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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


A COLINA DAS BRUXAS / Marion Zimmer Bradley
A COLINA DAS BRUXAS / Marion Zimmer Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

A COLINA DAS BRUXAS

 

Um Lugar Onde Deitar a Cabeça

Começou a chover quando o carro funerário saiu do cemitério e continuou a chover durante o caminho de regresso à cidade, as pancadas da chuva forte e o barulho contínuo dos limpa-pára-brisas faziam o contraponto dos meus pensamentos sombrios. Uma semana antes tínhamos sido quatro. Quatro Latimers. A mãe Janet Latimer frágil e frequentemente doente, razão pela qual eu desistira do trabalho excitante que estivera a desenvolver na Escola de Arte e regressara a casa para cuidar dela; mas viva era-me preciosa, valia bem todos os mimos e cuidados que tentavam evitar qualquer sobressalto ao seu coração doente. O pai Paul Latimer ainda cheio de energia, muito direito e elegante, com o cabelo a ficar grisalho, mas os olhos brilhantes como sempre e a voz forte e autoritária. E Brad, fardado e com óptimo aspecto quando entrara no comboio para Parris Island para fazer a recruta; com apenas dezanove anos, divertido e risonho.

 

Um pequeno círculo; uma família afectuosa, mas não sufocante nem castradora. Eu vivera sozinha durante três anos até a mãe ter tido o ataque de coração e voltaria a viver sozinha quando ela melhorasse. O Brad sempre quisera alistar-se nos Fuzileiros; tinha havido sempre um Latimer nas Forças Armadas desde a Revolução. Oh, tínhamos as nossas próprias vidas mas também tínhamos raízes e uma família forte e firme. Quando Brad entrou no comboio a família não estava a desfazer-se, estava apenas a alargar um pouco os nós do avental materno. Ele saía de casa um rapaz desajeitado, tal como eu saíra de casa quando era uma adolescente tímida, e regressaria um homem feito, tal como eu regressara uma mulher adulta, sofisticada até, certa da direcção que queria imprimir à minha vida.

 

Só que nada acontecera dessa maneira. Tal como pedras de um dominó, como se uma força idiota nos tivesse marcado para ser derrubados por um agitar de dedos, tínhamos caído um após outro. Tudo começara com um telegrama amarelo, enviado pelo Comandante de Brad e nas palavras que tinham corrido, todas juntas, perante os meus olhos: Lamento-informá-lo-que-o-seu-filho-Paul-Bradley-Latimer-IV-morreu-na-queda-num-treino-de-helicóptero e depois vinha um nome que não consegui decifrar nem memorizar. A minha primeira ideia, e do pai também, fora: a mãe... não pode saber já. Isto vai matá-la.

 

E matou. Entrou no momento em que aquela ideia estava estampada nos nossos rostos e antes que pudéssemos ter escondido o telegrama. Disse, num murmúrio:

 

Foi o Brad? E antes mesmo de podermos responder ou tentar adiar a resposta ou negar, caíra como uma pedra. Nas urgências do hospital disseram-nos que ela já devia estar morta quando caiu no chão, quando eu e o pai ainda tentávamos levantá-la.

 

Num carro funerário como este, há quatro dias, o pai falou-me praticamente pela primeira vez das suas raízes. Entre outras coisas, disse que era aparentado com meia Massachusetts. Tudo o que eu sabia da sua juventude era que nascera numa cidadezinha da Nova Inglaterra de onde saíra, aos dezasseis anos, por razões que nunca comentava. Eu nem sequer sabia o nome da cidade; mas naquele dia ele dissera, segurando-me na mão:

 

Sara, quando eu morrer, quero ser sepultado aqui, ao lado da tua mãe. Não deixes que ninguém te convença a levar-me para Arkham, não importa o que os membros da minha família possam dizer.

 

A sua família? Não sabia... nunca falou em ninguém, pai.

 

Não, não falei dissera ele. Suponho... bem, adiei sempre a questão, ano após ano, sem te dizer. Imagino que, tal como todas as crianças, te limitaste a partir do princípio de que, entre ti e o Adão, havia umas quantas gerações. Sempre pensei que teríamos muito tempo... de que eu regressaria um dia. Depois de a tia Sara ter morrido a irmã do meu pai, morreu há sete anos tomei a decisão de lá voltar e fazer as pazes com todos eles... ou pelo menos com os que ainda estivessem vivos; provavelmente já morreram todos. Mas decidi dar a todos tempo para esquecerem que eu alguma vez existira. E depois descobri que não tinha tempo.

 

Eu agarrei-me ao nome.

 

Uma tia Sara? Chamo-me Sara por causa dela, pai? Ele sorriu sombriamente.

 

Não, Sara disse mas eu estava nos Fuzileiros, no Japão, mais exactamente, quando tu nasceste. Por isso deixei a tarefa de escolher o teu nome à tua pobre mãe e, de todos os nomes infernais que existem, ela tinha de escolher Sara., não que eu a culpe por isso, evidentemente. Sara era o nome da companheira de quarto dela na faculdade. Mas Sara era... o único nome que eu nunca te daria!

 

Porquê, pai?

 

Fica para outra altura dissera ele e estremecera. Não, isso não. Recebemos uma lição acerca do pouco tempo que todos temos... bem, querida, ponhamos as coisas desta forma. Sempre houve uma Sara Latimer na nossa família e nenhuma delas foi muito feliz ou teve muita sorte. A primeira Sara Latimer foi enforcada, acusada de bruxaria, em Arkham, há quase trezentos anos. E desde então... és supersticiosa, Sara?

 

Acho que não. Não mais do que qualquer pessoa respondi rapidamente e sem pensar. Não me preocupava quando entornava sal, nem me fazia impressão passar por baixo de uma escada, não me arrepiava a ideia de um gato preto e não lia o horóscopo nos jornais... e, quando o fazia, era só para me divertir. Não, não sou supersticiosa.

 

O meu pai sorrira, com tristeza. O seu rosto estava enrugado e parecia que envelhecera vinte anos subitamente durante os últimos quatro dias. Com um pequeno estremecimento de terror a ideia ocorreu-me; já passara dos sessenta anos. E agora ele era tudo o que eu tinha...

 

Também nunca acreditei em superstições, nem na má sorte, ou nas maldições familiares, nem em nada dessas porcarias. Só que... bem, eu nasci em Arkham e cresci a ouvir todo o género de coisas sobre a história da nossa família, histórias sobre a maldição da família, sobretudo histórias sobre as várias Saras Latimer e da forma como todas tinham tido mortes violentas... oh, sim, isso também. Nunca mencionei nada disto à tua mãe e, antes de nasceres, dei-lhe carte blanche para te dar o nome que quisesse. Pensei que uma pequena Janet seria simpático. Mas ela escolheu Sara... apenas uma coincidência, como é evidente. Mas quando li a carta dela, no Quartel General em Okinawa, digo-te, senti arrepios gelados na espinha.

 

Estranho dissera eu, pensativa há tantos nomes no mundo...

 

Bem, Sara é um nome muito popular dissera o pai lentamente, mas quando soube que ela escolhera dar-te o nome de Sara, pareceu-me que era como a história dos raios. Quando eu era rapaz, costumava dizer-se na Nova Inglaterra que um raio nunca cai duas vezes no mesmo sítio. Mas cai. É até mais provável que caia onde já caiu antes. A nossa velha casa em Witch Hill1 Road ficava mesmo no topo da colina e todos os Verões, em quase todas as trovoadas, caía ali um raio, habitualmente no canto noroeste da casa. Depois de ter sido instalada a corrente eléctrica, quando eu tinha mais ou menos dez anos, parecia que todas as tempestades atingiam o transformador no exterior da casa e o meu pai acabou por mandar desligar a electricidade. Voltámos a usar candeeiros a petróleo e velas. Ele dizia que não valia a pena correr o risco

 

Nota: Witch Hill Colina das Bruxas. (N. T.)

 

de a casa se incendiar só para ficar acordado e transformar a noite em dia. Tanto quanto me recordo, a tia Sara ficou satisfeita... de qualquer modo ela também nunca gostara da luz eléctrica.

 

Também eu senti um arrepio gelado na espinha. Um raio atingira já por duas vezes a nossa família. E como poderia sentir-me segura de que não a atingiria novamente?

 

Era por isso que nunca me chamava Sara quando eu era pequena? Fui "Sissy" até ter ido para escola e depois disso era "Sally", até ter ido para o liceu. A mãe chamava-me Sara, mas o pai nunca me chamava assim.

 

É verdade concordou ele, o nome ficava preso na minha garganta, por assim dizer. Eu tinha-me afastado para impedir que a minha filha fosse uma das Latimer... hum... fosse uma Sara Latimer emendou. E parecia que o Destino interferira, sentisse eu o que sentisse a esse respeito.

 

Era uma conversa bastante sombria, pareceu-me. E, no entanto, até mesmo para mim, era melhor do que deixar que os nossos espíritos olhassem para trás... para o cemitério atrás de nós onde a mãe e o Brad jaziam lado a lado. Já seria bastante mau regressarmos sozinhos ao apartamento. Talvez eu conseguisse persuadir o pai a afastar-se durante uns dias, talvez para visitar a família de quem nunca falava. Disse, no tom mais descontraído que consegui:

 

Não me diga que todas as Saras Latimer foram para o diabo... e eu não acredito no diabo. Nem mesmo em Arkham. Afinal de contas, as bruxas não existem nem existiram nos últimos duzentos anos... nem mesmo em Arkham!

 

Não tenho assim tanta certeza disse lugubremente. Seja como for, eram um grupo bastante mau. Há naquela região um grande número de Latimers, Latimers e Marshes, a minha mãe era uma Marsh. És aparentada com metade de Vermont e Rhode Island. Gente respeitável, todos eles, na maioria agricultores, ferreiros, uns quantos clérigos, de vez em quando uma rapariga ia para o Magistério Ciências da Educação, dir-se-ia agora e regressava para ser professora.

 

Gente teimosa, também. Se fosse eu, nunca mais teria chamado Sara a outra rapariga depois de a primeira ter sido enforcada na Witch Hill. Mas a velha Bíblia da família costumava ir espreitá-la quando era miúdo, recuava até ao século XVIII, ou coisa do género tinha uma Sara de duas em duas gerações e, de cada vez que aparecia uma Sara na família, havia problemas.

 

O meu pai já nem estava a falar comigo; o seu olhar era distante e a sua voz adoptara o sotaque rural que ele se esforçara por perder décadas antes. Estava a pensar alto, não estava a contar-me a história da família.

 

Uma, duas das Saras, morreram muito novas bebés de colo. Mas as outras, sempre o mesmo. Sara Jane Latimer: afogada em 1812. Sara Lou Latimer: morreu ao ter um filho, aos dezasseis anos, em 1864. Fugira com um soldado Confederado. Sara Anne Latimer: morta por cães em 1884. E uma outra, Sara Beth, não sei bem o que ela fez, mas apagaram o seu nome da Bíblia da família e tinha de se ser muito malvado para uma coisa dessas acontecer!

 

Não admira que acredite numa maldição de família disse eu. Soa tudo bastante... ominoso. E então a minha tia Sara, a tal de quem não herdei o nome?

 

A expressão dele ficou novamente dura.

 

A tua tia Sara disse lentamente foi uma das piores. Fez a vida do meu pai num inferno, bem como a minha vida e a da minha mãe. Quando lhe disse que me ia embora e que levava a minha mãe comigo, ela disse-me que iria ter um fim mau e sangrento e eu jurei que não poria os pés no Estado em que ela vivia enquanto fosse vivo. E nunca pus. Foi por isso...

 

Os travões do carro funerário guincharam; fui atirada para a frente, agarrando-me desesperadamente ao banco. Depois ouviu-se um estrondo enorme, de esmagamento e de metal a ser despedaçado, um grito horrível algures e o mundo apagou-se. A última coisa que vi foi o rosto do meu pai, com o sangue a escorrer lentamente sobre um olho imóvel; depois também isso desapareceu.

 

Quando recuperei os sentidos nas urgências do hospital, não foi preciso dizerem-me que ele tinha morrido. Durante as horas em que estivera inconsciente, as palavras praticamente as suas últimas palavras, afinal pareciam ter ecoado na minha cabeça.

 

Ela disse-me que iria ter um fim mau e sangrento... Todas as Saras Latimer tiveram uma morte violenta...

 

A cor do sangue, o seu odor, as imagens confusas de violência e morte selvática e das pragas formavam quadros que giravam lentamente no meu espírito.

 

Concluiu-se que não havia nada de errado comigo, sofrera apenas um traumatismo leve e ficara sem uns centímetros de pele na perna, para além de uma série de arranhões e nódoas negras. Mas o meu pai fora cuspido, quando o carro capotara, e atirado para o meio da estrada. Dois ou três carros tinham passado por cima do seu corpo antes de conseguirem parar. Aconselharam-me a não ver o seu corpo e mantiveram os jornais fora do meu alcance no hospital. Mas vi o cabeçalho no jornal de outra pessoa: PROFESSOR UNIVERSITáRIO MORTO A CAMINHO DE CASA NO REGRESSO DO FUNERAL DE DOIS MEMBROS DA FAMÍLIA. Não li o artigo, limitei-me a virar a cabeça para a parede e deixei que o enterrassem num caixão selado. E agora, pela segunda vez na mesma semana, vinha do cemitério e a chuva caía sobre as campas de Paul Bradley Latimer III, Paul Bradley Latimer IV e de Janet Soames Latimer e eu quase desejava que o carro funerário fizesse a mesma proeza que o último em que tinha andado. Que diabos...! O raio cai duas ou três vezes no mesmo local e todas as Saras Latimer tinham tido mortes violentas e no cemitério ainda havia espaço para mais uma maldita campa.

 

A chuva não parava de cair e eu olhava sombriamente para as ruas molhadas por onde íamos passando. A dor violenta que me queimava a cabeça, em parte causada pelo traumatismo de que ainda não recuperara totalmente e em parte pelas lágrimas que não chorara, pulsava sem cessar. O motorista, atrás do volante, conduzia lentamente e com cuidados redobrados; suponho que tinha sido avisado para não permitir que um raio caísse duas vezes no seu local de trabalho. Um pensamento macabro atravessou-me o espírito teria ele receio que pensassem que estava a arranjar novos clientes à força? e, para meu horror, ouvi-me soltar uma risadinha; o motorista mexeu-se no banco e olhou em volta.

 

A menina sente-se bem?

 

Murmurei uma resposta pouco clara e esperei que ele pensasse que tinha sido um soluço ou que eu estava histérica. Raios, porque não havia de me rir? A minha mãe e o meu pai riam-se mais do que qualquer outra pessoa que eu conheça e se estivessem algures e pudessem sentir alguma coisa não que eu tivesse grande esperança que isso acontecesse odiariam ver-me a chorar pelos cantos. Poderiam eles saber ou interessar-se pelo facto de eu chorar ou rir no regresso do seu funeral, ou o grupo do Deus-Está-Morto teria afinal de contas razão e eles não saberiam nem quereriam saber de nada por toda a eternidade?

 

Deprimida, a olhar para a chuva, desejei ter uma qualquer fé categórica. Nem sequer sabia qual fora a crença do meu pai e da minha mãe. Uma vez o meu pai dissera não a mim, mas a um colega na universidade que em miúdo ouvira falar tanto de religião que ficara enjoado, que ficara alérgico. Embora tivesse muito boa vontade relativamente aos seus semelhantes, nunca o ouvira expressar qualquer opinião a favor ou contra sobre a imortalidade ou a vida depois da morte. A minha mãe levara-nos à escola dominical quando eu e o Brad éramos pequenos, mas ela própria quase nunca ia à igreja e parecia não estar muito envolvida com a religião.

 

Não que isso fosse particularmente estranho nos círculos que frequentávamos; a religião era a única coisa a que ninguém prestava muita atenção e ninguém parecia sentir-lhe a falta. Eu discuti algumas vezes essas questões na Escola de Arte; a maioria dos meus amigos crescera sem educação religiosa, tal como eu, e embora não soubéssemos bem aquilo em que acreditávamos, sabíamos no que não acreditávamos.

 

Não conseguia sequer imaginar o meu pai ou a minha mãe, ou Brad, sentados numa nuvem, com um par de asas e a tocar harpa, da mesma forma que não conseguia imaginá-los às voltas num fosso antiquado cheio de enxofre. Os infernos convencionais não pareciam fazer mais sentido, neste século, do que os paraísos convencionais. Quem me dera poder pensar que a minha família continuava a existir, algures, mesmo que não fosse num paraíso convencional; mas não acreditava nem deixava de acreditar. Francamente, não sabia. E agora, quando precisava e queria saber, não havia nada senão um vazio interior.

 

O carro funerário parou em frente de um edifício envelhecido, de tijolo vermelho, onde tínhamos um apartamento de cinco divisões desde que o Brad ficara demasiado grande para dormir num berço no meu quarto, quinze anos antes. O motorista protegeu-me ternamente da chuva com um guarda-chuva até eu ter entrado no átrio e, quando tirei a chave, abriu-me a porta.

 

Vai ficar bem, menina? Não vai ficar sozinha? Escute, não tem uma amiga a quem possa telefonar para lhe vir fazer companhia?

 

Tranquilizei-o e fiquei a vê-lo entrar no carro e desaparecer. Pobre homem, o trabalho dele era muito triste. Premi o botão do elevador e saí, usei a chave da porta e entrei, preparando-me para aguentar a noite difícil que tinha pela minha frente. Não, não havia ninguém a quem pudesse telefonar para vir fazer-me companhia. Os meus amigos da escola secundária e da preparatória já se tinham casado ou mudado. Os amigos que fizera nos últimos três anos estavam a cinco mil quilómetros de distância, na Califórnia, e nenhum deles era suficientemente íntimo para fazer uma viagem tão grande de propósito... eu não escrevera a ninguém desde que regressara ao Leste. Nem sequer a Roderick, pois desta vez teria que casar com ele, ou então arranjar uma boa razão para não me casar com ele.

 

As luzes que eu e o pai tínhamos deixado acesas quando saíramos para ir ao funeral da mãe continuavam acesas; ele dissera:

 

Não vamos querer regressar para uma casa às escuras. Engoli novamente em seco e fui à cozinha para fazer uma chávena de chá. Ali as coisas estavam difíceis. A bata azul e branca da mãe, ela detestava aventais, continuava pendurada no cabide ao lado do frigorífico. Nos últimos meses eu fizera a maior parte dos trabalhos domésticos, mas o médico avisara-me de que ela detestava sentir-se inútil e eu deixava que fizesse coisas leves, que não lhe cansassem o coração. As pegas de crochet estavam penduradas no fogão, presas pelos pequenos ímans que ela cosia no seu interior.

 

Quatro Latimers e eu era a única que restava. Sara Latimer. Nenhuma delas teve muita sorte. Porque teria o meu pai saído da sua casa? Agora nunca o saberia. Ele nem chegara a terminar a história sobre a tia Sara.

 

Enchi a chaleira de cobre e deitei folhas de chá dentro do bule mas, quando a chaleira apitou, apercebi-me de que não me apetecia chá. O chá era um ritual demasiado familiar os meus pais tinham ambos detestado beber café, por isso a panaceia da família, tal como a canja de galinha que se tornara numa anedota sobre as mães judias, era uma grande caneca de chá quente, com muito açúcar e, quando eu e o Brad éramos pequenos, com muito leite.

 

Sempre que, em criança, chumbara um exame, chegara a casa molhada e fria depois de ter estado a patinar, ou deprimida por um dia cansativo, sempre que nos reuníamos na cozinha antes de ir para a cama, o grande e velho bule da família fazia a sua aparição e a mãe dizia, em tons calmantes:

 

Pronto, pronto, vou fazer-te uma boa chávena de chá quente e vais ver como te sentes melhor. Dei por mim à beira de mais um ataque de riso histérico. Não podia haver uma vida depois da morte, ou a minha mãe, onde quer que estivesse, ao ouvir-me chorar murmuraria, fantasmagoricamente:

 

Pronto, pronto... está tudo bem, Sara, vais sentir-te melhor se tomares uma boa chávena de chá...

 

Resolutamente, despejei a água a ferver pelo cano, fui para a sala, abri o armário e tirei uma garrafa de uísque. Nunca fora aberta; o pai guardara-a para as visitas, pois ele preferia uma chávena de chá ou sumo de laranja. Deitei uma dose generosa na chávena de chá que ainda tinha na mão e bebi-a de um só trago. A bebida desceu, queimou e depois, estranhamente, aqueceu-me e acalmou-me. Servi mais uma dose.

 

A campainha tocou. Dei um salto... quem poderia ter saído para a rua a uma hora daquelas e com aquela chuva? Com a chávena e a garrafa na mão fui até à porta e abri-a. Vá lá, raio, cai três vezes no mesmo local, que raio, podia muito bem ser o estrangulador de Boston.

 

O rosto pacífico e levemente reprovador do Sr. Patterson, o proprietário do edifício dos cinco pisos e dez apartamentos virou-se da chávena na minha mão esquerda para a garrafa de uísque na minha mão direita.

 

Hum... menina Latimer, se tiver um minuto...

 

Conhece-me há quinze anos, pode continuar a chamar-me Sara disse eu descuidadamente. Como pode ver, estou a tomar uma bebida. Quer fazer-me companhia?

 

Ele entrou. Continuava a lançar olhares dissimulados à garrafa de uísque. Pensaria ele que eu era uma alcoólica a afogar as mágoas? Mas quando repeti a oferta abanou a cabeça.

 

Oh, não. Não, obrigado. Não, na verdade é demasiado cedo para mim. Escute, desculpe incomodá-la num momento destes...

 

Está na altura de pagar a renda? Esqueci-me do dia do mês em que estamos. Na verdade, esqueci-me do mês em que estamos.

 

Oh, não. Nada disso. Eu não faria... quer dizer, não, mas suponho... sabe que o contrato de arrendamento do apartamento termina no fim deste mês? Imagino que ainda não tenha tido tempo para fazer planos, mas... vai querer renovar o contrato? Quero dizer, uma jovem, sozinha, quero dizer, uma mulher solteira...

 

Tive pena do patife e da sua falta de tacto.

 

Tudo bem disse, como se tivesse sido eu a falar no assunto no momento errado. Não, não vou querer ficar aqui sozinha. Sou capaz de voltar para a Costa Oeste, só regressei para cuidar da minha mãe, sabe, quando ela teve o primeiro ataque. De qualquer forma acho que não ia poder pagar a renda sozinha.

 

Bem, essa é a outra questão disse ele. Sabe que este apartamento era de renda limitada de acordo com a lei antiga, mas agora essas regras foram revogadas e eu estou a pensar em algumas... mudanças nas rendas. Olhe, talvez seja melhor discutirmos isto noutra altura...

 

Não. Despejei a chávena de um trago e acabei com a segunda dose de uísque. Já me sentia mais quente. Há aqui demasiados fantasmas. Ele pareceu ficar sobressaltado, mas para que havia de lhe explicar? O velho roupão do pai pendurado na porta do roupeiro, a bata azul e branca da mãe na cozinha, o quarto do Brad ainda cheio dos aviões de brincar da sua adolescência. Não podia de maneira nenhuma passar os meses seguintes a viver naquela companhia. Quando quer que eu saia?

 

Não há pressa. Oh, não há pressa. Ele foi a murmurar e a desculpar-se até à porta, parando no patamar. Trouxe-lhe o correio, Sara. Vou deixá-lo aqui.

 

Quando ele finalmente saiu mais a sua atrapalhação, peguei no monte de envelopes. O correio de uma semana. Um envelope de janela da companhia dos telefones. E ainda havia mais contas. Não, não podia ficar a morar ali. Fui para o meu quarto, ali havia menos recordações do que no resto da casa; se fechasse a porta, talvez as coisas parecessem um pouco mais normais. Comecei a servir uma terceira bebida e depois, resolutamente, tapei a garrafa. Não havia nenhuma razão para me embebedar. E também não fecharia a porta fazendo de conta que a mãe, o pai e o Brad estavam ainda ali. Isso seria uma forma rápida de ir parar ao manicómio local.

 

A um canto do quarto estava montado um cavalete com uma aguarela por acabar. Imediatamente antes de ter regressado para tratar da mãe, tinha conseguido o meu segundo contrato para ilustrar um livro infantil o primeiro dera-me alguma reputação quando conseguira um prémio pequeno mas conceituado e as ilustrações não estavam sequer meio acabadas. Tinha feito tudo nas calmas, uma vez que o editor não tinha muita pressa e eu não precisava muito do dinheiro; agora precisava. O meu pai ganhara um bom ordenado, mas não tinha seguro de vida, apenas um pequeno fundo para as despesas com o funeral. A doença prolongada da minha mãe tinha consumido praticamente todas as suas modestas poupanças. Depois de pagas as despesas funerárias e as contas do hospital, calculei que não devia ter mais de duzentos dólares no banco. Esse dinheiro levar-me-ia de volta à Costa Oeste, mas não seria o suficiente para viver até acabar o livro. Conseguiria terminá-lo e receber antes do contrato daquela casa chegar ao fim? E quantas mais contas por pagar chegariam para engolir o pouco que restava?

 

Abri a conta do telefone e franzi o sobrolho ao ver o total.

 

Por inércia, continuei a abrir a pilha de correio. Cartas manuscritas, na sua maioria dirigidas ao meu pai; provavelmente condolências de pessoas conhecidas da minha mãe. Uma conta da Con Edison e outra da Macy’s.

 

Uma carta dirigida a mim com carimbo de Berkeley. Do Roderick, pensei e pu-la de lado. Não permitiria que o meu estado de espírito desgosto e três bebidas num estômago vazio, uma chuva forte a bater na janela me levassem a mentir a mim própria. Nunca amara Roderick, não o amava agora; o nosso caso efémero em Berkeley devera-se em parte à química e à proximidade e em parte à minha curiosidade sexual. Durara quase quatro meses, fora divertido mas, mesmo antes do ataque cardíaco da mãe me ter levado de regresso a Nova Iorque, já estava a dar as últimas. Tínhamos começado a mentir a nós próprios e um ao outro. Eu dera por mim frequentemente exasperada pelos seus planos grandiosos de ir estudar um ano para a Sorbonne e com a sua atitude paternalista em relação ao meu trabalho.

 

És uma boa ilustradora de pequenos livros, mas não me parece que conseguisses ter sucesso no mundo da verdadeira Arte. Até mesmo o sexo não chegara para aplacar as discussões repentinas e encarniçadas; por duas ou três vezes dei por mim completamente entediada, exigindo que ele me levasse para a cama, pois essa parecia ser uma saída fácil para uma noite enfadonha ou uma boa maneira de evitar uma briga interminável sobre uma qualquer futilidade. Quando o nosso caso começara, ele chamara-me bruxa... uma bruxa de olhos verdes. Todas as Saras Latimer tinham sido bruxas... e, fosse como fosse, antes de termos acabado tudo, ele já começara a chamar-me cabra em vez de bruxa. Teriam as outras Saras Latimer sido cabras também? Bem, uma delas morrera de parto apesar de não haver registo de qualquer casamento e uma outra tivera o seu nome apagado da Bíblia da família, por isso, como a minha mãe costumava dizer, "não deviam ter sido melhores do que deviam". Eu nunca falara de Roderick à mãe. Até mesmo nos dias de hoje as raparigas não costumam falar às mães dos homens com quem dormem. É uma das facetas negativas da liberdade sexual. Ao menos, quando se é casada com o homem, pode-se ser honesta com os pais: eles sabem que afilha dorme com ele e a coisa é dada como adquirida, o que é capaz de ser bastante agradável.

 

Oh, que se lixe o Roderick Hartmann! Atirei a carta por abrir para o cesto dos papéis.

 

Quando ele descobrira que eu ia sair de Berkeley, a sua paixão reacendera-se e pedira-me em casamento, provavelmente por pensar, erradamente, que eu me afastava para ganhar tempo... ou, como se dizia em Berkeley, para ter "espaço" para ultrapassar o desgosto amoroso. Eu não lhe contara a verdade e senti-me lisonjeada quando ele chorou no aeroporto ao acompanhar-me ao avião. Sara Latimer, cabra.

 

E agora estava sozinha e apetecia-me deitar-me nos seus braços. (Ou noutros braços quaisquer. Sê honesta, Sara. Numa noite como esta irias para a cama com qualquer um minimamente agradável e decente só para esquecer a chuva que cai sobre aquelas campas. Não te metas outra vez numa situação igual à que arranjaste com o Roderick!)

 

Talvez devesse telefonar ao Sr. Patterson para o convidar novamente a tomar um copo. Pára com isso Sara! Admoestei-me a mim própria. Não és nem uma bruxa nem uma cabra... ainda!

 

Por baixo da carta do Roderick estava um envelope comprido de formato oficial. O remetente era de uma igreja. Seria alguma coisa relacionada com o funeral? Não; o carimbo do correio era, imagine-se, de Arkham, Massachusetts. Condolências de um parente distante? Afinal de contas a tragédia da nossa família viera nas manchetes e os jornais de Nova Iorque chegavam à Nova Inglaterra. (E que dissera o pai naquele dia? "Costumávamos ser aparentados com meia Nova Inglaterra.")

 

Não, era dirigida a Paul Bradley Latimer III, o meu pai.

 

Ligeiramente agradada pela distracção, abri a carta. Estava datada de há pouco mais de uma semana e dizia o seguinte:

 

Caro Senhor:

A pesquisa levada a cabo pelos nossos consultores legais determinou ser o senhor o único proprietário (e o único herdeiro legal) da casa de Witch Hill Road, anteriormente propriedade da menina Sara Latimer que era, segundo creio, sua tia paterna e que morreu solteira há sete anos. A casa está vazia desde essa altura e, embora tenhamos tentado manter pelo menos a estrutura em bom estado, poderá ser considerada em mau estado pelos padrões citadinos, embora nos seus últimos tempos de vida a menina Latimer tenha mandado instalar canalização moderna incorrendo para tal em despesas consideráveis.

Após a morte da menina Latimer, manifestei interesse em comprar a casa enquanto representante da sociedade histórica da nossa igreja. Como sabe, a casa foi construída em 1645 e é uma das casas mais antigas a não ter sofrido renovações profundas nesta parte do Estado, mantendo ainda as fundações originais. Contudo, fui informado que antes de ser completada a pesquisa legal que garantisse não existirem mais herdeiros, a casa e respectivas terras não poderiam ser vendidas.

Encontro-me agora em posição de lhe fazer uma oferta pela casa e pela propriedade que a circunda. Como presumo que não esteja interessado em viver aqui, agradecia que me respondesse tão breve quanto possível para nos podermos encontrar e discutir a transferência imediata do título de propriedade.

Atentamente,

Matthew Hay,

Pastor

Igreja do Antigo Rito

 

Li a carta duas vezes quase incapaz de perceber o que lia. No preciso instante em que pensava estar sem tostão e sem quaisquer recursos próprios, descobria subitamente que era proprietária de uma casa, ainda que fosse uma casa como era a frase do Sr. Hay? "em mau estado pelos padrões citadinos". Mas, afinal de contas, o que sabia um pastor rural dos padrões citadinos? Além disso, a casa tinha um comprador interessado, pronto a fazer-me uma proposta concreta em nome da sociedade histórica. Nunca tinha ouvido falar de uma Igreja com uma sociedade histórica. E, já que pensava nisso, a Igreja do Antigo Rito também era novidade para mim. Pensei se seria um movimento fundamentalista e revivalista ou se seria uma daquelas religiões que não passavam de seitas malucas, como tantas outras que tinham surgido em Berkeley e por todo lado nos anos 60 e cujo principal princípio era o pacifismo e cuja principal raison d’être era escapar ao recrutamento militar.

 

O meu pai, que hasteara a bandeira americana em Guam depois de uma batalha sangrenta contra os esquadrões suicidas de Hirohito, daria voltas no caixão oh, Deus, a facilidade com que usamos estas frases feitas à ideia de uma casa da família cair em tais mãos.

 

Estranho, nunca ouvira falar da tia Sara do meu pai até ao dia, até à hora da sua morte e agora era dona da casa dela. A determinação crescia dentro de mim. Tinha-me sido roubada, por um raio maligno do Destino, toda a família e toda a segurança que possuía. Não teria, literalmente, a partir do mês seguinte, um tecto sobre a cabeça.

 

Por isso, iria para Arkham. Poderia viver na casa e terminar lá o meu livro. O local estava em mau estado muito bem, se estivesse em muito mau estado poderia vendê-lo, receber imediatamente algum dinheiro e ir para outro sítio qualquer para acabar o livro. Mas vivera em alojamentos para estudantes em Berkeley, para já não falar no estúdio do Roderick que ele mantinha, ou antes, não mantinha, ao estilo de um refúgio hippie tal como ele o concebia. Podia viver em condições primitivas... o que é que o pai dissera? A tia Sara não gostava de luzes eléctricas? Talvez também não gostasse de canalizações. Também já ouvira dizer que as pessoas do campo não gostavam da ideia de ter uma casa de banho (pensando nas antigas retretes) dentro de casa ao pé da cozinha. Oh, bem, também seria capaz de aguentar isso por uns meses.

 

Era um sítio onde poderia ficar. E talvez, se existia uma sociedade histórica, o Reverendo Sr. Hay me pudesse dizer algumas coisas sobre a minha família... terminar a história que fora tão cruelmente interrompida pela morte do meu pai.

 

Não reconheci, na altura, a razão da minha súbita ansiedade por voltar a ter um sítio meu, raízes e história de família. Sabia apenas que, subitamente, tinha um local para onde ir; depois de não ter tido planos, nem casa, nem futuro, podia voltar a fazer planos.

 

Fui até à janela, peguei cuidadosamente na aguarela por acabar felizmente estava seca e comecei a desmontar o cavalete, preparando-me para o dobrar e empacotar logo pela manhã.

 

A Herança Assombrada

A viagem para Arkham era mais complexa do que eu poderia ter imaginado. Vivera em Nova Iorque ou Berkeley durante toda a vida e acostumara-me a entrar num avião ou comboio para qualquer destino do universo conhecido, com toda a rapidez.

 

Desta vez não foi assim. Para chegar a Arkham tive de apanhar um comboio para Providence, Rhode Island, aí apanhar um autocarro para Wareham, Massachusetts e depois esperar por um pequeno autocarro suburbano que ziguezagueava ao longo da costa de Massachusetts em direcção ao norte, parando em cada lugarejo e local mais largo da estrada até que, finalmente, ao fim do dia, me despejou em Arkham... e dali, uma viagem de táxi de, provavelmente, três ou quatro quilómetros até Witch Hill.

 

Teria preferido chegar ao início da tarde, mas a empresa de camionagem informou-me, com indiferença, que o autocarro que chegava às seis da tarde era o único que existia, insinuando que, caso isso não me agradasse, teria que optar por uma alternativa melhor... e eu não sabia qual seria.

 

Dado que a única outra possibilidade teria sido alugar um carro e, ao informar-me, percebi imediatamente que isso esgotaria rapidamente os meus magros recursos levando-me à rotura financeira, apanhei o comboio para Providence e o autocarro para Massachusetts, onde comprei o bilhete para Arkham e me informei de como poderia ir dali até à aldeia de Witch Hill. Não sabiam e, depreendi, nem estavam interessados em saber; não ficava na rota deles.

 

Quando insisti, foram buscar um mapa das estradas locais e, após um estudo razoavelmente cuidadoso, informaram-me que esse sítio não existia.

 

Encolhi os ombros e carreguei as minhas duas malas e o estojo com o cavalete e as telas para o autocarro que ia para Arkham. Lembrava-me de ter lido, em tempos, que havia mais de dez mil vilas e aldeias nos Estados Unidos que não apareciam em qualquer mapa. Obviamente, a casa existia algures... tinha uma oferta de compra enfiada na carteira. Em Arkham certamente que alguém saberia onde ficava a aldeia. Se tudo o resto falhasse, poderia passar a noite no hotel e consultar os Correios na manhã seguinte. Se a minha tia-avó Sara tivesse recebido cartas e nos nossos tempos toda a gente as recebia, nem que fosse o formulário anual do IRS de um Governo indiferente a tudo o resto os Correios saberiam onde tinham sido entregues.

 

O autocarro de Arkham revelava, através da tinta azul e branca enferrujada e de um aspecto de decrepitude generalizado, que até mesmo Arkham estava longe de ser um centro de civilização. Apenas metade dos assentos de cabedal puído estavam ocupados por pessoas mal vestidas com ar de camponeses que olharam com uma curiosidade evidente para as minhas malas de tela vermelhas brilhantes e para os meus ténis. As poucas mulheres que via pelas janelas da camioneta eram idosas, com vestidos floridos bem por baixo do joelho e camisolas largas e disformes e algumas tinham um aspecto estrangeiro, com saias pretas gastas e casacos escuros. Passados poucos quilómetros, a camioneta saiu da estrada alcatroada e tomou um caminho tortuoso por estradas estreitas de terra batida que serpenteavam entre colinas e encostas arborizadas, passando por quintas isoladas e com um aspecto abandonado e por aldeias em ruína. De vinte em vinte minutos o autocarro detinha-se num cruzamento, com um monte de caixas do correio, ou parava por breves instantes em frente de uma velha igreja com torre e campanário, com a tinta cinzenta ou branca a descascar ou então em frente a uma pequena loja rural que tinha de tudo na montra, desde ração para galinhas a candeeiros de querosene. Parou também junto a um par de bombas de gasolina, os seus reclamos em cores brilhantes e familiares Exxon, Gulf, Shell o único elo visível de ligação à metrópole que deixara para trás. Largava ou apanhava alguns passageiros aqui e ali, na sua maioria idosos ou crianças em idade escolar. A maior parte deles parecia ser conhecida do motorista que conversava com eles em voz baixa e lhes perguntava por membros ausentes da família.

 

Já o dia ia avançado, depois de horas a serpentear pelas estradas e pelo meio dos montes, a estrada de terra batida deu lugar a uma estrada estreita e mal pavimentada que por sua vez se transformou numa estrada calcetada e a camioneta começou a trepar as estradas íngremes das colinas de Arkham. Passou por subúrbios com mansões ao estilo da Nova Inglaterra, agora transformadas em pensões, passou os relvados espaçosos e os edifícios maciços de pedra e tijolo cobertos de hera de uma universidade vi um sinal que me informou ser a Universidade Miskatonic e apercebi-me de que nunca ouvira falar em tal sítio.

 

Era óbvio que nem os seus feitos académicos nem a sua equipa de futebol os tinham posto no mapa. Fosse como fosse, parecia improvável que professores da Era Espacial com uma reputação que não fosse apenas local, pudessem ser atraídos para ali quando havia inúmeras faculdades grandes, modernas e acessíveis que atraíam os melhores estudantes mesmo que fossem robustos nativos da Nova Inglaterra para Boston, onde estavam sediadas Harvard e o M.I.T., ou para Providence e a sua Brown University. Parti do princípio que a Miskatonic seria uma daquelas pequenas e baratas faculdades locais que transformava os ambiciosos filhos e filhas dos agricultores e lojistas locais em professores, bibliotecários, agricultores com formação e contabilistas certificados.

 

Ainda assim, era uma universidade antiga e pitoresca, com a sua torre sineira e uma igreja de pedra com paredes altas e dei por mim a pensar se valeria a pena investigar o Departamento de Arte. Era, pelo menos, acessível para quem ali vivia e não me apetecia ficar completamente isolada de todo o tipo de vida intelectual enquanto ali estivesse, nem mesmo durante três meses.

 

O Sol estava a pôr-se, apesar do longo dia de fim da Primavera, quando desembarquei na estação das camionetas em Arkham. Depois de um jantar leve mas surpreendentemente bom num pequeno restaurante ali perto empada de galinha muito mais fresca do que as empadas congeladas que costumava comprar na cidade fiz umas perguntas e descobri que se podia chegar à aldeia de Witch Hill (a população, disse-me uma empregada da estação de camionagem, era de 75 pessoas) numa camioneta que, teoricamente, fazia ligação com aquela em que eu viera, mas que estava prestes a partir e chegaria aos Correios de Witch Hill em quarenta e cinco minutos. E qual era a distância? Oh, apenas dezoito quilómetros, aproximadamente, mas as estradas nos montes eram bastante más. E conseguiria arranjar um táxi quando lá chegasse para me levar a casa?

 

Bem, ela não sabia informar-me sobre os táxis, mas se a casa ficava na aldeia, não levaria mais de cinco minutos a alcançá-la a pé.

 

Sabe, é uma aldeia muito pequena informou-me. Nessa altura já eu o calculava e, se era pequena pelos padrões de Arkham, então deveria ser muito pequena pelos padrões de Nova Iorque e foi com alguma apreensão que entrei na camioneta. Na verdade estava a pensar que o melhor seria passar a noite em Arkham e tentar arranjar um táxi ou um carro de aluguer à luz do dia. Mas tinha entrado no comboio em New Haven às dez horas dessa manhã e estava dorida e cansada da longa viagem. Queria que ela chegasse ao fim!

 

A camioneta em que entrei fez com que a de Arkham parecesse nova e aerodinâmica; já vira outras semelhantes em museus ou em velhos filmes mudos da sessão da noite.

 

Sobre a porta uma tabuleta pintada à mão anunciava ARKHAM-INNSMOUTH. Para além de mim havia apenas mais dois passageiros, um rapaz grosseiro cujo olhar ausente sugeria que o equivalente local dos Jukes e Kallikaks faziam parte da sua ascendência (para meu grande alívio desembarcou na primeira paragem) e um homem idoso e muito gordo que transportava duas armadilhas para lagostas debaixo do braço e cujas roupas exalavam um intenso ainda que saudável cheiro a peixe.

 

Depois de também ele ter saído num cruzamento solitário onde um caminho serpenteante conduzia a um aglomerado de barracas cinzentas e se via o brilho do mar distante, o motorista, um homem de idade com ar paternal, perguntou-me:

 

Para onde vai, menina? Respondi-lhe e ele disse:

 

Está alguém à sua espera, menina? Witch Hill fica a cerca de um quilómetro da aldeia, fica no meio do campo. Não vive lá, pois não? Eu conheço quase toda a gente que vive ao longo desta estrada.

 

Passei para o lugar da frente para poder conversar com ele.

 

Nunca aqui estive disse. A minha família viveu aqui durante gerações, embora creia que já morreram todos. Conhece-os? O meu nome é Latimer.

 

Latimer, Latimer... não, nunca conheci ninguém dessa família disse o motorista. Só há coisa de seis meses é que faço este percurso. Já ouvi as pessoas falarem da velha casa Latimer que fica algures na Witch Hill Road, mas creio que havia só uma velhota que lá viveu sozinha há anos. Já morreu há muito tempo. Não podem ser esses os seus parentes, menina!

 

Receio bem que sejam. Acabei de herdar a casa. Ele virou-se no assento e pareceu chocado.

 

Escute, menina, não pode arrastar a bagagem mais de um quilómetro pela estrada fora e às escuras. A paragem de Witch Hill Road fica ao pé de uma caixa do correio! O melhor é ir até ao fim do percurso em Madison Corners e tentar arranjar alguém que a leve lá.

 

E imagine que não arranjo? Aí fico muito mais longe de casa, não é?

 

Pode esperar na loja até eu voltar de Innsmouth e eu próprio levo-a lá disse ele. Chego a Innsmouth cerca das nove e meia e regresso por aqui a caminho de Arkham às onze. Ou pode regressar a Arkham e voltar cá com a luz do dia. Mas acho que deve haver lá alguém que a leve. O Jeb Meyers passa o tempo na loja e tem uma carrinha, ganha uns trocos de vez em quando a levar as pessoas a casa quando chove ou quando têm bagagem pesada e é quase certo que ele vai lá estar à espera do autocarro.

 

Enquanto falava, abrandou para parar junto a um semáforo solitário e que piscava como um olho brilhante junto a um pequeno aglomerado de edifícios; uma loja rural, um pequeno posto dos correios, uma bomba de gasolina e mais dois ou três edifícios.

 

Madison Corners, menina Latimer e ali está a carrinha do Jeb. Deixe-me ajudá-la com essa mala. Bem, espero que encontre a sua casa e lembre-se de que passo duas vezes por dia em Witch Hill no percurso de Arkham: às dez e meia da manhã e às onze da noite. Sempre que queira ir a Arkham pode apanhar lá a camioneta, não precisa de vir até Corners.

 

E imagine que quero ir a Innsmouth? A que horas passa a caminho de Innsmouth? perguntei.

