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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A CIDADELA / A. J. Cronin
A CIDADELA / A. J. Cronin

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A CIDADELA

 

       No fim de uma tarde de Outubro do ano de 1924 um jovem mal vestido olhava atenta e intensamente através da janela de uma carruagem de terceira classe do comboio quase vazio que, vindo de Swansea, atravessava o Vale do Penwell. Partindo do Norte, Manson viajara durante todo o dia com transbordo em Carlisle e Schrewbury, mas na tirada final da sua enfadonha viagem para Gales do Sul encontrou-se sob o domínio de uma excitação ainda mais intensa pelas perspectivas do emprego, o primeiro da sua carreira médica, nessa estranha e desolada região.

       Lá fora um forte aguaceiro era uma cortina de névoa que cobria as montanhas que se levantavam de um lado e do outro da via férrea. Os picos estavam ocultos na mancha cinzenta do céu; as abas dos montes, escalavradas pelos trabalhos de extracção do minério, Caíam negras e desoladas, mais claras aqui e além por grandes pilhas de refugo de minério, sobre as quais erravam alguns carneiros sujos, na vã esperança de pastagem. Não se via a menor vegetação. Na luz agonizante, as árvores eram fantasmas raquíticos e descarnados. Numa curva da linha, o revérbero vermelho de uma fundição lampejou um instante, iluminando  um grupo de trabalhadores, nus da cintura para cima, os dorsos retesos, os braços levantados para bater.

       Embora o quadro desaparecesse rapidamente atrás da confusa engrenagem do alto da mina, perdurava uma impressão  de força tensa e vívida. Manson respirou profundamente. Sentiu-se invadido por uma onda de estímulo, sufocado  por uma alegria súbita que vinha da esperança e das promessas do futuro.

       Já havia caído a noite, acentuando o ar estranho e distante da cena, quando, meia hora mais tarde, a locomotiva  entrou resfolegando em Blaenelly, a última cidade do vale e término da linha. Chegara, finalmente. Segurando  a maleta, Manson saltou da carruagem e desceu rapidamente à plataforma, procurando com ansiedade qualquer  sinal de boas-vindas. À saída da estação, debaixo de um lampeão que o vento sacudia, esperava-o um velho de cara amarelada, com um chapéu quadrado e uma capa de borracha que mais parecia uma camisola. Examinou Manson com um olhar bilioso, e quando se resolveu a falar a voz ainda era hesitante.

       - É o novo assistente do Dr. Page?

       - Eu mesmo. Manson. O meu nome é Andrew Manson!

       - Hum! Pois o meu é Thomas. «Velho Thomas» é como muitos me chamam, os malditos! Trouxe o cabriolet. Entre no carro, a não ser que prefira ficar encharcado.

       Manson levantou a maleta e pulou para o cabriolet todo desconjuntado, ao qual estava atrelado um cavalo alto e anguloso. Thomas seguiu-o, segurou as rédeas e gritou ao cavalo:

       - Vamos, Taffy!

       Atravessaram a cidade. Embora Andrew tentasse vivamente  distinguir os seus contornos, nada mais pôde discernir,  na chuva torrencial, do que a mancha confusa das casas baixas e cinzentas, alinhadas ao pé das altas montanhas  que nunca se perdiam de vista. Durante alguns minutos o velho criado ficou em silêncio, mas continuava a lançar a Andrew olhares desconfiados por baixo da aba gotejante do chapéu. Em nada se parecia com o cocheiro elegante de um médico de prestígio. Era, pelo contrário, mal-amanhado e sujo e dele se desprendia um cheiro enjoativo  de gordura rançosa. Afinal disse Thomas:

       - O Sr. Doutor concluiu há pouco o curso, não é verdade?

       Andrew moveu a cabeça afirmativamente.

       - Já calculava. O velho cuspiu. O triunfo tornava-o perigosamente comunicativo. O último assistente foi-se embora há uns dez dias. Eles nunca param.

       - Por quê? 

       Apesar do nervosismo, Andrew sorriu.

       - Creio que uma das razões é o trabalho, pesado de mais.

       - E há outras?

       - O senhor verá!

       Um momento depois, como um cicerone que mostrasse uma catedral imponente, Thomas levantou o chicote e apontou para a última casa de uma fileira, onde uma nuvenzinha de fumo subia de um portal iluminado.

       - Está a ver além? Lá estão a minha patroa e a minha casinha de venda de batatas e peixe frito. - Uma ideia divertida arrepanhou-lhe o lábio superior. - Não tardará muito que o doutor tenha necessidade de conhecer a casinha.

       A rua principal terminava e, virando para uma pequena via lateral, atravessaram um terreno abandonado e seguiram  pelo estreito caminho que levava a uma casa isolada atrás de três araucárias. No portão via-se uma placa com um nome: «Bryngover».

       - Cá estamos, - disse Thomas, fazendo parar o carro.

       Andrew desceu. Acto contínuo, enquanto se preparava para a cerimónia da apresentação, escancarou-se a porta da frente e viu-se num vestíbulo iluminado, recebido efusivamente  por uma mulherzinha de cerca de quarenta anos, baixa, gorducha e risonha, fisionomia expansiva e olhos atrevidos e faiscantes.

       - Ora viva! Deve ser o Dr. Manson. Entre, meu filho, entre. Eu sou a mulher do médico, a Sr.a Page. Espero que tenha feito uma viagem pouco fatigante. Oh! Que prazer em vê-lo! Quase que não sei onde tenho a cabeça desde que nos deixou o outro assistente. Um sujeito horrível! Se o senhor o visse! Nunca vi perdulário igual, é o que posso afirmar-lhe. Mas pouco importa. Agora, com o senhor aqui, tudo correrá bem. Venha, eu mesma quero mostrar-lhe o seu quarto.

       No andar superior, o quarto de Andrew era um aposento  pequenino e modesto, com uma cama de metal, uma cómoda de pinho envernizada e uma mesa de bambu com bacia e jarro. Examinando o quarto enquanto os olhinhos da mulher, que pareciam dois botões negros, lhe observavam  a face, Andrew disse, querendo mostrar-se amável:

        - Isto parece muito confortável, Sr.a Page.

       - É, sem dúvida. - Ela sorriu e bateu-lhe maternalmente  no ombro. - Ficará bem instalado aqui, meu filho. Trate-me bem e eu pagar-lhe-ei na mesma moeda. Nada mais justo, não é verdade? Agora, antes de outra coisa, venha, vou apresentá-lo ao doutor.  Ela fez uma pausa.

       O seu olhar ainda fixava o dele interrogativamente e a voz esforçava-se por ser natural. Não sei se lhe disse na minha carta, mas, para falar com franqueza, o doutor não tem andado muito bem ultimamente.

       Andrew fitou-a com surpresa.

       - Oh! Nada de grave - continuou a mulher, apressadamente,  antes que ele pudesse falar. - Há já semanas que está de cama. Mas ficará bom dentro em breve. Sobre isso não há dúvidas.

       Perplexo, Andrew acompanhou-a até ao fim de um corredor, onde ela abriu uma porta, exclamando alegremente :

       - Está aqui o Dr. Manson, Edward! O nosso novo assistente. Vem cumprimentar-te.

       Quando Andrew entrou no aposento, um quarto de dormir  comprido, de cortinas completamente corridas e com um pequeno fogo a arder na lareira, Edward Page virou-se lentamente no leito, parecendo fazer com isso um grande esforço. Era um homem grande, ossudo, de sessenta anos talvez, com feições gastas e olhos luminosos mas cansados.

       Em todo o seu rosto liam-se sofrimento e uma espécie de aborrecimento. E mais ainda. Incidindo sobre o travesseiro,  a luz do candeeiro de azeite revelava um lado do rosto imobilizado e sem expressão. O lado esquerdo estava igualmente paralítico e a mão esquerda, que caía sobre a colcha, estava contraída em forma de funil. Observando esses sinais de um ataque grave e nada recente, Andrew sentiu-se tomado de súbito desalento. Estabeleceu-se um silêncio constrangedor.

       - Faço votos para que goste disto aqui. - Observou afinal o Dr. Page, falando arrastadamente e com dificuldade,  tartamudeando um pouco as palavras. - Espero também  que não ache a clínica demasiadamente trabalhosa. O senhor é muito moço.

       - Tenho vinte e quatro anos, doutor. - Andrew respondeu  desajeitadamente. - Este é o meu primeiro emprego, mas não tenho medo do trabalho.

       - Estás a ver? - A Sr.a Page expandiu-se. - Eu não te disse, Edward, que teríamos sorte com o nosso novo assistente?

       Uma imobilidade ainda mais completa caiu sobre a face do doente. Olhou para Andrew. E então o seu interesse pareceu declinar. Disse numa voz fatigada 

       - Espero que o senhor permaneça.

       - Meu Deus do Céu! - exclamou a Sr.a Page. - Isso é coisa que se diga? - Voltou-se para Andrew, sorridente, a desculpar-se. - Isto é só porque ele está hoje um pouco abatido. Mas ficará bom dentro em breve e voltará ao serviço, não é assim, querido? - Curvou-se e beijou carinhosamente  o marido. - Ouve. Mandarei Annie com o teu jantar logo que terminemos o nosso.

       Page não respondeu. A expressão parada do rosto apoiado  no travesseiro fazia a boca parecer torcida. A mão do lado ileso estendeu-se para um livro que estava sobre a mesinha de cabeceira. Andrew viu o título do livro: AS AVES SELVAGENS DA EUROPA. Antes mesmo que o paralítico começasse a ler, compreendeu que devia retirar-se.

       Quando Andrew desceu para o jantar, os seus pensamentos  estavam numa confusão dolorosa. Fora admitido naquele lugar de assistente em resposta a um anúncio publicado no Lancet. Todavia, na correspondência mantida até o fim de que resultou a sua aceitação para o lugar, a Sr.a Page nunca fizera a menor alusão à doença do marido.

       Mas era certo que o Dr. Page estava doente e não podia haver dúvida sobre a gravidade da hemorragia cerebral que o incapacitara. Passariam meses antes que ele pudesse voltar ao trabalho, se pudesse ainda voltar a trabalhar alguma vez.

       Andrew esforçou-se por afastar preocupações. Era moço, robusto, e não lhe repugnava o trabalho extraordinário que a doença de Page lhe acarretaria. Na verdade o seu entusiasmo ansiava mesmo por uma avalanche de chamadas.

       - Está com sorte, meu filho - observou a Sr.a Page jovialmente ao entrar com alvoroço na sala de jantar. - Esta noite já pode ter uma amostra do seu trabalho. Nada de clínica. Dai Jenkins incumbiu-se disso.

       - Dai Jenkins?

       - É o ajudante de farmácia - disse a Sr.a Page naturalmente. - Uma pessoa jeitosa. E de muito boa vontade também. Muitos tratam-no mesmo por Dr. Jenkins, embora, é claro, não possa ser comparado em coisa alguma com o Dr. Page. Ele encarregou-se da clínica, e também de atender as chamadas, nestes últimos dez dias.

       Andrew fitou-a com um novo interesse. Um clarão trouxe à sua memória tudo o que lhe tinham dito, todas as advertências que lhe haviam feito acerca dos discutíveis processos de clínica médica nessas paragens longínquas do País de Gales. Mais uma vez foi com esforço que nada respondeu.

        A Sr.a Page sentou-se à cabeceira da mesa, de costas para a lareira. Quando se instalou confortàvelmente na  cadeira, apoiada numa almofada, deu um suspiro de satisfação  à ideia do jantar e fez soar uma campainha na sua frente. Trouxe o jantar uma criada de meia-idade, rosto pálido e ar limpo que, ao entrar, lançou um olhar furtivo a Andrew.

       - Venha, Annie - disse a Sr.a Page pondo manteiga num pedaço de pão macio e metendo-o na boca. - Este é o Dr. Manson.

       Annie não respondeu. De modo silencioso e discreto serviu a Andrew uma fatia fininha de carne: peito de vaca cozido e frio. Para a Sr.a Page, no entanto, havia lombo quente, com cebolas, além de meia garrafa de cerveja preta.

       Quando ela levantou a tampa do seu prato especial e cortou um pedaço de carne suculenta, os dentes aguçaram-se numa expectativa agradável. Explicou então:

       - Quase não almocei, doutor. Além disso tenho de observar a minha dieta. É o sangue! Tenho de tomar uma gotinha de cerveja preta por causa do sangue.

       Andrew mastigou a carne nervosa e só bebeu água. Passado um momento de indignação, a sua principal dificuldade consistia em dominar o próprio senso de ironia. O pretexto  da doença que ela apresentara era tão falso que ele conteve a muito custo uma doida hilaridade.

       Durante a refeição, a Sr.a Page comeu muito e falou pouco. Por fim, ensopando o pão no molho da carne, terminou  o bife, fez estalar os lábios ao beber o resto da cerveja e recostou-se na cadeira com a respiração um tanto opressa e as faces gordas bem lustrosas e coradas. Parecia disposta a demorar-se à mesa, inclinada a confidências,  tentando talvez formar uma impressão de Manson, lá à sua maneira astuciosa.

       Estudando-o, ela via um rapaz moreno, magro e desajeitado,  de compleição robusta, maçãs do rosto salientes, queixo delicado e olhos azuis. Esses olhos, quando os levantava,  eram extraordinariamente firmes e inquiridores, apesar  da tensão nervosa da fronte. Embora nada soubesse a esse respeito, Blodwen Page estava diante de um exemplar do tipo celta. E ainda que reconhecesse o vigor e a viva inteligência na fisionomia de Andrew, o que lhe agradou acima de tudo foi ter aceitado sem relutância a fatia de uma carne de peito cozida havia mais de três dias. Deduziu  que o assistente não era difícil de alimentar embora parecesse faminto.

        - Vamos dar-nos muito bem, o doutor e eu - declarou outra vez com efusão, enquanto palitava os dentes com um gancho de cabelo. - Ainda bem, porque eu preciso de um pouco mais de sorte, para variar.

       Enternecida, contou-lhe as suas atribulações e fez um vago esboço da clínica  e da sua situação.

       - Tem sido horrível, meu filho! Não pode calcular com a doença do meu marido, e com esses assistentes sem escrúpulos, nada entra e tudo sai. Ah! Nem imagina! E o trabalho que tenho tido para conservar  a boa vontade do gerente e dos funcionários da mina!... É por seu intermédio que se recebe o dinheiro da clínica. Bem pouco, aliás apressou-se a acrescentar. Veja, as coisas estão montadas em Blaenelly da seguinte maneira: a Companhia tem três médicos no serviço, embora  lhe deva explicar que o Dr. Page está muito acima dos outros pela inteligência. E além disso é o mais antigo. Uns trinta anos ou mais. É uma coisa que deve tomar-se em consideração! Pois bem, esses médicos podem ter tantos  assistentes quantos quiserem. O Dr. Page apenas tem um, que é o doutor. O Dr. Nicholls tem um «maduro» chamado  Denny. Mas os assistentes não fazem parte dos quadros  da Companhia. De qualquer modo, como ia dizendo, a Companhia deduz um tanto do salário de todos os seus empregados das minas e das pedreiras e paga com isso aos médicos titulares, de acordo com o número de homens inscritos nos respectivos registos.

       Parou, esgotada pelo esforço imposto à sua ignorância e pelo estômago muito cheio.

       - Creio que já compreendi o sistema, Sr.a Page.

       - Então, muito bem. - Ela riu-se alegremente. - Não deve preocupar-se mais com o assunto. Só deve lembrar-se que está a trabalhar com o Dr. Page. Isto é o principal, doutor. Lembre-se de que está por conta do Dr. Page e assim o senhor e a pobrezinha de mim entender-nos-emos bem.

       Observando-a em silêncio, pareceu a Manson que a mulher  procurava ao mesmo tempo inspirar-lhe piedade e firmar a sua autoridade sobre ele, tudo sob aquela forma de falsa amabilidade. Ela sentiu, talvez, que tinha ido demasiadamente  longe. Com um olhar para o relógio de parede,  endireitou-se, colocou de novo o gancho no cabelo negro e gorduroso e levantou-se. A sua voz era agora diferente,  quase autoritária.

       - A propósito, há uma chamada para a Glydar Place, 7. Veio por volta das cinco horas. É melhor ir atendê-la quanto antes.

       Andrew saiu imediatamente, com uma sensação estranha quase de alívio, para atender a chamada. Alegrava-o a oportunidade de libertar-se das emoções curiosas e contraditórias  que a sua chegada a Bryngover havia suscitado.

       Já desconfiava da situação e da maneira pela qual Blodwen Page pretendia utilizá-lo para prosseguir com a clínica do médico principal, incapacitado para o serviço.

       Era uma situação estranha e muito diferente dos sonhos românticos da sua imaginação. Como tudo isso era insignificante,  no entanto, comparado com o seu trabalho! Era só o que importava. Estava ansioso por começar. Insensivelmente,  apressou o passo, excitado pela expectativa do serviço, ansioso pela sua realização. Era esse o seu primeiro caso!

 

       Ainda chovia quando atravessou as trevas viscosas de um terreno baldio e seguiu ao longo de Chapei Street, na direcção vagamente indicada pela Sr.a Page. Na escuridão da noite, a cidade ia tomando forma diante de Andrew.

       Lojas e igrejas Zion, Capell, Hebron, Bethel, Bethseda, passou por muitas, depois os armazéns de uma grande cooperativa e a filial de Western Counties Bank, tudo na rua principal, mergulhada no fundo do vale. Era extraordinariamente  impressionante a sensação de estar sepultado  no fundo daquela cadeia de montanhas. Havia pouca gente por ali. A pouca distância, estendendo-se de um lado e de outro de Chapei Street, havia filas de casas com tectos azuis de trabalhadores das minas. Mais além, na extremidade  da garganta, sob o clarão que se espalhava como um leque no céu opaco, a mina de hematite de Blaenelly e as fábricas metalúrgicas.

       Andrew chegou ao n.º 7 da Glydar Place, bateu ansiosamente  na porta, e logo o levaram à cozinha, onde a doente estava deitada numa cama, a um canto. Era uma mulher jovem, esposa de um operário metalúrgico chamado Williams.

        Ao aproximar-se da cabeceira, com o coração a bater apressadamente, ele sentiu com toda a nitidez a significação  deste acto. Era o verdadeiro ponto de partida da sua carreira.

       Quantas vezes imaginara aquela cena, quando, no meio de uma multidão de estudantes, acompanhava uma aula prática na enfermarias do Prof. Lamplough! Agora não havia uma multidão para o amparar, nem a exposição fácil do mestre. Estava sozinho, diante de um caso que devia diagnosticar e tratar sem ajuda estranha. De repente,  numa verdadeira aflição, ele teve a consciência do seu nervosismo, da sua inexperiência, da sua completa falta de preparação para tal eventualidade.

       Sob o olhar do marido, na divisão acanhada, com chão de pedra e iluminação escassa, ele examinou a mulher com escrupuloso cuidado. Não havia dúvida: estava doente.

       Queixava-se de intolerável dor de cabeça. Temperatura, pulso, língua, tudo indicava perturbação, perturbação bem séria. Mas que podia ser? Andrew fez angustiosamente a si mesmo essa pergunta quando se inclinou novamente sobre a enferma. O seu primeiro caso! Oh! Ele sabia que estava demasiadamente nervoso. Mas, e se cometesse um erro, um terrível erro? Pior ainda  e se não pudesse fazer um diagnóstico? Nada esqueceu. Nada. Contudo, ainda lutava  para chegar a uma conclusão das suas observações, à solução do seu problema, esforçando-se por classificar os sintomas correspondentes de alguma doença definida. Afinal,  compreendendo que não poderia prolongar o exame por mais tempo, endireitou-se lentamente, enrolando o estetoscópio, procurando com esforço o que havia de dizer.

       - Ela teve um resfriamento? - perguntou sem levantar a vista.

       - Sim, realmente - respondeu Williams com ansiedade. Mostrara-se apreensivo durante o demorado exame. - Há três ou quatro dias. Estou certo de que foi um resfriamento, doutor.

       Andrew confirmou com a cabeça, tentando dolorosamente  inspirar uma confiança que não sentia. Murmurou:

       - Havemos de vê-la curada dentro em breve. Vá ao dispensário daqui a meia hora. Eu lhe darei um remédio.

       Despediu-se e, cabisbaixo, pensando desesperadamente,  arrastou-se para o dispensário, uma construção de madeira arruinada que ficava à entrada do caminho da casa de Page. Lá dentro acendeu o gás e começou a andar de um lado para o outro diante dos frascos azuis e verdes sobre as prateleiras empoeiradas, quebrando a cabeça, esforçando-se por uma solução. Não havia sintomas precisos. Devia ser, sim, devia ser um resfriamento. Mas, no íntimo, ele sabia que não era um resfriamento. Resmungava exasperadamente,  desanimado e raivoso em face da sua própria insuficiência. Contra a sua vontade, via-se forçado a contemporizar.

       Para quando se lhe deparava um caso duvidoso na sua enfermaria, o Prof. Lamplough tinha preparada uma fórmulazinha que aplicava com tacto: P.O.D. pirexia  de origem desconhecida. Era exacta e não comprometia.

       E soava tão bem como coisa científica!

       Sentindo-se muito infeliz, Andrew tirou de um canto de um armário um frasco de seis onças e, com uma ruga de preocupação, começou a compor uma preparação febrífuga.

       - “Espírito de nitro doce, salicilato de sódio. Onde estava o diabo do salicilato? Ah, está aqui!”

       Tentou animar-se reflectindo que todas aquelas drogas eram esplêndidas,  excelentes, destinadas a fazer baixar a temperatura. Só podiam fazer bem. O Prof. Lamplough declarara muitas vezes não haver remédio tão eficaz na generalidade dos casos como o salicilato de sódio.

       Exactamente quando Andrew acabava de fazer a composição  e escrevia o rótulo, com a sensação exaltada de haver praticado uma façanha, a campainha tocou, a porta da rua abriu-se e entrou, seguido de um cão, um homem de trinta anos, baixo, de compleição robusta, faces avermelhadas.

       Houve um silêncio. O cão de pêlo negro assentou-se sobre as patas traseiras enlameadas. Entretanto o homem  que usava um fato velho de veludo de algodão, meias castanhas e sapatos com tachas, uma capa de oleado encharcadíssima  sobre os ombros fitou Andrew de alto a baixo. Quando se decidiu a falar fê-lo com um tom de voz de uma polidez irónica, intoleràvelmente bem educada.

       - Ao passar vi luz na janela. Pareceu-me que devia entrar  para lhe apresentar as boas-vindas. Sou Denny, assistente  do conceituado Dr. Nicholls, L. S. A. Isso quer dizer, se ainda não sabe: Licenciate of the Society of Apothecaries,  o título mais elevado que Deus e os homens conhecem.

       Andrew baixou a vista, embaraçado. Phillip Denny sacou um cigarro de um maço amachucado, atirou o fósforo ao chão e começou a passear insolentemente. Tomou o frasco do remédio, leu o rótulo, as indicações, destapou-o cheirou-o, tapou-o de novo e colocou-o outra vez no mesmo lugar, deixando transparecer no semblante avermelhado e aborrecido uma expressão de amabilidade melíflua.

       - Esplêndido! Já começou a trabalhar lindamente! Uma colherada de três em três horas. Valha-me Deus! Como é confortante a velha e querida mistificação! Mas, doutor, porque não três vezes ao dia? Não compreende, colega, que, pela ortodoxia mais estrita, as colheradas devem  passar três vezes por dia pelo esófago do doente?

       Fez uma pausa, tornando-se ainda mais ofensivo na sua delicadeza, com o ar afectado de intimidade.

       - E agora, diga-me, doutor, que é isso? Pelo cheiro é espírito de nitro doce. Estupendo esse espírito de nitro doce, tão eficiente como ele é! Estupendo, meu caro doutor, estupendo! Carminativo,  estimulante, diurético, e pode beber-se à vontade um garrafão. Não se lembra do que diz o livrinho de receitas?  Quando em dúvida, recomende espírito de nitro. Ou é iodureto de potássio? Ora essa! Parece que já esqueci alguma das minhas noções essenciais.

       Mais uma vez se estabeleceu silêncio no barracão de madeira, quebrado apenas pelo tamborilar da chuva no telhado de zinco. De repente Denny soltou uma gargalhada,  saboreando a expressão confusa do rosto de Andrew.

       E acrescentou com ar de troça:

       - Deixando a ciência de parte, doutor, poderia satisfazer  a minha curiosidade? Que ideia foi essa de vir para aqui?

       Por essa altura Andrew já estava meio irritado. Respondeu  asperamente:

       - Tive a ideia de transformar Blaenelly numa estância de cura; uma espécie de estação de águas, compreende?

       Denny riu-se novamente. O seu riso era como um insulto  que dava a Andrew vontade de lhe bater.

       - Engraçado, muito engraçado, meu caro doutor. É o espírito contundente dos verdadeiros escoceses. Infelizmente não lhe posso recomendar a água daqui como especialmente  indicada para uma estação de cura. Enquanto aos senhores médicos, meu caro colega, são eles neste vale o rebotalho, o refugo de uma profissão gloriosa e verdadeiramente  nobre.

       - Inclusive o senhor mesmo?

       - Precisamente.

       Denny balançou a cabeça num gesto  confirmativo das suas palavras. Depois ficou calado um momento, a contemplar Andrew por baixo das sobrancelhas castanho-carregado. Então abandonou o tom irónico e trocista e o seu rosto tornou-se concentrado. Embora amargo, era sério o tom da voz.

       - Tome nota, Manson! Bem sei que começa agora a sua carreira para ser um médico de prestígio mas até lá há duas ou três coisas sobre isto aqui que deve saber. Não achará o lugar muito de acordo com as melhores tradições do exercício romântico da medicina. Não há hospital, nem ambulância, nem raios X, nem coisa alguma. Quando há necessidade de operar, usa-se a mesa da cozinha. Para lavar-se depois, tem de o fazer na pia da cozinha. Os sanitários  são coisas que não se podem ver. Quando o Verão é seco, as criancinhas morrem, como moscas, de cólera infantil. Page, o seu patrão, foi um elemento bom na medicina, mas agora é um homem acabado, que Blodwen  explora. Nunca mais voltará a ser o que era. Nicholls, o meu patrão, é um tipozinho de parteira que só pensa em dinheiro. Bramwell, o Rei da Prata, nada sabe, a não ser alguns recitativos sentimentais e os Salmos de Salomão. E, quanto a mim, é melhor antecipar as boas referências: bebe como uma esponja. Ah! E o Jenkins, o boticário da casa, faz um óptimo negócio, por seu lado, com pastilhas para doenças de senhora. Creio que é tudo. Anda, Hawkins, vamos embora.

       Chamou o cão e dirigiu-se para a porta. Ali parou, passeando a vista desde o frasco do remédio, sobre o balcão, até Manson. A sua voz era natural, quase desinteressada.

       - A propósito, se eu fosse a si consideraria a hipótese de enterite no caso de Glydar Place. Alguns casos não têm características definidas.

       Pum... bateu a porta de novo. Antes que Andrew pudesse responder, o Dr. Phillip Denny e Hawkins desapareceram na escuridão e na chuva.

 

       Não foi o colchão duro de palha que fez Andrew dormir tão mal naquela noite, mas a ansiedade crescente provocada  pelo caso de Glydar Place. Seria enterite? A observação  de Denny ao despedir-se criara uma nova fonte de dúvidas e desconfianças no seu espírito já incerto. Receando ter deixado passar despercebido algum sintoma capital, foi com dificuldade que dominou o impulso de levantar-se e ir examinar novamente a doente a uma hora tão imprópria da madrugada. Por certo, na agitação e no desassossego da longa noite sem repouso, chegou a perguntar  a si mesmo se afinal de contas sabia alguma coisa de medicina.

       A natureza de Manson era extraordinariamente receptiva.

       Provavelmente, vinha da mãe essa particularidade, uma mulher do Highland, que, quando menina, tinha visto da sua casa, em Ullapool, a aurora boreal brilhar no céu gelado. O pai, John Manson, um pequeno lavrador de Pifeshire, tinha sido um homem sério, cuidadoso e arranjado.

       Nunca chegou a ser grande coisa na sua terra, e quando morreu, como guarda real, no último ano da guerra,  deixou os negócios do seu modesto estábulo numa triste desordem. Durante doze meses Jessie Manson lutou para explorar a granja como fornecedora de lacticínios, tendo mesmo de fazer em pessoa a entrega do leite quando compreendeu que Andrew estava demasiadamente ocupado com os seus livros para executar tal serviço. Foi então que se agravou a tosse a que durante anos não ligara importância.

        De uma hora para outra a pobre rendeu-se ao mal dos pulmões que devasta esse tipo de pele macia e cabelos negros.

       Aos dezoito anos Andrew viu-se sozinho como estudante do primeiro ano da Universidade de St. Andrew mantido por uma bolsa escolar de quarenta libras anuais, porém sem um tostão de seu. Quem o salvou foi a Dotação Glen, essa fundação tipicamente escocesa que, na terminologia ingénua do finado Sir Andrew Glen, «convida estudantes  pobres e de valor com o nome de Andrew a solicitarem um empréstimo que não exceda cinquenta libras anuais, fornecido durante cinco anos, desde que se preparem conscienciosamente  para reembolsá-los depois de formados».

       Graças à Dotação Glen e a alguma fome suportada de ânimo alegre, Andrew conseguiu fazer todo o curso em St. Andrew e, mais tarde, na Escola Médica de Dundee.

       Profundamente honesto a ponto de não olhar às conveniências  próprias, a sua dívida à Dotação fê-lo seguir apressadamente  para Gales ao Sul, onde assistentes recém-formados  poderiam obter remuneração mais elevada. Mas, embora o seu salário fosse de duzentas e cinquenta libras anuais, se não existisse esse compromisso teria preferido uma nomeação de médico para o hospital de Edimburgo, mesmo ganhando dez vezes menos.

       E ei-lo agora em Blaenelly, às voltas com o primeiro cliente. Levantou-se, fez a barba, vestiu-se, sempre preocupado  com o caso. Engoliu à pressa o primeiro almoço e depois, apressadamente, voltou ao quarto. Abriu a mala e tirou de lá uma caixinha de couro azul. Abriu-a e contemplou carinhosamente uma medalha que ela continha  a medalha de ouro Hunter, concedida anualmente na Universidade de St. Andrew ao melhor aluno da Clínica Médica. Ele, Andrew Manson, conquistara-a! Prezava-a mais do que tudo, chegando a considerá-la um talismã, a sua inspiração para o futuro. Mas nessa manhã não foi tanto com orgulho como numa invocação secreta que ele a contemplou, como se tentasse restaurar a confiança em si mesmo. E então apressou-se a sair para o serviço matinal do dispensário.

       Quando Andrew chegou ao barracão de madeira já lá encontrou Dai Jenkins, que tirava água da bica para uma grande vasilha de louça. Era um sujeito miúdo e esperto, de veias arroxeadas, faces encovadas, olhos inquietos,  que pareciam espiar todos os pontos ao mesmo tempo.

       Nas pernas finas usava as calças mais apertadas que Andrew tinha visto. Recebeu Manson com modos amáveis e insinuantes:

       - Doutor, não precisa de vir tão cedo! Eu mesmo posso renovar os remédios já prescritos e preparar as receitas antes da sua chegada. A Sr.a Page mandou fazer um carimbo  com a chancela do médico quando ele caiu doente.

       - Obrigado - respondeu Andrew. - Prefiro tratar eu mesmo desses assuntos.

       Fez uma pausa, distraído momentaneamente  da sua preocupação pela conduta do encarregado  do dispensário.

       - Que ideia é essa?

       Jenkins piscou um olho.

       - A água tem outro sabor saindo dali. Nós sabemos o que significa, na verdade, a velha água da bica, hem, doutor?! Mas os doentes não sabem. Havia de parecer um verdadeiro idiota se eles me vissem encher com água da torneira os seus frascos de remédio...

       Era evidente que o homenzinho estava a querer fazer-se comunicativo, mas neste momento uma voz estridente partiu  dos fundos da casa.

       - Jenkins! Jenkins! Preciso de si imediatamente!

       Jenkins pulou como um cão amestrado ao estalar do chicote do dono. Disse a tremer:

       - Desculpe-me, doutor. É a Sr.a Page que me chama.

       Por sorte havia pouca gente para o serviço do dispensário. Às dez e meia já estava terminado. Depois de recebida de Jenkins a lista das visitas a fazer, Andrew saiu no cabriolet guiado por Thomas. Numa expectativa ‘quase’ dolorosa,  ordenou ao velho criado que seguisse directamente para o n.º 7 da Glydar Place.

       Vinte minutos depois saiu do n.º 7 pálido, apertando os lábios, com uma expressão estranha no rosto. Bateu a duas portas adiante, no n.º 11, atravessou a rua para o 18. Do 18 dobrou a esquina para Radnoor Place, onde havia mais duas visitas marcadas por Jenkins como feitas na véspera.

       No espaço de uma hora, ao todo sete visitas ali ao redor.

       Cinco delas, incluindo a de Glydar Place, que estava agora com um aspecto característico, eram casos nítidos de enterite.

       Durante os últimos dez dias Jenkins estivera a tratá-los  com carbonato de cal e ópio. E agora, por maiores que tivessem sido os seus atabalhoados esforços na noite anterior, Andrew compenetrou-se, com um arrepio de apreensão, de que tinha de enfrentar um surto de tifo.

       Foi num estado quase de pânico que ele terminou tão rapidamente quanto possível o resto da sua peregrinação.

       Durante o almoço meditou sobre o problema num silêncio gelado, enquanto a Sr.a Page comia rim de vitela, explicando  alegremente:

       - Mandei comprá-lo para o Dr. Page mas parece-me que ele não gostou.

       Andrew viu que da Sr.a Page poderia obter precárias informações e nenhuma ajuda. Achou que devia falar ao próprio médico.

       Mas, quando subiu ao quarto dele, as cortinas estavam corridas e Edward jazia prostrado com uma terrível dor de cabeça, a face muito congestionada e vincada pelo sofrimento.

        Embora convidado a sentar-se um pouco, Andrew sentiu que seria cruel trazer-lhe naquele momento um motivo de inquietação. Ao levantar-se para sair, depois de alguns minutos à cabeceira do médico, contentou-se em perguntar:

       - Dr. Page, se tivermos um surto infeccioso que devemos  fazer?

       Houve uma pausa. Page respondeu de olhos fechados, sem se mover, como se o simples acto de falar já fosse bastante para agravar a sua enxaqueca.

       - Tem sido sempre muito difícil. Não temos hospital, só contamos com uma enfermaria de isolamento. Se estiver muito atrapalhado, telefone para Griffiths, em Toniglan. Fica a quinze milhas daqui. É o subdelegado de saúde do distrito. - Outra pausa mais longa do que a primeira. - Mas não espere dele grande coisa.

       Animado por essa informação, Andrew apressou-se a descer e pediu ligação para Toniglan. Enquanto esperava com o receptor no ouvido, viu que Annie o espiava pela porta da cozinha.

       - Alo, Alo! É da casa do Dr. Griffiths, de Toniglan? Conseguira ligação afinal.

       Uma voz de homem respondeu com muita precaução:

       - Quem deseja falar com ele?

       - Quem fala aqui é Manson, de Blaenelly. O assistente do Dr. Page. - O tom de voz era estridente. - Tenho aqui cinco casos de tifo. Preciso que o Dr. Griffiths venha imediatamente.

       Houve uma pausa misteriosa. Depois, de repente, a resposta  veio, cheia de desculpas, numa vozinha cantada, bem do País de Gales:

       - Sinto muito, doutor, lamento sinceramente, mas infelizmente  o Dr. Griffiths foi para Swansea. Assunto de serviço, coisa importante.

       - E quando estará de volta? - berrou Manson. A linha estava horrível.

       - Para falar precisamente, doutor, não lhe posso dar uma informação exacta.

       - Mas ouça...

       Houve um tique do outro lado do fio. Desligaram calmamente.

       Manson praguejou em voz alta, com violência nervosa:

       - Diabo o carregue! Suponho que foi o próprio Griffiths.

       Pediu o número outra vez, mas não conseguiu ligação.

       Contudo, numa teimosia desesperada, já estava para telefonar  novamente quando, ao virar-se, viu que Annie entrara  no vestíbulo e estava a contemplá-lo humildemente, com as mãos enfiadas nos bolsos do avental. Era uma mulher de quarenta e cinco anos talvez, asseada, com expressão de serenidade paciente e ajuizada.

       - Ouvi sem querer, doutor - disse ela. - Nunca encontrará  o Dr. Griffiths em Toniglan durante o dia. Quase todas as tardes vai jogar o golf em Swansea.

       Ele respondeu com irritação, dominando o nó que lhe apertava a garganta.

       - Mas creio que foi com ele mesmo que falei.

       - Pode ser. - Ela sorriu levemente. - Já ouvi contar que mesmo quando não vai a Swansea diz que foi. - Fitou-o  com tranquila simpatia antes de voltar para a cozinha. - Se eu fosse o doutor não perderia tempo com ele.

       Andrew pendurou o auscultador com um sentimento profundo de indignação e tristeza. Resmungando, saiu para visitar os doentes mais uma vez. Quando voltou, já estava na hora da consulta nocturna. Durante hora e meia ficou sentado no cubículo dos fundos que tinha o nome pomposo de consultório. Padeceu na divisão abafada até sentir as paredes ressumando humidade e o local insuportável com as exalações dos corpos suados. Mineiros com joelhos contundidos, dedos cortados, nistagmos, reumatismo crónico.

       As mulheres deles também, e as crianças com tosse,  resfriamentos, contusões todas as pequenas dores da Humanidade.

       Numa outra ocasião até acharia graça em ver-se posto à prova por aquela gente morena e de faces descoradas.

       Mas agora, perturbado pela impressão que o dominava,  impacientava-se com a narrativa daquelas doenças sem importância. Contudo, durante esse tempo uma decisão já se esboçava no seu espírito. Enquanto escrevia receitas, auscultava pulmões e dava conselhos médicos, ia pensando consigo mesmo: «Foi ele quem me abriu os olhos. Não o tolero. Sim, tenho-lhe uma aversão dos diabos. Mas não há remédio. Tenho de o procurar».

       Às nove e meia da noite, quando saiu o último cliente, levantou-se com a decisão estampada na fisionomia.

       - Jenkins, onde mora o Dr. Denny?

       Fechando rapidamente a porta da frente, a fim de impedir  que pudesse entrar mais alguém, o empregado voltou-se,  deixando transparecer no rosto uma expressão de horror quase cómico.

       - O doutor não deve querer entender-se com esse sujeito. A Sr.a Page... não gosta dele.

       Andrew, irritado, perguntou:

       - E porque não gosta dele a Sr.a Page?

       - Pela mesma razão por que os outros não gostam. Tem sido grosseiríssimo para com ela.

       Jenkins parou, mas, vendo a expressão de Manson, acrescentou com hesitação:

       - Ah, bem, se tem empenho em saber, ele mora em casa da Sr.a Seager, na Chapei Street, 49.

       Ei-lo novamente na rua. Andara o dia inteiro, mas nem dava pelo seu próprio cansaço, tal o sentido da responsabilidade,  tal a preocupação com aqueles casos, pesando, pesando cada vez mais, no seu espírito. Foi principalmente  alívio o que sentiu quando, ao chegar a Chapei Street, soube que Denny estava em casa. A dona da casa mandou-o entrar.

       Se ficou surpreendido ao vê-lo, Denny não o demonstrou.

       Perguntou-lhe apenas, depois de o encarar longa e persistentemente:

       - Então?! Ainda não matou alguém?

       Ainda de pé, no limiar da sala quente e em desordem, Andrew corou até à raiz dos cabelos. Mas, fazendo um grande esforço, dominou os nervos e o orgulho e disse abruptamente:

       - O doutor tinha razão. Era enterite. Mereço ser castigado por não haver descoberto isso. Já tenho em mãos cinco casos. Não me é agradável ter de vir até aqui, mas não sei o que fazer. Telefonei ao subdelegado de saúde e ele não me deu a mais insignificante ajuda. Tenho de apelar para si.

       Esparramado numa poltrona, perto do fogo, escutando, de cachimbo na boca, Denny fez afinal um gesto de má vontade:

       - É  melhor entrar. - E com súbita irritação: - Oh! Que diabo, puxe uma cadeira! Não fique aí de pé como se estivesse em penitência. Quer beber alguma coisa? Não! Logo vi que não havia de querer.

       Embora lhe custasse aceitar o convite, Andrew sentou-se e acendeu mesmo um cigarro para disfarçar a sua desorientação.

       Denny não parecia ter pressa. Pôs-se a acariciar o cão com a ponta do chinelo. Mas afinal, quando Manson acabou de fumar o cigarro, disse com um movimento de cabeça:

       - Querendo pode olhar para isso!

       E indicou a mesa onde estava o microscópio, um óptimo Zeiss, e algumas lâminas. Andrew focalizou uma lâmina, derramou sobre ela uma gota de óleo e pôde ver o enxame de bactérias de forma alongada.

       - Está preparado de modo muito primitivo, é claro - disse Denny com vivacidade e cinismo, como se antecipasse a crítica. - Na verdade está praticamente atamancado.

       - Não sou rato de laboratório, graças a Deus. Se sou alguma coisa, é cirurgião. Mas aqui, neste regime desgraçado de clínica, temos de ser pau para toda a obra. Aliás, não há engano possível, mesmo a olho nu. Eu preparei na minha estufa os germes em cultura de agar.

       - Também está a tratar de casos de tifo? - perguntou Andrew com vivo interesse.

       - Quatro. Todos na mesma zona dos seus. 

       E acrescentou:

       - Esses micróbios vêm da cisterna de Glydar Place.

       Andrew fitou-o espantado, ansioso por perguntar uma porção de coisas, começando a compreender a correcção do trabalho do outro e apreciando mais do que tudo a indicação do foco da epidemia.

       - O doutor compreende - continuou Denny no mesmo tom amargo e irónico. - O paratifo é mais ou menos endémico por estas bandas. E mais cedo ou mais tarde vamos ter uma epidemiazita. A rede principal de esgotos é a culpada de tudo. Verte como um crivo e os esgotos infiltram-se  na maioria das cisternas da parte baixa da cidade. Já martelei a paciência de Griffiths com este assunto, mas acabei por ficar cansado. É um porco parvo, incompetente, evasivo e preguiçoso. A última vez que lhe telefonei disse-lhe que ia acabar com a sua incapacidade na primeira ocasião que o encontrasse. Foi por isso provavelmente que ele se mostrou hoje tão macio consigo.

        - Isto é uma vergonha horrível! - explodiu Andrew, deixando-se invadir por uma crise súbita de indignação.

       Denny encolheu os ombros.

       - Ele não quer pedir providências ao conselho, com medo que das despesas resulte um corte nos seus proventos.

       Houve um silêncio. Andrew desejava ardentemente que a conversa prosseguisse. Não obstante a hostilidade de que se achava possuído em relação a Denny, encontrava um estranho estímulo no seu pessimismo, no seu cepticismo, no seu cinismo patente e glacial. Entretanto, mais nenhum pretexto tinha para prolongar a visita. Levantou-se da cadeira, junto da mesinha do microscópio e encaminhou-se para a porta, ocultando o que sentia e esforçando-se por exprimir a sua gratidão num agradecimento formal.

       - Fico-lhe muito grato pela informação. O doutor fez-me ver claramente a situação. Andava preocupado com a origem da doença e já estava a pensar que o contágio fosse pessoal, mas, desde que o doutor localizou a origem nas cisternas, tudo se esclarece. De ora em diante toda a água de Glydar Place tem de ser fervida.

       Denny levantou-se também e resmungou:

       - Griffiths é que devia ser posto a ferver.

       Depois retomou  o seu ar irónico:

       - Agora, meu caro doutor, nada de protestos comovidos. É um favor que lhe peço. Antes que este surto termine teremos provavelmente de nos suportar um ao outro. Venha  visitar-me todas as vezes que se sentir com forças para me tolerar. Não temos muita vida de relação por aqui.

       Lançou um olhar ao cão e concluiu rudemente:

        - Até um médico escocês pode ser bem-vindo, não é assim, Sir John!

       Sir John Hawkins varreu o tapete com a cauda, deitando  a língua de fora como a troçar também de Manson.

       Contudo, ao voltar para casa, por Glydar Place, onde deixou instruções rigorosas sobre a água, Andrew compreendeu  que não detestava tanto Denny como havia pensado.

      

       Andrew entregou-se de corpo e alma, com toda a energia da sua natureza ardente e impetuosa, à campanha contra a enterite. Amava o seu trabalho e julgava-se feliz por lhe ter aparecido tal oportunidade no começo da carreira.

       Durante essas primeiras semanas trabalhou como um negro,  mas alegremente. Tinha a seu cargo todo o serviço da clínica, porém, mal dava conta da tarefa, voltava com entusiasmo aos seus casos de tifo.

       Foi talvez protegido pela sorte na primeira investida.

       Antes de terminado o mês, todos os seus doentes de enterite iam em franca convalescença e o surto do mal parecia circunscrito. Quando pensava nas suas precauções, tão rigorosamente tomadas água fervida, desinfecção e isolamento, papéis ensopados de ácido fénico em todas as portas, quilos de cloreto de cal que mandara vir por conta da Sr.a Page e que ele mesmo atirara aos esgotos de Glydar, quando pensava em tudo isso, dizia com satisfação:

       «Tudo vai bem. Sei que não mereço tanto, mas que diabo! Estou dando conta do recado!» Inspirava-lhe um prazer secreto e inconfessável o facto de os seus casos melhorarem mais depressa que os de Denny.

       Este ainda o desconcertava, ainda o exasperava. Acidentalmente  encontravam-se muitas vezes por causa da vizinhança dos seus doentes e Denny regozijava-se por empregar todo o poder da sua ironia na tarefa comum.

       Dizia que Manson e ele estavam a lutar renhidamente com a epidemia e saboreava o dito com prazer vingativo. Contudo, apesar da permanente ironia, de dizer zombeteiramente:

       «Não se esqueça, doutor, de que estamos a  reabilitar a honra de uma profissão gloriosa», tratava carinhosamente dos doentes, sentado à sua cabeceira, examinando-os  a toda a hora, passando muito tempo junto dos leitos.

       As vezes Andrew chegava quase a estimá-lo. Era quando Denny deixava transparecer uma simplicidade tímida e fugidia. Mas logo depois prejudicava essa boa impressão com uma frase mal-humorada e sarcástica. Magoado e confuso, Andrew consultou certo dia o Anuário Médico na esperança de um esclarecimento. Havia nas estantes do Dr. Page um velho exemplar de uma edição de há cinco anos. Inseria, no entanto, algumas informações surpreendentes.

       Apresentava Phillip Denny como estudante laureado das Universidades de Cambridge e Guy, M. S. of England(*), exercendo até àquela data a sua actividade profissional na cidade de Leeborough, em cujo hospital também desempenhava as funções de cirurgião titulado.

      

(*) Abreviatura muito usada na linguagem médica para significar «Master in Surgery», isto é, «mestre em cirurgia». É o grau mais elevado de um operador na Inglaterra. (N. do T.)

      

       No dia 12 de Novembro, inesperadamente, Denny telefonou-lhe.

       - Manson, gostaria de o ver. Venha até aqui, às três horas. É assunto importante.

       - Está bem, irei.

       Andrew foi almoçar preocupado. E enquanto mastigava a sua magra refeição percebeu que Blodwen Page o observava  de modo incisivo e impertinente.

       - Quem foi que telefonou? Foi Denny, hem? Não se meta com esse cavalheiro. Ele para nada presta.

       Manson encarou-a friamente.

       - Pelo contrário, tem-me sido útil em muita coisa.

       - Pois continue com ele, doutor. 

       Como sempre acontecia  quando contrariada, Blodwen explodiu num acesso de despeito:

       - É um tipo maluco. Quase nunca receita. Olhe, quando Megan Rhyes Morgan, que não pode passar sem remédio, o foi consultar, recomendou-lhe apenas que andasse a pé, duas milhas por dia, nas montanhas, e deixasse de enlamear-se no meio dos porcos. Foram essas exactamente as suas palavras. Ela veio procurar-nos depois disso e eu asseguro-lhe que desde então nunca mais deixou de ter as suas garrafinhas de óptimos remédios preparados por Jenkins. Oh! é um demónio grosseirão e torpe e ainda por cima abandonou a mulher não sei onde. Não vive com ela. Veja lá! Além disso, anda quase sempre bêbado. Fuja da sua companhia, doutor, e não se esqueça de que está a trabalhar por conta do Dr. Page.

       Quando ela instilou essa insinuação torpe Andrew sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. Fazia tudo o que lhe era possível para lhe ser agradável, mas as suas exigências pareciam não ter limites. As suas atitudes, entre a blandícia e a desconfiança, tinham sempre em mira tirar tudo dele e dar-lhe em troca o menos possível. Talvez por descuido  da parte dela, o pagamento do seu primeiro mês já estava atrasado três dias, facto que o aborrecia e preocupava  muito. Ao observar esta mulher anafada, transbordante de bem-estar, ditando sentenças sobre Denny, Andrew não pôde conter os seus sentimentos e disse indignando-se de repente:

       - Lembrar-me-ia mais facilmente de que estou a trabalhar para o Dr. Page se já me tivesse pago o ordenado, minha senhora.

       Ela corou tão instantaneamente que Andrew ficou certo de haver tocado num assunto bem presente no espírito da Sr.a Page, que abanou a cabeça com ar de desafio:

       - O senhor receberá o seu ordenado. Esteja descansado.

       Durante o resto do almoço ficou amuada, sem olhar para Andrew, como se dele tivesse recebido um insulto Mas depois, quando o chamou à sala de visitas, a sua disposição já era afável, alegre, sorridente.

       - Aqui está o seu dinheiro, doutor. Sente-se e falemos como bons amigos. Não poderemos progredir se não nos entendermos bem.

       Estava sentada numa cadeira de braços, de veludo verde, com vinte notas de uma libra no colo. Pegando no dinheiro, começou a contar, passando lentamente as notas para as mãos de Manson:

       - Uma, duas, três, quatro... - ao chegar ao fim do maço começou a passar as notas mais devagar, bem mais devagarinho,  com os olhinhos negros e manhosos piscando significativamente. Quando contou dezoito, parou de vez e deu um suspiro de quem se lastima. - Oh, meu caro doutor! Isso é um dinheirão nestes tempos tão difíceis, não lhe parece? Toma lá, dá cá, tem sido sempre o meu lema na vida. Devo ficar com as outras duas como recordação?

       Ele nada achou que dizer. Era abominável a situação criada pela mesquinhez da mulher. Bem sabia que a clínica era muito bem paga pela Companhia.

       Durante um momento Blodwen ficou imóvel, estudando a fisionomia de Andrew. Depois, não encontrando resposta na sua face impassível, deixou cair-lhe na mão, com um gesto de aborrecimento, as duas notas que faltavam e disse secamente:

       - E agora trate de corresponder a este ordenado!

       Levantou-se de supetão e fez menção de deixar a sala, mas Andrew deteve-a antes que ela atravessasse a porta.

       - Um momento, Sr.a Page. - A sua voz indicava uma decisão nervosa. Por mais odioso que isso fosse estava resolvido a não deixar que ela ou a sua sovinice o prejudicasse. - A senhora só me deu vinte libras, que correspondem a duzentas e quarenta por ano, quando o nosso contrato foi de duzentas e cinquenta. Faltam-me dezasseis xelins e oito pence.

       Ela ficou branca como cera, de tanta raiva e decepção.

       - Ah! É assim?! - Soprava. - O senhor pretende estragar  a nossa amizade com questõezinhas de vintém? Sempre ouvi dizer que os escoceses eram muito sovinas e agora estou a ver a confirmação. Tome! Aqui estão os seus miseráveis xelins e os seus trocos também.

       Tirou da bolsa bojuda o resto do dinheiro, contando moeda a moeda, com os dedos trémulos e os olhos cravados em Andrew. Depois, lançando-lhe ainda um olhar feroz, retirou-se e bateu a porta com toda a força.

       Andrew saiu de casa enraivecido. As injúrias da Sr.a Page feriram-no profundamente porque as considerava injustas. Ela não via que não se tratava de uma questãozinha  miserável de dinheiro, mas de um princípio de justiça?

       Além disso, mesmo sem falar no aspecto moral do caso, ele era por natureza um homem incapaz de deixar que alguém fizesse pouco dele. Andrew sentiu-se melhor quando chegou ao correio e expediu, em carta registada, as vinte libras do seu ordenado para a Dotação Glen. As moedas ficavam para as suas despesas miúdas. À saída viu aproximar-se o Dr. Bramwell e a sua disposição melhorou ainda mais. Bramwell  andava lentamente, com ar majestoso, todo empertigado no seu fato preto já muito cansado, a cabeleira branca e comprida espraiando-se pela nuca sobre o colarinho  sujo, os olhos fixos no livro aberto que trazia na mão, com o braço todo estendido. Quando chegou junto de Andrew, a quem já tinha visto desde o meio da rua, fez um gesto teatral de quem finalmente dava pela sua presença  ali.

       - Ah, Manson, meu filho! Quase passei por si sem o ver. Ia tão distraído...

       Andrew sorriu. Já entrara em relações amistosas com o Dr. Bramwell, que, ao contrário de Nicholls, o outro médico «inscrito», o recebera cordialmente aquando da sua chegada.

       A clientela de Bramwell era pouco numerosa e não lhe permitia o luxo de um assistente, mas o doutor dava-se uns ares de importância e tinha atitudes próprias de um grande clínico.

       Fechou o livro, marcando cuidadosamente a página com a unha suja, e enfiou a mão livre na abertura do jaquetão coçado, numa imponência pitoresca. Era uma personagem tão teatral que custava acreditar na sua realidade. Mas não havia dúvida de que ele estava ali, bem vivo, na rua principal de Blaenelly. Não era de admirar que Denny o alcunhasse de O Rei da Prata.

       - E então, meu filho? Gosta da nossa pequenina cidade? Como lhe disse, quando nos foi visitar no Retiro, isto aqui não é tão mau como parece à primeira vista. Temos as nossas capacidades, a nossa cultura. Minha mulher e eu fazemos o possível para ajudar a intelectualidade da terra. Alimentamos o fogo sagrado, Manson, mesmo no deserto. Deve vir à nossa casa uma noite destas. O senhor canta?

       Andrew teve uma vontade doida de rir. Bramwell continuava,  com unção:

       - É claro que já ouvimos falar do seu trabalho nos casos de enterite. Blaenelly orgulha-se de si, meu rapaz.

       - Bem gostaria eu de ter uma oportunidade dessas. Se vier um dia a precisar de mim para alguma coisa, estou às suas ordens.

       Um rebate de remorso, quem era ele para se divertir à custa do velho? impeliu Andrew a dizer:

       - A propósito, Dr. Bramwell, estou a tratar de um caso de mediastienite secundária muito interessante. É um caso raro. Quer, dar-se à maçada de o examinar comigo, se nada mais tem que fazer?

       - Ah, sim? - indagou Bramwell, esfriando um pouco o entusiasmo. - Não quero perturbar o seu trabalho.

       - É aqui bem perto - disse Andrew com solicitude. Tenho ainda meia hora livre antes de me encontrar com o Dr. Denny. Podemos ir até lá num pulo.

       Bramwell parou, hesitou um pouco, como à procura de uma desculpa, e então fez um gesto desanimado de assentimento. E os dois desceram a Glydar Place e foram ver o doente.

       O caso era de facto, como dissera Manson, de excepcional interesse, apresentando um raro exemplo de inflamação persistente do timo. Manson estava muito orgulhoso de ter feito o diagnóstico e sentia uma confortante sensação  de ardor comunicativo quando convidou Branrwell a participar das emoções da sua descoberta.

       Mas, apesar dos seus protestos, o Dr. Bramwell não parecia entusiasmado por aquela oportunidade. Seguiu Andrew, entrou no quarto do doente com má vontade, sustendo a respiração e aproximando-se do leito de modo suave e lento. Ali tomou uma atitude natural e, a distância  que lhe pareceu conveniente, fez um exame apressado, pois nem sequer estava disposto a demorar-se. E foi só quando chegou à rua e aspirou profundamente o ar livre que recuperou a sua eloquência habitual. Expandiu-se  com Andrew:

       - Tive muito prazer em ver o caso na sua companhia, meu rapaz. Em primeiro lugar, porque faz parte dos deveres  do médico nunca fugir ao perigo da infecção e em segundo porque me agradam todas as oportunidades de estar em contacto com a ciência. Acredite que este é o melhor caso de inflamação do pâncreas que eu já alguma vez examinei.

       Apertou a mão de Andrew e foi-se embora apressadamente,  deixando o companheiro muito surpreso. «O pâncreas!»,  pensou Andrew, espantado. Não fora apenas um lapso de linguagem que levara Bramwell a cometer aquele erro crasso. Toda a sua atitude no caso denunciava ignorância.

       A verdade era que ele nada sabia. Andrew enrugou a testa. E pensar que um médico, a quem estavam confiadas centenas de vidas humanas, não sabia a diferença  entre o pâncreas e o timo, muito embora um esteja no abdómen e o outro no tórax. Não era de facto de pasmar?!

       Subiu lentamente a rua na direcção da casa de Denny. No caminho ia pensando mais uma vez como se desmoronava aos próprios olhos toda a sua concepção antiga do exercício da medicina. Ele bem sabia quanto era deficiente a sua preparação e a sua experiência, a sua formação incompleta muito capaz de cometer erros. Mas Bramwell não era inexperiente e por isso mesmo não havia desculpa para a sua ignorância. Inconscientemente o pensamento de Andrew voltou-se para Denny, que nunca perdia oportunidade de satirizar a profissão. De princípio Denny indignara-o profundamente com a afirmação pessimista  de que a Inglaterra estava cheia de médicos incompetentes  que só se distinguiam pela sua completa estupidez  e pela capacidade de iludir os doentes. Agora perguntava a si mesmo se Denny não teria uma certa razão ao dizer isso. Resolveu retomar a discussão naquela tarde.

       Quando entrou no quarto de Denny viu imediatamente que a ocasião não era propícia para discussões académicas.

       Phillip acolheu-o com um silêncio enfastiado, testa franzida  e olhar sombrio. Depois de um momento disse:

       - Jones morreu esta manhã, às sete horas. Perfuração intestinal. - falava calmamente, com raiva fria e contida. - E ainda tenho dois outros casos de enterite em Ystrad.

       Andrew baixou os olhos cheio de pena, mas sem saber o que dizer.

       - Não se mostre tão aborrecido com isso - continuou Denny com azedume. - É agradável para você verificar que os meus casos são mal sucedidos enquanto os seus melhoram. Mas as coisas não irão assim tão bem quando aquele maldito cano de esgoto começar a vazar na sua zona.

       - Não, não! Eu sinto muito, sinceramente. - Falou Andrew  num impulso. - Temos de tomar quaisquer providências. Devemos escrever ao Ministério da Saúde.

       - Poderíamos escrever uma dúzia de cartas - replicou Phillip, num tom sombrio. - Só conseguiríamos que no fim de seis meses aparecesse por aqui um inspector de higiene inteiramente desinteressado. Não! Já nem penso nisso. Só há um meio de obrigar essa gente a construir uma nova rede de esgotos.

       - Como?

       - Fazendo saltar o esgoto velho!

       Na primeira impressão Andrew chegou a desconfiar que Denny não estava no seu perfeito juízo. Mas logo depois compreendeu a intenção audaciosa do companheiro. Fitou-o  consternado. Por mais que tentasse pôr em ordem as suas ideias em alvoroço, Denny parecia sempre disposto a destroçá-las. Disse meio estupefacto:

       - Isso iria dar uma série enorme de complicações... se fosse descoberto.

       Denny encarou-o arrogantemente.

       - Se não quiser vir comigo, não preciso.

       - Mas eu vou consigo - respondeu Andrew pausadamente. - Mas só Deus sabe porquê!

       Durante toda a tarde Manson trabalhou de má vontade, lamentando a promessa que fizera. Aquele Denny era doido e mais cedo ou mais tarde acabaria por envolvê-lo em qualquer séria complicação. Era uma coisa horrorosa o que ele acabara de propor, uma infracção à lei, que, descoberta,  havia de levá-los à polícia e poderia expulsá-los da Ordem dos Médicos. Um arrepio de horror correu por Andrew ao pensar que a sua bela carreira, que se esboçava tão brilhante para o futuro, poderia ser subitamente cortada,  arruinada. Amaldiçoou Phillip violentamente e jurou mais de vinte vezes que não o acompanharia. Contudo, por uma razão misteriosa e complexa, não queria, não podia  voltar atrás.

      

       Às onze horas da noite, Denny e ele saíram juntos,  acompanhados do cão, e foram até ao fim de Chapei Street.

       Estava muito escuro. O vento sibilava e uma chuvinha miúda salpicava-lhes o rosto. Denny já havia traçado o plano e calculado cuidadosamente em quanto tempo poderiam  realizá-lo. O último turno de trabalhadores saíra havia uma hora. Alguns rapazolas ainda rondavam pela porta da venda de peixe do velho Thomas, mas o resto da rua estava deserto. Os dois homens e o cachorro foram andando calmamente.

       No bolso do pesado sobretudo Denny levava seis delgados pacotes de dinamite, que Tom Seager, o filho da dona da casa onde morava, roubara para ele, naquela tarde, do depósito de explosivos da pedreira. Andrew transportava  seis latas de cacau, todas com um furo na tampa, uma lanterna eléctrica e um rolo de rastilho. Inclinado para a frente, com a gola do sobretudo levantada, lançando olhares desconfiados para um lado e para outro, o espírito perdido num torvelinho de emoções que se chocavam, era apenas por monossílabos que respondia às rápidas observações  de Denny. Imaginava apreensivamente o que pensaria  dele, vendo-o envolvido nessa comprometedora aventura  nocturna, o Prof. Lamplough, o suave professor da ortodoxia médica.

       Logo acima de Glydar Place chegaram à abertura principal  da rede de esgotos; um tampão de ferro sobre uma base de cimento carcomido. Ali lançaram mãos à obra.

       Havia muitos anos que ninguém mexia naquela cobertura roída pela ferrugem, mas depois de muito esforço conseguiram  levantá-la. Então, Andrew projectou a luz da lanterna, discretamente, para as profundezas mefíticas, onde a torrente  de imundícies se escoava lentamente sobre as lajes já desmanteladas.

       - Lindo, não? - rosnou Denny. - Lance um olhar para as fendas naquele ponto. Lance um último olhar, Manson.

       Nada mais foi dito. Inexplicavelmente mudou o estado de espírito de Andrew, já então dominado por uma exaltação  repentina e selvagem, uma resolução igual à do próprio  Denny. Muita gente estava em riscos de morrer por causa daquela peçonha abominável e a burocracia mesquinha não tomava providências. Não era o momento de proceder como se estivessem à cabeceira dos doentes, com carinhos e remédios.

       Começaram a preparar rapidamente as latas de cacau, metendo em todas elas um pacote de dinamite. Cortaram rastilhos de comprimentos graduados, ligando-os ao explosivo.

       Um fósforo brilhou na escuridão, iluminando de repente  a face branca e impassível de Denny e as mãos trémulas de Andrew. O primeiro rastilho crepitou. Uma por uma as latas foram escorregando para o fundo da corrente nauseabunda, começando por aquelas que tinham rastilhos  mais compridos. Andrew não podia ver claramente.

       O coração pulsava-lhe célere, excitadíssimo. Podia não ser medicina ortodoxa, mas era o momento de maior intensidade  que tinha vivido. Quando a última lata desceu, com o seu curto rastilho já aceso, Hawkins teve a infeliz ideia de caçar uma rata. Foi um momento de agonia. O cão latia e com a ameaça terrível de uma explosão debaixo dos pés, os dois homens tiveram de correr até o alcançar.

       Depois disso, o tampão enferrujado foi reposto no lugar e eles correram loucamente, subindo a rua, até uns trinta metros de distância. Mal tinham alcançado a esquina da Radnoor Place, parando aí para olhar para os lados, uma primeira lata explodia.

       - Deus do Céu! - Andrew arfou, exultante. - Está concluída a nossa obra, Denny!

       Tomava um ar de camaradagem com o outro. Queria segurá-lo pelo braço e gritar bem alto.

       E então, rapidamente, maravilhosamente, seguiram-se as explosões abafadas, duas, três, quatro, cinco e a última, afinal, uma gloriosa detonação que deve ter ecoado pelo menos até um quarto de milha na extensão do vale.

       - Ah! - murmurou Denny, numa voz abafada, como se toda a amargura secreta da sua vida se escapasse naquela simples palavra.  Isto é o fim de uma imundície vergonhosa!

       Quase não tinha falado antes da explosão. Portas e janelas escancararam-se, projectando luz sobre a escuridão da rua. Muita gente saiu de casa. Num momento  a rua ficou cheia. A princípio dizia-se que fora uma explosão na mina. Mas essa versão foi logo posta de parte.

       Os estampidos tinham vindo do vale. Surgiram discussões e aventuraram-se hipóteses. Um grupo de homens saiu com lanternas para ver o que havia. A algazarra e a confusão enchiam a noite. Protegidos pela escuridão e pelo alvoroço, Denny e Manson esgueiraram-se até às suas casas, tomando  desvios. Havia uma aleluia de triunfo na alma de Andrew.

       Na manhã seguinte, antes das oito, chegou de automóvel  o Dr. Griffiths, com o seu rosto balofo, tomado de pânico, arrancado da sua fofa cama pelo conselheiro Glyn Morgan, à custa de muita blasfémia. Griffiths podia ignorar  os apelos dos médicos locais, mas não havia recusa possível para a ordem enfurecida de Glyn Morgan. E, na verdade, Glyn Morgan tinha razão para estar irado. A nova vivenda do conselheiro, que ficava a meia milha do vale, fora cercada durante a noite por uma enxurrada de imundícies. Durante meia hora o conselheiro, acolitado pelos seus auxiliares, Hamar-Davies e Deawen Roberts, disse ao subdelegado de saúde, em voz que podia ser ouvida por toda a gente, tudo o que pensava dele.

       No fim da descompostura, Griffiths limpou o suor da testa e dirigiu-se a Denny, que, em companhia de Manson, estava no meio da multidão curiosa e esclarecida. Andrew quase desfaleceu ao ver aproximar-se o médico. Uma noite de inquietação tinha esfriado um pouco o seu entusiasmo.

       À luz fria da manhã, assustado com o pavor de uma carreira  em perigo, viu-se outra vez perturbado e nervoso.

       Mas Griffiths não estava em condições de alimentar suspeitas.

       - Que desastre! - disse gaguejando para Phillip. - Temos  de fazer agora quanto antes a nova rede de esgotos por que o doutor tanto se interessava.

       A fisionomia de Denny continuou impassível.

       - Há muitos meses que eu o avisei - respondeu ele glacialmente. - Não se lembra?

       - Sim, sim, sem dúvida! Mas como podia eu adivinhar que essa maldita coisa ia explodir dessa maneira? Não sei como foi isto possível. Para mim é um mistério.

       Denny encarou-o com frieza.

       - Para que servem os seus conhecimentos, doutor? Não sabe que os gases dos esgotos são altamente inflamáveis?

       A construção da nova rede de esgotos começou na segunda-feira  seguinte.

       Três meses depois, numa linda tarde de Março, a aproximação da Primavera perfumava a doce brisa que vinha das montanhas, onde vagos indícios de verde desafiavam  a fealdade dominante da paisagem nua das pedreiras. Sob o céu de límpido azul até mesmo Blaenelly era bonita.

       Ao sair para atender uma chamada, que acabava de receber para a Riski Street, 3, Andrew sentiu o coração alvoroçar-se com o encanto do dia. Começava a aclimatar-se àquela estranha cidade, primitiva e solitária, sepultada  entre montanhas, sem casas de diversões, sem um único cinema, nada mais do que as suas minas sombrias, as suas pedreiras e as suas fábricas metalúrgicas, a série de capelas e o conjunto triste das casas. Era uma comunidade estranha que vivia isolada do mundo.

       A gente do lugar também não era banal. Embora se sentisse bem diferente dela, Andrew queria-lhe bem. Com excepção dos comerciantes, os pastores do culto e mais umas poucas pessoas, só havia ali empregados da companhia.

        À entrada e à saída de cada turno de trabalhadores,  as ruas adormecidas despertavam subitamente, ressoando  os sapatos ferrados, povoando-se inesperadamente de um exército de figuras em marcha. As roupas, o calçado,  as mãos, mesmo o rosto dos que trabalhavam na mina de hematite estavam impregnados da poeira avermelhada  do minério. Os homens das pedreiras usavam reforços de oleado nos joelhos. Os metalúrgicos distinguiam-se  pelas suas calças de riscas azuis.

       O povo de Blaenelly falava pouco, e muito do que dizia era no dialecto de Gales. com o seu ar distante e compenetrado,  dava a impressão de formar uma raça à parte. No entanto, era boa gente, e simples as suas distracções.

       Os centros de reunião eram os próprios lares, os templos, o modesto campo de rugby no alto da cidade. Se tinha paixão por alguma coisa era pela música. Não pelas melodias vulgares em voga, mas pela música superior: clássica e severa.

       Ao passear de noite, Andrew ouvia frequentemente  o som de um piano vindo de uma pobre casa: uma sonata de Beethoven ou um prelúdio de Chopin, optimamente executado, a flutuar na atmosfera silenciosa, subindo para além das montanhas inescrutáveis.

       A situação da clínica do Dr. Page era agora bem clara para Andrew. Edward Page nunca mais trataria de qualquer  doente. Mas os clientes não queriam prescindir do médico que os atendera devotadamente em mais de trinta anos. Empregando modos afáveis e mistificações para com Watkins, o director das minas, por intermédio do qual se liquidavam as cotizações dos operários, para pagamento ao médico, a esperta Blodwen conseguira manter Page na lista da Companhia e estava assim gozando uma choruda renda, da qual só uma sexta parte em benefício de Manson, que fazia todo o trabalho.

       Edward Page inspirava a Andrew profunda pena. Era uma alma simples e gentil este pobre Edward, que se casara  com a pequenina Blodwen, gorduchinha, afectada e petulante. Ao tirá-la do emprego numa casa de chá em Aberyswyth estava longe de saber o que havia por detrás dos botõezinhos negros e buliçosos dos seus olhos. Agora,  alquebrado, preso a uma cama, estava inteiramente à sua mercê, sujeito a um tratamento misto de blandícia e de uma espécie de brutalidade jovial. Não que Blodwen não o amasse. À sua maneira especial era louca por Edward.

       Ele, o Dr. Page, pertencia-lhe. Se entrava no quarto quando Andrew estava ao lado do doente avançava sorrindo, mas exclamava com um estranho espírito de exclusivismo:

       - Que é isso? Vocês dois aí a conversar?

       Era impossível deixar de querer bem a Edward Page, tão evidentes as suas qualidades de sacrifício e renúncia.

       Ficava ali abandonado no leito, acabrunhado, submisso diante de todas as atenções inoportunas da esposa impaciente,  atrevida, de fisionomia mal-humorada, sempre vítima  das explorações e da sua impertinência constante e petulante. Não havia razões para permanecer em Blaenelly e ansiava  por ir morar em clima mais quente e suave. Uma vez, quando Andrew perguntou:

       - Que lhe agradaria, doutor?         

       Ele suspirou:

       - Eu gostaria de sair daqui, meu filho. Li umas coisas sobre aquela ilha... Capri... onde vão fazer uma reserva para os passarinhos.

       E então voltou o rosto para o outro lado do travesseiro. O acento da sua voz era de melancolia infinita.

       As crianças irritavam-no. Nunca falava da clínica, a não ser para murmurar uma vez por outra, numa voz cansada:

       - Parece-me que não entendo muito disso. Contudo, fiz o que pude.

       Passava horas estirado na cama, em absoluta mudez, espiando o peitoril da janela onde todas as manhãs Annie colocava piedosamente pedacinhos de miolo de pão, fiapos de presunto e coco raspado. Aos domingos, antes do meio-dia,  vinha visitá-lo um velho mineiro, Enoch Davies, muito empertigado no seu fato preto lustroso e na sua camisa com o peitilho de borracha. Os dois homens ficavam observando os pássaros em silêncio. Certa vez Andrew encontrou Enoch, que descia as escadas todo excitado.

       - Nem queira saber - exclamou o velho mineiro. - Tivemos  uma manhã estupenda. Dois pintassilgos passaram uma hora brincando no peitoril da janela. Mesmo junto de nós.

       Enoch era o único amigo de Page e tinha grande influência entre os mineiros. Afirmava com energia que nenhum homem sairia da lista do doutor enquanto ele fosse vivo. Nem imaginava o prejuízo que a sua lealdade causava ao pobre Edward.

       Outra visita frequente na casa era a de Aneurin Rees, gerente do Western Counties Bank, um homem comprido, seco e calmo, de quem Andrew desconfiou logo à primeira vista. Rees era um cidadão altamente respeitável mas que nunca fitava alguém de frente. com o Dr. Page ficava apenas uns cinco minutos por mera formalidade e logo  depois fechava-se com Blodwen uma hora larga. Essas entrevistas eram de um decoro irrepreensível. Tratava-se apenas de dinheiro. Julgava Andrew que a Sr.a Page aplicara  uma grande quantia em negócios no seu próprio nome, e assim, sob a administração admirável de Aneurin Rees, ela ia aumentando astuciosamente os seus cabedais.

       Nesse tempo dinheiro nada significava para Andrew. Contentava-se em saldar regularmente as suas obrigações  para com a Dotação. Sobravam-lhe ainda alguns miúdos para os cigarros. Fora disso o trabalho preenchia-lhe  a existência.  Agora, mais do que nunca, compreendia quanto o serviço  da clínica era importante para ele. Animava-o a consciência  do trabalho, uma certeza íntima, sempre presente, que o alimentava quando se sentia cansado, deprimido,  desorientado. Na verdade, perturbações estranhas dominavam  ultimamente o seu espírito e desorientavam-no.

       Em questões de medicina havia começado a pensar por sua própria conta. Talvez o principal responsável por isso fosse Denny, com o seu ponto de vista radicalmente demolidor.

       As teorias de Denny eram literalmente opostas a tudo o que fora ensinado a Manson. E todas poderiam resumir-se no lema: «Eu não creio». Formado pelo padrão da Faculdade de Medicina, Manson encarara sempre o futuro com a confiança bem explícita nos manuais. Adquirira  leves noções de Física, Química e Biologia pelo menos tinha aprendido a dissecar e estudar as minhocas,  e depois disso haviam-lhe metido dogmàticamente na cabeça as doutrinas consagradas. Conhecia todas as doenças, com os seus sintomas catalogados, e os remédios correspondentes. Por exemplo, o caso da gota. Devia ser curada com o emprego de cólquico. Ainda estava a ouvir o Prof. Lamplough pontificando suavemente na aula:

       «Vinum colchlci, meus senhores, em vinte ou trinta doses mínimas, é o específico absoluto da gota». Mas seria de facto? Eis a pergunta que Andrew fazia agora a si próprio.

       Um mês antes ministrara cólquico até o máximo do limite permitido num caso típico grave e doloroso de gota. E o resultado fora um fracasso desanimador.

       E que dizer de metade ou mesmo de três quartas partes dos outros remédios da farmacopéia? Dessa vez a voz que ouviu foi a do Dr. Elliot, lente de Terapêutica: «E agora, meus senhores, passemos ao eleni, uma substância resinosa,  cuja origem botânica é indeterminada, mas que provavelmente  é uma Canarium Commune; importada em geral de Manilha, essa substância é empregada em forma de unguento na base de um para cinco, constituindo estimulante  e desinfectante admiráveis para as afecções da pele, como a herpes».

       Tolice! Sim, tolice absoluta, sabia agora. Teria Elliot experimentado alguma vez o unguento de eleni? Estava convencido de que não. Todas as noções eruditas foram passando de um livro para o outro, sempre assim provavelmente  desde a Idade Média. A palavra «herpes», tão arcaica e anacrónica, confirmava este ponto de vista.

       Denny zombara dele na primeira noite, por vê-lo manipular  ingenuamente um remédio. Denny zombara sempre dos mestres de tempero, dos cozinheiros de remédios. Sustentava  que só meia dúzia de drogas era de alguma utilidade.

       As restantes classificava-as cinicamente de «porcarias».

       No ponto de vista de Denny, discutido aquela noite, transparecia um espírito desiludido cujas ramificações Andrew por enquanto só podia distinguir vagamente.

       Meditava dessa maneira quando chegou a Riskin Street e entrou no n.º 3. O doente era uma criança de nove anos, Joe Howells, que apresentava erupção de sarampo benigno, próprio da estação. O caso em si nada tinha de alarmante, mas preocupava-o a mãe de Joe, dada a sua falta de recursos.

       O pai Howells, que trabalhava nas pedreiras, não ia ao trabalho havia três meses, com uma pleurisia, nada recebendo durante a doença. E a Sr.a Howells, uma mulher de compleição delicada, que já trabalhava como enfermeira particular, além de fazer a limpeza da Capela Bethseda, tinha agora de enfrentar mais a trabalheira da doença da criança.

       Ao terminar a visita, quando conversava com ela à porta de casa, Andrew observou, compadecido:

       - A senhora está sobrecarregadíssima. É uma pena que tenha de tirar Idris da escola. - Idris era o irmão mais novo de Joey. A criatura resignada, de mãos vermelhas e dedos inchados de tanto trabalhar, levantou a cabeça com vivacidade.

       - Mas a professora diz que não há necessidade de o pequeno deixar de ir à escola.

       Apesar da sua solicitude Andrew sentiu-se um pouco sobressaltado.

       - Ah, sim? E quem é a professora?

       - É a menina Barlow, da escola de Bank Street - respondeu de boa fé a Sr.a Howells. - Ela veio aqui esta manhã. Ao perceber quanto eu estava apoquentada consentiu  que Idris continuasse a ir à escola. Só Deus sabe o trabalhão que havia de ter se ele também ficasse aos meus cuidados!

       Andrew teve ímpetos de dizer-lhe que devia obedecer às suas indicações, e não às de uma professorazita intrometida; no entanto logo compreendeu que a Sr.a Howells não era culpada. No momento não fez qualquer comentário,  mas quando se despediu e desceu a Riskin Street trazia  na testa uma ruga de ressentimento. Odiava interferência, principalmente no seu trabalho, e sobretudo tinha horror a mulheres importunas. Quanto mais pensava no caso mais aumentava a sua fúria. Conservar Idris na escola quando o irmão estava atacado de sarampo era uma infracção  bem clara do regulamento sanitário. E subitamente resolveu procurar essa menina Barlow, tão amiga de se meter em assuntos que não lhe diziam respeito, e debater o assunto com ela.

       Cinco minutos mais tarde já subia ele a ladeira da Bank Street na direcção do edifício da escola. Ali, depois de se informar junto do porteiro, chegou à sala de aula que procurava. Bateu à porta e entrou.

       Era uma sala ampla, bem ventilada, com um fogão aceso a um canto. Todos os alunos pareciam ter menos de sete anos. Como Andrew entrou na hora da merenda, cada um dos garotos tinha diante de si um copo de leite  benefício que fazia parte do plano de assistência infantil de uma associação de beneficência.

       O olhar de Andrew fixou-se logo na professora. Esta estava ocupada a escrever algarismos no quadro negro, de costas para ele, e no primeiro momento não deu pela sua presença. Mas subitamente voltou-se.

       Ou por ser tão diferente do tipo de mulher intrometida criado na sua Imaginação ou talvez pela surpresa estampada  nos olhos castanhos da jovem, o caso é que Manson hesitou e perturbou-se. Corou um pouco e disse:

       - É a menina Barlow?

       - Sou, sim.

       Tinha uma figura esguia, com saia castanha,  meias de lã e grossos sapatos.

       «Deve ter a minha idade», conjecturou Manson. «Não, deve ser mais jovem, vinte e dois anos mais ou menos».

       Ela também o examinou, um pouco confusa, sorriu ligeiramente, como se, cansada da aritmética infantil acolhesse de boa vontade qualquer distracção nesse dia delicioso de Primavera.

       - E o senhor não é o novo assistente do Dr. Page?

       - Sou. sim, mas isso não importa. Sou o Dr. Manson e sei que a senhora tem aqui um elemento de contágio, Idris Howells. A senhora deve saber que o irmão dele está com sarampo.

       Houve uma pausa. Ainda com expressão interrogativa, o olhar dela continuava amistoso. Limpando o cabelo sujo de giz, respondeu:

       - Sim, sei.

       O facto de a jovem não dar grande importância à sua visita irritava-o.

       - Não compreende então que mantê-lo aqui é uma infracção ao regulamento?

       Ouvindo as suas palavras a jovem corou e perdeu o ar de camaradagem. Andrew não podia deixar de admirar a frescura da pele da professora e o sinalzinho castanho, exactamente da cor dos seus cabelos, no alto da face direita. Parecia bem delicada na sua blusinha branca e ridiculamente jovem para professora. Na ocasião a sua respiração estava um pouco alterada, mas foi com voz pausada que disse:

       - A Sr.a Howells estava sem saber o que fazer. Muitas crianças daqui já tiveram sarampo. As que não tiveram ainda hão-de tê-lo mais cedo ou mais tarde. Se Idris não viesse à escola sentiria a falta do leite que lhe faz tanto bem.

       - Não se trata de leite - interrompeu Andrew, - a criança deve ser isolada.

       Ela respondeu obstinadamente:

       - Mas eu isolei-o... de uma certa maneira. Se não acredita  veja com os seus próprios olhos.

       Manson seguiu o seu olhar. Idris, um garotinho de cinco anos, numa pequena carteira só para ele, perto do fogo, parecia extraordinariamente satisfeito da vida. Os olhos, de um azul-pálido, arregalavam-se de contentamento sobre o copo de leite. Esse quadro irritou mais Andrew.

       Riu com sarcasmo.

       - A sua noção de isolamento pode ser esta, mas com certeza não é a minha. A senhora deve mandar esta criança para casa imediatamente.

       Os olhos da professora faiscaram.

       - Parece que o senhor esquece que sou eu a responsável por esta classe. O senhor pode dar ordens a pessoas mais importantes. Mas aqui quem manda sou eu.

       Ele encarou-a com dignidade enfurecida.

       - A senhora está a infringir a lei. Não pode conservá-lo aqui. Se fizer isso, terei de participar.

       Seguiu-se um curto silêncio. Andrew podia ver que ela apertava o pedaço de giz que tinha na mão. Este sinal de emoção ainda lhe aumentou a raiva contra a professora e talvez contra si mesmo. Ela disse desdenhosamente:

       - Pois então participe. Ou mande prender-me. Não tenho dúvida de que isso lhe dará uma grande satisfação.

       Furioso, ele não respondeu, sentindo-se numa posição falsa. Procurou aprumar-se, encarando-a com firmeza e tentando fazê-la baixar os olhos, que fuzilavam agora. Por um momento os dois defrontaram-se tão perto um do outro que Manson pôde ver a leve pulsação do colo dela, o brilho dos seus dentes entre os lábios entreabertos. Foi Christine Barlow quem rompeu o silêncio:

       - Nada mais temos a tratar, não é verdade? - E voltando-se  bruscamente para a classe: - Levantem-se meninos,  e digam: boas-tardes, Dr. Manson. Obrigado pela sua visita.

       As cadeiras foram arrastadas e os garotos, de pé, repetiram  o irónico cumprimento. Ardiam as orelhas de Andrew  quando a jovem o acompanhou até à porta. Sentia-se exasperadamente constrangido e tinha a inquietante suspeita  de haver procedido muito mal perdendo toda a calma enquanto ela soubera admiravelmente dominar-se Manson procurou encontrar uma frase esmagadora, uma réplica final de intimidação. Mas antes que a achasse já a porta se fechara calmamente nas suas costas.

      

       Depois de um terrível fim de tarde, durante o qual escreveu e rasgou três cartas virulentas ao inspector de higiene, Manson tratou de esquecer o incidente. Recuperando  o senso de humor, perdido momentaneamente nas proximidades de Bank Street, não perdoava a si mesmo a atitude inconciliável. Depois de vencer com esforço o rígido orgulho de escocês, chegou à conclusão de que não tinha razão nem devia pensar em apresentar queixa do caso muito menos ao antipático Griffith. Contudo por mais que tentasse não conseguia deixar de pensar em Christine Barlow.

       Era absurdo que uma simples professorazita absorvesse tão exclusivamente os seus pensamentos e que se preocupasse  com o que ela poderia pensar a seu respeito.

       Andrew dizia a si mesmo que era um simples caso de amor-próprio  ferido. Bem sabia que era tímido e desajeitado com as mulheres. Contudo, não havia raciocínio capaz de acalmar-lhe o ânimo inquieto e um pouco irritado. Nos seus momentos mais libertos de preocupações, como, por exemplo, quando começava a ser invadido pelo sono, a cena da escola voltava-lhe à memória com insistência renovada e ele surpreendia-se franzindo a testa no escuro. Ainda a via, esmagando o giz, os olhos castanhos faiscando de indignação. A blusa dela tinha três botõezinhos de madrepérola.

        A figura era esguia e ágil, com nítida economia de linhas, que revelava muita correria e muito pulo travesso quando menina. Andrew não perguntava a si mesmo se ela era bonita. Já bastava tê-la sempre diante dos olhos, viva e fina. E o pensamento, sem que ele o quisesse, procurava-a com uma espécie de suave opressão que anteriormente nunca sentira.

       Uns quinze dias mais tarde, descia ele a Chapei Street,  absolutamente distraído, quando quase esbarrou na Sr.a Bramwell à esquina da Station Road. Teria passado sem  a reconhecer. Ela, porém, parou imediatamente e saudou-o, radiante, com o melhor dos sorrisos.

       - Que surpresa, Dr. Manson! Estava exactamente à sua procura. Tenho esta noite uma das minhas reuniõezinhas. O senhor vai, não é verdade?

       Gladys Bramwell era uma senhora de trinta e cinco anos, de cabelos cor de palha, sempre vestida de forma a dar nas vistas, cheia de corpo, olhos azuis de boneca e ares de garota. Gladys classificava-se romanticamente como a mulher de um só homem. Mas nos mexericos de Blaenelly outros termos a definiam. O Dr. Bramwell morria por ela e dizia-se que só a cegueira da sua paixão o impedia de ver as atenções mais do que levianas que ela dedicava ao Dr. Gabell, o médico amulatado de Toniglan.

       Enquanto a observava, Andrew procurou apressadamente  uma desculpa.

       - Teria muito prazer, Sr.a Bramwell, mas julgo ser impossível.

       - Não diga isso, homem de Deus. Vai ser um grupo de pessoas muito agradável. Os srs. Watkins, marido e mulher, da mina, e escapou-lhe um sorriso significativo  o Dr. Gabell, de Toniglan. Ah! e ia-me esquecendo, a professorinha Christine Barlow.

       Manson sentiu um estremecimento. Riu sem querer.

       - Pode contar que irei com toda a certeza, Sr.a Eramwell. Muitíssimo obrigado pelo convite.

       Conseguiu sustentar a conversa por alguns minutos até que ela se despediu. Mas o resto da tarde não pôde pensar senão naquela oportunidade de ver novamente Christine Barlow.

       A reunião da Sr.a Bramwell começava às nove da noite, escolhendo-se essa hora avançada em consideração pelos senhores médicos, que podiam ficar detidos até tarde nos seus dispensários. E na verdade passava um quarto das nove quando Andrew acabou a última consulta. Lavou o rosto apressadamente, alisou o cabelo com o pente quebrado e voou para o Retiro. Ao entrar na casa, que, desmentindo  o seu nome idílico, era uma construçãozinha de tijolos no centro da cidade, Andrew notou que fora o último a chegar. Censurando-o amavelmente, a Sr.a Bramwell  fez passar os cinco convidados e o marido para a sala onde estava servida a ceia.

       Era uma ceia de coisas frias espalhadas por pratinhos de papel sobre a mesa escura de carvalho. A Sr.a Bramwell gabava-se de receber muito bem em sua casa e tomava ares de «espírito progressivo» em Blaenelly, o que permitia chocar a opinião pública com modernismos de elegância.

       A sua ideia de «dar vida ao ambiente» era falar e rir muito. Dava sempre a entender que o seu meio, antes de casar-se com o Dr. Bramwell, tinha sido de grande luxo.

       Nessa noite, quando os convidados se sentaram, ela disse, toda esfuziante:

       - Muito bem! Agora sirvam-se do que quiserem.

       Ainda esbaforido pela pressa com que viera, Andrew ficou a princípio profundamente embaraçado. Durante uns dez bons minutos não se atreveu a olhar para Christine.

       Conservou-se de olhos baixos, oprimido pela ideia de que ela estava sentada ao outro canto da mesa, entre o Dr. Gabell, um dandy de tez bem morena, com polainas, calças de riscas e pérola na gravata, e o Sr. Watkins, o velho director da mina, de cabelos bem arrumados na cabeça,  que lá a seu modo, um tanto abrutalhado, se desfazia em amabilidades. Por fim, foi atraído pela alusão risonha de Watkins:

       - Então, menina Christine, continua a ser a minha namoradinha?

       Manson, com involuntário ciúme, levantou a cabeça e olhou para ela. Achou-a tão à vontade ali, com o seu vestido  cinzento discreto, gola e punhos brancos, que se perturbou  e baixou os olhos antes que a jovem pudesse ler o que eles diziam.

       Para disfarçar, quase sem saber o que dizia, começou a dedicar-se exclusivamente à sua vizinha, Sr.a Watkins, um bocadinho de mulher que levava para a reunião o seu tricot.

       Durante o resto da ceia Andrew sofreu a angústia de conversar com uma pessoa quando estava doido por falar a outra. Quase deixou escapar um suspiro de alívio quando  o Dr. Bramwell, que presidia à cabeceira da mesa, passou os olhos com benevolência sobre os pratos vazios e fez um gesto napoleónico.

       - Creio, minha querida, que já todos terminaram. Devemos  passar ao salão.

       Os convidados distribuíram-se pela sala. Era evidente que a música estava no programa. Bramwell sorriu embevecido  para a esposa e conduziu-a ao piano.

       - Qual é a primeira canção com que irás deliciar-nos esta noite, meu amor? - Trauteando folheava as páginas do caderno de música na estante.

       - Os Sinos do Templo - sugeriu Gabell. - Nunca me canso de ouvir isso, Sr.a Bramwell.

       Sentando-se no banquinho giratório, a Sr.a Bramwell tocou e cantou, enquanto o marido, uma das mãos atrás das costas e a outra erguida no gesto de quem vai tomar rapé, ficava a seu lado e ia virando as páginas diligentemente. Gladys tinha uma voz cheia, de contralto, puxando do peito todas as suas notas profundas com um esticar de queixo. Depois de Couplets de Amor ofereceu aos convidados Vagueando e Apenas Uma Garota.

       Houve aplausos calorosos. Distraidamente, Bramwell murmurava num meio tom satisfeito:

       - Ela hoje está com uma linda voz.

       O Dr. Gabell foi então intimado a levantar-se. Girando o anel no dedo, alisando o cabelo bem engordurado, com pretensões, o galã de pele cor de azeitona curvou-se afectadamente para a dona da casa e, esfregando as mãos, cerrou convictamente Amor na Doce Sevilha. Depois, atendendo  a insistentes pedidos, cantou ainda Toreador.

       - O senhor interpreta essas canções espanholas com verdadeira alma, Dr. Gabell - comentou a amável a Sr.a Watkins.

       - É o meu sangue espanhol, creio eu - riu Gabell modestamente  ao sentar-se.

       Andrew notou uma faísca maliciosa no olhar de Watkins.

       - O velho director da mina, verdadeiro homem de Gales, conhecia música, ajudara no último Inverno os seus trabalhadores a apresentarem uma das menos conhecidas óperas de Verdi e agora, fumando sonolentamente o cachimbo,  estava a divertir-se de modo enigmático. Não passara  despercebido a Andrew quanto era delicioso para o velho Watkins observar essa gente estranha que vinha para ali com ares de espalhar cultura em forma de cançonetazinhas  sentimentais e sem valor. Quando Christine se recusou, num sorriso, a cantar, Watkins voltou-se para ela e disse baixinho:

       - Pelo que vejo, minha querida, a menina é como eu. Gosta demasiadamente de piano para tocar.

       Chegou o momento solene da noite. O Dr. Bramwell ocupou o centro da cena. Aclarou a voz, atirou um pé para a frente, lançou a cabeça para trás, pôs a mão teatralmente  na abertura do paletó, e anunciou: «Minhas senhoras e meus senhores: A Estrela Cadente, monólogo musicado». Ao piano Gladys passou a arremedar um acompanhamentozinho  adequado. E Bramwell começou.

       O recitativo, que se inspirava nas vicissitudes patéticas de uma actriz outrora famosa e lançada agora à mais negra miséria, era gelatinoso de tanto sentimentalismo. Bramwell interpretava-o com a alma comovida. Quando o drama aquecia, Gladys apelava para as notas graves.

       Quando a tragédia esfriava um pouco, ela martelava as notas agudas. Quando chegou ao ponto culminante, Bramwell  empertigou-se e lançou o último verso:

      

       «Ei-la...»

       uma pausa

       «morrendo de fome na sarjeta...» 

       uma longa pausa

       «apenas uma estrela cadente!».

      

       A pequena Sr.a Watkins, com o tricot caído no chão, levantou para ele os olhos húmidos.

       - Pobrezinha, pobrezinha! Dr. Bramwell, o senhor recita isso sempre de maneira tão patética!

       O claret cup chegou a tempo para aliviar os espíritos.

       Nessa altura já eram mais de onze horas. O apogeu a que chegara Bramwell não podia ser ultrapassado e por isso começou a retirada. Houve risos, amáveis expressões de agradecimento e um movimento geral para o hall. Quando Andrew vestia o sobretudo, meditou tristemente que não chegara a trocar uma palavra com Christine durante a noite.

       Ao sair, resolveu parar na porta. Sentia necessidade de falar à jovem. Pesava-lhe como chumbo o pensamento da longa noite perdida em que pretendera tão naturalmente e de modo tão agradável desfazer o mal-entendido entre ambos. Embora não parecesse dar-lhe atenção, ela estivera ali, perto dele, na mesma sala. E Andrew ficara estupidamente a olhar os sapatos. «Oh, meu Deus!», pensava angustiado. «Eu sou pior que A Estrela Cadente. O melhor que tenho a fazer é ir para casa e meter-me na cama.

       Mas não procedeu assim. Ficou ali e o seu coração pôs-se a bater apressadamente quando Christine apareceu  à porta, dirigindo-se para onde ele estava. Andrew apelou para todas as suas forças e gaguejou:

       - Menina Barlow, posso acompanhá-la a casa?

       - Julgo que não. - Fez uma pausa. - Prometi esperar pelo casal Watkins.

       Desanimou. Sentiu ímpetos de abalar como um cão perseguido. No entanto qualquer coisa ainda o prendia ali. Estava pálido, mas decidido. As palavras vieram atropelando-se umas às outras, num só fôlego.

       - Eu só queria dizer-lhe que lamento muito o que sucedeu a propósito de Howells. Fiz uma exibição de autoridade pires. Merecia uma boa sova. O que a menina fez com a criança parece-me agora admirável. Afinal de contas, é melhor observar o espírito do que a letra da lei. Lastimo maçá-la com tudo isso, mas é um imperativo da minha consciência. Boas noites!

       Andrew não pôde ver a fisionomia dela. Nem esperou pela sua resposta. Deu meia volta e seguiu o seu caminho.

       Pela primeira vez- em muitos dias sentia-se feliz.

       Chegara dos escritórios da Companhia o pagamento semestral da clínica. A Sr.a Page teve, portanto, assunto para sérias meditações e outro motivo para discutir com Aneurin Rees, o gerente do banco. Pela primeira vez em ano e meio os algarismos mostravam progresso acentuado.

       Na lista do Dr. Page havia mais setenta homens do que antes da chegada de Manson.

       Embora encantada com o aumento dos réditos, Blodwen tinha qualquer coisa que a preocupava: Andrew muitas vezes a surpreendera às refeições cravando nele olhos inquisidores  e desconfiados. Na quarta-feira que se seguiu à festazinha da Sr.a Bramwell, Blodwen apareceu ao almoço toda alvoroçada, numa grande demonstração de alegria.

        - É o que eu tenho a dizer! - observou ela. - Estava a pensar nisso agora mesmo. O senhor já está aqui há quase quatro meses, doutor, e, com franqueza, não tem ido mal. Não tenho razão de queixa. Mas, compreende, não é a mesma coisa que o Dr. Page. Oh, meu amigo, isso não! Ainda outro dia, o Sr. Watkins esteve a dizer-me que todos  ansiavam pela volta do meu marido. «O Dr. Page é tão inteligente!», dizia-me o Sr. Watkins, «que não poderíamos  pensar em substituí-lo».

       E ela entrou a descrever, com pitorescos pormenores, a extraordinária competência e habilidade do marido.

       - O senhor não acredita - exclamou arregalando os olhos - mas nada há que ele não possa fazer ou não tenha feito. Operações!? Só vendo! Basta contar isto, doutor: uma vez ele tirou os miolos da cabeça de um homem e colocou-os depois de novo no lugar. Sim! Olhe bem para  mim e veja se tenho cara de mentirosa. O Dr. Page retirou a massa encefálica e recolocou-a na cabeça do homem.

       Inclinou-se na cadeira e encarou Manson tentando ler o efeito das suas palavras. Depois sorriu, confiante.

       - Vai ser uma grande alegria para Blaenelly quando o Dr. Page voltar ao trabalho. Isso não deve tardar. No Verão, eu já avisei o Sr. Watkins, no Verão o Dr. Page retomará a clínica.

      

       No fim dessa mesma semana, quando voltava do trabalho,  Andrew ficou chocado ao encontrar Edward encolhido numa cadeira à porta da casa e em trajes de rua, uma colcha sobre os joelhos e um boné posto de qualquer modo na cabeça trémula. Soprava um vento desagradável e era fria e pálida a luz do sol de Abril que inundava a sua trágica figura.

       - Olhe - gritou a Sr.a Page, da porta, encaminhando-se num alvoroço triunfante para Manson. - Vê? O doutor já está de pé! Acabei de telefonar ao Sr. Watkins para lhe dizer que o doutor está muito melhor. Dentro em breve voltará ao trabalho, não é verdade, querido?

       Andrew sentiu o sangue subir-lhe à cabeça.

       - Quem o arrastou para aqui?

       - Eu! - disse Blodwen num tom de desafio. - E porque  não? É meu marido. E está muito melhor.

       - O doutor não está em condições de sair da cama e a senhora sabe-o muito bem - disse Andrew em voz baixa, irritado. - Faça o que lhe digo. Ajude-me a levá-lo para o quarto imediatamente.

       - Sim, sim - murmurou Edward. - Leve-me para a cama. Estou com frio. Não estou bem. Eu... eu não me sinto bem.

       E com grande tristeza de Manson o paralítico começou a gemer.

       Blodwen teve então um dilúvio de lágrimas. Caiu de joelhos e abraçou as pernas do doente, contrita, bajuladora.

       - Está bem, está bem, querido. Voltas já para a cama, queridinho. Blodwen fará tudo o que quiseres, Blodwen está aqui para cuidar de ti. A tua mulherzinha só te quer bem.

       Dava beijos a escorrerem saliva na face do marido.

       Meia hora mais tarde, com Edward já deitado, Andrew foi à cozinha a estalar de raiva.

       Annie tornara-se uma verdadeira amiga. Muita confidência  havia trocado ali mesmo na cozinha e muita maçã e muito bolo tinham saído da dispensa pela mão daquela mulher solícita e discreta quando as rações de Andrew ao almoço e ao jantar eram excessivamente reduzidas. Algumas  vezes até, como último recurso, ela corria à casinha de Thomas para trazer uma ceia de peixe frito e o doutor e a criada banqueteavam-se à mesa da cozinha sob a luz do candeeiro. Havia bem uns vinte anos que Annie estava ao serviço de Page. Tinha muitos parentes em Blaenelly, tudo gente remediada, e o único motivo por que continuava  como criada era a sua dedicação ao Dr. Page.

       - Sirva-me o chá aqui mesmo - pediu Andrew. - Neste momento não posso tolerar a presença de Blodwen.

       Ao entrar na cozinha verificou que Annie tinha visitas, sua irmã Olwen e o marido, Emly Hughes. Já os conhecia.

       Emly era um homem sólido, de boa índole, com feições toscas e pálidas, que trabalhava como dinamitador nas pedreiras de Blaenelly.

       Como Andrew hesitasse ao dar pela presença do casal, Olwen, que era uma mulher jovem, viva, de olhos negros, disse impulsivamente:

       - Não se incomode por nossa causa, doutor, se quer tomar o seu chá aqui. Até estávamos falando a seu respeito  quando entrou.

       - Ah, sim?

       - Sim, sem dúvida! - Olwen desviou o olhar para a irmã. - É inútil olhares dessa maneira, Annie. O que penso tenho de dizer. Toda a gente diz, Dr. Manson, que há muitos anos não aparece por aqui um médico tão bom como o senhor. São todos unânimes em elogiar o cuidado e as atenções que o senhor dedica aos exames e aos tratamentos. Se não acredita em mim pode perguntar a Emly. E os homens estão fulos com a exploração da Sr.a Page de que o senhor está a ser vítima. Dizem que, pela justiça, o senhor é quem devia ser titular da clínica. Ela tomou conhecimento dessas conversas, compreende, doutor? E foi por isso que resolveu hoje de tarde arrancar da cama o velhinho sob o pretexto de que ele está melhor. Coitado do pobre homem. 

       Logo que terminou o chá, Andrew retirou-se. A linguagem  sem rodeios de Olwen deixara-o constrangido. Contudo,  era lisonjeiro saber que a gente de Blaenelly gostava dele. E Andrew considerou uma significativa homenagem a visita que lhe fez, com sua mulher, John Morgan dias depois. Era o capataz do grupo de brocadores da mina de hematite.

       Casados havia quase vinte anos, os Morgans eram um casal de meia-idade, que nada tinha de abastado, mas com óptimo conceito em todo o distrito. Andrew ouvira dizer que estavam de viagem para a África do Sul, onde Morgan tinha um contrato em vista para trabalhar nas minas de Joanesburgo. Era frequente que bons brocadores se deixassem tentar pelas minas de ouro da Rand, onde o serviço de broca era semelhante, mas mais bem remunerado.

       Ficou bastante surpreendido quando Morgan explicou,  meio acanhado, o motivo da visita.

       - Bem, doutor, parece que chegou afinal a nossa vez. Minha mulher está a preparar-se para ter um bebé. Depois de dezanove anos de casados, veja! Estamos encantados e decidimos adiar a viagem para depois do grande acontecimento. Também estivemos a pensar em quem seria o médico e chegámos à conclusão de que o doutor é o único a quem devemos confiar o caso. É o que há de mais importante  para nós. E vai ser uma coisa difícil, pelo que imagino. Minha mulher já está com quarenta e três. Sim, senhor. Mas nós sabemos que com o doutor podemos ficar tranquilos.

       Andrew aceitou a incumbência com a agradável impressão de ser objecto de uma homenagem. Era uma emoção  estranha que não se baseava em motivos materiais, mas que era duplamente confortante para a situação em que se encontrava. Nos últimos tempos sentia-se perdido, completamente desolado. Moviam-se dentro dele forças  estranhas, perturbando-o e afligindo-o. Quando o coração estava repleto de um sentimento confuso, passava por momentos que até então, como um profissional já experimentado,  julgara impossível encontrar na vida.

       Até aqui nunca havia pensado a sério no amor. Quando frequentava a universidade era tão pobre, vivia tão mal vestido e tão preocupado com os exames que nunca tivera grandes oportunidades para pensar no outro sexo. Em St. Andrew só um temperamento ardente como o do seu amigo e colega Freddie Hamson podia aventurar-se no círculo das danças, das festas e da vida de sociedade.

       Tudo isso lhe fora negado. Exceptuando a sua amizade com Hamson, pertencia a essa multidão de esquecidos que fica do lado de lá, fumando, com a gola do sobretudo levantada, e que, procurando ocasionalmente uma diversão,  não vai ao clube, mas ao bilhar.

       É verdade que o seu espírito não deixava de povoar-se de imagens românticas. Mas em virtude da sua pobreza, elas geralmente projectavam-se num cenário de inatingíveis  riquezas. No entanto, agora, em Blaenelly, ele encostava-se  distraído à janela de um consultório desmantelado, a contemplar a imundície da ganga de minério, com o coração cheio da imagem de uma professorinha de escola primária. A modéstia das suas aspirações dava-lhe vontade  de rir.

       Sempre se orgulhara de ser um espírito prático, dotado de uma forte dose de bom senso, e por isso mesmo tentava vigorosamente, como medida de defesa, reagir às suas próprias  emoções. Procurou, fria e logicamente, examinar os defeitos dela. Não era bonita. A sua figura era demasiadamente  pequena e esguia. Tinha aquele sinalzinho no rosto e uma ruga ligeira, visível quando sorria, no canto do lábio superior. Além disso não estava seguro dos seus sentimentos e provavelmente detestava,-o.

       Andrew disse com os seus botões, irritado, que procedia irreflectidamente deixando-se levar com tanta fraqueza pelos seus sentimentos. Tinha resolvido devotar-se ao trabalho.

        Ainda era apenas um assistente. Então que espécie de médico era ele para alimentar assim, logo no começo da carreira, um afecto que poderia embaraçar o seu futuro e que já começava a perturbá-lo no trabalho?

       No esforço de dominar-se procurou várias maneiras de se distrair. Convencendo-se agora de que estava em falta com os antigos companheiros de St. Andrew, escreveu uma longa carta a Freddie Hamson, que fora nomeado recentemente para um hospital de Londres. Procurou Denny com frequência. Mas, se bem que Phillip algumas vezes se mostrasse acessível, geralmente era frio, desconfiado,  marcado com a amargura de um homem maltratado pela vida.

       Por mais que tentasse, Andrew não conseguia desviar do seu pensamento, nem libertar do coração, aquela impressão  torturante. Não a tinha visto desde o seu desabafo à saída do sarau. Que pensaria ela a seu respeito? Não a via desde há tanto tempo, apesar dos olhares ansiosos que lançava à escola, ao passar pela Bank Street, que esperava não mais a encontrar.

       Mas na tarde de sábado 25 de Maio, quando já estava quase sem esperança, recebeu um bilhete dela expresso nestes termos:

      

       «Prezado Dr. Manson:

       O casal Watkins vem jantar comigo amanhã, domingo. Se nada de melhor tiver de fazer, venha também. Às sete e meia.

                                                             Sinceramente 

                                                             Christine Barlow» 

      

       Teve uma exclamação tão violenta que Annie veio a correr da copa.

       - Apre, doutor - disse em tom de censura. - Às vezes parece maluco.

       - E estou de facto! - respondeu ele, ainda fora de si. Eu... Parece que consegui afinal o que queria. Ouça, Annie querida. Quer passar a ferro as minhas calças ainda hoje? Quando eu me for deitar deixo-as do lado de fora da porta.

       Na noite seguinte, livre do consultório por ser domingo, Andrew apresentou-se, trémulo e ansioso, na casa da Sr.a Herbert, onde Christine residia. Era ainda muito cedo e ele tinha noção disso, mas não podia esperar um minuto.

       Foi a própria Christine quem lhe abriu a porta com a mais cordial das fisionomias, sorrindo para ele.

       Sim, ela sorria, sorria naquele momento. E chegara a pensar que ela o detestava! Ficou tão perturbado que quase não teve palavras para se exprimir.

       - Está um dia adorável, não lhe parece? - mastigou Andrew, seguindo-a até à saleta.

       - Glorioso - concordou ela. - E eu, logo depois do almoço, dei um grande passeio. Fui para lá de Pandy. Imagine que encontrei celidónias.

       Sentaram-se. Andrew esteve a ponto de perguntar nervosamente  se ela gostava de passear, mas engoliu a tempo essa banalidade.

       - A Sr.a Watkins acaba de mandar dizer-me que ela e o marido vêm um pouco mais tarde. Ele teve de ir ao escritório. Não se importa de esperar um pouco?

       Importar-se? Um pouco! Sentia vontade de rir, numa estranha felicidade. Se ela soubesse... Havia esperado tanto isso! Era tão maravilhoso ficar ali, a seu lado... Disfarçadamente,  Andrew olhou à sua volta. A sala, mobilada com as suas próprias coisas, era tão diferente de qualquer outro interior que ele conhecia em Blaenelly! Não tinha pelúcias, nem enfeites de crina, e muito menos essas almofadas de cetim que adornavam espalhafatosamente a sala de visitas da Sr.a Bramwell. O soalho era encerado e junto da lareira havia um tapetezinho castanho. O mobiliário era tão discreto  e bem arrumado que quase não se notava. No centro da mesa, preparada para a ceia, havia uma jarra branca sem ornatos onde mergulhavam as celidónias que apanhara  naquela manhã O efeito era discreto e agradável.

       No peitoril da janela, uma pequena caixa de madeira, cheia de terra, na qual cresciam algumas plantas, alegrava  a vista. Por cima do fogão estava pendurado um quadrinho muito estranho, com uma cadeirinha de criança pintada de vermelho, e, na opinião de Andrew, extraordinariamente mal pintada.

       Ela devia ter notado a surpresa que o quadro lhe causou.

       Sorriu num humor contagioso.

       - Espero que não imagine ser isso original.

       Embaraçado, ele não soube que dizer. Perturbava-o a personalidade que Christine imprimia ao ambiente e a convicção de que ela sabia coisas que estavam fora do seu alcance. Contudo, o interesse de Andrew era tão grande que esqueceu o acanhamento e fugiu da conversa tola e banal dos comentários sobre o tempo. Encaminhou a conversa  para a vida dela.

       Christine respondeu com simplicidade. Era de Yorkshire. Perdera a mãe quando tinha quinze anos, o pai fora subdirector numa das grandes minas de carvão de Blaenelly. O seu único irmão, John, havia praticado como engenheiro  na mesma mina. Cinco anos mais tarde, quando ela já tinha dezanove anos e completara o curso da Escola Normal, o pai fora nomeado director da hulheira de Porth, a vinte milhas dali. Christine e o irmão vieram com ele para Gales do Sul, ela para cuidar da casa e John para auxiliar o pai. Seis meses depois da sua chegada deu-se uma explosão em Porth Pit. John estava no fundo da mina e teve morte instantânea. Sabedor do desastre, o pai desceu imediatamente ao local, onde foi vítima do grisu. Uma semana depois foram retirados os dois corpos. Quando Christine acabou estabeleceu-se um silêncio.

       - Sinto muito o que lhe aconteceu - disse Andrew numa voz em que a simpatia se manifestava.

