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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A COBIÇADA LADY LINDSEY / Barbara Cartland
A COBIÇADA LADY LINDSEY / Barbara Cartland

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A COBIÇADA LADY LINDSEY

 

Amanhecia em Londres. Escondida na carruagem, trémula de susto e ansiedade, Arilla observava os dois homens que iam bater-se em duelo por sua causa.

Um deles a queria para amante; o outro a defenderia até a morte. Por um dos dois batia alucinado seu coração de mulher apaixonada. O mediador começou a contar... um, dois, três... dez passos. Fogo! Ao abrir os olhos, um grito escapoulhe da garganta. Quem estaria caído ensanguentado no chão...

Apesar de não ser bem-aceito, o duelo não fora proibido de fato até a era vitoriana. E, mesmo assim, continuou sendo considerado o meio mais honroso de se resolver uma contenda entre cavalheiros.

Em 1809, lorde Castlereagh bateu-se em duelo com George Canning, sob leis governamentais e, na mesma época, o famoso duque de Wellington fez o mesmo com o conde de Winchilsea.

Em 1798, William Pitt, o Moço, duelou com um membro do partido político inglês, George Tierney. Como Pitt era extremamente magro e Tierney demasiado gordo, foi sugerido que se marcasse com giz o contorno da silhueta de Pitt sobre o corpanzil de Tierney e que qualquer perfuração fora dessa área não fosse considerada.

Tenho em minha casa um retrato da linda mas infame condessa de Shrewsbury, cujos restos mortais descansam na Igreja de St. Giles. Ela foi amante do segundo duque de Buckingham, um campeão de tiro, e com ele planejou o assassinato do conde, seu marido.

A condessa compareceu ao duelo fatal trajada como pajem e assistiu à morte do conde pela arma assassina de seu amante. Em seguida deitou-se com o duque, que ainda vestia a camisa manchada com o sangue de seu próprio marido...

 

                   1817

Arilla olhou ao longo do malcuidado caminho de acesso à velha residência.

Já ia voltando para a casa, desalentada, quando vislumbrou qualquer coisa a distância.

Em um segundo constatou serem cavalos e deu um grito de alegria.

Para poder ver melhor, subiu os degraus cobertos de limo da corroída escada de pedra que dava para a entrada principal.

Era uma carruagem que se aproximava, puxada por uma parelha de alazões, idênticos em porte e cor.

Quando chegou mais perto, ela identificou, com alegria no coração, o condutor da elegante viatura, que, com um gesto largo e cavalheiresco, tirou o chapéu para cumprimentá-la.

- Harry! - exclamou ela. - Eu sabia que você viria!

O homem entregou as rédeas ao cavalariço que, abandonando o assento descoberto do carro, já tinha pulado ao chão.

A carruagem era do tipo faetonte: alta, de quatro rodas e de fino acabamento. Porém não era tão veloz e eficiente quanto o último modelo introduzido na Inglaterra, pelo príncipe regente. Contudo era mais leve, com melhor molejo e bastante rápida em vias não lamacentas.

Sem pressa, o cavalheiro circundou o faetonte e, antes de subir os degraus, lançou um olhar para a casa. Havia uma expressão de desprezo naquele semblante formoso e másculo.

Era de se esperar, pois o solar estava em um estado lastimável, com pedras precisando de reparos e muitos vidros quebrados, pedindo substituição. As trepadeiras, havia muito tempo sem poda, emaranhavam-se desordenadamente, quase cobrindo as vidraças embaçadas das janelas.

Harry fez um ar de desgosto e subiu as escadas, dizendo para Arilla:

- Exatamente duas horas para chegar até aqui; devo ter batido um recorde, a não ser que alguém tenha levado menos tempo.

- Ninguém dirige melhor do que você, Harry. Além disso, nossos visitantes não possuem animais tão fogosos.

Reparando no ricto nervoso nos lábios dele, ela continuou:

- São seus?

A resposta veio, como esperava:

- Por um dia. São emprestados, como de costume.

- Oh, Harry! Você está em má situação?

- Como sempre.

Juntos, entraram no vestíbulo cujo aspecto era mais desolador do que ele imaginara. Chegaram à sala de estar, que um dia fora bonita, mas, como todo o resto da casa, estava tristemente descuidada. As cortinas se apresentavam descoradas, o estofamento dos sofás rasgados, os tapetes ralos e as paredes com marcas de quadros ou espelhos, antes ali dependurados.

Harry Vernon pôs o chapéu e as luvas de montaria sobre uma pequena mesa e alisou os cabelos com as mãos. Em tom de lamento disse:

- Sinto muito, Arilla, pela morte de seu pai. Sem olhá-lo ela suspirou.

- Eu e papai sempre fomos muito unidos, Harry; nossa amizade foi a melhor coisa que me aconteceu! - disse, saudosa.

- Você tem sofrido muito?

- Este ano que passou foi terrível. - Depois de uma pausa, prosseguiu: - Papai ficou muito mal, em coma, e não me reconhecia mais. Não havia dinheiro em casa para pagar os médicos, nem remédios.

Harry franziu a testa, antes de repreendê-la:

- E por que não me avisou?

- Para quê? A não ser que você estivesse com dinheiro sobrando, o que achei pouco provável.

- Acertou! Mesmo assim eu tentaria ajudá-la.

- Eu sei... eu sei. Agora, tudo acabou. Sabe, Harry, papai morreu de fato há um ano.

Harry Vernon sabia o que ela queria dizer.

Sir Roderick Lindsey sofrera uma queda, um ano atrás, durante uma caçada. Daquele dia em diante, tornara-se um morto-vivo. Ficara totalmente paralisado, mas seu coração continuava batendo. Os médicos não conseguiram devolver-lhe a consciência, e ele levou, a partir daí, uma vida meramente vegetativa.

Foi uma tragédia para sua única filha, que passou a tratá-lo com grande devoção, durante meses de muito sacrifício. Harry não esperava que os próximos dias fossem muito melhores.

"Pouco ou nada poderei fazer", pensava com tristeza.

Como se tivesse lido aqueles pensamentos, Arilla o consolou:

- Não se aborreça. O pior já passou e, mais do que nunca, preciso de seu auxílio. Por favor, Harry, me ajude, não tenho mais ninguém...

- Farei tudo que estiver ao meu alcance, o que é muito limitado!

Enquanto falava, ele atravessou a sala e se postou à janela. Tentando esconder o embaraço, ficou observando o maltratado jardim.

Era primavera, e os narcisos silvestres pareciam um tapete amargo; embaixo das velhas árvores os lilases e as margaridas-do-campo também estavam floridos.

Apesar do aspecto selvagem, o cenário era bonito e levou Harry de volta à infância.

Seus pais o deixavam ficar por muitos dias no Solar de Little Marchwood, onde sempre fora bem recebido por sir Roderick e lady Lindsey. Ambos o tratavam como o filho que nunca tiveram. Fora sir Roderick quem persuadira seu pai, primo de lady Lindsey, a mandá-lo a Eton. Também fora ele o responsável por seu encaminhamento para a guarda policial inglesa quando o pai comunicara a intenção de mantê-lo na infantaria, por ser mais barato.

"Eu acho que devo a sir Roderick o meu gosto refinado!", ele pensou.

Em voz clara e firme, comunicou:

- Vou ajudar você, Arilla, é evidente. Mas só Deus sabe como vai ser difícil!

- Não quero dinheiro, Harry!

Arilla fitou-o e viu surpresa em seus olhos.

- Não quer? E como.

- Deixe-me contar o que tenho em mente. Mas antes vou servir-lhe alguma coisa para beber... Já devia ter feito isso, mas estava tão saudosa. que não quis me afastar de você.

Deu-lhe um sorriso franco e segredou:

- Só sobrou uma garrafa do fino clarete de papai. Escondi-o dos médicos para você... quando viesse nos visitar.

- Pelo amor de Deus, Arilla, não me faça sentir mais culpado do que já estou.

Sem esconder a emoção, ele se dirigiu ao canto extremo da sala, onde sabia ser o lugar das bebidas. Uma garrafa de fino vinho e um copo de cristal esperavam-no.

Harry serviu-se e perguntou com delicadeza:

- Você não vai beber comigo?

- Não. O vinho é todo seu. Vai precisar de uns goles. mesmo! - Arilla afirmou.

- O que está aprontando para mim, Arilla? - ele perguntou temeroso. - Mas antes de me contar quero lhe dizer uma coisa: você ficou uma moça linda, sabia?

Um sorriso largo serviu de agradecimento a esse elogio, provocando duas graciosas covinhas nas alvas faces de Arilla. Seus olhos, de um azul intenso, pareciam cintilar.

- Sempre desejei ouvir isso de você!

- É a pura verdade - ele declarou, sorvendo o delicioso vinho. - Apesar de estar um pouco magra, melhorou bastante. em comparação àquela menininha gorducha que você era.

- Não tão menina... - reclamou ela, corando. Tenho dezenove anos agora. Você já imaginou, Harry, dezenove anos! Estou ficando velha!

- Então sou o próprio Matusalém! Estou com vinte e sete.

Ambos caíram na risada. Então Harry sentou-se com muito cuidado, na gasta poltrona de gobelino, porque seus culotes eram demasiadamente justos, de acordo com os últimos figurinos. Ele pousou o cálice na mesinha e logo Arilla lhe aproximou a garrafa.

Em vez de sentar-se na cadeira oposta, ela se ajoelhou para acomodar-se no chão, ao lado dele. Voltando o rosto iluminado para Harry, com muita graça, disse:

- Seja imparcial, julgue-me como se eu fosse uma estranha e não a pessoa que você conhece desde o berço.

Parecendo saber o que ela ia perguntar, ele confirmou:

- Estou sendo sincero, Arilla. Você está muito linda!

- Jura?

- com um vestido novo e um penteado adequado, ficaria sensacional!

Notando o brilho em seus olhos azuis, ele refletiu: "De que adianta tanta beleza? As únicas criaturas que aqui estão para admirá-la, além dos pássaros e das abelhas, são os rudes trabalhadores destes campos! Sou um idiota em despertar-lhe a vaidade! "

Não havia mais ninguém em Little Marchwood, " lugar que ele sempre classificara como o fim do mundo.

- Exatamente o que eu precisava ouvir - ela murmurou como se falasse consigo mesma. - Não poderia deixar de ser assim, pois sou muito parecida com mamãe. segundo dizem.

- É mesmo. Pena desperdiçar tanta beleza neste buraco. Não chegou algum vizinho novo por aqui?

- Se está querendo falar num bom partido, a resposta é não."

Harry ficou quieto, e Arilla teve a certeza de que pensava na possibilidade de trazer alguns amigos para conhecê-la. Mas de que jeito? Ela não tinha condições de recebê-los com boa comida e bebidas finas.

"Esta é a última garrafa de vinho desta casa", ela lembrara com amargura.

- Que pena! E para você morar? Será que não há alguma família...

Arilla riu do que ele estava insinuando.

- Você conhece as pessoas daqui. Estão todas com os pés na cova e mais pobres do que eu. Nada mudou desde que éramos crianças. E as pessoas de suas relações, com exceção do duque, estão nas mesmas condições, não, Harry?

- O duque! - ele repetiu com um tom de escárnio.

- Não me faça esquecer uma história de Sua Graça sobre o modo como ele economiza em gorjetas... Por enquanto vamos ao que interessa: você.

O duque de Vernonwick, primo de Harry, era o cabeça da família Vernon, alvo de caçoadas e, talvez, o homem mais avaro da Inglaterra.

Nunca se ouvira falar que tivesse ajudado alguém, por pior que fosse o embaraço da desventurada pessoa.

Todos se divertiam em colecionar piadas e exagerar fatos relacionados a essa figura tão peculiar.

Harry lembrou-se de seu pai, quando, certa vez, o velho observou com ressentimento:

"A única coisa que o duque nos proporciona é darmos boas risadas à sua custa".

A família de Harry era tão pobre como a de Arilla, mas tinha sangue nobre, o que lhe dava entrada ao beau monde de Londres.

Além disso, Harry era tão carismático e belo que até o príncipe regente tornara-se um de seus melhores amigos.

- Mas... voltando ao que falávamos - propôs Arilla -, você disse que eu sou bonita e, se me vestir bem, ficarei tão ou mais linda que mamãe, certo? Por isso, resolvi. ir para Londres!

Harry quase caiu da cadeira, de susto.

- Como?

Ela se acomodou melhor e explicou:

- Cheguei à conclusão de que, se não quiser ficar aqui mofando, ou pior, morrendo de fome, preciso me... casar com um homem rico!

Harry ia abrir a boca para falar, mas Arilla adiantou-se:

- Como você disse, não há possibilidade de cair um anjo rico dos céus de Little Marchwood. - E sorrindo, continuou: - Não há também esperanças de acontecer algum acidente de carruagem aqui, às portas do solar, que me dê a possibilidade de ser a enfermeira de um rico e jovem senhor. Tudo isso só acontece em histórias de príncipe encantado, próprias dos folhetins. Então o que pretendo é ficar conhecida na alta sociedade de Londres como a Incomparável. Só conseguirei isso com sua preciosa ajuda.

- Não vai ser possível. Você não entende? Assim.

Ela não o deixou continuar.

- Calma! Ainda não terminei. É evidente que não posso tornar-me a Incomparável com este meu visual. Sei também que precisaria de uma dama de companhia, de acordo com os ditames da sociedade inglesa, e isso incorreria em muitos gastos.

- E então?

- Serei a maravilhosa e jovem viúva de sir Roderick Lindsey.

Harry ficou tão aturdido que não pôde articular palavra. Encarou-a atónito, achando que ela enlouquecera, e balbuciou, intrigado:

- A viúva de seu pai?

Exatamente. Ninguém está sabendo ainda que ele morreu, exceto você e o pessoal aqui da cidade. Não tive dinheiro para pôr a notícia na Gazette ou no Morning Post. Aliás, seria uma perda de tempo informar pessoas desinteressadas e distantes sobre a morte de um amigo esquecido.

- Entendo. Mas não vejo razão para tal disfarce.

- Não seja ingénuo. Tudo é mais fácil para uma jovem e rica viúva do que para uma inocente debutante!

- Rica? - Ele quase gritou.

- É essa a impressão que vamos passar ao mundo todo, ao universo social em que você brilha!

Harry aprumou-se e passou a mão pela testa úmida.

- Decididamente você enlouqueceu! E o dinheiro. de onde sairá?

- De nossa imaginação!

- De quanto vai precisar?

- Depois eu digo.

- Você acha que vão acreditar em nós?

- Eles vão acreditar em você - Arilla afirmou com segurança. - Você vai espalhar entre seus nobres amigos que uma jovem e sedutora viúva, porém bem-comportada, está em Londres, sem conhecer ninguém. Não lhe passou despercebido o ar de incredulidade de Harry mas assim mesmo prosseguiu:

- Deve criar um suspense a respeito de lady Lindsey e convidá-la para uma ou duas recepções, em que ela será a sensação da noite.

- Assim... com essa apresentação?

Ele olhou-a de alto a baixo com desdém, mas ela não se perturbou.

- Não sou tola como você pensa! Planejei tudo, desde que me convenci de que ia perder meu pai. Fiquei desesperada pensando na solidão em que ficaria, só tendo o velho Johnsons para conversar. Então fui engendrando uma maneira de mudar a situação, mesmo porque já está na hora de aposentar esse nosso leal empregado, digno de um bom descanso.

- É uma loucura, mas continue.

- A única coisa que me restou foram as pérolas que mamãe me deu ainda em vida, assim como o broche de brilhantes que ela só usava nas raras mas grandes ocasiões.

Arilla prosseguiu com voz embargada:

- Sempre adorei essas jóias. Depois que se tornaram minhas, me apeguei mais ainda, de tal forma que não pude desfazer-me delas. Mas agora sei que só elas me abrirão as portas de um mundo novo, aquele que minha mãe sempre sonhou para mim. Sabe, sinto-a tão perto... me inspirando, fortalecendo e amando como sempre.

- Não acredito que sua mãe esperasse de você o impossível.

- Por que impossível? - ela retrucou, meio agressiva. - Pense um pouco: você disse que sou bonita. as jóias me darão dinheiro para viver alguns meses, com parcimônia... A única despesa maior será com roupas que não o deixem envergonhar-se de mim.

- Não vai ser rica?

Arilla deu uma risada cristalina.

- Sabia que você ia dizer isso. Mas muitas pessoas ricas não esbanjam dinheiro. Você mesmo conhece gente com fama de rica que leva uma vida modesta.

- É verdade. Há muitos duques por aí...

- Veja lorde Colton, por exemplo. Mora aqui neste lugar e é riquíssimo! Papai dizia que, quando ele recebia, oferecia uma comida tão miserável e vinhos tão ordinários que eram um verdadeiro insulto aos convidados!

- Você tem toda razão quando diz que muitos ricos não demonstram o que têm. Eu mesmo conheço alguns.

- A única pessoa rica que conheci foi minha madrinha, e ela me desejava bom Natal com cartão que havia recebido no ano anterior. Portanto, Harry, o que você deverá fazer é pôr na cabeça de seus distintos amigos que lady Lindsey é rica! E eles não vão esperar dela nada mais do que elegância no trajar.

- Onde você pretende ficar em Londres?

- Eu pensei. que talvez você. pudesse me ajudar. Se eu alugasse uma casa por dois meses... não sobraria o suficiente para comprar os vestidos!

- Pronto, chegou onde eu queria. Então não há nada a fazer...

Mas, quando ele viu o desapontamento nos olhos úmidos de Arilla, não resistiu e disse:

- Espere um pouco, tive uma ideia!

- Teve? - ela exclamou, reanimada.

- Quando recebi sua carta comunicando-me a morte de seu pai e que você queria me ver, tinha acabado de me despedir de uma amiga que ia a Paris, onde ficaria por dois meses.

Arilla não o interrompeu. Seu semblante mostrava uma comovedora expressão de esperança.

- Minha amiga não pertence à alta sociedade prosseguiu ele - e também não é uma pessoa que eu possa apresentar a você. Contudo está bem instalada

em uma luxuosa casa em Islington. Antes de partir me disse que, se eu tivesse algum problema com acomodação, poderia dispor dessa casa, bem como da criadagem.

- Oh, Harry!. Você acha.

- Há certamente uma possibilidade - ele interrompeu - e então a única despesa seria com a comida e com generosas gorjetas para os empregados a seu serviço.

Ela deu um gritinho de alegria e se aproximou mais.

- Você quer dizer que. vai fazer isso por mim?

- Acho que é uma ideia absurda, louca e ridícula! Mas é melhor do que deixá-la ficar aqui para sempre!

- Oh, Harry!

As lágrimas já inundavam os grandes olhos de Arilla que, sem poder evitá-las, deixou que se derramassem copiosamente por suas faces acetinadas.

Abraçando os joelhos, ela ergueu o olhar para Harry e balbuciou com doçura:

- Eu... eu sempre achei que você era bonzinho. o mais maravilhoso primo que alguém poderia ter!

- Não me agradeça ainda! Já está resolvido que tomaremos parte nessa corrida mas. há muitos obstáculos para transpor antes de atingirmos a linha de vitória!

Arilla, com um gesto infantil, enxugou as lágrimas com o dorso das mãos e disse:

- Eu sei. Mas eu prometo: tudo que conseguir dividirei com você.

- Espera lá. O que quer dizer com isso? - perguntou ele, num tom de reprovação.

- Não seja tolo e orgulhoso, Harry. Nós sempre repartimos tudo quando crianças, porque não continuar fazendo o mesmo? Não vou achar ruim.

- Mas eu vou. Explique-me melhor, Arilla!

- Bem, se eu me casar com um homem rico, pretendo dar-lhe tudo o que você não pode ter agora.

Harry teria retrucado, mas ela ergueu os dedos e pressionou-os contra os lábios dele, impedindo-o de falar.

- Estamos juntos nessa luta, Harry. Podemos perder ou ganhar. Se você se recusar, eu ficarei aqui até o fim de meus dias como solteirona.

Ele não pôde deixar de rir e declarou:

- É bobagem brigarmos por alguma coisa que não aconteceu e... poderá não acontecer! Se depois de dois meses você ficar encalhada em minhas mãos, eu a largarei no primeiro asilo de indigentes que encontrar!

- Não, não vai ser preciso... tudo dará certo com você a meu lado. - Fez uma pausa e depois confessou:

- Detesto vê-lo vivendo à sombra de seus amigos nobres e ricos, para poder manter seu alto padrão de vida. Você, por si só, não poderia vestir-se assim tão bem e nem ter, como não tem, cavalos próprios. Enfim, não seria o cavalheiro elegante que é.

- Não fale assim; estou prestes a romper em pranto - ele brincou e, rindo, pediu que ela se calasse. É melhor planejarmos juntos esse conto de fadas, nos prevenindo para que você não seja agarrada por algum monstro ou devorada por um dragão faminto, assim que chegar a Londres!

- Se você me ajudar. . . nada disso irá acontecer.

- Vou ajudá-la. . . mas, se não der certo, serei o mais perfeito candidato para o hospício!

Ambos deram boas gargalhadas, não pela observação mas por causa do excitamento em que se encontravam.

Arilla encheu o copo de Harry, convidando-o jovialmente:

- Vamos brindar a nosso sucesso. Como há apenas um cálice, beberemos os dois da mesma fonte, o que é muito simbólico!

- Simbólico? Só me faz lembrar. . . miséria! Em meio a risadas, ele ergueu o copo e desejou:

- À Incomparável lady Lindsey, para que ela consiga tudo o que deseja!

Bebeu um pouco e deu a taça a Arilla, que brindou:

- Para Harry, o arcanjo que me abrirá as portas do paraíso.

com os olhos brilhando de alegria, ela tomou um golezinho e pousou o cálice sobre a mesa.

- Até que enfim, Harry, você se convenceu de que deve me orientar para eu não fazer nenhuma bobagem!

- E você se convenceu de que deve me obedecer cegamente!

- Aliás, o que eu sempre fiz! Lembra-se de quando éramos crianças e você me fazia de sua escrava? Eu pegava todas as bolas que saíam fora no boliche e no cricket. . . Chegava a ficar cansada!

Ele riu gostosamente.

- Naquela época, eu achava que meninas só serviam para isso!

- E agora... para que mais elas servem?

- Você vai descobrir... quando morar em Londres!

Duas semanas mais tarde, viajando em uma carruagem que Harry lhe mandara, Arilla sentia-se nas nuvens. Apesar de o dia estar quente, suas mãos achavam-se frias e umedecidas.

Não tinha sido difícil sonhar, durante o sombrio período em que seu pai jazera imóvel na cama e ela ficara sem ninguém para conversar, além dos velhos e leais criados.

Eles só falavam de reumatismo e do trabalho extra que os médicos exigiam, cada vez que eram chamados.

Passavam-se semanas sem que ela tivesse contato com alguém fora de casa. Se não fosse por sua imaginação fértil, Arilla teria se sentido muito mais infeliz do que fora realmente; os sonhos atenuaram-lhe a triste solidão.

Agora, como que por encanto, o impossível tornava-se realizável. Sentia vontade de se beliscar para ter certeza do que estava acontecendo.