 

Ele franziu o sobrolho e abanou a cabeça bondosamente.

 

Não vai querer ir a Innsmouth, menina. Ninguém quer ir a Innsmouth.

 

Apeei-me e fiquei a ver a camioneta vazia a afastar-se. Senti-me abandonada, como se tivesse perdido o meu último contacto com uma cara amigável; mas depois apercebi-me de que já estava a escurecer o motorista já ligara os faróis da camioneta e um barulho ominoso nos céus anunciava a chegada da chuva e uma das súbitas e violentas tempestades costeiras. Caminhei com firmeza na direcção da carrinha desengonçada que estava estacionada à porta da loja.

 

O senhor é o Jeb Meyers? perguntei. O motorista da camioneta disse-me que me poderia levar a Witch Hill Road.

 

O velhote sentado atrás do volante abanou lentamente a cabeça cinzenta num gesto afirmativo.

 

Era um indivíduo pouco atraente, com feições grosseiras e os olhos meio escondidos atrás de uns óculos de armações metálicas, a barba espessa por fazer, mas disse a mim própria que não deveria esperar o aspecto bem cuidado da Quinta Avenida em Madison Corners. Disse, no sotaque rude de Nova Inglaterra a que já me começava a habituar:

 

Sim, o meu nome é Meyers. Acho que lhe posso dar uma boleia. Custa-lhe um dólar e cinquenta cêntimos se tiver um baú para carregar. Para onde quer ir?

 

Não me pareceu muito cordial, mas comparado com o motorista de táxi médio de Brooklyn era quase efusivo.

 

Não tenho bem a certeza de onde fica a casa respondi-lhe. Se calhar conhece-a. Não tenho o endereço certo, mas fica na Witch Hill Road e o nome da família é Latimer.

 

A menina não quer ir para aí disse ele. Essa gente já morreu toda.

 

Comecei a pensar se o homem, como o meu pai costumava dizer, não jogava com o baralho todo.

 

Eu sei disso respondi. Agora a casa é minha. O meu nome é Sara Latimer.

 

Pela primeira vez ergueu os olhos e olhou verdadeiramente para mim. Ficou de boca aberta, com um olhar espantado. Piscou os olhos e vi a sua enorme maçã de adão subir e descer repetidamente.

 

Então voltou disse ele. Voltou tal como disseram que voltaria. Não está morta, menina?

 

Oh Deus! Que pergunta tão estúpida. Pensei responder Sim, claro que estou, mas esqueceram-se de me enterrar, mas a piada de mau gosto ficou-me presa na garganta. Para além disso, se ele fosse tão estúpido como parecia, ainda ia acreditar em mim.

 

Mas o que se passa consigo? É claro que não estou morta... nunca estive, tanto quanto sei disse bruscamente. Suponho que sabe onde fica a casa Latimer?

 

Sim. Sim. Sabe bem que sim, minha senhora... Menina Sara. Já se esqueceu das vezes que lá fui levar-lhe as mercearias e tudo isso? Sem ofensa, menina. Virou a cabeça para olhar para mim enquanto girava o puxador da porta e içava de dentro do carro o corpo vestido com um fato-macaco. Nunca tirou os olhos de mim. O que seria que se passava com o homem? Nunca teria visto as pernas de uma mulher? Talvez esta parte do mundo não fosse a mais indicada para vestir calças de ganga. Uma vez que a minha tia-avó Sara tinha, no mínimo, mais de sessenta anos quando morreu não, provavelmente teria oitenta; o meu pai tinha sessenta e dois e ela fizera parte da geração do pai dele dificilmente ele me poderia confundir com ela, morta ou viva!

 

Ou estaria o homem senil e a lembrar-se dela com a minha idade? Partilharíamos parecenças de família? Fosse como fosse, parecia que, pelo menos, o problema do meu transporte estava resolvido e se ele também entregava mercearias ao domicílio, esse era mais um problema que ficava arrumado.

 

A pequena mercearia ainda estava iluminada e uns quantos agricultores encostavam-se ao balcão. Disse:

 

Quero ir à loja para comprar algumas coisas para amanhã. Não se importa de meter as minhas bagagens no carro e esperar um ou dois minutos?

 

Claro disse ele conciliador, mas aqui ninguém costuma roubar nada. A maior parte das pessoas nem sequer tem chave para fechar a porta de casa.

 

Não era uma ideia que, naquele momento, ajudasse à minha paz de espírito, mas não liguei e entrei na loja. Esta era de um tipo que eu pensava ter desaparecido da face da terra, talvez fosse um antepassado distante das lojas da Califórnia onde se pode comprar tudo, desde pneus para o carro até caviar. Na pequena loja rural, para além das habituais mercearias empacotadas ou em lata, havia pás para a neve, coleiras para cão, abajures, calças de ganga para crianças, peúgas e roupa interior, linha para renda, fio de pesca, velas de ignição, sandálias, botijas de água quente, querosene, bem como uma série de outros artigos demasiado estranhos para enumerar ou identificar. Comprei um pão, manteiga, uma dúzia de ovos, bacon, uma embalagem de chá em saquinhos, dois pacotes de leite e, lembrando-me subitamente dos preconceitos da tia Sara relativamente à luz eléctrica, uma lanterna.

 

É melhor comprar pilhas para a lanterna também observou um rapaz magro e simpático que estava junto ao balcão quando agarrei na lanterna.

 

Corei e agarrei num monte de pilhas.

 

Obrigada. Não sei onde tenho a cabeça! Não tenho luz eléctrica em casa e se acordar a meio da noite...

 

Bom Deus disse ele, o melhor é levar também querosene. Com certeza que tem candeeiros, mas nunca se pode ter a certeza de haver combustível para eles!

 

Nunca vi um candeeiro de querosene! confessei.

 

Não disse ele pondo-se ao meu lado, não tem ar de ser um produto local. Baixou os olhos e sorriu e senti um pequeno choque eléctrico e uma onda de calor.

 

Era a primeira vez desde as mortes súbitas e devastadoras, que ouvia uma voz humana dirigir-se a mim directamente e via um sorriso amigável e íntimo. No meu estado de espírito defensivo e isolado foi como um raio de sol. Quase suspirei de alívio e estendi a mão.

 

Sou nova na vizinhança disse. A minha tia-avó morreu há uns anos atrás e vim passar o Verão na casa da família. Chamo-me Sara Latimer.

 

Atrás de mim, no balcão onde as minhas modestas compras estavam a ser embaladas, ouvi alguém suster ruidosamente a respiração. Não lhe dei importância; os meus olhos estavam fixos no rapaz. Ele sorriu novamente, espontânea e calorosamente. Disse:

 

Claro; conheço a casa. É uma espécie de marco, segundo creio. Mas tem estado fechada há anos. Chamo-me Brian Standish. Deu-me um aperto de mão rápido. Tinha umas mãos grandes, com os dedos macios e as unhas bem tratadas, mas pareciam fortes e competentes.

 

Estou aqui para ajudar o meu... acho que teria que lhe chamar primo... na verdade é um daqueles parentes distantes da Nova Inglaterra cujo grau de parentesco é difícil de definir. É o marido da enteada da irmã da minha tia-avó, ou coisa parecida... que tem um consultório. Acabei o internato no Johns Hopkins e pensei que gostaria de passar o Verão no campo antes de voltar para o hospital. Claro, pensei, aquelas belas mãos tinham de ser ou de um artista ou de um médico.

 

Brian Standish tinha cabelo castanho e encaracolado que lhe descia em patilhas pelas faces bronzeadas e os seus olhos eram castanhos e brilhantes.

 

De onde é? De Nova Iorque? Oh, meu Deus, não pode entrar naquela velha casa de quinta às escuras e sozinha sem saber sequer como se acende um candeeiro de querosene!

 

Parece-me que não tenho escolha disse eu. Qual é a alternativa? Não vi nenhum hotel nas redondezas, mesmo que tivesse dinheiro para isso. E se voltar para Arkham, terei sempre de regressar amanhã.

 

Ele franziu o sobrolho.

 

Se estivesse em minha casa levava-a comigo e pedia à minha mãe que lhe desse cama por uma noite disse ele. Ainda que aqui em casa... se não tivesse que me ralar com mais nada, tenho um belo sofá e podia dormir na minha cama. Mas receio que o primo James não compreendesse. Isto, no fim de contas, não é Nova Iorque.

 

Começava a perceber isso mesmo. Passados instantes disse-lhe:

 

Bem, sim, foi o que me pareceu. É muito simpático da sua parte, mas...

 

A alternativa, suponho continuou ele como se não me tivesse ouvido, é entrar no meu carro e eu levá-la lá, acender-lhe os candeeiros e certificar-me de que fica bem.

 

Hesitei apenas momentaneamente. Não sabia que ainda se faziam homens daqueles.

 

Muito obrigada, nem sabe como lhe fico agradecida, Dr. Standish.

 

Brian...

 

Brian, então. As minhas malas estão lá fora...

 

Sim. Via-a a falar com o velho Jeb. Ele é uma das personagens locais... aconselho-a a ouvir o que ele diz não com um mas com os dois pés atrás. Oh, acho que estaria bastante segura com o velhote, mas ele não é muito esperto e não pensaria duas vezes antes de a deixar desembaraçar-se sozinha como qualquer camponesa faria.

 

Brian Standish esperou que eu pagasse as mercearias e a lata de querosene, enfiou tudo debaixo do braço comprido e dirigiu-se à carrinha que me aguardava.

 

Eu levo a menina Latimer a casa, Jeb disse. Passe-me as bagagens dela, se não se importa.

 

Jeb pareceu ficar amuado, obviamente desapontado por perder o dinheiro do trabalho; Brian estendeu-lhe uma nota de um dólar, o que o fez ficar com um ar mais bem-disposto e entregar as minhas malas, ainda a resmungar e a lançar-me olhares de viés. Ouvi-o dizer: "Então já começou", mas não lhe prestei atenção. O velho Jeb podia não ser o idiota da aldeia tinha de ter a inteligência suficiente para ter a carta de condução mas não estava longe de o ser. Segui Brian até um pequeno Volkswagen um tanto empoeirado e esperei, enquanto enfiava a minha bagagem lá dentro, e se debatia com a pasta e o cavalete desmontável.

 

Acho que isto não cabe no porta-bagagens; pode levá-los ao colo? perguntou. Ou quer que peça ao Jeb que os venha buscar amanhã? Afinal o que é isto?

 

Disse-lhe, acomodando-me no lugar do passageiro com o cavalete enfiado de lado e bloqueando-me parcialmente a visão da estrada. Ergueu as sobrancelhas, com interesse.

 

É artista?

 

Sou ilustradora de livros infantis respondi-lhe. Existe uma pequena mas importante diferença, ou pelo menos foi o que me disseram. Estranhamente, a memória do desprezo de Roderick não me causou dor, talvez devido ao facto de o Dr. Standish parecer impressionado. Ele entrou e ligou o carro e, simultaneamente, o estrondo de um trovão atravessou o céu e uma chuvada inundou o pára-brisas.

 

Uma sorte tê-la encontrado riu-se ele. A carrinha do Jeb mete água... para não mencionar o facto de a velocidade máxima ser de quarenta quilómetros hora numa auto-estrada.

 

Ri-me também:

 

Tendo em conta a forma como fala, sentir-me-ia mais segura a quarenta do que a cinquenta com ele a conduzir!

 

Isso é verdade concordou. Meteu a mudança e recuou lentamente, virou e afastou-se dos edifícios iluminados. Alguns minutos mais tarde, virou para a Witch Hill Road e depois teve de abrandar e meter a segunda para conseguir que o carro subisse a estrada em mau estado e já escorregadia de lama. Um relâmpago cegou-me momentaneamente e Brian praguejou baixinho, lutando para dominar o volante.

 

Estou a dar-lhe imenso trabalho... disse eu apologeticamente.

 

Nem pense nisso. Se vou ser médico no campo e isso acontecerá, mais cedo ou mais tarde o melhor é habituar-me a conduzir com todas as condições climatéricas, em todas as estradas e a todas as horas do dia ou da noite disse Brian alegremente. E aprendi a lidar com os candeeiros de querosene há anos; cresci numa aldeia como esta e aqui, de duas em duas tempestades, falta a luz e lá voltamos aos candeeiros de querosene e às velas. A sua tia Sara tinha razão, pelo menos sempre é menos uma coisa que se avaria!

 

Conheceu-a... à minha tia Sara?

 

Não, não verdadeiramente. Não, só de reputação, como uma velha senhora, definitivamente uma das personagens locais. Sou capaz de a ter visto uma ou duas vezes antes de ter ido para a faculdade de Medicina. A verdade é que... hesitou e perguntou: Conheceu-a?

 

Nunca tinha ouvido falar nela até à semana passada confessei. Pelo que o meu pai me contou antes de morrer, acho que ela era... excêntrica.

 

No mínimo concordou Brian. É claro que a população local vive na Idade das Trevas, sabe. Aqui não temos televisão e até Arkham sintoniza mal e os montes tornam difícil apanhar até mesmo a rádio. Quando o homem chegou à Lua, há uns anos atrás, duvido que aqui na aldeia alguém tenha sabido disso e, quando veio nos jornais, um homem resumiu na perfeição a atitude local... disse que não se podia acreditar em tudo o que vinha de Washington.

 

Dado que nunca conheceu a sua falecida e saudosa tia, não vai ficar muito ofendida por lhe dizer que aqui era tida por bruxa ou coisa do género.

 

Tradição de família disse eu pesarosamente. Parece que uma outra das nossas antepassadas foi enforcada acusada de bruxaria há cerca de trezentos anos.

 

Arkham teve imensos casos desses disse Brian. Abruptamente, abrandando o carro disse: Ali está ela, a casa Latimer.

 

O ribombar ensurdecedor de um trovão abafou-lhe as palavras e, à luz do relâmpago, vi-a pela primeira vez, escura contra o céu revelada em toda a sua fealdade insana, uma torre, varanda, janelas escuras como buracos e alpendres como dentes afiados. A luz do relâmpago desvaneceu-se, deixando-me na dúvida se teria realmente visto a casa e se esta poderia ter mesmo aquele aspecto.

 

Não acredito disse em voz fraca, não existe, tal como o camponês disse da girafa, um tal animal. Aquilo é uma casa ou o cenário de um filme do Frankenstein?

 

Brian riu-se baixinho com simpatia. Senti que a mão dele deixava o volante e pousava gentilmente sobre a minha.

 

Achei melhor não deixar ao velho Jeb a tarefa de a apanhar do chão quando visse a casa pela primeira vez.

 

Quem quer que tenha construído uma casa assim disse eu tinha mesmo que a assombrar. Os Céus nos ajudem, não acredito nisto. Espero que seja melhor por dentro do que por fora.

 

Tem de ser disse Brian. Pior não pode ser. Agora conseguia vê-la à luz dos faróis do carro. Era pior

 

do que me parecera à luz do relâmpago porque já não consegui evitar nenhum dos pormenores horrendos. Pensei mesmo se o aspecto não seria melhorado pela escuridão da noite. Oh, bem. Esperaria pela luz do dia... não me importava de esperar pela luz do dia para dar uma boa vista de olhos àquela monstruosidade.

 

Pode ser que seja perfeitamente confortável lá dentro disse eu assobiando na escuridão. Afinal de contas, sabe Deus quantas gerações da minha família não só viveram aqui mas, presumivelmente, escolheram viver aqui e de certa forma prosperaram.

 

Vou parar debaixo da porte cochère para não nos molharmos; essa já é uma das vantagens da casa disse Brian.

 

Tem a chave?

 

Tinha. Uma chamada para o advogado da família em Providence fora o suficiente para obter as chaves e a informação de que a casa estava totalmente mobilada, o que me levara a vender alguma da mobília do apartamento e a armazenar a restante. Levei as compras para junto da porta e debati-me com as chaves enquanto Brian descarregava o resto da bagagem. A porta rangeu e gemeu devido às dobradiças muito enferrujadas e finalmente cedeu. Brian disse:

 

É melhor acender a lanterna... espere até eu lhe pôr as pilhas. Pronto. Um raio fino de luz intensa brilhou na escuridão guiando-me pelos degraus acima.

 

Encontrei-me num espaço enorme e cavernoso que cheirava a humidade, rodeada pelas sombras de móveis enormes. A sala era iluminada a espaços pelos relâmpagos intermitentes. Tirei a lanterna da mão de Brian e apontei-a à volta da sala, olhando brevemente para as grandes cadeiras de madeira esculpida e para o sofá de pele de cavalo, para a lareira enorme que parecia uma grande caverna e para o parapeito que a encimava. Apontei a luz da lanterna para um enorme quadro por cima da lareira e sustive a respiração...

 

Estava a olhar para o meu próprio rosto.

 

Sara a Primeira

Com o choque do momento, a lanterna caiu, saltou e rolou pelo chão. Acho que gritei com o choque. Depois o braço de Brian, quente e reconfortante, estava à volta dos meus ombros.

 

Calma Sara, eu estou aqui. Que se passa? Que é que a assustou? É só uma pintura. Curvou-se para apanhar a lanterna e voltou a apontá-la ao quadro. Mas que parecida! Presumo que esta seja a antepassada? Continuou a falar calmamente para me reconfortar enquanto a minha respiração voltava ao normal. Se é, foi pintada quando ela estava no auge; é uma beleza. De uma ou duas vezes em que a vi ela era, evidentemente, uma mulher muito velha e era fácil acreditar que era uma bruxa. Mas as bruxas originais deviam ser umas raparigas esplendorosas, não é? Não é daí que vem a expressão esplendor? Olhe, Sara, é como ver-se ao espelho.

 

Lentamente, recuperei a compostura e a presença de espírito. Fora uma patetice gritar e perder o controlo, mas a surpresa de entrar numa casa completamente desconhecida, numa sala escura e estranha apenas iluminada pelos raios e ver-me ali, uma parte integrante da casa estranha, era um choque que nunca poderia ter previsto. Ergui novamente o olhar e estudei a pintura.

 

Era, na verdade, muito semelhante a olhar-me ao espelho. A mulher do retrato era alta, elegante, robusta um pouco mais do que eu e tinha vestido um fato tipicamente vitoriano, cintado, com o decote subido e enfeitado com rendas.

 

Mas o rosto era o meu, um triângulo bem parecido com a testa larga e o queixo pontiagudo, sobrancelhas direitas e escuras, olhos grandes e verdes, Roderick costumava dizer que me faziam parecer uma gata e cabelo ondulado solto e loiro-arruivado. A minha cor era tão pouco vulgar que há muito deixara de tentar usar maquilhagem... ficava sempre com o ar de estar pintada. Ocorreu-me que se o meu pai crescera de facto naquela casa com aquele quadro pendurado na sala, provavelmente lembrara-se todos os dias do facto de uma das malfadadas Saras Latimer ter realmente nascido na sua família. No entanto nunca falara nisso até o choque provocado pela tragédia familiar ter quebrado a sua reticência. Um verdadeiro mistério!

 

Bem, pelo menos aquilo explicava a reacção do velho Jeb Meyer.

 

Com esforço, desviei os olhos do retrato ficando novamente consciente de que o braço de Brian continuava solicitamente a amparar-me. Com alguma relutância como era quente e reconfortante! afastei-me dele. Disse:

 

Suponho que o melhor é procurarmos os candeeiros e acendê-los.

 

Seria imaginação minha ou ele também parecia pesaroso?

 

Suponho que sim. Deixe-me pensar. Provavelmente estarão na cozinha. Se conseguirmos dar com ela.

 

Guiados pela luz tremeluzente da minha lanterna, explorámos as portas escuras que davam para a velha sala. Atravessámos um átrio escuro, iluminámos brevemente uma sala poeirenta e cheia de livros e espreitámos para o que parecia ser, para meu grande alívio, uma casa de banho; uma banheira enorme em ferro assente em pés altos, um lavatório com torneiras vitorianas ornamentadas, uma sanita antiga discretamente oculta com um autoclismo antiquado de corrente. Apesar de desconfortável e feia, fazia no entanto com que não me visse forçada a enfrentar tempestades, aranhas e mais bicharada campestre e desconhecida em busca da retrete no exterior!

 

A divisão seguinte era a cozinha, e uma breve inspecção das prateleiras forradas com tecidos antigos revelou-nos dois candeeiros de querosene. Segurei na lanterna enquanto Brian enchia os candeeiros e os acendia e, em menos de dez minutos, uma luz suave e brilhante iluminava todos os cantos e recantos do tecto alto da sala, com os seus painéis pintados com lambrins azuis e papel de parede florido e antiquado. Havia pó por todo o lado afinal de contas, pensei, a casa estivera fechada durante sete anos mas estava tudo mais limpo do que eu esperara e parecia bastante confortável.

 

Óptimo disse Brian, receei que o fogão fosse a carvão e que só pudesse comer refeições frias até alguém arranjar um carregamento de carvão. Mas o fogão é a gás. Vamos lá ver se o gás foi ou não desligado. Seja como for, normalmente, nestas casas isoladas, usa-se gás em botija e, provavelmente, a garrafa não deve estar vazia. A não ser que esteja soldada pela ferrugem e as botijas de gás não costumam enferrujar muito facilmente.

 

Fez experiências com fósforos e descobriu que, depois de ter limpo o pó, conseguia obter uma chama de um azul-pálido.

 

Vai ter de encomendar mais gás dentro de um dia ou dois disse mas vai conseguir fazer café, ou chá, ou o que preferir e cozinhar umas refeições simples.

 

Olhou com pouco entusiasmo para a porta.

 

Acho que, se a chuva abrandar um pouco, tenho de ir andando. Já acendi um candeeiro e não me parece que possa usar essa desculpa para me demorar por aqui.

 

Oh, não! foi o protesto instantâneo, que me apressei a emendar, meio envergonhada. Lamento. Sei que é médico e, se tiver doentes à espera, não o devo demorar. Mas se não for esse o caso, gostaria que ficasse e, ao menos, passasse revista à casa comigo. Sinto-me uma maricas por estar assustada... quer dizer, esta foi a casa da minha família durante não sei quantas gerações, mas ainda assim...

 

Se é assim que se sente, então não se vai ver livre de mim disse ele com firmeza. Esta noite é a vez do primo James atender quaisquer chamadas que apareçam e eu sempre quis explorar uma casa assombrada depois do anoitecer! Dei por mim a tremer.

 

Sei que está a brincar, mas por favor não o faça. Eu tenho de viver aqui! Não sou supersticiosa, ou pelo menos nunca pensei ser, mas também nunca tinha visto uma casa como esta.

 

Ele pôs-me o braço em torno da cintura.

 

Bem, se estiver assombrada... está assombrada pela sua própria tia-avó e ela é tão parecida consigo que certamente não iria fazer mal à sua própria sósia!

 

Eu não tinha tanta certeza. Era evidente que o meu pai a achara um verdadeiro terror. Mas não disse nada.

 

A luz brilhante e suave do candeeiro a querosene desvaneceu as sombras na grande cozinha; decidi deixar as compras dentro dos sacos até poder lavar uma ou duas prateleiras. Tomei também nota mentalmente para me informar acerca das entregas de gelo. De candeeiro em punho, eu e o Brian voltámos a atravessar a sala enorme. Agora que conseguia ver claramente a pintura, as semelhanças eram ainda mais evidentes e, por instantes, tive a curiosa ilusão de que o rosto pintado, tão parecido com o meu, me piscava o olho.

 

Então aí estás, rapariga, depois de todos estes anos. Sara Latimer... outra Sara Latimer. O teu pai não conseguiu impedir que te tornasses uma de nós.

 

Disparates, minha querida tia disse em voz alta e virei-me para Brian: Vamos explorar o resto da casa.

 

Enquanto percorríamos o labirinto de divisões mais pequenas despensas, um alpendre envidraçado, uma sala grande que Brian disse ser a cozinha de Verão, armários, quartos esparsamente mobilados com camas estreitas e móveis periclitantes que ele disse serem quartos de criadas e que tinham o aspecto de ninguém ali ter dormido desde o início do século dei por mim a contar a Brian as circunstâncias que me tinham levado até ali. Quando falei nas mortes não consegui controlar completamente a voz. Se ele tivesse demonstrado simpatia eu ter-me-ia ido abaixo, mas limitou-se a apertar-me a mão por instantes e a dizer:

 

Sofreu um grande abalo. Talvez seja disto que precisa, um sítio calmo e simpático, trabalho e alguns novos amigos.

 

Uma escada estreita e muito íngreme erguia-se na cozinha, mas Brian vetou a hipótese de a subirem.

 

Conheço estas casas antigas. A escada da frente deve estar em melhor estado.

 

Voltámos para trás até à parte da frente da casa e começámos a subir. A luz do candeeiro empunhado por Brian lançava sombras estranhas sobre as balaustradas, alongando-as e transformando-as em formas negras e monstruosas que pareciam subir as escadas connosco. No patamar das escadas um outro retrato de Sara Latimer olhava-nos com um olhar franco e triste.

 

Sara a primeira, acredita em manter as coisas debaixo de olho disse eu tentando soar irreverente. Só que, como é evidente, ela era Sara a décima segunda ou coisa parecida. Espero que não assombrem a casa todas juntas!

 

Três das divisões do andar de cima estavam vazias ou ocupadas apenas por baús e caixas empoeiradas, com grandes móveis antigos empurrados para os cantos. Pela primeira vez pareceu-me credível que Sara Latimer, a antepassada, tivesse ali vivido sozinha durante muitos anos e que a casa tivesse permanecido fechada e desocupada nos últimos sete anos depois da sua morte.

 

Esta casa é o sonho de qualquer antiquário disse Brian. Pode divertir-se imenso a explorar isto tudo à luz do dia e a descobrir os tesouros da família. Prometa que me deixa vir cá para bisbilhotar consigo todas estas caixas e baús fascinantes!

 

Ficarei satisfeita por ter ajuda, pode crer. Intimamente, pensei se teria sido a recordação daquela casa que fizera com que o meu pai detestasse tanto os móveis antigos ou vitorianos. A nossa casa fora mobilada ao mais recente e moderno estilo sueco e eu metera tudo num armazém. Talvez pudesse vender alguns daqueles móveis a antiquários para poder pagar o armazenamento do resto.

 

Abri a quarta porta. Apercebi-me imediatamente de que aquele era o coração da casa, o domínio pessoal da tia Sara.

 

Quando a porta se abriu, um cheiro estranho e adocicado, curiosamente pungente, espalhou-se pelo átrio. A luz do candeeiro revelou que aquele quarto estava completamente mobilado, dominado por uma cama enorme com quatro colunas. A cama era larga, enorme e estava coberta e envolta em cortinados brancos.

 

Brian ficou a olhar e a luz esmoreceu. Disse, parecendo espantado:

 

E pensar que tive a coragem de lhe oferecer uma cama para passar a noite quando tinha isto à sua espera!

 

Engoli em seco.

 

É enorme, não é? Isto tudo só para uma velhinha! Pergunto-me se ela terá mesmo passado todas as noites da sua vida sozinha nesta cama!

 

Não sei disse Brian. Ela morreu e foi enterrada solteira, mas se era tão bonita como mostram os quadros, aposto em como teve companhia pelo menos algumas noites.

 

Senti-me ligeiramente embaraçada. O Brian e eu não tínhamos o tipo de relação que permite discutir camas e, no entanto, desde que entráramos naquele quarto, tão dominado pela cama enorme, não tínhamos olhado para mais nada.

 

Isto faz-me pensar nas primeiras lições de francês disse. O lápis do meu avô. A cama da minha tia-avó.

 

A cama da sua tia-avó é formidable disse Brian com uma risada constrangida. Não gosto da ideia de pensar que vai dormir nela sozinha... calou-se abruptamente e, à luz do candeeiro, apercebi-me de que tinha as orelhas ligeiramente encarnadas. Desculpe, Sara, não sei o que me deu, não era minha intenção dizer isto desta maneira.

 

É melhor chamar-me Sally. Sara Latimer é, absolutamente, a velha megera dos quadros que estão lá fora. Secretamente, decidi que a primeira coisa que faria no dia seguinte seria tirar da parede o retrato da minha tia-avó. Era capaz de conseguir viver em casa dela, mas não ia passar o raio do Verão inteiro debaixo dos seus olhos verdes!

 

Mas, Sally não lhe fica bem. Tem mesmo ar de Sara protestou ele e ela não é uma velha megera... pelo menos naqueles retratos; é quase tão bonita como a Sara!

 

Fui até à cama. Estava coberta com uma colcha antiga muito bela, feita de patchwork com um padrão de estrelas de cinco pontas. Puxei a colcha para trás e apalpei os lençóis. Estavam imaculadamente limpos embora um pouco húmidos.

 

Brian apontou para um dos cantos do quarto onde estava um armário enorme, alto e sombrio como um túmulo funerário.

 

Se bem me recordo, aquela coisa grande e escura que ali está é um armário para guardar roupa de cama mantendo-a arejada. Provavelmente encontrará ali lençóis lavados. Dormir em lençóis húmidos é o que costumava provocar reumatismo aos habitantes da Nova Inglaterra.

 

Dentro do armário havia pilhas de lençóis lavados, todos de linho macio, tão secos e limpos como se a tia Sara os tivesse ali arrumado no dia anterior e não sete anos antes. Brian pôs o candeeiro em cima de uma cómoda alta e, juntos, fizemos a cama.

 

Brian, seja um querido e vá-me buscar a mala pequena que está no andar de baixo disse eu. Ultrapassa-me dormir com uma camisa de noite da tia Sara.

 

Enquanto ele procurava a mala à luz da lanterna, observei melhor o quarto à luz do candeeiro. A um canto havia um pequeno lavatório de mármore, com torneiras ornamentadas em bronze onde podia lavar os dentes sem ter de descer as escadas. Um enorme espelho pouco nítido sobre o lavatório mostrou-me a minha cara e o cabelo tão despenteado e solto pelo vento que ficava estranhamente parecida com Sara a Primeira. Maldita Sara a Primeira! Se ela fora realmente a bruxa que o meu pai descrevera, já estaria suficientemente condenada sem qualquer ajuda minha.

 

Noutro canto havia um toucador enorme, com pernas altas e trabalhadas e o tampo em mármore sobre o qual estavam um pente de marfim, uma escova e um espelho de mão. Sentei-me uns minutos no banco baixo olhando para o grande espelho baço e inclinado do móvel e agarrei no espelho de mão. Para uma senhora tão idosa, a tia Sara tinha uma grande paixão por espelhos. Espalhada em cima do tampo de mármore estava uma quantidade de boiões e de frascos. Na sua maioria tinham tampas de prata ou eram em cristal, todos eles muito belos e caros. A imagem do espelho estremeceu e, por instantes, pareceu-me que o rosto pintado da tia Sara me olhava. Os lábios estavam húmidos, vermelhos e entreabertos; os cabelos caíam-lhe sensualmente sobre os ombros; os olhos verdes brilhavam e os ombros estavam nus acima dos seios pequenos e pontiagudos...

 

Ergui a cabeça ao ouvir os passos de Brian; pôs a mala a meu lado e ficou por trás de mim com as mãos nos meus ombros, o rosto muito perto do meu na imagem reflectida no espelho e, por instantes, pareceu-me que também a imagem dele flutuava e se distorcia até me parecer ver um homem nu... desviei os olhos da ilusão, corando. Que pensaria a tia Sara de ter um homem no seu quarto de solteira? Provavelmente tinha sido o tipo de senhora que espreitava sempre debaixo da cama antes de se deitar para ver se não estava lá nenhum homem.

 

Que são estes frasquinhos e boiões? perguntou Brian. O quarto cheira imenso a ervas: isto é cheiro a alfazema?

 

Abanei a cabeça.

 

Não, não é alfazema. A minha mãe costumava usar saquinhos de alfazema e conheço bem o cheiro. Não sei o que é. Era algo inebriante. Abri a tampa de prata de um pequeno boião de porcelana. Provavelmente é Creme Lydia Pinkham, ou coisa do género.

 

Não é disse Brian muito sério. É evidente que ela preferia fazer os seus próprios cosméticos de ervas... muitas pessoas daqui ainda usam remédios feitos de ervas, tisanas e, o mais estranho, é que ficam boas. A medicina popular tem muito que se lhe diga; se alguém a estudasse... o que é esse cheiro?

 

Da tampa aberta do boião de porcelana soltou-se um cheiro forte, adocicado, entontecedor, uma nuvem quase visível de uma fragrância que pareceu espalhar-se e encher o quarto por completo. Inspirei fundo e o cheiro subiu-me à cabeça como se fosse uma bebida forte e deixou-me tonta. Uma nuvem rodopiante de fantasias, visões eróticas, sensações fortes envolveu-me.

 

Brian debruçou-se sobre mim para aspirar de mais perto. Aspirou, debruçou-se, inclinou-me a cabeça para trás e beijou-me nos lábios. A boca dele estava quente e dura e, com o corpo, fez pressão nas minhas costas. As suas mãos procuravam o meu peito.

 

Como que possuída, enfiei o meu dedo dentro do boião e passei o creme de odor adocicado na pele junto à base do pescoço, afastei o boião e fechei-o. Brian deu a volta e ajoelhou-se na minha frente para enterrar o rosto entre os meus seios, abrindo os botões da minha blusa.

 

À luz entorpecente e odorífera do candeeiro, tinha a estranha sensação de que me movia debaixo de água. Pus-me de pé libertando-me suavemente das mãos de Brian e, como que em transe, arranquei a roupa. À luz trémula e no velho espelho, vi reflectida a minha nudez, alta, magra e pálida, o meu cabelo uma mancha luminosa, a minha boca quente e vermelha como uma rosa brilhante, a mancha de pêlos castanhos avermelhados junto às virilhas. Nem eu nem Brian falámos; como se estivesse hipnotizado, as mãos dele moveram-se sobre os botões da camisa; despiu a camisa, abriu o fecho e atirou com as calças. Era moreno e peludo e já estava duro e erecto quando se aproximou de mim, com os olhos escuros a brilhar e a luzir à luz avermelhada do candeeiro.

 

Debruçou-se sobre mim com uma gargalhada em surdina e cobriu-me a boca com a sua; com uma grande gargalhada exultante lancei os braços em torno dele e os meus dentes cerraram-se no seu lábio; senti o sabor salgado do sangue na minha boca.

 

Os seus braços fortes ergueram-me do chão e deitou-me nos lençóis perfumados onde me afundei; afundava-me no odor à medida que o meu corpo se afundava sob o seu no macio colchão de penas. Por cima de mim, à luz do candeeiro, o dossel ondulante dançava. Um trovão e uma forte rajada de chuva que bateu na janela abafaram o meu grito inarticulado quando ele entrou em mim, com um ímpeto brutal, com uma intensidade selvagem, os lábios sobre os meus, esmagando-me contra as almofadas.

 

Entregando-me sem pensar na natureza bravia do momento, senti o meu corpo mover-se, contorcendo-se, numa reacção pouco habitual. Em contraluz o seu corpo parecia crescer e inchar, estremecendo e desfocando-se num delírio até pairar sobre mim numa enormidade demoníaca, subindo e descendo, investindo, aumentando e diminuindo como se fosse uma figura diabólica, ora humano ora animal selvagem. Não houve a ternura que eu sempre desejara antes. Nada de gentil nem de romântico. Foi uma cópula selvagem, frenética, quase animalesca, que se prolongou e prolongou até eu pensar que ia explodir sob todo aquele frenesi e pensamentos extravagantes surgiram no meu espírito... regressa, regressa das trevas... Asmodeus, Azanoor, trevas sobre mim... o meu corpo à besta e a minha alma ao inferno... as contorções delirantes das minhas ancas eram acompanhadas pelas pancadas incessantes das suas investidas... depois ouvi o seu grito brutal de exultação e o meu próprio grito de deleite inane, misturando-se e abafando o estrondo final do trovão.

 

Rolámos cada um para seu lado sem dizer palavra e dormimos como pedras.

 

Sonhei. Sonhei que estava numa planície vasta e nua, coberta com túmulos assimétricos e estranhos, banhada em redor por uma peculiar luz cinzenta e com estranhos animais a vaguearem à distância; mas não sentia medo. Estava nua e movia-me sem esforço sobre o solo que estava coberto de erva retorcida entrançada e sem cor, salpicada de montes baixos e pedras caídas. A luz etérea ficou um pouco mais brilhante e percebi que as pedras eram pedras tumulares. Reparei, com curiosidade, que numa delas estava escrito, SARA MAGDALEN LATIMER: Atacada até à morte por cães neste local, 1884. E os cães comeram a sua carne... Reis... o número do capítulo e do versículo estavam ilegíveis.

 

Passei por outras lápides, olhando com a mesma falta de curiosidade para os nomes de outras Saras Latimer e para as mortes violentas que tinham tido. A luz estranha e sobrenatural não se assemelhava a nenhuma luz do sol ou luar que já tivesse visto. Enquanto flutuava naquela estranha luminosidade astral, senti mais do que vi uma sombra que se tornava cada vez maior à medida que me aproximava. Uma voz chamava à distância:

 

Sara! Sara!

 

A sombra ergueu-se cada vez mais alto. Vi que era um carvalho atingido por um raio, uma sombra recortada no céu e, enquanto flutuava junto ao seu tronco, vi a inscrição em curiosas letras impressas a fogo:

 

Sara Latimer foi aqui enforcada neste carvalho, por bruxaria, a 31 de Agosto de 1671 e que a sua alma seja danada por toda a eternidade.

 

Pensei, com um resquício de consciência, realmente, que ingenuidade.

 

Um trovão estremeceu o céu; um grande raio dividiu o carvalho ao meio e este caiu, numa estranha câmara lenta, em direcção a mim e acordei com um grito e ouvi Brian murmurar baixinho o meu nome:

 

Sara... Sara?

 

Dei por mim a enrubescer na escuridão. Bom Deus, o que teria acontecido comigo? A minha família não morrera há uma semana ainda e ali estava eu, às cambalhotas numa cama, como uma cabra, com um perfeito desconhecido, um homem que conhecera há menos de quatro horas...

 

Brian? Estava a dormir.

 

Eu sei, amor, e detesto acordar-te, mas estavas a gemer e tive medo que estivesses a ter um pesadelo.

 

Eu sei; estava a sonhar com todas as Saras Latimer. Todas elas tiveram mortes violentas, sabias...

 

Ele curvou-se e beijou-me.

 

Não sejas mórbida, querida, já te deste conta que nunca chegámos a fazer o bacon com ovos que me prometeste? Não sei porquê, mas estou a ficar louco de fome. E não posso ficar muito mais tempo; não quero comprometer-te logo na tua primeira noite na comunidade. Neste género de terra... bem, há uma velhota bisbilhoteira no cimo de cada colina.

 

Saí da cama.

 

Sim, e um médico tem de ser como a Mulher de César no que respeita às mulheres... ou seja, acima de qualquer suspeita. Anda para baixo e eu arranjo-te uma ceia e depois é melhor ires. Senti-me estranhamente condoída por ele. Tinha-me lançado nos seus braços e, a não ser que tivesse fugido como um coelho, não tinha tido hipótese de fazer nada. Mas o que teria acontecido?

 

Ele enfiou a roupa e eu vesti o roupão de ganga ainda a pensar no que me teria dado. Conhecia o Roderick há mais de um ano quando concordei em ir para a cama com ele.

 

Traz o candeeiro. Não quero partir o pescoço naquelas escadas às escuras disse apesar de haver um médico em casa.

 

A porta do quarto fechou-se atrás de nós, tapando os últimos vestígios do odor inebriante. Brian respirou fundo e virou-se para mim.

 

Sara disse com veemência, não sei o que me deu. Eu nunca... escuta, amor. Antes... antes de ter subido as escadas a segunda vez, estava a pensar que te queria, mas ia fazer tudo com calma e tranquilidade, porque isto pode vir a ser... algo especial. E agora... abanou a cabeça, desorientado.

 

Eu pestanejei e disse:

 

Para mim também foi uma surpresa. Eu não sou, a sério, não sou o tipo de rapariga que vai para a cama com homens que acabou de conhecer! Mas ainda assim estava satisfeita por ter ido para a cama com ele; não sabia que ainda havia homens assim.

 

Estás... arrependida, Sara?

 

Não disse eu com franqueza. Como me podia arrepender de uma coisa assim?

 

Ele curvou-se e beijou-me.

 

Eu também não estou arrependido. Foi uma das coisas mais maravilhosas... mas, bom Deus, o perfume da tua tia Sara dá mesmo certas vontades!

 

Dissera-o com irreverência, mas despertou-me a consciência de imediato.

 

Foi isso que começou tudo, sabes disse eu. Há algumas ervas... afrodisíacas?

 

Ele hesitou.

 

Não pelos padrões médicos aceites disse. Alguns médicos juram que tais coisas não existem. Eu não tenho tanta certeza. Ora, raios, querida, não vamos arranjar desculpas. Aconteceu e não estou arrependido. Vamos lá arranjar os ovos com bacon.

 

Rimo-nos e provocámo-nos enquanto andávamos à volta do fogão enorme, aquecendo água para o chá e fritando os ovos e o bacon numa enorme frigideira de ferro antigo; estava enegrecida e queimada, mas a comida soube-nos a ambrósia. Ainda assim havia um toque de histeria no nosso riso; ambos estávamos surpreendidos connosco e sentíamo-nos pouco à vontade. Eu esperava, sem conseguir traduzir esse sentimento por palavras, que o meu súbito comportamento dissoluto não o tivesse desiludido. Ele gostara de fazer amor comigo, estava a ser simpático como o faria qualquer homem decente mas decidiria que era a história de uma só noite? Eu gozara de uma forma incrível, mas seria uma pena se aquilo não passasse de um caso para uma só noite e não se transformasse na amizade de que tanto necessitava.

 

Demorámo-nos a comer os ovos e o bacon e a beber uma segunda chávena de chá embora ele me dissesse que raramente o bebia.

 

Sou um bebedor de café, miúda! Que se passa, não sabes que os estudantes de medicina vivem a café? Vou ter que te treinar melhor disse ele e senti-me novamente mais esperançada. Mas por fim, quando o relógio da entrada bateu as três horas dei por mim a pensar quem lhe daria corda ele olhou para a porta pesarosamente.

 

Sara, tenho mesmo de ir. Já parou de chover e não podemos mesmo ser alvo da bisbilhotice neste momento. Tenho de te deixar sozinha, mas... vais ficar bem?

 

Claro, Brian. Não podes cá ficar.

 

Beijou-me, longa e intensamente e depois ouvi o motor do carro lá fora. Passado muito tempo agarrei no candeeiro e subi lentamente as escadas escuras e trepei de novo para a cama enorme e solitária da tia Sara.

 

Estava à espera de ficar acordada mas não fiquei. Uma vez, à luz ténue da madrugada, acordei com um ruído estranho, como se alguma coisa estivesse a ser roída. Ratazanas? Esquilos? O fantasma da tia Sara? Disse, em voz alta:

 

Ora, raios partam a tia Sara e adormeci novamente.

 

Ginger Tom

 

Acordei com a luz do Sol, húmida e aguada, que enchia o quarto. Por instantes, enquanto olhava espantada para o dossel branco e espesso que cobria a cama, senti-me confusa sem saber onde estava; as memórias assaltaram-me e recordei-me de tudo.

 

Fui até à janela, afastando as cortinas espessas. À luz do dia a mobília escura e antiga ainda parecia mais sombria e pesada, mas a cama era bastante confortável e dormira bem.

 

Apesar do que dissera o Reverendo Hay, a casa não estava em muito mau estado, nem mesmo qual fora a expressão que ele usara? pelos padrões citadinos. Não sei o que é que ele pensava que isso era mas, à parte as camadas de pó, a casa parecia muito bem cuidada. Teria a como é que se chamava oh, sim a "sociedade histórica", mantido a casa durante aqueles anos todos ou seria simplesmente por o edifício ter sido bem construído e não deixar entrar água?

 

Sob o meu olhar estendia-se um relvado abandonado salpicado por flores de dente-de-leão. Depois do relvado havia uma cerca baixa e um campo acidentado com colinas e montes cobertos por erva espessa e velhas pedras cinzentas. Estas reavivaram uma memória vaga, estranha e aterrorizante; depois apercebi-me de que a casa dava para um cemitério tão antigo que metade das pedras tumulares estavam gastas e caídas. Dei por mim a rir, quase histérica. E porque não? Todas as casas assombradas respeitáveis dão para um cemitério, são as regras do sindicato.

 

Seria aquele velho cemitério, então, a Colina das Bruxas original?