       - Todos foram muito bons para mim - acrescentou com simplicidade. - O casal Watkins especialmente. Consegui esta colocação na escola. - Ela calou-se; a sua expressão voltou a animar-se. - Entretanto, eu sou como o doutor. Ainda uma estranha aqui. É preciso muito tempo para nos habituarmos a estes vales.

       Manson fitou-a, procurando manifestar de qualquer modo,  mesmo ligeiramente, o que sentia por ela; uma observação  qualquer com o poder de encerrar habilmente o passado e abrir o futuro a todas as esperanças.

       - É vulgar sentirmo-nos fora do ambiente aqui quando se está só. Sei muito bem. Muitas vezes sinto necessidade de alguém com quem possa trocar impressões.

       Ela sorriu.

       - E sobre que sente necessidade de trocar impressões?

       Andrew corou, com a ideia de que ela o pusera numa situação crítica.

       - Oh, sobre o meu trabalho, por exemplo. - Deteve-se, mas sentiu depois necessidade de explicar-se. - Parece-me, às vezes, que meto os pés pelas mãos, defrontando sempre um problema após outro.

       - Quer dizer que tem tido casos difíceis?

       - Não é bem isso. - Ele hesitou, mas depois prosseguiu. - Eu vim para aqui cheio de fórmulas, essas coisas em que toda a gente acredita ou finge acreditar. Que juntas inchadas querem dizer reumatismo. Que reumatismo cede ao salicilato. Esses princípios ortodoxos, como sabe! Pois bem, começo a achar que muitas dessas noções estão completamente erradas. O caso dos remédios, por exemplo. Parece-me que alguns, em vez de bem, fazem mal. O sistema é assim. O doente entra no consultório. Está convencido de que lhe vão dar um frasquinho de remédio. E, na verdade, dão-lho, ainda que seja apenas açúcar queimado, bicarbonato de sódio ou mesmo a boa e velha água do pote. Isto é, aqua. É por isto que essas coisas são receitadas em latim, para que o doente não entenda. Isso não está certo. Isso não é científico. Outra coisa ainda: creio que muitos médicos tratam as doenças empiricamente, isto é, tratam dos sintomas individualmente. Não se preocupam em ligá-los e estudá-los e deles extrair o diagnóstico. Dizem depressa, porque geralmente não podem perder tempo: «Ah, dor de cabeça? Tome essas pílulas». Ou então: «Está anémico? Deve tomar ferro». E não procuram curar das razões da dor de cabeça ou da anemia. - Parou subitamente. - Oh, perdoe-me! Estou a aborrecê-la!

       - Não, não - disse ela, com vivacidade. - Isso é interessantíssimo.

       - Estou apenas começando, tacteando o terreno - continuou  ele precipitadamente, animado pelo interesse dela. - Mas, sinceramente, diante do que tenho visto, acho que os manuais de medicina estão cheios de ideias atrasadas ou anacrónicas. Há remédios que já não têm actualidade, sintomas que foram interpretados por alguém na Idade Média. Poderá dizer que isso não tem importância para o médico vulgar que faz clínica geral. Mas porque hão-de ser esses médicos meros receitadores de xaropes e emplastros? Já é tempo de pôr a ciência em contacto com a vida. Muita gente pensa que a ciência deve ficar no fundo de uma proveta de médico. Eu não admito. Julgo que os médicos  que fazem clínica geral em locais afastados têm todas as oportunidades para ver as coisas como elas são e melhores ensejos para observar os primeiros sintomas de uma nova doença do que os especialistas nos hospitais. Quando um caso chega ao hospital, geralmente já está numa fase muito adiantada.

       Ela estava a ponto de responder animadamente quando a campainha tocou. Christine levantou-se, dizendo apenas com o seu ligeiro sorriso:

       - Espero que noutra ocasião cumprirá a sua promessa de falar nisso.

       Watkins e a esposa entraram, pedindo desculpas pelo atraso. Pouco depois sentaram-se todos à mesa para o jantar.

       Era bem diferente da ceia insípida em que haviam estado juntos na última vez. Havia vitela e puré de batata com manteiga, seguidos de uma torta de ruibarbo fresco com creme, e depois queijo e café. Embora simples, todos os pratos eram saborosos e fartos. Depois das magras rações que Blodwen servia, era um grande regalo para Andrew encontrar comida agradável e apetitosa. Suspirou:

       - A senhora tem muita sorte com a sua dona de casa, ela cozinha muito bem.

       Watkins, que estivera observando com um olharzinho zombeteiro o trabalho de Andrew a cortar a carne, rebentou  subitamente numa gargalhada.

       - Essa é boa! - e voltando-se para a mulher: - Ouviste o que ele disse, minha velha? Acha que a Sr.a Herbert cozinha muito bem.

       Christine corou ligeiramente.

       E para Andrew:

       - Não ligue importância ao que ele diz. Esse foi o melhor louvor que recebi, porque o senhor não sabia que me estava a elogiar. Para falar com franqueza fui eu quem fez a ceia. Posso utilizar a cozinha da Sr.a Herbert. Eu é que gosto de fazer as coisas. E já estou acostumada a isso.

       A sua explicação tornou a alegria do gerente da mina ainda mais ruidosa. O homem estava completamente diferente. Já não era o indivíduo taciturno que aguentara estòicamente a recepção da Sr.a Bramwell. Um pouco simplório e rude, mas de trato agradável, saboreou a ceia, lambeu os beiços depois de comer a torta, fincou os cotovelos  na mesa, contou anedotas e fez rir toda a gente.

       O tempo passou depressa. Quando Andrew olhou para O relógio ficou espantado ao verificar que já eram quase onze horas. E prometera fazer uma visita a um doente em Blaina Place antes das dez e meia!

       Quando se levantou, contra vontade, para despedir-se, Christine acompanhou-o à porta. No corredor estreito o braço de Andrew tocou no corpo da jovem. Sobreveio-lhe uma onda de ternura. Ela era diferente, com a sua fragilidade,  a sua quietude, os seus olhos escuros e inteligentes. Devia penitenciar-se por ter ousado classificá-la de magricela. Com a respiração apressada, ele murmurou:

       - Não sei como agradecer-lhe o convite para vir aqui esta noite. Posso ter o prazer de vê-la novamente? Eu nem sempre falo dos meus assuntos. A Christine aceitaria o convite... convite para ir ao cinema de Toniglan comigo, qualquer dia destes?

       Os olhos dela fitaram-no sorrindo e pela primeira vez levemente provocantes.

       - Experimente fazer o convite.

       Um longo minuto de silêncio, à porta, sob a luz das estrelas. O ar carregado de humidade era frio na face ardente de Andrew. O hálito de Christine bafejou-o suavemente. Sentiu vontade de beijá-la. Desorientado, apertou-lhe  a mão, deu meia volta, desceu estrepitosamente a rua e seguiu para casa, com ideias tumultuando na cabeça,  pisando nuvens ao longo desse caminho encantado que milhões já trilharam e que a todos parece sempre novo, único, predestinado para a felicidade, eternamente bendito.

       Que pequena maravilhosa! Como compreendera bem as suas palavras quando falou das suas dificuldades profissionais. Ela era inteligente, muito mais inteligente do que ele! E além disso, que esplêndida cozinheira! E ele chamara-a pelo primeiro nome... Christine!

 

       Se bem que Christine estivesse agora mais do que nunca no pensamento de Andrew, era outro o seu estado de espírito. Fora-se o antigo desânimo. Sentia-se feliz, exultado, cheio de esperança, e essa mutação no estado da sua alma reflectiu-se imediatamente no seu trabalho. A sua pujante mocidade imaginava-a sempre presente, observando-o em plena actividade, verificando os seus processos cuidadosos, os seus escrupulosos exames, felicitando-o pela segurança e pela penetração dos diagnósticos. Qualquer tentação para fazer uma visita apressada e sem cuidado ou para chegar a uma conclusão sem primeiro auscultar o doente era combatida  no mesmo instante pela ideia: «Isso não! Que pensaria  ela de mim se fizesse tal coisa?».

       Mais de uma vez surpreendeu o olhar de Denny, satírico, compreensivo. Mas não se importava. com o seu feitio vibrátil e idealista, associava Christine a todas as suas ambições, fazia dela, inconscientemente, mais um incentivo no grande assalto ao desconhecido.

       Era o primeiro a reconhecer a sua quase total ignorância. Mas diligenciava aprender a pensar por si mesmo, a procurar ir além das evidências, esforçando-se por descobrir  as causas fundamentais. Até então nunca se sentira tão poderosamente atraído para o ideal científico. Pedia aos Céus que nunca o deixassem tornar-se descuidado ou mercenário, que nunca chegasse a conclusões precipitadas, nunca escrevesse: «Repita o remédio». Queria investigar e acertar, proceder cientificamente, ser digno de Christine.

       Com todo esse entusiasmo ingénuo era uma pena que o seu trabalho na clínica se tivesse tornado de repente tão monótono e desinteressante. Queria escalar montanhas. Entretanto, naquelas últimas semanas, só se lhe depararam colinas de amador. Os casos que teve de tratar eram trivialíssimos, supinamente vulgares. Uma série banal de traumatismos, dedos cortados, defluxos, e até um dia teve de andar duas milhas para atender a chamada de uma velha de cara amarelada que, olhando-o por baixo de uma touca de flanela, pediu que lhe cortasse... os calos.

       Sentia-se inútil, irritado com a falta de oportunidade, ansioso por tempestades e furacões. Começou a duvidar da sua própria fé, a conjecturar se seria realmente possível que um médico naquele lugar tão afastado fosse alguma coisa mais do que um miserável assalariado. E então, quando o seu espírito parecia estagnar por falta de incentivo, um incidente veio elevar outra vez às nuvens a sua fé, que havia decaído tanto.

       Em fins de Junho, ao passar pela ponte da Estação, Andrew encontrou o Dr. Bramwell. O Rei da Prata escapolia-se  pela porta lateral do Hotel da Estação, a limpar disfarçadamente os lábios às costas da mão. Quando Gladys partia, toda alegre e vestida da maneira mais taful para as suas enigmáticas expedições a Toniglan, sob o pretexto de fazer compras, ele consolava-se discretamente com uma grande caneca de cerveja.

       Um pouco desconcertado ao ser surpreendido por Andrew,  soube, entretanto, enfrentar a situação com desenvoltura.

       - Olá, Manson! Que prazer tenho em vê-lo! Acabo justamente de atender uma chamada de Pritchard.

       Pritchard era o dono do Hotel da Estação, e Andrew vira-o, cinco minutos antes, a passear o seu terrier, mas fingiu acreditar em Bramwell. Estimava o Rei da Prata, cujas atitudes de melodrama e linguagem solene e floreada eram compensadas pela sua timidez e pelos buracos das meias que a venturosa Gladys se esquecia de coser.

       Ao subir lado a lado a rua, assuntos profissionais vieram à colação. Bramwell estava sempre disposto a falar nos seus casos e contou então, com ar carrancudo, que Emlyn Hughes, o cunhado de Annie, estava aos seus cuidados.

       - Emlyn - disse ele - tem-se portado ultimamente de um modo muito estranho, originando desordens na mina, perdendo a memória. Tornou-se conflituoso e violento. Não gosto disso, Manson. - Bramwell abanou a cabeça pretensiosamente. - Tenho visto muitos casos de perturbação mental. E o de Emlyn parece ser um deles.

       Andrew concordou com as suas apreensões. Era de opinião  de que Hughes era um sujeito agradável e calmo. Mas também se recordava de que Annie parecia preocupada ultimamente, e, quando a interrogou a esse respeito, depreendeu vagamente (porque apesar da sua inclinação para mexericos, ela era muito reservada em assuntos de família) que estava muito inquieta com o cunhado.

       Ao despedir-se de Bramwell, Andrew fez votos para que o caso entrasse numa fase tranquilizadora.

       Mas na sexta-feira seguinte, às seis da manhã, foi acordado  por alguém que batia na porta do seu quarto. Era Annie, que, com os olhos vermelhos e vestida para sair, lhe entregou uma carta. Andrew rasgou o sobrescrito. Era do Dr. Bramwell.

      

       «Venha imediatamente. Preciso que me ajude a comprovar um caso de loucura perigosa.» 

      

       Annie estava lavada em lágrimas.

       - É o pobre do Emlyn, doutor. Aconteceu uma coisa horrível. Peço-lhe que venha quanto antes.

       Andrew vestiu-se em três minutos. No caminho, Annie contou como pôde o que havia com Emlyn. Doente havia três semanas, nem parecia o mesmo homem. Durante a noite passada tornara-se violento e perdera completamente o juízo. Perseguira a mulher com uma faca. Olwen escapou-se  porque correu para a rua em camisa de dormir. Era bem triste a história sensacional quando narrada por Annie, aos pedaços, caminhando apressadamente ao lado de Andrew, à luz cinzenta da manhã. Não havia palavras que a pudessem consolar.

       Chegaram à casa de Hughes. Na sala da frente, Andrew encontrou o Dr. Bramwell, com a barba por fazer, sem colarinho, com ar grave, sentado à mesa, de caneta na mão. Diante dele uma folha de papel azulado, já metade escrita.

       - Ah, Manson! Foi bom ter vindo tão depressa. As coisas aqui estão mal paradas. Mas isso não lhe tomará muito tempo.

       - Que há?

       - Hughes enlouqueceu. Parece que lhe disse, na semana passada, que receava isso. Pois bem. Acertei. É um caso agudo.

       Pronunciava as palavras com imponência trágica.

       - Mania de homicídio. Temos de mandá-lo quanto antes para Pontynewead. O certificado exige duas assinaturas. Lembrei-me de si. Os parentes quiseram que eu o chamasse. Sabe quais são as formalidades, não sabe?

       - Sei - disse Andrew.  - Que provas apresenta, doutor?

       Depois de afinar a garganta, Bramwell começou a ler o que escrevera. Era uma exposição abundante e pormenorizada  de certos actos de Hughes durante a semana anterior, todos bem característicos de desequilíbrio mental. Ao terminar a leitura, Bramwell ergueu a cabeça.

       - Provas evidentes, creio eu!

       - O caso parece de facto grave - comentou Andrew arrastadamente.  - Bem! vou ver o homem!

       - Obrigado, Manson. Estarei aqui quando terminar.

       E pôs-se a acrescentar novos detalhes ao relatório.

       Emlyn Hughes estava na cama, e, sentados junto dele, dois dos seus companheiros da mina, para o conter em caso de necessidade. De pé, junto do leito, com a fisionomia pálida e transtornada de tanto chorar, Olwen nem parecia a criatura viva e animada que Andrew conhecera. A sua atitude era de tanta aflição e a atmosfera do quarto tão carregada que Manson teve um súbito calafrio, quase de medo.

       Aproximou-se de Emlyn, a quem no primeiro momento quase não reconheceu. A transformação era total. Era ainda Emlyn quem estava ali, mas um Emlyn alterado, desfeito, com qualquer coisa de embrutecido nas feições.

       O rosto parecia inchado, as narinas entumecidas, a pele macerada, tendo apenas uma leve mancha vermelha a estender-se pelo nariz. Todo o seu aspecto era pesado, apático. Andrew falou-lhe. Ele resmungou uma resposta ininteligível. E então, torcendo as mãos, saiu-lhe dos lábios uma série de tolices agressivas, que vinham corroborar a opinião de Bramwell de ser premente a necessidade do seu internamento.

       Seguiu-se um silêncio. Andrew sentiu que havia razões para o convencer. Mas, inexplicavelmente, não estava satisfeito.

       «Porquê? Porquê?», - insistia em perguntar a si mesmo. - «Porque falaria Hughes daquela maneira? Mesmo em caso de desarranjo mental qual seria a causa? Fora sempre um homem equilibrado e feliz. Sem preocupações, muito dado, fácil de levar. Porquê, sem razão aparente, essa transformação?»

       «Devia existir uma razão», pensava Manson teimosamente.

       «Os sintomas não se manifestam sem um motivo.

       Fitando as feições inchadas que tinha diante dele, esforçando-se  por encontrar uma decifração para a charada, instintivamente estendeu o braço e tocou a face entumecida,  notando subconscientemente que o calcar do dedo não deixava qualquer depressão no rosto inchado.

       De súbito, eletricamente, uma conclusão vibrou-lhe no cérebro. Porque não deixava a pressão marca no ponto inchado? Porquê? E agora o seu coração batia precipitadamente!

        Porque não era um verdadeiro edema, mas um mixedema. Ele descobrira, por Deus, descobrira! Não, não devia precipitar-se. Procurou acalmar-se a todo o custo. Não devia dar saltos no escuro, atirando-se cegamente a conclusões apressadas. Devia ir com segurança, devagar, ter a certeza!

       Inclinou-se e levantou a mão de Emlyn. Sim, a pele estava seca e áspera, as pontas dos dedos ligeiramente inchadas. A temperatura estava abaixo do normal.  Metodicamente,  terminou o exame, reprimindo as sucessivas ondas de entusiasmo. Todos os indícios e todos os sintomas se ajustavam bem como esses bocados que servem para formar figuras nos jogos de paciência. A fala entaramelada, a pele seca, os dedos espatulados, o rosto inchado e sem elasticidade, a memória deficiente, a compreensão retardada, os acessos de irritabilidade culminando numa explosão de violência homicida. Oh! Era sublime o triunfo do quadro completo.

       Levantou-se e voltou à saleta da entrada, onde o Dr. Bramwell, de pé, de costas para a lareira, assim o recebeu:

       - Que tal? Satisfeito? A caneta está ali na mesa.

       - Devagar, Dr. Bramwell! - Andrew desviou o olhar e procurou que a voz não traísse a sensação impetuosa de triunfo. - Creio que não devemos atestar a loucura de Hughes.

       - Como? - A impassibilidade da fisionomia de Bramwell  desapareceu lentamente. - Mas o homem está doido!

       - Não é esse o meu ponto de vista - respondeu Andrew em tom natural, ainda contendo o entusiasmo, a excitação.

       Não bastava o diagnóstico do caso, devia ainda preparar gradualmente Bramwell, tentar agir em boa harmonia, não fazer dele um inimigo.  A meu ver, a perturbação do espírito  de Hughes vem apenas da perturbação do seu organismo.

       - Parece-me que o caso é de deficiência da glândula tiróidea. Um caso absolutamente nítido de mixedema.

       Bramwell, apalermado, fitou Andrew. Tão apalermado que nem sabia o que dizer. Fez esforços para falar, mas da garganta só saíam sons roucos e inarticulados.

       - Além disso - continuou Andrew, persuasivamente, com os olhos dirigidos para a grelha do fogão - Pontynewead é um verdadeiro sepulcro. Se o levamos para lá, o homem nunca mais de lá sai. Ou se sair, ficará a vida toda com esse estigma. Porque não experimenta primeiro um tratamento à tiróide?

       - Ora, doutor... - Bramwell gaguejava. - Eu não posso compreender.

       - Pense no prestígio que conquistará - interrompeu Andrew mais do que depressa - se conseguir curá-lo. Não acha que vale a pena? Vamos, diga que sim! Vou chamar a mulher dele. Está a desfazer-se em lágrimas com a ideia de que vão levar Emlyn. O doutor dir-lhe-á que vai experimentar  um novo tratamento.

       Antes que Bramwell pudesse protestar, Andrew saiu da sala. Poucos minutos depois, quando voltou com a Sr.a Hughes, o Rei da Prata já era outro homem. Encostado lareira, informou Olwen, no seu melhor estilo, «que ainda podia haver um raio de esperança». Entretanto, por trás dele, Andrew fez do atestado uma bola de papel e atirou-a ao fogo. Depois saiu para encomendar em Cardiff, pelo telefone, extracto de tiróidina.

       Depois de uma fase de torturada ansiedade em que uma expectativa dolorosa se estendeu por alguns dias antes que o tratamento começasse a surtir efeito, os resultados foram maravilhosos. Ao fim de uma quinzena Emlyn estava de pé. Ao cabo de dois meses voltava ao trabalho. Uma noite apareceu no consultório de Bryngover, alegre e bem disposto, em companhia da sorridente Olwen, para dizer a Andrew que nunca se sentira tão bem em toda a sua vida.

       Olwen declarou:

       - É ao doutor a quem devemos tudo. Queremos deixar Bramwell e passar para a sua clínica. Emlyn estava na lista dele antes de nos casarmos. Mas é um velho tonto! Teria levado o meu Emlyn para... bem, o doutor sabe para onde... se não fosse o doutor e tudo o que fez por nós.

       - Não pode mudar de médico, Olwen - respondeu Andrew. - Isso comprometer-me-ia. - Aí desistiu da circunspecção profissional e deixou-se arrastar por uma alegria espontânea e despreocupada. - Não tente fazer isso... corro atrás de si com aquela faca!

       Encontrando Andrew na rua, Bramwell observou como que muito convencido:

       - Olá, Manson! Já viu Hughes por aí! Tanto ele como a mulher estão muito agradecidos. Felicito-me pelo desenlace  feliz deste caso. Nunca tive um melhor.

       Annie disse:

       - Esse tal Bramwell anda a exibir-se na cidade como se fosse alguém importante. Ele nada sabe e a sua mulher, que horror! Não há criada que pare em casa dela.

       Comentário de Blodwen:

       - Doutor, não esqueça que está a trabalhar para o Dr. Page!

       Reacção de Denny:

       - Manson, actualmente o senhor está intolerável de vaidade. Não tardará muito que se mostre como um pavão Não tardará muito.

       Mas Andrew, correndo ao encontro de Christine, exuberante pelo triunfo do método científico, guardou para ela tudo o que tinha a dizer.

      

       Em Julho daquele ano inaugurou-se em Cardiff o congresso  anual da Sociedade Médica Britânica. Eram famosos  os congressos dessa Sociedade e já o Prof. Lamplough declarava na palestra de despedida aos seus alunos que a ela não poderia deixar de pertencer um médico reputado.

       Esplendidamente organizados, esses congressos incluíam actividades desportivas, sociais e cientificas para os membros  e suas famílias, excursões gratuitas a qualquer abadia em ruínas dos arredores, livros de notas artisticamente encadernados e anuários dos principais armazéns dos produtos  farmacêuticos e casas de artigos de cirurgia, com abatimentos nos preços dos hotéis da estação de cura mais próxima. No ano anterior, no fim da semana de festas, foram distribuídas gratuitamente a todos os médicos e respectivas esposas caixinhas de amostras de biscoitos próprios  para quem não quer engordar.

       Andrew não era membro da Sociedade, pois os cinco guinéus da jóia estavam, como ainda nesse momento, fora das suas possibilidades, mas o facto é que seguia de longe o congresso com uma pontinha de inveja, o que o fazia sentir-se isolado em Blaenelly, sem contacto com a sua classe. Fotografias nos jornais de um grupo de médicos recebendo expressões de boas-vindas numa plataforma embandeirada ou preparando-se para iniciar uma partida de golf do Penarth Club, ou ainda no convés de um navio a uma excursão marítima, exasperavam ainda a sua ideia de exclusão.

       Mas no meio da semana Andrew teve uma surpresa agradável: uma carta que trazia o timbre de um hotel de Cardiff. Vinha do seu amigo Freddie Hamson. Como era de esperar, Freddie estava no congresso e pedia a Andrew que fosse vê-lo. Convidava-o para jantar no sábado.

       Andrew mostrou a carta a Christine. Era agora nele uma coisa instintiva tomá-la por confidente. Desde aquela noite, havia quase dois meses, em que fora cear com ela, estava cada vez mais apaixonado. Agora, que podia vê-la frequentemente, sentia-se animado pelo evidente prazer que ela manifestava nesses encontros. Estava a gozar os dias mais felizes da sua vida. Christine era muito prática, sincera e sem nenhuma coquetterie e exercia sobre ele uma influência sedativa. Muitas vezes Manson ia procurá-la  cansado e nervoso, mas voltava sempre confortado e tranquilo. Christine ouvia sossegadamente tudo o que ele dizia, fazendo de vez em quando um ou outro comentário, quase sempre oportuno ou espirituoso. Tinha um vivo sentido de humor. E nunca o lisonjeava.

       Uma vez por outra, apesar da calma da jovem, tinham grandes discussões, porque Christine pensava pela sua própria cabeça. Ela mesma lhe explicou, com um sorriso, que esse sentido de discussão o herdara de uma avó escocesa. Talvez o seu espírito independente tivesse a mesma origem. Andrew notou as grandes reservas de coragem  que ela possuía; tal facto comovia-o e dava-lhe vontade  de protegê-la. Na verdade, Christine estava completamente  só no mundo, tendo apenas uma tia inválida em Bridlington.

       Nas tardes de sábado e domingo, quando o tempo estava bom, faziam longas caminhadas pela estrada de Pandy.

       Uma vez foram ao cinema ver Em busca de Ouro, de Charlot, e outra vez, por sugestão dela, a um concerto sinfónico em Toniglan. Mas o que o encantava sobretudo eram as noites em que a Sr.a Watkins ia visitar Christine e ele podia gozar a intimidade da sua companhia nos próprios aposentos dela. Era então que tinham muitas das suas discussões, enquanto a Sr.a Watkins, entretida calmamente  com o seu tricot, na firme disposição de o fazer durar toda a noite, não era mais do que um respeitável chaperon.

       Agora, na perspectiva dessa viagem a Cardiff, queria que a jovem o acompanhasse. A escola de Bank Street ia suspender as aulas no fim da semana, devido às férias de Verão, e Christine estava com a viagem marcada para Brindlington, onde ia passá-las com a tia. Andrew manifestou  desejos de organizarem uma festa de despedida antes da separação.

       Depois de Christine ler a carta, Manson disse impulsivamente :

       - Quer vir comigo? Apenas hora e meia de comboio. Conseguirei que Blodwen me liberte na noite de sábado. Poderemos talvez assistir a alguma festa do congresso. E de qualquer maneira gostaria que a Christine conhecesse Hamson.

       Ela fez um gesto afirmativo com a cabeça.

       - Terei muito prazer.

       Entusiasmado, Andrew não queria de modo algum que a Sr.a Page de qualquer forma impedisse a combinação, e, antes de tocar no assunto, pendurou na janela do consultório  um letreiro onde se lia:

      

       “FECHADO SÁBADO A NOITE”

      

       e entrou em casa alegremente.

       - Sr.a Page! De acordo com o Estatuto dos Assistentes Médicos, tenho direito a meio dia de folga por ano. Gostaria  de ter por minha conta o meio dia de sábado. Quero ir a Cardiff.

       - Está bem, doutor.

       Blodwen recebeu de má vontade o pedido, parecendo-lhe que ele estava cheio de si, com ares superiores, mas depois de o encarar, desconfiada,  declarou num resmungo:

       - Bem, acho que pode ir.

       Uma ideia repentina passou-lhe pela cabeça. Os olhos brilharam,  humedeceu os lábios:

       - Poder-me-á trazer alguns pastéis da casa Parry. Nada há que eu aprecie tanto como os pastéis dessa casa.

       Sábado, às quatro e meia, Christine e Andrew tomaram o comboio para Cardiff. Andrew estava animadíssimo, espalhafatoso, chamando o carregador e o vendedor de revistas pelos nomes. Sentado em frente de Christine, contemplava-a sorrindo. Ela vestia casaco e saia azul, fato que acentuava o seu ar elegante. Os sapatinhos pretos estavam lustrosos. Os olhos, bem como todo o seu aspecto, manifestavam quanto apreciava o passeio. Ambos estavam radiantes.

       Ao vê-la junto de si Andrew sentia uma onda de ternura  e uma nova sensação de desvelo. «Esta nossa camaradagem  é realmente muito agradável», pensava ele. Mas isso só não bastava, queria sentir bem perto de si o calor do seu corpo e da sua vida.

       Disse espontaneamente:

       - Nem sei como hei-de passar sem a ver, quando a Christine se for embora, nas férias de Verão.

       A jovem corou levemente. Ficou a olhar pela Janela.

       Num ímpeto, Andrew perguntou:

       - Parece-lhe que as minhas palavras foram inconvenientes?

       - Seja como for. fiquei alegre quando as ouvi. - respondeu ela sem desviar a vista.

       Andrew esteve a ponto de declarar que a amava, de pedir-lhe, apesar da precária segurança da sua situação, que se casasse com ele. Numa lucidez repentina viu que essa era a única, a inevitável solução para ambos. Mas alguma coisa o deteve, uma espécie de intuição de que o momento não era apropriado. Decidiu falar-lhe na viagem de regresso.

       Entretanto, continuou a falar, um tanto nervoso:

       - Devemos gozar esta noite de horas deliciosas. Hamson é um bom camarada. Fazia sucesso quando estudante. É muito desembaraçado. Lembro-me de que uma vez - o seu olhar tornou-se saudoso - se realizou uma festa de caridade, em Dundee, para os hospitais. Todas as «estrelas» deviam aparecer, isto é, gente de teatro. Pois sabe o que Hamson fez? Subiu ao palco, cantou e dançou e não exagero quando lhe digo que a casa quase vinha abaixo com aplausos.

       - Parece mais um ídolo do palco do que um médico disse ela sorrindo.

       - Ora, Chris, não seja rabujenta! Garanto-lhe que gostará  de Freddie.

       Chegaram a Cardiff às seis e um quarto e seguiram directamente para o Palace Hotel. Hamson havia prometido esperá-los às seis e meia, mas quando entraram no hall do hotel ele ainda não chegara.

       Ali ficaram, observando a cena. O salão estava cheio de médicos e mulheres de médicos, falando e rindo com intensa cordialidade. Convites amáveis ouviam-se de todos os lados.  «Dr. Smith! O senhor e a sua esposa devem sentar-se perto de nós esta noite.  «Olá, doutor! E os bilhetes de teatro onde estão?» Havia muita gente entrando e saindo e cavalheiros com distintivos vermelhos na lapela atravessando o salão, apressadamente,  com ares importantes, com papéis na mão.

       Na sala contígua, um porteiro fardado berrava numa cantilena  monótona: «Secção de otorrinolaringologia, por aqui, façam favor». À entrada de um corredor que levava ao salão anexo via-se um letreiro: «Exposição Médica».

       Havia também palmeiras decorativas e uma orquestra de cordas.

       - Isso está animado, hem? - observou Andrew com a sensação de estarem um pouco deslocados no meio da animação geral. - E o maldito do Freddie atrasado como sempre! Vamos dar uma vista de olhos por aí.

       Andrew foi logo atulhado de vistosa literatura. com um sorriso mostrou a Christine um dos folhetos. «Doutor, o seu consultório está vazio! Podemos indicar-lhe o meio de o encher!» Havia também dezanove prospectos, todos diferentes, oferecendo as últimas novidades em analgésicos  e sedativos.

       - Parece que a tendência mais em voga na medicina é para entorpecentes - observou tornando-se sério.

       Em frente do último mostruário, quando já iam a sair, foram abordados delicadamente por um jovem que apresentava  um aparelhozinho brilhante, parecido com um relógio.

       - Doutor! Creio que se interessará pelo nosso indexómetro. Tem mil utilidades, é a última palavra do género, dá uma admirável impressão à cabeceira do doente e o preço é apenas dois guinéus. Com licença, doutor. Veja bem, aqui na frente, um índice dos períodos de incubação. Volta-se o mostrador e encontra-se o período de infecção. Aqui dentro - abriu o fundo da caixa - há um excelente índice de coloração da hemoglobina. Além disso, na parte de trás...

       - O meu avô tinha um desses aparelhos - interrompeu Andrew com firmeza - mas atirou-o fora.

       Christine ainda se ria quando voltaram ao salão.

       - Coitado - disse. - O senhor deve ter sido o primeiro a troçar do seu aparelhozinho tão lindo.

       Nesse momento, quando chegaram ao hall, apareceu Freddie Hamson, que saltou de um táxi e entrou no hotel acompanhado por um garoto que carregava os seus apetrechos de golf. Ao ver Andrew e Christine, avançou para eles, com um aberto e triunfante sorriso.

       - Olá, olá! Cá estão. Desculpem-me o atraso. Tive de disputar a Taça Lister. Nunca vi sujeito de tanta sorte como o que jogou comigo. Ora viva! Que bom ver-te de novo, Andrew! Sempre o mesmo velho Manson, hem? Oh, meu caro, porque não compras um chapéu novo!? - Bateu  nas costas de Andrew, afectuoso, num tom camarada, com um sorriso aberto que abrangia Christine. - Apresenta-me, meu patife. Que estás a pensar?

       Sentaram-se a uma das mesinhas. Hamson declarou que haviam de beber qualquer coisa. com um estalar de dedos chamou o criado. E então, saboreando Xerez, contou toda a história da partida de golf. Estava absolutamente  seguro da vitória, mas à última hora o seu adversário  deu para acertar em todas as jogadas.

       De aspecto sadio, cabelos louros empastados de brilhantina,  um fato bem cortado e botões de opalas nos punhos, que tinha a preocupação de mostrar, Freddie era um tipo bem apresentado, sem nada de bonito as suas feições eram vulgares, mas simpático e elegante. Parecia  talvez um pouco pretensioso, mas, quando se esforçava, sabia ser agradável. Fazia amigos com facilidade, mas na universidade o Dr. Muir, patologista e clínico, disse-lhe certa vez, mal-humorado, na presença de todos os alunos: «Você é um ignorante, Hamson. A sua cabeça é um balão cheio de gás de egoísmo. Mas você nunca se atrapalha. Se conseguir sair-se bem desta brincadeira de crianças que são os exames, posso vaticinar-lhe um brilhante futuro.».  

       Foram jantar no aritt-roam porque nenhum deles estava vestido a rigor, mas Freddie informou que mais tarde teria de vestir a casaca. Havia um baile, uma estopada terrível, mas sentia-se na obrigação de comparecer. Tendo escolhido com à-vontade o jantar num menu terrivelmente médico: sopa Pasteur, linguado à la Curie, tournedos à la Conference Médicale Freddie deu-se a relembrar com dramático ardor os velhos tempos.

       - Nunca havia de pensar - concluiu abanando a cabeça - que o velho Manson iria afundar-se num lugarejo de Gales do Sul.

       - Acha que está de facto afundado? - perguntou Christine, com um sorriso um tanto irónico. Houve uma pausa.

       Freddie passou os olhos pelo salão repleto e, franzindo a cara, perguntou a Andrew:

       - Que te parece o congresso?

       - Creio - respondeu Andrew sem convicção - que é uma forma prática de ficar em dia com a ciência.

       - Qual história! Em toda esta semana não compareci a qualquer dessas reuniões tão aborrecidas. Não, não, meu velho! O que interessa é entrar em contacto, é encontrar toda esta gente, é misturar-se com a facção em evidência. Não fazes ideia de quantas relações de real influência eu travei durante esta semana. É para isso que estou aqui. Quando voltar à cidade, telefonarei a toda essa gente, irei visitá-la e jogar golf na sua companhia. Mais tarde fixa bem as minhas palavras!  Isso será de uma grande vantagem.

       - Não compreendo muito bem, Freddie.

       - Pois é claro como água. Por enquanto exerço um cargo público, mas não perco de vista um consultóriozinho bem elegante na zona chique de Londres, com uma placa brilhante onde há-de ficar bem esta inscrição: Freddie Hamson Médico. Quando a placa for um facto, estes camaradas, já meus íntimos, indicarão o meu consultório aos clientes. Sabes como é a coisa. Reciprocidade, meu caro. Ajudas-me e eu pago-te na mesma moeda.

       Freddie sorveu lentamente um pouco de vinho, numa expressão de conhecedor. E continuou:

       - Além disso, também vale a pena entrar em contacto com os colegas suburbanos. Algumas vezes também podem arranjar-se alguns conluios. Tu mesmo, meu patife, tu mesmo, podes mandar-me lá para a cidade, quando eu já tiver o consultório, alguns clientes do fundo do teu buraco, Blaen... qualquer coisa.

       Christine olhou furtivamente para Hamson, fez menção de falar, mas conteve-se e cravou os olhos no prato.

       - E agora conta-me a tua vida, velho Manson - continuou  Freddie, sorrindo. - Que tens feito?

       - Oh, nada de especial. Tenho um consultório num barracão, faço cerca de trinta visitas por dia, na maior parte mineiros e as suas famílias.

       - Confesso que isso não me agradaria muito. - Freddie balançou a cabeça novamente com ar compungido.

       - Pois a mim agrada-me - disse Andrew docemente.

       Christine interveio:

       - E ainda encontra oportunidade para trabalhos de valor.

       - Sim, tive outro dia um caso bem interessante - confirmou  Andrew. - Cheguei até a mandar uma nota a esse respeito para o Medical Journal.

       E fez a Hamson uma curta exposição do caso de Emlyn Hughes. Embora Freddie pretendesse demonstrar que o escutava com interesse, os seus olhos giravam por todo o salão.

       - Muito bem - observou quando Manson concluiu. - Eu pensava que só na Suíça ou em outros lugares semelhantes se poderiam encontrar casos de bócio. De qualquer modo, calculo que tenhas apresentado uma conta calada. E isso faz lembrar-me uma coisa: Um colega esteve hoje a contar-me que o melhor meio de agir nesta questão de cobrança dos honorários...

       E continuou a falar, entusiasmado com o plano que alguém lhe havia sugerido para o pronto pagamento de todos os honorários. O jantar terminou antes da sua dissertação exuberante. Levantou-se, atirando com o guardanapo.

       - Vamos tomar café lá fora. Terminaremos no hall a nossa conversa.

       Às nove e quarenta e cinco, já no fim do charuto, esgotado temporariamente o repertório de anedotas, Freddie bocejou ligeiramente e deu uma olhadela ao relógio de pulso de platina.

       Mas Christine antecipou-se. Olhou significativamente para Andrew, levantou-se com rapidez e observou:

       - Não acha que estamos quase na hora do comboio?

       Manson esteve quase a dizer que ainda podiam demorar-se  uma meia hora, mas Freddie acrescentou:

       - Creio que também já é tempo de pensar nesse maldito baile. Tenho um compromisso a que não posso faltar.

       Acompanhou-os até à porta giratória do hotel, despedindo-se  longa e afectuosamente de Andrew.

       - Bem, meu velho - murmurou com mais um aperto de mão e uma palmadinha no ombro. - Quando eu colocar a placa na zona elegante de Londres, não me esquecerei de te enviar o cartão.

       No ar quente da noite, Andrew e Christine saíram a passear em silêncio pela Park Street. Ele compreendia vagamente  que a noite não fora o sucesso que esperara. Pelo menos tinha ficado muito aquém da expectativa de Christine. Aguardou que ela falasse, mas Christine continuou calada. Afinal, com hesitação, ele disse:

       - Imagino que deve ter sido muito aborrecido para si escutar todas estas histórias de hospital, não é verdade?

       - Não - respondeu ela. - Absolutamente. Não achei aborrecido.

       Houve uma pausa. Ele perguntou:

       - Agradou-lhe?

       - Não muito - Christine voltou-se, perdendo a calma forçada, os olhos a brilharem de sincera indignação. - Que ideia a dele de sentar-se ali, a noite toda, com o seu cabelo envernizado, o sorriso vulgar e uns ares protectores diante de si.

       - Com ares protectores? - Andrew repetiu as palavras dela, cheio de espanto.

       Ela confirmou vivamente com a cabeça.

       - Estava intolerável. «Um colega esteve hoje a contar-me  que o melhor meio de agir na questão dos honorários...», isso logo depois de o senhor lhe falar no caso estupendo do Emlyn. E chamar àquilo bócio, também! Até eu sei que era exactamente o contrário. E aquela insinuação  para o senhor lhe enviar clientes - os lábios crisparam-se-lhe - foi  realmente soberba! E concluiu, já furiosa: - Oh! Quase não pude aguentar aquela atitude de superioridade.

       - Não me pareceu que ele tivesse assumido uma atitude de superioridade - argumentou Andrew, perplexo. E depois  de uma pausa: - Reconheço que pareceu esta noite um pouco pedante. Talvez uma disposição de momento. É o camarada mais sincero que tenho encontrado. Fomos grandes amigos na faculdade. Passámos muito juntos.

       - Provavelmente ele tirava partido de si - disse Christine  com um azedume que não lhe era natural. - Conseguia  que o senhor o ajudasse nos estudos.

       Andrew protestou, aborrecido:

       - Ora, não seja assim, Chris.

       - O senhor é que não deve ser assim! - explodiu ela zangada, com lágrimas nos olhos. - O senhor deve estar cego para não compreender aquela espécie de sujeito. Estragou a nossa excursão. Tudo foi adorável até que ele apareceu e começou a falar de si mesmo. E havia um concerto magnífico no Salão Vitória, a que poderíamos ter ido! Perdemos o concerto, para mais nada temos tempo, mas ele está justamente na hora do seu baile idiota!

       Arrastaram-se para a estação, que ficava a alguma distância.

       Era a primeira vez que via Christine zangada.

       E ele também estava zangado, aborrecido consigo próprio, com Hamson, e, sim, também com Christine. O pior é que ela tinha razão quando havia dito que a noite fora um fracasso. E agora, na verdade, observando discretamente a sua fisionomia pálida e constrangida, sentiu que a noite fora efectivamente um fiasco.

       Chegaram à estação. Subitamente, quando atingiram a plataforma, Andrew viu por acaso duas pessoas que passeavam pelo outro lado. Reconheceu-as imediatamente a Sr.a Bramwell e o Dr. Gabell. Naquele momento chegou um comboio descendente para a praia de Porthcawl. Gabell  e a Sr.a Bramwell entraram no comboio de Porthcawl, sorrindo um para o outro. A locomotiva apitou. O comboio partiu.

       Andrew sentiu de repente uma sensação de tristeza.

       Olhou vivamente para Christine na esperança de que ela não tivesse visto o casal. Ainda naquela manhã ele se encontrara com Bramwell, e este, comentando a beleza do dia, esfregara satisfeito as mãos ossudas a explicar que a mulher tinha ido passar o fim de semana em companhia da mãe, em Shrewsbury.

       Andrew ficou de cabeça baixa, calado. Estava tão apaixonado que sinceramente lhe custou a cena que surpreendera,  com toda a sua significação. Sentiu-se mal. O seu ânimo parecia indicar uma completa mutação de ideias.

       Cobriu-se de sombras a sua alegria. Ansiava por uma longa conversa com Christine, por abrir-lhe o coração, acabar de uma vez com o tolo pequeno mal-entendido. Ansiava, acima de tudo, por ficar só com ela. Mas o comboio na viagem de regresso estava superlotado. Só conseguiram lugar num compartimento repleto de mineiros, que discutiam  em voz alta o jogo de futebol da cidade.

       Já era tarde quando chegaram a Blaenelly e Christine parecia muito cansada. Andrew estava convencido de que ela vira a Sr.a Bramwell e Gabell. Compreendeu ser inoportuno falar-lhe naquele momento. Nada mais havia a fazer senão deixá-la em casa e despedir-se desejando-lhe tristemente boas noites.

 

       Embora fosse quase meia-noite quando chegou a Bryngover, Andrew encontrou Joe Morgan à sua espera, andando de cima para baixo, em passadas curtas, entre o consultório fechado e a entrada da casa. Ao ver o médico, a fisionomia do corpulento brocador teve uma expressão de alívio.

       - Eh, doutor! Que alegria por vê-lo! Há bem uma hora que ando aqui de um lado para outro. Minha mulher está a precisar do doutor e há bastante tempo.

       Arrancado abruptamente às suas próprias preocupações, Andrew disse a Morgan que o esperasse. Entrou em casa para ir buscar a maleta e depois partiram juntos para o n.º 12 da Blaina Terrace. O ar da noite era frio e impregnado de sereno mistério. Habitualmente tão perspicaz, Andrew  mostrava-se agora triste e desatento. Não lhe passaria  pela cabeça que aquela visita nocturna teria efeitos singulares e decisivos em todo o seu futuro em Blaenelly.

       Os dois seguiram em silêncio até chegar ao n.º 12. Aí Joe parou de repente.

       - Eu não entro - disse ele, numa voz emocionada. Mas sei, doutor, que sob os seus cuidados tudo correrá bem para nós.

       Dentro de casa uma escada estreita conduzia a uma pequena alcova, limpa, mas mobilada pobremente, tendo apenas a iluminá-la uma lamparina. Ali, a mãe da Sr.a Morgan, uma velha alta, de cabelos brancos, orçando pelos setenta anos, e uma parteira idosa e robusta esperavam ao lado da parturiente, examinando a expressão de Andrew enquanto este se movimentava no quarto.

       - Deixe-me fazer-lhe chazinho, doutor - disse a velha, depois de alguns momentos.

       Andrew esboçou um sorriso. Compreendeu que ela, cheia de experiência, percebera que ainda havia algum tempo de espera e receava que o médico se retirasse, prometendo  voltar mais tarde.

       - Não se preocupe, avó. Eu não me vou escapar.

       Em baixo, na cozinha, bebeu o chá que ela lhe serviu. Cansado como estava, Andrew sabia que se voltasse para casa não acordaria tão cedo. Sabia também que aquele caso exigia toda a sua atenção. Apoderou-se do seu espírito  um estranho torpor. Decidiu ficar até ao fim.

       Uma hora depois subiu novamente, observou a parturiente, desceu outra vez e sentou-se junto do fogão da cozinha. Tudo estava silencioso, excepto o sussurro da combustão na grelha e o monótono tiquetaque do relógio de parede. Nada mais se ouvia além do ruído dos passos de Morgan na rua. Em frente de Manson estava sentada a velha, toda encolhida no seu vestido preto, absolutamente imóvel, os olhos, extraordinariamente vivos e atentos, fitos na fisionomia do médico, sondando.

       Os pensamentos de Manson eram confusos. A cena a que assistira na estação de Cardiff ainda o obcecava morbidamente.

        Pensava em Bramwell, loucamente devotado a uma mulher que o enganava de maneira sórdida; em Edward Page, amarrado à intolerável Blodwen; em Denny, vivendo como um infeliz, separado da mulher. O bom senso dizia-lhe  que todos esses casamentos eram fracassos desanimadores.

        Era uma conclusão que o deixava apreensivo na disposição  em que se encontrava. Gostaria de considerar o casamento como um idílio; sim, não podia considerá-lo de outro modo com a imagem de Christine diante dos olhos; os olhos dela brilhando para ele não admitiam outra conclusão. E era o conflito entre a sua razão prosaica  e indecisa e o coração transbordante que o deixava  triste e perturbado. Deixou o queixo cair sobre o peito, estirou as pernas e pôs-se pensativamente a contemplar  o fogo.

       Ficou assim tanto tempo e as suas ideias estavam tão cheias de Christine que estremeceu quando, de repente, a velha lhe dirigiu a palavra. As reflexões dele tinham seguido rumo tão diferente...

       - Susan disse que não lhe dessem clorofórmio porque podia fazer mal à criança. Está doida por esse bebé, doutor.

       Uma ideia súbita iluminou-lhe os olhos cansados. E acrescentou em voz baixa:

       - E aqui entre nós... Estamos  todos doidinhos pelo garoto.

       Foi com esforço que ele voltou a si.

       - Nenhum mal lhe fará o anestésico - disse afectuosamente. - Tudo  correrá bem.

       Nisto ouviu-se a voz da parteira chamando do alto da escada. Andrew olhou o relógio, que marcava agora três e meia. Levantou-se e subiu ao quarto. Compreendeu que já podia começar o trabalho.

       Uma hora passou. Foi uma luta demorada e difícil.

       Finalmente, quando os primeiros alvores da madrugada se infiltraram pelos interstícios da veneziana partida, a criança  veio ao mundo, mas sem vida.

       Um arrepio de horror perpassou por Andrew quando viu o corpo sem movimento e sem voz. Depois de tudo o que prometera! O rosto, afogueado pelo esforço, arrefeceu de repente. Hesitou, indeciso entre o desejo de tentar a ressurreição da criança e as suas responsabilidades para com a mãe, que se encontrava em estado desesperado.

       O dilema era tão premente que não teve consciência da forma por que se decidiu. Cegamente, instintivamente, entregou  a criança à enfermeira e voltou a atenção para Susan Morgan, que estava desmaiada, quase sem pulsações, ainda sob a acção do éter. A pressa de Andrew era exasperada, numa precipitação frenética para conservar as forças da parturiente, que fugiam. Num instante quebrou a ampola e injectou a pituitrina. Atirou para o lado a seringa e continuou e luta desesperada para reanimar a mulher inerte. Depois de alguns minutos de angustiado esforço, o coração dela reanimou-se. Viu que podia deixá-la momentaneamente sem maiores apreensões. Girou no quarto, em mangas de camisa, o cabelo caído sobre a testa inundada de suor.

       - Onde está a criança?

       A parteira fez um gesto amedrontado. Havia posto a criança debaixo da cama. No mesmo instante já Andrew estava ajoelhado. Procurando entre os panos ensopados por baixo do leito, arrancou para fora a criança. Um menino  perfeitamente constituído. O corpo, tépido e flexível, era branco e mole como cera. O cordão umbilical, cortado à pressa, era como um caule partido. A pele macia e tenra, a cabeça balançava sobre o pescoço delgado. Os membros pareciam sem ossos.

       Ainda ajoelhado, Andrew fitou a criança, atónito, com a testa franzida. A brancura só significava uma coisa: asfixia branca. Numa tensão sobre-humana, veio-lhe à mente, num relance, o caso que vira, certa vez, no Hospital Samaritano, e o tratamento que fora empregado. Levantou-se :

       - Traga-me água quente e fria - gritou para a parteira. - E  bacias também. Depressa! Vamos, depressa!

       - Mas, doutor... - gaguejou ela, com os olhos no corpinho descorado.

       - Depressa - berrou o médico.

       Arrancando um cobertor da cama, estendeu nele a criança e iniciou o método da respiração artificial. Por fim trouxeram a chaleira, o jarro da água e as bacias.

       Trabalhava com frenesim. Deitou água fria numa bacia; na outra, água quase fervente. E então, como um malabarista desvairado, passava a criança rapidamente de uma bacia para outra, mergulhando-a ora num banho frio ora num banho escaldante.

       Passaram-se quinze minutos. O suor escorria para os olhos de Andrew, cegando-o. Uma das mangas pendia escorrendo água. Estava ofegante. Mas nenhum sinal de respiração vinha do corpo flácido da criança.

       Oprimia-o uma exasperada sensação de derrota, um raivoso desespero. Sentia a parteira a observá-lo numa consternação atenta, enquanto mais adiante, encostada à parede, onde ficara desde o começo, a velha silenciosa, não desviava dele os olhos em fogo, com a mão apertando a garganta. Lembrou-se da sua grande esperança de ter um neto, esperança tão veemente como a da filha de ter um filho. E tudo gorado, perdido, sem apelo.

       O soalho era agora uma confusão suja. Tropeçando numa toalha ensopada, Andrew quase deixou cair o bebé, que já escorregava nas suas mãos como um peixe estranho e esbranquiçado.

       - Basta, doutor! - sussurrou a parteira. - A criança nasceu morta.

       Andrew não lhe deu atenção. Batido, desesperado, tendo lutado em vão durante meia hora, ainda persistia num verdadeiro desvario, esfregando a criança com uma toalha felpuda, comprimindo e afrouxando o pequenino peito com as duas mãos, tentando dar alento ao corpo inanimado.

       E então, como por milagre, o pequenino peito, entre as suas mãos, deu um suspiro curto e convulsivo. Outro. E outro mais. Andrew desvairou. A sensação de vida que brotava debaixo dos seus dedos depois daquele esforço sobre-humano era tão estranha que por pouco não o fez desmaiar. Febrilmente redobrou de esforços. A criança agora respirava. Uma respiração cada vez mais pronunciada.

        Uma bolha de muco surgiu numa das narinas, uma bolhazinha irisada, anunciadora de vida. Os membros já não pareciam sem ossos. A cabeça já não lhe descaía como se não houvesse espinha dorsal. A pele esbranquiçada ia aos poucos adquirindo cor. E nisto, deliciosamente, ouviu-se o choro da criança.

       - Meu Deus do Céu! - a parteira começou a soluçar histericamente. - Nasceu... Nasceu viva!

       Andrew entregou-lhe a criança. Sentia-se fraco e atordoado.

        À sua volta o quarto era uma confusão de meter medo: cobertores, toalhas, instrumentos manchados, a seringa da injecção espetada pela agulha no oleado, o jarro virado, a chaleira numa poça de água. No leito em desalinho a mãe ainda sonhava plàcidamente, libertando-se progressivamente dos efeitos do anestésico. A velha ainda continuava encostada à parede. Mas as suas mãos estavam juntas, os lábios moviam-se sem ruído. Rezava.

       Como um autómato, Andrew ajeitou as mangas da camisa e vestiu o casaco.

       - Virei buscar mais tarde a maleta.

       Desceu as escadas, dirigiu-se à cozinha. Os lábios estavam  secos. Bebeu a água de um grande copo. Agarrou no chapéu e no sobretudo.

       Lá fora encontrou Joe de pé na escada, com a fisionomia  contraída, expectante.

       - Tudo bem, Joe - disse com voz arrastada. - A mulher  e a criança estão muito bem.

       Era dia claro. Quase cinco horas. Alguns mineiros já estavam na rua. Os primeiros do turno da noite que voltavam  do serviço. Quando Andrew seguia com eles, no mesmo andar cansado e lento, os seus passos ecoando com os dos outros sob o céu da manhã, pôs-se a pensar distraidamente,  esquecido de todos os outros trabalhos que já havia feito em Blaenelly: «Fiz alguma coisa, oh! Meu Deus! Afinal fiz alguma coisa de concreto.»

      

       Depois de fazer a barba e de tomar banho (graças a Annie havia sempre água quente à sua disposição), Andrew  sentiu-se menos cansado. Mas Blodwen viu a cama dele intacta e mostrou-se zombeteira e sarcástica à hora do café e ainda mais quando ele recebeu em silêncio as suas alfinetadas.

       - Apre, doutor! Amanheceu com a cara muito cansada. E que olheiras escuras! Só voltou de madrugada, hem? E esqueceu-se também dos meus pastéis de Parry. Dormiu fora de casa, não é, menino? A mim não me engana. Eu nunca me iludi com esse ar de santarrão! Vocês, assistentes, são todos a mesma coisa. Ainda não encontrei um só que não bebesse ou que não perdesse a linha uma vez por outra!

       Depois do trabalho do consultório e das visitas da manhã Andrew foi ver o seu caso. Já eram doze e trinta quando se dirigiu a Blaina Terrace. Havia grupos de mulheres  tagarelando às portas das casas e à sua passagem Pararam de falar para sorrir e dar-lhe uns efusivos bonsdias.

        Ao aproximar-se do n.º 12, pareceu-lhe ver alguém na janela. De facto. Estavam à sua espera. No momento em que chegou em frente da casa, a porta escancarou-se e, irradiando incrível alegria em toda a sua face enrugada, a velha veio dar-lhe as boas-vindas.

       Na verdade ela estava tão ansiosa por cativá-lo que não sabia o que dizer. Convidou-o a tomar primeiro qualquer refresco na saleta, e, em face da sua recusa, ainda mais se desfez em submissas amabilidades:

       - Está bem, está bem, doutor. Ora essa! É como diz! Mas pode ser que antes de se ir embora ainda tenha ocasião para tomar uma gota de vinho e comer um pedaço de bolo. - Levou-o escada acima a bater-lhe no ombro com as velhas mãos trémulas.

       Andrew entrou na alcova. O pequeno quarto, que deixara com aspecto de matadouro, fora tão bem lavado e encerado que brilhava agora. Muito bem arrumados, todos os seus instrumentos luziam sobre uma mesa envernizada.

       A maleta fora cuidadosamente engraxada, os fechos tão bem polidos que pareciam de prata. Tinham mudado a roupa da cama, onde se via agora roupa limpa. E ali estava  a mãe, com o semblante calmo e concentrado a fitá-lo numa felicidade muda, enquanto a criança mamava, bem disposta e sossegada, no seio túmido.

       - Olá! - A corpulenta parteira, que estava sentada à cabeceira da cama, levantou-se a desfazer-se em sorrisos. Parecem muito bem agora, não é, doutor? Nem sabem  o trabalho que nos deram. Nem avaliam, não é verdade?

       Humedecendo os lábios, uma luz indefinida nos olhos meigos, Susan Morgan tentou gaguejar a sua gratidão.

       - Ah, a senhora é quem pode dizer - disse a parteira, balançando a cabeça, procurando chamar a si as glórias a todo o custo. - Não se esqueça, querida, que na sua idade não poderia ter outro filho. Ou desta vez ou nunca mais.

       - Sabemos tudo isso Sr.a Jones - interrompeu significativamente  a velha, ainda da porta.  Nós sabemos que tudo devemos aqui ao doutor.

       - O meu Joe ainda não o procurou, doutor? - perguntou  timidamente a mãe. - Não? Pois irá procurá-lo, com certeza. Ele não cabe em si de contente. Ainda há pouco esteve a dizer que o que nos fará mais falta na África do Sul é não ter lá o doutor como nosso médico.

       Ao sair, devidamente fortificado por uma fatia de bolo e um cálice de vinho feito em casa (pois teria despedaçado o coração da velha se se recusasse a beber à saúde do neto), Andrew continuou as suas visitas com um estranho  calor no coração. «Não me teriam prestado maiores homenagens», pensava ele cheio de si, «se eu fosse o rei da Inglaterra». Aquele caso tornara-se de certo modo o antídoto para a cena que surpreendera na plataforma da estação de Cardif. Já era alguma coisa em favor do casamento e da vida de família ver a felicidade que enchia o lar de Morgan.

       Quinze dias depois, quando Andrew Já havia feito a última visita ao n.º 12, Joe Morgan veio procurá-lo. A atitude  de Joe era solene e imponente. E, depois de mastigar por muito tempo as palavras, explodiu, de repente:

       - Macacos me mordam! Não tenho jeito para falar. Não há dinheiro que pague o que fez por nós. Mas mesmo assim, minha mulher e eu queremos dar-lhe uma lembrança.

       Impulsivamente, entregou a Andrew um pedaço de papel. Era um cheque de cinco guinéus pagável na Sociedade Construtora. Andrew olhou espantado para o cheque. Os Morgans, como se dizia na linguagem local, «era gente limpa», porém nada tinham de abastados. Aquela quantia nas vésperas da sua partida, com tantas despesas de viagem, devia representar um grande sacrifício, uma nobre generosidade.

       Emocionado, Andrew disse:

       - Não posso aceitar, amigo Joe.

       - Tem de aceitar - continuou Joe com sisuda insistência, pondo a mão em cima da de Andrew. - Senão, minha mulher e eu ficaremos mortalmente ofendidos. É um presente para o senhor. Não é para o Dr. Page. Ele tem levado o meu dinheiro durante anos e anos e nós nunca o incomodamos; foi esta a primeira vez que precisámos. Ele está muito bem pago. Isto é um presente pessoal para o senhor. Compreende, doutor?

       - Sim, compreendo, Joe - concordou Andrew, sorrindo.

       Dobrou o cheque, colocou-o no bolso do colete e durante alguns dias esqueceu-o ali. Mas na terça-feira seguinte, ao passar em frente do Western Counties Bank, parou, reflectiu  um momento e entrou. Como a Sr.a Page sempre lhe pagava em notas que ele enviava em cartas registadas para os escritórios da Dotação, ainda não tivera oportunidade  de qualquer operação com o Banco. Mas agora, com a noção reconfortante da sua própria importância, decidiu-se a abrir um depósito com o dinheiro de Joe. Em frente do guichet, endossou o cheque, encheu alguns impressos e entregou-os ao empregado, observando com um sorriso:

       - Não é muito, mas de qualquer modo é um começo.

       Enquanto procedia a essa operação, percebeu que Aneurin Rees esticava o pescoço, lá do fundo, a observá-lo.

       Quando Andrew se voltou para sair, o gerente avançou para o balcão. Apanhou o cheque. Alisando-o carinhosamente  olhou para os lados, por trás dos óculos.

       - Boas tardes, Dr. Manson. Como está? - Pausa. E mostrando a dentadura amarela. - E... quer que esse dinheiro seja lançado numa conta sua?

       - Sim - explicou Manson um pouco surpreso.  A quantia  é pequena de mais para abrir uma conta?

       - Oh, não, doutor. Não se trata da quantia. Temos muito prazer em lhe abrir uma conta. - Rees hesitou examinando ainda o cheque, e levantando para Andrew os seus olhinhos desconfiados. E quer que seja em seu próprio  nome?

       - Pois claro. 

       - Está certo, doutor, está certo. - A sua expressão desfez-se  subitamente num sorriso amarelo. - Estava apenas a conjecturar. Queria ter a certeza. Que tempo delicioso para esta época do ano! Passe bem, Dr. Manson, passe bem!

       Manson saiu do banco intrigado, perguntando a si mesmo o que estaria insinuando aquele imbecil calvo e empertigado.

       Alguns dias depois teve a resposta a essa pergunta.

 

       Havia mais de uma semana que Christine deixara Blaenelly em gozo de férias. Andrew, porém, estivera tão ocupado com o caso Morgan que só conseguiu vê-la alguns momentos no dia da partida. Nem chegou a falar-lhe. Mas agora, longe dela, andava cheio de saudades.

       O Verão estava insuportável na cidade. Transformaram-se  num amarelo sujo os últimos verdes da Primavera.

       As montanhas tinham um ar febril e quando ecoavam na amplidão abrasada os estampidos das minas e das pedreiras  pareciam cobrir o vale com uma abóbada de sons ardentes.

       Os operários saíam da mina com o rosto impregnado de pó de minério que dava a impressão de ferrugem.

       Crianças brincavam descuidadamente. Thomas, o velho cocheiro, foi atacado de icterícia e Andrew teve de fazer a pé as suas visitas. Ao arrastar-se pelas ruas sufocantes, lembrava-se de Christine. Que estaria fazendo? Pensaria nele um pouco que fosse? E que pensaria do futuro, quais os seus projectos, as perspectivas de felicidade que podiam ter juntos?

       Então, quando menos esperava, recebeu um recado de Watkins, pedindo-lhe que fosse vê-lo aos escritórios da Companhia.

       O director da mina recebeu-o de modo agradável, convidando-o  a sentar-se e oferecendo-lhe cigarros.

       - Olhe, doutor - disse num tom de amigo. - Há tempo que quero falar-lhe e é melhor entendermo-nos antes que eu faça o meu relatório anual.  Parou um momento, para tirar da ponta da língua um resto de tabaco. Esteve aqui um grupo de trabalhadores, com o Emlyn e o Ed Williams à cabeça, pedindo-me que incluísse o seu nome como médico titular na lista da Companhia.

       Andrew aprumou-se na cadeira, invadido por uma onda de calor e de alegria.

       - Quer dizer... Trata-se de passar para mim a clínica do Dr. Page?

       - Não, não é bem isso, doutor - explicou Watkins vagarosamente. - Compreenda que a situação é delicada. Tenho de atender as exigências dos operários. Não posso tirar da lista o Dr. Page. Há um certo número de homens que não admitiriam isso. O que eu queria fazer em seu favor era encaixá-lo habilmente na lista da Companhia. Assim, quem quisesse podia transitar da clínica do Dr. Page para a sua.

       A expectativa ansiosa foi desaparecendo da fisionomia de Andrew. Franziu a testa, ainda emocionado.

       - Mas o senhor deve compreender que não posso fazer isso. Vim para aqui como assistente do Dr. Page. Se me colocasse em oposição a ele... Não, nenhuma pessoa decente  pode fazer uma coisa dessas!

       - Mas não há outro meio.

       - Porque não me deixa ficar com a clínica dele? - insistiu Andrew. - Pagaria de boa vontade uma indemnização,  uma percentagem sobre todas as quantias recebidas. É uma outra saída.

       Watkins sacudiu a cabeça, francamente em desacordo.

       - Blodwen não concordaria com isso. Já lhe expus o caso. Ela sabe muito bem que está numa situação sólida Quase todos os trabalhadores mais velhos daqui, como Enoch Davies, por exemplo, querem o Dr. Page. Acredita que ele ainda regressa à clínica. Eu teria de enfrentar uma greve se tentasse substituí-lo. - Parou um momento - Dou-lhe um prazo de um dia para pensar. Amanhã tenho de enviar a nova lista para o escritório central de Swansea Depois de a lista seguir, só daqui a um ano poderei voltar ao assunto.

       Andrew ficou a olhar o soalho por um momento e depois fez um vagaroso gesto de recusa. As suas esperanças, em tão elevado plano ainda há pouco, estavam agora por terra.

       - É inútil. Não posso fazer isso. Mesmo que ficasse pensando semanas inteiras.

       Doeu-lhe muito chegar a esta decisão e sustentá-la diante da parcialidade de Watkins em seu favor. Contudo, não podia abstrair do facto de que entrara em Blaenelly como assistente do Dr. Page. Colocar-se numa posição contrária, mesmo nessas circunstâncias excepcionais, era inconcebível. Admitindo que, por sorte improvável, voltasse  à actividade... com que cara havia de fazer concorrência  ao velho? Não, não podia e não queria essa situação.

       No entanto, durante o resto do dia, sentiu-se melancólico e abatido, magoado com a extorsão descarada de Blodwen, certo de que estava numa posição absurda, lamentando  até que lhe tivessem feito aquele oferecimento.

       À noite, por volta das oito horas, foi fazer uma visita a Denny. Desde algum tempo que não o via. E no seu desânimo  sentiu que lhe faria bem uma conversa com Phillip, talvez uma confirmação de que procedera acertadamente.

       Chegou a casa de Phillip pouco depois das oito, e, como já era seu costume, entrou sem bater. Foi à saleta. Phillip estava estirado no sofá. A princípio havia pouca luz teve a impressão de que ele estava descansando de um penoso dia de trabalho. Mas Phillip nada fizera naquele dia. Ficara estendido ali, com a respiração opressa, um braço por cima do rosto, completamente embriagado. Ao voltar-se, Andrew deu com a dona da casa, que o observava  de banda, com ar preocupado.

       - Ouvi o Sr. Doutor entrar. Ele está assim há muito tempo. Nada comeu. Não sei que fazer.

       Andrew não encontrou palavras para responder. Ficou a observar a face parada do amigo, a recordar o cinismo do primeiro comentário de Denny na noite da sua chegada.

       - Há dez meses que não se embebedava assim - continuou  a dona da casa. - Mas quando começa já não pára. Agora o desastre ainda é maior, porque o Dr. Nicholls está fora, de férias. Parece que será bom mandar-lhe um telegrama.

       - Mande Tom cá acima - disse Andrew, afinal. - Vamos  levá-lo para a cama.

       Com a ajuda do filho da Sr.a Seager, um jovem mineiro que parecia achar graça ao caso, despiram Phillip e vestiram-lhe  um pijama. Mole e pesado como um saco, foi levado até o quarto.

       - O que deve fazer-se antes de tudo é vigiá-lo para que mais nada beba. Feche a porta por fora se for necessário - recomendou Andrew à mulher, quando voltaram à saleta. - E agora é melhor dar-me a lista das visitas de hoje.

       Numa ardósia pendurada na parede estavam mencionadas  as visitas que Phillip deveria fazer naquele dia. Andrew copiou-a e saiu. Andando depressa, poderia despachar  a maior parte antes das onze horas.

       Na manhã seguinte, logo depois do seu trabalho do consultório, foi ver Denny. A dona da casa veio ao seu encontro torcendo as mãos.

       - Não sei onde ele arranjou bebida. Eu não lha dei. Tenho feito por ele o melhor que tenho podido.

       Phillip estava ainda mais embriagado do que na véspera, pesado, insensível. Depois de o sacudir várias vezes e de esforçar-se por reanimá-lo com uma xícara de café bem forte - café que afinal entornou todo na cama - Andrew copiou novamente a lista das visitas. Amaldiçoando o calor, as moscas, a icterícia de Thomas e Denny também, enfrentou mais um dia de trabalho dobrado.

       No fim da tarde, esgotado, aborrecido, voltou disposto a acabar com a bebedeira de Denny. Dessa vez encontrou-o espapaçado numa poltrona, de pijama, ainda embriagado, fazendo um longo sermão a tom e à Sr.a Seager. Quando Andrew entrou, Denny calou-se imediatamente e dirigiu-lhe um olhar sombrio, sarcástico. Falou-lhe com uma voz empastada.

       - Ah! É o bom samaritano! Já soube que o doutor me substituiu no trabalho. Que gesto nobre! Mas porquê esse interesse? Porque foi esse maldito Nicholls gozar a vida atirando para cima de nós todo o trabalho?

       - Não sei. - A paciência de Andrew estava por um fio. - Só sei que o trabalho seria mais fácil para nós dois se Denny colaborasse.

       - Eu sou cirurgião. Não sou desses desgraçados de clínica geral. Clínica geral! Ora... Que significa isso? Já fez a si próprio essa pergunta? Não fez ainda? Bem, eu explico-lhe. É o anacronismo mais completo e acabado, o pior, o mais estúpido sistema criado pelo homem desde que Deus o pôs na Terra. Velho e querido clínico geral... Velho e ingénuo público britânico! Ah! - ria com sarcasmo. - O público ingénuo que criou esse tipo de médico. E gosta dele. E chora por ele. - Inclinou-se para um lado da poltrona.

        Os seus olhos congestionados exprimiam outra vez amargura e desilusão. E numa voz arrastada continuou a objurgatória:

       - Que pode fazer o pobre diabo? Ah! O clínico  geral! Tem de ser pau para toda a obra! Admitamos que tem vinte anos de formado. Como pode entender de medicina, de obstetrícia e bacteriologia, de todos os últimos progressos da ciência e da cirurgia também? Sim! Não deve esquecer-se a cirurgia. De quando em quando pratica numa operaçãozita feita em casa. - Voltou ao tom sardónico. - Um caso de mastoidite, por exemplo. Duas horas e meia contadas pelo relógio. Quando encontra pus, é um salvador da humanidade. Quando não encontra, a vítima vai para o cemitério. - Levantou a voz. Estava indignado, terrivelmente indignado. - Só mandando tudo para o Inferno, Manson. Há séculos que é a mesma coisa. Será possível que eles não queiram mudar de sistema? Para que lutar? Para quê, pergunto-lhe. Dê-me outro whisky. Estamos todos naufragados. E parece que estou bêbado também.

       Durante alguns minutos reinou o silêncio. Afinal, contendo  a irritação, Andrew falou:

       - Não acha que deve voltar agora para a cama? Venha, nós ajudamos.

       - Deixe-me em paz! - respondeu Phillip de mau humor. - Que diabo! Não venha para cá com esses malditos cuidadozinhos de cabeceira de doente. Já usei esses processos. Sei muito bem como é.

       Levantou-se abruptamente, a cambalear,  e, agarrando a Sr.a Seager pelo ombro, atirou-a para a poltrona. Balançando o corpo numa caricatura da mais requintada cortesia, dirigiu-se à mulher, amedrontada:

       - Como passou o dia, minha querida senhora? Um poucochinho melhor, pelo que vejo. Com o pulso um bocadinho mais forte. Dormiu bem? Ah! Temos então de receitar um calmantezinho... 

       Na cena de farsa havia uma nota estranha, alarmante: a figura de Phillip, com a barba crescida, de pijama e chinelos, a caricatura de um médico mundano, inclinando-se numa servil reverência diante da esposa do mineiro, que se encolhia toda na cadeira. Tom rompeu num acesso nervoso de riso. Num relâmpago, Denny investiu contra ele.

       - Está contente! Ria! Ria, seu desgraçado, até quando quiser! Mas gastei cinco anos da minha vida nessas coisas! Meu Deus! Quando penso nisso sinto vontade de morrer.

        Passou o olhar por todos os lados, agarrou numa das jarras que estavam sobre o fogão e espatifou-a no soalho. A seguir pegou noutra e atirou-a contra a parede. E dos seus olhos brotavam relâmpagos avermelhados, nos quais se lia a ânsia da destruição.

       - Misericórdia! - choramingou a Sr.a Seager, - Segurem este homem!

       Andrew e Tom Seager atiraram-se a Phillip, que lutava, sem reconhecer ninguém, no paroxismo da intoxicação alcoólica. Depois, ao capricho da embriaguez, de repente relaxou a atitude e tornou-se sentimental, melacento.

       - Manson - choramingou, pendurando-se no ombro de Andrew. - Você é um bom tipo. Gosto de si como um irmão  Você e eu... Se nos uníssemos firmemente podíamos salvar esta nossa maldita profissão.

       Estava de pé, com o olhar distante, perdido. Depois a cabeça descaiu. O corpo vergou. Deixou que Andrew o levasse  para o quarto e para a cama. Rolando a cabeça no travesseiro, fez o seu último pedido de ébrio:

       - Prometa-me uma coisa, Manson! Por amor de Deus, não se case com mulher importante.

       Na manhã seguinte estava mais embriagado do que nunca. Andrew desanimou. Embora Tom Seager jurasse que não, Andrew estava desconfiado de que era ele quem, às escondidas, fornecia as bebidas a Denny.

       Durante toda aquela semana, Andrew enfrentou trabalho dobrado atendendo também os clientes de Denny. No domingo, depois do almoço, foi visitar o amigo. Phillip estava de pé, barbeado, vestido, irrepreensível na aparência. Embora abatido e trémulo, não tinha sinais de embriaguez.

       - Parece que o senhor trabalhou por mim toda a semana.

       Fora-se a intimidade dos últimos dias. A sua atitude  era contrafeita, de uma correcção gelada.

       - Não teve importância - respondeu Andrew embaraçado.

       - Pelo contrário, deve ter sido um trabalho dos diabos.

       A atitude de Denny era tão distante que Andrew corou. Nem uma palavra de gratidão, nada mais que uma arrogância  mal disfarçada.

       - Se tem de facto interesse em saber - desabafou Andrew  - confesso: tive um trabalho infernal por sua causa.

       - Indemnizá-lo-ei. Pode estar certo.

       - Quem pensa o senhor que eu sou?! - respondeu Andrew,  exaltado. - Pensa que sou um miserável cocheiro à espera de uma gorjeta? Se não fosse eu a Sr.a Seager teria telegrafado ao Dr. Nicholls e o senhor estaria no olho da rua. O senhor é um tipo pretensioso, arrogante e malagradecido. E precisa de levar uns sopapos.

       Denny acendeu o cigarro com dedos tão trémulos que mal podiam segurar o fósforo, e com ar de escárnio respondeu :

       - Que bela oportunidade escolheu para querer medir forças comigo. Verdadeiro tacto escocês! Noutra ocasião terei muito gosto.

       - Oh! Cale a boca, desgraçado. Eis aqui a sua lista de visitas. As que estão marcadas com uma cruz devem ser feitas na segunda-feira.

       Saiu furioso da casa do amigo. «Vá para o diabo que o carregue!», resmungou com raiva. «Parece que se julga dono do mundo. Dá a impressão de que me prestou um favor, permitindo que eu fizesse o seu trabalho».

       Mas a caminho de casa a irritação foi diminuindo progressivamente.

       Estimava muito Phillip e via agora mais claro na sua alma desorientada. Era tímido, de uma sensibilidade excessiva, vulnerável. Era só por isso que se revestia de uma capa de orgulho e rudeza. A lembrança da sua recente recaída no vício e dos espectáculos que dera durante a crise devia torturá-lo horrivelmente.

       Mais uma vez Andrew ficou impressionado com o paradoxo  daquele homem inteligente enterrando-se em Blaenelly  para romper com todas as convenções. Phillip tinha qualidades excepcionais de cirurgião. Encarregado de dar o anestésico, Andrew vira-o certa vez executar uma ressecção da vesícula biliar, na mesa de cozinha da casa de um mineiro, com o suor a escorrer do rosto avermelhado e dos braços cabeludos. Um primor de rapidez e segurança.

       Um homem capaz de fazer dessas coisas merecia especial apreço.

       No entanto quando chegou a casa ainda não estava refeito do golpe que recebera com a frieza de Phillip.

       Assim, quando transpôs a porta e pendurou o chapéu no cabide, não estava com muita disposição para ouvir a voz da Sr.a Page, exclamando:

       - Ah, é o senhor, Dr. Manson? Preciso de falar-lhe 

       Andrew não se dignou responder-lhe. Voltando-se, preparou-se  para subir as escadas na direcção do seu quarto. Mas quando pôs a mão no corrimão, ouviu de novo a voz de Blodwen, mais aguda, mais estridente.

       - Doutor! Dr. Manson! Preciso falar-lhe.

       Andrew deu meia volta e viu a Sr.a Page irromper na saleta, com a fisionomia muito pálida, os olhos negros falseando, possuída de violenta emoção, vindo ao seu encontro.

       - O senhor é surdo? Não me ouviu dizer que precisava falar-lhe?

       - Que há, Sr.a Page? - perguntou ele, irritado.

       - Ora, o que há! - ela quase não podia respirar. - Estou  a gostar de o ver. O senhor a fazer-me perguntas! Eu é que lhas quero fazer, meu prezado Dr. Manson!

       - Que é então? - fuzilou Andrew.

       O seu modo impaciente parecia excitá-la acima das suas forças.

       - É isto. Sim, meu esperto doutorzinho! Poderá ter a bondade de me explicar o que quer isto dizer?

       Do seio gorducho tirou um pedaço de papel e agitou-o ameaçadoramente diante dos seus olhos. Ele reconheceu o cheque de Joe Morgan. Então, levantando a cabeça, viu Rees por trás de Blodwen, esgueirando-se à entrada da saleta.

       - Ah, pode olhar à vontade - continuou Blodwen. - Vejo que o reconhece. Mas é melhor que nos diga depressa como foi este dinheiro parar ao banco em seu nome, quando pertence ao Dr. Page e o senhor sabe isso muito bem.

       Andrew sentiu o sangue subir-lhe à cabeça. As orelhas ardiam.

       - É meu. Foi uma dádiva de Joe Morgan.

       - Uma dádiva! Oh! Oh! Esta é boa. Ele não está aqui para confirmar.

       Manson respondeu de dentes cerrados:

       - A senhora pode escrever-lhe para ter a certeza se não confia na minha palavra.

       - Tenho mais que fazer do que escrever cartas. - Completamente  fora de si, berrou: - E de facto não confio na sua palavra. O senhor pensa que é muito esperto, hem? Sim, senhor. Vem para cá e já se lhe meteu na cabeça que pode ficar com a clínica por sua conta, quando devia trabalhar para o Dr. Page! Mas isso mostra muito bem quem o senhor é. É um gatuno. Isso mesmo! Um gatuno muito ordinário.

       Lançou-lhe o insulto em cara. Deu meia volta para procurar apoio em Rees. À porta da saleta, com a fisionomia  mais pálida que nunca, o gerente do banco emitia sons estranhos que deviam ser apelos de moderação. Naturalmente  Andrew viu em Rees o instigador de toda a questão. O homem passara alguns dias indeciso antes de levar a novidade a Blodwen. Manson desceu os dois degraus  da escada e avançou para eles, fitando com ameaçadora  atitude a boca fina e sem sangue de Rees. Estava louco de raiva e ansioso por um conflito.

       - Sr.a Page - disse num tom pausado - a senhora acaba de fazer uma acusação contra mim. Se dentro de dois minutos não a retirar e não pedir desculpas, processá-la-ei  por difamação e exigirei uma indemnização. Terá de ser apresentada em juízo a origem da sua calúnia. Não tenho dúvidas de que a direcção do banco do Sr. Rees estará  interessada em saber como se viola o sigilo profissional.

       - Eu... eu fiz apenas o meu dever - gaguejou o gerente do banco, já sem uma gota de sangue.

       - Estou à espera, Sr.a Page! - As palavras vinham-lhe em catadupas, sufocando-o. - Se não se apressar darei ao gerente do seu banco a maior tunda que ele levou em toda a sua vida.

       Ela viu que fora demasiadamente longe, que falara mais, muito mais, do que tinha intenção. A ameaça de Andrew e a sua atitude indignada amedrontaram-na. Era quase possível seguir as reflexões vertiginosas da cabeça de  Blodwen: «Indemnização! Uma indemnização pesada! Oh, meu Deus, poderia arrancar-me o meu dinheiro!».

       Engasgou, mastigou, gaguejou:

       - Eu... eu retiro o que disse. Peço desculpa.

       Era quase cómico ver a gorducha, há pouco tão valente, súbita e inesperadamente subjugada. Mas Andrew não achou a menor graça ao caso. Compreendeu num momento,  com profunda amargura, que chegara ao extremo limite da sua paciência. Não podia mais com aquela criatura  impertinente, irascível. Respirou profundamente. Esqueceu  tudo, menos a sua aversão por aquela mulher. Era numa alegria louca e selvagem que ele se deixava arrastar pelo próprio impulso.

       - Sr.a Page, há uma ou duas coisas que preciso de lhe dizer. Em primeiro lugar, sei que a senhora está a tirar uma renda anual de mil e quinhentas libras à custa do meu trabalho. Desse dinheiro todo a senhora reserva para mim só umas miseráveis duzentas e cinquenta libras, e além disso faz o que pode para me cercear os alimentos. Talvez lhe interesse saber também que a semana passada uma delegação de trabalhadores procurou o director da mina e este convidou-me para fazer parte da lista da companhia.  Ainda deve saber que por motivos da ética, coisa de que a senhora possivelmente não tem a mais leve noção,  recusei terminantemente. E agora, Sr.a Page, estou tão absolutamente enojado da sua pessoa que não posso continuar aqui. A senhora é uma cadela mercenária; cúpida  e mesquinha. Na verdade a senhora é um caso patológico. Notifico-a desde já de que só trabalharei até ao fim do mês.

       Ela abriu a boca e os seus olhinhos como botões pareciam saltar das órbitas. Então, de repente, gritou :

       - Não, isso não! Tudo é mentira. O senhor não foi convidado para entrar na lista da Companhia. E está despedido, fique sabendo. Ainda não houve assistente que me notificasse de que ia deixar o emprego. Que ideia, que descaramento, que desaforo falar-me dessa maneira! Fui eu quem falou primeiro. Está despedido, está, fique sabendo,  despedido, despedido, despedido...

       A explosão foi estridente, histérica, degradante. No auge do desabafo, interrompeu-se. Lá em cima a porta do quarto de Edward abriu-se lentamente, e um momento depois  o próprio Edward apareceu, como um fantasma, mostrando  as pernas mirradas sob a camisa de dormir. Esta aparição foi tão estranha e inesperada que a Sr.a Page parou fulminada, no meio da frase. Olhou para cima. o mesmo fizeram Rees e Andrew. E o doente, arrastando a perna paralítica, veio vagarosa, dolorosamente, até o alto da escada.

       - Não posso ter sossego? - Embora agitada, a sua voz era severa. - Que há?

       Blodwen tomou fôlego, iniciou uma acusação chorosa contra Manson e concluiu:

       - E perante isto... perante isto, disse-lhe que estava despedido.

       Manson não contradisse a sua versão do caso.

       - Quer dizer que ele se vai embora? - perguntou Edward, todo trémulo pela agitação e pelo esforço de se conservar de pé.

       - Sim, Edward - choramingou. - De qualquer maneira em breve voltarás ao trabalho.

       Houve um silêncio. Edward desistiu de tudo o que queria dizer. Os seus olhos demoraram-se em Andrew numa desculpa muda, voltaram-se para Rees, passaram rapidamente  por Blodwen e repousaram tristemente no vazio.

       Uma expressão de desespero, mas também de dignidade, foi toldando o seu rosto parado.

       - Não - disse ele, afinal. - Não mais voltarei a exercer clínica.

       Nada mais disse. Voltou-se lentamente, apoiando-se na parede, e arrastou-se de novo para o quarto. A porta fechou-se em silêncio.

 

       Lembrando-se da alegria e do verdadeiro entusiasmo que o caso Morgan lhe produzira e que algumas palavras reles de Blodwen haviam transformado numa coisa sórdida,  Andrew, indignado, perguntava a si mesmo se não devia levar a questão para diante, escrever a Joe Morgan, e exigir da velha mais do que uma simples desculpa. Mas abandonou a ideia considerando-a mais digna de Blodwen do que dele. Por fim decidiu-se pela instituição de caridade  mais pobre do distrito. E, num acesso de amargura, mandou os cinco guinéus, pelo correio, ao secretário, pedindo-lhe  que remetesse o recibo a Aneurin Rees. Depois disso sentiu-se melhor. Mas gostaria de ver Rees tomar conhecimento daquele recibo.

       E então, compenetrado de que o seu trabalho ia terminar  no fim do mês, começou imediatamente a procurar outra colocação, esmiuçando as páginas de anúncios do Lancet e respondendo a todos os que pareciam aceitáveis.

       Havia muitos, na coluna de «Assistentes - Precisa-se»...

       Enviou cartas bem redigidas com cópias de todos os seus atestados e até mesmo o retrato, como era frequentemente exigido. Mas passou a primeira semana, veio a segunda, esta acabou e nada de resposta. Estava desiludido e atónito.

        Foi então que Denny lhe explicou nesta frase dura:

       - O senhor já esteve em Blaenelly...

       Andrew compreendeu afinal, numa crise de desalento, que era uma condenação estar exercendo clínica naquela cidade mineira perdida no País de Gales. Ninguém queria assistentes vindos daqueles sítios. Tinham má reputação.

       Quando expirou a primeira quinzena do prazo que marcara  para deixar o emprego, Andrew começou de facto a inquietar-se. Que havia de fazer? Ainda devia mais de cinquenta  libras à Dotação. É claro que poderia suspender esse pagamento. Mas, mesmo assim, se não encontrasse outra colocação, como iria viver? Não tinha em dinheiro mais do que duas ou três libras. Não tinha instrumental, nada possuía. Desde que viera para Blaenelly não comprara  sequer um fato, e os que havia trazido estavam bastante  coçados. Tinha momentos de verdadeiro terror quando se via mergulhado na miséria.

       Presa de dificuldades e incertezas, ansiava por Christine.

       Era inútil escrever. Não tinha talento para traduzir no papel os seus sentimentos. Tudo o que poderia escrever daria sem dúvida impressão falsa. Entretanto, ela não estaria de volta a Blaenelly antes da primeira semana de Setembro. Lançou um olhar desesperado para o calendário contando os dias que faltavam. Doze dias ainda tinham de passar. Sentiu, num crescente abatimento, que seria o mesmo se já tivessem passado, pois deles nada mais esperava.

       Na noite de 30 de Agosto, três semanas depois de ter notificado à Sr.a Page, já começava, sob o aguilhão da necessidade, a enfrentar a ideia de procurar um emprego de encarregado de dispensário. Quando caminhava, desanimado,  por Chapei Street, encontrou Denny. Haviam ficado os dois em termos da mais cerimoniosa cortesia durante as últimas semanas e Andrew estranhou quando o outro o fez parar na rua.

       Batendo o cachimbo no salto do sapato, Phillip parecia concentrar toda a sua atenção nesse cuidado.

       - Ando um pouco triste, porque o senhor se retira, Manson. O senhor há-de fazer falta aqui. - Hesitou. - Ouvi dizer hoje de tarde que a Sociedade de Auxílios Médicos de Aberalaw anda à procura de novo assistente. Aberalaw fica a trinta milhas daqui, do outro lado do vale. Comparado com o nível daqui, é uma sociedade muito decente. Suponho que o médico principal, Llewellyn, é uma pessoa capaz. E como se trata de uma cidade do vale, eles nada têm a opor a um homem do vale. Porque não experimenta?

       Andrew fitou-o, indeciso. As suas esperanças nos últimos  tempos tinham subido tão alto e caído tão desesperadamente que perdera toda a confiança na sua capacidade de êxito.

       - Bem, pode ser - concordou arrastadamente. - Se é assim, não há mal em fazer uma tentativa.

       Minutos depois já estava a caminho de casa, debaixo de um aguaceiro, para propor-se ao lugar.

       Em 6 de Setembro realizou-se uma reunião da direcção da Sociedade de Auxílios Médicos de Aberalaw, a fim de escolher o sucessor do Dr. Leslie, que se demitira recentemente para ocupar uma situação nas plantações de borracha das ilhas da Malásia. Havia sete candidatos e a todos mandaram um aviso para se apresentarem.

       Era uma linda tarde de Verão e o relógio do grande armazém da Cooperativa marcava quase quatro horas.

       Passeando para cima e para baixo na calçada dos escritórios da Sociedade, em Aberalaw Square, lançando olhares nervosos aos outros seis candidatos, Andrew esperava impacientemente a primeira badalada das quatro. Agora, que as suas ideias derrotistas não se confirmavam e que estava ali em igualdade de circunstâncias com os outros para a obtenção do lugar, desejava de todo o coração sair vitorioso. Pelo que tinha podido observar da cidade, Aberalaw  agradava-lhe. Situada na extremidade do vale de Gethly, a cidade estava mais na montanha do que no vale.

       Num plano elevado, compacta, bem maior que Blaeneily  tinha perto de vinte mil habitantes com boas ruas e casas de comércio, dois cinemas, dava ainda uma sensação de largueza pelos campos verdes que a cercavam. Comparada  com um buraco sufocante como Blaeneily, Aberalaw parecia a Andrew um paraíso.

       «Mas esse emprego não é para mim», resmungava aflito, a andar de um lado para outro. «Nunca, nunca. Não teria tanta sorte!» Todos os outros candidatos tinham ar mais triunfante do que ele, melhor apresentação, tom mais confiante.

       O Dr. Edwards, especialmente, irradiava segurança. Andrew  surpreendeu-se a odiar Edwards, um homem maduro, robusto, próspero, que um momento antes confessara abertamente,  numa conversa colectiva à porta do escritório da Sociedade, que passara a sua própria clínica no vale a fim de concorrer àquele lugar. «Diabo que o carregue»,  praguejava Andrew intimamente. «Ele não iria desfazer-se de uma situação segura se não tivesse a certeza de conseguir  esta aqui!».

       Acima e abaixo, de um lado para outro, cabeça baixa, mãos enterradas nos bolsos, Andrew atormentava-se. Se fracassasse, que pensaria dele Christine? Ela devia voltar a Blaenelly naquele dia ou no seguinte. Na carta que lhe escrevera não dera a certeza. A escola de Bank Street reabria na segunda-feira e, embora ele nada lhe tivesse escrito a respeito do que ia tentar, o fracasso significaria encontrá-la bem triste, ou pior ainda, com uma animação postiça. E isso exactamente quando ele queria, acima de tudo no mundo, dispô-la bem, conquistar o seu sorriso sereno, franco, inspirador.

       Quatro horas da tarde, finalmente. Quando se encaminhou  para a entrada do edifício, uma linda limousine entrou silenciosamente na praça e parou diante dos escritórios  da Sociedade. Dela saiu um homem baixinho e esperto, a sorrir aos candidatos, animado, afável, mas com certo ar de indiferença superior. Antes de subir as escadas reconheceu Edwards e cumprimentou-o:

       - Como vai, Edwards? - Em voz baixa, só para ele: - «Suponho que tudo correrá bem».

       - Obrigado. Desde já muito obrigado, Dr. Llewellyn - sussurrou  Edwards numa deferência exagerada.

       «Pronto», disse Andrew para si mesmo, com azedume.

       No andar de cima, no fim de um pequeno corredor, que dava para a sala da direcção, estava a saleta de espera, mal mobilada, com cheiro a bafio. Andrew foi o terceiro a ser ouvido. Entrou na grande sala da direcção com uma disposição nervosa, aborrecida. Se o lugar já estava previamente  concedido não ia adular alguém inutilmente.

       Ofereceram-lhe uma cadeira e ele sentou-se sem deixar transparecer na fisionomia o que lhe ia no Intimo. Enchiam  a sala cerca de trinta mineiros, sentados, todos a fumar. olhando-o com uma curiosidade rude, mas sem hostilidade. Junto de uma mesinha, num canto, via-se um homem pálido e tranquilo, de cara inteligente e sensível que, a julgar pela pele manchada, parecia já ter sido mineiro. Era Owen, o secretário. Recostado a um canto da mesa, o Dr. Llewellyn sorria acolhedoramente a Andrew.

       A inquirição começou. com voz tranquila, Owen explicou  as condições do cargo.

       - É como o senhor vê, doutor. Pelo nosso sistema os operários de Aberalaw pagam à Sociedade uma certa quantia,  que é descontada nos seus salários semanais. Existem aqui no distrito duas minas de antracite, uma fundição e uma hulheira. com o dinheiro de todos esses trabalhadores,  a Sociedade custeia os serviços médicos necessários e mantém um bom hospitalzinho, dispensários, fornece remédios, etc. A Sociedade contrata os médicos: o Dr. Llewellyn,  chefe da clínica e cirurgia, quatro assistentes e um dentista. Estes recebem um tanto por cabeça, de acordo com o número de homens inscritos nas suas listas. Creio que o Dr. Leslie estava fazendo umas quinhentas libras por ano quando nos deixou. - Fez uma pausa. - Nós todos achamos que o sistema é bom. - Houve um murmúrio de aprovação vindo dos trinta membros da direcção. Owen levantou a cabeça e encarou-os. - E agora, meus senhores, têm alguma pergunta a fazer?

       Começou um dilúvio de perguntas sobre Andrew, que tentou responder calmamente, sem exagero, com sinceridade.

       Marcou um tento de certa vez.

       - Fala o dialecto de Gales, doutor? - Quem perguntou foi um mineiro, jovem e teimoso, chamado Chenkin.

       - Não - disse Andrew. - O que conheço desde criança é o dialecto da Alta Escócia.

       - Que interesse tem isso aqui?

       - Sempre interessa. É muito útil para praguejar contra os meus doentes - disse Andrew com frieza.

       E toda a gente se riu à custa de Chenkin.

       A penitência acabou finalmente.

       - Agradeço-lhe muito, Dr. Manson - disse Owen.

       E Andrew voltou à saleta bolorenta, com ar de enjoado, e pôs-se a observar os outros candidatos que iam entrando.

       Edwards, o último chamado, demorou-se muito tempo.

       Voltou com um sorriso aberto, e o seu olhar só faltava dizer: «Sinto muito, companheiros, mas o lugar já aqui canta no bolso».

       Seguiu-se uma interminável espera. Finalmente abriu-se a porta da sala da direcção e de uma nuvem de fumo emergiu o secretário Owen, com um papel na mão. Os seus olhos, como se procurassem alguém pousaram finalmente em Andrew, com real simpatia.

       - Quer vir aqui por um momento, Dr. Manson? A direcção  gostaria de o ouvir outra vez.

       Com os lábios brancos, o coração a saltar no peito, Andrew seguiu o secretário até à sala da direcção. Não podia acreditar, não, não podiam estar interessados nele.

       Voltando à cadeira da penitência, só encontrou sorrisos e cabeças que se inclinavam animadamente para o seu lado. O Dr. Llewellyn, entretanto, não olhava para ele, Owen, o orador da reunião, começou:

       - Dr. Manson, sejamos francos. A direcção tem uma certa dúvida. Na verdade, por conselho do Dr. Llewellyn, a direcção estava muito inclinada a favor de outro candidato que possui uma grande experiência de clínica no vale Gethly.

       - É demasiadamente gordo esse tal Edwards - interrompeu um membro da direcção, grisalho, lá do fundo. - Eu queria ver esse gordalhufo trepar até às casas do morro Mardy.

       Andrew estava demasiadamente preocupado para sorrir.

       Sem respirar, estava suspenso das palavras de Owen.

       - Mas - prosseguiu o secretário - devo dizer que os presentes ficaram muito bem impressionados com o doutor. - A direcção, como ainda há pouco se expressou poeticamente  o Tom Kettles, quer homens novos e activos!

       Gargalhadas, gritos de «Silêncio! Silêncio!» e «É bom este velho Tom.

       - Além disso, Dr. Manson - continuou Owen, - devo confessar-lhe que a direcção ficou muito bem impressionada com duas referências, devo esclarecer duas referências não solicitadas pelo doutor, o que ainda as torna mais valiosas aos olhos da direcção. Só chegaram às nossas mãos hoje de manhã, pelo correio. São de dois médicos da sua própria cidade, isto é, de Blaenelly. Uma é do Dr. Denny, que tem o M. S.(*), um título muito importante, como reconhece o próprio Dr. Llewellyn, entendido  na matéria. A outra, que veio com a do Dr. Denny, é assinada pelo Dr. Page, de quem penso que o senhor é agora assistente. Bem, Dr. Manson, a direcção tem bastante experiência de recomendações. E estas duas a seu favor estão redigidas em termos tão sinceros que a direcção ficou muito impressionada.

      

(*) M. S. - Master In Surgery. (N. do T.)

       

       Andrew mordeu os lábios e baixou os olhos, comovido com a iniciativa generosa de Denny.

       - Só há uma dificuldade, Dr. Manson. - Owen parou meio embaraçado, brincando com a régua na mesa. - Embora  a direcção esteja unanimemente inclinada em seu favor, esse emprego com as suas responsabilidades... é mais ou menos emprego para homem casado. O senhor compreende: além de os homens preferirem que seja um médico casado que atenda as suas famílias, existe ainda uma casa, Vale View, aliás uma boa casa, reservada para o médico. Ela não seria... sim, não seria muito própria para um homem solteiro.

       Um silêncio sepulcral. Andrew respirou profundamente.

       No seu pensamento fixou-se uma luz muito clara e brilhante, a imagem de Christine. Estavam todos, mesmo o Dr. Llewellyn, com os olhos voltados para ele, aguardando a resposta. Sem raciocinar, as palavras vieram-lhe aos  lábios espontaneamente. Ouviu-se a si mesmo a declarar calmamente:

       - Para usar de franqueza, senhores, estou noivo de uma jovem em Blaenelly. Eu estava... estava mesmo à espera de uma colocação satisfatória... para isso... para me casar!

       Owen bateu com a régua na mesa em sinal de satisfação.

       Todos aprovaram manifestando-se ruidosamente com os sapatões pesados. E o irreprimível Kettles exclamou: :

       - Bravo, meu rapaz! Aberalaw é um lugarzinho ideal para lua-de-mel! Verifico então que todos os senhores estão de acordo. - A voz de Owen sobressaiu no rumor geral. - O Dr. Manson  foi nomeado por unanimidade.

       Houve um cordial murmúrio de assentimento. Andrew sentiu uma sensação de triunfo.

       - Quando começa, Dr. Manson? A opinião da direcção é que seja o mais depressa possível.

       - Poderei começar na próxima semana - respondeu Manson. Mas logo arrefeceu ao pensar: «E se Christine não me quiser? Perco-a e perco com ela este emprego estupendo?

       - Está combinado, então. Obrigado, Dr. Manson. Estou certo de que a direcção lhe deseja... e também à futura Sr.a Manson, é claro... o maior sucesso no seu novo lugar.

       Aplausos. Todos agora o felicitavam. Os membros da direcção, Llewellyn, e, com um cordial abraço, Owen. Ao retirar-se atravessou a saleta de espera procurando ocultar o seu contentamento, esforçando-se por não notar a expressão ainda incrédula, mas de crista caída, de Edwards Mas era em vão, absolutamente em vão. Quando atravessava a praça, no caminho da estação, a alma exultava no frémito da vitória. O passo era firme e ágil. Ao descer a colina, viu à direita um pequeno jardim público, todo verde, com um repuxo e um coreto. E o único esboço de paisagem que havia em Blaenelly eram montículos de escórias de minério. Que bom também aquele cinema ali em frente. E grandes lojas e as ruas bem calcetadas. Não eram aquelas pedras lascadas da sua cidade. E Owen também  não tinha dito qualquer coisa sobre um hospital, um bom hospitalzinho? Ah! Pensando no que o hospital significaria  para o seu trabalho, Andrew soltou um longo suspiro de satisfação. Refastelou-se no banco de um compartimento vazio do comboio de Cardiff que o levou num delírio de entusiasmo.

 

       Embora a distância através das montanhas não fosse grande, a viagem por caminho de ferro de Aberalaw a Blaenelly era cheia de voltas. O comboio que levava Andrew  parava em todas as estações; o de Penelly, que tomou depois do transbordo em Cardiff, não andava depressa, não tinha mesmo pressa alguma. A disposição de Manson era agora bem diferente. Afundado num banco, ardendo de impaciência, doido por chegar, era atormentado pelos próprios pensamentos.

       Viu pela primeira vez como tinha sido egoísta nos últimos  meses olhando só ao próprio interesse. Todas as suas dúvidas sobre o casamento, todas as suas hesitações em falar a Christine tinham girado unicamente em torno dos sentimentos dele, Manson. Baseavam-se na convicção de que ela o aceitaria. Mas se estivesse a laborar num erro?

       Se ela não o amasse? Viu-se rejeitado, a escrever com desalento uma carta à direcção para explicar que, «devido a circunstâncias posteriores, alheias à sua vontade», não podia assumir o cargo. Christine estava agora bem nítida «diante dos seus olhos. Como ele lhe conhecia o ligeiro sorriso interrogador, o modo de apoiar o queixo na mão, uma serena candura nos olhos castanhos. Uma saudade pungente dominou-o. Christine querida! Se tivesse de a perder, nada mais lhe importaria...

       Às nove horas, como que arrastando-se, o comboio chegou finalmente a Blaenelly. De um salto Andrew já estava na plataforma e num abrir e fechar de olhos encontrou-se a subir Station Road. Embora só esperasse Christine na manhã seguinte, sempre havia uma possibilidade de já ali a encontrar. Chegou a Chapei Street. Dobrou a esquina.

       Uma luz no quarto dela encheu de esperança o seu coração.

       Procurando acalmar-se, explicava a si mesmo que naturalmente era a dona da casa que arrumava o quarto.

       Entrando apressadamente, precipitou-se na salinha de espera.

       Sim! Era Christine ajoelhada a um canto, no meio de livros, a arrumá-los na prateleira mais baixa da estante, Terminando a arrumação, começou a apanhar cordéis e papéis espalhados no soalho. A mala e o casaquinho estavam  numa cadeira, com o chapéu em cima. Percebeu que devia ter chegado há pouco.

       - Christine!

       Ela virou-se, ainda ajoelhada, com uma mecha de cabelo caído sobre a testa. Soltou um grito de surpresa e prazer e levantou-se.

       - Andrew! Que bom o senhor aparecer!

       Ao seu encontro, radiante, ela estendeu-lhe uma das mãos. Mas Andrew segurou-lhe logo as duas mãos, prendendo-as com firmeza. Olhou-a enternecido. Ainda gostava  mais dela: com aquela saia e aquela blusa. Como que  acentuavam a sua delicadeza, a doçura da sua mocidade.

       O coração de Manson batia de novo.

       - Chris! Tenho uma coisa para lhe dizer.

       Os olhos dela fixaram-no com ar preocupado. Já ansiosa examinou Andrew, muito pálido e fatigado pela viagem Perguntou, aflita:

       - Que aconteceu? Uma nova questão com a Sr.a Page? Vai-se embora daqui?

       Andrew fez um sinal negativo com a cabeça, prendendo ainda mais nas suas as delicadas mãos de Christine. E então,  num rompante, desabafou:

       - Christine! Consegui um emprego, e que emprego!... É em Aberalaw. Entendi-me hoje com a direcção. Quinhentas libras por ano e casa para morar. Uma casa, Christine! Oh! Christine... Pode... quer casar comigo?

       Ela empalideceu, e na sua palidez os olhos brilhavam. Com a respiração suspensa, respondeu num murmúrio:

       - E eu pensava... eu pensava que me vinha dar más notícias.

       - Não, não. - E impulsivamente: - É a mais maravilhosa das notícias, minha querida. Acabo de ver a cidade. Tudo aberto e claro, com campos verdes e lojas bonitas e um jardim público e... Christine! Até um hospital! Se quer casar comigo podemos começar a nossa vida lá sem mais demora.

       Os seus lábios tremeram. Mas os olhos sorriam, sorriam para ele com brilho estranho.

       - É por causa de Aberalaw ou por minha causa?

       - É por si, Chris. Oh! Já sabe que gosto de si, mas... enfim... pode não me querer...

       Ela quis dizer qualquer coisa que não lhe saiu da garganta.

       Chegou-se tanto que a cabeça ficou mergulhada no peito de Andrew. E quando os braços dele a enlaçaram, pronunciava frases soltas:

       - Oh! Querido, meu amor, gostei de si desde... - e sorrindo entre lágrimas felizes - desde que entrou naquela triste sala de aula.

 

       O decrépito camião de Gwilliam John chocalhava e fumegava pela estrada da montanha. Na parte de trás um velho oleado, que cobria as pranchas desmanteladas, a chapa de matrícula enferrujada e a lanterna sempre apagada, pendia para fora, deixando marcas na poeira da estrada. Tudo balançava e rangia ao ritmo do velho motor.

       E na frente, no banco do condutor, apertados alegremente com Gwilliam John, iam o Dr. Manson e a esposa.

       Haviam casado de manhã. Aquela era a carruagem nupcial. Sob o oleado estavam as poucas peças da mobília de Christine, uma mesa de cozinha comprada em segunda mão por vinte xelins, algumas panelas e caçarolas novas e a bagagem do casal. Sem pretensões, decidiram que a melhor maneira, a mais barata, de transportar para Aberalaw  a «enorme» quantidade das suas riquezas e as respectivas  pessoas era a lata velha de Gwilliam John.

       O dia estava bonito, o céu muito azul e corria uma leve brisa. Riam e chalaceavam com Gwilliam John, que os obsequiava de vez em quando com a interpretação, à sua maneira, do Largo de Haendel na buzina do camião.

       Pararam numa vendazinha isolada de Ruthin Pass, no alto da montanha, para que Gwilliam bebesse uma cerveja  à saúde deles. Gwilliam John, um sujeito vesgo e meio desmiolado, brindou-os várias vezes e depois bebeu um gole de gin por sua própria conta. Dali em diante, a viagem foi realmente diabólica, numa descida vertiginosa, com duas curvas apertadíssimas a ladear perigosos precipícios.

       Afinal, galgaram a última subida da estrada e ao descer entraram em Aberalaw. Foi um momento de êxtase. A cidade  estendia-se diante dos seus olhos, com as longas e ondulantes linhas dos telhados subindo e descendo pelo vale, com as lojas, igrejas e escritórios acastelados na parte alta e, em baixo, as minas e os trabalhos de mineração, as chaminés fumegando sem parar e tudo, tudo brilhando ao sol do meio-dia.

       - Olha, Chris! Olha! - murmurava Andrew, apertando-lhe  o braço com força. Estava possuído de todo o alvoroço  do cicerone. - É um sítio bonito, não é? Aquilo ali é a praça. Nós viemos pela parte de trás da cidade. E olha! Não há candeeiros de azeite, minha querida. Ali é a fábrica de gás. Gostava de saber onde fica a nossa casa.

       Perguntaram a um mineiro que passava e logo seguiram na direcção de Vale View, que ficava, como o homem informou, naquela mesma rua, à entrada da cidade. Num instante chegaram lá.

       - Pronto! - disse Christine. - fi... é bonitinha.

       - Pois é, querida. Parece... Sim, parece uma casa adorável.

       - Deus do Céu! - manifestou-se Gwilliam John, atirando o boné para a nuca. - Que casarão de aspecto estranho. 

       Vale View era, na verdade, um edifício extraordinário.  A primeira vista parecia uma coisa assim entre um chalé suíço e um pavilhão de caça escocês, com uma profusão de platibandas. A construção era de estilo rústico, no centro de um jardim maltratado, invadido por ortigas e ervas daninhas. Cortava o terreno um fio de água que ia esbarrando num tropel de latas velhas até que, no meio do seu curso, era atravessado por uma ponte rústica desmantelada. Embora ainda não tivessem consciência disso, Vale View era para Andrew e Christine a primeira manifestação dos diversos poderes, da multiforme sabedoria da direcção, que, no próspero ano de 1919, quando as contribuições estavam em maré alta, anunciou generosamente que queria construir uma casa, mas uma casa de facto bonita que fizesse honra à direcção, uma casa de estilo, um primor de arquitectura. Todos os membros da direcção tinham uma ideia própria e especial sobre o que podia ser um primor de arquitectura. Havia trinta membros. O resultado  foi Vale View.

       Entretanto, fosse qual fosse a impressão do exterior, o certo é que eles se sentiram logo confortados quando entraram.

       A casa era sólida, bem assoalhada, forrada de novo a papel. Mas o número de divisões era alarmante. Compreenderam  imediatamente, embora não trocassem uma palavra sobre o assunto, que as poucas peças do mobiliário de Christine só poderiam guarnecer, quando muito, dois desses amplos aposentos.

       - Deixa-me ver, querido - disse Chris, contando pelos dedos, quando voltaram ao hall, depois da primeira inspecção esbaforida da casa. - Aqui em baixo faço a sala de jantar, a sala de visitas, a biblioteca, ou então um escritório, ou seja lá como tu lhe queiras chamar... E ficam cinco quartos de dormir em cima.

       - Está bem - Andrew sorriu. - Agora não me admiro que eles quisessem um homem casado. - O sorriso transformou-se  numa expressão compungida. - Sinceramente, Chris, sinto-me envergonhado com isso tudo. Eu, sem um traste que me pertença, a usar os teus lindos móveis. É como se eu estivesse a explorar-te como um parasita, achando que tudo assim está muito bem e arrastando-te para aqui de um momento para outro, sem quase te dar tempo para encontrares alguém que te substituísse na escola. Sou um animal muito egoísta. Devia ter vindo aqui primeiro e arranjado as coisas decentemente para quando chegasses.

       - Andrew Manson! Se ousasses deixar-me em segundo plano...

       - De qualquer modo vou tratar de arranjar isto. - E franziu a testa, obstinado. - Agora ouve, Chris...

       Ela interrompeu-o com um sorriso.

       - Acho, querido, que devo ir fazer-te quanto antes uma omelette. Uma omelette de acordo com as Indicações de Madame Poulard. Pelo menos, a noção de omelette que consta do meu livro de receitas.

       Interrompido logo no começo, Andrew ficou a olhar para Chris, boquiaberto. Então a ruga da testa foi-se desvanecendo.

       Sorrindo de novo, acompanhou-a até à cozinha.

       Não se conformava com ficar longe dela. Sob os seus passos, a casa vazia ressoava como uma catedral.

       A omelette - Gwilliam John fora mandado buscar ovos -  saiu da frigideira bem quentinha, saborosa, de um amarelo delicado. Comeram sentados à beira da mesa da cozinha.

       Andrew exclamou com entusiasmo:

       - Apre! Cozinhas bem! O calendário que eles deixaram ali não está mau. Enfeita bem a parede. E gosto do cromo, destas rosas. Ainda sobrou omelette? Quem é Poulard? Parece nome de galinha. Obrigado, querida. Nem sabes como estou ansioso por começar a trabalhar. Deve haver boas oportunidades. Grandes oportunidades! - Calou-se de repente, pousando os olhos numa caixa de madeira envernizada que estava no canto, ao lado da bagagem. - Chris, que é aquilo?

       - Oh, aquilo - Ela procurou dar à voz um tom despreocupado. - Aquilo é o presente de casamento do Denny.

