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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CIDADE DOS RATOS / Emily Rodda
A CIDADE DOS RATOS / Emily Rodda

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Lief, de 16 anos de idade, cumprindo uma promessa feita pelo pai, antes que o filho nascesse, saiu em uma grande busca para encontrar as sete pedras preciosas do mágico Cinturão de Deltora. Somente o Cin­turão poderia salvar o reino da tirania do malvado Senhor das Sombras que, apenas alguns meses antes do nascimento de Lief, invadira Deltora e escravizara o seu povo com a ajuda de feitiçaria e de seus temidos Guardas Cinzentos.

As pedras — uma ametista, um topázio, um diamante, um rubi, uma opala, um lápis-lazúli e uma esmeralda — foram roubadas a fim de permitir que o desprezível Senhor das Sombras invadisse o reino. Agora, elas se encontram escondidas em locais sombrios e terríveis em toda Deltora. Somente depois de recolocadas no Cinturão, é que o herdeiro do trono poderá ser encontrado, e o Senhor das Sombras será derrotado.

Os companheiros de Lief são Barda, um homem mais velho que foi guarda do palácio, e Jasmine, uma garota selvagem e órfã da idade de Lief. Os dois a conheceram em sua primeira aventura nas temíveis Florestas do Silêncio.

Nas Florestas, os três companheiros descobriram os fantásticos poderes de cura do néctar dos Lírios da Vida. Eles também conseguiram encontrar a primeira pedra — o topázio dourado, símbolo da lealdade, que tem o poder de fazer os vivos entrar em contato com o mundo espiritual e de clarear e estimular a mente. No Lago das Lágrimas, eles romperam o cruel encantamento da feiticeira Thaegan, libertaram o povo de Raladin e de D'Or de sua maldição e encontraram a segunda pedra — o admirável rubi, símbolo da felicidade, cuja cor perde a intensidade quando desgraças ameaçam quem o usa.

 

 

 

 

 

 

Com os pés doloridos e fatigados. Lief, Barda e Jasmine dirigiram-se para o oeste, na direção da lendária cidade dos ratos. Eles pouco sabiam sobre o seu destino, exceto que se tratava de um lugar maligno e há muito abandonado por seu povo. Entretanto, tinham quase certeza de que uma das sete pedras perdidas do cinturão de Deltora estava escondida lá.

Os companheiros haviam caminhado sem parar o dia todo e, naquele momento, quando o sol cintilante deslizava na direção do hori­zonte, ansiavam por parar e repousar. Mas a estrada que percorriam, profundamente sulcada pelas rodas de carroças, ziguezagueava por uma planície cujo solo se encontrava totalmente tomado por arbustos espinhentos. Os espinheiros cobriam toda a estrada e se estendiam até onde a vista podia alcançar.

Lief suspirou e tocou o Cinturão oculto debaixo da camisa em busca de consolo. Agora ele continha duas pedras: o topázio dourado e o rubi escarlate. Ambas haviam sido conquistadas com grandes dificuldades e, nesse processo, grandes feitos haviam sido realizados.

O povo de Raladin, com quem haviam ficado nas duas últimas semanas, desconhecia a busca pelas pedras perdidas. Manus, o pequeno ralad que os acompanhara na busca pelo rubi, jurara silêncio. Mas não era segredo que os companheiros haviam causado a morte da malvada feiticeira Thaegan, aliada do cruel Senhor das Sombras. E também não era segredo que dois dos 13 filhos da bruxa tiveram o mesmo destino que a mãe. Os ralads, finalmente livres da maldição de Thaegan, criaram muitas canções de alegria louvando os amigos por seus feitos.

Fora difícil deixá-los. Difícil abandonar Manus, a felicidade, a segu­rança, a boa comida e as camas macias e quentes do vilarejo oculto. Mas ainda havia cinco pedras a serem encontradas e, enquanto não fossem recolocadas no Cinturão, a tirania do Senhor das Sombras não poderia ser derrotada. Os três companheiros precisavam prosseguir.

— Esses espinheiros são intermináveis — Jasmine queixou-se, a voz interrompendo os pensamentos de Lief, que se voltou para fitá-la. Como sempre, a pequena criatura peluda chamada Filli encontrava-se aninhada no ombro dela e piscava por entre a massa de cabelos negros de sua dona. Kree, o corvo, que nunca se afastava muito da vista de Jasmine, esvoaçava sobre os espinheiros próximos e apanhava insetos. Ao menos ele estava cuidando do estômago.

— Há alguma coisa adiante! — Barda avisou, apontando para um ponto branco cintilante ao lado da estrada.

Curiosos e esperançosos, eles correram para o local onde, sobressaindo-se dos espinheiros, havia uma estranha placa.

— O que isso significa? — Jasmine murmurou.

— Parece estar apontando a direção de algum tipo de loja — supôs Lief.

— O que é loja?

Lief olhou de relance para a garota perplexa e então lembrou que ela passara a vida nas Florestas do Silêncio e que nunca vira muitas das coisas que ele considerava normais.

— Uma loja é um lugar para comprar e vender mercadorias — Barda explicou. — Hoje em dia, na cidade de Del, as lojas são malservidas, e muitas foram fechadas. Mas antigamente, antes do Senhor das Som­bras, havia muitas que vendiam alimentos, bebidas, roupas e outros artigos.

Jasmine olhou para ele, intrigada. Lief se deu conta de que mesmo assim ela não compreendia. Para ela, os alimentos nasciam nas árvores e a bebida corria nos riachos. Outros objetos eram encontrados ou fabri­cados, e o que não podia ser encontrado ou fabricado era esquecido.

Eles caminharam com dificuldade estrada acima, conversando em voz baixa e tentando esquecer o cansaço. Mas logo ficou escuro demais para enxergar alguma coisa e eles tiveram de acender uma tocha para guiar-lhes o caminho. Barda segurava a chama bruxuleante para baixo, porém todos sabiam que ela ainda podia ser vista do alto.

O pensamento de que os seus passos poderiam ser seguidos com tanta facilidade era desagradável. Mesmo àquela hora, os espiões do Senhor das Sombras poderiam estar patrulhando os céus. Além disso, eles ainda não tinham saído do território que fora de Thaegan. Embora ela estivesse morta, eles sabiam muito bem que a maldade havia domi­nado por muito tempo e que o perigo era uma ameaça em todos os lugares.

Cerca de uma hora depois de acenderem a tocha, Jasmine parou e olhou para trás.

— Estamos sendo seguidos. Não só por uma criatura, mas por muitas — ela sussurrou.

Embora não conseguissem ouvir nada, Lief e Barda não se preocu­param em perguntar-lhe como percebera. Eles haviam aprendido que os sentidos de Jasmine eram muito mais aguçados e afiados que os seus. Ela podia não saber o que eram lojas, mas seus outros conhecimentos eram muito amplos.

— Eles sabem que estamos à frente deles — ela murmurou. — Eles param quando paramos e andam quando andamos.

Em silêncio, Lief puxou a camisa para cima e olhou para o rubi cravado no Cinturão. Seu coração acelerou quando viu, sob a luz bru­xuleante da tocha, que o vermelho vivo da pedra havia se transformado num cor-de-rosa pálido.

Barda e Jasmine também observavam a pedra. Assim como Lief, eles sabiam que a cor do rubi esmaecia quando algum perigo ameaçava quem o usava. Sua mensagem, naquele momento, era clara.

— Então, nossos seguidores têm más intenções — Barda murmurou.

— Quem serão eles? Será que Kree poderia voltar e...

— Kree não é uma coruja! — Jasmine disparou. — Ele não consegue enxergar no escuro, não mais do que nós. — Ela se agachou, encostou o ouvido no solo e, franzindo a testa, ouviu com atenção. — Pelo menos os nossos perseguidores não são Guardas Cinzentos. São silenciosos demais e não estão marchando.

— Talvez seja um bando de ladrões que pretende armar uma embos­cada assim que pararmos para dormir ou descansar. Precisamos voltar e lutar! — A mão de Lief já se encontrava no punho da espada. As canções dos ralads soavam em seus ouvidos. O que era um grupo de ladrões maltrapilhos comparado aos monstros que ele, Barda e Jasmine haviam enfrentado e derrotado?

— O meio de uma estrada margeada por espinheiros não é um bom lugar para oferecer resistência, Lief — argumentou Barda, sombriamente.

— E aqui não há nenhum lugar em que possamos nos esconder e pegar os inimigos de surpresa. Devemos continuar e tentar encontrar um local melhor.

Os amigos recomeçaram a andar, dessa vez mais depressa. Lief olhava para trás constantemente, mas não havia nada entre as sombras.

Eles alcançaram uma árvore morta que parecia um fantasma ao lado da estrada, o tronco desbotado destacando-se entre os espinheiros. Momentos após eles a terem ultrapassado, Lief sentiu uma mudança no ar e a sua nuca começou a formigar.

— Eles estão acelerando — Jasmine constatou, ofegante.

E então eles ouviram o som. Um uivo longo e baixo que gelava o sangue.

Filli, agarrado ao ombro de Jasmine, emitiu um leve som assus­tado. Lief viu que o pêlo do animalzinho se arrepiara por todo o seu corpinho.

Seguiu-se mais um uivo e depois outro.

— Lobos! — Jasmine sussurrou. — Não vamos conseguir fugir. Eles estão perto demais!

Ela preparou mais duas tochas com o material que levava na sacola e acendeu-as na que já carregava. — Eles vão ficar com medo do fogo — ela disse, colocando os dois fachos recém-acesos nas mãos de Lief e Barda. — Mas precisamos enfrentá-los. Não podemos voltar-lhes as costas.

— Vamos ter de andar de costas até a loja de Tom? — agarrando a sua tocha, Lief tentou fazer uma brincadeira, mas nem Jasmine, nem Barda acharam graça. O homem fitava a árvore morta que cintilava fracamente ao longe.

— Eles só se aproximaram depois que passamos pela árvore — mur­murou. — Queriam impedir que subíssemos nela e escapássemos. Não são lobos comuns.

— Estejam preparados — Jasmine advertiu.

Ela já empunhava a adaga, e Lief e Barda desembainharam as espadas. Eles permaneceram juntos, as tochas no alto, esperando.

E, acompanhando outro coro de uivos de gelar o sangue, da escu­ridão surgiu o que pareceu um mar de pontos de luz amarela em movi­mento — eram os olhos dos lobos.

Jasmine agitava a tocha à sua frente de um lado para o outro. Lief e Barda faziam o mesmo, de modo que a estrada ficou bloqueada por uma linha de chamas em movimento.

Os animais diminuíram o passo, mas ainda avançavam, rosnando. À medida que se aproximavam da luz, Lief podia ver que, de fato, não se tratava de lobos comuns. Eram imensos, cobertos por um pêlo espesso e opaco com listras marrons e amarelas. Os lábios se arregaçaram para trás, deixando à vista as mandíbulas furiosas, e o interior das bocas abertas não era vermelho, mas preto.

Lief os contou rapidamente. Eram 11. Por algum motivo, esse número significava algo para ele, mas não conseguia lembrar do que se tratava. De qualquer forma, não havia tempo para preocupar-se com tais pensamentos. Acompanhado de Barda e Jasmine, começou a caminhar para trás com a tocha em movimento contínuo. Mas, a cada passo que os amigos davam, os animais faziam o mesmo.

Lief lembrou-se de sua piada tola, "Vamos ter de andar de costas até a loja do Tom?", ele perguntara.

Naquele momento, parecia que era exatamente isso que seriam obrigados a fazer. 'As bestas estão nos guiando", ele pensou.

As bestas estão nos guiando... Eles não são lobos comuns... Eles são 11...

— Barda! Jasmine! — sussurrou, com um frio no estômago. — Eles não são lobos. Eles são...

Mas não conseguiu terminar, pois, naquele instante, ele e os ami­gos deram outro passo para trás, a enorme rede que havia sido armada para eles se fechou e os três ficaram pendurados no alto, aos gritos.

 

Amontoados na rede tão juntos que mal podiam se mover, Lief, Barda e jasmine balançavam no ar, indefesos e agoniados. As tochas e armas haviam voado de suas mãos ao serem içados para cima. Kree esvoaçava ao redor deles, grasnando, desesperado.

A rede pendia de uma árvore que crescia ao lado da trilha. Ao con­trário de qualquer outra árvore que tinham visto, ela estava viva. O galho que sustentava a rede era grosso e forte, forte demais para quebrar.

Lá embaixo, os lobos passaram a emitir urros de triunfo. Lief olhou para baixo e, sob a luz das tochas caídas, pôde ver que os corpos das bestas inchavam e tomavam uma forma humana.

Alguns instantes depois, 11 criaturas hediondas e de dentes arreganhados davam cambalhotas na trilha sob a árvore. Algumas eram grandes, outras, pequenas. Algumas tinham o corpo coberto de pêlos, outras eram totalmente desprovidas de cabelos. Eram verdes, marrons, amarelas, de um branco pálido e até de um vermelho lodoso. Uma delas tinha seis pernas atarracadas. Lief sabia quem eram.

Eram os filhos da feiticeira Thaegan. Ele se lembrou do verso que listava seus nomes.

Hot, Tot, Jin, Jod, Fie, Fly, Zan, Zod, Pik, Snik, Lun, Lod. E o temível Ichabod.

Jin e Jod estavam mortos, sufocados na própria armadilha de areia movediça. Agora restavam somente 11. Mas estavam todos ali, reunidos para caçar os inimigos que haviam provocado a morte da mãe e dos irmãos. Eles queriam vingança.

Grunhindo e fungando, alguns dos monstros arrancavam espinheiros pelas raízes e os empilhavam sob a rede que balançava. Outros apanhavam as tochas e dançavam em círculos, cantando:

Mais calor, mais calor,

Carne assada macia e suculenta!

Veja como é divertido

Esperar que fique pronta.

Escute os gemidos,

O estalar dos ossos!

Mais calor, mais calor,

Carne assada macia e suculenta!

Eles vão nos queimar! — grunhiu Barda, lutando em vão. — Jas­mine, a sua segunda adaga. Você consegue pegá-la?

— Você acha que eu ainda estaria pendurada aqui se pudesse? — Jasmine sussurrou, furiosa.

Lá embaixo, os monstros se divertiam, jogando as tochas sobre a pilha de espinheiros. Lief já podia sentir o calor e o cheiro de fumaça. Ele sabia que em breve os arbustos verdes iriam secar e se incendiar. Então, ele e os amigos assariam no calor e, quando a rede se queimasse, cairiam na fogueira.

Algo macio roçou o rosto de Jasmine. Era Filli. A pequena cria­tura conseguira sair de seu esconderijo no ombro da dona e, naquele momento, estava se espremendo para passar pela rede, ao lado da orelha de Lief.

Pelo menos ele estava livre. Mas, em vez de subir correndo pelas cordas para se esconder nas árvores, como Lief esperava que fizesse, continuou segurando-se na rede e começou a mordiscá-la desesperada­mente. Lief percebeu que ele tentava abrir um buraco grande o bastante para que passassem.

Era um esforço louvável, mas quanto tempo levaria para que os dentes miúdos roessem aquelas cordas fortes e grossas? Tempo demais. Muito antes de Filli conseguir abrir mesmo uma pequena abertura, os monstros perceberiam o que ele estava fazendo e o afastariam ou então o matariam.

Ouviu-se um grunhido de raiva vindo do solo. Lief olhou para baixo, em pânico. Os inimigos já teriam notado a presença de Filli? Não, eles não estavam olhando para cima. Em vez disso, olhavam uns para os outros.

— Duas pernas para Ichabod! — rugia o maior, socando o peito ver­melho e encaroçado. — Duas pernas e uma cabeça.

— Não! Não! — rosnaram duas criaturas verdes, mostrando dentes escuros e gotejantes. — Não é justo! Fie e Fly são contra!

— Eles estão brigando para saber que partes de nossos corpos irão comer! — Barda exclamou. — Vocês acreditam nisso?

— Deixe-os brigar — Jasmine murmurou. — Quanto mais eles bri­garem, mais tempo Filli terá para fazer o seu trabalho.

— Vamos dividir a carne! — gritaram histericamente os dois mons­tros menores, as vozes agudas erguendo-se acima do barulho ao redor. — Hot e Tot querem partes iguais.

Seus irmãos e irmãs grunhiram e resmungaram.

— Olhem só como eles são burros! — Lief gritou, de repente, fin­gindo estar conversando com Barda e Jasmine. — Eles não sabem que não podem ter partes iguais!

— Lief, você está maluco? — Jasmine sussurrou.

Mas Lief continuou gritando. Ele notou que os monstros haviam se calado e estavam ouvindo.

— Nós somos três e eles são 11! — rugiu. — Não se pode dividir três em 11 partes iguais. É impossível!

Ele sabia tanto quanto Jasmine que estava assumindo um risco. Os monstros poderiam olhar para ele e, ao mesmo tempo, ver Filli. Mas ele apostava na esperança de que a suspeita e a raiva fariam os inimigos manter os olhos presos uns nos outros.

E, para seu alívio, percebeu que seu jogo estava dando certo. Os monstros haviam começado a murmurar em pequenos grupos, enquanto se olhavam dissimuladamente.

— Se fossem nove, eles poderiam cortar cada um de nós em três e ficar cada um com uma parte — ele gritou. — Mas desse jeito...

— Partes iguais — guincharam Hot e Tot. — Hot e Tot dizem... Ichabod agarrou a ambos e bateu as cabeças deles uma contra a outra, provocando um forte ruído. Os dois caíram no chão, desacordados.

— Agora — rosnou Ichabod —, agora as partes serão iguais como vocês querem. Agora somos nove.

O fogo começara a se inflamar e a estalar. A fumaça subia, fazendo Lief tossir. Ele olhou para o lado e viu que Filli já conseguira abrir um pequeno buraco na rede e tentava aumentá-lo. Mas ele precisava de mais tempo.

— Eles se esqueceram de uma coisa, Lief — Barda disse em voz alta. — Mesmo que sejamos divididos em três, as partes ainda não vão ser iguais. Porque eu sou duas vezes maior do que Jasmine. Quem ficar com uma terça parte dela vai se dar mal. Na verdade, ela deveria ser dividida em dois.

— Sim — concordou Lief, em voz igualmente alta, ignorando os pro­testos de raiva de Jasmine. — Mas assim só haverá oito pedaços, Barda. E há nove para alimentar.

Ele observou pelo canto dos olhos quando Zan, o monstro de seis pernas, assentiu, pensativo, e então se virou de repente, e atingiu a irmã Zie com um porrete, derrubando-a no chão.

Fly, furioso com o ataque à irmã gêmea, saltou sobre as costas de Zan, guinchando e mordendo. Zan rugiu, girou o corpo e nocauteou o irmão cabeludo, jogando-o para o outro lado. Este, por sua vez, caiu sobre a irmã à sua frente e ficou espetado em seus chifres.

De repente, estavam todos brigando — gritando, mordendo e batendo —, caindo sobre os espinheiros, tropeçando no fogo, rolando no chão.

A briga continuou, interminável. Assim, quando Filli concluiu seu trabalho e os três companheiros escaparam da rede, e subiram na árvore, havia somente um monstro de pé: Ichabod.

Cercado pelos corpos dos irmãos e irmãs, ficou parado perto do fogo, rugindo e batendo no peito, triunfante. Ele iria olhar para cima a qualquer momento. Veria que a rede estava vazia e que a comida pela qual havia lutado se encontrava na árvore — sem ter para onde ir.

— Precisamos pegá-lo de surpresa — Jasmine sussurrou, apanhando a segunda adaga escondida entre as roupas e verificando se Filli voltara à segurança de seu ombro. — É a única maneira.

Sem mais nenhuma palavra, ela saltou, atingindo Ichabod nas costas com ambos os pés. Sem equilíbrio, ele caiu na fogueira, onde se estatelou com um estrondo e um rugido.

Dando-se conta da situação, Lief e Barda deslizaram árvore abaixo o mais rápido possível e correram até Jasmine. Ela já recolhia sua adaga e as espadas dos amigos.

— Por que demoraram tanto? — ela cobrou, jogando-lhes as armas. — Depressa!

Com Kree esvoaçando sobre suas cabeças, eles correram como o vento ao longo da trilha, sem se importar com os sulcos da estrada e com a escuridão. Atrás deles, Ichabod rugia de fúria e dor. Arrastou-se para fora do fogo e começou a persegui-los aos tropeços.

 

Ofegantes, com o peito dolorido e os ouvidos atentos aos uivos atrás deles, continuaram a correr. Eles sabiam que se Ichabod se transformasse num lobo ou em outro animal os apanharia facilmente. Mas eles nada ouviram.

"Talvez ele não consiga transformar-se por estar ferido", Lief pen­sou. Nesse caso, estamos salvos. Mas, assim como os companheiros, não ousou parar nem diminuir o passo.

Finalmente, chegaram a um lugar em que a trilha atravessava um pequeno córrego.

— Tenho certeza de aqui é o limite das terras de Thaegan — Barda informou. — Prestem atenção. Não há espinheiros do outro lado. Ichabod não vai nos seguir até lá.