 

Fosse como fosse, eu não era supersticiosa e certamente que todos aqueles que tinham sido sepultados naquele cemitério tinham morrido há tanto tempo que até o seu pó se transformara em pó... pelo menos dificilmente seriam vizinhos barulhentos!

 

Depois dei por mim a pensar se a tia Sara teria sido sepultada ali, fechei as cortinas e desci para ir arranjar o pequeno-almoço.

 

A grande e velha cozinha parecia menos sombria à luz da manhã; até o retrato da tia Sara que estava pendurado nas escadas me parecia sorrir. Explorando a despensa por trás da cozinha, descobri que o chão de pedra e as prateleiras escuras estavam vários graus mais frescos do que o resto da casa, uma solução para manter o leite fresco dos tempos em que não havia geleiras nem frigoríficos. Chá quente, torradas feitas sobre a chama do fogão cobertas com uma espessa camada de manteiga e um ovo estrelado na velha frigideira fizeram-me sentir muito melhor decidi que me preocuparia com o colesterol noutra altura. E um banho na banheira enorme de ferro, para a qual a água correu a uma temperatura surpreendente dez minutos depois de ter ligado o esquentador antigo, devolveu-me algo de semelhante ao que fora a Sara de há três semanas. Desci para ir lavar os pratos que usara ao pequeno-almoço tinha mesmo de arranjar outra botija de gás muito em breve pensando em explorar de seguida a casa para descobrir qual seria a melhor divisão para instalar o cavalete e as tintas

 

afinal de contas estava ali para trabalhar.

 

A sala pareceu-me húmida e escancarei a porta das traseiras para deixar entrar o sol pela soleira. Estava à espera de ter de me debater com as dobradiças e fechaduras mas, para minha surpresa, a porta abriu-se com facilidade, como se tivesse sido aberta todos os dias durante os últimos sete anos. Talvez a Sociedade Histórica ali tivesse estado e, nesse caso, teria de mudar as fechaduras. Ou talvez se devesse apenas ao facto de o edifício ter sido incrivelmente bem construído estava espantosamente limpo, à parte o pó.

 

Quando estava a enxugar o último prato, ouvi um miado agudo e insistente e um grande gato cor de gengibre entrou na sala, como se a casa lhe pertencesse.

 

Parou junto ao armário da despensa olhando com uma expectativa calma.

 

Miau! exigiu e eu ri-me alto.

 

Muito bem, Gato Tom. E já terá havido alguma bruxa que não tivesse um gato? Mas pensava que os gatos das bruxas tinham de ser pretos. Deitei leite num pires, misturei um ovo cru e acrescentei uma tira que sobrara de bacon. Placidamente, aceitando o que lhe era devido, o gato começou a comer o pequeno-almoço e depois seguiu-me de sala em sala, parando de quando em vez para saltar para cima de um móvel e cheirá-lo e, quando quis fazer a minha cama, ele aninhou-se contra a almofada ronronando alto.

 

Meu Deus. Gato Tom disse eu, não há dúvida de que te estás a instalar! Que se passa? Foi a rede de contactos dos gatos que te disse que a casa assombrada estava de novo aberta para o negócio e havia uma vaga para um gato de bruxa? Pensaste que te conseguias fazer passar por um genuíno gato de bruxa porque eu talvez não soubesse fazer a distinção?

 

Ele ronronou alto, como se me estivesse a responder.

 

Vais fazer-me muita companhia. Muito bem, Gato, podes cá ficar até que apareça alguém com mais direitos a reclamar-te. Já que tenho de viver nesta casa... como é que vou chamar-te? Pensei em voz alta e depois lembrei-me do vampiro gentil e de maneiras simpáticas da telenovela Dark Shadows. Barnabas Collins, o vampiro cavalheiresco.

 

Anda, Barnabas ordenei, vamos encontrar um sítio para pôr o cavalete.

 

Como se me tivesse compreendido, ele saltou de cima da cama, atravessou lentamente o átrio e deteve-se em frente da porta de um dos quartos vazios.

 

Aí? Muito bem fiz-lhe a vontade e segui-o para dentro do quarto. Era uma divisão grande, luminosa e vazia, com excepção de umas quantas arcas velhas e tinha uma enorme janela virada a norte o que a tornava um local óptimo para pintar. Montei o cavalete, deixei que o Barnabas descobrisse por experiência própria que este não suportava o seu peso (felizmente, quando cedeu debaixo dele, o gato saltou a tempo) e fui buscar um balde, esfregona e panos do pó ao andar térreo para limpar o pó acumulado. Quando a sala já estava a brilhar de limpa, desci para almoçar sanduíches de tomate e dar mais leite ao Barnabas. Sentei-me na soleira da porta banhada pelo Sol a fazer uma lista de compras, decidi ir nessa tarde a pé até Madison Corners para comprar mantimentos, terebintina e um fornecimento de comida para gato ou peixe... tão próximo do mar, isso não devia constituir problema, haveria, muito provavelmente, pescadores com peixe de segunda que não conseguiam vender e que mo cederiam por pouco dinheiro.

 

Fiz uma segunda lista de coisas a procurar na primeira visita que fizesse a Arkham conseguiria, com certeza, comprar materiais de desenho e pintura na livraria da universidade em Miskatonic; tinha de saber se havia antiquários na cidade, uma vez que não queria ficar com todas aquelas mobílias, etc., quando uma voz desconhecida disse quase por cima da minha cabeça:

 

Muito bem, Ginger Tom! Vejo que te mudaste e acomodaste muito bem!

 

O gato miou inteligentemente; eu pus-me de pé para saudar o homem que estava a dar a volta à casa.

 

Era muito alto devia medir bem um metro e noventa e vestia roupas discretas e escuras. Tinha o rosto muito magro, o cabelo era claro e mal cuidado e um nariz e um queixo pontiagudos e sobrancelhas espessas sobre uns olhos de um azul brilhante como aço. Não, não era bem isso. Esta descrição fazia-o parecer uma gárgula; e ele não o era. Era humano, quase bonito, mas ao estilo rude e forte da Nova Inglaterra.

 

Parecia a figura de proa de um veleiro, ou a efígie fúnebre de um cavaleiro das Cruzadas. Viria a conhecê-lo bem, no entanto o meu olhar de artista vê-lo-ia sempre assim, da forma como o vira da primeira vez. E teria sido mesmo a primeira vez? Afastei aquela ideia do meu espírito e tentei expulsá-la de vez.

 

Ele deteve-se, a poucos metros de mim e ergueu os olhos do gato. O seu rosto empalideceu.

 

Ouvi na aldeia que tinha regressado disse numa voz quase inaudível. O velho Jeb contou-me. Mas ele é um velho idiota supersticioso... não acreditei...

 

Interrompi-o bruscamente.

 

Mas de que raio está a falar? Nunca estive nesta terra em toda a minha vida e esta já é a segunda vez que oiço esses disparates de ter regressado! Vejo que conhece o gato; por acaso será seu? É um belo animal; tenho estado mais ou menos à espera que aparecesse alguém a vir buscá-lo durante toda a manhã.

 

O homem abanou ligeiramente a cabeça. Parecia confuso, mas esforçava-se por disfarçar. Finalmente disse:

 

Não, não, o Ginger Tom não é meu, mas a verdade é que o conheço bem. Era o gato da menina Latimer e, como é evidente, somos velhos amigos.

 

Franzi o sobrolho, incrédula. Barnabas era um belo e jovem gatarrão, mas dificilmente teria mais do que um ou dois anos, no máximo. A tia Sara morrera há sete anos. Disse:

 

Se a minha tia Sara, a menina Latimer, tinha um gato amarelo como este, é muito provável que ele tenha enchido as redondezas com todo o género de gatinhes amarelos como ele. É uma coincidência simpática, no entanto, que o duplicado do gato da tia Sara estivesse à minha espera no degrau, na manhã em que me mudei. Desculpe, estou a tagarelar. Estendi a mão. Chamo-me Sara Latimer.

 

Ele sorriu ligeiramente.

 

Sim, eu sei; o seu rosto é toda a identificação de que precisará nesta região, menina Latimer.

 

Há então mais Latimers na vizinhança?

 

Oh, não; acho que a senhora... ou, quero dizer, a menina Sara Latimer era a última, pelo menos era o que eu pensava ou temia, talvez. Chamo-me Matthew Hay e tem de me perdoar; conheci a sua tia... hesitou bastante bem, durante muitos anos. Terá, por acaso, vindo tomar o lugar dela?

 

O nome fez luz no meu espírito. Mas o lugar dela no quê? Pensei. Na sua louca igreja seja lá ela o que for?

 

Sr. Hay disse, escreveu ao meu pai a propor comprar esta casa, mas a carta só chegou depois da sua morte. O aperto da mão dele era forte, mas os seus dedos estavam gelados. Decidi vir até cá para ver a casa antes de me decidir a vendê-la. Afinal esteve na família durante trezentos anos e não gosto muito de a passar para mãos estranhas.

 

Matthew Hay disse:

 

Percebo-a. A sua tia Sara também sentia o mesmo. No entanto pensava que só tinha parentes distantes e que nenhum estaria interessado na propriedade. Incitei-a muitas vezes a vender a casa por um preço justo à Igreja antes da sua morte mas, tal como a maior parte de nós, a menina Sara não tinha verdadeira consciência da sua mortalidade e adiava sempre a questão. Após a sua morte, aguardei vários anos na esperança de que a casa voltasse a ser habitada por digamos assim um membro compreensivo da sua família. Como isso não aconteceu, informei-me sobre os proprietários legais da casa e fiz uma oferta. No entanto, agora que aqui está, e é, evidentemente, uma Latimer, talvez... talvez isso não seja necessário.

 

Percebi muito pouco do que ele dizia. Parecia que estava a divagar. Mais tarde, quando já o conhecia melhor, descobri que Matthew Hay nunca divagava e que cada palavra que proferia ia direito ao seu objectivo; mas ele era soberbo a esconder dos outros os seus objectivos.

 

A Igreja do Antigo Rito, Sr. Hay... é uma igreja católica? perguntei.

 

Católica apenas no sentido mais antigo de universal disse ele. A nossa Igreja é muito, mas muito mais velha do que o Cristianismo.

 

Traduzi mentalmente: seita de doidos.

 

Bem, disse eu, não tenho muita certeza de querer vender a casa. Pertence à minha família há demasiado tempo. Em qualquer caso, não vou sequer pensar em vendê-la este Verão. Não posso mudar-me novamente antes de ter o livro pronto.

 

Uma expressão estranha estampou-se-lhe no rosto. Por momentos pensei que fosse raiva; mas quando falou novamente fê-lo da mesma forma branda.

 

A sua tia Sara era um membro firme e dedicado da nossa Igreja... na verdade, era a verdadeira líder disse. Sempre houve Latimers envolvidos no nosso trabalho desde que chegaram a este país nos anos de seiscentos. A primeira Sara Latimer foi uma mártir das perseguições ignorantes à nossa religião.

 

A primeira Sara Latimer foi enforcada como bruxa.

 

Está a tentar dizer-me que a sua igreja é... é uma seita de bruxaria? Que adoram o Diabo?

 

Menina Latimer, só os ignorantes lhe chamam esse nome. Com os seus conhecimentos actuais nem sequer posso discutir o assunto consigo disse ele. Talvez quando souber mais sobre a nossa religião e é uma verdadeira religião deseje juntar-se a nós. Como já lhe disse, a menina Sara, a sua tia-avó foi uma das nossas maiores líderes. Era muito respeitada, pode até mesmo dizer-se venerada, na nossa comunidade. Mas hoje vim apenas dar-lhe as boas-vindas a Madison Corners e perguntar-lhe se há alguma coisa que possa fazer para que fique mais confortável.

 

Com um assomo de malícia pensei, Obrigada, mas o Brian Standish já me deu as boas-vindas a casa.

 

É muito gentil; gostava de saber onde posso comprar ovos e leite e onde posso encomendar botijas de gás para cozinhar.

 

A menina Latimer comprava sempre o leite na quinta Whitfield que fica a caminho da paragem do autocarro disse-me Matthew Hay, e se não se interessa por jardinagem, é provável que também possam abastecê-la de legumes e produtos hortícolas. Ela tinha um excelente jardim de ervas que, receio bem, tenha estado ao abandono embora confesse, menina Latimer, que tenho cá vindo de vez em quando apanhar ervas e fazer o que está ao meu alcance para o manter em bom estado. A ciência da ervanária da Nova Inglaterra tem vindo a perder-se rapidamente para a humanidade e acho que é algo digno de ser preservado. Além disso sorriu e o seu rosto sombrio pareceu subitamente humano e bondoso, confesso que sofro de vez em quando com reumático e constipações e acho os remédios naturais de ervas melhores que os comprimidos e as poções que o médico local receita. Espero que perdoe a minha intromissão.

 

Por favor, venha sempre que quiser apressei-me a dizer. Nem sequer sabia que a tia Sara tinha um jardim de ervas; não tive tempo para explorar o jardim, nem sequer sei quais são os terrenos que pertencem à casa.

 

Então permita-me, por favor, que ofereça os meus serviços para lhe mostrar a propriedade disse Matthew Hay. Conheço-a desde os tempos da minha infância; na verdade sou seu vizinho. Apontou na direcção do cemitério. A minha casa fica por trás daquele arvoredo. Daqui não se vê. Deixe-me mostrar-lhe os jardins.

 

Acompanhei-o em torno da casa. O gato Barnabas, que se enrolara no poial de pedra a apanhar sol, esticou as pernas amarelas e caminhou cerimoniosamente no nosso encalço. Apanhei Matthew Hay a olhar subrepticiamente para o gato. Também ele tinha algo de felino, uma elegância quase animal e a força felina dos ombros. Tinha umas mãos enormes, mesmo tendo em consideração o seu metro e noventa.

 

O jardim é aqui; as ervas estão deste lado, ao longo da vedação do lado do sol disse Matthew Hay. A vedação era cinzenta e velha ainda que em excelentes condições. Aspirei o ar, cheio de fragrâncias sob o sol quente, enquanto os canteiros de ervas estreitos e rectilíneos ou arredondados soltavam os seus aromas.

 

Reconheço o tomilho e a segurelha disse e a lavanda e a verbena. Inclinei-me e cortei um raminho de folhas com cheiro a limão esmagando-as entre os dedos. Mas as outras não conheço.

 

Esta é a consolda disse ele. Chamavam-lhe solda porque muita gente acreditava que, quando usada em cataplasmas e chás, abreviava a cura das fracturas. Muita gente acreditava que a sua falecida tia-avó sabia mais dessas coisas do que os médicos. Por exemplo, ela sugeriu-me que o alecrim dobrou-se para arrancar umas quantas folhas era um excelente remédio para a calvície. Há anos que o uso como loção capilar e, tal como vê, continuo a ter uma farta cabeleira apesar de o meu pai ter ficado careca aos quarenta anos.

 

Sorri.

 

Vou ter de cuidar do jardim de ervas. Talvez o Brian também esteja interessado; sei que muitos médicos usam ervas e remédios antigos.

 

Aplaudo pelo menos essa decisão. Terei muito gosto em ajudá-la e ensinar-lhe aquilo que sei disse ele.

 

Um odor estranho e intoxicante soltava-se de um pequeno canteiro de folhas verdes; era um odor que reconheci como sendo pelo menos uma das componentes do estranho perfume do pote de porcelana que me afectara a mim e a Brian de forma tão extraordinária na noite anterior. Arranquei umas poucas folhas pequenas e espigadas e estendi-as, na palma da mão, a Matthew Hay.

 

O que é isto? perguntei bruscamente. A noite passada dormi no quarto da tia Sara e este cheiro estava em toda a parte.

 

Estragão disse ele. Diz-se que em chá é bom para problemas digestivos e para a flatulência.

 

Franzi ligeiramente o sobrolho.

 

A minha mãe costumava usar o estragão em saladas e juntava-o ao vinagre disse e não cheirava nada assim.

 

Ele esmagou umas quantas folhas entre os dedos. O odor era estranhamente perturbador e estonteante. Ele disse, lentamente, com os olhos assestados em mim:

 

O cheiro das ervas frescas não se assemelha nada ao das ervas secas que se compram nos supermercados. Essas são muitas vezes misturadas com ervas mais baratas.

 

Esmaguei as ervas entre os dedos, tal como ele fizera, e cheirei-as. Inspirando profundamente o odor, descobri que este produzia em mim um estranho efeito. As roupas pareceram ficarem-me apertadas e desconfortáveis, como se a minha pele ansiasse por ar fresco. Todos os nervos do meu corpo pareceram ficar mais despertos. Quando ergui o rosto, vi que os olhos de Matthew Hay estavam fixos em mim, mantendo a expressão perturbante e ávida.

 

Pergunto-me como será ele na cama! Parece forte e poderoso...

 

Matthew Hay disse com uma ênfase tranquila:

 

Também tem a fama de ser um afrodisíaco... um estimulante sexual.

 

Deixei cair as folhas como se estas me estivessem a queimar, mas ele riu-se.

 

Os meus olhos concentraram-se num arbusto baixo ao fundo do jardim, carregado com bagas grandes de um negro azulado.

 

Aquilo é comestível? perguntei.

 

Nem pensar! Puxou-me para trás quando estava prestes a tocar-lhes. Não a aconselho a usá-los num bolo, menina Latimer! Isso é beladona... um solano mortal! O princípio activo é a atropina!

 

Recuei.

 

E que faz esta planta num jardim de ervas?

 

Usada cuidadosamente, em pequenas quantidades disse ele pode ser usada como... como um alucinogéneo. Também tem usos medicinais. De outras formas é um veneno mortal.

 

Avançou apontando-me outras ervas. Variedades de tomilho e segurelha, usados na culinária; artemísia, boa para curar o acne e as verrugas; manjerona, para aliviar a hidropisia e os inchaços, bem como um excelente tempero para peixe ou frango. Funcho, óptimo para combater as diarreias de Verão que costumavam levar tantas crianças da comunidade e outras ervas cujos nomes me eram estranhos. Os seus odores, amargos, intoxicantes ou pungentemente adocicados, passado algum tempo misturaram-se num torvelinho no meu espírito e nos meus sentidos. Fiquei bastante interessada num canteiro de erva dos gatos que crescia no meio das outras ervas. Se a tia Sara tinha tido um gato parecido com o Barnabas, e se cultivara a erva por causa dele, bem... na verdade o gato entrara pelo canteiro como se este lhe pertencesse.

 

Quando chegámos ao fundo do jardim, Matthew Hay disse:

 

Gostaria de ver a minha igreja? Fica do outro lado do cemitério... na verdade este cemitério foi em tempos o velho "campo de enterros", como lhes chamavam os antigos habitantes de Nova Inglaterra, nos tempos em que esta era uma Igreja Oficial Puritana; nessa época chamava-se a Igreja Separatista de Cristo, o mesmo grupo que agora é conhecido como Igreja Congregacional em toda a Nova Inglaterra. Habitualmente atalho pelo cemitério quando aqui venho; suponho que não tem receios supersticiosos? Há muitas mulheres que não gostariam nada de viver numa casa com vista para o cemitério. Encaminhou-me pelo portão em ruínas.

 

O meu pai costumava dizer: para quê ter medo dos mortos quando há tantos vivos mais capazes de nos fazerem mal?

 

Um homem sensato, não há dúvida disse Matthew Hay, evitando com perícia uma campa velha e meio tombada de que não me apercebera.

 

Ocorreu-me que alguns dos meus antepassados deviam estar sepultados ali.

 

Há muitos Latimers neste cemitério?

 

Muitíssimos. A menina Latimer, a sua tia-avó, deixou expresso o desejo de ser sepultada aqui junto aos seus antepassados, mas este cemitério já não recebe enterros e ela está sepultada oficialmente no cemitério da Igreja de Madison Corners.

 

Que é que quer dizer, oficialmente? perguntei e a expressão estranha de raiva voltou a estampar-se-lhe no rosto. Cerrou os punhos com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. Pensei, por instantes, que me ia bater e cheguei mesmo a estremecer. Mas ele recuperou rapidamente o controlo da voz.

 

Quero dizer que a menina Latimer me confidenciou frequentemente que gostava tanto deste lugar que estava certa de que o seu espírito regressaria aqui, fosse onde fosse que o seu corpo jazesse disse. Aqui está uma das suas antepassadas, Sara.

 

Olhei para baixo e um arrepio gelado de horror percorreu-me:

 

SARA MACiDALLN LATIMER

Aqui morta por cães, 1884. "E os cães comeram a sua carne", II Reis 9:36

 

Exclamei.

 

Sonhei com isto a...

 

Oh, meu Deus! exclamei. Sonhei com isto a noite passada! Vi esta...

 

As mãos de Matthew Hay eram fortes e amparavam-me com firmeza.

 

É uma passagem bíblica muito conhecida.

 

Mas na nossa família nunca se leu a Bíblia disse ofegante e não é o tipo de coisa de que eu me fosse lembrar...

 

Não se preocupe disse ele em tom calmo, se calhar nem sonhou com isto. Há um fenómeno, chamado dê jà vu, que faz com que acreditemos já ter visto algo antes. Actualmente, a maior parte dos psicólogos acredita que o que se passa é simplesmente que metade do nosso cérebro se apercebe de algo antes da outra metade e por isso a situação nos parece familiar. Ou, possivelmente, quando chegou a casa na noite passada, viu a pedra com a sua visão periférica e o seu subconsciente recordou-se ainda que, conscientemente, não se lembrasse de nada.

 

Abanei a cabeça com teimosia. Na noite anterior, quando chegara a casa, estivera tão escuro que precisara de usar a lanterna só para entrar.

 

Não. Sonhei. Esta maldita casa!

 

Acho que está perturbada disse ele. Quer voltar para trás? Avisei-a de que viver tão perto de um cemitério pode ser pernicioso para os seus nervos.

 

Agora vai voltar a andar atrás de mim para lhe vender a casa.

 

Não respondi. Virei-me e olhei para a casa iluminada pelo Sol. Agora era apenas um velho edifício ridículo que, era óbvio, começara como uma simples casa da Nova Inglaterra e que as gerações seguintes tinham acrescentado com alas longas e disformes, torreões, varandas, janelas panorâmicas sem qualquer sentido ou bom senso arquitectónico. Era uma monstruosidade que faria com que um artista fugisse aos gritos e agora, à luz do dia, era apenas ridículo. Em Berkeley teria sido considerada uma obra-prima do piroso. Bruxas, religiões antigas, casas assombradas, gatos na soleira... não passava tudo de um pesadelo piroso, e ri-me.

 

Uma casa assim daria pesadelos a qualquer um disse. Vamos ver o resto do cemitério. Há alguns epitáfios antigos e cómicos?

 

Por acaso há alguns disse Matthew Hay. Este local tornar-se-ia numa atracção turística se fosse conhecido. Por exemplo, aqui está uma das minhas antepassadas. Conduziu-me a um velho túmulo de mármore cinzento e ajudou-me a decifrar as letras quase ilegíveis:

 

BOA ESPOSA TABITHA HAY

Morreu em 1702

 

Esposa Amada de O-Senhor-é-o-meu-Repouso Hay

 

O Senhor Dá e o Senhor Tira

 

Bendito Seja o Senhor

 

Não vejo o que é que isso tem de engraçado disse embora... mas que nome! O-Senhor-é-o-meu-Repouso!

 

Alguns têm nomes piores do que esse disse Matthew Hay.

 

Na velha Bíblia da família consta um dos meus trisavôs, de nome Trava-a-Luta-Justa-pelo-Senhor Hay. Mas ainda não viu tudo. O velhote tinha três mulheres. Olhe, aqui está a esposa número dois. Na pedra tumular lia-se:

 

ELIZA HAY

Morreu em 1709

 

Esposa de O-Senhor-é-o-meu-Repouso Hay É Melhor Casar do que Arder

 

Ele, como é óbvio,

não ardeu. Onde está a esposa número três?

 

Está aqui.

 

CHARITY HAY

Morreu em 1714

 

Esposa de O-Senhor-é-o-meu-Repouso Hay Se uma mulher quer ser virtuosa, que seja virgem.

 

Bom Deus! exclamei. Mas que epitáfio para uma esposa!

 

Mas aqui está o clímax disse Matthew Hay conduzindo-me a um monumento alto e cinzento, apontando o céu com um poder fálico, aqui está o velho, ele próprio.

 

O SENHOR É O MEU REPOUSO HAY

Morreu a 1 de Abril de 1754

 

"É melhor viver num canto do sótão do que numa casa grande com uma mulher briguenta"

 

Não pude deixar de me rir.

 

O velho patife!

 

Ora, bem, ele pode ter tido boas razões para se tornar num misógino comentou Matthew Hay.

 

Rir-me com ele fizera desaparecer uma boa parte do meu desconforto; sentia-me agora bastante à vontade com este homem e, quando acabámos de explorar o cemitério, comentando com pena o facto de muitas crianças terem morrido antes dos dois anos, os nomes antigos e pitorescos e os textos bíblicos, já nos tratávamos por "Matthew" e "Sara".

 

Já não me sobressaltei ao encontrar mais duas ou três campas onde estavam sepultadas outras "Sara Latimer", de

1657 a 1908. Havia outros Hays, Standishes, Latimers, Whitfields, Whateleys, Marshes e uma multidão de nomes famosos na História da Nova Inglaterra. Ao fundo do cemitério, onde havia um velho portão de bronze, ele conduziu-me através de um pequeno bosque até um edifício antigo e decrépito construído em pedra.

 

A Igreja do Antigo Rito.

 

Mas este edifício é tão velho que certamente é perigoso. Hesitei nos degraus da porta antes de entrar.

 

Os artesãos desses tempos construíam com mais cuidado do que os modernos disse ele e a igreja, em especial, foi construída para durar. Na Europa, muitas catedrais construídas no século x continuam a ser usadas quotidianamente. Quanto mais tempo uma igreja tem, mais poderosa se torna a acumulação de todas as celebrações do passado junta-se e cria uma aura de poder.

 

A mão no meu braço incitava-me a entrar. Pensei: uma seita de bruxos? Não, não podia ser, numa igreja genuína e consagrada. Entrei.

 

A igreja era antiga e um cheiro a mofo e a madeira e a pedras velhas assaltou-me, combinado com um odor a ervas e a outra coisa que não reconheci. Não havia bancos, talvez tivessem sido todos retirados. Depois de ter dado um ou dois passos senti-me estranhamente enjoada e sem vontade de avançar. A mão dele no meu braço era singularmente constrangedora. Conduziu-me directamente ao altar.

 

Este era baixo e plano, uma pedra semelhante às dos túmulos. Em cima do altar estavam vários objectos: uma taça, uma vara verde de salgueiro.

 

Senti-me como se uma bruma passasse diante dos meus olhos. Perguntei, bruscamente:

 

Onde está a faca de cabo negro? A voz dele enrouqueceu.

 

Pensei que me tinha dito que não percebia nada destas coisas! Virou-se para mim, os olhos brilhando como aço ardente.

 

Abanei a cabeça, sentindo-me tonta.

 

E não percebo. Juro que não percebo. Não faço ideia do que me levou a dizer tal coisa!

 

Mas faço eu! Virou-se para me olhar de frente com as mãos apertando-me os ombros. Sentia o seu hálito quente na minha cara. Sara Latimer, você é uma de nós! A sua memória mais íntima diz-lhe que é uma de nós! Não percebe? De cada vez que uma rapariga com as suas características físicas e emocionais nasceu na sua família, tornou-se numa grande sacerdotisa da Velha Religião! E agora que veio para aqui, a memória ancestral é forte em si também! A sua voz baixou, transformando-se num murmúrio persuasivo. Não descobriu que desde que para aqui veio tem dito e feito coisas estranhas, coisas que nunca teria feito anteriormente?

 

Aquilo fez-me parar para pensar. Tinha dado comigo na cama, na noite anterior, com um completo desconhecido. Debati-me debilmente, dizendo:

 

Não quero ser uma bruxa!

 

Diz isso porque não sabe nada desse assunto disse Matthew e agarrou-me com firmeza. É esse agora o seu destino, Sara. É uma de nós. Não pode resistir.

 

Não! Não! Tentei libertar-me. Mas o seu hálito quente era estonteante, o toque das suas mãos, apesar de duro e cruel, era estranhamente excitante.

 

Disse, em tons baixos e persuasivos:

 

Deixe-nos consagrar o regresso a casa da nossa sacerdotisa.

 

Não consegui afastar-me. Como se estivesse hipnotizada, deixei-o despir-me a blusa e a saia. Ele atirou as suas próprias roupas para longe e ficou na minha frente, erguendo os braços num gesto estranho e ritual.

 

Bode Negro dos Bosques! Oh Ser Cornudo de Luxúria e Poder! Testemunha que tomo esta mulher, a tua neófita, em homenagem a ti!

 

Ouvi-me murmurar, atordoada:

 

Que assim seja!

 

O corpo dele era alto, estreito e quase glabro, mas os músculos do peito e das costas moviam-se suavemente, como os de um gato, quando se dirigiu a mim. Estava completamente erecto e pareceu-me enorme, o órgão viril comprido e duro, parecendo pulsar ao compasso de um ritmo estranho. Isto é uma loucura, pensei, o homem é louco! Não, eu é que estou louca. Estamos todos loucos! E ali está o gato que ri! Por cima do ombro de Matthew vi Barnabas, que saltara para o altar e ali ficara deitado a observar-nos com os seus grandes olhos, amarelos e maliciosos.

 

Ouvi-me gemer alto quando uma onda de desejo me percorreu, algo que não podia controlar. As mãos de Matthew fecharam-se sobre os meus seios, apertando-os dolorosamente e senti os mamilos incharem e endurecerem. Ele empurrou-me até ficar deitada no chão de pedra em frente ao altar e ajoelhou-se por cima de mim, gritando palavras que não percebi:

 

Ad baraldim, asdo galoth Azathoth!

 

Quis gritar, erguer a voz, arranhá-lo, pôr-me de pé e fugir, fugir nua se preciso fosse, correr nua pelo cemitério, correr e correr e correr e não mais parar...

 

Ele curvou-se e mordeu-me selvaticamente um seio. Ouvi-me gritar, um grito rouco e frenético. A sua boca moveu-se ao longo do meu corpo, mordiscando, mordendo, sugando ferozmente; demorou-se na minha barriga e moveu-se inexoravelmente para baixo. Ergueu-se novamente e arfou, com voz insegura:

 

Presto homenagem à porta da vida!

 

Lentamente, deliberadamente, como se celebrasse um ritual estranho, a sua boca aproximou-se das partes macias das minhas pernas abertas. A boca fechou-se, demorou-se, meio dentada, meio beijo prolongado; gemi alto, delirante, só parcialmente consciente do que me acontecia.

 

Depois ele endireitou-se subitamente, com o rosto distorcido e os olhos com um brilho tão verde como os de um gato e baixou sobre mim. Bruscamente, as suas mãos duras abriram-me as coxas e senti-o entrar em mim, com força, dolorosamente, investindo profundamente no interior do meu corpo. Gritei e comecei a debater-me, mas as suas mãos agarravam-me com tal força que não me conseguia mexer. Uma e outra vez, selvaticamente, até que a dor se transformou em resposta e dei por mim a mover-me, a contorcer-me, arranhando-o, sem saber se lutava contra ele para fugir ou se me juntava a ele numa reacção selvagem. Depois soube e ouvi-me gritar, loucamente, insanamente, o meu corpo num vaivém violento, arranhando-o, deixando traços de sangue nas suas costas e ombros nus, as pernas apertadas sobre as suas costas. Balançámo-nos juntos para a frente e para trás, oscilando, arfando, o seu rosto contorcido e louco e uma névoa raiada de vermelho que oscilava e ondulava perante os meus olhos. O gato soltou um uivo longo e selvagem, como um eco, saltou do altar e encostou o nariz às nossas cabeças unidas.

 

Recostei-me, tentando recuperar o fôlego, com o coração aos saltos enquanto Matthew se punha lentamente de joelhos. Dirigiu-se ao altar, erguendo sobre este as mãos abertas, murmurando para si próprio ou aos estranhos deuses que invocava.

 

Abalada, quase a chorar, agarrei nas minhas roupas. Barnabas encostou o nariz à minha mão e afaguei-o distraidamente. Raios, pensei, devo estar a ficar louca.

 

Que podia fazer? Emitir estranhos protestos ruidosos? A não ser que Matthew Hay estivesse completamente fora de si, certamente percebera que eu gostara tanto como ele. Mas que raio ou que diabo me teria dado?

 

Matthew regressou, inclinando-se para me tocar ao de leve nos cabelos. Disse suavemente:

 

Que sejas bem-vinda entre nós, Amada.

 

Apercebi-me de que continuava sob o efeito do estranho feitiço, fosse ele qual fosse. Uma estranha imagem formou-se-me no espírito e disse, sem ter a certeza da razão porque o fazia:

 

Isto foi errado, Matthew. Não tinhas posta a Máscara do Cornudo.

 

Os olhos dele brilharam de júbilo. Disse:

 

Agora sabes que és verdadeiramente uma de nós. A Máscara não importa, Sara; compensaremos esse facto no Esbat amanhã à noite, agora que foste selada por mim. Podemos apresentar-te à assembleia nessa ocasião e podes tomar o teu antigo lugar de sacerdotisa.

 

A cabeça de Barnabas continuava debaixo da minha mão; estava quente e era uma ilha de sanidade e de normalidade num universo louco cheio de miragens. O mundo continuava a girar por baixo de mim, sentia-me fraca e tonta, o meu corpo quente e saciado. Mas tinha de regressar à realidade. Dobrei as pernas e soergui-me, vestindo a saia e apertando-a. Enfiei a camisola pela cabeça, apreciando a escuridão momentânea quando esta me cobriu os olhos. Quando a cabeça saiu do decote atirei o cabelo húmido para trás e olhei Matthew de frente.

 

Não sei como o fizeste disse mas não significa aquilo que pensas que significa.

 

Não? Sentou-se, de pernas cruzadas, ainda nu, em frente ao seu grande altar. A maior parte dos homens têm um ar ridículo a seguir, com o sexo mole e pendurado, mas Matthew conservava ainda um curioso resíduo de poder e força. Disse: Responde-me honestamente, Sara. Alguma vez fizeste algo de parecido com isto... alguma vez na tua vida?

 

Eu sabia exactamente o que ele queria dizer. Mas não respondi àquilo que ele estava a perguntar.

 

Se fiz sexo, é o que queres dizer? É claro que sim. Tenho vinte e três anos e estamos em 1971. Nenhuma rapariga da minha idade é virgem a não ser que tenha tantos problemas que se torne insuportável. Vivi com um homem na Califórnia durante quase um ano.

 

Os olhos dele mantiveram-se firmes, sem prestar atenção à evasiva.

 

Não foi isso o que eu perguntei. O que quis dizer foi, facilmente, promiscuamente, sem quaisquer dos fingimentos românticos da nossa cultura.

 

Era exactamente o que eu pensara. Uma rapariga pode ir para a cama uma vez com um perfeito desconhecido, um homem que conhecera apenas uma hora antes e isso pode significar apenas uma atracção súbita e irresistível. Estivera a pensar, naquela manhã, se com Brian fora amor à primeira vista. Mas fazer o mesmo duas vezes, saltar para a cama ou pelo menos para o sexo com um perfeito desconhecido duas vezes em menos de vinte e quatro horas, isso já era diferente. Não era eu, não era o tipo de coisa que eu fazia.

 

Ainda assim, não lhe ia contar do Brian. Ele podia autodenominar-se sacerdote, mas isso não significava que tivesse o direito de me ouvir em confissão. Disse evasivamente:

 

Antes de vir para aqui, não. Nunca.

 

O olhar dele continuava calmo e firme. Era certamente a mais estranha conversa pós-coito que alguma vez tivera com um homem. Perguntou:

 

E sentes-te culpada? Culpada?

 

Não disse eu com franqueza, não verdadeiramente. Mas sinto-me... bem, idiota. Um pouco envergonhada. Parece uma atitude estúpida e de mau gosto.

 

Porquê?

 

Não tinha nenhuma resposta pronta e, embora continuasse sem saber o que pensar daquele louco estranho que parecia ser capaz de me ler a mente e a própria alma, não ia rebaixar-me a mentir-lhe. Disse:

 

Não sei. Vou ter de pensar nisso. Vou ter de decidir o que sinto realmente. Pus-me de pé. Sentia-me um pouco melhor a olhá-lo de cima.

 

Ele pôs-se também de pé e, calmamente, pegou nas roupas. Disse:

 

O que estás a sentir agora é simplesmente o efeito do reajustamento do teu antigo eu, e da tua falsa educação para o teu verdadeiro eu, o eu-bruxa, Sara. Todos os bruxos são promíscuos e obtêm prazer onde lhes apetece.

 

E o que te leva a pensar que este é o meu verdadeiro eu?

 

Ele sorriu.

 

Olha para o quadro na tua casa, Sara. Todas as Saras Latimer são bruxas.

 

Agarrou-me no cotovelo para me conduzir para fora da igreja. Quando me mexi senti um movimento reminiscente no interior do meu corpo; mas ignorei a sensação. Disse, num súbito assomo de ira:

 

Não usaste nada; que vou fazer se me tiveres engravidado? Ou uma bruxa não se deve preocupar com essas insignificâncias?

 

Ele atirou a cabeça para trás e deu uma gargalhada enquanto apertava as calças. Perante o meu olhar de ira e indignação parou de rir e disse bondosamente:

 

Desculpa, Sara. Não paro de me esquecer do quão pouco sabe destas coisas o teu eu consciente. Uma das grandes verdades da magia é o facto de a não ser que seja feito deliberadamente num ritual de fertilidade, o que não foi o caso nenhuma bruxa ter saído alguma vez do pé do Altar Negro levando, como se costuma dizer, algo que não tivesse trazido.

 

Esperei que aquilo fosse um facto e não apenas uma crença da bruxaria! Ele deve ter-se apercebido do meu cepticismo pois disse:

 

Nesse caso terás de esperar para ver, a não ser que recuperes totalmente a tua memória de bruxa. Lamento que tenhas de te preocupar com isso; acredita, não é necessário. Acabou de apertar a gravata. Parecia descontraído, civilizado e aprumado, sem qualquer vestígio do frenesim selvagem de cinco minutos antes.

 

Escoltou-me através do cemitério até à porta da minha velha casa.

 

Tenho coisas a tratar disse e tenho de falar com os outros membros da congregação. Perdoa-me por te deixar agora. Mas ver-nos-emos novamente no Esbat.

 

Deixei-o partir sem dizer palavra e fiquei a vê-lo afastar-se, sorridente e ligeiro. Mas a despedida, infantil e maldosa, das rapariguinhas da escola, soava-me aos ouvidos.

 

Vês-me no Esbat? Não se eu te vir primeiro!

 

O Meu Único e Verdadeiro Amor

 

Dentro de casa, subi as escadas evitando os olhos pintados da tia Sara no patamar. Todos os bruxos são promíscuos. Teria ela atraído os homens locais para a sua cama, mesmo quando já era uma velha? Oh, raios, quem era eu para a criticar? Não ia permitir-me nenhumas racionalizações fáceis, ou dizer que tinha sido hipnotizada, nem nenhum desses disparates. Muito bem, tinha comido o Matthew Hay formulei a ideia da forma mais crua que me foi possível. E tinha gostado. Mas se começasse a pensar que estava possuída pelo espírito, ou espíritos, de uma ou outra bruxa da minha família, essa seria uma forma de ir parar rapidamente ao asilo local!

 

No andar de cima, entrei para a banheira alta e esfreguei-me e voltei a esfregar-me, tentando lavar furiosamente o cheiro e a memória do corpo de Matthew Hay. Os meus seios estavam marcados e apareciam nódoas negras; tinha marcas de dentes nos ombros e sangue por baixo das unhas por tê-lo arranhado. Quando finalmente saí do banho e me sequei com a toalha, fui ao quarto e procurei a pomada anti-séptica na mala de viagem, evitando cuidadosamente os potes e frascos de porcelana que estavam em cima do toucador da tia Sara. Era melhor livrar-me deles, por melhores que fossem os seus remédios à base de ervas. Lembrei-me que lera que não existiam verdadeiros afrodisíacos... mas algo tivera efeito em Brian na noite anterior. E em mim também.

 

Entrei na sala que escolhera para trabalhar, tirei uma folha de papel de desenho e fixei-a ao cavalete e tentei começar uma das ilustrações. Não me serviu de nada; dei por mim a desenhar descontraidamente uma curiosa máscara com cornos... a máscara do Cornudo? O que quer que isso fosse!

 

Solitária e deprimida, dei por mim a apetecer-me fazer novamente as malas e a fugir estrada abaixo. O autocarro de Arkham sairia daí a meia hora. Aquela casa era de mais para mim. Barnabas miou no andar de baixo e desci para lhe dar o resto do leite. Mais uma complicação; agora que o animal me adoptara, não podia abandoná-lo simplesmente para que morresse de fome. Oh, raios, se eu era realmente uma bruxa, deveria ser capaz de fazer aparecer alguém para tratar do gato, ou lançar um feitiço que fizesse com que alguém aparecesse para me animar!

 

Vagueei desconsoladamente pela casa. Na enorme biblioteca forrada de livros, encontrei um volume, que parecia ter uns cem anos, intitulado: O DEUS DOS BRUXOS. Ao folheá-lo, encontrei a informação de que o Esbat era a reunião semanal da congregação de bruxos e o Sabat um festival que acontecia quatro vezes por ano. Aquilo fez-me pensar novamente em Matthew Hay e enfiei o livro outra vez na prateleira. Talvez devesse lê-lo para perceber aquilo que tinha pela frente, mas não o faria naquele momento.

 

Subitamente o meu humor melhorou; nunca tive dons psíquicos, mas dei por mim a assobiar alegremente e não fiquei verdadeiramente surpreendida quando um pequeno Volkswagen azul-escuro, que me era familiar, subiu penosamente a colina e se deteve à minha porta.

 

Foi como se um peso desaparecesse do meu coração. Não me apercebera do quanto temera que ele pensasse em mim como uma "queca fácil" e não como uma rapariga de quem gostava e que o queria conhecer melhor. Corri para a porta da frente e abri-a quando entrava para o alpendre.

 

Oh, Brian, estou tão contente por te ver! Ele abriu os braços e abraçou-me.

 

Olá, bruxa de olhos verdes! Estás linda! Queria ter vindo antes, mas tive de parar para ir ver uma rapariga que está com sarampo e um velhote que entalou o dedo numa ratoeira, bem como outros pacientes dos males da carne. Mas não parei de pensar em ti, tentando arranjar uma desculpa para vir cá ver-te e acabei por arranjar uma.

 

Não consigo perceber por que razão achaste que precisavas de uma desculpa disse eu. Ele corou.

 

Bem, não quis que pensasses que eu estava só a tentar... bem, levar-te novamente para a cama. Mas, afinal, encontrei uma desculpa perfeita. Apercebeste-te de que te acendi o candeeiro mas não cheguei a ensinar-te a acendê-lo sozinha? Tive medo que ficasse escuro e continuasses às voltas com a torcida e o queimador!

 

Essa é uma excelente desculpa! E quanto a convenceres-me a Ir novamente contigo para a cama, o que te leva a pensar que tens necessidade disso? Mas não disse essa parte. Sentia-me um pouco envergonhada, pensando subitamente se o sexo com Brian teria sido real ou teria sido, tal como me acontecera com Matthew Hay, um simples reflexo da influência da bruxaria? Oh, disparates! Eu desejara Brian. Não desejara Matthew Hay, não iria permitir que ele me afastasse de Brian.

 

Entra, Brian.

 

Não conseguirias impedir-me de o fazer. Entrou e viu os olhos grandes de Barnabas. Olá, então já encontraste um animal de estimação, Sara?

 

Parece que foi ele que me encontrou. Apareceu nos degraus como se fosse o dono da casa. Brian, quando te fores embora, podes dar-me boleia até à loja? Preciso de comida para gato e de umas quantas mercearias.

 

Tenho uma ideia melhor. Vou contigo às compras, é provável que eu saiba melhor do que tu o que é preciso numa casa destas e depois vamos dar uma volta pela costa e jantamos num sítio qualquer, um verdadeiro jantar marinho, com caranguejo e lagosta e esse género de petiscos e depois... bem, depois veremos. A menos que o hospital de Arkham me telefone por causa de alguma urgência, haveremos de arranjar maneira de passar o serão.

 

Corri ao andar de cima para ir buscar a carteira. Foi um alívio fechar a porta atrás de mim e até mesmo sair do alcance dos olhos grandes e sábios do Barnabas. Pensara que íamos à loja de Madison Corners, mas em vez disso ele tomou a estrada para Arkham e levou-me a um grande supermercado moderno junto à universidade. Enquanto ele empurrava o carrinho pelos corredores, escolhendo alimentos que não se estragariam fora do frigorífico, fiquei a saber que nascera em Madison Corners e que estudara ali na Miskatonic antes de ir para a faculdade de medicina em Boston, depois de uma breve passagem pelo exército.

 

Tal como a maior parte dos médicos hoje em dia, poderia instalar-me numa grande cidade onde já há imensos médicos e entrar numa competição louca para arranjar uma boa clientela. A maior parte dos meus colegas, até mesmo os da faculdade de medicina, achavam que eu era maluco por me contentar em ser médico de província aqui, por trás do Sol posto. Até mesmo Arkham é bastante isolado, mas aquelas quintas todas até Innsmouth, essas nem vêm no mapa!

 

Lembrei-me do que o motorista do autocarro dissera: "Ninguém quer ir a Innsmouth."

 

Esse sítio tem alguma coisa de mal? Ele encolheu os ombros.

 

Suponho que não. A população local é uma mistura de gente antiga da Nova Inglaterra suficientemente antiga para ter degenerado através dos casamentos consanguíneos, incesto e sabe Deus que mais ilhéus dos mares do sul, pescadores portugueses, que já aqui estão há tanto tempo que podem ser eles próprios considerados gente antiga da Nova Inglaterra, e de toda a espécie de ralé dos portos marítimos mundiais de todas as condições. Innsmouth costumava ser um porto muito importante nesta costa. A cidade está a cair, o negócio da pesca mudou-se para outras paragens assim como todos os habitantes com a inteligência e energia suficientes para fazer as malas e partir. O que resta é praticamente a escumalha humana. Mas esses também adoecem e, à parte o primo James, que está a caminho dos setenta, e de um velhote senil em Whateley’s Crossing, sou o único médico fora de Arkham desse lado do Estado. Nunca percebi porque é considerado uma virtude ir levar os problemas da civilização aos paquistaneses ou aos habitantes do Biafra e, simultaneamente, é considerado uma estupidez passar uns anos nos Apalaches ou nas docas esquecidas de Nova Inglaterra. Olhou para mim com uma expressão quase defensiva. E se me disseres que sou um idealista confuso, eu... eu...

 

Beijas-me, espero disse suavemente e apertei-lhe o braço. Acho que é maravilhoso, Brian.

 

Não é maravilhoso disse ele bruscamente e na defensiva, é apenas necessário, e mais ninguém o faz. Virou-se para mim e sorriu. Mas admito que isto era bastante lúgubre até teres aparecido e vou apelar à tua consciência social para que passes muito tempo comigo, para que me sinta feliz e com vontade de ficar cá.

 

Será um prazer disse eu com sinceridade, mas pensei que nestas regiões rurais saudáveis e puras, havia uma simpática e desinibida rapariga do campo por trás de cada monte de feno.

 

Mas foi o que acabei de te dizer disse Brian. Esta não é uma região rural pura e saudável, é uma região degenerada e decadente, Sara. Algumas destas famílias são tão antigas e com tantos cruzamentos consanguíneos que há uns quantos idiotas recessões fatais e deficiências congénitas em todas as famílias. Suspeito que os índices locais de doença mental são mais altos do que aqueles que existem mesmo nas condições de grande stress urbano, como em Harlem. Pensas que era apenas devido à superstição local que a tua tia Sara tinha fama de bruxa ou que as gentes locais são estranhas?

 

Sorri com malícia.

 

Espero que a casa não tenha o mesmo efeito em mim.

 

Não era isso o que eu queria dizer. O teu ramo da família deve ser relativamente saudável; fugiram daqui. Mas os que cá ficaram tornaram-se cada vez mais estranhos, e isso aplica-se aos Standishes e aos Whitfields e aos Marshes e aos Hays tanto como aos Latimers. Não me surpreenderia que algumas das pessoas de cá sejam suficientemente loucas para acreditar em bruxedos e feitiços e que se entreguem a essas práticas.

 

Aquilo fez-me pensar imediatamente em Matthew Hay. Vejo-te logo no Esbat. Não podia discutir aquele assunto com Brian. Ele podia não ter ficado com má impressão minha por ter saltado para a cama com ele pouco depois de o ter conhecido, era evidente que a atracção era recíproca, mas como se sentiria se tentasse explicar que Matthew Hay me tinha hipnotizado ao ponto de ter rolado com ele pelo chão da sua igreja de loucos?

 

Empurrámos o carrinho e passámos ao corredor seguinte até junto de uma pilha de latas de abóbora e chocámos com outro carrinho. O homem que o empurrava girou sobre si próprio, ficou a olhar para nós e depois uma voz familiar uma voz que eu associava a uma outra vida a cinco mil quilómetros de distância disse:

 

Olha, é a Sara Latimer, não é?

 

O homem que empurrava o carrinho era alto e esguio, com o cabelo grisalho e dava a sensação paradoxal de uma enorme força. Não fiquei nada aborrecida por ver um rosto conhecido.

 

Dr. MacLaran exclamei.

 

É teu amigo, Sara? perguntou Brian. Pensei que não conhecias ninguém nesta parte do país.

 

E não conheço. Não consigo imaginar... desculpem-me. Colin MacLaran, Dr. Brian Standish.

 

Ela chamou-lhe Dr. MacLaran... começou Brian a dizer.

 

Um doutoramento disse Colin MacLaran. Nunca me lembro disso; os estudantes neste país insistem em chamar doutor a todos quantos ensinam na universidade, quer o sejam quer não. E apenas uma das coisas estranhas dos estudantes americanos. Acho que na Europa isso não acontece.

 

Mas o que faz por estas paragens?

 

Estou a dar aulas sobre folclore na Universidade Miskatonic... no curso de Verão disse Colin. Encontrei o Roderick na livraria e ele disse-me que tinhas voltado para o Leste para cuidar da tua mãe. Como está ela, Sally?

 

Morreu há cerca de duas semanas respondi. Fora há tão pouco tempo? Senti-me chocada.

 

Oh, lamento disse ele. Essa era uma das características de Colin MacLaran; aquela frase nos seus lábios não era uma mera convenção social, dava a impressão de lamentar verdadeiramente. Espero que o resto da família esteja bem.

 

Quando lhe contei resumidamente as mortes de Brad e do meu pai, pareceu ficar horrorizado.

 

Que coisa terrível, Sally! Tens mais familiares a viver aqui nas redondezas, é? Para mim, como é evidente, isto é uma questão de trabalho, mas esta região parece-me bastante sombria...

 

Tenho tido família aqui desde o dia 1, suponho disse eu. Herdei uma casa velha e completamente horrenda em Witch Hill Road uma boa casa assombrada, repleta das tradições locais... Se interessa-se mesmo pelo folclore local deveria vir até lá dar uma vista de olhos e talvez registar as histórias que contam daquele local.

 

Gostaria muito disse ele, mas por agora não quero empatá-los, jovens... Witch Hill, isso fica perto de Madison Corners, certo?

 

Certo respondi. E há lá uma velha igreja, qualquer coisa chamada Igreja do Antigo Rito... deve ser mesmo o tipo de coisa que lhe interessa.

 

Já ouvi falar de algumas dessas velhas igrejas disse ele pensativo. Devia mesmo ir até lá para dar uma vista de olhos, se não te importares.

 

Adoraria disse ela com um alívio considerável. Podia já não ter parentes na região... mas não era estranho que um dos meus amigos mais antigos aparecesse logo ali?

 

Velhos Amigos

Gostaria imenso que viesse connosco disse eu mas agora o Brian tem de voltar para o hospital...

 

Claro disse Colin, mas Brian interrompeu-os.

 

Isso só me vai levar aí uns dez minutos; porque não ficas a conversar com o professor enquanto eu vou ver como estão as coisas. Depois, se quiserem... hesitou. Talvez queira vir jantar connosco, professor.

 

Gostaria muito disse Colin mas só se forem meus convidados. Riu-se. E a Sally pode contar-me tudo sobre a casa assombrada.

 

Riu-se novamente para que eu percebesse que estava a brincar; mas ocorreu-me que, se havia alguém capaz de perceber o meu incrível legado, esse alguém era Colin MacLaran.

 

Perguntei-lhe:

 

Quem é que ficou a tomar conta da livraria enquanto cá está? A Claire?

 

Oh não. A Claire veio comigo, é minha assistente disse-nos. Deixei a loja entregue a Paul Frederick... lembras-te do Paul, não te lembras?

 

Acho que sim; não é aquele loiro magricelas a quem os miúdos chamam Frodo?

 

É esse mesmo; constrói instrumentos antigos e não ganha lá muito disse Colin. E acabou de se casar, por isso ele e a Emily ficaram muito satisfeitos por passar o Verão a tomar conta da loja. Bem, então vá lá fazer o que tem a fazer no hospital e nós vamos ter consigo ao parque de estacionamento. Suponho que só há um hospital na cidade? Brian riu-se.

 

É o único hospital deste lado do Estado disse. E se alguém tiver qualquer coisa mais grave do que uma mordidela de cão, então tem de ir de ambulância para Boston. Inclinou-se e beijou-me ao de leve. Até logo, Sara... Sally emendou.

 

Assenti.

 

Obrigada; na verdade prefiro Sally. Toda a gente na Costa me chama assim e Sara continua a ser o quadro que está pendurado na parede da casa.

 

Ele dirigiu-se ao carro e Colin disse:

 

Um rapaz muito simpático, Sally.

 

Pois é disse eu fervorosamente.

 

Se me permites que o diga disse Colin, parece-me mais o teu género do que o Roderick.

 

Espero que sim respondi e virei-me para tirar uma dúzia de ovos do frigorífico. Não me apetecia discutir esse assunto, nem mesmo com Colin.

 

Comprei comida para gatos, enchi meio carrinho com mercearias e dirigi-me à caixa; o Colin já lá estava. O carrinho dele estava quase vazio, com o género de compras que um homem faz para os pequenos-almoços e almoços. Apercebi-me de que me sentia satisfeita por poder cozinhar de vez em quando para o Brian.

 

Colin pôs as minhas compras num Chevrolet Citation. Vi que o carro era alugado.

 

Onde é que está a ficar, Colin?

 

Numa cabina para turistas nos limites de Arkham. O sítio quase pode ser caracterizado como um monumento histórico, mas está limpo e tem um fogão e um frigorífico, o que serve para os meus poucos cozinhados.

 

Meteu a mudança e dirigiu-se ao parque de estacionamento iluminado por um letreiro que anunciava o HOSPITAL GERAL DE ARKHAM.

 

Perguntei-lhe cautelosamente:

 

Conhece um homem chamado Matthew Hay?

 

Mal conheço o homem, mas aposto que é doido varrido disse Colin. Parece que é o pastor de uma igreja qualquer de que nunca ouvi falar, provavelmente uma daquelas igrejas que só falam em fogo do inferno e danação ou então uma seita qualquer. As igrejas respeitáveis já não se dão ao trabalho de manter congregações aqui, embora exista uma Igreja Presbiteriana em Madison Corners. Não me parece que continue a existir por muito tempo, o pastor pareceu-me esfomeado. Porquê, conheceste o Hay?

 

Diz que é meu vizinho; apareceu lá em casa respondi. Parece conhecer o Barnabas, mas pareceu-me que durante algum tempo pensou que era o gato da tia Sara.

 

Eu disse-te; doido varrido repetiu Colin. A tua tia Sara já morreu há sete anos, será que ele acha que o gato andou por ali durante esse tempo todo? Ou que o gato tenha voltado à vida só para teu benefício?

 

Acho que durante algum tempo ele pensou mesmo que eu era a minha tia Sara disse. É enervante. Naquela casa... quase sinto que sou assombrada pela tia Sara! Acha possível? Será que ela era... promíscua?

 

Era a melhor tradução que me foi possível fazer dos meus pensamentos em palavras, mas Colin riu-se.

 

Não sei; pelas poucas vezes que vi a senhora, não me parece que alguém tivesse querido saber se era promíscua ou não. Sei que se ela se tivesse atirado a mim eu teria corrido a bom correr para me afastar da velha bruxa. Oh, não era assim tão má, estava muito bem conservada, parece-me, mas não ao ponto de me levar a interessar-me pela sua vida sexual. Não deixes que a casa te complique com os nervos.

 

Ocorreu-me que o Colin estava muito bem informado para um recém-chegado à região.

 

Ainda assim, Sara, eu manter-me-ia afastado de Matthew Hay, se fosse a ti. Esse tipo dá-me arrepios. Tem uma irmã, ou tia ou lá o que é, uma velhota qualquer que lhe trata da casa, acho que se chama Judith, e se a tua tia Sara tinha fama de bruxa, essa velha senhora Judith Hay é a junção das três irmãs sinistras de Macbeth!

Não lhe parece que...

 

Não, mas não sei, e se o velho Hay é vizinho da tia Sara... a casa é capaz de ter pouco pó para uma casa que esteve fechada durante sete anos. Se calhar o Hay ou a velhota têm uma chave. Se fosse a ti trancava as portas por dentro durante a noite, estivessem fechadas à chave ou não, só para o caso do velho Hay aparecer por lá.

 

Obrigada. Vou verificar as trancas.

 

Quem me dera que, em vez do gato, tivesses um cão feroz e bem treinado.

 

Também a mim. Pensei no quarto da tia Sara, cheirando aos seus perfumes afrodisíacos que pareciam despertar todos os meus desejos sexuais latentes. Pensei em Matthew Hay, armado com uma chave que lhe fora dada pela tia Sara e agora o mistério da casa relativamente limpa estava solucionado e teria de mandar trocar as fechaduras, no dia seguinte, assim que pudesse devia haver um serralheiro na cidade. Dei por mim a imaginar o Matthew Hay a subir as escadas sorrateiramente, comigo adormecida e paralisada pelo perfume erótico da enorme cama de dossel. Pensei em Matthew Hay nu, glabro, maligno e ágil como... como o próprio Barnabas ou, melhor ainda, como uma pantera lustrosa do jardim zoológico, olhando o meu corpo nu e inconsciente, descendo sobre mim como um falcão sobre uma galinha, com a sua sexualidade potente e cruel, os olhos brilhantes, as mãos bruscas e rudes...

 

Mas não podia falar disso a Colin; nem sequer podia contar a Brian.

 

Fiquei chocada com a consciência súbita de que afinal não conseguira expulsar Matthew Hay do meu espírito. Não voltaria a pensar nele!

 

Brian saiu do hospital dizendo rapidamente: Parece que tenho a noite livre... talvez a noite toda. Entrou no seu carro e segui atrás dele com Colin. Enquanto atravessávamos as ruas de Arkham, Colin foi apontando muitas das casas antigas, com telhados de duas águas e com mansardas, casas vitorianas pseudogóticas e com torreões, com os alpendres descorados de madeira esculpida, uma velha igreja que fora palco de um famoso assassínio nunca desvendado: fora lá encontrado morto o escritor Robert Blake com uma pedra preta de forma esquisita na mão e o turíbulo soltando um cheiro desagradável e estranho.

 

Oh, até mesmo aqui, em Arkham, há uma certa decadência; é demasiado antiga e isolada disse-me Colin. Tem havido assassínios ligados a seitas e bruxarias e estranhos desaparecimentos. Se Arkham não estivesse tão isolada, estes acontecimentos ter-se-iam tornado numa cause célebre como os crimes do Estrangulador de Boston.

 

Abanei a cabeça com espanto.

 

E eu que sempre pensei no campo como sendo muito sadio e que o crime era característico das cidades grandes e perversas.

 

Esse é o mito favorito da América disse Colin virando para o restaurante atrás do carro de Brian. Na cidade na grande cidade há esquadras de polícia a cada esquina, organizações de beneficência e assistentes sociais. No ano passado, quando cá estive, ouvi falar numa família em que o homem um bêbado velho e fedorento tinha seis filhas adolescentes com um ou dois filhos cada. Adivinha quem era o pai de todas as crianças? Em qualquer cidade ou vila com um tamanho razoável, as autoridades locais da segurança social e organizações de solidariedade teriam levado todas as raparigas para casas de acolhimento depois de a primeira se queixar de que o pai abusava dela; aqui as pessoas orgulham-se de não se meterem na vida dos outros. "Não acreditamos em interferências entre um homem e a sua família", dir-te-ão com expressões sérias. A rapariga mais nova só tinha treze anos, calcula-se, e ela também não sabia, nunca ninguém se deu ao trabalho de lhe dizer a idade. E estava enorme; o bebé iria nascer dali a um mês.

 

E o que é que o Colin fez? perguntei.

 

Que podia eu fazer? Garanti que o parto do bebé era assistido e certifiquei-me de que a assistente social explicava à rapariga os factos da vida. Quando lá voltei, a rapariga do meio Ella May, acho que era o nome dela tinha sido espancada com uma tira de couro e tinha as costas infectadas. Perguntei ao velho o que acontecera, e ele disse-me que a chicoteara porque a apanhara a dar uma cambalhota no feno com um dos rapazes da vizinhança, e ele não queria que nenhuma das suas filhas ficasse com fama de prostituta! Estremeci.

 

E o Brian quer devotar a sua vida a esta gente! Colin disse com seriedade:

 

Parece bastante horrível, não é? Mas tudo aquilo que ele puder fazer será uma ajuda. Se ele não estivesse cá, a rapariguinha de treze anos teria provavelmente ficado ali deitada a gritar com dores durante dias até ficar rouca para ter o bebé enquanto as suas irmãs adolescentes fariam o que pudessem para a ajudar na sua ignorância. Talvez não fizesse qualquer diferença aos objectivos cósmicos se ela tivesse morrido em agonia. Talvez fosse melhor, no longo prazo, se morressem todos; mas enquanto há vida há a esperança de que alguém consiga fazê-los ver a razão. Foi ele quem mandou lá a enfermeira é uma óptima mulher e talvez depois de a Joann falar com as raparigas, talvez uma ou duas delas ganhem a coragem suficiente para dar com a frigideira na cabeça do velho da próxima vez que este for ter com elas à cama... ou talvez agarrem nos desgraçados dos miúdos e fujam para Arkham ou para Boston.

 

Entrámos no restaurante e fomos ter com o Brian. Agarrei-me a um detalhe.

 

Quem é a enfermeira distrital?

 

Joann Winters? Bem, é uma bela rapariga; vou para a cama com ela todos os domingos e vou ter de te atender nos meus tempos livres... ora, Sara, seu monstrinho de olhos verdes! Estás com ciúmes! Querida, a Joann Winters tem quarenta anos, tem três filhos adolescentes que andam na Escola Secundária de Miskatomc e é um membro devoto da Igreja Baptista, mas é uma grande mulher e se andares muito comigo acabarás por conhecê-la. O marido dela é o cirurgião do hospital de Arkham.

 

Enquanto esperávamos que o criado nos viesse sentar e os homens conversavam, pensei com prazer nas diferenças entre Colin e Brian e Matthew Hay. Poderia passar o resto da minha vida até mesmo numa região rural e isolada como aquela com um homem como Brian... recompus-me bruscamente; conhecia-o havia apenas vinte e quatro horas e já estava a pensar em passar o resto da minha vida com ele?

 

Todos os bruxos são promíscuos.

 

Ora, para o inferno com Matthew Hay, era doido qual fora a expressão que Colin usara? Doido varrido. Como é que funcionava a sua lógica lunática?

 

Todos os bruxos são promíscuos.

 

Tu és promíscua.

 

Logo és uma bruxa.

 

Até mesmo eu conseguia ver a falha daquele raciocínio. E, fosse como fosse, eu não era promíscua.

 

(E que raio é que chamas a ir para a cama com dois homens desconhecidos num espaço de doze horas?)

 

Bem, se o Matthew Hay pensava que, lá porque conseguira que eu me deitasse com ele uma vez, iria aceitar os disparates dos bruxedos e juntar-me passivamente à maldita da sua congregação ou lá o que é que ele lhe chamava, ia ter a maior surpresa da sua vida. Se ele me tocasse mais uma vez que fosse eu usando mais uma vez a expressão do Colin dar-lhe-ia com a frigideira da tia Sara na cabeça! Começava a suspeitar que teria desejado Brian onde quer que o tivesse conhecido e quaisquer que tivessem sido as circunstâncias do encontro. Talvez a noite, a estranheza, o meu próprio sentimento de que estava perdida e só, a intimidade do grande quarto da tia Sara e da sua enorme cama de dossel e até mesmo o seu estranho perfume, nos tivessem apanhado de surpresa e feito com que fôssemos para a cama um pouco mais depressa do que em circunstâncias normais teria acontecido.

 

Mas teria acontecido na mesma, aposto. E qual era aquela frase que os estudantes e os hippies diziam a toda a hora lá em Berkeley... algumas das minhas melhores amizades começaram na cama? A verdade é que a cama parecia ter-nos lançado a mim e ao Brian numa relação próxima e calorosa. E eu queria que ela durasse.

 

Amava o Brian.

 

Ele era o meu verdadeiro amor.

 

E para o inferno com a tia Sara e a seita das bruxas e o Matthew Hay. Especialmente o Matthew Hay.

 

Se um pensamento insidioso me atormentou, insistindo que era fácil tomar aquele género de resolução longe da velha casa Latimer e que poderia ser mais difícil mantê-la quando lá estivesse, não me permiti pensá-lo conscientemente. Sentei-me e esperei que o meu amor sabia agora que ele era o meu amor se juntasse a nós e que o criado nos arranjasse mesa para o jantar marinho.

 

A Luz no Cemitério

Foi um óptimo jantar; a estalagem tinha o ar de que George Washington lá dormira e todos os seus homens poderiam ter comido nos velhos pratos de porcelana e sob as mesmas lanternas de cobre decrépitas. Mas a comida era excelente, nada de congelados, enlatados ou conservas. A lagosta que víramos a nadar no tanque quando começáramos a comer a sopa, saladas tão verdes e tão frescas que se tornavam estaladiças, do tipo que nunca se encontrava na cidade. A refeição foi completada por uma tarte de pêssego coberta com natas que nunca tinham visto uma máquina de pasteurização ou uma garrafa esterilizada. Depois fomos deixar Colin na sua cabina para turistas onde nos separámos, comigo já desejosa pela companhia que iria ter dentro de um ou dois dias conhecera a sua assistente e sócia na loja, Claire Moffatt, quando estivera na Califórnia e ficaria muito agradada por vê-la novamente.

 

Perguntei a Colin:

 

A Claire está a viver aqui? Ele até corou.

 

Oh não, está em casa de uns parentes em Madison Corners.

 

Brian, pondo o carro a trabalhar para me levar a casa, disse:

 

Tenho a noite livre. Desde que telefone para o serviço de atendimento duas ou três vezes durante a noite não há problema. Essa é uma das características da medicina no campo, não é uma actividade de quinze horas diárias. Passo muito tempo na estrada entre pacientes estão espalhados por todo o lado nesta terra esquecida mas, falando em termos de números, não são assim muitos. Talvez os meus colegas estivessem certos e eu seja preguiçoso, mas gosto de poder ter uma vida própria.

 

Não vejo o que isso tem de mal.

 

E então tu, Sara? Levas a carreira muito a sério, és a mulher emancipada típica? Ou andas só a brincar com a ideia de uma carreira? Como é que é?

 

Não estou certa. Fiquei satisfeita por poder conhecer Brian a um nível mais pessoal. Tenho a certeza de que quero conseguir alguma coisa como artista, nem que seja num nível comercial. Se puder ganhar assim a minha vida, tanto melhor, mas mesmo que tenha de ganhar a vida numa actividade mais corriqueira como dactilógrafa ou recepcionista continuarei a trabalhar na minha arte, pois isso faz parte daquilo que eu sou, parte daquilo que faz de mim uma pessoa. Nisso estou de acordo com o Movimento de Libertação das Mulheres, quero ser alguma coisa por direito próprio e não ser apenas o brinquedo ou o animal de estimação de um homem. Ou um objecto sexual.

 

Ele sorriu e deu-me uma palmadinha no joelho.

 

Aqui entre nós, Sara, uma mulher que não passa de um objecto sexual acaba por ser uma grande maçada. Sejamos realistas, o número de horas que podemos passar na cama é limitado e, uma mulher que não pensa em mais nada, acaba por ser uma maçada o resto do tempo. Desse ponto de vista, acho que os homens também estão de acordo com a Libertação das Mulheres. Toda a gente está farta do útero ambulante e, aqui entre nós, acho que toda a gente, à parte os atrasados mentais, também está completamente farta das mulheres que não passam de mamas e ancas ondulantes. Oh, todos os homens gostam da cambalhota ocasional com uma das raparigas de saia de cetim apertada, mas pensando a longo prazo, prefiro uma rapariga que tenha mais qualquer coisa na cabeça para além do quanto falta para a próxima cambalhota.

 

Sentia-me quente e feliz; então também ele estava a pensar a longo prazo?

 

Brian parou numa das quintas maiores para telefonar para o serviço de mensagens e voltou com um ar sombrio.

 

Tenho de ir ver um miúdo que mora ao fundo desta estrada. A mãe diz que ele tem anginas, mas provavelmente não passa de um daqueles vírus que passam em vinte e quatro horas, mas... queres que te leve a casa ou queres vir comigo e aproveitar o passeio e esperas por mim?

 

Vou contigo. Não havia qualquer razão para eu ter pressa de voltar para casa e dúzias de razões para não me apetecer fazê-lo.

 

Vamos ter de tratar de arranjar um telefone para a casa Latimer, Sara. Por duas razões. Primeiro, não fico descansado estando tu ali completamente isolada. Isso estava muito bem para a velha menina Latimer, que viveu ali toda a sua vida e por escolha própria. Mas tu és uma mulher nova e eu ficaria mais tranquilo se pudesses gritar por ajuda nem que fosse através de um fio telefónico. Segundo, bem riu-se, espero... o melhor é dizer que tenho esperança, de passar lá algumas noites e um médico não pode estar fora do alcance do serviço de mensagens durante mais do que algumas horas.

 

Estendeu a mão e apertou a minha.

 

A velha estrada esburacada que era mais um caminho de cabras do que uma estrada rural sobre a qual o carro ia aos solavancos, fazia com que a estrada de Witch Hill parecesse uma auto-estrada.

 

Espero que não fiques empanado aqui disse eu e Brian assentiu.

 

É um dos perigos reais da medicina rural. No Inverno é muito pior, ou durante a época das chuvas de Primavera. No Inverno passado, perdi a conta ao número de vezes que um dos agricultores das redondezas teve de ir buscar um tractor ou até mesmo a parelha de mulas para me tirar de um banco de neve ou de um buraco de lama. Mas sempre é melhor do que esperar pelos reboques. Os agricultores locais estão muito empenhados em manter-me na estrada... não sabem quando eles próprios ou os seus filhos podem precisar de um médico! Estava a ficar escuro quando parámos junto a uma velha quinta isolada e o Brian deixou-me no carro. A casa estava escura, era enorme, a silhueta com um telhado de duas águas recortando-se contra o céu; do outro lado erguia-se um velho celeiro, escuro e sombrio. No pântano, os sapos coaxavam e uma ave nocturna soltou, à distância, o seu estranho grito. Passado algum tempo Brian saiu e disse:

 

O miúdo não está muito doente, mas tenho de lhe fazer uma zaragatoa e eles só têm candeeiros de querosene. Tenho uma luz forte que funciona a pilhas na minha mala; queres entrar e segurar na lanterna?

 

Claro. Saí do carro e segui Brian, atravessei a cozinha escura e mal iluminada pelos candeeiros e entrei num quarto nas traseiras onde um rapaz muito pequeno e loiro, estava sentado na beira da cama com um ar apreensivo.

 

Segura a luz assim, Sara, para eu poder ver-lhe a garganta até ao fundo. Muito bem, Sonny, abre a boca, isto não faz doer; vou só ver-te as amígdalas. Desinfectou rapidamente a garganta com a ajuda da luz forte.

 

Pronto, já está. Olha, tenho aqui um belo chupa-chupa vermelho para ti. Agora, Sr. Fairfield, quero que o mantenha na cama mais um dia e, se a febre voltar a subir, dê-lhe um comprimido destes de quatro em quatro horas, mas acho que ele vai ficar bem. Se algum dos outros miúdos ficar com dores de garganta é melhor telefonar-me para fazermos análises.

 

Baixei a luz, que me deixara encandeada, e apercebi-me que a dona da quinta uma rapariga nova, robusta e alta, com uma blusa florida e jardineiras de homem estava a olhar para mim de boca aberta. Quando olhei para ela recuou, continuando a olhar-me desconfiada

 

Disse:

 

Por que é que trouxe a velha menina Sarie aqui para cuidar dos meus pequeninos? Doutor, essa mulher é uma bruxa! Avançou na minha direcção e, por instantes, cheguei a pensar que me ia bater. Olhe, você saia da minha casa, não quero gente desta na minha casa! Brian interpôs-se entre nós. Disse:

 

Escute, Sra. Fairfield, Annie, isto é um disparate. Em primeiro lugar, as bruxas não existem. Bem, isso já é ir longe de mais, pensei. Em segundo lugar, a menina Latimer acabou de chegar de Nova Iorque. Certamente que nunca a viu.

 

Doutor disse Annie Fairfield, pode perceber muito de curas e de medicina, mas eu vivi aqui toda a minha vida e sei o que sei e reconheço a menina Sarie quando a vejo. Se ela não é bruxa, por que razão é a cara pintada daquela velha bruxa que vivia lá em cima na estrada de Witch Hill?

 

Eu disse com firmeza:

 

A menina Sara Latimer era minha tia-avó e está morta há anos, Sra. Fairfield. Nunca a conheci nem sequer a vi.

 

Annie Fairfield virou-me as costas.

 

Doutor, o senhor sabe e eu também sei que as bruxas Latimer nunca morrem, voltam sempre, com o mesmo aspecto de sempre. Talvez ela o consiga enganar a si, mas a mim não me engana! Por isso leve-a da minha casa e não a traga mais aqui, Doutor. Tenho de pensar nos meus filhos.

 

Brian disse com desprezo:

 

Annie, você é uma idiota agarrou na mala e acompanhou-me ao carro. Lá fora, reparou que a cortina da janela da cozinha estava afastada e que a mulher olhava para mim com ar triste através dos vidros. Ele bateu com a porta do carro e fez marcha-atrás com tal energia que quase bateu num monte de feno.

 

Maldita, estúpida rapariga! resmungou. Sara... querida, lamento. Pensei que a Annie Fairfield tivesse mais juízo; andei na escola com ela. Espero que não tenhas de enfrentar isto por toda a região!

 

Achas que me importo com o que eles dizem? Mas estava mais abalada do que mostrava ao Brian. Era muito cansativo ser confundida com a minha tia Sara a toda a hora. Iria ser muito difícil viver naquela região se a cada sítio que ia tinha de lutar contra a reputação de bruxa que ela tinha. E, de acordo com Matthew Hay, a reputação era bem merecida.

 

Acho que devo ficar grata por já não poderem enforcar as bruxas, ou daria rapidamente por mim em Witch Hill, brinquei. Brian, esquece; a mulher é demente ou ignorante. Mas estava a esquecer-me... não vai fazer bem nenhum à tua reputação nos campos seres visto por todo o lado com a bruxa local.

 

Brian parou bruscamente o carro na estrada estreita e estendeu-me as mãos. Disse calmamente:

 

Vê se compreendes uma coisa, Sara. Ganho a vida aqui a exercer medicina, mas não lhes devo nada. Eles precisam de mim, eu não preciso deles. E se acham que as opiniões deles vão fazer-me mudar de atitude, ou ter algum efeito nas minhas escolhas no que respeita a mulheres, vão ter de se habituar a que não é assim.

 

Abracei-o, gozando o misto de bondade e poder que lhe era característico. Ele beijou-me, longa e profundamente e as suas mãos acariciaram-me os seios. Mas depois deteve-se.

 

Aqui não disse baixinho, não sou uma pessoa impulsiva, Sara, e quero que isto seja algo que ambos desejamos, desta vez, não algo a que me atiro de cabeça apanhando-te a sentires-te sozinha e desequilibrada. Deixa-me levar-te a casa e, se quiseres que eu fique...

 

Quero disse eu rapidamente mas não me leves para casa, Brian. Desta vez quero que seja... noutro sítio qualquer. Não sob a... a influência daquela casa maldita e daquele maldito quarto! Para que possa ter a certeza de que sou eu e não a tia Sara!

 

Ele virou a chave na ignição e disse:

 

Penso que estás a deixar que a casa te perturbe, Sara, mas acho que percebo o que sentes. Seja como for não posso passar outra noite sem estar comunicável por telefone. O primo James hesitou. Não há um hotel deste lado de Arkham, ou levar-te-ia para lá. Mas o primo James é surdo como uma porta e não há lá mais ninguém para levantar problemas. Queres vir passar a noite, ou a maior parte dela, na minha casa?

 

Senti a minha excitação aumentar à medida que íamos percorrendo o campo silencioso e entrávamos na vila de Madison Corners. Daquela vez nada se deveu à lúgubre influência da casa da bruxa ou dos perfumes eróticos da tia Sara. Daquela vez foi o que eu e Brian desejávamos, só nós dois.

 

Parou em frente a uma casa que tinha luzes fracas acesas em duas ou três divisões. Disse:

 

O primo James está aninhado em frente à televisão no seu quarto; vou avisá-lo de que cheguei e de que já pode desligar o telefone... como já te disse, ele é surdo e quando está de plantão aumenta muito o som da campainha. O meu quarto é no andar de cima e ele não daria por nada mesmo que eu lá tivesse um harém completo.

 

A casa era quase tão velha, e quase igualava em monstruosidade a casa Latimer, mas lá dentro estava quente e cheirava bem, a cozinhados recentes, a sabão, cera de mobília e um ligeiro odor a hospital éter ou desinfectante, talvez que saía de uma porta meio aberta de um consultório que dava para o átrio. Brian deixou-me por alguns instantes no átrio forrado a madeira e iluminado com luzes quentes e ouvi a voz dele erguendo-se nos gritos característicos de alguém que fala com um surdo, depois regressou a sorrir. Disse:

 

O primo James desliga o aparelho auditivo à noite e esquece-se de o voltar a ligar! E nem sequer consegue ouvir-me quando lhe digo que o ligue! Chego a ter de o abanar para lhe chamar a atenção!

 

Pôs-me o braço por cima dos ombros enquanto subíamos as escadas. Abriu a porta; o quarto era espaçoso e estava limpo, com uma cama antiga de latão coberta com uma colcha de patchwork em cores vivas, que mais parecia uma peça de um museu de artesanato. Brian pegou no telefone que tinha junto à cama e disse:

 

Não me passe chamadas durante mais ou menos uma hora a não ser que seja uma emergência. Volto a ligar às... bem, são agora onze e meia; volto a ligar aí por volta da uma da manhã. Depois trancou a porta e tomou-me nos braços. Beijou-me, longamente, e depois puxou-me delicadamente a camisola. Não posso esperar, olhos verdes.

 

Descalcei as sandálias e desapertei a camisola num movimento rápido. Quando fiquei nua, de pé sobre a carpete antiquada, ele abraçou-me.

 

Ainda és mais bonita à luz eléctrica! Nunca vais precisar de luzes fracas para pareceres sensual! Puxou-me para a cama, acendendo um candeeiro de parede. Mas quando me começou a acariciar deteve-se, olhando horrorizado para o meu corpo. Segui o seu olhar e vi as nódoas negras deixadas pelas mãos duras de Matthew Hay.

 

Meu Deus! arfou ele. Eu fiz-te isso?

 

Que podia eu dizer? A minha mente debatia-se loucamente e senti-me enjoada e tonta. Por fim respondi:

 

Eu faço nódoas negras com muita facilidade, querido! e senti-me cínica e envergonhada.

 

Os seus dedos moveram-se com uma ternura incrível sobre as manchas escuras. Afirmou:

 

Desta vez vou tratar-te como uma peça de porcelana preciosa, amor, prometo. Não quero magoar-te por nada deste mundo. Continuava com um ar ligeiramente espantado. Não me apercebi de ter sido assim tão bruto, Sara, se fazes nódoas negras assim com tanta facilidade, és capaz de estar anémica... se calhar era melhor examinar-te.

 

Quase não conseguia suportar a culpa e isso fez com que falasse com brusquidão.

 

Não sou sua doente, Doutor Standish... pelo menos não neste momento. E se fosse, este não seria o local nem o momento...

 

Tens toda a razão. Inclinou-se e beijou a nódoa negra. A boca dele era quente e a sua respiração fez-me cócegas nos mamilos e estes endureceram. Fechei os olhos para não deixar transparecer nada. Odiava-me. Naquele momento quis desesperadamente contar toda a verdade, como Matthew Hay me apanhara desprevenida e me possuíra no seu altar obsceno. Mas ainda não me sentia segura dele; senti que não suportaria ver os seus olhos escurecerem com suspeição, desconfiança, cinismo. Na melhor das hipóteses, ele sentir-se-ia magoado e ciumento. Puxei-o para cima de mim, as minhas mãos agarrando os seus rins, a minha boca fechando-se sobre a dele num beijo selvagem e sufocante.

 

Brian... Brian... desejo-te, desejo-te!

 

A boca dele encontrou a minha, a língua explorando um longo beijo, depois ergueu-se apoiado nas mãos e olhou para mim, sorrindo, divertido.

 

Não tenhas pressa, amor. Temos a noite toda. Vamos fazer isto durar.

 

A sua boca movia-se sensualmente sobre o meu corpo nu, beijando-me os seios, a barriga, as coxas, as dobras dos joelhos. Agarrou-me nos pés e deu dentadinhas num dedo de cada vez. Quando finalmente entrou em mim, foi com uma doçura infinda, movendo-se durante muito tempo, lenta e imperceptivelmente, com longas pausas e beijos demorados até que comecei a gemer de necessidade e fome crescentes. Movemo-nos ao mesmo tempo, cada vez mais próximos, explodindo num clímax quase simultâneo. Depois ficámos deitados, aninhados um no outro durante muito tempo, a conversar calmamente, mexendo-nos de vez em quando para uma carícia. Mais tarde descemos e fizemos café na cozinha deserta e, depois de telefonar para o serviço de chamadas, ele levou-me a casa. Ficou a abraçar-me durante muito tempo, nas sombras da porta da frente, mas acabou por me soltar.

 

Se entrar levo-te novamente para cima resmungou pesaroso e é a minha noite de serviço. Beijou-me com força suficiente para me deixar marcada. Dorme bem, querida. Sonha comigo. Vejo-te amanhã.

 

Mas quando o carro dele se afastou e a escuridão húmida da velha casa se fechou mais uma vez sobre mim, a alegria e o prazer da noite esvaíram-se novamente, deixando-me vazia, esgotada e fraca. Encontrei a lanterna não tinha energia para me haver com a porcaria dos candeeiros a querosene àquela hora e subi as escadas. Barnabas apareceu de um canto, os seus maliciosos olhos amarelos a brilhar como duas brasas enquanto subia a escada, com a cauda a dar e saltou à minha frente para a cama da tia Sara. Corri pelas escadas novamente para me certificar de que trancara a porta e, quando verificava a porta das traseiras, um som estranho fez-me parar, com o coração aos saltos no peito.

 

Parecera-me ouvir passos, um som arrastado, mas onde? Dentro de casa? No cemitério? Corri rapidamente para o andar de cima, batendo com as canelas num móvel no átrio e, já no quarto da tia Sara, dirigi-me à janela apagando a lanterna e espalmando a cara contra o vidro.

 

A Lua ia baixa no céu, meio disco vermelho e inflamado, rodeado por farrapos de nuvens finas. Na escuridão do cemitério as tumbas delapidadas brilhavam, brancas, inclinadas cada uma para seu lado sobre a escuridão da noite. Depois uma das formas brancas pareceu mover-se e desapareceu ou teria uma forma escura e invisível passado na sua frente? Sustive a respiração; sim, tinha visto outro movimento ao brilho fraco de uma luz mortiça. Estaria alguém com uma vela no cemitério? Estaria o Matthew Hay a observar-me no cemitério? Ou estaria ele a participar nos seus nojentos rituais algures no cemitério? A minha porta estava trancada por dentro; não tinha de me preocupar! Ele que vagueasse pelo cemitério e fizesse amor com os cadáveres, se fossem essas as suas fantasias lunáticas!

 

Disse a mim própria para ir para a cama e esquecê-lo, mas continuei à janela, rígida e paralisada. Passado muito tempo, uma segunda luz juntou-se à primeira chama intermitente que avistara, ambas tão fracas que dei por mim a pensar se as teria realmente visto ou se as teria imaginado. Poderia ser o género de fosforescência que por vezes se vê nas árvores velhas ou nos troncos apodrecidos? Seria possível que essas luzes etéreas aparecessem nas partes mais húmidas das lápides de mármore?

 

As luzes desapareceram. Acabei por me arrastar para longe da janela, cair na cama de dossel da tia Sara e pôr uma almofada em cima da cabeça. Quando adormecia, ocorreu-me a possibilidade de o Matthew Hay ter vindo buscar ervas ao jardim. Não havia ervas que tinham de ser colhidas no quarto minguante da Lua, ou coisa parecida? E teria de ser ao luar ou apenas nessa fase da Lua, podendo ser colhidas de noite ou de dia?

 

E que é que isso me interessava, afinal? Nada. Estendi a mão na escuridão para o Barnabas, cujo ronronar sonoro era calmo e reconfortante e adormeci a afagar-lhe a cabeça sedosa.

 

Irmã Bruxa

Sabia que estava a sonhar. Ainda assim, havia uma realidade misteriosa no sonho, como se fosse mais uma recordação do que um sonho...

 

Estava no topo de uma colina, por baixo do carvalho atingido pelo raio, e ouvia vozes que gritavam a pedir o meu sangue.

 

Sara Latimer!

 

Matem-na! Enforquem a bruxa!

 

Afoguem-na! Abatam-na!

 

Usava um vestido comprido e justo, abotoado sobre os seios, um lenço branco a tapar-me modestamente o pescoço e a saia do vestido arrastava pelo chão. Os dois homens que me agarravam com força pelos braços estavam vestidos com fatos escuros com colarinhos largos e chapéus altos. Pareciam os Pais Peregrinos da peça de Acção de Graças da escola!

 

Tentei desesperadamente encontrar os seus olhos. Jethro Hay recusou-se a olhar para mim e senti que as mãos lhe tremiam. Bem que podia tremer! Tantas vezes que nos tínhamos deitado juntos na colina, com os corpos nus a pulsar juntos, os ventos nocturnos passando sobre nós. E agora queria fazer o papel de homem respeitável! Maldito hipócrita!

 

Olhei para baixo, com desprezo, para as mulheres que gritavam e uivavam mais abaixo. Seria culpa minha que os homens delas preferissem dormir comigo em vez de se deitarem com aquelas megeras empertigadas de bocas pálidas? Atirei a cabeça para trás e ri-me, com as gargalhadas agudas que elas detestavam.

 

Jethro, continuas a fingir que tens cólicas na barriga até a Ruth estar a dormir, para que a tua mulher nariguda não saiba que só me queres a mim na tua cama?

 

O rosto dele contorceu-se de raiva.

 

Silêncio, sua diaba maldita! Bateu-me, com força, na cara. Senti que sangrava do lábio.

 

Ri-me da cara solene do outro homem.

 

Já te esqueceste, Preserved, de que me imploraste oh, e foi num dia de jejum solene, ainda por cima para ir passear no pomar e que me arrancaste o lenço e juraste que os meus seios eram ameixas maduras?

 

Preserved Whitfield não olhou para mim. Arrancou-me o lenço do pescoço com um gesto brusco e, puxando-me a cabeça para trás com força, enfiou o lenço na minha boca, amordaçando-me.

 

As palavras da prostituta não serão escutadas!

 

Com uma mão, Jethro soltou-me os cabelos longos e arrancou os botões do vestido e fiquei nua até à cintura. Os gritos da multidão tornaram-se mais fortes.

 

Matem-na! Queimem-na!

 

Não permitam que a bruxa viva!

 

Ela enfeitiçou os nossos maridos e os nossos filhos!

 

Apedrejem-na! Apedrejem-na!