       - Denny!

       A fisionomia de Andrew mudou. Phillip mostrara-se frio e ausente quando Manson o fora procurar para lhe agradecer a sua generosa acção no caso do novo emprego e para lhe anunciar o seu matrimónio com Christine.

        Naquela manhã nem mesmo assistira à partida do casal. Isso magoara Manson, fizera-o sentir que Denny era demasiadamente complicado, estranhamente incompreensível para continuar seu amigo. Andrew aproximou-se vagarosamente da caixa, um tanto desconfiado. Imaginou que talvez houvesse lá dentro uma botinha velha. Essa devia ser a ideia que Phillip tinha do humorismo. Abriu a caixa. Que surpresa deliciosa! Continha o microscópio de Denny, um precioso Zeiss, e este bilhete: «Eu de facto não preciso disto. Já lhe disse que sou um serrador de ossos, um carniceiro. Felicidades».

       Andrew não encontrou palavras. Pensativo, quase reconquistado,  terminou a omelette, sempre com os olhos fixos no microscópio. Depois tomou-o com reverência e, acompanhado por Christine, carregou-o para a sala que ficava atrás da casa de jantar. Colocou o microscópio solenemente  no chão, no centro da sala vazia.

       - Isto aqui não é a biblioteca, Chris, nem a sala de almoço, nem o escritório, nem nada disso. Graças ao nosso bom amigo Phillip Denny baptizo-o agora: «o Laboratório».

       Andrew beijava Christine, para dar mais efeito à cerimónia,  quando o telefone tocou. O som insistente que vinha  do hall vazio causou-lhes espanto. Olharam um para o outro, interrogando-se alvoroçados.

       - Talvez seja um doente, Chris! Imagina só! O meu primeiro caso em Aberalaw. - E precipitou-se para o hall.

       Não era um doente. Era o Dr. Llewellyn, que de sua casa, no outro extremo da cidade, lhes dava as boas-vindas.

       A sua voz vinha pelo fio tão clara e afável que Chris, nas pontas dos pés, com a cabeça encostada ao ombro de Andrew,  podia ouvir perfeitamente a conversa.

       - Olá, Manson! Como vai? Não se preocupe por enquanto,  desta vez ainda não é trabalho. Pretendo apenas ser o primeiro a desejar-lhe as boas vindas, e à sua esposa, a Aberalaw.

       - Muito obrigado, muito obrigado, Dr. Llewellyn. É muito gentil da sua parte. Mas ainda que seja trabalho, estou pronto.

       - Não, não! Não pense nisso antes de estar bem instalado. - Llewellyn expandiu-se. - E olhe, se nada tem para fazer hoje à noite, venha jantar connosco, o doutor e a sua senhora. Nada de cerimónias. Às sete e meia. Teremos muito prazer em vê-los. Poderemos conversar. Está combinado?

       - Até logo.

       Andrew pendurou o auscultador com uma expressão feliz.

       - Foi um gesto amável, não achas, Chris? Convidar-nos desta maneira! É o médico-chefe, nota. Um homem de muitos títulos, posso garantir. Tirei informações dele. Praticou  em hospitais de Londres, é do D. P. H.(1), tem o M. D.(2) e o P. R. C. S.(3). Calcula! Todos esses títulos são de primeira ordem. E mostra-se tão amável. Creia-me, Sr.a Manson, vamos ter muito sucesso aqui.

      

(1) D. P. H. - Abreviatura por que é geralmente conhecido na Inglaterra  o Departament of Public Healt, isto é, o Departamento da Saúde Pública.  (N. do T.)

(2) M. D. - Abreviatura de Doctor of Medicine. O titulo de doutor em Medicina só é conquistado pelos médicos ingleses depois da apresentação de teses julgadas pelas congregações das universidades.  O médico, ao sair da faculdade, tem apenas o titulo de Bachelor of Medicine, ou bacharel em Medicina. (N. do T.)

(3) Os títulos médicos e científicos na Inglaterra são conhecidos geralmente pelas iniciais. P. R. C. S. significa Fellow of the Royal College of Surgeons, é um dos mais importantes títulos para cirurgião, escala superior ao de M. R. C. S., Isto é, «Member of the Royal College of Surgeons».  (N. do T.)

      

       Enlaçando-a pela cintura, Andrew começou triunfantemente  a valsar com Christine em torno da sala.

       Naquela noite, às sete horas, atravessaram as ruas movimentadas e cheias de vida, na direcção da residência do Dr. Llewellyn a Vila Glynmawr. Foi um passeio agradável.

        Andrew passava revista, com entusiasmo, à gente com quem ia viver.

       - Vês, Christine, aquele homem que lá vem! Depressa! Aquele homem que está ali a tossir.

       - Sim, querido... Mas que tem ele?...

       - Oh! Nada, - disse - Ele com displicência. Apenas, é bem provável que seja um futuro cliente.

 

       Não tiveram dificuldade em encontrar Glynmawr uma sólida vivenda dentro de um terreno bem tratado pois o belo automóvel de Llewellyn estava do lado de fora e no portão de ferro batido via-se a placa reluzente do médico, com todos os seus títulos gravados em pequeninas letras brancas. Subitamente nervosos com tanto aparato, tocaram  a campainha e apresentaram-se, O Dr. Llewellyn veio da sala de espera para recebê-los mais gentil do que nunca, de sobrecasaca e a camisa engomada  com botões de punho de ouro. A expressão exprimia cordialidade.

       - Entrem, entrem! Esplêndido! Encantado por conhecê-la,  Sr.a Manson. Espero que goste de Aberalaw. A cidade não é má, posso garantir-lhe. Venha para aqui. Minha mulher vem num instante.

       A Sr.a Llewellyn veio a seguir, tão acolhedora como o marido. Era uma mulher de cabelos arruivados, de cerca de quarenta e cinco anos, um tanto descorada e sardenta.

       Depois de cumprimentar Manson, voltou-se para Christine com expansões afectuosas.

       - Oh! Minha senhora, que pedacinho adorável que é! Declaro-lhe que já me conquistou o coração. Tenho vontade  de a beijar. Não se incomoda, querida?

       Sem mais delongas abraçou Christine e pôs-se a examiná-la  com encantamento. Um gongo soou no fundo do corredor e foram jantar.

       Foi um jantar excelente - sopa de tomate, dois assados com recheio, salsichas e pudim. O doutor e a Sr.a Llewellyn desfaziam-se em atenções com os convidados.

       - O senhor não tardará muito a integrar-se no ambiente - daqui dizia Llewellyn. - Sim, sem dúvida. Eu o ajudarei em tudo que puder. A propósito, fiquei satisfeito porque esse tal Edwards não conseguiu o lugar. Eu não podia de forma alguma apoiar a sua pretensão, embora tivesse prometido dizer qualquer coisa em seu favor. Que estava eu a dizer? Ah, sim! Bem, ficará na clínica Oeste... é lá para os seus lados... com o velho Dr. Urquhart, um camaradão, e Gudge, o farmacêutico. No lado de cá, na clínica Leste, temos o Dr. Mendley e o Dr. Oxborrow. São todos bons companheiros. Há-de gostar deles. Não joga o golf? Podemos ir algumas vezes a Fernley Course. Fica apenas a nove milhas daqui. Naturalmente, tenho sempre muito que fazer. Sim, é claro. Não me ocupo pessoalmente das clínicas. Cuido do hospital. Trato dos casos de acidentes  de trabalho para a Companhia. Sou o médico oficial da cidade, tenho o meu cargo na fábrica de gás. Sou o cirurgião da Santa Casa e também chefe do serviço de vacinações. Faço todas as peritagens em casos judiciários. Ah! e sou o médico legista também. Além disso - os seus olhos brilharam sem malícia - também atendo, nas horas vagas, uma clínica particular bem boazinha.

       - É muita coisa - disse Manson.

       Llewellyn iluminou-se.

       - Devemos combinar os nossos esforços, Dr. Manson. Aquele carrinho que viu lá fora custa a bagatela de mil e duzentas libras. E quanto ao... bem, isso não vem para o caso. Não vejo motivo para que o senhor não tire uma boa renda aqui. Vamos dizer... Umas trezentas ou quatrocentas libras, por sua conta, se trabalhar com vontade e souber aproveitar. - Fez uma pausa. E numa sinceridade irritada: - Há uma coisa que acho do meu dever explicar-lhe. Os médicos assistentes combinaram pagar-me um quinto dos seus honorários. - E continuou animada, inocentemente: - Isso é porque eu tomo conta dos casos mais bicudos. Quando se vêem atrapalhados, recorrem a mim. E posso garantir-lhe que isso tem sido bom para eles.

       Andrew levantou os olhos, um pouco surpreendido.

       - Isso não consta da organização dos Auxílios Médicos. 

       - Bem, de modo formal não entra - disse Llewelly, franzindo a testa. - Foi tudo arranjado pelos próprios médicos já há muito tempo.

       - Mas...

       - Dr. Manson! - a Sr.a Llewellyn chamou-o suavemente da outra ponta da mesa. - Estou a dizer à sua querida mulherzinha que nos devemos encontrar com frequência. Ela deve vir tomar chá comigo uma tarde destas. O doutor pode ceder-ma algumas vezes, não é verdade? Qualquer dia iremos a Cardiff de automóvel. Vai ser agradável, não vai, minha querida?

       - Sem dúvida - prosseguiu Llewellyn untuosamente - quem estava no lugar onde o senhor vai mostrar quanto vale era um pobre diabo... Leslie, seu antecessor, era um médico lastimável, quase tão ruim como o velho Edwards. Nem ao menos sabia aplicar bem um anestésico. Espero, doutor, que seja um bom anestesista. Quando tenho em mãos um caso importante, compreende, preciso de contar com um bom anestesista. Mas, valha-me Deus! Não vamos falar nisso por enquanto. O senhor mal chegou ainda e não é justo que eu o incomode.

       - Idris! - gritou a Sr.a Llewellyn para o marido, com ar de quem dá uma notícia sensacional. - Eles só se casaram hoje de manhã! A Sr.a Manson acabou de me explicar. Ela é uma noivinha! Calcula! Os inocentinhos!

       - Muito bem! Muito bem! - expandiu-se Llewellyn.

       A Sr.a Llewellyn bateu na mão de Christine:

       - Minha pobre pequena! Que trabalheira vai ter até se instalar naquele lastimável Vale View! Preciso de ir lá, um dia destes, para lhe dar uma ajudazinha.

       Manson corou ligeiramente, procurando coordenar as ideias. Parecia-lhe que ele e Christine se tinham tornado numa bola de brinquedo que os Llewellyn atiravam um para o outro, com destreza e facilidade. Contudo, julgou propícia a última observação.

       - Dr. Llewellyn - decidiu-se a dizer, meio nervoso - a sua senhora tem razão. Estive a pensar... Não gosto de pedir isso, mas eu gostaria de passar dois dias fora, para levar minha mulher a Londres, a fim de ver essa história da mobília e mais uma ou outra coisa.

       Viu Christine arregalar os olhos, surpreendida. Mas Llewellyn estava já concordando generosamente com a cabeça.

       - Porque não? Porque não? Depois de começar o trabalho  não lhe será tão fácil afastar-se daqui... Aproveite amanhã e depois, Dr. Manson. Está a ver? É nessas coisas que eu lhe posso ser útil. Aliás, eu sou sempre útil para os assistentes. Eu falarei à direcção sobre o seu pedido.

       Andrew não teria dúvidas em falar pessoalmente à direcção, ou mesmo a Owen. Mas deixou passar.

       Beberam o café na sala de visitas, como acentuou a Sr.a Llewellyn, em xícaras «pintadas à mão». Llewellyn ofereceu cigarros da sua cigarreira de ouro.

       - Olhe para isto, doutor! É um presente, repare. Um cliente agradecido. Pesada, não é? Vale no mínimo umas vinte libras.

       Por volta das dez horas, o Dr. Llewellyn olhou para o seu magnífico relógio. Na verdade, sorriu para o relógio, pois ele tinha o mérito de contemplar até mesmo objectos  inanimados, especialmente quando lhe pertenciam, com aquela cordialidade meiga que era tão sua. Por um momento Manson pensou que ele iria entrar em confidências sobre o relógio. Mas Llewellyn disse apenas:

       - Tenho de ir ao hospital. Uma operação gastroduodenal  que fiz esta manhã. Que lhe parece ir comigo de automóvel para ver o caso?

       Andrew levantou-se animado.

       - Pois não. Com o maior prazer, Dr. Llewellyn.

       Como Christine foi também incluída no convite, desejaram  as boas noites à Sr.a Llewellyn, que da porta da rua acenava ternas despedidas, e instalaram-se no carro, que seguiu com silenciosa elegância pela rua principal, virando depois à esquerda.

       - Faróis poderosos, não é verdade? - comentou Llewellyn. Foi acendendo-os para causar impressão. - Luxite! Especiais! São extra. Mandei pô-los de encomenda.

       - Luxite! - disse Christine subitamente, numa voz melíflua. - São com certeza muito caros, não são, doutor?

       - São de facto! - confirmou Llewellyn, enfaticamente, grato pela pergunta. - Custaram-me trinta libras.

       Metido em si mesmo, Andrew não ousava trocar olhares com Christine.

       - Cá estamos - disse Llewellyn, minutos mais tarde. - Isto aqui é o meu lar espiritual.

       O hospital era um edifício de tijolos vermelhos, bem construído, ao qual levava um caminho de saibro, ladeado de loureiros. Desde a entrada, começaram a brilhar os olhos de Andrew. Embora pequeno, o hospital era moderno, com óptima aparelhagem. Quando Llewellyn lhes foi mostrando  o anfiteatro, a sala de raios X, a dos curativos, as duas enfermarias confortáveis e arejadas, Andrew pôs-se a pensar entusiasticamente que tudo era perfeito... e tão diferente de Blaenelly! Como seria bom tratar ali os seus doentes!

       No decorrer da visita, encontraram a enfermeira-chefe, uma mulher alta e ossuda, que ignorou Christine, cumprimentou  Andrew sem entusiasmo e logo se pôs em adoração diante de Llewellyn.

       - Conseguimos tudo com a maior facilidade, não é verdade,  enfermeira? - disse Llewellyn. - É só pedir à direcção. Sim, com efeito, é boa gente. Todos são decentes sem excepção. Como vai a minha gastroenterostomia, enfermeira?

       - Vai muito bem, Dr. Llewellyn - murmurou a chefe das enfermeiras.

       - Bem! Verei isso daqui a pouco.

       E acompanhou Christine e Andrew, de volta ao vestíbulo.

       - Confesso, Manson. Tenho certo orgulho neste hospital. É como se fosse meu. E ninguém me pode censurar Por isso. o senhor saberá o caminho para sua casa? E, ouça, quando estiver de volta, na quarta-feira, telefone-me. Eu posso precisar de si para uma anestesia.

       Abandonando o hospital a caminho de casa, os dois ficaram em silêncio por um momento e Christine pendurou-se  no braço de Andrew.

       - E então? - indagou ela.

       Andrew percebeu o seu sorriso no escuro.

       - Gostei dele - disse apressadamente. - Gostei dele. Reparaste também na enfermeira? Como se fosse beijar a fímbria do seu manto... Mas, que hospitalzinho! Que maravilha! E também que rico jantar nos deram! Não são miseráveis... Só o que não percebo é porque lhe hei-de pagar um quinto dos meus honorários! Isso não me parece justo, nem mesmo decente! E, seja como for, tenho a impressão de ser amimado e festejado com a condição de proceder como um bom menino.

       - Foste realmente um menino encantador por teres pedido esses dois dias. Mas, com franqueza, meu querido, como é que vamos fazer? Não temos dinheiro para gastar em móveis. Como vai ser?

       - Espera e verás - respondeu ele enigmaticamente.

       As luzes da cidade já lhes ficavam para trás e um misterioso  silêncio caiu sobre eles quando se aproximaram de Vale View. O contacto da mão dela no braço de Andrew era uma delícia. Envolveu-o uma grande onda de amor.

       Pensou nela, casando-se tão precipitadamente num vilarejo mineiro, conduzida num camião desconjuntado através das montanhas, atirada para uma casa meio vazia, onde a caminha dela de solteira tinha de ser o leito nupcial, e suportando todas essas provações e embaraços com coragem e risonha ternura. Ela amava-o, tinha fé e confiança nele. Uma grande resolução o dominou. Havia de a recompensar  de tudo isso, havia de lhe mostrar, pelo trabalho, que a confiança era merecida.

       Atravessou a ponte de madeira. O murmúrio do ribeiro, com as suas margens mal tratadas ocultas na suave escuridão da noite, era doce aos seus ouvidos. Manson tirou a chave do bolso e enfiou-a na fechadura.

       O hall estava na penumbra. Quando fechou a porta, Andrew voltou-se para onde ela estava à sua espera. A fisionomia  de Christine parecia iluminada. A sua ligeira figura era expectante, mas indefesa.

       Andrew pôs os braços em torno dela, gentilmente, murmurou num tom estranho:

       - Como te chamas, querida?

       - Christine - respondeu ela, espantada.

       - Christine de quê?

       - Christine Manson.

       A respiração dela era opressa, mais, cada vez mais. E os lábios de Andrew sentiam-na quente.

      

       Na tarde seguinte o comboio em que viajavam entrou na estação de Paddington. Conscientemente, por reconhecerem  a própria inexperiência em face da grande cidade, onde nenhum deles tinha estado antes, Andrew e Christine  desceram à plataforma.

       - Já viste o homem? - perguntou Andrew, ansioso.

       - Talvez esteja do outro lado da grade - lembrou Christine.

       Estavam à procura do homem do catálogo.

       Durante a viagem Andrew tinha explicado minuciosamente  a beleza, a simplicidade e o extraordinário alcance do seu plano. Compreendendo as necessidades do casal, antes mesmo de deixar Blaenelly entrara em contacto com a Regency Plenishing Company and Depositaries, de Londres. A Regency não era dessas lojas gigantescas onde se vende de tudo. Era uma casa decente, dirigida pelo Próprio proprietário, que se especializara em vendas a prestações. Tinha no bolso uma carta recente do dono. Porque, na verdade...

       - Ah! - exclamou ela com satisfação. - Lá está o homem.

       Um homenzinho insignificante, de fato azul muito lustroso  e chapéu de feltro, com um grande catálogo verde que lembrava um livro de prémio escolar, parecia identificá-los na multidão dos viajantes por algum mistério dom de telepatia. Adiantou-se para eles.

       - O senhor é o Dr. Manson? E a Sr.a Manson? - tirando respeitosamente o chapéu: - Eu represento a Regency. Recebemos o seu telegrama hoje de manhã. O carro está à nossa espera. Posso oferecer-lhe um charuto?

       Quando rodaram através das ruas estranhas, congestionadas pelo trânsito intenso, Andrew deixava transparecer certa inquietação. Olhava desconfiado o charuto de boas-vindas, ainda por acender na sua mão. Resmungou:

       «Temos rodado bastante de automóvel nos últimos dias. Mas desta vez as coisas devem correr bem. Eles garantem tudo, inclusive transporte grátis da estação para a loja e da loja para a estação, assim como também as despesas do caminho de ferro».

       Contudo, apesar dessa garantia, foi com ansiedade visível  que atravessaram as ruas estuantes de intensidade, muitas delas acanhadas e feias.

       Chegaram afinal. Era uma casa mais vistosa do que esperavam. Tinha boas montras e letreiros luminosos na fachada. Apareceu logo quem lhes abrisse a porta do carro e os acompanhasse, com reverências, para dentro da Regency.

       Ali também havia alguém à sua espera. Foram saudados cerimoniosamente por um empregado idoso, de sobrecasaca e colarinho engomado, que, pelo impressionante ar de distinção, lembrava de certo modo o finado príncipe Alberto.

       - Por aqui, senhor. Por aqui, minha senhora. Encantado por servir um médico tão distinto. Ficará espantado com o número de médicos prestigiosos que nos honra com a sua preferência. E os atestados que temos? Agora, doutor, que deseja adquirir?

       Começou a mostrar mobílias ao casal, andando acima e abaixo com passos majestosos pelas galerias da loja. Mencionava  preços assustadores. Citava estilos nobres. Mas o que mostrava eram «monos» sob camadas de verniz.

       Christine mordeu os lábios e o seu olhar tornou-se o espelho da sua preocupação. Desejava de todo o seu íntimo que Andrew não se deixasse enganar, que não atravancasse a sua casa com aquelas coisas horrorosas.

       - Meu querido - cochichou ela rapidamente quando o «príncipe Alberto» voltou costas. - Isso não presta. Para nada presta.

       Ele apertou os lábios levemente como única resposta.

       Examinaram mais algumas peças. Depois, calmamente, mas com uma rudeza de espantar, Andrew dirigiu-se ao vendedor:

       - Ouça. Viemos de muito longe para comprar mobília. Eu disse mobília! Não esses cacarecos.

       Calcou fortemente com o polegar na porta de um guarda-fato. Era de madeira tão ordinária que a porta foi dentro com um vergonhoso estalido.

       O empregado quase desmaiou. A sua expressão dava a entender que não acreditava no que via.

       - Mas, doutor - mastigou ele - mostrei-lhes, ao senhor e a sua esposa, o que temos de melhor na casa!

       - Pois então mostre-nos o pior - disse Andrew, irritado. - Mostre-me mobília velha, em segunda mão. Contanto que seja mobília de verdade.

       Um momento de silêncio e o outro murmurou quase sem fôlego:

       - O patrão vai ficar fulo comigo se eu não lhe vender coisa alguma.

       Afastou-se desconsolado e não voltou. Alguns minutos depois veio precipitadamente ao encontro deles um homenzinho baixo, vulgar, de cara avermelhada, que quase gritou :

       - Que deseja o senhor?

       - Mobília boa... em segunda mão... barata!

       O homem dirigiu a Andrew um olhar irritado. Sem pronunciar mais palavra deu meia volta e levou-o ao elevador  do fundo da loja, no qual desceram a um subterrâneo  grande e húmido, abarrotado até ao tecto de móveis usados.

       Durante uma hora, Christine andou catando pelos cantos,  entre a poeira e as teias de aranha, a descobrir aqui um armário resistente, ali uma boa mesa, uma pequena poltrona estofada debaixo de uma pilha de sacos, enquanto Andrew, atrás dela, discutia obstinadamente os preços com o vendedor.

       Afinal, a lista ficou completa e quando subiam no elevador,  Christine, o rosto empoeirado mas feliz, apertou-a mão de Andrew com uma sensação de triunfo.

       - Era exactamente do que nós precisávamos - cochichou ela.

       O homem da cara avermelhada levou-os ao escritório.

       Ali, inclinando-se sobre o livro de encomendas, na secretária  do patrão, disse com ar de quem envidara os seus melhores esforços mas que nada mais pudera fazer.

       - Aqui está a lista, Sr. Isaac.

       O Sr. Isaac acariciou o nariz. Os olhinhos vivos, destacando-se da pele descorada, tomaram um tom de tristeza quando examinou a lista das compras.

       - Não lhe posso fornecer isto tudo com pagamento a prazo, Dr. Manson. Veja, são tudo móveis em segunda mão e encolhendo os ombros, num ar de desculpa. - Não podemos fazer negócio desta maneira.

       Christine empalideceu. Mas Andrew, com persistência sombria, deixou-se cair numa cadeira, como pessoa disposta a não sair dali.

       - Pode, sim, meu caro senhor. O senhor pode fazer negócio. Pelo menos é o que diz na sua carta. Está bem claro no cabeçalho do papel da casa, o preto no branco: «Móveis novos e usados com facilidades de pagamento».

       Depois de uma pausa, curvando-se para o Sr. Isaac, o homem de cara avermelhada, sempre a gesticular, cochichou  algumas palavras ao seu ouvido. Christine apanhou no ar expressões pouco amáveis que definiam a dureza de fibra do marido, a força da sua tenacidade racial.

       - Bem, Dr. Manson - sorriu com esforço o Sr. Isaac. - faremos como o senhor quer. Não diga depois que a Regency  não o atendeu com boa vontade. E não se esqueça de contar aos seus clientes. Diga-lhes como foi bem tratado  aqui. Smith! Tire uma nota de compras em papel químico e mande amanhã de manhã uma cópia pelo correio ao Dr. Manson!

       - Obrigado, Sr. Isaac.

       Com ar de quem encerra a entrevista, disse o vendedor:

       - Está assente então, tudo combinado. Os móveis ser-lhe-ão  entregues na sexta-feira.

       Christine fez menção de retirar-se. Andrew, porém, continuou ainda recostado na cadeira e pronunciou vagarosamente :

       - E agora, Sr. Isaac, as passagens do caminho de ferro?

       Foi como se uma bomba explodisse dentro do escritório.

       Na cara avermelhada de Smith as veias davam a impressão  de que iam estourar.

       - Valha-me Deus, Dr. Manson! - exclamou Isaac - Que quer o senhor mais? Assim não podemos fazer negócio. O que é justo é justo, mas eu também não sou camelo! Despesas de viagem!

       Inexoravelmente, Andrew tirou do bolso um papel. Embora  um pouco alterada, a sua voz não saiu dos limites da correcção.

       - Tenho aqui uma carta, Sr. Isaac, em que se compromete a pagar as passagens para qualquer ponto da Inglaterra  ou do País de Gales desde que as encomendas importem em mais de cinquenta libras.

       - Mas eu explico! - explodiu Isaac. - O senhor só comprou cinquenta e cinco libras de móveis. E tudo em segunda mão...

       - Na sua carta, Sr. Isaac...

       - Não Importa o que diz a carta. - Isaac levantou as mãos em desespero. - Nada adianta. Não se faz negócio. Em toda a minha vida nunca encontrei um freguês como o senhor. Estamos acostumados a casais jovens e agradáveis  com quem se pode tratar. Primeiro o senhor insulta o Clapp. Depois o Smith não consegue entender-se consigo e por fim vem aqui esgotar-me a paciência com histórias de despesas de viagem. Nós não podemos fazer negócio, Sr. Manson. Vá a outra casa e veja se é mais bem sucedido.

       Tomada de pânico, Christine fitou Andrew, dirigindo-lhe  um olhar de desesperado apelo. Sentiu que tudo ia por água abaixo. Aquele terrível marido estava a perder todas as vantagens que conquistara com tanto esforço. Mas Andrew nem parecia vê-la e foi dobrando cuidadosamente a carta e metendo-a no bolso.

       - Então está bem, Sr. Isaac. Vamos despedir-nos. Mas devo avisá-lo de que isso tudo não deve ser conveniente para o senhor quando o souberem os meus clientes e amigos. Eu tenho uma grande clientela. E cada vez aumenta mais. Como o senhor nos fez vir a Londres prometendo pagar as nossas despesas de viagem...

       - Basta! Basta! - choramingou Isaac num verdadeiro frenesi. - Quanto custaram essas passagens? Pode pagá-las,  Sr. Smith. Pague, pague tudo. Ao menos não há-de dizer que a Regency não cumpre o que promete. Pronto. Está satisfeito?

       - Obrigado, Sr. Isaac. Estamos muito satisfeitos. Esperamos  a entrega na sexta-feira. Boas noites, Sr. Isaac.

       Com ar solene, Manson apertou-lhe a mão e, dando o braço a Christine, encaminhou-se apressadamente para a porta. Lá fora estava à espera deles a velha limousine que os trouxera da estação.  Como se tivesse feito a maior encomenda alguma vez registada na história da Regency, Andrew ordenou:

       - Chauffeur, leve-nos ao Museum Hotel.

       Partiram logo, deixando East End na direcção de Bloomsbury. Pendurada nervosamente no braço de Andrew,  Christine foi-se acalmando aos poucos.

       - Oh, meu querido! - sussurrou ela. - Manobraste maravilhosamente. Quando eu pensava...

       Ele meneou a cabeça, ainda com expressão teimosa. 

       - Essa gente não quer sarilhos. Eu tinha uma promessa da casa. Uma promessa escrita. - Voltou-se para ela com os olhos ardentes. - O que estava em causa não eram essas passagens, querida. Convence-te disso. Era uma questão de princípio. Palavra empenhada tem de ser mantida. E eu estava também de pé atrás pela maneira como nos receberam. Via-se a uma légua de distância. «É um parzinho de otários, sem dinheiro para gastar», pensavam eles. Esse charuto que me impingiram, tudo cheirava a vigarice.

       - Em todo o caso conseguimos o que queríamos - murmurou  ela diplomaticamente.

       Andrew concordou com a cabeça. Estava ainda muito enervado e indignado para ver humorismo nalguma coisa.

       Mas no quarto do hotel o lado cómico tornou-se bem visível.

       Quando acendeu um cigarro e se estendeu na cama, observando Christine, que se penteava, Andrew começou a rir de repente. Riu tanto que ela também se pôs às gargalhadas.

       - Aquela cara do velho Isaac - disse ele, com a respiração  entrecortada e o peito doendo-lhe de tanto rir - era realmente de uma graça estupenda.

       - E então quando tu - ela quase não podia respirar - quando tu falaste na história das passagens...

       - «Assim não podemos fazer negócio», disse ele. - Teve uma nova crise de riso. - «Eu também não sou camelo!». Era o que ele dizia. Oh, senhor! Um camelo...

       - É verdade, querido. - De pente na mão, as lágrimas escorrendo, voltou-se para o marido, quase sem poder articular  as palavras. - Mas para mim a coisa mais engraçada foi a maneira como tu disseste: «o senhor pôs isto aqui, preto no branco». E eu sabia, querido! Eu sabia que te tinhas esquecido da carta lá em casa, na cimalha do fogão.

       Ele levantou-se, encarou a mulher e depois caiu de novo na cama às gargalhadas. Rolou tapando a cara com o travesseiro,  desarmado, exausto. Ela, agarrada ao toucador sacudida pelo riso, implorava-lhe doidamente que parasse com aquilo. Não suportava mais...

       Mais tarde, quando conseguiram serenar, foram ao teatro. Uma vez que Andrew lhe dera o direito de escolher, Christine preferira Saint Joan. Confessou-lhe que um dos desejos mais ardentes da sua vida era ver uma peça de Shaw.

       Sentado ao lado dela na platéia repleta, Andrew estava mais interessado na expressão extasiada do rosto de Christine  do que na peça, «histórica demasiadamente», - disse depois. - E esse tal Shaw, quem pensa que é, afinal de contas?

       Era a primeira vez que iam juntos ao teatro. Bem, não havia de ser a última. Os seus olhos passearam em torno da sala cheia. Eles voltariam ali algum dia, não para as cadeiras, mas para um dos camarotes. Haviam de ver!

       Christine usaria um vestido de noite, decotado. Muita gente olharia para ele. Uns diriam aos outros: «Aquele é o Dr. Manson. Deve conhecer, naturalmente! É o médico que fez aquele trabalho maravilhoso sobre os pulmões».

       Voltou a si de repente, um pouco acanhado. No intervalo ofereceu um gelado a Christine.

       Depois, Andrew tomou ares de uma indiferença soberana.

       Saindo do teatro, viram-se completamente perdidos, estonteados pelos letreiros luminosos, pelos autocarros e pela multidão. Andrew fez com o braço um gesto enérgico.

       Escondidos discretamente no fundo do automóvel que os conduzia ao hotel, consideravam-se os primeiros e abençoados  descobridores do abrigo amoroso que oferece um táxi londrino.

 

       Para quem vinha de Londres o ar de Aberalaw era cortante e frio. Saindo a pé de Vale View, na manhã de quinta-feira, para começar a sua actividade, Andrew sentia fustigar-lhe o rosto um ventozinho estimulante. Acompanhava-o  uma alegria buliçosa. Todo o seu trabalho se desenhava diante dos olhos trabalho perfeito, escrupuloso,  sempre orientado pelo princípio que adoptara: o método  científico.

       A clínica Oeste, situada perto da sua casa. era um edifício alto. abobadado, coberto de telha branca, com certo ar de higiene. A parte central, e a mais importante, era ocupada pela sala de espera. Ao fundo, separada da sala de espera por uma porta de correr, ficava a farmácia.

       Em cima havia dois consultórios: um tinha o nome do Dr. Urquhart e no outro via-se numa placa nova um nome misteriosamente sugestivo: Dr. Manson.

       Foi para Andrew uma aguda sensação de prazer ver-se assim já identificado, com um gabinete próprio. Não era grande, mas tinha uma boa secretária e uma excelente marquesa. Também se sentiu lisonjeado pelo número de pessoas que estavam à sua espera. Na verdade, era tal a multidão que achou melhor começar logo as consultas, antes mesmo de apresentar-se, como pretendia, ao Dr. Urquhart  e a Gudge, o encarregado da farmácia.

       Sentou-se e fez sinal para que entrasse o primeiro cliente. Era um homem que queria apenas um atestado, acrescentando, como esclarecimento, que tinha o joelho ferido. Andrew examinou-o, viu que havia de facto uma contusão no joelho e atestou que o cliente estava impossibilitado  de trabalhar.

       Entrou o segundo. Pediu também um atestado por estar com nistagmos. Terceiro caso: atestado, por bronquite.

       Quarto: atestado, contusão no cotovelo.

       Andrew levantou-se, ansioso por ter uma noção do serviço. Esses exames para atestados tomavam muito tempo.

       Foi até à porta e perguntou:

       - Quem mais precisa de atestado? Os que precisarem façam o favor de levantar-se.

       Havia talvez quarenta homens à espera. Todos se levantaram.

       Andrew pensou rapidamente. Teria de gastar o dia quase todo para examiná-los com atenção. Não era possível!

       Com relutância, decidiu adiar para a outra vez um exame rigoroso dos casos.

       Mesmo assim, só às dez e meia é que se livrou do último cliente. Então, quando levantou os olhos, viu entrar no consultório, pisando rijo, um homem de estatura mediana, velhote, tez avermelhada, barbicha grisalha e agressiva.

       Curvou-se um pouco, atirando a cabeça para a frente com ar belicoso. Usava calças de pano grosso e casaco de flanela,  com os bolsos cheios com o lenço, o cachimbo, uma maçã e uma sonda de borracha. Desprendia-se dele um cheiro de remédio, ácido fénico e tabaco forte. Antes mesmo que o outro pronunciasse qualquer palavra, Manson compreendeu que era o Dr. Urquhart.

       - C’ os diabos, homem! - exclamou Urquhart, sem lhe apertar a mão e mesmo sem se apresentar. - Onde se meteu  nestes últimos dois dias? Tive de aguentar sozinho todo o trabalho. Não faz mal, não faz mal! Não vamos falar mais nisso. Afinal de contas, o colega já está aqui e parece, graças a Deus, que é são de corpo e espírito. Fuma cachimbo?

       - Fumo.

       - Graças a Deus por isso também! Sabe tocar violino?

       - Não.

       - Nem eu tão-pouco. Mas sei fazê-los bem bonitos. Também  colecciono porcelanas inglesas. O meu nome já foi citado num livro. Eu lhe mostrarei tudo quando for a minha  casa. Fica aqui mesmo ao lado da clínica, como já deve ter observado. E agora venha comigo para conhecer Gudge. É um pobre diabo. Mas sabe lidar com as drogas.

       Andrew acompanhou Urquhart atravessando o salão de espera, até a farmácia, onde Gudge o cumprimentou com um gesto sombrio de cabeça. Era um homem comprido, magro, cadavérico. Na cabeça apenas alguns fios de cabelo bem preto e um bigode comprido da mesma cor. Vestia um casaco de alpaca, esverdeado pela velhice e pelas manchas  de remédio, deixando ver os pulsos descarnados e as omoplatas de quem estava às portas da morte. O ar era melancólico, sardónico, fatigado. Gudge tinha o aspecto do homem mais desiludido de todo o universo.

       Quando Andrew entrou estava ele a atender o seu último  freguês. Passava uma caixa de pílulas pelo guiché como se fosse veneno para ratos.

       Parecia dizer: «Leve ou deixe ficar, pouco importa. De qualquer maneira tem de morrer».

       - Bem! - disse Urquhart animadamente quando fez as apresentações. - Agora, que já viu Gudge, já conhece o que há de pior. Devo preveni-lo de que ele só acredita em óleo de rícino e Charles Bradlough. Quer saber mais alguma  coisa dele?

       - Estou preocupado com o número de atestados que tive de passar. Alguns dos sujeitos que me procuraram pareciam  perfeitamente aptos para o trabalho.

       - Ah! O Leslie permitia esses abusos. A noção que tinha  de exame médico era tomar o pulso durante cinco segundos contados no relógio. Não se incomodava com mais coisa alguma.

       Andrew respondeu precipitadamente:

       - Que se pensará de um médico que dá atestados como quem dá cigarros?

       Urquhart fitou-o com ar sisudo e disse, quase com rudeza:

       - Veja lá como vai agir. Essa gente é bem capaz de protestar se se opuser aos seus desejos.

       Pela primeira e última vez naquela manhã, Gudge resmungou  uma interjeição sombria:

       - Isso é porque metade desses senhores é sã como pêros.

       Durante todo o dia, enquanto ia fazendo as suas visitas, Andrew não deixou de pensar nos atestados. A sua ronda de médico não era fácil. Não conhecia a vizinhança, não estava habituado às ruas, e mais de uma vez teve de voltar  a lugares por onde já havia passado. Além disso, a sua zona, ou pelo menos grande parte dela, ficava na encosta daquele morro Mardy ao qual Tom Kettles se referira.

       E isso queria dizer um nunca acabar de subir e descer ladeiras.

       Antes do trabalho nocturno, as meditações de Manson obrigaram-no a uma resolução desagradável. Não podia de forma alguma passar um atestado por mera condescendência. Dirigiu-se à clínica de testa franzida, apreensivo, mas resoluto. A multidão era ainda mais numerosa que de manhã.

       E o primeiro cliente a entrar foi um homenzarrão, a estourar  de gordura, que cheirava fortemente a cerveja e dava a impressão de que nunca trabalhara um dia completo  em toda a sua vida. Devia ter uns cinquenta anos.

       Os seus olhinhos de porco piscavam para Andrew.

       - Atestado - disse ele sem cerimónia.

       - Atestado de quê? - perguntou Manson.

       - «Stagmo» - estendeu a mão... - chamo-me Chenkin. Ben Chenkin.  

       Já a maneira de falar irritou Andrew. Mesmo num exame ligeiro, convenceu-se de que Chenkin não tinha nistagmo. Sabia bem, sem precisar da sugestão de Gudge, que alguns desses velhos operários arranjavam essa história de «stagmo» para arrancar indemnizações a que não tinham direito, vivendo desse expediente durante anos e anos. Em todo o caso, trouxera consigo, naquela noite, o oftalmoscópio. Não tardaria a tirar a limpo a questão.!

       Levantou-se da cadeira.  

       - Dispa-se.  

       Desta vez foi Chenkin quem perguntou: 

       - Para quê?  

       - Vou examiná-lo.  

       Ben Chenkin ficou de mau humor. Não se lembrava de alguma vez ter sido examinado durante os sete anos de clínica do Dr. Leslie. De má vontade, resmungando, tirou o casaco, o lenço que enrolava o pescoço e a camisa de malha de listas azuis e vermelhas, deixando à mostra um torso cabeludo e adiposo.

       Andrew fez um longo e minucioso exame, particularmente  dos olhos, estudando ambas as retinas com a sua pequenina lâmpada eléctrica. E então, secamente:

       - Vista-se, Chenkin.

       Sentou-se e começou a redigir um atestado.

       - Ainda bem! - zombou o velho Ben. - Logo vi que não nos ia deixar ficar mal.

       - O seguinte, por favor! - chamou Andrew.

       Chenkin quase arrebatou da mão de Andrew o impresso cor-de-rosa e retirou-se do consultório com passadas triunfantes. Cinco minutos depois estava de volta, lívido, mugindo como um touro, abrindo caminho por entre os homens sentados nos bancos.

       - Olhem o que ele me fez! Deixem-me entrar! Então! Que quer isto dizer? - Agitava o atestado na cara de Andrew.

       Manson fingiu que lia o papel. Estava ali o que ele mesmo escrevera: «Atesto que Ben Chekin está a sofrer os efeitos de abuso do álcool, mas está perfeitamente apto para trabalhar A. Manson, médico».

       - E então? - perguntou Andrew.

       - «Stagmo»! - berrou Chenkin. - Atestado de «stagmo». Não se faça tolo. Há quinze anos que eu tenho. 

       - Agora não tem.

       Formou-se um grande grupo diante da porta aberta do consultório. Andrew percebeu que Urquhart estava a espreitar  curiosamente da outra sala, enquanto Gudge, deliciado,  observava, o tumulto, lá do guiché da farmácia.

       - De uma vez por todas: vai dar-me ou não um atestado  de «stagmo»? - gritou Chenkin.

       Andrew perdeu a paciência.

       - Não, não dou - gritou também. E saia já daqui antes que o ponha fora da porta.

       Ben bufava. O homem parecia disposto a arrasar o médico, mas depois baixou os olhos, deu meia volta e retirou-se do consultório, mastigando palavrões ameaçadores.

       No momento em que ele se afastou, Gudge saiu da farmácia  e arrastou-se na direcção de Andrew. Esfregava as mãos num contentamento melancólico.

       - Sabe quem é o homem que acaba de pôr na rua? É Ben Chenkin. O filho dele é um tipo de peso na direcção.

       O caso Chenkin produziu enorme sensação. A novidade correu logo por toda a área de Manson. Alguns diziam que «era bem feito» que Ben fosse apanhado na sua intrujice e dado como apto para o trabalho. Mas a maioria estava do lado de Ben. Todos os que tinham vantagens com essas compensações em dinheiro por incapacidade para o serviço mostravam-se particularmente irritados com o novo médico.

        Quando saía para fazer as suas visitas, Andrew notava os olhares torvos que lhe atiravam. E à noite, na clínica, teve de enfrentar manifestações de impopularidade ainda mais graves.

       Se bem que em teoria cada assistente tivesse a sua zona, aos trabalhadores cabia o direito de livre escolha do médico. Cada homem possuía um cartão. Pedir esse cartão a um clínico e entregá-lo a outro equivalia a uma troca de médico. Foi essa a humilhação que começou para Andrew naquela semana. Todas as noites, homens que ele anteriormente nunca vira entravam no seu consultório, alguns achavam mais cómodo mandar as mulheres para dizer, sem levantar a vista: «Se não lhe faz diferença, doutor, quero levar o meu cartão».

       Era intolerável a afronta, a humilhação de levantar-se para tirar aqueles cartões de uma caixa sobre a secretária.

       E cada cartão que restituía significava dez xelins subtraídos  aos seus honorários.

       Na noite de sábado, Urquhart convidou-o para ir à sua casa. O velho, que tinha passado a semana inteira com ar de quem pede desculpa na fisionomia carrancuda, começou  a exibir os tesouros amontoados nos seus quarenta anos de clínica. Tinha talvez uns vinte violinos amarelos, pendurados nas paredes, todos fabricados por ele. Isso, porém, nada era perante o primor e a variedade da sua colecção de antigas porcelanas inglesas.

       Era uma colecção soberba Spode, Wedgwood, Crown, Derby e, ainda melhor do que tudo isso, a antiga Swansea. Havia de tudo ali. Os pratos e xícaras, os bules e jarros enchiam todos os cantos da casa e invadiam a própria casa de banho. Ao fazer a toilette, Urquhart podia contemplar  com orgulho um serviço de chá original, com desenhos  de salgueiros.

       A porcelana constituía, de facto, a paixão da vida de Urquhart. Era um velho e experiente mestre na arte astuciosa de adquiri-la. Onde quer que visse uma «linda peça» como costumava dizer, tudo fazia para a obter.

       Se era na casa de um doente, começava a fazer visitas sobre visitas com dedicação pouco vulgar, sempre com os olhos fitos na peça cobiçada, numa espécie de persistência ambiciosa até a boa dona de casa, desesperada, declarar:

       - Parece que o doutor está muito interessado naquela peça. Não sei a graça que lhe acha. Mas se quer pode levá-la.

       Nessa altura, Urquhart esboçava uma recusa pró-forma mas logo a seguir, sobraçando o troféu embrulhado num Jornal, ia para casa com a alegria estampada no rosto e colocava carinhosamente a nova conquista nas suas prateleiras.

       O velho era um tipo inconfundível na cidade. Dizia ter sessenta anos, mas provavelmente já passara dos setenta e talvez estivesse roçando os oitenta. Rijo como um carvalho, o seu único meio de condução era a sola dos sapatos Vencia a pé distâncias incríveis, praguejava com fúria assassina contra os clientes e no entanto tinha enternecimentos femininos. Vivia sozinho desde que perdera a mulher, havia onze anos. Quase se alimentava só de conservas.

       Naquela noite, depois de exibir vaidosamente a sua colecção, disse de repente a Andrew com ar ofendido:

       - Que diabo, homem! Não quero qualquer dos seus clientes. Já tenho bastantes por minha própria conta. Mas, que hei-de fazer, se eles me vêm importunar? Nem todos podem ir à clínica Leste. É muito longe.

       Andrew corou. Não sabia que dizer.

       - O doutor precisa de ter mais cuidado - continuou Urquhart num tom diferente: - Eu sei, eu compreendo. O senhor quer deitar abaixo as muralhas de Babilónia. Eu também fui assim. Mas, seja como for, vá devagar, com jeito, olhe com atenção antes de dar o salto. Boas noites. Cumprimentos à sua senhora.

       Com as palavras de Urquhart soando-lhe nos ouvidos, Andrew fez todos os esforços para se conduzir com a maior prudência. Mas, mesmo assim, um desastre ainda maior não tardou a deparar-se-lhe.

 

       Na segunda-feira seguinte foi à casa de Thomas Evans, em Cefan Row. Evans, um britador da pedreira de Aberalaw,  tinha entornado uma chaleira de água fervente sobre o braço esquerdo. Era uma queimadura, muito extensa, com aspecto mais grave no cotovelo. Ao atender o doente, Andrew verificou que a enfermeira do distrito, que estava nas proximidades na ocasião do acidente, já havia feito um curativo com óleo de linhaça, continuando depois o seu giro.

       Andrew examinou o braço, disfarçando a repugnância produzida pelo unguento asqueroso. Furtivamente olhou a garrafa do óleo de linhaça, tapada com uma rolha de papel de jornal. Dentro havia um líquido esbranquiçado, onde quase se podiam ver cardumes de bactérias.

       - A enfermeira Lloyd fez um serviço bem feito, não é verdade, doutor? - disse Evans nervosamente.

       Era um rapagão robusto, de olhos escuros. A mulher, que estava perto, observava atentamente o médico e também  parecia nervosa.

       - Um serviço muito bem feito - concordou Andrew com grande mostra de entusiasmo. - Eu dificilmente faria melhor. É claro que se trata apenas do primeiro curativo, de emergência. Agora devemos experimentar um pouco de ácido pícrico.

       Sabia que se não aplicasse depressa um anti-séptico seria quase certa uma infecção no braço. «E nesse caso», pensava ele, «só um milagre poderá salvar a articulação do cotovelo».

       Evans e a mulher, desconfiados, fitavam Andrew, enquanto  ele, com escrupulosa delicadeza, limpava o braço e o enrolava em gaze embebida em ácido pícrico.

       - Pronto. Não sente o braço mais à vontade?

       - Com franqueza, não sei - disse Evans. - Tem a certeza, doutor, de que isto assim está bem?

       - Absoluta! - Andrew sorriu tranquilizadoramente. - Deixe que a enfermeira e eu tomemos conta disso.

       Antes de sair deixou um bilhete para a enfermeira do distrito violentando a sua vontade para mostrar-se atencioso,  cheio de consideração pelas suas susceptibilidades.

       Agradecia-lhe o esplêndido tratamento de emergência e perguntava-lhe se, como precaução contra uma possível septicemia, não se importaria de continuar com as aplicações  de ácido pícrico. Fechou o sobrescrito com todo o cuidado.

       Na manhã seguinte, quando chegou à casa do doente, as suas ligaduras embebidas em ácido pícrico tinham sido atiradas e o braço estava novamente enrolado com outra  ligadura impregnada de óleo de linhaça. A enfermeira do distrito estava lá a tratar do braço, preparada para a luta:

       - Tenho interesse em saber que história é essa, Dr. Manson? Acha, então, que o meu trabalho não presta?

       Era uma grossa mulher, de meia-idade, cabelos grisalhos  e mal arrumados, cara atormentada. Custava-lhe a falar, de tão ofegante.

       Andrew desanimou. Fez um grande esforço para dominar-se.  Forçou um sorriso.

       - Venha cá, enfermeira Lloyd. Não me interprete mal. Porque não conversamos sobre o assunto na sala da frente?

       A enfermeira levantou a cabeça e dirigiu os seus olhares  para Evans e a mulher, que, com uma garotinha de três anos agarrada à saia, estavam escutando, alarmados, os olhos muito abertos.

       - Não, nada disso. Falaremos sobre o caso aqui mesmo. Nada tenho que ocultar. A minha consciência está tranquila. Nasci e fui criada em Aberalaw, aqui frequentei a escola, casei-me, tive filhos, aqui perdi o meu marido e aqui tenho trabalhado durante vinte anos como enfermeira do distrito. E nunca alguém me disse que não aplicasse óleo de linhaça numa queimadura ou numa chaga.

       - Ouça, enfermeira - argumentou Andrew - óleo de linhaça talvez seja muito recomendável em certos casos. Mas aqui há o risco de contractura. - Distendeu o braço dela para demonstrar a explicação. - É por isso que quero que a senhora experimente o meu método.

       - Nunca ouvi falar nessa droga. O velho Dr. Urquhart não a emprega. Era o que estava a dizer ao Sr. Evans. E eu não confio nessas novidades de uma pessoa que está aqui há uma semana!

       Andrew sentiu um nó na garganta. Ficou abalado, constrangido,  ao pensar em novos aborrecimentos, em toda a repercussão da cena, pois a enfermeira era uma pessoa perigosa para se ter como inimiga. Iria de casa em casa, dizendo em todas elas o que lhe vinha à cabeça. Mas ele não podia, não devia comprometer o doente com aquele tratamento antiquado.

       - Se não quer fazer o curativo, enfermeira, virei aqui, de manhã e à noite, e fá-lo-ei eu mesmo.

       - Faça então. Pouco me importa! - respondeu a enfermeira  Lloyd, quase a chorar. - E Deus queira que Tom Evans escape com vida.  E seguidamente precipitou-se pela porta fora.

       Num silêncio de morte, Andrew tirou novamente o penso do óleo de linhaça. Gastou perto de meia hora a limpar e tratar o braço ferido. Quando saiu prometeu voltar  às nove horas.

       Na mesma noite, ao entrar no consultório, a primeira pessoa a aparecer foi a Sr.a Evans, muito pálida, os olhos amedrontados evitando os dele.

       - Desculpe, doutor...  gaguejou ela.  Custa-me incomodá-lo.  Mas posso tirar o cartão de Tom?

       Andrew desanimou. Levantou-se sem dizer palavra, procurou o cartão de Tom e entregou-o à mulher.

       - O doutor compreende... Já não precisa de aparecer lá por casa.

       Ele respondeu, desalentado:

       - Compreendo, Sr.a Evans. - E quando ela já estava à porta não resistiu a perguntar: - O óleo de linhaça está lá de novo?

       Engasgada, ela afirmou com a cabeça e saiu.

       Depois do trabalho da clínica, Andrew, que costumava marchar para casa a toda a pressa, arrastou-se aborrecidamente  para Vale View. «Que triunfo», pensava com amargura,  «para o método científico! E que sou eu, afinal?

       Honesto ou desastrado? Desastrado ou estúpido, estúpido e desastrado!».

       Ficou muito taciturno durante o jantar. Depois, em companhia  de Christine, foi para a saleta, agora confortavelmente  mobilada. Sentaram-se juntos no sofá, ao pé do fogo reanimador. Andrew deixou-se ficar com a cabeça encostada  ao ombro de Christine.

       - Oh! Minha querida - murmurou. - Estou a estragar o nosso começo de vida.

       Quando Christine o consolou, acariciando-lhe a testa, Andrew tinha os olhos húmidos.

 

       O Inverno veio antes de tempo e inesperadamente, com uma forte nevada. Aberalaw ficava tão alto que em meados  de Outubro, antes mesmo de as árvores perderem as folhas, apareceram as primeiras geadas. De noite a neve começou a cair em flocos abundantes e macios. Andrew e Christine viram, ao acordar, uma imensa brancura cintilante.

       Uma piara de potros da montanha entrara por uma brecha da cerca desmantelada que limitava o terreno e juntara-se no fundo. Lá em cima, nos montes, onde havia grandes pastagens, esses animais selvagens vagueavam em grande número, fugindo à aproximação do homem. Mas, quando a neve caía, a fome obrigava-os a descer até às cercanias da cidade.

       Durante todo o Inverno, Christine alimentou os potros.

       No começo fugiam dela, tímidos e assustados, mas no fim já vinham comer à mão. Um, especialmente, tornou-se seu amigo. Era o mais pequeno de todos, um animal de crina emaranhada e olhos travessos, a que dera o nome de Moreninho.

       Os potros comiam de tudo, pedaços de pão, cascas de batata e de maçã, até mesmo bagaço de laranja. Uma vez, por brincadeira, Andrew ofereceu ao Moreninho uma caixa de fósforos vazia. O potro mastigou-a e lambeu os beiços com a satisfação de um gastrónomo saboreando caviar Embora muito pobres, tendo de suportar muitas necessidades,  Christine e Manson conheciam a felicidade. Andrew  só tinha moedas no bolso, mas a dívida à Dotação estava quase liquidada e as prestações da mobília iam sendo pagas regularmente. com toda a sua fragilidade e experiência aparentes, Christine tinha as qualidades de uma mulher de Yorkshire. Era uma perfeita dona de casa. E  com efeito, conseguia trazer Vale View como um brinco apenas com a ajuda de Jenny, filha de um mineiro da vizinhança, que vinha fazer o serviço diariamente, recebendo  somente alguns xelins por semana. Embora quatro quartos ainda continuassem vazios e discretamente fechados a chave, Christine fez do casarão um lar. E quando Andrew voltava, cansado, quase vencido por um longo dia de trabalho, encontrava sempre na mesa, para restaurar as suas forças, a comidinha quente que ela preparara.

       O serviço da clínica era exaustivo. Não, infelizmente, porque fossem muitos os clientes, mas por causa da neve, das ladeiras íngremes que devia galgar para atingir os pontos mais elevados da sua zona, as longas distâncias entre as casas que tinha de visitar. Era difícil e fatigante andar a pé quando a neve se derretia e as ruas ficavam enlameadas, antes que começasse a gear pesadamente durante  a noite. Muitas vezes Andrew voltava para casa com a bainha das calças tão molhada e suja que Christine  comprou para ele umas polainas. Quando chegava e se sentava numa cadeira, derreado, ela ajoelhava-se e tirava-lhe as polainas e os sapatos grossos, calçando-lhe os chinelos. Não era um serviço que lhe prestava, era um acto de amor.

       A sua clientela continuava desconfiada, distante. Todos os Chenkin numerosos, pois os casamentos na mesma família eram comuns naquela região formavam um só bloco hostil. A enfermeira Lloyd agia como inimiga aberta e declarada. Arrastava-o pelas ruas da amargura quando se sentava para tomar chá nas casas que visitava, tendo sempre a escutá-la um bando de mulheres do bairro operário.

       Além disso, Andrew tinha de sufocar mais um motivo de irritação crescente. Parecia-lhe que o Dr. Llewellyn abusava com aquela história de o chamar a toda a hora  para aplicar anestésicos. Andrew tinha horror a esse serviço.

        Era um trabalho mecânico, que exigia certo tipo especial de temperamento, uma índole que certamente não era a sua. Não se incomodava de forma alguma em atender  os seus próprios clientes. Mas quando se viu chamado três vezes por semana para atender a casos que anteriormente não havia examinado, começou a sentir que estava carregando nos ombros um fardo que não lhe pertencia suportar. No entanto não ousou arriscar uma palavra de protesto, com medo de perder o emprego.

       Certo dia de Novembro, porém, Christine notou que alguma coisa fora do habitual abalara o marido. Naquela noite ele chegou sem se anunciar alegremente. E, embora procurasse fingir despreocupação, ela percebeu logo pela ruga de apreensão entre os olhos e por outros pequeninos indícios que Andrew recebera um golpe inesperado.

       Durante a ceia Christine não fez qualquer comentário e depois começou a ocupar-se com alguns trabalhos de costura, junto da lareira. Sentado ao lado dela, mordendo a ponta do cachimbo, Manson desabafou num repente:

       - Tenho repugnância em queixar-me, Chris! E também não gosto de te dar aborrecimentos. Só Deus sabe as coisas que guardo comigo mesmo!

       Como abria o coração à mulher todas as noites, o que disse era muito engraçado. Mas Christine não sorriu quando ele continuou:

       - Conheces o hospital, minha querida. Lembras-te de que fomos lá na noite da nossa chegada. Deves lembrar-te de como gostei dele e fiquei encantado com as oportunidades  que podia ter ali para os meus trabalhos. Pensei uma porção de coisas a esse respeito, não foi assim, querida?

       - Não tinha grandes ideias sobre o nosso hospitalzinho de Aberalaw? Sim, eu sei que tinhas.

       E ele, num tom aborrecido:

       - Para que ter ilusões? Aquilo não é o hospital de Aberalaw. É o hospital de Llewellyn.

       Ela ficou calada, com ar preocupado, esperando Que Andrew continuasse.

       - Tive um caso esta manhã, Chris! - Agora falava precipitadamente no auge da excitação. - Repara bem no que eu disse: tive. Era de facto um caso de pneumonia ainda no começo. Um dos brocadores da mina de antracite. Já te falei muitas vezes como estou profundamente interessado no estudo do aparelho respiratório dessa gente. Tenho a certeza de que há ali um vasto campo de pesquisas, pensei comigo mesmo: aqui está o meu primeiro caso de hospital. Uma verdadeira oportunidade para observação realmente científica. Telefonei a Llewellyn e pedi-lhe para ver o caso comigo, de modo a poder levá-lo para a enfermaria.

       Manson parou, respirou profundamente e continuou com precipitação:

       - Pois bem. Lá veio Llewellyn, com limousine e tudo. Sem favor nenhum, foi irrepreensível no exame. De facto, o homem é competente. Confirmou o diagnóstico, depois de apontar um ou dois pormenores que me tinham escapado  e concordou em levar o doente para o hospital.

       Comecei a agradecer-lhe, dizendo como me seria agradável ir à enfermaria e contar com as facilidades do hospital para aquele caso especial. - Parou mais uma vez com a fisionomia dura. - Nessa altura, Llewellyn lançou-me um olhar muito amável, Chris. E disse: «Não precisa de se incomodar, Manson. Agora o caso fica por minha conta. Não podemos permitir que vocês, assistentes, andem de um lado para o outro pelas enfermarias». E olhou para as minhas polainas: «...mais com essas botas horríveis»... Ai, Chris!...

       E Andrew concluiu, numa exclamação sufocada:

       - Oh, não interessa repetir o que ele disse. Sei bem onde quis chegar. Eu posso entrar pela cozinha da casa dos mineiros, com a minha roupa ensopada e as botas sujas, examinando os doentes sob uma luz fraca, tratando-os  em más condições. Mas quando chega a hora do hospital... Ah! Ali sou admitido apenas para ministrar o éter - foi interrompido pela campainha do telefone. -Olhando com simpatia para o marido, Christine levantou-se e foi atender. Andrew podia ouvir o que dizia no hall. Quando voltou, tinha um ar hesitante.

       - É o Dr. Llewellyn quem está ao telefone. Eu... custa-me  dizer-te, querido. Ele quer que vás amanhã de manhã ao hospital. Às onze horas. É para uma anestesia.

       Andrew não respondeu. Desanimado, apoiou a cabeça nos punhos cerrados.

       - Que devo responder, querido? - murmurou Christine ansiosamente.

       - Diz-lhe que vá para o inferno! - Mas logo depois passando a mão pela testa: - Não, não. Diz que lá estarei às onze horas. - Sorriu amargamente. - Às onze em ponto.

       Quando ela voltou trazia uma xícara de café quente, um dos seus recursos eficazes para combater as crises de depressão do marido.

       Ao beber o café, Andrew sorriu-lhe um tanto envergonhado.

       - Isto aqui contigo é uma felicidade, Chris! Se o trabalho  também corresse bem... Reconheço que nada há de estranho no facto de Llewellyn me conservar afastado das enfermarias. Em Londres é a mesma coisa. É assim em todos os hospitais, em toda a parte. É o sistema. Mas porque  há-de ser assim, Chris? Mas por que razão tem um médico de deixar de lidar com os doentes quando vão para o hospital? Perde o contacto tão completamente que é como se perdesse o doente. Isso faz parte do nosso maldito  sistema de clínica geral e de especialistas. É errado, absolutamente errado! Meu Deus! Porque estou aqui a fazer uma conferência? Como se tu não tivesses já bastantes  preocupações por tua conta!  Quando penso nas esperanças com que comecei aqui! Em tudo o que ia fazer! E, em vez disso, uma coisa depois da outra, tudo a correr ao contrário do que esperava!

       Mas no fim da semana recebeu uma visita imprevista.

       Já muito tarde, quando ele e Christine se dispunham a ir para a cama, retiniu a campainha da porta. Era Owen, o secretário da direcção.

       Andrew empalideceu. Interpretou a visita do secretário como o mais temido de todos os acontecimentos, o resultado  daqueles meses de esforços fracassados. Queria a direcção que ele se demitisse? Estaria para ser expulso, atirado com Christine para o olho da rua, como um objecto inútil? Sentiu o coração confrangido ao ver a cara delgada e acanhada do secretário, mas de repente expandiu-se, aliviado, alegre, quando Owen tirou do bolso um cartão amarelo.

       - Desculpe esta visita tão fora de horas, Dr. Manson, mas fiquei até tarde no escritório e não tive tempo de o procurar na clínica. Tenho andado a pensar se interessaria ao doutor a minha ficha médica. É de certo modo estranho que eu, como secretário da direcção, não me tenha ainda preocupado em dar o meu cartão a alguém. A última vez que tive de consultar um médico fui a Cardiff. Mas agora, se me aceitasse, gostaria muito de fazer parte da sua lista.

       Andrew quase não podia falar. Já tivera de restituir, contrariado, tantos cartões, que receber agora um cartão novo e logo do secretário era para estourar de alegria.

       - Obrigado, Sr. Owen... Eu... Encantado de tê-lo como cliente.

       Christine, que ficara no hall, não resistiu a intervir.

       - Não quer entrar, Sr. Owen? Faça favor...

       Embora declarasse não querer incomodá-los, o secretário  parecia disposto a ir para a sala de visitas. Sentado numa  cadeira de braços, os olhos fitos pensativamente na lareira, aparentava extraordinária tranquilidade. E ainda que em nada se distinguisse, pelo fato e pela linguagem, de um trabalhador comum, tinha a quietude contemplativa,  uma fisionomia cujos traços lembravam os de um asceta. Por alguns momentos deu a impressão de estar a ordenar as ideias e depois disse:

       - Estou satisfeito por ter oportunidade de poder contar  com o doutor. Sei bem que algumas contrariedades o tem atingido neste começo de vida aqui. Mas não perca a coragem. Essa gente é um pouco rude, mas no fundo é boa. Depois de algum tempo, virá, cair-lhe-á nos braços.

       E continuou, antes que Andrew pudesse responder:

       - Já ouviu falar no caso de Tom Evans? Não? O braço dele piorou muito. A tal droga com cuja aplicação o doutor não concordava deu exactamente o resultado que receava. O cotovelo ficou ancilosado e torcido. E, com o braço inutilizado, o homem perdeu o emprego na mina. E o pior ainda não foi isso: como foi em casa que ele se queimou, não recebe um chavo de indemnização por acidente de trabalho.

       Andrew sussurrou uma palavra de pesar. Não guardava rancor contra Evans, mas somente impressão de tristeza por um caso tão simples ter dado tão mau resultado sem nenhuma necessidade.

       Owen ficou de novo silencioso. Depois começou a contar na sua voz tranquila um pouco da história das suas primeiras  lutas. Aos catorze anos já trabalhava no fundo de uma mina, frequentando a escola nocturna e procurando educar-se pouco a pouco. Aprendeu dactilografia e estenografia  e afinal conseguiu o emprego de secretário na Sociedade.

       Andrew estava a compreender que durante toda a sua vida Owen se dedicara a melhorar a sorte dos trabalhadores.

        Amava o serviço da Sociedade porque era uma expressão do seu ideal, e queria mais do que mera assistência  médica. Queria habitações melhores, maior higiene, condições mais progressivas e estáveis, não só para os mineiros como também para todos os que deles dependiam.

       Citou o índice de mortalidade em consequência de parto entre as mulheres dos trabalhadores, e o índice de mortalidade  infantil. Trazia na ponta da língua todos os números,  todos os factos.

       Mas ele não só falava como também ouvia. Sorriu quando Andrew contou a sua proeza por ocasião da epidemia do tifo em Blaenelly. O secretário mostrou-se profundamente interessado pela ideia de que os mineiros estavam muito mais sujeitos a doenças dos pulmões do que os outros trabalhadores do subsolo.

       Animado pela presença de Owen, Andrew mergulhou no assunto com grande entusiasmo. Em consequência de muitos exames cuidadosos, começou a chamar-lhe a atenção a grande percentagem de trabalhadores das minas de antracite que sofria de forma insidiosa de doenças pulmonares.

        Em Blaenelly muitos dos brocadores que o procuravam  queixando-se de tosse ou de «um pouco de inflamação nos bofes», eram de facto casos incipientes ou mesmo já avançados de tuberculose pulmonar. Estava a notar a mesma coisa em Aberalaw. E começava a perguntar a si mesmo se não haveria alguma relação directa entre o trabalho e a doença.

       - Está a perceber onde quero chegar? - perguntou com animação. - Esses homens trabalham envoltos em poeira de pedra nos filões duros. Os pulmões ficam entupidos. Ora tenho as minhas suspeitas de que isso é muito prejudicial.  Os brocadores, por exemplo, são os que estão mais sujeitos a esse precalço. Pois bem, as doenças pulmonares desenvolvem-se neles com maior intensidade do que... digamos.,  nos carregadores, por exemplo. Pode ser que esteja em erro. Mas não creio. E o que mais me entusiasma é que... bem! É um campo de investigação que ainda está virgem. Não há a menor menção a esse respeito na nomenclatura  de doenças profissionais do Ministério do Trabalho.  Quando esses homens ficam incapacitados para o serviço, não recebem um tostão de indemnização!

       Owen levantou-se da cadeira, inclinou o corpo para a frente, com uma grande satisfação espalhada no rosto pálido.

       - Os meus parabéns, doutor. Isso é o que se chama falar! Há muito tempo que não ouço uma coisa que tanto me interesse.

       Continuaram em conversa animada sobre o assunto. Já era tarde quando o secretário se levantou para se retirar. Pedindo desculpas pelo tempo que fizera perder, incita Andrew, de todo o coração, para que prosseguisse nas suas pesquisas, prometendo ajudá-lo em tudo o que estivesse ao seu alcance.

       Mesmo depois de Owen sair ficou ainda a pairar a impressão viva da sua sinceridade.

       E Andrew pensou, como já o fizera na reunião da direcção em que lhe fora concedido o emprego, que aquele homem era um verdadeiro amigo.

       A notícia de que o secretário confiara o seu cartão a Andrew espalhou-se rapidamente por toda a zona, o que contribuiu de certo modo para deter a onda de impopularidade  do novo médico.

       Sem falar da vantagem material, a visita de Owen também contribuiu para que Manson e Christine ficassem em melhor disposição de espírito. Até então o casal vivia inteiramente à margem da vida social da cidade. E, embora Christine nada lhe dissesse, havia momentos durante as longas ausências de Andrew em que se sentia muito só. As esposas dos funcionários mais graduados da Companhia estavam demasiadamente compenetra- das da sua própria importância para fazer visitas às mulheres de simples médicos assistentes. A esposa de Llewellyn, que prometera imorredoura  amizade e deliciosas excursões de automóvel a Cardiff, deixara o cartão numa hora em que Christine não estava em casa e nunca mais dera sinal de vida. Por sua vez, as mulheres dos Drs. Medley e Oxborrow, da clínica Leste, tinham-se revelado criaturas muito pouco interessantes.

        A primeira era uma mulherzinha esbranquiçada e insignificante e a segunda uma maçadora insuportável, que passou uma hora inteira, contada pelo relógio, a falar sobre missões na África. Aliás, não parecia haver espírito de solidariedade nem convívio social entre os médicos assistentes ou entre as suas famílias. A atitude que assumiam  na cidade era de indiferença, de fraqueza e até mesmo de humildade.

 

       Uma tarde de Dezembro, quando voltava para casa pelo caminho das traseiras, que seguia ao longo da encosta do morro, Andrew viu aproximar-se um jovem franzino, mas desempenado, pela sua idade mais ou menos. Reconheceu-o imediatamente. Era Richard Vaughan. O seu primeiro impulso foi atravessar para o outro lado, a fim de não se encontrar com o homem que vinha na sua direcção.

       Mas resmungou, obstinado: «Porque iria para o outro lado? Ele pode julgar-se importante, mas eu não faço caso».

       Desviando o olhar, preparou-se para passar por Vaughan.

       Mas, com surpresa, ouviu o outro chamá-lo num tom amigo, meio divertido.

       - Olá! O senhor não é a «fera» que obrigou Ben Chenkin  a voltar para o trabalho? Não foi o senhor?

       Andrew parou, olhou-o atento e desconfiado, com uma expressão que queria dizer: «Que julga? Não o fiz intencionalmente!».

       Se bem que o tivesse atendido com bastante polidez, Andrew resmungava intimamente que não estava disposto a ser tratado como um protegido pelo filho de Edwin Vaughan. Os Vaughan eram virtualmente os donos da Companhia de Aberalaw, e possuíam, além disso, todas as acções das minas secundárias. Eram ricos aristocratas, inacessíveis.

       Ao ir viver para uma propriedade perto de Brecon,  o velho Edwin passara ao filho a direcção de todos os negócios. Casado havia pouco tempo, Richard mandara construir para sua residência um palacete de arquitectura Moderna, que dominava a cidade.

       Observando Andrew, enquanto passava os dedos pelo bigode aparado, disse:

       - Gostaria de ver a cara do velho Ben.

       - Pois nenhuma graça lhe achei.

       Perante essa demonstração do rígido orgulho escocês, Vaughan torceu o lábio por trás da mão que alisava o bigode e disse com ar muito natural:

       -  Parece que o senhor é o meu vizinho mais próximo. Minha mulher tenciona visitar a sua. Ela já voltou da Suíça, onde foi passar algumas semanas.

       - Obrigado! - respondeu Andrew secamente, despachando-o. À noite, contou o caso a Christine, ironicamente.

       - Tanta amabilidade! Qual terá sido a sua intenção? Nem com o próprio Llewellyn é assim... Quando o encontra na rua mal lhe concede um cumprimento de cabeça.  Talvez julgue que consegue com as suas amabilidades que eu mande mais alguns homens para o trabalho dessas minas horríveis.

       - Ora, não sejas assim, Andrew - protestou Christine - É um defeito que tens. És desconfiado, demasiadamente. Desconfiado, com toda a gente.

       - Parece-te que eu não tenho motivos para desconfiar dele? Todo empertigado, nadando em dinheiro, uma amabilidade artificial espalhada na cara de macaco. E aquela história: «Minha mulher... foi passar algumas semanas à Suíça...» E tu aqui a trabalhar tanto nesta nossa casinha pobre! Qual! Não sei porque a mulher desse senhor quererá  aproximar-se de nós, querida. E se fizer isso - tomou de repente um tom altivo - tem muito cuidado; não a deixes tratar-te com ares protectores.

       Christine respondeu com as palavras mais sacudidas que ele ouvira naqueles meses de ternura!

       - Podes crer que sei perfeitamente como devo proceder.

       Contra as previsões de Andrew, a Sr.a Vaughan visitou Christine e pareceu demorar-se mais tempo do que o exigido pela delicadeza convencional. Quando Manson regressou a casa, à noite, encontrou a mulher muito alegre, um tanto alvoroçada, com a aparência de quem passara uma tarde agradável. Mostrou-se cheia de reticências às gracinhas irónicas do marido, mas confessou que a visita fora um sucesso. Ele troçou:

       - Naturalmente exibiste as pratas da família, a porcelana  mais fina, o samovar dourado... Ah! E com certeza os doces foram da Confeitaria Parry!

       - Não. Comemos pão com manteiga - respondeu ela no mesmo tom. - O chá veio no bule de louça.

       Andrew levantou as sobrancelhas, sarcástico:

       - E ela gostou?

       - Julgo que sim.

       Depois dessa conversa, Andrew sentiu qualquer coisa que o espicaçava intimamente, uma emoção que podia já ter experimentado, mas ainda não analisara. Dez dias mais tarde ficou muito abalado quando a Sr.a Vaughan telefonou para convidar o casal para jantar em sua casa.

       Christine estava na cozinha, a preparar um bolo, e foi ele quem atendeu ao telefone.

       - Sinto muito - disse. - Receio não podermos comparecer.  Tenho trabalho na clínica todas as noites até quase às nove horas.

       - Mas não no domingo, certamente - a voz dela era cordial, encantadora. - Venham jantar no próximo domingo. Está combinado então. Ficamos à vossa espera.

       Foi com Christine que ele estourou:

       - Esses tais teus amigos cheios de embófia querem impingir-nos um jantar. Não podemos ir! Estou com um grande  palpite de que vou ter um caso muito urgente na noite de domingo!...

       - Ora ouve o que vou dizer-te, Andrew!

       Os olhos dela tinham adquirido um brilho desusado quando tomara conhecimento do convite, e era severamente que passava uma lição ao marido.

       - Deves acabar com essas tolices. Nós somos pobres e toda a gente tem disso conhecimento. Usas fatos coçados e eu trabalho na cozinha. Mas isso não tem importância. Afinal de contas, és um médico, um bom médico, e eu sou a tua mulher. - A expressão de Christine suavizou-se por um momento. - Estás a ouvir o que digo? Sim, talvez seja uma surpresa para ti, mas fica sabendo que tenho comigo, bem guardadinha na gaveta, a minha certidão de casamento. Os Vaughan têm muito dinheiro, mas isso é apenas um detalhe. De resto é gente boa, inteligente e encantadora. Nós vivemos aqui numa felicidade maravilhosa. Mas, querido, também devemos ter relações. Porque não havemos de ser amigos deles, se eles querem ser nossos amigos? E não fiques envergonhado de ser pobre. Esquece essa história  de dinheiro, de posição social e tudo o mais e aprende a aceitar as pessoas como elas realmente são!

       - Está bem - resmungou ele.

       Na noite de domingo lá foi com uma fisionomia inexpressiva,  mas aparentemente dócil. Observou apenas, falando por entre dentes, quando seguiam na alameda bem cuidada que conduzia à porta do palacete, ao lado de um novo campo de ténis:

       - Provavelmente não me deixam entrar quando virem que não estou em traje de rigor.

       Ao contrário do que esperava, foram muito bem recebidos. A cara feia e ossuda de Vaughan sorriu hospitaleiramente  por cima de uma mesinha de chá que ele quase derrubou, não se sabe porquê. A Sr.a Vaughan acolheu-os com simplicidade que nada tinha de afectada. Havia mais dois convidados: o Prof. Challis e a mulher, que estavam a passar o fim de semana na companhia dos Vaughan.

       Depois de um cocktail como nunca tinha saboreado na sua vida, Andrew reparou no luxo da sala, toda atapetada, com flores, livros e móveis antigos de rara beleza. Christine  conversava despreocupadamente com o casal Vaughan e a Sr.a Challis, uma velha bem-humorada, que tinha rugas em torno dos olhos. Sentindo-se isolado, pouco seguro, Andrew aproximou-se manhosamente de Challis, que, apesar  da barba branca, esvaziava alegremente o terceiro cálice de vermute.

       - O meu jovem e brilhante doutor quer ter a bondade de proceder a uma investigação? - disse, sorrindo, a Andrew - É uma pesquisa sobre a função precisa da azeitona num cálice de Martini. Devo adverti-lo desde já de que tenho a minha opinião formada. Mas que pensa o doutor do assunto?

       - Ora... - Andrew gaguejou. - Eu... Não sei bem...

       - Eis a minha teoria. - Challis tivera pena dele. - Trata-se de um ardil imaginado pelos donos de bares e criaturas pouco hospitaleiras como o nosso amigo Vaughan. - Sob as sobrancelhas negras e abundantes os olhos piscavam maliciosamente. - Uma exploração do princípio de Arquimedes. Pela simples acção do deslocamento, têm, esperança de poupar o gin!

       Andrew estava tão preocupado com o próprio acanhamento  que nem pôde sorrir. Não tinha prática de salões e nunca estivera numa sala tão luxuosa. Não sabia o que fazer com o copo vazio, com a cinza do cigarro e até mesmo, como naquele momento, com as próprias mãos.

       Foi um alívio quando se encaminharam para o jantar. Mas aí também se viu numa posição desvantajosa. A refeição era muito simples, mas esplendidamente servida. Um prato de sopa, salada de alface tenra, galinha, e carne muito macia, de aroma delicado e raro. Andrew ficou junto da Sr.a Vaughan.

       - A sua mulher é encantadora, Dr. Manson - comentou, ela, calmamente, quando se sentaram.

       Era uma criatura alta, esbelta, elegante, com uma aparência  muito distinta. Nada tinha de bonita, mas os olhos eram grandes e inteligentes e as maneiras de distinção natural. A boca, com os cantos ligeiramente repuxados, tinha uma mobilidade que parecia sugerir requinte, o de espírito e de raça.

       Começou a falar a Andrew sobre o trabalho do médico, dizendo que o marido ouvira muitos elogios à sua competência. Esforçou-se gentilmente por pô-lo à vontade, perguntando de modo interessado o que achava que devia fazer-se para melhorar o exercício da medicina na região.

       - Bem... eu não sei bem... - e entornou desastradamente um pouco de sopa. - Suponho... Gostaria que se empregassem métodos mais científicos.

       Acanhado, engasgado até com o seu assunto predilecto  com o qual prendia a atenção de Christine durante horas e horas Andrew não desviou os olhos do prato. Felizmente, para seu alívio, a Sr.a Vaughan entabulou conversa com Challis, que estava do outro lado.

       Challis já então identificado como professor de Metalurgia em Cardiff, lente da mesma cadeira na Universidade de Londres e membro da afamada Junta de Pesquisas sobre o Trabalho de Mineiros e Metalúrgicos era um conversador alegre e brilhante. Falava com o corpo, com as mãos, com a barba, discutindo, rindo, berrando, gargalhando,  ao mesmo tempo que absorvia em profusão comida e bebida. Era uma caldeira a acumular pressão. Mas a sua conversa era interessante e os circunstantes pareciam apreciá-la. Andrew, no entanto, não queria atribuir valor à conversa.

       E ficou apenas a ouvir, de má vontade, quando ele se desviou para a música e os méritos de Bach, passando, num dos seus prodigiosos saltos, para a literatura russa. De nariz torcido, ouviu citarem os nomes de Tolstoi, Tchekov, Puchkin...

       «Futilidades», dizia irritado consigo mesmo. «Tudo futilidades  para entreter. Este barbaças pensa que é alguém muito superior. Gostaria de vê-lo as voltas com uma traqueotomia... lá no fundo de uma cozinha do Cefan Row. Servir-lhe-ia de muito o tal Puchkin...

       Christine, porém, estava verdadeiramente encantada.

       Observando-a de lado, Andrew viu a mulher rindo para Challis e ouvia-a tomar parte na discussão. Não procurava exibir-se, era perfeitamente natural. Uma ou duas vezes referiu-se ao seu trabalho de professora na escola de Blaenelly.

       Andrew ficou espantado por ver como respondia bem ao professor, com que presteza e espontaneidade fazia valer as suas opiniões. Começou a contemplá-la como se a visse pela primeira vez e sob uma nova luz. «Parecia  conhecer a fundo aqueles sujeitos da Rússia», resmungava ele intimamente, «e o mais engraçado é que nunca fala comigo acerca deles .

       Um pouco mais tarde, quando Challis bateu de leve na mão de Christine, num gesto de aprovação, Andrew irritou-se  e resmungou com os seus botões: «Porque não encolhe este animal a patinha? E porque não vai bater na mão da mulher que lhe pertence?».

       Por mais de uma vez surpreendeu o olhar de Christine a procurar estabelecer com ele uma correspondência Intima. Nalgumas ocasiões, ela dirigiu a conversa em sua direcção.

        Meu marido está muito interessado nos trabalhadores das minas de antracite, professor Challis. Iniciou uma série de pesquisas sobre inalação de pó.

       - Ah! Sim? - soprou Challis, lançando para Manson um olhar cheio de curiosidade.

       - Não é assim, querido? - Christine encorajava-o. - Ainda uma noite destas me falaste a esse respeito.

       - Não sei ainda - rosnou Andrew. - Provavelmente não chegarei a resultados satisfatórios. Talvez mesmo o pó nada tenha a ver com esses casos de tuberculose.

       Estava furioso consigo mesmo, é claro. Talvez esse tal Challis pudesse ajudá-lo. Não é porque precisasse de assistência.

        Isso não! Mas o facto de estar ligado à Junta de Pesquisas sobre o Trabalho de Mineiros e Metalúrgicos talvez  lhe proporcionasse uma oportunidade interessante.

       Por qualquer razão incompreensível, a sua raiva incidiu sobre Christine. Ao encaminharem-se para casa ele manteve  um silêncio ensimesmado. No mesmo silêncio, acompanhou-a  até ao quarto de dormir.

       Conservou-se na mesma atitude intencionalmente bisonha  enquanto se despiam. E, no entanto, esse momento era habitualmente aproveitado para diálogos e comentários. Com os suspensórios caídos e uma escova de dentes na mão, ele costumava então comentar os acontecimentos do dia.

       Quando Christine começou:

       - Passámos uma noite muito agradável, não foi, querido? 

       Ele respondeu com irónica aquiescência:

       - Oh! Uma noite maravilhosa!

       Na cama, anichou-se na beira do colchão, longe dela.

       E, percebendo um leve movimento de Christine para se aproximar, começou a roncar ruidosamente.

       Na manhã seguinte persistia entre ambos a mesma sensação  de constrangimento. Ele passou o dia a trabalhar com aspecto fechado numa estupidez que o fazia diferente de si mesmo. Pelas cinco horas da tarde, quando tomavam chá, tocou a campainha da porta da frente. Era o chauffeur  dos Vaughan com uma pilha de livros e um grande ramo de narcisos.

       - Da parte da Sr.a Vaughan, minha senhora - disse ele sorrindo e levando a mão ao boné ao retirar-se.

       Christine foi para a saleta com os braços cheios e a fisionomia radiante.

       - Olha, meu querido - exclamou alvoroçada. - Não é o cúmulo da gentileza? Todas as obras de Trollope, emprestadas pela Sr.a Vaughan. Sempre tive vontade de ler toda a obra deste autor! E que flores lindas, lindas!

       Ele levantou-se, empertigado e zombeteiro:

       - Muito bonito! Livros e flores da dama do castelo! Naturalmente precisas dessas coisas para te ajudar a suportar  a vida na minha companhia! Eu sou tão desinteressante para ti!... Não pertenço ao número desses papagaios faladores que parecias apreciar tanto ontem à noite! Eu não conheço a «prosopeia» russa! Sou apenas um desses tais médicos assistentes, muito ordinários, que andam por aí!

       - Andrew! - O rosto de Christine estava pálido. - Como podes dizer essas coisas!

       - Não é a pura verdade? Eu vi muito bem, enquanto suportava com sacrifício aquele maldito jantar. Eu tenho olhos na cara. Vejo que já estás cansada de mim. Só presto para andar por aí atolado na lama, encostando a cabeça em lençóis sujos, apanhando pulgas. Sou demasiadamente bruto para o teu gosto requintado.

       Na face pálida de Christine os olhos estavam sombrios e dolorosos, mas disse cem firmeza:

       - Como podes falar dessa maneira?! Se eu gosto de ti é porque és assim como és! Nunca poderia gostar de outra pessoa!

       - Está a ver-se! - resmungou ele, e saiu violentamente da sala.

       Durante uns cinco minutos errou pela cozinha, de um lado para outro, mordendo os lábios. De repente deu meia volta, precipitou-se na saleta, onde ela continuava de cabeça  baixa, desamparada, com os olhos perdidos no fogo do fogão. Andrew tomou-a ardentemente nos braços.

       - Chris, minha amada! - Gritou, num impulso de arrependimento. Querida, querida! Perdoa-me, pelo amor de Deus! Nada sentia do que disse. Sou um idiota, desvairado pelo ciúme. Adoro-te.

       Abraçaram-se louca, apaixonadamente. O perfume dos narcisos flutuava no aposento.

       - Tu não sabes - soluçou ela. - Tu não sabes que eu não posso viver sem ti?

       Mais tarde, quando ela se sentou, com o rosto encostado ao dele, Andrew disse estendendo o braço para apanhar um livro:

       - Quem é esse tal Trollope? Queres-me explicar? Eu sou um tipo tão ignorante!

 

       O Inverno passou. Andrew tinha agora mais um incentivo  com o seu trabalho sobre a inalação do pó. Para começar, planeou e levou a efeito um exame sistemático de todos os trabalhadores da mina de antracitte inscritos na sua lista.

       Eram mais agradáveis que nunca as noites que passavam  juntos, Christine e ele. Christine ajudava-o, passando a limpo as suas notas, perto do fogo, sempre alimentado pelo melhor carvão. Uma das vantagens da zona era que podiam ter sempre o carvão que quisessem a preço módico.

       Nas longas palestras que tecia com Christine, Andrew ficava assombrado com a extensão dos conhecimentos da mulher e a sua familiaridade com os livros - coisas, aliás, que ela nunca procurava ostentar. Além disso, Andrew começou a descobrir nela uma agudeza de instinto, uma intuição que tornava sempre excepcionalmente exactas as suas opiniões sobre literatura, música, e sobretudo o carácter das pessoas.

       - Sim, senhora! - procurava arreliá-la. - Só agora é que principio a conhecer a minha mulherzinha. Se está cansada, poderemos dispor de meia hora, para lhe dar uma trepa no piquet.

       Tinham aprendido o jogo com os Vaughan.

       Quando os dias se tornaram mais longos, Christine pôs-se a tratar do jardim abandonado sem falar nisso a Andrew. Jenny, a criada, tinha um tio-avô, de quem muito se orgulhava, como seu único parente. Era um velho mineiro  aposentado, que se tornou ajudante de Christine, com um pequeno ordenado. Andrew encontrou-os lá em baixo, no leito do riacho, iniciando uma ofensiva contra as latas velhas atiradas para ali.

       - Ô lá de baixo! - gritou Andrew da ponte. - Que estás fazendo aí? A dar cabo da minha pescaria?!

       Ela respondeu à troça com um gesto animado de cabeça.

       - Espera e verás.

       Em poucas semanas, Christine tirou toda a lataria enferrujada e desentupiu as passagens obstruídas. O leito do riacho estava limpo, as margens sem ervas e bem tratadas. À entrada do valado construiu-se um novo muro feito com pedras apanhadas aqui e além. John Roberts,  jardineiro de Vaughan, decidira aparecer de vez em quando, trazendo bolbas e estacas e dando conselhos. Foi com sensação de triunfo que Christine levou Andrew pelo braço para lhe mostrar os primeiros narcisos.

       No último domingo de Março, Denny veio visitá-los de surpresa. Correram ao seu encontro de braços abertos, desorientando-o no alvoroço das boas-vindas. Foi um grande prazer para Manson ver de novo aquela figura atarracada, aquelas sobrancelhas ruivas. Depois de mostrarem  a Denny toda a casa, de o regalarem com o que havia de melhor e de instalá-lo na poltrona mais confortável  da saleta, pediram-lhe animadamente notícias da terra.

       - Page apagou-se - anunciou Phillip. - Sim, o pobre, homem morreu há coisa de um mês. Outra hemorragia. E para ele foi um bem! - Tirou o cachimbo com a habitual  expressão de cinismo falseando no olhar. - Blodwen e o seu amigo Rees parece que estão de casamento tratado.

       - Bodas de ouro, para começar - disse Andrew com acentuado azedume. - Pobre Edward!

       - Page era boa pessoa. E competente - comentou Denny. - Sabe o horror que eu tenho a esta palavra «clínico»... e a tudo que fica por trás dela. Mas Page carregou o fardo com decência.

       Houve um silêncio. Ficaram pensando em Edward Page, o Edward Page que durante tantos anos se arrastara sobre as escórias de Blaenelly, sempre a sonhar com a ilha de Capri, os seus passarinhos, a luz do seu sol.

       - E que nos conta de si, Phillip? - perguntou Andrew afinal.

       - Eu sei lá... Estou a ficar inquieto. - Denny sorriu amargamente. - Blaenelly não parece a mesma depois que vocês saíram de lá. Parece-me que estou decidido a fazer uma viagem a qualquer parte. Talvez me torne médico de bordo... se houver um cargueiro vagabundo que precise de mim.

       Andrew ficou calado, entristecido mais uma vez pensar naquele homem inteligente, cirurgião de verdadeiro valor, que gastava ingloriamente a sua vida numa espécie de sadismo contra si mesmo. Contudo, Denny estaria realmente esbanjando a sua vida? Conversara várias vezes com Christine sobre Phillip, tentando decifrar  o enigma da sua carreira. Sabiam vagamente que se casara com uma mulher de situação social superior à sua e que ela procurara amoldá-lo às exigências de uma clientela  aristocrática para a qual de nada valia fazer operações  durante quatro dias da semana se o cirurgião não passasse os outros três em festas e caçadas. Depois de cinco anos de esforços da parte de Denny, a recompensa que ela lhe deu foi abandoná-lo displicentemente por outro homem. Não era de admirar, portanto, que Denny tivesse fugido para a província, desprezando convencionalismos  e odiando ortodoxias. Talvez voltasse um dia à civilização.

       Conversaram a tarde toda e Phillip só se retirou no último comboio. Mostrou-se interessado com as explicações  de Andrew sobre as condições da clínica de Aberalaw.

       E quando este aludiu, indignado, à questão da percentagem  que Llewellyn arrancava do salário dos assistentes,  Phillip disse com um sorriso intencional:

       - Julgo que o senhor não tolerará isso por muito tempo!

       Quando o amigo partiu, Andrew foi pouco a pouco, à proporção que os dias passavam, tomando consciência do vácuo, do estranho vácuo que se formara em torno do seu trabalho. Em Blaenelly, com Phillip perto dele, sempre  havia sentido um laço comum, um propósito definido que era partilhado entre eles. Mas em Aberalaw não havia esse laço, nenhum propósito de união sentia entre os colegas médicos.

       O Dr. Urquhart, seu companheiro da clínica Oeste, era um bom homem, mesmo com todo aquele modo desabrido  de falar. Todavia, era um velho, escravo da rotina absolutamente sem interesse. Embora a longa experiência  o habilitasse a farejar pneumonia no momento em que «enfiava o nariz» no quarto do doente, embora fosse hábil na aplicação de ligaduras e emplastros e um mestre em espremer furúnculos, embora gostasse de demonstrar, uma vez por outra, que podia fazer algumas pequenas operações,  era, no entanto, desoladoramente antiquado de muitos pontos de vista. Encarnava perfeitamente, aos olhos de Andrew, o velho tipo de bom médico de aldeia definido  por Denny: um doutor experiente, consciencioso, esperto,  sentimentalizado pelos doentes e pelo público em geral, mas que passa vinte anos sem abrir um livro de medicina e está quase sempre perigosamente atrasado nos seus conhecimentos. Ainda que Andrew estivesse sempre pronto para uma discussão sobre assuntos médicos com Urquhart, o velho nunca dispunha de tempo para «conversar  sobre negócios». Quando terminava o serviço diário, engolia a sua sopa de conserva preferia a de tomate, polia o seu novo violino, passava revista às suas velhas porcelanas, e em seguida escapulia-se para o Club Maçónico  a fim de jogar xadrez e fumar.

       Os dois assistentes da clínica Leste eram igualmente desalentadores. O Dr. Medley, o mais velho, era um homem de cerca de cinquenta anos, de fisionomia inteligente  e sensível, mas infelizmente surdo como uma porta.

       Não fora aquele defeito, que de certo modo divertia certa gente da terra, Charles Medley teria tido, sem dúvida, uma situação muito superior à de simples assistente naquela  região mineira. Como Andrew, ele era um clínico por excelência, notável no diagnóstico, mas não conseguia ouvir uma palavra do que lhe diziam os doentes. Não havia  dúvida de que tinha muita prática em compreender as palavras pelo movimento dos lábios, mas estava sempre atemorizado porque a sua surdez levava-o muitas vezes a enganos humorísticos. Causava dó ver os seus olhinhos cansados acompanhando, numa espécie de investigação desesperada, o movimento da boca do seu interlocutor.

       Porque estava sempre com medo de cometer um erro grave, só receitava doses mínimas de qualquer remédio. Não se retirava da actividade profissional porque tinha a vida atrapalhada e sustentava muita gente da família. Desde que enviuvara havia-se tornado uma criatura inutilizada, estranha e patética, num constante pavor de que o Dr. Llewellyn e a direcção lhe tirassem de repente o emprego.

       O outro assistente, o Dr. Oxborrow, era um tipo bem diverso do pobre Medley. Andrew não gostava tanto dele.

       Oxborrow era um gordo de dedos grossos e de cordialidade espasmódica. Manson pensou muitas vezes que o seu colega, com um pouco mais de agressividade, daria um óptimo bookmaker. Era Oxborrow, acompanhado pela mulher, quem tocava no harmónio portátil, levado por ele mesmo nas tardes de sábado para a cidade vizinha de Fernley era o motivo por que desaparecia aos sábados de Aberalaw. Ali, na praça principal, subia a um estradozinho atapetado e realizava uma sessão religiosa ao ar livre.

       Oxborrow era um evangelizador. Como idealista, acreditava  numa potência suprema que dirige o mundo. Andrew  poderia ter admirado aquele fervor. Mas Oxborrow  Deus do Céu!  era emotivo ao ponto de desorientar uma pessoa. Chorava de repente e rezava de modo ainda mais desconcertante. Uma vez, quando se viu a braços com um parto difícil, que exigia mais do que a sua habilidade,  caiu subitamente de joelhos aos pés da cama e, desfeito  em lágrimas, implorou ao Senhor que fizesse um milagre  para salvar a pobre mulher. Urquhart, que detestava  Oxborrow, contou a Andrew essa história. Foi Urquhart  quem, chegando nesse momento, avançou para o leito e terminou o parto com sucesso, tirando a criança a ferros.

       Quanto mais considerava os seus colegas assistentes e o método que seguiam no trabalho tanto mais desejava Andrew reuni-los num entendimento geral. Na situação  existente não havia unidade, espírito de cooperação e muito menos solidariedade entre eles. Integrado no sistema de concorrência estabelecido geralmente no exercício  da medicina em todo o país, lutavam uns com os outros,  procurando cada qual conseguir o maior número possível de clientes. A consequência eram desconfianças terríveis e sentimentos hostis. Por exemplo, quando um doente de Oxborrow transferia o seu cartão para o consultório de Urquhart, Andrew via este último tomar das mãos do homem o frasco do remédio receitado pelo colega, tirar-lhe a rolha, cheirá-lo com desprezo e explodir em seguida:

       - Era isto que Oxborrow lhe estava a dar?! O diabo o carregue! Estava a envenená-lo aos poucos!

       Entretanto, aproveitando-se da falta de coesão, o Dr. Llewellyn ia tirando calmamente o seu quinhão do ordenado de todos os assistentes. Andrew andava indignado,  ansioso por estabelecer uma combinação diferente, instituir um novo e melhor entendimento, que permitisse aos assistentes segurança e auxílio recíprocos sem alimentarem  a ganância de Llewellyn. Mas os seus próprios aborrecimentos, a consciência de ser ainda um novato no lugar e, acima de tudo, os mal-entendidos em que se vira envolvido no começo da actividade na sua própria zona, aconselhavam-lhe prudência. Só depois do seu encontro com Boland é que se decidiu a fazer a grande tentativa.

 

       Num dos primeiros dias de Abril, Andrew deu por uma cárie num dente, e como consequência foi procurar, numa tarde da semana seguinte, o dentista da Sociedade. Ainda não se encontrara com Boland e não sabia quais as suas horas de consulta. Quando chegou à praça onde Boland tinha instalado o pequenino consultório, achou a porta fechada com este letreiro a tinta vermelha: «Saí para fazer uma extracção. Em caso de urgência, procure-me em casa.»

       Depois de um momento de hesitação, Andrew decidiu ir até à residência do dentista para marcar uma hora.

       Depois de se informar do caminho com um dos rapazes estacionados à porta da Sorveteria do Vale, avançou para casa de Boland.

       Era uma pequena «vila», um pouca afastada, na parte alta do lado leste da cidade. Quando Andrew atravessou a entrada suja que servia a frente da casa ouviu marteladas  sonoras. Olhando pela porta escancarada de um barracão de madeira, quase em ruínas, que ficava ao lado da casa, viu um homem robusto e ruivo, que em mangas de camisa, atacava violentamente com um martelo a carrosserie desconjuntada de um automóvel. Entretanto o homem dera pela sua presença.

       - Olá! - disse ele.

       - Olá - respondeu Andrew um pouco contrafeito.

       - Que deseja o senhor?

       - Marcar uma hora com o dentista. Sou o Dr. Manson.

       - Faça o favor de entrar - disse o homem, acenando-lhe hospitaleiramente com o martelo. Era Boland.

       Andrew entrou no barracão, que estava atravancado com as peças soltas de um carro incrivelmente velho. No meio do barracão estava o chassis do automóvel apoiado em caixotes. Naquele momento o chassis parecia ter sido serrado ao meio. Os olhos de Andrew divagaram entre  Boland e aquele extraordinário espectáculo de engenharia.  

       - É essa a extracção?

       - É sim! - confirmou Con. - Quando consigo uma folga no consultório venho à garage e trato um pouco do carro. - Além de falar com sotaque irlandês muito carregado, Con empregava com incontido orgulho as palavras garage e «automóvel» para significar o barracão em escombros e o veículo em frangalhos. - O senhor não compreenderá o que estou agora a fazer - continuou - a não ser que tenha, como eu, temperamento de mecânico. Há cinco anos que possuo este carro e note bem, ele já estava com três anos de uso quando o comprei. O  senhor não  acreditará  vendo  o  automóvel agora todo desmantelado. Mas a verdade é que corre como um danado. Contudo, é muito pequeno, Manson; agora é pequeno de mais para a minha família. Assim, estou tratando de o aumentar. Cortei-o ao meio, como está a ver, e neste ponto aqui vou colocar um enxerto de dois pés de comprimento. Espere e verá quando a obra estiver pronta, Manson! - Foi à procura do casaco. -O automóvel ficará tão grande que poderá conduzir um batalhão. - Vamos agora ao consultório. Obturarei o seu dente.

       No consultório dentário, que estava tão desarrumado como a garage e, para falar com franqueza, igualmente sujo, Con obturou o dente sem deixar de perorar. Falava tanto e com tal violência que o bigodão ruivo estava sempre orvalhado de perdigotos. A cabeleira revolta, que desde há muito precisava dos cuidados do barbeiro, invadia a cara de Andrew quando o dentista se curvava sobre o cliente para colocar a massa de obturação que havia preparado  na ponta dos dedos oleosos. Nem sequer se dera ao incómodo de lavar as mãos. Isso não tinha importância para Con.

       Era um sujeito descuidado, impetuoso, de temperamento alegre e alma generosa. A medida que ia conhecendo Boland,  mais Andrew ia ficando seduzido pela sua simplicidade, pelo seu bom humor, pela sua rudeza e imprevidência.

       Em seis anos de trabalho em Aberalaw não conseguira economizar um centavo, mas arrancava da vida o máximo prazer. Tinha a mania da «mecânica», fazia constantes «gazetas» no trabalho do consultório e adorava o automóvel O próprio facto de Con possuir um automóvel já era motivo de brincadeira. Mas Con gostava imenso de brincadeiras,  mesmo quando o prejudicavam. Contou a Andrew que em certa ocasião, ao ser chamado para extrair um molar estragado de um membro importante da direcção saíra de casa com a convicção de que levava o ferro dentro do bolso, mas quando deu por isso estava a arrancar o dente com uma turquês de seis polegadas.

       Feita a obturação, Con atirou com os instrumentos para dentro de um frasco de compota cheio de lisol, pois era essa a sua humorada noção de anti-sepsia e convidou Manson para tomar chá em sua casa.

       - Venha, venha! - insistiu hospitaleiramente. Venha conhecer a minha gente. Estamos justamente na hora do chá: são cinco horas.

       A família de Con estava realmente a tomar chá quando eles entraram. Mas já estava demasiadamente acostumada às excentricidades de Boland para ficar embaraçada com o facto de trazer um estranho. Numa sala quente e desarrumada,  a mulher de Con estava sentada à cabeceira da mesa, dando de mamar a uma criança. Junto dela, Mary, de quinze anos, quieta, tímida.

       - É a única de cabelos pretos e a predilecta do pai - disse Con ao apresentá-la, explicando ainda que ela já estava a ganhar um bom ordenado como empregada de Joe Larkins, um bookmaker da Praça. Ao lado de Mary, Terence, de doze anos, e noutros lugares da mesa mais três crianças que começaram num berreiro jovial quando o pai apareceu.

       Havia em toda a família - excepto talvez na tímida e concentrada Mary - uma alegria imprevidente que encantou Andrew. A própria sala falava com jovial acento irlandês.

        Em cima do fogão e por baixo de uma fotografia colorida  do papa Pio X, enfeitada com ramos de qualquer arbusto, secavam as fraldas do bebé. A gaiola do canário, pouco limpa mas com muitos gorjeios, estava em cima do aparador, ao lado do espartilho da Sr.a Boland que o tirava do corpo para ficar mais à vontade e de uma lata de biscoitos aberta. Seis garrafas de cerveja preta, chegada pouco antes da loja, estavam sobre a cómoda, na companhia da corneta de Terence; num canto viam-se brinquedos quebrados, um par de botas velhas, um patim enferrujado, uma sombrinha japonesa, dois livros de missa já meio estragados e um volume de Photo-bits.

       Mas, ao tomar o chá, Andrew ficou fascinado pela Sr.a Boland. Não podia desviar os olhos dela. Pálida, sonhadora,  imperturbável, pôs-se a ingerir silenciosamente inúmeras  xícaras de chá preto, enquanto as crianças brigavam em torno e o bebé ia mamando calmamente no seu farto seio. Ela sorria, balançava a cabeça, cortava pão para os filhos, lambuzava as fatias com manteiga, punha chá na xícara, bebia e dava de mamar, tudo com uma espécie de tranquilidade distraída, como se longos anos de barulho, sujeira e desordem e estouvamentos de Con a tivessem levado finalmente a um plano de divino alheamento  das coisas, onde permanecia isolada e imune.

       Andrew quase deixou cair a xícara quando, fitando-o da outra ponta da mesa, ela lhe dirigiu a palavra, numa voz suave, como a desculpar-se:

       - Há muito tempo que estou para fazer uma visita à sua senhora, doutor. Mas ando tão ocupada...

       - Pelo amor de Deus! - Contorcia-se a rir. - Ocupada! Essa é boa! Ela não tem um vestido decente. É o que quer dizer. Tinha dinheiro para o comprar, mas, que diabo!,  o Terence ou um destes catraios também precisava de um par de sapatos. Não tem importância, minha velha. Esperemos até que o carro fique pronto e então apareceremos com toda a elegância. - Voltou-se para Andrew com absoluta naturalidade. - Vivemos muito apertados, Manson. É o diabo! Graças a Deus, nunca falta para comer, mas às vezes os cobres não dão para os trapos. Essa gente da direcção é muito sovina. E, o que ainda é pior, o «tirano»  ainda leva a sua fatia dos nossos proventos!

       - Quem? - perguntou Andrew, espantado.

       - Llewellyn! Tira um quinto dos nossos ganhos, tanto do meu como do seu.

       - Mas porque tem de ser assim?

       - Oh! Lá uma vez na vida examina um cliente meu. Durante os últimos anos extraiu em doentes meus dois quistos dentários. E é ele quem tira alguma radiografia quando é preciso. Mas é um sujo! - As crianças tinham ido brincar para a cozinha, de modo que Con pôde falar sem papas na língua. - Quero que ele e a sua carroça vão para o inferno. A limousine com todas as suas pinturas. Deixe-me contar-lhe, Manson. Uma vez, quando eu subia o morro Mardy, atrás do automóvel dele, resolvi pisar o acelerador. Ah! Jesus! Se o doutor visse a cara do homem quando teve de engolir a poeira que levantei!

       - Ouça, Boland - disse Andrew, com vivacidade. - Essa pouca vergonha de Llewellyn nos roubar um quinto do nosso ordenado é uma exploração miserável. Porque não tentamos acabar com isso?

       - Como?

       - Porque não tentamos acabar com isso - repetiu Andrew,  levantando a voz. Sentiu o sangue ferver ao som das suas próprias palavras. - É uma injustiça flagrante. Vivemos a trabalhar fortemente, procurando fazer a nossa vida... Ouça, Boland, o senhor é justamente o homem de que eu precisava encontrar. Quer acompanhar-me nesta questão? Reuniremos os outros assistentes. Faremos uma frente única...

       O olhar de Con animou-se pouco a pouco.

       - Quer dizer com isso que pretende lutar com Llewellyn?

       - Isso mesmo.

       Con estendeu-lhe a mão, num gesto expressivo.

       - Manson, meu filho - declarou solenemente. - Estamos  aliados desde este momento.

       Andrew correu para casa a comunicar a Christine a rotura das hostilidades, cheio de animação, ansioso por combater.

       - Chris! Chris! Encontrei um homem que é uma jóia. Um dentista, de cabelos cor de fogo, completamente maluco... Isto é, igual a mim. Isso já tu sabes! Ouve, minha querida, vamos fazer uma revolução.  Ria animadamente.

       - Oh! Meu Deus! Se o velho Llewellyn soubesse o que lhe estamos a preparar!

       Andrew não necessitou de recomendação de prudência de Christine para agir com cuidado. Estava resolvido a proceder acertadamente em todas as coisas. Começou, portanto,  no dia seguinte com uma visita a Owen.

       O secretário mostrou-se interessado e objectivo. Disse a Andrew que a história da percentagem para Llewellyn fora uma combinação amigável entre o médico-chefe e o seus assistentes, a que a direcção fora estranha.

       - Veja, Dr. Manson - concluiu Owen. - O Dr. Llewellyn  é um homem muito inteligente e prestigiado por muitos títulos. Consideramos uma sorte tê-lo junto de nós. Mas ele recebe uma bela remuneração da Sociedade como superintendente médico, mas foram os senhores assistentes quem foram de opinião de que ele devia ganhar mais...

       «Pois vamos acabar com isso», disse Andrew consigo mesmo. E saiu satisfeito. Telefonou a Oborrow e a Medley e conseguiu que acedessem a comparecer em sua casa naquela  noite. Urquhart e Boland comprometeram-se a não faltar. E, pelo que pudera apreender de anteriores conversas,  Andrew sabia que nenhum deles gostava de perder um quinto dos seus honorários. Uma vez reunidos, a coisa andaria por si mesma.

       O passo seguinte era falar a Llewellyn. Depois de reflectir  sobre o assunto, chegara à conclusão de que seria uma atitude pouco correcta não avisar o médico do que pretendia fazer. Naquela tarde teve de ir ao hospital para agir como anestesista. Quando observou Llewellyn no decurso da operação um difícil e complicado caso abdominal não pôde reprimir o sentimento de admiração. Llewellyn era extraordinariamente competente. E não só competente como suave. Era a excepção, a única excepção, que para Denny vinha apenas confirmar a regra. Fazia tudo muito bem. Nada havia que o desorientasse. Desde os regulamentos  de saúde pública, que sabia de cor, até à mais moderna  técnica radiológica, todo o conjunto das suas múltiplas obrigações encontrava Llewellyn esplendidamente apto e preparado para executar.

       Depois da operação, enquanto Llewellyn lavava as mãos Andrew avançou para ele, tirando bruscamente o avental 

       - Desculpe-me melindrar a sua modéstia, Dr. Llewellyn mas não posso deixar de lhe manifestar a minha admiração pela maneira como tratou daquele tumor. Foi realmente  magistral.

       - Alegra-me muito a sua opinião, Manson. E, a propósito,  o senhor está a progredir consideràvelmente na aplicação  de anestésicos.

       - Não, não - mastigou Andrew. - Nunca serei hábil nesta coisa.

       Houve uma pausa. Llewellyn continuou a ensaboar calmamente  as mãos. Andrew, a seu lado, tossiu nervosamente. Agora, que chegara o momento, achava quase impossível  expressar-se. Mas conseguiu dizer:

       - Ouça, Dr. Llewellyn. Sinto-me no dever de o avisar. Nós outros, assistentes, achamos injusto ter de lhe pagar uma percentagem dos nossos ordenados. É uma coisa difícil  de dizer mas... Estou resolvido a propor que suspendam a contribuição. Vai haver uma reunião, hoje à noite, em minha casa. Prefiro que o senhor tome conhecimento antes agora do que mais tarde. Eu... eu quero que o senhor compreenda  que sou leal para consigo.

       Antes que Llewellyn pudesse responder, e sem o olhar, Andrew deu meia volta e saiu. Dissera aquilo muito mal. Mas de qualquer modo, estava dito. Quando os assistentes lhe comunicassem a resolução, Llewellyn não poderia queixar-se de ter sido tratado traiçoeiramente.

       A reunião em Vale View estava marcada para as nove horas da noite. Andrew mandou vir algumas garrafas de cerveja e pediu a Christine que preparasse sanduíches. Depois desses preparativos ela saiu calmamente, a fim de passar uma hora em casa dos Vaughan. Tomado de impaciência, Andrew marchava de um lado para outro do hall procurando concentrar as ideias. Começaram então a chegar os interessados: primeiro Boland, logo a seguir Urquhart, e por fim Oxborrow e Medley, os quais vieram juntos.

       Na sala de visitas, servindo cerveja e oferecendo sanduíches,  Andrew procurou criar um ambiente cordial.

       Como Oxborrow era o que lhe inspirava menos simpatia, dirigiu-se a ele em primeiro lugar.

       - Sirva-se à vontade, Oxborrow! Ainda há mais lá dentro!

       - Obrigado, Manson. - A voz do evangelista era glacial. - Eu  não bebo álcool de qualquer maneira que se apresente. É contra os meus princípios.

        Com os diabos! - disse Con com o bigode branco da espuma de cerveja.

