Redhorse para dentro. O capitão seguiu-o a contragosto.

— Dê ordem para decolar — disse Atlan.

Dali a instantes a C-3 desprendeu-se do solo.

Deixou para trás os destroços da C-5, o grande fogo, o batedor errático e um carro que freou abruptamente, com três seres de pêlos vermelhos que uivavam de decepção.

 

— Lamento que a estação tenha sido destruída — disse Rhodan, enquanto Ogil continuava sentado, imóvel. — Não sei se o senhor compreende os motivos que nos levaram a agir assim.

— Naturalmente — respondeu o intérprete. — O senhor luta pela vida. Embora seja inútil.

— Poderia fazer o favor de explicar o que quer dizer com isso?

— Mesmo que quisesse, não poderia — respondeu Ogil.

Sua voz parecia mais baixa. Rhodan inclinou-se sobre a criatura. Ogil exalava um cheiro esquisito. Rhodan tocou-o suavemente. Seus dedos ficaram úmidos.

— O senhor está ferido — disse Rhodan,apavorado. — Por que não disse? Podemos tratá-lo a bordo de nossa nave.

Ogil levantou-se sem dizer uma palavra. Rhodan fez um grande esforço para varar a escuridão, a fim de verificar a extensão do ferimento.

— Não irei com o senhor — decidiu Ogil. — Nem mesmo para receber o tratamento de que preciso.

— O senhor não poderá voltar ao interior da pirâmide — disse Rhodan. — Haverá novas explosões. A pirâmide queimará por dentro. Talvez até chegue a desabar.

— Não entrarei em lugar algum — cochichou Ogil.

Gucky materializou bem ao lado deles. Rhodan sentiu a pata do rato-castor em sua mão.

— A Crest penetrou na atmosfera de Quarta. Redhorse pousou com a C-3 e recolheu a tripulação da C-5. Depois disso Atlan mandou que decolasse, pois o trio vermelho estava se aproximando. A nave-girino está sobrevoando a cidade. Podemos teleportar para bordo.

— Um momento — disse Rhodan apressadamente.

Dirigiu-se a Ogil.

— Se quisesse, poderia obrigá-lo a ir comigo — disse. — Mas quero tentar mais uma vez de outra forma.

— O senhor é um homem obstinado — queixou-se Ogil.

Parecia ser um juízo definitivo. Antes que Rhodan pudesse fazer qualquer coisa, o intérprete deu dois passos em direção à extremidade da cobertura e precipitou-se para o solo. Rhodan estremeceu ao ouvir o impacto de seu corpo.

— Ele não fez isso porque quis — disse Gucky. — Alguma coisa o obrigou a agir assim.

— O que quer dizer com isso?

— Só consegui captar este sentimento — respondeu o rato-castor. Segurou mais firmemente a mão de Rhodan. — Ainda vamos ficar conversando aqui por muito tempo?

— Você tem razão — disse Rhodan. — Já devem estar à nossa espera.

Com um salto de teleportação, Gucky transportou-se à C-3 juntamente com Rhodan. Este ofereceu um ligeiro relato sobre os acontecimentos que se tinham desenrolado no interior da pirâmide. Não fez nenhuma alusão à morte de Ogil.

A C-3 acelerou e correu de volta para a nave-mãe.

— Assim que estivermos a bordo da Crest, preciso falar com o major Bernard — disse Rhodan, dirigindo-se a Gucky, que ainda parecia bastante cansado.

Gucky piscou para as luzes fortes do teto.

— Por quê? — perguntou em tom desconfiado.

Rhodan levantou as mãos e abriu os dedos.

— Você me deve dez cenouras — lembrou. — Quero falar com o major Bernard, para que ele as desconte de suas rações.

Gucky levantou-se, indignado.

— Você é mais voraz que Kasom — gritou, furioso.

 

O batedor errático esperou pacientemente que o trio vermelho voltasse a entrar em seu veículo. Ouviu-os praguejar, mas não entendia quase nada do que diziam. Sua raiva era perfeitamente compreensível, pois a nave desconhecida desaparecera depois de recolher todos os recém-chegados. Krash-Ovaron não se preocupava com a origem dos desconhecidos. Não esperava que um dia voltassem a Bigtown. Provavelmente a identidade daqueles desconhecidos ficaria envolta em mistério para todo o sempre.

Bem, o trio vermelho poderia preocupar-se com este problema.

Ele, Krash-Ovaron, tinha seus próprios problemas.

O carro do trio vermelho acelerou e voltou em alta velocidade. Krash-Ovaron ficou deitado ao lado da nave destroçada, completamente imobilizado, até que o ruído do motor cessasse. Finalmente rastejou em direção à nave. Não havia mais nenhum desconhecido no interior da mesma. Estava tudo em silêncio.

Krash-Ovaron constatou que a eclusa estava aberta. Será que aquilo era uma cilada armada pelos desconhecidos? De qualquer maneira, teria de assumir o risco. Sem a nave estaria condenado à morte.

Rastejou através da eclusa. A luminosidade do grande fogo era pouco intensa, mas Krash-Ovaron viu que alguns corredores estavam iluminados. Isto só podia significar que parte das unidades de suprimento de energia continuava a funcionar.

Krash-Ovaron respirava fortemente. Estava sendo favorecido pela sorte. Não poderia matar os desconhecidos para vingar-se das humilhações que eles lhe haviam imposto, mas apoderara-se de sua nave. Com as máquinas da mesma certamente conseguiria produzir quantidades suficientes de gelo seco. Sabia perfeitamente que não estava familiarizado com as instalações, que teria de enfrentar grandes dificuldades antes de aprender a lidar com as mesmas.

Mas estava decidido a resolver todos os problemas.

Caminhou por um corredor iluminado e chegou à entrada da sala de comando principal. O batedor errático possuía bastante inteligência para compreender imediatamente que aquilo era o centro da pequena espaçonave.

Abriu a escotilha e viu diante de si a sala iluminada.

O que viu fez com que se sentisse ofuscado e fechasse os olhos.

O chão da sala de comando estava coberto de gelo.

Ainda incrédulo, Krash-Ovaron aproximou-se rastejando. Não havia a menor dúvida: os desconhecidos o haviam ajudado antes de retirar-se do planeta. O que poderia tê-los levado a agir desta forma?

Krash-Ovaron rastejou para cima do gelo. Experimentou a sensação agradável do frio, um sentimento de que se vira privado por muito tempo. Finalmente encontrara um lugar seguro para depositar seus ovos.

Krash-Ovaron levantou a cabeça enorme.

Não sabia onde estavam os desconhecidos naquele momento, mas sabia que sentia uma gratidão imensa por eles. Eles o tinham ajudado, embora tivesse tido a intenção de matá-los.

Agachou-se sobre o gelo e abandonou-se ao sentimento de cansaço que começou a embalá-lo. Sentiu as dores que atravessavam seu corpo, mas as mesmas não o molestavam mais.

Só havia uma forma simbólica pela qual poderia demonstrar sua gratidão. Fazia votos de que aquilo que ele desejava para os desconhecidos se realizasse. Precisariam de muita sorte, pois não sabiam qual era o perigo que os acompanhava.

— Boa caçada! — resmungou Krash-Ovaron.

 

                                                                                            Willian Voltz  

 

                      

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