Harry tinha voltado para Londres levando as jóias. Escrevera depois contando que as vendera por mais do que esperavam. Logo despachara um vestido e um chapéu de viagem, para que ela chegasse bem-arrumada à casa de Islington.

Arilla estava curiosa em relação à moradora daquela casa, mas Harry se mantivera misterioso a respeito.

No entanto, ela intuíra que a mulher, por quem Harry parecia alimentar grande afeição, estava em Paris com o senhor que a presenteara com a casa de Islington. . .

Ela achava estranho o fato de um homem, não sendo casado, dispor de tanto dinheiro na compra de um imóvel para uma mulher que mesmo Harry não admitia entre suas melhores amigas e nem queria que ela conhecesse.

Arilla sabia da existência de mulheres, como as artistas, por exemplo, que aceitavam convites de cavalheiros para cear, em altas horas da noite. . .

"Mas elas não fazem parte do mundo social em que lady Lindsey brilhará...", pensou Arilla e continuou em suas divagações.

Precisava tomar cuidado para não cometer nenhuma gafe.

Não fora à toa que a mãe, falecida quando ela contava dezesseis anos, ensinara-lhe boas maneiras, apesar de eles serem pobres.

Mesmo nos frugais jantares em família, seus pais arrumavam-se com esmero para sentarem-se à mesa. Não se vestir condignamente para o jantar, cada noite, seria tão extravagante como não se lavar cada manhã.

Quando ela crescera o bastante para participar das refeições, também fazia o mesmo.

Se havia algum prato mais sofisticado, a mãe se retirava com discrição para a cozinha, a fim de dar o toque final, antes que o velho Johnsons o servisse.

O pai se mantinha impassível, fingindo não notar a ausência da esposa que, ao voltar, mais corada, mas sempre linda, tomava seu lugar à mesa e o fio da conversa interrompida.

Arilla sabia receber, desempenhando-se principescamente, mesmo com o vigário, o médico ou algum raro amigo da vizinhança.

No caso de cometer algum deslize, mais tarde, com carinho, a mãe a corrigia. "Querida, quando você é apresentada a alguém, deve olhar para a pessoa. A timidez não é desculpa para baixar os olhos; é algo feio e indelicado, assim como não dar a mão na altura e com a pressão certas", ensinava a mãe.

Arilla havia aprendido também a fazer reverência à rainha para o caso, tão almejado agora, de um dia ser apresentada à corte.

"Uma apresentação ao príncipe regente seria muito mais interessante", pensava Arilla. "Talvez agora isso aconteça, pois Harry é tão amigo dele!" De súbito lembrou-se de que Sua Alteza preferia mulheres maduras. . . Chegara mesmo um boato em Marchwood de que ele, antes de se casar com a princesa Carolina de Brunswick, o que fora um desastre, já tivera um casamento secreto com a sra. Fitzherbert, muito mais velha do que Sua Alteza Real. De qualquer maneira, seria excitante conhecê-lo.

No entanto, o que ela precisava era de um marido rico!

Se o arranjasse, haveria de saldar todas as dívidas de Harry. dar-lhe cavalos, criados, tudo que seu refinado bom gosto reclamava! Sabia como o primo se sentia humilhado quando tinha de recorrer a um amigo para obter transporte de Londres até Marchwood.

Ele, que sempre fora exímio cavaleiro, até ganhara uma medalha do duque de Wellington, após a batalha de Waterloo!

"Que pena Harry ter deixado o regimento", dissera o sr. Roderick ao terminar a guerra. Quando Arilla perguntou a razão, o velho informou-lhe, suspirando, que o rapaz não tinha meios para se manter naquela arma e com mágoa se culpou pelo fato de não tê-lo deixado fazer a infantaria.

"Ele era tão hábil e garboso num cavalo que eu não resisti ao desejo de tê-lo em meu regimento", concluiu o pai de Arilla.

"Harry tem que possuir cavalos", ela admitiu. "Vou fazer de tudo para que meu marido goste dele, tanto quanto eu. Então irá morar conosco, terá cavalariços e salão nobre para receber seus amigos!"

Arilla não conseguia imaginar o rosto de seu futuro marido, todavia sabia que iria ser um velhote um pouco barrigudo mas bondoso e compreensivo como seu pai.

A mãe às vezes se queixava de que ele teria dado aos necessitados sua última camisa se ela não o tivesse impedido.

"Poderíamos ter ficado ricos", dissera uma vez. "Mas ele é muito bom e generoso em pensamentos, palavras e ações. . . e é por isso que o amo com todo o fervor!"

"Então ele é, na verdade, um homem rico, mamãe!", Arilla exclamara.

"Concordo e acho que nós temos muito mais do que o dinheiro poderia comprar!"

Notando a expressão intrigada da filha, lady Lindsey explicara:

"Estou falando de amor! Meu amor por seu pai, o que ele tem por mim e nós por você! Todos os dias agradeço a Deus pela adorável filhinha que Ele nos deu!"

Quando a mãe morrera, Arilla pensara que o sol tivesse abandonado aquela casa. Sabia que o pai jamais seria o mesmo.

A princípio ele se isolava, cavalgando sem destino ou bebendo muito. Mais de uma vez ela vira lágrimas indiscretas rolarem por seu rosto abatido.

Arilla quase tinha certeza de que, quando aconteceu o acidente, ele estava montando com negligência, como que absorto na grande mágoa que pesava em seu coração.

Ela se desesperara ao vê-lo sem sentidos, transportado sobre uma velha porteira, o meio improvisado pelo qual o levaram para casa. Não podia acreditar que fosse perdê-lo tão logo depois da morte da mãe.

"Por favor, meu Deus, não o leve...", ela rezara. "Se ele se for, vou ficar completa e absolutamente sozinha!"

Mais tarde viera a melhora, mas num corpo sem alma... e ela se convencera de que a morte seria uma bênção, não só para ele mas também para os que o rodeavam.

Era desesperador ver deitado, inerte como um vegetal, aquele que outrora fora tão belo e garboso!

No momento em que os médicos, ao saírem do quarto, balançaram a cabeça em sinal de que nada mais havia a fazer, ela entendeu que seu pai jamais a ouviria de novo ou a reconheceria.

À medida que as semanas se acumulavam em meses, Arilla sentia estar perdendo não apenas o pai, mas a essência da própria vida!

Então foi como se a mãe, para confortá-la e fazê-la rezar, lhe tomasse as mãos pondo-as em postura de prece. Ela implorou a Deus para que não deixasse essa desgraça afetá-la a ponto de arruinar sua vida.

"Eu vou viver como a senhora queria se tivéssemos tido mais posses, mamãe. Mesmo que seja por pouco tempo, tudo vai mudar."

Os planos de Arilla dia a dia se solidificavam, e ela examinava pormenorizadamente cada etapa de sua luta pela ascensão à glória!

Diante do espelho recordava os meneios que a mãe lhe ensinara. Precisava ser graciosa no andar, no movimento das mãos, da cabeça, na maneira de falar.

Arilla esforçou-se para se pôr a par das notícias do Parlamento, dos problemas sociais, enfim, entender a situação geral do país. Não foi tarefa muito fácil porque o dinheiro de um jornal lhe fazia falta.

Sabia que o vigário e um funcionário aposentado do banco eram assinantes de um jornal e o açougueiro lia um pasquim, no dizer de seu pai. Tinha sido embaraçoso, para ela, pedir-lhes que guardassem esses noticiosos, mas felizmente eles logo se prontificaram a fazê-lo.

O vigário lhe fornecia o The Times com três dias de atraso. O bancário, leitor do The Morning Post, queria dois dias para ler... e o açougueiro não abria mão do Reformists Register a não ser depois de uma semana. caso não o tivesse usado para embrulhar a carne. Mas muitas vezes ele o cedia antes mesmo de terminar a leitura, em atenção à grande amizade que nutria por sir Roderick.

Arilla nunca reclamava porque, com atraso ou não ia se atualizando. Parecia-lhe que Little Marchwood ficava em um planeta diferente e que só agora ela estava descobrindo a terra.

Esperava que seus habitantes fossem todos inteligentes e divertidos como Harry e como ela pretendia ser. Esperava também sair-se bem entre essas pessoas tão diferentes daquelas a que se acostumara.

Agora, o milagre começava a se realizar: muito feliJ ela estava a caminho de Londres, em uma linda carruagem conseguida por Harry e conduzida por um cocheiro de capa vermelha e um lacaio de libré cinzenta.

"Já me sinto uma deusa, agora preciso me comportar como tal", pensou Arilla.

Harry tinha lhe mandado um vestido bem diverso daqueles que usava. Era de um azul muito vivo, todo debruado com fitinhas de cetim em tom mais escuro, formando desenhos delicados, e tinha mangas compridas que terminavam em gracioso babado, que avançava um pouco em suas mãos delicadas e alvas. A cintura era ainda alta, como a dos modelos de durante a guerra.

Arilla nunca vira em Little Marchwood um chapeuzinho mais galante do que aquele que vaidosamente ostentava. Tinha fitas azuis amarradas abaixo do queixo, a aba circundada com finíssima renda do mesmo tom e um tufo de plumas de avestruz, em degrade azul, enfeitando a delicada copa.

Ao olhar-se no espelho, antes de sair, ela mal podia acreditar que fosse sua a imagem ali refletida. E admitira, sem falsa modéstia, que estava linda!

"Não vou envergonhar Harry", pensara.

E quando vira a luxuosa carruagem com dois cavalos de raça, a portinhola aberta, os criados a postos convidando-a para entrar, conscientizara-se de que uma grande aventura começava.

"Aconteça o que acontecer no futuro, jamais me arrependerei de tê-la vivido! "

 

A carruagem percorreu preguiçosamente a alameda e parou em frente a uma suntuosa residência, em Islington. Encantada, por uns instantes Arilla se manteve estática, contemplando a mansão.

O lacaio apeou, tocou a sineta e a majestosa porta se abriu. No umbral surgiu uma criada, de avental branco de babadinhos engomados e gorro combinando. Arilla desceu com elegância.

- Bom-dia! - exclamou ao ser reverenciada pela serviçal.

- Bom-dia, senhora. Espero que tenha feito uma boa viagem!

- Foi muito boa, obrigada.

Sem saber se deveria ou não se despedir do cocheiro e seu ajudante, ela adentrou o imponente hall.

- O sr. Vernon está aqui?

- Está esperando pela senhora no salão - informou a criada, indicando o caminho.

Arilla mal podia conter a impaciência. Sua vontade era correr ao encontro do primo, mas... como boa menina, comportou-se.

De repente sentiu medo do que se havia proposto. Só Harry poderia lhe assegurar êxito nessa arriscada aventura. Rezava para que tudo estivesse bem encaminhado.

O luxuoso salão dava para um bem tratado jardim ao fundo da casa. Próximo à janela Harry cismava.

- Lady Lindsey, senhor - anunciou a criada.

Ele se voltou e Arilla, com espontaneidade, correu ao seu encontro.

- Harry! Aqui estou eu, primo. Oh! Harry, será que vai dar tudo certo?

Ele sorriu, segurou-a pelos ombros e se pôs a examiná-la.

- Deixe-me ver como você está!

Arilla fitou-o apreensiva, enquanto o primo a media da cabeça aos pés.

- Perfeito! - disse ele com entusiasmo. - Exatamente como eu queria que estivesse!

- Fala a verdade?

- Claro! Do fundo do meu coração. Precisa ter mais confiança em si, Arilla.

- Eu tenho, Harry. Mas tive medo de desapontá-lo.

- Que tolice! O pior seria você se desapontar, e não eu... O que está achando do ambiente?

Ela examinou a enorme sala. A mobília, de fino brocado azul, era de incontestável bom gosto: preciosos lustres de cristal pendiam do teto alto e lavrado. Por toda a parte havia um fulgor de prata e ouro nos objetos de adorno.

As paredes exibiam quadros de grande beleza. "Devem ser reproduções de pintores famosos, cujos quadros estão expostos na Galeria Nacional ou em outras capitais da Europa", ela pensou maravilhada, e respondeu:

- Digno de uma rainha!

- Tem razão. Barlow tem um gosto extraordinário!

- Barlow? - inquiriu Arilla, curiosa.

- O nome de seu hospitaleiro, que, no entanto, não sabe que a hospeda - Harry informou rindo.

Ela se intrigou.

- Pensei que morasse uma senhora aqui. Encabulado, ele indagou:

- E que diferença faz? Veja bem, no caso de perguntarem, esta é a casa de lorde Barlow, alugada para

você em consideração a seu falecido marido, de quem gostava muito.

Arilla deu um profundo suspiro.

- Espero me lembrar de tudo.

- Vai se lembrar - Harry afirmou com confiança.

- Agora, a primeira coisa a fazer é comprar roupas. Já marquei uma costureira para depois do almoço.

- Aqui? Pensei que fôssemos a alguma loja!

Não seria prudente. Alguém poderia vê-la. Quero que você surja no universo social como um cometa inesperado.

- Ah, não caçoe! E quando isso vai acontecer?

- Amanhã à noite. Já está tudo programado: você vai ser apresentada a uma importante anfitriã de Londres. Se ela gostar de você, talvez a faça entrar para o Almack's.

O Almack's era o mais conceituado e exclusivo clube londrino, onde brilhavam as grandes figuras do beau monde, e, entre elas, Harry, o protegido dos membros da corte. Esse clube seria, para Arilla, o passaporte de entrada para toda a alta sociedade britânica.

- E quem é essa grande dama?

- A condessa de Jersey. Uma mulher caprichosa e imprevisível. Tanto pode glorificar como destruir uma pessoa. Por isso é temida e bajulada.

Esse comentário não foi nada entusiasmante para Arilla, como também não o foi o lauto almoço servido logo depois.

Harry saboreava um delicioso vinho quando ela ousou observar:

Quanto vai nos custar isso?

- Está tudo sob controle. Você tem uma farta despensa e uma criadagem, que consiste em uma cozinheira e uma criada de quarto. Só mulheres! Quando lorde Barlow se hospeda aqui, traz um criado particular para servi-lo; por isso você tem que se arrumar sem mordomo.

Outra vez ela se viu diante de um enigma. Se aquela era a casa de lorde Barlow, por que Harry falara "quando ele se hospeda aqui"? Mas não quis especular.

Antes do almoço, Arilla subira para tirar o chapéu e se aprontar para a refeição. Ficara pasmada ante o conforto e o luxo do quarto.

Nunca havia pensado existir coisas tão aconchegantes e belas: o cortinado de musselina de seda envolvendo o grande leito;os ricos tufos de renda que ornavam o toucador antigo e os espelhos italianos que aumentavam o ambiente e refletiam sua imagem, propagando-a de parede a parede.

A camareira era uma moça encantadora, evidentemente orgulhosa de seu ofício.

- Estou bem assim? - Arilla lhe perguntara, antes de descer.

- Sim, está linda! Parece uma lady. Desculpe, não sei se posso chamá-la assim. - E a criaturinha enrubescera.

Estranha observação, mas Arilla absteve-se de comentar com Harry. Estava preocupada em agradecer-lhe aquela casa maravilhosa.

Quando o almoço terminou e eles voltaram ao salão, ela disse, um pouco ansiosa:

- Vamos ser prudentes e não gastar muito em roupas. E se tudo der em nada mais cedo do que esperamos?

Harry, sem se impressionar com a admoestação, continuou:

- Eu fiz o seguinte: prometi à costureira que aumentaria sua clientela com as muitas mulheres elegantes que vão apreciar suas toaletes. - Depois de uma pausa, acrescentou: - Ela costura para a moça que mora aqui. mas você vai se comprometer a arranjar-lhe novas freguesas entre as madames que conhecer. As que ela tem, na maioria, são prosti... - Na penúltima sílaba parou e falou artistas.

- Ah! Já sei. Ela pensa que sou uma pessoa da alta sociedade e espera que eu lhe apresente outras senhoras importantes.

Harry suspirou aliviado.

- Exato.

- E se ninguém me admirar?

- Como não? Faremos o possível e o impossível para torná-la incomparavelmente linda! - ele exclamou confiante.

Quando a costureira chegou, Arilla surpreendeu-se com sua beleza e jovialidade.

- Estou às suas ordens, sr. Vernon. Como sempre, fui cativada pelo seu charme. A caminho questionava-me sobre a razão de minha obediência.

- Não seja irónica, Liza. Você não se arrependerá por ajudar lady Lindsey a atingir o sucesso que lhe está destinado.

Pensativa, Liza analisou Arilla. Depois, fazendo uma espalhafatosa reverência, sorriu para Harry:

- Meus parabéns, você venceu!

Ele se desmanchou em sorrisos, como se fosse responsável pela beleza irrefutável da prima.

Arilla sempre havia pensado que comprar vestidos fosse um prazer. Nunca supusera ser algo tão cansativo. Exauriu-se experimentando os muitos modelos que Liza trouxera. Foi mais cansativo do que andar um dia inteiro a cavalo, ou mesmo cuidar de Seu pai doente.

Contudo, ela ficou conhecendo uma nova faceta de Harry. Jamais imaginara que ele pudesse conhecer tão a fundo a arte de vestir uma mulher.

Harry sugeria alterações em quase todos os vestidos, e era surpreendente como recebia a total aprovação de Liza. A costureira se perguntava, após cada ideia nova dele, por que não pensara naquela sugestão antes.

Isso aconteceu com um vestido de gaze verde, a cor dos brotos da primavera. Ele insistiu para que ela o enfeitasse com delicadas flores na barra, valorizando-o muito. De outra feita, negou-se a comprar um determinado modelo, dizendo:

- Não é próprio para Arilla... a faz mais velha e caipira!

Mas, de um modo geral, todos os vestidos eram muito lindos, dificultando a escolha.

Harry escolheu quase todos, com exceção de dois. Arilla então não pôde esconder sua perplexidade.

- Você vai comprar. .. todos esses?

- ...e alguns mais. Liza vai trazer figurinos, amanhã.

- Mas... eu não vou.. . Não é possível! - ela reagiu.

E como Harry lhe lançasse um olhar reprovador, sua voz se converteu num vago lamento, sumindo pouco a pouco no silêncio.

Ficou combinado que dois vestidos seriam entregues nessa mesma noite e os outros, no dia seguinte, à tarde.

Depois que Liza partiu levando as caixas na carruagem, Arilla criticou Harry severamente:

- Você ficou louco? Não vamos poder pagar esses vestidos! Além disso, não terei chance de usá-los todos.

Harry foi para junto dela e vendo-a tão assustada, a ponto de tremer, disse-lhe com grave serenidade:

- Ou você aceita minhas determinações ou deixo tudo por sua conta.

- Não, não. Pelo amor de Deus! Você sabe que eu não posso fazer nada sozinha. Mas. . . que fortuna!

- Da qual a rica lady Lindsey pode dispor - garantiu Harry, enfatizando o adjetivo. Todavia, ao olhar para ela, tão frágil e insegura, parecendo um bichinho assustado, apiedou-se. - Deixe comigo. Prometo que tudo dará certo e você não vai ser molestada por nenhum credor.

- Mas quase não temos dinheiro!

Ele a abraçou fraternalmente, encorajando-a.

- Não fique assim, Arilla. Logo seu príncipe encantado vai chegar e... vocês viverão felizes para sempre.

- Não é aspirar muito? - choramingou ela.

- Que nada! Assim que você chegou, achei que venceríamos.

- Tem certeza?

- Absoluta. Sabe o que mais me entusiasma? Enganar toda essa gente pedante e convencida de que sabe e pode tudo!

A maneira alegre e decidida como ele falou imprimiu novo alento em Arilla.

- Vamos conseguir, Harry.. . vamos conseguir!

- Quando olho para você, assim tão linda, só posso achar que sim. Sabe o que Liza me disse ao sair? Ele fez uma pausa para causar impacto. - "O senhor está no rumo certo, sr. Vernon. Ela é rica e há muito tempo não vejo criatura tão encantadora! Cuidado para não perdê-la."

- Falou isso?!

- Sim, moça, e esteja certa de uma coisa: ela vai decantar sua beleza a meio mundo! Amanhã mesmo um bom número de freguesas estará falando sobre você.

- Ai, isso me apavora, mas ao mesmo tempo é empolgante!

- E estimulante! Mas lembre-se: é muito importante você assumir o papel que representa, para não falhar em nenhum ponto.

- Se sou tão rica... será que Liza não estranhou você pechinchar tanto?

- Eu disse que seu falecido marido era muito económico e você se acostumou a isso. Reforcei dizendo que ainda não tinha tomado posse da herança. .. Recomendei a ela que não a assustasse com esses preços exagerados da city porque você sempre morou na zona rural.

- Mas, quando cheguei, eu estava com um chapéu e um vestido bem finos. Por sinal você não me disse quanto custaram.

- Nada.

- Como?

- Eu os pedi emprestados a uma amiguinha. Quando suas coisas chegarem, vou devolvê-los.

- Oh! Harry, como vou fazer para agradecer-lhe?

- Eu agradeço por você. Aliás, também não posso apresentá-la a você, bem como a minha amiga que mora aqui.

- E elas são... suas amigas?

- Comigo é diferente!

- Ah! Já sei, são.. . artistas! Por isso o vestido e o chapéu são tão lindos!

- São.. . são artistas - ele respondeu com rapidez. Arilla teve a impressão de que ele mentia, mas não

atinava com a razão.

Harry despediu-se, avisando que jantariam juntos.

- Não se incomode, Harry. Se tiver um programa mais interessante, me arranjarei sozinha - ela declarou com humildade, mas torcendo para que não fosse verdade que ele tivesse coisa melhor a fazer.

- Farei um pequeno sacrifício - ele falou calmamente. - Tenho instruções a lhe dar, para evitar em baraços amanhã.

- Não vou me embaraçar. Fique sossegado. Depois que Harry saiu, Arilla subiu para seus aposentos. Sentia-se deveras cansada.

A camareira, de nome Rose, sugeriu que ela se deitasse um pouco antes de preparar-lhe o banho.

Tal mordomia agradava-lhe muito. Arilla seguiu o conselho e, quando sua cabeça tocou o travesseiro, caiu no sono.

Dormira mal a noite anterior, pois pesavam-lhe não só o futuro, mas também os últimos acontecimentos de sua vida. Os Johnsons lhe causavam preocupação. Além de seus parcos salários, ela lhes dera algum dinheiro que lhes provesse de alimento por um pouco de tempo.

Estava decidida a pedir a Harry uma mesada para eles, pois já haviam passado mal por ocasião da doença de seu pai. Quando fosse rica, daria uma pensão generosa aos Johnsons. Poderiam ficar morando no solar, ou então ela lhes compraria uma casinha na cidade.

Se arranjasse um marido rico, haveria tanto a fazer com o dinheiro dele! Muita gente, como o senhor do empório, o açougueiro, tinha sido bondosa, dando-lhe crédito quando o dinheiro faltara. Gostaria de retribuir, assim que pudesse, apesar de não saber se sua fortuna seria de grande monta.

Que desgraça se seu "príncipe de ouro" fosse tão avaro quanto os ricaços que ela e Harry conheciam! Mas, nesse caso, ela não se casaria.

Rose despertou-a, avisando que o banho estava pronto.

Logo depois, Arilla sentia-se uma princesa de contos de fada! E, ao vestir o modelo esvoaçante de Liza, teve certeza disso.