       Como entrada aquilo não parecia auspicioso. Enquanto mastigava sanduíches, Medley estava atento e desconfiado,  manifestando no rosto a ansiedade concentrada do surdo. A cerveja já começava a excitar a beligerância natural de Urquhart. Depois de o encarar uns momentos, desfechou subitamente esta frase:

       Agora que estamos juntos, Dr. Oxborrow, talvez ache conveniente explicar como foi que Tudor Evans, de Glyn Terrace, 17, passou da minha lista para a sua.

       - Não me recordo do caso - respondeu Oxborrow, que fazia estalar distraidamente as juntas dos dedos.

       - Mas recordo-me eu! - explodiu Urquhart. - Foi um dos clientes que o senhor me furtou, com todo o seu ar de reverendo da medicina. E há mais...

       - Colegas! - exclamou Andrew, alarmado. - Por favor, por favor! Como poderemos chegar a alguma coisa de positivo se começarmos a brigar uns com os outros? Lembrem-se  do motivo por que estamos reunidos aqui.

       - Mas porque estamos aqui? - perguntou Oxborrow efeminadamente. Eu devia estar a atender um cliente.

       De pé, encostado ao fogão, com ar sisudo e concentrado, Andrew aproveitou imediatamente a ocasião para não deixar fugir a oportunidade de entrar na questão:

       - Pois o motivo é este, senhores! - Tomou fôlego. - Eu sou o mais novo dos que se encontram aqui e estou há pouco tempo neste emprego, mas... espero que me desculpem. Talvez por ser novo é que me vejo forçado a encarar certos assuntos. São coisas a que os senhores já estão habituados desde há muito tempo. Parece-me, em primeiro lugar, que o nosso sistema aqui está todo errado. Passamos o tempo a desprestigiar-nos e a estragar a nossa reputação, combatendo-nos uns aos outros sem considerarmos  a nossa situação como membros da mesma sociedade  médica, com maravilhosas oportunidades para trabalharmos  juntos. Todos os colegas que conheço preguejam que o médico passa uma vida de cão. Queixam-se de que trabalham de mais, têm as pernas cansadas, não dispõem de um minuto de descanso, comem à pressa, sempre ocupadíssimos  com as chamadas. Qual é a origem disso? É que não pensam em organizar a nossa profissão. Para explicar o que quero dizer, tomemos um exemplo: chamadas à noite! Os senhores sabem que todos nós vamos para a cama com um medo horrível de ser acordados no melhor do sono, para ir ver um doente. Estraga-nos as noites só a admissão da possibilidade de ter de sair. Suponham agora como seria confortável a certeza de não sermos chamados durante a noite. Um de nós ficaria incumbido de atender todas as chamadas nocturnas durante uma semana, em troca do sossego e do sono garantidos para o resto do mês. Cada um de nós faria o seu turno. Não seria excelente? Pensem como seria tranquilo o trabalho de todos durante o dia.

       Fez uma pausa observando as caras inexpressivas dos colegas.

       - Não concordo - zombou Urquhart. - Macacos me mordam! Antes passar uma noite inteira sem pregar olho do que deixar ir para as mãos desta raposa velha que e Oxborrow um dos meus doentes. Hi! Hi! Quando ele pede emprestado, não paga.

       Andrew interveio febrilmente.

       - Deixemos então isso de lado até nova reunião, pelo menos, já que parece não se chegar a acordo. Mas num ponto somos todos unânimes. E é por isso que estamos aqui. Essa tal percentagem que pagamos ao Dr. Llewellyn. - Calou-se. Todos agora olhavam para ele, interessados na questão que dizia respeito à algibeira. - Sabemos que isso é injusto. Já falei a Owen sobre o assunto. Ele diz que é assunto que não diz respeito à direcção, mas sim um caso para ser tratado por nós.

       - É de facto assim - explicou Urquhart. - Lembro-me da ocasião em que isso foi estabelecido. Foi há coisa de uns nove anos. Nessa época havia aqui dois azelhas como assistentes. Um na clínica Leste e o outro cá do meu lado. Atrapalhavam a vida de Llewellyn com as suas complicações. Um belo dia chamou-nos e disse que não estava disposto  a prestar-nos mais auxílio, a não ser que fizéssemos um acordo com ele. Foi assim que a história começou. E é assim que continua ainda hoje.

       - Mas o ordenado que recebe da direcção já o compensa  muito bem do seu serviço. E ainda recebe um dinheirão dos outros empregos. O homem está podre de rico.

       - Eu sei, eu sei - disse Urquhart com impaciência. - Mas pondere, Manson, que o homem é utilíssimo para nós. É o mesmo Llewellyn de sempre. E ele sabe isso muito bem. Se resolver não nos prestar o seu auxílio ficaremos em muito maus lençóis.

       - Mas porque temos de lhe pagar? - insistiu Andrew implacàvelmente.

       - Silêncio! Silêncio! - exclamou Con, enchendo mais uma vez o copo.

       Oxborrow lançou um olhar ao dentista.

       - Se me permitem que exponha a minha opinião, eu concordo com o Dr. Manson em que é uma violência o desconto que sofremos no ordenado. Mas a verdade é que o Dr. Llewellyn é um homem de alta posição, com muitos títulos prestigiosos, que com o seu nome dá uma grande distinção à Sociedade. Além disso, ele não se nega a tomar conta dos nossos casos mais difíceis.

       Andrew, surpreendido, fitou o colega.

       - O senhor deseja entregar a outro os seus casos difíceis?

       - Naturalmente - disse Oxborrow com petulância. - Porque não?

       - Pois não está certo que faça isso - berrou Andrew. - Eu faço questão de os conservar, de os tratar até ao fim!

       - Oxborrow tem razão - sussurrou Medley inesperadamente. - É a primeira regra da prática da medicina, Manson. O senhor compreenderá isso quando tiver mais idade. Passar a outro os casos complicados, ver-se livre deles!

       - Isso é o diabo, é o diabo! - protestou Andrew, esquentado.

       A discussão continuou, mas sem cordialidade, durante três quartos de hora. Por fim, Andrew, com o sangue a ferver, encontrou uma oportunidade para exclamar:

       - Nós temos de andar para a frente. Estão a ouvir-me? Já estamos metidos nisto. Llewellyn sabe que estamos a tratar do assunto. Eu mesmo o avisei hoje de tarde.

       - Como? - A exclamação saiu ao mesmo tempo de Oxborrow, Urquhart, e até de Medley. - Está a dizer, doutor, que preveniu o Dr. Llewellyn?

       Meio levantado da cadeira, Oxborrow lançou a Andrew um olhar estupefacto.

       - É claro que sim! Ele saberia mais cedo ou mais tarde. Mas o senhor não vê que basta apenas unirmo-nos, formarmos  uma frente única para vencer pela certa?

       - Oh diabo! - Urquhart estava lívido. - O senhor tem uma coragem!  O colega conhece a influência de que dispõe o Llewellyn. Manda em toda a parte. Teremos muita sorte se não formos todos para o olho da rua. Imaginem eu, com a minha idade, ter de arranjar outro emprego! - Seguiu na direcção da porta. - O senhor é um bom sujeito, Manson. Mas ainda é muito jovem. Boas noites.

       Medley levantara-se também apressadamente. A expressão  do seu olhar denunciava a sua intenção de ir directamente  ao telefone a fim de declarar a Llewellyn, desfazendo-se  em desculpas, que ele, Llewellyn, era um médico extraordinário e ele, Medley, podia servir-lhe de capacho.

       Oxborrow também estava de pé. Em dois minutos a sala esvaziou-se. Só ficaram Con, Andrew e o resto da cerveja.

       Terminaram a bebida em silêncio. Então Andrew lembrou-se  de que ainda havia seis garrafas na dispensa.

       Esvaziaram as seis garrafas e começaram a falar. Disseram coisas sobre a origem, a família e o carácter de Oxborrow, Medley e Urquhart. Trataram especialmente de Oxborrow e do seu harmónio. Nem ouviram Christine entrar e subir as escadas. Conversavam de coração aberto, como irmãos miseravelmente traídos.

       Na manhã seguinte Andrew começou o seu trabalho de mau humor e com uma terrível enxaqueca. Na Praça cruzou com o automóvel de Llewellyn. Andrew levantou a cabeça cumprimentando-o num tom contrafeito de desafio, mas Llewellyn dirigiu-lhe o melhor dos seus sorrisos.

 

       Durante uma semana Andrew andou irritado com a derrota, num desânimo cheio de azedume. Na manhã de domingo, habitualmente dedicada a um longo e agradável repouso, desabafou subitamente:

       - Não é o dinheiro, Chris! É uma questão de princípio. Quando penso nisso... É de endoidecer! Porque não posso deixar que as coisas continuem assim? Porque não gosto de Llewellyn? Ou, melhor, porque gosto dele agora e detesto-o daí a bocado? Diz-me sinceramente, Chris. Porque me rojo a seus pés? Serei invejoso? Que será?

       A resposta dela surpreendeu-o:

       - Sim, acho que és invejoso.

       - Como?

       - Não me atormentes os ouvidos, querido. Pediste-me que te falasse com sinceridade. És invejoso, terrivelmente invejoso. E porque não havias de ser? Nunca tive a pretensão de querer um santo para marido. Esta casa é bem clara e não preciso que tragas um resplendor em volta da cabeça.

       - Continua - rosnou - Andrew. Mostra-me todos os meus defeitos, já que começaste. Desconfiado! Invejoso! Devias ter notado isso antes de casar. Ah! E também demasiadamente novo, pelo que vejo. O octogenário Urquhart também me censurou essa circunstância.

       Houve uma pausa, durante a qual esperou a resposta para prosseguir na discussão. Depois disse irritadamente:

       - Porque havia de ter inveja de Llewellyn? Porque ele é extraordinariamente hábil no seu trabalho, sabe muito, e... principalmente porque tem todos os títulos de primeira ordem. Enquanto eu tenho apenas este, muito insignificante: formado em Medicina por uma universidade escocesa. Deus do Céu! Agora sei o que pensas de mim. - Furioso saltou da cama e começou a andar às voltas pelo quarto, de pijama. - Afinal, que importância têm os títulos? Uma fantasia! O que vale é o método, a habilidade clínica. Eu não acredito nessas fantasias que eles impingem nos livros. Creio é no que ouço nas pontas do meu estetoscópio. E se não sabes, fica sabendo que eu ausculto realmente. Estou a começar a descobrir coisas interessantes na minha investigação  sobre a antracite. Talvez lhes faça uma surpresa qualquer dia, minha cara senhora. Diabo! As coisas vão bem quando um cidadão se levanta num domingo para ouvir a mulher dizer que ele não sabe coisa alguma!

       Sentada na cama, Christine agarrou o estojo e começou a tratar das unhas, esperando que ele se acalmasse.

       - Eu não disse isso, Andrew. - A calma dela ainda mais o exasperou. - Só quis dizer... Querido, não deves ser assistente até ao fim da vida. Tu queres ter quem te ouça, quem preste atenção aos teus trabalhos, às tuas ideias... Oh! Compreendes bem o que quero dizer. Se tivesses um título de real mérito um M.D.(1) ou... o M.R.C.P.(2), isso ajudar-te-ia muito na tua carreira.

      

(1) Vide nota da p. 145 

(2) M. R. C. P. - abreviatura de Member of the Royal Colleges of Physicians. É um título médico que só pode ser conquistado mediante curso de provas.  (N. do T.)

      

       - O M.R.C.P. - repetiu ele inexpressivamente. Depois pensou: «Ah! Ela tem estas ideias na cabeça. O M.R.C.P. Oh! Tirar um título desses numa clínica de operários! Deveria aniquilá-la com o sarcasmo.» E como resposta aos seus pensamentos: - Não compreendes que eles só concedem esses títulos às testas coroadas da Europa?!

       Bateu com a porta e foi à casa de banho, para fazer a barba. Cinco minutos depois reapareceu com uma face rapada e a outra ainda com sabão. Estava arrependido, excitado.

       - Achas que eu posso fazer isso, Chris?! Tens toda a razão. Precisamos de novos ornatos para a nossa placa se quisermos ir para diante. Mas o M.R.C.P.... é o mais difícil dos exames de medicina, de todos os pontos de vista. E... é de matar! Bem... Ainda assim... Tenho de tomar informações...

       Sem acabar de expressar o que pensava atirou-se pela escada abaixo e correu ao Almanaque Médico. Voltou desolado,  no auge da decepção.

       - Naufragou tudo! - resmungou, desanimado. Tudo por água abaixo! Eu disse-te que era impossível. Há uma prova preliminar de línguas. Quatro idiomas. Latim, francês, grego e alemão. E duas dessas línguas são obrigatórias. Isso antes de começar o diabo do exame propriamente dito. Eu não sei línguas. Todo o latim que sei é... Ora, One. E quanto ao francês...

       Christine não respondeu. E Andrew nada mais disse.

       Ficou junto da janela, contemplando carrancudamente a paisagem. Por fim voltou-se, de testa franzida, ar preocupado, disposto talvez a não desistir.

       - E porque não poderia eu... com mil demónios! Chris... porque não poderia eu aprender essas línguas para o exame?

       Espalhando no chão os artigos de toilette de que se estava a servir ela saltou da cama e abraçou-o apertadamente.

       - Oh! Era isso que eu queria que dissesses, querido! Isso, sim, é que mostra bem o teu valor. Eu posso... Eu posso talvez auxiliar-te. Não te esqueças de que a tua velha mulher é uma professora aposentada!

       Passaram o dia todo fazendo planos alvoroçadamente. Atiraram Trollope, Tchekov e Dostoiewski para um dos quartos vazios. Dispuseram a saleta para campo de operações.

       E, naquela noite, Manson foi à escola na companhia  dela. A mesma coisa aconteceu na noite seguinte... e na seguinte...

       Às vezes Andrew sentia todo o sublime humorismo da situação e ouvia, vindo de muito longe, o riso zombeteiro dos deuses. Assentado a uma mesa nua junto da mulher, numa longínqua cidadezinha mineira de Gales, a repetir com ela: caput-capitis, ou Madame, est-ll possible que?... E lá vinham declinações, verbos irregulares, leituras em voz alta de Tácito...

       De vez em quando recostava-se subitamente na cadeira, com certa vaidade.

       - Ah! Se Llewellyn pudesse assistir a isto!... Que cara faria! E pensar que isso é apenas o princípio, que hei-de conquistar mais tarde todos os títulos médicos!

       No fim do mês seguinte, pacotes de livros começavam a chegar periodicamente a Vale View, vindos da filial de Londres da Livraria Médica Internacional. Andrew retomou  os estudos no ponto onde os deixara ao sair da universidade.

        Descobriu então que os abandonara antes do tempo. Ficou impressionadíssimo ao verificar o avanço da bioquímica na terapêutica. Travou conhecimento com glândulas suprarrenais, ureia no sangue, metabolismo basal  e a falibilidade do exame de albumina. Quando essa pedra angular dos seus dias de estudante caiu na terra, gemeu em voz alta:

       - Chris! Sou um ignorante. E todas essas matérias me matam!

       Tinha de atender ao trabalho da clínica. Só dispunha das noites para estudar. Sustentado por café bem forte e por uma toalha molhada em torno da cabeça, continuou a batalhar, estudando até de madrugada. Quando caía na cama, exausto, às vezes não conseguia dormir. Noutras ocasiões, quando adormecia era para acordar de repente, encharcado em suor, num pesadelo, com a cabeça atordoada  com termos, fórmulas e algumas imbecilidades pretensiosas  do seu francês que ainda não passava das bases.

       Fumava de mais, emagreceu, o rosto adelgaçou. Mas Chris estava a seu lado, constante e silenciosa, procurando oportunidade para ele falar, desenhar diagramas, explicar numa língua cheia de termos difíceis e extraordinária, a espantosa, a impressionante acção selectiva dos canalículos  renais. Ela também admitia que o marido gritasse, gesticulasse e, quando os nervos se destrambelhavam, que dissesse disparates.

       As onze horas, quando Christine trouxe o café, Andrew estava com vontade de discutir.

       - Porque não me deixas em paz? Que xaropada é essa que trazes aí? Cafeína... É uma droga venenosa. Sabes que me estou a matar, não sabes? E tudo por tua causa. És terrível! Terrivelmente rude. És uma autêntica carcereira, andando para cima e para baixo a vigiar o preso! Nunca hei-de conseguir esse amaldiçoado título. Há centenas de sujeitos das clínicas elegantes de Londres e dos grandes hospitais a tentar a mesma coisa. E eu... eu, de Aberalaw! Ah! Ah! - Era um riso histérico. - Eu, assistente da velha e querida Sociedade de Auxílios Médicos! Oh! Meu Deus! Estou tão cansado e tenho a certeza de que me vão arrancar de casa esta noite para esse parto nos confins do Cefan Row e...

       Christine era melhor combatente do que ele. Possuía o senso do equilíbrio que os sustentava nessas crises. Tinha  também os seus nervos, mas sabia dominá-los. Fez sacrifícios, recusou todos os convites dos Vaughan, deixou de ir aos concertos no Temperance Hall. Fosse qual fosse a hora a que se deitasse estava sempre de pé desde cedo, arranjada, com o primeiro almoço de Andrew pronto para quando ele descesse, arrastando-se, sem a barba por fazer, o primeiro cigarro do dia entre os lábios.

       De repente, quando já haviam decorrido seis meses de preparação para os exames, a tia de Christine, que morava em Bridlington, adoeceu com uma flebite e escreveu pedindo-lhe que fosse vê-la. Ao mostrar a carta ao marido, declarou imediatamente que era impossível deixá-lo. Mas, curvando-se sobre o prato de presunto com ovos, ele resmungou :

       - É preciso que vás, Chris! Quero que vás. Estudando desta maneira eu me arranjarei melhor sem ti. Com os nossos nervos destroçados demos ultimamente para nos zangarmos. Desculpa... mas... parece-me que é a melhor coisa a fazer.

       Ela partiu, contra vontade, no fim da semana. Antes de um dia passado, Andrew compreendeu o erro. Com Christine ausente a casa era um tormento. Embora tudo fizesse de acordo com as instruções cuidadosamente determinadas por Christine, Jenny era uma calamidade permanente. Mas não era a comida de Jenny, não era o café requentado, nem a cama mal feita que o irritavam. Era a ausência de Christine. Era saber que ela não estava em casa, não poder chamá-la, não sentir a sua presença. Surpreendia-se a olhar tristemente para os livros, perdendo horas e horas com ela no pensamento.

       Ao fim de quinze dias Christine telegrafou prevenindo que ia voltar. Andrew desprezou tudo e preparou-se para recebê-la. Nada havia que prestasse, que produzisse o efeito desejado para o momento da recepção. O telegrama não lhe dera muito tempo, mas ele pensou com rapidez e correu à cidade para fazer extravagâncias. Comprou primeiro um ramo de rosas. Na peixaria de Kendrick teve a sorte de encontrar uma lagosta fresquinha. Arrebatou-a apressadamente, antes que a Sr.a Vaughan a quem Kendrick dava preferência para essas preciosidades pudesse telefonar para lhe tomar a conquista. Comprou gelo em quantidade e verduras ao homem do lugar e, finalmente, sempre trepidante,  encomendou uma garrafa de Moselle, que Lampert,  o merceeiro da Praça, lhe garantira ser excelente.

       Depois do chá disse a Jenny que podia retirar-se, pois já sentia o olhar da criadinha, cheia de curiosidade, voltado para ele. Pôs-se então a trabalhar e preparou amorosamente uma salada de lagosta. Transformou o balde de zinco da despensa, cheio de gelo, numa excelente vasilha para refrescar o vinho. Para as flores apresentou-se-lhe uma dificuldade imprevista, pois Jenny havia fechado o guarda-louça, onde estavam guardadas as jarras, e parecia ter escondido a chave. Mas venceu até mesmo esse obstáculo, colocando metade das rosas no jarro da água e o restante no copo dos dentes, da casa de banho. Isso dava até uma curiosa impressão de variedade.

       Finalmente acabou os preparativos: as flores, a comida,  o vinho no gelo. Andrew passava revista a tudo com intensa alegria. Depois do trabalho nocturno do consultório,  por volta das nove e meia, correu para a estação, a fim de esperar Christine.

       Era como se estivesse de novo apaixonado, com o coração  dos primeiros dias. Foi com ternura que a conduziu à sua festa de amor. A noite estava quente e silenciosa, a Lua brilhava no alto. Andrew esqueceu todas as complicações do metabolismo basal. Disse a Christine que poderiam supor estar na Provença, ou noutro qualquer lugar semelhante, onde houvesse um castelo esburacado sobre o rio. Acrescentou que ela era uma garota bonita e interessante e que ele tinha sido muito grosseiro com ela, mas que daí por diante, até ao fim da vida, seria um capacho   não vermelho, pois ela não gostava dessa cor, estendido no seu caminho. Pronunciou ainda mais frases românticas, mas no fim dessa semana já lhe pedia que lhe trouxesse as chinelas.

       Agosto apareceu poeirento e abrasador. Chegado ao fim do seu programa de estudo, Andrew viu-se a braços com a necessidade de recapitular os exercícios práticos, especialmente  de histologia. E era aparentemente uma dificuldade  intransponível na situação em que se achava. Foi Christine quem pensou no Prof. Challis e na sua posição na Universidade de Cardiff. Quando Andrew lhe escreveu, Challis respondeu imediatamente, afirmando, com muitas frases, que poderia contar com a sua influência junto da secção de patologia. Encontraria ali, na pessoa do Dr. Glyn-Jones, acrescentava ele, um companheiro de primeira  ordem. Concluía a carta pedindo afectuosamente notícias de Christine.

       - Devo-te isto, Chris! Sempre vale alguma coisa ter bons amigos. E quase que perdi a oportunidade de me encontrar com Challis não querendo ir, naquela noite, a casa dos Vaughans. O velho é fanfarrão, porém decentíssimo! Mas, de qualquer modo, tenho horror a pedir favores. E que história é essa de te mandar recomendações tão meigas?

       No meado do mês apareceu em Vale View uma motocicleta,  marca Red Indian, em segunda mão. A máquina era baixinha, fora de moda, mas o proprietário anterior garantia ser «muito veloz». Na época morta do Verão havia três horas durante a tarde que Andrew podia considerar virtualmente como suas. E todos os dias, logo depois do almoço, um bólide vermelho corria pelo vale, na direcção de Cardiff, que ficava a uma distância de trinta milhas.

       E todos os dias, por volta das cinco da tarde, o mesmo bólide vermelho, um pouco mais empoeirado, vinha na direcção oposta, parando em Vale View.

       Durante algumas semanas foi aquele esforço. Correrias diárias de sessenta milhas, num calor de rachar, com uma hora apenas de intervalo para trabalhar entre os espécimes  e as lâminas de Glyn-Jones, segurando às vezes o microscópio com as mãos ainda trémulas das vibrações do guiador. Para Christine a parte mais inquietante de toda aquela aventura era vê-lo partir com fisionomia morta de cansaço e esperar ansiosamente o primeiro sinal do seu regresso, temendo nesse interim que pudesse acontecer  alguma coisa ao marido, curvado sobre o guiador daquela máquina infernal.

       Embora andasse sempre acelerado, ele encontrava tempo para trazer, de vez em quando, alguns morangos de Cardiff. Guardavam a fruta para depois do trabalho no consultório. À hora do chá Andrew aparecia sempre sujo de poeira e com os olhos vermelhos, conjecturando preocupadamente se o seu duodeno não iria ficar inflamado por causa da água da cisterna que bebera no caminho, perguntando a si mesmo se não poderia atender antes das consultas nocturnas as duas chamadas recebidas durante  a sua ausência.

       Mas realizou afinal a última viagem. Glyn-Jones já nada mais tinha para mostrar-lhe. Conhecia de cor todas as lâminas e todos os espécimes. Só restava agora inscrever-se e pagar as pesadas taxas de exames.

       No dia 15 de Outubro, Andrew tomou sozinho o comboio para Londres. Christine levou-o à estação. Agora, que estava  em vésperas do grande acontecimento, dominava-o uma estranha tranquilidade. Os anteriores esforços, com todas as reacções histéricas, tinham levado o cérebro a um estado que lhe dava a impressão de que tinha a cabeça oca, de que nada sabia.

       No entanto, na manhã seguinte, quando começou a fazer a prova escrita do exame, que se realizava na Faculdade de Medicina, surpreendeu-se a desenvolver o questionário com verdadeiro automatismo. Escreveu, escreveu, sem olhar para o relógio, enchendo folhas e folhas a ponto de sentir a cabeça estonteada.

       Tomara um quarto no Museum Hotel, onde Christine e ele tinham ficado na sua primeira visita a Londres. O hotel era modestíssimo, mas a comida infame, proporcionando  a oportunidade para que a sua digestão perturbada  redundasse numa dispepsia. Obrigou-se a uma dieta mais rígida, tomando somente leite. O seu almoço consistia  apenas num copo de leite, tomado numa confeitaria do Strand. No intervalo das provas vivia num verdadeiro atordoamento. Nem lhe passava pela cabeça a ideia de se distrair. Quase não saía à rua. Só uma vez, por acaso, deu um passeio de autocarro para desanuviar o cérebro.

       Logo depois das provas escritas começaram as práticas e orais. Andrew sentiu-se ainda mais amedrontado diante destas últimas do que das primeiras. com ele concorriam uns vinte candidatos, todos mais velhos do que ele e qualquer deles com ar inconfundível de confiança e boa situação. O candidato que estava a seu lado, por exemplo, um tal Harrison, com quem conversara uma ou duas vezes, era formado por Oxford, tinha um cargo no hospital do governo e consultório num dos bairros de nomeada.

       Quando Andrew comparou as maneiras encantadoras e o desembaraço de Harrison com o seu provincianismo desajeitado, compreendeu serem muito diminutas as suas possibilidades  de provocar boa impressão nos examinadores.

       Na prova prática, efectuada no hospital da zona sul de Londres, foi muito bem, segundo imaginava. O caso que teve de desenvolver era bronquite num rapazito de catorze anos. Como conhecia intimamente assuntos pulmonares  fora realmente bofejado pela sorte. Tinha a impressão  de ter feito uma boa prova, mas quando começou a oral a sorte pareceu mudar completamente. As provas orais na Faculdade de Medicina tinham as suas peculiaridades.

        Durante dois dias cada candidato era arguido por dois professores sucessivamente. Se ao fim da primeira sessão o candidato fosse considerado incompetente, era-lhe entregue um bilhete, em termos polidos, avisando-o de que não devia voltar no dia seguinte. Na perspectiva desse fatal aviso, Andrew ficou apavorado quando lhe coube por sorteio para primeiro examinador um homem sobre quem ouvira falar com viva apreensão: o Dr. Maurice Gadsby.

       Gadsby era um homem franzino e chupado, com olhinhos  miúdos e bigode preto retorcido. Recentemente eleito para a congregação, nada tinha da tolerância dos examinadores  mais velhos. Pelo contrário, parecia disposto a reprovar todos os candidatos que perante ele compareciam.

       Encarou Andrew de testa enrugada e pôs seis lâminas na sua frente. Cinco dessas lâminas foram identificadas correctamente pelo examinando, que não conseguiu identificar  a sexta. E foi exactamente nesta que se concentrou a atenção de Gadsby. Durante cinco minutos perseguiu Andrew. Era, ao que parecia, um óvulo de um parasita obscuro da África Ocidental. Depois disso, displicentemente,  sem manifestar interesse, passou o candidato ao outro examinador, sir Robert Abbey.

       Andrew levantou-se e atravessou a sala, pálido e de coração opresso. Toda a lassidão, toda a inércia que experimentara  no começo da semana tinham desaparecido agora. Sentia um desejo quase desesperado de ser bem sucedido. Mas estava certo de que Gadsby o reprovaria.

       Levantou os olhos e viu Robert Abbey a contemplá-lo com um sorriso amável, meio divertido.

       - Que há? - perguntou Abbey inesperadamente.

       - Nada, Sr. Professor - murmurou Andrew. - Parece que não me saí bem com o Dr. Gadsby. Só isso.

       - Não se preocupe. Lance uma vista de olhos para estes espécimes. E depois diga-me qualquer coisa sobre eles.

       Abbey sorria encorajadoramente. Era um homem de cerca de sessenta anos, cara raspada, compleição um tanto rude, testa alta, boca larga e bem humorada. Embora Abbey fosse talvez nessa época um dos três médicos mais ilustres da Europa, havia conhecido muitas provações e dificuldades  no começo da sua vida profissional. Vindo da aldeia natal, apenas com o esteio de uma reputação provinciana, teve de enfrentar em Londres toda a espécie de preconceitos e oposições. Enquanto fitava Andrew e dissimuladamente observava o seu fato mal feito, a camisa pobre, o colarinho mole, a sua gravata ordinária com o nó muito mal dado, a expressão de esforço no rosto fatigado, voltaram  à memória de Abbey os dias da sua juventude provinciana. Instintivamente, o seu coração inclinou-se para aquele candidato, diferente dos outros. Percorrendo a nota dos resultados já obtidos verificou com satisfação que as classificações do rapaz, especialmente na prova prática, estavam acima da média.

       Entretanto, com os olhos fitos nos recipientes de vidro diante dele, Andrew ia mastigando melancolicamente os seus comentários sobre os espécimes.

       - Basta - disse Abbey subitamente. Tomou um espécime   era de um aneurisma de aorta ascendente e começou  a interrogar Andrew de modo amigável. As perguntas, simples no começo, foram-se tornando mais complicadas e mais difíceis, até chegarem finalmente a abranger um novo tratamento específico, por inoculação da malária. Mas a atitude simpática de Abbey deixou Andrew à vontade e respondeu bem.

       Por fim, pondo de lado o espécime, Abbey perguntou:

       -  Sabe alguma coisa sobre a história do aneurisma?

       - Ambrose Pare - respondeu Andrew, e Abbey já começara  a fazer um sinal de aprovação - é o pretenso descobridor do aneurisma!

       Abbey fez uma cara de espanto.

       - Como pretenso, Dr. Manson? Foi precisamente Pare quem descobriu o aneurisma.

       Andrew ficou vermelho e depois empalideceu quando desenvolveu o assunto:

       - Bem, Sr. Professor, é de facto o que dizem os livros. Encontrará isso em qualquer deles. Eu mesmo me dei ao trabalho de verificar tal afirmação em seis obras  Respirou apressadamente. Mas, por acaso, estive a ler Celsus, para repassar o meu latim... que precisava de facto de ser repassado, Sr. Professor... e deparou-se-me a palavra aneurismus. Celsus conhecia o aneurisma. Ele descreve-o minuciosamente. E isso foi uns treze séculos antes de Pare!

       Houve um silêncio. Andrew levantou os olhos, preparado  para receber uma censura afável. Abbey encarava-o com uma expressão estranha nas feições simpáticas.

       - Dr. Manson - disse afinal. - O senhor é o primeiro candidato nesta sala de exames que me diz qualquer coisa de original, de verdadeiro, e que eu ignorava.

       Andrew ficou de novo vermelho.

       - Diga-me mais uma coisa. É uma questão de curiosidade  pessoal. Que considera o senhor como princípio dominante,  quero dizer... Qual a ideia fundamental que lhe acode ao espírito quando está no exercício da sua profissão?

       Houve uma pausa durante a qual o cérebro de Andrew funcionou desesperadamente. Por fim com a impressão de que ia estragar todo o bom efeito que tinha produzido, respondeu um pouco ao acaso:

       - Creio... Creio... O que afirmo sempre a mim mesmo é que coisa nenhuma devo considerar como definitiva.

       - Obrigado, Dr. Manson.

       Quando Andrew deixou a sala, Abbey pegou na pena. Sentia-se jovem outra vez e perigosamente sentimental. Pensou: «Se ele me tivesse dito que a medicina é um sacerdócio, que só cogitava em curar os enfermos de socorrer  a humanidade sofredora, palavra de honra que me vingaria dessa decepção dando-lhe um zero». Mas, contente com a resposta, Abbey traçou em frente do nome de Andrew  a nota máxima - o famoso 100 de que nunca houvera exemplo. E, sem dúvida, se pudesse «passar da conta» como pensava no seu foro íntimo, gostaria de dobrar aquele número.

       Algum tempo depois, Andrew desceu a escada com os outros candidatos. Em baixo, ao lado de uma mesinha forrada de couro, um porteiro de libré levantara-se com uma pilha de sobrescritos. À medida que os candidatos iam passando entregava um deles a cada um. Harrison que seguia ao lado de Andrew, rasgou o sobrescrito apressadamente. A expressão alterou-se-lhe. Disse devagar:

       - Parece que não me querem cá amanhã. E depois com um sorriso forçado: - E o senhor como foi tratado?

       Os dedos de Andrew tremiam. Quase não podia ler.

       Atordoado, ouviu Harrison felicitá-lo. As suas esperanças ainda se podiam manter. Foi até à leitaria e bebeu um copo de leite pasteurizado. E pensava, no auge da tensão nervosa: «Se depois de tudo isso eu não passar... eu... atirar-me-ei para debaixo de um carro.» O dia seguinte foi de arrasar os nervos. Mais de metade dos candidatos já tinha sido eliminada e constava que o restante também já estava condenado. Andrew não fazia a menor ideia se estava bem ou mal. Sabia apenas que a cabeça lhe doía horrivelmente, que os pés estavam gelados e que sentia um vazio dentro de si.

       Afinal terminaram as últimas provas. Às quatro da tarde Andrew saiu da sala, exausto, melancólico, endireitando  nervosamente o casaco. Então, percebeu que Abbey estava ali, em frente do fogão do hall. Fez menção de passar, porém Abbey, não sabia porquê, estava de mão estendida, sorrindo, falando, dizendo-lhe... dizendo-lhe que fora aprovado.

       Graças a Deus! Tinha passado! Conquistara o título!

       Sentiu-se outra vez cheio de vida, maravilhosamente cheio de vida. A dor de cabeça desaparecera. Todo o cansaço desaparecera. Todo o cansaço passara. E quando correu para o posto do correio mais próximo, o coração cantava, cantava loucamente. Fora aprovado, ganhara o título, tendo saído não da zona elegante de Londres, mas de uma remota cidade mineira. Todo ele era exaltação esfuziante.

       Afinal de contas sempre valera a pena o grande esforço, aquelas noites intermináveis, aquelas correrias loucas a Cardiff, aquelas horas fatigantes de estudo. E corria pelas ruas, dando encontrões a toda a gente, os olhos fuzilando numa correria doida, na ânsia de telegrafar a Christine a comunicar o milagre.

 

       Já era perto da meia-noite quando o comboio chegou a Aberalaw. Vinha com trinta minutos de atraso. Em todo o percurso do vale a locomotiva lutou com um terrível vendaval. Quando desceu à plataforma quase foi arrastado pela violência do furacão.

       A pequenina gare estava deserta. As árvores plantadas em frente da estação encurvavam-se como arcos, tremendo e assobiando ao sopro da ventania. E lá em cima as estrelas  brilhavam com fulgor mais distante.

       Andrew seguiu ao longo da Station Road. As rajadas, que o levavam a encolher o corpo, como que lhe excitavam o espírito. Cheio do seu triunfo, do seu contacto com os corifeus das altas rodas médicas, com as palavras de Sir Robert Abbey a ecoarem-lhe nos ouvidos, queria chegar a toda a pressa junto de Christine, para lhe contar alegremente como tudo aquilo decorrera. O telegrama já lhe antecipara a boa notícia; mas agora ele queria explicar nos mínimos pormenores toda aquela aventura emocionante.

       Quando, de cabeça baixa, desembocava em Talgarth Street, teve de repente a impressão de que corriam atrás dele. Um homem pisava fortemente mas o ruído dos seus passos na calçada ao perder-se no fragor do vendaval sugeria  a ideia de um fantasma. Andrew parou instintivamente.

        Quando o homem se aproximou, viu que era Frank Davies, do serviço de socorro do poço n.º 3 da mina de antracite. Davies tinha sido um dos seus alunos no curso de Pronto-socorro que organizara na Primavera anterior.

       Davies também reconheceu logo o médico.

       - Estava à sua espera, doutor. Ia agora à sua casa. O vento derrubou os postes telefónicos. Uma rajada mais forte abafou as suas últimas palavras.

       - Que aconteceu? - gritou Andrew.

       - Houve um desmoronamento no poço n.º 3. - Chegou-se  mais para junto de Manson, pondo as suas mãos em funil para ser ouvido melhor. - Um trabalhador está sepultado lá em baixo. Não parece possível arrancá-lo de lá. É o Sam Bevan. Está na sua lista. É melhor o doutor dar um pulo até lá, para socorrer o homem.

       Andrew deu alguns passos em companhia de Davies, mas de repente lembrou-se.

       - Preciso da minha maleta - berrou para o outro. - Corra à minha casa e vá buscá-la. Vou directamente ao poço n.º 3. Olhe, Frank, diga a minha mulher onde fui.

       Precipitando-se pela margem da linha férrea e atravessando  depois Roath Lane, quase que arrastado pela ventania, em menos de cinco minutos Andrew chegava ao poço n.º 3. No posto de socorros encontrou à sua espera três trabalhadores e o subdirector, cuja fisionomia se desanuviou um pouco ao vê-lo.

       - Boas noites, doutor. Estamos todos às voltas com a tempestade. E ainda por cima tivemos um desmoronamento. Ninguém morreu, graças a Deus, mas um dos rapazes  ficou preso pelo braço. Não podemos levantá-lo nem uma polegada. E o tecto da galeria ameaça desabar.

       Dirigiram-se para a torre balouçante do poço. Dois dos trabalhadores carregavam uma padiola com talas espalhadas. O outro levava uma caixa com material de pronto-socorro. Quando entraram no elevador de madeira um vulto apareceu do pátio, a correr. Era Davies, ofegante, com a maleta.

       - Andou ligeiro, Frank - disse Manson quando Davies, no elevador, se agachou a seu lado.

       Davies apenas abanou a cabeça. Não podia falar. Houve um rangido de cordas, um momento de ansiedade e a gaiola foi descendo, até bater no fundo da galeria. Saíram todos um a um; o subdirector em primeiro lugar, depois Andrew, Davies ainda com a maleta na mão e por fim os três mineiros.

       Andrew já havia percorrido galerias de mina. Estava acostumado às galerias altas dos jazigos de Blaenelly, grandes cavernas escuras e ressoantes, cavadas bem no fundo da terra, onde o minério era arrancado do seu leito.

       Mas aquele poço n.° 3 era uma mina velha com um longo e tortuoso caminho que ia dar aos trabalhos de mineração.

       A galeria era menos um corredor que uma furna apertada e baixa, tosca e gotejante, através da qual tinham de engatinhar  muitas vezes, mesmo rastejar, numa distância de quase meia milha. De repente a lanterna que trouxera o subdirector imobilizou-se logo adiante de Andrew e este compreendeu que tinham chegado.

       Manson avançou um pouco, rastejando devagarinho.

       Três homens, ligados, cada um puxando pela cintura o que estava na frente, faziam o que lhes era possível para arrancar do fundo de um buraco o operário que jazia numa atitude confusa, o corpo torcido para um lado, um ombro virado para trás, aparentemente perdido na massa das rochas desmoronadas em torno dele. Ao lado dos homens viam-se instrumentos espalhados, dois bornais de merenda amolgados, casacos abandonados.

       - Como se passam as coisas, rapazes? Perguntou o subdirector em voz baixa.

       - Não há possibilidade de o arrancarmos dali - o homem que respondeu voltou a cara suada e suja. - Já experimentámos tudo.

       - Pois não continuem - disse o subdirector lançando um olhar ansioso para o tecto da mina. - Aqui está o doutor. Afastem-se um pouco, rapazes, e deixem espaço livre. É melhor irem lá para trás.

       Os três homens afastaram-se do buraco e Andrew, a quem abriram caminho, avançou. Nesse instante pela sua cabeça perpassou a lembrança do seu exame recente, do progresso da bioquímica, da terminologia pomposa, das frases científicas. O exame não havia previsto uma contingência semelhante.

       Sam Sevan não perdera os sentidos. Mas as suas feições estavam muito pálidas sob a poeira produzida pelo desmoronamento. Esboçou um fraco sorriso para Manson. 

       - Está a parecer-me que o doutor vai agora fazer uma demonstração do serviço de pronto-socorro à minha custa  Bevan fora aluno do curso de socorro de emergência e mais de uma vez tinha sido requisitado para ajudar ao serviço de curativos.

       Andrew chegou junto do sinistrado. A luz da lanterna do subdirector, projectada por cima do seu ombro, correu as mãos pelo corpo do ferido, que estava livre, menos o antebraço esquerdo, preso nos escombros ao comprido e esmagado sob o enorme peso da rocha que imobilizava o homem. Estava ali como um prisioneiro.

       Andrew verificou imediatamente que o único meio de libertar Bevan era amputar-lhe o antebraço. E o pobre Sam, que o observava com os olhos aflitos onde se patenteava dor, leu essa decisão no momento em que ela fora considerada inevitável.

       - Faça o que tem a fazer, doutor - murmurou - mas tire-me daqui depressa.

       - Não se preocupe, Sam - disse Andrew. - Eu vou fazê-lo adormecer. Quando acordar já estará na cama.

       Agachado na lama sob o tecto de dois pés apenas de altura, ele tirou o casaco, dobrou-o e enfiou-o por debaixo da cabeça de Bevan. Arregaçou as mangas da camisa e pediu a maleta. O subdirector entregou-a e cochichou ao ouvido de Andrew.

       - Por amor de Deus, doutor, ande depressa. Este tecto vai desabar em cima de nós de um momento para o outro.

       Andrew abriu a maleta. Sentiu imediatamente um cheiro forte de clorofórmio. Antes mesmo de mergulhar a mão no bojo escuro da maleta e tocar num pedaço de vidro já adivinhara o que acontecera. Na pressa de chegar à mina Frank deixara cair a maleta. Quebrara-se o frasco. O clorofórmio entornara-se; o mal era irreparável. Um arrepio perpassou pelo corpo de Andrew. Não havia tempo para mandar alguém à superfície e não tinha anestésico!

       Talvez durante trinta segundos ficou paralisado. E então,  automaticamente, procurou com os dedos a seringa de injecção, encheu-a e aplicou a Bevan uma dose máxima de morfina. Não podia ficar à espera que o anestésico produzisse todo o efeito. Colocou a maleta inclinada de modo a ter os instrumentos ao alcance da mão, e disse, enquanto apertava o torniquete:

       - Feche os olhos, Sam!

       A luz era mortiça e as sombras moviam-se numa confusão  bruxuleante. À primeira incisão um gemido passou através dos dentes cerrados de Bevan. E gemeu outra vez.

       Então, quando o bisturi tocou o osso, teve a sorte de desmaiar.

       Um suor frio inundava a fronte de Andrew quando pinçou a artéria da carne mutilada de onde jorrava o sangue. Não podia ver o seu trabalho. Sentia-se sufocado ali, naquele buraco muito abaixo da superfície do solo, enterrado na lama. Não havia anestésico, nem sala de operações, nem uma série de enfermeiras para acorrer ao seu chamamento. Não era cirurgião. Estava apenas a fazer o que podia e talvez nem chegasse a um resultado satisfatório. O tecto da mina ia desabar em cima de todos.

       Atrás dele ouvia a respiração opressa do subdirector. De cima escorriam gotas de água muito fria que lhe caíam no pescoço. Ardiam os dedos manchados de sangue, que trabalhavam febrilmente. Tinha a percepção do ranger da serra e da voz de sir Robert Abbey, de muito longe: «A oportunidade para a prática científica...» Oh! Deus do Céu! Nunca chegaria a um resultado feliz!

       Enfim! O alívio foi tão grande que quase soluçou. Pôs um tampão de gase sobre o coto ensanguentado. Com as pernas a tremer disse:

       - Podem retirar o homem.

       À distância de uns metros numa clareira da galeria da mina, com espaço para ficar de pé e quatro lâmpadas em torno dele, ultimou o trabalho. Ali era mais fácil. Limpou, ligou, ensopou a ferida com anti-séptico. Um dreno agora, depois as suturas. Bevan continuava sem sentidos, mas embora fraca, a pulsação era normal. Andrew passou a mão pela testa. Pronto!

       - Levem com cuidado a padiola. Cubram o homem com esses cobertores.  Precisaremos de sacos de água quente assim que sairmos daqui.

       Curvando a cabeça nos lugares mais baixos, a lenta procissão começou a vencer as sombras da furna. Os homens  não tinham dado uns sessenta passos quando ecoou na escuridão atrás deles um estrondo surdo e abafado.

       Era o último rumor de um comboio entrando num túnel.

       O subdirector não olhou para trás. Disse apenas a Andrew, numa emoção a custo contida:

       - Aí está. É o resto do tecto que foi abaixo.

       A caminhada de volta durou cerca de uma hora. Tinham de arrastar a padiola meio inclinada para um lado nos lugares mais estreitos. Andrew já nem podia calcular desde quanto tempo estavam ali em baixo. Mas afinal chegaram  todos à boca da mina.

       Subir, subir depressa, sair daquelas profundezas, era a aspiração de todos. A chicotada fina do vento azorragou-lhes  a cara quando saíram do elevador. Numa espécie de êxtase, Andrew deu um longo suspiro. Ficou ao pé da escadinha de saída, encostado ao corrimão. Estava escuro ainda, mas tinham pendurado no pátio da mina uma grande lanterna de petróleo que crepitava e tremia em labaredas incertas. Em redor da lanterna, Andrew viu um pequeno grupo de figuras expectantes. Havia muitas mulheres  com xale na cabeça.

       De repente, quando a padiola vinha lentamente atrás dele, Andrew ouviu alguém gritar alucinadamente o seu nome. A seguir os braços de Christine enlaçaram-lhe o pescoço. Abraçada ao marido, soluçava desesperadamente.

       De cabeça descoberta, apenas com um casaco sobre a camisa de dormir, os pés sem meias enfiados em chinelinhas  de casa, era uma figura quase irreal naquela escuridão  tempestuosa.

       - Que aconteceu? - perguntou ele, espantado, tentando afrouxar os braços de Christine para lhe poder ver o rosto.

       Ela, entretanto, não o queria largar. Agarrava-o freneticamente,  como quem se está a afogar e murmurava entre soluços:

       - Disseram que o tecto da mina tinha desabado e que tu... que tu tinhas lá ficado.

       A pele estava azulada, os dentes rangiam. Andrew levou-a até ao fogão do posto de socorros, envergonhado, mas profundamente comovido. Tomaram ali cacau bem quente. Beberam os dois pela mesma xícara fumegante.

       E passou-se muito tempo antes que um deles se lembrasse de falar sobre o novo e grande título científico que Andrew conquistara.

 

       O salvamento de Sam Bevan não era coisa que causasse  sensação numa cidade como Aberalaw, que já havia conhecido, noutros tempos, os maiores desastres de minas.

       Contudo, foi motivo de grande prestígio para Andrew no seu distrito. Se tivesse voltado de Londres apenas com o sucesso científico, seria saudado simplesmente com um novo escárnio «por mais uma dessas tolices modernistas».

       Mas pelo que se passara recebia cumprimentos e sorrisos de pessoas que antes nem pareciam dar pela sua presença.

       A verdadeira extensão da popularidade de um médico podia ser avaliada pela sua passagem pelos quarteirões operários. Agora, onde outrora era desfeiteado por tantas portas que se fechavam estrondosamente, Andrew encontrava  todas elas escancaradas. Em mangas de camisa e fumando cachimbo, os moradores conservavam-se à entrada  das portas de fisionomia radiante, prontos para lhe dirigirem a palavra. As mulheres também estavam dispostas a convidá-lo a «entrar um instantinho». Quando passava na rua, as crianças saudavam-no risonhamente pelo nome.

       O velho Gus Parry, chefe de turno de brocadores do poço n.º 2 e o mais antigo do distrito oeste, resumia para os seus companheiros a nova corrente de opinião quando ficava parado olhando para a figura de Andrew que se afastava.

       - Então, rapazes! É um sujeito metido com os livros, não há dúvida. Mas também pode fazer coisas extraordinárias quando é preciso.

       Começaram a voltar cartões para o consultório de Manson. A princípio aos poucos, mas depois, quando se verificou que não recebia mal os desertores arrependidos, em repentina avalanche. Owen estava contente com o aumento de nomes da lista de Andrew. Um dia, ao procurá-lo na Praça, comentou, sorrindo:

       - Eu não lhe disse? E agora?

       Llewellyn demonstrou grande satisfação pelo resultado do concurso. Felicitou Andrew efusivamente pelo telefone e sub-repticiamente requisitou-o para serviço dobrado na sala de operações.

       - A propósito - observou ele, radiante, depois de uma longa sessão de aplicações de éter - você explicou aos examinadores  que era assistente numa instituição de auxílios médicos?

       - Mencionei o seu nome, Dr. Llewellyn - respondeu Andrew melifluamente, e isso foi o bastante para que tudo corresse bem.

       Oxborrow e Medley, da clínica Leste, fingiram ignorar o sucesso de Andrew. Mas Urquhart ficou realmente satisfeito,  embora o seu comentário tomasse a forma de um despejar de injúrias.

       - O Diabo que o carregue, Manson! Que pensa o senhor  que está a fazer? Quer humilhar-me com os seus titulescos?

       A fim de homenagear o distinto colega, consultou-o sobre um caso de pneumonia que estava a tratar e pediu-lhe  que fizesse o prognóstico.

       - Ela salva-se - disse Andrew e apresentou as razões científicas.

       Urquhart abanou a velha cabeça num gesto de dúvida.

       - Nunca ouvi falar nesse tal soro polivalente ou nestes seus anticorpos ou nestas suas unidades internacionais. Ela, porém, é Powell pelo sangue e se aos Powell incha a barriga quando estão com pneumonia, morrem sempre antes de oito dias. Conheço os antecedentes da família. Ela está com a barriga inchada, não está?

       O velho voltou ao assunto, com ar de sombrio triunfo sobre o método científico quando, ao fim de uma semana, a doente morreu.

       Denny, já então no estrangeiro, não teve conhecimento do novo título de Andrew. Mas chegou ainda um último e inesperado cumprimento. Era de Freddie Hamson, que enviou uma longa carta. Freddie tinha visto os resultados dos exames no Lancet, felicitava Andrew pelo seu sucesso, convidava-o a ir a Londres, e por fim expunha minuciosamente  as vitórias emocionantes que estava obtendo em Queen Anne Street, onde, como previra naquela noite passada em Cardiff, brilhava agora a sua placa.

       - É uma vergonha termos perdido contacto com Freddie - declarou  Manson. - Devo escrever-lhe mais amiúde. Tenho um palpite de que iremos vê-lo outra vez. Bonita carta, não é assim?

       - Sim, muito bonita - respondeu Christine secamente. - Mas parece que trata exclusivamente dele.

       Com a aproximação do Natal a temperatura tornou-se mais baixa. Dias arrepiantes e gelados e noites silenciosas e estreladas. O chão duro como ferro rangia sob os pés de Andrew. O ar, muito claro, era como um vinho capitoso. Enquanto se esboçava no seu espírito o novo passo que ia dar na grande investida para o problema da inalação das poeiras.

        As descobertas entre os seus próprios clientes levaram muito longe as suas esperanças e obtivera agora a permissão de Vaughan para estender o campo das pesquisa, procedendo a exames sistemáticos de todos os trabalhadores  nas três minas de antracite. Era uma oportunidade maravilhosa. Pensou empregar como elementos de verificação  os operários que trabalhavam no fundo da mina e os que labutavam à superfície. Queria começar logo no começo do Ano Novo.

       Na véspera de Natal voltou do consultório com a extraordinária  sensação de bem-estar físico e de antegozo espiritual. Ao passar pelas ruas não podia deixar de se aperceber dos preparativos da festa. Os mineiros daquela região tinham um grande culto pelo Natal. Desde a semana anterior, enfeitava-se de bandeirolas de papel a sala da frente de todas as casas, fechada à chave por causa das crianças. Havia brinquedos escondidos nas gavetas das cómodas e acumulavam-se nas mesas bem ornamentadas as gulodices, os bolos, as laranjas, os biscoitos e os rebuçados,  tudo comprado com o dinheiro abonado nesta época do ano pela Cooperativa.

       Christine também trabalhou com alegre disposição nas suas decorações, e à noite, quando chegou a casa, Andrew notou logo uma animação maior na fisionomia da mulher.

       - Não fales! - exclamou ela com vivacidade, estendendo-lhe  a mão. - Nem uma palavra! Fecha os olhos e vem comigo!

       Ele deixou-se levar até à cozinha. Numa mesa amontoava-se  uma porção de embrulhos mal feitos, alguns até de papel de jornal, mas todos com um cartãozinho. Ele compreendeu imediatamente serem presentes e lembranças dos seus clientes. Alguns nem mesmo estavam embrulhados.

       - Olha, Andrew - gritava Christine. - Um ganso! e dois patos! E que lindo bolo gelado! E uma garrafa de vinho de cidra! Foram bem gentis! Não é comovente que eles se lembrem de nos dar tudo isso!

       Ele nem podia falar. Sentia-se cativado pela demonstração, por aquela prova comovedora de que a gente do distrito começava afinal a apreciá-lo, a gostar dele. Com Christine encostada ao ombro, leu os bilhetes, todos escritos com custo e eivados de erros, alguns rabiscados a lápis em velhos sobrescritos virados do avesso: «Do seu cliente grato do Cefan Row n.º 3»; «com os agradecimentos da Sr.a Williams». De Sam Bevan viera esta jóia de estilo:

       «Obrigado por me ter salvo em tempo, para que eu possa gozar o Natal, doutor». E assim por diante...

       - Devemos guardar tudo isto, meu querido - disse Christine em voz baixa. - Vou levá-los para cima.

       Quando Andrew recobrou a verbosidade habitual, com a ajuda de um bom copo de vinho de cidra feito em casa, pôs-se a andar de um lado para o outro da cozinha, enquanto Christine recheava o ganso. Andrew estava delirante.

       - Era assim que os honorários deviam ser pagos, Chris. Nada de dinheiro, nada dessas contas amaldiçoadas, nada de pagamento a tanto por cabeça, nada de ganância. Pagamento  em espécie. Compreendes-me, não é, querida? O médico  trata do doente e o doente manda em troca alguma coisa que ele fez, que ele produziu. Carvão, por exemplo: um saco de batatas da sua horta, ovos, se cria galinhas. Esse é o meu ponto de vista. Assim, um médico poderia ter uma ética ideal! E a propósito dessa Sr.a Williams, que nos mandou os patos... Leslie encharcou-a de poções e pílulas durante cinco anos bem puxados antes que eu curasse a sua úlcera do estômago com uma dieta de cinco semanas. Que estava eu a dizer? Ah! Sim! Vê lá! Se fosse possível aos médicos eleminarem a questão do ganho todo o  sistema seria purificado...

       - Sim, querido. Se não é incómodo para ti, traz-me as taças de uva. Estão na prateleira de cima do guarda-louça.

       - Que diabo, mulher! Não ouves o que te digo! Upa! Esse ganso deve ficar bastante gostoso.

       O dia de Natal amanheceu lindo. No azul distante, as montanhas pareciam feitas de pérolas, na brancura da neve. Depois de algumas consultas da parte da manhã Andrew saiu para a sua volta com a agradável expectativa de não haver trabalho à noite na clínica. Era pequena a lista de visitas a fazer. Preparavam-se grandes almoços em todas as casas, inclusive na sua. Não se cansava de dar e receber boas-festas ao longo das ruas. E não podia deixar de confrontar as recepções alegres de agora com a frieza geral com que era acolhida um ano atrás a sua passagem por aquelas mesmas ruas.

       Foi talvez esse pensamento que o fez parar, com estranha hesitação, em frente do n.° 18 de Cefan Row. De todos os antigos clientes - fora Chenkin - de quem não queria saber, Tom Evans era o único que não tinha voltado para a sua clínica. Mas nesse dia, tomado de animação fora do comum, talvez arrastado pelo sentimento de fraternidade humana, veio de repente ao seu espírito o impulso de aproximar-se de Evans e desejar-lhe feliz Natal.

       Depois de bater na porta, abriu-a e foi entrando até o fundo da cozinha. Parou ali, com uma sensação de vergonha.

        A cozinha estava muito desprovida, quase vazia, e só havia fogo aceso numa das fornalhas do fogão. Sentado  ali, numa cadeira de encosto desconjuntada, via-se Tom Evans, com o braço inutilizado todo torcido para fora como uma asa. O aspecto curvado dos ombros era de quem estava abatido, sem esperança. Sobre os seus joelhos estava sentada uma garota de quatro anos de idade. Ambos contemplavam distraidamente, em silêncio, um ramo de pinheiro apoiado num balde velho. Ao pé daquela minúscula árvore de Natal, que Evans tinha ido buscar a duas milhas de distância, havia três pequeninas velas de sebo ainda por acender. Em baixo, o que constituía  o banquete de Natal para a família: três laranjas pequenas.

       De repente Evans voltou-se e viu Andrew. Teve um sobressalto e a vergonha e o ressentimento foram transparecendo  aos poucos na sua fisionomia. Andrew compreendeu que era uma aflição para o homem ser surpreendido assim, sem emprego, com parte da mobília empenhada, inválido, pelo médico de quem rejeitara os conselhos. Ele presumia, é claro, que Evans não estava bem da vida, mas não suspeitava que a situação fosse tão lamentável. Sentiu-se desconcertado e constrangido, quis dar meia volta, retirar-se. Nesse momento, a Sr.a Evans entrou na cozinha pela porta do fundo, com um saco de papel debaixo do braço. Assustou-se tanto ao ver Andrew, que deixou cair o saco, e este, batendo no chão de pedra, rasgou-se todo e mostrou dois pedaços de peito de vaca, a carne mais barata que podia comprar se em Aberalaw.

       Olhando para a mãe a criança começou a chorar.

       - Que há, doutor? - atreveu-se a dizer, finalmente, a Sr.a Evans, com as mãos nas ancas. - Ele fez alguma coisa?

       Andrew mordeu os lábios. Estava tão emocionado e surpreso com a cena que só tinha vontade de sair dali o mais depressa possível.

       - Sr.a Evans... - não tirava os olhos do chão. - Eu sei que houve um grande mal-entendido entre mim e o seu marido. Mas hoje é dia de Natal e... bem... eu desejava... - e concluiu atabalhoadamente. - Quero dizer, ficaria imensamente satisfeito se vocês quisessem ajudar-me a comer o almoço do Natal.

       - Mas, doutor... - a mulher hesitava.

       - Cala-te, mulher! - Evans interrompeu-a - orgulhosamente. - Não vamos almoçar fora. Se peito de vaca é tudo o que podemos ter, então é peito de vaca que queremos comer. Não precisamos da caridade do próximo.

       - Que está o senhor a dizer? - exclamou Andrew, consternado. - Estou a convidá-los como amigos.

       - Ah! O senhor não é melhor do que os outros! - respondeu  Evans, amarguradamente. - Quando um sujeito está na mó de baixo só o que sabem fazer é atirar-lhe à cara uns restos de comida. Fique com o seu maldito almoço. Nós não precisamos dele.

       - Tom, que é isso?! - protestou a Sr.a Evans.

       Andrew voltou-se para ela, acabrunhado, mas ainda disposto a levar por diante a sua intenção.

       - Procure convencê-lo, Sr.a Evans. Eu ficaria realmente desapontado se não viessem. À uma e meia. Ficamos à espera.

       E antes que alguém pudesse responder, virou as costas e abandonou a casa.

       Christine nada disse quando Andrew contou precipitadamente o que tinha feito. Se não tivessem ido à Suíça, para os desportos de Inverno, seria quase certo que os Vaughan viriam almoçar com eles. E era numa tal ocasião que se lembrara de convidar um mineiro desempregado com toda a sua família. Era nisso que Andrew estava a pensar, de costas para a lareira, vendo Christine preparar novos lugares na mesa.

       - Estás aborrecida, Chris? - perguntou ele, afinal.

       - Eu pensei que me tinha casado com o Dr. Manson -respondeu ela com um vislumbre de aspereza - e não com S. Bernardo. Na verdade, querido, és um sentimental incorrigível.

       Os Evans chegaram exactamente à hora marcada, penteadíssimos  e endomingados, muito pouco à vontade, cheios de receio e de amor-próprio. Esforçando-se nervosamente por criar um ambiente de hospitalidade, Andrew tomou precauções exageradas para que Christine mostrasse boa cara e a reunião não fosse um fracasso desanimador.

       Olhando todo envergonhado para Andrew, Evans sentiu-se muito acanhado na mesa, por causa do braço doente.

       A mulher era obrigada a cortar a carne e a pôr manteiga no pão para ele. Por pouca sorte, quando Andrew agarrou no galheteiro, a tampa do frasco da pimenta e uma boa quantidade de tempero caíram no seu prato de sopa. Houve um silêncio constrangedor, mas nisto a pequena Agnes, deu uma risadinha que não pôde reprimir. Tomada de pânico, a mãe virou-se para ralhar com ela, mas ao ver a expressão de Andrew não prosseguiu. Daí a momentos todos se puseram a rir.

       Perdendo o receio de ser tratado como um protegido, Evans revelou-se um ser humano entusiástico jogador de rugby e grande apaixonado pela música. Três anos antes tinha ido mesmo a Cardigan para cantar no Eisteddfod(1) dali. Orgulhoso de mostrar os seus conhecimentos, discutiu com Christine a oratória de Elgar, enquanto  Agnes se entretinha com Andrew.

      

(1) Eisteddfod é o nome dado ao congresso de poetas e musicistas  do país de Gales, que se reúne em várias cidades para a conservação e progresso do folclore tradicional daquela região da Grã-Bretanha.

      

       Mais tarde, Christine levou a Sr.a Evans e a garotinha para a outra sala. Houve um silêncio de constrangimento quando Andrew e Evans ficaram sós. Um pensamento comum dominava o espírito de ambos, porém nem um nem outro sabia como exprimi-lo. Finalmente, numa espécie de arranque desesperado, Andrew disse:

       - Sinto muito o que aconteceu com o seu braço, Tom. Eu sei que ainda por cima o senhor perdeu o lugar que tinha na mina. Não julgue que eu pretendo cantar vitória à sua custa ou coisa parecida. Lamento profundamente tudo isso.

       - Não lamenta mais do que eu - disse Evans.

       Houve uma pausa, e depois Andrew concluiu :

       - Interessar-me-ia saber se o senhor me autoriza a que eu fale ao Sr. Vaughan sobre o seu caso. Se lhe parece que estou a meter-me na sua vida, calo-me! Mas a verdade é que tenho certa influência junto dele e poderia conseguir com certeza um emprego para si fora da mina. Um lugar de apontador, ou coisa assim...

       Parou, não ousando olhar para a cara de Evans. Desta vez o silêncio foi prolongado. Afinal, Andrew levantou os olhos, mas foi apenas para os baixar de novo no mesmo instante. Corriam lágrimas pelas faces de Evans, todo o seu corpo tremia no esforço de não se deixar vencer pela emoção. Mas era inútil. Estendeu na mesa o braço são e nele mergulhou a cabeça.

       Andrew levantou-se e dirigiu-se à janela, onde ficou por alguns minutos. Quando voltou Evans já se dominara.  Não pronunciou palavra, absolutamente nada, e os seus olhos evitaram os de Andrew numa longa reticência, muito mais significativa do que qualquer expressão.

       Às três e um quarto a família de Evans partiu numa disposição que contrastava vivamente com o ar constrangido  da chegada. Christine e Andrew entraram na saleta.

       - Sabes, Chris - filosofava Andrew - de toda a desgraça  deste pobre homem, isto é, o seu braço inutilizado, não é ele o culpado. Não confiou em mim porque eu era novato. Mas o amigo Oxborrow, que aceitou o seu cartão, este devia saber. Ignorância, ignorância, pura e amaldiçoada  ignorância! Os médicos deviam ser obrigados por lei a estar em dia com os progressos da medicina, o responsável  por isso tudo é o nosso sistema gangrenado. Devia  haver cursos obrigatórios para médicos depois de formados.  De cinco em cinco anos...

       - Meu querido! - protestou Christine do sofá, sorrindo para o marido: - Já estive assoberbada o dia inteiro com a tua filantropia. Contemplei o esvoaçar das tuas asas de anjo. Não me impinjas ainda por cima um sermão. Vem sentar-te aqui, ao meu lado, que eu tenho hoje um motivo de facto importante para querer ficar assim sozinha contigo.

       - Ah, sim? - disse num ar de dúvida. E depois indignado: - Espero que não estejas a lamentar-te. Acho que procedi correctamente. Afinal de contas... É Natal!

       Ela  riu silenciosamente.

       - Oh! Meu querido, até te mostraste demasiadamente bom. Se tivesse havido logo depois uma tempestade de neve, sairias acompanhado do teu cão S. Bernardo e agasalhado até ao pescoço... irias procurar alguém que andasse perdido na montanha, bem tarde, altas horas da noite.

       - Eu sei de alguém que foi ao poço n.° 3, bem tarde, altas horas da noite... - resmungou ele, com mordacidade - e essa pessoa não estava devidamente agasalhada.

       - Senta-te aqui - e ela estendia-lhe os braços. - Tenho uma coisa para te contar.

       Andrew ia sentar-se ao lado dela, quando, de repente, soou na rua o ruído estridente de uma buzina de automóvel.

       - Bolas! - foi tudo quanto Christine achou para dizer.

       Só uma buzina de automóvel em toda Aberalaw tinha aquele som. Era de facto Con Boland.

       - Não contavas com eles? - perguntou Andrew, um tanto surpreendido. - Con disse que viria com a família tomar chá connosco.

       - Está bem! - disse Christine, levantando-se e acompanhando-o  à porta.

       Avançaram ao encontro dos Bolands, que estavam em frente do portão, no carro remodelado. Con, ao volante, todo empertigado com um chapéu de coco e umas luvas novas e enormes, que subiam muito acima do pulso. A seu lado, no banco da frente, Mary e Terence. As três outras crianças vinham atrás, ao lado da Sr.a Boland, que carregava  nos braços o bebé. Estavam todas tão apertadas, apesar do alongamento do veículo, como sardinha em lata.

       De repente, a buzina começou de novo: «Krr-krr-krr...».

       Ao virar-se para o lado de fora, Con apertara inadvertidamente  o botão e este ficara preso interiormente. A buzina não parava: «Krr-krr-krr...» Atrapalhado, Con mexia numa coisa e noutra e praguejava. Abriam-se janelas na vizinhança,  mas a Sr.a Boland continuava sentada com uma expressão distraída no rosto imperturbável, segurando o bebé sonhadoramente.

       - Raios a partam! - exclamou Con, com as pontas erisadas  do bigode roçando o guarda-lama. - Vai-se abaixo a bateria. Que será? Curto-circuito ou quê?

       - É o botão, papá! - disse Mary com toda a calma.

       Enfiou a ponta da unha na parte inferior do botão da buzina e levantou-o. A algazarra cessou.

       - Antes assim - suspirou Con. - Como vai, Manson meu filho? Que lhe parece esta dona-elvira? O comprimento foi aumentado de uns dois pés pelo menos. Não está estupendo?  Imagine que ainda há um pequeno defeito na mudança. Não conseguimos dar tudo na ladeira.

       - Nós só parámos alguns minutos na subida, papá - disse Mary.

       - Não tem importância - disse Con. - Em breve o problema   estará resolvido, quando eu desmontar o carro novamente. Como tem passado, Sr.a Manson? Aqui estamos  todos para lhes desejar as boas festas e tomar chá.

       - Entre, Con - Christine sorriu. - Estou encantada com as suas luvas!

       - Presente de Natal cá da senhora - respondeu Com, contemplando as luvas enormes.  São sobras de fornecimento para o exército. A senhora acredita que ainda estão a liquidar essas coisas! Ah! Que tem esta porta?

       Não conseguindo abrir a portinhola do carro, passou as pernas compridas por cima dela, pulou, ajudou as crianças e a mulher a saírem do fundo do automóvel, passou revista ao veículo tirando com o maior carinho um salpico  de lama do pára-brisas e acompanhou a família à entrada de Vale View.

       O chá foi muito cordial. Con estava animadíssimo, todo envaidecido com a sua obra. 

       - Vocês não vão reconhecer este carro depois de pintado.

       A Sr.a Boland, sempre distraída, bebeu seis xícaras de chá preto, bem forte. As crianças começaram pelos biscoitos de chocolate e terminaram com uma questão para a conquista do último bocadinho de pão. Limparam tudo o que havia sobre a mesa.

       Depois do chá, enquanto Mary foi lavar os pratos, insistia em dizer que Christine parecia cansada Andrew tirou o bebé dos braços da Sr.a Boland e pôs-se a brincar com ele no tapete, junto da lareira. Era o bebé mais rechonchudo que alguma vez vira, um menino de Rubens, olhos enormes e solenes e dobras de gordura nas articulações.

        Tentava teimosamente enfiar um dedo nos olhos de Manson. E todas as vezes que fracassava, uma expressão  de majestoso espanto desenhava-se no seu rosto. Sentada  com as mãos no colo, Christine não se mexia. Contemplava  o marido a brincar com o garotinho.

       Mas Con e a família não podiam demorar-se mais. A noite aproximava-se e Con, preocupado com a bateria, tinha dúvidas, que não chegou a confessar, sobre o funcionamento dos faróis. Quando se levantaram para sair, ele convidou com solenidade:

       - Venham assistir à partida.

       Novamente Andrew e Christine vieram ao portão, enquanto  Boland enchia o carro com a sua prole. Depois de dois solavancos, o motor obedeceu e, fazendo-lhes um cumprimento triunfante com a cabeça, Con encaixou o chapéu de coco de modo petulante e ajeitou-se todo orgulhoso  na direcção.

       Nesse momento quebrou-se a parte que Boland ligara ao chassis. O carro deu um estalo e desabou. Carregado com a família inteira de Con, o veículo alongado artificialmente  afundou-se como um animal de carga que caísse no máximo do esforço. As rodas saltaram fora, ante os olhares estupefactos de Andrew e Christine. Houve um ruído de peças que se desconjuntam, uma invasão de instrumentos partindo da caixa de ferramentas e o arcabouço  do carro repousou ao nível da rua. Um pouco antes era um automóvel e um pouco depois era uma gôndola de carrocel de feira. Na proa via-se Con com o volante Barrado; na ré, a Sr.a Boland segurando o bebé. A Sr.a Boand  ficou com a boca aberta, com os olhos perdidos no lago. Era irresistível o pasmo da cara de Con diante daquela repentina perda de nível.

       Andrew e Christine torciam-se a rir. Começaram e não podiam parar. Riram até ficar com o corpo dorido.

       - C’os diabos! - disse Con, erguendo-se, a coçar a cabeça. Observando que nenhuma das crianças estava ferida, e que a mulher permanecia pálida, mas imperturbável, no seu lugar, passou revista aos escombros, examinando tudo desorientadamente.

       - Foi sabotage - declarou afinal, atirando olhares para as janelas da casa fronteira, quando lhe ocorreu uma explicação. - Algum desses demónios daqui andou a mexer no carro. - Nisto a fisionomia iluminou-se-lhe. Agarrou o indefeso Andrew pelo braço e apontou com melancólico orgulho para a parte da frente em monte, sob a qual o motor ainda batia convulsivamente: - Está a ver, Manson! Ainda funciona!

       Arrastaram como puderam os restos do veículo para o quintal de Vale View, depois do que a família Boland voltou para casa a pé.

       - Que dia! - exclamou Andrew quando se viram finalmente  em sossego. - Nunca hei-de esquecer até ao fim da minha vida a cara de Boland!

       Estabeleceu-se silêncio por um momento e depois, voltando-se  para Christine, Manson perguntou:

       - Que tal passámos o Natal?

       Christine respondeu enigmaticamente:

       - Gostei de te ver a brincar com o pequenito do Con Boland.

       Ele encarou-a:

       - Porquê?

       Ela não olhou para o marido.

       - Foi isso que eu te quis dizer durante todo o dia. Oh! Não foste capaz de adivinhar, querido?! Afinal de contas não acho que sejas um médico tão esperto como se diz por aí.

 

       De novo chegou a Primavera. E o Verão veio mais cedo. O jardim de Vale View era um tapete de cores tão alegres que muitas vezes os mineiros paravam para admirar quando voltavam do trabalho. Essa alegria de cores vinha principalmente dos canteiros floridos que Christine havia plantado no Outono anterior, pois agora Andrew não consentia que ela executasse qualquer trabalho manual.

       - Já fizeste o nosso ninho! - dizia-lhe com autoridade. - Agora deixa-te estar.

       O local que ela preferia era a extremidade do pequenino vale, onde podia escutar o murmúrio, leve como uma carícia,  do ténue fio de água. Um salgueiro elevado formava uma discreta barreira contra a fileira de casas que ficavam  do outro lado, numa posição sobranceira. O defeito do jardim de Vale View era ser completamente aberto a todas as curiosidades. Bastava o casal pôr o pé do lado de fora para que se enchessem as janelas das casas fronteiras e começassem os comentários: «Vejam que coisa engraçada! Venha ver, Fanny! Parece que o doutor e a mulher estão a gozar o sol!». Uma vez mesmo, nos primeiros  dias, quando Andrew passou o braço pela cintura de Christine ao deitarem-se sobre a relva da margem do riacho, ele viu de repente o reflexo de um binóculo que da janela da casa do velho Glyn Joseph estava apontado na sua direcção.

       - Que diabo! - resmungou Andrew irritando-se ao descobrir  a indiscrição. - Aquele idiota está com o telescópio apontado para nós.

       Mas por baixo do salgueiro estavam completamente protegidos e ali Andrew expôs a sua política.

       - Olha, Chris - disse ele, depois de observar o termómetro; com a mania das preocupações, ocorrera-lhe a ideia de lhe tirar a temperatura. - Temos de nos manter calmos. Não podemos proceder como se fôssemos bem... pessoas comuns. Afinal de contas eu sou um médico e tu és a minha mulher. Já tenho assistido a isso centenas, ou pelo menos dezenas de vezes. É uma coisa muito simples. Um fenómeno da natureza, renovação da espécie, tudo isso, procura compreender. Mas não vás agora interpretar mal o que te digo, querida. É claro que para nós isso é maravilhoso. Para falar francamente, já começava a perguntar a mim mesmo se não serias demasiadamente delgada, se com este teu jeitinho infantil não podias ter... Bem, estou encantado, mas não devemos cair em sentimentalismos. Isto é, em tolices. Não! Não! Deixemos essas coisas para o Sr. Fulano e para a Sr.a Beltrana. Seria um tanto idiota, não te parece? Imagina, eu, um médico, dando para ficar todo derretido diante dessas coisinhas que andas a fazer de tricot ou de crochet ou lá o que seja... Não! Olho para elas e resmungo: «Espero que esses trapinhos sejam bastante quentes! E já sabes... Todos esses palpites sobre a cor dos olhos dela... ou dele, assim como quaisquer projectos  quanto ao seu futuro põem-se de lado! - Calou-se franzindo a testa, e depois um pensamento íntimo fez-lhe aflorar ao rosto um sorriso. - Não sei, Chris! Quem sabe se será realmente uma menina?!

       Christine chegou a chorar de tanto rir. Ria tanto que ele levantou-se preocupado.

       - Acaba com isso, Chris... Olha que... olha que te pode fazer mal!...

       - Ah!  Meu querido - e enxugava os olhos. - Como idealista, como sentimental, és adorável. Mas como médico... mal empregado... com franqueza!... Não posso admitir-te  em casa!

       Andrew não compreendeu inteiramente o que ela quis dizer, mas sabia que estava a ser científico, e tratou de conter-se. De tarde, quando pensava que ela devia fazer um pouco de exercício, levava-a a passear ao jardim público, uma vez que estavam terminantemente proibidas as excursões à montanha. No jardim andavam de um lado para outro, ouviam a filarmónica, observavam as criança dos mineiros que faziam piqueniques por ali e por fim bebiam refrescos e sorvetes.

       Certa manhã de Maio, muito cedo, ainda estava na cama, quando percebeu mesmo ensonado, um ligeiro movimento.

       Acordando teve a confirmação desse leve sinal de vida, o primeiro movimento da criança dentro de Christine. Ficou estarrecido, quase não ousando acreditar, sufocado por uma onda de contentamento, de êxtase.

       - E esta! - e um minuto mais tarde: - Afinal, sou um como tantos outros, no fim de tudo. Deve ser por isso que se estabeleceu a regra de que um médico não deve assistir à sua própria esposa.

       Na manhã seguinte achou já ser tempo de falar ao Dr. Llewellyn, a quem, desde o princípio, ambos tinham decidido confiar o caso. Quando Andrew lhe telefonou, Llewellyn mostrou-se satisfeito e lisonjeado. Veio imediatamente  para fazer um exame preliminar. Depois pôs-se a conversar com Andrew na saleta.

       - Tenho prazer em ajudá-lo, Manson disse aceitando um cigarro. Sempre julguei que o senhor não gostava de mim ao ponto de pedir-me que lhe prestasse este serviço. Creia-me, farei o melhor que me for possível. A propósito,  está actualmente um calor sufocante em Aberalaw. Não lhe parece que sua mulher deve mudar de ares, enquanto  lhe é possível fazê-lo?

       «Que está a passar-se comigo?», perguntou Andrew a si mesmo quando Llewellyn se retirou. «Começo a gostar deste homem! Foi decente, decentíssimo! Sabe ser simpático,  tem tacto. É um feiticeiro no seu trabalho. Faz um ano que pretendi estrangulá-lo. Sou de facto um novilho escocês muito rude, muito invejoso e quase intratável.» Christine não queria abandonar a sua casa, mas ele insistia carinhosamente.

       - Eu sei que não me queres deixar, Chris! Mas é melhor. Temos de pensar em... oh! Em tudo. Talvez prefiras ir para a praia ou talvez o Norte, em casa da tua tia. Mas deixa-te disso! Estou em condições de custear a deslocação, Chris. Estamos agora com uma vida desembaraçada.

       Já nada deviam à Dotação Glen e tinham pago a última prestação dos móveis e agora já dispunham de perto de Cem libras depositadas no banco. Mas não era nisso que ela pensava quando, apertando a mão do marido, lhe respondeu com convicção:

       - Sim! Estamos em muito boas condições, Andrew.

       Já que ele insistia na sua partida, resolveu visitar a tia em Bridlington. Uma semana depois Andrew levou-a à estação do Norte, com um grande abraço e uma cesta de fruta para a viagem.

       Daí por diante sentiu a falta de Christine muito mais do que havia imaginado, de tal forma a camaradagem de ambos já se tornara uma parte da sua vida. As suas conversas,  discussões, arrufos, as horas que passavam juntos em silêncio, o modo que ele tinha de a chamar assim que entrava em casa, e de esperar, de ouvido à escuta, pela sua alegre resposta só então compreendeu quanto isso significava para ele. Sem Christine, a alcova transformou-se  num quarto estranho de hotel. As suas refeições, conscienciosamente servidas por Jenny de acordo com o programa que Christine deixara estabelecido, eram engolidas à pressa e sem prazer, com um livro verticalmente aberto sobre a mesa.

       Divagando pelo jardim que ela preparara, Andrew ficou subitamente impressionado pelas condições deploráveis da ponte. Isso ofendeu-o, pareceu-lhe um insulto à sua Christine  ausente. Já falara várias vezes à direcção sobre o assunto, explicando-lhe que a ponte estava a cair aos pedaços, mas os homens faziam sempre resistência passiva quando se tratava de arranjos nas casas dos assistentes.

       Mas agora, num acesso de sentimentalismo, telefonou para o escritório e insistiu energicamente por providências.

       Owen ausentara-se alguns dias, em gozo de licença, mas o empregado garantiu a Andrew que a questão já fora resolvida  pela direcção, e estava entregue a Richards, o construtor. O trabalho ainda não começara porque o homem estava ocupado noutra obra.

       À noite ia à casa de Boland e por duas vezes foi visitar os Vaughans, que o obrigaram a ficar para o Bridge. Uma vez, com grande surpresa, viu-se a jogar golf com Llewellyn. Escreveu cartas a Hamson e a Denny, que deixara afinal Blaenelly e seguia viagem para Tampico como médico  de um navio-tanque. A sua correspondência com Christine  era um modelo de edificante discrição. Mas era principalmente com o trabalho que procurava distrair-se.

       Os seus exames clínicos nos jazigos de antracite estavam  nessa altura ainda no começo. Não podia intensificá-los porque, além das chamadas dos seus clientes, a única oportunidade que tinha para examinar os mineiros era quando eles iam aos lavatórios, no cimo da mina, ao deixar o serviço. E era impossível demorá-los por muito tempo quando, apressados, queriam retirar-se para jantar em casa. Fazia apenas uns dois exames por dia, mas mesmo assim já novos resultados contribuíam para o animar.

       Descobriu, sem se arriscar, no entanto, a uma conclusão definitiva, que a frequência de afecções pulmonares entre os mineiros de antracite era na verdade muito mais acentuada  do que entre os outros trabalhadores que labutavam nas minas de carvão.

       Embora não confiasse em livros didácticos, mergulhou na literatura técnica por uma questão de defesa própria, pois não desejava descobrir mais tarde que estava apenas seguindo um caminho já trilhado por outros. Espantou-o a pobreza dessa literatura. Só alguns raros investigadores parecia terem dedicado maior atenção às afecções pulmonares causadas por aquele género de trabalho. Zenker havia inventado um termo pomposo, pneumoconiosis, que abrangia três formas de fibroses de pulmões devidas à inalação do pó. É claro que a antracose, a infiltração negra nos pulmões, encontrada nos trabalhadores de minas de carvão, já era conhecida havia muito e fora classificada como inofensiva por Goldman, na Alemanha, e Trotter, na Inglaterra. Havia alguns tratados sobre incidência das infecções pulmonares em trabalhadores de mós de moinhos, particularmente em França, e em afiadores de facas e machados, como também em canteiros. Havia opiniões contraditórias de que as doenças ocasionadas pelo trabalho no cascalho vermelho do Rand, na África do Sul a tuberculose  dos pesquisadores do ouro provinha, indubitável, mente, da inalação do pó. Também se mencionava que os que trabalhavam no linho e no algodão, assim como os escolhedores de sementes, eram igualmente sujeitos a perturbações crónicas do pulmão. Mas, fora disso, nada mais havia.

       Andrew, excitado, abandonou a leitura. Sentia-se na pista de alguma coisa verdadeiramente inexplorada. Pensou nas multidões de operários que trabalhavam no fundo das grandes minas de antracite, como era ineficiente a legislação respeitante a causas de invalidez de que sofriam aqueles homens, na enorme importância social daquele género de investigação. Que oportunidade, que maravilhosa  oportunidade! Um suor frio humedeceu-lhe a testa ao admitir de repente que alguém poderia antecipar-se-lhe.

       Mas afastou essa ideia do seu espírito. Andando de um para o outro lado na saleta, diante da lareira apagada, já muito depois da meia-noite, fixou subitamente a fotografia  de Christine que estava na prateleira do fogão.

       «Chris! Creio sinceramente que estou para fazer alguma coisa!» Começou a classificar cuidadosamente os resultados das suas observações no ficheiro comprado exclusivamente para esse fim. Embora nunca tivesse considerado, era de facto brilhante a sua capacidade clínica. No vestiário, à saída da mina, perante os trabalhadores nus da cintura para cima, ia sondando misteriosamente, com os dedos e com o estetoscópio, a patologia obscura daqueles pulmões; num era um ponto fibroso, noutro um enfisema, adiante uma bronquite crónica classificada imprudentemente de «um pouco de tosse». Localizava escrupulosamente as lesões nos diagramas impressos no verso de cada ficha.

       Fazia, ao mesmo tempo, colheitas de escarros de cada indivíduo observado e, trabalhando até às duas ou três da madrugada no microscópio de Denny, esquematizou nas fichas os elementos obtidos. Descobriu em muitas dessas amostras de muco-pus, chamados na localidade de «escarro branco», partículas angulares e brilhantes de sílica. Ficou espantado com o número de células alveolares existentes e com a frequência com que apareciam os bacilos de tuberculose.

        Mas o que mais prendeu a sua atenção foi a presença,  quase constante, de sílica cristalina nas células alveolares, os fagócitos por toda a parte. Não lhe podia escapar a emocionante ideia de que as lesões dos pulmões, talvez mesmo nos casos de infecções coincidentes, dependiam  fundamentalmente desse factor.

       Estavam nesse pé as suas descobertas quando Christine voltou, no fim de Junho, e se lhe atirou aos seus braços.

       - É tão bom estar de volta! Sim, diverti-me bastante, mas, oh! não sei... pareces pálido, querido! Tenho a impressão de que a Jenny não te tratou bem.

       A vilegiatura fizera-lhe bem, estava com bom aspecto, corada. Parecia preocupada com o marido, a sua falta de apetite, o vício de fumar a toda a hora.

       Perguntou-lhe nervosamente:

       - Esse trabalho extraordinário que estás a fazer quanto tempo ainda durará?

       - Não sei. - Era no dia seguinte ao da chegada de Christine, um dia húmido, e ele mostrava-se inexplicavelmente mal-humorado. - Pode durar um ano ou talvez leve cinco.

       - Bem, então presta atenção. Eu não quero fazer perante ti o papel de missionário. Já basta um na família. Mas não te parece que, se se vai demorar tanto tempo, é melhor trabalhar metodicamente, estabelecer um horário,  em vez de ficar até tarde, estragando a saúde?

       - Nada sinto, absolutamente.

       Mas em algumas coisas ela não transigiu e insistiu especialmente. Mandou Jenny esfregar o soalho do laboratório  e levou para lá uma cadeira de braços e um tapete.

       Era um quarto frio, mesmo naquelas noites quentes, e desprendia-se dos armários de pinho um aroma adocicado ! «a resina que se misturava ao cheiro acre dos reagentes que Andrew empregava. Era ali que ela permanecia cosendo e fazendo tricot, enquanto o marido trabalhava na mesa. Curvado sobre o microscópio, ele esquecia completamente  a sua presença, porém Christine continuava ali todas as noites e às onze horas levantava-se.

       - São horas de ir para a cama!

       - Está bem, mas... - E, olhando de relance a mulher quase sem tirar a vista do microscópio. - Sobe primeiro, Chris! Eu vou já.

       - Andrew Manson, então pensas que vou para a cama sozinha no estado em que me encontro?

       Essa última expressão tornara-se um dito cómico para eles. Ambos a empregavam por pilhéria, a propósito de tudo, como um remate para todas as questões. Ele nunca resistia. Levantava-se com uma gargalhada, espreguiçava-se e guardava as lentes e as lâminas.

       Em fins de Julho, uma erupção aguda de bexigas deu-lhe  muito trabalho na clínica e no dia 3 de Agosto teve tanto que fazer, às voltas com uma lista excepcionalmente longa de visitas, que o serviço matinal do consultório se prolongou até bem depois das três da tarde. Quando vinha para casa, cansado, ansioso por aquela mistura de almoço e merenda que devia ser a sua refeição, viu o automóvel do Dr. Llewellyn no portão do Vale View.

       A dedução que podia tirar daquela circunstância produziu-lhe um sobressalto e fê-lo apressar o passo a caminho de casa, com o coração batendo aceleradamente, numa previsão ansiosa. Subiu os degraus da entrada de um pulo, abriu com precipitação a porta da frente e ali, no vestíbulo,  encontrou Llewellyn. Fitando-o com nervosa impaciência, Andrew gaguejou:

       - Olá, doutor. Eu... eu não esperava vê-lo por aqui tão cedo.

       - Não? - respondeu Llewellyn.

       Andrew sorriu.

       - E então? - No seu alvoroço não achou uma palavra mais própria, mas a expectativa que se espalhava no rosto animado era bem clara.

       Llewellyn não sorriu. Depois de uma leve pausa, disse.

       - Venha aqui um momento, meu caro.

       E levou Andrew para a saleta.

       - Andámos à sua procura por aí desde manhã.

       A atitude de Llewellyn, a sua hesitação, a estranha simpatia do tom da voz, foram como um duche gelado caindo sobre Andrew. Gaguejou:

       - Aconteceu alguma coisa?

       Llewellyn olhou através da janela, com a vista dirigida para a ponte, como se procurasse a melhor, a mais piedosa explicação. Andrew não aguentava mais, sufocado pela agonia da incerteza.

       - Manson - disse Llewellyn com brandura hoje de manhã... quando sua mulher atravessava a ponte... uma das pranchas cedeu. Ela está bem agora, perfeitamente bem. Mas, receio...

       Andrew compreendeu antes mesmo que Llewellyn concluísse.

       Sentiu uma agonia no coração.

       - Deve ser uma consolação para si - continuou Llewellyn,  num tom de serena compaixão - saber que fizemos tudo o que era possível. Vim imediatamente, trouxe a enfermeira-chefe do hospital, passámos aqui toda a manhã.

       Houve um intervalo de silêncio. Um soluço veio da garganta  de Andrew, e outro e mais outro. Cobriu os olhos com as mãos.

       - Por favor, meu amigo - suplicou Llewellyn. - Quem pode evitar um acidente como este? Peço-lhe... Suba e vá consolar sua mulher.

       Cabisbaixo, segurando-se ao corrimão, Andrew subiu as escadas. Parou do lado de fora da alcova, quase sem respiração.

       Depois entrou cambaleando.

 

       Por volta do ano de 1927 o Dr. Manson, de Aberalaw, gozava de prestígio fora do vulgar. Por certo a clínica não dava para enriquecer. O número de trabalhadores inscritos na sua lista não era muito maior do que naqueles primeiros e nervosos dias de trabalho na cidade. Mas todos os clientes  tinham confiança absoluta no médico.

       Receitava poucas drogas. Na verdade chegava ao ponto de prevenir os doentes contra a mania dos remédios. Mas quando os receitava era em doses alarmantes. Muitas vezes Gudge arrastou-se pela sala de espera com uma receita na mão:

       - Que quer dizer isto, Dr. Manson? Doses de sessenta grãos de K. Br. para Evans Jones! E a Farmacopeia recomenda cinco. É o que também recomenda o livro da Carochinha!

       - Ponha sessenta, Gudge. Que diabo! Eu sei que o senhor gostaria de despachar o Evans Jones para o outro mundo...

       Mas o Evans epiléptico não foi despachado para o outro mundo. Pelo contrário, uma semana depois já era visto a passear pelo jardim público, pois os ataques haviam diminuído de intensidade.

       A direcção devia tratar o Dr. Manson nas palminhas, porque a sua verba de remédios, não obstante as receitas explosivas, ficava sempre abaixo da metade da verba de outro qualquer assistente. Mas, que pena! Manson custava à direcção três vezes mais por outros motivos, e por causa disso muitas vezes havia má vontade contra ele. Empregava  vacinas e soros, por exemplo, «coisas caras de que muitos nunca tinham ouvido falar», como declarou exactamente Ed. Chenkin. Defendendo-o, Owen citou aquele mês de Inverno em que Manson, utilizando vacinas de Bordet e Gengou, evitara a tempo que uma furiosa epidemia de coqueluche invadisse o seu distrito, enquanto as crianças de todo o resto da cidade iam sendo vítimas da doença.

       Então, Ed, Chenkin replicou: «Como podemos saber se isso se deve a esse tal modernismo? Como?! Quando eu o apertei o próprio doutor declarou que ninguém podia ter a certeza absoluta!»

       Se contava com muitos amigos leais, Manson também tinha detractores. Havia na direcção quem nunca lhe perdoasse a sua explosão, aquelas palavras irritadas que berrou para eles, por causa da ponte, quando se reuniram em sessão plenária. Compadeceram-se da Sr.a Manson e do próprio doutor quando da crise por que tinham passado mas não podiam considerar-se responsáveis. A direcção nunca fazia as coisas precipitadamente. Owen estava de férias nessa época e Len Richards, a quem fora confiado o serviço, tivera o tempo tomado pelas casas novas de Pows Street. Era absurdo acusá-los.

       Com o decorrer do tempo, Andrew teve muitas discussões  acaloradas com a direcção, porque teimava em agir de moto-próprio e a direcção não estava de acordo. Além disso havia uma certa má vontade religiosa contra ele.

       Embora Christine fosse frequentemente à igreja, Andrew quase nunca aparecia por lá. O Dr. Oxborrow foi o primeiro a chamar a atenção para o caso. Dizia-se que Andrew troçara da doutrina da imersão total na cerimónia do baptismo. De facto, ele tinha um inimigo mortal entre a gente da «capela»; nada mais nada menos do que o reverendo  Edwal Parry, pastor de Sinai.

       Na Primavera de 1926, o bom Edwal, recém-casado, entrou sorrateiramente no consultório de Manson, já bem tarde, com um ar que, embora perfeitamente cristão, era do homem mais cativante do mundo.

       - Como vai, Dr. Manson? Passava por aqui. Normalmente  consulto-me com o Dr. Oxborrow; ele faz parte do meu rebanho de fiéis, como sabe, e também fica muito à mão, na clínica Leste. Mas o senhor é um médico moderno de todos os pontos de vista. O doutor está sempre a par de tudo o que representa novidade científica. E eu teria prazer se me permitir que eu lhe pague o que entender em receber um conselho seu...

       Edwal simulou um leve rubor sacerdotal, como se mostrasse  candura em face das coisas terrenas.

       - Acontece, doutor, que minha mulher e eu não queremos filhos por enquanto, pois os meus réditos ainda são diminutos. E como...

       Manson encarou o ministro de Sinai com frio desdém e disse pausadamente:

       - O senhor devia lembrar-se de que muitas pessoas mesmo auferindo a quarta parte do que o senhor ganha, cortariam um braço para ter um filho. Para que se casou então? - O sangue ferveu-lhe nas veias. - Ponha-se daqui para fora... depressa! Rua, seu padreca imundo. Rua!

       Enfiado, com uma cara estranha, Parry foi-se embora.

       Talvez Andrew tivesse falado com excessiva violência. Mas Christine nunca mais poderia ter filhos em consequência daquela queda fatal. E ambos haviam desejado tanto uma criança!...

       No dia 19 de Maio de 1927, ao voltar para casa, Andrew perguntava a si mesmo por que razão continuavam ele e Christine em Aberalaw depois da morte do filho. A resposta  era simples: o trabalho sobre inalação de pó. Isso absorvia o espírito de Andrew, fascinava-o, prendia-o às minas.

       Ao passar revista ao que tinha feito, tomando em consideração  as dificuldades que fora obrigado a enfrentar, maravilhava-se de não ter demorado mais tempo a completar  as suas investigações. Aqueles primeiros exames que realizara... Como pareciam velhos, antiquados! Antiquados  no tempo... e na técnica.

       Após uma completa inspecção clínica sobre as condições pulmonares de todos os trabalhadores da sua zona e de sistematizar todos os elementos recolhidos, teve Manson a prova plena da preponderância acentuada das afecções pulmonares entre os mineiros de antracite. Verificou, por exemplo, que noventa por cento dos casos de pulmão fibrosado eram de trabalhadores das minas de antracite.

       Apurou também que o índice de mortalidade por afecções pulmonares entre os trabalhadores mais idosos era quase três vezes maior do que entre os trabalhadores de todas as outras minas de carvão. Organizou uma série de quadros que indicava a percentagem de incidência da doença pulmonar entre as várias categorias de trabalhadores de antracite.

       Seguidamente tratou de demonstrar que o pó de sílica descoberto nos exames dos escarros era encontrado sempre nas galerias das minas de antracite. Não só demonstrara Isso de modo concludente como fizera ainda mais. Expondo lâminas de vidro, em que espalhou bálsamo do Canadá, durante alguns períodos, em diferentes pontos da mina, obtivera elementos sobre as variações das concentrações de pó, elementos que aumentavam rapidamente durante as explosões e as perfurações.

       Tinha agora uma série de animadoras equações relacionando as sucessivas concentrações de pó de sílica na atmosfera com a acentuada incidência de afecções pulmonares.

        Mas isso não era suficiente. Tinha de provar agora que o pó era maléfico, que destruía o tecido do pulmão, e não um mero incidente, inócuo afinal. Precisava de executar  uma série de experiências patológicas em cobaias com o fim de estudar a acção do pó de sílica nos seus pulmões.

       Embora estivesse cada vez mais entusiasmado, aí surgiam  as suas verdadeiras dificuldades. Já tinha uma divisão  disponível para as experiências: o «laboratório». Era fácil conseguir algumas cobaias e bem simples o equipamento  preciso para o trabalho. Mas embora fosse considerável  o seu espírito de iniciativa, ele não era, e nunca seria, um patologista. A consciência desse facto deixava-o exasperado, mas mais decidido que nunca. Preguejava contra um sistema que o forçava a trabalhar isolado e arrastou Christine para as suas experiências, ensinando-lhe  a fazer cortes de tecidos para os exames, a parte mecânica do trabalho, que, em qualquer circunstância, ela sempre fazia melhor do que ele. Depois disso construiu uma câmara de pó muito rudimentar.

       - Durante um certo número de horas, todos os dias, uns animais ficavam expostos ali às concentrações de poeiras, enquanto outros ficavam de fora para servirem de elementos de comparação. Era um trabalho enervante que exigia um feitio mais paciente do que o dele. Por duas vezes se avariou o seu pequenino ventilador. Numa fase crítica das experiências fez uma confusão medonha com todo o sistema de controle e viu-se obrigado a recomeçar tudo. Mas, apesar dos enganos e de todas as contrariedades conseguiu provar, com os espécimes obtidos, em etapas sucessivas, a deterioração dos pulmões e a introdução de fibriosis em consequência da poeira. Foi um momento de grande alívio, deixou de ralhar com Christine e durante alguns dias foi uma pessoa tratável.

        Logo uma outra ideia o assaltou e o mergulhou no trabalho novamente. Todas as investigações tinham por base a suposição de que o dano causado aos pulmões resultava da destruição  mecânica, pelos cristais de sílica, duros e cortantes, que eram inalados. Mas agora, subitamente, conjecturava se não haveria qualquer acção química além da mera irritação  física provocada pelas partículas. Andrew não era um químico, mas nessa altura já estava tão profundamente mergulhado na obra que não podia admitir uma derrota.

       Iniciou uma nova série de experiências.

       Adquiriu sílica coloidal e injectou-a sob a pele de um dos animais. Resultou daí um abcesso. Abcessos tais, verificou  ele, podiam ser produzidos pela injecção de soluções  aquosas de sílica amorfa, que fisicamente não era irritante. Ao mesmo tempo, numa conclusão vitoriosa, verificou que a injecção de uma substância mecanicamente irritante tal como partículas de carvão não produzia abcesso. O pó de sílica era quimicamente activo.

       A excitação e a alegria que sentiu iam-lhe dando cabo da cabeça. Os resultados iam muito além de todas as suas esperanças. Coligiu febrilmente todos os elementos e redigiu  em forma compacta o resultado de três anos de investigações.

        Meses antes, já havia decidido não somente publicar as suas pesquisas, mas enviá-las também com tese, com vista à conquista do grau de M. D.(1). Quando a cópia dactilografada voltou de Cardiff, tornada num lindo folheto de capa azul-celeste, leu, radiante, o trabalho, saiu com Christine para o levar ao correio e depois disso mergulhou  numa depressão desesperadora.

 (1) Doutor em Medicina. - Ver nota na p. 152.

       Sentia-se extenuado e inerte. Teve consciência, mais nitidamente que nunca, de que não era um homem de laboratório, que a parte melhor e mais valiosa do seu trabalho era a daquela primeira fase de pesquisas clínicas.

       Recordou-se, com um agudo sentimento de culpa, que muitas  vezes tratara mal a pobre Christine. Durante alguns dias sentiu-se deprimido e inquieto. E no entanto, no meio daquelas sensações contraditórias, havia momentos em que compreendia, exultante, ter realizado alguma coisa de interesse real.

 

       Ao chegar a casa, numa tarde de Maio, Andrew trazia o espírito tão preocupado, ainda nessa fase estranha de depressão que persistia desde que enviara a tese, que nem notou a expressão de angústia de Christine. Acenou-lhe distraidamente, foi ao andar superior lavar o rosto e depois desceu para o chá.

       Só quando, terminada a merenda, acendeu um cigarro, observou de repente a expressão da mulher. Perguntou, ao estender-se para apanhar o jornal da tarde :

       - Que é isso? Que aconteceu?

       Christine pareceu examinar por um momento a colher  de chá.

       - Tivemos hoje umas visitas... ou melhor, tive... quando saíste depois do almoço.

       - Ah! E quem foi? Uma delegação da direcção, cinco homens de lá inclusive Ed. Chenkin. E acompanhado por Parry; sabes quem é, o pastor de Sinai, e um homem chamado Davies.

       Estabeleceu-se um silêncio pesado. Andrew aspirou uma lenta baforada do cigarro e baixou o jornal para encarar Christine.

       - Que queriam eles?

       Ela manifestou claramente no olhar o vexame e a inquietação  de que estava possuída em resposta ao seu tom inquiridor.

       Falou precipitadamente.

       - Chegaram cá por volta das quatro da tarde. Perguntaram  por ti. Eu disse que não estavas. Então, Parry respondeu  que não tinha importância. O que eles queriam era entrar. Naturalmente fiquei perturbada. Não sabia se queriam  esperar por ti ou o que poderia ser. Então, Ed. Chenkin afirmou que esta casa era da direcção que eles representavam e que em nome dela podiam e queriam entrar. - Deteve-se sem fôlego. - Eu não me mexi donde estava. Estava indignada, tonta. Mas tive coragem para lhes perguntar  porque queriam entrar. Parry disse então que chegara  ao seu conhecimento e ao da direcção, mesmo porque toda a gente já sabia, que estavas a fazer experiências com animais. Vivissecção, como teve o arrojo de dizer. E por causa disso queriam examinar o teu gabinete de trabalho e haviam trazido com eles o Sr. Davies, da Sociedade Protectora  dos Animais.

       Andrew não se moveu nem deixou de a fitar.

       - Continua, querida - disse calmamente.

       - Bem, eu procurei detê-los, mas foi inútil. Invadiram a casa, todos os sete; atravessaram o hall e entraram no laboratório.  Assim que viram os porquinhos da índia, Parry soltou um gemido. «Oh! Os pobres animais, tão inocentes!». Deram busca a tudo, examinaram os teus trabalhos, o microscópio, tudo quanto havia. Depois Parry disse: «Não consentirei que esses pobres bichinhos continuem a ser torturados por mais um minuto que seja. Antes privá-los da vida e das suas dores do que deixá-los aqui. Agarrou na maleta que Davies trouxera e enfiou nela os porquinhos. Eu tentei explicar-lhe que não havia tortura, nem vivissecção, nem qualquer daquelas asneiras, e quando aqueles cinco porquinhos não fossem mais precisos para experiências, dá-los-íamos aos filhos de Boland  e à pequena Agnes Evans. Mas nem ao menos me quiseram escutar. E então... retiraram-se.

       Houve um silêncio. Andrew estava agora muito corado. Levantou-se.

       - Nunca me foi dado conhecer um desaforo tão grande em toda a minha vida. Que pena teres-te visto obrigada a suportar essa inconveniência, Chris! Mas obrigá-los-ei a pagar bem caro o que fizeram!

       Reflectiu um momento e dirigiu-se depois ao hall para telefonar. Mas precisamente o telefone tocou quando ali chegou. Tirou o auscultador do descanso.

       - Alo! - disse furioso, mas em seguida a voz abrandou  ligeiramente. Era Owen quem falava do outro lado da linha. - Sim, é Manson quem fala. Ouça cá, Owen...

       - Já sei, já sei, doutor - Owen teve pressa em interromper  Andrew. - Passei a tarde toda procurando comunicar consigo. Ouça. Não me interrompa. Não devemos perder a cabeça. Temos de procurar enfrentar uma traição muito reles, doutor. Não diga mais pelo telefone. Eu vou já para aí.

       Andrew voltou para junto de Christine.

       - Pelo que ele deu a entender - bufava de raiva, quando contou à mulher a conversa do telefone - parece que nós é que merecemos censura.

       Ficaram à espera da chegada de Owen. Andrew caminhava  de um lado para outro tomado de impaciência e indignação; Christine, continuava a costurar, com a inquietação  nos olhos.

       Owen chegou, mas nada havia de tranquilizador na sua fisionomia. Disse logo, antes de dar tempo a que Andrew falasse:

       - Doutor, tirou uma licença?

       - Uma... quê? - Andrew encarou-o espantado. - Que espécie  de licença?

       A expressão de Owen parecia agora mais perturbada.

       - Devia ter pedido uma licença no Ministério do Interior  para fazer experiências em animais: sabia disso?

       - Mas com seiscentos diabos! Eu não sou patologista, nunca serei. Não exploro um laboratório. Precisei apenas de fazer algumas experiências muito simples, relacionadas com o meu serviço clínico. Não tínhamos aqui mais do que uma dúzia de animais, não era Chris?

       Owen não olhava para Andrew.

       - Devia ter tirado essa licença, doutor. Há um grupo lá na direcção que lhe quer arranjar uma complicação por causa disso! - Continuou apressadamente: - Calcule, doutor,  um homem como o senhor, que está a procurar fazer uma obra progressiva, que tem a honestidade de dizer o que pensa, ficar assim sujeito a uma trapalhada dessas... Bem, de qualquer maneira é bom que o doutor fique sabendo que uma malta daqui está danada para o apunhalar pelas costas. Mas havemos de dar uma volta nisso. Vai haver mais uma zaragata lá na direcção, o doutor será chamado a comparecer perante eles ou coisa parecida. Mas o doutor já tem tido os seus dares e tomares com eles e sair-se-á bem como das outras vezes.

       Andrew explodiu.

       - Vou preparar uma contra acção. Vou processá-los por... violação de domicílio. Não, nada disso. Vou processá-los pelo roubo dos meus porquinhos da índia. Quero recuperá-los seja como for.

       Owen torceu a cara, num gesto quase cómico.

       - Infelizmente não poderá recuperá-los, doutor. O reverendo  Parry e Ed. Chenkin acharam que deviam livrar os bichinhos da miséria da vida. E, num sentimento de piedade, afogaram os porquinhos com as suas próprias mãos.

       Owen retirou-se e na noite seguinte Andrew recebeu uma comunicação para comparecer perante a direcção dentro de uma semana.

       O caso suscitou muita celeuma, incendiou os espíritos como faísca em barril de pólvora. Desde que o solicitador Trevor Day fora acusado de envenenar a mulher com arsénico  nunca mais Aberalaw tinha estado tão interessada por um caso tão excitante, tão escandaloso, que tanto sabor tivesse a feitiçaria. Formavam-se partidos, havia discussões violentas. Na capela Sinai, Edwal Parry anunciava atroadoramente os castigos terríveis que, neste e no outro mundo, estavam reservados aos que torturavam animais  e criancinhas. No outro extremo da cidade, o reverendo David Walpole, o gordo pastor da igreja anglicana, que tinha sobre Parry a mesma opinião que tem um bom muçulmano sobre a carne de porco, cacarejava sobre o progresso e os laços que uniam a igreja liberal de Deus e a ciência.

       Até mesmo as mulheres tomaram partido. A Sr.a Myjanwy Bensusan, presidente da secção local da Liga de Resistência das Senhoras de Gales, discursou perante uma multidão reunida em comício no Temperance Hall.

       Era um facto que Andrew melindrara certa vez Myjanwy ao recusar-se a assumir a presidência na reunião anual da Liga. Mas os motivos que a inspiraram eram, de qualquer  modo, indiscutivelmente puros. Depois do comício e nas noites seguintes jovens senhoras adeptas da Liga, que normalmente só apareciam em público nos dias de festa cívica, passaram a distribuir nas ruas folhetos de combate à horripilante vivissecção com a gravura de um cão horrorosamente  estripado.

       Na noite de quarta-feira Con Boland telefonou para contar uma história engraçada.

       - Como passa, Manson, meu filho? De cabeça levantada?  Antes assim! Tenho uma história curiosa para lhe contar... A nossa Mary voltava do emprego, hoje à noite quando no caminho de casa foi abordada por uma dessas feministas idiotas. Queria impingir-lhe um panfleto, essas idiotices sobre crueldade que andam para aí a espalhar contra si. O senhor sabe... Ah! Ah; sabe o que fez a atrevida  da Mary? Arrancou-lhe das mãos o panfleto e rasgou-o em pedacinhos. Depois levantou a mão, pespegou uns bons socos na tromba da imbecil, arrancou-lhe o chapéu  e disse... Ah! Ah!... Calcule o que a Mary disse: «Se é de crueldade que anda à procura aí tem uma simples amostra».

       Outros amigos tão leais como Mary também originaram questões ao defender Andrew. Embora a sua zona o apoiasse firmemente, lá pelos sítios da clínica leste havia uma chusma de adversários.

       Discussões renhidas travavam-se nas tabernas entre os partidários e os inimigos do médico. Na noite de terça-feira apareceu no consultório Prank Davies, um tanto deteriorado. Vinha informar Andrew de que tinha partido a cara a dois clientes de Oxborrow, por dizerem que Andrew  era um carniceiro sanguinário!

       Depois disso, o Dr. Oxborrow acelerava o passo ao cruzar  com Andrew na rua, virando a cara para o outro lado. Sabia-se que ele apoiava abertamente as diatribes do reverendo Parry contra o colega indesejável. Ao voltar do Clube Maçónico, Urquhart andou a conversar com um truculento puritano, cujo comentário mais inocente foi o seguinte: «Um médico tem o direito de assassinar as pobres  criaturinhas de Deus?».

       Urquhart aventava poucos comentários da sua autoria. Mas certa vez, sem perceber, com a sua miopia, o semblante contrafeito, nervoso, de Andrew, declarou:

       - Com mil diabos! Se eu tivesse a sua idade também me divertiria com um trabalhinho desse género. Mas agora... Oh! Diabo! Acho que estou velho.

       Andrew não podia deixar de pensar que Urquhart estava enganado. Estava muito longe de divertir-se com «trabalhinho». Sentia-se cansado, irritado, apreensivo. Perguntava  a si mesmo, mal-humorado, se ia gastar toda a sua vida a bater com a cabeça nas paredes. Contudo, embora  estivesse abatido, tinha um desejo desesperado de justificar-se, de ser clara e altivamente desagravado diante daquela súcia de intrigantes.

       A semana passou e na tarde de sábado a direcção reuniu-se  na máxima força para, como se explicava na convocação,  proceder «a uma sindicância disciplinar ao Dr. Manson». Não faltava de facto qualquer membro da direcção  e, em frente, na Praça, estavam reunidos vários grupos de curiosos. Quando entrou no edifício e subiu as escadas, Andrew sentia o coração bater com violência. Dizia intimamente  que devia mostrar-se calmo e inflexível. No entanto, quando se sentou na mesma cadeira que havia ocupado anteriormente na situação de candidato, estava ofegante, com os lábios secos, nervosíssimo.