 

Um fruto maduro esborrachou-se na minha cara. Comecei a debater-me e a gritar; a dor rasgava-me o rosto e acordei...

 

Barnabas estava sentado no meu peito, acariciando-me suavemente a face com as garras recolhidas. Abanei a cabeça, atordoada, libertando-me do pesadelo. Teria estado a sonhar novamente com Sara a primeira... a primeira verdadeira, a que fora enforcada acusada de bruxaria? Teriam mesmo existido bruxas nesses tempos ou teria sido uma desculpa que a populaça supersticiosa e sedenta de sexo usava para se livrar dos inadaptados? De qualquer rapariga mais esperta e mais inteligente do que as restantes, que atraía as atenções dos homens reprimidos, que odiavam o sexo, e que não podiam admitir que se tratava simplesmente de desejo e tinham de lhe chamar bruxaria ou feitiços do demónio? Sabia que eles temiam mulheres velhas e feias que percebiam demasiado de ervas ou das tradições, ou que talvez tivessem estranhos animais de estimação e que eram, talvez, um pouco simples e falavam sozinhas ou com os seus estranhos galos ou gralhas ou gatos.

 

Mas... as congregações de bruxas, a religião organizada? Seria isso adoração do diabo? Ou teriam alguns dos inadaptados entre os Pais Peregrinos trazido consigo uma religião mais velha do que o Cristianismo, as religiões da fertilidade que já existiam antes de as igrejas terem aparecido e que o Cristianismo tentara eliminar e absorver?

 

Só conhecia uma forma de o descobrir perguntar a Matthew Hay e maldita fosse se alguma vez viesse a ter alguma coisa a ver com esse homem! (Sim, pensei, provavelmente seria. Maldita, isto é.)

 

Lavei a cara, cozinhei um grande pequeno-almoço, alimentei Barnabas que desistiu do rato que caçara em favor de uma lata de comida para gatos e passei a manhã a pintar alegremente na sala de trabalho. Era a ocasião em que me sentia mais eu própria desde que chegara àquele desastre de casa.

 

Trabalhei a maior parte da manhã e parei por volta do meio-dia para fazer uma sanduíche de atum, que partilhei com Barnabas, cheia de pressa para voltar ao cavalete enquanto as coisas estavam a correr bem. No início da tarde não tinha a certeza das horas, a velha campainha tocou. Senti uma mistura de irritação, por ser interrompida enquanto estava a trabalhar, e de antecipação, pensando que Brian conseguira escapar-se. Corri pelas escadas abaixo, sem me importar por estar vestida com calças de ganga e uma camisola velha e ter o cabelo despenteado. Abri a porta e vi Matthew Hay no alpendre com uma mulher que eu nunca vira.

 

Fiquei com o coração pesado e a minha boa disposição desapareceu. O meu sorriso de boas-vindas deve ter levado o mesmo caminho da boa disposição, pois Matthew perguntou:

 

Viemos em má altura, Sara?

 

Bem, eu estava a trabalhar.

 

Acho que isto deve ser mais importante disse Matthew. É melhor entrarmos; prefiro que os vizinhos não nos vejam aqui no alpendre. Eles não são todos... dos nossos.

 

Vizinhos? Ninguém podia avistar a casa a não ser os ocupantes do velho cemitério... e um par de vacas plácidas. Mas aquilo era típico da Nova Inglaterra. Pela forma como Matthew falava, seria de pensar que havia quarenta casas à nossa volta, cada uma delas com uma velhota bisbilhoteira à janela. Oh, raios, se calhar havia. Disse, resignada:

 

Entrem.

 

Sem mais demoras, entraram e dirigiram-se à velha sala como se soubessem o caminho. Matthew aproximou-se e pegou-me na mão num gesto íntimo. Disse:

 

Sara, minha querida, quero apresentar-te a Tabitha Whitfíeld. Mais uma vez.

 

Tabitha era pequena e elegante, agradavelmente arredondada com uma cintura fina e pequenos seios pontiagudos os quais, era óbvio, não necessitavam do soutien que ela não usava. Devido ao cabelo loiro e macio e ao rosto pequeno e arredondado como o de um gatinho, pensei inicialmente que fosse uma rapariga muito nova, quase uma adolescente. Depois, um olhar atento aos pormenores reveladores, ao pescoço magro, às mãos, deixou-me perceber que tinha pelo menos trinta anos e era mesmo capaz de ser mais velha do que isso. Ainda assim era surpreendentemente bonita, com um ar de sensualidade inteligente.

 

Esperei que se sentassem mas eu própria fiquei de pé, distante e completamente à defesa. Não confiava em Matthew Hay e não iria permitir-lhe que se aproveitasse de mim novamente.

 

Nunca mais. Não nesta vida, nem na próxima, se o pudesse evitar.

 

Foi Tabitha quem falou primeiro. Olhando alternadamente para mim e para a pintura do retrato da tia Sara que estava na parede, disse:

 

Sim, uma semelhança espantosa. É realmente incrível. Mas não estou certa de que isso signifique o que tu pensas que significa, Matt.

 

Matthew disse:

 

Receio que tenhas de deixar esse assunto comigo, Tabitha.

 

Uma forte vibração de antagonismo pareceu estender-se entre eles e, no entanto, havia uma corrente subentendida de intimidade, do conhecimento mútuo das fraquezas que só se ganha com um convívio prolongado. Soube, como se mo tivessem dito por palavras, que aqueles dois eram amantes... não. Era demasiado pensar em amor quando Matthew Hay estava envolvido. Mas eram parceiros sexuais há muito tempo e conheciam-se bem. E fiquei espantada ao dar por mim a sentir um acesso de ciúme possessivo. Como é que ela se atreve a usurpar-me o lugar! O Matthew era meu para eu fazer o que bem entendesse e tem-no sido nos últimos vinte anos! Ou, mais precisamente, durante os últimos setecentos anos! Ele podia divertir-se quando eu lhe dava permissão, mas devia saber quem era a sua verdadeira senhora!

 

Abanei a cabeça como se quisesse livrar-me de uma tontura. Que diabo se passaria comigo? Era aquela sala. Pertencia, de forma definitiva, à tia Sara e não a mim.

 

Conseguiria sequer ter pensamentos próprios naquela sala?

 

Matthew perguntou:

 

Esqueci-me de te perguntar ontem, Sara. Tens alguns sinais de nascimento?

 

Tabitha disse, num tom ligeiramente zombeteiro:

 

Queres dizer que não investigaste quando a apanhaste nua?

 

Oiça uma coisa disse eu, escandalizada, não pode chegar aqui e falar assim...

 

Oh, Sara disse Matthew, a rir quase às gargalhadas, há muita coisa para ser alcançada; por favor não tentes impedir-nos com esses disparates. Sei que muitas vezes gostas de brincar. Mas o jogo da modéstia não te fica bem, especialmente depois do que aconteceu ontem, e é uma perda de tempo. Experimenta essas coisas com as pessoas que não estão por dentro do assunto, como o teu jovem médico. Diverte-te à vontade, mas não brinques connosco. Atravessou a sala e, calmamente, desapertou-me a blusa e puxou-a, descobrindo-me o ombro, pondo o dedo no pequeno sinal castanho no ponto em que o sovaco ligava às costas.

 

Vês, Tabitha, agora já estás convencida? Puxei a blusa.

 

E eu não tenho nada a dizer...

 

Pedi-te que não brincasses connosco, Sara. Não temos tempo. Afinal de contas, o Esbat é amanhã ao pôr do Sol e há muita coisa a fazer até lá. As tuas recordações já deverão estar de volta por essa altura, mas se não as tiveres recuperado totalmente não faz mal; esta será apenas uma cerimónia de boas-vindas. Trouxe a Tibby até cá... espera lá, reconhece-la?

 

Reconheço-a? Eu nunca a vi na minha vida respondi. Sentia-me como a Alice no País das Maravilhas, a responder a perguntas sem sentido para as quais as minhas respostas não tinham verdadeira importância. Porque havia de a reconhecer?

 

Nunca a viste antes, dizes tu? Isso complica as coisas disse Matthew. O que queres dizer, como é evidente, é que nunca a viste antes nesta vida. Bem, a Tibby tem sido uma de nós há séculos, tal como tu, Sara.

 

Eram completamente loucos. Malucos. Doidos varridos... um par de doidos varridos. Mas que podia eu fazer?

 

Fiquei ali, a abotoar a blusa, com dedos que tremiam incontrolavelmente. Entrara num pesadelo. Oh Brian, Brian! Tentei invocar a memória do seu rosto, da sua voz normal e sã, mas não consegui. Não consegui lembrar-me, nem por um instante, do seu aspecto.

 

Matthew disse:

 

A Tibby é uma das tuas irmãs na congregação... tem actuado como nossa líder. Mas, como é evidente, agora que regressaste, ficará satisfeita por te devolver o lugar.

 

 

Vi o olhar de Tibby e pensei, só nos teus sonhos. Matthew podia perceber muito de bruxaria, mas não percebia absolutamente nada de mulheres e, bruxa ou não, Tibby era uma mulher. Sorria docemente, mas sob aquela aparência, ardia a chama do ciúme e do ressentimento.

 

Seria Matthew o que ela queria ou... o poder entre os bruxos?

 

Não sabia nem queria saber, mas podia ser que isso me fosse útil de alguma maneira.

 

A Tibby ensinar-te-á tudo o que podes ter esquecido nos teus primeiros anos deste renascimento disse Matthew, o tipo de coisas que só uma mulher pode ensinar a outra. Espero que fiquem novamente amigas e se amem como irmãs. Agora vou deixá-las para que se conheçam ou que se conheçam... novamente.

 

Inclinou-se e beijou-me numa presunção arrogante de intimidade, fez uma festa ao de leve na face de Tibby, e virou-se para sair. Eu chamei:

 

Matthew, espera um minuto. Ele inclinou a cabeça, escutando.

 

Dizes que sou a Sara Latimer renascida. Agora escuta! A tia Sara só morreu há sete anos e eu tenho vinte e três! Isso não pode ser assim, pois não?

 

Tibby disse:

 

Eu disse-te que ela não compreendia. Estás a cometer um erro, Matthew.

 

Ele virou os olhos brilhantes para mim.

 

A bruxa, Sara Latimer, nunca morre. Volta uma e outra vez. Quando um corpo morre, a sua parte imortal a sua alma, se quiseres refugia-se no corpo de outra mulher da sua família. A tua família, os Latimers, é uma das antigas famílias de bruxos e, repetidamente, de duas em duas gerações, nasce uma criança que tem as marcas da bruxa. Como tu, Sara. A rapariga é normal, embora tenha alguns poderes inatos. Mas quando a sua predecessora morre, a alma da bruxa entra e possui-a. E quando isso acontece, a rapariga assume rapidamente

as memórias, a posição e todos os poderes da Bruxa. Isso aconteceu contigo agora, Sara. Mas ainda não o compreendes totalmente, podes não estar completamente consciente dos teus poderes e do teu passado. Mas provaste-mo ontem, perante o altar. O resto das tuas memórias regressará em breve... e voltarás a ser uma de nós, através das eras, através da vida, e da morte, e para além de tudo.

 

Virou-se e saiu, deixando-me ali, horrorizada.

 

Tibby levantou-se e dirigiu-se a mim. Disse, com mais gentileza do que lhe era característico:

 

Pareces assustada, Sara. Eu já faço parte disto há tanto tempo, assim como o Matthew, que temos a tendência de esquecer o quão estranho tudo isto parece para quem não está envolvido. Que posso dizer ou fazer para ajudar?

 

Pôs o braço por cima de mim. Inclinei-me para trás para a olhar e disse:

 

Juraria que tu e a Sara não morriam de amores.

 

É verdade disse ela mas eu também levo a sério os meus votos e esses obrigam-me a tratar-te como uma irmã na congregação. Além disso tens um ar jovem e perdido. Fez-me uma festa na face. Não há nada a temer. O Matthew é terrível, mas isso faz parte de ser o que ele é. Se bem o conheço, ele saltou-te para cima sem aviso e, provavelmente, deixou-te meia morta de susto.

 

Não verdadeiramente disse eu com franqueza. Para dizer a verdade, acho que quase estava à espera que ele o fizesse.

 

Mas ele é como a maior parte dos homens disse Tibby com algum desprezo. Oh, não me interpretes mal, sou doida por ele mas, tal como todos os homens, acha que a sua grande pila pode resolver tudo. Ela deve ter reparado no meu olhar sobressaltado, pois disse com um certo ar de desafio: Desculpa. Não quis ser grosseira. Mas o Matt também consegue ser um grande idiota.

 

As suas mãos demoraram-se, com uma intimidade calma e perturbante, sobre os meus seios. Olhei para baixo, surpreendida, e ela retirou-as, sem pressa. Disse:

 

 

Importas-te? Estava simplesmente a admirá-los. Senti a mesma estranha ausência de surpresa que sentira quando o Matthew me fizera avanços sexuais. Todos os bruxos são promíscuos e obtêm prazer facilmente, sem fingimentos.

 

És lésbica?

 

Só de vez em quando disse ela. Não me importaria, se tu quisesses ou precisasses. Provavelmente poderíamos dar prazer uma à outra.

 

Ri-me, com algum embaraço. A sua aceitação calma fazia-me sentir ingénua apesar de me ter movido em círculos relativamente sofisticados. Ou seria aquilo simplesmente uma decadência tão avançada que perdera toda a vergonha? Disse:

 

Agora não, obrigada. Tentei carregar as palavras de ironia, mas elas saíram-me tão naturais como as da própria Tibby e dei por mim a pensar, para quê fazer um drama de algo tão simples?

 

Disse:

 

Os bruxos bebem café? Ou chá? Ela riu-se.

 

Se não tiveres cerveja, o chá serve. Acho que é uma boa ideia. Partilhar comida ou bebida é a forma mais rápida... bem, é um começo. Quando o Matthew me trouxe aqui estava preparada para que me odiasses.

 

Acho que não odeio as pessoas facilmente disse eu. Conduzi-a à cozinha e pus a chaleira ao lume. Uso saquinhos de chá, importas-te? Sei que os gourmets sofisticados ficariam chocados, mas não aguento as folhinhas irritantes por todo o lado e detesto que me venham parar à chávena.

 

Que se lixem os gourmets sofisticados concordou Tibby. Eu também os uso. Suspeito que as bruxas foram o primeiro Movimento de Libertação das Mulheres; foram elas que se recusaram a ser mártires da noção que alguns tinham do que as mulheres deviam ser ou fazer. O meu pai é o género de filho da mãe que acredita que o único dever da mulher é tornar um homem feliz. A minha mãe esfregava os soalhos com lixívia, de joelhos, todos os dias da sua vida, só porque ele não queria oleado a forrar o chão da cozinha. Ela protestava de vez em quando, dizendo que não tinha tempo para aquilo nas épocas de preparação do feno ou da debulha e ele punha-se aos pulos e aos gritos: "Com um raio, mulher, e para que serve o teu tempo?" Quando ela morreu, eu peguei nas minhas poupanças e forrei o chão da cozinha com oleado e o meu pai tentou armar confusão e eu disse: "Experimente arrancar esse oleado e será o pai quem esfregará a porcaria do chão ou terá de viver com ele todo sujo!" Ele deixou ficar o oleado. Acho que decidiu que o oleado era um mal menor. A chaleira assobiou; despejei a água por cima dos saquinhos de chá que estavam dentro do bule.

 

Não te importas de tirar duas chávenas do armário? Obrigada. Tibby sentou-se à mesa da cozinha aceitando a chávena cheia que lhe estendi.

 

Açúcar? Leite?

 

Bebo simples, obrigada. Deu um golinho.

 

Tibby disse eu, diz-me uma coisa com franqueza, sem fingimentos nem pretensões. Levas esta coisa dos bruxedos a sério ou é apenas um jogo?

 

Ela olhou-me de frente, do outro lado da mesa. Respondeu:

 

Não te quero enganar. Às vezes acho que é a sério e às vezes acho que é um jogo. Há alturas em que acredito completamente em tudo e em que me envolvo por inteiro; nessas alturas parece ser toda a minha vida. E há alturas em que penso se não me estarei a enganar e a alinhar na farsa por ser esse o jogo do Matt e para o caso de não teres adivinhado sou louca por ele.

 

Tinha adivinhado disse eu. Mas como é que uma pessoa sã de espírito se envolve em algo com... com crenças tão peculiares? Como é que as pessoas chegam sequer a entrar nisso?

 

Nunca viveste no interior da Nova Inglaterra disse ela. Admitamo-lo, que outras oportunidades existem aqui

 

 

para as mulheres? Suspeito que a bruxaria vingou em Salem e noutros locais, porque essa era a única forma de as mulheres conseguirem ser gente não apenas parceiras de cama, escravas e parideiras para uma porcaria de homem qualquer, ignorante e bruto. Não havia homens inteligentes, razoáveis e emancipados em número suficiente. Uma mulher que não se casasse, socialmente estava morta e as mulheres que casavam eram, quase literalmente, escravas dos maridos. Li algures que Massachusetts e Connecticut eram os únicos Estados que ainda tinham legislação severa contra o controlo de nascimentos, mesmo com receita médica, até que o caso Roe contra Wade, acabou de uma vez com todas essas limitações.

 

Eu percebia como o mundo repressivo da velha Nova Inglaterra tornara as mulheres rebeldes e seria de espantar que tivessem usado os medos supersticiosos dos maridos contra eles próprios?

 

Ela disse:

 

Consigo imaginar que uma mulher que tivesse tido sete crianças em seis anos e, acredita no que te digo, hoje em dia ainda há muitas por aí pudesse querer que o marido ficasse impotente por uns tempos!

 

Pensas então que não passa tudo de uma seita sexual? Nascida do tédio e da repressão?

 

Há alturas em que penso assim repetiu Tibby. E há alturas em que sinto que tenho provas de que é mais do que isso. Depois de teres assistido a uns quantos Esbats, perceberás o que quero dizer. Por mais que eu fale disto de modo descontraído, estou suficientemente convencida de que é genuíno para não tentar sair.

 

Subitamente apercebi-me de que gostava de Tibby e de que tinha pena dela. A vida não devia ter sido propriamente muito fácil para uma feminista inteligente no mundo em que ela crescera. Lembrei-me da história do fazendeiro brutamontes e das suas seis filhas adolescentes que ele transformara num harém privativo. Era tudo uma diferença de grau e não de tipo de abuso, suspeitei. Quando se começa a pensar nas esposas e nas filhas como escravas, criaturas criadas para nossa conveniência, para quê respeitar quaisquer limites? O pai poderia não ter abusado dela sexualmente, mas não lhe permitira certamente a liberdade necessária para construir uma vida decente em que pudesse fazer uso de todas as suas competências e capacidades intelectuais. Disse:

 

Por que é que nunca saíste de casa, Tibby? As raparigas como tu arranjam bons empregos em todas as grandes cidades do país.

 

Ela encolheu os ombros.

 

A minha família estava convencida de que era um desperdício enviar uma mulher para a faculdade... eu acabaria por me querer casar. A minha mãe era tão incapaz de imaginar que uma mulher não se quisesse casar, como era incapaz de imaginar... bem, como era incapaz de imaginar-me a comer o Matthew Hay em plena luz do dia sobre o altar da igreja dele. Só que uma dessas coisas eu podia fazer em segredo, a outra não. Portanto aqui estou eu, com trinta e dois anos, sem educação, nem talento, nem formação. Se saísse de casa passaria o resto da vida a trabalhar como empregada de mesa algures ou a empacotar roupa numa lavandaria. Por isso fiquei cá a tomar conta da casa para o velho e, quando ele morrer, bem, terei uma casa sem ter de me casar com um filho da mãe qualquer só para ter um tecto. Mas criticas-me por a bruxaria se ter tornado num modo de vida para mim?

 

Como é que entraste nisso? servi mais algum chá.

 

Isso posso agradecer à tua tia Sara. Oh, ela era uma mulher horrível em muitos aspectos, mas era inteligente. Emprestou-me livros... em casa só tínhamos a Bíblia da família e um almanaque. Ajudou-me a começar a pensar pela minha cabeça; depois levou-me para a congregação. Só tinha dezassete anos quando ela me deu coragem para deixar de ir à igreja... o meu pai pertence a uma daquelas seitas que só falam no fogo do inferno e na danação. Devo-lhe muito. Ela era um verdadeiro terror, mas suponho que, de uma forma um tanto louca, eu amava-a, porque me ensinou a ser livre, a apreciar a vida e a vivê-la completamente ainda que fosse num buraco perdido como este. Estendeu a mão por cima da mesa e pegou na minha. Depois de ela ter morrido, senti que tinha direito ao lugar dela na congregação. Foi por isso que fiquei ressentida por teres voltado.

 

Eu apertei-lhe a mão.

 

Tibby disse eu, acredita que não sou nenhuma ameaça para ti. Não acredito que sou a Sara Latimer... ou antes, não sou a bruxa Latimer renascida, ou regressada. Não estou interessada em chefiar a congregação. Não quero fazer parte disso. Quanto ao Matthew, ele é todo teu. Não o queria nem que me fosse oferecido de presente.

 

Os olhos dela encontraram os meus, frios e infelizes.

 

Dizes isso agora disse mas e depois? Se a tua memória de bruxa regressar? Não tiveste ainda nenhuns lampejos? O Matt não disse que tu lhe fizeste perguntas que demonstravam que sabias mais dos assuntos da seita do que um estranho poderia alguma vez saber?

 

Não sei explicar isso respondi-lhe. Por exemplo, o que fora aquilo das facas? E dos nomes? Lembrava-me, da Antropologia, que saber o verdadeiro nome de alguém era ter um grande poder sobre essa pessoa. E, em algumas sociedades que não dispunham da escrita, tirar a fotografia a alguém era possuir ou roubar a sua alma. Teria isso alguma coisa a ver com a ameaça corrente em que se dizia: Eu sei o teu nome? Não queria pensar mais naquilo naquele momento. Assim como não sei explicar a razão de... a razão de ter feito sexo com o Matthew. Acredita, eu não queria e não tinha essa intenção. Mas não pode ter sido simples sugestão?

 

Tibby pensou no assunto. Disse:

 

Talvez se nunca tivesses vindo para aqui, nunca tivesses nenhum... nenhum impulso para te tornares bruxa. Mas vieste para aqui. E agora esse impulso foi estimulado em ti. E reagiste ao Matt e descobriste que sabias coisas acerca do culto. O que acontecerá depois de teres assistido a uns tantos Esbats e teres usado o unguento umas quantas vezes?

 

Não respondi imediatamente, pois sentia-me estranhamente enojada. Pus-me de pé, muito direita, olhando de cima para baixo para aquela jovem que se atrevera a usurpar o meu lugar na congregação, que pensara mesmo poder ocupar o meu lugar junto de Matthew e usá-lo para os seus próprios fins. Via Tabitha com uma espécie de dupla visão muito estranha, como se ainda estivesse sentada do outro lado da mesa em frente dela e como se estivesse de pé, por cima dela. Disse bruscamente:

 

Com que direito é que me questionas, Tabitha Whitfield? Eu sei o teu nome!

 

Nomes outra vez; no entanto aquilo surgira-me com uma certeza absoluta. Devo estar a ficar maluca. Ela recuou e a cadeira caiu no chão; a chávena entornou-se, espalhando chá por cima do oleado branco da mesa.

 

Sara murmurou.

 

Essa foi a pergunta errada disse eu ainda distante. Continuava a sentir-me estranhamente dividida por dentro. Quem me dera que não me tivesses perguntado isso, Tibby. Não sei o que aconteceu.

 

Ela abanou a cabeça.

 

Estou confusa. És tu e, ainda assim, de alguma forma, não és tu.

 

Assolada por uma onda de angústia, apercebi-me de que voltara a acontecer, a irrealidade curiosa que se apossara de mim, que fizera com que levasse o Brian para a minha cama, que me atirara nua para a frente de um altar estranho com Matthew e que agora era capaz de afastar a rapariga que alguns minutos antes, através de uma conversa estranhamente honesta e franca, parecera tornar-se numa amiga íntima de há muito tempo. Cobri o rosto com as mãos.

 

Oh, Deus, odeio este sítio explodi. Não sei o que está a acontecer comigo! Tibby, Tibby, que hei-de fazer? Se aqui ficar isto vai acabar por me apanhar e não tenho mais sítio nenhum para onde ir!

 

Tibby deu a volta à mesa e chegou-se a mim. Abraçou-me como já fizera antes.

 

Seja o que for que aconteça, Sara, lembra-te de que gosto de ti e quero ser tua amiga.

 

Talvez se eu me mantiver afastada de tudo isto... se me recusar a ir ao, como é que se chama? Sabat, Esbat, ou lá o que é, se deitar fora todas as coisas da tia Sara...

 

Ela abanou a cabeça.

 

Não me parece que o possas fazer agora. Talvez o pudesses ter feito. Receio que isto já tenha ido longe de mais. E, fosse como fosse, o Matthew ficaria muito zangado. Eu não sei se és capaz, mas eu não consigo enfrentá-lo. Sorriu, abalada. Tu também não consegues... assim. Mas se estiveres no teu eu-bruxa, consegues... já te vi fazê-lo... mas nessa altura já não vais querer ir-te embora.

 

Parecia um caso perdido. Com mãos inseguras, peguei na chávena e bebi o chá frio. Tibby disse:

 

Prometi ao Matthew que falaria de tudo contigo... sobre a utilização do unguento, as outras poções...

 

Não! disse eu, frenética. Não! Não quero saber de nada disso...

 

Mas eu prometi ao Matthew...

 

Empate. Pusemo-nos de pé, olhando obstinadamente uma para a outra, até que se ouviu uma pancada sonora e peremptória na porta das traseiras. Tibby disse:

 

Prefiro que os vizinhos não me vejam aqui e recuou. Lentamente, com os pés gelados, fui abrir a porta.

 

Vi um homem de meia-idade, pesado, com um sobretudo vestido, com a barba por fazer e um tanto curvado que, passados uns instantes, reconheci ser o velho Jeb que vira na noite em que saíra do autocarro da carreira Arkham-Innsmouth. Ele levou a mão à testa encardida numa espécie de saudação.

 

Trouxe-lhe a sua botija de gás, minha senhora. O lojista de Madison Corners disse-me que estava a precisar dela e que o melhor era trazê-la e ligá-la.

 

Trazida de volta, abruptamente, ao mundo das coisas vulgares, assenti e ele disse:

 

Vou buscar a chave para fixar a botija em cima da plataforma, aqui mesmo, ao lado da janela da cozinha. E não é preciso pagar-me já, o lojista manda-lhe a conta, como sempre fez com os Latimers, ao primeiro dia de cada mês.

 

Dirigiu-se à carrinha e eu apercebi-me de que havia pelo menos uma vantagem em pertencer a uma família conhecida na terra... tinha direito a crédito! Aquilo significava que as minhas magras economias durariam um pouco mais do que esperara e, provavelmente, bastar-me-iam até ter recebido o trabalho do livro sem ter sequer de vender algumas das antiguidades da tia Sara.

 

Tibby murmurou:

 

É melhor ires lá fora vê-lo a ligar a botija, não achas? Assim ficas a saber onde se liga.

 

Pareceu-me que tinha razão. Não percebia muito da vida no campo na cidade tomara como garantidos os abastecimentos de gás, aquecimento e electricidade mas, provavelmente, ali era melhor saber, por isso saí e observei o homem a transportar a grande botija de metal de cima da carrinha, empurrá-la num carrinho de mão até à plataforma do lado de fora da janela da cozinha, onde havia um pequeno tubo de cobre que passava por um furo aberto na parede, e retirar habilmente a botija velha.

 

É, esta está quase vazia, provavelmente ia acabar antes de conseguir cozer um ovo disse ele. Essa dura-lhe mais ou menos um mês, a não ser que coza o seu próprio pão e use muito o forno.

 

Vi-o a mexer no tubo de cobre. As mãos dele eram grandes, gorduchas e curiosamente hábeis. Com aquela estranha consciência dupla, pensei em como seria senti-las nos meus seios, no meu corpo nu. Ele era tão grande, tão animal, tão próximo da terra. Deitar-me nos seus braços seria como enterrar-me profundamente na terra, tornando-me uma só com as forças antigas da energia sub-humana... Senti que os olhos dele, pequenos e maliciosos, pousavam em mim e me olhavam com uma estranha intimidade. Teria ele lido os meus pensamentos?

 

Ele disse:

 

Agora que voltou, quer que eu vá consigo lá para cima como de costume, menina Sara?

 

Oh Deus, seria também um deles? Não, aquilo era de mais. Todos os bruxos são promíscuos. Senti-me contorcer numa antecipação ansiosa das suas grandes mãos em mim, arrancando-me o vestido...

 

Não, raios! Eu ainda me controlava a mim própria. Não tinha de me deixar levar a fazer mais o que quer que fosse. Disse inexpressivamente:

 

Não sei do que está a falar. Não tem nada que fazer dentro de casa e vi que a sua expressão mudava para um espanto respeitoso. Respondeu:

 

Como queira, menina Sara apressou-se a entrar na carrinha e fiquei a vê-lo descer a colina aos solavancos.

 

Entrei em casa com um curioso sentimento de prazer. Pela primeira vez desde que ali chegara, vencera. O meu verdadeiro eu impusera aquilo que verdadeiramente queria fazer; não fora forçada a comportar-me daquela forma que me era tão estranha. Procurei Tibby na cozinha, desejosa de lhe contar o que acontecera, mas ela não estava em sítio nenhum e pensei que se limitara a escapulir-se pela porta da frente e a correr para casa. Se era da família Whitfíeld, a casa deles ficava a uma esquina perto do local onde parava a camioneta de Arkham e... sim, era a quinta Whitfíeld, onde o Matthew dissera que eu podia comprar leite, ovos e legumes. Seria um pouco constrangedor se decidisse não ter nada a ver com a congregação dos bruxos; como poderia comprar-lhes coisas?

 

Subi lentamente as escadas. Tibby estava no grande quarto da tia Sara. Tirara os sapatos e estava sentada, descalça, no banco em frente do toucador. Disse:

 

Por que é que não o trouxeste para cima? Ele é homem que chegue para nós as duas. Quando viu a minha expressão chocada e horrorizada disse impacientemente: Oh Sara, não sejas pateta. Está bem, está bem, não vou apressar as coisas, pronto. O Esbat é amanhã à noite, de qualquer maneira, posso esperar.

 

Veio para junto de mim.

 

Desculpa, eu... tens de compreender o que isto é para mim. Tenho todas as razões para esperar que te comportes como uma de nós e não paras de me desconcertar. E, afinal de contas, detesto passar o tempo a desculpar-me.

 

Não estou zangada disse eu, não sei porquê mas não estou.

 

Ela curvou-se sobre o toucador.

 

Vejo que encontraste o unguento de Vénus. Não é uma coisa muito séria, mas é divertido para brincar. Abriu o pequeno pote de porcelana e o odor estranho, erótico e absorvente espalhou-se no ar.

 

Desconfortável devido ao cheiro, afastei-me um pouco.

 

É esse o unguento que disseste que eu usaria antes de... tentei lembrar-me da expressão que ela usara de a memória de bruxa voltar?

 

Ela olhou para mim muito séria.

 

Não disse, isto é um jogo. Queres dizer que te esqueceste do que o verdadeiro unguento de bruxo o unguento é e o que pode provocar?

 

Ou esqueci ou nunca soube. E na verdade estou-me nas tintas disse. Tibby estava a passar o creme do pote distraidamente nos pulsos e na testa. Queres mesmo brincar com isso, Tibby? Na outra noite tive a sensação de que era bastante perigoso. O cheiro era intoxicante, provocando uma estranha comichão na base do meu nariz e despertando memórias e pensamentos confusos. Tibby olhou-me no espelho e riu-se.

 

Perigoso? Este não. O Verdadeiro unguento... se puseres uma dose excessiva terás uma pedra muito má; se puseres uma dose muito excessiva ficarás envenenada, embora há já anos que aqui ninguém morre disso. Mas este não tem nada que possa fazer mal a quem quer que seja; é só para nos divertirmos. Toma, porque não te juntas a mim? Se calhar é mesmo a melhor forma de te ajudar. Talvez fosse isto o que o Matthew tinha em mente.

 

Senti novamente uma estranha sobreposição de emoções, memórias e fantasias. Tibby, com a imagem distorcida no espelho, parecia simultaneamente muito mais nova e muito mais velha. O odor do creme erótico era como um miasma invisível no interior do quarto. Lentamente, hesitantemente, estendi a mão e pus um bocadinho da pasta verde no dedo e esfreguei-a na garganta.

 

Vem cá, deixa-me fazer isso disse Tibby. Abriu-me os botões da blusa. O creme era frio, provocando um breve ardor que depois se tornava agradável nos meus seios nus. As mãos dela demoraram-se, meigas e íntimas, sobre uma das nódoas negras que ainda eram visíveis no meu peito. O Matt é demasiado bruto, mas quem é que se importa? Eu gosto assim. Olha. Despiu a camisola num gesto rápido e vi que tinha marcas avermelhadas de dentadas num dos ombros. Estiquei um dedo e toquei-lhes ao de leve, com um arrepio estranho, mas não desagradável, de horror.

 

É uma pena o Matt não ter ficado disse ela, mas não te importes, podemos arranjar-nos muito bem sem ele.

 

Estava a tirar as calças de ganga grossa de rapaz; não trazia cuecas por baixo e, nua, parecia muito esbelta e frágil, quase infantil, tão vulnerável que me provocou uma sensação irracional de compaixão. Mas o seu sorriso perverso negava tudo o que era jovem e inocente nela; os seus olhos oblíquos, visíveis através do cabelo despenteado, estavam muito abertos e brilhavam com algo de semelhante à sabedoria malévola dos olhos de Barnabas.

 

O unguento erótico começava a ter efeito em mim também. Parecia que todas as sensações do meu corpo estavam concentradas nas pontas dos meus dedos que continuavam a explorar, ao de leve, os seios de Tibby. Ela riu-se, com um riso descontrolado e agudo como o grito de um pássaro e puxou-me para o seu lado para cima da cama grande.

 

De tudo o que aconteceu de estranho naquele Verão bizarro na velha casa Latimer, o que recordo com a emoção mais singular foi aquela hora que passei com Tibby na enorme cama de dossel da tia Sara, com o perfume peculiar em torno de nós e que nos tornava sensuais e preguiçosas alternadamente, o quarto iluminado pelo Sol tremeluzente que parecia, de quando em vez deter-se, dançar e estremecer em simultâneo com os meus nervos trémulos. Para tudo o resto que aconteceu naquele Verão, parece ter havido uma razão, uma desculpa, uma explicação. Para aquilo não. Olhando para trás, nem sequer posso deitar as culpas para o unguento afrodisíaco; eu já conhecia os seus efeitos, já sabia qual seria a minha reacção, não precisava de me ter juntado a Tibby quando esta o tinha posto. E no entanto, de livre vontade, quando ela me puxou para o seu lado, não me afastei, antes abracei-a, puxei-a para junto de mim e senti, com um misto de surpresa e ternura, o desejo quando os seus lábios macios se abriram sob os meus.

 

Para tudo o que me acontecera até ali naquele Verão bizarro, eu já conhecera um precedente, tivera alguma experiência. Mas ali sentia-me totalmente ignorante, surpreendida embora intelectualmente soubesse que aquilo podia acontecer a qualquer um de estar a reagir fisicamente ao toque de outra mulher.

 

As mãos de Tibby, magras e belas, demoraram-se nos meus seios provocando um misto de excitação e de dor. Ficámos deitadas a acariciar-nos preguiçosamente, cada uma de nós sentindo os seios da outra endurecerem sob as nossas mãos, os mamilos a endurecerem, a tornarem-se macios e a endurecerem novamente. Ela pareceu aperceber-se do meu desejo e da minha inexperiência, de que não tinha a certeza de como deveria continuar e, tomando a iniciativa, empurrou-me contra o travesseiro. Afastou-me os joelhos com um toque dos seus. Depois, deitadas uma contra a outra, os seios a tocarem-se, os lábios procurando-se repetidamente em beijos leves e brincalhões, as suas mãos demandaram e encontraram o centro da paixão e, com toques hábeis, a princípio ao de leve e depois com mais intensidade, excitou-me até eu começar a reagir ao seu toque, primeiro mexendo-me e gemendo e depois pulsando loucamente à beira do orgasmo. Depois, rindo, ela deixava que as suas carícias se tornassem mais calmas até pararem completamente, esperando que a minha respiração acalmasse, começando tudo de novo.

 

Mas dessa vez já não fui uma participante passiva; as minhas próprias mãos procuraram a suavidade entre as pernas dela e, com um curioso choque de estranheza e familiaridade, encontrei humidade quente no meio das suas coxas; senti aquela curiosa dualidade, eu própria e outra, emoções familiares e outras que me eram estranhas, enquanto os meus dedos percorriam os contornos macios e tocavam o pequeno centro quente e pulsante. Foi estranhamente excitante ouvi-la arfar em resposta e comecei a incitá-la novamente, provocando-a e brincando com ela, obtendo uma reacção cada vez mais forte.

 

Era como se cada um dos nervos tensos de Tibby estivesse ligado a uma reacção correspondente em mim própria; a sua excitação crescente levou-me a uma reacção violenta e agarrámo-nos uma à outra, arfando descontroladamente, chegando uma e outra vez à beira do orgasmo e acalmando-nos novamente. Ao olhar, por acaso, para o outro lado do quarto, vi uma imagem pouco nítida no espelho, curvas macias, os cabelos caídos sobre os nossos rostos, os belos olhos de Tibby abrindo-se e dilatando-se de prazer e excitação. Depois deixei de ver novamente e ouvi-a gemer, excitada:

 

Chega de brincadeiras... agora, oh, agora, agora, quero agora... e depois o seu grito de prazer, semelhante ao de uma gaivota, soou e senti o aperto descontrolado das suas coxas na minha mão. Não, não, já chega... já chega...

 

E depois algo explodiu dentro de mim, tão violentamente que pensei que iria desmaiar, a tensão enorme dentro de mim, seguida pelo fluxo louco da libertação.

 

Tibby abanou a cabeça para afastar os cabelos dos olhos. Sentou-se, sorriu-me e disse:

 

Uau!

 

Ri-me, com uma curiosa mistura de embaraço e ternura. Tibby também se riu e disse:

 

Eu tinha-te dito que podia ser divertido. É uma maneira de passar uma tarde chata de Verão. Mas acho que contigo por perto ninguém se aborrece.

 

Enquanto nos vestíamos, havia uma estranha intimidade entre nós. Ajudei-a a apertar os botões nas costas da blusa; ela veio ter comigo e fez-me festas no cabelo quando me sentei ao toucador para pentear os caracóis ruivos.

 

Disse por fim, com meiguice:

 

Sara, tenho de te dizer uma coisa. Quero ser tua amiga... sou tua amiga. Mas não consigo enfrentar o Matthew por causa de ti. Não o farei e não podes pedir-me que o faça. Sem ser isso... bem, és nova nisto e não quero que te magoes. Se a tua memória de bruxa regressar a tempo, isso não acontecerá, mas se não regressar...

 

Interrompi-a: Acreditas que isso existe? Essa coisa de eu ser a alma imortal de uma bruxa?

 

Tenho de acreditar disse ela. Eu via-a. Voltou por instantes, lá em baixo, não foi Sara: Se voltar novamente vais ficar bem... embora eu possa ter de lutar contra ti, tal como teria lutado contra a própria Sara... a Sara mais velha. Mas poderás lutar nessa altura em igualdade de circunstâncias. O que me preocupa agora é o que acontecerá se a memória não regressar. No Esbat... tens alguma ideia do que irá acontecer, do que vai ser pedido?

 

Não, mas isso não importa. Decidi que não vou.

 

E como tencionas manter-te afastada se o Matthew Hay te quer lá? Responde-me a essa questão!

 

Facilmente retorqui, não irei simplesmente. Não interferirei, o que as outras pessoas fazem não é da minha conta, mas eu não quero ter nada a ver com isso. Ficarei em casa a ler um bom livro.

 

O riso dela soou a desespero.

 

Nesse caso só me resta desejar-te muita sorte! Vais precisar dela. Achas que nunca ninguém tentou evitar o Esbat e o Sabat? Não, Sara. Vais lá estar. E se a tua memória não tiver voltado... escuta, eu devia preparar-te...

 

Não quero ouvir disse eu. Por favor vai-te embora Tibby, baixei-me e beijei-a. Sim, continuo a ser tua amiga, mas sem estes disparates de bruxarias. Vamos esquecer isso tudo.

 

Ela ficou sentada, hesitante, durante algum tempo, depois calçou os mocassins de cabedal e levantou-se para se ir embora. Disse lentamente:

 

Por tua conta e risco, então. Lembra-te de que eu tentei.

 

E saiu a porta e desceu as escadas.

 

A Congregação Reúne-se

 

Após a tensão caótica dos primeiros dias, o ritmo abrandou até eu começar mesmo a perguntar-me se tudo o que me acontecera, naquelas primeiras quarenta e oito horas caóticas na casa Latimer, teria sido o resultado do choque nervoso e de uma imaginação hiperactiva. Nessa noite, o Brian apareceu para me levar a jantar fora e vesti as minhas melhores roupas, o último grito da moda nova-iorquina, com a intenção de o deslumbrar e que fossem para o diabo os fazendeiros locais. Quando passámos pela quinta mais próxima a caminho de Arkham, vi a Tibby a carregar um balde de leite para o celeiro e acenei-lhe num súbito impulso de simpatia. Pobre miúda, talvez pudesse encorajá-la a ir-se embora, antes de eu própria partir, para Boston, Providence, Nova Iorque. Aquilo não era vida para ninguém. Amarrada a uma família ignorante e à rotina brutal do trabalho da quinta e da casa, não era para admirar que encontrasse a sua única fonte de excitação na evocação mórbida do velho culto da bruxaria.

 

Brian viu o meu gesto.

 

Conheces a Tibby?

 

Ela apareceu lá em casa esta tarde para me dar as boas-vindas... um gesto de boa vizinhança. Consegui não corar.

 

Bem. ela era uma espécie de protegida da velha senhora. Acho que os Whitfields e os Latimers têm mantido relações próximas durante séculos, provavelmente ela é tua parente afastada. Devo confessar que não gosto muito dela... torna demasiado óbvio que veria com bons olhos obter alguma excitação do novo médico. Mas eu não sou homem para seguir as pisadas do Matthew Hay.

 

O que, como era evidente, acabava, mesmo antes de eu poder considerar a questão, com qualquer hipótese de lhe confessar tudo e lhe pedir conselhos sobre como acabar com a ideia fixa dos habitantes locais de que eu era a tia Sara renascida.

 

Apreciei, como era habitual, a companhia do Brian e voltei de bom-grado à casa que ele partilhava com o primo para passar as primeiras horas da noite. Aquilo podia, percebia agora, tornar-se em algo de muito real e de muito bom. Se ao menos me livrasse do medo constante de poder vir a sofrer uma repetição da curiosa possessão que me forçara a comportar-me de formas estranhas, a fazer perguntas bizarras e inesperadas, a atacar verbalmente pessoas que mal conhecia...

 

Estava novamente a pintar na manhã seguinte, com a primeira série de ilustrações a aproximar-se rapidamente do fim, quando o tinido da campainha da porta me chamou ao andar de baixo. Matthew Hay, magro, saturnino e persuasivo, estava à porta.

 

Vim cá só para te lembrar que esta noite é de Lua cheia disse e que nos encontramos duas horas depois do pôr do Sol, no exterior da Igreja do Antigo Rito. Visto seres nova e as tuas memórias ainda não terem regressado completamente, não precisas de trazer nada... já fizeste a tua parte fornecendo comida e bebida e outros materiais no passado.

 

O meu estômago contorceu-se desagradavelmente. Ele tomava tudo aquilo como absolutamente garantido. Mas eu tinha que arranjar maneira de, fosse como fosse, o enfrentar.

 

Disse:

 

Lamento Matthew. Mas depois de ter pensado no assunto, decidi como era a frase da Tibby? que este não é um jogo que eu queira jogar. A bruxaria e as congregações não me atraem. Agradeço a tua bondade em me quereres de volta, se é isso que acreditas estar a fazer. Mas eu não sou a minha tia Sara, Matthew, e não me interesso pelas coisas que a interessavam. Por isso vamos, por favor, esquecer o assunto, está bem?

 

Nunca acreditara que a frase "ficar roxo de raiva" passasse de uma frase feita usada pelos escritores de romances populares, mas agora via-a em acção. O rosto dele ficou tão escuro e congestionado de fúria que a pele pareceu ficar muito mais morena.

 

Ele disse:

 

Mas que inferno!

 

Não há inferno nenhum. Eu não acredito no inferno. E, por falar nisso, não acredito em diabos, demónios, bruxos, nem nenhuma dessas coisas. Lamento, mas a minha decisão está tomada. E agora, se não te importas, estou a trabalhar; tenho um livro para acabar. Desculpa-me, por favor.

 

Virei-me para entrar. Ele estendeu o braço com a rapidez do ataque de uma cobra e agarrou-me um pulso.

 

Se foi a Tibby quem te convenceu a fazer isto, se te ameaçou ou fez uma cena de ciúmes, parto-lhe o pescoço!

 

Pelo contrário. Tentei libertar o pulso. A Tibby não poderia ter sido mais simpática e foi muito, muito persuasiva. Não, a decisão foi inteiramente minha, Matt, por isso não atires as culpas para cima dela. Larga-me! Libertei-me, com um espasmo de raiva. Olha, como te atreves a vir aqui com essa atitude?

 

Sabes porque me atrevo disse ele lentamente e não o podes negar.

 

Decidi fazer de conta que não percebia.

 

Se pensas que lá porque fizeste sexo comigo podes dar-me ordens como fazes com a coitada da miúda, a Tibby, que é inofensiva, é melhor mudares de ideias imediatamente!

 

Não era isso o que eu queria dizer. É o que tu és, Sara. Raios, pensei que te tinha convencido e, só por teres passado umas horas longe de nós, começas a ter novamente dúvidas e a recusares-te a acreditar nos teus próprios poderes!

 

Oh, que se danem os poderes gritei-lhe. Dei por mim a desejar, por uma vez, ter a força da tia Sara para o poder enfrentar e arrasar a sua estúpida arrogância. Quando me virara momentaneamente contra Tibby, falando-lhe na voz que devia ser a da tia Sara, ela ficara pálida de medo. Quem me dera conseguir pensar numa forma de assustar o Matthew Hay da mesma maneira. Respirei fundo...

 

A sala estremeceu na minha frente, pareceu-me que inchava, pronta para atacar, em fúria. Como se atrevia ele... aquele homem que me devia todo o seu poder...

 

Dei um passo na direcção dele. Vi-o recuar, sobressaltado... e depois vi o sorriso breve, no seu rosto, que se apressou a disfarçar.

 

Teria ele estado a tentar provocar aquela reacção?

 

Uma coisa era invocar a tia Sara no meio de um ataque de fúria, outra coisa era ver-me livre dela novamente! Cerrei os punhos, debatendo-me contra a torrente negra de recordações e pensamentos estranhos, e o poder explosivo dentro de mim que era como uma maré destituída de remorsos...

 

Depois desapareceu e abri os punhos. Disse na voz mais calma e mais terra a terra que consegui arranjar:

 

Creio que sou capaz de ter sofrido algumas... ilusões. A casa está a perturbar-me o sistema nervoso. Acho que qualquer psicólogo competente me aconselharia a manter-me afastada de tudo o que possa estimular mais experiências deste género. E até mesmo ir ao teu... como se chama?

 

Esbat...

 

Mesmo ir como observadora ou convidada pode ter esse efeito em mim. Por isso muito obrigada mas... não obrigada. Agora desculpa-me. Tenho mesmo de voltar ao trabalho. Entrei em casa e fechei a porta trancando-a rapidamente por dentro. Ouvi-o a tentar abri-la, mas quando se apercebeu de que estava trancada foi-se embora e, passado um bocado, ao olhar através das vidraças junto à porta da frente, vi-o a atravessar os campos em direcção à quinta dos Whitfield. No andar de cima tentei retomar a pintura que tinha interrompido, mas a minha disposição fora-se e apercebi-me rapidamente que, se insistisse, ia dar cabo do que fizera até ali. Tinha saudades de Brian e desejei que houvesse um telefone em casa; estava demasiado isolada ali.

 

A casa parecia ecoar, vazia, à minha volta. Fiz uma sanduíche para o almoço mas descobri que mal consegui engolir. Porque estaria tão enervada? Afinal de contas tinha feito frente, de forma clara, ao Matthew Hay numa discussão acesa. Tinha ganho aquele assalto. Foi só mais tarde que comecei a identificar a causa da minha inquietação. Ele fora vencido com demasiada facilidade; não iria desistir tão facilmente e, da próxima vez, era capaz de aparecer com punhos de ferro e sem luvas de cetim.

 

Senti que não conseguia ficar em casa à espera da jogada seguinte, fosse ela qual fosse. Depois lembrei-me. A camioneta da carreira Arkham-Innsmouth passava na esquina às onze e vinte da manhã e pouco passava das onze. Podia apanhar a camioneta e passar o dia em Arkham, talvez explorar o recinto da universidade, ver que artigos de arte havia na livraria da faculdade aliás precisava de um pincel fino de marta - ir ao cinema, talvez, pois Arkham, uma cidade com dezanove mil habitantes devia ter pelo menos uma sala de cinema e talvez passar a noite no hotel. Se não estivesse ali, eles não poderiam fazer nada para me levar para o raio do Esbat.

 

Rapidamente, empacotei umas quantas coisas numa bolsa grande que já me servira de mala de fim-de-semana noutras ocasiões, vesti roupas citadinas um fato de calça e casaco verde muito giro troquei os sapatos de ténis por sandálias de estilo mais urbano de meio salto e comecei a descer a estrada em direcção à paragem da camioneta. A estrada passava em frente à quinta Whitfíeld, mas não tinha receio de encontrar Matthew na estrada; já sabia que ele preferia atalhar caminho pelos campos.

 

Estávamos no pico do Verão e as silvas estavam carregadas de amoras. Caminhei rapidamente detendo-me de quando em vez para apanhar uma amora madura junto à estrada e metê-la na boca. Eram deliciosas, com um sabor que as amoras cultivadas na cidade e depois congeladas nunca tinham. O meu estado de espírito melhorava a cada passo que dava para longe da casa Latimer. Talvez pudesse deixar uma mensagem a Brian ou telefonar-lhe de Arkham para o hospital. Se estivesse de serviço no hospital poderíamos comer qualquer coisa juntos quando ele saísse de serviço. Uma voz clara e familiar chamou-me:

 

Sara!

 

A minha boa disposição desapareceu. Ainda assim, continuei a andar ao mesmo ritmo. Tibby saiu dos campos para a estrada, parecendo uma miúda de doze anos, com calças de ganga debotadas e sujas e uma camisa de homem com as mangas cortadas e que lhe ficava apertada.

 

Olá, Tibby. Agora não posso conversar contigo, tenho de ir apanhar o autocarro. Vou passar o dia em Arkham e sou capaz de não voltar esta noite.

 

Os olhos dela brilharam momentaneamente.

 

Não podes fazer isso. Sabes que não podes. Está Lua cheia. Esqueceste-te de que noite é hoje?

 

Suspirei com impaciência. Não queria discutir aquilo outra vez.

 

Não, não esqueci. É por isso que vou. Escuta, Tibby, o Matthew já te deve ter dito, eu vi-o vir na direcção da tua casa. Tem-lo todo para ti e desejo que te faça bom proveito. Tib, sê boa rapariga, sai da minha frente e deixa-me apanhar a camioneta.

 

Ela disse, calmamente:

 

Tu sabes que não vais, Sara.

 

Tibby, não quero ser desagradável, mas achas mesmo que és capaz de me impedir?

 

Preferia não ter de o fazer disse ela surpreendentemente. Se a decisão fosse minha, deixar-te-ia partir e que fizesses boa viagem. Mas o Matthew quer que fiques e o que o Matthew quer o Matthew tem, desde que dependa de mim.

 

O seu gesto seguinte sobressaltou-me; virou a cabeça e soltou um assobio longo e agudo. Por momentos pensei que estava a pedir reforços, mas não aconteceu nada com excepção de um pequeno movimento nas sebes e um pássaro negro esvoaçou, saltitou por instantes na nossa frente, depois voou para o ombro de Tibby e ficou ali, grasnando com voz rouca:

 

Linda menina! Linda menina!

 

E que raio é isso, Tibby?

 

Uma gralha disse ela. Fui eu quem a ensinou a falar. Devias saber, tens o Ginger Tom... não, agora chamas-lhe Barnabas, não é? Olha Sara, não me obrigues a fazer isto. Não vale a pena. Sabes que tens de fazer o que o Matthew quer, tal como eu, até teres poder suficiente para o desafiares e agora não és assim tão poderosa. Não me obrigues, Sara. Por favor. Eu gosto de ti.

 

Eu também gosto de ti disse eu secamente, mas estás a tornar muito difícil a nossa amizade.

 

O pássaro grasnou:

 

Volta para trás! Volta para trás! Com um longo assobio agudo acrescentou: Lua cheia! Lua cheia! Linda menina!

 

Venho apreciar o teu animal de estimação noutra altura, Tibby. Não quero perder a camioneta. Comecei a passar por ela. Como estava na minha frente, comecei a contorná-la.

 

Ela virou a cabeça e falou baixinho com a gralha. Embora tivesse falado claramente, não percebi uma única palavra, como se ela estivesse a falar numa língua estrangeira. Decidi não perder mais tempo e comecei a andar.

 

Não tenho explicação para o que se passou a seguir. Os olhos malévolos do pássaro pareceram encontrar os meus e, quando comecei a afastar-me, descobri que estava a andar novamente na direcção de Tibby e que ela estava no meu caminho. Desviei-me para a contornar e, quer tenha sido ela que se moveu quer tenha sido eu quem mudou de direcção sem dar por isso, ali estava ela novamente na minha frente. Mais uma vez alterei a direcção; e mais uma vez encontrei Tibby e o pássaro malévolo no meu caminho e não poderia continuar sem passar por cima dela.

 

Os seus olhos azuis encontraram os meus, quase com compaixão e ela disse:

 

Disse-te que não te podia deixar ir, Sara. Tenta outra direcção.

 

Vou apanhar a camioneta.

 

Não vais, como bem sabes disse ela. Devemos ter andado as duas de um lado para o outro no meio da estrada durante bastante tempo. Ela não me tocou. Limitou-se a ficar onde estava e, por mais que tentasse ultrapassá-la, os meus pés levavam-me repetidamente na sua direcção. Finalmente ouvi o ruído de um motor velho e asmático. Passou o topo da colina, numa nuvem de pó. Tibby assobiou e a gralha levantou voo e foi pousar nas sebes. Descobri que conseguia caminhar novamente em liberdade.

 

Podes ir para onde quiseres, agora não faz muita diferença a camioneta já partiu e não há outra forma de sair da cidade.

 

Não esquecerei isto, Tibby.

 

Espero que não disse ela. Oh, Sara, para que te dás ao trabalho de estar zangada? Sabes por que é que eu tinha que fazer isto. Avisei-te de que não seria capaz de enfrentar o Matthew por tua causa.

 

Não tinha mais nada a dizer; virei-me e comecei a caminhar na direcção da minha casa. Tinha vontade de rebentar num pranto de lágrimas frenéticas e aterrorizadas. Houve uma razão que me impediu de o fazer; sabia que a Tibby se aproximaria para me confortar e de que o faria com toda a sinceridade. Eu não o teria suportado.

 

Voltei para casa e sentei-me sem me mexer na velha cozinha. Sentia-me como um rato na ratoeira. Congratulara-me por ter saído vitoriosa no primeiro assalto com Matthew, mas Tibby batera-me em toda a linha neste segundo assalto sem ter sequer de se esforçar. Não tinha a certeza do que fariam a seguir... dificilmente poderiam entrar e arrastar-me à força para o Esbat se eu trancasse todas as portas. E, ainda que o fizessem, acho que conseguiria perturbar a cerimónia nem que fosse pondo-me de pé e cantando o "Avante Soldados de Cristo" com todas as minhas forças.

 

Barnabas andava desconsoladamente de um lado para o outro junto à porta da cozinha. Não estava com disposição para me preocupar com gatos, mas deixei-o entrar e abri uma lata de comida para gato.

 

E onde raio estavas tu esta manhã quando precisei de ti? perguntei de muito mau humor. Porque não apareceste para caçar aquela maldita gralha e fazê-la em pedaços?!

 

Passou por mim e começou a engolir a comida e eu disse a mim própria que estava a ficar tão doida como os outros todos. Raios, precisava de alguém são de espírito como o Brian!

 

Talvez se ele fosse naquela tarde ao hospital de Arkham, me pudesse levar com ele. Podia pelo menos arranjar forma de passar a noite com ele e não ali, olhando para o cemitério onde Matthew e a sua estúpida congregação andariam a cabriolar nos seus rituais que, de certeza, ou eram idiotas ou obscenos ou, mais provavelmente, ambas as coisas.

 

Deixei que Barnabas terminasse a refeição, pu-lo na rua não sabia quando estaria de volta e, agarrando na minha bolsa grande, saí novamente, desta vez para ir a pé até Madison Corners. Era um pouco mais de quilómetro e meio de caminho, mas isso não me preocupava. Confesso que me sentia apreensiva quando passei pela quinta Whitfield, mas não vi sinais de vida; só um grande pássaro negro esvoaçou sobre a sebe quando passei mas, para mim, todos os pássaros grandes e negros são parecidos uns com os outros, por isso não fazia ideia se aquele era o mesmo que Tibby dissera ser o seu apaniguado.

 

A minha disposição melhorou lentamente à medida que me fui aproximando da pequena aldeia no cruzamento. Em breve estaria a falar com Brian ou talvez a ver o Colin. A loja de esquina tinha um telefone. Encontrei o número do Brian na lista telefónica de Arkham (Standish Brian Dr., Mad com) e disquei-o. Depois de o telefone ter tocado quatro vezes uma voz estranha apareceu em linha e identificou-se como sendo do serviço de mensagens. "Lamento muito, mas o doutor saiu para fazer um domicílio lá para os lados de Innsmouth. Enviou uma mensagem dizendo que é capaz de regressar muito tarde logo à noite. Deseja que o Doutor James Standish lhe telefone?"

 

Agradeci à voz anónima e desliguei, com o desânimo a abater-se pesadamente sobre mim. O Brian só regressaria muito tarde, à noite e, nessa altura, o Matthew Hay era capaz de já ter avançado sobre mim para me levar para o seu Esbat. Comprei um gelado que tirei de uma arca frigorífica que havia na loja e demorei-me um pouco, olhando para as sacas de ração para galinhas não querendo voltar para casa sozinha.

 

Está a pensar ter umas galinhas, menina Sara? disse uma voz atrás de mim. Posso arranjar-lhe umas quantas boas galinhas e um galo por um preço jeitoso.

 

Virei-me e encarei um fazendeiro desconhecido. Ele disse:

 

Desculpe que não me tenha apresentado, menina. Acho que toda a gente por estes lados sabe quem a menina é. Chamo-me Raboth Tate. Crio galinhas para vender e, tal como disse, se quiser umas quantas posso arranjar-lhas por bom preço.

 

Ainda não decidi respondi. Nem sequer tenho a certeza de ficar cá mais do que uma semana, mais ou menos.

 

Também lhe posso arranjar galinhas para comer, a não ser que as compre ao Nahum Whitfield; sei que fez amizade com a filha dele.

 

É muito simpático da sua parte, Sr. Tate. Não combinei comprar galinhas ao Sr. Whitfield, embora tivesse pensado encomendar ovos e leite à Tibby. Um fricassé de galinha saber-me-ia bem. Cozinharia a galinha e os biscoitos quentes que a minha mãe costumava fazer para o jantar de Brian amanhã ou quando ele estivesse livre. Mas por agora estava a pensar se conhece alguém que vá para os lados de Arkham hoje? Perdi a camioneta para Arkham esta manhã e preciso de umas quantas coisas que não há aqui à venda, pincéis e coisas do género.

 

Os pincéis estão aqui disse ele indicando uma prateleira com tinta para paredes, baldes de tinta branca e trinchas largas.

 

Ri-me e disse:

 

Não são pincéis desses; preciso de pincéis para pintar a óleo.

 

Oh, quer dizer pincéis de artista? Sim, acho que para comprar desses tem de ir à cidade.

 

Alguém daqui irá lá? Não me importo de pagar a boleia.

 

Não há necessidade disso disse Raboth Tate. Os vizinhos aqui estão sempre disponíveis para dar uma boleia, só que não me parece que alguém vá lá hoje... sendo o dia que é. E ninguém sai da cidade hoje. Fez uma pausa e disse com uma ênfase curiosa. Pensei que o Matthew Hay já lhe tivesse dito isso.

 

Oh, Deus, ele era também um deles! Ainda hoje não me consigo lembrar de como saí da loja nem de mais nada com clareza até dar por mim a cambalear às cegas pela Witch Hill Road, quase novamente junto à minha porta.

 

Fiquei sentada, num estupor atordoado durante cerca de uma hora, tentando desesperadamente pensar no que fazer. Tudo o que me vinha à ideia era que deveria ir para o andar de cima, trancar a porta, não atender à campainha e deixá-los tentar tudo o que quisessem. Não poderiam propriamente arrastar-me dali, ou podiam? Depois da demonstração daquela manhã, com a Tibby e a gralha, não me sentia segura de que não conseguissem levar-me de alguma forma, por minha vontade ou contra a minha vontade, mas primeiro teriam de chegar até mim.

 

Pensei se estaria a ficar paranóica. Tinha de haver mais fazendeiros inofensivos nas redondezas do que bruxos e feiticeiros. Estaria a ficar com a mania da perseguição? Vagamente lembrei-me que, no pico da loucura dos crachás, um amigo meu usara um que dizia: "Mesmo os paranóicos têm inimigos verdadeiros." Era como eu me sentia agora, trancada na casa da tia Sara, sem me atrever a pôr o nariz de fora com medo de que o Matthew Hay ou a Tibby aparecessem e levassem novamente a melhor sobre mim. E o pior, o inimigo mais terrível, estava dentro de mim; a recordação das ocasiões em que dera por mim a comportar-me como a tia Sara!

 

A tarde foi passando. Tentei ocupar-me em casa, mas cada coisa em que pegava fazia-me pensar em quando a tia Sara lhe teria tocado pela última vez e acabei por desistir e agarrar num policial de bolso que trouxera de Nova Iorque, tentando concentrar-me nas aventuras de um detective ruivo que tinha duas namoradas e dois clientes e uma garrafa de uísque para cada um deles.

 

Talvez me devesse ter fortificado com uma bebida, mas tinha um medo mortal de não estar na posse de todos os meus sentidos se Matthew Hay tentasse mais um argumento ou truque. Precisava de estar completamente alerta.

 

Pareceram passar séculos até ao pôr do Sol. Comecei a cozinhar distraidamente o jantar batatas no forno, ovos, o jantar típico das solteironas. Estava a cortar tomates para fazer salada quando ouvi uma pancada tímida na porta das traseiras.

 

Ignorei-a, mas quando soou novamente, fui ver quem era. Não me parecia a batida firme que o Matthew costumava dar com o nó dos dedos. E não conseguia imaginar a Tibby a ser tão tímida.

 

Do lado de fora da porta, estava uma mulher alta e elegante, com um cesto na mão.

 

Disse a mim própria para não ser totalmente paranóica. A mulher era, obviamente, uma vizinha inofensiva. Apaguei o lume onde estava a cozinhar os ovos e abri a porta.

 

Ela pestanejou. Tinha cinquenta e tal anos e era uma mulher magra, de aspecto saudável, com o rosto rosado e uma bata florida.

 

Meu Deus disse. O Matt disse-me que eram muito parecidas, mas nunca pensei que o fossem tanto! Eu era amiga da sua tia Sara, querida; sou a Judith Hay. O Matt mandou-me pedir desculpa por ter sido tão ditatorial esta tarde e disse para fazer o que quisesse... isto faz algum sentido, querida?

 

Fazia. Assenti.

 

O Brian falara-me dela, mas parecia ser bastante inofensiva.

 

O meu irmão tende a esquecer que nem toda a gente é tão fanática como ele disse ela. Trouxe-lhe um bocado do meu bolo de morango, querida; pensei que lhe saberia bem com o jantar. Olhe, pegue no cesto e, se fosse a si, punha-o num sítio fresco. Não, agora não posso entrar, Sara. Fica para a próxima. Espero que goste dos morangos, querida, fui eu própria quem os apanhou esta manhã. Adeus. Meteu-me o cesto nas mãos e desapareceu.

 

Levei o cesto para dentro afastando o napperon branco e limpo que o cobria. Os morangos eram apetitosos, vermelhos e sumarentos e o bolo estava estaladiço, dourado e salpicado de nozes e com um ar delicioso. Tirei o prato de dentro do cesto, pensando em como gostaria de me atrever a comê-lo. Podia estar drogado. Seriam eles assim tão subtis? Podia arriscar?

 

O prato parecia ter sido untado com uma substância fina e peganhenta; esfreguei as mãos para as limpar e o resultado foi ficar com as palmas das mãos todas sujas. Levei as mãos ao nariz e cheirei. Era um cheiro ácido a ervas, estranhamente obscuro e com vestígios excrementícios. Esfreguei as mãos sentindo-me desagradavelmente tonta e enjoada.

 

O unguento actua rapidamente...

 

Deixei cair o cesto no chão, ouvindo algures, na periferia da minha consciência que se desvanecia, o prato cair e partir-se. Que pena. A escuridão ondulou e fechou-se sobre os meus olhos. Fui envenenada, drogada. Cambaleei até ao sofá da sala e sentei-me quando estava prestes a cair, consciente, no último instante de lucidez total, de que me esquecera de trancar a porta.

 

Só que isso parecia ter deixado de ter importância.

 

Orgia ao Nascer da Lua

Nunca soube quando tempo ali estive deitada, envolta num sonho negro, com redemoinhos obscuros que iam e vinham na minha mente, como grandes vagas de escuridão quebrando-se sobre mim, envolvendo-me, recuando e rebentando novamente. Frases sem sentido não paravam de reverberar repetidamente na minha mente, ecoando como se esta fosse um corredor vazio onde alguém estivesse aos gritos criando ecos:

 

Cavalo, hattock, montem e partam!

 

Af baraldim Azathoth!

 

Aklo, aklo, dors de ma main...

 

E uma dolorosa e interminável sequência em que eu estava de cócoras, imóvel, num local vasto e escuro, com uma voz que repetia sem parar: "Que estás a fazer? Estou a cuidar do meu bicho. Que estás a fazer? Estou a cuidar do meu bicho" uma e outra vez, com uma seriedade idiota, como se as palavras reiterassem um responsabilidade importante e grave. (Ainda hoje não perdi a esperança de que algures, nos recantos mais obscuros do meu subconsciente, surja um significado para estas palavras.) E através de tudo isto, vagas de náusea iam e vinham, como se o meu corpo dolorido e cheio de espasmos estivesse acorrentado algures, debatendo-se na escuridão, enquanto que o verdadeiro eu se contorcia e balbuciava algures no real coberto da luz acinzentada e dos pontos estranhamente iridescentes entre os meus olhos. Uma dose excessiva pode dar uma pedra muito má. Uma vez, em Berkeley, na época inocente em que o ácido era encarado como não sendo mais grave do que beber álcool sem ter a idade legal, muito antes de se ter tornado equivalente, na mente dos polícias paranóicos, aos assassínios Moor e ao caso Mason, tinha feito uma viagem com ácido e ficara retida numa série aparentemente intemporal de palavras que reverberavam na minha cabeça e que se tinham desvanecido inocuamente sem deixar sequelas, excepto um desagrado permanente por certo tipo e letras de música rock que abusavam das repetições. Mas, sob o efeito do ácido, nunca sofrera aquela náusea sufocante e mortal, aquela sensação de como poderei explicar? as alucinações serem reais e o corpo que vomitava e balbuciava algures ser uma ilusão.

 

Passado um período de tempo do qual não sei nada a não ser que deve ter parecido mais longo do que realmente foi afinal dificilmente posso ter ficado ali a alucinar durante três ou quatro dias, que foi o que me pareceu, ouvi a porta abrir-se suavemente. Ouvi passos no átrio. Uma pequena partícula secreta de mim própria ainda gritava de rebelião e medo; o resto de mim sabia e aceitava.

 

Sara?

 

Não sejas idiota. Ela está num local onde as palavras não querem dizer nada.

 

Isso é o que tu pensas. Mas guardei para mim o segredo de ter ouvido. Seria o meu segredo. Ouvi-me soltar risadinhas secretas. Com os olhos fechados, conseguia ver silhuetas a entrar na sala.

 

Lua nascente.

O luar estava no interior das minhas pálpebras e caminhei de olhos fechados numa luz curiosamente descolorida e as silhuetas que se dobravam sobre mim tinham formas bizarras, que condiziam com a estranheza das suas vozes.

 

Trata-a com reverência. O Cornudo ficará zangado se ela se magoar.

 

Uma risada de escárnio algures. Conseguia ver o Cornudo, com a máscara dúplice de riso e desgosto profundo. Alguém me disse suavemente:

 

É tempo de irmos.

 

Conhecia aquela voz meiga e estendi a mão para lhe tocar as curvas suaves. Mãos incorpóreas ergueram o meu corpo e, ao seu toque, senti que me erguia e voava na direcção da luz astral e incolor.

 

Como faremos o transporte?

 

Voa, voa! As vassouras esperam-nos!

 

A sala desapareceu. Alguém enfiou uma vassoura entre as minhas mãos. Evidentemente. De que outra forma voaria uma bruxa para um Sabat Negro? Montei a vassoura. Pareceu-me macia, como um grande órgão fálico entre as minhas mãos, demasiado grande para me penetrar mas, ainda assim, vindo para me dar as boas-vindas e confortar. Afaguei-o amorosamente. Num ínfimo fragmento de consciência tive a percepção nublosa de movimento, passos, de, penosamente, pôr um pé na frente do outro, de mãos que me guiavam. Estava a sonhar, evidentemente, as mãos e o movimento tinham de ser um sonho.

 

Partam! Partam! Irmãs e irmãos do Obscuro, partam em direcção ao céu!

 

O ar era frio na minha cara; o movimento do cabo da vassoura entre as minhas pernas foi, por instantes, um saltitar ridículo, depois saltou para cima e vi as estrelas afastarem-se enquanto voava a direito na direcção da grande Lua explosiva e vermelha. À minha volta o céu estava repleto de bruxos, sombras negras em cima de vassouras, dobradas, enormes, Barnabas empoleirado numa delas, a gralha de Tibby com olhos humanos, as grandes asas negras expandindo-se até ficarem do tamanho das asas de um condor enquanto acompanhava o ritmo do meu voo. A Lua estava enorme mas eu via a sua luz apenas através das pálpebras cerradas e, também através dos olhos fechados, via a aldeia e as casas que se estendiam por baixo de mim, o vasto horizonte, estendendo-se até aos estranhos telhados retorcidos de Arkham. A paisagem tinha uma forma estranha e uma cor peculiar, como o negativo de uma fotografia. Senti o trovão dos demónios que se moviam no interior da terra e agoniei-me com o seu odor repugnante quando o solo se moveu; as pedras no velho cemitério deslocaram-se e tremeram e coisas brancas saíram a rastejar, como vermes, de debaixo delas.

 

Abri os olhos e vi o brilho da luz de velas. A igreja arruinada abriu-se em torno de mim, a igreja verdadeira que era apenas a versão terrena do real, a igreja demoníaca estendendo-se na vastidão mais além, com o carvalho rebentado pelo raio e o cadafalso onde eu fora em tempos enforcada, cães rosnando por detrás do fosso onde em tempos tinham lambido o meu sangue.

 

Através da luz das velas o Deus Cornudo caminhava. Avançara demasiado para ouvir sequer os gritos e os cânticos, mas vi-o claramente, uma enorme figura masculina nua, com pelo menos dois metros e meio de altura, embora o seu tamanho variasse e ondulasse como uma sombra à luz tremeluzente da vela. Agora parecia suficientemente pequeno para o poder apanhar na palma da mão e engoli-lo como um caramelo com figura de homem; depois a sua figura distendeu-se e inchou a uma altura tal que tocava as copas das árvores. O pénis era enorme, comprido, e estava pintado de vermelho na ponta. Não trazia nada vestido, apenas um colar de onde estava pendurada uma estrela de cinco pontas em prata e a monstruosa máscara cornuda.

 

A sua voz reverberou, uma voz que eu conhecia e no entanto não conhecia; era a voz do Matthew Hay mas muito forte e provocando ecos, como se ele gritasse através de um megafone.

 

Boas-vindas, boas-vindas à nossa sacerdotisa! Saudamos-te após sete anos nos grilhões da morte!

 

A mão dele dirigiu-se às cinzas do fogo ritual, desenhando nos meus seios um estranho padrão. O grito soltou-se das formas negras que estavam mais atrás, onde os via, homens e mulheres, novos e velhos, escuros e pálidos, nus como tinham vindo ao mundo, distorcidos em silhuetas de bruxos na luz inconstante e enjoativa. Flutuei novamente e quando recuperei a consciência vi-os, aos pares, aproximando-se do fogo e recuando, aos saltos, voando, gritando. O odor estranho e repugnante cobria-me e penetrava-me. E por trás deles e dos seus corpos sem forma vi esqueletos, a morte ambulante, legiões de mortos e, ainda para além deles, formas etéreas em tropel, brilhantes e estranhas. Os seus rostos brilhantes de luz... evidentemente, pensei, é a luz que nunca está nem na terra nem no mar. Os bruxos pulavam e gritavam e a grande forma do Cornudo agarrou-me, esticada e suspensa no ar sobre o altar. O seu grande órgão erecto estendia-se na sua frente e, numa suspensão da consciência, agarrei-o. A náusea desaparecera, embora a luz cinzenta e astral continuasse à minha volta e continuasse a ver melhor com os olhos fechados. O odor a morte e a ervas continuava preso nas minhas narinas e o Cornudo flutuava sobre mim, incorpóreo.

 

Tocou os meus seios nus com um dedo exigente e senti-os ficarem em sentido, saudando o seu pénis enorme. Tinha os olhos fechados, mas via com muito mais clareza do que alguma vez vira à luz brilhante do Sol. A minha pele estava viva, coberta por um milhão de pequenas bocas esfomeadas, cada uma delas desejosa de ser beijada e preenchida.

 

Azathoth! Hertha! Cernunnus! Astarte! Ishtar! gritou o Deus Cornudo. Testemunhai! Testemunhai o regresso da sacerdotisa e consagrai-a sobre este altar!

 

Deu um salto na minha direcção para a minha consciência tensa levada aos limites, parecia que ele dera um grande salto através do espaço, flutuando no ar e o seu peso desceu sobre mim e ele entrou, implacável, no meu corpo. De início senti apenas dor e uma enorme sensação de choque que me fez voltar, por um breve instante, à realidade, consciente de que aquilo não era um sonho, que parte daquilo, pelo menos, era verdade, e depois o mundo girou novamente e fiquei deitada num monólito pré-histórico, o corpo pintado com sinais estranhos e brilhantes enquanto por cima de mim o Deus Cornudo e desumano pairava, entrando repetidamente dentro de mim até que me ouvi gritar, em parte de dor e em parte de excitação descontrolada. Em torno de mim, os uivos selvagens e os cânticos estranhos continuavam, e vi rosto, após rosto, emergir da escuridão luminosa. Nos limites do círculo, à luz fantasmagórica, tombaram dois a dois, ou três a três, copulando ali mesmo num frenesim animal e eu via tudo, com visão periférica enquanto estava ali deitada, o meu corpo prisioneiro das patas duras e animalescas do Cornudo. Uma mulher velha, com o rosto enrugado e gasto mas com membros macios e o ventre chato de uma jovem, contorcia-se nos braços de um rapaz peludo e de ombros largos com olhos pequenos como os de um porco. Uma rapariga delicada como uma fada jazia sob a forma abrutalhada do velho Jeb da loja, arfando de boca aberta e soltando gritos de prazer. Uma mulher magra e sensual, nua e familiar, com olhos brilhantes como os de um gato, estava acocorada por baixo daquilo que parecia ser um animal disforme ou seria um homem com uma máscara? que entrava nela por detrás, com as ancas enormes movendo-se implacavelmente, o órgão como um poderoso pistão, subindo e descendo. E semelhante a uma máquina, também, era a coisa enorme sobre mim, investindo, esforçando-se, arfando num ritmo repetitivo e interminável. Continuava sem parar. Sem parar. A noite empalidecera e parecia que dias e dias de céus limpos tinham vindo e partido enquanto eu jazia sob o Cornudo, o meu corpo vibrando e explodindo até que, finalmente, com um grande grito, ele se debateu, arranhando-me os seios e tombou, imóvel, sobre mim.

 

O Matrimónio Sagrado foi consumado! Escutai e testemunhai, vós, Seres das Trevas dos Bosques!

 

Terá terminado? Pensei. Mas não. As chamas cresceram em direcção ao tecto e pensei se, lá fora, os bosques estariam em chamas. Alguém chegou um copo de vinho aos meus lábios. O sabor era acre e real. Tibby murmurou:

 

Sara, estás bem?

 

Alguém murmurou por trás de mim:

 

O unguento deve estar agora a deixar de fazer efeito e ela deve estar a despertar.

 

Não, se tiver absorvido a dose excessiva que pusemos no prato para termos a certeza de que absorvia o suficiente.

 

As palavras giravam num balbuciar sem significado e ouvi-me gritar palavras que não faziam sentido. Ouvi os gritos agudos de uma gralha, sílabas incoerentes que ecoavam e reverberavam. Uma forma estranha curvou-se sobre mim, que continuava imóvel. Ele debruçou-se, agarrou-me rapidamente e entrou em mim, penetrando profunda e violentamente. Eu arfei e gritei, mas havia alguém, atrás de mim, que me prendia as mãos. Foi muito rápido e terminou em segundos. Ele afastou-se de mim e uma outra forma escura tomou o seu lugar.

 

Parecia que aquilo se repetia interminavelmente durante dias ou horas ou minutos? uma forma masculina e pesada pairava sobre mim, todo ele olhos e uma erecção enorme; depois vinha a investida brusca, destituída de ternura, entre as minhas pernas, o movimento irracional e rude, a explosão da paixão e o desconhecido desaparecia na escuridão. A princípio jazi envolta nas névoas escuras do horror, vogando nas ondas insanas do terror e da dor mas depois, contra minha vontade, o que acontecia ali, na escuridão, começou a alcançar-me, a excitar-me, e comecei a reagir, movendo-me ao ritmo da investida, arfando, contorcendo-me, soltando gritos de paixão à medida que a lascívia se expandia interiormente. Não faço ideia de quantas vezes o ciclo foi repetido, mas sei que foram muitas. E finalmente repetiu-se uma e outra vez só em sonhos, pois as formas escuras tinham partido, esgueirando-se na escuridão, e eu girava para fora e para dentro, balouçando como um pêndulo enorme, girando e revolteando ao ritmo dos movimentos da própria Terra. E por fim nada mais restou senão escuridão e silêncio, redemoinhando, e os murmúrios das árvores.

 

Mexi-me e acordei. Deus, que pesadelo! Tinha ouvido dizer que as orgias frenéticas do Sabat dos Bruxos se deviam ao delírio provocado pelas estranhas drogas alucinogéneas que usavam e, era evidente, alguém me tinha dado uma dose. Teria ficado ali deitada no sofá a noite toda, alucinando loucamente e vendo orgias e tendo pesadelos com violações em grupo numa congregação de bruxos? Que loucura! O meu subconsciente estava obviamente cheio daquela imundície grosseira!

 

Sentia-me agoniada e tonta e com uma sede tremenda. Pestanejei, sentando-me, e depois olhei em torno de mim desvairadamente com um terror renovado. Já não estava deitada no sofá da velha sala. Já não tinha vestidas a camisola e as calças de ganga.

 

Estava deitada no velho cemitério, sozinha, completamente nua, com a chuva fina e cinzenta da madrugada a bater-me docemente no rosto.

 

A Manhã Depois da Noite Anterior

 

Senti a minha mente a quebrar as amarras e lutei, com uma sensação de sufoco irreal, para manter a sanidade.

 

Então tinha tudo acontecido mesmo?

 

Tinha realmente participado no Sabat dos Bruxos não, no Esbat onde tinha sido violada ritualmente pelo Deus Cornudo, sobre o altar, e depois violada em grupo pela congregação dos... poderia chamar-lhes adoradores? (Que palavra! Congregação de blasfemos seria mais adequado!) Congregação, de qualquer maneira.

 

Não. Uma parte de tudo aquilo, pelo menos, devia ter sido um sonho, um pesadelo ou alucinação. O voo pelo espaço, o Deus Cornudo, o círculo dos enormes monólitos. Mas, e o resto?

 

Ainda me sentia agoniada e tonta. Levantei-me, encolhendo-me quando pisei as ervas cortantes, as pedras e os paus por baixo dos meus pés nus. O local onde estava via-se da estrada, mas nunca ninguém usava aquela estrada, especialmente àquela hora de um domingo de manhã. Tremendo sob a chuva gelada, que estava a ficar mais pesada a cada minuto que passava teria sido a chuva que me acordara? decidi que pelo menos era melhor entrar em casa para me abrigar, embora já estivesse molhada; pelo menos tinha o cabelo húmido e a ficar cada vez mais molhado e encaminhei-me para casa com passos pouco seguros. A cozinha estava tal como a recordava da noite anterior, embora alguém tê-lo-ia eu feito no último minuto antes de desmaiar? tivesse desligado o forno e o bico do fogão onde eu estivera a cozinhar ovos. A minha salada estava murcha dentro de uma taça, um tomate meio descascado e uma faca continuavam em cima da tábua de cozinha ao lado da taça.

 

Lembrei-me do cesto e do bolo de morango da Judith Hay, e da pasta com droga que untara o prato. Claro; não podiam ter a certeza de que eu comeria o bolo, podia ser alérgica a morangos ou não gostar desses frutos, mas sabiam que eu teria de pegar no prato.

 

Mas não havia sinais do prato, do cesto ou dos morangos.

 

Então levaram-nos.

 

Sara, não sejas paranóica.

 

Continuava completamente gelada, o corpo assolado por arrepios de frio e de terror. Fui ao andar de cima e preparei o banho mais quente que consegui suportar e entrei nele, mergulhada até ao queixo na água quente até os tremores se acalmarem.

 

Teria alguma parte daquilo sido real?

 

Teria eu tido simplesmente o pior pesadelo do mundo?

 

Teria sido drogada e tido a pior de todas as más viagens?

 

Teria caminhado durante o sono, ou o delírio, e ido até ao velho cemitério?

 

Poderiam o Matthew Hay e a sua congregação de bruxos, zangados com a minha recusa em tomar o lugar da tia Sara, ter-me simplesmente levado lá para fora enquanto estava inconsciente, num acto de vingança suja, ou numa brincadeira pérfida? Qualquer homem que acreditasse seriamente em bruxarias nos dias de hoje refiro-me ao satanismo e não à inofensiva religião da terra a que às vezes se dá o mesmo nome, mas não chamam Wicca a essa religião? Fosse como fosse, aquilo não era Wicca, mas o que quer que Matthew Hay pensasse que andava a fazer, aquela confusão medieval de caça às bruxas, invocação do diabo ou lá o que era ou adoração do demónio, aquilo tinha de ser bastante doentio.

 

Ou é a ideia que fez com que os tremores recomeçassem até mesmo dentro do banho quase a ferver teria sido tudo real e apenas exagerado e tornado fantástico pelo facto de eu estar drogada? Indubitavelmente eu tinha caminhado ou sido transportada em vez de tal como recordava claramente ter voado numa vassoura. Uma fogueira, ou talvez duas, podiam ter-se multiplicado formando um círculo enorme. O Deus Cornudo podia muito bem ter sido Matthew Hay com uma máscara a cobrir-lhe o rosto e parecera-me tão real simplesmente devido ao facto de as minhas capacidades de testar o real estarem tão reduzidas. Quanto à violação, bem, não havia nada de sobrenatural nesse facto. E, fosse como fosse, não teria sido a primeira vez.

 

E as múltiplas violações que se tinham sucedido, milhares e milhares delas, ou pelo menos era o que me tinha parecido? Bem, isso podia ter sido um delírio despoletado por uns quantos camponeses ou arruaceiros locais; bastante horrível, mas não aquilo que me parecera na altura. Meia dúzia desses episódios (e teria sido realmente violação? Eu não resistira!) podiam ter-se multiplicado, no meu estado alterado, parecendo muitíssimo mais.

 

Usa a cabeça, Sara. Pensa.

 

Não entres em pânico.

 

Que parte da violação teria sido real?

 

Saindo da banheira, examinei o meu corpo nu. Sentia-me tremendamente dorida e tinha dificuldade em me mexer e tinha muitas nódoas negras, até mesmo arranhões, mas não sabia dizer se elas teriam sido provocadas no meu primeiro encontro com Matthew ou se algumas eram mais recentes. Em qualquer caso, alguns dos arranhões podiam ter sido provocados pelas silvas e roseiras bravas do jardim e do cemitério.

 

Ainda tinha a cabeça enevoada. Vesti o roupão mais quente que tinha, desci as escadas, fiz um chá muito forte e deitei-lhe mais açúcar do que o habitual; precisava de energia.

 

Bebendo o chá, e sentindo o calor voltar aos meus ossos doridos, apercebi-me de que, apesar de me sentir melhor, o banho quente fora um erro. Podia ter eliminado todas as provas. Deveria ter voltado a casa, agarrado em algumas roupas e corrido até Madison Corners, se necessário, e telefonado à Polícia Estadual.

 

Teriam eles acreditado numa única palavra que eu lhes dissesse?

 

Sim, se o meu corpo ainda retivesse sinais de uma orgia, sémens, vestígios de sangue, até mesmo fumo das fogueiras ou resquícios do unguento venenoso. Mas agora? Eu tinha visto como até mesmo a polícia progressista da Califórnia tratava os hippies quando estes saíam de uma viagem com ácidos. Como trataria a polícia daquela região uma mulher solitária que lhe contasse uma história louca e lhes dissesse que tinha sido drogada, violada e largada nua num cemitério? Dar-se-iam, sequer, ao trabalho de fazer testes? Especialmente quando o relato incluía histórias loucas de congregações de bruxas? E Matthew Hay poderia apresentar-se e testemunhar que eu fizera sexo com ele de muito boa vontade.

 

Barnabas esgueirou-se pela porta da cozinha. Tinha o pêlo amarelo molhado da chuva.

 

Não haja dúvida de que foste uma grande ajuda ontem à noite disse-lhe. Mas de que estava eu à espera? Ele era um gato, o gato de uma bruxa, e não um cão de guarda.

 

Saltou para a mesa da cozinha, esfregando o nariz na minha caneca de chá. Dei-lhe um bocado de pão com manteiga; ele cheirou-o desdenhosamente mas, finalmente, decidiu que era comestível. O que me convinha perfeitamente. Não tinha energia suficiente para abrir latas naquele momento. O relógio da cozinha mostrava que eram seis e meia.

 

Tentei desesperadamente pensar no que faria a seguir. Podia fazer as malas e fugir, abandonar a casa (ou vendê-la a Matthew Hay, visto que era o que ele sempre tinha querido) e voltar para Nova Iorque.

 

Mas deixar-me-iam eles partir? A Tibby tinha conseguido, não sabia como, deter-me no dia anterior, quando quisera simplesmente apanhar a camioneta.

 

Continuava a sentir-me miseravelmente enjoada e tonta, provavelmente era a ressaca das drogas, fossem elas quais fossem, que compunham o maldito unguento. Se se tomar uma dose excessiva, pode ter-se uma viagem muito má. Bem, eu tivera uma viagem má, uma viagem direitinha ao inferno. Se a dose for excessiva pode ficar-se envenenado. Sem dúvida que fora envenenada; a minha visão continuava desfocada, a minha cabeça pulsava como se tivesse levado uma pancada e todo o corpo me doía até aos ossos. Sentia-me quase desesperadamente faminta, mas até mesmo o chá doce me revoltava o estômago e estava com medo de comer mais alguma coisa, não fosse vomitar tudo.

 

Mesmo sentada à mesa, à minha volta parecia que a casa girava e mudava de forma e tive mesmo de me agarrar à cadeira para não cair.