Estava bem diferente daquela menina interiorana de cabelos malcuidados e vestidos de algodão barato de Little Marchwood. Agora era só charme e elegância!

O vestido de gaze realçava a beleza de suas formas esbeltas e mostrava seu colo delicado, num decote audacioso em desacordo com seus hábitos provincianos.

A imagem refletida no espelho do quarto era tão maravilhosa e irreal que a fez temer que se desfizesse na nebulosidade de um sonho.

Mas, ao descer, os espelhos do salão confirmaram sua beleza, enriquecida por uma atitude e um porte de rainha.

Apesar da temperatura agradável da tarde, a noite estava fria, e a lareira fora acesa. Em pé, na frente do fogo, Arilla ouviu a porta se abrir. Um arrepio a fez estremecer de alegria. Harry devia ter chegado.

A empregada anunciou:

- Lorde Rochfield, senhora.

Um homem distinto e belo adentrou a sala, para surpresa de Arilla.

"Harry deve tê-lo convidado para jantar", pensou ela.

Mas, quando ele a olhou com o mesmo espanto que seus olhos mostravam, percebeu que se enganara.

- Boa-noite. É amiga de Mimi?

- Mimi? - ela perguntou, em dúvida. Achou que ele esperava encontrar a dona da casa e foi logo dizendo:

- Estou morando aqui e... não há mais ninguém além das empregadas.

- Mimi viajou? É estranho. Sabia que eu viria esta noite. Deixou você para me consolar, não foi?

Arilla ficou perplexa. Antes que pudesse retrucar, ele prosseguiu:

- Que amor! Não sei como não notei você antes.

Ele a media com um olhar atrevido, fazendo-a sentir-se desconfortável. Sabia que ali, em frente ao fogo, suas vestes deviam estar transparentes e seu decote, perturbador.

- Sinto muito que o senhor esteja desapontado por não. . . encontrar a dona da casa.

- De maneira nenhuma! Não estou desapontado. Você é muito mais atraente do que ela. É fascinante, é... muitas coisas que lhe direi, mais tarde, depois de nosso jantar.

O lorde deu um passo à frente e Arilla, aterrorizada, recuou com medo de que ele a tocasse.

- Vamos jantar aqui mesmo ou quer sair?

- Eu. . . eu preciso explicar - ela falou, desamparada, começando a tossir.

- Não, não quero explicações; eu a quero o mais rapidamente... na cama. - E ia avançar para ela quando uma voz metálica e firme anunciou:

- O sr. Vernon, senhora.

Lorde Rochfield virou-se contrariado mas, controlando-se, exclamou:

- Harry Vernon! Que diabo você está fazendo aqui?

- Devolvo-lhe a pergunta - disse Harry, de mau humor.

- Ainda bem que Mimi deixou uma substituta... Esta deusa encantadora.

Nesse momento Harry já tinha alcançado Arilla que, amedrontada, agarrou-se ao braço dele.

- Vossa Graça talvez não saiba que Mimi foi a Paris, e minha prima, lady Lindsey, alugou esta casa de Barlow, na ausência dela.

Lorde Rochfield olhou desconfiado para Arilla, achando que estivesse sendo ludibriado. Todavia, ao perceber o pavor estampado no semblante da jovem, convenceu-se.

- É... parece que houve um engano.

- Não foi culpa sua. Mimi devia ter avisado que deixaria a Inglaterra por algum tempo - disse Harry, com firmeza. - Minha prima, milorde, levava uma vida serena no campo e chegou recentemente a Londres. Espero que não a desaponte, pois Sua Graça é o primeiro representante da sociedade londrina a ser-lhe apresentado.

- Uma situação assaz privilegiada! - exclamou o lorde.

- Vou servir um drinque. Deve haver champanhe por aqui. - Harry atravessou o salão, afastando-se.

- Espero que me desculpe se a ofendi antes de conhecê-la.

- Oh, sim. Eu apenas fiquei confusa porque nem sabia o nome da senhora que mora aqui.

Lorde Rochfield tossiu e falou com voz acariciante:

- Gostaria de levá-la para dar uma volta de carruagem pelo parque. - Sorriu e achou melhor arriscar outro convite: - Talvez vocês dois concordem em jantar comigo uma noite dessas?

- Será um prazer!

Harry já voltava com duas taças de champanhe, que entregou a ambos, retornando ao bufet para servir-se.

- Não há necessidade de desejar sucesso a você disse o lorde, levantando a taça para Arilla - porque, obviamente, o terá, e esmagador! Espero, isso sim, que não esqueça seu primeiro contato aqui em Londres. fazendo-me seu amigo.

- O senhor é. muito amável.

E as duas taças tilintaram ao tocarem-se delicadamente.

Só depois de meia hora, com visível relutância, lorde Rochfield despediu-se.

Arilla achou que ele esperava um convite para jantar, mas não caberia a ela fazê-lo. Assim que a carruagem distanciou-se, comentou:

- Que sorte você ter chegado, Harry. Lorde Rochfield começou a falar de um modo tão estranho!

- Eu sabia.

- Mas ele se desculpou, depois. Notou como queria ficar para jantar?

- Sim. Mas não é pessoa indicada para se envolver com você. Se bem que... é preferível tê-lo como amigo do que como inimigo.

- Por que não posso envolver-me com ele?

- Muito simples: nunca se casaria com você.

- Não? E se me conhecesse melhor?

- Ele é faladíssimo por seus casos amorosos, que nunca o levarão a um outro desastroso casamento.

- Ah! Então já foi casado?

- É evidente. com essa idade! E foi casado com uma mulher encantadora, filha do duque de Doncaster mas a fez sofrer muito.

- O que ele fazia?

- Tinha muitas amantes, divertia-se com coristas enfim, quase matou a esposa de desgosto. Ela morreu

há cinco anos, mas, garanto, ele não vai se amarrar outra vez. Já tem dois filhos para herdarem seu título e uma imensa fortuna. Ele acha a vida de boémio mais divertida e interessante do que a de um esposo dedicado.

- Esse homem é horrível. - concluiu Arilla, com ingenuidade.

- Por isso deve mantê-lo a distância.

- Mas você foi gentil com ele.

- Para evitar que crie problemas.

- Como?

Harry sacudiu os ombros, descontente.

- Chega de falar nele. Estamos perdendo nosso tempo.

- Concordo. E, francamente, nunca mais quero encontrar esse monstro - ela disse em voz fraca. Lembrava-se da maneira vulgar e atrevida com que ele a fitara e das palavras estranhas que lhe tinha dirigido.

- Então esqueça-o. Se um dia a convidar para sair, apenas negue, ou melhor, eu a orientarei como fazer.

- Já me convidou para passear no parque e quer que jantemos qualquer noite com ele.

Harry soltou uma risada e disse:

- Ele estava querendo "emendar o soneto". Pois tomou-a por uma.

Hesitou mas Arilla já completava:

- Substituta de Mimi. Sei lá o que isso possa significar.

- Que lorde Rochfield vá para o inferno com sua impertinência. Devia ter imaginado que você era uma moça de família.

- Antes de você chegar pensou que eu fosse uma. empregada?

Harry pigarreou, nervoso e ao mesmo tempo encantado com a inocência da prima. " Isso não estava no programa. Preciso avisar a moça que atende à porta para ter mais cuidado e receber só pessoas previamente recomendadas.

- Talvez ela tenha pensado que ele era seu convidado.

- É... talvez. Mas não deve acontecer de novo.

A seguir os dois foram jantar. Harry se mostrou alegre e carinhoso, parecendo querer compensar o aborrecimento causado por lorde Rochfield. Mas Arilla não mais pensava no incidente, encantada que estava com a companhia sempre tão agradável do primo.

Quando terminaram de jantar, Harry disse com ar protetor:

- vou mandá-la para a cama cedo porque amanhã temos muito o que fazer. À noite, quero você na melhor das formas para uma entrada triunfal na sociedade mais sofisticada da Inglaterra. - Deteve-se por um instante e prosseguiu: - É muito importante a condessa de Jersey aceitar você. Por isso fiquei preocupado com o lorde. Ele poderá fazer algum comentário desagradável a seu respeito. pelo fato de morar sozinha, sem uma dama de companhia.

- Isso é mau?

- Para pessoas tradicionais, apegadas a convencionalismos... é um escândalo! Mas. todos sabem que sou seu primo e uma espécie de tutor, o que atenua a situação. Além disso, você mora em uma boa área desta cidade e também está rodeada de criados. - Brincou.

- Ninguém vai lhe atirar pedras, espero.

- Se fosse para ter uma dama de companhia, preferia ser uma debutante.

- E não conheceria nem a metade das pessoas importantes que, como viúva rica, vai conhecer.

- Não se interessam por mocinhas?

Elas causam problemas para a maioria dos ho mens e, de um modo geral, são desinteressantes. inexperientes. - Meio sem jeito, Harry aconselhou: Tome cuidado com homens do tipo de lorde Rochfield!

Cortejam as mulheres por outras razões... nunca para oferecer uma aliança de casamento.

- Que outras razões?

Harry entrou em conflito: deveria ou não dizer a verdade? Não queria ferir os sentimentos de Arilla. Ademais, sabia que sua inocência e aura de pureza a faziam ainda mais atraente e a protegiam melhor do que ele mesmo a poderia proteger.

Ao mesmo tempo, pensou: "Ela está tão bela e sedutora nesse vestido de gaze que entendo por que lorde Rochfield relutou tanto para sair". Temia pelo futuro dela, pensando nos inúmeros Rochfield espalhados por esse mundo afora.

Harry ficou carrancudo, e Arilla o interrogou, aflita:

- Você está zangado, Harry? Falei alguma bobagem?

- Não, claro que não. Nossa corrida já começou. Vá para a cama convencida de que teve um bom início, minha linda priminha. - E acrescentou, feliz: - Já ultrapassou a primeira cancela, agora as outras serão mais fáceis.

Arilla sorriu de modo encantador.

- O primeiro obstáculo a ser vencido será a condessa de Jersey - lembrou. - Por enquanto só pulei um perigoso fosso: lorde Rochfield.

- Há muitos outros obstáculos, cuidado!

- Mas eu me agarrei em você, Harry. Vai ser empolgante!

- Vai mesmo, Arilla, e... haja o que houver, não desistiremos de correr atrás de nossa boa sorte!

 

Ao entrar no magnífico salão de recepções da condessa de Jersey, Arilla desejava ardentemente que a mãe a estivesse vendo. Havia lustres de cristal da Boémia, mobília francesa, tapetes Aubusson, e o teto era lavrado a ouro.

Quando Harry chegara a Islington para apanhá-la, ela procurava aprovação para sua aparência no olhar dele.

O espelho de seu quarto lhe mostrara a imagem de uma boneca, criada por Liza e Harry, e não a sua.

Seu vestido de renda, cheio de flores, fitas e babados, longe de ser por demais enfeitado, lembrava em leveza e nuances a chegada da primavera. Era a própria Perséfone, deixando o Hades para se oferecer à luz e ao calor do sol.

Contudo, ao cruzar a sala em direção ao primo, um tremor percorrera-lhe o corpo, receosa de que ele não a achasse bela. com ansiedade, perguntara:

- Que tal?

- Liza trabalhou muito bem - afirmara ele. E colocara-lhe a estola sobre os ombros desnudados porque uma leve brisa se fazia sentir lá fora.

Uma confortável e luxuosa carruagem os esperava. Não era um faetonte e devia ter sido emprestada, como sempre.

Sem nada dizer, Arilla lamentou, mais uma vez, a situação de dependência de Harry, apesar de sabê-lo muito querido entre os ricos amigos. Não descartou, todavia, a possibilidade de alguma vez ele ter sido objeto de chacota por estar em inferioridade económica. E sofreu com isso, como ele próprio teria sofrido.

Arilla foi tomada de pânico ao se aproximar da mansão.

"E se estivermos cometendo um grave erro com toda essa encenação?", questionou-se.

Sua grande preocupação era não prejudicar os bons relacionamentos de Harry. Lembrava-se de como ele a prevenira sobre o papel importante da condessa em seu meio social.

Contudo, Harry não entrara em detalhes a respeito do que ela representava para o príncipe regente. Tivera medo de chocar Arilla, que jamais entenderia como Frances Jersey destruíra a felicidade entre o então príncipe de Gales e a sra. Fitzherbert.

Mãe de dois filhos e sete filhas, dos quais alguns a haviam presenteado com netos, a condessa era nove anos mais velha do que o príncipe, porém dona de um charme maduro e marcante, aliado a uma incrível formosura.

Harry lembrava-se de como o pai e seus contemporâneos se referiam a ela como alguém que transpirava malícia, encanto e sedução. Também comentavam a respeito como sendo uma mulher perversa e inescrupulosa na conquista de suas ambições.

Certa ocasião, o velho pai observara:

"O príncipe não poderia deixar de cair nas malhas dessa infernal Jezebel. Ele estava ciente de toda a crueldade dela, mas os artifícios femininos que ela usou eram de tal forma significantes que lhe foram fatais".

E o pai continuara em tom amargo:

"Na verdade, o príncipe regente queria ambas as mulheres. Não lhe foi fácil viver sem a sua Fitzherbert. Mas, finalmente, com uma férrea perseverança, a condessa de Jersey venceu".

Era evidente que, depois de ouvir tudo isso sobre a condessa, Harry quisesse conhecê-la. Por isso, ao voltar da guerra e estando em Londres, ele a procurou. Encontrou-a velha, mas ainda bonita e sensual.

E Harry, atraente, de personalidade forte e muito boas maneiras, advindas de sua origem nobre, tornou-se o encanto da velha senhora, que o impulsionou às alturas da sociedade inglesa.

Em troca, ela esperava que ele estivesse sempre disposto a colorir suas reuniões com seu encanto e inteligência brilhante. Chegava mesmo a sentir ciúme dele, quando requisitado pelo príncipe para outras atividades sociais que não as suas.

Mais tarde, com medo de perder prestígio, aconselhou-o a atender Sua Alteza Real, sem deixar de preveni-lo porém:

"O príncipe é muito interesseiro. adora bajulação. Quando menos esperar, se descartará de você. E se você fosse rico... o faria pagar pelo privilégio de tê-lo como amigo!"

Harry rira gostosamente na ocasião. A mordacidade da condessa o divertia muito.

Agora, ao levar Arilla para conhecê-la, sabia estar usando mais da intuição do que da lógica.

A velhice tornava certas pessoas más e invejosas, e a prima poderia vir a ser uma vítima da condessa. com sua beleza inegável, Arilla seria invejada até por criaturas jovens, quanto mais por essa mulher tão atenta à sua progressiva decrepitude. A condessa poderia detestá-la e mesmo magoá-la, em vez de ir em seu auxílio.

Mas a sorte estava lançada, e ele esperava que, apesar de Arilla portar uma aliança de casamento, seu aspecto quase infantil despertasse a benevolente proteção da velha. Mas não transmitira sua inquietação à prima para não deixá-la nervosa, roubando-lhe a espontaneidade.

Mesmo de longe, Arilla notou os vestígios de beleza no rosto da condessa, mas achou-a mais velha do que supunha.

Depois de serem anunciados, eles se dirigiram até a antiga bergère, onde a anfitriã se encontrava, como se estivesse num trono, rodeada por cavalheiros atentos e distintos, carentes de sua consideração.

Quando Harry se aproximou, ela ofereceu-lhe a mão para ser beijada.

- Você está mais lindo do que nunca, Harry! Como poderia negar um pedido seu? Onde está sua prima? Se é isso o que realmente ela é!

- Claro que é minha prima! Jamais mentiria a Vossa Senhoria.

- Você é capaz de tudo para atingir seus objetivos, Harry - retrucou ela, com sabedoria. - Vamos, mostre-me a jovem.

- Arilla, venha conhecer a condessa - ele sussurrou, virando-se para trás. A seguir apresentou: - Esta é lady Lindsey, Arilla Lindsey.

Arilla fez uma graciosa reverência para a condessa de Jersey.

- Já sei que você é viúva, Arilla. Eu também sou e lhe asseguro que, se as pobres mulheres quiserem ter um mínimo de liberdade em suas vidas, devem providenciar para nascerem viúvas ou órfãs.

Risos soaram pela sala em aplauso à espirituosa observação da condessa, que continuou.

- com essa carinha, duvido que continue por muito tempo em seu invejável "estado de graça", ainda mais, como disse seu primo, sendo beneficiária de tão grande fortuna.

Como era de se esperar, Arilla enrubesceu.

- Vossa Senhoria está encabulando minha prima. Mas gostaria de informar que, se ela contrair núpcias novamente, será em razão de suas valiosas qualidades pessoais.

- facilmente reconhecíveis - completou a condessa. - E muito breve surgirão dezenas de candidatos. - com a sua preciosa colaboração - Harry acrescentou com ousadia.

Por um momento reinou um silêncio constrangedor; depois a condessa brincou:

- Audacioso como sempre, não é, meu rapaz? Por isso, gosto de você - disse ela. E voltou-se para os convidados: - Quem os senhores sugerem que seja apresentado a essa jovem e charmosa viúva?

Todos começaram a falar ao mesmo tempo, para total embaraço de Arilla, que se aproximou mais de Harry, pedindo guarida. Ele entendeu seu gesto e deu-lhe um sorriso tranquilizador.

Nesse instante alguns retardatários adentraram o salão. Harry, aproveitando a distração da condessa, sussurrou ao ouvido da prima:

- Não se preocupe. Já foi bem-aceita. Agora o resto é fácil!

Harry tinha razão. Seguiram-se inúmeras apresentações a cavalheiros bem-apessoados, todavia, sempre acompanhadas das mordazes observações da condessa.

Quando conversava com um par da Câmara dos Lordes, que falava com orgulho sobre um discurso que lá fizera, Arilla, para seu desalento, ouviu o mordomo anunciar:

- Lorde Rochfield, milady.

Ela notou logo a satisfação da condessa e observou o olhar soberano que o lorde lançou pelo salão. Virou o rosto, mas ele imediatamente a reconheceu. Prova disso foi o comentário que a condessa de Jersey fez, com voz maliciosa:

- Já conhece lorde Rochfield... não, Arilla? Ele insiste em uma apresentação formal, por razões desconhecidas para mim. Portanto eu os apresento: lady Lindsey, lorde Rochfield.

Enquanto Arilla o saudava friamente, ele explicava:

- Quero iniciar um relacionamento sem equívocos.

Ao encontrar os mesmos olhos escuros e atrevidos, ela se certificou mais uma vez de que o detestava. Aquele homem, contra o qual Harry já a havia prevenido, a amedrontava. E, quando ele fez menção de se aproximar mais, ela se desculpou:

- com licença, preciso ver uma pessoa...

Antes que lorde Rochfield pudesse retrucar, Arilla desapareceu entre os grupos de convivas. Encontrou Harry em animada conversa com um velho e conceituado estadista, que discretamente se afastou ante o surgimento inesperado dela.

- Lorde Rochfield chegou, Harry - ela disse baixinho.

- Eu vi. Seja gentil, mas evite-o, o mais que puder. Não o contrarie, para não criar problemas.

Arilla ia dizer-lhe que não sabia como seguir instrução tão contraditória quando o lorde os alcançou, falando em tom cordial:

- Boa-noite, Vernon. Pensei que o encontraria no clube. Pretendia convencê-lo a levar essa jovem fascinante para jantar em minha casa. - Sorriu para Arilla e prosseguiu: - vou dar um jantar em sua honra, com a presença de Sua Alteza Real, a quem devo não só um, mas muitos antares!

- Isso se aplicaria a muitos de nós. O que nos consola é pensar que o príncipe gosta mesmo é de ser o convidado principal de sua própria mesa - disse Harry rindo.

- Talvez. Eu já prefiro ser o anfitrião de sua adorável parente. Quando me darão esse prazer?

O desejo de Arilla era que esse jantar nunca se realizasse. No entanto, ele lhe daria uma ótima oportunidade para encontrar personalidades interessantes e iniciar relacionamentos de futuro. Harry também devia ser da mesma opinião, tanto que logo se pronunciou.

- Muita gentileza sua, milorde. Lady Lindsey e eu nos sentiríamos honrados com sua hospitalidade. Mas. estamos com nossa agenda lotada. Deixe-me ver... na próxima quarta-feira?

- Perfeito! - exclamou lorde Rochfield. - Só espero que lady Lindsey se divirta porque... quanto aos outros... quem não se compraz ante tão encantadora criatura?

"Muito formais para serem sinceras essas palavras", pensou Arilla.

Notou que os olhos do lorde a examinavam com a mesma avidez da noite anterior. E, outra vez, sentiu-se desconfortável, achando que seu vestido era um pouco transparente e exagerado no decote.

Apesar de ingénua, Arilla percebia que aquela não era a maneira de um cavalheiro olhar para uma dama de respeito.

"Ele é odioso e está se comportando de um modo abominável", considerou.

Nesse instante a condessa tocou Harry com seu leque para dizer-lhe:

- A princesa de Lieven acaba de chegar. Veja se você a entretém a fim de paralisar sua língua viperina.

Atónita, Arilla ouviu a risada dele e viu-o apressar-se obedientemente em direção à princesa, esposa do embaixador russo. Quis segui-lo, mas lorde Rochfield levou-a Para o canto extremo do salão, onde havia um sofá desocupado.

- Agora me fale de você. Acredito que no campo, onde esteve escondida, sua beleza foi decantada apenas Pelos pássaros e pela brisa! Não deixa de ser uma pena.

- É um poeta, milorde - disse ela em tom de ironia.

- Só quando estou com você. Quando a encontrei ontem, pensei estar tendo uma visão.

Contrariada, Arilla virou o rosto, mas ele continuou:

- Será que ainda não me desculpou por tê-la confundido com uma das meninas da Mimi? As circunstâncias me levaram a isso!

- Continuo sem entender. Não conheço essa Mimi.

- Então vamos esquecer a noite de ontem, com exceção do impacto que você me causou. Sem mais delongas, minha linda, estou perdidamente apaixonado por você.

- Não é possível, milorde! - retrucou ela. - E não devia falar assim... Em tão pouco tempo de conhecimento!

Lorde Rochfield riu.

- Não sabe que tempo não tem nada a ver com emoções? O amor nasce de repente, como uma faísca em céu tempestuoso...

- Só posso duvidar de um sentimento com bases na fragilidade de um mero encontro!

As palavras de Arilla eram frias e duras e seus olhos moviam-se, aflitos, à procura de Harry.

Com surpresa e desagrado, sentiu as mãos do lorde segurá-la pelos cotovelos e ouviu a voz clara e firme dizer:

- Ouça bem, sou um homem obstinado. Quero você e vou tê-la só para mim... - E, fitando-a com ternura, continuou: - Tomarei parte no jogo, seja lá qual for, mas ao final a terei em meus braços.

Arilla não pôde evitar a vaidade motivada por tal declaração, jamais ouvida da boca de algum homem.

Instintivamente, olhou-o, impressionando-se com a chama reluzente que brilhava naqueles olhos escuros.

Apavorou-se quando sentiu mãos poderosas agarrarem-na, puxando-a para junto de um corpo fremente. Teve ímpetos de fugir, mas seu bem treinado autocontrole de menina inglesa a fez raciocinar e optar pela diplomacia.