       A sessão começou, não com uma oração como seria de esperar do espírito altruísta com que a oposição conduzira a sua campanha, mas com um discurso inflamado de Ed. Chenkin.

       - Vou expor todos os elementos que constituem esta questão - disse Chenkin, levantando-se de repente aos meus colegas desta direcção. Pôs-se a desfiar os motivos luma lengalenga estridente e sem gramática. O Dr. Manson  não tinha o direito de se entregar àquele trabalho, fazia-o nas horas em que estava sendo pago para prestar serviços à sociedade. Além disso, a vivissecção ou coisa muito parecida estava sendo feita sem a autorização necessária,  o que constituía uma infracção muito séria à lei!

       Owen apressou-se a acrescentar, em aparte:

       - A respeito deste último ponto, devo advertir a direcção de que, se for apresentada denúncia pelo facto de o Dr. Manson não ter requerido a licença, as responsabilidades desse facto recairão sobre a Sociedade de Auxílios Médicos.

       - Que está a dizer? - perguntou Chenkin.

       - Como ele é nosso assistente - sustentou Owen - somos legalmente responsáveis pelos actos do Dr. Manson. Ouviu-se um murmúrio de aprovação a estas palavras.  Disseram mesmo: «Owen tem razão! Não queremos complicações  com a Sociedade. Isso tem de ser resolvido entre  nós».

       - Pois então não nos preocupemos com essa maldita licença - rosnou Chenkin, ainda de pé. - As outras acusações  já chegam para comprometer qualquer pessoa.

       «Atenção! Ouçam!». Era alguém que clamava lá do fundo. «E que queriam dizer aquelas histórias de ir tantas vezes a Cardiff de motocicleta naquele Verão de há três anos atrás?».

       «Ele não receita remédios». Era a voz de Len Richards.

       «Espera-se uma hora inteira no consultório e sai-se de lá sem um frasco de remédio».

       Silêncio! Silêncio! - berrava Chenkin. Quando conseguiu  impor silêncio prosseguiu com a peroração. - Todos estes factos são muito graves. Mostram que o Dr. Manson nunca trabalhou honestamente para os Auxílios Médicos. Além de muita coisa que ainda poderia acrescentar, o doutor não passa atestados satisfatórios aos homens. Mas não nos afastemos do ponto principal. Temos aqui um assistente contra o qual toda a cidade se levantou porque ele incorreu num caso que na verdade deve considerar-se como de polícia, um homem que transformou a nossa propriedade  num matadouro. Camaradas! Juro pelo Todo -Poderoso que vi sangue no soalho com estes meus olhos que a terra há-de comer. Este homem é nada menos que um louco. E agora, pergunto-lhes: camaradas, vamos admitir  isto? Não, digo eu. Não, devem dizer vocês. Camaradas, eu sei que represento o pensamento de cada um e de todos quando digo que neste lugar e neste mesmo instante temos de exigir o pedido de demissão do Dr. Manson.

       Chenkin circunvagou os olhos pelos seus colegas e sentou-se  entre estrondosos aplausos.

       - Talvez deva permitir-se ao Dr. Manson que exponha o caso - disse Owen calmamente, e voltou-se para Andrew.

       Houve um silêncio. Andrew permaneceu sentado ainda por um momento. A situação era pior do que pensara. «Vá lá alguém confiar nesta gente», reflectia com amargura. «Aqueles homens não eram os mesmos que lhe sorriram com simpatia quando lhe concederam o emprego?». Fervia-lhe  o sangue. Não queria, absolutamente, pedir a demissão.

       Levantou-se. Não era orador e tinha bem consciência disso. Mas era agora um homem ferido no seu moral.

       O seu nervosismo transformara-se numa furiosa indignação  diante da ignorância, da intolerante estupidez da acusação de Chenkin e da aprovação com que os outros a tinham recebido. Começou:

       - Parece que ninguém disse coisa alguma a respeito dos animais que Ed. Chenkin afogou. Isto é que é crueldade,  se querem empregar o termo. Crueldade inútil. O que eu estava a fazer, não, não era crueldade! Porque levam vocês, trabalhadores, para o fundo da mina ratos brancos e canários? É para que eles denunciem a presença dos gases tóxicos. Vocês sabem todos disso. E quando esses ratos morrem pelos efeitos do gás, vocês classificam isso de crueldade? Não, vocês não consideram assim. Vocês admitem que esses animais sejam empregados para salvar a vida dos trabalhadores, talvez para salvar a vida de vocês mesmos.

       «Pois era isso que eu procurava fazer por vós. O trabalho  que realizei era a investigação da causa das doenças pulmonares que vocês adquirem devido às poeiras das galerias das minas. Vós sabeis todos que os que contraem doenças do peito não recebem indemnizações quando isso acontece. Durante os três últimos anos gastei quase todas as minhas horas vagas no estudo do problema de inalação.

       «Descobri alguma coisa que pode melhorar a condição do vosso trabalho, que pode dar-vos um tratamento mais justo, que pode conservar melhor a vossa saúde do que todas essas pílulas e xaropes de que Len Richards falava ainda há pouco! Então eu não posso utilizar para isso uma dúzia de porquinhos da índia? Vocês acham que não vale a pena?

       «Talvez não acreditem em mim. Cheios de prevenções e de desconfianças como estão, pensarão que estou a mentir. Podem pensar até que estive a gastar o meu tempo, o vosso, como disseram, numa série de experiências idiotas.»

        Estava tão fora de si que esqueceu a sua firme decisão de não dramatizar. Metendo a mão no bolso interior  do casaco tirou a carta que havia recebido no começo da semana.

       - Mas isto vos mostrará o que outras pessoas pensam a respeito do meu trabalho, pessoas que têm capacidade  para julgar. Dirigiu-se a Owen e entregou-lhe a carta. Era um ofício do secretário do Senado da Universidade de St. Andrew comunicando-lhe que, em vista da sua tese sobre inalação de pó, era-lhe conferido o grau de doutor em Medicina.

       Com a fisionomia resplandecente, Owen leu o ofício dactilografado a tinta azul num papel encorpado. Depois o ofício foi passando lentamente de mão em mão. E foi com desgosto que Andrew observava o efeito produzido pelo comunicado do Senado. Embora estivesse desesperadamente ansioso por justificar a sua conduta, chegou quase a lamentar o impulso que o levara a apresentar aquela prova. Se eles não acreditavam na sua honesta maneira de proceder sem o apoio de um atestado oficial, era porque deviam estar muito prevenidos contra ele. Com carta ou sem ela compreendeu tristemente que os homens estavam  resolvidos a fazer dele um bode expiatório.

       Sentiu-se aliviado quando, depois de mais algumas observações, Owen disse:

       - Agora é talvez melhor que nos deixe a sós. Doutor, faça o obséquio...

       Esperando noutra casa, enquanto o caso era submetido a votação, Andrew começou a dar pontapés nos próprios calcanhares, fervendo de exasperação. Era um soberbo ideal aquele grupo de trabalhadores a organizar os serviços Médicos da comunidade para benefício dos seus companheiros de trabalho. Mas era somente um ideal. Os homens eram demasiadamente desconfiados, suficientemente estúpidos para executar esse plano de modo eficiente. Arrastá-los para o bom caminho era o sacrifício perpétuo de Owen.

       De resto estava convencido de que naquela ocasião nem a boa vontade de Owen poderia salvá-lo.

       Mas quando Andrew entrou novamente na sala o secretário  estava risonho, esfregando as mãos de contentamento. Outros membros da direcção também o olhavam de modo mais favorável, pelo menos sem hostilidade. E, levantando-se imediatamente, Owen disse:

       - Tenho o prazer de declarar-lhe, Dr. Manson... posso mesmo dizer-lhe que me sinto pessoalmente encantado ao declarar-lhe... que a direcção decidiu por maioria pedir ao doutor que continue no cargo.

       Triunfara, levara afinal todos de vencida. Mas, passado o primeiro instante de satisfação, a consciência da vitória não o fazia exultar. Houve uma pausa. Os homens esperavam  evidentemente que ele exprimisse a sua gratidão e o seu contentamento. Mas nada disso aconteceu. Sentiu-se  cansado de toda aquela história tão mal interpretada, farto da direcção, de Aberalaw, de medicina, de pó de sílica, de porquinhos da índia e de si mesmo.

       Disse finalmente:

       - Obrigado, Sr. Owen. Alegra-me saber que, depois de tudo que procurei fazer aqui, a direcção não exige a minha retirada. Mas sinto muito. Não posso permanecer em Aberalaw  por mais tempo. Concedo à direcção um mês de prazo, a começar de hoje.

       Falou friamente. Depois deu meia volta e retirou-se da sala. Houve um silêncio de sepulcro. Ed. Chenkin foi o primeiro  a voltar a si.

       - Deste estamos livres - exclamou, meio embaraçado, quando Andrew já estava longe.

       Mas Owen surpreendeu todos eles com o primeiro acesso de cólera que alguma vez havia manifestado naquela sala da direcção.

       - Cala essa boca, que não sabes o que dizes, Ed. Chenkin. - Bateu a régua na mesa com ameaçadora violência. - Perdemos o homem melhor que tivemos.

 

       Andrew despertou no meio daquela mesma noite resmungando:

       - Sou doido, Chris? Abandonar o nosso meio de vida, um emprego tão bom! Afinal de contas, já estava a atender  ultimamente alguns clientes particulares. E Llewellyn tem sido muito decente. Não te contei? Deu a entender que me autorizaria a atender consultas no hospital. E os membros da direcção não são maus, exceptuada a gente de Chenkin. Acredito que mais tarde a direcção nomear-me-ia médico-chefe e em lugar de Llewellyn quando este se aposentasse.

       Deitada ao lado do marido, no quarto às escuras, Christine  confortava-o tranquila, ajuizadamente.

       - Não querias realmente que ficássemos numa clínica mineira de Gales para o resto da vida, meu querido. Temos sido felizes aqui, mas é tempo de pensarmos em mudar de vida.

       - Mas ouve, Chris - dizia ele, preocupado. - Ainda não temos recursos suficientes para instalar uma clínica. Precisamos  de arranjar mais algum dinheiro antes de começar vida nova.

       Ela respondeu, sonolenta.

       - Que tem o dinheiro a ver com isso? De resto nós vamos gastar tudo quanto temos... ou quase tudo... numa estação de repouso. Não compreendes que andamos mourejando nestas velhas minas há quase quatro anos?

       A coragem dela contagiou-o. Na manhã seguinte, o mundo parecia alegre. À hora do café, em que revelou forte apetite, Andrew disse:

       - Tu não és má pessoa, Chris. Em vez de te levantares solenemente e declarares que esperavas agora grandes coisas de mim, que era a hora de eu mostrar ao mundo o que valho, tu apenas...

       Ela não o ouvia e protestou num tom despreocupado:

       - Que marido desalmado! Faz-me o favor de não amachucares  o jornal! Eu pensava que eram só as mulheres que faziam isso. Assim, como poderei eu ler a minha secção de jardinagem?

       - Não leias isso. - À porta beijou-a sorrindo. - Pensa em mim.

       Sentia-se disposto a aventuras, preparado para aproveitar  as oportunidades da vida. Além disso, o lado prudente  do seu espírito não deixava de levar em conta certas coisas que pesavam no activo do seu balanço. Tinha o seu M. R. C. P., um honorífico M. D. e mais de trezentas libras no banco. Com tudo isso a apoiá-lo, certamente não iriam passar fome.

       Ainda bem que a sua intenção estava tão firmemente radicada. Processara-se na população da cidade uma reviravolta  de sentimento. Agora, que se retirava por sua iniciativa, toda a gente queria que ele ficasse.

       O resultado manifestou-se uma semana depois, quando Owen chefiou uma comissão que foi a Vale View a fim de pedir ao doutor que reconsiderasse a sua decisão. Andrew foi inflexível. De resto nessa altura a impopularidade de Ed. Chenkin estava a tomar formas violentas. Era vaiado nos quarteirões operários. Por duas vezes foi seguido da mina até casa por uma orquestra de assobios, manifestação pejorativa habitualmente reservada pelos trabalhadores  aos furadores de greves.

       Em comparação com todas essas vitórias estrondosas na localidade chegava a parecer bem pequeno o efeito produzido pela tese de Manson no resto do mundo. No entanto, conquistara com ela o grau de doutor em Medicina, o trabalho foi publicado no Journal of Industrial Health, na Inglaterra, e, em separata, nos Estados Unidos, pela Associação Americana de Higiene. Mas, acima de tudo, Andrew apreciava três cartas que tinha recebido.

       A primeira era de uma firma de Brick Lane informando que lhe seriam enviadas muitas amostras do Pulmo-Syrop, específico infalível para os pulmões, conforme comprovavam  centenas de valiosos atestados, muitos dos quais firmados  por médicos eminentes. A firma esperava que ele viesse também a recomendar Pulmo-Syrop, que acrescentava  a carta também curava o reumatismo.

       A segunda era do Prof. Challis; uma carta entusiástica de congratulações e louvores, que terminava convidando Andrew a visitar o Instituto de Cardiff em qualquer dia daquela semana. No pós-escrito, Chalis sugeria: «Veja se pode vir quinta-feira.» Mas na desorientação daqueles últimos dias, Andrew não pôde responder ao convite. Na verdade, não soube onde pôs a carta e com o tempo foi-se esquecendo de a ela responder.

       À terceira carta respondeu imediatamente, pois Andrew pulara de alegria ao recebê-la. Era uma carta invulgar, cheia de estímulos. Viera do Orégão e atravessara o Atlântico  para chegar às suas mãos. Manson leu e releu as folhas dactilografadas e, entusiasmado, passou-as depois a Christine.

       - Que coisa agradável, Chris! Esta carta americana...

       É de um homem chamado Stillman, Robert Stillman, de Orégão... Provavelmente nunca ouviste falar nesse nome, mas eu já ouvi... A carta está cheia de apreciações correctíssimas  a respeito do meu trabalho sobre inalação. Melhor, muito melhor do que a de Challis... Oh! Diabo! Eu devia ter respondido ao professor! Quem me escreveu compreendeu perfeitamente a finalidade das minhas pesquisas. De facto o homem até me corrige num ou noutro ponto. Parece  que o agente da acção destrutiva na sílica é serecita. Eu não sabia química suficientemente para atingir esse resultado. Mas é uma carta maravilhosa, congratulatória... e de Stillman!

       - Ah! É? - disse ela, como quem procura saber. - É algum médico estrangeiro?

       - Não, aí é que está a importância do caso. É um verdadeiro  cientista! Mas dirige uma clínica para tuberculosos perto de Portland, Orégão. Olha está tudo explicado aqui no alto do papel de carta. Nem todos reconhecem ainda o seu valor, mas na especialidade é um homem tão notável como Spahlinger. Eu te direi quem ele é quando houver tempo.

       O apreço que dedicava à carta de Stillman foi demonstrado  pelo facto de sentar-se à mesa para responder em acto contínuo.

       Os dois esposos estavam agora assoberbados com os preparativos para a viagem turística, com o trabalho de encaixotar a mobília e remetê-la para Cardiff, o local mais conveniente e com as melancólicas obrigações das visitas de despedidas. A saída de Bleanelly fora uma arrancada abrupta, heróica. Mas ali, em Aberalaw, tiveram de passar por penosas provações. Tiveram que jantar com os Vaughan, os Bolands, até mesmo com os Llewellyns. Andrew começou a sofrer a «dispepsia do adeus», bem sintomática  desses jantares de despedida. Quando chegou o dia da viagem, Jenny, debulhada em lágrimas, veio anunciar, para consternação do casal, que ia haver um bota-fora solene na estação.

       À última hora, como se aquela informação não bastasse para os preocupar, Vaughan apareceu, esbaforido.

       - Desculpe-me vir perturbá-lo numa hora como esta, doutor, mas ouça, Manson, que fez o senhor a Challis? Acabo de receber uma carta do velhote. O seu trabalho deixou o homem embatucado... Aliás tenho a impressão de que a Junta dos Mineiros e Metalúrgicos também está perdida por si. O certo é que Challis me pediu que lhe falasse. Ele quer avistar-se consigo em Londres, sem falta. Diz que é um assunto importantíssimo.

       Andrew respondeu com certa impaciência.

       - Vamos gozar umas férias, homem de Deus. As nossas primeiras férias de verdade, depois de tantos anos. Como vou eu procurá-lo?

       - Deixe-me então o seu endereço. com certeza ele lhe escreverá.

       Andrew olhou, meio vacilante, para Christine. Tinham combinado guardar segredo do lugar para onde iam, evitando  aborrecimentos, correspondência, intromissões. Apesar  disso deu a informação a Vaughan.

       Partiram a toda a pressa para a estação. Viram-se logo cercados pela multidão da zona, que os esperava ali. Apertos  de mão, gritaria, pancadinhas nas costas, abraços e finalmente um salto para o estribo da carruagem com o comboio já em movimento. Quando puseram a cabeça de fora pela janela da portinhola, os amigos que enchiam a plataforma começaram a cantar ruidosamente um hino de despedida.

       - Deus do Céu! - disse Andrew, esfregando os dedos entorpecidos. - Esta foi a última penitência!

       Mas os olhos dele brilhavam e um minuto depois já confessava:

       - Não quereria perder esta manifestação por coisa nenhuma  deste mundo. Que boa gente! E pensar que há um mês atrás metade dessa gente andava a querer beber-me o sangue! Não pode negar-se a evidência: a vida é uma coisa muito engraçada.  Sentou-se ao lado de Christine, fitando-a com bom humor. - E fique sabendo, Sr.a Manson; embora a senhora não seja uma mulher velha, esta é a sua segunda lua-de-mel!

       Chegaram de noite a Southampton e seguiram logo para bordo do navio em que deviam atravessar a Mancha.

       Na manhã seguinte viram o Sol levantar-se por trás de Saint-Malo e uma hora mais tarde a Bretanha recebia-os.

       O trigo amadurecia, as cerejeiras estavam carregadas de frutos; cabras erravam pelas pastagens floridas. Foi Christine quem teve a ideia daquele lugar, para entrar em contacto com a verdadeira França - não a França das galerias de pintura, dos palácios, das ruínas e dos monumentos  históricos. Nada do que os guias turísticos estavam recheados.

       Pararam em Vale André. Ao hotelzinho que escolheram chegava o murmúrio do mar e o cheiro dos campos. O quarto de dormir não era encerado, mas muito limpo, e o café da manhã fumegava num bule azul de louça grosseira. Ficaram a preguiçar o dia todo.

       - Oh! Meu Deus! - Andrew não se cansava de repetir. - Isto é estupendo, minha querida. Não quero mais, nunca mais, defrontar uma pneumonia lombar.

       Bebiam cidra, comiam lagostas, camarões, pastéis e cerejas. De noite Andrew jogava bilhar com o dono do hotel. Algumas vezes conseguia perder só por cinquenta pontos numa partida de cem.

       - Tudo era admirável, estupendo, delicioso... - Andrew não poupava os seus adjectivos. - Tudo, menos os cigarros gostaria de acrescentar.

       Um alegre mês inteiro passou bem depressa. E desde então, cada vez com maior frequência e sempre com inquietação,  Andrew começou a apalpar a carta fechada que ficara no bolso do casaco havia mais de uns quinze dias. A carta até já estava manchada pelo sumo de cereja e pelos restos de chocolate.

       - Vamos a isso! - opinou finalmente Christine, certa manhã. - Manteremos a nossa palavra! Abre a carta.

       Andrew rasgou cuidadosamente o sobrescrito. Leu a carta estirado no chão. Foi-se sentando devagarinho. Leu-a de novo. E, em silêncio, passou-a às mãos de Christine.

       - Era do Prof. Challis. Informava que, em vista das suas investigações sobre a inalação de pó, a Junta de Pesquisas sobre o Trabalho de Mineiros e Metalúrgicos resolvera fazer um estudo completo do assunto, a fim de apresentar uma memória à comissão parlamentar. Perante essa decisão, a Junta teria de indicar um médico oficial que se ocupasse exclusivamente da questão. Em face das suas recentes pesquisas, a Junta decidira unanimemente e sem hesitações oferecer-lhe o cargo.

       Quando Christine leu olhou, encantada, para o marido:

       - Eu não te disse que ia acontecer uma coisa boa? - Sorriu. - Isso é magnífico!

       Ele atirava pedrinhas, nervosamente, a uma lata vazia abandonada na praia.

       - Deve ser trabalho clínico - pensava em voz alta. - Não pode ser outra coisa. Eles sabem que eu sou um clínico.

       Ela observava-o com um sorriso cheio de intenção.

       - Naturalmente, querido, ainda não te esqueceste da nossa combinação: seis semanas, no mínimo, aqui, ociosos. Isso não deve interromper as nossas férias.

       - Não, não. - E consultando o relógio: - Terminaremos  as nossas férias, mas... de qualquer modo... - deu um pulo e levantou-se alegremente. - Um passeiozinho até à estação do telégrafo só nos pode fazer bem. E eu gostaria de saber se existe lá um guia para nos elucidar sobre a nossa volta.

 

       A Junta de Pesquisas sobre o Trabalho de Mineiros e Metalúrgicos, indicada comummente pelas iniciais J.M.M., estava instalada num grande e imponente edifício cinzento, a pouca distância dos jardins de Westminster, convenientemente  situada entre o Ministério do Comércio e o departamento  de Minas, que de quando em quando entravam em disputa feroz para firmar o seu predomínio sobre a Junta.

       Na luminosa manhã do dia 14 de Agosto, Andrew galgou  apressadamente os degraus da entrada do edifício, exuberante de saúde e de entusiasmo, com a expressão de um homem disposto a conquistar Londres.

       - Sou o novo médico - disse ao porteiro, que usava uniforme do departamento do Trabalho.

       - Sim, doutor... Pois não, doutor - respondeu o porteiro  com ar paternal. Andrew gostou de verificar que era esperado. - O doutor precisa de avistar-se com o nosso prezado  Sr. Gill Jones! Acompanhe o nosso novo médico ao gabinete do Sr. Gill.

       O elevador subiu vagarosamente, deixando entrever corredores pintados de verde e muitos andares, nos quais se viam outros contínuos com o uniforme do departamento de Trabalho. Depois Andrew foi levado a um amplo gabinete,  muito arejado, onde apertou a mão do Sr. Gill, que se levantou da sua mesa e pôs de lado o exemplar do Times.

       - Venho assumir o meu cargo um pouco atrasado - declarou Andrew, falando forte. - Minha mulher e eu chegámos ontem de França. Mas já estou inteiramente pronto para começar.

       - Muito bem. - Gill era um homenzinho jovial, de óculos, fato azul-escuro e gravata da mesma cor, presa por uma argola de ouro a um colarinho do género quase clerical.

       Olhava para Andrew com ar de simpatia afectada.

       - Queira sentar-se! Quer tomar uma xícara de chá ou um copo de leite quente? Costumo tomar qualquer coisa por volta das onze horas. E... é verdade, está quase na hora...

       - Oh! Nesse caso... - disse Andrew com hesitação. E depois, animando-se: - Talvez possamos conversar sobre o trabalho enquanto...

       Cinco minutos depois um contínuo apareceu com uma xícara de chá e um copo de leite.

       - Creio que deve estar à sua vontade, Sr. Gill. Está fervido, Sr. Gill.

       - Obrigado, Stevens. - Quando o contínuo saiu, Gill voltou-se para Andrew com um sorriso. - Você há-de ter oportunidade de ver como este homem é prestável. Faz umas torradinhas com manteiga deliciosas. É uma coisa difícil: arranjar serventes e contínuos de jeito. Temos aqui gente de todas as repartições: Ministério do Interior, departamento de Minas, Ministério do Comércio. Eu mesmo  Gill - pigarreou, com discreto orgulho - sou funcionário do Almirantado.

       Enquanto Andrew se servia de leite e aguardava com impaciência informações sobre o serviço, Gill discorria prazenteiramente sobre o tempo, a Bretanha, o montepio do funcionalismo e a eficácia da pasteurização. Depois, levantando-se, levou Andrew para a sala que lhe fora reservada.

       Era também um gabinete bem arejado, tranquilo, de bons tapetes, com uma linda vista para o Tamisa. Um bezouro azulado zumbia nostàlgicamente, batendo de encontro à vidraça.

       - Reservei esta sala para o senhor - disse Gill amavelmente. - Está bem arranjadinha. Repare... Há um bom fogão, para o Inverno. Faço votos para que fique bem instalado aqui.

       - Com efeito é um gabinete maravilhoso! Mas...

       - Deixe-me apresentar-lhe agora a Sr.a Mason.

       Gill bateu numa porta de comunicação e abriu-a. A Sr.a Mason, de certa idade, mas bonita, com aspecto asseado e bem vestida, estava sentada a uma mesinha de trabalho. Levantou-se afastando o Times.

       - Bons dias, Sr.a Mason.

       - Bons dias, Sr. Gill.

       - Sr.a Mason, apresento-lhe o Dr. Manson.

       - Bons dias, Dr. Manson.

       Andrew sentiu-se um pouco estonteado com todos esses cumprimentos, mas logo serenou e aderiu à conversa.

       Cinco minutos mais tarde, ao retirar-se, bem disposto, Gill disse a Andrew como a animá-lo.

       - Mandar-lhe-ei algumas pastas.

       As pastas chegaram pelas mãos amáveis de Stevens. Além dos seus predicados de fornecedor de leite e torradas, Stevens era o melhor portador de processos da repartição. Entrava a toda a hora no gabinete de Andrew sobraçando documentos. Colocava-os com todo o carinho sobre a mesa, numa caixinha de metal com uma etiqueta: «Entrada».

       E à procura do que poderia levar, os olhos dirigiam-se ansiosamente para outra caixinha com a etiqueta: «Saída».

       Cortava o coração de Stevens encontrar vazia a caixinha da «Saída». Quando isso acontecia, retirava-se de cabeça baixa, desolado.

       Confuso, atónito, irritado, Andrew examinou apressadamente toda a papelada: muitas das actas das últimas reuniões da J.M.M., coisas indigestas, estúpidas, sem importância. Então, recorreu com impaciência à Sr.a Mason. Mas a Sr.a Mason, que viera, como explicou, do Departamento de Pesquisas sobre Carnes Congeladas, bem poucos esclarecimentos pôde dar. Explicou-lhe que o horário era das dez da manhã às quatro da tarde. Falou-lhe ainda da equipa de hóquei da Repartição.  «É claro que me refiro ao pessoal feminino, Dr. Manson.» A Sr.a Mason era a capitã do grupo. Por fim, perguntou-lhe se podia continuar a ler o Times. E o olhar dela aconselhava-o a ter calma. Mas Andrew não tinha calma. Revigorado pelas férias ansioso por trabalhar, começou a andar de um lado para o outro da sala, sobre os macios tapetes. Pôs-se a contemplar  exasperadamente o quadro animado do rio. Iam e vinham rebocadores. Longas filas de barcaças de carvão arrastavam-se contra a corrente. Depois marchou para o gabinete de Gill.

       - Quando é que começo?

       Gill sobressaltou-se diante do imprevisto da pergunta.

       - Meu caro colega, você surpreendeu-me. Eu pensei que lhe tinha dado trabalho bastante para um mês. - Olhou o relógio. - Venha daí. É hora do almoço.

       Depois de saborear o seu linguado frito enquanto Andrew  defrontava uma costoleta, Gill explicou que a próxima sessão da Junta não se realizaria, nem poderia mesmo realizar-se, antes de 18 de Setembro, porque o Prof. Challis estava na Noruega, o Dr. Maurice Gadsby na Escócia,  Sir William Dewar, presidente da Junta, na Alemanha,  enquanto o seu chefe, Sr. Blades, andava por Flinton com a família.

       Foi com a cabeça numa grande confusão, que Andrew voltou naquela tarde para junto de Christine. Os móveis ainda estavam no armazém e, como tinham muito tempo para procurar casa, alugaram por um mês um pequeno apartamento mobilado em Earl’s Court.

       - Custa a acreditar, Chris! Eles ainda nada prepararam  para eu fazer. Tenho de passar um mês inteiro a beber leite, a ler o Times e as actas das sessões, sem esquecer  é claro, longas conversas sobre hóquei com a querida  Sr.a Mason.

       - Prefiro que reserves a conversa para a querida que é a tua mulher. Oh! Meu querido, isto aqui é adorável para quem vem de Aberalaw. Dei um passeiozinho hoje de tarde até Chelsea. Vi lá a casa de Carlyle e a Galeria Tate. Projectei passeios tão lindos para nós. Podemos ir de barco até Kew. E os jardins, querido? No mês que vem, Kreisler dará concertos no Albert’s Hall. E devemos ver o Memorial, para descobrir porque é que toda a gente ri dele. E há uma peça nova no New-York Theatre Guild. Também seria esplêndido se eu fosse encontrar-me contigo na cidade para almoçarmos juntos. - E estendeu-lhe a mãozinha vibrante. Poucas vezes Andrew a vira tão animada. - Querido, vamos jantar fora. Há um restaurante russo nesta mesma rua. Parece bom. E depois, se não estiveres  muito cansado, poderemos...

       - Olha lá - protestou ele, quando Christine o arrastava para a porta. - Eu pensava que tu eras o membro ajuizado da família. Mas parece-me, de facto, Chris, que depois do meu primeiro dia de trabalho, devo ter uma noite divertida.

 

       Na manhã seguinte leu toda a papelada que estava em cima da mesa, rubricou-a, e por volta das onze horas já estava passeando pela «jaula», sem nada para fazer. Mas a «jaula» era demasiadamente pequena para o conter. Impacientemente,  saiu a explorar o edifício. Era tão interessante  como um necrotério sem cadáveres. Mas, ao subir ao último andar, encontrou-se de repente num grande salão guarnecido de alguns aparelhos de laboratório. E ali, sentado sobre um caixote, via-se um rapaz metido numa bata branca, comprida e suja, que tratava desconsoladamente  das unhas, enquanto o cigarro amarelava ainda mais a mancha de nicotina no canto do lábio.

       - Olá! - disse Andrew.

       Houve uma pausa. Depois o outro respondeu, sem interromper a sua ocupação:

       - Se se perdeu no caminho, o elevador é na terceira porta à direita.

       Andrew encostou-se à mesa de trabalho e tirou um cigarro do bolso. Depois perguntou:

       - O senhor não serve chá aqui?

       Pela primeira vez o rapaz levantou a cabeça. (Os cabelos,  negros e acamados à força de brilhantina formavam um contraste singular com a gola levantada da sua bata manchada).

       - Apenas para ratos brancos - respondeu com ar sisudo. As folhas de chá são muito nutritivas para eles.

       Andrew riu, talvez porque o autor da graça era um rapazola mais moço do que ele.

       - Chamo-me Manson.

       - Estava com esse receio. Veio, então, juntar-se à legião dos esquecidos, hem? - Uma pausa. - Eu sou o Dr. Hope. Mas o meu nome nada quer dizer.

       - De que se ocupa aqui?

       - Só Deus sabe... é o tal do Billy aos Botões, quero dizer Dewar! Sento-me aqui algumas vezes e fico a pensar. Mas geralmente fico apenas sentado. Uma vez por outra, mandam-me pedaços de minério despedaçados e perguntam-me a causa da explosão.

       - E o senhor responde qual foi? - indagou Andrew polidamente.

       - Não - disse Hope, rudemente. - Dou palpites ao acaso, por bambúrrio.

       Sentiram-se mais à vontade depois da vulgaridade da frase e foram almoçar juntos. No caminho Hope explicou que só graças ao bom tempo é que ainda estava com a cabeça em boas condições. Também explicou outras coisas a Manson. Era pesquisador nos laboratórios de Cambridge, onde se salientara - resmungou - pelas suas frequentes demonstrações de falta de tacto. Fora emprestado à Junta, em vista de insistentes pedidos do Prof. Dewar. Nada tinha  que fazer além de simples trabalhos mecânicos, que qualquer  prático de laboratório podia executar. Achava que acabaria «zuca» por causa da negligência e da inércia da junta, que ele apelidara sarcàsticamente de «Paraíso dos Maníacos». Era um exemplo bem típico da obra de pesquisas  no país, orientada por um grupo de ilustres medalhões,  tão inchados de vaidade com as suas próprias teorias  e tão ocupados em se combaterem mutuamente que nada podia levar para a frente com um rumo determinado.

       Hope era puxado daqui para acolá, tinha de fazer o que lhe mandavam e não o que queria, e era tão interrompido no trabalho que nunca passou seis meses na mesma tarefa.

       Traçou para Andrew um rápido esboço dos maiorais do Paraíso dos Maníacos. A Sir William Dewar, o caduco mais indomável nonagenário que presidia à Junta, pusera a alcunha de Billy dos Botões, por causa da propensão de Sir William para deixar desabotoadas certas partes essenciais  de seu vestuário. O velho Billy dos Botões era presidente  de quase todas as comissões científicas da Inglaterra,  conforme explicou Hope. Além disso fazia palestras pela rádio, no programa essencialmente popular: Ciência para Crianças.

       Havia mais o Prof. Whinney, vulgarmente conhecido entre a estudantada como o Cavalão; Challis, que não era mau sujeito quando lhe não dava para representar o papel dramático de Pasteur-Rabelais; e o Prof. Maurice Gadsby.

       - Conhece Gadsby? - perguntou Hope.

       - Já me encontrei com esse cavalheiro. - E Andrew contou a história do exame.

       - O nosso Maurice é assim mesmo - comentou Hope amargamente. - É um autêntico furão. Mete-se em tudo. Qualquer dia entrará para a Royal Apothecaries(1). Não resta dúvida de que o cavalheiro é inteligente. Mas não se interessa pelas pesquisas científicas. Só se preocupa com a própria pessoa. - Hope riu-se subitamente. - Robert Abbey conta uma boa a respeito dele.  Gadsby queria entrar para o Rumpsteak Club. É um desses clubes para dar jantares que existem em Londres. É só de gente bem como se supõe. Pois bem, Abbey, que é um cidadão prestável, prometeu fazer o que lhe fosse possível pelo Gadsby só Deus sabe porquê. Dias depois Gadsby encontrou-se com Abbey. «Então? Entrei?» perguntou ele. «Não», disse Abbey «Não entrou». «Deus do Céu!», exclamou Gadsby. «Não me diga que fui reprovado?!», «Foi reprovado», disse Abbey. «Escute, Gadsby! Já viu alguma vez na sua vida um prato de caviar?».

      

(1) A Royal Society of Apothecaries é a instituição médica mais tradicional e prestigiosa da Inglaterra. (N. do T.)

      

       Hope inclinou o corpo, explodindo numa gargalhada.

       Um momento depois acrescentava:

       - Abbey também faz parte da Junta. É um homem decente. Mas é demasiadamente sabido para vir aqui muitas vezes.

       Aquele foi o primeiro dos muitos almoços que Andrew e Hope comeram juntos. Apesar das suas graças de estudante e da inclinação natural para nada tomar a sério, Hope era um rapaz de valor. A sua irreverência era saudável.

        Andrew compreendeu que ele ainda havia de triunfar na vida. E, com efeito, nos momentos de seriedade, Hope confessou muitas vezes o ansioso desejo de retomar o trabalho da sua inclinação, que a si mesmo impusera, sobre o isolamento dos fermentos gástricos.

       De vez em quando, Gill acompanhava-os ao almoço.

       Hope definia-o com uma frase bem característica: «É um pobre diabo!». Embora envernizado por trinta anos de funcionalismo,  Gill era de baixa condição social. Trabalhava na repartição como uma pequenina máquina bem lubrificada,  que girava com facilidade. Chegava de Sunbury todas as manhãs, sempre pelo mesmo comboio, e, quando o serviço na repartição não o impedia, tomava sempre o mesmo comboio de volta. Tinha em Sunbury esposa, três filhas e um jardinzinho onde cultivava rosas. Parecia uma legítima encarnação do perfeito saloio. No entanto debaixo dessa aparência existia um Gill autêntico, que amava o Inverno de Yarmouth e passava lá sempre as suas férias de Dezembro, que sabia quase de cor um livro chamado Hadji Baba,- uma verdadeira Bíblia para ele e que, membro havia quinze anos da Sociedade Protectora dos Animais, se dedicava com certo orgulho a tratar dos pinguins do Jardim Zoológico.

       Uma vez por outra Christine também comparecia ao almoço. Gill desdobrava-se em amabilidades para manter a aura de cortesia do funcionalismo. O próprio Hope procedia  com admirável gentileza. Confessou a Andrew o abalo que sofrera nas suas convicções de celibatário desde que encontrara a Sr.a Manson.

       Os dias passaram. Enquanto Andrew esperava a reunião da Junta, o casal ia descobrindo Londres. Fizeram uma viagem de barco a Richmond. Foram a um teatro chamado «Old Vic». Travaram relações com as gatas de Hampstead Heath, conheceram o encanto de um cafézinho, servido num quiosque, à meia-noite. Passearam pela zona operária.

       Foram remar na Serpentine. Perderam as ilusões sobre o Sono... Quando já não precisavam de consultar os mapas da cidade antes de tomarem o metropolitano, começaram a sentir-se londrinos de facto.

       Na tarde de 18 de Setembro reuniu-se afinal, com a presença de Andrew, o conselho director da J. M. M.

       Ao lado de Gill e de Hope, compreendendo os sorrisos zombeteiros que o último lhe dirigia, Andrew observava a entrada dos figurões no salão de cornijas douradas:

       Whinney, o Dr. Lancelot Dodd-Canterbury, Challis, Sir Robert Abbey, Gadsby e o próprio Billy dos Botões, William  Dewar.

       Antes de entrar, Abbey e Challis conversaram com Andrew. Abbey pronunciou duas ou três palavras muito simples, o professor um jorro abundante de frases gentis e congratulatórias pela sua nomeação. Ao passar, Dewar voltou-se para Gill, exclamando na vozinha estridente que lhe era tão peculiar:

       - Onde está o nosso novo médico, Sr. Gill? Onde está o Dr. Manson?

       Andrew levantou-se, espantado com o tipo de Dewar, que deixava mesmo a perder de vista a descrição de Hope.

       Billy era pequenino, curvado e cabeludo. Usava fato velho, o colete cheio de nódoas, os bolsos do sobretudo esverdeado  atulhados de papéis, panfletos e memorandos de uma dúzia de sociedades diferentes. Billy não tinha desculpa, pois possuía muito dinheiro e filhas, uma delas casada com um par da Câmara milionário. Mas a verdade é que parecia então, como sempre, um macaco velho e mal tratado.

       - Havia um Manson comigo na universidade, em 1880 - guinchou com ar benevolente, à guisa de cumprimento.

       - Era este aqui - murmurou Hope que não resistiu à tentação de gracejar.

       Billy ouviu.

       - Como pode o senhor saber, Dr. Hope? - perguntou, fixando-o por cima das lunetas de aros de metal, penduradas  na ponta do nariz.  Nesse tempo nem o senhor estava ainda nos cueiros. Hi! Hi! Hi! Hi!

       Afastou-se, dando risadinhas, para o seu lugar à cabeceira  da mesa. Nenhum dos colegas já sentados deu pela sua presença. Ignorar orgulhosamente a presença dos companheiros  fazia parte da estratégia dos membros deste conselho. Isso, porém, não perturbou Billy. Tirando do bolso um maço de papéis, bebeu um copo de água da garrafa, tomou um martelinho que estava na sua frente e bateu uma pancada estrondosa na mesa.

       - Senhores, meus senhores! O Sr. Gill vai proceder à leitura da acta.

       Gill, que agia como secretário do conselho, leu rapidamente  a acta da sessão anterior, enquanto Billy sem prestar a menor atenção a essa cantilena, ora folheava os papéis, ora piscava o olho com simpatia para Andrew, a quem vagamente associava ao Manson de 1880 da universidade.

       Quando Gill terminou, Billy empunhou logo o martelo.

       - Senhores! É com especial satisfação que vemos hoje aqui o nosso novo médico. Recordo-me de que, ainda por volta de 1904, salientei a necessidade de a Junta dispor dos serviços de um clínico permanente como valioso assistente  para os patologistas que de vez em quando conseguimos  «pescar», senhores, hi! hi!, que de vez em quando conseguimos pescar no Instituto de Pesquisas. E digo isto com a maior consideração pelo nosso jovem amigo Hope, de cuja bondade, hi! hi!, de cuja bondade temos abusado tanto. Lembro-me agora muito bem de que ainda em 1889...

       Sir Robert Abbey interveio:

       - Tenho a certeza, senhores, de que interpreto o sentir de todos os membros da Junta ao felicitar o Dr. Manson, de todo o coração, pelo seu trabalho sobre a silicose. Se assim me posso expressar, considero-o um trabalho muito paciente e original de investigação clínica e que, como a Junta se dá conta, pode ter efeito decisivo sobre a nossa legislação industrial.

       - Muito bem!  Muito bem! - trovejou Challis, apadrinhando  o seu protegido.

       - Era isso mesmo que eu ia dizer, Robert - resmungou Billy, com rabujice. - Para ele, Abbey era ainda um rapaz, quase um estudante, cujas interrupções deviam ser contrariadas docemente. Quando decidimos na última reunião que essas pesquisas deviam ser continuadas, o nome do Dr. Manson imediatamente se impôs por si mesmo. Foi ele quem levantou essa questão e a ele se devem dar todas as oportunidades para o prosseguimento do seu trabalho. Senhores, entendemos que tratando-se de uma coisa em favor de Andrew - piscou-lhe o olho intencionalmente - que ele deve visitar todas as minas de antracite do país e mais tarde, se for possível, estender a sua visita a todas as minas de carvão. Também desejamos que ele disponha de todos os elementos para o exame clínico dos trabalhadores das indústrias mineiras. Nós conceder-lhe-emos todas as facilidades, inclusive os apreciáveis serviços bacteriológicos do nosso amigo Dr. Hope. Em suma, senhores, nada há que não desejemos fazer para que o nosso novo inspector clínico conduza esse assunto importantíssimo de inalação de poeira até às últimas conclusões científicas e sociais.

       Andrew respirou fundo e furtivamente. Era esplêndido  muito melhor do que poderia esperar. Iam dar-lhe carta branca, apoiá-lo com a imensa autoridade da Junta, deixá-lo entregue às investigações clínicas. Eram uns anjos,  todos eles. E Billy era o próprio arcanjo Gabriel.

       - Mas, senhores - cacarejou Billy subitamente, tirando dos bolsos nova papelada. - Antes que o Dr. Manson se dedique a este problema, antes que possamos sentir-nos à vontade para lhe permitir que concentre os seus esforços  nesse ponto, julgo que ele deve tratar de outra questão  mais instante.

       Uma pausa. Andrew sentiu o coração apertar-se-lhe, sentindo-se desanimado quando Billy continuou:

       - O Dr. Bigsby, do Ministério do Comércio, chamou-me a atenção para a alarmante discrepância que existe nas especificações dos equipamentos industriais de pronto-socorro. Há, na verdade, uma definição da lei vigente, mas é vaga, pouco satisfatória. Não existem, por exemplo, padrões  exactos quanto ao tamanho e peso das ligaduras e quanto ao comprimento, o material e o tipo das talas. Ora, senhores, isso é um assunto importante e que respeita directamente ao Conselho. Lamento profundamente que o nosso médico se veja obrigado a proceder a uma investigação completa e apresentar um relatório sobre a matéria antes de dedicar-se ao problema da inalação.

       Silêncio. Andrew correu os olhos desesperadamente em torno da mesa. Dodd-Canterbury estirava as pernas e fitava  o tecto. Gadsby desenhava diagramas no bloco de papel. Whinney franzia a testa. Challis inchava o peito, para tomar a palavra. Mas foi Abbey quem disse:

       - Mas, Sir William, isso é um assunto que diz respeito ao Ministério do Comércio ou ao departamento de Minas.

       - Nós temos de estar à disposição de qualquer dessas entidades - guinchou Billy. - Nós somos... Hi! Hi! O órgão  que elas tutelam.

       - Sim, eu sei. Mas, afinal de contas, isso... essa questão de ligaduras é uma coisa de certo modo trivial e o Dr. Manson...

       - Afirmo-lhe, Robert, que está muito longe de ser trivial. Será discutida no Parlamento por estes dias. Ainda ontem Lord Ungar me tocou no assunto.

       - Ah! - exclamou Gabdsby, levantando a cabeça. - Se Ungar se interessa, temos de o atender.

       Gadsby estava sempre pronto para adular pessoas como Ungar, cuja simpatia desejava obter.

       Andrew foi forçado a intervir.

       - Desculpe-me, Sir William - disse um pouco desorientado. Eu...  eu imaginei que o meu trabalho aqui seria clínico. Há um mês que estou inactivo, à espera de começar e agora, se o que eu tenho a fazer...

       Estacou circunvagando um olhar pelos membros da Junta. Foi Abbey quem o ajudou.

       - É muito justo o ponto de vista do Dr. Manson. Há Quatro anos que ele investiga pacientemente o seu assunto e agora, quando se lhe proporcionavam todas as facilidades  para o desenvolver, não está certo que ele vá calcular dimensões de ligaduras.

       - Se o Dr. Manson tem sido tão paciente durante quatro  anos, Robert - apitou Billy - pode ter ainda mais um pouco de paciência. Hi! Hi!

       - De facto - trovejou Challis. - Talvez possa tratar de Silicose nas horas vagas.

       Whinney preparou-se para falar.

       - Agora - cochichou Hope a Andrew - o Cavalão vai relinchar.

       - Senhores - disse Whinney. - Há muito tempo que ando a pedir à Junta que investigue o problema da fadiga muscular relacionada com o calor das fornalhas. Como sabem, é um assunto que me interessa profundamente e que, para falar francamente, não tem merecido dos senhores a devida atenção, apesar da sua importância. Agora já que o Dr. Manson vai ser afastado do caso da inalação, parece-me admirável a oportunidade para se levar a efeito esse relevante problema da fadiga muscular...

       Gadsby olhou para o relógio.

       - Tenho um encontro marcado em Harley Street dentro de trinta e cinco minutos.

       Whinney voltou-se, irritado, para Gadsby. O Prof. Challis,  seu colega, apoiou-o com um estrondoso:

       - Que impertinência intolerável!

       Parecia iminente um conflito.

       Mas por trás das suíças, a cara amarelada e conciliadora de Billy vigiava a reunião. Não estava perturbado. Havia quarenta anos que presidia a sessões idênticas. Bem sabia que todos o detestavam e queriam vê-lo pelas costas. Mas não se ia embora, nunca se retirava. O seu vasto crânio estava recheado de problemas, dados, notas, fórmulas  obscuras, equações; cheio de fisiologia e química, de factos e hipóteses um imenso sepulcro cavernoso, povoado  de fantasmas de gatos arrebentados, iluminado por luz polarizada, e todo revestido de cor-de-rosa pela grata lembrança de que, quando menino, Lister lhe dera palmadinhas  na cabeça. Disse com toda a candura:

       -  Devo declarar à assembleia que já tomei a iniciativa de prometer a Lord Ungar e ao Dr. Bigsby que os auxiliaríamos  nas suas dificuldades. Seis meses devem bastar, Dr. Manson. Talvez um pouco mais. E não será destituído de interesse. Contactará com muitas pessoas e coisas, meu caro. Lembre-se do que disse Lavoisier sobre a gota de água. Hi! Hi! E agora, quanto ao exame patológico dos espécimes de Wendower, feito em Julho último pelo Dr. Hopes... 

       Quatro horas a sessão estava terminada. Andrew ficou a discutir o caso com Gill e Hope no gabinete do primeiro. A impressão que a Junta lhe causou começava a inspirar-lhe certa discrição pessoal. E talvez contribuíssem para isso os dias que iam passando. Não barafustou nem explodiu em comentários irritados. Contentou-se simplesmente  em espetar com uma pena do governo uma folha de papel do governo numa mesa do governo.

       - Isto não é tão mau como parece - animava-o Gill. - Bem sei que terá de viajar por todo o país, mas isso até pode ser agradável. Deve levar a sua esposa. Para Buxton, por exemplo. Fica no centro de toda a zona carbonífera  de Derbyshire. E ao fim de seis meses o senhor poderá dar início ao seu trabalho sobre antracite.

       - Nunca mais se lhe poderá dedicar - Hope arreganhou  os dentes. - Será medidor de ligaduras para o resto da vida!

       Andrew tomou o chapéu.

       - O defeito que o senhor tem, Hope, é... ser demasiadamente  moço.

       Foi para casa encontrar-se com Christine. Esta resolvera  tirar o melhor partido da situação. Compraram por sessenta libras um automóvel Morris em segunda mão e partiram na segunda-feira seguinte para a grande investigação sobre socorros de emergência. Estavam radiantes quando o carro atingiu a estrada para o Norte. Depois de caricaturar o Billy dos Botões na direcção do volante, Andrew observou:

       - Ora espiga! Quero lá saber do que disse Lavoisier a respeito da gota de água. Estamos juntos, Chris! Isso é o que importa. 

 

       A missão era idiota. Consistia na inspecção de material de pronto-socorro nas diferentes instalações das minas de carvão do país: talas, ataduras, algodão, desinfectantes, torniquetes, etc. Nas minas ricas o equipamento era bom. Nas pobres, o equipamento era mau. A inspecção em subterrâneos não era novidade para Andrew. E fez centenas de inspecções arrastando-se por milhas de galerias no fundo das minas de carvão para examinar uma caixa de ataduras, cuidadosamente colocada ali meia hora antes. Nos poços insignificantes do inóspito Yorkshire ouviu cochichos  do género: «Corre, Georgie, e diz a Alex que vá à farmácia...» ou então: «Sente-se, doutor; dentro de um minuto tudo estará preparado para o doutor ver». Em Nothingham animou o pessoal de uma ambulância onde não se consentia o álcool, afirmando-lhes que chá frio era um estimulante superior à aguardente. Em todos os lugares era a favor do whisky. Mas na maioria dos casos fazia o serviço com cuidados escrupulosos.

       O casal tomava acomodações num centro estratégico Dali Andrew corria o distrito de automóvel. Enquanto o marido inspeccionava Christine ficava cosendo, longe dele.

       Tiveram muitas aventuras, principalmente com donas de pensões. Fizeram amigos, sobretudo entre os inspectores de minas. Andrew não se admirava quando essa gente, rude e simplória, ria loucamente da sua missão. O pior era que Andrew ria com eles.

       Em Março voltaram para Londres, venderam o carro com um prejuízo de dez libras apenas sobre o preço de compra, e Andrew pôs-se a organizar o relatório. Tinha decidido dar aos membros da Junta um trabalho que valesse  o dinheiro gasto, com estatísticas sobre o material, páginas de quadros comparativos, mapas e gráficos que mostrassem como subia a curva das ligaduras quando caía a curva das talas. Estava resolvido, explicou a Christine,  mostrar à Junta como fizera um trabalho bem feito e como aproveitara bem o tempo que durara a inspecção.

       Ao fim de um mês, quando já passara para as mãos de Gill um rascunho do relatório, Andrew teve a surpresa de receber uma comunicação do Dr. Bigsby para que o procurasse no Ministério do Comércio.

       - Ele está encantado com o seu relatório - anunciava Gill, todo animado, acompanhando Andrew ao longo de Whitehall. - Não deve deixar perder esta oportunidade. Sim, senhor! Meu caro colega, é inegável que isto é um começo esplêndido para si. Nem faz ideia como Bigsby é importante. Tem toda a administração da indústria no bolso.

       Levaram bastante tempo a chegar à presença do Dr. Bigsby. Tiveram de esperar, de chapéu na mão, em duas antecâmaras, até serem admitidos no seu gabinete. Mas eis enfim o Dr. Bigsby, corpulento e cordial, com um fato cinzento e polainas de tom mais escuro, colete de abotoadura  dupla, e cheio de autoridade aparatosa.

       - Sentem-se, senhores. A propósito do seu relatório, Manson, estive a ler o rascunho e, embora seja cedo para me pronunciar, devo dizer-lhe que me deu boa impressão. Altamente científico.  Gráficos excelentes. De trabalhos assim é que precisamos neste departamento. Agora, como estamos em via de uniformizar os equipamentos de fábricas  e minas, acho que o senhor deve conhecer os meus pontos de vista. Antes de mais vejo que recomenda ligaduras  de oito centímetros como o tipo conveniente. Ora, eu prefiro ligaduras de seis centímetros e meio. Concorda comigo, não é verdade?

       Andrew irritou-se; deviam tê-lo predisposto a isso as polainas.

       - Na minha opinião, pelo menos para as minas, acho que as ligaduras mais largas são melhores. Mas, que diabo! Que diferença é que isso faz?

       - Hem? Como? - Bigsby corou até à raiz dos cabelos. - Não faz diferença?

       - Absolutamente nenhuma.

       - Mas o senhor não vê... não compreende que é todo o princípio da estandardização que está em jogo? Se sugerimos  seis centímetros e meio e o senhor recomenda oito, pode resultar daí uma série de complicações.

       - Pois eu recomendo oito centímetros - disse Andrew friamente.

       Os pêlos de Bigsby arrepiaram-se visivelmente.

       - Não posso compreender a sua atitude. Há muitos anos que nos esforçamos para a adopção de ligaduras de seis centímetros e meio. Está a parecer-me que o senhor não sabe quanto este assunto...

       - Sim, eu sei! - Andrew também perdeu a paciência. - O senhor já esteve no fundo de uma mina? Eu já! Já fiz uma operação sangrenta, estirado numa poça de água, à luz de uma lanterna e num lugar onde não se podia estar de pé. E posso garantir-lhe que uma diferença de dois centímetros e meio nas suas ligaduras não vale um caracol.

       Saiu do edifício mais apressadamente do que havia entrado. Desanimado, Gill torcia as mãos e lamentava-se por todo o caminho.

       Ao chegar ao seu gabinete, Andrew pôs-se à janela, contemplando, de sobrolho carregado, o tráfego do rio, as ruas cheias de movimento, os autocarros, os «eléctricos» passando estrondosamente sobre as pontes, o burburinho da multidão, o desenrolar palpitante da vida.

       «Não tenho jeito para vegetar aqui», - pensava, num acesso de impaciência. - «Nasci para viver lá fora... lá fora».

       Abbey deixou de comparecer às reuniões da Junta. Challis  deixara-o desalentado, quase num estado de terror. Ao acompanhá-lo para almoçar preveniu-o de que Whinney estava a empenhar-se fortemente para conseguir que ele fosse designado para a investigação sobre fadiga muscular antes de tratar da questão da silicose. Andrew pensou esforçando-se desesperadamente para achar graça: «Se for assim, depois das ligaduras o melhor que tenho a fazer é ficar cliente do Museu Britânico».

       Ao voltar para casa, surpreendeu-se a olhar com inveja as placas de metal fixadas nas grades diante das portas das residências dos médicos. Parava, via um cliente a tocar à campainha da porta e entrar... E então, prosseguindo melancolicamente o seu caminho, ficava a imaginar  a cena, as perguntas do médico, o exame com o estetoscópio,  toda a excitante ciência do diagnóstico. Também era médico. Não era de facto? Pelo menos, durante um certo tempo...

       Pelos fins de Maio precisamente, e nessa disposição de espírito, subia ele a Oakley Street, por volta das cinco da tarde, quando viu de repente uma multidão reunida em torno de um homem estendido na calçada. No meio da rua estava uma bicicleta arrebentada e mais adiante um camião atravessado.

       Momentos depois Andrew já estava no meio da multidão,  observando o homem atropelado. Junto dele ajoelhava-se  um polícia. O homem sangrava abundantemente de uma ferida profunda nas virilhas.

       - Deixe-me passar. Sou médico.

       O polícia, que se esforçava inutilmente por fixar um torniquete, voltou o rosto perturbado.

       - Não consigo estancar o sangue, doutor. A ferida é muito profunda.

       Andrew viu que era impossível aplicar o torniquete. A ferida era muito profunda, atingindo o vaso ilíaco e o homem desfazia-se em sangue.

       - Levante-o - disse ao guarda. - Ponha o homem de peito para cima.

       Então, fechando a mão direita, inclinou-se e empurrou a  barriga do homem na direcção da aorta. Todo o peso do seu corpo, assim transmitido à grande artéria, deteve imediatamente a hemorragia. O polícia tirou o quépi e limpou  a testa. Cinco minutos mais tarde, a ambulância chegava. Andrew acompanhou-a. Na manhã seguinte telefonou para o hospital. Como de costume em casos idênticos, o cirurgião de serviço respondeu bruscamente:

       - Sim, sim, o homem está a passar bem. Quem faz a pergunta?

       -  Oh! - murmurou Andrew, da cabina do telefone publico.  Ninguém.

       E esta palavra, pensou com amargura, sintetizava exactamente  o que ele era: ninguém, nada fazia, não tinha futuro. Suportou a situação até ao fim da semana, e então, calmamente, sem comentários, entregou a Gill, para que o transmitisse à Junta, o seu pedido de demissão.

       Gill ficou desconcertado, mas reconheceu que já receava esse melancólico desfecho. Pronunciou algumas palavras de consolação e ao terminar:

       - Afinal de contas, meu caro colega, eu compreendo que o seu lugar é... Bem, para empregar uma expressão do tempo de guerra, o seu lugar não é na retaguarda, mas... sim, na linha da frente... com os que combatem.

       Hope interpôs-se:

       - Não ligue importância ao que diz esse amador de pinguins e de roseiras. O senhor tem sorte. Eu farei o mesmo se conservar o juízo... Assim que terminar os três anos do contrato!

       A Andrew nada constou sobre as actividades da Junta quanto à inalação das poeiras até que, meses depois, Lord Ungar levantou a questão, dramaticamente, no Parlamento,  declarando-se baseado em documentação médica produto das investigações do Dr. Maurice Gadsby.

       Gadsby foi aclamado pela imprensa como um grande cientista e um benfeitor da Humanidade, e nesse ano a silicose foi classificada como doença de origem industrial.

 

       Começaram em busca de uma clínica. Uma verdadeira montanha russa. As esperanças subiam ao céu, para caírem  logo depois no mais profundo abismo. Estimulado pela consciência de três derrotas sucessivas pois era  assim que considerava a saída de Blaenelly, de Aberalaw e da J. M. M., Andrew aspirava a uma desforra. Mas, embora aumentado pela rigorosa economia dos últimos meses de ordenado burocrata, todo o seu dinheiro não ia além de seiscentas libras. O casal não saía das agências médicas e não deixava passar qualquer oportunidade vislumbrada  nas colunas do Lancet. Mas a quantia era insuficiente  para a compra de um consultório londrino.

       Andrew e Christine lembravam-se da primeira tentativa: o Dr. Brent, de Cadogan Gardens, retirava-se da actividade profissional e oferecia consultório e clientela substancial para médico de reputação firmada. Receando que alguém se lhes antecipasse para arrebatar-lhes a pechincha,  fizeram a extravagância de tomar um táxi e correram para o Dr. Brent. Era um homenzinho de cabeça branca, agradável, com ares quase humildes.

       - Sim - disse enfaticamente o Dr. Brent. - A clínica é óptima. A casa também é bonita. Quero apenas sete mil libras pelo trespasse. Tenho um arrendamento por quarenta anos e a renda é apenas de trezentas libras anuais. Quanto à clínica... O preço do costume... isto é, a renda correspondente a dois anos. Que tal, Dr. Manson?

       - Muito justo! - Andrew concordou, com ar sisudo. Também me dará uma boa recomendação para os clientes, não é assim? Obrigado, Dr. Brent. Vamos pensar no caso.

       Pensaram sobre o negócio enquanto tomavam chá numa modestíssima confeitaria.

       - Sete mil libras! - Andrew soltou uma gargalhada. Atirou  o chapéu para a nuca. Franziu a testa e fincou os cotovelos na mesinha de mármore. - Isto está terrível, Chris! Esses velhos agarram-se à situação com unhas e dentes. E para os sacar de lá só com muito dinheiro. A culpa é da nossa organização médica. Mas se o sistema é esse, tenho de me conformar. Verás! Para o futuro também  vou tomar a sério essa questão de dinheiro!

       - Não faças isso - disse ela, sorrindo. - Temos sido muito felizes na nossa pobreza.

       Andrew resmungou:

       - Não dirás a mesma coisa quando tivermos de mendigar  pela rua: uma esmolinha, por amor de Deus!

       Confiando nos seus títulos médicos, contentava-se com um dispensário barato, sem luxo. Queria livrar-se da tirania  do sistema de cartões. Mas, passadas semanas, já aceitava com prazer qualquer coisa que lhe fornecesse um meio de existência. Viu clínicas em Talse Hill, Islington, Brixton e até em Cambden Town, onde lhe mostraram um consultório com um buraco no tecto. Depois de discutir muito com Hope, que considerava o caso um suicídio por causa da insignificância do capital, Andrew já estava decidido a alugar uma casa e pôr uma placa na porta à espera que os clientes aparecessem.

       Mas ao fim de dois meses, quando já estavam no auge do desespero, a Providência teve compaixão deles e levou suavemente para o além o Dr. Foy, de Paddington. Quatro linhazinhas no Medical Journal que noticiavam o facto caíram sob os olhos de Andrew. Embora sem esperança.

       Foram ao n.º 9 do Chesborough Terrace. Viram a casa. Era um casarão sepulcral, cor de chumbo, com um pequeno gabinete lateral como dispensário e, nos fundos, uma garagem  de tijolos. Verificaram pela escrituração que o Dr. Foy fazia perto de quinhentas libras por ano, provenientes principalmente de consultas, com remédios a uma média de três xelins e seis pence. Falaram com a viúva, que lhes assegurou timidamente ser muito boa a clínica do defunto. Fora mesmo excelente durante uma certa época. Não faltavam,  então, os «clientes distintos», que entravam pela «porta da frente».

       Agradeceram e saíram sem animação.

       - Apesar de tudo, não sei... - Andrew reflectia, preocupado. - São muitas as desvantagens. Tenho horror a dispensários. A zona não é boa. Não notaste todas essas pensões horríveis aqui perto? Em compensação, pouco mais adiante, a vizinhança é decente. E a casa é de esquina. A rua tem movimento. O preço está de acordo com os nossos recursos. Um ano e meio de prazo para o pagamento... Ela foi correcta, incluindo na venda a mobília do consultório e do dispensário. E tudo em condições para se começar a trabalhar. É a vantagem de uma vaga por motivo de morte. Que te parece, Chris? Ou agora ou nunca mais. Devemos tentar?

       Christine fitou-o longamente, sem se decidir. Londres já perdera para ela todo o encanto da novidade. Gostava do campo, e ali, naquele ambiente desagradável, sentia crescer a vontade de voltar para a província. Mas se ele estava resolvido a fazer clínica em Londres não tinha coragem para o dissuadir. Acabou por concordar...

       - Se queres assim, Andrew...

       No dia seguinte Manson ofereceu ao procurador da viúva Foy seiscentas libras em lugar das setecentas e cinquenta pedidas. A oferta foi aceite e o cheque foi entregue.

       E no sábado 10 de Outubro o casal tirou a mobília do depósito e entrou na posse da nova residência.

       No domingo ainda estavam assoberbados com a arrumação  e bastante apreensivos com a nova vida. Andrew aproveitou a ocasião para impingir um dos seus sermões, raros, mas insuportáveis, que o transformavam num verdadeiro frade.

       - Chris, tudo aqui é contra nós. Gastámos o último vintém que possuíamos. Temos de viver com o que ganhamos. E só Deus sabe o que poderemos ganhar. Mas temos de avançar. Trata de apertar, Chris; economiza...

       Passou pelo desgosto de a ver desatar a chorar, muito pálida, no meio da grande e sombria sala da frente, ainda desarrumada.

       - Por amor de Deus! - soluçava Christine. - Deixa-me sozinha aqui. Economiza! Eu não economizei sempre o dinheiro? Eu custo-te alguma coisa?

       - Chris! - exclamou ele, espantado.

       Ela continuou freneticamente:

       - Que diabo de casa! É uma coisa que não compreendo. Esta cave, estas escadas, esta porcaria...

       - Isso não tem importância! O que interessa é a clínica.

       - Podíamos arranjar uma clinicazinha na província, em qualquer lugar.

       - Ah! Sim! E com um jardinzinho na frente da casa. Era só o que faltava!

       Ao fim e ao cabo, Andrew pediu desculpas pelo sermão.

       Depois, de braço dado, foram estrelar ovos na inóspita cave. Para a divertir Andrew disse que aquilo não era uma cave, mas um trecho do túnel de Paddington. Ela forçou-se a sorrir a essa tentativa de humorismo, mas na verdade só prestara atenção ao encanamento roto da copa.

       No dia seguinte Andrew abriu o dispensário às nove horas em ponto. Não abriu mais cedo para que não pensassem que estava com muita pressa. O coração batia-lhe excitadamente com uma ansiedade maior, muito maior, do que naquela manhã, quase esquecida, em que Manson atendeu as primeiras consultas em Blaenelly.

       Passou meia hora. A expectativa era grande. Como o pequeno dispensário, cuja entrada dava para a rua lateral estava ligado por um corredorzinho ao resto da casa, podia observar dali o consultório propriamente dito, que ocupava a sala da frente do andar térreo. Não estava mal mobilado: a secretária do Dr. Foy, um sofá, um pequeno gabinete. Segundo explicara a viúva, ali eram atendidos os «clientes distintos», que entravam pela porta da frente, tinha, assim, uma dupla clientela. E Andrew esperava o primeiro cliente com a mesma atenção nervosa com que o pescador aguarda o peixe no anzol.

       Contudo, ninguém apareceu. Eram quase onze horas e nem sinal de cliente. Junto dos carros em fila do outro lado da rua, os chauffeurs também esperavam fregueses.

       Ao lado da do Dr. Foy, toda amachucada, brilhava no portão a placa do novo médico.

       De repente, quando já estava desanimado, retiniu a campainha da porta do dispensário e entrou uma velha embuçada num xale. Bronquite crónica, percebeu logo Andrew, pela respiração opressa, antes mesmo que ela pronunciasse  palavra. Suavemente, muito suavemente, ele fê-la sentar e auscultou-a. Era uma velha cliente do Dr. Foy. Falou-lhe. Preparou-lhe o remédio num cubículo, que fazia de farmácia, a meio caminho do corredor, entre o dispensário e a sala da frente. Voltou com o remédio.

       E então, quando já se preparava, todo trémulo para lhe dizer o preço, a mulher pagou espontaneamente a consulta: três xelins e seis pence.

       Que emoção nesse momento! Que alegria! Que estranho  alívio! Como brilhavam na palma da mão aquelas  moedazinhas de prata! Dir-se-ia o primeiro dinheiro que ganhava em toda a sua vida. Fechou o dispensário, correu para Christine e atirou-lhe as moedas para o colo.

       - A primeira cliente, Chris. Afinal de contas, a velha clínica talvez não fosse tão má como isso. De qualquer maneira, o almoço está garantido!

       Nenhum doente havia para visitar, pois o velho médico, falecido havia quase um mês, não deixara substituto até à chegada de Andrew. Devia esperar até que surgissem novas chamadas. Nesse interim, percebendo, pelos modos de Christine, que ela queria enfrentar sozinha os seus afazeres domésticos, Manson aproveitou a hora vaga, antes do almoço, num passeio pelo bairro, distribuindo prospectos, observando as barbearias, a longa série de pensões baratas, os estábulos transformados em garagens, e as melancólicas praças arborizadas. Ao voltar a esquina da North Street surgiu aos seus olhos um aspecto característico das zonas pobres e sórdidas: casas de penhores quiosques, tabernas.

       Reconheceu que o bairro era velho e decadente. Mas embora sombrio e sujo, apresentava aqui e ali indícios de vida nova: um grupo de boas residências em construção algumas lojas bonitas, escritórios e, no fundo de Gladstone Place, a famosa Casa Laurier. Até ele, que nada conhecia de modas femininas, já ouvira falar na Casa Laurier. E se ainda duvidasse do seu prestígio, ali estava, para atestá-lo, a longa fila de automóveis de luxo ao longo do imponente edifício de mármore. Parecia estranho que a Casa Laurier ficasse tão fora de mão, entre aqueles prédios velhos. No entanto, a sua presença ali era tão indiscutível como a do polícia no meio da praça.

       Depois do almoço completou a primeira excursão pelo bairro visitando os colegas da vizinhança. Fez ao todo oito visitas. Só três médicos lhe deixaram boa impressão: o Dr. Ince, de Gladstone Place, um homem moço; o Dr. Reeder, de Alexandra Street; e um velho escocês chamado McLean, da esquina da Royal Crescent. Sentiu-se, porém, um tanto diminuído pelo tom com  que disseram: «Ah! Foi a clínica do pobre do Foy que o colega arranjou?». Porquê este «arranjou»?, perguntava a  si mesmo, meio zangado. E dizia com os seus botões que dentro de seis meses talvez eles o tratassem de outro modo.  Embora já tivesse trinta anos e conhecesse a vantagem da modéstia, tinha pela piedade alheia o mesmo horror que o gato tem por água fria.  À noite apareceram três clientes no dispensário. Dois deles pagaram os três xelins e seis pence da consulta. O terceiro prometeu voltar no sábado para lhe pagar. Ganhara a soma de dez xelins e seis pence no primeiro dia de clínica.

       Mas o dia seguinte nada rendeu. E o outro apenas sete xelins. Quinta-feira foi um bom dia. Na sexta, uma consulta  somente. A manhã de sábado passou em branco, mas à noite o dispensário rendeu dezassete xelins e seis pence, muito embora não tivessem voltado na segunda-feira para pagar os clientes a quem fiara.

       No domingo, sem nada dizer a Christine, Andrew pôs-se a examinar tristemente a semana decorrida. Teria feito um erro crasso tomando aquela clínica falida, enterrando as suas economias naquele casarão mal assombrado? Porque não avançava? Estava com trinta anos. Sim... já passara dos trinta... Além do grau de médico, possuía dois títulos importantes: doutor em Medicina, com distinção, e membro  do Royal College of Physicians. Era competente e tinha a recomendá-lo um bom trabalho de investigação clínica. No entanto, ali estava todo atrapalhado, ganhando apenas o suficiente para não morrer de fome. «A culpa é do sistema profissional», pensava, indignado. «Já não é para o nosso tempo. Devia existir uma organização melhor, uma oportunidade para todos. Devia haver mesmo a fiscalização do Estado. Mas, lembrando-se do Dr. Bigsby  e da Junta, resmungou com raiva: «Que diabo, isso também não serve. É a burocracia, a morte da iniciativa individual. Morreria sufocado ali. Mas devo vencer, que diabo!

       - Tenho de vencer!

        Era a primeira vez que se impunha assim o aspecto  financeiro da carreira médica. E para o convencer das  necessidades materiais nada mais eficiente se poderia aconselhar do que esses verdadeiros protestos do estômago (era  dele mesmo o eufemismo) que sentia em muitos dias da  semana.

 

       A pouca distância de casa, na rua principal, por onde  Passavam os autocarros, havia uma pequena pastelaria, dirigida por uma mulherzinha gorducha, alemã naturalizada, que dizia chamar-se Smith, mas que era evidentemente Schmidt, a julgar pelo sotaque. Era um local bem típico o estabelecimento de Frau Schmidt, com o seu estreito balcão de mármore abarrotado de arenques fritos frascos de azeitonas, chucrute, várias qualidades de enchidos,  pastéis, salames e um delicioso queijo chamado «Libtauer». Além disso tinha a vantagem de ser muito barato. Já que o dinheiro andava tão escasso na casa do médico e o fogão da cozinha estava em ruínas, Andrew e Christine visitavam com frequência a casa de Frau Schmidt. Nos dias bons comiam frankfurters e apfelstrudel; nos dias de crise, o almoço consistia num prato de arenques com batatas cozidas. Por vezes entravam na pastelaria, depois de examinarem com olhos gulosos a montra dos comestíveis, e saíam de lá com qualquer coisa boa dentro de um saco de corda.

       Frau Schmidt não tardou em travar relações com os novos fregueses. Demonstrava especial simpatia por Christine. Sob a massa revolta dos cabelos louros, a cara gorda e lustrosa da alemã desabrochava num sorriso diante de Andrew. E apertando os olhinhos, dizia-lhe cheia de interesse :

       - Tudo correrá bem. O doutor vencerá. Tem uma boa mulherzinha. Pequenina, como eu. Mas é boa. Espere e verá. Eu lhe arranjarei clientela!

       A situação tornou-se ainda mais séria para Andrew e Christine porque o Inverno chegou pouco depois. As ruas mergulhavam no nevoeiro, ainda aumentado, ao que parece,  pelos fumos da grande estação ferroviária que ficava perto. Trataram de suportar a provação de bom humor, procurando convenser-se de que os seus transes de vida eram divertidos. Mas em Aberalaw nunca haviam tido dias tão difíceis.

       Christine fez os arranjos que pôde no casarão frio e húmido. Caiou os tectos, fez novas cortinas para a sala de espera, forrou de papel o quarto de dormir. Pintando-as de novo, conseguiu transformar por completo as portas estragadas da sala de visitas, no andar térreo.

       As chamadas que recebia uma vez por outra proporcionaram  a Andrew o conhecimento das pensões da vizinhança.

       O dinheiro desses clientes não era fácil de receber. Era, em regra, uma gente miserável e mesmo suspeita, acostumada à prática do calote. Mas o médico tratava de captar a simpatia das donas da pensão, umas criaturas magras e estranhas Ficava a conversar nos corredores sombrios. Dizia: «Não supus que estivesse tanto frio! Devia ter trazido o sobretudo». Ou então: «É desagradável andar a pé. O meu carro está agora na oficina».

       Fez-se amigo do sinaleiro que regulava o trânsito da esquina da casa de Frau Schmidt. Chamava-se Donald Struthers. Descobriram imediatamente afinidades, pois tanto o polícia como Andrew eram de Fife. Struthers prometeu  ajudar o patrício no que fosse possível, observando humoristicamente:

       - Pode ficar certo, doutor: se houver aqui algum atropelamento,  não deixarei de o mandar chamar.

       Uma bela tarde, um mês depois de ter iniciado a sua acção profissional, Andrew saiu e correu todas as farmácias  do bairro, procurando com ares importantes uma seringa Voss, tipo especial, de 10 c.c., que bem sabia não poder encontrar em nenhuma delas. Era um meio de se apresentar como o novo importante médico da zona. Ao voltar leu na cara de Christine uma boa nova.

       - Há uma cliente à tua espera no consultório - murmurou  ela.  Veio pela porta da frente.

       A fisionomia de Andrew alegrou-se. Era o primeiro «cliente distinto» que lhe aparecia. Talvez fosse o começo de melhores tempos. E todo agitado, entrou apressadamente  no consultório.

       - Boas tardes! Em que posso ser-lhe útil?

       - Boas tardes, doutor. Venho recomendada pela Sr.a Smith.

       Levantou-se para o cumprimentar. Era gorda, robusta simpática. Trazia um casaquinho de peles e uma bolsa grande. Manson percebeu logo que se tratava de uma dessas mulheres suspeitas que frequentavam o bairro.

       - Ah! Sim! - disse ele, perdendo um pouco da animação.

       - Oh! Doutor - sorria a mulher, um tanto acanhada - O meu amigo acaba de me dar uns lindos brincos de ouro. E a Sr.a Smith, de quem sou freguesa, disse-me que o doutor poderia furar-me as orelhas. O meu amigo teme que se eu mesma o fizer provoque alguma infecção.

       Andrew deu um longo suspiro. Ver-se obrigado a chegar a tal ponto. Disse, afinal:

       - Está bem. Vou furar-lhe as orelhas.

       Fez o trabalho cuidadosamente, desinfectando a agulha, esfregando os lóbulos com cloreto de etilo e até mesmo colocando os brincos.

       -  Oh! Doutor, que encanto! - E mirando-se no espelhinho da bolsa: - Nada senti. O meu amigo vai ficar contentíssimo. Quanto é, doutor?  

       Havia uma taxa fixa para os «clientes distintos», embora a distinção não fosse muito fixa. Foy cobrava sete xelins e seis pence. Foi quanto Andrew pediu. A mulher tirou da bolsa uma nota de dez xelins. Achava o médico um cavalheiro muito amável, educado e bonito. Sempre havia apreciado o tipo moreno, como o dele. Ao receber o troco, notou que ele parecia esfomeado.

       Noutra época Andrew teria ficado a andar nervosamente de um lado para outro, com a impressão de que também se estava a prostituir com um serviço tão inferior.

       Mas nada disso fez quando a mulher saiu. Sentia em si mesmo uma estranha humildade. Com a nota amarrotada na mão, foi à janela e pôs-se a observar a cliente, até que ela desapareceu remexendo as ancas, balouçando a bolsa, orgulhosa dos brincos que levava nas orelhas. No meio dessa luta desesperada, Manson sentia profundamente a falta de bons amigos, de bons companheiros.

        Assistiu à reunião de uma sociedade médica do bairro, mas não se divertiu muito. Denny ainda estava fora. Dando-se bem em Tampico, resolvera ficar, como cirurgião da Companhia de Petróleo Novo Século. Não podia contar com ele, pelo menos nos tempos mais próximos. Hope, por sua vez, fora mandado para Cambridge, onde, como explicou humoristicamente num postal, estava a contar corpúsculos, por encomenda do Paraíso dos Maníacos.

       Frequentemente sentia vontade de entrar em contacto com Freddie Hamson. Algumas vezes chegou mesmo a procurar na lista o número do seu telefone. Mas desistia sempre de pedir ligação. «Ainda não vencera. Ainda não estava devidamente instalado na vida», pensava consigo mesmo. E essa ideia neutralizou o primeiro impulso. Freddie  morava ainda na Queen Anne Street, embora noutra casa. De dia para dia, Andrew pensava cada vez mais em Hamson, a conjecturar a que deveria ele o seu triunfo, a recordar os velhos tempos de estudante. Uma vez não resistiu. A tentação era demasiadamente forte. Telefonou.

       - Já te esqueceste de mim com certeza - rosnou, já meio preparado para ouvir os protestos do amigo. - Quem fala é Manson, Andrew Manson. Faço clínica aqui, em Paddington.

       - Manson! Tu, esquecido! Que ideia é essa, meu amigo? - Freddie estava atacado de lirismo. - Mas, homem de Deus, porque não me telefonaste há mais tempo?

       - Oh! Ainda não estamos devidamente instalados.

       Andrew sorria, animado pela cordialidade de Freddie.

       - Além disso, com aquele emprego na Junta, tivemos de viajar por toda a Inglaterra. Sou agora um homem casado, sabes...

       - Eu também! Ouve, velho amigo; vamos aproximar-nos de novo. O mais depressa possível. Faço questão disso. Tu, aqui em Londres. Estupendo! Deixa-me ver o livro de notas. Olha: pode ser quinta-feira? Queres vir jantar connosco?

       - Sim, sim. Será óptimo. Então, até quinta-feira, meu velho! Entretanto pedirei a minha mulher que escreva um bilhete à tua.

       Christine não demonstrou entusiasmo quando Andrew lhe falou no convite.

       - Vai tu só, Andrew - sugeriu ela, depois de uma pausa.

       - Ora! Isso é absurdo! Freddie quer que conheças a mulher dele. Eu sei que não aprecias, mas talvez haja outras pessoas, outros médicos provavelmente. Podemos ver coisas novas, querida. Além disso, não nos temos distraído ultimamente. Ele falou em smocking. Ainda bem que comprei um para aquela festa em Newcastle. E tu, Christine? Precisas de arranjar um vestido que sirva.

       - Preciso de arranjar um novo fogão de gás - respondeu,  um tanto amuada.

       Aquelas últimas semanas tinham sido bem duras para ela. Perdera um pouco da sua frescura,  que sempre fora o seu maior encanto, e, por vezes, como naquele momento, o seu modo de falar era impaciente e fatigado.

       Mas na noite de quinta-feira, quando se dirigiram para Quenn Anne Street, ele notou como Christine parecia interessante  no seu vestidinho. Era o mesmo vestido branco que comprara para a festa de Newcastle, mas modificara-o com tanto jeito que dava a impressão de ser ainda mais novo, mais elegante. Penteado também de modo diferente, muito liso, o cabelo negro emoldurava graciosamente o rosto pálido. Andrew bem notou isso quando ela lhe endireitou a gravata. Quis mesmo dizer-lhe que estava linda, mas esqueceu-se de se manifestar pois de repente teve receio de se atrasar.

       No entanto não chegaram tarde, mas cedo, tão cedo que só ao fim de três minutos, origem de um certo constrangimento,  é que Freddie apareceu, alegre, de braços abertos, explicando que chegara naquele momento do hospital e que sua mulher não tardaria a descer. Ofereceu- lhes aperitivos, batendo nas costas de Andrew, convidando-os  a sentar-se. Freddie engordara bastante desde aquele encontro em Cardiff. A papada da prosperidade saía-lhe do colarinho. Mas os olhos conservavam o mesmo brilho e não havia um só fio de cabelo fora do lugar, na cabeça inundada de brilhantina. Todo ele irradiava saúde e boa vida.

       - Podem crer! - Ergueu o copo. - É um encanto para mim encontrá-los de novo. Desta vez temos de cultivar as nossas relações. Que achas isto aqui, meu velho? Lembras-te  do que eu disse naquele jantar em Cardiff? E a propósito, que jantar horrível, hem? Garanto que o de hoje será melhor. Eu disse que havia de vencer em Londres. Ocupo aqui a casa toda, é claro. Não apenas um apartamento. Comprei-a no ano passado. E que dinheirão me custou! - Apertou o laço da gravata, todo cheio de si. - Não é preciso dizer por quanto isso me saiu nem mesmo explicar que sou um médico vitorioso. Mas não me incomodo que  fiques sabendo, meu velho.

       Tudo ali parecia realmente muito caro, não havia dúvida: uma confortável mobília moderna, fogão de luxo, bom piano, um ramo artificial de magnolias de madrepérola numa grande jarra branca. Andrew já se preparava para exprimir a sua admiração quando entrou a Sr.a Hamson: alta, fria, com o cabelo negro apartado ao meio.

       - O vestido marcava uma diferença gritante do de Christine.

       - Vem, querida - acolheu-a Freddie com carinho, mesmo com deferência, e apressou-se a encher e oferecer-lhe um cálice de Xerez. Decorreu tempo suficiente para que ela beberricasse displicentemente o aperitivo antes que aparecessem os outros convidados: o casal Charles Ivory, o Dr. Paul Fredman e a mulher. Quando estes chegaram, fizeram-se as apresentações e houve risinhos e troca de palavras entre os Ivory, Fredman e Manson. Pouco depois era servido o jantar.

            O aspecto da mesa era de luxo refinado. Era como um Mostruário opulento que Andrew tinha visto na montra de Labin & Benn, os famosos joalheiros de Regent Street. Até os candelabros. A comida era irreconhecível: não se sabia se era peixe ou carne, mas tinha um sabor admirável.

       E serviu-se champanhe. Depois de duas taças, Andrew tornou-se mais comunicativo. Começou a conversar com a Sr.a Ivory, que se sentara à sua esquerda. Era uma mulher esguia, vestida de preto, portadora de uma soberba colecção de jóias. Os olhos azuis, grandes e salientes, voltavam-se  de vez em quando para ele numa expressão quase infantil.

       O marido era o grande cirurgião Charles Ivory, explicou ela, sorrindo, quando Andrew lhe fez a pergunta. Ela pensava que toda a gente conhecia Charles. Morava em New Cavendish Street, logo ao virar da esquina. Numa casa própria. Era agradável residir tão perto do casal Hamson. Charles, Freddie e Paul Fredman eram tão bons amigos! Todos três sócios do Sackville Clube. Ficou espantada quando Andrew confessou não ser sócio. Pensava que toda a gente tinha de pertencer ao Sackville. E pôs-se a conversar com o outro vizinho da mesa.

       Manson voltou-se então para a Sr.a Fredman, à sua direita. Achou-a mais gentil e agradável, com uma pele aveludada, quase como a de uma oriental. Encorajou-a a falar também acerca do marido. E dizia consigo mesmo:

       «Preciso de informar-me acerca desses senhores. Parecem tão prósperos e triunfantes...»  Paul, explicou a Sr.a Fredman, era médico. O casal morava num palacete de Portland Place, mas Paul tinha consultório em Harley Street. A clientela era magnífica, explicava tão afectuosamente, que nem parecia gabarolice, composta principalmente por hóspedes do Plaza Hotel. Naturalmente, o Dr. Manson, conhecia o Plaza, aquele hotel, novo e elegantíssimo, que dá para o Parque. É conhecidíssimo,  mesmo porque está sempre cheio de celebridades. Paul era praticamente o médico oficial do Plaza. E são tantos os milionários americanos e astros de cinema. Sim. tudo o que é importante se hospeda no Plaza. E isso é estupendo para o Paul.

       Andrew gostou da Sr.a Fredman. Ficou a ouvi-la até que a Sr.a Hamson se levantou. Então apressou-se amavelmente a afastar a cadeira da vizinha de mesa.

       - Charuto, Manson? - perguntou Freddie, com ar de entendido no assunto, quando as senhoras se retiraram. - Hás-de gostar destes. E aconselho-te a não desprezares este brande. É de 1894. Posso garantir a qualidade.

       Com o charuto aceso e um pouco de brande num copo bojudo na sua frente, Andrew arrastou a cadeira para junto dos outros. Era exactamente isso que ele desejava, uma palestra de médicos bem animada, assuntos profissionais e nada mais. Esperava que Hamson e os seus companheiros  se decidissem a falar. E de facto falaram bastante.

       - A propósito - disse Freddie. - Encomendei hoje, na Casa Glickert uma das novas lâmpadas de irradiação. É um pouco puxada de preço. Custou-me quase oitenta guinéus. Mas vale a pena.

       - Safa!... - exclamou Fredman, pensativo. Era magro de olhos negros, com fisionomia inteligente de judeu. - Deve render bastante para compensar o custo.

       Andrew apertou o charuto entre os dedos preparando-se  para discutir.

       - Essas lâmpadas não me parecem famosas. Deves ter lido, naturalmente, o artigo de Abbey no Medical Journal, sobre o mito da helioterapia. Essas lâmpadas de irradiação absolutamente nenhum raio infravermelho contêm.

       Freddie olhou-o espantado e depois sorriu.

       - Mas contêm a grande vantagem de se cobrar três guinéus de cada cliente por aplicação. Além disso, dão à pele um tom bronzeado muito apreciado.

       - Ouça, Freddie - interrompeu Fredman. - Eu sou contrário  à aquisição de aparelhagem dispendiosa. Tem de ser paga muito antes que comece a render qualquer coisa. Além disso envelhece depressa, passa de moda. com franqueza, caro colega, nada há tão vantajoso como a velha injecção.

       - E o colega sabe com certeza aproveitá-la bem - disse Hamson.

       Ivory juntara-se ao grupo. Era volumoso, mais velho que os outros, pálido, bem escanhoado, com o desembaraço de um homem mundano.

       - A propósito, encomendei hoje uma série de injecções Doze. Manganês, claro. Vejam o que eu fiz. É uma coisa que rende actualmente. Disse ao cliente: o senhor é um homem de negócios. Esta série de injecções vai-lhe custar cinquenta guinéus, mas se quer pagar adiantado custam-lhe  quarenta e cinco. O cliente entregou-me o cheque imediatamente.

       - Que espertalhão me saiu! - comentou Freddie. - Pensei que o colega fosse cirurgião.

       - E sou de facto - Ivory balançou a cabeça. - Amanhã vou fazer uma raspagem na Casa de Saúde Sherrington.

       - Não se deve sair disso - murmurou Predman distraído,  tirando baforadas do charuto e voltando ao assunto. - Não se deve sair disso. É interessante. Numa clínica de gente bem os remédios por via gástrica estão completamente postos de lado. Se eu receitasse para um hóspede do Plaza... por exemplo, uma solução de arsénico, não ganharia com isso mais do que um miserável guinéu. Mas sabem o que faço? Aplico a mesma coisa hipodèrmicamente. Esta coisa de esterilizar a agulha, esfregar a pele com algodão embebido em álcool e todo o restante cenário é uma coisa que impressiona. O cliente acha isso científico e convence-se de que o médico é o melhor do mundo.

       Hamson declarou com convicção:

       - Acreditem que é bem bom para os médicos que o tratamento por via gástrica esteja fora de voga nas zonas elegantes. Veja-se o caso do nosso amigo Charlie. Suponhamos  que ele receita manganês... ou manganês e ferro, o bom remédiozinho dos velhos tempos. É o que convém ao doente, mas que ganharia o Charlie com isso? Nada mais de três guinéus. No entanto se aplicar a mesma droga numa dúzia de injecções ganha cinquenta guinéus...

       - Oh! Desculpe, Charlie, quero dizer... quarenta e cinco.

       - Menos doze xelins - murmurou Fredman jovialmente. - Desconte o custo das ampolas.

       A cabeça de Andrew estalava. Espantava-o, pela sua novidade, aquele argumento em favor da abolição dos remédios  em frascos. Tomou mais um gole de brande para fortalecer o ânimo.

       - E ainda há mais - acrescentou Fredman. - O público não sabe o preço das injecções. Quando vê uma caixa de ampolas num consultório de médico, a cliente pensa logo: «Isto deve custar um dinheirão».

       - Repare - disse Hamson, piscando o olho para Andrew  -repare como Fredman emprega quase sempre no feminino a palavra cliente. A propósito, Paul, ouvi falar na caçada de ontem. Dummett quer organizar um grupo de caça, se você, o Charles e eu o acompanharmos.

       Durante uns dez minutos ficaram conversando sobre caçadas, golfe e automóveis. Ivory comprara um carro novo, feito de encomenda para ele. Andrew escutava, fumava, bebia brande. Já estavam todos bem bebidos. Um pouco transtornado, Andrew tinha a impressão de que eram todos companheiros óptimos, magníficos. Não o excluíam da conversa. Pelo contrário, davam sempre a entender, por uma palavra ou por um olhar, que ele fazia parte do grupo. Na companhia de gente tão distinta até se esqueceu de que o seu almoço tinham sido apenas arenques de escabeche e quando se levantaram, Ivory bateu-lhe afectuosamente  no ombro:

       - Vou mandar-lhe o meu cartão, Manson. Será para mim um prazer examinar um caso na sua companhia...

       - Em qualquer ocasião.

       Voltando à sala de visitas, encontraram ali uma atmosfera  que, pelo contraste, parecia cerimoniosa. Mas o Freddie,  numa animação tremenda, mais radiante que nunca, mãos nos bolsos o peitilho da camisa a luzir imaculadamente, achou ser ainda muito cedo e que deviam terminar a noite juntos, no Embassy.

       - Receio - Christine lançou um olhar furtivo para Andrew - que não possamos ir.

       - Que tolice, querida! - Andrew sorriu, um tanto afogueado. - Não podemos pensar em ser desmancha-prazeres.

       Via-se logo que Freddie era conhecidíssimo no Embassy. Instalados numa mesa de canto, ele e os companheiros faziam vénias e dirigiam sorrisos para todos os lados.

       Champanhe de novo. Dança. «Esses senhores, sabem levar a vida», pensava Andrew, um tanto tocado pela bebida, muito expansivo. «Oh! Bonito! Bonito isto que estão a tocar! Quem sabe... quem sabe se Christine não gostaria de dançar?».

       No táxi, ao voltar para casa afirmou alegremente:

       - Companheiros de primeira ordem, Chris! Noite magnífica! Não concordas?

       Ela respondeu numa voz seca e decidida:

       - Foi uma noite horrorosa!

       - Hem? Como?

       - Gosto de Denny e Hope... São os que me parecem teus colegas, Andrew... Mas estes, estes superficiais, estes fúteis...

       - Mas que é isso, Chris?... Que achaste ruim?

       - Oh! Então não deste por coisa alguma? - respondeu ela, numa fúria gelada: - Tudo. A comida, a mobília, o assunto das conversas. É dinheiro, dinheiro o tempo todo. Não reparaste talvez como a Sr.a Hamson olhou para o meu vestido. Deu a entender que gasta mais num só tratamento de beleza do que eu com os meus fatos durante um ano inteiro. Chegou a ser engraçada a cena na sala de visitas quando percebeu que eu não sou alguém. Ela, sim, é filha de Whitton... O Whitton do whisky! Nem podes imaginar o que foi a conversa antes de vocês voltarem lá de dentro. Mexericos de alta-roda, quem tinha ido passar o fim de semana na casa de campo de Fulano, qual o último aborto da sociedade, o que disse o cabeleireiro... E nem uma só palavra sobre coisas decentes. Ora! Ela até insinuou que estava a «ser gentil»... os termos são dela... com o chefe da orquestra de dança do Plaza.

       Era tremendo o sarcasmo da sua voz. Confundindo-o com inveja, Andrew disse com a voz meio espapaçada:

       - Hei-de arranjar muito dinheiro para ti, Chris! Comprarás  uma porção de vestidos caros.

       - Não preciso de dinheiro - disse ela, com energia. E detesto os vestidos caros.

       - Mas...  querida. - Aproximou-se, meio embriagado, dela. -

       - Não te chegues! - O tom assustou-o. - Eu gosto de ti, Andrew, mas não quando estás bêbado.

       Ele encolheu-se no canto, desconcertado, furioso. Era a primeira vez que ela o repelia.

       Pagou o táxi e entrou em casa à frente dela. Então, sem uma palavra, subiu ao quarto mal mobilado. Tudo parecia feio e triste ao voltar de ambientes tão luxuosos.

       O comutador da luz estava avariado. Toda a instalação da casa era defeituosa.

       «Que diabo»! - pensava, ao atirar-se para a cama. - «Preciso de sair desta situação. Christine verá! Quero ganhar dinheiro. Que posso fazer sem dinheiro?».

       Pela primeira vez o casal dormiu em quartos separados.

 

       Na manhã seguinte, quando se encontraram, à hora do pequeno almoço, Christine procedeu como se todo o incidente  estivesse esquecido. Andrew percebeu que ela se esforçava por tornar-se mais agradável que nunca. Intimamente  lisonjeado, mostrou-se, no entanto, ainda mais rabujento  e carrancudo. «Uma mulher precisa de vez em quando que se lhe ensine o seu verdadeiro lugar», pensava ele, fingindo-se muito absorvido na leitura dos jornais.

       Mas, depois de receber algumas respostas secas, Christine mudou subitamente de atitude. Perdeu o ar amável, encolheu-se  num canto da mesa, em silêncio, ausente, sem olhar para o marido. Terminada a refeição, Andrew levantou-se  e saiu da sala, resmungando com os seus botões «Que  teimosinha! Hei-de dar-lhe uma lição!» No consultório, procurou logo o Anuário Médico. Tinha muita curiosidade de obter informações mais precisas sobre os amigos da véspera. Folheou apressadamente as folhas procurando primeiro ver o que havia sobre Freddie. Ali estava: Frederick Hamson, Queen Anne Street, formado em Medicina e Farmácia, assistente da clínica externa no Hospital de Walthamwood.

       Andrew franziu a testa, perplexo.

       Hamson na noite anterior falara muito sobre a sua nomeação para um hospital. «Nada como um lugar de hospital», dizia ele, «para nos elevar até às esferas mais elegantes da clínica médica, É uma coisa que inspira confiança  à clientela». E no entanto, o hospital de Freddie não era para gente pobre? Não ficava em Walthamwood, um dos subúrbios mais distantes e modestos? Mas não podia haver enganos. Era isso mesmo. Folheava a edição mais recente do Anuário. Comprara-o apenas há um mês.

       Já sem tanta pressa, Andrew procurou ver o que havia sobre Ivory e Fredman. E depois ficou com o grosso volume vermelho sobre os joelhos, desorientado, sem saber o que pensar. Paul Fredman, assim como Freddie, não tinha outro título senão o de formado em Medicina. Nem ao menos fora aprovado com distinção, como o outro. E nenhum  cargo de hospital tinha. E Ivory? O Dr. Charles Ivory, de New Cavendish Street, só possuía o título mais modesto da hierarquia cirúrgica: «Membro do Colégio Real de Cirurgiões». E nunca exercera cargos de hospital. No seu curriculum constava ter praticado durante a guerra nos hospitais de sangue. E nada mais.

       Preocupadíssimo, Andrew levantou-se e colocou o livro na estante. Uma repentina decisão lia-se na sua fisionomia. Não se podiam comparar os seus próprios títulos com os daqueles «cientistas» que o haviam deslumbrado na véspera. Também podia fazer o mesmo que eles. E melhor até. Apesar do protesto exasperado de Christine, estava mais resolvido que nunca a vencer, a subir na vida. Mas para isso devia antes de tudo procurar ligar-se a um hospital. Mas a um hospital da cidade, um hospital importante  de Londres, e não a uma Santa Casa de 3.ª ordem, como a de Walthamwood. Sim! Um grande hospital! Esse devia ser o seu objectivo imediato. Mas como?

       Meditou sobre o assunto durante três dias. Depois foi procurar Sir Robert Abbey. Ia nervoso, trémulo. Não gostava  de pedir favores. Era a coisa que mais lhe custava neste mundo. E especialmente quando se via recebido pela solicitude tão acolhedora de Abbey.

       - Olá! Como vai o nosso ilustre especialista de ligaduras? Não se sente envergonhado perante mim? Ouvi dizer que o Dr. Bigsby está com hipertensão. Sabe alguma coisa a esse respeito? E que quer de mim? Discutir comigo um lugar de membro da Junta?

       - Ora, nada disso, Sir Robert. Estive a pensar... Isto é... O senhor quer ajudar-me a conseguir uma nomeação para a clínica externa de um hospital?

       - Upa! Isso é muito mais difícil do que um emprego na Junta. Sabe que há por aí milhares de médicos a pretender  a mesma coisa? Todos procuram uma nomeação para um hospital. E o senhor naturalmente quer um lugar onde possa prosseguir nos seus trabalhos sobre pulmões... E isso torna o caso ainda mais difícil.

       - Bem... eu... sei...

       - O Hospital Vitória, para doenças do peito. É o que lhe serve. Um dos mais antigos hospitais de Londres. Talvez  possa fazer uma diligência nesse sentido, mas eu nada prometo. Vou ver apenas o que posso fazer.

       Abbey conservou-o com ele até à hora do chá. Às quatro. À tarde, invariavelmente, tinha o costume de beber duas chávenas de chá sem leite nem açúcar e também sem bolos nem torradas. Era um chá especial que tinha gosto a flor de laranjeira. Abbey discorreu sobre vários assuntos, desde as tijelas de Khanghsi até às reacções da pele de Von Pirquet. Mas, acompanhando Manson até à porta disse-lhe:

       - Sempre em desacordo com os compêndios? Não deixe de discordar... E veja lá! Em nome de Galeno lhe peço: não tome atitudes de médico de salão, nem mesmo se for para o Hospital Vitória. - Piscou o olho intencionalmente. - Foi isso que me estragou.

       Andrew saiu deslumbrado. Sentiu-se tão feliz que até se esqueceu de conservar a atitude retraída perante Christine. Ao chegar a casa desabafou logo:

       - Estive com Abbey. Ele vai ver se consegue colocar-me no Hospital Vitória. É para doentes do peito. Isso equivale praticamente a uma boa clientela.  - A alegria que brilhou nos olhos dela fê-lo sentir-se de repente envergonhado, comezinho. - Tenho andado ultimamente de muito mau humor, Chris! Parece que temos andado às avessas. Mas... Vamos acabar com isso, querida.

       Christine correu para o marido, garantindo que a culpa era dela. Mas, por motivos misteriosos, ele considerou-se o único culpado. Só num escuso escaninho do seu espírito é que conservava a firme intenção de confundi-la, muito breve, com a importância do seu sucesso material.

       Andrew entregou-se ao trabalho com energias redobradas,  sentindo que as coisas não tardariam a mudar num sentido feliz. Por outro lado, a clientela estava a aumentar de modo impressionante. Não era a espécie de clientela que desejaria, dando apenas três xelins e meio por consulta e cinco por visita. Contudo, era clientela de facto. A gente que vinha ao consultório ou que o chamava ao domicílio era tão pobre que só em último caso recorria a um médico. 

       Encontrou assim casos de difteria em quartos miseráveis e sem ar por cima de antigos estábulos, febres reumáticas em caves húmidas, pneumonias em águas-furtadas de casas de hóspedes. As cenas mais trágicas foram a desses apartamentos de uma única divisão onde velhos sem família e indigentes vivem sozinhos, esquecidos de amigos e parentes, cozinhando a sua pobre comida num bico de gás, infelizes, afastados do mundo, desamparados.

       Conheceu o pai de uma actriz afamada, cujo nome brilhava nos anúncios  luminosos da Shaftesbury Avenue. Era um velhinho de setenta anos, paralítico, abandonado num ambiente sórdido. Visitou também uma velha fidalga descarnada, faminta e grotesca. Mostrou-lhe, toda orgulhosa, uma fotografia  em que ostentava trajes da corte e falou-lhe do tempo em que passava por aquelas mesmas ruas dentro de uma soberba carruagem. Uma noite teve de correr para salvar a vida de um pobre diabo que, na miséria e no desespero, apelara para o suicídio, preferindo a intoxicação pelo gás ao horror do asilo da mendicidade. Andrew quase sentiu remorsos por não o ter deixado morrer.

       Muitos casos eram urgentes: operações de emergência, que exigiam transferência imediata para um hospital.

       E era aí que Andrew encontrava o maior obstáculo. Nada mais difícil neste mundo do que um lugar no hospital, mesmo para os casos mais urgentes, mais perigosos. E ainda por pouca sorte era quase sempre a altas horas da noite que apareciam tais casos. Ao voltar para casa, depois de os atender com um sobretudo por cima do pijama, um cachecol enrolado ao pescoço, chapéu ainda na cabeça, tomava o telefone e ia ligando para os hospitais. Um atrás do outro, pedindo, implorando, ameaçando. Mas era sempre  a mesma recusa, curta, às vezes insolente:

       - Doutor, quem? Quem? Não! Não! Sentimos muito! Não há lugar! Tudo ocupado!

       Ia para junto de Christine, lívido, praguejando.

       - Não estão cheios, nada disso. Há uma grande quantidade  de leitos vagos no S. João para os recomendados dos médicos da casa. Mas se não conhecem o médico respondem sempre negativamente. Com franqueza tenho ganas de torcer o pescoço a um desses sujeitos! Não é um inferno, Chris?! Tenho um caso de hérnia estrangulada e não consigo uma cama num hospital. E o diabo é que muitos devem estar de facto repletos. E isto em Londres! Isto no próprio coração deste maldito império britânico. É no que dá o nosso sistema de hospitais de beneficência. E um desses filantropos de uma figa declarou há poucos dias num banquete que esse sistema era a coisa mais maravilhosa do mundo. Isto significa o asilo de mendicidade para o pobre diabo. E ainda tem de encher a papeleta... Quanto ganha? Qual a sua religião? É filho legítimo? E o desgraçado com peritonite! Bem, Chris! Mostra-te uma boa alma e liga por favor para a Assistência.

       Por maiores que fossem as dificuldades de Andrew, por mais que ele clamasse contra a imundície e a miséria que tinha tantas vezes de combater, a resposta de Christine era sempre a mesma:

       - Mas, de qualquer maneira, isso é que é trabalho de verdade. E, na minha opinião, isso é o que vale.

       - É... mas não me livra dos percevejos - resmungava ele, entrando num banho para limpar o corpo e a alma.

       Ela ria, porque voltara à antiga felicidade. Embora à custa de imenso trabalho conseguira dar graça à casa. O casarão resistiu quanto pôde, mas acabou por ficar vencido,  limpo, lustroso, submisso à vontade de Christine.

       Havia um novo fogão de gás, novos quebra-luzes. A poltrona  de repouso fora forrada de novo. O corrimão da escada brilhava como os botões do fardamento de um guarda real. Depois de muitos aborrecimentos com criadas,  pois naquele bairro preferiam trabalhar nas casas de pensão, por causa das gorjetas, teve sorte afinal com Emily, viúva de quarenta anos, asseada e activa, que se contentava com pouco por se fazer acompanhar de uma filha de sete anos. Com a ajuda da criada, Christine atacou a cave. Agora o antigo túnel de caminho de ferro era ao mesmo tempo uma sala confortável e um bom quarto de dormir, que tinha forrado a papel, e uma mobília  laçada, adquirida a prestações. Ali se instalaram comodamente Emily e a filha, a pequena Florie, que começou a frequentar diariamente a escola. E em paga daquele conforto e sossego, depois de tanto tempo de incertezas e privações, a criada fazia tudo o que era possível para agradar aos patrões.

       As primeiras flores da Primavera que alegravam a sala de visitas reflectiam com o seu colorido a ventura do lar de Christine. Ia adquiri-las por alguns cobres no mercado do bairro aquando das compras pela manhã. Tornou-se conhecida dos vendedores ambulantes e dos lojistas de Mussleburg Road. Ali podia comprar barato frutas, mariscos  e legumes.

       Christine devia lembrar-se mais da sua posição de mulher  de um médico. Mas, qual história! Não pensava nisso e muitas vezes vinha para casa carregada com as compras numa bolsa grande de corda. No caminho parava na casa de Frau Schmidt para dar dois dedos de conversa com a alemã e comprar uma fatia de queijo Libtauer que Andrew tanto apreciava. Algumas vezes ia passear de tarde no pequeno parque do bairro. Os castanheiros que começavam a mostrar as suas primeiras folhas e os patos que sobrenadavam  na água do lago um pouco agitada pela brisa podiam representar a continuação da vida do campo que ela sempre amara.

       Certas noites Andrew olhava-a com um ar estranho e ciumento demonstrando o seu aborrecimento por ter passado  o dia todo sem a ver.

       - Onde andaste o dia todo, enquanto eu estive ocupado? Se comprar um carro serás tu quem o guiará. Será um bom processo de te conservar junto de mim.

       Andrew ainda esperava os «clientes distintos», que não apareciam. Aguardava ansioso qualquer resposta de Abbey sobre a nomeação. Irritava-se porque nada resultara da reunião na casa de Freddie. No íntimo sentia-se magoado porque nunca mais tivera notícia de Hamson e dos seus amigos.

       Foi nesse estado de espírito que se sentou no gabinete de consultas pobres numa das últimas noites de Abril. Eram quase nove horas e Andrew já estava para se retirar quando entrou uma mulher jovem. Olhou, hesitante, para o médico.

       - Não sei se devia entrar por aqui... ou pela porta da frente.

       - Tanto faz - sorriu ele com azedume. - A diferença é apenas no preço. Entre, faça favor. Que deseja?

       - Não me importo de pagar como cliente da outra entrada. 

       Aproximou-se com ar grave e sentou-se numa poltrona. «Devia ter uns vinte e oito anos», concluiu Andrew. Compleição robusta, vestido verde-escuro, pernas grossas, cara larga, simples, mas circunspecta. Ao vê-la pensava-se instintivamente que aquela criatura não era para brincadeiras.

       - Não falemos de remunerações. Conte-me o que sente.

       - Bem, doutor! - ela ainda parecia querer impor-se à consideração do médico.  Foi a Sr.a Smith, da pastelaria, quem me recomendou o doutor. Conheço-a há muito tempo. Trabalho na Casa Laurier, aqui perto. O meu nome é Cramb. Mas devo avisá-lo de que já consultei muitos médicos  do bairro.  Tirou as luvas.  São as minhas mãos.

       Andrew examinou-as. As palmas das mãos estavam cobertas de uma dermatite avermelhada, um tanto parecida com psoriasis. Mas não era psoriasis. As extremidades não estavam serpiginosas. Tomado de súbito interesse, Manson pegou numa lente e observou mais atentamente.

       Durante o exame ela continuava a falar na sua voz séria, convincente:

       - O doutor nem pode calcular como esta doença me prejudica no trabalho. Daria tudo para me ver livre disto. Já experimentei pomadas de todas as espécies. Mas nenhuma  deu o menor resultado.

       - Não! Não podiam dar. - Ele largou a lente, sentindo toda a emoção de um diagnóstico difícil, mas positivo. - Esta doença de pele é muito rara, Sr.a Cramb. De um tratamento local nada resulta. É proveniente do sangue e a única cura reside no regime alimentar.

       - Nada de remédio? - O ar confiante transformou-se em dúvida.  - Nunca me disseram isso anteriormente.

       - Pois digo-lhe eu agora.

       Riu e tomando o bloco de papel, escreveu a dieta mencionando  particularmente uma lista de alimentos que devia evitar a todo o transe. A cliente concordou com o tratamento, mas com reservas.

       - Bem! É claro que vou experimentar, doutor. Eu experimento tudo. - Pagou-lhe religiosamente a consulta, parou ainda um pouco vacilante e depois retirou-se. Andrew esqueceu-a imediatamente.

       Ao fim de dez dias voltou. Desta vez entrou pela porta da frente. Ao entrar no consultório havia na sua expressão tanto fervor que Andrew fez esforço para não sorrir.

       - Quer ver as minhas mãos, doutor?

       - Pois não. - Agora ele já sorria. - Espero que não lamente a dieta.

       - Lamentá-la! - Estendeu-lhe as mãos, num gesto de gratidão. - Veja! Completamente curadas. Nem o menor sinal. O doutor não pode calcular o que isto representa para mim. Não sei como lhe agradecer... Que inteligência!

       - Nada de extraordinário é - disse ele, com naturalidade. - Se  sou médico, tenho de saber essas coisas. Pode ir sossegada. Evite os alimentos de que lhe falei e nunca mais terá essa doença nas mãos.

       A Sr.a Cramb levantou-se.

       - E agora, doutor, permite que lhe pague?

       - A senhora já me pagou. - Tinha a confortável impressão de representar um bonito papel. - Bem gostaria de aceitar os três xelins, ou mesmo sete, por tratar-se de «cliente distinta». Mas era irresistível a tentação de valorizar  a vitória da sua competência.

       - Mas, doutor... - Ainda insistindo ela consentiu que o médico a acompanhasse até à porta. Chegada aí, parou para a última efusão! - Talvez possa demonstrar-lhe de outra maneira a minha gratidão.

       Olhando espantado para a cara de lua-cheia da Sr.a Cramb, um pensamento malicioso faiscou um instante no espírito de Andrew. Mas limitou-se a inclinar-se num último cumprimento e fechou a porta. Esqueceu-a outra vez. Estava  cansado, já meio arrependido de ter recusado o dinheiro  e além disso não tinha a menor ideia do que uma simples caixeira poderia fazer a seu favor.

       Mas era porque não sabia do que a Sr.a Cramb era capaz.

 

       As empregadas da Casa Laurier haviam alcunhado Marta Cramb de Half-Back. Parecia estranho que uma pessoa tão corpulenta, tão insexuada e sem atractivos desempenhasse função importante numa loja de tanto luxo, que vendia por preços fabulosos vestidos elegantíssimos,  a mais fina roupa branca e as peles mais preciosas.