 

Era demasiado cedo para fazer o que quer que fosse, até mesmo para ir à Polícia. Se saísse a correr, ainda meio tonta, com as drogas ainda no sistema, a toldar-me o discernimento, era capaz de dar comigo a caminho do manicómio, mais propriamente a caminho do Hospital Estadual e, ainda que, provavelmente, conseguisse fazer prova da minha sanidade mental mais tarde ou mais cedo, passaria com certeza um período muito desagradável antes que me soltassem. E, no mínimo, isso arruinaria as minhas hipóteses de terminar as ilustrações do livro.

 

Andei de um lado para outro com dificuldade, certificando-me de que as portas estavam todas fechadas e até mesmo esse pequeno esforço foi muito pesado para as poucas forças que me restavam. Era caso para dizer que casa roubada trancas à porta! Oh, estava doente!

 

Do que eu precisava era de descanso. Cambaleei pelas escadas acima e caí na cama da tia Sara puxando a coberta por cima da cabeça. O Barnabas empoleirou-se no espaldar da cama com um ar inquisitivo e depois saltou, cheirando, dando-me pancadinhas reconfortantes com as patas e, com um ronronar semelhante a uma canção de embalar, acabou por se

aninhar em mim. Sentindo-me segura por saber que as portas estavam trancadas, adormeci e dormi, desta vez sem sonhar, durante horas.

 

Quando acordei já a manhã ia no fim, continuava a chover, a tarde aproximava-se, a julgar pela luz, ou pela falta dela, que entrava pela janela e, enquanto tentava perceber o que me acordara, para além de uma fome e sede tremendas, a campainha da porta tocou novamente.

 

Um espasmo de terror estremeceu-me o corpo. Matthew? Um dos membros da congregação da noite anterior que vinha ver se eu estava em casa ou que vinha ver se eu estava morta ou viva? Bem, isso seria simpático da parte deles. Corri para a janela e espreitei lá para baixo. Esquecera-me de que a janela da tia Sara só dava para o cemitério e, no cemitério, não estava ninguém. Corri para o átrio e desci as escadas e, espreitando pelas janelas foscas, vi um carro pequeno parado junto à porte cochère e o rosto bem-vindo de Claire Moffat, a sócia de Colin de São Francisco.

 

O que quer que fosse que ela ali estivesse a fazer, nunca ninguém tinha sido tão bem-vindo. Debati-me com a tranca, tinha os dedos fracos, esquecendo-me de que só tinha vestido o roupão de Inverno. Ao ver a amiga de Colin ali, sólida e real, real e boa, pensei que ia começar a soluçar e a chorar até não poder chorar mais.

 

Vim numa má altura? perguntou ela. O Colin disse que estavas cá e não conheço mais nenhuma alma daqui até Innsmouth... oh, conheço algumas das pessoas daqui, mas ninguém a quem possa chamar amigo. O Brian, o Colin disse que conhecias o Dr. Standish, mandou dizer que tinha intenção de ver como estavas, recebeu a tua mensagem de ontem disse ela, só que ficou retido com um caso difícil lá para os lados de Innsmouth e só recebeu a tua mensagem já eram três da manhã. E provavelmente vai dormir até tarde... ainda deve estar a dormir, são só onze da manhã. Sara, que se passa? Estás com um aspecto horrível! Vim mesmo cedo de mais? Sempre foste madrugadora, pelo menos sempre o foste quando estavas a estudar em São Francisco. Pensei fazer um café... é melhor do que o que se bebe no café de Arkham. Ou podia levar-te a tomar o pequeno-almoço, se houver algum sítio decente onde se possa comer, mas... não podes estar de ressaca, a não ser que tenhas começado a beber sozinha. Estás doente, Sara?

 

Não exactamente disse eu lentamente. Afinal que horas eram? Não tinha dado corda ao relógio da parede; tinha parado por volta das oito. Onze horas, dissera Claire. Entra Claire, e deixa-me vestir disse eu. Estava a dormir lá em cima, por isso é que te fiz esperar.

 

Ela entrou e saudou-me com um abraço. Era uma mulher alta, no início da meia-idade, com o cabelo a ficar grisalho e, naquele momento, húmido da chuva que continuava a cair com força sobre o empedrado do pátio.

 

Não penses que tens de te aperaltar só por minha causa disse ela. Como vês eu não o fiz. Claire trazia vestidas umas calças de ganga velhas e uma gabardina surrada. Debaixo do braço trazia um saco de papel. Trouxe um pacote de café e uma cafeteira; sei que bebes sempre chá, por isso pensei que podias não ter cafeteira. Importas-te que faça um café enquanto te vestes?

 

Se fazes favor. Eu também ficaria satisfeita por beber um café. Aquela não era uma ocasião para me sentar a tomar chá e, se decidisse ir à polícia, ficaria satisfeita por ter comigo outra mulher. A Claire certamente que iria. Em São Francisco, ela trabalhava numa linha de emergência para mulheres violadas e certamente que seria compreensiva comigo.

 

Foi para a cozinha e eu subi as escadas. O retrato da tia Sara parecia sorrir-me com ar cúmplice quando subia os degraus. Ainda consegues dizer que não és uma bruxa?

 

Vesti a primeira coisa que me veio à mão, uma saia traçada de ganga e uma camisola a condizer. Sentei-me em frente ao toucador da tia Sara para passar uma escova pelo cabelo embaraçado; o espelho mostrou-me a minha cara e percebi a razão de Claire ter ficado a olhar para mim. Tinha os olhos enormes, ainda dilatados e com grandes olheiras; a minha cara parecia pálida e manchada. Numa tentativa de disfarçar o inchaço e as manchas da pele, atei uma ècharpe indiana, cor de laranja, às ramagens, em torno do pescoço, na esperança de que me desse alguma cor. Experimentei pôr um pouco de batom nos lábios mas ficava a parecer um palhaço e limpei-o novamente. O cheiro a ervas proveniente do toucador da tia Sara era fortemente nauseante. Peguei no pote de porcelana que continha o "unguento de Vénus" e atirei-o com força contra a parede.

 

Era um gesto inútil, mas simbolizava de alguma forma a minha rejeição da tia Sara, daquela casa e de tudo o que ela continha.

 

Quando desci as escadas o cheiro agradável a café espalhava-se pela casa toda e na cozinha, Claire, já sem gabardina, estava a pôr-se confortável. Estava também a travar amizade com Barnabas.

 

Ele é lindo disse. Encontraste-o aqui? Era o gato da tua tia Sara?

 

Só Deus sabe disse eu inexpressivamente. Algumas das pessoas daqui têm umas teorias acerca desse assunto. Eu não sei o que pensar. Na noite anterior ele não fora de nenhuma utilidade. Subitamente desejei que fosse um enorme e feroz Doberman.

 

Já comeste alguma coisa hoje, Sara?

 

Não. Não consegui engolir nada respondi e ela ficou a olhar para mim.

 

Mas que raio te aconteceu? O que quer que tenha sido, a minha primeira receita é comida. Não, senta-te quieta. Não é para me gabar mas eu faço umas omeletas óptimas. Estaria à altura de qualquer chef de cozinha francês. E vejo que ainda tens alguns ovos... ficou a olhar para os restos do meu jantar do dia anterior dentro do lava-loiça. Ei, isto não parece teu, desde que te conheço que sempre foste compulsivamente arrumada! Neuroticamente arrumada e agora... Sara, escuta, tenho estado a brincar contigo, mas se estiveres realmente doente... eu estou aqui, ou achas melhor chamar um médico ou uma ambulância? Que se passa?

 

Dei por mim a despejar a história toda. A insistência de Matthew Hay para que eu assistisse ao Esbat deles e a minha recusa. A minha tentativa de fuga e as curiosas manobras de Tibby. Judith Hay, o cesto, o prato envenenado, a forma como eu desmaiara. Depois o pesadelo do Sabat das Bruxas, a violação...

 

Ela escutou tudo calmamente, sem fazer comentários. Quando fiz uma pausa disse:

 

Ainda assim acho que precisas de comida e de café. Deixa-me fazer-te uma omeleta enquanto acabas de me contar. Pôs uma caneca de café fumegante na minha frente. Bebe-o puro, Sara, se conseguires; acho que precisas dele.

 

Achas que estou doida? Não acreditas em mim, Claire?

 

Não sei o que pensar disse ela muito séria. Acredito que tu acreditas, não me parece que estejas a inventar ou, como é que dizem os miúdos?, a dar-me a volta. Mas também não acredito que tenhas ido ao Sabat das Bruxas. Embora, Deus sabe, essas coisas existam e devo dizer que percebi que estavas metida em sarilhos; foi por isso que vim.

 

Sabias... o quê?

 

Que estavas metida em sarilhos; o Colin mencionou que estavas aqui e, a dado momento, na noite passada, tive o pressentimento de que estavas metida em sarilhos, por isso arranjei uma desculpa...

 

Bem, talvez também ela fosse bruxa. Talvez toda a gente o fosse e eu nunca tivesse reparado. O Fritz Leiber não tinha escrito um romance de ficção científica sobre esse assunto? Que todas as mulheres eram bruxas secretas? Sim, Conjure Wife, era esse o nome. Da forma que me sentia nessa manhã, estava pronta a acreditar.

 

Sabes sempre... o quê?

 

Quando alguém está em maus lençóis; é praticamente a única maneira como o meu psiquismo funciona. O Colin diz que é um dom; foi assim que o conheci. Um dia conto-te.

 

Agora não. Agora tenho que fazer a omeleta, acho que precisas de comer. Partiu os ovos para dentro de uma taça e bateu-os enquanto eu bebericava o café simples e amargo. Soube-me surpreendentemente bem. Claire agarrou numa frigideira, deitou lá dentro os ovos, virou-os com perícia, dobrou a omeleta, virou-a novamente e serviu-a em dois pratos.

 

Agora come enquanto está quente.

 

Sentou-se numa cadeira à minha frente e começou a comer os ovos em grandes garfadas. Ainda pensava estar demasiado fraca para comer, mas depois de provar apercebi-me de que estava morta de fome. Devorei tudo o que tinha no prato e aceitei uma segunda dose de café.

 

Sentes-te melhor agora? Pousou a caneca e olhou para mim.

 

Um pouco disse eu. Mas acredito que parte daquilo aconteceu mesmo. Muita coisa pode ter sido uma alucinação, evidentemente; apercebi-me de que partes da alucinação o Deus Cornudo, o voo não podiam ter acontecido de verdade, pelo menos da forma como eu as vi.

 

Podes ter sonhado tudo isso, Sara. O Colin disse que esta casa te estava a afectar bastante os nervos e não te esqueças de que podes estar em estado de choque... retardado. Perder a família toda daquela maneira no espaço de poucos dias...

 

Não, Claire, não sonhei tudo disse eu. Não te contei o resto. Quando acordei, pensei que tinha sido só um pesadelo, o tetravô de todos os pesadelos; o pesadelo que acabaria com todos os pesadelos. Depois descobri que estava na rua, no cemitério, sem roupa.

 

Ela respirou fundo, de repente, soltando um assobio.

 

Isso parece bastante real. Mau, mas real.

 

Por alguns instantes pensei que podia ter caminhado durante o sono. Mas nunca o fiz em toda a minha vida, Claire. E, de qualquer maneira, tenho ouvido dizer que um sonâmbulo faz tudo normalmente, por isso se eu ia sair e não estava drogada não teria também vestido qualquer coisa mesmo a dormir?

 

Tens razão disse ela e o facto de teres pensado em sonambulismo, significa que os teus mecanismos de percepção do real estão em boa forma. A minha companheira de quarto na faculdade costumava ter ataques de sonambulismo. Uma ou duas vezes por mês. levantava-se e vestia-se, atava os sapatos e tudo, sempre completamente adormecida. Até punha a chave no bolso. Depois eu dizia-lhe que era hora de ir para a cama e ela despia-se, vestia o pijama e voltava para a cama até de manhã. Nunca se perguntou a si própria se aquilo era normal ou não. Serviu-me mais café e deitou algum também para ela. Muito bem, Sara. Partamos do princípio que, pelo menos, uma parte foi real. A primeira questão é porquê!

 

Pensei numa partida doentia.

 

Para ser tão doentio um homem teria de ser completamente louco disse ela e eu conheço o Matthew Hay e ele sempre me pareceu um bocado doido, mas não completamente louco. O que as pessoas daqui classificam como "tendo uma certa pancada" mas, ainda assim, não suficientemente doido para pregar uma partida dessas.

 

Não o achas capaz disso?

 

Oh, eu acho que ele é capaz de tudo. Sara, mas que teria de ter uma boa e sólida razão para o fazer. De uma maneira ou de outra, teria de ser em benefício de Matthew Hay!

 

Ele podia ter uma razão disse eu. Fazer com que me juntasse a eles. Ele disse-me que a tia Sara era uma deles. A sua líder. Pensei um pouco mais. Ou até mesmo para me assustar, depois de o ter recusado, fazendo-me vender-lhe a casa. Obviamente, dando a casa para o seu lugar de reunião, eles não querem uma estranha, especialmente uma estranha pouco compreensiva, a viver aqui. Se quem quer que para aqui venha viver mandar instalar electricidade e telefone, quem sabe se uma piscina ou arranque o jardim de ervas ou abra uma casa de hóspedes com visitas guiadas pelo pitoresco cemitério antigo... estás a ver o que quero dizer!

 

Oh, sim, isso seria uma boa razão, sem dúvida disse ela. Parece-me vagamente razoável... acrescentou hesitando.

 

Se não é verdade, então significa que eu estou completamente louca.

 

Não ponho sequer essa hipótese disse ela. Levou-me para junto da luz da janela e eu encolhi-me, apesar de não haver muita luz devido à chuva. Ela perguntou: A luz magoa-te os olhos? e olhou-me mais de perto. Sim, continuam dilatados. Como se tivesses posto gotas de atropina, ou coisa parecida. Sara, não fizeste uma torta com nenhumas bagas estranhas, pois não, nem andaste a comer frutos silvestres? O ano passado encontrei uns turistas que tinham ido apanhar frutos silvestres e, por engano, tinham apanhado erva-moira, que é mortal. Sabes que as bagas são todas parecidas para alguém que não as conhece bem.

 

Tenho disso no jardim disse eu. O Matthew Hay disse-me... Oh, Deus! que era um dos ingredientes do unguento de bruxa.

 

Beladona concordou ela. Embora tivesses que ingerir uma grande quantidade e provavelmente também tomaste mais qualquer coisa. Parece que o que te deram foi datura stramonium a que no Texas chamam erva louca e, provavelmente, um bom pedaço de qualquer coisa parecida com LSD ou outro alucinogéneo para completar. É uma sorte não te ter matado, Sara. Se eles tinham de confiar em que tu absorvesses o suficiente através da pele, devem ter posto uma dose suficiente para matar metade da aldeia!

 

Fiz a pergunta principal, a que não me tinha saído da cabeça desde que recuperara os sentidos nua, no cemitério.

 

Claire, eu fui violada? Ou terá tudo feito parte da alucinação?

 

Sara, deves saber que é quase impossível obter provas da violação de uma mulher adulta e sexualmente activa! corou. O Brian disse... quero dizer, ele disse-me que cá tinha estado... contigo... provas, sim, mas nada que se aguentasse num tribunal.

 

Eu não quero provas legais disse eu. Não estou a pensar em apresentar queixa ou em levá-los a tribunal. Só quero saber, para minha própria satisfação... só para ter a certeza de que não estou a ficar maluca. Ela abanou a cabeça.

 

Mesmo isso seria difícil... escuta, Sara. Se, afectada pelas drogas, acreditaste nisso... a mente pode fazer coisas estranhas ao corpo. Oh, posso verificar se existem vestígios de sémen, ou... tomaste banho depois disso?

 

Sim. É preciso perguntar? O que é que qualquer pessoa faria? Foi a primeira coisa que fiz assim que fiquei suficientemente consciente.

 

Então não existem provavelmente nenhuns vestígios detectáveis. Quanto às marcas, à dor... Sara, quando estava a estudar, assisti a uma demonstração. Hipnotizaram um estudante e tocaram-no com um cubo de gelo dizendo-lhe que era um ferro em brasa e eu vi as bolhas a aparecerem! E uma pessoa sob o efeito de uma droga alucinogénea está, para todos os efeitos práticos, hipnotizada. Deixa-me dar-te um conselho, Sara. Não como médica, que não sou, mas como boa amiga: encara isto como um sonho mau. Acredita que foi um sonho mau. Enquanto não souberes os factos objectivos, será mais fácil para todos nós.

 

Havia outra questão que tinha que ser considerada. (Expulsei da minha memória a voz de Matthew Hay dizendo: Nunca nenhuma mulher se afastou do Altar Negro levando consigo algo que não tivesse trazido.)

 

Não me parecerá um sonho mau se daqui a cerca de três semanas descobrir que estou grávida, não é? A minha voz tremeu e comecei a soluçar.

 

Pobre miúda. A voz dela era a mais meiga que alguma vez ouvira. Nesse caso Sara, partiremos do princípio de que o Brian te engravidou na outra noite; ele provavelmente ficará muito satisfeito por se casar no fim do Verão.

 

Não faria uma coisa dessas ao Brian solucei. Teria de lhe contar.

 

Aposto que será a primeira coisa que ele sugerirá. Os escrúpulos ficam-te bem, apesar de tudo disse ela. Se bem conheço aquele rapaz, será só uma questão de tempo.

 

Eu não podia responder. Estava completamente descontrolada.

 

Então nunca saberia. Seria filho do Brian... ou o produto monstruoso de uma violação em grupo, concebido por um louco desconhecido e grosseiro, desvairado pelas drogas e pelo ritual insano?

 

E o próprio Brian dissera: Não seguirei as pisadas de Matthew Hay!

 

Doente de medo e de culpa, disse:

 

Não consigo suportar a ideia de nunca ter a certeza!

 

Percebo como te sentes disse ela, suponho que qualquer mulher se sentiria da mesma forma. Escuta Sara... queres ir ao hospital? As urgências certamente que estarão abertas. Podias dizer que foste violada, mesmo sem provas eles levar-te-iam a sério. Ou queres que tente telefonar ao Brian? Tens mais algum amigo aqui? Posso fazer alguma coisa por ti?

 

Antes que eu pudesse recompor-me o suficiente, a campainha tocou novamente.

 

Inimigo Mortal

 

Claire foi até à janela e olhou para os degraus das traseiras.

 

Matthew Hay disse com voz tensa. Será que veio cá para te controlar? Tem uma lata infernal! Sabes, se eles te andam a controlar... isso dá mais consistência à tua história, Sara. Não vale a pena dizer que gostaria de lhe partir o pescoço. Qualquer mulher gostaria.

 

Mantém-te fora das vistas dele, Claire. Se pensar que estou sozinha talvez diga qualquer coisa que sirva de prova de que foi verdade ou de que foi uma alucinação. E eu, pelo menos, fico a saber.

 

Não gosto da ideia de te deixar sozinha com ele insistiu Claire parecendo perturbada.

 

Achas que me agrada ficar sozinha com ele? Mas se precisar de ti tu estarás por perto insisti e, hesitantemente, ainda com relutância, ela foi para a despensa das traseiras. Fui até à porta e abri-a com o Barnabas atrás de mim, a investigar, cheio de curiosidade.

 

Era mesmo o Matthew. Saudou-me com um sorriso cúmplice e, perante a visão daquele sorriso, as minhas últimas dúvidas se é que eu as tinha realmente desapareceram.

 

Bem Sara, agora és uma de nós. Suponho que as tuas recordações regressaram?

 

É melhor supores outra coisa qualquer retorqui com rudeza. Tens muita lata em vir aqui! Perguntei-me porque nunca teria reparado antes que, por detrás das linhas rígidas da sua boca havia sensualidade, não uma sensualidade boa e saudável, mas o tipo de coisa reprimida e sádica. Ele podia ficar o dia todo a falar sobre a obtenção do prazer sem culpa nem recalcamentos, mas não percebia nada do assunto. Não era um homem libertado, sexualmente livre; era um puritano a reagir excessivamente e a tentar cometer, cuidadosamente, tantos pecados quantos podia para se divertir a violar as leis.

 

Um homem como Matthew, se o sexo já não tivesse tabus, desistiria provavelmente dele para o resto da sua vida. Não me conseguia seduzir abertamente, como Brian fizera, com o meu consentimento. Tivera que o fazer numa igreja, para ter a excitação de estar a fazer algo de proibido. Depois tivera de me drogar ou pensar que o fizera.

 

O sorriso dele era cruel.

 

Mas como vês, estou aqui, e não tentaste impedir-me. A onda de emoções estranhas, que já sentira uma ou duas vezes naquela casa, assolou-me. De repente senti-me como se tivesse três metros de altura. Sentia que falava com ele de cima para baixo. Disse, numa voz brusca nada parecida com a minha:

 

E se eu tivesse querido impedir-te, Matthew Hay, todos os teus feitiços e truques fracos não funcionariam. Será que pensas que já és o meu igual? Não o és nem neste mundo nem o serás no próximo! Conheço o teu nome! Ele ficou pálido, mortalmente pálido, cor de cal. Recuou um passo, meio a cambalear.

 

Não arfou. Não, Sara! Eu sei...

 

Baixei as mãos, que tinha erguido como que numa invocação erguidas para lançar uma praga, pensei de forma distante. Sorri e senti novamente a emoção estranha (outra vez a tia Sara?) esbater-se. Disse:

 

É para que nos entendamos. Ainda não compreendo tudo completamente, mas é evidente que sei o suficiente. Diz-me uma coisa. Que parte do que aconteceu ontem à noite foi real?

 

Ele sorriu, com um sorriso perverso e sensual.

 

Tudo o que tu pensas ter sido real, Sara. Não sei onde foste ou o que te aconteceu, mas havia bastantes coisas a acontecer aqui em baixo. Afinal de contas, voaste mesmo, não foi?

 

As palavras atingiram-me de uma forma estranha. Voar. Tinha ouvido os hippies que tomavam ácidos falar da sensação de voar; era, evidentemente, uma das alucinações mais comuns. (Não tinha havido até um caso em que um hippie, convencido de que conseguia realmente voar, tinha saído calmamente de uma janela de um quarto andar?)

 

Disse, decidindo ser subtil por forma a fazê-lo confessar:

 

Foi muito inteligente da tua parte esfregar o, hmm... esquecera-me momentaneamente da palavra, não era pomada, não o unguento no prato. Devias saber que qualquer pessoa que tivesse visto o filme A Semente do Diabo não comeria nada que tu mandasses. Isso foi com certeza ideia tua; não me parece que a Tabitha fosse capaz de o fazer.

 

Oh, a Tibby passa o tempo a representar; ela aborrece-se disse Matthew. Disseste-me uma vez, aí há quinze anos, que ninguém conseguia ser uma verdadeira bruxa antes de passar os cinquenta anos. Uma rapariga da idade de Tibby ainda consegue tudo o que quer sem bruxarias. Mas está a desenvolver-se muito bem, muito bem. Foi um belo trabalho o que ela fez contigo ontem, quando entraste em pânico. Sugestão pura, como é evidente; tal como estás agora, poderias tê-la afastado, a ela e àquele maldito pássaro, para o lado.

 

Eu disse:

 

Vejo que não pensaste duas vezes antes de me envenenares.

 

Encolheu os ombros.

 

Não se fazem omeletas sem partir ovos. Funcionou: a tua memória voltou. Se não tivesse voltado e tivesses continuado a ser uma rapariga tonta, teríamos de nos ver livres de ti de uma maneira ou de outra, fosse como fosse. Não tínhamos nada a perder e tudo a ganhar. Estás viva, portanto de que te queixas?

 

Claire saiu da despensa. Estava corada de fúria.

 

Então admite-o, Sr. Hay? Tentou envenenar a Sara? Também a violou?

 

Por breves instantes Matthew ficou desorientado; olhava para mim e para Claire, chocado. Depois sorriu.

 

Violação? Foi isso que ela lhe contou? Não me pareceu violação nenhuma quando estava a acontecer. Virou-se para mim. Muito bem, Sara, já brincaste o suficiente e já te vingaste. Agora tira-me esta velha seja ela quem for daqui para podermos tratar das questões importantes.

 

A Sara pediu-me que ficasse disse Claire na esperança de conseguir arrancar-lhe uma confissão. Parece-me que a conseguimos.

 

Ele atirou a cabeça para trás e riu-se, uma gargalhada rouca e cava semelhante ao grito do pássaro de Tibby.

 

Confissão? Que é que eu confessei?

 

Tentou envenená-la com o seu maldito unguento de bruxa!

 

Ora, ora, minha cara senhora disse Matthew suavemente com o seu sorriso maligno, terei culpa se a Sara faz experiências com as receitas de ervas da tia dela e comete um pequeno erro com as quantidades? Não conseguirá provar o contrário.

 

E então a noite passada? perguntou Claire.

 

O que tem a noite passada? o sorriso dele era positivamente satânico. Posso arranjar as testemunhas que forem precisas para provar que estava noutro local.

 

Na igreja, imagino sugeriu Claire.

 

Na realidade disse ele, estava a conduzir um serviço na igreja, à vista de toda a minha congregação... e seriam necessários mais recursos do que você imagina, quem quer que seja, para destruir esse álibi. Virou-se para mim. Sara, podes divertir-te quanto queiras, mas sugiro que te livres dela imediatamente.

 

Claire avançou calmamente na direcção de Matthew.

 

Sairei quando a Sara mo pedir disse. O meu impulso é pô-lo fora... mas admito que é maior do que eu.

 

Matthew não se mexeu.

 

Sara murmurou, a brincadeira já foi longe de mais.

 

Ela não quer ter mais nada a ver consigo disse Claire. Agora, raios, ponha-se na rua! Com grande determinação, empurrou Matthew na direcção da porta. Matthew soltou-se.

 

Sugiro que pergunte à Sara se quer que me ponha na rua. Se ela o quiser, muito bem, é com ela. Mas você não me pode dar ordens e aviso-a de que se me tocar...

 

Claire não se perturbou. Só disse:

 

O que faz? Chama o papão mau e ele leva-me para o inferno... ou para onde? Tenho a certeza de que mais cedo ou mais tarde é lá que você vai parar mas, se não se importa, não vou consigo imediatamente. Sr. Hay, não sei quem acha que eu sou ou a que é que está habituado mas, garanto-lhe, não tenho medo de si. E sei o que a Sara quer.

 

Sabe? disse Matthew. Pergunte-lhe.

 

Fiquei ali entre os dois, estranhamente dividida, estranhamente incapaz de falar. Porquê, porquê, naquele momento, eu tinha de pensar que a Claire parecia algo impotente, incapaz? Matthew Hay pareceu vacilar na minha frente e transformar-se novamente no Grande Cornudo da noite anterior, enorme e cheio de poder, força, potência animal...

 

Claire nem olhou para mim. Limitou-se a avançar sobre Matthew.

 

Matthew disse, numa voz sedosa:

 

Estou a avisá-la...

 

Vá para o inferno. Vá direitinho para o inferno. Não faça paragens. Não se detenha para receber dinheiro disse Claire e agarrou o pulso de Matthew com um gesto rápido parecia um golpe de kung fu e deu-lhe um empurrão na direcção da porta. Desequilibrado, Matthew cambaleou, quase caiu e foi projectado contra a porta de rede. Esta cedeu sob o seu peso e ele caiu pelos degraus abaixo, indo estatelar-se no chão. Ficou ali momentaneamente desorientado e depois levantou-se lentamente. Tinha o rosto roxo e contorcido de fúria. Abanou o punho na direcção de Claire.

 

Hás-de viver para te arrependeres disto murmurou.

 

Pelo contrário disse ela. Há muito tempo que queria experimentar isto em alguém, mas não queria magoar nenhuns inocentes que estivessem por perto. Aprendi alguma coisa com todas aquelas aulas. E agora, vá para o inferno e saia daqui, estou a falar a sério! Ou chamamos a polícia, se preferir.

 

Naquele momento desejei ter o telefone que Brian sugerira. Mas Matthew Hay não sabia se eu o tinha ou não... ou sabia? Eu podia já ter mandado instalar um.

 

E antes que eles cá cheguem, ainda te dou outra lição!

 

Também te vais arrepender disto, Sara gritou ele. Ergueu as mãos invocando os céus. Posso ser o teu apoiante e sacerdote mais leal... ou o teu pior inimigo! É contigo!

 

Fiquei silenciosa, gelada e imóvel. Matthew virou-se e saiu de vista com grandes passadas.

 

Teria eu feito de Matthew Hay um inimigo mortal?

 

Não. Ele perdoaria também isto, como perdoara muitas outras coisas ao longo dos séculos.

 

Claire tinha o braço à minha volta e ria-se, mas enquanto me confortava, uma parte estranha da minha consciência recuou e observou-a, divertida. Ela era o último peão no velho jogo.

 

A liturgia antiga das ordenações diz: Serás um sacerdote para sempre. Eu fora ordenada num altar muito mais antigo, mais antigo que o próprio tempo.

 

Serás uma bruxa para sempre.

 

Eu era Sara Latimer para sempre bruxa.

 

Bruxa para sempre

 

Claire parecia nem reparar na minha distracção.

 

Parece-me bem que não irás ter mais problemas com aquele filho da mãe disse com satisfação. Ele não vai querer levar mais uma lição. Ainda assim, parece-me que será melhor dar mais uma vista de olhos por aí e manter alguma desta gente debaixo de olho. Talvez acabem por pisar o risco e eu possa apresentar queixa à polícia estadual.

 

Não! disse eu rapidamente.

 

Pensei que eras tu quem...

 

Claire, eu tentei encontrar as palavras. Não queria que ficasse com má opinião a meu respeito. Ainda não me atrevia a afastar-me dela. Talvez, quando chegasse a altura, eu pudesse recrutá-la para a Verdadeira Adoração, a Velha Religião.

 

Quanto ao Brian, desejava-o mais do que alguma vez desejara um rapaz... e tinha havido tantos. Não queria perdê-lo, no entanto tinha de proteger o meu próprio passado... e o meu futuro, a minha imortalidade. Tinha visto outras congregações desfazerem-se nos últimos cinquenta anos, quando olhares demasiado curiosos se tinham virado para elas nas comunidades onde estavam instaladas.

 

Ela estava a olhar para mim, desconcertada.

 

Estás bem, Sara? Por instantes, quando falaste com o Matt, mal reconheci a tua voz. E ele pareceu muito seguro de que estarias do lado dele em tudo isto. Virou-me, com as mãos sobre os meus ombros. Não estás, pois não?

 

É claro que não disse eu. Mas imagina que descobríamos qualquer coisa. Não existem leis contra a prática da bruxaria, pois não?

 

É claro que não disse Claire. Mas há leis contra a violação e há leis contra a manipulação de venenos e drogas sem supervisão médica. Enquanto estiver por cá vou ter o Matthew Hay debaixo de olho de uma maneira tal que ele não poderá cuspir para o chão sem que eu saiba onde é que o fez! Não vou descansar enquanto não vir aquele tipo numa cela almofadada em Mattapan ou seja lá onde for que eles põem os lunáticos criminosos hoje em dia, se é que os mandam para algum sítio; a mim quer-me parecer que os libertam com demasiada frequência!

 

Mas eu não tinha mais tempo para a Claire naquele momento. O Brian tinha de ser recrutado para o serviço do Cornudo. Tudo o que Matt dissera tornara isso muito claro. A alternativa ele ser posto fora do nosso caminho e para sempre privado do poder de nos fazer mal era demasiado terrível para ser contemplada. Os bruxos não amam; mas eu queria Brian, queria-o fisicamente, mais do que quisera qualquer homem nos últimos cem anos. E parecia-me que o tinha bem apanhado. Só que agora sabia como usá-lo melhor, sem qualquer das emoções infantis da minha personalidade anterior. E era o que faria se a Claire me desimpedisse o caminho.

 

É melhor ires agora disse-lhe. Eu... eu preciso de descansar. Ele agora não vai tentar mais nada. Vamos esquecê-lo.

 

Bem, se tens a certeza disso disse ela, hesitante.

 

Oh, tenho a certeza. Ele não vai voltar.

 

Não vai, pensou, até que ela o chamasse e a Claire não queria saber disso.

 

De pé, à porta, vi Claire afastar-se. Estava-lhe grata, viera ter comigo quando eu estava em estado de choque e precisava desesperadamente da ajuda de uma mulher, mas o Matt ter-me-ia enviado a Tibby para esse efeito, se eu lho tivesse pedido.

 

Fui sentar-me na velha cozinha. Como é que era o velho ditado? A juventude é algo de demasiado precioso para ser desperdiçada pelos jovens? Bem, uma bruxa podia tirar da juventude todas as vantagens.

 

Não se tinha passado muito tempo quando a campainha da porta tocou outra vez. Aquele estava a tornar-se um dia muito movimentado; bem, era assim que devia ser. Olhando para o alpendre, vi o rosto de Brian. A minha visão já estava novamente boa; mas ainda não estava pronta para encarar Brian. No entanto, dificilmente o podia mandar embora outra vez. Não podia, depois de ter deixado uma mensagem para me contactar. Abri a porta e aceitei o beijo que ele já tomava como certo.

 

Que se passa, querida? Deram-me a tua mensagem...

 

Desculpa a mensagem, Brian disse eu. Fiz uma tempestade num copo de água, só isso.

 

Naquele momento não tinha tempo para tratar do Brian; ainda não decidira o que queria fazer com ele.

 

Mas estás bem? A Claire disse que cá tinha vindo esta manhã e percebi que o Matthew Hay tinha cá estado a arranjar problemas. Ela disse que querias falar comigo, embora não me tivesse dito o que se passava...

 

Lembrei-me de uma frase da velha Bíblia que tinha encontrado no andar de cima. Cuidado com a mulher desconhecida, meu filho! Pois os seus lábios são como um favo de mel e as palavras da sua boca são mais macias que o óleo! Depois recordei-me do fim da passagem, mas o seu objectivo é amargo como os vermes e mais aguçado do que uma espada de dois gumes.

 

Brian lançou-me um olhar perturbado.

 

E que raio é que isso quer dizer? perguntou irritado. Não pensei que andasses para aí a papaguear a Bíblia, Sara.

 

Maldita fosse esta coisa de ter de começar tudo de novo no corpo de uma rapariga ingénua e pateta! (Bem, pelo menos desta vez não tinha tido de começar como uma virgem!) Eu disse humildemente:

 

Oh, toda a gente apanha umas citações da Bíblia aqui e ali.

 

Ele lançou-me um olhar estranho mas não respondeu. Passados uns minutos disse pesarosamente:

 

Sara, tenho de ir. Vim porque pensei que precisavas de mim, mas se estás bem, tenho mesmo de telefonar para o meu serviço de mensagens. Tencionava fazê-lo há uma hora atrás. Depois soube da tua mensagem e recebi uma chamada da Claire...

 

Não protestei quando me beijou e disse adeus; estava cansada e precisava de tempo para pensar. O Brian não era apenas um excelente amante mas, como médico, seria uma aquisição muitíssimo valiosa e não seria o primeiro nem o último que eu levaria da minha cama para o altar do Cornudo.

 

Com um médico na congregação teríamos acesso seguro a drogas e se, como acontecia ocasionalmente, alguma coisa corresse mal, um médico podia assinar certidões de óbito sem quaisquer problemas e sem que ninguém levantasse questões.

 

Pareceu ficar desapontado quando não me ofereci para o acompanhar, mas limitou-se a beijar-me novamente e disse:

 

Sim, estás com um ar cansado. Dorme bem, amor. Vamos ter de mandar pôr aqui um telefone para eu não ter de passar o tempo a sair daqui a correr.

 

Mentalmente respondi: Por cima do meu cadáver, mas limitei-me a sorrir e disse:

 

Tudo a seu tempo vendo-o sair para a chuva que continuava a cair. Passado algum tempo, ouvi o som do motor do pequeno Volkswagen a arrancar e depois desvanecer-se e subi as escadas para ir dormir.

 

Fui interrompida apenas uma vez, já noite alta, quando a campainha da porta me chamou ao andar de baixo e, erguendo o candeeiro acima da cabeça, vi Tibby de pé nos degraus.

 

Entra, Tabitha disse secamente, estava à tua espera. A aluna veio controlar a professora?

 

Ela disse, pestanejando à luz do candeeiro:

 

Não foi por isso que vim, Sara. Foi só para ver se estavas bem. Se a tua memória não tivesse regressado, terias tido um dia muito mau. Queria certificar-me de que não tinhas ficado muito magoada. Vim cá espreitar mais cedo, mas vi que estava alguém cá contigo e não parei.

 

Simpático da tua parte, Tabitha. Estou em dívida para contigo por causa do teu truque com a gralha. Foi muito inteligente e, visto que tudo acabou em bem, não irei... hesitei punir-te. Não desta vez. Mas de futuro, vê bem no que te metes! E se voltares a usar aquele pássaro contra mim outra vez, vais acabar pelos campos à procura de outro animal de estimação e por fim virás implorar-me humildemente que te dê um dos filhotes do Ginger Tom!

 

Ela estudou-me com uma curiosa mistura de hostilidade e uma afeição antiga. Disse:

 

Não te preocupes; sei que ainda não sou suficientemente forte para te enfrentar, Sara. Mas essa altura ainda pode chegar. O olhar dela era frio e clinicamente avaliador. Acho que gostava mais de ti antes.

 

Não tenho dúvida de que gostavas ripostei. Nessa altura podias dominar-me e ter o Matthew só para ti. Mas esse tempo já acabou. Põe-te no teu lugar, Tabitha.

 

Fez um pequeno aceno com a cabeça.

 

Não precisas da minha ajuda, não há razão para esta visita. Vou-me embora.

 

Vai disse eu, mas estás avisada. Fico satisfeita por teres ficado a saber.

 

Fechei-lhe a porta na cara, subi as escadas e dormi um sono sem sonhos.

 

Nos dias seguintes observei e escutei, tentando assimilar e relacionar a torrente de memórias que não paravam de regressar.

 

Imortal durante trezentos anos.

 

As Criaturas das Trevas recompensam-nos bem pelo que sofremos.

 

E a longo prazo?

 

 

Eternamente?

 

Não é pior do que as compras a prestações; aproveite agora... pague depois!

 

Por uma ou duas vezes o meu velho eu recuperou a consciência; sobretudo quando estava com o jovem Brian. De certa forma eu invejava-a, àquela rapariga que eu fora, crescendo a uma distância segura da nossa herança condenada e da nossa maldição e desejei poder regressar.

 

Não. Tendo posto os pés no Caminho das Trevas, não podia haver regresso.

 

Tentando recuperar deliberadamente esses dias inocentes, fui até ao estúdio e tentei, de uma forma vaga, terminar as ilustrações para o livro, mas as imagens de duendes e diabretes e cidades de fadas construídas com jóias pareciam-me agora insípidas e insignificantes e, finalmente, rasguei o que fizera. Já não precisava do dinheiro do livro. As Criaturas das Trevas cuidam dos seus. Nunca mais teria fome nem passaria necessidades, pois todos e cada um dos irmãos e irmãs partilham com os outros. A mim cabia-me fornecer ervas e passava horas no jardim, recuperando-o da ruína total e da negligência. Sete anos de negligência não podiam ser totalmente recuperados num único Verão, mas era um começo.

 

A palavra já começara a ser passada na vizinhança, era evidente. A todo o lado que ia parecia que havia sempre alguém que me fazia um sinal, uma saudação que eu reconhecia. Uma noite, depois de já estar escuro, uma mulher nova, pálida e perturbada, veio bater-me à porta. Nunca a vira antes, mas a história que me contou era familiar para os ouvidos de qualquer bruxa: cinco filhos em quatro anos e um marido fazendeiro demasiado cioso dos seus direitos conjugais para se preocupar com as consequências para ela.

 

Levei-a ao jardim e arranquei as ervas indicadas e dei-lhe instruções. Sim, o aborto era um crime de que éramos sempre acusadas, porque aqueles fazendeiros simplórios não gostavam da ideia de perderem um potencial trabalhador rural quando a criança crescesse. Falavam da lei de Deus; bem, o Deus deles que se danasse, se era o tipo de velho patriarca de barbas que gostava da ideia de uma jovem mãe maltratada e exausta ter o seu sexto filho nove meses após o quinto! Depois dei-lhe bons conselhos para evitar que aquilo acontecesse novamente antes de estar recuperada e pronta para outra, se é que isso viria a acontecer, e completei tudo com mais um pacote de ervas, desenhando rapidamente um símbolo masculino no papel em que embrulhara as folhas secas.

 

Mistura isto no café do Obed. Tem cuidado, não faças confusão e não as tomes tu!

 

Não lhe vão fazer mal, pois não? hesitou ela.

 

Eu disse com desdém como aquelas mulheres escravas idolatravam os seus amos!

 

Não. Não lhe farão mal nenhum. Só que quando começar outra vez a fazer a única coisa de que é capaz, a saltar-te para cima, vai descobrir que não é tão bom nisso como costumava ser. É capaz de lhe provocar um choque e de lhe servir de lição. Os tomates dos homens não lhes foram dados só para encher o mundo com umas dúzias de miúdos maltrapilhos. Apontei para o cemitério. Faz o que te digo, Jessie, a não ser que queiras acabar ali, enquanto ele tem mais duas ou três mulheres à razão de seis ou oito miúdos por cada uma.

 

Depois de Jessie se ter ido embora, agradecendo-me profusamente e acabando por lançar os braços ao meu pescoço e abraçar-me e abençoar, pensei com divertimento que até mesmo o Brian aprovaria aquele meu trabalho, ainda que pudesse não aprovar a forma como fora feito. Ele nunca tivera sorte nenhuma, ou pelo menos era o que dizia, em conseguir que os fazendeiros locais fizessem planeamento familiar! Eu conseguia mais do que isso!

 

A minha visita seguinte foi completamente inesperada. Num carro desconhecido, Colin MacLaran.

 

Pensei que iria ter notícias tuas há mais tempo, Sally disse ele e lembrei-me de que sempre chamara aquele nome à rapariga que eu era e não era simultaneamente. A Claire disse-me que não te estavas a sentir muito bem. Já estás boa agora?

 

Oh, sim disse eu desejando que se fosse embora; mas ele era um amigo da rapariga e por isso obriguei-me a ser bem educada com ele. Quer uma chávena de chá, Dr. MacLaran?

 

Alguma vez me viste recusar uma chávena de chá? perguntou divertido. E eu pus a chaleira ao lume. Quando já estava a ferver, pus a mesa da cozinha e procurei uns biscoitos para servir com o chá.

 

Deixa-me servir disse ele e instalou-se, amigavelmente.

 

Oh, a propósito, fui convidado para o vosso Sabat anunciou ele com os olhos azuis a brilhar. Fui visitar o Matthew Hay, disse-lhe que estava a dar aulas na Miskatonic sobre Cthulhu e os Deuses Antigos, acrescentei algumas citações adequadas do Necronomicon...

 

Apercebia-me agora de que ele estava a gozar comigo. O Necronomincon? perguntei. Mas esse não é o livro imaginário que o H. P. Lovercraft inventou para a sua ficção?

 

Oh, pois é, mas a questão é que o Matthew Hay não sabia disso. Sabe muito menos de bruxaria do que pensa Colin riu-se novamente. Ele aceitou-me como um Grande Adepto.

 

Bem, talvez sejas. Sabia que não me devia juntar àquele homem contra o Matthew mas, a longo prazo, sabia que não me prejudicaria o facto de Matthew Hay fazer figura de parvo perante a sua congregação iludida.

 

Então vai assistir ao Sabat?

 

Não o perderia por nada deste mundo. Algo me levou a dizer:

 

Não subestime o Matthew Hay, Dr. MacLaran. Depois lembrei-me que, anteriormente, sempre o tratara por Colin. A expressão dele tornou-se mais tensa; depois pensei se o teria imaginado.

 

Acredita-me disse ele um pouco sombriamente, não o faço. E deixou-me a pensar, talvez ele seja mesmo um Grande Adepto... talvez eu devesse avisar Matthew Hay. Mas não o fiz.

 

Um qualquer impulso interior levou-me de volta ao cavalete onde preparei uma tela e comecei a pintar, sem saber o que aconteceria. Passado algum tempo vi que pintara uma paisagem indistinta, o cemitério, repleta de formas etéreas e dominada por uma grande Criatura cornuda e escura. O meu trabalho assumia uma nova dimensão estranha, cheia de forma e propósito e não consegui evitar mostrá-lo a Brian quando ele me veio visitar.

 

Agora pintas os teus pesadelos, Sara?

 

Não gostas?

 

Não foi isso que eu disse. Tem um poder perturbante. És capaz de ser uma pintora melhor do que eu suspeitava, Sara, mas eu acho isso... bem, pouco saudável. Uma parte de ti de que nunca suspeitei.

 

Sim, posso muito bem imaginar que sim. Disse:

 

Pinto o que tenho que pintar.

 

E não me tentas ensinar a ser médica. Seja como for acho que está óptimo... e é capaz de ser uma boa terapia. A casa ainda te complica com os nervos?

 

Olhei para ele inexpressivamente. De que é que estava a falar? Como poderia, alguma vez, a minha casa de família perturbar-me?

 

Não percebo o que queres dizer.

 

Bem, desde que não seja um problema disse ele, beijou-me novamente e foi-se embora. Nos últimos dias tinha andado muito ocupado porque havia uma epidemia estival de gripe e eu vira-o muito pouco. De momento estava satisfeita por estar sozinha com o Ginger Tom. Era toda a companhia de que eu precisava.

 

A paz daquele interlúdio não podia durar. A Lua estava a minguar e o Grande Sabat de Lammastide aproximava-se a passos largos. Via as idas e vindas de Matthew a caminho da casa de Tabitha, mas ele era suficientemente esperto para me deixar em paz. Por agora a Tabitha podia ficar com ele. Mas o período de descanso estava quase a terminar e, como acontece com todos os períodos de paz, acabou.

 

Certa manhã, fui a pé até Madison Corners para comprar mercearias e comida para o gato. Como era evidente, antes de a jovem Sara saber que não o deveria fazer, tinha mimado o Ginger Tom dando-lhe comida de lata e, em consequência, ele negligenciara a caça dos ratos; ouvira o restolhar dentro de casa e vira sinais de ratos na despensa, apesar de tomar todas as precauções. Enquanto caminhava, acrescentei ratoeiras à minha lista de compras; mais tarde ou mais cedo teria de ter uma conversa com o gato e fazê-lo voltar ao trabalho, mas naquele momento não valia a pena dar-me a essa maçada.

 

Sabia, evidentemente, que o Matthew e eu e, nos últimos anos, a Tabitha, éramos os cérebros e os líderes da congregação, as almas e os espíritos orientadores, os únicos profundamente envolvidos na mística e na religião. Os outros, os seguidores, esperavam, supersticiosamente, aplacar as forças da natureza, ou participavam apenas porque era a actividade social local. Podiam, igualmente, estar aos gritos no encontro revivalista ou evangélico, ou a cantar hinos decorosos na igreja presbiteriana, mas a mim convinha-me mantê-los assim e no nosso altar. Podíamos usar a sua ajuda, a sua fé, a adoração da qual retirávamos o poder infinito e implacável.

 

Dávamos-lhe tanto quanto lhes retirávamos, evidentemente. Dávamos-lhe ajuda e conselhos como eu fizera com a esposa maltrapilha do Obed Tate. E no Esbat sorri para mim própria com a ideia de quantos homens vinham atraídos pela sexualidade selvagem e pelas orgias, não se apercebendo de que aquilo que parecia uma orgia era uma atracção do poder Cósmico através da energia gerada pela interacção de dois corpos frenéticos, os participantes naquele acto sexual ritual captavam uma corrente perene de energias naturais.

 

Eles não queriam saber. Estavam apenas a divertir-se. Mas eu sabia, e usava a força assim gerada.

 

Num sentido muito real, aquela Congregação era a vida da comunidade a vida que aquela parte decadente do mundo, esquecida por outros serviços sociais e pelas instituições comunitárias, ainda tinha. Sabia que cerca de metade das pessoas que encontrava naquela pequena loja a metade mais energética eram meus irmãos e irmãs na Velha Religião. Os outros não interessavam.

 

Enquanto encomendava as mercearias pensei que, a não ser que Brian fosse recrutado, teria de ser persuadido a partir. (Provavelmente, se eu acabasse a relação com ele, voltaria para Boston.) Brian daria às pessoas daquela região uma outra perspectiva sobre as suas vidas e assim ameaçaria o objectivo e a própria existência da Velha Religião. Traria o Hoje para a comunidade... e nós tínhamos um grande investimento no Ontem.

 

O Brian teria de se tornar um de nós... ou teria que partir. A outra única alternativa era demasiado horrível para ser contemplada.

 

Depois ouvi uma voz aguda e infantil por trás de mim:

 

Mamã, aquela é a mulher que tu disseste que era uma bruxa? Ela não parece uma bruxa, parece a amiga do médico.

 

Virei-me lentamente e olhei. Annie Fairfield, com o sua bata florida e limpa, empalideceu lentamente e apertou protectoramente a mão do rapazinho que estava ao seu lado.

 

Um ataque de fúria abateu-se sobre mim. Ergui a mão, com uma deliberação calma, e apontei o meu dedo ao rapaz. Depois virei as costas e saí da loja, rindo sozinha.

 

(A rapariga que eu fora nunca teria sido capaz de uma coisa daquelas. Mas as pessoas à minha volta tinham de saber com quem estavam a lidar.)

 

Atrás de mim ouvi a criança dobrar-se num paroxismo de tosse e falta de ar. Não me virei. Fui para casa, sorrindo calmamente para comigo. Eles aprenderiam.

 

Estava à espera do Brian naquela noite e tinha preparado um fricassé de galinha, mas ele estava atrasado e passou-se quase uma hora antes de ouvir o Volkswagen a subir a colina.

 

Estava suficientemente irritada para me sentir tentada a dar-lhe uma lição, mas ele estava com um aspecto tão cansado e preocupado quando entrou, que o perdoei por me ter feito esperar.

 

Que se passa, Brian?

 

Uma emergência; o miúdo dos Fairfield teve um ataque de asma tal que cheguei a pensar que teria de o levar no meu carro para o hospital de Arkham, mas vai ficar bom. Raios, quem me dera ter uma clínica como deve ser e uma tenda de oxigénio. Vamos ter que arranjar maneira de ter qualquer coisa para tratamentos de emergência mais perto do Arkham. Estava pálido e tenso. De cada vez que tenho uma emergência séria vejo novamente como vai ser trabalhar aqui.

 

Fairfield. É aquele...

 

Sim, é o miúdo da Annie.

 

Bem feito para ela.

 

Sara! Ele ficou verdadeiramente chocado. Como podes dizer uma coisa dessas? Só porque a Annie é uma neurótica ignorante e te insultou, não consegues sentir pena pelo filho doente?

 

Não faz sentido ser sentimental relativamente a gente dessa respondi.

 

Ele franziu o sobrolho e disse:

 

Sara, acho que esta casa te está a afectar, quer tenhas consciência disso ou não. Seria capaz de jurar que não farias esse tipo de comentário nem serias assim cruel quando cá chegaste. Pergunto-me se deves mesmo cá ficar.

 

É claro que vou ficar ripostei. Estou cá há trezentos anos e não vou deixar que a casa fique em ruínas agora!

 

Ele atirou com o casaco.

 

Não vou discutir isso contigo, Sara. Estou demasiado cansado. O que está ao lume, seja lá o que for, cheira bem. Espero que esteja pronto para comer.

 

Elogiou profusamente a comida, mas eu continuava consciente de uma sombra entre nós. Quando acabámos de comer demos os restos ao Ginger Tom, embora eu tivesse protestado com pouca convicção.

 

Ele está a ficar muito gordo e deixa os ratos à vontade. Os gatos nesta região não são só animais de estimação, têm de ganhar a vida.

 

Mas não protestei mais. Ele estava demasiado cansado para sugerir que subíssemos ao andar de cima. Depois de termos terminado de lavar a loiça ele insistiu em ajudar-me a limpar e arrumar os pratos pareceu contentar-se em ficar sentado à mesa da cozinha a beber mais uma chávena de café. Eu não tinha muito para dizer; estava a pensar na melhor forma de lhe sugerir que se juntasse a mim na Velha Religião.

 

Quem me dera que tivesses um telefone, Sara. Esta noite estou de serviço às emergências e tenho que estar num local onde seja contactável, por isso não me posso demorar mais do que meia hora. O primo James esteve levantado durante quase toda a noite de ontem, a fazer um parto, e prometi-lhe que estaria de volta cerca das nove horas para se poder ir deitar. Estás a ouvir-me, Sara?

 

Não estava; estivera a pensar que com o Grande Sabat na Lua nova seguinte, tinha cerca de dez dias para o convencer a juntar-se a nós. Mas apressei-me a dizer:

 

É claro que estou. Pensei só que tinha ouvido qualquer coisa no quintal das traseiras.

 

Ele inclinou a cabeça para um dos lados.

 

Não sei. Sara, gostava que me deixasses oferecer-te um cão.

 

O Ginger Tom é melhor do que qualquer cão respondi. Ele diz-me, se houver desconhecidos por aí. Fui até à janela, seguida por Brian. Não tive a certeza, mas pareceu-me que alguém se esgueirava na escuridão.

 

O Ginger Tom avisar-me-ia da presença de um estranho. Mas avisar-me-á da presença de alguém que conheça? Ainda não estava totalmente habituada ao uso da visão de bruxa, mas sentia-me preocupada. Matthew Hay ainda não fizera nada, mas ele não era homem para esquecer uma ofensa ou um insulto. Não me podia atacar... não naquele momento. Depois do Grande Sabat, quando já não necessitasse tanto de mim, a conversa seria outra e eu teria de me cuidar, mas naquele momento não tinha nenhuns receios muito prementes.

 

Não por mim própria. Mas poderia ele atacar Brian?

 

Brian estava a vestir o casaco desportivo. Disse:

 

Tenho de ir, Sara. O primo James está bastante velhote e quero que descanse mais.

 

Peguei no candeeiro e acompanhei-o ao carro. Uma sensação de mal-estar apoderava-se de mim.

 

Brian, não vás, não vás! Pousei o candeeiro e agarrei-me a ele.

 

Beijou-me, longa e ardentemente, a sua boca fechando-se apaixonadamente sobre a minha, mas afastou-se:

 

Sara, sabes que tenho de ir. Já sabias como seria quando decidiste apaixonar-te por um médico disse rindo-se persuasivamente. O melhor é casares-te comigo imediatamente e mudares-te para a cidade para viveres connosco!

 

Nunca! O amor é uma coisa, mas eu não sou mulher para o casamento e a domesticidade. Mas sentia um tal mal-estar por causa dele, que não iria discutir o assunto naquele momento.

 

Brian, não podes ir, não podes entrar naquele carro! Ele olhou para mim com um expressão dura, quase zangada.

 

Não te armes em vidente comigo, Sara. Já ouvi o suficiente desse género de coisas da Annie Fairfíeld hoje. Está a tentar convencer-me de que tu és uma mulher perigosa, uma bruxa. Acabei por lhe dizer para calar a boca. Mas não ajuda nada que tu venhas agora com esses disparates neuróticos. Boa noite, querida, vou tentar vir ver-te amanhã.

 

Entrou no carro, fechou a porta com firmeza e ligou o motor. Eu fiquei ali, com os braços apertados à volta do corpo, numa agonia. Que podia eu fazer? Oh, que podia fazer? Enquanto o carro se afastava, fiquei ali nos degraus, imóvel, desesperada. Fiquei a ouvir o barulho do motor desaparecer do outro lado da colina.

 

Depois ouvi aquilo de que estivera mais ou menos à espera desde que ele entrara no carro. O som do motor mudou, de alguma forma; ouviu-se um guinchar desesperado de travões, um som estranho que não consegui identificar e o estrondo de metal e maquinaria esmagados e vidros partidos.

 

Agarrei na lanterna que tinha junto à porta e corri colina abaixo. Ao fundo da colina, onde havia uma pequena ponte sobre um ribeiro, a estrada fazia uma curva apertada à direita e começava a subir a colina na direcção da quinta dos Whitfield; o carro de Brian não fizera a curva e estava de lado, com o pára-choques esmagado e a porta de um dos lados metida para dentro. Acho que devo ter gritado enquanto corria para o carro e tentava freneticamente abrir o fecho. O Brian estava caído sobre o volante e tinha sangue na testa e, por um instante horripilante, pensei que não estava a respirar.

 

Depois, abriu os olhos estonteado, e eu recomecei também a respirar.

 

Ele disse numa voz espantada:

 

Sabia que devia ter mandado verificar os travões... não funcionaram quando travei antes da curva. Tive sorte em não ter morrido. Se aquela porta se tivesse aberto quando bati na ponte, teria sido cuspido e partido o pescoço.

 

Estás ferido?

 

Acho que... mexeu-se cautelosamente. Sim; o meu tornozelo ou está partido ou deslocado. Ficou preso entre o pedal da embraiagem e o travão.

 

Brian, que hei-de fazer?

 

Pensou uns instantes, o seu rosto contorcido pela dor.

 

Detesto fazer-te andar por aí pelos campos no escuro...

 

O que há aqui que me possa fazer mal?

 

Passa pela quinta dos Whitfield, eles não têm telefone e vai à quinta dos Millard... é uma casa grande e verde com um celeiro enorme por trás. Telefona ao primo James e ele vem cá buscar-me de carro.

 

A caminhada às escuras, apenas com a luz inconstante da lanterna, pareceu-me estranha e assombrada: o meu espírito parecia estar suspenso; não conseguia pensar noutra coisa a não ser em Brian, preso no carro acidentado. Fiz o telefonema; o primo de Brian, James, disse-me bruscamente para esperar onde estava, em casa dos Millards que eram agricultores amigáveis, simpáticos e idosos, que me ofereceram café e uma fatia de uma óptima tarte de maçã, cheios de pena da rapariga desconhecida e do pobre médico que sofrera um acidente de carro. O Sr. Millard ofereceu-se para assim que fosse dia ir com o tractor tirar o carro de Brian da vala e levá-lo para a oficina em Madison Corners: "Não faz sentido nenhum pagar ao reboque deles, levam-nos o couro e o cabelo!" Passado pouco tempo vi luzes a subir a estrada e a hora seguinte foi demasiado atarefada para permitir grandes reflexões. O primo James e o Sr. Millard tiraram Brian do carro acidentado e meteram-no no banco de trás do carro do homem mais velho. O primo James, que se revelou um homem idoso de feições marcadas e cabelos brancos, perguntou-me se eu sabia conduzir e, quando lhe disse que sim, informou-me bruscamente que ele e Brian não se deviam ausentar em simultâneo do condado e disse-me que o podia deixar na sua casa e de Brian em Madison Corners e levar Brian às urgências do Hospital de Arkham para lhe tirarem uma radiografia ao tornozelo e tratarem-no.

 

Nem me ocorreu protestar; era um procedimento muito racional. Brian deu-me a mão nas urgências enquanto aguardava pelas radiografias e me dizia repetidamente que eu fora uma grande ajuda. Não se referiu à forma como eu previra o acidente e o seu rosto estava tão pálido de dor que nem pensei em dizer-lhe: "Eu bem te avisei."

 

O tornozelo só estava deslocado e depois de o porem no lugar e o ligarem, levei Brian a casa e ajudei-o a deitar-se e a tomar os analgésicos que os médicos de Arkham me tinham dado para ele tomar. Queriam que passasse a noite no hospital. Ele nem quis ouvir falar nisso, dizendo que o primo James era demasiado velho para ficar sozinho a tomar conta de uma clientela tão dispersa.

 

A Sara pode conduzir-me durante um ou dois dias se eu precisar. Mas não vou precisar.

 

Deixei-o finalmente a dormir e regressei à casa Latimer, escura e deserta à luz pálida da madrugada. Estava demasiado cansada para dormir; sentei-me na cozinha, fazendo festas ao Ginger Tom que estava ao meu colo quando, imperceptivelmente, teria eu deixado de lhe chamar Barnabas? Seria isso também obra do Matthew Hay? A raiva crescia em mim.

 

O Brian era meu.

 

Como se atrevia o Matthew a interferir? E comigo? Até eu me cansar de Brian, ninguém neste mundo tinha o direito de se meter com ele. O Matthew devia ter mexido nos travões e teria de levar uma lição.

 

Sentei-me, esperando que o Sol nascesse e pela confrontação com o bruxo presunçoso que se atrevera a pôr a mão no Escolhido da sua própria sacerdotisa e bruxa.

 

Uma Bruxa Não Pode Amar

Quando o Sol nasceu, um olho vermelho e inflamado que atravessava as camadas de nuvens, Ginger Tom saltou do meu colo e desapareceu num ápice pela porta da cozinha. Fui até ao jardim de ervas, fragrante com o orvalho da manhã, e caminhei lentamente na direcção do cemitério. A igreja arruinada era o local adequado para aquele encontro e, ao escolher eu própria a hora e o local, ficaria em vantagem.

 

Mas ao atravessar os velhos portões de ferro retorcido apercebi-me de que já era demasiado tarde. Matthew Hay passou os portões, caminhando na minha direcção, com Tabitha a seu lado e avançou lenta e deliberadamente direito a mim. Cedendo à necessidade, encolhi os ombros e caminhei entre eles de regresso à cozinha. Conceder-lhes a escolha do local para o encontro era uma desvantagem, mas protestar seria pôr-me ainda mais à mercê deles. Tentei esconder o meu medo. Conseguiria bater-me contra os dois se eles decidissem unir forças contra mim?

 

Em tempos poderia tê-lo feito. Mas após sete anos, e ainda apenas parcialmente segura da minha memória, dos meus poderes, não sabia. Ainda assim tentei disfarçar a minha sensação de derrota e de medo.

 

Como se atrevem a pôr as mãos no homem que escolhi para mim rugi. Não têm esse direito! Eu sei os vossos nomes!

 

Pois sabes disse Matthew calmamente, mas isto é demasiado importante para vinganças mesquinhas. Pode estar em causa a nossa sobrevivência. Não tentes trabalhar contra nós, Sara; precisamos todos uns dos outros.

 

Tibby disse:

 

Não percebes, Sara? O jovem médico pertence à tua antiga vida; à rapariga que eras antes de teres regressado para nós e que estava a apaixonar-se por ele. Sabes que nós não podemos amar não devemos amar. Desiste dele, Sara. Ele só te vai levar de volta para o que eras antes.

 

Sim, pensei agoniada e paralisada. Eu amo Brian, ou antes, a rapariga que eu fora começara a amá-lo. E uma bruxa não pode amar e conservar o tremendo poder de manipular as vidas e as mentes das outras pessoas.

 

Uma pessoa apaixonada pensa noutra pessoa que não nela própria. O poder da bruxa provém pelo menos em parte de uma tremenda concentração na sua própria vontade e nos seus próprios desejos. É uma espécie de "pensamento positivo" levado ao extremo e multiplicado por cem. Esse poder enorme da força de vontade concentrada pode captar energias tremendas, mas tem de ser totalmente pura, absolutamente dirigida para aquilo que a bruxa deseja. O mínimo pensamento sobre o bem-estar de outra pessoa faz com que a autoconcentração total seja quebrada e destruída.

 

É assim que os milionários implacáveis constróem as suas fortunas; concentração total na riqueza e no poder e sem perdas de tempo a pensar em qualquer outra pessoa. Por vezes, depois de adquirirem as suas fortunas, tentam comprar mulheres para lhes satisfazer o orgulho mas, essencialmente, são homens destituídos de amor.

 

A lenda de Alberich, no Anel dos Nibelungos. O anão feio tem de renunciar ao amor para obter poder total e riqueza total!

 

E agora eu tinha de escolher.

 

(Ou teria escolhido para toda a eternidade, trezentos anos antes? Seria ainda livre de escolher?)

 

Disse, hesitando, olhando o homem alto e cruel e a mulher pequena, de cabelos claros e expressão dura:

 

Porque não me deixam ir? Deviam ficar satisfeitos por eu escolher o Brian. Pelo menos tu, Tibby. Assim ficavas com o Matthew só para ti e sem uma rival para te disputar o lugar na congregação.

 

Tabitha lançou-me um sorriso e senti que hesitava; mas Matthew Hay disse bruscamente:

 

Há cem anos atrás, se fosses tão precipitada que permitisses que um sentimentalismo qualquer se interpusesse entre ti e o poder de que aprendeste a precisar como um drogado precisa da droga... como estava a dizer, há cem anos atrás, ter-te-ia deixado partir. Agora não. Somos demasiado poucos agora. Precisamos de ti; não podemos dar-nos ao luxo de perder uma bruxa com o teu poder.

 

Abanei a cabeça como se estivesse a tentar pensar. Disse:

 

E porque não recrutar o Brian para a Velha Religião?

 

Não. Ele pertence à rapariga que tu eras. A presença dele na congregação só te vai puxar para trás. E mais, ele acha que é um misantropo. Continua a sentir-se obrigado a pôr o bem-estar dos outros à frente dos seus desejos. Responde-me com sinceridade, Sara; seria ele capaz de te possuir como eu o fiz, implacavelmente, satisfazendo os seus desejos? E conseguiria ele deixar-te livre para satisfazeres os teus próprios desejos sem te importares com o bem-estar dele?

 

Não, pensei. O Brian queria-me toda e tornara isso bem claro. Mesmo sexualmente, o desejo vinha em segundo lugar, depois do bem-estar da pessoa amada. Eu sempre soubera, parecia-me, que o Brian não poderia ser recrutado para o nosso tipo de culto. Se, cedendo a um desejo momentâneo, eu quisesse o Matthew Hay, o Brian esperaria sempre que eu pensasse no que ele sentiria e não cedesse aos meus desejos. Ou pior ele "compreenderia" e deixar-me-ia ter o que eu queria simplesmente porque me amava.

 

Não. Ele nunca poderia ser um bruxo. Não conseguiria fazer mal a outrem para satisfazer os seus próprios desejos, nunca poria as suas conveniências à frente de, por exemplo, os seus deveres de médico.

 

Como vês disse Matthew, ele não pode ser um de nós. A tentação tem de ser eliminada. Precisamos demasiado de ti, Sara, para permitirmos que ele te afaste. Desiste dele agora, volta para nós ou nós... eliminá-lo-emos. Viste esta noite do que somos capazes, foi um aviso. Da próxima vez não será um aviso. Da próxima vez ele morrerá.

 

Eu disse bruscamente:

 

Eu ainda o quero!

 

Sê sensata, Sara. Se voltares a ir para a cama com ele, serás capaz de desejá-lo apenas, de lhe tirares o que queres ou os teus sentimentos levarão a melhor?

 

Se eu lutar contigo por causa dele... Tibby disse:

 

Se lutares contra nós por causa dele, fá-lo-ás por causa dele e os teus poderes diminuirão lentamente; não conseguirás salvá-lo. Seja como for, que raio, o que queres tu dele? Ele é só um homem! O mundo está cheio de homens e se quiseres um para a tua cama tudo o que tens a fazer é acenar com um dedo. És jovem e bela e manténs o teu antigo encanto. Tens de desistir dele Sara, e se não consegues ver isso teremos de o pôr fora do teu alcance. Quando estiver morto, perceberás rapidamente que um cadáver não te pode dar nada... nem prazer, nem poder e certamente que não te pode dar amor! Precisas dessa lição tão dura?

 

Senti-me lentamente esmagada, derrotada. Eles tinham razão, parecia-me. Trezentos anos de força de vontade diziam-me que eles tinham razão. E no entanto... no entanto...

 

Ainda estás melindrada? disse Matthew. Muito bem, fazemos um negócio contigo. Volta para nós, completamente, sem reservas, da maneira que sabes querer fazê-lo, e não insistiremos em matá-lo. Podemos expulsá-lo da comunidade com facilidade. Mas não lhe tocaremos com um dedo.

 

Eu sabia que não tinha escolha.

 

Negócio fechado disse. Afastem-se do Brian e eu fico convosco.

 

Não me apercebera do que o plano deles incluía. No entanto, quando me disseram, percebi que era a única forma de salvar o Brian. Mais qualquer envolvimento comigo significaria a sua morte, pois o Matthew e a Tabitha certamente que cumpririam as suas ameaças. Por isso deixei-os fazer o que queriam.

 

Eram quatro da tarde quando ouvi um carro a subir a colina.

 

Brian disse e olhei para Matthew.

 

Estávamos todos no andar de cima, deitados na enorme cama de dossel. Tinha pensado, quando ali chegara pela primeira vez, por que razão a cama seria tão grande, para que é que uma mulher idosa precisaria de uma cama enorme e por que razão haveria tantos espelhos no quarto. Agora já sabia, tinha estado a aprender novamente as razões. No espelho inclinado, por entre as nuvens de fragrâncias eróticas, via os nossos três corpo nus, Tibby esbelta e delicada, Matthew rijo, magro, sem pêlos, flexível como um gato; o meu próprio corpo esbelto envolto em camadas de cabelo ruivo.

 

Inclinei-me sobre Tibby, a minha boca dirigindo-se primeiro para a boca dela e depois descendo pelo seu corpo, as minhas mãos fechando-se sobre os seus seios. O meu corpo cobriu o dela e contorcemo-nos em conjunto enquanto Matthew, sentando-se sobre mim, me penetrava. Ele estava erecto e era incansável e dei por mim a pensar como conseguiria ainda ter forças depois de todo o tempo que passámos juntos. As mãos de Tibby brincavam desvairadamente nos meus seios, excitando-os, enquanto Matthew se debruçava sobre mim para a agarrar com as suas mãos violentas e os seus dentes cerravam-se sobre os mamilos dela.

 

No andar de baixo ouvi os passos irregulares de Brian e ele chamou:

 

Sara?

 

Estou cá em cima Brian! chamei, a minha voz desvanecendo-se à medida que o frenesim de Matthew aumentava, fazendo-me perder a consciência de tudo o resto. Através da minha quase inconsciência, ouvi-o começar a subir com hesitação as escadas. A coxear. Deve ser o tornozelo ferido que ainda lhe provoca dor.

 

Devia ter descido.

 

Não. Esquece.

 

Os ombros enormes de Matthew subiam e desciam por cima de mim, com uma energia implacável, e ouvi-me arfar e gemer, implorando e gritando de desejo. A porta escancarou-se quando eu explodia descontroladamente, contorcendo-me agarrada a Matthew e vi, reflectido no espelho, o rosto pálido e chocado de Brian, completamente atónito.

 

Esperei até recuperar o controlo da respiração e depois sorri-lhe com um sorriso calmo e erótico.

 

Não te queres juntar a nós, Brian? Há espaço que chegue para todos. Passei a mão preguiçosamente pelos lábios de Tibby. Ela mordeu o dedo ao de leve e murmurou:

 

Sim, Brian, há muito tempo que me pergunto o que há por baixo desse teu casaco branco.

 

A porta fechou-se com estrondo escondendo o rosto de Brian. Ouvi-o descer as escadas cambaleante, desequilibrado como se estivesse bêbado. A porta da frente bateu e passado pouco tempo o carro dele arrancou e afastou-se.

 

Eu rebentei num pânico descontrolado e delirante e agarrei-me a Matthew, magoando-o com as unhas.

 

Faz-me esquecer! exigi. Faz-me esquecer. E ele assim fez.

 

A Faca de Cabo Negro

Agora o tempo voava na direcção do Grande Sabat.

 

Não voltara a ver o Brian. Não esperara que isso acontecesse e, para dizer a verdade, nem mesmo o desejava. Uma estranha emoção parecia adormecer os meus sentidos. Sentia-me culpada? Envergonhada? Como o poderia sentir? Tinha-me limitado a perseguir a única coisa que me importava agora: o prazer físico. Recusava-me totalmente a pensar que tinha feito algo de errado; teria o Brian o direito de pensar que o meu corpo lhe pertencia só porque eu o levara para a cama de bom-grado? Teria eu desejado que ele me guardasse só para ele?

 

Hipocrisia? Ele queria obter prazer para si próprio através do meu corpo mas, apesar de dizer que queria o melhor para mim, o que ele queria mesmo era que eu só o tivesse com ele! Que grande amor!

 

E, no entanto, a memória apoquentava-me; como ele fora gentil quando eu estivera sozinha, como fora bondoso. Como eu gostara de fazer planos para o resto das nossas vidas...

 

Esquece isso. Só restavam os meus irmãos e irmãs da congregação e agora, dentro de menos de um dia, eu seria novamente confirmada no meu lugar, desta vez não estaria drogada nem seria contra a minha vontade, mas na plenitude das minhas capacidades e com o sentidos bem despertos.

 

Não receava aquilo que sabia que teria de ser feito. Agora nada me poderia fazer mal.

 

Nos dois dias seguintes, em Madison Corners, vi duas ou três vezes a mulher Claire, não era? que me tinha vindo salvar na manhã a seguir ao Sabat; estava em dívida com ela por causa disso, mas agora não tinha tempo para estranhos. Encontrei certo dia, na loja da vila, o Matthew Hay e ele acompanhou-me pela estrada. Matthew disse:

 

No Grande Sabat, quando tomares o teu lugar entre nós, terás de demonstrar a tua liberdade relativamente às leis feitas pelo homem. Sempre que uma antiga bruxa regressa à sua congregação isso tem de ser feito. Em primeiro lugar, isso que é um crime na sociedade demonstra a tua vontade de pôr a tua vida nas nossas mãos; é um símbolo da confiança que tens em nós e de que nunca te trairemos... um acto relativamente ao qual a traição significaria a morte.

 

E lembrei-me que, desde a primeira, e em cada uma das minhas vidas, aquilo fora feito. A faca de cabo negro no altar era uma recordação daquele acto; o único sacrifício humano oferecido ao Cornudo na instalação no seu posto de uma bruxa regressada. Com essa faca ela mataria, sobre o altar ritual, e naquele Sabat, o corpo nu de uma mulher seria substituído por um cadáver sobre o altar. Aquilo significava que ela nunca poderia deixar ou trair a congregação... sob pena de ser acusada e condenada por homicídio pelas doze testemunhas. Depois disso o corpo morto seria abusado por todos os presentes; depois seria sepultado num local que era conhecido apenas pela congregação.

 

Perguntei:

 

Quem será a vítima?

 

Isso interessa? perguntou Matthew. Um dos locais, um dos ignorantes. Não fazem nenhuma falta ao mundo.

 

Tinha de concordar. Até mesmo o Brian dissera que talvez fosse melhor se morressem todos. Esquece o Brian.

 

Parei de fazer perguntas e deixei esse assunto com eles. Uma vítima seria oferecida ao Cornudo. Sempre assim fora.

 

Passei a véspera do Sabat no estúdio do andar de cima da velha casa Latimer, pintando como se estivesse possessa... e talvez estivesse. Ainda tenho esse quadro. Tenho-o na minha frente enquanto escrevo e ainda evoca um poder capaz de me fazer estremecer, num frenesim. Tenho-me perguntado se será apenas devido às recordações que evoca, o horror desses dias, mas não. Toda a gente que viu a pintura exclamou ou estremeceu de medo e repulsa devido ao seu peculiar poder de evocar os velhos pesadelos do inconsciente. E no entanto era apenas um cemitério iluminado por uma luz astral cinzenta, o solo parecendo ondular e estremecer. Ao fundo vê-se um carvalho fendido por um raio e, de um dos ramos contorcidos está pendurada uma figura, uma figura desenhada apenas com linhas e formas e, no entanto, é essa a figura que vejo todas as manhãs no espelho. E sobre toda a paisagem impõe-se a sombra de uma grande Criatura Cornuda, ameaçadora, curvada, enorme...

 

Já disse a mim própria centenas de vezes que devia queimar aquela coisa mórbida. No entanto sei que será o meu único grande quadro, embora até mesmo eu tivesse estremecido quando vi o título da obra na exposição do ano passado.

 

Número 15. Bruxa Enforcada. Sara Latimer...

 

Quando o Sol se estava a pôr, escrevinhei o meu nome a um canto da tela e pu-la de lado. Era demasiado cedo para acender um candeeiro, por isso procurei num dos quartos que só tinham caixotes e finalmente encontrei o que queria, envolto em ervas fragrantes que não reconheci; um robe comprido, feito em casa, tecido e bordado à mão, com estranhos símbolos bordados na seda debotada. Enfiei-o pela cabeça e senti que a sua atmosfera me envolvia.

 

É uma mentira que todos os bruxos trabalhem nus. (O puro bom senso dir-nos-á que um bruxo nu no Inverno e um dos Grandes Sabats é a meio do Inverno morreria de frio.) Mas é verdade que algumas congregações se encontram nuas ou que alguns dos seus membros assistem nus aos rituais. Nenhuma veste mundana pode ser usada num círculo mágico de bruxaria; e nos velhos tempos nem todos os bruxos tinham roupas suficientes para reservar uma peça para vestir unicamente nos encontros. Por isso, em vez de usar uma roupa de uso quotidiano para o Sabat, o bruxo deverá vir nu...

 

Tabitha veio buscar-me uma hora depois do pôr do Sol, batendo levemente como um rato, na minha porta. Envolta num grande xaile, parecia amortalhada e fria, e não falámos enquanto atravessámos lentamente o jardim de ervas que soltava todas as suas fragrâncias. (A noite estava quente! Porque estaria eu consciente do frio?)

 

Atravessámos o cemitério, contornando as pedras caídas e arruinadas e, quando olhei para cima, vi os contornos do grande monte que ficava por trás e o seu cume de forma estranha. Não havia ali nada agora, para além das ervas onde pastavam as vacas dos Whitfield; o carvalho atingido pelo raio já devia ter-se desfeito em pó há décadas. No entanto eu sabia, com uma visão interior, que ali, na primeira das minhas vidas, o meu corpo ficara pendurado, sem vida, danado.

 

No entanto ali estava eu...

 

Havia luzes fantasmagóricas e pálidas através das frestas da igreja arruinada quando me aproximei e percebi que a congregação já estava reunida. E, por um momento, os meus passos hesitaram e engasguei-me de horror. Era eu, Sara Latimer, quem caminhava através do cemitério em direcção a uma igreja desolada onde cometeria um assassínio ritual?

 

Todas elas tiveram um mau fim.

 

Por instantes a visão do rosto do meu pai pairou perante os meus olhos e eu afastei-a, com um sobressalto.

 

Estavam mortos. Tanto quanto sabia, ou queria saber, esperavam por mim no inferno.

 

Eu nunca morreria verdadeiramente.

 

Tibby pôs-me a mão no cotovelo mas não falou. Sabia que naquele momento ela não falaria a não ser que eu lhe dirigisse a palavra primeiro.

 

(Eu tinha-a guiado assim, nove anos atrás. Não, não tinha sido eu! Oh, pára de tentar perceber tudo. Faz o que tem de ser feito. Move-te com as marés. Aceita o inevitável, as forças da natureza cruel.)

 

A noite estava repleta de pequeno sons, grilos corriam pela erva, uma cigarra cantava com uma insistência enlouquecedora numa árvore, à distância uma raposa rosnou nos seus afazeres nocturnos e um mocho, com asas quase inaudíveis, passou por nós na sua caçada cruel; depois ouviu-se um pequeno grito de uma criatura moribunda na erva. Ainda assim o silêncio oprimia-me. Murmurei a Tabitha:

 

Luzes. Eles já começaram?

 

Sim. Estão à nossa espera. Não podes estar presente na abertura das cerimónias até te teres tornado novamente numa de nós. Tens o unguento?

 

Assenti e tirei um pequeno pote das dobras do meu manto. Tibby abriu-o e passou uma pequena quantidade na pele fria das minhas têmporas.

 

Quase imediatamente, embora tivesse sentido a náusea familiar, pareceu que a minha visão nocturna melhorava e que o cemitério escuro se iluminava com a curiosa luz astral que eu tentara pintar durante o dia. Uma parte de mim sabia que os efeitos físicos eram, parcialmente, os efeitos psicológicos da droga o primeiro efeito da beladona é dilatar as pupilas no entanto a outra parte era real, uma abertura psíquica para dimensões invisíveis. Por baixo dos meus pés o solo revolvia-se e inchava com os mortos e estremeci de frio, mas daquela vez não houve nenhum delírio descontrolado. Podia, se o desejasse, distinguir o que era real do que era uma ilusão provocada pelas drogas e pela excitação.

 

Até mesmo a luz fraca das velas no interior da igreja arruinada me magoou os olhos. Por instantes pareceu-me que flutuava. Os membros da congregação estavam acocorados, entoando cânticos, num círculo em torno do altar e a forma nua que ali jazia, debatendo-se, apenas um corpo nu masculino, sem rosto, sem forma, quase inumano aos meus olhos drogados. Sabia agora que o Grande Cornudo, acocorado sobre o altar, era Matthew, com a máscara animal do Deus; sabia também que o grande falo era postiço, estava atado à sua cintura e estava pintado de carmim na ponta, uma tradição herdada dos dias em que uma das funções do sacerdote daquele antigo rito de fertilidade tinha sido sacrificar a virgindade de cada um dos membros e a ponta pintada da cor do sangue uma simples recordação daquela função. Sabia tudo aquilo e no entanto estremeci, consciente de tudo quando me detive perante o próprio Deus dos Bosques e conheci o terrível medo de pesadelo a que os adoradores de Pan deram o nome: Pânico.

 

Entre as figuras presentes, envoltas em mantos como o meu, vi um que me era simultaneamente estranho e familiar; Colin MacLaran. Perguntei a Matthew:

 

E este é...

 

É o Dr. MacLaran, Sara; um adepto da Costa Oeste. Claire também lá estava, com uma longa capa.

 

A minha acólita, explicou brevemente o Dr. MacLaran.

 

Que assim seja disse eu. Se te responsabilizas por ela, é bem-vinda.

 

A cena tremeu perante os meus olhos; a grande figura cornuda estremeceu, tal como acontecera da outra vez, e tornou-se tão pequena que eu a poderia erguer na palma da mão, depois agigantou-se de tal forma que se tornou enorme, chegando ao tecto abobadado. As figuras acocoradas eram grotescas, os seus rostos assumindo estranhos contornos de animais. Estava sozinha; Tabitha esgueirara-se para o seu lugar no círculo. O fumo do incenso sufocava-me! Matthew ou o Deus enfiou-me uma faca na mão. Não a faca de osso, com o cabo branco, feita para cortar folhas e raízes, para fazer varinhas de salgueiro, não a faca que servia o lado brilhante da mulher-bruxa, que ajudava e curava, mas a faca com o cabo de ferro negro.

 

A faca do sacrifício.

Dirigi-me ao altar involuntariamente. Vi o corpo nu que ali jazia, a cruz carmim desenhada sobre o seu coração com o sangue de uma criatura de sangue quente. Ergui a faca.

 

E depois tudo girou à minha volta. A forma sem rosto e sem forma perante mim assumiu contornos que me eram familiares, transformando-se numa cara e num corpo que eu conhecia intimamente, que amava, que conhecia, que recordava apaixonadamente:

 

Perante mim, sobre o altar, manietado nu e indefeso, imobilizado por longas cordas, jazia Brian Standish!

 

Os cânticos elevaram-se num frenesim. O fumo do incenso e das fogueiras entontecia-me. Ergui a faca.

 

Baixei-a com toda a força!

 

Mas não na direcção da sua garganta!

 

Com um único movimento largo cortei as cordas que o prendiam. Enquanto ele se punha de pé com um salto, recuperei a voz e gritei.

 

Foge, Brian, foge! Foge e chama a polícia! Matthew Hay cambaleou sobre o altar e soltou um grito rouco e desvairado, o grito de um animal frustrado. A minha cabeça continuava a girar, mas sentia a loucura escoar-se lentamente de mim. Observei, paralisada, enquanto Brian voltava à vida. Agarrou Matthew com uma mão, arrancou-lhe a horrenda máscara cornuda e atacou-o com um punho. Ouvi os dentes da frente de Matthew Hay partirem-se, esmagados, pela pancada violenta e ele caiu, desamparado, entornando o pote do incenso.

 

Brian recuou com um salto; eu afastei-me. Ele puxou-me para trás dele.

 

Foge! implorei. Já é tarde de mais para mim! Foge!

 

Sobre o meu cadáver resmungou ele e virou-se para enfrentar Matthew que disse, sombriamente:

 

Isso pode-se arranjar.

 

Matthew pusera-se de pé e avançava, uivando como um touro ferido. Brian gritou, com um grito rouco e agudo e saltou sobre ele. Atingiu-o com todas as suas forças num golpe de karaté dirigido ao pescoço e Matthew Hay caiu, inerte.

 

Já devia estar morto quando o corpo tombou no solo, com o pescoço partido por uma só pancada.

 

Ouvi o grito agudo e desvairado de Tibby quando esta correu, gritando, tentando erguer Matthew nos braços, mas Brian puxou por mim e fugimos. Os outros membros da congregação continuavam a olhar, chocados e drogados, e apercebemo-nos de que o melhor era afastarmo-nos dali antes que eles caíssem em si.

 

Detivemo-nos apenas breves instantes na casa Latimer para ir buscar umas roupas para o Brian antes de fugir pela estrada até à quinta Millard para telefonar à polícia estadual. Ainda meia drogada, fiz um depoimento; passado pouco tempo vi os carros da polícia, com as luzes vermelhas nos tejadilhos, a convergirem para a velha igreja.

 

Brian contou-me, enquanto tomávamos um pequeno-almoço apressado, o que acontecera.

 

Recebi uma mensagem tua disse ele. Estava cheia de desculpas pelo que acontecera no outro dia... desviou o olhar. Dizias que o Matthew te tinha hipnotizado e obrigado a fazê-lo. Isso é verdade?

 

Sim disse eu com firmeza. Sabia agora que começara a renunciar a qualquer ideia sobre a congregação quando encontrara o Brian e que... a tia Sara?... partira para sempre. Uma bruxa não pode amar.

 

Eu amo o Brian.

 

Portanto não sou uma bruxa.

 

Fosse como fosse, a carta implorava-me que fosse a tua casa depois de escurecer para te levar dali e, quando lá fui, alguém me bateu na cabeça. Quando acordei estava amarrado e amordaçado sobre o altar. Depois vi-te chegar e quando ergueste a faca... bem, fiquei bastante assustado.

 

Agarrei-me a ele e ele abraçou-me e deu-me um longo beijo.

 

Acho que sabia que não conseguirias fazê-lo. Depois tivemos que fazer depoimentos. Matthew morrera,

 

mas a sua morte fora obviamente um acto de autodefesa e eu estava lá para o testemunhar. Tudo o que os outros pudessem dizer não tinha qualquer valor, pois a polícia tinha-os encontrado ainda sob o efeito das drogas e, consequentemente, o seu testemunho não era aceitável.

 

Tibby, sabia-o, nunca faria um depoimento. Quando a tinham encontrado junto ao corpo de Matthew ela estava imóvel, agarrando-se a ele insanamente até que tiveram que lho arrancar à força. Ouvi dizer que desde então não voltou a proferir uma frase racional; continua fechada numa enfermaria de Mattapan. Continuo a ter pena de Tibby. O seu único problema era que ela era muito mais inteligente e um desperdício muito maior naquela vida, do que a maior parte dos outros que conhecia. De uma forma estranha, acho que também a amava. Quando tudo ficou resolvido, Brian levou-me para a casa do primo James. Depois contámos a história toda mas só a Colin. James não estava à altura de uma coisa assim.

 

Vamos casar-nos imediatamente disse ele. A congregação não conseguirá recomeçar de novo, com Matthew, Tibby e a tia Sara desaparecidos. Sem chefes, eles ou se desmantelarão ou então continuarão a reunir-se por uma questão de hábito, mas o que quer que façam não será mais perigoso de que uma festa de copos e, mais cedo ou mais tarde, é nisso que essas reuniões se transformarão. Quanto à velha casa de Witch Hill... devemos vendê-la ou mandá-la demolir e construir uma casa nova na propriedade?

 

Isso não interessa disse eu. Agora é apenas uma casa. A tia Sara desapareceu para sempre.

 

Se é que ela alguma vez lá esteve disse Brian com cepticismo, e se isto não tiver sido tudo uma reacção ao choque. Passaste por coisas muito difíceis, Sara.

 

O que quer que tenha sido, não interessa. Manda a casa a baixo ou deixa-a cair em ruínas, não me importa. Não há lá nada que me interesse, excepto um quadro. E Barnabas.

 

Mas quando fui lá com Brian para o irmos buscar, chamámos, procurámos e pusemos bocadinhos tentadores de fígado num prato, mas não havia sinais do gato amarelo. Barnabas, Ginger Tom, ou quem quer que fosse, voltara para o sítio de onde viera, exactamente como se fosse o gato da tia Sara que regressara apenas enquanto acreditara que eu necessitava de um apaniguado ou que queria um. Nunca mais o vi.

 

Nunca mais tive outro gato.

 

 

                                                                                Marion Zimmer Bradley  

 

                      

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