- Cuidado, milorde, está quebrando o mais primário dos princípios da moral vitoriana. Sinto dizer que suas palavras não me interessaram, e é com todo o respeito que peço permissão para me retirar.

Levantou-se com firmeza e afastou-se dele devagar. Lorde Rochfield não a deteve, para evitar escândalo.

À medida que ela caminhava, ouvia-lhe a risada desdenhosa e artificial.

Mais uma vez aproximou-se de Harry, que se ocupava com a princesa. Ele ia apresentá-la à princesa, quando um senhor atarracado, que estava ao lado, tomou a dama pelo braço, e ambos se afastaram falando em russo.

- O que houve? - Harry perguntou, contrafeito.

- Lorde Rochfield está sendo inconveniente. Vamos embora.

- Pelo amor de Deus! A ceia nem foi servida. e seria um insulto sairmos antes da meia-noite. Será que não sabe intimidar lorde Rochfield? Tenha paciência, Arilla, você parece uma criança - reclamou Harry com voz irritada. - vou tentar... não é fácil.

- Nada é fácil... mas faz parte de nossa empreitada - ele retorquiu. - Venha cá, vou apresentá-la a um grande amigo meu.

Dirigiram-se a um jovem que atravessava o salão.

- Charles, vem cá, há alguém que quero que conheça.

- Olá, Harry, sabia que iria encontrá-lo aqui. Ao ver Arilla, ficou vivamente alvoroçado.

- Sir Charles Ledger, minha prima lady Lindsey

- apresentou Harry com voz solene.

- Nunca soube que você tivesse uma prima assim encantadora, Harry! Todos os seus parentes que conheço são exatamente como os meus: maçantes e antipáticos. Mas. como dizia meu pai, "mesmo no pântano pode aparecer uma flor".

Arilla achou graça no exagero da observação e deu uma risada cascateante.

- Paris deixou-o afiado, hem, meninão! Nunca o vi tão loquaz! Charles esteve em Paris, sob os auspícios da Secretaria dos Negócios do Exterior - Harry explicou - e, como se vê, aproveitou bem a viagem.

- Adoraria conhecer Paris, agora que acabou a guerra - disse Arilla. - Tantos lugares que não passavam de simples nomes para nós tornaram-se propícios a uma visita.

- Harry e eu conhecemos grande parte do continente durante a guerra. Mas, graças a Deus, as coisas estão muito diferentes agora.

- É. ouvi falar. Precisaria examinar in loco disse Harry, dando um profundo suspiro.

"Se eu fosse rica. faria tudo por Harry", pensou Arilla. "Parece incrível que ele seja tão pobre... enquanto seus amigos têm tanto dinheiro para esbanjar "

E realmente não havia nenhum sinal de economia naquela noite. Sentaram-se para uma ceia magnífica, onde todo o requinte da arte de comer e de beber havia sido empregado. Excelentes vinhos foram servidos, sempre na temperatura ideal: suficientemente frios para parecerem aveludados na língua, mas nunca tão gelados que perdessem o aroma e o sabor.

Os dois amigos não pouparam elogios.

- Ao que parece, a condessa quer sobrepujar as reuniões de Carlton House ou do Pavilhão Real, em Brighton - comentou Charles. - Aliás, é o que aspiram todos esses grã-finos depois da reforma feita no bar e na adega do príncipe regente. Sua Alteza Real conseguiu criar uma verdadeira gruta de Aladim!

- Gostei da comparação! - exclamou Harry. Já imaginou o que deve ter custado ao tesouro real?

- E não sei se valeu a pena. Eu não gostei... Toda aquela decoração oriental não faz o meu género. Devo admitir que é tudo muito luxuoso, e a atmosfera é bem própria do gosto do príncipe.

- Deve ser - Harry afirmou, lamentando não ter estado lá ainda.

Arilla sonhava ter a oportunidade de algum dia visitar Carlton House e o Pavilhão Real, mas lembrou-se, com tristeza, do fraco que o príncipe tinha por mulheres maduras, se é que os mexericos eram verdadeiros.. .

Quando voltaram ao salão, após a ceia, a orquestra de cordas tocava uma peça romântica, enchendo o salão de poesia e sensibilidade.

Harry e Charles entretinham-se falando sobre as corridas a se realizarem no dia seguinte.

Atraída por um quadro de Rubens, Arilla afastou-se um pouco. E outra vez soou ao seu ouvido a desagradável voz de lorde Rochfield:

- Você é muito mais bonita do que qualquer obra de arte.

Ela notara que, durante a ceia, o lorde sentara-se ao lado da anfitriã, provando sua grande respeitabilidade, e como temesse desagradar a condessa, aceitou com paciência o cumprimento dele.

- Por certo Vossa Senhoria conhece bem a arte da pintura. Será que poderia me instruir sobre essas valiosas obras? - disse com ingenuidade e mostrou a fileira de quadros expostos ao longo das paredes.

- Prefiro olhar para você, mas. . . vou lhe mostrar um quadro que não há quem não admire. É um Poussim.

Levou-a para o fundo do salão, onde uma esplêndida tela despertou, em Arilla, a ambição de posse, que não passou despercebida ao lorde. Mais do que depressa, ele informou-lhe:

- Vou presenteá-la com um quadro desse mestre. Ou... prefere diamantes?

Arilla retesou-se. Sabia, por intuição, que não seria próprio um homem oferecer-lhe jóias... Sentiu-se insultada e respondeu ironizando:

- Nem uma coisa, nem outra... Prefiro cavalos!

- Então vai tê-los.

Ela deu um gritinho de susto.

- Eu estou brincando! É evidente que não posso receber presentes de Vossa Senhoria, seja lá o que for.

- E por que não? Você é muito inocente. Duvido que nesta sala haja alguma mulher que já não tenha sido generosamente presenteada pelo sexo oposto.

- Talvez, milorde. Na minha cidadezinha, tínhamos outros valores. Cresci sabendo que presentes... só se recebe de marido.

Lorde Rochfield riu-se.

- O que você me diz é muito claro: quer alguma coisa muito mais valiosa para uma mulher como você do que quadros, brilhantes e cavalos. uma aliança de casamento.

- Nem pensei nisso! Mas. talvez tenha razão. Arilla sabia que ele não era do tipo de se casar. Harry já a havia prevenido. Assim como o príncipe regente, o lorde jamais chegaria ao casamento. Ambos escandalizavam toda a sociedade com suas aventuras amorosas. Não buscavam as mulheres para a satisfação de um ideal; queriam-nas apenas para a cama. Sua mãe também se chocaria, se conhecesse o lorde.

Ao chegar a essa conclusão, sentiu-se bem esperta para uma moça simples do interior.

Pondo um fim ao diálogo, voltou a contemplar Poussin. Nenhuma outra pintura a encantaria tanto!

Em um sussurro, ouviu a voz de lorde Rochfield:

- Quer se casar outra vez, não é? Poderemos pensar nisso, mais tarde.

Arilla achou que não tinha ouvido bem e, quando se voltou, deparou-se com uma expressão estranha naqueles olhos escuros. Não entendeu mas se amedrontou bastante. Ele se aproximou ainda mais para dizer:

Desde a noite passada você não saiu de meu pensamento. Não vejo mais nada, além da beleza de seus olhos e do tom dourado de seus cabelos.

Havia algo de esquisito naquela voz. Ela teve medo de fitá-lo. - de ser hipnotizada e impulsionada para aqueles braços suplicantes. Mas era muito tarde para se arrepender de tê-lo acompanhado ao fundo do salão.

- Você já foi casada, minha querida. Por que está tão nervosa e em dúvida? Tinha medo de seu marido?

- Não quero falar nisso.

- Se ele não tivesse posto essa aliança em seu dedo, não acreditaria que algum homem a tivesse possuído ou mesmo. beijado. Há uma aura de pureza em você, e isso me enlouquece e me faz prisioneiro de seus encantos.

Havia paixão nessas palavras, e Arilla amedrontou-se. Olhou para os convidados em busca de Harry, suspirando aliviada quando o viu caminhando para ela.

Ao alcançá-la, ele advertiu:

- Se você pretende montar amanhã, é conveniente irmos embora.

- Tem razão - ela apressou-se a dizer. - Também estou muito cansada.

- Na verdade. está querendo fugir - lorde Rochfield emendou.

- Fugir? - exclamou Harry. - Por acaso esteve aborrecendo minha priminha, lorde Rochfield? Ela veio do campo e não está habituada com dom-juans da cidade.

- Logo se vê. Mas lhe garanto que não tive intenção de magoá-la ou aborrecê-la.

- Espero que não - Harry declarou com secura e firmeza.

- Pode confiar em mim. vou tomar a liberdade de visitar lady Lindsey, amanhã.

- Não sei se... vou poder.

Arilla não completou a frase porque Harry já dizia:

- Estamos muito ocupados. Não temos tempo para recebê-lo.

- Está me provocando, ou prefere fazer uma aposta, sr. Vernon?

- Não tenho dinheiro para apostas. Acho que um desafio fica mais barato.

Os olhares dos dois homens se cruzaram, revelando uma rivalidade mortal.

Arilla interrompeu graciosamente esse prelúdio de briga para despedir-se, dizendo:

- Obrigada pela aula de arte que o senhor me deu. Estou me sentindo esgotada. Também, esta noite foi muito emocionante para mim.

Lorde Rochfield tomou-lhe a mão, roçando-a ternamente com os lábios.

Arilla teve a sensação de estar sendo tocada por um réptil e sentiu vontade de gritar, mas, com um sorriso de atriz, agradeceu:

- Boa-noite, milorde, e mais uma vez, muito obrigada.

Harry e Arilla despediram-se da condessa e saíram. Só depois que a carruagem deixou os pajens com seus archotes para trás, ele observou:

- Agora me diga o que aquele imbecil disse para você ter ficado tão perturbada.

 

Propositadamente Arilla escolheu o vestido de que menos gostava, na esperança de se tornar menos atraente a lorde Rochfield. Até a véspera não se lembrara do desagradável convite para jantarem na companhia dele. Mas, quando ela e Harry se despediram de seus anfitriões, depois de uma agradável reunião, ouvira sua voz impertinente dizendo-lhe: "Espero vê-la amanhã à noite, encantadora senhora".

Ao ver seu interlocutor no grupo de pessoas que a rodeavam, respondera com falsa amabilidade: "Sim, estamos ansiosos para visitá-lo".

Agora, ao aprontar-se para jantar com lorde Rochfield, sentia-se angustiada, apesar de saber que contaria com a presença de Harry para protegê-la.

Rose, a camareira que a ajudava a vestir-se, terminou de abotoar-lhe o vestido e não se conteve:

- A senhora está linda, milady!

- Obrigada - respondeu Arilla com um sorriso.

Dona Mimi costuma se enfeitar muito mais, não é?

Ela estava plantando verde para colher maduro. Até aquele momento o nome de Mimi fora evitado, tanto por Harry como pela criadagem. E, no entanto, tudo no quarto revelava a presença habitual de uma mulher. Harry dissera que os móveis e os objetos de decoração pertenciam a lorde Barlow, mas havia ali coisas obviamente femininas.

Houve um silêncio embaraçoso. Depois, um pouco relutante, Rose respondeu:

- É, sim, mas... é diferente. - Logo acrescentou:

- Se me permite a pergunta, que jóias vai usar, senhora?

Arilla observou a imagem refletida no grande espelho e achou que a falta de jóias acentuava a alvura de seu colo. Teve certeza de que mais uma vez o lorde iria fazê-la sentir-se decotada demais.

"Por que Harry não me arranjou algum adereço para usar?", pensou.

Na primeira noite em que saíram, ela encontrara sobre uma mesinha da sala um lindo porta-jóias.

"Trouxe um complemento muito importante para a toalete de uma viúva rica: diamantes", ele dissera.

"Harry! De onde você pegou isto?", Arilla tinha nas mãos um precioso colar de brilhantes. "É soberbo! Apesar de ser um pouco espalhafatoso demais. quase vulgar para o meu gosto."

Arilla compreendia, porém, que seu papel de viúva abastada reclamava tais exageros. Rememorou como as mulheres olhavam com ar de cobiça para o valioso colar, na recepção da condessa de Jersey. Depois disso, Harry sempre providenciara jóias. Uma das vezes, trouxera um colar de gosto duvidoso, que ele mesmo qualificara ser de extrema vulgaridade.

"Tire essa coisa horrorosa do pescoço. ", dissera. "Não gostei desde o primeiro instante, mas a pronta oferta de minha amiga me obrigou a aceitá-lo."

"Que bom você também não ter gostado!", Arilla exclamara aliviada.

Harry, então, sugerira-lhe que usasse uma fita de veludo e pregasse nela uma orquídea branca, dando assim um toque chique e primaveril. Ficara mais bonito do que antes, e ela fora sobejamente elogiada; alguns comentários chegaram aos ouvidos do primo:

"A viúva rica é tão linda quanto modesta... É digna e discreta em suas atitudes. Não se preocupa em exibir suas jóias. vou incluí-la em meu círculo de amizades".

Talvez para essa noite ele também a quisesse usando apenas flores; por isso Arilla pediu a Rose que procurasse o mais lindo botão de rosa entre os frescos ramalhetes recém-chegados para a decoração da casa, a fim de colocá-lo em sua gargantilha.

Infelizmente, não gostou do efeito e optou por uma simples fita de veludo cor-de-rosa.

- Está lindo! - aprovou Rose.

- Falta alguma coisa... - Arilla pensou em voz alta.

- Está ótimo assim e. garanto que o sr. Harry vai gostar. É assim que nós o tratamos aqui - Rose informou, dando uma risadinha.

- Espero que goste - Arilla respondeu. Depois, num impulso, ela perguntou: - Você disse que chama o sr. Vernon de sr. Harry? Ele vem aqui com frequência?

- Vem, sim. Dona Mimi é louca por ele, como também todas as outras. Mas ele não pode muito. Rose parou de falar de repente, como se percebesse sua indiscrição. Depois gaguejou: - Mas. Sua Graça, o lorde Barlow, é muito generoso, e todas gostamos de trabalhar para ele.

- Porém ele não mora aqui, mora?

Arilla lembrou-se de que, ao passar por Berkeley Square, Harry lhe mostrara a mansão dos Barlow, impressionante pela suntuosidade.

- Oh, não, milady! Sua Graça só vem quando pode. por pouco tempo... Há outros cavalheiros! Mas gostamos mesmo é do doutor Harry.

"Qual será o relacionamento de lorde Barlow e Mimi?", Arilla conjecturou. Perguntara muitas vezes a Harry mas ele se esquivara. Tinha perguntado também em que teatro Mimi trabalhava e nunca recebera resposta concreta: "Ela está trabalhando, no momento, em Paris, com o lorde. Por isso estamos aqui, usando a casa, as carruagens, os cavalos de Sua Excelência, sem... gastarmos nada! "

Arilla esboçou um sorriso de felicidade por ter deixado tudo nas mãos do esperto primo e pensou: "Ele já deve estar chegando". Como seria bom se jantassem sozinhos. mesmo em casa. Eram tão poucos seus momentos a sós com ele.

Apesar de Harry estar sempre presente para opinar sobre sua aparência, ela o queria a seu lado por mais tempo, uma vez que em sociedade ficavam distanciados, preocupados apenas com os bons partidos que poderiam aparecer.

Parecia impossível já ter sido pedida em casamento em tão curta permanência em Londres. A proposta viera de um par do reino, a quem encontrara apenas duas vezes. Ele havia se sentado a seu lado durante um jantar, ignorando por completo todos os que o rodeavam, a ponto de Arilla achá-lo sem muita fidalguia.

Depois do jantar, dançaram. O nobre senhor a convidara para se retirarem a uma sala, contígua ao salão, com o pretexto de admirarem uma pintura. Para surpresa dela, a sala estava deserta. Ele fechara a porta e dissera:

"Finalmente a consegui só para mim. Gostaria de saber se me dará à honra de ser minha esposa".

Arilla ficara estupefata. Nunca havia pensado que um pedido de casamento pudesse acontecer tão rápido e de forma tão banal. Por um instante achou que ele estivesse brincando, mas quando o viu, grave e emocionado, convenceu-se da seriedade da proposta.

"Case-se comigo, por favor. Juro que será feliz! Poderemos fazer tantas coisas juntos, em minha fazenda..." Tomara-lhe as mãos e as cobrira de beijos.

Os lábios frios e sequiosos a deixaram tão nauseada que lamentou o fato de não ter calçado as luvas, pois assim teria evitado aquele contato desagradável.

"Desculpe... ", ela começara a falar, com voz trémula, quando a porta se abriu e um grupo de pessoas invadiu alegremente a sala, dando-lhe oportunidade para escapar em direção a Harry.

Naquele momento, uma linda mulher não disfarçava a atração que sentia por ele. Sentara-se a seu lado durante o jantar, e, segundo Arilla, parecia enamorada. Sussurrava-lhe algo ao ouvido e tocava-lhe o braço com a mão ornada por faiscante e valioso anel, revelando claramente seus sentimentos.

Assim que Arilla aproximou-se, Harry dissera com alegria:

"Ah, você chegou! Queria mesmo apresentá-la a uma de minhas melhores amigas, a marquesa de Westbury".

A nobre dama não mostrara entusiasmo e, com cerimónia, moveu a cabeça num cumprimento formal. Depois, como se Arilla não existisse, virou-se para Harry e continuou o assunto:

"Não vá se esquecer, querido... Ficarei muito zangada se você não aparecer".

"Jamais se zangaria comigo!", afirmara ele.

A marquesa se afastou. Então Harry apressara-se em perguntar: "O que houve, Arilla? Está assustada!" "Agora não posso falar. ", dissera ela olhando ao redor.

"Então vamos dançar."

Harry pegou-a pelo braço e a levou até a pista de dança. O som de uma valsa sentimental, recentemente apresentada em Londres pela condessa de Lieven, enchia o salão.

Muitos a achavam imprópria e reprovavam a maneira audaciosa com que os pares costumavam bailar aos acordes dessa recente composição.

Arilla sabia que Harry era um ótimo dançarino. Enquanto dançaram, ela contou-lhe, com voz fraca e nervosa, que o duque de Fladbury acabara de lhe pedir em casamento. Ergueu o rosto à espera de uma resposta, temendo que ele quisesse uma aceitação sua, mas, surpreendentemente, ele soltara um riso franco.

"Já esperava por isso."

"Como assim? "

"Ele está à procura de uma mulher rica. Está enterrado até os olhos de dívidas e há dois anos persegue herdeiras de grandes fortunas."

"E... eu fiquei com medo."

"De ter que casar-se com ele? Não. Não o indicaria à minha pior inimiga! "

Arilla dera um riso sonoro e jovial. De repente a festa tornara-se mágica e animada. As luzes dos candelabros brilhavam mais, e os sons inebriantes da valsa transportavam-na aos céus.

Finalizando os preparativos para jantar na casa de lorde Rochfield, Arilla pensava em quão maçante e cansativo seria o passeio. Consolava-se com a certeza de não ser assediada com um pedido de casamento.

Rose foi ao guarda-roupa escolher um agasalho que combinasse com o vestido e trouxe um lindo casaco de veludo azul-claro, debruado com plumas. Arilla jogou-o displicentemente nos ombros e examinou-se ao espelho. Nesse instante, uma batida na porta sobressaltou-a.

- A carruagem chegou, milady - avisou o lacaio.

- O sr. Vernon teve um imprevisto e manda avisar que vai encontrar a senhora em casa de Sua Graça.

Arilla ficou gelada de aflição e quase chorou de desapontamento.

Uma das coisas de que mais gostava eram as idas e vindas das recepções, quando podia conversar a sós com o primo, sem a preocupação de representar o papel de viúva rica e ser simples e natural como sempre fora.

"Qual será o imprevisto? A marquesa de Westbury ou alguma outra mulher?", perguntou-se.

Harry era um homem atraente, sempre rodeado de mulheres belas e inteligentes, apesar de mais velhas do que ele. Isso às vezes a fazia sentir-se um estorvo na vida dele.

Desanimada, tomou a carruagem, grande, confortável e luxuosa. Nunca usara uma igual. Os cavalos eram de raça, e, assim que a portinhola foi fechada, começaram a andar em passo suave e disciplinado.

O som metálico e ritmado das ferraduras batendo nas pedras cessou e, mais do que nunca, ela quis ter Harry a seu lado. Assim que despediu o cocheiro, arrependeu-se. Agora nada mais havia a fazer a não ser rezar para que outros convidados já tivessem chegado. Eles evitariam a maneira desagradavelmente íntima e atrevida com que o lorde costumava recebê-la.

Arilla não revelara a Harry seus temores, pois ele a qualificaria de tola e já lhe dissera ser preferível ter Rochfield como amigo. Também não queria instigar o primo contra o lorde, embora, na verdade, o detestasse apavorando-se com sua presença asquerosa de réptil.

Havia chegado à Mansão Rochfield, em Picadilly em menos de vinte minutos. A casa ficava próxima ao recém-construído palácio do duque de Wellington na esquina do Hyde Park.

Os duplos e pesados portões de ferro, decorados com heráldicos unicórnios, a marca do brasão dos Rochfield foram abertos de par em par.

Ela subiu a escadaria exterior, coberta por um tapete vermelho até a porta, onde um mordomo e mais quatro lacaios esperavam à entrada do imenso vestíbulo de mármore.

Um dos criados tomou o agasalho de Arilla, e o mordomo a fez subir por um dos lanços da escada em curva até o primeiro andar. Não pararam onde ela supunha ser o salão de recepção. Continuaram pelo largo corredor que ostentava obras de pintores célebres, iluminadas por pesados candeeiros de bronze.

Em outra circunstância Arilla teria se interessado por esses quadros e pelas lindas peças de mobília francesa, dispostos ao longo da galeria, mas agora preocupava-se, achando que ninguém havia chegado e que se adiantara demais. Mais uma vez culpou-se por não ter feito a carruagem esperar até que Harry chegasse...

O mordomo abriu uma porta e anunciou:

- Lady Lindsey, milorde.

Entrando na sala, ela sentiu um aperto no coração ao ver uma única pessoa, em pé, próxima à lareira de mármore ladeada por dois jarrões chineses, repletos de lírios do vale: o anfitrião. Lorde Rochfield não se moveu, esperou que ela fosse ao seu encontro.

Arilla não podia conter o tremor de suas pernas e com dificuldade chegou até ele. Seus olhos, imensos em seu rosto, demonstravam pânico. A voz saiu débil e trémula:

- Che... cheguei muito cedo, milorde. Meu primo virá mais tarde... atrasou-se.

- Deve ter tido um bom motivo... - comentou, e ela o odiou pela insinuação. - Mas você está aqui, é o que me interessa...

Lorde Rochfield tomou-lhe a mão e a levou aos lábios, sem pressa, e esse contato provocou-lhe repulsa.

Um pajem entrou com uma bandeja que continha duas taças de champanhe, que ofereceu a ambos; ao pegar a sua, lorde Rochfield falou:

- Hoje preciso fazer um brinde especial porque esta é a primeira vez que você visita minha casa. Espero que tenha gostado.

- Há lindos quadros aqui!

- E muitos deles retratam deusas, mas nenhuma delas é tão linda ou atraente quanto você!

Os olhos escuros e cobiçosos cintilaram fitando-lhe o colo, como se ela estivesse decotada demais.

Arilla olhou para a entrada esperando ver Harry ou outro convidado chegar. A porta se abriu, mas quem entrou foi o mordomo, não para anunciar alguém, porém para comunicar:

- O sr. Vernon, milorde, manda apresentar suas desculpas por não poder comparecer esta noite. por motivo de força maior.

- Obrigado - lorde Rochfield respondeu mais do que depressa.

- O que será que aconteceu? Como Harry pôde faltar a um compromisso assim na última hora? - perguntou Arilla, não escondendo seu nervosismo.

Lorde Rochfield lançou-lhe um olhar de homem experiente.

- É muito fácil de se entender. A "força maior" pode ser o príncipe ou talvez alguém mais interessante como... a linda marquesa.

- Mas. que indelicadeza!

- Para mim é um presente dos deuses. Um verdadeiro milagre tê-la só para mim!

Arilla percebeu nos olhos do lorde uma centelha de malícia enquanto um largo sorriso lhe aflorava aos lábios. com timidez, ousou perguntar:

- E os outros convidados da festa?

- Não há outros - ele respondeu cinicamente. Não poderia permitir nossa atenção desviada para outros convidados.

- Quer... quer dizer que estamos sozinhos?

- Devo confessar que não via a hora de chegar este momento e. tenho certeza de que você não vai me desapontar.

Enquanto pensava no que fazer, Arilla ouviu o criado anunciar o jantar.

Lorde Rochfield ofereceu-lhe o braço, e ela timidamente o acompanhou.

Todos os salões de banquete que conhecera ficavam no andar térreo, por isso ela pensou que se encaminhariam à escada. Contudo, seguiram até o fim do corredor, onde dois pajens os aguardavam diante de uma porta escancarada.

Passando por ela, Arilla admirou-se com o tamanho reduzido da sala e com a decoração um tanto bizarra, repleta de flores e plantas, o que lhe dava a impressão de estar em um quiosque de jardim público.

Teve vontade de rir vendo-se ali naquele "caramanchão", cercada de lírios, em uma companhia pouco conhecida, mas muito desagradável.

Não pôde comer quase nada, pois o nervosismo não o permitiu.

Contudo, manteve uma atitude calma porque não queria mostrar-se constrangida diante da criadagem. Permaneceu quieta, pensando num meio de escapar dali. Como se o anfitrião lesse seus pensamentos, procurou distraí-la, falando sem parar de suas propriedades e fazendo comentários sobre as últimas reuniões a que haviam comparecido.

Arilla não o fitava, com medo de encontrar o atrevimento e a sensualidade sempre presentes naquele olhar.

O jantar foi mais simples do que ela esperava, mas tudo que lambiscou estava delicioso. Quando terminaram, lorde Rochfield sugeriu:

- Vamos sentar no sofá; ficará mais à vontade para provar um licor muito especial enquanto tomo meu brandy.

- Não quero mais nada - retrucou ela. Não lhe passara despercebida a presteza dos criados em manter seu copo sempre cheio, apesar de ela só ter bebericado, procurando se conservar alerta e poder escapar sem alarde.

Os empregados já tiravam a mesa, e ela achou que era o momento de se despedir. Então arriscou dizer:

- Como sua festa não se realizou, o mais correto a fazer é... me retirar.

- De maneira alguma, mesmo porque minha carruagem que a trouxe não está disponível.

- Sua carruagem?

- Isso mesmo! Queria ter certeza de sua vinda. Arilla estranhou que Harry tivesse consentido que o lorde a buscasse, mas se calou.

Apesar de sua recusa, serviram-lhe licor. "Deve ser muito forte", ela pensou. Ignorou-o e sentou-se no extremo oposto ao lorde, tentando persuadi-lo a deixá-la sair.

- Milorde - disse forçando um tom de meiguice em sua voz -, tenho uma boa reputação a guardar... O que dirão ao saber... que estive aqui sozinha? Permita-me ir embora.

- O que acontecer entre nós será segredo... a não ser que você o revele. o que é impossível. - Ele achegou-se bem perto dela e continuou, sussurrando: Você não imagina como eu antegozei este momento... Não percebeu como enfeitei esta sala com alvas flores, em tributo à sua beleza?

- É... elas são lindas! Gosto muito de lírios disse Arilla, desanimada.

- É estranho como eu os associo a você, mesmo sendo uma mulher casada. Mas... há alguma coisa de inocente e intocável em você. Tenho certeza de que, se eu não for o primeiro homem a tocá-la, serei aquele que despertará seus sentidos para os prazeres do amor.

Se uma serpente aparecesse rastejando na sala, Arilla não sentiria tanto asco quanto estava sentindo diante de lorde Rochfield.

Apertou os lábios ressequidos, umedeceu-os e empinou o queixo para dizer, ofendida:

- Eu não permito que me fale assim. Vossa Senhoria exorbitou. Quero ir embora.

Ele deu uma gargalhada gostosa.

- Você é um amor! Sei que está assustada, mas não nego: é muito corajosa! - Havia mel em sua voz quando ele continuou: - Você gostaria de saber que há muito tempo uma mulher não me atrai tanto? Que, depois de eu lhe ensinar as primeiras lições do desejo, você se capacitará de que vamos nos dar muito bem?

Lorde Rochfield fez menção de tocá-la enquanto falava, mas ela deu um pulo para trás como uma corça assustada. Teria alcançado a porta se ele não tivesse impedido, segurando-a pelos pulsos.

- Não tão depressa, minha querida. Preciso mostrar uma coisa que revelará melhor do que palavras a minha pretensão.

- Deixe-me ir - ela gemeu -, por favor, deixe-me ir.

Segurando-a ainda pelos pulsos, ele caminhou em direção a uma porta semi-aberta que, obviamente, dava para um quarto.

Uma fragrância de lírios inundou o ambiente e, através das lágrimas, ela vislumbrou um enorme leito coberto por um dossel de cetim cor de vinho. Os lençóis dobrados mostravam bordas de finíssima renda de Veneza.

- Agora você sabe o que eu quero e o que pretendo ter! Você é minha, meu amor. toda minha. - E abraçou-a pelos ombros com sofreguidão.

Foi quando Arilla certificou-se de ter caído em uma armadilha. com um grito de horror, começou a se debater entre os braços do lorde, que parecia esperar por essa oportunidade para agarrá-la de vez, comprimindo-a de encontro ao seu corpo viril.

Era como se uma cinta de aço a cingisse dolorosamente. Só lhe restava gritar e. gritar muito.

Harry chegou à apertada entrada de seu alojamento, na rua Half Moon, e subiu os três lanços da escada, até o último andar.

As melhores hospedarias e aposentos para homens modernos, frequentadores de St. James, ficavam nessa rua e Harry sabia disso, como também sabia serem bastante caros para ele.

Contudo, Watkins, um subalterno seu da época do regimento de cavalaria, lhe arranjara essa água-furtada, de número 19, na rua Half Moon. Era usada como depósito de malas e móveis velhos por um dos donos daqueles pequenos estabelecimentos.

Fora Watkins quem convencera o proprietário desses quartinhos a alugá-los por uma ninharia, e Harry ocupava dois cómodos. O bom amigo era quem cuidava desses aposentos, como também da roupa de Harry, considerado o mais elegante cavalheiro do beau monde londrino.

- Não é possível, Watkins - Harry dissera ao deixar o regimento. - Sei que seu maior desejo é ser meu valete, mas. não posso pagar. Infelizmente essa é a verdade.

- Não tem importância... capitão.

- Eu gostaria muito, porém não é possível mesmo.

- Talvez seja. talvez não.

Watkins achara um trabalho nas estrebarias do mercado, próximo ao alojamento de Harry. Costumava acordá-lo e servir-lhe o café da manhã, além de ajudá-lo a vestir-se para as recepções da noite. Se Harry tinha algum dinheiro, coisa rara, dava ao amigo; caso contrário, ele vivia apenas do salário.

- Não sei o que seria de mim sem você! - Harry exclamava.

De fato, ao entrar achava tudo sempre limpo e em seus lugares. Nesse dia sabia que logo Watkins chegaria para preparar-lhe o banho e ajudá-lo a se vestir.

Harry foi até a velha escrivaninha para pegar a correspondência, farta em convites e cartinhas perfumadas. Cada uma, em caro papel timbrado, recendia um odor característico, permitindo sua identificação.

Acabava de olhar no relógio quando ouviu um ruído na porta, pouco antes de surgir a figura atarracada de Watkins, carregando camisas muito bem lavadas e passadas.

- Pensava em você pois constatei que é hora de meu banho - disse Harry, preocupado.

- Não é preciso se apressar.

- Como não? Já é tarde!

- Um mensageiro comunicou, há algum tempo, que madame está com uma forte dor de cabeça e não vai sair esta noite.

- Dor de cabeça? Ela parecia muito bem na hora do almoço!

Haviam almoçado com a sra. Holland, uma dama da sociedade, célebre por suas reuniões culturais.

Harry ficara encantado com o desempenho de Arilla na conversa, tão diferente das frívolas fofocas da maioria das anfitriãs do beau monde. Dois dos mais inteligentes homens de Londres estavam presentes e a ouviram com atenção.

Ao voltarem para Islington, ela se achava tão exuberante quanto durante o almoço, e quando ele se despedira, apressado, pois deveria encontrar-se com o príncipe regente em Carlton House, esquecera-se de que ela poderia estar nervosa por causa do jantar e nem lhe dera uma palavrinha de ânimo.

"Deve ser uma desculpa para se livrar do lorde", pensou Harry.

Lorde Rochfield era um homem perigoso e por isso bajulado pela alta roda, preocupada em não tê-lo como inimigo. Harry não gostava dele, apenas o aturava, e temia que Arilla se indispusesse com ele e assim fosse vítima de sua tagarelice difamante.

Não se surpreenderia se a prima, no último minuto, se esquivasse do convite, que também não lhe agradava apesar de saber que esses jantares eram muito requintados e regados a bons vinhos com a recusa de Arilla ao convite, ele ficara sem programa para essa noite. Estendeu-se indolentemente na espreguiçadeira e comunicou a Watkins:

- Já que dormi tarde a noite passada, vou aproveitar para cochilar, e depois irei ao clube.

- Ótimo! Terei tempo de sobra para preparar o banho.

Watkins fechou a porta da saleta, e Harry fechou os olhos, mas não apagou a imagem da prima de sua mente, tão linda e bem-sucedida no almoço.

"Ninguém pode me acusar de não ter feito tudo por ela", pensou. "Mas, coitadinha, certamente esperava um melhor pretendente do que aquele caça-dotes do Fladbury."

Um riso zombeteiro brotou em seus lábios ao pensar no desapontamento de Fladbury caso tivesse se comprometido, por engano, com uma moça tão pobre quanto ele.

Ainda pensava na beleza do sorriso de Arilla... quando adormeceu.

- Seu banho está pronto. Vamos, rápido, senão esfria...

Watkins despertou Harry com insistência. Ele bocejou, resmungou, e foi para o quarto. Deixou que o amigo o ajudasse a tirar o paletó de veludo e o culote que lhe caíam como uma luva.

Tomou um banho demorado e repousante e escovava os cabelos para penteá-los à moda do príncipe regente quando Watkins disse:

- Eu estive pensando. capitão; o recado da madame e o seu vieram pelo mesmo mensageiro!

- O quê? Meu recado? - Harry exclamou arregalando os olhos.

- Pois é... quando vim aqui para pegar a roupa,

um lacaio me disse que tinha um recado de lady Lindsey para o senhor. Como não estava, ele o deixou comigo. Lady Lindsey mandava avisar que não ia ao jantar em casa de lorde Rochfield porque estava indisposta. Mas agora estou pensando. Como é que um mocinho trouxe esse recado se em Islington só há mulheres... Me lembro de quando fomos lá, uma vez.

- Continue. continue - falou Harry, aflito.

- Bem. Subi para pegar a roupa e, quando desci, uma meia hora depois, lembrei que tinha esquecido as gravatas. Então subi de novo e, ao descer, o mesmo criado estava lá embaixo.

Não aguentando mais tanta prolixidade, Harry perguntou:

- E daí?

- Ele me disse que tinha outro recado para o senhor. Que o jantar de lorde Rochfield tinha sido cancelado. Ele falou rápido, parecia assustado e. saiu correndo.

Harry levantou-se nervoso da banqueta e disse com ansiedade:

- Há algo muito esquisito nisso! Me dê o paletó.

- Não quero preocupar o senhor, capitão, mas é mesmo muito estranho.

- Estranho demais para o meu gosto.

Pegou o chapéu das mãos de Watkins e o colocou na cadeira, dizendo:

- Se eu precisar dele, volto para buscar. - E, antes de ser censurado, saiu em disparada. Levou apenas alguns minutos para chegar em Piccadilly.

As cavalariças da Mansão Rochfield ficavam em uma extensa área nos fundos da residência.

Harry entrou na primeira baia, onde encontrou um cocheiro e mais dois lacaios jogando cartas à luz de um lampião.

Tomados de surpresa, os três levantaram-se em atitude respeitosa. Harry apressou-se em dizer:

- Talvez vocês possam me ajudar. Fui convidado para jantar esta noite com lorde Rochfield e, como vêem, estou bastante atrasado. Moro aqui mesmo mostrou a rua às suas costas - e por isso resolvi vir a pé e entrar pelos fundos. Conheço o caminho. Será que poderiam me abrir os portões?

- Como não, senhor!

E o cocheiro pegou um pesado molho de enormes chaves presas a uma grossa argola de metal enferrujado.

Atravessaram um caminho de pedras até imensos portões de ferro batido que separavam as cocheiras dos jardins da casa. O criado os abriu e, agradecido por receber uma moeda de prata, se foi.

Harry correu pelo vasto gramado até atingir as janelas do salão de recepção, estranhando encontrá-las escuras e fechadas. Todas as luzes do andar térreo estavam apagadas, mas, ao olhar para cima e deparar-se com as janelas iluminadas do primeiro andar, teve forte convicção de não estar enganado: o anfitrião mais uma vez dispensava suas atenções, da maneira de costume, à mulher que cortejava.

Havia uma sólida treliça de madeira de lei, em que rosas subiam em exuberante florescência, que o levaria ao quarto de luminosidade delatadora.

Quando deu o impulso para se alçar, Harry ouviu o grito desesperado de Arilla.

 

Vãos foram os esforços de Arilla para se desvencilhar dos braços de lorde Rochfield que, com um golpe de caçador implacável, a prostrou no leito majestoso.

Durante alguns segundos ela permaneceu estendida, com o cérebro vazio de ideias, sentindo uma estranha fraqueza.

Respirou fundo e começou a coordenar os pensamentos mas, antes que pudesse erguer-se, ele já tinha se deitado sobre seu frágil corpo.

Sua única oportunidade de fuga havia sido durante o momento em que o lorde se livrava da jaqueta. Agora, em calças e camisa, a esmagava sob seu peso, quase incapacitando-a de respirar.

Um gemido de animalzinho ferido escapou da garganta de Arilla, diante da impetuosidade das mãos que lhe rasgavam o vestido. Ainda encontrou forças para gritar, aterrorizada.

- Não... não... não!

Seu apelo soava cada vez mais fraco e um sentimento de pavor a feria como a ponta de afiada lâmina.

"Oh, Deus, ajudai-me!", concentrou-se numa prece silenciosa. Em algum lugar do quarto um leve ruído se fez ouvir. Era a resposta à sua oração. Como por milagre ela se viu livre das garras do sedutor.

Lorde Rochfield, em sua sofreguidão para possuí-la, não havia percebido a entrada de Harry pela janela encortinada. O primo, na mesma hora, entendeu o que se passava e, antes que o lorde caísse em si, puxou-o violentamente, desferindo-lhe um soco de mestre que o jogou ao tapete.

Estupefato, um pouco zonzo, e em posição ridícula, lorde Rochfield vociferou:

- Como ousa me atacar, seu idiota?

- Se você conseguir erguer-se e souber lutar como homem, eu juro que o inutilizarei para nunca mais se meter em aventuras como esta! - provocou-o Harry.

Harry estava em pé, com os punhos cerrados, em atitude de luta, mas achou que seria falta de espírito agredir um parceiro caído ao chão.

Apesar de semicerrados, os olhos de lorde Rochfield destilavam ódio e rancor.

- Eu vou lutar com você, Vernon, como um cavalheiro, e o farei pedir desculpas por esse insulto.

- Esperarei ansioso por essa oportunidade.

- Muito bem. Então no lugar de sempre, em Green Park, ao raiar do dia - disse o lorde entre os dentes, sem se levantar, talvez com medo de ser derrubado de novo.

- Estarei lá, para lhe dar uma boa lição.

- Você é otimista!

Harry nem ouviu essa observação porque se voltara para Arilla, ajudando-a a recompor-se. Abraçou-a pelos ombros mas, ante a impossibilidade de ela andar, pois estava profundamente abalada, teve que carregá-la até a sala de estar.

com muito carinho, ele perguntou:

- Está melhor? Veja se pode disfarçar para que os criados não desconfiem de nada.

- Eu... eu estou. bem - ela falou com dificuldade e levantou os braços para ajeitar os cabelos. Nesse momento Harry viu a blusa rasgada.

- Onde está seu agasalho?

Com dificuldade, ela se lembrou de que o mordomo o guardara.

- E-es-está lá embaixo.

Harry comprimiu os lábios e ergueu o olhar para o alto, como quem procura uma solução. Largou-a por uns instantes para pegar algumas rosas de um vaso de cristal. Entregou-as para Arilla, que logo entendeu, apertando-as contra os seios, escondendo assim o rasgão.

Alcançaram a escadaria iluminada pela luz mortiça dos candeeiros. Desceram devagar e encontraram o mordomo e dois lacaios a postos, no hall.

Com um tom sério e autoritário, Harry disse:

- Quero uma carruagem de aluguel. Imediatamente um dos criados saiu correndo para atendê-lo.

Enquanto esperavam, Harry viu o casaco de Arilla sobre uma cadeira. Trocou-o logo pelas incómodas rosas e o estrago do diáfano vestido foi melhor disfarçado pelo manto de veludo.

Observando o primo, Arilla lembrou-se da expressão colérica, jamais vista em outro rosto masculino, de quando ele agredira o lorde. Experimentou uma sensação de alegria por tê-lo visto tão alterado por sua causa. Agradeceu a Deus, do fundo de seu coração, a presença dele na hora exata de impedir a consumação de sua violação.

A carruagem chegou. Harry ajudou-a a subir e deu o endereço ao cocheiro. Sentou-se ao lado dela fechando a portinhola.

Muito nervosa, Arilla não parava de falar, ainda que com voz fraca e chorosa:

- Você. chegou. você me. salvou.

- Graças a Deus não aconteceu nada! Você está bem. Isso não vai se repetir nunca mais.

- E. eu. recebi. um recado, dizendo que você se atrasara e... se encontraria mais tarde comigo em casa de lorde Rochfield!

- E eu recebi um recado, dizendo que você estava com dor de cabeça e. não iria ao jantar.

Arilla deu um grito de espanto e de raiva.

- Ele planejou tudo. para eu ficar sozinha com ele e...

- Esqueça, Arilla - Harry a interrompeu. - Tudo acabou, e se ele tentar outra vez... vou matá-lo.

- Mas... vai se bater em duelo, não vai? Ele pode matar você!

- Ele é bom de tiro, mas eu também sou.

- Não vá, por favor! vou dar um jeito de impedir.

- Nem você, nem ninguém poderá impedir.

- Pensei que fosse proibido.

- Mas ainda acontece. É a maneira digna de cavalheiros resolverem uma questão - explicou Harry. Aquele desgraçado está longe de ser um cavalheiro, mas. não posso me recusar a um desafio.

- Por favor, por favor, Harry! E pensar que eu sou a razão disso tudo.

- Não se preocupe comigo.

Ela abafou um soluço para perguntar:

- Aonde estamos indo?

- Para Islington. Mas antes preciso ter uma palavrinha com Charles Ledger. vou pedir-lhe para ser minha testemunha. Depois de levar você para casa, pensarei em alguém mais.

- Como posso ficar em casa sabendo que você está arriscando sua vida por minha causa?

- É o que deve ser feito. Depois de tudo terminado, voltarei para contar como foi.

- vou com você - afirmou ela. - Nem que seja para ir a pé... sozinha.

- Nada disso. Não é lugar para mulheres.

- Ninguém precisa saber que eu estou lá. Posso esperar na carruagem ou... me esconder entre as árvores.

Ela hesitou por um momento antes de continuar.

- Juro, Harry... não vou aguentar. Precisarei saber o que está acontecendo.

Falou de maneira tão enérgica e ao mesmo tempo tão patética que fez Harry considerar o assunto e depois dizer:

- Está bem, vamos ver o que podemos fazer. Pronto, chegamos. Esta é a casa de Charles. Ele mora com a mãe, por isso você pode entrar e me esperar enquanto vou procurar uma condução mais conveniente.

Após descerem da carruagem, ele a conduziu ao majestoso hall de entrada e comunicou ao mordomo: - Quero ver sir Charles, em particular.

- Sua Senhoria já se retirou - o mordomo disse olhando para Arilla - mas. informarei sir Charles de sua presença.

Depois de encaminhá-los para uma enorme sala, forrada de livros até o teto e iluminada por tocheiros de madeira lavrada, dispostos lado a lado da lareira, o mordomo saiu.

Arilla não tinha olhos para mais nada, a não ser para Harry. Fitava-o com ar de súplica, rezando para não ser obrigada a voltar a Islington. Não abriria mão de assistir ao duelo.

Nenhum dos dois falava quando Charles apareceu, explodindo de surpresa e alegria.

- Harry, meu amigo, você por aqui? - E surpreendeu-se ainda mais quando viu Arilla. - E lady Lindsey também?

- Quero que você seja minha testemunha - disse Harry, indo direto ao assunto.

- Quem você vai desafiar? - Charles perguntou, agora assustado.

- Rochfield. Espero aleijar aquele excomungado.

- Na certa ele aprontou uma das dele! Onde vai ser?

- No lugar de costume: Green Park, ao alvorecer. Estou sem comer nada, Charles.

- E lady Lindsey também, não é? vou mandar providenciar qualquer coisa.

- Para mim não precisa, obrigada.

- Ela jantou com aquele endemoniado, depois de ele ter mandado dizer que o jantar fora cancelado - explicou Harry.

- Já sei. jogo sujo, como sempre - Charles concluiu e puxou a larga passamanaria que acionava a sineta para chamar o criado.

- Mas desta vez me atingiu em cheio. Teve sorte de eu não o ter matado no flagrante.

- Não seria de admirar.

O mordomo abriu a porta e declarou:

- Às suas ordens, senhor.

- Bateson, o sr. Vernon não jantou. Mande preparar alguma coisa rápida e leve. Traga-nos um champanhe também.

- Muito bem, sir - falou ele, mas estranhou as ordens em hora tão imprópria.

Ao notar o abatimento de Arilla, que se jogara em uma das poltronas de couro da biblioteca, Harry mais uma vez insistiu:

- Deixe-me levá-la para Islington.

Ela não disse nada mas seus olhos suplicantes foram a resposta.

- Está bem, está bem. - E, dirigindo-se ao amigo:

- Charles, ela insiste em assistir ao duelo e você sabe. ninguém poderá vê-la.

- Acho que não deve ir - Charles aconselhou.

- Eu sei mas... ela é a causa do duelo! - E Harry deu uma risada significativa.

- Não nega que é sua prima. imprevisível como você. Tudo bem. Vamos em nossa carruagem então. Até será bom para o caso de acontecer alguma coisa.

Não pode terminar porque Arilla deu um grito de horror.

- Oh, por favor, sir Charles, impeça esse duelo ridículo e absurdo. Harry já esmurrou lorde Rochfield. Ele nunca mais vai me aborrecer.

Os olhos de Charles faiscaram de prazer e, rindo, ele se interessou:

- Você derrubou o lorde, Harry? Deve ter sido uma experiência nova para ele, que insiste sempre no duelo antes de ser atacado fisicamente. Sempre ganha, pois é muito bom na mira.

Harry não se abateu com essa observação e retrucou:

- Essa vez será uma exceção.

- Espero. Mas você vai precisar de muita habilidade e de sorte também.

Quanto mais falavam, mais Arilla ficava nervosa. Compreendia porém que, por uma questão de honra, o primo devia aceitar esse desafio. E a ela... só restava rezar.

Enquanto Harry jantava, os dois amigos conversavam e riam animados. Charles insistiu para que Arilla os acompanhasse no champanhe.

- Acho bom chamarmos Anthony ou Edward. Precisamos de mais uma testemunha. Enquanto lady Lindsey fica aqui para repousar um pouco, minha mãe terá prazer em fazer-lhe companhia.

- Tudo bem, eu fico, contanto que prometam não ir sem mim para o parque.

- Arilla, eu preciso ir para casa me trocar. Aproveite e descanse. Juro que voltarei para buscá-la.

- Não há necessidade de lady Lindsey ir lá em cima. Há um dormitório aqui no térreo que meu pai usava quando tinha preguiça de enfrentar uma escada - Charles informou.

Assim que acabou de falar, levou Arilla a um quarto confortável, ao fundo do corredor.

Eles haviam reiterado a promessa de levá-la mas exigindo que ela dormisse. Embora sabendo que não era possível, Arilla assim mesmo deitou-se.

Começou a rezar para que Harry não fosse ferido e, apesar dos presságios funestos de Charles, que saísse vencedor. Pouco entendia de duelos, apesar de seu pai ter contado que participara de um, quando jovem, e fora gravemente ferido.

"Lorde Rochfield é um verme desprezível", pensou. "É capaz de ferir Harry mortalmente para se vingar da humilhação e da frustração por que passou."

Esse desabafo a deixou mais alarmada. As horas passavam e a ansiedade aumentava. Foi até um alívio ouvir vozes do lado de fora.

Harry bateu à porta e entrou. Tinha mudado seus trajes sociais por uma roupa esporte. Apesar de saber que alguns duelistas preferiam gravata preta por não serem visíveis, ela não se surpreendeu com a gravata branca de Harry. Não era a flâmula da paz. era a bandeira da provocação, desfraldada.

Levantou-se rapidamente, mas Harry acalmou-a, avisando:

- Não tenha pressa. Charles ainda está providenciando uma carruagem. Meu amigo Anthony Burwood nos encontrará no parque. Você dormiu um pouco?

- Fiquei rezando. - Arilla fixou os olhos em Harry e lamentou: - A culpa é toda minha. Por que fui inventar de vir a Londres? Se acontecer alguma coisa... vou preferir. morrer.

- Não vai acontecer nada. E, se quiser rezar, peça a Deus para que eu arranje um meio de afastar esse homem de você.

Havia ainda grande ressentimento na voz dele, o que a fez desejar externar sua alegria por sabê-lo tão interessado em sua integridade, mas limitou-se a dizer:

- Você sempre teve sorte, Harry, e estou certa de que todos os seus amigos estão apostando em sua vitória.

- Menos Charles. Ele tem razão; lorde Rochfield tem fama de nunca ter sido derrotado.

- Dê um jeito de ele perder.

Harry deu risada diante da ingenuidade dela e a levou para o salão, onde os amigos tomavam champanhe.

- Não beba muito, Harry - aconselhou Charles.

- Não sou louco - replicou ele. - Quero estar bem atento para derrotar meu inimigo.

O clima era de euforia, talvez para disfarçar o nervosismo, recurso característico dos momentos de expectativa de um desfecho imprevisível. Os amigos acomodaram-se na enorme e confortável carruagem e, rindo às gargalhadas, chegaram a Green Park.

- Entendeu bem, Arilla? Aconteça seja lá o que for... veja bem, seja lá o que for - Harry frisou -, você deve permanecer dentro da carruagem e não deixar que ninguém a veja. - Em seguida, prosseguiu com gravidade: - Charles e eu estamos infringindo as regras do duelo permitindo a presença feminina em campo. Por isso obedeça.

- Vou mandar o cocheiro estacionar a carruagem de maneira a permitir a visão de tudo por entre as árvores e arbustos - Charles prometeu.

- Watkins ficará com você - acrescentou Harry. Arilla sabia ser esse o nome do valete, que por certo queria estar presente, caso o amo fosse ferido.

Charles abriu um luxuoso estojo que continha duas pistolas.

Quando Harry ia descendo do carro, Arilla segurou-o pelo braço e disse:

- Cuide-se, primo, pelo amor de Deus!

- Confio em suas orações, priminha - disse ele e sorriu antes de acompanhar Charles.

Arilla teve ímpetos de correr atrás dos dois, mas a carruagem já se movia para ser levada para mais perto do campo de luta.

Através da cerração ela distinguiu Harry, Charles e um terceiro homem conversando. Vindos da direção oposta, surgiram mais três vultos masculinos. Lorde Rochfield caminhava à frente.

Ele mostrava confiança e determinação em seu andar firme e pesado.

- Meu Deus, ajudai Harry - ela implorou.

A portinhola rangeu e Watkins enfiou a cabeça para dentro da carruagem.

- Tudo bem, milady? Ela foi sincera.

- Eu. eu estou com medo.

- Não se preocupe, ele sabe se cuidar. - A voz de Watkins era doce, quase maternal. - E aqui eu tenho tudo para uma emergência.

- Espero que não precise.

- Sua Graça tem fama de ser bom atirador mas meu amo não fica atrás... - Ele sorriu, fechou a portinhola e se esgueirou por entre a vegetação.

Arilla aproximou-se da janela e sentiu a aragem fria que vinha de fora.

A névoa da madrugada dava ao parque um aspecto sinistro e misterioso. Não era ambiente favorável a um duelo.

Contudo, alguns minutos mais tarde, a aurora começou a clarear o céu. Foi quando apareceu um outro cavalheiro, caminhando devagar para o centro do gramado: era o juiz.

Pela morosidade de seus passos, Arilla concluiu que, além de ser velho, devia estar contrariado com a interrupção de seu repouso.

O céu já mostrava pinceladas coloridas e brilhantes quando o juiz chamou para perto de si os dois antagonistas. Ele os instruía sobre as regras do "jogo", como era de praxe.

Enquanto Arilla respirava fundo e iniciava uma oração, a cerimónia teve início.

Harry e lorde Rochfield, de costas um para o outro, pistolas nas mãos, esperaram o sinal do juiz para começar. Assim que foi dada a ordem, eles começaram a caminhar. Dariam dez passos antes de se voltarem para atirar.

Agora, bem ao longe, um som fraco ecoava:

- Um. dois. três.

Arilla só enxergava Harry e acompanhou suas preces com uma chuva de pétalas de rosas sobre o chão da carruagem. - quatro... cinco. seis.

Harry se movia com elegante leveza. Apesar de não ver lorde Rochfield, Arilla imaginou-lhe os passos duros e marciais. - sete. oito. nove...

Arilla susteve a respiração, e o juiz gritou:

- Dez!

Os dois homens se voltaram.

A detonação das pistolas pareceu simultânea, apesar de Arilla querer convencer-se de que Harry tinha atirado antes.

Procurou com o olhar a figura de lorde Rochfield e viu que ele cambaleava. Harry o havia acertado! Quando ia dar um suspiro de alívio, ela viu o primo também cambaleando, segurando o braço esquerdo.

Então, esquecendo-se de tudo exceto de que ele estava ferido, saiu correndo por entre as árvores do bosque para chegar mais perto. Viu Charles ajudando-o a sentar-se na grama. Watkins passara como um raio por ela para ir em socorro do amo.

De repente, Arilla descobriu, com o sofrimento e a aflição que sentia, que amava o primo perdidamente. Amava-o, apesar de não querer admitir, fazia muito tempo!

- Está tudo bem, senhora - disse Watkins. - Ele perdeu muito sangue mas o ferimento é apenas muscular.

O valete tinha cortado a manga do paletó de Harry e já fizera um curativo em seu braço.

Arilla via sangue em toda a parte e, ao vê-lo pálido e trémulo, sentiu-se mal pela crueza da cena e pela inutilidade dela.

- Que diabo você está fazendo aqui? - perguntou Harry entre caretas, devido à pressão da mão de Watkins, que tentava estancar-lhe o sangue.

- Devíamos ter trazido um médico - murmurou Charles. - Mas Harry achou desnecessário.

- Seria muito bom - Arilla observou. - Será que... - Ela parou de falar e olhou para o lugar onde lorde Rochfield estava deitado, com mais três cidadãos ao redor.

- Você o feriu, Harry - disse Charles entusiasmado. - vou ver como ele está.

- Não me venha com nenhum "açougueiro" - disse ele, referindo-se ao médico. - Estou muito bem, me levem para casa.

Carregaram-no para o veículo, não sem antes de ele tentar andar, apoiando-se nos amigos.

- Vamos para Islington - disse Arilla baixinho ao cocheiro. - Assim poderei cuidar dele - acrescentou, dirigindo-se a Watkins.

- Boa ideia, milady - apoiou o valete. - Eu estava pensando nisso mesmo.

A luz do alvorecer, atravessando as vidraças da carruagem, mostrou sem disfarce a palidez do rosto de Harry, cujos olhos permaneciam cerrados.

Arilla olhou preocupada para Watkins, que disse:

- Eu tenho um frasco de brandy aqui no meu bolso. Se a senhora quiser fazer o favor de pegar para mim.

Ela viu as mãos manchadas de sangue de Watkins e prontificou-se a ajudá-lo.

Harry sorveu a bebida com gosto e balbuciou:

- Melhorou muito! Agora, rua Half Moon.

Arilla deu uma piscadela significativa para o valete.

Charles aproximou-se da viatura e, verificando que o amigo tomava quase todo o banco traseiro, participou:

- Eu e Anthony vamos andando a pé, até encontrarmos uma carona. Você está bem, Arilla?

- Estou bem, obrigada.

- Você se saiu muito bem, meu irmão. Rochfield tem um buraco no braço, que levará meses para fechar. Está louco da vida!

- Ainda bem... estou vingado.

- Tome conta dele, Arilla. Estou às ordens caso precise de alguma coisa. Não faça cerimónia.

- Obrigada, Charles.

Arilla, em voz muito baixa, deu o endereço de Islington.

Chegando lá, Harry mal se deu conta de onde estava. Sentia-se fraco para argumentar. Arilla, Watkins e um lacaio transportaram-no para dentro.

Rose os levou ao confortável quarto onde lorde Barlow ficava quando eventualmente passava a noite na casa.

A partir de então Watkins tomou todas as providências: fez a toalete em Harry e chamou o médico do príncipe regente. Insistiu para que Arilla fosse se deitar, mas ela relutou, tentando fazer alguma coisa para ajudá-lo.

- Milady não se aguenta em pé. Vá descansar para depois ter condições de ficar aqui, ao lado de Harry, enquanto eu durmo um pouco - ele sugeriu com ternura.

"Cada vez mais ele lembra minha governanta", pensou Arilla. "Ela não admitia palpites e sempre acertava."

Afinal, resolveu seguir o conselho. Despediu-se e, achando que não ia conseguir... adormeceu.

Um complexo de culpa apoderou-se de Arilla quando despertou à hora do almoço.

- Como vai o sr. Vernon? - perguntou a Rose.

- O sr. Watkins está satisfeito. O médico esteve aqui e disse que ele só precisa de descanso, por isso receitou uns calmantes para garantir-lhe um sono repousante.

- Então ele está dormindo?

- Como um bebé, milady. Trouxe seu almoço. Depois, vá ver como ele está passando.

Agora, todos na casa viviam em função de Harry. Isso vinha provar, mais uma vez, o grande poder de atração de seu charme, responsável pelo calor dessa hospitalidade.

A grande quantidade de sangue que ele havia perdido e os soporíferos ministrados pelo médico eram, segundo Arilla, os causadores de sua palidez e aparente inconsciência.

Sentando-se ao lado da cama, ela teve a impressão de estar guardando uma criança indefesa, carente de afeto e proteção.

Mas ao mesmo tempo enxergava o homem valente que ele fora e que ela amava com todas as forças de seu ser. Sem poder controlar-se, derramou toda sua emoção sobre aquele corpo magoado e passivo.

Tentou convencer-se da insensatez de seus sentimentos e da necessidade de reprimi-los, mas percebeu que era mais fácil fazer parar as marés ou apagar a luz do sol.

- Eu o amo... eu o amo... eu o amo, Harry - falou para si mesma. - Não vou me casar com ninguém! Estremeço só em olhar para ele... Ao inferno o dinheiro!

A alma de Arilla vibrava como nunca acontecera antes em toda sua vida. Foi até a janela tomar um pouco de ar fresco e recompor sua emotividade. Procurou raciocinar e chegou à conclusão de que seu amor era um sonho irrealizável. Precisava esquecê-lo.

 

Eu inventei essa absurda história para ajudar Harry e a mim mesma. ", pensou, "e agora devo pagar caro essa estupidez."

Sabia que o único meio de ajudar o primo seria fazendo um casamento rico. Então daria tudo a ele...

Como um cavaleiro tão bom não tinha cavalos? E na velhice. iria continuar a viver de obséquios? Ou morreria à míngua?

"Preciso fazer alguma coisa... ", ela pensou.

Essa intenção sua significava entregar-se às carícias de outro homem, a quem detestaria com a mesma intensidade que odiava lorde Rochfield.

"Mas... o que é o amor senão renúncia e sofrimento? vou encontrar a mina de ouro: meu marido! "

Voltou para junto do leito, e Harry, ainda de olhos fechados, pareceu-lhe mais belo e atraente do que nunca.

Se um dia ele a beijasse, seria tão maravilhoso quanto transpor os umbrais do paraíso!

"Eu amo você, amo você, meu querido."

com os olhos fixos nele sentou-se e assim permaneceu por toda a tarde.

 

O dia estava cinzento e nublado, e não menos triste estava o coração de Arilla.

Harry tinha febre alta e a dor em seu braço o deixava inquieto e abatido. Apesar de ele estar sendo assistido pelo médico do príncipe regente, os remédios não surtiam o efeito esperado. Arilla passava as manhãs e as tardes ao lado dele, e à noite Watkins o atendia.

- Não gosto de interferir... dr. William, me desculpe, mas mamãe sempre dizia: "O mel é um santo remédio", e costumava passá-lo em minhas machucaduras de criança - comentou Arilla um dia.

- Se não ajudar. mal não vai fazer - assegurou o médico.

E mais uma vez os palpites acertados de uma mãe foram postos em prática. Na manhã seguinte, tanto Watkins como o dr. William ficaram pasmos. A febre e a dor começaram a ceder, e a ferida entrou em visível processo de cicatrização.

- Benditas sejam as abelhas! - o fiel valete exclamou, tão logo o profissional saiu.

Mas Arilla agradecia a Deus a sensível melhora do primo.

Harry dormia placidamente e ela aproveitou para agradecer os cartões e as flores recebidas de inúmeros amigos. Muitos até haviam mandado cestas de frutas, muito bem acolhidas, aliás, pois o dinheiro estava escasseando e ela não sabia quando iria recomeçar sua "caça ao tesouro"... ao marido endinheirado. Mas, por ora, a saúde de Harry era mais importante.

Acabava de subscrever um envelope quando Rose anunciou:

- A condessa de Jersey, milady.

Arilla levantou-se com presteza e a recebeu fazendo uma discreta reverência.

- Vejo que está muito bem instalada! - observou a velha senhora. - Porém, este não é um endereço apropriado a uma lady candidata ao beau monde.

- Já fui admitida nele, graças a Vossa Senhoria Arilla retorquiu.

- Concordo, todavia a presença de seu primo aqui nesta casa põe em perigo sua boa reputação. O melhor a fazer é casar-se com ele.

As faces de Arilla cobriram-se de rubor, seus olhos chamejaram por um instante, mas logo em seguida ela achou que a condessa queria garantir um futuro promissor ao jovem Harry Vernon. E sua conclusão foi logo confirmada pelas palavras que se seguiram:

- Seria a solução ideal unir o útil ao agradável. Duvido que Harry encontre moça mais linda e tão rica como você.

Enquanto Arilla procurava o que dizer, a condessa prosseguiu:

- Você o considera atraente, não? Não será exceção à regra. Todas as mulheres se apaixonam quando o vêem.

- E... eu acho... - disse Arilla com dificuldade

- eu não... represento nada. Ele é bom para mim porque... sou sua prima.

- Bobagem! Como todo homem, ele se preocupa em demasia consigo mesmo... é egocêntrico. Creio que tenha se enfeitiçado e se interessado por seu dinheiro, caso contrário não a trataria com tanto carinho.

A vontade de Arilla era alardear seu amor por Harry, confessar o grande sonho de sua vida, mas preferiu ser prudente e continuar a farsa de viúva rica. Esforçou-se para falar com tranquilidade:

- A única coisa que me interessa no momento, senhora, é pôr Harry em pé. Ele teve febre alta e perdeu muito sangue.

A condessa suspirou.

- Essa juventude não tem juízo! Precisariam arranjar um outro meio, tão honroso quanto esse ridículo duelo, para se resolver uma contenda. Mas... ao mesmo tempo, entendo que você, bonita como é, tenha sido motivo à altura para esse desafio.

- Não... não... - Arilla quis desculpar-se mas ela a interrompeu, com ar malicioso.

- Afinal de contas, o que houve? Estou curiosa. Não é do feitio de Harry provocar alguém. ainda mais uma pessoa distinta como Rochfield. Essa também é a opinião do príncipe regente, que por sinal está triste e contrariado.

- Que pena! - Foi tudo o que Arilla achou para dizer.

- Siga meu conselho: case o quanto antes, assim tudo será relevado e esquecido. Está bem?

A condessa deu umas palmadinhas nas costas de Arilla e se retirou, depois de deixar uma linda cesta de frutas dispostas ao redor de um pote de caviar.

Harry já estava suficientemente bom para saborear as apreciadas ovas e, ao fazê-lo, comentou:

- Minha cotação deve subir muito depois dessa visita.

- Ela foi bastante amável em vir pessoalmente saber de sua saúde. Estranhou que você estivesse aqui comigo, esperava encontrar minha dama de companhia disse Arilla, querendo ver como ele reagiria a essa observação.

- Não acredito que ela ou mesmo o suíno do Rochfield me considerem um conquistador perigoso... nessa altura dos acontecimentos. - Ele olhou para a bandagem de seu ferimento.

Ambos riram e Arilla, aproveitando-se do bom humor dele, ordenou:

- Agora você precisa descansar um pouco. Veja se dorme.

- Detesto ficar na cama. vou me levantar - reclamou ele, como um garoto desobediente.

- Nada disso. Enquanto o dr. William não der alta, você continua "de molho". Watkins me recomendou para não deixá-lo sair da cama.

- Tanto você como ele estão parecendo uma babá que eu tive.

- Ficamos muito preocupados, Harry, e Charles também ficou nervoso - ela falou com doçura.

Charles aparecera de manhã bem cedo e ficara contente com o progresso na recuperação do amigo. Comentara jocosamente sobre lorde Rochfield:

- Dê-se por feliz, o "lobo mau" está sofrendo um bocado! A ferida não quer fechar e ele grita de dor.

- Devia ter lhe cortado a cabeça.

- E a esta hora estaria fugindo para o continente. Para Paris, talvez? Mas a Cidade Luz não seria interessante sem vida noturna... e como você a teria, sem um real no bolso?

- Não comece a falar de minha pobreza! vou já, já, arranjar um emprego de lavador de pratos... em Carlton House. Ao menos não morrerei de fome!

- Por falar nisso, você perdeu um senhor jantar, ontem. de trinta talheres!

- Graças a Deus. uma amolação a menos! Arilla surpreendeu-se com a resposta, que lhe trouxe ao pensamento a ideia de retorno às recepções, bailes e outras atividades sociais.

Agora, mais do que nunca, desagradava-lhe, até mesmo parecia-lhe degradante aceitar convites com a tácita finalidade de encontrar um marido.

"Não aguento mais", ela pensou.

Mas não tinha outra alternativa a não ser voltar para sua cidadezinha e ter uma vida miserável e solitária.

Lembrou-se também do retorno de Mimi... Para onde iria caso ela estivesse de volta? Veria Harry, como agora?

Perguntara a Rose quanto tempo a patroa ficaria fora, mas ela também não sabia, pois Mimi e lorde Barlow ainda fariam uma temporada em Nice, uma linda praia do Mediterrâneo. Isto alegrou bastante Arilla porque teria possibilidade de permanecer mais algum tempo em Islington.

"Tomara que dona Mimi esteja se divertindo e não tenha sabido o que aconteceu com o sr. Harry. Ficaria muito aborrecida", falara então Rose, para inquietação de Arilla.

Assim que Harry despertou, após o repouso da tarde, ela tocou no assunto que tirara seu sossego.

- Fale-me sobre a dona desta casa. Rose me disse que ficaria desesperada se soubesse de seu ferimento.

- Rose fala demais! - ele comentou com rapidez.

- O dono desta casa é meu amigo lorde Barlow.

Apesar da seriedade e aspereza dessas palavras, ela não se conteve e ousou perguntar:

- Se Mimi fosse rica, você se casaria com ela? Harry arregalou os olhos com expressão de horror.

- Pelo amor de Deus! Nunca! Quem casaria com as Mimi deste mundo? Só um louco! Porém, ela é uma pessoa linda. encantadora. Apenas isso você deve saber.

- Mas tenho curiosidade...

- Não sei de quê.

- Rose me disse que ela "arrasta um trem" por você... ou melhor, ama você e... eu achei.

- Pare de achar - ele ordenou. - Moças de família não devem se preocupar e nem falar dessas mulheres. Não toque mais no nome de Mimi, por favor.

- Eu. eu não entendo - disse Arilla desconcertada.

- Essa discussão me cansa, Arilla. - E ele fechou os olhos, para pôr um ponto final ao assunto.

Esse desfecho não sossegou o coração de Arilla, que teimava em admitir algum sentimento mais elevado entre o primo e a amiga. Sua angústia ainda não havia passado quando Rose anunciou a marquesa de Westbury, a qual surgiu na sala, elegantíssima, com um chapéu ornado de penas de avestruz e um vestido de corte impecável, que revelava sua silhueta esbelta.

Arilla cumprimentou-a sem esconder o nervosismo e a insatisfação.

- Boa-tarde, milady - ela disse fazendo discreta reverência.

- Quero ver Harry Vernon, e... não tente me impedir.

- Jamais faria isso... mas meu primo está dormindo e não seria conveniente interromper seu descanso.

Ela achou que a marquesa iria insistir para acordá-lo mas, em vez disso, a mulher acomodou-se em uma das poltronas frente à lareira.

- Deve estar a par dos comentários desfavoráveis a seu respeito, não, lady Lindsey? Poderia ter sido mais hábil e evitado o duelo entre Harry e lorde Rochfield.

- Era a última coisa que eu desejava...

- Duvido! Mesmo tendo vindo do interior, poderia ter sido suficientemente inteligente e sagaz para não criar tal situação entre dois cavalheiros tidos como ótimas pessoas em toda Londres.

Arilla achou melhor não discutir e tratou de mudar de conversa:

- Tenho ótima notícia: Harry já está quase bom!

- Então está na hora de... ele voltar para o apartamento. O fato de você ser parente não é uma atenuante às nossas rígidas convenções vitorianas.

- Harry sabe o que faz - Arilla retrucou e, aprumando-se, foi ver se ele havia acordado.

Subiu as escadas tremendo de raiva ante a atitude da marquesa e por causa da estonteante beleza dela.

"Não é possível que Harry não tenha se apaixonado... ", pensou.

Ao entrar no quarto, ela viu Watkins afofando os travesseiros amarfanhados.

- Dormiu bem, Harry? - perguntou.

Ficou encantada com a figura bela e atraente do primo. O colorido voltara às faces lisas e, apesar de ele estar um pouco mais magro, sua aparência era realmente fascinante.

- Venha cá, vamos conversar um pouco - ele disse pegando o jornal. - Quais são as notícias? Estou com preguiça de ler.

- Você tem visita - ela disse num sussurro.

- Quem é?

- A marquesa de Westbury quer ver você.

- Faça-a subir. - Imediatamente voltou-se para Watkins: - Estou bem assim?

Arilla não disse nada. Saiu do quarto e, ao descer as escadas, sentiu que alguma coisa a maltratava: o ciúme.

A marquesa adentrou os aposentos do rapaz, e Arilla os dela, atirando-se à cama para romper em sonoro pranto.

"Como posso ser tão boba?", gemeu.

Sabia a resposta a essa pergunta. O responsável era o grande amor que sentia, levando-a às vezes a uma agonia, e outras à ressurreição. - vou me levantar... vou me levantar... - insistia Harry sob os protestos de Watkins.

- É muito cedo, capitão.

- Chega de ser tratado como uma criança ou um adulto imbecil - ele reclamava. - Depois do almoço

e do meu repouso, vou sentar-me à janela para respirar ar puro e me deliciar com a paisagem.

- Tudo bem, mas. se você tiver uma recaída e for forçado a passar mais uma semana na cama, não se queixe"- Arilla avisou ao entrar.

- Mas eu estou me sentindo bem, Arilla, e também estou farto de ver todo mundo me rodeando como se eu fosse um herói ferido voltando do campo de batalha.

Ele estava irritando Arilla, que não parecia de muito bom humor por causa da visita da marquesa. Lembrava-se da expressão feliz e esperançosa que ela demonstrara ao sair do quarto por haver constatado ótimo estado de saúde de Harry. Arilla não queria admitir, mas sua vontade era conservar o primo em sua casa, afastado de investidas femininas.

- E ainda tem mais - Harry prosseguiu enquanto Watkins se retirava. - Não vou permitir que você fique aí, do lado de minha cama, como um anjo da guarda. Que convite você tem para hoje à noite, Arilla?

- vou jantar aqui no boudoir com um homem muito simpático, que não pode descer escadas ainda. mas vai se trajar muito elegantemente.

- Como adivinhou que eu queria jantar sozinho com você? E se eu preferisse uma recepção cheia de convidados?

Por um momento ele manteve um sorriso nos lábios mas logo continuou provocando:

- Depois poderemos jogar cartas, ou talvez. dançar!

Arilla não conteve um gritinho de desaprovação.

- Garanto que depois dessa folia você vai ser o primeiro a querer voltar para a cama.

- Olhe, vamos jantar juntos se você prometer voltar ao "trabalho" amanhã. Quantos convites rejeitou?

- Francamente, nem sei! Foi muito melhor ficar em casa, com você.

- Mas, Arilla, estamos perdendo tempo e dinheiro! Temos que pagar esse bendito médico.

- Quanto? É muito?

- Demais! É o médico da nobreza. Prepare-se porque você vai começar a ir a festas sem mim.

- Ah, Harry, pelo amor de Deus! Você sabe que eu não gosto.

- Não é questão de gostar mas... de precisar. O episódio Rochfield terminou e você não pode cair no esquecimento de seus outros admiradores.

Com melancolia, ela concordou em voltar à busca do marido rico o mais depressa possível.

Depois do almoço, Watkins fez a toalete de Harry, para que ele repousasse, e Arilla desceu para se inteirar da correspondência. Havia uma pilha de convites dirigidos a Harry, e outra a Islington.

No início de sua vida em Londres ela se alegrava com o grande número de pessoas importantes que a convidava para festas. Hoje, preferia ficar com Harry a fim de desfrutar de sua companhia radiosa e cativante.

Estava apaixonada, mas precisava ser sensata e, também, agradável a ele; por isso iria às recepções.

Ia chamar Rose a fim de providenciar um mensageiro para comunicar sua decisão aos anfitriões que escolhera, quando a ouviu anunciar:

Lorde Rochfield, milady.

O sangue de Arilla gelou nas veias. Quase não conseguia mover-se. Mal podia acreditar no que via e muito menos no que ouvia. O lorde, muito magro e pálido, com o braço na tipóia, dizia com voz fraca e trémula:

- Precisava vê-la, minha querida. Levantei da cama para matar minha saudade antes que ela me matasse.

Penalizada pelo aspecto dele, logo ela o fez sentar e ofereceu-lhe um drinque reconfortante.

- Uma taça de champanhe seria bem-vinda - ele disse, agradecido.

Arilla puxou o tirante de passamanaria que chamava a criada. Pela rapidez com que ela atendeu, concluiu que a moça estava atrás da porta, à escuta. Watkins devia ter feito comentários sobre o duelo com a criadagem. Era natural a curiosidade da camareira.

Arilla guardava distância do visitante inesperado que, com leve expressão de desgosto, falou:

- Tenho tido notícias de seu paciente; parece estar quase bom, não é?

- Está - ela respondeu secamente. Logo acrescentou: - Gostaria de fazê-lo saber que estou de pleno acordo com a condessa de Jersey, pois também achei o duelo um absurdo!

- Pois a condessa foi motivo de muitos duelos, no passado! Apesar de ter sido belíssima, não chegava a seus pés.

- Espero que nunca mais aconteça. Fiquei tão aborrecida!

- Era a única coisa que eu temia, minha flor.

A meiguice e a sinceridade dessas palavras surpreenderam Arilla.

Rose entrou com o champanhe. Depois de ter posto a bandeja em uma das mesinhas ao lado do sofá, retirou-se.

Houve um silêncio embaraçoso. Arilla, temendo ouvir palavras atrevidas e impertinentes, olhou para a janela, livrando-se do olhar penetrante do lorde.

- É muito cedo para o senhor estar saindo e... permita-me ser sincera... foi um erro ter vindo a esta casa - ela o censurou.

- Não cometi nenhum erro. Não poderia esperar mais para saber se me daria a honra de ser minha esposa.

Por um segundo ela achou que não tinha entendido e, ao voltar-se com ar de espanto, ele já prosseguia:

- Eu fiz tudo para evitar um segundo matrimónio infeliz, depois da perda de minha mulher. Mas estou irremediavelmente apaixonado e tenho certeza de encontrar a felicidade em sua companhia. A vida para mim não é vida... sem você. - Os lábios sem cor contorceram-se, mostrando um arremedo de sorriso, e balbuciaram: - Se for capaz de me perdoar pelo meu mau procedimento, seremos muito felizes juntos, e você terá tudo o que desejar...

Na mesma hora, Arilla visualizou cavalos de raça, carruagens luxuosas, dinheiro, muito dinheiro para Harry. Mas... ao examinar aquele corpo, agora um pouco combalido, que pesara sobre o seu, provocando-lhe um mal-estar desesperador, ficou outra vez horrorizada. Ela o odiava.

Como se adivinhasse seus pensamentos, ele disse:

- Nunca supus chegar àquele ponto... Você estava incrivelmente fascinante e eu não pude evitar de desejá-la. Ademais, não poderia imaginar, pelo fato de ter sido casada, que fosse tão ingénua a ponto de se aterrorizar daquela maneira.

Lorde Rochfield fez uma pausa e, como ela permanecesse em silêncio, continuou:

- Durante minha convalescença, pensei muito e cheguei à conclusão de que não adiantaria me desculpar, coisa que fiz pouquíssimas vezes. Devo ensiná-la a confiar em mim e acreditar na minha capacidade de fazê-la gostar de mim. amar-me muito.

Arilla o escutava com a impressão de estar sonhando. Não era um sonho muito bom, pois ela pressionava os dedos entrelaçados e mordia os lábios ressequidos. Na verdade estava se controlando para não gritar ou sair correndo.

- Nós nos conhecemos muito pouco - lorde Rochfield continuou, com calma - mas você tem tudo que um homem idealiza para a mãe de seus filhos. Case comigo, Arilla, e eu a tornarei a soberana do nosso reino encantado. Não haverá outra mulher em minha vida, eu juro.

Ele esperou uma objeção, mas Arilla não conseguiu falar.

Não, não era verdade! Era um sonho. bom? Um pesadelo? Como? raios, os pensamentos atravessavam-lhe a mente, na maior desordem possível.

Olhou para o teto, para o chão, e soltou um suspiro profundo que a relaxou um pouco. Um sentimento de orgulho e um autocontrole, cuja força gigantesca até então desconhecera, veio em seu auxílio, permitindo-lhe dizer:

- Sinto-me muito honrada, milorde, mas. o senhor entende... foi uma surpresa. um choque. Depois de tudo que.

- Mas já pedi desculpas! - ele interrompeu com impaciência.

- Eu sei, eu sei... e entendo que foi difícil para o senhor se desculpar. Ao mesmo tempo é difícil para mim ajustar-me a essa situação tão. absurda. até mesmo em meus loucos devaneios.

- Todavia, ela é real - ele insistiu.

- Preciso de tempo para pensar. Assim como o senhor não se dispunha a um novo casamento, eu também não estou preparada para assumir um compromisso tão sério.

O argumento, apesar de mentiroso, pareceu convencer lorde Rochfield, que atribuiu a dúvida de Arilla à sua timidez e nervosismo.

- Pense bem. Não se esqueça do risco que estou correndo, ao desobedecer as ordens de meu médico e vir aqui extravasar meus sentimentos.

- Sinto-me lisonjeada. senhor.

- vou esperar. Procure acreditar na felicidade que lhe darei. Não se detenha muito em considerações, ou. me deixará louco! Quero me casar logo, levá-la para bem longe de Londres, onde ninguém nos perturbe. onde possamos nos conhecer intimamente. E, uma vez minha, não se arrependerá jamais.

Ao ouvir a palavra "minha", ela sentiu outra vez o horror que o corpo indesejado lhe provocara e lembrou a rudeza das mãos atrevidas a lhe rasgarem a blusa de renda. Agora, mesmo controlado, pois tinha o braço na tipóia, em seus olhos brilhava a chama devoradora de sempre. Ele tinha alguma coisa de impuro e degradante que ela nãe conseguia suportar.

De repente, Arilla pensou em Harry e na riqueza de lorde Rochfield e... toda a repulsa foi se distanciando até encontrar a esperança de um relacionamento tolerável.

Após terminar seu champanhe, o lorde ergueu-se e participou: - com sua permissão, minha amada, vou me retirar, para amanhã ouvir de seus róseos lábios o que de há muito desejo!

- É muito pouco tempo para tão grave decisão.

- Considere meus sentimentos e sua posição de grande dama da alta sociedade de Londres! - E acrescentou com vaidade: - O príncipe regente me tem como um de seus melhores amigos e, em futuro próximo, quando for rei, me quer como seu braço direito, dando-nos assim um lugar de destaque na hierarquia do palácio.

Os olhos de lorde Rochfield esquadrinharam a distância, como se ele procurasse divisar o futuro.

- Você se orgulhará de mim, minha deusa, e eu me orgulharei de sua beleza e porte de rainha, além de sua brilhante inteligência. Mas minha primeira e prazeirosa tarefa será ensinar-lhe as alegrias e os anseios do amor.

O olhar dele desferia chispas de fogo, e Arilla, assustada, foi se dirigindo à porta, dizendo com ar maternal: - Sua condução o espera. Vá para casa e tenha um bom repouso.

- É o que pretendo fazer, mas voltarei amanhã... depois de amanhã, e quantas vezes forem necessárias até conseguir o que almejo.

Rose já estava a postos e segurava nas mãos o chapéu alto, a bengala e as luvas de lorde Rochfield. Quando ela lhe abriu a porta, ele ainda falou:

- Até amanhã. Não se esqueça: sou um homem impaciente.

Havia um certo tom ameaçador nessa afirmação.

Mal ele acabou de sair, Arilla voou para o quarto de Harry e parou no limiar da porta. Ele estava em mangas de camisa, frente ao espelho, tentando fazer o laço da gravata. Assustou-se com a súbita aparição da prima. Ela o encarou, perturbada, para logo em seguida cair em seus braços acolhedores como um abrigo na tempestade.

Harry a envolveu e perguntou, preocupado:

- O que houve? Por que está assim alterada?

- Oh, Harry!... Harry!... - A voz dela era um lamento.

- Diga logo o que aconteceu.

- Lorde... Rochfield!

Os braços de Harry caíram em posição de desânimo.

- O que ele fez?

- Esteve aqui.

- Como se atreveu?

- Ele... ele veio me... pedir em casamento! Harry ficou petrificado. Arilla ergueu o olhar para ele e, com voz trémula, confirmou:

- Ele insiste em se casar comigo. Oh, Harry! Eu não posso... eu não quero.

Um gemido brotou do fundo da alma ferida de Harry.

- Meu Deus! - E os lábios masculinos procuraram os dela.

Arilla pensou que estivesse sonhando. Foi um beijo selvagem e desesperado. Prolongou-se até ele perceber

que o tremor convulsivo de seu corpo passara para o dela.

O momento agora era de enlevo físico e espiritual. O amor parecia propagar-se em feixes de luz e calor, vindo do peito e alcançando a boca. Arilla não mais se pertencia; tornara-se parte do ser amado nesse entrelaçamento de almas. Só depois que ela pareceu ter saído desse êxtase celestial é que ele ergueu a cabeça e disse, transtornado:

- Por que você fez isso comigo? Como pôde me torturar dessa maneira? Quase me deixou louco!

- Eu te amo, querido. Eu te amo mas... acho que devo me casar com ele... não é?

- Para o inferno com ele... - Harry blasfemou.

- Que se queime no fogo eterno! Não posso perder você. minha amada!

Ele a puxou para si, tirou o outro braço da tipóia e abraçou-a com paixão.

- Harry, cuidado, seu braço! - ela gritou.

- Que importa meu braço! Eu quero você. Minha jóia preciosa, você não sabe o que tenho sofrido e... eu não sabia que Rochfield...

- Ele... ele tem. tudo. Excelentes cavalos para você! Só penso em seu conforto, meu amor... Não o quero mais dependendo dos outros.

Harry deu uma risada de tristeza.

- Eu também não... Mas quem vai se sacrificar casando-se com um suíno é você. O pior é que perderá a oportunidade de fazer um casamento feliz com alguém mais rico e mais poderoso que Rochfield.

- Eu sei... eu sei, mas nada é mais importante do que meu amor por você.

- Como pode ser tão boba de amar um pobretão como eu?

- Você é tudo que um homem deve ser: forte, firme em suas decisões, exuberante e divertido, bondoso e

gentil. Quer mais algum adjetivo? Oh, Harry! Eu. te amo. Como posso casar com outro?

Ambos sentaram-se à beira da cama. Ele a cingiu com os dois braços e ela escondeu o rosto em seu ombro.

- A culpa é sua. Como pode ser tão absurdamente linda? Seus olhos me perseguem, e a ternura deles me envolve e me acaricia, mesmo quando você está longe.

Havia calor e sinceridade nessas palavras, e o coração de Arilla se desfazia dentro do peito. Quase sem forças, ela murmurou:

- Se... se eu me casar com ele... será apenas porque amo você.

- Droga! Essa não é razão plausível nem suficiente. Deve haver melhores partidos.

- Se houver... ainda não os encontrei, e duvido que sejam tão ricos!

Apesar de Harry não ter dito nada, Arilla sabia que ele, assim como ela, estava pensando no pouco dinheiro que lhes sobrava.

Os braços fortes a apertaram mais um pouco. Quando ela ergueu o semblante, ele percebeu, nos olhos azuis, o desejo de ser beijada. E... beijou-a impetuosamente, como querendo machucá-la. Foi correspondido com um arrebatamento também selvagem, mas maravilhoso.

Harry levou-a consigo para os travesseiros, estendendo-a na cama desfeita. Envolveu-a nos braços e assim a reteve. Sentia bater-lhe o coração. Quase sem fôlego pela intensidade de suas emoções, ele sussurrou:

- Você é minha. Ninguém a tomará de mim.

- Jura?

- Juro. Morrerei se for preciso, mas nenhum homem a tocará.

Ele a beijou outra vez, o corpo colado ao dela, transmitindo-lhe calor e doçura, revelando-lhe aquele amor com que ela sempre sonhara: amor verdadeiro, eterno e divino.

- Não posso mais viver sem você. Vamos nos casar, minha querida?

- Eu também não posso viver sem você, mas.

- Não há mas - ele interrompeu. - Se pensa que vou permitir seu casamento com Rochfield ou outro qualquer, está muito enganada! Você vai se casar comigo, apesar de eu não saber. Talvez Deus saiba o que fazer para não passarmos fome.

Arila escondeu o rosto entre as mãos e perguntou temerosa:

- E daí? - Harry não respondeu e ela continuou:

- Muitas vezes pensei em como ganhar dinheiro. Meus pais me deram uma boa educação. Sei cozinhar, sei montar muito bem, desde que haja ingredientes e bons cavalos! - Procurava mostrar-se natural mas estava receosa e desanimada.

- Eu também posso dizer o mesmo com relação a cavalos.

De repente ele deu um grito que fez Arilla sobressaltar-se.

- Eureca! Eureca! Já sei o que vou fazer. Pelo menos a comida será garantida, mas... a cozinheira talvez precise ser você.

- O que vai fazer?

- Sou capaz de domar o mais chucro cavalo que me cair nas mãos. Vamos procurar animais destreinados e transformá-los nos mais cobiçados espécimes da redondeza.

Os olhos de Arilla cintilaram de esperança enquanto Harry continuava planejando:

- Não é difícil, só é preciso paciência. E depois que tivermos nossas próprias matrizes, então. faremos fortuna!

Agora havia um entusiasmo contagiante em suas palavras.

- Ótimo! Mas, meu querido, e... o capital para os garanhões e éguas de puro sangue?

- Ê fácil!

- Como?

- Tudo será concretizado, depois que nos casarmos. Arilla não entendeu, e ele, sorrindo, segredou:

- Nossos presentes de casamento! Esse será o capital que impulsionará nosso trabalho. Um trabalho, minha adorada, financiado e alicerçado pelo amor e pelos beijos.

 

"Obrigada... Senhor! Obrigada... Senhor!", Arilla repetia do fundo da alma, até mesmo nos espaços de Insónia, intercalados ao sono da noite. Mas, ao mesmo tempo, começara a sentir remorso pelo que poderia acontecer na vida de Harry. Como privá-lo de uma vida de fausto e fazê-lo cair em uma rotina, talvez de sacrifícios e preocupações?

Em suas divagações, enxergava o decadente solar de sua família. O papel de parede rasgado, a pintura desbotada e suja, móveis malcuidados e terras que lembravam jardins... Jamais fariam a felicidade do primo. Mas, ao pensar no grande sentimento que os unia, esses valores pareciam perder de muito sua significação. "Eu te amo... eu te amo... ", ela dizia em pensamento, sem cessar, deixando-se envolver pela magia do amor.

No segundo dia de convalescença fora do leito, Harry a informou que iria sair.

- Mas ainda é cedo - protestou ela.

- Não para o que preciso fazer.

- E o que é? - Arilla perguntou curiosa.

- A primeira pessoa a ser comunicada sobre nosso casamento deverá ser o príncipe regente e... é o que vou fazer. Ele gosta de saber das coisas em primeira mão. - Harry hesitou, sorriu e continuou: - Ficará furioso se chegarem boatos a seus ouvidos. antes de minha participação. E, antes que me esqueça, já entregou a carta a lorde Rochfield?

Harry havia ajudado Arilla a escrever uma carta ao lorde. Nela dizia estar profundamente honrada com a proposta de casamento, mas ainda permanecia sob o impacto do inesperado duelo. Por isso, precisava pensar muito para não tomar uma decisão errada. Dizia-se também desapontada pelo fato de toda a sociedade ter ficado a par do desagradável acontecimento. Pedia tempo para reatar seu relacionamento social interrompido, o que lhe daria chance de conhecer melhor seus amigos e assim facilitar a escolha do futuro marido.

Era uma bonita carta, nada agressiva, mas que já o ia prevenindo para uma possível negativa. Arilla não queria despertar-lhe a ira, com medo de motivar outra contenda.

"Se ele começar a aborrecer muito, eu o convido para outro duelo", Harry havia dito.

"Você não vai fazer isso! Chega o que eu passei. E se ele tivesse matado você?", Arilla dissera, quase chorando.

"Ele não faria isso! Mas para seu sossego... vou tratá-lo bem, não se preocupe."

"Então jure. pelo que você tem de mais sagrado."

"Só posso jurar por você." E a beijara com fervor, trocando o assunto por um diálogo terno e amoroso.

Harry saiu para o palácio do príncipe. Apesar de ter o braço na tipóia, estava elegante e irradiava felicidade, para encantamento de Arilla.

Ao entrar em casa, ela rezou para que Sua Alteza Real não mais estivesse aborrecido e para que derramasse sobre ele sua augusta bênção.

Achou-se interesseira por se preocupar tanto com a aprovação do príncipe, mas o futuro deles dependia da generosidade dos amigos e da aceitação da realeza.

Inquieta, Arilla não via a hora de Harry voltar, mas, ao recebê-lo, logo percebeu que tudo havia dado certo. Ele a abraçou efusivamente, gritando:

- Venci! Venci, minha adorada. Pode se orgulhar de mim.

- Venceu? - ela exclamou radiante.

- Sua Alteza Real não só me perdoou como vai nos presentear com uma recepção em Carlton House, no dia de nosso casamento.

- Não diga! Quer dizer que.

- Não vai nos custar um vintém. Eu só dei um leve toque quanto ao problema da festa e... ele achou a solução. Sou ou não sou inteligente?

- Você é um génio! Eu te amo. - Um grande beijo a transportou aos céus.

- Casaremos no fim da semana que vem, e depois de amanhã anunciaremos a data certinha - Harry anunciou.

- Já? Tão cedo?

- A necessidade nos leva a isso. Nosso dinheiro está no fim!

Arilla tornou-se pálida mas conseguiu perguntar:

- Harry, está bem certo de que não vai se arrepender?

- Por quê? Já está querendo desistir?

- Não, não, querido. Só não me conformo de vê-lo perder toda essa boa vida de Londres.

Ela não pôde segurar um suspiro doído, mas Harry deu uma gostosa risada e a levantou pela cintura, dando um corrupio de valsa.

- Como eu poderia viver aqui em Londres vendo-a sair com outro homem? Como continuar conversando artificialmente com você nas festas, para depois voltar sozinho para casa?

Havia tanta sinceridade nessas palavras que Arila sentiu apesar de todos os obstáculos que haveriam de encontrar, que estavam procedendo com acerto.

"Fomos destinados um para o outro pensou. Talvez já nos tenhamos encontrado em outras vidas e optado por vivermos juntos eternamente."

O noivado foi então publicado no Gazete; ninguém se mostrou surpreso, e a satisfação foi geral.

Todos os congratulavam, apesar de Arilla perceber leves insinuações sobre o "golpe do baú" que Harry iria dar.

"Pena termos precisado iludir tão bons amigos e Harry ser vítima dessas injustas suposições", Arilla pensava.

À medida que os presentes chegavam, eram expostos em Carlton House. Arilla reconhecia, não sem desgosto, que, se não fosse por isso e pela "bênção" do príncipe regente, eles não seriam tantos nem tão ricos e suntuosos. Havia também peças úteis, das quais não pretendia se desfazer.

Em uma das últimas festas a que tinham comparecido, Harry havia divertido os convidados ao responder à marquesa de Warthjng que quis saber qual o presente que seu primo, o duque de Vernonwick, mandara.

"Votos de felicidade", ele respondera. "Não custam nada! "

Arilla não escondia seu deslumbramento cada vez que entrava na sala dos presentes. Uma valise de couro lavrado a ouro a tinha maravilhado. "Gostaria que Harry guardasse para ele", pensou, dando um suspiro de melancolia.

O vestido de noiva também a preocupara. Pensou usar alguns de seus vestidos de noite, mas temia a perspicácia da condessa de Jersey e a língua da marquesa de Lieven.

"Já resolvi também esse problema", Harry dissera. "O presente de Liza vai ser o vestido de noiva."

"Não é possível! É muita coisa para ela; não vou permitir que faça isso."

E quando uma tarde a costureira aparecera para tomar as medidas, Arilla avisara:

"Sua bondade me encanta mas... quero pagar pelo menos uma parte de seu trabalho."

"Em absoluto", Liza respondera. "Não será apenas um presente de casamento mas... a expressão de minha gratidão por tudo que a senhora fez por mim."

Arilla a encarara espantada, sem entender, e ela explicara:

"Devo a milady o aumento de minha clientela. Todas querem os modelos que a senhora veste e vai acontecer o mesmo com seu vestido de noiva".

"Tomara!... ", Arilla exclamara. "Muito. muito obrigada."

"Eu é que agradeço e espero muito em breve fazer dezenas de vestidos para milady."

Arilla não teve coragem de desiludi-la e calara-se.

Um dia antes do casamento ser anunciado, Arilla escreveu outra carta para lorde Rochfield, comunicando, de modo gentil, que iria se casar com Harry:

Eu o conheço desde criança, mas só quando cheguei a Londres descobri estar apaixonada e que na realidade ele sempre foi o dono de meu coração. Por favor, entenda. Não nos queira mal mas. deseje-nos felicidade".

Não obteve resposta por escrito, mas recebeu uma enorme e horrível floreira de prata, pela qual, Harry afirmou, poderiam conseguir elevado preço.

- Se eu tivesse um mínimo de orgulho, ou melhor, se eu pudesse, jogaria esse presente na cara de lorde Rochfield - ele observou, ainda com ódio.

Arilla assustou-se com a rudeza das palavras de Harry, e logo tratou de distraí-lo, dizendo:

- Todos nesta casa estão eufóricos com nosso casamento, incluindo seu valete, Watkins. Não sabem mais o que fazer para nos agradar e não gostam de pensar no momento de deixarmos Islington.

Realmente a criadagem estava se esmerando, principalmente na cozinha, para que eles levassem boas lembranças quando partissem.

Arilla desejou muito ser uma exímia cozinheira, para que Harry não estranhasse as refeições no solar.

A única pessoa que sabia da volta a Little Marchwood e dos planos de trabalho de Harry era o grande amigo Charles.

"Vou contar para ele, querida, porque me será útil aqui em Londres. Ele está sempre a par do mercado de cavalos e poderá me ajudar a alcançar bons preços pelos animais."

Sempre que Charles aparecia, a conversa girava sobre cavalos. Havia muito o que falar sobre essa nova atividade que Harry iria explorar.

O bom amigo nunca negara seu auxílio, e Arilla lembrou-se da ocasião em que ela lhe agradecia por um dos seus favores, e ele brincara:

"Estou sempre às ordens, mas devo confessar que me admira sua inocência e falta de experiência pois, afinal de contas, já foi casada".

Ela enrubescera, e Charles achara graça, mas continuara:

"Está vendo? Não conheço nenhuma mulher do beau monde que core assim de uma maneira tão graciosa"

"Será que alguém percebeu nossa farsa, Charles? " perguntou ela.

"Qual nada! Todos estão convencidos de que você é uma viúva riquíssima e Harry vai fazer um ótimo negócio! "

Ele notou a expressão de desagrado nos olhos dela e apressou-se em dizer:

"Mas sua inegável beleza é a razão mais forte desse casamento, e qualquer pessoa mais perspicaz logo chegará a essa conclusão".

Todas as vezes que Arilla ficava a sós lembrava-se, com tristeza, das condições desoladoras do solar. Tinha certeza de que Harry iria sofrer muito, porque não teria

as atrações da "city" para compensar as limitações de um homem sem fortuna e a falta de uma residência aconchegante.

Quando ela tentou contar-lhe sobre sua inquietação, ele a sossegava:

"Estou disposto a viver só de amor e beijos até arranjarmos dinheiro".

"E se o trabalho não. der certo? " "Está duvidando de minha capacidade? Pensei que tivesse mais confiança em mim!" "Oh, mas eu tenho! Eu te adoro! Você é maravilhoso! Apenas estou com medo de que você tenha de renunciar muito... por minha causa."

"Dois míseros quartinhos na rua Half Moon? Ou a amável hospitalidade de uns poucos que me fazem de bobo da corte? Afinal de contas, sou um joguete nas mãos de Sua Alteza Real."

Na mesma hora, sentiu-se um ingrato e procurou remendar:

"Eu particularmente gosto muito do príncipe, mas ele é muito absorvente. Quero ter liberdade, ainda que em uma casa destruída pelo tempo, com jardins malcuidados e uma mulherzinha inquieta! "

"Não seja injusto! Eu não sou inquieta. Quero apenas vê-lo rodeado daquilo que você gosta! "

"Eu é que deveria dizer isso a você. Mas tenho só amor e beijos para lhe dar. Se não for suficiente, meu bem, fuja com lorde Rochfield! "

Ambos caíram na risada e se beijaram com a doce ternura dos apaixonados.

"Você sabe que eu jamais o deixaria", ela murmurou. "Não admito a vida sem você."

"Eu também. Sinto que não temos retorno. Acho que estamos no caminho certo."

Novamente os lábios se uniram e não mais trocaram palavras naquele momento, mas muitas emoções.

O dia do casamento chegou, banhado por um sol não muito quente, mas sem dúvida o mais lindo sol da Inglaterra. Era um bom presságio, pensava Arilla.

Harry, completamente curado, voltara para seu alo-1 jamento para não ofender os bons costumes, morando sob o mesmo teto de Arilla. Cada despedida, à noite, era um sofrimento. Ambos não viam a hora de permanecerem juntos e se livrarem do adeus torturante da separação.

Iam se casar na Igreja de Saint George, em Hanover Square, ao meio-dia, com a presença do príncipe regente. Charles seria o padrinho de Harry. Ele e Anthony ficaram responsáveis pela decoração da igreja, aliviando o noivo de um bom gasto. Ambos mandaram buscar flores das próprias fazendas e seus jardineiros se ocuparam da ornamentação.

O buquet de noiva, de orquídeas brancas e lírios do vale, também foi presente de Charles e fez o encanto de Arilla, já entusiasmada por não ter dado despesa para Harry.

O vestido que Liza fez ficou espetacularmente lindo, deixando-a até embaraçada por ter que usá-lo. Não era branco, pois ela era tida como viúva, mas prateado; era bordado com vidrilhos. Em vez de véu, Arilla usaria um tipo de capuz ornado de flores, tal qual uma deusa da primavera.

No último momento, ela se lembrou de que não tinha ninguém para levá-la ao altar.

- Não tem importância - disse Harry -, vou pedir ao príncipe regente.

- E se ele disser. não?

- Peço para outro amigo. Preciso também arranjar uma fanfarra de trombetas para sua chegada - Harry acrescentou.

Para Arilla, era como se fosse um sonho de fadas o fato de ser acompanhada através da nave principal

pelo herdeiro do trono. Toda a sociedade ferveria em comentários, os quais não chegariam a seus ouvidos porque ela estaria longe! E ninguém saberia onde, exceto Charles, o grande amigo.

- Espalharei que vocês irão para o continente. Nada mais indicado do que Paris para uma lua-de-mel Charles comentou.

- Ótima ideia. Ninguém pode saber que vamos para o solar! - disse Arilla, agitada.

- Fique sossegada. - E Charles acrescentou: Vocês são corajosos. Acho que eu não teria coragem de fazer o que vocês dois se propuseram.

- Teria, se fosse para casar com Arilla - Harry afirmou, sorrindo.

Uma expressão de amor incontido refletiu-se em seus olhos, e lágrimas de felicidade embaraçaram os olhos azuis e brilhantes de Arilla.

A igreja, forrada de veludo, cetim e flores, fervilhava de gente.

Lustres de cristal espargiam o multicolorido de sua lapidação preciosa por sobre as cabeças da elite londrina.

Enquanto o bispo de Londres administrava o sacramento do matrimónio, Arilla implorava a Deus e a seus queridos pais que a ajudassem a fazer Harry feliz.

O jovem casal, exultante ao descer os degraus do altar, fez até os mais céticos se comoverem ante a beleza do amor transbordante de suas almas radiosas.

Mais tarde, ao comentar a recepção de Carlton House, Charles diria nunca haver participado de uma reunião tão alegre e descontraída. A magia do momento havia arrebatado a todos os convivas.

O príncipe regente fizera um espirituoso discurso que contribuíra ainda mais para o êxito da festa.

Harry muito gentilmente agradecia a presença de cada um e os magníficos presentes que estavam em exposição na sala chinesa de Carlton House. Não podia deixar de pensar no dinheiro que conseguiria e os manteria com fartura, por muito tempo.

Mais uma vez, uma carruagem luxuosa e confortável, emprestada de lorde Barlow, os transportava com elegante realeza pelas ruas de Londres, quando Arilla, apreensiva, perguntou:

- Harry, para onde estamos indo?

- Vamos passar mais uma noite no luxo e na riqueza de Islington. Não se preocupe porque os criados já foram avisados para guardar segredo; portanto, nossa intimidade será preservada.

Ele deu uma risadinha e apertou a mão de Arilla. fria mas acariciante.

- Teremos comida deliciosa, cama divina e mordomia perfeita. Amanhã enfrentaremos o nosso mundo.

- Está pessimista?

- Como poderia estar se tenho você comigo? Dessa vez não a beijou no rosto, como ela esperava, mas beijou seus dedos, um por um, até cobrir-lhe toda a palma das mãos com a suavidade de seus lábios macios.

Ao mesmo tempo que sentiu o gelado do pequeno aro de ouro do anular de Arilla, percebeu em seus olhos um lampejo de satisfação e vaidade.

Fora a única e grande despesa que Harry tivera. Por muito tempo ela usara a aliança da mãe, mas ele achou que a união deveria ser selada não só por lei civil e religiosa, mas também com o simbolismo tradicional de uma aliança de casamento.

"Agora não há mais perigo de você escapar", ele brincara ao entregar-lhe a caixinha de veludo azul com o anel nupcial.

"Até parece que eu quero fugir", ela protestara.

"Você é muito bonita e não faltarão lordes Rochfield para roubá-la de mim." Apertara-a tão fortemente como se temesse perdê-la.

Chegaram a Islington. Depois das recomendações ao cocheiro e ao lacaio para que não revelassem onde os haviam deixado, entraram, acolhidos por Rose.

O salão de estar parecia um jardim. Toda a criadagem tinha se cotizado para a compra das flores e, alegres, foram cumprimentá-los, retirando-se em pouco tempo.

Harry, pleno de felicidade, segurou Arilla com as duas mãos e, encarando-a emocionado, disse:

- Deixe-me olhar para minha querida mulherzinha. Será mesmo verdade... que você me pertence?

- É o que também pergunto - ela respondeu, ansiosa.

- Eu te amo, querida - Harry sussurrou -, e por isso não temo os dias que virão...

- Estou tão extasiada que nem penso no futuro! Hoje só existe o presente para mim, meu querido.

- E é por isso que não vou esperar um segundo sequer para lhe mostrar o quanto a amo.

Subiram para o quarto de mãos enlaçadas, onde Harry a ajudou a se desvencilhar do diáfano vestido de noiva e a levou para o leito.

- Quanto eu sonhei com este momento - balbuciou ao inclinar-se sobre ela, que se aconchegou mais para junto dele a fim de ouvi-lo e senti-lo melhor.

- Serei muito gentil, minha inocente criança. Não vou machucar e nem chocar você...

- Você seria capaz disso? Sabe, quando você me toca, é como se fosse um raio de sol aquecendo e acariciando meu corpo todo. - Um longo suspiro brotou do fundo de seu coração. - Quero que você me beije... e continue me beijando eternamente...

Ele a beijou sem parar e, de repente, uma divina luz pareceu envolvê-los até tocar o âmago de suas almas.

Arila ouviu sinos tocando e anjos entoando celestial canção! O mundo sumira. desfizera-se no calor de tantas emoções! E os dois amantes, unidos em um único ser, entregaram-se ao etéreo universo do amor.

Arila abriu os olhos vagarosamente. Uma brisa leve balançava as cortinas, e os raios de sol se infiltravam no quarto, fazendo desenhos de luz pelas paredes.

Ao estender o braço, tocou o corpo de Harry, que dormia um sono profundo. Parou por um segundo ao impacto de tão grande felicidade, para depois estremecer de prazer à lembrança da noite anterior. Não fora um sonho! Ela era mulher de Harry!

Pela primeira vez entendeu onde lorde Rochfield queria chegar. Preferia estar morta se ele a tivesse possuído. No entanto, agora com Harry, mais do que nunca seu desejo era viver... Viver muito para desfrutar das venturas da alma e do corpo, de que Harry era tão rico!

Tinham jantado no boudoir, também todo decorado de flores naturais. Ela não conseguia lembrar o que comera, mas devia ter sido ambrósia, o manjar dos deuses, acompanhado pelo néctar sagrado, pois não pareciam estar em Islington, mas sim na divina colina do Olimpo.

Depois. a sensação estranha mas deliciosa de que o mundo se acabara, largando-os envoltos em uma luz milagrosa, provinda não só de Deus como de seus próprios corpos.

Harry revirou-se na cama tirando-a de suas reflexões e, ao sentir a presença quente de Arila, apertou-a contra si, perguntando com brandura:

- Está feliz, minha querida?

- Tão feliz que. não me parece estar na terra mas... no paraíso!

- Pois foi onde estivemos ontem, meu amor. E... poderemos viver cem anos, mas jamais esqueceremos nossa primeira noite! - Harry disse, beijando-a com doce enlevo. - Vamos tomar o café da manhã aqui em cima. Depois partiremos para nosso "sertão". Mas antes quero contar um segredo para você nesta manhã das manhãs: sou o homem mais feliz do mundo! A paz que sinto agora é muito maior e mais compensadora do que todas as riquezas da terra.

Antes que Arilla articulasse palavra ele já havia coberto seus lábios de beijos e, outra vez, o quarto se inundou de uma luz e um calor que divinamente lhes abrasaram as entranhas.

Arilla admirava a bela figura de Harry, com um confortável roupão atoalhado com alamares dourados que lhe davam o aspecto de elegante militar.

Como ela gostaria de tê-lo visto com o uniforme da Guarda Real Britânica!

Ele também a observava, extasiando-se com a beleza dos cabelos dourados que caíam-lhe em cascata sobre os ombros delineados através da transparência de um sedutor négligé branco.

- Outro presente de Liza - Arilla falou, segurando com graça a fímbria do esvoaçante penhoar. - Desta vez não vou ajudar Liza porque. ninguém vai me ver nesses trajes.

- O que interessa é que eu a estou vendo e me deliciando. É o quanto basta.

Arilla deu uma risada cristalina e se aconchegou ao marido com a malícia de um felino pedindo afago.

Mas. firmes batidas na porta interromperam o prelúdio amoroso.

Quem é? - Harry exclamou, contrariado.

- Desculpe incomodá-lo, capitão - Watkins disse -, porém há um senhor lá embaixo que insiste em vê-lo.

- O que será? - Harry sobressaltou-se.

- É um assunto urgente. Ele quer falar com o senhor imediatamente.

- Faça-o subir. Mas que seja breve, pois estamos partindo para uma viagem. - Seu tom de voz era irritado.

- Está bem, capitão.

- Pensei que ninguém soubesse que estávamos aqui, além de Charles e Watkins! - Arilla observou, surpreendida.

- Será que é algum credor? Meu Deus!. Não tenho dinheiro agora, vai ter que esperar.

Arilla ficou gelada. "Pronto! Lá se vão nossas éguas, garanhões e potrinhos... ", pensou e pôs-se a rezar com fervor.

Não trocaram palavra até que Watkins apareceu com um homem bem-apessoado, de meia-idade. Tinha toda a aparência de um advogado.

O coração de Arilla bateu descompassado, e Harry, sem disfarçar sua contrariedade, disse:

- Bom-dia. Quem é o senhor?

- Talvez seja o mensageiro de notícia não muito agradável. Cumpre-me o dever de lhe comunicar, com o meu mais profundo sentimento, que seu primo, o duque de Vernonwick foi morto ontem, pela manhã.

- Assassinado! - Harry gritou.

- Não. O telhado da sala oeste desabou quando Sua Graça o estava inspecionando. A marquesa de Vernon estava em sua companhia quando as vigas despencaram atingindo a ambos mortalmente.

Harry permanecia paralisado enquanto o estranho continuava:

- Meu nome é Matthews e sou o procurador de Sua Graça. Matthews, Fisher e Colby - ele se apresentou. - Agora, Vossa Senhoria é o quarto duque e deverá comparecer o mais depressa possível a Vernon Park a fim de providenciar o funeral e tomar posse da mansão e das terras... Haverá algumas dificuldades porque Sua Graça era muito preocupado em não diminuir fortuna, portanto...

- O telhado caiu-lhe sobre a cabeça - Harry completou.

- Isso mesmo. A propriedade está em franca decadência, os empregados também pois não recebem há anos! Mas. há grandes somas no banco e lhe será fácil a recuperação de tudo.

- Principalmente se eu contar com a sua ajuda. Um sorriso aberto mudou a face taciturna do profissional, que disse:

- Ótima notícia! Foi muito difícil trabalhar com Sua Graça. Não largava a mínima quantia em nossas mãos e não aceitava sugestões para rendosos investimentos.

Harry parecia ter crescido em porte e segurança, pensou Arilla, trémula de espanto ao ouvi-lo ordenar com altivez:

- Adquira imediatamente em Jackson's Livery Stables o mais rápido faetonte, as melhores parelhas disponíveis e um cavalariço para me servir. - Parou um momento para pôr em ordem o afluxo de pensamentos que lhe invadiu a mente e prosseguiu: - São quatro horas até Vernon Park. Chegaremos lá o mais depressa possível.

Olhou para Arilla, ainda pálida, e com ares de senhor feudal voltou-se para o sr. Matthews e acrescentou:

- Quero o senhor e seus assistentes, ainda hoje, na Mansão Vernonwick. Já iniciaremos os estudos para normalizar a situação das propriedades.

- Estaremos à sua espera, milorde, e obrigado por nos livrar da grande ansiedade que nos afligiu durante tanto tempo. A que horas Sua Graça deseja a carruagem em sua porta?

- Em duas horas.

- Farei o possível. Até logo, então.

O sr. Matthews ia saindo quando Harry o fez parar.

- Diga-me uma coisa: como o senhor me achou?

- Assim que cheguei a Londres, ontem, tarde da noite, fui a Carlton House. O mordomo me informou que a noiva de Sua Graça morava aqui e, naturalmente, a criadagem saberia para onde sua bagagem havia sido enviada.

Harry deu uma risada sonora e disse:

- Simples!

- Sim, milorde.

A porta fechou-se atrás de Matthews, e Harry deu vazão à sua alegria, antes oprimida por estupefação e conveniência. Tomou Arilla nos braços e puseram-se a rodopiar pelo quarto de vestir, em largos passos de dança.

- Você é a minha boa estrela! Minha querida, você me trouxe sorte! Tudo aconteceu por sua causa!

- Não sei bem por quê. Que bom! Mas, agora que é um homem rico, será. que ainda me quer?

- Deixe de ser bobinha. É lógico. eu a amo com todas as forças de minha alma. Vamos trabalhar juntos, mas de maneira muito diferente daquela que planejamos! Teremos milhões de problemas a resolver. Pelo jeito a mansão está mais delapidada que o solar. Há muito dinheiro à nossa espera no banco, e em pouco tempo estarão feitas todas as restaurações necessárias, incluindo as do solar de sua família, o qual lhe é tão caro.

Arilla quase chorou de felicidade. Beijou Harry com muito carinho e expressão de imenso agradecimento. Mas ele a abraçou com desejo indisfarçável e segredoulhe ao ouvido:

- Sabe porque pedi o faetonte só para daqui a duas horas?

- Achei esquisito porque não levaremos tanto tempo assim para nos vestir...

Não vamos nos vestir já. Essa é a nossa primeira manhã. Funerais, propriedades, dinheiro poderão esperar. mas... o amor e os beijos que você me prometeu, querida, jamais! - Ele abriu os braços para que ela se abrigasse neles, entregando-se às carícias e aos beijos cada vez mais ardentes, conhecendo o delírio de uma paixão.

Um calor suave a princípio e crescente em intensidade a tomou por completo. Havia meiguice e ardor nos beijos de Harry. Ele era uma deliciosa mescla de masculinidade e doçura.

E o universo parou naquele instante em que as duas almas se fundiam em total e bem-aventurado abandono, para se completarem na plenitude do prazer. Além da terra. além do infinito.

 

                                                                                Barbara Cartland  

 

                      

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