       Contudo, a Half-Back era uma admirável vendedora, apreciadíssima  pelas suas freguesas. Na verdade, a Casa Laurier  adoptara orgulhosamente um sistema de venda especial.

        As «veteranas» de maior prestígio organizavam a sua própria clientela, um grupo de freguesas que ficava entregue  aos seus cuidados. Tinham o privilégio de as servir, estudar e vestir, reservando para elas as mais interessantes novidades da estação. E com a sua ardente sinceridade a Half-Back era uma criatura particularmente indicada para as cativar.

       Era filha de um solicitador de Kettering. Muitas das empregadas da Casa Laurier pertenciam a boas famílias de pequena classe média, tanto da província como dos subúrbios mais afastados. Considerava-se uma honra entrar para o grande armazém, vestir o seu uniforme verde-escuro.

       Não existiam na Casa Laurier os trabalhos pesados e as más condições de vida que as caixeirinhas londrinas têm geralmente de suportar. As empregadas comiam muito bem, viviam com todo o conforto e eram vigiadas com o maior cuidado. O Sr. Winch, o único elemento masculino da loja, insistia principalmente nesse último ponto. Muito respeito com as empregadas!

       A Half-Back inspirava-lhe especial estima e muitas vezes mandava chamá-la para tranquilas e ajuizadas conferências.

        Era um velhinho cor-de-rosa, «maternal», que havia mais de quarenta anos lidava com artigos da moda. Os dedos já estavam gastos de tanto apalpar fazendas. A espinha  encurvara-se por tantas e tão respeitosas reverências, mas embora tão «maternal», o Sr. Winch era a única ilha de calças naquele vasto e ondulante mar de saias. Via com maus olhos os maridos que entravam na companhia das esposas para observar os manequins. Tinha consciência dos seus privilégios de soberano. Era uma instituição quase tão notável como a Casa Laurier.

       A cura da Sr.a Cramb produziu grande sensação entre o pessoal da loja. O primeiro resultado não se fez esperar.

       Tomadas de estranha curiosidade, algumas caixeiras caíram  no consultório de Andrew, a pretexto de pequenas doenças. Num risinho irónico, explicavam umas as outras que tinham querido ver «como era o doutor da Half-Back».

       Pouco a pouco, foi aumentando cada vez mais o número de empregadas da Casa Laurier que aparecia no consultório de Manson. Todas podiam tratar-se na clínica da Caixa dos Empregados do Comércio. A lei obrigava-as a inscreverem-se  nos serviços de assistência médica da classe. Mas, com o orgulho de empregadas da Casa Laurier, desprezavam  esses socorros para proletários. No fim de Maio já não era raro ver-se uma meia dúzia de raparigas na saleta de espera de Manson, todas elegantes, jovens, lábios pintados,  vestidas no estilo das clientes da casa. Isso determinou  sensível aumento dos proventos da clínica. E também um comentário humorístico de Christine.

       - Meu querido, que fazes com essas coristas bonitas? Confundirão elas a porta do consultório com a porta da caixa do teatro?

       Mas a gratidão da Sr.a Cramb - Oh! O êxtase daquelas mãos curadas! - estava apenas no começo da sua expressão.

        Até então, o médico mais ou menos oficial da Casa Laurier tinha sido o Dr. McLean, homem idoso e de confiança. Era quem se chamava num caso de emergência como, por exemplo, quando a menina Twig, da secção de costura, se queimou gravemente com um ferro de engomar.

       Mas o Dr. MecLean estava para abandonar a clínica e o seu companheiro de consultório, o Dr. Benton, não era idoso nem de confiança. Mais de uma vez o Sr. Winch franziu a testa, irritado, ao notar as olhadelas que o Dr. Benton atirava disfarçadamente para as caixeirinhas mais bonitas, derretendo-se em amabilidades. O velhinho e a menina Cramb juntavam-se de vez em quando para conferenciar sobre esses assuntos. Enquanto o Sr. Winch, com as mãos nas costas, concordava sisudamente, abanando a cabeça, a Half-Back discorria sobre a inconveniência de Benton e sobre o outro médico de Chesborough Terrace, que era muito sério, sem pretensões profissionais, competentíssimo, mas incapaz de uma leviandade. Nada foi decidido.

       O Sr. Winch fazia tudo com muita calma. Mas havia um clarão de promessa nos seus olhos quando abandonou a conferência para saudar uma duquesa.

       Na primeira semana de Junho, quando Andrew já sentia  vergonha de haver menosprezado no princípio os bons ofícios da senhora, caiu-lhe nas mãos outra estrondosa prova dos esforços da menina Cramb.

       Uma carta muito amável e minuciosa - uma falta de formalidade como seria uma simples chamada telefónica não seria próprio de quem a escrevera, como Andrew veio a compreender mais tarde pedia-lhe que fosse, terça-feira,  isto é, no dia seguinte, de preferência às onze horas, pontualmente, ao n.º 9 de Parks Gardens, onde o esperava a menina Winfred Everett.

       Fechando mais cedo o consultório, Andrew foi fazer essa visita com uma nova onda de esperança. Pela primeira vez fora chamado fora daquela pobre e desagradável vizinhança, onde até então contava a sua clientela: Park Gardens era um atraente conjunto de palacetes, nada modernos,  mas amplos e de categoria, com linda vista para o Hyde Park. Manson tocou a campainha do n.º 9, nervoso e esperançado, com a curiosa convicção de ser essa finalmente  a sua oportunidade.

       Uma velha criada recebeu-o. A sala para onde foi mandado entrar era espaçosa, com móveis antigos, livros e flores, fazendo-lhe recordar a sala de visitas da Sr.a Vaughan.

        No mesmo momento convenceu-se de ser a sua previsão  justificada. Quando apareceu a Sr.a Everett, Andrew voltou-se e encontrou o olhar dela, firme e perscrutador, a examiná-lo demoradamente, com uma expressão de simpatia.

       Era uma mulher de cinquenta anos, bem feita, de cabelos  escuros e fisionomia pálida, vestida de modo severo, com ar de completa suficiência. Começou imediatamente numa voz pausada:

       - Fiquei sem o meu médico... infelizmente, porque tinha muita confiança nele. A menina Cramb recomendou-me  o senhor. Ela é uma pessoa muito séria e confio na sua palavra. Tirei informações. O doutor tem muitos títulos. - Calou-se a observá-lo de alto a baixo, e sem disfarçar. Media-o, pesava-o. Via-se que era uma mulher bem alimentada, que tinha muito cuidado consigo, que não admitia junto dela um dedo que não fosse devidamente inspeccionado até à ponta da unha. Continuou, depois, discretamente: Julgo que o senhor me convém. Costumo tomar uma série de injecções nesta época do ano. Sou muito sujeita à febre dos fenos. O senhor conhece naturalmente tudo o que diz respeito à febre dos fenos, não é verdade?

       - Conheço sim - respondeu. - Que injecções costuma tomar?

       Ela disse o nome de um preparado muito conhecido.

       - Era o que me receitava o outro médico. Tenho muita fé nessas injecções.

       - Ah! Isso?! - Irritado, Andrew esteve a ponto de dizer-lhe  que nada valia, absolutamente, o remédio de confiança do seu médico de tanto prestígio. Tornara-se popular graças   exclusivamente à propaganda bem organizada dos fabricantes e à ausência de pólen em muitos Verões na Inglaterra. Mas fez um esforço e dominou-se. Entraram em luta as convicções e a ambição. Pensou, num íntimo desafio: «Se deixo perder esta oportunidade, depois de tantos meses, sou um verdadeiro idiota». E em voz alta:

       - Julgo que ninguém sabe dar tão bem essas injecções como eu.

       - Muito bem. E agora o preço. Nunca paguei ao Dr. Sinclair  mais de um guinéu por visita. Se lhe convém assim, estamos combinados.

       Um guinéu por visita! Três vezes mais que o máximo que conseguira cobrar até então! E coisa ainda mais importante: era o seu primeiro passo para essa clientela da alta-roda que desde tantos meses vinha a desejar. Sufocou  mais uma vez o agora leve protesto das suas convicções.

       Que mal havia se as injecções eram inócuas? A escolha  era dela, não dele. Não admitia agora o fracasso. Estava cansado de ser um doutorzinho de três xelins. Queria subir, vencer. E venceria, fosse como fosse.

       Voltou, no dia seguinte, às onze em ponto. Ela avisara-o, com o seu tom severo, que não devia chegar atrasado. Não queria que lhe prejudicassem o passeio de antes do almoço Andrew deu-lhe a primeira injecção. E daí por diante visitava  a senhora duas vezes por semana, continuando o tratamento.

       Era pontual, cuidadoso e sempre muito discreto. Chegou a ser divertido o modo como ela foi pouco a pouco entregando-se ao médico. Era uma criatura estranha essa tal Winfred Everett. E que personalidade bem marcada! Embora  muito rica, o pai fora um importante fabricante de cutelaria em Sheffield e todo o dinheiro da herança o havia aplicado em títulos de confiança.  Não gastava um vintém sem critério. Não era sovinice. Era talvez uma forma extravagante de egoísmo. Fazia-se o centro do próprio  universo, cuidava muito de si, conservando ainda a esbeltez e a frescura do corpo. Recorria a toda a espécie de tratamentos que achava convenientes. Diligenciava possuir o que houvesse de melhor. Comia pouco, mas só coisas muito boas, de primeira ordem. Quando na sexta visita de Andrew se decidiu a oferecer-lhe um copo de xerez, fez-lhe notar que se tratava de um Amontilado de 1819. Os seus vestidos eram da Casa Laurier. A roupa de cama era a mais fina que Manson já vira. E no entanto, apesar disso, ela nunca desperdiçava um centavo. Era contra os seus princípios. Nem seria de admitir que a Sr.a Everett pagasse a um motorista de táxi sem antes olhar cuidadosamente para o taxímetro.

       Andrew tinha razões para a considerar odiosa. Mas, embora pareça estranho, o certo é que não a detestava. Ela desenvolvera o seu egoísmo ao ponto de o transformar numa filosofia. E era tão sensível! Fez-lhe lembrar a mulher de um velho quadro holandês, um Terborch, que tivera ocasião de admirar na companhia de Christine. Tinha a mesma corpulência, a mesma tez macia, a mesma boca severa, mas sensual.

       Quando percebeu que ele, tal como dissera, realmente lhe convinha, a senhora tornou-se muito menos reservada. Estabelecera como regra que a visita do doutor devia durar vinte minutos, pois de outro modo julgaria não valer quanto custava em dinheiro. Mas no fim de um mês Andrew  já se demorava uma boa meia hora. Ficavam conversando.

       Ele confessava-lhe a vontade que tinha de vencer. Ela estava de acordo. O âmbito da conversa da Sr.a Everett não era muito extenso, mas ilimitado o âmbito das suas relações, e as palavras gravitavam quase sempre sobre os seus conhecimentos da sociedade. Falou-lhe muitas vezes da sobrinha, Catherine Sutton, que vivia em Derbishire, mas vinha frequentemente à cidade, pois era casada com o capitão Sutton, deputado por Barnwell.

       - O Dr. Sinclair era o médico do casal - observou ela, num tom de quem chega a fazer uma promessa: - Não vejo razão para que o doutor não o substitua agora.

       Por ocasião da última visita ofereceu-lhe outro copo do precioso Amontilado e disse de modo muito gentil:

       - Não gosto de receber contas. Deixe-me, por favor, pagar-lhe agora mesmo. - Estendeu-lhe um cheque, bem dobradinho, de vinte guinéus. - É claro que o chamarei brevemente. Costumo tomar uma vacina antigripal quando chega o Inverno.

       Acompanhou-o até à porta do palacete e ficou ali por um momento, com um brilho seco na fisionomia, fazendo a tentativa do melhor sorriso que Andrew já lhe notara nos lábios. Mas foi só um instante. Fitando-o severamente, disse:

       - Quer seguir o conselho de uma mulher que podia ser sua mãe? Procure um bom alfaiate. Procure o do capitão Sutton. Rogers, em Conduit Street. O senhor confessou-me que deseja muito vencer e com esse fato não é possível!

       Andrew foi para casa detestando-a, numa indignação interior. Amaldiçoava-a pela frieza com que dissera aquilo.

       Megera atrevida! Que tinha com isso?! com que direito lhe dava conselhos sobre a maneira de vestir? Pensaria que ele era um cachorrinho de sala? Era o que havia de pior nesses compromissos com a sociedade, nessa submissão  às convenções. Os clientes de Paddington pagavam-lhe apenas três xelins e meio, mas não exigiam que se transformasse  num manequim. Daí por diante só trataria dessa gente. Não estava disposto a sacrificar a personalidade!

       Mas essa disposição de espírito não perdurou. Era uma verdade incontestável que ele não ligava a mínima importância  a essa questão de vestir. Contentava-se com um único fato. Tirava-o do cabide, vestia-o, sentia-se bem agasalhado... e pronto! Nem pensava em elegância. Christine também, embora muito asseada, nunca se incomodava com assuntos de indumentária. E o trajo de que mais gostava era a saia e o casaquinho de lã, que ela mesma fizera, de tricot. Furtivamente, Andrew reconheceu o próprio desleixo do trajo. As calças eram apertadas, no fio e com joelheiras. A bainha estava suja de lama. «Que diabo!», pensava, ao examinar-se. «A senhora afinal tem razão. Como poderei conseguir clientes de primeira ordem se me apresento desta maneira? Porque não me abre Christine os olhos? É a ela a quem compete, e não à velha Winnie. Qual foi o alfaiate que ela me indicou? Rogers, da Conduit Street. Com mil diabos! Parece-me que tenho de lá ir.»

       Quando chegou a casa, já estava animado outra vez. Exibiu o cheque a Christine.

       - Vê, minha mulherzinha! Lembras-te de quando voltei a correr do consultório para te mostrar as primeiras moedas  choradas? Bolas! É o que sinto vontade de dizer agora. Bolas! Isto, sim, é que é de facto dinheiro, isto é que são honorários! É assim que deve ganhar um médico com os meus títulos! Vinte guinéus por conversar barato com a D. Winnie e lhe impingir inòcuamente umas injecçõezinhas  de Eptone, de Glickert!

       - Que se passa? - perguntou ela, sorrindo.

       E de repente desconfiada:

       - Não era esse remédio que dizias nada valer?

       A fisionomia de Andrew modificou-se. Ficou macambúzio,  completamente desorientado. Christine pronunciara as palavras que ele não queria escutar. Ficou furioso com Chris.

       - Que diabo, Chris! Nunca estás satisfeita!

       Virou-lhe as costas e retirou-se grosseiramente. Passou o resto do dia mal-humorado, intratável. Mas no dia seguinte estava outro e dirigiu-se então ao alfaiate da Conduit Street.

       Sentia-se quase como um menino de escola quando, Quinze dias mais tarde, saiu vestindo um dos dois fatos que mandara fazer. Era um jaquetão cinzento-escuro. A conselho de Rogers, usava-o com um colarinho de pontas viradas e uma gravata escura que combinava com a cor do fato. Não havia dúvida: Rogers entendia do seu ofício e tratou de caprichar no seu trabalho quando o freguês citou o nome do capitão Sutton.

       Na manhã em que ele apareceu tão elegante, Christine não estava nos seus melhores dias. Tinha uma ligeira inflamação de garganta e enrolara um xale velho em volta do pescoço e da cabeça. Ao servir-lhe o café reparou no luxo do marido. De momento ficou tão espantada que nem soube o que dizer.

       - Que é isso, Andrew?! - exclamou afinal. - Que maravilha  de elegância! Tens algum encontro marcado?

       - Encontro marcado? Vou atender chamadas, ao meu trabalho, naturalmente! - E compreendendo que fora quase grosseiro: - Então? Gostas do fato?

       - Gosto, sim - respondeu ela, mas não tão rapidamente como desejaria. - É terrivelmente bem feito... - mas  sorriu - dá um pouco a impressão de que não és tu mesmo!

       - Naturalmente preferias que eu parecesse um mendigo.

       Chris não respondeu; a mão, que erguia a xícara, contraiu-se  tanto que as articulações empalideceram. «Ah!», pensou Andrew, «toquei-a num ponto sensível». Terminou o pequeno almoço e foi para o consultório. Minutos depois ela foi procurá-lo, com o xale ainda enrolado ao pescoço, o olhar hesitante, a desculpar-se.

       - Meu querido, não me interpretes mal, por favor! Fiquei encantada com o teu fato novo. Quero que tenhas tudo, tudo o que há de melhor. Desculpa o que eu te disse há pouco, mas compreende... Estou acostumada contigo... Oh! É tão difícil explicar! Eu sempre achei que tu... e agora faz-me o favor de não interpretares mal... Sempre te considerei como uma pessoa que não liga a mínima importância às aparências e ao que os outros possam pensar a tal respeito. Lembras-te daquela cabeça de Epstein que vimos? Já não seria a mesma se... sim, se fosse enfeitada,  posta no rigor da moda.

       Ele respondeu quase que sem pensar.

       - Mas eu não sou uma cabeça de Epstein.

       Christine não respondeu, Andrew tornara-se ultimamente  uma pessoa com quem era difícil conversar ou entender-se. Magoada pela sua incompreensão, não soube que dizer. Hesitou um momento e retirou-se.

       Uns vinte dias mais tarde, quando a sobrinha da Sr.a Everett veio passar algumas semanas em Londres, Manson teve a recompensa de seguir tão ajuizadamente o conselho da velha senhora. Sob um pretexto qualquer, a Sr.a Everett fê-lo vir à sua casa. O exame foi severo, mas satisfatório. Andrew teve quase a certeza de que fora aprovado e julgado digno de uma recomendação. No dia seguinte, recebeu a visita da Sr.a Button. A febre dos fenos parecia um mal de família. A sobrinha também desejava submeter-se ao tratamento da tia. E dessa vez a consciência  do médico não se indignou quando injectou a inútil Eptona da altruísta firma Glickert. Foi excelente a impressão  que produziu à Sr.a Sutton e antes do fim do mês já recebia outra chamada de uma amiga da Sr.a Everett, que morava também em Park Gardens.

       Andrew andava satisfeitíssimo da vida. Estava a vencer!

       No esforço e na ansiedade da busca do sucesso, não notava como os seus triunfos iam de encontro a tudo o que constituíra  outrora a sua crença. Deixava-se possuir pela vaidade. Sentia-se atento e confiante. Esqueceu-se de que aquela onda de sucesso, aquela clínica da alta-roda, proviera  em primeiro lugar de uma alemãzinha gorducha que estava atrás do balcão de uma pastelaria nas proximidades  do vulgaríssimo mercado Mussleburgh. E na verdade, antes que tivesse tempo de meditar em tudo isso, uma outra maré de oportunidades maior e mais excitante surgia na senda da sua ambição.

 

       Foi numa tarde de Junho, no período parado das duas às quatro, quando normalmente nada de importante acontecia. Estava ele sentado no consultório, a fazer balanço das receitas do mês anterior, quando de repente o telefone tocou. Deu um pulo na cadeira e tomou o auscultador.

       - Sim, sim! É o Dr. Manson quem fala.

       Através do fio ouviu uma voz angustiada e opressa.

       - Oh! Dr. Manson! Que alívio encontrá-lo em casa! Quem fala aqui é o Sr. Winch... Winch, da Casa Laurier. Temos neste momento aqui na loja um aborrecimento. Trata-se de uma cliente. Pode vir? Pode vir imediatamente?

       - Estarei aí dentro de cinco minutos.  Andrew desligou  e foi a correr buscar o chapéu. Um autocarro, com o qual esbarrou em frente da casa, aguentou com firmeza a impetuosidade do pulo. Ao fim de quatro minutos e meio, Andrew passou por uma das portas giratórias e viu-se dentro da Casa Laurier. Esperava-o, ansiosa, a menina Crambs. Conduzido por ela, atravessou macias superfícies, sentindo os pés afundarem-se na agradável sensação produzida por tapetes verdes; passou diante de grandes espelhos  de moldura dourada de limoeiro, nos quais se podiam ver reflectidos um chapelinho pendurado no cabide, um laço de fita, uma capa de arminho. Quando seguiam com toda a pressa, a menina Cramb explicou:

       - Trata-se da menina Lê Roy, Dr. Manson. Uma das nossas clientes. Não minha, graças a Deus; ela ocasiona sempre aborrecimentos. Mas, Dr. Manson, o senhor está a ver que eu falei a seu respeito ao chefe da casa...

       - Muito obrigado - disse Andrew bruscamente. Ainda sabia ser brusco de vez em quando. - Que aconteceu?

       - Parece que ela... oh! Dr. Manson... parece que ela está a dar espectáculo num gabinete de provas.

       No cimo de uma larga escadaria, a menina Crambs entregou-o ao Sr. Winch, rosadinho e agitado, que o encaminhou precipitadamente:

       - Por aqui, doutor... por aqui... Espero que possa fazer alguma coisa... É uma contrariedade horrorosa...

       Num gabinete de provas, aquecido, luxuosamente atapetado no mais suave tom verde, com paredes forradas de verde e ouro, uma multidão de raparigas falava pelos cotovelos; via-se uma cadeira tombada de pernas para o ar, uma toalha caída, água entornada, um verdadeiro pandemónio.

        E ali, centro de toda aquela cena, a menina Lê Roy, a mulher do ataque, a mulher que «fazia fitas». Estava estirada no soalho, rígida, com as mãos e os pés em crispações  espasmódicas. Da garganta rígida subiam-lhe por vezes uns grunhidos estrangulados, de arrepiar.

       Uma das empregadas mais idosas começou a chorar quando entraram Andrew e o Sr. Winch.

       - Não tive culpa - soluçava. - Lembrei apenas à menina  Lê Roy que fora este o modelo escolhido por ela mesma.

       - Oh! Meu Deus, meu Deus! - murmurava Winch. - Que coisa horrorosa! Devo... quer que eu mande vir uma ambulância?

       - Não, por enquanto não - disse Andrew num tom estranho. Curvou-se para a menina Lê Roy. De olhos azuis, muito jovem, devia ter uns vinte e quatro anos; os cabelos sedosos estavam completamente despenteados sob o chapelinho  de lado. Junto dela via-se uma outra mulher, com expressão preocupada nos olhos negros. Parecia sua amiga.

       - Oh! Toppy, Toppy! - murmurava a todo o momento.

       - Façam o favor de abandonar o gabinete - disse Andrew,  de repente. - Prefiro que saia toda a gente, menos... os olhos fixaram a morena que estava ao lado - menos esta senhora daqui.

       As raparigas saíram, um pouco aborrecidas. Teria sido tão interessante e divertido assistir ao tratamento da menina  Lê Roy!... A Sr.a Cramb, até mesmo o Sr. Winch, também se retiraram. Nesse momento as convulsões tornaram-se  alarmantes.

       - É um caso extremamente grave - disse Andrew, destacando  muito as palavras.

       A menina Lê Roy revirou os olhos para ele.

       - Dê-me uma cadeira por favor.

       A outra senhora pôs de pé, no centro da sala, a cadeira derrubada. Então, vagarosamente e com o maior cuidado, levantando-a pelas axilas, Andrew ajudou a convulsa menina Lê Roy a esticar-se na cadeira. Segurou-lhe a cabeça de modo a ficar bem esticada.

       - Olhe - disse com a maior gentileza. E logo de mão aberta aplicou-lhe em plena face uma tremenda bofetada. Era o acto mais corajoso que praticara havia muitos meses e infelizmente alguns meses ainda passariam sem outra prova de igual bravura.

       A menina Lê Roy deixou de grunhir. O espasmo cessou. Acabaram-se os reviramentos de olhos. Fitou-o num espanto dorido e infantil. Sem lhe dar tempo a pensar, Manson levantou a mão novamente e esbofeteou-lhe a outra face.

       Era grotesca a angústia estampada na fisionomia da jovem. Vacilou, deu a impressão de que ia voltar aos grunhidos e começou então a soluçar.

       Voltando-se para a amiga, disse entre lágrimas:

       - Minha querida, quero ir para casa.

       Andrew dirigiu um olhar cheio de desculpas à outra senhora, que agora o observava com um interesse fora do vulgar.

       - Desculpe - murmurou. - É o único processo. É um caso grave de histeria, com espasmos convulsivos. Ela podia ter-se magoado. E eu não tinha anestésico nem recurso algum. E, seja como for, deu resultado.

       - Sim... deu resultado.

       - Deixe-a chorar à vontade - disse Andrew. - É uma válvula de segurança. Estará boa dentro de poucos minutos.

       - Espere, doutor, mesmo porque... - e com vivacidade - o doutor deve acompanhá-la a casa.

       - Pois não - respondeu Andrew, no tom mais perfeito do homem de negócios.

       Passados cinco minutos, a menina Lê Roy já estava em condições de arranjar a cara, operação meticulosa, entrecortada por alguns soluços espaçados.

       - Não estou muito transtornada, não te parece, querida? - perguntou à companheira. De Andrew parecia ignorar a existência.

       Logo depois abandonaram a sala. Foi verdadeiramente sensacional a passagem pelo grande salão de vendas, no andar térreo. Foram tão grandes o alívio e a admiração do Sr. Winch que ficou quase sem fala. Não compreendia, nunca compreenderia como se dera o milagre, como o doutor restituíra o movimento à paralítica toda ancilosada.

       Acompanhou-os à porta, balbuciando palavras de agradecimento e felicitações. Quando Andrew transpôs a estrada principal, atrás das duas mulheres, o Sr. Winch apertou-lhe  a mão com fervor, derretendo-se em cumprimentos.

       Tomaram um táxi e seguiram por Bayswater Road, na direcção de Marble Arch. Não houve a menor tentativa de conversação. A menina Lê Roy estava amuada agora, como uma criança cheia de mimos que recebe um castigo.

       Ainda tinha estremecimentos. De vez em quando, as mãos e os músculos do rosto tinham pequenas crispações nervosas.

       Observada agora mais serenamente, parecia muito delgada  e quase bonita no seu tipo franzino. Estava muito bem vestida, mas, apesar disso, dava a Andrew a impressão exacta de uma franguinha depenada por cujo corpo passassem  de vez em quando correntes eléctricas. Ele próprio sentia-se nervoso, numa posição pouco feliz. No entanto, estava resolvido a aproveitar-se da situação criada, a extrair  dela todas as vantagens.

       O automóvel deu a volta por Marble Arch, seguiu ao lado de Hyde Park e, dobrando à esquerda, parou à porta de um palacete na Green Street. Entraram imediatamente.

       A casa deixou Andrew boquiaberto. Nunca imaginara ambiente  com tanto luxo - o amplo vestíbulo, o pequeno salão cheio de jades magníficos, quadros esplêndidos em molduras de alto preço, poltronas de laca vermelha e ouro, largos divãs, tapetes macios e de tons discretos.

       Continuando a ignorar Andrew, Toppy Le Roy estirou-se num sofá forrado de cetim, arrancou o chapelinho e atirou-o ao chão.

       - Toca a campainha, querida. Preciso de beber alguma coisa. Graças a Deus o papá não está.

       Surgiu logo um criado a servir aperitivos. Quando o criado saiu, a amiga de Toppy observou Andrew pensativamente, num quase sorriso que apenas se esboçou:

       - Acho, doutor, que lhe devemos uma explicação. O nosso conhecimento processou-se tão precipitadamente. Sou Lawrence. Aqui, a Toppy, isto é, a menina Lê Roy, teve uma contrariedade por causa de um modelo que mandara  fazer especialmente para um baile de caridade. E... claro! Ela tem andado ultimamente esgotada. É uma criaturinha muito nervosa. Mas fique certo: embora a Toppy se mostre um pouco contrariada nós estamos-lhe muito gratas por ter vindo connosco. E agora, quero mais um aperitivo.

       - Eu também - disse Toppy, ainda amuada. Que criatura sem linha aquela caixeira da Laurier! Vou pedir ao papá que telefone para lá, exigindo que a mulher seja despedida. Não, não quero! - Quando beberricava o segundo aperitivo um sorriso de satisfação foi aos poucos alegrando-lhe a fisionomia. - Dei uma boa lição, não dei Frances? Fiquei de facto uma «bicha»! Oh! Meu Deus! Como tinha piada a cara da mamã Winch! Era de rebentar  a rir!

       O pequeno molho de ossos contorcia-se numa gargalhada. Olhou a cara de Andrew, sem má disposição.

       - Vamos, doutor! Ria também! O caso foi divertidíssimo!

       - Não! Não o acho tão divertido como isso - disse precipitadamente, na ânsia de se explicar, de estabelecer a sua posição, de a convencer de que estava doente. A menina  teve realmente uma crise grave. Lamento ter sido obrigado a tratá-la como o fiz. Sem ter anestésico, só havia aquele recurso. E se não procedesse assim, seria pior para a menina. E não suponha, por favor, que eu considere fingido aquele ataque. A histeria... sim, trata-se de um caso de histerismo... é uma doença precisa, definida. Não deve rir-se. É uma consequência do sistema nervoso doente. Veja, a menina está abatidíssima. Todos os seus reflexos o demonstram. Está muito nervosa.

       - Tem toda a razão - concordou Frances Lawrence. - Tens abusado ultimamente, Toppy.

       - O doutor queria de facto dar-me clorofórmio? - perguntou  Toppy, num espanto infantil. - Teria tido piada.

       - Falando do caso a sério, Toppy - disse a Sr.a Lawrence  quero que te trates.

       - Estás falando como o papá - observou a jovem, perdendo  o bom humor.

       Houve um silêncio. Andrew terminara o aperitivo. Pôs o cálice sobre a beira, delicadamente trabalhada, do fogão. Parecia-lhe já não ter razões para continuar ali.

       - Bem! - disse com ar importante. - Tenho de voltar ao meu trabalho. Faça o favor de seguir o meu conselho, menina Lê Roy. Tome uma ligeira refeição, vá para a cama e... já que não lhe posso ser útil em mais coisa alguma... procure o seu médico amanhã. Passe bem.

       A Sr.a Lawrence acompanhou-o ao vestíbulo, mas de um modo tão lento que ele viu-se obrigado a moderar a pressa de homem ocupado de que ia animado. Era alta e esbelta, as espáduas um pouco levantadas, cabeça pequena e elegante. Alguns fios grisalhos nos cabelos escuros, lindamente ondulados, davam-lhe uma curiosa distinção. No entanto ainda era jovem. Andrew estava certo de que não devia ter mais de vinte e sete anos. Era alta e delicada.

       Os punhos, principalmente, eram muito delgados. Na verdade,  toda a sua figura flexível lembrava a preciosa vibratilidade de um florete. Estendeu a mão ao médico, fixando nele os olhos esverdeados e confusos, num rosto onde brincava um leve sorriso cordial, cheio de simpatia.

       - Queria apenas dizer-lhe quanto admirei o seu novo método de tratamento. - Os seus lábios fizeram um movimento  gracioso. - Não o abandone por coisa alguma. Asseguro-lhe um sucesso formidável com a sua aplicação.

       Descendo a Green Street, para tomar o autocarro, Andrew ficou espantado ao ver que já eram quase cinco horas da tarde. A companhia das duas mulheres fizera-o perder quase três horas. Tinha o direito de apresentar uma conta substancial por esse facto. E no entanto, apesar dessa edificante reflexão, tão característica dos seus novos pontos de vista, sentiu-se confuso, num descontentamento estranho. Teria realmente aproveitado bem a oportunidade?

       A Sr.a Lawrence parecia gostar dele. Mas nunca se pode confiar em gente daquela ordem. E que casa estupenda! De súbito uma fúria exasperada o tomou. Não só se esquecera de deixar cartão, como até de dizer quem era. E ao sentar-se no autocarro cheio, ao lado de um velho operário de fato de trabalho, censurou-se a si mesmo, com irritação, por ter desperdiçado aquela oportunidade única.

       Na manhã seguinte, pouco depois das onze, quando Andrew se preparava para ir fazer algumas visitas nas imediações de Mussleburgh Market, o telefone tocou e ouviu-se a voz de um criado, solícita e solene:

       - É o Dr. Manson? Ah! A Sr.a Lê Roy deseja saber, doutor, a que horas virá cá hoje. Ah! com licença, doutor, um momento! A Sr.a Lawrence quer-lhe falar.

       Andrew alvoroçou-se, numa ansiedade palpitante, enquanto  a Sr.a Lawrence lhe dizia, muito cordialmente, que esperava sem falta a sua visita.

       Quando pousou o auscultador, o médico murmurava para si mesmo, todo exultante: «Não perdi a oportunidade de ontem; não, de qualquer maneira, não a perdi».

       Desprezou as outras visitas, urgentes ou não, e foi directamente ao palacete de Green Street.

       Aí encontrou Joseph Le Roy, que o esperava com impaciência no pequeno salão ornado de jades Era um tipo robusto, calvo, muito empertigado. Mastigava o charuto, indício de impetuosidade de um homem pouco habituado a perder tempo. Num momento, os seus olhos apreenderam a figura de Andrew. E essa rápida operação acabou por satisfazê-lo. Disse então com ar feroz, com um acento colonial:

       - Ouça, doutor. Estou com muita pressa. A Sr.a Lawrence  fez uma trapalhada dos diabos, obrigando-o a vir aqui esta manhã. Vejo que o senhor é um homem inteligente e não transige com tolices. É casado, não é verdade? Isso agrada-me. E agora, tome a pequena aos seus cuidados. Ponha-a boa, forte; tire-lhe do corpo o diabo desse histerismo. Não poupe coisa alguma. Eu posso gastar. Até à vista.

       Joseph Le Roy era da Nova Zelândia. Apesar do dinheiro, da casa na Green Street e da sua pequenina e exótica Toppy, não era difícil acreditar na verdade: o seu bisavô fora um tal Michael Cleary, trabalhador rural muito ignorante das vizinhanças de Greymouth Harbour, a quem os companheiros tratavam familiarmente por Leary.

       Por certo, quando começou a lutar pela vida, esse Joseph  Le Roy não passava de Joe Leary, um rapazola cujo primeiro emprego tinha sido o de ordenhador de vacas nas grandes estâncias de Greymouth. Mas Joe nascera, como ele próprio dizia, para espremer tetas mais rendosas.

       E trinta anos mais tarde era Joseph Le Roy, que nos escritórios instalados no último andar de um arranha-céus pusera a sua assinatura na escritura que incorporara todos os estábulos e estâncias da ilha num grande consórcio de lacticínios.

       Foi um negócio estupendo o Consórcio Cremogen.

       Nesse tempo o leite conservado era pouco conhecido, ainda não estava industrialmente organizado. E foi Le Roy quem viu as suas possibilidades, quem o lançou no mercado mundial anunciando o artigo como elemento nutritivo abençoado para crianças e doentes. A essência do empreendimento  estava, não nos produtos de Joe, mas na sua audácia. As sobras do leite desnatado, que até então se desperdiçavam ou se davam aos porcos em centenas de granjas de Nova Zelândia, passaram a ser vendidas em todas as cidades do mundo nas latinhas de Joe, com os vistosos rótulos de Cremogen, Cremax e Cremfat, por preço três vezes superior ao do leite fresco.

       Jack Lawrence, co-director do Consórcio Lê Roy, era quem dirigia os seus negócios na Inglaterra. Embora pareça ilógico, tinha sido oficial da guarda antes de se entregar  às actividades comerciais. Contudo, a união da Sr.a Lawrence e de Toppy não resultara apenas dessas associações  de interesses materiais. Rica também e muito mais à vontade nas rodas elegantes de Londres pois Toppy de vez em quando traía a origem dos seus antepassados, Frances alimentava uma afeição divertida pela garota mimada. Quando Andrew se dirigiu ao andar superior  depois da conversa com Le Roy, ela esperava-o em frente da porta do quarto de Toppy.

       Nos dias seguintes também Frances Lawrence apareceu à hora da visita do médico servindo de agente de ligação com a doença caprichosa e cheia de exigências, pronta a salientar qualquer melhora no estado de Toppy, insistindo com ela para que se submetesse ao tratamento, perguntando a Andrew quando voltava novamente.

       Grato à Sr.a Lawrence, Manson ainda era, no entanto, bastante tímido para estranhar que pudesse interessar-se por ele, mesmo assim tão levemente, uma fidalga como aquela, que se confessava muito exigente na escolha de relações e que ele bem sabia ser exclusivista, antes mesmo de ver o seu retrato nas páginas elegantes das revistas ilustradas. A sua boca rasgada e um tanto displicente exprimia sempre desdém acerca das pessoas que não eram da sua roda íntima. Todavia, qualquer que fosse a razão, nunca se mostrara hostil para com ele. Andrew sentia um desejo extraordinário, maior do que o da simples curiosidade, de aprofundar-lhe o carácter, a personalidade. Tinha a impressão de tudo ignorar da verdadeira Sr.a Lawrence.

        Era uma delícia observá-la nos seus movimentos harmoniosos quando girava pelo quarto. Estava sempre à vontade, mas muito atenta a tudo quanto fazia. E, apesar da graciosa naturalidade da conversa, mantinha o espírito vigilante no fundo dos olhos repletos de simpatia, mas também de reserva.

 

       Uma nova ideia começava a formar-se no espírito de Andrew sem que ele mesmo tivesse consciência da sua origem. Sem se expandir com Christine, que ainda se preocupava com o equilíbrio do orçamento caseiro na base de xelins e pence, começou a perguntar a si mesmo, com impaciência, como é que um médico poderia conseguir uma clínica da alta-roda sem dispor de um automóvel vistoso. Era ridículo ir a pé a Green Street, de maleta na mão, com poeira nos sapatos, tendo de fazer frente sem um carro ao ar superior do porteiro. Havia uma garagem de tijolo no fundo da casa, o que reduzia consideràvelmente  a manutenção do automóvel, e não faltavam firmas especializadas em fornecer carros aos médicos, instituições  admiráveis que não se importavam de dilatar gentilmente os prazos de pagamento.

       Três semanas mais tarde parou à porta do n.º 9 de Chesborough Terrace um coupé castanho, de capota convertível,  novo em folha e todo reluzente. Largando o volante, Andrew galgou num pulo os degraus da entrada da casa.

       - Christine - chamou, esforçando-se por não revelar na voz a animação e o entusiasmo. - Christine! Vem ver uma coisa!

       Queria produzir uma grande impressão. E de facto conseguiu o seu fim.

       - Deus do Céu! Ela juntou as mãos. É nosso? Mas que beleza!

       - Não é uma beleza? Cuidado, querida! Não ponhas as mãos na pintura. És capaz... és capaz de deixar a marca no verniz! - Sorria-lhe como nos velhos tempos. - Uma rica surpresa, hem, Chris! Tirar a carta e comprar o carro, tudo sem te dizer coisa nenhuma. Muito diferente do nosso velho Morris, hem? Entre no carro, minha senhora, para eu fazer uma demonstração. Corre que é uma maravilha.

       Christine não se cansava de admirar o carrinho quando o marido a levou, mesmo sem chapéu, para uma boa volta pelas imediações. Alguns minutos depois já estavam de regresso. Ficaram de pé, na calçada, pois Andrew ainda não se resolvia a perder de vista o tesouro. E eram tão raros agora os momentos de intimidade, de compreensão e felicidade que passavam juntos que ela não queria perder  aquele.

       - Isso vem facilitar o teu trabalho de atender as chamadas,  querido. - E então timidamente. - Se pudéssemos sair um pouco, dar uns passeios ao campo, de vez em quando... Nos sábados, por exemplo... Oh! Seria delicioso.

       - Naturalmente - respondeu ele distraído. - Mas o carro é sobretudo para as minhas visitas. Não podemos ir por aí ao acaso, enchendo o carro de lama. - E Andrew pensava no efeito que o cupézinho vistoso produziria na clientela.

       Contudo, o efeito que o carro produziu foi além da sua expectativa. Na terça-feira da semana seguinte, ao sair pela porta envidraçada atrás das grades de ferro do n.º 172 de Green Street, deu de cara com Freddie Hamson.

       - Olá, Hamson - disse, com toda a naturalidade. Não pôde conter uma onda de satisfação ao notar a fisionomia de Hamson. -Freddie não o reconheceu imediatamente.

       E quando viu afinal que era mesmo Andrew, a sua expressão,  ao passar por vários graus de surpresa, ainda traía um embaraço visível.

       - Como? Olá, Andrew! Que fazes por aqui?

       - Visitando um cliente - respondeu o outro, voltando a mão para trás, na direcção do n.º 172. - Trato a filha de Joe Lê Roy.

       - Joe Le Roy!

       Só essa exclamação dizia tudo a Manson. Com ar de proprietário, pôs a mão na portinhola do automóvel novo - Para onde vais? Queres que te deixe em algum lugar?

       Freddie retomou rapidamente o seu domínio. Perturbava-se  poucas vezes e nunca por muito tempo. Sem dúvida,  em meio minuto, a sua opinião sobre Manson, tudo o que pensava sobre a sua utilidade, passou por uma vertiginosa e inesperada reviravolta.

       - Sim - sorriu, num tom de camaradagem - ia para Bentinck Street, para a casa de saúde da Sherrington. Ia a pé para fazer exercício. Mas irei contigo.

       Houve um silêncio de alguns minutos enquanto corriam pela Bond Street. Hamson dava tratos à imaginação. Recebera  Andrew efusivamente, quando lhe apareceu em Londres,  na esperança de que a clínica de Manson pudesse fornecer-lhe de vez em quando umas consultas de três guinéus. Mas agora a transformação do velho colega de turma, o automóvel, e acima de tudo o nome de Joe Le Roy que para ele tinha uma significação infinitamente maior do que para Andrew mostraram-lhe o seu erro.

       Era preciso não esquecer também os títulos de Andrew, muito apreciáveis, úteis, utilíssimos. Enxergando longe, astucioso, Freddie viu uma base melhor, muito mais proveitosa  para uma cooperação entre Andrew e ele. Devia agir cuidadosamente pois Manson era um diabo cheio de melindres e desconfianças.

       - Porque não vens comigo ver a Ida? - disse ele. - É uma pessoa que convém conhecer, embora mantenha a pior casa de saúde de Londres. Homem, sei lá. Provavelmente não é pior do que as outras. Mas em compensação cobra muito mais.

       - Ah, sim?

       - Vem... Vem ver a minha cliente. É inofensiva, a velha Raeburn. Ivory e eu estamos a fazer umas experiências  à custa dela. Em assuntos de pulmões és um barra, não é o que consta? Vem vê-la. Isso dar-lhe-á muito prazer. E são cinco guinéuzinhos que ganhas.

       - Como? Queres dizer... Mas que tem ela nos pulmões?

       - Nada de notável. - Freddie sorriu. - Não te mostres tão impressionado! Ela está, provavelmente, com um pouco de bronquite senil. E gostará de te ver! É como nós fazemos  aqui. Ivory, Freedman e eu. Deves entrar também na combinação, Manson. Não podemos falar disso agora. Não há tempo; já cá estamos. Mas ficarás espantado quando a coisa começar.

       Andrew parou o carro em frente da casa indicada por Hamson. Era uma moradia vulgar que evidentemente não tinha sido construída para casa de saúde. Na verdade, dando para uma rua movimentadíssima, de intenso tráfego,  era difícil acreditar que alguém pudesse estar ali em sossego. Parecia precisamente um local destinado a provocar e não a debelar uma crise nervosa. Andrew falou nisso a Hamson quando subiram os degraus da entrada.

       - Eu sei, meu velho, eu sei. - Disposto a mostrar-se cordial, Freddie concordava. - Mas são todas assim. Neste pedacinho do West End há uma porção delas. Compreendes  que nessa questão de casas de saúde devemos cuidar também das nossas próprias conveniências. O ideal seria que elas ficassem afastadas, em lugares tranquilos, mas..., por exemplo..., que cirurgião se dignaria viajar dez milhas por dia para ver um doente durante cinco minutos? Deixa estar que com o tempo ficarás a conhecer bem esses pequeninos  albergues do West End que têm o nome de casas de saúde.  Freddie parou no vestíbulo estreito, onde entrara  com Andrew.  Em todas elas há três cheiros característicos: anestésicos, cozinha e excremento. Uma sequência lógica... Perdoa-me a piada, meu velho. E agora vamos ver Ida.

       Com ar de quem já conhece a casa, dirigiu-se para um gabinete muito acanhado, no andar térreo, onde estava sentada, junto de uma pequena secretária, uma mulherzinha  de uniforme de cor de malva e com um gorro branco, muito engomado na cabeça.

       - Bons dias, Ida, - saudou Freddie num acento intermédio  de adulação e familiaridade. - Contando os lucros?

       Ela levantou os olhos e, ao vê-lo, sorriu com bom humor. Era baixa, robusta e extremamente corada. Mas era tão espessa a camada de pó de arroz que o rosto, vermelho e lustroso, tomava um tom de malva, quase da cor do uniforme.

       Vinha dela uma nota de vitalidade grosseira e ruidosa, de risonha esperteza, de disposição para viver. Os dentes eram postiços e mal colocados. O cabelo, grisalho. Dava de certo modo a impressão de que devia usar um vocabulário impróprio e que tinha todos os requisitos para gerente de um cabaré de segunda ordem.

       No entanto a casa de saúde de Ida Sherrington era a mais elegante de Londres. Metade da aristocracia havia já por lá passado, damas da sociedade, figurões do Turf, diplomatas e advogados famosos. Bastava abrir um jornal para se ficar sabendo que mais uma brilhante estrela do teatro ou do cinema acabava de deixar o apêndice na casa hospitaleira de Ida. O uniforme de todas as enfermeiras era do mais delicado tom de malva. O despenseiro, que cuidava da adega, tinha o ordenado de duzentas libras por ano e o chefe da cozinha ganhava o dobro. Em compensação,  os doentes tinham de pagar preços quase proibitivos.

       Não era raro cobrar-se a diária de seis guinéus por um quarto. Como se isso não bastasse, vinham os extraordinários, a conta da farmácia (às vezes bem puxada),  da sala de operações e da enfermeira especial que fazia o serviço nocturno. Mas se alguém reclamava a resposta  de Ida era ornamentada de vez em quando com palavrinhas de calão. Tinha também as suas dificuldades com partilhas e percentagens a conceder e frequentemente dava a impressão de ser ela a explorada.

       Ida tinha um certo «fraco» pelos médicos jovens e recebeu Manson de muito boa cara quando Freddie lhe disse :

       - Olha bem para ele. Há-de mandar muito em breve tantos clientes que a Ida poderá encher com eles o Plaza Hotel.

       - O Plaza Hotel é que está a encher a minha casa! 

       E abanou a cabeça de modo significativo.

       - Ah! Ah! - Freddie soltou uma gargalhada. - Essa é muito boa. Devo contá-la ao velho Freedman. Paul vai achar graça. Vem, Manson. Vamos lá acima.

       O elevador apertado, onde só diagonalmente podia entrar  a maca, levou-os ao quarto andar. O corredor era estreito. Viam-se bandejas do lado de fora das portas. As flores das jarras murchavam na atmosfera pesada e quente. Entraram no quarto da Sr.a Raeburn.

       Era uma mulher de mais de sessenta anos. Recostada nas almofadas esperava a visita do médico com um papel na mão. Escrevera ali algumas impressões sentidas durante  a noite, assim como as perguntas que pretendia fazer. Andrew não teve dúvida em classificá-la como um caso de hipocondria da velhice. O tipo que Charcot chamava  «malade au petit morceau de papier».

       Sentado na beira da cama, Freddie falou com a cliente, tomou-lhe o pulso, nada mais do que isso escutou o que ela disse, tranquilizou-a. Preveniu-a de que o Dr. Ivory apareceria de tarde, com o resultado de alguns exames do maior valor científico. Apresentou-lhe o colega, Dr. Manson, especialista de pulmões, e pediu-lhe que se deixasse  examinar. A Sr.a Reaburn ficou lisonjeada. Gostava extraordinariamente dessas coisas. Havia dois anos que estava aos cuidados de Hamson. Era rica, não tinha parentes e passava o tempo ora nos hotéis familiares mais selectos, ora nas casas de saúde do West End.

       - Ora graças! - exclamou Freddie quando deixaram o quarto. - Nem podes fazer ideia da mina de ouro que esta velha tem sido para nós. Já arrancámos dela uma fortuna.

       Andrew não respondeu. Não se sentia muito bem naquela  atmosfera. A velha nada tinha nos pulmões e só o olhar de gratidão que ela dirigiu a Freddie tirara ao acto o seu carácter de completa desonestidade. Procurou convencer-se.

       - Porque havia de querer endireitar o mundo?

       Nunca seria um êxito na vida se continuasse intolerante, intransigente nas suas convicções. E a intenção de Freddie tinha sido tão boa, dando-lhe uma oportunidade para examinar a cliente...

       Despediu-se de modo muito cordial antes de entrar no carro. E no fim do mês, quando recebeu, com os melhores agradecimentos da Sr.a Reaburn, um lindo cheque de cinco guinéus, Andrew já estava apto a rir-se dos seus escrúpulos idiotas. Tinha tomado gosto ao recebimento de cheques.

       E, para cúmulo de satisfação, os cheques estavam a chegar cada vez em maior número.

       A clientela, em aumento prometedor, começava agora a expandir-se em todas as direcções, de forma rápida, impressionante, e Andrew sentia-se cada vez mais envolvido  na torrente do sucesso fácil. Era de certo modo vítima da sua própria actividade. Fora sempre muito pobre. No passado só tivera decepções com o seu obstinado individualismo.  Podia agora achar uma justificação para si mesmo nessas demonstrações impressionantes de êxito material.

       Pouco depois da chamada de emergência à Casa Laurier,  teve uma conferência agradabilíssima com o Sr. Winch, e daí por diante ainda mais frequentes foram as consultas das caixeirinhas e até das chefes de secção.

       Procuravam-no principalmente por motivos triviais. Contudo, era de admirar como reapareciam com frequência as pequenas que o visitavam uma vez. Andrew tinha modos tão acolhedores, tão simpáticos e efusivos...

       As receitas subiam verticalmente. Andrew diligenciou para que a fachada da casa fosse pintada de novo. Graças a uma dessas firmas que vendem equipamentos e aparelhos  de consultório (todas sempre dispostas a ajudar os jovens médicos a aumentar os seus réditos), conseguiu reformar o gabinete da parte da frente e o dispensário do lado, adquiriu um novo divã, um fauteil de rodas de borracha e vários armários elegantes, com espelhos esmaltados  de branco.

       A evidente prosperidade da casa pintada de novo, do automóvel, do equipamento moderno e luzidio não tardou a espalhar-se pela vizinhança, trazendo de novo muitos dos antigos clientes «distintos» do Dr. Poy, que se tinham afastado quando o velho médico e o seu consultório entraram  em decadência.

       Tinham acabado para Andrew os dias em que ficava na expectativa esperando doentes que não vinham. Tão grande era a frequência na clínica nocturna que tinha de se desdobrar para atender a tudo. Tocava a campainha da porta da frente, batia a sineta da porta do dispensário. Gente à espera nas duas salas e o doutor a desdobrar-se de um lado para o outro. Era imprescindível tomar providências.

        Andrew viu-se forçado a pensar num plano para economizar tempo.

       - Chris, ouve - disse certa manhã. - Pensei agora numa coisa que me poderá ajudar muito nessas horas de aperto. Tu sabes...  Quando acabo de examinar um doente do dispensário tenho de vir aqui dentro para preparar o remédio. Gasto geralmente com isso uns cinco minutos. Perco um tempo enorme que poderia aproveitar para despachar um desses clientes «distintos» que ficara à espera no consultório. Compreendes onde quero chegar? Para o futuro incumbir-te-ás da parte da farmácia.

       Ela olhou-o com um espantado franzir de sobrancelhas:

       - Mas eu nada entendo de preparação de remédios.

       Andrew sorriu, tranquilizador.

       - Não faz mal, querida. Tenho sempre preparadas algumas  fórmulas excelentes. Todo o teu trabalho será apenas encher os frascos, colar os rótulos e embrulhar.

       - Mas... - A confusão estampava-se nos olhos de Christine. - Oh! Eu quero ajudar-te, Andrew... mas... parece-te realmente...

       - Não compreendes que isso é indispensável? - O seu olhar fugiu do dela. Foi com irritação que acabou de beber o café. - Bem sei que em Aberalaw eu costumava dizer uma série de tolices contra os remédios. Tudo teorias! Agora... agora sou um homem prático. Além disso, essas raparigas da Casa Laurier são todas anémicas. Um bom fortificante só lhes pode fazer bem.

       Antes que ela pudesse responder, o som da campainha do dispensário fê-lo abandonar a sala.

       Noutro tempo, Christine teria discutido, defendido energicamente  o seu ponto de vista. Mas agora pôs-se apenas a meditar, com melancolia, sobre a transformação que sofrera  a vida de ambos. Ela já não tinha influência nele, já não o conduzia. Era ele quem ia na frente.

       Christine começou então a passar no cubículo da farmácia  essas horas amargas de trabalho, aguardando que Andrew ordenasse, num tom seco, enquanto se movimentava  apressadamente, entre os «clientes distintos» e os doentes pobres. «Ferro»! «Magnesia», «Carminativo» ou qualquer outra coisa. Quando ela o prevenia de que a solução  de ferro tinha acabado, rosnava Andrew com impaciência: «Então outra coisa qualquer! com os diabos! Seja o que for.» 

       Muitas vezes o serviço nocturno ia além das nove e meia. Depois de encerrado, faziam a escrita do volumoso Caixa do Dr. Foy, que ainda estava com mais de metade das páginas em branco quando Manson adquirira a clínica.

       - Meu Deus! Que dia, Chris! - exclamava, triunfante. - Lembras-te daquela primeira consultazinha de três xelins e meio que me provocou uma alegria infantil? Pois bem, hoje... hoje fizemos mais de oito libras. E dinheiro à vista.

       Arrumava o dinheiro - pesadas pilhas de prata e algumas  notas - numa caixinha de charutos que o Dr. Foy usava como mealheiro e fechava-o na gaveta da secretária.

       Conservava a caixinha assim como o livro Caixa do Dr. Foy para dar sorte. Esquecia-se agora por completo de todas as antigas dúvidas e louvava a própria esperteza de ter ficado com a clínica.

       - Isso está a tornar-se uma verdadeira mina, de todos os pontos de vista, Chris. - Andrew exultava. - Uma clínica  pobre que rende bastante e uma boa clientela de classe média. E melhor que tudo, estou adquirindo por minha própria conta muitos clientes da alta sociedade.

 

       No começo de Outubro, Manson julgou-se em condições  de autorizar Christine a reformar a mobília da casa.

       Depois do trabalho da manhã, disse-lhe com uma naturalidade  cheia de ênfase, que era a sua nova maneira de se exprimir:

       - Gostaria que fosses hoje à cidade, Chris. Vai à Casa Hudson, ou à Casa Ostley, se preferires. Vai à melhor casa de móveis e compra tudo o que precisamos. Talvez duas mobílias de quarto, uma de sala de visitas, o que entenderes.

       Ela olhou-o em silêncio, enquanto Andrew acendia um cigarro, sorridente.

       - É uma das vantagens de ganhar dinheiro: poder dar-te tudo o que necessitas. Não penses que sou mesquinho. Acredita que não sou. Tens sido uma boa companheira, Chris, em todos os momentos difíceis. Agora estamos a começar a gozar os bons tempos.

       - Comprando móveis caros e... conjuntos estofados da Casa Ostley.

       Ele não percebeu a amargura das suas palavras. Riu.

       - Isso mesmo, querida. Já chegou a hora de nos desfazermos  dos velhos trastes da Casa Regency.

       Lágrimas despontaram nos olhos de Christine. Explodiu :

       - Em Aberalaw não achavas que fossem trastes... E de facto não são. Oh! Aquele tempo, sim, aquele é que foi um tempo feliz!  - Abafando um soluço, virou as costas e saiu da sala.

       Ele seguiu-a com o olhar, espantado. Christine andava  ultimamente com uns modos estranhos. Nervosa, deprimida,  com repentinas crises de inexplicável mau humor.

       Andrew sentiu que se afastavam um do outro, que desaparecia aquela misteriosa união, aquele secreto laço de camaradagem que sempre existira entre ambos. Ora! A culpa não era dele. Fazia o que podia. Mais não era possível.

       Furioso dizia consigo mesmo: «O meu triunfo nada vale para ela!» Mas não podia perder tempo a incomodar-se com a incompreensão, a injustiça do procedimento dela. Tinha um grande número de chamadas a atender e era esse precisamente o dia em que costumava passar pelo banco.

       Duas vezes por semana, regularmente, ia ao banco para depositar mais algum dinheiro na sua conta. Achava uma imprudência acumular dinheiro em casa. Não podia deixar de comparar aquelas agradáveis visitas com a sua triste experiência bancária em Blaenelly, quando, como simples assistente sem importância, fora humilhado por Aneurin Rees. O Sr. Wade, gerente do banco londrino, dirigia-lhe sempre um sorriso de respeitoso acolhimento, e de vez em quando convidava-o para fumar um cigarro no seu gabinete.

       - Permita que lhe diga, doutor, e não veja nisso qualquer  intromissão na sua vida: o doutor vai muitíssimo bem. Nós aqui estamos em condições de orientar perfeitamente um médico em franco progresso, que já conta com a sua independência, como o doutor, por exemplo. E agora, quanto àqueles títulos da Southern Railway, de que já tivemos ocasião de falar...

       A deferência de Wade não era mais do que uma amostra da consideração geral. Andrew via agora que os outros médicos do bairro o cumprimentavam cordialmente quando os automóveis se cruzavam. Na reunião do Outono da secção distrital da Associação Médica, na mesma sala onde fora tratado com tão pouca consideração quando lá aparecera  pela primeira vez, foi acolhido com afecto, recebeu muitas provas de apreço e até mesmo um charuto do Dr. Ferrie, o vice-presidente.

       - Tenho muito prazer em vê-lo aqui, doutor - disse com cordialidade o Dr. Ferrie, um homenzinho de cara avermelhada. - Está de acordo com as linhas-mestras do meu discurso? Temos de usar de energia nessa questão de honorários. Principalmente nas chamadas nocturnas. Estou disposto a não ser condescendente. Ainda uma noite destas bateram à minha porta. Um petiz de doze anos, calcule! «Venha depressa, doutor», choramingou. «O papá está no trabalho e a mamã está muito mal.» Ora o senhor sabe como são essas conversas das duas da madrugada e eu nunca tinha visto em toda a minha vida o garoto nem mais gordo nem mais magro. «Meu filho», disse eu. «A tua mãe não é minha cliente. Vai buscar o meio guinéu da chamada. Então irei». É claro que não voltou. É o que lhe digo, doutor, esta zona é terrível.

       Uma semana depois dessa reunião telefonou-lhe a Sr.a Lawrence. Andrew achava sempre um encanto a graciosa  tagarelice das suas conversas pelo telefone. Nesse dia, porém, depois de explicar que o marido fora pescar na Irlanda e era possível que também fosse mais tarde para lá, convidou-o para almoçar com ela na sexta-feira. Dirigiu-lhe  o convite como se fosse uma coisa sem maior significação.

       - A Toppy vem. E mais uma ou duas pessoas. Acho que são mais interessantes do que essa gente que se costuma encontrar nesses almoços. E talvez lhe possam ser úteis.

       Andrew desligou o telefone, entre satisfeito e irritado.

       No íntimo, estava aborrecido porque Christine não fora também convidada. Mas, reflectindo, achou que se tratava de uma questão mais de negócio do que de vida social.

       Devia aparecer em bons meios, travar relações com pessoas importantes como as que compareciam ao almoço, tanto mais que Christine poderia ignorar o facto. Quando chegou a sexta-feira, contou-lhe que combinara um almoço com Harrison e pulou para o automóvel com a consciência tranquila. E não se lembrou que não tinha feitio para mentir.

       A residência de Frances Lawrence ficava em Knightbridge,  numa rua muito sossegada entre Hans Place e Milton Crescent. Embora não fosse esplêndida como a casa de Lê Roy, o seu bom gosto e a sua elegante sobriedade transmitiam a mesma sensação de opulência. Andrew chegou  atrasado. Já lá se encontrava a maioria dos convidados: Toppy, a novelista Rosa Keane, Sir Dudley Rumbold-Blane, clínico famoso, M.D., F.R.C.P.(*) e membro do conselho de administração dos produtos Cremo; Nicol Watson, explorador e antropologista, e várias outras pessoas  menos importantes.

      

(*) F. R. C. P. - Abreviatura de Fellow of the Royal College of Phylicians, título superior ao M. R. C. P. (N. do T.)

      

       À mesa, Manson sentou-se ao lado da Sr.a Thornton, que, segundo o informou, morava em Leicestershire, mas vinha periodicamente a Londres, passando curtas temporadas  no Brown Hotel. Embora já se sentisse suficientemente  calmo durante o cerimonial das apresentações a tagarelice da mulher deu-lhe tempo para retomar o domínio completo de si mesmo. Ela discorria maternalmente sobre uma torcedura de pé que sofrera, numa partida de hóquei, a filha Sybil, internada num colégio de Roedean.

       Mesmo prestando atenção à Sr.a Thornton, que interpretava o silêncio como interesse pela narrativa, Manson ainda conseguia ouvir alguma coisa da suave e espirituosa palestra que se desenrolava na mesa as piadinhas agressivas  de Rosa Keane e a descrição extraordinariamente fascinante de Watson sobre uma expedição ao Paraguai em que tomara parte recentemente. A Admirou também a facilidade  com que Frances mantinha a animação da conversa,  encorajando ao mesmo tempo o pedantismo de Sir Rumbold, que se sentara ao seu lado. Uma ou duas vezes Andrew sentiu os olhos dela a procurá-lo, meio sorridentes, notando neles uma interrogação.

       - Não resta dúvida - Watson concluiu a narrativa com um sorriso de quem pede desculpa - de que o incidente mais lamentável foi voltar para casa e apanhar logo uma gripe.

       - Ah! - exclamou Sir Rumbold. - Então também pagou  o seu tributo!

       Aclarando a voz e recorrendo às lunetas,  que encaixou no volumoso nariz, conseguiu atrair a atenção de toda a mesa. Sir Rumbold sentiu-se à vontade em tal situação. Desde há muitos anos que era uma figura a que o grande público rendia culto. Foi Sir Rumbold quem, havia coisa de um quarto de século, assombrara a Humanidade com a declaração de que uma certa parte do intestino era não só inútil, mas também provadamente prejudicial. Centenas de pessoas correram logo a cortar a parte perigosa. E embora Sir Rumbold não pertencesse a esse número, a fama da operação, que os cirurgiões denominaram  «incisão Rumbold-Blane», firmou para sempre a sua fama de autoridade em assuntos de dieta. Desde então, estava sempre em relevo conseguindo pleno sucesso com as suas recomendações à população de vários alimentos  exóticos e fermentos lácteos. Mais tarde inventou o sistema de mastigação Rumbold-Blane, e agora, além das suas actividades em conselhos de administração de muitas companhias, redigia os menus da famosa cadeia de restaurantes  Railey. Os anúncios diziam assim: «Venham, senhoras  e cavalheiros! Sir Rumbold-Blane, M.D. e F.R.C.P., ajudará os clientes na escolha dos alimentos de mais calorias!» Entre os elementos mais conscienciosos da profissão  não faltava quem resmungasse baixinho, insinuando que Sir Rumbold já devia ter sido expulso há muito tempo do Registo Médico. Mas a resposta era bem simples: que seria do Registo sem Sir Rumbold!

       Pontificava agora, olhando paternalmente para Frances:

       - Um dos aspectos mais interessantes desta epidemia de gripe é o efeito terapêutico, verdadeiramente espectacular, do Cremogen. Ainda na semana passada tive ocasião de dizer a mesma coisa na reunião do conselho de administração. Infelizmente, não há cura para a gripe. E nesse caso o único recurso para enfrentar a invasão perigosa do bacilo consiste em desenvolver no mais alto grau a capacidade de resistência, a defesa vital do organismo contra a infiltração da doença. Aproveitei o ensejo para dizer e orgulho-me de o ter feito com certa proficiência que realizámos experiências concludentes... não em cobaias, ah! ah.!, como os nossos amigos dos laboratórios, mas em seres humanos. São experiências que provam o poder fenomenal do Cremogen na organização e no reforço da defesa vital do organismo contra os micróbios.

       Watson voltou-se para Andrew, com o seu estranho sorriso:

       - Que lhe parecem os produtos Cremo, doutor?

       Apanhado desprevenido, Andrew respondeu inadvertidamente :

       - Valem tanto como outros quaisquer à base de leite desnatado.

       Com um olhar furtivo de aprovação, Rosa Keane cometeu  a maldade de rir. Frances riu também. Repentinamente  Sir Rumbold passou à descrição da sua recente visita a Trossacks, a convite da Associação Médica do Norte. O almoço decorreu, no entanto, na melhor harmonia.

       Mais de uma vez Andrew participou desembaraçadamente da conversa geral. Na sala de visitas, antes que ele se retirasse, Frances proporcionou-lhe mais duas oportunidades  de conversar.

       - O doutor é realmente encantador - murmurou ela. A Sr.a Thornton nem esperou pelo café para me falar a seu respeito. E tenho um pressentimento de que o senhor  a «pescou» - não é assim que se diz? - para cliente.

       Com essa boa notícia acariciando-lhe o ouvido, Manson voltou para casa sob a impressão de que a aventura fora óptima para ele e Christine dela não tomara conhecimento.

       Na manhã seguinte, porém, teve uma surpresa desagradável. Freddie telefonou, para lhe perguntar, alvoroçado:

       - Então   como se passou o almoço de ontem? Como é que eu soube? Ora, meu velho! Não leu hoje a Tribune?

       Alarmado, Andrew voltou, rápido, à saleta, onde costumavam ficar os jornais, depois de lidos por ele e Christine. Correu os olhos novamente pela Tribune, um dos matutinos  ilustrados de maior circulação. Estremeceu de repente. Como não vira aquilo antes? Na secção de notícias mundanas,  uma fotografia de Frances Lawrence com uma pequena nota sobre o almoço da véspera. O nome de Manson  estava entre os convidados.

       Aborrecido, arrancou a página do jornal, fez uma bola de papel e atirou-a ao fogo. Lembrou-se então de que Christine já havia lido a Tribune. Franziu a testa num acesso de inquietação. E embora se convencesse de que ela não tinha dado pela maldita notícia, foi muito carrancudo para o consultório.

       Mas Christine lera a notícia. Depois de um momento de espanto, sentiu o coração ferido. Porque não lhe falara Andrew nisso? Porquê? Porquê? Não se teria incomodado por ele comparecer àquele almoço idiota. Procurou tranquilizar-se: era uma coisa tão sem importância que nem lhe devia causar tanta mágoa e ansiedade. Mas, com a cabeça a estalar, compreendeu que no fundo o facto não era sem importância.

       Quando Andrew voltou das suas visitas, Christine tentou  continuar com o serviço de casa como se nada tivesse acontecido. Mas não pôde. Andava do consultório para a outra sala sempre com o mesmo peso no coração. Com o espanador limpava nervosamente o dispensário. Junto da secretária via-se a antiga maleta do médico, a primeira que ele possuíra, a que usara em Blaenelly, que levava pelos bairros operários, e com que descia às minas nos casos de emergência. Afagou-a com uma estranha ternura. Andrew tinha agora uma maleta nova, de preço. Fazia parte da sua nova clínica, da clínica de luxo que cultivava agora tão febrilmente e que inspirava tão profunda aversão a Christine.

        Ela sabia que era inútil tentar explicar-lhe as suas discrepâncias sobre a conduta dele. Andrew andava tão melindroso... Isso era bem a marca do seu próprio conflito interior. Uma palavra dela irritá-lo-ia provocando uma discussão. Devia agir de outro modo.

       Era sábado e Christine prometera a Florie levá-la na sua companhia quando saísse para fazer compras. A filha da criada, toda bonitinha no vestido novo, já estava à sua espera no alto da escada da cave. Era uma boa menina, a Florie, e Christine afeiçoara-se-lhe muito. Aos sábados saíam quase sempre juntas. Christine sentiu-se melhor quando se viu fora de casa, ao ar livre, com a garota pela mão, a passear pelo mercado, conversando com os vendedores  de que era freguesa, comprando frutas e flores, procurando encontrar alguma coisa que pudesse agradar a Andrew. Mas a ferida continuava aberta. Porquê, porque não lhe participara? E porque não fora convidada também?

       Lembrou-se da primeira vez em que tinham ido a casa dos Vaughans, em Aberalaw. Fizera tudo, então, para arrastá-lo consigo. Como agora a situação era diferente!

       E a culpa era dela? Estaria mudada, recolhida dentro de si mesma, transformada de certo modo numa criatura desprezível? Achava que não. Gostava ainda de se dar com pessoas amigas, travar relações amigáveis, sem ligar à importância social que pudessem ter. A amizade com a Sr.a Vaughan ainda perdurava numa troca constante de correspondência.

       Mas, embora magoada e diminuída, Christine preocupava-se  muito menos consigo do que com o marido. Ela bem sabia que a gente rica também cai doente e que se pode ser tão bom médico na zona mais aristocrática de Londres como na zona operária de Aberalaw. Não exigia a continuação daqueles esforços heróicos dos velhos tempos das grandes marchas a pé e das corridas de motocicleta.

        No entanto sentia com toda a alma que naquele tempo o idealismo de Andrew fora puro e maravilhoso, iluminando a vida de ambos com uma luz forte e clara. Agora, a chama tornara-se amarelada e o vidro da lanterna estava sujo de fumo.

       Ao entrar na casa de Frau Schmidt procurou eliminar da fisionomia os indícios da preocupação. No entanto percebeu  que a velha a observava atentamente.

       - Anda sem apetite, minha filha. Não está com boa cara. Todavia possui agora um lindo automóvel, dinheiro, tudo. Olhe! Tem de provar isto. É muito saboroso.

       Com a longa faca afiada, cortou uma lasca do seu famoso presunto defumado e obrigou Christine a comer uma sanduíche de pão de forma. Ao mesmo tempo ofereceu a Florie sorvete e um pastel. Frau Schmidt não se calava.

       - Agora, um pouco de Libtauer. O doutor já tem comido muito deste queijo e nunca se farta. Qualquer dia destes vou pedir-lhe um atestado para pregar aí na montra. Foi este queijo que me deu fama... E Frau Schmidt continuou  a discorrer alegremente até Christine se retirar.

       Ao saírem, Christine e Florie ficaram paradas no passeio  à espera que o sinaleiro - era o velho amigo Struthers quem estava de serviço - desse sinal para poderem atravessar. Christine segurava com força o braço da impulsiva Florie.

       - Deves prestar sempre atenção ao trânsito desta esquina aconselhou.  Que diria tua mãe se fosses atropelada?

       Com a boca cheia do resto do pastel, Florie achou graça ao dito.

       Quando finalmente chegaram a casa, Christine começou  a desembrulhar as compras e ao dirigir-se à sala da frente, para pôr numa jarra os crisântemos que trouxera, sentiu-se outra vez possuída de tristeza.

       Nisto o telefone tocou. Foi atender com andar pesado, a fisionomia abatida.

       Demorou-se uns cinco minutos. E voltou com a expressão transfigurada. Os olhos, de excitados, brilhavam. De vez em quando olhava pela janela, ansiosa pela volta de Andrew, esquecida do próprio desalento na alegria da boa notícia que recebera. Sim, uma notícia muito importante para Andrew, muito importante para ambos. Ela estava certa, tinha a convicção de que não poderia ter acontecido coisa melhor naquela ocasião. Nenhum antídoto mais eficaz  para o veneno do sucesso fácil. E, impaciente, Christine  correu à janela, mais uma vez.

       Quando Manson chegou, ela não se conteve, não soube esperar. Correu ao encontro dele, até à porta da rua.

       - Andrew! Tenho um recado para ti. De Sir Robert Abbey. Ele falou-me há pouco pelo telefone.

       - Ah! Sim? - A fisionomia de Andrew, que ao ver a mulher assumira de repente um ar compungido, animou-se  de novo.

       - Sim! Foi ele mesmo quem falou. Queria falar contigo. Eu disse-lhe que não estavas... Oh! Ele foi tão gentil... Ih! E eu estou a contar tudo isto tão mal! Meu querido! Foste nomeado para a clínica externa do Hospital Vitória. Podes tomar posse imediatamente!

       A satisfação foi pouco a pouco manifestando-se no olhar de Andrew.

       - É verdade... Que boa notícia, Chris!

       - Não é? - exclamou ela, entusiasmada. - Agora podes voltar ao trabalho que sempre apreciaste... com oportunidades para pesquisas... tudo o que ansiavas e não pudeste conseguir na Junta...

       Envolveu-o nos braços e apertou-o contra o peito.

       Andrew fitou-a, extraordinariamente tocado pelo seu amor, pelo seu desprendimento e pela sua generosidade. Teve um rebate de consciência.

       - Que alma boa tens, Chris! E como eu sou idiota e ingrato!

 

       Nos meados do mês seguinte, Andrew assumiu as funções  na consulta externa do Hospital Vitória. Os seus dias de consulta eram as terças e quintas, com o horário das três às cinco da tarde. O trabalho parecia-se muito com o daqueles velhos tempos na clínica de Aberalaw. Mas agora só tinha de apreciar casos da sua especialidade: pulmões e brônquios. Além disso, para seu grande e íntimo orgulho, já não era simples assistente de médico, mas um clínico de categoria num dos mais antigos e famosos hospitais de Londres.

       O Vitória era indiscutivelmente um hospital velho. Situado em Battersea, no labirinto daquelas ruas estreitas que ficam perto do Tamisa, quase não era banhado pelo sol mesmo no Verão. No Inverno, as varandas para onde deviam ser levadas as camas de rodas dos doentes estava quase sempre envoltas pelo nevoeiro que subia do rio. Na base da fachada, sombria e carcomida, via-se um grande cartaz vermelho e branco, que parecia verdadeiramente um pleonasmo, onde se lia: «O Hospital Vitória está em ruínas».  

       A parte do edifício onde estava instalada a clínica externa, em que Andrew se encontrava, era em parte uma relíquia do século XVIII. Com efeito, exibia-se ali orgulhosamente, dentro de uma caixa de vidro, na sala de entrada um almofariz usado pelo Dr. Lintel Hodges, médico da mesma secção do hospital durante o período de 1761 a 1793. As paredes, não revestidas de azulejos, haviam tomado uma cor de chocolate e os corredores, embora escrupulosamente limpos, eram tão mal ventilados que destilavam humidade. Todas as dependências estavam impregnadas do cheiro a bolor da velhice.  

       No primeiro dia de trabalho, Andrew visitou todo o hospital na companhia do Dr. Eustace Thoroughgood, veterano da sua secção. Era um homem de cinquenta anos agradável e preciso. De estatura abaixo da mediana, usava uma barbicha grisalha e tinha maneiras simpáticas e paternais,  como um padre com boa disposição. Thoroughgood  tinha enfermeiras próprias no Hospital e, de acordo com o sistema existente, uma sobrevivência da antiga tradição sobre a qual se mostrava de uma erudição curiosa, ele julgava-se responsável por Manson e pelo Dr. Milligans, os médicos mais novos da secção.

       Depois da volta pelo Hospital, o Dr. Thoroughgood levou Andrew à grande sala comum da cave. As luzes já estavam acesas embora ainda não fossem quatro da tarde. O fogo crepitava no fogão de ferro. Nas paredes, muito brancas, viam-se os retratos dos médicos mais ilustres do Hospital, vendo-se a peruca e as gorduras do Dr. Lintel Hodges no lugar de honra, por cima do fogão. Este era também uma relíquia volumosa daquele venerável passado.

       E, embora celibatário e com ares de clérigo, o Dr. Thoroughgood  amava a lareira como se fosse a sua própria filha e dilatava as narinas no prazer de a contemplar.

       Tomaram, na companhia de outros médicos, um chá agradável, com muitas torradas quentes e boa manteiga. Todos pareceram a Manson rapazes muito simpáticos.

       Entretanto, notando a deferência com que tratavam o Dr. Thoroughgood e a ele mesmo, conteve um sorriso. É que se lembrava dos atritos que tivera, ainda há poucos meses, com certos «sujeitinhos insolentes», quando procurava  mandar doentes para o Hospital.

       Sentara-se junto dele o Dr. Vallance, um jovem médico que passara um ano nos Estados Unidos estudando na clínica dos irmãos Mayo. Começaram a conversar sobre o sistema do famoso sanatório. Tomado de súbito interesse, Andrew perguntou num dado momento se o Dr. Vallance ouvira falar em Stillman aquando da sua estadia na América  do Norte.

       - Sim, naturalmente - disse Vallance. - Stillman goza de muito prestígio. Não tem diploma de facto, mas agora ele é mais ou menos reconhecido como um grande clínico, embora não oficialmente.

       - Visitou a clínica dele?

       - Não. - Vallance abanou a cabeça. - Não pude ir até lá. Fica no Orégão.

       Andrew calou-se por um instante, sem saber se devia falar.

       - Creio que é uma coisa notabilíssima - disse afinal. - Tive ocasião de entrar em contacto com Stillman há já alguns anos. Foi ele quem me escreveu primeiro a propósito  de um trabalho que publiquei no American Journal of Hygiene. Observei então fotografias e detalhes da clinica. Não pode desejar-se sanatório mais perfeito para o tratamento da tuberculose. Fica na montanha, no meio de pinheiros, bem isolado, com varandas envidraçadas, um sistema especial de ar condicionado que permite absoluta  pureza e temperatura invariável no Inverno. - Andrew parou como a desculpar-se do seu próprio entusiasmo pois uma interrupção na palestra geral permitiu que todos os presentes escutassem o que dizia. - Quando se pensa nas nossas condições em Londres, isso parece um ideal inatingível.

       O Dr. Thoroughgood sorriu secamente, mesmo com aspereza.

       - Os médicos londrinos têm sabido sempre agir muito bem nas condições em que trabalham, Dr. Manson. Podemos  não ter as novidades e os exotismos a que se referiu, mas não tenho dúvidas em afirmar que os nossos métodos seguros e experimentados, embora menos espectaculares, também produzem resultados satisfatórios e provavelmente mais duradouros.

       Cabisbaixo, Andrew não deu resposta. Compreendeu que, como novato, cometera uma imprudência em exprimir tão abertamente o seu ponto de vista. O Dr. Thoroughgood, para mostrar que não o pretendera melindrar tratou gentilmente  de desviar a conversa para outro assunto. Falou a respeito da arte de aplicar ventosas. A história da medicina  tinha sido por muito tempo a sua mania e dispunha de grande número de Informações sobre os barbeiros-cirurgiões  da velha Londres.

       Quando se levantaram, disse amavelmente a Andrew:

       - Tenho uma verdadeira colecção de ventosas. Hei-de mostrar-lha um dia destes. É realmente lamentável que a ventosa tenha caído em desuso. Era... e ainda é... um processo admirável para provocar contra-irritação.

       Passado esse incidente o Dr. Thoroughgood tratou de mostrar-se um colega simpático e prestável. Era bom clínico,  quase infalível nos diagnósticos e tinha gosto em levar Andrew a visitar as suas enfermarias, mas no aspecto do tratamento o seu espírito rotineiro não admitia a adopção de novidades. Não queria admitir a tuberculina, sustentando que o seu valor terapêutico ainda não fora absolutamente comprovado. Era muito avaro no uso do pneumotórax e a sua percentagem de insuflações era a mais baixa do hospital. Entretanto, era extremamente generoso na administração de malte e óleo de fígado de bacalhau.

       Andrew não pensou mais em Thoroughgood desde que começou a trabalhar. «Era estupendo», dizia para si mesmo, «encontrar-se, depois de tantos meses de espera, na situação  de quem começa de novo». E nessa primeira fase apoderou-se  dele uma animação quase semelhante ao seu antigo ardor e entusiasmo.

       Como era natural, as suas velhas pesquisas sobre lesões pulmonares produzidas por inalação de pó haviam-no levado mais tarde a considerar em conjunto toda a questão da tuberculose. Esboçou vagamente um plano para investigar,  de acordo com a experiência de Von Pirquet, os primeiros sinais físicos de lesão primária. Podia dispor de um enorme material de pesquisas: as crianças subalimentadas que as mães traziam ao hospital para beneficiarem da conhecidíssima liberalidade do Dr. Thoroughgood na concessão de óleo de fígado de bacalhau.

       E no entanto, por mais que procurasse convencer-se do contrário, Andrew não trabalhava com alma. Não podia recuperar o entusiasmo espontâneo das suas investigações sobre inalação. Tanta coisa o preocupava, tinha tantos casos importantes na clínica, que não lhe era possível concentrar  a atenção sobre obscuros indícios que talvez mesmo não conduzissem a coisa alguma. Ninguém melhor do que ele sabia o tempo necessário para um exame cuidadoso. Estava sempre atarefadíssimo. Esse argumento era irrespondível e Andrew não tardou a assumir uma atitude de admirável conformismo. Era-lhe humanamente impossível fazer o que pretendia.

       A pobre gente que vinha ao dispensário do Hospital não exigia muito dele. O seu predecessor tinha sido, ao que parecia, um fanfarrão, mas, como receitava muito e sabia contar de vez em quando uma boa anedota, a sua popularidade manteve-se até ao fim. Andrew também entrou  na intimidade do Dr. Milligan, o companheiro de clínica, e dentro de pouco tempo já adoptava os métodos do colega no contacto com os doentes. Mandava-os entrar aos grupos para junto da sua mesa e despachava-os rapidamente.

       Quando receitava: «Repita-se o remédio», nem tinha tempo para se lembrar como troçara noutras épocas dessa frase clássica. Andrew, de facto, percorria o caminho que conduzia à classificação de clínico admirável.

 

       Mês e meio depois de assumir as funções no Hospital, Andrew tomava o café da manhã, em companhia de Christine,  quando abriu uma carta que trazia o carimbo de Marselha. De momento, olhou espantado, como se não acreditasse no que estava a ler. E depois exclamou:

       - É do Denny. Cansou-se finalmente do México. Está de volta, disposto a recomeçar a actividade aqui, diz ele. Só vendo acredito. Mas, meu Deus! Como será agradável vê-lo outra vez! Está longe há quanto tempo? Parece um século. Imagina que vem da China.  Tens aí o jornal, Chris? Vê quando chega o Oreta.

       A notícia deu também uma grande alegria a Christine mas por diferentes motivos. Havia nela um forte instinto maternal, um estranho espírito de protecção, quase calvinísta,  em relação ao marido, e ela sempre achara que Denny (e Hope, também, embora em escala menos elevada) exercia uma influência benéfica sobre Andrew.

       Agora, especialmente, que ele, em virtude da modificação que se operara no seu espírito, tanto precisava dessa influência, Christine mostrava-se ainda mais ansiosa e atenta. Após a chegada da carta, pensou logo em promover  uma reunião dos três amigos.

       Na véspera da chegada do navio, tocou no assunto.

       - Não sei se isso te agradará, Andrew... mas estou a pensar que poderíamos dar um jantarzinho na semana que vem... Um jantar só para nós, o Denny e Hope.

       Ele fitou-a surpreendido. com o ambiente de constrangimento  latente entre ambos era estranho que ela falasse em preparar uma festa. No entanto respondeu:

       - Hope provavelmente está em Cambridge, e Denny e eu podemos ir a qualquer lado. - Mas, olhando para ela, anuiu rapidamente. - Está bem. Trata do jantar para domingo. É o dia melhor para todos nós.

       No domingo seguinte apareceu Denny. Mais saudável de aparência, a cara mais vermelha do que nunca. Parecia mais velho, mas mais bem disposto e mais correcto de maneiras. Todavia, era ainda o mesmo Denny, como demonstrou  ao saudar o casal:

       - Isto aqui é um palácio! Com certeza, enganei-me na porta. - E voltando-se solenemente para Christine. - A senhora, por favor, pode informar-me: este cavalheiro tão bem vestido é o Dr. Manson?

       Um momento depois, já sentado, recusou um aperitivo.

       - Não! Agora sou amador de limonadas. Por mais estranho  que pareça, o facto é que estou disposto a assentar a vida de uma vez, aqui mesmo, neste país de tanta chuva. Já estou farto de girar por este vasto mundo. A melhor maneira de se querer a esta terra tão caluniada é passar uns tempos no estrangeiro.

       Andrew fitou-o com afectuosa censura.

       - Deves realmente assentar a vida, Phillip. Afinal de contas, já entraste na casa dos quarenta... E com a tua capacidade...

       Denny dirigiu-lhe um olhar significativo por baixo das sobrancelhas.

       - Largue esse espírito, Sr. Professor. Ainda lhe posso mostrar as minhas habilidades qualquer dia.

       Contou que tivera a sorte de ser nomeado cirurgião numa enfermaria do South Hertfordshire, com trezentas libras por ano sem descontos. Não podia considerar aquilo, é claro, como uma situação definitiva, mas havia muito trabalho para um cirurgião que quisesse pôr em acção a sua técnica operatória. Queria ver, afinal, o que ainda era capaz de fazer.

       - Não sei como me deram essa situação - observou Denny - Devem ter-se enganado. Confundiram-me com outra pessoa.

       - Não - disse Andrew, com ar um tanto doutoral. - Foi por causa do teu título de M. S. (doutor em cirurgia). Um título de primeira ordem como este pode levar-te a uma boa situação.

       - Que tem ele, hem? - resmungou Denny. - Nem parece  o amigalhaço que me ajudou a dinamitar aquela rede de esgotos.

       Nesse momento entrou Hope. Ainda não conhecia Denny, mas, após cinco minutos, já se entendiam perfeitamente. Quando passaram para a sala de jantar, tinham feito uma alegre frente única para arreliar Manson.

       - Naturalmente, Hope - disse Phillip, num tom melancólico,  ao agarrar no guardanapo - o senhor não deve esperar muita comida nesta casa. Oh! Não! Eu conheço esta gente há muito tempo. Conheci o professor muito antes de se tornar a coqueluche das finas rodas de Londres. Não sabia que este casal foi expulso da cidade onde vivia porque matava porquinhos da índia à fome?

       - Eu costumo trazer um bocado de presunto no bolso - disse Hope. - É um hábito que aprendi com o Billy dos Botões na nossa última expedição. Mas, infelizmente, não tenho ovos. As galinhas lá de casa estão agora no choco.

       As graças continuaram durante o jantar. O humorismo de Hope parecia provocado especialmente pela presença de Denny. Mas pouco a pouco a conversa descaiu para assuntos mais sérios. Denny contou algumas das suas aventuras  na América do Sul, metendo uma ou duas histórias de negros que fizeram Christine rir a bom rir. Hope explicou detalhadamente as mais recentes actividades da Junta. Whinney conseguira finalmente promover as investigações sobre fadiga muscular que haviam estado tanto tempo no campo das teorias.

       - É o que estou a fazer agora - disse Hope, com melancolia. - Mas, graças a Deus, só me faltam nove meses para acabar o contrato. Nessa altura, farei alguma coisa que jeito tenha. Estou farto de trabalhar por conta alheia, com os velhos a moerem-me a paciência e modificando a voz numa agitação cómica: «Dr. Hope, que quantidade de ácido carbolático encontrou desta vez?». Quero trabalhar por minha própria conta. Quem me dera ter um pequenino laboratório só para mim!

       Como esperava Christine, a conversa tornou-se nitidamente  científica. Terminado o jantar, que foi abundante, desmentindo assim as previsões pessimistas de Denny, e servido o café, Christine ficou à mesa, assistindo à discussão,  muito embora Hope a prevenisse de que a linguagem  não seria muito própria para uma senhora. Cotovelos fincados na mesa, mão no queixo, escutando em silêncio, esquecida de tudo, ela não tirava os olhos do rosto de Andrew.

       A princípio Manson mostrou-se seco e reservado. Embora  estivesse alegre por ver novamente Phillip, tinha a impressão de que o velho amigo não dava muita importância aos seus sucessos, mostrando-se muito mais irónico do que entusiasmado. Afinal de contas tinha vencido de facto. Não tinha? E Denny, que fizera? Quando Hope insistira  nas suas ironias, Andrew estivera a ponto de dizer aos dois, com toda a franqueza, que deixassem de brincar à sua custa.

       Todavia, agora que conversavam sobre assuntos profissionais,  Manson foi deixando-se conduzir inconscientemente por eles e num dado momento foi contagiado pela tagarelice dos companheiros e começou também a falar com a vivacidade dos velhos tempos.

       O assunto da discussão eram os hospitais. De repente Andrew exprimiu a sua opinião sobre todo o sistema hospitalar.

       - Querem saber o que penso a esse respeito? - Soprou uma abundante fumaça. Agora já não era um cigarro barato, mas um bom charuto, tirado de uma caixa que apresentara distraidamente aos outros, sob o olhar sardónico  de Denny. - Para mim, todo o sistema é anacrónico. Compreendam: não quero de forma alguma que pensem que estou menosprezando o meu próprio hospital. Gosto muito do Vitória e posso afirmar-lhes que lá trabalha-se de verdade. Mas o sistema é que não serve. Apenas o povo inglês, com a sua apatia, o pode tolerar. É o que acontece com as estradas do nosso país: o mesmo atraso, a mesma desorganização, o mesmo desmazelo. O Vitória é uma ruína. O S. João também. Muitos hospitais de Londres, talvez mais de metade, estão nas mesmas condições. E que fazemos nós para obviar a esse mal? Pedimos esmola. Afixamos cartazes nas fachadas dos hospitais. Pedimos auxílio como se anunciam produtos. «O Vitória está a cair!». «Comprem a Cerveja Brown, é a melhor!». Isto não tem graça? No Vitória, se a sorte nos ajudar, poderemos dentro de dez anos começar a construção de uma nova ala ou uma dependência para moradia das enfermeiras! Mas para que remendar uma velha carcaça? Que interessa um hospital para doentes pulmonares no centro de uma cidade barulhenta e húmida como Londres? Que diabo! É como se a gente levasse um doente com uma pneumonia para o fundo de uma mina de carvão. E em muitos outros hospitais e casas de saúde sucede o mesmo. Estão instalados nas ruas mais movimentadas e barulhentas,  e até as camas tremem quando os camiões passam na rua. Mesmo que eu fosse com muita saúde para um desses hospitais, teria de tomar todas as noites um bom calmante para poder dormir. Imaginem os doentes, no meio dessa barulheira com uma grave infecção intestinal ou com uma febre alta provocada pela meningite! Qual é o remédio para isso?

       Phillip franziu a testa perante essa inesperada irritação.

       - Uma junta hospitalar, contigo como presidente?

       - Não sejas idiota, Denny - respondeu Andrew, impaciente. - O remédio é a descentralização. Não, isto não é uma frase feita; é o resultado do que observei desde que estou em Londres. Porque não poderiam os grandes hospitais  ficar numa zona um pouco afastada, onde não houvesse barulho nem fumos de fábricas? Digamos, a umas quinze milhas da cidade. Talvez um lugar como Benham, por exemplo. Fica distanciado apenas a umas dez milhas, mas é como se fosse em pleno campo, arborizado, ar puro, sossego. E não julguem que seriam grandes as dificuldades de transporte. O metropolitano poderia fazer a viagem até Benham em menos de vinte minutos. E podia mesmo haver comboios privativos para o serviço do hospital. Quando penso que as nossas ambulâncias mais velozes gastam quarenta minutos pouco mais ou menos para transportar  um doente de urgência, considero isso um progresso. Pode alegar-se que, transferindo os hospitais, a cidade ficaria sem serviços médicos. É uma tolice. Os dispensários podem ficar nos centros e nos bairros, longe dos hospitais. Já que tratamos do assunto, é preciso lembrar que essa laracha de zonas de serviço médico é uma verdadeira barafunda. Quando cheguei aqui verifiquei imediatamente que o único lugar para onde podia mandar os meus doentes da parte oeste de Londres era o hospital da parte leste. E voltando ao Vitória, temos ali doentes de todos os bairros. Não se procura circunscrever as zonas hospitalares. Toda a gente se dirige para os hospitais do centro da cidade. Para falar com franqueza, camaradas, a confusão  é às vezes inacreditável. E que se faz? Nada, absolutamente  nada. Continuamos no velho sistema, passeando pelas ruas as caixas das esmolas, organizando bandos precatórios, fazendo apelos, deixando os estudantes arrecadarem  moedas nas festas de beneficência. Nos países novos da Europa, sim, parece que se faz alguma coisa, Juro por tudo: se pudesse arrasaria o Vitória e construiria um novo hospital para tuberculosos em Benham, com uma boa linha de comunicações para a cidade. E garanto-lhes! A média de curas subiria espantosamente!

       Isso serviu apenas de introdução. A discussão ampliou-se.

       Philip trouxe à colação o seu velho ponto de vista: a estupidez de pedir a um médico de clínica geral que trate de todas as doenças, a insânia de exigir que ele tome a responsabilidade de todos os casos, até o momento delicioso em que um especialista, a quem nunca se viu mais gordo, é chamado para declarar, pelo preço de cinco guinéus, que é demasiadamente tarde para se fazer alguma coisa.

       Sem reservas nem eufemismos, Hope expôs o exemplo de um jovem bacteriologista batido entre o comercialismo e a rotina. De um lado, os laboratórios que lhe querem pagar um ordenado para fazer especialidade, de outro lado uma junta de velhos caducos e cómicos.

       - Suponham vocês - esganiçou-se Hope - os irmãos Marx dentro de uma dona-elvira escangalhada, com quatro volantes independentes e uma quantidade enorme de buzinas. Pois assim é a Junta de Mineiros e Metalúrgicos.

       A conversa seguiu até depois da meia-noite, e nesse  momento tiveram a agradável surpresa de encontrar a mesa posta com café e sanduíches.

       - Quanto incómodo por nossa causa, Sr.a Manson - protestou Hope, com uma cortesia que confirmava a definição  de Denny a seu respeito: - «Um rapazinho de bons sentimentos».  Como deve ter ficado aborrecida com a nossa conversa! E tem graça como uma discussão faz fome! Vou sugerir a Whinney um novo plano de investigações: o efeito do falatório sobre as secreções gástricas. Upa! Isso é uma asneira chapada!

       Hope despediu-se entre afirmações veementes de que passara uma noite agradabilíssima; Denny ainda se demorou mais um bocado, valendo-se do privilégio de uma amizade mais antiga, e quando Andrew foi ao telefone para chamar um táxi, Phillip apresentou a Christine, meio acanhado, um lindo xale espanhol.

       - O professor provavelmente mata-me com ciúmes - disse - mas isto é um presente para si. Não lho mostre antes que eu volte as costas. - Não permitiu que ela proferisse  uma palavra de agradecimento, pois era a coisa que mais o embaraçava. - É curioso: todos esses xales espanhóis  vêm da China. Comprei este em Xangai.

       Calaram-se um momento. Ouviram os passos de Andrew,  que voltava do telefone. Denny levantou-se. Os seus olhos amigos evitaram os dela.

       - Eu não queria perturbá-lo, o senhor sabe. - Sorriu. - Mas devemos fazer um esforço. Temos realmente de o fazer voltar ao que era em Blaenelly.

 

       No começo das férias da Páscoa, Andrew recebeu um bilhete da Sr.a Thornton pedindo-lhe que fosse ao Brown Hotel para ver a filha. Dizia-lhe em poucas palavras que o pé de Sybil não tinha melhorado, e, como apreciara o interesse que ele havia tomado pelo caso no almoço da Sr.a Lawrence, estava ansiosa por ouvir a sua opinião.

       Lisonjeado por essa homenagem à sua pessoa, Andrew acudiu imediatamente.

       Como verificou pelo exame, o caso era perfeitamente simples. Todavia era conveniente fazer-se uma operação preventiva. Manson empertigou-se, sorrindo para a robusta e sadia Sybil, que estava nesse momento sentada na cama, a calçar a meia. E declarou à Sr.a Thornton:

       - O osso engrossou. Pode resultar daí um joanete se não for tratado a tempo. A minha opinião é que se faça a operação quanto antes.

       - Foi isso mesmo que disse o médico do colégio. - A Sr.a Thornton não se mostrou surpreendida. Estamos preparadas  para isso. Sybil pode ir para uma casa de saúde. Mas... Está bem, tenho confiança no doutor. É preciso que o doutor tome as providências.  Que operador recomenda?

       A pergunta deixou Andrew atrapalhado. Como o seu trabalho era quase exclusivamente clínico, conhecia muitos  médicos eminentes, mas nenhum cirurgião de Londres.

       De repente lembrou-se de Ivory. E disse num tom amável:

       - O Dr. Ivory poderá fazer isso muito bem... se estiver disponível.

       A Sr.a Thornton já ouvira falar no Dr. Ivory. É claro! Não era o cirurgião a que se tinham referido os jornais no mês anterior, por ter ido de avião ao Cairo por causa de um caso de insolação? Um nome conhecidíssimo! A Sr.a Thornton achou admirável a ideia de entregar o caso da filha a uma pessoa notável. Só uma exigência apresentou: Sybil devia ir para a casa de saúde da Sr.a Sherrigton. Tantas pessoas amigas tinham ido para lá que não podia admitir outra.

       Andrew voltou para casa e telefonou a Ivory com a hesitação de um homem que está tentando uma aproximação  preliminar. Mas logo o tranquilizou o modo de Ivory tão amável, tão confiante e encantador! Combinaram ver a menina, juntos, no dia seguinte, e Ivory garantiu que, embora a casa de Ida estivesse repleta, havia de conseguir um quarto para a menina Thornton, caso fosse necessário.

       Na manhã seguinte Ivory declarou perante a Sr.a Thornton,  com toda a ênfase, que estava inteiramente de acordo com a opinião de Andrew, acrescentando ser imprescindível  a operação imediata. Sybil foi levada para a casa da Sr.a Sherrington. Dois dias mais tarde, depois de dar tempo à menina para se aclimatar, fez-se a operação.

       Andrew serviu de assistente para atender às instâncias gentis e amistosas de Ivory.

       A operação não era difícil. Não resta dúvida de que em Blaeneily o próprio Andrew poderia tê-la efectuado.

       Embora parecesse não ter pressa, Ivory efectuou-a com impressionante competência. Lembrava uma imagem de força e de frieza dentro do seu comprido avental branco, de onde emergia a face firme, maciça, de mandíbulas salientes.

        Ninguém encarnava melhor do que Charles Ivory a ideia popular do grande operador. Tinha as mãos delicadas  e macias que o convencionalismo romântico atribui sempre ao herói da sala de cirurgia e na sua bela aparência e perfeita segurança produzia uma impressão dramática.

       Andrew, que também estava de avental, observava-o do outro lado da mesa com um respeito natural.

       Uns quinze dias depois, quando Sybil Thornton deixou a casa de saúde, Ivory convidou-o para um almoço no Sackville Club. Repasto muito agradável. Ivory era um admirável conversador de palavra fluente e interessante, com uma colecção de anedotas sociais recentes que de certo modo colocava o companheiro no mesmo pé de intimidade  com o mundanismo, como se fosse também um frequentador de salões. A sala de jantar do Sackville, com o tecto decorado e os grandes lustres de cristal, estava cheia de pessoas famosas, que Ivory classificava de «interessantes».

        Andrew sentia-se lisonjeado e não havia dúvida de que Ivory não pretendia outra coisa.

       - O senhor deve permitir que eu apresente a sua proposta  para sócio na primeira reunião do clube - disse o operador. - Encontrará ali um grupo de bons amigos Freddie, Paul e eu somos sócios. É verdade, o Jackie Lawrence também. Casal insinuante, os Lawrence. O marido  e a mulher são óptimos amigos e cada qual trata da sua vida! Sinceramente gostaria de o propor para sócio. Com franqueza, amigo, estava com a impressão de que o senhor não tinha grande simpatia por mim. A velha desconfiança  escocesa, hem? Como sabe, eu não trabalho em hospitais. Prefiro ser franco-atirador. Além disso, meu caro colega, eu vivo tão ocupado! Alguns desses medalhões dos hospitais passam um mês inteiro sem uma operação particular  e eu faço a média de dez por semana! E a propósito, vamos ter notícias dos Thorntons muito em breve. Deixe o caso por minha conta. São clientes de primeira ordem. E, já que tocámos no assunto, não acha que se devia pensar nas amígdalas da Sybil? Já olhou para elas?

       - Não! Ainda não reparei.

       - Oh! Deve olhar, meu velho. Muito crescidas. Um foco de infecção. Tomei a liberdade de lhe dizer que devemos arrancá-las quando chegar o Verão! Espero que não leve a mal...

       Voltando para casa, Andrew não pôde deixar de considerar  com simpatia o companheiro encantador em que Ivory se transformara. Já se sentia mesmo grato a Hamson por tê-lo apresentado. O caso correra esplendidamente. Os Thorntons estavam bem impressionados. E certamente não podia haver melhor critério.

       Três semanas depois, quando tomava chá na companhia de Christine, recebeu uma carta de Ivory.

       «Meu caro Hanson:

       A Sr.a Thornton acaba de «explicar-se» lindamente.

       Como enviei agora ao anestesista a parte que lhe competia, aproveito também mandar a sua por me ter assistido tão eficientemente na operação.

       Sybil irá vê-lo em breve. Não se esqueça das amígdalas, de que já falei. A Sr.a Thornton está encantada.

                                               Cordialmente C. I.»

       Dentro da carta um cheque de vinte guinéus.

       Andrew olhou espantado para o cheque. Nenhuma assistência  prestara a Ivory durante a operação. Mas, pouco a pouco, a sensação grata que o dinheiro agora lhe ocasionava  foi invadindo o seu coração. com um sorriso complacente,  passou a carta e o cheque a Christine.

       - Tipo correcto, esse Ivory, não achas, Chris?! Estava capaz de apostar que este mês vamos bater um record.

       - Mas não compreendo... - Christine estava surpreendida. -Isso é o pagamento da conta da Sr.a Thornton?

       - Não, tolinha... - deu uma risadinha. É um extraordináriozinho... Apenas pelo tempo que gastei assistindo à operação.

       - Queres dizer com isso que o Dr. Ivory te dá parte dos seus honorários?

       Andrew corou de repente. E irritado:

       - Ora, valha-me Deus! Não é disso que se trata. Isso é absolutamente proibido. Nem devemos falar numa coisa dessas. Não compreendes que eu ganhei esse dinheiro pelo trabalho de assistir à operação, por estar presente, assim como o anestesista ganhou o dele por ministrar o anestésico? Ivory incluiu tudo isso na conta. Creio que deve ter sido uma conta salgadíssima.

       Christine abandonou o cheque em cima da mesa, vencida,  infeliz.

       - Parece muito dinheiro.

       - Ora essa! E porque não? - Andrew encerrou a questão  num rompante indignado. - Os Thorntons são fabulosamente  ricos. Isso custa-lhes tanto como os três xelins e meio a um dos nossos clientes pobres.

       Depois de ele sair, Christine continuou com os olhos fitos no cheque, seriamente apreensiva. Não sabia até então que Andrew tinha ligações e interesses profissionais com Ivory e sentiu-se possuída de repente por toda a inquietação anterior. Aquela noite passada em companhia de Denny e Hope não dera o menor resultado. Como Andrew  estava agora louco por dinheiro, terrivelmente louco!

       O seu trabalho no hospital parecia não ter importância perante aquela febre de sucesso material. Mesmo no consultório  observava que Andrew ia receitando remédios e mais remédios, muitas vezes para pessoas que não tinham doença alguma. E ainda insistia com eles para que voltassem  à consulta, voltassem outra vez.

       Christine ficou sentada ali, diante do cheque de Charles Ivory. O rosto dela parecia diminuído, mais fino, pela expressão de profunda tristeza. Lágrimas inundaram-lhe os olhos. Tinha necessidade de falar a Andrew. Era preciso, indispensável.

       Logo naquela noite, depois do trabalho, aproximou-se dele timidamente.

       - Andrew queres proporcionar-me uma sensação agradável? Vamos dar um passeio de automóvel, pelo campo, no domingo?  Prometeste-me isso quando compraste o carro.

       Andrew fitou-a com admiração.

       - Não me lembro... mas está bem, combinado.

       O domingo amanheceu como ela esperava. Um lindo dia de Primavera. Pelas onze horas, Andrew estava despachado das visitas e seguiram então, de automóvel, levando  no banco traseiro uma toalha e um cesto de piquenique.

       Christine foi-se animando quando atravessaram a ponte de Hammetsith e tomaram a estrada de Kingston para Surrey. Não tardariam a passar por Dorking, virando à direita, na estrada para Shere. Havia tanto tempo que não saía da cidade que a doçura do campo, o verde alegre das paisagens, a púrpura dos olmos floridos, a poalha de ouro do sol espalhada nas árvores, o amarelo-pálido das primaveras que desabrochavam à beira do rio, impregnavam  a sensibilidade de Christine, enchendo-a de boa disposição.

       - Não vás tão depressa, querido - murmurava ela numa voz mais doce do que a das últimas semanas. - O campo está tão bonito!

       Mas Andrew parecia disposto a ultrapassar todos os carros.

       Chegaram a Shere por volta da uma da tarde. com as suas casinhas de tecto vermelho e o seu riacho a deslizar  mansamente entre as margens cobertas de agriões, a aldeia ainda não parecia perturbada pela avalanche dos turistas de Verão. Avançaram um pouco mais direitos a uma colina cheia de árvores. Pararam o carro num caminho  retirado. Ali, na pequenina clareira onde estenderam a toalha, havia uma solidão cheia de murmúrio que era só deles e dos passarinhos.

       Comeram sanduíches e beberam o café que haviam trazido num termo. À sua volta, entre as árvores, as primaveras  cresciam em profusão. Christine quis colhê-las, enterrar o rosto na sua frescura macia. Deitaram-se na relva, Andrew de olhos semicerrados, com a cabeça perto da dela. Uma tranquilidade paradisíaca foi descendo sobre a alma inquieta e sombria de Christine. Ah! Se a vida deles fosse sempre assim!...

       O olhar indolente de Andrew pousou por momentos no automóvel. De repente disse :

       - Este carrito no é mau, hem, Chris? Quero dizer, não é mau relativamente ao preço. Mas precisamos de adquirir um novo no Salão Automóvel.

       Christine estremeceu, novamente inquieta pela demonstração  que Manson acabava de fazer da sua preocupação constante de riqueza.

       - Mas comprámos este carro há tão pouco tempo! Parece-me muito bom para nós.

       - Ora! É uma «carroça». Não notaste como aquele Buick passou à nossa frente? Quero uma limousine de luxo, de grande velocidade.

       - Mas para quê?

       - Porque não? Estamos em condições de adquirir um carro assim. Estamos no caminho da fortuna, Chris!

       Andrew acendeu um cigarro  e voltou-se para ela, com visível satisfação. - Se ainda não estás inteirada do facto, minha querida professorinha de Blaenelly, convém que saibas: estamos a enriquecer a grande velocidade.

       Christine não correspondeu ao sorriso do marido. Sentiu  de repente um calafrio percorrer-lhe o corpo, que repousava  ao calor do sol. Começou a arrancar punhados de erva e a torcer nervosamente a ponta da toalha. Disse vagarosamente:

       - Querido, nós precisamos de facto de enriquecer? Eu, pelo menos, não preciso. Porque falar tanto em dinheiro? Quando quase nada tínhamos... Oh! como éramos felizes! Nunca falávamos de dinheiro. Mas agora não falas de outra coisa.

       Ele sorriu de novo superiormente:

       - Depois de patinharmos na lama tantos anos, comer salsichas e arenques em conserva, aguentar comissões idiotas  e atender operários em quartos imundos, eu proponho, para variar, uma melhoria no nível das nossas condições de vida. Tens alguma objecção a fazer?

       - Querido, não leves o caso para a brincadeira. Noutros  tempos não me falavas assim. Tu não vês, então tu não vês que estás sendo vítima do próprio sistema que outrora censuravas, do que odiavas tanto?! - A expressão dela era de causar pena, de agitada. - Não te lembras de que consideravas a vida como se fosse um assalto ao desconhecido,  uma investida para a altura?... Era como se quisesses conquistar uma cidadela que não vias mas que tinhas a certeza de que estava lá, no alto...

       Andrew murmurou, embaraçado:

       - Ora! Então era eu muito jovem... Um sonhador! Aquilo tudo era romantismo. Observa os outros. Todos fazem a mesma coisa procurando vencer, ganhar o máximo que podem. Não há outra coisa a fazer.

       Ela teve um suspiro trémulo. Sabia que devia falar naquele momento ou nunca mais.

       - Meu querido! Não é só isto que se pode fazer. Por favor, atende-me. Peço-te. Tenho sofrido tanto com isso... Com esta tua mudança! Denny também notou. Isto afasta-nos um do outro. Já não és o Andrew Manson com quem casei. Ah! Se ao menos quisesses voltar a ser o que eras!...

       - Mas, afinal, que fiz eu? - protestou ele, irritado. Eu dou-te pancada, eu embriago-me, eu já matei alguém? Cita um dos meus crimes!

       Desesperada, Christine replicou:

       - Não são coisas que se possam apontar. É toda a tua atitude, querido. Vê, por exemplo, aquele cheque que Ivory te mandou. É uma coisa sem grande importância aparentemente,  mas no fundo... No fundo, não é coisa limpa, decente, honesta.

       Ela percebeu que Andrew fora tocado ao vivo. Levantou-se,  ofendido, com o olhar incendiado.

       - Ora, valha-me Deus! Porque voltar a este assunto? Que mal pode haver em ter recebido o cheque?

       - Então, não vês? - Toda a emoção acumulada nos últimos meses dominou Christine, que não podia discutir, que se desfazia de repente em lágrimas. Gritou, no auge do nervosismo. - Por amor de Deus, querido, Não te tornes  venal!

       Andrew cerrou os dentes, furioso. Falou lentamente com energia causticante.

       - Aviso-te, pela última vez, de que deves abandonar esses histerismos, essas loucuras. Porque não me ajudas, em lugar de me aborrecer, de manhã à noite, com remoques?

       - Eu não procuro aborrecer-te com remoques - soluçava ela. - Queria apenas convencer-te. Mas não posso.

       - Pois então, não fales mais. - Andrew perdeu a calma e gritou de súbito. - Escuta o que te digo. Não fales. Isso deve ser algum complexo que de ti se apoderou. Falas-me como se eu fosse um charlatão indecente. Eu quero apenas avançar. E se quero ganhar dinheiro é porque é o único meio de vencer na vida. Julga-se uma pessoa pelo que tem de seu. Quem nada tem é mandado, montam-no. Pois bem: já suportei isso demasiado tempo. Para o futuro quero ser dos que mandam. Deves compreender-me. E nunca mais me fales nessas tolices irritantes.

       - Está bem, está bem - Christine chorava ainda. - Não falarei mais. Mas ficas avisado... Um dia arrependes-te.