Com as pernas trêmulas de cansaço, continuaram a caminhada, agitando a água fria à sua volta. Do outro lado do riacho, a trilha continu­ava, mas ao seu lado cresciam um capim verde e macio e pequenas árvo­res, e os amigos puderam enxergar o contorno de flores silvestres.

Eles caminharam, cambaleantes, por mais alguns instantes. Então, afastaram-se da trilha e deixaram-se cair no abrigo do pequeno bosque formado pelas árvores. Com o sussurrar das folhas no alto e o capim macio sob suas cabeças, adormeceram.

Quando despertaram, o sol estava alto e Kree os chamava. Lief espreguiçou-se e bocejou. Seus músculos estavam tensos e doloridos por causa da longa corrida, e seus pés estavam sensíveis.

— Deveríamos ter dormido em turnos — Barda resmungou, sen­tando-se e movendo as costas com cuidado. — Foi perigoso confiar que estávamos em segurança ainda tão perto da fronteira.

— Estávamos cansados. E Kree ficou vigiando. -Jasmine erguera-se de um salto e já estava investigando o bosque. Aparentemente, o corpo dela não estava dolorido.

Ela pousou a mão no tronco áspero de uma das árvores. Acima dela, as folhas moveram-se levemente. Jasmine inclinou a cabeça para o lado e pareceu escutar.

— As árvores dizem que ainda passam carroças nesta estrada com bastante freqüência — ela anunciou, finalmente. — Carroças grandes, puxadas por cavalos. Mas ontem não passou ninguém por aqui.

Antes de prosseguir em sua jornada, os companheiros comeram um pouco do pão, do mel e das frutas que os ralads haviam lhes dado. Filli recebeu sua porção, além de um pedaço de favo de mel, seu petisco favorito.

E, então, vagarosamente, eles se puseram a caminho. Após algum tempo, viram outra placa que indicava o caminho para a loja de Tom.

— Espero que Tom venda algo para pés doloridos — Lief mur­murou.

— A placa diz "Tudo para o viajante" — Barda repetiu. — Portanto, ele deve ter algo. Mas devemos escolher somente o que realmente pre­cisamos. Temos pouco dinheiro.

Jasmine olhou os companheiros de relance. Não disse nada, mas Lief percebeu que ela começou a caminhar um pouco mais depressa.

Ficou claro que ela estava curiosa para ver exatamente como era uma loja.

Uma hora mais tarde, logo depois de uma curva, eles viram, sur­gindo no meio de um grupo de árvores, um sinal de metal recortado parecido com um raio e, ao seu lado, imensas letras de metal.

Intrigados, continuaram a caminhar. À medida que se aproxima­vam do local, notaram que as árvores estavam dispostas no formato de uma ferradura e se agrupavam nas laterais e na parte posterior de um estranho e pequeno edifício de pedra. O suporte recortado que sustentava as letras de metal encontrava-se espetado exatamente no centro do telhado pontiagudo, como se o edifício tivesse sido atingido por um raio.

Sem dúvida, aquela era a loja de Tom, embora, à primeira vista, ela se parecesse mais com uma pousada do que com um lugar em que fosse possível fazer compras. Havia um espaço limpo e plano entre a casa e a estrada — grande o bastante para receber carroças — e, aqui e ali, grandes gamelas de pedra com água para os animais. Uma grande vitrine cintilava ao lado da porta e exibia o nome do proprietário pin­tado em brilhantes letras vermelhas, dispostas na vertical, de cima para abaixo, como se via na placa da chaminé e nas placas pelas quais haviam passado.

— Esse Tom realmente gosta de divulgar o seu nome — Barda gra­cejou. — Muito bem, então. Vamos ver o que ele tem para nós.

Os companheiros atravessaram a clareira e espiaram pela vitrine. Ela estava repleta de mochilas, chapéus, cintos, botas, meias, cantis, casacos, cordas, potes, panelas e muitos outros objetos, inclusive alguns que Lief não reconheceu. Estranhamente, não havia preços ou etiquetas, mas, bem no meio, havia um aviso amarelo.

Um sino preso à porta tilintou quando eles entraram na loja, mas ninguém veio recebê-los. Eles olharam ao redor, enxergando com dificuldade, pois estava muito escuro. A sala abarrotada parecia muito mal iluminada em comparação com o sol que brilhava lá fora. Corre­dores estreitos se estendiam entre as estantes que iam do chão ao teto. As prateleiras estavam entulhadas de mercadorias. No final, havia um balcão com pilhas de livros de contabilidade, várias balanças e o que parecia ser uma lata para guardar dinheiro. Atrás do balcão, havia mais prateleiras, uma porta e outro aviso:

 

VIAJANTES!

ESCOLHAM COM CUIDADO.

NADA DE DEVOLUÇÕES.

NADA DE REEMBOLSOS.

NADA DE ARREPENDIMENTOS.

 

— Tom é um cara confiante — Barda deduziu, olhando à sua volta.

— Ora, nós poderíamos ter entrado aqui, roubado o que quiséssemos e já ter saído.

Para provar o seu ponto de vista, ele estendeu a mão na direção de uma pequena lanterna na prateleira mais próxima. Quando tentou apanhá-la, porém, ela não se moveu.

Barda, atônito, ficou boquiaberto. Puxou com força, mas nada. Finalmente, ao ver Lief cair na gargalhada e Jasmine olhá-lo aten­tamente, desistiu. Mas, quando procurou tirar a mão do objeto, não conseguiu fazê-lo. Ele se esforçou ao máximo, blasfemando, mas seus dedos pareciam colados.

— Você quer uma lanterna, amigo?

Os três deram um salto, assustados, e viraram-se bruscamente. Um homem alto e magro, com um chapéu na parte de trás da cabeça, estava parado no balcão, os braços cruzados e um largo sorriso zombe­teira nos lábios.

— O que é isso? — Barda gritou, zangado, tentando soltar a mão da lanterna.

É a prova de que Tom não é um cara confiante — falou o homem atrás do balcão, e seu sorriso ficou ainda mais largo. Ele colocou uma de suas mãos de dedos longos debaixo do balcão e aparentemente apertou algum botão escondido, pois de repente a mão de Barda foi libertada. Ele caiu para trás, chocando-se com força contra Lief e Jasmine.

— Agora, o que Tom pode fazer por vocês? — o homem indagou.

— E, mais precisamente, o que Tom pode vender para vocês? — completou, esfregando as mãos.

— Precisamos de uma corda forte e comprida — pediu Lief, vendo que Barda nada iria dizer. — E, também, algo para pés doloridos, se você tiver.

— Se eu tiver? — Tom gritou. — É claro que eu tenho. Tudo para o viajante. Você não viu a placa?

Ele saiu de trás do balcão e escolheu um rolo de corda fina em uma prateleira.

— Esta é a melhor que tenho — disse. — Leve e muito resistente. Três moedas de prata e ela é sua.

— Três moedas de prata por um pedaço de corda? — Barda explodiu.

— Isso é um roubo!

— Não é roubo, meu amigo, são negócios — Tom retrucou com calma, o sorriso ainda no rosto. — Pois onde mais você vai achar uma corda como esta?

Ele segurou uma das extremidades da corda e atirou-a para cima com um movimento do pulso. Ela se desenrolou como uma cobra e prendeu-se firmemente ao redor de um dos caibros do telhado. Tom puxou-a para demonstrar a sua resistência. Em seguida, sacudiu o punho novamente; a corda se desenrolou do caibro e voltou para as mãos dele, formando um rolo perfeito ao cair.

— Isso foi um truque — Barda resmungou, furioso.

— Vamos levá-la — disse Lief, fascinado, ignorando o cotovelo do amigo em suas costelas e o olhar desconfiado de Jasmine.

— Sabia que você era um homem que sabe fazer bons negócios

— Tom elogiou, esfregando as mãos. — Agora, o que mais posso lhes mostrar? Vocês não são obrigados a comprar.

Lief olhou ao redor, excitado. Se essa loja tinha uma corda que agia como se estivesse viva, que outras maravilhas poderia conter?

— Tudo! — ele exclamou. — Queremos ver tudo! Tom ficou radiante.

Jasmine não estava nem um pouco à vontade. Era evidente que não gostava daquela loja abarrotada, de teto baixo, tampouco gostava muito de Tom.

— Filli e eu vamos esperar lá fora com Kree — anunciou. Virou-se e saiu.

A próxima hora voou. Tom mostrou a Lief meias almofadadas para pés doloridos, telescópios que possibilitavam enxergar além de esquinas, pratos autolimpantes e cachimbos que soltavam bolhas de luz. Mostrou máquinas que previam o tempo, pequenos círculos brancos que pare­ciam papel, mas que inchavam e se transformavam em pães enormes quando eram molhados com água, um machado que nunca perdia o fio, um saco de dormir que flutuava, pequenas pedras que acendiam fogo e mais uma centena de invenções surpreendentes.

Lentamente, Barda esqueceu a desconfiança e começou a obser­var, fazer perguntas e participar. Quando Tom terminou, ele já tinha sido conquistado e estava tão ansioso quanto Lief para possuir quantas maravilhas daquelas pudesse. Havia coisas tão fantásticas... coisas que tornariam a jornada mais fácil, segura e confortável.

Finalmente, Tom cruzou os braços e deu um passo para trás, sor­rindo para eles.

— Então, Tom lhes mostrou tudo. Agora, o que posso lhes vender?

 

Algumas das mercadorias de Tom, como o saco de dormir flutuante, custavam mais dinheiro do que Barda e Lief possuíam, mas havia outras coisas que eles tinham condições de comprar, e foi difícil decidir.

No final, além da corda que se enrolava sozinha, eles escolheram um pacote de "Nada de Forno" — as rodelas brancas que se expandiam e se transformavam em pães — um frasco de "Puro e Claro" — um pó que tornava qualquer água potável — e algumas meias almofadadas. Era uma quantidade decepcionantemente pequena de artigos, e eles tiveram de abrir mão de vários outros muito mais interessantes, inclu­sive um frasco das pedras de acender fogo e o cachimbo que formava bolhas de luz.

— Se tivéssemos mais dinheiro! — Lief exclamou.

— Ah! — retrucou Tom, empurrando o chapéu um pouco mais para trás. — Bem, talvez possamos negociar. Além de vender, eu também compro. — E lançou um olhar astuto para a espada de Lief.

Contudo, o garoto balançou a cabeça numa firme negativa. Por mais que quisesse as mercadorias de Tom, não desistiria da espada que o pai fizera para ele na sua forja.

— O seu casaco está um pouco manchado — Tom prosseguiu casu­almente, dando de ombros. — Mas ainda assim é possível que eu lhe dê algo por ele.

Desta vez Lief sorriu. Por maior que fosse a indiferença que Tom aparentava, era evidente que ele sabia muito bem que o casaco tecido pela mãe do garoto possuía poderes especiais.

— Este casaco pode deixar quem o usa quase invisível — contou. — Ele salvou as nossas vidas mais de uma vez. Acho que também não está à venda.

— Uma pena — Tom suspirou. — Então, está bem. — E começou a recolocar as pedras de acender fogo e o cachimbo de luz no lugar.

Nesse momento, o sino da porta tilintou e um estranho entrou. Ele era tão alto quanto Barda e tinha um aspecto tão imponente quanto o dele. Tinha longos cabelos negros emaranhados e uma barba preta mal-cuidada. Uma cicatriz irregular marcava-lhe uma das faces, formando uma mancha branca na pele morena.

Lief percebeu que Jasmine esgueirou-se para dentro por trás do viajante. Ela permaneceu parada de encontro à porta, a mão na adaga presa ao cinto. Era evidente que estava preparada para problemas.

O estranho acenou brevemente para Lief e Barda, apanhou um rolo de corda de uma prateleira, passou por eles e se inclinou sobre o balcão empoeirado.

— Quanto é? — perguntou a Tom, bruscamente.

— Para o senhor, uma moeda de prata — Tom respondeu.

Lief arregalou os olhos. Tom lhes dissera que o preço da corda era três moedas de prata. Ele abriu a boca para protestar, mas sentiu a mão de Barda em seu pulso, alertando-o. Lief olhou para cima e percebeu que o olhar do companheiro encontrava-se fixo no balcão, perto de onde estavam pousadas as mãos do estranho. Havia uma marca ali. O recém-chegado a havia desenhado na poeira.

O sinal secreto de resistência ao Senhor das Sombras! O sinal que haviam visto rabiscado nas paredes tantas vezes em seu trajeto para o Lago das Lágrimas! Ao desenhá-lo no balcão, o homem dera um aviso a Tom e este reagira abaixando o preço da mercadoria.

O homem jogou uma moeda de prata na mão de Tom e, ao fazê-lo, a manga de seu casaco casualmente apagou a marca. Tudo aconteceu muito depressa. Se Lief não tivesse visto a marca com os próprios olhos, não teria acreditado que ela estivera ali.

— Ouvi boatos sobre estranhos acontecimentos no Lago das Lágri­mas e também em todo o território ao longo do riacho — o estranho comentou, despreocupado, quando se virou para sair. — Ouvi dizer que Thaegan é coisa do passado.

É mesmo? — Tom comentou com naturalidade. — Não sei. Sou apenas um pobre comerciante e não sei nada sobre isso. Que eu saiba, os espinheiros na beira da estrada continuam tão selvagens quanto antes.

— Os espinheiros não são resultado de feitiçaria, mas de uma cen­tena de anos de pobreza e negligência — o estranho comentou em tom de desprezo. — Os espinheiros do rei de Del, como eu e muitas outras pessoas os chamam.

Lief sentiu um peso no coração. Ao fazer o sinal secreto, o estranho provara que se dedicava a resistir ao Senhor das Sombras, mas estava claro que odiava a lembrança dos reis e rainhas de Deltora tanto quanto o próprio Lief uma vez odiara e os culpava pelas desventuras do reino.

Ele sabia que nada podia dizer, mas não pôde evitar olhar fixamente para o homem quando este passou. O estranho retribuiu-lhe o olhar sem sorrir e saiu da loja, roçando em Jasmine ao passar pela porta.

— Quem era ele? — Barda perguntou a Tom num sussurro.

— Não mencionamos nomes na loja de Tom, a não ser o dele próprio, senhor — Tom respondeu com calma, ajeitando o chapéu na cabeça com firmeza. — Nesses tempos difíceis, é melhor assim.

Lief ouviu a porta tilintar outra vez e, ao virar-se, viu Jasmine sair. A ameaça de perigo havia passado e ela estava mais tranqüila, por isso decidiu ficar ao ar livre mais uma vez.

Talvez Tom tenha percebido que Barda e Lief viram e entenderam a marca que o estranho desenhara no balcão, pois de repente apanhou as pedras de acender fogo e o cachimbo de luz e acrescentou-os ao pequeno conjunto de mercadorias.

— Sem custo extra — anunciou quando o fitaram, surpresos. — Como vocês viram, Tom sempre fica satisfeito em ajudar um viajante.

— Um viajante que esteja do lado certo — Barda retrucou, sor­rindo.

Tom, porém, ergueu levemente as sobrancelhas, como se não tivesse idéia do que Barda dizia, e estendeu a mão para receber o pagamento.

— Foi um prazer servi-los, senhores — disse ele quando lhe entrega­ram o dinheiro. Contou as moedas rapidamente, assentiu e guardou-as na caixa.

— E o nosso brinde? — Lief quis saber, ousado. — O aviso na vitrine diz...

— Ah, é claro — Tom lembrou. — O brinde. — Ele se inclinou e reme­xeu debaixo do balcão. Ao se levantar, segurava uma pequena caixa achatada de lata que entregou a Lief.

Ele examinou o objeto. A lata cabia facilmente na palma de sua mão e parecia bastante velha. As letras desbotadas da tampa diziam simplesmente:

DEVORADORES DE ÁGUA

USEM COM CUIDADO

— O que é isso? — Lief indagou, confuso.

— As instruções estão no verso — informou Tom.

Então o homem parou de falar, como se prestasse atenção em algo. De repente, saiu de trás do balcão e disparou pela porta dos fundos da loja.

Na pressa, deixou a porta aberta, e Lief e Barda o seguiram. Para surpresa deles, a porta conduzia diretamente a um pequeno campo rodeado por uma cerca branca, completamente escondido da estrada pelas árvores altas que o cercavam. Três cavalos cinzentos encontravam-se próximos à cerca e, sentada sobre ela, afagando-os, estava Jasmine, com Kree empoleirado em seu ombro.

Tom caminhou a passos largos até a cerca, agitando os braços. — Não toque nos animais, por favor! — ele gritou. — Eles são valiosos.

— Eu não os estou machucando — Jasmine se defendeu, indignada, mas obedeceu. Os animais resfolegaram, desapontados.

— Cavalos! — Barda sussurrou para Lief. — Se tivéssemos cavalos... Nossa jornada seria muito mais fácil.

Lief assentiu, movendo lentamente a cabeça. Ele nunca montara antes e tinha certeza de que tampouco Jasmine o fizera, mas certamente eles poderiam aprender depressa. No lombo de um cavalo, poderiam escapar do inimigo e até mesmo dos Guardas Cinzentos.

— Você nos venderia os seus animais? — ele perguntou, quando se aproximaram de Tom. — Por exemplo, se lhe devolvêssemos todas as mercadorias que compramos, isso seria suficiente...

— Nada de devoluções — Tom disparou, áspero. — Nada de reem­bolsos, nada de arrependimentos.

Lief mostrou-se profundamente desapontado.

— Do que você está falando? — Jasmine retrucou. — Que negócio é esse de "comprar" e "vender"?

— Os seus amigos gostariam de ter alguns animais para montar, senhorita — Tom lhe explicou, fitando-a, surpreso, como se Jasmine fosse uma criança. — Mas eles não têm mais nada para me dar em troca. Gastaram todo o dinheiro em outras coisas. E... — ele olhou de relance para o casaco e a espada de Lief — não querem trocar mais nada.

Jasmine assentiu, devagar, procurando entender.

— Talvez, então, eu tenha algo para lhe dar em troca — ela disse. — Tenho os meus tesouros.

Ela começou a remexer nos bolsos, de onde tirou uma pena, um pedaço de barbante enrolado, algumas pedras, a segunda adaga e o pente de dentes quebrados que estava em seu ninho nas Florestas do Silêncio. Tom a observava, sorrindo e sacudindo a cabeça.

— Jasmine! Nenhuma dessas coisas é... — Lief começou, sentindo-se um tanto envergonhado.

E, então, ficou boquiaberto. Barda conteve um grito e Tom arre­galou os olhos.

Jasmine havia apanhado uma bolsinha e a estava segurando de ponta-cabeça, indiferente. De dentro dela, saíam moedas de ouro que saltavam brilhantes em seu colo.

 

"Mas é claro", pensou Lief, depois de passado o susto. Jasmine havia roubado os guardas cinzentos, vítimas dos horrores das florestas do silêncio. Lief vira uma grande quantidade de moedas de ouro e prata entre os tesouros que ela guardava no ninho do alto da árvore, mas não se dera conta de que ela trouxera algumas quando deixou as florestas para juntar-se a eles. Jasmine tinha se esquecido completamente das moedas até aquele momento e, por não representarem nada mais do que belas recordações, ela não as mencionara antes.

Algumas moedas caíram no chão. Barda apressou-se em apanhá-las, mas Jasmine mal olhou para elas. Ela observava os olhos brilhantes de Tom. Talvez não tivesse compreendido o processo de compra e venda, mas reconhecia a ganância quando a via.

— Você gosta disso? — ela perguntou, erguendo a mão cheia de moedas.

— De fato, eu gosto, senhorita — Tom respondeu, recuperando-se. — E gosto muito.

— Então, vai trocar os cavalos por elas?

Uma expressão estranha percorreu o rosto de Tom — uma expressão cheia de dor, como se a sua cobiça pelo ouro estivesse em luta com outro sentimento. Como se ele estivesse calculando, considerando os riscos.

Finalmente, ele pareceu chegar a uma decisão.

— Não posso vender os cavalos — informou, pesaroso. — Eles foram prometidos a outras pessoas. Mas... tenho algo melhor. Se vocês me acompanharem...

Tom conduziu-os a um galpão numa das extremidades do campo. Abriu a porta e sinalizou para que entrassem.

Juntas, num canto, mastigando feno, havia três criaturas de apa­rência muito estranha. O tamanho era praticamente o mesmo dos cavalos, mas tinham pescoços longos, cabeças muito pequenas, orelhas estreitas e caídas e, o que era mais surpreendente, apenas três patas — uma grossa na frente e duas mais finas atrás. O corpo era coberto por manchas irregulares pretas, marrons e brancas como se tivessem sido borrifadas com tinta e, em vez de ferraduras, tinham pés grandes, chatos e peludos, cada um com dois dedões largos.

— Que animais são esses? — Barda perguntou, abismado.

— Ora, são muddlets — gritou Tom, dando um passo e virando um dos animais na direção deles. — E excelentes exemplares da raça. Corcéis feitos para um rei, senhor. Exatamente o que você e seus companheiros necessitam.

Barda, Lief e Jasmine entreolharam-se, hesitantes. A idéia de poder cavalgar em vez de caminhar era muito atraente, mas os muddlets eram muito estranhos.

— Eles se chamam Noodle, Zanzee e Pip — informou Tom, e deu um tapinha afetuoso na anca de cada um dos animais. Estes continuaram a ruminar o feno, completamente impassíveis.

— Eles parecem bastante mansos — Barda disse, após um momento.

— Mas eles correm? São velozes?

— Velozes? — Tom exclamou, erguendo as mãos e revirando os olhos.

— Meu amigo, eles são tão velozes quanto o vento! E também são fortes, muito mais fortes do que qualquer cavalo. E leais... ah, são famosos por sua lealdade. Além disso, comem muito pouco e se desenvolvem com trabalho duro. Muddlets são as montarias preferidas por todos nestas bandas. Mas é difícil consegui-los. Muito difícil.

— Quanto você quer por eles? — Lief perguntou, bruscamente.

— Que tal vinte e uma moedas de ouro pelos três? — Tom sugeriu, esfregando as mãos.

— Que tal quinze? — Barda rugiu.

— Quinze? — Tom pareceu chocado. Por esses esplêndidos animais de que gosto como se fossem meus próprios filhos? Você está querendo roubar o pobre Tom? Quer que ele se transforme num mendigo?

Jasmine pareceu preocupada, mas a expressão de Barda não se alterou. — Quinze — ele repetiu.

— Dezoito! — Tom rebateu, erguendo as mãos. — Com selas e arreios. Ora... há preço mais justo que esse?

Barda lançou um olhar rápido para Lief e Jasmine e ambos ace­naram vigorosamente.

— Muito bem — respondeu.

E assim a transação foi concluída. Tom apanhou as selas e os arreios e ajudou Lief, Barda e Jasmine a carregar os muddlets com suas mochilas. Em seguida, conduziu os animais para fora do galpão. Eles caminhavam com um estranho bambolear, a pata da frente adiantando-se e as duas traseiras gingando juntas logo depois.

Tom abriu o portão da cerca e eles saíram do campo, observados pelos três cavalos cinzentos. Lief sentiu uma pontada de arrependi­mento. No calor da negociação com Tom, esquecera-se dos cavalos. Como seria bom sair cavalgando neles e não nessas criaturas estranhas e saltitantes.

"Tudo bem", pensou ele, afagando a traseira larga de Noodle. Em breve nos acostumaremos a estes animais. Não há dúvidas de que no final de nossa jornada teremos nos afeiçoado muito a eles.

Mais tarde, ele se lembraria desse pensamento — com amargura.

Quando chegaram à frente da loja, Tom segurou as rédeas dos muddlets enquanto os três companheiros montavam em seus lombos.

Após discutirem, Jasmine ficou com Zanzee; Lief, com Noodle; Barda, com Pip, embora não houvesse muito o que escolher, pois os animais eram muito parecidos.

As selas cabiam exatamente atrás dos pescoços dos animais, onde seus corpos eram mais estreitos. A bagagem foi amarrada atrás, sobre suas largas ancas. Era um arranjo extremamente confortável, mas, ao mesmo tempo, Lief sentiu-se um pouco ansioso. O chão parecia muito longe e ele estranhava as rédeas nas mãos. De repente, perguntou-se se aquela tinha sido uma boa idéia, afinal, embora, é claro, fizesse o possível para não demonstrar as suas dúvidas.

Os muddlets resfolegaram com prazer. Estavam claramente satis­feitos de sair ao ar livre e esperavam ansiosamente pelo exercício.

— Segurem firme as rédeas — disse Tom. — Talvez eles fiquem um pouco agitados no início. Digam Brix quando quiserem que eles andem e Snuff para que parem. Falem alto, pois eles não ouvem muito bem. Amarrem-nos bem quando pararem para que eles não se percam. E isso é tudo.

Lief, Barda e Jasmine assentiram.

— Mais uma coisa... — Tom murmurou, mexendo nas unhas. — Eu não lhes perguntei para onde vão, pois não me interessa. Saber das coi­sas é perigoso nestes tempos difíceis. Mas vou lhes dar um conselho. É um excelente conselho e eu sugiro que vocês o sigam. Daqui a cerca de meia hora vocês vão chegar a uma bifurcação na estrada. Sigam pelo caminho da esquerda, a todo custo, por mais que se vejam tentados a ir pela direita. Agora... boa viagem!

Ao dizer essas últimas palavras, ergueu uma das mãos, bateu nas ancas de Noodle e gritou "Brix!" Com um movimento cambaleante, Noodle começou a andar, seguido de perto por Pip e Zanzee. Kree pai­rava sobre eles, grasnando.

— Lembrem-se -Tom gritou atrás deles. — Segurem firme as rédeas! Sigam pelo caminho da esquerda!

Lief gostaria de ter acenado para mostrar que tinha ouvido, mas não ousou soltar as rédeas, pois Noodle estava acelerando o passo. Suas orelhas caídas eram arremessadas para trás pelo vento e suas patas potentes saltavam para a frente.

Lief nunca havia visto o mar, pois, antes de ele nascer, o Senhor das Sombras havia proibido a presença dos cidadãos de Del na costa, mas imaginou que a sensação de cavalgar nas costas de um agitado muddlet devia ser muito parecida com a de navegar num dia de tempestade. A tarefa exigia toda a sua atenção.

Após cerca de dez minutos, o entusiasmo dos animais diminuiu e eles passaram a andar num ritmo regular e saltitante. Agora, Noodle fazia com que Lief se lembrasse de um cavalo de balanço que teve quando criança, não mais de um barco em um mar revolto.

Aquilo não era tão difícil, pensou. Na verdade, era fácil. Ele se sentia orgulhoso e satisfeito. O que seus amigos diriam se pudessem vê-lo naquele momento?

A estrada era larga e os companheiros passaram a cavalgar lado a lado. Embalado pelo movimento oscilante, Filli se ajeitou para dormir dentro do casaco de Jasmine e, agora que sabia que tudo estava bem, Kree voava à frente, mergulhando no ar vez ou outra para apanhar um inseto. Jasmine cavalgava em silêncio, a expressão pensativa. Barda e Lief conversavam.

— Estamos viajando num ritmo muito bom — Barda concluiu com satis­fação. — Estes muddlets são mesmo excelentes montarias. Só não entendo por que nunca ouvi falar deles antes. Nunca vi um deles em Del.

— Tom disse que é difícil consegui-los — respondeu Lief. — Sem dúvida, as pessoas desta parte de Deltora os conservam para si mesmas. E Del sabe pouco sobre o que acontece no interior desde a chegada do Senhor das Sombras.

Jasmine fitou-o rapidamente e pareceu prestes a falar, mas então fechou a boca com firmeza e não disse nada. Sua expressão estava carrancuda.

Eles prosseguiram em silêncio por alguns instantes e então, final­mente, Jasmine decidiu se manifestar.

— Esse lugar para onde vamos, a Cidade dos Ratos... Não sabemos nada sobre ela, sabemos?

— Somente que é cercada por muros, parece estar deserta e fica isolada na curva de um rio chamado de Largo — disse Barda. — Ela foi vista por viajantes de longe, mas nunca ouvi uma palavra sequer sobre alguém que tenha atravessado os seus muros.

— Talvez ninguém que tenha entrado tenha sobrevivido para contar a sua história — disse Jasmine, sombria. — Já pensou nisso?

 

Barda deu de ombros.

— A cidade dos ratos tem uma reputação maligna, e um Ak-Baba foi visto nos céus acima dela na manhã em que o senhor das sombras invadiu Del. Provavelmente, uma das pedras do cinturão foi escondida ali.

— Então, precisamos ir até lá, mas sabemos muito pouco sobre o que iremos encontrar. E não temos como nos preparar ou pensar em algum plano — concluiu Jasmine, com a voz dura.

— Não nos preparamos para o Lago das Lágrimas nem para as Florestas do Silêncio — Lief argumentou com firmeza. — E mesmo assim fomos bem-sucedidos em ambos os lugares. Da mesma forma como seremos neste.

— Palavras corajosas! — Jasmine disse, jogando a cabeça para trás. — Talvez você tenha esquecido que nas Florestas do Silêncio você teve a mim para ajudar e que no Lago das Lágrimas tínhamos Manus para nos guiar. Desta vez é diferente. Estamos sozinhos, sem conselhos ou ajuda.

As palavras francas da companheira irritaram Lief, e ele percebeu que haviam irritado Barda também. Talvez ela estivesse certa, mas por que desanimá-los?

Ele se afastou dela e fitou o caminho à sua frente. Os companheiros prosseguiram em silêncio.

Não muito tempo depois, a estrada se dividiu em duas, conforme Tom lhes prevenira. Havia uma placa no centro da bifurcação, um lado apontando para a esquerda; o outro, para a direita.

— Rio Largo! — Lief exclamou. — É o rio ao lado do qual foi cons­truída a Cidade dos Ratos. Puxa, que sorte!

Entusiasmado, começou a virar a cabeça de Noodle para a direita.

— Lief, o que você está fazendo? — Jasmine protestou. — Devemos tomar o caminho da esquerda. Lembre-se do que Tom falou.

— Você não percebe, Jasmine? Tom nunca sonharia que iríamos à Cidade dos Ratos por vontade própria — Lief olhava para ela por sobre o ombro e falava, enquanto impelia Noodle a prosseguir. — Portanto, é natural que tenha nos advertido sobre esse caminho. Mas, na verdade, é por ele que devemos seguir. Venha!

Barda e Pip já seguiam Lief. Ainda indecisa, Jasmine permitiu que Zanzee a carregasse para junto dos dois.

A trilha era tão larga quanto a outra, e muito boa também, embora fosse possível ver marcas de rodas de carroças. À medida que avançavam, o terreno que a ladeava ficava cada vez mais verde e exuberante. Não havia áreas ressequidas nem árvores mortas. Frutas cresciam à vontade em todos os lugares e abelhas zumbiam ao redor das flores, as patas pesadas e carregadas de pólen.

Na extrema direita, viam-se colinas arroxeadas envoltas em névoa e, à esquerda, o verde de uma floresta. Mais adiante, a estrada fazia várias curvas e, olhada a distância, assemelhava-se a uma fita. O ar era fresco e doce.

Os muddlets fungaram, ansiosos, e começaram a acelerar.

— Eles estão gostando do lugar — Lief riu, afagando o pescoço de Noodle.

— E eu também — Barda acrescentou. — Como é bom finalmente poder cavalgar por um campo fértil. Pelo menos esta terra não foi des­truída.

Eles passaram por um bosque e notaram que, não muito longe dali, uma estrada secundária saía da principal em direção às colinas averme­lhadas. Despreocupado, Lief perguntou-se para onde conduziria.

De repente, Noodle emitiu um som estranho e excitado, seme­lhante a um latido, e esticou o pescoço, rebelando-se contra os arreios. Pip e Zanzee também estavam agitados e começaram a saltar para a frente, avançando grandes distâncias a cada passo. Lief era jogado e sacudido na sela e precisou de todas as forças para não cair.

— O que aconteceu com eles? — gritou, enquanto o vento lhe atin­gia o rosto.

— Eu não sei — Barda respondeu. Ele tentava fazer com que Pip diminuísse o ritmo, mas o animal não lhe dava a menor atenção. — Snuff! — ordenou. Mas Pip só fazia correr mais depressa, o pescoço estendido, a boca aberta e ansiosa.

Jasmine gritou quando Zanzee estendeu a cabeça para a frente, arran-cando-lhe os arreios das mãos com violência. Ela escorregou para o lado e, por um momento assustador, Lief pensou que ela iria cair, porém a garota conseguiu envolver o pescoço de sua montaria com os braços e colocar-se sobre a sela outra vez. Ali permaneceu agarrada, carrancuda, a cabeça cur­vada por causa do vento, enquanto Zanzee continuava em sua disparada, espalhando as pedras da estrada atingidas por suas patas voadoras.

Não havia nada que eles pudessem fazer. Os muddlets eram fortes — fortes demais para eles. Os animais se dirigiram com estrondo para o ponto em que a trilha se bifurcava, saíram da estrada principal numa nuvem de poeira e dispararam para cima, na direção das enevoadas colinas avermelhadas.

Com os olhos lacrimejantes e a voz rouca de tanto gritar, Lief viu as colinas se aproximando rapidamente, envoltas na névoa avermelhada em meio à qual vislumbrou um vulto negro. Ele piscou e apertou bem os olhos, tentando ver do que se tratava. O vulto se aproximava cada vez mais...

E, então, sem mais nem menos, Noodle parou de repente. Lief foi atirado por cima da cabeça do animal, seu próprio grito de medo ecoando nos ouvidos. Ele mal pôde ouvir os gritos de Jasmine e Barda quando estes também foram arremessados de suas montarias. Caiu de encontro ao solo e perdeu os sentidos.

Todo o corpo de Lief doía. Algo cutucava o seu ombro e ele tentou abrir os olhos. Parecia que estavam grudados, mas conseguiu abri-los depois de forçá-los um pouco. Um vulto vermelho e sem rosto assomava sobre ele. Lief tentou gritar, mas um gemido estrangulado foi tudo o que escapou de sua garganta.

O vulto vermelho recuou.

— Este está acordado — disse uma voz.

Uma mão se aproximou segurando um copo de água. Lief ergueu a cabeça e bebeu sofregamente. Aos poucos, percebeu que estava deitado ao lado de Barda e Jasmine no chão de um grande salão. Muitas tochas queimavam ao redor das paredes de pedra, iluminando o aposento e espalhando sombras bruxuleantes sem, contudo, conseguir aquecer o ar frio. Havia uma imensa lareira, num canto, cheia de grandes pedaços de madeira, mas o fogo estava apagado.

Um cheiro penetrante de sabão misturava-se ao das tochas acesas. Talvez o chão tivesse sido lavado recentemente, pois as pedras sobre as quais Lief se encontrava deitado estavam úmidas e não se via um grão de poeira sequer.

O aposento estava cheio de pessoas. Elas tinham as cabeças ras­padas e vestiam estranhos conjuntos negros apertados e botas altas. Todas fitavam fixamente os companheiros no chão, fascinadas e ate­morizadas.

A pessoa que ofereceu a água se afastou e a alta figura vermelha que tanto assustara Lief quando este recuperou a consciência retornou ao seu campo de visão. Naquele momento, ele pôde ver que se tratava de um homem vestido totalmente de vermelho. Até mesmos as suas botas eram vermelhas. As mãos eram cobertas por luvas e a cabeça estava envolta numa faixa apertada que lhe cobria o nariz e a boca, dei­xando espaço somente para os olhos. Um longo chicote feito de couro trançado pendia-lhe da cintura e se arrastava atrás dele, emitindo um som sibilante quando o homem se movia.

Ele constatou que Lief voltara a si e o observava. — Noradzeer — murmurou, passando as mãos por seu corpo, dos ombros até os qua­dris, o que certamente era algum tipo de saudação.

Lief queria certificar-se de que aquelas pessoas, não importava quem fossem, soubessem que ele era amigável. Esforçou-se para sentar-se e tentou imitar o gesto e a palavra.

As pessoas de preto murmuraram e também passaram as mãos em seus corpos de cima a baixo, sussurrando "Noradzeer, noradzeer, nora­dzeer...", até que as suas vozes se fizeram ouvir em todo o aposento.

Lief olhou-os fixamente, sua cabeça parecendo flutuar.

— Que... que lugar é este?

— Aqui é Noradz — disse o homem de vermelho, a voz abafada pelo tecido que lhe cobria a boca e o nariz. — Visitantes não são bem-vindos aqui. Por que vieram?

— Não era... a nossa intenção — Lief contou. — Nossas montarias dispararam e nos desviaram do caminho. Nós caímos... — Ele fez uma careta ao sentir uma pontada atrás dos olhos.

Jasmine e Barda também estavam se mexendo e receberam água. O vulto vermelho se virou para eles e os cumprimentou da mesma forma que a Lief. Então falou novamente.

— Vocês estavam caídos do lado de fora de nossos portões e seus pertences estavam espalhados à sua volta — informou ele, com uma voz fria e desconfiada. — Não vimos nenhum animal.

— Então devem ter fugido — Jasmine exclamou com impaciência.

É claro que nós não iríamos nos jogar no chão com tanta força a ponto de ficarmos inconscientes.

O homem de vermelho se ergueu e agitou o chicote de modo ameaçador.

— Cuidado com a língua, ser impuro — disparou. — Fale com respeito! Não sabe que sou Reece, primeiro entre os Nove Ra-Kacharz?

Jasmine recomeçou a falar, mas Barda ergueu a voz, encobrindo-lhe as palavras.

— Sentimos muito, senhor Ra-Kachar — desculpou-se em voz alta.

— Somos estranhos e não conhecemos os seus costumes.

— Os Nove Ra-Kacharz fazem o povo seguir as leis sagradas da pureza, da cautela e do dever — anunciou em tom monótono. — Por isso, a cidade está segura. Noradzeer.

— Noradzeer — as pessoas murmuraram, curvando as cabeças calvas e tocando os corpos dos ombros aos quadris.

Barda e Lief fitaram-se rapidamente. Ambos pensaram que, quanto antes pudessem deixar aquele estranho lugar, mais felizes seriam.

 

Jasmine ergueu-se com dificuldade e olhou ao redor do grande aposento, irritada. As pessoas de preto murmuravam e se afastavam dela como se suas roupas maltrapilhas e seus cabelos emaranhados pudessem contaminá-los.

— Onde está Kree? — ela quis saber.

— Há outro de vocês? — Reece indagou bruscamente, virando o rosto para ela.

— Kree é um pássaro. — Lief explicou depressa, enquanto ele e Barda também se levantavam. — Um pássaro preto.

— Kree deve estar esperando por você lá fora, Jasmine — Barda garantiu em voz baixa. — Agora, fique quieta. Filli está em segurança, não é?

— Sim. Mas ele está escondido debaixo do meu casaco e não vai sair — Jasmine murmurou, de mau humor. — Ele não gosta daqui, e eu também não.

Barda virou-se para Reece e fez uma reverência.

— Estamos muito gratos por sua atenção para conosco, senhor. — disse em voz alta. — Mas pedimos a sua permissão para continuarmos a nossa jornada.

É hora de comermos, e um prato foi preparado para vocês. — Reece avisou, os olhos negros percorrendo-lhes os rostos como se os desafiasse a contestá-lo. — A comida já foi abençoada pelos Nove. Depois de abençoada, deve ser consumida em uma hora. Noradzeer.

— Noradzeer — repetiram as pessoas com reverência.

Antes que Barda pudesse dizer mais alguma coisa, gongos come­çaram a soar e duas grandes portas no final do aposento se abriram, revelando uma sala de jantar. Oito figuras altas, vestidas de vermelho como Reece, estavam paradas na entrada, quatro de cada lado. Eram os outros oito Ra-Kacharz, deduziu Lief.

Longos chicotes de couro pendiam dos pulsos dos Ra-Kacharz. Todos muito sérios, observavam as pessoas de preto passarem por eles.

A cabeça de Lief doía. Ele nunca sentira tão pouca fome em sua vida. Mais que tudo, queria sair daquele lugar, mas estava claro que ele, Barda e Jasmine não teriam permissão de partir antes de comer.

Relutantes, eles atravessaram a sala de jantar, tão limpa e asseada quanto o outro aposento e cuja generosa iluminação fazia com que todos os cantos ficassem visíveis. Mesas simples, altas e com pernas finas de metal, dispostas em fileiras, ocupavam o aposento. Em cada lugar, havia um prato e uma caneca, mas não havia talheres, tampouco cadeiras. Aparentemente, o povo de Noradz comia com as mãos e em pé.

Na extremidade do salão, um conjunto de degraus conduzia a um estrado elevado onde havia uma outra mesa. Lief imaginou que era ali que os Ra-Kacharz iriam comer, pois do alto poderiam ver tudo o que ocorria embaixo.

Reece conduziu Lief, Barda e Jasmine à mesa deles, que fora posta um pouco afastada das demais. Em seguida, reuniu-se aos outros Ra-Kacharz que, como Lief imaginara, aguardavam em pé junto à mesa no estrado, voltados para a multidão.

Quando assumiu o seu lugar no centro, Reece ergueu as mãos enluvadas e inspecionou o aposento.

— Noradzeer! — saudou, deslizando as mãos dos ombros aos quadris.

— Noradzeer! — respondeu o povo.

Com um único movimento, todos os Ra-Kacharz afastaram a faixa que lhes cobria a boca e o nariz. Imediatamente, os gongos soaram mais uma vez e mais pessoas vestidas de preto entraram no salão carregando enormes bandejas cobertas.

— Não consigo imaginar uma maneira mais desagradável para fazer uma refeição! — Jasmine sussurrou. Ela era a menor pessoa no aposento e o seu queixo mal alcançava o tampo da mesa.

Uma copeira de mãos trêmulas aproximou-se e depositou sua carga sobre a mesa deles. Seus olhos azuis demonstravam medo, pois servir os estranhos era claramente assustador para ela.

— Não há crianças em Noradz? — Lief lhe perguntou. — As mesas são tão altas.

— As crianças comem somente na sala de treinamento — a serva respondeu em voz baixa. — Precisam aprender os ritos sagrados antes de poder assumir os seus lugares no salão. Noradzeer.

Ela retirou a tampa da bandeja e os três companheiros quase gri­taram de espanto. A bandeja estava dividida em três partes. A maior exibia uma série de minúsculas salsichas e outras carnes dispostas em palitos de madeira com vários legumes de diversas cores e formatos. A segunda continha vários pastéis dourados e apetitosos e pãezinhos brancos e macios. A terceira e menor estava repleta de frutas em calda, bolinhos com cobertura cor-de-rosa adornados com flores de açúcar e estranhas sementes redondas e marrons.

Barda apanhou um dos doces e fitou-o fixamente, como que espantado.

— Será que isso é... chocolate? — exclamou. Empurrou o doce para dentro da boca e fechou os olhos. — É! — murmurou alegremente. — Puxa, não como chocolate desde que era guarda do palácio! Há mais de dezesseis anos!

Lief nunca vira alimentos tão sofisticados na vida e, de repente, apesar de tudo, constatou que estava morrendo de fome. Apanhou um dos palitos e começou a saborear a carne e os legumes. A comida estava deliciosa! Era diferente de tudo que provara antes.

— Isso é muito bom! — murmurou de boca cheia para a copeira. Ela olhou para ele de relance, satisfeita, mas um tanto confusa. Natural­mente, estava acostumada à comida de Noradz e não conhecia nenhum outro tipo de alimento.

Nervosa, ela estendeu a mão para levar a pesada tampa embora. Ao fazê-lo, seus dedos tremeram e a borda da tampa atingiu um dos pãezinhos, tirando-o do lugar. O pão rolou pela mesa e, antes que Lief ou ela pudessem apanhá-lo, caiu no chão.

A garota gritou — um grito alto e estridente de terror. No mesmo momento, ouviram-se urros de raiva vindos da mesa sobre o estrado. Todos no aposento ficaram paralisados.

— Comida foi derrubada — rugiram os Ra-Kacharz em uníssono. — Recolham a comida do chão! Prendam a ofensora! Prendam Tira!

Várias pessoas na mesa mais próxima aos visitantes viraram-se. Uma delas disparou em direção ao pãozinho caído, apanhou-o e ergueu-o. As demais agarraram a copeira, que gritou novamente quando come­çaram a arrastá-la para a mesa dos Nove.

Reece foi até os degraus e desenrolou o chicote.

— Tira derrubou comida no chão — trovejou ele. — Derrubar comida é um ato maligno. Noradzeer. O mal deve ser expulso com cem chico­tadas. Noradzeer.

— Noradzeer! — repetiram as pessoas de preto ao redor das mesas. Elas observaram Tira, assustada e soluçando, ser atirada aos pés de Reece. Ele ergueu o chicote...

— Não! — Lief deixou a mesa como um raio. — Não a castigue! Fui eu! A culpa é minha!

— Você?! — Reece trovejou, baixando o chicote.

— Sim — confirmou Lief. — Eu fiz com que a comida caísse. Sinto muito. — Ele sabia que estava sendo muito audacioso em assumir a culpa, mas, por mais estranhos que fossem os costumes desse povo, não suportaria ver a garota ser punida por um mero acidente.

Os demais Ra-Kacharz cochicharam entre si. O que se encontrava mais perto de Reece aproximou-se ainda mais e lhe disse algo. Houve um momento de silêncio, quebrado apenas pelos soluços da garota, caída no chão. E, então, Reece encarou Lief mais uma vez.

— Você é um intruso impuro — disse. — Você desconhece as normas. Os Nove decidiram que será poupado do castigo.

Sua voz era severa e era evidente que ele não aprovava a decisão, mas o seu voto tinha sido superado pelos dos demais.

Com um suspiro de alívio, Lief voltou à mesa em silêncio, enquanto Tira se erguia do chão com esforço e fugia do aposento aos tropeços.

Barda e Jasmine cumprimentaram-no com um erguer de sobran­celhas.

— Essa foi por pouco — Barda murmurou.

— Valeu a pena correr esse risco — Lief respondeu alegremente, embora o coração ainda batesse forte por causa da recente escapada. — Era provável que eles não punissem um estranho da mesma forma que a um deles — pelo menos não na primeira ocasião.

Jasmine deu de ombros. Ela tirara alguns legumes de um dos palitos e segurava-os perto do ombro, tentando convencer Filli a sair e comer.

— Deveríamos sair daqui o mais rápido possível — disse ela. — Essas pessoas são muito estranhas. Quem sabe que outras leis excêntricas... Ah! Filli, aí está você.

Tentada pelo aroma dos petiscos, a pequena criatura finalmente se aventurou a tirar o focinho de baixo da gola do casaco de Jasmine. Com cuidado, ela foi até o ombro da dona, pegou um pedaço do legume apetitoso e começou a mordiscá-lo.

De repente, ouviu-se um som estranho e abafado na mesa do estrado. Lief olhou para cima e, desconcertado, percebeu todos os Ra-Kacharz apontando para Jasmine com as expressões transformadas em máscaras de terror.

As demais pessoas que se encontravam no aposento viraram-se para olhar. Houve um momento de silêncio assustado e, então, subi­tamente, encaminharam-se com passos pesados até a porta, gritando aterrorizados.

— A maldade! — A voz de Reece ecoou do estrado. — Os impuros trouxeram a maldade para os nossos aposentos. Estão tentando nos destruir. Vejam! A criatura rasteja ali, em seu corpo! Mate-a! Mate-a!

Os Nove Ra-Kacharz correram do estrado e investiram contra Jas­mine como se fossem um só, usando seus chicotes para abrir caminho entre a multidão em pânico.

É Filli! — Barda exclamou. — Eles estão com medo de Filli.

— Mate-a! — os Ra-Kacharz berraram, já muito próximos. Barda, Lief e Jasmine olharam ao redor, desesperados. Não havia para onde fugir. Várias pessoas empurravam-se em todas as portas, tentando passar.

— Corra, Filli! — Jasmine gritou, atemorizada. — Corra! Esconda-se!

Ela atirou Filli ao chão e ele partiu em disparada. As pessoas gri­tavam ao vê-lo, tropeçavam, caíam e se pisoteavam, aterrorizadas. Ele escapou por uma brecha entre a multidão e sumiu.

Lief, Barda e Jasmine, porém, viram-se encurralados, cercados pelos Ra-Kacharz.

 

As grandes toras de madeira na lareira da sala de reuniões foram acesas e as chamas espalharam uma luz vermelha e espectral sobre o rosto dos prisioneiros.

Os três amigos permaneceram ali parados durante quatro horas enquanto se fazia uma inútil busca por Filli. Os Ra-Kacharz os vigia­vam, carrancudos, e seus olhares se tornavam cada vez mais sombrios à medida que os minutos passavam.

Exaustos e silenciosos, Lief, Barda e Jasmine aguardavam o seu destino. Já se haviam dado conta de que era inútil discutir, enfurecer-se ou implorar, pois, ao levarem um animal peludo a Noradz, eles haviam cometido o mais hediondo dos crimes.

Finalmente, Reece falou.

— Não podemos mais esperar. O julgamento deve começar.

Um gongo soou e pessoas de preto começaram a se enfileirar no aposento, encarando os prisioneiros. Lief viu que Tira, a copeira que salvara do castigo, se encontrava na primeira fila, muito perto dele. Ele tentou encontrar-lhe o olhar, mas ela fitou o chão rapidamente.

Reece ergueu a voz para que todos pudessem ouvir.

— Por causa desses seres impuros, a maldade se espalhou em Noradz. Eles quebraram a nossa lei mais sagrada. Eles alegam que agi­ram por ignorância. Eu acredito que estão mentindo e que merecem a morte. Outros entre os Nove acreditam neles e são de opinião que a sua sentença deve ser o encarceramento. Portanto, a decisão irá caber ao Cálice Sagrado.

Barda, Jasmine e Lief olharam-se furtivamente. Que nova loucura seria aquela?

Reece apanhou uma brilhante taça de prata da prateleira acima da lareira — antes usada para tomar vinho, talvez.

— O Cálice revela a verdade — trovejou ele. — Noradzeer.

— Noradzeer — murmuraram os que observavam.

Em seguida, Reece mostrou dois pequenos cartões, cada qual com uma palavra escrita sobre ele.

— Um de vocês irá tirar um cartão do Cálice — ele instruiu, vol­tando-se para os prisioneiros. Seus olhos escuros brilhavam. — Quem será essa pessoa?

Os companheiros hesitaram. Então Lief se adiantou.

— Eu — ofereceu-se, relutante.

— Vire-se para a frente — Reece ordenou com um gesto.

Lief obedeceu. Reece afastou-se dele e dos companheiros Ra-Kacharz e colocou a mão enluvada sob o Cálice.

Lief percebeu que Tira observava Reece com muita atenção. De repente, os seus olhos azuis se arregalaram com assombro e horror. Ela fitou Lief rapidamente e seus lábios moveram-se, mudos.

O rosto de Lief começou a queimar quando ele decifrou as palavras.

Ambos os cartões dizem MORTE.

Tira deve ter visto Reece trocar o cartão VIDA por outro que dizia MORTE, oculto na manga ou na luva. O primeiro Ra-Kachar estava determinado a ver os intrusos morrerem.

O vulto alto e vermelho voltou-se para ele segurando o Cálice no alto.

— Escolha! — ordenou.

Lief não sabia o que fazer. Se anunciasse que o Cálice continha dois cartões de MORTE, ninguém acreditaria e todos pensariam que ele simplesmente estava com medo de enfrentar o julgamento. Ninguém aceitaria a sua palavra ou a de Tira contra a do primeiro Ra-Kachar de Noradz. E Reece poderia facilmente tornar a trocar as cartas, caso fosse questionado.

Lief deslizou os dedos para dentro da camisa e agarrou o topázio preso ao Cinturão. Ele o ajudara a encontrar respostas antes. Poderia ajudá-lo naquele momento? O fogo crepitava atrás dele e iluminava a figura alta parada à sua frente com um brilho sinistro. A taça de prata exibia um brilho vermelho, como uma chama sólida.

Chama. Fogo...

Com o coração batendo forte, Lief estendeu a mão para cima, mergulhou os dedos na taça e escolheu um cartão. Então, como um raio, ele rodopiou, parecendo cambalear para trás, e deixou cair nas chamas crepitantes o cartão. Este tremeluziu por um momento e foi consumido pelo fogo.

— Peço perdão por minha falta de jeito — Lief gritou diante das exclamações horrorizadas da multidão. — Mas pode-se facilmente saber qual cartão escolhi. É só verificar o que continua no Cálice.

Reece permaneceu totalmente imóvel, perturbado por uma raiva contida, quando um dos outros Ra-Kacharz tomou-lhe o Cálice da mão, retirou o cartão que se encontrava em seu interior e o ergueu.

— O cartão que permaneceu diz MORTE — anunciou. — O prisioneiro escolheu o cartão VIDA. O Cálice se manifestou.

Lief sentiu a mão de Barda agarrar-lhe o ombro. Com os joelhos trêmulos, ele virou-se para fitar os amigos, cujo olhar demonstrava alívio, mas também muitas perguntas. Eles suspeitavam que Lief tivesse quei­mado o cartão intencionalmente e perguntavam-se qual seria o motivo.

— Levem-nos para as masmorras — trovejou Reece. — Ali ficarão até o final de suas vidas, arrependendo-se do mal que fizeram.

Os outros oito Ra-Kacharz cercaram Lief, Barda e Jasmine e come­çaram a conduzi-los para fora do aposento. A multidão sussurrante abriu caminho para eles. Lief virou a cabeça e procurou Tira entre os vultos vestidos de preto, mas não conseguiu vê-la.

Ao deixarem o salão, ouviram a voz de Reece erguer-se mais uma vez quando ele se dirigiu ao povo.

— Continuem a procurar a criatura que maculou a nossa cidade -ordenou. — Ela precisa ser encontrada e morta antes do cair da noite.

Lief olhou de relance para Jasmine, que não abriu a boca, mas exibia um rosto pálido e preocupado. Ele sabia que ela estava pensando em Filli — caçado e amedrontado.

Os Ra-Kacharz empurraram os prisioneiros por um labirinto de corredores mal iluminados e por escadas de pedra sinuosas. O cheiro de sabão pairava em todos os lugares, e as pedras sob seus pés eram lisas de tanto serem escovadas.

No final dos degraus havia um amplo espaço ladeado de portas de metal, cada qual com uma estreita abertura pela qual se podia passar uma bandeja de comida. O Ra-Kachar que seguia na frente abriu uma das portas e seus companheiros empurraram Lief, Barda e Jasmine para dentro.

Jasmine deu uma olhada na cela sombria e sem janelas que os aguardava e começou a lutar ferozmente. Lief e Barda também briga­ram por sua liberdade, mas inutilmente. Eles não dispunham de armas, tampouco de proteção contra os chicotes dos Ra-Kacharz que estalavam ao redor de seus rostos e lhes machucavam braços e pernas, de forma que se viram impelidos de volta à cela. A porta foi fechada com estrondo e trancada com um pesado ferrolho.

Os amigos atiraram-se de encontro à porta e a golpearam com os punhos, mas os passos dos Ra-Kacharz já eram quase inaudíveis.

Eles examinaram a cela freneticamente em busca de algum ponto frágil, mas as estreitas camas de madeira presas a uma das paredes não podiam ser movidas e a tina vazia presa à outra era sólida como uma rocha.

— Eles vão voltar — Barda disse, sério. — Fomos condenados à vida, não à morte. Eles terão de nos alimentar e encher a tina de água. Não podem nos deixar aqui morrendo de fome e de sede.

Contudo, várias horas angustiantes se passaram sem que ninguém aparecesse.

Os três estavam mergulhados em um sono agitado quando ouviram algo arranhar a porta. Mesmo ao acordar, Lief pensou que o tímido som fora um sonho. Contudo, quando este se repetiu, ele correu até a porta, seguido de perto por Jasmine e Barda. A portinhola para a comida havia sido aberta e, através dela, conseguiram ver os olhos azuis de Tira.

— O primeiro Ra-Kachar determinou que ninguém além dele lhes trouxesse água e comida — ela murmurou. — Mas... temi que ele os tivesse... esquecido. Vocês comeram? A tina foi enchida de água?

— Não! — Lief respondeu aos sussurros. — E você sabe que ele não esqueceu, Tira. É por isso que você está aqui. Reece pretende que mor­ramos aqui.

— Não pode ser! — retrucou ela com uma voz desesperada. — O Cálice deu-lhes a vida.

— Reece não dá a mínima para o Cálice — Barda disparou. — Ele se importa apenas com a própria vontade. Tira, destranque a porta! Deixe-nos sair!

— Não posso! Não tenho coragem! Vocês trouxeram o mal para os nossos salões e ele ainda não foi encontrado. Todos, exceto os cozinheiros da noite, estão dormindo agora. É por isso que pude escapar sem que dessem por minha falta. Mas o povo está com medo e muitos choram durante o sono. Pela manhã, a busca irá recomeçar. — Pela fenda estreita, podia-se entrever o olhar da garota, obscurecido pelo medo.

— De onde viemos, animais como Filli não são malignos — Lief contou. — Não quisemos prejudicá-los ao trazê-lo para cá. Ele é amigo de Jasmine. Mas se você não nos deixar sair desta cela estaremos con­denados. Reece cuidará para que morramos de fome e sede e ninguém nunca saberá. Ninguém além de você.

A única resposta que ouviram foi um leve gemido.

— Por favor, Tira, ajude-nos! — Lief implorou. — Por favor! Seguiu-se um momento de silêncio. Então, os olhos desapareceram e eles ouviram o deslizar do ferrolho.

A porta abriu-se e eles saíram da cela rapidamente. Pálida sob a luz das tochas, Tira lhes deu água, e os amigos beberam sofregamente. Ela nada respondeu quando lhe agradeceram e, ao trancarem a porta para encobrir a fuga, Tira estremeceu e cobriu o rosto com as mãos. Sem dúvida, ela acreditava estar fazendo algo muito errado.

Contudo, quando descobriram as mochilas escondidas numa fenda das escadas, ela abafou um grito de surpresa.

— Disseram-nos que elas haviam sido colocadas na cela! — excla­mou. — Para que vocês tivessem roupas e algum conforto.

— Quem lhes disse isso? — Barda indagou, soturno.

— O primeiro Ra-Kachar — ela murmurou. — Disse que ele próprio as havia trazido para vocês.

— Bem, como você pode ver, ele mentiu — Jasmine disparou, colo­cando sua mochila nas costas.

Os companheiros subiram as escadas com dificuldade. A passa­gem acima se encontrava vazia, mas eles puderam ouvir algumas vozes distantes.

— Precisamos escapar da cidade — Barda sussurrou. — Que caminho devemos tomar?

— Não há como sair — Tira respondeu, sacudindo a cabeça, desani­mada. — O portão da colina está trancado com barras. Os que trabalham no campo são levados para fora todas as manhãs e trazidos de volta à noite. Ninguém mais pode sair, sob pena de morte.

— Deve haver outro meio! — Lief murmurou.

Tira hesitou e então fez um gesto negativo com a cabeça. Mas Jasmine percebera-lhe a hesitação e agarrou a oportunidade.

— Em que você acaba de pensar? Conte-nos a idéia que teve! — ela insistiu.

— Dizem que... que o final do Buraco leva ao mundo exterior — Tira começou, molhando os lábios. — Mas...

— O que é o Buraco? — Barda quis saber. — Onde fica?

— Fica perto das cozinhas — Tira informou, estremecendo. — É onde jogam a comida que não passa pela inspeção. Mas é... um lugar proibido.

— Leve-nos até lá! — Jasmine sussurrou ferozmente. — Agora mesmo!

 

Eles rastejaram como ladrões pelos corredores. Disparando para dentro das galerias sempre que ouviam alguém se aproximar. Finalmente, alcançaram uma pequena porta de metal.

— Ela conduz às passagens acima das cozinhas — Tira informou baixinho. -As passagens são usadas pelos Ra-Kacharz para vigiar o tra­balho feito embaixo e por aqueles que lavam as paredes da cozinha.

Ela abriu um pouco a porta. Do outro lado, vinha um aroma de comida e ruídos abafados de pratos.

— Não façam barulho — ela pediu. — Andem com cuidado e não seremos percebidos. Os cozinheiros da noite trabalham depressa, pois têm muito o que fazer antes do amanhecer.

Tira deslizou pela porta e os companheiros a seguiram. A visão que os esperava deixou-os atônitos.

O pequeno grupo encontrava-se parado numa estreita passagem de metal. Bem abaixo, estavam as grandes cozinhas de Noradz repletas de sons e iluminadas por uma luz intensa. As cozinhas eram imensas — tanto quando uma pequena vila — e encontravam-se cheias de pessoas com roupas iguais às de Tira, exceto pelo fato de serem imaculadamente brancas.

Algumas descascavam legumes ou preparavam frutas. Outras misturavam, assavam, mexiam panelas que borbulhavam nos enormes fogões. Milhares de bolos esfriavam sobre grelhas, esperando para serem cobertos e decorados. Centenas de tortas e pastéis eram retirados dos grandes fornos. De um lado, uma equipe embalava os alimentos prontos em caixas e potes de vidro ou pedra.

— Mas... isso não acontece todos os dias e noites, não é mesmo?

— assombrou-se Lief. — Quanta comida o povo de Noradz consome?

— Somente uma pequena porção da comida é consumida aqui

— Tira sussurrou. — Muito do que é preparado não passa pela inspeção e é jogado fora. — Ela suspirou. — Os cozinheiros são valorizados e trei­nados desde jovens, mas eu não gostaria de ser um deles. Eles ficam tristes por se esforçar tanto e por falhar tantas vezes.

Eles rastejaram pela passagem, observando, fascinados, a ativi­dade abaixo. Estavam andando há cinco minutos quando Tira parou e se agachou.

— Ra-Kachar! — avisou em voz baixa.

De fato, dois vultos vestidos de vermelho entravam nas cozinhas.

É uma inspeção — Tira informou.

Com as mãos nas costas, os Ra-Kacharz caminharam rapidamente para o local em que se encontravam quatro cozinheiros. Centenas de potes de frutas cristalizadas, brilhantes como jóias, estavam enfileirados num balcão à espera de inspeção.

Os Ra-Kacharz caminharam ao lado da fileira de potes observando-os atentamente. Ao atingirem o final, viraram-se e retornaram, dessa vez apontando alguns potes que eram apanhados pelos cozinheiros e colocados em outra prateleira.

Finalmente, quando a inspeção foi concluída, seis potes haviam sido separados dos demais.

— Aqueles são os potes que serão abençoados e consumidos pelas pessoas — Tira informou. — Os demais foram rejeitados. — Ela lançou um olhar solidário na direção dos cozinheiros, que, desapontados, haviam começado a colocar os potes rejeitados num enorme recipiente de metal.

Lief, Barda e Jasmine olhavam fixamente, horrorizados. Para eles, todas as frutas pareciam deliciosas e nutritivas.

— Isso é uma vergonha — Lief murmurou, zangado, quando os Ra-Kacharz se viraram e se dirigiram para outra parte das cozinhas. — Em Del, o povo está passando fome, brigando por restos. E aqui boa comida é desperdiçada.

— Não é boa comida — Tira insistiu, séria, balançando a cabeça. — Os Ra-Kacharz sabem quando a comida é impura. Com as inspeções, eles protegem o povo de doenças e enfermidades. Noradzeer.

Lief gostaria de ter argumentado, e Jasmine estava rubra de raiva. Mas Barda advertiu-os com um gesto de cabeça e pediu-lhes que se calassem. Lief mordeu o lábio. Ele sabia que Barda estava certo. Eles precisavam da ajuda de Tira e não tinha sentido aborrecê-la. Ela não tinha como entender o que ocorria no restante de Deltora, pois conhecia somente a sua cidade e as leis de acordo com as quais tinha crescido.

Em silêncio, eles se moveram pela passagem e finalmente chega­ram ao final das cozinhas. Degraus íngremes de metal conduziam piso abaixo exatamente diante de uma porta.

— O Buraco fica depois dessa porta — Tira avisou em voz baixa. -Mas...

Ela interrompeu-se e agachou-se mais uma vez, gesticulando para que seus companheiros fizessem o mesmo. Os quatro cozinheiros que haviam preparado as frutas cristalizadas entraram em seu campo de visão e carregavam o engradado com potes rejeitados, agora firme­mente selado com uma tampa de metal. Eles o carregaram pela porta e desapareceram de vista.

— Eles vão jogar o engradado no Buraco — Tira sussurrou.

Alguns momentos mais tarde, os cozinheiros voltaram e se dirigi­ram para seus lugares nas cozinhas para recomeçar a tarefa de preparar comida. Tira, Lief, Barda e Jasmine rastejaram degraus abaixo, passaram por prateleiras forradas de potes e panelas e atravessaram a porta.

Os quatro se viram em um aposento pequeno e vazio. À esquerda, havia uma porta pintada de vermelho. Na frente, na parede oposta às cozinhas, uma grade de metal barrava a entrada redonda e escura para o Buraco.

— Para onde leva a porta vermelha? — Barda quis saber.

— Para os quartos dos Nove. Dizem que eles dormem em turnos e passam por essa porta quando está na hora das inspeções — Tira sus­surrou.

Ela olhou de relance por sobre o ombro, nervosa.

— Vamos sair daqui agora. Eu os trouxe aqui porque exigiram, mas podemos ser surpreendidos a qualquer momento.

Os companheiros rastejaram para mais perto do Buraco e espiaram através da grade, de onde viram o início de um túnel mal-iluminado revestido de pedras que pareciam emitir um brilho vermelho. Ele era muito estreito e descia para a escuridão, e o teto e as laterais eram arredondadas. Em seu interior, ao longe, ouvia-se um rosnado longo e baixo.

— O que há lá dentro? — Lief murmurou.

— Não sabemos — Tira respondeu. — Somente os Ra-Kacharz podem entrar no Buraco e sobreviver.

— Isso é o que eles dizem — respondeu Lief com desprezo.

— Na minha vida, vi duas pessoas tentando escapar da cidade pelo Buraco — ela disse com suavidade. — Ambos foram trazidos mortos. Seus olhos estavam abertos e arregalados, as mãos, dilaceradas e cobertas de bolhas. Havia espuma em seus lábios. — Ela estremeceu. — Dizem que eles morreram de medo.

O rosnado lúgubre veio novamente do túnel. Eles espiaram para dentro da escuridão, mas nada conseguiram enxergar.

— Tira, você sabe onde estão as nossas armas? — Barda perguntou, ansioso. — As espadas e as adagas?

— Elas estão aguardando na fornalha — murmurou ela com cautela. — Amanhã elas serão derretidas e transformadas em novos utensílios para a cozinha.

— Traga-as até nós — Barda pediu.

— Não posso! — ela retrucou, desesperada. — É proibido tocá-las, e eu já cometi crimes terríveis por vocês.

— Tudo o que queremos é sair daqui — Lief exclamou. — Como isso poderia ferir o seu povo? E nunca ninguém saberá que foi você que nos ajudou.

— Reece é o primeiro dos Nove — Tira murmurou. — Sua palavra é lei.

— Reece não merece a sua lealdade — Barda disparou, furioso. — Você viu que ele mente e trapaceia, zomba de suas leis! Se alguém merece morrer, esse alguém é ele.

Mas Barda foi longe demais ao dizer isso. As faces de Tira se rubo­rizaram, seus olhos se arregalaram e ela se virou e voltou correndo para a cozinha. A porta se fechou atrás dela.

— Eu a assustei — Barda resmungou, suspirando com impaciência. — Eu deveria ter ficado de boca fechada. O que faremos agora?

— Vamos fazer o melhor que pudermos. — Com determinação, Lief retirou a grade da entrada do túnel. — Se os Ra-Kacharz podem entrar no Buraco e sobreviver, nós também podemos — com ou sem armas.

Ele se virou e acenou para Jasmine. Ela recuou, sacudindo a cabeça.

— Não posso ir — explicou em voz alta. — Pensei que talvez Filli estivesse aqui, esperando por mim. Mas ele não está. Ele não deixaria Noradz sem mim, e eu não vou partir sem ele.

— Jasmine! — Não temos tempo a perder! — ele insistiu, sentindo vontade de sacudi-la. — Deixe de tolice!

— Não vou pedir que você e Barda fiquem — ela disse com calma, fitando-o com seus olhos verde-claros. — Vocês começaram essa busca sem mim e assim podem continuar. — Jasmine desviou o olhar. — Talvez... talvez seja melhor assim — acrescentou.

— O que você quer dizer? — Lief indagou. — Por que seria melhor?

— Nós não concordamos em., alguns pontos — ela justificou. — Não tenho certeza...

Contudo, Jasmine não conseguiu terminar a frase, pois naquele exato momento a porta vermelha abriu-se de repente e Reece entrou com passos pesados, os olhos pretos brilhando num triunfo irado. Antes que ela pudesse se mover, ele agarrou-a com sua mão forte e ergueu-a no ar.

— Então, garota! — rosnou em seu ouvido. — Meus ouvidos não me enganaram. Que feitiçaria usaram para escapar da cela?

Lief e Barda tentaram se aproximar dele, mas Reece os impediu com o seu chicote.

— Espiões! — grunhiu. — Sua maldade está comprovada agora que invadiram as nossas cozinhas... Sem dúvida, para guiar a criatura maligna até elas. Quando o povo ouvir isso, ficará feliz em vê-los morrer mil vezes.

Jasmine lutou, mas a mão de Reece parecia ser de ferro.

— Você não pode escapar, garota — ele escarneceu. — Agora mesmo, outros membros dos Nove estão se aproximando desta porta. Seus ami­gos irão morrer antes de você. Tenho certeza de que gostará de ouvir os gritos deles.

Reece açoitou Lief e Barda com o chicote, fazendo-os recuar na direção do Buraco, lenta e constantemente.

 

Um pensamento se insinuou na mente de Lief com maior intensidade que todo o resto. Um perigo terrível ocultava-se na escuridão do buraco. Do contrário, Reece não estaria sorrindo de modo tão triunfante ao impelir os prisioneiros naquela direção.

Era evidente que Barda e Jasmine haviam chegado à mesma con­clusão. Jasmine soltava gritos estridentes, tentando em vão rasgar as vestimentas espessas do Ra-Kachar com as unhas. Barda lutava para manter o equilíbrio enquanto protegia a cabeça com os braços.

O chicote de couro agitava-se em volta das orelhas de Lief. Ele recuou e se virou, a dor penetrante provocando-lhe lágrimas nos olhos. O chicote estalou mais uma vez e ele sentiu o sangue quente escorrer pelo pescoço e ombros. A escuridão do Buraco bocejou bem à sua frente...

Então, ouviu-se um baque surdo e retumbante. E, de repente, não havia mais o estalar do chicote, tampouco a dor lancinante.

Lief virou-se rapidamente.

Tira encontrava-se junto ao corpo encolhido de Reece, a porta da cozinha aberta atrás dela. Seus olhos estavam vidrados de medo. Na mão esquerda, carregava as armas dos três companheiros. Na direita, estava a frigideira que surrupiara da prateleira da cozinha e usara para atingir Reece na cabeça.

Com um grito sufocado de terror pelo que tinha feito, ela jogou a frigideira para longe, atingindo as pedras com um som ressonante.

Lief, Barda e Jasmine correram para o lado da garota, que pare­cia paralisada pelo choque, e tomaram-lhe as armas. Tira correra em defesa deles sem pensar, mas era óbvio que cometera um crime terrível ao atacar um Ra-Kachar.

— Barda! — alertou Jasmine, ansiosa, apontando para a maçaneta da porta vermelha que se movia.

Barda atirou-se de encontro à porta e apoiou-se contra ela com todas as forças. Jasmine acrescentou seu peso ao dele. Do outro lado, foram dadas pesadas batidas e a porta estremeceu.

— Corra, Tira! — Lief mandou. — Ande! Esqueça que tudo isso acon­teceu.

Ela fitou-o, o olhar perturbado. Ele a conduziu rapidamente em direção à porta da cozinha, empurrou-a para o outro lado e fechou a tranca. Dessa forma, os Ra-Kacharz que tentavam ultrapassar a porta vermelha não teriam ajuda do pessoal da cozinha e, com sorte, Tira conseguiria alcançar as escadas e ir até a passagem sem ser vista.

Lief virou-se outra vez, exatamente a tempo de ver Barda e Jas­mine serem atirados ao chão e a porta vermelha abrir-se. Ele saltou para ajudar os amigos e, ao mesmo tempo, três Ra-Kacharz dispararam pela abertura. Embora tontos de sono, estavam completamente vestidos. Usavam as roupas vermelhas, as luvas e as botas; suas cabeças e seus rostos estavam cobertos.

Os olhos deles já faiscavam de raiva quando irromperam no pequeno aposento. Mas, quando viram seu líder caído no chão e os três prisioneiros parados junto dele, rugiram e investiram para a frente, usando os chicotes sem misericórdia.

Barda, Lief e Jasmine foram obrigados a retroceder. Suas lâminas cortavam o ar vazio inutilmente. Lief gritou, frustrado, quando um dos chicotes enrolou-se na espada e a arrancou de suas mãos.

Ele ficou indefeso. Em instantes, ouviu, com horror, o som da espada de Barda, que também caíra no chão. Naquele momento, as duas adagas de Jasmine eram a única defesa deles. Por isso, os Ra-Kacharz empurravam-nos para a frente, encurralando-os num canto, enquanto os chicotes os atacavam e rodopiavam juntos no ar como uma terrível máquina cortante.

— Parem! — gritou Jasmine com voz penetrante. — Não queremos lhes fazer mal! Só queremos sair deste lugar!

A voz dela ecoou contra as paredes de pedra e se elevou acima do estalar dos chicotes. Os Ra-Kacharz não vacilaram, nem mesmo deram sinais de que haviam ouvido o que ela disse.

Mas alguém escutou. Um pequeno vulto peludo e cinzento passou pela porta vermelha, tagarelando e guinchando de alegria.

— Filli! — Jasmine exclamou.

Os Ra-Kacharz gritaram, horrorizados e enojados, e saíram do caminho do pequeno animal quando este correu entre eles e saltou para o ombro de Jasmine.

Foi somente um momento de distração, mas era tudo de que Barda necessitava. Com um grunhido, ele se atirou às duas figuras de verme­lho mais próximas, jogando-as com força contra a parede. As cabeças bateram nas pedras, e eles caíram juntos no chão, bruscamente.

Lief virou-se rapidamente e chutou o terceiro Ra-Kachar, sentindo que o atingira na perna, exatamente acima da bota. O homem urrou e caiu. Lief apanhou a frigideira e abateu-o com um golpe.

Ofegantes, perto dos corpos dos inimigos derrotados, os amigos olharam para Jasmine, que cantarolava para Filli.

— Filli nos salvou — Jasmine disse, alegre. — Como ele é corajoso! Ele estava perdido, mas ouviu minha voz e veio correndo até mim. Pobrezinho. Sentiu tanto medo e correu tanto perigo!

— Ele estava com medo e em perigo!? — Barda explodiu. — E quanto anos?

Mas Jasmine simplesmente deu de ombros e recomeçou a afagar o pêlo de Filli.

— O que faremos agora? — Lief murmurou. — Há quatro Ra-Kacharz aqui, contando com Reece. E sabemos que há dois nas cozinhas. Mas ainda faltam três. Onde eles estão? Onde encontraremos um lugar seguro?

— Devemos arriscar ir pelo túnel — Barda opinou, sério, procurando a espada. — Não há outra forma de sair.

— Reece achava que seríamos mortos por quem vive ali, seja quem for — Lief afirmou, olhando para o Buraco.

— Se os Ra-Kacharz podem sobreviver a ele, nós também pode­mos — retrucou Barda. — Eles são fortes e bons lutadores, mas não têm poderes mágicos.

— Talvez devêssemos usar as roupas deles — Jasmine sugeriu de onde se encontrava. — Acho que não é por acaso que eles se vestem de forma diferente dos demais neste lugar e somente eles podem usar o Buraco. Talvez a criatura que mora na escuridão esteja treinada para atacar todas as cores, menos o vermelho.

— Pode ser — Barda assentiu. — Em todo caso, vestir as roupas deles é uma boa idéia As nossas mostram que somos intrusos. Nunca conse­guiríamos enganar as pessoas e sair da cidade pela entrada principal. Mas, talvez, pela porta dos fundos...

Sem perda de tempo, eles começaram a despir os três Ra-Kacharz que haviam acabado de derrotar. Jasmine trabalhava depressa e com habilidade. Para Lief, foi impossível não lembrar, com um calafrio, quantas vezes ela havia despido os corpos de Guardas Cinzentos nas Florestas do Silêncio. Ela o fizera para conseguir roupas e outros objetos de que precisava e agira com eficiência e sem compaixão, como fazia naquele momento.

Eles se vestiram rapidamente, colocando os trajes vermelhos por cima das próprias roupas e as botas sobre os próprios sapatos. Enquanto isso, os Ra-Kacharz permaneciam imóveis. Roupas de baixo justas e brancas cobriam-nos dos pulsos até os tornozelos. Suas cabeças, como as dos demais moradores da cidade, haviam sido totalmente raspadas.

— Eles não parecem tão perigosos agora — Jasmine concluiu, car­rancuda, envolvendo a cabeça com o tecido vermelho e certificando-se de que Filli estava escondido e em segurança sob suas roupas.

Apesar da pressa e da preocupação, Lief viu-se obrigado a rir quando olhou para ela. A aparência de Jasmine era muito estranha. Os trajes dos Ra-Kacharz eram muito grandes para ele e até para Barda, mas em Jasmine eles formavam dobras grandes e amplas. As luvas não foram problema, pois eram feitas de um material elástico que se ajustava a todos os tamanhos. E ele duvidou que ela conseguisse caminhar com as enormes botas vermelhas.

Jasmine tinha percebido o problema. Carregou as botas até onde Reece estava deitado, tirou-lhe as luvas e enfiou-as na ponta de uma das botas. Em seguida, desenrolou a faixa que lhe envolvia a cabeça e usou-a na segunda bota.

Reece resmungou e sua cabeça raspada moveu-se sobre o chão frio.

— Ele está acordando — constatou ela enquanto calçava as botas, tirando a adaga do cinto.

— Não o mate! — Lief exclamou em pânico.

— Por que não? — Jasmine indagou, olhando-o surpresa. — Ele me mataria se estivesse em meu lugar. E, quando ele o atacou, você o teria matado se pudesse.

Lief não sabia como explicar, mas tinha consciência de que Jas­mine nunca concordaria com o fato de que matar no calor do momento, para defender a própria vida, era muito diferente de matar um homem, mesmo um inimigo, a sangue-frio.

De repente, Barda soltou uma exclamação, aproximou-se de Jas­mine e agachou-se ao lado do corpo de Reece.

— Vejam isso! — murmurou, empurrando a cabeça do homem para o lado.

Lief ajoelhou-se ao lado dele. No pescoço de Reece havia uma feia cicatriz provocada por uma antiga queimadura num formato que eles conheciam muito bem.

— Ele foi marcado — Lief balbuciou, observando a marca verme­lha com horror. — Marcado com o sinal do Senhor das Sombras. E, no entanto, vive aqui, livre e poderoso. O que isso significa?

— Significa que as coisas em Noradz não são o que aparentam ser

— Barda concluiu sombriamente. Ele foi depressa até onde se encontra­vam os corpos dos outros Ra-Kacharz. A marca do Senhor das Sombras estava em todos eles.

Os três amigos olharam para cima, assustados, pois a maçaneta da porta da cozinha havia começado a balançar e chacoalhar. Em seguida ouviram uma batida forte. Alguém tentava entrar.

— Outra inspeção deve ter sido completada — Jasmine murmurou.

— Os cozinheiros têm outro engradado de comida para jogar fora.

Ao constatar que a passagem estava impedida, as pessoas atrás da porta começaram a gritar e a golpeá-la com os punhos. Reece resmungou e gemeu, e suas pálpebras estremeceram. Ele estava prestes a acordar.

— Vamos levá-lo conosco — Barda decidiu, erguendo-se num salto.

— Vamos obrigá-lo a nos dizer como passar a salvo pelo que existe nessa passagem, seja lá o que for. E, em todo caso, um refém pode ser útil.

Rapidamente, eles ajeitaram as mochilas nas costas, arrastaram Reece até a entrada do Buraco e o empurraram para a escuridão. Em seguida, um após o outro, rastejaram atrás dele, pois naquele momento não havia tempo para pensar no que poderia estar aguardando os três amigos lá embaixo.

 

Lief deslizava com cautela para baixo, segurando os tornozelos de Reece com uma mão enluvada e usando a outra para se segurar nas paredes e no teto e evitar descer depressa demais. Era uma tarefa difícil, pois as rochas estavam cobertas por uma fina camada de fungos escorregadios que lambuzavam os dedos dele. A passagem tornava-se cada vez mais estreita, até que ficou larga o suficiente para deixar passar somente uma das grandes caixas sem dificuldade.

A mochila de Lief ficou presa no teto. Com um grito de adver­tência para Barda, que estava bem atrás dele, contorceu-se até que as alças escorregassem de seus ombros e ele pudesse deslizar, deixando a mochila para trás. Lief sabia que ela seria empurrada. A descida ficara mais íngreme e aquilo era tudo que podia fazer para não escorregar para baixo sem controle.

Outros aspectos também haviam mudado. O rosnado ficara mais alto, um rugido incessante que parecia ocupar-lhe os ouvidos e a mente. Estava mais difícil segurar Reece, que ainda não despertara totalmente, mas começava a mover as pernas, a segurar-se nas paredes e a erguer a cabeça, de modo que esta encostava no teto do túnel vez ou outra.

E abaixo se via uma luz — um brilho fraco e amarelado demais para ser originado da Lua. Rapidamente, ela se tornou mais brilhante. Lief percebeu que estava atingindo o fundo do declive e que a passagem estava prestes a se nivelar.

— Preparem-se! — gritou para Barda e Jasmine.

Quase no mesmo instante, de repente, Reece começou a contor­cer-se e a revirar-se. Ele gritava e chutava. Seus tornozelos escaparam das mãos de Lief e ele escorregou na direção da luz. Abafando um grito assustado, Lief viu o corpo retorcido do inimigo chegar ao fundo da descida.

Mas ele não parou. De alguma forma, continuou se afastando.

Pensando acima de tudo em manter o inimigo à vista, Lief parou de se segurar nas paredes e deslizou pelo último trecho de declive. Em instantes chegou ao final.

Ali, a passagem se alargava. Vinda do teto, uma luz fraca brilhava, e aquele som incessante o cercava. Abaixo de seus pés, o solo rochoso, duro e liso do túnel havia sido substituído por algo mais macio e irregu­lar — algo que tremia levemente sob suas mãos... e que se movia! Assim como Reece, Lief estava sendo carregado — pelo próprio solo!

O vulto de vermelho rastejava um pouco mais adiante. Lief ergueu-se e correu na direção dele, percorrendo a distância em segundos. Saltou sobre o homem que se debatia e lutou com ele, tentando imobilizá-lo.

Os corpos dos dois, rolando e lutando no chão, atingiram a parede lateral da passagem. Lief sentiu uma terra áspera que não estremecia nem se movia. Reece arqueou as costas, gritou e ficou imóvel.

Então Lief deu-se conta de dois fatos: o centro da passagem era uma trilha em movimento guiada por um mecanismo invisível, e Reece estava morto — morrera de uma forma terrível. Lief fitou-lhe rapidamente o rosto horrível e estremeceu, lembrando-se da descrição feita por Tira sobre outras pessoas que haviam tentado escapar pelo Buraco.

Ele escutou um grito e viu Barda e Jasmine correndo em sua direção pela passagem, assomando da escuridão com uma rapidez impressionante.

— Saltem para o lado! — Lief avisou. — A faixa em movimento está somente no centro.

Os amigos o obedeceram, tropeçando ao atingirem o solo firme. Quando se aproximaram de Lief e viram o corpo de Reece, contiveram -se para não gritar de horror.

— O que... o que aconteceu com ele? — Barda balbuciou, estreme­cendo.

As palmas das mãos do inimigo e o alto de sua cabeça raspada estavam lambuzados com um fungo vermelho e cobertos por pústulas terríveis. Sua boca espumava e o rosto exibia uma cor azulada, retor­cendo-se numa careta de agonia.

— Veneno! — exclamou Jasmine. Agitada, ela olhou ao redor. — Nas Florestas do Silêncio há uma aranha cuja picada pode...

— Não há aranhas aqui — interrompeu Lief. Seu estômago estava revirado e o dedo tremia ao apontar a cabeça e as mãos do homem morto. — O fungo da passagem... acho que o contato com a pele nua é mortal. Arrastamos Reece para a morte. Ele despertou, viu onde se encontrava, mas era tarde demais.

Nauseados, eles observaram o corpo encolhido.

— Eu não sabia que tirar as luvas e a faixa de cabeça poderia matá-lo — disse Jasmine finalmente, em tom de desafio.

— Claro que não — disse Barda, confortando-a. — Como poderia? Somente os Ra-Kacharz sabiam que são as luvas e as faixas de cabeça que lhes permitem entrar no Buraco e continuar vivos. — Ele fez uma careta. — Nossas roupas estão totalmente cobertas de fungos. Como poderemos tirá-las com segurança?

Lief estivera refletindo a respeito.

— Acho que o veneno só é fatal quando fresco — murmurou, olhando as mãos enluvadas. — Não vejo outra forma pela qual os Ra-Kacharz poderiam se reunir ao seu povo sem prejudicá-los.

— Estou torcendo para que você esteja certo — disse Barda, estre­mecendo.

Um som fraco se fez ouvir atrás deles. Os companheiros se viraram e viram o contorno brilhante de um dos engradados prateados deslizar passagem abaixo e parar na trilha em movimento. Ele se acomodou suavemente e começou a se mover na direção deles.

— Fechei a grade depois que passamos, esperando que os cozi­nheiros não se dessem conta de que escapamos pelo Buraco — Jasmine contou. — E parece que não perceberam.

— Ainda não — Barda retrucou, sombrio. — Mas assim que os apo­sentos dos Ra-Kacharz forem examinados eles saberão que não há outro local para onde possamos ter ido. Precisamos encontrar a saída depressa. Se seguirmos este túnel, acho que chegaremos ao outro lado da colina.

Eles deixaram o corpo de Reece onde estava, saltaram de volta para a trilha em movimento e começaram a correr por ela, logo deixando o recipiente prateado bem para trás.

Pouco tempo depois, os amigos viram um brilho à sua frente, sentiram o ar fresco em seus rostos e ouviram o som de vozes e tinidos. Tornaram a pular para a lateral do túnel e começaram a rastejar por ele, encostados à parede.

O ambiente ficou mais claro e o som das vozes aumentou. Também se ouviram sons estranhos e resfolegantes — sons que pareciam familiares a Lief, embora ele não conseguisse reconhecê-los. E então, de repente, ele viu um portão adiante. A trilha em movimento parava exatamente à sua frente, e um pequeno amontoado de caixas prateadas se encontrava na abertura como se fossem guardas. Além delas, Lief conseguiu ver o contorno de árvores e o céu cinzento. Um pássaro noturno gritou. O dia ia nascer a qualquer instante.

Enquanto observava, três vultos altos entraram em seu campo de visão. Cada um deles ergueu um dos engradados e levou-o para longe.

— Eram Ra-Kacharz! — Jasmine murmurou. — Você viu?

Lief assentiu, perplexo. Então, os três Ra-Kacharz que faltavam estavam ali. O que estariam fazendo com o alimento descartado? E o que era aquele som resfolegante? Estava certo de que já o ouvira antes, mas onde?

Os três companheiros prosseguiram, pé ante pé, agachados e pró­ximos à parede, esticando os pescoços para enxergar através do portão. E, quando finalmente puderam ver o que acontecia lá fora, detiveram-se, reprimindo um grito de assombro.

Os Ra-Kacharz colocavam os engradados numa carroça e cui­dadosamente os protegiam com palha para que não se chocassem no trajeto. Duas outras carroças aguardavam, totalmente carregadas. E resfolegando alegremente entre os varais de cada uma encontrava-se... um muddlet!

— Eles estão levando os engradados embora! E estão usando os nossos muddlets — Lief sussurrou.

— Acho que não são os nossos animais — Jasmine comentou, sacu­dindo a cabeça. — Eles são muito parecidos, mas as manchas estão em lugares diferentes. — Ela espiou pelo canto do portão e gelou. — Há um campo cheio de muddlets logo ali — murmurou. — Deve haver uns 20!

— Os nossos animais certamente estão entre eles — Barda concluiu, carrancudo. — Mas podem ficar lá. Eu não montaria um animal desses nem que minha vida dependesse disso.

— Bem, as nossas vidas dependem de sairmos daqui o mais depressa possível — Jasmine falou baixinho. — O que acha que devemos fazer?

Barda e Lief trocaram olhares, atingidos pelo mesmo pensa­mento.

— A palha entre os engradados é alta — Lief constatou. — Acho que poderíamos muito bem nos esconder no meio dela.

— Isso quer dizer que a história se repete, Lief — Barda assentiu, sorrindo. — Vamos escapar daqui da mesma forma que o seu pai fugiu do palácio de Del quando jovem: numa carroça de lixo!

— Mas e Kree?... — Jasmine balbuciou. — Como ele vai saber onde estou?

Como se fosse uma resposta a essa pergunta, um grasnado saiu das árvores. O rosto de Jasmine se iluminou.

— Ele está aqui! — sussurrou ela.

Naquele momento, os Ra-Kacharz voltaram para apanhar mais alguns engradados e os companheiros se esconderam. Mas, assim que os vultos de vermelho se afastaram, cambaleando com suas cargas imensas, três sombras dispararam do abrigo do portão e subiram numa das carroças carregadas. Uma delas fez um sinal para as árvores enquanto se enterrava na palha entre os engradados, e um pássaro gritou em resposta.

Os amigos ficaram deitados, encolhidos, imóveis e ocultos enquanto os Ra-Kacharz concluíam o trabalho deles.

— Esse foi o último? — eles ouviram uma voz conhecida perguntar. Era a mulher que os defendera no julgamento.

— Parece que sim — respondeu outra voz. — Pensei que seriam mais. Deve estar havendo algum problema nas cozinhas. Mas não podemos esperar mais ou vamos nos atrasar.

Atrasar? Lief ficou alerta. Atrasar para quê?

Houve um rangido quando os Ra-Kacharz subiram nas carroças. Três vozes gritaram "Brix!" e os veículos começaram a se mover com um solavanco.

Escondidos sob a palha, os três companheiros nada viam além de trechos de céu cinzento e, vez ou outra, o vulto de Kree voando bem acima deles. Se os Ra-Kacharz estranharam ver um corvo voando antes do amanhecer, nada disseram. Lief pensou que talvez eles nem tivessem notado o pássaro, tão concentrados estavam em fazer os muddlets andar mais depressa.

Lief, Barda e Jasmine haviam planejado saltar quando tivessem atingido uma distância segura da cidade, mas não haviam contado com o fato de que a carroça em que entraram seria a segunda entre as três, tampouco com a velocidade dos animais.

As carroças saltavam e davam solavancos, percorrendo as estradas acidentadas e passando rapidamente pelo campo. Mesmo arrastando cargas pesadas, os animais galopavam com velocidade surpreendente. Era evidente que qualquer tentativa de saltar iria machucá-los e pro­vocar a sua captura.

— Teremos de esperar até as carroças pararem — Jasmine sussurrou. — Acho que eles não estão indo muito longe.

Contudo, os minutos se transformaram em horas e o dia amanhe­ceu antes que as carroças finalmente desacelerassem e parassem com um solavanco. Sonolento e confuso, Lief espiou cautelosamente pela palha para ver onde se encontravam e sentiu um embrulho no estômago.

Estavam de volta à loja de Tom. E, marchando na direção deles, havia uma tropa de Guardas Cinzentos.

 

As carroças rangeram quando os condutores deixaram os bancos e saltaram para o chão.

— Vocês estão atrasados! — resmungou o líder dos guardas.

— Não pudemos fazer nada — retrucou um dos Ra-Kacharz com calma. Lief escutou um som tilintante e deduziu que os muddlets estavam sendo libertados de seus arreios.

Ouviu-se o som de cascos, como se cavalos estivessem sendo con­duzidos até as carroças. Devem ser os cavalos cinzentos que se encon­travam no campo atrás da loja, Lief imaginou.

— Bom-dia, meus senhores e senhora Ra-Kacharz! — cumprimentou Tom em voz alta. — Que belo dia!

— Um belo dia para se estar atrasado — o Guarda resmungou.

— Deixe que eu faço isso, amigo — Tom respondeu, simpático. — Eu cuido da mudança dos animais. Vá e termine a sua cerveja. É um cami­nho longo e duro até Del.

O coração de Lief pareceu dar voltas no peito, e ele ouviu Barda e Jasmine respirar fundo, assustados.

A comida não seria descarregada. As carroças seguiriam para Del!

Lief permaneceu imóvel, a mente funcionando rapidamente. Ele mal ouviu os sons dos pés dos Guardas marchando de volta à loja. De repente, tudo se encaixou. Durante séculos, carroças rodaram colina acima até o palácio de Del carregadas com alimentos refinados. Por mais que tivesse faltado comida na cidade, os habitantes favorecidos do palácio nunca passaram fome.

Ninguém nunca soubera de onde vinha a comida. Mas agora Lief sabia.

A comida vinha de Noradz. O seu povo trabalhava para plantar e colher alimentos em seus campos férteis. Os seus cozinheiros trabalha­vam dia e noite para produzir pratos deliciosos. Mas somente um pouco do que eles faziam era usufruído por seus habitantes. O resto era levado para o palácio em Del. Antigamente, isso fez com que reis e rainhas de Deltora ignorassem a miséria de seu povo. Hoje, alimentava os servos do Senhor das Sombras.

Os Ra-Kacharz eram traidores de seu povo. Tom, que fingira ser contra o Senhor das Sombras era, na verdade, amigo dos Guardas Cin­zentos.

Uma onda de intensa raiva invadiu Lief. Mas Barda estava atento a questões mais importantes.

— Precisamos sair desta carroça — murmurou. — Agora, enquanto os Guardas estão afastados. Lief, você consegue ver...

— Não consigo ver nada — Lief murmurou em resposta.

Os arreios tilintavam. Kree grasnou de algum lugar próximo.

— Que estranho. Aquele pássaro preto nos seguiu o tempo todo — disse um Ra-Kacharz.

É mesmo? — Tom retrucou, pensativo.

Lief, Barda e Jasmine ficaram imóveis em seu esconderijo de palha. Tom já vira Kree. Seria ele capaz de adivinhar...?

— A propósito — Tom começou, pigarreando. — Eu tenho más notí­cias. Vocês vão ter de voltar a pé para Noradz. Os animais descansados que eu mantinha aqui para vocês foram roubados... por uns viajantes espertos.

— Nós sabemos! — respondeu um dos Ra-Kacharz, zangado. — Você deveria ter tomado mais cuidado. Encontramos os animais tentando entrar no campo atrás da colina, ontem à tarde. Eles dispararam para casa e derrubaram os intrusos das selas em frente ao nosso portão.

— Os intrusos levaram o mal à nossa cidade — acusou outro Ra-Kacharz. — Eles escaparam da morte por um fio e agora se encontram em nossas masmorras.

É mesmo? — perguntou Tom calmamente. E continuou com mais animação. — Muito bem! Estes pobres animais cansados estão livres de suas amarras. Se vocês os levarem ao campo, posso terminar de arrear os cavalos. Depois, talvez, vocês queiram acompanhar-me numa caneca de cerveja antes de iniciar a sua jornada.

Os Ra-Kacharz concordaram e logo Lief, Barda e Jasmine ouviram o som dos muddlets sendo conduzidos para longe.

Momentos mais tarde, os três ouviram a voz de Tom, como se estivesse falando com os cavalos.

— Se alguém quiser sair de uma carroça não vigiada e correr até as árvores ao lado da loja, este é o momento. O pobre Tom está sozinho aqui, agora.

A mensagem foi clara. Desajeitadamente, os três companheiros abriram caminho na palha e correram para o abrigo proporcionado pelas árvores. Seus corpos estavam rígidos e doloridos. Tom fingiu que não os viu e simplesmente continuou a cuidar dos cavalos, assobiando baixinho para si mesmo.

Lief, Barda e Jasmine deitaram-se e observaram o comerciante caminhar casualmente para o fundo da carroça em que estiveram escon­didos e apanhar a palha que caíra no chão. Ele recolocou-a no lugar e dirigiu-se até as árvores com as mãos nos bolsos. Abaixou-se e começou a arrancar capim como se o estivesse colhendo para os cavalos.

— Você nos vendeu muddlets que não lhe pertenciam! — Barda sus­surrou, furioso.

— Ora, o pobre Tom acha muito difícil resistir a moedas de ouro — murmurou o comerciante sem olhar para cima. — Ele admite. Mas a culpa do que aconteceu é de vocês, não minha, meu amigo. Se vocês tivessem seguido pela estrada da esquerda como aconselhei, os animais nunca teriam sentido o cheiro de casa e disparado. Vocês são os únicos responsáveis pelos problemas em que se meteram.

— Talvez — Lief concordou com amargura. — Mas ao menos o nosso único crime é a idiotice. Você, porém, é um mentiroso. Você finge estar do lado dos que resistem ao Senhor das Sombras, mas o tempo todo ajuda a alimentar os seus servos. Você trata os Guardas Cinzentos como amigos.

Tom endireitou o corpo, com um feixe de capim na mão, e voltou-se para olhar o sinal que se erguia, imponente, em seu telhado.

— Você percebeu, meu amigo, que o nome de Tom parece o mesmo, seja qual for o lado em que se está? É o mesmo se você vier do leste ou do oeste. É o mesmo se você estiver dentro da loja ou fora dela, se o vir num espelho ou com os próprios olhos. E o próprio Tom é como o seu nome. É uma questão de negócios.

— Negócios? — espantou-se Lief.

— Isso mesmo. Eu sou o mesmo Tom para todos. Não tomo par­tido. Não me interesso por coisas que não são da minha conta. É uma atitude sábia nestes tempos difíceis. E assim é possível ganhar muito mais dinheiro.

Ele sorriu. As extremidades de seus lábios, curvadas para cima, enrugavam-lhe o rosto magro.

— Quanto a vocês, sugiro que deixem este lugar o mais depressa possível. Vou manter os meus amigos Ra-Kacharz por aqui o máximo que puder, para dar-lhes uma boa dianteira. Mas primeiro tirem esses trajes vermelhos, são muito chamativos. Só não os deixem aqui, por favor. Não quero problemas.

Ele se virou e começou a caminhar de volta às carroças.

— Você é um trapaceiro! — Lief acusou de longe.

— Talvez — Tom concordou, parando. — Mas estou vivo e rico. E por minha causa você pôde sobreviver para lutar mais um dia.

Ele continuou a andar, oferecendo o capim e estalando a língua para os cavalos.

Os três amigos começaram a se livrar das vestimentas e botas vermelhas e a colocá-las em suas mochilas. Lief parecia ferver de raiva. Jasmine fitou-o, curiosa.

— Tom nos ajudou — ela ressaltou. — Isso não é suficiente para você? Algumas criaturas só pensam nelas mesmas. Tom é uma delas.

— Tom não é uma criatura, é um homem — Lief retrucou. — Ele deveria saber o que é certo.

— Tem certeza de que você sabe? — Jasmine indagou, ríspida.

— O que você quer dizer com isso? — ele quis saber.

— Não discutam — Barda pediu, cansado. — Poupem as suas forças para a caminhada. O Rio Largo fica muito longe. — Fechou a mochila, atirou-a sobre o ombro e começou a se afastar por entre as árvores com passos firmes.

— Primeiro, precisamos voltar a Noradz — disse Lief, correndo atrás dele. — Precisamos dizer às pessoas que estão sendo enganadas.

É mesmo? E se sobrevivêssemos para contar a elas, o que eu duvido, se elas acreditassem em nós, o que acho que não vai acontecer, se por algum milagre elas rompessem um padrão de séculos, se rebelassem contra os Ra-Kacharz e se recusassem a produzir todo aquele alimento... o que você acha que iria ocorrer?

— O suprimento de comida do Senhor das Sombras iria acabar — Lief respondeu prontamente.

— Sim. E ele dirigiria sua ira para Noradz, usaria a força em vez da astúcia para obrigar o povo a obedecê-lo e começaria a esquadrinhar o país à nossa procura — Barda retrucou secamente. — Nada se ganharia e muito se perderia. Seria um desastre.

Ele apressou o passo e seguiu adiante.

Lief e Jasmine o acompanharam, mas permaneceram calados durante um longo tempo. Lief estava muito zangado, e Jasmine tinha a mente ocupada com pensamentos que não desejava partilhar.

 

Quatro dias de caminhada cansativa se seguiram — quatro longos dias em que Lief, Barda e Jasmine pouco falaram e, quando o fizeram, foi somente para comentar a caminhada ou para manter-se fora das vistas de prováveis inimigos. Quando, porém, na tarde do quarto dia, alcançaram as margens do Rio Largo, perceberam que deveriam ter planejado o próximo passo com mais cuidado.

O rio era fundo, e o seu nome o descrevia perfeitamente. Ele era tão largo que mal se podia ver a margem do outro lado. A grande superfície de água estendia-se diante deles como um mar. Não havia como atravessar.

Desbotados e duros como pedra, restos de antigas balsas de madeira encontravam-se semi-enterrados na areia. Talvez, muito tempo atrás, pessoas tivessem cruzado o rio naquele local e abandonado as balsas ali. Contudo, não havia árvores naquele lado da margem que proporcionas­sem madeira para construir uma balsa — somente fileiras de juncos.

Os olhos de Jasmine se estreitaram ao observar o brilho opaco da água.

— As terras do outro lado são totalmente planas — comentou ela, vagarosamente. — É uma planície. E vejo uma forma escura erguendo-se dela. Se aquela é a Cidade dos Ratos, está bem à nossa frente. Tudo que precisamos fazer é...

— Atravessar o rio — concluiu Lief, pensativo. Deixou-se cair sobre a areia fina e branca e começou a remexer na mochila, procurando algo para comer.

Retirou os objetos que haviam trazido da loja de Tom e colocou-os no chão, formando um pequeno monte. Quase se esquecera deles e agora os fitava com desgosto.

Na loja, tinham um aspecto muito interessante, mas agora pare­ciam um amontoado de coisas sem valor. As pedras de acender fogo, o pão que não precisava assar, o pó rotulado de "Puro e Límpido", o pequeno cachimbo que produzia bolhas de luz e uma pequena lata achatada com um rótulo desbotado...

Claro, o brinde de Tom. Algo totalmente inútil, sem dúvida. De fato, a única maneira de Tom livrar-se daquilo era dando de presente. Lief zombou de si mesmo e virou a latinha de ponta-cabeça.

É longe demais para nadarmos. Teremos de andar pela margem até encontrar um vilarejo em que haja barcos. — Barda sugeriu. — É uma pena nos desviarmos de nossa rota, mas não temos opção.

— Talvez tenhamos — Lief respondeu, devagar.

Jasmine e Barda o fitaram, surpresos. Ele ergueu a lata e leu as palavras impressas no verso em voz alta.

 

INSTRUÇÕES

Espalhe os Devoradores de Água com moderação onde for necessário solo seco.

CUIDADO!

  • O efeito dura somente uma hora.
  • Manusear com cuidado.
  • Não comer.
  • Armazenar em local seco.

Observação: Os fabricantes dos Devoradores de Água não se responsabilizam por eventuais mortes, ferimentos, danos ou outros tipos de desastre que possam ocorrer antes, durante ou depois da utilização deste produto.

 

— Você está dizendo que o que há nessa caixinha é capaz de secar o rio? — espantou-se Jasmine.

— Eu não estou dizendo nada — Lief retrucou, dando de ombros. — Estou apenas lendo as instruções.

— Há mais advertências que instruções — Barda comentou. — Mas vamos tentar...

Eles caminharam juntos até a margem do rio e Lief abriu a tampa da caixa de estanho. Em seu interior, havia pequenos cristais não muito maiores do que grãos de areia. Sentindo-se um pouco tolo, ele apanhou alguns e jogou-os na água. Eles afundaram de imediato sem provocar nenhum tipo de mudança.

E nada mais aconteceu.

Lief aguardou um momento e, lutando contra o desapontamento, tentou sorrir.

— Eu devia saber — resmungou. — Como se Tom fosse dar algo que realmente...

Então o garoto gritou e deu um salto para trás. Uma bolha enorme, incolor e oscilante se erguia no rio. E do seu lado outra e mais outra!

— São os cristais! — Barda gritou, excitado. — Eles estão sugando a água!

E realmente estavam. Lief observava as bolhas que cresciam, espalhavam-se e se uniam para formar duas paredes oscilantes que detiveram o rio. E a água entre elas simplesmente secou, deixando um caminho estreito e sinuoso de lama suja e arenosa.

Kree grasnou, espantado, quando Jasmine, Lief e Barda pisaram com cautela no leito do rio, comprimindo-se entre os montes gelatinosos e caminhando até chegar ao fim da trilha seca. Então, Lief atirou outro punhado de cristais na água à sua frente e, após alguns instantes, mais protuberâncias romperam a superfície do rio e outro caminho começou a se abrir para eles.

A travessia do Rio Largo foi uma experiência estranha e assustadora. Os três amigos pensaram o tempo todo no que poderia acontecer caso as paredes oscilantes que detinham o rio caíssem. A enorme pressão poderia fazer com que a água se fechasse sobre eles e não haveria como escapar.

Os Devoradores de Água dilatados lhes bloqueavam a visão à medida que avançavam pelo caminho tortuoso, os pés afundando na lama macia. Lief começava a se preocupar com a possibilidade de os cris­tais não serem suficientes para concluir a travessia quando, de repente, a margem surgiu à sua frente e ele pisou na terra áspera e seca.

Os três companheiros permaneceram parados, olhando fixamente à sua frente.

A planície estendia-se a partir da curva do rio e era cercada por água em três lados. Deveria ter sido exuberante e fértil, contudo nenhuma folha de grama suavizava a argila dura e ressecada que a cobria. Até onde a vista podia alcançar, não havia sinal de qualquer coisa viva ou em crescimento.

No centro, encontrava-se uma cidade cujas torres exibiam uma cor vermelho-escura sob os últimos raios do pôr-do-sol. Apesar da grande distância, uma sensação de perversidade e ameaça parecia desprender-se dela como uma névoa.

Eles deixaram o rio e começaram a caminhar na planície árida. O céu formava um arco sobre eles, vermelho e sombrio. "Vistos de cima", Lief pensou de repente, "devemos parecer formigas — três minúsculas formigas rastejantes. Um golpe nos mataria." Ele nunca se sentira de tal modo exposto ao perigo.

Kree dividia com ele a mesma sensação e permanecia empoleirado no ombro de Jasmine. Filli encontrava-se encolhido dentro do casaco dela, deixando visível somente o seu focinho. Entretanto, mesmo a companhia deles não era suficiente para ajudá-la. Ela arrastava os pés e andava cada vez mais devagar; finalmente, quando o sol começou a mergulhar no horizonte, estremeceu e parou.

— Sinto muito — balbuciou. — A aridez deste lugar é como a morte para mim. Não consigo suportar.

O rosto dela estava pálido e rígido, e as mãos, trêmulas. Lief e Barda fitaram-se, preocupados.

— Agora mesmo, pensei em pararmos durante a noite — Barda disse, embora Lief duvidasse que fosse verdade. — Precisamos descansar e comer. Além disso, não acho que devamos entrar na cidade à noite.

Eles sentaram-se e começaram a desempacotar os alimentos, mas não havia gravetos para acender o fogo.

— Agora é uma boa hora para testar as pedras de acender fogo. — disse Lief, seguindo o exemplo de Barda e tentando se mostrar alegre. Ele leu as instruções do frasco sob a luz fraca e então colocou uma das pedras no chão, golpeando-a firmemente com a sua pá. Imediatamente ela irrompeu em chamas. Acrescentou outra pedra e também ela se inflamou. Logo se formou uma intensa labareda que, aparentemente, não precisava de nenhum outro combustível. Lief guardou o frasco de volta ao bolso, satisfeito.

— Conforto instantâneo. Surpreendente! — Barda comentou, entu­siasmado. — Tom pode ser um patife, mas pelo menos as coisas que vende valem o seu preço.

Ainda era cedo, mas Barda e Lief espalharam os suprimentos ao seu redor e dedicaram-se a escolher o que iriam comer. Adicionaram água a um dos círculos brancos do Nada de Forno, que começou a inchar e rapidamente se transformou em um pão. Eles cortaram-no em fatias, torraram-no e comeram-no com algumas frutas desidratadas, nozes e mel que haviam trazido de Raladin.

— Um banquete — comemorou Barda, contente. Lief percebeu, ali­viado, que a expressão tensa de Jasmine começava a se desfazer. Como haviam imaginado, o calor e o alimento a estavam reanimando.

Lief contemplou a cidade distante por sobre o ombro da garota. Naquele momento, a luz vermelha começava a diminuir nas torres. Imponente sobre a planície, a cidade parecia silenciosa, sombria e deserta...

Lief piscou. Os últimos raios do Sol estavam pregando uma peça em seus olhos. Por um instante, pareceu-lhe que a terra ao redor da cidade estava se movimentando como água.

Ele olhou novamente e franziu a testa, intrigado. O chão estava se movendo. No entanto, a grama não balançava e nenhuma folha se agitava ao vento. O quê?...

E, de repente, ele viu.

— Barda! — exclamou com voz rouca.

Barda fitou-o, surpreso com o medo que percebeu no olhar do companheiro. Lief tentou falar, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Ondas de terror percorreram-lhe o corpo e seus olhos estavam cravados na planície em movimento.

— O que foi? — Jasmine indagou, virando-se para olhar. Então ela e Barda gritaram juntos e ergueram-se num salto. Vinda da cidade, cobrindo o solo como uma onda rasteira e com­prida, surgia uma multidão ligeira e assustadora de ratos.

 

Milhares de ratos — dezenas de milhares de ratos!

De repente, Lief compreendeu por que a planície era árida. Os ratos haviam devorado tudo.

Eles eram criaturas das sombras. Haviam permanecido escondi­dos na cidade arruinada enquanto o sol brilhava sobre a planície, mas agora corriam na direção do cheiro de comida, guiados por uma fome frenética.

— O rio! — Barda lembrou.

Os três amigos correram para salvar suas vidas. Lief olhou para trás somente uma vez, e o que viu foi suficiente para fazê-lo acelerar ainda mais o ritmo, ofegante de pavor.

Os primeiros ratos, imensos, haviam chegado à fogueira. Corriam sobre a comida e outros pertences espalhados pelo chão, mordendo e rasgando tudo com seus dentes afiados. Seus companheiros os seguiam de perto e subiam neles, asfixiando-os, lutando entre si pelos restos, tombando sobre o fogo, gritando e guinchando.

Outros milhares deles, com os olhos negros brilhantes, se engalfi­nhavam e rodeavam a pilha confusa, aproximando-se e fungando. Eles haviam sentido o cheiro de Lief, Barda e Jasmine, que estavam mais adiante — sentiram seu calor, sua vida e seu medo.

Lief correu, o peito dolorido pelo esforço, os olhos fixos no rio. A água brilhava sob os últimos raios de sol. Ele estava perto... cada vez mais perto...

Jasmine corria ao seu lado, seguida de perto por Barda. Ofegante, Lief mergulhou na água fria e nadou até que se sentisse seguro. Então, virou-se para olhar a margem, o casaco flutuando à sua volta.

A ruidosa torrente cinza-escuro formada pelos ratos atingiu as margens do rio. Então, encrespou-se e rompeu como uma onda, saltando para dentro da água.

— Eles estão nadando em nossa direção — Barda gritou, lutando para desembainhar a espada e erguê-la à superfície. — Deus do céu, não há nada que possa detê-los?

Jasmine desferia golpes com sua adaga, gritando furiosamente, e dúzias de ratos mortos eram levados pela correnteza. Ao lado dela, Lief e Barda varriam suas lâminas pela água, de um lado a outro, ofegantes pelo esforço da tarefa.

A água em volta deles tingia-se de sangue e espuma e, mesmo assim, os ratos continuavam a chegar, agarrando-se pelos dentes aos companheiros mortos.

"Por quanto tempo teremos forças?", pensou Lief. "Quanto tempo teremos antes que nos dominem?"

Sua mente trabalhava febrilmente enquanto lutava, as mãos dor-mentes no cabo da espada. Eles ficariam a salvo do outro lado do rio, largo demais para que os animais nadassem. Mas também era largo demais para ele, Jasmine e Barda, e os três nunca sobreviveriam se resolvessem lançar-se sem rumo naquelas águas frias e profundas.

Além disso, uma longa noite os aguardava. Antes que o sol nascesse novamente e trouxesse luz à planície, os ratos iriam atacar. Milhares morreriam, mas outros milhares viriam. Gradativamente, Lief, Barda e Jasmine perderiam as forças. E, finalmente, os ratos conseguiriam aglomerar-se sobre eles, mordendo e arranhando até que os três amigos afundassem e se afogassem.

O sol se pusera e a planície encontrava-se envolta na escuridão. Lief não podia mais ver a cidade, somente a fogueira, bruxuleante como um farol.

Foi então que se lembrou de ter colocado o frasco de pedras de acender fogo no bolso.

Soltou a mão esquerda da espada, mergulhou-a e remexeu na jaqueta. Seus dedos fecharam-se ao redor do frasco e ele o trouxe à superfície. Estava pingando água, mas as pedras ainda chocalhavam em seu interior.

Lief gritou para que Jasmine e Barda lhe dessem cobertura e avançou para a frente, ao mesmo tempo em que desatarraxava a tampa apertada do frasco. Ele apanhou um punhado de pedras com os dedos rígidos e jogou-as com todas as suas forças sobre os ratos que estavam na margem.

Quando as pedras os atingiram, viu-se uma labareda enorme cuja luz era ofuscante. Centenas de ratos caíram mortos, atingidos pelo calor repentino. A horda que se encontrava atrás deles guinchou e se espalhou, fugindo dos corpos incandescentes. As criaturas que já se encontravam na água agitaram-se e retorceram-se, aterrorizadas, avançando na direção de Lief, Barda e Jasmine, as longas caudas tor­cendo-se e enrolando-se. Barda e Jasmine golpearam-nos, defendendo a si mesmos e a Lief, enquanto este atirava outro punhado de pedras, e depois outro, movendo-se lentamente corrente abaixo para ampliar a parede de labaredas.

Logo um extenso lençol de fogo queimava na beira do rio. Atrás dele, a planície fervilhava. Mas, no local em que se encontravam Lief, Barda e Jasmine, ofegantes e trêmulos de alívio, havia apenas uma água ondulante, viva com a luz vermelha e bruxuleante. Ratos mortos eram carregados pela correnteza, porém não eram substituídos por outros.

Momentos depois, ouviu-se o barulho da água quando os ratos mergulharam no rio, acima e abaixo da linha de fogo. Contudo a distân­cia era grande demais para que nadassem em segurança. A correnteza veloz arrastava a maioria antes que atingissem suas presas, e os que sobreviviam eram facilmente abatidos.

Dessa forma, os três companheiros permaneceram unidos, mergu­lhados na água até a cintura, tremendo de cansaço, mas em segurança atrás da barreira de fogo, enquanto as longas e frias horas passavam.

Finalmente amanheceu e uma fraca luz vermelha tingiu o céu. Um som murmurante e confuso, semelhante ao farfalhar de inúmeras folhas, veio da direção da linha de fogo. O som desapareceu em seguida e um silêncio profundo caiu sobre a planície.

Lief, Barda e Jasmine avançaram com dificuldade para a mar­gem, passando por cima das brasas. A água lhes escorria das roupas e dos cabelos e chiava ao respingar nas chamas da barreira que haviam construído.

Os ratos haviam sumido. Entre o rio e os restos fumegantes da fogueira, nada havia além da pilha desordenada de pequenos ossos.

— Eles devoraram os próprios mortos — Barda balbuciou, eno­jado.

É claro — Jasmine retrucou com naturalidade.

Tremendo de frio e com a sensação de que as pernas eram feitas de chumbo, Lief começou a arrastar-se para o local onde havia feito a refeição muita horas antes. Jasmine e Barda o seguiram, quietos e vigilantes. Kree voava acima deles, o som forte do bater de suas asas sobressaindo-se no ar silencioso.

Ao redor das cinzas da fogueira restaram apenas três pedaços de tecido de um vermelho bem vivo.

— Eles deixaram as roupas e as botas dos Ra-Kacharz — Lief cons­tatou, rindo. — Parece que não gostaram delas. Por que será?

— Talvez as roupas ainda estejam impregnadas com o cheiro do fungo do Buraco — supôs Jasmine. — Nós não sentimos nada, mas nossos sentidos não são tão bons quanto os dos ratos.

Os companheiros observaram a destruição que os cercava. As fivelas das mochilas, as tampas dos cantis, o cachimbo que produzia bolhas de luz, um ou dois botões, algumas moedas e a caixinha de lata que continha os últimos Devoradores de Água estavam espalhados na terra ressecada em meio aos ossos e às cinzas. Exceto pelas roupas de Noradz, nada mais havia sobrevivido ao ataque faminto dos ratos. Nem uma migalha de pão, uma tira de cobertor ou um pedaço de corda.

— Pelo menos, temos nossas vidas — Barda filosofou, tremendo sob a leve brisa da manhã. — E temos roupas secas. Talvez não sejam as que gostaríamos de ter, mas quem vai nos ver aqui?

Esgotados, tiraram as roupas molhadas para vestir os trajes e calçar as botas dos Ra-Kacharz. Então, finalmente aquecidos e secos, sentaram-se para conversar.

— O frasco de pedras de fogo está quase vazio. Não conseguiremos sobreviver outra noite nesta planície — Barda disse, sério. — Se quiser­mos entrar na cidade, precisamos fazê-lo agora. Estes trajes estranhos vão nos dar alguma proteção, já que os ratos não gostam deles. E ainda temos o cachimbo que produz bolhas de luz. Se funcionar como nos foi dito, ele pode se útil.

Os companheiros formaram trouxas com as roupas molhadas, recolheram do chão os poucos pertences restantes e começaram a cami­nhar em direção à cidade.

Os olhos de Lief ardiam de cansaço e os pés se arrastavam dentro das botas altas e vermelhas. O pensamento de que hordas de ratos ras­tejavam e se engalfinhavam dentro das torres em ruínas que ele avistava adiante o encheu de pavor. Como poderiam entrar na cidade sem serem descobertos e despedaçados por eles?

No entanto, precisavam fazê-lo, pois o Cinturão de Deltora come­çara a ficar quente na cintura de Lief. Era evidente que uma das pedras perdidas estava escondida na cidade. O Cinturão podia sentir isso.

 

As torres da cidade erguiam-se escuras e proibitivas acima das cabeças dos três companheiros.

Os grandes portões de ferro da entrada haviam enferrujado e caído há muito tempo e, em seu lugar, tudo o que restava era um enorme buraco que conduzia à escuridão, de onde vinha um terrível som áspero e furtivo e o mau cheiro dos ratos. Havia também outra coisa. Uma coisa pior. A sensação de um mal antigo — vingativo, frio, aterrador.

Lief, Barda e Jasmine começaram a calçar as luvas dos Ra-Kacharz e a cobrir os rostos com o tecido vermelho que haviam usado na fuga de Noradz.

— Não entendo como os ratos se multiplicaram dessa forma — Lief comentou. — É verdade que eles se reproduzem rapidamente, principalmente em locais sombrios e sujos e onde encontram alimento com facilidade. Mas por que as pessoas desta cidade não perceberam o problema e o soluciona­ram antes que assumisse dimensões incontroláveis e tivessem de fugir?

— Havia algo de maligno no ar — Barda concluiu, carrancudo, obser­vando as paredes em ruínas à sua frente. — O Senhor das Sombras...

— Não se pode culpar o Senhor das Sombras por tudo! — Jasmine retrucou, de repente.

Ela exibia uma expressão carregada. Barda e Lief a olharam, sur­presos.

— Fiquei quieta por muito tempo — ela murmurou. — Mas agora vou falar, mesmo sabendo que vocês não vão gostar do que vou dizer. Aquele estranho que vimos na loja de Tom — o homem com a cicatriz no rosto — falou dos espinheiros na planície. Ele os chamou de espinheiros de Del. E ele estava certo.

Os amigos continuaram a fitá-la. Jasmine respirou fundo e pros­seguiu.

— O Senhor das Sombras governou Deltora por apenas dezesseis anos, mas foi necessário muito mais para que os espinheiros cobrissem a planície. O encantamento da feiticeira Thaegan no Lago das Lágrimas começou cem anos atrás. O povo de Noradz tem vivido daquela forma há séculos. E acredito que os habitantes deste lugar maligno o tenham abandonado há séculos também.

Ela ficou quieta, fitando o vazio, triste.

— O que você quer dizer, Jasmine? — Barda indagou, impaciente.

— Que os reis e rainhas de Deltora traíram a confiança depositada neles — seu olhar havia ficado sombrio. — Eles se trancaram no palácio de Del e viveram no luxo enquanto o reino se deteriorou e o mal prosperou.

— Isso é verdade. — Lief concordou — Mas....

— Sei o que você vai dizer — Jasmine interrompeu, zangada. — Você me contou que eles foram enganados pelos servos do Senhor das Som­bras. Que eles seguiam normas estúpidas cegamente por acreditar que o seu dever se resumia a isso. Mas não acredito que alguém possa ser tão cego! Acho que toda essa história é mentira.

Barda e Lief ficaram em silêncio. Ambos entendiam por que Jas­mine tinha tanta dificuldade em acreditar na verdade. Ela fora obrigada a cuidar de si mesma desde os 5 anos de idade, era forte e independente. Nunca teria permitido que a transformassem num fantoche, nunca agiria de acordo com a vontade do conselheiro-chefe.

— Estamos arriscando as nossas vidas para recuperar o Cinturão de Deltora — prosseguiu ela, mais violenta agora. — E por quê? Para devolver o poder ao herdeiro real — que até mesmo num momento como este está escondido, enquanto que Deltora sofre e nós enfrentamos o perigo. Mas será que realmente queremos reis e rainhas no palácio de Del que mintam para nós e que nos usem como antes? Eu acho que não!

Jasmine os olhou fixamente e esperou.

Barda estava zangado. Para ele, Jasmine demonstrara deslealdade ao expor as suas opiniões. Lief, contudo, pensava diferente.

— Eu costumava pensar como você, Jasmine, e detestava a lem­brança do velho rei. Mas questionar se ele e o filho foram fúteis e indolen­tes e se o herdeiro é digno de nossa confiança não é importante agora.

— Não é importante! — Jasmine gritou. — Como você pode...

— Jasmine, nada é mais importante do que livrar o nosso reino do Senhor das Sombras! — Lief interrompeu. — Por piores que as coisas fossem em Deltora, pelo menos naquela época as pessoas eram livres e não viviam sempre aterrorizadas.

É verdade. — exclamou ela — Mas....

— Não podemos derrotar o Senhor das Sombras com armas. A feitiçaria que ele usa é poderosa demais. Nossa única esperança é o Cinturão usado pelo verdadeiro herdeiro de Adin. Portanto, não estamos arriscando as nossas vidas pela família real, mas por nosso reino e por seu povo. Você não percebe isso?

As palavras de Lief atingiram o seu objetivo. Jasmine parou e refletiu. Lentamente, o fogo em seu olhar arrefeceu.

— Você está certo — ela disse, finalmente, sem entusiasmo. — A minha raiva me fez perder nosso objetivo de vista. Sinto muito.

Ela não disse mais nada, apenas terminou de envolver a cabeça e o rosto com a faixa vermelha. Então, com a adaga na mão, acompanhou-os para o interior da cidade.

Os companheiros penetraram num labirinto escuro em que as paredes emitiam sons como se estivessem vivas. Os ratos vieram aos milhares, surgindo das rachaduras das paredes deterioradas. Suas cau­das agitavam-se como chicotes e seus olhos vermelhos brilhavam.

Lief apanhou o cachimbo e soprou-o. Lindas bolhas brilhantes se desprenderam dele, iluminando a escuridão como minúsculas lanternas flutuantes.

A maioria das criaturas fugiu da luz, gritando em pânico, e a grande multidão diminuiu, transformando-se em um grupo menor, confuso.

Os mais corajosos, correndo em meio às sombras no chão, ten­taram agarrar-se aos pés em movimento dos intrusos e subir por suas pernas. Mas as botas altas e escorregadias e o tecido liso e espesso de seus trajes frustraram os esforços de quase todos, exceto de alguns, dos quais Lief, Barda e Jasmine se livraram com safanões.

— Parece até que estas roupas foram feitas especialmente para nós — Barda sussurrou, avançando com dificuldade. — Tivemos muita sorte em tê-las trazido.

— E muita sorte em termos ganhado este cachimbo de Tom — acres­centou Lief. Mas, mesmo enquanto falava, ele se perguntava se tudo aquilo tinha mesmo acontecido por mera sorte. Ou teriam aqueles obje­tos caído em suas mãos por outro motivo? Durante essa jornada, ele já não tivera a impressão de que os seus passos estavam sendo guiados por uma mão invisível?

Tremendo e lutando para livrar-se dos ratos, eles prosseguiram aos tropeços. Vez ou outra, Lief soprava o cachimbo e novas bolhas de luz brilhante surgiam. As que foram deixadas para trás pairavam muito acima de suas cabeças e brilhavam sobre as antigas vigas que ainda sustentavam o telhado. Os ratos não tinham conseguido roer essas vigas ou talvez soubessem que não deviam fazê-lo, pois sem elas o telhado despencaria e a cidade ficaria exposta ao sol.

Toda a cidade era como um grande edifício — um labirinto de pedras que parecia não ter fim. Não havia ar fresco nem luz natural. Provavelmente, era dessa forma que se construíam cidades naquelas paragens, Lief pensou. Noradz não era diferente.

Em todos os lugares, havia sinais de uma grandiosidade extinta. Entalhes, arcos elevados, aposentos amplos, lareiras enormes cheias de cinzas, cozinhas grandes e vazias encontravam-se cobertos de poeira.

E ratos rastejavam por todos os cantos.

O pé de Lief tocou algo que tiniu e rolou. Os ratos agarraram-se às suas luvas quando ele se abaixou para apanhar o objeto.

Tratava-se de um cálice entalhado — de prata, ele imaginou, embora manchado e embaçado por causa do tempo e do abandono. O coração de Lief encheu-se de tristeza quando girou esse cálice nas mãos. Era como se ele lhe falasse das pessoas que haviam fugido de suas casas tanto tempo atrás. Ele o examinou com mais atenção. De algum modo, lhe parecia familiar. Mas por quê?...

— Lief — Barda resmungou, a voz abafada pela faixa que lhe cobria a boca e o nariz. — Continue andando, por favor. Não sabemos quanto tempo o cachimbo vai durar e precisamos estar num lugar seguro quando a noite cair.

— Pelo menos, num lugar em que não haja ratos — Jasmine acres­centou. Furiosamente, ela passou as mãos pelo corpo e os ratos que subiam caíram no chão, guinchando.

Uma lembrança viva e uma onda de assombrada compreensão invadiu a mente de Lief.

— Se encontrarmos tal lugar, diremos "Aqui não há ratos" e será uma bênção — ele murmurou.

— O quê? — Jasmine indagou, intrigada.

Não havia tempo para explicações. Lief se forçou a prosseguir, enfiando a haste do cálice no cinto. Mais tarde, ele contaria a Jasmine e Barda, quando estivessem fora de perigo. Quando...

Venha até mim, Lief de Del.

Lief estancou, olhando ao redor, atônito. O que era aquilo? Quem havia falado?

— Lief, o que aconteceu? — a voz de Jasmine parecia distante, apesar de ela estar bem ao seu lado. Ele fitou-lhe os olhos verdes desconcertados e percebeu vagamente que ela nada tinha ouvido.

Venha até mim. Estou esperando.

A voz sussurrava e se agitava na mente de Lief. Mal sabendo o que fazia, ele começou a se mover rápida e cegamente, seguindo o chamado.

As bolhas de luz flutuavam diante dele, iluminando as paredes em ruínas, os suportes enferrujados onde antes tochas ardiam, os fragmen­tos de potes empilhados. Ratos fervilhavam nos cantos e agarravam-se às suas botas.

Ele continuou, tropeçando, em direção ao centro da cidade. O ar ficou pesado e era difícil respirar. O Cinturão, quente, pulsava ao redor de sua cintura.

— Lief — escutou Barda chamar. Mas ele não podia retornar nem responder. Lief atingiu uma ampla passagem em cujo final se via uma larga entrada. A criatura que estava do outro lado, o que quer que fosse, exalava um cheiro nauseante e almiscarado. Ele vacilou, mas mesmo assim prosseguiu.

Lief chegou à entrada. Do outro lado, algo enorme se movia na escuridão.

— Quem é você? — ele indagou, com a voz trêmula.

A voz sibilante o atingiu em cheio, ácida e penetrante. Eu sou quem você procura. Eu sou Reeah. Venha até mim.

 

Escuridão. Perversidade. Medo.

Trêmulo, Lief levou o cachimbo à boca e assoprou. Bolhas brilhantes subiram e iluminaram o espaço que outrora fora um amplo salão de reuniões.

Uma enorme serpente ergueu-se no centro, sibilando no espaço ressonante. As curvas de seu corpo brilhante, grosso como o tronco de uma velha árvore, cobriam o chão de ponta a ponta. Seus olhos eram inexpressivos, frios e exibiam uma maldade secular. Sobre sua cabeça havia uma coroa e, no centro desta, uma pedra que brilhava com todas as cores do arco-íris.

Era a opala.

Lief deu um passo para a frente.

Pare!

Lief não soube dizer se a palavra estava apenas em sua mente ou se a serpente a proferira em voz alta. Ele ficou imóvel. Barda e Jasmine se aproximaram. Lief ouviu a respiração intensa dos dois e percebeu seus braços se moverem quando ergueram as armas.

Remova o objeto que está usando sob suas roupas. Jogue-o para longe.

Lentamente, os dedos de Lief se aproximaram do Cinturão.

— Não, Lief! — ele escutou Barda pedir, ansioso.

Mesmo assim, mexeu no fecho do Cinturão e tentou abri-lo. Nada além da voz que lhe dava ordens parecia real.

— Lief! — A mão firme e morena de Jasmine agarrou-lhe o pulso e puxou-o furiosamente.

Lief lutou para livrar-se dela e, então, de repente, foi como se despertasse de um sonho. Ele olhou para baixo, piscando.

A palma de sua mão encontrava-se pousada no topázio dourado. Então ele entendeu que a pedra havia desanuviado sua mente e dissipado o imenso poder que a serpente tinha sobre ele. O rubi cintilava ao lado do topázio, não mais vermelho vivo, mas sim cor-de-rosa, indicando perigo. No entanto, seu brilho ainda parecia emanar um estranho poder.

A imensa serpente sibilou, furiosa, e mostrou suas terríveis pre­sas. Sua língua bífida movimentava-se rapidamente para dentro e para fora. Lief sentiu a força de seu domínio, mas pressionou a mão sobre o topázio com intensidade ainda maior e resistiu.

— Por que ela não ataca? — Jasmine sussurrou.

Agora Lief sabia a resposta. Ele lembrou-se de um trecho de "O Cinturão de Deltora" que discorria sobre os poderes do rubi.

O grande rubi, símbolo da felicidade, vermelho como o sangue, fica opaco na presença do mal ou quando o infortúnio ameaça quem o usa. Ele afasta espíritos malignos e é um antídoto para o veneno da serpente.

 

— Ela está sentindo o poder do rubi — Lief sussurrou. — É por esse motivo que está com a atenção voltada para mim.

A sua mágica é forte, Lief de Del, mas não o bastante para salvá-lo, a cobra sibilou.

Lief vacilou, pois novamente a vontade da serpente tentou domi­nar-lhe a mente.

 

— A opala está na coroa dela — ele balbuciou para Jasmine e Barda. — Façam o que puderem enquanto eu a distraio.

Ignorando as advertências sussurradas dos amigos, Lief começou a se afastar deles. A serpente voltou a cabeça para segui-lo com seu olhar duro e frio.

— Como você sabe o meu nome? — Lief perguntou, mantendo a mão firme no topázio.

Eu tenho a pedra que mostra o futuro. Sou toda-poderosa. Sou Reeah, a escolhida do Mestre.

— E quem é o seu mestre?

Aquele que meu deu o meu reino. Aquele que chamam de Senhor das Sombras.

Lief ouviu Jasmine deixar escapar um som abafado, mas não se virou para olhá-la. Em vez disso, enfrentou o olhar de Reeah, ao mesmo tempo em que tentava manter a mente livre de sua influência.

— Certamente, você está aqui há muito tempo, Reeah — ele conti­nuou. — Você é tão grande e imponente!

A cobra sibilou e ergueu a cabeça, orgulhosa. Como Lief imaginara, a vaidade dela era proporcional ao tamanho.

Eu não passava de uma minúscula serpente quando vim para os subter­râneos desta cidade. Uma raça de humanos lamurientos vivia aqui na época. Se tivessem me encontrado, teriam me matado por causa da ignorância e do medo. Mas entre eles havia servos do Mestre que estavam me esperando. Eles me receberam bem, trouxeram-me ratos para que eu me alimentasse até crescer e ficar forte.

Lief viu Jasmine com o canto dos olhos. Ela estava escalando uma das colunas que sustentavam o teto. Rangendo os dentes, ele se obri­gou a desviar a mente dela, pois era essencial que a atenção de Reeah permanecesse concentrada nele.

— Que servos? — ele perguntou. — Quem eram eles?

Você os conhece, sibilou Reeah. Eles têm a marca dele. A eles foram pro­metidos poder e vida eterna por servi-lo. Vocês usam as roupas deles para iludir-me, mas não me iludem.

— Claro que não! — gritou Lief. — Eu a estava testando para ver se você realmente podia ler a minha mente. Quem mais saberia onde encontrar ratos, o que fazer para que procriassem e como aprisioná-los? Quem mais senão os caçadores de ratos da cidade? Foi um plano inteligente.

Ah, sim, Reeah respondeu. Havia poucos ratos naquela época. 0 meu reino ainda não havia atingido a glória que lhe era destinada. Mas o meu Mes­tre soube escolher os seus servos. Eles criaram mais ratos para mim — cada vez mais. Até que, finalmente, as paredes começaram a fervilhar, cheias deles. A doença se espalhou e todo o alimento da cidade foi consumido. Então as pessoas imploraram aos caçadores de ratos que os salvassem, sem saber que estes eram os próprios causadores da praga.

Os olhos cruéis da serpente brilharam, triunfantes.

— Então os caçadores de ratos tomaram o poder — Lief concluiu. — Disseram que a praga dos ratos era resultado da maldade das pessoas e que nada lhes restava fazer senão fugir.

Sim. Atravessar o rio para outro lugar onde reconstruiriam a cidade. Quando eles se foram, saí dos subterrâneos e reivindiquei o meu reino.

Lief sentiu, mais do que viu, que Jasmine começava a caminhar pela grande viga que atravessava o salão, exatamente acima da cabeça da serpente. Ela andava com a mesma facilidade e leveza com que se movimentava entre os galhos das árvores das Florestas do Silêncio. O que estaria planejando? Certamente, ela não acreditava que as suas adagas conseguiriam perfurar aquela pele lustrosa. E onde se encon­trava Barda?

Lief podia sentir que a grande serpente estava ficando inquieta. Sua língua saía da boca e entrava nela rapidamente, e a cabeça se inclinava na direção do garoto.

— Reeah! A nova cidade chama-se Noradz, que significa Nada de Ratos — Lief gritou. — Eu a vi. As pessoas se esqueceram do que foram e de onde vieram. O medo que sentem de ratos desencorajou-as. Os caçadores de ratos agora se chamam Ra-Kacharz e são como sacerdo­tes que mantêm leis sagradas. Eles carregam chicotes que se parecem com caudas de ratos e são todo-poderosos. O povo vive aterrorizado e escravizado, servindo aos propósitos do seu Mestre.

Isso é bom, sibilou Reeah. É o que merecem. Então você contou a sua histó­ria, Lief de Del. Sua mágica desprezível, suas armas insignificantes e sua lábia me divertiram — durante algum tempo. Mas agora estou cansada de seu palavrório.

De repente, ela atacou. Lief cortou o ar com a espada para se pro­teger, mas o primeiro movimento da serpente arrancou-lhe a arma da mão com se fosse um brinquedo. Ela foi atirada para o alto, longe dele, fazendo círculos no ar.

— Jasmine! — Lief gritou. Mas não houve tempo para verificar se ela tinha apanhado a espada. A serpente estava prestes a atacar novamente. Suas enormes mandíbulas estavam abertas, as presas pingando veneno.

— Lief! As pedras de fogo! — A voz de Barda soou no outro lado do aposento. Com certeza, ele se arrastara até lá numa tentativa de atacar o monstro pelas costas. A gigantesca cauda da serpente sacudiu-se rapidamente e o corpo de Barda chocou-se terrivelmente contra uma coluna, permanecendo imóvel.

"As pedras de fogo." Desesperado, Lief procurou nos bolsos, encon­trou o frasco e o atirou com força diretamente na boca aberta do inimigo. Contudo, Reeah era rápida demais para ele. A cabeça da malvada criatura moveu-se bruscamente para o lado e o frasco passou voando por ela, espatifando-se numa coluna e explodindo numa bola de fogo.

Agora eram somente Lief e Reeah.

Você é meu, Lief de Del!

A imensa cabeça investiu para a frente com uma velocidade aterra­dora. E, no momento seguinte, a enorme serpente ergueu-se, triunfante, com o corpo de Lief pendendo de suas mandíbulas.

Bem no alto, onde se encontravam os caibros que sustentavam o telhado, um hálito quente queimava...

Vou engolir você inteiro. E a sua mágica também.

De repente, o ar se encheu de fumaça e se ouviu um som crepitante. Lief percebeu vagamente que as chamas haviam subido a coluna e lambiam a madeira velha dos caibros.

O fogo não vai salvá-lo. Depois de devorá-lo, vou apagá-lo com um simples sopro. Pois eu sou Reeah, a toda-poderosa. Eu sou Reeah, aquela que...

Em meio a uma atmosfera confusa de terror e dor, através de uma cortina de fumaça que lhe fazia arder os olhos, Lief viu Jasmine sobre uma viga ao seu lado, a espada do garoto oscilando nas mãos dela. Ela arrancara a faixa vermelha do rosto e seus dentes estavam à mostra numa fúria selvagem. Ela ergueu o braço...

Com um golpe poderoso, brandiu a espada, cortando a garganta da serpente de um lado a outro.

Lief ouviu um grito rouco e borbulhante e sentiu as mandíbulas do monstro se abrirem. Começou a cair rapidamente na direção do chão, as pedras duras aguardando ansiosamente para recebê-lo.

E então o vazio.

 

Lief se mexeu, gemendo. Sentiu um gosto adocicado na boca e ouviu estalos, gritos e sons de algo se rasgando e sendo mastigado muito ao longe.

Abriu os olhos e viu Jasmine e Barda inclinados sobre ele, cha­mando-o. Jasmine estava fechando um pequeno frasco preso a uma corrente que levava pendurada ao pescoço. Lief percebeu vagamente que ela lhe dera o néctar dos Lírios da Vida. O líquido o salvara, talvez o ressuscitara, como uma vez fizera com Barda.

— Eu... eu estou bem — murmurou, esforçando-se para sentar-se. Ele olhou à sua volta. O aposento estava tomado por sombras tremeluzentes. As chamas, iniciadas pelas pedras de fogo, haviam se espalhado e rugiam nas vigas antigas. A gigantesca serpente jazia morta no chão, o corpo coberto por ratos famintos. Mais roedores desciam das paredes e surgiam na soleira da porta, lutando entre si para alcançar o banquete.

Por centenas de anos, a serpente se alimentara deles, Lief pensou, aturdido, e agora ocorria o oposto. Nem mesmo o temor das paredes em fogo os impedia.

— Precisamos sair daqui! — gritou Barda.

Lief sentiu o amigo erguê-lo e jogá-lo por cima de seu ombro. Sua cabeça girava, e ele tentou gritar: "E a coroa? E a opala?"

Nesse momento, porém, viu que a coroa se encontrava na mão de Barda.

Totalmente sem energia, Lief foi carregado, sacolejando nas costas de Barda, pelos aposentos em chamas. Seus olhos estavam fechados, irritados por causa da fumaça.

Ao abri-los novamente, notou que estavam atravessando os portões da cidade e se dirigiam para a planície sombria. Kree, grasnando ansio­samente, voou ao encontro deles. Então, ouviu-se um forte estrondo. O telhado da cidade começara a desmoronar.

Eles prosseguiram até chegar perto do rio.

— Eu consigo andar — Lief balbuciou. Barda parou e pousou-o deli­cadamente no chão. Suas pernas tremiam, mas ele endireitou o corpo e se virou para observar a cidade em chamas.

— Nunca pensei que iria vê-lo em pé outra vez, amigo — Barda comentou, alegre. — Aquela queda que Jasmine provocou foi...

— Era deixá-lo cair ou vê-lo desaparecer na boca da serpente justi­ficou a garota. — O que acha que seria melhor? — completou, devolvendo a Lief a espada, que brilhava sob a luz da Lua, a lâmina ainda manchada com o sangue de Reeah.

— Jasmine — Lief começou. Mas ela deu de ombros e virou-se, fingindo estar ocupada ajeitando Filli em seu ombro. Ele percebeu o constrangimento da garota diante da perspectiva de vê-lo agradecido por ela ter-lhe salvado a vida.

— Você acha que é seguro descansarmos aqui? — perguntou, mudando de assunto. — Como acabei de quebrar todos os ossos do meu corpo, acho que não agüentaria atravessar o rio agora.

— Acho que é bastante seguro, sim. Não vai haver ratos por aqui durante algum tempo. — Barda respondeu. E então abriu um largo sor­riso e passou as mãos dos ombros até os quadris. — Noradzeer — acres­centou.

— Lief, como você sabia, antes de a serpente ter-lhe contado, que antigamente o povo de Noradz vivia na Cidade dos Ratos? — Jasmine indagou, curiosa.

— Havia muitos indícios — Lief informou, cansado. — Mas talvez eu não tivesse ligado os fatos se não tivesse encontrado isto. — Ele tirou o cálice sem brilho do cinto e entregou-o aos amigos.

— Ora, é igual ao cálice que continha as cartas VIDA e MORTE, o Cálice Sagrado de Noradz — Barda constatou, tomando-o nas mãos, surpreso. — Possivelmente ele caiu e foi deixado para trás quando o povo fugiu da cidade.

Lief sorriu quando o minúsculo focinho negro de Filli surgiu na gola de Jasmine para ver o que estava acontecendo.

— Não é de espantar que Filli tenha assustado o povo de Noradz — disse ele.

— Filli não é nem um pouco parecido com um rato! — Jasmine exclamou, indignada.

— Eles detestam qualquer coisa pequena e peluda. Acho que apren­dem a ter esse medo desde que nascem — Barda arriscou.

— Como o medo de derrubar comida no chão ou deixar travessas descobertas, pois essas atitudes costumavam atrair milhares de ratos

— Lief completou. — Ou o receio de comer alimentos estragados, como acontecia muitas vezes na época da praga. A necessidade de tomar todos esses cuidados deixou de existir hã centenas de anos, mas os Ra-Kacharz garantiram que o medo permanecesse, para manter as pessoas presas a eles e ao Senhor das Sombras.

Lief falava despreocupada e indolentemente, a fim de livrar a mente dos fatos horríveis que haviam acabado de acontecer. Mas Jas­mine fitou-o, séria, a cabeça inclinada para o lado.

— Então quer dizer que é bem possível que um povo que nasceu depois de regras idiotas terem sido criadas esqueça a sua história e as siga por obrigação? Eu não acreditaria nisso se não tivesse visto com meus próprios olhos.

Lief percebeu que aquela era a maneira de Jasmine dizer que estava começando a acreditar que os reis e rainhas de Deltora tinham menos culpa do que ela imaginara, fato que o deixou muito satisfeito.

— Mas sempre há uma opção, e obrigações podem ser esquecidas

— acrescentou depressa ao ver Lief sorrir. — Aquela garota, Tira, nos aju­dou apesar do medo. — Jasmine fez uma pausa. — Espero que um dia possamos voltar para libertá-la. Ou libertar a todos, se desejarem.

— Esta é a nossa grande chance de fazer isso. — Lief soltou o Cinturão e estendeu-o perante si no chão áspero da planície. Barda entregou-lhe a coroa que continha a grande opala.

Ao aproximar-se do Cinturão, a pedra caiu da coroa para a mão de Lief. Imediatamente, a mente dele foi invadida por imagens de desertos arenosos e céus repletos de nuvens ameaçadoras. Ele se viu sozinho entre dunas ondulantes e intermináveis, sentiu o terror à espreita, invisível, e abafou um grito de medo.

Lief olhou para cima, viu Jasmine e Barda fitando-o ansiosos e fechou a mão trêmula com mais força ao redor da pedra.

— Eu havia esquecido — ele começou com voz rouca, tentando sorrir.

— A opala nos mostra cenas do futuro. E parece que isso nem sempre é uma vantagem.

Temendo que lhe perguntassem o que vira, ele se inclinou para encaixar a pedra no Cinturão. Sob seus dedos, as cores do arco-íris pareciam faiscar e queimar como fogo. Bruscamente, seu coração ace­lerado se aquietou, o temor esmoreceu e foi substituído por um calor latejante.

— A opala também é o símbolo da esperança — Barda murmurou, observando-o.

Lief assentiu, pressionando a mão sobre as cores vibrantes e sen­tindo o poder da pedra fluir por seu corpo. E, quando finalmente fitou os amigos, seu rosto estava em paz.

— Então agora temos o topázio, símbolo da lealdade; o rubi, símbolo da felicidade; e a opala, símbolo da esperança- afirmou ele, calmamente.

— Qual será a próxima?

Jasmine estendeu o braço para Kree, que voou até ela, dando um grito penetrante e alegre.

— Qualquer que seja a quarta pedra, certamente não irá nos con­duzir a perigos maiores do que as outras três — disse ela.

— E se isso acontecer? — Barda brincou.

— Enfrentaremos o que vier — respondeu ela com simplicidade, dando de ombros.

Lief ergueu o Cinturão — sólido, seguro e um pouco mais pesado do que antes — e ajeitou-o ao redor da cintura. Lealdade, felicidade e esperança, pensou o garoto, e seu coração se encheu desses três sentimentos.

— Sim — disse ele. — Vamos enfrentar qualquer perigo. Juntos.

 

 

                                                                                                    Emily Rodda

 

 

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