       O passeio estava estragado para ambos e principalmente para ela. Embora enxugasse os olhos e colhesse um grande ramo de primaveras, embora estivesse ainda uma hora inteira deitada na relva, em pleno sol; embora tivesse parado na volta em Lavender Lady para tomar chá, embora conversasse  com o marido com aparente amizade sobre assuntos  banais, a verdade era que todo o encanto do dia desaparecera.

       Quando voltaram para casa, no fim da tarde, o rosto de Christine estava pálido e sem expressão.

       A ira de Andrew foi pouco a pouco transformando-se em indignação. Porque era Christine a única pessoa contra ele? Outras mulheres... e mulheres encantadoras... estavam  entusiasmadas com o seu rápido triunfo.

       Alguns dias mais tarde, Frances Lawrence telefonou-lhe. Tinha andado pelo estrangeiro. Passara o Inverno na Jamaica, de onde escrevera algumas cartas a Andrew. Agora estava de volta, ansiosa por ver os amigos, irradiando a luz do sol que absorvera na pele. Frances disse que precisava de o ver antes de perder o tom moreno do ar da praia.

       Andrew foi tomar chá com ela. Como dissera, Frances estava deliciosamente queimada pelo sol, o magro rosto tão bronzeado como o de um fauno. O prazer de vê-la de novo era extraordinariamente aumentado pela expressão dos olhos de Frances, esses olhos tão indiferentes para muitas pessoas e irradiando tanta luz para ele, como para um velho amigo. Sim, falaram como velhos amigos.

       Ela contou-lhe a viagem, os jardins de coral, os peixes que se viam por baixo das canoas de fundo de vidro, a beleza e a doçura do clima. Em troca, Andrew confidenciou-lhe os seus últimos triunfos. Talvez um pouco das suas preocupações  íntimas tivesse transparecido nas suas palavras, pois Frances comentou graciosamente:

       - O senhor está solene de mais. E tão prosaico que até perde a graça. É o que lhe acontece quando não estou aqui. Não! Com franqueza, tenho a impressão de que o senhor trabalha de mais. Precisa de manter todo esse serviço de clientela barata? Se eu fosse a si, pensava já ser tempo de montar um consultório numa zona elegante da cidade. Wimpole Street ou Welbeck, por exemplo. É aí que o senhor deve exercer clínica.

       Nesse momento entrou o marido de Frances, alto, ar de boa vida, cerimonioso. Cumprimentou Andrew  a quem conhecia agora muito bem, pois jogara bridge com ele uma ou duas vezes no Sackville Club  e aceitou de bom humor uma chávena de chá.

       Embora declarasse cordialmente que não queria de forma  alguma perturbá-los, a entrada de Lawrence interrompeu o lado sério da conversa. Começaram a discutir, com divertida animação as últimas invenções de Rumbold-Blane.

       Mas meia hora depois, quando Andrew voltava para casa, a sugestão da Sr.a Lawrence ocupava-lhe o cérebro.

       Sim, porque não montaria um consultório na Welbeck Street? Já era tempo para isso. De nenhum modo queria abandonar a clientela de Paddington. O dispensário era rendoso de mais para pensar em largá-lo sem mais nem menos. Mas podia facilmente combinar as horas com as de um consultório na zona aristocrática. Teria assim um endereço mais pomposo para a correspondência, um cabeçalho de maior efeito para o papel de receitas, para as contas.

       A ideia expandia-se dentro dele, estimulava-o para uma conquista maior. Que boa amiga era Frances! Tão útil como a Sr.a Everett e muito mais encantadora, muito mais atraente! E ainda por cima ele estava em óptimas relações com o marido. Podia fitá-lo calmamente. Não precisava de sair sorrateiramente daquela casa como se fosse um cãozito ordinário de alcova. Ah! a amizade era uma grande coisa!

       Sem tocar no assunto a Christine, começou a procurar um consultório conveniente no West End. Um mês depois quando o encontrou, teve a grande satisfação de declarar numa indiferença estudada, quando lia os jornais da manhã:

        A propósito... Talvez te interesse saber... Montei consultório  na Welbeck Street. É para a minha clientela mais distinta.

 

       A sala do 57 da Welbeck Street deu a Andrew uma nova sensação de triunfo. «Estou aqui», exultava no íntimo, «estou aqui finalmente!».

       Embora não fosse ampla, a sala era clara e ventilada, com uma pequena janela. Ficava no andar térreo, o que era uma vantagem evidente, pois muitos clientes não gostavam de subir escadas. Além disso, embora a sala de espera fosse comum a outros médicos, o gabinete era só dele.

       No dia 19 de Abril, ao receber as chaves, Andrew foi acompanhado de Hamson quando foi tomar posse da sala. Freddie mostrara-se utilíssimo em todas as circunstâncias  preliminares e arranjara para ele uma enfermeira competente, amiga da que empregava na Queen Anne Street. A enfermeira Sharp nada tinha de bonita. Era de meia-idade, com ar de pessoa capaz, porém carrancuda, um tanto ríspida. Freddie justificou a escolha de modo conciso:

       - Nada pior do que uma enfermeira bonita. Sabes o que eu quero dizer, meu velho. Brincadeira é brincadeira. Mas negócio é negócio. Não se podem combinar as duas coisas. Nenhum de nós está aqui para se divertir. E um sujeito duro de cabeça como tu sabe disso muito bem. A propósito, creio que vamos ficar cada vez mais íntimos agora que estamos perto um do outro.

       Quando Freddie e Andrew discutiam o arranjo da sala, apareceu inesperadamente a Sr.a Lawrence. Ia passando e entrara, alegremente, para ver se o consultório era bom.

       Frances tinha um ar encantador, de saia e casaco pretos e uma pele cara à volta do pescoço. Demorou pouco, mas deu ideias e sugestões para a decoração e para as cortinas da janela, para que tudo ficasse mais elegante do que segundo as ideias sem gosto de Freddie e Andrew.

       Perdida a sua esfuziante presença, a sala pareceu subitamente  vazia. Freddie desabafou:

       - Nunca vi um tipo de tanta sorte como tu! Ela é um encanto. - E numa expressão de inveja: - Faz lembrar  as palavras de Gladstone, em 1890, a respeito do meio mais eficiente de fazer avançar um homem na sua carreira.

       - Não sei o que queres dizer.

       Mas quando a instalação ficou pronta, Andrew teve de concordar com Freddie e também com Frances, que viera ver a materialização das suas ideias. A sala dava exactamente a impressão que se idealizara: elegante, mas com aspecto perfeitamente profissional. Em tal ambiente, a tabela de três guinéus por consulta parecia justa e razoável.

       A princípio não teve grande assistência mas à força de escrever cartas amáveis a todos os médicos que lhe enviavam doentes ao hospital - cartas em que dava informações sobre esses doentes e sintomas da doença foi estendendo uma rede de conhecimentos por toda a cidade e não demoraram a aparecer os primeiros clientes particulares. Andrew era agora um médico muito atarefado.

       A sua nova limousine corria de casa para o hospital, do hospital para o consultório da Welbeck Street. E havia ainda uma lista compacta de chamadas a atender, além do serviço no velho dispensário, onde muitas vezes tinha de ficar até depois das dez da noite.

       O sucesso era como um fortificante correndo pelas suas artérias como um precioso estimulante de energias. Ainda tinha tempo para ir ao Rogers e encomendar três fatos novos, assim como para ir ao camiseiro de Jermyn Street, recomendado por Hamson. A reputação no hospital aumentava.

       É verdade que tinha menos tempo para se dedicar aos doentes, mas dizia para si mesmo que o pouco que lhes dedicava era compensado pela competência. Mesmo com os amigos se acostumou a falar com o tom brusco de homem ocupado. E dizia com um sorriso insinuante: «Tenho de me retirar, meu velho. Já estou atrasado».

       Numa tarde de sexta-feira, umas cinco semanas depois de aberto o consultório, foi procurá-lo uma senhora idosa, doente da garganta. Tratava-se de uma simples laringite, mas a mulher era nervosa e estava ansiosa por conhecer a opinião de outro médico. Um tanto magoado, Andrew pensou para quem a devia de mandar. Era ridículo imaginar  que fosse roubar tempo a um homem como Robert Abbey. De repente, a fisionomia de Andrew alegrou-se.

       Lembrara-se de Hamson, ali muito perto. Freddie tinha sido gentilíssimo nos últimos tempos. Era justo que lhe fizesse ganhar aqueles três guinéus, em vez de mandar a senhora para um desconhecido qualquer. E Andrew enviou-a  a Freddie, com um bilhete.

       Três quartos de hora mais tarde, a doente estava de volta, muito mais bem disposta, amável, desfazendo-se em desculpas, satisfeita consigo mesma, com Freddie e principalmente com Andrew.

       - Desculpe-me incomodá-lo, doutor. Só lhe quero agradecer  os seus cuidados. Falei com o Dr. Hamson e ele confirmou tudo o que o doutor disse, e ele... ele garantiu-me que o remédio que o doutor me deu era o que há de melhor.

       Em Junho foram cortadas as amígdalas de Sybil Thornton.

        Estavam um pouco inflamadas e um articulista do Medical Journal havia admitido que a absorção das toxinas pelas amígdalas se relacionava com a etiologia do reumatismo.

       Ivory fez a operação de modo tão lento que até se tornou  aborrecido.

       - Prefiro trabalhar devagar nesses tecidos linfáticos - explicou a Andrew, quando lavaram as mãos. - Conheço operadores que arrancam amígdalas apressadamente. Mas eu não opero dessa maneira.

       Quando Andrew recebeu, pelo correio, mais um cheque de Ivory, Freddie estava junto dele. Trocavam agora frequentes  visitas nos consultórios. Hamson retribuiu prontamente  a gentileza, enviando a Andrew uma boa gastrite em troca da laringite que recebera. E daí para o futuro, alguns clientes fizeram a viagem, com bilhetes de recomendação,  entre os dois consultórios.

       - Ouve, Manson - observou Freddie. - Fiquei satisfeito porque acabaste com aquela tua atitude de querer endireitar o mundo. Mas mesmo assim - mirou o cheque, por cima do ombro de Andrew - ainda não estás a tirar todo o sumo da laranja, meu velho. Façamos um acordo, compincha, e acharemos a fruta muito mais suculenta.

       Andrew soltou uma gargalhada.

       À noite, ao voltar para casa, sentia-se com um bom humor extraordinário. Verificando que não tinha cigarros, parou o carro em frente de uma tabacaria de Oxford Street. Ao entrar, viu de repente uma mulher parada junto da montra. Era Blodwen Page.

       Reconheceu-a imediatamente. Mas como estava mudada! Nem parecia a patroa autoritária de Bryngover. Emagrecera  e emanava dela cansaço e abatimento. Quando Manson a cumprimentou, fitou-o com olhar apático, mortiço.

       - Não é a Sr.a Page? - disse ele, aproximando-se. - Perdão,  naturalmente  devo  chamá-la  agora  Sr.a  Rees. Não se lembra de mim? Sou o Dr. Manson.

       Ela examinou-o, notou o seu aspecto elegante e próspero. Suspirou.

       - Lembro-me perfeitamente, doutor. Desejo que passe bem. - E então, como se receasse demorar-se, dirigiu o olhar para um homem comprido e calvo que a esperava impacientemente um pouco adiante. E disse, com ar preocupado: - Tenho de ir, doutor. Meu marido está à espera.

       Andrew notou a pressa dela em ir-se embora, viu os lábios finos de Rees prepararem-se para resmungar: «Que história é essa? Estou à espera!». Blodwen baixava a cabeça, submissa. Por um momento, Andrew sentiu dirigido inexpressivamente para o seu lado o frio olhar do gerente de banco. Depois, o par foi andando e perdeu-se na multidão.

       A cena não saía da cabeça de Andrew. Quando chegou a casa encontrou Christine na sala da frente a tricotar. Numa bandeja, o chá que ela mandara servir assim que ouvira na rua o ruído do carro. Andrew olhou para ela com vivacidade, como a adivinhar a sua disposição. Queria contar-lhe o encontro e sentiu de repente o desejo de terminar com a atmosfera de constrangimento. Entretanto, mal aceitara uma xícara de chá, Christine falou antes dele, apressadamente:

       - A Sr.a Lawrence telefonou hoje de tarde novamente. Não deixou recado.

       - Ah! - Andrew corou. - Que queres dizer com esse... novamente?

       - É a quarta vez que ela telefona nesta semana.

       - E que tem isso?

       - Nada. Não estou a fazer comentários.

       - Mas é como se os fizesses... Não posso impedir que ela me telefone.

       Christine ficou calada, os olhos fixos no seu trabalho.

       Se ele soubesse o tumulto que havia dentro daquele silêncio não teria dado ocasião à cena que se seguiu.

       - Pelo que me parece acabarás imaginando que eu sou um bígamo. Ela é uma mulher decentíssima. E o marido, um dos meus melhores amigos. É uma gente encantadora, pelo menos têm a vantagem de ser uma gente alegre que não anda a espiar pelos cantos com lamúrias tolas e mórbidas. Que diabo!

       Engoliu o resto do chá e levantou-se. Todavia, mal saiu da sala, ficou arrependido. Entrou no consultório, acendeu um cigarro e pôs-se a pensar desalentadamente que as coisas iam de mal a pior entre ele e Christine.

       A desinteligência em aumento deprimia-o, irritava-o. Era uma nuvem escura no claro céu do seu sucesso.

       Christine e ele haviam conhecido uma felicidade perfeita na vida conjugal. O inesperado encontro com a Sr.a Page acordara no espírito de Andrew as doces recordações do seu namoro em Blaenelly. Decerto, agora não dedicava a Chris a mesma adoração de outrora, mas... que diabo! Tinha-lhe amor! Talvez a tivesse magoado uma ou duas vezes nos últimos tempos. Ao chegar a esse convencimento sentiu o súbito desejo de entender-se com ela, de agradar-lhe, de a acariciar. Pensou muito. De repente, a fisionomia iluminou-se. Olhou para o relógio e verificou que a Casa Laurier ainda devia estar aberta.

       Meteu-se imediatamente no automóvel e foi ver a menina Cramb.

       A menina Cramb, a quem explicou o seu desejo, pôs-se logo ao seu dispor com o maior entusiasmo. Tiveram uma, troca de impressões e depois dirigiram-se para a secção de peles, onde alguns modelos foram apresentados ao Dr. Manson. A menina Cramb acariciava-os com os dedos competentes, salientando o brilho, a qualidade, tudo o que podia apreciar-se numa pele cara. Por mais de uma vez discordou delicadamente da opinião de Andrew, indicando com honestidade o que era bom e o que não era.

       Por fim ele fez uma escolha que teve a sua aprovação cordial. Depois foi à procura do Sr. Winch. Voltou imediatamente para declarar com alegria.

       - O Sr. Winch diz que ao doutor fará um preço especial. -  Naquela casa não se empregava em qualquer circunstância a palavra «abatimento». - São cinquenta e cinco  libras, doutor. E eu garanto-lhe que a compra não pode ser melhor. As peles são lindas. Sua mulher terá orgulho em usá-las.

       No sábado seguinte, às onze horas, Andrew levou a caixa verde-escuro, com a prestigiosa marca Laurier artisticamente  impressa na tampa e entrou em casa.

       - Christine! - chamou. - Chega aqui num instante!

       Ela estava em cima, ajudando Emily a arrumar os quartos, mas desceu logo, um pouco alvoroçada e surpresa pelo  tom com que o marido a chamara.  

       - Olha, querida! - Agora que chegava o momento decisivo, Andrew sentia-se num grande embaraço. - Comprei isto para ti. Eu sei... sei que ultimamente temos andado de candeias às avessas. Mas, quero mostrar-te...

       Não terminou  a frase. E, com acanhamento de colegial, entregou-lhe  a caixa. Christine estava muito pálida. As mãos tremiam-lhe ao desatar a fita. E então soltou um gritinho de alvoroço:

       - Mas que peles tão bonitas! Como são bonitas!

       Na caixa, envolto em papel de seda, havia um par de raposas prateadas; duas peles finíssimas ligadas elegantemente  numa só. Andrew tirou-as apressadamente, alisou-as como havia feito a menina Cramb. A sua voz estava animada agora.

       - Gostas das peles, Chris? Põe-nas ao pescoço, para ver o efeito. A boa Half-Back ajudou-me a escolhê-las. São de primeira qualidade. Não pode comprar-se coisa melhor. E de luxo, também. Vê como brilham... E repara no tom prateado do lombo. Era isto mesmo que querias?

       Corriam lágrimas nos olhos dela. Voltou-se, atónita, para Andrew.

       - Gostas de mim, não gostas, querido? É só o que desejo  neste mundo.

       Acalmada afinal, experimentou as peles. Eram magníficas. Andrew não se cansava de as admirar. Quis completar a reconciliação. Sorriu.

       - Olha, Chris. Podemos celebrar o acontecimento enquanto  dura o entusiasmo. Vamos almoçar fora. Encontro-me à uma hora no grill do Plaza.

       - Sim, querido. - Ela ainda tentou objectar. - Mas eu fiz hoje para o almoço umas empadinhas... daquelas que gostas tanto.

       - Não, não! - Há muito tempo que o sorriso de Andrew  não era tão alegre. - Nada de ficar em casa. A uma hora. Encontrar-te-ás no Plaza com o cavalheiro elegante e formoso. Não é preciso combinar sinal. Ele reconhecer-te-á  pelas peles.

       Passou o resto da manhã satisfeitíssimo. Que idiota fora em não se lembrar de Christine! Não há mulher que não goste de receber carinhos, de sair, de se divertir.

       O grill do Plaza era o lugar mais indicado. Londres em peso, ou pelo menos a parte de Londres que interessa, podia ser vista ali, da uma às três.

       Fora do seu costume, Christine tardava em chegar.

       Ao esperá-la, no pequeno vestíbulo do grill, Andrew ia ficando um pouco inquieto ao ver pela vidraça que as melhores mesas já estavam a ser ocupadas. Pediu o segundo  aperitivo. Ela só apareceu à uma e vinte, esbaforida, atordoada pelo movimento, pela gente que entrava e saía, pela criadagem de libré e principalmente por ter gasto meia hora esperando o marido num local diferente do que tinha combinado.

       - Desculpa-me, querido - estava ofegante. - Nem calculas o que aconteceu. Esperei um tempo enorme. E só por fim compreendi que estava na entrada do restaurante e não na do grill.

       A mesa que puderam obter não era grande coisa. Ficava encostada a uma coluna. A sala estava muito cheia, com as mesas tão juntas umas das outras como se os clientes estivessem amarrados. Os criados moviam-se como contorcionistas de circo. O calor era tropical e o barulho tão grande como o de colegiais no recreio.

       - Vamos, Cris. Que escolhemos? - disse Andrew com ar superior.

       - Escolhe tu, querido - respondeu ela, acanhada.

       Andrew escolheu um almoço caro: caviar, sopa Príncipe de Gales, galinha, espargos, uma compota para sobremesa e uma garrafa de Liebfraumilch de 1929.

       - Não podíamos ter dessas coisas no nosso tempo de Blaenelly - disse ele a rir, disposto a mostrar-se bem humorado. - Nada há como passar-se bem.

       Ela procurou corresponder corajosamente às disposições de Andrew. Elogiou o caviar, fez um esforço heróico para engolir a sopa de luxo, fingiu-se interessada quando ele apontou Glen Roscoe, o astro da tela, Mavis York, uma americana famosa por já ter casado seis vezes, e outras personalidades igualmente célebres. Mas Intimamente repugnava-lhe  a elegante vulgaridade do ambiente. Os homens  eram efeminados, penteadíssimos, demasiadamente bem vestidos. A única mulher que podia ver da sua mesa era loura, vestida de preto, muito pintada, com um desembaraço um pouco atrevido.

       Daí a pouco Christine sentiu a cabeça tonta. Começou a perder o domínio de si mesma. As suas reacções eram sempre normais, mas ultimamente os seus nervos sofriam de forte tensão. Sentiu o contraste entre as suas peles de luxo e o seu modesto vestido. Teve a impressão de que as outras mulheres a observavam, percebeu que estava ali tão impropriamente como uma humilde margarida do campo numa cesta de orquídeas.

       - Que tens? - perguntou Andrew de repente. - não te sentes bem?

       - Sinto bem, sim, naturalmente - protestou ela, tentando sorrir. - Mas os lábios não obedeceram. O máximo que pôde fazer foi engolir, com repugnância, o pedaço de galinha excessivamente condimentado que tinha no prato.

       - Não ligas importância ao que eu digo - murmurou ele ressentido. - Não bebeste uma gota de vinho. Que diabo! Quando se leva uma mulher a almoçar fora...

       - Queres dar-me um pouco de água? - pediu Christine com uma voz que mal se ouvia. Sentia vontade de chorar.

       Aquele meio era-lhe estranho. O seu cabelo não estava penteado como devia, não pintara o rosto... Não era de admirar que os próprios criados estivessem a olhar para ela. Nervosamente, apanhou um espargo. Mas a ponta do espargo partiu-se e, escorrendo gordura, caiu sobre as peles de Christine.

       A loura platinada da mesa vizinha voltou-se para o companheiro com um sorriso trocista. Andrew notou aquele sorriso. Não tentou mais conversar. O almoço terminou num silêncio triste.

       Voltaram para casa ainda mais tristes. Logo depois ele saiu, sem mais expansões, para fazer as suas visitas. Ainda ficaram mais afastados do que anteriormente. Christine sofria profundamente. Começava a perder a confiança em si mesma, a perguntar-se se seria na verdade a mulher que convinha a Andrew.

       A noite, quando ele voltou, recebeu-o com um beijo e um abraço, agradecendo-lhe ainda o presente e o almoço.

       - Ainda bem que gostaste - disse ele secamente. E foi para o quarto.

 

       Um acontecimento veio distrair a atenção de Andrew dos seus aborrecimentos domésticos. A Tribune noticiava que Richard Stillman, o famoso higienista americano, chegara a Londres e se hospedara no Brooks Hotel.

       Noutros tempos Andrew teria corrido ao encontro de Christine, todo alvoroçado, com o jornal na mão. E teria dito: «Olha Chris! Sabes quem chegou a Londres. O Richard  Stillman. Lembras-te? Aquele americano com quem me correspondi durante tantos meses. Não sei se ele me quer ver. Mas, com franqueza, gostaria de me encontrar com ele.» Mas agora Andrew perdera o costume de correr para Christine. Em vez disso, leu pensativamente o jornal, satisfeito  de poder aproximar-se de Stillman, não como simples médico assistente, mas como clínico vitorioso que tinha consultório na Welbeck Street. Sentou-se à máquina e escreveu cuidadosamente uma carta ao americano, na qual recordava a antiga correspondência e o convidava para almoçarem juntos, quarta-feira, no grill do Plaza.

       Stillman telefonou-lhe na manhã seguinte. A sua voz era tranquila, cordial, mas decidida.

       - Gostaria de o encontrar, Dr. Manson. Aceito com prazer o seu convite para almoçarmos juntos. Mas noutro lugar. Já não suporto o Plaza. Porque não vem almoçar comigo aqui, no Hotel?

       Andrew encontrou-se com Stillman na saleta de espera do seu apartamento, no Brooks, um hotel confortável e distinto, mas cujo sossego era um contraste humilhante para o Plaza com a sua confusão barulhenta. O dia estava muito quente. Andrew tivera uma manhã ocupadíssima e logo que viu Stillman quase se arrependeu de o ter procurado.

        Era um homem de cinquenta anos, miúdo, com uma cabeça demasiadamente grande para o corpo e o rosto chupado. A pele era rosada como a de uma criança, o cabelo ralo e castanho, de risco ao meio. Só quando viu os olhos, de um azul firme e frio, é que Andrew percebeu, quase com um choque, a força de alma e de acção que se continha naquela figura aparentemente inexpressiva.

       - Espero que não tenha sido incómodo para si vir até aqui  disse - Richard Stillman, com a naturalidade de um homem disputado por muita gente. - Bem sei que, quase todos os americanos gostam do Plaza.  - Sorriu humanizando-se. - Mas, vai tanta gente ali!... - um momento de silêncio. - E agora, que estamos juntos, quero felicitá-lo cordialmente pelo seu esplêndido trabalho sobre inalação. Não se aborreceu com o que eu lhe disse sobre serecita? Que tem feito ultimamente?

       Desceram para o restaurante. O maitre d’hotel foi pessoalmente atender Stillman.

       - Que quer comer? Para mim sumo de laranja - disse Stillman sem olhar para a lista em francês. - E duas costeletas de carneiro com ervilhas. Depois, café.

       Andrew disse o que pretendia e voltou-se para o companheiro num respeito crescente. Era impossível estar muito tempo perante Stillman sem sentir a atracção dominante da sua personalidade. A sua carreira, que Andrew conhecia nas suas linhas gerais, era verdadeiramente singular.

       Richard Stillman provinha de uma velha família de Massachusetts que dera várias gerações de advogados ao foro de Boston. Mas apesar dessa tradição forense, Stillman revelou desde muito novo uma grande vocação para a medicina, e aos dezoito anos conseguiu finalmente a licença paterna para começar os estudos na Universidade de Harvard.

       Durante dois anos seguiu ali o curso médico. Mas, nessa altura, o pai morreu de repente, deixando a mãe e a irmã de Richard em situação precária. O avô paterno, o velho John Stillman, que ficou com a família a seu cargo, insistiu para que o neto trocasse a medicina pelo direito para seguir a tradição. O velho era inflexível e não houve argumentos que o convencessem.

       Richard viu-se forçado a tirar não o diploma de médico, que tanto ambicionava, mas o de bacharel em Direito, depois de alguns anos de um curso que fora para ele uma estopada. Afinal, em 1906, foi para o escritório dos Stillman e durante quatro anos dedicou-se a advocacia.

       Não era, no entanto, naquele trabalho que estava a sua alma. Continuava a fasciná-lo a bacteriologia, principalmente  a microbiologia  a sua paixão desde os primeiros  tempos de estudante. No sótão da casa montou um Pequenino laboratório, fez do seu auxiliar de escritório um assistente e em todas as horas vagas entregava-se à sua vocação. Aquele sótão, foi, na verdade, o começo do Instituto  Stillman. Richard não era amador. Pelo contrário, não só revelou extraordinária habilidade técnica como também  uma originalidade que tocava quase as raias do génio.

       E quando, no Inverno de 1908, morreu de tuberculose galopante sua irmã Mary, a quem queria do fundo do coração, todas as suas forças se concentraram na luta contra essa doença. Tomou como ponto de partida os trabalhos de Pierre Louis e do seu discípulo americano James Jackson.

       A obra de Laennec sobre auscultação levou-o ao estudo da fisiologia dos pulmões. Inventou um novo tipo de estetoscópio  e, mesmo com os elementos modestos de que podia dispor, deu início às primeiras tentativas para produzir  um soro.

       Quando o avô morreu, em 1910, Richard já havia conseguido curar a tuberculose em cobaias. Foi imediato o resultado desse duplo acontecimento. A mãe de Stillman vira sempre com simpatia a vocação científica do filho.

       Não lhe foi difícil desfazer-se do escritório de Boston e, com o que herdara do velho, comprar uma granja perto de Portland, no estado de Orégão, para se devotar ali ao verdadeiro sentido da sua vida.

       Já que perdera tantos anos, não se dignou trabalhar para obter o diploma de médico. Só tinha de ir para a frente, de obter resultados. Não demorou a produzir um soro extraído de cavalos e uma vacina bovina com a qual imunizou todo um rebanho de gado Jersey. Ao mesmo tempo ia aplicando ao tratamento dos pulmões atacados o método de imobilização, segundo as observações fundamentais  de Helmholtz e Williard Gibbs, de Yale, e de pesquisadores  mais recentes como Bisaillon e Zinks. Daí por diante lançou-se resolutamente na terapêutica.

       Os métodos de cura do novo Instituto deram logo fama a Stillman, conquistando maiores triunfos do que as suas vitórias de laboratório. Muitos dos seus doentes já haviam passado por uma série de sanatórios e eram considerados como casos incuráveis. Richard curou-os. E obteve com isso a hostilidade, o desprezo, a condenação da classe médica.

       Começou então para ele o combate maior e mais prolongado. Era a luta para que se aceitasse e se respeitasse o seu trabalho. Gastou tudo o que tinha na instalação do Instituto e defrontou as despesas pesadíssimas da sua manutenção. Tinha horror à publicidade e resistiu a todas as tentativas para comercializar a sua obra. Por vezes pareceu iminente o naufrágio, tal a soma das dificuldades materiais e das oposições violentas. Mas, com extraordinária  coragem, Stillman venceu todas as crises e até mesmo uma grande campanha de imprensa desencadeada contra ele.

       Passada a época da difamação, amainou também a tempestade  das controvérsias. Pouco a pouco, embora de má vontade, os adversários foram reconhecendo o seu valor. Em 1925, uma comissão de Washington visitou o Instituto e fez um relatório entusiástico dos métodos ali empregados.

        A consagração chegou finalmente. Afluíram grandes doações e auxílios de filantropos, de empresas e mesmo dos poderes públicos. Esses recursos destinou-os Stillman a desenvolver e aperfeiçoar o Instituto, que se tornou com a sua incomparável situação e o seu esplêndido apetrechamento,  com os seus rebanhos de gado Jersey e os seus cavalos de puro sangue irlandês fornecedores de soro, uma das maravilhas do estado de Orégão.

       É evidente que Stillman ainda conservava inimigos.

       Em 1929, por exemplo, as críticas de um assistente demitido suscitaram novo escândalo. Mas, apesar de tudo, conseguira  um ambiente de garantia e segurança para continuar  os seus trabalhos. O triunfo não lhe modificou a personalidade. Era ainda o mesmo homem tranquilo e sóbrio que vinte e cinco anos antes montara um pequenino laboratório nas águas-furtadas de sua casa.

       E agora, sentado no salão de jantar do Brooks Hotel, olhava para Andrew com serena simpatia.

       - É muito agradável - disse ele - estar na Inglaterra. Gosto do seu país. O nosso Verão, lá na América, não é tão fresco como o daqui.

       - Naturalmente veio fazer uma série de conferências, não é verdade? - perguntou Andrew.

       Stillman sorriu.

       - Não! Já não faço conferências. Sem falsa modéstia, posso dizer que os meus clientes, quando deixam o Instituto,  se encarregam de  fazer as conferências em meu lugar. Para lhe falar francamente, estou aqui por motivos particulares. O caso é este: o seu compatriota Sr. Cranston, o Herbert Cranston que fabrica esses automóveis magníficos,  procurou-me nos Estados Unidos há coisa de um ano. O homem levou a vida inteira a sofrer de asma e eu... isto é, o Instituto conseguiu curá-lo. Desde então ele tem insistido comigo para que eu monte aqui uma pequena clínica segundo o modelo do nosso sanatório de Portland. Dei o meu acordo há uns seis meses. Os planos já foram elaborados e a clínica já está quase pronta. Vamos chamá-la  «Bellevue». Fica lá para os lados de Chilterns, perto de High Wycombe. Vou inaugurá-la e entregarei depois a sua direcção a um dos meus assistentes, o Marland. Aqui para nós, considero o caso uma experiência, uma experiência  muito promissora dos meus métodos, do ponto de vista climático e racial. O aspecto financeiro não tem a menor importância.

       Andrew inclinou-se para a frente.

       - Isso interessa-me muito. De que se vai principalmente ocupar? Gostaria de visitar o estabelecimento.

       - Venha visitar-nos quando estiver pronto. Vamos empregar  ali o nosso sistema para a cura da asma. Cranston empenha-se nisso. Na clínica tratar-se-ão também, como insisti em especificar, alguns casos de tuberculose incipiente. Digo  alguns  porque - sorriu - bem sei que não passo de um homem que apenas conhece qualquer coisa do aparelho respiratório. Mas a verdade é que na América o que mais nos desorienta é a quantidade enorme de pessoas que quer ir para o sanatório... Que estava eu a dizer? ah, os casos de tuberculose incipiente... Uma coisa interessante para si: tenho um novo processo de pneumotórax. É de facto um processo científico.

       - Refere-se ao método Kmile-Well?

       - Não, não. Muito melhor. Sem as desvantagens das flutuações negativas. - A fisionomia de Stillman iluminou-se. - O senhor conhece a dificuldade que apresenta o aparelho fixo; aquele ponto em que a pressão intrapleural equilibra a pressão do fluido e o fluxo do gás cessa por completo. Pois bem, inventámos no Instituto uma câmara de pressão acessória, na qual podemos introduzir o gás numa pressão negativa determinada logo no começo. Mostrar-lhe-ei isso quando visitar a clínica.

       - Mas não há o risco da embolia? - perguntou Andrew depressa.

       - Afastámos completamente esse perigo. Só vendo! É uma coisa interessante e simples. Introduzindo um manometro de bromofórmio perto da agulha, evitamos a rarefacção. Uma flutuação de catorze centímetros só produz  um centímetro cúbico de gás na ponta da agulha. Além  disso, a nossa agulha tem um ajustamento quádruplo. É assim um pouco melhor do que a de Sangman.

       Mau grado seu, mesmo na posição de médico efectivo do Hospital Vitória, Andrew ficou impressionado.

       - Bem, se de facto é assim, o senhor elimina quase por completo o choque pleural. Com franqueza, Sr. Stillman, até me causa espanto que tudo isso se deva ao senhor. Desculpe-me, eu não me exprimi bem, mas compreende  naturalmente o que quero dizer. São tantos os médicos  diplomados que continuam a usar os aparelhos antigos...

       - Meu caro doutor - respondeu Stillman com um sorriso cordial - não se esqueça de que o primeiro homem que teve a ideia do pneumotórax foi Carson, um simples  amador de fisiologia, sem nenhum diploma.  Seguidamente entraram na discussão de aspectos técnicos. Discutiram apicólise e frenicotomia. Conversaram sobre os quatro pontos de Brauer, passaram ao oleotórax e aos estudos de Bernon em França  injecções maciças interpleurais no enfisema tuberculoso. A conversa parou quando Stillman viu as horas e notou, com uma exclamação,  que já estava com meia hora de atraso para um encontro marcado com Cranston.

       Andrew deixou o Brooks Hotel cheio de estímulo e de entusiasmo. Mas logo a seguir, numa estranha reacção, sentiu-se confuso, insatisfeito com o seu próprio trabalho «Ora, isto é impressão. Deixei-me levar por este sujeito», disse para si próprio, aborrecido.

       Não foi, portanto, em muito boa disposição de espírito que regressou a casa. Todavia, ao cruzar a porta, procurou fixar uma expressão que não revelasse o seu estado de ânimo. As suas relações com Christine exigiam agora essas precauções. Ela mostrava-se tão submissa e insignificante que, embora intimamente furioso, Andrew sentia a necessidade  de aparentar um estado de espírito idêntico.

       Parecia-lhe que ela entrara em si própria, vivendo uma vida interior onde ele não podia penetrar. Christine lia muito, escrevia muitas cartas. Por mais de uma vez deu com ela a brincar com Florie jogos infantis, cartões com cromos coloridos. Começou também a frequentar a igreja, discreta, mas regularmente, e isso, sobretudo, exasperava-o.

       Em Blaenelly ia todos os domingos à igreja, na companhia  da Sr.a Watkins e ele nunca encontrara motivo para protestar. Mas agora, de má vontade e afastado dela, considerava o caso como um ataque que ela lhe dirigia, como uma pirraça, com o fim de o fazer sofrer.

       Naquela tarde, quando ele entrou na sala da frente,  Christine estava ali sentada sozinha, com os cotovelos fincados na mesa, com os óculos que comprara recentemente, a ler um livro. Sentiu-se subitamente irritado pelo abandono a que ela aparentemente o votava. Olhando por cima dos seus ombros, conseguiu descobrir o título do livro, antes que Christine tentasse escondê-lo. E leu no alto da página: O Evangelho de S. Lucas.

       - Meu Deus! - ficou  perturbado, quase furioso. - Já chegaste a este ponto? Já andas metida com a Bíblia?

       - Que tem isso? Antes de te conhecer eu já lia a Bíblia.

       - Ah! Lias, não?

       - Lia, sim - uma expressão de sofrimento estampou-se nos olhos dela. - Naturalmente os teus amigos do Plaza não gostam disso. Mas, pelo menos, é uma boa literatura.

       - Pois olha! Se ainda não sabes é bom que te avise: Estás a ficar uma neurasténica insuportável.

       - Talvez, e o pior é que é esse o meu desejo. Mas deixa-me dizer-te. Antes ser uma neurasténica insuportável e continuar espiritualmente viva do que ser um insuportável médico da moda, espiritualmente morto!

       Ela parou de repente, mordendo os lábios, contendo as lágrimas. Foi com grande esforço que se dominou. Fitando Andrew firmemente, com olhos dolorosos, disse, afinal, numa voz apagada:

       - Andrew, não te parece que seria bom para nós que eu saísse uns tempos de casa? A Sr.a Vaughan escreveu-me pedindo-me que fosse passar com ela duas ou três semanas. Ela está a veranear em Newquay. Vês algum inconveniente nisso?

       - Sim! Vai! com os diabos! Vai!

       Voltou-lhe as costas e saiu.

 

       A partida de Christine para Newquay foi um alívio, uma verdadeira emancipação para Andrew. Isto durante três dias, pois que no quarto já andava, um tanto inquieto, a perguntar a si mesmo com uma réstia de ciúme: «Que estará ela a fazer agora? Sentirá saudades? Quando pensará  em voltar?»

       Embora tentasse convencer-se de que era um homem livre, sentia que lhe faltava alguma coisa, sensação igual à que tivera, em Aberalaw, quando Christine fora a Bridlington para que ele pudesse dedicar-se mais tranquilamente ao exame.

       Tinha diante dos olhos a imagem de Christine: não a imagem risonha e fresca da Christine dos primeiros tempos,  mas de uma Christine mais pálida, de feições mais amadurecidas, ar abatido, os olhos cansados por trás dos óculos. Não era uma imagem de beleza, mas tinha o poder de não lhe sair da cabeça.

       Passava muito tempo fora de casa, ia jogar bridge no clube com Ivory, Freddie e Preedman. Apesar da reacção que experimentara depois do primeiro encontro com StilIman,  via frequentemente o americano, agora muito activo, orientando os últimos retoques do pequeno sanatório. Escreveu  a Denny pedindo-lhe que fosse visitá-lo, mas Phillip não podia vir a Londres interrompendo o serviço que apenas começara. Hope era inacessível em Cambridge.

       Procurou concentrar o espírito perturbado nas suas pesquisas clínicas no hospital. Mas foi debalde. Estava demasiadamente inquieto. Possuído da mesma intensidade nervosa foi conferenciar com o gerente do banco, para saber como ia a sua conta. Muito satisfatória; tudo muito bem. Começou a formar um projecto. Passaria a casa em Chesborough Terrace, ficando apenas com o dispensário ao lado, e compraria uma nova em Welbeck Street. Teria de gastar muito dinheiro mas seria uma aplicação vantajosa. Poderia contar com o auxílio de uma empresa construtora. Naquelas noites de calor acordava de repente, a cabeça recheada de planos, preocupado com a clínica, os nervos em crise, sentindo a falta de Christine com a mão e procurando instintivamente a mesinha da cabeceira para encontrar um cigarro.

       Num dia de estado de espírito mais desorientado telefonou  a Frances Lawrence.

       - Estou sozinho actualmente. Gostaria de sair comigo uma noite destas, para um passeio fora da cidade? Londres está tão quente!...

       A voz dela era serena, de um estranho efeito sedativo para Andrew.

       - É uma esplêndida ideia. Esperava que me telefonasse um dia destes. Já foi a Crossways? É uma construção de sabor isabelino, um pouco prejudicada pelo excesso de iluminação. Mas o rio ali é um encanto.

       Na noite seguinte Andrew despachou os clientes do  dispensário em menos de uma hora. Antes das oito encontrou-se  com Frances em Knightbridge e o carro seguiu pela estrada de Chertsey.

       Ainda se notavam os últimos reflexos do crepúsculo no longo dia de Verão. Frances ia sentada ao lado dele, falando pouco mas enchendo todo o carro com a sua encantadora  presença. Levava um saia-e-casaco de fazenda muito leve, com um chapelinho escuro na cabeça pequena.

       Andrew sentia de modo intenso toda a graça da mulher, toda a sua perfeita distinção. A mão nua, perto dele, era bem a materialização do seu requinte branca, esguia. Na ponta de cada dedo comprido, a unha pintada.

       Como dissera Frances, Crossways era uma deliciosa casa da época isabelina, situada entre lindos jardins debruçados  sobre o Tamisa. E era pena que as adaptações às necessidades modernas e um infame jazz-band estragassem o efeito romântico das pérgulas antigas e dos pequeninos lagos onde brotavam nenúfares. E, embora um lacaio tivesse vindo abrir a porta do carro quando entraram  no pátio do edifício, já quase todo ocupado por automóveis de luxo, permanecia o encanto dos velhos tijolos cobertos de hera e das altas chaminés poligonais destacando-se serenamente no céu.

       Entraram no restaurante. Sala cheia, assistência elegantíssima. As mesas estavam colocadas de modo a deixar no centro um espaço vazio, um quadrado de soalho polido.

       O maitre d’hotel tinha o mesmo aspecto, parecia irmão do «grão-vizir» do Plaza. Andrew odiava e temia maitres d’hotel. Mas isso descobria agora era porque nunca os defrontara na companhia de uma mulher como Frances. Bastou um simples olhar para serem logo levados, com todas as provas de consideração, para a melhor mesa da sala; viram-se cercados no mesmo instante por um grupo de criados atenciosíssimos, um dos quais desdobrou o guardanapo de Andrew, colocando-o com religioso respeito sobre os seus joelhos.

       Frances pediu pouca coisa: salada, um assado. Nada de vinho; apenas água gelada. Imperturbável, o maitre d’hotel parecia ver nessa frugalidade uma prova de distinção, e Andrew pensou, com súbito azedume, que se tivesse entrado com Christine em tal santuário e encomendasse refeição tão modesta seria naturalmente atirado pela porta fora, com o maior desprezo...

       Um sorriso de Frances veio expurgá-lo dessas ideias.

       - Sabe que já nos conhecemos há muito tempo e esta é a primeira vez que me convida para sair em sua companhia?

       - Isso desagrada-lhe?

       - Não, creio que não.

       Andrew deliciava-se de novo com o tom encantador de intimidade que Frances assumia, com o seu leve sorriso. Isso fazia-o sentir-se mais espirituoso, mais à vontade, como se pertencesse a uma classe superior. Não era simples  pretensão ou tolo snobismo. A distinção dela era tão pessoal e envolvente que o atingia, o contagiava. Deu pelo interesse com que os ocupantes das outras mesas os observavam, a admiração masculina de que Frances era objecto e que ela parecia superiormente ignorar. Andrew não pôde deixar de sorrir à ideia de uma ligação mais íntima.

       - O senhor ficará talvez muito lisonjeado quando lhe disser que quebrei por sua causa um outro compromisso para ir ao teatro. Lembra-se de Nicol Watson? Ele convidou-me  para ir a um espectáculo de bailados. Não ria dos meus gostos infantis... Era o Massin em La Boutique Fantastique. Recordo-me do Watson e da sua viagem ao Paraguai. Pessoa inteligente. É distintíssmo.

       - Mas... porque não foi? Teve medo que o teatro estivesse  muito aquecido?

       Ela sem responder, sorriu apenas. Tirou um cigarro de uma caixa de esmalte em cuja tampa, de cores discretas, havia uma linda miniatura de Boucher.

       - É verdade... Ouvi dizer que Watson lhe fazia a corte. E... - continuou Andrew, com repentina veemência: - que pensa seu marido a esse respeito?

       Ela também dessa vez não respondeu. Levantou apenas, de leve, a sobrancelha, como a marcar levemente certa falta de compreensão. Mas, depois de um momento, disse:

       - Então ainda não compreendeu? Jackie e eu somos óptimos amigos. Mas cada qual escolhe as suas próprias amizades. Ele está agora em Juan lês Pins e não me interessa saber por que motivo. - E num tom ligeiro. - Vamos dançar?

       Dançaram. Ela movia-se com uma graça extraordinária, fascinante. Era leve, quase aérea, nos braços de Andrew.

       - Não danço bem - disse Manson quando voltaram à mesa. Até o modo de falar já era o dela. Como estava longe, bem longe, o  tempo em que resmungava: «Que diabo, Chris! Eu não sei arrastar os pés pelo salão!».

       Frances não protestou, e nisso ele viu mais um sinal da sua distinção. Outra qualquer, para o lisonjear, teria respondido que ele dançava bem e Andrew sentir-se-ia ainda mais desajeitado. De repente, num impulso de curiosidade, perguntou:

       - Explique-me uma coisa, por favor. Porque tem sido tão gentil comigo? Porque me tem ajudado tanto durante todos estes meses?

       Ela encarou-o, achando-lhe graça, mas sem se mostrar admirada.

       - O senhor tem um extraordinário encanto para as mulheres. E ainda é mais interessante porque não se dá conta disso.

       - Ora... Como? Que ideia! - Andrew corou. - E, depois, sem à-vontade: - Acho que também valho alguma coisa como médico.

       Frances riu, espalhando displicentemente com a mão o fumo do cigarro.

       - Não fique irritado. Eu fiz mal, talvez, em explicar-lhe. De facto é um óptimo médico. Ainda uma noite destas falámos a seu respeito em casa de Joseph Le Roy. Ele anda um tanto aborrecido com o médico dietista da nossa Companhia. Coitado de Rumbold! Se soubesse o que Le Roy disse dele! Chama-lhe velho caduco. Precisa de ser aposentado. E Jackie concorda. Querem para o lugar dele um médico mais jovem, mais enérgico. Enfim, para usar a expressão corrente, «um homem mais moderno». Parece que eles querem lançar uma grande campanha na imprensa  médica. Querem realmente interessar a medicina nos produtos, no ponto de vista científico, como explica Le Roy. Ora, Rumbold é um motivo de ironia entre os colegas. Mas que ideia a minha de falar nesses assuntos! Uma noite tão agradável fica estragada. E, por favor, não franza a testa como se pretendesse assassinar-me, ou ao criado, ou ao dirigente do jazz. Bem, este pode matar... Não é de facto muito antipático? Sabe que está agora com o ar sisudo com que apareceu na Laurier? Todo empertigado,  cheio da sua pessoa, tão nervoso! Estava até um pouco ridículo. E quando me lembro do que fez com a pobre da Toppy! Pela sequência natural destas coisas, ela é que devia estar aqui.

       - Pois eu prefiro que não seja ela - disse Andrew sem levantar a vista.

       - Não me considere uma criatura banal, por favor não admitiria que o fizesse. Creio que somos duas pessoas inteligentes... E é claro! Eu, pelo menos, não acredito em grandes paixões. Fraseados românticos não são comigo. Mas acho que a vida é muito mais agradável quando se tem um bom amigo para nos distrair um pouco. - Os olhos iluminaram-se, numa expressão risonha. - Parece que me sinto possuída pelo estilo de mulher à Rossetti... E isso é uma tristeza! - Agarrou na cigarreira. - Aqui está tão abafado! Vamos embora! Quero que o senhor veja o luar no rio.

       Andrew pagou a conta e saiu pela grande porta envidraçada  que, com vandalismo, haviam aberto na parede. Movia-se em surdina no terraço a música da orquestra.

        Foram andando por uma alameda de belas árvores ladeadas que levava ao rio. A alameda era sombria, mas o luar punha pálidos desenhos na copa das árvores. Mais Bem, o rio era um lençol prateado.

        Passearam pela margem, sentaram-se num banco. Ela tirou o chapéu e ficou contemplando em silêncio as águas lânguidas que se arrastavam. O seu eterno murmúrio foi perturbado, de modo estranho, pelo rumor surdo de um possante automóvel que passava ao longe a toda a velocidade.

       - Que música estranha a da noite! - desabafou Frances. - O velho e o novo. Faróis de automóveis em contraste com o luar. É assim o nosso tempo.

       Andrew beijou-a. Ela submeteu-se ao beijo, sem outras  expansões. Os lábios eram cálidos e secos. Foi só passado um momento, que ela disse :

       - Muito agradável o seu beijo. Porém muito mal dado.

       - Posso beijar melhor - murmurou Andrew, imóvel.

       Atordoado, sentia-se tacanho, sem convicção, acanhado, nervoso. Irritado consigo mesmo, procurou convencer-se que era maravilhoso estar ali, numa noite tão linda, com uma mulher tão graciosa e encantadora. Segundo as convenções do luar e das novelas de cordel, devia estreitá-la  loucamente nos braços. Mas, em vez disso, sentia-se sem jeito, parado, com vontade  de fumar, e o vinagre da salada azedara-lhe o estômago.

       Sem saber como, viu reflectido na água do rio o rosto de Christine, um rosto abatido, um pouco aflito, com uma das faces manchada com a tinta com que pintara as portas da casa quando da sua instalação em Chesborough Terrace. Essa visão aborreceu-o e exasperou-o. Se estava ali era porque as circunstâncias o haviam arrastado. E que diabo! Afinal de contas era um homem e não um cliente para o Voronoff! Num íntimo desafio, beijou Frances de novo.

       - Pensei que talvez fosse preciso um ano para o doutor se decidir - e nos olhos dela brilhava a mesma chama afectuosa e divertida. - E agora acho que nos devemos ir embora. Noites como estas são muito perigosas para a alma de um puritano.

       Andrew estendeu a mão para ajudar Frances a levantar-se.

       Ela conservou-a presa nas suas, apertando-a levemente  quando se dirigiam para o automóvel. Andrew deu um xelim de gorjeta ao vigilante fardado e pôs o carro em movimento. Ao voltarem para Londres, o silêncio de Frances tinha a eloquência da felicidade.

       Andrew, entretanto, não se sentia contente. Considerava-se  um idiota, um cãozinho de luxo. Indignado consigo próprio, em luta com os próprios sentimentos, repugnava-lhe  voltar para o seu quarto abafado, para a sua cama solitária, onde não encontraria repouso. O coração estava frio. Mil ideias lhe povoavam a cabeça. A memória desenrolou  perante os seus olhos, com doçura aflitiva, a lembrança do seu primeiro amor por Christine, o êxtase palpitante  daqueles dias de Blaenelly, e foi com esforço irado que afastou do seu espírito essas imagens.

       Em frente da casa de Frances, Andrew ainda estava irresoluto. Saiu do carro e abriu a porta, para que ela saísse. Ficaram juntos na rua, enquanto Frances abria a bolsa e tirava a chave.

       - Não quer entrar? Os criados já devem estar a dormir.

       Hesitante, Andrew gaguejou:

       - É muito tarde... Não lhe parece?

       Ela pareceu não o ouvir. Subiu os degraus exteriores com a chave na mão. Quando Andrew a acompanhou, teve a impressão de ver a sombra de Christine, de volta do mercado, com o seu velho saco das compras.

 

       Três dias mais tarde, no consultório da Welbeck Street, fazia muito calor e vinha da rua, pela janela aberta, o rumor enervante do trânsito. Andrew estava cansado, sobrecarregado de trabalho, apreensivo com a volta de Christine, que devia chegar no fim da semana. Estava à espera de um telefonema, mas ficava nervoso quando ouvia a campainha. Tinha de desdobrar-se para atender em menos de uma hora seis clientes... e clientes de três guinéus!, e tinha ainda de ir apressadamente ao dispensário antes de se encontrar com Frances para jantarem fora. Foi com impaciência que viu entrar a enfermeira Sharp com um ar ainda mais azedo do que de costume.

       - Está lá fora um homem que quer falar consigo. O aspecto é horrível. Não é cliente e diz que também não é viajante. Não tem ao menos um cartão de visita. Chama-se Boland.

       - Boland? - repetiu Andrew, distraído. - De repente a fisionomia iluminou-se-lhe. - Não será Con Boland? Mande-o  entrar, enfermeira. Imediatamente.

       - Mas há um cliente à sua espera. E dentro de dez minutos, a Sr.a Roberts...

       - Não se incomode com a Sr.a Roberts - ordenou Andrew  irritado. - Faça o que lhe digo.

       A enfermeira corou ao ouvir as suas palavras. Esteve quase para dizer que não estava habituada a que lhe falassem naquele tom. Fungou e saiu de cabeça erguida.

       Logo depois, voltava com Boland.

       - Ora viva, Con! - disse Andrew levantando-se de um pulo.

      - Olá, olá! - berrou Con, avançando para o amigo, com um largo sorriso cordial que lhe escancarava a boca.

       Era o mesmo dentista de cabelos ruivos. Não se notava a menor diferença. Tão autêntico e desalinhado no seu fato azul, lustroso e larguíssimo e nos seus sapatões castanhos, como se tivesse saído naquele momento do barracão de madeira a que chamava «garage». Um pouco mais velho, talvez, mas sempre  exuberante,  com  o  mesmo  excesso agressivo nos gestos e no bigode espetado, cabeludíssimo,  ainda indomável. Bateu fortemente nas costas de Andrew.

       - C’os diabos, Manson! Que alegrão vê-lo de novo. Está estupendo, estupendíssimo. Eu tê-lo-ia conhecido no meio da multidão. Bravo! Sim, senhor! Gosto de ver isto aqui! É um consultório de primeira ordem. - Voltou os olhos radiantes de simpatia para a azeda Sharp, que ficara à espera, com ar desdenhoso. - Esta sua amável enfermeira não queria que eu entrasse. Só consentiu quando lhe disse que também sou formado. E é verdade. Juro por Deus, enfermeira! Eu e este amigo que é seu patrão já trabalhámos como bestas de carga na mesma organização médica. Foi há muito tempo. Lá em Aberalaw. Se for para aqueles lados, passe lá por casa, que eu e a patroa teremos muito gosto em oferecer-lhe um cházinho. A casa está sempre aberta para quem é amigo do meu amigo Manson!

       A enfermeira Sharp atirou-lhe um olhar enviesado e saiu da sala. Mas isso nenhum efeito causou sobre Con, que fervia numa alegria simples e natural. E agitando-se diante de Andrew:

       - Não é grande formosura, hem, meu filho! Mas parece uma mulher direita, isso sou capaz de apostar. E então, então? Como vão as coisas? Como passam vocês?

       Não largava a mão de Andrew; balançava-a para cima e para baixo, nas mais alegres expansões.

       A presença inesperada de Con era um rico estimulante para um dia de tanta depressão. Quando conseguiu libertar a mão daqueles apertos e balanços cordiais, Andrew deixou-se cair na cadeira giratória, sentindo-se humano outra vez. Ofereceu cigarros ao amigo e, com um polegar enfiado na cava do colete e o outro apertando a ponta húmida do cigarro que acabara de acender, Boland começou  a explicar a razão da sua visita.

       - Eu tinha direito a umas férias, meu velho, e, como tinha também alguns assuntos a tratar, a patroa achou que eu devia enfiar a trouxa e vir até aqui. Estou metido numa invenção e pêras. É uma mola para apertar travões de automóvel. Estou a fazer um consumo tremendo de massa cinzenta nessa invenção. Mas é só nas horas vagas. Um inferno! Não tenho quem me ajude no consultório. Mas não faz mal. A coisa tem de ir. Aliás não é tão importante como o que cá me trouxe.

       Con deixou cair no tapete a cinza do cigarro e tomou um ar mais sério.

       - Escute, Manson, meu filho! É a Mary! Naturalmente lembra-se da Mary; eu garanto-lhe que ela também se lembra de si. Não tem andado bem ultimamente. Nem parece a mesma. Resolvemos levá-la ao Llewellyn e ele não a conseguiu fazer melhorar. - Con indignou-se de repente. A voz tornou-se-lhe rude...  - Com os diabos, Manson! Meteu-se-lhe na cabeça que a Mary está com um começo de tuberculose... Como se uma coisa dessas fosse possível na família Boland desde que o Dan, o tio dela, foi para um sanatório, há quinze anos. Ouça, Manson: quer fazer alguma coisa por este seu velho amigo? Sabemos que o senhor agora é um grande homem. Em Aberalaw  não se fala noutra coisa. Quer examinar Mary? Não imagina a confiança que ela tem em si. E todos nós. Eu e minha mulher já trocámos muitas impressões a este respeito. Ela até me disse: «Quando puderes vai procurar o Dr. Manson. E se ele quiser ver a menina mandá-la-emos aonde ele achar conveniente». E agora, que me diz, Manson? Se está demasiadamente ocupado para isso, é só falar com franqueza. E pronto! Já cá não está quem falou.

       Andrew foi ficando com ar preocupado.

       - Não diga isso, Con. O senhor não compreende o prazer que tenho em vê-lo? E Mary... Pobrezinha! Deve calcular que farei por ela tudo, tudo.

       Sem ligar aos significativos gestos da enfermeira Sharp, gastou o seu precioso tempo a conversar com Boland. Afinal, a enfermeira não resistiu mais.

       - Há cinco clientes à espera, Dr. Manson, e já está com mais de sessenta minutos de atraso sobre as horas marcadas para as consultas. Não sei que desculpas hei-de dar, e não estou acostumada a tratar os clientes dessa maneira.

       Apesar destas palavras Andrew não se despediu de Con imediatamente. Acompanhou-o até à porta da rua, caprichando em mostrar-se hospitaleiro.

       - Não consinto que volte para a sua casa, Con. Quanto tempo vai ficar ainda por cá? Três ou quatro dias? óptimo! Onde está hospedado? No Westland? É muito fora de mão! Porque não vem para minha casa? Que diabo, somos íntimos! E tenho uma porção de quartos desocupados. Christine regressa na sexta-feira e ficará encantada por vê-lo, Con, encantada. Poderemos conversar como nos velhos tempos.

       No dia seguinte Con trouxe a mala para Chesborough Terrace. À noite, terminado o serviço do dispensário, os dois amigos foram à segunda sessão de um teatro de variedades. Era espantoso como tudo parecia agradável na companhia de Boland. A gargalhada fácil do dentista causava um certo espanto no primeiro momento, mas logo depois contagiava quem estava perto. Havia pessoas que se voltavam para Con, sorrindo-lhe com simpatia.

       - Repare, meu velho! - Con estorcia-se na cadeira. - Veja aquele tipo com a bicicleta. Lembra-se do seu tempo, Manson?

       No intervalo foram ao bar. Chapéu atirado para a nuca, a espuma de cerveja a escorrer-lhe pelo bigode, os sapatões castanhos firmes no varão metálico do balcão, Con expandiu-se:

       - Manson: nem avalia como isto me diverte. O senhor é realmente a bondade personificada!

       Era tão viva e natural a gratidão reflectida no rosto de Con que Andrew se sentiu um hipócrita acabado.

       À saída do teatro comeram bife com batatas e beberam cerveja num restaurante das proximidades. Em casa acenderam o fogão da sala da frente e puseram-se a palestrar. Conversavam, fumavam e esvaziavam garrafas de cerveja.

       Andrew esqueceu-se por um momento das complicações da sua existência supercivilizada. A exaustiva tensão da clínica,  as perspectivas de trabalhar para Lê Roy, a possibilidade  de ser promovido no Hospital, a situação da sua conta bancária, a formosura e a pele macia de Frances Lawrence, o medo dos olhos acusadores de Christine tudo isso se esbateu no seu espírito enquanto Con se expandia.

       - Manson, lembra-se do tempo do nosso combate com o Llewellyn? E o Urquhart e os restantes do grupo a desertarem  no momento do sarilho... A propósito, o Urquhart manda-lhe recomendações. É ainda o mesmo homem. Mas lembra-se de  que  quando  ficámos sozinhos  bebemos o resto da cerveja?

       Chegou o dia seguinte e veio inexoravelmente o momento  em que Andrew devia enfrentar Christine. compreendendo,  irritado, como era falsa a sua aparente tranquilidade,  Manson arrastou até à estação o simples Con, considerando-o uma tábua de salvação.

       Quando o comboio chegou, o coração de Andrew batia acelerado, numa expectativa tumultuosa. Que momento de aflição e remorso quando viu o rosto delgado e tão conhecido de Christine avançando entre a multidão dos passageiros, a procurá-lo ansiosamente! Mas depois esqueceu tudo na ânsia de demonstrar uma cordialidade despreocupada.

       - Olá, Chris! Pensei que não mais voltasses! Repara quem está comigo! É o Boland em carne e osso! É ainda o mesmo do nosso tempo. Este amigo não envelhece. Está hospedado lá em casa, Chris... Contar-te-ei tudo no automóvel.

       - Está lá fora. Então divertiste-te muito?

       Surpreendida pela recepção imprevista  pois receava até que ele não a fosse esperar à estação  Christine perdeu o ar abatido e, numa alegria nervosa, as suas faces coraram. Ela também andara apreensiva, metida em si mesma, ansiosa por uma vida nova. Sentia-se agora cheia de esperança. Encolhida no banco traseiro, na companhia de Con, falava animadamente, dirigindo olhares furtivos para Andrew, que ia na frente conduzindo o carro.

       - Como é bom voltar para casa! - deu um longo suspiro ao transpor a porta da rua; e de repente, falando ansiosa: - Sentiste a minha falta, Andrew?

       - Parece-me que sim. Todos nós. Emily, venha cá! Con! Que diabo está a fazer com a bagagem?

       Num momento estava na porta da rua ajudando Con, sem nenhuma necessidade, a trazer as malas. E então, antes que se dissesse ou fizesse mais alguma coisa, desculpou-se dizendo ser a altura de ir atender os clientes.

       Insistiu para que o esperassem à hora do chá. E resmungou  ao sentar-se no automóvel: «Ora graças a Deus! Isto já passou! Ela parece nada ter melhorado com o passeio. Que inferno! Em todo o caso, tenho a convicção de que nada notou. E isso é o principal, por enquanto!» 

       Embora voltasse tarde, vinha exageradamente vivo e animado. Con mostrou-se encantado com tão boa disposição.

       - Estou a gostar de o ver, meu filho. O senhor está ainda mais animado do que nos velhos tempos.

       Mais de uma vez sentiu o olhar de Christine a procurá-lo,  ansioso por um sinal, por um gesto de entendimento.

       Percebeu que a doença de Mary a preocupava e até a distraía dos seus íntimos pensamentos. Num intervalo da conversa ela contou-lhe que fizera o Con telegrafar a Mary, para que viesse quanto antes, no dia seguinte mesmo, se possível. Esperava que se fizesse tudo por ela, sem demora.

       Tudo correu melhor do que Andrew esperava. Mary telegrafou, comunicando que chegaria no dia seguinte, pela manhã, e Christine estava ocupadíssima nos preparativos  para a receber. A agitação que reinava na casa servia até para disfarçar a cordialidade forçada de Manson.

       Mas quando Mary chegou Andrew voltou a ser, de repente, o antigo Andrew. Notava-se logo à primeira vista que ela estava doente. Era agora uma rapariguinha de vinte anos, alta e magra, com as espáduas um pouco curvadas, com essa beleza de pele, quase sobrenatural, que logo esclareceu Andrew. Estava muito fatigada da viagem. No prazer de vê-los novamente, não se queria ir deitar entretida com a conversa, mas acabou por convencer-se a ir para a cama logo depois do jantar. Foi então que Andrew subiu para a observar.

       Ficou lá em cima uns quinze minutos. Quando desceu, para reunir-se a Con e Christine na sala de visitas, a sua expressão estava dessa vez involuntariamente perturbada.

       - Receio que seja um caso positivo. O vértice esquerdo. Llewellyn tinha razão, Con. Mas não se preocupe. Está ainda no começo. Podemos vencer a doença.

       - Quer  dizer... - murmurou  Con, profundamente apreensivo -  ...que pode haver cura?

       - Sim. Afirmo isso. Naturalmente, é preciso prestar-lhe toda a atenção, uma assistência constante, o máximo cuidado. - Ficou a meditar com uma ruga profunda na testa. - Parece-me, Con, que Aberalaw é um péssimo lugar para ela. É sempre inconveniente conservar em casa um caso incipiente de tuberculose. Quer deixar-ma levar para o Vitória? Tenho bastante influência no Dr. Thoroughgood. Estou certo de que conseguirei instalá-la na sua enfermaria. Não perderei Mary de vista.

       - Manson! - foi impressionante a exclamação de Con. - Isso é uma prova de verdadeira amizade. Se soubesse a confiança que o senhor inspira a essa criança! Se há um médico que a pode curar só é possível ser o senhor!

       Andrew telefonou imediatamente a Thoroughgood e comunicou-lhe que já no fim da semana Mary poderia ser levada para o hospital. Con alegrou-se visivelmente. O seu fácil optimismo reapareceu com a ideia do hospital para tuberculosos, da assistência de Andrew e da supervisão  de Thoroughgood. Já via Mary boa de todo, completamente curada. Os dois dias seguintes foram pesadíssimos de ocupações.

       Na tarde de sábado, quando Mary foi para o hospital e Con tomou o comboio de regresso, a tranquilidade de Manson parecia garantida. Pelo menos no momento. Pôde agarrar no braço de Christine e dizer alegremente, ao dirigir-se  ao dispensário:

       - Que bom estarmos juntos de novo, Chris! Meu Deus! Que semana atarefada tivemos!

       Pareceu-lhe que falara num tom muito natural. Mas foi bom que não tivesse olhado para o rosto de Christine.

       Ela sentou-se na saleta, sozinha, a cabeça levemente curvada,  as mãos no colo, parada. Estava tão desanimada como no próprio momento em que chegara. Havia nela um terrível pressentimento: «Deus do Céu! Quando, como é que isso acabará?»

 

       A vaga de sucesso de Andrew continuava a alastrar, era agora já uma onda irresistível, que o envolvia e o arrastava na sua violência estrondosa e borbulhante.

       As relações com Hamson e Ivory eram cada vez mais íntimas e mais rendosas. Além disso, Fredman pediu-lhe que o substituísse no Plaza enquanto ia passar uns dias em Lê Toucquet para jogar golf. Os honorários, é claro, seriam divididos. Era Hamson quem o substituía habitualmente no lugar de Deedman, mas Andrew desconfiava que os dois andavam de candeias às avessas.

       Como era lisonjeiro para Manson descobrir que podia entrar directamente na alcova de uma superdeslumbrante estrela de cinema, sentar-se sobre a colcha de cetim de sua cama, apalpar com as suas mãos calmas a sua anatomia  insexuada e até mesmo, se havia tempo, fumar um cigarro na sua companhia!

       Mais lisonjeira ainda era a protecção de Joseph Le Roy. Naquele mês já almoçara com ele duas vezes. Sabia que ideias muito profundas estavam no cérebro do homem da Nova Zelândia. No último encontro, Le Roy dissera, a preparar o terreno:

       - Sabe, doutor? Estou a pensar no aproveitamento dos seus serviços. O plano que tenho em mente é muito vasto e terei necessidade de boas opiniões médicas. Não quero saber de jarrões falsificados. O velho Rumbold não vale absolutamente coisa alguma. Vamos pô-lo no olho da rua sem mais contemplações. Também não me interessa um grupo de pretensos especialistas, a provocar trapalhadas e a arrastar-me para festas e reuniões. O que quero é um orientador médico que saiba bem o que faz. Cheguei à conclusão  de que é o doutor que me convém. Note bem; com os nossos produtos a preços populares, já conquistamos uma grande parte do público. Mas julgo sinceramente que já é tempo de desenvolver os negócios e começar a fabricar produtos mais científicos. Temos de separar os componentes do leite, electrificá-los, fazer comprimidos. Cremo com vitamina B, Cremofax e Lactocin para a desnutrição, o raquitismo, a neurastenia, a insónia. O doutor compreende-me,  não é verdade? E depois, se conseguirmos tudo isso em bases clínicas mais ortodoxas, poderemos captar a colaboração e a simpatia de toda a classe médica. Faríamos de cada médico um possível vendedor, por assim dizer. Ora, doutor, isso exige naturalmente orientação e propaganda científicas e é nesse ponto que creio que um clínico moderno nos poderá ajudar muito. E quero também que pese bem as minhas palavras; tudo isso é negócio absolutamente limpo e científico. Estamos a procurar agora a elevação do nível dos nossos produtos e se tomar em consideração os extractos ordinaríssimos que os médicos recomendam... Umas coisas lamentáveis... Que diabo, procurando melhorar a qualidade dos nossos produtos, parece-me  que estamos a contribuir para a prosperidade do país.

       Andrew não se deteve a meditar que havia provavelmente  mais vitaminas num grãozinho de ervilha fresca do que em muitas latas de Cremofax. Mais do que o ordenado que poderia ganhar como orientador clínico da empresa, entusiasmava-o o interesse que parecia inspirar a Lê Roy.

       Frances explicara-lhe como poderia tirar proveito das especulações sensacionais do industrial. Ah! Como era agradável ir tomar chá em casa dela, sentir, num olhar provocante e num doce sorriso de intimidade, que aquela criatura tão refinada e atraente lhe dedicava uma atenção especial! A convivência com ela dava-lhe também maior distinção, confiança maior, polidez mais estudada. Ia adoptando,  inconscientemente, a linha dela. Sob a sua influência  aprendia a cultivar os requintes superficiais e a não se interessar com os aspectos profundos da vida.

       Já enfrentava Christine com o maior desembaraço.

       Podia entrar em casa com ar inteiramente natural logo depois de um encontro com Frances e nem mesmo se detinha para notar aquela transformação assombrosa. Se pensava nisso, por acaso, era para garantir a si mesmo que não amava a Sr.a Lawrence, que Christine de nada sabia, que todo o homem tem de passar por isso, mais cedo ou mais tarde. Porque havia de ser diferente dos outros?

       Para de alguma maneira a compensar, dava-se ao trabalho  de mostrar-se amável com Christine, dirigindo-se-lhe gentilmente e até mesmo discutindo com ela os seus projectos.

       Foi assim que ela ficou a saber que Andrew estava com ideia de comprar a casa de Welbeck Street e que teria de abandonar Chesborough Terrace se o assunto fosse levado a bom termo. Christine agora já não discutia com o marido, não o censurava, e se tinha aborrecimentos nunca os demonstrava. Parecia completamente conformada e a vida de Andrew decorria agora com ritmo tão apressado que não lhe dava tempo para reflexões. A correria estimulava-o. Tinha uma falsa sensação de energia. Via-se forte, cada vez mais importante, no domínio de si mesmo e do próprio destino.

       E de repente a tormenta desencadeou-se no seu céu sem nuvens.

       Na noite de 5 de Novembro procurou-o no consultório de Chesborough Terrace a mulher de um modesto comerciante  da vizinhança.

       Era a Sr.a Vidler, uma mulherzinha de meia-idade, mas de olhos vivos e espertos; uma dessas londrinas que nunca saem do bairro onde vivem. Andrew conhecia o casal. Logo que veio para Chesborough Terrace foi chamado para tratar do filhinho dos Vidler. Além disso, naquele tempo o médico ainda precisava de mandar pôr meias solas nos sapatos. Ora, os Vidler possuíam uma pequena loja de duas entradas na esquina da Paddington Street. Num lado consertava-se  calçado; no outro estava instalada uma tinturaria.

        E, embora a loja tivesse o nome pomposo de Consertos  em Geral, Lda., podia ver-se ali o Harry Vidler a trabalhar sem colarinho e em mangas de camisa. Era um homem robusto, mas pálido, que ficava a bater sola ou mesmo a passar fatos a ferro se os seus dois ajudantes não davam conta do trabalho na outra secção.

       Era dele que falava agora a Sr.a Vidler:

       - Doutor - disse no seu modo alvoroçado, - meu marido não anda bem. Há algumas semanas que está doente. Já fiz tudo o que era possível para o trazer aqui, mas ele não quer vir. O doutor podia ir vê-lo amanhã? Eu obrigá-lo-ei a ficar na cama.

       Andrew prometeu ir.

       No dia seguinte encontrou o sapateiro deitado. Queixava-se  de dores internas e de uma crescente obesidade. Nos últimos meses a barriga aumentara de uma forma extraordinária.

       Como geralmente acontece com muitos doentes que anteriormente gozaram de boa saúde, dava várias explicações  para a sua doença. Atribuía-a ao abuso da cerveja ou talvez à vida sedentária.

       Depois de o examinar Andrew viu-se obrigado a refutar aquelas opiniões. Convenceu-se de que se tratava de um quisto. Embora não fosse um caso perigoso, exigia operação.

       Manson fez o que pôde para tranquilizar Harry e a mulher. Explicou-lhe toda a evolução de um simples quisto e como pode causar toda uma série de incómodos, que só terminam com a extirpação. Não tinha a menor dúvida quanto ao êxito da operação e aconselhou Vidler a entrar imediatamente num hospital.

       Mas a Sr.a Vidler nessa altura levantou as mãos para o céu.

       - Não, doutor! Não quero que o meu Harry vá para um hospital! - Procurava dominar a própria agitação. - Eu já previa que podia acontecer uma coisa dessas... Ele tem trabalhado demasiadamente na loja! Mas, graças a Deus, temos recursos para enfrentar a situação. Não somos  ricos, o doutor bem sabe, mas felizmente temos algumas  economias. Chegou a hora de as aplicar. Não deixarei que o Harry vá para uma santa casa, como um indigente.

       - Mas, Sr.a Vidler, eu posso arranjar...

       - Não! O doutor pode levá-lo para uma casa de saúde. Há muitas aqui nas proximidades. E também pode escolher um cirurgião de sua confiança para o operar. Pode ter a certeza, doutor, que enquanto eu estiver aqui nenhuma santa casa há-de albergar Harry Vidler.

       Andrew compreendeu que a decisão da mulher era inabalável.

       Quando se compenetrou da necessidade de ser operado, o próprio Vidler foi da mesma opinião. Queria ter o melhor tratamento possível.

       À noite Andrew telefonou para Ivory. Agora já era costume contar com Ivory quando tinha em mãos um caso que metia operação. Mas dessa vez era um caso especial.

       - Eu gostaria que me fizesse um favor, Ivory. Tenho aqui um caso de quisto abdominal que precisa de ser operado... É uma pessoa decente, trabalhadora. Mas não é rica, compreende? Receio que não possa ganhar grande coisa. Mas eu ficar-lhe-ia muito grato se você fizesse isso... digamos, por um terço do seu preço habitual.

       Ivory foi muito gentil. Nada lhe dava mais prazer que prestar qualquer serviço ao amigo Manson. Discutiram o caso por alguns minutos e, terminada a conferência, Andrew  ligou para a Sr.a Vidler.

       - Acabo de falar com o Dr. Charles Ivory, um cirurgião do West End que é meu amigo particular. Irá comigo amanhã, para ver o seu marido. Às onze horas, Sr.a Vidler. Está bem? Ele disse-me... está a ouvir?... ele disse-me, Sr.a Vidler, que fará a operação por trinta guinéus. Atendendo a que ele costuma cobrar cem guinéus... talvez mais, parece-me que o preço é bem razoável.

       - Pois sim, doutor, pois sim - a voz dela era aflita, mas esforçava-se por parecer aliviada. - Estou muito agradecida  ao doutor. Havemos de dar um jeito.

       Na manhã seguinte, Ivory viu o doente na companhia de Andrew e no outro dia Harry Vidler foi levado para a Casa de Saúde de Brunsland, em Brunsland Square.

       Era uma casa asseada de estilo antigo, não muito longe de Chesborough Terrace; uma das muitas casas de saúde do bairro, onde os preços eram modestos e as instalações deficientes. Os internados, na sua maioria, não tinham necessidade de cuidados médicos hemiplégicos, cardíacos crónicos, velhas que não se levantavam da cama e cujos males mais graves eram evitar as escaras produzidas pela longa permanência no leito. O edifício não fora construído para casa de saúde. Isso, porém, era vulgar! Todas as outras de Londres, que Andrew já visitara, eram também adaptações. Não havia elevador. A sala de operações fora outrora uma estufa. Mas a proprietária, Sr.a Buxton, era enfermeira diplomada e uma mulher activa. Apesar dos seus defeitos, a Brunsland era uma casa de limpeza absoluta. Não se via a menor mancha, a menor sombra de poeira nos cantos mais escusos do soalho forrado de oleado.

       A operação estava marcada para sexta-feira e, como Ivory não podia comparecer mais cedo, para uma hora especialmente tardia: entre a uma e as duas da tarde.

       Embora Andrew fosse o primeiro a aparecer na casa de saúde, Ivory chegou pontualmente acompanhado do anestesista. Foi o chauffeur quem transportou a pesada caixa de instrumentos, pois o operador não queria comprometer a delicadeza dos dedos, e, embora se depreendesse claramente que não tinha boa impressão da casa, a sua atitude continuou amável como sempre. Em menos de dez minutos tranquilizou a Sr.a Vidler, que ficara à espera na sala, e conquistou a simpatia da Sr.a Buxton e das enfermeiras; depois, posto o avental e calçadas as luvas, ficou serenamente pronto para agir.

       O doente marchou para a sala com confiança e decisão.

       Lá dentro despiu o roupão que lhe dera uma das enfermeiras  e subiu para a mesa de operações. Compenetrando-se de que era indispensável a intervenção cirúrgica, Vidler resolvera enfrentá-la com coragem e sorriu para Andrew antes que o anestesista lhe colocasse a máscara: «Hei-de ficar melhor quando isso acabar».

       Logo depois fechou os olhos e aspirou quase avidamente as inalações do éter. A Sr.a Buxton tirou a ligadura. A área esterilizada pelo iodo apareceu  extraordinariamente inchada, como uma bola lustrosa. Ivory deu início à operação.  Começou com algumas injecções, espectacularmente profundas, nos músculos lombares.

       - Combate o choque - explicou solenemente a Andrew. - Emprego sempre isso.

       E aí principiou o verdadeiro trabalho.

       Foi larga a incisão... E imediatamente, com uma presteza  quase cómica, o quisto apareceu. Esparramou-se pela abertura como uma bola de futebol molhada e muito cheia de ar. A confirmação do diagnóstico aumentou ainda  mais, se possível, o alto conceito que Andrew formava de si próprio. Disse para si mesmo que Vidler voltaria a ser o que era dantes, quando arrancasse da barriga aquele acessório incómodo, e, já pensando noutro cliente, olhou disfarçadamente para o relógio.

       Entretanto, no seu estilo magistral, Ivory jogava com a bola de futebol, tentando com calma atingir os seus pontos de aderência e sempre fracassando imperturbavelmente. Cada vez que tentava dominar a bola, ela escapulia-se-lhe  das mãos. Tentou umas vinte vezes.

       Andrew lançou um olhar irritado a Ivory, pensando intimamente: «Que está este homem a fazer? Não há muito espaço no abdómen, mas, que diabo!, há o suficiente. Tinha visto Llewellyn, Denny, uma dúzia de outros operadores  no seu velho hospital, trabalhando com eficiência em espaço muito menor. A arte do bom operador estava nisto mesmo: manobrar bem em posições muito difíceis.

       De repente, Andrew percebeu que aquela era a primeira operação abdominal que vira Ivory fazer. Insensivelmente, meteu o relógio no bolso e foi-se aproximando da mesa, um pouco desconcertado.

       Ivory procurava insistentemente passar a mão por baixo do quisto, sempre calmo, proficiente, fleumático. Ao lado a Sr.a Buxton e uma jovem enfermeira permaneciam tranquilas, confiantes, numa inocência quase absoluta. O anestesista, homem idoso, de cabelos grisalhos acariciava contemplativamente o fundo da máscara de éter. A atmosfera  da pequena sala envidraçada era de um sossego completo,  sem nervosismos. Não havia tensão de nervos nem a expectativa ansiosa de um drama. Via-se apenas Ivory levantar um ombro, manobrar com as mãos enluvadas, tentar apanhar por baixo a bola escorregadia. Mas, apesar dessa tranquilidade, o corpo de Andrew era perpassado por um arrepio.

       Surpreendeu-se de testa franzida, observando nervosamente. Que receava? Nada havia a temer. Era uma operação  normal. Dentro de poucos minutos estaria terminada.

       Com um pálido sorriso, Ivory desistiu da tentativa de encontrar o ponto de aderência do quisto. A jovem enfermeira  lançou ao operador um olhar humilde quando ele lhe pediu o bisturi.

       Ivory apanhou-o num gesto vagaroso, medido. Talvez em toda a sua carreira nunca tivesse encarnado melhor do que naquele momento o tipo do grande cirurgião tradicional.

        Empunhando o bisturi, antes que Andrew percebesse  as suas intenções, deu um generoso golpe no quisto luzidio e tudo se precipitou.

       O quisto esvaziou-se subitamente projectando uma densa massa coagulada de sangue venoso, vomitando o seu conteúdo na cavidade abdominal. Num segundo, a grande esfera túrgida transformara-se numa bolsa de tecidos flácidos,  na confusão do sangue gorgolejante. Num gesto espontâneo, a Sr.a Buxton agarrou num molho de gase.

       O anestesista pôs-se de pé abruptamente. A enfermeira dava a impressão de que ia desmaiar. Ivory disse gravemente :

       - Clamps, por favor.

       Andrew ficou horrorizado. Compreendeu o desastre.

       Não tendo conseguido apanhar o pedículo para fazer a ligadura, Ivory rasgara o quisto cega e disparatadamente.

       E era um quisto hemorrágico!

       - Gase, por favor  disse o cirurgião, na sua voz imperturbável.

       Estava agora a querer dominar a confusão, tentando pinçar o pedículo, empurrando gase para a cavidade  cheia de sangue, entulhando o abdómen, absolutamente  incapaz de deter a hemorragia. A verdade iluminou a razão de Andrew com uma luz de relâmpago e disse para consigo: «Deus do Céu! Ele não sabe operar! Não sabe, absolutamente!» com o dedo na carótida, o anestesista murmurou numa voz humilde como a desculpar-se:

       - Ivory, receio que... Parece-me que o homem está a morrer. Largando a pinça, Ivory entupiu a cavidade abdominal de gaze ensanguentada. Começou a suturar a sua grande incisão. Agora já não havia entumecimento. A barriga de Vidler estava encolhida, pálida, parecendo vazia, porque Vidler estava morto.

       - Acabou-se! - disse finalmente o anestesista. - O homem  deu o derradeiro suspiro.

       Ivory deu o último ponto meticulosamente e voltou-se para colocar a pinça entre os seus instrumentos. Andrew estava mudo de horror. Com a fisionomia cor de cera, a Sr.a Buxton arrumava os sacos de água quente sem mesmo saber o que fazia. Só à custa de muita força de vontade é que parecia dominar-se. Saiu da sala. Sem saber o que acontecera o servente entrou empurrando a maca. Pouco depois o corpo de Harry Vidler era levado para o quarto.

       - Foi uma pena - disse Ivory finalmente, numa voz abafada, ao tirar o avental. - Creio que foi o choque. Não lhe parece, Gray?

       O anestesista balbuciou uma resposta. Ocupava-se na arrumação dos seus aparelhos.

       Andrew ainda estava sem poder falar. No torvelinho estonteante das suas emoções, lembrou-se de repente da Sr.a Vidler, à espera, lá em baixo. Teve a impressão de que Ivory lhe adivinhou o pensamento.

       - Não se preocupe, Manson. Deixe a mulherzinha por minha conta. Eu falarei agora mesmo com ela. Vamo-nos embora.

       Instintivamente, como um homem incapaz de resistir, Andrew via-se acompanhando Ivory, descendo as escadas, dirigindo-se para a sala de espera. Ainda estava atordoado, com náuseas, absolutamente incapaz de falar à Sr.a Vidler.

       Foi Ivory quem enfrentou a situação, mostrando-se quase à altura das suas grandes ocasiões.

       - Minha querida senhora - disse, compadecido e imponente, pondo a mão gentilmente sobre o seu ombro. - Infelizmente  temos más notícias para lhe dar.

       Ela juntou, torceu as mãos. Nos seus olhos liam-se ao mesmo tempo terror e aflição.

       - Que diz?

       - Apesar de todos os nossos cuidados e esforços, Sr.a Vidler, o seu pobre marido...

       Quase a desmaiar ela caiu numa cadeira, a face lívida, as mãos ainda apertadas na mesma crispação.

       - Harry! - suspirou, num fio de voz  que cortava o coração. E repetiu: - Harry!

       - O que posso garantir-lhe, minha senhora - continuou Ivory melancolicamente - é que ninguém neste mundo poderia salvá-lo. É o que todos nós podemos atestar. Não só eu, como o Dr. Manson, o Dr. Gray, a Sr.a Buxton. E mesmo que resistisse à operação... - levantou os ombros, num gesto significativo. Ela ergueu os olhos para ele, compreendendo o sentido das suas palavras, dando valor, mesmo naquele momento, a todas as suas atenções, a toda a bondade do grande operador.

       - Essa é a maior consolação que o doutor me podia dar - disse entre soluços.

       - Pedirei  à directora  que fique junto de si. Tenha resignação para suportar o golpe. Não tenho palavras com que lhe manifeste o apreço pela sua coragem.

       Saiu da sala e Andrew acompanhou-o ainda desta vez.

       No fundo do corredor ficava o escritório. Estava vazio, mas com a porta aberta. Ivory entrou, acendeu um cigarro e tirou uma boa baforada. O rosto estava um pouco mais pálido do que de costume, mas o queixo era firme, a mão serena. Os nervos pareciam não ter sofrido o mais ligeiro abalo.

       - Bem, o que lá vai lá vai - disse, friamente. - Lamento  muito, Manson. Não imaginava que o quisto fosse hemorrágico. Mas o senhor sabe que estas coisas acontecem  aos melhores operadores.

       No pequeno escritório só havia uma cadeira debaixo da secretária. Andrew afundou-se no maple que estava  encostado ao fogão. Pôs-se a contemplar com os olhos febris a planta do vaso colocado sobre a grelha vazia.

       Sentia-se doente, desorientado, na iminência de um colapso. Não lhe saía da ideia a imagem de Harry Vidler, dirigindo-se, cheio de esperança, para a mesa da operação.

       Martelavam-no no ouvido as suas palavras: «Hei-de ficar melhor quando isso acabar.» E dez minutos depois uma maca conduzia-o como um animal mutilado, estripado no matadouro. Rangeu os dentes, cobriu o rosto com as mãos.

       - É claro... - disse Ivory, olhando para a ponta do cigarro - É claro que não morreu na mesa da operação. Eu já tinha terminado o trabalho... Assim ficamos livres de qualquer complicação. Não há motivo para inquérito.

       Andrew levantou a cabeça. Tremia, enfurecido pela consciência da sua própria fraqueza naquela terrível situação,  que Ivory defrontava com tanto sangue-frio. E explodiu  num verdadeiro histerismo.

       - Por amor de Deus, cale essa boca! Sabe muito bem que matou o desgraçado. O senhor não é cirurgião. Nunca foi, nunca será cirurgião. O senhor é o mais feroz carniceiro  que vi em toda a minha vida.

       Houve um silêncio. Ivory lançou-lhe um olhar frio e duro.

       -Não acho bem que continue a falar assim, Manson.

       - Ah! O senhor não acha?! - Um soluço de dor, quase  agonia, fez estremecer Andrew. - Eu sei que o senhor acha! Mas é a dura verdade. Todos os casos que lhe entreguei antes deste eram brincadeiras infantis. Mas este, é o primeiro caso realmente sério que tivemos... Oh! Meu Deus! Eu devia-me ter informado... Sou tão culpado como o senhor!

       - Tenha calma, domine-se, idiota! Podem ouvir lá fora.

       - E que me importa? - Um novo acesso de cólera o arrebatou. - O que digo é só a verdade. E o senhor sabe isso tão bem como eu. Meteu os pés pelas mãos. Foi quase um assassínio!

       Naquele momento pareceu que Ivory ia derrubar Andrew  com um soco. Não lhe seria difícil, com o seu peso e a sua força. Mas o médico fez um grande esforço e dominou-se. Não pronunciou palavra. Virou-lhe simplesmente  as costas e saiu. Mas na sua expressão dura e fria transparecia uma expressão implacável e má de quem não perdoa.

       Andrew não soube quanto tempo permaneceu no escritório  com a cabeça encostada ao mármore frio do fogão.

       Mas levantou-se afinal, lembrando-se desconsoladamente de que tinha de trabalhar. O tremendo choque do desastre atingira-o em cheio com a violência destruidora de uma bomba. Era como se ele também estivesse esventrado e vazio. Todavia foi caminhando como um autómato. Avançava  como um soldado que, horrivelmente ferido, ainda cumpria, pela força da disciplina, a missão a que se considerava  obrigado.

       Foi nesse estado de espírito que executou o seu restante trabalho. Depois voltou para casa, com o coração pesado como chumbo e a cabeça doendo-lhe horrorosamente. Chegou  tarde, por volta das sete da noite. Já estava na hora de recomeçar o trabalho das consultas e do dispensário.

       A sala da frente estava cheia, o dispensário repleto.

       Arrastadamente, como um moribundo, lançou um olhar para a sala, calculando o número de clientes, que, apesar da linda noite de Verão, tinham vindo prestar homenagem à sua competência e à sua personalidade. Predominavam as mulheres, na maioria empregadas da Casa Laurier, que vinham há muitas semanas, animadas pelo seu sorriso, pela sua diplomacia, dominadas pela sua sugestão para que continuassem o remédio. «A gente de sempre», resmungava, apático, «a intrujice de sempre!»

       Deixou-se cair na cadeira giratória do dispensário e, com ares profissionais, deu início à representação habitual.

       - Como passa? Sim, vejo que está um pouco melhor. O pulso está mais firme. O remédio está a dar bom resultado. Espero que o gosto não lhe pareça muito desagradável, minha cara senhora.

       E saía do dispensário, entregava o frasco vazio a Christine,  que esperava do lado de fora, atravessava o corredor, entrava no consultório, fazendo ali as mesmas perguntas  banais, despendendo a mesma falsa simpatia; depois atravessava  de volta o corredor, agarrava no frasco cheio e entrava novamente no dispensário. E completava assim  o círculo infernal da sua própria danação.

        Estava uma noite sufocante. Andrew sofria muito, mas continuava a movimentar-se, um pouco para se atordoar  muito porque não podia estacar naquela íngreme ladeira que era agora a sua vida. Girando de um para o outro lado, num vaivém desesperado, não se cansava de perguntar  a si mesmo: «Até onde chegarei, meu Deus, até onde?»

        Finalmente mais tarde do que de costume, quase às dez, foi-se o último cliente. Fechou a porta da rua do dispensário e encaminhou-se para o gabinete da frente, onde, como de costume, Christine o esperava, pronta para o ajudar a fazer as contas do dia.

       Pela primeira vez depois de muitas semanas, Andrew observou-a com atenção, fitando intensamente o rosto de Christine, que, de olhos baixos, apreciava a lista que tinha na mão. Andrew sentiu-se chocado pela mutação do seu rosto. A expressão era estática e sem vida, a boca tinha um ar de cansaço. Embora Christine não levantasse a cara, havia nos seus olhos uma tristeza mortal.

       Sentado à secretária, diante do «Caixa», Manson sentia uma dor interior. Mas o enervamento de que estava possuído impediu que a dor se manifestasse por um soluço. Antes que ele pudesse falar, Christine começou a fazer as contas em voz alta.

       E Andrew continuava a escrituração... Uma cruz em cada visita, um círculo em cada consulta, fazendo a soma da sua cupidez. Quando a concluiu, Christine perguntou numa voz cuja mordaz ironia ele só agora observava:

       - Muito bem! Qual foi o lucro hoje?

       Andrew não respondeu, não pôde responder. Christine saiu. Ele escutou os seus passos na escada, a caminho do quarto; ouviu o som de uma porta que se fechava mansamente  e encontrou-se sozinho, vazio, desnorteado, estupefacto.

        «Para onde vou eu por este caminho, meu Deus?» De repente os olhos fixaram a caixa de charutos, cheia de dinheiro, com toda a receita do dia, e, tomado novamente  de súbito desespero, agarrou na caixa e atirou-a de encontro à parede. Ela caiu com um rumor surdo.

       Andrew levantou-se. Sentia uma sufocação, não podia respirar. Abandonando o consultório, foi para o pátio da casa, um abismo de sombra sob as estrelas, apoiou-se dèbilmente  ao muro e começou a vomitar violentamente.

 

       Andrew mexeu-se na cama a noite toda, inquieto, sem poder dormir. Só ao amanhecer conseguiu conciliar o sono.

       Levantou-se tarde, pálido, com olheiras. Ao descer, depois das nove, viu que Christine já havia tomado o café e saído. Normalmente o facto não teria significação. Mas naquele dia a ausência da mulher fê-lo compreender, numa angústia  súbita, como estavam agora afastados.

       Quando Emily lhe trouxe ovos e presunto, Andrew nada pôde comer. Os músculos do pescoço estavam doridos recusavam-se ao trabalho de mastigar. Bebeu uma xícara de café e, num impulso, preparou uma dose forte de whisky. Bebeu-o de um golo. Só depois se decidiu a enfrentar  a tarefa do dia.

       Embora a acção da rotina ainda o amparasse, os seus  movimentos eram menos automáticos do que no dia anterior.

        Uma réstia de luz, ainda muito ténue, ia forçando o nevoeiro da sua combalida natureza. Compreendeu estar na iminência de uma queda brusca. Compreendeu também que se caísse no abismo nunca mais de lá sairia. Cautelosamente,  procurando animar-se a si mesmo, abriu a garagem  e tirou o carro. Esse simples esforço humedeceu-lhe as palmas das mãos.

       O seu principal objectivo naquela manhã era chegar ao Vitória. Tinha um encontro marcado com o Dr. Thoroughgood  para observarem Mary Boland. Aquele, pelo menos, era um compromisso a que não queria faltar. Conduziu  devagar até ao hospital. De facto sentia-se melhor no automóvel do que a pé. À força do hábito o conduzir tornara-se uma ocupação automática, um mero reflexo.

       Chegou ao hospital, arrumou o carro e subiu à enfermaria. Com um cumprimento de cabeça para a enfermeira, tomou a papeleta de Mary e sentou-se na ponta do leito dela. Recebeu o seu sorriso acolhedor e viu o lindo ramalhete  de rosas que estava na mesinha da cabeceira, mas continuou estudando as indicações da papeleta, nada animadoras.

       - Bons dias - disse ela. - Não são lindas essas rosas? Foi Christine quem as trouxe, ontem de tarde.

       Andrew fitou-a. Não estava afogueada, mas parecia um pouco mais magra.

       - Sim, são lindas. E como vai passando, Mary?

       - Ora... muito bem - no primeiro momento, os olhos dela evitaram os de Andrew, mas logo depois encararam-no cheios de confiança. - Seja como for, eu sei que não será por muito tempo. Vai-me curar muito em breve.

       A confiança que havia nas suas palavras, e principalmente  no seu olhar, produziu em Andrew uma palpitação dolorosa e pensou intimamente: «Se as coisas correrem também mal neste aspecto será o fim de tudo».

       Nesse momento o Dr. Thoroughgood começou a inspecção  pela enfermaria. Logo que entrou viu Andrew e dirigiu-se-lhe  imediatamente.

       - Bons dias, Manson - disse, com bom humor. - Por aqui? Que há? Está doente?

       Andrew levantou-se.

       - Estou perfeitamente bem, obrigado.

       O Dr. Thoroughgood olhou-o com ar intrigado e voltou-se  para a cama de Mary.

       - Gostei que me pedisse que visse este caso na sua companhia. Deixe-me ver a papeleta, enfermeira.

       Durante dez minutos observaram Mary. Depois Thoroughgood  encaminhou-se para uma janela, no fundo da enfermaria, onde, sem perder de vista toda a sala, podiam conversar sem serem ouvidos.

       - E então? - perguntou Thoroughgood.

       Ainda absorto, Andrew ouviu a sua própria voz:

       - Não sei o que pensa, Dr. Thoroughgood, mas tenho a impressão de que a marcha da doença não é animadora.

       Thoroughgood cofiou a barbicha:

       - De facto, há dois ou três indícios... Parece-me que há uma ligeira extensão.

       - Não penso assim, Manson. A temperatura é instável.

       - É... talvez. Desculpe-me a insistência, doutor... Compreendo perfeitamente as nossas posições, mas este caso interessa-me muito. Dadas as circunstâncias, o doutor não acharia de considerar o recurso do pneumotórax? Deve lembrar-se que eu insisti para que o tentássemos quando Mary, a doente, deu entrada no hospital.

       Thoroughgood olhou de lado para Manson. A sua fisionomia  alterou-se, tomou aspecto obstinado.

       - Não, Manson. Não me parece que seja caso para pneumotórax. Não o empreguei quando ela para cá veio e não o vou empregar agora.

       Um silêncio se estabeleceu. Andrew nada mais disse. Conhecia Thoroughgood, a sua teimosia invulgar. Além disso sentia-se exausto, física e moralmente, sem energia para persistir numa discussão que julgava inútil. Escutava impassível as digressões de Thoroughgood, que expunha a sua maneira de ver o caso. Quando o outro concluiu e voltou à sua inspecção, Andrew aproximou-se de Mary, disse-lhe que voltaria no dia seguinte e saiu da enfermaria.

       Antes de abandonar o hospital, pediu ao porteiro que comunicasse  para casa que não o esperassem para o almoço.

       Era quase uma hora. Ainda estava triste, possuído de pensamentos dolorosos, sem vontade de comer. Perto de Battersea Bridge parou em frente de uma casa de chá. Pediu café e torradas. Mas não pôde beber o café e sentiu náuseas no estômago às primeiras torradas. Viu que a criada o olhava com curiosidade.

       - Não estão boas? - perguntou ela. - Posso trocá-las.

       Fez um gesto negativo com a cabeça e pediu a conta. Enquanto a criada escrevia, pôs-se a contar distraidamente os botõezinhos negros e lustrosos do vestido dela. Já uma vez, havia muito tempo, olhara assim para três botõezinhos de madrepérola da blusa de uma professora de Blaenelly.

       Lá fora uma névoa amarelada caía opressivamente sobre  o rio. Lembrou-se de repente que tinha dois compromissos para aquela tarde, no consultório de Welbeck Street. Foi conduzindo o automóvel devagar.

       A enfermeira Sharp estava de mau humor, como sempre acontecia nos sábados em que tinha de trabalhar. Contudo, o aspecto de Andrew era de tal natureza que ela lhe perguntou  se estava doente. Depois, num tom mais suave porque sempre tivera pelo Dr. Hamson a maior consideração, informou que Freddie já telefonara duas vezes depois  do almoço.

       Quando ela saiu da sala, Andrew sentou-se junto da secretária, com o olhar vago, sem nada fixar. O primeiro cliente chegou às duas e meia. Era um jovem funcionário do Departamento de Minas, a quem fora indicado pelo Gill. Era um cardíaco. Sofria realmente de perturbações valvulares. Manson deu-se conta de que estava a estudar o caso muito minuciosamente, dando-lhe o máximo da atenção, explicando ao doente todos os detalhes do tratamento.

       Por fim, quando este fez o gesto de tirar a carteira, apressou-se a dizer:

       - Não me pague agora. Espere que eu lhe mande a conta.

       Uma sensação estranha se apossou dele ao pensar que nunca chegaria a cobrar a conta, que já não tinha a preocupação absorvente do dinheiro, que ainda era capaz de o desprezar como nos velhos tempos.

       Entrou logo depois o segundo cliente, uma mulher dos seus quarenta e cinco anos. Era a Sr.a Basden, uma das suas mais dedicadas clientes. Sentiu o coração oprimir-se quando ela apareceu. Rica, egoísta e hipocondríaca, era uma segunda edição, mais jovem, mas mais antipática, daquela Sr.a Reaburn que vira certa vez em companhia de Hamson, na Casa de Saúde Sherrington.

       Escutou-a, aborrecido, com a mão na testa. Ela, toda risonha, fazia um relatório circunstanciado de todas as manifestações do seu organismo desde a última consulta, alguns dias antes. De repente, Andrew ergueu a cabeça.

       - É por isso que vem ao meu consultório, Sr.a Basden?

       Interrompida no meio de uma frase, a sua cara era cómica; a parte superior ainda se manifestava prazenteira, mas a boca caía devagar, num esgar de surpresa.

       - Eu sei que tenho a culpa - continuou. - Eu disse-lhe que voltasse. Mas, com franqueza, a senhora não sofre de coisa alguma.

       - Dr. Manson! - a mulher arfava, sem poder acreditar no que ouvia.

       Era a verdade absoluta. Numa análise implacável, Manson  chegara à conclusão de que todos os sintomas que a mulher apresentava eram devidos exclusivamente ao dinheiro. Nunca trabalhara um dia em toda a sua vida. O corpo era mole, gordo, superalimentado. Se não dormia era porque os músculos nenhum esforço faziam. O próprio cérebro permanecia parado. Toda a sua actividade se resumia  em cortar cupões de obrigações, receber dividendos, ralhar com as criadas e inventar o que ela e o lulu da Pomerânia deviam comer. O remédio era abandonar o comodismo, fazer qualquer coisa aproveitável. Nada de pílulas, sedativos, hipnóticos, colagogos e todas essas drogas!

       Porque não dava aos pobres alguma coisa do que lhe sobrava? Porque não se interessava pela sorte do próximo,  deixando de pensar exclusivamente em si mesma? Mas nunca seria de utilidade para alguém, nunca! Nada adiantava aconselhá-la. Aquela criatura estava espiritualmente  morta e ai dele! ele também.

       - Queira desculpar-me - disse aborrecido. - Não lhe posso dedicar mais os meus cuidados, Sr.a Basden. Eu... é possível que tenha de viajar. Mas encontrará certamente outros médicos que terão muito gosto em alimentar-lhe as suas manias.

       Ela abriu a boca repentinamente como um peixe fora de água. Depois a fisionomia deixou transparecer uma verdadeira  apreensão. Estava convencida, muito convencida, de que o médico perdera o juízo. Não quis discutir mais. Levantou-se,  agarrou precipitadamente a mala e saiu a toda a pressa.

       Disposto a voltar para casa, Andrew deu volta à chave das gavetas da secretária com ar de quem fecha a loja.

       Antes, porém, de levantar-se, entrou, alvoroçada e risonha,  a enfermeira Sharp.

       - O Dr. Hamson chegou agora! Preferiu vir pessoalmente a telefonar.

       Logo depois entrou Freddie. Animadíssimo, acendeu um cigarro, puxou uma cadeira. Havia qualquer coisa no seu olhar. A sua atitude nunca fora tão afectuosa.

       - Desculpa, meu velho, se venho roubar-te tempo numa tarde de sábado. Mas sabia que estavas no consultório e quis dar-te dois dedos de conversa. Olha, Manson: contaram-me  esse caso da operação de ontem e não minto em dizer-te que fiquei satisfeitíssimo. Já era tempo de ficares esclarecido a respeito do nosso amigo Ivory. Nesse momento a voz de Hamson tomou um acento malévolo.

       - É bom que saibas, meu velho, que tenho andado ultimamente um pouco afastado do Ivory e do Freedman. Não têm procedido correctamente comigo. Havia entre nós uma certa combinação que rendia bastante, mas depois cheguei à conclusão de que esses dois tipos ficavam com a maior parte dos lucros. Além disso o feitio de carniceiro do Ivory já me irritava. Não sabe operar. Tens carradas de razão. Ele não passa de um miserável abortador. Ah, não sabes disso? Posso garantir-te o fundamento das minhas palavras. Aqui perto, apenas a uns cem quilómetros daqui, existem duas casas de saúde que não se dedicam a outra coisa. Tudo muito encapotado e a preços exorbitantes, é claro. E sabes quem as dirige? Ivory! Freedman não lhe fica atrás. É um negociante de drogas muito sujo e sem ao menos a distinção do Ivory. E compreende, amigo: se te conto estas coisas é para teu bem. Prefiro que fiques sabendo como são no fundo esses dois tipos porque acho que deves afastar-te deles e entrar comigo em acordos mais íntimos. Ainda não tens experiência e por isso estás a ser demasiadamente explorado. Os teus ganhos poderiam ser muito maiores. Não sabes que o Ivory costuma dar cinquenta por cento a quem lhe proporciona uma operação? É só por isso que lhe mandam tantos clientes! E quanto te dá ele a ti? Uns miseráveis quinze por cento;  vinte quanto muito. Isso não é suficiente, Manson! E depois da matança de ontem, eu, se estivesse no teu caso, não o toleraria mais. Agora, aqui entre nós, tenho uma boa ideia. Ainda não disse coisa alguma, é claro; sou decente de mais para fazer isso. Mas o plano é este... vamos estabelecer um acordo, tu e eu. Vamos fazer uma boa sociedade por nossa própria conta. Afinal, somos camaradas  de escola, não é verdade? Eu gosto de ti, sempre gostei e posso oferecer-te um feixe de vantagens.

       Freddie parou para acender outro cigarro e depois sorriu cordial, expansivamente, disposto a mostrar todas as vantagens  como provável sócio.

       - Não fazes ideia dos recursos de que disponho. Queres saber a minha última? Injecções a três guinéus... de água destilada! Um destes dias uma cliente veio tomar a sua vacina. Pois eu não me esqueci em casa do diabo da ampola? Pois bem! Para que ela não perdesse os passos, injectei-lhe a velha ITO. E a mulher voltou no dia seguinte para me dizer que aquela injecção lhe dera mais resultado,  pois que se sentira melhor, do que as outras. Então continuei. E porque não? A fé é que salva. Mas fica sabendo que também prescrevo toda a espécie de remédios, quando necessário. Graças a Deus, nunca deixo de ser um profissional! Graças a Deus! E justamente por ser correcto é que eu e tu podemos entrar num acordo. Ah! Manson! Tu, com os teus títulos, e eu, com o meu savoir-faire,  podemos fazer grandes coisas. É claro que a combinação  tem de ser habilidosamente preparada. Manda para mim o cliente que entenderes para eu confirmar o diagnóstico. Além disso tenho em vistas um operador, jovem e distinto, cem vezes melhor que o Ivory! Poderemos  montar mesmo, no futuro, a nossa casa de saúde. E então, velho amigo, estaremos conservados!

       Andrew continuava estático, rígido, mudo. Não tinha raiva a Hamson. Sentia apenas um amargo desprezo por si mesmo. Nada poderia ter mostrado de modo mais expressivo  a que ponto havia chegado, tudo o que tinha feito, que caminho seguira... Por fim, compreendendo que tinha de responder qualquer coisa, murmurou:

       - Não posso entrar num acordo contigo, Freddie. Eu... aborreci-me disto tudo de repente. Parece-me que vou deixar  isto aqui por algum tempo. Há canalhas de mais nesta zona de Londres. Bem sei que existe um certo número de homens de bem, procurando trabalhar com decência, escrupulosos  na clínica, dignos de apreço. Mas os outros não passam de canalhas. São canalhas que dão essas injecções inúteis, que arrancam amígdalas e apêndices que não fazem  mal algum, que mandam os clientes de um para outro como se fossem bolas de futebol; que dividem honorários, fazem abortos, recomendam médicos pseudocientíficos,  ganham o dinheiro de qualquer maneira.

       A cara de Hamson foi-se avermelhando pouco a pouco.

       - Que diabo é isso! - balbuciou Freddie. - Não tens feito a mesma coisa?

       - Não nego, Freddie - disse Andrew, num tom pesado. - Não sou melhor do que os outros. E não quero que haja o menor ressentimento entre nós. Foste sempre o meu melhor amigo.

       Hamson pulou na cadeira.

       - Perdeste o juízo ou quê?

       - Talvez tenha perdido de facto o juízo. Seja como for, quero mudar de vida, deixar de pensar em dinheiro e em sucesso material. Essas coisas não são dignas de um bom médico. Quando um colega nosso ganha cinco mil libras por ano é um caso perdido. E porque... porque se há-de querer ganhar dinheiro à custa dos sofrimentos alheios?

       - Mas que grandíssimo idiota! - respondeu Hamson em voz bem clara. Voltou as costas e abandonou a sala.

       Andrew sentou-se novamente à secretária, sozinho, desolado. Por fim levantou-se e foi para casa. Ao aproximar-se, sentiu o coração bater com força. Eram quase seis da tarde. Toda a tensão do seu longo dia atribulado parecia chegar ao auge. A mão que enfiou a chave na fechadura da porta da rua estava trémula, muito trémula.

       Encontrou Christine na sala da frente. Ao vê-la ali, pálida e silenciosa, um arrepio perpassou-lhe pelo corpo.

       Como desejava que ela perguntasse, com o interesse antigo, porque tinha passado tantas horas longe dela! Mas Christine  disse apenas numa voz desinteressada:

       - Tiveste hoje um dia muito comprido. Queres tomar chá antes do serviço do dispensário?

       - Hoje à noite não há dispensário.

       Christine fitou-o:

       - Mas é sábado... O dia de maior movimento.

       A única resposta de Andrew foi escrever um aviso no qual declarava que o dispensário estaria fechado à noite.

       Atravessou o corredor, pendurou o aviso na porta. O coração  agora batia tanto como se fosse rebentar. Quando voltou, encontrou Christine no consultório, ainda mais pálida,  com os olhos cheios de apreensão.

       - Que aconteceu? - perguntou ela numa voz estranha.

       Andrew encarou-a e então extravazou toda a angústia que procurava conter, a onda do sentimento rompeu todos os diques da contensão nervosa.

       - Christine!

       Tudo dentro dele falou nesta única palavra. No mesmo  instante caiu ajoelhado junto dela, a soluçar.

 

       A reconciliação foi uma coisa sublime, a maior maravilha da vida de Andrew e Christine desde os primeiros dias do seu amor. Na manhã seguinte, que era domingo, ficou deitado junto dela, como naqueles dias de Aberalaw, falando, falando, e, como antigamente, abrindo-lhe o coração.

       Pairava lá fora a quietude do domingo. A música dos sinos era como uma sugestão de paz e tranquilidade. Mas Andrew não estava tranquilo.

       - Como cheguei a isto? - resmungava, aflito. - Eu estava  doido, Chris? Quando penso nessas coisas nem posso acreditar no que fiz. Eu metido com essa gente depois de conhecer Denny e Hope! Meu Deus! Mereço um grande castigo!

       Ela procurava consolá-lo:

       - Tudo aconteceu de uma forma tão precipitada, querido!... Era de uma pessoa perder completamente a cabeça.

       - Falando sério, Chris! Parece-me que enlouqueço quando penso nessas coisas. E como deves ter sofrido durante todo esse tempo! Deus do Céu! Deve ter sido um verdadeiro martírio.

       Christine sorria, começara a sorrir novamente. Como era tocante, maravilhoso mesmo, ver o rosto dela perder o ar de desânimo e indiferença gelada, para se mostrar meigo outra vez, feliz, cheio de carinho para ele. «Graças a Deus», pensava Andrew intimamente, «estamos de novo a viver».

       De repente, enrugando a testa:

       - Só nos resta uma coisa a fazer. - Apesar da vibração nervosa, sentia-se forte agora, livre de um nevoeiro de ilusão, pronto para agir. - Temos de sair daqui. Afundei-me  de mais, Chris, de mais! Se ficasse aqui, lembrar-me-ia a cada momento do grupo de charlatães com que me meti... E quem sabe se não voltaria a ser o que fui? Podemos passar a clínica facilmente. E sabes, Chris? Tenho uma ideia estupenda!

       - Qual, querido?

       Desfez-se a ruga nervosa da testa de Andrew e sorriu para ela, tímida, carinhosamente.

       - Há quanto tempo que não me chamavas querido! Isso encanta-me! Sim, eu sei. A culpa foi minha... Mas, não me deixes, Chris, tornar a discutir essas coisas! A minha  ideia... Sabes como me ocorreu esse plano? Veio-me à cabeça quando acordei hoje. Lembrei-me, indignado, da proposta do Hamson para formarmos uma sociedade ignóbil. E de repente surgiu a ideia... Porque não formar uma sociedade honesta, decente? É o que costumam fazer os médicos dos Estados Unidos. Stillman fala-me sempre nisso, embora não seja médico diplomado. Aqui, entretanto, parece que não há isso. Pensa, Chris: mesmo numa cidadezinha de província pode ter-se uma clínica, com um pequeno grupo de médicos, cada um entregue à sua especialidade. Escuta: em vez de me meter com Hamson, Ivory e Prédelman,  porque não me junto a Denny e Hope, formando com eles uma trindade de primeira ordem? Denny faria todo o trabalho de cirurgia... sabes como ele é bom operador! Eu ficaria com a parte de clínica geral e Hope seria o nosso bacteriologista. Pensa que coisa boa seria cada um de nós especializado no seu sector e todos contribuindo com os seus conhecimentos para uma empresa de ajuda mútua. Talvez te recordes do que costumava dizer o Denny, e eu também, sobre o nosso deplorável sistema de clínica sem especializações. O pobre do clínico geral tem de ser pau para toda a obra, tentando carregar um peso que os ombros não podem suportar. Uma coisa intolerável. A solução,  a verdadeira solução, tem de ser esta: um grupo de médicos trabalhando de acordo, honestamente. É o meio termo entre a medicina socializada e a actividade individual,  o esforço isolado. Se isto ainda não existe aqui é apenas porque os grandes querem assambarcar tudo. Mas, querida! Não seria magnífico se pudéssemos formar um pequeno grupo de vanguarda científica espiritualmente puro? Seríamos uma espécie de pioneiros para acabar com preconceitos, fazer ruir os falsos ídolos e, quem sabe?, começar uma verdadeira revolução em todo o nosso sistema  médico.

       Com o rosto encostado no travesseiro, Christine fitou-o com olhos brilhantes.

       - Quando falas assim, parece que voltamos aos velhos tempos, meu querido. Nem tenho palavras para te dizer como isso me agrada. É como se estivéssemos a começar outra vez! Como me sinto feliz, querido, tão feliz!

       - Tenho de me penitenciar de muita coisa - continuou ele num tom sombrio. - Fui um doido, Chris. Pior do que doido. - Apertou a testa com as mãos. - Não me sai da cabeça o Harry Vidler. Só descansarei quando fizer alguma coisa que me redima - E de repente, resmungando: - Tive tanta culpa como o Ivory, Chris. Sinto que não me libertarei dessa ideia facilmente e não seria mesmo justo que me libertasse. Mas hei-de trabalhar como um desesperado, Chris, e tenho a certeza de que Denny e Hope me acompanharão. Conheces as ideias deles. Denny anda realmente ansioso por trabalhar de novo a sério. E quanto a Hope... Ora, se tiver um laboratoriozinho onde possa fazer nas horas vagas as suas pesquisas, ele acompanhar-nos-á até ao fim do mundo.

       Saltou da cama e começou a atravessar o quarto lado a lado com a impetuosidade dos bons tempos, excitado ao mesmo tempo pelas promessas do futuro e pelo remorso do passado, a cabeça num torvelinho, cheio de inquietações,  de esperanças, de planos.

       - Tenho de resolver muitas coisas, Chris - exclamou - e uma delas não quero adiar. Escuta, querida! Vou escrever agora algumas cartas... Mas, depois do almoço, queres dar um passeio comigo fora da cidade?

       Ela fitou-o interrogativamente.

       - Mas não disseste que tens muito que fazer?

       - Mas isso está em primeiro lugar. Sinceramente, Chris, tenho uma grande preocupação por causa da Mary Boland. Ela não está a passar bem no Vitória e não me tem sido possível prestar-lhe uma assistência eficaz. Thoroughgood está com muito má vontade e parece que não compreende perfeitamente o caso, pelo menos na minha opinião. Meu Deus! Parece-me que endoideceria se acontecesse alguma coisa a Mary, tanto mais que me responsabilizei por ela perante o pai. É horrível ter de dizer isso, pois se trata do meu próprio hospital, mas a verdade é que ela nunca ficará boa no Vitória. Deve ir para o campo, para um lugar saudável, para um bom sanatório.

       - Parece-te?

       - É por isso que quero ir contigo até à clínica do Stillman... Bellevue é o lugar mais bonito, mais adorável que podes imaginar. Se eu conseguisse levar a Mary para lá... Ah! Não só ficaria descansado, como teria a impressão de haver feito alguma coisa de aproveitável.

       Christine respondeu logo, decidida:

       - Vamos lá assim que estiveres pronto.

       Depois de vestir-se, Andrew desceu e pôs-se a escrever a Denny e Hope. Só tinha três visitas inadiáveis a fazer e aproveitou-as para pôr as cartas no correio. Na volta, encontrou Christine já pronta. Comeram alguma coisa e partiram.

       Apesar de o espírito de Andrew continuar dominado pela tensão nervosa, o passeio foi muito feliz. Compreendia  agora, mais do que nunca, que a felicidade é um estado de alma, que não depende  não obstante a opinião dos clínicos  dos bens materiais. Durante todos aqueles meses em que lutara para conquistar fortuna, posição e todas as formas de sucesso material, considerara-se feliz. Mas a verdade é que não o fora. Vivera numa espécie de delírio, uma obsessão constante de obter mais e mais. «Dinheiro», pensava com amargura, «só vale quem tem o maldito dinheiro!». No começo dissera a si mesmo que precisava de ganhar mil libras por ano. Quando atingiu esta quantia  quis ter o dobro. Mas quando chegou a ganhar duas mil libras, ainda não ficou satisfeito, e não foi tudo. Queria  sempre mais, ainda mais, e essa ganância acabaria por liquidá-lo.

       Olhou de soslaio para Christine. Quanto teria sofrido por causa dele! Mas agora, se Andrew quisesse ter a confirmação  de que estava no bom caminho, nenhuma prova seria mais concludente do que a transformação que se operara na sua fisionomia radiante, feliz. Não um rosto bonito porque a vida deixara ali as suas marcas: sinais de cansaço e de lágrimas, pequenas rugas em torno dos olhos, covas nas faces pálidas que outrora tinham sido frescas e coradas. Mas era um rosto que conservava uma expressão de serenidade e de franqueza. Aquele rosto animava-se agora de modo tão vivo e tocante que Andrew sentiu, ao observá-lo, um novo surto de arrependimento jurou intimamente que nunca mais, em toda a sua vida, havia de dar a Christine razão para mágoa.

       Às três da tarde já estavam em Wycombe. Tomaram então por um caminho lateral que levava ao alto da colina de Lacely Green. Situada esplendidamente num pequenino planalto, Bellevue tinha uma posição soberba, com lindas vistas para os vales.

       Stillman acolheu-os cordialmente. Era um homenzinho reservado, pouco expansivo, de raros entusiasmos, mas exprimiu a satisfação que lhe causava a visita de Andrew, mostrando toda a beleza e eficiência da sua criação.

       O sanatório era pequeno de propósito, mas não se podia pôr em dúvida a eficiência das suas instalações. compunha-se  de duas alas com grandes terraços, que se uniam na parte central, destinada à administração. Por cima do vestíbulo e dos escritórios, uma sala de curativo e tratamento  admiravelmente guarnecida de aparelhagem. Toda a parede da parte sul era de vidro vita. Eram do mesmo material todas as janelas. O sistema de aquecimento e de ventilação era a última palavra. Enquanto visitava Bellevue,  Andrew não podia deixar de notar o contraste daquela maravilha de eficiência técnica com os casarões antigos, centenários, que serviam de hospital em Londres, e com as moradias mal adaptadas e mal providas de aparelhagem que se mascaravam de casas de saúde.

       Terminada a visita, Stillman convidou-os para tomar chá. E nesse momento, num arranco, Andrew entrou no assunto:

       - Tenho horror a pedir favores, Sr. Stillman. - Christine  teve de sorrir ao escutar a velha chapa, já quase esquecida. - Mas seria possível receber uma doente minha? Começo de tuberculose. Tudo parece indicar que é um caso para pneumotórax. Trata-se da filha de um grande amigo meu, um dentista... A jovem não segue bem onde está. Nos olhinhos azuis de Stillman notava-se uma ponta de ironia.

       - Isso significa que me quer enviar um cliente... Os médicos daqui não costumam fazê-lo, embora costumem fazer os da América. Não se esqueça de que eu aqui sou um curandeiro, um charlatão, que mantém um sanatório suspeito onde os doentes tem de passear descalços sobre a relva molhada antes de ingerirem as suas cenouras grelhadas.

       Andrew não sorriu.

       - Não tome o meu pedido por graça, Sr. Stillman. O caso dessa pequena interessa-me extraordinariamente. Ando  preocupadíssimo com ela.

       - Receio, meu amigo, não ter lugar para novos clientes. Apesar da desconfiança de que sou vítima por parte de toda a classe médica, há uma porção de gente à espera de vaga. É estranho! - Stillman deixou transparecer afinal,  discretamente, um sorriso. - Com tantos médicos há uma multidão que quer tratar-se comigo 

       - Que pena! - murmurou Andrew. A recusa do americano  representava uma grande decepção para ele. - E eu que estava quase a contar com isso! Se pudéssemos internar  a Mary aqui... que alívio seria para mim. A verdade é que tem aqui o melhor sanatório da Inglaterra. Não estou a adulá-lo. Digo isso porque o sinto. Quando penso naquela velha enfermaria do Vitória onde a minha doente permanece... Quando me lembro de que ela está ali com baratas a correr por debaixo da cama!...

       Inclinando o corpo, Stillman tomou uma sanduíche da mesinha próxima. Tinha um jeito especial, engraçado, de tomar qualquer coisa com as pontas dos dedos, como se tivesse acabado de lavar as mãos cuidadosamente e temesse sujá-las.

       - Muito bem! Está a representar a sua comédia irónica, hem? Não, não devo falar assim. Vejo que está preocupado. Eu ajudá-lo-ei. Embora se trate de um médico, tomarei a sua doente ao meu cuidado. - Notando a expressão parada  de Andrew, o americano fez um trejeito. - Note que não tenho as vistas curtas. Não me importo de tratar com a gente da profissão, quando a isso me vejo obrigado. Porque  não acha graça? Não vê que é uma ironia? Não faz mal. Mesmo sem ironia é cem vezes mais esclarecido do que a maioria dos seus colegas. Deixe-me ver. Só na próxima semana é que terei um quarto vago. Julgo que quarta-feira. Traga-me a sua doente na quarta-feira da próxima semana e desde já lhe prometo fazer por ela tudo o que puder.

       Com a gratidão expressa nos olhos, Andrew não sabia como exprimi-la.

       - Eu... eu não sei como lhe agradecer... Eu...

       - Pois então não agradeça e não procure ser muito educado. Gosto mais de si quando parece que vai atirar a gente pela janela fora. Sr.a Manson, ele nunca lhe atirou com a louça à cabeça? Um grande amigo meu, lá na América, proprietário de dezasseis jornais, costuma partir toda a louça de casa quando se zanga com a mulher. Pois bem, um dia...

       Pôs-se a contar uma longa anedota, que pareceu a Andrew absolutamente sem sentido. Mas, ao voltar para casa, já ao anoitecer, dizia ele a Christine:

       - De qualquer maneira é já uma coisa resolvida. Um grande peso que tiro da consciência. Tenho a certeza de que Mary não poderia ter melhor tratamento. É um tipo extraordinário, esse Stillman. Gosto dele, de facto. À primeira vista nada se dá pelo homem, mas por dentro é feito de aço. Quem sabe se não poderíamos ter uma clínica deste género? Uma coisa assim, embora mais pequena, para mim, o Hope e Denny. Parece uma esperança absurda, hem? Mas quem sabe? Estive a pensar... Se Denny e Hope me acompanhassem e nos instalássemos juntos na província... Poderíamos escolher um local perto de uma dessas zonas carboníferas, porque assim poderia retomar o trabalho  sobre inalação. Que dizes, Christine?

       A sua única resposta foi olhar para um lado e para outro e, com risco de provocar escândalo na rua movimentada,  dar-lhe um beijo bem repenicado.

 

       Na manhã seguinte Andrew levantou-se cedo, depois de uma noite bem dormida. Sentiu-se retemperado e pronto para a acção. A primeira providência foi uma telefonadela para a agência Pulger & Turner, especializada em transacções  entre médicos, confiando-lhe a venda da clínica.

       Gerald Turner, o chefe actual da antiga e conceituada firma, atendeu pessoalmente e, a pedido de Andrew, veio imediatamente a Chesborough Terrace. Depois de um exame dos livros, assegurou-lhe que não teria a menor dificuldade  em arranjar comprador.

       - É claro, doutor, que temos de mencionar nos anúncios uma justificação para a venda - disse gentilmente o Sr. Turner, batendo nos dentes com a extremidade do lápis. - Qualquer pretendente terá desejo de saber a razão por que um médico abandona uma mina de ouro como esta. Desculpe-me a liberdade, mas é mesmo uma mina de ouro. Há muito tempo que não me passa pelas mãos uma clínica tão rendosa. Podemos alegar motivos de doença?

       - Não - respondeu Andrew, abruptamente. - Diga a verdade. Diga... - conteve-se - basta dizer: por motivos  particulares.

         - Muito bem, doutor. - E o Sr. Gerald Turner escreveu  no livro de notas: - «Transferência por motivos particulares e alheios à clínica».

       Andrew concluiu:

       - E não se esqueça: não exijo uma fortuna. Quero apenas um preço razoável. É bem possível que muitos clientes não queiram continuar com o meu sucessor.

       À hora do almoço, Christine entregou-lhe dois telegramas. Andrew pedira a Denny e a Hope que lhe telegrafassem  assim que recebessem as cartas enviadas na véspera.

       O primeiro, de Denny, era bem simples: «Impressionado.  Espere-me amanhã à noite».

       O segundo declarava num estilo bem característico: «O meu destino é esbanjar a vida no meio de doidos. Parece que falou em laboratório. Contribuinte indignado.»

       Depois do almoço Andrew correu ao hospital. Não era a hora da visita de Thoroughgood, mas isso convinha-lhe admiravelmente. Queria evitar discussões e aborrecimentos, principalmente com o colega mais antigo, que sempre o tratara muito bem, apesar da teimosia e da consideração que dedicava aos cirurgiões-barbeiros de outrora.

       Sentado na beira da cama de Mary, Andrew explicou-lhe o que pretendia fazer.

       - Para começar, devo dizer que a culpa foi minha - e bateu-lhe no ombro, tranquilizadoramente. - Eu devia ter previsto que este lugar não te servia. Verás a diferença quando fores para  Bellevue. Não calculas, Mary! Mas todos aqui foram muito amáveis para contigo e não há necessidade de magoar alguém. Deves dizer apenas que queres sair na próxima quarta-feira, deixar o hospital. Se te acanhas em dizer isso, direi a teu pai que escreva ordenando a tua saída. Há muita gente à espera de vaga e eles não levantarão dificuldades. Então, na quarta-feira, eu mesmo irei levar-te a Bellevue. Está tudo combinado, até falei a uma enfermeira para ir connosco. Nada mais simples... nem melhor para ti.

       No regresso, Andrew tinha a impressão de haver realizado  alguma coisa de útil, sentia que estava a pôr novamente em ordem a sua vida, que deixara tombar em tão horrível confusão. Naquela noite, no dispensário, resolveu despedir severamente os clientes crónicos, não se importando  de sacrificar a sua fama de sedutor. Em menos de uma hora teve de declarar, firmemente, mais de dez vezes:

       - Não deve voltar mais à consulta. Já cá vem há muito tempo. Não padece de qualquer doença. E não continue a tomar remédios!

       Estava admirado do alívio que sentia depois de pronunciar  estas palavras. Ter essa franqueza, essa honestidade,  era um prazer que não experimentava desde muito tempo. Quando foi para junto de Christine tinha uma animação quase juvenil.

       - Agora já não me julgo tanto um charlatão de feira! - E resmungando: - «Meu Deus! Como posso falar assim!... Ía-me esquecendo do que aconteceu... Vidler... tudo o que eu fiz!».

       Neste momento o telefone tocou. Christine foi atender.  Andrew teve a impressão de que ela se demorou muito para voltar. Quando a viu a sua expressão pareceu novamente perturbada.

       O telefone é para ti.

       - Quem é?... - De repente adivinhou que se tratava de Frances Lawrence. Houve um silêncio na sala. Depois, Andrew falou precipitadamente: - Diz-lhe que não estou. Diz-lhe que me fui embora. Não, espera! - tomou um ar decidido e caminhou com passo firme. - Deixa que eu falo.

       Ao voltar, uns cinco minutos depois, encontrou-a sentada,  a fazer tricot num canto da sala onde a luz era mais intensa. Olhou-a disfarçadamente, desviou logo a vista e encaminhou-se para a janela. Ficou ali, aborrecido, olhando para a rua, com as mãos nos bolsos. O leve ruído das agulhas de Christine comunicava-lhe uma impressão estranha, constrangedora. Era como se fosse um cachorrinho triste e vulgar voltando para casa de cauda caída e pêlo arrepiado depois de uma escapada com os cães vadios.

       Num determinado momento, não se conteve. Ainda de costas disse para ela:

       - Isso também acabou. Talvez te interesse saber que não passou de uma tola questão de vaidade... Sim, de vaidade, de egoísmo e de ambição. Nunca deixei de te querer um só instante.  - E numa explosão repentina: - C’os diabos, Chris! O verdadeiro culpado fui eu. Essa gente não sabe o que é decência, mas eu devia saber. Não é justo que procure desculpar-me com tanta facilidade. Mas fica sabendo também, Chris, que já me libertei do Roy. Aproveitei estar perto do telefone e liguei para ele, desistindo do emprego que me prometera. Não quero saber mais das suas porcarias. Afastei-me de toda aquela cambada. Definitivamente!

       Ela não respondeu, mas o leve ruído das suas agulhas era agora, na sala silenciosa, mais vivo, mais animado.

       Andrew deve ter ficado ali muito tempo. Intimamente envergonhado, olhando o movimento da rua, vendo os últimos vestígios do sol apagarem-se no crepúsculo do Verão. Por fim, quando se voltou, as sombras da noite já tinham invadido a sala, mas Christine continuava sentada  ali, meio invisível na penumbra da sua poltrona: uma figurinha quase apagada, a fazer tricot.

       Naquela noite Andrew acordou alagado em suor, aflito, procurando-a às cegas na cama, ainda sob a impressão terrível do pesadelo.

       - Chris, onde estás? Perdoa-me, Chris, perdoa-me. Juro que para o futuro procederei honestamente contigo. - E depois,  já tranquilizado, quase adormecido. - Vamos gozar umas férias quando vendermos isto aqui. Meu Deus! Como os meus nervos estão destroçados. E pensar que já te chamei neurasténica!  Quando voltarmos e nos instalarmos seja onde for, terás um jardinzinho, Chris. Eu sei que gostas de flores. Lembras-te..., lembras-te de Vale View, querida?

       Na manhã seguinte Andrew voltou para casa com um grande ramo de crisântemos. Esforçava-se com o afecto de outrora por demonstrar todo o seu carinho, não com a generosidade ostensiva que ela detestava. Ficava arrepiado  só de pensar naquele almoço do Plaza. Era com o carinho dos velhos tempos, simples, modesto, sincero.

       À hora do chá trouxe um bolo de que ela gostava muito. Não contente foi buscar para ela as chinelinhas de andar por casa. Christine levantou-se da cadeira, franzindo  a testa, protestando afectuosamente:

       - Não, querido, não faças isso! Vou pagar caro. Daqui a uns dias arrancarás os cabelos e tratar-me-ás aos berros... Como costumavas fazer antigamente.

       - Chris! - exclamou ele, magoado, sentido. - Não vês que tudo mudou? De hoje para o futuro só pensarei em te ser agradável.

       - Está bem, está bem, meu querido. - Sorria, mas nos seus olhos havia lágrimas. E com uma decisão repentina de que Andrew não a julgaria capaz: - Tudo me serve quando há verdadeira união entre nós. Não quero que corras atrás de mim com mimos. Só te peço  que não corras atrás de mais alguém.

       Como prometera, Denny chegou naquela noite, ainda a tempo de jantar. Trazia um recado de Hope, que lhe telefonara  de Cambridge, avisando que não podia vir a Londres naquele dia.

       - Diz que não pode vir por causa de negócios - declarou  Denny, enchendo o cachimbo. - Mas desconfio muito de que o nosso amigo Hope anda namorando e quer casar. Está romanticamente apaixonado, o nosso bacteriologista.

       - Ele nada disse sobre a minha ideia? - perguntou Andrew,  ansioso.

       - Disse, sim. Está animadíssimo. A paixão não impede. Podemos contar com ele. Eu também estou muito animado.

       Denny desenrolou o guardanapo e serviu-se de salada.

       - Não sei mesmo como um plano tão razoável surgiu numa cabeça como a sua. E eu a imaginar que estava receitando   perfumarias para a clientela aristocrática! Conte-me pormenores.

       Andrew explicou tudo, com todos os detalhes, numa eloquência crescente. Começaram a discutir o plano nos seus aspectos práticos. Já tinham falado muito quando Phillip disse:

       - Na minha  opinião, não  devíamos  optar por uma cidade grande. Uma cidadezinha de vinte mil habitantes seria o ideal. É onde podemos fazer coisas interessantes. Consulte um mapa de West Midlands. Encontrará ali uma porção de cidadezinhas industriais com uns quatro ou cinco médicos que se detestam cordialmente, cada um procurando atrapalhar a vida dos outros. Têm de fazer tudo e acabam nada fazendo de aproveitável. É num lugar assim que temos de tentar a experiência do nosso sistema de cooperação especializada. Não convém comprar qualquer  clínica. É só chegar e pôr mãos à obra. Meu Deus! Já estou a ver a cara dos médicos da terra!... É claro que teremos de enfrentar uma tremenda campanha de insultos. Poderemos até ser assassinados. Mas voltando ao realizável, do que precisamos é de uma clínica central e, como diz, de um laboratório anexo, para o Hope. Podemos ter mesmo uns dois ou três quartos para doentes no andar superior. Para começar, uma coisa modesta. O problema é apenas de adaptar, e não de construir, um edifício. E tenho a impressão de que triunfaremos. - Nisto, dando pelo interesse animado com que Christine seguia as suas palavras, Phillip sorriu. - Que lhe parece isto tudo, minha senhora? Uma loucura, não é verdade?

       - Sim, uma loucura - respondeu ela com a voz um pouco tomada. - Mas são as loucuras que contam.

       - Muito bem dito, Chris! Por Deus! São as loucuras que contam.

       Andrew deu um murro na mesa que fez os talheres tinirem.

       - O plano é bom! Mas o que vale de facto é o ideal que o anima! Uma nova interpretação do juramento de Hipocrates: absoluta fidelidade ao ideal científico, nada de empirismo, nada de charlatanices, nem de explorações de clientes, nem preparados de reclame, nem xaropadas para enganar neurasténicos, nem...  Upa!  Por amor de Deus, dá-me qualquer coisa que se beba! A minha garganta está seca de tanta conversa. Preciso de um alto-falante!

       Ficaram a trocar impressões até à uma da manhã.

       O entusiasmo intenso de Andrew contagiava até o próprio Denny, tão frio habitualmente. Este já não podia apanhar o último comboio. Phillip teve portanto de ocupar o quarto de hóspedes e, no dia seguinte, ao sair apressado, logo depois do café, prometeu voltar a Londres na sexta-feira seguinte. Nesse intervalo falaria com Hope e, prova suprema do seu entusiasmo!, compraria um mapa grande de West Midlands.

       - A coisa vai, Chris! A coisa irá para a frente! - Andrew  voltava triunfante da rua. - Phillip está entusiasmado. Não se expande muito, mas eu conheço-o.

       Nesse mesmo dia começaram a aparecer os primeiros pretendentes à compra da clínica. Gerald Turner acompanhava  pessoalmente os candidatos mais prováveis. O corretor  expressava-se fluente e elegantemente, e discorria com optimismo até mesmo sobre a arquitectura da garage.

       Na segunda-feira o Dr. Noel Lowry apareceu duas vezes sozinho de manhã e acompanhado pelo corretor à tarde.

       Pouco depois Turner telefonava para Andrew, numa suave confidência:

       - O Dr. Lowry está interessado; posso dizer mesmo muito interessado. Insiste muito para que não fechemos o negócio com qualquer outro pretendente antes que sua mulher venha ver a casa. Ela está numa praia de banhos, com as crianças. Chegará na quarta-feira.

       Era o dia combinado para levar Mary a Bellevue, mas Andrew achou que o assunto, entregue a Turner, estava em boas mãos. Tudo correra no hospital como previra. Mary deixaria o Vitória às duas da tarde. Ele esperá-la-ia na porta com a enfermeira Sharp.

       Chovia muito quando, à uma e meia, o carro parou em frente do consultório de Welbeck Street, para conduzir a enfermeira. A mulher estava de mau humor e esperava-o de aspecto carrancudo. Desde que Andrew a avisara de que dispensaria os seus serviços no fim do mês, mostrava-se  ainda mais sombria e ríspida. Respondeu com um resmungo  ao cumprimento do médico e entrou no automóvel.

       Felizmente tudo correu bem no hospital. Mary apareceu à porta da rua assim que o carro parou em frente do Vitória. Instalou-se no banco traseiro na companhia da enfermeira, bem agasalhada, com um saco de água quente nos pés. Entretanto, Andrew não tardou a arrepender-se de haver trazido aquela enfermeira carrancuda e desconfiada. Era evidente que ela considerava a viagem como um trabalho fora das suas obrigações e Manson não sabia explicar como a suportara tanto tempo.

       Às três e meia chegaram a Bellevue. Já não chovia e o sol começava a aparecer por entre as nuvens. Mary inclinava-se para a frente, a examinar com olhos inquietos, talvez mesmo de apreensão, o sanatório que lhe haviam descrito com tanto entusiasmo.

       Andrew encontrou Stillman no escritório. Estava ansioso  para que ele observasse a doente quanto antes, pois a questão do pneumotórax não lhe saía da cabeça. Falou-lhe  a esse respeito, enquanto fumavam um cigarro e bebiam chá.

       - Muito bem - concordou  Stillman, quando o outro concluiu. - Vamos examinar a doente agora mesmo.

       Guiou Manson ao quarto de Mary. Ela já estava deitada,  abatida pela viagem e ainda apreensiva, a observar a enfermeira Sharp, que arrumava as suas roupas num canto do aposento. Assustou-se um pouco quando viu Stillman entrar.

       Este examinou-a meticulosamente. Foi um exemplo para Andrew: exame sereno, silencioso, absolutamente preciso.

       Não tomava ares importantes e convencionais. Não procurava  impressionar. Nem mesmo parecia um médico em exercício. Era como um técnico a examinar uma determinada  máquina que não funcionava bem. Embora empregasse  o estetoscópio, era pelo tacto que fazia a maior parte das pesquisas, apalpando os espaços intercostais e supraclaviculares,  como se pudesse conhecer, pelos dedos subtis, a verdadeira condição das células vivas dos pulmões.

       Quando terminou o exame, nada disse a Mary, mas fez sinal a Manson para que o acompanhasse.

       - Pneumotórax  disse.  Não  há   dúvida  alguma.  É uma coisa que já devia ter sido feita há muitas semanas. Vamos tratar disso imediatamente. Vá e avise a pequena.

       Enquanto o americano saía para tratar dos preparativos, Andrew voltou ao quarto e avisou Mary. Procurou tranquilizá-la com as palavras mais animadoras, porém era evidente que a perspectiva da intervenção imediata a perturbava.

       - É o senhor quem vai fazer? - perguntou ela nervosamente. - Prefiro que seja o senhor.

       - É uma coisa muito simples, Mary. Não sentirá a menor dor. Eu estarei lá, para ajudar. Pode ter a certeza de que tudo correrá bem.

       Era sua intenção deixar tudo a cargo de Stillman. Mas a doente estava tão nervosa, tinha tanta fé nele, e sentia-se também tão responsável pela sua presença ali, que  resolveu entrar na sala dos tratamentos e oferecer a sua assistência ao americano.

       Dez minutos depois estavam prontos para a acção. Quando Mary chegou, Andrew aplicou-lhe a anestesia local.

       Depois, enquanto Stillman introduzia habilmente a agulha, colocou-se perto do manómetro, fiscalizando o fluxo, na pleura, do azoto esterilizado. O aparelho era extraordinariamente  delicado e Stillman um mestre incontestável  na técnica. Manobrava a cânula com admirável destreza, sem desviar os olhos do manómetro, pois o estalido final anunciaria a perfuração da pleura parietal. Stillman tinha um método próprio de manipulação profunda para prevenir  qualquer manifestação de enfisema cirúrgico.

       Depois da primeira fase de intenso nervosismo, a inquietação  de Mary ia cedendo gradualmente. A confiança foi crescendo no decurso da operação e por fim a doente já sorria para Andrew, completamente tranquila. Ao voltar ao quarto disse-lhe:

       - Tinha razão. Não sinto coisa alguma. Nem parece que sofri uma operação.

       - Ah, sim? - levantou as sobrancelhas. E num sorriso: - É assim que deve ser... Nada de encenação; nada que possa impressionar o doente. Eu gostaria que todas as operações fossem assim! Mas, com toda essa calma, conseguimos imobilizar o seu pulmão. Vai entrar em repouso agora. Quando voltar de novo a respirar, estará curado. Posso garantir!

       Mary olhou-o demoradamente, após o que passeou a vista pelo quarto alegre, pela janela donde se desfrutava uma linda paisagem.

       - Creio que vou gostar disto aqui, apesar de tudo. Ele não procura ser agradável... Falo do Sr. Stillman... Mas, assim mesmo, dá uma óptima impressão. Posso tomar chá?

 

       Eram quase sete horas quando Andrew abandonou Bellevue.  Demorou-se muito mais do que esperava. É que ficara a conversar na varanda, gozando a frescura da tarde e a agradável conversa de Stillman. No caminho de regresso,  achava-se possuído de uma extraordinária sensação de tranquilidade, de paz. Compreendeu ser a influência do americano, da sua personalidade, da sua quietude moral,  da sua indiferença pelas vaidades da vida. E isso era um sedativo para o seu espírito sobressaltado.

       Além disso sentia-se aliviado a respeito de Mary. Comparava  o que fizera no começo, despachando-a sumariamente  para um hospital em ruínas, com o que realizara naquela tarde. Sem dúvida que lhe dera muito trabalho, muito incómodo e não estava muito em regra com a ortodoxia  médica. Tinha também de pensar na conta. Embora não tivesse falado com Stillman na questão do preço, sabia que Boland não estava em condições de suportar as contas de Bellevue. Ele é que teria de pagar. Mas isso não tinha importância perante a satisfação íntima de ter levado a cabo uma tarefa que o dignificava. Pela primeira vez depois de tantos meses acreditava ter praticado uma acção realmente elevada. Era uma convicção que o animava,  que o confortava, como o começo da sua reabilitação. Conduzia devagar, desfrutando da doçura da noite.

       A enfermeira Sharp ia novamente no banco traseiro, mas calada e, mergulhado nas suas meditações, Andrew ignorava-a. Quando entraram em Londres, perguntou-lhe onde queria que a deixasse e, consoante a sua indicação, largou-a na estação do metro de Notting Hill. Era um alívio despachá-la.

       - Boa enfermeira, não havia dúvida, mas antipática e incómoda. Sentia que ela sempre o detestara.

       Decidiu mandar-lhe pelo correio, no dia seguinte, o ordenado  do mês. Era um recurso para não a aturar mais.

       Ao atravessar Paddington Street, toda a satisfação íntima de Manson desapareceu como por encanto. Sentia-se  mal todas as vezes que passava pela loja de Vidler. Olhando furtivamente, viu a tabuleta «Consertos em Geral,  Ld.a». Um empregado fechava as portas.

       Esse simples facto era tão significativo que Manson sentiu um arrepio. Mal disposto, acelerou o andamento até Chesborough Terrase. Guardou o carro e entrou em casa com uma tristeza estranha a oprimir-lhe o coração.

       Christine veio ao seu encontro toda entusiasmada. Ao  contrário do marido, parecia satisfeitíssima. Os olhos brilhavam   com o reflexo de boas notícias.

       - Está tudo vendido! - declarou com alvoroço. - Tudo, querido! Clínica, móveis, casa, garagem, até a cave. Acabam de sair agora mesmo daqui. O doutor e a Sr.a Lowry. - E explicou a rir-se. - O homem ficou tão nervoso por não apareceres para atender os clientes que ele mesmo fez o serviço do dispensário. Convidei-os para jantar. Conversámos  bastante. Sem se abrir muito, a cara da Sr.a Lowry dava a entender que talvez tivesses sido vítima de um desastre de automóvel. Acabei por ficar apreensiva. Mas agora que chegaste, estou contente. Terás de te encontrar com o Dr. Lowry amanhã, na agência. As onze horas. É para assinar o contrato. Ah! É verdade... O doutor já deu o sinal ao Sr. Turner.

       Andrew acompanhou-a à sala de jantar, de cuja mesa haviam já sido retirados os pratos. Embora Andrew tivesse gostado de ter passado a clínica, não podia demonstrar naquele momento um grande entusiasmo.

       - Foi de facto uma boa solução, não foi? - continuou  Christine. - Resolvemos isso depressa. Suponho que ele não vai exigir uma apresentação muito demorada à clientela. Estive a pensar em muitas coisas antes de tu chegares. E se nós passássemos um tempo fora antes de retomares  a actividade? Em Vale André, por exemplo... Vivemos  ali um tempo tão agradável! - parou de repente, olhando de frente o marido. - Que tens, meu amor?

       - Nada - sorriu ele, sentando-se. - Apenas um pouco cansado. Talvez porque não jantei.

       - Que  me  dizes! - exclamou  Christine,  alarmada. - Pensava que tivesses jantado em Bellevue, antes do regresso. - Olhou em torno da sala. - E já levantei a mesa e deixei a criada ir ao cinema!

       - Não tem importância.

       - Tem, sim. Compreendo agora porque não ficaste alegre  com a venda da clínica. Espera um momento, que eu vou arranjar-te qualquer coisa. Que preferes? Posso aquecer  um pouco de sopa, estrelar uns ovos... Que mais queres?

       - Bastam os ovos, Chris! Não te preocupes. Bem, se puderes, traz também um bocado de queijo.

       Momentos depois já ela estava de volta, trazendo numa bandeja talheres, pratos, ovos estrelados, um pouco de salada, pão, biscoitos, manteiga e queijo. Colocou a bandeja  na mesa. Quando Andrew se sentou, ela foi à despensa e trouxe uma garrafa de cerveja.

       Enquanto o marido comia, ela observava-o risonha, cheia de solicitude.

       - Queres saber uma coisa? Tenho pensado muitas vezes que nós seríamos felizes, mesmo se vivêssemos numa casa pobre, apenas com uma cozinha e um quarto. Essa história  de aristocracia não liga connosco. Agora que voltei a ser a mulher de um trabalhador, sinto-me completamente  feliz.

       Andrew continuou a comer. Era evidente que a comida lhe estava a saber bem.

       - Outra coisa, querido - e Christine pôs as mãos no queixo, de uma maneira muito particular. - Tenho pensado  muito nestes últimos dias. Anteriormente andava embrutecida, mesmo parva. Mas, desde que novamente nos entendemos tudo me parece claro!... As coisas só têm valor quando se é obrigado a lutar por elas. Quando vêm sem esforço, quando são presentes da sorte, não dão o menor prazer. Lembras-te  daqueles  dias em Aberalaw? Como vivíamos, como vivíamos contentes mesmo com tantas  privações! Pois bem! Tenho a impressão de que recomeçamos. É a nossa maneira de ser, querido. Somos assim! Sou tão feliz por isso!

       Andrew fitou-a.

       - Sentes-te realmente feliz?

       Christine deu-lhe um beijo.

       - Nunca fui tão feliz em toda a minha vida. - Estiveram uns instantes calados. Andrew pôs manteiga num biscoito e levantou a tampa do prato do queijo. Ficou decepcionado. O que havia não era o seu predilecto Libtauer, mas um queijo barato que a criada usava como condimento. Ao dar por isso Christine soltou uma exclamação de quem se censura e continuou: - Eu devia ter ido hoje à casa de Frau Schmidt!

       - Não tem importância, Chris!

       - Mas não está certo! - tirou-lhe o queijo antes que ele se servisse. - Eu aqui a fazer de menina sentimental, sem pensar nas minhas obrigações, e tu tão cansado, cheio de fome! Que bela mulher de trabalhador estou a demonstrar  ser! - Levantou-se, olhou para o relógio. - Deixa-me ir depressa, antes que feche a pastelaria.

       - Ora, Chris! Deixa...

       - Peço-te, querido! - fê-lo calar alegremente. - Empenho-me  nisso. É natural... Tu gostas do Libtauer, eu gosto de ti... então...

       E saiu da sala antes que ele pudesse protestar. Andrew ouviu os seus passos apressados no vestíbulo, o leve ruído da porta que se fechava. Os olhos ainda sorriam. Só Christine  era capaz dessas coisas! E pôs manteiga noutro biscoito,  à espera do queijo saboroso que ela traria.

       O silêncio era completo dentro de casa. A criada fora ao cinema e a Florie com certeza estava a dormir. Boa ocasião para se entregar aos seus pensamentos: Stillman era um homem admirável e Mary não tardaria a ficar completamente curada. Que sorte ter deixado de chover durante a tarde! A viagem de regresso fora uma delícia.

       A paisagem era tão alegre e tranquila! Graças a Deus, Christine teria em breve um jardinzinho. Ele, o Denny e o Hope poderiam ser linchados pelos cinco médicos de West Midlands. Mas mesmo assim Chris teria, o jardinzinho.

       Começou a comer distraidamente um dos biscoitos. Perderia  o apetite se ela se demorasse. Devia estar a conversar com a Frau Schmidt. Boa criatura a alemã. Fora ela quem lhe tinha mandado os primeiros clientes. Se ao menos tivesse continuado modestamente, com decência, em vez de... bom, eram águas passadas, graças a Deus! Christine e ele estavam bem novamente. Mais felizes que nunca. Que maravilha ser digno de ouvir o que ela dissera momentos  antes.

       Acendeu um cigarro.

       Nisto a campainha da porta retiniu com estridência.

       Levantou a cabeça, abandonou o cigarro e encaminhou-se para a porta. A campainha vibrou mais uma vez. Andrew abriu a porta.

       Percebeu imediatamente haver um tumulto do lado de fora: uma multidão na rua, cabeças e ombros que se comprimiam  no escuro. Antes que pudesse descobrir de que se tratava, o guarda que havia tocado a campainha avançou.

       Era o amigo Struthers, o sinaleiro. Mas como estava pálido!

       - Doutor! - ofegava como um homem que viesse a correr. - A sua mulher foi atropelada. Ia a atravessar a rua... Deus do Céu... Ia a atravessar a rua... e nisto veio um autocarro!...

       Andrew sentiu gelar o coração. Antes que pudesse pronunciar  palavra, a confusão, num momento, entrou pela casa dentro; num torvelinho a multidão invadiu o hall.

       Frau Schmidt, debulhada em lágrimas, um condutor de autocarro, outro polícia, pessoas estranhas, todos a empurrá-lo,  a arrastá-lo para o consultório. Depois, avançando  por entre a multidão, carregada por dois homens, a pobre Christine. A cabeça pendia para trás, inanimada.

       Os dedos da mão esquerda ainda seguravam pelo cordão o embrulhinho do queijo. Deitaram-na sobre a marquesa do consultório. Estava morta.

 

       O golpe foi tremendo, esmagador. Durante alguns dias Andrew não deu por viver. Se em momentos de lucidez ele se apercebia da presença de Emily, Denny e, uma vez ou duas, de Hope, passava o resto do tempo num atordoamento completo, fazendo com estranho automatismo tudo quanto lhe mandavam, profundamente mergulhado no fundo pesadelo do seu desespero. O sistema nervoso, já muito atingido, aumentava a sua tragédia criando no seu calado espírito negros e horrorosos remorsos. Acordava de repente, alagado em suor, gritando numa angústia delirante.

       Foi através de uma nuvem confusa que assistiu ao inquérito,  ao processo tão banal e cheio de formalidades, ao depoimento das testemunhas que se permitiam o luxo de retalhes tão desnecessários. Não tirava os olhos da figura atarracada de Frau Schmidt, por cujas faces rechonchudas  as lágrimas corriam sem parar.

       - Estava tão alegre, ria tanto quando esteve lá em casa! Não se cansava de repetir: «Depressa, por favor! Não quero que meu marido espere muito...».

       Quando ouviu o juiz manifestar as suas condolências pelo triste acontecimento, compreendeu que o caso estava encerrado. Levantou-se maquinalmente e viu-se na rua caminhando ao lado de Denny.

       Nunca soube como se fizeram os preparativos para o funeral. Tudo se passou, misteriosamente, fora do seu conhecimento. A caminho do cemitério de Kensal Green, o pensamento pairava longe de si, aqui e ali, principalmente  no passado. E lá dentro, entre aqueles muros sombrios, lembrou-se das largas e claras perspectivas de Aberalaw, da montanha que ficava atrás do Vale View e onde pastavam, felizes, os potros selvagens. Ela gostava de passear  por lá, de sentir o ar fresco da serra banhar-lhe o rosto e agora estava ali, sepultada naquele cemitério da cidade tão sombrio e fechado.

       Naquela noite, sob a pressão da avassaladora nevrose, procurou esquecer com o álcool. Mas o whisky só lhe excitou  o desprezo de si mesmo. Ficou vagueando no quarto até altas horas da madrugada, resmungando, acusando-se numa voz de bêbado:

       «Pensavas estar livre da punição. Pensavas que não terias de pagar. Mas estavas muito enganado! Crime e castigo! És o único culpado de tudo o que aconteceu. Tens de sofrer!».

       Saiu de casa sem chapéu e errou pela rua, a cambalear.

       Parou de olhos esbugalhados diante da loja fechada de Vidler. Ao voltar, com as lágrimas escorrendo-lhe pela cara, resmungava ainda, amarguradamente: «com Deus não se brinca! Christine disse isso uma vez. Com Deus não se brinca, meu amigo!».

       Subiu trôpegamente a escada, vacilou, entrou no quarto, silencioso, frio, abandonado. Viu sobre o toucador a bolsa de Christine. Apanhou-a, encostou-a ao rosto e abriu-a com dedos trémulos. Tinha dentro algumas moedas, a conta de Frau Schmidt, um lenço. No compartimento do centro encontrou alguns papéis. Além de um retratinho deles  um instantâneo já meio apagado, tirado em Blaenelly  os  cartões de agradecimento que os clientes de Aberalaw lhe haviam enviado pelo Natal. Ela guardara tudo isso, durante tantos anos, como verdadeiros tesouros! Um soluço  enorme elevou-lhe o peito. Caiu de joelhos, junto da cama e desatou a chorar convulsivamente.

       Denny não fez a menor tentativa para impedir que ele bebesse. Andrew tinha a impressão de que Phillip estava quase sempre em casa. Não podia ser por causa da clínica, pois o Dr. Lowry já entrara em funções. Morava fora, mas vinha atender as consultas e as chamadas. Mas Andrew nada sabia nem queria saber do que se passava. Tinha os nervos em farrapos. O som da campainha da porta era o suficiente para que o coração lhe batesse loucamente. Se dava uma passada sentia as mãos inundarem-se de suor frio. Passava os dias sentado no quarto torcendo um lenço entre os dedos, enxugando de vez em quando as mãos húmidas, olhando o fogo da lareira, convencido de que mais uma noite de insónia teria de passar.

       Uma manhã Denny apareceu-lhe e disse-lhe:

       - Estou finalmente livre, graças a Deus. Agora podemos seguir.

       Nem uma tentativa de recusa esboçou. Não tinha o mínimo  poder de resistência. Nem sequer perguntou aonde iam. Apático e silencioso, viu Denny arranjar a sua mala. Ao fim de uma hora já estavam na estação de Paddington.

       Viajaram a tarde toda na direcção do sudoeste. Fizeram transbordo em Newport e seguiram para Monmouthhire. Desceram em Abergavenny. Ali, ao saírem da estação, Denny alugou um automóvel. Atravessaram a cidade e penetraram em pleno campo, onde o Outono se manifestava  nos seus tons mais belos. Ali Philip abriu-se:

       - Há aqui um lugarzinho onde eu noutro tempo costumava  vir pescar: a abadia de Llantony. Suponho que nos convém.

       Às seis horas chegaram ao destino. As ruínas da abadia, com as suas enormes lajes cinzentas, polidas, erguiam-se sobre um terreno relvado. Ainda subsistiam algumas arcadas  dos claustros. Perto havia um hotel modesto, construído  inteiramente com as pedras provenientes da abadia. O leve murmúrio do regato que corria em frente era um constante convite ao repouso, e na tarde tranquila subia para o céu, muito azul e direito, o fumo de um fogão de lenha.

       Na manhã seguinte, Denny arrastou Andrew para um passeio. Era um dia fresco e estimulante, mas Andrew estava tão quebrado pela noite sem dormir, sentiu-se tão cansado logo à primeira subida, que quis voltar mal tinham  dado alguns passos. Denny, todavia, insistiu energicamente  e obrigou-o a andar oito milhas e dez no dia seguinte. No fim da semana já andavam vinte milhas por dia. Quando voltava para o quarto, ao anoitecer, Andrew mergulhava num sono de pedra logo que caía na cama.

       Ninguém havia a perturbá-lo. Apenas alguns pescadores,  mas mesmo a época das trutas nessa altura estava a terminar. Comiam numa casa de pavimento lajeado numa comprida mesa de carvalho, em frente da lareira aberta onde ardia um bom fogo. A comida era boa e apetitosa.

       Quase não conversavam durante as caminhadas. As vezes andavam o dia todo sem trocar mais do que meia dúzia de palavras. A princípio, Andrew não olhava a paisagem,  mas pouco a pouco, sem que ele disso se apercebesse, à medida que os dias iam passando a beleza dos bosques e das colinas floridas ia despertando os seus sentidos embotados.

       O ritmo do seu restabelecimento não foi rápido, mas ao fim do primeiro mês já suportava a fadiga das longas caminhadas, já comia e dormia normalmente, tomava banho frio de manhã e encarava o futuro sem temor. Compreendeu que Denny nada poderia ter escolhido de melhor para a sua convalescença do que aquele lugar isolado, aquela vida espartana e monástica. Quando caíram as primeiras geadas sentiu na alma uma alegria há muito não experimentada.

       Começou de repente a conversar. De princípio coisas sem importância. Como um atleta que se prepara com exercícios leves para mais rudes provas, o espírito de Andrew  ainda se mantinha reservado ao aproximar-se da vida. Mas, imperceptivelmente, Denny ia-o pondo a par dos acontecimentos.

       A clínica fora vendida ao Dr. Lowry, embora com um pequeno abatimento no preço fixado por Turner, atendendo  a que as circunstâncias não permitiram uma apresentação  em regra do novo médico aos clientes. Hope completara enfim o tempo do seu contrato e estava agora em casa da família, em Birmingham. Denny também estava desocupado. Pedira a demissão antes de vir a Llantony.

       A dedução era tão evidente que Andrew levantou logo a cabeça e comentou:

       - No começo do ano eu já devo estar apto para o trabalho.

       Começaram daí em diante a falar praticamente e ao fim de uma semana já havia desaparecido a expressão dura e apática de Andrew. Parecia-lhe estranho e melancólico  que o espírito humano pudesse sobrepor-se a um golpe tão profundamente mortal. No entanto, quisesse ou não, o seu restabelecimento era um facto. No começo arrastava-se com indiferença estóica, maquinalmente, mas agora aspirava com prazer o ar frio das manhãs, batia nas árvores com a ponta da bengala, arrancava a correspondência  das mãos de Denny e invectivava o carteiro quando não lhe trazia o Medical Journal.

       À noite os dois companheiros estudavam um grande mapa. com o auxílio de um anuário fizeram uma lista de cidades com interesse para o fim em vista. Eram muitas, mas depois de uma selecção rigorosa só restavam oito: duas em Staffordshire, três em Northamptonshire e três em Warwickshire.

       Denny partiu na segunda-feira seguinte e esteve ausente uma semana. Durante esses sete dias, Andrew sentiu renascer,  impetuosamente, o seu antigo desejo de trabalhar, mas trabalhar de facto de acordo com as suas ideias, fazendo coisas sérias em companhia de Hope e Denny.

       Tomou-o enorme impaciência. Na tarde de sábado foi a pé até à estação de Abergavenny para esperar o último comboio  da semana. Quando voltava, decepcionado, convencido  de que teria ainda de passar duas noites e um dia numa expectativa ansiosa, teve a surpresa de ver um Ford escuro estacionado em frente do hotel. Correu até à porta.

       Entrou na casa de jantar. Denny e Hope, sentados à mesa, banqueteavam-se com presunto, ovos, queijo e pêssego em compota.

       Nesse fim de semana a casa estava unicamente por conta deles. As informações de Denny, transmitidas no decurso do banquete, foram o entusiástico prelúdio de uma veemente discussão. A chuva e o granizo batiam nas vidraças.

        O tempo estava horrível. Mas o facto nenhum interesse tinha para eles. Duas das cidades visitadas por Phillip  Franton e Standborough estavam, segundo a gíria de Hope, «em ponto de rebuçado» para cometimentos médicos. Eram duas cidades semiagrícolas, progressivas, onde algumas indústrias começavam a desenvolver-se. Em Standborough acabava de ser montada a indústria de pneumáticos. Franton  tinha uma grande fábrica de açúcar de beterraba.

       Novas casas estavam a ser construídas. A população aumentava. Mas tanto numa como noutra os serviços médicos  não acusavam o menor progresso. Franton tinha apenas um pequeno hospital e Standborough nem isso. Os casos graves eram levados para Coventry, a quinze milhas de distância.

       Bastaram estas simples informações para os alvoroçar tanto como o rasto de uma lebre alvoroça o faro de um cão de caça. Mas Phillip tinha informações ainda mais interessantes. Desdobrou uma planta de Standborough arrancada de um guia turístico.

       - Tenho  de  confessar que  roubei  isto  no hotel de  Standborough. Parece que começamos bem ali.

       - Diga-me  depressa - rogou  impacientemente  Hope, que já não pensava em fazer graça - que significa este sinal?

       - Isto - explicou Denny, quando todos se debruçaram sobre o mapa - isto aqui é a praça do mercado. Pelo menos devia chamar-se assim. Mas eles lá dão-lhe o nome de «Círculo», não sei porquê. Vocês estão a ver como é: uma praça muito grande, com residências, lojas, escritórios, ao mesmo tempo zonas de moradia e de comércio. O conjunto produz um efeito jorgiano com os seus pórticos e as suas janelas baixas. É lá que mora o médico mais importante do lugar. Tive oportunidade de o ver. É gordo como uma baleia. Tem uma cara vermelha e usa suíças, com queixadas  de carneiro. A propósito, o homem tem dois assistentes... - nessa altura a voz de Denny tomou um tom de irónico lirismo - defronte, do outro lado da encantadora fonte de granito que fica no meio do Círculo, há duas casas de fachadas decentes, casas grandes, bem assoalhadas  e... para vender. Acho, portanto...

       - Pelo que me diz respeito - disse Hope, quase engasgado - devo declarar que nada me agradaria tanto como um laboratóriozinho em frente dessa fonte.

       Continuaram conversando. Denny indicou outros detalhes,  detalhes muito interessantes...

       - É claro - concluiu  ele - que  perdemos completamente o juízo. Ideias como estas são realizadas às mil maravilhas nas grandes cidades americanas, à custa de muita organização e sem olhar a despesas. Mas aqui!... em Standborough!, e sem que qualquer de nós tenha muito dinheiro para gastar!... Além disso, vamos ter entre nós mesmos discussões tremendas. Mas, seja como for... Que Deus se compadeça do velho com queixada de carneiro! - exclamou Hope, levantando-se e estirando os braços.

       No domingo o plano deu mais um passo na senda do progresso. Ficou resolvido que Hope, ao regressar, no dia seguinte, faria um pequeno desvio na viagem para passar em Standborough. Andrew e Denny deveriam encontrar-se com ele ali na quarta-feira. E então sondariam discretamente  o encarregado da venda das casas.

       Tendo perante si a perspectiva de um dia cheio, Hope partiu muito cedo, afrontando com o carrito o lamaçal, antes mesmo que os companheiros acabassem de tomar o café. O céu estava muito carregado e o vento soprava forte. A manhã era tempestuosa, mas estimulante. Depois de tomar o café, Andrew saiu sozinho para dar uma volta.

       Como era bom sentir-se restabelecido, pronto a enfrentar mais uma vez, com o seu trabalho, a grande aventura de uma nova clínica! Agora, que estava próxima a sua realização,  é que compreendia quanto aquela ideia representava para ele.

       Quando voltou, às onze horas, já tinha chegado o correio, com cartas de Londres. Sentou-se à mesa, preparando-se  para a leitura da correspondência. Denny lia o jornal junto da lareira.

       A primeira carta que Andrew abriu era de Mary Boland. Ao passar os olhos pelas várias páginas escritas numa letrinha cerrada, o rosto foi-se-lhe abrindo num sorriso.

       Mary começava com expressões carinhosas, fazendo votos porque ele já estivesse completamente refeito do penoso golpe. Depois, concisamente, dava informações sobre a sua saúde. Estava melhor, infinitamente melhor, quase boa de novo. Havia mais de um mês que a febre desaparecera. Andava já de pé e fazia agora um pouco de exercício. Aumentara tanto de peso que Andrew talvez tivesse dificuldade  em reconhecê-la. Perguntava-lhe se não a ia visitar. Stillman voltara aos Estados Unidos, onde permaneceria alguns meses. Quem o substituía era Marland, o assistente, e Mary terminava com palavras de agradecimento por tê-la levado para Bellevue.

       Andrew pôs a carta de lado e, com a expressão animada pela ideia da cura de Mary, entregou-se ao exame do resto da correspondência. Desprezou toda uma série de circulares, o reclamos de preparados. Tomou depois outra carta. Era um sobrescrito de ofício grande, com aspecto solene de documento oficial. Abriu-o. Havia dentro uma folha de papel almaço.

       O sorriso desapareceu-lhe de repente do rosto. Ficou a olhar para a carta, sem acreditar no que lia. Os olhos arregalavam-se-lhe e tinha no rosto uma palidez de morte.

       Durante mais de um minuto ficou imóvel, fitando, espantado,  o papel.

       - Denny! - disse finalmente em voz baixa.  Leia isto.

 

       Dois meses antes, quando Andrew deixou a enfermeira Sharp na estação de Notting Hill, ela tomou o metropolitano  e saltou em Oxford Circus. Daí seguiu a pé, muito apressada, para a Queen Anne Street. Tinha um encontro marcado com a enfermeira Trent, que trabalhava com o Dr. Hamson. Combinara com a amiga irem juntas aquela noite ao Queen’s Theatre. Mas como já eram oito e quinze e o espectáculo começava às oito e quarenta e cinco, havia muito pouco tempo para se encontrar com a companheira e chegarem ao teatro. Fazia parte do programa um jantar num restaurante da vizinhança. Teriam de contentar-se com uma sanduíche mastigada à pressa, ou talvez nem isso. A enfermeira ia furiosa. Sentia que fora vítima de uma exploração infame. Quando relembrava os acontecimentos  daquela tarde refervia de zanga e indignação.

       Subiu os degraus da entrada do 170 e tocou nervosamente a campainha. Foi a enfermeira Trent quem lhe abriu a porta, mas com uma expressão de censura. Antes que pudesse reclamar,  a amiga disse-lhe apressadamente, segurando-lhe o braço.

       - Perdoa-me, minha querida, mas se soubesses que dia tive! Contar-te-ei mais tarde. É só um momento para me arranjar um pouco. Se não perdermos tempo chegaremos a tempo.

       Nesse momento, enquanto as duas enfermeiras conversavam no patamar, Hamson desceu as escadas todo flamante,  de casaca. Parou ao vê-las. Freddie nunca resistia a qualquer oportunidade de patentear o encanto da sua pessoa. Fazia parte da sua técnica captar simpatias para depois colher os benefícios dessa atitude.

       - Olá, enfermeira Sharp - disse jovialmente ao abrir a cigarreira de ouro. - Parece abatida. Porque estão as duas tão atrasadas? Não tencionavam ir ao teatro? Ouvi falar nisso.

       - Sim, doutor - disse a Sharp. - Mas...  fiquei presa por um dos casos do Dr. Manson.

       - Sim? - na voz de Freddie havia apenas uma ponta de interrogação, mas nada mais foi preciso para a enfermeira  Sharp. Reclamando sempre contra as injustiças de que era vítima, antipatizando com Andrew e admirando Hamson, desatou logo a falar. - Nunca vi semelhante coisa em toda a minha vida, Dr. Hamson. Nunca! Tirar uma doente do Hospital Vitória e levá-la para esse lugar que chamam Bellevue, e eu presa pelo Dr. Manson, enquanto fazia um pneumotórax com um homem que nem sequer é formado... - Mal contendo as lágrimas de ressentimento, a enfermeira contou a história  com todos os pormenores.

       Houve um silêncio  quando  concluiu. Uma expressão estranha brilhava nos olhos de Freddie.

       - Foi desagradável, enfermeira - disse Hamson, afinal. - Mas espero que não perca o teatro. Pode tomar um táxi, que pago eu. Trent, inscreva isso na lista das despesas. Agora, se me dão licença, vou indo.

       - Este, sim, é o que se chama um cavalheiro! - murmurou  a enfermeira Sharp, acompanhando-o com o olhar. - Vamos, minha querida, vamos de táxi.

       Freddie seguiu pensativo para o clube. Desde a zanga com Andrew, via-se forçado a calar o próprio orgulho e voltar a aproximar-se mais intimamente de Fredman e Ivory. Iam jantar juntos naquela noite e menos por malícia  do que pelo desejo de interessar os companheiros a renovar a antiga intimidade, Hamson comentou fortuitamente,  durante o jantar:

       - Parece que o Manson anda a praticar belas acções desde que nos abandonou. Ouvi dizer que arranja agora doentes para esse tal Stillman...

       - Quê? - Ivory largou o garfo.

       - ...e que colabora com ele, pelo que me disseram. - E Hamson esboçou uma versão espirituosa da história.

       Mal acabou de falar, Ivory perguntou-lhe num tom brusco:

       - Isso é verdade?

       - Meu caro - respondeu Freddie num tom de protesto. - Quem me informou foi a própria enfermeira ainda não há meia hora.

       Ivory baixou os olhos e continuou a comer, mas sob a sua calma aparente havia um júbilo selvagem. Nunca perdoara a Manson aquela observação final sobre a operação  do Vidler. Embora não fosse muito susceptível, Ivory tinha o orgulho feroz do homem que conhece o seu ponto» fraco e faz tudo para o esconder. No fundo ele bem sabia ser um cirurgião incompetente. Mas nunca alguém lhe dissera de cara a cara e com violência tão causticante até onde ia a sua incapacidade. Odiava Manson por essa amarga verdade.

       Freddie e Fredman puseram-se a conversar por alguns momentos, quando, de repente, Ivory levantou a cabeça e perguntou com ar de desinteressado:

       - Você tem o endereço dessa enfermeira do Manson?

       Interrompendo o que dizia a Fredman, Hamson olhou astuciosamente para Ivory.

       - Claro que tenho.

       - Parece-me - opinou Ivory com frieza - que se deveriam tomar providências sobre o assunto. Aqui entre nós, Freddie, nunca simpatizei com esse Manson. Mas isso não vem ao caso; o que me interessa exclusivamente é o lado moral da questão. Ainda uma noite destas, numa reunião, o Gadsby esteve a falar comigo acerca desse Stillman. Os jornais já começaram a falar desse americano. Um idiota qualquer arranjou uma lista de pessoas que pretendem ter sido curadas por esse sujeito depois de passarem inutilmente pelas mãos dos médicos. Você conhece essa velha história... Gadsby está indignado. Parece que Cranston, o fabricante de automóveis, foi cliente dele antes de o trocar pelo curandeiro. E agora pergunto: que será de nós, médicos, se não reagirmos contra esses charlatães estrangeiros?

       - Que diabo! Todas as vezes que penso nisso o caso parece-me progressivamente mais grave. Vou entender-me com Gadsby imediatamente. Rapaz! Vê se o Dr. Maurice Gadsby está no clube. Se não estiver diz ao porteiro que telefone para saber se está em casa.

       Pela maneira como ajeitou o colarinho via-se que Hamson  também estava preocupado. Não alimentava rancor nem má vontade contra Manson, a quem sempre quisera bem no seu estilo frívolo e egoísta. Murmurou:

       - Não me meta nisso.

       - Não seja idiota, Freddie. Devemos então admitir que esse tipo suje a nossa reputação e ainda por cima faça impunemente coisas dessas?

       O mandarete voltou com a notícia de que Gadsby estava em casa.

       - Receio, colegas, que não possamos jogar hoje o nosso bridge. A não ser que o Gadsby tenha qualquer compromisso.

       Mas Gadsby nessa noite não estava comprometido e pouco depois Ivory apareceu em sua casa. Embora não fossem amigos íntimos, as suas relações iam ao ponto de autorizar que Gadsby oferecesse a Ivory um cálice de bom vinho do Porto e um charuto de classe. Estivesse ou não informado da reputação de Ivory como operador, Gadsby conhecia pelo menos a sua posição social e isso era mais do que suficiente para que o operador fosse tratado com a devida consideração por Maurice Gadsby, que aspirava ao prestígio mundano.

       Quando Ivory explicou a razão da sua visita, Gadsby não precisou de fingir para mostrar-se muito interessado. Ficou sentado na borda da poltrona, sem tirar os olhos do cirurgião, escutando atentamente.

       - Com mil demónios! - exclamou, com veemência desusada,  ao ouvir o remate da história. - Conheço esse Manson. Esteve connosco, por pouco tempo, na Junta de Mineiros e Metalúrgicos, e posso garantir que foi um alívio para nós vê-lo pelas costas. Um sujeito sem a menor educação, com ares de vagabundo. E isso é de facto autêntico? Ele tirou realmente uma doente ao Thoroughgood? Vamos conhecer a opinião de Thoroughgood sobre o assunto.

       - Ele não só levou a doente para Stillman como também  ajudou na operação.

       - Se isso é verdade - disse Gadsby cauteloso - é um caso para ser julgado pelo G.M.C.(*).

 (*) General Medical College. - Conselho Geral dos Médicos.

       - Bem... - Ivory fingiu-se hesitante. - Era esse exactamente o meu ponto de vista. Mas recuei um pouco. Compreende... Durante certo tempo as minhas relações com esse tipo foram mais estreitas do que as suas. Acho que não me qualificava bem se apresentasse eu a denúncia.

       - Apresentá-la-ei eu - disse Gadsby, com autoridade. - Se o que me contou foi realmente como as coisas se passaram  eu mesmo o denunciarei. Considerar-me-ia em falta para com a minha consciência se não providenciasse imediatamente. O que está em causa é uma questão vital, Ivory. Esse Stillman é um perigo, não tanto para o público, como para a nossa profissão. Creio que lhe contei, naquela noite, o meu caso com esse sujeito. É uma ameaça para os nossos direitos, os nossos diplomas, a nossa tradição. É uma ameaça a tudo que temos de salvaguardar, e o nosso único recurso é negar-lhe qualquer cooperação. Assim, mais cedo ou mais tarde, o homem terá de naufragar por causa da questão da certidão. Veja bem, Ivory! Graças a Deus, isso é um privilégio da profissão. Só nós é que podemos assinar uma certidão de óbito. Mas compreenda... Se esse Manson e outros como ele lhe garantem a colaboração médica, então estamos perdidos. Felizmente o G.M.C, tem procedido sempre com o máximo rigor em assuntos como esse. O caso do Jarvis, que se passou ainda não há muitos anos. Lembra-se? Um profissional prestou-lhe serviços como anestesista, mas foi imediatamente banido do Registo Médico. Quanto mais penso nesse estrangeiro pretensioso mais decidido fico a fazer dele um exemplo. Dê-me licença por um momento. Vou telefonar ao Thoroughgood e amanhã entender-me-ei com a enfermeira.

       Levantou-se e telefonou ao Dr. Thoroughgood. No dia seguinte, em presença do médico do hospital, fez a enfermeira Sharp assinar uma declaração. E tão concludente foi o seu depoimento que Gadsby procurou imediatamente os seus advogados. Detestava Stillman, é claro. Mas também antegozava a vantagem que poderia alcançar apresentando-se  perante a opinião pública como paladino da moralidade médica. Enquanto Andrew convalescia em Llantony, sem saber nada do que se passava, o processo ia seguindo o seu curso.

       É verdade que Freddie, muito impressionado ao ler no jornal a notícia do inquérito sobre a morte de Christine, telefonou a Ivory para evitar a acusação. Mas já era demasiadamente tarde. A denúncia fora apresentada.

       A comissão disciplinar tomou a queixa em consideração e, dando o seu parecer, foi enviada a Manson uma intimação  para comparecer à reunião de Novembro do conselho  médico, a fim de defender-se. Era essa intimação que tinha agora nas mãos, trémulo e emocionado, considerando  o libelo formulado na velha fraseologia jurídica: «Que vós, Andrew Manson, sabendo e querendo, em 15 de Agosto, prestastes assistência a Richard Stillman, pessoa que exerce a medicina sem diploma nem Registo Médico,  e que vos associastes com a fé do vosso grau ao citado Stillman na exploração de tal exercício. E que, em consequência disto, estais acusado de conduta desonesta  no ponto de vista profissional. 

       O caso devia ser julgado em 10 de Novembro e Andrew  chegou a Londres com uma semana de antecedência. Viera  sozinho, pois pedira a Hope e Denny que deixassem o caso  por sua própria conta, e com melancolia amarga hospedou-se no Museum Hotel.

       Embora aparentemente calmo, Andrew estava num verdadeiro desespero íntimo. Oscilava entre crises de amargura e de emocionada incerteza, originadas não somente nas dúvidas sobre o futuro como também na intensa  recordação de todos os momentos já vividos da sua carreira  médica. Seis semanas antes essa crise encontrá-lo-ia ainda ferido pela angústia da morte de Christine, sem energia para lutar, indiferente ao que acontecesse. Mas agora, restabelecido, pronto e ansioso por recomeçar o trabalho, o golpe atingiu-o em cheio cruelmente. compreendeu, com o coração oprimido, que não valeria a pena viver se perdesse de novo as esperanças renovadas.

       Esses e outros pensamentos dolorosos atormentavam-lhe  incessantemente a cabeça, originando por vezes um estado de exasperante confusão. Não podia acreditar que ele, Andrew Manson, estivesse naquela situação horrível,  defrontando realmente o que constitui o pesadelo de todos os médicos. Porque era chamado perante o conselho? Porque queriam eliminá-lo do Registo Médico? Nada fizera de comprometedor. Nenhuma desonestidade praticara, nenhum  delito. Salvara apenas a vida de Mary Boland.

       A sua defesa foi confiada a Hopper & C.a, uma firma de advocacia muito recomendada por Denny. À primeira vista, Thomas Hopper não despertava grande confiança. Era um homenzinho de cara vermelha, óculos de ouro e atitudes nervosas. Devido a qualquer deficiência de circulação de sangue, corava a todos os instantes. E isso dava-lhe certo ar de satisfação própria que não contribuía, evidentemente, para inspirar confiança. Contudo, Hopper tinha  pontos de vista muito firmes sobre o caminho que devia seguir na defesa. Quando Andrew, no primeiro desabafo  da sua indignação furiosa, quis apelar para Sir Robert  Abbey, o único amigo de influência que contava em Londres, Hopper lembrou, num aparte, que Abbey era  membro do conselho, assim como discordou inteiramente,  apesar da insistência aflita de Andrew, da ideia de mandar um telegrama a Stillman, pedindo-lhe que viesse imediatamente.

       Na opinião do advogado, já conheciam todos os argumentos de que o americano poderia servir-se e a presença do homem só serviria para irritar os membros do conselho. Pelo mesmo motivo devia ficar de lado o assistente Marland, que dirigia agora Bellevue.

       Andrew foi compreendendo pouco a pouco a enorme diferença entre o aspecto legal do caso e o seu modo de o considerar. O advogado até franziu o sobrolho, em sinal de reprovação, quando o médico afirmou a sua inocência numa argumentação frenética. Por fim Hopper foi obrigado a declarar:

       - Aí está uma coisa que tenho de lhe pedir, Dr. Manson. Não se manifeste nesses termos durante o julgamento de quarta-feira. Posso garantir-lhe que nada seria mais desastroso para o nosso caso.

       Andrew parou desconcertado, torcendo as mãos, cravando  em Hopper uns olhares incendiados.

       - Mas eu quero que eles conheçam a verdade. Quero mostrar que a cura dessa jovem foi a coisa melhor que eu fiz em muitos anos. Depois de meses e meses de porcarias  profissionais, exercendo a medicina apenas para obter dinheiro, consegui fazer alguma coisa decente, útil... é por isso que sou vítima da perseguição deles.

       Por detrás dos óculos, os olhinhos do advogado mostravam uma apreensão profunda. Na sua aflição, o sangue fluiu-lhe ao rosto.

       - Por favor, Dr. Manson, por favor! Não compreende a gravidade da nossa situação?! Devo aproveitar a oportunidade  para lhe dizer com toda a franqueza que, mesmo se tudo correr bem, as nossas possibilidades de... vitória me parecem diminutas. Os precedentes são todos contra nós: Kent, em 1909; Loriden, em 1912; Foulger, em 1919, todos eles foram condenados por se ligarem a pessoas não diplomadas. Isso sem contar o famoso caso Hexam, em 1921. Deve saber que Hexam foi excluído do Registo por ter aplicado uma anestesia geral a um cliente de Jarvis, ajustador de ossos. Ouça bem! O que desejo de si é que apenas responda às perguntas com um «sim» ou um «não». Se isso não lhe for possível, a máxima concisão. É um aviso solene que lhe faço: se entrar nas considerações que me tem exposto nestes dias não haverá a menor salvação para o caso. O doutor será irradiado fatalmente, estou tão certo disso como de me chamar Thomas Hopper.

       Com profunda melancolia, Andrew compreendeu que devia fazer todo o possível por dominar-se. Era como um doente na mesa de operações. Devia submeter-se a todas as formalidades e exigências do conselho, mas não lhe era fácil chegar a essa passividade. Sentia-se indignado só ao pensar que devia desistir de qualquer ideia de se justificar e responder estupidamente «sim» ou «não» a todas as perguntas.

       Na noite de terça-feira, quando atingiu o auge da febril expectativa do que poderia suceder no dia seguinte, Andrew  pôs-se a andar pelas ruas; em certo momento percebeu  encontrar-se inexplicavelmente em Paddington, caminhando  na direcção da loja de Vidler. Arrastava-o um estranho impulso do subconsciente. Lá nos arcanos do seu Espírito perdurava a doentia impressão de que todas as calamidades dos últimos meses eram o castigo pela morte do sapateiro. A ideia obcecava-o sempre, contra a sua vontade. Mas estava ali, dentro da cabeça, patente nos misteriosos meandros da sua alma. Era levado irresistívelmente  ao encontro da viúva de Vidler, como se o simples facto de a ver pudesse ajudá-lo, ou dar-lhe, não sabia  porquê, alívio para o seu sofrimento.

       Era uma noite húmida e escura. Havia pouca gente nas ruas. Andrew tinha uma sensação estranha de irrealidade ao caminhar sem ser reconhecido por aquela zona onde tanta gente o conhecera. A sua própria figura, com traje de luto, tornara-se uma sombra entre os outros fantasmas que passavam pressurosos sob a chuva húmida. Encontrou a loja ainda aberta. Hesitou um momento. Depois, quando saiu um freguês, Andrew entrou apressadamente.

       A Sr.a Vidler estava sozinha, atrás do balcão da tinturaria,  embrulhando o casaco de uma freguesa. Vestia saia preta e uma blusa que mandara tingir. De luto parecia mais magra. De repente levantou a vista e deu com Manson.

       - Dr. Manson! - E a fisionomia dela iluminou-se. - Como tem passado, doutor?

       Andrew deu uma resposta rouca. Percebeu que ela nada sabia das suas recentes atribulações. Ficou parado à porta da rua, rígido, sem deixar de fitar a viúva, a chuva escorrendo pela aba do chapéu.

       - Entre, doutor. Como está ensopado! O tempo está horrível!

       Andrew interrompeu-a, num tom forçado, numa voz do outro mundo:

       - Sr.a Vidler, há muito tempo que queria visitá-la. Pergunto  muitas vezes como é que a senhora vive desde...

       - Vou indo, doutor. Podia ser pior. Tenho agora um rapaz para fazer o conserto do calçado. É um bom auxiliar. Mas porque não entra, doutor? Vou buscar-lhe um pouco de chá.

       Andrew fez um sinal negativo com a cabeça.

       - Eu... Eu ia passando. - E de súbito, quase num desespero  - A senhora deve sentir muito a falta de Harry.

       - Sim, não resta dúvida. Sinto falta... Pelo menos, senti muito no princípio. Mas é uma coisa assombrosa - nesse momento até sorria - como a gente se acostuma a tudo.

       E ele, apressadamente, muito embaraçado:

       - De certo modo... eu considero-me responsável. Foi um golpe tão repentino para a senhora! Penso às vezes que a senhora pode julgar-me culpado.

       - Culpado,  o  doutor! - Ela  negou  com  a  cabeça. - Como pode dizer uma coisa dessas! O doutor fez tudo quanto pôde, arranjou mesmo uma boa casa de saúde, um operador de primeira ordem...

       - Mas a senhora pode pensar... - insistia Andrew com voz abafada, sentindo um frio estranho por todo o corpo. - Se tivesse agido de outro modo, se tivesse levado o Harry para um hospital...

       - Seria a mesma coisa, doutor. O meu Harry teve tudo do melhor, tudo que se pode obter com dinheiro. Até o enterro. Só vendo! Quantas coroas! E quanto a lançar-lhe as culpas... Olhe, eu tenho dito muitas vezes, aqui na loja, que o Harry não podia ter tido um médico melhor, mais atencioso e mais competente do que o doutor.

       Quando ela acabou de falar, Andrew compreendeu com um derradeiro calafrio da sensibilidade que nem mesmo  uma confissão franca e completa faria a viúva acreditar na verdade. Tinha as suas ilusões sobre o fim pacífico, inevitável e dispendioso do marido e seria uma crueldade arrancar-lhe uma convicção que lhe dava tão confortante resignação.

       - Tive muito prazer em vê-la de novo, Sr.a Vidler - disse Manson, depois de uma pausa. - Como lhe disse... há muito tempo que pretendia visitá-la.

       Calou-se, apertou-lhe a mão, cumprimentou com o chapéu,  e saiu.

       Em vez de lhe dar alívio ou consolação, o encontro servira apenas para agravar a sua angústia. As ideias entrechocavam-se dentro da cabeça. Que podia ter esperado? Perdão, no velho estilo dos romances? Condenação? Com amargura chegou à conclusão de que ela ainda o apreciava mais do que anteriormente, e ao voltar pelas ruas molhadas Manson convenceu-se subitamente de que ia ser condenado no dia seguinte. Esse pressentimento foi transformando-se numa aterradora certeza.

       Ao atravessar uma pequena rua lateral, já perto do hotel, passou pela porta de uma igreja. Estava aberta. Mais uma vez o impulso dominou-o, fê-lo parar, retroceder, entrar.

       Não havia luz lá dentro. A nave estava escura, vazia e quente, como se um ofício religioso tivesse terminado há pouco. Andrew não sabia que igreja era, nem procurou saber. Sentou-se no último banco e fixou o olhar cansado no altar sombrio e coberto. Lembrou-se de que na época do seu afastamento Christine voltara o pensamento para Deus. Ele, Andrew, nunca fora um beato, mas agora estava ali, naquela igreja desconhecida. As atribulações impelem as criaturas para lá, para as coisas espirituais, para a Ideia de Deus.

       E continuou sentado, a cabeça vergada, como um homem  que repousa no fim de uma viagem. Os seus pensamentos  manifestavam-se aos arrancos, não como as palavras  de uma oração determinada, mas com todo o anseio aflito da sua alma: «Meu Deus! Não me deixes ser condenado! Oh, meu Deus! Não me deixes ser condenado!»

       Durante meia hora, talvez, ficou mergulhado nessa meditação estranha. Depois levantou-se e seguiu directamente para o hotel.

       Embora tivesse dormido profundamente, acordou na manhã seguinte com uma sensação ainda maior de ansiedade  doentia. Ao vestir-se, as mãos tremiam ligeiramente.

       Censurava-se por ter vindo para aquele hotel, que tanto lhe fazia recordar os transes do concurso. A sensação que experimentava agora era exactamente a do medo que precede um exame. Mas esse medo multiplicado por cem.

       Desceu à sala do almoço, mas nem uma xícara de café tomou. O julgamento estava marcado para as onze horas e Hopper pedira-lhe que comparecesse mais cedo. Calculou não gastar mais de vinte minutos para ir até a Hallam Street. Nervoso, impaciente, procurou passar o tempo com os jornais, na saleta do hotel, até às dez e meia. Partiu afinal. Mas o táxi que tomara ficou retido por um congestionamento  do trânsito. Eram onze horas em ponto quando chegou à sede do G.M.C.

       Entrou apressado na sala do conselho, tendo apenas uma vaga impressão da sua vastidão e da imponência da mesa, sobre um estrado, onde se sentavam os membros do conselho, sob a presidência de Sir James Haliday. Sentavam-se a um canto os que deviam tomar parte no seu julgamento. Davam a estranha impressão de actores à espera do momento de entrarem em cena. Viu ali Hopper, Mary e Con Boland, a enfermeira Sharp, o doutor Thoroughgood, o advogado Boon, a irmã Myles, encarregada da enfermaria do Vitória. Errou o seu olhar pela fila de cadeiras e depois, apressadamente, sentou-se ao lado de Hopper.

       - Porque não veio mais cedo, como lhe recomendei? - disse o advogado, aborrecido. - O outro julgamento está a acabar. O conselho não perdoa a quem chega atrasado.

       Andrew não respondeu. Como dissera Hopper, o presidente  pronunciava naquele momento a sentença no processo  anterior. Condenação. Nome riscado do Registo. Andrew  não podia desviar os olhos do médico condenado por qualquer deslize banal. Era um pobre diabo de fato coçado e sapatos cambados. Todo o seu aspecto denunciava a luta pela vida. E havia tanta amargura e desânimo na sua expressão quando foi condenado por aquele augusto cenáculo de colegas que Andrew sentiu um profundo calafrio.

       Mas não tinha tempo para pensar no pobre homem, para compadecer-se dele. Quase no mesmo instante o seu próprio julgamento foi anunciado. O coração contraiu-se-lhe  dentro do peito.

       Terminada a formalidade da leitura do processo, levantou-se  e tomou a palavra o Sr. George Boon, advogado de acusação. Era um tipo magro, de cara rapada, atitudes firmes. Vestia fraque e pendia das suas lunetas uma fita preta, muito larga. A voz era nítida e segura.

       - Sr. Presidente, meus senhores; reconheço que este caso que ides julgar nada tem a ver com qualquer teoria da medicina definida, do capítulo 28.° do Medical Act. Pelo contrário, constitui um exemplo insofismável da associação  de um profissional com uma pessoa não qualificada para o exercício da medicina, tendência essa que, talvez deva dizer, o conselho tem tido ultimamente tantos motivos para deplorar.

       «Os factos são os seguintes: a doente, Mary Boland, atacada de tuberculose apical, foi admitida na enfermaria do Dr. Thoroughgood, no Hospital Vitória, em 18 de Julho.

       Ficou ali sob os cuidados do Dr. Thoroughgood até 14 de Setembro, dia em que ela mesma pediu para sair, sob o pretexto de que desejava voltar para casa da família. Digo pretexto porque, em vez de voltar para casa, a doente encontrou-se na portaria do hospital com o Dr. Manson, que imediatamente a levou para uma instituição de nome «Bellevue», que se propõe, creio eu, promover a cura de doenças pulmonares.

       «Chegando a esse lugar, Bellevue, a doente recolheu ao leito e foi examinada pelo Dr. Manson em colaboração com o proprietário do estabelecimento, o Sr. Richard StilIman,  homem não diplomado e não qualificado para o exercício da medicina, e que, além disso, segundo estou informado, é estrangeiro. Depois do exame foi decidido em conferência - chamo a atenção do conselho para este ponto - foi decidido em conferência pelo Dr. Manson e pelo Sr. Stillman que a doente seria submetida ao tratamento  pelo pneumotórax. Em seguida o Dr. Manson fez a anestesia local e a insuflação foi realizada pelos Dr. Manson e Sr. Stillman.

       «E agora, meus senhores, depois deste breve resumo do caso, proponho-me, com a vossa permissão, apresentar provas e testemunhas do facto. Dr. Eustace Thoroughgood,  faça o obséquio.» 

       O Dr. Thoroughgood levantou-se e avançou. Tirando as lunetas e conservando-as na mão como um recurso para fazer realçar os seus argumentos, Boon começou o interrogatório.

       - Não quero constrangê-lo, Dr. Thoroughgood. Estamos perfeitamente ao par da sua reputação, posso dizer mesmo do seu renome como especialista de doenças pulmonares e não tenho dúvida de que está animado de espírito de indulgência para o seu jovem colega. Mas, Dr. Thoroughgood: é ou não verdade que, sábado 10 de Setembro, o Dr. Manson pediu insistentemente ao doutor uma conferência  sobre a doente Mary Boland?

       - É verdade.

       - E também é verdade que no decurso da conferência o Dr. Manson insistiu para que se adoptasse um tratamento que o doutor julgava inconveniente?

       - Ele queria que eu fizesse o pneumotórax.

       - Exactamente! E para o bem da  doente o doutor recusou. Não foi isso?

       - Sim, recusei.

       - E diante dessa recusa, a atitude do Dr. Manson não foi de certo modo estranhável?

       - Bem... - Thoroughgood hesitou.

       - Por favor, Dr. Thoroughgood! Respeitamos a sua natural relutância, mas...

       - Ele dava a impressão de estar um pouco nervoso naquele dia. Pareceu não concordar com a minha decisão.

       - Obrigado, Dr. Thoroughgood. O doutor não tem a menor razão para supor que a doente não estava satisfeita com o tratamento do hospital - e a simples ideia de tamanho absurdo trouxe um sorriso amarelo à fisionomia de Boon - ou que pudesse ter qualquer motivo de queixa contra  o doutor ou o resto do pessoal...

       - Nenhuma razão. A doente sempre demonstrou estar satisfeita, feliz e confiante.

       - Obrigado, Dr. Thoroughgood. - Boon tomou outro apontamento. - E  agora, irmã Myles, faça o  favor.

       Quando a irmã Myles se aproximou, Boon inquiriu: Irmã Myles, na segunda-feira 12 de Setembro, dois dias depois da conferência entre o Dr. Thoroughgood e o Dr. Manson, o acusado foi visitar a doente?

       - Foi.

       - Era a hora habitual das suas visitas?

       - Não.

       - Ele examinou a doente?

       - Não... Sentou-se e conversou com ela.

       - Isso mesmo, irmã! Uma conversa longa e séria, para usar as palavras do seu depoimento escrito. Mas, diga-nos agora, irmã, de viva voz, que sucedeu logo depois que se retirou o Dr. Manson?

       - Passada hora e meia, mais ou menos, declarou a n.º 17, isto é, Mary Boland: «Irmã, tenho pensado em muitas coisas e resolvi ir-me embora. A irmã tem sido muito boa para mim, mas quero deixar o hospital na próxima quarta-feira».

       Boon interrompeu apressadamente:

       - Na próxima quarta-feira. Obrigado, irmã. Era isso que eu queria pôr em evidência. Por enquanto, é só isso.

       A irmã Myles afastou-se.

       Com as lunetas que tinha na mão, o advogado fez um gesto comedido de quem estava satisfeito.

       - E agora... enfermeira Sharp, por obséquio. - Uma pausa. - Enfermeira Sharp: está disposta a sustentar a sua declaração sobre o que fez o Dr. Manson na tarde de quarta-feira 14 de Setembro?

       - Estou, sim. Eu presenciei tudo!

       - Deduzo pelo tom de voz, enfermeira, que a senhora o acompanhou contra vontade.

       - Quando descobri aonde tínhamos ido e que esse tal Stillman não era médico, nem nada, eu fiquei...

       - Chocada! - sugeriu Boon.

       - Sim, isso mesmo! - berrou a enfermeira. - Sempre pretendi em toda a minha vida profissional trabalhar para médicos prestigiosos, especialistas bem qualificados.

       - Exactamente - cantarolou Boon. - Agora, enfermeira Sharp, pretendo que esclareça novamente, perante o conselho, um ponto que considero de muita importância. O Dr. Manson colaborou de facto com Stillman na operação?

       - Colaborou, sim - respondeu a enfermeira num tom vingativo.

       Nesse momento Abbey inclinou-se sobre a mesa e, por intermédio do presidente, dirigiu à testemunha uma suave pergunta:

       - Não é verdade que quando se deram esses factos a enfermeira fora prevenida pelo Dr. Manson de que teria de deixar o emprego?

       A enfermeira corou, perturbou-se, resmungou:

       - Sim, acho que sim.

       Um minuto depois o depoimento estava terminado.

       Andrew sentiu dentro de si mesmo um certo conforto. Abbey, pelo menos, continuava seu amigo.

       Um tanto irritado com o aparte, Boon voltou-se para a mesa do conselho:

       - Sr. Presidente, meus senhores: eu poderia apelar para outros testemunhos, mas sei perfeitamente como é precioso  o tempo do conselho. Além disso, estou certo de já haver provado plenamente a acusação. Não há a menor sombra de dúvida de que a doente Mary Boland foi tirada, com absoluta conivência do Dr. Manson, dos cuidados de um  eminente  especialista num dos  melhores hospitais de Londres para um instituto muito discutível. Isso por si só já constitui uma grave infracção da ética profissional. Mas está provado que o Dr. Manson se associou deliberadamente  ao proprietário desse instituto que não é médico formado e registado, ajudando-o a realizar uma operação perigosa e que tinha sido contra-indicada pelo Dr. Thoroughgood, o especialista moralmente responsável pelo caso. Sr. Presidente, meus senhores: eu sustento que não estamos, como pode parecer à primeira vista, diante de um exemplo isolado, de uma irregularidade acidental, mas de uma infracção, preconcebida e quase sistemática do código médico.

       Boon sentou-se, visivelmente satisfeito, e começou a limpar as lunetas. Houve um momento de silêncio. Andrew conservou os olhos fitos no soalho. Tinha sido uma tortura  para ele suportar a apresentação tendenciosa do caso. Dizia a si mesmo com amargura que estava sendo tratado como se fosse um criminoso.

       Nesse momento o advogado de defesa deu um passo à frente e preparou-se para falar, como de costume. Hopper mostrava-se agitado. O sangue subia-lhe ao rosto. Estava atrapalhado com a arrumação dos papéis. Mas o curioso é que conquistava com isso a simpatia do conselho.

       - Então, Sr. Hopper? - disse o presidente.

       Hopper pigarreou.

       - Sr. Presidente, meus senhores: devo declarar desde já que não contesto as provas apresentadas pelo meu distinto colega. Não pretendo mesmo voltar a esses factos. O que nos importa verdadeiramente é a maneira de os interpretar. Existem, além disso, alguns pontos complementares  que dão ao caso um aspecto muito favorável ao meu constituinte.

       «Ainda não foi dito, por exemplo, que a menina Boland era, de início, cliente do Dr. Manson, uma vez que ela o consultou antes de conhecer o Dr. Thoroughgood, em 11 de Julho. Além disso, o Dr. Manson estava pessoalmente interessado no caso, por se tratar da filha de um amigo íntimo. Assim, ele sempre a considerou sob a sua própria  responsabilidade. Devemos reconhecer, com toda a franqueza, que a acção do Dr. Manson foi absolutamente mal orientada. Mas observo respeitosamente que ela não foi desonesta nem de má fé.

       «Já ouvimos referências a essa ligeira discordância entre  o Dr. Thoroughgood e o Dr. Manson sobre o tratamento. Compreendendo-se o grande interesse do Dr. Manson  neste caso, não deixa de ser natural que quisesse retomá-lo nas suas próprias mãos. Também não deixa de ser natural que quisesse evitar um aborrecimento para o seu colega mais velho. Foi esta, e nenhuma outra, a razão do subterfúgio a que o Sr. Boon aludiu com tanta ênfase.

       Então Hopper fez uma pausa, tirou o lenço e tossiu. Tinha o ar de quem se aproxima de um ponto mais difícil.

       - E agora chegamos à questão das relações com Stillman e Bellevue. Presumo que os ilustres membros do conselho não desconheçam o nome do Sr. Stillman. Embora  não seja médico diplomado, goza de certa reputação e diz-se mesmo que conseguiu levar a bons resultados alguns  casos duvidosos.

       O presidente interrompeu-o com solenidade:

       - Sr. Hopper, que pode saber o senhor, um advogado, sobre esses assuntos?

       - De acordo - apressou-se Hopper a desculpar-se. - O ponto que desejo frisar é que o Sr. Stillman parece um homem bem intencionado. Ora aconteceu que as suas relações  com o Dr. Manson datam de há muitos anos quando escreveu uma carta em que felicitava o meu cliente por um estudo sobre os pulmões. Quando o Sr. Stillman veio montar aqui a sua clínica, os dois tiveram ocasião de travar relações pessoais, que em nada diziam respeito à profissão. Deste modo, embora tenha sido um acto mal pensado, não deixa de ser natural que o Dr. Manson, à procura de um local onde pudesse tratar a menina Boland, levasse em conta a conveniência que Bellevue lhe oferecia. O meu colega definiu Bellevue como um estabelecimento muito discutível. Sobre esse ponto creio que o conselho deve ter interesse em ouvir a doente. Menina Boland, faça favor.

       Quando Mary se ergueu, todos os membros do conselho olharam para ela com vincada curiosidade. Embora estivesse nervosa e não tirasse a vista de Hopper, não olhando uma única vez para Andrew, parecia perfeitamente bem em saúde normal.

       - Menina Boland - disse Hopper. - Quero que nos diga com franqueza: teve algum motivo de queixa durante a  sua permanência em Bellevue?

       - Não! Muito pelo contrário - pela moderação estudada  da resposta, Andrew compreendeu imediatamente que ela havia sido cuidadosamente industriada.

       - Sentiu-se pior depois do tratamento?

       - Pelo contrário, estou melhor.

       - O tratamento aplicado foi realmente o que o Dr. Manson sugeriu à menina na primeira consulta que lhe fez em... deixe-me ver... em 11 de Julho?

       - Foi.

       - Acha necessário estabelecer este ponto? - perguntou o presidente.

       - Nada mais tenho a perguntar à testemunha - disse Hopper apressadamente.

       Quando Mary se sentou, o advogado estendeu as mãos para a mesa do conselho, no seu estilo suplicante.

       - O que pretendo sugerir, senhores, é que o tratamento efectuado em Bellevue foi, na verdade, o tratamento prescrito pelo Dr. Manson, embora aplicado, talvez sem a devida ética, por outras pessoas. Sustento, portanto, que nenhuma cooperação profissional entre Stillman e o Dr. Manson houve na verdadeira significação do acto. Gostaria  de interrogar o Dr. Manson.

       Andrew levantou-se, com a terrível consciência da sua posição, sentindo todos os olhares convergirem para ele.

       Estava pálido e emocionado. Tinha na altura do estômago uma sensação de vácuo e de frio. Ouviu Hopper dirigir-lhe a palavra.

       - Dr. Manson teve qualquer lucro financeiro com a sua pretensa colaboração com o Sr. Stillman?

       - Absolutamente nenhuma.

       - Tinha qualquer motivo oculto, qualquer interesse objectivo para fazer o que fez?

       - Não!

       - Tinha qualquer prevenção pessoal contra o seu colega mais antigo, Dr. Thoroughgood?

       - Não! Sempre foi muito amável para comigo. Apenas... as nossas opiniões não coincidiram neste caso.

       - Exactamente - interveio Hopper como que a despachar. - Pode então asseverar ao conselho, honesta e sinceramente que não tinha a menor intenção de desrespeitar o código médico nem a mais remota ideia de que a sua conduta era de qualquer modo desonesta?

       - É a absoluta verdade.

       Hopper mal conteve um suspiro de alívio quando, com um sinal de cabeça, convidou Andrew a sentar-se. Embora se sentisse obrigado a apresentar esse depoimento, receara a impetuosidade do cliente. Mas o perigo passara, felizmente,  e Hopper compreendeu haver agora algumas possibilidades de êxito se não se alongasse muito na defesa.

       Disse então, com ar contrito:

       - Não quero ocupar por mais tempo a atenção do conselho. Procurei mostrar que o Dr. Manson cometeu apenas um erro lamentável. Apelo não somente para a justiça, mas também para a clemência do conselho, e, finalmente, gostaria de indicar à consideração dos ilustres juizes as atenuantes do meu constituinte. A sua carreira inspiraria orgulho a qualquer médico. Quantos futuros brilhantes não saíram da obscuridade porque um simples erro na vida não soube encontrar perdão e misericórdia! Espero, e até suplico, que este caso ora a ser julgado, não chegue também  a tão triste resultado.

       O tom de desculpa e de humildade que o advogado assumiu produziu de facto efeito excelente no conselho.

       Mas logo depois estava de pé o advogado de acusação, com o propósito evidente de prejudicar a boa impressão do tribunal:

       - Peço licença para fazer uma ou duas perguntas ao Dr. Manson - voltou-se para o acusado e com um aceno convidou Andrew a levantar-se. - Dr. Manson, não compreendi bem a sua última resposta. Disse o doutor que não tinha a menor ideia de que a sua conduta fosse de qualquer modo desonesta. Entretanto, o senhor sabia que o Sr. Stillman não é formado em Medicina...

       Andrew, desconfiado, encarou Boon. A atitude do manhoso  acusador durante todo o debate fizera-o sentir-se culpado de uma acção comprometedora. No vácuo gelado que tinha dentro de si mesmo foi-se acendendo uma pequena  labareda. Disse de modo bem claro:

       - Sim, eu sabia que ele não era formado.

       Boon esboçou um ligeiro gesto de satisfação. Comentou, num tom sardónico:

       - Ah! Sabia? Sabia, não é verdade? E nem isso, ao menos, lhe serviu de obstáculo?

       - Não, nem isso. - Andrew  repetiu  as palavras  do advogado com súbita amargura. Sentiu fugir-lhe o domínio de si mesmo. Respirou cem força. - E agora, Sr. Dr. Boon, já que tive de escutar algumas perguntas suas, dá licença para que eu também lhe faça uma? Já ouviu falar de Pasteur?

       - É claro! - Havia espanto na resposta do advogado. - Quem ainda não ouviu falar dele?

       - Muito bem! Quem não ouviu falar nele? Mas naturalmente  o senhor não sabe e é bom que eu lhe explique: Pasteur, a maior de todas as figuras da medicina científica, não era formado. A mesma coisa aconteceu com Ehrlich, o homem que deu à medicina o remédio melhor e mais específico de todos os tempos(*). O mesmo se passou com Haffkine, que combateu a peste da Índia muito mais eficientemente  do que o faria qualquer desses cavalheiros diplomados. O mesmo com Macthnikoff, cuja grandeza só é inferior à de Pasteur. Perdoe-me ter de recordar-lhe todos esses factos elementares, Sr. Dr. Boon. Servem para demonstrar que nem todos os que lutam contra as doenças sem estarem inscritos no Registo Médico têm de ser necessariamente  loucos ou charlatães.

 (*)  O 914.  (N. do T.)

       Estabeleceu-se um silêncio carregado de apreensão. Até então o julgamento decorrera numa atmosfera de preguiçosa sonolência, de formalismo bafiento, como num tribunal  de pequenos delitos. Mas todos os membros do conselho  estavam agora despertos, interessados. Abbey, especialmente, não deixara de fitar Andrew, com uma atenção estranha e intensa.

       Passou-se um momento. Pondo as mãos na cara, Hopper resmungava, apavorado. Tinha agora a certeza de ser uma causa perdida. Embora deploràvelmente desconcertado, Boon fez um esforço para se endireitar.

       - Sim, sim, conhecemos todos esses nomes ilustres. Mas, certamente, não pretende comparar Stillman com eles.

       - Porque não? - rebateu Andrew, ardendo de indignação. - Só  são ilustres porque já  morreram. Enquanto vivo Koch foi troçado, insultado mesmo, por Virchow! Agora Koch já não é troçado nem insultado. Reservamos as nossas troças e os nossos insultos para homens como Spahlinger e Stillman. Aí está outro exemplo para o qual chamo a sua atenção... Spahlinger! Um homem de ciência  com pensamentos grandes e originais. Não é formado, não é médico. Não tem qualquer título universitário. Mas já fez mais pela medicina do que milhares de médicos com os seus diplomas, esses doutores que andam por aí, de automóvel, extorquindo dinheiro, fazendo o que bem entendem,  enquanto Spahlinger é combatido, menosprezado, acusado mesmo, tendo de enfrentar agora a miséria depois de ter gasto toda a fortuna em pesquisas e experiências.

       - Devemos concluir daí - Boon procurou assumir um ar sardónico - que o doutor tem admiração igual por Richard  Stillman?

       - Tenho, sim! É um grande homem. É um homem que dedicou toda a sua vida ao bem da Humanidade. Tem enfrentado a inveja e o preconceito, e a calúnia também. Mas já conseguiu impor-se na sua terra. Aqui parece que não. Contudo, estou convencido de que ele já fez mais contra a tuberculose neste país do que qualquer outro homem vivo. Está fora da classe médica, é verdade! Mas dentro dela há muitos que tratam casos de tuberculose a vida inteira e ainda nada fizeram que se aproveite no combate a esse pesadelo da Humanidade.

       Houve uma grande sensação na sala. Os olhos de Mary Boland, fixos em Andrew, brilhavam de entusiasmo e inquietação ao mesmo tempo. De modo sorna e melancólica,  Hopper ia arrumando os papéis dentro da sua pasta.

       O presidente interveio:

       - O doutor pesa bem o que está a dizer?

       - Perfeitamente!

       Andrew segurou com mãos frenéticas  o encosto da cadeira, sabendo muito bem que estava a ser levado a pronunciar graves inconveniências, mas disposto a sustentar as suas opiniões. Anelante, no auge da tensão nervosa, dominava-o um estranho desinteresse pelo que lhe pudesse acontecer. Se tinha de ser expulso, queria ao menos sê-lo em beleza. Continuou, fremente:

       - Escutando o libelo que foi apresentado hoje aqui contra o meu procedimento, não me cansava de perguntar a mim mesmo que mal havia eu feito. Não quero trabalhar com charlatães. Não creio em remédios de pura mistificação. Por isso mesmo, desprezo esses reclames de vistosos rótulos científicos que enchem todos os dias a minha caixa postal. Bem sei que estou falando com franqueza que me prejudica, mas não o posso evitar. Devemos ser muito mais liberais do que somos. Se concluirmos que tudo fora da classe está errado e que tudo dentro dela está certo, então será a morte do progresso científico. Dentro  em breve constituiremos apenas uma sociedade comercial. Já é tempo de começarmos a pôr em ordem a nossa própria  casa. E não me refiro apenas às questões superficiais. Devemos começar pelo princípio, temos de pensar que os médicos saem das faculdades com uma instrução desesperadoramente insuficiente. Quando me formei, eu era um verdadeiro perigo para a sociedade. Só conhecia os nomes de algumas doenças e dos remédios que, segundo me ensinaram, deviam ser aplicados. Nem mesmo sabia manejar um simples fórceps. Tudo o que sei o aprendi depois  de sair da faculdade. E quantos médicos existem por aí que nada sabem além dos rudimentos aprendidos com a prática? Os pobres diabos não têm tempo para estudar, andam sempre atarefadíssimos. E isso acontece porque toda a nossa organização está caquética. Devíamos ser agrupados em unidades científicas. Deviam existir cursos obrigatórios para médicos já diplomados. Devíamo-nos esforçar  por considerar a ciência como a nossa única preocupação. Devíamos acabar com o velho frasco de remédio. Devíamos oferecer a cada clínico uma oportunidade para estudar, para cooperar nas pesquisas.

       «E que diremos a respeito da comercialização da medicina? Do tratamento inútil, para ganhar dinheiro? Das  operações desnecessárias? Dos milhares de ineficientes preparados  pseudocientíficos que receitamos? Não será já  tempo de acabar com tudo isso? Toda a classe é exageradamente  intolerante e exclusivista. Caímos na apatia e na inércia. Não pensamos em avançar, em alterar o nosso sistema. Afirmamos que vamos fazer muita coisa e nada fazemos. Há muitos anos que nos queixamos das infames condições de trabalho que as nossas enfermeiras têm de defrontar e dos ordenados miseráveis que recebem. E que providências já foram tomadas? As enfermeiras continuam com o mesmo trabalho excessivo, ganham a mesma miséria. Falo nisso apenas como um exemplo, pois o assunto é realmente mais sério, muito mais profundo. A verdade é que não damos oportunidades, nada facilitamos aos nossos pioneiros, aos que promovem o avanço da ciência. Por ter tido coragem de servir de anestesista a Jarvis, quando este começava os seus trabalhos, o nome do Dr. Hexam foi expulso da actividade da sua profissão. Dez anos mais tarde, quando Jarvis curou centenas de doentes que os senhores cirurgiões não tinham conseguido sequer melhorar, quando Jarvis foi galardoado com um título de nobreza, quando todas as «pessoas distintas» proclamaram que ele era um génio, então compreendemos o erro da nossa atitude e Jarvis recebeu um diploma honorário de doutor em Medicina, mas nessa altura o pobre Hexam já tinha morrido de desespero.

       «Eu sei que já cometi muitos erros na minha carreira, e alguns graves. Sou o primeiro a deplorá-lo. Mas não errei com Richard Stillman nem me arrependo do que fiz com ele. Só peço aos senhores que olhem para Mary Boland. Estava tuberculosa quando ingressou no sanatório de Stillman. Agora está curada. Se querem uma justificação para o meu procedimento infame, ei-la aqui, nesta sala, diante de todos.» 

       Terminou abruptamente. Sentou-se. Na mesa do conselho, a fisionomia de Abbey irradiava uma luz estranha.

       Boon, ainda de pé, encarava Manson, confuso, sem saber o que pensar. Depois, reflectindo vingativamente que já dera bastante corda ao médico para que se enforcasse, inclinou-se para o presidente e retomou a sua cadeira.

       Durante um momento pesou na sala um silêncio significativo.

       E o presidente fez a declaração habitual:

       - Peço ao auditório que evacue a sala.

       Andrew saiu com os outros. Agora desaparecera a calma nervosa, e todo o seu corpo arquejava como uma máquina que arrasta um peso enorme. Sentia-se sufocado na atmosfera  da sala do conselho. Não podia suportar a presença de Hopper, Boland, Mary e das outras testemunhas. Principalmente  confrangia-o o ar de melancólica censura da cara do advogado. Sabia que procedera como um desatinado,  como um louco lastimável com a mania da declamação. A sua honestidade parecia-lhe agora uma loucura.

       Sim, fora uma loucura o sermão que pregara ao conselho. Não parecera um médico, mas um desses oradores improvisados do Hyde Park. Acabou-se! Deixaria de ser médico dentro em pouco. com certeza o seu nome seria riscado do Registo.

       Foi para os lavabos, sentindo a necessidade de estar só. Sentou-se na ponta de uma das bacias. Num gesto distraído, procurou um cigarro. Mas o fumo não tinha gosto na sua boca seca. Atirou o cigarro ao chão, esmagando-o com o salto do sapato. Era estranho como lhe custava ver-se forçado a abandonar a profissão, apesar das coisas duras, mas verdadeiras, que dissera sobre ela momentos antes. Reflectiu que podia ficar a trabalhar com Stillman.

       Mas não era esse o trabalho que pretendia. Não! Queria ficar ao lado de Denny e Hope, seguir a sua própria inclinação,  cravar a flecha das suas aspirações na ilharga da  apatia e do conservantismo. Mas tudo tinha de ser feito dentro da profissão, pois na Inglaterra nunca poderia ser feito fora dela. Agora, Denny e Hope tinham de guarnecer sozinhos a nau da aventura.

       Uma grande onda de amargura invadiu o coração de Andrew. Era desolador o futuro que se abria diante dos seus olhos. Já sentia naquele momento a mais dolorosa de todas as sensações: a de se ver excluído. Mais ainda: a sensação de ser um homem acabado, de que já chegara ao fim de tudo.

       O ruído de passos no corredor fê-lo levantar-se pesadamente,  e encaminhando-se para a sala do conselho dizia a si mesmo, severamente, que só havia uma coisa a fazer: não dar parte de fraco. Pedia a Deus que lhe desse forças para não mostrar qualquer sinal de abatimento, de subserviência.

       Com os olhos cravados no chão, ninguém viu. Nem mesmo olhou para a mesa do conselho. Uma atitude passiva, estática. Ecoavam alucinadoramente dentro de si todos os rumores inexpressivos da sala o arrastar das cadeiras, as tosses, os cochichos, mesmo o barulho de alguém  que batia distraído com um lápis.

       De repente, o silêncio. Espasmòdicamente todo o corpo de Andrew foi tomado de súbita rigidez. Era o fim.

       O presidente tomou a palavra. Falou devagar, de modo impressivo.

       - Andrew Manson, tenho a informá-lo que o conselho examinou com a maior atenção a acusação apresentada contra si, assim como as provas apresentadas no processo. Reconhecendo embora as circunstâncias peculiares do caso e a forma absolutamente não ortodoxa com que foi interpretada  pelo acusado, o conselho é de opinião de que o doutor procedeu de boa fé e com sincero propósito de obedecer ao espírito da lei que exige o mais alto grau de moralidade na conduta profissional. Informo-o, portanto,  que o conselho não vê razão para ordenar o cancelamento do seu nome no Registo Médico.

       No espanto do primeiro instante, Andrew não pôde compreender. De repente, estremeceu num abalo nervoso. Não tinha sido expulso! Estava livre, com o nome limpo, vingado!

       Levantou a cabeça, ainda vacilante, na direcção da mesa do conselho. Na confusão estranha de todas as fisionomias que se voltavam para ele, só uma pôde distinguir, muito nítida: era a de Robert Abbey. A compreensão que lia nos olhos do grande médico ainda mais o perturbou. Descobriu, numa súbita intuição, que fora salvo por Abbey.

       Agora já não podia apresentar ar de indiferença. com voz fraca (embora se dirigisse ao presidente, era a Abbey que falava) murmurou:

       - Muito obrigado, senhor.

       - O caso está encerrado - disse o presidente.

       Andrew levantou-se e viu-se logo cercado pelos amigos, por Con, Mary, o espantado Sr. Hopper, por gente a quem nunca vira antes, mas que lhe apertava a mão, que o felicitava calorosamente. Sem saber como, encontrou-se em plena rua, ainda a receber nas costas as palmadas de felicitação de Con. Sentiu um estranho conforto para a confusão nervosa de que estava possuído nos autocarros que passavam, no movimento normal do trânsito. Era possuído de vez em quando por assomos de alegria, indizível êxtase da sua libertação. De repente viu Mary a fitá-lo, com os olhos ainda cheios de lágrimas.

       - Se eles tivessem conseguido fazer alguma coisa contra si... depois de tudo que o doutor fez por mim, eu... eu mataria aquele velhinho da presidência.

       - Com os diabos - Con não pôde conter-se. - Não sei porque te preocupaste tanto. Logo que o velho Manson começou a falar, tive a convicção de que ele ia cilindrar toda aquela gente!

       Andrew sorria ainda sem força, hesitante, contente.

       Chegaram os três ao Museum Hotel, depois da uma hora. Denny estava à espera, no hall. Foi ao encontro deles, num passo balançado, com um sorriso sereno. Hopper telefonara-lhe, dando a notícia. Mas não fez comentários.

       Disse apenas:

       - Estou com fome. Mas aqui não podemos comer! Vamos  todos a um restaurante. Almocem comigo.

       Almoçaram. Embora nenhum sinal de emoção transparecesse na sua fisionomia, e conversasse principalmente sobre automóveis com Boland, Denny fez do almoço uma comemoração alegre do acontecimento. Ao saírem da mesa, disse a Andrew:

       - O nosso comboio sai às quatro. Hope está em Standborough,  à nossa espera. Podemos comprar muito barata a tal casa. Tenho de fazer algumas compras. Podemo-nos encontrar na estação às quatro menos dez.

       Andrew fitou Denny, compreendendo a sua amizade, dando valor a tudo quanto lhe devia desde o primeiro encontro no barracão de madeira de Blaenelly. Perguntou de repente:

       - E se eu fosse irradiado da classe médica?

       - Mas o Andrew não foi! - Phillip balançou a cabeça. - E tomarei providências para que isso nunca aconteça.

       Enquanto Denny fazia as suas compras, Andrew acompanhou Con e Mary à estação de Paddington, onde iam tomar o comboio. Enquanto esperavam na plataforma, agora um tanto silenciosos, repetiu o convite que já fizera.

       - Vocês devem aparecer em Standborough. Venham ver-me.

       - Sim, iremos - garantiu Con. - Na Primavera... Assim que a dona-elvira estiver consertada.

       Quando partiu o comboio dos Boland, Andrew viu que ainda dispunha de uma hora. Instintivamente num imperativo  do seu coração, Manson tomou um autocarro.

       Em poucos minutos estava em Kensal Green. Entrou no cemitério e ficou muito tempo junto da sepultura de Christine,  pensando um turbilhão de coisas. A tarde era luminosa  e fresca, com essa brisa estimulante de que ela gostava  tanto. Sobre a cabeça de Andrew, num galho de árvore, um pardal chilreou alegremente. E quando Manson  partiu afinal, apressando-se para não perder o comboio,  viu que as nuvens acumuladas no horizonte tomavam a forma de uma cidadela.

 

                                                                                            A. J. Cronin

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades