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A COMÉDIA HUMANA - Livro 2 / Honoré de Balzac
A COMÉDIA HUMANA - Livro 2 / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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I – O QUE FALTAVA A PIERROTIN PARA SER FELIZ
As estradas de ferro, num futuro já agora não muito distante, deverão fazer desaparecer certas indústrias, modificar algumas outras, principalmente as que concernem aos vários modos do transporte em uso nos arredores de Paris. Também, breve, as pessoas e as coisas que formam os elementos desta cena lhe darão o mérito de um trabalho arqueológico.
Não ficarão encantados nossos sobrinhos de conhecer o material social de uma época que eles denominarão os velhos tempos? Assim, por exemplo, os pitorescos coucous que estacionavam na Place de la Concorde, obstruindo o Cours-la-Reine, os coucous tão florescentes durante um século, tão numerosos ainda em 1830, não mais existem; e, nas mais atraentes solenidades rurais, quando muito, se vê um na estrada, em 1842. Em 1820, nem todos os lugares famosos por suas paisagens, denominados arredores de Paris, possuíam um serviço regular de transporte. Não obstante, os Touchard, pai e filhos, tinham conquistado o monopólio dos transportes para as cidades mais populosas, num raio de quinze léguas; e suas empresas constituíam um magnífico estabelecimento, situado à rue du Faubourg Saint-Denis. Apesar de sua antiguidade, apesar de seus esforços, dos seus capitais e de todas as vantagens de uma centralização poderosa, as empresas de transporte Touchard tinham, nos coucous do Faubourg Saint-Denis, concorrentes terríveis para os pontos localizados a sete ou oito léguas em derredor. É tal a paixão do parisiense pela campanha que empresas locais lutavam vantajosamente contra a Pequena Empresa de Transportes, nome dado à firma dos Touchard por oposição à da Grande Empresa de Transportes, da rue Montmartre. Nessa época, o êxito dos Touchard estimulou os especuladores. Para as menores localidades dos arredores de Paris, formavam-se, então, empresas de veículos, bonitos, rápidos e cômodos, que saíam de Paris e regressavam a horas fixas e que, em todos os pontos e num raio de dez léguas, constituíram uma concorrência encarniçada. Vencido nas viagens de quatro a seis léguas, o coucou se limitou às pequenas distâncias e viveu ainda durante alguns anos. Sucumbiu, finalmente, quando os ônibus demonstraram a possibilidade de caber dezoito pessoas num veículo puxado por dois cavalos. Hoje, o coucou, se por acaso um desses velhos pássaros de voo tão penoso ainda existe nas oficinas de algum desmanchador de carruagens, seria, por sua estrutura e por suas disposições, objeto de sábias pesquisas, como as que efetuou Cuvier nos animais encontrados nos gessais de Montmartre.

 


 


As casas pequenas, ameaçadas pelos especuladores, que lutaram desde 1822 contra os Touchard, pai e filhos, tinham, ordinariamente, um ponto de apoio na simpatia dos habitantes do lugar por elas servido. Assim, pois, o empresário, simultaneamente condutor e proprietário do carro, era um taberneiro do local, cujos habitantes, coisas e interesses lhe eram familiares. Ele desempenhava os encargos inteligentemente, não cobrava tanto pelos pequenos serviços e, por isso mesmo, obtinha mais do que a empresa Touchard. Sabia iludir a exigência de uma licença. Em caso de necessidade, passava por alto sobre os dispositivos referentes aos viajantes. Possuía, finalmente, a afeição do povo. Por isso, quando se estabelecia um concorrente, se o velho condutor da localidade entrava em acordo com este, para dividirem os dias da semana, algumas pessoas retardavam a viagem a fim de fazê-la com o velho cocheiro, embora o seu material e os cavalos estivessem em estado pouco tranquilizador.

Uma das linhas que os Touchard, pai e filhos, tentaram monopolizar, a que mais disputada lhes foi, e que ainda hoje é disputada aos Toulouse, seus sucessores, foi a de Paris a Beaumont-sur-Oise, linha admiravelmente fértil, pois que em 1822 três empresas a exploravam. A Pequena Empresa de Transportes baixou em vão os preços, em vão multiplicou as partidas, em vão construiu excelentes veículos, a concorrência subsistiu, de tal forma é remuneradora uma linha em que se acham situadas pequenas cidades como Saint-Denis e Saint-Brice, aldeias como Pierrefitte, Groslay, Écouen, Poncelles, Moisselles, Baillet, Monsoult, Maffliers, Francoville, Presles, Nointel, Nerville etc. A Empresa de Transportes Touchard acabou estendendo a viagem de Paris a Chambly. A concorrência foi até Chambly. Hoje os Toulouse vão até Beauvais.

Nessa estrada, a da Inglaterra, existe um caminho que começa num lugar apropriadamente chamado La Cave,[2] dada a sua topografia, e que leva a um dos mais deliciosos vales da bacia do Oise, à pequena cidade de L’Isle-Adam, duplamente célebre, quer como berço da extinta casa de L’Isle-Adam, quer como antiga residência dos Bourbon-Conti. L’Isle-Adam é uma encantadora cidadezinha, apoiada em duas grandes aldeias, a de Nogent e a de Parmain, notáveis ambas por magníficas pedreiras que forneceram o material dos mais belos edifícios da Paris moderna e do estrangeiro, porquanto a base e os ornamentos das colunas do teatro de Bruxelas são pedras de Nogent.

Embora notável por admiráveis paisagens e famosos castelos construídos por príncipes, monges ou célebres arquitetos, como Cassan, Stors, Le Val, Nointel, Persan etc., em 1822, essa região escapava à concorrência e era servida por dois condutores de carros, que a exploravam de comum acordo. Fundava-se essa exceção em razões fáceis de compreender. De La Cave, ponto na estrada da Inglaterra onde começa o caminho pavimentado devido à magnificência dos príncipes de Conti, até L’Isle-Adam, a distância é de duas léguas; nenhuma empresa podia dar uma volta tão considerável, tanto mais que L’Isle-Adam formava nessa época um impasse. O caminho que lá ia ter, lá terminava. De havia alguns anos, uma grande estrada uniu o vale de Montmorency ao vale de L’Isle-Adam. De Saint-Denis ela passa por Saint-Leu-Taverny, Méru, L’Isle-Adam, e vai até Beaumont, ao longo do Oise. Em 1822, porém, a única estrada que ia a L’Isle-Adam era a dos príncipes de Conti. Pierrotin e seu colega reinavam, pois, de Paris a L’Isle-Adam, queridos em toda a região. O carro de Pierrotin e o de seu colega serviam Stors, Le Val, Parmain, Champagne, Mours, Prérolles, Nogent, Merville e Maffliers. Pierrotin era tão conhecido que os habitantes de Monsoult, de Moisselles, de Baillet e de Saint-Brice, embora situados na estrada real, se serviam de seu carro, onde a possibilidade de encontrar um lugar era mais frequente do que nas diligências de Beaumont, sempre cheias. Pierrotin harmonizava-se com o seu concorrente. Quando partia de L’Isle-Adam o seu camarada voltava de Paris, e vice-versa. É inútil falar do concorrente, Pierrotin gozava das simpatias da região.

Dos dois condutores é ele, de resto, o único que entra em cena nesta história verídica. Que lhes baste saber que os dois cocheiros viviam em boa harmonia, fazendo um ao outro uma guerra leal, disputando-se a freguesia por meios honestos. Partilhavam em Paris, por economia, o mesmo pátio, o mesmo hotel, a mesma cocheira, o mesmo alpendre, o mesmo escritório, o mesmo empregado. Essa particularidade mostra bem que Pierrotin e o seu adversário, segundo a expressão popular, eram “uns bons sujeitos”. Esse hotel, situado precisamente na esquina da Rue d’Enghien, ainda existe, e chama-se o Leão de Prata. O proprietário desse estabelecimento, destinado desde tempos imemoriais a hospedar carreiros, explorava ele próprio uma empresa de carros para Damartin, tão solidamente estabelecida que os Touchard, seus vizinhos, cuja empresa lhe ficava em frente, nem pensavam lançar carros nessa linha.

Embora as partidas para L’Isle-Adam devessem efetuar-se a horas fixas, Pierrotin e seu colega usavam, a esse respeito, de uma indulgência que, se lhes conciliava a afeição da gente da terra, atraía sobre eles acerbas censuras por parte dos forasteiros, habituados à regularidade das grandes empresas públicas; mas os dois condutores daqueles carros, meio diligência, meio coucou, sempre achavam defensores entre os seus fregueses. À tarde, a partida das quatro horas arrastava-se até as quatro e meia, e a da manhã, embora anunciada para as oito horas, nunca se realizava antes das nove. Esse sistema, de resto, era excessivamente elástico. No verão, tempo de ouro para os cocheiros, a lei das partidas, rigorosa para os desconhecidos, não se dobrava senão para as pessoas do lugar. Esse método oferecia a Pierrotin a possibilidade de embolsar o valor de dois lugares por um, quando um habitante da localidade vinha cedo pedir um lugar pertencente a uma ave de arribação que, por infelicidade, se achava atrasada. Essa elasticidade não teria, certamente, perdão aos olhos dos puristas da moral; Pierrotin e seu colega, entretanto, justificavam-na com a dureza dos tempos, com as suas perdas durante o inverno, com a necessidade de terem em breve melhores carros, e enfim com a exata observância da lei escrita nos boletins, cujos exemplares, excessivamente raros, não eram fornecidos senão aos forasteiros, suficientemente obstinados em exigi-los.

Pierrotin, homem de quarenta anos, já era pai de família. Tendo saído da cavalaria na época do licenciamento de 1815, esse excelente rapaz sucedera ao pai, que guiava, de L’Isle-Adam a Paris, um coucou de feitio bastante caprichoso. Depois de ter desposado a filha de um pequeno taberneiro, deu amplitude ao serviço de L’Isle-Adam, regularizou-o, fez-se notar por sua inteligência e por uma exatidão militar. Lépido, decidido, Pierrotin (esse nome devia ser um sobrenome), pela mobilidade do semblante, imprimia ao rosto rubicundo e tostado pelas intempéries uma expressão zombeteira que podia ser considerada um ar espirituoso. De resto, não lhe faltava essa facilidade de falar que se adquire à força de ver gente e regiões diversas. Sua voz, pelo hábito de se dirigir aos cavalos e de bradar: cuidado!, contraíra certa rudeza, mas com os burgueses tomava um tom suave. Sua vestimenta, como a dos condutores de segunda classe, consistia em boas e grossas botas, pesadas de pregos, feitas em L’Isle-Adam, calças de veludo grosso, verde-garrafa, e um casaco do mesmo pano, mas por cima do qual, durante o exercício de suas funções, envergava uma blusa azul, enfeitada na gola, nos ombros e nos punhos com bordados multicores. Cobria-lhe a cabeça um boné de pala. A vida militar deixara nos costumes de Pierrotin um grande respeito pelas superioridades sociais e o hábito de obediência às pessoas das altas classes; mas se se familiarizava facilmente com os pequenos burgueses, sempre respeitava as mulheres, a qualquer classe que pertencessem.

Não obstante, à força de carrear as gentes, para empregar uma das suas expressões, acabara considerando seus passageiros como embrulhos que caminhassem, e que portanto exigiam menos cuidado que os outros, objeto essencial dos transportes.

Alertado pelo movimento geral, que, desde a paz, revolucionava o seu negócio, Pierrotin não se queria deixar antecipar pelos progressos das luzes. Por isso, ao chegar o estio, falava muito de certa grande carruagem encomendada aos Farry, Breilmann & Cia., os melhores fabricantes de armações de diligências, e necessitada pela crescente afluência de viajantes. O material de Pierrotin consistia, então, em dois carros. Um, que servia no inverno, o único que mostrava aos agentes do fisco, herdara-o do pai e parecia-se a um coucou. Os flancos arredondados desse carro permitiam colocar seis viajantes em duas banquetas de uma dureza metálica, embora recobertos de veludo amarelo de Utrecht. Essas duas banquetas eram separadas por uma barra de madeira que se tirava e botava, à vontade, em duas ranhuras encavadas em cada parede inferior, na altura das costas. Essa barra, perfidamente forrada de veludo, e que Pierrotin denominava um encosto, era o desespero dos viajantes pela dificuldade que tinham em tirá-la e recolocá-la no lugar.

Se aquele encosto maltratava quando manejado, mais maltratava ainda as omoplatas, quando estava no lugar; quando, porém, o deixavam atravessado no carro, tornava a entrada e a saída igualmente perigosas, principalmente para as mulheres. Embora cada banqueta daquele cabriolé, de flancos arredondados como as de uma mulher grávida, só se destinasse a três viajantes, viam-se com frequência oito, apertados como arenques em um tonel. Pierrotin afirmava que os viajantes assim se achavam muito melhor, por formarem então uma massa compacta, inabalável, ao passo que três viajantes se chocavam perpetuamente e muitas vezes se arriscavam a estragar os chapéus contra o teto do cabriolé com os violentos solavancos. Na frente daquele carro, havia uma banqueta de tábua, o assento de Pierrotin, no qual cabiam três passageiros que, quando ali viajavam, eram chamados de coelhos como todos sabem. Em certas viagens, Pierrotin colocava ali quatro infelizes e sentava-se então de lado, numa espécie de caixa, no assoalho do carro, destinada a dar um ponto de apoio aos pés dos coelhos e sempre cheia de palha ou de pacotes, que podiam suportar tudo. A armação daquele coucou, pintada de amarelo, era embelezada na parte superior por uma lista azul-escura, em que se liam em letras de um branco prateado: L’Isle-Adam-Paris, de cada lado, e atrás: Serviço de L’Isle-Adam. Nossos sobrinhos estariam enganados se julgassem que aquele carro não podia levar senão treze pessoas, inclusive Pierrotin; nas grandes ocasiões, admitia por vezes três outros passageiros, num compartimento quadrado, recoberto por um toldo, onde se empilhavam as malas, as caixas e os outros pacotes; mas o prudente Pierrotin não deixava ir ali senão os seus fregueses habituais, e somente a trezentos ou quatrocentos passos da barreira. Esses habitantes do galinheiro, nome dado pelos condutores a essa parte do carro, deviam descer antes de cada aldeia onde houvesse um posto de gendarmaria. A sobrecarga proibida pelas leis concernentes à segurança dos viajantes era então flagrante demais para que o gendarme, essencialmente amigo de Pierrotin, pudesse eximir-se de autuá-lo por aquela contravenção. Desse modo, o cabriolé de Pierrotin, em certos sábados à tarde, ou segundas-feiras pela manhã, carregava quinze viajantes; nessas ocasiões, porém, para arrastá-lo, ele dava ao seu grande cavalo, já em idade de aposentadoria, chamado Rougeot, um companheiro, na pessoa de um cavalo do tamanho de um pônei, do qual ele dizia maravilhas. Esse petiço era uma égua chamada Bichette; comia pouco, era fogosa, infatigável, valia seu peso em ouro.

— Minha mulher não a trocaria por esse grande preguiçoso do Rougeot! — exclamava Pierrotin, quando um viajante fazia troça daquele espirro de cavalo.

A diferença entre o outro carro e este consistia em que aquele era de quatro rodas. Esse carro de construção estranha, denominado a carruagem de quatro rodas, aguentava dezessete viajantes, quando devia admitir somente catorze. Fazia um barulho tão grande que muitas vezes em L’Isle-Adam diziam: — Aí vem Pierrotin! — quando este saía da floresta que se estende na vertente do vale. A carruagem era dividida em duas partes, a primeira das quais, chamada o interior, continha seis viajantes em duas banquetas, e a segunda, espécie de cabriolé arranjado na parte dianteira, denominava-se cupê. Esse cupê era fechado por uma vidraça incômoda e singular, cuja descrição exigiria demasiado espaço para que seja possível dar uma ideia exata dela. A carruagem de quatro rodas era encimada por um imperial com toldo, sob o qual Pierrotin amontoava seis viajantes, e cujo fechamento se fazia por meio de cortinas de couro. Pierrotin sentava-se numa boleia quase invisível, acondicionada sob a vidraça do cupê. O condutor de L’Isle-Adam não pagava as contribuições a que estão sujeitos os carros públicos, a não ser a do seu coucou, apresentado com a lotação de seis passageiros, e pedia uma licença todas as vezes que fazia sair seu carro de quatro rodas. Isso hoje pode parecer extraordinário, mas nos seus começos o imposto sobre os carros, lançado com certa timidez, permitiu aos empresários de transportes essas pequenas fraudes, que os deixavam bem contentes por levarem no pacote os funcionários, segundo uma expressão de sua gíria. Insensivelmente o fisco esfaimado se tornou severo, obrigou os carros a não trabalhar sem levarem o duplo selo, que agora indica que foram lotados e pagaram o imposto. Tudo tem sua época de inocência, até mesmo o fisco, mas, em fins de 1822, esse tempo ainda durava. Muitas vezes, no verão, o carro de quatro rodas e o cabriolé iam de parceria pela estrada, levando trinta e dois viajantes, e Pierrotin só pagava a taxa de seis. Nesses dias felizes, a caravana que partira às quatro horas e meia do Faubourg Saint-Denis chegava guapamente às dez horas da noite em L’Isle-Adam. Também, orgulhoso de seu serviço, que necessitava o alugamento extraordinário de cavalos, Pierrotin dizia: “Progredimos lindamente!”. Para poder fazer nove léguas em cinco horas, naquelas condições, ele suprimia as paradas que os cocheiros fazem nessa estrada, em Saint-Brice, em Moisselles e em La Cave.

O Hotel do Leão de Prata ocupava um terreno de grande fundo. Se a fachada não tinha mais do que quatro janelas para o Faubourg Saint-Denis, continha no seu comprido pátio, em cujo extremo estão as cocheiras, uma casa completa, apoiada contra uma muralha de uma propriedade meeira. A entrada formava uma espécie de corredor, embaixo do qual podiam estacionar dois ou três carros. Em 1822, o escritório de todas as empresas de transportes alojadas no Leão de Prata era dirigido pela mulher do hoteleiro, que tinha tantos livros quantos serviços; ela recebia o dinheiro, inscrevia os nomes e punha com bonomia os embrulhos na sua imensa cozinha. Os viajantes se conformavam com aquele desleixo patriarcal. Se chegavam demasiado cedo, sentavam-se sob o pano da vasta chaminé, ou ficavam de pé embaixo do pórtico, ou iam ao Café do Tabuleiro, que formava a esquina de uma rua desse nome e paralela à de Enghien, da qual não era separada senão por algumas casas.

Nos primeiros dias do outono desse ano, num sábado de manhã, Pierrotin, com as mãos passadas pelos orifícios da blusa e metidas nos bolsos, estava sob o portão do Leão de Prata, de onde se via de enfiada a cozinha do hotel e, mais além, o comprido pátio, ao fundo do qual se desenhavam em negro as cocheiras. A diligência de Damartin acabava de sair e corria pesadamente após as diligências Touchard. Eram mais de oito horas da manhã. Sob o enorme pórtico, por cima do qual se lê numa longa tabuleta: Hotel do Leão de Prata, os cavalariços e os empregados das empresas de transportes olhavam os carros fazerem aquela partida, que tanto engana aos viajantes, levando-os a crer que os cavalos seguirão sempre assim.

— É preciso atrelar, burguês? — perguntou a Pierrotin o seu cavalariço, quando nada mais tinha para ver.

— São oito horas e um quarto, e não vejo viajante nenhum — disse Pierrotin. — Onde se teriam eles metido? De qualquer forma, atrela. E como se isso não bastasse, não há fardos. Valha-me Deus! Ele não saberá onde pôr esta noite seus viajantes, pois faz bom tempo, e eu que só tenho quatro inscritos! Aí está um lindo espetáculo para um sábado. É sempre assim, quando se precisa de dinheiro! Que ofício de cachorro! Que cachorro de ofício!

— E se o senhor tivesse viajantes, onde os ia meter, se só tem o seu cabriolé? — disse o cavalariço, tentando acalmar Pierrotin.

— Ora essa, e meu carro novo? — disse Pierrotin.

— Existe, então? — perguntou o avantajado auvérnio, que, ao sorrir, exibiu uns “mastigantes” largos e brancos como amêndoas.

— Ó seu coisa à toa! Ele amanhã, domingo, vai rodar, e precisaremos de dezoito passageiros!

— Ah! Caramba! Um bonito carro que vai pôr a estrada em polvorosa — disse o auvérnio.

— É um carro como o que vai a Beaumont, sim senhor!, novinho em folha!, pintado de encarnado e ouro, de arrebentar os Touchard de inveja! Vou precisar de três cavalos. Encontrei uma parelha para o Rougeot e Bichette irá faceiramente de ponteiro. Vamos, depressa, atrela os cavalos — disse Pierrotin, que estava olhando de soslaio para a Porte Saint-Denis, enquanto enchia o cachimbo —, estou vendo para aquele lado uma senhora e um rapazinho com uns pacotes debaixo do braço; estão procurando o Leão de Prata, tanto assim que nem ligaram aos coucous. Como! Como! Parece-me reconhecer naquela dama uma das minhas clientes!

— O senhor já chegou muitas vezes com a lotação completa, embora tenha saído com o carro vazio — disse-lhe seu bagageiro.

— Mas nada de fardos, com os demônios, que má sorte!

E Pierrotin sentou-se num dos dois enormes marcos que garantiam o muro contra o choque dos eixos; sentou-se, porém, com um ar inquieto e meditabundo que não lhe era habitual. Aquela conversação, insignificante na aparência, revolvera cruéis preocupações, sepultadas no fundo do coração de Pierrotin. E que outra coisa podia perturbar o coração de Pierrotin, a não ser uma bela carruagem? Brilhar na estrada, lutar com os Touchard, ampliar seu serviço, conduzir passageiros que o felicitassem pelas comodidades devidas ao progresso da armação dos seus carros, em vez de ter de ouvir eternas reclamações sobre os seus calhambeques, tais eram as louváveis ambições de Pierrotin.

Ora, o carreiro de L’Isle-Adam, arrastado pelo desejo de ultrapassar o colega, de levá-lo um dia, talvez, a deixar-lhe, somente a ele, o serviço de L’Isle-Adam, sobrepujara as próprias forças. Era bem verdade que encomendara o carro a Farry, Breilmann & Cia.; os fabricantes que acabavam de substituir pelas molas quadradas dos ingleses as bimbarras e outras velhas invenções francesas; mas aqueles fabricantes, desconfiados e duros, não queriam entregar aquela diligência senão a dinheiro à vista. Pouco lisonjeados por construir uma carruagem de difícil colocação, no caso de terem de ficar com ela, aqueles prudentes negociantes não iniciaram sua fabricação senão depois de uma entrega de dois mil francos.

Para satisfazer as justas exigências dos fabricantes, o ambicioso carreiro havia esgotado todos os seus recursos e todo o seu crédito. Sua esposa, seu sogro e seus amigos tinham sido sangrados. Fora na véspera à oficina dos pintores para ver aquela soberba diligência, que estava pronta para trafegar, mas, para fazê-la rodar no dia seguinte, era preciso completar o pagamento. Ora, faltavam-lhe mil francos! Endividado com os aluguéis devidos ao hoteleiro, expunha-se a perder os dois mil francos entregues adiantadamente, sem contar com os quinhentos francos, preço que pagara pelo segundo Rougeot, e trezentos francos de arreios novos, para os quais conseguira três meses de crédito. E impelido pela raiva do desespero e pela loucura do amor-próprio, acabava de afirmar que sua nova carruagem trafegaria no dia seguinte, domingo! Tinha esperança de que, ao dar mil e quinhentos francos, sobre os dois mil e quinhentos devidos, os fabricantes, enternecidos, lhe entregariam o carro; mas, após três minutos de reflexão, exclamou em voz alta: — Não!, são uns verdadeiros cães!, são uns malditos enforcadores! E se eu me pegasse com sr. Moreau, o administrador de Presles, que é um homem tão bom? — monologou tomado por uma nova ideia. — Ele talvez me aceitasse uma letra a seis meses.

II – O ADMINISTRADOR EM PERIGO

Naquele instante, um lacaio sem libré, carregando uma mala de couro e vindo do estabelecimento Touchard, onde não achava lugar para a viagem de uma hora a Chambly, disse ao carreiro:

— É o sr. Pierrotin?

— E então?

— Se puder esperar só um quarto de hora, poderá levar meu patrão; senão levarei a mala de volta, e ele terá que ir de cabriolé.

— Esperarei dois, três quartos de hora e mais um pedaço, meu rapaz — disse Pierrotin, com os olhos fitos na linda maleta de couro, bem afivelada e com uma fechadura de cobre em que se via gravado um brasão.

— Está bem! — disse o lacaio descarregando do ombro a mala que Pierrotin levantou, sopesou, examinou.

— Toma — disse o carreiro ao seu bagageiro —, envolve-a de palha fina e põe-na no cofre traseiro. — Não tem nome — acrescentou.

— Tem as armas de monsenhor — respondeu o lacaio.

— Monsenhor? Upa! Só isso? Venha comigo tomar uma pinga — disse Pierrotin, piscando o olho e encaminhando-se para o Café do Tabuleiro, para onde levou o lacaio. — Garçom, dois absintos! — gritou ele ao entrar. — Quem é seu patrão, e para onde vai ele? Eu nunca vi você — disse Pierrotin ao lacaio, brindando-o.

— Há motivos de sobra para isso — respondeu este. — Meu senhor não chega a vir uma vez por ano para esses lados, e, quando vem, é sempre na sua equipagem. Ele prefere o vale do Orge, onde possui o mais belo parque dos arredores de Paris, uma verdadeira Versalhes, uma propriedade de família da qual usa o nome. O senhor não conhece o sr. Moreau?

— O intendente de Presles? — disse Pierrotin.

— Pois bem! O senhor conde vai passar dois dias em Presles.

— Ah! Então é o conde de Sérisy que eu vou levar! — exclamou o carreiro.

— Sim, meu velho, apenas isso. Mas, atenção!, há uma ordem. Se tiver gente da terra no seu carro, não fale no nome do senhor conde; ele quer viajar en cognito, e recomendou-me que lhe dissesse isso, prometendo uma boa gorjeta.

— Ah! Essa viagem às escondidas terá alguma relação com o assunto que o tio Léger, granjeiro dos Moulineaux, veio resolver?

— Não sei — replicou o lacaio —, mas deve haver alguma desavença. Ontem, à noite, eu fui levar ordens à cocheira a fim de aprontarem, para as sete horas da manhã, a carruagem a Daumont,[3] para ir a Presles; mas, às sete horas, Sua Senhoria deu contraordem. Augustin, o criado de quarto, atribui essa mudança à visita de uma dama que, segundo lhe pareceu, vinha da terra.

— Teriam dito alguma coisa a respeito do sr. Moreau? O homem melhor e mais honesto, o rei dos homens, numa palavra! Ele poderia ter ganhado muito mais dinheiro do que o que tem, se tivesse querido, pode crer.

— Ele andou errado, então — disse sentenciosamente o lacaio.

— O sr. de Sérisy vai então residir em Presles, já que mobiliaram e repararam o castelo? — perguntou Pierrotin após uma pausa. — É verdade que já gastaram lá duzentos mil francos?

— Se eu ou você tivéssemos o que se gastou acima disso, seríamos burgueses. Se a senhora condessa for para lá, então, amigo, os Moreau não vão andar mais à vontade — disse o lacaio com ar misterioso.

— Um bom homem, esse sr. Moreau! — disse Pierrotin, que continuava pensando em pedir os mil francos ao administrador. — Um homem que dá trabalho, que não regateia muito o serviço e que tira da terra tudo o que ela pode dar, e tudo para seu patrão! Bom homem! Ele vai seguido a Paris, sempre toma o meu carro, dá-me boas gorjetas e sempre tem uma porção de encargos para a gente, em Paris. São três ou quatro pacotes por dia, tanto para o senhor como para a senhora; enfim, uma conta de cinquenta francos por mês, só em comissões. Se madame se dá ares, gosta, no entanto, bastante dos filhos; sou eu quem os vai buscar e levar ao colégio. Cada vez ela me dá cem sous, uma grande senhora dona não faria mais. Oh!, todas as vezes que tenho alguém da casa deles, ou para eles, chego até a grade do castelo... Merecem, não é?

— Dizem que o sr. Moreau não tinha mil escudos sonantes quando o senhor conde o pôs de administrador em Presles — disse o lacaio.

— Mas desde 1806, em dezessete anos, esse homem tinha de juntar alguma coisa! — replicou Pierrotin.

— É verdade — disse o lacaio, meneando a cabeça. — Afinal de contas, os patrões são bem ridículos, e quero crer que Moreau tenha amassado seu bolo.

— Fui muitas vezes levar-lhes cestas, ao palacete — disse Pierrotin —, na chaussée-d’Antin, e nunca tive a valiosidade de ver nem o senhor nem a senhora.

— O senhor conde é um bom sujeito — disse o lacaio confidencialmente —; mas se ele exige do senhor discrição para guardar o cognito, é sinal de que deve ter havido coisa; pelo menos é isso o que nós pensamos no palácio; pois, por que desistir da Daumont? Por que viajar num coucou? Um par de França não tem recursos para alugar um cabriolé?

— Um cabriolé é capaz de lhe custar quarenta francos por ida e volta; pois fique sabendo que essa estrada, se não a conhece, foi feita para esquilos. Oh!, sempre subir e descer — disse Pierrotin. — Par de França ou burguês, todos são mais ou menos pães-duros! Se esta viagem dissesse respeito ao sr. Moreau... Meu Deus!, eu ficaria vexado se lhe acontecesse algum mal! Santo Deus! Não haveria um meio de preveni-lo? pois na verdade é um homem bom, um homem perfeito, o rei dos homens... Vamos!

— Ora! o senhor conde também gosta muito do sr. Moreau! — disse o lacaio. — Mas, olhe, se quer que eu lhe dê um bom conselho: cada um por si. Já temos muita coisa nossa com que nos preocuparmos. Faça o que lhe pedem, tanto mais que não se deve brincar com Sua Senhoria. E depois, para dizer tudo, o conde é generoso. Se o servir nisto — disse o lacaio, mostrando uma unha — ele lhe paga assim — concluiu, alongando o braço.

Essa judiciosa observação e principalmente a mímica tiveram como resultado, por virem de um homem tão altamente colocado quanto o segundo criado de quarto do conde de Sérisy, resfriar o zelo de Pierrotin pelo administrador das terras de Presles.

— Vamos, adeus, sr. Pierrotin — disse o criado.

Um rápido olhar sobre a vida do conde de Sérisy e a do seu administrador é aqui necessário para bem compreender o pequeno drama que devia passar-se no carro de Pierrotin.

Hugret de Sérisy descendia em linha direta do famoso presidente Hugret, enobrecido por Francisco i.

Essa família usa um escudo partido de ouro e de sable com uma orla entrecambada e dois losangos de um no outro, com: I, Semper Melius Eris,[4] lema que, não menos do que as duas dobadouras tomadas como suportes, prova a modéstia das famílias burguesas, no tempo em que as classes se mantinham no seu lugar, no Estado, bem como a inocência dos nossos velhos costumes, pelo trocadilho de Eris, o qual, combinado com o I do começo e o s final de melius, representa o nome (Sérisy) da terra elevada a condado.

O pai do conde era primeiro presidente de um parlamento antes da Revolução. Quanto a este, já conselheiro de Estado no Grande Conselho, em 1787, com a idade de vinte e dois anos, fez-se notar por belíssimos relatórios sobre questões delicadas. Não emigrou durante a Revolução, tendo ficado nas suas terras de Sérisy, perto de Arpajon, onde o respeito que tributavam a seu pai o preservou de qualquer desgraça. Depois de ter passado alguns anos a cuidar do presidente de Sérisy, a quem perdeu em 1794, foi eleito por essa época para o Conselho dos Quinhentos[5] e aceitou essas funções legislativas para distrair sua dor. A dezoito de brumário,[6] o sr. de Sérisy, como todas as velhas famílias, foi objeto das coqueterias do primeiro cônsul, o qual o colocou no Conselho de Estado e lhe deu uma das administrações mais desorganizadas para que a reconstituísse. O rebento dessa família histórica tornou-se uma das mais ativas engrenagens da grande e magnífica organização devida a Napoleão. Assim o conselheiro de Estado logo trocou a sua administração por um ministério. Feito conde e senador pelo imperador, teve sucessivamente o pró-consulado de dois reinos diferentes. Em 1806, com quarenta anos, o senador desposou a irmã do ci-devant[7] marquês de Ronquerolles, viúva, aos vinte anos, de Gaubert, um dos mais ilustres generais republicanos, e sua herdeira. Esse casamento, conveniente como nobreza, duplicou a fortuna já considerável do conde de Sérisy, que se tornou cunhado do ci-devant marquês de Rouvre, nomeado conde e camarista pelo imperador. Em 1814, cansado pelos trabalhos constantes, o sr. de Sérisy, cuja saúde combalida exigia repouso, resignou todos os seus cargos, abandonou o governo a cuja frente o pusera o imperador e veio para Paris, onde Napoleão, forçado pela evidência, lhe fez justiça. Esse senhor infatigável, que não acreditava na fadiga nos outros, tomou a princípio por uma defecção a necessidade em que se achava o conde de Sérisy. Conquanto o senador não tivesse caído em desvalimento, passou por ter tido motivos de queixa contra Napoleão. Por isso, quando os Bourbon voltaram, Luís xviii, em quem o sr. de Sérisy reconheceu seu soberano legítimo, concedeu ao senador, tornado par de França, uma grande confiança, encarregando-o de seus negócios particulares, e nomeando-o ministro de Estado. No 20 de março,[8] o sr. de Sérisy não foi a Gand, preveniu Napoleão de que se conservava fiel à casa de Bourbon, não aceitou o pariato durante os Cem Dias, e atravessou esse reinado tão curto na sua propriedade de Sérisy. Após a segunda queda do imperador, voltou naturalmente a ser membro do conselho privado, foi nomeado vice-presidente do Conselho de Estado e liquidatário, por conta da França, no regulamento das indenizações exigidas pelas potências estrangeiras. Sem fausto pessoal, até mesmo sem ambições, ele tinha uma grande influência nos negócios públicos. Nada de importante se fazia, em política, sem que ele fosse consultado; não ia, porém, nunca ao palácio e aparecia muito pouco nos seus próprios salões. Essa nobre existência, votada de começo ao trabalho, acabara por se tornar uma ocupação constante. O conde, desde as quatro horas da manhã, estava de pé, em qualquer estação do ano, trabalhava até o meio-dia, ocupava-se com as suas funções de par de França ou de vice-presidente do Conselho de Estado e deitava-se às nove horas.

Para recompensar tantos trabalhos, o rei fizera-o cavaleiro de suas ordens. O sr. de Sérisy era de havia muito grão-cruz da Legião de Honra, tinha a ordem do Tosão de Ouro, a ordem de Santo-André da Rússia, a da Águia da Prússia, enfim, quase todas as ordens das cortes da Europa. Ninguém era menos visto, nem mais útil do que ele, no mundo político. Compreende-se que as honrarias, o ruído do valimento, os êxitos do mundo fossem indiferentes a um homem dessa têmpera. Mas ninguém, excetuando os padres, leva semelhante vida sem graves motivos.

Aquela conduta enigmática tinha a sua explicação, uma explicação cruel.

Apaixonado por sua mulher antes de a desposar, essa paixão resistira, no conde, a todas as infelicidades íntimas de seu casamento com uma viúva, sempre senhora de si mesma, antes como depois do segundo matrimônio, e que gozava tanto mais de sua liberdade por ter o sr. de Sérisy para com ela a indulgência de uma mãe para com um filho amimado. Seus continuados trabalhos serviam-lhe de escudo contra as penas do coração, sepultadas com o cuidado que os homens políticos sabem empregar para tais segredos. De resto ele compreendia quão ridículo seria aos olhos do mundo o seu ciúme, pois não admitiriam uma paixão conjugal num velho administrador. Como foi ele, desde os primeiros dias do casamento, fascinado pela mulher? Como sofreu, a princípio, sem se vingar? Como, depois, não se animou a vingar-se? Como deixou passar o tempo, engodado pela esperança? Por que meios o escravizara uma mulher moça, bonita e espirituosa? A resposta a todas estas perguntas exigiria uma longa história, que prejudicaria o assunto desta cena e que, se não os homens, pelo menos as mulheres poderão entrever. Notemos, entretanto, que os imensos trabalhos e os pesares do conde tinham contribuído, infelizmente, para privá-lo das vantagens necessárias a um homem, para lutar contra comparações perigosas. Assim, a mais horrorosa das desgraças secretas do conde era a de ter dado razão às repugnâncias da esposa, por causa de uma doença unicamente devida aos seus excessos de trabalho. Bom, e mesmo excelente, para a condessa, ele a deixava soberana em casa; ela recebia tout Paris; ia para a campanha, de lá voltava, absolutamente como se fosse viúva; ele cuidava da fortuna dela e supria seu luxo como o faria um administrador. A condessa tinha pelo marido a maior estima, apreciava mesmo o feitio de seu espírito; sabia torná-lo feliz com a sua aprovação; por isso fazia tudo o que queria daquele pobre homem, só em conversar uma hora com ele. Como os grão-senhores de outrora, o conde protegia tão bem a esposa, que atentar contra a consideração desta seria o mesmo que injuriá-lo de modo imperdoável. A sociedade admirava muito aquele caráter, e a sra. de Sérisy devia imensamente ao marido. Qualquer outra mulher, embora pertencesse a uma família tão distinta como a dos Ronquerolles, poderia ver-se perdida para sempre. A condessa era muito ingrata, mas ingrata com sedução. De quando em quando, ela derramava bálsamo sobre as feridas do conde.

Expliquemos agora o motivo da brusca viagem e do incógnito do ministro de Estado.

Um rico granjeiro de Beaumont-sur-Oise, chamado Léger, explorava uma herdade que se encravava, por partes, nas terras do conde, e que estragavam sua magnífica propriedade de Presles. Essa herdade pertencia a um burguês de Beaumont-sur-Oise chamado Margueron. O contrato de arrendamento feito com Léger em 1799, quando não se podiam prever os progressos da agricultura, estava a ponto de terminar, e o proprietário recusou as ofertas de Léger para um novo arrendamento. De havia muito tempo, o sr. de Sérisy, que almejava livrar-se dos aborrecimentos e das discussões que causam os terrenos encravados, concebera a esperança de comprar aquela herdade, ao ter conhecimento de que toda a ambição do sr. Margueron era fazer nomear seu filho único, então simples coletor, para o cargo de cobrador particular das finanças em Senlis. Moreau assinalava ao patrão o sr. Léger como um adversário perigoso. O granjeiro, que sabia o alto preço por que poderia vender aquela herdade em parcelas ao conde, era capaz de dar por ela uma quantia suficiente para cobrir as vantagens que a cobrança particular oferecesse ao filho de Margueron. Dois dias antes, o conde, apressado para liquidar o assunto, mandara chamar seu notário, Alexandre Crottat, e Derville, seu procurador, para examinarem as condições daquele negócio. Conquanto Derville e Crottat pusessem em dúvida o zelo do administrador, de quem uma carta inquietadora provocara aquela conferência, o conde defendeu Moreau, que, disse ele, o servia fielmente fazia dezessete anos. — Pois bem! — respondeu Derville —, aconselho Vossa Senhoria a ir pessoalmente a Presles e convidar esse Margueron para jantar. Crottat mandará seu primeiro ajudante até lá, com um contrato de venda já pronto, deixando em branco as páginas ou as linhas necessárias para as designações de terreno ou de títulos. Finalmente, que Vossa Excelência se muna, se for preciso, de uma parte do preço, num cheque contra o banco, e não esqueça a nomeação do filho para a coletoria de Senlis. Se não terminar num momento, a herdade lhe escapará! O senhor ignora as velhacarias dos camponeses. Entre um camponês e um diplomata, este acaba sucumbindo. — Crottat apoiou essa opinião que, segundo a confidência do lacaio a Pierrotin, o par de França, sem dúvida, adotara. Na véspera, o conde mandara pela diligência de Beaumont um bilhete a Moreau, dizendo-lhe que convidasse Margueron para jantar, a fim de concluírem o negócio dos Moulineaux. Antes desse negócio, o conde dera ordens para que restaurassem os apartamentos de Presles, e, fazia um ano, o sr. Grindot, um arquiteto da moda, lá ia uma vez por semana. Ora, ao mesmo tempo que iria realizar a sua aquisição, o conde de Sérisy queria examinar os trabalhos e o efeito das novas disposições. Contava causar uma surpresa à esposa, levando-a a Presles, e empenhava seu amor-próprio na restauração do castelo. Que acontecimento sobreveio para que o conde, que na véspera ia ostensivamente a Presles, quisesse viajar incógnito no carro de Pierrotin?

Tornam-se aqui indispensáveis algumas palavras sobre a vida do administrador.

Moreau, o administrador da propriedade de Presles, era filho de um procurador da província, tornado, por ocasião da Revolução, procurador-síndico em Versalhes. Nessa qualidade, Moreau pai quase salvara os bens e a vida dos senhores de Sérisy, pai e filho. Esse cidadão Moreau pertencia ao partido de Danton; Robespierre, implacável nos seus ódios, perseguiu-o, acabou por descobri-lo e mandou executá-lo em Versalhes. Moreau filho, herdeiro das doutrinas e das amizades do pai, tomou parte numa das conjurações feitas contra o primeiro cônsul, depois de sua ascensão ao poder. Nesse tempo, o sr. de Sérisy, sequioso por saldar sua dívida de gratidão, proporcionou a evasão de Moreau, que fora condenado à morte; depois, em 1804, pediu seu perdão, obteve-o, ofereceu-lhe de começo um lugar na sua secretaria e tomou-o definitivamente como secretário, dando-lhe a direção de seus negócios particulares. Algum tempo depois do casamento de seu protetor, Moreau apaixonou-se por uma camareira da condessa e desposou-a. Para evitar os dissabores da falsa posição em que o deixava uma união dessa natureza, de que se viam alguns exemplos na corte imperial, pediu a administração da propriedade de Presles, onde sua mulher podia fazer-se de dama, e onde nem um nem outro sofreriam no seu amor-próprio. O conde necessitava em Presles de um homem dedicado, pois sua esposa preferia veranear nas terras de Sérisy, que ficavam apenas a cinco léguas de Paris. Fazia três ou quatro anos que Moreau tinha a chave dos negócios do conde, era inteligente, pois antes da Revolução aprendera a chicana no gabinete do pai; o conde de Sérisy disse-lhe então: — Você não fará fortuna, porque deu uma cabeçada, mas será feliz pois eu me encarrego de sua felicidade. — Efetivamente, o conde deu mil escudos de ordenado fixo a Moreau e um lindo pavilhão para morar, no fundo das dependências de serviço; concedeu-lhe, ademais, umas tantas carradas de lenha, que tomaria nos cortes para o aquecimento de sua casa, um tanto de aveia, de palha e de pasto para dois cavalos e direitos sobre as rendas em espécie. Um subprefeito não tem tão belo ordenado. Durante os oito primeiros anos de sua gestão, o gerente administrou Presles conscienciosamente; interessou-se pela coisa. O conde, ao examinar a propriedade para decidir as aquisições ou aprovar os trabalhos, impressionado com a lealdade de Moreau, demonstrou-lhe sua satisfação por pingues gratificações. Quando, porém, Moreau se viu pai de uma menina, a terceira da prole, já se estabelecera tão bem nos seus cômodos em Presles que não levou mais em conta ao sr. de Sérisy as vantagens exorbitantes que recebia. Assim é que, em 1816, o administrador, que até então em Presles só cuidara de seu conforto, aceitou gostosamente, de um negociante de madeira, a quantia de vinte e cinco mil francos para lhe fazer obter, de resto com aumento, uma renovação de contrato de exploração das matas dependentes das terras de Presles, por doze anos. Moreau alegou consigo mesmo: ele não teria aposentadoria, era pai de família, o conde bem lhe devia aquela importância quando completasse, em breve, dez anos de administração; depois, já legítimo possuidor de sessenta mil francos de economias, se a estes juntasse aquela quantia, poderia comprar uma granja de cento e vinte mil francos no território de Champagne, comuna situada acima de L’Isle-Adam, na margem direita do Oise. Os acontecimentos políticos impediram o conde e a gente da terra de notar aquele emprego de capital, feito em nome da sra. Moreau, a qual passou por haver herdado de uma velha tia-avó, na sua terra, em Saint-Lô.

Tendo uma vez provado o fruto delicioso da propriedade, a conduta do administrador continuou sempre a mais honesta do mundo, na aparência, mas não perdeu mais uma única oportunidade de aumentar sua fortuna clandestina, e o interesse de seus três filhos serviu-lhe de emoliente para acalmar os ardores de sua probidade; entretanto, é forçoso fazer-lhe justiça, pois se aceitou propinas, se não se esqueceu de si nos negócios, se esticou seus direitos até ao abuso, nos termos do Código permaneceu homem honrado, e nenhuma prova poderia justificar uma acusação lançada contra ele. Segundo a jurisprudência da menos ladra das cozinheiras de Paris, dividia entre o conde e ele os proveitos devidos à sua habilidade. Esse modo de arredondar sua fortuna era um caso de consciência, nada mais.

Ativo, compreendendo bem os interesses do conde, Moreau esperava com tanto mais cuidado as oportunidades de conseguir boas aquisições, porque nelas ganhava sempre um valioso presente. Presles rendia setenta e dois mil francos redondos. Por isso, o dito da terra, num raio de dez léguas, era: “O sr. de Sérisy tem em Moreau um segundo eu!”. Como homem prudente, Moreau, desde 1817, colocava todos os anos seus benefícios e seus ordenados no Grande-Livro,[9] arredondando seu bolo no mais profundo segredo. Recusara negócios, alegando falta de dinheiro, e imitara tão bem a pobreza junto ao conde que obtivera duas bolsas plenas, para os filhos, no colégio Henrique iv. Naquele momento Moreau possuía cento e vinte mil francos de capital, colocado no Terço Consolidado,[10] que se tornou o cinco por cento, e que ascendia já a oitenta francos. Esses cento e vinte mil francos ignorados constituíram-lhe uma fortuna de cerca de duzentos e oitenta mil francos, que lhe davam dezesseis mil francos de renda.

Tal era a situação do administrador no momento em que o conde quis comprar a herdade dos Moulineaux, cuja posse era indispensável à sua tranquilidade. Essa herdade consistia em noventa e seis pedaços de terra, limitando, vizinhando, cercando as terras de Presles, e muitas vezes encravadas como casas num jogo de damas, sem contar as sebes meeiras e fossos de separação, de que provinham as mais aborrecidas discussões, até a propósito de uma árvore que se quer cortar, quando sua propriedade é discutível. Qualquer um que não fosse ministro de Estado teria tido vinte processos por ano, devido aos Moulineaux. O velho Léger queria comprar a herdade somente para revendê-la ao conde. A fim de conseguir, com mais segurança, ganhar os trinta mil ou quarenta mil francos, objeto de seus desejos, o granjeiro tentara, já de havia muito, entender-se com Moreau. Levado pelas circunstâncias, três dias antes daquele sábado crítico, no meio do campo, o velho Léger demonstrara claramente ao administrador que este podia fazer o conde de Sérisy colocar dinheiro a dois e meio por cento, líquidos, em terras de utilidade, isto é, ter como sempre o ar de servir ao patrão, ao mesmo tempo que auferir da transação um lucro secreto de quarenta mil francos, que lhe ofereceu.

— Pois bem! — disse ao deitar-se o administrador à mulher —, se tiro do negócio dos Moulineaux cinquenta mil francos, pois, seguramente, o senhor me dará dez mil, nós nos retiraremos para L’Isle-Adam, no pavilhão de Nogent.

Esse pavilhão era uma propriedade encantadora, construída em outros tempos pelo príncipe de Conti para uma dama, e onde todos os requintes haviam sido prodigalizados.

— Isso me agradaria — respondeu-lhe a mulher. — O holandês que lá se estabeleceu restaurou-o completamente e nos venderá o pavilhão por trinta mil francos, pois se vê forçado a voltar para as Índias.

— Ficaremos a dois passos de Champagne — replicou Moreau. — Tenho esperança de comprar, por cem mil francos, a herdade e o moinho de Mours. Teríamos assim dez mil francos de renda em terras, uma das mais deliciosas habitações do vale, a dois passos dos nossos bens, e nos sobrariam cerca de seis mil francos de renda no Grande-Livro.

— Mas por que não pedirias o cargo de juiz de paz em L’Isle-Adam? Teríamos assim influência e mais mil e quinhentos francos.

— Oh! já pensei nisso.

Nessa disposição de espírito, ao saber que seu patrão queria vir a Presles e lhe mandava convidar Margueron para jantar no sábado, Moreau se apressara em enviar um expresso, que entregou ao primeiro criado de quarto do conde, uma carta, a uma hora demasiado tardia, para que o sr. de Sérisy pudesse tomar conhecimento dela; Agostinho, entretanto, colocou-a em cima da secretária, como costumava fazer em semelhantes casos. Nessa carta, Moreau pedia ao conde que não se incomodasse em vir e que confiasse na sua dedicação. Ora, segundo dizia, Margueron não queria mais vender em bloco e falava em dividir os Moulineaux em noventa e seis lotes; era preciso fazê-lo desistir dessa ideia e, talvez, dizia o administrador, tomar um intermediário.

Todos têm seus inimigos. Ora, o administrador e a mulher tinham desgostado, em Presles, um oficial reformado, o sr. de Reybert e sua esposa. De palavras a alfinetadas, tinham chegado às punhaladas. O sr. de Reybert só pensava em vingança, queria fazer com que Moreau perdesse o lugar e tornar-se, ele, seu sucessor. Essas duas ideias são gêmeas. Por isso, o procedimento do administrador, espreitado durante dois anos, não tinha mais segredo para os Reybert.

Ao mesmo tempo que Moreau despachava seu enviado ao conde de Sérisy, Reybert mandava a mulher a Paris. A sra. de Reybert pediu com tanta insistência para falar ao conde de Sérisy, que, despedida às nove horas da noite, momento em que o conde deitava, foi recebida no dia seguinte às sete horas por Sua Senhoria.

— Monsenhor — dissera ela ao ministro de Estado —, somos incapazes, eu e meu marido, de escrever cartas anônimas. Sou a sra. de Reybert, em solteira de Corroy. Meu marido tem apenas seiscentos francos de soldo da reforma e vivemos em Presles, onde seu administrador nos tem feito afronta sobre afronta, embora sejamos gente direita. O sr. de Reybert, que não é um aventureiro, longe disso!, reformou-se como capitão de artilharia em 1816. Depois de ter servido durante vinte anos, sempre longe do imperador, senhor conde! E o senhor deve saber como ascendiam dificilmente os militares que não se achavam sob as vistas do patrão; sem contar que a probidade e a franqueza de Reybert desagradavam aos seus chefes. Meu marido, nestes três anos, não deixou de estudar o seu intendente, no intuito de o fazer perder o posto. Como vê, somos francos. Moreau nos tornou inimigos seus, nós o vigiamos. Venho, pois, dizer-lhe que o senhor está sendo ludibriado no negócio dos Moulineaux. Querem surripiar-lhe cem mil francos, que serão divididos entre o notário, Léger e Moreau. O senhor mandou convidar Margueron e pensa ir a Presles amanhã; mas Margueron passará por doente, e Léger tem tanta certeza de comprar a herdade que veio a Paris ultimar seus negócios. Se o esclarecemos, se quer ter um administrador honesto, tome meu marido; embora nobre, ele o servirá como serviu o Estado. Seu administrador tem duzentos e cinquenta mil francos, não é de ser lamentado.

O conde agradecera friamente à sra. de Reybert e fez-lhe promessas vagas, pois desprezava a delação; mas, ao recordar as suspeitas de Derville, ficou interiormente abalado; de súbito, viu a carta do administrador e leu-a; e, nas afirmações de dedicação, nas respeitosas exprobrações que recebia a propósito da desconfiança que implicava aquele desejo de tratar o negócio pessoalmente, adivinhou a verdade a respeito de Moreau. — A corrupção veio com a fortuna, como sempre! — pensou ele. Fizera então algumas perguntas à sra. de Reybert, mais para se dar tempo de observá-la do que para obter detalhes, e escreveu ao seu notário um bilhete para avisá-lo que não mandasse mais seu ajudante a Presles, mas que fosse ele próprio para jantar.

— Se o senhor conde — dissera a sra. de Reybert ao terminar — me julgou desfavoravelmente pelo passo que acabo de dar, sem que o sr. de Reybert o soubesse, deve estar agora convencido de que obtivemos as informações a respeito de seu administrador do modo mais natural; a mais timorata consciência não veria nisso nada de censurável.

A sra. de Reybert, de Corroy em solteira, mantinha-se ereta como um poste. Oferecera à observação do conde um rosto com mais furos do que uma escumadeira, obra da varíola, um busto chato e seco, dois olhos ardentes e claros, caracóis louros achatados sobre uma fronte preocupada, uma touca de tafetá verde com forro cor-de-rosa, um vestido branco de pintas violeta, sapatos de pelica. O conde percebeu nela a mulher de um capitão pobre, a puritana assinante do Courrier Français,[11] ardente de virtude, mas sensível ao bem-estar de um cargo, e cobiçosa dele.

— Diz a senhora seiscentos francos de reforma? — perguntara o conde, respondendo a si mesmo, em vez de responder ao que lhe acabava de contar a sra. de Reybert.

— Sim, senhor conde.

— A senhora é uma de Corroy?

— Sim, senhor, uma família nobre de Messin, terra do meu marido.

— Em que regimento serviu o sr. de Reybert?

— No sétimo regimento de artilharia.

— Bem! — dissera o conde, anotando o número do regimento. Achava possível dar a administração de sua propriedade a um antigo oficial, sobre o qual pudesse obter no Ministério da Guerra as mais precisas informações. — Senhora — continuou ele, depois de chamar o criado —, volte para Presles com o meu notário, que achará meio para ir lá jantar, e a quem eu a recomendei; aqui está o endereço dele. Eu mesmo vou secretamente a Presles e mandarei avisar o seu sr. de Reybert, para que me venha falar.

Assim é que a notícia da viagem do sr. de Sérisy pelo carro público e a recomendação de calar o nome do conde não alarmavam debalde o carreiro; ele pressentia o perigo prestes a se abater sobre um dos seus melhores fregueses.

III – OS VIAJANTES

Ao sair do Café do Tabuleiro, Pierrotin viu na porta do Leão de Prata a mulher e o rapaz, nos quais sua perspicácia o fizera reconhecer clientes, pois a dama, com o pescoço esticado e o rosto inquieto, evidentemente o estava procurando. A mãe, com um vestido de seda preta, tingido, um chapéu de cor carmelita e um velho xale de cashmere francês, calçada com meias de anafaia e sapatos de couro de cabra, trazia na mão uma cesta de palha e um guarda-chuva azul. Essa mulher, que em outros tempos fora bela, parecia ter cerca de quarenta anos, mas seus olhos azuis, privados da chama que a felicidade acende, denotavam que de havia muito renunciara ao mundo. Por isso, quer seu vestuário, quer seu modo de ser, traíam uma mãe inteiramente devotada ao lar e ao filho. Se as fitas do chapéu estavam desbotadas, a forma deste datava de mais de três anos. O xale se mantinha preso por meio de uma agulha, quebrada, transformada em alfinete, graças a uma bola de lacre. A desconhecida esperava impacientemente Pierrotin, para recomendar-lhe o filho, que, sem dúvida, ia viajar sozinho pela primeira vez, e que ela acompanhara até o carro, tanto por desconfiança como por amor maternal. Essa mãe era de algum modo completada pelo filho; da mesma forma que, sem a mãe, o filho não seria tão bem compreendido. Se a mãe se resignava a usar luvas cerzidas, o filho envergava uma sobrecasaca cor de azeitona, cujas mangas, um pouco curtas, faziam prever que ele ainda cresceria, como os adultos de dezoito a dezenove anos. As calças azuis, remendadas pela mãe, ofereciam ao olhar fundilhos novos quando a sobrecasaca tinha a maldade de se entreabrir por detrás.

— Não esfregues assim as luvas, tu vais estragá-las ainda mais — dizia a senhora, no momento em que Pierrotin chegou. — O senhor é o condutor?... Ah!, mas é o sr. Pierrotin? — disse ela, deixando por um momento o filho e levando o carreiro a dois passos dali:

— Vai indo bem, sra. Clapart? — respondeu o carreiro, cujo rosto adquiriu uma expressão que denotava respeito e familiaridade ao mesmo tempo.

— Sim, Pierrotin. Tome bastante cuidado com o meu Oscar, é a primeira vez que ele viaja sozinho.

— Oh!, vai sozinho à casa do sr. Moreau!... — exclamou o carreiro para saber se de fato o rapaz ia para lá.

— Sim — respondeu a mãe.

— A sra. Moreau o aceitou então? — perguntou Pierrotin com ar esperto.

— Ai de mim! — disse a mãe. — Não será tudo rosas para ele, pobre criança; mas seu futuro exige imperiosamente esta viagem.

Essa resposta impressionou Pierrotin, que hesitava em confiar à sra. Clapart seus temores a respeito do administrador. Do mesmo modo que ela não se animava a prejudicar o filho, fazendo a Pierrotin certas recomendações que o teriam transformado em mentor. Durante aquela mútua deliberação, que se traduziu por algumas frases sobre o tempo, sobre a estrada, sobre as paradas da viagem, não é inútil explicar os laços que ligavam Pierrotin à sra. Clapart e autorizavam as duas frases confidenciais que acabavam de trocar. Frequentemente, isto é, três ou quatro vezes por mês, Pierrotin encontrava em La Cave, quando ia a Paris, o administrador, que fazia sinais a um jardineiro ao ver aproximar-se o carro. O jardineiro, então, ajudava Pierrotin a carregar um ou dois cestos de frutas ou de legumes, conforme a estação, galinhas, ovos, manteiga, caça. O administrador pagava sempre a comissão a Pierrotin, dando-lhe o dinheiro necessário para pagar os direitos na barreira, se o envio continha coisas sujeitas a imposto. Nunca aquelas cestas, canastras ou pacotes levavam endereço escrito. Uma primeira vez, que servira para todas, o administrador indicara, de viva voz, o domicílio da sra. Clapart ao discreto carreiro, pedindo-lhe que nunca confiasse a outros aquela preciosa incumbência. Pierrotin, cismando numa aventura amorosa entre o administrador e alguma sedutora rapariga, fora à rue de la Cerisaie nº 7, no quarteirão do Arsenal, onde vira a sra. Clapart, a qual acabava de ser retratada, em vez da bela e jovem criatura que esperava encontrar. Os carreiros, por força do ofício, estão destinados a penetrar em muitos interiores e em muitos segredos; mas tendo o acaso social, essa subprovidência, querido que eles não tivessem instrução, ou fossem desprovidos do talento de observação, segue-se daí que não são perigosos. Não obstante, após alguns meses, Pierrotin não sabia como explicar as relações da sra. Clapart com o sr. Moreau pelo que lhe fora dado entrever na casa da rue de la Cerisaie. Embora os aluguéis, por essa época, não fossem elevados no bairro do Arsenal, a sra. Clapart estava instalada no terceiro andar, no fundo de um pátio interior, numa casa que outrora fora residência de um grão-senhor, no tempo em que a alta nobreza do reino vivia no antigo local do palácio de Tournelles e do palacete Saint-Paul. Em fins do século xvi, as grandes famílias dividiram entre si aqueles vastos espaços, outrora ocupados pelos jardins do palácio de nossos reis, como o indicam os nomes das ruas de la Cerisaie, de Belagrade, dos Leões etc. Esse apartamento, cujas peças eram todas forradas de madeira antiga, compunha-se de três quartos enfileirados, uma sala de jantar, um salão e um quarto de dormir. No andar de cima achava-se a cozinha e o quarto de Oscar. Em frente à porta de entrada, no que em Paris se chama o “quadrado”, via-se a porta de um quarto recuado disposto em cada andar numa espécie de puxado que também continha a caixa da escada de madeira e que formava uma torre quadrada construída com grandes pedras. Esse quarto era o de Moreau, quando este dormia em Paris. Pierrotin vira, na primeira peça, onde depunha as canastras, seis cadeiras de nogueira forradas de palha, uma mesa e um aparador; nas janelas, pequenas cortinas ruças. Mais tarde, quando entrou no salão, notou velhos móveis do tempo do Império, mas gastos. De resto, não havia naquele salão mais do que a mobília exigida pelo proprietário para garantir o aluguel. Pierrotin avaliou o quarto de dormir pelo salão e pela sala de jantar. O forro de madeira, de fundo realçado por uma grosseira pintura de um branco avermelhado que recobria as molduras, os desenhos e as imagens, longe de ser um ornamento, entristecia o olhar. O assoalho, que nunca era encerado, tinha uma cor acinzentada como os assoalhos de internatos. Quando o carreiro surpreendeu os Clapart à mesa, seus pratos e copos, as coisas mais insignificantes, revelavam uma terrível penúria; não obstante, serviam-se de talheres de prata; mas os pratos, a sopeira, desbeiçados e consertados, como louça da mais pobre gente, inspiravam piedade. O sr. Clapart, com uma sobrecasaca surrada, chinelos ignóbeis, sempre de óculos verdes, mostrava-lhe, ao tirar um casquete de cinco anos, um crânio pontudo, de cujo alto caíam filamentos delgados e sujos aos quais um poeta recusaria o nome de cabelos. Esse homem de tez lívida parecia tímido e devia ser tirânico. Naquele triste apartamento, situado ao norte, sem outra vista além da de uma vinha estendida sobre o muro fronteiro, e de um poço a um canto do pátio, a sra. Clapart dava-se ares de rainha e caminhava como mulher que não sabe andar a pé. Muitas vezes, ao agradecer a Pierrotin, ela lhe dirigia olhares que teriam enternecido um observador; de longe em longe deslizavam-lhe na mão moedas de doze sous. Sua voz era encantadora. Pierrotin não conhecia Oscar pelo simples motivo de que o rapaz acabava de sair do colégio e de nunca tê-lo encontrado em casa.

Eis a triste história que Pierrotin jamais teria adivinhado, mesmo pedindo, como fazia havia algum tempo, informações à porteira; pois essa mulher não sabia de nada, a não ser que os Clapart pagavam duzentos e cinquenta francos de aluguel, não tinham senão uma arrumadeira durante algumas horas da manhã, que a senhora às vezes fazia ela mesma algumas ensaboadelas e pagava todos os dias seus portes de correio,[12] como se estivesse impossibilitada de deixar que se acumulassem.

Não existe, ou antes, existe raramente, um criminoso que seja completamente criminoso. Com mais forte razão, dificilmente se encontrará uma desonestidade maciça. Podem-se fazer contas de chegar com o patrão, ou puxar mais brasa para a própria sardinha; mas, embora constituindo um capital por meios mais ou menos lícitos, poucos homens há que não se permitam algumas boas ações. Quanto mais não fosse por curiosidade, por amor-próprio, como contraste, por acaso, todo homem teve seu momento de generosidade; ele o classifica de erro, não recomeça; mas sacrifica ao bem, como o mais casmurro sacrifica às Graças, uma ou duas vezes na vida. Se as faltas de Moreau podem ser desculpadas, não será isso por sua persistência em socorrer uma pobre mulher, cujos favores o haviam outrora envaidecido e em cuja casa ele se ocultara nos momentos de perigo? Essa mulher, célebre durante o Diretório, por suas ligações com um dos cinco reis do momento,[13] desposou, devido àquela proteção todo-poderosa, um fornecedor que ganhou milhões e que Napoleão arruinou em 1802.[14] Esse homem, chamado Husson, enlouqueceu devido ao salto brusco da opulência à miséria e atirou-se ao Sena, deixando grávida a bela sra. Husson. Moreau, muito intimamente ligado com a dama, estava nesse momento condenado à morte, e não pôde por isso casar-se com a viúva do fornecedor; foi até obrigado a ausentar-se da França por algum tempo.

Aos vinte e dois anos a sra. Husson, no seu abandono, desposou um funcionário chamado Clapart, rapaz de vinte e sete anos que, no dizer de todos, prometia muito. Deus guarde as mulheres dos belos rapazes que prometem muito! Naquela época os funcionários tornavam-se rapidamente personagens consideráveis, pois o imperador buscava as capacidades. Clapart, porém, dotado de uma beleza vulgar, não era inteligente. Por julgar a sra. Husson muito rica, fingira uma grande paixão; foi um peso para ela, por não satisfazer, nem no presente, nem mais tarde, as necessidades que ela contraíra durante seus tempos de opulência. Clapart preenchia bastante mal, no Ministério das Finanças, um cargo que não dava mais do que mil e oitocentos francos de ordenado. Quando Moreau, que voltara para junto do conde de Sérisy, soube da horrível situação em que se achava a ex-sra. Husson, pôde, antes de se casar, colocá-la como primeira camareira de Madame, mãe do imperador. Apesar dessa poderosa proteção, Clapart nunca pôde ir para diante, pois sua nulidade era demasiado evidente. Arruinada em 1815 pela queda do imperador, a brilhante Aspásia do Diretório ficou sem outro recurso além de um emprego de mil e duzentos francos de ordenado que obtiveram para Clapart, graças ao prestígio do conde de Sérisy, nos escritórios da Municipalidade de Paris. Moreau, único protetor daquela mulher, que conhecera quando ela possuía milhões, obteve para Oscar Husson uma das meias-bolsas da Municipalidade de Paris, no colégio Henrique iv, e mandava por Pierrotin à rue de la Cerisaie tudo quanto se pode, decentemente, oferecer para auxiliar um casal em apuros.

Oscar era todo o futuro, toda a vida de sua mãe. Como único defeito, só se podia censurar àquela pobre mulher o exagero de sua ternura por aquela criança, a asa negra do padrasto. Oscar, infelizmente, era aquinhoado de uma dose de insensatez que a mãe não suspeitava, apesar dos epigramas de Clapart. Essa insensatez, ou, para falar mais corretamente, essa presunção, inquietava de tal forma o administrador que ele pedira à sra. Clapart que lhe mandasse o rapaz um mês, a fim de estudá-lo e ver a que carreira o devia destinar. Moreau pensava apresentá-lo um dia ao conde como seu sucessor. Mas, para dar ao Diabo e a Deus exatamente o que lhes corresponde, talvez não seja inútil assinalar as causas do estúpido amor-próprio de Oscar, observando ter ele nascido em casa de Madame, mãe do imperador. Durante a primeira infância seus olhos foram deslumbrados pelos esplendores imperiais. Sua flexível imaginação deve ter conservado as impressões daqueles quadros estonteantes, guardando uma imagem daquele tempo de ouro e de festas, com a esperança de tornar a encontrá-lo. A jactância natural nos colegiais, todos possuídos do desejo de brilhar, uns mais que os outros, apoiada nas suas recordações de infância desenvolvera-se nele de modo desmedido. Era bem possível também que a mãe, em casa, recordasse com excessiva complacência os dias em que fora uma das rainhas da Paris do Diretório. Enfim, Oscar, que acabava de completar seu curso, tivera, talvez, de repelir no colégio as humilhações que os alunos contribuintes atiram continuamente sobre os condiscípulos que desfrutam de bolsas, quando estes não lhes sabem incutir certo respeito por uma força física superior. Essa mescla de antigo esplendor extinto, de beleza passada, de ternura que aceita a miséria, de esperança naquele filho, de cegueira materna, de sofrimentos heroicamente suportados, fazia daquela mãe uma dessas criaturas sublimes que, em Paris, solicitam os olhares do observador.

Incapaz de compreender a profunda dedicação de Moreau por aquela mulher, nem a dessa mulher por seu protegido de 1797, o qual se tornara seu único amigo, Pierrotin não quis comunicar a suspeita que lhe passava pela cabeça, relativamente ao perigo que corria Moreau. O terrível “Já temos muita coisa nossa com que nos preocuparmos!” do criado de quarto voltou ao espírito do carreiro como também o sentimento de obediência para com aqueles a quem chamava os chefes de fila. De resto, naquele momento Pierrotin sentia na cabeça tantas pontas quantas moedas de cem sous existem em mil francos! Uma viagem de sete léguas apresentava-se, sem dúvida, como uma viagem de longo curso à imaginação daquela pobre mãe que, na sua vida elegante, raramente fora além das barreiras; porquanto estas palavras: — Pois não, senhora! — Sim, senhora — repetidas por Pierrotin, demonstravam que o carreiro desejava subtrair-se a recomendações evidentemente demasiado verbosas e inúteis.

— Coloque os embrulhos de modo que não se molhem, se por acaso houver mudança de tempo.

— Tenho um encerado — disse Pierrotin. — De resto veja, senhora, com que cuidado os carregamos.

— Oscar, não te demores além de quinze dias, por mais que insistam — disse a sra. Clapart, voltando-se para o filho. — Por mais que fizeres, não te será possível agradar à sra. Moreau; de resto, deverás estar de volta em fins de setembro. Já sabes que temos de ir a Belleville, à casa do teu tio Cardot.

— Sim, mamãe...

— Sobretudo — disse-lhe, em voz baixa — nunca fales em domesticidade. Lembra-te constantemente de que a sra. Moreau foi criada de quarto...

— Sim, mamãe...

Oscar, como todos os rapazes cujo amor-próprio é excessivamente sensível, parecia contrariado por se ver admoestar daquela forma, na porta do Hotel do Leão de Prata.

— Bem, mamãe, adeus; vamos partir; já atrelaram os cavalos.

A mãe, não se lembrando mais de que estavam em pleno Faubourg Saint-Denis, beijou o seu Oscar e disse-lhe, tirando um bonito pãozinho de seu cabaz:

— Olha! Ias esquecer-te do pão e do chocolate. Repito-te, meu filho, não tomes nada nas tabernas, porque cobram pelas menores coisas dez vezes mais do que valem.

O desejo de Oscar seria ver sua mãe bem longe dali quando ela lhe meteu o pão e o chocolate no bolso. Aquela cena tivera duas testemunhas, dois rapazes, alguns anos mais velhos do que o evadido do colégio, mais bem trajados do que ele, que tinham vindo sem mãe, e cuja atitude, trajar e maneiras traíam a independência, que é o objeto de todos os desejos de um menino ainda sob o jugo imediato de uma mãe. Aqueles dois rapazes foram, naquele momento, para Oscar, o mundo inteiro.

— Ele diz mamãe — exclamou um dos dois desconhecidos, rindo.

Essa frase chegou aos ouvidos de Oscar e determinou um:

— Adeus, minha mãe — atirado num terrível movimento de impaciência.

Confessemos: a sra. Clapart falava alto demais e parecia pôr os transeuntes no segredo de sua ternura.

— Que tens, Oscar? — perguntou a pobre mãe ferida. — Não te compreendo — continuou, com ar severo, por se julgar capaz (ilusão de todas as mães que amimam os filhos) de lhe infundir respeito. — Escuta, meu Oscar — disse, retomando logo sua voz terna —, tens propensão a charlar, a dizer tudo o que sabes e tudo o que não sabes, e isso por bazófia, por um tolo amor-próprio de rapaz; repito-te: lembra-te de pôr um freio na língua. Não conheces ainda bastante a vida, meu tesouro querido, para julgar as pessoas com as quais te vais encontrar, e nada é mais perigoso do que tagarelar nos veículos públicos. Aliás, nas diligências, as pessoas corretas ficam caladas.

Os dois rapazes, que, sem dúvida, tinham ido até o fundo do estabelecimento, fizeram novamente ouvir, sob o portão, o ruído dos tacões das botas; podiam ter ouvido aquele sermão; por isso, para descartar-se da mãe, Oscar recorreu a um meio heroico, que prova o quanto o amor-próprio estimula a inteligência:

— Mamãe, estás aqui numa corrente de ar, poderias apanhar um defluxo; de resto, vou entrar no carro.

O menino tocara algum ponto sensível, porque a mãe o agarrou, beijou-o como se se tratasse de uma longa viagem e levou-o até o cabriolé, com os olhos rasos de lágrimas.

— Não te esqueças de dar cinco francos aos criados — disse ela. — Escreve-me pelo menos três vezes, nestes quinze dias; porta-te bem, e lembra-te de todas as minhas recomendações. Tens roupa bastante para não ser preciso mandar lavar. Enfim, lembra-te sempre das bondades do sr. Moreau, ouve-o como a um pai; e segue bem seus conselhos...

Ao subir no cabriolé, Oscar deixou ver as meias azuis, em consequência de se haverem sungado suas calças, e os fundilhos novos das mesmas, por se terem aberto as abas da sobrecasaca. Por isso o sorriso dos dois rapazes, aos quais não passaram despercebidos aqueles sinais de uma honrada mediocridade, fez nova ferida no amor-próprio do moço.

— Oscar reservou o primeiro lugar — disse a mãe a Pierrotin. — Põe-te no fundo — continuou, olhando sempre para Oscar, com ternura, e sorrindo-lhe com amor.

Oh!, como Oscar lamentou que as desgraças e os pesares tivessem alterado a beleza de sua mãe, e que a miséria e o devotamento a impedissem de estar bem vestida! Um dos dois rapazes, o que tinha botas e esporas, deu uma cotovelada no outro para mostrar-lhe a mãe de Oscar, e o outro retorceu o bigode com um gesto que significava: — Bonito porte!

“Como descartar-me de minha mãe?”, pensou Oscar, tomando um ar preocupado.

— Que tens? — perguntou-lhe a sra. Clapart.

Oscar — que monstro — fingia não ter ouvido. É possível que, naquela circunstância, a sra. Clapart carecesse de tato. Mas os sentimentos absolutos são tão egoístas!

— Jorge, gostas de crianças em viagem? — perguntou o rapaz ao amigo.

— Sim, meu caro Amaury, quando são desmamados, quando se chamam Oscar e quando têm chocolate.

Essas palavras foram trocadas em voz baixa, para deixar a Oscar a liberdade de ouvir ou de não ouvir; a atitude deste indicaria ao viajante o limite do que poderia tentar contra o garoto para divertir-se durante a viagem. Oscar preferiu não ter ouvido. Olhava em torno para saber se a mãe, que o acabrunhava como um pesadelo, ainda estava ali, pois se sabia por demais amado para que ela logo o tivesse deixado. Não só comparava involuntariamente o trajar de seu companheiro de viagem com o seu, mais ainda, sentia que a toilette da mãe contribuía e muito para o sorriso zombeteiro dos dois rapazes. — Se pudesse mandá-los embora! — pensou.

Infelizmente Amaury acabava de dizer a Jorge, dando uma leve batida de bengala na roda do cabriolé: — E vais, caro amigo, confiar o teu futuro a este frágil barco?

— É preciso! — disse Jorge com um ar fatal.

Oscar deu um suspiro ao notar o modo desabusado como aquele pusera o chapéu, caído sobre a orelha, como para mostrar uma magnífica cabeleira loura, bem encrespada; ao passo que ele, por ordem do padrasto, tinha os cabelos negros cortados à escovinha na fronte e rentes como os dos soldados.

O vaidoso garoto apresentava um rosto redondo e bochechudo, animado pelas cores de uma saúde brilhante; enquanto o rosto do companheiro de viagem era comprido, fino de forma e pálido. A fronte daquele rapaz era ampla, e seu peito enchia um colete de imitação de cashmere. Ao admirar as calças justas nas pernas, de cor cinzento-aço, uma sobrecasaca com passadeiras e botões olivares, apertada na cintura, parecia a Oscar que aquele romântico desconhecido, dotado de tantas vantagens, abusava de sua superioridade em relação a ele, do mesmo modo que uma mulher feia se sente ferida apenas pelo aspecto de uma bela mulher. O ruído dos tacões de ferro das botas, que o desconhecido fazia soar um pouco em demasia para o gosto de Oscar, repercutia-lhe até o coração. Finalmente, Oscar se sentia tão constrangido nas suas vestes, talvez confeccionadas em casa e feitas dos trajes de seu padrasto, quanto o invejado rapaz se sentia à vontade nas suas. — Esse tipo deve ter alguns dez francos no bolso — pensou Oscar. O rapaz voltou-se. Como não ficou Oscar ao ver uma corrente de ouro pendente do pescoço, em cuja extremidade devia haver seguramente um relógio de ouro? Aquele desconhecido assumiu então aos olhos do adolescente as proporções de um grande personagem.

Criado na rue de la Cerisaie, desde 1815, trazido do colégio e para lá levado, nos dias de folga, pelo padrasto, Oscar não tivera outros termos de comparação, desde a sua puberdade, que não o pobre lar de sua mãe. Educado severamente, de acordo com os conselhos de Moreau, não ia com frequência ao teatro, e não ia além, então, do teatro do Ambigu-Comique,[15] onde seus olhos não viam muita elegância, se é que a atenção que uma criança presta no melodrama lhe permite examinar a sala. Seu padrasto usava ainda, segundo a moda do Império, o relógio no bolso da calça e deixava pender sobre o ventre uma grossa corrente de ouro, terminada por um molho de berloques heteróclitos, sinetes, uma chave de argola redonda e chata, na qual se via uma paisagem em mosaico. Oscar, que considerava aquele velho luxo como o nec plus ultra, ficou pois estonteado com aquela revelação de uma elegância superior e negligente. Aquele rapaz exibia abusivamente luvas bem cuidadas e parecia querer cegar Oscar, agitando graciosamente uma elegante bengala com castão de ouro. Oscar alcançava esse último quartel da adolescência, no qual pequenas coisas provocam grandes alegrias e grandes tristezas, em que se prefere uma desgraça a uma toilette ridícula, em que o amor-próprio, não se ligando aos grandes interesses da vida, se prende a frivolidades, ao vestuário, ao desejo de parecer homem. Os adolescentes nesse período se engrandecem, e a jactância é tanto mais exorbitante, por se exercer sobre nadas; mas se invejam um tolo elegantemente trajado, entusiasmam-se também pelo talento e admiram o homem de gênio. Esses defeitos, quando não têm raízes no coração, revelam a exuberância da seiva, o luxo da imaginação. Que um rapaz de dezenove anos, filho único, educado severamente na casa paterna, por causa da indigência que alcançou um funcionário de mil e duzentos francos, adorado, porém, e para o qual a mãe se impõe duras privações, se maravilhe à vista de um rapaz de vinte e dois anos e lhe inveje a polonesa de alamares, forrada de seda, o colete de imitação de cashmere e a gravata passada por um anel de mau gosto, não é isso um pecadilho cometido em todas as camadas sociais, pelo inferior que inveja seu superior? Até mesmo o homem de gênio obedece a essa primeira paixão. Rousseau, de Genebra, não admirou Venture e Bacle?[16] Oscar, porém, passou do pecadilho à falta, sentiu-se humilhado, implicou com o companheiro de viagem e, no seu coração, ergueu-se um secreto desejo de lhe provar que valia tanto quanto ele. Os dois belos rapazes continuavam a passear desde a porta até as cocheiras e, quando davam volta, olhavam sempre para Oscar, encolhido no seu canto. Este, convencido de que as risadas dos dois rapazes se referiam a ele, afetou a mais profunda indiferença. Pôs-se a trautear o estribilho de uma cançoneta, posta então em moda pelos liberais, que dizia: “É a culpa de Voltaire, é a culpa de Rousseau”.[17] Essa atitude fez com que o tomassem por um amanuensezinho de procurador.

— Olha, é capaz que ele seja do coro da Ópera — disse Amaury.

Exasperado, o pobre Oscar saltou, levantou o encosto e perguntou a Pierrotin: — Quando partimos?

— Daqui a pouco — respondeu o carreiro, que estava de chicote em punho e olhando para a rue d’Enghien.

Nesse momento a cena animou-se com a chegada de um rapaz, acompanhado por um verdadeiro garoto, os quais se apresentaram seguidos de um mensageiro que puxava uma carrocinha por meio de um tirante. O rapaz foi falar confidencialmente a Pierrotin, o qual meneou a cabeça e chamou seu bagageiro. Este acorreu para ajudar a descarregar a carrocinha que continha, além de duas malas, baldes, pincéis, caixas de formas estranhas, uma infinidade de pacotes e utensílios, que o mais moço dos dois novos viajantes, que subira para o tejadilho, ali colocava e calçava com tanta rapidez que o pobre Oscar, que nesse momento sorria para a mãe, que se postara em sentinela do outro lado da rua, não viu nenhum daqueles utensílios, que teriam podido revelar a profissão daqueles novos companheiros de viagem. O garoto, de dezesseis anos, vestia uma blusa cinzenta apertada por um cinto de couro envernizado. Seu casquete, posto à valentona na cabeça, de través, indicava um caráter trocista, o mesmo fazendo a pitoresca desordem dos cabelos castanhos, encaracolados, caídos nos ombros. Sua gravata de tafetá preto traçava uma linha negra num pescoço muito branco e fazia sobressair ainda mais a vivacidade de seus olhos cinzentos. A animação do rosto moreno, corado, o desenho dos lábios, bastante espessos, as orelhas destacadas, o nariz arrebitado, todos os detalhes de sua fisionomia indicavam o espírito trocista de Fígaro, a despreocupação dos verdes anos; da mesma forma que a vivacidade de seus gestos, o seu olhar zombeteiro revelavam uma inteligência já desenvolvida pela prática da profissão adotada desde muito cedo. Como se já tivesse algum valor moral, aquele garoto feito homem pela arte ou pela vocação parecia indiferente ao assunto vestuário, pois olhava para as suas botas não lustradas com ar de quem zomba daquilo e para as suas calças de simples brim de algodão procurando manchas, menos para fazê-las desaparecer do que para lhes ver o efeito.

— Tenho um belo tom! — disse, sacudindo-se e dirigindo-se ao companheiro.

O olhar deste revelava autoridade sobre aquele adepto, no qual olhos espertos teriam reconhecido esse alegre aprendiz de pintura, que, em estilo de ateliê, chamam rapin.

— Comporte-se, Mistigris! — respondeu o mestre, dando-lhe o apelido que o ateliê, com certeza, lhe impusera.

Esse viajante era um jovem delgado e pálido, de cabelos pretos extremamente abundantes e numa desordem absolutamente fantástica; mas essa abundante cabeleira parecia necessária a uma cabeça enorme, cuja vasta fronte anunciava uma inteligência precoce. O rosto atormentado, demasiado original para ser feio, era encovado como se esse moço singular sofresse ou uma doença crônica, ou de privações impostas pela miséria, que é uma terrível doença crônica, ou de desgostos demasiado recentes para serem esquecidos. Seu vestuário, quase análogo ao de Mistigris, guardadas as proporções, consistia numa ordinária e surrada sobrecasaca, mas limpa e bem escovada, de cor verde-americano, um colete preto abotoado até em cima como a sobrecasaca, e que deixava entrever no pescoço apenas um lenço vermelho. Umas calças pretas, tão gastas como a sobrecasaca, flutuavam em redor das pernas magras. Finalmente, botas enlameadas mostravam que ele viera a pé e de longe. Com um rápido olhar, o artista devassou as profundezas do Hotel do Leão de Prata, as cocheiras, as várias tonalidades da luz, os detalhes e olhou para Mistigris, que o imitara, com um olhar irônico.

— Bonito! — disse Mistigris.

— Sim, é bonito — repetiu o desconhecido.

— Tornamos a chegar muito cedo — disse Mistigris. — Não poderíamos manducar uma legume qualquer? Meu estômago é como a natureza, detesta o vácuo.

— Podemos ir tomar uma xícara de café? — perguntou o rapaz com voz suave a Pierrotin.

— Não demorem muito — disse este.

— Bom, temos um quarto de hora — interveio Mistigris, traindo assim o gênio de observação inato nos rapins de Paris.

Os dois viajantes sumiram. Davam nove horas na cozinha do hotel. Jorge achou justo e razoável apostrofar Pierrotin.

— Eh, amigo, quando se tem a ventura de conduzir um calhambeque do feitio deste — disse ele, dando com a bengala uma pancada na roda —, não é demais que se tenha o mérito da pontualidade. Que diabo! Não é por divertimento que a gente se mete aí dentro, e somente negócios diabolicamente urgentes podem obrigar-nos a lhe confiar nossos ossos. E, depois, esse estafermo que o senhor chama Rougeot não nos fará recuperar o tempo perdido.

— Vamos atrelar Bichette, enquanto esses dois viajantes tomam café — disse Pierrotin. — Vai, pois, tu — disse ele ao bagageiro — ver se o velho Léger quer ir conosco.

— E onde está ele, esse velho Léger? — perguntou Jorge.

— Ali em frente, no número 50; ele não achou lugar no carro de Beaumont — disse Pierrotin ao bagageiro, sem responder a Jorge e desaparecendo para ir buscar Bichette.

Jorge, a quem o amigo apertara a mão, subiu para o carro, atirando primeiro para dentro, com ar importante, uma grande pasta que colocou sob a almofada. Tomou o canto oposto ao que Oscar ocupava.

— Esse velho Léger me preocupa — disse ele.

— Não nos podem tomar os lugares, tenho o número 1 — respondeu Oscar.

— E eu o número 2 — disse Jorge.

Ao mesmo tempo que Pierrotin surgia com Bichette, o bagageiro apareceu rebocando um avantajado sujeito, que pesava no mínimo cento e vinte quilos. O velho Léger pertencia ao gênero granjeiro barrigudo, de dorso quadrado, de rabicho empoado e vestido com uma pequena sobrecasaca de pano azul. Suas polainas brancas, que iam até acima do joelho, apertavam calções de veludo listrado, presos com fivelas de prata. Os sapatos ferrados pesavam duas libras cada um. Para completar, trazia na mão um pequeno bastão avermelhado e seco, luzidio, de grossa extremidade, preso por uma tira de couro em torno do pulso.

— O senhor chama-se Léger?[18] — disse seriamente Jorge, quando o granjeiro tentou colocar um pé no estribo.

— Para servi-lo — disse o granjeiro, mostrando uma cara que se assemelhava à de Luís xviii, com bochechas rubicundas, em que apontava um nariz que em qualquer outro rosto pareceria enorme. Seus olhos risonhos eram circundados por pregas de gordura. — Vamos, uma pequena ajuda, meu rapaz — disse ele a Pierrotin.

O granjeiro foi içado pelo bagageiro e pelo carreiro, ao grito de “Upa! Upa! Iça!” — dado por Jorge.

— Oh!, não vou longe, vou somente até La Cave — disse Léger, respondendo a um gracejo com outro.

Em França todos entendem o gracejo.

— Coloque-se no fundo — disse Pierrotin —, vocês serão seis.

— E seu outro cavalo — perguntou Jorge —, será ele tão fantástico como um terceiro cavalo de posta?

— Aqui está, burguês — disse Pierrotin, mostrando com um gesto a pequena égua que viera sozinha.

— Ele chama esse inseto um cavalo! — disse Jorge admirado.

— Oh!, esse cavalinho é bom — disse o granjeiro, que se sentara. — Bons dias, senhores. Vamos largar, Pierrotin?

— Tenho dois viajantes que estão tomando café — respondeu o carreiro.

O moço de rosto encovado e seu companheiro apareceram então.

— Partamos! — foi o grito geral.

— Vamos partir — respondeu Pierrotin. — Vamos, larguemos — disse ele ao bagageiro, o qual retirou as pedras que calçavam as rodas.

O carreiro pegou a rédea de Rougeot e deu o grito gutural hip! hip! para dizer aos animais que juntassem suas forças, e, embora notavelmente entorpecidos, eles puxaram o carro que Pierrotin deteve diante da porta do Leão de Prata. Após essa manobra, puramente preparatória, olhou para a rue d’Enghien e desapareceu, deixando o carro sob a guarda do bagageiro.

— Ora essa! Esse seu burguês é sujeito a esses ataques? — perguntou Mistigris ao bagageiro.

— Ele foi buscar aveia na cocheira — respondeu o auvérnio, que estava a par de todas as manhas em uso para fazer os viajantes terem paciência.

— Afinal de contas — disse Mistigris —, le temps est un grand maigre.[19]

Estava na moda, nesse tempo, nos ateliês de pintura, estropiar os provérbios. Constituía um triunfo achar uma mudança de algumas letras ou de palavra, pouco mais ou menos parecida, que desse ao provérbio um sentido extravagante ou jocoso.

— Paris n’a pas été bâti dans un four[20] — respondeu o mestre. Pierrotin voltou trazendo o conde de Sérisy, que viera pela rua do Tabuleiro, e com quem tivera certamente alguns minutos de conversação.

— Tio Léger, quer ceder seu lugar ao senhor conde? O carro assim ficaria mais regularmente carregado.

— E nós não partiremos nem daqui a uma hora, se o senhor continuar assim — disse Jorge. — Vamos ter de tirar essa barra infernal que tanto trabalho nos deu para colocar, e todos terão de descer por causa de um passageiro que chegou atrasado, por último. Cada um tem direito ao lugar que comprou; qual é o desse senhor? Vejamos, faça a chamada! Tem um papel? Um registro? Qual é o lugar desse senhor Lecomte? Conde de quê?

— Senhor conde — disse Pierrotin, visivelmente embaraçado —, o senhor vai ficar muito mal acomodado.

— Não sabia a sua conta? — perguntou Mistigris. — Les bons comtes font les bons tamis.[21]

— Compostura, Mistigris! — exclamou gravemente o mestre. O senhor de Sérisy foi, evidentemente, tomado por todos os viajantes como um burguês que se chamasse Lecomte.

— Não incomode ninguém — disse o conde a Pierrotin —, eu me sentarei na frente, a seu lado.

— Vamos, Mistigris — disse o mestre ao rapin —, lembra-te do respeito que deves à velhice, pois não sabes quanto poderás vir a ser horrivelmente velho. Les voyages déforment la jeunesse.[22] Cede portanto teu lugar ao senhor.

Mistigris abriu a parte dianteira do cabriolé e saltou ao chão com a rapidez de uma rã que se atira n’água.

— O senhor não pode viajar de coelho, augusto ancião — disse ele ao sr. de Sérisy.

— Mistigris, les arts sont l’ami de l’homme.[23]

— Agradeço-lhe, senhor — disse o conde ao mestre de Mistigris, que assim se tornou seu vizinho.

E o homem de Estado dirigiu para o fundo do carro um olhar sagaz que muito ofendeu a Oscar e a Jorge.

— Estamos com atraso de uma hora e um quarto — disse Oscar.

— Quando se quer ser dono de um carro, retêm-se todos os lugares — observou Jorge.

Seguro dali por diante de seu incógnito, o conde de Sérisy nada respondeu àquelas observações e afetou os ares de um burguês bonacheirão.

— Se vocês estivessem atrasados, não gostariam que os esperassem? — disse o granjeiro aos dois rapazes.

Pierrotin olhava para a Porte Saint-Denis segurando o chicote e hesitava em subir para a dura banqueta onde Mistigris se remexia. — Se está à espera de alguém — disse então o conde —, não sou eu o último.

— Aprovo esse raciocínio — disse Mistigris.

Jorge e Oscar puseram-se a rir de um modo bastante insolente.

— O velho não é de força — disse Jorge a Oscar, a quem essa aparência de união com Jorge deixava encantado.

Quando Pierrotin se sentou à direita, no seu lugar, inclinou-se a fim de poder olhar para trás, sem poder encontrar na multidão os dois viajantes que lhe faltavam para sua completa lotação.

— Por Deus! Dois passageiros a mais não me fariam mal.

— Eu não paguei, vou descer — disse Jorge, amedrontado.

— E que estás esperando, Pierrotin? — disse o velho Léger.

Pierrotin emitiu um certo hip! no qual Bichette e Rougeot perceberam uma resolução definitiva, e os dois se atiraram à subida do Faubourg num trote acelerado que em breve devia afrouxar.

IV – O FILHO DO FAMOSO CZERNI-JORGE

O conde tinha um rosto completamente vermelho, mas de um vermelho ardente sobre o qual se destacavam algumas partes inflamadas, realçadas por uma cabeleira completamente branca. A outros, que não rapazes, aquela cútis teria revelado a inflamação constante do sangue produzida por imensos trabalhos. Aquelas borbulhas prejudicavam de tal forma o ar nobre do conde que era preciso um exame atento para encontrar nos seus olhos verdes a finura do magistrado, a profundeza do político e a ciência do legislador. O rosto era chato, o nariz parecia ter sido deprimido. O chapéu ocultava a graça e a beleza da fronte. Enfim, havia com que fazer rir aquela mocidade despreocupada, no estranho contraste de uma cabeleira de um branco argênteo com sobrancelhas grandes, espessas, que se conservavam pretas. O conde, que trajava uma sobrecasaca comprida azul, abotoada militarmente até em cima, tinha ao pescoço uma gravata branca, algodão nos ouvidos e um colarinho bastante amplo que desenhava um quadrado branco em cada uma das faces. Suas calças negras lhe cobriam as botas cuja ponta apenas se via. Não trazia condecorações na lapela; enfim, suas luvas de pele de gamo lhe escondiam as mãos. Certamente, para rapazes, nada naquele homem traía um par de França, um dos homens mais úteis ao país. O velho Léger nunca vira o conde, o qual, por sua vez, não o conhecia senão de nome. Se o conde, ao subir para o carro, o examinara com um olhar perspicaz, que chocara Oscar e Jorge, era porque procurava o ajudante de seu notário para recomendar-lhe o mais profundo segredo, no caso de que tivesse sido obrigado, como ele, a tomar o carro de Pierrotin; tranquilizado, porém, pelo aspecto de Oscar, pelo do velho Léger e sobretudo pelo ar quase militar, pelo bigode e pelos modos de cavalheiro de indústria que caracterizavam Jorge, pensou que o seu bilhete tivesse, sem dúvida, chegado a tempo à casa de mestre Alexandre Crottat.

— Tio Léger — disse Pierrotin ao atingir a rude subida do Faubourg Saint-Denis para a rua da Fidelidade —, desçamos, sim?

— Eu também desço — disse o conde ao ouvir aquele nome —, é preciso dar um alívio aos cavalos.

— Ah! Se vamos assim, faremos quatorze léguas em quinze dias! — exclamou Jorge.

— E que culpa tenho eu — disse Pierrotin — se um viajante quer descer?

— Dez luíses para ti, se me guardares fielmente o segredo que te pedi — disse em voz baixa o conde, pegando Pierrotin pelo braço.

— Oh!, meus mil francos — disse consigo o carreiro, depois de piscar os olhos significativamente para o sr. de Sérisy, como para lhe dizer: conte comigo!

Oscar e Jorge ficaram no carro.

— Ouça, Pierrotin, pois que se trata de Pierrotin — exclamou Jorge quando, depois da subida dos passageiros, retomaram seus lugares —, se não pode ir melhor do que isso, diga logo! Pago o meu lugar e em Saint-Denis alugo um cavalinho, porque tenho negócios importantes que um atraso comprometeria.

— Oh!, ele irá bem — disse o velho Léger. — E, de resto, a estrada não é muito comprida.

— Nunca chego com mais de meia hora de atraso — replicou Pierrotin.

— E, afinal, não está conduzindo o papa, não é? — disse Jorge. — Assim pois, marche.

— Você não deve ter preferências, e se receia solavancar demasiado o senhor — disse Mistigris, mostrando o conde —, isso não está direito.

— Todos os viajantes são iguais perante o coucou, como os franceses perante a lei — disse Jorge.

— Fiquem tranquilos — disse o velho Léger —, chegaremos bem a Chapelle antes do meio-dia.

Chapelle é a aldeia contígua à barreira de Saint-Denis.

Todos aqueles que viajaram sabem que as pessoas que o acaso reúne num carro não se põem imediatamente em contato; e, salvo raras circunstâncias, só conversam depois de terem feito parte do caminho. Esse tempo de silêncio é empregado tanto para um exame mútuo como para a plena posse de cada lugar; tanto como o corpo, as almas têm necessidades de se porem a cômodo. Depois que cada um julga ter descoberto a idade exata, a profissão e o caráter dos companheiros, o mais palrador então começa, e a conversação se estabelece com tanto mais calor, por terem todos sentido a necessidade de amenizar a viagem e de lhe dissipar os aborrecimentos. Assim se passam as coisas nos carros franceses. Os ingleses empenham-se, por orgulho, em não descerrar os dentes; o alemão, no carro, é triste, e os italianos demasiado prudentes para conversar; os espanhóis não têm absolutamente diligências e os russos não têm estradas. A gente portanto só se diverte nos pesados veículos da França, nesta terra tão tagarela, tão indiscreta, onde todos se apressam em rir e em mostrar espírito, onde o gracejo tudo anima; desde a miséria das classes baixas até os graves interesses dos grandes burgueses. Nessas diligências, a polícia pouco tolhe a língua e a tribuna pôs em moda a discussão. Quando um rapaz de vinte e dois anos, como aquele que se ocultava sob o nome de Jorge, tem espírito, é excessivamente levado, sobretudo como na atual situação, a fazer abuso dele. De início, Jorge decretou ser ele a criatura superior daquela reunião. Viu no conde um fabricante de segunda categoria, uma espécie de cuteleiro; um magriço no rapaz lamentável acompanhado por Mistigris, um tolinho em Oscar e no bojudo granjeiro um lindo tipo para mistificar. Depois de se preparar, resolveu divertir-se à custa dos companheiros de viagem.

— Vejamos — disse consigo mesmo, enquanto o coucou de Pierrotin descia de Chapelle para enveredar pela planície de Saint-Denis —; far-me-ei passar por Étienne[24] ou por Béranger?...[25] Não, esses tipos são de molde a não conhecer nem um nem outro. Carbonaro?... Diabos, poderia fazer-me prender. E se eu fosse um filho do marechal Ney?...[26] Ora, que teria para dizer-lhes? A execução de meu pai. Não teria graça. E se eu viesse do Champ-d’Asile?...[27] Poderiam tomar-me por um espião e desconfiariam de mim. Sejamos um príncipe russo disfarçado, vou fazê-los engolir particularidades pasmosas do imperador Alexandre... Se eu me declarasse Cousin, professor de filosofia?... Oh! Como os poderia embrulhar! Não, o magriço de cabelos eriçados tem-me o ar de ter gasto a sola dos sapatos lá pelos cursos da Sorbonne. Por que não me lembrei mais cedo de os empulhar? Eu imito tão bem os ingleses; poderia apresentar-me como Lord Byron, viajando incógnito... Com os diabos! Errei o golpe. Ser filho de carrasco? Aqui está uma notável ideia para reservar-me um lugar no almoço. Ora, terei comandado as tropas de Ali, paxá de Janina!...[28]

Durante esse monólogo, o carro rodava por entre as nuvens de poeira que se erguem incessantemente dos lados baixos daquela estrada tão frequentada.

— Que poeira! — disse Mistigris.

— Henrique iv morreu — replicou-lhe vivamente o companheiro. — Ainda que dissesses que ela recende a baunilha, terias emitido uma opinião nova.

— Você diz isso por graça — respondeu Mistigris —, pois bem, há momentos em que lembra a baunilha.

— No levante — disse Jorge, querendo iniciar uma história.

— Não levante o quê? — perguntou o mestre a Mistigris, interrompendo Jorge.

— Refiro-me ao Oriente, de onde volto — disse Jorge —, lá a poeira tem muito bom cheiro, mas aqui ela só tem cheiro quando se encontra um depósito de esterco como este.

— O senhor vem do Oriente? — perguntou Mistigris com ar de troça.

— Pois não vês que esse senhor está tão fatigado que se pôs no poente?

— Não está muito queimado do sol — observou Mistigris.

— Oh! Acabo de sair da cama, depois de uma doença de três meses, cuja origem, dizem os médicos, era uma peste recolhida.

— Teve a peste! — exclamou o conde, fazendo um gesto de pavor. — Pare, Pierrotin!

— Siga, Pierrotin — ordenou Mistigris. — Não lhe disseram que a peste estava recolhida? — disse ele, interpelando o sr. de Sérisy. — É uma peste que passa na conversa.

— Uma peste das que se dizem: Peste! — exclamou o mestre.

— Ou: que a peste leve o burguês! — replicou Mistigris.

— Mistigris! — disse o mestre —, deixo-o a pé se você arrumar encrencas. Assim pois — disse ele, virando-se para Jorge —, o senhor esteve no Oriente?

— Sim, senhor, primeiro no Egito e depois na Grécia, onde servi Ali, paxá de Janina, com quem tive um terrível bate-boca. Não se pode resistir a um clima daqueles. Por isso as emoções de toda espécie que provoca a vida oriental arruinaram-me o fígado.

— Ah!, o senhor serviu? — disse o bojudo granjeiro. — Que idade tem?

— Vinte e nove anos — afirmou Jorge, para o qual se dirigiu o olhar de todos os viajantes. — Aos dezoito anos parti como simples soldado para a famosa campanha de 1813; mas assisti somente ao combate de Hanau,[29] onde ganhei o posto de sargento-mor. Em França, em Montereau, fui nomeado subtenente e fui condecorado por... (não há secretas?) pelo imperador.

— O senhor é condecorado? — disse Oscar. — E não usa a cruz?

— Uma cruz dessas? Passe bem. De resto, qual é o homem de bom-tom que usa suas condecorações em viagem? Ali está aquele senhor — disse apontando para o sr. de Sérisy —, aposto tudo o que quiserem...

— Apostar tudo o que se quiser é, em França, um modo de não apostar coisa alguma — disse o mestre a Mistigris.

— Aposto tudo o que quiserem — repetiu Jorge afetadamente — que esse senhor tem uma porção de crachás.

— Eu — respondeu rindo o conde de Sérisy — tenho a grã-cruz da Legião de Honra, a de Santo-André da Rússia, a da Águia da Prússia, a da Annunciata da Sardenha e a Tosão de Ouro.

— Quase nada! — disse Mistigris. — E tudo isso anda de coucou!

— Ah!, o homem cor de tijolo não tem cerimônias — disse Jorge ao ouvido de Oscar. — Hein! Que lhes dizia eu! — comentou em voz alta. — Quanto a mim, não escondo, adoro o imperador...

— Eu o servi — disse o conde.

— Que homem!, não é? — exclamou Jorge.

— Um homem ao qual devo muitas obrigações — respondeu o conde, com um ar simplório muito bem imitado.

— Suas cruzes? — disse Mistigris.

— E como ele tomava rapé — disse o sr. de Sérisy.

— Oh!, tirava-o do bolso as mãos-cheias — disse Jorge.

— Já me disseram isso — interpôs Léger com ar quase de dúvida.

— Mais ainda, ele mascava e fumava — continuou Jorge. — Vi-o fumando, e de modo esquisito, em Waterloo, quando o marechal Soult[30] o arrebatou nos braços e o atirou no carro, no momento em que ele se apoderava de uma carabina e se ia atirar contra os ingleses!...

— O senhor esteve em Waterloo? — perguntou Oscar, arregalando os olhos.

— Sim, jovem, fiz a campanha de 1815. No Mont-Saint-Jean,[31] eu era capitão, e retirei-me para o Loire quando nos licenciaram. Franqueza, a França me aborrecia, não pude aguentar. Não, ter-me-ia feito prender. Por isso fui com dois ou três pândegos: Selves, Besson[32] e outros, que a estas horas estão no Egito, a serviço do paxá Moamed, um tipo patusco, podem crer! Outrora, simples vendedor de tabaco em Kavala, está a caminho de se tornar príncipe soberano. Devem tê-lo visto no quadro de Horace Vernet,[33] o Massacre dos mamelucos. Que belo homem! Eu não quis renegar a religião de meus pais e abraçar o islamismo, tanto mais que a abjuração exige uma operação cirúrgica da qual nem quero ouvir falar. Ademais, ninguém gosta de um renegado. Ah!, se me tivessem oferecido cem mil francos de renda, talvez... E isso mesmo... Não. O paxá mandou dar-me mil thalers de gratificação...

— Que é isso? — disse Oscar, que era todo ouvidos.

— Oh!, não é grande coisa. O thaler é como quem diz uma moeda de cem sous. E, por Deus, que não ganhei a renda para os vícios que contraí naquele amaldiçoado país, se é que aquilo é um país. Hoje, não posso passar sem fumar narguilé duas vezes por dia, e sai caro...

— E, daí, como é o Egito? — perguntou o sr. de Sérisy.

— O Egito é só areia — respondeu Jorge sem pestanejar. — O único verde é o vale do Nilo. Tracem uma linha verde numa folha de papel amarelo, e aí está o Egito. Em compensação os egípcios, os felás, nos levam uma vantagem: lá não há gendarmes. Oh!, podem percorrer todo o Egito, que não encontrarão nenhum.

— Suponho que deve haver muitos egípcios — disse Mistigris.

— Não tantos como supõe — retrucou Jorge. — Há muito mais abissínios, guiaurs, vechabitas, beduínos e captas. Enfim, todos esses animais são tão pouco divertidos que me senti bem feliz ao embarcar numa polaca genovesa que devia ir carregar pólvora e munições nas ilhas Jônias, para Ali de Tebelen. Sabem?, os ingleses vendem pólvora e munição para todo o mundo, para os turcos, os gregos e até para o diabo, se o diabo tivesse dinheiro. Assim é que de Zante devíamos costear o litoral da Grécia. Tal como me veem, meu nome de Jorge é famoso naquele país. Sou neto daquele célebre Czerni-Jorge,[34] que guerreou a Sublime Porta[35] e que infelizmente, ao invés de arrombá-la, foi ele próprio arrombado. O seu filho refugiou-se na casa do cônsul francês, em Esmirna, e veio morrer em Paris em 1793, deixando minha mãe grávida de mim, seu sétimo filho. Nossos tesouros foram roubados por um dos amigos de meu avô, de modo que ficamos arruinados. Minha mãe, que vivia do produto dos seus diamantes, vendidos um a um, desposou em 1799 o sr. Yung, meu padrasto, que era um fornecedor. Mas minha mãe morreu, e eu me malquistei com meu padrasto, que, aqui entre nós, é um patife; ainda vive, mas não temos relações. Esse sujeito nos deixou, aos sete, sem nos dizer: — És cão? És lobo? — Eis aí por que, desesperado, eu parti em 1813 como simples recruta... Não podem imaginar com que alegria aquele velho Ali de Tebelen recebeu o neto de Czerni-Jorge. Aqui uso simplesmente o nome de Jorge. O paxá deu-me um serralho...

— O senhor teve um serralho? — perguntou Oscar.

— Era o senhor um paxá de muitos rabichos? — indagou Mistigris.

— Como é que não sabe — retrucou Jorge — que somente o sultão pode fazer paxás, e que meu amigo Ali de Tebelen, pois éramos amigos como Bourbons, estava em revolta contra o padixá! Bem sabe, ou não sabe, que o verdadeiro nome do grão-senhor é padixá e não grão-turco ou sultão. Não creia que um serralho seja uma coisa do outro mundo: vale tanto como ter um rebanho de cabras. Aquelas mulheres são muito estúpidas, e prefiro, cem vezes mais, as grisettes da Chaumière[36] em Montparnasse.

— É mais perto — disse o conde de Sérisy.

— As mulheres do serralho não sabem uma palavra de francês, e a língua é necessária para a gente se entender. Ali deu-me cinco mulheres legítimas e dez escravas. Isso, em Janina, é como se eu não tivesse nada. No Oriente, fiquem sabendo, ter mulheres é coisa destoante, a gente as tem, como aqui temos Voltaire e Rousseau; mas quem é que jamais abre o seu Voltaire ou o seu Rousseau? Ninguém. E, entretanto, lá, o bonito é ser ciumento. Cosem uma mulher dentro de um saco e atiram-na à água por uma simples suspeita, de acordo com um artigo do código deles.

— O senhor atirou alguma? — perguntou o granjeiro.

— Eu? Que ideia! Eu, um francês! Amei-as, somente.

Aí Jorge torceu e revirou os bigodes, tomando um ar sonhador. Estavam entrando na Porte Saint-Denis, onde Pierrotin parou em frente a uma estalagem, onde se vendiam os célebres folhados, e onde todos os viajantes costumam descer. Intrigado com as aparências de verdade misturadas aos gracejos de Jorge, o conde tornou a subir precipitadamente para o carro, olhou embaixo da almofada a pasta que Pierrotin lhe dissera ter sido ali guardada por aquele enigmático personagem e leu em letras douradas: “Crottat, notário”. Imediatamente, o conde tomou a liberdade de abri-la temendo, com razão, que o velho Léger tivesse igual curiosidade; tirou dali o contrato que dizia respeito à herdade dos Molineaux, dobrou-o, guardou-o no bolso do lado da sua sobrecasaca e voltou para observar os passageiros.

— Esse Jorge é pura e simplesmente o segundo ajudante de Crottat. Felicitarei seu patrão, que me devia ter mandado seu primeiro ajudante — disse o conde, consigo mesmo.

Pelo ar respeitoso de Léger e de Oscar, Jorge compreendeu que tinha neles fervorosos admiradores; deu-se, naturalmente, ares de grão-senhor, pagou-lhes folhados e um copo de vinho de Alicante, oferecendo a mesma coisa também a Mistigris e ao seu mestre e aproveitando aquela liberalidade para lhes perguntar o nome.

— Oh!, senhor — disse o mestre de Mistigris —, não sou portador de um nome tão ilustre como o seu, não estou de regresso da Ásia.

Nesse momento, o conde, que se apressara em voltar para a imensa cozinha do estalajadeiro, a fim de não dar lugar a suspeitas sobre a sua descoberta, pôde ouvir o fim daquela resposta.

— ... sou simplesmente um pobre pintor, que volto de Roma, aonde fui à custa do governo, depois de ter tirado o grande prêmio há cinco anos. Chamo-me Schinner.

— Ei!, burguês, pode-se oferecer-lhe um copo de vinho de Alicante e folhados? — perguntou Jorge ao conde.

— Obrigado — disse o conde —, nunca saio sem ter tomado minha xícara de café com creme.

— E não come nada entre as refeições? Como isso é Marais, Place Royale e Île de Saint-Louis[37] — disse Jorge. — Quando ele pilheriou, há pouco, a respeito das suas cruzes, julguei-o mais forte do que de fato é — disse ao pintor, em voz baixa —, mas tornaremos a levar de novo esse fabricante de velas para as suas condecorações. Vamos, meu bravo — disse ele a Oscar —, cheire o copo servido para o merceeiro, isso lhe fará crescer o bigode.

Oscar quis fazer-se de homem, bebendo o segundo copo e comendo mais três queijadinhas.

— Bom vinho — comentou o velho Léger, dando estalos com a língua.

— É tanto melhor — disse Jorge — por vir de Bercy! Fui a Alicante, e, creia-me, isto é tanto vinho de lá como meu braço se parece com um moinho de vento. Nossos vinhos falsificados são muito melhores do que os vinhos naturais. Vamos, Pierrotin, um copo? Hein! É pena que seus cavalos não possam chupar um, cada um deles, pois assim iríamos melhor!

— Oh!, não é preciso, já tenho um cavalo toldado[38] — disse Pierrotin, mostrando Bichette.

Ao ouvir aquele vulgar trocadilho, Oscar achou que Pierrotin era um tipo prodigioso.

— Sigamos! — essa palavra de Pierrotin repercutiu por entre um estalido de chicote, quando os viajantes se encaixaram no carro.

Eram então onze horas. O tempo, um pouco nublado, limpou, o vento do alto correu as nuvens, o azul do éter brilhou em alguns pontos; por isso, quando o carro de Pierrotin enveredou pela pequena fita de estrada que separa Saint-Denis de Pierrefitte, o sol acabava de beber os últimos e tênues vapores, cujo véu diáfano envolvia as paisagens desse célebre subúrbio.

V – ONDE MISTIGRIS SE DISTINGUE

— E então! Por que deixou seu amigo, o paxá? — perguntou o velho Léger a Jorge.

— Era um velhaco — respondeu Jorge com um ar que subentendia uma porção de mistérios. — Imagine que me deu o comando da sua cavalaria!... Muito bem.

“Ah! aí está o motivo por que ele usa esporas”, pensou o pobre Oscar.

— No meu tempo, Ali de Tebelen tinha de desvencilhar-se de Chosrew-Paxá,[39] outro freguês de marca! Chamam-no aqui Chaureff, mas o seu nome em turco pronuncia-se Cossereu. Devem ter lido, antigamente, nos jornais, que o velho Ali deu uma tunda em Chosrew, e das bem boas. Pois bem! Sem mim, Ali de Tebelen teria sido frito alguns dias mais cedo. Eu estava no flanco direito quando vi Chosrew, um velho finório, rompendo o nosso centro... Oh!, firme: e com um belo movimento ao feitio de Murat. Bom! Preparo-me, levo uma carga a toda brida e corto em duas a coluna de Chosrew, que ultrapassara o centro e ficara a descoberto. Compreendem... Ah!, mas também, depois do entrevero, Ali me beijou...

— Isso se faz no Oriente? — perguntou o conde de Sérisy, com ar de troça.

— Sim, senhor — respondeu o pintor —, isso se faz em toda parte...

— Perseguimos Chosrew por mais de trinta léguas... Como numa caçada, sim! — continuou Jorge —, os turcos são cavaleiros perfeitos. Ali deu-me iatagãs, espingardas e sabres!... A não querer mais. De volta à sua capital, aquele endiabrado farsante fez-me propostas que absolutamente não me convinham. Esses orientais são engraçados, quando têm as suas ideias... Ali queria que eu fosse o seu favorito, o seu herdeiro. Mas eu já estava farto daquela vida, pois, afinal de contas, Ali de Tebelen estava rebelado contra a Porta[40] e eu achei conveniente ganhar a porta. Faço, entretanto, justiça ao senhor de Tebelen; ele me cumulou de presentes; diamantes, dez mil thalers, mil moedas de ouro, uma linda grega para groom, um jovem armênio para companheiro e um cavalo árabe. Sim, senhores, Ali, paxá de Janina, é um homem incompreendido, precisará de um historiador. Só no Oriente é que se encontram dessas almas de bronze, que fazem tudo durante vinte anos, para, num belo dia, vingar uma ofensa. Antes de tudo, ele tinha a mais bela barba branca que já se viu; um rosto duro, severo...

— Mas que fez o senhor de seus tesouros? — disse o velho Léger.

— Ah!, aí está. Aquela gente não tem nem Grande-Livro, nem Banco de França; embarquei, portanto, a minha massa numa tartana grega que foi capturada pelo próprio capitão-paxá.[41] Tal como me veem, eu quase que fui empalado em Esmirna. Sim, realmente não fosse o sr. de Rivière,[42] o embaixador que lá estava, ter-me-iam tomado por um cúmplice de Ali-Paxá. Salvei a cabeça, a fim de falar honradamente, mas os dez mil thalers, as mil moedas de ouro, as armas, oh!, tudo foi bebido pelo tesouro-esponja do capitão-paxá. Minha posição era tanto mais difícil por ser o capitão-paxá o próprio Chosrew. Depois da esfrega, o danado tinha obtido aquele posto que equivale ao de grande almirante em França.

— Mas, segundo parece, ele era da cavalaria — disse o velho Léger, que seguia atentamente a narrativa de Jorge.

— Oh!, bem se vê o quanto o Oriente é pouco conhecido no departamento de Seine-et-Oise — exclamou Jorge. — Senhor, assim são os turcos: o senhor é granjeiro, o padixá o nomeia marechal; se o senhor não desempenha essas funções do gosto dele, tanto pior para o senhor, cortam-lhe a cabeça; é o modo que ele usa para destituir os funcionários. Um jardineiro torna-se prefeito e um primeiro-ministro volta a ser um chiaus.[43] Os otomanos não conhecem as leis da promoção, nem a hierarquia! De cavalariano Chosrew passou a ser marujo. O padixá Moamed encarregara-o de aprisionar Ali pelo mar, e ele efetivamente apoderou-se deste, mas auxiliado pelos ingleses, que ficaram com a melhor parte, os espertalhões, pois se apoderaram dos tesouros. Esse Chosrew, que não esquecera a lição de equitação que eu lhe havia dado, reconheceu-me. Compreendem que meu caso estava liquidado, oh!, no duro!, se eu não tivesse tido a ideia de apelar para a minha condição de francês e de troubadour perante o sr. de Rivière. O embaixador, encantado por se exibir, exigiu minha liberdade. Os turcos têm isso de bom no caráter, que tanto deixam o freguês ir embora como lhe cortam a cabeça; são indiferentes a tudo. O cônsul de França, um homem encantador, amigo de Chosrew, fez com que me restituíssem dois mil thalers, por isso seu nome, posso dizê-lo, está gravado no meu coração...

— Chama-se ele? — perguntou o conde.

O sr. de Sérisy deixou transparecer no semblante sinais de espanto, quando Jorge, efetivamente, lhe disse o nome de um dos nossos mais notáveis cônsules-gerais que, nessa época, se achava em Esmirna.

— Entre parênteses, assisti à execução do comandante de Esmirna, pois o padixá ordenara a Chosrew que o matasse; foi uma das coisas mais curiosas que eu já vi, embora tenha visto muitas outras; eu lhes contarei daqui a pouco enquanto almoçarmos. De Esmirna fui para a Espanha, ao saber que havia lá uma revolução. Oh!, fui direto a Mina,[44] que me tomou como ajudante de campo e me deu o posto de coronel. Bati-me pela causa constitucional que vai sucumbir, pois, qualquer dia destes, invadiremos a Espanha...[45]

— E o senhor é oficial francês? — perguntou severamente o conde de Sérisy. — Conta muito com a discrição dos que o estão ouvindo.

— Mas se não há secretas! — disse Jorge.

— Mas se lembrou, coronel Jorge — disse o conde —, de que, neste momento, estão julgando na corte dos pares uma conspiração que deixou o governo muito severo para com os militares que tomam armas contra a França e que conspiram no estrangeiro, visando derrubar nossos soberanos legítimos?

Ante aquela terrível observação, o pintor corou até a raiz dos cabelos e olhou para Mistigris, que ficou inquieto.

— E então? — disse o velho Léger. — E daí?

— Se, por exemplo, eu fosse magistrado, não seria meu dever — disse o conde — mandar que prendessem o ajudante de campo de Mina, pelos gendarmes da brigada de Pierrefitte, e intimar como testemunhas todos os viajantes que estão no carro?

Essas palavras cortaram tanto mais a palavra de Jorge, porque estavam chegando em frente à brigada da gendarmaria, cuja bandeira branca flutuava — em termos clássicos — ao sabor do zéfiro.

— O senhor tem demasiadas condecorações para cometer tal baixeza — disse Oscar.

— Nós o tornaremos a pegar — disse Jorge ao ouvido de Oscar.

— Coronel — exclamou Léger, a quem a saída do conde de Sérisy oprimia e que procurava mudar de assunto —, nas terras por onde o senhor andou, como é que cultivam? Como fazem eles a rotação?

— Para começar, meu caro, o senhor compreende que essa gente está demasiado ocupada em fumar, para que se meta a estrumar as suas terras.

O conde não pôde deixar de sorrir.[46] Esse sorriso tranquilizou o narrador.

— Têm, entretanto, um modo de cultivar que lhe vai parecer esquisito. Não cultivam de modo nenhum, e é essa a maneira de cultivarem. Os turcos e os gregos são gente que come cebola ou arroz. Colhem o ópio das suas papoulas, e isso lhes dá grandes lucros; e além disso têm o tabaco, que cresce espontaneamente, o famoso lataqui! E depois, as tâmaras! Uma porção de coisas açucaradas que crescem sem cultivo. É uma terra cheia de recursos e de comércio. Em Esmirna fazem muitos tapetes, e que não são caros.

— Mas — objetou Léger —, se os tapetes são de lã, esta só vem das ovelhas, e para ter ovelhas são precisos prados, herdades, cultura...

— Deve com efeito haver algo nesse sentido — respondeu Jorge —; mas, em primeiro lugar, o arroz nasce dentro d’água; e depois sempre andei ao longo da costa e não vi senão terras devastadas pela guerra. De resto, tenho a mais profunda aversão pela estatística.

— E os impostos? — perguntou Léger.

— Ah!, os impostos são pesados! Tomam-lhes tudo, mas deixam-lhes o resto. Impressionado com as vantagens desse sistema, o paxá do Egito estava em via de organizar sua administração por aquele modelo, quando o deixei.

— Mas como?... — disse o velho Léger, que não estava compreendendo mais nada.

— Como? — replicou Jorge. — Há agentes que tomam as colheitas, deixando aos felás o quanto dê para estes viverem. Também, nesse sistema, nada de papelório, nem de burocracia, a chaga da França... Aí está!

— Mas em virtude de quê? — disse o granjeiro.

— É um país de despotismo, e pronto! Não conhece a bela definição dada por Montesquieu ao despotismo? “Como o selvagem, ele corta a árvore pelo pé, para comer-lhe os frutos.”

— E querem fazer-nos voltar a isso! — disse Mistigris. — Mas, chaque échaudé craint l’eau froide.[47]

— E lá chegaremos — exclamou o conde de Sérisy. — Por isso os que têm terras farão bem em vendê-las. O sr. Schinner deve ter visto como vão essas coisas na Itália.

— Corpo di Bacco! O papa não anda com luvas de pelica! — respondeu Schinner. — Mas já se acostumaram. Os italianos são um povo tão bom! Contanto que os deixem assassinar um pouco os viajantes na estrada, ficam satisfeitos.

— Mas — observou o conde —, o senhor também não usa a condecoração da Legião de Honra que obteve em 1819; é então isso uma moda geral?

Mistigris e o falso Schinner coraram até às orelhas.

— Oh! Quanto a mim é diferente — disse Schinner —, eu não queria ser reconhecido. Não me traia, senhor. Estou passando por um pintor de meia-tigela, um decorador. Vou a um castelo onde não devo despertar a menor suspeita.

— Ah! — disse o conde —, alguma aventura amorosa, um amorico?... Oh!, como é feliz o senhor em ser moço...

Oscar, que estava arrebentando de raiva por não ser nada e nada ter a contar, olhava para o coronel Czerni-Jorge, para o grande pintor Schinner e procurava metamorfosear-se em alguma coisa. Mas que podia ser um rapaz de dezenove anos, que mandavam durante quinze a vinte dias para o campo, à casa do administrador de Presles? O vinho de Alicante subia-lhe à cabeça e seu amor-próprio fazia-lhe ferver o sangue nas veias, por isso, quando o famoso Schinner deixou entrever uma aventura romântica, cujos gozos deviam ser tão grandes quanto o perigo, fixou sobre ele seus olhos cintilantes de raiva e de inveja.

— Ah! — disse o conde com ar invejoso e crédulo —, é preciso amar muito uma mulher para fazer-lhe tão grandes sacrifícios...

— Que sacrifícios?... — perguntou Mistigris.

— Não sabe então, meu amiguinho, que um teto pintado por um tão grande mestre cobre-se de ouro? — respondeu-lhe o conde. — Vejamos! Se a Lista Civil[48] lhe paga trinta mil francos pelos tetos de duas salas do Louvre — continuou, olhando para Schinner —, para um burguês, como os senhores nos chamam nos seus ateliês, um teto vale bem vinte mil francos; ora, a um decorador obscuro darão, quando muito, uns dois mil.

— O dinheiro de menos não é a maior perda — respondeu Mistigris. — Lembre-se de que será seguramente uma obra-prima, e de que não se pode assinar para não comprometê-la.

— Ah! Eu de bom grado devolveria minhas cruzes aos soberanos da Europa para ser amado como o é um rapaz a quem o amor inspira tais devotamentos — exclamou o sr. de Sérisy.

— Ah!, aí está — disse Mistigris —, a gente é jovem, é amado! Tem-se mulher e, como dizem: Abondance de chiens ne nuit pas.[49]

— E que diz a isso a sra. Schinner? — insistiu o conde. — Porquanto o senhor desposou por amor a bela Adelaide de Rouville, protegida do velho almirante de Kergarouët, que foi quem o fez obter os tetos do Louvre, por intermédio de seu sobrinho, o conde de Fontaine.[50]

— Ora essa, onde se viu um grande pintor casado em viagem? — observou Mistigris.

— É essa então a moral dos ateliês? — exclamou ingenuamente o sr. de Sérisy.

— Será melhor a moral das cortes, onde o senhor obteve suas condecorações? — disse Schinner, que havia recobrado o sangue-frio, por um momento perturbado pelo conhecimento que o conde mostrava ter das encomendas feitas a Schinner.

— Não pedi nenhuma — respondeu o conde —, e creio tê-las ganhado todas lealmente.

— E isso lhe senta comme un notaire sur une jambe de bois[51] — replicou Mistigris.

O sr. de Sérisy não se quis trair, afetou um ar de bonomia, olhando para o vale de Groslay que se avista ao tomar, na Patte-d’Oie, o caminho de Saint-Brice, e ao deixar à direita o de Chantilly.

— Toma — disse Oscar, resmungando.

— Roma é tão bonita como dizem? — perguntou Jorge ao grande pintor.

— Roma só é bela para aqueles que amam; é preciso ter uma paixão para gostar de lá; mas, como cidade, prefiro Veneza, embora ali tivesse escapado de ser assassinado.

— Francamente, não fosse eu — atalhou Mistigris —, eram favas contadas! Foi aquele endiabrado farsante do Lord Byron quem lhe arrumou a cama. Oh!, aquele inglês das arábias era um demônio!

— Pst! — fez Schinner. — Não quero que saibam da minha contenda com Lord Byron.

— Confesse, em todo caso — respondeu Mistigris —, que você bem que gostou de eu ter aprendido a capoeira, não?

De quando em quando, Pierrotin trocava com o conde de Sérisy olhares esquisitos que teriam inquietado gente mais experimentada do que aqueles cinco viajantes.

— Lordes, paxás, tetos de trinta mil francos! Com os diabos! — exclamou o carreiro de L’Isle-Adam. — Tocou-me hoje conduzir soberanos? Que gorjetas!

— Sem contar que os lugares já foram pagos — disse Mistigris com finura.

— Isso me calha bem — continuou Pierrotin —, pois, tio Léger, o senhor sabe do meu lindo carro novo, pelo qual já entreguei dois mil francos de entrada?... Pois bem! Aqueles canalhas dos fabricantes, a quem amanhã devo ainda entregar dois mil e quinhentos francos, não quiseram aceitar mil e quinhentos por conta e receber uma promissória de mil francos a dois meses!... Aqueles condenados querem tudo! Ser duro a esse ponto com um homem estabelecido há oito anos, com um chefe de família, e botá-lo em perigo de perder tudo, dinheiro e carro, se eu não encontrar uma miserável nota de mil francos! Upa! Bichette! Eles não fariam uma coisa dessas às grandes empresas, fiquem certos.

— Ah! claro! Pas d’argent, pas de suif [52]— disse Mistigris.

— Só lhe falta conseguir oitocentos francos — respondeu o conde, vendo naquele lamento, dirigido ao velho Léger, uma espécie de letra de câmbio emitida contra ele mesmo.

— É verdade — disse Pierrotin. — Vamos, Rougeot!

— Deve ter visto bonitos tetos em Veneza — disse o conde, dirigindo-se a Schinner.

— Estava demasiado apaixonado para prestar atenção no que, naquele momento, se me afiguravam bagatelas — respondeu Schinner. — Entretanto, eu já devia estar bem curado do amor, pois que, justamente nos estados venezianos, na Dalmácia, recebi uma cruel lição.

— Pode-se ouvir isso? — perguntou Jorge. — Eu conheço a Dalmácia.

— Pois bem! Se já andou por lá deve saber que no fundo do Adriático todos são velhos piratas, bandidos, corsários aposentados, quando não foram enforcados, e...

— Os uscoques[53] — disse Jorge.

Ao ouvir o termo próprio, o conde, a quem Napoleão, uma vez, mandara às províncias da Ilíria, virou a cabeça, de tão admirado que ficou.

— Foi naquela cidade onde se fabrica o marasquino — disse Schinner, que parecia estar procurando um nome.

— Zara! — disse Jorge. — Estive lá, é na costa.

— É isso mesmo — replicou o pintor. — Eu tinha ido lá para observar a região, pois que adoro a paisagem. Já por mais de vinte vezes tive vontade de fazer paisagens, arte que ninguém entende, salvo Mistigris, que algum dia renovará um Hobbem, um Ruysdaël, um Claude Lorrain, um Poussin[54] e outros mais.

— Mas — exclamou o conde —, que ele renove apenas um desses, e já será muito.

— Se o senhor interrompe a toda hora — disse Oscar —, acabaremos por não entender nada.

— Aliás, não é ao senhor a quem o sr. Schinner se dirige — disse Jorge ao conde.

— Não é distinto interromper uma pessoa — sentenciou Mistigris —, mas todos nós já fizemos o mesmo, e muito se perderia se não entremeássemos no discurso algumas amenidades, ao trocarmos nossas reflexões. Todos os franceses são iguais perante o coucou — disse o neto de Jorge. — Assim, pois, simpático ancião, continue... Deboche-nos. É coisa que se faz nas melhores sociedades, e o senhor conhece o provérbio: Il faut ourler avec les loups.[55]

— Tinham-me contado maravilhas da Dalmácia — continuou Schinner. — Fui, portanto, para lá e deixei Mistigris em Veneza, numa hospedaria.

— Na locanda! — disse Mistigris. — Ponhamos cor local.

— Zara é, como se diz, uma vilania.

— Sim — disse Jorge —, mas é fortificada.

— Ora essa! — disse Schinner. — As fortificações em muito concorreram para a minha aventura. Em Zara há muitos boticários, eu me hospedei em casa de um deles. Nos países estrangeiros, todos têm por ofício principal alugar peças mobiliadas; a outra profissão é acessória. À tarde, depois de ter mudado de roupa, fui para a sacada. Ora, na sacada fronteira, vejo uma mulher, oh!, mas uma mulher e tanto, uma grega, não preciso dizer mais nada, a mais bela criatura da cidade; olhos rasgados como amêndoas, pálpebras que se abriam como persianas e cílios como pincéis; um rosto de um oval capaz de enlouquecer Rafael, uma tez de um colorido delicioso, de tonalidades bem combinadas; aveludadas... mãos... oh!...

— Que não eram de manteiga, como as da pintura da escola de David[56] — disse Mistigris.

— Ora, só nos falam de pintura! — exclamou Jorge.

— Sim, aí está, chassez le naturel, il revient au jabot [57] — replicou Mistigris.

— E um traje! O vestuário grego — disse Schinner. — Compreendem, incendiei-me logo. Indago do meu Diafoirus[58] e ele me informa que aquela vizinha se chamava Zena. Mudo de roupa. Para desposar Zena, o marido, um velho infame, deu trezentos mil francos aos pais, de tal forma era célebre a beleza daquela rapariga, na verdade, a mais bela criatura de toda a Dalmácia, Ilíria, Adriático etc. Nesse país, compra-se a mulher, e sem ver...

— Não irei por lá — disse Léger.

— Há noites em que os olhos de Zena me iluminam o sono — continuou Schinner. — Esse jovem galã de marido tinha sessenta e sete anos. Bom! Mas era ciumento, não digo como um tigre, pois costumam afirmar que o tigre é ciumento como um dálmata, e o meu homem era pior do que um dálmata, valia três dálmatas e meio. Era um uscoque, um tricoque, um arquicoque, num bicoque.[59]

— Enfim, um desses espertalhões que n’attachent pas leurs chiens avec des cent-suisses...[60] — disse Mistigris.

— Notável! — disse Jorge rindo.

— Depois de ter sido corsário, e talvez pirata, o tal tanto se lhe dava de matar um cristão como eu de cuspir no chão — disse Schinner. — Muito bem. Aliás, rico de milhões, o velho patife, e feio como um pirata! Não sei que paxá lhe havia arrancado as orelhas, e não sei onde deixara ele um olho... O uscoque servia-se, como gente grande, do único que lhe restava, e peço-lhes que me creiam, quando lhes disser, que trazia tudo de olho. — Ele nunca deixa a mulher, disse-me o pequeno Diafoirus. — Se ela vier a precisar dos seus serviços, eu o substituirei disfarçado; é uma farsa que sempre obtém êxito nas nossas peças teatrais — respondi-lhe. Seria muito longo descrever-lhes o mais delicioso período de minha vida, isto é, os três dias que passei à janela, trocando olhares com Zena e mudando de roupa todas as manhãs. Isso era tanto mais violentamente excitante, por serem os menores movimentos significativos e perigosos. Finalmente, Zena deduziu, com certeza, que só um estrangeiro, um francês, um artista era capaz de namorá-la no meio dos abismos que a cercavam; e como ela abominava o seu horroroso pirata, respondia aos meus olhares com olhadelas capazes de suspender um homem, sem roldana, ao zimbório do paraíso. Eu alcançava as alturas de Dom Quixote; exalto-me, exalto-me. Finalmente brado: — Pois bem, o velho me matará, mas eu irei!. Chegava de estudos de paisagens: eu estudava o bicoque do uscoque. À noite, depois de vestir minha roupa mais perfumada, atravesso a rua e entro...

— Na casa? — exclamou Oscar.

— Na casa? — repetiu Jorge.

— Na casa! — afirmou Schinner.

— Pois, meu caro, você é um grande valentão — disse Léger —, por quem sou, lá eu não iria...

— Tanto mais que o senhor não passaria na porta — respondeu Schinner. — Entro, pois — continuou —, e encontro duas mãos, que tomam as minhas. Nada digo, pois essas duas mãos, macias como casca de cebola, me recomendavam silêncio! Sussurram-me ao ouvido em veneziano: “Ele está dormindo!”. Depois, quando nos asseguramos de que ninguém nos poderia encontrar, fomos, Zena e eu, passear pelas fortificações, mas acompanhados, se me faz favor, por uma aia, feia como um velho porteiro, e que não nos deixava, como se fosse a nossa sombra, sem que eu pudesse persuadir madame pirata a separar-se daquela absurda companheira. Na noite seguinte repetimos; eu queria mandar a velha embora; Zena, porém, resiste. Como a minha amada falava grego e eu veneziano, não nos podíamos entender; por esse motivo separamo-nos arrufados. Ao mudar de roupa, disse com os meus botões: — Seguramente, na próxima vez, não haverá mais velha, e nos reconciliaremos cada um na sua língua materna... Pois bem! Foi a velha quem me salvou! Vão ver. Estava um tempo tão lindo que, para não despertar suspeitas, fui flanar na paisagem, depois da nossa reconciliação, já se deixa ver. Depois de ter passado pelas fortificações, eu regressava tranquilamente de mãos nos bolsos, e vejo a rua obstruída por gente. Uma multidão... xi! Como para uma execução. Essa multidão atira-se sobre mim. Sou preso, amarrado, conduzido e guardado por policiais. Não! Não podem saber, e faço votos para que jamais o saibam, o que é passar por assassino aos olhos de um populacho desenfreado, que nos atira pedras, que berra atrás de nós de ponta a ponta da rua principal de uma cidadezinha e que nos persegue com gritos de morte. Ah! Todos os olhos são como outras tantas chamas, todas as bocas são uma injúria, e aqueles fachos de ódio ardente se destacam sobre o pavoroso grito: “À morte! Morra o assassino!...”, que de longe lembra a voz de um baixo abaritonado...

— Eles gritavam então em francês, esses dálmatas? — perguntou o conde de Sérisy. — O senhor nos está contando essa cena como se ela se tivesse passado ontem.

Schinner ficou perplexo.

— O motim, por toda parte, fala a mesma língua — disse o profundo político Mistigris.

— Enfim — continuou Schinner —, quando cheguei ao palácio da localidade, e em presença dos magistrados da terra, soube que o condenado corsário morrera envenenado por Zena. Bem quisera eu poder mudar de roupa. Palavra de honra que eu nada sabia daquele melodrama. Parece que a grega misturava ópio (há por lá tanta papoula, como diz o senhor!) ao grogue do pirata, a fim de roubar um pequeno momento de liberdade para passear, e, na véspera, a infeliz mulher enganara-se na dose. A imensa fortuna do maldito pirata era a causa da desgraça de Zena; ela, porém, explicou tão ingenuamente as coisas que, em primeiro lugar, eu, pela declaração da velha, fui posto fora de causa, com uma injunção da autoridade municipal e do comissário de polícia austríaca, para que fosse para Roma. Zena, que deixou os herdeiros e a justiça lhe tomarem grande parte das riquezas do uscoque, ficou quite, disseram-me, com dois anos de reclusão num convento, onde ainda se acha. Vou fazer-lhe o retrato, pois dentro de alguns anos tudo estará esquecido. Eis as loucuras que se cometem aos dezoito anos.

— E o senhor deixou-me sem um sous na locanda de Veneza — disse Mistigris. — Fui de Veneza para Roma para encontrá-lo, borrando retratos a cinco francos cada um, e que não me pagavam, mas foi o meu mais belo tempo! É como dizem: Le bonheur n’habite pas sous des nombrils dorés.[61]

— Podem imaginar as reflexões que me apertavam a garganta, numa prisão dálmata, atirado ali sem proteção, tendo de responder a austríacos da Dalmácia, e ameaçado de perder a cabeça, por ter passeado duas vezes com uma mulher que teimava em conservar consigo a aia! É o que se chama caiporismo! — exclamou Schinner.

— Como! — disse ingenuamente Oscar. — Isso lhe aconteceu?

— Por que motivo não teria isso acontecido ao senhor, uma vez que já aconteceu, durante a ocupação francesa na Ilíria, a um dos nossos mais belos oficiais de artilharia? — disse o conde com finura.

— E o senhor acreditou no artilheiro? — perguntou Mistigris com igual finura.

— E é tudo? — perguntou Oscar.

— Pois bem! — disse Mistigris. — Ele não lhes pode contar que lhe cortaram a cabeça. Plus on est debout, plus on rit.[62]

— Senhor, há granjas nessa terra de que falou? — perguntou o tio Léger. — Como se cultiva lá?

— Cultiva-se a marasca, uma planta que chega à altura da boca e que produz o licor marasquino.

— Ah! — fez o velho Léger.

— Fiquei apenas três dias na cidade e quinze na cadeia. Nada vi, nem mesmo os campos onde se colhe a marasca.

— Eles estão zombando do senhor — disse Jorge ao velho Léger. — O marasquino vem em caixões.

O carro de Pierrotin descia então uma das vertentes do pequeno vale de Saint-Brice para alcançar a hospedaria situada no centro daquele grande burgo, onde se detinha mais ou menos uma hora para dar fôlego aos cavalos, dar-lhes de comer e de beber. Era então cerca de uma hora e meia.

VI – COMEÇA O DRAMA

— Viva! É o velho Léger — exclamou o hoteleiro, no momento em que o carro se deteve em frente à porta. — Almoça?

— Uma vez, todos os dias — respondeu o volumoso granjeiro —, manducaremos um bocado.

— Prepare-nos o almoço — disse Jorge, segurando a bengala com castão de ouro, numa atitude militar tão garbosa que excitou a admiração de Oscar.

Oscar enfureceu-se quando viu aquele despreocupado aventureiro tirar do bolso do lado um estojo de palha trabalhada, do qual tomou um charuto louro, que fumou no umbral da porta, enquanto esperava o almoço.

— Fuma? — perguntou Jorge a Oscar.

— Às vezes — respondeu o ex-colegial, estufando seu minguado peito e tomando um arzinho decidido.

Jorge apresentou o estojo aberto a Oscar e a Schinner.

— Peste! — disse o grande pintor. — Charutos de dez sous.

— É o que resta do que trouxe da Espanha — disse o aventureiro. — Vão almoçar?

— Não — disse o artista —, esperam-me no castelo. Aliás, já tomei alguma coisa antes de partir.

— E o senhor? — perguntou Jorge a Oscar.

— Já almocei — disse este.

Oscar daria dez anos de vida para ter botas e presilhas na boca das calças. E espirrava, e tossia, e cuspia, e aspirava a fumaça com mal disfarçadas caretas.

— O senhor não sabe fumar — disse-lhe Schinner. — Olhe, veja!

Schinner, com o rosto imóvel, aspirou a fumaça do charuto e expeliu-a pelas narinas, sem a menor contração. Recomeçou, reteve a fumaça na garganta, tirou o charuto da boca e soprou graciosamente a fumaça.

— Aí está, rapaz — disse o grande pintor.

— Veja, rapaz, um outro processo — disse Jorge, imitando Schinner, mas tragando toda a fumaça, sem nada devolver.

— E meus pais que julgam ter-me educado — pensou o pobre Oscar, tentando fumar graciosamente.

Sentiu náuseas tão fortes que gostosamente deixou que o charuto lhe fosse surripiado por Mistigris, que lhe perguntou, enquanto fumava com evidente prazer: — Não sofre de doença contagiosa?

Bem quisera Oscar ser bastante forte para dar um soco em Mistigris.

— Como! — disse ele consigo, pensando no coronel Jorge — Oito francos de vinho de Alicante e de folhados, dois francos de charutos e o almoço que lhe vai custar...

— Pelo menos dez francos — respondeu Mistigris. — Mas é assim: Les petits poissons font les grandes rivières.[63]

— Ah!, tio Léger, não pode recusar acompanhar-me numa boa garrafa de vinho Bordeaux — disse então Jorge ao granjeiro.

— Um almoço que lhe vai custar dez francos! — exclamou interiormente Oscar. — Assim, agora, temos trinta e poucos francos.

Mortificado pelo sentimento de sua inferioridade, Oscar sentou-se num marco, e abismou-se numa cisma que não lhe permitiu ver que a sua calça, sungada em consequência da posição, deixava ver o ponto de junção de uma velha perna de meia em um pé completamente novo, obra-prima de sua mãe.

— Em matéria de meias somos colegas — disse Mistigris, erguendo um pouco a perna das calças para mostrar um efeito do mesmo gênero: mas les cordonniers sont toujours les plus mal chauffés.[64]

Esse gracejo fez sorrir o sr. de Sérisy, que se achava de braços cruzados na porta, por trás dos viajantes. Por mais aloucados que fossem aqueles rapazes, o excelente estadista lhes invejava os defeitos, gostava de suas jactâncias e admirava a vivacidade de seus gracejos.

— E então, conseguirá os Moulineaux? Pois que foi buscar dinheiro a Paris — dizia ao velho Léger o hoteleiro, que acabava de lhe mostrar na sua cocheira um pequeno e robusto cavalo. — Será engraçado você passar a perna num par de França, num ministro de Estado, o conde de Sérisy.

O velho administrador nada deixou ver no seu semblante e voltou-se para examinar o granjeiro.

— Está no ponto — respondeu em voz baixa o velho Léger ao hoteleiro.

— Francamente, tanto melhor, gosto de ver os nobres bestificados... E se precisar de uns vinte mil francos, eu estou pronto para emprestar-lhos; mas François, o cocheiro de Touchard, que passou às seis horas, disse-me que o sr. Margueron tinha sido convidado para jantar, hoje mesmo, em Presles, pelo conde de Sérisy.

— É o projeto de Sua Excelência, mas nós também temos as nossas manhas — respondeu o velho Léger.

— O conde colocará o filho do sr. Margueron, e você não tem cargos para dar! — disse o hoteleiro ao granjeiro.

— Não; mas se o conde tem por si os ministros, eu tenho o rei Luís xviii — disse o velho Léger ao ouvido do hoteleiro —, e quarenta mil retratos dele, dados ao tio Moreau, me permitirão comprar os Moulineaux por duzentos e sessenta mil francos à vista, antes do sr. de Sérisy, que ficará bem contente de comprar a herdade por trezentos e sessenta mil francos, em lugar de ver os pedaços de terra serem adjudicados um a um.

— Não está mal, burguês — exclamou o hoteleiro.

— Não é um trabalho limpo? — perguntou o granjeiro.

— E, afinal — disse o hoteleiro —, para ele a herdade vale isso.

— Os Moulineaux rendem, hoje, seis mil francos líquidos de impostos, e eu renovarei o arrendamento por sete mil e quinhentos francos por dezoito anos. Assim, é um emprego de capital a mais de dois e meio por cento. O senhor conde não será roubado. Para não prejudicar o sr. Moreau, eu serei proposto ao conde, por ele, como granjeiro; ele parecerá defender os interesses do patrão, conseguindo-lhe quase três por cento pelo seu dinheiro e um arrendatário que paga bem...

— Quanto Moreau receberá, ao todo?

— Pois, se o conde lhe der dez mil francos, ele tirará desse negócio cinquenta mil, mas o terá ganhado bem.

— Afinal de contas, ele pouco se preocupa com Presles! É tão rico! — disse o hoteleiro. — Quanto a mim, nunca o vi.

— Nem eu — disse o tio Léger —, mas vai acabar morando lá, pois de outra forma não gastaria duzentos mil francos para restaurar o interior. É tão bonito como a casa do rei.

— Ah! Bem! — disse o hoteleiro —, já era tempo de Moreau fazer o seu bolo.

— Sim, porque os donos, uma vez ali — disse Léger —, não andarão de olhos fechados.

O conde não perdeu uma única palavra daquela conversação mantida em voz baixa.

— Tenho pois aqui as provas que eu ia buscar lá — pensou o conde, olhando para o volumoso granjeiro, que voltava para a cozinha.

— Talvez — disse consigo mesmo — isso esteja apenas no estado de projeto. Talvez Moreau nada tenha aceitado... — tal era sua repugnância em acreditar que seu administrador fosse capaz de tomar parte em semelhante conspiração.

Pierrotin veio dar água aos cavalos. O conde pensou que o carreiro ia almoçar com o hoteleiro e o granjeiro; ora, o que acabava de ouvir fez-lhe temer alguma indiscrição.

— Toda essa gente está combinada contra nós, é uma boa obra destruir-lhes os planos — pensou consigo o conde. — Pierrotin — disse depois em voz baixa ao carreiro, aproximando-se deles —, eu te prometi dez luíses para guardares segredo; mas se quiseres continuar a ocultar meu nome (e eu saberei se nem o proferiste, nem fizeste o menor sinal que o possa revelar, até logo mais à noite, a quem quer que seja, e seja lá onde for, mesmo em L’Isle-Adam), eu te darei amanhã de manhã, na tua passagem, os mil francos para pagares o que falta do teu novo carro. Assim, para maior segurança — disse o conde, batendo no ombro de Pierrotin, que empalidecera de contente —, não almoces e fica junto aos teus cavalos.

— Creia, senhor conde, que eu o compreendo perfeitamente. É com relação ao velho Léger, não é?

— É com relação a todos — replicou o conde.

— Fique tranquilo... Apressemo-nos — disse Pierrotin, entreabrindo a porta da cozinha —, estamos atrasados. Ouça, tio Léger, o senhor sabe que temos de subir a encosta; eu não tenho fome, irei devagar, o senhor me alcançará facilmente e lhe fará bem caminhar.

— Está com o diabo no corpo, esse Pierrotin! — disse o hoteleiro. — Não queres almoçar conosco? O coronel está pagando vinho de dois francos e meio e uma garrafa de champanhe.

— Não posso. Tenho peixe que devo entregar em Stors às três horas para um grande jantar, e não se pode brincar com aqueles fregueses, nem com os peixes.

— Pois bem! — disse o velho Léger ao hoteleiro —, prende no cabriolé esse cavalo que me queres vender, tu nos farás alcançar Pierrotin, nós almoçaremos sossegados e eu julgarei o cavalo. Caberemos bem três nessa tua carriola, não?

Com grande satisfação do conde, Pierrotin foi, em pessoa, arrear, outra vez, os cavalos. Schinner e Mistigris tinham ido adiante.

Pierrotin, que recolhera os dois artistas a meio caminho de Saint-Brice a Poncelles, acabava apenas de atingir uma elevação da estrada, de onde se via Écouen, o campanário do Mesnil e as florestas que circundam uma encantadora paisagem, quando o ruído de um cavalo, a galope, a puxar um cabriolé que fazia um barulho de ferro-velho, anunciou que o velho Léger e o companheiro de Mina se reintegravam no seu carro. Quando Pierrotin se meteu pela berma a fim de descer para Moisselles, Jorge, que não cessara de falar com o velho Léger na beleza da patroa de Saint-Brice, exclamou: — Sim, senhor, a paisagem não é feia, grande pintor!

— Ora!, não lhe deve causar admiração, ao senhor que viu o Oriente e a Espanha.

— De onde ainda tenho dois charutos! Se isso não incomoda ninguém, quer acabá-los, Schinner? Pois que o rapazinho se fartou com algumas fumaças.

O velho Léger e o conde ficaram calados, o que passou por uma aprovação, e assim os dois narradores ficaram reduzidos ao silêncio. Oscar, irritado por ter sido chamado de rapazinho, disse, enquanto os dois moços acendiam os charutos:

— Se eu não fui ajudante de campo de Mina, senhor, se não fui ao Oriente, irei talvez. A carreira a que me destina a minha família poupar-me-á o incômodo de viajar em coucou, quando tiver a sua idade. Depois de ter sido uma personalidade, depois de ter um posto, nele ficarei...

— Et coetera punctum! — disse Mistigris, arremedando a voz de frango rouco que tornava o discurso de Oscar ainda mais ridículo, pois o pobre menino ainda se achava no período em que a barba desponta e em que a voz adquire o timbre definitivo. — Afinal de contas — acrescentou Mistigris —, les extrêmes se bouchent.[65]

— Palavra! — disse Schinner. — Os cavalos não poderão mais seguir com tanta carga.[66]

— Sua família, jovem, pensa em fazê-lo seguir uma carreira, qual? — disse Jorge seriamente.

— A diplomacia.

Três gargalhadas esfuziaram como foguetes da boca de Mistigris, do grande pintor e do velho Léger. O próprio conde não pôde deixar de sorrir. Jorge conservou o sangue-frio.

— Por Alá!, não há motivo para rir — disse o coronel aos que riam. — Unicamente, moço — continuou, dirigindo-se a Oscar —, parece-me que sua respeitável mãe se acha presentemente numa posição social pouco conveniente para embaixatriz... Ela trazia um cesto bem digno de estima e uma biqueira de ferro nos sapatos.

— Minha mãe, senhor? — disse Oscar, com um gesto de indignação. — Ora! Era a criada da nossa casa...

— Da nossa casa é muito aristocrático — exclamou o conde, interrompendo Oscar.

— O rei diz nós — replicou altivamente Oscar.

Um olhar de Jorge reprimiu a vontade de rir que se apoderou de todos; deu assim a entender, ao pintor e a Mistigris, a necessidade de poupar Oscar — a fim de explorar aquela mina de gracejos.

— O senhor tem razão — disse o grande pintor ao conde, apontando para Oscar —, as pessoas de distinção dizem nós, somente as pessoas da arraia-miúda dizem em minha casa. Anda-se sempre com a mania de parecer ter o que não se tem. Para um homem cheio de condecorações...

— O senhor continua sempre decorador? — disse Mistigris.

— O senhor não conhece absolutamente a linguagem das cortes. Peço a vossa proteção, Excelência — acrescentou Schinner virando-se para Oscar.

— Felicito-me por ter viajado, com certeza, com três homens que, ou são, ou serão, célebres: um pintor já ilustre — disse o conde —, um futuro general e um jovem diplomata, que restituirá, um dia, a Bélgica à França.

Após ter cometido o crime odioso de renegar a mãe, Oscar, enraivecido ao perceber o quanto os seus companheiros de viagem zombavam dele, resolveu vencer-lhes a incredulidade, custasse o que custasse.

— Nem tudo que luz é ouro — disse ele, despedindo relâmpagos dos olhos.

— Não é assim — disse Mistigris. — Tout ce qui reluit n’est pas fort.[67] — Não irá longe na diplomacia se não conhecer melhor seus provérbios.

— Se não conheço bem os provérbios, conheço bem o meu caminho.

— Deve ir longe — disse Jorge —, porque a arrumadeira de sua casa passou-lhe provisões como para uma viagem a ultramar: biscoitos, chocolate...

— Um pão de casa e chocolate, sim, senhor — retrucou Oscar —, pois o meu estômago é muito delicado para digerir os engasga-gatos das hospedarias.

— Engasga-gatos é tão delicado como o seu estômago — disse Jorge.

— Ah! Gostei de engasga-gatos — exclamou o grande pintor.

— Esse termo está em moda nas melhores sociedades — disse Mistigris —, eu o emprego no botequim da Galinha Preta.

— Seu preceptor é, sem dúvida, algum professor célebre, o sr. Andrieux da Academia Francesa, ou o sr. Royer-Collard?[68] — perguntou Schinner.

— Meu preceptor é o padre Loraux, hoje vigário da igreja de Saint-Sulpice — replicou Oscar, que se lembrou do nome do confessor do colégio.

— Fez bem em estudar particularmente — disse Mistigris —, pois l’Ennui naquit un jour de l’Université;[69] mas com certeza você recompensará o seu padre...

— Certamente, um dia ele será bispo — disse Oscar.

— E pela proteção da sua família, meu rapaz — disse Jorge, muito sério.

— É bem possível que possamos contribuir para colocá-lo no devido lugar, pois o padre Frayssinous vai seguido à nossa casa.

— Ah! Conhece o padre Frayssinous? — perguntou o conde.

— Ele deve favores a meu pai — respondeu Oscar.

— E o senhor com certeza vai para as suas propriedades rurais? — disse Jorge.

— Não, senhor; eu, porém, posso dizer para onde vou, vou ao castelo de Presles, do conde de Sérisy.

— Com os diabos! Vai a Presles — exclamou Schinner, que ficou vermelho como uma cereja.

— Conhece Sua Senhoria, o conde de Sérisy? — perguntou Jorge.

O velho Léger virou-se a fim de olhar para Oscar, e fitou-o com ar estupefato, exclamando: — O sr. de Sérisy estará em Presles?

— Pelo menos parece, pois vou para lá — respondeu Oscar.

— E tem visto muitas vezes o conde? — perguntou o senhor de Sérisy a Oscar.

— Como o estou vendo — respondeu Oscar. — Sou companheiro do filho dele, que tem mais ou menos a minha idade, dezenove anos, e, juntos, montamos a cavalo, quase todos os dias.

— On a vu des rois épousseter des bergères[70] — disse Mistigris sentenciosamente.

Um piscar de olhos de Pierrotin ao velho Léger tranquilizou a este completamente.

— Com franqueza — disse o conde a Oscar —, estou encantado por encontrar-me com um rapaz que me possa falar desse personagem, pois preciso da proteção dele para um assunto bastante grave, e que estou certo não lhe custaria nada favorecer-me; trata-se de uma reclamação junto ao governo americano. Muito me agradaria ter informações sobre o caráter do sr. de Sérisy.

— Oh! Se o senhor quer conseguir alguma coisa — disse Oscar, afetando um ar malicioso —, não se dirija a ele, mas à sua esposa; ele tem uma paixão louca por ela, ninguém melhor do que eu sabe, até que ponto, ela não o pode suportar.

— E por quê? — perguntou Jorge.

— Porque o conde tem doenças de pele que o tornam hediondo; e que o doutor Aliberti[71] se esforça, em vão, por curar. Por isso, o sr. de Sérisy daria a metade da sua fortuna, que é imensa, para ter um peito como o meu — disse Oscar, entreabrindo a camisa e mostrando uma carnação de criança. — Ele vive sozinho, retraído, no seu palácio. De modo que é preciso ter muita proteção para vê-lo. Primeiro que tudo ele se levanta muito cedo, trabalha das três às oito horas; a partir dessa hora, ele faz suas medicações; banhos de enxofre ou de vapor. Cozinham-no numa espécie de caixa de ferro, pois ele não perde a esperança de curar-se.

— Mas se ele está tão bem assim com o rei, por que não lhe pede que lhe imponha as mãos?[72]

— Essa senhora tem então um marido passado por água? — disse Mistigris.

— O conde prometeu trinta mil francos a um célebre médico escocês que o está tratando presentemente — disse Oscar, continuando.

— Mas então a mulher dele não poderia ser censurada por arranjar melhor... — disse Schinner sem terminar a frase.

— Nem há dúvida — disse Oscar. — O pobre homem está tão encarquilhado, tão velho, que quem o vê lhe dá oitenta anos! É seco como um pergaminho e por desgraça ele sente a sua condição...

— Não deve sentir boas coisas — disse o facecioso tio Léger.

— Senhor, ele adora a mulher e não se atreve a ralhar com ela — continuou Oscar —, representa com ela cenas de matar de riso, absolutamente como Arnolfo na comédia de Molière.[73]

O conde, aterrado, olhava Pierrotin, que, vendo-o imóvel, imaginou que o filho da sra. Clapart estivesse dizendo calúnias.

— Assim, senhor, se quiser ter êxito — disse Oscar ao conde —, vá procurar o marquês d’Aiglemont. Se tiver do seu lado esse velho adorador de madame, conseguirá de um único golpe a mulher e o marido.

— Não é isso que chamamos faire d’une pierre deux sous?[74] — disse Mistigris.

— Ora essa! — disse o pintor. — O senhor então viu o conde despido, é seu criado de quarto?

— Seu criado de quarto!— bradou Oscar.

— Pois então! Não se dizem essas coisas dos amigos, nos veículos públicos — disse Mistigris. — La prudence est mère de la surdité.[75] Quanto a mim, não o estou ouvindo.

— É o caso de dizer — exclamou Schinner — Dis-moi qui tu hantes, je te dirai qui tu hais! [76]

— Saiba, grande pintor — replicou Jorge sentenciosamente —, que não se pode falar mal de gente a quem não se conhece, e o pequeno acaba de nos demonstrar que conhece o seu Sérisy de cor. Se ele apenas nos tivesse falado de madame, poder-se-ia acreditar que estivesse em boas...

— Nem mais uma palavra a respeito da condessa de Sérisy, jovens — exclamou o conde. — Sou amigo do irmão dela, o marquês de Ronquerolles, e quem se lembrasse de pôr em dúvida a honra da condessa teria que se haver comigo.

— O senhor tem razão — exclamou o pintor —, não se deve debochar de uma mulher.

— Deus! A Honra e as damas! Já vi esse melodrama — disse Mistigris.

— Se não conheço Mina, conheço o Guarda dos Selos — disse o conde, continuando a olhar para Jorge. — Se não uso minhas condecorações — prosseguiu ele, olhando para o pintor —, impeço que as deem aos que não as merecem. Enfim, conheço tanta gente que chego a conhecer o sr. Grindot, o arquiteto de Presles... Pare, Pierrotin, vou descer um momento.

Pierrotin levou os cavalos até o fim da aldeia de Moisselles, onde existe uma estalagem na qual os viajantes se detêm. Esse trecho de caminho foi percorrido num profundo silêncio.

— À casa de quem vai esse malandrinho? — perguntou o conde, levando Pierrotin para o pátio da estalagem.

— À casa de seu administrador. É filho de uma pobre senhora que reside na rue de la Cerisaie, a cuja casa eu levo seguidamente frutas, caças e aves, uma sra. Husson.

— Quem é esse senhor? — veio o velho Léger perguntar a Pierrotin, quando o conde deixou o carreiro.

— Francamente, não sei dizer — respondeu Pierrotin. — É esta a primeira vez que o conduzo; mas é capaz que seja algo assim como o príncipe a quem pertence o castelo de Maffliers; acaba de dizer-me para deixá-lo em caminho, não vai a L’Isle-Adam.

— Pierrotin acredita que é o burguês de Maffliers — disse a Jorge o velho Léger ao voltar para o carro.

Naquele momento, os três jovens, embasbacados, como ladrões apanhados em flagrante, não se atreviam a olhar uns para os outros e pareciam preocupados com as consequências de suas mentiras.

— É o que se chama faire plus de fruit que de besogne[77] — disse Mistigris.

— Estão vendo como eu conheço o conde? — disse-lhes Oscar.

— É possível; mas nunca você será embaixador — respondeu Jorge. — Quando se quer falar em carros públicos, é preciso ter, como eu, o cuidado de falar sem dizer nada.

— Chacun pêche pour son serin[78] — disse Mistigris, à guisa de conclusão.

O conde retomou seu lugar e Pierrotin seguiu viagem no mais profundo silêncio.

— E então!, meus amigos — disse o conde ao atingirem o bosque Carreau —, estamos todos mudos como se fôssemos para o cadafalso.

— Il faut savoir se traire à propos[79] — respondeu sentenciosamente Mistigris.

— Um tempo lindo! — disse Jorge.

— Que região é esta? — perguntou Oscar, mostrando o castelo de Francoville, que produz um efeito magnífico contra a grande floresta de Saint-Martin.

— Como! — exclamou o conde — o senhor, que diz ir com tanta frequência a Presles, não conhece Francoville?

— Esse senhor — disse Mistigris — conhece os homens e não os castelos.

— Os aprendizes de diplomata têm direito de ser distraídos.

— Lembre-se de meu nome! — respondeu Oscar, furioso. — Chamo-me Oscar Husson e dentro de dez anos serei célebre.

Depois dessas palavras proferidas com imponência, Oscar encolheu-se no seu canto.

— Husson de quê? — perguntou Mistigris.

— Uma grande família — respondeu o conde —, os Husson do Cerejal; esse senhor nasceu sobre os degraus do trono imperial.

Oscar, nesse momento, corou até a raiz dos cabelos e sentiu-se devorado por uma terrível inquietação. Iam descer a rápida encosta de La Cave em cujo sopé se acha, num estreito vale, no fim da grande floresta de Saint-Martin, o magnífico castelo de Presles.

— Senhores — disse o conde —, desejo-lhes felicidades nas suas belas carreiras. Senhor coronel, reconcilie-se com o rei de França, os Czerni-Jorge não devem enfadar-se com os Bourbons. Nada tenho a prognosticar-lhe, meu caro sr. Schinner; para o senhor a glória já chegou e o senhor conquistou-a nobremente com obras admiráveis; mas o senhor é tão de temer, que eu, que sou casado, não me atreveria a convidá-lo para ir à minha propriedade rural. Quanto ao sr. Husson, ele não tem necessidade de proteção, pois possui os segredos dos homens de Estado, pode fazê-los tremer. Em relação ao sr. Léger, ele vai depenar o conde de Sérisy, só tenho a pedir-lhe que o faça com mão firme! Deixe-me aqui, Pierrotin, e amanhã passe para reconduzir-me — acrescentou o conde, que desceu e perdeu-se num caminho sombreado pelo arvoredo, deixando confusos os companheiros de jornada.

— Quand on prend du talon, on n’en saurait trop prendre[80] — disse Mistigris, ao ver a pressa com que o viajante se sumira no caminho cavado.

— Oh! É esse conde que arrendou Francoville, ele vai para lá — disse o velho Léger.

— Se algum dia me acontecer gracejar outra vez num carro — disse o falso Schinner —, bato-me em duelo comigo mesmo. Também a culpa é tua, Mistigris — acrescentou ele, dando um tapa no casquete do rapaz.

— Oh! Eu que apenas o acompanhei a Veneza — respondeu Mistigris. — Mas qui veut noyer son chien, l’accuse de la nage.[81]

— Sabe — disse Jorge ao vizinho Oscar — que se por acaso fosse o conde de Sérisy, eu não quisera ver-me metido na sua pele, embora seja sadia.

Oscar, ao pensar nas recomendações maternas que essas palavras lhe recordaram, ficou lívido e passou-lhe a embriaguez.

— Cá estamos, senhores — disse Pierrotin, detendo-se diante de um belo gradil.

— Como, já chegamos! — disseram ao mesmo tempo o pintor, Jorge e Oscar.

— É boa! — exclamou Pierrotin. — Com que então nenhum dos senhores ainda tinha vindo aqui? Pois ali está o castelo de Presles.

— Bem! Está bem, amigo — disse Jorge, recuperando a segurança. — Eu vou à herdade dos Moulineaux — acrescentou, não querendo deixar ver aos companheiros de viagem que ia para o castelo.

— Que me diz! Vai então à minha casa? — disse o velho Léger.

— Como assim?

— Mas se eu sou o granjeiro dos Moulineaux! E daí, coronel, que nos quer o senhor?

— Provar da sua manteiga — respondeu Jorge, apoderando-se de sua pasta.

— Pierrotin — disse Oscar —, entregue as minhas coisas em casa do administrador; eu vou direto ao castelo.

E com isso Oscar meteu-se por um estreito caminho, sem saber para onde ia.

— Ei! Senhor embaixador — gritou o velho Léger —, o senhor vai para a floresta. Se quer entrar no castelo, tome a porteirinha.

Obrigado a entrar, Oscar perdeu-se no grande pátio do castelo, no qual havia um grande canteiro cercado de marcos, unidos por correntes. Enquanto o velho Léger examinava Oscar, Jorge, a quem fulminara a qualidade de granjeiro dos Moulineaux, assumida pelo volumoso agricultor, evadiu-se tão expeditamente que, no instante em que o avantajado senhor procurou o seu coronel, já não mais o encontrou. A grade abriu-se ao pedido de Pierrotin, que entrou orgulhosamente para depositar no cubículo do porteiro os mil utensílios do grande Schinner. Oscar ficou atordoado ao ver Mistigris e o artista, testemunhas de suas bravatas, instalados no castelo. Em dez minutos, Pierrotin acabou de descarregar os embrulhos do pintor, as coisas de Oscar Husson e a bonita maleta de couro que confiou misteriosamente à mulher do porteiro; depois deu volta, fazendo estalar o chicote, e retomou o caminho da floresta de L’Isle-Adam, conservando no rosto o ar velhaco de um camponês que faz cálculos. Nada mais faltava para a sua felicidade, ia ter no dia seguinte os seus mil francos.

Oscar, muito encafifado, girava em torno do canteiro, observando o rumo que tomariam seus dois companheiros de viagem, quando, repentinamente, viu o sr. Moreau, que saía da sala grande, chamada sala dos guardas, no alto da escadaria exterior. Com uma comprida sobrecasaca azul que ia até os calcanhares, o administrador, de calções de couro amarelado e botas de montar, segurava a chibata.

— Com que então, cá estás, meu rapaz! Como vai tua querida mamãe? — disse ele, segurando a mão de Oscar. — Bom dia, senhores, são sem dúvida os pintores de quem o arquiteto Grindot nos falou! — disse ele ao pintor e a Mistigris.

Deu dois apitos, servindo-se do castão da chibata. Veio o porteiro.

— Leve esses senhores aos quartos 14 e 15, a sra. Moreau lhe dará as chaves; acompanhe-os para lhes mostrar o caminho; acenda fogo hoje à noite, se for preciso, e suba a bagagem deles. — Tenho ordem do senhor conde para lhes oferecer minha mesa, senhores — continuou, dirigindo-se aos artistas. — Jantamos às cinco horas, como em Paris. Se gostam de caçar poderão divertir-se muito, pois tenho uma licença das Águas e Florestas; assim é que aqui se caça em vinte e cinco mil arpentos de matas, sem contar os nossos domínios.

Oscar, o pintor e Mistigris, tão envergonhados uns como os outros, trocaram um olhar; mas, fiel ao seu papel, Mistigris exclamou: — Ora! Il ne faut jamais jeter la manche après la poignée! [82]

O jovem Husson seguiu o administrador, que a passos largos o levou para o parque.

— Jacques — disse ele a um dos seus filhos —, vai prevenir tua mãe da chegada do pequeno Husson, e dize-lhe que sou obrigado a ir aos Moulineaux por alguns momentos.

Com cerca de cinquenta anos de idade, o administrador, homem de estatura mediana, moreno, tinha um aspecto muito severo. Seu rosto bilioso, em que a vida do campo havia imprimido cores violentas, fazia supor, à primeira vista, um caráter diferente do verdadeiro. Tudo contribuía para esse engano. Seus cabelos grisalhavam. Seus olhos azuis e um narigão adunco davam-lhe um ar tanto mais sinistro por serem seus olhos muito aproximados um do outro; seus grossos lábios, porém, o contorno de seu rosto, a bonomia de sua atitude revelavam a um observador indícios de bondade. Muito discreto, de falar conciso, impressionava enormemente a Oscar, devido à compreensão inspirada pela ternura que lhe dedicava. Acostumado pela mãe a engrandecer ainda mais o administrador, Oscar sentia-se sempre pequeno em presença de Moreau; mas, ao ver-se em Presles, sentiu um movimento de inquietação, como se esperasse algum mal desse amigo paternal, seu único protetor.

— E então, meu Oscar, não pareces contente de estar aqui! — disse-lhe o administrador. — Entretanto, vais divertir-te; aprenderás a montar a cavalo, a dar tiros de espingarda, a caçar.

— Não sei nada de tudo isso — disse tolamente Oscar.

— Mas eu te mandei buscar para que aprendesses.

— Mamãe disse-me que ficasse somente quinze dias, por causa da sra. Moreau...

— Oh!, veremos — respondeu Moreau, quase que ofendido por Oscar ter posto em dúvida a sua autoridade conjugal.

O filho menor de Moreau, rapazinho de quinze anos, desempenado e ágil, acorreu.


— Olha — disse-lhe o pai —, leva este camarada à tua mãe.

E o administrador foi rapidamente pelo caminho mais curto à casa do guarda, situada entre o parque e a floresta.

VII – O INTERIOR DA CASA MOREAU

O pavilhão destinado pelo conde para a moradia do seu administrador fora construído, alguns anos antes da Revolução, pelo empreiteiro das famosas terras de Cassan, onde Bergeret, arrendatário-geral, senhor de uma fortuna colossal e que se tornou tão célebre por seu luxo quanto os Bodard, os Pâris, os Bouret,[83] fez jardins, ribeiros, construiu casas de campo, pavilhões chineses e outras ruinosas magnificências.

Esse pavilhão, situado no centro de um grande jardim, um de cujos muros era meeiro com o pátio dos departamentos de serviço do castelo de Presles, tivera outrora sua entrada pela rua principal da aldeia. Depois de haver comprado essa propriedade, o sr. de Sérisy pai nada mais precisou fazer senão mandar derrubar aquela muralha e condenar a porta que dava para a aldeia, a fim de unir aquele pavilhão aos seus departamentos de serviço. Suprimindo outro muro, aumentou o parque com todos os jardins que o empreiteiro adquirira para arredondar seus bens. Esse pavilhão construído com pedras de alvenaria no estilo do século de Luís xv (quer dizer que seus ornamentos consistem em rebordos por baixo das janelas, como nas colunatas da praça Luís xv, de estrias retas e secas) compõe-se no pavimento térreo de um belo salão que se comunica com um quarto de dormir e de uma sala de jantar, acompanhada de sua sala de bilhar. Esses dois apartamentos paralelos são separados por uma escada, em frente à qual uma espécie de peristilo, que serve de antecâmara, tem como decoração a porta do salão e a da sala de jantar, uma em frente à outra, ambas muito ornamentadas. A cozinha está por baixo da sala de jantar, pois para aquele pavilhão se sobe por uma escada exterior de dez degraus.

Transferindo seus aposentos para o primeiro andar, a senhora Moreau pôde transformar em boudoir o antigo quarto de dormir. O salão e esse boudoir, ricamente mobiliados de belas peças escolhidas no velho mobiliário do castelo, não teriam desdourado o palácio de uma mulher da moda. Forrado de damasco azul e branco, em outros tempos estofo de um grande leito de honra, esse salão, cujo mobiliário de antiga madeira dourada era guarnecido com o mesmo estofo, oferecia ao olhar cortinas e reposteiros muito amplos, forrados de tafetá branco. Quadros provenientes de velhos tremós destruídos, jardineiras, alguns bonitos móveis modernos e belas lâmpadas, além de um velho lustre de cristal talhado, davam a essa peça um aspecto grandioso. O tapete era um antigo tapete da Pérsia. O boudoir, completamente moderno e do gosto da senhora Moreau, imitava a forma de uma tenda com seus cabos de seda azul, num fundo gris de linho. O clássico divã aí se achava com os seus almofadões e suas almofadas para os pés. Enfim, as jardineiras, cuidadas pelo jardineiro-chefe, alegravam os olhos com suas pirâmides de flores. A sala de jantar e a sala de bilhar eram mobiliadas de acaju. Em torno do pavilhão, a mulher do administrador mandara arranjar um tabuleiro de plantas, cuidadosamente cultivado, que se ligava ao grande parque. Bosquetes de árvores exóticas ocultavam as peças de serviço. Para facilitar a entrada de sua residência às pessoas que a vinham visitar, a administradora mandara substituir por um portão de ferro a antiga porta condenada.

A dependência em que o seu cargo colocava os Moreau estava, pois, habilmente dissimulada; e tanto mais tinham eles a aparência de gente rica a administrar, por pura recreação, a propriedade de um amigo, porquanto o conde e a condessa nunca lhes vinham rebater as pretensões; ademais, as concessões outorgadas pelo sr. de Sérisy permitiam-lhes viver naquela abundância, que é o luxo do campo. Assim, laticínios, ovos, aves, caça, frutas, forragens, flores, lenha, legumes, tudo, o administrador e a mulher colhiam em profusão e não compravam senão a carne de açougue, os vinhos e os gêneros coloniais exigidos por sua vida principesca. A rapariga do galinheiro também fazia pão. Finalmente, fazia anos que Moreau pagava ao açougueiro com porcos da sua criação, embora guardando o necessário para o seu consumo. Um dia, a condessa, sempre excelente para a sua antiga camareira, dera-lhe, talvez como lembrança, uma pequena caleça de viagem, fora da moda, que Moreau mandou pintar, e na qual levava a mulher a passeio, servindo-se de dois bons cavalos, que, aliás, eram úteis para os trabalhos do parque. Além desses cavalos, Moreau tinha o seu, de sela. Lavrava o parque e cultivava o terreno bastante para alimentar seus cavalos e seu pessoal; tirava daí trezentos mil feixes de excelente pasto, e não apontava senão cem mil, baseando-se numa licença vagamente concedida pelo conde. Em vez de os usar no consumo da casa, vendia a metade do que lhe tocava. Mantinha com abundância seu galinheiro, seus pombais, suas vacas a custo do parque; mas o estrume de suas cocheiras servia para os jardineiros do castelo. Cada um daqueles pequenos roubos trazia consigo a sua desculpa. A senhora era servida pela filha de um dos jardineiros, que fazia alternativamente de criada de quarto e de cozinheira. Uma rapariga que se ocupava com os galinheiros, encarregada da leiteria, auxiliava também nos serviços domésticos. Moreau tomara a serviço um soldado reformado, de nome Brochon, para cuidar dos cavalos e fazer o trabalho pesado.

Em Nerville, em Chanory, em Beaumout, em Maffliers, em Préroles, em Nointiel, por toda parte, a bela administradora era recebida por gente que ou não conhecia ou fingia ignorar a sua primitiva condição. De resto, Moreau era serviçal. Dispunha do patrão para coisas que em Paris são ninharias, mas que, no campo, são imensas. Depois de ter feito nomear o juiz de paz de Beaumont e o de L’Isle-Adam, tinha, no mesmo ano, impedido a destituição de um guarda-geral das florestas e obtido a cruz da Legião de Honra para o quartel-mestre de Beaumont. Por isso, não havia festa entre a burguesia a que o casal Moreau não fosse convidado. O cura de Presles, o maire de Presles vinham todas as noites jogar em casa de Moreau. É difícil não ser um homem estimável depois de se ter preparado um leito tão cômodo.

Mulher bonita e melindrosa como todas as camareiras de grande dama, que, quando casam, imitam as suas patroas, a administradora importara as novas modas para a região; calçava borzeguins caríssimos e só andava a pé nos dias bonitos. Embora o marido não lhe concedesse mais de quinhentos francos para as despesas de toilette, essa quantia, no campo, é enorme, principalmente quando bem empregada. Assim, a administradora, loura, deslumbrante e cheia de viço, com cerca de trinta e seis anos, tendo permanecido delgada, delicada e gentil, apesar dos seus três filhos, fazia-se ainda de mocinha e se dava ares de princesa. Quando a viam passar na sua caleça, rumo a Beaumont, se alguma pessoa estranha perguntava: — “Quem é?” — a sra. Moreau enfurecia-se quando alguém da terra respondia: — “É a mulher do administrador de Presles”. — Gostava que a tomassem por dona do castelo. Comprazia-se, nas aldeias, em proteger os habitantes, tal como o faria uma grande dama. A influência do marido junto ao conde, demonstrada com tantas provas, impedia a pequena burguesia de zombar da sra. Moreau, a qual, aos olhos dos camponeses, passava por uma grande personalidade. Estela (era esse seu nome) não se metia em assuntos da administração mais do que a mulher de um corretor em negócios da Bolsa; até mesmo em assuntos domésticos e com o que dizia respeito à fortuna, ela repousava no marido. Confiante em seus meios, estava a cem léguas de suspeitar que aquela encantadora vida, que já durava havia dezessete anos, pudesse jamais ser ameaçada; entretanto, ao ter conhecimento da resolução do conde, no tocante à restauração do magnífico castelo de Presles, sentira-se atacada no seu bem-estar, e determinara ao marido que se entendesse com Léger, a fim de retirar-se para L’Isle-Adam. Sofreria demasiado se se visse numa dependência quase servil, em presença de sua antiga patroa, que burlaria dela, ao vê-la instalada no pavilhão de modo a macaquear a existência de uma mulher distinta.

O motivo da profunda inimizade entre os Reybert e os Moreau provinha de uma afronta que a sra. Reybert fizera à sra. Moreau, em consequência de uma primeira picuinha que a mulher do administrador se permitira à chegada dos Reybert, a fim de não se deixar suplantar por uma mulher que de nascimento era uma de Corroy. A sra. Reybert fizera lembrar, ou talvez revelara a toda a região, a primitiva situação da sra. Moreau. A expressão camareira voou de boca em boca. Os invejosos que os Moreau deviam ter em Beaumont, em L’Isle-Adam, em Maffliers, em Champagne, em Nerville, em Chauvry, em Baillet, em Moisselles, tão bem glosaram que mais de uma faísca daquele incêndio caiu sobre o casal Moreau. Fazia quatro anos que os Reybert, excomungados pela bela administradora, topavam com tanta animadversão por parte dos aderentes dos Moreau que a situação deles na região não seria sustentável, não fosse o desejo de vingança que os amparara até aquele dia.

Os Moreau, em excelentes relações com o arquiteto Grindot, tinham sido prevenidos por este da próxima chegada de um pintor encarregado de terminar as pinturas de ornamentação do castelo, cujas telas principais acabavam de ser executadas por Schinner. O grande pintor recomendara para as molduras, arabescos e outros acessórios o viajante acompanhado por Mistigris. Por isso, fazia dois dias que a sra. Moreau se pusera em pé de guerra e vivia numa impaciência louca. Um artista que devia ser seu comensal, durante algumas semanas, exigia despesas. Schinner e sua esposa tinham ocupado um apartamento no castelo, onde, em obediência às ordens do conde, foram tratados como se fossem Sua Senhoria em pessoa. Grindot, comensal de Moreau, testemunhava tanto respeito ao grande artista que nem o administrador nem sua mulher se haviam animado a familiarizar-se com ele. As mais nobres e mais ricas pessoas dos arredores tinham, aliás, competido em festejar Schinner e a esposa, disputando-os. Assim é que, muito contente de poder, de algum modo, tomar sua desforra, a sra. Moreau tencionava trombetear por toda a região que esperava um artista, e apresentá-lo como igual em talento a Schinner.

Embora, na véspera e na antevéspera, tivesse feito duas toilettes, cheias de coquetismo, a bonita administradora tinha muito bem escalado seus recursos, para não ter reservado a mais fascinante, na certeza de que o artista viria jantar no sábado. Calçara pois uns borzeguins de pelica bronzeada e meias de fio de escócia. Um vestido cor-de-rosa com infinitas listras, um cinto róseo com fivela de ouro ricamente cinzelada, uma corrente com uma pequena cruz, no pescoço, e pulseiras de veludo nos braços nus (a condessa de Sérisy tinha belos braços e os mostrava muito) davam à sra. Moreau a aparência de uma elegante parisiense. Trazia um magnífico chapéu de palha da Itália, enfeitado com um ramo de rosas folhudas compradas na loja de Nattier, e sob cujas abas se derramavam em cachos brilhantes os seus belos cabelos louros. Depois de ter ordenado o mais delicado jantar e passado em revista o apartamento, pusera-se a passear de modo a se achar em frente ao canteiro de flores no grande pátio do castelo, como uma castelã, quando da passagem dos carros. Por sobre a cabeça sustentava uma deliciosa sombrinha cor-de-rosa, forrada de seda branca e com franjas.

Ao ver Pierrotin, que entregava à porteira do castelo os estranhos embrulhos de Mistigris, sem que aparecesse nenhum viajante, Estela deu a volta desapontada, com o pesar de ter feito mais uma vez uma toilette inútil. Tal como a maioria das pessoas que se endomingam, sentiu-se incapaz de outra ocupação que a de bobear no salão enquanto esperava o carro de Beaumont, que passava uma hora depois de Pierrotin, embora só partisse de Paris à uma hora da tarde, e recolheu-se aos seus aposentos, enquanto os dois artistas faziam uma toilette em regra. O jovem pintor e Mistigris foram, efetivamente, tão seringados pelo jardineiro, a quem pediram informações, com os louvores deste para a sra. Moreau, que, tanto um como outro, sentiram necessidade de se porem na estica (em termos de ateliê), e envergaram a indumentária superlativa para se apresentarem no pavilhão do administrador, aonde os conduziu Jacques Moreau, o mais velho dos filhos, um rapaz desempenado, vestido à inglesa, com um bonito casaco de gola dobrada, que vivia durante as férias como um peixe dentro d’água, naquela terra onde a mãe reinava como soberana absoluta.

— Mamãe — disse ele —, aqui estão os dois artistas que o sr. Schinner mandou.

A sra. Moreau, muito agradavelmente surpreendida, ergueu-se, mandou o filho avançar as cadeiras e pôs em função as suas graças.

— Mamãe, o pequeno Husson está com meu pai — acrescentou o menino ao ouvido da mãe —, vou buscá-lo.

— Não te apresses, brinquem juntos — disse a mãe.

Aquela única frase não te apresses fez os dois artistas compreenderem a pouca importância de seu companheiro de viagem; mas transparecia também naquilo o sentimento de uma madrasta para com um enteado. Com efeito, Estela, que, ao cabo de dezessete anos de matrimônio, não podia ignorar a dedicação do administrador pela sra. Clapart e pelo pequeno Husson, odiava mãe e filho de modo tão pronunciado que se compreenderá por que o marido ainda não se arriscara a trazer Oscar a Presles.

— Meu marido e eu estamos encarregados — disse ela aos dois artistas — de lhes fazer as honras do castelo. Muito gostamos das artes e sobretudo dos artistas — acrescentou, coqueteando —, e peço-lhes que se considerem aqui como em sua casa. Como sabem, no campo não deve haver constrangimento; cada um deve ter toda a liberdade, sem o que tudo se torna insípido. Já aqui tivemos o sr. Schinner...

Mistigris olhou maliciosamente para o companheiro.

— Conhecem-no, não? — disse Estela depois de uma pausa.

— Quem não o conhece, senhora! — respondeu o pintor. — É mais conhecido do que pão de ló.

— O sr. Grindot disse-me o nome dos senhores — disse a sra. Moreau —, mas eu...

— José Bridau[84] — respondeu o pintor, excessivamente preocupado em descobrir com que espécie de mulher estava tratando. Mistigris, intimamente, começava a se rebelar contra o tom protetor da bela administradora; mas, como Bridau, estava à espera de algum gesto, ou de alguma palavra, que o esclarecesse, uma dessas palavras de macaco a delfim[85] de que os pintores, cruéis observadores natos dos ridículos, que são o alimento de seus pincéis, apreendem com tanta presteza. Antes de mais nada, as mãos grossas e os pés grandes de Estela, filha de campônios dos arredores de Saint-Lô, chamaram a atenção dos dois artistas; depois, uma ou duas locuções que desmentiam a elegância da toilette fizeram com que, prontamente, o pintor e seu discípulo reconhecessem a sua presa e, com uma só troca de olhares, convieram ambos em levar Estela a sério, a fim de passar agradavelmente o tempo de sua estada.

— Ama as artes, senhora? — disse José Bridau. — Talvez as cultive com sucesso?

— Não. Sem ter sido descuidada, minha educação foi puramente comercial; tenho, porém, um sentimento tão profundo e delicado das artes que o sr. Schinner sempre me pedia, quando acabava um trabalho, que lhe desse a minha opinião.

— Como Molière consultava Laforêt — disse Mistigris.

Sem saber que Laforêt era uma criada, a sra. Moreau respondeu com uma inclinação de cabeça que significava ter ela, na sua ignorância, aceitado o dito como um cumprimento.

— Como não lhe pediu ele para a croquer...[86] Os pintores são muito apreciadores de belas criaturas.

— Que quer dizer com essas palavras? — perguntou a sra. Moreau, em cujo semblante se desenhou a cólera de uma rainha ofendida.

— Chama-se, em gíria de ateliê, croquer uma cabeça, fazer-lhe um esboço — disse Mistigris com ar insinuante —, e nós não queremos outra coisa senão croquer as belas cabeças. É daí que vem Elle est jolie à croquer.

— Eu ignorava a origem do termo — respondeu ela, dirigindo a Mistigris um olhar cheio de ternura.

— Meu discípulo — disse Bridau —, o sr. Leão de Lora, mostra muito pendor para o retrato. Ficaria felicíssimo, bela dama, de lhe deixar uma recordação da nossa passagem por aqui, pintando sua encantadora cabeça.

José Bridau fez um sinal a Mistigris, como para dizer-lhe: — “Vamos, entra com o teu jogo! Não é nada feia esta mulher”.

Ante aquele olhar, Leão de Lora deslizou para o canapé junto de Estela e tomou-lhe uma das mãos, que ela não retirou.

— Oh!, se para fazer uma surpresa a seu esposo, senhora, a senhora me quisesse conceder algumas sessões em segredo, eu procuraria exceder-me. É tão bela, tão primaveril, tão encantadora!... Um homem sem talento tornar-se-ia um gênio tendo-a como modelo! Recolheria em seus olhos tanta...

— Além disso, nós pintaríamos os seus queridos filhos nos arabescos — disse José, interrompendo Mistigris.

— Eu preferia tê-los no meu salão, mas seria pedir demais — disse ela, olhando para Bridau com um ar faceiro.

— A beleza, senhora, é uma soberana que os pintores adoram e que tem sobre eles muitos direitos.

“São encantadores”, pensou Estela. — Gostariam de um passeio, ao entardecer, depois do jantar, de caleça, no bosque?

— Oh! oh! oh! oh! oh! — fez Mistigris, a cada circunstância e em tons extáticos. — Mas será Presles o paraíso terrestre?

— Com uma Eva, uma loura, uma jovem e encantadora mulher — acrescentou Bridau.

No momento em que a sra. Moreau se empavonava toda e planava no sétimo céu, foi chamada, como um papagaio cujo barbante puxassem.

— Senhora! — bradou a criada de quarto, entrando como uma bala.

— Então, Rosália, quem a autorizou a vir aqui sem ser chamada?

Rosália não deu atenção à apóstrofe e disse ao ouvido da patroa:

— O senhor conde está no castelo.

— Mandou chamar-me? — replicou a administradora.

— Não, senhora... Mas... Está pedindo a mala e a chave do seu apartamento.

— Pois que entreguem o que ele pede — disse ela, fazendo um gesto de mau humor para ocultar sua perturbação.

— Mamãe, aqui está Oscar Husson! — exclamou o mais jovem de seus filhos, trazendo Oscar, o qual, vermelho como um pimentão, não se atrevia a avançar, ao dar com os dois pintores em trajes de gala.

— Eis-te finalmente aqui, meu Oscarzinho — disse Estela, com ar seco. — Quero crer que te vás vestir — continuou, depois de o ter medido de alto a baixo, com um ar de profundo desprezo. — Acredito que tua mãe não te habituou a jantar em sociedade, mal-ajambrado como estás.

— Oh! — disse o cruel Mistigris —, um futuro diplomata deve estar em fundos[87]... de calções. Deux habits valent mieux qu’un.[88]

— Um futuro diplomata? — exclamou a sra. Moreau.

Aí o pobre Oscar ficou com os olhos rasos de lágrimas, olhando alternativamente para José e Leão.

— Um gracejo feito em viagem — respondeu José, que, por piedade, pretendeu tirar Oscar daquele aperto.

— O pequeno quis rir como nós e debochou — disse o cruel Mistigris —; agora está como un âne en plaine.[89]

— Senhora — disse Rosália, voltando à porta do salão —, Sua Excelência deu ordem para um jantar de oito pessoas e quer ser servido às seis horas. Que devo fazer?

Durante a conferência de Estela e de sua primeira aia, os dois artistas e Oscar trocaram olhares em que se estampavam horríveis apreensões.

— Sua Excelência, quem? — perguntou José Bridau.

— Mas, o sr. conde de Sérisy — respondeu o pequeno Moreau.

— Estaria ele por acaso no coucou? — perguntou Leão de Lora.

— Oh! — disse Oscar. — O conde de Sérisy não pode viajar senão numa carruagem de quatro cavalos.

— Como chegou o sr. conde de Sérisy? — perguntou o pintor à sra. Moreau, quando esta, muito mortificada, voltou ao seu lugar.

— Não sei de nada! — disse ela. — Não me explico absolutamente a chegada de Sua Senhoria, nem o que veio fazer. E Moreau que não está aqui!

— Sua Excelência pede ao sr. Schinner que vá ao castelo — disse um jardineiro dirigindo-se a José — e pede-lhe que lhe dê o prazer de jantar com ele, assim como também o sr. Mistigris.

— Estamos fritos! — disse o aprendiz, rindo. — O tipo que tomamos por um burguês no carro de Pierrotin é o conde. Muita razão se tem em dizer que on ne trousse jamais ce qu’on cherche.[90]

Oscar quase se transformou em estátua de sal; pois que, ante aquela revelação, sentiu a garganta mais salgada do que o mar.

— E você, que lhe falou dos adoradores da mulher dele e da sua doença secreta — disse Mistigris a Oscar.

— Que quer dizer? — exclamou a mulher do administrador, olhando para os dois artistas, que se retiraram a rir da cara de Oscar.

Oscar ficou mudo, fulminado, estúpido, sem nada ouvir, embora Estela o interrogasse e o sacudisse violentamente pelo braço, que agarrara e que apertava com força; mas foi obrigada a deixar Oscar no seu salão sem ter obtido resposta, pois Rosália tornou a chamá-la para pedir roupa de mesa, a baixela de prata e para que ela mesma superintendesse as ordens sucessivas que o conde transmitia. Os criados, os jardineiros, o porteiro e a mulher, todos iam e vinham numa azáfama fácil de compreender. O senhor caíra em sua casa como uma bomba.

VIII – DESENLACE DO DRAMA

Do alto de La Cave, o conde, efetivamente, fora por uma senda dele conhecida à casa do guarda, e lá chegara muito antes do que Moreau. O guarda ficou estupefato ao ver o verdadeiro senhor.

— Moreau está aí, pois não é este o seu cavalo? — perguntou o conde.

— Não, meu senhor; mas como ele deve ir aos Moulineaux antes do jantar, deixou o cavalo aqui.

O guarda ignorava o alcance dessa resposta, a qual, nas circunstâncias presentes, para um homem perspicaz, equivalia a uma certeza.

— Se queres conservar teu posto — disse o conde ao guarda —, vai a toda brida a Beaumont, nesse cavalo, e entrega ao sr. Margueron o bilhete que vou escrever.

O conde entrou no pavilhão, escreveu um bilhete, dobrou-o de modo que não fosse possível abri-lo, sem que isso fosse notado, e entregou-o ao guarda, apenas o viu montado.

— Nem uma palavra a quem quer que seja! — disse ele. — Quanto à senhora — acrescentou ele falando à mulher do guarda —, se Moreau se admirar por não achar seu cavalo, diga-lhe que fui eu que o levei.

E o conde meteu-se pelo parque, cuja grade lhe fora aberta a um gesto que fez. Por mais calejado que se esteja com os azares da política, com as suas emoções e seus desenganos, a alma de um homem bastante forte para ainda amar na idade do conde é sempre jovem perante a traição. Doía-lhe tanto saber-se enganado por Moreau que, em Saint-Brice, ele o julgou menos colaborador de Léger e do notário do que arrastado por estes. Por isso, na porta da estalagem, durante a conversação de Léger com o hospedeiro, ainda pensava em perdoar seu administrador, depois de lhe pregar um bom sermão. Coisa estranha, a felonia de seu homem de confiança não o interessava senão como um episódio, desde o momento em que Oscar revelara suas gloriosas mazelas de trabalhador intrépido, de administrador napoleônico. Segredos tão bem guardados não poderiam ter sido traídos senão por Moreau, que, com certeza, havia zombado de seu benfeitor com a antiga camareira da condessa ou com a antiga Aspásia do Diretório. Metendo-se por um atalho, aquele par de França, aquele ministro chorara, como choram os jovens. Vertera suas últimas lágrimas! Todos os sentimentos humanos estavam tão bem e tão vivamente atacados ao mesmo tempo que aquele homem tão calmo caminhava em seu parque como uma fera ferida.

Quando Moreau pediu seu cavalo, a mulher do guarda lhe respondeu:

— O senhor conde acaba de tomá-lo.

— Quem? O senhor conde! — exclamou ele.

— O sr. conde de Sérisy, nosso amo — disse ela. — Ele está talvez no castelo — acrescentou, para se desembaraçar do administrador, o qual, nada compreendendo daqueles acontecimentos, se dirigiu para o castelo.

Pouco depois, Moreau retrocedeu para interrogar a mulher do guarda, pois acabara por achar gravidade na chegada secreta e nos atos estranhos de seu senhor. A mulher do guarda, apavorada ao se ver metida como que num torno, entre o conde e o administrador, fechara o pavilhão e ali ficara firmemente resolvida a não abrir a não ser para o marido. Moreau, cada vez mais inquieto, foi, apesar das suas botas, com passo acelerado para a portaria, onde soube, finalmente, que o conde se estava vestindo. Rosália, com quem se encontrou Moreau, disse-lhe:

— Sete pessoas para jantar com Sua Senhoria...

Moreau dirigiu-se para o seu pavilhão e viu então a criada do terreiro altercando com um belo rapaz.

— O senhor conde disse: “O ajudante de campo de Mina, um coronel” — exclamava a pobre rapariga.

— Eu não sou coronel — respondia Jorge.

— Pois bem, o senhor não se chama Jorge?

— Que há? — perguntou o administrador, intervindo.

— Senhor, chamo-me Jorge Marest, sou filho de um rico quinquilheiro, por atacado, da rue Saint-Martin, e venho a negócios à casa do sr. conde de Sérisy, de parte do sr. Crottat, notário, de quem sou segundo ajudante.

— E eu estou repetindo ao senhor o que o senhor conde acaba de dizer-me: “Vai apresentar-se um coronel chamado Czerni-Jorge, ajudante de campo de Mina, que veio no carro de Pierrotin; se ele perguntar por mim, faça-o entrar para a sala de espera”.

— Não se deve brincar com Sua Senhoria — disse o administrador —; vá, senhor... Mas como veio Sua Senhoria, até aqui, sem me ter prevenido de sua chegada? E como pode o senhor conde saber de sua viagem no carro de Pierrotin?

— Evidentemente — disse o ajudante — o conde é o viajante que, se não fosse a gentileza de um rapaz, ia viajar de coelho na boleia do carro de Pierrotin.

— De coelho, no carro de Pierrotin? — exclamaram o administrador e a criada.

— Tenho certeza, justamente pelo que me diz essa rapariga — replicou Jorge Marest.

— E como? — perguntou Moreau.

— Ah!, eis a coisa — respondeu o rapaz. — Para ludibriar os viajantes, eu lhes contei uma porção de carapetões sobre o Egito, a Grécia e a Espanha. Como eu estava de esporas, fiz-me passar por um coronel de cavalaria, coisa para divertir-me.

— Vejamos — disse Moreau. — Como é o viajante que, na sua opinião, seria o conde?

— Mas — disse Jorge —, ele tem o rosto como um tijolo, os cabelos completamente brancos e as sobrancelhas pretas.

— É ele.

— Estou perdido! — disse Jorge Marest.

— Por quê?

— Eu zombei a respeito das suas condecorações.

— Ora! Ele é uma boa pessoa, o senhor o deve ter divertido. Venha em seguida ao castelo — disse Moreau. — Eu subo aos aposentos de Sua Senhoria. Onde deixou o senhor conde?

— No alto da montanha!

— Não entendo mais nada! — exclamou Moreau.

— Afinal de contas, eu trocei com ele, mas não lhe fiz afronta nenhuma — disse consigo mesmo o rapaz.

— E que vem fazer? — perguntou o administrador.

— É que trago o contrato de venda da herdade dos Moulineaux já pronto.

— Meu Deus! — exclamou o administrador. — Não compreendo coisa alguma de tudo isso.

Moreau sentiu o coração parar, quando, ao bater duas pancadas na porta do seu senhor, ouviu:

— É o sr. Moreau?

— Sim, meu senhor.

— Entre.

O conde pusera umas calças brancas e botas finas, um colete branco e uma casaca sobre a qual brilhava, à direita, a condecoração da grã-cruz da Legião de Honra; à esquerda, de uma botoeira, pendia o Tosão de Ouro na extremidade de uma corrente de ouro. O cordão azul sobressaía intensamente sobre o colete branco. Ele mesmo penteara os cabelos, e, sem dúvida, se empavesara assim para fazer a Margueron as honras de Presles, e talvez para fazer atuar sobre aquele homem simples o prestígio da grandeza.

— E então, sr. Moreau — disse o conde, permanecendo sentado e deixando Moreau de pé —, não podemos mais fechar negócio com Margueron?

— Neste momento ele venderia a herdade muito caro.

— Mas, por que não vem ele até cá? — perguntou o conde, afetando um ar pensativo.

— Está doente, senhor conde...

— Tem certeza?

— Fui até lá...

— Sr. Moreau — disse o conde, tomando um ar severo que foi terrível —, que faria a um homem de confiança que o visse fazer um curativo numa doença que desejasse manter secreta, e fosse rir disso na casa de uma marafona?

— Dava-lhe uma sova.

— E se descobrisse, além disso, que ele abusa da sua confiança e o rouba?

— Procuraria surpreendê-lo, e o mandaria para as galés.

— Ouça, sr. Moreau! O senhor falou sem dúvida das minhas doenças em casa da sra. Clapart e riu-se em casa dela, com ela, do meu amor pela condessa de Sérisy, porque o pequeno Husson informava os viajantes de um carro público de particularidades relativas ao meu tratamento, isso na minha presença e só Deus sabe em que linguagem! Atrevia-se a caluniar minha esposa. Finalmente, soube da própria boca de Léger, o qual regressava de Paris no carro de Pierrotin, o plano formado pelo notário de Beaumont, pelo senhor e por ele, relativamente aos Moulineaux. Se foi à casa de Margueron, foi para dizer-lhe que se fingisse de doente; e ele o está tão pouco que o espero para jantar, ele há de vir. Pois bem, eu lhe perdoava ter o senhor duzentos e cinquenta mil francos, ganhos em dezessete anos... Compreendo isso. Se de cada vez me tivesse pedido o que me subtraía, ou que lhe era oferecido, eu lho teria dado; o senhor é pai de família. Na sua indelicadeza, creio, o senhor foi melhor do que outro qualquer. Mas o senhor, que conhece os trabalhos por mim realizados por nosso país, pela França, o senhor, que me viu passar cento e tantas noites velando para o imperador, ou trabalhando dezoito horas por dia durante trimestres inteiros; o senhor, que sabe quanto eu amo a condessa de Sérisy, ter falado a esse respeito diante de uma criança, ter revelado meus segredos, minhas afeições às risotas de uma sra. Husson...

— Senhor conde...

— É imperdoável. Ferir um homem nos seus interesses não é nada; mas atacá-lo no seu coração!... Oh! Não sabe o que fez.

O conde pôs a cabeça entre as mãos e permaneceu silencioso durante um momento.

— Deixo-lhe o que o senhor tem — disse ele — e o esquecerei. Por dignidade, por mim, por sua própria honra, nós nos separaremos decentemente, pois, neste momento, recordo o que seu pai fez pelo meu. Vai entender-se, e bem, com o sr. de Reybert, que lhe sucederá. Fique calmo, como eu. Não se dê em espetáculo para os tolos. Sobretudo, nada de violências nem resmungos. Se já não tem mais a minha confiança, procure ganhar o decoro das pessoas ricas. Quanto a esse pequeno traste, que quase me matou, não quero que durma em Presles! Mande-o para uma estalagem, pois não responderia por minha cólera, se o visse.

— Eu não mereceria tanta mansuetude, senhor conde — disse Moreau com lágrimas nos olhos. — Sim, se eu tivesse sido completamente improbo, teria quinhentos mil francos; de resto, prontifico-me a fazer-lhe a discriminação de minha fortuna e detalhá-la! Mas permita que lhe diga que, conversando com a sra. Clapart a seu respeito, senhor conde, nunca o fiz irrisoriamente, mas, muito pelo contrário, para deplorar o seu estado, e para perguntar-lhe se ela não conhecia algum remédio, desses que os médicos não conhecem, e que são usados pela gente do povo... Falamos a respeito dos seus sentimentos diante do pequeno, quando ele dormia (segundo parece, nos estava ouvindo!), mas sempre o fizemos em termos repassados de afeição e de respeito. Quer a desgraça que indiscrições sejam punidas como crimes. Mas, aceitando os efeitos de sua justa cólera, saiba ao menos como as coisas se passaram. Oh!, foi de alma para alma que falei do senhor com a sra. Clapart. Enfim, pode interrogar minha mulher, nunca entre nós falamos dessas coisas...

— Basta — disse o conde, cuja convicção era completa —, não somos crianças; tudo é irrevogável. Vá pôr seus assuntos em ordem, e também os meus. Pode ficar no pavilhão até o mês de outubro. O sr. e a sra. de Reybert se instalarão aqui no castelo; procure, sobretudo, viver com eles como gente distinta, que se odeia, mas que conserva as aparências.

O conde e Moreau desceram; este, branco como os cabelos do conde, aquele, calmo e digno.

Durante essa cena, o carro de Beaumont, que sai de Paris à uma da tarde, detivera-se no portão da entrada e dele se apeara mestre Crottat, o qual, de acordo com a ordem dada pelo conde, ficou esperando no salão, onde encontrou o seu ajudante muito embaraçado, em companhia dos dois pintores, todos eles contrafeitos. O senhor de Reybert, homem de cinquenta anos, de aspecto rebarbativo, viera acompanhado do velho Margueron e do notário de Beaumont, que trazia um maço de papéis e de títulos. Quando todas essas pessoas viram aparecer o conde nos trajes de homem de Estado, Jorge Marest sentiu um frio na barriga, José Bridau estremeceu; Mistigris, porém, que se achava metido no seu uniforme dos domingos, e que, de resto, nada tinha a se censurar, disse em voz bastante alta:

— Não há dúvida, ele fica bem melhor assim.

— Seu tratantezinho — disse o conde, puxando-o por uma orelha —, nós dois fazemos decorações. — Reconheceu sua obra, meu caro Schinner? — disse depois ao outro pintor, mostrando-lhe o teto.

— Meu senhor — respondeu o artista —, fiz mal em me arrogar, por bravata, um nome célebre, mas esta jornada obriga-me a pintar-lhe coisas bonitas e a ilustrar o nome de José Bridau.

— O senhor tomou minha defesa — disse vivamente o conde — e espero que me dê o prazer de jantar comigo, bem como o nosso espirituoso Mistigris.

— Vossa Senhoria não sabe ao que se expõe — disse o descarado aprendiz. Ventre affamé n’a pas d’orteils.[91]

— Bridau! — exclamou o conde, impressionado com uma recordação. — Será o senhor parente de um dos mais ardorosos trabalhadores do Império, um chefe de divisão, que sucumbiu vítima de seu zelo?

— Sou filho dele, meu senhor — respondeu José, inclinando-se.

— Sois bem-vindo — disse o conde, apertando a mão do artista. — Conheci o seu pai e pode contar comigo como com... um tio da América — acrescentou, sorrindo. — Mas o senhor é demasiado jovem para ter discípulos: a quem pertence Mistigris?

— Ao meu amigo Schinner, que mo emprestou — disse José. — Mistigris chama-se Leão de Lora, meu senhor; se se lembra de meu pai, digne-se pensar naquele seu filho que se vê acusado de conjuração contra o Estado e processado ante a Câmara dos Pares...[92]

— Ah!, é verdade — disse o conde —, pensarei nisso, fique certo. Quanto ao príncipe Czerni-Jorge, o amigo de Ali-Paxá, o ajudante de campo de Mina — disse o conde, adiantando-se para Jorge...

— Ele? O meu segundo ajudante! — exclamou mestre Crottat.

— Está enganado, mestre Crottat — disse o conde com ar severo. — Um ajudante de cartório que quer um dia ser notário não deixa documentos importantes nas diligências, à mercê de qualquer viajante! Um ajudante de cartório que quer ser notário não gasta vinte francos entre Paris e Moisselles! Um ajudante de cartório que quer ser notário não se arrisca a ser preso como trânsfuga...

— Meu senhor — disse Jorge Marest —, posso ter-me divertido ludibriando burgueses em viagem, mas...

— Deixa Sua Excelência falar — disse-lhe seu patrão, dando-lhe uma forte cotovelada no flanco.

— Um notário deve desde cedo ter discrição, prudência e finura, e não tomar um ministro de Estado por um fabricante de velas...

— Condeno as minhas faltas mas não deixei meus documentos à mercê... — disse Jorge.

— Neste momento está cometendo a falta de desmentir um ministro de Estado, um par de França, um gentil-homem, um velho, um cliente. Procure seu contrato de venda.

O ajudante remexeu os papéis da pasta.

— Não misture seus papéis — disse o ministro de Estado, puxando o documento do bolso —, eis aqui o que o senhor procurava.

Crottat virou e revirou o papel, tal a sua admiração por recebê-lo das mãos de seu nobre cliente.

— Como, sr. Marest?... — disse enfim o notário a Jorge.

— Se eu não o tivesse tirado — acrescentou o conde —, o velho Léger — que não é tão bobo como o senhor julgava, dadas as suas perguntas sobre a agricultura, pois que lhe demonstrava que sempre se deve pensar na própria profissão — teria podido apoderar-se deles e adivinhar o meu projeto... Dar-me-á o prazer de jantar comigo, mas com a condição de nos contar a execução do moucelim[93] de Esmirna, e terminará as memórias de algum cliente que sem dúvida o senhor leu antes do público.

— É o que se chama pagar na mesma moeda — disse Leão de Lora baixinho a José Bridau.

— Senhores — disse o conde ao notário de Beaumont, a Crottat, a Margueron e a Reybert —, vamos para aquele lado, não paremos à mesa sem ter concluído, pois como diz meu amigo Mistigris, é preciso saber se traire à propos.[94]

— Que dizem? É uma boa alma — disse Leão de Lora a Jorge Marest.

— Sim, mas meu patrão, esse não é boa alma, e vai convidar-me para ir troçar em outra parte.

— Ora! Você gosta de viajar — disse Bridau.

— Que sabão o pequeno vai receber dos Moreau! — exclamou Leão de Lora.

— É um pobre imbecil — disse Jorge. — Se não fosse ele, o conde se teria divertido. Seja como for, a lição foi boa, e se algum dia tornam a me pilhar conversando em diligência...

— Oh! É uma besteira — disse José Bridau.

— É vulgar — disse Mistigris. — De resto: Trop parler, suit.[95]

Enquanto o sr. Margueron e o conde de Sérisy tratavam de seus negócios, assistidos cada um por seu notário e em presença do sr. Reybert, o ex-administrador dirigiu-se a passos lentos para o pavilhão. Lá entrou sem nada ver e sentou-se no canapé do salão, onde o pequeno Husson se pôs num canto fora de sua vista, pois o assustou o rosto lívido do protetor de sua mãe.

— E então, meu amigo — disse Estela, entrando bastante fatigada por tudo que acabava de fazer —, que tens?

— Querida, estamos perdidos, e perdidos sem remédio. Não sou mais o administrador de Presles! Não possuo mais a confiança.

— Como assim?...

— O velho Léger, que estava no carro do Pierrotin, o pôs a par do negócio de Moulineaux; mas não foi só isso o que me alienou para sempre a sua proteção...

— Que foi?

— Oscar falou mal da condessa, e revelou as doenças do senhor conde...

— Oscar?... — exclamou a sra. Estela. — Estás punido pelo teu pecado. Eis a vantagem de aquecer em teu seio aquela víbora! Quantas vezes já te disse...

— Basta! — disse Moreau com voz alterada.

Nesse momento Estela e o marido descobriram Oscar encolhido em seu canto. Moreau precipitou-se sobre o pobre menino como um milhafre sobre a presa, pegou-o pela gola de sua pequena sobrecasaca cor de azeitona e levou-o para a luz de uma janela.

— Fala! Que disseste ao conde no carro? Que demônio te desatou a língua, tu que ficas abobado todas as vezes que te interrogo? Qual era a tua ideia? — disse-lhe o administrador com espantosa violência.

Demasiado aturdido para chorar, Oscar permaneceu calado e ficou imóvel como uma estátua.

— Vem pedir perdão a Sua Excelência! — disse Moreau.

— Julgas que Sua Excelência se preocupa com semelhante verme? — exclamou a furiosa Estela.

— Vamos, vamos ao castelo! — disse Moreau.

Oscar abateu-se como uma massa inerte e caiu por terra.

— Vens ou não vens? — disse Moreau, cuja ira se acendia cada vez mais, de momento a momento.

— Não! Não! Misericórdia! — exclamou Oscar, que não quis submeter-se a um suplício para ele pior que a morte.

Moreau agarrou então Oscar pela sobrecasaca, arrastou-o como um cadáver pelos pátios que o menino encheu com seus gritos e soluços; arrastou-o pelas escadarias e com um braço animado pela raiva atirou-o chorando e rígido como um poste, no salão, aos pés do conde, que acabava de fazer a aquisição dos Moulineaux e ia para a sala de jantar com todo o grupo.

— De joelhos! De joelhos! Desgraçado! Pede perdão àquele que te deu o pão do espírito, obtendo para ti uma bolsa no colégio! — gritou Moreau.

Oscar, com o rosto contra o chão, espumava de raiva, sem dizer uma palavra. Todos os espectadores tremiam. Moreau, que estava fora de si, apresentava um rosto sangrento de tão congestionado.

— Esse rapaz é só vaidade — disse o conde depois de ter, em vão, esperado as desculpas de Oscar. — Um orgulhoso se humilha, pois há grandeza em certas humilhações. Receio muito que jamais possam fazer alguma coisa desse rapaz.

E o ministro de Estado seguiu adiante.

IX – DORES DE MÃE

Moreau pegou Oscar e levou-o para casa. Enquanto atrelavam os cavalos no carro, escreveu à sra. Clapart a seguinte carta:


Minha querida, Oscar acaba de me arruinar. Durante sua viagem no carro de Pierrotin, esta manhã, ele falou das leviandades da senhora condessa à Sua Excelência, em pessoa, que viajava incógnito, e disse ao próprio conde os seus segredos sobre a terrível doença que ele adquiriu, ao passar tantas noites de trabalho nas suas múltiplas funções. Após me haver destruído, o conde recomendou-me que não deixasse Oscar pernoitar em Presles, que o recambiasse. Por isso, a fim de lhe obedecer, estou fazendo neste momento atrelar os cavalos na caleça de minha mulher, e Brochon, o meu moço de estrebaria, vai levar-lhe esse pequeno miserável. Estamos, minha mulher e eu, numa desolação que bem pode conceber, mas que renuncio a descrever-lhe. Dentro de poucos dias irei vê-la, pois devo tomar uma resolução. Tenho três filhos, devo pensar no futuro, e não sei ainda o que fazer, pois minha intenção é mostrar ao conde o que valem dezessete anos da vida de um homem como eu. Possuindo duzentos e sessenta mil francos, quero fazer uma fortuna que me permita ser algum dia quase igual a de Sua Excelência. Neste momento, sinto-me capaz de erguer montanhas, de vencer dificuldades insuperáveis. Que alavanca, uma cena de humilhações como esta! Que sangue tem Oscar nas veias? Não lhe posso fazer cumprimentos por ele, sua conduta foi a de uma toupeira; no momento em que lhe escrevo ele não pôde ainda proferir uma palavra, nem responder às perguntas que eu e minha mulher lhe fazemos... Irá ele ficar imbecil, ou já estará? Não lhe tinha você, querida amiga, feito recomendações antes de embarcar? Quantas desgraças ter-me-ia poupado, se o tivesse acompanhado, conforme eu lhe havia pedido! Se Estela a assustava, teria podido ficar em Moisselles. Enfim, o mal já está feito. Adeus, até breve.


Seu dedicado servidor e amigo

Moreau


Às oito horas da noite, a sra. Clapart, de volta de um pequeno passeio com o marido, fazia meias de lã para Oscar, à luz de uma única candeia. Clapart esperava um de seus amigos, chamado Poiret,[96] que vinha às vezes jogar com ele uma partida de dominó, pois jamais se arriscava a passar a noite num café. Apesar da prudência que lhe impunha a mediocridade de sua fortuna, Clapart era incapaz de responder por sua temperança entre os objetos de consumação e em presença dos frequentadores, cujos sarcasmos o teriam espicaçado.

— Estou com receio de que Poiret já tivesse vindo — dizia Clapart à esposa.

— Mas, meu amigo, a porteira nos teria dito — respondeu-lhe esta.

— Ela é capaz de o ter esquecido.

— Por que achas que ela esqueceu?

— Não seria a primeira vez que ela esquece qualquer coisa para nós; pois Deus sabe como são tratadas as pessoas que não têm carruagem.

— Enfim — disse a pobre mulher para mudar de conversação e escapar às suscetibilidades de Clapart —, Oscar está agora em Presles, ele vai sentir-se bem feliz naquela bela terra, naquele belo parque...

— Pois sim, espere por notícias — respondeu Clapart —, alguma coisa ele vai fazer.

— Você nunca acabará com essa implicância com aquela pobre criança? Que lhe fez ele? Meu Deus! Se um dia nos virmos em boa situação, talvez a devamos a ele, pois tem bom coração...

— Quando esse rapaz triunfar na vida, já fará muito tempo que nossos ossos estarão transformados em gelatina! — exclamou Clapart. — Só se ele mudar muito! Mas você não conhece o seu filho; ele é gabola, mentiroso, preguiçoso, incapaz...

— E se você fosse ao encontro do sr. Poiret? — disse a pobre mãe, atingida em pleno coração por aquela diatribe que provocara.

— Um menino que nunca conseguiu um prêmio nas aulas! — exclamou Clapart.

Para os burgueses, conquistar prêmios nas classes é garantia de um belo futuro.

— E você teve algum? — disse-lhe a esposa. — Oscar obteve uma quarta menção em filosofia.

Essa apóstrofe impôs, por um momento, silêncio a Clapart.

— Além do quê, a sra. Moreau deve gostar dele como de uma cabeça de prego você sabe onde!... Ela fará tudo para que o marido fique com ojeriza contra ele... Oscar tornar-se administrador de Presles!... Mas se para isso é preciso saber agrimensura, entender de agricultura.

— Ele aprenderá.

— Ele? Qual! Aposto que, se ele tivesse esse emprego, não passaria uma semana sem cometer alguma asneira que faria com que o conde o despedisse!

— Meu Deus, como pode você encarniçar-se, no futuro, contra uma pobre criança cheia de boas qualidades, de uma doçura de anjo e incapaz de fazer mal a quem quer que seja?

Naquele momento, os estalidos de chicote de um postilhão, o ruído de uma caleça a grande velocidade e dos dois cavalos que paravam à porta, tudo isso revolucionara a rue de la Cerisaie. Clapart, que ouviu abrirem-se todas as janelas, foi para o patamar.

— Trazem-lhe Oscar de volta, numa caleça! — exclamou com um ar em que a satisfação se ocultava sob uma inquietação real.

— Oh! Meu Deus! Que lhe teria acontecido? — disse a pobre mãe, invadida por um tremor que a sacudiu como uma folha é sacudida pelo vento de outono.

Brochon subia, seguido por Oscar e Poiret.

— Meu Deus! Que aconteceu? — repetiu a pobre mãe, dirigindo-se ao moço de estrebaria.

— Não sei, mas o sr. Moreau não é mais administrador de Presles; dizem que o causador disso é o senhor seu filho, e Sua Senhoria deu ordens para que ele fosse expedido. De resto, aqui está a carta desse pobre sr. Moreau, que mudou tanto, senhora, que faz a gente tremer...

— Clapart! Dois copos de vinho para o postilhão e para este senhor — disse a mãe, que se atirou numa poltrona onde leu a carta fatal! — Oscar — disse ela, arrastando-se para a cama —, queres matar a tua mãe?... Depois de tudo o que te disse, esta manhã!...

Não terminou a frase, pois desmaiou de dor. Oscar ficou estúpido, de pé. Sua mãe voltou a si, ouvindo o marido, que dizia a Oscar, sacudindo-o pelo braço.

— Respondes ou não respondes?

— Vá deitar-se — disse ela ao filho. — E deixe-o em paz, sr. Clapart, não o enlouqueça, pois ele está mudado que dá medo.

Oscar não ouviu a última frase da mãe, pois que se fora deitar assim que recebeu a ordem.

Todos os que se lembram da adolescência não se admirarão ao saber que, depois de um dia tão cheio de emoções e de acontecimentos, Oscar dormisse o sono dos justos, não obstante a enormidade de suas faltas. No dia seguinte, ele não achou a natureza tão mudada como julgava e admirou-se de sentir fome, ele que na véspera se achava indigno de viver. Não sofrera a não ser moralmente. Nessa idade, as impressões morais se sucedem com demasiada rapidez para que uma não enfraqueça a outra, por mais profundamente gravada que esteja a anterior. Por isso, o sistema dos castigos corporais, embora fortemente atacado por filantropos nestes últimos tempos, é necessário, em certos casos, para as crianças; e, de resto, é o mais natural, pois a natureza não procede de outra forma, serve-se da dor para imprimir uma recordação durável dos seus ensinamentos. Se à vergonha infelizmente passageira que Oscar sofrera na véspera, o administrador tivesse juntado uma pena aflitiva, talvez que a lição tivesse sido completa. O discernimento com que as correções devem ser empregadas é o maior argumento contra elas; portanto, a natureza nunca se engana, ao passo que o preceptor erra frequentemente.

A sra. Clapart tivera o cuidado de fazer o marido sair a fim de ficar a sós com o filho durante a manhã. Ela estava num estado de inspirar piedade. Seus olhos enternecidos pelas lágrimas, seu rosto fatigado por uma noite de insônia, sua voz enfraquecida, tudo nela pedia misericórdia, mostrando uma dor tão excessiva que a não poderia suportar uma segunda vez. Ao ver entrar Oscar, fez-lhe sinal para que sentasse a seu lado, e lembrou-lhe, num tom meigo mas grave, as bondades do administrador de Presles. Disse a Oscar que, principalmente nos últimos seis anos, ela vivia das engenhosas caridades de Moreau. O posto de Clapart, devido ao conde de Sérisy, da mesma forma que a meia-bolsa com auxílio da qual Oscar terminara sua educação, cedo ou tarde cessaria. Clapart não podia aspirar a uma aposentadoria, por não contar suficientes anos de serviço, nem ao Tesouro, nem à municipalidade, para obtê-la. No dia em que Clapart não tivesse mais seu emprego, que seria deles todos?

— Eu — disse ela —, nem que tenha que me fazer enfermeira ou tornar-me governanta numa grande casa, saberei ganhar meu pão e sustentar o sr. Clapart. Mas tu — disse ela a Oscar —, que farás? Não tens fortuna e tens de fazer uma, porque é preciso viver. Para vocês, rapazes, só existem quatro grandes carreiras: o comércio, a administração, as profissões privilegiadas e o serviço militar. Qualquer espécie de comércio exige capital, e é cousa que nós não temos para te dar. À falta de capital, um rapaz conta com sua dedicação e sua capacidade, mas o comércio exige grande discrição, e teu procedimento de ontem não permite esperar que triunfes. Para entrar numa administração pública é preciso que se faça um longo estágio como supranumerário e ter proteções, e tu te alienaste o único protetor que poderíamos ter, e o mais poderoso de todos. De resto, admitindo que fosses dotado dos meios extraordinários com o auxílio dos quais um moço ascende facilmente, seja no comércio, seja na administração, onde encontrar o dinheiro para viver e vestir-se durante o tempo necessário para aprender a profissão? — Aqui a mãe, como todas as mulheres, entregou-se a lamentações verbosas: que iria ela fazer, privada do auxílio em produtos que a administração em Presles permitia a Moreau enviar-lhe? Oscar deitara a perder a situação do seu protetor. Além do comércio e da administração, carreiras em que o filho não podia pensar, pela impossibilidade de mantê-lo, vinham as profissões privilegiadas do notariado, do foro, dos procuradores e dos oficiais de justiça. Mas, para isso, era preciso fazer o curso de direito, estudar durante três anos e pagar quantias consideráveis para as matrículas, para os exames, para as teses e os diplomas; o grande número de aspirantes obrigava o candidato a distinguir-se por um talento superior; finalmente, voltava sempre à baila a questão da manutenção de Oscar.

— Oscar — disse ela, terminando —, eu tinha posto em ti todo o meu orgulho e toda a minha vida. Ao resignar-me a uma velhice infeliz, eu repousava minha vista em ti, via-te abraçando uma bela carreira e triunfando. Essa esperança deu-me coragem para suportar as privações que sofri durante seis anos para te sustentar no colégio, onde nos custava, apesar da meia-bolsa, de setecentos a oitocentos francos por ano. Agora, que minha esperança se desvanece, teu destino me apavora! Não posso dispor de um sou do ordenado do sr. Clapart para meu filho. Que vais fazer? Não és bastante forte em matemática para entrar nas escolas especiais, e, de resto, onde iria eu buscar os três mil francos de pensão que exigem? Aí está, meu filho, a vida tal como ela é! Tens dezoito anos, és robusto, senta praça como soldado, será o melhor modo de ganhar teu pão...

Oscar nada sabia ainda da vida. Como todas as crianças às quais tiveram o cuidado de ocultar a miséria da casa, ele ignorava a necessidade de ganhar dinheiro; a palavra comércio nada lhe dizia ao espírito, e a palavra administração para ele pouco significava, pois não lhe via os resultados: ouvia, com ar submisso, que tentava tornar compungido, as repreensões da mãe que, no entanto, se perdiam no vácuo. Não obstante, a ideia de ser soldado e as lágrimas que rolavam dos olhos da boa senhora fizeram o rapazinho chorar. Assim que a sra. Clapart viu as faces de Oscar sulcadas pelas lágrimas, ela se sentiu sem forças e, como todas as mães em semelhantes circunstâncias, recorreu à peroração que termina essa espécie de crise, nas quais elas sofrem, simultaneamente, as próprias dores e a dos filhos.

— Vamos, Oscar, promete-me que no futuro serás discreto, e não falarás mais a torto e a direito, que reprimirás o teu tolo amor-próprio, que... etc... etc.

Oscar prometeu tudo o que a mãe lhe pediu que prometesse; e, depois de o ter atraído meigamente a si, a sra. Clapart acabou abraçando-o para consolá-lo de o ter censurado.

— Agora — disse ela —, ouvirás tua mãe, seguirás seus conselhos, pois uma mãe não pode dar senão bons conselhos a seu filho. Iremos à casa de teu tio Cardot.[97] Lá está a nossa última esperança. Cardot muito deveu a teu pai, o qual, ao lhe dar em casamento sua irmã, a srta. Husson, com um dote enorme para aquele tempo, lhe permitiu fazer uma grande fortuna em sedas. Acredito que ele te colocará na casa do sr. Camusot,[98] seu gerente e sucessor, na rue des Bourdonnais... Mas teu tio Cardot tem quatro filhos. Ele deu o seu estabelecimento do Casulo de Ouro à filha mais velha, a sra. Camusot. Se Camusot tem milhões, tem também quatro filhos de dois leitos diferentes e mal sabe que existimos. Cardot casou Mariana, a segunda filha, com o sr. Protez, da casa Protez e Chiffreville. O cartório de seu filho mais velho, o notário, custou quatrocentos mil francos, e ele acaba de associar José Cardot, seu segundo filho, à casa Matifat. Teu tio Cardot terá, pois, motivos de sobra para não se interessar por ti, a quem vê umas quatro vezes por ano. Nunca veio aqui pagar-me uma visita; ao passo que sabia visitar-me na casa de Madame-mãe, para obter os fornecimentos das altezas imperiais, do imperador e dos grandes da corte. Os Camusot, agora, bancam os ultras! Camusot casou o filho da mulher com a filha de um porteiro do gabinete do rei. Ele só se curva diante de gente graúda! Enfim, é hábil; o Casulo de Ouro teve a freguesia da corte sob os Bourbons, como a tinha sob o imperador. Amanhã iremos portanto à casa de teu tio Cardot, e espero que te saberás portar como deves; pois isso, repito, é a nossa última esperança.

X – O TIO CARDOT

O sr. João-Jerônimo-Severino Cardot enviuvara fazia seis anos de sua esposa, uma Husson, a quem o fornecedor, no tempo de seu esplendor, dera cem mil francos de dote, em dinheiro. Cardot, primeiro caixeiro do Casulo de Ouro, uma das mais antigas casas de Paris, comprara esse estabelecimento em 1793, no momento em que seus patrões estavam arruinados pelo tabelamento; e o dinheiro do dote da sra. Husson permitira-lhe fazer em dez anos uma fortuna quase colossal. Para colocar os filhos ricamente, tivera a engenhosa ideia de estabelecer a quantia de trezentos mil francos em títulos de renda vitalícia, na pessoa de sua esposa e na sua, o que produziu trinta mil libras de renda. Quanto aos seus capitais, ele os dividira em três lotes de quatrocentos mil francos cada um para os filhos. O Casulo de Ouro, dote de sua filha mais velha, foi aceito por essa quantia por Camusot. O bom velho, quase septuagenário, podia pois gastar, e gastava seus trinta mil francos por ano, sem prejudicar os interesses dos seus filhos, todos eles superiormente estabelecidos, e cujas manifestações de afeição não podiam ser então maculadas por nenhum pensamento cúpido. O tio Cardot morava em Belleville, numa das primeiras casas situadas acima da Courtille. Ele aí ocupava, num primeiro andar de onde dominava o vale do Sena, um apartamento de mil francos com exposição para o sul e com o gozo exclusivo de um grande jardim; por isso, pouco ou nada se preocupava com os três ou quatro outros inquilinos, alojados nessa vasta casa de campo. Garantido por longo contrato, para aí acabar seus dias, vivia de modo bastante mesquinho, servido por sua velha cozinheira e pela antiga criada de quarto da falecida sra. Cardot, as quais esperavam receber, cada uma, uns seiscentos francos de renda, por morte dele, e que por consequência não o roubavam. Essas duas mulheres tinham cuidados inauditos com o patrão e se interessavam tanto mais por ele por não haver ninguém menos arreliador, nem menos rabugento. O apartamento mobiliado pela falecida sra. Cardot permanecia no mesmo estado em que se achava seis anos antes, e o velho conformava-se com isso; no total não gastava mil escudos por ano, pois jantava em Paris cinco vezes por semana e voltava para casa todas as noites num fiacre contratado, cuja cocheira se achava na barreira da Courtille. A cozinheira tinha apenas de se ocupar com o almoço. O bom homem almoçava às onze horas, depois se vestia, perfumava-se e ia a Paris. Habitualmente os burgueses previnem quando jantam fora; o velho Cardot, este, prevenia quando jantava em casa.

Aquele velhinho, gordo, viçoso, atarracado, forte, andava, como diz o povo, sempre na estica, isto é, sempre de meias de seda preta, calção de seda fosca, colete de piquê branco, roupa branca de alvura imaculada, casaca azul-clara, luvas de seda violeta, fivelas de ouro nos sapatos e no calção, enfim, uma suspeita de pó de arroz e um pequeno rabicho atado com fita preta. Seu rosto fazia-se notar por sobrancelhas espessas como um matagal, sob as quais fuzilavam os olhos cinzentos, e por um nariz reto, grande e comprido, que lhe dava o ar de um antigo prebendário. Aquela fisionomia mantinha o que prometia. O velho Cardot pertencia, com efeito, àquela raça de Gerontes[99] espertos que, dia a dia, vai desaparecendo, e que alegrava com Turcaret[100] os romances e comédias do século xviii. O tio Cardot dizia: Bela dama! e conduzia de carro para as suas casas as mulheres que se achavam sem protetor; punha-se à disposição delas, segundo a sua expressão, com modos cavalheirescos. Sob o seu ar calmo, sob sua fronte de neve, ocultava uma velhice unicamente preocupada com os prazeres. Entre os homens, ele professava galhardamente o epicurismo e permitia-se gracejos picantes, um tanto fortes. Não achava censurável que o genro, Camusot, fizesse a corte à encantadora atriz Corália,[101] porquanto secretamente ele próprio era o mecenas de Florentina, primeira dançarina do teatro da Gaîté. Mas, quer dessa vida, quer de suas opiniões, nada transparecia em sua casa, nem da sua conduta exterior. O tio Cardot, grave e cortês, passava por ser quase frio, tal o decoro que exibia e tão completo, que uma devota o chamaria de hipócrita. Esse digno senhor odiava particularmente os padres, fazia parte do grande rebanho de tolos assinantes do Constitutionnel [102] e se preocupava muito com as recusas de sepultura.[103] Adorava Voltaire, embora suas preferências se dirigissem para Piron, Vadé, Collé.[104] Naturalmente admirava Béranger,[105] a quem engenhosamente apelidava o grão-sacerdote da religião de Lisette. [106] Suas filhas, as senhoras Camusot e Protez, e seus dois filhos teriam, segundo uma expressão popular, caído do alto de seus tamancos se alguém lhes explicasse o que seu pai entendia por cantar La Mère Godichon. Esse sensato ancião não falara aos filhos de suas rendas vitalícias, os quais, vendo-o viver de modo tão mesquinho, julgavam todos ter-se ele despojado de sua fortuna em benefício deles, e por isso redobravam de cuidados e de ternura. Também, por vezes, dizia-lhes ele: “Não percam o seu dinheiro, pois nada tenho para deixar-lhes”. Camusot, em quem encontrava muito do seu caráter e a quem queria o bastante para incluí-lo nas suas sortidas, era o único a conhecer o segredo dos seus trinta mil francos de renda vitalícia. Camusot aprovava firmemente a filosofia do velho sogro, o qual, na sua opinião, depois de ter feito a felicidade dos filhos e cumprido tão nobremente seus deveres, bem podia terminar alegremente a vida. — Vês, meu amigo — dizia ao genro o antigo chefe do Casulo de Ouro —, eu podia tornar a casar-me, não é? Uma mulher moça dar-me-ia filhos... Sim, eu os teria, pois estava na idade em que sempre eles aparecem. Pois bem! Florentina não me custa tanto quanto me custaria uma esposa; não me aborrece, não me dará filhos e jamais devorará a fortuna de vocês. — Camusot proclamava que o velho Cardot tinha o senso mais delicado da família; considerava-o um sogro perfeito. — Ele sabe — dizia — conciliar o interesse dos filhos com os prazeres, que é natural gozar na velhice, após ter sofrido todas as atribulações do comércio.

Os Cardot, os Camusot, os Protez mal suspeitavam da existência de sua antiga tia, a sra. Clapart. As relações de família estavam reduzidas ao envio de cartões de participação em caso de morte ou casamento ou felicitações pelo Ano-Novo. A altiva sra. Clapart não fazia seus sentimentos se curvarem senão ao interesse de seu Oscar e ante a sua amizade por Moreau, única pessoa que na desgraça se lhe conservava fiel. Não fatigara o velho Cardot, nem com sua presença, nem importunando-o; mas agarrara-se a ele como a uma esperança e ia vê-lo uma vez por trimestre. Falava-lhe de Oscar Husson, sobrinho da respeitável finada, a sra. Cardot, e levava-o à sua presença três vezes durante as férias. A cada visita, o velho levava Oscar a jantar no Quadrante Azul e à noite ao teatro da Gaîté; depois o reconduzia à casa, à rue de la Cerisaie. Uma vez, depois de o ter vestido de ponto em branco, ele lhe dera a canequinha e o talher de prata, exigidos pelo enxoval do colégio. A mãe de Oscar esforçava-se por convencer o velho de que ele era querido do sobrinho, sempre lhe falava naquela canequinha e naquele talher e naquele belíssimo vestuário, do que nada mais restava a não ser o colete. Essas pequenas espertezas, entretanto, prejudicavam mais do que serviam a Oscar perante aquela velha raposa matreira que era o tio Cardot. O velho jamais amara a sua falecida, uma mulher grande, seca e ruiva; de resto, conhecia as circunstâncias do casamento do falecido Husson com a mãe de Oscar; e sem a desestimar o mínimo que fosse, não ignorava que o jovem Oscar era póstumo; por isso, seu pobre sobrinho parecia-lhe estranho aos Cardot. Não prevendo as desgraças, a mãe de Oscar não tinha remediado aqueles defeitos de ligação entre Oscar e o tio, tratando de inspirar no negociante amizade pelo sobrinho desde cedo. Semelhante a todas as mulheres que se concentram no sentimento da maternidade, ela não se colocava absolutamente na posição do tio Cardot e julgava que esse devia interessar-se enormemente por uma criança tão encantadora, que, de mais, usava o nome da falecida sra. Cardot.

— Sr. Cardot, é a mãe de Oscar, seu sobrinho — disse a camareira a Cardot, que estava passeando pelo jardim à espera do almoço, depois de ser barbeado e empoado pelo seu barbeiro.

— Bom dia, bela dama — disse o antigo negociante de sedas saudando a sra. Clapart e envolvendo-se no seu robe de chambre de piquê branco. — Eh! eh! Seu pequeno brejeiro está crescendo — acrescentou, beliscando a orelha de Oscar.

— Ele terminou o curso, e bem pesaroso ficou por não ter o querido tio assistido à distribuição de prêmios do liceu Henri iv, pois foi mencionado. O nome de Husson, que ele usará dignamente, assim o espero, foi proclamado.

— Diabos! Diabos! — disse o velhote, detendo-se.

A viúva, Oscar e ele passeavam no terraço, em frente às laranjeiras, às murtas e romãzeiras.

— E que foi que ele obteve?

— A quarta menção honrosa em filosofia — respondeu gloriosamente a mãe.

— Oh! Este freguês tem muito o que andar para recuperar o tempo perdido — exclamou o tio Cardot —, pois terminar com uma menção honrosa... Não é o Eldorado!... Almoçam comigo? — perguntou.

— Estamos às suas ordens — respondeu a sra. Clapart. — Ah!, meu caro sr. Cardot, que satisfação para os pais e as mães quando os filhos estreiam bem na vida. Sob esse ponto de vista, como, aliás, sob todos os outros — disse ela, corrigindo-se —, o senhor é um dos mais felizes pais que eu conheço... Sob a direção de seu virtuoso genro e da sua amável filha, o Casulo de Ouro continua a ser o primeiro estabelecimento de Paris. Seu primogênito está há dez anos à frente do mais belo cartório de notário da capital e ricamente casado. O seu caçula acaba de associar-se à mais rica drogaria. Enfim, o senhor tem netas encantadoras. Está o senhor como chefe de quatro grandes famílias... Deixa-nos, Oscar, vai ver o jardim, mas sem tocar nas flores.

— Mas ele tem dezoito anos! — disse o tio Cardot, sorrindo ante aquela recomendação que diminuía Oscar.

— Ai de mim! Sim, meu bom sr. Cardot, e depois de o ter conduzido até agora, nem cambaio nem torto, são de espírito e de corpo, depois de tudo ter sacrificado para educá-lo, seria muito duro não o ver no caminho da fortuna.

— Mas esse sr. Moreau, por intermédio de quem obteve uma meia-bolsa no colégio Henri iv, o lançará num bom caminho — disse o tio Cardot, com hipocrisia disfarçada sob uma aparente bonomia.

— O sr. Moreau pode morrer — disse ela — e ademais está malquisto, sem possibilidade de reconciliação com o sr. conde de Sérisy, seu patrão.

— Diabo! diabo!... Ouça, senhora, já vejo...

— Não, sr. Cardot — disse a mãe de Oscar, interrompendo de golpe o ancião, o qual, em atenção a uma bela dama, conteve o gesto de enfado que se sente ao ser-se interrompido.

— Ai de mim! O senhor não conhece as angústias de uma mãe, que, há sete anos, é obrigada a gastar com o filho a quantia de seiscentos francos por ano, dos mil e oitocentos de ordenado de seu marido... Sim, é essa toda a nossa fortuna. Sendo assim, que posso eu pelo meu Oscar? Clapart execra de tal forma essa pobre criança que me é impossível conservá-lo em casa. Uma pobre mulher, só no mundo, não tinha o dever de, nestas circunstâncias, vir consultar o único parente que seu filho tem sob os céus?

— Teve razão — respondeu o velho Cardot. — Nunca me havia dito nada disso...

— Ah! — replicou ela altivamente —, o senhor era a última pessoa a quem eu confessaria até onde vai minha miséria. Tudo é culpa minha, casei-me com um homem cuja incapacidade ultrapassa tudo o que se possa imaginar. Oh!, sou bem infeliz!

— Ouça, senhora! — replicou gravemente o velhote —, não chore. Causa-me um terrível mal ver chorar uma bela dama... Afinal de contas, o seu filho chama-se Husson, e se minha querida defunta vivesse, faria alguma coisa pelo nome do pai e do irmão.

— Muito queria ela ao irmão — exclamou a mãe de Oscar.

— Toda a minha fortuna, porém, já foi entregue aos meus filhos, que nada mais têm a esperar de mim — continuou o ancião —; dividi entre eles os dois milhões que eu tinha, pois quis vê-los felizes e com toda a sua fortuna, ainda em vida minha. Nada mais me reservei do que rendas vitalícias e, na minha idade, tem-se apego aos hábitos contraídos... Sabe em que direção deve orientar esse rapagão? — disse ele, chamando Oscar e pegando-o pelo braço. — Faça-o formar-se em direito, eu pagarei as inscrições e as despesas da tese. Coloque-o no escritório de um procurador, a fim de que ele aprenda os processos da chicana; se ele for bem, se se distinguir, se gostar da profissão, e se eu ainda for vivo, cada um de meus filhos lhe emprestará a quarta parte para a compra de um cargo, em prazo e lugar oportuno; quanto a mim, lhe darei a caução. Daqui até lá, portanto, só terá de alimentá-lo e vesti-lo; é certo que comerá um pouco de pão que o diabo amassou, mas aprenderá a vida. Eh! eh! Eu saí de Lyon com dois duplos luíses que minha avó me dera, vim a pé para Paris e aqui estou. O jejum mantém a saúde. Rapaz, com discrição, probidade e trabalho, a gente vence! É um gosto ganhar a própria fortuna; e quando ainda se tem os dentes, comemo-la a bel-prazer na velhice, cantando como eu, de tempos em tempos, La Mère Godichon. Lembra-te das minhas palavras: probidade, trabalho, discrição.

— Estás ouvindo, Oscar? — disse a mãe. — Teu tio te dá em três palavras o resumo de tudo quanto te tenho dito, e a última, tu deverias gravá-la em letras de fogo na tua memória...

— Oh!, já está — disse Oscar.

— Pois bem, agradece ao teu tio; não ouviste que ele se encarrega do teu futuro? Podes tornar-te procurador em Paris.

— Ele ignora a grandeza do seu destino — respondeu o velhote, ao ver o ar aparvalhado de Oscar —, pois apenas sai do colégio. Escuta, não sou tagarela — continuou o tio. — Lembra-te que na tua idade a probidade não se firma, a não ser resistindo às tentações, e, numa grande cidade como Paris, estas se encontram a cada passo. Mora em casa de tua mãe, numa mansarda; vai direito para a escola, volta de lá para o teu escritório, cava da manhã à noite, estuda em casa; torna-te aos vinte e dois anos segundo ajudante, aos vinte e quatro, primeiro; sê competente, e terás tua sorte no bolso. Pois bem, se a profissão te desagradar, poderás entrar no cartório de meu filho, notário, e tornar-te seu sucessor... Assim, pois, trabalho, paciência, discrição, probidade, eis aí tuas etapas.

— E queira Deus que o senhor viva ainda trinta anos, para ver seu quinto filho realizando tudo o que esperamos dele! — exclamou a sra. Clapart, pegando a mão do tio Cardot e apertando-a com um gesto digno da sua mocidade.

— Vamos almoçar — concluiu o bom velhote, levando Oscar pela orelha.

Durante o almoço, o tio Cardot observou o sobrinho, como se tal não fizesse, e notou que ele nada sabia da vida.

— Mande-o, de quando em quando, visitar-me — disse ele à sra. Clapart, ao despedir-se dela e mostrando Oscar —, eu o formarei.

Essa visita acalmou os pesares da pobre mulher, que não esperava um tão bom êxito. Durante quinze dias ela saiu com Oscar para passeá-lo, vigiou-o quase que tiranicamente e chegou assim ao fim do mês de outubro. Numa manhã Oscar viu entrar o temível administrador, o qual surpreendeu a pobre família da rue de la Cerisaie almoçando uma salada de arenques e alface, com uma xícara de leite como sobremesa.

— Estamos instalados em Paris e aqui não vivemos como em Presles — disse Moreau, que queria assim anunciar à sra. Clapart a mudança havida em suas relações por culpa de Oscar —, mas pouco demoro na cidade. Associei-me com o velho Léger e o velho Margueron, de Beaumont. Negociamos em vendas de propriedades e começamos comprando as terras de Persan. Sou o chefe da sociedade, que tem um capital de um milhão, pois consegui um empréstimo com garantia dos meus bens. Quando descubro um negócio, eu e o velho Léger o examinamos, meus sócios recebem, cada qual, uma quarta parte e eu a metade dos lucros, pois sou eu quem tem todo o trabalho; por isso estou sempre na estrada. Minha mulher vive em Paris no Faubourg du Roule, muito modestamente. Quando tivermos realizado alguns negócios, quando não arriscarmos senão os lucros, se estivermos satisfeitos com Oscar, talvez o empreguemos.

— Não há dúvida, meu amigo, a catástrofe ocasionada pela leviandade de meu pobre filho será, sem dúvida, a causa de uma brilhante fortuna para o senhor; porque, realmente, o senhor estava enterrando em Presles a sua capacidade e a sua energia...

Depois disso, a mãe contou sua visita ao tio Cardot, a fim de mostrar a Moreau que ela e o filho podiam não lhe pesar mais.

— Esse velhote tem razão — disse o ex-administrador. — É preciso manter Oscar nesse caminho, com uma mão de ferro, e seguramente ele virá a ser notário ou procurador. Mas que não se afaste do caminho traçado! Oh! Já tenho o que precisa. A clientela de um corretor de propriedades é importante e me falaram de um procurador que acaba de comprar um título nu, isto é, um escritório sem clientela. É um rapaz duro como uma barra de ferro, chama-se Desroches; vou oferecer-lhe todos os nossos assuntos, com a condição de guiar Oscar: vou propor-lhe para o empregar em seu escritório à razão de novecentos francos, e eu darei trezentos, assim é que seu filho lhe custará apenas seiscentos francos, e vou recomendá-lo muito ao senhor prior. Se o rapaz quiser tornar-se um homem, terá de ser sob essa férula; pois de lá sairá notário, procurador ou advogado.

— Vamos, Oscar, agradece a esse bom senhor Moreau. Estás aí como um frade de pedra! Nem todos os rapazes que fazem asneiras têm a sorte de encontrar amigos que se interessam por eles, apesar das queixas que possam ter.

— A melhor maneira para fazer as pazes comigo — disse Moreau, apertando a mão de Oscar — é trabalhar com pertinácia e ter boa conduta...

XI – A VIDA E OS ENGODOS NO MUNDO DOS CARTÓRIOS

Dez dias depois, Oscar foi apresentado pelo ex-administrador ao sr. Desroches, procurador recentemente instalado na rue de Béthisy, num vasto apartamento, ao fundo de um pátio estreito e de preço relativamente módico. Desroches, jovem de vinte e seis anos, criado de modo duro por um pai de uma severidade excessiva, filho ademais de família pobre, vira-se nas mesmas condições em que se achava Oscar; interessou-se, pois, por este, como podia interessar-se por alguém uma pessoa com as aparências de dureza que o caracterizavam. O aspecto daquele rapaz seco e magro, tez escura, de cabelos cortados à escovinha, conciso no falar, de olhar penetrante e de uma vivacidade sombria, aterrorizou o pobre Oscar.

— Aqui se trabalha noite e dia — disse o procurador, do fundo de sua poltrona e por trás de uma comprida mesa, na qual os papéis estavam amontoados em forma de Alpes. — Sr. Moreau, não mataremos sua recomendação, mas ele terá de acertar o passo com o nosso. — Sr. Godeschal! — chamou ele.

Embora fosse domingo, o primeiro ajudante apresentou-se de pena na mão.

— Sr. Godeschal, eis aqui o aprendiz forense de que lhe falei e por quem o sr. Moreau tem o mais vivo interesse; ele jantará conosco e se alojará na pequena mansarda ao lado do seu quarto; o senhor lhe medirá o tempo necessário para ir daqui à Escola de Direito e de lá voltar, de modo que ele não perca cinco minutos; tratará de fazer com que ele aprenda o Código e se torne forte nas suas aulas, isto é, que quando tiver terminado seus trabalhos no escritório, o senhor lhe dará tratadistas para ler; finalmente, deve ele ficar sob sua imediata direção, e eu olharei por isso. Querem fazer dele o que o senhor fez por si mesmo, isto é, um primeiro ajudante hábil, para o dia em que prestar seu juramento de advogado. Vá com Godeschal, meu amiguinho, ele lhe vai mostrar seu aposento e para lá transportará suas coisas... Está vendo Godeschal? — disse Desroches dirigindo-se a Moreau. — É um rapaz que, como eu, nada possui; é o irmão de Marieta, a famosa dançarina que lhe está juntando o necessário para ele se estabelecer dentro de dez anos. Todos os meus ajudantes são rapagões que só devem contar com os seus dez dedos para ganhar a vida. Por isso, meus cinco ajudantes e eu trabalhamos tanto como doze! Dentro de dez anos terei a mais bela clientela de Paris. Aqui, nos apaixonamos pelas causas e pelos clientes, e isso começa a ser sabido. Tomei-o do cartório de Derville, onde estava apenas havia quinze dias e era segundo ajudante; mas foi ali que nos conhecemos. Em minha casa, Godeschal ganha mil francos, cama e mesa. É um rapaz que vale tanto como eu, é infatigável! Quero-lhe muito bem, a esse rapaz! Soube viver com seiscentos francos, como eu quando era ajudante. O que sobretudo exijo é uma probidade sem mácula; e quando alguém a pratica assim, na indigência, é um homem. À menor falta dessa natureza, um ajudante sairá do meu escritório.

— Com efeito, o rapaz está em boa escola — disse Moreau.

Durante dois anos inteiros, Oscar viveu na rue de Béthisy, no antro da chicana; pois se jamais essa expressão antiquada se pôde aplicar a um escritório, foi sem dúvida ao de Desroches. Sob aquela vigilância, ao mesmo tempo meticulosa e hábil, ele foi mantido no seu horário e nos seus trabalhos com tal rigidez que sua vida em Paris se assemelhava à de um monge.

Por qualquer tempo, às cinco horas da manhã, Godeschal acordava. Descia com Oscar para o escritório, a fim de economizar o fogo no inverno, e sempre encontravam o patrão de pé, trabalhando. Oscar fazia expedições para o escritório e preparava suas lições para a escola; mas preparava-as em proporções enormes. Godeschal e muitas vezes o patrão indicavam ao seu discípulo os autores que devia compulsar e as dificuldades que devia vencer. Oscar só deixava um título do Código depois de o ter aprofundado e ter satisfeito quer o patrão, quer Godeschal, os quais o submetiam a exames preparatórios mais rigorosos e mais demorados que os da Escola de Direito. Quando voltava das aulas, onde pouco se demorava, retomava seu lugar no escritório, aí tornava a trabalhar, ia às vezes ao Palácio da Justiça e ficava sob as ordens do terrível Godeschal até a hora do jantar. O jantar, que de resto era o mesmo do patrão, compunha-se de abundante prato de carne, de um prato de legumes e de uma salada. A sobremesa era um pedaço de queijo de Gruyère. Depois do jantar, Godeschal e Oscar voltavam para o escritório e aí trabalhavam até a noite. Uma vez por mês, Oscar ia almoçar à casa do tio Cardot e passava os domingos na casa da mãe. De longe em longe, Moreau, quando vinha por negócios ao escritório, levava Oscar para jantar no Palais Royal e regalava-o com algum espetáculo. Oscar tinha sido tão bem repreendido por Godeschal e Desroches a propósito das suas veleidades de elegância que não mais pensava na toilette.

— Um bom ajudante — dizia-lhe Godeschal — deve ter duas casacas pretas (uma nova e uma velha), um par de calças pretas, meias pretas e sapatos. As botinas custam demasiado caro. Tem-se botas quando se é procurador. Um escrevente não deve no total gastar mais de setecentos francos. Usam-se boas camisas grossas, de uma tela forte. Ah! Quando se parte do zero para alcançar a fortuna, é preciso saber limitar-se ao necessário. Veja o sr. Desroches! ele fez o que estamos fazendo, e ei-lo triunfante.

Godeschal dava o exemplo. Se professava os mais rígidos princípios sobre a honra, a discrição e a probidade, ele as praticava sem ênfase, como respirava ou caminhava. Era a atividade natural de sua alma, como a marcha e a respiração são as atividades dos órgãos. Dezoito meses depois da instalação de Oscar, o segundo escriturário teve, pela segunda vez, um leve erro nas contas de sua pequena caixa. Godeschal disse-lhe diante de todo o pessoal do escritório: — Meu caro Gaudet, vá embora daqui por sua própria vontade, para que não se diga que o patrão o despediu. Você é ou distraído, ou pouco exato, e o mais leve desses defeitos não é perdoável aqui. O patrão de nada saberá, é tudo que posso fazer por um camarada.

Aos vinte anos, Oscar viu-se terceiro ajudante do escritório do sr. Desroches. Se ainda nada ganhava, era alimentado, alojado, pois fazia o trabalho de um segundo escriturário. Desroches empregava dois ajudantes de categoria e o segundo escriturário vivia curvado sob o peso dos trabalhos. Ao chegar ao fim do segundo ano de direito, Oscar, já mais forte do que muitos licenciados, fazia inteligentemente o trabalho do Palácio da Justiça e pleiteava alguns casos de urgência. Enfim, Godeschal e Desroches estavam satisfeitos com ele. Somente que, embora se tivesse tornado quase ponderado, deixava transparecer uma propensão para os prazeres e um desejo de brilhar que a disciplina severa e o trabalho contínuo daquela vida comprimiam. O corretor de propriedades, satisfeito com os progressos do aprendiz, afrouxou um pouco o rigor com que o prendia. Quando, em julho de 1825, Oscar passou nos últimos exames com bolas brancas,[107] Moreau deu-lhe com que se vestir elegantemente. A sra. Clapart, feliz e orgulhosa com o filho, preparava um soberbo enxoval para o futuro licenciado, para o futuro segundo ajudante. Nas famílias pobres, há sempre oportunidade para um presente útil. No fim das férias, no mês de novembro, Oscar Husson recebeu o quarto do segundo ajudante, a quem finalmente ia substituir, e teve oitocentos francos de ordenado, cama e mesa. Por isso, o tio Cardot, que foi secretamente buscar informações a respeito do sobrinho com o sr. Desroches, prometeu à sra. Clapart pôr Oscar em condições de adquirir um escritório se continuasse como ia.

Apesar de tão louváveis aparências, Oscar Husson, no seu íntimo, pelejava rudes combates. Havia momentos em que queria abandonar uma vida tão diretamente contrária ao seu gosto e ao seu caráter. Achava os forçados mais felizes do que ele. Magoado com a coleira daquele regime de ferro, tinha ganas de fugir quando na rua se comparava com alguns rapazes bem vestidos. Com frequência, sentindo-se loucamente arrastado para as mulheres, resignava-se, mas caía num desgosto profundo pela vida. Amparado pelo exemplo de Godeschal, ele era antes arrastado, do que levado por si mesmo, a permanecer em tão áspera senda. Godeschal, que observava Oscar, tinha por princípio não expor seu pupilo às seduções. Quase sempre, o escriturário ficava sem dinheiro, ou o que tinha era tão pouco que não se podia entregar a nenhum excesso. Naquele último ano, o bom Godeschal fizera cinco ou seis pândegas com Oscar, pagando as despesas, pois compreendeu que era preciso afrouxar um pouco a corda àquele cabrito amarrado. Essas farras, como as chamava o severo primeiro ajudante, auxiliavam Oscar a suportar a existência, pois pouco se divertia em casa do tio Cardot e menos ainda em casa de sua mãe, que vivia mais mesquinhamente ainda do que Desroches. Moreau não podia, como Godeschal, familiarizar-se com Oscar, e talvez aquele sincero protetor do jovem Husson se servisse de Godeschal para iniciar o pobre rapaz nos mistérios da vida. Oscar, que se tornara discreto, acabara por medir, ao contato dos negócios, a extensão da falta cometida durante a sua fatal viagem no coucou; mas a massa das suas fantasias reprimidas e a loucura da mocidade podiam ainda arrastá-lo. Não obstante, à medida que adquiria conhecimento do mundo e das suas leis, sua razão se formava, e, contanto que Godeschal não o perdesse de vista, Moreau se lisonjeava de trazê-lo no bom caminho.

— Como vai ele? — perguntou o corretor de propriedades na volta de uma viagem que o retivera durante alguns meses longe de Paris.

— Sempre demasiado vaidoso — respondeu Godeschal. — O senhor lhe dá belos trajes e belas roupas brancas, ele tem bofes de corretor de câmbios; e meu janota se vai, aos domingos, às Tulherias, em busca de aventuras. Que quer!, é a mocidade. Vive a atormentar-me para que eu o apresente à minha irmã, em cuja casa ele veria uma famosa sociedade: atrizes, dançarinas elegantes, gente que atira o dinheiro pela janela... Alimento receios de que ele não tenha o espírito propenso para a profissão. Entretanto ele fala bem, poderia ser advogado, pleitearia causas bem preparadas.

No mês de novembro de 1825, no momento em que Oscar tomou posse do seu posto e em que se dispunha a defender tese para a licença, entrou para o escritório de Desroches um novo e quarto escriturário, para preencher a vaga produzida pela promoção de Oscar.

Esse quarto escriturário, chamado Frederico Marest, destinava-se à magistratura, e estava terminando o terceiro ano de direito. Era, segundo as informações obtidas pela polícia do escritório, um belo rapaz de vinte e três anos de idade, enriquecido com uns doze mil francos de renda pela morte de um tio celibatário e filho de uma sra. Marest, viúva de um rico negociante de madeiras. O futuro juiz substituto, no louvável desejo de conhecer sua profissão nos menores detalhes, entrava para o escritório de Desroches com a intenção de estudar o código de processo e de ser capaz de ocupar o cargo de principal escriturário ao cabo de dois anos. Contava fazer seu estágio de advogado em Paris, a fim de ficar habilitado a exercer as funções do posto que não seria recusado a um rapaz rico. Ver-se aos trinta anos procurador do rei perante um tribunal qualquer era toda a sua ambição. Como o mistificador da viagem a Presles não tivesse dito seu nome senão a Moreau, o jovem Husson não o conhecia, a não ser pelo seu nome de batismo, Jorge, e esse nome de Frederico Marest nada podia lembrar-lhe, embora Frederico fosse primo-irmão de Jorge Marest.

— Senhores — disse Godeschal ao almoço, dirigindo-se a todos os escriturários —, comunico-lhes a chegada de um novo colega; e, como ele é riquíssimo, nós o faremos pagar, assim espero, um famoso acolhimento...

— Para a frente do livro! — disse Oscar, olhando para o pequeno ajudante — e fiquemos sérios.

O pequeno ajudante trepou como um esquilo ao longo das estantes para apoderar-se de um registro colocado o bastante alto, na última prateleira, para se cobrir de camadas de poeira.

— Está bem curado — disse o pequeno ajudante, mostrando um livro.

Expliquemos que perpétua pilhéria engendrava aquele livro, então em uso na maioria dos escritórios. Nada mais há do que almoços de escriturários, jantares de contratadores e ceias de senhores, esse velho ditado do século xviii permanece verdadeiro no que diz respeito à gente do foro, para quem passou dois ou três anos de vida a estudar as normas processuais num escritório de procurador, ou o notariado num cartório qualquer. Na vida judicial, na qual tanto se trabalha, gosta-se do prazer com tanto mais ardor por ser ele raro, mas saboreia-se, principalmente, uma mistificação com delícia. É o que, até certo ponto, explica o procedimento de Jorge Marest, no carro de Pierrotin. O mais sombrio escriturário de cartório sente-se sempre agitado pela necessidade de uma farsa ou de uma zombaria. O instinto, com o qual se aprende ou se desenvolve um engodo, é, entre os escriturários de cartório, maravilhoso, e não tem igual senão entre os pintores. O ateliê e o cartório ficam nesse gênero acima dos bastidores. Ao comprar um título nu, Desroches iniciava, por assim dizer, uma nova dinastia. Essa fundação interrompia a rotina dos usos relativos à recepção. Por isso, tendo ido para um apartamento onde jamais haviam sido rabiscados papéis selados, Desroches mobiliara-o com mesas novas, pastas brancas debruadas de azul, inteiramente novas. Seu escritório foi constituído com escreventes tomados em diferentes cartórios, sem ligações entre si, e, por assim dizer, admirados por se verem reunidos. Godeschal, que terçara as primeiras armas na casa de Derville, não era escrevente capaz de deixar perder-se a preciosa tradição das boas-vindas. A recepção constava de um almoço que todo neófito deve aos veteranos do escritório para onde entra. Ora, nessa época em que o jovem Oscar ingressou no escritório, nos seis primeiros meses da instalação de Desroches, numa tarde de inverno em que o trabalho terminou cedo, no momento em que os escreventes se aqueciam antes de partir, Godeschal inventou de confeccionar um suposto registro arquitriclino-forense, da mais remota antiguidade, salvo das tempestades da Revolução, vindo do procurador ao Châtelet,[108] Bordin, predecessor imediato de Sauvagnest, o procurador de quem Desroches houvera o cargo. Começaram procurando na casa de um vendedor de velhos papéis alguns registros de papel com marcas do século xviii, bem e devidamente encadernados em pergaminho sobre o qual se leria um acórdão do grande conselho. Depois de terem achado o livro, arrastaram-no na poeira, na chaminé, na cozinha; deixaram-no até no lugar que os escreventes denominam a câmara das deliberações, e obtiveram um mofo capaz de encantar antiquários, arranhões de selvagem vetustez, cantos roídos a ponto de fazer crer que os ratos se tinham banqueteado com ele. O dorso foi enruçado com admirável perfeição. Uma vez o livro em condições, eis aqui algumas citações que dirão aos mais obtusos o uso para o qual o escritório de Desroches consagrava aquele compêndio, cujas sessenta primeiras páginas abundavam em falsas atas. Na primeira folha, lia-se:


Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Amém.


Em este dia do Senhor, que também o é de Nossa Senhora sancta Genoveva, padroeira d’esta livre cidade de Pariz, a cuja invocaçon se houveram de confiar, desde o anno de Jesu Christo de mdxxv, os escrevedores de esta Officina, nós abaixo firmados, escrevedores e segundos da Officina de Mestre Hieronymo-Sebastian Bordin, sucessor que é do defunto Guerbet, que em vida foi procurador no Chastelet, hemos ponderado o mister que se nos faz de substituir o Registo dos Tombos do qual constam as nominaçoens dos escrevodores que assistem em esta gloriosa Officina, membro distinguido do reino de Themis, o qual Registo se veo a encher por sorte dos Actos dos nossos justipreciados e muy caros antecessores, e hemos requerido ao Curador dos Tombos do Paaço para, havendo mercê, ajunta-los a aquelloutras que se guardão em as mais Officinas, e nos fomos todos a ouvir a Sancta Missa em a freguezia de San Severino, para dest’arte solemnizar a inauguracion de nosso nono Registo.


Em fé do supradicto, todos assignão comigo. Malin, escrivam; Grevin, ajudante; Athanasio Feret, escrevedor; Jacques Huet, escrevedor; Regnauld de Saint-Jean-d’Augely, também escrevente; Bedeau, aprendiz e moço de recados. Anno mdcclxxxvii de nosso senhor.
Ouvida a Missa com toda a devoçam, nos fomos reunidos à Courtille, onde, per escote, tivemos um lauto repasto, que foi findo tam só às septe “horas do dia”.


Estava maravilhosamente escrito. Um perito teria jurado que aquela escrita pertencia ao século xviii. Vinte e sete atas de recepções seguiam-se àquela, e a última referia-se ao ano fatal de 1792. Após uma lacuna de catorze anos, o registro recomeçava em 1806, com a nomeação de Bordin como procurador junto ao tribunal de primeira instância do Sena. E eis aqui a glosa que assinalava a reconstituição do reino da Chicana e outros lugares:


Deus, em sua clemência, quis que, não obstante as tempestades horríveis que se desencadearam sobre as terras da França, tornada um grande império, os preciosos arquivos do mui famoso escritório do sr. Bordin tivessem sido conservados; e nós abaixo-assinados, escreventes do mui digno e mui virtuoso sr. Bordin, não hesitamos em atribuir essa inaudita conservação, quando tantos títulos, constituições, privilégios foram perdidos à proteção de Santa Genoveva, padroeira deste escritório, e também ao culto que o último dos procuradores da boa estirpe teve para com tudo que dizia respeito aos antigos usos e costumes. Na incerteza de saber qual a parte exata de Santa Genoveva e do sr. Bordin nesse milagre, resolvemos ir à igreja de Santo Estevão do Monte, para lá ouvir uma missa que será rezada no altar daquela santa pastora, que tantas ovelhas nos manda para tosarmos e para oferecermos um almoço ao nosso patrão, esperando que ele custeie as despesas.
Assinaram: Oignard, escrivão; Poidevin, ajudante; Proust, escrevente; Brignolet, escrevente; Derville, escrevente; Agostinho Coret, aprendiz de escrevente.


No escritório, 10 de novembro de 1806


Às três horas da tarde do dia seguinte, os escreventes abaixo-assinados consignam aqui sua gratidão ao seu excelente patrão, que os regalou na casa do sr. Rolland, proprietário de restaurant, à rua do Acaso, com vinhos finos de três regiões, de Bordéus, de Champanhe, e de Bourgogne, manjares particularmente confeccionados, desde as quatro horas da tarde até as sete e meia. Houve café, sorvetes e licores em abundância. Mas a presença do patrão não permitiu que se cantassem laudes em canções clericais. Nenhum dos escreventes ultrapassou os limites de uma amável alegria, portanto o digno, respeitável e generoso patrão prometera levar seus ajudantes para verem Talma em Britânico, no Théatre-Français. Longa vida a mestre Bordin!... Que Deus derrame seus favores sobre sua venerável cabeça! Possa ele vender caro tão glorioso escritório! Que os clientes ricos lhe cheguem à medida dos seus desejos! Que suas contas de emolumentos lhe sejam pagas à boca do cofre! Possam nossos ulteriores patrões se lhe assemelhar! Que ele seja sempre querido por seus ajudantes, mesmo quando não mais estiver entre nós!


Seguiam-se trinta e três atas de recepções de escriturários, as quais se distinguiam por escritas diversas, por frases e assinaturas e por elogios dos bons manjares e dos vinhos que pareciam provar que a ata era redigida e assinada no ato, inter pocula.[109]

Finalmente, datado do mês de julho de 1822, época da prestação do juramento de Desroches, lia-se esta prosa constitucional:


Eu, abaixo-assinado, Francisco Cláudio Maria Godeschal, chamado por mestre Desroches para desempenhar as difíceis funções de primeiro ajudante, num escritório onde a clientela estava ainda por fazer-se, tendo sabido pelo senhor Derville, de onde venho, da existência dos famosos arquivos arquitriclino-forenses que são célebres no Palácio da Justiça, roguei ao nosso gracioso patrão que os pedisse ao seu predecessor, porquanto importava tornar a achar aquele documento que traz a data do ano de 1786, o qual se liga a outros arquivos depositados no Palácio da Justiça, cuja existência nos foi atestada pelo sr. Terrasse e Duclos, arquivistas, e com cujo auxílio se alcança até o ano de 1525, achando-se sobre os costumes e a cozinha dos trabalhadores forenses indicações históricas do mais alto valor.


Sendo atendido nesse requerimento, o escritório entrou na posse, no dia de hoje, desses testemunhos do culto que nossos predecessores constantemente prestavam à diva garrafa[110] e aos bons petiscos.
Em consequência, e para a edificação dos nossos sucessores, bem como para reatar a cadeia dos tempos e das canecas, convidei os senhores Doublet, segundo escriturário; Vassal, terceiro escriturário; Herisson e Grandemain, escriturários; e Dumetz, aprendiz, de escriturário, para almoçar no próximo domingo, no Cavalo Vermelho, no cais de São-Bernardo, onde celebraremos a conquista deste livro que contém a constituição dos nossos bródios.
Hoje, domingo, 27 de junho, foram bebidas doze garrafas de vários vinhos, julgados todos deliciosos. Foram notados dois melões, uns pastéis ao jus romanum,[111] um filé de vaca e uma fritada de cogumelos. Tendo a sra. Marieta, ilustre irmã do primeiro escriturário e primeira figura da Real Academia de Música e Dança, posto à disposição do escritório poltronas nas primeiras filas para a representação desta noite, foi lavrada uma ata por essa generosidade. Ademais, está combinado que os escriturários irão incorporados à casa dessa nobre senhorita para agradecer-lhe e declarar-lhe que no seu primeiro processo, se o diabo lhe mandar um, ela não pagará senão as despesas; pelo que se lavra esta ata.
Godeschal foi proclamado a flor da classe dos trabalhadores forenses e sobretudo uma boa alma. Possa um homem que nos trata tão bem tratar brevemente de um escritório!


Havia manchas de vinho, borrões e rubricas que pareciam fogos de artifício. Para fazer compreender exatamente o cunho de verdade que tinham sabido imprimir àquele registro, bastará reproduzirmos a ata da pretensa recepção de Oscar.


Hoje, segunda-feira, 25 de novembro de 1822, após uma sessão realizada ontem na rue de la Cerisaie, quarteirão do Arsenal, em casa da sra. Clapart, mãe do aspirante forense Oscar Husson, nós abaixo-assinados declaramos que o banquete de recepção ultrapassou a nossa expectativa. Compunha-se de rabanetes negros e rosados, pepinos, anchovas-manteiga e azeitonas como hors-d’oeuvre; uma suculenta sopa de arroz, testemunho da solicitude maternal, porquanto percebemos nela um delicioso gosto de ave, e, pela confissão do recipiendário, viemos a saber que efetivamente os miúdos empregados numa bela carne estufada, preparada cuidadosamente sob os auspícios da sra. Clapart, tinham sido judiciosamente inseridos no cozido feito em casa com cuidados que só são dispensados nos lares.
Item, a carne estufada cercada por mar de gelatina, obra da referida mãe do supradito.
Item, língua de boi “aux tomates” que não nos achou “automates”.
Item, ensopados de pombos, com um paladar que fazia crer terem os anjos superintendido sua feitura.
Item, uma terrina de macarrão em frente a potes de creme de chocolate.
Item, uma sobremesa composta de onze pratos delicados, entre os quais, apesar do estado de embriaguez em que nos tinham deixado dezesseis garrafas de vinhos proficientemente escolhidos, notamos uma compota de pêssegos de uma delicadeza augusta e mirabolante.
Os vinhos do Roussillon e os da margem do Ródano derrotaram os da Champagne e da Bourgogne. Uma garrafa de marasquino e uma de kirsch, apesar de um café delicioso, acabaram por mergulhar-nos em tal êxtase enológico que um de nós, o sr. de Hérisson, se achou no Bois de Boulogne julgando estar ainda no Boulevard du Temple; e que Jacquinaut, o aprendiz de escrevente, com quatorze anos de idade, se dirigiu a burguesas de cinquenta e sete anos, tomando-as por mulheres fáceis; lavra-se ata.
Consta dos estatutos da nossa ordem uma lei severamente observada; é a de deixar os aspirantes aos privilégios do foro o direito de proporcionar à sua fortuna as magnificências de seu acolhimento, pois é público e notório que ninguém se entrega a Themis com rendas e que todo escrevente é muito severamente sustentado por pai e mãe.
Por isso constatamos, com os maiores elogios, o procedimento da sra. Clapart, viúva em primeiras núpcias do sr. Husson, pai do impetrante, e digamos que este é digno dos hurras que foram erguidos à sobremesa, e todos assinamos.


Já três escreventes haviam caído nesse engodo, e três recepções reais tinham sido consignadas nesse imponente registro.

No dia da chegada de cada neófito ao escritório, o aprendiz punha no seu lugar, em cima da sua estante, os arquivos arquitriclino-forenses, e os escreventes gozavam o espetáculo que apresentava a fisionomia do recém-chegado, enquanto estudava aquelas páginas bufas. Inter pocula, cada um dos recipiendários aprendera o segredo daquela farsa de escritório, e essa revelação inspirava-lhes, como era de esperar, o desejo de ludibriar os futuros candidatos.

Todos podem agora imaginar a cara dos quatro escreventes e a do aprendiz, à sugestão de Oscar, que por sua vez se tornara mistificador.

— Que venha o livro!

Dez minutos depois dessa exclamação, um belo rapaz, de boa estatura e de fisionomia agradável, apresentou-se, perguntou pelo sr. Desroches e sem hesitar deu seu nome a Godeschal.

— Sou Frederico Marest — disse ele — e venho para ocupar o lugar de terceiro escrevente.

— Sr. Husson — disse Godeschal a Oscar —, queira indicar o lugar do senhor e ponha-o a par dos nossos hábitos de trabalho.

No dia seguinte, o escrevente achou o livro, atravessado na sua estante; mas, depois de percorrer as primeiras páginas, pôs-se a rir, não convidou os escreventes e tornou a colocá-lo diante de si.

— Senhores — disse ele no momento de se retirar, cerca das cinco horas —, tenho um primo, primeiro escrevente no cartório do sr. Leopold Hannequin; eu o consultarei a respeito do que devo fazer relativamente à minha recepção.

— Isso vai mal — exclamou Godeschal —, esse futuro magistrado não tem ar de novato.

— Nós o curtiremos — disse Oscar.

No dia seguinte, às duas horas, Oscar viu entrar e reconheceu, na pessoa do primeiro escrevente de Hannequin, Jorge Marest.

— Viva! Aqui está o amigo de Ali-Paxá — exclamou, com ar desenvolto.

— Como! Estais aqui, senhor embaixador? — exclamou Jorge, ao lembrar-se de Oscar.

— Então, já se conhecem? — perguntou Godeschal a Jorge.

— Como não! Fizemos asneiras juntos — disse Jorge — há mais de dois anos... Sim, saí do escritório de Crottat para entrar no de Hannequin, justamente por causa daquele assunto.

— Que assunto? — perguntou Godeschal.

— Oh!, nada — respondeu Jorge a um sinal de Oscar. — Quisemos ludibriar um par de França e foi ele que nos embrulhou... Com que então vocês agora querem embrulhar meu primo...

— Não embrulhamos ninguém — disse Oscar com dignidade.

— Aqui está a nossa Carta Magna.

E apresentou o famoso registro numa página em que havia uma sentença de exclusão, proferida contra um recalcitrante que, por motivo de sovinice, fora obrigado a deixar o escritório em 1788.

— Nem resta dúvida de que é embrulho, tanto assim que aqui está o papel — replicou Jorge, designando aqueles jocosos arquivos.

— Mas meu primo e eu somos ricos e havemos de empanturrá-los com uma festança como jamais vocês tiveram, e que lhes estimulará a imaginação para a ata. Até amanhã, domingo, às duas horas no Le Rocher de Cancale.[112] Depois eu os levarei para passarem a noite em casa da marquesa de las Florentinas y Cabirolos, onde jogaremos e onde vocês encontrarão a nata das mulheres da moda. Assim, pois, senhores da primeira estância — continuou ele com uma imponência notória —, comportem-se, e saibam aguentar o vinho como os senhores da Regência.[113]

— Hurrah! — clamou o escritório como um único homem. — Bravos!... Very well! Vivat! Vivam os Marest!...

— Magnum! [114] — exclamou o aprendiz do escritório.

— Então! O que há! — perguntou o patrão saindo do seu gabinete. — Ah! Estás aí, Jorge — disse ele ao primeiro escrevente —, já sei, vieste desencaminhar os meus rapazes.

E voltou para o seu gabinete, depois de chamar Oscar.

— Toma, aqui tens quinhentos francos — disse ele, abrindo o cofre —; vai ao Palácio da Justiça e tira do cartório das expedições o julgamento de Vandenesse contra Vandenesse,[115] é preciso notificá-lo hoje mesmo, se for possível. Prometi uma propina de vinte francos a Simon; espera o julgamento se ainda não estiver pronto, e não te deixes embair; pois Derville é capaz, no interesse de seu cliente, de nos pôr travas nas rodas. O conde Félix de Vandenesse é mais poderoso do que o irmão embaixador, nosso cliente. Assim, pois, olho vivo, e, à menor dificuldade, vem procurar-me.

Oscar partiu com a intenção de se distinguir nessa pequena escaramuça, o primeiro caso que se lhe apresentava depois de sua instalação.

XII – A MARQUESA DE LAS FLORENTINAS Y CABIROLOS

Após a partida de Jorge e de Oscar, Godeschal indagou o novo escrevente a respeito da pilhéria que, a seu ver, se ocultava sob aquela marquesa de las Florentinas y Cabirolos; Frederico, porém, com um sangue-frio e uma seriedade de procurador-geral, continuou o engodo do primo; persuadiu pelo modo de responder e por suas maneiras a todo o escritório que a marquesa de las Florentinas era viúva de um grande de Espanha a quem seu primo fazia a corte. Nascida no México e filha de uma mexicana, essa viúva jovem e bonita distinguia-se pela sem-cerimônia das mulheres nascidas naqueles climas.

— Ela gosta de rir, de beber, de cantar, como nós! — disse ele em voz baixa, citando a famosa canção de Béranger. — Jorge — acrescentou ele — é muito rico; herdou do pai, que era viúvo e lhe deixou dezoito mil libras de renda, que, somadas às doze mil que nosso tio acaba de nos deixar a cada um, lhe fazem trinta mil francos por ano. Também, já pagou suas dívidas e vai deixar o notariado. Conta vir a ser marquês de las Florentinas, porquanto a jovem viúva é marquesa por sua própria situação e tem o direito de transmitir seus títulos ao marido.

Se os escreventes ficaram extremamente indecisos relativamente à marquesa, a dupla perspectiva de um almoço no La Rocher de Cancale e daquele sarau elegante deixou-os numa alegria extraordinária. Guardaram as devidas reservas relativamente à espanhola, para julgá-la em última instância, quando comparecessem perante ela.

Essa marquesa de las Florentinas y Cabirolos era muito simplesmente a senhorita Ágata-Florentina Cabirolle, primeira dançarina do teatro da Gaîté, em cuja casa o tio Cardot cantava La Mère Godichon. Um ano depois da perda muito reparável da falecida sra. Cardot, o feliz negociante encontrara Florentina ao sair da aula de Coullon. Iluminado pela beleza daquela flor coreográfica — Florentina tinha então treze anos —, o negociante retirado seguiu-a até a rua da Pastora, onde teve o prazer de ser informado de que o futuro ornamento do bailado devia os seus dias a uma simples porteira. Em quinze dias, mãe e filha, instaladas na rue de Crussol, aí conheceram uma modesta abastança. Foi, pois, àquele protetor das artes, segundo a frase consagrada, que o teatro deveu aquele jovem talento. Esse generoso mecenas deixou então aquelas duas criaturas quase loucas de alegria, oferecendo-lhes um mobiliário de acaju, reposteiros, tapetes e uma cozinha aparelhada; permitiu-lhes tomar uma criada e deu-lhes duzentos e cinquenta francos mensais. O velho Cardot, adornado com suas asas de pombo, pareceu então um anjo, e foi tratado como devia ser um benfeitor. Para a paixão do velhote, foi a idade de ouro.

Durante três anos o cantor de La Mère Godichon teve a alta sabedoria de manter a srta. Cabirolle e sua mãe naquele pequeno apartamento, a dois passos do teatro; depois, por amor à coreografia, deu Vestris[116] como professor à sua protegida. Assim, teve ele, por 1820, a ventura de ver Florentina dançar seu primeiro passo, num bailado intitulado As ruínas de Babilônia. Florentina contava então dezesseis primaveras. Pouco tempo depois dessa estreia, o tio Cardot já se tornara um velho sovina para a sua protegida, mas como teve a delicadeza de compreender que uma dançarina do teatro da Gaîté devia manter certa linha, elevou sua contribuição: a quinhentos francos por mês; se não voltou a ser um anjo, foi ao menos um amigo para toda a vida, um segundo pai. Foi essa a idade de prata.

De 1820 a 1823, Florentina adquiriu a experiência de que devem gozar todas as dançarinas de dezenove a vinte anos. Suas amigas foram as ilustres Marieta e Túlia, duas primeiras figuras da Ópera; Florina, depois a pobre Corália, tão cedo roubada às artes, ao amor e a Camusot. Como o paizinho Cardot por sua vez adquirira mais cinco anos, caíra na indulgência dessa semipaternidade que os anciãos concebem pelos jovens talentos que educaram e cujos sucessos se tornaram seus. De resto, onde e como um homem de sessenta e oito anos poderia refazer semelhante ligação, encontrar uma Florentina que tão bem conhecia seus hábitos e em cuja casa ele pudesse cantar com seus amigos La Mère Godichon? O paizinho Cardot achou-se pois sob um jugo semiconjugal e de força irresistível. Foi a idade de bronze.

Durante os cinco anos da idade de ouro e da idade de prata, Cardot economizou noventa mil francos. Esse velho, cheio de experiência, previra que, quando chegasse aos setenta anos, Florentina seria maior; estrearia talvez na Ópera e sem dúvida quereria ostentar um luxo de primeira figura. Alguns dias antes do sarau de que vamos tratar, o velho Cardot gastara quarenta e cinco mil francos a fim de dar um certo status à sua Florentina, para quem ele alugara o antigo apartamento, onde a finada Corália fazia a felicidade de Camusot. Em Paris, acontece com os apartamentos e as casas o mesmo que com as ruas: têm predestinação. Enriquecida com uma magnífica baixela de prata, a primeira figura do teatro da Gaîté dava belos jantares, gastava trezentos francos mensais com a sua toilette, não saía senão de carro, tinha uma camareira, uma cozinheira e um pequeno lacaio. Enfim, ambicionava-se uma ordem de estreia na Ópera. O Casulo de Ouro prestou então uma homenagem ao seu antigo chefe, com os seus mais esplêndidos produtos para agradar à srta. Cabirolle, chamada Florentina, como tinha cumulado três anos antes as aspirações de Corália, mas sempre sem que a filha do velho Cardot o soubesse, pois pai e genro entendiam-se maravilhosamente para salvar as aparências no seio da família. A sra. Camusot nada sabia das dissipações do marido nem dos costumes do pai. Assim, pois, as magnificências que se ostentavam na rue de Vendôme, em casa da srta. Florentina, teriam contentado os mais ambiciosos comparsas. Depois de ter sido o senhor durante sete anos, Cardot sentia-se levado por um rebocador de um ilimitado poder de capricho. Mas o infeliz ancião amava!... Florentina devia fechar-lhe os olhos, ele tinha a intenção de legar-lhe uns cem mil francos! A idade de ferro começara.


Jorge Marest, possuidor de trinta mil francos de renda, bonito rapaz, cortejava Florentina. Todas as dançarinas têm pretensão de amar como as amam os seus protetores, de ter um rapaz que as leve a passear e lhes arranje loucos piqueniques. Embora desinteressada, a fantasia de uma primeira artista é sempre uma paixão que custa algumas bagatelas ao feliz mortal escolhido. São jantares nos restaurantes, camarotes nos teatros, carros para ir aos arredores de Paris e para de lá voltar, vinhos finíssimos consumidos em profusão, pois as dançarinas vivem como viviam outrora os atletas. Jorge divertia-se como se divertem os rapazes que passam da disciplina paterna para a independência, e a morte do tio, quase que dobrando sua fortuna, mudava suas ideias. Enquanto ele teve somente os dezoito mil francos de renda, deixados por seus pais, teve a intenção de ser notário; mas, segundo os dizeres de seu primo aos escreventes de Desroches, era preciso ser estúpido para minar uma profissão com a fortuna que se adquire na época de deixá-la. Portanto, o primeiro escrevente celebrava seu primeiro dia de liberdade com aquele almoço, que servia ao mesmo tempo para pagar a recepção do primo. Mais ponderado do que Jorge, Frederico persistia em seguir a carreira do ministério público. Como um belo rapaz, tão benfeito de corpo e tão desempenado como Jorge, podia perfeitamente desposar uma rica filha das Américas, que o marquês de las Florentinas y Cabirolos pôde nos seus velhos dias, no dizer de Frederico aos seus futuros colegas, escolher para esposa antes uma bela rapariga do que uma rapariga nobre, os escreventes do escritório de Desroches, todos saídos de famílias pobres, nunca tendo frequentado a alta sociedade, envergaram suas fatiotas dos grandes dias, muito impacientes por verem a marquesa mexicana de las Florentinas y Cabirolos.

— Que sorte tive eu — dizia Oscar a Godeschal, ao levantar-se pela manhã — de ter encomendado uma casaca, umas calças, um colete novo, um par de botas, e que minha querida mãe me haja feito novo enxoval para a minha promoção ao posto de segundo escrevente! Tenho seis camisas de bofes de renda e de bom tecido, além das doze que ela me deu... Vamos exibir-nos! Ah!, se um de nós pudesse arrebatar a marquesa a esse Jorge Marest...

— Bonita ocupação para um escrevente do escritório Desroches!... — exclamou Godeschal. — Nunca conseguirás dominar a tua vaidade, garoto.

— Ah! Sr. Godeschal — disse a sra. Clapart, que trazia umas gravatas para o filho e ouvira as palavras do primeiro escrevente. — Deus queira que o meu Oscar siga seus bons conselhos! É o que lhe digo continuamente: “Imita o sr. Godeschal, ouve os seus conselhos!”.

— Ele vai indo, senhora — respondeu o escrevente-chefe —, mas seria bom que não cometesse muitos desatinos como o de ontem, para não se perder no espírito do patrão. O sr. Desroches não concebe que não se saiba triunfar. Como seu primeiro caso, ele confia a seu filho o apressar a expedição de um julgamento num processo de sucessão, no qual dois grão-senhores, dois irmãos, pleiteiam um contra o outro, e Oscar se deixou embair... O patrão ficou furioso. Quando muito mal e mal pude reparar essa asneira, indo hoje de manhã, às seis horas, procurar o ajudante do cartório, de quem obtive que o julgamento fosse conseguido amanhã às sete e meia...

— Ah! Godeschal! — exclamou Oscar, dirigindo-se ao primeiro escrevente e apertando-lhe a mão. — O senhor é um verdadeiro amigo.

— Ah! Sr. Godeschal — disse a sra. Clapart —, uma mãe sente-se bem feliz em saber que seu filho tem um amigo como o senhor, e pode contar com uma gratidão que só acabará com a minha vida. Olha, Oscar, desconfia desse Jorge Marest, que já foi causa de tua primeira desgraça na vida.

— No quê? — perguntou Godeschal.

A demasiado confiante mãe relatou sucintamente ao primeiro escrevente a aventura acontecida ao pobre Oscar no carro de Pierrotin.

— Tenho certeza — disse Godeschal — de que esse velhaco nos preparou alguma pilhéria do seu feitio para esta noite... Eu não irei à casa da marquesa de las Florentinas; minha irmã precisa de mim para as cláusulas de um novo contrato, por isso os deixarei à sobremesa; mas tu, Oscar, abre o olho! Farão talvez vocês jogarem, e o cartório de Desroches não pode recusar. Toma, jogarás por nós dois, aqui tem cem francos — disse o excelente rapaz ao dar essa quantia a Oscar, cuja bolsa ia ficar seca, graças ao sapateiro e ao alfaiate. — Sê prudente, lembra-te de não jogar além dos nossos cem francos; não te deixes embriagar, nem pelo jogo nem pelas libações. Caramba! Um segundo escrevente já deve ter tino, não deve jogar sob palavra nem ultrapassar certo limite, seja lá no que for. Desde que se chega a segundo escrevente, deve-se pensar em ser procurador. Assim, pois, nem beber muito, nem jogar demais, guardar uma atitude conveniente; eis a regra da tua conduta. Sobretudo não te esqueças de voltar para casa à meia-noite, porque amanhã tens de ir ao Palácio da Justiça às sete horas, para ir buscar o teu julgamento. Não é proibido divertir-se, mas os negócios antes de tudo.

— Estás ouvindo, Oscar? — disse a sra. Clapart. — Vê o quanto o sr. Godeschal é indulgente e como ele sabe conciliar os prazeres da mocidade com as obrigações de sua profissão.

A mãe, ao ver chegar o alfaiate e o sapateiro, que perguntavam por Oscar, ficou um momento só com o primeiro escrevente para lhe restituir os cem francos que ele acabava de dar.

— Ah!, meu caro senhor — disse-lhe ela —, as bênçãos de uma mãe o acompanharão por toda parte e em todas as suas empresas.

Ela teve então a suprema felicidade de ver o filho bem vestido, a quem trazia ainda um relógio de ouro comprado com as suas economias, a fim de o recompensar pelo seu procedimento.

— Cais na conscrição dentro de oito dias — disse-lhe ela — e, na previsão de que te tocasse um mau número, fui procurar teu tio Cardot; ele está satisfeito contigo. Encantado por te saber segundo escrevente aos vinte anos e com os teus triunfos nos exames da Escola de Direito, prometeu o dinheiro necessário para te comprar um substituto. Não sentes um certo contentamento por ver o quanto é recompensada uma boa conduta? Se sofres privações, lembra-te da felicidade de poder, dentro de cinco anos, comprar um escritório. E por fim, pensa, meu querido gatinho, na felicidade que dás à tua mamãe.

O rosto de Oscar, um pouco emagrecido pelo estudo, havia tomado uma expressão à qual o hábito dos negócios imprimia um ar sério. Tinha terminado o crescimento, e nascera-lhe a barba. A adolescência finalmente cedera lugar à virilidade. A mãe não pôde deixar de admirar o filho e beijou-o ternamente, dizendo-lhe:

— Diverte-te, mas lembra-te dos conselhos desse bom sr. Godeschal. Ah! ia-me esquecendo, aqui tens o presente do nosso amigo Moreau, uma bela carteira.

— Preciso tanto mais dela por ter-me o patrão entregado quinhentos francos para retirar esse maldito julgamento de Vandenesse contra Vandenesse, e que não quero deixar no meu quarto.

— Vais levá-lo contigo? — disse a mãe, assustada. — E se perdesses semelhante quantia? Não achas que seria melhor confiá-la ao senhor?

— Godeschal! — exclamou Oscar, que achou excelente a ideia da mãe.

Godeschal, que, como todos os escreventes, aos domingos tinha emprego para seu tempo entre dez e duas horas, já tinha ido embora.

Quando a mãe o deixou, Oscar foi flanar pelos bulevares à espera da hora do almoço. Como não passear aquele belo traje que envergara com um orgulho e um prazer que hão de recordar todos os rapazes que se viram na pobreza, no começo da vida? Um bonito colete de cashmere, de fundo azul e trespassado, umas calças de cashmere preta, pregueadas, uma casaca preta benfeita e uma bengala com castão de prata dourada, que comprara com as suas economias, causavam uma alegria muito natural àquele pobre rapaz, e pensava no modo como estava vestido no dia da viagem a Presles, ao lembrar-se do efeito que Jorge então lhe causara. Oscar tinha em perspectiva um dia de delícias, e à noite devia ver pela primeira vez a fina sociedade. Confessemo-lo num escrevente, privado de prazeres e que desde tanto tempo aspirava por alguma pândega, os sentidos desenfreados podiam fazer esquecer as recomendações de Godeschal e de sua mãe. Para vergonha da mocidade, nunca lhe faltam conselhos e advertências. Além das recomendações da manhã, Oscar sentia espontaneamente certa aversão por Jorge; sentia-se humilhado ante aquela testemunha da cena do salão de Presles, quando Moreau o atirara aos pés do conde de Sérisy. A ordem moral tem as suas leis, que são implacáveis, e sempre se é castigado por infringi-las. Há sobretudo uma, à qual o próprio animal obedece instintivamente, e sempre. É a que nos ordena fugir de qualquer pessoa que nos foi nociva uma primeira vez, com ou sem intenção, voluntária ou involuntariamente. A criatura de quem recebemos dano ou desprazer sempre nos será funesta. Qualquer que seja a sua categoria social, seja qual for o grau de afeição que nos ligue, é forçoso romper com ela, pois nos é enviada pelo nosso gênio mau. Embora o sentimento cristão se oponha a esse procedimento, a obediência a essa lei terrível é essencialmente social e conservadora. A filha de Jacques ii,[117] que se sentou no trono do pai, deve ter-lhe feito mais de um ferimento antes da usurpação. Judas seguramente deve ter dado algum golpe funesto a Jesus antes de traí-lo. Há em nós uma vista interior, o olho da alma, que pressente as catástrofes, e a repugnância que sentimos por esse ser fatal é o resultado dessa previsão; se a religião nos ordena vencê-la, fica-nos a desconfiança, cuja voz deve ser incessantemente ouvida. Podia Oscar aos vinte anos ter tanta sagacidade? Infelizmente, quando às duas e meia Oscar entrou no salão do La Rocher de Cancale, onde se encontravam três convidados, além dos escreventes, a saber: um velho capitão dos dragões, chamado Giroudeau; Finot, o jornalista que podia fazer com que Florentina estreasse na Ópera; Du Bruel, amigo de Túlia, uma das rivais de Marieta na Ópera, o segundo escrevente sentiu sua hostilidade secreta se esvair aos primeiros apertos de mão, aos primeiros surtos de uma conversação entre moços, diante de uma mesa de doze talheres, esplendidamente servida. De resto, Jorge foi encantador para com Oscar.

— Você segue — disse-lhe ele — a diplomacia privada; pois que diferença há entre um embaixador e um procurador? Unicamente a que separa uma nação de um indivíduo. Os embaixadores são os procuradores do povo! Se lhe puder ser útil, procure-me.

— Francamente — disse Oscar —, posso confessar-lhe hoje, você foi a causa de uma grande desgraça para mim...

— Ora! — disse Jorge, depois de ouvir a narrativa das atribulações do escrevente. — Mas se foi o conde de Sérisy quem se portou mal... A mulher dele?... Eu não a quisera para mim. E o conde, embora seja ministro de Estado e par de França, eu não gostaria de estar na sua pele vermelha. É um espírito pequeno; pouco me importa ele agora.

Oscar ouviu com verdadeiro prazer os gracejos de Jorge a respeito do conde de Sérisy, pois diminuíam de algum modo a gravidade de sua falta, e abundou nos sentimentos odientos do ex-escrevente de notário, o qual se divertia predizendo para a nobreza as desgraças que a burguesia então sonhava e que 1830 devia realizar.[118]

Às três e meia, começaram a oficiar. A sobremesa só apareceu às oito horas, tendo cada serviço exigido duas horas. Não há como escreventes para comer assim! Os estômagos de dezoito e vinte anos são fatos inexplicáveis para a medicina. Os vinhos foram dignos de Borel, que nessa época substituía o ilustre Balaine, criador do primeiro restaurante parisiense, isto é, do mundo inteiro, pela delicadeza e perfeição da sua cozinha.

Redigiram à sobremesa a ata desse festim de Baltazar, começando por Inter pocula aurea restauranti, qui vulgo dicitur Rupes Cancali.[119] De acordo com esse começo, já se pode imaginar a bela página que foi acrescentada naquele livro de ouro dos almoços forenses.

Godeschal desapareceu depois de ter assinado, deixando os onze convivas, estimulados pelo antigo capitão da guarda imperial, entregues ao vinho, aos toasts e aos licores de uma sobremesa cujas pirâmides de frutas e de especialidades se assemelhavam aos obeliscos de Tebas.

Às dez e meia, o aprendiz do escritório estava num estado que não lhe permitia demorar-se mais; Jorge despachou-o num fiacre, dando o endereço da mãe do garoto e pagando a corrida. Os dez convivas, todos borrachos como Pitt e Dundas,[120] falaram então de ir a pé pelos bulevares, dada a beleza do tempo, para a casa da marquesa de las Florentinas y Cabirolos, onde, cerca da meia-noite, deviam encontrar a mais brilhante sociedade. Todos estavam sequiosos de respirar o ar puro a plenos pulmões, mas com exceção de Jorge, Giroudeau, Bruel e Finot, acostumados às orgias parisienses, nenhum dos demais pôde caminhar. Jorge mandou buscar três caleças numa cocheira e passeou sua gente durante uma hora pelos bulevares exteriores, desde Montmartre até a barreira do Trono. Voltaram por Bercy, os cais e os bulevares até a rue de Vendôme.

Os escreventes adejavam ainda no céu povoado de fantasias, para onde a embriaguez arrebata os moços, quando seu anfitrião os introduziu nos salões de Florentina. Ali cintilavam princesas de teatro que, sem dúvida, informadas do gracejo de Frederico, se divertiam imitando as mulheres distintas. Estava na hora dos sorvetes. As velas acesas faziam flamejar os candelabros. Os lacaios de Túlia, da sra. de Val-Noble e de Florina, todos em grande libré, serviam gulodices em bandejas de prata. Os reposteiros, obras-primas da indústria lionesa, presos por cordões de ouro, deslumbravam os olhos. As flores dos tapetes davam-lhes aspecto de canteiros. As mais ricas ninharias, curiosidades, ofuscavam a vista. No primeiro momento e no estado em que Jorge os pusera, os escreventes e principalmente Oscar acreditaram na marquesa de las Florentinas y Cabirolos. O ouro reluzia sobre quatro mesas de jogo dispostas no quarto de dormir. No salão, as mulheres se entregavam a um vinte e um, bancado por Nathan, o famoso autor.[121] Depois de terem vagado, ébrios e quase adormecidos, pelos sombrios bulevares exteriores, os escreventes despertaram portanto num verdadeiro palácio de Armida.[122] Oscar, apresentado por Jorge à pretensa marquesa, ficou aparvalhado, não reconhecendo a dançarina da Gaîté naquela mulher aristocraticamente decotada, suntuosamente carregada de rendas, quase semelhante a uma vinheta de álbum, e que o recebeu com gentilezas e modos, sem analogia na lembrança ou na imaginação de um escrevente, criado com tanta severidade.

XIII – OUTRA CATÁSTROFE

Depois de ter admirado todas as riquezas daquele apartamento, as belas mulheres que nele se divertiam e que, todas, tinham feito entre elas competições em toilettes para a inauguração daquele esplendor, Oscar foi tomado pela mão e levado por Florentina à mesa do vinte e um.

— Venha, quero apresentá-lo à bela marquesa d’Anglade, uma das minhas amigas.

E levou o pobre Oscar ante a linda Fanny Beaupré, que fazia dois anos substituía a falecida Corália nos afetos de Camusot. Essa jovem atriz acabava de adquirir reputação no papel de marquesa de um melodrama do teatro de Porte-Saint-Martin, intitulado A família d’Anglade, um dos sucessos da época.

— Olha, minha querida — disse Florentina —, apresento-te um encantador rapazinho a quem poderás associar no teu jogo.

— Ah! Aqui está uma coisa gentil! — respondeu com um sorriso sedutor a atriz, que mirou Oscar de alto a baixo — estou perdendo, vamos fazer sociedade?

— Estou às suas ordens, senhora marquesa — disse Oscar, sentando-se ao lado da bela atriz.

— Entre com o dinheiro — disse ela —, eu lhe pagarei; o senhor vai trazer-me sorte! Olhe, aqui estão os meus últimos cem francos.

E a falsa marquesa tirou de uma bolsa, cujos cordões eram ornados de diamantes, cinco moedas de ouro. Oscar tirou cem francos em moedas de cinco francos, já envergonhado por misturar ignóbeis escudos com moedas de ouro. Em dez jogadas, a atriz perdeu os duzentos francos.

— Ora esta, que tolice! — exclamou ela. — Eu vou bancar. Nós continuamos juntos, não é? — disse ela a Oscar.

Fanny Beaupré se levantara, e o jovem escrevente, que se viu, como ela, alvo da atenção de toda a mesa, não se atreveu a retirar-se, confessando que em sua bolsa se alojava o diabo. Oscar ficou sem voz, com a língua pesada e grudada no céu da boca.

— Empresta-me quinhentos francos — pediu ela à dançarina.

Florentina trouxe os quinhentos francos, que pediu a Jorge, o qual acabava de passar oito vezes no écarté.

— Nathan ganhou mil e duzentos francos — disse a atriz ao escrevente. — Os banqueiros sempre ganham; não nos deixemos engazopar — sussurrou-lhe ela ao ouvido.

As pessoas que tenham coração, imaginação e vibratilidade compreenderão como o pobre Oscar abriu a sua carteira e dela tirou a nota de quinhentos francos. Olhava para Nathan, o célebre autor que recomeçou com Florentina a jogar forte contra a banca.

— Vamos, meu filho, arraste! — gritou-lhe Fanny Beaupré, fazendo sinal a Oscar para recolher duzentos francos que Florina e Nathan tinham apostado.

A atriz não poupava pilhérias e sarcasmos aos que perdiam. Animava o jogo com dichotes, que Oscar achava bastante singulares; mas a alegria abafou suas reflexões, porquanto as duas primeiras jogadas produziram um ganho de dois mil francos. Oscar tinha vontade de fingir uma indisposição e fugir, deixando plantada sua parceira; a honra, porém, pregava-o ali. Três voltas levaram os lucros. Oscar sentiu nas costas um suor frio e se desembriagou completamente. As duas últimas voltas liquidaram os mil francos da sociedade; Oscar sentiu sede e engoliu, um após outro, três copos de punch gelado. A atriz levou o pobre escrevente para o quarto de dormir, dizendo-lhe mil frivolidades. Mas aí, o sentimento da sua falta acabrunhou de tal forma Oscar, a quem a imagem de Desroches apareceu como que num sonho, que ele se foi sentar numa magnífica otomana, num recanto sombrio, e pôs um lenço nos olhos; chorava! Florentina viu aquela atitude de dor que possui características sinceras e que devia impressionar uma comediante; correu para Oscar, tirou-lhe a venda, viu as lágrimas e levou-o a um boudoir.

— Que tens, meu filho? — perguntou-lhe.

Àquela voz, àquelas palavras, àquele tom, Oscar, que reconheceu uma bondade maternal na bondade das raparigas, respondeu:

— Perdi quinhentos francos que meu patrão me havia entregado para retirar amanhã uma sentença, nada mais me resta do que atirar-me n’água, estou desonrado...

— Que tolice! — disse Florentina. — Fique aqui, vou trazer-lhe mil francos, trate de desquitar tudo; mas não arrisque senão quinhentos francos, a fim de conservar o dinheiro de seu patrão. Jorge joga terrivelmente bem o écarté, aposte nele...

Na cruel posição em que se encontrava, Oscar aceitou a proposta da dona da casa...

— Ah! —, pensou — só marquesas são capazes de gestos como esse... Bela, nobre e riquíssima! Que sorte tem esse Jorge!

Recebeu de Florentina os mil francos em ouro e veio apostar no seu mistificador. Jorge já passara quatro vezes quando Oscar foi colocar-se ao seu lado. Os jogadores viram com prazer chegar aquele novo apostador, porque todos, com o instinto dos jogadores, se puseram ao lado de Giroudeau, o velho oficial do Império.

— Senhores — disse Jorge —, vão ser castigados por sua defecção, sinto que estou com sorte. — Vamos, Oscar, nós os derrotaremos!

Jorge e seu parceiro perderam cinco partidas seguidas. Depois de ter gastado seus mil francos, Oscar, de quem se apoderara o furor do jogo, quis pegar as cartas. Por obra do acaso, bastante comum para os que jogam pela primeira vez, ganhou; mas Jorge tonteou-lhe o espírito com seus conselhos: mandava-o atirar cartas e muitas vezes arrancava-as da mão; de modo que a luta dessas duas vontades, dessas duas inspirações, foi nociva ao jorro da sorte. Assim é que, cerca das três horas da manhã, depois de reviravoltas da sorte e de ganhos inesperados, continuando a beber punch, Oscar chegou a não ter mais do que cem francos. Levantou-se com a cabeça pesada e desnorteada, deu alguns passos e caiu no boudoir, num sofá, com os olhos cerrados por um sono de chumbo.

— Marieta — dizia Fanny Beaupré à irmã de Godeschal, que chegara às duas horas —, queres vir jantar aqui amanhã? Meu Camusot virá com o velho Cardot, nós os faremos enraivecer, queres?

— Como! — exclamou Florentina. — Mas o meu velho chinês não me preveniu.

— Ele deve vir de manhã prevenir-te de que canta La Mère Godichon — continuou Fanny Beaupré —, não é demais que o pobre homem venha estrear o seu apartamento!

— Que o diabo o carregue com as suas orgias! — exclamou Florentina. — Ele e o genro são piores que magistrados ou diretores de teatro. Mas, enfim, come-se muito bem aqui. Marieta — disse ela à primeira figura da Ópera —, Cardot sempre encomenda o cardápio a Chevet; vem com o teu duque de Maufrigneuse; riremos; nós os faremos dançar de tritões.

Ao ouvir os nomes de Cardot e de Camusot, Oscar fez um esforço para vencer o sono, mas pôde apenas balbuciar um nome que não foi ouvido e recaiu sobre a almofada de seda.

— Sim, senhora! Tens provisões para a noite — disse rindo Fanny Beaupré a Florentina.

— Oh! O pobre rapaz! Está bêbado de punch e de desespero. É o segundo escrevente do escritório onde está teu irmão — disse Florentina a Marieta —; perdeu o dinheiro que o patrão lhe entregara para os negócios do escritório. Queria matar-se e eu lhe emprestei mil francos que esses bandidos do Finot e do Giroudeau lhe ganharam. Pobre inocente!

— Mas é preciso acordá-lo — disse Marieta —; meu irmão não é de brinquedo, e o patrão dele tampouco.

— Oh! Acorda-o se puderes, e leva-o — disse Florentina, voltando aos seus salões para receber as despedidas dos que se retiravam.

Puseram-se a dançar as chamadas danças de caráter e quando despontou o dia, Florentina deitou-se, cansada, tendo esquecido Oscar, do qual ninguém se lembrou, e que estava dormindo no mais profundo sono.

Cerca das onze da manhã, uma voz terrível despertou o escrevente, o qual, tendo reconhecido a voz do tio Cardot, pensou sair do apuro, fingindo que dormia e mergulhando a cabeça nas belas almofadas de veludo amarelo sobre as quais passara a noite.

— Francamente, minha Florentinazinha — dizia o respeitável ancião —; nem é prudente, nem gentil; dançaste ontem nas Ruínas e passas a noite numa orgia! É querer perder teu viço, sem contar que é realmente uma ingratidão inaugurar estes magníficos aposentos sem mim, com estranhos, sem que eu o soubesse!... Quem sabe lá o que não aconteceu!

— Velho monstro! — exclamou Florentina. — Não tem você uma chave para entrar a qualquer hora e a qualquer momento em minha casa? O baile terminou às cinco e meia, e você tem a crueldade de vir despertar-me às onze!

— Onze e meia, Titina — objetou humildemente Cardot —, eu levantei-me cedo para encomendar a Chevet um jantar de arcebispo... Eles estragaram os teus tapetes; que espécie de gente recebeste!...

— Você não se deveria queixar, pois Fanny Beaupré me disse que você vinha com Camusot e, para lhe ser agradável, eu convidei Túlia, Du Bruel, Marieta, o duque de Maufrigneuse, Florina e Nathan. Você terá assim as cinco mais belas criaturas que foram jamais vistas à luz da ribalta! E dançarão para você uns passos de Zéfiro.

— É matar-se, levar semelhante vida! — exclamou o velho Cadot. — Quantos copos quebrados! Que pilhagem! A antecâmara faz a gente tremer...

Naquele momento, o agradável velho ficou como que estúpido e fascinado, tal como um pássaro atraído por um réptil. Ele entrevia o vulto de um corpo jovem, todo vestido de preto.

— Ah! Srta. Cabirolle! — disse por fim.

— E então, que há? — perguntou ela.

O olhar da dançarina tomou a direção do velho Cardot; e, depois que reconheceu o segundo escrevente, foi sacudida por um riso louco que não somente deixou o velho perplexo, mas que constrangeu Oscar a mostrar-se, pois Florentina pegou-o pelo braço e soltou uma gargalhada, ao ver o semblante contrafeito do tio e do sobrinho.

— Você aqui, meu sobrinho?!

— Oh! É seu sobrinho? — exclamou Florentina, cuja hilaridade recomeçou. — Nunca me havia falado desse sobrinho. Marieta não o levou então? — disse ela a Oscar, que estava petrificado. — Que vai ser desse pobre rapaz!

— O que ele quiser — replicou secamente o tio Cardot, dirigindo-se para a porta a fim de se retirar.

— Um momento, papai Cardot, você vai tirar seu sobrinho do mau passo em que ele se acha por culpa minha, pois jogou o dinheiro do patrão, quinhentos francos, perdeu-os, e mais mil francos que eu lhe dei para que se desquitasse.

— Desgraçado! Perdeste mil e quinhentos francos no jogo? Na tua idade!

— Oh! Meu tio, meu tio! — exclamou o pobre Oscar, a quem aquelas palavras remergulharam no horror da sua situação, e que se atirou de joelhos ante o tio, com as mãos juntas. — É meio-dia, estou perdido, desonrado... O sr. Desroches não terá piedade! Trata-se de um negócio importante no qual ele empenhou seu amor-próprio. Eu devia, hoje de manhã, ir buscar no cartório do escrivão a sentença Vandenesse contra Vandenesse! Que terá acontecido!... Que vai ser de mim! Salve-me, pela memória de meu pai e de minha tia!... Venha comigo ao escritório do sr. Desroches, explique-lhe isso, encontre desculpas...

Essas frases eram atiradas por entre lágrimas e soluços, que teriam enternecido as esfinges do deserto de Luxor.

— E então, velho sovina — exclamou a dançarina a chorar —, vai deixar desonrar seu próprio sobrinho, o filho do homem a quem deve a sua fortuna, pois ele se chama Oscar Husson, não é? Salva-o, do contrário Titina te renega como seu milord.

— Mas como se acha ele aqui? — perguntou o ancião.

— Ora! Por ter esquecido a hora de ir buscar o julgamento de que ele fala; não vê que ele se embebedou e caiu aí de sono e de cansaço? Jorge e seu primo Frederico banquetearam os escreventes de Desroches no La Rocher de Cancale, ontem.

O velho Cardot olhava hesitante para a dançarina.

— Deixe-se disso, macaco velho, não vês que eu o teria escondido melhor se não fosse assim? — exclamou ela.

— Toma, aqui tens quinhentos francos, patife! — disse Cardot ao sobrinho. — É tudo que jamais terás de mim! Vai arranjar-te com o teu patrão, se puderes. Restituirei os mil francos que a senhorita te emprestou, mas não quero mais ouvir falar de ti.

Oscar escafedeu-se, sem querer ouvir mais; uma vez, porém, na rua, não soube para onde ir.

O acaso que perde as pessoas e o acaso que as salva fizeram esforços iguais a favor e contra Oscar naquela terrível manhã; ele, porém, devia sucumbir com um patrão que não desistia de um assunto, depois de iniciado. Ao voltar à casa, Marieta, apavorada com o que poderia acontecer ao pupilo do irmão, escrevera um bilhete a Godeschal, no qual pôs uma nota de quinhentos francos prevenindo o irmão da borracheira e das desgraças acontecidas a Oscar. Essa boa rapariga adormeceu, recomendando à camareira que fosse levar aquela carta à casa Desroches antes das sete horas. Por seu lado Godeschal, ao levantar-se às seis horas, não encontrou Oscar. Adivinhou tudo. Pegou em quinhentos francos das suas economias e foi ao cartório do escrivão buscar o julgamento, a fim de apresentar a intimação à assinatura de Desroches às oito horas. Este, sempre levantado desde as quatro horas, entrou no seu gabinete às sete. A camareira de Marieta, não encontrando o irmão da patroa na sua mansarda, desceu ao gabinete e aí foi recebida por Desroches, ao qual naturalmente ela entregou a carta.

— É assunto do escritório? — perguntou o patrão. — Eu sou o sr. Desroches.

— Queira ter a bondade de ver — disse a camareira.

Desroches abriu a carta e leu-a. Ao ver uma nota de quinhentos francos, voltou para o seu gabinete, furioso com o seu segundo escrevente. Às sete e meia, ouviu Godeschal ditando a intimação do julgamento ao segundo primeiro escrevente, e poucos momentos depois o bom Godeschal entrou triunfante no gabinete do patrão.

— Foi Oscar Husson quem foi esta manhã à casa de Simon? — perguntou Desroches.

— Sim, senhor — respondeu Godeschal.

— Quem então lhe deu o dinheiro? — perguntou o procurador.

— O senhor, no sábado — disse Godeschal.

— Está então chovendo notas de quinhentos francos? — exclamou Desroches. — Olhe, Godeschal, você é um rapaz direito; mas o pequeno Husson não merece tanta generosidade. Odeio os imbecis, mas odeio mais ainda as pessoas que cometem faltas, apesar dos cuidados paternais que se tomam com elas.

Entregou a Godeschal a carta de Marieta e a nota de quinhentos francos que ela mandara.

— Desculpe-me por tê-la aberto — acrescentou —, a criadinha de sua irmã disse-me que era assunto do escritório. Despeça Oscar.

— O pobre infeliz que me deu tanto trabalho! — disse Godeschal. — Esse grande biltre de Jorge Marest é o seu gênio mau, é preciso que Oscar fuja dele como da peste; pois não sei o que ele lhe causará num terceiro encontro.

— Como assim? — perguntou Desroches.

Godeschal contou sumariamente o engodo da viagem a Presles.

— Ah! — disse o procurador. — Tempos atrás José Bridau contou-me essa farsa; foi graças a esse encontro que devemos proteção do conde de Sérisy para o senhor seu irmão.[123]

Nesse momento entrou Moreau, pois havia um negócio importante para ele naquela sucessão Vandenesse. O marquês queria vender parceladamente as terras de Vandenesse e o conde seu irmão a isso se opunha. O corretor de propriedades foi pois o primeiro a receber a saraivada das justas queixas e das sinistras profecias que Desroches fulminou contra seu ex-segundo escrevente, e daí resultou para o mais ardente protetor daquele infeliz rapaz a convicção de que a vaidade de Oscar era incorrigível.

— Faça dele um advogado — disse Desroches —, só lhe resta defender tese nessa profissão, é possível que seus defeitos se tornem qualidades, pois o amor-próprio fornece língua à metade dos advogados.

Naquele momento, Clapart, que adoecera, era cuidado pela mulher, tarefa penosa, dever sem nenhuma recompensa. O funcionário atormentava aquela pobre criatura, que até então ignorava os atrozes aborrecimentos e as implicâncias venenosas que se permitia nos colóquios de um dia inteiro um homem meio imbecil e que a miséria tornava sorrateiramente furioso. Encantado por poder fincar uma ponta acerada no mais sensível daquele coração de mãe, ele, de algum modo, adivinhara as apreensões que o futuro, o procedimento e os defeitos de Oscar inspiravam à pobre mulher. Efetivamente, quando uma mãe recebeu do filho um choque semelhante ao caso de Presles, vive em transes contínuos, e pela maneira que a esposa gabava Oscar todas as vezes que este obtinha um êxito, Clapart reconhecia a extensão das inquietações secretas da mãe e despertava-as em todas as oportunidades.

— Enfim, Oscar vai melhor do que eu esperava; eu bem dizia que sua viagem a Presles nada mais era do que uma inconsequência da mocidade. Quais os rapazes que não cometem faltas? Pobre menino!, ele suporta heroicamente privações que não teria conhecido, se seu pobre pai vivesse. Deus queira que ele saiba conter suas paixões! etc. etc.

Ora, enquanto aconteciam tantas catástrofes nas ruas Vendôme e Béthisy, Clapart, sentado no canto do fogo, envolto num robe de chambre ordinário, olhava a mulher, ocupada em preparar ao mesmo tempo, na chaminé do quarto de dormir, o caldo, a tisana de Clapart e seu próprio almoço.

— Meu Deus, bem quisera saber como terminou o dia de ontem! Oscar devia almoçar no La Rocher de Cancale e ir à noite à casa de uma marquesa...

— Oh! Fique descansada, cedo ou tarde o segredo se há de descobrir — disse-lhe o marido. — Você acredita nessa marquesa? Vamos! Um rapaz que tem sentidos, afinal de contas, e tendências para gastar, como Oscar, encontra marquesas na Espanha a peso de ouro! Qualquer dia destes ele lhe cairá nos braços, cheio de dívidas...

— Você não sabe o que mais inventar para me deixar desesperada! — exclamou sua esposa. — Você se queixou de que meu filho comia seus ordenados, e nunca lhe custou nada. Já vão dois anos que você não tem nenhum pretexto para falar mal de Oscar, ele está segundo escrevente, seu tio e o sr. Moreau proveem a tudo, além do que ele tem oitocentos francos de ordenado. Se tivermos pão na nossa velhice nós lho deveremos. Realmente você é de uma injustiça...

— Você chama minhas previsões de injustiça — respondeu azedamente o marido.

Nesse momento tocaram vivamente a sineta. A sra. Clapart correu a abrir a porta e ficou na primeira peça com Moreau, que vinha suavizar o golpe que a notícia da nova leviandade de Oscar devia descarregar sobre a pobre mãe.

— Como! Ele perdeu o dinheiro do escritório? — exclamou ela chorando.

— Hein!, eu não lhe dizia? — exclamou Clapart, que surgiu como um espectro à porta do salão para onde o atraíra a curiosidade.

— Mas que vamos fazer dele? — perguntou a mãe, a quem a dor tornara insensível àquela picada de Clapart.

— Se ele tivesse o meu nome — respondeu Moreau —, eu o veria tranquilamente tirar a sorte para a conscrição; e se lhe tocasse um mau número, não lhe pagaria um substituto. É essa a segunda vez que seu filho pratica asneiras por vaidade. Pois bem, talvez que a vaidade o leve a praticar feitos brilhantes, que o recomendarão nessa carreira. De resto, seis anos de serviço militar lhe darão peso aos miolos; e como só lhe resta defender a tese, não se sentirá tão infeliz em ver-se advogado aos vinte e seis anos, se quiser continuar a profissão do foro depois de ter pagado, como se diz, o tributo do sangue. Dessa vez, pelo menos, ele terá sido castigado severamente, terá adquirido experiência e contraído o hábito da subordinação. Antes de fazer estágio no Palácio da Justiça, terá feito seu estágio na vida.

— Se essa é a sentença para um filho — disse a sra. Clapart —, vejo que o coração de um pai em nada se parece ao de uma mãe. O pobre Oscar, soldado!...

— Talvez prefira vê-lo atirar-se de cabeça no Sena, depois de haver cometido uma ação desonrosa? Ele não pode mais ser procurador; acha-o bastante ponderado para ser advogado?... Enquanto não vem a idade do juízo, que será dele?... Um mau indivíduo. A disciplina, pelo menos, lhe conservará seu filho...

— Não poderá ele ir para um outro escritório? O tio dele, Cardot, certamente lhe pagará um substituto, e ele lhe dedicará sua tese.

Nesse momento o ruído de um fiacre, no qual cabia todo o mobiliário de Oscar, anunciou a chegada do infeliz rapaz, o qual não tardou em aparecer.

— Ah! Eis-te aqui, senhor Lindo Coração — exclamou Clapart.

Oscar beijou a mãe e estendeu a Moreau uma mão que este recusou a apertar. Oscar respondeu a esse desprezo com um olhar ao qual a censura deu uma ousadia que não lhe conheciam.

— Ouça, sr. Clapart — disse o garoto que se tornara homem —, o senhor aborrece diabolicamente a minha pobre mãe e isso é seu direito; ela é, desgraçadamente, sua mulher. Comigo, porém, é outra coisa! Dentro de alguns meses serei maior; ora, o senhor não tem nenhum direito sobre mim, embora mesmo fosse eu menor. Nunca se lhe pediu nada. Graças a este senhor que aqui está, eu não lhe custei nada; não lhe devo nenhuma espécie de gratidão; assim, pois, deixe-me em paz.

Clapart, ao ouvir aquela apóstrofe, recolheu-se à sua bergère, ao canto do fogo. A argumentação do segundo escrevente e a fúria interior do rapaz de vinte anos, que acabava de receber uma lição de seu amigo Godeschal, impuseram para sempre silêncio à imbecilidade do doente.

Moreau, desolado apesar de sua atitude severa, deixou a família da rue de la Cerisaie entregue ao desespero. Três dias depois, Oscar tirou o número 27.[124] No interesse daquele pobre rapaz, o antigo administrador de Presles teve a coragem de ir pedir ao sr. conde de Sérisy sua proteção para fazer classificar Oscar na cavalaria. Ora, tendo sido o filho do ministro do Estado classificado nos últimos lugares ao sair da Escola Politécnica, entrara por favor como subtenente no regimento de cavalaria do duque de Maufrigneuse. Oscar teve, pois, na sua desgraça, a pequena felicidade de ser, por empenho do conde de Sérisy, incorporado nesse belo regimento, com a promessa de ser promovido a furriel ao cabo de um ano. Assim é que o acaso pôs o ex-escrevente sob as ordens do filho do sr. de Sérisy.

XIV – ÚLTIMAS FALTAS DE OSCAR

Depois de ter enlanguescido durante alguns dias, de tão cruelmente atingida que fora por essas catástrofes, a sra. Clapart se deixou corroer por certos remorsos que empolgam as mães cuja conduta foi em outros tempos leviana e que na velhice se inclinam para o arrependimento. Considerou-se uma criatura amaldiçoada. Atribuiu as misérias de seu segundo casamento e as desgraças do filho a uma vingança de Deus, que lhe fazia expiar as faltas e os prazeres da mocidade. Essa crença tornou-se em breve uma certeza. A pobre mãe foi confessar-se pela primeira vez após quarenta anos ao vigário da igreja de São Paulo, o padre Gaudron,[125] que a lançou nas práticas da devoção. Uma alma, porém, tão maltratada e tão amante como a da sra. Clapart devia tornar-se simplesmente pia. A antiga Aspásia do Diretório quis redimir seus pecados para atrair a bênção de Deus sobre a cabeça do seu pobre Oscar; devotou-se, pois, em seguida, aos exercícios e às obras da mais viva piedade. Acreditou ter chamado a atenção do céu, depois de ter conseguido salvar Clapart, o qual, graças aos seus cuidados, viveu para atormentá-la; mas julgou ver nas tiranias daquele espírito fraco provações impostas pelas mãos que acariciam ao castigar. Oscar, de resto, portou-se tão perfeitamente que, em 1830, era quartel-mestre na companhia do visconde de Sérisy,[126] o que lhe dava o posto de subtenente nos regimentos de linha, por pertencer o regimento do duque de Maufrigneuse à Guarda real. Oscar Husson tinha então vinte e cinco anos. Como a Guarda real estava sempre de guarnição em Paris ou num raio de trinta léguas em torno da capital, vinha, de quando em quando, visitar a mãe e confiava-lhe os seus pesares, pois tinha espírito bastante para compreender que jamais seria oficial. Nessa época, os postos na cavalaria eram mais ou menos reservados para os filhos segundos das famílias nobres, e as pessoas sem partícula no nome dificilmente ascendiam. Toda a ambição de Oscar era deixar a guarda e ser nomeado subtenente num regimento de cavalaria de linha. No mês de fevereiro de 1830, sua mãe obteve, por intermédio do padre Gaudron, que se tornara cura da igreja, a proteção de Madame, e Oscar foi promovido a subtenente.

Embora na aparência o ambicioso Oscar parecesse excessivamente devotado aos Bourbons, no fundo do coração o antigo escrevente era liberal. Por isso, na batalha de 1830, passou-se para o povo. Essa defecção, que teve importância devido ao ponto onde se operou, valeu a Oscar a atenção pública. Na exaltação do triunfo, no mês de agosto, Oscar foi promovido a tenente, teve a cruz da Legião de Honra e obteve ser adido como ajudante de campo de La Fayette, que lhe conseguiu o posto de capitão em 1832. Quando destituíram o amador da melhor das repúblicas[127] do seu comando em chefe das guardas nacionais do reino, Oscar Husson, cujo devotamento à nova dinastia chegava ao fanatismo, foi colocado como chefe de esquadrão num regimento mandado para a África, por ocasião da primeira expedição empreendida pelo príncipe real.[128] Por casualidade, o visconde de Sérisy era tenente-coronel desse regimento. No combate da Macta,[129] onde foi preciso abandonar o campo de batalha aos árabes, o sr. de Sérisy ficou ferido, por baixo do seu cavalo morto. Oscar disse então ao seu esquadrão:

— Senhores, é irmos para a morte, mas não podemos abandonar o nosso coronel...

Foi o primeiro a arremessar-se contra os árabes, e sua gente eletrizada o seguiu. Os árabes, no primeiro momento de surpresa que lhes causou aquela volta ofensiva e furiosa, permitiram que Oscar se apoderasse do visconde, a quem içou sobre o seu cavalo, fugindo a toda brida, embora nessa operação, tentada em meio a um horrível entrevero, tivesse recebido no braço esquerdo dois golpes de iatagã. A bela conduta de Oscar foi recompensada pela cruz de oficial da Legião de Honra e a promoção ao posto de tenente-coronel. Ele prodigalizou os mais afetuosos cuidados ao visconde de Sérisy, que a condessa foi buscar, e o qual, como sabem, morreu em Toulon em consequência de seus ferimentos. A condessa de Sérisy não separava o filho daquele que, depois de o ter arrancado aos árabes, o cuidava ainda com tanta dedicação. Oscar estava tão gravemente ferido que a amputação do braço esquerdo foi julgada necessária pelo cirurgião que a condessa trouxe para o filho. O conde de Sérisy perdoou portanto a Oscar suas asneiras da viagem a Presles e mesmo se considerou seu devedor, quando enterrou aquele filho único na capela do castelo de Sérisy.

Muito tempo depois do combate da Macta, uma velha senhora vestida de preto, dando o braço a um homem de trinta e quatro anos, e no qual os passantes podiam tanto mais facilmente reconhecer um oficial reformado, por ter ele um braço de menos e a roseta da Legião de Honra, estacionava às oito horas da manhã, no mês de maio, sob a porta do Leão de Prata, na rue du Faubourg Saint-Denis, à espera, sem dúvida, da partida de uma diligência. Certamente que Pierrotin, o empresário dos serviços do vale do Oise, o qual servia passando por Saint-Leu-Taverny e L’Isle-Adam, até Beaumont, dificilmente devia reconhecer naquele oficial de tez bronzeada o pequeno Oscar Husson que outrora levara a Presles. A sra. Clapart, finalmente viúva, estava tão irreconhecível quanto o filho. Clapart, uma das vítimas do atentado de Fieschi,[130] servira mais à mulher com a sua morte do que em toda a sua vida. Naturalmente, o desocupado, o passeador Clapart postara-se no seu Boulevard du Temple, a olhar a sua legião em parada. A pobre devota fora pois agraciada com mil e quinhentos francos de pensão vitalícia na lei decretada em favor das vítimas a propósito daquela máquina infernal.

O carro no qual atrelavam quatro cavalos tordilhos, que teriam honrado as cocheiras reais, era dividido em cupê, interior, rotunda e imperial. Assemelhava-se perfeitamente às diligências chamadas gôndolas que hoje, na estrada de Versalhes, sustentam concorrência com as duas estradas de ferro. Sólida e leve ao mesmo tempo, bem pintada e bem conservada, forrada de fazenda fina azul, guarnecida de estores com desenhos mouriscos e de almofadas de marroquim vermelho, a Andorinha do Oise dava para dezenove viajantes. Pierrotin, conquanto tivesse cinquenta e seis anos, pouco mudara. Sempre vestido com a sua blusa, sob a qual trazia uma casaca preta, fumava seu cachimbo vigiando seus dois bagageiros de libré que carregavam numerosos pacotes no vasto imperial de seu carro.

— Reservaram seus lugares? — disse ele à sra. Clapart e a Oscar, examinando-os como um homem que buscava semelhanças na sua memória.

— Sim, dois lugares de interior no nome de Bellejambe, meu criado — respondeu Oscar —; ele os deve ter retido ontem à tarde, ao partir.

— Ah! O senhor é o novo coletor de Beaumont — disse Pierrotin —; vai substituir o sobrinho do sr. Margueron?

— Sim — disse Oscar, apertando o braço da mãe, que ia falar.

Por sua vez, o oficial queria permanecer desconhecido durante algum tempo.

Naquele momento, Oscar estremeceu ao ouvir a voz de Jorge Marest, que gritou da rua:

— Pierrotin, ainda tem um lugar?

— Parece-me que o senhor bem poderia dizer-me senhor, sem que isso lhe despedaçasse a garganta! — respondeu vivamente o empresário dos serviços do vale do Oise.

Se não fosse a voz, Oscar não teria podido reconhecer o mistificador que já por duas vezes lhe fora fatal. Jorge, quase calvo, não conservava mais do que três ou quatro mechas de cabelos acima das orelhas e cuidadosamente espalhadas para ocultar o mais possível a nudez do crânio. Uma gordura mal distribuída, um ventre piriforme alteravam as proporções outrora tão elegantes do ex-belo rapaz. Quase ignóbil de aspecto e de atitude, Jorge bem revelava muitos desastres em amor e uma vida de intemperanças contínuas por uma tez avermelhada, por feições abrutalhadas e como que vinhosas. Os olhos haviam perdido aquele brilho, aquela vivacidade da juventude, que os hábitos comedidos ou estudiosos têm o poder de manter. Trajado como homem despreocupado de sua vestimenta, trazia calças com presilhas nas bocas, mas surradas, cujo modelo exigia botas envernizadas. Suas botas de solas grossas, mal lustradas, tinham mais de três trimestres de uso, o que, em Paris, equivale a três anos em outra parte. Um colete desbotado, uma gravata atada pretensiosamente, embora fosse uma velha manta, denunciavam a espécie de penúria oculta a que um antigo elegante pode ver-se reduzido. Finalmente, Jorge apresentava-se naquela hora matinal de casaca, em vez de estar de fraque, diagnóstico de uma real miséria! Aquela casaca, que devia ter visto mais de um baile, passara, como seu dono, da opulência, que outrora representara, para o trabalho diário. As costuras da fazenda preta apresentavam linhas esbranquiçadas, a gola estava gordurosa, o uso recortara em serrote a extremidade das mangas. E Jorge ousava atrair a atenção por suas luvas amarelas, um pouco sujas, diga-se a verdade, por sobre uma das quais se desenhava em negro um anel de engaste largo e chato. Em torno da gravata, passada num aro de ouro pretensioso, enrolava-se uma corrente de seda imitando cabelos e à qual estaria preso, sem dúvida, um relógio. Seu chapéu, conquanto posto bastante briosamente, revelava, mais do que todos aqueles sintomas, a miséria do homem fora da possibilidade de dar dezesseis francos a um chapeleiro, quando se vê forçado a viver dia por dia. O antigo amante preferido de Florentina agitava uma bengala com castão de prata dourada, mas horrivelmente amolgado. As calças azuis, o colete de pano escocês, a gravata de seda azul-celeste e a camisa de algodão listrada de cor-de-rosa exprimiam por entre tantas ruínas tal desejo de aparecer que esse contraste constituía não só um espetáculo, como também uma lição.

— E aquilo é Jorge — disse consigo mesmo Oscar. — Um homem que quando o deixei tinha trinta mil francos de renda.

— Sr. de Pierrotin, dispõe ainda de um lugar no seu cupê? — respondeu Jorge ironicamente.

— Não, meu cupê está tomado por um par de França, o genro do sr. Moreau, o sr. barão de Canalis,[131] sua esposa e sua sogra. Só me resta um lugar no interior.

— Diabos! Parece que, sob todos os governos, os pares de França viajam nos carros de Pierrotin. Fico com o lugar do interior — respondeu Jorge, que se lembrou da aventura do conde de Sérisy.

Dirigiu a Oscar e à viúva um olhar perscrutador e não reconheceu nem o filho nem a mãe. Oscar tinha a tez bronzeada pelo sol da África; seus bigodes eram extraordinariamente bastos e suas suíças, muito longas; seu rosto, encovado, e seus traços pronunciados harmonizavam com a sua atitude militar. A roseta de oficial, a falta de um braço, a severidade do traje, tudo teria desnorteado as recordações de Jorge, se este tivesse qualquer lembrança da sua antiga vítima. Quanto à sra. Clapart, que Jorge no passado apenas entrevira, dez anos consagrados à prática de uma devoção severíssima tinham-na transformado. Ninguém imaginaria que aquela espécie de Irmã Parda ocultava uma das Aspásias de 1797.

Um enorme ancião, vestido com simplicidade, mas com opulência, e no qual Oscar reconheceu o velho Léger, chegou lenta e pesadamente; saudou Pierrotin familiarmente, e este pareceu tributar-lhe o respeito devido, em todos os países, aos milionários.

— Como! É o tio Léger! Cada vez mais preponderante — exclamou Jorge.

— Com quem tenho a honra de falar? — perguntou o velho Léger num tom seco.

— Como! Não reconhece o coronel Jorge, amigo de Ali-Paxá? Viajamos juntos uma vez, com o conde de Sérisy, que vinha incógnito.

Uma das mais habituais tolices das criaturas decaídas é a de querer reconhecer as pessoas e ser por elas reconhecidas.

— O senhor está muito mudado — respondeu o velho corretor de propriedades, que se tornara duas vezes milionário.

— Tudo muda — disse Jorge. — Veja se o Hotel do Leão de Prata e se os carros de Pierrotin se parecem com o que eram há catorze anos.

— Pierrotin possui, hoje, sozinho, os transportes do vale do Oise e faz trafegar lindos carros — respondeu o sr. Léger. — É um burguês de Beaumont, onde tem um hotel no qual fazem estação todas as diligências; tem uma mulher e uma filha que não são de desprezar...

Um ancião de cerca de setenta anos desceu do hotel e juntou-se aos viajantes que estavam esperando o momento de subir no carro.

— Vamos de uma vez, tio Reybert! — disse Léger. — Só estamos à espera do seu grande homem.

— Aqui está ele — disse o intendente do conde de Sérisy, apontando para José Bridau.

Nem Jorge nem Oscar puderam reconhecer o pintor ilustre, porquanto ele ostentava aquele tão famoso rosto trabalhado e sua atitude revelava a confiança em si mesmo que o êxito dá. Seu fraque preto estava adornado com a fita da Legião de Honra. Seu vestuário, excessivamente apurado, indicava um convite para alguma festa no campo.

Nesse momento, um caixeiro, trazendo na mão uma folha de papel, saiu de um escritório construído na antiga cozinha do Leão de Prata e colocou-se em frente do cupê vazio.

— O senhor e a senhora de Canalis, três lugares — bradou ele.

Passou para o interior e nomeou sucessivamente:

— Sr. Bellejambe, dois lugares. Sr. de Reybert, três lugares. Senhor... como é seu nome? — disse ele a Jorge.

— Jorge Marest — respondeu em voz baixa o homem decaído.

O caixeiro foi para a rotunda, diante da qual se juntavam amas, gente do campo e pequenos bodegueiros que se despediam; depois de ter empilhado os seis viajantes, o caixeiro chamou pelo nome a quatro jovens que subiram para a banqueta do imperial e disse: “Rode!... ” como única ordem de partida. Pierrotin pôs-se ao lado do seu condutor, um rapaz de blusa, o qual por sua vez gritou aos seus cavalos: “Upa...”.

O carro, arrastado pelos quatro cavalos comprados em Roye, escalou a trotezinho a subida do Faubourg Saint-Denis; uma vez, porém, chegado acima de Saint-Laurent, correu como uma mala-posta até Saint-Denis, em quarenta minutos. Não se detiveram na taberna dos folhados e tomaram, à esquerda de Saint-Denis, a estrada do vale de Montmorency.

Foi ao dobrar ali que Jorge quebrou o silêncio que os viajantes até então haviam conservado, observando-se uns aos outros.

— Anda-se um pouco melhor do que há quinze anos — disse ele, puxando um relógio de prata —, hein, tio Léger?

— Costumam ter a condescendência de me chamar senhor Léger — respondeu o milionário.

— Mas é o nosso trocista da minha primeira viagem a Presles! — exclamou José Bridau. — E então, tem feito novas campanhas na Ásia, na África, na América? — disse o grande pintor.

— Com os demônios! Fiz a Revolução de Julho[132] e isso me basta, pois ela me arruinou...

— Ah!, fez a Revolução de Julho? — disse o pintor. — Não me admira, pois que nunca quis acreditar quando me diziam que ela se fizera sozinha.

— Como a gente se encontra — disse Léger olhando para o sr. de Reybert. — Eis o ajudante de notário ao qual devem, sem dúvida, a intendência dos bens da casa de Sérisy.

— Falta-nos Mistigris, agora ilustre com o nome de Leão de Lora, e aquele rapazinho bastante bobo para ter falado ao conde das doenças da pele que acabou por curar e da sua esposa a quem acabou por deixar a fim de morrer em paz — disse José Bridau.

— Falta também o senhor conde — disse Reybert.

— Oh! Creio — disse José Bridau com melancolia — que a última viagem que ele fará vai ser de Presles a L’Isle-Adam para assistir à cerimônia de meu casamento.

— Ele ainda passeia de carro no seu parque — respondeu o velho Reybert.

— A mulher dele vem vê-lo frequentemente? — perguntou Léger.

— Uma vez por mês — disse Reybert. — Ela continua gostando de Paris; casou em setembro passado a sobrinha, a srta. du Rouvre, na qual concentrou toda a sua afeição, com um jovem polonês muito rico, o conde Laginski... [133]

— E para quem — perguntou a sra. Clapart — irão os bens do sr. de Sérisy?

— Para a mulher dele, que o enterrará! — respondeu Jorge. — A condessa ainda está muito bem para mulher de cinquenta anos, é sempre elegante e, à distância, ainda causa efeito...

— Ela ainda lhe causará efeito por muito tempo — disse então Léger, que parecia querer vingar-se do seu ludibriador.

— Eu a respeito — respondeu Jorge ao velho Léger. — Mas, e a propósito, que fim levou aquele administrador que, naquela época, foi despedido?

— Moreau — retrucou Léger. — Mas ele é deputado do Oise.

— Ah! É o famoso centrista Moreau do Oise? — perguntou Jorge.

— Sim — replicou Léger —, o sr. Moreau do Oise. Trabalhou um pouco mais do que o senhor na Revolução de Julho e acabou comprando a magnífica propriedade de Pontel, entre Presles e Beaumont.

— Oh! Ao lado da que ele administrava, junto ao seu antigo patrão, é de muito mau gosto — disse Jorge.

— Não fale tão alto — disse o sr. de Reybert —, pois a sra. Moreau e a filha, a baronesa de Canalis, estão no carro, bem como o seu genro, o antigo ministro.

— Que dote deu ele então para fazer com que o nosso grande orador desposasse a filha?

— Algo assim como dois milhões — disse o velho Léger.

— Ele tinha gosto pelos milhões — disse Jorge, sorrindo, em voz baixa —; já tinha começado seu bolo em Presles.

— Nada mais diga a respeito do sr. Moreau! — exclamou vivamente Oscar. — Parece-me que o senhor devia ter aprendido a calar-se nos carros públicos.

José Bridau olhou o oficial maneta durante alguns segundos e disse:

— O senhor não é embaixador, mas a sua roseta nos diz suficientemente que foi longe e nobremente, pois o meu irmão[134] e o general Giroudeau[135] o citaram muitas vezes nas suas ordens do dia.

— Oscar Husson? — exclamou Jorge. — Palavra!, que se não fosse a sua voz não o teria reconhecido.

— Ah! Foi o senhor que arrebatou tão corajosamente o visconde Júlio de Sérisy aos árabes? — perguntou o sr. de Reybert — e a quem o senhor conde fez obter a coletoria de Beaumont, enquanto espera a de Pontoise?

— Sim, senhor — disse Oscar.

— Pois bem — disse o grande pintor —, o senhor me dará a honra e o prazer de assistir ao meu casamento em L’Isle-Adam.

— Com quem se casa o senhor?

— Com a senhorita Léger — respondeu o pintor —, neta do sr. de Reybert. É um casamento que o sr. conde de Sérisy teve a bondade de preparar para mim; eu, como artista, já lhe devia muito, e antes de morrer, ele quis ocupar-se da minha fortuna na qual eu não pensava...

— O velho Léger casou então? — disse Jorge.

— Com minha filha — respondeu o sr. de Reybert — e sem dote.

— Teve filhos?

— Uma filha. É o quanto basta para um homem que era viúvo e sem filhos — respondeu o tio Léger. — Da mesma forma que Moreau, meu sócio, terei como genro um homem célebre.

— E — disse Jorge, assumindo um ar quase respeitoso para com o velho Léger — o senhor mora ainda em L’Isle-Adam?

— Sim, comprei Cassan.

— Pois bem! Sinto-me feliz por ter escolhido este dia para fazer o vale do Oise — disse Jorge. — Os senhores me podem ser úteis.

— Em quê? — disse Léger.

— Ah! Aqui está — disse Jorge. — Sou empregado da Esperança, uma companhia que acaba de fundar-se e cujos estatutos vão ser aprovados por uma ordenança do rei. Essa instituição, ao cabo de dez anos, fornece dotes às moças, rendas vitalícias aos velhos, paga a educação das crianças; finalmente, encarrega-se da fortuna de todos...

— Acredito — disse o tio Léger, sorrindo. — Numa palavra, o senhor é agente de seguros.

— Não, senhor, sou inspetor-geral, encarregado de estabelecer correspondentes e agentes da companhia em toda a França e opero enquanto não se escolhem os agentes; pois é coisa tão delicada como difícil encontrar gente de bem...

— Mas, afinal, como perdeu os seus trinta mil francos de renda? — perguntou Oscar a Jorge.

— Da mesma forma que o senhor perdeu seu braço — respondeu com secura o antigo ajudante de notário ao antigo ajudante de procurador.

— Fez então alguma ação brilhante com a sua fortuna? — disse Oscar com um misto de ironia e azedume.

— Ora esta! Fiz infelizmente demasiadas... ações, tenho até para vender.

Tinham chegado a Saint-Leu-Taverny, onde todos os viajantes desceram, enquanto mudavam os cavalos. Oscar admirou a vivacidade que Pierrotin desenvolvia ao desprender os arreios dos balancins, enquanto o condutor desencilhava os cavalos quarteadores.

“Esse pobre Pierrotin”, pensou ele, “tanto quanto eu, não subiu muito na vida. Jorge caiu na miséria. Todos os outros, graças à especulação e ao talento, fizeram fortuna...” — Vamos almoçar aqui, Pierrotin? — disse Oscar em voz alta batendo no ombro do velho.

— Eu não sou o condutor — disse Pierrotin.

— E que é então o senhor? — perguntou o coronel Husson.

— Eu sou o empresário — respondeu Pierrotin.

— Vamos, não se zangue com velhos conhecidos — disse Oscar, mostrando a mãe e sem deixar seu ar protetor. — Não reconhece a sra. Clapart?

Foi tanto mais louvável para Oscar essa apresentação de sua mãe a Pierrotin, porque naquele momento a sra. Moreau do Oise, que descera do cupê, olhou desdenhosamente para Oscar e a sua mãe, ao ouvir aquele nome.

— Palavra, senhora, que eu jamais a teria reconhecido, nem ao senhor. Parece que na África as coisas são sérias, não?

A espécie de piedade que Pierrotin inspirava a Oscar foi a última falta que a vaidade fez cometer ao herói desta cena, pelo que foi ele punido, mas bastante suavemente. Eis como:

Dois meses após sua instalação em Beaumont-sur-Oise, Oscar cortejava a srta. Georgette Pierrotin, cujo dote era de cento e cinquenta mil francos, e desposou a filha do empresário dos Transportes do Oise no fim do inverno de 1838.

A aventura da viagem a Presles tornara Oscar discreto, o sarau de Florentina robustecera sua probidade, as durezas da carreira militar tinham-lhe ensinado a hierarquia social e a obediência à sorte. Tendo-se tornado prudente e capaz, foi feliz. Antes de sua morte, o conde de Sérisy obteve para Oscar a recebedoria de Pontoise. A proteção do senhor do Oise, da condessa de Sérisy e a do sr. barão de Canalis, o qual, cedo ou tarde, voltará a ser ministro, assegura uma receita geral ao sr. Husson, a quem a família Camusot agora reconhece como parente.

Oscar é um homem comum, manso, sem pretensões, modesto e sempre se mantendo, como o seu governo, num justo meio. Não causa nem inveja nem desdém. É, enfim, o burguês moderno.


Paris, fevereiro de 1842

 

 

INTRODUÇÃO

De todos os livros de Balzac, talvez seja Alberto Savarus (em francês: Albert Savarus) aquele a respeito do qual a impressão do leitor diverge mais da do autor. Com efeito, para o leitor esta novela é principalmente a história de Rosália de Watteville e não, como o título o faz crer, de Alberto Savarus. Essa mocinha pálida, que, enquanto borda pantufas para o pai, sentada à lareira, maquina planos insensatos e intrigas destinadas a destruir vidas inteiras, com o seu apego fatal a uma ideia fixa, sua imaginação hipertrofiada, sua espantosa atividade espiritual, sua incrível hipocrisia, pertence à família diabólica da prima Bete, talvez a maior heroína balzaquiana.

O que surpreende o leitor, a par da atitude geralmente impassível de Balzac em relação às suas criaturas, é ver o grande “historiador de costumes” antipatizar com a srta. de Watteville. A antipatia chega ao ponto de o romancista recorrer a um verdadeiro deus ex machina, um acidente puramente fortuito, para, no fim do livro, infligir-lhe um castigo horrível à maneira do que se vê nos romancezinhos para moças.

A aversão de Balzac não pode ser atribuída a intuito moralizador, pois ele, no sombrio pessimismo que lhe inspirava o espetáculo da sociedade, nunca se importava com premiar a virtude e punir o crime. Pelo contrário, as suas personagens mais cínicas, mais imorais, atingem de ordinário as situações sociais mais altas, gozando consideração e felicidade. Se dessa vez se afastou da sua esplêndida impassibilidade, foi por ter sido Rosália a causadora da desgraça de Alberto Savarus, personagem esta que, sem dúvida, goza da simpatia do autor.

Na verdade, as atitudes de Alberto justificam pouco tal sentimento. Como Rosália, ele também age movido por um grande amor; entretanto, as ações a que essa paixão o leva não são absolutamente mais louváveis que aquelas a que a moça se deixa arrastar por igual motivo. Rosália viola o segredo da correspondência e chega a tornar-se falsária; mas será que Alberto não se mete em toda espécie de desprezíveis maquinações eleitorais? Ambos alegam o seu amor, mas Balzac condena a moça e absolve o homem, querendo que com ele deploremos a ruína deste e aprovemos o castigo daquela.

Bem examinados esses dois amores, teremos de reconhecer, porém, que o de Rosália é mais nobre, por ser mais quimérico e desinteressado. Ela visa a um só fim: conquistar o objeto de sua paixão, e por esse fim arrisca tudo, até a sua salvação eterna. Quanto a Alberto, o amor da mulher querida o torna apenas ambicioso; mas será isso um sacrifício, principalmente numa pessoa que já tem pendor para a ambição? É verdade que ele espera pacientemente a felicidade durante anos — mas não o faz com a esperança de um prêmio extraordinário e, além disso, não está convencido da fidelidade com que a amante o aguardava? A paixão de Rosália, pelo contrário, é uma loucura desesperada, não partilhada, e que a corrói.

Alberto poderá fazer jus à nossa simpatia por ser um indivíduo excepcional, um gênio? Balzac o afirma, mas, contrariamente a seu hábito, não o prova, isto é, não nos mostra Alberto agindo como o faria um grande homem. A novela publicada por ele, e que Balzac se dá ao trabalho de reproduzir na íntegra, revela-nos apenas que ele é um escritor medíocre. Ouvimos dizer que é um advogado notável, mas verificamos que é um péssimo psicólogo, o que nos faz duvidar da veracidade dessa afirmação. Em Rosália, sim, é que encontramos uma verdadeira grandeza e que admiramos o espantoso desabrochar de todas as faculdades sob a ação do amor.

A parcialidade do ficcionista não se justifica, pois — mas explica-se perfeitamente se soubermos que se trata de uma obra autobiográfica e que em Alberto Savarus Balzac se retratou a si mesmo. Basta ler o retrato físico de Alberto, que, no decorrer da novela, aparece com todos os traços, idealizados, do romancista, vestindo-lhe até o famoso robe de chambre. Alberto é “como Balzac queria que a posteridade o visse” (Paul Bourget). Além disso, repare-se na ternura do romancista para com essa personagem, os pormenores comuns de suas biografias (três anos de vida perdidos em Paris numa empresa infeliz, por causa de dois sócios; prosperidade repentina dessa empresa depois da saída de Balzac-Savarus etc.), sua orientação política e suas ambições idênticas, sua extraordinária energia, sua falta de sorte.

Também o amor do herói à princesa Francesca Argaiolo, que aguarda apenas a morte do marido velho para unir-se a Alberto, com quem mantém correspondência amorosa durante dez anos, foi moldado exatamente na paixão de Balzac por Evelyne Hanska; até o cenário onde os amantes fictícios se encontram pela primeira vez é o mesmo em que Balzac conheceu a sua “Estrangeira”. O escritor pôs toda a sua vida até a idade de quarenta e três anos na sua novela. Podemos mesmo dizer que, com antevisão profética, pôs nela até a própria morte, ao atribuir a Alberto estas frases trágicas: “Alcançar o alvo expirando como o corredor antigo! Ver a fortuna e a morte chegarem juntas aos umbrais de nossa porta! Obtermos aquela que amamos no momento em que o amor se extingue! Não termos mais a faculdade de gozar, quando se conquistou o direito de viver feliz!”.

Pois foi exatamente esse, bem o sabemos, o fim que a sorte reservou a Balzac.

No tocante à identidade de Balzac com Alberto Savarus convém salientar mais uma circunstância curiosa. Na novela atribuída pelo escritor a seu herói, aparecem personagens balzaquianas, figuras de A comédia humana (como a viscondessa de Beauséant, Gastão de Nueil, Schinner). Essa confusão entre a ficção de primeiro plano com a de segundo pode ter sido voluntária ou provir de um descuido de escritor; seja como for, constitui mais uma prova, e das mais convincentes, da identificação do romancista com a sua personagem.

Alberto Savarus, além de se dirigir ao vasto público de Balzac, visa especialmente à condessa Hanska, sua longínqua e ciumenta namorada. Ao descrever o amor absoluto de Alberto, um desses alter egos ou “fantasmas do espelho” de que fala Pierre Abrahan, Balzac pretende reforçar os protestos de fidelidade tantas vezes repetidos nas Cartas à Estrangeira. “As cartas a mme. Hanska são mentiras do primeiro grau”, escreve ainda Abrahan em Créatures chez Balzac; “o romance de Alberto Savarus, uma mentira do segundo grau, às quais se acrescenta aqui a curiosa novela escrita pelo próprio Savarus, outra, do terceiro grau.”

A invasão da realidade não foi favorável à obra, pois os elementos autobiográficos lhe quebram o equilíbrio e a serenidade. Aliás, Balzac, para impedir a identificação da bem-amada de Alberto com Evelyne Hanska, procura torná-la irreconhecível sob uma série de disfarces — miss Inglesa, sra. Lamporani, princesa Colonna, princesa Francesca, Argaiolo —, o que traz ao enredo uma complicação prejudicial.

Se o valor de uma obra consistisse na sua perfeita correspondência com o que o autor nela pretendia realizar, Alberto Savarus seria um livro falhado, pois ninguém subscreveria a interpretação que o próprio Balzac dá de sua narrativa numa das Cartas à Estrangeira, em 27 de abril de 1842. “Quero mostrar como, dando à vida social um objetivo demasiado alto, e cansado o coração e a inteligência, se chega a não mais querer o que foi, em começo, o objetivo de toda uma vida.” Também não podemos concordar com ele quando declara (em carta de 14 de outubro do mesmo ano) que o livro encerra “uma grande lição para o homem, sem nenhuma para a mulher”.

Mas Alberto Savarus — de que a sra. Hanska não gostou, talvez justamente por tê-lo lido depois dessas desorientadoras explicações preliminares de Balzac — salva-se pelo lado não autobiográfico. A pintura, em que Balzac excelia sempre, do ambiente provinciano, o retrato da devota baronesa de Watteville e de seu pobre marido e, sobretudo, a figura magistral de Rosália resgatam tudo. Esta última personagem, de uma vitalidade extraordinária, impôs-se ao autor malgrado seu e transtornou-lhe todo o plano. Quisera Balzac comover os leitores pela narrativa do heroico e paciente amor de Savarus-Balzac e enternecê-los com a descrição do pitoresco cenário onde este encontrou e amou a Francesca-Evelyne; mas sobreveio a srta. de Watteville, criatura puramente imaginária e, com a calma violenta de sua paixão insensata, relegou tudo isso ao segundo plano.

O caso daria uma ótima novela de Pirandello.

A comparação da primeira edição dessa obra com as ulteriores revela-nos que Rosália de Watteville se chamava primeiro Filomena. Segundo a primeira variante, a devota sra. de Watteville impunha esse nome à filha nascida em 1817 “por ter-se tornado então o culto dessa santa uma verdadeira loucura na Itália e uma bandeira para a ordem dos jesuítas”. Tendo vários leitores feito observar a Balzac que o culto de Santa Filomena não começou na Itália senão após a revolução de 1830, o escritor, ansioso da exatidão de sua “história dos costumes” até nos pormenores mais insignificantes, apressou-se em mudar o nome da personagem para Rosália, eliminando assim o anacronismo.

paulo rónai


ALBERTO SAVARUS
à madame Émile de Girardin[136]

 


I – A SRA. DE WATTEVILLE

Um dos poucos salões frequentados pelo arcebispo de Besançon, durante a Restauração, e o que ele mais apreciava foi o da baronesa de Watteville.

Algumas palavras sobre essa dama, talvez a mais considerável personagem feminina de Besançon.

O sr. de Watteville, sobrinho-neto do famoso Watteville,[137] o mais feliz e o mais ilustre dos matadores e renegados, cujas aventuras extraordinárias são por demais históricas para ser narradas aqui, era tão manso quanto o seu tio-avô era truculento. Após ter vivido no Condado[138] como um bicho-de-conta na fenda de um forro de madeira, desposara a herdeira da célebre família de Rupt. A sra. de Rupt juntou vinte mil francos de renda em propriedades rurais aos dez mil francos de renda em bens imobiliários do barão de Watteville. O escudo do gentil-homem suíço (os Watteville são da Suíça) foi gravado no centro do velho escudo dos Rupt. Esse casamento, combinado desde 1802, realizou-se em 1815, após a segunda Restauração. Três anos depois do nascimento de uma filha, todos os ascendentes da sra. de Watteville haviam falecido e suas heranças tinham sido liquidadas. Venderam então a casa do sr. de Watteville, para se instalarem na rua da Prefeitura, no belo palacete de Rupt, cujo vasto jardim se estende para a rue du Perron. A sra. de Watteville, jovem devota, tornou-se mais devota ainda após o seu casamento. É uma das rainhas da santa confraria que dá à alta sociedade de Besançon um ar sombrio e maneiras de uma reserva afetada, em harmonia com o caráter da cidade.

II – O BARÃO

O sr. barão de Watteville, homem seco, magro e sem espírito, parecia gasto, sem que se pudesse saber por quê, pois gozava de uma ignorância crassa; como, porém, sua mulher era de um louro ardente e de uma natureza seca que se tornara proverbial (ainda hoje se diz: aguda como a sra. de Watteville), alguns trocistas da magistratura asseguravam que o barão se gastara contra aquela rocha. Rupt vem evidentemente de rupes.[139] Os sábios observadores da natureza social não deixarão de notar que Rosália foi o único fruto da união dos Watteville com os Rupt.

O sr. de Watteville passava a vida numa rica oficina de torneiro, ele torneava! Como complemento a essa existência, dera-se à fantasia das coleções. Para os médicos filósofos, dados ao estudo da loucura, essa tendência para colecionar é um dos primeiros graus da alienação mental, quando se exerce sobre as pequenas coisas. O barão de Watteville acumulava conchas, insetos e fragmentos geológicos do território de Besançon. Alguns contraditores, sobretudo mulheres, diziam do sr. de Watteville:

— Ele tem uma bela alma! Viu, desde o começo do casamento, que não levaria a melhor com a mulher, e por isso se atirou a uma ocupação mecânica e à boa mesa.

III – A HISTÓRIA COMEÇA

O palacete de Rupt não deixava de ter certo esplendor digno do de Luís xiv, e se ressentia da nobreza das duas famílias, confundidas em 1815. Brilhava ali um velho luxo que não se atinha à moda. Os lustres de cristal, talhados em forma de folhas, as lâmpadas, os damascos, os tapetes, os móveis dourados, tudo estava em harmonia com as velhas librés e com os velhos servidores. Embora servida numa escura baixela de prata da família, em torno de um centro de mesa de espelho, ornado de porcelana de Saxe, a comida era deliciosa. Os vinhos, escolhidos pelo sr. de Watteville, que, para ocupar sua vida e pôr diversidade nela, se fizera seu próprio despenseiro, gozavam de uma espécie de celebridade departamental. A fortuna da sra. de Watteville era considerável, porquanto a do marido, que consistia das terras de Rouxey, valendo cerca de dez mil francos de renda, não teve aumento por herança. É inútil observar que a ligação muito íntima da sra. de Watteville com o arcebispo instalara como senhores, em sua casa, os três ou quatro prelados notáveis ou de espírito do arcebispado que não odiavam a mesa.

Num jantar de aparato, dado não sei por que boda no começo do mês de setembro de 1834, no momento em que as mulheres estavam colocadas em círculo, diante da lareira do salão, e os homens em grupos, pelas janelas, fez-se uma aclamação à vista do senhor abade de Grancey, que foi anunciado.

— E então! E o processo? — gritaram-lhe.

— Ganho! — respondeu o vigário-geral. — A sentença da corte, da qual nada esperávamos, sabem por quê...

Isso era uma alusão à composição da corte real de 1830. Quase todos os legitimistas se tinham demitido.

— A sentença acaba de nos dar ganho de causa, em toda a linha, e reforma o julgamento de primeira instância.

— Todos os acreditavam perdidos.

— E nós o estaríamos se não fosse eu. Disse ao nosso advogado que fosse a Paris e pude, no momento da batalha, tomar um outro advogado, um homem extraordinário, a quem devemos o ganho do processo...

— Em Besançon? — exclamou ingenuamente o sr. de Watteville.

— Em Besançon — respondeu o abade de Grancey.

— Ah!, sim, Savaron — disse um belo rapaz, que estava sentado perto da baronesa e tinha o nome de Soulas.

— Ele levou cinco ou seis noites, devorou toda a papelada, os autos, teve comigo sete ou oito conferências de várias horas — continuou o sr. de Grancey, que aparecia no palacete de Rupt pela primeira vez depois de vinte dias de ausência. — Enfim, o sr. Savaron acaba de derrotar completamente o célebre advogado que os nossos adversários tinham ido buscar em Paris. No dizer dos conselheiros, o rapaz foi maravilhoso. Assim, pois, o capítulo é duas vezes vencedor: venceu em direito e, depois, em política, venceu o liberalismo, na pessoa do defensor da nossa municipalidade. “Nossos adversários”, disse o nosso advogado, “não devem esperar encontrar, por toda parte, complacência para arruinar os arcebispados...” O presidente foi obrigado a impor silêncio. Todos os besançonenses aplaudiram. De modo que a propriedade dos edifícios do antigo convento fica sendo do capítulo da catedral de Besançon. De resto, o sr. Savaron convidou o colega de Paris para jantar, ao saírem do Palácio da Justiça. Ao aceitar, o último disse: “Ao vencedor as palmas!” e felicitou-o, sem rancor, pelo seu triunfo.

— De onde desencavou o senhor esse advogado? — perguntou a sra. de Watteville. — Nunca ouvi pronunciar tal nome.

— Mas a senhora pode ver-lhe as janelas daqui — respondeu o vigário-geral. — O sr. Savaron mora na rue du Perron; o jardim da casa dele limita com o seu.

— Ele não é do Condado — disse o sr. de Watteville.

— Ele tampouco é de qualquer lugar, que não se sabe de onde é — disse a sra. de Chavoncourt.

— Mas quem é ele? — perguntou a sra. de Watteville, tomando o braço do sr. de Soulas para se dirigir à sala de jantar. — Se é estranho ao lugar, por que acaso veio estabelecer-se em Besançon? É uma ideia bem singular para um advogado.

— Bem singular! — repetiu o jovem Amadeu de Soulas, cuja biografia se torna necessária para a compreensão desta história.

IV – LEÃO DE PROVÍNCIA

Em todos os tempos, a França e a Inglaterra têm feito uma troca de futilidades, tanto mais seguida porque escapa à tirania das alfândegas. A moda que em Paris chamamos inglesa é em Londres chamada francesa, e reciprocamente. A inimizade dos dois povos cessa em dois pontos: na questão das palavras e na do vestuário.

God Save the King, o hino nacional da Inglaterra, é uma música feita por Lulli para os coros de Esther ou de Athalie.[140] As anquinhas, trazidas por uma inglesa para Paris, foram inventadas em Londres, conhece-se o motivo, por uma francesa, a famosa duquesa de Portsmouth;[141] começaram por provocar tal zombaria que a primeira inglesa que assim apareceu nas Tulherias escapou de ser esmagada pela multidão, mas as anquinhas foram adotadas. Essa moda tiranizou as mulheres da Europa durante meio século. Na paz de 1815, gracejou-se durante um ano da cintura baixa das inglesas. Paris em peso foi ver Pothier e Brunet em Les Anglaises pour rire;[142] mas, em 1816 e 17, a cintura das francesas, que em 1814 lhes cortava os seios, desceu gradativamente até lhes delinear as cadeiras. Nestes dez anos, a Inglaterra nos fez dois pequenos presentes linguísticos. Ao incroyable, ao merveilleux, ao élégant, esses três herdeiros dos petits-maîtres, cuja etimologia é bastante indecente, sucederam o dândi e depois o leão. O leão não engendrou a leoa. A lionne é devida à famosa canção de Alfred de Musset: Avez-vous vu, dans Barcelone... C’est ma maîtresse et ma lionne:[143] houve fusão, ou, se quiserem, confusão entre os dois termos e as duas ideias dominantes. Quando uma tolice diverte Paris, que devora tantas obras-primas quantas tolices, é difícil que a província dela se prive. Por isso, logo que o leão passeou por Paris a sua juba, a sua barba e os seus bigodes, os seus coletes e o seu monóculo, sustentado sem o auxílio das mãos, pela contração da face e da arcada superciliar, as capitais de alguns departamentos viram subleões que protestaram, pela elegância das presilhas das calças, contra a incúria de seus compatriotas.

Besançon gozava, pois, em 1834, de um leão, na pessoa do sr. Amadeu Silvano Jacques de Soulas, que se escrevia Souleyas no tempo da ocupação espanhola. Amadeu de Soulas é talvez o único que, em Besançon, descenda de uma família espanhola. A Espanha mandava gente fazer seus negócios no condado, mas poucos espanhóis se fixaram ali. Os Soulas ficaram, por causa de sua aliança com o cardeal Granvelle. O jovem sr. de Soulas falava sempre em se retirar de Besançon, cidade triste, devota, pouco literária, cidade de guerra e de guarnição, cujos costumes e modo de ser, cuja fisionomia, valem a pena ser descritos. Essa opinião permitia-lhe alojar-se como homem incerto do seu futuro, em três quartos muito pouco mobiliados, no fim da rue Nueve, no local em que esta se encontra com a rua da Prefeitura.

V – BABYLAS, O TIGRE

O jovem sr. de Soulas não podia dispensar-se de ter um pequeno tigre. Este, filho de um seu granjeiro, era um criadinho de catorze anos, atarracado, de nome Babylas. O leão vestira muito bem o seu pequeno tigre: sobrecasaca curta de pano cinzento-aço, apertada com uma cinta de couro envernizado, calções de pelúcia azul-escura, colete encarnado, botas de verniz com canhões revirados, chapéu redondo com fita preta, botões amarelos com as armas dos Soulas. Amadeu dava ao rapaz luvas de algodão branco, roupa lavada e trinta e seis francos por mês, com obrigação de ele comer por conta própria, coisa que se afigurava monstruosa às costureirinhas de Besançon: quatrocentos e vinte francos a um rapaz de quinze anos, sem contar os presentes! Os presentes consistiam na venda dos trajos reformados, numa gorjeta quando Soulas trocava um dos seus cavalos e na venda do estrume.

VI – PREÇO MÉDIO DO LEÃO E DO TIGRE

Os dois cavalos, mantidos com uma sórdida economia, custavam um pelo outro oitocentos francos por ano. A conta dos fornecimentos, em Paris, de perfumarias, gravatas, joias, potes de verniz, trajos, ia a mil e duzentos francos. Se a isso se somar groom ou tigre, cavalos, gastos extraordinários e aluguel de seiscentos francos, chega-se a um total de três mil francos. Ora, o pai do jovem sr. de Soulas não lhe deixara mais do que quatro mil francos de renda, produto de algumas chácaras bastante minguadas que exigiam despesas de manutenção, o que impunha uma lamentável incerteza nas rendas. Restavam apenas menos de três francos por dia ao leão para a sua vida, seu bolso e o jogo. Por esse motivo, com frequência, ele jantava fora e almoçava com frugalidade notável. Quando era preciso absolutamente jantar à sua custa, mandava buscar pelo garoto dois pratos numa casa de pasto, sem que isso ultrapassasse vinte e cinco sous. O jovem sr. de Soulas passava por dissipador, por homem que fazia loucuras, quando realmente o infeliz, para juntar as pontas do seu orçamento anual, recorria a uma astúcia, a um talento, que teriam feito a glória de uma boa dona de casa. Ignorava-se, ainda, em Besançon sobretudo, quanto impressionam uma capital seis francos de verniz espalhado nas botas ou nos sapatos, luvas amarelas de cinquenta sous, limpas no mais profundo segredo para fazê-las servir três vezes, gravatas de dez francos que duram três meses, quatro coletes de vinte e cinco francos e calças que recobrem as botinas! Como poderia ser de outra forma, quando vemos, em Paris, mulheres concederem uma atenção particular a tolos que vão à casa delas e levam a melhor sobre os homens mais notáveis, por causa dessas frívolas vantagens que se podem obter por quinze luíses, inclusive o encrespamento e uma camisa de pano da Holanda?

VII – LEVE ESBOÇO

Se esse desventurado rapaz lhes parece ter-se tornado leão com pouca despesa, saibam que Amadeu de Soulas fora três vezes à Suíça, de carro e em pequenas jornadas; duas vezes a Paris e uma vez de Paris à Inglaterra. Era tido na conta de viajante instruído, e podia dizer: Na Inglaterra, onde estive etc. As matronas diziam-lhe: O senhor, que esteve na Inglaterra etc. Fora até à Lombardia, tinha costeado os lagos da Itália. Lia as obras novas. Enfim, enquanto limpava as luvas, o garoto Babylas respondia aos visitantes: “O senhor está trabalhando”. Por isso tentaram desvalorizar o jovem Amadeu de Soulas por meio da expressão: “É um homem muito avançado”. Amadeu possuía o talento de declamar, com a gravidade peculiar dos filhos de Besançon, os lugares-comuns da moda, o que lhe dava o mérito de ser um dos homens mais esclarecidos da nobreza. Usava no corpo as joias da moda e na cabeça os pensamentos controlados pela imprensa.

Em 1834, Amadeu era um rapaz de vinte e cinco anos, de estatura mediana, moreno, de tórax violentamente pronunciado, de ombros pelo mesmo padrão, coxas um pouco redondas, o pé já gordo, mãos brancas e rechonchudas, barba em coleira, bigodes que rivalizavam com os da guarnição, um rosto graúdo, bonachão e avermelhado, nariz achatado, olhos castanhos e sem expressão; aliás, nada de espanhol. Caminhava a largos passos para uma obesidade fatal às suas pretensões. Tinha as unhas muito cuidadas, a barba bem aparada, e os menores detalhes do seu vestuário, trazia-os com uma correção inglesa. Por isso Amadeu de Soulas era considerado o mais belo homem de Besançon. Um cabeleireiro que o vinha pentear a hora fixa (outro luxo de sessenta francos por ano) apontava-o como árbitro soberano em matéria de modas e de elegância. Amadeu dormia até tarde, fazia a toilette e saía a cavalo cerca do meio-dia, a fim de ir a uma das suas herdades exercitar-se no tiro a pistola. Dava a essa ocupação a mesma importância que Lord Byron lhe deu nos seus últimos dias. Depois, às três horas, regressava, admirado, no seu cavalo, pelas costureirinhas e pelas pessoas que estavam às janelas. Após pretensos trabalhos que, parecia, o ocupavam até às quatro horas, vestia-se para ir jantar fora, passava os serões nos salões da aristocracia de Besançon jogando whist e ia deitar-se às onze horas. Nenhuma existência podia ser mais transparente, mais regular, nem mais irrepreensível, porquanto ia com exatidão à missa nos domingos e dias santos.

VIII – UMA PALAVRA SOBRE BESANÇON

Para que possam compreender como era exorbitante essa vida, é necessário explicar Besançon em poucas palavras. Nenhuma cidade oferece resistência mais surda e muda ao progresso. Em Besançon, os administradores, os funcionários, os militares, enfim, todos aqueles que o governo, que Paris para lá manda, a fim de ocuparem um posto qualquer, são designados em blocos sob a denominação expressiva de a colônia. A colônia é o terreno neutro, o único onde, como na igreja, se podem encontrar as sociedades nobre e burguesa da cidade. Sobre esse terreno, a propósito de uma palavra, de um olhar ou de um gesto, se iniciam ódios de casa para casa, entre mulheres burguesas e nobres, que duram até a morte, e cavam mais fundo ainda os fossos intransponíveis que separam as duas sociedades. Excetuando os Clermont-Mont-Saint-Jean, os Beauffremont, os de Scey, os Gramont e alguns outros, que só residem nas terras do Condado, a nobreza de Besançon não remonta a mais de dois séculos, à época da conquista por Luís xiv. Esse mundo é essencialmente parlamentar, e de uma arrogância, de uma rispidez, de uma gravidade, de uma positividade, de uma soberba, que a nada se pode comparar, nem mesmo à corte de Viena, pois os de Besançon deixariam, sob esse ponto de vista, muito longe os salões vienenses. De Victor Hugo, de Nodier, de Fourier,[144] as glórias da cidade, não se fala, ninguém lhes dá atenção. Os casamentos entre nobres são combinados desde o berço, pois que tanto as coisas menores como as mais graves são ali definidas. Jamais um estrangeiro, um intruso, se imiscuiu nessas casas; e para nelas serem recebidos coronéis ou oficiais titulados, pertencentes às melhores famílias da França, quando os havia na guarnição, foram precisos esforços de diplomacia que o príncipe de Taleyrand se teria sentido felicíssimo de conhecer, para empregá-los num congresso.

Em 1834, Amadeu era o único que usava presilhas nas calças em Besançon. Isso já lhes pode explicar o leonismo do jovem sr. de Soulas. Enfim, uma pequena anedota os fará compreender bem Besançon.

Algum tempo antes do dia em que começa esta história, a prefeitura teve necessidade de fazer vir de Paris um redator para o seu jornal, a fim de se defender contra a pequena Gazette que a grande Gazette[145] tinha posto em Besançon e contra Le Patriote, que a República ali fazia agitar-se vivamente. Paris mandou um rapaz, ignorante do Condado, que estreou com um premier-Besançon[146] da escola do Charivari.[147] O chefe do partido moderado, um homem da prefeitura, mandou chamar o jornalista e disse-lhe: “Saiba, senhor, que somos graves, mais do que graves, enfadonhos; não queremos que nos divirtam e estamos furiosos por ter rido. Seja tão duro de ser digerido quanto as mais grossas amplificações da Revue des Deux-Mondes,[148] e conseguirá apenas beirar o tom da gente de Besançon”. O redator entendeu a lição e falou o patuá filosófico mais difícil de compreender. Obteve o maior sucesso.

IX – POR QUE LEÃO?

Se o jovem senhor de Soulas não desmereceu na estima dos salões de Besançon, foi isso por pura vaidade da parte destes; a aristocracia sentia-se prazerosa em ter o ar de se modernizar e de poder oferecer, aos nobres parisienses que viajavam pelo Condado, um rapaz que mais ou menos se lhes assemelhava. Todo aquele trabalho oculto, toda aquela poeira atirada aos olhos, aquela loucura aparente, aquela ponderação latente tinham uma finalidade, sem o que o leão besançonês não seria da localidade. Amadeu queria chegar a um casamento vantajoso, provando um dia que as suas granjas não estavam hipotecadas e que havia feito economias. Queria chamar a atenção da cidade, queria ser o seu mais belo homem, o mais elegante, para obter, primeiro, a simpatia e, depois, a mão da srta. Rosália de Watteville: ah!

Em 1830, quando o jovem sr. de Soulas começou o seu ofício de dândi, Rosália tinha catorze anos. Em 1834, a srta. de Watteville alcançava, pois, a idade em que as pessoas moças são facilmente impressionadas por todas as singularidades que recomendavam Amadeu à atenção da cidade. Há muitos leões que se fazem leões por cálculo e por especulação. Os Watteville, possuidores, fazia doze anos, de cinquenta mil francos de renda, não gastavam mais de vinte e quatro mil por ano, embora recebendo, nas segundas e sextas-feiras, a alta sociedade de Besançon. Nas segundas era um jantar; nas sextas, recepção à noite. Assim, pois, a que quantia teriam chegado, em doze anos, aqueles vinte e seis mil francos economizados anualmente e empregados com a discrição que caracteriza essas velhas famílias? Acreditava-se geralmente que, julgando-se suficientemente rica em terras, a sra. de Watteville colocara a três por cento, em 1830, as suas economias. O dote de Rosália devia então constar de cerca de quarenta mil francos de renda. Fazia, pois, cinco anos que o leão vinha trabalhando como uma toupeira para se alojar na extremidade superior da estima da severa baronesa, ao mesmo tempo em que se colocava de modo a lisonjear o amor-próprio da srta. de Watteville. A baronesa conhecia o segredo das invenções com que Amadeu conseguia sustentar sua posição em Besançon e por isso o estimava muito. Soulas abrigara-se sob a asa da baronesa, quando esta contava trinta anos, tendo tido então a audácia de admirá-la e fazer dela o seu ídolo; chegara a poder contar-lhe, somente ele no mundo, as anedotas picantes, que quase todas as devotas gostam de ouvir, autorizadas que estão, por suas grandes virtudes, a contemplar os abismos, sem neles se precipitarem, e as ciladas do demônio sem se deixarem prender por elas. Compreendem o motivo pelo qual aquele leão não se permitia o menor deslize? Punha a sua vida às claras, vivia, por assim dizer, na rua, a fim de poder representar o papel de amante sacrificado, aos olhos da baronesa, e de lhe regalar o espírito com os pecados que ela vedava à sua carne. Um homem que possui o privilégio de derramar coisas licenciosas ao ouvido de uma devota é para esta um homem encantador. Se aquele leão exemplar conhecesse melhor o coração humano, teria podido, sem perigo, permitir-se alguns amores com as costureirinhas de Besançon, que o consideravam um rei; talvez que seus assuntos assim tivessem progredido junto à severa e puritana baronesa. Com Rosália, aquele Catão parecia perdulário; professava a vida elegante, mostrava-lhe em perspectiva o brilhante papel de uma mulher da moda em Paris, para onde ele iria como deputado. Essas sábias manobras foram coroadas de inteiro êxito. Em 1834, as matronas das quarenta famílias nobres que compunham a alta sociedade besançonesa citavam o jovem sr. Amadeu de Soulas como o mais encantador rapaz de Besançon; ninguém ousava disputar o terreiro ao galo do palacete de Rupt; e toda Besançon considerava-o o futuro esposo de Rosália de Watteville. Houvera mesmo, a propósito desse assunto, troca de algumas frases entre a baronesa e Amadeu, às quais a pretensa nulidade do barão dava alguma certeza.

X – ROSÁLIA

A srta. de Watteville, a quem sua fortuna, que um dia seria enorme, emprestava então proporções consideráveis, educada no recinto do palacete de Rupt, de onde sua mãe raramente saía, de tanto que queria ao seu querido arcebispo, fora fortemente oprimida por uma educação exclusivamente religiosa e pelo despotismo da sua mãe, que a segurava severamente com princípios. Rosália não sabia absolutamente nada. Será saber alguma cousa ter estudado geografia em Guthrie,[149] história sagrada, história antiga, história da França e as quatro operações, tudo passado pelo crivo de um velho jesuíta? Desenho, dança e música foram proibidos por serem mais próprios para corromper do que para embelezar a vida. A baronesa ensinou à filha todos os pontos possíveis da tapeçaria e os pequenos trabalhos femininos: costura, bordado e renda. Aos dezessete anos Rosália só havia lido as Cartas edificantes[150] e obras sobre a ciência heráldica. Nunca um jornal lhe maculara os olhos. Ouvia missa todas as manhãs, na catedral, aonde a mãe a levava, voltava para almoçar, trabalhava após um pequeno passeio pelo jardim, e recebia as visitas, sentada junto à baronesa, até a hora do jantar; depois, salvo nas segundas e sextas, acompanhava a sra. de Watteville nos saraus, sem poder falar mais do que o consentiam as ordens maternas.

Aos dezoito anos, a srta. de Watteville era uma jovem débil, esguia, plana, loura, branca e insignificante em extremo. Seus olhos, de um azul pálido, tornavam-se mais belos com o movimento das pálpebras, que, quando baixas, lhe sombreavam as faces. Algumas sardas prejudicavam a pureza de sua fronte, aliás benfeita. Seu rosto assemelhava-se perfeitamente ao das santas de Alberto Dürer e dos pintores anteriores a Perugino:[151] a mesma forma gorda, embora fina, a mesma delicadeza entristecida pelo êxtase, a mesma ingenuidade severa. Tudo nela, até sua atitude, lembrava essas virgens cuja beleza não reaparece no seu brilho místico senão aos olhos de um conhecedor atento. Tinha belas mãos, porém vermelhas, e o mais lindo pé, um pé de castelã. Habitualmente usava vestido de simples algodão; mas aos domingos e dias santos sua mãe permitia-lhe seda. Seus vestidos, feitos em Besançon, tornavam-na quase que feia, ao passo que a sua mãe procurava adquirir graça, beleza e elegância com as modas de Paris, de onde tirava os melhores detalhes de sua toilette, graças aos cuidados do jovem sr. de Soulas. Rosália jamais usara meias de seda, nem borzeguins, e sim meias de algodão e sapatos de couro. Nos dias de gala punha um vestido de musselina, sem chapéu, e calçava sapatos de couro bronzeado. Essa educação e a sua atitude modesta ocultavam um caráter de ferro. Os fisiologistas e os profundos observadores da natureza humana vos dirão, talvez com grande espanto vosso, que, nas famílias, os temperamentos, os caracteres, o espírito, o gênio reaparecem com grandes intervalos, absolutamente como o que se denomina de doenças hereditárias. Assim, por exemplo, o talento, da mesma forma que a gota, salta algumas vezes por sobre duas gerações. Temos desse fenômeno um exemplo ilustre em George Sand, em quem revivem a força, a potência e o conceito do marechal de Saxe,[152] de quem ela é neta natural. O caráter decidido, a audácia romanesca do famoso Watteville haviam reaparecido na alma de sua sobrinha-neta, agravados ainda pela tenacidade e pelo orgulho do sangue dos Rupt. Essas qualidades, porém, ou esses defeitos, se quiserem, estavam tão profundamente ocultos naquela alma de moça, na aparência apática e débil, como as lavas ferventes o estão sob uma montanha, antes de esta se transformar em vulcão. A sra. de Watteville era a única, talvez, que suspeitava o legado dos dois sangues. Mostrava-se tão severa com a sua Rosália que um dia respondeu ao arcebispo que a repreendia por tratá-la tão duramente: — Deixe-me guiá-la, monsenhor, eu a conheço! Ela tem mais de um Belzebu no corpo!

XI – ENTRE MÃE E FILHA

A baronesa observava tanto mais a filha por crer nisso empenhada a sua honra de mãe, e também porque nada mais tinha a fazer. Clotilde de Rupt, então com trinta e cinco anos e quase viúva de um esposo que torneava oveiros em toda espécie de madeira, que se encarniçava em fazer rodas de seis raios, com pau-ferro, que fabricava caixas de rapé para os seus amigos, Clotilde coqueteava, sem maldade, com Amadeu de Soulas. Quando o rapaz estava em sua casa, ela mandava a filha embora e a chamava, alternativamente, e procurava surpreender naquela alma jovem manifestações de ciúme, a fim de ter a oportunidade de domá-las. Imitava a polícia nas suas relações com os republicanos, mas, por mais que fizesse, Rosália não se entregava a nenhuma espécie de motim. A seca devota recriminava então à filha a sua perfeita insensibilidade. Rosália conhecia suficientemente a mãe para saber que, se achasse simpático o jovem sr. de Soulas, atrairia sobre si alguma desabrida repreensão. Por isso, a todas as provocações da mãe, respondia com essas frases tão impropriamente denominadas jesuíticas, pois os jesuítas eram fortes, e aquelas reticências eram os cavalos de frisa[153] por trás dos quais se abrigava a fraqueza. A mãe tratava então a filha de dissimulada. Se, por desgraça, se mostrava nela uma fagulha do verdadeiro caráter dos Watteville e dos de Rupt, a mãe armava-se com o respeito que os filhos devem aos pais, para forçar Rosália à obediência passiva. Essa luta secreta realizava-se no mais secreto recinto da vida doméstica, a portas fechadas. O vigário-geral, esse estimado abade de Grancey, amigo do defunto arcebispo, por mais informado que fosse, na sua qualidade de grande penitenciário da diocese, não podia adivinhar se aquela luta tinha revolvido qualquer ódio entre mãe e filha, nem se a mãe estava antecipadamente enciumada, ou se a corte que Amadeu fazia à filha, na pessoa da mãe, ultrapassara os limites. Na sua qualidade de amigo da casa, não confessava nem a mãe nem a filha. Rosália, um pouco demasiado sovada, moralmente falando, por causa de Amadeu, não o podia sofrer, para empregar um termo de linguagem familiar. Por isso, quando ele lhe dirigia a palavra, procurando sondar-lhe o coração, ela o recebia com bastante frieza. Essa repugnância, somente visível para os olhos da mãe, era contínuo motivo de admoestações.

— Rosália, não vejo por que motivo você mostra tanta frieza para com Amadeu. Será por ele ser amigo da casa e por que nos agrada, a seu pai e a mim?

— Ora, mamãe — respondeu um dia a pobre menina —, se eu o acolhesse bem, não seria mais recriminada ainda?

— Que significa isso? — exclamou a sra. de Watteville. — Que quer dizer com essas palavras? Que, talvez, sua mãe é injusta, na sua opinião, e que o seria em qualquer caso? Que nunca mais semelhante resposta lhe saia da boca, para a sua mãe... etc.

Essa disputa durou três horas e três quartos, segundo anotou Rosália. A mãe empalideceu de cólera e mandou a filha para o quarto, onde Rosália estudou o sentido daquela cena, sem nada conseguir achar, tal a sua inocência! Assim, pois, o jovem de Soulas, que toda a cidade de Besançon julgava bem perto do alvo para o qual tendia, com gravatas enfunadas e a golpes de potes de verniz, alvo que lhe fazia gastar tanta pomada para entesar os bigodes, tantos coletes bonitos, ferraduras e espartilhos — pois usava um, de couro, o espartilho dos leões —; Amadeu estava mais longe desse alvo do que qualquer outro, embora tivesse por si o digno e nobre abade de Grancey. Rosália, de resto, não sabia ainda, no momento em que começa esta história, que o jovem conde Amadeu de Soulas lhe fora destinado.

XII – CIRCUNSTÂNCIAS MISTERIOSAS

— Senhora — disse o sr. de Soulas, dirigindo-se à baronesa, enquanto esperava que a sopa, um pouco quente demais, esfriasse, e afetando tornar sua narrativa quase romancesca —, uma bela manhã a diligência lançou no Hotel Nacional um parisiense que, depois de ter procurado um apartamento, decidiu-se pelo primeiro andar da casa da srta. Galard, na rue du Perron. Em seguida o estrangeiro foi direito à prefeitura, fazer uma declaração de domicílio real e político. Finalmente fez-se inscrever no quadro dos advogados perante a corte, apresentando títulos em regra, e deixou em casa de todos os seus novos colegas, dos representantes do ministério público, dos conselheiros da corte e de todos os membros do tribunal, um cartão no qual se lia: Alberto Savaron.

— O nome Savaron é célebre — disse a srta. de Watteville, que era de primeira força em ciência heráldica. — Os Savaron de Savarus são uma das mais velhas, mais nobres e mais ricas famílias da Bélgica.

— Ele é francês e trovador — continuou Amadeu de Soulas. — Se ele quiser usar as armas dos Savaron de Savarus, terá de lhes pôr uma barra. Não há mais no Brabante senão uma srta. Savarus, rica herdeira casadoira.

— A barra é na verdade sinal de bastardia; mas o bastardo de um conde de Savarus é nobre — replicou Rosália.

— Basta, senhorita! — disse a baronesa.

— A senhora quis que ela conhecesse os brasões — observou o sr. de Watteville — e ela os sabe bem.

— Por favor, continue, sr. de Soulas.

— Compreendem que, numa cidade onde tudo é classificado, definido, conhecido, arrumado, cifrado e numerado, como em Besançon, Alberto Savaron foi bem recebido, e sem dificuldade, pelos nossos advogados. Cada qual se contentou em dizer: aqui está um pobre-diabo que não conhece o seu Besançon. Quem diabo o pôde ter aconselhado a vir para cá? Que pretende ele fazer? Mandar seu cartão à casa dos magistrados, em vez de ir em pessoa!... Que erro! Por isso, três dias depois, acabou-se o Savaron! Tomou como servente o antigo criado de quarto do falecido senhor Galard, Jerônimo, que sabe cozinhar um pouco. Foi tanto mais fácil esquecer Alberto Savaron por não o ter ninguém mais visto ou encontrado.

— Ele então não vai à missa? — disse a sra. de Chavoncourt.

— Ele vai aos domingos, na São Pedro, mas à primeira missa, a das oito. Levanta-se todas as noites entre uma e duas horas da madrugada, trabalha até as oito, almoça, e depois continua a trabalhar. Passeia no jardim, dá-lhe cinquenta a sessenta voltas; entra, janta, e deita-se entre seis e sete horas.

— Como sabe tudo isso? — perguntou a sra. de Chavoncourt ao sr. de Soulas.

— Primeiro, senhora, porque moro na rue Neuve, esquina da rue du Perron; de minha casa vejo a dessa misteriosa personagem; e depois, porque há mútuos protocolos entre o meu tigre e Jerônimo.

— O senhor então conversa com Babylas?

— Que quer a senhora que eu faça nos meus passeios?

— E então! Como tomou o senhor um estrangeiro para seu advogado? — disse a baronesa, restituindo assim a palavra ao vigário-geral.

— O primeiro presidente fez a esse advogado a pilhéria de nomeá-lo defensor ex-ofício, na audiência de um camponês mais ou menos imbecil, acusado de fraude. O sr. Savaron fez absolver aquele pobre-diabo, provando a sua inocência e demonstrando ter ele sido instrumento dos verdadeiros culpados. Não somente o seu sistema triunfou como implicou a prisão de duas testemunhas que, tendo sido reconhecidas culpadas, foram condenadas. As defesas que ele fez impressionaram a corte e os jurados. Um deles, um negociante, confiou no dia seguinte ao sr. Savaron um processo delicado, que este ganhou. Na situação em que estávamos, devido à impossibilidade de o sr. Berryer[154] vir a Besançon, o sr. de Garcenault aconselhou-nos que confiássemos a esse sr. Alberto Savaron, predizendo-nos o triunfo. Assim que o vi e ouvi, tive fé nele, e não andei errado.

— Tem ele alguma coisa de extraordinário? — perguntou a sra. de Chavoncourt.

— Certamente, senhora — respondeu o vigário-geral.

— Pois bem, explique-nos isso — disse a sra. de Watteville.

XIII – UM RETRATO FEITO COM MÃO DE ABADE

— Na primeira vez em que o vi — disse o abade de Grancey —, ele me recebeu na primeira peça depois da antecâmara (o antigo salão do velho Galard que mandou pintar numa imitação de carvalho antigo, e que eu achei completamente forrada de livros de direito, dispostos em estantes igualmente pintadas com imitação de madeira antiga. A pintura e os livros são todos de luxo, pois o mobiliário consiste de uma mesa de trabalho de madeira antiga esculpida, seis velhas poltronas estofadas, nas janelas cortinas de cor carmelita, bordadas de verde, e um tapete verde no soalho. A estufa da antecâmara aquece também a biblioteca). Ao esperá-lo ali, não imaginava o meu advogado sob as feições de um moço. Aquele quadro singular estava verdadeiramente em harmonia com a personalidade, porquanto o sr. Savaron apareceu de robe de chambre de merinó preto, com um cordão encarnado, chinelos encarnados, um colete de flanela encarnado e uma boina encarnada.

— A libré do diabo! — exclamou a sra. de Watteville.

— Sim — disse o padre —, mas uma cabeça soberba; cabelos negros, já entremeados de alguns fios brancos, cabelos como os de são Pedro e de são Paulo dos nossos quadros, com caracóis bastos e luzidios, cabelos duros como crinas, um pescoço branco e redondo como o de uma mulher, uma fronte magnífica dividida pelo sulco poderoso que os grandes projetos, os grandes pensamentos, as fortes meditações imprimem na fronte dos grandes homens; uma tez azeitonada, manchada de nódoas vermelhas, um nariz reto, olhos de fogo; depois, as faces cavas, assinaladas com duas longas rugas reveladoras de sofrimentos, uma boca de sorriso sardônico e um pequeno queixo fino e demasiado curto; pés de galinha nas têmporas, os olhos fundos, rolando por sob as arcadas superciliares, como dois globos ardentes; mas, apesar de todos esses indícios de paixões violentas, um ar calmo, profundamente resignado, voz de uma doçura penetrante e que me surpreendeu, no palácio, por sua facilidade, a verdadeira voz do orador, ora pura e ardilosa, ora insinuante, e trovejante quando preciso, amoldando-se mais tarde ao sarcasmo e tornando-se então incisiva. O sr. Alberto Savaron é de estatura mediana, nem gordo, nem magro. Finalmente, tem mãos de prelado. Na segunda vez em que fui à casa dele, recebeu-me no seu quarto, que é contíguo àquela biblioteca, e sorriu ante a minha admiração, quando lá vi uma triste cômoda, um mau tapete, uma cama de colegial e nas janelas cortinas de algodão. Ele ia saindo do seu gabinete, onde ninguém penetra, disse-me Jerônimo que lá não põe os pés e se contentou em bater à porta. O sr. Savaron fechou aquela porta, à chave, diante de mim. Na terceira vez, ele estava almoçando na biblioteca, do modo mais frugal; mas dessa vez, como tinha passado a noite a examinar os nossos documentos, e eu estava com o nosso procurador, devendo ficar muito tempo juntos, e como o querido sr. Girardet é verboso, pude permitir-me estudar aquele forasteiro. Evidentemente, não é homem comum. Há mais de um segredo por trás daquela máscara, ao mesmo tempo terrível e meiga, paciente e impaciente, cheia e cavada. Achei-o ligeiramente encurvado, como todos os homens que têm um pesado fardo a carregar.

— Por que esse homem tão eloquente deixou Paris? Com que propósito veio ele a Besançon? Não lhe teriam dito que os estranhos à terra têm poucas probabilidades de triunfar? Os besançonenses dele se servirão, mas não o deixarão servir-se deles. Por que, se veio, fez tão pouco reclame que foi preciso a fantasia do primeiro presidente para pô-lo em evidência? — disse a bela sra. de Chavoncourt.

— Depois de ter bem estudado aquela bela cabeça — continuou o abade de Grancey, que olhou com finura para a sua interruptora, dando a entender que estava escondendo algo — e sobretudo depois de o ter ouvido replicar esta manhã a uma das águias do foro de Paris, penso que esse homem, que deve ter trinta e cinco anos, fará mais tarde grande sensação...

— Por que nos ocuparmos dele? Vosso processo está ganho, os senhores lhe pagaram — disse a sra. de Watteville, ao observar a filha, que, desde que o vigário-geral começara a falar, estava como que suspensa de seus lábios.

A conversação tomou outro rumo e não se tratou mais de Alberto Savaron.

XIV – A FAÍSCA SOBRE A PÓLVORA

O retrato esboçado pelo mais capaz dos vigários-gerais da diocese teve tanto mais os atrativos de um romance para Rosália porque nele havia um romance. Pela primeira vez na vida, ela encontrava esse extraordinário, esse maravilhoso que todas as imaginações acariciam e ante o qual se lança a curiosidade, tão viva na idade de Rosália. Que ser ideal esse Alberto, sombrio, sofredor, eloquente, trabalhador, comparado pela srta. de Watteville àquele gordo conde bochechudo, a rebentar de saúde, dizedor de futilidades, a falar de elegância diante do esplendor dos antigos condes de Rupt! Amadeu nada mais lhe trazia do que disputas e repreensões; ela, de resto, conhecia-o demasiado, e aquele Alberto Savaron oferecia muitos enigmas para decifrar.

— Alberto Savaron de Savarus — repetia ela para si mesma.

Depois, vê-lo, entrevê-lo... Foi esse o desejo da rapariga, que até então não os tivera. Ela repassava, no coração, na imaginação, na cabeça, as menores frases ditas pelo abade de Grancey, porque todas as palavras a tinham tocado.

— Uma bela fronte! — dizia ela consigo mesma, olhando a fronte de cada um dos homens sentados à mesa. — Não vejo uma única que seja bonita... A do sr. de Soulas é demasiado abaulada, a do sr. Grancey é bela, mas ele tem setenta anos; não se sabe mais onde termina a fronte.

— Que tem, Rosália? Você não come...

— Não tenho fome, mamãe — disse ela. — Mãos de prelado... — continuou para consigo mesma — Não me lembro mais das do nosso belo arcebispo, que, entretanto, me crismou.

Enfim, no meio das idas e vindas que fazia no labirinto do seu devaneio, lembrou-se de uma janela iluminada, a brilhar através das árvores dos dois jardins contíguos, e que entrevira da sua cama, quando por acaso despertara durante a noite: “Era então a luz dele”, pensou. “Eu o poderei ver! Eu o verei.”

— Sr. de Grancey, já está decidido tudo quanto ao processo do capítulo? — disse à queima-roupa Rosália ao vigário-geral, durante um momento de silêncio.

A sra. de Watteville trocou rapidamente um olhar com o vigário-geral.

— E que lhe importa isso, querida filha? — disse ela a Rosália, pondo uma fingida meiguice na frase, o que tornou a filha circunspecta para o resto de seus dias.

— Podem levar-nos à corte de cassação, mas nossos adversários pensarão duas vezes antes de fazê-lo — respondeu o padre. — Nunca pensei que Rosália pudesse pensar, durante todo um jantar, num processo — insistiu a sra. de Watteville.

— Eu tampouco — disse Rosália com um arzinho sonhador que fez todos rirem. — Mas o sr. de Grancey preocupava-se tanto com o processo que eu me interessei. É completamente inocente!

Levantaram-se da mesa e o grupo voltou para o salão. Durante o serão, Rosália esteve atenta para ver se falariam ainda de Alberto Savaron; mas, afora as felicitações que cada recém-chegado dirigia ao abade pelo ganho do processo, e em que ninguém misturou o elogio do advogado, não se falou mais nele. A srta. de Watteville esperou a noite com impaciência. Ela resolvera levantar-se entre duas e três horas da madrugada, para ver as janelas do gabinete de Alberto. Quando chegou a hora, quase sentiu prazer em contemplar o clarão que as velas do advogado projetavam através das árvores quase despojadas de folhas. Com o auxílio da vista excelente que as moças possuem e que a curiosidade parece ampliar, ela viu Alberto escrevendo, julgou distinguir a cor do mobiliário, que lhe pareceu vermelha. A chaminé erguia por cima do telhado uma espessa coluna de fumaça.

— Quando todos dormem, ele vela... como Deus! — disse ela.

XV – O QUE O DIABO PODE FAZER DE ESTRAGOS EM QUINZE DIAS NUMA MOÇA DE DEZOITO ANOS

A educação das moças comporta problemas tão graves, pois que o futuro de uma nação está nas mães, que há muito a Universidade de França se atribuiu o encargo de não pensar nisso. Aqui está um desses problemas: deve-se esclarecer as moças? Deve-se comprimir-lhes o espírito? Já se deixa ver que o sistema religioso é compressor. Se elas forem esclarecidas, tornar-se-ão demônios antes da idade; se forem impedidas de pensar, chegam à súbita explosão tão bem descrita por Molière na personagem de Agnés,[155] e fica esse espírito oprimido, tão novo, tão perspicaz, rápido e consequente como selvagem, à mercê de um acontecimento; crise fatal provocada, na srta. de Watteville, pelo imprudente esboço que se permitiu, à mesa, um dos mais prudentes membros do prudente capítulo de Besançon.

No dia seguinte, pela manhã, a srta. de Watteville, ao vestir-se, olhou fatalmente Alberto Savaron, passeando no jardim contíguo ao do palacete de Rupt.

— Que teria sido de mim — pensou — se ele tivesse ido residir em outra parte? Aqui, pelo menos, posso vê-lo. Em que estará pensando ele?

Depois de ter visto, mas a distância, aquele homem extraordinário, o único cuja fisionomia contrastava vigorosamente com a massa dos semblantes besançonenses até então vistos, Rosália saltou logo para a ideia de penetrar no seu interior, de saber os motivos de tantos mistérios, de ouvir aquela voz eloquente, de receber um olhar daqueles belos olhos. Queria tudo isso, mas como obtê-lo?

Durante todo o dia, ela bordou com essa atenção obtusa de moça que, como Agnès, parece não pensar em nada e que tão bem medita sobre todas as coisas que os seus ardis parecem infalíveis. Dessa profunda meditação, resultou para Rosália o desejo de confessar-se. No dia seguinte, de manhã, depois da missa, teve uma pequena conferência, na São Pedro, com o padre Giroud, e tão bem o enredou que a confissão ficou marcada para domingo de manhã, às sete e meia, antes da missa das oito. Perpetrou uma dúzia de mentiras para poder estar na igreja, uma única vez, à hora em que o advogado ia ouvir missa. Finalmente, apoderou-se dela uma ternura excessiva pelo pai, foi vê-lo na sua oficina, e pediu-lhe mil informações sobre a arte de tornear, até chegou a lhe aconselhar que torneasse peças grandes, colunas. Depois de ter lançado o pai nas colunas torcidas, uma das dificuldades da arte de torneiro, ela o aconselhou a se aproveitar de um grande montão de pedras, que se achava no meio do jardim, para mandar fazer uma gruta, sobre a qual ele colocaria um pequeno templo, à feição de um belvedere, e onde as suas colunas torcidas seriam utilizadas e brilhariam aos olhos de toda a sociedade.

No meio da alegria que aquela empresa causava àquele pobre homem desocupado, Rosália disse-lhe, beijando-o:

— E principalmente não digas nada a mamãe sobre quem te deu essa ideia, pois ela ralharia comigo.

— Podes ficar tranquila — respondeu o sr. de Watteville, que, tanto como a filha, gemia sob a pressão da terrível descendente dos de Rupt.

Assim é que Rosália teve a certeza de ver em breve construir um observatório encantador, de onde mergulharia a vista no gabinete do advogado. E dizer que há homens pelos quais as moças fazem semelhantes obras-primas de diplomacia e que, na maioria das vezes, como era o caso de Alberto Savaron, nada sabem a respeito.

XVI – A PRIMEIRA ENTREVISTA

O domingo, tão impacientemente esperado, chegou afinal, e a toilette de Rosália foi feita com uma meticulosidade que fez sorrir Marieta, a criada de quarto da sra. e da srta. de Watteville.

— É esta a primeira vez que vejo a senhorita tão faceira — disse Marieta.

— Você me faz pensar — disse Rosália, dirigindo a Marieta um olhar que pôs papoulas nas faces da criada de quarto — que há dias em que você o é mais particularmente do que em outros.

Ao deixar a escada exterior, ao atravessar o pátio, ao sair à porta, ao caminhar na rua, o coração de Rosália pulsou como quando pressentimos um grande acontecimento. Até então ela ignorava o que era ir pelas ruas; um momento julgou que a mãe leria seus projetos em sua fronte e que lhe proibiria ir confessar-se; sentiu um sangue novo nos pés, erguia-os como se caminhasse sobre brasas! Naturalmente, marcara encontro com o confessor para as oito e um quarto, dizendo à mãe que seria às oito, a fim de esperar um quarto de hora mais ou menos, junto a Alberto. Chegou à igreja antes da missa e, depois de ter feito uma curta prece, foi ver, somente por flanar, se o padre Giroud estava no confessionário; por isso achou-se colocada de modo a olhar Alberto no momento em que este entrou na igreja.

Seria preciso que um homem fosse atrozmente feio para não ser achado bonito, na disposição de espírito em que a curiosidade punha a srta. de Watteville. Ora, Alberto Savaron, já de si muito notável, causou tanto mais impressão em Rosália visto que a sua aparência, o seu andar, a sua atitude, tudo, até mesmo o seu vestuário, tinha esse não sei quê somente explicável pela palavra mistério! Ele entrou. A igreja, até então sombria, pareceu a Rosália como que iluminada. A jovem ficou encantada com aquele caminhar lento e solene das pessoas que carregam um mundo sobre os ombros, e cujo olhar profundo, cujos gestos concorrem para exprimir um pensamento, ou devastador ou dominador. Rosália compreendeu, então, em toda a sua latitude, as palavras do vigário-geral. Sim, aqueles olhos de um amarelo castanho, estriado de filetes de ouro, velavam um ardor que se traía por súbitos lampejos. Rosália, com uma imprudência que Marieta notou, colocou-se na passagem do advogado, de modo a trocar um olhar com ele; e esse olhar buscado transformou-lhe o sangue, pois o seu sangue fremiu e ferveu como se houvesse duplicado o seu calor. Logo que Alberto se sentou, a srta. de Watteville positivamente escolheu seu lugar, de modo a poder vê-lo perfeitamente durante todo o tempo que lhe deixasse o padre Giroud. Quando Marieta disse: — Aí vem o sr. Giroud — pareceu a Rosália que aquele tempo não durara mais do que poucos minutos. Quando saiu do confessionário, a missa tinha terminado e Alberto deixara a paróquia.

“O vigário-geral tem razão” pensou ela, “ele sofre! Por que essa águia, pois ele tem olhos de águia, veio abater-se em Besançon? Oh!, quero saber tudo, mas como?”

Sob o fogo desse novo desejo, Rosália puxou os pontos de sua tapeçaria com admirável exatidão e velou suas meditações sob um arzinho cândido que imitava a ingenuidade a ponto de iludir a própria sra. de Watteville.

XVII – ROSÁLIA TORNA-SE UMA MULHER SUPERIOR

Depois do domingo em que a srta. de Watteville recebera aquele olhar, ou, se quiserem, aquele batismo de fogo, magnífica expressão de Napoleão, que pode servir para o amor, ela apressou fogosamente o assunto do belvedere.

— Mamãe — disse ela, assim que houve duas colunas torneadas —, meu pai meteu-se na cabeça uma ideia singular; ele torneia colunas para um belvedere que projeta erguer, servindo-se daquela porção de pedras que há no meio do jardim; a senhora aprova isso? Eu, por mim, acho que...

— Aprovo tudo o que o teu pai faz — replicou com secura a sra. de Watteville —, e é dever das mulheres se submeterem aos maridos, mesmo quando não lhes aprovam as ideias... Por que me hei de opor a uma coisa indiferente em si mesma, uma vez que divirta o sr. de Watteville?

— Mas é que dali nós veremos a casa do sr. de Soulas, e o sr. de Soulas nos verá quando ali estivermos. Talvez falassem...

— Você tem a pretensão de guiar seus pais e de saber mais do que eles a respeito da vida e das conveniências?

— Calo-me, mamãe. Ademais, papai disse que a gruta formará uma sala em que se terá ar fresco e onde se irá tomar café.

— Seu pai teve aí uma ideia excelente — respondeu a sra. de Watteville, que quis ver as colunas.

Ela deu sua aprovação ao projeto do barão de Watteville, indicando para a ereção do monumento um lugar no fundo do jardim, e de onde não se era visto da casa do sr. de Soulas, mas de onde se via admiravelmente o interior da casa do sr. Alberto Savaron. Chamaram um empreiteiro que se encarregou de construir uma gruta ao alto da qual se chegaria por uma pequena senda de três pés de largura, e em cujos pedregulhos se plantariam pervincas, íris, viburno, heras, madressilvas e vinhas virgens. A baronesa inventou de mandar forrar o interior da gruta com madeira rústica, o que estava então na moda para as jardineiras, de colocar no fundo do espelho um divã com tampa e uma mesa de marchetaria, com casca de madeira. O sr. de Soulas propôs fazer o chão de asfalto. Rosália imaginou suspender um lustre de madeira rústica na abóbada.

— Os Watteville estão fazendo uma coisa encantadora no seu jardim — diziam em Besançon.

— Eles são ricos, podem perfeitamente gastar mil escudos com uma fantasia.

— Mil escudos! — exclamou a sra. de Chavoncourt.

— Sim, mil escudos — exclamou o jovem sr. de Soulas. — Mandaram vir um homem de Paris para “rusticizar” o interior, mas vai ficar muito bonito. O sr. de Watteville está fazendo o lustre; começou a esculpir em madeira...

— Dizem que Berquet vai escavar uma adega — disse um padre.

— Não — replicou o jovem de Soulas —, ele vai firmar o quiosque sobre o maciço de formigão, para que não haja umidade.

— O senhor sabe as menores coisas que se fazem naquela casa — disse com azedume a sra. de Chavoncourt, olhando para uma das suas filhas já em condições de casar havia um ano.

A srta. de Watteville, que sentia um frêmito de orgulho ao pensar no sucesso do seu belvedere, reconheceu em si uma eminente superioridade sobre tudo o que a cercava. Ninguém imaginava que uma raparigota, a quem julgavam sem espírito, simplória, tinha querido, simplesmente, ver de perto o gabinete do advogado Savaron.

XVIII – DUELO DE SAVARON COM A CIDADE DE BESANÇON

A brilhante defesa de Alberto Savaron a favor do capítulo da catedral foi tanto mais prontamente esquecida por haver despertado a inveja dos outros advogados. De resto, fiel à sua reclusão, Savaron não se mostrou em parte alguma. Sem propagandistas e não procurando ninguém, aumentou as probabilidades de ser esquecido que, numa cidade como Besançon, abundam para os estranhos. Não obstante, pleiteou três vezes, no tribunal do comércio, em três processos espinhosos que tiveram de ir perante a corte. Teve, assim, como clientes, quatro dos mais fortes negociantes da cidade, que nele reconheceram tanto bom senso e tanto disso que a província chama uma boa judiciária que lhe confiaram seu contencioso. No dia em que a casa de Watteville inaugurou seu belvedere, Savaron erguia também o seu monumento. Graças às surdas relações que adquirira no alto comércio de Besançon, fundou uma revista quinzenal, chamada La Revue de l’Est, por meio de quarenta ações de quinhentos francos cada uma, colocadas entre os seus dez primeiros clientes, aos quais fez sentir a necessidade de auxiliar os destinos de Besançon, cidade na qual se devia fixar o trânsito entre Milhouse e Lyon, ponto capital entre Milhouse e Lyon, ponto capital entre o Reno e o Ródano.

Para rivalizar com Strasbourg, não precisava Besançon ser tanto um centro de luzes como um ponto comercial? Só numa revista podiam ser tratadas as altas questões relativas aos interesses do Leste. Que glória a de arrancar a Strasbourg e a Dijon a sua influência literária, esclarecer o Leste da França e lutar contra a centralização parisiense! Essas considerações, descobertas por Alberto, foram repetidas pelos dez negociantes, que se atribuíram a autoria delas.

O advogado Savaron não cometeu o erro de exibir seu nome, deixou a direção financeira ao seu primeiro cliente, sr. Boucher, aliado, pela mulher, a um dos mais fortes editores de grandes obras eclesiásticas, mas reservou-se a redação, com uma cota nos benefícios, na qualidade de fundador. O comércio fez um apelo a Dôle, a Dijon, a Salins, a Neuchâtel, no Jura, a Bourg, Nantua, Lons-le-Saulnier. Solicitou-lhes o concurso das luzes e dos esforços de todos os homens estudiosos das três províncias do Bugey, da Bresse e do Condado. Graças às relações comerciais e de confraternidade, obtiveram-se cento e cinquenta assinaturas, dado o baixo preço; a revista custava oito francos por trimestre. Para não ferir o amor-próprio provinciano com a recusa de artigos, o advogado teve a ideia atilada de fazer com que a direção literária da revista fosse solicitada pelo filho mais velho do sr. Boucher, rapaz de vinte e dois anos, muito ávido de glória, para quem as ciladas e os aborrecimentos da coisa literária eram inteiramente desconhecidos. Alberto conservou secretamente a alta direção e fez de Alfredo Boucher um representante seu. Alfredo ia, pela manhã, conferenciar com ele no jardim, sobre o material do número de estreia. É inútil dizer que este trazia uma Meditação de Alfredo Boucher, que teve a aprovação de Savaron. Nas suas palestras com Alfredo, Alberto deixava entrever grandes ideias, assuntos de artigos, de que se aproveitava o jovem Boucher. Assim, o filho do negociante acreditava estar explorando aquele grande homem! Alberto era um homem de gênio, um profundo político para Alfredo. Os negociantes, encantados com o sucesso da revista, não precisaram entrar senão com três décimos do valor das ações. Mais duzentas assinaturas e a revista daria cinco por cento de dividendo aos seus acionistas, não sendo paga a redação. Aquela redação era impagável.

No terceiro número, a revista obtivera permuta com todos os jornais da França, que Alberto leu, então, em casa.

XIX – A PRIMEIRA NOVELA DA REVISTA

Esse terceiro número continha uma novela assinada A. S. e atribuída ao famoso advogado. Apesar da pouca atenção que a alta sociedade de Besançon concedia àquela publicação, acusada de liberalismo, veio à baila, em casa da sra. de Chavoncourt, pelo meio do inverno, a primeira novela desabrochada no condado.

— Meu pai — disse Rosália —, estão publicando uma revista em Besançon; bem que podias tomar uma assinatura e guardá-la nos teus aposentos, pois mamãe não deixaria que eu lesse; mas tu a emprestarias à tua filha, não?

Solícito em obedecer à sua querida Rosália, que nos últimos cinco meses tantas provas lhe dava de ternura filial, o sr. de Watteville foi em pessoa tomar uma assinatura de um ano da Revue de l’Est e emprestou à filha os quatro números publicados. Durante a noite, Rosália pôde devorar aquela novela, a primeira que leu em sua vida; mas só fazia dois meses que vivia! Assim, não se deve julgar, segundo os dados comuns, o efeito que aquela obra lhe teria produzido. Sem nada prejulgar do maior ou menor mérito daquela composição da autoria de um parisiense, que trazia para a província a maneira, o brilho, se quiserem, da nova escola literária, não podia, entretanto, deixar de ser uma obra-prima para uma jovem criatura que entregava a sua inteligência virgem, o seu coração puro a uma primeira obra desse gênero. De resto, pelo que ouvira dizer, Rosália, por intuição, formara uma ideia que realçava singularmente o valor daquela novela. Esperava encontrar ali os sentimentos e, talvez, alguma coisa da vida de Alberto. Desde as primeiras páginas, essa opinião adquiriu tamanha consistência que, após ter terminado aquele fragmento, teve a certeza de que não se enganara. Eis, pois, essa confidência, na qual, segundo as críticas do salão Chavoncourt, Alberto teria imitado alguns escritores modernos, que, por falta de espírito inventivo, contam as suas próprias alegrias, as suas próprias dores ou os acontecimentos misteriosos da sua existência.

XX – O AMBICIOSO POR AMOR

NOVELA
1. OS DOIS AMIGOS

Em 1823, dois rapazes, que se haviam imposto, como itinerário de viagem, percorrer a Suíça, partiram de Lucerna por uma bela manhã de julho, num barco conduzido por três remadores. Iam a Fluelen, com o propósito de se deterem no lago dos Quatro-Cantões e em todos os lugares célebres. As paisagens que, de Lucerna a Fluelen, cercam as águas apresentam todas as combinações que a mais exigente imaginação possa pedir às montanhas e aos rios, aos lagos e aos rochedos, aos regatos e às folhagens, às árvores e às torrentes. Ora são austeras solidões e graciosos promontórios, ora campinas ridentes e faceiras, florestas colocadas como um penacho sobre o granito talhado a pique, baías solitárias e frescas que se abrem, vales cujos tesouros se mostram como que embelezados pela distância dos sonhos.

Ao passar pelo encantador burgo de Gersau, um dos dois amigos olhou demoradamente uma casa de madeira que parecia construída fazia pouco, cercada de um tapume, assentada num promontório e quase banhada pelas águas. Quando o barco passou por diante dela, uma cabeça de mulher ergueu-se do fundo de um quarto que havia no último andar da casa para apreciar o efeito do barco sobre o lago. Um dos dois rapazes recebeu o olhar lançado muito indiferentemente pela desconhecida.

— Paremos aqui — disse ele ao amigo —, queríamos fazer de Lucerna o nosso quartel-general para visitar a Suíça; não levarás a mal, Leopoldo, que eu mude de opinião e que fique por aqui, guardando as capas. Farás, portanto, tudo o que quiseres; para mim, a viagem está terminada. Marujos, virem de bordo e levem-nos àquela aldeia, onde vamos almoçar. Irei a Lucerna buscar todas as nossas bagagens e, antes de partir daqui, ficarás sabendo em que casa me alojarei, para me encontrares na volta.

— Aqui ou em Lucerna — disse Leopoldo — dá no mesmo, não há diferença para que eu te impeça de obedecer a um capricho.

Esses dois rapazes eram amigos, na verdadeira acepção do termo. Eram da mesma idade, tinham estudado no mesmo colégio e, depois de terminado o curso de direito, empregavam as férias na clássica viagem à Suíça. Por vontade paterna, Leopoldo já estava comprometido para um cartório em Paris. Seu espírito reto, sua mansidão, a calma dos seus sentimentos e de sua inteligência garantiam sua docilidade. Leopoldo via-se notário em Paris: sua vida, tinha-a diante de si como uma dessas grandes estradas que atravessam uma planície da França, via-a em toda a sua extensão, com uma resignação cheia de filosofia.

O caráter do seu companheiro, a quem chamaremos Rodolfo, oferecia com o seu um contraste cujo antagonismo tivera como consequência ainda mais estreitar os laços que os uniam. Rodolfo era filho natural de um grão-senhor que fora surpreendido por morte prematura sem ter podido tomar providências para assegurar meios de existência a uma mulher ternamente amada e a Rodolfo. Assim, desamparada por um golpe do destino, a mãe de Rodolfo recorrera a um meio heroico. Vendeu tudo o que recebera da munificência do pai de seu filho, obteve a quantia de cento e poucos mil francos, colocou-a em seu nome, como renda vitalícia, a um juro considerável, conseguindo dessa forma uma anuidade de cerca de quinze mil francos, e tomou a resolução de tudo consagrar à educação do filho, a fim de dotá-lo com as vantagens pessoais mais adequadas para fazer fortuna, e de lhe reservar, à força de economia, um capital para a época de sua maioridade. Era uma ousadia, era contar com a própria vida; mas sem essa ousadia, teria sido impossível àquela boa mãe viver, educar convenientemente o filho, sua única esperança, seu futuro e única fonte de seus gozos. Filho de uma das mais encantadoras parisienses e de um homem notável da aristocracia do Brabante, fruto de uma paixão igual e compartilhada, Rodolfo foi atormentado por uma excessiva sensibilidade. Desde a infância, manifestara em tudo o maior ardor. Nele, o desejo tornou-se uma força superior e o móvel de todo o seu ser, o estimulante da imaginação, a razão do seus atos. Apesar dos esforços de uma mãe espirituosa, que se assustou assim que se apercebeu de semelhante predisposição, Rodolfo desejava como um poeta imagina, como um sábio calcula, como um pintor debuxa, como um músico formula melodias. Terno como a mãe, ele se lançava com violência inaudita, e pelo pensamento, para a coisa almejada, devorava o tempo. Ao sonhar as realizações de seus projetos, sempre suprimia os meios de execução. — Quando o meu Rodolfo tiver filhos — dizia a mãe —, ele os quererá grandes sem tardança. — Esse belo ardor, convenientemente dirigido, serviu a Rodolfo para fazer brilhantes estudos, para tornar-se o que os ingleses chamam um perfeito gentil-homem. Sua mãe tinha então orgulho dele, embora sempre temendo alguma catástrofe, se algum dia uma paixão se apoderasse daquele coração tão terno e tão sensível, tão violento e tão bom. Por isso aquela mulher prudente incentivara a amizade que ligava Leopoldo a Rodolfo e Rodolfo a Leopoldo, ao ver, no frio e dedicado notário, um tutor, um confidente, que poderia, até certo ponto, substituí-la junto a Rodolfo, se por desgraça ela viesse a faltar-lhe. Bela ainda aos quarenta e três anos, a mãe de Rodolfo inspirava a Leopoldo a mais viva paixão. Essa circunstância tornava os dois rapazes mais íntimos ainda.
2. MISS LOVELACE

Leopoldo, que conhecia Rodolfo perfeitamente, não se surpreendeu ao vê-lo, devido a um olhar dirigido para o alto de uma casa, deter-se numa aldeia e renunciar à projetada excursão ao S. Gotardo. Enquanto lhes preparavam o almoço na Taberna do Cisne, os dois amigos deram a volta na aldeia e chegaram às vizinhanças da encantadora casa nova onde, enquanto flanava e conversava com os moradores, Rodolfo descobriu uma casa de pequenos-burgueses dispostos a aceitá-lo como pensionista, segundo o costume geral na Suíça. Ofereceram-lhe um quarto com vista para o lago, para as montanhas, e de onde se descortinava o magnífico panorama de uma dessas curvas que recomendam o lago dos Quatro-Cantões à admiração dos turistas. A casa estava separada, por uma praça e um pequeno porto, da casa nova onde Rodolfo vislumbrara a sua bela desconhecida.

Por cem francos mensais, Rodolfo não teve mais de pensar em nenhuma das coisas necessárias à vida. Mas, em consideração aos gastos que o casal Stopfer se propunha fazer, pediram pagamento adiantado de três meses. Mal se encosta num suíço, surge o usurário. Depois do almoço, Rodolfo instalou-se imediatamente, depositando no quarto todos os petrechos que trouxera para a sua excursão ao S. Gotardo, e viu Leopoldo partir, o qual, por espírito de ordem, ia realizar a excursão por sua conta e também pela de Rodolfo. Quando este, sentado numa rocha sobranceira à margem, não mais viu o barco de Leopoldo, examinou, mas de soslaio, a casa nova, na esperança de entrever a desconhecida. Infelizmente, voltou sem que a casa houvesse dado sinais de vida. Ao jantar que os Stopfer, antigos tanoeiros de Neuchâtel, lhe ofereceram, ele os interrogou sobre os arredores e acabou por saber tudo o que queria da desconhecida, graças à tagarelice de seus hospedeiros, que, sem que insistisse, esvaziaram o saco dos diz que diz que.

A desconhecida chamava-se Fanny Lovelace.[156] Esse nome, que se pronuncia Loveless, pertence a velhas famílias inglesas; mas Richardson fez dele uma criação cuja celebridade prejudica a todas as outras. Miss Lovelace viera estabelecer-se no lago por causa da saúde do pai, a quem os médicos haviam recomendado os ares do cantão de Lucerna. Esses dois ingleses, chegados sem outro criado além de uma menina de catorze anos, muito dedicada a miss Fanny, uma pequena muda que servia a moça com muita inteligência, tinham-se arranjado no inverno anterior, com o sr. e a sra. Bergman, antigos jardineiros de sua excelência o conde Borromeu na Isola Bella e na Isola Madre, no lago Maior. Esses suíços, com uma fortuna de cerca de mil escudos de renda, alugavam o andar superior de sua casa aos Lovelace, à razão de duzentos francos anuais, por três anos. O velho Lovelace, ancião nonagenário muito alquebrado, demasiado pobre para se permitir certas despesas, raramente saía; a filha trabalhava para sustentá-lo, traduzindo livros ingleses e, segundo diziam, escrevendo livros ela própria. Por isso os Lovelace não se animavam nem a alugar barcos para passeios no lago, nem cavalos, nem guias para visitar os arredores. Tal despojamento despertava a compaixão dos suíços, tanto mais que eles perdiam uma oportunidade de ganho. A cozinheira fornecia comida aos três ingleses, à razão de cem francos por mês. Mas acreditavam todos, em Gersau, que os antigos jardineiros, apesar das suas pretensões à burguesia, se ocultavam sob o nome da cozinheira, para empalmar os benefícios daquele negócio. Os Bergman haviam feito admiráveis jardins e uma estufa magnífica em torno da sua habitação. As flores, as frutas, as raridades botânicas daquela propriedade determinaram a jovem miss a escolhê-la na sua passagem por Gersau. Davam dezenove anos a miss Fanny, que, como última filha do ancião, devia ser muito mimada por este. Fazia apenas dois meses que ela conseguira alugar um piano, o qual viera de Lucerna, parecendo ser louca por música.

— Gosta de flores e de música — pensou Rodolfo — e é solteira? Que felicidade!

No dia seguinte, Rodolfo mandou pedir licença para visitar as estufas e os jardins, que começavam a gozar de certa popularidade. Essa permissão não foi concedida de imediato. Aqueles jardineiros, coisa estranha!, pediram para ver o passaporte de Rodolfo, o qual, sem tardar, o mandou. O passaporte só lhe foi restituído no dia seguinte, trazido pela cozinheira, que o fez sabedor do prazer que teriam seus patrões em lhe mostrar o estabelecimento. Rodolfo não foi à casa dos Bergman sem certo sobressalto que as pessoas de emoções vivas são as únicas a conhecer, e que desdobram, num momento, tantas paixões quantas certos homens despendem durante toda a vida. Trajado com requinte, para agradar aos antigos jardineiros das ilhas Borromeu, pois via neles os guardiões do seu tesouro, percorreu os jardins, olhando, de quando em quando, a casa, mas com prudência; os dois velhos proprietários testemunhavam-lhe uma desconfiança bastante visível.
3. A FALSA MUDA

Sua atenção, porém, foi pouco depois atraída pela pequena inglesa muda, na qual sua sagacidade, embora jovem ainda, o fez reconhecer uma filha da África ou pelo menos uma siciliana. Essa pequena tinha a tonalidade dourada de um charuto de Havana, olhos de fogo, pálpebras armênias, de cílios de um comprimento antibritânico, cabelos mais do que negros e, sob aquela pele quase azeitonada, nervos de uma força singular, de uma vivacidade febril. Ela dirigia a Rodolfo olhares inquisitores, de um descaramento incrível, e seguia os seus menores movimentos.

— A quem pertence esta pequena moura? — perguntou à respeitável sra. Bergman.

— Aos ingleses — respondeu o sr. Bergman.

— Em todo caso, não nasceu na Inglaterra!

— Talvez a trouxessem da Índia — respondeu a sra. Bergman.

— Disseram-me que a jovem miss Lovelace gosta de música; eu ficaria encantado se, durante esta estada no lago, a que me condena uma prescrição médica, quisesse essa moça permitir-me tocar música com ela...

— Eles não recebem e não querem ver ninguém — disse o velho jardineiro.

Rodolfo mordeu os lábios e partiu sem ter sido convidado a entrar em casa nem ter sido levado à parte do jardim que ficava entre a fachada e a beira do promontório. Desse lado, a casa tinha, acima do primeiro andar, uma galeria de madeira coberta pelo telhado, cujo beiral era excessivo, como o das coberturas dos chalés, e que dava volta aos quatro lados da construção, à moda suíça. Rodolfo elogiara muito aquela elegante disposição e gabara a vista daquela galeria, mas tudo embalde. Depois de ter saudado os Bergman, viu-se com cara de tolo, como todo homem de espírito e de imaginação, decepcionado pelo insucesso de um plano em cuja eficácia acreditara.

À tarde, passeou, naturalmente, de barco no lago, em torno daquele promontório; foi até Brünnen e Schwitz e voltou ao cair da noite. De longe, viu a janela aberta e fortemente iluminada, pôde ouvir o som do piano e a tonalidade de uma voz deliciosa. Fez então parar a embarcação, a fim de se entregar ao encantamento de ouvir uma ária italiana divinamente cantada. Quando terminou o canto, Rodolfo abordou, despediu o barco e os dois barqueiros. Correndo o risco de molhar os pés, foi sentar-se sob o banco de granito, corroído pelas águas coroadas por uma forte sebe de acácias espinhosas, e ao longo da qual se estendia, no jardim dos Bergman, uma aleia de tílias novas. Ao cabo de uma hora, ouviu falarem e caminharem acima da sua cabeça, mas as palavras que lhe chegavam aos ouvidos eram todas italianas e pronunciadas por vozes moças de mulher. Aproveitou o momento em que as duas interlocutoras estavam numa das extremidades para deslizar, sem ruído, para a outra. Após uma meia hora de esforços, alcançou o fim da aleia e pôde, sem ser visto nem ouvido, tomar uma posição de onde veria as duas mulheres sem ser visto por elas, quando viessem para seu lado. Qual não foi o espanto de Rodolfo ao reconhecer a pequena muda numa das duas mulheres; falava italiano com miss Lovelace. Eram então onze horas da noite. Havia tão grande calma sobre o lago e em torno da habitação que as duas mulheres deviam julgar-se em segurança; em todo o Gersau somente os olhos delas podiam estar ainda abertos. Rodolfo deduziu que o mutismo da pequena devia ser uma astúcia necessária. Pela maneira como falavam o italiano, adivinhou que era a língua materna das duas mulheres e concluiu que a qualidade de ingleses devia esconder um estratagema.
4. OS REFUGIADOS

— São italianos refugiados — disse com os seus botões —, proscritos que devem sem dúvida temer a polícia austríaca ou a da Sardenha.[157] A moça espera a noite para poder passear e falar com plena segurança.

Imediatamente deitou-se ao comprido da cerca e rastejou como uma serpente, para achar uma passagem entre duas raízes de acácia.

Arriscando dilacerar a roupa ou ferir as costas, atravessou a sebe quando a pretensa miss Fanny e sua pretensa muda chegaram à outra extremidade da aleia; depois, quando chegaram a vinte passos dele sem o ter visto, pois se achava na sombra da sebe fortemente batida pelo luar, ergueu-se bruscamente.

— Nada de mais — disse em francês à italiana —, não sou um espião. Sois refugiadas, adivinhei-o. Sou um francês que um único de vossos olhares imobilizou em Gersau.

Mas, vencido pela dor que lhe causou o instrumento de aço que lhe rasgou o flanco, caiu por terra.

— Nel lago con pietra[158] — disse a terrível muda.

— Ah! Gina! — exclamou a italiana.

— Ela falhou — disse Rodolfo, retirando da ferida um estilete que tinha esbarrado numa falsa costela —, um pouco mais alto, e teria atingido o coração. Fiz mal, Francesca — disse ele recordando o nome que a pequena Gina várias vezes pronunciara —, não quero mal à pequena, por isso não a repreenda; a felicidade de falar-lhe vale bem um golpe de estilete, somente lhe peço que me mostre o caminho, é preciso que eu volte para a casa dos Stopfer. Pode ficar descansada, nada direi.

Francesca, refeita do espanto, ajudou Rodolfo a levantar-se e disse algumas palavras a Gina, cujos olhos se encheram de lágrimas. As duas mulheres obrigaram Rodolfo a sentar-se num banco, a tirar o casaco, o colete, a gravata. Gina abriu a camisa e chupou com força o ferimento. Francesca, que os havia deixado, voltou com uma boa tira de tafetá inglês e aplicou-a sobre a ferida.

— O senhor poderá ir assim até à sua casa — disse ela.

Cada uma das duas segurou um braço de Rodolfo e ele foi levado a uma pequena porteira, cuja chave se encontrava no bolso do avental de Francesca.

— Gina fala francês? — perguntou Rodolfo a Francesca.

— Não. Mas não se agite — disse Francesca com um arzinho impaciente.

— Deixe-me vê-la — pediu Rodolfo com enternecimento —, porque talvez tenha de passar muito tempo sem poder vir.

Apoiou-se num dos marcos da pequena porta e contemplou a bela italiana, que se deixou admirar um momento, durante o mais belo silêncio e a mais bela noite que jamais iluminara aquele lago, o rei dos lagos suíços. Francesca era bem italiana clássica, e tal como a imaginação quer, faz ou sonha, se quiserem, as italianas. O que de início impressionou Rodolfo foram a elegância e a graça do porte cujo vigor se traía, não obstante a aparência débil, de tão flexível era ela. Uma palidez de âmbar espalhada pelo rosto acusava um interesse súbito, mas que não dissipava a voluptuosidade de dois olhos úmidos, de um negro aveludado. Duas mãos, as mais belas que jamais um escultor grego tenha unido ao braço polido de uma estátua, seguravam o braço de Rodolfo, e sua alvura contrastava com o preto do trajo. O imprudente francês pôde apenas entrever a forma oval, um pouco alongada, do rosto, cuja boca entristecida, entreaberta, deixava ver dentes brilhantes, entre dois polpudos lábios, frescos e vermelhos. A beleza das linhas daquele rosto garantia a Francesca a duração daquele esplendor; mas o que mais impressionou Rodolfo foi a adorável naturalidade, a franqueza italiana daquela mulher, que se entregava inteiramente à compaixão.

Francesca disse uma palavra a Gina, a qual deu o braço a Rodolfo até a casa Stopfer e fugiu como uma andorinha, depois de puxar o cordão da sineta.
5. FRANCESCA CASADA

Esses patriotas não andam com conversas! — dizia consigo Rodolfo, ao sentir as dores, quando se viu sozinho na cama. — Nel lago! Gina era bem capaz de me atirar nele, com uma pedra ao pescoço!

Quando amanheceu, mandou chamar em Lucerna o melhor cirurgião, e, vindo este, recomendou-lhe o mais absoluto segredo, dando-lhe a entender que assim exigia a honra. Leopoldo voltou da sua excursão no dia em que o amigo abandonava o leito. Rodolfo inventou uma história e encarregou-o de ir a Lucerna buscar a bagagem e as cartas. Leopoldo voltou com a mais funesta e mais terrível notícia: a mãe de Rodolfo morrera. Enquanto os dois amigos iam de Basileia a Lucerna, a fatal carta, escrita pelo pai de Leopoldo, lá chegara no dia da partida dos dois para Fluelen. Apesar das precauções de Leopoldo, Rodolfo foi acometido de uma febre nervosa. Logo que o futuro notário viu o amigo fora de perigo, partiu para a França, munido de uma procuração. Rodolfo pôde assim permanecer em Gersau, único lugar no mundo em que a sua dor podia acalmar-se. A situação do jovem francês, seu desespero e as circunstâncias que tornavam aquela perda mais terrível para ele do que para qualquer outro foram conhecidas e lhe atraíram a compaixão e o interesse de todo Gersau. Todas as manhãs, a falsa muda vinha ver o francês, a fim de levar notícias para a sua patroa.

Quando Rodolfo pôde sair, foi à casa dos Bergman agradecer a Fanny Lovelace e a seu pai o interesse que tinham demonstrado por sua dor e sua doença. Pela primeira vez, desde que se instalaram em casa dos Bergman, o velho italiano deixou um estranho penetrar no seu apartamento, no qual Rodolfo foi recebido com cordialidade devido às suas desgraças e à sua qualidade de francês, que excluía toda e qualquer desconfiança. Francesca revelou-se tão bela à luz, durante o primeiro serão, que fez com que um raio de claridade penetrasse naquele coração abatido. Os seus sorrisos lançaram as rosas da esperança sobre aquele luto. Cantou não árias alegres, mas melodias graves e sublimes, apropriadas ao estado de coração de Rodolfo, que notou essa atenção enternecedora. Cerca das oito horas, o ancião deixou os dois jovens a sós, sem nenhuma aparência de temor, e recolheu-se para os seus aposentos. Quando Francesca cansou de cantar, levou Rodolfo para a galeria exterior, de onde se descortinava o sublime espetáculo do lago, e lhe fez sinal que sentasse a seu lado, num banco rústico.

— Haverá indiscrição em perguntar-lhe a idade, cara Francesca?

— Dezenove anos — respondeu ela —, mas já feitos.

— Se alguma coisa neste mundo pudesse atenuar a minha dor — disse ele —, seria a esperança de obter de seu pai a sua mão, seja qual for a sua situação de fortuna; bela como é, parece-me mais rica do que o seria a filha de um príncipe. Por isso tremo ao fazer-lhe a confissão dos sentimentos que me inspirou; mas são profundos e eternos.

— Zitto![159] — disse Francesca, pondo-lhe um dedo nos lábios. — Não siga adiante; não sou livre, estou casada há três anos.

Durante alguns instantes, reinou entre ambos profundo silêncio. Quando a italiana, assustada com a atitude de Rodolfo, se aproximou dele, encontrou-o completamente desmaiado.

— Povero![160] — disse consigo. — E eu, que o achava frio!

Foi buscar sais e reanimou Rodolfo, fazendo com que os respirasse.
6. SANTAS PROMESSAS

— Casada! — disse Rodolfo, olhando Francesca. Suas lágrimas correram então abundantemente.

— Criança — disse ela —, há esperanças. Meu marido tem...

— Oitenta anos? — disse Rodolfo.

— Não — respondeu ela, sorrindo —, sessenta e cinco. Ele arranjou uma máscara de ancião para despistar a polícia.

— Querida — disse Rodolfo —, mais algumas emoções como esta, e eu morro... Somente depois de vinte anos de intimidade poderá conhecer a força e a potência do meu coração, de que natureza são as suas aspirações à felicidade. Esta planta — disse ele, mostrando um jasmim-da-virgínia que envolvia a balaustrada — não se ergue com mais vivacidade para expandir-se aos raios do sol do que eu me prendi, há um mês, aos seus encantos. Amo-a com um amor único. Esse amor será o princípio secreto de minha vida, e por ele morrerei, talvez!

— Oh! Franceses! Franceses! — disse ela, comentando a sua exclamação com um trejeito de incredulidade.

— Não é preciso esperá-la, recebê-la das mãos do tempo? — disse ele com gravidade. — Mas, fique sabendo: se é sincera nas palavras que acabam de lhe escapar, eu a esperarei fielmente, sem permitir que nenhum outro sentimento medre em meu coração.

Ela olhou-o sorrateiramente.

— Nada — disse ele —, nem mesmo uma fantasia. Tenho de fazer fortuna, necessita de uma que seja esplêndida, a natureza criou-a princesa...

Ao ouvir tais palavras, Francesca não pôde conter um leve sorriso, que deu ao seu semblante a mais sedutora expressão, qualquer coisa de sutil como o que o grande Leonardo tão bem pintou na Gioconda. Esse sorriso impôs a Rodolfo uma pausa.

— ... Sim — continuou ele —, deve sofrer com a penúria a que o exílio a reduziu. Ah!, se me quer fazer mais feliz do que qualquer outro homem e santificar meu amor, trata-me como amigo. Não devo ser eu também seu amigo? Minha pobre mãe deixou-me sessenta mil francos de economia, fique com a metade.

Francesca olhou-o fixamente. Aquele olhar penetrante foi até o fundo da alma de Rodolfo.

— De nada precisamos, meus trabalhos bastam para o nosso luxo — respondeu ela com voz grave.

— Posso eu permitir que uma Francesca trabalhe! — exclamou ele. — Voltará um dia para a sua terra e então tornará a encontrar lá o que deixou... — A jovem italiana fitou novamente Rodolfo — ...e me restituirá o que se dignou aceitar por empréstimo — acrescentou ele, com um olhar cheio de delicadeza.

— Deixemos esse assunto — disse ela, com incomparável nobreza de gestos, de olhar e de atitude. — Faça uma fortuna brilhante, seja um dos homens notáveis de seu país, assim o quero. A ilustração é uma ponte suspensa que pode servir para franquear um abismo. Seja ambicioso, é preciso. Julgo-o com elevadas e poderosas faculdades; sirva-se delas, porém, antes para a felicidade dos homens do que para me merecer; tanto maior será a meus olhos.

Nessa palestra, que durou duas horas, Rodolfo descobriu em Francesca o entusiasmo das ideias liberais e esse culto da liberdade que fizera a tríplice revolução de Nápoles, do Piemonte e da Espanha.[161]
7. OUTROS ENIGMAS

Ao sair, foi conduzido até a porta por Gina, a falsa muda. Às onze horas ninguém perambulava naquela aldeia, nenhuma indiscrição era de temer; Rodolfo atraiu Gina para um canto e perguntou-lhe em mau italiano: — Quem são seus patrões, minha filha? Diz-me e eu te darei esta moeda de ouro bem novinha.

— O patrão — respondeu a menina, aceitando a moeda — é o famoso livreiro Lamporani, de Milão, um dos chefes da revolução e o conspirador que a Áustria mais deseja encerrar em Spielberg.

“A mulher de um livreiro!... Pois tanto melhor”, pensou ele. “Estamos no mesmo nível.” — De que família é ela? — indagou em voz alta. — Pois tem o ar de uma rainha.

— Todas as italianas são assim — respondeu altivamente Gina. — O nome do pai dela é Colonna.

Encorajado pela humilde condição de Francesca, Rodolfo mandou acrescentar uma tenda ao seu barco e almofada na popa. Feita essa transformação, o apaixonado foi propor a Francesca um passeio no lago. A italiana aceitou, sem dúvida para representar seu papel de jovem miss aos olhos da gente da aldeia, mas levou Gina. Os menores atos de Francesca Colonna traíam uma educação superior e a mais alta categoria social. Pelo modo como se sentava a italiana na extremidade do banco, Rodolfo como que se sentiu separado dela, e ante aquela expressão de verdadeira altivez de fidalga, sua premeditada familiaridade caiu por terra. Por um olhar, Francesca se fez princesa, com todos os privilégios de que teria gozado na Idade Média. Parecia ter adivinhado os pensamentos secretos daquele vassalo que tivera a audácia de se constituir seu protetor. Quer no mobiliário do salão em que Francesca o recebera, quer na sua toilette e nas pequenas coisas de que se servia, Rodolfo vislumbrara os indícios de uma natureza elevada e de uma grande fortuna. Todas essas observações lhe voltaram simultaneamente à memória e ficou meditabundo, após ter sido, por assim dizer, contido pela dignidade de Francesca. Gina, a confidente menina, também parecia ter uma máscara zombeteira ao olhar para Rodolfo de baixo ou de soslaio. Esse visível desacordo entre a condição da italiana e as suas maneiras foi um novo enigma para Rodolfo, o qual suspeitou algum novo ardil, semelhante à mudez de Gina.

— Aonde quer ir, signora Lamporani? — perguntou ele.

— Para o lado de Lucerna — respondeu ela em francês.

— Bem! — pensou Rodolfo — ela não se admirou ao me ouvir dizer-lhe o nome, a ardilosa sem dúvida previu minha pergunta a Gina!
8. O PASSEIO SOBRE O LAGO

— Que tem contra mim? — disse, ao vir finalmente sentar-se perto dela e pedindo-lhe, por um gesto, a mão, que Francesca retirou. — Está fria e cerimoniosa; em estilo de conversação, diria brusca.

— É verdade — replicou ela, sorrindo. — Fiz mal. Não está direito. É burguês. Em francês o senhor diria: não é artista. É melhor explicar do que conservar contra um amigo pensamentos hostis ou frios, e o senhor já me provou a sua amizade. É possível que tivesse ido demasiado longe com o senhor. Deve ter-me tomado por uma mulher muito vulgar...

Rodolfo multiplicou sinais de negação.

— Sim — disse aquela mulher de livreiro, sem levar em conta a pantomima, que aliás via perfeitamente. — Percebi isso e, naturalmente, reconsiderei. Pois bem! Terminarei tudo com algumas palavras de uma verdade profunda. Saiba-o bem, Rodolfo, sinto em mim força suficiente para asfixiar um sentimento que não estivesse em harmonia com as ideias ou a presciência que tenho do verdadeiro amor. Posso amar como sabemos amar na Itália; mas conheço os meus deveres! Nenhuma embriaguez pode fazer com que os esqueça. Casada, sem meu consentimento, a esse pobre ancião, poderei usar da liberdade que tão generosamente ele me concede; mas três anos de matrimônio equivalem a uma aceitação da lei conjugal. Por isso, nem a mais violenta paixão me faria emitir, mesmo involuntariamente, o desejo de me ver livre. Emílio conhece o meu caráter. Sabe que, salvo o meu coração, que me pertence e que posso dar, não permitiria que me pegassem na mão. Eis o motivo pelo qual acabo de a recusar ao senhor. Quero ser amada, esperada com fidelidade, nobreza, ardor, sem poder conceder senão uma ternura infinita, cuja expressão não ultrapassará o recinto do coração, terreno permitido. Bem compreendidas essas coisas... Oh! — disse ela com um gesto de mocinha —, volto a ser coquette, risonha, louca, como uma criança que não conhece o perigo da familiaridade.

Essa declaração tão nítida, tão franca, foi feita num tom, num acento, e acompanhada de tais olhares que lhe deram a maior profundeza de verdade.

— Uma princesa Colonna não se teria expressado melhor — disse Rodolfo, sorrindo.

— É isso — replicou ela, com ar de altivez — uma censura à humildade do meu nascimento? Precisa o seu amor de um brasão? Em Milão, os mais belos nomes: Sforza, Canova, Visconti, Trivulzio, Ursini estão escritos por sobre portas de lojas; há Archintos boticários; mas creia que, apesar de minha condição de lojista, tenho sentimentos de duquesa.

— Uma censura? Não, senhora; quis fazer um elogio.

— Com uma comparação?... — disse ela, com finura.

— Ah! Saiba-o — disse ele —, a fim de não me atormentar mais, que se minhas palavras expõem mal meus sentimentos, o meu amor, esse, é absoluto; e comporta uma obediência e um respeito infinitos.

Ela inclinou a cabeça como uma mulher satisfeita e disse:

— Aceita então o tratado?

— Sim — disse ele. — Compreendo que, numa poderosa e rica organização de mulher, não se poderia perder a faculdade de amar, e que, por delicadeza, a senhora quer restringir. Ah! Francesca, uma ternura partilhada, na minha idade, e com uma mulher tão sublime, tão regiamente bela como a senhora é, cumula todos os meus desejos. Amá-la como quer ser amada, não é isso para um moço preservar-se de todas as más loucuras? Não é isso utilizar as forças numa nobre paixão, da qual mais tarde se pode ter orgulho, e que não deixa senão belas recordações?... Se soubesse com que cores, com que poesia acaba de revestir a cadeia de Pilatos, o Righi, e essa magnífica bacia...

— Quero sabê-lo — disse ela, com essa ingenuidade italiana sempre acompanhada de um pouco de esperteza.

— Pois bem! Esta hora irradiará sobre toda a minha vida, como um diadema na fronte de uma rainha.

Como única resposta, Francesca pousou a mão sobre a de Rodolfo.

— Oh! Querida, para sempre querida, diga, nunca amou?

— Nunca!

— E permite-me amá-la nobremente, tudo esperando do céu?

Ela inclinou suavemente a cabeça. Duas grossas lágrimas correram pelas faces de Rodolfo.

— Mas que é isso! Que tem? — disse ela, abandonando o seu papel de imperatriz.

— Não tenho mais minha mãe para dizer-lhe o quanto sou feliz; ela se foi embora deste mundo sem ver o que lhe suavizaria a agonia...

— Que é? — perguntou ela.

— A sua ternura substituída por outra ternura igual.

— Povero mio![162] — exclamou a italiana, enternecida. — É, creia-me — disse ela, depois de uma pausa —, uma coisa dulcíssima e um imenso elemento de fidelidade para uma mulher, saber-se tudo na Terra para aquele a quem ama, vê-lo sozinho, sem família, sem nada no coração a não ser seu amor, enfim, tê-lo seu, inteiramente.

Quando dois amantes se compreendem assim, o coração experimenta uma deliciosa quietude, uma tranquilidade sublime. A certeza é a base que os sentimentos humanos desejam, pois ela nunca falta ao sentimento religioso; o homem tem certeza de ser recompensado sobejamente por Deus. O amor não se julga em segurança senão por essa similitude com o amor divino. Por isso é necessário tê-los plenamente sentido para compreender as volúpias desse momento, sempre único na vida; ele, infelizmente, não volta mais, como não voltam as emoções da mocidade. Crer numa mulher, fazer dela a religião humana, o princípio da vida, a luz secreta dos mínimos pensamentos!... Não é isso um segundo nascimento? Um rapaz mescla ao seu amor um pouco do que sente pela mãe. Rodolfo e Francesca mantiveram-se durante algum tempo no mais profundo silêncio, respondendo-se por olhares amigos e cheios de pensamentos. Compreendiam-se em meio a um dos mais belos espetáculos da natureza, cuja magnificência, explicada pela de seus corações, os auxiliava a gravar na memória as mais fugitivas impressões daquela hora única. Não houve a menor aparência de coquetismo no procedimento de Francesca. Tudo neste era nobre, vasto e sem pensamento oculto. Essa grandeza impressionou vivamente Rodolfo, o qual reconhecia naquilo a diferença que distingue a italiana da francesa. As águas, a terra, o céu, a mulher, tudo foi, pois, grandioso e suave, mesmo o amor de ambos, naquele quadro, vasto em seu conjunto, rico nos seus detalhes, e onde a aspereza dos cimos nevados, seus rígidos perfis nitidamente recortados sobre o azul, lembravam a Rodolfo as condições nas quais se devia enquadrar a sua felicidade: uma terra rica cercada de neve.
9. UMA PRIMEIRA SUSPEITA

Aquela doce embriaguez da alma tinha de ser perturbada. Vinha um barco de Lucerna; Gina, que já fazia algum tempo o estava olhando com atenção, fez um gesto de alegria, permanecendo fiel ao seu papel de muda. O barco aproximava-se e, quando por fim Francesca pôde distinguir os rostos, exclamou, ao ver o semblante de um rapaz.

— Tito!

Ergueu-se e ficou de pé, correndo embora o risco de afogar-se.

— Tito! Tito! — bradou, agitando o lenço. Tito deu ordens aos seus barqueiros para deterem o barco; e as duas embarcações vogaram lado a lado. A italiana e Tito falaram com tamanha vivacidade, num dialeto tão pouco conhecido por um homem que mal sabia o italiano dos livros e nunca fora à Itália, que Rodolfo nada pôde entender, nem perceber, daquela conversação. A beleza de Tito, a familiaridade de Francesca, o ar de alegria de Gina, tudo o mortificava. De resto, não há namorado que não fique descontente ao se ver deixar, seja lá por quem for. Tito atirou vivamente um pequeno saco de couro para Gina, com certeza cheio de ouro, e um maço de cartas para Francesca, que se pôs a lê-las, fazendo um gesto de adeus a Tito.

— Voltem imediatamente para Gersau — disse ela aos barqueiros. — Não quero deixar meu pobre Emílio padecer nem dez minutos a mais.

— Que foi que lhe aconteceu? — perguntou Rodolfo, quando viu que a italiana acabara de ler a última carta.

— La libertà[163] — disse ela, com entusiasmo de artista.

— E denaro![164] — respondeu, como um eco, Gina, que finalmente podia falar.

— Sim — esclareceu Francesca —, acabou-se a miséria! Faz onze meses que eu trabalho e já estava começando a me aborrecer. Não sou decididamente uma mulher literária.

— Quem é esse Tito? — perguntou Rodolfo.

— O secretário de Estado no departamento das finanças da pobre loja de Colonna, ou por outras palavras, o filho do nosso ragionato.[165] Pobre rapaz! Não pôde vir, nem pelo S. Gotardo, nem pelo monte Cenis, nem pelo Simplon; veio por mar, por Marselha, teve de atravessar a França. Enfim daqui a três semanas estaremos em Genebra e lá viveremos confortavelmente. Vamos, Rodolfo — disse ela ao ver a tristeza que se desenhava no rosto do parisiense —, o lago de Genebra não valerá o lago dos Quatro-Cantões?...

— Permita-me que manifeste minhas saudades por essa deliciosa casa Bergman — disse Rodolfo, mostrando o promontório.

— Virá jantar conosco para multiplicar suas recordações, povero mio — disse ela. — Hoje é dia de festa, não corremos mais perigo. Diz-me minha mãe que dentro de um ano, talvez, seremos anistiados. Oh!, la cara patria...[166]

Essas três palavras fizeram Gina chorar.

— Mais um inverno e eu morreria aqui — disse ela.

— Pobre cabrazinha da Sicília! — disse Francesca, passando a mão pela cabeça de Gina com um gesto e uma afeição que fizeram Rodolfo desejar ser acariciado assim, embora sem amor.

O barco abordava. Rodolfo saltou sobre a areia e estendeu a mão para a italiana, levando-a até a porta da casa Bergman, e foi vestir-se para voltar o mais breve possível.
10. OUTRA MUDANÇA

Ao encontrar o livreiro e sua esposa sentados na galeria exterior, Rodolfo dificilmente reprimiu um gesto de surpresa ante a prodigiosa transformação que a feliz notícia trouxera ao nonagenário. Via um homem de cerca de sessenta anos, perfeitamente conservado, um italiano seco, reto como um i, com os cabelos ainda pretos, embora raros, e deixando ver um crânio branco, olhos vivos, dentadura completa e alva, um semblante de César, e, numa boca diplomática, um sorriso meio sardônico, o sorriso quase falso sob o qual o homem de boa sociedade esconde seus verdadeiros sentimentos.

— Eis o meu marido na sua forma natural — disse gravemente Francesca.

— E completamente uma outra pessoa — respondeu Rodolfo, confuso.

— Completamente — disse o livreiro. — Representei comédias e sei perfeitamente caracterizar-me. Ah! Eu representava em Paris no tempo do Império, com Bourrienne, a sra. Murat, a sra. de Abrantes[167] e tutti quanti.[168] Tudo o que nos demos o trabalho de aprender na mocidade, mesmo as coisas fúteis, nos servem. Se minha mulher não tivesse recebido essa educação viril, um contrassenso na Itália, teria sido preciso, para viver aqui, que eu me fizesse lenhador. Povera Francesca, quem diria que eu ainda havia de ser sustentado por ela!

Ao ouvir aquele digno livreiro, tão desembaraçado, tão afável e tão verde, Rodolfo acreditou em um logro e permaneceu no silêncio observador do homem ludibriado.

— Che avete, signor? — perguntou-lhe ingenuamente Francesca. — Entristece-o a nossa felicidade?

— O seu marido é um moço — disse-lhe ele ao ouvido.

Ela soltou uma gargalhada tão franca, tão comunicativa, que Rodolfo ficou mais confuso ainda.

— Ele tem somente sessenta e cinco anos para oferecer-lhe — disse ela —; mas asseguro-lhe que é ainda alguma coisa de... tranquilizador.

— Não me agrada vê-la gracejar com um amor tão santo como esse, cujas condições foram estabelecidas pela senhora.

— Zitto! — disse ela, batendo com o pé olhando para ver se o marido os estava ouvindo. — Não perturbe nunca a tranquilidade desse querido homem, cândido como uma criança e do qual faço o que quero. Se soubesse com que nobreza ele arriscou a vida e a fortuna por ser eu liberal! Pois ele não partilha das minhas opiniões políticas. Não é isso amor, senhor francês? São todos assim na família dele. O irmão mais moço de Emílio foi traído pela mulher a quem amava com um rapaz encantador. Ele atravessou o coração com uma espada e dez minutos antes disse ao criado de quarto: — Eu poderia matar meu rival, mas isso causaria demasiado pesar à diva.

Esse misto de nobreza e zombaria, de grandeza e de infantilidade, fazia de Francesca, naquele momento, a criatura mais atraente do mundo. O jantar tanto como o serão foi impregnado de uma alegria que a libertação dos dois refugiados justificava, mas que contristou Rodolfo.
11. SEMPRE ENIGMAS

— Será ela frívola? — pensava ele, ao voltar para a casa Stopfer. — Ela acompanhou-me em meu luto, e eu não partilho da sua alegria.

Ele censurou-se e justificou aquela mulher que era como uma menina e moça.

— Ela não tem nenhuma hipocrisia e se entrega às suas impressões — pensou —, e eu a quisera como uma parisiense.

No outro dia e nos seguintes, durante vinte dias enfim, Rodolfo passou todo o tempo na casa Bergman, observando Francesca, embora sem o propósito de fazê-lo. A admiração em certas almas não existe sem uma espécie de penetração. O jovem francês achou em Francesca a moça imprudente, a verdadeira natureza da mulher ainda rebelde, debatendo-se por vezes contra o seu amor e deixando-se levar em outros momentos, complacentemente. O ancião portava-se bem com ela, como um pai com a filha, e Francesca testemunhava-lhe uma gratidão profundamente sentida, que nela revelava instintivas nobrezas. Aquela situação e aquela mulher apresentavam a Rodolfo um enigma impenetrável, mas cuja decifração o prendia cada vez mais.

Os últimos dias foram cheios de festas secretas, entremeadas de melancolia, de revoltas, de querelas, mais encantadoras do que as horas em que Rodolfo e Francesca se entendiam. Enfim, ele estava cada vez mais seduzido pela ingenuidade daquela ternura sem espírito, semelhante em tudo a si mesma, daquela ternura ciumenta de um nada... já.

— Gosta bastante do luxo! — disse ele uma tarde a Francesca, que manifestava o desejo de deixar Gersau, onde muita coisa lhe faltava.

— Eu! — disse ela —, gosto do luxo como gosto das artes, como gosto de um quadro de Rafael, de um belo cavalo, de um dia bonito ou da baía de Nápoles. Emílio — disse ela —, eu me queixei alguma vez aqui durante nossos dias de miséria?

— Você não teria sido você mesma — disse gravemente o velho livreiro.

— E, afinal de contas, não é natural que um burguês ambicione a grandeza? — replicou ela, dirigindo um olhar malicioso a Rodolfo e a Emílio. — Meus pés — disse ela, adiantando dois pezinhos encantadores — teriam sido feitos para as fadigas? Minhas mãos... — estendeu uma mão a Rodolfo. — Estas mãos foram feitas para trabalhar? Deixe-nos — disse ao marido —, quero falar-lhe.

O ancião recolheu-se ao salão com sublime bonomia; estava seguro da esposa.

— Não quero — disse ela a Rodolfo — que nos siga a Genebra. Genebra é uma cidade de tagarelices. Embora eu esteja bem acima das tolices mundanas, não quero ser caluniada, não por mim, mas por ele. Depositei meu orgulho em ser a glória desse ancião, que afinal é o meu único protetor. Nós vamos partir, fique por aqui mais alguns dias. Quando for a Genebra, procure primeiro meu marido, deixe que ele o apresente a mim. Ocultemos nossa inalterável e profunda afeição aos olhos do mundo. Eu amo ao senhor, e bem o sabe, mas eis de que maneira o provarei: o senhor não surpreenderá no meu procedimento seja o que for que possa despertar ciúme.

Ela o atraiu para um canto da galeria, segurou-lhe a cabeça, beijou-o na fronte e fugiu, deixando-o estupefato.

No dia seguinte, Rodolfo soube que os hóspedes da casa Bergman tinham partido pela madrugada. Desde esse momento, Gersau pareceu-lhe insuportável e ele dirigiu-se para Vevey pelo caminho mais longo, viajando mais depressa do que devia: atraído, porém, pelas águas do lago onde o esperava a bela italiana, chegou nos últimos dias do mês de outubro a Genebra.
12. A PRINCESA GANDOLPHINI

Para evitar os inconvenientes da cidade, hospedou-se numa casa situada nas Eaux-Vives, fora das muralhas. Uma vez instalado, seu primeiro cuidado foi perguntar ao hospedeiro, antigo ourives, se recentemente não tinham vindo fixar-se na cidade alguns refugiados milaneses.

— Que eu saiba, não — respondeu-lhe o homem. — O príncipe e a princesa Colonna, de Roma, arrendaram por três anos a casa de campo do sr. Jeanrenaud, uma das mais belas do lago. Está situada entre a vila Diodati e a casa de campo do sr. Lafin-de-Dieu, que foi alugada pela viscondessa de Beauséant.[169] O príncipe Colonna veio para ali por causa da filha e do genro, o príncipe Gandolphini, um napolitano, ou, se quiser, um siciliano, antigo partidário do rei Murat, e vítima da última revolução.[170] São essas as últimas pessoas chegadas a Genebra, e não são milaneses. Foram precisos grandes empenhos e a proteção que o papa concede à família Colonna para que obtivessem, das potências estrangeiras e do rei de Nápoles, licença para o príncipe e a princesa Gandolphini residirem aqui. Genebra nada quer fazer que desagrade à Santa Aliança, a quem deve sua independência. Nosso papel não é de hostilizar as cortes estrangeiras. Por aqui há muitos estrangeiros, russos e ingleses.

— E até mesmo genebrinos.

— Sim, senhor. Nosso lago é tão bonito! Lord Byron aqui residiu faz mais ou menos sete anos, na vila Diodati que agora todos vão visitar, como Coppet[171] e como Ferney.[172]

— Não poderia saber se vieram, há uma semana, um livreiro de Milão e sua esposa, um senhor chamado Lamporani, um dos chefes da última revolução?

— Posso sabê-lo, indo ao Círculo dos estrangeiros — disse o antigo ourives.

O primeiro passeio de Rodolfo teve naturalmente por objeto a vila Diodati, residência de Lord Byron, à qual a morte recente do grande poeta dera ainda mais atrativos; não é a morte a sagração do gênio? O caminho que das Eaux-Vives costeia o lago de Genebra é, como todas as estradas da Suíça, bastante estreito, mas em certos lugares, pela disposição do terreno montanhoso, resta, quando muito, espaço suficiente para o cruzamento de dois carros. A poucos passos da casa Jeanrenaud, junto à qual chegara sem o saber, Rodolfo ouviu por trás de si o ruído de um carro e, achando-se numa espécie de garganta, trepou numa aresta de rocha, para deixar a passagem livre. Naturalmente, olhou o carro chegar, uma caleça elegante atrelada com dois cavalos ingleses. Teve um deslumbramento ao ver, no fundo da caleça, Francesca divinamente vestida, ao lado de uma velha dama, rígida como um camafeu. Um lacaio, resplandecente de dourados, mantinha-se de pé por trás de Francesca, que reconheceu Rodolfo e sorriu ao encontrá-lo erguido como uma estátua sobre um pedestal. O carro, que o apaixonado rapaz acompanhou com os olhos enquanto subia a encosta, deu uma volta para entrar pela porta de uma casa de campo, para onde ele correu.

— Quem mora aqui? — perguntou ao jardineiro.

— O príncipe e a princesa Colonna, além do príncipe e da princesa Gandolphini.

— Não foram elas que entraram?

— Sim, senhor.

Num momento caiu o véu dos olhos de Rodolfo. Viu claro no passado.
13. ANSIEDADE DE NAMORADO

— Contanto que seja o seu último logro... — disse a si mesmo o amante fulminado.

Tremia por ter sido joguete de um capricho, pois ouvira dizer o que é um capriccio para uma italiana. Mas que crime aos olhos de uma mulher, o ter tomado por uma burguesa, uma princesa! Ter confundido a filha de uma das mais ilustres famílias da Idade Média com a mulher de um livreiro! O sentimento dos seus erros redobrou em Rodolfo o desejo de saber se seria menosprezado, repelido. Perguntou pelo príncipe Gandolphini, mandando-lhe o seu cartão de visita, e foi logo recebido pelo falso Lamporani, que veio ao seu encontro e o acolheu com a mais perfeita gentileza, com a afabilidade napolitana, e o levou a passear ao longo de um terraço de onde se descortinava Genebra, o Jura e suas colinas cobertas de vilas e depois as margens do lago, numa grande extensão.

— Como vê, minha mulher é fiel aos lagos — disse ele, depois de ter detalhado a paisagem ao seu hóspede. — Temos esta noite uma espécie de concerto — acrescentou, ao voltar para a magnífica casa de Jeanrenaud —, e espero que nos dê o prazer, à princesa e a mim, da sua companhia. Dois meses de miséria suportados juntos equivalem a anos de amizade.

Embora devorado de curiosidade, Rodolfo não se atreveu a pedir para ver a princesa, voltou lentamente para as Eaux-Vives, preocupado com o serão. Em algumas horas, o seu amor, por imenso que já fosse, se achava engrandecido com a sua ansiedade e a espera dos acontecimentos. Compreendia agora a necessidade de se tornar ilustre para se achar, socialmente falando, à altura do seu ídolo. A seus olhos, Francesca tornava-se bem grande, pela naturalidade despretensiosa e pela simplicidade de seu procedimento em Gersau. O ar naturalmente altivo da princesa Colonna fazia tremer Rodolfo, que, de resto, ia ter como inimigos o pai e a mãe de Francesca, ou pelo menos assim acreditava; e o mistério que a princesa Gandolphini tanto lhe recomendara afigurou-se-lhe então uma admirável prova de ternura. Ao não querer comprometer o futuro, não manifestava ela bem seu amor a Rodolfo?

Finalmente soaram nove horas. Rodolfo pôde tomar o carro e dizer com emoção fácil de compreender:

— À casa Jeanrenaud, do príncipe Gandolphini!

Entrou, finalmente, no salão cheio de estrangeiros da mais alta distinção e onde ficou forçosamente num grupo perto da porta, pois naquele momento cantavam um dueto de Rossini.

Pôde afinal ver Francesca, mas sem ser visto por ela. A princesa estava de pé, a dois passos do piano. Seus admiráveis cabelos, tão abundantes e tão compridos, estavam retidos por um círculo de ouro. Seu rosto, iluminado pelas velas, brilhava com a alvura peculiar às italianas, e que só alcança todo o seu efeito às luzes. Trazia um vestido de baile, deixando admirar as espáduas fascinantes, um talhe de moça e braços de estátua antiga. Sua beleza sublime ali estava sem rivalidade possível, embora houvesse inglesas e russas encantadoras, as mais lindas mulheres de Genebra e outras italianas, entre as quais brilhavam a princesa de Varese e a famosa cantora Tinti,[173] que estava cantando naquele momento.
14. UM RECONHECIMENTO

Rodolfo, apoiado no alizar da porta, olhou a princesa, dardejando sobre ela o olhar fixo, persistente, atraente e carregado de toda a vontade humana concentrada nesse sentimento chamado desejo, mas que assume então o caráter de uma ordem violenta. Teria a chama daquele olhar atingido Francesca? Esperava esta ver Rodolfo a qualquer momento? Ao cabo de alguns minutos, ela esgueirou um olhar para a porta, como que atraída por aquela corrente de amor, e seus olhos, sem hesitar, mergulharam nos de Rodolfo. Um leve frêmito agitou aquele magnífico semblante e aquele lindo corpo; a vibração da alma reagia! Francesca corou. Rodolfo teve como que toda uma vida naquela rápida troca, só comparável a um relâmpago. Mas a que comparar sua felicidade?... Era amado!

A sublime princesa mantinha, no seio da sociedade, na bela casa Jeanrenaud, a palavra dada pela nobre exilada, pela caprichosa da casa Bergman. A embriaguez de semelhante momento escraviza para sempre! Um fino sorriso, elegante e ardiloso, cândido e triunfante, agitou os lábios da princesa Gandolphini, a qual, num momento em que não se julgou observada, olhou para Rodolfo com o ar de lhe pedir perdão por tê-lo iludido quanto à sua situação. Terminada a ária, Rodolfo pôde chegar até o príncipe, que graciosamente o conduziu ante sua esposa. Rodolfo trocou com a princesa Colonna, com o príncipe e Francesca os cumprimentos de uma apresentação oficial. Terminada essa cerimônia, a princesa Gandolphini teve de cantar a sua parte no famoso quarteto de Mi manca la voce,[174] que foi executado por ela, pela Tinti, por Genovese,[175] o famoso tenor, e por um célebre príncipe italiano, então no exílio, e cuja voz, se ele não fosse príncipe, o teria tornado um príncipe da arte.

— Sente-se ali — disse Francesca a Rodolfo, mostrando-lhe sua própria cadeira. — Oimè,[176] creio que há engano de nome; sou, faz um momento, a princesa Gandolphini.

Isso foi dito com uma graça, uma sedução, uma ingenuidade, que recordaram, naquela confissão oculta sob um gracejo, os dias felizes de Gersau. Rodolfo experimentou a deliciosa sensação de ouvir a voz de uma mulher adorada ao se achar tão perto dela, que tinha uma de suas faces quase roçada pelo tecido do vestido e pela gaze da écharpe. Mas quando, em semelhante momento, é o Mi manca la voce que se está cantando e esse quateto é executado pelas mais belas vozes da Itália, torna-se fácil compreender como os olhos de Rodolfo se umedeceram de lágrimas.
15. UMA REFLEXÃO MAIS OU MENOS AGRADÁVEL AO LEITOR

Em amor, como em tudo, talvez, há certos fatos, mínimos em si mesmos, mas resultando de mil pequenas circunstâncias anteriores, cujo alcance se torna imenso porque, resumindo o passado, se prendem ao futuro. Sentiu-se mil vezes o valor da criatura amada, mas um nada, o contato perfeito das almas unidas num passeio, por uma palavra, por uma prova de amor inesperada, leva o sentimento ao seu mais alto grau. Enfim, para traduzir esse fato moral por uma imagem que, desde os começos do mundo, teve o mais incontestável sucesso, há, numa longa cadeia, pontos de ligação necessários, em que a coesão é mais profunda do que nas suas grinaldas de anéis. Aquele entendimento entre Rodolfo e Francesca, durante aquele sarau, à face do mundo, foi um desses pontos supremos que ligam o futuro ao passado, que cravam no coração as uniões reais. É possível que fosse desses cravos esparsos que Bossuet[177] falou, comparando a eles a raridade dos momentos felizes de nossa existência, ele que tão vivamente e tão secretamente sentiu o amor.

Após o prazer de admirarmos nós mesmos a mulher amada, vem o de a ver admirada por todos; Rodolfo teve então os dois ao mesmo tempo. O amor é um tesouro de recordações, e conquanto o de Rodolfo já estivesse cheio, ele acrescentou-lhe as mais preciosas pérolas: sorrisos que lhe foram dirigidos sorrateiramente, só para ele, olhares furtivos, inflexões de canto que Francesca descobriu para ele, mas que fizeram a Tinti empalidecer de inveja, de tal forma foram aplaudidas. Por isso, todo o seu poder do desejo, essa forma especial de sua alma, projetou-se sobre a bela romana, que se tornou inalteravelmente o princípio e o fim de todos os seus pensamentos e ações. Rodolfo amou como todas as mulheres podem sonhar ser amadas, com uma força, uma constância, uma coesão que faziam de Francesca a própria substância do seu coração; ele a sentiu mesclada ao seu sangue como um sangue mais puro, à sua alma como uma alma mais perfeita; ela ia ser sob os menores esforços de sua vida como as areias douradas do Mediterrâneo sob as ondas. Enfim, a menor aspiração de Rodolfo foi uma ativa esperança.
16. O QUE TORNAVA A PRINCESA UMA MULHER ADORÁVEL

Ao cabo de alguns dias, Francesca reconheceu aquele imenso amor; era, porém, tão natural, tão bem partilhado, que não lhe causou admiração; era digna dele.

— Que há de surpreendente — dizia ela a Rodolfo, ao passearem pelo terraço do jardim, depois de ter vislumbrado um desses impulsos de fatuidade tão natural aos franceses, na expressão de seus sentimentos —, que há de maravilhoso no fato de amar uma mulher jovem e bela, suficientemente artista para poder ganhar a sua vida como a Tinti, e que pode dar satisfações de vaidades? Qual o grosseirão que não se tornaria um Amadis?[178] Entre nós não se trata disso. O que é preciso é amar com constância, com persistência e de longe, durante anos, sem outro prazer além do de nos sentirmos amados.

— Pobre de mim! — disse Rodolfo — não acha minha fidelidade desprovida de qualquer mérito, ao me ver ocupado pelos trabalhos de uma ambição devoradora? Julga que eu queria vê-la um dia trocar o belo nome de princesa Gandolphini pelo de um homem que nada fosse? Quero tornar-me um dos homens mais notáveis do meu país, ser rico, ser grande e que possa ter tanto orgulho de meu nome como do seu de Colonna.

— Ser-me-ia penoso não lhe ver tais sentimentos no coração — respondeu ela com um sorriso encantador. — Mas não se consuma demasiado nos trabalhos da ambição, conserve-se moço... Dizem que a política faz envelhecer prematuramente.

O que há de mais raro na mulher é uma certa jovialidade que não altera a ternura. Esse misto de um sentimento profundo e de loucura da juventude acrescentou, naquele momento, adoráveis atrativos aos de Francesca. Ali estava a chave de seu caráter; ela ria e se enternecia, exaltava-se e retornava à fina zombaria, com uma naturalidade, um desembaraço que faziam dela a sedutora e deliciosa personalidade cuja reputação, aliás, já se estendera fora da Itália. Ocultava sob as graças da mulher uma instrução profunda, devida à existência excessivamente monótona e quase monacal que vivera no velho castelo de Colonna. Aquela rica herdeira fora a princípio destinada ao claustro, por ser o quarto rebento do príncipe e da princesa Colonna; a morte, porém, dos dois irmãos e da irmã mais velha tirou-a subitamente de seu retiro para torná-la um dos mais belos partidos dos Estados romanos. Tendo sua irmã mais velha sido prometida ao príncipe de Gandolphini, um dos mais ricos proprietários da Sicília, Francesca lhe foi dada, a fim de em nada se modificarem os negócios de família. Os Colonna e os Gandolphini sempre se haviam ligado pelo matrimônio. Dos nove aos dezesseis anos, Francesca, dirigida por um monsignore da família, lera toda a biblioteca dos Colonna, para ocupar sua ardente imaginação estudando as ciências, as artes e as letras. Mas adquiriu no estudo esse gosto pela independência e pelas ideias liberais que a lançaram, bem como ao marido, na Revolução. Rodolfo ignorava ainda que, sem contar cinco línguas vivas, Francesca sabia grego, latim e hebraico. Aquela encantadora criatura compreendera admiravelmente que uma das primeiras condições da instrução de uma mulher é ficar profundamente oculta.
17. UMA TEMPESTADE NUM DIA BONITO

Rodolfo permaneceu todo o inverno em Genebra. Esse inverno passou rápido como um dia. Ao chegar a primavera, não obstante os deliciosos prazeres da companhia de uma mulher de espírito, prodigiosamente instruída, jovem e alegre, aquele apaixonado experimentou cruéis sofrimentos, aliás suportados com valor, mas que, por vezes, transpareceram na sua fisionomia, apontaram nas suas maneiras, nas suas palavras, talvez por não julgá-los compartilhados. Às vezes se irritava ao admirar a calma de Francesca, que, semelhante às inglesas, parecia empenhar seu amor-próprio em nada exprimir no semblante, cuja serenidade desafiava o amor; ele a quisera agitada, acusava-a de nada sentir, crendo no preconceito que atribui às italianas uma mobilidade febril.

— Sou romana! — respondeu-lhe um dia com gravidade Francesca, que levara a sério alguns gracejos feitos por Rodolfo a esse respeito.

Houve no tom dessa resposta uma profundeza que lhe deu a aparência de uma ironia selvagem e fez Rodolfo palpitar. O mês de maio ostentava os tesouros de sua jovem e verdejante fertilidade, o sol tinha momentos de força como em pleno verão. Os dois amantes estavam então apoiados na balaustrada de pedra que, numa parte do terraço onde o terreno está a pique sobre o lago, sobranceia a muralha de uma escada pela qual se desce para embarcar. Da cidade vizinha, onde se vê um cais pouco mais ou menos igual, partiu, como um cisne, uma iole, com o seu pavilhão de flâmulas, sua tenda com toldo carmesim, sob o qual uma encantadora mulher estava indolentemente reclinada sobre almofadas vermelhas, toucada de flores naturais, conduzida por um rapaz trajado à marinheira e que remava com tanto mais elegância por fazê-lo sob os olhares daquela dama.

— São felizes! — disse Rodolfo com áspero acento. — Clara de Bourgogne, a última da única dinastia que poderia rivalizar com a casa de França...

— Oh!... Ela descende de um ramo bastardo, e isso mesmo pelas mulheres...

— Seja como for, é viscondessa de Beauséant e não...

— Hesitou... Não é? Em enterrar-se com o sr. Gastão de Nueil — disse a filha dos Colonna. — Ela não é mais do que francesa, e eu sou italiana, meu caro senhor.

Francesca retirou-se da balaustrada, lá deixando Rodolfo, e foi até o extremo do terraço, de onde se abarca uma imensa extensão do lago. Ao vê-la caminhar lentamente, Rodolfo teve uma suspeita de haver ferido aquela alma, ao mesmo tempo cândida e tão sábia, tão altiva e tão humilde. Teve frio; seguiu Francesca, que lhe fez sinal de a deixar só; ele, porém, não obedeceu ao aviso e surpreendeu-a enxugando as lágrimas. Pranto numa natureza tão forte!

— Francesca — disse ele, tomando-lhe a mão —, há um único pesar em teu coração?

Ela se conservou calada, desprendeu a mão que segurava o lenço bordado, para enxugar outra vez os olhos.

— Perdão — pediu ele.

E, num ímpeto, alcançou os olhos para secar as lágrimas com beijos.

Francesca não se apercebeu daquele movimento apaixonado, de tão emocionada que estava. Rodolfo, crendo um consentimento, afoitou-se; enlaçou Francesca, apertou-a contra o coração e beijou-a; ela, porém, desprendeu-se com um magnífico movimento de pudor ofendido e, a dois passos de distância, fitando-o sem cólera, mas com resolução, disse-lhe:

— Parta esta tarde; não nos tornaremos a ver senão em Nápoles.

Apesar da sua severidade, aquela ordem foi cumprida religiosamente, porque Francesca o queria.
18. CONCLUSÃO

De volta a Paris, Rodolfo encontrou em casa o retrato da princesa Gandolphini, por Schinner,[179] como este os sabe fazer. Esse pintor passara por Genebra ao ir para a Itália. Como se havia recusado peremptoriamente a fazer o retrato de várias mulheres, Rodolfo não acreditava que o príncipe, extraordinariamente desejoso de possuir o retrato da esposa, tivesse podido vencer a repugnância do célebre pintor; mas Francesca sem dúvida o seduzira e obtivera dele, o que chegava a ser prodigioso, um retrato original para Rodolfo e uma cópia para Emílio. Era o que lhe contava uma encantadora e deliciosa carta, na qual o pensamento se compensava das restrições impostas pela religião das conveniências. O enamorado respondeu. Assim começou, para não mais terminar, uma correspondência entre Rodolfo e Francesca, único prazer que se permitiam.

Rodolfo, dominado por uma ambição que o seu amor legitimava, pôs imediatamente mãos à obra. Quis primeiro a fortuna e arriscou-se numa empresa, na qual empregou todas as suas forças, bem como todo o seu capital; teve, porém, de lutar, com a inexperiência da mocidade, contra uma duplicidade que triunfou sobre ele. Perderam-se assim três anos numa vasta empresa, três anos de esforços e de coragem.

O ministério Villèle[180] sucumbia também quando Rodolfo fracassou. Logo depois o intrépido apaixonado resolveu pedir à política o que a indústria lhe recusara; mas, antes de se atirar nas tormentas dessa carreira, foi, bastante ferido, dolorido, fazer curar suas feridas e buscar coragem em Nápoles, aonde o príncipe e a princesa Gandolphini haviam sido chamados e reintegrados nos seus bens, por ocasião da elevação do rei ao trono. No meio de sua luta, foi aquilo um repouso cheio de doçuras; passou três meses na vila Gandolphini, embalado pela esperança.

Recomeçou então o edifício de sua fortuna. Seus talentos já haviam sido distinguidos, iam enfim realizar os anseios de sua ambição, um lugar eminente lhe tinha sido prometido, em recompensa à sua dedicação e aos serviços prestados, quando rebentou a tormenta de julho de 1830.

Ela e Deus, tais são as testemunhas dos mais corajosos esforços, das mais audaciosas tentativas de um rapaz dotado de qualidades, mas para quem, até então, faltara o auxílio da deusa dos tolos, a sorte! E aquele infatigável atleta, amparado pelo amor, recomeçou novos combates, iluminado por um olhar sempre amigo, por um coração fiel! Namorados! Orai por ele!

XXI – O CONTRAGOLPE

Ao terminar essa narrativa, a srta. de Watteville estava com as faces em fogo e com febre nas veias; chorava, mas de raiva. Aquela novela, inspirada na literatura então em moda, era a primeira leitura daquele gênero que Rosália havia podido devorar. O amor ali estava pintado, se não por mão de mestre, pelo menos por um homem que sabia narrar suas próprias impressões; ora, por inábil que fosse a verdade, devia impressionar uma alma virgem ainda. Ali estava o segredo das agitações terríveis, da febre e das lágrimas de Rosália: tinha ciúme de Francesca Colonna. Não tinha dúvida quanto à sinceridade daquela poesia; Alberto se comprazerá em narrar o início de sua paixão, ocultando sem dúvida os nomes e, talvez, também lugares. Rosália estava tomada por uma curiosidade infernal. Que mulher não teria, como ela, querido saber o verdadeiro nome de sua rival, pois ela amava! Ao ler aquelas páginas contagiosas para ela, dissera consigo esta frase solene: Eu amo! Ela amava Alberto e sentia no coração um mordente desejo de disputá-lo, de o arrancar àquela rival desconhecida. Lembrou-se de que não sabia música e de que não era bela.

— Jamais ele me amará — disse.

Essas palavras redobraram seu desejo de saber se não se enganava, se realmente Alberto amava uma princesa italiana, e se era amado por ela. Durante essa noite fatal, o espírito de rápida decisão que caracterizava o famoso Watteville desenvolveu-se inteiramente na sua herdeira. Engendrou alguns desses planos estranhos, em torno dos quais flutua, de resto, a imaginação de quase todas as moças, quando, no meio da solidão em que algumas mães imprudentes as retêm, elas são excitadas por um acontecimento capital, que o sistema de compressão a que estão submetidas não pôde nem prever nem impedir. Pensava em descer por uma escada, pelo quiosque, ao jardim da casa em que residia Alberto, aproveitar-se do sono do advogado para ver pela janela o interior do seu gabinete. Pensava em escrever-lhe, pensava em romper os laços da sociedade besançonense, introduzindo Alberto no salão do palacete de Rupt. Essa empresa, que ao próprio abade de Grancey se lhe afigurara a obra-prima do impossível, foi coisa de um pensamento.

— Ah! — disse com seus botões. — Meu pai tem controvérsias a respeito de suas terras de Rouxey, eu irei! Se não houver processo, eu farei nascer um e ele virá a nosso salão! — exclamou, saltando do leito para a janela, a fim de ver a luz prestigiosa que iluminava as noites de Alberto. Soava uma hora da madrugada; ele ainda dormia.

— Vou vê-lo quando se levantar; talvez chegue à janela!

Naquele momento, a srta. de Watteville foi testemunha de um acontecimento que devia colocar em suas mãos o meio de vir a conhecer os segredos de Alberto.

XXII – UTILIDADE DOS QUIOSQUES

Ao clarão da lua, entreviu dois braços estendidos para fora do quiosque e que auxiliaram Jerônimo, o criado de Alberto, a saltar a crista do muro e a entrar no quiosque. Na cúmplice do criado, Rosália reconheceu logo Marieta, a sua camareira.

— Marieta e Jerônimo — comentou ela. — Marieta, uma rapariga tão feia! Com certeza, um tem vergonha do outro.

Se Marieta era horrivelmente feia e tinha trinta e seis anos de idade, recebera por herança vários lotes de terra. Desde os dezessete anos a serviço da sra. de Watteville, que muito a apreciava por causa de sua devoção, de sua probidade e de sua antiguidade na casa, ela economizara, sem dúvida, e colocara seus ordenados e seus proveitos. Ora, à razão de, mais ou menos, dez luíses por ano, devia possuir, somando os juros dos juros e suas heranças, cerca de quinze mil francos. Aos olhos de Jerônimo quinze mil francos modificavam as leis da óptica; achava que Marieta tinha uma bonita cintura, não mais via as picadas e as cicatrizes que uma terrível varíola deixara naquele rosto chato e seco; para ele a boca retorcida era reta, e desde que, ao tomá-lo a seu serviço, o advogado Savaron o aproximara do palacete de Rupt, fez o assédio em regra à devota camareira, tão rígida, tão hipocritamente virtuosa quanto a sua patroa, e que, como todas as solteironas feias, se mostrava mais exigente que as mulheres bonitas. Se agora a cena noturna do quiosque fica explicada para as pessoas clarividentes, era-o muito pouco para Rosália, que, entretanto, ganhou com ela o mais perigoso de todos os conhecimentos, o que o mau exemplo dá. Uma mãe educa severamente a filha, cobre-a com as suas asas durante dezessete anos, e, numa hora, uma criada destrói essa longa e penosa obra, algumas vezes com uma palavra, muitas vezes com um gesto! Rosália tornou a deitar-se, não sem antes pensar em todo o partido que ia poder tirar de sua descoberta. No dia seguinte pela manhã, ao ir à missa em companhia de Marieta (a baronesa estava indisposta), Rosália tomou o braço de sua camareira, o que surpreendeu estranhamente a besançonesa.

— Marieta — perguntou ela. — Jerônimo possui a confiança do patrão?

— Não sei, senhorita.

— Não se faça de inocente comigo — retrucou secamente a srta. de Watteville. — Você esta noite se deixou beijar por ele, no quiosque. Não me admiro mais de você ter aprovado tanto minha mãe, a propósito dos embelezamentos que ela projetava ali.

Rosália sentiu o tremor que se apoderou de Marieta através de seu braço.


— Não lhe quero mal por isso — continuou Rosália —, tranquilize-se, não direi uma palavra que seja à minha mãe, e você poderá ver Jerônimo quantas vezes quiser.

— Mas, senhorita — respondeu Marieta —, é coisa séria o meu assunto, pois ele não tem outra intenção senão casar comigo.

— Mas, então, por que vocês marcam encontros à noite?

Marieta, aterrada, não soube responder.

— Ouça, Marieta, eu também amo! Amo em segredo, e sozinha. Sou, afinal, filha única de meu pai e de minha mãe; assim, pois, você tem mais a lucrar comigo do que seja com quem for no mundo...

— Certamente, senhorita, a senhora pode contar conosco para a vida e para a morte — exclamou Marieta, feliz com aquele desenlace imprevisto.

— Primeiro que tudo, silêncio por silêncio — disse Rosália. — Não quero desposar o sr. de Soulas; mas quero, e de modo absoluto, certa coisa; minha proteção só lhe será dada a esse preço.

— Qual? — perguntou Marieta.

— Quero ver as cartas que o sr. Savaron manda Jerônimo botar no correio.

— Para fazer o quê? — disse Marieta, assustada.

— Oh! Nada mais do que para ler, e você mesma poderá pô-las depois no correio. Isso apenas provocará um pequeno atraso e mais nada.

Naquele instante, a srta. de Watteville e Marieta entraram na igreja e cada uma delas fez suas reflexões, em vez de ler o missal.

“Meu Deus! quanto pecado não haverá nisso tudo?”, pensou Marieta.

Rosália, cuja alma, cabeça e coração estavam transtornados com a leitura da novela, viu nesta finalmente uma história escrita para a sua rival. À força de refletir, como as crianças, na mesma coisa, acabou por pensar que a Revue de l’Est devia ser enviada à bem-amada de Alberto.

— Oh! — disse ela, de joelhos, com a cabeça mergulhada nas mãos, na atitude de uma pessoa abismada na oração. — Oh! Como levar meu pai a consultar a lista das pessoas a quem é mandada a revista?

Depois do almoço, deu uma volta pelo jardim, com o pai, amimando-o, e trouxe-o até o quiosque.

— Acreditas, paizinho querido, que a nossa revista vá para o estrangeiro?

— Ela apenas está começando...

— Pois aposto que vai.

— Não é possível.

— Vai ver se sabes, e aponta os nomes dos assinantes no estrangeiro.

Duas horas depois, o sr. de Watteville disse à filha:

— Quem tem razão sou eu, não há ainda um único assinante nos países estrangeiros. Espera-se vir a ter em Neuchâtel, em Berna, em Genebra. Entretanto, mandam um exemplar para a Itália, mas gratuitamente, para uma dama milanesa, dirigida à sua casa de campo no lago Maior, em Belgirate.

— Qual o nome dela? — perguntou vivamente Rosália.

— A duquesa de Argaiolo.

— Conhece-a, meu pai?

— Já ouvi falar nela. Nasceu princesa de Soderini, é uma florentina, muito grande dama, e tão rica como o marido, o qual possui uma das mais belas fortunas da Lombardia. A vida deles no lago Maior é uma das curiosidades da Itália.

Dois dias depois, Marieta entregou a seguinte carta à srta. de Watteville.

XXIII – CARTA DE ALBERTO SAVARON A LEOPOLDO HANNEQUIN


Pois bem, é verdade, meu caro amigo, estou em Besançon, enquanto me julgavas em viagem. Nada quis dizer-te até o momento em que o triunfo começasse, e a aurora começa a despontar. Sim, querido Leopoldo, depois de tantas empresas abortadas, nas quais despendi o melhor do meu sangue, em que malbaratei tantos esforços, empreguei tanta coragem, quis fazer como tu; seguir por um caminho trilhado, a estrada real, o mais longo dos caminhos, o mais seguro. Que salto te vejo dar na tua poltrona de notário! Mas não creias que haja alguma mudança na minha vida interior, em cujo segredo só tu estás no mundo, e, isso mesmo, sob as reservas que ela exigiu. Nada te dizia, meu amigo, mas me aborrecia horrivelmente em Paris. O desenlace da primeira empresa, na qual pus todas as minhas esperanças, e que naufragou devido à perversidade dos meus dois sócios, mancomunados para enganar-me, para despojar-me, a mim, a cuja atividade se devia tudo, fez-me renunciar à conquista da fortuna pecuniária depois de assim ter perdido três anos da minha vida, dos quais um em demandas. É bem possível que me tivesse saído pior do processo se não tivesse sido constrangido, aos vinte anos, a estudar direito. Quis tornar-me um homem político, unicamente para ser um dia incluído numa ordenança sobre o pariato, com título de conde Alberto Savaron de Savarus e fazer reviver em França um belo nome que se vai extinguir na Bélgica, embora eu não seja nem legítimo nem legitimado.


— Ah! Eu tinha certeza, ele é nobre! — exclamou Rosália deixando a carta cair.


Sabes os estudos conscienciosos que eu fiz, que jornalista obscuro, mas dedicado, mas útil, e que admirável secretário eu fui para o homem de Estado, que aliás me foi fiel em 1829. Mergulhado novamente no nada pela Revolução de Julho, no momento em que meu nome começava a brilhar, no momento em que, referendário, eu ia finalmente entrar, como uma engrenagem necessária na máquina política, cometi a falta de permanecer fiel aos vencidos, de lutar por eles, sem eles. Ah! Por que não tinha eu mais do que trinta e três anos, e como não te pedi que me tornasses elegível? Ocultei-te todos os meus devotamentos e perigos. Que queres, eu tinha fé! Não estaríamos de acordo. Há dez meses, quando me vias tão alegre, tão contente, escrevendo meus artigos políticos, eu andava desesperado: via-me aos trinta e sete anos com dois mil francos por toda fortuna, sem a menor celebridade, tendo acabado de naufragar numa nobre empresa, a de um jornal cotidiano que só se dirigia a uma necessidade do futuro em vez de se dirigir às paixões do momento. Já não sabia que resolução tomar. E eu sentia minhas forças. Ia sombrio e ferido aos lugares solitários daquela Paris que me havia escapado, pensando nas minhas ambições frustradas, mas sem as abandonar. Oh! Que expressões de raiva não escrevi então a ela, essa segunda consciência, esse outro eu! Às vezes eu dizia comigo: “Por que tracei um programa tão vasto para a minha existência? Por que querer tanto? Por que não esperar a felicidade, dedicando-me a qualquer ocupação quase mecânica?”.
Lancei então os olhos sobre um modesto posto onde eu pudesse viver. Ia ter a direção de um jornal, sob um gerente que não sabia grande coisa, um argentário ambicioso, quando se apoderou de mim o terror.
— Quererá ela para marido um amante que desceu tão baixo? — perguntei a mim mesmo.
Essa reflexão restituiu-me os meus vinte e dois anos! Oh!, meu caro Leopoldo, como a alma se gasta nessas perplexidades! Que não deverão sofrer as águias engaioladas, os leões enjaulados?... Sofrem tudo o que Napoleão sofreu, não em Santa Helena, mas no cais das Tulherias, a 10 de agosto, quando via Luís xvi defendendo-se tão mal, ele, que podia dominar a sedição como o fez mais tarde, no mesmo local, em vindemiário![181] Pois bem! Minha vida foi esse sofrimento de um dia, estendido em quatro anos. Quantos discursos na Câmara não pronunciei eu pelas alamedas desertas do Bois de Boulogne? Essas improvisações inúteis afiaram, pelo menos, a minha língua e acostumaram o meu espírito a formular seus pensamentos em palavras. Durante esses tormentos secretos, tu te casavas, acabavas de pagar teu cargo e te tornavas adjunto do maire da tua circunscrição, depois de ter ganhado a cruz, ao ser ferido em Saint-Merry.[182]
Escuta! Quando eu era pequeno e atormentava os besouros, havia nesses pobres insetos um movimento que me deixava quase que com febre. Era quando eu os via fazer esforços reiterados para alçar o voo, sem, entretanto, voar, embora tivessem conseguido erguer as asas. Nós dizíamos: Eles contam! Era isso uma simpatia ou uma visão do meu futuro? Oh!, abrir as asas e não poder voar! Eis o que me aconteceu desde aquela linda empresa da qual me enojaram, mas que enriqueceu, agora, quatro famílias.
Enfim, faz sete meses, resolvi criar nome no foro de Paris, ao ver os vácuos que nele deixam as promoções de tantos advogados a postos eminentes. Ao lembrar-me, porém, das rivalidades que observara no seio da imprensa, e como é difícil triunfar, seja no que for em Paris, essa arena onde tantos campeões aprazam reencontros, tomei uma resolução cruel para mim, de um efeito certo e talvez mais rápido do que qualquer outro. Nas nossas palestras, tu me havias explicado bem a constituição social de Besançon, a impossibilidade, para um estranho à terra, de triunfar, de lá causar a menor sensação, de lá casar, de penetrar na sociedade, de ter êxito, fosse lá no que fosse. Foi aí que eu quis fincar minha flâmula, pensando, justamente, evitar assim a concorrência, e ver-me sozinho para disputar a deputação. Os besançonenses não querem ver o estrangeiro, o estrangeiro não os verá! Eles recusam admiti-lo nos seus salões, pois ele jamais lá porá os pés! Não aparecerá em parte alguma, nem mesmo nas ruas! Mas há uma classe que faz os deputados, e é a classe comercial. Vou especializar-me em assuntos comerciais, que já conheço, ganharei processos, conciliarei divergências, tornar-me-ei o mais forte advogado de Besançon. Mais tarde fundarei uma revista, na qual defenderei os interesses da terra, onde os farei nascer, viver ou renascer. Quando tiver conquistado, um a um, suficientes sufrágios, meu nome sairá da urna. Desdenharão durante muito tempo o advogado desconhecido, mas haverá uma circunstância que o porá em foco, uma defesa gratuita, uma questão da qual os outros advogados não se queiram encarregar. Se posso falar uma vez, tenho certeza do êxito. Pois bem! meu caro Leopoldo, fiz encaixotar a minha biblioteca em onze caixas, comprei os livros de direito que me podiam ser úteis e pus tudo, bem como a minha mobília, em viagem para Besançon. Muni-me dos meus diplomas, reuni mil escudos e fui dizer-te adeus. A diligência lançou-me em Besançon, onde, no prazo de três dias, escolhi um pequeno apartamento que dá para um jardim, arranjei suntuosamente o gabinete misterioso onde passo minhas noites e meus dias, e onde brilha o retrato do meu ídolo, daquela a quem votei a minha vida, que a enche, que é o princípio dos meus esforços, o segredo da minha coragem, a causa do meu talento. Depois de chegarem os livros e os móveis, tomei um criado inteligente e fiquei cinco meses como uma marmota no inverno. De resto, haviam-me inscrito no quadro dos advogados.
Finalmente, nomearam-me ex officio para defender um infeliz no tribunal, sem dúvida para me ouvirem falar ao menos uma vez! Um dos mais influentes negociantes de Besançon fazia parte do júri e tinha um caso espinhoso; fiz tudo, nessa causa, por aquele homem e obtive o mais completo êxito do mundo. Meu primeiro cliente era inocente, fiz prenderem dramaticamente os verdadeiros culpados, que estavam no rol das testemunhas. Enfim, a corte compartilhou da admiração do seu público. Soube poupar o amor-próprio do juiz de instrução, mostrando a quase impossibilidade de descobrir uma trama tão bem urdida. Consegui então a clientela do meu abastado negociante e ganhei seu processo. O capítulo da catedral escolheu-me para advogado num imenso processo com a prefeitura, que durava já quatro anos; ganhei. Com três processos, tornei-me o maior advogado do condado. Mas sepultei a minha vida no mais profundo mistério e ocultei assim minhas pretensões. Contraí hábitos que me dispensam de aceitar todo e qualquer convite. Não se me pode consultar senão das seis às oito da manhã, deito-me depois do jantar e trabalho durante a noite. O vigário-geral, homem de espírito e muito influente, que me encarregou do caso do capítulo, já perdido em primeira instância, falou-me naturalmente de remuneração. — Senhor — respondi-lhe —, ganharei sua causa, mas não quero honorários, quero mais... (sobressalto do abade), saiba que perco enormemente colocando-me como adversário da prefeitura; vim para aqui a fim de ser deputado, não me quero ocupar senão de questões comerciais, porque os comerciantes fazem os deputados, e desconfiarão de mim se advogo para padres, pois os senhores para eles são os padres. Se me encarrego de sua causa é porque, em 1828, eu era secretário particular de tal ministro (novo gesto de espanto do meu abade), referendário sob o nome de Alberto Savarus (outro gesto). Permaneci fiel aos princípios monárquicos; mas, como os senhores não têm maioria em Besançon, é preciso que eu consiga votos na burguesia. Portanto, os honorários que lhe peço são os votos que o senhor puder fazer descarregar em mim, no momento oportuno, secretamente. Guardemos segredo um para com o outro, e eu pleitearei gratuitamente todas as causas de todos os padres da diocese. Nem uma palavra dos meus antecedentes e sejamos reciprocamente fiéis. — Quando ele veio agradecer-me, entregou-me uma nota de quinhentos francos, dizendo-me ao ouvido: — Os votos continuam firmes. — Em cinco conferências que mantivemos, creio ter feito um amigo desse vigário-geral. Agora, sobrecarregado de causas, não aceito senão as dos negociantes, alegando que as questões comerciais são a minha especialidade. Essa tática me concilia a gente do comércio e permite procurar as pessoas influentes. Assim, tudo vai bem. Daqui a alguns meses terei achado aqui em Besançon uma casa para comprar, que me possa dar o censo. Conto contigo para me emprestar o capital necessário para essa aquisição. Se eu morresse ou fracassasse, as perdas não seriam de vulto a merecer considerações entre nós. Os juros te serão pagos com os aluguéis e, de resto, terei o cuidado de esperar uma boa oportunidade, a fim de que nada percas nessa hipoteca necessária.
Ah!, meu caro Leopoldo, jamais jogador que tenha no bolso os restos de sua fortuna, e jogando-a no clube dos estrangeiros, numa última noite da qual sairá rico ou arruinado, sentiu nos ouvidos o zumbido eterno, nas mãos o suor nervoso, na cabeça a agitação febril, no corpo os tremores internos, que eu sinto todos os dias ao jogar minha última cartada no jogo da ambição. Ai de mim! Caro e único amigo, já lá vão quase dez anos que eu luto.
Esse combate com os homens e as coisas, no qual incessantemente empreguei minhas forças e minhas energias, em que tanto gastei as molas do desejo, esgotou-me, por assim dizer, interiormente. Com as aparências da força e da saúde, sinto-me liquidado. Cada dia que passa leva um fragmento de minha vida íntima. A cada novo esforço, sinto que não o poderia repetir. Não tenho mais força e poder senão para a felicidade e, se esta não vier colocar sua coroa de rosas sobre a minha fronte, o eu que sou não mais existirá, tornar-me-ei uma coisa destruída, nada mais desejarei do mundo, não quererei mais ser coisa alguma. Tu o sabes, o poder e a glória, essa imensa riqueza moral que eu busco, é secundária; é para mim o meio da felicidade, o pedestal do meu ídolo.
Alcançar o alvo, expirando como o corredor antigo! Ver a fortuna e a morte chegarem juntas aos umbrais de nossa porta! Obtermos aquela que amamos no momento em que o amor se extingue! Não termos mais a faculdade de gozar, quando se conquistou o direito de viver feliz!... Oh! De quantos homens não dói esse o destino!
Há certamente um momento em que Tântalo[183] para, cruza os braços e desafia o inferno, renunciando ao seu ofício de eterno logrado. Estarei nessa situação, se alguma coisa fizer malograr meu plano, se depois de me ter curvado na poeira da província, de me ter arrastado, como um tigre faminto, em torno desses negociantes, desses leitores, para conseguir seus votos, se depois de rabulejar causas áridas, de ter dado o meu tempo, um tempo que eu poderia passar no lago Maior, vendo as águas que ela vê, prostrando-me sob seus olhares, ouvindo-a, eu não galgar a tribuna para aí conquistar a auréola que deve dar-me um nome para suceder ao de Argaiolo. Mais ainda, Leopoldo, sinto em certos dias langores vaporosos: do fundo de minha alma se erguem repulsos mortais, sobretudo quando, em longos devaneios, mergulho antecipadamente nas galerias do amor feliz! Não terá o desejo em nós senão uma certa dose de força, e não poderá ele perecer sob uma excessiva efusão de sua substância? Afinal de contas, neste momento, minha vida é bela, iluminada pela fé, pelo trabalho e pelo amor. Adeus, meu amigo. Beijo teus filhinhos e apresentarás meus respeitos à tua excelente esposa.

Teu Alberto

XXIV – OUTRA CARTA

Rosália leu duas vezes essa carta, cujo sentido geral se lhe gravou no coração. Penetrou subitamente na vida anterior de Alberto, pois a sua inteligência explicou-lhe os detalhes e a fez percorrer toda a extensão daquela. Confrontando essa confidência com a novela publicada na revista, compreendeu tudo de Alberto. Naturalmente exagerou as proporções já tão grandes daquela bela alma, daquela vontade poderosa; e seu amor por Alberto tornou-se então uma paixão cuja violência se acresceu de toda a pujança de sua juventude, dos aborrecimentos de sua solidão e da energia secreta de seu caráter. Amar, numa moça, já é um efeito da lei natural, mas, quando a sua necessidade de afeição deriva para um homem extraordinário, junta-se-lhe o entusiasmo que transborda nos corações jovens. Assim, a srta. de Watteville chegou em poucos dias a uma fase mórbida e muito perigosa da exaltação amorosa. A baronesa estava muito contente com a filha, a qual, sob o império de suas profundas preocupações, não lhe resistia mais, parecia aplicada aos seus múltiplos trabalhos de mulher e realizava o seu belo ideal de filha submissa.

O advogado pleiteava agora duas ou três vezes por semana. Conquanto sobrecarregado de causas, ele atendia ao Palácio da Justiça, ao contencioso do comércio, à revista, e permanecia num mistério profundo, compreendendo que, quanto mais surda e oculta fosse a sua influência, tanto mais real seria. Mas não se descuidava de nenhum meio de sucesso, estudando a lista dos eleitores besançonenses e perquirindo seus interesses, o caráter deles, suas diversas amizades, suas antipatias. Um cardeal que quisesse ser papa ter-se-ia jamais dado tanto trabalho?

Uma noite, Marieta, ao vir vestir Rosália para um sarau, trouxe-lhe, não sem gemer por aquele abuso de confiança, uma carta cujo endereço fez fremir, empalidecer e corar a srta. de Watteville.
À senhora duquesa de Argaiolo
(em solteira princesa Soderini)


Em Belgirate
Lago Maior
Itália


A seus olhos, esse endereço brilhou como deve ter brilhado o Mane, Tecel, Fares aos olhos de Baltazar.[184] Depois de ter escondido a carta, Rosália desceu para ir com a mãe à casa da sra. de Chavoncourt e, todo o tempo que durou aquele eterno sarau, ela foi assaltada de remorso e de escrúpulos. Já sentira vergonha por ter violado o segredo da carta de Alberto a Leopoldo. Muitas vezes a si mesma ela se perguntara se, conhecendo aquele crime, infame por ser forçosamente impune, o nobre Alberto a estimaria. Sua consciência respondia-lhe com energia: Não! Expiara sua falta, impondo-se penitências; jejuava, mortificava-se, permanecendo de joelhos, com os braços em cruz e rezando durante algumas horas. Obrigava Marieta a esses atos de arrependimento, porquanto o mais verdadeiro ascetismo se mesclava à sua paixão, tornando-a tanto mais perigosa.

— Lerei ou não lerei essa carta? — pensava, ao ouvir as meninas de Chavoncourt. Uma tinha dezesseis anos e a outra dezessete e meio. Rosália considerava suas duas amigas como meninotas, porque elas não amavam em segredo. Se eu a leio — pensava após ter flutuado durante uma hora entre o não e o sim — será certamente a última. Já que eu tanto fiz, que soube o que ele escrevia ao amigo, por que não hei de saber o que ele diz a ela? Se é um crime horrível, não é também uma prova de amor? Ó Alberto, não sou eu tua esposa?

XXV – COMO ELE A AMA

Depois de deitada, Rosália abriu aquela carta, datada dia a dia, de modo a oferecer à duquesa uma imagem fiel da vida e dos sentimentos de Alberto.


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Minha alma querida, tudo vai bem. Às conquistas que fiz, acabo de acrescentar uma preciosa. Prestei um serviço a uma das personagens mais influentes nas eleições. Como os críticos que fazem as reputações, sem nunca poder fazer a própria, ele faz os deputados, sem jamais poder sê-lo. O bom do homem quis testemunhar-me sua gratidão com pouca despesa, quase sem desatar os cordões da bolsa, dizendo-me: — Quer ir para a Câmara? Posso fazê-lo eleger deputado. — Se eu me resolvesse a entrar na carreira política — respondi-lhe muito hipocritamente —, o seria para dedicar-me ao condado, que adoro e onde sou apreciado. — Pois bem! Nós o decidiremos a isso e, por seu intermédio, teremos influência na Câmara, pois o senhor ali há de brilhar.
Assim, pois, meu anjo amado, digas o que disseres, minha persistência será coroada. Dentro de pouco falarei do alto da tribuna francesa, ao meu país, à Europa. Meu nome chegará aos teus ouvidos, pelas cem vozes da imprensa francesa.
Sim, como me disseste, eu cheguei velho a Besançon e Besançon envelheceu-me mais; como, porém, Sixto Quinto,[185] rejuvenescerei no dia seguinte à minha eleição. Entrarei na minha verdadeira vida, na minha esfera. Não estaremos então na mesma linha? O conde Savaron de Savarus, embaixador não sei onde, poderá certamente desposar uma princesa de Soderini, viúva do duque de Argaiolo! O triunfo rejuvenesce os homens conservados por lutas incessantes. Ó minha vida!, com que alegria saltei da minha biblioteca para o meu gabinete, em frente ao teu querido retrato, ao qual contei esses progressos antes de te escrever! Sim, os meus votos, os do vigário-geral, os das pessoas a quem terei prestado serviços e os desse cliente asseguram-me desde já a eleição.


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Entramos no décimo segundo ano, depois do belo serão no qual, com um olhar, a bela duquesa ratificou a promessa da proscrita Francesca. Ah!, querida, tens trinta e dois anos e eu trinta e cinco; o querido duque tem setenta e sete, isto é, só tem dez anos mais do que nós dois juntos e continua a gozar saúde! Cumprimenta-o da minha parte. Tenho quase tanta paciência quanto amor; preciso, de resto, de mais alguns anos para erguer minha posição à altura do teu nome. Como vês, estou alegre, hoje rio; eis o efeito de uma esperança. Tristeza ou alegria, tudo me vem de ti. A esperança de triunfar faz-me voltar sempre o dia seguinte àquele em que te vi pela primeira vez, em que minha vida se uniu à tua como a terra à luz! Qual pianto[186] estes onze anos, pois estamos a vinte e seis de dezembro, aniversário da minha chegada à tua vila do lago de Constança. Faz onze anos que eu gemo e que tu irradias como uma estrela colocada demasiado alto para que um homem a possa alcançar.


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Não, querida, não vás a Milão, fica em Belgirate. Milão apavora-me. Não gosto desse horrível hábito milanês de conversar todas as noites no Scala, com uma dúzia de pessoas entre as quais é difícil que se não diga algum galanteio. Para mim, a solidão é como esse fragmento de âmbar em cujo interior um inseto vive ternamente na sua imutável beleza. A alma e o coração de uma mulher conservam-se assim puros e na forma da sua juventude. Terás saudade daqueles Tedeschi.[187]


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Não se acabará afinal a tua estátua? Quisera ter-te em mármore, em pintura, em miniatura, de todos os modos, para iludir a minha impaciência. Continuo esperando a vista de Belgirate e a da galeria. São as únicas que me faltam. Estou de tal forma ocupado que hoje nada mais posso dizer-te além de um nada, mas esse nada é tudo. Não foi de um nada que Deus criou o mundo? Esse nada é uma frase, a frase de Deus: Eu te amo!


30
Ah! Recebi teu diário! Obrigado por tua exatidão! Sentiste então muito prazer em ver os detalhes de nosso primeiro encontro assim descrito? Ai de mim! Embora velando-os, tinha um medo enorme de te ofender. Não tínhamos novelas, e uma revista sem novela é uma bela sem cabelos. Pouco achador por natureza, e desesperado, lancei mão da única poesia que existe em minha alma, a única aventura que havia nas minhas recordações, dei-lhe o tom com que podia ser dita e não cessei de pensar em ti enquanto escrevia a única produção literária que sairá do meu coração, não posso dizer de minha pena. Não te fez rir a transformação do bravio Sormano em Gina?
Perguntas-me como vai minha saúde. Mas muito melhor do que em Paris. Embora eu trabalhe enormemente, a tranquilidade do ambiente tem influência sobre a alma. O que fatiga e envelhece, querido anjo, são essas angústias da vaidade ludibriada, essas perpétuas irritações da vida parisiense, essas lutas de ambições rivais. A calma é balsâmica. Se soubesses o prazer que me causou tua carta, aquela extensa carta na qual tão bem me contas os menores incidentes de tua vida! Não, vocês, mulheres, jamais compreenderão quanto esses pequenos nadas interessam a um amante verdadeiro. A amostra do teu novo vestido causou-me uma enorme satisfação! Saber como te vestes não pode ser uma coisa indiferente, não é?, como tampouco o é se enrugas a fronte, se nossos autores te distraem, se os cantos de Canalis[188] te exaltam. Leio os livros que tu lês. Até mesmo teu passeio no lago me enterneceu. Tua carta é bela, suave como tua alma! Ó flor divina e continuamente adorada! Poderia lá eu ter vivido sem essas queridas cartas que, faz onze anos, me sustentaram no meu caminho difícil, como um clarão, como um perfume, como um canto regular, como um alimento divino, como tudo o que consola e encanta a vida?! Não falhes! Se soubesses da minha angústia na véspera do dia em que as recebo e como me faz sofrer um atraso de vinte e quatro horas! Estará ela doente? Será ele? Fico entre o inferno e o paraíso, quase enlouqueço! Ó mia cara diva! Cultiva sempre a música, exercita tua voz, estuda. Fico encantado com essa conformidade de trabalho e de horário, que faz com que, separados embora pelos Alpes, vivamos exatamente da mesma maneira. Esse pensamento me fascina e me dá coragem. Quando advoguei pela primeira vez, ainda não te disse isso, imaginei que me estivesses ouvindo, e senti repentinamente em mim esse surto de inspiração que eleva o poeta acima da humanidade. Se eu for à Câmara, quero que venhas a Paris para assistir à minha estreia.


30 à noite
Meu Deus!, Como eu te amo. Pobre de mim! Pus demasiadas coisas no meu amor e nas minhas esperanças. Um acaso que fizesse esse barco demasiado carregado soçobrar, levar-me-ia a vida! Faz três anos que não te vejo, e, à ideia de ir a Belgirate, meu coração bate com tanta força que sou obrigado a deter-me... Ver-te, ouvir essa voz infantil e acariciadora!, beijar com os olhos essa tez de marfim, tão brilhante às luzes, e sob a qual se adivinha teu nobre pensamento!, admirar teus dedos brincando com as teclas, receber toda a tua alma num olhar, e teu coração no acento de um Oimè! ou de um Alberto! passearmos diante das laranjeiras floridas, vivermos alguns meses mergulhados naquela sublime paisagem... É isso a vida! Oh!, que tolice correr atrás de poder, de um nome, da fortuna! Mas tudo está em Belgirate; lá está a poesia, lá está a glória! Eu deveria ter-me feito teu intendente, ou, como esse querido tirano que não se pode odiar me propôs, viver aí como cavaleiro servente, coisa que nossa ardente paixão não nos permitiu aceitar. Adeus, meu anjo, tu me perdoarás minhas próximas tristezas, por essa alegria caída como um raio de luz, do archote da esperança, que até agora me parecia um fogo-fátuo.


— Como ele a ama! — exclamou Rosália, deixando cair a carta, que lhe pareceu pesada em suas mãos. — Escrever assim, após onze anos!

XXVI – UM BELO MOVIMENTO

— Marieta — disse a srta. de Watteville à criada de quarto, no dia seguinte de manhã —, vá pôr esta carta no correio; diga a Jerônimo que sei tudo o que queria saber e que ele sirva fielmente ao sr. Alberto. Nós nos confessaremos desses pecados, sem dizer a quem pertenciam às cartas, nem para onde iam. Fiz mal; sou eu a única culpada.

— A senhorita chorou — disse Marieta.

— Sim, não quero que minha mãe perceba; traz-me água fria.

Por entre as tormentas de sua paixão, Rosália ouvia muitas vezes a voz da consciência. Tocada por aquela admirável fidelidade de dois corações, acabava de rezar suas preces e a si mesma dissera que nada mais tinha a fazer senão resignar-se e respeitar a felicidade de dois seres dignos um do outro, submissos à sua sorte, tudo esperando de Deus, sem se permitirem atos ou desejos criminosos. Sentiu-se melhor, experimentou certa satisfação íntima depois de ter tomado essa resolução, inspirada pela retidão natural dos verdes anos. Encorajou-a uma reflexão de moça; ia imolar-se por ele!

— Ela não sabe amar — pensou. — Ah!, se fosse eu, tudo sacrificaria a um homem que me amasse assim... Ser amada!... Quando, e por quem o serei eu? Esse pequeno sr. de Soulas ama somente a minha fortuna; se eu fosse pobre, ele nem sequer me daria atenção.

— Rosália, minha filha, em que pensas? Estás indo além do risco — disse a baronesa à filha, a qual estava bordando umas pantufas para o barão.

XXVII – AS ÁGUAS DO ARCIER

Rosália passou todo o inverno de 1834 a 1835 em tumultuosos movimentos secretos; mas, na primavera, em abril, época na qual completou dezenove anos, dizia consigo às vezes que seria interessante levar a melhor sobre uma duquesa de Argaiolo. No silêncio e na solidão, a perspectiva dessa luta reavivara sua paixão e seus maus pensamentos. Desenvolvia antecipadamente sua temeridade romanesca, arquitetando planos sobre planos. Embora tais caracteres sejam excepcionais, existem, infelizmente, demasiadas Rosálias, e esta história contém uma lição que lhes deve servir de exemplo. Durante aquele inverno, Alberto de Savarus fizera surdamente um progresso imenso em Besançon. Certo do seu triunfo, esperava com impaciência a dissolução da Câmara. Conquistara, entre os homens do justo meio, um dos potentados de Besançon, rico empreiteiro que dispunha de grande influência.

Os romanos por toda parte empregaram esforços enormes, gastaram quantias imensas para ter água excelente, à discrição, em todas as cidades de seu império. Em Besançon bebiam água do Arcier, montanha situada a grande distância. Besançon é uma cidade construída no interior de uma ferradura formada pelo Doubs. Assim, pois, restabelecer o aqueduto dos romanos, para beber a água que aqueles bebiam, numa cidade banhada pelo Doubs, é uma dessas tolices que só se firmam numa província onde reina a mais exemplar gravidade. Se essa fantasia se aninhasse no coração dos besançonenses, deveria obrigar a grandes despesas e essas despesas iam aproveitar ao homem influente. Alberto Savaron de Savarus decidiu que o Doubs só servia para correr sob pontes suspensas, e que a única água potável era a do Arcier. Apareceram artigos na Revue de l’Est que nada mais foram do que a expressão das ideias do comércio besançonês. Tanto os nobres como os burgueses, os moderados como os legitimistas, o governo como a oposição, finalmente, todos ficaram de acordo para beber a água dos romanos e gozar de uma ponte suspensa. A questão das águas do Arcier passou para a ordem do dia, em Besançon. Nessa cidade, do mesmo modo que para as estradas de ferro de Versalhes, como para abusos subsistentes, houve interesses ocultos que deram àquela ideia uma potente vitalidade. De resto, as pessoas razoáveis, em pequeno número, que se opunham ao projeto foram classificadas de palermas.

Só se ocupavam dos dois projetos do advogado Savaron. Após dezoito meses de trabalhos subterrâneos, esse ambicioso conseguira, pois, na mais imóvel cidade da França e a mais refratária aos estranhos, agitá-la profundamente e fazer ali, segundo uma expressão vulgar, a chuva e o bom tempo, exercer uma influência positiva sem nunca ter saído de casa. Resolvera o problema singular de ser poderoso sem popularidade. Durante aquele inverno ganhou sete processos para os eclesiásticos de Besançon. Por isso, às vezes, respirava a ideia de seu futuro triunfo. Esse imenso desejo, que o fazia pôr em cena tantos interesses, inventar tantos recursos, absorvia as últimas forças de sua alma desmedidamente tensa. Gabavam seu desinteresse, aceitava sem observações os honorários dos clientes. Esse desinteresse, porém, era usura moral, esperava um prêmio mais considerável para si do que todo o ouro do mundo. Comprara, aparentemente para auxiliar um comerciante apertado nos negócios, no mês de outubro de 1824, e com o dinheiro de Leopoldo Hannequin, uma casa que lhe dava o censo de elegibilidade. Esse emprego vantajoso de capital não pareceu procurado nem desejado.

— O senhor é realmente um homem notável — disse a Savarus o abade de Grancey, que, naturalmente, observava e adivinhava o advogado. O vigário-geral viera apresentar-lhe um cônego que solicitava os conselhos do causídico. — O senhor — disse-lhe ele — é um padre que errou o caminho.

Esse dito impressionou Savarus.

XXVIII – OS ROUXEY

Por sua vez, Rosália decidira, na sua forte imaginação de débil moça, trazer o sr. de Savarus ao salão e introduzi-lo na sociedade do palacete de Rupt. Limitava ainda seus desejos a ver Alberto e a ouvi-lo. Por assim dizer, transigira, e as transigências, na maioria das vezes, são apenas tréguas.

Os Rouxey, terras patrimoniais dos Watteville, valiam dez mil francos de renda, líquidos; em outras mãos, porém, renderiam muito mais. O desleixo do barão, cuja esposa deveria ter, e teve, quarenta mil francos de rendimento, deixava os Rouxey sob a gerência de uma espécie de mestre Jacques,[189] velho criado da casa de Watteville, chamado Modinier. Não obstante, quando o barão e a baronesa sentiam desejos de ir para o campo, iam aos Rouxey, cuja situação é muito pitoresca. O castelo, o parque, tudo, de resto, fora criado pelo famoso Watteville, cuja velhice ativa se apaixonou por aquele magnífico lugar.

Entre dois pequenos morros, dois picos cujos cimos são nus, e que se denominam o pequeno e o grande Rouxey, no meio de uma garganta por onde as águas desses montes, terminados pelo Dente de Vilard, tombam e se vão reunir às deliciosas fontes do Doubs, Watteville imaginou construir uma enorme barragem, deixando dois escoadouros para o excesso das águas. Para cima de sua barragem, obteve um lago encantador; e para aval, duas cascatas que, juntando-se a poucos passos da sua queda, alimentavam um delicioso ribeiro com o qual ele regava o seco e inculto vale que a torrente dos Rouxey outrora devastara. Aquele lago, aquele vale, aqueles dois montes, tudo ele encerrou com uma cerca, e aí construiu uma casa de campo sobre a barragem, à qual deu três arpentos de largura, mandando levar para ela todas as terras que foi preciso tirar para escavar o leito do rio e os canais de irrigação. Quando o barão obteve o lago acima da barragem, era proprietário dos dois Rouxey, mas não do vale que ficava acima, e que ele inundava daquele modo, pelo qual se transitava por qualquer tempo, e que termina numa ferradura, ao pé do Dente de Vilard. Mas aquele velho selvagem causava tão grande terror que, enquanto viveu, não houve nenhuma reclamação por parte dos habitantes dos Riceys, pequena aldeia situada no contraforte do dente de Vilard. Quando o barão morreu, reunira as encostas dos dois Rouxey, ao pé do Dente de Vilard, por uma forte muralha, a fim de não inundar os dois vales que desembocavam na garganta dos Rouxey, à direita e à esquerda do pico de Vilard. Morreu, tendo conquistado assim o Dente de Vilard. Seus herdeiros fizeram-se protetores da aldeia dos Riceys e mantiveram assim a usurpação. O velho assassino, o velho renegado, o velho abade de Watteville terminara sua carreira plantando árvores, construindo uma estrada soberba, na encosta de um dos Rouxey, que ia ter à estrada real. Desse parque, dessa habitação, dependiam domínios muito mal cultivados, chalés nas duas montanhas e matos não explorados. Aquilo era selvagem e solitário, sob a guarda da natureza, entregue aos azares da vegetação, mas abundante em acidentes sublimes. Podem agora imaginar os Rouxey.

É completamente inútil sobrecarregar esta história narrando os esforços prodigiosos e os ardis verdadeiramente geniais com os quais Rosália chegou a seus fins, sem os deixar perceber. É bastante dizer que, ao deixar Besançon em maio de 1835, numa velha berlinda atrelada com dois bons e gordos cavalos alugados, ela obedecia às ordens da mãe, acompanhando o pai aos Rouxey.

XXIX – UM PROCESSO DE TRUZ

O amor explica tudo às moças. Quando, ao levantar-se, no dia seguinte ao da sua chegada aos Rouxey, a srta. de Watteville avistou da janela do seu quarto o belo lençol de água sobre o qual se erguiam vapores exalados como fumaça, e que se introduziam por entre os pinheiros e os larícios, arrastando-se ao comprido dos dois picos, para alcançar-lhes os cimos, deixou escapar um grito de admiração.

— Eles se amaram em frente aos lagos! Ela está num lago! Decididamente um lago é cheio de amor.

Um lago alimentado pelas neves tem cores de opala e uma transparência que faz dele um vasto diamante; mas, quando está apertado, como o dos Rouxey, entre dois blocos de granito, recobertos de pinheiros, quando reina ali um silêncio de savana ou de estepe, arranca de todos o grito que Rosália acabava de lançar.

— Deve-se isto — disse-lhe o pai — ao famoso Watteville.

— Por Deus — disse a moça —, ele quis fazer-se perdoar suas faltas. Entremos no barco e vamos até a extremidade — disse ela —, ficaremos com apetite para o almoço.

O barão chamou dois moços jardineiros que sabiam remar e levou consigo seu ministro Modinier. O lago tinha seis arpentos de largura, por vezes dez ou doze, e quatrocentos de comprimento. Rosália não tardou em chegar ao fundo, que termina pelo Dente de Vilard, a Jungfrau[190] daquela pequena Suíça.

— Chegamos, senhor barão — disse Modinier, fazendo sinal aos dois jardineiros para amarrarem o barco. — Não quer ver?

— Ver o quê? — perguntou Rosália.

— Oh! Nada — disse o barão. — Mas tu és uma rapariga discreta, temos segredos entre os dois, posso dizer-te o que me trabalha o espírito: desde 1830 despontaram dificuldades entre mim e a comuna de Riceys, justamente por causa do Dente de Vilard, e eu queria apaziguá-los sem que tua mãe soubesse, porque ela é inflexível e seria capaz de fazer incêndios, sobretudo ao saber que o maire dos Riceys, um republicano, foi quem inventou essa contestação para cortejar a sua gente.

Rosália teve a coragem de disfarçar sua alegria, a fim de melhor agir sobre o pai.

— Que contestação? — perguntou.

— Senhorita, a gente dos Riceys — disse Modinier — tem há muito direito de pastagens e lenhagem no seu lado do Dente de Vilard. Ora, o sr. Chantonnit, o maire, desde 1830 acha que todo o dente pertence a sua comuna e sustenta que há cento e tantos anos se passava pelas nossas terras... A senhora compreende que então não estaríamos mais na nossa casa. Depois, esse selvagem chegará a dizer o que dizem os anciãos dos Riceys, que o terreno do lago foi tomado pelo abade de Watteville. É a morte dos Rouxey, ora!

— Infelizmente, minha filha, entre nós, é a verdade — disse ingenuamente o sr. de Watteville. Esta terra é uma usurpação consagrada pelo tempo. Por isso, a fim de não ser nunca atormentado, eu queria propor definir amistosamente meus limites deste lado do Dente de Vilard, e aí levantarei um muro.

— Se o senhor ceder perante a República, ela o devorará. Compete ao senhor ameaçar os Riceys.

— Era o que eu dizia ontem à noite ao senhor barão — respondeu Modinier. — Mas, para abundar nesse sentido, eu lhe propunha que viesse ver se não havia deste lado do Dente, ou do outro, numa altura qualquer, vestígios de tapume.

De havia cem anos, de um lado e de outro, exploravam o Dente de Vilard, essa espécie de muro de divisão entre a comuna dos Riceys e os Rouxey, que não rendia grande coisa, sem ir aos extremos. O objeto do litígio, que passava coberto de neve seis meses por ano, era de natureza a esfriar a questão. Assim foi preciso o ardor insuflado pela revolução de 1830 aos defensores do povo, para fazer ressurgir esse assunto com o qual o sr. Chantonnit, maire dos Riceys, queria dramatizar sua existência na tranquila fronteira da Suíça e imortalizar sua administração. Chantonnit, como o seu nome indica, era natural de Neuchâtel.

XXX – PRÉ-AVISO DE ROSÁLIA

— Meu querido pai — disse Rosália ao voltar para o barco —, eu aprovo Modinier. Se o senhor quer obter direito de meeiro sobre o Dente de Vilard, é necessário agir com vigor e conseguir uma sentença que o ponha a abrigo das empresas desse Chantonnit. Por que lhe teria receio? Tome para seu advogado o famoso Savaron, tome-o já, para que Chantonnit não o encarregue dos interesses da comuna. O homem que ganhou a causa do capítulo contra a prefeitura ganhará certamente a dos Watteville contra os Riceys! De resto — prosseguiu ela —, os Rouxey um dia me pertencerão (o mais tarde possível, assim o espero); pois bem!, não me deixe processos. Gosto desta terra, e aqui residirei com frequência; eu a aumentarei tanto quanto possa. Sobre suas margens — disse, apontando as bases dos rios Rouxey — eu desenharei canteiros e farei encantadores jardins ingleses... Vamos a Besançon e não voltemos aqui senão com o abade de Grancey, o sr. Savaron e minha mãe, se ela quiser. É então que o senhor poderá tomar uma resolução, mas, em seu lugar, eu já a teria tomado. O senhor chama-se Watteville e tem medo de uma luta! Se o senhor perder o processo... Pois bem, não lhe farei nenhuma recriminação.

— Oh! Se tomas a coisa assim — disse o barão —, concordo contigo e chamarei o advogado.

— De resto, um processo é muito divertido. Põe um interesse na vida, a gente vai, vem e se agita. Não vai o senhor ter de dar mil passos até chegar aos juízes?... Não vimos o abade de Grancey durante mais de vinte dias, de tão ocupado que andava!

— Mas tratava-se de toda a existência do capítulo — disse o sr. de Watteville. — Ademais, o amor-próprio, a consciência do arcebispo, tudo o que faz os padres viverem estava comprometido! Esse Savaron não sabe o que fez pelo capítulo. Salvou-o!

— Ouça-me — disse-lhe ela ao ouvido — se quer ter o sr. Savaron do seu lado, terá ganho de causa, não é? Pois bem! Deixe-me dar-lhe um conselho: o senhor só pode conseguir o sr. Savaron para a sua causa por meio do sr. de Grancey. Se me quiser acreditar, falemos juntos a esse querido abade, sem que minha mãe tome parte na conferência, pois sei de um meio que o decidirá a nos trazer o advogado Savaron.

— Vai ser muito difícil não falar com tua mãe.

— O abade de Grancey se encarregará disso, mais tarde; mas decida-se a prometer seu voto ao advogado Savaron, nas próximas eleições, e o senhor verá.

— Ir às eleições! Prestar juramento[191] — exclamou o barão.

— Ora! — disse ela.

— E que dirá tua mãe?

— Talvez ela lhe dê ordem de ir — respondeu Rosália, que sabia, pela carta de Alberto a Leopoldo, dos compromissos do vigário-geral.

XXXI – ARGUTO CONTRA ARGUTO

Quatro dias depois o abade de Grancey introduzia-se sorrateiramente, de manhã muito cedo, em casa de Alberto de Savarus, depois de o ter prevenido, na véspera, de sua visita. O velho padre vinha conquistar o grande advogado para a casa de Watteville, determinação que revelava o tato e a finura que Rosália subterraneamente empregara.

— Em que posso servi-lo, senhor vigário-geral? — disse Savarus.

O abade, que desembuchou o assunto com admirável bonomia, foi ouvido com frieza por Alberto.

— Senhor abade — respondeu ele —, é-me impossível encarregar-me dos interesses da casa dos Watteville, e o senhor vai compreender os motivos. Meu papel aqui consiste em conservar a mais estrita neutralidade. Não quero adotar cores e devo permanecer um enigma até a véspera de minha eleição. Ora, advogar para os Watteville não seria nada em Paris, mas aqui... Aqui, onde tudo se comenta, eu seria para todos o homem de vosso Faubourg Saint-Germain.

— Ora! Julga o senhor — disse o abade — que poderá ficar desconhecido, quando, no dia das eleições, os candidatos se atacarem? Nesse dia saberão que o senhor se chama Savaron de Savarus, que o senhor foi referendário e que é um homem da Restauração!

— No dia das eleições — disse Savarus — eu serei tudo o que for preciso que eu seja. Pretendo falar nas reuniões preparatórias.

— Se o sr. de Watteville e seu partido o apoiarem, o senhor terá cem votos compactos e um pouco mais seguros do que aqueles com que conta. É sempre possível semear a divisão entre os interesses; não se separam as convicções.

— Com os diabos! — replicou Savarus. — Eu o estimo e muito posso fazer pelo senhor, meu reverendo! Há talvez acomodações com o diabo. Seja qual for o processo do sr. de Watteville, pode-se, encarregando Girardet, e guiando-o, fazer a causa arrastar-se até depois das eleições. Só me encarregarei de pleitear depois da minha eleição.

— Faça uma coisa — disse o abade —, vá ao palacete de Rupt; existe lá uma jovem de dezenove anos que terá um dia cem mil libras de renda, e o senhor aparentará lhe estar fazendo a corte.

— Ah! Aquela moça que vejo frequentemente naquele quiosque...

— Sim, a srta. Rosália — replicou o abade de Grancey. — O senhor é ambicioso. Se agradasse a Rosália, o senhor seria tudo o que um ambicioso deseja ser, quem sabe?, talvez ministro. Sempre se é ministro quando, a uma fortuna de cem mil libras de renda, se juntam suas admiráveis capacidades.

— Senhor abade — disse vivamente Alberto —, tivesse embora a srta. de Watteville três vezes mais fortuna e me adorasse, ser-me-ia impossível desposá-la, mesmo assim...

— É casado? — perguntou de Grancey.

— Não na igreja nem na mairie, mas moralmente — disse Savarus.

— É pior quando se toma assim um caso desses — respondeu o abade. — Tudo o que não está feito, pode-se desfazer. Não baseie sua fortuna e seus planos na vontade de uma mulher, do mesmo modo que um homem prudente não deve contar com os sapatos de um morto para se pôr a caminho.

— Deixemos de lado a srta. de Watteville — disse gravemente Alberto — e tratemos de nossos assuntos. Em atenção ao senhor, a quem estimo e respeito, advogarei a causa do sr. de Watteville, mas depois das eleições. Até então, o seu assunto será dirigido por Girardet, de acordo com a minha orientação. É tudo o que posso fazer.

— Há, entretanto, detalhes que não podem ser decididos senão depois de uma inspeção do local — disse o vigário-geral.

— Girardet irá — respondeu Savarus. — Não me posso permitir, numa cidade que conheço perfeitamente, dar certos passos de natureza a comprometer interesses imensos, que a minha eleição oculta.

O abade de Grancey deixou Savarus, dirigindo-lhe um olhar esperto, com o qual parecia rir-se da política compacta do jovem atleta, embora admirando sua resolução.

XXXII – FUROR DE MOÇA

— Ah! Eu terei metido meu pai num processo! Ah! Eu terei feito tudo para te introduzir aqui! — disse Rosália com seus botões, do alto do quiosque, olhando o advogado no seu gabinete, no dia seguinte ao da conferência entre Alberto e de Grancey, cujo resultado lhe fora comunicado pelo pai —; eu terei cometido pecados mortais e tu não virás aos salões do palacete de Rupt, e eu não ouvirei tua voz tão rica? Apresentas condições para o teu concurso, quando os Watteville e os Rupt o solicitam?... Pois bem! Deus o sabe, eu me contentava com essas pequeninas felicidades: ver-te, ouvir-te, ir aos Rouxey contigo, para que os consagrasses com a tua presença. Não pedia mais... Agora, porém, serei tua mulher!... Sim, sim, contempla seus retratos, examina seus salões, seu quarto, as quatro faces da sua vila, as perspectivas dos seus jardins. Esperas a sua estátua! Eu a tornarei de mármore para ti, ela própria!... Essa mulher, aliás, não ama. As artes, as ciências, as letras, o canto, a música tomaram-lhe a metade de seus sentimentos e de sua inteligência. De resto, é velha, tem mais de trinta anos e o meu Alberto seria infeliz!

— Que tens tu, para ficares aí, Rosália? — perguntou-lhe a mãe, vindo perturbar as reflexões da filha. — O sr. de Soulas está no salão e ele notava a tua atitude, que, certamente, revela mais pensamentos do que os que se deve ter na sua idade.

— O sr. de Soulas é inimigo do pensamento? — perguntou.

— Então estavas pensando? — disse a sra. de Watteville.

— Estava, mamãe.

— Pois bem! Não, você não estava pensando. Estava, sim, olhando as janelas desse advogado, com uma preocupação que não é conveniente, nem decente, e que o sr. de Soulas, menos do que qualquer outro, devia notar.

— E por quê? — indagou Rosália.

— Mas — disse a baronesa —, é tempo de você conhecer as minhas intenções. Amadeu acha-a do seu agrado, e você não será infeliz como condessa de Soulas.

Pálida como um lírio, Rosália nada retrucou à mãe, de tal forma a violência de seus sentimentos contrariados a devia tornar estupefata... Em presença, porém, daquele homem, a quem odiava profundamente, fazia um momento, achou não sei que sorriso que as dançarinas acham para o público. Pôde finalmente rir, teve forças para disfarçar seu furor, o qual se acalmou, porque resolveu empregar para seus projetos aquele tolo e gorducho rapaz.

— Sr. Amadeu — disse-lhe ela, durante um momento em que a baronesa estava adiante deles no jardim, deixando-os ostensiva e propositalmente a sós —, o senhor ignorava que o sr. Alberto Savaron de Savarus era legitimista?

— Legitimista?

— Antes de 1830, ele era referendário no Conselho de Estado, adido à presidência do conselho de ministros, bem-visto pelo delfim e pela delfina. O senhor teria andado bem não falando mal dele; mas andaria melhor ainda se fosse este ano às eleições e votasse nele, impedindo assim esse pobre sr. de Chavoncourt de representar a cidade de Besançon.

— Que súbito interesse toma a senhora por esse Savaron?

— O sr. Alberto de Savarus, filho natural do conde de Savarus (oh! guarde-me segredo dessa indiscrição), se for eleito deputado será nosso advogado na questão dos Rouxey. Os Rouxey, disse-me meu pai, serão propriedade minha, quero morar lá; é um lugar encantador! Eu ficaria desesperada se visse destruída aquela magnífica criação do grande Watteville.

— Com os demônios! — monologou Amadeu ao sair do palacete de Rupt. — Essa menina não é tola.

XXXIII – OS CHAVONCOURT

O sr. de Chavoncourt era um monarquista que pertencia aos famosos 221.[192] Por isso, no dia seguinte à Revolução de Julho, pregou a salutar doutrina da prestação do juramento e da luta contra a ordem de coisas, a exemplo dos tories contra os whigs[193] da Inglaterra. Essa doutrina não foi aceita pelos legitimistas, que, na derrota, tiveram o espírito de se dividir de opiniões e de confiar na força da inércia e na Providência. Em choque com a desconfiança do seu partido, o sr. de Chavoncourt afigurou-se, às pessoas do justo meio, a mais excelente escolha; preferiram o triunfo de suas opiniões moderadas à ovação de um republicano que reunia os votos dos exaltados e dos patriotas. O sr. de Chavoncourt, homem estimado em Besançon, representava uma velha família parlamentar; sua fortuna, de cerca de quinze mil francos de renda, não ofuscava ninguém, tanto mais que ele tinha um filho e três filhas. Quinze mil francos de renda nada são com semelhantes encargos. Ora, quando, em tais circunstâncias, um chefe de família permanece incorruptível, é difícil que os eleitores não o estimem. Estes se apaixonam pelo belo ideal da virtude parlamentar, tanto quanto uma plateia pela exposição de sentimentos generosos que muito pouco cultiva. A sra. de Chavoncourt, nessa época com quarenta anos, era uma das belas mulheres de Besançon. Durante as sessões, vivia modestamente num dos seus domínios, a fim de compensar, com as suas economias, as despesas que o sr. de Chavoncourt fazia em Paris. No inverno, ela recebia, honrosamente, um dia por semana, às terças-feiras, mas desempenhando bem o seu ofício de dona de casa. O jovem Chavoncourt, com vinte e dois anos de idade, e um outro gentil-homem, chamado senhor de Vauchelles, não mais rico do que Amadeu e, ademais, seu companheiro de colégio, eram extraordinariamente ligados. Passeavam juntos em Granvelles e juntos faziam algumas pequenas caçadas; eram tão conhecidos por inseparáveis que os convidaram ao mesmo tempo; Rosália, igualmente ligada com as pequenas de Chavoncourt, sabia que os três jovens não tinham segredos uns com os outros. Pensou que, se o sr. de Soulas cometesse uma indiscrição, seria com seus dois amigos íntimos. Ora, o sr. de Vauchelles já tinha plano feito para seu casamento, como Amadeu tinha o dele; queria desposar Vitória, a mais velha das pequenas de Chavoncourt, à qual uma velha tia devia garantir uma propriedade de sete mil francos de renda e cem mil francos no contrato. Vitória era afilhada e predileta dessa tia. Evidentemente, então, os jovens Chavoncourt e Vauchelles avisariam o sr. de Chavoncourt do perigo que as pretensões de Alberto o fariam correr. Isso, porém, não satisfez Rosália: escreveu com a mão esquerda ao prefeito do departamento uma carta anônima assinada um amigo de Luís Filipe, na qual o prevenia da candidatura, mantida secreta, do sr. Alberto de Savarus, fazendo-o compreender o perigoso concurso que um orador monarquista prestaria a Berryer e desvendando-lhe a profundeza da conduta mantida havia dois anos pelo advogado em Besançon. O prefeito era um homem hábil, inimigo pessoal do partido realista e devotado por convicção ao governo de Julho, enfim, um desses homens que fazem com que se diga, na rue de Grenelle, no Ministério do Interior:

— Temos um bom prefeito em Besançon.

Esse prefeito leu a carta e, de acordo com a recomendação, queimou-a.

Rosália queria fazer com que Alberto perdesse a eleição, para conservá-lo mais cinco anos em Besançon.

XXXIV – PREPARATIVOS

As eleições foram então uma luta entre os partidos e, para triunfar, o ministério escolheu o terreno, escolhendo o momento da luta. Assim é que o pleito só devia ferir-se dali a três meses. Quando um homem espera toda a sua vida uma eleição, o tempo que decorre entre a ordem de convocação dos colégios eleitorais e o dia fixado para o ato é um tempo durante o qual a vida rotineira fica suspensa. Por isso Rosália compreendeu quanta latitude lhe deixavam durante esses três meses as preocupações de Alberto. Obteve de Marieta, a quem, como o confessou mais tarde, prometeu tomar a seu serviço, bem como a Jerônimo, que lhe entregasse as cartas que Alberto enviaria para a Itália e as que de lá receberia. E, enquanto maquinava seus planos, essa espantosa rapariga fazia pantufas para o pai, com o ar mais ingênuo do mundo. Redobrou mesmo de candura e de inocência, ao compreender o quanto lhe poderiam servir seus ares de inocência e candura.

— Minha filha se está tornando encantadora — dizia a baronesa de Watteville.

Dois meses antes das eleições, houve uma reunião em casa do sr. Boucher pai, composta do empreiteiro que contava com os trabalhos da ponte das águas do Arcier, do sogro do sr. Boucher, do sr. Granet, o homem influente a quem Savarus prestara um serviço e que o devia propor como candidato, do advogado Girardet, do impressor da Revue de l’Est e do presidente do tribunal do comércio. Enfim, a essa reunião concorreram vinte e sete dessas pessoas chamadas na província os mandachuvas. Cada uma delas representava em média seis votos; mas, ao se recensearem, foram elevadas a dez votos, porque sempre se começa por exagerar a própria influência. Entre essas vinte e sete pessoas, uma pertencia ao prefeito, algum espião que esperava secretamente um favor do ministério, para os seus ou para si próprio. Na primeira reunião concordaram em escolher o advogado Savaron para candidato, com um entusiasmo que ninguém esperaria em Besançon. Esperando, em casa, que Alfredo Boucher o viesse buscar, Alberto conversava com o abade de Grancey, que se interessava por aquela imensa ambição. Alberto reconhecera a enorme capacidade política do padre, e este, comovido com os pedidos daquele moço, consentira gostosamente em lhe servir de guia e de conselheiro nessa luta suprema. O capítulo não gostava do sr. de Chavoncourt, pois o cunhado da mulher deste, presidente do tribunal, o fizera perder o famoso processo na primeira instância.

— Você está sendo traído, meu querido filho — dizia o fino e respeitável abade, com essa voz suave e calma que os velhos padres adquirem.

— Traído!... — exclamou o apaixonado, ferido em pleno coração. — E por quem?

— Não sei — replicou o padre. — A prefeitura está a par dos seus planos e viu seu jogo. Neste momento, não lhe posso dar nenhum conselho. Semelhantes assuntos demandam estudos. Quanto a hoje, nessa reunião, antecipe-se aos golpes que lhe vão atirar. Diga toda a sua vida anterior, e assim poderá atenuar o efeito que tal descoberta produzirá em Besançon.

— Oh! Esperava por isso — disse Savarus com voz alterada.

— Não quis aproveitar-se do meu conselho, teve oportunidade de apresentar-se no palacete de Rupt, não sabe o que teria lucrado...

— O quê?

— A unanimidade dos monarquistas, um acordo momentâneo para apresentar-se às eleições... Enfim, mais de cem votos. Juntando a esses o que entre nós denominamos os votos eclesiásticos, não estaria ainda eleito, mas seria senhor da eleição no desempate. Nesse caso parlamenta-se, consegue-se...

Ao entrar, Alfredo Boucher, que cheio de entusiasmo comunicou a resolução da reunião preparatória, encontrou o vigário-geral e o advogado frios, calmos e graves.

— Adeus, senhor abade — disse Alberto —; falaremos do seu assunto, mais a fundo, depois das eleições.

E o advogado tomou o braço de Alfredo, depois de ter apertado significativamente a mão do sr. de Grancey. O padre olhou o ambicioso, cujo rosto teve então esse ar sublime que os generais devem ter ao ouvir o primeiro tiro de canhão da batalha, e ergueu os olhos para o céu, dizendo: — Que magnífico padre ele daria!

XXXV – ALBERTO À OBRA

A eloquência não está no foro. Raramente o advogado aí patenteia as forças reais da alma e, se assim não fosse, pereceria ao cabo de poucos anos. A eloquência, hoje, raramente se encontra no púlpito; mas está presente em certas sessões da Câmara dos Deputados, onde o ambicioso joga tudo por tudo, onde, picado de mil flechas, explode em dado momento. Isso, porém, é justo em certos seres privilegiados, no quarto de hora fatal em que as pretensões se vão esboroar ou vencer e em que são obrigados a falar. Por isso, nessa reunião, Alberto Savarus, sentindo a necessidade de conseguir adeptos, aplicou todas as faculdades de sua alma e os recursos de seu espírito. Entrou bem no salão, sem acanhamento nem arrogância, sem fraqueza, sem temores, gravemente, e viu-se sem surpresa entre trinta e poucas pessoas. Já a notícia da reunião e das suas decisões havia trazido alguns carneiros dóceis ao ruído da sineta. Antes de ouvir o sr. Boucher, que queria fazer seu speech a propósito da resolução do comitê Boucher, Alberto pediu silêncio fazendo um sinal e apertando a mão do sr. Boucher, como que para preveni-lo de um perigo subitamente surgido.

— Meu jovem amigo Alfredo Boucher acaba de comunicar-me a honra que me é feita. Antes, porém, que essa decisão se torne definitiva — disse o advogado —, julgo dever explicar-vos quem é o vosso candidato, a fim de vos deixar livres ainda de vossas palavras, se minhas declarações perturbarem vossa consciência.

Esse exórdio teve por efeito fazer reinar um profundo silêncio. Alguns homens acharam esse gesto muito nobre.

Alberto explicou sua vida anterior, dizendo seu nome verdadeiro, suas obras sob a Restauração, fazendo-se um novo homem desde sua chegada a Besançon e assumindo compromissos com o futuro. Esse improviso, disseram, manteve ofegante o auditório. Aqueles homens, de interesses tão diversos, foram subjugados pela admirável eloquência que saía aos borbotões do coração e da alma daquele ambicioso. A admiração impediu qualquer reflexão. Não compreenderam senão uma única coisa, a coisa que Alberto queria meter naquelas cabeças.

Não era preferível, para uma cidade, ter um desses homens destinados a governar a sociedade inteira, a ter uma máquina de votar?. Um homem de Estado traz consigo um poder completo, o deputado medíocre, mas incorruptível, nada mais é além de uma consciência. Que glória para a Provença ter adivinhado Mirabeau, ter mandado, depois de 1830, o único homem de Estado que a Revolução de Julho produziu![194]

Submetidos à pressão daquela eloquência, todos os ouvintes a julgaram de força a se tornar um magnífico instrumento político no seu representante. Todos viram, em Alberto Savaron de Savarus, o ministro. Por ter adivinhado os cálculos secretos de seus ouvintes, o hábil candidato os fez compreender que eles, antes dos demais, adquiriam o direito de se servirem de sua influência.

Essa profissão de fé, essa declaração de ambicioso, a exposição de sua vida e de seu caráter, tudo isso foi, no dizer do único homem capaz de julgar Savarus e que depois se tornou uma das capacidades de Besançon, uma obra-prima de habilidade, de sentimento, de ardor, de interesse e de sedução. Aquele turbilhão envolveu os eleitores. Jamais homem algum obteve semelhante triunfo. Infelizmente, porém, a palavra, espécie de arma de pouco alcance, não tem senão um efeito imediato. A reflexão mata a palavra, quando a palavra não triunfa sobre a reflexão. Se tivessem votado, certamente que o nome de Alberto teria saído da urna! Naquele instante, seria vencedor. Era-lhe, porém, preciso vencer assim, todos os dias, durante dois meses. Alberto saiu palpitante. Aplaudido pelos besançonenses, obtivera o grande resultado de destruir antecipadamente as más referências a que dariam margem seus antecedentes. O comércio de Besançon fez do advogado Savaron de Savarus seu candidato. O entusiasmo de Alfredo Boucher, contagioso no começo, devia com o tempo tornar-se desastrado.

O prefeito, apavorado com aquele triunfo, pôs-se a contar o número de votos ministeriais, e conseguiu uma entrevista secreta com o sr. de Chavoncourt, a fim de se coligarem num interesse comum. Cada dia que passava, e sem que Alberto pudesse saber como, os votos do comitê Boucher diminuíam. Um mês antes das eleições, Alberto se via com apenas sessenta votos. Nada resistia ao lento trabalho da prefeitura. Três ou quatro homens hábeis diziam aos clientes de Savarus: “O deputado advogará e ganhará os vossos processos? Dar-vos-á conselhos? Fará ele os vossos tratados? As vossas transações? Os senhores o terão como escravo mais cinco anos se, em vez de o mandarem à Câmara, lhe derem somente a esperança de ir ao cabo desse tempo”. Esse cálculo foi tanto mais nocivo para Savarus, por já ter sido feito por algumas mulheres de negociantes. Os interessados no assunto da ponte e no das águas do Arcier não resistiram a uma conferência com um esperto ministerial, que lhes demonstrou que a proteção para eles estava na prefeitura e não num ambicioso. Cada dia trazia uma defecção para Alberto, embora todos os dias houvesse uma batalha dirigida por ele, mas ferida pelos seus lugares-tenentes, uma batalha de palavras, de discursos, de negociações. Ele não se atrevia a ir à casa do vigário-geral, e o vigário-geral não aparecia. Alberto levantava-se e deitava-se com febre e o cérebro a arder.

XXXVI – A REUNIÃO PREPARATÓRIA

Chegou finalmente o dia da primeira luta, o que se denomina reunião preparatória, na qual se contam os votos, os candidatos avaliam suas probabilidades e onde as pessoas hábeis podem prever sua queda ou seu êxito. É uma cena de hustings[195] honesta, sem populacho, mas terrível: as emoções, se não têm expressão física como na Inglaterra, nem por isso são menos profundas. Os ingleses fazem as coisas a socos; em França, elas se fazem a golpes de palavras. Nossos vizinhos têm uma batalha; os franceses jogam a sorte com frias combinações elaboradas calmamente. Esse ato político realiza-se ao inverso do caráter das duas nações. O partido radical teve seu candidato; o sr. de Chavoncourt apresentou-se; depois veio Alberto, que foi acusado pelos radicais e pelo comitê Chavoncourt de ser um homem da direita sem transação, um outro Berryer; o ministério tinha seu candidato, um homem sacrificado que servia para acumular os votos ministeriais puros. A votação, assim dividida, não chegava a nenhum resultado. O candidato republicano teve vinte votos. O ministério reuniu cinquenta, Alberto conseguiu setenta, o sr. de Chavoncourt obteve sessenta e sete. Mas a pérfida prefeitura fizera votar em Alberto trinta dos seus mais fiéis secretários a fim de enganar o seu antagonista. Os votos do sr. de Chavoncourt, somados aos oitenta votos efetivos da prefeitura, tornavam-nos senhores da eleição, por pouco que o prefeito soubesse captar alguns votos do partido radical. Faltavam cento e sessenta votos, os do sr. de Grancey e os votos legitimistas. Uma reunião preparatória está para as eleições como um ensaio geral para a representação no teatro, isto é, o que há de mais enganador no mundo. Alberto Savarus voltou para casa mantendo uma boa atitude, mas agonizando. Ele tivera o espírito, o gênio ou a felicidade de conquistar naqueles quinze últimos dias dois homens devotados, o sogro de Girardet e um velho negociante muito esperto, a cuja casa o sr. de Grancey o fizera ir. Esses dois homens de bem, tornados seus espiões, pareciam ser os mais ardorosos inimigos de Savarus nos campos opostos. No fim da sessão preparatória, eles informaram Savarus, por intermédio do sr. Boucher, que trinta votos desconhecidos faziam contra ele, no seu partido, o ofício que ambos faziam por sua conta entre os outros. Um criminoso que marcha para o suplício não sofre o que sofreu Alberto ao voltar para casa, da sala onde se resolvera sua sorte. O apaixonado, desesperado, não quis ser acompanhado por ninguém. Vagueou sozinho pelas ruas, entre onze e meia-noite. À uma da manhã, Alberto, que havia três dias não conseguia dormir, estava sentado na sua biblioteca, numa poltrona à Voltaire, com a palidez de quem vai expirar, as mãos pendentes, numa atitude de abandono digna de Madalena. Por entre seus longos cílios bailavam lágrimas, dessas lágrimas que molham os olhos, mas não escorrem pelas faces; o pensamento bebe-as, o fogo da alma devora-as!

Sozinho, podia chorar. Entreviu então, no quiosque, uma forma branca que lhe lembrou Francesca.

— E já vão três meses que não recebo carta dela! Que lhe terá acontecido? Passei dois meses sem escrever-lhe, mas preveni-a. Estará doente? Ó meu amor! Ó minha vida! Saberás jamais o que tenho sofrido? Que organização fatal esta minha! Terei um aneurisma? — a si mesmo perguntou, ao sentir o coração bater tão violentamente que as pulsações repercutiam no silêncio, como se leves grãos de areia caíssem sobre um bombo.

Naquele instante três pancadas diretas ressoaram na porta de Alberto. Ele foi prontamente abrir e quase desmaiou de alegria ao ver o vigário-geral com ar festivo, ar de triunfo.

XXXVII – UM PADRE É UM AMIGO CERTO

Pegou o abade de Grancey, sem lhe dizer palavra, manteve-o nos braços, apertou-o, deixando a cabeça reclinar-se no ombro do ancião. E voltou a ser criança, chorou como havia chorado quando soube que Francesca Soderini era casada. Não deixou ver sua fraqueza senão àquele padre, em cujo semblante brilhava um clarão de esperança. O padre fora sublime, e tão esperto quanto sublime.

— Perdão, querido abade, mas o senhor chegou num desses momentos supremos em que o homem desaparece, pois não julgue que eu seja um ambicioso vulgar.

— Sei, sei — disse o abade —, você escreveu O ambicioso por amor! Pois saiba, meu filho, foi um desespero de apaixonado que me fez padre em 1786, aos vinte e dois anos. Em 1788 eu era cura. Conheço a vida. Já recusei três bispados, quero morrer em Besançon.

— Venha vê-la, quer? — exclamou Savarus, pegando uma vela e conduzindo o abade ao gabinete magnífico onde estava o retrato da duquesa de Argaiolo, que ele iluminou.

— É uma dessas mulheres feitas para reinar! — disse o vigário, compreendendo o grau de afeição que lhe demonstrava Alberto com aquela muda confidência. — Mas há muita altivez nessa fronte; é implacável, jamais perdoaria uma injúria! É um arcanjo Miguel, o anjo das execuções, o anjo inflexível... Tudo ou nada! é o lema desses caracteres angelicais. Há um não sei quê de divinamente selvagem nessa cabeça...

— O senhor adivinhou-a perfeitamente bem — exclamou Savarus. — Mas, querido abade, faz já doze anos que ela reina sobre a minha vida e não tenho um pensamento a censurar-me...

— Ah!, se tivesse feito o mesmo quanto a Deus! — disse ingenuamente o abade. — Falemos dos seus negócios. Vão dez dias que trabalho para o senhor. Se é um verdadeiro político seguirá meus conselhos desta vez. Não chegaria ao ponto a que chegou se tivesse ido, quando lhe falei, ao palacete de Rupt; mas irá amanhã, eu o apresentarei à noite. A terra dos Rouxey está ameaçada, é preciso pleitear em dois dias. A eleição não se realizará antes de três dias. Ter-se-á a precaução de não terminar a constituição da mesa no primeiro dia; teremos vários escrutínios, e o senhor chegará a um empate...

— Como?

— Ganhando o processo dos Rouxey, o senhor terá oitenta votos legitimistas, acrescente-os aos trinta de que disponho, alcançaremos cento e dez. Ora, como lhe sobrarão vinte do comitê Boucher, terá ao todo cento e trinta.

— Mas — disse Alberto — são precisos mais setenta e cinco...

— Sim — disse o padre —, porque o resto é do ministério. Mas, meu filho, você tem seus duzentos votos e a prefeitura não tem mais do que cento e oitenta.

— Eu tenho duzentos votos? — disse Alberto, que ficou tolhido de espanto, depois de se ter posto de pé, como se movido por uma mola.

— O senhor terá os votos do sr. de Chavoncourt.

— E como? — disse Alberto.

— O senhor desposará a srta. Sidônia de Chavoncourt.

— Nunca!

— O senhor desposará a srta. Sidônia de Chavoncourt — repetiu friamente o padre.

— Mas veja! Ela é implacável — disse Alberto apontando para a francesa.

— O senhor desposará a srta. de Chavoncourt — repetiu friamente o padre pela terceira vez.

Dessa vez Alberto compreendeu. O vigário-geral não queria imiscuir-se no plano que sorria finalmente àquele político desesperado. Uma palavra mais comprometeria a dignidade, a honestidade do padre.

— O senhor encontrará amanhã, no palacete de Rupt, a sra. de Chavoncourt e sua segunda filha; o senhor lhe agradecerá o que ela deve fazer pelo senhor, dir-lhe-á que sua gratidão não tem limites, que lhe pertencem o corpo e a alma, pois não é seu futuro, daqui por diante, o da família? O senhor é desinteressado, tem tamanha confiança em si mesmo que considera a sua eleição para deputado como um dote suficiente. Terá um combate com a sra. de Chavoncourt, ela exigirá sua palavra. Esse serão, meu filho, é todo o seu futuro. Mas, saiba-o, eu nada tenho a ver com isso. Eu sou responsável apenas pelos votos legitimistas; conquistei-lhe a sra. de Watteville, e é toda a aristocracia de Besançon. Amadeu de Soulas e Vauchelles, que votarão no senhor, arrastarão a mocidade; a sra. de Watteville lhe dará os velhos. Quanto aos meus votos, esses são infalíveis.

— Mas quem virou a sra. de Chavoncourt? — perguntou Savarus.

— Não me faça pergunta — respondeu o abade. — O sr. de Chavoncourt, que tem três filhas para casar, é incapaz de aumentar sua fortuna. Se Vauchelles desposa a primogênita sem dote, por causa da velha tia que financia o contrato, que fazer das outras duas? Sidônia tem dezesseis anos, e o senhor tem tesouros na sua ambição. Alguém disse à sra. de Chavoncourt que era preferível casar a filha a mandar o marido gastar dinheiro em Paris. Esse alguém dirige a sra. de Chavoncourt, e a sra. de Chavoncourt dirige o marido.

— Basta, querido abade! Compreendo. Uma vez eleito deputado, tenho de fazer a fortuna de alguém, e fazendo-a esplêndida resgato minhas palavras. Tem o senhor em mim um filho, um homem que lhe deverá sua felicidade. Meu Deus!, que fiz eu para merecer uma amizade tão verdadeira?

— O senhor fez o capítulo triunfar — disse, sorrindo, o vigário-geral. — Agora guarde um segredo tumular sobre tudo isso. Nós nada somos, nada fazemos. Se soubessem que nos imiscuímos em eleições, seríamos comidos crus pelos puritanos da esquerda, que fazem muito pior, e seríamos censurados por alguns dos nossos, que querem tudo. A sra. de Chavoncourt não suspeita a minha participação em tudo isso. Não me fiei senão na sra. de Watteville, em quem podemos confiar como em nós próprios.

— Eu lhe trarei a duquesa, para que o senhor nos abençoe! — exclamou o ambicioso.

Depois de ter reconduzido o padre, Alberto deitou-se nos cueiros do poder.

XXXVIII – INEXPLICÁVEL

Às nove horas da noite do dia seguinte, como todos podem imaginar, os salões da sra. de Watteville regurgitavam da aristocracia besançonense extraordinariamente convocada. Discutia-se a exceção de comparecer às eleições[196] para dar prazer à filha dos Rupt. Sabia-se que ia ser apresentado o antigo referendário, o secretário de um dos mais fiéis ministros do ramo primogênito. A sra. de Chavoncourt viera com a sua segunda filha, Sidônia, vestida divinamente bem. Ao passo que a mais velha, segura do seu pretendente, não recorrera a nenhum artifício de toilette. Essas pequeninas coisas são observadas na província. O abade de Grancey mostrava sua bela cabeça fina, de grupo em grupo, ouvindo, tendo o ar de quem não se metia em nada, mas dizendo essas frases incisivas que resumem as questões e as dirigem.

— Se o ramo primogênito voltasse — dizia ele a um antigo estadista septuagenário —, que políticos encontraria? Sozinho na sua cadeira, Berryer não sabe o que fazer; se tivesse sessenta votos, ele entravaria o governo em muitas oportunidades e derrubaria ministérios! Vão eleger o duque de Fitz-James[197] em Toulouse. O senhor fará o sr. de Watteville ganhar seu processo. Se votar no sr. Savarus, os republicanos votarão no senhor, de preferência, a votarem com o justo meio! etc. etc.

Às nove horas, Alberto ainda não chegara. A sra. de Watteville considerou esse atraso uma impertinência.

— Querida baronesa — disse a sra. de Chavoncourt —, não façamos assuntos tão sérios dependerem de uma ninharia. Alguma bota envernizada que custa a secar... uma consulta... retêm talvez o sr. Savarus.

Rosália olhou de esguelha para a sra. de Chavoncourt.

— Ela se mostra muito boa para o sr. de Savarus — disse ela em voz baixa para a mãe.

— Mas — replicou a baronesa, sorrindo — trata-se de um casamento entre Sidônia e o sr. de Savarus.

A srta. de Watteville foi bruscamente para uma janela que dava para o jardim. Às dez horas Alberto de Savarus ainda não aparecera. A tormenta que rugia explodiu. Alguns nobres puseram-se a jogar, achando a coisa intolerável. O abade de Grancey, que não sabia o que pensar, foi à janela onde Rosália se escondera e disse em voz alta, de tanto que estava estupefato: — Deve ter morrido! — O vigário-geral foi ao jardim acompanhado pelo sr. de Watteville e da filha deste, e os três subiram ao quiosque. Tudo em casa de Alberto estava fechado, não se via nenhuma luz.

— Jerônimo — gritou Rosália, ao ver o criado no pátio. O abade de Grancey olhou-a espantado. — Onde está seu patrão? — disse ela ao criado, que chegara junto ao muro.

— Partiu na diligência, senhorita.

— Ele está ou perdido ou feliz — exclamou o abade de Grancey.

A alegria do triunfo não foi tão bem disfarçada no semblante de Rosália que o vigário-geral não a percebesse, fingindo, porém, nada ter visto.

“Que parte poderá ter essa rapariga nisso tudo?”, indagou consigo.

Voltaram os três ao salão, onde o sr. de Watteville participou a estranha, a singular, a surpreendente nova, da partida do advogado Alberto Savaron de Savarus, na diligência, sem que se soubessem os motivos desse desaparecimento. Às onze e meia, só restavam quinze pessoas, entre as quais a sra. de Chavoncourt e o abade de Godenars, um outro vigário-geral, homem de cerca de quarenta anos que queria ser bispo, as duas srtas. de Chavoncourt e o sr. de Vauchelles, o abade de Grancey, Rosália, Amadeu de Soulas e um antigo magistrado demissionário, uma das mais influentes personagens da alta sociedade de Besançon, que fazia questão da eleição de Alberto de Savarus. O abade de Grancey pôs-se ao lado da baronesa, de modo a olhar Rosália, cujo rosto, habitualmente pálido, apresentava então uma coloração febril.

— Que poderá ter acontecido ao sr. de Savarus? — disse a srta. de Chavoncourt.

Naquele momento, um criado de libré trouxe, numa bandeja de prata, uma carta para o sr. de Grancey.

— Leia — disse a baronesa.

O vigário-geral leu a carta e viu Rosália ficar branca como a sua gola de renda.

“Ela reconheceu a letra”, disse ele consigo, depois de ter dirigido à moça um olhar por cima dos óculos. Dobrou a carta, friamente, guardou-a no bolso, sem dizer palavra. Em três minutos, recebeu de Rosália três olhares que lhe bastaram para compreender tudo. “Ela ama Alberto de Savarus”, pensou o vigário-geral. Ergueu-se, saudou a todos, deu alguns passos em direção à porta e, no segundo salão, foi alcançado por Rosália, que lhe disse: — Senhor de Grancey, é de Alberto!

— Como pode conhecer tão bem a letra dele para a distinguir de tão longe?

A moça, caída nas teias de sua impaciência e de sua cólera, disse uma frase que o vigário achou sublime.

— Porque o amo! Que há? — disse, após uma pausa.

— Ele renuncia à sua eleição — respondeu o vigário.

— Peço segredo como para uma confissão — disse ela, antes de voltar ao salão. — Se não há eleição, não haverá mais casamento com Sidônia!

XXXIX – ALBERTO SAVARUS RAPTADO

No dia seguinte de manhã, ao ir à missa, a srta. de Watteville soube por Marieta uma parte das circunstâncias que haviam motivado o desaparecimento de Alberto, no mais crítico momento de sua vida.

— Senhorita, ontem pela manhã chegou ao Hotel Nacional, vindo de Paris, um velho senhor, que tinha a sua carruagem, uma bonita carruagem com quatro cavalos, um batedor na frente e um criado. Enfim, Jerônimo, que viu o carro ao partir, acha que não pode deixar de ser um príncipe ou um lord.

— A carruagem tinha uma coroa fechada? — perguntou Rosália.

— Não sei — disse Marieta. — Ao soar duas horas, ele chegou em casa do sr. Savarus, mandando apresentar-lhe seu cartão de visita, e ao vê-lo, o senhor, disse Jerônimo, ficou pálido como um lençol e mandou que o fizessem entrar. Como ele próprio fechou a porta a chave, foi impossível saber o que disseram aquele velho senhor e o advogado; mas ficaram juntos mais ou menos uma hora, depois do que o velho senhor, acompanhado do advogado, fez subir o seu criado. Jerônimo viu aquele criado sair com um grande embrulho de quatro pés de comprimento, que parecia uma enorme tela de lona. O velho senhor levava na mão um maço de papéis. O advogado, mais pálido do que se estivesse para morrer, ele que é tão altivo, tão digno, estava num estado de dar lástima... Mas tratava o velho senhor tão respeitosamente como o teria feito com o rei. Jerônimo e o sr. Alberto Savaron acompanharam o ancião até o carro, que já estava atrelado com os quatro cavalos. O batedor partiu ao bater três horas. O senhor foi direto à prefeitura e de lá à casa do sr. Gentillet, que lhe vendeu a velha caleça de viagem da falecida sra. de Saint-Vier; depois encomendou cavalos na posta para as seis horas. Voltou para casa a fim de fazer seus embrulhos; escreveu, sem dúvida, vários bilhetes; enfim, pôs seus negócios em ordem com o sr. Girardet, que veio e ficou até as sete horas. Jerônimo levou um bilhete à casa do sr. Boucher, onde o patrão estava sendo esperado para jantar. Então, às sete e meia, o advogado partiu, deixando três meses de ordenado a Jerônimo e dizendo-lhe que procurasse colocação. Deixou as chaves com o sr. Girardet, a quem levou a casa, e onde, disse Jerônimo, tomou uma sopa, pois o sr. Girardet ainda não tinha jantado às sete e meia! Quando o sr. Savaron subiu no carro, estava como morto. Jerônimo, que naturalmente cumprimentou o patrão, ouviu-o dizer ao cocheiro: Estrada de Genebra.

— Jerônimo não perguntou o nome do estrangeiro no Hotel Nacional?

— Como o velho senhor estava apenas de passagem, não lhe perguntaram o nome. O criado, sem dúvida por ordem, parecia não saber francês.

— E a carta que o vigário Grancey recebeu tão tarde? — disse Rosália.

— Era sem dúvida o sr. Girardet que estava encarregado de entregá-la; mas Jerônimo disse que esse pobre sr. Girardet, que estima o advogado Savaron, estava tão impressionado como este. O que veio com mistério, com mistério se vai — disse a srta. Galard.

Rosália, depois dessa narrativa, ficou com ar pensativo e absorto, que se tornou visível para todos. É inútil falar no barulho que causou em Besançon o desaparecimento do advogado Savaron. Soube-se que o prefeito, solicitamente, e com a melhor boa vontade do mundo, se prontificara a expedir imediatamente um passaporte para o estrangeiro, porque assim se via desembaraçado do seu único adversário. No dia seguinte, o sr. de Chavoncourt foi eleito sem dificuldade por uma maioria de cento e quarenta votos.

— João se foi, como veio[198] — disse um eleitor ao ter conhecimento da fuga de Alberto Savaron.

Esse acontecimento reforçou os preconceitos existentes em Besançon contra os “estrangeiros” e que dois anos antes tinham sido corroborados, a propósito da questão do jornal republicano. Dez dias depois, ninguém mais falava em Alberto Savarus. Somente três pessoas: o advogado Girardet, o vigário-geral e Rosália tinham ficado gravemente afetados com aquele desaparecimento. Girardet sabia que o estrangeiro de cabelos brancos era o príncipe de Soderini, pois vira o cartão de visita, e o disse ao vigário-geral, mas Rosália, muito mais informada do que eles, estava a par, fazia três meses, da notícia da morte do duque de Argaiolo.

XL – MUITOS ACONTECIMENTOS

Em abril de 1836, ninguém tivera notícias nem ouvira falar do sr. Alberto de Savarus. Jerônimo e Marieta iam casar-se, mas a baronesa disse confidencialmente à sua camareira que esperasse o casamento da filha, e que as duas bodas se realizariam na mesma ocasião.

— Já é tempo de casar Rosália — disse um dia a baronesa ao sr. de Watteville —, ela tem dezenove anos, e desde alguns meses vem mudando que dá medo.

— Não sei o que ela tem — disse o barão.

— Quando os pais não sabem o que as filhas têm, as mães o adivinham — disse a baronesa —; é preciso casá-la.

— Pois estou de acordo — disse o barão — e, no que me diz respeito, dou-lhe os Rouxey, agora que o tribunal estabeleceu o acordo entre nós e a comuna dos Riceys, fixando meus limites a trezentos metros, a partir da base do Dente de Vilard. Estão cavando um fosso para recolher todas as águas e canalizá-las para o lago. A comuna não apelou; o julgamento, portanto, é definitivo.

— O senhor ainda não percebeu que esse julgamento me custa trinta mil francos, dados a Chantonnit. Esse campônio não queria outra coisa, vendeu-nos a paz. Se der os Rouxey, não lhe sobrará mais nada — disse a baronesa.

— Não preciso de grande coisa — disse o barão —, eu me estou indo.

— Come que nem um ogro.

— Justamente; por mais que coma, sinto as pernas cada vez mais fracas.

— É de tanto tornear.

— Não sei — disse o barão.

— Casaremos Rosália com o sr. de Soulas; se lhes der os Rouxey, reserve-se o usufruto; eu lhes darei quinze mil francos de renda no Grande-Livro.[199] Nossos filhos ficarão aqui, não vejo que isso os faça muito infelizes.

— Não, eu lhes darei os Rouxey em plena posse. Rosália gosta dos Rouxey.

— O senhor é singular com sua filha! Não me pergunta a mim se gosto dos Rouxey?

Rosália, chamada imediatamente, soube que desposaria o sr. de Soulas nos primeiros dias do mês de maio.

— Agradeço-lhe, minha mãe, e ao senhor, meu pai, por terem pensado na minha instalação na vida, mas não quero casar, sinto-me muito feliz de estar com ambos...

— Frases! — disse a baronesa. — Não ama o conde de Soulas, eis tudo.

— Se quer saber a verdade, nunca me casarei com o sr. de Soulas.

— Oh! O nunca de uma menina de dezenove anos! — disse a baronesa sorrindo com amargura.

— O nunca da srta. de Watteville — disse Rosália, acentuando as palavras. — Meu pai, quero crer, não tem a intenção de casar-me sem o meu consentimento, não?

— Oh! Francamente, não — disse o pobre homem, olhando a filha com ternura.

— Pois bem! — replicou a baronesa com secura, contendo um furor de devota surpreendida, ao ver-se afrontada de improviso — encarregue-se, sr. de Watteville, de estabelecer o senhor mesmo sua filha! Pense bem, senhorita: se não fizer um casamento do meu agrado, nada receberá de mim para o seu estabelecimento.

A querela assim iniciada entre a sra. de Watteville e o barão, que apoiava a filha, foi tão longe que Rosália e o pai foram obrigados a passar primavera e verão nos Rouxey; a moradia no palacete de Rupt se lhes tornara insuportável. Soube-se então em Besançon que a srta. de Watteville recusara decididamente o conde de Soulas. Depois de casarem, Jerônimo e Marieta tinham ido para os Rouxey, a fim de um dia substituírem Modinier.

O barão reparou, restaurou a Chartreuse ao gosto da filha. Ao ter conhecimento de que aquela restauração custava cerca de sessenta mil francos, que Rosália e o pai tinham mandado construir uma estufa para plantas, a baronesa percebeu um grão de malícia na filha. O barão comprou alguns terrenos encravados no seu e uma pequena propriedade no valor de trinta mil francos. Disseram à sra. de Watteville que, longe dela, Rosália se mostrava uma rapariga de truz, estudava os meios de valorizar os Rouxey, adquirira uma amazona e montava a cavalo; o pai, a quem ela fazia feliz, que não se queixava mais da saúde, que estava engordando, acompanhava-a nas suas excursões. Nas vésperas do onomástico da baronesa, que se chamava Clotilde-Luísa, o vigário-geral foi então aos Rouxey, com certeza mandado pela sra. de Watteville e pelo sr. de Soulas, a fim de negociar a reconciliação entre mãe e filha.

— Aquela pequena Rosália tem cabeça — diziam em Besançon.

Depois de nobremente ter pagado os noventa mil francos gastos nos Rouxey, a baronesa mandou entregar ao marido mais ou menos mil francos por mês, para viver lá; não queria que a culpassem. Pai e filha prazerosamente concordaram em voltar a Besançon a 15 de agosto, para lá ficar até o fim do mês.

Quando o vigário-geral, depois do jantar, chamou a srta. de Watteville à parte, para entabular o assunto do casamento, fazendo-lhe compreender que não mais devia contar com Alberto, de quem, havia um ano, não se tivera nenhuma notícia, um gesto de Rosália deteve-o de súbito. Aquela estranha rapariga pegou o sr. de Grancey pelo braço e levou-o até um banco, embaixo de um bosquete de rododendros, de onde se avistava o lago.

— Ouça, querido abade: ao senhor a quem tanto quero como a meu pai, porque o senhor gosta do meu Alberto, devo afinal confessar-lhe: cometi crimes para ser mulher dele, e ele tem de ser meu marido... Veja, leia!

Entregou-lhe um número de um jornal que tinha no bolso de seu avental, mostrando-lhe a seguinte notícia, datada de Florença, 25 de maio:


O casamento do sr. duque de Rhétoré,[200] filho primogênito do duque de Chaulieu, antigo embaixador, com a sra. duquesa de Argaiolo, em solteira princesa Soderini, celebrou-se em grande pompa. Numerosas festas, dadas por ocasião desse casamento, animam neste momento a cidade de Florença. A fortuna da sra. de Argaiolo é uma das maiores da Itália, pois o falecido duque a instituíra sua herdeira universal.


— A mulher que ele amava está casada — disse ela —, eu os separei.

— Você! Como? — exclamou o abade.

Rosália ia responder quando um grande grito soltado por dois jardineiros, e precedido do ruído de um corpo caindo na água, interrompeu-a. Ela levantou-se e correu gritando:

— Oh! Meu pai!...

Não via mais o barão.

Ao tentar apanhar um fragmento de granito no qual julgara ver a impressão de uma concha, fato que teria invalidado algum sistema de geologia, o sr. de Watteville avançara por sobre o talude, perdera o equilíbrio e caíra no lago, cuja maior profundidade se achava justamente junto ao aterro. Os jardineiros tiveram um trabalho insano para fazer o barão agarrar uma vara, remexendo um lugar onde a água fervia; trouxeram-no por fim, coberto de lodo, no qual ele se aprofundara e onde cada vez mais se enterrava ao debater-se. O sr. de Watteville jantara copiosamente, já começara a digestão, que assim foi interrompida. Depois de despido, limpo, deitado na cama, ficou num estado tão visivelmente perigoso que dois criados montaram a cavalo, um para ir a Besançon, e outro para ir buscar no lugar mais perto possível um médico e um cirurgião. Quando a sra. de Watteville chegou, dali a oito horas depois do acontecimento, em companhia dos primeiros cirurgiões e médicos de Besançon, encontrou o sr. de Watteville em estado desesperador, não obstante os cuidados inteligentes do médico dos Rouxey. O medo determinara uma infiltração serosa no cérebro e a digestão interrompida acabava de matar o pobre barão.

Essa morte, que não se teria dado, dizia a sra. de Watteville, se seu marido tivesse ficado em Besançon, foi por ela atribuída à resistência da filha, a quem tomou aversão, entregando-se a uma dor e a pesares evidentemente exagerados. Chamava o barão de seu querido cordeiro! O último dos Watteville foi enterrado numa ilhota do lago dos Rouxey, onde a baronesa mandou erigir um pequeno monumento gótico, em mármore branco, semelhante ao que se diz de Heloísa, no Père-Lachaise.[201]

XLI – OS CRIMES DE ROSÁLIA

Um mês depois desse acontecimento, a baronesa e a filha viviam no palacete de Rupt num silêncio selvagem. Rosália, dominada por uma dor séria, que não se expandia no exterior, a si mesma se acusava da morte do pai e suspeitava de outra desgraça, ainda maior a seus olhos, e bem certamente sua, pois nem o advogado Girardet nem o abade de Grancey obtinham esclarecimentos sobre o destino de Alberto. Esse silêncio era apavorante. Num paroxismo de arrependimento, ela sentiu necessidade de revelar ao vigário-geral as terríveis intrigas com as quais separara Francesca de Alberto. Foi uma coisa simples e formidável. A srta. de Watteville suprimira as cartas de Alberto para a duquesa, e a carta pela qual Francesca comunicava ao amante a doença do marido, prevenindo-o de que não lhe poderia responder durante o tempo em que se consagrasse, como era seu dever, ao moribundo. Assim, durante as preocupações de Alberto, relativas às eleições, a duquesa não lhe escrevera senão duas cartas, uma em que lhe noticiava o estado do duque de Argaiolo, e a outra na qual lhe dizia estar viúva, duas nobres e sublimes cartas, que Rosália guardou. Depois de ter trabalhado durante várias noites, ela conseguira imitar perfeitamente a letra de Alberto. Às verdadeiras cartas daquele amante fiel, ela substituíra três cartas, cujos rascunhos mostrados ao velho padre o fizeram estremecer, de tal forma ali se mostrava o gênio do mal em toda a sua perfeição. Rosália, empunhando a pena em lugar de Alberto, preparava naquelas cartas a duquesa para a mudança do francês falsamente infiel, e, por ocasião da morte do duque de Argaiolo, a essa notícia respondeu com a do próximo casamento de Alberto com a srta. de Watteville. As duas cartas deviam cruzar-se. O espírito infernal com que foram escritas surpreendeu de tal forma o vigário-geral que ele as releu. À última, Francesca, ferida no coração por uma rapariga que queria matar o amor na sua rival, respondeu com estas simples palavras: Está livre, adeus.

— Os crimes puramente morais e que não dão margem à ação da justiça humana são os mais infames e mais odiosos — disse severamente o abade de Grancey. — Deus os pune muitas vezes aqui mesmo; reside aí o motivo das espantosas desgraças que nos parecem inexplicáveis. De todos os crimes secretos sepultados nos mistérios da vida privada, um dos mais desonrosos é o de violar o envelope de uma carta ou de lê-la sub-repticiamente. Toda e qualquer pessoa, seja ela quem for, levada por uma razão qualquer, que se permite esse ato, põe uma mácula inapagável na sua probidade. Não sente o que há de comovedor, de divino, na história daquele jovem pajem, falsamente acusado, que leva uma carta, na qual vai a ordem para matá-lo, que se põe a caminho sem um mau pensamento, que a Providência toma então sob sua proteção e a quem salva, milagrosamente, dizemos. Sabe em que consiste o milagre? As virtudes têm uma auréola tão poderosa como a da criança inocente. Digo-lhe estas coisas sem querer admoestá-la — disse o velho padre a Rosália com profunda tristeza. — Ai de mim! Não sou aqui o grande penitenciário, a senhora não está ajoelhada aos pés de Deus, sou um amigo aterrorizado pela apreensão dos seus castigos. Que foi feito desse pobre Alberto? Não se teria ele matado? Sob sua calma aparente, ele ocultava uma violência inaudita. Compreendo que o velho príncipe Soderini, pai da sra. duquesa de Argaiolo, tenha vindo reclamar as cartas e os retratos da filha. Foi esse o raio caído sobre a cabeça de Alberto, o qual sem dúvida terá tentado ir justificar-se... Mas como explicar que em catorze meses ele não tenha dado notícias suas?

— Oh! Se eu o desposo, ele será feliz...

— Feliz?... Ele não a ama. De resto, a fortuna que lhe levaria não seria tão grande assim. Sua mãe lhe tem a mais profunda aversão, pois você lhe deu uma resposta selvagem que a feriu e que a você arruinará. Quando ontem ela lhe disse que a obediência era o único meio de reparar suas faltas e lhe lembrou a necessidade de casar, falando-lhe em Amadeu: — Se gosta tanto dele, minha mãe, despose-o! — É verdade ou não que lhe atirou essa frase no rosto?

— Sim — disse Rosália.

— Pois bem! Conheço a baronesa — continuou o sr. de Grancey —; daqui a alguns meses ela será condessa de Soulas! Certamente terá filhos, dará quarenta mil francos de renda ao sr. de Soulas; além disso, ela concederá vantagens e reduzirá sua parte nos seus bens imóveis, tanto quanto puder. Você ficará pobre durante toda a vida dela, e ela tem apenas trinta e oito anos! Você terá como único bem as terras dos Rouxey e os minguados direitos que lhe deixará a liquidação da herança de seu pai, se é que sua mãe consente em abrir mão de seus direitos sobre os Rouxey! No que diz respeito aos interesses materiais, você já arrumou bem mal a sua vida em relação aos sentimentos, julgo-a transtornada. Em vez de ter ido à sua mãe...

Rosália fez com a cabeça um movimento selvagem.

— ... à sua mãe e à religião — continuou o vigário-geral — que a teriam, ao primeiro movimento de seu coração, esclarecido, aconselhado, guiado, você quis dirigir-se sozinha, ignorando a vida, e ouvindo somente a paixão!

Essas palavras tão ponderadas apavoraram a srta. de Watteville.

— E que devo eu fazer? — perguntou, passado um instante.

— Para reparar suas faltas, seria preciso conhecer-lhes a extensão — respondeu o padre.

— Pois bem! Vou escrever ao único homem que possa ter informações a respeito do destino de Alberto, ao sr. Leopoldo Hannequin, notário em Paris e seu amigo de infância.

— Não escreva mais senão para homenagear a verdade — disse o vigário-geral. — Confie-me as cartas verdadeiras e as falsas, faça-me sua confissão bem detalhada, como ao seu diretor espiritual, pedindo-me os meios de expiar suas faltas e confiando em mim. Eu verei... Pois, antes de tudo, restitua àquele infeliz a sua inocência, perante o ser de quem ele fez o seu Deus na terra. Mesmo depois de ter perdido a felicidade, Alberto deve ter sua justificação.

Rosália prometeu ao abade de Grancey obedecer-lhe, esperando que os passos que ele desse trariam talvez como resultado devolver-lhe Alberto.

XLII – ALGUMAS LUZES

Pouco tempo depois da confidência da srta. de Watteville, um amanuense do cartório do sr. Leopoldo Hannequin veio a Besançon munido de uma procuração geral de Alberto e se apresentou em primeiro lugar em casa do sr. Girardet, para pedir-lhe que vendesse a casa pertencente ao sr. Savaron. O advogado encarregou-se desse negócio por amizade ao colega. O amanuense vendeu o mobiliário e, com o produto, pôde pagar o que Alberto devia a Girardet, que, por ocasião da inexplicável partida, lhe emprestara cinco mil francos, encarregando-o, aliás, das suas cobranças. Quando Girardet perguntou que fora feito daquele nobre e belo lutador pelo qual se interessara, o amanuense disse que somente seu patrão o sabia e que o notário se mostrava muito aflito com o conteúdo da última carta escrita por Alberto Savarus.

Ao ter essa notícia, o vigário-geral escreveu a Leopoldo. Eis a resposta do digno notário:


Ao senhor Abade De Grancey
Vigário-geral da diocese de Besançon


Paris
Infelizmente, senhor, não está ao alcance de ninguém restituir Alberto à vida social; ele renunciou a ela. Está como noviço na Grande-Chartreuse, perto de Grenoble. O senhor sabe, melhor do que eu, que acabo de ter conhecimento disso, que tudo morre nos umbrais daquele claustro. Prevendo a minha visita, Alberto interpôs o geral entre meus esforços e ele. Conheço bastante aquele nobre coração para saber que ele foi vítima de uma trama odiosa e para nós invisível; tudo, porém, está consumado. A sra. duquesa de Argaiolo, hoje duquesa de Rhétoré, parece-me ter levado bem longe a crueldade. Em Belgirate, onde ela não se achava mais, quando Alberto para lá correu, deixara ordens para fazê-lo crer que residia em Londres. De Londres, Alberto foi procurar sua amada em Nápoles e de Nápoles foi a Roma, onde ela acabava de se tornar noiva do duque de Rhétoré. Alberto pôde finalmente encontrar a sra. de Argaiolo em Florença, mas já na igreja, no instante em que se realizava o casamento. Nosso pobre amigo desmaiou na nave e nunca pôde, nem mesmo se achando em perigo de morte, obter uma explicação com aquela mulher, que devia ter não sei quê no coração. Alberto viajou durante sete meses à procura de uma criatura selvagem que se divertia escapando-lhe; ele não sabia nem onde nem como alcançá-la. Vi nosso pobre amigo na sua passagem por Paris, e se o tivesse visto como eu, o senhor compreenderia que não se lhe devia dizer uma palavra a respeito da duquesa, a menos de querer provocar uma crise na qual sua razão perigaria. Se ele conhecesse seu crime, poderia achar meios de justificar-se, mas falsamente acusado de se ter casado! Que fazer? Alberto está morto, e bem morto para o mundo. Quis o repouso, esperemos que o profundo silêncio e a oração em que se lançou farão sua felicidade sob uma outra forma. Se o conheceu, senhor, muito o deverá lamentar e lamentar também seus amigos. Aceite etc. etc.


Assim que recebeu essa carta, o bom vigário-geral escreveu ao geral dos cartuxos, e eis qual foi a resposta de Alberto Savarus:


O irmão Alberto ao senhor De Grancey
Vigário-geral da diocese de Besançon
Reconheci, querido e bem-amado vigário-geral, sua terna alma e seu coração ainda jovem, em tudo o que me acaba de comunicar o reverendo padre geral da nossa ordem. O senhor adivinhou o único anseio que ainda restava no mais afastado recanto de meu coração, relativamente às coisas do mundo: levar aquela que tanto me maltratou a fazer justiça aos meus sentimentos! Mas ao deixar-me a liberdade de fazer uso de seu oferecimento, o padre geral quis saber se minha vocação era firme; teve a insigne bondade de dizer-me seu pensamento ao me ver decidido a permanecer em silêncio absoluto, relativamente a esse assunto. Se eu tivesse cedido à tentação de reabilitar o homem do mundo, o religioso seria repelido deste convento. A graça com certeza agiu; mas, embora breve, a luta não deixou de ser por isso menos viva nem menos cruel. Não é dizer-lhe com isso que eu não poderia voltar ao mundo? Por isso o perdão que me pede para o autor de tantos males é completo e sem um vestígio de despeito.
Pedirei a Deus que perdoe essa moça, como eu a perdoo, assim como lhe rogarei que conceda uma vida feliz à sra. de Rhétoré. Que seja a morte ou a mão pertinaz de uma moça empenhada em se fazer amar, ou um desses golpes atribuídos ao acaso, não devemos sempre obedecer a Deus? A desgraça cria, em certas almas, um vasto deserto, onde a voz de Deus repercute. Demasiado tarde conheci as relações entre esta vida e a que nos espera; em mim tudo está gasto. Eu não teria podido servir nas fileiras da Igreja militante e atiro os restos de uma vida quase extinta aos pés do santuário. É esta a última vez que escreverei. Ninguém mais, a não ser o senhor, que me queira e a quem eu tanto queria, era capaz de fazer-me infringir a lei do esquecimento que me impus, ao entrar na metrópole de São Bruno, mas o senhor sempre será particularmente mencionado nas preces do


Irmão Alberto

Novembro de 1836


“Talvez tudo esteja pelo melhor”, disse o abade de Grancey com os seus botões.

Quando comunicou essa carta a Rosália, que, num gesto piedoso, beijou o trecho que continha o seu perdão, ele lhe disse:

— Pois bem! Agora que ele está perdido para você, não quer reconciliar-se com sua mãe, desposando o conde de Soulas?

— Seria preciso que Alberto mo ordenasse — disse ela.

— Bem vê que é impossível consultá-lo. O padre geral não o permitiria.

— E se eu o fosse ver?

— Não se veem os cartuxos. De resto, nenhuma mulher, exceto a rainha de França, pode entrar na Chartreuse — disse o abade. — Assim é que nada a impede mais de desposar o jovem sr. de Soulas.

— Não quero fazer a infelicidade de minha mãe — respondeu Rosália.

— Satanás! — exclamou o vigário-geral.

No fim daquele inverno, o excelente vigário de Grancey morreu. Desapareceu de entre a sra. de Watteville e a filha aquele amigo que se interpunha entre os seus caracteres de aço. Realizou-se a previsão do vigário-geral. Em agosto de 1837, a sra. de Watteville desposou o sr. de Soulas, em Paris, para onde foi a conselho de Rosália, que se mostrou boa e encantadora com a mãe. A sra. de Watteville acreditou na amizade da filha, a qual, porém, queria ver Paris unicamente para se dar ao prazer de uma vingança atroz; pensava somente em Savarus, martirizando a sua rival.

Tinham emancipado a srta. de Watteville, que, aliás em breve, completaria vinte e um anos. A mãe, para liquidar suas contas com ela, transmitira-lhe seus direitos dos Rouxey, e a filha dera quitação à mãe quanto à herança do barão de Watteville. Rosália influenciara a mãe para que desposasse o conde de Soulas e o dotasse.

— Tenhamos cada uma a nossa liberdade — dissera-lhe.

A sra. de Soulas, inquieta com as intenções da filha, ficou, entretanto, comovida com aquela nobreza de sentimentos e presenteou-a com seis mil francos de renda no Grande-Livro, por desencargo de consciência. Como a sra. condessa de Soulas tinha quarenta e oito mil francos de renda em propriedades rurais, e era incapaz de aliená-las com o fim de diminuir a parte de Rosália, a srta. de Watteville continuava a ser um bom partido, de um milhão e oitocentos mil francos; os Rouxey podiam produzir, com as aquisições do barão e alguns melhoramentos, vinte mil francos de renda, além das vantagens da habitação, suas rendas e reservas. Por isso Rosália e a mãe, que logo se puseram ao tom de Paris, foram facilmente introduzidas na alta sociedade. A chave de ouro, estas palavras: um milhão e oitocentos mil francos!... bordados na blusa da srta. de Watteville, serviram muito mais à condessa de Soulas do que suas pretensões oriundas do nome de Rupt, seus orgulhos deslocados e mesmo seus parentescos buscados um pouco longe.

XLIII – ROSÁLIA PERMANECE UMA MOÇA EXTRAORDINÁRIA

Em fevereiro de 1838, Rosália, a quem muitos rapazes faziam uma corte assídua, realizou o projeto que a trouxe a Paris. Queria encontrar a duquesa de Rhétoré, ver essa mulher maravilhosa e mergulhá-la em remorsos eternos. Por isso Rosália redobrou de requintes e de um coquetismo entontecedor, a fim de se apresentar em pé de igualdade com a duquesa. O primeiro encontro teve lugar no baile anual dado pelos pensionistas desde 1839 da antiga lista civil. Um rapaz, instigado por Rosália, disse à duquesa, mostrando-lha:

— Ali está uma moça das mais notáveis, uma vontade de ferro! Ela fez com que se arrojasse num claustro, na Grande Chartreuse, um homem de grande valor, Alberto Savarus, cuja existência foi por ela despedaçada. É a srta. de Watteville, a famosa herdeira de Besançon...

A duquesa empalideceu; Rosália trocou vivamente com ela um desses olhares que, de mulher para mulher, são mais mortais do que um tiro de pistola num duelo. Francesca Soderini, que suspeitou ser Alberto inocente, saiu logo do baile, afastando-se bruscamente de seu interlocutor, o qual era incapaz de adivinhar o terrível ferimento que acabava de fazer à bela duquesa de Rhétoré.

“Se quiser saber mais sobre Alberto, vá ao baile da Ópera, na terça-feira próxima, levando na mão um malmequer.”

Esse bilhete anônimo, mandado por Rosália à duquesa, levou a infeliz italiana ao baile, onde a srta. de Watteville lhe pôs na mão as cartas de Alberto, a escrita pelo vigário-geral, a de Leopoldo Hannequin, bem como a resposta do notário, e mesmo aquela em que ela, Rosália, fizera sua confissão ao sr. de Grancey.

“Não quero ser a única a sofrer, pois fomos tão cruéis uma como a outra”, disse ela a sua rival.

Depois de saborear a estupefação que se desenhou no belo rosto da duquesa, Rosália fugiu, não reapareceu mais nos salões e voltou com a mãe para Besançon.

A srta. de Watteville, que vive sozinha nas suas terras de Rouxey, cavalgando, caçando, recusando dois ou três casamentos por ano, indo quatro ou cinco vezes por ano a Besançon, ocupada em valorizar suas propriedades, é tida por uma pessoa muito original. É uma das celebridades do Leste.

A sra. de Soulas tem dois filhos, um menino e uma menina; rejuvenesceu, mas o jovem sr. de Soulas envelheceu consideravelmente.

— Minha fortuna custa-me caro — dizia ele ao jovem Chavoncourt. — Para bem conhecer uma devota, é preciso infelizmente casar com ela.

A srta. de Watteville procede como uma rapariga verdadeiramente extraordinária. Dizem dela: — É lunática!

Vai todos os anos ver as muralhas da Grande-Chartreuse. Quererá talvez imitar seu tio-avô, saltando o muro daquele convento para ir buscar o marido, como Watteville saltou o muro do seu mosteiro para recuperar a liberdade.

Em 1841, ela saiu de Besançon com a intenção, diziam, de casar-se; mas não se sabe ainda a verdadeira causa dessa viagem, da qual voltou num estado que a impediu de jamais aparecer em sociedade. Por um desses acasos, a que fizera alusão o velho vigário-geral, o sr. de Grancey, ela se achava no Loire, no vapor cuja caldeira explodiu. A srta. de Watteville foi tão cruelmente maltratada que perdeu o braço direito e a perna esquerda; seu rosto apresenta horríveis cicatrizes que a privaram de sua beleza; sua saúde, sujeita a terríveis perturbações, deixa-lhe poucos dias sem sofrimentos. Enfim, ela, hoje, não sai mais da Chartreuse dos Rouxey, onde leva uma vida inteiramente devotada às práticas religiosas.

Paris, maio de 1842

 

 

INTRODUÇÃO

Ao longo de sua história acidentada, a ilha mediterrânea da Córsega mudou frequentemente de dono. Estava sob domínio genovês quando, em 1755, o general Pasquale Paoli desencadeou o movimento de independência. Mas, sem conseguir a libertação da ilha, viu-a cedida à França em 1768 pelo Tratado de Versalhes. (Tempos depois, ele tentaria outra sublevação, contra os franceses, mas seria derrotado por Bonaparte em 1796.) Quando a ilha foi incorporada à França, quem podia imaginar que um corso, ainda por nascer, se tornaria imperador dos franceses e daria ordens ao mundo? Quando Napoleão morreu, em seu exílio de Santa Helena, em 1821, já era uma figura mítica, e sua terra selvagem e romântica atraía muitas atenções. Entre as numerosas obras literárias nascidas desse interesse, A vendeta (La Vendetta), de Balzac, costuma ser comparada a Mateo Falcone, de Mérimée, escrito alguns meses antes.

Ambas as novelas, com efeito, estão baseadas no rígido conceito da honra que reina entre os corsos. Sem dúvida alguma, Mérimée superou Balzac. Em sua narrativa dramática e empolgante figura um pai corso que executa o próprio filho, de apenas dez anos de idade, por haver este entregue aos soldados um bandido refugiado em sua casa. O enredo está enquadrado numa interessante descrição do ambiente corso e funde-se perfeitamente com ele. Na novela de Balzac, a Córsega é apenas lembrada. Ainda à procura de seu caminho, o escritor, talvez sob a influência da própria novela de Mérimée, escolheu um assunto caracteristicamente romântico, mas que não condiz muito com as tendências de seu talento... Faltavam-lhe também os dados da experiência que sua imaginação costumava utilizar como ponto de partida.

(No momento em que escreveu A vendeta, Balzac ainda não conhecera a Córsega. Cedida à França pelos genoveses apenas em 1768, a ilha, com seus costumes rudes e semibárbaros, começou a interessar os literatos depois da vertiginosa ascensão de Bonaparte. Balzac só a conheceria em 1836, quando passaria ali alguns dias, ao voltar da sua fantástica expedição às minas de prata da Sardenha, e aproveitaria a ocasião para colher pormenores sobre a mocidade do imperador.)

Onde sentimos Balzac à vontade em A vendeta é no terreno que lhe é familiar. Assim, as pequenas rivalidades e intrigas do curso de pintura de Servin constituem uma atmosfera em que ele imediatamente se encontra como em domínio seu e se revela admirável conhecedor da alma feminina. Outra não menos bem colhida é a visita do tabelião Roguin à casa dos Piombo, em cumprimento de um ato notarial. Tudo aqui é representado com perfeição: os termos técnicos, o estilo curial, as pausas do notário e seus chavões. Balzac, de quem os pais no começo queriam fazer a qualquer preço um notário, aproveitara os anos passados nos cartórios, embora de maneira diferente da que eles esperavam.

Napoleão e seus generais aparecem apenas acessoriamente, mas o bastante para se ver que a lenda napoleônica empolgara Balzac, apesar de ele se proclamar, em política, favorável aos Bourbons. Essa lenda, aliás, foi a verdadeira obsessão de sua vida; pretendia escrever a epopeia do Império em vários romances de grandes proporções — ainda em 1848, durante a sua estada na Rússia, procurou obter dados e gravuras no tocante aos uniformes do Exército russo, à personalidade dos generais etc. (André Billy, Du Nouveau sur Balzac en Russie, em Le Littéraire, número de 1º de fevereiro de 1947.) Mas a morte impediu-o, infelizmente, de realizar esse grande projeto. Quem o realizaria finalmente seria um escritor russo: Tolstói, em Guerra e paz.


paulo rónai


A VENDETA


Dedicado a Puttinati,
escultor milanês[202]

I – O ATELIÊ

Em fins de outubro de 1800, um estrangeiro, acompanhado por uma mulher e uma menina, chegou em frente às Tulherias, em Paris, e ficou durante muito tempo parado diante dos escombros de uma casa recentemente demolida, no lugar onde hoje se ergue a ala que haviam começado a edificar para ligar o castelo de Catarina de Médicis ao Louvre dos Valois. Ali permaneceu, de pé, com os braços cruzados, a cabeça inclinada, erguendo-a por vezes a fim de olhar alternativamente para o palácio consular e para sua mulher sentada junto a ele num bloco de pedra. Conquanto a desconhecida parecesse ocupar-se somente com a menina, que teria de nove a dez anos, e cujos compridos cabelos negros lhe serviam de distração, não perdia um só dos olhares que seu companheiro lhe dirigia. Um mesmo sentimento, que não era o amor, unia esses dois seres, e animava com uma mesma inquietação suas ações e seus pensamentos. A miséria é talvez o mais poderoso de todos os laços. O estrangeiro tinha uma dessas cabeças com basta cabeleira, volumosa e de aspecto grave, tantas vezes estudadas pelo pincel dos Carracci.[203] Seus cabelos bem negros estavam entremeados de grande quantidade de fios brancos. Embora nobres e altivas, suas feições tinham um tom de dureza que as prejudicava. Não obstante sua força e seu porte ereto, parecia ter mais de sessenta anos. Sua roupa esfrangalhada revelava que vinha de terra estranha. Conquanto o semblante outrora belo e agora emurchecido da mulher traísse uma tristeza profunda quando o marido a fitava, ela se esforçava por sorrir, aparentando uma atitude calma. A menina conservava-se de pé, apesar do cansaço, cujos sinais se revelavam no seu rosto juvenil, queimado pelo sol. Tinha aparência italiana, grandes olhos negros sob sobrancelhas bem arqueadas, uma nobreza nativa, uma graça verdadeira. Mais de um transeunte se sentia comovido só pelo aspecto desse grupo, cujas personagens não faziam nenhum esforço por ocultar um desespero tão profundo quão simples era a sua exteriorização, mas a fonte dessa fugaz simpatia que caracteriza os parisienses esgotava-se prontamente. Assim que o desconhecido se julgava alvo da atenção de algum ocioso, olhava-o com um ar tão carrancudo que o mais intrépido flanador apressava o passo, como se tivesse pisado numa cobra. Depois de ter ficado muito tempo indeciso, de súbito o estrangeiro de elevada estatura passou a mão pela testa, expulsando, por assim dizer, os pensamentos que a haviam sulcado de rugas, e tomou uma resolução desesperada. Após lançar um olhar penetrante à mulher e à filha, tirou de sob o casaco um comprido punhal e deu-o à companheira, dizendo-lhe em italiano:

— Vou ver se os Bonaparte se lembram de nós.

Dito isso, caminhou com passos lentos e firmes para a entrada do palácio onde, naturalmente, um soldado da guarda consular o deteve, não podendo o homem discutir demoradamente com ele. Ao ver a insistência do desconhecido, a sentinela apresentou-lhe a ponta da baioneta, à maneira de ultimato. Quis o acaso que justamente nesse momento viessem render a sentinela, e o cabo, obsequiosamente, indicou ao estrangeiro o lugar onde se achava o comandante da guarda.

— Previna Bonaparte de que Bartolomeu di Piombo quer falar-lhe — disse o italiano ao capitão de serviço.

Por mais que esse oficial quisesse fazer o sr. Bartolomeu compreender que não se falava com o primeiro-cônsul sem primeiro solicitar-lhe uma audiência por escrito, o estrangeiro quis por força que o militar fosse prevenir Bonaparte. O oficial alegou as leis do serviço e recusou formalmente atender à ordem desse singular solicitante. Bartolomeu franziu o sobrolho, atirou sobre o comandante um olhar terrível, como que o responsabilizando pelas desgraças que essa recusa pudesse acarretar, depois se calou, cruzou os braços sobre o peito e foi colocar-se sob o pórtico que faz comunicarem o pátio e os jardins das Tulherias. As pessoas que querem intensamente uma coisa são quase sempre favorecidas pelo acaso. No momento em que Bartolomeu di Piombo se sentava num dos marcos que existem junto à entrada das Tulherias chegou um carro do qual desceu Luciano Bonaparte,[204] então ministro do Interior.

— Ah! Luciano — exclamou o estrangeiro —, que sorte a minha de te encontrar.

Essas palavras pronunciadas em dialeto corso fizeram Luciano estacar, no momento em que ia penetrar sob as arcadas. Olhou para o compatriota e reconheceu-o. À primeira palavra que Bartolomeu lhe sussurrou ao ouvido, levou o corso consigo para onde estava Bonaparte. Murat,[205] Lannes,[206] Rapp[207] achavam-se no gabinete do primeiro-cônsul. Ao ver Luciano entrar, acompanhado por um homem tão singular como Piombo, a conversação cessou. Luciano puxou Napoleão pelo braço e levou-o para o vão da janela. Depois de ter trocado algumas palavras com o irmão, o primeiro-cônsul fez um gesto com a mão, ao qual Murat e Lannes obedeceram, retirando-se. Rapp fingiu nada ter percebido a fim de poder ficar. Tendo-o Bonaparte interpelado vivamente, o ajudante de campo saiu resmungando. O primeiro-cônsul, que ouviu o ruído dos passos de Rapp na sala contígua, saiu bruscamente vendo-o junto à parede que separava as duas peças.

— Não me queres compreender? — disse o primeiro-cônsul. — Tenho necessidade de ficar a sós com o meu compatriota.

— Um corso — respondeu o ajudante de campo. — Desconfio demasiado dessa gente para não...

O primeiro-cônsul não pôde deixar de sorrir e empurrou suavemente seu fiel oficial pelos ombros.

— E então! Que vem fazer aqui, meu pobre Bartolomeu? — perguntou o primeiro-cônsul a Piombo.

— Pedir-te asilo e proteção, se és um verdadeiro corso — respondeu Bartolomeu em tom de voz rude.

— Que desgraça te fez fugir lá da terra? Eras o mais rico, o mais...

— Matei todos os Porta — retrucou o corso em tom de voz soturno e franzindo os sobrolhos.

Bonaparte recuou dois passos como quem se surpreendesse.

— Vais trair-me? — exclamou Bartolomeu, lançando ao primeiro-cônsul um olhar sombrio. — Sabes que ainda somos quatro Piombos lá na Córsega?

Luciano agarrou o compatriota pelo braço e sacudiu-o.

— Vem aqui então para ameaçar o salvador da França? — disse-lhe com vivacidade.

Bonaparte fez um sinal a Luciano, o qual se calou. Depois fitou Piombo e perguntou-lhe:

— Por que mataste os Porta?

— Nós tínhamos feito as pazes, os Barbanti nos reconciliaram. No dia seguinte àquele em que bebemos juntos para acabar com as nossas desavenças, eu os deixei porque tinha negócios a tratar em Bastia. Eles ficaram em minha casa e incendiaram o meu vinhedo de Longone. Mataram meu filho Gregório. Minha filha Ginevra e minha mulher fugiram; tinham comungado pela manhã e a Virgem protegeu-as. Quando regressei não encontrei mais minha casa, estava tudo reduzido a cinzas. De repente esbarrei com o corpo de Gregório, que reconheci ao clarão do luar. — Oh! — pensei — os Porta deram o golpe! — Fui imediatamente ao maquis,[208] juntei alguns homens a quem tinha prestado serviço, compreendes, Bonaparte?, e nos dirigimos ao vinhedo dos Porta. Chegamos lá às cinco horas e às sete eles compareciam ante Deus. Giacomo pensa que Elisa Vanni salvou um menino, o pequeno Luigi, mas eu mesmo o tinha amarrado na cama antes de pôr fogo na casa. Deixei a ilha com minha mulher e minha filha sem ter podido verificar se Luigi Porta ainda estava vivo.

Bonaparte considerava Bartolomeu com curiosidade, mas sem espanto.

— Quantos eram eles? — perguntou Luciano.

— Sete — respondeu Piombo. — Eles vos perseguiram antigamente — acrescentou.

Mas essas palavras não despertaram nenhuma expressão de ódio nos dois irmãos.

— Ah! Vocês não são mais corsos — exclamou Bartolomeu, numa manifestação de desespero. — Adeus. Em outros tempos eu os protegi — acrescentou em tom de censura. — Sem mim tua mãe não teria chegado a Marselha[209] — disse ainda, dirigindo-se a Napoleão, que permanecia pensativo, o cotovelo apoiado sobre o pano da chaminé.

— Em consciência, Bartolomeu — respondeu Bonaparte —, não te posso acobertar com minha proteção. Tornei-me o chefe de uma grande nação, sou o chefe da República e devo fazer cumprir as leis.

— Ah!, ah! — fez Bartolomeu.

— Mas posso fechar os olhos — continuou Bonaparte. — O preconceito da vendeta impedirá por muito tempo o reinado da lei na Córsega — acrescentou, falando consigo mesmo. — É preciso contudo destruí-lo a qualquer preço.

Bonaparte ficou um momento calado e Luciano fez um sinal a Piombo para que não falasse. O corso já começava a menear a cabeça de um lado para outro em sinal de desaprovação.

— Fica aqui — disse o cônsul dirigindo-se a Bartolomeu —, nós o ignoraremos. Farei com que comprem tuas propriedades a fim de te dar desde já meios de subsistência. Depois, mais tarde, pensaremos em ti. Mas nada de vendetas! Aqui não há maquis. Se fizeres uso do punhal, não poderás esperar por perdão. Aqui a lei protege todos os cidadãos, e ninguém faz justiça por si mesmo.

— Ele se tornou chefe de uma terra bem singular — disse Bartolomeu apertando a mão de Luciano. — Mas, seja lá como for, vocês se lembraram de mim na adversidade, e daqui por diante entre nós será para a vida e para a morte, e podem contar com todos os Piombo.

Ao dizer tais palavras, a fronte do corso se desenrugou e olhou em torno com satisfação.

— Estás bem instalado aqui — disse, sorrindo como se quisesse residir ali. — E estás vestido de encarnado como um cardeal.

— Só de ti dependerá triunfar e ter um palácio em Paris — disse Bonaparte, que observava seu compatriota. — Mais de uma vez terei de olhar em torno de mim para procurar um amigo dedicado em quem possa confiar.

Um suspiro de satisfação exalou-se do vasto peito de Piombo, o qual estendeu a mão ao primeiro-cônsul, dizendo-lhe:

— Ainda há um pouco de corso em ti!

Bonaparte sorriu. Contemplou silenciosamente aquele homem, que trazia, de algum modo, o ar de sua pátria, daquela ilha onde outrora fora tão milagrosamente salvo do ódio do partido inglês, e que nunca mais deveria rever. Fez um sinal ao irmão, que saiu levando Bartolomeu consigo. Luciano informou-se com interesse da situação financeira do antigo protetor de sua família. Piombo levou o ministro do Interior junto a uma janela e mostrou-lhe a mulher e Ginevra sentadas num montão de pedras.

— Viemos de Fontainebleau até aqui a pé, e não temos nem um vintém — disse ele.

Luciano deu a bolsa ao compatriota e recomendou-lhe que o procurasse no dia seguinte a fim de estudarem os meios de assegurar a sorte de sua família. O valor de todos os bens de Piombo, na Córsega, não dava para que a família vivesse em Paris com decoro. Decorreram quinze anos entre a chegada da família Piombo a Paris e a seguinte aventura que, sem a narrativa dos acontecimentos acima referidos, seria menos inteligível.

Servin,[210] um dos nossos mais distintos artistas, foi o primeiro a conceber a ideia de abrir um ateliê onde as moças pudessem receber lições de pintura. Homem de uns quarenta anos, de costumes irrepreensíveis e completamente dedicado à sua arte, casara-se por amor com a filha de um general sem fortuna. A princípio, as mães levavam elas próprias as filhas à casa do professor, mas depois acabaram mandando-as sozinhas, quando se certificaram da pureza dos princípios do mestre e do cuidado que ele tinha em merecer a confiança das famílias. Fazia parte dos planos do pintor só aceitar como alunas senhoritas pertencentes a famílias ricas ou de grande consideração, para não sofrer censuras quanto à frequência de seu ateliê; chegava mesmo a recusar as moças que queriam ser artistas e às quais teria sido preciso subministrar certos conhecimentos, sem os quais não há talento possível em pintura. Insensivelmente, sua prudência, a superioridade com que iniciava suas alunas nos segredos da arte, a certeza em que ficavam as mães de que as filhas estavam na companhia de moças bem-educadas e a segurança inspirada pelo caráter, pelos costumes, pelo casamento do artista, valeram-lhe nos salões uma excelente reputação. Quando uma jovem manifestava desejo de aprender a pintura ou a desenhar e sua mãe pedia conselhos, a resposta de todos era: “Mande-a ao ateliê de Servin!”. Servin, pois, tornou-se para a pintura feminina um especialista como Herbault para os chapéus, Leroy para as modas e Chevet para os comestíveis. Estava estabelecido que uma jovem senhora que tivesse recebido lições em casa de Servin estava habilitada para julgar em última discussão os quadros do museu, a fazer superiormente um retrato, copiar uma tela e fazer seu quadro de gênero. Esse artista satisfazia portanto a todas as necessidades da aristocracia. Não obstante as relações que ele tinha com as melhores casas de Paris, era independente, patriota e conservava com todos esse tom leve, espirituoso, por vezes irônico, essa liberdade de conceitos que caracterizam os pintores.

Extremara o escrúpulo de suas precauções até na organização do local onde suas alunas estudavam. A entrada do salão existente por sobre o seu apartamento fora fechada com uma parede. Para chegar àquele refúgio, tão sagrado quanto um harém, era preciso subir por uma escada construída no interior de seus aposentos. O ateliê, que ocupava a totalidade dos altos da casa, oferecia essas enormes proporções, que sempre surpreendem os curiosos, quando, ao chegar a sessenta pés do solo, esperam ver os artistas alojados num desvão. Essa espécie de galeria era profusamente iluminada por imensas vidraças guarnecidas com essas telas verdes com auxílio das quais os pintores distribuem a luz. Uma porção de caricaturas, de cabeças desenhadas a lápis, com cores, ou à ponta de faca, sobre as paredes pintadas de cinzento escuro, provavam, salvo nas diferenças de expressão, que mesmo as moças mais distintas têm no espírito tanta loucura quanto um homem pode ter. Uma pequena estufa de ferro com seus grossos tubos que descreviam um espantoso zigue-zague antes de alcançar as elevadas regiões do teto era o infalível ornamento daquele ateliê. Ao longo das paredes havia uma tábua que amparava modelos de gesso, os quais se achavam desordenadamente colocados e, na maioria, recobertos por uma poeira dourada. Abaixo dessa prateleira, aqui e acolá, uma cabeça de Níobe,[211] pendurada num prego, ostentava sua dolorosa expressão, uma Vênus sorria, uma mão apresentava-se de súbito aos olhos como a de um mendigo pedindo esmola. Depois alguns esfolados, amarelecidos pela fumaça, pareciam ter sido arrancados na véspera de um ataúde; finalmente quadros, desenhos, manequins, armações sem tela e telas sem armações davam àquela peça irregular a fisionomia de um ateliê, que se caracteriza por uma singular mistura de ornamentos e de nudez, de miséria e de riqueza, de cuidado e de incúria. Esse imenso batel, onde tudo parece pequeno, inclusive o homem, lembra os bastidores da Ópera. Encontram-se ali roupas velhas, armaduras douradas, pedaços de fazenda, máquinas, mas há um não sei quê de grande como o pensamento; o gênio e a morte ali estão; veem-se a Diana ou o Apolo junto a um crânio ou a um esqueleto, o belo e a desordem, a poesia e a realidade, cores vivas na sombra, e, muitas vezes, todo um drama imóvel e silencioso. Que símbolo de uma cabeça de artista!

No momento em que começa esta história, o luminoso sol do mês de julho inundava o ateliê de luz, e dois raios atravessavam a peça em toda a sua extensão, desenhando largas faixas de ouro, diáfanas, onde brilhavam os grãos de poeira. Uma dúzia de cavaletes erguia suas flechas agudas, semelhantes a mastros de navios ancorados num porto. Várias moças davam animação a essa cena pela variedade de suas fisionomias, de suas atitudes e pela diferença de suas toilettes. As sombras carregadas proporcionadas pelas telas verdes, colocadas segundo as necessidades de cada cavalete, produziam uma infinidade de contrastes, de curiosos efeitos de claro-escuro. Esse grupo formava o mais belo de todos os quadros do ateliê. Uma rapariga loura e vestida com simplicidade mantinha-se longe das companheiras, trabalhava com afinco, como quem espera uma desgraça. Ninguém a olhava nem lhe dirigia a palavra. Era a mais bonita, a mais modesta, a menos rica. Dois grupos principais, separados um do outro por um pequeno espaço, indicavam duas sociedades, dois espíritos, até nesse ateliê, onde as classes e a fortuna deveriam cair no esquecimento. Sentadas ou de pé, aquelas moças, cercadas por suas caixas de tintas, brincando com os pincéis ou preparando-os, manejando suas brilhantes paletas, pintando, tagarelando, rindo, cantando, entregues à sua naturalidade, deixando transparecer seu caráter, constituíam um espetáculo ignorado dos homens: esta, orgulhosa, altiva, caprichosa, de cabelos negros, de lindas mãos, atirava ao acaso a chama de seus olhares; aquela, despreocupada e alegre, com um sorriso nos lábios, de cabelos castanhos, mãos brancas e delicadas, virgem francesa, frívola, sem pensamentos ocultos, vivendo a hora presente; uma outra, sonhadora, melancólica e pálida, curvando a cabeça como uma flor que pende; a vizinha ao lado, pelo contrário, alta, indolente, de costumes muçulmanos, de olhos grandes, negros e úmidos, pouco falando, mas meditando e olhando de soslaio a cabeça de Antínoo.[212] Entre elas, como o jocoso de uma peça espanhola, cintilante de espírito e dos ditos epigramáticos, uma rapariga espreitava-as a todas com um único olhar, fazia-as rir e erguia sem parar sua fisionomia demasiado viva para não ser bonita. Era ela quem comandava o primeiro grupo de alunas constituído por filhas de banqueiros, de notários e de negociantes, todas elas ricas, mas sofrendo os desdéns imperceptíveis, embora pungentes, que lhes eram prodigalizados pelas outras jovens pertencentes à aristocracia. Estas eram governadas pela filha de um oficial do gabinete do rei, pequena criatura tão tola quanto vaidosa e cheia de orgulho por ser seu pai um homem que tinha um posto na corte; tinha a mania de parecer compreender as palavras do mestre, apenas proferidas, e parecia trabalhar por favor; usava um lornhão e vinha sempre muito enfeitada, chegava atrasada e suplicava às companheiras que falassem em voz baixa. Nesse segundo grupo viam-se bustos deliciosos, semblantes distintos, mas os olhares dessas moças eram pouco ingênuos. Se suas atitudes eram graciosas e seus movimentos elegantes, as fisionomias careciam de franqueza, e adivinhava-se com facilidade que pertenciam a um meio onde as boas maneiras modelam cedo o caráter, onde o abuso dos prazeres sociais mata os sentimentos e desenvolve o egoísmo. Quando a assembleia estava completa, havia nesse grupo de moças cabeças infantis, virgens de pureza encantadora, semblantes nos quais a boca ligeiramente entreaberta deixava ver dentes virgens e pela qual errava um sorriso de virgem. O ateliê nesse momento não lembrava um serralho, mas sim uma nuvem sobre a qual um grupo de anjos estivesse sentado.

Era cerca de meio-dia. Servin ainda não aparecera, as alunas sabiam que ele estava concluindo um quadro para a exposição. Fazia alguns dias que, durante quase todo o tempo, ele ficava num ateliê que tinha em outro lugar. De súbito, a srta. Amélia Thirion, chefe do partido aristocrático daquela pequena assembleia, falou longamente à sua vizinha e um grande silêncio se fez no grupo das patrícias. O partido das financeiras, admirado, calou-se por sua vez, tentando adivinhar o assunto de semelhante conferência. Mas o segredo das jovens ultras não tardou em ser conhecido. Amélia levantou-se, pegou num cavalete que se achava a poucos passos dela e foi colocá-lo a uma grande distância do nobre grupo, junto a um grosseiro tabique que separava o ateliê de um gabinete escuro onde se atiravam os modelos de gesso quebrados, as telas condenadas pelo professor e onde se guardava a provisão de lenha para o inverno. O ato de Amélia provocou um murmúrio de surpresa. A jovem elegante não se deu por achada com essa manifestação e terminou de fazer a mudança da companheira ausente, empurrando precipitadamente para junto do cavalete a caixa de tintas e a banqueta, enfim tudo, inclusive uma tela de Prudhon[213] que a aluna retardatária estava copiando. Depois desse golpe de Estado, se o lado direito se pôs a trabalhar em silêncio, a esquerda comentou prolongadamente.

— Que dirá a srta. Piombo? — perguntou uma das moças à srta. Roguin,[214] que era o oráculo malicioso do primeiro grupo.

— Ela não é rapariga para falar — disse esta —, mas daqui a cinquenta anos ainda se lembrará dessa injúria como se a tivesse recebido na véspera e saberá vingar-se cruelmente. É uma criatura com a qual eu não desejaria entrar em luta.

— A proscrição com que essas senhoritas a castigam é tanto mais injusta — disse outra moça —, porquanto anteontem a srta. Ginevra estava muito triste porque o pai dela, segundo dizem, acabava de pedir demissão. Isso portanto é aumentar-lhe o desgosto, e não deviam esquecer que ela foi muito boa para essas senhoritas durante os Cem Dias.[215] Disse-lhes ela, por acaso, fosse quando fosse, uma única palavra que as pudesse melindrar? Pelo contrário, evitava sempre falar em política. Mas as nossas ultras parecem agir mais por ciúme do que por espírito de partido.

— Estou com vontade de ir buscar o cavalete da srta. Piombo e trazê-lo para perto do meu — disse Matilde Roguin.

Levantou-se, mas sentou-se depois de refletir.

— Com um caráter como o da srta. Ginevra — disse ela —, nunca se sabe de que forma ela encararia a nossa cortesia. É melhor esperarmos pelos acontecimentos.

— Eccola[216] — disse dolentemente a moça dos cabelos negros.

Efetivamente, repercutiram na sala os passos de alguém que subia a escada. Esta palavra: “Ei-la!” correu de boca em boca e reinou o mais profundo silêncio no ateliê.

Para compreender a importância do ostracismo imposto por Amélia Thirion, é necessário esclarecer que esta cena se passava no fim do mês de julho de 1815. A segunda volta dos Bourbons acabava de lançar a cizânia entre muitas amizades que tinham resistido ao movimento da primeira Restauração. Nesse momento as famílias estavam quase todas divididas, e o fanatismo político renovava muitas daquelas cenas deploráveis que por ocasião das guerras civis ou religiosas enlameiam a história de todos os países. As crianças, as moças, os velhos partilhavam da febre monárquica de que estava preso o governo. A discórdia insinuava-se em todos os lares, e a suspeita tingia com suas cores sombrias os atos e as palavras mais íntimas. Ginevra Piombo idolatrava Napoleão. Como poderia ela odiá-lo? O imperador era seu conterrâneo e fora benfeitor de seu pai. O barão de Piombo era, dos servidores de Napoleão, um dos que mais haviam contribuído para a sua volta de Elba. Incapaz de renegar sua fé política, timbrando mesmo em confessá-la, o velho barão de Piombo ficara em Paris, no meio dos seus inimigos. Ginevra Piombo podia pois ser posta no rol das pessoas suspeitas, tanto mais quanto não fazia segredo do desgosto que a segunda Restauração causava à sua família. As únicas lágrimas que talvez tivesse derramado na vida lhe foram arrancadas pela dupla notícia do encarceramento de Napoleão no Bellerophon[217] e da prisão de Labédoyère.[218]

As moças que compunham o grupo dos nobres pertenciam às famílias realistas mais exaltadas de Paris. Será difícil dar uma ideia dos exageros dessa época e do horror que os bonapartistas causavam. Por insignificante e mesquinho que o ato de Amélia Thirion pudesse parecer-nos hoje, era no momento uma expressão de ódio muito natural. Ginevra Piombo, uma das melhores discípulas de Servin, ocupava o lugar de que a queriam privar desde que viera para o ateliê. O grupo aristocrático cercara-a, insensivelmente; expulsá-la de um lugar que de qualquer forma lhe pertencia era não somente injuriá-la como também afligi-la, porquanto os artistas têm todos um lugar de predileção para o seu trabalho. Mas a animosidade política entrava, talvez, com uma parte insignificante no procedimento dessa pequena Direita do ateliê. Ginevra Piombo, a melhor discípula de Servin, era alvo de profundo ciúme: o mestre manifestava tanta admiração pelo talento quanto pelo caráter daquela aluna favorita que lhe servia de termo de comparação. Enfim, sem que se soubesse explicar o porquê, o fato é que a ascendência que aquela jovem criatura exercia sobre todos que a cercavam era comparável à exercida por Bonaparte sobre seus soldados. A aristocracia do ateliê tinha resolvido, fazia dias, a queda daquela rainha, mas, ninguém se atrevendo a se afastar da bonapartista, a srta. Thirion acabou por dar um golpe decisivo a fim de tornar as companheiras cúmplices de seu ódio. Conquanto Ginevra fosse sinceramente querida por duas ou três realistas, quase todas, lecionadas na casa paterna no que dizia respeito à política, julgaram, com tato peculiar às mulheres, que deviam permanecer indiferentes à disputa. Ao chegar, Ginevra foi portanto acolhida com um profundo silêncio. De todas as moças que até então haviam frequentado o ateliê de Servin, era ela a mais bela, a mais alta e a mais benfeita de corpo. Seu caminhar tinha um caráter de nobreza e de graça que impunha respeito. Sua fisionomia, de tão inteligente, parecia luminosa, deixando transparecer essa vivacidade peculiar aos corsos, a qual não exclui a calma. Seus cabelos compridos, seus olhos e cílios negros exprimiam a paixão. Conquanto a comissura dos lábios se desenhasse com pouca firmeza e estes fossem um pouco grossos, havia neles a bondade que a consciência da própria força dá aos fortes. Por um capricho singular da natureza, o encanto do rosto via-se de certo modo desmentido por uma fronte de mármore, na qual se estampava a altivez quase selvagem, fruto dos costumes da Córsega. Era esse o único laço que havia entre ela e a terra natal; quanto ao mais, a simplicidade, a naturalidade da beleza lombarda de sua personalidade, seduziam de tal forma que, só mesmo não a vendo, poder-se-ia causar-lhe o mínimo desgosto. Inspirava tão intensa atração que por prudência seu velho pai a fazia acompanhar até ao ateliê. O único defeito dessa criatura, verdadeiramente poética, provinha do próprio poder de uma beleza tão intensamente desenvolvida: tinha o ar de uma mulher feita. Recusara casar-se por amor ao pai e à mãe, por se sentir necessária para atendê-los na velhice. Sua inclinação pela pintura substituíra as paixões que geralmente agitam as mulheres.

— Estão hoje bem silenciosas, senhoritas — disse ela depois de dar dois ou três passos por entre as companheiras. — Bom dia, minha gentil Laura — acrescentou com voz meiga e carinhosa, aproximando-se da mocinha que estava pintando afastada das outras. — Esta cabeça está ótima! As carnes estão um pouco rosadas demais, entretanto o desenho é maravilhoso.

Laura ergueu a cabeça, olhou para Ginevra com ar enternecido, e o semblante de ambas expandiu-se exprimindo uma mesma afeição. Um leve sorriso animou os lábios da italiana, que parecia pensativa e que se dirigiu para o seu lugar, olhando descuidadamente os desenhos ou os quadros, dando bom-dia a cada uma das moças do primeiro grupo, sem dar fé da curiosidade insólita que sua presença excitava. Dir-se-ia uma rainha no meio de sua corte. Não deu a menor atenção ao profundo silêncio que reinava entre as patrícias e passou por diante delas sem dizer uma única palavra.

Era tão grande sua preocupação que foi para o seu cavalete, abriu a caixa de tintas, pegou os pincéis, vestiu as mangas, arrumou o avental, olhou para o seu quadro, examinou a paleta, sem pensar, por assim dizer, no que estava fazendo. Todas as cabeças do grupo burguês estavam voltadas para ela. Se as jovens do grupo Thirion não demonstravam a mesma franqueza que as suas companheiras, na sua impaciência, nem por isso seus olhares deixavam de se dirigir para Ginevra.

— Ela não se dá conta de nada — disse a srta. Roguin.

Nesse momento Ginevra deixou a atitude meditativa com a qual contemplava sua tela e virou a cabeça para o grupo aristocrático. Com um único olhar, mediu a distância que a separava delas e permaneceu calada.

— Ela não crê que tivessem tido a intenção de insultá-la — disse Matilde —; nem empalideceu, nem corou. Como essas senhoritas não vão ficar vexadas se ela se achar melhor no novo lugar do que no antigo! — Senhorita, está fora do lugar — acrescentou em voz alta, dirigindo-se a Ginevra. A italiana fingiu não ter ouvido, ou talvez mesmo não ouvisse; levantou-se bruscamente, caminhou vagarosamente ao longo do tabique que separava o quartinho escuro do ateliê e pareceu examinar o caixilho de onde vinha a luz, dando a esse trabalho tal importância que subiu numa cadeira para prender muito mais alto a tela verde que interceptava a claridade. Ao chegar a essa altura, alcançou uma fenda insignificante do tabique, verdadeiro alvo de seus esforços, porquanto o olhar que para lá dirigiu não se pode comparar senão ao do avarento ao descobrir os tesouros de Aladin. Desceu com vivacidade, voltou para o seu lugar, arrumou sua tela, fingiu não estar conforme com a luz, aproximou do tabique uma mesa sobre a qual colocou uma cadeira; subiu agilmente sobre esse andaime e olhou outra vez pela fenda. Não atirou mais do que um olhar no gabinete, então iluminado por um olho de boi que tinham feito no telhado, e o que lá percebeu produziu-lhe uma sensação tão intensa que estremeceu.

— Vai cair, srta. Ginevra! — exclamou Laura.

Todas as raparigas olharam para a imprudente, que oscilava. O medo de ver as companheiras chegarem junto a ela deu-lhe coragem; recuperou as forças e o equilíbrio, virou-se para Laura, bamboleando-se na cadeira, e disse com voz emocionada:

— Ora!, isto é mais sólido ainda do que um trono!

Arrancou apressadamente a sarja verde, desceu, afastou a mesa e a cadeira para longe do tabique, voltou ao seu cavalete e fez ainda algumas tentativas como quem busca a proporção de luz que lhe convém. Seu quadro não a preocupava, seu fim era aproximar-se do gabinete escuro, perto do qual se colocou, como desejava, junto à porta. Começou então a preparar sua paleta conservando o mais profundo silêncio. Nesse lugar ouviu em breve, mais nitidamente, o leve ruído que na véspera excitara tão fortemente sua curiosidade e fizera sua jovem imaginação percorrer o vasto campo das conjeturas. Reconheceu facilmente a respiração forte e regular do homem adormecido que acabava de ver. Sua curiosidade estava satisfeita muito além de seus desejos, mas sentia-se investida de tremenda responsabilidade. Através da fresta entrevira a águia imperial e, sobre uma cama de campanha fracamente iluminada, o rosto de um oficial da guarda. Adivinhou tudo: Servin ocultava um proscrito. Agora tremia de medo de que uma de suas companheiras fosse examinar seu quadro e ouvisse a respiração desse infeliz ou alguma aspiração mais forte, como a que impressionara seu ouvido durante a última lição. Resolveu ficar junto àquela porta fiando-se na sua habilidade para neutralizar as incertezas da sorte.

“É melhor que eu esteja aqui”, pensava, “para prevenir um acidente sinistro do que deixar o pobre prisioneiro à mercê de uma leviandade.”

Era esse o segredo da aparente indiferença que Ginevra manifestara ao encontrar seu cavalete fora do lugar; no íntimo ficou encantada com o acontecimento, porquanto assim pudera satisfazer naturalmente sua curiosidade. Além disso, naquele momento, estava demasiado preocupada para indagar dos motivos da mudança. Nada mortifica mais um grupo de moças, como, aliás, a todos, do que ver uma maldade, um insulto, ou uma frase de espírito falhar no seu efeito em consequência do desdém evidenciado pela vítima. Parece que o ódio contra um inimigo aumenta de acordo com a altura à qual ele se eleva acima de nós. O procedimento de Ginevra tornou-se um enigma para todas as colegas. Tanto as amigas como as inimigas ficaram igualmente surpreendidas, porquanto lhe concediam todas as qualidades possíveis, menos o perdão das injúrias. Conquanto as oportunidades para exibir esse vício de caráter tivessem raramente sido proporcionadas a Ginevra nos acontecimentos da vida do ateliê, os exemplos que ela pudera dar de suas predisposições vindicativas e de sua firmeza nem por isso tinham deixado de impressionar profundamente o espírito das companheiras. Depois de muitas conjeturas, a srta. Roguin acabou por achar no silêncio da italiana uma grandeza de alma acima de qualquer elogio, e seu círculo, inspirado por ela, formou o projeto de humilhar a aristocracia do ateliê.

Alcançaram esse fim por meio de um fogo de sarcasmos que abateu o orgulho do Lado Direito. A chegada da sra. Servin pôs fim a essa luta de amor-próprio. Com a esperteza que acompanha sempre a maldade, Amélia notara, analisara, comentara a prodigiosa preocupação que impedia Ginevra de ouvir a disputa acidamente cortês de que ela era objeto. A vingança que a srta. Roguin e as companheiras tiravam da srta. Thirion e de seu grupo teve então o fatal efeito de fazer com que as jovens ultras procurassem a causa do silêncio mantido por Ginevra de Piombo. A bela italiana tornou-se por consequência o centro para o qual convergiram todos os olhares e foi espionada por amigas e inimigas. É bem difícil ocultar a mais leve emoção, o menor sentimento, a quinze raparigas curiosas, desocupadas, cuja malícia e espírito nada mais querem do que segredos para adivinhar, intrigas para criar ou desmanchar e que sabem encontrar mil interpretações diferentes de um gesto, de um olhar, de uma palavra, para não lhes descobrir a verdadeira significação. Por isso o segredo de Ginevra de Piombo viu-se em breve em perigo de ser descoberto. Nesse momento a presença da sra. Servin produziu um entreato no drama que se estava desenvolvendo surdamente no fundo daqueles jovens corações e cujos sentimentos, pensamentos e progressos eram expressos por frases quase que alegóricas, por maliciosas olhadelas, por gestos e pelo próprio silêncio, muitas vezes mais inteligível do que a palavra. Assim que a sra. Servin entrou no ateliê, seus olhos se dirigiram para a porta junto à qual estava Ginevra. Nas presentes circunstâncias, esse olhar não foi perdido. Se a princípio nenhuma das discípulas prestou atenção nele, a srta. Thirion, mais tarde, lembrou-o e a si mesma explicou a suspeita, o temor e o mistério que deram naquele momento qualquer coisa de bravio aos olhos da sra. Servin.

— Senhoritas — disse ela —, o sr. Servin não poderá vir hoje.

Depois saudou uma por uma as moças, recebendo de todas muitas dessas carícias femininas que tanto estão na voz como nos olhares e gestos. Chegou rapidamente junto a Ginevra, dominada por uma inquietação que debalde tentava ocultar. A italiana e a mulher do pintor fizeram uma à outra um sinal amistoso com a cabeça e as duas ficaram caladas, uma pintando e a outra olhando pintar. A respiração do militar ouvia-se perfeitamente, mas a sra. Servin não parecia aperceber-se dela, e sua dissimulação era tão grande que Ginevra esteve tentada de acusá-la de surdez voluntária. Entretanto o desconhecido moveu-se na cama. A italiana fitou fixamente a sra. Servin, que, sem que seu rosto manifestasse a mais leve alteração, lhe disse:

— Sua cópia está tão bonita quanto o original. Se eu tivesse de escolher ficaria hesitante.

“O sr. Servin não fez à mulher confidências a respeito deste mistério”, pensou Ginevra, a qual depois de ter respondido à senhora com um gentil sorriso de incredulidade, cantarolou uma canzonetta de sua terra para cobrir o barulho que o prisioneiro pudesse fazer.

Era uma coisa tão insólita ouvir a estudiosa italiana cantar que todas as raparigas, surpreendidas, a fitaram. Mais tarde essa circunstância serviu de prova às caridosas hipóteses do ódio. A sra. Servin pouco depois se retirou e a sessão terminou sem mais incidentes. Ginevra deixou que as companheiras saíssem, ficando, como quem pretende trabalhar ainda muito tempo; mas, sem querer, traía o desejo de ficar só, porquanto à medida que as alunas se preparavam para partir, ela lhes lançava olhares de mal disfarçada impaciência. A srta. Thirion, que em poucas horas se tornara uma cruel inimiga para aquela que a sobrepujava em tudo, adivinhou, pelo instinto do ódio, que a simulada aplicação de sua rival mascarava um mistério. Por mais de uma vez a impressionara o ar atento com o qual Ginevra se pusera a escutar um ruído que ninguém ouvia. A expressão que surpreendeu nos olhos da italiana foi para ela um raio de luz. Foi a última das alunas a sair e foi aos aposentos da sra. Servin, com quem ficou conversando um momento; depois, fingiu ter esquecido sua bolsa, subiu silenciosamente ao ateliê e viu Ginevra trepada num andaime feito às pressas e tão absorvida na contemplação do militar desconhecido que não ouviu o leve ruído que os passos da companheira produziram. É verdade que, segundo uma expressão de Walter Scott, Amélia caminhava como sobre ovos. Voltou celeremente para a porta do ateliê e tossiu. Ginevra estremeceu, virou a cabeça, viu a inimiga, corou, apressou-se em desprender a sarja verde para disfarçar suas intenções e desceu depois de ter arrumado sua caixa de tintas. Saiu do ateliê levando gravada na memória a imagem de uma cabeça de homem, tão graciosa quanto a de Endimião, obra-prima de Girodet[219] que ela copiara dias antes.

— Proscrever um homem tão moço! Quem poderá ser? Pois não é o marechal Ney.

Foram essas duas frases a expressão mais simples de todas as ideias que durante dois dias ocuparam o espírito de Ginevra. Daí a dois dias, não obstante seu empenho para ser a primeira a chegar ao ateliê, já aí encontrou a srta. Thirion, que se fizera levar de carro; Ginevra e sua inimiga observaram-se, reciprocamente, durante muito tempo, mas ambas deram ao rosto uma expressão impenetrável. Amélia também vira a encantadora cabeça do desconhecido, mas, feliz ou infelizmente, as águias e o uniforme não estavam colocados na área que a fenda lhe permitia observar. Perdeu-se então em conjeturas. Repentinamente Servin chegou muito mais cedo do que habitualmente.

— Srta. Ginevra — disse ele depois de percorrer o ateliê com o olhar —, por que se foi colocar nesse lugar? Não vê que a luz aí é má? Queira aproximar-se dessas senhoritas e desça um pouco a sua cortina.

Sentou-se depois junto a Laura, cujo trabalho merecia seus mais solícitos conselhos.

— Muito bem — exclamou —, aqui está uma cabeça superiormente feita. Vai ser uma segunda Ginevra.

O mestre foi de cavalete em cavalete, ralhando, elogiando, gracejando e fazendo, como sempre, temer mais seus gracejos do que suas reprimendas. A italiana não obedecera às observações do professor e permanecia no mesmo lugar com a firme intenção de não se afastar dali. Pegou uma folha de papel e pôs-se a esboçar, com sépia, a cabeça do pobre recluso. Uma obra concebida com paixão traz sempre em si um cunho particular. A faculdade de imprimir às traduções da natureza ou do pensamento cores verdadeiras constitui o gênio, sendo que muitas vezes a paixão o substitui. Por isso, nas circunstâncias em que se achava Ginevra, a intuição que ela devia à sua memória impressionada, ou, talvez, à necessidade, essa mãe das grandes coisas, lhe emprestou um talento sobrenatural. A cabeça do oficial foi lançada no papel por entre estremecimentos interiores que ela atribuía ao temor e nos quais um fisiologista teria reconhecido a febre da inspiração. De quando em quando, ela dirigia um olhar furtivo às companheiras, a fim de poder ocultar o esboço no caso de uma indiscrição. Não obstante sua ativa vigilância, houve um momento em que ela não percebeu o lornhão que sua implacável inimiga assestava sobre o misterioso desenho, abrigando-se por trás de uma grande cortina. A srta. Thirion, que reconheceu a fisionomia do proscrito, ergueu bruscamente a cabeça e Ginevra guardou a folha de papel.

— Por que ficou aí, senhorita, apesar do meu conselho? — perguntou gravemente o professor a Ginevra.

A aluna virou com vivacidade o cavalete de modo que ninguém pudesse ver seu trabalho e disse com voz emocionada, mostrando-o ao professor:

— Não acha como eu que esta luz é mais favorável? Não lhe parece que devo ficar aqui?

Servin empalideceu. Como nada escapa ao olhar perspicaz do ódio, a srta. Thirion partilhou, por assim dizer, as emoções que agitavam professor e aluna.

— Tem razão — disse Servin. — Mas dentro em pouco saberá mais do que eu — acrescentou com um riso forçado. Houve uma pausa durante a qual o mestre contemplou a cabeça do oficial. — Isto é uma obra-prima digna de Salvador Rosa[220] — exclamou com energia de artista.

Ante essa exclamação todas as moças se levantaram e a srta. Thirion acorreu com a velocidade do tigre ao se atirar sobre a presa. Nesse momento o proscrito, acordado pelo barulho, moveu-se. Ginevra derrubou sua banqueta, disse umas frases incoerentes e pôs-se a rir, mas já tendo dobrado o retrato e colocado dentro de sua pasta, antes que a terrível inimiga o pudesse ver. O cavalete foi cercado e Servin esmiuçou em voz alta as perfeições da cópia que sua aluna favorita estava fazendo naquele momento, ficando assim todas ludibriadas com aquele estratagema, menos Amélia, que, colocando-se por trás das companheiras, tentou abrir a pasta onde vira esconder o desenho. Ginevra apoderou-se do cartão e colocou-o diante de si sem dizer uma palavra. As duas moças se examinaram então em silêncio.

— Vamos, senhoritas, aos seus lugares — disse Servin. — Se quiserem saber tanto quanto a srta. de Piombo, é preciso não estarem sempre a falar de modas ou de bailes e outras frioleiras, como costumam fazer.

Quando todas as raparigas voltaram aos cavaletes, Servin sentou-se junto a Ginevra.

— Não acha que foi melhor eu ter descoberto esse mistério, em vez de uma outra? — disse a italiana em voz baixa.

— Sim — respondeu o pintor. — A senhorita é patriota e, mesmo que não o fosse, ainda seria a si a quem eu o confiaria.

O mestre e a discípula se compreenderam, Ginevra não teve mais receio de perguntar.

— Quem é?

— O amigo íntimo de Labédoyère, o homem que, depois do desventurado coronel, mais contribuiu para a reunião do sétimo com os granadeiros da ilha de Elba.[221] Era chefe de esquadrão na Guarda e vem de Waterloo.

— Por que não queimou o uniforme dele, seu shako, e não lhe deu fatiotas burguesas? — perguntou Ginevra com vivacidade.

— Devem trazer-me uma, hoje à noite.

— O senhor deveria ter fechado o ateliê durante alguns dias.

— Ele vai partir.

— Então quer morrer? — disse a moça. — Deixe-o em sua casa durante o primeiro momento da tormenta. Paris ainda assim é o único lugar da França onde se pode ocultar um homem com segurança. É seu amigo?

— Não. Seu único título ao meu interesse é sua desgraça. Vou contar-lhe como me caiu em casa: meu sogro, que havia reingressado no serviço durante essa campanha, encontrou esse pobre rapaz, e com muita sutileza escamoteou-o das garras dos tipos que prenderam Labédoyère. Ele queria defendê-lo, o insensato!

— E é o senhor quem o classifica assim? — exclamou Ginevra, dirigindo ao pintor um olhar de surpresa, ficando este calado por alguns instantes.

— Meu sogro está sendo muito vigiado para poder esconder alguém em sua casa. Por isso trouxe-o para aqui à noite na semana passada. Acreditei poder ocultá-lo a todos os olhos pondo-o nesse canto, único lugar da casa onde ele pode estar em segurança.

— Se lhe puder ser útil, recorra a mim — disse Ginevra. — Conheço o marechal Feltre.[222]

— Está bem! Veremos — respondeu o pintor.

Essa conversação durou demasiado tempo para não ser notada por todas as moças. Servin afastou-se de Ginevra, tornou a aproximar-se de cada um dos cavaletes e deu lições tão demoradas que ainda estava na escada quando soou a hora de as alunas se retirarem.

— Srta. Thirion, esqueceu sua bolsa — exclamou o professor, correndo atrás da moça que baixava ao papel de espiã para satisfazer seu ódio.

A aluna curiosa veio buscar a bolsa, manifestando alguma surpresa por seu descuido, mas o cuidado de Servin foi para ela nova prova da existência de um mistério cuja gravidade não oferecia dúvidas. Já havia fantasiado tudo o que devia ser e como o abade Vertot poderia dizer: “Meu cerco está feito”.[223] Desceu ruidosamente a escada e puxou a porta que dava para o apartamento de Servin, com violência, a fim de fazer crer que tinha saído, mas tornou a subir sigilosamente, ficando por trás da porta do ateliê. Quando o pintor e Ginevra se julgaram sós, ele bateu de certo modo à porta da mansarda, a qual girou imediatamente sobre os gonzos enferrujados e ruidosos. A italiana viu surgir um rapaz alto e elegante, cujo uniforme imperial lhe fez bater o coração. O oficial estava com um braço em tipoia e a palidez do seu rosto demonstrava cruéis dores. Ao ver uma desconhecida, estremeceu. Amélia, que nada podia ver, receou ficar por mais tempo ali, mas bastava-lhe ter ouvido o ranger da porta, por isso se foi sem fazer ruído.

— Nada tema — disse o pintor ao oficial. — A senhorita é a filha do mais fiel amigo do imperador, o barão de Piombo.

O jovem militar não teve mais dúvidas a respeito do patriotismo de Ginevra, depois de tê-la visto.

— Está ferido? — perguntou ela.

— Oh! Não é nada, senhorita. A ferida já está fechando.

Nesse momento as vozes estridentes e agudas dos vendedores de jornais chegaram até ao ateliê:

— Leiam o julgamento que condena à morte...

Os três estremeceram. O soldado foi o primeiro a ouvir um nome que o fez empalidecer.

— Labédoyère! — exclamou, deixando-se cair na banqueta.

Olharam-se em silêncio. Gotas de suor transudaram sobre a fronte lívida do rapaz; num gesto de desespero levou a mão à cabeça, puxando os cabelos, e apoiou o cotovelo no cavalete de Ginevra.

— Afinal de contas — disse, erguendo-se bruscamente —, Labédoyère e eu sabíamos o que fazíamos. Não ignorávamos a sorte que nos tocaria, quer no triunfo, quer na queda. Ele morre pela sua causa e eu me oculto...

Dirigiu-se precipitadamente para a porta do ateliê, porém, mais rápida do que ele, Ginevra interpôs-se, fechando-lhe o caminho.

— Julga poder reerguer o imperador? — perguntou ela. — Julga poder reerguer aquele gigante, quando ele próprio não se soube conservar de pé?

— Que querem que eu faça? — disse então o proscrito, dirigindo-se aos dois amigos que o acaso lhe mandara. — Não tenho um único parente no mundo. Labédoyère era meu protetor e meu amigo. Agora estou só; amanhã serei talvez proscrito ou condenado. Nunca tive outra fortuna além do meu soldo; gastei meu último escudo para vir arrancar Labédoyère à sua sorte e tentar levá-lo. A morte para mim é portanto uma necessidade. Quando se está decidido a morrer, é preciso saber vender caro a vida ao algoz. Ainda agora estava pensando que a vida de um homem de bem vale, sem dúvida nenhuma, a de dois traidores, e que uma punhalada bem aplicada pode dar a imortalidade.

Essa crise de desespero apavorou o pintor e a própria Ginevra, a qual compreendeu perfeitamente o rapaz. A italiana admirou aquela bela cabeça e aquela voz deliciosa, cuja doçura era apenas alterada pelos acentos do furor, depois derramou de repente um bálsamo sobre todas as feridas do desgraçado.

— Senhor — disse ela —, quanto às suas dificuldades pecuniárias, permita-me oferecer-lhe o produto de minhas economias. Meu pai é rico, sou sua única filha, ele me quer muito e tenho certeza de que não desaprovará meu procedimento. Não tenha escrúpulos em aceitar; nossos bens nos vêm do imperador, não possuímos um cêntimo que não seja um efeito da sua munificência. Não é demonstrar-lhe gratidão prestar serviço a um dos seus fiéis soldados? Aceite pois essa quantia com a mesma sem-cerimônia com que eu a ofereço. É apenas dinheiro — continuou ela em tom de desprezo. — Agora, quanto a amigos, aqui os tem! — Ao dizer essas palavras, ergueu altivamente a cabeça e nos seus olhos luziu um brilho inusitado. — A cabeça que amanhã cairá ante uma dúzia de espingardas salva a sua — continuou ela. — Espere que passe esta tormenta e poderá ir procurar serviço no estrangeiro, se não o esquecerem, e no Exército francês, se o tiverem esquecido.

Há nas consolações dadas por uma mulher qualquer coisa de maternal, de previdente, de completo. Mas, quando a essas palavras de paz e de esperança se juntam a graça dos gestos, a eloquência de tom que vem do coração e quando, sobretudo, a benfeitora é bela, é difícil a um rapaz resistir. O coronel aspirou o amor por todos os sentidos. Leais tons rosados coloriram-lhe as faces pálidas, seus olhos perderam um pouco da melancolia que os nublava e disse num tom de voz particular:

— A senhorita é um anjo de bondade! Mas Labédoyère — exclamou ele —, Labédoyère!

Ante esse grito, os três se olharam em silêncio e se compreenderam. Não eram mais amigos de apenas vinte minutos, mas sim de vinte anos.

— Meu caro — disse Servin —, pode salvá-lo?

— Posso vingá-lo.

Ginevra estremeceu: conquanto o desconhecido fosse belo, seu aspecto não comovera a moça; a doce piedade que as mulheres encontram no coração pelas misérias que nada têm de ignóbil abafara em Ginevra todo e qualquer sentimento; mas ouvir um grito de vingança, achar nesse proscrito uma alma italiana, devotamento a Napoleão, generosidade corsa?... Era demasiado para ela. Por isso contemplou o oficial com emoção respeitosa, que lhe fez o coração pulsar com força. Pela primeira vez na vida, um homem a fazia experimentar um sentimento tão vivo. Como acontece com todas as mulheres, comprouve-se em harmonizar a alma do desconhecido com a beleza distinta de suas feições, com as felizes proporções de seu talhe que, como artista, admirava. Levada pelo acaso da curiosidade à piedade, da piedade a um interesse poderoso, chegava desse interesse a sensações tão profundas que lhe pareceu perigoso permanecer ali por mais tempo.

— Até amanhã — disse ela, obsequiando o oficial com o seu mais doce sorriso, a título de consolação.

Ao ver aquele sorriso que transfigurava Ginevra, o desconhecido, durante um segundo, tudo esqueceu.

— Amanhã — respondeu com tristeza —, amanhã... Labédoyère...

Ginevra voltou-se, pôs um dedo nos lábios e fitou-o como se lhe dissesse: “Acalme-se; seja prudente”.

Então o rapaz exclamou:

— O Dio!, che non vorrei vivere dopo averla veduta![224] (Ó Deus, quem não quisera viver depois de a ter visto!)

O acento particular com o qual ele pronunciou essa frase fez Ginevra estremecer.

— É corso? — perguntou, voltando para ele com o coração palpitante de alegria.

— Nasci na Córsega — respondeu ele —, mas muito novo me levaram para Gênova e assim que cheguei à idade em que se pode entrar para o serviço militar sentei praça.

A beleza do desconhecido, a sedução sobrenatural que suas opiniões bonapartistas lhe davam, seu ferimento, sua desgraça, o próprio perigo em que se achava, tudo isso desapareceu aos olhos de Ginevra, ou melhor, tudo se fundiu num único sentimento, novo, delicioso. Aquele proscrito era filho da Córsega, falava a língua querida da sua terra! A moça, durante alguns momentos, ficou imóvel, retida por uma sensação mágica. Tinha de fato ante os olhos um quadro vivo, ao qual todos os sentimentos humanos reunidos, e mais o acaso, davam um vivo colorido. A convite de Servin o oficial tinha-se sentado num divã. O pintor desfizera a tipoia que sustentava o braço do hóspede e estava retirando as ataduras para fazer o curativo do ferimento. Ginevra estremeceu ao ver a comprida e larga ferida que a lâmina de um sabre abrira no antebraço do rapaz e deixou escapar um queixume. O desconhecido ergueu a cabeça para fitá-la e sorriu. Havia algo de comovente e que impressionava a alma no modo como Servin tirava os fios e manuseava as carnes machucadas, enquanto o rosto ferido, embora pálido e abatido, manifestava, pela presença da moça, mais prazer do que sofrimento. Um artista deveria admirar, involuntariamente, essa oposição de sentimentos, e o contraste produzido pela alvura dos panos e a nudez do braço com o uniforme azul e encarnado do oficial. Naquele momento uma penumbra suave envolvia o ateliê, mas um último raio de sol veio iluminar o lugar onde o proscrito se achava, de modo que seu nobre e alvo semblante, seus cabelos negros, sua roupa, tudo foi inundado de claridade. A supersticiosa italiana considerou um infeliz presságio esse simples efeito de luz. O desconhecido assemelhava-se assim a um mensageiro celeste que a fazia ouvir a língua pátria e a colocava sob o encantamento das recordações da sua infância, enquanto em seu coração nascia um sentimento primaveril, tão puro como os dias da sua infância.

Durante um momento rapidíssimo ela permaneceu enlevada, como que mergulhada em pensamentos indefinidos, depois corou por deixar ver sua preocupação, trocou um rápido e meigo olhar com o proscrito e fugiu, sempre a olhá-lo.

No dia seguinte não havia aula. Ginevra foi ao ateliê e o prisioneiro pôde ficar perto de sua conterrânea: Servin, que tinha um esboço a terminar, permitiu ao recluso permanecer ali, e ficou de mentor dos dois jovens, que se falaram frequentes vezes em corso. O pobre soldado contou seus sofrimentos durante a derrota e retirada de Moscou, porquanto, com a idade de dezenove anos, na passagem da Berezina, fora o último sobrevivente de seu regimento, depois de ter perdido, com a morte de seus camaradas, os únicos homens que se interessavam pela sorte de um órfão. Pintou em traços de fogo o grande desastre de Waterloo. Para a italiana sua voz foi como uma música. Educada à moda corsa, Ginevra era de algum modo uma filha da natureza, ignorando a mentira e entregando-se sem rodeios às suas impressões, que confessava, ou melhor, deixava adivinhar, sem o manejo da pequena e calculista faceirice das moças de Paris.

Durante esse dia, por mais de uma vez, ficou com a paleta numa das mãos e o pincel na outra, sem que este tocasse nas tintas que estavam naquela: com os olhos fitos no oficial e os lábios levemente entreabertos, ela ficava ouvindo, sempre pronta a dar uma pincelada que nunca dava. Não se admirava por vislumbrar tanta doçura nos olhos do rapaz, porquanto sentia os seus se tornarem meigos, não obstante sua vontade de os conservar severos ou calmos. Depois, a seguir, pintou com uma atenção particular e durante horas a fio, sem erguer a cabeça, porque ele estava ali, perto dela, olhando-a trabalhar. A primeira vez que ele veio sentar-se para a contemplar em silêncio, ela, com voz comovida e após longa pausa, perguntou-lhe:

— Diverte-o muito ver pintar?

Nesse dia, ela ficou sabendo que ele se chamava Luigi. Antes de se separarem, combinaram que, nos dias de aula, se se desse algum acontecimento político importante, ela o informaria cantando em voz baixa certas árias italianas.

No dia seguinte, a srta. Thirion revelou em segredo às companheiras que Ginevra de Piombo era amada por um rapaz, que vinha durante as horas consagradas às lições instalar-se no gabinete escuro do ateliê.

— Você, que toma partido dela — disse à srta. Roguin —, examine-a bem, e verá o modo como ela passa o tempo...

Ginevra foi, portanto, observada com uma atenção diabólica. Ouviram suas canções, espionaram seus olhares. No momento em que julgava não ser vista por ninguém, uma dúzia de olhos estavam constantemente fixados nela. Prevenidas por essa forma, aquelas raparigas interpretaram, no seu verdadeiro sentido, as agitações que perpassavam pelo brilhante rosto da italiana, e seus gestos e a toada especial de seu cantarolar, e o ar atento com que escutava sons indistintos, que somente ela ouvia através do tabique. Ao cabo de oito dias, apenas uma única das quinze discípulas de Servin se recusara a ver Luigi pela fenda frágil da divisão. Era esta Laura, a linda Laura, a linda menina pobre e assídua que, por um instinto de fraqueza, gostava verdadeiramente da bela corsa e ainda a defendia. A srta. Roguin quis que Laura ficasse na escada, na hora da saída, para lhe provar a intimidade de Ginevra e do belo rapaz, a fim de os surpreender. Laura recusou descer a uma espionagem que a curiosidade não bastava para justificar e tornou-se assim objeto de geral reprovação.

Daí a pouco tempo, a filha do oficial de gabinete do rei achou que não era conveniente para ela vir ao ateliê de um pintor cujas opiniões tinham laivos de patriotismo ou de bonapartismo, o que, naquela época, parecia uma única e mesma coisa. Não voltou, portanto, mais à casa de Servin. Se Amélia esqueceu Ginevra, o mal que ela semeara deu frutos. Insensivelmente, por acaso, por tagarelice ou por hipocrisia, todas as demais moças comunicaram às mães a estranha aventura que se estava desenrolando no ateliê. Um dia Matilde Roguin não compareceu; na seguinte lição o mesmo se deu com outra moça, finalmente três ou quatro senhoritas, as últimas, também desertaram. Ginevra e a srta. Laura, sua amiguinha, foram durante duas ou três aulas as únicas frequentadoras do deserto ateliê. A italiana não se dava conta do isolamento no qual se achava e nem sequer indagava a causa da ausência das companheiras. Tendo inventado, fazia pouco, um meio de se corresponder com Luigi, vivia no ateliê como num delicioso refúgio, sozinha no meio do mundo, não pensando senão no oficial e nos perigos que o ameaçavam. Essa moça, conquanto sinceramente admiradora dos nobres caracteres que não querem trair sua fé política, aconselhava insistentemente Luigi a se submeter o mais depressa possível à autoridade do rei, a fim de o conservar em França, e Luigi não queria submeter-se para não sair de seu esconderijo. Se as paixões só nascem e se desenvolvem sob a influência de acontecimentos extraordinários e romanescos, pode-se dizer que jamais tantas circunstâncias concorreram para unir dois seres por um mesmo sentimento. A amizade de Ginevra por Luigi e deste por ela fez mais progressos em um mês do que uma amizade em sociedade pode fazer em dez anos, num salão. Não é a adversidade a pedra de toque dos caracteres? Ginevra pôde, pois, apreciar facilmente Luigi, conhecê-lo, e prontamente sentiram um pelo outro uma estima recíproca. Mais velha do que Luigi, Ginevra achava uma doçura extrema em ser requestada por um jovem já tão grande, tão castigado pela sorte e que à experiência de um homem unira todas as seduções da adolescência. Por seu lado, Luigi experimentava um prazer indizível em se deixar proteger, na aparência, por uma moça de vinte e cinco anos. Havia nesse sentimento certo orgulho inexplicável. Seria talvez uma prova de amor. A união da doçura e da altivez, da força e da fraqueza, tinha em Ginevra atrativos irresistíveis, e Luigi já estava inteiramente subjugado por ela. Amavam-se já tão profundamente que não tinham necessidade nem de o negar, nem de o dizer ao outro.

Um dia, ao entardecer, Ginevra ouviu o sinal combinado. Luigi batia com um alfinete nas tábuas do tabique de modo a não fazer mais ruído do que uma aranha ao prender seus fios, e pedindo por esse meio para sair de seu cárcere. A italiana percorreu o ateliê com os olhos, não viu a pequena Laura e respondeu ao sinal. Luigi abriu a porta, viu a aluna e recuou precipitadamente. Admirada, Ginevra olhou em torno de si, deu com Laura e disse-lhe ao dirigir-se ao cavalete da amiguinha:

— Você fica até muito tarde, minha querida. Esta cabeça, entretanto, parece-me já estar terminada, só falta indicar um reflexo no alto dessa trança de cabelos.

— Como eu lhe seria grata — disse Laura com voz comovida — se você me quisesse corrigir esta cópia. Assim eu guardarei uma lembrança sua.

— Com muito prazer — respondeu Ginevra, certa de que assim a poderia despedir. — Eu pensei — acrescentou, dando umas pinceladas — que você ainda tinha muito que andar de sua casa ao ateliê.

— Oh! Ginevra, vou-me para sempre — exclamou a moça com ar triste.

A italiana não se impressionou tanto com essas palavras cheias de melancolia quanto o ficaria um mês antes.

— Vai deixar o sr. Servin? — perguntou.

— Você não reparou, Ginevra, que de algum tempo a esta parte só estamos aqui as duas?

— É verdade — respondeu Ginevra, impressionada repentinamente como por uma lembrança. — Essas senhoritas estarão doentes, terão casado ou os pais delas estarão todos de serviço no castelo?

— Todas deixaram o sr. Servin — respondeu Laura.

— E por quê?

— Por sua causa, Ginevra.

— Por minha causa? — repetiu a jovem corsa, erguendo-se, com a fronte ameaçadora, o olhar altivo e os olhos cintilantes.

— Oh! Não se zangue, minha querida Ginevra — exclamou doridamente Laura. — Mas também minha mãe quer que eu deixe o ateliê. Todas essas moças disseram que você tinha uma aventura, que o sr. Servin consentia que um rapaz que a ama ficasse no gabinete escuro. Eu nunca acreditei nessas calúnias e nada disse à minha mãe. Ontem à noite, a sra. Roguin encontrou-se com minha mãe num baile e perguntou se ela continuava a mandar-me aqui. Mamãe respondeu afirmativamente e ela então contou-lhe as mentiras dessas senhoritas. Minha mãe ralhou muito comigo e disse que eu devia saber de tudo isso, que eu tinha desmerecido a confiança que reina entre mãe e filha, nada lhe dizendo. Oh!, minha querida Ginevra!, eu que a tomava por modelo, quanto me entristeceu de não poder ficar mais na sua companhia...

— Tornaremos a nos encontrar na vida: as moças se casam... — disse Ginevra.

— Quando são ricas — argumentou Laura.

— Venha ver-me, meu pai é rico...

— Ginevra — disse Laura enternecida —, a sra. Roguin e mamãe devem vir, amanhã, ver o sr. Servin para lhe apresentar queixas. Que ao menos ele esteja prevenido.

Um raio que caísse a dois passos de Ginevra causar-lhe-ia menos espanto do que essa revelação.

— Que lhes importava isso! — disse ingenuamente.

— Todas acham isso muito malfeito. Mamãe disse que é contrário aos bons costumes...

— E você, Laura, o que pensa disso?

A moça olhou para Ginevra, seus pensamentos se fundiram. Laura não mais conteve suas lágrimas, atirou-se nos braços da amiga e beijou-a. Nesse momento, chegou Servin.

— Srta. Ginevra — disse ele com entusiasmo —, acabei o meu quadro, estão envernizando-o. Que tem? Parece que todas essas senhoritas se concederam férias ou foram para o campo.

Laura enxugou as lágrimas, saudou Servin e retirou-se.

— O ateliê está deserto, faz alguns dias — disse Ginevra. — Aquelas senhoritas não voltarão mais.

— Ora!...

— Não ria — disse Ginevra —, ouça-me: sou a causa involuntária da perda de sua reputação.

O artista sorriu e disse, interrompendo a aluna:

— Minha reputação?... Mas, daqui a poucos dias, meu quadro será exposto.

— Não se trata de seu talento — disse a italiana —, e sim de sua moralidade. Aquelas senhoritas divulgaram que Luigi estava encerrado aqui e que o senhor protegia... nossos... amores...

— Há nisso alguma verdade, senhorita — respondeu o professor. — As mães dessas senhoritas são umas hipócritas — continuou ele. — Se me tivessem procurado tudo teria sido explicado. Mas que eu me vá preocupar com isso tudo? A vida é demasiado curta.

E o pintor fez estalar os dedos por cima da cabeça. Luigi, que ouvira parte dessa conversa, acorreu em seguida.

— O senhor vai perder todas as suas alunas — exclamou —, e eu o terei arruinado.

O artista tomou a mão de Luigi e a de Ginevra e juntou-as.

— Vocês se casarão, meus filhos? — perguntou-lhes com comovedora bonomia. Ambos baixaram os olhos e seu silêncio foi a sua primeira confissão de amor. — Pois bem — continuou Servin —, vocês serão felizes, não é? Haverá qualquer coisa que valha a felicidade de duas criaturas como vocês?

— Eu sou rica — disse Ginevra —, e o senhor me permitirá indenizá-lo.

— Indenizar-me! — exclamou Servin. — Mas quando souberem que fui vítima das calúnias de algumas bobalhonas e que eu ocultava um proscrito, todos os liberais de Paris me mandarão as filhas! É capaz que então eu me torne devedor de vocês...

Luigi apertava a mão de seu protetor, sem poder articular uma só palavra, mas por fim pôde dizer-lhe com voz enternecida:

— Será, pois, ao senhor a quem deverei toda a minha felicidade.

— Sejam felizes, eu os uno! — disse o pintor com uma unção cômica, impondo as mãos sobre a cabeça dos dois namorados.

Esse gracejo do artista pôs termo ao enternecimento dos dois. Os três se olharam a rir. A italiana apertou fortemente a mão de Luigi com uma simplicidade digna dos costumes de sua terra.

— Pois sim, meus filhos — disse Servin —, vocês estão pensando que tudo agora marcha às mil maravilhas? Pois bem, estão enganados.

Os namorados olharam-no, admirados.

— Tranquilizem-se, sou eu o único que se vê em apertos com as vossas diabruras! A sra. Servin é um pouco moralona e francamente não sei como nos poderemos arranjar com ela.

— Santo Deus! Ia esquecendo! — exclamou Ginevra. — Amanhã a sra. Roguin e a mãe de Laura devem vir para lhe...

— Compreendo! — disse o pintor, interrompendo-a.

— Mas o senhor poderá justificar-se — continuou a moça, deixando escapar um gesto de cabeça, cheio de orgulho. — O sr. Luigi — e virou-se para ele, fitando-o astuciosamente — não deve mais ter antipatia pelo governo do rei, não? Pois bem — continuou depois de o ver sorrir —, amanhã de manhã eu mandarei uma petição a uma das personagens mais influentes do Ministério da Guerra, a um homem que nada pode recusar à filha do barão de Piombo. Obteremos um perdão tácito para o comandante Luigi, porquanto eles não vão querer confirmar-lhe o posto de coronel. E assim, sr. Servin, o senhor poderá tapar a boca das mães das minhas caridosas companheiras dizendo-lhes a verdade.

— Você é um anjo! — exclamou Servin.

II – A DESOBEDIÊNCIA

Enquanto essa cena se desenrolava no ateliê, o pai e a mãe de Ginevra se impacientavam por não a verem regressar à casa.

— São seis horas e Ginevra ainda não voltou — disse Bartolomeu.

— Ela nunca voltou tão tarde — respondeu-lhe a mulher.

Os dois velhos se fitaram com todos os sinais de uma ansiedade pouco habitual. Demasiado agitado para ficar quieto, Bartolomeu levantou-se e deu duas vezes volta à sala, com uma agilidade rara num homem de setenta e sete anos. Graças à sua robusta constituição, poucas mudanças sofrera desde o dia de sua chegada a Paris e, não obstante sua elevada estatura, se conservava firme e ereto. Os cabelos que se lhe haviam tornado brancos e escassos deixavam a descoberto uma fronte larga e proeminente, que dava uma elevada ideia de seu caráter e firmeza. Seu rosto, sulcado por profundas rugas, tinha as feições fortemente acentuadas e apresentava essa tez pálida que inspira veneração. O ardor das paixões se revelava ainda na flama sobrenatural de seus olhos, cujas sobrancelhas não tinham ainda embranquecido de todo e conservavam sua terrível mobilidade. O aspecto dessa cabeça era severo, mas via-se que Bartolomeu tinha o direito de ser assim. Sua bondade e sua doçura eram conhecidas somente pela mulher e pela filha. No exercício de suas funções ou diante de um estranho, ele jamais se despia da majestade que o tempo imprimira à sua personalidade, e do hábito de franzir os sobrolhos, de contrair as rugas do rosto, de impor ao olhar uma fixidez napoleônica, que tornavam a sua abordagem glacial. Durante o curso de sua vida política fora geralmente tão temido que passava por pouco sociável; mas não é difícil explicar as causas dessa reputação. A vida, os costumes e a fidelidade de Piombo importavam na censura da maioria dos cortesãos. Não obstante as missões delicadas confiadas à sua discrição, e que para qualquer outro teriam sido lucrativas, ele não possuía mais de umas trinta mil libras de renda em inscrição no Grande-Livro.[225] Se levarmos em conta o baixo preço das rendas no Império, a liberalidade de Napoleão para com aqueles de seus fiéis servidores que sabiam falar, torna-se fácil crer que o barão de Piombo era um homem de uma probidade severa. Só devia o título de barão à necessidade em que se vira o imperador de lhe atribuir essa honraria, ao enviá-lo a uma corte estrangeira. Bartolomeu sempre votara um ódio implacável aos traidores de que Napoleão se cercava, julgando conquistá-lo à força de vitórias. Foi ele quem, segundo dizem, deu três passos para a porta do gabinete do imperador, depois de lhe haver dado o conselho de se desembaraçar de três homens em França, na véspera do dia em que aquele partiu para a sua célebre e admirável campanha de 1814. Depois da segunda volta dos Bourbons, Bartolomeu não mais usou a cruz da Legião de Honra. Nunca homem nenhum ofereceu mais bela imagem desses velhos republicanos, amigos incorruptíveis do Império, que restavam como destroços vivos dos dois mais enérgicos governos que o mundo jamais conheceu. Se o barão de Piombo era antipático para alguns cortesãos, tinha por amigos os Daru,[226] os Drouot,[227] os Carnot.[228] Também, quanto ao resto dos homens políticos, depois de Waterloo, preocupava-se tanto com eles como com as baforadas que tirava do seu charuto.

Bartolomeu de Piombo adquirira, mediante a soma bastante módica que Madame, a mãe do imperador, lhe pagara por suas propriedades na Córsega, o palacete Portenduère,[229] no qual não fez mudança nenhuma. Quase sempre instalado por conta do governo, ele residia naquele palacete somente depois da catástrofe de Fontainebleau.[230] Segundo o hábito das pessoas simples e de elevadas virtudes, o barão e a esposa viviam sem ostentação: seus móveis provinham do antigo mobiliário do palacete. Os grandes aposentos de tetos altos, sombrios e nus daquela mansão, os grandes espelhos enquadrados em velhas molduras douradas, enegrecidas, e aquele mobiliário do tempo de Luís xiv harmonizavam-se com Bartolomeu e sua esposa, personagens dignas da Antiguidade. Sob o Império e durante os Cem Dias, quando exercia funções largamente remuneradas, o velho corso tivera um modo de vida opulento, mais para honrar seu posto do que na intenção de brilhar. Sua vida bem como a de sua mulher eram tão modestas, tão tranquilas que sua reduzida fortuna bastava para as suas necessidades. Para eles, a sua filha Ginevra valia por todas as riquezas do mundo. Por isso, quando em maio de 1814, o barão de Piombo abandonou seu posto, despediu os criados e fechou as portas de suas cocheiras, Ginevra, simples e sem fausto como seus pais, não teve saudade do passado; tal como as almas grandes, fazia consistir seu luxo na força dos sentimentos, da mesma forma que punha sua felicidade na solidão e no trabalho. Ademais, aquelas três criaturas se queriam demasiado para que as exterioridades da existência tivessem, a seu ver, qualquer valor. Muitas vezes, e sobretudo depois da segunda e espantosa queda de Napoleão, Bartolomeu e a mulher passavam noitadas deliciosas ouvindo Ginevra tocar piano e cantar. Havia para eles um imenso prazer secreto na presença, em qualquer palavra da filha. Seguiam-na com os olhos com terna inquietação, ouviam seus passos no pátio, por mais leves que fossem. Tal como amantes, sabiam permanecer os três silenciosos, durante horas inteiras, ouvindo assim melhor do que por meio de palavras a eloquência de suas almas. Esse sentimento profundo — que era a própria vida dos velhos — animava-lhes todos os seus pensamentos. Não eram três existências, mas uma única, que, semelhante à chama da lareira, se dividia em três línguas de fogo. Se, algumas vezes, a recordação dos benefícios e da desgraça de Napoleão, se a política do momento triunfavam da constante solicitude dos dois velhos, podiam falar a respeito sem romper a comunhão de seus pensamentos: não partilhava Ginevra de suas paixões políticas? Nada mais natural do que o ardor com o qual se refugiavam no coração da filha única. Até então, os quefazeres de uma vida pública tinham absorvido a energia do barão de Piombo, mas ao deixar seus cargos, o corso teve a necessidade de fazer convergir suas forças para o último sentimento que lhe restava; ademais, além dos laços que unem um pai e uma mãe à sua filha, havia talvez, sem que essas três almas despóticas o percebessem, uma razão poderosa para o fanatismo de sua paixão recíproca. Queriam-se com exclusividade; o coração de Ginevra, todo ele, pertencia ao pai, da mesma forma que o de Piombo a ela; enfim se é verdade que nós nos ligamos uns aos outros mais por nossos defeitos do que pelas nossas qualidades, Ginevra respondia maravilhosamente bem a todas as paixões do pai. Daí procedia a única imperfeição dessa tríplice vida. Ginevra era um bloco maciço no seu querer, vingativa, arrebatada como Bartolomeu o fora na mocidade. O corso aplicou-se em desenvolver esses sentimentos selvagens no coração da filha, absolutamente como um leão ensina os leõezinhos a cair sobre a presa. Mas essa aprendizagem de vingança não podia, de algum modo, fazer-se a não ser na casa paterna. Ginevra não perdoava nada ao pai e ele não tinha mais remédio senão ceder. Piombo não via nessas querelas mais do que infantilidades, mas a criança contraiu o hábito de dominar os pais. Em meio a essas tempestades que Bartolomeu gostava de provocar, uma palavra terna, um olhar lhes bastavam para acalmar a alma enfurecida e nunca estavam mais perto de um beijo do que quando se ameaçavam. Entretanto, fazia cinco anos, mais ou menos, Ginevra, que se tornara mais ponderada do que o pai, evitava constantemente essas cenas. Sua fidelidade, sua dedicação, o amor que triunfava em todos os seus pensamentos e seu admirável bom senso tinham feito calar essas cóleras; mas resultara daí um mal não menor: Ginevra vivia com o pai e a mãe num pé de igualdade sempre funesto. Para completar os conhecimentos das mudanças operadas nessas três personagens, depois de sua chegada a Paris, Piombo e sua mulher, gente sem instrução, tinham deixado Ginevra estudar segundo sua fantasia. Ao bel-prazer de seus caprichos de moça, ela tudo aprendera e tudo abandonara, ora uma coisa, ora outra, até que a pintura se tornou sua paixão dominante. Teria sido perfeito se sua mãe tivesse sido capaz de dirigir seus estudos, de esclarecê-la e de lhe harmonizar os dotes naturais. Seus defeitos provinham da funesta educação que o corso se comprouvera em dar-lhe.

Depois de, por muito tempo, ter feito ranger sob seus passos as tábuas do assoalho, o velho tocou a campainha. Veio um criado.

— Vá ao encontro da srta. Ginevra — disse ele.

— Eu sempre lamentei não termos mais carro para ela — observou a baronesa.

— Foi ela que não quis — respondeu Piombo, olhando para a mulher, a qual, acostumada fazia quarenta anos ao hábito de obedecer, baixou os olhos.

Já septuagenária, alta, seca, pálida e enrugada, a baronesa parecia-se exatamente com essas mulheres velhas que Schnetz[231] põe nas cenas italianas dos seus quadros de costumes; tinha tal hábito de ficar calada que a teriam tomado por uma outra sra. Shandy,[232] mas uma palavra, um olhar, um gesto revelavam que os seus sentimentos tinham conservado o vigor e a frescura da mocidade. Seu vestuário, desprovido de faceirice, carecia frequentemente de gosto. Conservava-se ordinariamente passiva, mergulhada numa poltrona, tal como uma sultana validé,[233] esperando ou admirando sua Ginevra, que era seu orgulho e sua vida. A beleza, a toilette, a graça da filha, pareciam ter-se tornado suas. Tudo para ela estava bem quando Ginevra se sentia feliz. Seus cabelos tinham embranquecido e viam-se algumas mechas por sobre sua fronte alva e enrugada, ou ao longo de suas faces encovadas.

— Faz quinze dias, mais ou menos — disse ela —, que Ginevra volta um pouco mais tarde.

— Jean não vai bastante depressa — exclamou o impaciente velho, que cruzou as abas de seu casaco azul, pegou no chapéu, enterrou-o na cabeça, agarrou a bengala e saiu.

— Não irás longe — gritou-lhe a mulher.

Com efeito, a porta de entrada abrira-se e fechara-se, e a velha mãe ouvia o passo de Ginevra no pátio. Bartolomeu surgiu de repente carregando a filha que se debatia em seus braços.

— Ei-la aqui, a Ginevra, a Ginevrettina, a Ginevrina, a Ginevrola, a Ginevretta, a bela Ginevra.

— Meu pai, o senhor me machuca.

Imediatamente Ginevra foi posta no chão com um certo respeito. Meneou a cabeça graciosamente para tranquilizar a mãe, que começava a assustar-se, e dizer-lhe que fizera aquilo para se ver livre. O semblante pálido e inexpressivo da baronesa readquiriu suas cores e uma espécie de alegria. Piombo esfregou as mãos com toda a força, sintoma certo de satisfação. Adquirira esse hábito na corte ao ver Napoleão enfurecer-se com os generais e ministros que o serviam mal ou que houvessem cometido alguma falta. Uma vez distendidos os músculos de seu rosto, a mais insignificante ruga de sua fronte exprimia benevolência. Aqueles dois velhos ofereciam no momento uma imagem exata dessas plantas que estão fenecendo e às quais um pouco de água restitui a vida após prolongada seca.

— Para a mesa! Para a mesa! — exclamou o barão, estendendo sua larga mão para Ginevra, a quem chamou de signora Piombellina, outro sintoma de alegria ao qual a filha respondeu com um sorriso.

— Ora, vem cá — disse Piombo ao saírem da mesa —, sabes que tua mãe me fez observar que há um mês tu ficas muito mais tempo do que costumavas no teu ateliê? Parece que preferes a pintura a nós.

— Ó pai!

— Ginevra com certeza nos está preparando uma surpresa — disse a mãe.

— Vais trazer-me um quadro feito por ti? — exclamou o corso batendo as mãos.

— Sim — respondeu Ginevra —, estou muito atarefada no ateliê.

— Que tens, Ginevra? Empalideceste — disse-lhe a mãe.

— Não! — exclamou a moça, fazendo um gesto decidido — não se dirá que Ginevra Piombo mentiu uma vez que fosse na vida.

Ao ouvir essa singular exclamação, Piombo e a mulher olharam a filha com estranheza.

— Amo um rapaz — acrescentou ela, com voz comovida.

Depois, sem se atrever a olhar para os pais, baixou as pálpebras, a fim de velar o fulgor de seus olhos.

— É um príncipe? — perguntou-lhe ironicamente o pai, num tom de voz que fez mãe e filha estremecerem.

— Não, pai — respondeu ela, com modéstia —, é um rapaz que não tem fortuna...

— É então muito bonito?

— E infeliz.

— Que faz ele?

— Companheiro de Labédoyère, estava proscrito, sem asilo, Servin ocultou-o e...

— Servin é um homem de bem que procedeu corretamente! — exclamou Piombo. — Mas você faz mal, minha filha, amando outro homem que não seu pai.

— Não depende de mim amar ou não amar — respondeu mansamente Ginevra.

— Eu tinha a esperança — disse o barão — de que minha Ginevra me seria fiel até à minha morte, que minhas atenções e as de sua mãe seriam as únicas que ela receberia, que nosso carinho não encontraria em sua alma um carinho rival, e que...

— Algum dia eu lhe exprobrei seu fanatismo por Napoleão? — disse Ginevra. — Nunca quis senão a mim? Não passou meses inteiros em embaixadas? Não suportei com ânimo suas ausências? A vida tem necessidades que devemos saber suportar.

— Ginevra!

— Não, o senhor não me quer por mim, e suas censuras traem um insuportável egoísmo.

— Acusas o amor de teu pai? — exclamou Piombo, com os olhos cintilantes.

— Eu nunca o acusarei, meu pai — respondeu Ginevra com mais suavidade do que sua trêmula mãe esperava. — O senhor tem razão no seu egoísmo, como eu a tenho no meu amor. Deus é testemunha de que jamais filha alguma cumpriu melhor seus deveres para com os pais. Eu nunca encontrei senão felicidade e amor nisso em que outras, muitas vezes, veem apenas obrigações. Faz quinze anos que nem um momento me afasto de sob seu manto protetor, e foi para mim uma doce alegria encantar todos os seus instantes. Serei acaso uma ingrata por entregar-me à sedução de amar e ao desejar ter um esposo que me proteja depois do senhor?

— Ah! Fazes cálculos com teu pai, Ginevra — exclamou o ancião em tom sinistro.

Fez-se uma pausa assustadora, durante a qual ninguém se atreveu a falar. Por fim Bartolomeu rompeu o silêncio bradando com voz despedaçada:

— Oh! Fica conosco, fica junto ao teu velho pai! Não poderei ver-te amando um homem. Não esperarás muito tempo tua liberdade, Ginevra...

— Mas, meu pai, lembre-se de que não o deixaremos, que seremos dois a querer-lhe, que o senhor conhecerá o homem a cujos cuidados me confiará! O senhor será duplamente querido por ele e por mim, por ele que é muito de mim mesma, e por mim que sou toda ele.

— Ó Ginevra, Ginevra! — exclamou o corso fechando os punhos — por que não te casaste quando Napoleão me havia acostumado a essa ideia, e te apresentava duques e condes?

— Eles me amavam por obediência — disse a moça. — Aliás, eu não queria deixar vocês, e eles me teriam levado consigo.

— Não nos queres deixar sós — disse Piombo —, mas casar-te é isolar-nos! Eu te conheço, minha filha, tu não nos amarás mais. Elisa — acrescentou ele, olhando para a mulher, que permanecia imóvel e como que imbecilizada —, não temos mais filha, ela quer casar.

O ancião sentou-se, após haver erguido as mãos como para invocar Deus, depois permaneceu curvado como que abatido pelo seu pesar. Ginevra viu a agitação do pai, e a moderação da cólera do pobre velho despedaçou-lhe o coração; esperava uma crise, um acesso de furor, não armara sua alma contra a mansidão paterna.

— Meu pai — disse ela com voz comovida —, não, o senhor jamais será abandonado por sua Ginevra. Mas, ame-a também um pouco por ela mesma. Se soubesse quanto ele me ama! Ah! Ele não seria capaz de me fazer sofrer.

— Já com comparações — exclamou Piombo com uma entonação terrível. — Não, não posso suportar essa ideia. Se ele te amasse como tu o mereces, ele me mataria e, se ele não te amasse, eu o apunhalaria.

As mãos de Piombo tremiam, seus lábios tremiam, seu corpo tremia e seus olhos lançavam chamas. Unicamente Ginevra podia sustentar aquele olhar, porque então seus olhos se incendiavam e a filha era digna do pai.

— Oh! Amar-te! Qual o homem digno dessa vida? — disse Piombo. — Amar-te como pai não é já viver no paraíso? Quem pois será digno de ser teu esposo?

— Ele — disse Ginevra. — Ele, de quem me sinto indigna.

— Ele — repetiu o barão maquinalmente. — Quem é ele?

— O homem a quem amo.

— Pode ele conhecer-te bastante para te adorar?

— Mas, meu pai — replicou Ginevra, que teve um gesto de impaciência —, mesmo que ele não me amasse, uma vez que eu o amo...

— Então tu o amas? — exclamou Piombo; Ginevra inclinou ligeiramente a cabeça. — Tu o amas mais do que a nós?

— Esses dois sentimentos não são comparáveis — respondeu ela.

— Um é mais forte do que o outro — replicou Piombo.

— Creio que sim — disse Ginevra.

— Tu não te casarás com ele — bradou o corso cuja voz fez ressoar os vidros do salão.

— Casarei com ele — retrucou Ginevra com toda a calma.

— Meu Deus! Meu Deus! — exclamou a mãe. — Como acabará esta briga? Santa Virgina,[234] interponde-vos entre eles.

O barão, que caminhava a largos passos, sentou-se; uma severidade glacial entenebrecia-lhe o semblante; olhou fixamente a filha e disse-lhe com voz doce e enfraquecida:

— Pois bem, Ginevra, não! Não te casarás com ele. Oh! Não me digas sim, hoje... Deixa-me crer no contrário. Queres ver teu pai de joelhos e seus cabelos brancos prosternados a teus pés? Vou suplicar-te.

— Ginevra Piombo não foi acostumada a prometer e a não cumprir — respondeu ela. — Sou sua filha.

— Ela tem razão — disse a baronesa —; nós viemos ao mundo para nos casarmos.

— Assim pois, tu a encorajas na sua desobediência? — disse o barão à mulher, a qual, fulminada por essa frase, se transformou numa estátua.

— Não é desobedecer o recusar submeter-se a uma ordem injusta — respondeu Ginevra.

— Não pode ser injusta, quando emanada da boca de seu pai, minha filha. Por que me julga? A repugnância que sinto não é um conselho do alto? Eu a preservo, talvez, de uma desgraça.

— A desgraça seria se ele não me amasse.

— Sempre ele!

— Sim, sempre! — replicou Ginevra. — Ele é minha vida, meu bem, meu pensamento. Mesmo se lhe obedecesse, ele estaria sempre dentro de meu coração. Proibir-me de casar com ele não é induzir-me a odiá-los?

— Não nos queres mais — exclamou Piombo.

— Oh! — fez Ginevra movendo a cabeça.

— Pois bem! Esquece-o, conserva-te fiel a nós. Depois de nós... Compreendes?

— Meu pai, quer obrigar-me a desejar sua morte? — exclamou Ginevra.

— Viverei mais tempo do que tu! Os filhos que não honram aos pais morrem prematuramente — exclamou Piombo, que chegara ao mais alto grau de exaltação.

— Mais uma razão para me casar o mais cedo possível e ser feliz! — disse Ginevra.

Esse sangue-frio e poder de argumentação acabaram de perturbar Piombo, o sangue subiu-lhe violentamente à cabeça e o rosto tornou-se-lhe purpúreo. Ginevra teve um calafrio, voou como um pássaro para o colo do pai, enlaçou-lhe o pescoço, acariciou-lhe os cabelos e exclamou, completamente enternecida:

— Oh!, sim, que morra eu em primeiro lugar! Não poderia sobreviver a ti, meu pai, meu bom paizinho.

— Oh!, minha Ginevra, minha filha, minha Ginevrina — murmurou Piombo, cuja cólera se esvaiu, ante aquela carícia, como um pedaço de gelo sob os raios do sol.

— Já era tempo que acabassem com essa briga — disse a baronesa com voz comovida.

— Pobre mãe!

— Ah! Ginevretta! Minha bela Ginevra!

E o pai brincava com a filha como com uma criança de seis anos. Entretinha-se em lhe desfazer as tranças onduladas, a fazê-la saltar no colo, havendo mesmo loucura na expressão de sua ternura. Em breve a filha ralhou com ele, beijando-o, e tentou obter, gracejando, a entrada do seu Luigi na casa paterna. Mas, gracejando por sua vez, o pai recusava. Ela enfadou-se, voltou, enfadou-se novamente, depois, no fim do serão, sentiu-se contente por ter gravado no coração do pai quer seu amor por Luigi, quer a ideia de um próximo casamento. No dia seguinte não falou mais no seu amor, foi mais tarde do que de costume ao ateliê, voltou cedo; mostrou-se mais carinhosa com o pai do que jamais o fora, manifestando-se muito grata, como se tivesse de lhe agradecer o consentimento que, por seu silêncio, ele parecia dar ao seu casamento. À noite ela tocava música durante muito tempo e seguidamente exclamava:

— Para este noturno seria preciso uma voz de homem!

Era italiana e isso diz tudo. Ao cabo de oito dias a mãe fez-lhe um sinal e quando a teve perto disse-lhe ao ouvido:

— Consegui que teu pai acedesse em recebê-lo.

— Oh!, mamãe, que felicidade a senhora me dá.

Nesse dia Ginevra teve portanto a alegria de voltar ao palacete dando o braço a Luigi. Pela segunda vez, o pobre oficial saía de seu esconderijo. As ativas solicitações feitas por Ginevra ao duque de Feltre, então ministro da Guerra, tinham sido coroadas de pleno êxito. Luigi acabava de ser reintegrado na lista dos oficiais em disponibilidade. Era isso um grande passo para um melhor futuro. Informado por sua amiga de todas as dificuldades que o aguardavam junto ao barão, o jovem comandante de batalhão não se animava a confessar o temor que tinha de não agradar ao velho. Aquele homem tão corajoso contra a adversidade, tão valente num campo de batalha, tremia ao pensar na sua entrada no salão dos Piombo. Ginevra o sentiu trêmulo, e essa emoção, cuja causa era a felicidade de ambos, foi para ela uma nova prova de amor.

— Como está pálido! — disse-lhe ela quando chegaram à porta do palacete.

— Ó Ginevra! Se se tratasse apenas de minha vida...

Conquanto Bartolomeu estivesse prevenido pela mulher da apresentação oficial do homem a quem Ginevra amava, ele não foi ao seu encontro, ficou na poltrona em que costumava sentar-se e a severidade de sua fronte era glacial.

— Meu pai — disse Ginevra —, trago-lhe aqui uma pessoa que, estou certa, o senhor terá prazer em conhecer: o sr. Luigi, um soldado que combatia a quatro passos do imperador em Mont-Saint-Jean.

O barão Piombo ergueu-se, lançou um olhar furtivo ao rapaz e disse-lhe com voz sardônica:

— O senhor não é condecorado?

— Não uso mais a Legião de Honra — respondeu com timidez Luigi, que se conservava humildemente de pé.

Ginevra, magoada com a descortesia do pai, ofereceu uma cadeira ao moço. A resposta do oficial satisfez o velho servidor de Napoleão. A sra. Piombo, percebendo que as sobrancelhas do marido voltavam à sua posição natural, disse para animar a conversação:

— A semelhança do senhor com Nina Porta é extraordinária. Não acham que o senhor tem a fisionomia dos Porta?

— Nada mais natural — respondeu o rapaz sobre quem se detiveram os olhos chamejantes de Piombo. — Nina era minha irmã.

— Tu és Luigi Porta? — perguntou o ancião.

— Sim.

Bartolomeu de Piombo ergueu-se, cambaleou, foi obrigado a apoiar-se a uma cadeira e olhou para a mulher. Elisa Piombo veio a ele, e então os dois velhos deram-se o braço e saíram do salão, deixando a filha um tanto horrorizada. Luigi Porta, estupefato, fitou Ginevra, que ficou tão branca como uma estátua de mármore, e com os olhos fixos na porta pela qual seus pais se haviam retirado. Aquele silêncio e aquela partida tiveram algo de tão solene que, talvez pela primeira vez na vida, o sentimento do medo lhe penetrou no coração. Juntou as mãos com força e disse com voz tão emocionada que só poderia ser ouvida por um amante:

— Quanta desgraça numa única palavra!

— Em nome de nosso amor, que foi que eu disse? — perguntou Luigi Porta.

— Meu pai — respondeu ela — nunca me falou de nossa deplorável história e eu era muito criança quando deixamos a Córsega, para que pudesse saber.

— Estaremos em vendeta? — perguntou Luigi, tremendo.

— Sim. Interrogando minha mãe, soube que os Porta tinham matado meus irmãos e incendiado nossa casa. Meu pai massacrou toda a família deles. Ele pensou que o tinha amarrado nas colunas de um leito antes de pôr fogo na casa. Como pôde você escapar?

— Não sei — respondeu Luigi. — Aos seis anos levaram-me para Gênova, para a casa de um velho chamado Colonna. Não me deram informação nenhuma sobre a minha família. Eu apenas sabia que era órfão e sem fortuna. Esse Colonna servia-me de pai, e usei seu nome até o dia em que sentei praça. Como precisei de documentos que me identificassem, o velho Colonna disse então que eu, fraco e ainda quase uma criança, tinha inimigos. Aconselhou-me a não usar senão o nome Luigi para lhes escapar.

— Parta, parta, Luigi! — exclamou Ginevra. — Mas não, eu devo acompanhá-lo. Enquanto você estiver em casa de meu pai nada terá a temer, mas logo que sair tome muito cuidado, porque vai caminhar de perigo em perigo. Meu pai tem dois corsos ao seu serviço e se não for ele mesmo quem ameace sua vida, serão eles.

— Ginevra — perguntou ele —, esse ódio existirá entre nós dois?

A moça sorriu tristemente e baixou a cabeça. Ergueu-a em seguida com ar altivo e disse:

— Ó Luigi, é preciso que nossos sentimentos sejam bem puros e bem sinceros para que eu tenha a força de enveredar pela senda que você seguir. Mas trata-se de uma felicidade que deve durar toda a vida, não é?

Luigi respondeu apenas com um sorriso e apertou a mão de Ginevra. A moça compreendeu que somente um verdadeiro amor podia, naquele momento, dispensar os protestos vulgares. A expressão calma e consciente dos sentimentos de Luigi, de algum modo, revelava sua força e sua duração. Consumou-se então o destino daqueles dois noivos. Ginevra entreviu as crudelíssimas lutas que teria de sustentar, mas a ideia de abandonar Luigi, ideia que talvez tivesse flutuado em sua alma, desvaneceu-se completamente. Para sempre dele, arrastou-o subitamente com energia para fora do palacete e não o deixou senão quando alcançaram a casa onde Servin lhe tinha conseguido um modesto apartamento. Quando voltou à mansão paterna, apresentava a serenidade que uma forte resolução produz, nenhuma alteração nas suas maneiras denotava inquietação. Ergueu para o pai e para a mãe, que se iam sentar à mesa, olhos despidos de ousadia e cheios de doçura. Viu que sua velha mãe havia chorado, e a vermelhidão de suas pálpebras fez por um momento fraquejar sua energia, mas ocultou sua emoção. Piombo parecia tomado de uma emoção demasiado violenta e demasiado concentrada para que a pudesse exteriorizar por meio de expressões habituais. Os criados serviram o jantar no qual ninguém tocou. O horror à alimentação é um dos sintomas que traem as grandes crises da alma. Os três saíram da mesa sem se terem dirigido uma única palavra. Quando Ginevra se sentou entre o pai e a mãe no grande e solene salão, Piombo quis falar, mas faltou-lhe a voz, tentou caminhar, mas não teve forças para fazê-lo, tornou a sentar-se e tocou a campainha chamando o criado.

— Pietro — disse por fim ao velho servidor —, acenda o fogo, que estou com frio.

Ginevra estremeceu e olhou com ansiedade para o pai. A luta que nele se feria devia ser horrível, pois que seu semblante estava desfeito. Ginevra conhecia a extensão do perigo que a ameaçava, mas não tinha medo, ao passo que os olhares furtivos que Bartolomeu lançava à filha pareciam denotar que ele temia nesse momento o caráter cuja violência era sua própria obra. Entre eles tudo devia ir aos extremos. Por isso a certeza da mudança que se podia operar nos sentimentos do pai e da filha dava à fisionomia da baronesa uma expressão de terror.

— Ginevra, você ama o inimigo de sua família — disse por fim Piombo sem ousar olhar a filha.

— É verdade — disse esta.

— É preciso escolher entre ele e nós. Nossa vendeta é parte de nós mesmos. Quem não esposa minha vingança não é de minha família.

— Minha escolha está feita — disse Ginevra com voz calma.

A tranquilidade da filha iludiu Bartolomeu.

— Oh!, minha querida filha! — exclamou o ancião, cujos olhos se umedeceram com lágrimas, as primeiras e únicas que derramou na vida.

— Serei mulher dele! — disse bruscamente Ginevra.

Bartolomeu teve como que uma vertigem, mas logo recuperou o sangue-frio e replicou:

— Tal casamento não se realizará enquanto eu for vivo, jamais consentirei nele.

Ginevra permaneceu calada.

— Mas já pensaste — continuou o barão — que Luigi é filho do homem que matou teus irmãos?

— Ele tinha seis anos na época do crime, e deve ser inocentado.

— Um Porta? — exclamou Bartolomeu.

— Mas algum dia partilhei eu desse ódio? — disse a moça com vivacidade. — Educou-me acaso o senhor na crença de que um Porta era um monstro? Podia eu pensar que ainda existisse um dos que o senhor havia matado? Não é mais natural que o senhor sacrifique sua vendeta aos meus sentimentos?

— Um Porta? — disse Piombo. — Se o pai dele naquele tempo te tivesse encontrado em tua cama, não viverias hoje, porque ele te mataria cem vezes.

— É possível — respondeu ela —, mas o filho dele deu-me mais do que a vida. Ver Luigi é uma felicidade sem a qual eu não poderia viver. Luigi revelou-me o mundo dos sentimentos. Não duvido que tenha visto figuras mais belas ainda do que a dele, mas nenhuma me encantou tanto; bem posso ter ouvido vozes... Mas, não, não, jamais nenhuma tão melodiosa. Luigi ama-me, ele será meu marido.

— Nunca! — bradou Piombo. — Prefiro ver-te morta, Ginevra. — O velho corso levantou-se e pôs-se a percorrer o salão a largos passos e deixou escapar, depois de pausas que bem pintavam sua agitação, as seguintes palavras: — Julgas acaso que conseguirás dobrar a minha vontade? Desengana-te, não quero que um Porta seja meu genro. É essa minha sentença. Que não se trate mais de tal assunto entre nós. Eu sou Bartolomeu de Piombo, está ouvindo, Ginevra?

— Atribui algum sentido misterioso a essas palavras? — perguntou ela friamente.

— Significam que tenho um punhal e não temo a justiça dos homens. Nós, corsos, nos explicamos com Deus.

— Pois bem! — disse a moça, erguendo-se. — Eu sou Ginevra de Piombo e declaro que dentro de seis meses serei esposa de Luigi Porta. O senhor é um tirano, meu pai — acrescentou ela após uma pausa aterradora.

Bartolomeu fechou os punhos e deu um soco no mármore da chaminé.

— Ah! — murmurou ele. — Estamos em Paris!

Calou-se, cruzou os braços, inclinou a cabeça sobre o peito e não proferiu mais nem uma única palavra durante o serão. Depois de ter manifestado sua resolução, a moça aparentou um sangue-frio incrível; foi para o piano, cantou, tocou trechos encantadores, com uma graça e um sentimento que revelavam uma perfeita liberdade de espírito, avantajando-se assim ao pai, cuja fronte não parecia acalmar-se. O velho sentiu cruelmente aquela tácita injúria, colhendo então um dos amargos frutos da educação que dera à filha. O respeito é uma barreira que protege tanto os pais como os filhos, evitando pesares àqueles, remorsos a estes. No dia seguinte, ao querer sair à hora em que habitualmente ia para o ateliê, Ginevra viu cerrar-se-lhe a porta do palacete, mas bem depressa inventou um meio de informar Luigi das severidades paternas. Uma criada de quarto que não sabia ler fez com que chegasse às mãos do jovem oficial a carta que Ginevra lhe escreveu. Durante cinco dias os dois enamorados puderam corresponder-se, por meio das manhas que aos vinte anos se sabe inventar. Pai e filha raramente se falavam. Ambos aninhavam no fundo do coração um princípio de ódio; sofriam, mas orgulhosamente e em silêncio. Ao verificarem quanto os laços do amor que os unia eram fortes, tentavam despedaçá-los, sem o conseguir. Nenhuma ideia prazenteira vinha agora, como antes, alegrar as feições severas de Bartolomeu quando ele contemplava a sua Ginevra. A moça tinha qualquer coisa de bravio, na fisionomia, quando olhava o pai, e sobre sua fronte inocente mantinha-se permanentemente uma censura. Entregava-se, é certo, a pensamentos risonhos, mas por vezes seus olhos pareciam ficar embaciados pelo remorso. Podia-se mesmo adivinhar que jamais poderia gozar tranquilamente uma felicidade que causava a desgraça de seus pais. Quer em Bartolomeu, quer na filha, todas as hesitações decorrentes da bondade nativa de suas almas deviam não obstante esboroar-se ante o orgulho de ambos e o rancor peculiar aos corsos. Um e outro fortaleciam a própria ira e fechavam os olhos para o futuro. Talvez, também, estariam os dois persuadidos de que o outro acabaria cedendo.

No dia do aniversário de Ginevra, sua mãe, desesperada por aquela desinteligência que assumia um caráter grave, pensou em reconciliar pai e filha graças às recordações dessa data. Estavam os três juntos no quarto de Bartolomeu. Ginevra adivinhou a intenção da mãe pela hesitação estampada em seu rosto e sorriu tristemente. Nesse momento um criado anunciou a presença de dois notários e de várias testemunhas fazendo todos entrarem. Bartolomeu olhou fixamente para aqueles homens cuja fisionomia friamente ponderada tinha qualquer coisa de ofensivo para almas tão apaixonadas quanto a dos três principais atores daquela casa. O ancião virou-se para a filha com ar inquieto e viu no seu semblante um sorriso de triunfo que o fez suspeitar a iminência de uma catástrofe, mas, como os selvagens, procurou conservar uma impassibilidade fingida aos olhos dos dois notários, com uma espécie de curiosidade calma. Os estranhos sentaram-se depois de ter sido convidados por um gesto do velho.

— O senhor é seguramente o barão de Piombo? — perguntou o mais velho dos notários.

Bartolomeu confirmou, inclinando-se. O notário fez um pequeno movimento com a cabeça, olhou para a moça com a sorrateira expressão de um guarda comercial que acabasse de surpreender um devedor, puxou do bolso a caixa de rapé, tirou dela uma pitada e pôs-se a aspirá-la, aos poucos, procurando as primeiras frases de seu discurso e depois, ao pronunciá-lo, fez contínuas pausas (manobra oratória que este sinal “” representará muito imperfeitamente).

— Cavalheiro — disse ele —, sou o sr. Roguin,[235] notário da senhorita sua filha, e vimos — meu colega e eu — para realizar as intenções da lei e pôr um termo às discussões que — segundo parece — teriam sobrevindo entre o senhor e a senhorita sua filha a respeito de seu casamento com o sr. Luigi Porta.

Essa frase, declamada com muito pedantismo, afigurou-se-lhe com certeza, ao sr. Roguin, demasiado bela para que pudesse ser compreendida em primeira instância; deteve-se olhando para Bartolomeu com uma expressão particular aos homens de negócios, a qual é um meio-termo entre o servilismo e a familiaridade. Habituados a fingir grande interesse pelas pessoas a quem se dirigem, os notários acabam por fazer com que seu semblante se revista de uma máscara que põem e tiram como seu pallium[236] oficial. Essa máscara de benevolência, cujo mecanismo é tão fácil de compreender, irritou Bartolomeu de tal forma que este teve de recorrer a todo o seu bom senso para não atirar o sr. Roguin pela janela. Nas suas rugas insinuou-se uma expressão de ira e ao vê-la o notário disse para os seus botões: “Estou produzindo um grande efeito”.

— Mas, senhor barão — continuou com voz melíflua —, em circunstâncias como esta nossa atuação inicial é sempre essencialmente conciliatória. Queira pois dignar-se a ouvir-me. É evidente que a srta. Ginevra de Piombo atinge, hoje mesmo, a idade em que, embora respeitosamente, pode, apesar da falta de consentimento dos pais, passar por cima desses e casar-se. Ora, é de uso nas famílias que gozam de certa consideração, que pertencem à boa sociedade, que conservam alguma dignidade — as quais, em resumo, desejam evitar que o público se interesse do segredo de suas dissensões e que, além disso, não querem prejudicar-se a si mesmas, lançando uma maldição sobre o futuro de dois jovens esposos (porque é prejudicar-se a si mesmo!), é de uso — repito — no seio dessas honradas famílias não deixar subsistir semelhantes atos, que perduram, que são monumentos de uma desinteligência que — acaba por cessar. — Desde o momento, senhor, em que uma jovem recorre aos “atos respeitosos”,[237] revela uma intenção demasiado firme para que um pai e uma mãe (e aqui virou-se para a baronesa) possam esperar vê-la seguir seus conselhos. A resistência paterna sendo então nula, por esse fato primeiro, e depois sendo invalidada por lei, é óbvio que todo homem sensato, após ter feito uma última admoestação à filha — lhe dê a liberdade de...

O sr. Roguin deteve-se ao perceber que poderia falar duas horas sem obter resposta, e experimentou, aliás, uma emoção particular ante o aspecto do homem a quem tentava convencer. No rosto de Bartolomeu operara-se uma revolução extraordinária: todas as suas rugas contraídas lhe davam um ar de crueldade indefinível e dardejava sobre o notário olhares de tigre. A baronesa conservava-se calada e passiva. Ginevra, calma e resoluta, esperava; sabia que a voz do notário era mais poderosa do que a sua e por isso resolvera permanecer em silêncio. No momento em que Roguin se calou, a cena tornou-se tão apavorante que as testemunhas estranhas estremeceram; é possível que jamais se tivessem impressionado com um silêncio como aquele. Os notários trocaram olhares como para se consultarem, levantaram-se e foram juntos para a janela.

— Já encontraste alguma vez clientes desse molde? — perguntou ao seu colega.

— Daí nada se pode tirar — respondeu o outro. — Em teu lugar, eu me limitaria à leitura da intimação. O velho não me parece nada divertido, ele está furibundo e nada conseguirás em querer discutir com ele.

O sr. Roguin leu um papel selado, contendo um termo redigido de antemão e perguntou friamente a Bartolomeu qual era a sua resposta.

— Existem então, em França, leis que destroem o poder paterno? — perguntou o corso.

— Senhor... — atalhou Roguin com a sua voz melíflua.

— Que arrancam uma filha a seu pai?

— Senhor...

— Que privam um velho de seu último consolo?

— Senhor, sua filha não lhe pertence senão...

— Que o matam?

— Senhor, permita...

Nada é mais horrível do que o sangue-frio e os argumentos precisos de um notário, no meio das cenas veementes nas quais ele costuma intervir. As figuras que Piombo via pareciam-lhe saídas do inferno; sua raiva, fria e concentrada, não teve mais limites no momento em que a voz calma e quase aflautada de seu pequeno antagonista pronunciou aquele fatal: permita! De um pulo alcançou um comprido punhal suspenso de um prego por cima da chaminé e atirou-se sobre a filha. O mais moço dos dois notários e uma das testemunhas se interpuseram entre ele e Ginevra, mas Bartolomeu derrubou brutalmente os dois conciliadores, mostrando-lhes um rosto rubro e olhos flamejantes que pareciam mais terríveis do que o próprio punhal. Quando Ginevra se viu em frente ao pai, olhou-o fixamente com ar de triunfo, avançou lentamente para ele e ajoelhou-se.

— Não! Não! Não poderia — disse o velho, atirando o punhal com tanta violência que este ficou espetado no madeiramento.

— Pois então! Piedade! Piedade! O senhor hesita em matar-me e me recusa a vida. Ó meu pai, nunca lhe quis tanto. Conceda-me Luigi! Peço-lhe seu consentimento de joelhos: uma filha pode humilhar-se diante do pai; senão morro, meu Luigi.

A violenta irritação que a sufocava impediu-a de continuar; já não tinha mais voz; seus esforços convulsivos diziam suficientemente estar ela entre a vida e a morte. Bartolomeu repeliu a filha com dureza.

— Foge — disse ele. — A mulher de Luigi Porta não poderá ser uma Piombo. Não tenho mais filha! Não tenho força para lançar sobre ela a minha maldição, mas abandono-te e não tens mais pai. Minha Genevra Piombo está enterrada aqui! — exclamou com voz profunda comprimindo com força o coração. — Sai e não me apareças mais.

Dito isso, segurou Ginevra pelo braço e levou-a silenciosamente para fora da casa.

— Luigi! — exclamou Ginevra ao entrar no modesto apartamento onde o oficial residia — meu Luigi, nosso amor é toda a nossa fortuna.

— Somos mais ricos do que todos os reis da Terra — foi a resposta do moço.

— Meu pai e minha mãe me abandonaram — disse ela com profunda melancolia.

— Eu te amarei por eles.

— Seremos então bem felizes? — exclamou ela com uma alegria que tinha qualquer coisa de apavorante.

— E sempre! — respondeu ele, apertando-a contra o coração.

III – O CASAMENTO

No dia seguinte àquele em que deixou a casa paterna, Ginevra foi pedir à sra. Servin que lhe concedesse um asilo e a sua proteção até a época fixada pela lei para o seu casamento com Luigi Porta.

Aí começou ela a aprendizagem dos pesares que a sociedade semeia à roda daqueles que não lhe seguem os usos. Muito aborrecida com o mal que a aventura de Ginevra causara a seu marido, a sra. Servin recebeu com frieza a fugitiva e deu-lhe a entender por palavras cortesmente cautelosas que não devia contar com o seu apoio. Demasiado orgulhosa para insistir, mais admirada ante um egoísmo ao qual não estava acostumada, a jovem corsa foi residir na pensão mais próxima da casa onde morava Luigi. O filho dos Porta vinha passar seus dias aos pés de sua futura esposa; seu amor juvenil, a pureza de suas palavras dissipavam as nuvens que a condenação paterna acumulava sobre a cabeça da filha banida; ele pintava-lhe um futuro tão belo que ela acabava sorrindo, sem contudo esquecer o rigor dos pais.

Uma manhã, a criada do hotel entregou a Ginevra várias malas contendo peças de fazenda, vestidos e uma porção de coisas necessárias a uma moça que se casa. Em tal remessa reconheceu a previdente bondade de sua mãe, porquanto ao examinar aqueles presentes encontrou uma bolsa na qual a baronesa pusera a quantia que pertencia à filha, acrescida de suas próprias economias. O dinheiro vinha acompanhado de uma carta em que a mãe suplicava à filha que desistisse de seu funesto projeto de casamento, se ainda fosse tempo; foram-lhe precisas, dizia, precauções inauditas para poder fazer chegar-lhe às mãos aqueles minguados recursos. Rogava-lhe, ademais, não acusá-la de dureza, se, no futuro, a deixasse sem auxílio, pois temia não mais poder ajudá-la; mandava-lhe sua bênção, almejava-lhe que encontrasse a felicidade naquele fatal casamento, caso persistisse, assegurando-lhe que não pensava em mais nada, senão na sua filha querida. Nesse ponto várias palavras da carta tinham sido borradas por lágrimas.

— Ó minha mãe! — exclamou Ginevra, enternecida. Sentia a necessidade de se atirar ajoelhada a seus pés, de a ver, de respirar o ar benfazejo da casa paterna. Já se ia precipitar quando Luigi entrou; ela o contemplou e sua ternura filial evaporou-se e suas lágrimas secaram; não se animava a abandonar aquela criança tão infeliz e tão amante. Ser a única esperança de uma nobre criatura, amá-la, e abandoná-la... Esse sacrifício é uma traição da qual as almas jovens são incapazes. Ginevra teve a generosidade de sepultar sua dor no fundo do coração.

Por fim chegou o dia do casamento. Ginevra não viu ninguém em redor de si. Luigi aproveitava o momento em que ela se vestia para ir procurar as testemunhas necessárias para a assinatura do ato matrimonial. Essas testemunhas eram pobres honrados. Um era um antigo quartel-mestre, de um regimento de hussardos, que no Exército contraíra para com Luigi algumas dessas obrigações que jamais se apagam do coração de um homem de bem. Estabelecera uma cocheira e possuía alguns fiacres. O outro, empreiteiro de construções, era o proprietário da casa onde os novos esposos deviam ir residir. Cada um deles se fez acompanhar por um amigo e depois os quatro, com Luigi, foram buscar a noiva. Pouco acostumados aos salamaleques sociais e nada vendo senão de muito simples no serviço que prestavam a Luigi, essa boa gente se vestira com apuro, mas sem luxo, e coisa alguma indicava tratar-se de alegre cortejo nupcial. A própria Ginevra vestiu-se muito modestamente, para se pôr de acordo com a sua situação e fortuna. Não obstante, sua beleza tinha qualquer coisa de tão nobre e imponente que, ante seu aspecto, as palavras morreram nos lábios das testemunhas, as quais se julgaram obrigadas a dirigir-lhe um cumprimento; saudaram-na com respeito, ela inclinou-se, eles a contemplaram calados e nada mais puderam fazer senão admirá-la em silêncio. Tal reserva estabeleceu certo constrangimento entre os presentes. A alegria só pode explodir entre pessoas que se sentem iguais. Quis, pois, o acaso, que tudo fosse sombrio e grave em torno dos noivos. Nada refletia a felicidade dos nubentes. A igreja e a mairie[238] eram próximas ao hotel. Os dois corsos, acompanhados pelas quatro testemunhas que a lei lhes impunha, quiseram fazer o trajeto a pé, numa simplicidade que tirou qualquer aparato a essa grande cena da vida social. Encontraram no pátio da mairie muitas carruagens, o que indicava a presença de numerosos concorrentes. Subiram e chegaram a uma grande sala, onde os que se deviam casar, cuja felicidade estava marcada para esse dia, esperavam com impaciência o maire do bairro.

Ginevra sentou-se junto a Luigi, na extremidade de um grande banco, e suas testemunhas ficaram de pé por falta de cadeiras. Duas noivas, pomposamente vestidas de branco, cheias de fitas, de rendas, de pérolas e coroadas com flores de laranjeira, cujos botões acetinados tremiam sob o véu, estavam cercadas por suas famílias evidentemente contentes e acompanhadas por suas mães, a quem olhavam com ar ao mesmo tempo satisfeito e receoso. Todos os olhos refletiam alegria e cada um dos presentes parecia abençoá-las. Os pais, as testemunhas, os irmãos, as irmãs iam e vinham, como um enxame que esvoaça num raio de sol que vai desaparecer. Todos pareciam compreender o valor daquele momento fugidio em que, na vida, o coração se acha entre duas esperanças: os votos do passado, as promessas do futuro. Ante esse quadro, Ginevra sentiu um aperto no coração e comprimiu o braço de Luigi, que lhe respondeu com um olhar. Dos olhos do jovem corso desprendeu-se uma lágrima. Nunca, como nesse momento, ele compreendeu tão bem tudo o que a sua Ginevra lhe sacrificava. Essa preciosa lágrima fez com que a moça esquecesse o abandono no qual se achava. O amor despejou tesouros de luz entre os dois amantes, que não viram mais do que a si próprios naquele tumulto: estavam sós, ali, no meio daquela multidão, tal como deveriam percorrer a vida. As testemunhas, indiferentes à cerimônia, falavam tranquilamente sobre os seus negócios.

— A aveia está por um preço exorbitante — dizia o quartel-mestre ao empreiteiro.

— Isso não é nada comparado ao preço da cal, guardadas as proporções naturalmente — respondeu aquele.

E deram uma volta pela sala.

— Quanto tempo se perde aqui! — exclamou o pedreiro, repondo no bolso um enorme relógio de prata. Luigi e Genevra, achegados um ao outro, pareciam constituir uma só pessoa. Um poeta, com certeza, teria admirado aquelas duas faces, unidas por um mesmo sentimento, igualmente coradas, melancólicas e silenciosas em presença de duas bodas ruidosas, diante de quatro famílias barulhentas, fulgurantes de pedrarias, de flores e cuja alegria tinha qualquer coisa de passageiro. Toda a alegria que aqueles grupos ruidosos e esplêndidos exteriorizavam Luigi e Ginevra encerravam no coração. De um lado o grosseiro estrépito do prazer, do outro delicado silêncio das almas felizes: a terra e o céu. Mas a trêmula Ginevra não soube inteiramente despojar-se das fraquezas femininas. Supersticiosa como uma italiana, quis ver um presságio naquele contraste, e conservou no fundo do coração um sentimento de pavor tão invencível quanto o seu amor.

De repente, um contínuo, com o uniforme da cidade, abriu uma porta de dois batentes, fez-se silêncio e sua voz repercutiu como um ganido ao chamar Luigi da Porta e srta. Ginevra de Piombo. Esse instante causou certo embaraço aos dois noivos. A celebridade do nome Piombo chamou a atenção; os espectadores ficaram à espera de uma boda que devia ser suntuosa. Ginevra ergueu-se, seu olhar, relampejante de orgulho, impôs respeito a toda a multidão; deu o braço a Luigi e caminhou com passo firme, acompanhada pelas testemunhas. Um murmúrio de espanto que se foi avolumando, um sussurro geral, veio recordar a Ginevra que a sociedade lhe exigia contas pela ausência de seus pais: a maldição paterna parecia persegui-la.

— Espere as famílias! — disse o maire ao empregado que lia apressadamente as atas.

— O pai e a mãe protestam — respondeu fleumaticamente o secretário.

— Dos dois lados? — indagou o maire.

— O noivo é órfão.

— Onde estão as testemunhas?

— Aqui estão — respondeu o secretário, apontando para os quatro homens, imóveis e calados, que, de braços cruzados, se assemelhavam a estátuas.

— Mas, se há protesto? — perguntou o maire.

— Foram feitos legalmente os “atos respeitosos” — replicou o empregado, levantando-se para alcançar ao funcionário os documentos anexados ao ato do casamento.

Esse debate burocrático teve qualquer coisa de deprimente e em poucas palavras encerrava uma história inteira. O ódio dos Porta e dos Piombo, paixões terríveis foram inscritas sobre uma página do registro civil, da mesma forma que sobre a lápide de um túmulo se acham gravados, em algumas linhas, os anais de um povo, e às vezes mesmo numa única palavra: Robespierre ou Napoleão. Ginevra tremia. Tal como a pomba que, ao atravessar os mares, só tinha a arca para pousar, ela só podia abrigar seu olhar nos olhos de Luigi, porque em torno dela tudo era triste e frio. O maire tinha um ar desaprovador e severo, e seu assistente olhava para os dois noivos com curiosidade maldosa. Nada com menos ar festivo do que aquele ato. Como todas as coisas da vida humana quando despidas de seus acessórios, foi uma coisa simples em si mesma, mas imensa pela significação. Depois de algumas perguntas às quais os noivos responderam, depois de algumas palavras gaguejadas pelo maire e depois de terem deixado suas assinaturas no registro, Luigi e Ginevra ficaram unidos. Os dois jovens corsos, cuja união oferecia toda a poesia consagrada pelo gênio na de Romeu e Julieta, atravessaram duas filas de famílias alegres, às quais não pertenciam, e que quase se impacientavam com o atraso que lhes causava aquele casamento tão triste na aparência. Quando Ginevra se viu no pátio da mairie e sob o céu, um suspiro de alívio escapou-se de seu seio.

— Oh!, toda uma vida de atenções e de amor bastará para compensar a coragem e a ternura de minha Ginevra? — disse-lhe Luigi.

Ao ouvir essas palavras que vinham acompanhadas de lágrimas de felicidade, a recém-casada esqueceu todos os seus sofrimentos, porque a verdade é que havia sofrido por ter de apresentar-se perante a sociedade reclamando uma felicidade que os seus recusavam sancionar.

— Por que se metem os homens entre nós? — perguntou com uma ingenuidade de sentimento que deixou Luigi encantado.

O prazer deixou os dois mais leves. Não viram nem o céu, nem a terra, nem as casas, e voaram como se tivessem asas para a igreja. Finalmente chegaram a uma pequena capela obscura e ante um altar sem pompa, diante do qual um velho padre celebrou o casamento. Ali, como na mairie, viram-se cercados pelas duas bodas, que os perseguiam com seu brilho. A igreja cheia de amigos e parentes ecoava com o ruído que faziam as carruagens, os bedéis, os suíços, os padres. Alguns altares brilhavam com todo o luxo eclesiástico, parecendo novas as coroas de flores de laranjeira que ornavam as imagens da Virgem. Tudo eram flores, perfumes, círios resplandecentes, almofadas de veludo bordadas a ouro. Deus parecia cúmplice dessa alegria de um dia. Quando tiveram de manter por sobre a cabeça de Luigi e a de Ginevra aquele símbolo de união eterna, aquele jugo de cetim branco, suave, brilhante e leve para alguns, de chumbo para o maior número, o padre procurou, mas em vão, os rapazinhos a quem incumbe essa alegre tarefa: duas testemunhas os substituíram, o clérigo fez apressadamente uma advertência aos noivos a propósito dos perigos da vida, dos deveres que um dia eles teriam de ensinar aos filhos e, a esse propósito, insinuou uma censura indireta a respeito da ausência dos pais de Ginevra. Depois de os ter unido perante Deus, como o maire os havia unido perante a lei, terminou sua missa e deixou-os.

— Deus os abençoe! — disse Vergniaud ao pedreiro, sob o pórtico da igreja. — Nunca duas criaturas foram feitas tão bem uma para a outra. Os pais dessa moça estão caducos. Não conheço soldado mais valente do que o coronel Luigi! Se todos se tivessem portado como ele, o outro ainda estaria aqui.

A bênção do soldado, a única que nesse dia lhes fora dada, expandiu-se como um bálsamo no coração de Ginevra.

Separaram-se depois de um aperto de mãos e Luigi agradeceu cordialmente ao seu senhorio.

— Adeus, meu valente — disse Luigi ao quartel-mestre —, obrigado.

— Inteiramente às suas ordens, meu coronel. Alma, corpo, cavalos e carros, tudo em minha casa é seu.

— Como ele te quer! — disse Ginevra.

Luigi conduziu rapidamente sua mulher à casa em que deviam morar; chegaram logo ao seu modesto apartamento e uma vez lá, depois de a porta fechada, Luigi tomou a mulher nos braços, exclamando:

— Oh!, minha Ginevra! Porque agora és minha, aqui é que encontraremos a verdadeira festa. Aqui, tudo nos sorrirá.

Juntos percorreram as três peças que compunham sua habitação. A de entrada servia de sala de visitas e de jantar. À direita havia um quarto de dormir, à esquerda um gabinete que Luigi fizera preparar para sua querida mulher e onde ela encontrou os cavaletes, a caixa de tintas, os gessos, os modelos, os manequins, os quadros, as carteiras, enfim, todo o mobiliário de artista.

— Então trabalharei aqui — disse ela com expressão infantil. Olhou durante muito tempo o forro das paredes, os móveis, e sempre se virava para Luigi agradecendo-lhe, porque havia certa magnificência naquele pequeno reduto: uma biblioteca continha os livros favoritos de Ginevra; no fundo, um piano. Ela sentou-se num divã, atraiu Luigi para junto de si e, apertando-lhe a mão, disse com voz carinhosa:

— Tens bom gosto.

— Sinto-me tão feliz com tua opinião!

— Mas vamos ver tudo — pediu Ginevra, a quem Luigi fizera um mistério do arranjo daquele refúgio.

Foram então para a câmara nupcial, fresca e branca como uma virgem.

— Oh! Saiamos — disse Luigi, rindo.

— Mas eu quero ver tudo.

E a imperiosa Ginevra examinou a mobília com a atenção meticulosa com que um antiquário examinaria uma medalha; tocou em todos os estofos de seda e passou tudo em revista com a ingênua alegria de uma jovem recém-casada, que põe em exposição as riquezas de sua corbeille.

— Nós começamos por nos arruinarmos — disse com um ar meio triste, meio alegre.

— É verdade! Todo o meu soldo atrasado está aí — respondeu Luigi. — Vendi-o a um sujeito correto chamado Gigonnet.[239]

— E para quê? — replicou ela em tom de censura, sob o qual transparecia um secreto contentamento. — Julgas acaso que eu seria menos feliz numa choupana? Mas — continuou — tudo isto é bem bonito e é nosso!

Luigi contemplava-a com tanto entusiasmo que ela baixou os olhos e pediu:

— Vamos ver o resto.

Por cima dos três quartos, sob o telhado, havia um gabinete para Luigi, uma cozinha e um quarto para criada. Ginevra ficou satisfeita com a sua pequena propriedade, conquanto a vista fosse limitada pela enorme parede de uma casa vizinha e o pátio sombrio. Mas os dois amantes estavam com o coração tão alegre, e a esperança lhes embelezava tão bem o futuro, que naquele misterioso asilo eles só queriam ver imagens encantadoras. Estavam no fundo daquela vasta casa e perdidos na imensidão de Paris, como duas pérolas em sua concha no seio do mar profundo. Para qualquer outra pessoa aquilo seria uma prisão, para eles era um paraíso. Os primeiros dias de sua união foram dados ao amor. Não lhes foi possível dedicar-se de imediato ao trabalho e não souberam resistir ao encanto de sua própria paixão. Luigi ficava horas esquecidas deitado aos pés da mulher, admirando a cor de seus cabelos, as linhas de sua fronte, o encantador enquadramento de seus olhos, a pureza, a alvura dos dois arcos sob os quais eles deslizavam lentamente, exprimindo a felicidade de um amor satisfeito. Ginevra acariciava os cabelos de seu Luigi, sem se cansar de contemplar, segundo uma das suas expressões, a beltá folgorante[240] do rapaz, a delicadeza de suas feições, sempre seduzida por suas maneiras, como por outro lado ela o seduzia com as suas. Brincavam como crianças, com pequenas insignificâncias que os acabavam levando novamente para o terreno da paixão, e se deixavam esses brinquedos era para cair nos devaneios do far niente.[241] Uma ária que Ginevra cantasse reproduzia-lhes as cambiantes deliciosas de seu amor. Depois, unindo seus passos como haviam unido suas almas, percorriam os campos, aí tornando a encontrar seu amor, como, aliás, por toda parte, nas flores, no céu, no seio dos ardentes coloridos de um pôr do sol; liam-no mesmo nas nuvens caprichosas que lutavam no espaço. Um dia nunca se assemelhava ao precedente, e seu amor crescia continuamente porque era verdadeiro. Em poucos dias, tinham chegado ao conhecimento um do outro e instintivamente haviam reconhecido que suas almas eram daquelas cujas riquezas inesgotáveis parecem prometer sempre novos gozos para o futuro. Era o amor em toda a sua ingenuidade, com suas intermináveis palestras, suas frases inacabadas, seus longos silêncios, seu repouso oriental e seu ardor. Luigi e Ginevra tinham compreendido tudo do amor. Não é o amor como o mar que, visto superficialmente ou às pressas, é acusado de monotonia pelas almas vulgares, ao passo que certos seres privilegiados podem passar toda a sua vida a admirá-lo, vendo nele continuamente transformações e mutações que os encantam?

Entretanto, um dia a previdência veio tirá-los do seu Éden, porquanto era forçoso trabalhar para viver. Ginevra, que tinha um talento particular para imitar os velhos quadros, pôs-se a fazer cópias, constituindo assim uma clientela entre os revendedores de objetos de arte. Por sua vez, Luigi procurou ocupação com o máximo empenho. Era, porém, muito difícil, para um jovem oficial, cujos conhecimentos se limitavam à estratégia, achar emprego em Paris. Finalmente, um dia em que, já cansado de seus vãos esforços, se sentia desesperado ao ver que o peso da subsistência de ambos recaía inteiramente sobre Ginevra, lembrou-se de tirar partido da sua caligrafia, que era ótima. Com uma constância, de que sua mulher lhe dava exemplo, foi solicitar os tabeliões, notários e advogados de Paris. Seus modos francos, sua situação interessaram vivamente em seu favor e obteve tanto trabalho que se viu forçado a se fazer auxiliar por alguns rapazes. Insensivelmente empreitou escritas em larga escala. O produto de seu escritório, o preço de venda dos quadros de Ginevra acabaram dando ao jovem casal uma abastança que o deixou orgulhoso, porquanto provinha de sua atividade. Foi para ele a mais bela época da vida. Os dias passavam rapidamente entre suas ocupações e as alegrias do amor. À noite, depois de terem trabalhado bastante, tornavam a encontrar-se felizes na pequena cela de Ginevra. A música os consolava de suas fadigas. Nunca uma expressão de melancolia veio obscurecer as feições da moça e jamais ela deixou escapar um lamento. Sabia sempre apresentar-se ao seu Luigi com o sorriso nos lábios e os olhos radiantes. Ambos acariciavam um pensamento dominante que os fazia achar prazer nos mais rudes trabalhos: Ginevra, a si mesma, dizia que trabalhava para Luigi, e este fazia o mesmo em relação a Ginevra. Por vezes, na ausência do marido, a jovem senhora pensava que a sua felicidade seria completa se aquela vida de amor decorresse na presença dos pais; caía então numa profunda melancolia, sentindo o poder do remorso. Quadros sombrios perpassavam-lhe como sombras pela imaginação: via o velho pai sozinho ou sua mãe chorando à noite e ocultando suas lágrimas ao inexorável Piombo. Aquelas duas cabeças brancas e graves erguiam-se subitamente diante dela e parecia-lhe que não mais os poderia contemplar senão ao clarão fantástico das recordações. Essa ideia perseguia-a como um pressentimento. Comemorou o aniversário do seu casamento dando ao marido um retrato que ele muito desejava, o da sua Ginevra. Nunca a jovem artista compusera nada tão notável. Além de uma perfeita semelhança, o brilho de sua beleza, a pureza de seus sentimentos, a felicidade do amor estavam nele retratados como por uma espécie de magia. Inauguraram a obra-prima. Passaram mais um ano na abastança. Poder-se-ia naquela época escrever a história da vida deles com três palavras: Eles eram felizes. Nada portanto lhes aconteceu que mereça ser referido.

IV – O CASTIGO

No começo do inverno do ano de 1819, os revendedores de quadros pediram a Ginevra que lhes fornecesse outras coisas que não cópias, pois não as podiam vender vantajosamente devido à concorrência. A sra. Porta reconheceu o erro que cometera não se exercitando em pintar quadros de costumes, que lhe teriam dado um nome. Tentou fazer retratos, mas teve de lutar contra uma multidão de artistas ainda menos ricos do que ela. Não obstante, como Luigi e ela tinham economizado algum dinheiro, não se alarmaram com o futuro. No fim desse inverno, Luigi trabalhou sem descanso. Também ele lutava contra a concorrência: o preço das cópias tinha baixado de tal forma que não lhe era mais possível ter empregados e via-se na contingência de gastar mais tempo do que antigamente com o seu trabalho para auferir o mesmo resultado. Sua esposa já tinha concluído vários quadros que não eram destituídos de mérito, mas os vendedores só compravam, e isso mesmo pouco, os dos artistas de nomeada. Ginevra ofereceu-os a vil preço, sem conseguir vendê-los. A situação do casal tinha qualquer coisa de espantoso: a alma dos dois esposos nadava na felicidade, o amor os cumulava com os seus tesouros, mas a pobreza erguia-se como um esqueleto no meio daquela seara de prazer e um escondia do outro suas inquietações. No momento em que Ginevra se sentia prestes a chorar por ver seu Luigi sofrer, ela o cobria de carícias. Da mesma forma Luigi recalcava no fundo do coração um negro pesar ao manifestar a Ginevra o mais terno amor. Os dois buscavam uma compensação a seus males na exaltação de seus sentimentos, e suas palavras, suas alegrias, suas diversões impregnavam-se de uma espécie de frenesi. Tinham medo do futuro. Qual o sentimento cuja intensidade possa ser comparada à de uma paixão que deve desaparecer no dia seguinte, aniquilada pela morte ou pela miséria? Quando se referiam à sua indigência, sentiam a necessidade de se enganarem um ao outro e agarravam-se com igual ardor à mais leve esperança. Uma noite, Ginevra procurou em vão, ao seu lado, seu Luigi, e levantou-se cheia de medo. Uma fraca luz que se desenhava sobre o muro negro do pátio a fez perceber que o marido trabalhava durante a noite. Luigi esperava que a mulher adormecesse para subir ao seu gabinete. Bateram quatro horas; Ginevra tornou a deitar-se e fingiu estar dormindo. Luigi voltou derreado de fadiga e de sono e Ginevra contemplou dolorosamente aquele belo rosto, sobre o qual os trabalhos e as preocupações já começavam a cavar rugas.

— É por mim que ele passa as noites a escrever — pensou ela, corando. Um pensamento secou-lhe as lágrimas. Resolveu imitar Luigi. No mesmo dia, foi à casa de um rico negociante de gravuras e, graças a uma carta de recomendação que obtivera de Elias Magus,[242] um dos vendedores dos seus quadros para aquele, conseguiu que lhe desse o encargo de colorir gravuras. Durante o dia pintava e se ocupava dos arranjos domésticos; depois, quando anoitecia, coloria gravuras. Por essa forma, aquelas duas criaturas, cheias de amor, iam para o leito conjugal somente para dele sair fingindo ambos estar dormindo, e separando-se, por dedicação, assim que um julgava ter enganado o outro. Uma noite, Luigi, fraquejando ante a espécie de febre que lhe causava um trabalho cujo peso começava a vergar, levantou-se para abrir o olho de boi do seu gabinete. Estava respirando o ar puro da manhã e parecia esquecer suas dores ante o aspecto do céu quando, ao baixar os olhos, viu uma luz forte sobre o muro fronteiro às janelas do aposento de Ginevra. O desgraçado adivinhou tudo, desceu, caminhou silenciosamente e surpreendeu a mulher no meio de seu ateliê, colorindo gravuras.

— Oh! Ginevra! — exclamou.

Ela deu um salto na cadeira e corou.

— Como poderia eu dormir, enquanto tu te esfalfavas trabalhando?

— Mas é a mim só a quem compete trabalhar assim.

— Como posso eu ficar sem fazer nada — respondeu a jovem senhora, cujos olhos se marejavam de lágrimas —, quando sei que cada pedaço de pão custa-nos, por assim dizer, quase uma gota do teu sangue? Morreria se não juntasse meus esforços aos teus. Não achas que tudo deve ser comum entre nós, prazeres e trabalhos?

— Estás com frio? — bradou Luigi, desesperado. — Cobre bem teu peito com o xale, minha Ginevra, a noite está úmida e fresca.

Foram à janela, a jovem apoiou a cabeça no peito do bem-amado, que a enlaçava pela cintura, e os dois, mergulhados num silêncio profundo, olharam o céu que a madrugada vinha lentamente clareando. Nuvens cinzentas passavam rapidamente, e o oriente se tornava cada vez mais luminoso.

— Estás vendo — disse Ginevra —, é um presságio; seremos felizes.

— Sim, no céu — respondeu Luigi, com um sorriso amargo. — Ó, Ginevra! Tu que merecias todos os tesouros da Terra...

— Possuo teu coração — disse ela com uma entonação de alegria.

— Ah! Não me queixo — replicou ele, apertando-a nos braços, e cobriu de beijos aquele rosto delicado que começava a perder o frescor da mocidade, mas cuja expressão era tão terna e tão doce, que ele não o podia ver sem se sentir consolado.

— Que silêncio! — disse Ginevra. — Meu amigo, sinto um grande prazer em velar. A majestade da noite é realmente contagiosa, impressiona e inspira. Há não sei que força nesta ideia: tudo dorme e eu velo.

— Ó minha Ginevra, não é de hoje que sei quanto tua alma é delicadamente graciosa! Mas já está amanhecendo, vai dormir.

— Sim — respondeu ela —, mas com a condição de não ir dormir sozinha. Muito sofri na noite em que descobri que meu Luigi estava velando sem mim!

A coragem com que aquelas duas criaturas enfrentavam a desgraça teve durante algum tempo sua recompensa, mas o acontecimento que quase sempre coroa a felicidade do lar devia ser-lhes funesto: Ginevra teve um filho que, para nos servirmos de uma expressão popular, era belo como o dia. O sentimento da maternidade duplicou as forças da jovem senhora. Luigi contraiu empréstimos para atender as despesas do parto de Ginevra. Nos primeiros momentos, portanto, ela não sentiu todo o mal-estar de sua situação e os dois esposos entregaram-se à felicidade de criar o filho. Foi a última ventura do casal. Como dois nadadores que juntam seus esforços para vencer a correnteza, os dois corsos, a princípio, lutaram corajosamente; mas por vezes invadia-os uma apatia semelhante ao sono que precede a morte, e não tardou que se vissem obrigados a vender suas joias. A pobreza apresentou-se, subitamente, não hedionda, mas vestida com simplicidade, e quase fácil de se suportar; sua voz nada tinha de apavorante, não arrastava atrás de si nem desespero, nem espectros, nem andrajos, mas fazia perder a lembrança e os hábitos da abastança, gastava as molas do orgulho. Mais tarde veio a miséria em todo o seu horror, despreocupada dos seus farrapos e calcando aos pés todo sentimento humano. Sete ou oito meses depois do nascimento do pequeno Bartolomeu, teria sido difícil reconhecer na mãe que amamentava aquela criança raquítica o original do admirável retrato, único adorno daquele quarto nu. Sem fogo durante o rude inverno, Ginevra viu os graciosos contornos de seu rosto desmerecerem lentamente, suas faces se tornarem pálidas como porcelana, seus olhos amortecidos como se as fontes da vida se estivessem exaurindo nela. Ao ver o filho emagrecido, descorado, ela não sofria senão por aquela tenra miséria, e Luigi não tinha mais ânimo de sorrir para o filho.

— Corri toda Paris — dizia ele com voz apagada — mas não conheço ninguém e como ousar pedir a indiferentes? Vergniaud, meu velho egípcio, está envolvido numa conspiração e foi preso, e, ademais, ele já me emprestou tudo de que dispunha. Quanto ao nosso senhorio, faz um ano que não nos exige nada.

— Mas não precisamos de nada — respondia meigamente Ginevra, aparentando calma.

— Cada dia que chega traz mais uma dificuldade — replicou Luigi, aterrorizado.

O rapaz pegou todos os quadros de Ginevra, o retrato, vários móveis dos quais podiam a rigor prescindir, vendeu tudo abaixo do preço e a quantia que obteve prolongou por pouco tempo a agonia do casal. Nesses dias de desgraça, Ginevra mostrou a sublimidade de seu caráter e a extensão de sua resignação. Suportou estoicamente os ataques da dor; sua alma enérgica amparava-a contra todos os males; trabalhava com mãos enfraquecidas junto ao filho moribundo; fazia os trabalhos domésticos com atividade milagrosa, supria a tudo. Sentia-se até feliz quando via nos lábios de Luigi um sorriso de admiração ante o aspecto de limpeza que ela fazia reinar no único quarto onde se tinham refugiado.

— Meu amigo, guardei-te um pedaço de pão — disse ela uma noite, ao voltar ele cansado.

— E tu?

— Eu? Já jantei, querido Luigi, não preciso de mais nada.

E a suave expressão de seu rosto insistia mais com ele do que suas palavras para que aceitasse um alimento do qual se privava. Luigi deu-lhe um daqueles beijos que em 1793 trocavam entre si os amigos, na hora em que subiam ao cadafalso. Nesses momentos supremos, dois seres se veem de coração a coração. Por isso o desgraçado Luigi, compreendendo de súbito que sua mulher estava em jejum, compartilhou a febre que a devorava, estremeceu e, sob o pretexto de um negócio urgente, saiu, porquanto teria preferido tomar o mais sutil veneno a evitar a morte comendo o último pedaço de pão que havia em casa. Vagueou pelas ruas de Paris, por entre as mais brilhantes carruagens, no seio daquele luxo insultante que se exibe por todos os lados; passou rapidamente por diante das lojas dos cambistas onde brilha o ouro; por fim resolveu vender-se, oferecer-se como substituto para o serviço militar na esperança de que esse sacrifício salvaria Ginevra, e que, durante sua ausência, ela pudesse ser bem recebida por Bartolomeu. Foi portanto em busca de um desses homens que fazem o tráfico de brancos e sentiu uma espécie de felicidade ao reconhecer nele um antigo oficial da guarda imperial.

— Faz dois dias que não como — disse em voz alta e fraca —, minha mulher está morrendo de fome e não me dirige um só queixume; morreria sorrindo, creio eu. Por favor, camarada — acrescentou com um sorriso amargo —, compre-me desde já, sou robusto, não estou mais no serviço, e eu...

O oficial deu a Luigi uma quantia por conta da importância que se comprometia obter. O desgraçado teve um riso convulsivo quando viu na mão um punhado de ouro. Correu a toda a pressa para casa, ofegante e gritando por vezes:

— Ó Ginevra, minha Ginevra!

Começava a anoitecer quando chegou lá. Entrou devagar, por temer provocar uma forte emoção na mulher, a quem deixara muito enfraquecida. Os últimos raios do sol que penetravam pela pequena janela vinham morrer sobre o rosto de Ginevra, a qual dormia numa cadeira tendo o filho ao seio.

— Acorda-te, minha alma — disse ele sem se aperceber da atitude da criança que nesse momento apresentava um esplendor sobrenatural!

Ao ouvir aquela voz, a pobre mãe abriu os olhos, encontrou o olhar de Luigi e sorriu, mas este deu um grito de pavor. Quase não reconheceu a mulher enlouquecida à qual, num gesto de energia selvagem, mostrou o ouro. Ginevra pôs-se a rir maquinalmente e de súbito exclamou com voz horrível:

— Luigi! A criança está fria!

Olhou para o filho e desmaiou: o pequeno Bartolomeu morrera. Luigi tomou a mulher em seus braços sem lhe tirar o pequeno que ela apertava com uma força incompreensível, e depois de a ter colocado sobre o leito, saiu para chamar socorro.

— Ó meu Deus! — disse ao senhorio, a quem encontrou na escada. — Tenho ouro e meu filho morreu de fome, e a mãe dele está morrendo... Auxilie-nos!

Voltou desesperado para junto da esposa e deixou o honrado pedreiro ocupado, bem como alguns vizinhos, em juntar tudo o que pudesse aliviar uma miséria ignorada até então, pois que os dois corsos a tinham cuidadosamente ocultado por um sentimento de orgulho. Luigi atirara seu dinheiro no chão e se ajoelhara à cabeceira da cama onde jazia sua mulher.

— Meu pai, encarregue-se de meu filho que tem seu nome — exclamava Ginevra em seu delírio.

— Ó meu anjo, acalma-te — dizia-lhe Luigi, beijando-a. — Belos dias nos esperam.

Aquela voz e aquela carícia restituíram-lhe alguma tranquilidade.

— Ó meu Luigi — tornou ela, olhando-o com uma atenção extraordinária —, ouve-me bem. Sinto que estou morrendo. Minha morte é natural; eu sofria demasiado e, ademais, uma felicidade tão grande como a minha tinha de ser paga. Sim, meu Luigi, consola-te. Fui tão feliz, que se tivesse de recomeçar a vida, aceitaria outra vez nosso destino. Sou uma mãe ruim: lamento ainda mais a ti do que a meu filho. Meu filho! — acrescentou ela com um tom de voz profundo. Duas lágrimas desprenderam-se de seus olhos agonizantes e de súbito apertou contra si o cadáver que não pudera aquecer. — Dá meus cabelos a meu pai como lembrança de sua Ginevra. Dize-lhe que nunca o acusei...

Sua cabeça caiu sobre o braço do marido.

— Não, não podes morrer! — exclamou Luigi. — O médico vai vir. Temos pão. Teu pai vai reconciliar-se contigo. A prosperidade acaba de nos envolver. Fica conosco, anjo da beleza!

Mas aquele coração fiel e cheio de amor começava a esfriar. Ginevra volvia instintivamente os olhos para aquele a quem ela adorava, embora não tivesse mais sensibilidade: imagens confusas surgiam em seu espírito, já perto de perder toda a lembrança da terra. Sabia que Luigi estava ali, porque apertava sempre com força sua mão gelada, e parecia querer reter-se à beira de um precipício onde tinha a impressão de que ia cair.

— Meu amigo — disse ela por fim —, estás com frio, vou aquecer-te.

Quis colocar a mão do marido sobre seu coração, mas expirou. Dois médicos, um padre e alguns vizinhos entraram nesse momento, trazendo tudo que era preciso para salvar os dois esposos e acalmar-lhes o desespero. Antes de entrar, fizeram muito barulho, mas, apenas penetraram no quarto, reinou na peça um silêncio apavorante.

Enquanto se passava essa cena, Bartolomeu e a mulher estavam sentados em suas poltronas antigas, cada um deles num lado da vasta chaminé, cujo braseiro ardente aquecia o imenso salão e seu palacete. O relógio marcava meia-noite.

De havia muito o velho casal não sabia o que era sono. Nesse momento estavam calados como dois velhos caducos que para tudo olham sem nada ver. O salão deserto, mas para eles cheio de recordações, estava fracamente iluminado por uma única lâmpada, prestes a extinguir-se. Sem as chamas crepitantes da lareira, estariam mergulhados em completa escuridão. Acabava de sair um de seus amigos e a cadeira que ocupara durante a visita estava colocada entre os dois corsos. Piombo já lançara mais de um olhar sobre aquela cadeira, e esses olhares cheios de pensamentos sucediam-se como remorsos, por ser aquela a cadeira de Ginevra. Elisa Piombo observava as expressões que se desenhavam no rosto branco do marido. Conquanto acostumada a adivinhar os sentimentos do corso, pelas transformações de seus traços, via-as alternativamente tão ameaçadoras e tão melancólicas que já agora não sabia mais ler naquela alma incompreensível.

Estaria Bartolomeu sucumbindo sob o peso das poderosas recordações que lhe trazia aquela cadeira? Estaria ele chocado por vê-la servir, pela primeira vez, a um estranho, desde a partida da filha? Teria soado a hora da clemência, hora em vão esperada até aquele momento?

Essas reflexões agitaram sucessivamente o coração de Elisa Piombo. Durante um instante, a fisionomia do marido tornou-se tão terrível que ela tremeu de medo por ter ousado empregar um ardil tão simples para fazer nascer a oportunidade de falar sobre Ginevra. Nesse momento, o vento gelado da noite atirou com tanta violência os flocos de neve contra as persianas das janelas que os dois velhos puderam ouvir o ligeiro rumor que faziam. A mãe de Ginevra baixou a cabeça para ocultar suas lágrimas ao marido. De súbito um suspiro irrompeu do peito do velho; sua mulher o olhou e viu-o abatido. Pela segunda vez, em três anos, atreveu-se a falar-lhe na filha.

— Se Ginevra estivesse com frio!... — murmurou suavemente. Piombo estremeceu. — É capaz de estar com fome — disse a seguir.

O corso deixou escapar uma lágrima.

— Ela tem um filho e não pode amamentar porque lhe secou o leite! — continuou a mãe com vivacidade, num tom de desespero.

— Que ela venha! Que ela venha! — exclamou Piombo. — Ó filha querida, venceste-me.

A mãe ergueu-se como para ir buscar a filha. Nesse momento a porta abriu-se com fragor e um homem cujo semblante nada mais tinha de humano surgiu repentinamente diante deles.

— Morta! Nossas duas famílias deviam exterminar-se uma pela outra, porque eis tudo que resta dela — disse, colocando em cima da mesa a comprida cabeleira negra de Ginevra.

Os dois velhos estremeceram como se tivessem recebido uma comoção provocada por um raio, e não viram mais Luigi.

— Poupou-nos um tiro, porque está morto! — exclamou lentamente Bartolomeu, olhando para o chão.


Paris, janeiro de 1830

 

 

INTRODUÇÃO

Conta-se que Balzac... encontrando-se, certa vez, ante um belo quadro de inverno, todo melancólico e carregado de geada, em que se viam espalhadas umas choupanas e uns camponeses miseráveis, depois de haver contemplado longamente uma casinha de onde subia uma tênue fumaça, exclamou: “Como é bonito isto! Mas que fazem eles nessa choupana? Em que estarão pensando? Quais as suas preocupações? A colheita terá sido boa? Terão letras de próximo vencimento?”.

Essa anedota, contada por Baudelaire, caracteriza bem o processo de cristalização de um “assunto” no espírito de Balzac. Quase sempre é a vista de um “quadro”, isto é, de uma cena da realidade, que lhe atiça a imaginação. Geralmente é uma cena banal que aos olhos de outros espectadores nada contém além de seus elementos visíveis, mas para os de Balzac se enche logo de uma realidade mais concreta e intensa, de motivos virtuais de drama.

Uma cidade como Paris oferece todos os dias quadros assim. O escritor, consciente ou inconscientemente, colecionava-os desde a sua mocidade. Com a idade de vinte anos ou pouco mais, quando, escarnecido por todos, já sonhava com a glória, morava no antigo bairro de Marais. Várias vezes por dia atravessava-lhe as ruas estreitas e escuras, dando espiadas através das janelas que deixavam entrever a vida monótona e modesta dos habitantes daquelas velhas casas. Uma noite, avista no fundo de uma loja o honrado comerciante jantando com a família: dessa cena singela a sua fantasia desenvolverá, como num filme, toda a história de Ao “Chat-qui-pelote”. Em outra ocasião, uma cabeça de mulher moça, inclinada sobre um bordado e mal iluminada pela luz de uma lâmpada pobre, inspira-lhe perguntas idênticas às que lhe ouvimos diante da paisagem, na anedota de Baudelaire; dessas perguntas sairá a pequena obra-prima que é Uma dupla família (em francês: Une Double Famille), e que nas primeiras edições levava o título irônico de Uma mulher virtuosa (em francês: Une Femme vertueuse).

Não é por acaso que Balzac faz desenrolar a história da dupla família dentro da capital; o cenário parisiense constitui parte integrante do enredo. A trajetória da vida de Carolina cabe em poucos dados topográficos: ascende da rue du Tourniquet-Saint-Jean até a rue Taitbout, e de lá recai até a rue Gaillon. Para quem conhecia Paris da época, esses nomes de rua eram verdadeiros símbolos que resumiam outras tantas atmosferas sociais. O leitor moderno, graças às descrições minuciosas de Balzac, evoca deliciosamente a antiga Paris de que, ainda hoje, subsistem os vestígios.

Sabendo renovar a técnica da narração em cada novela, Balzac faz partir aqui duas ações convergentes, começando, aliás, pela mais recente. Ambas, admiravelmente bem conduzidas, decorrem com inexorável lógica dos respectivos ambientes. A sra. Crochard, Carolina e Angélica de Granville fazem parte de sua casa, como, segundo a feliz expressão do escritor, “o caracol da sua concha”, e, depois de lidas as pormenorizadas descrições que Balzac faz das conchas, o leitor chega a conhecer os caracóis antes mesmo de eles aparecerem.

Poder-se-á achar menos satisfatório o desfecho, antes esboçado que explicado, a partir do ponto em que se realiza a convergência das duas ações. Dir-se-ia que o escritor tem pressa em resolver um conflito que preparara tão demoradamente. Mas isso em nada diminui a perfeição dos perfis antagônicos de Carolina e Angélica, nem a esplêndida poesia que envolve o passeio dos dois amantes a Saint-Leu.


paulo rónai


UMA DUPLA FAMÍLIA
À sra. condessa Louise De Türheim[243]
como testemunho de saudade e de
afetuoso respeito de seu criado humilde,

 

 


de balzac

 

 

A rue du Tourniquet-Saint-Jean, antigamente uma das mais tortuosas e obscuras do velho bairro que cerca o palácio da municipalidade, serpenteava ao correr dos pequenos jardins da prefeitura de Paris, indo terminar na rue du Martroi, justamente no ângulo de um velho muro, hoje derrubado. Via-se nesse lugar o torniquete ao qual a rua devia o nome e que só foi destruído em 1823, quando a cidade de Paris fez construir, no local em que havia um jardinzinho dependente do palácio da municipalidade, um salão de baile para a festa oferecida ao duque de Angoulême,[244] por ocasião de seu regresso da Espanha. A parte mais larga da rue du Tourniquet achava-se no ponto em que ela desembocava na rue de la Tixeranderie, tendo aí apenas cinco pés de largura. Por isso, em tempos de chuva, a base das velhas casas da rua era logo banhada por águas enegrecidas, que carreavam o lixo depositado pelos habitantes no canto dos frades. Como carroças de cisco não podiam passar por ali, os moradores confiavam nos aguaceiros para limpar sua rua, sempre lamacenta. E como poderia ela ser limpa se no verão, quando o sol dardeja a prumo seus raios sobre Paris, apenas uma faixa de ouro, cortante como a lâmina de um sabre, iluminava momentaneamente as trevas daquela rua, sem poder secar a umidade permanente que reinava desde o rés do chão até o primeiro andar daquelas casas negras e silenciosas? Os habitantes que, no mês de junho, acendiam suas lâmpadas às cinco horas da tarde, nunca as apagavam no inverno. Ainda hoje, se algum corajoso pedestre quer ir do Marais[245] para o cais, tomando no fim da rue du Chaume, pelas ruas du Homme-Armé, Billettes e Deux-Portes, que leva à do Tourniquet-Saint-Jean, acreditará só ter andado por baixo de adegas. Quase todas as ruas da antiga Paris, da qual as crônicas tanto gabaram o esplendor, assemelhavam-se a esse dédalo úmido e sombrio, onde os antiquários podem ainda admirar algumas singularidades históricas.

Assim pois, quando a casa que ocupava a esquina formada pelas ruas do Tourniquet e Tixeranderie ainda existia, os observadores notavam nela os vestígios de duas grossas argolas de ferro chumbadas no muro, um resto dessas correntes que o inspetor do bairro fazia antigamente estender, todas as noites, para a segurança pública. Essa casa, notável por sua antiguidade, fora construída com precauções que atestavam a insalubridade dessas antigas habitações, porque, para sanear o rés do chão, tinham elevado a abóbada da adega a dois pés, mais ou menos, acima do solo, o que obrigava a subir três degraus para entrar na casa. O alizar da porta de um batente descrevia um arco cheio cuja chave era ornada com uma cabeça de mulher e com arabescos corroídos pelo tempo. Três janelas, cujos parapeitos se achavam à altura de um homem, pertenciam a um pequeno apartamento situado na parte desse rés do chão que dava para rue du Tourniquet, de onde lhe vinha luz. Essas janelas deterioradas eram defendidas por grossos barrotes de ferro, muito afastados uns dos outros, e que terminavam numa saliência redonda, semelhante à que termina a grade das padarias.

Se durante o dia algum transeunte curioso lançasse um olhar nos dois quartos de que se compunha aquele apartamento, era-lhe impossível ver fosse o que fosse, porque para descobrir no segundo quarto duas camas de sarja verde, reunidas sob o madeiramento de uma velha alcova, era preciso o sol de julho; mas à tarde, cerca das três horas, uma vez aceso o candeeiro, podia-se perceber, através da janela da primeira peça, uma mulher velha sentada num escabelo, no canto de uma chaminé, onde ela atiçava o fogo de um fogareiro sobre o qual cozinhava lentamente um desses guisados semelhantes aos que as porteiras sabem fazer. Raros utensílios de cozinha ou de arranjos domésticos pendurados no fundo dessa sala desenhavam-se no claro-escuro. A essa hora, uma velha mesa sustentada por pernas em X, mas sem toalha, estava guarnecida com alguns talheres de estanho e o prato preparado pela velha. Três cadeiras ordinárias mobiliavam essa peça, que servia ao mesmo tempo de cozinha e sala de jantar. Em cima da lareira havia um fragmento de espelho, um fuzil de ferir lume, três copos, fósforos e um grande pote branco todo rachado. Entretanto, o mosaico do quarto, os utensílios, a lareira, tudo agradava pelo espírito de ordem e de economia que aquele asilo frio e escuro respirava. O rosto pálido e enrugado da velha estava em harmonia com a obscuridade da rua e a vetustez da casa. Ao vê-la em repouso, na sua cadeira, dir-se-ia que ela fazia parte da casa como um caracol faz parte de sua concha pardacenta; seu rosto, do qual transluzia não sei que vaga expressão de malícia, através de uma bonomia afetada, estava coroado com uma touca de tule, redonda e chata, que pouco ocultava seus cabelos brancos; seus grandes olhos cinzentos eram tão calmos como a rua, e as numerosas rugas de seu rosto podiam ser comparadas às fendas das paredes. Ou fosse por ter nascido na miséria, ou por ter decaído de um passado de esplendor, parecia resignada, de havia muito, à sua triste existência.

Desde o despontar do dia até o anoitecer, excetuando os momentos em que preparava as refeições e aqueles em que, carregada com um cesto, se ausentava para ir buscar mantimentos, essa velha permanecia no outro quarto, em frente à última janela, diante de uma moça. A qualquer hora do dia, os passantes entreviam aquela jovem obreira, sentada numa velha poltrona de veludo vermelho, com a cabeça inclinada sobre um bastidor de bordado, trabalhando com ardor. Sua mãe tinha no regaço um tambor verde e se ocupava em fazer tule; seus dedos, porém, moviam com dificuldade as bobinas; tinha a vista enfraquecida, porquanto seu nariz sexagenário carregava um par de lentes, dessas que se sustentam pela força com que comprimem a ponta do nariz. À noite, essas duas laboriosas criaturas colocavam entre si uma lâmpada, cuja luz, ao passar através de dois globos de vidro cheios de água, projetava sobre seu trabalho uma forte claridade, que permitia, a uma delas, ver os fios mais finos fornecidos pelas bobinas do tambor e, à outra, os mais delicados desenhos traçados sobre a fazenda que bordava. A curvatura dos barrotes permitira à moça colocar no parapeito da janela uma comprida caixa de madeira, cheia de terra, em que vegetavam ervilhas-de-cheiro, capuchinhas, um pequeno pé de madressilva, raquítico, e volubilis, cujas hastes delgadas subiam pelos barrotes. Essas plantas, quase estioladas, produziam flores pálidas, nova harmonia que mesclava um não sei quê de triste e suave ao quadro apresentado por aquela janela, e cuja abertura tão bem emoldurava aquelas duas figuras. Ante o aspecto fortuito daquele interior, o mais egoísta passante levava consigo uma imagem completa da vida da classe operária em Paris, porque a bordadeira parecia viver somente de sua agulha. Muitas pessoas não alcançavam o Torniquete sem perguntar a si mesmas como podia uma moça conservar suas cores vivendo naquele porão. Se um estudante passava por ali, rumo ao Quartier Latin, sua imaginação fantasiosa comparava aquela vida obscura e vegetativa à da hera que forra frias muralhas, ou à daqueles camponeses voltados ao trabalho que nascem, lavram e morrem, ignorados do mundo que alimentaram. Um capitalista depois de examinar a casa com olhos de proprietário diria: “Que será dessas duas mulheres se o bordado sair de moda?”.

Entre as pessoas que um posto na municipalidade ou no palácio forçava a passar por aquela rua em horas fixas, fosse para ir tratar dos seus negócios ou para voltar aos seus respectivos bairros, talvez se achasse algum coração caridoso. Talvez um viúvo, ou um adônis de quarenta anos, à força de sondar os refolhos daquela vida infeliz, contasse com a miséria da mãe e da filha para possuir, por pouco preço, a inocente operária, cujas mãos ágeis e macias, pescoço juvenil e pele alva, atrativos devidos com certeza à habitação naquela rua sem sol, lhe excitavam a admiração. Talvez, também, que algum honesto empregado, de mil e duzentos francos, testemunha diária do ardor com que aquela moça trabalhava, avaliando seus costumes puros, estivesse à espera de alguma promoção para unir uma vida obscura a outra vida obscura, um trabalho obstinado a outro semelhante, trazendo ao menos um braço de homem para amparar aquela existência e um amor tranquilo, descorado como as flores da sua janela. Vagas esperanças animavam os olhos amortecidos e cinzentos da velha mãe. Pela manhã, depois da mais modesta de todas as refeições, ela voltava ao seu tambor mais por uma atitude do que por obrigação, porquanto depunha as lentes em cima de uma pequena mesa de costura, de madeira vermelha, tão velha quanto ela, e passava em revista, das oito e meia às dez horas, mais ou menos, as pessoas que costumavam atravessar a rua, recolhia seus olhares, fazia observações sobre seu andar, seu vestuário, sua fisionomia, parecendo negociar a filha, de tanto que seus olhos tagarelas tentavam estabelecer com elas sentimentos afetivos, por meio de manobras dignas dos bastidores. Adivinhava-se facilmente que essa revista era um espetáculo para ela e, talvez, seu único prazer. A filha raramente erguia a cabeça; o pudor, ou, quem sabe, o sentimento penoso de sua miséria parecia prender sua cabeça sobre o bastidor; por isso, para que ela mostrasse aos transeuntes sua fisionomia cansada, era preciso que a mãe soltasse alguma exclamação de surpresa. O empregado de fatiota nova ou o transeunte habitual que se exibia, dando o braço a uma mulher, podiam então ver o narizinho levemente arrebitado da operária, sua boquinha rosada e seus olhos gris, sempre cintilantes de vida, não obstante suas acabrunhantes fadigas. Suas laboriosas insônias não se traíam mais do que por uma orla, mais ou menos branca, desenhada sob seus olhos e sobre a pele fresca das maçãs de seu rosto. A pobre criança parecia ter nascido para o amor e a alegria, para o amor que tinha pintado, por sobre suas pálpebras apertadas, dois arcos perfeitos e lhe dera uma tão basta floresta de cabelos castanhos que, sob sua cabeleira, ela se acharia como sob um pavilhão impenetrável ao olhar de um amante; para a alegria, que lhe agitava as asas do nariz, que lhe abria duas covinhas nas faces frescas e a fazia esquecer tão depressa seus pesares; para a alegria, essa flor da esperança que lhe emprestava forças para ver, sem fremir, o árido caminho da sua vida. A cabeça da moça estava sempre cuidadosamente penteada. Segundo o hábito das operárias de Paris, achava que sua toilette estava completa quando acabava de alisar seu cabelo e de fazer pequenos cachos com as duas mechas que lhe caíam sobre as fontes, contrastando com a alvura da pele. Era tão graciosa a orla em que nasciam seus cabelos, a linha castanha, nitidamente desenhada em seu pescoço, dava uma ideia tão encantadora de sua mocidade e de seus atrativos que o observador, ao vê-la inclinada sobre seu trabalho, sem que o ruído a fizesse erguer a cabeça, devia acusá-la de coquetismo. Tão sedutoras promessas deviam excitar a curiosidade de mais de um rapaz que, em vão, se virava na esperança de ver aquele semblante modesto.

— Carolina, temos mais um frequentador na nossa rua, e nenhum dos antigos lhe chega aos pés.

Essas palavras, pronunciadas em voz baixa pela mãe, numa manhã do mês de agosto de 1815, venceram a indiferença da jovem obreira, a qual em vão olhou para a rua, pois o desconhecido já ia longe.

— Por onde se sumiu ele? — perguntou.

— Com certeza voltará às quatro horas, eu verei quando ele vier e te avisarei tocando-te com o pé. Tenho certeza de que ele tornará a aparecer, porque faz três dias que passa por aqui, mas não tem hora certa; no primeiro dia chegou às seis horas, anteontem às quatro e ontem às três. Lembro-me de o ter visto outrora de tempos em tempos. Deve ser algum empregado da prefeitura que terá mudado de casa no Marais. Olha — acrescentou depois de ter dirigido uma olhada para a rua — o nosso homem de casaco castanho pôs uma peruca; como ficou diferente!

O senhor do casaco castanho devia ser, dentre os frequentadores, o que fechava a procissão cotidiana, pois a velha mãe repôs as lunetas, pegou no seu trabalho dando um suspiro e dirigiu à filha um olhar tão esquisito que o próprio Lavater[246] teria achado difícil analisá-lo: a admiração, a gratidão, uma espécie de esperança de melhor sorte nele se misturavam ao orgulho de possuir uma filha tão bonita. À tarde, cerca das quatro horas, a velha empurrou o pé de Carolina, a qual ergueu o nariz a tempo de ver o novel ator cuja passagem periódica ia animar a cena. Alto, delgado, pálido e de preto, esse homem, de cerca de quarenta anos, tinha algo de solene ao seu caminhar e na sua atitude; quando seus olhos castanhos e penetrantes encontraram o olhar amortecido da velha, ele a fez estremecer, fazendo com que ela acreditasse estar ele habituado a ir ao fundo dos corações e que sua presença devia ser tão gelada quanto o ar daquela rua. A coloração terrosa e esverdeada daquele rosto seria o resultado de trabalhos excessivos ou a consequência de uma saúde precária? Esse problema foi resolvido pela velha senhora de vinte maneiras diferentes; mas, no dia seguinte, somente Carolina adivinhou sobre aquela fronte que facilmente se enrugava os sinais de um prolongado sofrimento de alma. Ligeiramente cavas, as faces do desconhecido guardavam o estigma com que a desgraça marca seus súditos, como para lhes deixar o consolo de se reconhecerem com olhos fraternais e de se unirem para resistir-lhe. O calor naquele momento era tão forte, e tão grande a distração do passante que, ao atravessar aquela rua malsã, não repusera o chapéu na cabeça. Carolina pôde então observar a aparência de severidade que os cabelos erguidos como escova por sobre a fronte davam àquele rosto. Se o olhar da moça se animou a princípio por uma curiosidade completamente inocente, foi tomando uma meiga expressão de simpatia, à medida que o passante estranho se ia afastando como último parente que fecha um cortejo. A impressão viva, mas sem encanto, sentida pela jovem ante o aspecto daquele homem não se assemelhava a nenhuma das que os outros frequentadores costumavam provocar-lhe. Pela primeira vez, sua compaixão se exercia sobre outra pessoa que não ela ou sua mãe. Nada respondeu às conjeturas estranhas que proporcionaram um alimento à insuportável loquacidade da velha e puxou em silêncio sua longa agulha para cima e para baixo da tela estendida. Lamentava não ter visto demoradamente o desconhecido e esperou o dia seguinte para formar sobre ele um juízo definitivo. Era também a primeira vez que um dos frequentadores da rua lhe sugeria tantas reflexões. Ordinariamente opunha apenas um sorriso triste às suposições de sua mãe, a qual em cada passante esperava encontrar um protetor para a filha. Se semelhantes ideias imprudentemente expostas não despertaram nenhum mau pensamento em Carolina, devia-se atribuir sua despreocupação àquele trabalho incessante, infelizmente necessário, que consumia as forças de sua mocidade preciosa e devia infalivelmente alterar, um dia, a limpidez de seus olhos, ou roubar às suas alvas faces as delicadas cores que ainda as matizavam.

Durante mais ou menos dois longos meses, o senhor de preto, tal foi a alcunha que lhe puseram, teve um proceder muito caprichoso; nem sempre passava pela rue du Tourniquet; a velha via-o muitas vezes à tarde, sem o ter visto pela manhã; não voltava à hora fixa como os outros empregados que faziam as vezes de relógio para a sra. Crochard; enfim, salvo no primeiro encontro, no qual seu olhar inspirara uma espécie de temor à velha mãe, nunca seus olhos pareceram prestar atenção no quadro pitoresco apresentado por aqueles dois gnomos femininos. Excetuando duas grandes portas e a loja escura de um vendedor de ferro-velho, não existiam naquela época na rue du Tourniquet senão janelas gradeadas que iluminavam por meio de claraboias as escadas de algumas casas vizinhas; a pouca curiosidade do passante não podia portanto justificar-se por perigosas rivalidades. Por isso, a sra. Crochard estava irritada de ver o seu senhor de preto sempre gravemente preocupado, com os olhos baixos para o chão ou fitos para diante como se quisesse ler o futuro no nevoeiro do Torniquete.

Não obstante, numa manhã de fins de setembro, a cabecinha travessa de Carolina Crochard destacou-se com tanto brilho sobre o fundo escuro de seu quarto e se mostrou tão viçosa entre as flores tardias e as folhagens emurchecidas entrelaçadas em torno dos barrotes da janela, enfim, a cena cotidiana apresentou nesse momento tais contrastes de sombra e luz, de branco e rosa, tão bem harmonizados com a musselina que a jovem operária afestoava, que o desconhecido contemplou muito atentamente os efeitos daquele quadro vivo. É verdade que, cansada com a indiferença do seu senhor de preto, a velha mãe havia tomado a resolução de fazer um tal tinido com as suas bobinas que o passante sombrio e preocupado tinha sido constrangido por esse ruído insólito a olhar para a casa dela. O desconhecido trocou apenas um olhar com Carolina, olhar rápido, é verdade, mas pelo qual suas almas tiveram um ligeiro contato, tendo ambos o pressentimento de que pensariam um no outro. Quando à tarde, às quatro horas, o desconhecido voltou, Carolina conheceu o ruído de seus passos sobre o calçamento sonoro e, quando se examinaram, houve de um lado e do outro uma espécie de premeditação: os olhos do passante animaram-se com um sentimento de benevolência que o fez sorrir e Carolina corou; a velha mãe observou os dois com ar satisfeito.

A partir dessa tarde memorável, o senhor de preto percorreu duas vezes por dia a rue du Tourniquet, salvo com poucas exceções, que as duas mulheres souberam notar; de acordo com a irregularidade das suas horas de regresso, elas concluíram que ele não se libertava tão prontamente, nem era tão estritamente exato quanto um empregado subalterno. No decurso dos três primeiros meses do inverno, duas vezes por dia, Carolina e o passante se viram por essa forma durante o tempo por ele empregado para percorrer o trecho da calçada correspondente à porta e às três janelas da casa.

De dia para dia, essa rápida entrevista foi tendo um caráter de intimidade amável que acabou por adquirir alguma coisa de fraternal. Carolina e o desconhecido pareceram compreender-se logo; depois, à força de examinarem, um e outro, suas fisionomias, adquiriram delas um conhecimento aprofundado. Breve, aquilo se tornou como que uma visita que o passante devia a Carolina; se por acaso seu senhor de preto passava sem lhe trazer o sorriso apenas esboçado por sua boca eloquente, ou o olhar amigo de seus olhos castanhos, faltava-lhe alguma coisa no seu dia. Ela se assemelhava a esses velhos para os quais a leitura de seu jornal se tornou um prazer de tal natureza que, no dia seguinte a um feriado, lá se vão desarvorados a pedir, tanto por distração quanto por impaciência, a folha por meio da qual esquecem por um momento o vazio de sua existência. Mas essas fugidias aparições tinham, tanto para o desconhecido como para Carolina, o interesse de um diálogo habitual entre os dois amigos. A moça não podia ocultar aos olhos inteligentes de seu silencioso amigo uma tristeza, uma inquietação, um mal-estar, da mesma forma que este não podia esconder a Carolina uma preocupação.

“Ele ontem teve algum aborrecimento!”, era um pensamento que muitas vezes vinha ao coração da obreira, ao contemplar o rosto alterado do senhor de preto. “Oh! Ele trabalhou muito!”, era uma exclamação devida a outras nuanças que Carolina sabia perceber. O desconhecido também adivinhava que a moça passara o domingo a terminar o vestido em cujo desenho ele se interessava; via, ao aproximar-se a data do vencimento do aluguel, aquele bonito rosto ensombrecer-se de inquietação e adivinhava quando Carolina fizera serão; mas notava principalmente como os pensamentos tristes, que desfloravam as feições alegres e delicadas daquela moça, se haviam gradualmente dissipado à medida que suas relações iam envelhecendo. Quando o inverno veio e secou as hastes e as folhagens que enfloravam a janela, e esta se fechou, o desconhecido não deixou de esboçar um sorriso docemente malicioso ao ver a extraordinária limpidez da vidraça à altura da cabeça de Carolina. A parcimônia do fogo, alguns traços de vermelhidão no rosto das duas mulheres revelaram-lhe a indigência que reinava na pequena casa; mas, se alguma dolorosa compaixão se mostrou em seus olhos, Carolina opôs-lhe altivamente uma alegria fingida. Entretanto, os sentimentos desabrochados no fundo do coração deles ali ficavam sepultados, sem que nenhum acontecimento lhes indicasse, quer a um, quer a outro, sua força e extensão; nenhum conhecia ao menos o som da voz do outro. Esses dois amigos mudos evitavam, como o fariam com uma desgraça, aprofundar-se numa mais íntima união. Cada um deles parecia temer levar ao outro um infortúnio mais pesado do que aquele que tentava partilhar. Seria esse pudor de amizade o que os detinha? Seria essa apreensão do egoísmo ou essa desconfiança atroz que separam todos os habitantes reunidos dentro dos muros de uma cidade populosa? A voz secreta da consciência deles os estaria prevenindo de algum perigo próximo? Seria impossível explicar o sentimento que os tornava tão inimigos quanto amigos, tão indiferentes um ao outro quanto se sentiam presos, tão unidos pelo instinto como separados de fato.

Possivelmente cada um deles queria conservar suas ilusões. Dir-se-ia às vezes que o desconhecido temia ouvir sair algumas palavras grosseiras daqueles lábios tão frescos, tão puros como uma flor, e que Carolina não se julgava digna daquele ser misterioso em que tudo revelava o poder e a fortuna. Quanto à sra. Crochard, aquela terna mãe, que quase se mostrava descontente com a indecisão na qual permanecia a filha, exibia uma fisionomia enfadada ao seu senhor de preto, ao qual, até então, sempre sorrira com um ar tão complacente como servil. Nunca se queixara tão amargamente à filha de ser obrigada, ainda na sua idade, a cozinhar, em tempo algum seu reumatismo e seu catarro lhe haviam arrancado tantos gemidos; finalmente, durante esse inverno não pôde tecer o número de varas de tule com que Carolina contara até então. Nessas circunstâncias e nos últimos dias de dezembro, no momento em que o pão era mais caro e quando já se sentia o começo do encarecimento dos cereais que tornou o ano de 1816 tão cruel para a gente pobre, o passante notou, no semblante da jovem, cujo nome ignorava, os vestígios horríveis de um pensamento secreto que seus sorrisos amáveis não conseguiam dissipar. Breve percebeu nos olhos de Carolina os deprimentes indícios de um trabalho noturno. Numa das últimas noites desse mês, o passante voltou, contrariamente aos seus hábitos, cerca de uma hora da madrugada, pela rue du Tourniquet-Saint-Jean. O silêncio da noite permitiu-lhe ouvir de longe, antes de chegar à casa de Carolina, a voz lamurienta da velha mãe e a da jovem operária, mais dolorosa, cujas notas vibravam misturadas aos zunidos de uma chuva de neve. Procurou aproximar-se a passos cautelosos; depois, correndo o risco de se fazer prender, escondeu-se diante da janela, para ouvir o que diziam mãe e filha, examinando-as pelo maior dos buracos que recortavam as cortinas de musselina amarelada e as tornava semelhantes a essas grandes folhas de couve comidas pelos lagartos. O passante curioso viu um papel selado em cima da mesa que separava os dois bastidores e sobre o qual estava colocada a lâmpada entre os dois globos cheios de água. Facilmente reconheceu uma intimação. A sra. Crochard estava chorando e a voz de Carolina tinha um som gutural que lhe alterava o timbre doce e caricioso.

— Por que te desesperas tanto, minha mãe? O sr. Molineux[247] não venderá nossos móveis nem os botará na rua antes de eu terminar este vestido; mais duas noites e irei levá-lo à sra. Roguin.[248]

— E se ela, como sempre, te fizer esperar? E o preço de teu vestido dará para pagar também ao padeiro?

O espectador dessa cena estava tão acostumado a ler nas fisionomias que julgou entrever tanta falsidade na dor da mãe quanta verdade nas penas da moça; em seguida desapareceu, voltando pouco depois. Quando olhou pelo buraco da musselina, a mãe estava deitada; curvada sobre seu bastidor, a jovem obreira trabalhava com incansável atividade. Em cima da mesa, ao lado da intimação, havia um pedaço de pão cortado triangularmente, colocado ali, com certeza, para alimentá-la durante a noite e também para lembrar-lhe a recompensa de sua aplicação. O desconhecido estremeceu de enternecimento e de dor, atirou sua bolsa através de um vidro quebrado, de modo a fazê-la cair aos pés da moça, e depois, sem gozar da sua surpresa, evadiu-se com o coração palpitando e com as faces afogueadas. No dia seguinte o triste e selvagem desconhecido passou fingindo um ar preocupado, mas não pôde furtar-se à gratidão de Carolina, que havia aberto a janela e se estava divertindo a remover com uma faca a terra do caixão quebrado, coberto de neve, pretexto cuja engenhosa inabilidade dava a conhecer ao seu benfeitor que dessa vez não queria ver através da vidraça. A bordadeira fez, com os olhos rasos de lágrimas, um sinal com a cabeça ao seu protetor, como para dizer-lhe: “Só lhe posso pagar com o coração”. Mas o senhor de preto pareceu não compreender nada daquela expressão de verdadeiro reconhecimento. À tarde, quando ele tornou a passar, Carolina, que estava colando uma folha de papel no vidro quebrado, pôde sorrir-lhe mostrando como uma promessa o esmalte de seus dentes brilhantes. O senhor de preto, desde então, adotou outro itinerário e não mais apareceu na rue du Tourniquet. Nos primeiros dias do próximo mês de maio, num sábado pela manhã, em que Carolina avistava, entre as duas linhas escuras de casas, uma nesga de um céu sem nuvens, e enquanto regava com um copo de água o pé de madressilva, ela disse à mãe:

— Mamãe, precisamos ir amanhã dar um passeio a Montmorency!

Apenas acabava de dizer com ar alegre essa frase, o senhor de preto passou por ali, mais triste e acabrunhado do que nunca. O casto e acariciador olhar que lhe dirigiu Carolina poderia passar por um convite. Por isso, no dia seguinte, quando a sra. Crochard com um casacão de merinó pardo-avermelhado, um chapéu de seda e um xale de grandes listras, imitando cashmere, se apresentou para escolher uma tipoia na esquina da rue du Faubourg-Saint-Denis com a rue d’Enghien, encontrou ali o seu desconhecido, firme como um homem que está à espera de sua mulher. Um sorriso de satisfação distendeu o semblante do desconhecido, quando viu Carolina, cujo pezinho estava calçado com polainas de lã castanho-avermelhadas, cujo vestido branco, batido por um vento pérfido para as mulheres malfeitas, desenhava formas atraentes, e cujo semblante, ensombrado por um chapéu de palha de arroz, forrado de seda cor-de-rosa, parecia iluminado por um reflexo celeste. Seu largo cinto castanho-avermelhado fazia sobressair uma cintura que se podia abarcar com as duas mãos; seus cabelos divididos em dois bandós castanho-escuros, sobre uma fronte alva como a neve, davam-lhe um ar de candura que nada desmentia. Parecia que o prazer tornava Carolina tão leve como a palha de seu chapéu, mas a esperança que nela nasceu, quando viu o senhor de preto, eclipsou de repente seus adornos e sua beleza.

O homem, que parecia irresoluto, decidiu-se, talvez, a servir de companheiro de viagens à obreira, pela súbita revelação da felicidade que sua presença causava. Alugou para ir a Saint-Leu-Taverny um cabriolé cujo cavalo parecia bastante bom; ofereceu lugares à sra. Crochard e à filha. A mãe aceitou sem que fosse preciso insistir, mas, quando o carro já estava na estrada de Saint-Denis, lembrou-se de ter escrúpulos e arriscou algumas frases corteses sobre o incômodo que duas mulheres causariam ao companheiro.

— O senhor, talvez, quisesse ir sozinho a Saint-Leu? — disse ela, com falsa bonomia. Mas não tardou em se queixar do calor e sobretudo do seu catarro, o qual, dizia ela, não lhe deixara fechar os olhos uma única vez durante a noite; por isso, logo que o carro chegou a Saint-Denis, a sra. Crochard pareceu adormecida, conquanto alguns dos seus roncos se afigurassem suspeitos ao senhor de preto, o qual franziu os sobrolhos ao olhar a velha com um ar singularmente desconfiado.

— Oh! Está dormindo — disse Carolina ingenuamente. — Não parou de tossir desde ontem à noite. Deve estar bem cansada.

Como única resposta, o companheiro de viagem dirigiu à moça um sorriso astucioso como para dizer-lhe: “Inocente criatura, não conheces tua mãe!”. Não obstante, apesar de sua desconfiança, quando o carro começou a rodar sobre a areia, naquela longa avenida de choupos que conduz a Eaubonne, o senhor de preto acreditou que a sra. Crochard tinha adormecido realmente; ou, então, não queria examinar até que ponto aquele sono era verdadeiro ou falso. Ou fosse porque a beleza do céu, o ar puro do campo e os perfumes embriagadores espalhados pelos primeiros brotos dos choupos, pelas flores dos salgueiros e pelas dos espinhos brancos tivessem preparado seu coração para expandir-se, como se expandia a natureza; ou porque um mais prolongado constrangimento se lhe tivesse tornado importuno, ou também por terem os olhos cintilantes de Carolina respondido à inquietação dos seus, o senhor de preto iniciou com a sua jovem companheira uma dessas conversações tão vagas quanto o balanço das árvores sob o esforço da brisa, tão desconexa quanto as mil voltas do voo de uma borboleta no ar azul, tão pouco ponderada quanto a voz suavemente melodiosa dos campos, mas impregnada, como essa, de um misterioso amor.

Não está o campo nessa época fremente como uma noiva que botou seu vestido de casamento, e não convida ele para o gozo, mesmo às mais frias almas? Deixar as tenebrosas ruas do Marais pela primeira vez desde o último outono, e achar-se no seio do harmonioso e pitoresco vale de Montmorency; atravessá-lo pela manhã, tendo diante dos olhos o infinito de seus horizontes, e poder, dali, trazer o olhar para olhos que também pintam o infinito, exprimindo o amor, poderá nessas condições haver corações que se conservem frios, lábios que guardem um segredo? O desconhecido achou Carolina mais alegre do que espirituosa, mais amante do que instruída; mas, se seu riso era brincalhão, suas palavras prometiam um sentimento verdadeiro. Quando a moça respondia às sagazes perguntas de seu companheiro por uma efusão de alma que as classes inferiores prodigalizam sem lhes pôr reticências, como acontece com as pessoas da alta sociedade, a fisionomia do senhor de preto animava-se e parecia renascer; perdia gradativamente a tristeza que lhe contraía as feições; depois, a pouco e pouco, adquiriu um ar de mocidade e um caráter de beleza que deixaram Carolina feliz e orgulhosa. A linda bordadeira adivinhou que seu protetor, privado de havia muito de ternura e de amor, não acreditava mais na dedicação de uma mulher. Por fim, uma saída inesperada da tagarelice de Carolina ergueu o último véu que encobria a mocidade real e o primitivo caráter do desconhecido. Era como se ele se tivesse divorciado para sempre das ideias importunas e pudesse então expandir a vivacidade da alma que a solenidade de seu semblante ocultava. A palestra tornou-se insensivelmente tão íntima que no momento em que o carro se deteve nas primeiras casas da comprida aldeia de Saint-Leu, Carolina chamava o desconhecido de sr. Rogério. Pela primeira vez, a velha mãe acordou.

— Carolina — disse Rogério com voz desconfiada ao ouvido da moça —, ela deve ter ouvido tudo.

Carolina respondeu com um encantador sorriso de incredulidade, que dissipou a nuvem sombria que o temor de um cálculo por parte da velha acumulara sobre a fronte daquele homem desconfiado. Sem se admirar de nada, a sra. Crochard aprovou tudo, acompanhou a filha e o sr. Rogério ao parque de Saint-Leu, onde os dois jovens tinham combinado ir, para visitar os alegres prados e os bosques perfumados que o gosto da rainha Hortênsia[249] tornou tão famosos.

— Meu Deus! Como isso é bonito! — exclamou Carolina, quando, do alto da encosta verde onde começa a floresta de Montmorency, viu a seus pés o imenso vale que ostentava suas sinuosidades semeadas de aldeias, o horizonte azulado, suas colinas, seus campanários, seus prados, seus campos, e cujo murmúrio vinha expirar aos ouvidos da moça como um sussurro do mar. Os três viajantes costearam as margens de um riacho artificial e chegaram àquele vale suíço cujo chalé, por mais de uma vez, recebeu a rainha Hortênsia e Napoleão. Quando Carolina, com um santo respeito, se sentou no banco de madeira musgosa, no qual haviam descansado reis, princesas e o imperador, a sra. Crochard manifestou o desejo de ver mais de perto uma ponte suspensa entre duas rochas que se viam ao longe, e dirigiu-se para aquela curiosidade campestre, deixando a filha sob a guarda do sr. Rogério, mas avisando que não os perderia de vista.

— Como! Minha pobre amiguinha — exclamou Rogério — nunca desejou a riqueza e os gozos do luxo? Não deseja, por vezes, vestir as belas toilettes que borda?

— Eu lhe mentiria, sr. Rogério, se lhe dissesse que não penso na felicidade que os ricos desfrutam. Ah!, sim, penso muitas vezes, sobretudo quando adormeço, no prazer que teria de ver minha pobre mãe não ser obrigada a ir, por pior que esteja o tempo, buscar nossas pequenas provisões, com a idade que ela tem. Eu quisera que pela manhã uma arrumadeira de casa lhe trouxesse, enquanto ela ainda estivesse na cama, o seu café com bastante açúcar, e açúcar branco. Ela gosta de ler romances, a pobre, pois eu bem preferia vê-la cansar os olhos nas suas leituras favoritas a vê-la mexer bobinas da manhã à noite. Também precisaria de um pouco de bom vinho. Enfim quisera vê-la feliz, ela é tão boa!

— Quer dizer que ela já lhe provou bem sua bondade?

— Oh!, sim — replicou a moça com a sua voz profunda. E depois de um curto silêncio, durante o qual os dois jovens contemplaram a sra. Crochard, a qual, tendo chegado ao meio da ponte rústica, os ameaçava com o dedo, Carolina continuou: — Oh!, sim, ela tem me dado provas. Como ela cuidava de mim, quando eu era pequena! Vendeu os últimos talheres de prata para me colocar como aprendiz em casa de uma solteirona que me ensinou a bordar. E meu pobre pai! Quanto trabalho ela teve para dar-lhe um pouco de felicidade nos seus últimos dias! — Ao pensar nisso, a moça estremeceu e tapou o rosto com as mãos.

— Ora, não pensemos nas desgraças passadas — disse ela, tentando voltar à sua jovialidade. Corou ao ver que Rogério se enternecera, mas não se atreveu a olhá-lo.

— Que fazia seu pai? — perguntou ele.

— Meu pai era dançarino na época antes da Revolução — disse ela com o ar mais natural deste mundo — e minha mãe cantava nos coros. Meu pai, que era quem dirigia as evoluções no palco, achou-se por acaso na Tomada da Bastilha. Foi reconhecido por alguns dos assaltantes, os quais lhe perguntaram se ele não saberia dirigir um ataque de verdade, ele que comandava os simulacros no teatro. Meu pai era valente, aceitou e guiou os insurretos, sendo recompensado com o posto de capitão no Exército de Sambre e Meuse,[250] onde se comportou de modo a ser promovido, rapidamente, chegando a coronel. Mas foi ferido tão gravemente em Lutzen[251] que veio morrer em Paris, depois de um ano de sofrimentos. Vieram os Bourbons, minha mãe não conseguiu uma pensão e nós ficamos reduzidas a uma miséria tão grande que foi preciso trabalhar para viver. De há algum tempo para cá, a pobre tem estado adoentada, motivo pelo qual nunca a vi tão pouco resignada. Queixa-se, e eu a compreendo, porque ela já gozou as doçuras de uma vida feliz. Quanto a mim, não posso sentir a falta de delícias que não conheci, e só peço a Deus uma coisa...

— O quê? — perguntou com vivacidade Rogério, que parecia pensativo.

— Que as mulheres usem sempre tule bordado para que assim nunca me falte trabalho.

A franqueza dessas confissões interessou o rapaz, o qual fitou a sra. Crochard com olhos menos hostis quando esta voltou para eles a passos lentos.

— E então, meus filhos, tagarelaram muito? — perguntou-lhes com ar ao mesmo tempo indulgente e trocista. — Quando a gente se lembra, sr. Rogério, que o pequeno caporal se sentou aí onde o senhor está — disse ela após um pequeno silêncio. — Pobre homem! — acrescentou — como meu marido lhe queria! Ah! Crochard fez bem em morrer porque não teria suportado saber que ele estava lá onde eles o puseram.

Rogério pôs um dedo nos lábios e a boa velha, meneando a cabeça, disse com ar sério:

— Basta! Saberei ficar de boca fechada e de língua morta. Mas — acrescentou, entreabrindo a blusa e mostrando uma cruz com a fita encarnada suspensa ao pescoço por um fitilho de seda preta — eles não me impedirão de usar o que o outro deu ao meu pobre Crochard e pode ter a certeza de que me farei enterrar com...

Ao ouvir palavras que eram então consideradas sediciosas, Rogério interrompeu bruscamente a velha, levantando-se, e voltaram à aldeia através das alamedas do parque. O rapaz ausentou-se durante alguns momentos para ir encomendar uma refeição no melhor restaurante de Taverny; depois veio buscar as duas mulheres e levou-as para lá fazendo-as passar pelos caminhos da floresta. O jantar foi alegre. Rogério já não era mais aquela sombra sinistra que antes passava pela rue du Tourniquet; parecia-se menos ao senhor de preto do que a um jovem confiante, pronto a se deixar levar na corrente da vida, como aquelas duas mulheres despreocupadas e laboriosas que talvez, no dia seguinte, não tivessem pão; ele parecia sob a influência das alegrias do primeiro período da vida, seu sorriso tinha algo de carinhoso e infantil. Quando, pelas cinco horas, o alegre jantar foi terminado por alguns copos de champanha, Rogério foi o primeiro a propor que fossem ao baile da aldeia, sob as castanheiras, onde Carolina e ele dançaram juntos; apertaram-se as mãos com mútua compreensão, seus corações pulsaram animados por uma mesma esperança, e, sob o céu azul, aos raios oblíquos e rubros do ocaso, seus olhos adquiriram um brilho que para eles fazia empalidecer o do céu. Estranho poder de uma ideia e de um desejo! Para aqueles dois seres nada parecia impossível. Nesses momentos mágicos em que o prazer projeta seus reflexos até o futuro, a alma não prevê senão a felicidade. Aquele belo dia já havia criado para os dois recordações às quais nada podiam comparar no passado de sua existência. A fonte será, pois, mais graciosa do que o rio, o desejo mais encantador do que o gozo, e o que se espera mais atraente do que aquilo que se possui?

— Já está acabado o dia! — essa exclamação que o desconhecido deixou escapar no momento em que a dança terminou fez com que Carolina o fitasse com ar compassivo ao ver seu rosto nublar-se com um ligeiro véu de tristeza.

— Por que não poderia o senhor viver tão contente em Paris, como aqui? — disse ela. — A felicidade só é possível em Saint-Leu? Parece-me, a mim, que agora não poderei ser infeliz em parte nenhuma.

Rogério estremeceu ao ouvir aquelas palavras ditadas pelo meigo descuido que sempre arrasta as mulheres mais longe do que quereriam ir, da mesma forma pela qual a dissimulação lhes dá, muitas vezes, mais crueldade do que a que de fato têm. Pela primeira vez depois do olhar pelo qual, de algum modo, começaram suas relações, Carolina e Rogério tiveram um mesmo pensamento; se não o externaram, sentiram-no no mesmo instante, por uma mútua impressão, semelhante à duma benfazeja lareira que os consolasse das investidas do inverno; depois, como se temessem o próprio mutismo, foram para o lugar onde os esperava o carro, mas antes de nele subir deram-se fraternalmente as mãos e correram por uma alameda sombria diante da sra. Crochard. Quando não enxergaram mais a touca de tule branco que lhes assinalava a velha mãe, como um ponto através das folhas:

— Carolina! — disse Rogério com voz perturbada e o coração palpitante.

A jovem, confusa, recuou alguns passos, ao compreender os desejos que aquele apelo revelava; não obstante estendeu a mão, que foi beijada com ardor e que ela retirou vivamente, porque ao se erguer na ponta dos pés entrevira sua mãe. A sra. Crochard fingiu nada ter visto, como se, por uma recordação de seus antigos papéis, não devesse figurar na cena senão como um à parte.

A aventura dos dois jovens não continuou na rue du Tourniquet. Para tornarmos a encontrar Carolina e Rogério, é preciso que nos transportemos para o centro da Paris moderna, onde existem, nas casas recentemente construídas, apartamentos que parecem ter sido feitos de propósito para os recém-casados ali passarem sua lua de mel: quer as pinturas, quer o papel dos forros são novos como os esposos, e a decoração está flamante como o seu amor, tudo está de acordo com ideias moças, com desejos ardentes. No meio da rue Taitbout, numa casa cuja pedra de cantaria ainda estava branca, em que as colunas do vestíbulo e da porta não tinham ainda nenhuma nódoa e cujas paredes reluziam com aquela pintura coquete, que as nossas primeiras relações com a Inglaterra tinham posto em moda, havia, no segundo andar, um pequeno apartamento arranjado pelo arquiteto como se ele tivesse adivinhado sua destinação. Uma simples e fresca antecâmara, revestida de estuque até certa altura, dava entrada para um salão e para uma pequena sala de jantar. O primeiro comunicava com um quarto de dormir, ao qual estava ligado um banheiro. Todas as chaminés eram guarnecidas de altos espelhos emoldurados com esmero. As portas tinham como ornamento arabescos de bom gosto, e as cornijas eram de um estilo puro. Um amador reconheceria ali, melhor do que em outro lugar qualquer, a ciência de distribuição e decoração que distingue as obras de nossos arquitetos modernos. Carolina residia, fazia mais ou menos um mês, naquele apartamento mobiliado por um desses tapeceiros que são orientados por artistas. A descrição sucinta da peça mais importante bastará para dar uma ideia das maravilhas que o apartamento ofereceu aos olhos de Carolina, a quem Rogério levara até ali. Forros de estofo cinzento, alegrados por enfeites de seda verde, decoravam as paredes de seu quarto de dormir. Os móveis, forrados de cashmere claro, eram de formas graciosas e leves, obedecendo ao último capricho da moda: uma cômoda de madeira indígena, incrustada de filetes cor de castanha, guardava os tesouros dos adornos; uma escrivaninha semelhante servia para escrever cartinhas de amor em papel perfumado; a cama, vestida à antiga, não podia inspirar senão ideias voluptuosas pela maciez de suas musselinas elegantemente dispostas; as cortinas, de seda gris, com franjas verdes, estavam sempre colocadas de modo a interceptar a luz; um relógio de bronze representava o Amor coroando Psique; finalmente um tapete com desenhos góticos impressos sobre um fundo avermelhado fazia sobressair os acessórios desse recanto cheio de delícias. Em frente de um espelho de toucador, havia um pequeno penteador diante do qual a ex-bordadeira se impacientava com a ciência de Plaisir,[252] um ilustre cabeleireiro.

— Acredita que acabará meu penteado hoje? — perguntou ela.

— A senhora tem os cabelos tão compridos e bastos — respondeu Plaisir.

Carolina não pôde deixar de sorrir. A lisonja do artista despertara sem dúvida em seu coração a lembrança dos louvores apaixonados que seu amigo lhe dirigia sobre a beleza de uma cabeleira que ele idolatrava. Tendo-se retirado o cabeleireiro, a criada de quarto veio conferenciar sobre a toilette que mais agradava a Rogério. Estava-se então em começos de setembro de 1816 e fazia frio: um vestido de granadina verde guarnecido de chinchila foi o escolhido. Apenas terminada a toilette, Carolina dirigiu-se apressadamente ao salão, abriu uma porta envidraçada pela qual se saía para um elegante balcão que decorava a fachada e cruzou os braços numa atitude encantadora, não para se oferecer à admiração dos transeuntes e os ver voltar a cabeça, mas para olhar o bulevar no fim da rue Taitbout. Essa perspectiva, que bem pode ser comparada ao buraco feito pelos atores no pano do teatro, permitia-lhe distinguir uma multidão de carruagens elegantes e uma porção de gente arrastada com a velocidade de sombras chinesas. Ignorando se Rogério viria a pé ou de carro, a antiga operária da rue du Tourniquet examinou alternativamente os pedestres e os tílburis, carros leves importados para a França pelos ingleses. Expressões travessas e de amor passavam por seu rosto juvenil, quando, depois de um quarto de hora de espera, seu olhar penetrante ou seu coração ainda não lhe haviam anunciado aquele que ela sabia que deveria chegar. Que desprezo, que indiferença se desenhavam em seu rosto por todas as criaturas que se agitavam como formigas a seus pés! Seus olhos cinzentos, cintilantes de malícia, brilhavam. Toda entregue à sua paixão, ela evitava as homenagens com tanto cuidado como o têm as mais orgulhosas em recolhê-las durante seus passeios por Paris, e pouco se lhe dava que a lembrança de seu claro rosto inclinado ou de seu pezinho, que saía fora da sacada, que a provocante imagem de seus olhos animados e de seu nariz voluptuosamente arrebitado, se apagasse ou não no dia seguinte do coração dos passantes que a admiravam; não via senão um rosto e não tinha senão uma ideia. Quando a cabeça mosqueada de um certo cavalo baio escuro passou a alta linha traçada no espaço pelas casas, Carolina estremeceu e ergueu-se na ponta dos pés para procurar reconhecer as rédeas brancas e a cor do tílburi. Era ele! Rogério dobra a esquina da rua, vê a sacada, dá uma chicotada no cavalo que trota, o qual chega diante daquela porta bronzeada à qual está tão habituado como o seu dono. A porta do apartamento foi antecipadamente aberta pela criada de quarto que ouvira a exclamação de alegria dada pela patroa. Rogério precipita-se para o salão, aperta Carolina nos braços e beija-a com essa efusão de sentimentos que os encontros pouco frequentes de dois seres que se amam sempre provocam: ele a arrasta, ou antes, os dois caminham impelidos por uma única vontade, embora enlaçados nos braços um do outro, para aquele quarto encantador, discreto e perfumado; uma conversadeira, diante da lareira, recebe-os e os dois, durante um momento, se contemplam em silêncio, exprimindo sua felicidade somente por veementes apertos de mão e transmitindo seus pensamentos por olhares demorados.

— Sim, é ele — disse ela por fim —; sim, és tu. Não reparaste que faz três intermináveis dias que não te vejo, um século! Mas que tens? E estás triste?

— Minha pobre Carolina...

— Sim, aí está: minha pobre Carolina.

— Não, não te ponhas a rir, meu anjo; não podemos ir esta noite ao Feydeau.[253]

Carolina fez uma carinha de enfado, mas que se dissipou de súbito.

— Sou uma tola! — exclamou. — Como posso eu pensar no espetáculo quando te estou vendo! Ver-te não é o único espetáculo que me agrada? — exclamou ela passando os dedos pelos cabelos de Rogério.

— Sou obrigado a ir à casa do procurador-geral; estamos neste momento com uma questão espinhosa. Ele me encontrou no grande salão e como sou eu que estou com a palavra, convidou-me para ir jantar com ele. Mas, querida, podes ir ao Feydeau com tua mãe, eu irei ter com vocês se a conferência terminar cedo.

— Ir ao teatro sem ti? — exclamou ela, mostrando-se admirada. — Sentir um prazer que tu não compartilhas! Oh!, meu Rogério, bem merecias que eu não te beijasse — acrescentou, saltando-lhe ao pescoço, movida por um sentimento tão ingênuo quanto voluptuoso.

— Carolina, devo ir para casa vestir-me. O Marais é longe e tenho ainda alguns assuntos por terminar.

— Cavalheiro — disse Carolina, interrompendo-o —, tome cuidado com o que estás dizendo! Minha mãe ensinou-me que, quando os homens começam a nos falar de seus negócios, é que já não nos amam mais.

— Mas, Carolina, não estou eu aqui? Não surrupiei esta hora ao meu implacável...

— Pst! — fez ela, pondo um dedo nos lábios de Rogério —, não vês que estou brincando?

Nesse momento tinham voltado ao salão e Rogério viu um móvel trazido naquela manhã pelo marceneiro: o velho bastidor de pau-rosa, cujo produto sustentava Carolina e a mãe, quando moravam na rue du Tourniquet-Saint-Jean, tinha sido reformado e estava como novo e sobre ele já estava estendido um vestido de tule com um rico desenho.

— Pois bem, meu bom amigo, esta noite trabalharei. Enquanto estiver bordando, eu me julgarei ainda naqueles primeiros dias, quando tu passavas por mim sem me dizer uma palavra, mas não sem me olhar; naqueles dias em que a lembrança do teu olhar não me deixava dormir. Oh!, meu querido bastidor, o mais belo móvel do meu salão, embora não me tenha sido dado por ti! Não sabes — disse ela, sentando-se no colo de Rogério, o qual, não tendo podido resistir às suas emoções, caíra sentado numa poltrona... — Estás ouvindo? Quero dar aos pobres tudo o que eu ganhar com os meus bordados. Tornaste-me rica! Como gosto daquela linda propriedade de Bellefeuille, menos pelo que ela é do que por ter-me sido dada por ti. Mas dize-me, Rogério, eu desejava chamar-me Carolina de Bellefeuille, posso? Tu deves sabê-lo: é legal ou tolerado?

Ao ver um pequeno gesto de afirmação inspirado a Rogério por seu ódio ao nome de Crochard, Carolina saltou agilmente batendo com as mãos, uma na outra.

— Parece-me que assim eu te pertencerei ainda mais. Geralmente uma moça renuncia ao seu nome e toma o do marido... (Uma ideia importuna, que ela imediatamente repeliu, a fez corar.) — Tomou Rogério pela mão e levou-o ante um piano aberto.

— Ouve — disse ela —, eu agora sei minha sonata, como um anjo.

E seus dedos já percorriam o teclado de marfim quando se sentiu enlaçar e se viu erguida no ar.

— Carolina, eu já devia estar longe.

— Queres ir? Pois bem, vai-te — disse ela, enfadada; mas sorriu depois de ter olhado para o relógio e exclamou alegremente: — Sempre consegui reter-te um quarto de hora mais.

— Adeus, srta. de Bellefeuille — disse ele, com a doce ironia do amor.

Beijaram-se e ela acompanhou seu Rogério até à porta. Quando o ruído dos passos dele não se ouvia mais na escada, ela correu à sacada para vê-lo subir ao tílburi, vê-lo tomar as rédeas, ouvir o estalar do chicote e o rolar das rodas sobre o calçamento, para seguir com os olhos o brilhante cavalo, o chapéu do dono, o galão de ouro que guarnecia o do jóquei, enfim, para olhar muito tempo ainda depois que o canto da esquina lhe tivesse ocultado aquela visão.

Cinco anos depois da instalação da srta. Carolina de Bellefeuille na bonita rue Taitbout, aconteceu pela segunda vez uma dessas cenas domésticas que estreitam ainda mais os laços de afeição entre duas pessoas que se amam. No centro do salão azul, diante da janela que abria para a sacada, um menino de quatro anos e meio fazia um barulho infernal, chicoteando seu cavalo de massa cujos arcos recurvos, que lhe sustentavam as patas, não iam tão depressa quanto desejava: sua linda cabecinha de cabelos louros, que caíam em numerosos cachos sobre um colarinho bordado, sorri, como um rosto de anjo, para sua mãe, quando do fundo de uma larga poltrona ela lhe diz:

— Carlos, não faça tanto barulho, você vai acordar sua irmãzinha.

O pequeno curioso apeou-se bruscamente do cavalo, aproximou-se na ponta dos pés, como se temesse o ruído de seus passos no tapete, pôs um dedo entre os dentinhos, ficou numa dessas atitudes infantis que só são tão graciosas porque tudo nelas é natural, e levantou o véu de musselina branca que ocultava o rostinho fresco de uma pequenina adormecida nos joelhos da mãe.

— Eugênia está dormindo? — perguntou ele, muito admirado. — Por que é que ela dorme, quando nós estamos acordados? — acrescentou, abrindo muito os olhos negros que flutuavam num fluido abundante.

— Só Deus sabe — respondeu Carolina, sorrindo.

Mãe e filho contemplaram a pequenina, que fora batizada naquela mesma manhã. Tendo agora vinte e quatro anos, Carolina apresentava o completo desenvolvimento que uma felicidade sem nuvens e constantes prazeres tinham feito desabrochar. Nela, a mulher se realizara completamente. Encantada por obedecer aos desejos de seu querido Rogério, adquirira os conhecimentos que lhe faltavam. Tocava regularmente piano e cantava de modo bastante agradável. Ignorando os usos da sociedade que a teria repelido e aonde não teria ido, nem mesmo que ali a acolhessem, pois que a mulher feliz não vai a esses lugares, ela não soubera nem adquirir aquela elegância de maneiras nem aprender aquela conversação rica em frases, mas vazia de pensamentos, corrente nos salões. Em compensação, porém, conquistou trabalhosamente os conhecimentos indispensáveis a uma mãe, cuja única ambição consiste em bem educar seus filhos. Não se separar do filho, dar-lhe desde o berço essas lições de todos os instantes que gravam nas almas jovens o gosto pelo belo e pelo bom, preservá-lo de toda má influência, preencher ao mesmo tempo as penosas funções da ama e as doces obrigações de mãe, tais foram seus únicos prazeres. Desde o primeiro dia, essa meiga e boa criatura resignou-se tão bem a não dar um passo fora da esfera encantada onde se achavam para ela todas as suas alegrias que, depois de dez anos da mais terna união, não conhecia de seu amigo senão o nome de Rogério. Colocada em seu quarto, a gravura de Psique chegando com a sua lâmpada para ver o Amor, não obstante a proibição, lembrava-lhe as condições de sua felicidade.[254] Durante esses seis anos, seus modestos prazeres jamais fatigaram por uma ambição deslocada o coração de Rogério, verdadeiro tesouro de bondade. Nunca almejou diamantes ou vestidos e recusou o luxo de um carro que mais de vinte vezes fora oferecido à sua vaidade. Esperar na sacada o carro de Rogério, ir com ele ao teatro ou dar passeios pelos arredores de Paris, nos dias bonitos, esperá-lo, vê-lo, tornar a esperá-lo, era isso a história de sua vida, pobre de acontecimentos, mas rica de amor. Embalando em seu colo com uma canção a filha nascida de poucos meses antes desse dia, comprouve-se em evocar as recordações do tempo passado. Deteve-se com mais agrado nos meses de setembro, época na qual todos os anos Rogério a levava a Bellefeuille para passar aqueles belos dias que pareciam pertencer a todas as estações. A natureza nesse período é tão pródiga de flores como de frutos, as tardes são tépidas, as manhãs suaves, e o brilho do verão sucede muitas vezes à melancolia do outono. Durante os primeiros tempos de seu amor, Carolina atribuíra a uniformidade de alma e meiguice de caráter, de que Rogério lhe dera tantas provas, à raridade de suas entrevistas, sempre desejadas, e ao seu modo de viver, que não os punha continuamente em presença um do outro, como acontece com os casados. Lembrou-se então com delícia de que, atormentada por vãos temores, ela o espionara, a tremer, durante a sua primeira estada nessa pequena propriedade do Gatinais. Inútil espionagem de amor! Todos esses meses de ventura passaram como um sonho, no seio de uma felicidade que jamais se desmentiu. Ela vira sempre um terno sorriso nos lábios daquele ser bom, sorriso que parecia ser o reflexo do seu. Ante esses quadros evocados de modo demasiado vivo, seus olhos se encheram de lágrimas, ela julgou não amar suficientemente e esteve tentada a ver, na infelicidade de sua situação equívoca, uma espécie de imposto lançado pela sorte sobre o seu amor. Enfim, uma curiosidade invencível fez com que ela procurasse pela milésima vez os acontecimentos que podiam levar um homem tão amante como Rogério a gozar somente de uma felicidade clandestina, ilegal! Imaginou mil romances, precisamente para se dispensar de admitir o verdadeiro motivo, de há muito adivinhado, mas no qual tentou não crer. Ergueu-se, conservando a filha adormecida nos braços, para ir presidir, na sala de jantar, a todos os preparativos da ceia. Era o dia 6 de maio de 1822, aniversário do passeio no parque de Saint-Leu, durante o qual sua vida ficara decidida, razão pela qual esse dia motivava uma festa do coração. Carolina indicou a toalha de mesa e guardanapos que deviam ser usados na refeição, e dirigiu o arranjo da sobremesa. Depois de ter tomado com satisfação todas as providências que concerniam a Rogério, aninhou a filhinha no pequeno berço, foi colocar-se na sacada e não tardou em ver chegar o cabriolé, pelo qual seu amigo, chegando à maturidade, substituíra o elegante tílburi dos primeiros tempos. Depois de ter recebido a primeira onda de carícias de Carolina e do pequeno travesso que o chamava papai, Rogério foi até o berço, contemplou o sono da filha, beijou-a na testa e tirou do bolso do casaco um grande papel pintalgado de linhas escuras.

— Carolina — disse ele —, aqui está o dote da srta. Eugênia de Bellefeuille.

A mãe pegou com gratidão o título total, uma inscrição no Grande-Livro da dívida pública.

— Por que três mil francos de renda para Eugênia, quando deste só mil e quinhentos para Carlos?

— Carlos, meu anjo, é um homem — respondeu. — Mil e quinhentos francos lhe bastarão. Com essa renda um homem animoso está livre da miséria. Se, por acaso, teu filho for um homem nulo, não quero que cometa desatinos. Se tiver ambição, essa fortuna módica lhe dará o gosto pelo trabalho. Eugênia é mulher, precisa de dote. O pai pôs-se a brincar com Carlos, cujas demonstrações carinhosas evidenciavam a independência e a liberdade de sua educação. Nenhum temor entre pai e filho destruía esse encanto que recompensa a paternidade das suas obrigações, e a alegria dessa pequena família era tão terna quanto verdadeira. À noite, uma lanterna mágica projetou sobre uma tela branca suas surpresas e seus quadros misteriosos, com grande espanto de Carlos. Por mais uma vez, as alegrias celestiais daquela inocente criança provocaram risos inextinguíveis nos lábios de Carolina e de Rogério. Quando mais tarde deitaram o garoto, a pequenina acordou pedindo seu puríssimo alimento. À claridade de uma lâmpada, no canto da lareira, naquele quarto de paz e alegria, Rogério entregou-se à felicidade de contemplar o suave quadro que lhe apresentava aquela criança suspensa ao seio de Carolina, branca, fresca, como um lírio recentemente desabrochado, e cujos cabelos caíam em numerosos cachos castanhos que mal deixavam ver seu pescoço. O clarão da lâmpada fazia sobressair toda a graciosidade daquela jovem mãe, multiplicando sobre ela, em torno dela, sobre suas vestes e sobre a criança, esses efeitos pitorescos produzidos pelas combinações da sombra e da luz. O semblante daquela mulher calma e silenciosa pareceu a Rogério mil vezes mais meigo do que nunca, e ele contemplou com ternura aqueles lábios finos e rubros dos quais jamais saíra uma palavra discordante. O mesmo pensamento brilhou nos olhos de Carolina, a qual examinava Rogério de soslaio, fosse para gozar do efeito que produzira nele, fosse para adivinhar o decorrer do serão. O desconhecido, que compreendeu o coquetismo daquele olhar sutil, disse com fingida tristeza:

— Tenho de ir-me. Preciso terminar um assunto muito sério, e me estão esperando em casa. O dever antes de tudo, não é, querida?

Carolina mirou-o com olhar triste e meigo ao mesmo tempo, mas com a resignação que não deixa ignorar nenhuma das dores do sacrifício, e respondeu:

— Adeus. Vai-te! Se ficasses mais uma hora, não te daria liberdade tão facilmente.

— Meu anjo — respondeu ele, então, sorrindo —, tenho três dias de férias, e para todos os efeitos estou a vinte léguas de Paris.

Alguns dias depois daquele 6 de maio, a srta. de Bellefeuille foi, uma manhã, apressadamente à rue Saint-Louis, no Marais, fazendo votos para não chegar atrasada, a uma casa aonde ia habitualmente uma vez por semana. Um mensageiro trouxera-lhe a notícia de que sua mãe, a sra. Crochard, estava sucumbindo em consequência a uma complicação das dores provocadas por seu catarro e por seu reumatismo. Enquanto o cocheiro do fiacre fustigava os seus cavalos, atendendo ao pedido insistente de Carolina, reforçado pela promessa de uma boa gorjeta, as velhas timoratas, de que a viúva Crochard fizera sua roda durante seus últimos dias, introduziam um padre no confortável e asseado apartamento, habitado pela antiga comparsa, no segundo andar da casa. A criada da sra. Crochard ignorava que a linda senhora em cuja casa sua patroa ia jantar com frequência fosse sua própria filha; e foi das primeiras a solicitar a intervenção de um confessor, na esperança de que esse eclesiástico lhe seria pelo menos tão útil quanto à doente. Entre dois bóstons ou ao passearem no jardim Turco, as velhas com as quais a viúva Crochard dava de língua todos os dias, tinham conseguido despertar no coração gelado da amiga alguns escrúpulos no tocante à sua vida passada, algumas ideias de futuro, alguns temores relativos ao inferno e certas esperanças de perdão, baseadas numa sincera volta à religião. Nessa manhã solene, três velhas da rue Saint-François e da Vieille-Rue-du-Temple tinham vindo fixar-se no salão no qual a sra. Crochard as recebia todas as terças-feiras. Cada uma, por sua vez, deixava a sua poltrona para ir à cabeceira da doente fazer-lhe companhia e dar-lhe essas falsas esperanças com as quais se embalam os moribundos. Entretanto, quando lhes pareceu que a crise estava próxima, quando o médico chamado na véspera não deu mais esperanças, as três damas se consultaram para saber se deviam avisar a srta. de Bellefeuille.

Previamente ouvida Francisca, ficou resolvido que mandariam um mensageiro à rue Taitbout prevenir à jovem parenta, cuja influência parecia tão temível às quatro mulheres, mas esperavam que o auvérnio voltaria demasiado tarde com aquela dama que dispunha de tão grande parte da afeição da sra. Crochard. Essa viúva, que evidentemente gozava de uma renda de uns mil escudos, só foi tão desveladamente tratada pelo trio feminino devido ao fato de que nenhuma de suas boas amigas, inclusive a própria Francisca, lhe conhecia algum herdeiro. A opulência de que gozava a srta. de Bellefeuille, a quem a sra. Crochard não se permitia dar o doce nome de filha, por motivo dos usos da antiga Ópera, quase que legitimava o plano formado pelas quatro mulheres, de dividirem entre si o espólio da agonizante.

Não tardou que aquela das três sibilas que estava “amarrando” a doente viesse mostrar sua cabeça, trêmula, ao duo inquieto e dissesse:

— Creio que é tempo de mandar buscar o padre Fontanon. Daqui a duas horas ela não terá nem mais cabeça nem mais força para escrever uma palavra.

A velha criada desdentada partiu, pois, voltando com um homem de sotaina preta. Uma testa estreita denunciava um espírito medíocre nesse padre, que, ademais, tinha um rosto vulgar; suas bochechas largas e pendentes, seu duplo queixo, eram indícios de um bem-estar egoísta; seus cabelos empoados davam-lhe um ar melífluo, enquanto não erguia seus olhos castanhos, proeminentes, e que não estariam deslocados sob as sobrancelhas de um tártaro.

— Senhor padre — dizia-lhe Francisca —, agradeço-lhe muito seus conselhos, mas também pode ficar certo de que eu tive muitíssimos cuidados com essa querida senhora.

A criada, de passos arrastados e de rosto compungido, calou-se ao ver que a porta do apartamento estava aberta e que a mais insinuante das três matronas mantinha-se de pé na soleira para ser a primeira a falar ao confessor. Depois que o eclesiástico acabou de receber, com grande complacência, a tríplice descarga de discursos melífluos e devotos das amigas da viúva, foi sentar-se à cabeceira da sra. Crochard. A decência e certa circunspeção forçaram as três damas e a velha Francisca a ficar, as quatro, no salão, a se fazerem umas às outras umas caras de dor que só mesmo aquelas faces enrugadas podiam simular com tanta perfeição.

— Ah!, que desgraça! — exclamava Francisca, dando um suspiro profundo. — É a quarta patroa que eu tenho a desgraça de enterrar. A primeira deixou-me cem francos de renda vitalícia, a segunda cinquenta escudos e a terceira mil escudos de contado. Depois de trinta anos de serviço, é tudo o que tenho.

A criada usou de seu direito de ir e vir para se meter num pequeno gabinete de onde podia ouvir o padre.

— Vejo com satisfação — dizia Fontanon — que a senhora, minha filha, tem sentimentos piedosos; carrega consigo uma santa relíquia...

A sra. Crochard fez um movimento vago que não demonstrava estar ela na posse de todas as suas faculdades, porque mostrou a cruz imperial da Legião de Honra. O eclesiástico recuou um passo ao ver a efígie do imperador, depois se aproximou em seguida de sua penitente, que confabulou com ele em tom tão baixo que durante alguns instantes Francisca nada ouviu.

— Que Deus me ajude! — exclamou de repente a velha. — Não me abandone, senhor cura! Julga o senhor que eu terei de responder pela alma de minha filha?

O padre falava demasiado baixo e o tabique era espesso demais para que Francisca pudesse ouvir.

— Ai de mim! — exclamou a viúva, chorando. — O celerado nada me deixou de que eu possa dispor. Ao tomar-me minha pobre Carolina, ele me separou dela e estabeleceu-me uma renda de três mil libras, cujo fundo pertence à minha filha.

— A senhora tem uma filha e só tem renda vitalícia — gritou Francisca, ao chegar correndo ao salão.

As três velhas olharam umas para as outras com profundo espanto. Aquela cujo queixo e nariz, prestes a se juntarem, traíam uma espécie de superioridade de hipocrisia e de finura, piscou os olhos e assim que Francisca lhe deu as costas fez às amigas um sinal que queria dizer:

— Essa rapariga é uma espertalhona, já foi contemplada em três testamentos.

Por isso as três velhas permaneceram ali, mas em breve o padre apareceu e, depois de ele ter dito uma palavra, as três bruxas despencaram-se escada abaixo, deixando Francisca sozinha com a patroa.

A sra. Crochard, cujos sofrimentos redobraram cruelmente, por mais que puxasse o cordão da sineta, chamando a criada, só recebia como reposta:

— Sim, sim! Já vou! Daqui a pouco!

As portas dos armários e das cômodas iam e vinham como se Francisca estivesse procurando um bilhete de loteria perdido. No momento em que essa crise atingia o apogeu, a srta. de Bellefeuille chegou junto ao leito de sua mãe para lhe prodigalizar palavras de conforto.

— Oh! Minha pobre mãezinha, como eu sou criminosa! Estás sofrendo e eu não sabia, meu coração não me avisou! Mas aqui estou eu...

— Carolina...

— Que é?

— Elas trouxeram-me um padre.

— Do que precisa é de um médico! — exclamou a srta. de Bellefeuille. — Francisca, um médico! Como! Essas senhoras não mandaram buscar um médico?

— Trouxeram-me um padre — disse a velha, dando um suspiro.

— Como está sofrendo! E nem uma poção calmante, nada em cima da mesa.

A mãe fez um sinal vago, mas que o olhar penetrante de Carolina adivinhou porque se calou para deixá-la falar.

— Elas me trouxeram um padre... A pretexto de me confessar. Toma cuidado contigo, Carolina — gritou-lhe com dificuldade a velha corista com um último esforço —, o padre arrancou-me o nome de teu benfeitor.

— E quem foi que te disse esse nome, minha pobre mãe?

A velha expirou, tentando fazer um ar malicioso. Se a srta. de Bellefeuille tivesse podido observar o rosto da mãe, teria visto o que ninguém verá, a Morte rir.

Para compreender o interesse que oculta a introdução desta cena, é preciso por um momento esquecer-lhe as personagens, para prestar atenção na narrativa de acontecimentos anteriores, mas dos quais o último se prende à morte da sra. Crochard. Essas duas partes formarão então uma mesma história, a qual, por uma lei particular à vida parisiense, produzirá duas ações diferentes.

Em fins de novembro de 1805, um jovem advogado, com cerca de vinte e seis anos, descia, mais ou menos às três horas da madrugada, a grande escadaria do palácio em que residia o arquichanceler do Império. Ao chegar ao pátio, em traje de baile, sob uma fina geada, não se pôde conter, deixando escapar uma exclamação dolorosa, através da qual transparecia, não obstante, essa jovialidade que raramente abandona os franceses, pois não percebeu nenhum fiacre através das grades do palácio e não ouviu, ao longe, nenhum desses ruídos produzidos pelos cascos dos cavalos ou pela voz roufenha dos cocheiros parisienses. Algumas patadas desferidas, de quando em quando, pelos cavalos do grande juiz, o qual o rapaz acabava de deixar jogando a bouillotte[255] de Cambacérès,[256] repercutiam no pátio do palácio escassamente iluminado pelas lanternas do carro. Subitamente o rapaz, sentindo que lhe batiam amigavelmente no ombro, voltou-se reconhecendo o grande juiz, a quem saudou. No momento em que o lacaio baixava o estribo da carruagem, o antigo legislador da Convenção percebeu o embaraço do advogado.

— À noite todos os gatos são pardos — disse alegremente. — O grande juiz não se comprometerá pondo um advogado no seu caminho, sobretudo — acrescentou — se esse advogado é sobrinho de um antigo colega, um dos luminares desse grande Conselho de Estado que deu à França o Código Napoleão.

O pedestre subiu para o carro a um gesto do chefe supremo da justiça imperial.

— Onde mora? — perguntou o ministro ao advogado antes de a portinhola do carro ser fechada pelo lacaio que esperava ordens.

— Quai des Augustins, senhor.

Moveu-se o carro e o rapaz viu-se frente a frente com um ministro, ao qual em vão tentou falar, antes e depois do suntuoso jantar de Cambacérès, porquanto o grande juiz visivelmente o evitara durante o sarau.

— Então, sr. de Granville, está o senhor em bom caminho.

— Enquanto eu estiver ao lado de Vossa Excelência.

— Não estou gracejando — disse o ministro. — Seu estágio está terminado faz dois anos e suas defesas no processo Ximeuse e de Hauteserre[257] colocaram-no bem alto.

— Julguei até agora que minha dedicação por esses infelizes emigrados me prejudicasse.

— É muito moço, meu caro — disse o ministro em tom grave. — Mas — continuou após uma pausa — esta noite o senhor agradou muito ao arquichanceler. Entre para a magistratura do ministério público, falta-nos pessoal. O sobrinho de um homem por quem Cambacérès e eu sentimos tanto interesse não deve ficar como advogado por falta de proteção. Seu tio ajudou-nos a atravessar tempos bem tempestuosos, e serviços dessa natureza não se esquecem.

O ministro calou-se durante um momento.

— Dentro de pouco — continuou — terei três vagas no tribunal de primeira instância e na corte imperial de Paris, venha ver-me, então, e escolha a que mais lhe convier. Até lá trabalhe, mas não compareça às minhas audiências. Primeiro porque estou sobrecarregado de serviço e depois porque seus concorrentes adivinhariam as suas intenções e poderiam prejudicá-lo junto ao patrão. Cambacérès e eu, não lhe dirigindo a palavra esta noite, pusemo-lo ao abrigo dos perigos do favoritismo.

No momento em que o ministro acabou de dizer essas palavras, o carro parou no Quai des Augustins, o jovem advogado agradeceu ao seu generoso protetor com efusões calorosas pelos dois lugares que lhe haviam sido concedidos, e bateu rudemente à porta, porque o vento lhes castigava as pernas. Finalmente um velho porteiro puxou o cordão e quando o advogado passou diante do cubículo:

— Sr. Granville — disse aquele com voz roufenha —, há uma carta para o senhor.

O rapaz tomou-a e, não obstante o frio, tentou verificar de quem era a letra à luz de um pálido candeeiro, cuja mecha estava a ponto de apagar-se.

— É de meu pai — exclamou, tomando seu castiçal que o porteiro finalmente acabara de acender. Subiu rapidamente ao apartamento para ler a seguinte carta:


Toma a mala-posta e se puderes chegar rapidamente aqui, estarás com a fortuna feita. A srta. Angélica Bontemps perdeu a irmã, ficando assim como filha única, e nós sabemos que ela não te odeia. A sra. Bontemps, agora, poderá deixar-lhe quarenta mil libras de renda, além do que lhe dará em dote. Já preparei o caminho. Nossos amigos ficarão admirados ao ver nobres antigos se aliarem à família Bontemps. O velho Bontemps foi um bonnet rouge,[258] dos bem carregados, que possuía muitos bens nacionais comprados a preço vil. Mas, em primeiro lugar, ele não teve senão campos de frades que nunca mais darão lucro, e, ademais, se já cedeste, fazendo-te advogado, não vejo por que recuaríamos diante de outra concessão às ideias atuais. A pequena trará trezentos mil francos e eu te darei cem mil, e os bens de tua mãe devem valer uns cinquenta mil escudos, ou pouco mais, de sorte que, meu querido filho, ficas em situação de, se quiseres, entrar para a magistratura ou de te fazeres senador, como outro qualquer. Meu cunhado, o conselheiro de Estado, esse, convenhamos, não te auxiliará nisso, com certeza; mas como ele não é casado, sua sucessão, um dia, te tocará: se não fores senador por ti mesmo, terás a sua sucessão. Dessa posição, estarás acomodado bastante alto para poder esperar os acontecimentos. Adeus. Abraços.


O jovem de Granville deitou-se, pois, formulando mil projetos cada qual mais belo. Poderosamente protegido pelo arquichanceler, pelo grande juiz e por seu tio materno, um dos redatores do Código, ia estrear-se num posto cobiçado, ante a primeira corte do Império, e via-se membro do ministério público, onde Napoleão costumava escolher os altos funcionários da sua política. Além disso, apresentava-se-lhe uma fortuna bastante brilhante para auxiliá-lo a sustentar sua posição, para a qual não eram suficientes as magras rendas, cinco mil francos, que obtinha de uma propriedade rural, herdada de sua mãe. Para completar esses sonhos de ambição com a felicidade ele evocava a imagem ingênua da srta. Angélica Bontemps, sua companheira de infância.

Enquanto não chegou à idade da razão, os pais não se opuseram à sua intimidade com a linda filha do vizinho de campo; mas, quando, durante as suas curtas visitas de férias a Bayeux, o pai e a mãe, maníacos de nobreza, descobriram sua simpatia pela moça, proibiram-lhe que pensasse nela. Fazia pois dez anos que Granville não pudera ver aquela a quem denominava sua mulherzinha, senão em rápidos momentos. Nesses instantes, roubados à ativa vigilância de suas famílias, puderam no máximo trocar poucas palavras, ao passar um pelo outro na igreja ou na rua. Seus mais belos dias foram aqueles em que, numa dessas festas campestres, denominadas na Normandia de assembleias, eles se puderam examinar furtivamente e em perspectiva. Durante as suas últimas férias, Granville viu Angélica duas vezes, e os olhos baixos, a atitude triste de sua mulherzinha fizeram-no compreender que ela se achava subjugada por algum despotismo ignorado. Tendo chegado às sete horas ao escritório de venda de passagens da rue Notre-Dame-des-Victoires, o jovem advogado encontrou felizmente um lugar na diligência que partia naquela hora para Caen.

Não foi sem profunda emoção que o advogado estagiário reviu os campanários da catedral de Bayeux. Não tendo ainda tido na vida nenhuma esperança frustrada, seu coração abria-se aos belos sentimentos que agitam as almas jovens. Depois do prolongado banquete festivo com que o pai e alguns amigos o esperavam, o impaciente rapaz foi levado a uma certa casa da rue Teinture, muito sua conhecida. O coração pulsava-lhe com força quando seu pai, que em Bayeux continuava a ser chamado o conde de Granville, bateu com rudeza a uma porta principal, cuja pintura verde ia caindo em escamas. Eram aproximadamente quatro horas da tarde. Uma criada moça, com uma touca de algodão, cumprimentou os dois senhores fazendo-lhes uma curta reverência e avisando que as senhoras não tardariam em voltar das vésperas. O conde e o filho entraram numa sala baixa que servia de salão e era semelhante ao locutório de um convento. Lambris de nogueira ensombravam a peça, mobiliada com algumas cadeiras estofadas e antigas poltronas, simetricamente dispostas. A chaminé de pedra tinha como único ornato um espelho esverdeado, de cada lado do qual se destacavam os braços contorcidos desses candelabros antigos, fabricados no tempo da paz de Utrecht.[259] Sobre o apainelado que ficava em frente à chaminé, o jovem Granville viu um enorme crucifixo de ébano e de marfim, cercado de buxo bento. Conquanto iluminada por três portas envidraçadas que recebiam a luz de um jardim provinciano, cujos canteiros simétricos eram orlados por extensas fileiras de buxo, a peça tinha tão pouca claridade que quase se não viam, na parede fronteira às portas, três quadros de assuntos religiosos, obra de algum sábio pincel e com certeza comprados durante a Revolução pelo velho Bontemps, o qual, na sua qualidade de chefe do distrito, jamais descuidara dos seus interesses pessoais. Desde o assoalho, cuidadosamente encerado, até as cortinas de tela de xadrez verde, tudo brilhava com asseio monástico. Involuntariamente o coração do rapaz se confrangeu naquele silencioso retiro em que vivia Angélica. A contínua frequentação dos brilhantes salões de Paris e o turbilhão das festas tinham facilmente apagado, na memória de Granville, a recordação das existências incolores e tranquilas da província; por isso, o contraste foi para ele tão súbito que sentiu uma espécie de frêmito interior. Sair de uma reunião de Cambacérès onde a vida se mostrava tão larga, onde os espíritos tinham extensão, onde a glória imperial se refletia tão vivamente e cair, de repente, num círculo de ideias mesquinhas, não era como ser transportado da Itália para a Groenlândia?

— Viver aqui não é viver — disse ele para os seus botões, ao examinar aquele salão de metodista.

O velho conde, que percebeu o espanto do filho, foi buscá-lo pela mão, levou-o a uma das portas envidraçadas de onde vinha ainda um pouco de claridade e, enquanto a criada acendia as velas dos candelabros, procurou dissipar as nuvens que aquele aspecto acumulara na fronte do moço.

— Escuta, meu filho — disse-lhe ele —, a viúva do velho Bontemps é furiosamente devota. Quando o diabo envelhece... Sabes o resto! Vejo que fazes caretas ao aspecto disto aqui. Pois bem, eis a verdade: a velha vive assediada pelos padres, que a convenceram de que ainda era tempo de conquistar o céu, e para assegurar São Pedro e suas chaves, ela os compra. Vai à missa todos os dias, ouve todos os sermões, comunga todos os domingos que Deus dá e diverte-se restaurando capelas. Deu à catedral tantas alfaias, paramentos, sacerdotões, capas; enfeitou o pálio com tantas penas que na procissão da última festa do Divino havia uma multidão, tão grande como num enforcamento, para ver os padres magnificamente vestidos e seus utensílios dourados de novo. Por isto, esta casa é uma verdadeira terra santa. Fui eu quem impediu essa velha louca de dar esses três quadros à igreja, um Dominichino, um Correggio e um Andrea del Sarto,[260] que valem muito dinheiro.

— Mas, e Angélica? — perguntou vivamente o rapaz.

— Se não casares com ela, está perdida — disse o conde. — Nossos bons apóstolos aconselharam-na a que vivesse virgem e mártir. Tive um trabalho insano para despertar seu coraçãozinho, falando-lhe de ti, quando a vi filha única; mas bem compreendes que assim que te casares tu a levarás para Paris. Lá as festas, o casamento, os teatros e a torrente da vida parisiense a farão facilmente esquecer os confessionários, os jejuns, os cilícios e as missas de que essas criaturas se alimentam exclusivamente.

— Mas as cinquenta mil libras de renda, provenientes dos bens eclesiásticos, não tornarão a ir para...

— Chegamos ao ponto — disse o conde com ar esperto. — Em consideração ao casamento, pois a vaidade da sra. Bontemps não deixou de ter sido regularmente espicaçada pela ideia de enxertar os Bontemps na árvore genealógica dos Granville, a sobredita mãe dará sua fortuna em plena propriedade à pequena, reservando para si o usufruto. Por isso o clero se opõe ao teu casamento, mas já fiz publicar os pregões, está tudo pronto e dentro de oito dias estarás livre das garras da mãe ou dos seus frades. Possuirás a mais linda moça de Bayeux, uma comadrezinha que não te dará desgostos, porque terá princípios. Ela foi mortificada, como eles dizem na sua algaravia, pelos jejuns, pelas preces e — acrescentou, baixando a voz — pela mãe.

Uma batida discreta na porta impôs silêncio ao conde, que pensou que as duas damas iam entrar. Apareceu um criadinho com cara de apressado, mas, intimidado pelo aspecto daquelas duas personagens, fez um sinal à criada, que foi até onde ele estava. Trajando um colete de pano azul, com pequenas abas que esvoaçavam sobre seus quadris, e umas calças listradas de azul e branco, o rapaz usava os cabelos cortados em círculo: seu rosto parecia-se com o de um menino de coro, de tal modo denotava essa compunção forçada que adquirem todos os moradores de uma casa devota.

— Srta. Gatienne, não sabe onde estão os livros para o ofício da Virgem? As damas da congregação do Sagrado Coração fazem hoje uma procissão na igreja.

Gatienne foi buscar os livros.

— Ainda vai demorar muito, meu pequeno miliciano?

— Oh!, uma meia hora, quando muito.

— Vamos ver isso, temos lá mulheres bonitas — disse o pai ao filho. — Ademais, uma visita à catedral não nos fará mal.

O jovem advogado seguiu o pai com ar indeciso.

— Que tens? — perguntou-lhe o conde.

— Que tenho? Tenho, meu pai... é que tenho razão.

— Ainda não disseste nada.

— Sim, mas pensei que o senhor guardou dez mil libras de renda de sua antiga fortuna, que me deixará o mais tarde possível, assim o desejo; mas se me quer dar cem mil francos para fazer um casamento idiota, permita que não lhe peça mais do que cinquenta mil para evitar uma desgraça e gozar, permanecendo solteiro, uma fortuna igual à que me poderia trazer a sua srta. Bontemps.

— Estás louco?

— Não, meu pai. Eis aqui a coisa. O grande juiz prometeu-me anteontem um lugar no foro de Paris. Cinquenta mil francos somados ao que eu possuo e aos ordenados do meu posto dar-me-ão uma renda de doze mil francos. Terei então, sem nenhuma dúvida, probabilidades de fortuna mil vezes preferíveis às de uma união tão pobre em felicidade como rica em bens.

— Vê-se bem — disse o pai sorrindo — que não viveste no Antigo Regime. Julgas acaso que uma mulher nos atrapalharia alguma vez?

— Mas, meu pai, o casamento hoje tornou-se...

— Ora essa! — disse o conde, interrompendo o filho. — Então tudo que os meus velhos companheiros de emigração me contam é verdade? A Revolução nos terá legado costumes sem amenidades, terá ela empestado de princípios equívocos os nossos rapazes? Exatamente como o meu cunhado, o jacobino, vais falar-me de nação, de moral pública, de desinteresse? Ó meu Deus! Não fossem as irmãs do imperador,[261] que seria de nós?

Esse velho ainda verde, que os camponeses de suas propriedades continuavam chamando de sr. de Granville, acabou de proferir aquelas palavras ao entrar sob as arcadas da catedral. Não obstante a santidade do lugar, ao tomar a água benta, ele trauteou uma ária da ópera Rose et Colas[262] e guiou o filho ao longo das galerias laterais da nave, detendo-se em cada pilar para examinar na igreja as fileiras de cabeças, alinhadas como soldados numa parada. Ia começar o ofício particular do Sagrado Coração. As damas, filiadas a essa congregação, estavam colocadas junto ao coro. O conde e o filho dirigiram-se para essa parte da nave e encostaram-se a um dos pilares mais obscuros, de onde puderam ver o conjunto dessas cabeças, o qual se assemelhava a um prado esmaltado de flores. De súbito, a dois passos do jovem Granville, uma voz mais doce do que parecia possível a uma criatura humana possuir elevou-se como a do primeiro rouxinol que canta depois do inverno. Embora acompanhada por inúmeras vozes de mulheres e pelo som do órgão, essa voz lhe tocou os nervos, como se tivessem sido feridos pelas notas demasiado ricas e vivas de uma harmonia. O parisiense virou-se e viu uma jovem cujo rosto, devido à inclinação da cabeça, estava completamente enterrado sob um amplo chapéu de fazenda branca e achou que somente dela podia vir aquela clara melodia. Julgou reconhecer Angélica, apesar da peliça de merinó escuro que a envolvia, e tocou no braço do pai.

— Sim, é ela — disse o conde depois de ter olhado na direção que o filho lhe indicava.

O velho fidalgo por um gesto mostrou o semblante pálido de uma mulher velha cujos olhos, cercados por fortes olheiras, já tinham visto os estranhos, sem que seu olhar falso parecesse se haver erguido do livro de horas que tinha na mão. Angélica levantou a cabeça para o altar, como para aspirar os perfumes penetrantes do incenso cujas nuvens vinham até as duas mulheres. Ao clarão misterioso derramado naquela sombria nau pelos círios, pela lâmpada da nave e por algumas velas acesas nos pilares, o rapaz viu então um rosto que abalou sua resolução. Um chapéu de chamalote branco enquadrava exatamente um rosto de admirável regularidade, pelo oval que descrevia a fita de cetim, atada sob um queixo com covinha. Seus cabelos cor de ouro pálido, divididos em dois bandós, sobre uma fronte estreita, mas delicada, caíam-lhe sobre as faces como a sombra de uma folhagem sobre um tufo de flores. Os arcos das sobrancelhas eram riscados com a correção que se admira nas belas imagens chinesas. O nariz, quase aquilino, possuía uma firmeza rara nos seus contornos, e os lábios se assemelhavam a duas linhas róseas traçadas com amor por um pincel delicado. Os olhos, de um azul pálido, exprimiam candura. Se Granville notou naquele semblante uma espécie de rigidez silenciosa, atribuiu-a aos sentimentos de devoção que no momento empolgavam Angélica. As santas palavras da oração passavam por entre duas fileiras de pérolas, de onde o frio permitia ver sair como uma nuvem de perfume. Involuntariamente, o rapaz tentou curvar-se para respirar aquele hálito divino. Esse movimento atraiu a atenção da moça e seu olhar fixo, erguido para o altar, voltou-se para Granville, que a obscuridade não permitia ver senão indistintamente, mas que Angélica reconheceu como seu companheiro de infância. Essa recordação, mais poderosa do que a prece, veio dar um brilho sobrenatural ao seu rosto. Ela corou. O advogado estremeceu de alegria ao ver as esperanças da outra vida vencidas pelas esperanças do amor, e a glória do santuário eclipsada por recordações terrestres. Seu triunfo, porém, durou pouco: Angélica baixou o véu, assumiu uma atitude de reserva e recomeçou a cantar sem que o timbre de sua voz revelasse a mais leve emoção. Granville achou-se sob a tirania de um único desejo e todas as suas ideias de prudência se desvaneceram. Quando terminou o ofício, sua impaciência se havia tornado tão grande que, sem deixar as duas damas voltarem sozinhas para casa, foi imediatamente cumprimentar sua mulherzinha. Um reconhecimento tímido por parte dos dois realizou-se sob o pórtico da catedral, em presença dos fiéis. A sra. Bontemps ficou trêmula de orgulho ao aceitar o braço do conde de Granville, o qual, obrigado a oferecê-lo diante de todos, não ficou nada satisfeito com o filho por aquela impaciência, tão pouco conveniente. Durante os quinze dias, mais ou menos, decorridos entre a apresentação oficial do jovem visconde de Granville como pretendente da srta. Bontemps, e o dia solene de seu casamento, o rapaz foi assiduamente visitar sua amiga no sombrio locutório, ao qual se habituou.

Suas visitas demoradas tiveram por finalidade observar o caráter de Angélica, porque sua prudência, felizmente, se despertara outra vez, no dia seguinte à primeira entrevista. Quase sempre surpreendia sua futura esposa sentada diante de uma pequena mesa de madeira de santa-luzia, e ocupada a marcar, ela mesma, a roupa que devia compor seu enxoval. Angélica nunca era a primeira a falar de religião. Se o jovem advogado se divertia em brincar com o rico rosário encerrado num pequeno saco de veludo verde, se contemplava rindo as relíquias que sempre acompanham esse objeto de devoção, ela tirava-lhe suavemente o rosário das mãos, dirigindo-lhe um olhar suplicante, e sem dizer uma palavra tornava a guardá-lo no saco, que fechava em seguida. Se por vezes Granville se arriscava maliciosamente a declamar contra certas práticas da religião, a linda normanda ouvia-o opondo-lhe o sorriso da convicção.

— Ou nada se crê, ou se crê em tudo o que a Igreja ensina — respondia ela. — Quereria você para mãe de seus filhos uma rapariga sem religião? Não, não é? Que homem se atreveria a ser juiz, entre os incrédulos e Deus? Pois bem! Como posso eu censurar o que a Igreja admite?

Angélica parecia animada por tão untuosa caridade, o jovem advogado via-a dirigir-lhe olhares tão convictos que por vezes foi tentado a professar a religião da sua prometida; a certeza inabalável que tinha ela de marchar na verdadeira senda despertou, no fundo do coração do futuro magistrado, dúvidas que ela tentou explorar. Granville cometeu então o enorme erro de tomar os prestígios do desejo pelos do amor. Angélica sentiu-se tão feliz em conciliar as vozes do seu coração com as do dever, entregando-se a uma inclinação concebida desde a infância, que o advogado iludido não pôde saber qual das duas vozes era mais forte. Não é vezo dos rapazes se fiarem nas promessas de um belo semblante e julgarem a beleza da alma pela das feições? Um sentimento indefinível leva-os a crer que a perfeição moral está sempre de acordo com a perfeição física. Se a religião não tivesse permitido a Angélica entregar-se aos seus sentimentos, em breve eles teriam secado em seu coração, como uma planta regada com um ácido mortal. Um apaixonado que fosse amado poderia, acaso, perceber um fanatismo tão bem escondido? Tal foi a história dos sentimentos do jovem Granville, durante aquela quinzena devorada como um livro cujo desenlace nos interessa. Angélica, atentamente observada, pareceu-lhe a mais meiga de todas as mulheres, e ele chegou mesmo a surpreender-se agradecendo à sra. Bontemps, que, inculcando naquela, e tão profundamente, sentimentos religiosos, tinha-a, por assim dizer, preparado para os trabalhos da vida. No dia escolhido para a assinatura do fatal contrato, a sra. Bontemps fez o genro jurar solenemente que respeitaria as práticas religiosas da filha, que lhe daria plena liberdade de consciência, a deixaria comungar, ir à igreja, confessar-se tantas vezes quantas quisesse, e nunca a contrariaria na escolha de seus diretores espirituais. Naquele momento solene, Angélica contemplou seu futuro esposo com um ar tão puro e cândido que Granville não hesitou em fazer o juramento pedido. Um sorriso aflorou aos lábios do abade Fontanon, homem pálido que dirigia a consciência da família. Por um leve movimento da cabeça, a srta. Bontemps prometeu ao seu amigo jamais abusar daquela liberdade de consciência. Quanto ao velho conde, assobiou baixinho a ária: “Va-t’en voir s’ils viennent”.[263]

Depois de alguns dias concedidos às voltas de núpcias tão famosas na província, Granville e a esposa partiram para Paris, onde o jovem advogado fora chamado, por sua nomeação, ao cargo de advogado-geral perante a corte imperial do Sena. Quando o casal andava em busca de um apartamento, Angélica usou da influência que a lua de mel dá a todas as mulheres para determinar Granville a alugar um grande apartamento, no rés do chão de um palacete, situado na esquina da Vielle-rue-du-Temple e da rue Neuve-Saint-François. O primeiro motivo de sua escolha foi o estar essa casa a dois passos da rue d’Orléans, na qual havia uma igreja, ficando, ademais, perto de uma capelinha situada na Rue Saint-Louis.

— Uma boa dona de casa deve fazer as suas provisões — disse-lhe o marido, rindo.

Angélica observou-lhe com razão que o bairro do Marais ficava perto do Palácio da Justiça e que os magistrados a quem acabavam de visitar moravam por ali. Um jardim bastante grande valorizava o apartamento para um jovem casal: os filhos, se o céu lhes concedesse tal ventura, poderiam ali tomar ares; o pátio era espaçoso, as cocheiras bonitas. O advogado-geral teria preferido morar num palacete da Chausée-d’Antin, onde tudo é novo e tem vida, onde as modas aparecem ao surgir, onde a população dos bulevares é elegante, onde há menos que andar para ir aos teatros e divertimentos, mas foi obrigado a ceder às lábias de uma recém-casada que solicitava um primeiro favor, e para satisfazê-la, enterrou-se no Marais. As funções de Granville exigiram dele um trabalho tanto mais assíduo por lhe serem uma novidade. Ocupou-se portanto antes de mais nada de mobiliar seu gabinete e da mudança de sua biblioteca; instalou-se logo numa peça que pronto se viu atopetada de autos, e deixou que sua mulher dirigisse a decoração da casa. Lançou Angélica nos embaraços das primeiras aquisições do lar — fonte de tantos prazeres e de recordações para as recém-casadas — com tanto maior interesse, por se sentir envergonhado de privá-la de sua presença mais tempo do que as leis da lua de mel o consentiam. Uma vez ao corrente de suas obrigações, o advogado-geral permitiu à mulher que o tirasse de seu gabinete e o levasse a ver o efeito que faziam a mobília e a decoração que até então só vira em detalhes e por partes.

Se é verdade, como diz o adágio, que se pode julgar uma mulher pela porta de sua casa, os aposentos devem traduzir seu espírito com mais fidelidade ainda. Fosse por ter a sra. de Granville depositado confiança em estofadores sem gosto, fosse por ter ela imprimido seu próprio caráter num ambiente arranjado por ela, o fato é que o jovem magistrado se surpreendeu com a secura e a fria solenidade que reinava em seu apartamento: nada nele encontrou de gracioso, tudo era discordante, nada recreava os olhos. O espírito de retidão e polidez, impresso no locutório de Bayeux, revivia no seu palacete, sob largos lambris, circularmente escavados e enfeitados com esses arabescos cujos longos filetes retorcidos são de tão mau gosto. Possuído do desejo de desculpar sua mulher, o rapaz voltou atrás, examinou novamente a comprida antecâmara de teto alto, pela qual se entrava no apartamento. A cor dos painéis que sua mulher pedira ao pintor era demasiado sombria, e o veludo de um verde muito escuro que recobria as banquetas aumentava a severidade daquela peça, pouco importante, é verdade, mas que sempre dá ideia da casa, da mesma forma como se julga o espírito de um homem por sua primeira frase. Uma antecâmara é uma espécie de prefácio que deve anunciar tudo, mas nada prometer. O jovem substituto indagou consigo se era possível que a sua mulher tivesse escolhido a antiga lâmpada do globo que se achava no centro daquela sala nua, pavimentada de mármore branco e preto, forrada com um papel que imitava barras de pedra sulcadas aqui e ali de musgo verde. Um barômetro caro, mas velho, estava pendurado no centro de uma das paredes, como para melhor fazer-lhe sentir o vazio. Ante isso o rapaz olhou para a esposa; viu-a tão contente com os galões vermelhos que orlavam as cortinas de percal, tão contente com o barômetro e com a estátua decente que ornava uma grande estufa gótica que não teve a coragem bárbara de destruir tão fortes ilusões. Em vez de condenar a mulher, Granville condenou-se a si mesmo, acusou-se de ter faltado ao seu primeiro dever, que era guiar em Paris os primeiros passos de uma moça educada em Bayeux. Ante esse pano de amostra, quem não adivinharia a decoração das outras peças? Que se podia esperar de uma jovem senhora que se alarmava ao ver as pernas nuas de uma cariátide, que repelia com vivacidade um candelabro, um castiçal, um móvel, assim que neles via a nudez de um torso egípcio? Nessa época a escola de David[264] alcançava o apogeu de sua glória; em França, tudo se ressentia da correção de seu desenho e de seu amor pelas formas antigas, o que, de algum modo, fez de sua pintura uma escultura colorida. Nenhuma das invenções do luxo imperial conseguiu direito de cidadania em casa da sra. de Granville. O imenso salão quadrado de seu palacete conservou o branco e o ouro desbotado que o ornavam no tempo de Luís xv, e no qual o arquiteto prodigalizara as grades em losango e esses insuportáveis festões devidos à estéril fecundidade dos crayons daquela época. Se pelo menos houvesse harmonia, se os móveis de acaju moderno tivessem as formas torneadas postas em moda pelo gosto corrompido de Boucher,[265] a casa de Angélica só ofereceria o divertido contraste de gente moça vivendo no século xix como se pertencesse ao século xviii; mas havia uma porção de coisas que causavam antíteses ridículas. Os aparadores, os relógios, os castiçais representavam esses atributos guerreiros que os triunfos do Império tornaram tão queridos em Paris. Aqueles capacetes gregos, aquelas espadas romanas cruzadas, os escudos devidos ao entusiasmo militar e que decoraram então os móveis mais pacíficos, não se harmonizavam de modo nenhum com os delicados e prolixos arabescos que foram as delícias de madame Pompadour. A devoção conduz a não sei que fatigante humildade que não exclui o orgulho. Ou fosse modéstia, ou fosse tendências, a sra. de Granville parecia ter horror às cores suaves e claras. Ou talvez pensasse que a cor púrpura e o pardo conviessem à dignidade de um magistrado. Como, aliás, uma moça acostumada a uma vida austera poderia conceber esses voluptuosos divãs que inspiram pensamentos culposos, essas alcovas elegantes e pérfidas onde se esboçam os pecados? O pobre magistrado ficou desolado. Pelo tom de aprovação com o qual subscreveu os elogios que a esposa a si mesma fazia, ela percebeu que nada daquilo agradava ao marido e manifestou por isso tanto pesar de não ter acertado que o amante Granville viu uma prova de amor naquele profundo desgosto, em vez de ver uma ferida de amor-próprio. Poderia uma moça, subitamente arrancada à mediocridade das ideias provincianas, inábil no coquetismo, na elegância da vida parisiense, fazer coisa melhor? O magistrado preferiu acreditar que as escolhas da esposa tivessem sido impostas pelos fornecedores, a confessar a si mesmo a verdade. Menos apaixonado, ele teria compreendido que os negociantes, tão prontos a adivinhar o espírito de seus clientes, tinham dado graças a Deus por lhes ter mandado uma jovem devota sem gosto, a fim de os ajudar a se desfazerem de coisas passadas da moda. Portanto consolou sua linda normanda.

— A felicidade, minha querida Angélica, não nos vem de um móvel mais ou menos elegante, e sim depende da meiguice, da complacência e do amor de uma mulher.

— Mas é meu dever amá-lo, e nenhum dever me será tão agradável de cumprir — replicou meigamente Angélica.

A natureza colocou no coração da mulher tal desejo de amor que, mesmo numa jovem devota, as ideias de futuro e de salvação têm de sucumbir aos primeiros gozos do himeneu. Por isso, desde abril, época de seu casamento, até começos do inverno, os dois esposos viveram em perfeita união. O amor e o trabalho têm a virtude de tornar um homem indiferente às coisas exteriores. Obrigado a passar no palácio a metade do dia, chamado a debater graves interesses da vida ou da fortuna dos homens, Granville, menos do que outro qualquer, pôde perceber certas coisas do interior de seu lar. Se, nas sextas-feiras, sua mesa só lhe oferecia peixe, se por acaso ele pedia, sem obtê-lo, um prato de carne, sua mulher, a quem a Igreja proibia qualquer mentira, sabia, não obstante, por pequenos ardis permitidos no interesse da religião, atirar a culpa de seu procedimento premeditado ou sobre seu estouvamento ou sobre a penúria do mercado; justificava-se frequentemente nas costas do cozinheiro, chegando até algumas vezes a censurá-lo.

Nessa época os jovens magistrados não observavam como hoje os jejuns, a Quaresma e as vigílias de festas religiosas, de modo que Granville não notou a princípio a periodicidade dessas refeições de abstinência que, aliás, sua mulher teve o pérfido cuidado de tornar muito delicadas, por meio de marrecos, galinhas-d’água, pastéis de peixe, cujas carnes anfíbias ou cujo tempero iludiam o paladar. O magistrado viveu ortodoxamente sem o saber, e fez sua salvação inconscientemente. Nos dias comuns ignorava se a mulher ia ou não à missa; nos domingos, por uma condescendência muito natural, acompanhava-a à igreja como para compensá-la do sacrifício que às vezes ela lhe fazia das vésperas. No começo não pôde perceber a rigidez dos hábitos religiosos da mulher. Sendo os espetáculos insuportáveis no verão por causa do calor, Granville nem sequer teve oportunidade, motivada por alguma peça de êxito, de propor à mulher levá-la à comédia, por isso a grave questão do teatro não foi debatida. Enfim, nos primeiros tempos de um casamento ao qual um homem foi arrastado pela beleza de uma moça, é-lhe difícil mostrar-se exigente nos seus prazeres. A mocidade é mais glutona do que gulosa, e ademais a posse por si só é um encanto. Como perceber a frieza, a dignidade ou a reserva de uma mulher, quando se lhe atribui a exaltação que se experimenta quando ela se colora com o fogo de que se está animado? É preciso chegar-se a uma certa tranquilidade conjugal para ver que uma devota espera o amor de braços cruzados. Granville, pois, julgou-se muito feliz até o momento em que um acontecimento funesto veio influir nos destinos de seu casamento.

Em novembro de 1808, o cônego da catedral de Bayeux, que antes era o diretor espiritual da sra. Bontemps e da filha, veio a Paris, trazido pela ambição de obter uma das paróquias da capital, posto que ele encarava, talvez, como um degrau para o bispado. Ao reaver seu domínio sobre sua ovelha, ele estremeceu ao encontrá-la tão mudada pelo ar de Paris e quis fazê-la voltar para o seu frio redil. Aterrada com as admoestações do ex-cônego, homem de cerca de trinta e oito anos, que trazia para o seio do clero de Paris, tão tolerante e esclarecido, aquela aspereza do catolicismo provinciano, aquela inflexível beatice cujas múltiplas exigências são outros tantos liames para as almas timoratas, a senhora de Granville fez penitência e retornou ao seu jansenismo. Seria fatigante mencionar com exatidão os incidentes que trouxeram insensivelmente a infelicidade para o seio daquele lar, bastando talvez narrar os principais fatos, sem os dispor escrupulosamente por época e pela ordem. Entretanto, a primeira discórdia daqueles jovens esposos foi bastante significativa. Quando Granville apresentou a mulher à sociedade, ela não se recusou ir às reuniões solenes, aos jantares, aos concertos, às assembleias de magistrados que ocupavam posições superiores à de seu marido pela hierarquia judiciária, mas soube, durante algum tempo, pretextar enxaquecas sempre que se tratava de um baile. Um dia, Granville, impacientado com aquelas indisposições de encomenda, escamoteou o convite para um baile em casa de um conselheiro de Estado, enganou a mulher com um convite verbal e, numa noite em que sua saúde nada tinha de duvidoso, lançou-a no meio de uma festa mágica.

— Minha querida — disse-lhe ele ao voltarem para casa e ao vê-la com um ar triste que o ofendeu —, sua situação de mulher, sua posição social e a fortuna de que goza impõem-lhe obrigações que nenhuma lei divina pode revogar. Não é você o orgulho de seu marido? Deve portanto ir aos bailes quando vou e apresentar-se convenientemente.

— Mas, meu amigo, que havia de censurável na minha toilette?

— Trata-se de seu ar, minha querida. Quando um rapaz se dirige para você e lhe fala, você fica tão séria que um gracioso poderia crer na fragilidade de sua virtude. Você parece recear que um sorriso seu a comprometa. Você estava com ar de quem pede perdão a Deus pelos pecados que se cometiam em torno de você. O mundo, meu anjo querido, não é um convento. Mas uma vez que falou em toilette eu lhe confessarei que é também para você um dever acompanhar as modas e os usos da sociedade.

— Queria você que eu exibisse minhas formas como essas mulheres descaradas que se decotam a ponto de permitir que olhares impudicos mergulhem nos seus ombros nus, nos...

— Há diferenças, querida — disse o substituto, interrompendo-a —, entre desnudar completamente o busto e tornar um vestido gracioso. Você tem no seu guarda-roupa uma tríplice fileira de gargantilhos de tule que lhe envolvem o pescoço até o queixo. Parece que você pediu à costureira que suprimisse qualquer forma graciosa dos seus ombros e dos contornos de seus seios, com o mesmo cuidado com que uma coquete se empenha em obter dos seus vestidos que desenhem as mais secretas formas. Seu busto está enterrado debaixo de pregas tão numerosas que todos zombavam de sua reserva afetada. Você não gostaria se eu lhe repetisse todos os comentários estapafúrdios que fizeram a seu respeito.

— Esses a quem tais obscenidades agradam não carregarão o peso de nossos pecados — respondeu a jovem secamente.

— Não dançou? — perguntou Granville.

— Não dançarei nunca.

— E se eu lhe dissesse que deve dançar? — replicou vivamente o magistrado. — Sim, deve seguir a moda, pôr flores nos cabelos, usar diamantes. Lembre-se, minha linda, de que a gente rica, e nós o somos, é obrigada a manter o luxo num Estado! Não é melhor fazer prosperar as manufaturas do que espalhar dinheiro em esmolas pela mão do clero?

— Você fala como homem de Estado — disse Angélica.

— E você como homem de Igreja — respondeu ele prontamente.

A discussão tornou-se azeda. A sra. de Granville pôs nas suas respostas, sempre suaves e dadas com um som de voz tão claro como o de uma sineta de Igreja, uma teimosia que traía a influência sacerdotal. Quando, ao alegar os direitos que lhe conferiam a promessa feita por Granville, ela disse que seu confessor a proibia especialmente de ir a bailes, o magistrado tentou fazer-lhe ver que esse padre ultrapassava os regulamentos da igreja. Essa disputa odiosa, teológica, renovou-se com muito mais violência e azedume, de um lado e de outro, quando Granville quis levar a mulher ao teatro. Finalmente, o magistrado, visando exclusivamente derrubar a influência perniciosa exercida sobre sua mulher pelo ex-cônego, estabeleceu o dissídio de modo que a sra. de Granville, desafiada, escrevesse ao tribunal de Roma para saber se uma mulher podia, sem comprometer sua salvação, decotar-se, ir a bailes e ao teatro para satisfazer o marido. Não demorou a resposta do venerável Pio vii, a qual condenava severamente a resistência da esposa e censurava o confessor. Essa carta, verdadeiro catecismo conjugal, parecia ter sido ditada pela terna voz de Fénelon, cuja graça e doçura nela transpiravam.

“Uma mulher está bem aonde quer que o marido a leve. Se por ordem dele ela cometer pecados, não será ela que um dia há de responder por eles.”

Essas duas passagens da homilia do papa fizeram com que a sra. de Granville e seu confessor o acusassem de irreligião. Mas, antes da chegada do breve pontifício, o substituto se apercebeu da estrita observância que sua mulher lhe impunha nos dias de abstinência e deu ordem na cozinha para que lhe servissem carne todo o ano. Por maior contrariedade que essa ordem causasse a sua mulher, Granville, que pouco se preocupava com regime gordo ou magro, manteve-a com firmeza viril. Toda criatura que pensa, por mais débil que seja, sente-se ferida no que tem de mais íntimo quando realiza, por instigação de outra vontade que não a sua, coisas que teria feito naturalmente. De todas as tiranias, a mais odiosa é a que tira à alma o mérito de suas próprias ações e pensamentos: abdica-se sem haver reinado. A mais meiga palavra que se tenha de proferir, o mais doce sentimento que se queira manifestar, expiram quando os julgamos recomendados. Breve o jovem magistrado chegou a renunciar ao gosto de receber seus amigos, de dar uma festa ou um jantar: dir-se-ia que sua casa se havia recoberto de crepe.

Uma casa cuja dona é devota toma um aspecto particular. Os criados, sempre sob a vigilância da patroa, são escolhidos exclusivamente entre essas pessoas pretensamente devotas que têm uma cara que é só delas. Do mesmo modo que um rapaz, por mais jovial que seja, ao entrar para o corpo policial adquire a fisionomia de um policial, assim também as pessoas que se entregam às práticas da devoção adquirem um caráter fisionômico uniforme; o hábito de baixar os olhos, de conservar uma atitude de compunção reveste-os de uma libré hipócrita que os velhacos sabem adotar de modo maravilhoso. Ademais, as devotas formam uma espécie de república, todas se conhecem; os criados, que umas recomendam às outras, são como uma raça à parte conservada por elas, a exemplo desses amadores de cavalos que não admitem a entrada em suas estrebarias de um único que não traga sua certidão de nascimento perfeitamente em regra. Quanto mais os pretensos ímpios examinam uma casa devota, mais reconhecem então que tudo ali traz o cunho de não sei que falta de elegância: encontram simultaneamente uma aparência de avareza ou de mistério, como na casa dos usurários, e essa humildade perfumada de incenso que resfria a atmosfera das capelas. Essa mesquinha regularidade, essa pobreza de ideias, revelada por tudo, exprime-se por uma única palavra e essa palavra é: beatice. Nessas casas sinistras e implacáveis, a beatice vê-se nos móveis, nas gravuras, nos quadros: o modo de falar é beato, o silêncio é beato e os rostos são beatos. A transformação dos homens e das coisas em beatice é um mistério inexplicável, mas o fato existe. Todos podem ter observado que o beato não caminha, não se senta e não fala como as pessoas da sociedade; com eles se está constrangido, a gente não ri, neles a rigidez, a simetria reinam em tudo, desde a touca da dona da casa até sua almofada de alfinetes; os olhares não são francos, as pessoas lembram sombras e a patroa parece estar sentada num trono de gelo.

Uma manhã, o pobre Granville notou, com tristeza e dor, todos os sintomas da carolice em sua casa. Encontram-se pelo mundo certas sociedades nas quais existem os mesmos efeitos sem que sejam produzidos pelas mesmas causas. O tédio traça em torno dessas casas infelizes um círculo de ferro que encerra o horror do deserto e o infinito do vácuo. Um lar não é então um túmulo, mas coisa pior, um convento. No seio dessa esfera glacial, o magistrado considerou sem paixão a mulher; notou, não sem um vivo pesar, a estreiteza de ideias revelada pelo modo como seus cabelos eram implantados na fronte baixa e levemente escavada; percebeu na regularidade tão perfeita das feições não sei quê de definitivo, de rígido, que logo lhe tornou odiosa a fingida meiguice pela qual fora seduzido. Adivinhou que um dia aqueles lábios poderiam dizer-lhe ante uma desgraça que lhe acontecesse: “É para o teu bem, meu amigo”. O rosto da sra. de Granville tomou um tom baço, uma expressão séria que matava a alegria nos que dela se aproximavam. Teria essa mudança sido operada pelos hábitos ascéticos de uma devoção que não é a piedade, assim como a avareza não é economia? Seria ela produzida pela secura natural das almas beatas?... Era difícil sabê-lo: a beleza sem expressão é talvez uma impostura. O imperturbável sorriso que a jovem senhora imprimia à sua fisionomia, quando olhava Granville, parecia ser nela uma fórmula jesuítica da felicidade, pela qual acreditava satisfazer a todas as exigências do casamento. Sua caridade feria, sua beleza sem paixão parecia uma monstruosidade para os que a conheciam e a mais meiga palavra sua impacientava; não obedecia a sentimentos, mas somente a deveres. Há defeitos que numa mulher podem ceder às lições fortes dadas pela experiência ou por um marido, mas não há nada que combata a tirania das falsas ideias religiosas. Uma bem-aventurança eterna por conquistar, posta na balança com um prazer mundano, triunfará de tudo e tudo fará suportar? Não é isso o egoísmo divinizado, o eu, no além-túmulo?

Por isso o papa foi condenado no tribunal do infalível cônego e da jovem devota. Sempre ter razão é um dos sentimentos que nessas almas despóticas substituem todos os demais. Havia algum tempo que uma luta secreta se estabelecera entre as ideias dos dois esposos, e em breve o jovem magistrado se cansou desse estado de guerra que jamais deveria cessar. Qual o homem, qual o caráter que pode resistir à vista de um rosto amorosamente hipócrita e a uma repreensão categórica às suas menores vontades?

Que partido tomar contra uma mulher que se serve de nossa paixão para proteger sua insensibilidade, que parece resolvida a permanecer meigamente inexorável, preparando-se com delícia a representar o papel de vítima e que considera o marido um instrumento de Deus, um mal cujas flagelações lhe evitam as do purgatório? Quais as pinturas pelas quais se poderia dar ideia dessas mulheres que fazem odiar a virtude, exagerando os mais doces preceitos de uma religião que são João resumia no Amai-vos uns aos outros? Se numa loja houvesse um único chapéu condenado a ficar na prateleira ou a ir para as ilhas, Granville tinha certeza de o ver ornando a cabeça de sua esposa; se se fabricava uma fazenda de uma cor ou de um estampado infeliz, ela paramentava-se com ela. Essas pobres devotas são incríveis nas suas toilettes. A falta de gosto é um dos defeitos inseparáveis da falsa devoção. Por esse modo, nessa existência íntima que requer a maior dose de expansão, Granville não teve companheira: foi sozinho às reuniões mundanas, às festas, ao teatro. Em sua casa nada lhe era simpático. Um grande crucifixo colocado entre o leito da esposa e o seu estava ali como o símbolo de seu destino. Não é ele a representação de uma divindade que mataram, um homem-deus morto em toda a beleza da vida e da mocidade? O marfim daquela cruz tinha menos frieza do que Angélica crucificando o marido em nome da virtude. Foi entre seus leitos que nasceu a desgraça: a jovem esposa nos prazeres do himeneu via apenas deveres. Ali, numa Quarta-Feira de Cinzas, ergueu-se a observância dos jejuns, pálida e lívida imagem que com voz ríspida exigiu uma Quaresma completa, sem que dessa vez Granville achasse conveniente escrever ao papa, a fim de ter a opinião do consistório sobre o modo de observar a quaresma, as têmporas e as vigílias das grandes festas. O desgosto do jovem magistrado foi imenso; nem sequer podia queixar-se, que poderia dizer? Tinha uma mulher jovem, bonita, cumpridora de seus deveres, virtuosa, modelo de todas as virtudes! Tinha um filho todos os anos, amamentava-os ela mesma e educava-os nos melhores princípios. A caridosa Angélica foi promovida a anjo. As velhas damas compunham a sociedade em cujo seio ela vivia (pois que nessa época as moças ainda não se tinham lembrado de se atirar por estilo na alta devoção), admiraram todas as dedicações da sra. de Granville e olharam-na, se não como uma virgem, pelo menos como uma mártir. Acusaram não os escrúpulos da mulher, mas a barbárie procriadora do marido. Insensivelmente Granville, acabrunhado de trabalho, privado de prazeres e cansado da sociedade onde vagava solitário, caiu, aos trinta e dois anos, num horrível marasmo. A vida tornou-se-lhe odiosa. Tendo uma ideia muito alta dos deveres que lhe impunha seu posto para dar o exemplo de uma vida irregular, tentou atordoar-se pelo trabalho, e empreendeu a composição de uma grande obra de direito. Mas não gozou muito tempo daquela tranquilidade monástica com a qual contava. Quando a celeste Angélica o viu desertando as festas sociais e trabalhando em casa com certa regularidade, tentou convertê-lo. Tinha ela verdadeiro pesar em saber que o marido professava ideias pouco cristãs; chorava algumas vezes ao lembrar-se de que, se seu marido morresse, morreria impenitente, sem que jamais ela pudesse esperar arrancá-lo às chamas eternas do inferno. Granville viu-se pois em choque com ideias mesquinhas, os argumentos vazios, os pensamentos estreitos pelos quais sua mulher, que julgava ter conseguido uma primeira vitória, quis tentar uma segunda, fazendo-o voltar para o grêmio da igreja. Foi o golpe final. Que haverá de mais aflitivo do que esses surdos embates em que a teimosia das devotas pretende vencer a dialética de um magistrado? Que de mais espantoso para descrever do que essas discussões fúteis às quais as pessoas veementes preferem punhaladas? Granville desertou de casa, onde tudo se lhe tornou insuportável: os filhos, curvados ao despotismo frio da mãe, não se atreviam a acompanhar o pai ao teatro, e Granville não podia proporcionar-lhes nenhum divertimento sem atrair sobre eles os castigos de sua terrível mãe. Aquele homem tão amorável foi levado a uma indiferença, a um egoísmo pior do que a morte. Pelo menos salvou daquele inferno os filhos, internando-os cedo no colégio e reservando-se o direito de dirigi-los. Raramente intervinha entre a mãe e as filhas, mas resolveu casá-las logo que se tornassem núbeis. Se houvesse querido tomar uma resolução violenta, nada o justificaria; sua mulher, apoiada por um formidável cortejo de matronas, tê-lo-ia feito ser condenado por toda a Terra. Granville não teve portanto outro remédio senão viver num completo isolamento, mas, curvado sob a tirania da desgraça, suas feições desfeitas pelos pesares e pelos trabalhos desagradavam a si mesmo. Finalmente, chegou a temer suas ligações, seu convívio com as mulheres da sociedade, junto às quais desistiu de encontrar consolo.

A história didática desse lar infeliz não ofereceu, durante os quinze anos decorridos entre 1806 e 1821, nenhuma cena digna de ser referida. A sra. de Granville permaneceu exatamente a mesma, a partir do momento em que perdeu o coração do marido, como fora nos tempos em que se dizia feliz. Fez novenas para rogar a Deus e aos santos que a esclarecessem sobre os defeitos que desagradavam ao marido e para que lhe ensinassem os meios de trazer de volta a ovelha desgarrada, mas, quanto mais fervor tinham as suas preces, tanto menos Granville aparecia em casa. Fazia mais ou menos cinco anos que o advogado-geral, ao qual a Restauração dera altas funções na magistratura, se instalara no entressolho do seu palacete, para evitar de viver com a condessa de Granville. Todas as manhãs passava-se uma cena que, a dar crédito à maledicência mundana, se repete no interior de mais de um lar, onde é provocada por certas incompatibilidades de gênio, por doenças morais ou físicas ou se não por defeitos que levam muitos casais às desgraças narradas nesta história. Ali pelas oito horas da manhã, uma criada de quarto, tipo de freira, vinha tocar a sineta do apartamento do conde de Granville. Introduzida no salão que antecedia o gabinete do magistrado, ela dizia ao criado de quarto, e sempre com o mesmo tom, a mensagem da véspera:

— A senhora manda perguntar ao senhor conde se ele passou bem a noite e se ela terá o prazer de vê-lo ao almoço.

— O senhor — dizia o criado, depois de ter falado com o patrão — apresenta suas homenagens à senhora condessa e pede-lhe que aceite suas desculpas; um negócio importante obriga-o a ir ao tribunal.

Um momento depois, a criada apresentava-se novamente e perguntava de parte da condessa se ela teria o prazer de vê-lo antes de ele sair.

— Ele já saiu — respondia o criado, embora, muitas vezes, o cabriolé ainda estivesse no pátio.

Esse diálogo por meio de embaixadores tornou-se um cerimonial cotidiano. O criado de Granville, que por ser favorito do patrão causara mais de uma querela na casa por sua irreligião e pela dissolução de seus costumes, ia mesmo, às vezes pro forma, ao gabinete onde o patrão não estava e voltava para dar a resposta habitual. A esposa, aflita, espiava a volta do marido, punha-se no patamar a fim de estar no seu caminho e chegar diante dele como um remorso. A implicância impertinente que anima os caracteres monásticos constituía o fundo da sra. de Granville, que, nesse momento, com trinta e cinco anos, parecia ter quarenta. Quando, forçado pelo decoro, Granville dirigia a palavra à mulher ou ficava para jantar em casa, ela, feliz por impor-lhe sua presença, seus discursos agridoces e o insuportável tédio de sua companhia beata, tentava evidenciar-lhe as faltas na frente da criadagem e de suas caridosas amigas. A presidência de uma corte real, oferecida ao conde de Granville, nesse momento muito bem-visto no palácio, foi por ele recusada, pedindo ao ministro que o deixasse em Paris. Essa recusa, cujos motivos só foram conhecidos pelo guarda dos selos, sugeriu as mais estranhas conjecturas às íntimas amigas e ao confessor da condessa. Granville, rico, com mais de cem mil libras de renda, pertencia a uma das melhores casas da Normandia; sua nomeação para uma presidência era um degrau para chegar ao pariato; de onde vinha, pois, essa falta de ambição? De onde vinha o abandono de sua grande obra de direito? De onde vinha aquela dissipação que, fazia seis anos, o tornara estranho à sua casa, à família, aos seus trabalhos, a tudo que lhe devia ser caro? O confessor da condessa, que contava, para chegar ao bispado, tanto com o apoio das casas onde reinava como com os serviços prestados a uma congregação da qual foi um dos mais ardentes propagadores, sentiu-se decepcionado com a recusa de Granville e tratou de caluniá-lo por meio de suposições: se o senhor conde tinha tanta repugnância pela província, talvez fosse por ter receio de ser forçado a levar lá uma vida regular, forçado a dar exemplos de bons costumes, a viver com a condessa, da qual somente uma paixão ilícita o poderia ter afastado; uma mulher tão pura como a sra. de Granville se aperceberia algum dia das desordens sobrevindas no procedimento do marido?

As boas amigas transformaram em verdades essas palavras que infelizmente não eram hipóteses, e isso atingiu como um raio a sra. de Granville. Sem conhecimento dos costumes da alta sociedade, ignorando o amor e suas loucuras, Angélica estava tão longe de pensar que o casamento pudesse comportar incidentes diferentes daqueles que lhe alienaram o coração de Granville que o julgou incapaz das faltas que para todas as mulheres são crimes. Quando o conde nada lhe exigiu, imaginou que a calma de que ela parecia gozar era da natureza; finalmente, como lhe dera tudo o que seu coração podia conter de afeição por um homem e como as conjecturas de seu confessor arruinavam completamente as ilusões de que até então se alimentava, tomou a defesa do marido, mas sem poder destruir uma suspeita tão habilmente insinuada em seu espírito. Essas apreensões causaram tais estragos na sua débil cabeça que adoeceu, sofrendo de uma febre lenta. Como os acontecimentos se passavam durante a Quaresma de 1822, não consentiu em suspender suas austeridades, e chegou lentamente a um estado de consumpção que fez temer por sua vida. Os olhares indiferentes de Granville matavam-na. Os cuidados e atenções do magistrado assemelhavam-se aos que um sobrinho se esforça por prestar a um velho tio. Conquanto a condessa houvesse renunciado ao seu sistema de implicâncias e de recriminações e procurasse acolher o marido com palavras meigas, a acidez de devota transparecia e destruía, muitas vezes com uma palavra, o trabalho de uma semana.

Em fins de maio, as quentes brisas da primavera, um regime mais nutritivo que o da Quaresma restituíram um pouco as forças à sra. de Granville. Certa manhã, ao voltar da missa, ela foi sentar-se no seu jardinzinho, num banco de pedra, onde as carícias do sol lhe lembraram os primeiros dias de seu casamento. Com um olhar retrospectivo ela percorreu sua vida, a fim de ver em que teria faltado aos seus deveres de mãe e de esposa. O padre Fontanon apareceu então numa agitação difícil de descrever.

— Aconteceu-lhe alguma desgraça, meu pai? — perguntou ela com solicitude filial.

— Ah! Bem quisera eu — respondeu o padre normando — que todos os infortúnios com que Deus a aflige me tocassem a mim, mas, minha respeitável amiga, são provações às quais deve saber submeter-se.

— E, meu Deus, poderei ter maior castigo do que esse com que a Providência me acabrunha, servindo-se de meu marido como instrumento de sua cólera?

— Prepare-se, minha filha, para males ainda maiores do que aqueles que imaginávamos antigamente com as suas piedosas amigas.

— Devo então agradecer a Deus — respondeu a condessa — por ele se dignar servir-se do senhor para me transmitir suas vontades, colocando assim, como sempre, os tesouros de sua misericórdia ao lado dos flagelos de sua cólera, como outrora ao banir Agar[266] fez com que ela encontrasse uma fonte no deserto.

— Foi pela força de sua resignação e o peso de suas faltas que ele lhe mediu os sofrimentos.

— Fale, estou pronta para ouvir tudo. — Ao dizer essas palavras a condessa ergueu os olhos para o céu e acrescentou: — Fale, sr. Fontanon.

— Faz sete anos que o sr. de Granville comete o pecado de adultério com uma concubina da qual tem dois filhos, e dissipou com esse lar adulterino mais de quinhentos mil francos que deveriam pertencer à sua família legítima.

— É uma coisa que eu precisaria ver com os meus próprios olhos — disse a condessa.

— Deus a livre de tal! — exclamou o padre. — Deve perdoar e esperar, rezando, que Deus ilumine seu marido, a menos que empregue contra ele os meios que as leis humanas lhe oferecem.

O longo colóquio que o abade Fontanon teve então com sua penitente operou uma transformação violenta na condessa. Ela o despediu, mostrou-se com as faces quase escarlate aos criados, que se amedrontaram com a sua atividade de louca: mandou atrelar os cavalos ao carro, deu contraordem, mudou de ideia vinte vezes numa mesma hora, mas finalmente, como se tivesse tomado uma grande resolução, partiu cerca das três horas, deixando todos assombrados com aquela súbita revolução.

— O senhor deve voltar para jantar? — perguntou ao criado de quarto do conde, ao qual nunca falava.

— Não, senhora.

— Levou-o hoje de manhã ao tribunal?

— Sim, senhora.

— Não é hoje segunda-feira?

— Sim, senhora.

— Então agora vão ao tribunal na segunda-feira?

— Que diabos te levem! — exclamou o criado ao ver partir a patroa, a qual disse ao cocheiro: — Rue Taitbout.

A srta. de Bellefeuille estava chorando; Rogério junto dela segurava-lhe uma das mãos, calado, e olhava alternativamente para o pequeno Carlos, que nada compreendendo do luto da mãe permanecia mudo ao vê-la chorar, o berço onde dormia Eugênia e o rosto de Carolina, no qual a tristeza se assemelhava a uma chuva caindo através dos raios de um alegre sol.

— Pois sim! Meu anjo, aí está o grande segredo — disse Rogério depois de um longo silêncio —, sou casado. Mas um dia, assim o espero, constituiremos uma única família. Minha mulher desde março está num estado desesperado. Não lhe desejo a morte, mas se aprouver a Deus chamá-la, creio que ela será mais feliz no paraíso do que no meio de um mundo cujos sofrimentos e prazeres não a afetam.

— Como eu odeio essa mulher! Como pôde ela fazer-te infeliz! E contudo é a essa desgraça que devo a minha felicidade.

As lágrimas se lhe secaram de súbito.

— Carolina, esperemos — exclamou Rogério dando-lhe um beijo. — Não te assustes com o que, te possa haver dito esse padre. Conquanto esse confessor de minha mulher seja um homem terrível por sua influência na congregação, se ele tentasse perturbar nossa felicidade, eu saberia tomar uma resolução...

— Que farias?

— Iríamos para a Itália, eu fugiria...

Um grito dado na sala contígua fez, ao mesmo tempo, Rogério estremecer e Carolina tremer. Ambos se precipitaram no salão e encontraram a condessa desmaiada. Quando a sra. de Granville recobrou os sentidos, suspirou profundamente ao ver-se entre o conde e sua rival, a quem repeliu com gesto involuntário de desprezo.

— A senhora está em sua casa, fique — disse Granville detendo Carolina pelo braço.

O magistrado pegou sua mulher, desfalecida, levou-a até ao carro e subiu junto a ela.

— Quem o pôde levar a desejar minha morte, a fugir-me? — perguntou a condessa com voz fraca, contemplando o marido tanto com indignação quanto com dor. — Não era eu moça? Não me achava bonita? Que tem a censurar-me? Enganei-o, acaso? Não fui uma esposa virtuosa e direita? Meu coração só guardou sua imagem, meus ouvidos só escutaram sua voz. Qual o dever a que faltei? Que lhe recusei?

— A felicidade — respondeu o conde com voz firme. — A senhora o sabe, há dois modos de servir a Deus. Certos cristãos pensam que, entrando a horas certas numa igreja para dizer uns Pater noster, ouvindo regularmente a missa e abstendo-se qualquer pecado, vão para o céu; esses, senhora, vão para o inferno, eles não amaram a Deus por Ele mesmo, não o adoraram como Ele quer ser adorado, não lhe fizeram nenhum sacrifício. Conquanto meigos na aparência, são de fato duros para com o próximo, veem a regra, a letra, mas não o espírito. Eis como a senhora procedeu para com o seu esposo terreno. Sacrificou minha felicidade por sua salvação; estava mergulhada em preces quando eu chegava junto à senhora com o coração alegre; chorava, quando devia alegrar meus trabalhos; não soube satisfazer nenhuma exigência dos meus prazeres.

— E se eles eram criminosos — exclamou a condessa com ardor —, devia eu perder minha alma para lhe ser agradável?

— Teria sido um sacrifício que outra mais amante teve a coragem de fazer por mim — disse Granville friamente.

— Oh! Deus meu — exclamou ela, chorando —, tu o ouves! Era ele digno das preces e das austeridades entre as quais me consumi para resgatar suas faltas e as minhas? Para que serve a virtude?

— Para conquistar o céu, minha cara. Não se pode ser ao mesmo tempo esposa de um homem e de Jesus Cristo, haveria bigamia: é preciso saber optar entre um marido e um convento. A senhora despiu sua alma em proveito do futuro, de todo amor, de toda a dedicação que Deus lhe ordenava ter por mim, e nada mais reservou para o mundo senão sentimentos de ódio...

— Então não o amei? — perguntou ela.

— Não, senhora.

— Que é então o amor? — perguntou involuntariamente a condessa.

— O amor, minha cara — respondeu Granville com uma espécie de surpresa irônica — é coisa que a senhora não está em condições de compreender. O céu frio da Normandia não pode ser o da Espanha. A questão dos climas é sem dúvida a causa de nosso infortúnio: curvar-se aos nossos caprichos, adivinhá-los, encontrar prazer numa dor, sacrificar-nos à opinião do mundo, o amor-próprio, mesmo a religião, e não considerar essas oferendas senão como grãos de incenso queimados em honra ao ídolo, eis o amor...

— O amor das cortesãs da Ópera — disse a condessa com horror. — Tais chamas devem durar pouco e não deixam senão cinzas ou carvões, pesares ou desespero. Uma esposa, senhor, deve oferecer-lhe, a meu ver, uma amizade verdadeira, um calor igual e...

— A senhora fala de calor como os negros falam de gelo — respondeu o conde com um sorriso sarcástico. — Lembre-se de que a mais humilde de todas as margaridas é mais sedutora que a mais orgulhosa e a mais brilhante das rosas que na primavera nos atraem por seus perfumes penetrantes e suas cores vivas. De resto — acrescentou —, faço-lhe justiça. A senhora tão bem se manteve na linha do dever aparente prescrito pela lei que, para demonstrar-lhe em que faltou em relação a mim, seria preciso entrar em certos detalhes que sua dignidade não poderia suportar e falar-lhe de coisas que lhe pareceriam o descalabro de toda a moral.

— Atreve-se a falar em moral ao sair da casa onde dissipou a fortuna de seus filhos, num antro de devassidão! — exclamou a condessa, que ficara furiosa com as reticências do marido.

— Senhora, aqui a detenho — disse o conde com sangue-frio, interrompendo a mulher. — Se a srta. de Bellefeuille é rica, não é à custa de ninguém. Meu tio era senhor de sua fortuna, tinha vários herdeiros; ainda em vida e por pura a amizade àquela a quem considerava como sua sobrinha, deu-lhe sua propriedade de Bellefeuille. Quanto ao resto, devo-o às suas liberalidades.

— Esse procedimento é digno de um jacobino — exclamou a piedosa Angélica.

— Senhora, esquece que seu pai foi um desses jacobinos, que a senhora, mulher, condena com tão pouca caridade — disse o conde severamente. — O cidadão Bontemps assinou sentenças de morte na época em que meu tio prestava serviços à França.

A sra. Granville calou-se. Mas, depois de um momento de silêncio, a recordação do que acabava de ver despertando em sua alma um ciúme que nada poderia extinguir no coração de uma mulher, disse em voz baixa e como se falasse consigo mesma:

— Como se pode perder assim a própria alma e a dos outros!

— Ora — replicou o conde, cansado daquela conversa —, é possível que seja a senhora quem tenha um dia de responder por tudo isso. — A condessa tremeu ao ouvir essas palavras. — Será com certeza desculpada aos olhos do juiz indulgente que examinará nossas faltas — disse ele — pela boa-fé com a qual realizou a minha infelicidade. Não lhe tenho ódio, odeio apenas as pessoas que lhe falsearam o coração e o juízo. A senhora rezou por mim do mesmo modo como a srta. de Bellefeuille me deu seu coração e me cumulou de amor. A senhora devia ser, alternativamente, minha amante e a santa rezando ao pé dos altares. Faça-me a justiça de confessar que eu não sou nem perverso nem devasso. Meus costumes são puros. Ai de mim! Ao cabo de sete anos de sofrimentos, a necessidade de ser feliz, por um declive insensível, levou-me a amar uma outra mulher, a me fazer constituir uma outra família. Não creia, aliás, que eu seja o único; há nesta cidade milhares de maridos levados todos por causas diversas a essa dupla existência.

— Santo Deus! — exclamou a condessa. — Como se tornou pesada minha cruz. Se o esposo que me impuseste na tua cólera não pode achar aqui na terra a felicidade senão por minha morte, chama-me ao teu seio.

— Se tivesse tido sempre sentimentos tão admiráveis e essa dedicação, ainda hoje seríamos felizes — disse o conde friamente.

— Pois bem! — replicou Angélica, derramando uma torrente de lágrimas. — Perdoe-me se cometi faltas! Sim, estou pronta para obedecer-lhe em tudo, certa de que não desejará nada que não seja justo ou natural. Daqui por diante serei tudo o que entender que uma esposa deve ser.

— Senhora, se sua intenção é fazer-me dizer que não mais a amo, terei a horrível coragem de esclarecê-la. Posso eu dar ordens ao meu coração? Posso eu apagar num instante a lembrança de quinze anos de sofrimentos? Não amo mais. Estas palavras encerram um mistério tão profundo como o que se contém na palavra: amo. A estima, a consideração, as atenções obtêm-se, desaparecem, voltam, mas, quanto ao amor, poderia pregar durante mil anos a mim mesmo que o não faria renascer, sobretudo por uma mulher que envelheceu por gosto.

— Ah!, senhor conde, desejo bem sinceramente que essas palavras não lhe sejam ditas um dia pela mulher a quem ama, com o tom e o acento que nelas pôs...

— Quer ir hoje à noite à Ópera com um vestido grego?

O calafrio que essa pergunta causou subitamente à condessa foi uma muda resposta.

Nos primeiros dias de dezembro de 1833, um homem, cujos cabelos completamente embranquecidos e cuja fisionomia pareciam indicar estar ele envelhecido mais pelos desgostos do que pelos anos, passava à meia-noite pela rue Gaillon. Ao chegar em frente a uma casa de pouca aparência e de dois andares, deteve-se para examinar uma das janelas salientes do telhado de uma mansarda. Um clarão desmaiado iluminava fracamente aquela humilde janela, da qual alguns vidros tinham sido substituídos por papel. O passante olhava para aquela claridade vacilante com a indefinível curiosidade dos flanadores parisienses, quando um rapaz saiu de súbito da casa. Como os pálidos raios do lampião da rua davam em cheio no rosto do curioso, não parecerá estranho que o rapaz se dirigisse para o passante com as precauções usadas em Paris de quem teme se enganar ao encontrar pessoas conhecidas.

— Como! — exclamou — é o senhor presidente, sozinho, a pé, nesta hora, e tão longe da rue Saint-Lazare! Permita-me ter a honra de lhe oferecer o braço. O calçamento está tão escorregadio que se não nos ampararmos um ao outro — disse ele a fim de não melindrar o amor-próprio do ancião — ser-nos-ia bem difícil evitar uma queda.

— Mas, meu caro senhor, eu tenho apenas cinquenta e cinco anos, infelizmente para mim — respondeu o conde de Granville. — Um médico tão célebre como o senhor deve saber que nessa idade um homem está em toda a sua força.

— Está então em busca de aventuras — replicou Horácio Bianchon.[267] — O senhor não tem, creio eu, o hábito de andar a pé em Paris. Quando se tem cavalos tão belos como os seus...

— Mas a maior parte das vezes — respondeu o conde de Granville —, quando não vou fazer visitas, volto do Palais-Royal ou do Clube dos Estrangeiros a pé.

— E com certeza carregando consigo quantias importantes — exclamou o doutor —, não é isso chamar o punhal dos assassinos?

— A esses, não os temo — replicou o conde de Granville com ar triste e indiferente.

— Mas pelo menos a gente não se detém — disse o médico, arrastando o magistrado para o bulevar. — Mais um pouco e eu acreditaria que o senhor me quer surrupiar sua última doença e morrer em outras mãos que não as minhas.

— Ah! Surpreendeu-me fazendo espionagem — respondeu o conde —, passe eu a pé, ou de carro, e a qualquer hora, mesmo à noite, vejo, desde há algum tempo, numa janela do terceiro andar da casa de onde o senhor acaba de sair, a sombra de alguém que parece trabalhar com uma coragem heroica. — Ao dizer essas palavras, o conde fez uma pausa como se tivesse sentido uma dor súbita. — Tomei tanto interesse por essa água-furtada — continuou ele — como um burguês de Paris tomaria pelo acabamento do Palais-Royal.[268]

— Pois bem! — exclamou Horácio interrompendo o conde. — Posso lhe...

— Não me diga nada — retrucou Granville, interrompendo seu médico. — Não daria um cêntimo para saber se a sombra que se agita sobre aquelas cortinas furadas é de um homem ou a de uma mulher, ou se o morador dessa água-furtada é feliz ou infeliz! Se me surpreendi por não ver ninguém trabalhando agora, se me detive, foi unicamente pelo gosto de fazer conjecturas tão numerosas e tão tolas como as que aqueles que flanam fazem diante de uma construção subitamente abandonada. Faz nove anos, meu jovem... — O conde pareceu hesitar sobre o emprego de um termo, mas fez um gesto e exclamou: — Não, não o chamarei de meu amigo, detesto tudo que possa parecer-se com um sentimento. Faz nove anos, pois, que não me admiro de os velhos gostarem tanto de cultivar flores, de plantar árvores. Os acontecimentos da vida lhes ensinaram a não mais crer nas afeições humanas; e em poucos dias tornei-me um ancião. Não me quero mais afeiçoar senão a animais que não raciocinam, a plantas, a tudo que é exterior. Faço mais caso dos movimentos da Taglioni[269] que de todos os sentimentos humanos. Odeio a vida e um mundo em que me vejo só. Nada, nada — acrescentou o conde com uma expressão que fez o rapaz estremecer —, não, nada me comove e nada me interessa.

— Tens filhos?

— Meus filhos! — disse ele, com singular acento de amargura. — Pois bem! A mais velha das minhas filhas não é condessa de Vandenesse?[270] Quanto à outra, o casamento da irmã mais velha prepara-lhe uma brilhante união.[271] No que diz respeito a meus dois filhos, não triunfarão eles? O visconde,[272] de procurador-geral em Limoges, passou a ser presidente de Orléans, e o mais moço está aqui como procurador do rei. Meus filhos têm seus interesses, suas preocupações e seus negócios. Se entre esses corações um único se tivesse consagrado inteiramente a mim, se tivesse tentado, por sua afeição, preencher o vácuo que sinto aqui — disse batendo no peito —, pois bem! Esse teria falhado na vida, ter-ma-ia sacrificado. E para quê, afinal? Para embelezar os anos que me sobram; e o teria conseguido? Não teria eu considerado suas atenções generosas como uma dívida? Mas... — aqui o ancião pôs-se a sorrir com profunda ironia. — Mas, doutor, não é debalde que nós lhes ensinamos aritmética, e eles sabem calcular. Neste momento estarão talvez esperando por minha sucessão.

— Oh!, senhor conde, como pode pensar uma coisa dessas, o senhor que é tão bom, tão serviçal, tão humano? Realmente, se eu não fosse uma prova viva dessa bondade que o senhor concebe tão bela e tão ampla...

— Para meu gozo — atalhou com vivacidade o conde. — Pago uma sensação como pagarei amanhã com um montão de ouro a mais pueril das ilusões que fizesse vibrar o coração... Socorro aos meus semelhantes por mim mesmo, pelo mesmo motivo por que jogo, por isso não conto com a gratidão de ninguém. Ao senhor mesmo, eu o veria morrer sem pestanejar, e peço-lhe que tenha por mim o mesmo sentimento. Ah!, rapaz, os sucessos da vida passaram por sobre meu coração como as lavas do Vesúvio sobre Herculano:[273] a cidade existe, morta.

— Os que levaram uma alma tão ardente e tão viva como era a sua a esse ponto de insensibilidade são muito culpados.

— Não diga mais uma palavra — disse o conde, com um sentimento de horror.

— O senhor tem uma doença que me devia permitir tratar — disse Bianchon com um tom de voz emocionado.

— Mas conhece então algum remédio para a morte? — exclamou o conde com impaciência.

— Pois saiba, senhor conde, que aposto poder reanimar esse coração que o senhor julga tão frio.

— Valerá tanto como Talma?[274] — perguntou ironicamente o primeiro presidente.

— Não, senhor conde. Mas a natureza é tão superior a Talma como Talma pode ser superior a mim. Ouça, a água-furtada que o interessa é habitada por uma mulher de uns trinta anos, e nela o amor vai até ao fanatismo; o objeto de seu culto é um rapaz de cara bonita, mas a quem uma fada perversa dotou de todos os vícios possíveis. Esse rapaz é jogador e não sei a quem ele mais quer, se às mulheres, se ao vinho; tem feito, pelo que sei, vilezas dignas da polícia correcional. Pois bem, essa infeliz mulher sacrificou-lhe uma bela existência, um homem que a adorava, do qual tinha filhos. Mas, que tem o senhor?

— Nada, continue.

— Ela consentiu que esse biltre lhe comesse uma fortuna, e creio que lhe daria o mundo se dispusesse dele; trabalha, noite e dia, e muitas vezes viu, sem murmurar, esse monstro a quem adora tirar-lhe o dinheiro destinado a comprar a roupa de que seus filhos precisam, e até mesmo seus alimentos para o dia seguinte. Faz três dias ela vendeu seus cabelos, os mais lindos que já vi: ele chegou, antes de ela ter tempo de esconder a moeda de ouro, que ele pediu; por um sorriso, por uma carícia, ela entregou-lhe o valor de quinze dias de vida e de tranquilidade. Não é isso ao mesmo tempo horrível e sublime? Os queixumes de seus filhos despedaçaram-lhe a alma e ela adoeceu, está neste momento em cima de um catre. Esta tarde não tinha o que comer e os filhos não tinham mais força para chorar; quando cheguei, estavam calados.

Horácio Bianchon deteve-se. Nesse momento o conde de Granville, como que a seu pesar, mergulhou a mão no bolso do colete.

— Adivinho, meu jovem amigo — disse o velho —, que ela possa viver ainda, por ser tratada pelo senhor.

— Ah!, pobre criatura — exclamou o médico —, quem não a auxiliaria? Quisera ser mais rico, porquanto espero curá-la de seu amor.

— Mas — replicou o conde, tirando a mão do bolso, sem que o médico a visse vir cheia das cédulas que seu protetor parecia ter procurado —, como quer que tenha piedade de uma miséria cujos prazeres não me pareceriam caros à custa de toda a minha fortuna? Ela sente, ela vive! Não teria Luís xv dado seu reino para se reerguer de seu esquife e ter três dias de mocidade e de vida?[275] Não é essa a história de um milhão de mortos, de um milhão de doentes, de um milhão de velhos?

— Pobre Carolina! — exclamou o médico.

Ao ouvir esse nome, o conde de Granville estremeceu e segurou o braço do médico, o qual se sentiu apertado como pelas duas mandíbulas de ferro de um torno.

— Chama-se Carolina Crochard? — perguntou o presidente, com um tom de voz visivelmente alterado.

— Conhece-a então? — perguntou o doutor admirado.

— E o miserável chama-se Solvet... Ah!, cumpriu sua palavra, meu caro doutor — exclamou o primeiro presidente —, fez vibrar meu coração pela mais terrível sensação que ele sentirá até o dia em que for reduzido a pó. Essa emoção é ainda um presente do inferno e eu sei sempre como saldar minhas dívidas com ele.

Nesse momento o conde e o médico tinham chegado à esquina da Chaussée d’Antin. Um desses filhos da noite que, com um cesto de vime às costas e armados de um gancho, foram graciosamente denominados, durante a Revolução, de membros do comitê de pesquisas, achava-se junto ao marco diante do qual o presidente acabava de deter-se. Esse trapeiro tinha uma dessas caras dignas das que Charlet[276] imortalizou nas suas caricaturas da escola dos varredores.

— Costumas encontrar muitas vezes notas de mil francos? — perguntou-lhe o conde.

— Algumas vezes, nosso patrão.

— E tu as restituis?

— Depende da recompensa prometida...

— Aqui está o meu homem — exclamou o conde, dando ao trapeiro uma nota de mil francos. — Toma isto — disse-lhe — mas lembra-te de que te dou esta nota com a condição de a gastares na taberna, de te emborrachares, de travares discussões, de esbordoar tua mulher, de furar os olhos de teus amigos. Isso movimentará a guarda, os cirurgiões, os farmacêuticos; talvez os gendarmes, os procuradores do rei, os juízes e os carcereiros. Não modifiques em nada esse programa, ou o diabo cedo ou tarde se vingará de ti.

Teria sido preciso que um homem possuísse ao mesmo tempo o lápis de Charlet e de Callot,[277] o pincel de Teniers[278] e de Rembrandt, para dar uma ideia exata dessa cena noturna.

— Está assim saldada minha conta com o inferno, e empreguei bem o meu dinheiro — disse o conde com voz profunda, mostrando, ao médico estupefato, a cara indescritível do trapeiro aparvalhado.

— Quanto a Carolina Crochard — continuou —, pode ela morrer entre os horrores da fome e da sede, ouvindo os gritos lancinantes dos filhos moribundos, reconhecendo a baixeza do homem a quem ama; não daria um vintém para impedi-la de sofrer, e não quero mais ver o senhor, unicamente pelo fato de a ter socorrido...

O conde deixou Bianchon mais imóvel do que uma estátua e desapareceu, dirigindo-se com a precipitação de um jovem para a rue Saint-Lazare, onde logo alcançou o pequeno palacete em que residia, e em cuja porta viu, não sem surpresa, um carro parado.

— O senhor procurador do rei — disse o criado — chegou há uma hora para falar com o senhor, e o está esperando no seu quarto.

Granville fez sinal ao criado para se retirar.

— Que motivo tão importante o obriga a infringir a ordem que dei a meus filhos para que não venham à minha casa sem que eu os mande chamar? — perguntou o ancião ao filho, ao entrar.

— Meu pai — respondeu o magistrado, com voz trêmula e ar respeitoso —, ouso esperar que me perdoará quando me tiver ouvido.

— Sua resposta é conveniente — disse o conde. — Sente-se — e apontou uma cadeira para o rapaz. — Mas — acrescentou —, que eu caminhe ou que me sente, não se preocupe.

— Meu pai — disse o barão —, esta tarde, às quatro horas, um rapaz muito moço foi preso em casa de um amigo meu em prejuízo do qual cometeu um roubo bastante considerável. Escudou-se ele em seu nome, dizendo ser seu filho.

— Chama-se? — perguntou o conde, tremendo.

— Carlos Crochard.

— Basta — disse o pai, fazendo um gesto imperativo.

Granville passeou pelo quarto em meio a um profundo silêncio, que o filho teve o cuidado de não interromper.

— Meu filho... — essas palavras foram pronunciadas em tom tão meigo e tão paternal que o jovem magistrado estremeceu. — Carlos Crochard disse-lhe a verdade. Estou contente por teres vindo agora, meu bom Eugênio — acrescentou o velho. — Aqui está uma boa quantia — disse, entregando-lhe um maço de notas de banco —; farás dela o uso que julgares conveniente nesse assunto. Fio-me em ti, e de antemão aprovo todas as disposições que tomares, seja quanto ao presente, como no que diz respeito ao futuro. Eugênio, meu querido filho, vem abraçar-me, é possivelmente a última vez que nos vemos. Amanhã pedirei uma licença ao rei e parto para a Itália. Se um pai não deve dar conta de sua vida aos filhos, deve, entretanto, legar-lhes a experiência que o destino lhe vendeu; não é isso uma parte da herança? Quando te casares — continuou o conde, deixando escapar um frêmito involuntário —, não o faças levianamente, pois que esse ato é o mais importante de quantos a sociedade nos obriga a realizar. Lembra-te de estudar muito atentamente o caráter da mulher com a qual deves associar-te, mas consulta-me, quero eu mesmo julgá-la. A falta de união entre dois cônjuges, seja qual for a causa que a determine, traz desgraças espantosas. Cedo ou tarde somos castigados por não termos obedecido às leis sociais. De Florença te escreverei a esse respeito. Um pai, sobretudo quando tem a honra de presidir uma corte suprema, não deve corar ante o filho. Adeus...[279]


Paris, fevereiro de 1830 – janeiro de 1842

 

 

INTRODUÇÃO

A paz conjugal (em francês: La Paix du ménage), apesar de ser uma das novelas menos conhecidas e de extensão reduzida, é uma das obras mais densas de A comédia humana. Dir-se-ia uma pequena joia, trabalhada com incrível requinte até na saliência mais insignificante do engaste, polida nas menores facetas da pedra. Começa por uma admirável síntese da história dos costumes de uma época das mais movimentadas, a das guerras napoleônicas. Em poucas frases o autor nos introduz nos bastidores de uma sociedade efêmera, ciente da brevidade de sua existência e por isso mesmo ávida de viver e gozar, queimada por uma febre voraz, impaciente de tudo saborear, pouco escrupulosa, desdenhosa das formas. E logo entramos num baile, espécie de laboratório onde se misturam todos esses apetites, ambições e paixões, um campo de experiência de atmosfera extremamente carregada, onde os olhares fuzilam e as evoluções dos pares despedem centelhas elétricas. Desde o começo, sente-se essa tensão, cada vez mais nítida e interessante, à medida que o leitor, em sua volta pelo salão, surpreende aqui e ali fragmentos de conversas. Ao cabo de poucas páginas estamos tão identificados com os sentimentos e as intenções das figuras que seguimos com impaciente interesse o duelo frenético e mudo de várias delas, duelo todo de olhares que se cruzam e são “como fachos trazidos para o desenlace de uma tragédia”. Chegamos a simpatizar até com essas antigas belezas que, como a sra. de Lansac, vêm aos bailes como os velhos marinheiros vão assistir às primeiras manobras dos novatos. E com que gozo descobrimos os fios tênues e quase imperceptíveis urdidos pela esperta matrona, e com que delícia aplaudimos o bom êxito da virtude que, para vencer, não hesitou em disfarçar-se em vício. As poucas páginas desta novela bastam para dar toda a medida do “fluido vital” (para nos servirmos de uma expressão cara a Balzac) que corre por toda a obra do romancista, abolindo os limites entre a realidade e a ficção. Usando de um processo tipicamente seu, o autor promove, aliás, essa fusão ao pôr termo à vida de uma das personagens num “fato do dia” real.

Numa nota publicada no fim da primeira edição de A paz conjugal, o próprio Balzac assinala que, depois de ter escrito a sua obra, encontrou, por curiosa coincidência, o assunto dela resumido em três linhas no Anatole, de Delphine Gay. Mas se A paz conjugal não foi inspirada pelo romance da sra. Gay, provavelmente o foi — segundo aventou André Bellessort em Balzac et Son Oeuvre — pela Aventura do diamante, episódio dos Divertimentos sérios e cômicos (em francês: Amusements sérieux et comiques), de Charles Rivière Dufresny, autor cômico do fim do século xvii. Balzac manteve todos os elementos do enredo; apenas acrescentou a figura da velha duquesa, a quem encarrega de conduzir os fios da ação, papel que na historieta de Dufresny cabe ao acaso. No entanto, a transformação é imensa. Nas mãos do criador do romance moderno, o conto frívolo transforma-se num pequeno drama e, ao mesmo tempo, numa cena sumamente característica do começo do século xix, num verdadeiro documento social.


paulo rónai


A PAZ CONJUGAL
Dedicado a minha querida sobrinha Valentina Surville[280]

 


A aventura narrada nesta cena passou-se em fins de novembro de 1809, momento em que o fugaz império de Napoleão atingia o apogeu de seu esplendor. As fanfarras da vitória de Wagram ecoavam ainda no coração da monarquia austríaca. Assinava-se a paz entre a França e a Coalizão. Reis e príncipes vieram então, como astros, fazer suas evoluções em torno de Napoleão, que se permitiu o prazer de arrastar a Europa na sua esteira, magnífico ensaio do poderio que ostentou mais tarde em Dresde.

Nunca, no dizer dos contemporâneos, Paris vira festas mais belas do que as que precederam e se seguiram ao casamento desse soberano com uma arquiduquesa da casa da Áustria; nunca, nos mais faustosos dias da antiga monarquia, tantas cabeças coroadas se reuniram nas margens do Sena, e nunca a aristocracia francesa fora tão rica, nem tão brilhante, como então. Os diamantes profusamente prodigalizados nos adornos, os bordados a ouro e prata dos uniformes contrastavam tão bem com a indigência republicana que se tinha a impressão de ver as riquezas do globo a rolar nos salões de Paris. Uma embriaguez geral como que se havia apoderado desse império de um dia. Todos os militares, sem exceção do chefe, gozavam, como parvenus, dos tesouros conquistados por um milhão de homens de dragonas de lã, cujas exigências se satisfaziam com algumas varas de fita encarnada. Nessa época, a maioria das mulheres ostentava essa liberdade de costumes e o relaxamento da moral que assinalaram o reinado de Luís xv. Ou fosse para imitar o tom da monarquia esboroada, ou porque certos membros da família imperial tivessem dado o exemplo,[281] como pretendiam os maldizentes rebeldes do Faubourg Saint-Germain, o que é certo é que homens e mulheres, todos se atiravam aos prazeres com uma intrepidez que fazia pressagiar o fim do mundo. Mas existia, então, um outro motivo para essa licenciosidade. A predileção das mulheres pelos militares tinha-se tornado uma espécie de frenesi, e estava tão de acordo com os desejos do imperador que este de modo nenhum lhes opunha freio algum. As guerras sucessivas, que faziam com que todos os tratados, firmados entre a Europa e Napoleão, se assemelhassem a simples armistícios, expunham as paixões a desenlaces tão rápidos quanto as decisões do chefe supremo daqueles colbaques, daqueles dolmans e daqueles alamares que tanto agradavam ao belo sexo. Naquele tempo os corações eram nômades como os regimentos. De um primeiro a um quinto boletim do Grande Exército, uma mulher podia ser sucessivamente amante, esposa, mãe e viúva. Seria a perspectiva de uma viuvez próxima, de uma dotação ou a esperança de usar um nome destinado à história que tornaram os militares tão sedutores para as mulheres? Teriam sido elas arrastadas para eles pela certeza de que o segredo de seus amores ficaria enterrado nos campos de batalha, ou se deverá procurar a causa desse doce fanatismo na nobre atração que a coragem exerce sobre elas? É possível que essas razões, que o futuro historiador dos costumes do Império se divertirá sem dúvida em avaliar, contribuíssem todas, de alguma forma, para a facilidade com que elas se entregavam às paixões. Seja como for, confessemo-lo aqui: os louros acobertaram então muitas faltas; as mulheres procuraram com ardor esses ousados aventureiros que se lhes afiguravam verdadeiras fontes de honrarias, riquezas ou prazeres, e, aos olhos das moças, uma dragona, esse futuro hieróglifo, significava felicidade e liberdade. Um dos traços dessa época única nos nossos anais, e que a caracterizam, foi uma paixão desenfreada por tudo que brilhava; jamais houve tanto fogo de artifício, jamais o brilhante alcançou tão grande valor. Os homens, com avidez igual à das mulheres, enfeitavam-se como estas, com aquelas pedrinhas transparentes. Talvez a necessidade de dar à presa a forma mais fácil de ser transportada tornasse as joias tão estimadas no Exército. Um homem, naquele tempo, não era tão ridículo como o seria hoje quando o peito de sua camisa ou os seus dedos exibiam enormes diamantes. Murat, um verdadeiro tipo de oriental, deu o exemplo de um luxo absurdo num militar moderno.

O conde de Gondreville, que se chamava outrora o cidadão Malin e se tornara famoso pelo rapto de que fora vítima,[282] um dos Luculos daquele Senado conservador que nada conservou, não protelara sua festa em comemoração da paz, senão para melhor fazer sua corte a Napoleão, esforçando-se por eclipsar os bajuladores que se lhe haviam antecipado. Os embaixadores de todas as potências amigas da França em benefício de inventário, as personagens mais importantes do Império, até mesmo alguns príncipes estavam naquele momento reunidos nos salões do opulento senador. As danças estavam esmorecendo. Todos esperavam o imperador, cujo comparecimento fora prometido pelo conde. Napoleão teria cumprido com a palavra, não fora a cena que explodira naquela mesma tarde entre Josefina e ele, cena que revelou o próximo divórcio do augusto casal. A notícia dessa aventura, mantida no momento em grande segredo, mas que estava sendo recolhida pela história, não chegou aos ouvidos dos cortesões e não influiu senão pela ausência de Napoleão na alegria da festa do conde de Gondreville. As mais belas mulheres de Paris, solícitas de ali comparecer, atraídas pelo boato, realizavam naquele momento uma competição de luxo, de coqueteria, de adornos e de beleza. Os banqueiros, orgulhosos das suas riquezas, desafiavam aqueles brilhantes generais e grandes titulares do Império, recentemente cumulados de cruzes, de títulos e condecorações. Esses grandes bailes eram sempre oportunidades aproveitadas pelas famílias ricas para exibir suas herdeiras aos olhos dos pretorianos de Napoleão, na falaciosa esperança de trocar seus magníficos dotes por um favor incerto. As mulheres que se julgavam bastante poderosas, exclusivamente por sua beleza, vinham experimentar seu poder. Ali, como por toda parte, o prazer nada mais era do que uma máscara. Os semblantes serenos e risonhos, as frontes calmas encobriam odiosos cálculos; as manifestações de amizade mentiam, e mais de uma personalidade desconfiava menos dos inimigos que dos amigos. Essas observações eram necessárias para explicar os acontecimentos do pequeno imbróglio, assunto desta cena, e a pintura, por mais atenuada que seja, do tom que então reinava nos salões de Paris.

— Olhe um momento para aquela coluna partida que suporta um candelabro; não está vendo uma jovem senhora penteada à chinesa? Ali, naquele canto à esquerda; a que tem flores azuis nos cabelos castanhos que lhe tombam em tufos sobre a fronte. Não está vendo? Está tão pálida que até parece doente; é mimosa e pequenina; olhe, virou agora a cabeça para o nosso lado; seus olhos azuis, em forma de amêndoa e meigos de enternecer, parecem feitos de propósito para chorar. Mas, repare! Ela se inclina para ver a sra. de Vaudremont, através dessa confusão de cabeças, sempre em movimento, cujos penteados altos lhe interceptam a vista.

— Ah! já vi, meu caro! Bastava teres dito que era a mais clara de todas as mulheres aqui presentes, e eu a teria reconhecido; já a tinha notado; tem a mais bela tez que jamais admirei. Desafio-te a que distingas daqui, no seu pescoço, as pérolas que separam as safiras de seu colar.

— Mas essa criatura deve ser ou muito pudica ou muito coquete, porque os babados do seu vestido mal e mal deixam suspeitar da beleza das suas formas. Que ombros! Que alvura de lírio!

— Quem é? — perguntou o que primeiro falara.

— Ah! Isso não sei.

— Aristocrata! Mas então, Montcornet, queres guardá-las todas para ti?

— Era só o que faltava, troçares de mim! — replicou Montcornet, sorrindo. —Julgas-te com direito de insultar um pobre general como eu, pelo fato de, rival feliz de Soulanges, não fazeres uma única pirueta sem que a sra. de Vaudremont fique alarmada? Ou será porque faz apenas um mês que eu cheguei à terra prometida? Como sois insolentes, vós outros administradores, que ficais grudados numa cadeira, enquanto nós estamos no meio dos obuses! Vamos, senhor referendário, deixe-nos mandar no campo cuja posse precária só lhes é concedida no momento em que o abandonamos. Que diabo, todos precisam viver. Ah!, meu caro, se conhecesses as alemãs, estou certo de que me protegerias junto à tua parisiense.

— Pois bem, general, já que honrou com sua atenção essa jovem dama, a quem vejo pela primeira vez, diga-me por caridade se a viu dançar.

— Ora essa, meu caro Marcial, de onde vens? Auguro mau de teu êxito, se te enviarem em embaixada. Não estás vendo três filas das mais intrépidas coquetes de Paris, entre ela e o enxame de bailarinos que zumbem embaixo do lustre? E não te foi preciso o auxílio do teu lornhão para descobri-la junto àquela coluna, onde ela parece estar enterrada no escuro, apesar das velas que lhe brilham por sobre a cabeça? Entre ela e nós, tantos diamantes e tantos olhares cintilam, tantas plumas flutuam, tantas rendas, flores e tranças ondulam que só por um verdadeiro milagre algum dançarino a poderia descobrir no meio de tantos astros. Como é, Marcial, que não adivinhaste nela a esposa de algum subprefeito da Lippe ou da Dyle,[283] que vem tentar fazer do marido um prefeito?

— Oh! — disse com vivacidade o referendário — e ele o será!

— Não o garanto! — disse a rir o coronel[284] dos couraceiros. — Ela parece-me tão inexperiente em intrigas ministeriais como tu em assuntos diplomáticos. Aposto, Marcial, que não sabes de que forma ela está aqui.

O referendário olhou para o coronel dos couraceiros da guarda com um ar que revelava tanto desdém quanto curiosidade.

— Pois bem — continuou Montcornet —, seguramente terá chegado às nove em ponto, em primeiro lugar, talvez, terá causado tremendos embaraços à condessa de Grondeville, que não sabe alinhavar duas ideias. Repelida pela dona da casa, empurrada sucessivamente de uma cadeira para outra pelas recém-chegadas, até às trevas daquele cantinho, ela se terá deixado encerrar ali, vítima da inveja dessas senhoras, que não desejariam outra coisa senão sepultar essa perigosa figura. Com certeza não achou um amigo que a encorajasse a defender o lugar que deve ter ocupado de início, no primeiro plano, pois cada uma dessas pérfidas dançarinas terá ordenado aos homens de sua confraria que não dessem atenção à nossa pobre amiga, sob pena dos mais terríveis castigos. Aí está, meu caro, como essas carinhas tão ternas, tão cândidas na aparência, devem ter formado sua coligação contra a desconhecida, e isso sem que essas senhoras tenham dito, uma às outras, mais do que: “Conhece, querida, aquela mulherzinha de azul?”. Olha, Marcial, se te quiseres ver agraciado em um quarto de hora com mais olhares lisonjeiros e perguntas provocantes do que as que poderás receber em toda a tua vida, tenta atravessar a tríplice trincheira que defende a rainha da Dyle, da Lippe ou da Charente. Verás se a mais bronca daquelas mulheres não inventará logo um ardil, capaz de impedir o homem mais resoluto de trazer à luz nossa plangente desconhecida. Não achas que ela tem um pouco o ar de uma elegia?

— Parece-lhe, Montcornet? Julga ser ela casada?

— E por que não viúva?

— Porque, nesse caso, seria mais ativa — disse a rir o referendário.

— Será talvez uma viúva, cujo marido joga bouillotte — replicou o belo couraceiro.

— Efetivamente, depois da paz, fazem-se tantas viúvas dessa espécie — respondeu Marcial. — Mas, meu caro Montcornet, somos dois idiotas. Aquela cabeça é demasiado ingênua, e há demasiada mocidade e frescor naquela fronte e naquelas têmporas para que seja uma mulher casada. Que tons vigorosos tem a carnação dela! Não tem nada emurchecido nas faces. Os lábios, o mento, tudo naquele rosto é viçoso como um botão de rosa branca, conquanto a fisionomia esteja nublada por um véu de tristeza. Quem poderia fazer essa jovem chorar?

— As mulheres choram por tão pouca coisa! — disse o coronel.

— Não sei — retorquiu Marcial —, mas não creio que ela chore por estar ali sem dançar; seu desgosto não é de agora; vê-se que ela se aformoseou para esta noite premeditadamente. Apostaria que ela já está amando.

— Ora! Talvez seja a filha de algum principote alemão, ninguém lhe fala! — disse Montcornet.

— Ah!, como uma pobre moça é infeliz — continuou Marcial.

— Ninguém é mais graciosa, nem mais fina do que a nossa pequena desconhecida. Pois olha: nenhuma das megeras que a cercam, e que se dizem sensíveis, lhe dirigirá a palavra. Se ela falasse, poderíamos ver se tem dentes bonitos.

— Ora essa! Tu sobes como o leite à menor elevação de temperatura? — exclamou o coronel, espicaçado por encontrar tão rapidamente um rival no amigo.

— Como! — disse o referendário, sem notar a interrogação do general e fixando através do lornhão todas as personagens que os cercavam. — Não haverá aqui ninguém para nos informar quem é aquela flor exótica?

— Ora, é alguma dama de companhia — disse-lhe Montcornet.

— Qual! Uma dama de companhia ataviada de safiras dignas de uma rainha e um vestido de rendas de Malines? Não me venha com essa, general! O senhor também não será muito forte em diplomacia, se nos seus julgamentos salta de uma princesa alemã para uma dama de companhia.

O general Montcornet segurou pelo braço um homenzinho gorducho cujos cabelos grisalhos e olhos espirituosos se divisavam em todos os vãos de porta, e que se metia sem cerimônia em todos os grupos, onde era acolhido respeitosamente.

— Gondreville, meu amigo — disse-lhe Montcornet —, quem é aquela encantadora mulherzinha que está sentada ali embaixo daquele imenso candelabro?

— O candelabro? É um Ravrio, meu caro, cujo desenho foi feito por Isabey.

— Oh! Eu já tinha reconhecido teu gosto e teu fausto no móvel; mas e a mulher?

— A mulher? Não a conheço. Deve ser uma amiga da condessa.

— Ou tua amante, velho sonso.

— Não, palavra de honra! A condessa de Gondreville é a única mulher capaz de convidar pessoas que ninguém conhece.

Apesar desse comentário cheio de azedume, o gorducho homenzinho conservou nos lábios o sorriso de satisfação interior que a suspeita do coronel de couraceiros nele despertara. Este foi ter de novo com o referendário, que estava então ocupado, num grupo vizinho, em buscar, mas em vão, informações a respeito da desconhecida. O general agarrou-o pelo braço e disse-lhe ao ouvido:

— Meu caro Marcial, toma cuidado! A sra. de Vaudremont está a olhar-te há algum tempo, com uma atenção desesperadora; sabes que ela é mulher capaz de adivinhar, só pelo movimento dos teus lábios, o que me estás dizendo; já basta que nossos olhares tenham sido demasiado significativos, e ela bem o percebeu e acompanhou a direção que tomavam. Creio que, neste momento, ela está mais preocupada com a damazinha de azul do que nós mesmos.

— Isso, Montcornet, é um velho estratagema de general! E, ademais, que me importa? Sou como o imperador, quando faço uma conquista, conservo-a.

— Marcial, tua fatuidade precisa de uma lição. Como! Paisano, tens a sorte de ser o marido designado da sra. Vaudremont, viúva de vinte e dois anos, afligida de uma renda de quatro mil napoleões, mulher que te enfia no dedo diamantes tão lindos como este — acrescentou, segurando a mão esquerda do referendário, o qual a entregou complacentemente — e ainda tens a pretensão de querer fazer de Lovelace,[285] como se fosses coronel e obrigado a sustentar a reputação militar nas guarnições! Sai daí! Trata de pensar em tudo que podes perder.

— Pelo menos a liberdade não perderei — redarguiu Marcial, com um riso forçado.

Lançou um olhar apaixonado à sra. de Vaudremont, a qual lhe retribuiu apenas com um sorriso inquieto, pois vira o coronel a examinar o anel do referendário.

— Ouve, Marcial — disse o coronel —, se começas a adejar em torno da minha jovem desconhecida, vou empreender a conquista da sra. de Vaudremont.

— Estás autorizado, meu querido couraceiro, mas não o conseguirás — disse o jovem referendário, estalando faceciosamente a unha brunida do polegar em um dos seus dentes superiores.

— Lembra-te que sou solteiro — retrucou-lhe o coronel —, que a minha espada é toda a minha fortuna e que desafiar-me por essa forma é instalar Tântalo[286] diante de um banquete que ele devorará.

— Prr!

Esse sarcástico acúmulo de consoantes serviu de resposta à provocação do general, a quem o amigo mediu de alto a baixo com um sorriso zombeteiro. A moda da época obrigava os homens a usar, para os bailes, calções de cashmere branco e meias de seda. Esse lindo traje punha em relevo a perfeição das formas de Montcornet, que tinha então trinta e cinco anos e atraía os olhares com essa elevada estatura, exigida para os couraceiros de guarda imperial, e cujo belo uniforme realçava ainda mais seu garbo, não obstante a gordura incipiente que provinha da equitação. Seus bigodes negros contemplavam a expressão franca de uma fisionomia verdadeiramente militar, cuja fronte era ampla e altiva, o nariz aquilino e os lábios rubros. As maneiras de Montcornet, imbuídas de certa nobreza, devida ao hábito do comando, podiam agradar a uma mulher que tivesse o bom senso de não querer escravizar o marido. O coronel sorriu ao olhar o referendário, que era um dos seus melhores amigos do tempo de colégio e cujo pequeno talhe esbelto o obrigou, para responder ao motejo, a abaixar um pouco seu olhar amistoso.

O barão Marcial de la Roche-Hugon era um jovem provençal, protegido de Napoleão, que parecia destinado a alguma faustosa embaixada. Seduzira o imperador com uma complacência italiana, com o gênio da intriga, com essa eloquência de salão e essa ciência das maneiras que tão facilmente substituem as qualidades eminentes de um homem de valor. Embora vivaz e moço, seu rosto já possuía o brilho imóvel do estanho, uma das qualidades indispensáveis aos diplomatas e que lhes permitem esconder suas emoções, disfarçar seus sentimentos; se é que essa impassibilidade não resulta da ausência de qualquer emoção e da morte dos sentimentos. Pode-se considerar o coração dos diplomatas como um problema insolúvel, pois os três mais ilustres embaixadores da época[287] se assinalaram pela persistência do ódio e por ligações romanescas. Não obstante, Marcial pertencia a essa categoria de homens capazes de calcular seu futuro em meio aos seus mais ardentes prazeres; já havia julgado a sociedade e escondia sua ambição sob a fatuidade do homem dado a saias, disfarçando seu talento sob a libré da mediocridade, depois de ter notado a rapidez com que subiam as pessoas que pouca desconfiança inspiravam ao senhor.

Os dois amigos foram obrigados a se separarem, após um cordial aperto de mão. O ritornelo que prevenia as damas para formarem as quadrilhas de uma nova contradança repeliu os homens do vasto espaço onde conversavam no meio do salão. A rápida conversação acima referida, mantida no intervalo de duas contradanças, realizara-se em frente à lareira do grande salão do palacete Gondreville. As perguntas e respostas daquela tagarelice, bastante comum em bailes, foram como que sussurradas de boca a ouvido pelos dois interlocutores. Todavia, as serpentinas e os castiçais da chaminé espargiam uma claridade tão intensa por sobre os dois amigos que seus rostos vivamente iluminados não puderam disfarçar, apesar de sua discrição diplomática, a quase imperceptível expressão de seus sentimentos, nem à arguta condessa, nem à cândida desconhecida. Essa espionagem do pensamento é talvez, para os ociosos, um dos prazeres que encontram na sociedade, enquanto muitos tolos ludibriados nela se aborrecem, sem se animarem a confessá-lo.

Para compreender todo o interesse daquela conversação, é preciso narrar um acontecimento um pouco anterior que, por laços invisíveis, ia reunir as personagens desse diminuto drama, naquele instante disseminados pelo salão. Cerca das onze horas da noite, no momento em que as damas voltavam para os seus lugares, os convidados do palacete Gondreville viram surgir a mais bela mulher de Paris, a rainha da moda, a única que faltava naquela esplêndida reunião. Tomara ela por norma nunca chegar a uma festa senão no momento em que os salões ofereciam essa animação que não permite às mulheres conservar ainda muito tempo o viço do rosto, nem o da toilette. Esse momento rápido é como que a primavera do baile. Uma hora mais tarde, quando o prazer passou, quando chega o cansaço, tudo fica desmerecido. A sra. de Vaudremont nunca cometia o erro de ficar numa festa para deixar ver flores pendidas, cachos desencrespados, enfeites amarrotados e com uma face semelhante àquelas que, assediadas pelo sono, nem sempre o enganam. De modo nenhum deixava ver, como suas rivais, sua beleza adormecida; sabia sustentar habitualmente sua reputação de coquetismo, saindo sempre de um baile tão brilhante como quando chegara. As mulheres murmuravam aos ouvidos umas das outras, com inveja, que ela preparava e usava tantos adereços quantas contradanças tinha num sarau. Desta vez a sra. de Vaudremont não ia ser senhora de se retirar, quando bem lhe aprouvesse, do salão onde acabava de entrar triunfante. Detida um momento no umbral, lançou olhares observadores, embora rápidos, sobre as mulheres cujas toilettes foram logo estudadas, para se convencer de que a sua eclipsava a todas. A célebre coquete ofereceu-se à admiração da assembleia, conduzida por um dos mais bravos coronéis da artilharia da Guarda, favorito do imperador, o conde Soulanges. A momentânea e fortuita união dessas duas personagens teve indiscutivelmente algo de misterioso. Ao ouvir anunciar o sr. de Soulanges e a condessa de Vaudremont, algumas mulheres que “faziam crochê” se levantaram e homens vindos de outras salas se acotovelaram nas portas do salão principal.

Um desses graciosos, que nunca faltam nas reuniões mundanas, disse ao ver a condessa entrar com o seu cavalheiro: “As senhoras estavam com tanta curiosidade de contemplar um homem fiel à sua paixão quanto os homens de examinar uma linda mulher difícil de prender”. Embora o conde de Soulanges, moço de cerca de trinta e dois anos, fosse dotado desse temperamento nervoso que engendra as grandes qualidades de um homem, suas formas franzinas e sua tez pálida não advogavam em seu favor; seus olhos negros revelavam grande vivacidade, mas em sociedade se mostrava taciturno e nada deixava entrever um dos talentos oratórios que deveriam brilhar na direita, nas assembleias legislativas da Restauração. A condessa de Vaudremont, mulher de boa altura e levemente gorda, com uma pele de alvura deslumbrante, sabendo manter graciosamente sua cabecinha, e que possuía a vantagem imensa de inspirar amor pela gentileza de suas maneiras, era uma dessas criaturas que não desmentem as promessas de sua beleza. Esse par, que momentaneamente se tornara alvo da atenção geral, não deixou que a curiosidade se exercesse por muito tempo à sua custa. O coronel e a condessa mostraram compreender perfeitamente que o acaso os colocara numa situação embaraçosa. Ao vê-los avançar, Marcial precipitou-se para o grupo de homens que ocupavam o posto da chaminé a fim de observar, através da multidão de cabeças que lhe formavam como que uma muralha protetora, a sra. de Vaudremont, com a atenção ciumenta que dá o primeiro ardor da paixão: era como se uma voz secreta lhe dissesse que o triunfo de que se orgulhava seria talvez precário; mas o sorriso de fria polidez com que a condessa agradeceu ao sr. de Soulanges e o gesto que fez para despedi-lo, sentando-se junto à sra. de Gondreville, distenderam todos os músculos que o ciúme contraíra em sua face. Não obstante, vendo, a dois passos do sofá em que a sra. de Vaudremont se sentara, o sr. de Soulanges, de pé, parecendo não ter compreendido o olhar pelo qual a jovem coquete lhe dissera estarem os dois desempenhando um papel ridículo, o provençal de cabeça vulcânica franziu de novo as negras sobrancelhas que lhe sombreavam os olhos azuis, acariciou, para tomar uma atitude, anéis de seus cabelos castanhos e, sem deixar transparecer a emoção que lhe fazia palpitar o coração, observou a atitude da condessa e a do sr. de Soulanges, enquanto gracejava com os que lhe estavam ao lado. Apertou a mão do coronel que vinha renovar relações com ele, mas ouviu-o sem prestar atenção em suas palavras, de tão preocupado que estava. Soulanges relanceava olhares serenos pela quádrupla fila de mulheres que enquadrava o imenso salão do senador, admirando aquela moldura de diamantes, de rubis, de broches de ouro e de cabeças ornamentadas, cujo brilho quase fazia empalidecer a chama das velas, o cristal dos lustres e os dourados do salão. A calma despreocupada do rival fez com que o referendário perdesse o sangue-frio. Incapaz de dominar a secreta impaciência que o exacerbava, Marcial dirigiu-se para a sra. de Vaudremont, a fim de cumprimentá-la. Quando Soulanges viu o provençal aproximar-se, dirigiu-lhe um olhar sem expressão e virou impertinentemente a cabeça. Reinou no salão um grave silêncio, provocado pela curiosidade que chegara ao auge. Todas as cabeças estendidas apresentavam as expressões mais esquisitas, todos temendo e esperando uma dessas explosões que as pessoas educadas evitam cuidadosamente. De súbito a pálida face do conde ficou tão vermelha quanto o escarlate da gola do seu uniforme e seu olhar baixou logo ao assoalho, para não dar a perceber a causa de sua perturbação. Ao ver a desconhecida, humildemente colocada junto ao candelabro, ele passou com ar triste pelo referendário, indo refugiar-se num dos salões de jogo. Marcial e a assistência acreditaram que Soulanges lhe cedia publicamente o lugar pelo temor ao ridículo, que está sempre ligado aos amantes destronados. O referendário ergueu altivamente a cabeça, olhou a desconhecida e, depois, quando se sentou desembaraçadamente ao lado da sra. de Vaudremont, ouviu-a com ar tão distraído que não percebeu estas palavras pronunciadas por trás do leque da coquete:

— Marcial, far-me-á o favor de não usar esta noite o anel que me arrancou. Tenho minhas razões para isso, e lhe explicarei daqui a pouco, quando nos retirarmos. Dar-me-á o braço para irmos à princesa de Wagram.

— Por que motivo aceitou a mão do coronel? — perguntou o barão.

— Encontrei-o no peristilo — respondeu ela — mas, deixe-me, que nos estão observando.


Marcial foi ter com o coronel de couraceiros. A pequena dama de azul tornou-se então o laço comum da inquietação que agitava, ao mesmo tempo e por motivos diversos, o couraceiro, Soulanges, Marcial e a condessa de Vaudremont. Quando os dois amigos se separaram, depois do desafio que pôs termo à sua palestra, o referendário precipitou-se para a sra. de Vaudremont e teve a habilidade de colocá-la no meio da mais brilhante quadrilha. Protegido por essa espécie de embriaguez em que uma mulher se sente sempre mergulhada pela dança e pelo movimento de um baile, no qual os homens se mostram com o charlatanismo da toilette que não lhes empresta menos atrativos que às mulheres, Marcial julgou poder entregar-se impunemente à sedução que o atraía para a desconhecida. Se conseguiu ocultar os primeiros olhares que lançou para a dama de azul à inquieta atividade dos olhos da condessa, não tardou em ser apanhado em flagrante delito; e se conseguiu desculpar uma primeira distração, não pôde justificar o impertinente silêncio pelo qual respondeu mais tarde à mais sedutora pergunta que uma mulher possa fazer a um homem: “Ama-me esta noite?”. Quanto mais cismarento se mostrava ele, tanto mais solícita e provocante se tornava ela.

Enquanto Marcial dançava, o coronel ia de grupo em grupo colher informações a respeito da jovem desconhecida. Depois de ter esgotado a complacência de todos os seus amigos, e mesmo a dos indiferentes, já se havia resolvido a aproveitar um momento em que a condessa de Grondeville estivesse livre para perguntar a ela própria o nome da misteriosa dama, quando percebeu um pequeno espaço vago entre a coluna partida que suportava o candelabro e os dois sofás que a ele se uniam. O coronel aproveitou o instante em que a dança deixava desocupada a maior parte das cadeiras, que formavam várias fileiras de fortificações, defendidas por mamães ou por senhoras já um pouco maduras, e tentou atravessar aquela paliçada coberta de xales e de lenços. Pôs-se a saudar as matronas e depois, de mulher em mulher, de cortesia em cortesia, acabou por atingir o espaço vago junto à desconhecida. Com o risco de se prender nos grifos e nas quimeras do imenso candelabro, permaneceu sob a chama e a cera das velas, com grande aborrecimento de Marcial. Demasiado hábil para interpelar bruscamente a pequena dama de azul, que estava à sua direita, o coronel começou por dizer a uma grande dama, bastante feia, que se achava à sua esquerda:

— Que belo baile, minha senhora! Que luxo! Que movimento! Palavra que todas as mulheres são bonitas! Se a senhora não dança é naturalmente porque não quer.

Essa insípida conversação iniciada pelo coronel tinha por fim fazer falar sua vizinha da direita, que, silenciosa e preocupada, não lhe concedia a menor atenção. O oficial tinha em reserva uma porção de frases que deviam terminar por um: “E a senhora?”, com o que muito contava. Mas ficou estranhamente surpreendido ao ver algumas lágrimas nos olhos da desconhecida, a qual parecia inteiramente empolgada pela sra. de Vaudremont.

— A senhora sem dúvida é casada, não? — acabou por perguntar o coronel Montcornet com voz não muito firme.

— Sim, senhor — respondeu a desconhecida.

— O senhor seu marido decerto está presente, não?

— Sim, senhor.

— E então por que a senhora fica aqui neste lugar? Por coquetismo?

A aflita sorriu tristemente.

— Conceda-me, senhora, a honra de ser seu par na próxima contradança e fique certa de que não a trarei novamente para aqui! Vejo junto à lareira uma gôndola vazia, venha. Quando há tanta gente que se propõe dominar e a loucura do dia é a realeza, não concebo que recuse o título de rainha do baile, que sua beleza merece.

— Não dançarei, senhor.

O tom breve das respostas daquela mulher era tão desanimador que o coronel se viu forçado a abandonar a praça. Marcial, que adivinhara a última pergunta do coronel e a recusa que recebera, pôs-se a sorrir e passou a mão pelo queixo fazendo brilhar o anel.

— De que está rindo? — perguntou a condessa de Vaudremont.

— Do insucesso desse pobre coronel que acaba de dar um passo em falso...

— Eu lhe tinha pedido que tirasse o anel — interrompeu-o a condessa.

— Não ouvi.

— Se nada ouve hoje, em compensação vê tudo, senhor barão — respondeu-lhe a sra. de Vaudremont, contrariada.

— Ali está um rapaz que exibe um belíssimo brilhante — disse então a desconhecida ao coronel.

— Magnífico — replicou este. — Aquele rapaz é o barão Marcial de la Roche-Hugon, um dos meus mais íntimos amigos.

— Agradeço-lhe por me haver dito seu nome — respondeu a dama —, parece um homem muito amável.

— Sim, mas é um pouco leviano.

— Dir-se-ia que está nos melhores termos com a condessa de Vaudremont — disse a dama, interrogando o coronel com os olhos. — Mais do que melhores.

A desconhecida empalideceu.

— Vamos — pensou o coronel —, ela está apaixonada por esse diabo do Marcial.

— Eu julgava que a sra. de Vaudremont estivesse há muito ligada ao sr. de Soulanges — comentou a dama depois de se refazer do sofrimento íntimo que alterara o viço do seu rosto.

— Faz oito dias que a condessa o engana — respondeu o coronel. — Mas devia ter visto esse pobre Soulanges quando ela entrou; ele ainda se esforça por não se convencer da sua desgraça.

— Vi-o — disse a dama de azul. Depois acrescentou um: — Senhor, muito obrigada — cuja entonação equivalia a uma despedida.

Nesse momento, estando a contradança prestes a terminar, o coronel, desapontado, mal teve tempo de se retirar dizendo a si mesmo, à guisa de consolo: “Ela é casada”.

— E então, valente couraceiro! — exclamou o barão, puxando o coronel para o vão de uma janela, a fim de respirar o ar puro dos jardins. — Em que pé está?

— É casada, meu caro!

— E que tem isso?

— Com os diabos, eu tenho bons costumes — replicou o coronel. — Não quero dirigir-me senão a mulheres que eu possa desposar. Aliás, Marcial, ela manifestou-me formalmente sua decisão de não dançar.

— Coronel, apostemos seu cavalo tordilho contra cem napoleões em como ela dançará esta noite comigo?

— Aceito! — disse o coronel, apertando a mão do fátuo. — Enquanto isso vou ver Soulanges, que talvez conheça essa dama, a qual me pareceu interessar-se por ele.

— Perdeu, meu bravo! — disse Marcial, rindo-se. — Meus olhos se cruzaram com os dela e sou mestre no assunto. Caro coronel, não ficará zangado comigo se eu dançar com ela depois da recusa que sofreu?

— Não, não, rirá melhor quem rir por último. Aliás, Marcial, sou leal jogador e bom inimigo, previno-te de que ela gosta de diamantes.

Ditas essas palavras, os dois amigos se separaram. O general Montcornet dirigiu-se para a sala de jogos, onde viu o conde de Soulanges sentado a uma mesa de bouillotte. Embora entre os dois coronéis houvesse apenas a vulgar amizade que os perigos da guerra e os deveres do ofício estabelecem, o coronel de couraceiros ficou sensivelmente afetado ao ver o coronel de artilharia, a quem conhecia como homem ponderado, estava metido numa partida em que se podia arruinar. Os montes de ouro e de cédulas, esparramadas sobre o fatal pano verde, atestavam o furor do jogo. Um círculo de homens silenciosos cercava os jogadores. Ouviam-se, entretanto, por vezes, palavras como estas: “Passo, jogo, feito, mil luíses, pago”; mas parecia, ao olhar aquelas cinco personagens imóveis, que só se falavam com os olhos. Quando o coronel, assustado com a palidez de Soulanges, se aproximou dele, o conde estava ganhando. O marechal duque de lsemberg[288] e Keller, um célebre banqueiro,[289] levantavam-se completamente aliviados de quantias consideráveis. Soulanges mostrou-se mais sombrio ainda ao recolher um montão de ouro e maços de cédulas; nem sequer contou o dinheiro; um desdém amargo contraía-lhe os lábios, parecia ameaçar a sorte, em vez de lhe agradecer seus favores.

— Ânimo, Soulanges, ânimo! — disse-lhe o coronel e, depois, julgando prestar-lhe um relevante serviço ao arrancá-lo do jogo, acrescentou: — Venha, que tenho uma boa notícia a dar-lhe, mas com uma condição.

— Qual? — perguntou Soulanges.

— A de responder ao que eu lhe perguntar.

O conde de Soulanges levantou-se bruscamente, pôs o lucro, com ar completamente despreocupado, num lenço que amarfanhara convulsivamente, e sua fisionomia tinha uma expressão tão bravia, que ninguém se lembrou de dizer que ele se retirava sem desobrigar-se do jogo. O rosto dos presentes pareceu mesmo desanuviar-se quando aquela cara fechada e tristonha saiu do círculo luminoso que um candelabro projeta sobre a mesa.

— Esses diabos de militares se entendem como ladrões de feira! — disse em voz baixa um diplomata que estava entre os espectadores ao tomar o lugar do coronel.

Unicamente uma fisionomia lívida e cansada virou-se para o novo parceiro e disse, atirando-lhe um olhar que brilhou, mas logo se apagou como a cintilação de um diamante:

— Militar não quer dizer civil, senhor ministro.

— Meu caro — disse Montcornet a Soulanges, levando-o para um canto —, o imperador esta manhã falou de você elogiosamente e sua promoção ao marechalato não me parece duvidosa.

— O patrão não gosta de artilharia.

— Sim, mas a verdade é que ele aprecia a nobreza e você é um ci-devant! O chefe — continuou Montcornet — declarou que os que se casaram em Paris durante a campanha não deviam ser considerados em desfavor. E daí?...

O conde de Soulanges parecia não compreender coisa alguma.

— Bem! Agora quero crer — disse o coronel — que me vai dizer se conhece uma encantadora mulherzinha que está sentada perto do candelabro.

Ao ouvir essas palavras, os olhos do conde se animaram, segurou com violência inaudita a mão do coronel.

— Meu caro general — disse ele com voz sensivelmente alterada —, se outro que não você me fizesse essa pergunta, eu lhe partiria a cabeça com este punhado de ouro. Deixe-me em paz, suplico-lhe. Tenho esta noite mais vontade de estourar os miolos do que... Sinto ódio por tudo o que vejo. Assim é que vou embora. Esta alegria, esta música, esses semblantes estúpidos, a rir, matam-me.

— Meu pobre amigo — replicou Montcornet com voz meiga, dando tapinhas amistosos na mão de Soulanges —, você é muito arrebatado. Que diria você, se eu lhe afirmasse que Marcial está tão pouco interessado pela sra. de Vaudremont que até se apaixonou por aquela damazinha!

— Se ele falar com ela — tartamudeou Soulanges enfurecido —, eu o deixarei tão chato como a sua carteira, mesmo que esse tolo estivesse no colo do imperador.

E o conde caiu, como que aniquilado, numa conversadeira para a qual o coronel o encaminhara. Este último se retirou lentamente; compreendera que Soulanges estava tomado de tão violenta ira que gracejos ou solicitudes de uma amizade superficial seriam insuficientes para acalmá-lo. Quando o coronel Montcornet voltou ao grande salão de dança, a sra. de Vaudremont foi a primeira pessoa que surgiu ante seus olhos, e ele pôde notar no seu rosto, habitualmente tão calmo, alguns vestígios de uma agitação mal disfarçada. Havia ao lado dela uma cadeira desocupada, na qual o coronel se sentou.

— Sou capaz de apostar que a senhora está aflita — disse ele.

— Ninharias, general. Quisera já ter partido. Prometi ir ao baile da grã-duquesa de Berg[290] e tenho de ir, antes, à casa da princesa de Wagram.[291] O sr. de la Roche-Hugon, que está a par disso, diverte-se em tecer madrigais a matronas.

— Não é esse exatamente o motivo de sua inquietação, e aposto cem luíses em como ficará aqui esta noite.

— Impertinente!

— Quer dizer que acertei?

— Então, que julga que estou pensando? — replicou a condessa, dando uma leve pancada com o leque nos dedos do coronel. — Sou capaz de dar-lhe uma recompensa, se o adivinhar.

— Não aceito o desafio, porque é muito fácil.

— Presumido!

— A senhora tem receio de ver Marcial aos pés...

— De quem? — perguntou a condessa, fingindo-se surpreendida.

— Daquele candelabro — respondeu o coronel, mostrando a bela desconhecida e olhando para a condessa com uma atenção embaraçosa.

— Adivinhou — respondeu a coquete, escondendo o rosto por trás do leque, com o qual se pôs a brincar. — A velha sra. de Lansac, que, como o senhor sabe, é maldosa como um macaco velho — continuou ela, depois de um momento de silêncio —, acaba de dizer-me que o sr. de la Roche-Hugon corria algum perigo ao cortejar essa desconhecida, que se acha hoje aqui como uma desmancha-prazeres. Antes ver a morte do que aquele rosto tão cruelmente belo e pálido como uma visão. É a minha asa-negra. A sra. de Lansac — continuou ela, depois de deixar escapar um gesto de despeito —, que só vem aos bailes para bisbilhotar tudo, fingindo que está dormindo, preocupou-me cruelmente. Marcial me pagará caro o que me está fazendo. Entretanto, general, já que o senhor é amigo dele, convença-o a que não me dê desgostos.

— Acabo de ver um homem que se propõe nada menos que lhe estourar os miolos, se ele falar com essa mulher. E esse homem, minha senhora, é homem de palavra. Mas eu conheço Marcial, e sei que esses perigos são outros tantos incentivos. E há mais: nós fizemos uma aposta — acrescentou o coronel, baixando a voz.

— Sério? — perguntou a condessa.

— Palavra de honra.

— Obrigada, general — respondeu a sra. de Vaudremont, lançando-lhe um olhar faceiro.

— Quer dar-me a honra de dançar comigo?

— Sim, mas a segunda contradança. Durante esta, quero ver no que vai dar tudo isso e saber quem é essa pequena dama de azul, que tem um ar tão espirituoso.

O coronel, vendo que a sra. de Vaudremont queria ficar só, afastou-se, satisfeito de ter tão bem iniciado o ataque.

Encontram-se nas festas mundanas algumas senhoras que, semelhantes à sra. de Lansac, ali se acham como velhos marinheiros, ocupados à beira-mar em contemplar os marujos noviços às voltas com a tempestade. Naquele momento, a sra. de Lansac, a qual parecia interessar-se pelas personagens desta cena, pôde facilmente adivinhar a luta a que estava entregue a condessa. Por mais que a jovem coquete se abanasse graciosamente, por mais que sorrisse aos rapazes que a saudavam e pusesse em jogo todas as manhas de que uma mulher se serve para ocultar suas emoções, a matrona, uma das mais perspicazes e maliciosas duquesas que o décimo oitavo século legara ao décimo nono, sabia ler no seu coração e no seu pensamento. A velha dama parecia decifrar os movimentos imperceptíveis que revelam as afecções da alma. O mais leve franzido que enrugava aquela fronte tão branca e pura, o mais sensível frêmito das faces, o arquear das sobrancelhas, a menor visível inflexão dos lábios, cujo móvel coral nada lhe podia esconder, eram para a duquesa como que as letras de um livro. Do fundo da sua ampla poltrona, que seu vestido enchia completamente, a coquete emérita, enquanto conversava com um diplomata que procurava sua companhia em busca das anedotas que ela contava espirituosamente, admirava-se a si mesma na jovem coquete; gostou dela, ao vê-la tão bem disfarçar seu pensar e as torturas de seu coração. E, de fato, a sra. de Vaudremont sofria tanta dor quanto fingia estar alegre: acreditara ter encontrado em Marcial um homem de talento, com cujo amparo ela contava para adornar sua vida de todos os encantos do poder: naquele momento reconhecia o erro tão cruel para a sua reputação quanto para o seu amor-próprio. Nela, como nas outras mulheres daquela época, a subitaneidade das paixões lhe aumentava a veemência. As almas que vivem muito, e rapidamente, não sofrem menos do que as que se consomem numa única afeição. A predileção da condessa por Marcial datava da véspera, na verdade, mas o mais inepto dos cirurgiões sabe que o sofrimento causado pela amputação de um membro vivo é mais doloroso do que a de um membro doente. Na simpatia da sra. de Vaudremont por Marcial havia futuro, ao passo que sua paixão precedente era sem esperança e envenenada pelo remorso de Soulanges. A velha duquesa que aguardava o momento oportuno para falar à condessa apressou-se em se livrar do diplomata, porquanto em presença de amantes arrufados todo e qualquer outro interesse empalidece, mesmo para uma mulher velha. Para iniciar a luta, a sra. de Lansac lançou à sra. de Vaudremont um olhar sardônico que fez a jovem coquete temer que sua sorte fosse parar às mãos da matrona. Há olhares de mulher para mulher que são como fachos trazidos para o desenlace de uma tragédia. Só quem conhecesse a duquesa poderia compreender o terror que as manifestações de sua fisionomia inspiravam à condessa. A sra. de Lansac era alta, suas feições faziam dizer dela: — Eis uma mulher que deve ter sido linda! — Punha tanto carmim nas faces que suas rugas quase não apareciam mais, entretanto, em vez de receber um brilho factício desse carmim carregado, seus olhos nem por isso eram menos embaciados. Adornava-se com uma quantidade enorme de diamantes, e vestia-se com gosto suficiente para não beirar o ridículo. Seu nariz pontudo prenunciava o epigrama. Uma dentadura bem colocada conservava-lhe na boca um ríctus de ironia que lembrava o de Voltaire. Entretanto, a apurada polidez de suas maneiras adoçava tão bem a feição maliciosa de suas ideias que não era possível acusá-la de maldade. Os olhos cinzentos da velha dama se animaram; um olhar triunfante acompanhado de um sorriso que significava: “Bem que eu dizia!” atravessou o salão e fez surgir o rubor da esperança nas faces pálidas da jovem senhora, que gemia junto ao candelabro. Essa aliança entre a sra. de Lansac e a jovem desconhecida não podia escapar ao olhar atilado da condessa de Vaudremont, a qual entreviu um mistério e quis desvendá-lo.

Nesse momento, o barão de la Roche-Hugon, depois de ter interrogado todas as matronas, sem poder saber o nome da dama de azul, dirigia-se, em desespero de causa, à condessa de Gondreville, não recebendo dela mais do que esta resposta pouco satisfatória:

— É uma dama que a antiga duquesa de Lansac me apresentou.

Ao voltar-se, por acaso, para a poltrona ocupada pela velha senhora, o referendário surpreendeu o olhar de inteligência por ela lançado para a desconhecida e, embora de havia muito não estivesse em bons termos com ela, resolveu abordá-la. Ao ver o irrequieto barão rondando em torno à sua poltrona, a velha duquesa sorriu com malícia sardônica e olhou para a sra. de Vaudremont com um ar que fez rir o coronel Montcornet.

— Se a velha cigana toma seus ares amistosos — pensou o barão —, é sinal de que me vai pregar uma das suas.

— Senhora — disse ele —, dizem que a senhora se encarregou da guarda de um tesouro bem precioso.

— Toma-me por um dragão? — perguntou a velha dama. — Mas de quem está falando? — acrescentou com uma voz tão doce que fez renascer a esperança em Marcial.

— Daquela pequena dama desconhecida, que a inveja de todas essas coquetes relegou para aquele canto. Com certeza conhece a sua família?

— Sim — disse a duquesa. — Mas que interesse pode causar-lhe uma herdeira provinciana, casada faz pouco tempo, moça de bom nascimento, que os senhores aqui não conhecem, pois ela não vai a parte alguma?

— Por que motivo ela não dança? Se é tão bela! Quer que façamos um tratado de paz? Se se dispuser a informar-me de tudo o que eu tenho interesse em saber, juro-lhe que seu pedido de restituição dos bosques de Navarreins pelo Domínio Extraordinário, será calorosamente advogado junto ao imperador.

O ramo mais novo da casa de Navarreins esquartela de Lansac, que é de blau com um bastão decotado de prata, acompanhado de seis ferros de lança também de prata dispostos em pala, e a ligação da velha dama com Luís xv valera-lhe o título de duquesa por diploma; e, como os Navarreins ainda não tinham voltado, o que o jovem referendário propunha à velha dama era uma vileza, insinuando-lhe que reivindicasse um bem que pertencia ao ramo primogênito.

— Senhor — respondeu a velha dama com uma gravidade enganadora —, traga-me aqui a condessa de Vaudremont. Prometo revelar a ela o mistério que torna essa desconhecida tão interessante. Veja como todos os homens presentes ao baile chegaram ao mesmo grau de curiosidade que o senhor. Os olhares se dirigem involuntariamente para aquele candelabro, onde minha protegida modestamente se colocou; ela recolhe todas as homenagens que lhe quiseram roubar. Feliz daquele a quem ela conceder uma contradança! — Nisso ela interrompeu-se, fixando a condessa com um daqueles olhares que tão bem dizem: “Estamos falando de si”, e depois acrescentou:

— Penso que gostaria mais de ouvir o nome da desconhecida dos lábios de sua bela condessa do que dos meus, não?

A atitude da duquesa era tão provocante que a sra. de Vaudremont se levantou e veio para junto dela, sentando-se na cadeira que Marcial lhe ofereceu, sem dar atenção a este.

— Adivinho, senhora — disse ela a rir, à duquesa —, que estão falando de mim; mas confesso minha inferioridade, pois não sei se é bem ou mal.

A sra. de Lansac apertou com sua mão seca e enrugada a bonita mão da jovem senhora e em tom de compaixão respondeu-lhe em voz baixa:

— Pobre pequena!

As duas mulheres se olharam. A sra. de Vaudremont compreendeu que a presença de Marcial era demais naquele momento e despediu-o com um ar imperioso:

— Deixe-nos!

O referendário, pouco satisfeito em ver a condessa sob a fascinação da perigosa sibila que a atraíra para junto de si, lançou-lhe um desses olhares de homem, de grande poder sobre um coração ofuscado, mas que parecem ridículos para uma mulher, quando começa a julgar aquele por quem se apaixonou.

— Terá o senhor a pretensão de macaquear o imperador? — disse a sra. de Vaudremont, virando a cabeça de três quartos para contemplar o referendário, com um ar irônico.

Marcial era demasiado conhecedor dos usos sociais, e demasiado sutil e calculista para que se expusesse a romper com uma mulher tão bem-vista na corte, e a quem o imperador queria casar; de resto, contava com o ciúme que se propunha despertar nela como o melhor meio de adivinhar o segredo de sua frieza, e por isso se afastou tanto mais prazenteiro, porquanto naquele momento uma nova contradança movimentava a todos. O barão simulou ceder o lugar às quadrilhas e foi apoiar-se ao mármore de um consolo, cruzou os braços sobre o peito e ficou atento ao diálogo entre as duas mulheres. De quando em quando, seguia os olhares que as duas lançaram repetidas vezes para a desconhecida. Comparando então a condessa àquela nova beleza que o mistério tornava tão atraente, o barão deixou-se empolgar pelos odiosos cálculos, habituais aos homens galantes: hesitava entre uma fortuna e o seu capricho a contentar. O reflexo das luzes fazia tão bem sobressair sua fisionomia preocupada e sombria sobre os cortinados brancos, afundados por seus cabelos negros, que o poderiam comparar a um gênio. De longe, mais de um observador decerto terá dito com os seus botões: “Ali está mais um pobre-diabo que parece divertir-se à grande!”.

Com o ombro direito levemente apoiado contra o alizar da porta, que fazia se comunicarem o salão de danças e a sala de jogo, o coronel podia rir incógnito, sob seus bastos bigodes, e gozar do prazer de contemplar o tumulto do baile: contemplava cem lindas cabeças que giravam no capricho da dança; lia no semblante de alguns, como no da condessa e no de seu amigo Marcial, os segredos de suas preocupações; depois, desviando a cabeça, a si mesmo perguntava que relação existiria entre o ar sombrio do conde de Soulanges, sempre sentado na conversadeira, e a fisionomia pungente da dama desconhecida, em cujo rosto apareciam ora as alegrias da esperança, ora as angústias de um terror involuntário. Montcornet ali estava como o rei da festa, achando naquele quadro movimentado uma visão completa do mundo, e ria daquilo tudo, recolhendo o sorriso interessado de cem mulheres brilhantes e preciosamente vestidas; um coronel da guarda imperial, posto que comportava a graduação de general de brigada,[292] era um dos melhores partidos do Exército. Era cerca da meia-noite. As conversações, o jogo, as danças, o coquetismo, os interesses, as malícias e os projetos, tudo atingia esse grau de calor que arranca dos lábios de um rapaz a exclamação: “Que lindo baile!”.

— Meu lindo anjinho — dizia a duquesa de Lansac à condessa —, está na idade em que eu cometi muitos erros. Ao vê-la, há pouco, sofrer mil tormentos, tive a ideia de lhe fazer algumas advertências caridosas. Cometer erros aos vinte e dois anos não será estragar o próprio futuro, não será rasgar o vestido que se vai usar? Creia, querida, que só muito tarde aprendemos a nos servir dele sem amarrotá-lo. Continue, meu coração, a arranjar inimigos espertos e amigos sem espírito de coerência, e verá a bela vida que terá de viver um dia.


— Ah!, senhora, é muito difícil para uma mulher ser feliz, não é? — exclamou ingenuamente a condessa.

— Minha querida, na sua idade é preciso saber escolher entre a felicidade e o prazer. Quer casar-se com Marcial, que não é suficientemente tolo para dar um bom marido, nem suficientemente apaixonado para ser um amante. Ele tem dívidas, querida: é homem capaz de engolir sua fortuna. Isso entretanto nada seria, se lhe desse a felicidade. Não vê quanto ele é velho? Esse homem deve ter estado muitas vezes doente, hoje goza das sobras. Daqui a três anos será um homem acabado. Começará então o ambicioso, pode ser que triunfe. Não creio. O que é ele? Um espertalhão que talvez conheça o espírito dos negócios e saiba tagarelar agradavelmente; mas é muito pretensioso para ter verdadeiro mérito; não irá longe. De resto, olhe-o! Não está escrito no seu rosto que neste momento não é uma mulher jovem e bonita que ele vê em si, mas sim os dois milhões que a senhora possui? Ele não a ama, querida. Ele a avalia como se se tratasse de um negócio. Se quer casar-se, procure um homem de mais idade, que seja conceituado e já esteja bem encarreirado. Uma viúva não deve encarar o casamento como uma questão de amoricos. Já se viu um camundongo cair duas vezes na mesma ratoeira? Agora, um novo contrato deve ser para si uma especulação, e é preciso, ao tornar a casar-se, ter pelo menos a esperança de ouvir se chamar um dia senhora marechala.

Nesse momento, os olhos das duas mulheres fixaram-se com toda a naturalidade na bela estampa do coronel Montcornet.

— Se quiser viver o difícil papel de uma coquete e não casar — continuou a duquesa, com toda a bonomia —, ali!, minha filha, melhor do que ninguém saberá acumular as nuvens de uma tempestade e depois dissipá-las. Mas aconselho-a a nunca perturbar a paz dos lares, a nunca destruir a união das famílias e a ventura das mulheres que são felizes. Eu representei esse perigoso papel, minha querida. Ai de mim, meu Deus, por um triunfo de amor-próprio, assassina-se muitas vezes uma pobre criatura virtuosa, pois existem na verdade, minha cara, mulheres virtuosas, e atraímos, por essa forma, sobre nós, ódios mortais. Só demasiado tarde aprendi que, segundo a expressão do duque de Alba, um salmão vale mais do que mil rãs! Não há dúvida de que um amor verdadeiro dá mil vezes mais gozos do que as paixões efêmeras que excitamos! Pois bem! Vim aqui para lhe pregar um sermão. Sim, a senhora é a causa da minha presença neste salão que recende a plebe. Até atores já vi. Antigamente, minha querida, nós os recebíamos na alcova, mas no salão nunca! Por que motivo me olha com esse ar tão espantado? Ouça-me: se está disposta a divertir-se à custa dos homens — continuou a velha dama —, só transtorne o coração daqueles que ainda não estão com a vida assentada, dos que não têm deveres a cumprir; os outros não nos perdoam as desordens que os fizeram felizes. Aproveite-se dessa máxima que devo à minha velha experiência. Esse pobre Soulanges, por exemplo, a quem a senhora virou a cabeça e durante quinze meses mantém embriagado, sabe Deus como!, pois bem, sabe em quem recaíam os seus golpes?... Em toda a vida dele. Ele é casado e adorado por uma encantadora criatura a quem ele ama e engana; ela vive em pranto no mais amargo silêncio. Soulanges teve momentos de remorso mais cruéis do que a doçura dos seus prazeres. E a senhora, sua manhosa, o traiu! Pois bem, venha contemplar a sua obra.

A velha duquesa segurou na mão da sra. de Vaudremont e as duas se levantaram.

— Olhe — disse a sra. de Lansac, indicando-lhe com o olhar a desconhecida, pálida e trêmula sob o clarão do candelabro —, ali está minha sobrinha-neta, a condessa de Soulanges; finalmente cedeu hoje à minha insistência e consentiu em deixar o quarto de dores, onde a vista do filho não lhe trazia senão muito fracas consolações: está vendo? Parece-lhe encantadora, não? Pois bem, minha formosa, imagine daí o que ela devia ser, quando a felicidade e o amor esparziam seu brilho sobre aquele semblante, hoje emurchecido.

A condessa volveu a cabeça, silenciosamente, e pareceu mergulhar em profundas reflexões. A duquesa levou-a até a porta da sala de jogo e aí, depois de relancear um olhar, como se procurasse alguém, disse à condessa com tom de voz profundo:

— E ali está Soulanges.

A condessa estremeceu quando entreviu, no canto menos iluminado do salão, o semblante pálido e contraído de Soulanges, o qual estava atirado na conversadeira: o aluamento de seus membros e a imobilidade de sua fronte diziam eloquentemente de seu sofrimento. Os jogadores iam e vinham por diante dele, sem lhe prestar mais atenção do que se ele estivesse morto. O quadro apresentado pela mulher lacrimosa e pelo marido triste e sombrio, separados um do outro naquela festa, como as duas metades de uma árvore partida pelo raio, teve, talvez, algo de profético para a condessa. Assaltou-a o temor de ver naquilo uma imagem das vinganças que lhe reservava o futuro. Seu coração não se pervertera ainda o bastante para que dele tivessem sido expulsas totalmente a sensibilidade e a indulgência. Apertou a mão da duquesa, agradecendo-lhe com um desses sorrisos que têm uma certa graça infantil.

— Minha querida filha — disse-lhe a velha senhora, ao ouvido —, lembre-se, daqui por diante, de que tanto sabemos repelir as homenagens dos homens como atraí-los.

— Se não for um tolo, ela é sua!

Estas últimas palavras foram sussurradas pela sra. de Lansac ao ouvido do coronel Montcornet, enquanto a bela condessa se entregava à compaixão que lhe inspirava o aspecto de Soulanges, a quem ela ainda queria bastante sinceramente para desejar restituí-lo à felicidade, e prometia, a si mesma, empregar o irresistível poder que suas seduções ainda exerciam sobre ele a fim de fazê-lo voltar para a esposa.

— Oh! Como o vou aconselhar — disse ela à sra. de Lansac.

— Nada disso, minha querida! — exclamou a duquesa, ao voltar para a sua poltrona. — Escolha um bom marido para si e feche sua porta para meu sobrinho. Não lhe ofereça sequer a sua amizade. Acredite-me, querida, uma mulher não aceita de outra o coração de seu marido, julga-se cem vezes mais feliz crendo que ela própria o reconquistou. Ao trazer aqui minha sobrinha, penso ter-lhe dado uma excelente oportunidade para recuperar a afeição do marido. Como cooperação para esse fim, tudo o que lhe peço é provocar o general.

E, quando lhe indicou o amigo do referendário, a condessa sorriu.

— E então, senhora, sabe finalmente o nome daquela desconhecida? — perguntou o barão à condessa, com ar amuado, quando ficaram a sós.

— Sim — disse a sra. de Vaudremont encarando o referendário.

Sua fisionomia revelava tanto sutileza quanto alegria. O sorriso que dava vida aos seus lábios e às suas faces, a luz úmida de seus olhos assemelhavam-se a esses fogos-fátuos que iludem o viandante. Marcial, que ainda se julgava amado, tomou então esse ar de coquetismo com que um homem se pavoneia tão complacentemente junto da mulher amada e disse com fatuidade:

— E não fica zangada comigo se eu insistir ainda em saber esse nome?

— E não ficará zangado — replicou a sra. de Vaudremont — se por um resto de amor eu não lho disser, e se o proibir de fazer qualquer tentativa junto a essa jovem senhora? Talvez arrisque a sua vida.

— Senhora, perder suas boas graças não é perder mais do que a vida?

— Marcial — disse severamente a condessa —, é a sra. de Soulanges, e seu marido lhe faria saltar os miolos, se é que o senhor ainda os tem.

— Ah! Ah! — replicou o fátuo a rir. — O coronel deixará viver em paz o homem que lhe roubou seu coração, senhora, e se baterá pela esposa? Que reviravolta de princípios! Peço-lhe que me permita dançar com aquela damazinha. Poderá assim ter a prova do pouco amor que lhe tributava aquele coração de gelo, porque se o coronel se zangar por eu dançar com sua mulher, depois de ter suportado que eu lha...

— Mas não vê que ela ama o marido?

— Mais um obstáculo que eu terei prazer em vencer.

— Mas é casada.

— Graciosa objeção.

— Ah! — disse a condessa com um sorriso amargo. — Os senhores nos castigam tanto pelas nossas faltas quanto pelos nossos arrependimentos.

— Não se zangue — disse Marcial com vivacidade. — Oh!, suplico-lhe, perdoe-me. Veja, não me preocupo mais com a sra. de Soulanges.

— Bem merecia que eu o mandasse para junto dela.

— Pois vou — disse rindo o barão —, e voltarei mais apaixonado pela senhora do que nunca. Verá que a mais bela mulher do mundo não se pode apoderar de um coração que lhe pertence.

— O que quer dizer que deseja ganhar o cavalo do coronel.

— Ah! O traidor! — disse ele, rindo e ameaçando com o dedo o amigo que sorria.

O coronel chegou-se a eles, e o barão cedeu-lhe o lugar junto à condessa, à qual disse com ar sardônico:

— Senhora, eis aqui um homem que se gabou de poder conquistar suas boas graças em um único sarau.

Aplaudiu-se a si mesmo, enquanto se afastava, por ter ferido o amor-próprio da condessa, prejudicando assim a Montcornet; mas, não obstante sua esperteza habitual, não percebera a ironia de que estavam impregnadas as palavras da sra. de Vaudremont, e tampouco compreendeu que ela dera tantos passos em direção ao coronel quanto este em direção a ela, ambos sem o saberem. No momento em que o referendário se aproximava borboleteando do candelabro sob o qual a condessa de Soulanges, pálida e temerosa, parecia viver somente pelo olhar, seu marido assomou à porta do salão com os olhos cintilantes de paixão. A velha duquesa, atenta a tudo, precipitou-se para o sobrinho, pediu-lhe o braço e sua carruagem para sair, pretextando um tédio mortal e esperançada de assim impedir uma explosão lamentável. Antes de sair, fez um singular sinal de inteligência à sobrinha, designando-lhe o afoito cavalheiro que se preparava para falar-lhe, e esse sinal parecia dizer-lhe: “Ei-lo, vinga-te”.

A sra. de Vaudremont surpreendeu o olhar da tia e da sobrinha; um súbito clarão iluminou-lhe o espírito e temeu ser ludibriada por aquela velha senhora tão sábia e tão ardilosa em intrigas. — Aquela pérfida duquesa — disse ela de si para si — é capaz de ter achado divertido pregar-me moral, ao mesmo tempo que me pregava uma das suas.

Ante esse pensamento, o amor-próprio da sra. de Vaudremont se sentiu mais intensamente interessado do que mesmo a sua curiosidade em desenredar os fios daquela intriga. A preocupação íntima que a empolgou não a deixou senhora de si mesma. O coronel, interpretando de modo favorável para ele o embaraço que transparecia na conversação e nas maneiras da condessa, tornou-se mais ardoroso e premente. Os velhos diplomatas calejados, que se divertiam observando as expressões das fisionomias, jamais haviam deparado com tantas intrigas para acompanhar ou adivinhar. As paixões que agitavam os dois pares variavam a cada passo naqueles salões animados, manifestando-se com outros matizes em outros semblantes. O espetáculo de tantas paixões ardentes, todas aquelas competições amorosas, aquelas doces vinganças, aqueles cruéis favores, aqueles olhares incendiados, toda aquela vida chamejante expandida em torno deles, eram outros tantos fatores que os faziam sentir vivamente a sua impotência. Finalmente o barão pudera sentar-se junto à sra. de Soulanges. Seus olhos vagavam disfarçadamente por sobre um colo fresco como o orvalho, perfumado como uma flor agreste. Admirava de perto belezas que de longe haviam impressionado. Era-lhe dado ver um pezinho bem calçado, medir com o olhar um corpo flexível e gracioso. Nessa época, as mulheres usavam cintura alta, sob os seios, numa imitação das estátuas gregas, moda impiedosa para as mulheres cujo busto apresentasse um defeito qualquer. Ao lançar olhares furtivos sobre aquele colo, Marcial ficou encantado com a perfeição das formas da condessa.

— Não a vi dançar nem uma só vez esta noite, senhora — disse ele com voz meiga e lisonjeira. — Quero crer que não por falta de cavalheiro?

— Não frequento a sociedade, sou nela uma desconhecida — respondeu com frieza a sra. de Soulanges, que nada compreendera do olhar pelo qual sua tia a induzira a procurar agradar ao barão.

Marcial fez então, para se dar uma atitude, tremeluzir o belo diamante que ornava sua mão esquerda, cujas cintilações pareceram lançar um súbito clarão na alma da jovem condessa, a qual corou e olhou para o barão com expressão indefinível.

— Aprecia a dança? — perguntou o provençal, tentando reatar a conversação.

— Oh! Muito, senhor.

Ante essa estranha resposta, os olhares de ambos se cruzaram. O rapaz, surpreendido com o acento penetrante, que lhe despertou no coração uma vaga esperança, interrogara subitamente os olhos da jovem senhora.

— Seria uma temeridade de minha parte, senhora, propor-me para seu par na próxima contradança?

Um ingênuo acanhamento fez enrubescer as faces da condessa.

— Mas, senhor, já recusei um convite, de um militar...

— Será aquele coronel de cavalaria que está ali?

— Justamente.

— Então nada deve temer, senhora, pois é um amigo meu. Concede-me o favor que ouso esperar?

— Sim, senhor.

Sua voz acusava uma emoção tão nova e tão profunda que a alma já cansada do referendário se sentiu abalada. Invadiu-o uma timidez de colegial, perdeu sua confiança habitual em si mesmo, sua cabeça meridional inflamou-se, quis falar, mas suas expressões lhe pareceram insípidas, comparadas às respostas espirituosas e finas da sra. de Soulanges. Foi uma sorte para ele o iniciar-se a contradança. De pé, diante de seu belo par, sentiu-se mais à vontade. Para muitos homens a dança é um modo de ser; pensam, exibindo as graças de seu corpo, atuar mais eficientemente, do que pelo espírito, sobre o coração das mulheres. O provençal queria, sem dúvida, empregar naquele momento todos os seus meios de sedução, a julgar pela pretensão de todos os seus gestos e movimentos. Conduzira sua conquista à quadrilha, na qual as mais sedutoras mulheres atribuíam à dança uma quimérica importância, superior a qualquer outra. Enquanto a orquestra executava o prelúdio da primeira quadrilha, o barão sentia uma incrível satisfação de orgulho, quando, ao passar em revista as damas colocadas nas linhas daquele temível quadrado, percebeu que a toilette da sra. de Soulanges podia desafiar até a da sra. de Vaudremont, que, por um acaso talvez procurado, fazia, com o coronel, vis-à-vis ao barão e à dama de azul. Os olhares, por um momento, fixaram-se na sra. de Soulanges: um murmúrio lisonjeiro demonstrou ser ela o objeto das conversações de cada par. Os olhares de inveja e de admiração cruzavam-se tão insistentemente sobre ela que a jovem senhora, enleada por um triunfo ao qual parecia querer furtar-se, baixou modestamente os olhos, corou, ficando assim mais encantadora ainda. Se inadvertidamente erguia suas alvíssimas pálpebras, era para olhar seu par inebriado, tal como se lhe quisesse referir as glórias daquelas homenagens e dizer-lhe que preferia a dele a todas as demais; pôs inocência no seu coquetismo, ou, antes, pareceu entregar-se à ingênua admiração pela qual começa o amor, com a boa-fé que só se encontra nos corações novos. Quando dançou, os espectadores puderam facilmente acreditar que ela patenteava aqueles encantos somente para Marcial, e, conquanto modesta e estreante nas lides dos salões, ela soube, tanto ou mais do que a mais hábil coquete, erguer oportunamente os olhos para ele, e baixá-los com fingida modéstia. Quando as novas leis de uma contradança, inventada pelo bailarino Trénis, e à qual deu seu nome, levaram Marcial diante do coronel, disse, rindo:

— Ganhei teu cavalo.

— Sim, mas perdeste oitenta mil libras de renda — replicou-lhe o coronel, apontando para a sra. de Vaudremont.

— E que me importa isso! — respondeu Marcial —, se a sra. de Soulanges vale milhões.

No fim dessa contradança, mais de um sussurro zumbia em mais de um ouvido. As mulheres menos bonitas pregavam moral com os seus pares, a propósito da nascente ligação de Marcial com a condessa de Soulanges. As mais belas se espantavam de tal facilidade.

Os homens não podiam compreender a sorte do pequeno referendário, no qual nada viam de sedutor. Algumas famas indulgentes opinavam que não se deviam apressar em julgar a condessa: a gente moça seria bem infeliz se um olhar expressivo ou alguns passos de dança graciosamente executados bastassem para comprometer uma mulher. Só Marcial conhecia a extensão de sua felicidade. Na última figura, quando as damas da quadrilha tiveram de formar o moulinet, seus dedos comprimiram os da condessa, e ele julgou sentir, através da pele fina e perfumada das luvas, que os dedos da jovem senhora respondiam ao seu amoroso apelo.

— Senhora — disse-lhe ele, no momento em que a contradança terminou —, não volte para aquele odioso canto, onde enterrou até agora a sua pessoa e a sua toilette. A admiração será acaso a única vantagem que possa auferir dos diamantes que ornam seu colo tão alvo e suas madeixas tão bem trançadas? Venha dar um passeio pelos salões e gozar um pouco da festa e de si mesma.

A sra. de Soulanges acompanhou seu sedutor, o qual julgava que ela lhe pertenceria com tanto mais certeza quanto mais a pudesse exibir.

Os dois deram então algumas voltas em torno dos grupos que enchiam os salões do palacete. A condessa de Soulanges, inquieta, detinha-se um momento antes de entrar em cada um dos salões, e só entrava depois de espichar o pescoço, a fim de ver quais os homens que lá estavam. Aquele medo, que saturava o referendário de alegria, só parecia atenuar-se quando ele dizia à trêmula companheira:

— Tranquilize-se, ele não está aqui.

Foram assim até uma imensa galeria de quadros, situada numa ala do palacete de onde se gozava, por antecipação, do aspecto magnífico de uma mesa de frios, doces e frutas, preparada para trezentas pessoas. Como iam dar começo à refeição, Marcial levou a condessa para uma alcova oval que dava para os jardins, na qual as mais raras flores e alguns arbustos formavam um bosquete perfumado, sob brilhantes tapeçarias azuis. O murmúrio da festa ali vinha morrer. A condessa estremeceu ao entrar, e recusou-se obstinadamente a acompanhar o rapaz, mas depois de ter lançado um olhar a um espelho, viu sem dúvida que havia outras pessoas, porquanto foi sentar-se de bom grado numa otomana.

— Esta peça é deliciosa — disse ela, admirando um painel azul-celeste, enfeitado com pérolas.

— Tudo aqui respira amor e voluptuosidade — disse o rapaz, intensamente emocionado.

Favorecido pela misteriosa claridade que reinava ali, ele olhou a condessa e surpreendeu no seu rosto, suavemente agitado, uma expressão de enleio, de pudor, de desejo, que o encantou. A jovem senhora sorriu, e aquele sorriso pareceu pôr ponto final aos sentimentos que se lhes entrechocavam no coração; tomou com o modo mais sedutor a mão esquerda de seu adorador e tirou-lhe do dedo o anel sobre o qual seus olhos se haviam detido.

— Que belo diamante! — exclamou com a ingênua expressão de uma mocinha que deixa transparecer os pruridos de uma primeira tentação.

Marcial, emocionado pela carícia involuntária, mas perturbadora, que a condessa lhe fizera ao tirar o diamante, pousou sobre ela seus olhos mais brilhantes do que o próprio anel.

— Queira usá-lo como recordação desta hora divina e pelo amor de...

Ela o contemplava tão extasiada que ele não terminou a frase e beijou-lhe a mão.

— É um presente? — disse ela com um ar de espanto.

— Quisera oferecer-lhe o mundo inteiro!

— Não é isso um gracejo? — perguntou ela com voz alterada por uma satisfação demasiado viva.

— Aceitará somente meu diamante?

— Não o pedirá de novo?

— Nunca.

Ela enfiou o anel no dedo. Marcial, contando com uma ventura próxima, fez um gesto para enlaçar a cintura da condessa, que, repentinamente, se levantou e disse com voz clara, despida de qualquer emoção:

— Senhor, aceito este diamante com tanto menos escrúpulo, porquanto me pertence.

O referendário ficou perplexo.

— O sr. de Soulanges tirou-o ultimamente de cima do meu toucador e disse-me tê-lo perdido.

— Deve estar enganada, senhora — disse Marcial com ar ofendido —, foi a sra. de Vaudremont que me deu esse anel.

— Precisamente — replicou ela, sorrindo. — Meu marido tomou-me este anel emprestado e deu-o à sra. de Vaudremont; ela lho deu de presente, meu anel viajou, eis tudo. Este anel me dirá, talvez, tudo o que eu ignoro e me ensinará o segredo de agradar sempre. Senhor — continuou ela —, pode ficar certo de que se este anel não me pertencesse, eu não me teria aventurado a pagá-lo tão caro, pois, segundo dizem, uma jovem dama corre perigo junto do senhor. Mas, veja — acrescentou, acionando uma mola oculta sob a pedra —, ainda estão aqui os cabelos do sr. de Soulanges.

E enveredou para os salões com tal presteza que parecia inútil procurar alcançá-la. Marcial, aliás, estava tão confuso que não se sentia disposto a tentar a aventura. O riso da sra. de Soulanges encontrara eco na alcova, onde o jovem fátuo entreviu, por entre os arbustos, o coronel e a sra. de Vaudremont, que riam gostosamente.

— Queres o meu cavalo para correr atrás da tua conquista? — perguntou o coronel.

O modo gentil como o barão suportou os gracejos com que a sra. de Vaudremont e Montcornet o acabrunharam granjeou-lhe a discrição de ambos sobre os acontecimentos do sarau, em que seu amigo trocou seu cavalo de batalha por uma jovem, rica e bela senhora.

Enquanto a condessa de Soulanges atravessava o espaço que separa a Chausée d’Antin do Faubourg Saint-Germain, onde residia, sua alma foi alanceada pelas mais vivas inquietações. Antes de deixar o Palácio de Gondreville, ela percorrera os salões sem encontrar nem a tia, nem o marido, que se haviam retirado sem ela. Horríveis pressentimentos vieram então atormentar-lhe a alma ingênua. Testemunha discreta dos sofrimentos experimentados pelo marido desde o dia em que a sra. de Vaudremont o atrelara a seu carro, ela esperava com confiança que um próximo arrependimento lhe devolveria o esposo. Por isso fora com incrível repugnância que consentira no plano formado por sua tia, a sra. de Lansac, e naquele momento temia ter cometido um erro. O sarau de onde vinha entristecera-lhe a alma cândida. Apavorada a princípio com o ar doloroso e sombrio do conde de Soulanges, ela mais ainda o ficou ao ver a beleza da rival, e a corrupção da sociedade angustiara-lhe o coração. Ao passar pela Pont-Royal atirou fora os cabelos profanados, que estavam por baixo do diamante, oferecidos outrora como penhor de um amor puro. Chorou ao lembrar-se dos intensos sofrimentos que de havia muito padecia e estremeceu mais de uma vez ao pensar que o dever das mulheres que querem obter a paz conjugal as obrigava a enterrar no fundo do coração, e sem se lamentarem, angústias tão cruéis quanto as suas.

— Ai de mim! — suspirou. — Como farão as mulheres que não amam? Onde a fonte de sua indulgência? Não posso crer, como diz minha tia, que baste a razão para sustentá-las em tais circunstâncias.

Ainda suspirava quando o lacaio baixou o elegante estribo pelo qual ela desceu e precipitou-se no vestíbulo de seu palacete. Subiu a escada apressadamente e quando chegou ao quarto estremeceu de terror ao ver o marido sentado junto à lareira.

— Desde quando, querida, vai a bailes sem a minha companhia e sem me prevenir? — perguntou ele com a voz alterada. — Devia saber que uma mulher está sempre deslocada sem o marido.

Estava singularmente comprometida no canto escuro, onde se aninhou.

— Oh!, meu bom Leão — disse ela com voz carinhosa —, não pude resistir à felicidade de ver-te sem que tu me visses. Minha tia levou-me a esse baile, e me senti lá bem feliz.

Esse tom desarmou o olhar do conde de sua severidade fictícia, pois acabava de fazer a si mesmo acerbas censuras, temendo a volta da esposa, sem dúvida informada no baile de uma infidelidade que ele supunha lhe haver ocultado, e, segundo o hábito dos amantes que se sentem culpados, procurava, sendo o primeiro a querelar a esposa, evitar sua muito justa cólera. Olhou silenciosamente para a mulher, que no seu brilhante vestuário lhe pareceu mais linda do que nunca. Feliz por ver o marido sorridente e por encontrá-lo a tais horas num quarto aonde, havia algum tempo, ele vinha com menos frequência, a condessa olhou-o com tanta ternura que ele corou e baixou os olhos. Aquela clemência tanto mais inebriou Soulanges, porquanto se sucedia aos tormentos que ele sofrera durante o baile; apoderou-se da mão da esposa e beijou-a com gratidão: não se encontra tantas vezes a gratidão no amor?

— Hortênsia, que tens no dedo que tanto me magoou os lábios? — perguntou ele a rir.

— É o meu diamante, que tu me dizias perdido e que eu achei.

O general Montcornet não se casou com a sra. de Vaudremont, não obstante o bom entendimento no qual viveram durante alguns momentos, pois ela foi uma das vítimas do pavoroso incêndio[293] que tornou para sempre célebre o baile dado pelo embaixador da Áustria, por ocasião do casamento do imperador Napoleão com a filha do imperador Francisco ii.


Julho de 1829

 

 

INTRODUÇÃO

A um leitor já familiarizado com a maneira de Balzac, A sra. Firmiani (em francês, Madame Firmiani) dá a impressão de um exercício de técnica, antes que de uma obra realmente acabada. A novidade consiste na apresentação da personagem principal, feita de modo muito original: cada um dos interlocutores imaginários do autor — pertencentes a outras tantas “espécies” sociais, dessas de que Balzac fala em seu prefácio à A comédia humana (ver no volume 1 desta edição) — revela uma das faces desse caráter misterioso que tanto menos compreendemos quanto maior o número de testemunhos a seu respeito. Aguarda-se, pois, com impaciência a chave do enigma.

Uma vez explicado, porém, este não nos interessa bastante. Ao relatar a generosa ação praticada por Otávio de Camps sob a influência da sra. Firmiani, em vão Balzac afirma tratar-se de episódio realmente acontecido: não ficamos bastante persuadidos. Achamos que a novela fornece mais uma prova da afirmação (transformada em acusação, mais de uma vez, por críticos incompreensivos) de que Balzac, realmente grande na pintura do vício, é inferior ao retratar a virtude.

Repare-se na última frase do conto, acrescida a este sem necessidade orgânica, pois serve para explicar muito menos a virtuosa Firmiani do que as grandes cortesãs de A comédia humana, esses esplêndidos monstros do vício. Dir-se-ia que o autor, acossado mais de uma vez por suas leitoras femininas, descontentes de ver tantas mulheres imorais em seus romances, resolveu mostrar-lhes um milagre de virtude, arrematando a sua palinódia com esta cômoda desculpa: a mulher é naturalmente boa; quando é má, é por ação do homem.

Entrevê-se em A sra. Firmiani um romance não acabado, talvez nem começado, de A comédia humana, a história de como o pai de Otávio de Camps reunira a sua fortuna espoliando outra família. Este, sim, era um assunto para um verdadeiro romance de Balzac, irmão digno de A prima Bete ou de O primo Pons.


paulo rónai


A SRA. FIRMIANI
A meu caro Alexandre de Berny[294]
Seu velho amigo, de balzac

 


Muitas narrativas, ricas em situações ou tornadas dramáticas pelos inúmeros lances do acaso, carregam consigo mesmas seus próprios artifícios e podem ser contadas artisticamente ou com simplicidade por quaisquer lábios, sem que o assunto perca a mais insignificante das suas belezas. Existem, porém, algumas aventuras da vida humana às quais somente as vozes do coração restituem a vida; existem certos detalhes, por assim dizer, anatômicos cujas delicadezas não revivem a não ser sob as mais hábeis infusões do pensamento; existem também retratos que querem uma alma e nada são sem os traços mais sutis de sua fisionomia móvel; enfim, encontram-se coisas que não sabemos dizer ou fazer, sem não sei que harmonias desconhecidas que são presididas por um dia, uma hora, uma conjunção feliz nos signos celestes ou por secretas predisposições morais. Essas espécies de revelações misteriosas eram imperiosamente exigidas para contar esta história simples, à qual quiséramos poder interessar algumas dessas almas naturalmente melancólicas e sonhadoras que se alimentam de emoções suaves. Se o escritor, semelhante a um cirurgião junto a um amigo moribundo, se deixou penetrar por uma espécie de respeito pelo assunto que manejava, por que o leitor não partilharia esse sentimento inexplicável? Será coisa difícil o iniciar-se nessa tristeza vaga e nervosa que espalha tintas pardacentas em torno de nós, uma quase doença, cujos sofrimentos toleráveis, por vezes, agradam? Se por acaso pensais nas pessoas queridas a quem perdestes, se estais sós, se é noite ou se o dia morre, continuai a leitura desta história; de outra forma, atiraríeis fora o livro, neste ponto. Se ainda não enterrastes alguma boa tia inválida ou sem fortuna, não compreendereis estas páginas. Para alguns, elas parecerão impregnadas de almíscar; para outros, parecerão tão descoloridas, tão virtuosas como o pode ser uma página de Florian.[295] Para sermos completos, diremos que o leitor deve ter conhecido a voluptuosidade das lágrimas, ter sentido a dor silenciosa de uma recordação que passa suavemente, carregada com uma sombra querida, mas sombra longínqua; deve possuir algumas dessas lembranças que fazem ao mesmo tempo ter saudade daquilo que a terra nos devorou e sorrir por uma felicidade que se esvaiu. Agora, crede que, mesmo pelas riquezas da Inglaterra, o autor não quereria extorquir à poesia uma única das suas mentiras para embelezar sua narrativa. Esta é uma história verdadeira, pela qual podereis despender os tesouros de vossa sensibilidade, se é que a tendes.

Nossa língua, hoje, tem tantos idiomas quantas variedades de homens existem na grande família francesa. Por isso, é uma coisa verdadeiramente agradável e curiosa ouvir as múltiplas acepções ou versões externadas sobre um mesmo objeto ou sobre um mesmo acontecimento por todas e cada uma das espécies que compõem a monografia de parisienses, sendo o parisiense considerado para generalizar a tese.

Por exemplo, perguntaríeis a um indivíduo pertencente ao gênero dos Positivos:

— Conheceis a sra. Firmiani?

E ele vos retrataria a sra. Firmiani com o seguinte inventário: um grande palacete situado na rue du Bac, com salões bem mobiliados, belos quadros, cem boas mil libras de renda e um marido, outrora recebedor-geral no departamento do Montenotte. Tendo dito isso, Positivo, homem maciço e redondo, quase sempre vestido de preto, faz um pequeno trejeito de satisfação, ergue o lábio inferior, franzindo-o de modo a cobrir o superior, e meneia a cabeça como quem diz: Aí está uma gente sólida e da qual nada há a dizer. Não lhe pergunteis mais nada! Os Positivos tudo explicam por algarismos, pelas rendas ou pelos bens ao sol, um dos termos de seu léxico.

Virai-vos à direita, ide interrogar aquele outro que pertence ao gênero dos Flanadores e repeti-lhe vossa pergunta:

— A sra. Firmiani? — diz ele. — Sim, sim, conheço-a bem, vou às suas recepções. Seu dia é quarta-feira; é uma casa muito decente.

A sra. Firmiani já se metamorfoseia em casa. Essa casa já não é mais um amontoado de pedras superpostas arquitetonicamente; não, essa palavra, na linguagem dos Flanadores, é um idiotismo intraduzível. Aqui, o Flanador, homem seco, de sorriso agradável, a dizer lindos nadas, tendo sempre mais espírito adquirido do que espírito natural, inclina-se a vosso ouvido e com ar sutil vos diz:

— Nunca vi o sr. Firmiani. Sua posição social consiste em administrar bens na Itália, mas a sra. Firmiani é francesa e gasta suas rendas como uma parisiense. Oferece um chá excelente. É uma das casas, hoje tão raras, onde a gente se diverte e onde o que nos oferecem é delicioso. Aliás, é dificílimo ser admitido em sua casa. Por esse motivo, em seus salões, encontra-se a melhor sociedade! — Depois o Flanador comenta esta última frase, tomando gravemente uma pitada de rapé, que introduz no nariz com pequenos golpes, e parece dizer-nos: Frequento a casa, mas não conte comigo para apresentá-lo.

A sra. Firmiani mantém para os Flanadores uma espécie de hospedaria sem tabuleta.

— Que diabo quer ir fazer em casa da sra. Firmiani? Se a gente lá se aborrece tanto como na corte! Para que serve ter espírito senão para evitar os salões onde, pela poesia que corre, se lê a mais insignificante balada recentemente publicada?

É a resposta à pergunta que fizestes a um dos nossos amigos, classificados entre os Pessoais, gente que desejaria ter o universo debaixo da chave e não deixar fazer coisa alguma sem o seu consentimento. Torna-os infelizes toda a felicidade alheia, não perdoam senão os vícios, as quedas, os defeitos e só querem protegidos. Aristocratas por tendência, fazem-se republicanos por despeito, unicamente para encontrar muitos inferiores entre seus pares.

— Oh! A sra. Firmiani, meu caro, é uma dessas mulheres adoráveis que servem de escusa à natureza por todas as feias que por engano ela criou; é encantadora! É boa! Eu só queria estar no poder, ser rei, possuir milhões para (aqui três palavras ditas ao ouvido). Queres que te apresente?...

Esse rapaz é do gênero Colegial, conhecido por sua grande ousadia entre os homens e sua grande timidez em alcovas fechadas.

— A sra. Firmiani? — exclamou um outro, fazendo molinetes com a bengala. — Vou dizer-te o que penso dela: é uma mulher de trinta a trinta e cinco anos, um pouco passada, belos olhos, busto chato, voz de contralto gasta, muita toillete, um pouco de rouge, maneiras sedutoras, enfim, meu caro, os restos de uma linda mulher que, entretanto, bem merecem ainda o incômodo de uma paixão.

Essa sentença é devida a um sujeito do gênero Fátuo que acabou de almoçar, não pesa mais suas palavras e vai montar a cavalo. Nesses momentos, os Fátuos são impiedosos.

— Há em casa dela uma galeria de quadros magníficos, vá vê-la! — responde-vos um outro. — Não há nada tão bonito!

É a resposta de um gênero Amador. O indivíduo nos deixa para ir à casa de Pérignon ou à de Tripet.[296] Para ele a sra. Firmiani é uma coleção de telas pintadas.

Uma mulher: — A sra. Firmiani? Não quero que vá à casa dela.

Essa frase é a mais rica das traduções. A sra. Firmiani!, mulher perigosa!, uma sereia!, veste-se bem, tem gosto, provoca insônia em todas as mulheres. A interlocutora pertence ao gênero Implicante.

Um adido de embaixada: — A sra. Firmiani! Não é ela de Antuérpia? Vi essa mulher, que era belíssima há dez anos. Ela estava então em Roma. — Os indivíduos pertencentes à classe dos Adidos têm a mania de dizer frases à moda de Talleyrand; seu espírito é por vezes tão fino que seus ditos são imperceptíveis; assemelham-se a esses jogadores de bilhar que enviam os bolos com habilidade infinita. São tipos pouco faladores, mas quando falam só se referem à Espanha, a Viena, à Itália ou a Petesburgo. Os nomes dos países são neles como molas; apertando-os, a campainha vos cantará todas as suas árias.

— Essa sra. Firmiani não frequenta muito o Faubourg Saint-Germain? — Isso é dito por uma pessoa que quer pertencer ao gênero Distinto. — Dá o de[297] a todo mundo, ao mais velho dos srs. Dupin,[298] a La Fayette,[299] atira-o a torto e a direito, desmoraliza com ele as pessoas. Passa a vida preocupada com o que é bem, mas, para seu tormento, mora no Marais, e o marido foi notário, mas notário da corte real.

— A sra. Firmiani, senhor? Não a conheço.

Esse pertence ao gênero dos Duques. Não conhece senão as mulheres apresentadas na corte. Desculpai-o, foi feito duque por Napoleão.

— A sra. Firmiani? Não é uma antiga cantora dos italianos?

É um homem do gênero Tolo. Os indivíduos dessa classe querem ter resposta para tudo. Preferem caluniar a calar-se.

Duas velhas damas (mulheres de antigos magistrados). A primeira (usa uma touca com laçarotes, tem o rosto enrugado, nariz pontudo, voz áspera e segura na mão um Livro de Horas): — De onde procede ela, essa sra. Firmiani? — A segunda (pequeno rosto avermelhado, lembrando uma camoesa roxa, voz meiga): — Uma Cadignan, minha querida, sobrinha do velho príncipe de Cadignan,[300] por consequência prima do duque de Maufrigneuse.[301]

A sra. Firmiani é uma Cadignan. Não tivesse ela, embora, nem virtudes, nem fortuna, nem mocidade, seria sempre uma Cadignan. É como um preconceito, sempre rico e vivo.

Um Original: — Meu caro, nunca vi tamancos na sua antecâmara, podes ir à casa dela sem te comprometeres e jogar sem temor porque, se há larápios, são pessoas de categoria, portanto não há brigas.

Velho pertencente ao gênero dos Observadores: — Se for à casa da sra. Firmiani, encontrará lá, meu caro, uma bela mulher negligentemente sentada ao canto da lareira. Mal e mal se levantará da poltrona, coisa que só faz completamente para as mulheres ou os embaixadores, os duques, as pessoas de alta posição. É muito graciosa, encanta, conversa bem e quer fazer de tudo. Há nela todos os indícios da paixão, mas lhe atribuem demasiados adoradores para que tenha um favorito. Se as suspeitas pairassem somente sobre dois ou três íntimos, nós saberíamos quem era seu cavalheiro às ordens, mas é uma mulher completamente misteriosa, casada, mas nunca lhe vimos o marido. O sr. Firmiani é uma personagem inteiramente fantástica, como aquele terceiro cavalo que se paga quando se faz uma viagem com mudas, mas que nunca se vê. A senhora, na opinião dos artistas, é o primeiro contralto da Europa, e desde que está em Paris não cantou três vezes. Recebe muita gente e não vai à casa de ninguém.

O Observador fala como um profeta. Temos de aceitar suas palavras, suas anedotas, suas citações como verdades, sob pena de passarmos por um homem sem instrução e sem meios. Seremos caluniados alegremente em vinte salões, onde ele é essencial como uma primeira peça no cartaz, essas peças tantas vezes representadas para as massas e que outrora obtiveram êxito. O Observador tem quarenta anos, nunca janta em casa, afirma ser pouco perigoso para as mulheres; usa pó, veste uma casaca cor de castanha, tem sempre um lugar em vários camarotes nos Bouffons; é confundido, às vezes, com os Parasitas, mas desempenhou funções demasiado elevadas para que o tomem por um filante de jantares e, ademais, possui uma propriedade rural num departamento cujo nome jamais lhe escapou.

— A sra. Firmiani? Mas, meu caro, é uma antiga amante de Murat[302].

Este pertence à classe dos Contraditores. Essa espécie de gente faz a errata de todas as memórias, retifica todos os fatos, aposta sempre cem contra um, tem certeza de tudo. Podereis surpreendê-los na mesma noite em flagrante delito de ubiquidade: dizem ter estado em Paris por ocasião da conspiração Mallet, esquecendo que, meia hora antes, tinham atravessado Beresina[303]. Quase todos os Contraditores são cavalheiros da Legião de Honra, falam muito alto, têm uma testa fugidia e jogam paradas grandes.

— A sra. Firmiani, cem mil libras[304] de renda?... Está louco! Realmente há pessoas que dão cem mil libras de renda com a liberalidade dos autores, para quem isso nada custa, quando dotam suas heroínas. Mas a sra. Firmiani é uma coquete que ultimamente arruinou um rapaz e o impediu de fazer um belo casamento. Se não fosse linda, não teria um vintém.

Oh! Este vós o reconheceis, é do gênero dos Invejosos, e não descreveremos uma única de suas feições. A espécie é tão conhecida como o pode ser a das felis[305] domésticas. Como explicar a perpetuidade da inveja? Um vício que nada rende!

Os mundanos, os beletristas, homens de bem e gente de toda espécie espalhavam, em janeiro de 1824, tantas opiniões diferentes sobre a sra. Firmiani que seria fastidioso consigná-las todas aqui. Quisemos unicamente estabelecer que um homem interessado em conhecê-la, sem querer ou sem poder ir à sua casa, teria iguais motivos para julgá-la viúva ou casada, tola ou espirituosa, cheia de virtudes ou dissoluta, rica ou pobre, sensível ou desalmada, bonita ou feia; havia enfim tantas senhoras Firmiani quantas classes na sociedade, quantas seitas no catolicismo. Pensamento espantoso! Somos todos como tábuas litográficas das quais pela maledicência se tiram inúmeras cópias. Essas provas se parecem com o modelo ou dele diferem por nuanças de tal forma imperceptíveis que a reputação, salvo as calúnias de nossos amigos e as chalaças de um jornal, depende do balanço feito individualmente entre a verdade que vai coxeando e a mentira, a quem o espírito parisiense empresta asas.

A sra. Firmiani, semelhante a muitas mulheres cheias de nobreza e de altivez, que fazem do próprio coração um santuário e desprezam a sociedade, poderia ter sido muito mal julgada pelo sr. de Bourbonne, velho proprietário que, durante o inverno daquele ano, muito se preocupara com ela. Por acaso, esse proprietário pertencia à classe dos Plantadores de província, gente habituada a se dar conta de tudo e a fazer negócio com os camponeses. Nesse ofício um homem se torna perspicaz, queira ou não queira, como um soldado, com o tempo, adquire uma coragem de rotina. Esse curioso, vindo de Touraine, e que não se satisfazia com os idiomas parisienses, era um gentil-homem muito honrado que gozava da sorte de ter, por único herdeiro, um sobrinho para o qual plantava choupos. Essa amizade ultranatural motivara muita maledicência, que os tipos pertencentes às diversas espécies de tourangeaux[306] formulavam muito espirituosamente; mas é inútil referi-las, pois empalideceriam em comparação com as maledicências parisienses. Quando um homem pode pensar sem desprazer em seu herdeiro, vendo todos os dias se aformosearem belas fileiras de choupos, a afeição é aumentada a cada golpe de pá que ele dá ao pé de suas árvores. Conquanto esse fenômeno de sensibilidade seja pouco comum, é encontrado ainda na Touraine.

Esse sobrinho querido, que se chamava Otávio de Camps, descendia do famoso abade de Camps,[307] tão conhecido pelos bibliófilos ou pelos sábios, que não são a mesma coisa. A gente da província tem o mau hábito de assinalar, com uma espécie de reprovação decente, os jovens que vendem suas heranças. Esse preconceito medieval é nocivo para a agiotagem que até agora o governo anima por necessidade. Sem consultar o tio, Otávio tinha, de improviso, disposto de uma terra em favor do Bando Negro.[308] O castelo de Villaines teria sido demolido, não fossem as propostas que o velho tio fizera aos representantes da companhia do martelo. Para aumentar a ira do testador, um amigo de Otávio, parente afastado, um desses primos de pequena fortuna e grande habilidade, que fazem com que as pessoas prudentes de sua província digam deles: “Eu não quisera ter um processo com ele!”, fora por acaso visitar o sr. de Bourbonne e lhe revelara a ruína do sobrinho. O sr. Otávio de Camps, depois de ter dissipado a fortuna com uma tal sra. Firmiani, estava reduzido a se fazer professor de matemática, enquanto esperava a herança do tio, ao qual não se atrevia a confessar seus erros. Esse primo segundo, espécie de Carlos Moor,[309] não tinha tido vergonha de dar essas fatais notícias ao velho camponês no momento em que ele digeria, diante de sua enorme lareira, um copioso jantar provinciano. Mas os herdeiros não dão cabo de um tio tão facilmente quanto desejariam. Graças à sua teimosia, este, que se recusava a acreditar no primo segundo, saiu vencedor da indigestão causada pela biografia do sobrinho. Alguns golpes caem sobre o coração, outros sobre a cabeça: o golpe desferido pelo primo segundo caiu sobre as entranhas e causou poucos danos, porque o velho tinha excelente estômago. Como verdadeiro discípulo de são Tomás,[310] o sr. de Bourbonne foi a Paris sem que Otávio o soubesse e quis tomar informações a respeito do descalabro do sobrinho. O velho fidalgo, que tinha relações no Faubourg Saint-Germain, pelos Listomère,[311] pelos Lenoncourt[312] e pelos Vandenesse,[313] ouviu tanta maledicência, tantas verdades e mentiras a respeito da sra. Firmiani que resolveu fazer-se apresentar em casa dela sob o nome de sr. de Rouxellay, nome da sua propriedade. O prudente velho tivera o cuidado de escolher, para ir estudar a pretensa amante de Otávio, uma tarde em que ele o sabia ocupado na conclusão de um trabalho pago por alto preço, porquanto o amigo da sra. Firmiani era sempre recebido em casa dela, circunstância que ninguém podia explicar. Quanto à ruína de Otávio, essa, infelizmente, não era uma fábula.

O sr. de Rouxellay não se parecia absolutamente com os tios do teatro de Gymnase.[314] Antigo mosqueteiro, homem da alta sociedade, que tivera outrora muitas aventuras amorosas, sabia apresentar-se cortesmente, lembrava-se das maneiras polidas do seu tempo, dizia palavras graciosas e compreendia quase toda a Carta.[315] Embora gostasse dos Bourbons com nobre franqueza, acreditasse em Deus como os gentis-homens acreditam e não lesse senão o Quotidienne,[316] não era tão ridículo quanto o desejariam os liberais de seu departamento. Podia ombrear com os cortesãos, contanto que não lhe falassem de Moisés,[317] nem de drama, nem de romantismo, nem de cor local, nem de estradas de ferro.Tinha ficado em Voltaire, no sr. conde de Buffon,[318] em Peyronnet[319] e no cavalheiro Gluck,[320] o músico do grupo da rainha.

— Minha senhora — disse ele à marquesa de Listomère, à qual dava o braço ao entrar em casa da sra. Firmiani —, se essa mulher é amante de meu sobrinho, lastimo-o. Como pode ela viver no seio do luxo, sabendo-o em uma água-furtada? Não tem alma, então? Otávio é um louco em ter posto o preço da terra de Villaines no coração de uma...

O sr. de Bourbonne pertencia ao gênero Fóssil, e não conhecia outra linguagem que não a dos velhos tempos.

— Mas e se ele o tivesse perdido no jogo?

— Ora, minha senhora, pelo menos teria tido o prazer de jogar.

— Acredita então que ele não teve prazer? Olhe, veja a sra. Firmiani.

As mais antigas recordações do velho tio empalideceram ante o aspecto da pretensa amante do sobrinho. Sua cólera expirou numa frase graciosa, que lhe foi arrancada pela vista da sra. Firmiani. Por um desses acasos que só acontecem às mulheres bonitas, ela se achava num momento em que todas as suas belezas brilhavam com um esplendor particular, talvez devido ao clarão das velas, a uma toilette admiravelmente simples, a não sei que reflexo da elegância em cujo seio ela vivia. É preciso ter estudado as pequenas revoluções de uma recepção nos salões de Paris para apreciar os matizes imperceptíveis que podem colorir um rosto de mulher e transformá-lo. Há um momento em que, satisfeita com os seus adornos, achando-se espirituosa, feliz por ser admirada, ao ver-se rainha de um salão cheio de homens notáveis que lhe sorriem, uma parisiense tem consciência de sua beleza, de sua graça; ela se embeleza então com todos os olhares que recolhe e que a animam, mas cujas mudas homenagens são entregues por um olhar sutil ao bem-amado. Nesse momento, a mulher está como que investida de um poder sobrenatural e torna-se uma adorável feiticeira; coquete sem o querer, inspira involuntariamente o amor que a embriaga em segredo e tem olhares e sorrisos que fascinam. Se esse estado, que vem da alma, dá atrativos mesmo às feias, de que esplendor não revestirá ele uma mulher nativamente elegante, de formas distintas, alva, fresca, de olhos vivos e, sobretudo, vestida com um bom gosto confessado pelos artistas e por suas mais cruéis rivais!

Haveis encontrado, por felicidade vossa, alguma pessoa cuja voz harmoniosa imprime à palavra um encanto que se estende também às suas maneiras, que sabe falar e calar-se, que se ocupa de vós com delicadeza, cujos termos são escolhidos com felicidade ou cuja linguagem é pura? Suas zombadas acariciam e sua crítica não fere; nem disserta, nem disputa, mas compraz-se em conduzir uma discussão e detém-na oportunamente. Seu ar é afável e risonho, sua polidez nada tem de forçada, sua solicitude não é servil; reduz o respeito à simples condição de uma sombra amena, nunca vos cansa e vos deixa contente com ela e convosco. Sua afabilidade, vós a encontrareis impressa nas coisas de que se cerca. Nela, tudo agrada à vista e nela respirais como que o ar de uma pátria. Essa mulher é natural. Nela nunca há esforço, nunca há ostentação, seus sentimentos são simplesmente manifestados, porque são verdadeiros. Franca, sabe entretanto não ofender nenhum amor-próprio; aceita os homens como Deus os fez, condoendo-se das pessoas viciosas, perdoando os defeitos e os ridículos, compreendendo todas as idades e não se irritando com coisa alguma, porque tem o tato de tudo prever. Terna e alegre ao mesmo tempo, ela favorece, antes de consolar. Sentis por ela tanto amor que, se esse anjo comete uma falta, estais sempre pronto a justificá-la. Conhecereis então a sra. Firmiani.

Após quinze minutos de conversação com aquela mulher, junto à qual estava sentado, o velho de Bourbanne absolveu o sobrinho. Compreendeu que, falsas ou verdadeiras, as ligações de Otávio e da sra. Firmiani ocultavam sem dúvida algum mistério. Volvendo as ilusões que douram os primeiros dias de nossa mocidade e julgando o coração da sra. Firmiani pela sua beleza, o velho gentil-homem pensou que uma mulher tão compenetrada de sua dignidade quanto o parecia, era incapaz de uma má ação. Seus olhos negros revelavam tanta calma interior, as linhas de seu rosto eram tão nobres, seus contornos tão puros, e a paixão de que a acusavam parecia pesar tão pouco no seu coração que o ancião a si mesmo disse ao admirar todas as promessas feitas ao amor e à virtude por aquela adorável fisionomia:

— Meu sobrinho deve ter cometido alguma asneira.

A sra. Firmiani confessava vinte e cinco anos. Mas os Positivos provavam que, tendo casado em 1813, com a idade de dezessete anos, em 1825 ela devia ter pelo menos vinte e oito. Não obstante, os mesmos asseguravam que em nenhum período de sua vida ela fora tão desejável nem tão completamente mulher. Não tinha, e não tivera, filhos; o problemático Firmiani, quadragenário muito respeitável em 1813, não pudera, diziam, oferecer-lhe mais do que seu nome e sua fortuna. A sra. Firmiani atingia pois a idade em que a parisiense melhor concebe uma paixão e a deseja, talvez inocentemente, em suas horas perdidas: adquirira tudo o que o mundo vende, tudo o que ele empresta, tudo o que ele dá. Os Adidos de Embaixada pretendiam que ela nada ignorava; os Contraditores asseguravam que ela podia aprender muita coisa; os Observadores achavam-lhe as mãos muito alvas, o pé bem mimoso, os movimentos um pouco ondeantes demais; mas os indivíduos de todos os gêneros invejavam ou contestavam a felicidade de Otávio, convindo em que ela era a mulher mais aristocraticamente bela de Paris. Moça ainda, rica, perfeita musicista, espirituosa, delicada, recebida — em homenagem aos Cadignan, aos quais pertencia por sua mãe — em casa da princesa de Blamont-Chauvry,[321] o oráculo do nobre Faubourg, querida por suas rivais, a duquesa de Maufrigneuse, sua prima, a marquesa d’Espard e a sra. de Macumer,[322] ela lisonjeava todas as vaidades que alimentam ou excitam o amor. Por isso ela era desejada por demasiadas pessoas para não ser vítima da elegante maledicência parisiense e das encantadoras calúnias, que se sussurram tão espirituosamente por trás do leque ou nas à parte. As observações pelas quais começa esta história eram pois necessárias para opor a verdadeira Firmiani à Firmiani da sociedade. Se algumas mulheres lhe desculpavam sua felicidade, outras não lhe perdoavam sua decência; ora, nada é tão terrível, sobretudo em Paris, como as suspeitas infundadas: é impossível destruí-las. Este esboço de uma figura admirável por sua naturalidade não dará dela, jamais, senão uma fraca ideia; seria preciso o pincel dos Ingres[323] para reproduzir a altivez da fronte, a abundância dos cabelos, a majestade do olhar, todos os pensamentos que se traíam pelas tonalidades diversas da tez. Havia tudo nessa mulher: os poetas podiam ver nela, ao mesmo tempo, Joana d’Arc ou Agnès Sorel,[324] mas havia ainda a mulher desconhecida, a alma oculta sob aquele invólucro enganoso, a alma de Eva, as riquezas do mal e os tesouros do bem, a falta e a resignação, o crime e a dedicação, dona Júlia e Haïdée do Don Juan,[325] de Lord Byron.

O antigo mosqueteiro, muito impertinentemente, deixou-se ficar por último no salão da sra. Firmani, que o encontrou tranquilamente sentado numa poltrona, permanecendo em sua presença com a importunidade de uma mosca que a gente precisa matar para se ver livre dela. O relógio marcava duas horas depois da meia-noite.

— Minha senhora — disse o velho gentil-homem, no momento em que ela se levantou na esperança de fazer o hóspede compreender que seu desejo era vê-lo partir —, sou o tio do sr. Otávio de Camps.

A sra. Firmiani sentou-se rapidamente e deixou transparecer sua emoção. Não obstante sua perspicácia, o plantador de choupos não adivinhou se ela empalidecia e corava de pejo ou de prazer. Há prazeres que são sempre acompanhados por um pouco de temeroso pudor, emoções deliciosas que o mais casto coração quisera sempre velar. Quanto mais delicada é a mulher, tanto mais procura esconder as alegrias de sua alma. Muitas mulheres, inconcebíveis nos seus divinos caprichos, desejam com frequência ouvir pronunciar por todos um nome que, por vezes, quereriam sepultar no coração. O velho de Bourbonne não interpretou completamente assim a perturbação da sra. Firmiani, mas perdoai-o, o provinciano era desconfiado.

— E então, senhor? — disse-lhe a sra. Firmiani, lançando-lhe um desses olhares lúcidos e claros, nos quais nós homens nunca podemos ver nada, porque eles nos interrogam um pouco demais.

— E então, minha senhora — replicou o fidalgo —, sabe o que me vieram dizer, a mim, nos confins de minha província? Que meu sobrinho se teria arruinado por sua causa, e que o desgraçado está numa água-furtada enquanto a senhora vive aqui no meio do ouro e da seda. Vai perdoar-me minha franqueza rústica, porque é, talvez, muito útil que saiba das calúnias...

— Basta, senhor — disse a sra. Firmiani, interrompendo o gentil-homem com um gesto imperativo —, sei de tudo isso. O senhor é demasiado polido para não deixar a conversação sobre esse assunto, quando eu lhe pedir que o faça. É demasiado galante, na antiga acepção do termo — acrescentou, dando um leve tom de ironia às suas palavras —, para não reconhecer que não lhe assiste direito algum para interrogar-me. Finalmente fica ridículo para mim justificar-me. Quero crer que terá uma opinião bastante boa de meu caráter para acreditar no profundo desprezo que o dinheiro me inspira, embora me tivesse casado sem nenhuma espécie de fortuna com um homem imensamente rico. Ignoro se o senhor seu sobrinho é rico ou pobre; se o recebi, se o recebo é porque o considero digno de estar entre os meus amigos. Todos os meus amigos, senhor, se respeitam uns aos outros, sabem que não tenho a filosofia de ver as pessoas quando não as estimo. Será, talvez, uma falta de caridade, mas meu anjo da guarda conservou-me até hoje numa aversão profunda, quer pelos falatórios, quer pela improbidade.

Conquanto o timbre da voz estivesse levemente alterado durante as primeiras frases dessa réplica, as últimas palavras foram ditas pela sra. Firmiani com o aprumo com que Célimène[326] zombou do Misantropo.

— Minha senhora — retorquiu o conde com voz comovida —, sou um velho, sou quase pai de Otávio, peço-lhe, pois, de antemão, o mais humilde perdão pela única pergunta que vou ter a ousadia de fazer-lhe, e dou-lhe minha palavra de gentil-homem leal que sua resposta morrerá aqui — disse ele, pondo a mão sobre o coração com um movimento religioso. — Tem razão a maledicência, a senhora ama Otávio?

— Senhor — disse ela —, a outra qualquer pessoa eu responderia apenas com um olhar; mas ao senhor, e pelo fato de ser quase pai do sr. de Camps, eu lhe perguntarei o que pensaria de uma mulher se respondesse sim à sua pergunta. Confessar seu amor àquele a quem se ama, quando ele nos ama... Pois... Está bem; quando temos certeza de sermos sempre amadas, creia-me, senhor, é um esforço para nós e uma recompensa para ele; mas dizê-lo a outro...

A sra. Firmiani não terminou a frase, levantou-se, saudou o velho e desapareceu nos seus aposentos, cujas portas, sucessivamente abertas e fechadas, tiveram para os ouvidos do plantador de choupos a clareza da linguagem.

— Demônios! — para si mesmo murmurou o velho. Que mulher! Ou é uma esperta comadre ou então um anjo.

E dirigiu-se para o seu carro de aluguel, cujos cavalos escavavam, de quando em quando, o pátio silencioso, enquanto o cocheiro dormia, depois de ter amaldiçoado mais de cem vezes seu cliente.

Na manhã seguinte, pelas oito horas, o velho gentil-homem subia as escadas de uma casa situada narue de l’Observance, onde residia Otávio de Camps. Se houve jamais na Terra um homem espantado, foi ele, o jovem professor, ao ver o tio; a chave estava na porta, a lâmpada de Otávio ainda continuava acesa; ele havia passado a noite em claro.

— Senhor tratante — disse o conde de Bourbonne ao sentar-se na poltrona —, desde quando é hábito rir (estilo casto) dos tios de vinte e seis mil libras de renda em boas terras da Touraine, quando se é seu único herdeiro? Não sabe o senhor que outrora respeitávamos tais parentes? Vejamos, tens alguma censura a fazer-me? Desempenhei, acaso, mal meu cargo de tio? Exigi respeito de ti? Recusei-te dinheiro? Bati alguma vez com a porta no teu nariz sob o pretexto de que vinhas ver como eu estava de saúde? Não tens o tio mais cômodo, o menos exigente em França? Não digo na Europa, porque seria demasiada pretensão. Escrevas-me ou não me escrevas, vivo sobre a afeição jurada, e arrumo para ti a mais linda terra da região, um bem que causa inveja a todo o departamento, mas não quero que a herdes senão o mais tarde possível. Não achas essa veleidade muitíssimo desculpável? E o senhor vende suas propriedades, instala-se como um lacaio, e não tem nem criadagem, nem trem de vida...

— Meu tio...

— Não se trata do tio, trata-se do sobrinho. Tenho direito à tua confiança; por isso confessa-te em seguida, é mais fácil, sei-o por experiência própria. Jogaste? Perdeste na Bolsa? Vamos, dize: “Meu tio, sou um miserável!” e eu te abraçarei. Mas se me pregas uma mentira maior do que as que eu impingia na tua idade, vendo meus bens, coloco-os em títulos de renda vitalícia e voltarei às desordens da mocidade, se ainda for possível.

— Meu tio...

— Vi ontem tua sra. Firmiani — disse o tio, beijando os dedos em pinha. — É encantadora — acrescentou. — Tens a aprovação e o privilégio do rei, e o consentimento do tio, se isso te pode dar prazer. Quanto à sanção da Igreja, é inútil, creio, os sacramentos são sem dúvida caros demais! Vamos, fala, foi por ela que te arruinaste?

— Sim, meu tio.

— Ah! A peste, tinha certeza. No meu tempo, as damas da corte eram mais hábeis para arruinar um homem do que o podem ser vossas cortesãs de hoje. Revi, nela, o século passado rejuvenescido.

— Meu tio — replicou Otávio com ar ao mesmo tempo triste e meigo —, o senhor se engana: a sra. Firmiani merece sua estima e todas as adorações de seus admiradores.

— A pobre mocidade será então sempre a mesma? — disse o sr. de Bourbonne. — Vamos, toca pra diante, forja-me umas velhas histórias. Deves, contudo, lembrar-te de que não sou um noviço em coisas de amor.

— Meu caro tio, aqui tem uma carta que lhe dirá tudo — respondeu Otávio, puxando uma elegante carteira, certamente presente dela —; quando a tiver lido, acabarei de esclarecê-lo, e o senhor conhecerá uma sra. Firmiani que a sociedade não conhece.

— Não trouxe minhas lentes — disse o tio —, lê tu a carta.

Otávio começou assim — “Meu querido amigo...”

— Estás então muito ligado com essa mulher?

— Estou, meu caro tio.

— E vocês não estão brigados?

— Brigados!... — repetiu Otávio, admirado. — Nós nos casamos em Gretna Green.[327]

— Mas então — indagou o sr. de Bourbonne —, por que jantas tu por dois francos?

— Deixe-me continuar.

— Tens razão, estou ouvindo.

Otávio retomou a carta, e certas passagens leu-as com profunda emoção.


Meu esposo amado, perguntaste-me os motivos de minha tristeza; será que de minha alma ela se transportou para o meu semblante, ou foi que a adivinhaste? E por que não seria assim? Estamos tão unidos pelo coração! De resto, não sei mentir, o que talvez seja um mal! Uma das condições da mulher amada é a de estar sempre carinhosa e alegre. Talvez fosse melhor que eu fingisse contigo, mas isso é coisa que não quero fazer, embora se tratasse de aumentar ou de conservar a felicidade que me dás, que prodigas, com a qual me esmagas. Oh!, querido, quanta gratidão há no meu amor! Por isso quero amar-te sempre, sem limitações. Sim, quero sempre orgulhar-me de ti. Nosso orgulho, para nós, está todo ele na criatura amada. Estima, consideração, honra, não pertence tudo isso àquele que de tudo se apoderou? Pois bem!, meu anjo falhou. Sim, querido, tua última confidência embaciou minha felicidade passada. Desde esse momento sinto-me humilhada em ti, em ti, a quem eu considerava como o mais puro dos homens, assim como és o mais amante e o mais terno. É preciso ter confiança em teu coração, ainda infantil, para fazer-te uma confissão que me é horrivelmente penosa. Como, pobre anjo, teu pai apropriou-se indevidamente de uma fortuna, tu o sabes e tu a conservas! E contaste-me esse alto feito de um procurador num quarto cheio de testemunhas mudas de nosso amor, e és gentil-homem, e julgas-te nobre, e me possuis, e tens vinte e dois anos! Quantas monstruosidades! Procurei desculpar-te, atribuí tua despreocupação à tua mocidade estouvada. Sei que tens muito de criança. É bem possível que não tenhas pensado, ainda, seriamente, no que é fortuna e probidade. Oh!, como o teu riso me fez mal! Lembra-te de que existe uma família arruinada sempre em prantos, jovens que talvez te amaldiçoem todos os dias, um ancião que todas as noites diz consigo: “Eu não estaria sem pão se o pai do sr. de Camps não tivesse sido um homem desonesto!”.


— Como! — exclamou o sr. de Bourbonne, interrompendo-o — cometeste a tolice de contar a essa mulher o negócio de teu pai com os Bourgneuf?[328] As mulheres entendem mais de devorar uma fortuna do que de fazê-la...

— Elas são mestras em probidade. Deixe-me continuar, meu tio.


Otávio, nenhuma potência no mundo tem autoridade para mudar a linguagem da honra. Recolhe-te a tua consciência e pergunta-lhe qual o nome a dar ao ato a que deves teu dinheiro.


E o sobrinho fitou o tio, e este baixou a cabeça.


Não te direi todos os pensamentos que me importunam; todos eles podem resumir-se num único, e ei-lo: não posso estimar um homem que se enlameia conscientemente por uma quantia de dinheiro, seja ela qual for. Cinco francos roubados no jogo ou seis vezes cem mil francos devidos a uma trapaça legal desonram igualmente um homem. Quero dizer-te tudo: considero-me maculada por um amor que antes constituía toda a minha felicidade. Do fundo de minha alma, ergue-se uma voz que minha ternura não pode abafar. Ah!, chorei por ter mais consciência do que amor. Se cometesses um crime eu te esconderia da justiça humana, em meu seio, se o pudesse, mas minha dedicação não iria além. O amor, numa mulher, meu anjo, é a mais ilimitada confiança unida a não sei que necessidade de venerar, de adorar o ser ao qual ela pertence. Nunca concebi o amor senão como um fogo no qual se dependuram mesmo os mais nobres sentimentos, um fogo que os desenvolve a todos. Só mais uma coisa tenho a dizer-te: vem a mim pobre, e meu amor se duplicará, se possível; do contrário, renuncia a mim. Se não te vir mais, sei o que me resta a fazer. Agora, ouve-me, não quero que restituas o devido, só porque eu te aconselhei a fazê-lo. Consulta bem tua consciência. Esse ato de justiça não deve ser um sacrifício feito ao amor. Sou tua esposa e não tua amante, trata-se menos de me ser agradável do que de inspirar-me a mais profunda estima por ti. Se estou enganada, se não me explicaste bem o ato de teu pai, enfim, por pouco que julgues tua fortuna legítima (oh!, como quisera persuadir-me de que não mereces nenhuma censura!), decide ouvindo a voz de tua consciência, procede bem por ti mesmo. Um homem que ama sinceramente, como tu me amas demasiado, respeita tudo o que a sua mulher lhe atribui de santidade para que seja desonesto. Censuro-me agora por tudo isso que acabo de escrever. Bastava uma palavra, talvez, mas meu instinto de pregadora arrastou-me. Por isso quero que me ralhes, não muito severamente, mas um pouco. Querido, entre nós dois não és tu o poder? Deves por ti mesmo descobrir tuas faltas. E então, meu senhor, direis que não compreendo nada em discussões políticas?


— E então, meu tio — disse Otávio, cujos olhos estavam rasos de lágrimas.

— Mas vejo que ainda há alguma coisa escrita, termina.

— Oh! Agora só há coisas que não devem ser lidas senão por um amante.

— Bem — disse o ancião —, bem, meu filho. Tive muitas aventuras amorosas, mas peço-te que creias que eu também amei, et ego in Arcadia.[329] Apenas não compreendo por que dás lições de matemática.

— Caro tio, sou seu sobrinho, e o senhor não disse, em duas palavras, que eu já tinha roído um pouco o capital deixado por meu pai? Depois de haver lido esta carta, operou-se em mim uma revolução e num momento paguei meus remorsos atrasados. Nunca lhe poderei descrever o estado em que me achava. Ao ir ao Bois de Boulogne no meu cabriolé, uma voz gritava: “Esse cavalo é teu?”. Quando comia, a mim mesmo dizia: “Não é isto um jantar roubado?”. Tinha vergonha de mim mesmo. Tanto mais recente era minha probidade quanto mais ardente. Corri logo à casa da sra. Firmiani. Oh!, meu Deus! Nesse dia, meu tio, tive desses prazeres do coração, voluptuosidades espirituais que valiam milhões. Fiz com ela a conta do que eu devia à família Bourgneuf, e condenei-me a mim mesmo a pagar-lhe o juro de três por cento, contra a opinião da sra. Firmiani; mas minha fortuna inteira não bastava para saldar a dívida. Nós éramos então bastante amantes, bastante esposos, ela, para oferecer, eu, para aceitar as suas economias...

— Como! Além das suas virtudes, essa mulher adorável faz economias?

— Não zombe dela, meu tio. Sua posição obriga-a a muitas precauções. Seu marido partiu em 1820 para a Grécia, onde morreu faz três anos; até hoje não foi possível obter a prova legal de sua morte e conseguir o testamento que ele deve ter feito em favor da esposa, documento importante que foi tomado, perdido ou desviado num país onde os atos do registro civil não são escriturados como em França, e onde não há cônsul. Ignorando se um dia terá de afrontar herdeiros mal-intencionados, ela se vê obrigada a ter tudo numa ordem perfeita, porque quer deixar sua opulência como Chateaubriand acaba de deixar o ministério.[330] Ora, eu quero adquirir uma fortuna que seja minha, a fim de restituir à minha mulher sua opulência, se ela ficar arruinada.

— E não me disseste isso, não me procuraste?... Oh!, meu sobrinho, devias lembrar-te de que eu te quero o bastante para pagar dívidas desse quilate, dívidas de fidalgo. Sou um tio de golpes de teatro, vingar-me-ei.

— Meu tio, conheço as suas vinganças, mas deixe que eu me enriqueça pelo meu próprio esforço. Se quer prestar-me serviço, dê-me uma pensão de mil escudos até o momento em que eu necessite de capital para algum empreendimento. Olhe, neste momento, sinto-me de tal forma feliz que tudo o que quero é viver. Dou lições para não ser pesado a ninguém. Ah!, se o senhor soubesse com que prazer eu fiz a restituição! Depois de algumas pesquisas, acabei descobrindo os Bourgneuf, infelizes, privados de tudo. Essa família estava em Saint-Germain, numa casa miserável. O velho dirigia uma agência de loteria, as duas filhas se ocupavam dos arranjos domésticos e trabalhavam em escriturações. A mãe quase sempre estava doente. As duas filhas são encantadoras, mas aprenderam duramente o pouco valor que a sociedade atribui à beleza sem fortuna. Com que quadro deparei ali! Se entrei como cúmplice de um crime, de lá saí um homem honrado e lavei a memória de meu pai. Oh!, meu tio, não o julgo; há nos processos uma corrente, uma paixão que podem, por vezes, enganar ao mais honrado homem do mundo. Os advogados sabem legitimar as mais absurdas pretensões; as leis têm silogismos condescendentes para os erros da consciência, e os juízes têm o direito de se enganar. Minha aventura foi um verdadeiro drama. Ter sido a Providência, ter satisfeito a um desses desejos impossíveis: “Se nos caíssem do céu vinte mil libras de rendas!”, esse voto que todos formulamos a rir; fazer um olhar cheio de imprecações, dar lugar a um olhar sublime, de gratidão, de espanto, de admiração; atirar a opulência no meio de uma família reunida à noite em torno à luz de uma lâmpada ordinária, junto a um fogo de turfa... Não, a palavra é impotente para descrever tal cena. Minha extrema justiça lhes parecia injusta. Enfim, se há um paraíso, meu pai deve estar lá agora, feliz. Quanto a mim, sou amado como nenhum homem ainda o foi. A sra. Firmiani deu-me mais do que felicidade, dotou-me de uma delicadeza que talvez ainda me faltasse. Por isso, apelidei-a de minha querida consciência, uma das designações de amor que correspondem a certas harmonias secretas do coração. A probidade traz proveito; tenho a esperança de em breve enriquecer por mim mesmo. Neste momento, estou procurando resolver um problema industrial; e se o consigo, ganharei milhões.

— Oh!, meu filho, tens a alma de tua mãe — disse o velho, contendo a custo as lágrimas que lhe umedeciam os olhos ao pensar na irmã.

Nesse momento, não obstante a distância que havia entre a rua e o apartamento de Otávio de Camps, o rapaz e o tio ouviram o barulho feito pela chegada de um carro.

— É ela — disse o primeiro —, conheço os seus cavalos pelo modo como param.

Com efeito, a sra. Firmiani não tardou em aparecer.

— Ah! — exclamou, e fez um gesto de despeito ao ver o sr. de Bourbonne. — Mas nosso tio não está demais — disse então, deixando escapar um sorriso. — Eu que ia ajoelhar-me humildemente aos pés de meu marido, para suplicar-lhe que aceite minha fortuna. A embaixada da Áustria acaba de me mandar uma certidão que atesta o óbito de Firmiani. O documento, redigido sob os cuidados do internúncio da Áustria em Constantinopla, está perfeitamente em regra, e o testamento que o criado de quarto estava encarregado de guardar, para me ser entregue, veio incluso. Otávio, podes aceitar tudo. Sim, és mais rico do que eu, tens aí tesouros que somente Deus poderia aumentar — disse ela, batendo no coração do marido. Depois, não podendo mais suportar sua felicidade, mergulhou a cabeça no peito de Otávio.

— Minha sobrinha, antigamente tínhamos amores, hoje vocês amam — disse o tio. — Vocês são tudo o que há de bom e de belo na humanidade, porque nunca têm culpa de suas faltas, elas vêm sempre de nós.


Paris, fevereiro de 1834[331]

 

 

INTRODUÇÃO

Observe-se logo como o título Estudo de mulher (em francês: Étude de femme) é caracteristicamente balzaquiano. Antes de Balzac, “escrever” significava imaginar, sonhar ou recordar, contar e divertir; a partir de Balzac, “escrever” é, além de tudo isso, observar e estudar. As poucas páginas que se lerão a seguir constituem efetivamente um pequeno estudo psicológico em todo o rigor da palavra, o que, aliás, não impede que sejam ao mesmo tempo um conto delicioso. Contentemo-nos com um único reparo: o motivo da “troca de cartas por distração” é um dos mais banais, frequentes nos melodramas e nos maus romances: veja-se como Balzac sabe renová-lo aqui e que partido sabe tirar dele. Note-se ainda a naturalidade com que este pequeno conto se enquadra no conjunto de A comédia humana por um grande número de ligações habilmente estabelecidas.

É interessante lembrar uma observação do grande crítico moderno Alain a respeito da personalidade de Horácio Bianchon, por quem a narração é feita, e da técnica empregada neste conto pelo autor. “Bianchon é o mais vivo dos médicos de Balzac; circula por toda parte; por toda parte comunica impulsão à intriga ou ao drama, mas nunca se deixa arrebatar; é o espectador de um momento que depois se vai embora, igualmente imparcial e frio no julgar como no curar. Se Balzac é representado por alguém nessa multidão em movimento, acho que é antes por Bianchon do que por d’Arthez [...] Não sei por quê, imagino-o sempre de costas; será porque está para partir, porque está com pressa. Mas suas costas são realmente tranquilizadoras. Em Estudo de mulher é ele quem conta, e o leitor pensa, a princípio, que é Balzac. Leiam o começo de um retrato de mulher; uma cena de baile; o acordar de Rastignac; uma digressão sobre o bourguignon. “Foi nesse instante que penetrei na sala de Eugênio. Ele teve um sobressalto e disse: — Ah! Com que então aqui estás, meu caro Horácio! Dir-se-ia que é o próprio Balzac que acorda e só então percebe ser Horácio.”


paulo rónai


ESTUDO DE MULHER
Dedicado ao marquês Jean-Charles di Negro[332]

 


A marquesa de Listomère é uma dessas jovens senhoras educadas no espírito da Restauração. Tem princípios, jejua, comunga, e vai muito enfeitada aos bailes, aos Bouffons, à Ópera; seu diretor espiritual permite-lhe aliar o profano ao sagrado. Sempre em dia com a Igreja e com o mundo, ela oferece uma imagem do tempo presente, que parece ter tomado a palavra Legalidade por epígrafe. Há no procedimento da marquesa exatamente a necessária devoção para poder chegar, sob uma nova Maintenon,[333] à sombria piedade dos últimos dias de Luís xiv e suficiente mundanismo para, igualmente, adotar os hábitos galantes dos primeiros tempos desse reinado, se ele voltasse. Na hora presente ela é virtuosa por cálculo, ou talvez, por inclinação. Casada faz sete anos com o marquês de Listomère, um desses deputados que esperam o pariato, acredita, talvez, servir também com a sua conduta às ambições da família. Algumas mulheres esperam, para julgá-la, o momento em que o sr. de Listomère for par de França, e em que ela tiver trinta e seis anos, época da vida em que a maioria das mulheres se apercebe de que é vítima das leis sociais. O marquês é um homem bastante insignificante: é bem-visto na corte; suas qualidades, como seus defeitos, são negativas; aquelas não lhe podem formar uma reputação, da mesma forma que os outros não lhe dão a espécie de brilho projetado pelos vícios. Como deputado nunca fala, mas vota bem; comporta-se em casa como na Câmara. Por isso é considerado o melhor marido de França. Não sendo suscetível de exaltar-se, nunca resmunga, a menos que o façam esperar. Seus amigos o alcunharam de tempo encoberto. Efetivamente, não há nele nem luz muito viva nem completa obscuridade. Assemelha-se a todos os ministérios que se sucederam em França, desde a Carta.[334] Para uma mulher de princípios, seria difícil cair em melhores mãos. Não é uma sorte para uma mulher virtuosa ter casado com um homem incapaz de fazer asneiras? Alguns dândis tiveram a impertinência de apertar levemente a mão da marquesa ao dançar com ela, mas apenas obtiveram olhares de desprezo, e todos experimentaram essa insultuosa indiferença que, tal como as geadas da primavera, destrói o germe das mais belas esperanças. Os bonitos, os espirituosos, os fátuos, os sentimentais que vivem a girar a bengala, os de grande nome ou de grande renome de alto e baixo voo, todos, junto dela, se tornaram inofensivos. Ela conquistou o direito de conversar tanto tempo e quantas vezes quisesse com os homens que lhe parecem espirituosos, sem que por isso seja catalogada no álbum da maledicência. Certas mulheres coquetes são capazes de seguir esse.método durante sete anos para, mais tarde, satisfazerem suas fantasias; mas atribuir essa ideia preconcebida à marquesa de Listomère seria caluniá-la. Tive a felicidade de ver essa fênix das marquesas: ela conversa bem, eu sei ouvir, agradei-lhe, vou às suas recepções. Tal era o objetivo da minha ambição. Nem feia, nem bonita, a sra. de Listomère tem dentes alvos, tez viçosa e lábios muito vermelhos; é alta e benfeita de corpo; tem o pé pequeno, fino, e nunca o exibe; seus olhos, longe de ser amortecidos, como o são quase todos os olhos parisienses, têm um brilho suave que se torna mágico quando por acaso ela se anima. Adivinha-se uma alma através dessa forma indecisa. Se se interessa pela conversação, mostra uma graça velada pela preocupação de manter-se fria e é então encantadora. Não procura sucesso e consegue-o. Sempre se acha o que não se procura. Essa frase é demasiadas vezes verdadeira para que se transforme qualquer dia em provérbio. Será isso a moralidade dessa aventura, que eu não me permitiria narrar se, neste momento, ela não repercutisse em todos os salões de Paris.

A marquesa de Listomère dançou, há cerca de um mês, com um rapaz tão modesto quanto estouvado, cheio de boas qualidades, e só deixando ver os seus defeitos; é apaixonado e zomba das paixões; tem talento e esconde-o; faz-se de sábio com os aristocratas e ostenta aristocracia perante os sábios. Eugênio de Rastignac[335] é um desses jovens muito sensatos, que tudo experimentam e parecem tentear os homens para saber o que promete o futuro. Enquanto espera a idade da ambição, moteja de tudo; tem graça e originalidade, duas qualidades raras porque se excluem uma à outra. Conversou sem premeditação, durante meia hora mais ou menos, com a marquesa de Listomèrè. Vencendo com graça os caprichos de uma conversação que, tendo começado na ópera Guilherme Tell, chegara aos deveres da mulher, ele, por mais de uma vez, olhara a marquesa de forma a embaraçá-la; depois, deixou-a e não mais lhe falou durante todo o sarau: dançou, jogou écarté, perdeu algum dinheiro e foi deitar-se. Tenho a honra de lhes afirmar que tudo se passou assim. Não acrescento nem suprimo nada.

No dia seguinte, de manhã, Rastignac despertou tarde, ficou na cama, onde se entregou, com certeza, a um desses devaneios matinais durante os quais um jovem desliza como um silfo sob mais de um cortinado de seda, de cashmere ou de algodão. Nesses momentos, quanto mais pesado de sono está o corpo, tão mais ágil é o espírito. Por fim, Rastignac se levantou sem bocejar demasiado, como costumam fazer tantas pessoas mal-educadas, tocou a campainha para chamar o criado de quarto, mandou preparar chá, que bebeu imoderadamente, coisa que as pessoas que gostam de chá não acharão extraordinária; mas, para explicar o fato àqueles que não aceitam essa bebida senão como a panaceia das indigestões, acrescentarei que Eugênio estava escrevendo: achava-se comodamente sentado e tinha os pés mais vezes em cima da grelha de lareira do que mesmo no seu regalo de peles. Oh!, estar com os pés sobre a barra polida que une os dois grifos de um guarda-fogo, e pensar nos próprios amores quando a gente se levanta e está de robe de chambre é uma coisa tão deliciosa que eu lamento infinitamente não ter nem amante, nem guarda-fogo, nem robe de chambre.

Quando eu tiver tudo isso, não externarei minhas observações, mas saberei aproveitá-lo.

A primeira carta que Eugênio escreveu ficou pronta em um quarto de hora; dobrou-a, fechou-a, deixando-a diante de si sem lhe pôr o endereço. A segunda carta, começada às onze horas, só foi terminada ao meio-dia. Quatro páginas cheias.

— Essa mulher não me sai da cabeça — disse, ao dobrar a segunda carta que deixou no mesmo lugar, com a intenção de subscritá-la logo que terminasse seu devaneio involuntário. Cruzou o robe de chambre de ramagens, colocou os pés em cima de uma banqueta, meteu as mãos nos bolsos da calça de cashmere encarnada e reclinou-se numa deliciosa poltrona de orelhas, cujo assento e espaldar formavam o ângulo confortável de cento e vinte graus. Não tomou mais chá e ficou imóvel, com o olhar fixo sobre a mão dourada que coroava a pequena pá, sem ver nem mão, nem pá, nem dourado. Nem ao menos atiçou o fogo. Imenso erro! Pois não é um vivo prazer atiçar fogo quando se pensa em mulheres? Nosso espírito atribui frases às linguetas azuis que se alteiam subitamente e tagarelam na lareira. Interpreta-se a linguagem poderosa e brusca de um bourguignon.

Detenhamo-nos nessa palavra e demos aqui, aos ignorantes, uma explicação devida a um etimologista muito distinto que desejou guardar anonimato. Bourguignon é o nome popular e simbólico atribuído, desde o reinado de Carlos vi, a essas detonações ruidosas cujo efeito é atirar sobre um tapete ou sobre um vestido uma pequenina brasa, leve princípio de incêndio. O fogo liberta, dizem, uma bolha de ar que um verme roedor deixou no cerne da madeira. Inde amor, inde burgundus.[336] Treme-se ao ver rolar como uma avalanche o carvão que tão cuidadosamente se havia tentado equilibrar entre duas achas em chama. Oh!, atiçar o fogo, quando se ama, não será desenvolver materialmente o próprio pensamento?

Foi nesse instante que penetrei na sala de Eugênio. Ele teve um sobressalto e disse:

— Ah!, com que então aqui estás, meu caro Horácio![337] Desde quando?

— Acabo de chegar.

— Ah!

Pegou as duas cartas, subscritou-as e chamou o criado.

— Leva estas cartas ao seu endereço.

E José foi, sem fazer a menor observação; excelente criado!

Pusemo-nos a conversar sobre a expedição da Moreia,[338] da qual eu desejava participar na qualidade de médico. Eugênio fez-me ver que perderia muito em sair de Paris, e falamos de coisas indiferentes. Suponho que não me levarão a mal suprimir nossa palestra...

No momento em que a marquesa de Listomère se levantou, cerca de duas horas da tarde, sua criada de quarto, Carolina, entregou-lhe uma carta. Ela leu-a, enquanto Carolina a penteava. (Imprudência que cometem muitas jovens senhoras.)

“Oh! Caro anjo de amor, tesouro de vida e de felicidade!”

A essas palavras a marquesa dispôs-se a atirar a carta ao fogo, mas passou-lhe pela cabeça uma fantasia que todas as mulheres virtuosas compreenderão maravilhosamente bem, a qual era a de ver como terminaria um homem que assim começava. Quando virou a quarta página, pendeu os braços com ar de fadiga.

— Carolina, vá saber quem trouxe esta carta.

— Senhora, recebi-a do criado de quarto do sr. barão de Rastignac.

Fez-se um longo silêncio.

— A senhora quer vestir-se? — perguntou Carolina.

— Não.

“Ele deve ser, por força, muito impertinente!”, pensou a marquesa...


Peço a todas as mulheres imaginarem, por si mesmas, o comentário. A sra. de Listomère terminou o seu pela resolução formal de interditar a entrada de sua casa ao sr. Eugênio de Rastignac, e, caso o encontrasse em sociedade, manifestar-lhe mais do que desdém, pois a sua insolência não se podia comparar a nenhuma daquelas que a marquesa acabara por desculpar. A princípio quis conservar a carta, mas, depois de bem refletir, queimou-a.

— A senhora acaba de receber uma formidável declaração de amor e leu-a! — disse Carolina à camareira.

— Aí está uma coisa que eu nunca esperava dela — respondeu a velha, muito admirada.

À noite a marquesa foi à casa do marquês de Beauséant,[339] onde provavelmente Rastignac devia estar. Era um sábado. Sendo o marquês de Beauséant aparentado com o sr. de Rastignac, este não podia deixar de aparecer durante a reunião. Às duas horas da manhã, a sra. de Listomère, que só havia ficado para esmagar Eugênio sob o peso de seu desdém, esperava-o em vão.

Um homem de espírito, Stendhal, teve a ideia singular de denominar cristalização[340] o trabalho que o pensamento da marquesa realizou antes, durante e depois desse sarau.

Quatro dias depois, Eugênio ralhava com o criado de quarto.

— Sim, sr. José! Vou ser forçado a te despedir, rapaz.

— Como, senhor?

— Só fazes asneiras! Aonde levaste as duas cartas que te entreguei sexta-feira?

José ficou abobado. Tal como uma estátua qualquer do pórtico de uma catedral, permaneceu imóvel, completamente absorvido pelo trabalho da sua imaginação. De súbito sorriu parvamente e disse:

— Uma, senhor, era para a sra. marquesa de Listomère, na rua Saint-Dominique, e a outra para o advogado do patrão...

— Tens certeza do que estás dizendo?

José ficou perplexo. Vi que deveria intervir, pois por acaso ainda me achava ali.

— José tem razão — disse eu. Eugênio virou-se para mim. — Li os endereços, involuntariamente, e...

— E — disse Eugênio, interrompendo-me — uma das cartas não era para a sra. de Nucingen?[341]

— Com os diabos, não! Por isso acreditei, meu caro, que teu coração tivesse dado um salto da rue Saint-Lazare para a rue Saint-Dominique.

Eugênio deu uma palmada na testa e pôs-se a sorrir. José compreendeu logo que a culpa não era dele.

Agora eis aqui as moralidades que todos os rapazes deveriam meditar: — Primeiro erro: Eugênio achou divertido fazer a marquesa de Listomère rir do equívoco que a tornara senhora de uma carta que não era para ela. Segundo erro: ele não foi à casa da sra. de Listomère senão quatro dias depois da aventura, deixando, por essa forma, que se cristalizassem os pensamentos de uma jovem e virtuosa dama. Havia ainda uma dúzia de erros que é melhor calar, a fim de dar às senhoras o prazer de deduzi-los ex-professo[342] para aqueles que não os adivinharem. Eugênio chega à porta da casa da marquesa, mas, quando quer entrar, o porteiro o detém, dizendo-lhe que a senhora saiu. Nesse ínterim chega o marquês.

— Vamos, Eugênio, minha mulher está em casa.

Oh! Desculpai o marquês. Um marido, por melhor que seja, raramente atinge a perfeição. Ao subir a escada, Rastignac se apercebeu dos doze erros de lógica mundana encerrados nessa passagem do belo livro de sua vida. Quando a sra. de Listomère viu o marido entrar com Eugênio, não pôde deixar de corar. O jovem barão observou esse súbito rubor. Se o homem mais modesto conserva ainda uma pequena dose de fatuidade, da qual não se liberta, da mesma forma que a mulher não se separa de sua fatal coqueteria, ninguém poderia censurar Eugênio de dizer consigo mesmo naquele momento:

— Quê! Também esta fortaleza?

E empertigou-se no colarinho. Embora os rapazes não sejam muito avaros, sempre gostam de acrescentar mais uma peça à sua coleção de medalhas.

O sr. de Listomère apoderou-se da Gazette de France, que viu num canto da lareira, e foi para o vão de uma janela, a fim de adquirir, com o auxílio do jornalista, uma opinião própria sobre a situação da França. Uma mulher, até mesmo uma puritana, não fica muito tempo embaraçada nem mesmo na mais difícil situação em que se possa achar: dir-se-ia que tem sempre ao alcance da mão a folha de parra que lhe foi dada por nossa mãe Eva. Por isso, quando Eugênio, interpretando em beneficio de sua vaidade as instruções dadas ao porteiro, saudou a sra. de Listomère com um ar possivelmente intencional, soube ela velar todos os seus pensamentos com um desses sorrisos femininos, mais impenetráveis ainda do que a palavra de um rei.

— Acha-se indisposta, minha senhora? Tinha interditado sua porta.

— Não, senhor.

— Ia sair, talvez?

— Tampouco.

— Espera alguém?

— Ninguém.

— Se minha visita é indiscreta, culpe unicamente o marquês. Eu ia obedecer às suas misteriosas ordens quando ele próprio me introduziu no santuário.

— O sr. de Listomère não estava a par do meu segredo. Nem sempre é prudente fazer a um marido certas confidências...

O acento firme e suave com que a marquesa proferiu essas palavras e o olhar sobranceiro com que as acompanhou fizeram Rastignac compreender que se apressara demasiado em cantar vitória.

— Minha senhora — disse ele a rir —, compreendo-a; felicito-me, pois, duplamente, por ter encontrado o marquês, porquanto ele me proporciona a oportunidade de lhe apresentar uma justificação que seria cheia de perigos, se a senhora não fosse a bondade em pessoa.

A marquesa considerou o jovem barão com um ar bastante admirado, mas respondeu com dignidade:

— Senhor, o silêncio será de sua parte a melhor das escusas. Quanto a mim, prometo-lhe o mais absoluto esquecimento, perdão de que é pouco merecedor.

— Minha senhora — disse Eugênio com vivacidade —, o perdão é inútil quando não há ofensa. A carta — acrescentou em voz baixa — que a senhora recebeu, e que deve ter achado bastante inconveniente, não lhe era destinada.

A marquesa não pôde deixar de sorrir, bem quisera ter sido ofendida.

— Para que mentir? — replicou com ar desdenhosamente divertido, mas com um tom de voz bastante doce. — Agora que já lhe ralhei, posso rir-me, de bom grado, de um estratagema que não é sem malícia. Conheço mulheres que se teriam deixado impressionar. “Santo Deus! Como ele ama!”, diriam elas.

A marquesa pôs-se a rir com um riso forçado e acrescentou com ar de indulgência:

— Se quiser que fiquemos amigos, ponhamos de lado ardis que a mim não me podem enganar.

— Juro-lhe por minha honra que está mais enganada do que julga — replicou vivamente Eugênio.

— Mas de que estão falando aí? — perguntou o sr. de Listomère, que fazia alguns momentos estava ouvindo a conversação sem lhe perceber o sentido.

— Oh! É coisa que não lhe interessa — respondeu a marquesa.

O sr. de Listomère continuou tranquilamente a leitura do jornal e disse: — Ah! A sra. de Mortsauf morreu: seu pobre irmão,[343] minha cara, certamente estará em Clochegourde.

— Sabe, senhor — disse a marquesa, virando-se para Eugênio —, que acaba de dizer uma impertinência?

— Se eu não conhecesse o rigor de seus princípios — respondeu ele ingenuamente —, eu acreditaria que a senhora quer ou atribuir-me ideias que não me permito, ou arrancar-me o meu segredo. Ou talvez também queira divertir-se à minha custa.

A marquesa sorriu. Eugênio impacientou-se com esse sorriso.

— Faço votos — disse ele — de que a senhora creia sempre numa ofensa que eu não pratiquei! E desejo ardentemente que o acaso não a faça descobrir na sociedade a pessoa a quem era dirigida a carta...

— Como! Será ainda a sra. de Nucingen? — exclamou a marquesa, mais desejosa de penetrar um segredo que de vingar-se dos epigramas do rapaz.

Eugênio corou. É preciso ter mais de vinte e cinco anos para não corarmos quando nos censuram a tolice de uma fidelidade, da qual as mulheres zombam, a fim de não deixar perceber a inveja que lhes causa. Não obstante, ele disse com bastante sangue-frio:

— E por que não, senhora?

Eis os erros que cometemos aos vinte e cinco anos. Essa confidência causou uma violenta comoção na sra. de Listomère, mas Eugênio ainda não sabia analisar um rosto de mulher ao olhá-lo apressadamente ou de viés. Somente os lábios da marquesa empalideceram. A sra. de Listomère tocou a sineta chamando o criado para pedir lenha, obrigando, dessa forma, Rastignac a levantar-se e sair.

— Nesse caso — disse então a marquesa, detendo Eugênio com ar frio e formal —, lhe seria difícil explicar-me, senhor, por que pode meu nome cair de sua pena. Não se escreve um endereço numa carta como se pode pegar, por descuido, a claque de um outro ao sair de um baile.

Eugênio, desconcertado, olhou para a marquesa com um ar ao mesmo tempo fátuo e aparvalhado; sentiu que se estava tornando ridículo, balbuciou uma frase de colegial e saiu.

Poucos dias depois a marquesa adquiriu provas irrecusáveis da veracidade de Eugênio. Faz dezesseis dias que ela não vai mais a reuniões sociais.

O marquês, a quantos lhe perguntam a causa dessa mudança, responde:

— Minha mulher está com uma gastrite.

Eu, que a estou tratando, e que lhe conheço o segredo, sei que ela tem apenas uma pequena crise nervosa, que toma por pretexto para ficar em casa.


Paris, fevereiro de 1830

 

 

INTRODUÇÃO

Entre as personagens estrangeiras da A comédia humana, os polacos ocupam lugar de relevo. É natural que os compatriotas da mulher com quem durante tantos anos se correspondera, que foi sua noiva secreta desde 1833 e com quem finalmente casou poucos meses antes de morrer, tenham despertado o interesse de Balzac. Além disso, eram os filhos de uma nação famosa por sua sorte infeliz, particularmente queridos pelos românticos. Paris, centro da emigração polaca, abrigava nesse tempo representantes realmente notáveis da Polônia, músicos, escritores, sábios — e também aventureiros, aristocratas pródigos e mendigos famintos. Balzac dava-se com Chopin, encontrava Miczkiewicz, frequentava o dr. Wronski, mistura de sábio e de charlatão, sem falar dos parentes da condessa Hanska, cuja extensa família tinha sempre representantes em Paris. Assim, pois, o quadro que, no preâmbulo de A falsa amante (em francês: La Fausse Maîtresse), o escritor traça da emigração polonesa de então é uma resultante de experiências pessoais; e o conde Adão Laginski parece encarnar bem certo tipo de ricos aristocratas poloneses que, impedidos de tomar parte na vida pública de seu país, se atiravam à dissipação e aos prazeres (Ver L’Étrangère, de Korwin-Piotrowska). Seu amigo Tadeu Paz, esse herói da abnegação e do sacrifício, tem os traços menos bem desenhados por estarem superidealizados; para tornar verossímil a sua abnegação sobre-humana, o escritor sente a necessidade de mesclar em suas veias sangue italiano e sangue polaco, isto é, de duas raças que na concepção romântica passavam como protótipos de idealismo e de paixão.

A figura desse amante generoso e desesperado foi em parte inspirada em certo conde Tadeu Wylezynski, primo de Eveline Hanska e, antes mesmo do casamento, seu primeiro amor. Não podendo desposar a prima rica, ele tê-la-ia adorado à distância silenciosamente, não só depois de casada, como também após o começo do idílio com Balzac. Rival feliz, este lhe consagrou pelo menos este retrato idealizado, guardando-lhe até o nome. No momento da morte de Wylezynski, pouco depois da publicação de A falsa amante, o próprio romancista lembrava à amante essa identificação, que era um segredo dos interessados. (Lettres à l’Étrangère, carta do 11.x.1844.)

Ao tempo da publicação desta novela, o escritor queixava-se da dificuldade extraordinária do assunto. (Ibidem, carta do 20.x.1844.) Embora não especifique a natureza da dificuldade, a leitura da novela a indica, pois o autor não conseguiu vencê-la. Parece que o próprio Balzac achava o devotamento de seu herói um pouco exagerado. Ele foi um dos maiores, talvez o maior, pintores das deformações causadas no homem pelo crime, pelo vício, pelo instinto; suas personagens preferidas são pervertidos monstruosos em que a deformação vai ao extremo limite, mas que nunca deixam de ser convincentes e obedecem à lógica do mecanismo das paixões. Mas, quando pretende retratar “uma dessas ações sublimes, menos raras do que acreditam os detratores dos tempos presentes e que [...] como as belas pérolas estão ocultas dentro de grosseiras conchas”, não chega mais a nos persuadir. A “mistificação sublime” com que Paz pretende esconder o seu amor à esposa do amigo é, ao mesmo tempo, engenhosa e ingênua demais. O herói vale-se de requintes incríveis e de truques insulsos para praticar o bem. Se a virtude necessariamente fosse tão complicada, quem não preferiria o vício?


paulo rónai


A FALSA AMANTE
Dedicado à condessa Clara Maffei[344]

 


I – UM MISTÉRIO NO MEIO DA FELICIDADE

No mês de setembro de 1835, uma das mais ricas herdeiras do Faubourg Saint-Germain, a srta. du Rouvre, filha única do marquês du Rouvre, desposou o conde Adão Mitgislas Laginski, jovem polonês proscrito.

Seja-me permitido escrever os nomes como eles são pronunciados, a fim de poupar ao leitor o aspecto das fortificações de consoantes, com as quais a língua eslava protege as suas vogais provavelmente para não perdê-las, dado o seu pequeno número.

O marquês du Rouvre dissipara quase que completamente uma das mais belas fortunas da nobreza, à qual devera, outrora, sua união com uma srta. de Ronquerolles.[345] Por isso, pelo lado materno, a srta. Clementina du Rouvre tinha como tio o marquês de Ronquerolles e como tia a sra. de Sérisy. Pelo lado paterno gozava da dita de ter como tio o singular cavalheiro du Rouvre, filho segundo da casa, solteirão que enriquecera negociando com terras e casas. O marquês de Ronquerolles teve a infelicidade de perder os dois filhos que tinha por ocasião da epidemia de cólera. O filho único da sra. de Sérisy, jovem militar de grande futuro, morrera na África na questão da Macta.[346] As famílias ricas vivem atualmente entre o perigo de arruinar os filhos se os têm em grande número, e o de se extinguirem se se limitam a um ou dois — singular resultado do Código Civil,[347] que Napoleão não previu. Por obra do acaso, e apesar das dissipações insensatas do marquês du Rouvre por Florina,[348] uma das mais encantadoras atrizes de Paris, Clementina tornou-se pois uma herdeira. O marquês de Ronquerolles, um dos mais hábeis diplomatas da nova dinastia, sua irmã, a sra. de Sérisy e o cavalheiro du Rouvre convieram, para salvar suas fortunas das garras do marquês du Rouvre, em dispor delas a favor da sobrinha, à qual prometeram constituir-lhe, cada qual, uma renda de dez mil francos, no dia de seu casamento.

É perfeitamente inútil dizer que o polonês, embora sendo um refugiado, nada custava ao governo francês. O conde Adão pertencia a uma das mais antigas e ilustres famílias da Polônia, sendo aliado à maioria das casas principescas da Alemanha, aos Sapiéha, aos Radziwil, aos Rzewuski, aos Czartoriski, aos Leczinski, aos Iablonoski, aos Lubormiski, a todos os ski sármatas.[349] Mas não eram os conhecimentos heráldicos o que distinguia a França sob Luís Filipe, e aquela nobreza não podia ser uma recomendação junto à burguesia que então imperava. De resto, quando, em 1833, Adão apareceu no Boulevard des Italiens, no Frascati,[350] no Jockey Club, levou a vida de um rapaz que, tendo perdido as suas esperanças políticas, tornava a entregar-se aos seus vícios e ao amor dos prazeres. Tomaram-no por um estudante. A nacionalidade polonesa, em consequência de uma odiosa reação governamental,[351] caíra, no momento, tão baixo que os republicanos queriam erguê-la bem alto. A estranha luta do Movimento contra a Resistência,[352] dois termos que daqui a trinta anos serão inexplicáveis, fez um joguete do que devia ser tão respeitável: o nome de uma nação vencida, à qual a França concedia hospitalidade, para a qual se inventavam festas, para a qual se cantava e dançava por subscrição; enfim, uma nação que, por ocasião da luta entre a França e a Europa, nos oferecera seis mil homens em 1796, e que homens! Não se deduza disso que se queira dar razão à Polônia[353] contra o imperador Nicolau ou ao imperador Nicolau contra a Polônia. Em primeiro lugar, seria uma tolice introduzir discussões políticas numa narrativa que tem por fim divertir ou interessar. E depois, Rússia e Polônia tinham razão, uma em querer a unidade de seu império, a outra em querer ser livre. Digamos de passagem que a Polônia poderia conquistar a Rússia pela influência de seus costumes, em vez de combatê-la pelas armas, imitando os chineses, que acabaram por “enchinesar” os tártaros e que “enchinesarão” os ingleses, assim o esperemos. A Polônia deveria polonizar a Rússia; Poniatowski[354] o tentara na região menos temperada do império; mas esse gentil-homem foi um rei tanto mais incompreendido, porque talvez ele mesmo não se compreendesse bem. Como se poderia deixar de odiar essa pobre gente que foi a causa da horrível mentira cometida durante a revista em que toda Paris pedia para socorrer a Polônia? Fingiram considerar os poloneses aliados do partido republicano, sem se lembrarem de que a Polônia era uma república aristocrática. Desde então a burguesia não poupou os seus ignóbeis desdéns aos poloneses que poucos dias antes eram endeusados. O sopro de um motim fez sempre os parisienses variarem do norte para o sul, sob todos os regimes. É preciso relembrar essas reviravoltas da opinião parisiense para explicar como a palavra “polonês” era, em 1835, um qualificativo irrisório para o povo que se julga o mais espirituoso e o mais cortês do mundo, no foco das luzes, numa cidade que empunha hoje o cetro das artes e da literatura. Existem, infelizmente, duas espécies de poloneses refugiados: o polonês republicano, filho de Lelewel,[355] e o nobre polonês, do partido à cuja frente está o príncipe Czartoriski.[356] Essas duas variedades de poloneses são a água e o fogo, mas por que querer-lhes mal por isso? Não são essas divisões encontradas sempre entre os refugiados de todas as nações, seja lá onde for que eles estejam? Todos carregam consigo a sua terra e seus ódios. Em Bruxelas, dois padres franceses, emigrados, manifestavam um profundo horror, um ao outro, e quando perguntaram o motivo a um deles, respondeu, apontando para o companheiro de desdita: “É um jansenista”. Dante, de bom grado, em seu exílio, teria apunhalado um adversário dos Brancos.[357] Esse o motivo das acusações dirigidas contra o venerável príncipe Adão Czartoriski pelos radicais franceses, e o do desfavor com que envolveram parte da emigração polonesa os Césares de café e os Alexandres patenteados. Em 1834, pois, Adão Mitgislas Laginski teve contra ele os gracejos parisienses. “Ele é gentil, embora polonês”, dizia Rastignac.

— Todos esses poloneses se diziam grão-senhores — comentava Máximo de Trailles[358] — mas este paga suas dívidas de jogo, o que me faz pensar que já teve propriedades rurais. — Sem querermos ofender proscritos, é permitido observar que a leviandade, a despreocupação, a inconsistência do caráter sármata justificaram a maledicência dos parisienses, que, aliás, muito se pareceriam com os poloneses, em idênticas circunstâncias. A aristocracia francesa, tão admiravelmente socorrida pela aristocracia polonesa durante a Revolução, não pagou na mesma moeda aos emigrados forçados de 1832.[359] Tenhamos a triste coragem de confessá-lo, o Faubourg Saint-Germain continua, nisso, devedor da Polônia.

Era o conde Adão rico, pobre, um aventureiro? Durante muito tempo, esse problema permaneceu sem solução. Os salões da diplomacia, fiéis às instruções recebidas, imitaram o silêncio do imperador Nicolau, que considerava como morto todo emigrado polonês. As Tulherias[360] e a maioria dos que lá recebiam a palavra de ordem deram uma terrível prova dessa qualidade política a que se dá o nome de sabedoria. Ignoraram um príncipe russo com o qual antes costumavam fumar charutos durante a emigração, por parecer ter ele incorrido no desagrado do imperador Nicolau. Metidos entre a prudência da corte e a da diplomacia, os poloneses de distinção viviam na solidão bíblica de Super flumina Babylonis[361] ou frequentavam certos salões que servem de zona neutra para todas as opiniões. Numa cidade de prazer como Paris, onde as distinções abundam em todas as camadas, a leviandade polonesa encontrou duas vezes mais motivos do que precisava para viver a existência dissipada de rapazes.

Digamo-lo, enfim, Adão teve a princípio contra si o seu porte e as suas maneiras. Há duas espécies de poloneses, como há duas espécies de ingleses. Quando uma inglesa não é muito bela, é horrivelmente feia, e o conde Adão pertencia à segunda categoria. Seu pequeno rosto, de aspecto bastante azedo, parecia ter sido comprimido num torno. O nariz curto, os cabelos louros, a barba e os bigodes ruivos davam-lhe um ar de cabra, tanto mais acentuado por ser ele pequeno, magro e porque seus olhos de um amarelo sujo impressionavam por aquele olhar oblíquo, tão célebre, devido ao verso de Virgílio.[362] Como podia ele, apesar de tantas condições desfavoráveis, ter maneiras e um tom aprimorado? A solução desse problema era dada quer pela indumentária de dândi, quer pela educação que lhe dera sua mãe, uma Radziwil. Se sua coragem alcançava a temeridade, seu espírito não ia além dos gracejos correntes e efêmeros da conversação parisiense; mas não encontrava com frequência, entre os rapazes da moda, um que lhe fosse superior. Os rapazes da alta sociedade falam hoje demasiado sobre cavalos, rendas, impostos, deputados, para que a conversação francesa se conserve o que foi. O espírito exige vagares e certas desigualdades de posição. É provável que se converse melhor em Petersburgo e Viena do que em Paris. Pessoas do mesmo nível social não precisam mais de finuras, dizem uns aos outros, muito simplesmente, as coisas como elas são. Os trocistas de Paris dificilmente podiam achar um grão-senhor numa espécie de estudante leviano, que nas suas palestras passava frivolamente de um assunto para outro, que corria em busca de divertimento com tanto mais furor quanto acabava de escapar a grandes perigos e que, tendo saído de seu país, onde sua família era conhecida, se julgava com direito de levar uma vida extravagante sem correr o risco da desconsideração. Um belo dia, em 1834, Adão comprou um palacete na rue de la Pépinière. Seis meses depois dessa aquisição, seu trem de vida equiparou-se ao das casas mais ricas de Paris.

No momento em que Laginski começava a se fazer levar a sério, viu Clementina nos Italiens e apaixonou-se por ela. Um ano depois, realizou-se o casamento. O salão da sra. d’Espard[363] deu o sinal para as felicitações. As mães de família vieram a saber demasiado tarde que desde o ano novecentos os Laginski estavam incluídos entre as famílias ilustres do Norte. Por uma medida de prudência antipolonesa, a mãe do jovem conde tinha, na época da insurreição, hipotecado seus bens, por uma quantia enorme, a duas casas judaicas, e colocara o dinheiro em valores franceses. O conde Adão Laginski possuía oitenta mil francos de renda. Ninguém mais se admirou da imprudência com que — na opinião de muitas rodas — a sra. de Sérisy, o velho diplomata de Ronquerolles e o cavalheiro du Rouvre cediam ante a louca paixão da sobrinha. Como sempre, todos passaram de um extremo a outro. Durante o inverno de 1836, o conde Adão foi o homem da moda e Clementina Laginski tornou-se uma das rainhas de Paris. A sra. de Laginski faz parte hoje desse grupo encantador de jovens damas onde brilham as sras. de l’Estorade, de Portenduère, Marie de Vandenesse, du Guénic e de Maufrigneuse,[364] as flores da Paris atual, que vivem à grande distância dos arrivistas, dos burgueses e dos fazedores da nova política.

Esse preâmbulo era necessário para determinar a esfera na qual se passou uma dessas ações sublimes, menos raras do que o acreditam os detratores dos tempos presentes, e que são, como as belas pérolas, fruto de um sofrimento ou de uma dor e, que, semelhantes às pérolas, estão ocultas dentro de grosseiras conchas, perdidas, enfim, no fundo desse abismo, desse mar, dessa onda incessantemente agitada, denominada sociedade, século, Paris, Londres ou Petersburgo, como quiserdes!

Se algum dia foi demonstrada a verdade que diz ser a arquitetura a expressão dos costumes, não se daria isso a partir da insurreição de 1830 sob o reinado da Casa de Orléans? Pois, restringindo-se todas as fortunas na França, os majestosos palácios de nossos pais estão sendo incessantemente demolidos e substituídos por uma espécie de falanstério onde o par de França de Julho mora no terceiro andar, acima de um empírico enriquecido. Os estilos são empregados confusamente. Como não existe mais corte nem nobreza para dar o tom, não se vê nenhuma harmonia nas produções da arte. Por sua vez, nunca a arquitetura descobriu tão numerosos recursos econômicos para macaquear o verdadeiro e o sólido, nem desenvolver tanta ciência, tanto gênio nas distribuições. Oferecei a um artista a orla do jardim de um velho palácio demolido, e ele vos construirá um pequeno Louvre, abarrotado de ornamentos; nele encontrareis um pátio, cocheiras e, se fizerdes questão, também um jardim; no interior ele acumulará tantas saletas e tantos corredores, saberá tão bem enganar a vista, que vos sentireis à vontade. Enfim, abundam de tal modo os aposentos que uma família ducal faz suas evoluções na antiga casa do forno de um presidente togado. O palacete da condessa Laginski, na rue de la Pépinière, era uma dessas criações modernas e estava situado entre um pátio e um jardim. À direita, no pátio, estavam os quartos dos criados, as cozinhas e demais peças de serviço, enquanto à esquerda se achavam as cavalariças e os depósitos.

O cubículo do porteiro erguia-se entre dois bonitos portões. O grande luxo da casa consistia numa encantadora estufa, disposta junto a um boudoir no rés do chão, no qual existem admiráveis salas de recepção. Um filantropo corrido da Inglaterra erguera aquela joia arquitetônica, construíra a estufa, desenhara o jardim, envernizara as portas, ladrilhara as peças de serviços, enverdecera as janelas e realizara um desses sonhos semelhantes — guardadas as devidas proporções — ao de Jorge iv em Brighton.[365] O fecundo, hábil e rápido operário de Paris esculpira-lhe as portas e as janelas. Haviam feito para ele imitações de tetos medievais ou de palácios venezianos e prodigalizado painéis de mármore em quadros exteriores. Elschoët e Klagmann[366] trabalharam o frontal das portas e das lareiras, Schinner[367] pintara magistralmente os tetos. As maravilhas da escada, branca como um braço de mulher, desafiavam as do palácio Rothschild. Devido aos motins, o custo dessa loucura não excedeu a um milhão e cem mil francos. Para um inglês, foi de graça. Todo aquele luxo, classificado de principesco por gente que não sabe mais o que é um verdadeiro príncipe, cabia no antigo jardim do palácio de um fornecedor, um dos Cresos da revolução, que morrera em Bruxelas, falido, depois de uma reviravolta da Bolsa. O inglês morreu em Paris, de Paris, porque para muita gente Paris é uma doença, e às vezes mesmo várias doenças. Sua viúva, uma metodista, manifestou um horror inexcedível pela pequena casa do nababo. Esse filantropo era um vendedor de ópio. A pudica viúva deu ordem para vender o escandaloso edifício no momento em que os motins traziam à baila a questão da paz a qualquer preço. O conde Adão aproveitou a oportunidade, já vereis como, pois nada estava menos de acordo com seus hábitos de grão-senhor.

Por trás daquela casa, construída com pedras talhadas como um melão, estendia-se o verde veludo de um gramado inglês, sombreado no fundo por um elegante e cerrado bosquete de árvores exóticas, de onde emergia um pavilhão chinês com suas campânulas mudas e seus ovos dourados e imóveis. A estufa e suas dependências fantasistas encobriam o muro de divisão ao sul. O outro muro que ficava em frente à estufa estava tapado por trepadeiras, dispostas em pórticos por meio de esteios pintados de verde e reunidos por travessões. Aquele prado, aquele mundo de flores, as aleias recobertas com saibro, o simulacro de floresta, aquelas paliçadas aéreas, tudo aquilo se desenvolvia dentro de uma área de vinte e cinco varas quadradas, que hoje valem quatrocentos mil francos, o preço de uma floresta verdadeira. Naquele silêncio conseguido em plena Paris, ouve-se o cantar dos pássaros: melros, rouxinóis, piscos, toutinegras e muitos pardais. A estufa é uma enorme jardineira, onde o ar está carregado de perfumes, onde se pode passear no inverno como se fosse em pleno verão. Os meios pelos quais se consegue a atmosfera que se quer, a tórrida, a da China ou da Itália, são habitualmente ocultos ao olhar. Os tubos pelos quais a água quente circula, o vapor, um calórico qualquer, são cercados de terra e aparecem como grinaldas de flores vivas. O boudoir é espaçoso. O milagre da fada parisiense chamada arquitetura é tornar tudo grande num terreno limitado. O boudoir da jovem condessa foi o requinte do artista a quem o conde confiou a remodelação ornamental do palacete. Não é possível notar-se uma falta, pois existe uma infinidade de lindas ninharias. O amor não teria onde pousar os pés num grupo de trabalhadores esculpido na China, pois há ali milhares de figuras estranhas, cinzeladas no marfim e cujo acabamento necessitou da cooperação de duas gerações; taças de topázio queimado com pés de filigrana; mosaicos que inspiram o desejo de roubar; quadros holandeses como Schinner os reproduz; anjos concebidos como Steinbock[368] os concebe, e nem sempre os realiza; estatuetas esculpidas por gênios perseguidos por seus credores (verdadeira explicação dos mitos árabes); os sublimes esboços de nossos primeiros artistas; painéis de arcos para o forro de madeira das paredes e cujas molduras alteram com as fantasias das tapeçarias de seda indiana; reposteiros que caem em pregas de ouro de travessões de carvalho negro, representando uma caçada completa; móveis dignos de madame de Pompadour; um tapete persa etc. Enfim, último requinte, todas essas riquezas iluminadas por uma claridade coada através de duas cortinas de renda, o que as tornava ainda mais encantadoras. Sobre um consolo, por entre objetos antigos, um chicote, cujo cabo fora esculpido pela srta. de Fauveau,[369] revelava que a condessa gostava de montar a cavalo. Era assim um boudoir em 1837, um mostruário de mercadorias que alegravam os olhos como se o tédio ameaçasse a sociedade mais inquieta e mais inquietante do mundo. Por que não havia ali nada de íntimo, nada que incitasse ao devaneio, à tranquilidade? Por quê?... Porque ninguém tem certeza do amanhã e porque todos gozam da vida como usufrutuários pródigos.

Certa manhã, Clementina dava-se ares de quem está refletindo, reclinada numa dessas maravilhosas espreguiçadeiras de onde a gente não se pode levantar, de tanto que o estofador que as inventou soube compreender as aspirações da preguiça e o conforto do far niente.[370] As portas abertas da estufa deixavam chegar as exalações da vegetação e os perfumes dos trópicos. A jovem dama contemplava Adão, que fumava diante dela um elegante narguilé, único modo de fumar que ela permitia naquele aposento.

Os reposteiros, arrepanhados por elegantes braçadeiras, patenteavam ao olhar dois magníficos salões, um branco e ouro, comparável ao do palácio Forbin Janson, o outro em estilo Renascença. A sala de jantar, que não tinha em Paris outra que se lhe comparasse a não ser a do barão de Nucingen,[371] achava-se na extremidade de uma pequena galeria pintada e decorada em estilo medieval. Do lado do pátio, a galeria era precedida por uma grande antecâmara, de onde se avistavam, através das portas envidraçadas, as maravilhas da escadaria.

O conde e a condessa acabavam de almoçar. Estava-se no fim de abril e o céu era um manto azulado sem vestígio de nuvens. O casal desfrutara dois anos de felicidade e fazia somente dois dias que Clementina descobrira em sua casa alguma coisa que se assemelhava a um segredo, a um mistério. Os poloneses são, impõe-se dizê-lo para sua maior glória, geralmente fracos diante das mulheres; têm tanta ternura por elas que, na Polônia, lhes são inferiores; e, embora as polonesas sejam criaturas admiráveis, os poloneses são ainda mais facilmente derrotados por uma parisiense. Por isso, o conde Adão, estonteado com as perguntas, não teve a inocente astúcia de vender o segredo à esposa. Com uma mulher sempre se deve tirar partido de um segredo; a quem assim procede elas ficam agradecidas, como um tratante respeita o homem de bem a quem não pode embrulhar. Mais valente do que conversador, o conde estipulara que só responderia depois de ter terminado seu narguilé cheio de tombaki.[372]

— Na viagem — estava ela dizendo —, quando havia uma dificuldade qualquer, tu me respondias: “Paz arrumará isso!”, só escrevias a Paz! De volta aqui, todos me dizem: “O capitão!”. Quero eu sair, por acaso?... O capitão! Se se trata de pagar uma conta, o capitão! Meu cavalo tem trote duro? Fala-se ao capitão Paz. Enfim, é, para mim, como no jogo do dominó, Paz a toda hora. Não ouço falar senão em Paz e não há meio de eu ver Paz. Que vem a ser Paz? Tragam-me de uma vez o nosso Paz.

— As coisas não andam, então, bem? — perguntou o conde, tirando o bocchettino[373] do narguilé.

— Tudo vai tão bem que com duzentos mil francos de renda a gente se arruinaria com o trem de vida que levamos apenas com cem mil — disse ela.

Puxou o riquíssimo cordão da sineta, feito a pontos pequenos, uma maravilha. Um lacaio trajado como um ministro acorreu em seguida:

— Diga ao sr. capitão Paz que desejo falar-lhe.

— Se julga por esse modo vir a saber alguma coisa!... — disse o conde Adão, sorrindo.

Não é demais esclarecermos que Adão e Clementina, tendo casado em dezembro de 1835, tinham ido, depois de passar o inverno em Paris, à Itália, à Suíça e à Alemanha durante o ano de 1836. Tendo regressado em novembro, a condessa iniciou suas recepções no fim do inverno, tendo-se apercebido então da existência silenciosa, apagada, mas salutar de um factótum, cuja pessoa parecia invisível, esse capitão Paz (Paç), cujo nome se pronuncia como se escreve.

— O sr. capitão Paz pede desculpas à senhora condessa, mas está nas estrebarias e com um vestiário que não lhe permite vir em seguida: mas logo que tiver mudado de roupa o conde Paz se apresentará — disse o lacaio.

— Que estava ele fazendo?

— Estava ensinando o modo de tratar um cavalo, que Constantino não escovava como ele queria — respondeu o criado.

A condessa fitou o lacaio: estava bem sério, e nem por sombras se permitiu realçar a sua frase com o sorriso que os inferiores esboçam quando falam de um superior que lhes parece ter baixado até eles.

— Ah! Estava escovando Cora.

— A senhora condessa não vai montar a cavalo hoje de manhã? — perguntou o criado, que teve de se retirar sem obter resposta.

— É um polonês? — perguntou Clementina ao marido, o qual inclinou a cabeça afirmativamente.

Ao olhar para Adão, Clementina Laginski permanecia calada, com os pés estendidos sobre uma almofada, e a cabeça na posição da de um pássaro que à beira do ninho ouve as vozes da mata. Mesmo para um blasé ela pareceria encantadora. Loura e delgada, com os cabelos penteados à inglesa, assemelhava-se naquele momento a essas figuras quase fabulosas dos Keepsakes[374] sobretudo quando vestia seu peignoir de seda à moda da Pérsia, cujas pregas fofas não ocultavam bastante os tesouros do seu corpo e a delicadeza de sua cintura para que não se pudesse admirá-las através dos espessos véus de flores e de bordados. Ao cruzar-se por sobre o peito, a fazenda de cores brilhantes deixava ver a parte inferior do pescoço, cuja tonalidade branca contrastava com as de uma rica guipura que lhe cobria os ombros. Os olhos, cercados por cílios negros, aumentavam a expressão de curiosidade que contraía a sua linda boca. Sobre a fronte, bem modelada, notavam-se as rotundidades características da parisiense caprichosa, risonha, instruída, mas inacessível às seduções vulgares. As mãos pendentes da extremidade dos braços da espreguiçadeira eram quase transparentes. Os dedos em fuso, encurvados nas pontas, exibiam unhas que lembravam amêndoas rosadas, onde a luz se detinha. Adão sorria da impaciência da esposa e contemplava-a com olhos em que não transparecia a saciedade conjugal. Aquela franzina condessa já tinha sabido tornar-se senhora de sua casa, pois que mal atendia à admiração de Adão. Nos olhares que de soslaio dirigia a ele, talvez já houvesse a consciência da superioridade de uma parisiense sobre aquele polonês franzino, magro e ruivo.

II – OS PAZ

— Aqui está o Paz — disse o conde ao ouvir um passo que repercutia na galeria.

A condessa viu entrar um homem de belo tipo, alto, benfeito de corpo, em cujo rosto estavam estampados os traços dessa tranquilidade fruto da força e da coragem. Paz vestira apressadamente uma dessas sobrecasacas apertadas, com alamares presos com botões oliváceos, antigamente chamados poloneses. Tinha a cabeça coberta por bastos cabelos pretos, muito mal penteados, e Clementina pôde ver, brilhando como um bloco de mármore, uma fronte ampla, porque Paz trazia na mão o boné com viseira. Essa mão parecia-se com a do Hércules do menino.[375] A mais robusta saúde florescia naquele rosto dividido ao meio por um nariz romano, grande, que lembrou a Clementina os belos transteverinos.[376] Uma gravata de tafetá preto completava o ar marcial daquele mistério de cinco pés e sete polegadas, de olhos de azeviche e de um fulgor italiano. Calças largas, pregueadas, que apenas deixavam ver a ponta das botas, traíam o culto de Paz pelas modas da Polônia. Realmente, para uma mulher romântica, havia algo de burlesco no contraste violento que se notava entre o capitão e o conde, entre o pequeno polonês de rosto minguado e aquele belo militar, entre este paladino e aquele palatino.

— Bom dia, Adão — disse ele familiarmente ao conde.

Depois se inclinou graciosamente ante Clementina, perguntando-lhe em que a poderia servir.

— O senhor é então o amigo de Laginski? — disse a jovem dama.

— Para a vida e para a morte — respondeu Paz, a quem o jovem conde dirigiu o mais afetuoso sorriso ao soltar a última baforada perfumada.

— Pois então por que motivo não come conosco? Por que não nos acompanhou à Itália e à Suíça? Por que se esconde de maneira a furtar-se aos agradecimentos que lhe devo pelos contínuos serviços que nos presta? — disse a jovem condessa com certa vivacidade, mas sem a menor emoção.

Efetivamente, ela entrevia em Paz uma espécie de servidão voluntária.

Tal ideia, nessa época, era sempre acompanhada por certo menosprezo pelo anfíbio social, um ser ao mesmo tempo secretário e administrador, nem totalmente administrador, nem totalmente secretário, qualquer coisa como um parente pobre — um amigo incômodo.

— É, condessa, porque nada tem a agradecer-me — disse ele com desenvoltura. — Sou amigo de Adão e é para mim um prazer cuidar dos interesses dele.

— E é também por prazer que ficas de pé — disse o conde Adão.

Paz sentou-se numa poltrona, junto ao reposteiro.

— Lembro-me de o ter visto no meu casamento e algumas vezes no pátio — disse a jovem senhora. — Mas por que motivo colocar-se numa situação de inferioridade, o senhor, um amigo de Adão?

— Oh! A opinião dos parisienses me é completamente indiferente — disse ele. — Vivo para mim ou, se preferem, para os dois.

— Mas a opinião da sociedade sobre o amigo de meu marido não me pode ser indiferente.

— Oh!, minha senhora, o mundo satisfaz-se com esta expressão: “É um original”. Diga isso.

Depois de um momento de silêncio ele perguntou:

— Pretende sair?

— Quer ir comigo ao bosque?

— De bom grado.

Dito isso Paz saiu, saudando a condessa.

— Que criatura boa! É simples como uma criança! — disse Adão.

— Agora fale-me das suas relações com ele — pediu Clementina.

— Paz, meu amor — disse Laginski —, é de nobreza tão antiga e ilustre quanto a nossa. Quando foi dos seus desastres, um dos Pazzi fugiu de Florença para a Polônia, onde se instalou com alguma fortuna, e lá fundou a família Paz, à qual foi dado o título de conde. Essa família, que se distinguiu nos belos dias da nossa república real,[377] tornou-se rica. O tanchão da árvore derrubada na Itália vicejou tão vigorosamente que há vários ramos da casa condal dos Paz. Por isso não te direi nada de extraordinário dizendo-te que existem Paz ricos e Paz pobres. Nosso Paz é o rebento de um dos ramos pobres. Órfão, sem outra fortuna além da sua espada, ele servia no regimento do grão-duque Constantino[378]quando se fez a nossa revolução. Arrastado para o partido polonês, ele se bateu como um polonês, como um patriota, enfim como um homem que nada possui: três motivos para se bater bem. No último encontro, julgou estar sendo seguido pelos seus soldados e atirou-se contra uma bateria russa, sendo aprisionado. Eu estava lá. Aquele rasgo de coragem entusiasmou-me: — Vamos buscá-lo! — disse eu aos meus cavaleiros. Carregamos sobre a bateria em ordem dispersa, e libertei Paz, eu, o sétimo. Éramos vinte ao começar a carga, e de volta éramos oito, contando Paz. Depois da venda de Varsóvia, não tivemos remédio senão buscar os meios de escapar dos russos. Por um acaso singular, Paz e eu encontramo-nos à mesma hora e no mesmo lugar, do outro lado do Vístula. Vi os prussianos, que se haviam transformado em cães de caça dos russos, aprisionarem esse pobre capitão. Quando se tirou uma vez um homem das águas do Estige,[379] fica-se ligado a ele. Aquele novo perigo em que se achava Paz causou-me tanta pena que me deixei aprisionar com ele, com a intenção de servi-lo. Onde um naufraga, dois podem salvar-se. Graças ao meu nome e alguns laços de parentesco com alguns dos homens de quem dependia a nossa sorte, porque naquele momento éramos prisioneiros dos prussianos, fizeram vista grossa sobre a minha evasão. Fiz o meu capitão passar por um soldado sem importância, um homem da minha casa, e pudemos assim chegar a Dantzig. Metemo-nos num navio holandês de partida para Londres, aonde abordamos dois meses depois. Minha mãe adoecera na Inglaterra e estava me esperando; Paz e eu tratamos dela até a sua morte, que foi antecipada pelas catástrofe da nossa aventura. Deixamos Londres e eu trouxe Paz para a França. Em tais adversidades dois homens tornam-se irmãos. Quando me vi em Paris, com vinte e dois anos, com uma fortuna de mais de sessenta mil francos de renda sem contar o que restava de uma quantia proveniente dos diamantes e dos quadros da família, vendidos por minha mãe, eu quis assegurar a sorte de Paz antes de me entregar às dissipações da vida parisiense. Eu tinha percebido um pouco de tristeza nos olhos do capitão, e mesmo algumas vezes vi lágrimas que ele continha. Tivera oportunidade de apreciar a sua alma, que é essencialmente nobre, grande e generosa. Era possível que lamentasse ver-se ligado por favores a um rapaz, seis anos mais moço, sem ter podido saldar seus débitos para com ele. Despreocupado e frívolo como são os rapazes, eu tinha de me arruinar no jogo ou me deixar enlear por alguma parisiense, e Paz e eu podíamos um dia separar-nos. Embora resolvido a suprir a todas as necessidades do meu amigo, eu percebia as probabilidades de esquecer essa obrigação ou de me ver impossibilitado de pagar a pensão de Paz. Enfim, meu anjo, eu quis poupar-lhe o pesar, o pudor, o pejo de me pedir dinheiro ou de procurar em vão seu companheiro num momento de necessidade. Dunque,[380] uma manhã, depois do café, com os pés na grelha de ferro da lareira, cada um de nós fumando o seu cachimbo, entreguei-lhe, depois de ter corado bastante, tomado mil precauções, quando o vi olhando-me inquieto, um título de renda, ao portador, na importância de dois mil e quatrocentos francos...

Clementina saiu do seu lugar, foi sentar-se nos joelhos de Adão, passou-lhe o braço pelo pescoço, beijou-o na testa e disse-lhe:

— Meu tesouro, como te acho belo! E que fez Paz?

— Tadeu — disse o conde — empalideceu sem dizer nada...

— Ah! Ele chama-se Tadeu?

— Sim. Tadeu dobrou o papel, restituiu-me, dizendo: — Pensei, Adão, que entre nós fosse para a vida e para a morte, e que jamais nos separaríamos; não queres mais saber de mim? — Ah! — fiz eu — É assim que interpretas a coisa? Pois não falemos mais no assunto; se eu me arruinar, tu também ficarás arruinado. — Olha — disse-me ele —, não tens fortuna para viver como um Laginski; nesse caso não te parece que precisas de um amigo que se ocupe com os teus negócios, que seja para ti um pai e um irmão, um confidente seguro? — Ao me dizer tais palavras, filhinha querida, havia no olhar e na voz de Paz uma calma que encobria uma emoção maternal mas que revelava também uma gratidão de árabe, uma fidelidade de cão, uma amizade de selvagem, sem ostentação e sempre pronta. Aceitei a coisa como nós, poloneses, costumamos fazer, pondo-lhe a mão no ombro e beijando-o na boca: — Pois então, para a vida e para a morte! Tudo o que eu tenho te pertence e faze o que quiseres! — Foi ele quem me comprou este palacete por quase nada. Vendeu meus títulos na alta, tornou a comprá-los na baixa, e pagamos este barracão com o lucro. Grande conhecedor de cavalos, ele os negocia tão bem que minhas estrebarias me saem por muito pouco e tenho os mais belos cavalos e as mais encantadoras carruagens de Paris. Nossa criadagem é composta de valentes soldados poloneses, escolhidos por ele e capazes de se meterem no fogo por nós. Parecia que eu me estava arruinando e Paz dirige minha casa com uma ordem e uma economia tão perfeitas que reparou por esse meio algumas irrefletidas perdas no jogo, tolices de rapaz. Meu Tadeu é ardiloso como dois genoveses, ávido de lucro como um judeu polonês, previdente como uma boa dona de casa. Nunca pude decidi-lo a viver como eu vivia, quando solteiro. Tive por vezes de apelar para violências amistosas a fim de o levar ao teatro, quando eu ia só, ou aos jantares que eu oferecia às minhas rodas alegres. Ele não gosta da vida dos salões.

— Do que gosta ele, então? — perguntou Clementina.

— Gosta da Polônia, chora por ela. Suas únicas dissipações foram os socorros enviados, mais em meu nome, do que no dele, a alguns dos nossos pobres exilados.

— Pois olhe, vou gostar desse bom rapaz — disse a condessa —, porque me parece simples como tudo o que é verdadeiramente grande.

— Todas as coisas bonitas que achaste aqui — disse Adão, que patenteava a mais nobre segurança ao gabar o amigo — Paz as desencavou, obtendo-as em leilões ou em oportunidades. Oh! Ele é mais negociante do que os próprios negociantes. Quando o vires esfregando as mãos no pátio, podes ficar certa de que ele trocou um cavalo bom por um outro melhor. Ele vive por mim, a sua felicidade consiste em me ver elegante, numa equipagem esplêndida. Os deveres que a si mesmo impõe, ele os realiza sem ruído, sem ênfase. Uma noite perdi vinte mil francos no uíste. — Que dirá Paz? — a mim mesmo perguntei ao voltar para casa. — Paz entregou-mos, não sem suspirar; mas não me dirigiu sequer um olhar de censura! Esse suspiro conteve-me mais do que as mil repreensões que em tais casos poderiam fazer os tios, as esposas ou as mães. — Estás com pena desse dinheiro? — perguntei-lhe. — Oh! Nem por ti nem por mim, não; somente me lembrei de que vinte pobres Paz poderiam com aquilo viver durante um ano. — Compreendes que os Pazzi valem os Laginski. Por isso nunca quis ver um subalterno no meu querido Paz. Tenho procurado ser tão grande no meu gênero quanto ele o é no seu. Nunca saí de casa, nem voltei para ela, sem ir ver Paz, da mesma forma que o faria com o meu pai. Minha fortuna é dele. Enfim, Tadeu tem certeza de que eu me precipitaria hoje num perigo para socorrê-lo, da mesma forma por que já o fiz duas vezes.

— Não é pouco o que estás dizendo, meu amigo — disse a condessa. — A dedicação é um relâmpago. Na guerra há dedicações, em Paris já não há mais.

— Pois bem! — replicou Adão — para Paz estou sempre na guerra. Nossos caracteres conservaram suas asperezas e seus defeitos, mas o conhecimento mútuo das nossas almas estreitou os laços já tão apertados de nossa amizade. Pode-se salvar a vida de um homem e depois matá-lo se nele encontramos um mau companheiro, mas nós já experimentamos o que torna as amizades indissolúveis. Entre nós há essa troca contínua de impressões felizes, quer de um lado, quer do outro, que sob esse ponto de vista torna, talvez, a amizade mais rica do que o amor.

Uma linda mão tapou a boca do conde tão rapidamente que o gesto parecia uma bofetada.

— Mas é — disse ele. — A amizade, meu anjo, ignora as bancarrotas do sentimento e as falências do prazer. Depois de ter dado mais do que possui, o amor acaba dando menos do que recebe.

— De um lado como do outro? — disse Clementina sorrindo.

— Sim — retorquiu Adão —, ao passo que a amizade só pode aumentar. Não tens por que fazer careta; nós, meu anjo, somos tão amigos como amantes; nós, pelo menos, assim o espero, unimos os dois sentimentos no nosso casamento.

— Vou explicar-te o que fez de vocês dois tão bons amigos — disse Clementina. — A diferença da existência de ambos provém de seus gostos e não de uma opção forçada, de sua fantasia e não das suas posições. Tanto quanto seja possível julgar um homem apenas entrevisto, e de acordo com o que dizes, aqui o subalterno pode tornar-se em certos momentos o superior.

— Oh! Paz me é superior — disse ingenuamente Adão. — A única vantagem que tenho sobre ele é a do acaso.

A esposa beijou-o pela nobreza daquela confissão.

— A habilidade extrema com que ele oculta a grandeza dos seus sentimentos é uma imensa superioridade — continuou o conde. — Eu disse-lhe: “És um sonso, tens no coração vastos domínios para onde te retiras”. Ele tem direito ao título de conde Paz, mas em Paris faz-se chamar apenas de capitão.

— Em resumo, é o florentino da Idade Média que ressurgiu trezentos anos depois — disse a condessa. — Há nele qualquer coisa de Dante e de Michelangelo.

— É verdade, tens razão, ele tem alma de poeta — respondeu Adão.

— Eis-me pois casada com dois poloneses — disse a jovem condessa com um gesto comparável aos que só o gênio artístico encontra na cena.

— Filhinha querida! — disse Adão, apertando Clementina nos braços. — Que pesar seria o meu se meu amigo não te tivesse agradado: tanto eu como ele o temíamos, embora meu casamento o tivesse encantado. Tu o farás muito feliz, dizendo-lhe que o queres: ah!, como a um velho amigo.

— Vou então vestir-me; está um lindo dia, sairemos os três — disse Clementina, chamando a criada.

Paz levava uma vida tão subterrânea que a Paris elegante ficou a indagar quem seria que acompanhava Clementina Laginski, quando a viram ir ao Bois de Boulogne e voltar entre Tadeu e o marido. Durante o passeio, Clementina exigira que Tadeu jantasse com ela.

Esse capricho de soberana absoluta obrigou Tadeu a esmerar-se na toilette. Ao voltar do passeio, Clementina preparou-se com certo coquetismo, de modo a impressionar o próprio Adão, quando entrou no salão onde os dois amigos a estavam esperando.

— Conde Paz — disse, — vai acompanhar-nos à Ópera.

Disse essas palavras com o tom que, nas mulheres, significa: se recusar, brigaremos.

— De bom grado, minha senhora — respondeu Paz. — Mas como não tenho a fortuna de um conde, chame-me simplesmente de capitão.

— Pois bem, capitão, dê-me o braço — disse ela, tomando-o e levando o capitão para a sala de jantar, com gestos cheios dessa amorável familiaridade que encanta os apaixonados.

A condessa colocou o capitão a seu lado, e a atitude deste foi a de um tenente pobre jantando em casa de um general rico. Paz deixou Clementina falar, ouviu-a, manifestando sempre a deferência devida a um superior, não a contradizendo em nada e esperando uma pergunta formal antes de responder. Enfim, quase pareceu estúpido à condessa, cujas faceirices naufragaram ante aquela fria seriedade e respeito diplomático. Debalde Adão lhe dizia: — Alegra-te de uma vez, Tadeu! Dir-se-ia que não estás em tua casa! Até parece que te propuseste desconcertar Clementina!

Tadeu, porém, permaneceu pesado e como que adormecido. Quando os convivas ficaram sós, depois da sobremesa, o capitão explicou como sua vida fora organizada ao contrário da que levam as pessoas da sociedade: deitava-se às oito horas e levantava-se de madrugada, tentando explicar assim sua atitude por um grande desejo de dormir.

— Minha intenção ao levá-lo à Ópera, capitão — disse Clementina, um tanto agastada —, era de distraí-lo; mas faça como quiser.

— Irei — respondeu Paz.

— Duprez canta Guilherme Tell[381] — disse Adão —, mas quem sabe se preferes ir ao Variétés?

O capitão sorriu e tocou a campainha, chamando o criado.

— Dê ordem a Constantino — disse Paz ao criado, quando este apareceu — para atrelar o carro em vez do cupê. Neste não caberíamos a gosto — acrescentou, olhando para o conde.

— Um francês não se lembraria disso — comentou Clementina sorrindo.

— Ah! É que nós somos florentinos transplantados no Norte — retrucou Tadeu com uma finura de tom e um olhar que bem mostraram ser seu procedimento à mesa uma resolução prefixada.

Por uma imprudência bem compreensível, foi demasiado forte o contraste entre o modo de proferir aquela frase e a atitude que Paz mantivera durante o jantar. Clementina examinou o capitão com um desses olhares dissimulados que revelam ao mesmo tempo, nas mulheres, a surpresa e a observação. Por isso, durante o tempo em que os três tomaram café no salão, reinou um silêncio bastante incômodo para Adão, incapaz de lhe adivinhar a causa. Clementina não provocou mais Tadeu. Por sua vez, o capitão retomou sua rigidez militar, não mais a deixando, nem durante o percurso, nem no camarote onde fingiu dormir.

— Como vê, minha senhora, sou uma personagem bastante insípida — disse ele, no último ato de Guilherme Tell, no momento do bailado. — Não lhe parece que eu tinha razão de permanecer, como se diz, na minha especialidade?

— Francamente, capitão, o senhor não é nem bazofiador, nem conversador, é muito pouco polonês.

— Deixe-me, pois — replicou ele —, cuidar de seus divertimentos, de sua fortuna e de sua casa; é só para o que presto.

— Tartufo![382] — disse o conde Adão, sorrindo. — Não se engane, querida, ele sabe sentir e é instruído; se quisesse poderia fazer figura num salão. Olhe, Clementina, não dê muito crédito à sua modéstia.

— Adeus, condessa, já lhe demonstrei a minha boa vontade; vou aproveitar o seu carro para ir dormir mais cedo e mandá-lo-ei de volta.

Clementina saudou-o com uma inclinação de cabeça e deixou-o partir sem lhe dar resposta.

— Que casmurro! — disse ela ao conde. — Tu és bem mais gentil.

Adão apertou a mão da esposa sem que o pudessem ver.

— Pobre Tadeu querido! Ele esforçou-se por apagar-se em meu benefício, quando outro em seu lugar procuraria mostrar-se mais amável do que eu.

— Oh! — disse ela — Não sei se não haverá cálculo no seu procedimento: uma mulher comum teria ficado intrigada com ele.

Meia hora depois, enquanto Boleslas, o lacaio, gritava: “À porta!” e o cocheiro, tendo dado volta ao carro para entrar, esperava que os dois batentes fossem abertos, Clementina perguntou ao marido:

— Onde mora o capitão?

— Ali! — respondeu o conde, mostrando um pequeno pavimento em ático, elegantemente edificado dos dois lados do portão de entrada, com uma janela sobre a rua. — Seu apartamento estende-se por sobre as peças de serviço.

— E quem ocupa o outro lado?

— Ninguém, por enquanto — respondeu Adão. — O outro apartamento pequeno que fica por cima das cocheiras será para nossos filhos e seu preceptor.

— Ainda não está deitado — disse a condessa, vendo luz no aposento de Tadeu quando o carro chegou sob o pórtico de colunas, copiado do das Tulherias, que substituía a vulgar marquise de zinco pintado.

III – MÁLAGA

O capitão, em robe de chambre, com um cachimbo na mão, olhava para Clementina, que ia entrando no vestíbulo. O dia lhe fora rude, e eis por quê: Tadeu sentira no coração um abalo terrível no dia em que vira a srta. du Rouvre, quando levado por Adão aos Italiens, a fim de julgá-la, e, mais tarde, quando tornou a vê-la na mairie e na igreja de São Tomás de Aquino, verificou ser ela a mulher que um homem deve amar exclusivamente, porquanto o próprio don Juan preferia uma entre as mille e tre! Por esse motivo, Paz aconselhou com insistência a clássica viagem depois do casamento. Quase tranquilo durante todo o tempo que durou a ausência de Clementina, seus sofrimentos recomeçaram depois da volta do gentil casal. Ora, eis o que ele pensava ao fumar seu lataki[383] no seu cachimbo de cerejeira brava, de seis pés de comprimento, presente de Adão: “Só eu e Deus, que me recompensará por ter sofrido em silêncio, devemos saber até que ponto eu amo! Mas como não possuir nem o seu amor nem o seu ódio!”.

E refletia exaustivamente sobre esse teorema de estratégia amorosa. Não se deve crer, entretanto, que Tadeu vivesse sem prazeres em meio à sua dor. Os sublimes enganos daquele dia foram fontes de alegria interior. Depois do regresso de Clementina e de Adão, ele gozava, diariamente, satisfações inefáveis, ao ver-se necessário para aquele casal que, sem a sua dedicação, teria marchado inevitavelmente para a ruína. Que fortuna poderia resistir às prodigalidades da vida parisiense? Criada em casa de um pai dissipador, Clementina nada sabia da direção de uma casa, coisa que hoje mesmo as mulheres mais ricas e mais nobres são obrigadas a superintender. Quem pode hoje ter um administrador? Adão, por sua vez, filho de um desses grão-senhores poloneses que se deixam devorar pelos judeus, incapazes de administrar os restos de uma das maiores fortunas da Polônia, onde as há enormes, não era de temperamento a pôr freio nem às suas fantasias nem às da esposa. Se estivesse só é bem possível que se houvesse arruinado antes do casamento. Paz impedira-o de jogar na Bolsa, não basta isso? Assim, pois, sentindo, apesar de sua vontade, que amava Clementina, Paz não teve o recurso de abandonar a casa e sair a viajar para esquecer a sua paixão. A gratidão, chave do enigma que a sua vida apresentava, chumbava-o àquele palácio, onde somente ele podia ser o encarregado de negócios daquela despreocupada família. A viagem de Adão e Clementina o fez ter esperanças no apaziguamento; mas a condessa, tendo regressado ainda mais bela, gozando da liberdade de espírito que o casamento dá às parisienses, ostentava todas as seduções de uma jovem dama e esse não sei quê de atraente que vem da felicidade ou da independência que lhe concedia um rapaz tão confiante, tão verdadeiramente cavalheiresco e tão apaixonado quanto Adão. Ter a consciência de ser a pedra angular do esplendor daquela casa, ver Clementina descer do carro ao voltar de uma festa ou de partida, pela manhã, para o bosque, encontrá-la nos bulevares na sua linda carruagem, como uma flor no seu envoltório de folhas, inspirava no pobre Tadeu volúpias misteriosas e plenas que se expandiam dentro de seu coração, sem que jamais o menor vestígio transparecesse em seu rosto. Como poderia a condessa, naqueles cinco meses, entrever o capitão? Ele escondia-se dela, disfarçando o cuidado que punha em evitá-la. Nada mais parecido com o amor divino do que o amor sem esperanças. Não deve um homem ter certa profundeza no coração para se dedicar no silêncio e na obscuridade? Essa profundeza, na qual se acoita um orgulho de pai e de Deus, contém o culto do amor pelo amor, da mesma forma que o poder pelo poder foi a palavra de ordem da vida dos jesuítas, avareza sublime por ser constantemente generosa e modelada finalmente sobre a misteriosa existência dos princípios do mundo. Não é a natureza o efeito? E a natureza é encantadora, pertence ao homem, ao poeta, ao pintor, ao amante; mas não é a causa, aos olhos de algumas almas privilegiadas e para certos pensadores gigantescos, superior à natureza? A causa é Deus. Nessa esfera das causas vivem os Newton, os Laplace, os Kepler, os Descartes, os Malebranche, os Spinoza, os Buffon, os verdadeiros poetas e os solitários do segundo período cristão, as santas Teresas da Espanha e as sublimes extáticas. Cada sentimento humano comporta analogias com essa situação, na qual o espírito abandona o efeito pela causa, e Tadeu atingira essa altura em que tudo muda de aspecto. Presa das alegrias indizíveis de um criador, Tadeu era no amor o que conhecemos de maior nos fastos da genialidade. — Não, ela não está totalmente iludida — dizia ele a si mesmo, acompanhando com os olhos a fumaça do cachimbo. — Ela poderá indispor-me para sempre com Adão se me tomar antipatia; e se ela quiser namoriscar-me para me atormentar, que será de mim? — A fatuidade dessa última hipótese era tão contrária ao caráter modesto e à espécie de timidez germânica do capitão que ele se censurou por tê-la concebido e deitou-se resolvido a aguardar os acontecimentos antes de tomar uma decisão.

No dia seguinte, Clementina almoçou perfeitamente sem Tadeu e sem se aperceber de sua desobediência. Coincidiu que aquele era o seu dia de recepção, o qual, em sua casa, comportava um esplendor real. Ela não prestou atenção na ausência do capitão, sobre o qual pesavam os detalhes desses dias de aparato. — Bom! — pensou Paz ao ouvir o rodar das carruagens que se retiravam, cerca das duas horas da madrugada — a condessa teve apenas uma fantasia ou uma curiosidade de parisiense.

O capitão retomou, pois, seus hábitos costumeiros, que haviam sido por um instante perturbados por aquele incidente. Distraída pelas preocupações da vida parisiense, Clementina parecia ter esquecido Paz. É que não é brinquedo o trabalho de reinar sobre a inconstante Paris. Pensarão, acaso, que, nesse jogo supremo, se arrisca somente a fortuna? Os invernos, para as mulheres da moda, são o equivalente do que foram outrora uma campanha para os militares do Império. Que obra de arte e de gênio, uma toilette ou um penteado destinados a causar sensação! Uma mulher franzina e delicada conserva o seu duro e brilhante arnês de flores e diamantes, de seda e de aço, das nove horas da noite às duas, e, muitas vezes, até às três da madrugada. Come pouco a fim de atrair a atenção para um talhe esbelto; a fim de enganar a fome que sente durante a noite, toma taças de chá debilitantes, bolos açucarados, sorvetes que aquecem ou indigestos bocados de pastelarias. O estômago tem de curvar-se às ordens da coqueteria. Acorda muito tarde. Tudo fica em desacordo com as leis da natureza, e a natureza é impiedosa. Apenas levantada, uma mulher na moda faz a toilette da manhã, pensando na da tarde. Pois não tem ela de receber e fazer visitas, de ir ao bosque a cavalo ou de carro? Não tem ela de se exercitar sempre no manejo dos sorrisos, de estar com o espírito sempre tenso para imaginar cumprimentos que não pareçam nem vulgares nem pretensiosos? E nem todas as mulheres o conseguem. Por isso não nos devemos admirar ao ver uma dama que a sociedade recebeu em pleno viço apresentar-se emurchecida e desfeita ao cabo de três anos. Bastam seis meses passados no campo para curar as feridas causadas pelo inverno? Hoje só se ouve falar em gastrite, doenças estranhas, desconhecidas pelas mulheres dedicadas aos labores domésticos. Antigamente, as mulheres raras vezes se deixavam ver, hoje estão sempre em cena. Clementina tinha de lutar; começavam a citá-la, e, absorvida pelos cuidados exigidos pelo combate ferido entre ela e suas rivais, pouco tempo lhe restava para o amor do marido. Não era demais que Tadeu estivesse esquecido.

IV – MÁLAGA (CONTINUAÇÃO)

Entretanto, daí a um mês, em maio, poucos dias antes de partir para Ronquerolles, na Borgonha, ao voltar do bosque, ela entreviu, na alameda lateral dos Champs-Élysées, Tadeu, trajado com apuro, extasiado ao contemplar a sua bela condessa na sua caleça, com cavalos fogosos e librés suntuosas, numa palavra o seu querido e admirado casal.

— Olha ali o capitão — disse ela ao marido.

— Como ele se sente feliz! — respondeu Adão. — São essas as suas festas! Não há equipagem mais bem cuidada do que a nossa, e ele goza ao ver como todos invejam a nossa felicidade. Ah! É esta a primeira vez que o notas, mas ele está aqui quase todos os dias.

— Em que estará ele pensando? — disse Clementina.

— Neste momento deve estar pensando em que o inverno nos custou muito dinheiro e que nós vamos fazer economias em casa do teu velho tio de Ronquerolles — disse Adão.

A condessa fez o carro parar junto a Paz e obrigou-o a sentar-se ao seu lado na caleça. Tadeu ficou rubro como uma cereja.

— Vou empestá-los — disse ele —, pois acabo de fumar um charuto.

— Adão não me empesta? — disse ela com vivacidade.

— Sim, mas é Adão.

— E por que motivo Tadeu não teria os mesmos privilégios? — disse a condessa, sorrindo.

Esse divino sorriso teve tanta força que venceu as heroicas resoluções de Paz; fitou Clementina com todo o fogo de sua alma nos olhos, mas fogo temperado pelo angélico testemunho de sua gratidão, dele, homem que vivia somente por esse sentimento. A condessa cruzou os braços sobre o xale, recostou-se pensativa nas almofadas, amarrotando as plumas de seu lindo chapéu, e pousou os olhos nos passantes. Aquele relâmpago de uma alma grande e até estão resignada impressionou a sua sensibilidade. Qual era, afinal de contas, a seus olhos, o mérito de Adão? Não é uma coisa natural ter-se coragem e generosidade? Mas o capitão!... Tadeu possuía, ou parecia possuir, sobre Adão uma imensa superioridade. Que pensamentos funestos brotaram no espírito da condessa ao observar novamente o contraste da bela e tão completa natureza que distinguia Tadeu com a da franzina constituição que, em Adão, indicava a degeneração forçada das famílias aristocráticas, que levam à insensatez de só se unirem entre si? Esses pensamentos, só o diabo os saberia, porque a jovem senhora permaneceu com os olhos pensativos, porém, vagos, sem nada dizer até o palacete.

— Vai jantar conosco, do contrário fico zangada por sua desobediência — disse ela ao entrar. — O senhor é Tadeu para mim, tanto quanto para Adão. Sei das obrigações que o senhor lhe deve, mas também sei quanto lhe devemos. Por dois rasgos de generosidade que, aliás, são tão naturais, o senhor é continuamente generoso, a qualquer hora e todos os dias. Meu pai vem jantar conosco, bem como meu tio de Ronquerolles e minha tia de Sérisy, por isso faça toilette — disse ela, ao aceitar a mão que ele estendera, para ajudá-la a descer do carro.

Tadeu subiu aos seus aposentos para vestir-se, com o coração ao mesmo tempo feliz e oprimido por uma terrível palpitação. Desceu no último momento e representou outra vez o seu papel de militar, apto apenas para desempenhar as funções de administrador. Dessa vez, porém, Clementina não se deixou lograr por Paz, cujo olhar a esclarecera. Ronquerolles, o mais hábil embaixador depois do príncipe de Talleyrand,[384] e que tão bem havia secundado de Marsay no seu curto ministério, foi informado pela sobrinha do alto valor do conde Paz, que com tanta modéstia se fizera administrador do amigo.

— E como então é esta a primeira vez que vejo o conde Paz? — perguntou o marquês de Ronquerolles.

— Ora! Porque ele é manhoso e disfarçado — respondeu Clementina, que dirigiu a Paz um olhar para lhe dizer que mudasse de atitude.

Infelizmente, é forçoso confessá-lo, correndo embora o risco de tornar o capitão menos interessante, Paz, conquanto superior ao seu amigo Adão, não era um homem forte. Sua aparente superioridade devia-a às suas desgraças. Nos seus dias de miséria e isolamento em Varsóvia, ele lia, instruía-se, comparava, meditava; mas o dom de criação que faz os grandes homens, ele não o possuía, e mesmo, será coisa que se possa adquirir? Paz, grande somente pelo coração, nesse terreno alcançava o sublime; mas na esfera dos sentimentos, mais homem de ação do que de pensamento, guardava para si o que pensava. Seu pensamento, assim, somente servia para corroer-lhe o coração. E, de resto, que é um pensamento não expresso? Ante as palavras de Clementina, o marquês de Ronquerolles e a irmã trocaram um olhar significativo, assinalando um para o outro a sobrinha, o conde Adão e Paz. Foi uma dessas cenas rápidas, como só se veem na Itália e em Paris. Nesses dois lugares do mundo, com exceção das cortes, os olhos sabem dizer tudo. Para transmitir ao olhar todo o poder da alma, dar-lhe o valor de um discurso, pôr nele um poema ou um drama num único volver de olhos, são precisas ou a extrema servidão ou a extrema liberdade. Adão, o marquês du Rouvre e a condessa não perceberam aquela luminosa observação de uma velha coquete e de um velho diplomata; mas Paz, o cão fiel, compreendeu-lhe a profecia. Foi — notai-o — coisa de um segundo.

Pretender pintar a tormenta que devastou a alma do capitão seria tornar-se demasiado difuso, nestes tempos que correm. — Como! Já o tio e a tia pensam que eu posso ser amado? — disse a si mesmo. — Minha felicidade agora depende apenas de minha audácia. E Adão? — O Amor ideal e o Desejo, ambos tão poderosos como a Gratidão e a Amizade, entrechocaram-se, e, durante um momento, o amor levou a melhor. Aquele pobre e admirável amante quis ter o seu dia!

Paz mostrou-se espirituoso, quis agradar e, respondendo à explicação pedida pelo diplomata, narrou, a largos traços, a insurreição polonesa. Paz viu então, à sobremesa, Clementina suspensa de seus lábios, considerando-o um herói, e esquecera que Adão, após haver sacrificado a terça parte de sua imensa fortuna, correra, ademais, os azares do exílio. Às nove horas, depois de tomado o café, a sra. de Sérisy deu um beijo na testa da sobrinha, apertou-lhe a mão, e impôs ao conde Adão que a acompanhasse à casa, deixando os marqueses du Rouvre e de Ronquerolles, os quais, daí a dez minutos, se retiraram, ficando Paz e Clementina a sós.

— Vou deixá-la, minha senhora — disse Tadeu —, pois vai ter com eles à Ópera.

— Não — disse ela —, não gosto de bailados e o de hoje, a Revolta no serralho, é detestável.

Houve um momento de silêncio.

— Há dois anos — disse ela, sem olhar para Paz —, Adão não teria ido sem mim.

— Oh! Ele a ama loucamente... — respondeu Tadeu.

— Ora, é justamente porque me ama com loucura que, talvez, amanhã não me ame mais — exclamou a condessa.

— São incompreensíveis as parisienses — disse Tadeu. — Quando são amadas com loucura, querem ser amadas razoavelmente; e, quando amadas razoavelmente, queixam-se de que não as sabem amar.

— E têm sempre razão, Tadeu — replicou a condessa, sorrindo. — Conheço bem Adão, não lhe quero mal por isso; ele é leviano e sobretudo grão-senhor, gostará sempre de ter-me por esposa, e jamais me contrariaria nos meus gostos; mas...

— Qual o casamento em que não há um mas? — disse suavemente Tadeu, procurando dar outro rumo aos pensamentos da condessa.

O homem menos pretensioso do mundo teria tido talvez o pensamento que quase enlouqueceu aquele apaixonado, e que foi o seguinte: — Se não lhe digo que a amo, sou um imbecil — disse a si mesmo o capitão.

V – COMEÇO DAS PREOCUPAÇÕES DE MÁLAGA

Havia entre aquelas duas criaturas um desses terríveis silêncios saturados de pensamentos. A condessa examinava Paz de soslaio, do mesmo modo como Paz a contemplava pelo espelho. Mergulhando na sua poltrona como um homem saciado que estivesse a fazer a digestão, um verdadeiro gesto de marido ou de velho indiferente, Paz cruzou as mãos sobre o ventre, girou rápida e maquinalmente os polegares, um sobre o outro, e pôs-se a olhar estupidamente o fogo.

— Mas, fale-me bem de Adão!... — exclamou Clementina. — Diga-me que não é um homem leviano, o senhor que o conhece.

Essa exclamação foi sublime.

“Chegou, pois, o momento de erguer entre nós barreiras intransponíveis”, pensou o pobre Paz, arquitetando uma mentira heroica.

— Falar-lhe bem dele? — replicou em voz alta. — Eu quero-lhe demasiado para que a senhora me acredite. Sou incapaz de dizer mal dele. Desse modo... Minha senhora, meu papel entre os dois é bem difícil.

Clementina baixou a cabeça e fitou a ponta dos sapatos envernizados de Paz.

— Vocês, gente do Norte, só têm coragem física, falta-lhes constância nas suas resoluções — murmurou ela.

— Que vai fazer sozinha, minha senhora? — perguntou Paz com um ar perfeitamente ingênuo.

— Não me vai fazer companhia?

— Peço-lhe que me perdoe por deixá-la.

— Como! Aonde vai?

— Vou ao circo, que estreia hoje nos Champs-Élysées, e não posso faltar...

— E por quê? — disse Clementina, interrogando-o com um olhar meio colérico.

— Quer, pois, que lhe abra meu coração — replicou ele, corando — e lhe confie o que oculto ao meu querido Adão, que pensa que eu amo somente a Polônia?

— Ah! Um segredo do nosso nobre capitão?

— Uma infâmia que a senhora compreenderá e da qual me consolará.

— Infame, o senhor?

— Sim, eu, o conde Paz, estou loucamente apaixonado por uma rapariga que percorria a França com a família Bouthor, donos de um circo semelhante ao de Franconi, mas que só exploram as feiras! Fi-la contratar pelo diretor do Circo Olímpico.[385]

— É bonita? — indagou a condessa.

— Sim, para mim — respondeu ele melancolicamente. — Málaga, é esse o seu nome de guerra, é robusta, ágil e flexível. Por que motivo eu a prefiro a todas as mulheres do mundo?... Francamente, não sei! Quando a vejo com os cabelos negros, retidos por uma faixa de cetim azul, flutuando por sobre os seus ombros cor de azeitona e nus, vestida com uma túnica branca de bordos dourados e com um maiô de ponto de seda, que a transforma numa estátua grega, viva; com os pés calçados em sapatos de cetim debruado, passando, com bandeirolas na mão e ao som de uma música militar, através de um enorme arco, cujo papel despedaça no ar, e o cavalo fugindo a todo o galope, e ela recaindo graciosamente em cima dele, aplaudida, sem claque, por uma multidão em peso..., pois bem, fico emocionado!

— Mais do que por uma linda mulher no baile? — perguntou Clementina com um sorriso provocante.

— Sim — respondeu Paz com a voz estrangulada. — Aquela admirável agilidade, aquela graça constante, num constante perigo, se me afiguram o mais belo triunfo de uma mulher... Sim, minha senhora, a Cinti,[386] a Malibran,[387] a Grisi[388] e a Taglioni,[389] a Pasta[390] e a Elssler,[391] tudo o que reina ou reinou não me parece digno de desatar os coturnos de Málaga, que sabe descer e montar num cavalo a todo o galope, que escorrega por baixo dele pela esquerda, para tornar a montar pela direita, que volteia como um branco fogo-fátuo em torno do mais fogoso animal, que pode manter-se na ponta de um único pé e cair sentada com os pés pendentes do lombo do cavalo, sempre a galope, e que, enfim, de pé, sobre o corcel sem freio, faz ponto de meia, quebra ovos ou prepara uma omeleta, com grande admiração do povo, do verdadeiro povo, camponeses e soldados! Antigamente, no carrossel, essa deliciosa Colombina equilibrava cadeiras na ponta do nariz, o mais lindo nariz grego que já vi. Málaga, minha senhora, é a destreza em pessoa. De força hercúlea, não precisa mais do que de seu punho mimoso ou de seu lindo pezinho para se desembaraçar de três ou quatro homens. Numa palavra, é a deusa da ginástica.

— Deve ser estúpida...

— Oh! — redarguiu Paz — É divertida como a heroína de Peveril do pico.[392] Despreocupada como uma boêmia, diz tudo que lhe vem à cabeça, preocupa-se tanto com o futuro quanto a senhora com as esmolas que dá a um pobre, e por vezes deixa escapar coisas sublimes. Nunca a poderão convencer de que um velho diplomata seja um bonito rapaz, e com um milhão não a fariam mudar de opinião. Seu amor, para um homem, é uma lisonja constante. Com uma saúde na verdade insolente, seus dentes são trinta e duas pérolas do mais puro Oriente, engastados em coral. O focinho, é assim que ela denomina a parte inferior de seu rosto, tem, segundo a expressão de Shakespeare, a frescura e o sabor de um focinho de vitela. E como isso causa cruéis pesares! Ela aprecia os belos homens, os homens fortes, os Adolfos, os Augustos, os Alexandres, os saltimbancos e os palhaços. Seu instrutor, um horrível Cassandre,[393] ministrava-lhe sovas tremendas aos milhares para dar-lhe a sua flexibilidade, a sua graça e a sua intrepidez.

— O senhor está embriagado de Málaga! — disse a condessa.

— É só no cartaz que ela se chama Málaga — disse Paz com ar ofendido. — Mora na rue Saint-Lazare, num pequeno apartamento do terceiro andar, entre veludos e sedas, e vive lá como uma princesa. Tem duas existências, sua vida de circo e sua vida de mulher bonita.

— E ela o ama?

— Ela me ama..., a senhora vai rir... unicamente porque sou polonês! Vê sempre os poloneses através da imagem de Poniatowski, atirando-se no Elster, porque, para todos os franceses, o Elster,[394] onde é impossível uma pessoa afogar-se, é um rio impetuoso que tragou Poniatowski... No meio de tudo isso, minha senhora, sou muito infeliz...

Uma lágrima de raiva que tremeluziu nos olhos de Tadeu comoveu Clementina.

— Os senhores homens gostam do que é extraordinário.

— E as senhoras, então! — disse Tadeu.

— Conheço tão bem Adão que estou certa de que ele me esqueceria por alguma pelotiqueira como a sua Málaga. Mas onde a conheceu?

— Em Saint-Cloud, no mês de setembro passado, no dia da festa. Ela estava no canto do tablado coberto de tela, onde se fazem os malabarismos. Seus companheiros, todos em trajes poloneses, faziam um barulho infernal. Vi-a muda e silenciosa e julguei perceber nela pensamentos melancólicos. E não era justificado para uma rapariga de vinte anos? Foi o que me impressionou.

A condessa estava numa atitude deliciosa, pensativa, quase triste.

— Pobre, pobre Tadeu — exclamou. E, com a bonomia de verdadeira grande dama, acrescentou, não sem um fino sorriso: — Vá, vá ao circo.

Tadeu tomou-lhe a mão, beijou-a, deixando cair sobre ela uma lágrima ardente, e saiu. Depois de ter inventado uma paixão por uma amazona, devia dar-lhe certa realidade. Na sua narrativa, nada havia de verdade a não ser o momento de atenção obtido pela ilustre Málaga, a amazona do Circo Bouthor, em Saint-Cloud, cujo nome acabava de lhe chamar a atenção no cartaz do circo. O palhaço, subornado por uma única moeda de cinco francos, informara Paz de que a amazona era uma criança abandonada, ou, quiçá, roubada. Tadeu foi ao circo, tornou a ver a bela amazona. Graças a dez francos, o moço das cavalariças, que lá substitui as costureiras do teatro, informou-o de que Málaga chamava-se Margarida Turquet e morava na rue des Fossés-du-Temple, num quinto andar.

No dia seguinte, extremamente mortificado, Paz foi ao Faubourg du Temple e perguntou pela srta. Turquet, que durante o verão desempenhava as funções da “dupla” da mais ilustre amazona do circo e as de comparsa no teatro do bulevar, no inverno.

— Málaga! — gritou a porteira, precipitando-se na mansarda. — Está aqui um belo senhor que quer vê-la! Ele está tomando informações tuas com Chapuzot, que está embromando para me dar tempo para te avisar.

— Obrigada, tia Chapuzot, mas que dirá ele se me vir passar a ferro o meu vestido?

— Ora essa! Quando se ama, ama-se tudo que diz respeito à amada.

— É inglês? Essa gente gosta de cavalos.

— Não, deu-me a impressão de ser espanhol.

— Tanto pior! Dizem que os espanhóis vivem na miséria... Fique comigo, sra. Chapuzot, assim não terei ares de abandonada...

— A quem procura, senhor? — perguntou a porteira a Tadeu, ao abrir a porta.

— A srta. Turquet.

— Minha filha — disse a porteira, dando-se ares importantes —, aqui está alguém que quer vê-la.

Uma corda estendida, na qual havia roupa a secar, fez cair o chapéu do capitão.

— Que deseja, senhor? — disse Málaga, apanhando-lhe o chapéu.

— Via-a no circo, e a senhorita me lembrou uma filha que perdi; por afeição à minha Heloísa, com quem se parece de modo assombroso, quero ser-lhe útil, se é que o permite.

— Como não! Queira sentar-se, general — disse a sra. Chapuzot. — Não se pode mais ser amável... nem mais galante.

— Não sou um galante, minha cara senhora — disse Paz. — Sou um pai desesperado que quer iludir-se com uma semelhança.

— Desse modo passarei por sua filha? — disse Málaga, com muita finura e sem suspeitar a profunda verdade dessa suposição.

— Sim, virei vê-la, de vez em quando, e, para que a ilusão seja perfeita, eu vou alojá-la num belo apartamento, ricamente mobiliado.

— Eu terei móveis? — perguntou Málaga, olhando para a Chapuzot.

— E criados — disse Paz — e todo o conforto.

Málaga olhou para o desconhecido disfarçadamente.

— De que país é o senhor?

— Sou polonês.

— Então, aceito — disse ela.

Paz saiu prometendo voltar.

— Isso, sim, que é uma alhada! — disse Margarida Turquet olhando para a sra. Chapuzot. — Tenho medo de que esse homem queira me amansar para realizar alguma fantasia. Afinal! Arrisco-me.

VI – AS PREOCUPAÇÕES DE MÁLAGA

Passado um mês dessa singular entrevista, a bela amazona morava num apartamento deliciosamente mobiliado pelo estofador do conde Adão, porquanto Paz queria que comentassem sua loucura no palacete Laginski. Málaga, para quem essa aventura representava um sonho das Mil e Uma Noites, era atendida pelo casal Chapuzot, seus confidentes e ao mesmo tempo seus criados. Os Chapuzot e Margarida Turquet estavam à espera de um desenlace qualquer; mas, passado um trimestre, não souberam como explicar o capricho do conde polonês. Paz vinha passar com ela mais ou menos uma hora por semana e durante essa hora ficava no salão, sem nunca querer penetrar no boudoir nem no quarto de Málaga, onde nunca entrou, não obstante as mais hábeis manobras da amazona e dos Chapuzot. O conde informava-se dos pequenos incidentes que coloriam a vida da rapariga, e cada vez deixava sobre a chaminé duas moedas de quarenta francos.

— Tem ar de quem está caceteado — dizia a sra. Chapuzot.

— Sim — respondia Málaga —, esse homem é frio como a geada...

— Mas assim mesmo é bom menino — exclamava Chapuzot, feliz ao se ver vestido com trajes de pano azul de Elbeuf, exatamente como um contínuo de um gabinete ministerial.

Pela sua dádiva periódica, Paz estabelecia para Margarida Turquet uma renda mensal de trezentos e vinte francos. Essa renda, acrescida com os magros vencimentos do circo, permitiu a Málaga uma vida esplêndida, comparada com a sua miséria passada. No circo contaram-se estranhas histórias a respeito da boa sorte da rapariga. A vaidade da amazona deixou que elevassem para sessenta mil francos os seis mil francos que custava o apartamento ao prudente capitão. No dizer dos clowns e comparsas, Málaga comia em baixelas de prata. Aliás, ela comparecia ao circo em encantadores albornozes, xales de cashmere e deliciosas écharpes. Enfim, o polonês era a melhor espécie de homem que uma amazona tivesse podido encontrar: nada arreliento, nem ciumento, dando a Málaga completa liberdade.

— Há mulheres que têm muita sorte! — dizia a rival de Málaga. — A mim, a quem se deve o terço das entradas, não acontece coisa parecida.

Málaga usava lindos berloques, e dava-se ares de importante (admirável expressão do diretor das raparigas de vida fácil), de carruagem no Bois de Boulogne, onde a mocidade elegante começava a prestar-lhe atenção. Enfim, Málaga já era assunto de palestras nas rodas suspeitas das mulheres galantes, que atacavam a sua felicidade por meio de calúnias. Diziam-na sonâmbula e o polonês era tido como um magnetizador que buscava a pedra filosofal. Alguns boatos que, bem mais envenenados do que aquele, deixaram Málaga mais curiosa do que Psique[395] e ela os referiu, em prantos, a Paz.

— Quando tenho raiva de uma mulher, eu não a calunio, não ando dizendo que a magnetizam para encontrar pedras; digo que ela é corcunda e provo o que digo. Por que me compromete o senhor?

Paz manteve o mais cruel silêncio. A Chapuzot acabou descobrindo o nome e o título de Tadeu; depois, no palacete Laginski, soube de coisas positivas: Paz era solteiro, nunca tinham ouvido falar em filha morta, nem na Polônia, nem na França. Málaga então foi presa de medo.

— Minha filha — disse Chapuzot —, esse monstro... — (Um homem que se contentava em olhar de modo disfarçado — de soslaio — sem se animar a dizer nada de positivo — sem ter confiança — uma bela criatura como Málaga — segundo a opinião da Chapuzot, ele tinha de ser um monstro) —, esse monstro está te amansando para te fazer praticar qualquer coisa ilegal ou criminosa. Deus da Misericórdia! Se for você a júri, ou, e isso me faz tremer da cabeça aos pés, a ponto de eu ficar fria só de pensar, à polícia de costumes, que ponham teu nome nos jornais... Se eu fosse você, sabe o que eu faria? Pois bem! No seu lugar eu prevenia a polícia, para minha segurança.

Um dia em que as mais loucas ideias fermentavam na cabeça de Málaga, quando Paz colocou as duas moedas de ouro em cima do veludo da chaminé, ela pegou o ouro e atirou-lho na cara dizendo:

— Não quero dinheiro roubado.

O capitão deu as duas moedas aos Chapuzot e nunca mais voltou. Clementina estava, então, passando o verão na propriedade rural do tio, o marquês de Ronquerolles, na Borgonha. Quando o elenco do circo não viu mais Tadeu no lugar habitual, houve um zum-zum entre os artistas. A grandeza de alma de Málaga foi, por alguns, classificada de estupidez, e de esperteza por outros. O procedimento do polonês, exposto às mulheres mais sabidas, pareceu inexplicável. Numa única semana, Tadeu recebeu trinta e sete cartas de cortesãs. Felizmente para ele, sua admirável reserva não despertou curiosidade na alta sociedade e permaneceu apenas como objeto de palestras nas rodas duvidosas.

Dois meses depois, a bela amazona, crivada de dívidas, escreveu ao conde Paz a seguinte carta, que os dândis da época classificaram como uma obra-prima:


Poderá o senhor, a quem ainda me atrevo a chamar de meu amigo, ter piedade de mim depois do que aconteceu e que tão mal interpretou? Meu coração reprova tudo o que o possa ter ferido. Se tive a felicidade de que o senhor achasse algum encanto em estar perto de mim do modo como o fazia, volte... Do contrário ficarei desesperada. A miséria já chegou e o senhor não sabe tudo o que ela traz de coisas tolas. Ontem passei com um arenque de dois sous e um sou de pão. É isso um almoço para a sua amante? Os Chapuzot, que pareciam ser-me tão dedicados, já não estão mais comigo. Sua ausência fez-me ver o fundo das afeições humanas... Um cão que a gente alimenta nunca mais nos deixa, e os Chapuzot se foram. Um oficial de justiça, que se fez de surdo, penhorou tudo em nome do proprietário, que não tem coração, e do joalheiro, que não quer esperar nem dez dias; porque com a confiança dos senhores, o crédito se vai! Que situação para as mulheres que só se podem censurar por sua alegria! Meu amigo, pus no prego tudo o que tinha algum valor; nada mais me resta do que a sua recordação, e o inverno está a chegar. Durante o inverno fico sem aquecimento, porque no bulevar só levam mimodramas, nos quais quase nada tenho a fazer senão uns papeizinhos insignificantes que não firmam uma mulher. Como pôde o senhor equivocar-se com a nobreza dos meus sentimentos para consigo, pois que, afinal, não temos dois modos para exprimir nossa gratidão? O senhor, que parecia tão contente com o bem-estar, como pôde deixar-me em apuros? Oh!, meu único amigo no mundo, antes de ir recomeçar a percorrer as feiras com o Circo Bouthor, porque aí, pelo menos, eu ganharei com que viver, perdoe-me de ter querido saber se o perdi para sempre. Se me acontecesse pensar no senhor no momento em que pulo no arco, seria capaz de quebrar as pernas por perder um tempo! Seja como for, é sua para toda a vida.


margarida turquet


— Esta carta — disse Tadeu com os seus botões, desatando a rir — vale bem os meus dez mil francos!

VII – ÂNSIAS DE PAZ

Clementina chegou no dia seguinte e nesse dia Paz reviu-a mais bela, mais graciosa do que nunca. Depois do jantar, durante o qual a condessa mostrou uma perfeita indiferença por Tadeu, depois da saída do capitão, houve a seguinte cena no salão, entre o conde e a esposa. Simulando pedir um conselho a Adão, Tadeu, como por descuido, deixara-lhe a carta de Málaga.

— Pobre Tadeu! — disse Adão à esposa depois de ter visto Paz retirar-se. — Que desgraça para um homem tão distinto servir de joguete para uma artista de circo da última categoria. Ele assim perderá tudo, e até se aviltará, ninguém o reconhecerá mais daqui a pouco tempo. Tome, querida, leia — disse o conde, passando a carta para a esposa.

Clementina leu a carta, que fedia a fumo, e atirou-a com um gesto de nojo.

— Por mais espesso que seja o céu que tenha nos olhos, ele terá com certeza percebido alguma coisa — disse Adão. — Málaga deve ter-lhe feito alguma tratantada.

— E ele volta lá! — disse Clementina. — E ele perdoará! É somente para essas horríveis mulheres que vocês têm indulgência!

— Elas precisam tanto disso! — disse Adão.

— Tadeu fazia-se justiça... quando não saía do seu lugar — disse ela.

— Oh! Meu anjo, você vai longe demais — disse o conde, que, de começo, feliz por diminuir o amigo aos olhos da mulher, não queria, entretanto, a morte do pecador.

Tadeu, que conhecia Adão a fundo, pedira-lhe o mais absoluto segredo; falara-lhe sob pretexto de desculpar suas dissipações e pedir ao amigo autorização a fim de tirar uns mil escudos para Málaga.

— É um homem que tem um caráter altivo — disse Adão.

— Como assim?

— Mas por não ter gastado mais de dez mil francos com ela, e esperar semelhante carta antes de levar-lhe o dinheiro para pagar as dívidas! Para um polonês, francamente...

— Mas ele pode arruinar-te — disse Clementina com o tom azedo da parisiense quando manifesta a sua desconfiança de gata.

— Oh!, conheço-o — respondeu Adão —, ele nos sacrificaria Málaga.

— Veremos — duvidou a condessa.

— Se fosse preciso para a felicidade dele, eu não hesitaria em pedir-lhe que a deixasse. Disse-me Constantino que, durante o tempo de sua ligação, Paz, que sempre fora sóbrio, voltou algumas vezes alegrete... Se ele se deixasse arrastar à embriaguez, isso me causaria tanto pesar como se se tratasse de um filho meu.

— Não me diga mais nada — exclamou a condessa, fazendo outro gesto de repugnância.

Dois dias depois, o capitão percebeu nas maneiras, no tom da voz, nos olhos da condessa os terríveis efeitos da indiscrição de Adão. O desprezo cavara um abismo entre a encantadora dama e ele. Por isso Tadeu caiu numa profunda melancolia, corroído por este pensamento: “Tu mesmo te tornaste indigno dela!”. A vida se lhe tornou pesada, o mais belo sol parecia empanado a seus olhos. Não obstante, sob essas ondas de amargas dores, teve momentos de alegria; pôde entregar-se, sem perigo, à sua admiração pela condessa, que não prestou mais atenção nele quando, nas festas, encolhido num canto, calado, mas todo olhos e coração, não perdia uma única das atitudes dela, um dos seus cantos quando ela cantava. Vivia enfim uma bela vida, podia tratar ele mesmo do cavalo que ela ia montar, dedicar-se à economia daquela esplêndida casa, por cujos interesses redobrou os cuidados. Esses prazeres silenciosos foram sepultados em seu coração, como os de uma mãe cujo filho nada sabe do coração materno; pois será conhecer, quando se ignora alguma coisa? Não era aquilo mais belo do que o casto amor de Petrarca por Laura, que, em definitivo, era recompensado por um tesouro de glória e pelo triunfo da poesia que ela havia inspirado? A sensação que d’Assas[396] deve ter experimentado ao morrer não valerá por toda uma vida? Essa sensação, Paz a experimentava todos os dias, sem morrer, mas também sem a compensação da imortalidade. Que haverá, pois, no amor para que, não obstante essas delícias secretas, Paz fosse consumido pelos pesares? A religião católica engrandeceu de tal forma o amor que nele uniu, por assim dizer, indissoluvelmente, a estima e a nobreza. Não existe amor sem as superioridades das quais se orgulha o homem, e é de tal forma raro ser amado quando se é desprezado que Tadeu se finava devido às feridas que ele voluntariamente se fizera. Dizer-se a si mesmo que ela o teria amado, e depois morrer?... Isso teria pagado de sobra a vida do pobre apaixonado. As angústias de sua situação anterior pareciam-lhe preferíveis a viver perto dela, cumulando-a com as suas generosidades, sem ser apreciado nem compreendido. Enfim, ele queria a compensação de sua virtude! Emagreceu e amarelou, ficou de tal forma doente, consumido por uma febrícula que, durante o mês de janeiro, foi obrigado a permanecer na cama, sem querer consultar médico. O conde Adão sentiu grandes inquietações pelo seu pobre Tadeu. A condessa teve então a crueldade de dizer numa roda de amigos:

— Deixa-o, não estás vendo que ele tem algum remorso olímpico?

Esse dito insuflou em Tadeu a coragem do desespero; levantou-se, saiu, tentou distrair-se e recuperou a saúde. No mês de fevereiro, Adão perdeu uma quantia importante no Jockey Club, e como tinha medo de que a mulher soubesse, pediu a Tadeu que pusesse tal quantia na conta de suas dissipações com Málaga.

— Que há de extraordinário que aquela artista te tenha custado vinte mil francos? Ninguém tem nada a ver com isso, a não ser eu, ao passo que se a condessa soubesse que eu perdera no jogo, isso me diminuiria no seu conceito e ela ficaria preocupada quanto ao futuro.

— Ainda mais essa! — exclamou Tadeu, dando um profundo suspiro.

— Ah! Tadeu, esse favor saldaria as tuas dívidas, mesmo que eu já não te devesse tanto.

— Adão, terás filhos, por isso te peço, não jogues mais.

— Málaga nos custa ainda vinte mil francos! — exclamou a condessa daí a poucos dias, ao saber da generosidade de Adão para com Tadeu. — Dez mil francos antes, trinta mil ao todo! Mil e quinhentos francos de renda! O preço do meu camarote nos Italiens, a fortuna de muitos burgueses... Oh!, vocês, os poloneses, são incríveis! — disse ela, colhendo flores na sua bela estufa. — Não ficas mais aborrecido do que isso?

— Esse pobre Paz...

— Esse pobre Paz, pobre Paz — replicou ela, interrompendo-o —, afinal para que nos serve ele? Vou eu mesma pôr-me à frente dos negócios da casa! Tu lhe darás os cem luíses de renda que recusou, e ele que se arranje como quiser com o Circo Olímpico.

— Ele nos é muito útil, economizou para nós, neste último ano, no mínimo, quarenta mil francos. Enfim, querido anjo, ele nos colocou cem mil francos no banco Rotschild, e um administrador tê-los-ia roubado.

Clementina apaziguou-se, mas nem por isso deixou de tratar Tadeu com dureza. Alguns dias depois, pediu a Paz que fosse vê-la naquele boudoir onde, um ano antes, ela se surpreendera a compará-lo com o marido; desta vez recebeu-o a sós sem ver nisso o menor perigo.

— Meu caro Paz — disse-lhe ela com a familiaridade sem consequência dos grandes para com os subalternos —, se quer realmente a Adão como afirma, deve fazer uma coisa que ele jamais lhe pediria, mas que eu, esposa dele, não hesito em exigir do senhor...

— Trata-se de Málaga? — perguntou Tadeu, com profunda ironia.

— Pois bem! Sim — disse ela —, se quer acabar seus dias conosco, se quer que nos conservemos bons amigos, abandone-a. Como é possível que um velho soldado...

— Tenho apenas trinta e cinco anos e nenhum cabelo branco.

— Pois parece que os tem — disse ela —; vem a dar no mesmo. Como é possível que um homem tão bom calculador, tão distinto...

Foi horrível que essa frase tivesse sido dita com a evidente intenção de despertar nele a nobreza de alma que Clementina julgava extinta.

— Tão distinto quanto o senhor é — continuou após uma pausa quase imperceptível que provocou em Paz o esboço de um gesto —, deixa-se engodar como uma criança! Sua aventura celebrizou Málaga... Pois bem! Meu tio quis vê-la e viu-a... De resto, não foi ele o único, porquanto Málaga recebe muito bem todos esses senhores... Eu acreditei na nobreza de sua alma... Que horror! Vejamos, será para o senhor tão grande perda, que não possa ser reparada?

— Minha senhora, se eu conhecesse um sacrifício a fazer para reconquistar a sua estima, eu o faria em seguida; mas deixar Málaga não é um...

— Na sua situação, se eu fosse homem, é o que eu diria — respondeu Clementina. — Pois bem! Se eu considerar isso um grande sacrifício, não terá motivo para zangar-se.

Paz retirou-se, temendo praticar alguma tolice, pois sentia-se invadir por ideias aloucadas. Foi dar um passeio ao ar livre, com roupa muito leve apesar do frio, sem poder aplacar o fogo que lhe queimava as faces e a fronte... “Acreditei na nobreza de sua alma!” — continuava ouvindo essas palavras. “E dizer-se que faz apenas quase um ano que, segundo Clementina, eu sozinho teria batido os russos!” Lembrou-se de abandonar o palacete Laginski, engajar-se nos sipaios e fazer-se matar na África; mas deteve-o um angustioso terror. “Sem mim, que será deles? Não tardariam em se arruinarem. Pobre condessa! Que vida horrível para ela ver-se reduzida a viver só com trinta mil libras de renda! Vamos”, pensou, “visto estar ela perdida para mim, tenhamos coragem e terminemos nossa obra.”

VIII – O BAILE MUSARD

Todos sabem que, depois de 1830, o Carnaval, em Paris, teve um desenvolvimento prodigioso que lhe deu feição europeia e se tornou muito mais burlesco e animado que o extinto Carnaval de Veneza. Será isso devido ao fato de que a diminuição desmedida das fortunas fez os parisienses inventarem o divertimento coletivo, como fizeram com os seus clubes, salões sem dona de casa, sem polidez, e baratos? Seja como for, o mês de março multiplicava, então, esses bailes, onde a dança, a farsa, a alegria ruidosa, o delírio, as imagens grotescas e os gracejos afiados pelo espírito parisiense conseguem efeitos gigantescos. Essa loucura tinha, então, na rue Saint-Honoré seu Pandemônio, e em Musard,[397] seu Napoleão, um homenzinho feito a propósito para dirigir uma música tão poderosa quanto a multidão enlouquecida e para conduzir o galope — essa ronda do sábado —, uma das glórias de Auber, pois o galope só teve a sua forma e a sua poesia depois do grande galope de Gustavo.[398] Esse imenso final não poderia servir de símbolo de uma época em que, faz cinquenta anos, tudo desfila com a rapidez de um sonho? Ora, o sério Tadeu, que carregava em seu coração uma imagem divina e imaculada, foi propor a Málaga, a rainha das danças do Carnaval, para passarem a noite no baile Musard quando soube que a condessa, disfarçada até os dentes, devia ir ver, com duas outras jovens senhoras, acompanhadas pelos maridos, o curioso espetáculo de um desses bailes monstruosos. Na terça-feira de Carnaval do ano de 1838, às quatro horas da manhã, a condessa, envolta num dominó preto e sentada na bancada de um dos anfiteatros daquela sala babilônica, onde, desde então, Valentino[399] dá seus concertos, viu, no galope, Tadeu, fantasiado de Roberto Macário,[400] desfilar, conduzindo a amazona, vestida de índia, com a cabeça enfeitada com plumas, como um cavalo na cerimônia da coroação, e saltando por sobre os grupos, como um verdadeiro fogo-fátuo.

— Ah! — disse Clementina ao marido. Vocês, poloneses, são gente sem caráter. Quem não teria tido confiança em Tadeu? Ele deu-me a sua palavra, sem saber que eu estaria aqui vendo tudo, sem ser vista.

Alguns dias depois, Paz acompanhou-os ao jantar. Depois da refeição, Adão deixou-os a sós, e Clementina repreendeu Tadeu de maneira a fazê-lo compreender que não o queria mais em casa.

— Sim, minha senhora — disse Tadeu, humildemente —, tem toda a razão, sou um miserável, pois lhe havia dado minha palavra. Mas que quer, tinha resolvido separar-me de Málaga depois do Carnaval... De resto, serei franco: essa mulher exerce um tal domínio sobre mim que...

— Uma mulher que se faz expulsar do baile Musard pelos agentes de polícia, e por que dança!

— Convenho, aceito a condenação, deixarei sua casa, mas a senhora conhece Adão. Se lhes entrego a direção de sua fortuna, a senhora terá de desenvolver uma grande energia. Embora eu tenha o vício de Málaga, sei, apesar disso, cuidar dos seus interesses, dirigir a criadagem, ocupar-me dos menores detalhes. Permita, pois, que me retire somente depois de verificar que está em condições de continuar minha administração; têm agora três anos de casados e estão ao abrigo das primeiras loucuras que a lua de mel provoca. As parisienses e as de melhores títulos, sabem, hoje, administrar muito bem uma fortuna e uma casa. Pois bem! Quando eu estiver convencido não tanto de sua capacidade, mas de sua firmeza, deixarei Paris.

— Quem falou agora foi o Tadeu de Varsóvia e não o Tadeu do Circo — respondeu ela. — Volte-nos curado.

— Curado... Nunca — disse Paz com os olhos baixos, contemplando os lindos pés de Clementina. — A senhora não sabe, condessa, quanto essa mulher é espirituosa e desconcertante. — E sentindo que a coragem se ia, acrescentou: — Não há senhora da alta sociedade, com seus ares afetados, que valha essa natureza franca de animal jovem...

— O fato é que eu nada desejaria ter de animal — disse-lhe a condessa, fitando-o com um olhar de víbora enraivecida.

A partir dessa manhã,[401] o conde Tadeu pôs Clementina ao corrente dos seus negócios, tornou-se seu preceptor, ensinou-lhe as dificuldades da gestão de seus bens, o verdadeiro preço das coisas e o modo de não se deixar roubar pelos fornecedores. Ela podia confiar em Constantino e fazer dele seu mordomo. Tadeu formara Constantino. No mês de maio, a condessa pareceu-lhe perfeitamente em condições de administrar sua fortuna, pois Clementina era uma dessas mulheres que têm um golpe de vista exato, instintivo, e em quem o dom de dona de casa era inato.

IX – UMA SITUAÇÃO ESTRANHA

Essa situação provocada por Tadeu com tanta naturalidade acarretou uma horrível peripécia para ele, porquanto seus sofrimentos não deviam ser tão suaves quanto ele queria crer. Esse pobre amante não levara em conta o acaso. Ora, Adão adoeceu muito seriamente. Tadeu, em vez de partir, serviu de enfermeiro ao amigo. O devotamento do capitão foi incansável. Uma mulher que tivesse tido interesse em exercitar sua perspicácia teria visto no heroísmo do capitão uma espécie de castigo que as almas nobres se impõem para reprimir os maus pensamentos involuntários; mas as mulheres ou veem tudo, ou não veem nada, segundo o seu estado de alma. O amor é sua única luz.

Durante quarenta e cinco dias, Paz velou, atendeu Mitgislas sem que parecesse pensar em Málaga, pela simples razão de que nunca pensara nela. Ao ver Adão à morte e não morrendo, Clementina convocou os mais célebres médicos.

— Se se salvar desta — disse o mais célebre dos doutores —, será exclusivamente por um esforço da natureza. Compete aos que cuidam dele espreitar esse momento e secundar a natureza. A vida do conde está nas mãos dos seus enfermeiros.

Tadeu foi comunicar a sentença a Clementina, que se achava naquele momento sentada no pavilhão chinês, tanto para repousar das fadigas que suportava como para dar campo livre aos médicos e não os constranger. Ao seguir as sinuosidades da alameda ensaibrada que ia do boudoir ao rochedo sobre o qual se erguia o pavilhão chinês, o apaixonado de Clementina sentia-se como se estivesse no fundo dos abismos descritos por Alighieri. O desgraçado não previra a possibilidade de vir a ser marido de Clementina e se havia metido, ele mesmo, num poço de lama. Chegou com a fisionomia desfeita, sublime de dor. Sua cabeça, como a da Medusa, transmitia desespero.

— Morreu?... — perguntou Clementina.

— Eles o desenganaram; pelo menos acham que só a natureza o poderá salvar. Não vá, eles ainda estão lá e Bianchon[402] vai tirar ele próprio os aparelhos.

— Pobre homem! A mim mesma pergunto se não o aborreci algumas vezes — disse ela.

— A senhora o fez muito feliz, fique tranquila a esse respeito — disse Tadeu —, e até foi muito indulgente para com ele.

— Seria uma perda irreparável para mim.

— Mas, querida senhora, admitindo mesmo que o conde sucumba, já não o tinha julgado?

— Eu o amava sem cegueira — disse ela —, como uma mulher deve amar o marido.

— Deve portanto — disse Tadeu com uma voz que Clementina não lhe conhecia — sentir menos do que se perdesse um desses homens que constituem o orgulho de uma mulher! Seu amor e toda a sua vida! Pode ser sincera com um amigo como eu... Eu sentirei muito a sua perda!... Muito antes de seu casamento, eu fazia dele um filho e lhe havia sacrificado minha vida. Ficarei, pois, no mundo, sem interesse. Mas para uma viúva de vinte e quatro anos a vida é ainda bela.

— Mas o senhor bem sabe que eu não amo ninguém — disse ela com a impetuosidade da dor.

— A senhora não sabe ainda o que é amar — disse Tadeu.

— Oh! Marido por marido, tenho bastante bom senso para preferir uma criança como o meu pobre Adão a um homem superior. Vai fazer trinta dias que vivemos a nos perguntar: viverá ele? Essas alternativas preparam-me para essa perda, tanto como ao senhor. Posso ser franca consigo. Pois bem! Eu daria minha vida para conservar a de Adão. Não é a independência das mulheres, em Paris, a autorização de se deixarem levar pelos simulacros do amor de homens arruinados e esbanjadores? Eu pedia a Deus que me deixasse esse marido, tão condescendente, de tão bom gênio, tão pouco arreliento e que começava a temer-me.

— A senhora é sincera e eu lhe quero mais ainda por isso — disse Tadeu, tomando e beijando a mão de Clementina, que o deixou fazer. — Em momentos tão solenes, há não sei que satisfação em encontrar uma mulher sem hipocrisia. Pode-se conversar consigo. Vejamos o futuro; suponhamos que Deus não a ouve e eu sou um dos que estão mais dispostos a bradar-lhe: Deixai-me o meu amigo! Sim, essas cinquenta noites não enfraqueceram meus olhos e fossem embora precisos mais trinta dias e trinta noites de cuidado, a senhora, condessa, dormiria enquanto eu velasse. Saberei salvá-lo da morte se, como eles dizem, ele pode ser salvo por cuidados. Enfim, suponhamos que, apesar de mim e da senhora, o conde morra. Pois bem! Se a senhora fosse amada, oh!, mas adorada, por um homem de grande coração e de um caráter digno do seu...

— É possível que eu tenha desejado loucamente ser amada, mas não encontrei...

— Se a senhora tivesse sido enganada...

Clementina olhou fixamente para Tadeu, supondo nele antes cupidez do que amor, e cobriu-o com o seu desprezo, medindo-o da cabeça aos pés e esmagando-o com duas palavras: — Pobre Málaga! — proferidas em três tons que só as grandes damas sabem achar no registro de seus desdéns. Ela levantou-se, deixou Tadeu aturdido, pois não se virou, caminhou com passo digno para o seu boudoir e subiu ao quarto de Adão.

Uma hora depois, Paz voltou ao quarto do amigo e, como se não tivesse recebido um golpe mortal, prodigou seus cuidados ao conde. A partir desse fatal momento tornou-se taciturno; teve, ademais, um duelo com a doença, combatendo-a de modo a provocar a admiração dos médicos. A qualquer hora viam-se seus olhos acesos como duas lâmpadas. Sem manifestar o menor ressentimento contra Clementina, ouvia-lhe os agradecimentos sem os aceitar como se estivesse surdo. Dissera consigo: — Ela me deverá a vida de Adão! — e essas palavras, escrevia-as, por assim dizer, em traços de fogo no quarto do doente. No décimo quinto dia, Clementina foi obrigada a restringir seus cuidados, sob pena de sucumbir pelo cansaço. Paz era infatigável. Finalmente, no fim do mês de agosto, Bianchon, o médico da casa, que respondia pela vida do conde, disse a Clementina:

— Ah! Minha senhora, não me deve obrigação nenhuma. Não fosse o seu amigo, não o teríamos salvado!

X – CONCLUSÃO

No dia seguinte à terrível cena do pavilhão chinês, o marquês de Ronquerolles viera ver o sobrinho, porquanto partia para a Rússia em missão secreta, e Paz, fulminado na véspera, dissera qualquer coisa ao diplomata. Ora, no dia em que o conde e a esposa saíram pela primeira vez na caleça, no momento em que esta ia atravessar o portão, entrou um gendarme ao pátio do palacete e perguntou pelo conde Paz. Tadeu, sentado no banco da frente da caleça, voltou-se para receber uma carta que trazia o carimbo do Ministério das Relações Exteriores e colocou-a no bolso de um modo que impediu Clementina e Adão de lhe falarem a respeito. Não se pode negar às pessoas da boa sociedade a ciência da linguagem não falada. Não obstante, ao chegarem à Porta de Maillot, Adão, usando dos privilégios de um convalescente, cujos caprichos devem ser satisfeitos, disse a Tadeu:

— Entre dois irmãos que se querem como nós não há indiscrições; tu sabes o que contém essa mensagem, dize-me portanto o que é, que estou ardendo de curiosidade.

Clementina olhou para Tadeu com olhos de mulher zangada e disse ao marido:

— Faz dois meses que ele anda enfadado comigo, por isso não me permitirei insistir.

— Ora, meu Deus — respondeu Paz —, como não posso impedir os jornais de publicá-lo, vou revelar-lhes este segredo: o imperador Nicolau concedeu-me a graça de me nomear capitão num regimento destinado à expedição de Khiva.[403]

— E tu vais? — indagou Adão.

— Vou, meu caro. Vim capitão, e volto capitão... Málaga poderia levar-me a fazer asneiras. Jantaremos juntos amanhã pela última vez. Se eu não partisse em setembro para Petersburgo, teria de ir por terra e não sou rico: além de que devo deixar a Málaga uma pequena independência. Como não garantir o futuro da única mulher que soube compreender-me? Málaga me considera grande, acha-me bonito! É bem possível que me seja infiel, mas seria capaz de passar pelo...

— Pelo arco, para o senhor, e recairia justamente em cima do cavalo — disse apressadamente Clementina.

— Oh!, a senhora não conhece Málaga — disse o capitão, com profunda amargura e um olhar repleto de ironia, que deixaram Clementina pensativa e inquieta.

— Adeus, jovens árvores deste belo Bois de Boulogne, onde as parisienses passeiam, onde passeiam os exilados que aqui encontram uma pátria. Tenho certeza de que meus olhos não tornarão a ver as árvores verdes da alameda de Mademoiselle, nem os da estrada das Damas, nem as acácias, nem o cedro dos largos... Nos confins da Ásia, obedecendo aos projetos do grande imperador que escolhi para meu senhor, tendo alcançado, quem sabe, o comando de um exército, à força de coragem, à força de arriscar minha vida, talvez me lembre com saudade dos Champs-Élysées, onde, uma vez, me fizeram passear ao lado. Enfim, sempre me lembrarei com pesar dos rigores de Málaga, a Málaga de quem falo neste instante.

Disse isso de maneira a fazer Clementina estremecer.

— Quer então muito a Málaga? — perguntou ela.

— Sacrifiquei-lhe a honra que nunca sacrificamos...

— Qual?

— Mas a que queremos conservar, a qualquer preço, aos olhos do nosso ídolo.

Depois dessa resposta, Tadeu manteve-se num silêncio impenetrável, e só o quebrou quando, ao passar pelos Champs-Élysées, disse, apontando para um alpendre de tábuas:

— Ali está o circo!

Pouco antes do jantar, foi à embaixada da Rússia e de lá ao Ministério do Exterior e no dia seguinte partiu para o Havre, pela manhã, antes de a condessa se levantar.

— Perdi um amigo — disse Adão, com lágrimas nos olhos, ao saber da partida do conde Paz —, um amigo na verdadeira acepção do termo, e não sei o que o levou a fugir de minha casa como da peste. Não somos amigos para nos indispormos, um com o outro, por causa de uma mulher — disse ele, olhando fixamente Clementina — e, entretanto, tudo o que ele ontem dizia de Málaga... Mas se ele nunca tocou, nem a ponta do dedo, dessa rapariga...

— Como o sabes? — perguntou Clementina.

— Ora, tive naturalmente a curiosidade de conhecer a srta. Turquet, e a pobre, a si mesma, não pôde, até hoje, explicar a absoluta reserva de Tadeu...

— Basta, senhor — disse a condessa, que se recolheu aos seus aposentos, dizendo-se, a si mesma: — Teria sido eu vítima de uma mistificação sublime?

Acabava apenas de proferir essa frase, no seu íntimo, quando Constantino lhe entregou a seguinte carta que Tadeu rabiscara durante a noite:


Condessa, ir ao Cáucaso para me fazer matar e levar comigo seu desprezo, é demasiado; deve-se morrer de uma vez. Adorei-a desde a primeira vez que a vi, como se adora uma mulher a quem se ama sempre, mesmo depois de sua infidelidade, eu, que era grato a Adão, que a tinha escolhido e que a senhora desposava, eu pobre, eu o administrador voluntário, dedicado, de sua casa. Nessa horrível desgraça, encontrei a mais deliciosa vida. Ser em sua casa uma mola indispensável, saber-me útil ao seu luxo, ao seu bem-estar, foi para mim uma fonte de gozos; e, se esses gozos eram intensos em minha alma quando se tratava de Adão, imagine o que seriam quando uma mulher adorada era sua origem e seu efeito! Conheci os prazeres da maternidade no amor; conformava-me com essa vida. Como os pobres das estradas reais, eu ergui para mim uma cabana de pedras na orla de vossa bela propriedade, sem lhe estender a mão. Pobre e infeliz, cegado pela felicidade de Adão, era eu quem dava. Ah!, a senhora estava cercada por um amor puro como o de um anjo da guarda, que velava quando a senhora dormia, que a acariciava com o olhar quando a senhora passava, que se sentia feliz de existir, enfim, a senhora era o sol da pátria para este pobre exilado que aqui lhe está escrevendo com os olhos cheios de lágrimas, ao pensar nessa felicidade dos primeiros dias. Aos dezoito anos, não sendo querido por ninguém, eu tomara por amante ideal uma encantadora dama de Varsóvia, a quem eu dedicava meus pensamentos, meus desejos, e que era a rainha de meus dias e de minhas noites! Essa mulher de nada sabia, mas para que dizer-lhe?... Eu amava meu amor. Julgue, por essa aventura de minha adolescência, como eu me sentiria feliz por viver na esfera de sua existência, de tratar de seu cavalo, de conseguir moedas de ouro bem novas para a sua bolsa, de estar atento ao esplendor de sua mesa e de seus saraus, de vê-la eclipsando fortunas superiores à sua, tudo por minha habilidade. Com que ardor eu me precipitava por essa Paris, quando Adão me dizia: — Tadeu, ela quer tal coisa! É uma dessas alegrias impossíveis de exprimir. A senhora desejou ninharias, num prazo determinado, que me obrigaram a fazer coisas impossíveis, a correr em cabriolé, durante horas; e que delícia movimentar-me por sua causa! Ao vê-la sorridente, entre suas flores, sem que me visse, fazia-me esquecer que ninguém me amava... Enfim, continuava a ser como aos dezoito anos. Certos dias em que a felicidade me virava a cabeça, eu ia, à noite, beijar o lugar em que, para mim, seus pés tinham deixado rastros luminosos, como outrora eu fiz milagres de ladrão para ir beijar a chave que a condessa Ladislas tocara com suas mãos, ao abrir uma porta. O ar que a senhora respirava era balsâmico; havia para mim mais vida em aspirá-lo, e nele me sentia como se está, dizem nos trópicos, acabrunhado, por exalações saturadas de princípios criadores. É forçoso dizer-lhe essas coisas para explicar-lhe a estranha fatuidade de meus pensamentos involuntários. Teria preferido morrer a revelar-lhe meu segredo! Deve lembrar-se dos poucos dias de curiosidade durante os quais quis ver o autor dos milagres que por fim a tinham impressionado. Acreditei, perdoe-me, minha senhora, acreditei que viesse a amar-me. Sua benevolência, seus olhares interpretados por um enamorado pareceram-me tão perigosos para mim, que me atribuí Málaga, pois sabia que há ligações que as mulheres não perdoam; fiz isso no momento em que vi meu amor transmitir-se fatalmente. Esmague-me agora com o desprezo com que me cobriu a mancheias sem que eu merecesse; mas creio ter certeza de que, na noite em que a sua tia levou o conde com ela, se eu lhe tivesse dito o que acabo de escrever, eu ficaria como o tigre domesticado que tornou a sentir sob o dente a carne viva, que sentiu o calor do sangue, e...


Meia-noite


Não pude continuar; a lembrança daquele momento ainda está muito viva! Sim, delirei naquele instante. Nos seus olhos estava a Esperança, a Vitória e os seus pavilhões vermelhos teriam brilhado nos meus e fascinado os seus. Meu crime foi pensar tudo isso, talvez erradamente. Só a senhora é juiz dessa terrível cena, na qual pude recalcar amor, desejo, as mais invencíveis forças do homem, sob a mão gelada de uma gratidão que deve ser eterna. Seu terrível desprezo castigou-me. A senhora demonstrou-me que não nos podemos reerguer do asco e do desprezo. Amo-a como um insensato. Morto Adão, eu teria partido; com mais forte razão devo partir, Adão salvo. Não se arranca um amigo dos braços da morte para traí-lo. De resto, minha partida é o castigo do pensamento que tive de o deixar morrer quando os médicos me disseram que sua vida dependia dos enfermeiros. Adeus, senhora; tudo perco ao deixar Paris, e a senhora nada perde, não me tendo mais a seu lado.


Seu dedicado

tadeu paz


— Se meu pobre Adão diz ter perdido um amigo, que terei eu então perdido? — a si mesma disse Clementina, abatida, os olhos fitos numa flor do tapete.

Eis a carta que Constantino, em segredo, entregou ao conde Adão:


Meu caro Mitgislas, Málaga contou-me tudo. Em nome de tua felicidade, nunca digas a Clementina uma palavra sobre as tuas visitas à amazona e deixa-a crer sempre que Málaga custou-me cem mil francos. Com o caráter que tem, a condessa nunca te perdoaria, nem tuas perdas no jogo, nem tuas visitas a Málaga. Não vou para Khiva, e sim para o Cáucaso. Estou com o spleen, e do jeito que vou, serei daqui a três anos o príncipe Paz ou estarei morto. Adeus; embora eu tenha retirado sessenta mil francos no banco Nucingen, estamos quites.

tadeu


— Que imbecil sou eu! Quase me cortei há pouco, ao falar na amazona — disse Adão com os seus botões.

Faz três anos que Tadeu partiu e os jornais não falaram ainda de nenhum príncipe Paz. A condessa Laginski interessa-se muito pelas expedições do imperador Nicolau. É russa de coração, lê avidamente todas as notícias que chegam daquele país. Uma ou duas vezes, cada inverno, diz com ar indiferente ao embaixador: “Sabe o que é feito do nosso pobre conde Paz?”.

Ai de nós! A maioria das parisienses, essas criaturas tão perspicazes e espirituosas — segundo dizem —, passa e passará sempre ao lado de um Paz sem o ver. Sim, mais de um Paz passa despercebido; mas, coisa espantosa! Há os que passam despercebidos mesmo quando são amados. A mulher mais simples do mundo exige mesmo do homem mais extraordinário um pouco de charlatanismo; e o mais belo amor nada significa quando se apresenta em estado bruto; precisa da mise-en-scène da lapidação e da ourivesaria.

No mês de janeiro de 1842, a condessa Laginski, adornada com a sua doce melancolia, inspirou a mais desabrida paixão ao conde de La Palférine,[404] um dos leões mais atrevidos da Paris atual. La Palférine compreendeu quanto a conquista de uma mulher defendida por uma Quimera seria difícil e contou com uma surpresa e com o devotamento de outra, um pouco ciumenta de Clementina, para arrastar essa encantadora dama.

Incapaz, não obstante todo o seu espírito, de suspeitar semelhante traição, a condessa Laginski cometeu a imprudência de ir com aquela pseudoamiga ao baile de máscaras da Ópera. Cerca das três horas da madrugada, levada pela embriaguez do baile, Clementina, para quem La Palférine ostentara todas as suas seduções, consentiu em ir cear e subia para o carro daquela falsa amiga. Nesse momento crítico, segurou-a um braço vigoroso e, apesar de seus gritos, foi levada para o seu próprio carro, cuja portinhola estava aberta, e que ela ignorava estar ali.

— Ele não saiu de Paris — exclamou ela ao reconhecer Tadeu, o qual fugiu quando o carro levou a condessa.

Teve jamais uma mulher um tal romance na vida?

A todo momento, Clementina espera rever Paz.


Paris, janeiro de 1842

 

 

INTRODUÇÃO

No prefácio da primeira edição de Uma filha de Eva (em francês: Une Fille d’Ève), Balzac resume assim o sentido desta obra: “Uma filha de Eva está destinada a pintar uma situação na qual se encontram algumas mulheres, empurradas a uma paixão ilícita por uma multidão de circunstâncias mais ou menos atenuantes, mas que, não se vendo muito gravemente comprometidas, são bastante sábias para voltar à vida conjugal. As infelicidades da paixão ensinaram-lhes as doçuras de um casamento feliz”.

Em seguida, parece-lhe necessário responder aos leitores que, quando da publicação anterior em jornal, não acharam o desfecho suficientemente trágico. O caráter “inocente” de Uma filha de Eva, segundo explica Balzac, deve-se ao fato de ela fazer parte das Cenas da vida privada, “que não permitem nenhuma das violências ou dos temperos picantes que admite uma Cena da vida parisiense”. Mais uma vez, ele procura justificar assim as subdivisões de sua A comédia humana e demonstrar que a cada uma delas corresponde um tipo diverso de romance. Basta, porém, lembrarmo-nos da Vendeta ou das Memórias de duas jovens esposas para vermos que o trágico não está, absolutamente, excluído das Cenas da vida privada.

De qualquer maneira, o fim de Uma filha de Eva podia ser triste ou feliz, sem contradição para o romance. Um concurso de circunstâncias — o fastio de uma felicidade sem tempestades, a sede de poesia, o aparecimento de um sedutor no momento oportuno, as intrigas das “amigas” — levam a condessa Félix de Vandenesse à beira do adultério. Até lá, tudo decorre segundo as leis de uma lógica fatal; mas, uma vez chegada a heroína a essa encruzilhada, sua atitude fica dependendo de qualquer incidente insignificante. É essa a parte deixada pelo romancista ao acaso, ou, melhor, aos acasos, pois nesta obra, como em muitas outras (Uma estreia na vida, por exemplo), há vários acasos lutando em volta de uma personagem que em grande parte decorrem de seus temperamentos e antecedentes.

O principal interesse do romance talvez seja devido à habilidade com que Balzac conduz a sua heroína ao longo do precipício, mantendo até o fim a atmosfera do perigo. Repare-se também na diversidade de aspectos que o drama oferece considerado do ponto de vista de um ou de outro protagonista. Uma filha de Eva não é menos o romance de Raul Nathan que o de Maria Angélica; se para a segunda reserva uma conclusão feliz, envolve para o primeiro uma tragédia atroz. A habilidade de Balzac consiste em interessar os leitores em medida igual no destino de seus protagonistas, o que permite a adoção desses pontos de vista sucessivos e antagônicos. Por muito que se goste da condessa de Vandenesse, na sua crise matrimonial fica-se ao lado do marido; embora se despreze Raul, toma-se o partido dele na perseguição que lhe move du Tillet.

Pode-se achar que, não obstante o título, a personagem central não é “uma filha de Eva”, mas “um filho de Adão”, o escritor e jornalista Raul Nathan, indivíduo dotado mas preguiçoso, brilhante mas amoral. Mas então qual foi o modelo vivo de criação tão real? Vários comentadores têm apontado diversas “chaves” para identificação: ela teria sido inspirada no desenhista Laurent Jan, pelo crítico Gustave Planche, no candidato a suicida Duranton, amante de Delphine Girardin, no diretor de jornal Nestor Roqueplan, em Léon Gozlan, Charles Nodier, Théophile Gautier, Alexandre Dumas... Na excelente introdução a uma reedição recente à novela (Ed. Garnier-Flammarion, 1965), o prof. Pierre Citron aponta o motivo de todas essas identificações, mas conclui que, como tantas vezes, o romancista procedeu a uma amalgamação. Sua outra conclusão é mais surpreendente: a história da malograda aventura de Nathan com a sra. Félix de Vandenesse seria uma reminiscência no início da ligação do próprio Balzac com a condessa Clara Maffei (a quem A falsa amante é dedicada). E assim o romancista, talvez sem querer, moldou com suas características e suas lembranças um de seus heróis não muito estimáveis.

Uma filha de Eva é bom exemplo de como uma obra de A comédia humana, por meio do reaparecimento de personagens já conhecidas, alarga as perspectivas de outra já lida. A dissensão entre o conde de Granville e sua esposa devota, contada em Uma dupla família, reveste-se de cores mais sombrias ao sermos admitidos a contemplar um dos seus resultados: a desprevenção com que as duas filhas do casal, tolhidas pela educação rigorosa que lhes administrou a mãe, afrontam os temíveis perigos da vida em sociedade. Por sua vez, Uma filha de Eva é como que esclarecida por outro romance, O lírio do vale, em que se vê o conde Félix de Vandenesse adquirir nos sofrimentos de uma paixão anterior a compreensiva sabedoria com que encararia o quase adultério da esposa.

O presente romance completa admiravelmente o curioso panorama da alta sociedade parisiense, já entrevista em Ao “Chat-qui-pelote” e, sobretudo, em Modesta Mignon, revelando os numerosos pontos de contato desse meio social com o demi-monde dos jornalistas, dos atores, das raparigas. Balzac foi o primeiro que aplicou ao romance a lei dos vasos comunicantes da sociedade. Dramas de amor passam a ser resolvidos nos bancos; debatem-se assuntos políticos nos boudoirs das cortesãs; iniciam-se transações comerciais nos saraus da aristocracia — e toda essa confusão marca o fim da incomunicabilidade das classes sociais. A sua luta não cessou; pelo contrário. Fere-se, porém, em novos cenários e com novas armas, uma das quais o jornalismo, cujo enorme alcance Balzac tão perfeitamente adivinhou, prevendo também os inúmeros abusos e deformações a que se ia prestar.


paulo rónai


UMA FILHA DE EVA
À sra. condessa Bolognini [405]
(em solteira Vimercati)

 


Se vos recordais, senhora, do prazer que vossa conversação proporcionava a um viajante, lembrando-lhe Paris em Milão, não vos admirareis de o ver testemunhando-vos sua gratidão, por tantos serões agradáveis passados em vossa companhia, pondo uma de suas obras aos vossos pés e pedindo-vos que a protejais com o vosso nome, como outrora esse nome protegeu vários contos de um dos nossos velhos autores, caro aos milaneses. Tendes uma Eugênia, já bela, cujo sorriso espiritual prediz que receberá de vós os mais preciosos dons da mulher e que, certamente, terá na sua infância todas as venturas que uma triste mãe recusava à Eugênia, posta em cena nesta obra. Vedes que se os franceses são tachados de levianos, de esquecidos, eu sou italiano pela constância e pela memória. Ao escrever o nome de Eugênia, meu pensamento transportou-me muitas vezes àquele alegre salão de estuque e àquele jardinzinho, ao Vicolo dei Capuccini, testemunha dos risos dessa querida criança, de nossas brigas, de nossas narrativas. Deixastes o Corso pelos Tre Monasteri, não sei como estais aí, e sou forçado a ver-vos não mais entre as belas coisas que sem dúvida aí vos cercam, mas como uma dessas belas imagens devidas a Carlo Dolci, a Rafael, a Ticiano, a Allori,[406] e que parecem abstratas, de tão longe que estão de nós.
Se este livro puder saltar por cima dos Alpes, ele vos provará, pois, a viva gratidão e a amizade respeitosa.


De vosso dedicado servidor

de balzac

I – AS DUAS MARIAS

Num dos mais belos palácios da rue Neuve-des-Mathurins, às onze horas e meia da noite, estavam duas mulheres sentadas em frente à lareira de um boudoir, forrado desse veludo azul de reflexos suaves e furta-cor que a indústria francesa só nestes últimos anos conseguiu fabricar. As portas e janelas foram, por um desses tapeceiros que são quase artistas, adornadas com fofos cortinados de cashmere de um azul igual ao do forro das paredes. Uma lâmpada de prata, ornada de turquesas e suspensa por três correntes de fino lavor, descia de uma bela rosácea colocada no meio do teto. O sistema de decoração é completo até nos menores detalhes, mesmo nesse teto de seda azul, estrelado de cashmere branca, cujas longas lâminas pregueadas caem a iguais distâncias do estofo das paredes acolchetadas com laços de pérolas. Os pés encontram um morno tecido de um tapete belga, espesso como um gramado e de fundo cinzento, de linho semeado de ramos azuis. O mobiliário, esculpido em cheio, em madeira de palissandra, segundo os mais belos modelos dos velhos tempos, realça pelos seus ricos tons a insipidez do conjunto, um pouco demasiado flou, diria um pintor. O espaldar das cadeiras e das poltronas oferece à vista páginas delicadas de tela de seda branca, recamadas de flores azuis, enquadradas por folhagens finamente recortadas na madeira. De cada lado da janela, dois aparadores exibem suas mil ninharias preciosas, as flores das artes mecânicas, desabrochadas ao fogo do pensamento. Sobre a lareira, de mármore turqui, as mais disparatadas porcelanas do velho Saxe, esses pastores que vão a bodas eternas, levando na mão ramos delicados, espécie de chinesices alemãs, cercam um relógio de platina, esmaltado de arabescos. Acima, brilham os biséis estriados de um espelho de Veneza, emoldurado em ébano, lavrado com figuras de relevo e vindo de alguma velha residência realenga. Duas jardineiras ostentavam, então, o luxo doentio das estufas, flores pálidas e divinas, as pérolas da botânica. Nesse boudoir frio, arrumado, limpo como se estivesse à venda, não se encontraria essa desordem sagaz e caprichosa que revela a felicidade. Ali estava tudo em harmonia, pois que naquele momento as duas mulheres choravam. Tudo ali parecia sofrer. O nome do proprietário, Ferdinando du Tillet, um dos mais ricos banqueiros de Paris, justifica o luxo desenfreado que orna o palácio, do qual aquele boudoir podia servir de amostra.

Embora sem família, embora parvenu[407] — Deus sabe como —, du Tillet desposara em 1831 a última filha do conde de Granville,[408] um dos nomes mais célebres da magistratura francesa, feito par de França depois da Revolução de Julho. Esse casamento de ambição foi comprado pela quitação no contrato de um dote não recebido, tão considerável como o da irmã mais velha, casada com o conde Félix de Vandenesse.[409] Por seu lado, os Granville tinham antes obtido essa aliança com Vandenesse pela enormidade do dote. Desse modo, o banco consertou a brecha feita na magistratura pela nobreza. Se o conde de Vandenesse se tivesse podido ver, com três anos de distância, cunhado de um sr. Ferdinando, dito du Tillet, talvez não tivesse desposado sua mulher; mas qual o homem que, em fins de 1828, teria podido prever as estranhas reviravoltas que 1830 devia trazer ao Estado político, nas fortunas e na moral da França? Teria passado por louco aquele que dissesse ao conde de Vandenesse que, nesse chassé-croisé,[410] ele perderia sua coroa de par e que ela iria parar na cabeça do sogro.

Encolhida numa dessas cadeiras baixas chamadas chauffeuses, na atitude de uma mulher atenta, a sra. du Tillet apertava contra o seio, com ternura maternal, e por vezes beijava a mão da irmã, a sra. Félix de Vandenesse. Em sociedade, juntava-se-lhe ao nome de família o nome de batismo, para diferençar a condessa da cunhada, a marquesa, esposa do antigo embaixador Carlos de Vandenesse,[411] que desposara a rica viúva do conde de Kergarouët, uma srta. de Fontaine.[412] Meio inclinada numa conversadeira, com um lenço na outra mão, a respiração embaraçada por soluços reprimidos, com os olhos úmidos, a condessa acabara de fazer confidências que só se fazem de irmã para irmã, quando as duas se querem, e essas duas se queriam com ternura. Vivemos num tempo em que duas irmãs, tão estranhamente casadas, podem tão bem não se querer, que um historiador é obrigado a referir a causa dessa ternura, conservada sem rasgões, sem manchas, por entre o desdém dos maridos, um pelo outro, e das desuniões sociais. Uma rápida exposição da infância de ambas explicará suas respectivas situações.

Criadas num sombrio palacete do Marais,[413] por uma mulher devota e de inteligência estreita que, compenetrada de seus deveres (a frase clássica), efetuara a primeira tarefa de uma mãe para com as filhas: Maria Angélica e Maria Eugênia alcançaram a época do matrimônio, a primeira aos vinte anos, a segunda aos dezessete, sem jamais haverem saído da zona doméstica onde planava o olhar materno. Até então não haviam ido a nenhum espetáculo, tendo sido as igrejas de Paris o seu teatro. Enfim, a educação que receberam no palacete da mãe fora tão rigorosa como o poderia ter sido num convento. Depois que alcançaram a idade da razão, dormiram sempre num quarto contíguo ao da condessa de Granville, do qual a porta ficava aberta durante a noite. O tempo que não empregavam em seus cuidados pessoais, nos deveres religiosos ou nos estudos indispensáveis a moças de bom nascimento empregavam-no em trabalhos de agulha feitos para os pobres, em passeios do gênero dos que os ingleses se permitem nos domingos, dizendo: — Não vamos tão depressa, pois teríamos o ar de quem se está divertindo. A instrução que receberam não ultrapassou os limites impostos pelos confessores escolhidos entre os eclesiásticos menos tolerantes e mais jansenistas. Jamais donzelas foram entregues a maridos, nem mais puras, nem mais virgens; a mãe parecia ter visto nesse ponto, aliás essencial, o cumprimento de todos os seus deveres para com o céu e os homens. Essas duas pobres criaturas, antes do casamento, nem tinham lido romances, nem desenhado outra coisa além de imagens, cuja anatomia teria parecido a obra-prima do impossível a Cuvier,[414] e gravados de modo a feminizar o próprio Hércules Farnese.[415] Uma velha solteirona ensinou-lhes o desenho. Um respeitável padre ensinou-lhes a gramática, a língua francesa, a história, a geografia e o pouco de aritmética indispensável às mulheres. Suas leituras escolhidas nos livros autorizados, como as Cartas edificantes e as Lições de literatura, de Noël,[416] faziam-se à noite em voz alta, mas na companhia do diretor espiritual da mãe, pois ali podiam encontrar-se passagens que, sem sábios comentários, seriam capazes de lhes despertar a imaginação.

O Telêmaco[417] de Fénelon foi achado perigoso. A condessa de Granville amava bastante as filhas para querer fazer delas anjos do modo de Maria Alacoque,[418] mas as filhas teriam preferido uma mãe menos virtuosa e mais amável. Essa educação deu seus frutos. Imposta como um jugo e apresentada sob formas austeras, a religião enfarou com as suas práticas aqueles dois corações inocentes, tratados como se fossem criminosos; cumpriu-lhes os sentimentos, e, embora se enraizasse profundamente, não foi amada. As duas Marias tinham de ficar ou imbecis, ou desejar a independência; desejaram, portanto, o casamento, logo que puderam entrever a sociedade e comparar algumas ideias; nas suas graças enternecedoras e seu valor, elas os ignoravam. Ignoravam a própria candura, pois como poderiam conhecer a vida? Sem armas contra a desgraça, como sem experiência para apreciar a felicidade, elas não achavam mais consolações senão em si mesmas, no fundo daquele cárcere materno. Suas ternas confidências, à noite, em voz baixa, poucas frases trocadas quando a mãe as deixava um momento, continham por vezes mais ideias do que as palavras podem exprimir. Muitas vezes um olhar disfarçado e pelo qual elas se comunicavam suas emoções era como um poema de amarga melancolia. A vista do céu sem nuvens, o perfume das flores, a volta do jardim feita de braço dado ofereceram-lhes prazeres inauditos. O acabamento de um bordado causava-lhes alegrias inocentes. A sociedade que visitou a mãe, longe de fornecer recursos aos seus corações ou de lhes estimular o espírito, não podia senão ensombrecer-lhes as ideias e contristar-lhes os sentimentos; pois se compunha de mulheres velhas, empertigadas, secas, sem graça, cuja conversação girava sobre as diferenças que distinguiam os predicadores ou diretores de consciência, sobre as suas pequenas indisposições e sobre os acontecimentos religiosos, os mais imperceptíveis para a Quotidienne ou para o Ami de la Religion.[419] Quanto aos homens, estes teriam extinguido os fachos do amor, de tão frios e tristemente resignados que eram seus rostos; tinham todos essa idade em que o homem é enfadonho e pesaroso, em que a sua sensibilidade não mais se exerce a não ser à mesa e não se interessa senão pelas coisas que concernem ao bem-estar. O egoísmo religioso dissecara esses corações, votados ao dever e entrincheirados por trás das práticas. Sessões silenciosas de jogo preenchiam quase todo o serão. As duas pequenas, como que postas à margem desse sinédrio que a severidade materna mantinha, surpreendiam-se a odiar essas desoladoras personagens de olhos encovados e rosto carrancudo. Sobre as trevas dessa vida só uma imagem de homem se desenhou vitoriosamente, a do professor de música. Os confessores tinham decidido que a música era uma arte cristã, nascida na Igreja Católica e por ela desenvolvida. Permitiu-se, pois, às duas pequenas, estudar música. Uma senhorita de lunetas, que ensinava o solfejo e o piano num convento vizinho, cansou-as com exercícios. Quando, porém, a mais velha das filhas fez dez anos, o conde de Granville demonstrou a necessidade de tomar um professor. A sra. de Granville deu a essa concessão necessária todo o valor de uma obediência conjugal; é do espírito das devotas fazer-se um mérito do cumprimento dos deveres. O professor foi um alemão católico, um desses homens que nascem velhos, que sempre terão cinquenta anos, mesmo aos oitenta. Seu rosto encovado, enrugado, moreno, conservava algo de infantil e de ingênuo nas pupilas negras. O azul da inocência animava seus olhos, e o alegre sorriso da primavera morava em seus lábios. Seus velhos cabelos grisalhos, penteados, naturalmente, como os de Jesus Cristo, contribuíam para o seu ar extático, com não sei quê de solene que enganava quanto ao seu caráter; faria uma asneira com a mais exemplar gravidade. Sua roupa era um envoltório necessário, ao qual não dava a mínima atenção, porque seus olhos vagavam muito alto, nas nuvens, para jamais se ocuparem com as materialidades. Por isso, esse grande artista ignorado participava da classe amável dos distraídos, que dão seu tempo e sua alma a outrem, do mesmo modo como deixam as luvas em cima de todas as mesas e o guarda-chuva em todas as portas. Suas mãos eram dessas que se apresentam sujas depois de terem sido lavadas. Enfim, seu velho corpo, mal apoiado em velhas pernas nodosas, e que demonstrava até que ponto o homem pode fazer dele o acessório de sua alma, pertencia a essas estranhas criações que só foram bem descritas por um alemão, por Hoffmann,[420] o poeta daquilo que parece não existir e que não obstante tem vida. Tal era Schmucke, antigo mestre de capela do margrave de Anspach, sábio que passou por um conselho de devoção e ao qual perguntaram se ele comia carne. O mestre teve vontade de responder: — Olhe-me! —, mas como gracejar com devotas e diretores jansenistas? Esse velho falso ocupou tanto lugar na vida das duas Marias, elas afeiçoaram-se tanto àquele cândido e grande artista que se contentava em compreender a arte que, depois de seus casamentos, cada uma delas outorgou-lhe trezentos francos de renda vitalícia, quantia suficiente para sua habitação, sua cerveja, seu cachimbo e suas roupas. Seiscentos francos de renda mais as suas lições foram para ele um Éden. Schmucke só se sentiu com coragem de confiar sua miséria e seus desejos àquelas duas adoráveis raparigas, àqueles corações florescidos sob a neve dos rigores maternos e sob o gelo da devoção. Esse fato explica inteiramente Schmucke e a infância das duas Marias. Ninguém soube, mais tarde, que abade, que velha devota descobrira aquele alemão perdido em Paris. Assim que as mães de família souberam que a condessa de Granville encontrara para as filhas um professor de música, todas perguntaram pelo seu nome e pelo seu endereço. Schmucke teve trinta casas no Marais. Seu êxito tardio manifestou-se por sapatos com fivela de aço bronzeado, com palmilhas de crina e roupa mudada com mais frequência. Sua alegria de ingênuo, muito tempo recalcada por uma nobre e decente miséria, ressurgiu. Deixou escapar pequenas frases espirituosas, como: “Senhoritas, os gatos comeram lama seca em Paris esta noite”, quando durante a noite a geada secou as ruas, lamacentas na véspera; mas ele as dizia num dialeto germano-gálico: Montemisselle, lé chas honte manché lâ grôttenne tan Bári sti nouitte![421] Satisfeito por trazer àqueles dois anjos essa espécie de vergiss mein nicht[422] escolhido entre as flores do seu espírito, ele afetara, ao oferecê-lo, um ar fino e espirituoso que desarmava o sarcasmo. Sentia-se tão feliz por fazer desabrochar o riso nos lábios das duas discípulas cuja desgraçada vida ele penetrara que propositalmente se tornaria ridículo, se o não fosse por natureza; mas seu coração era capaz de rejuvenescer as mais populares vulgaridades; segundo a expressão do falecido Saint-Martin,[423] ele douraria a lama com o seu sorriso celestial. Segundo uma das mais nobres ideias da educação religiosa, as duas Marias acompanhavam o professor, respeitosamente, até a porta do apartamento. Aí, as duas pobres raparigas diziam-lhe algumas frases carinhosas, contentes por fazer aquele homem feliz; elas não se podiam mostrar mulheres senão para ele! Até se casarem, a música tornou-se, pois, para elas, uma outra vida dentro da vida, do mesmo modo como, dizem, o camponês russo toma seus sonhos pela realidade e sua vida por um mau sonho. No desejo de se defenderem contra as pequenezas que ameaçavam invadi-las, contra as devorantes ideias ascéticas, elas se atiraram com sofreguidão às dificuldades da arte musical. A Melodia, a Harmonia, a Composição, essas três filhas do céu, cujo Coro foi dirigido por aquele velho Fauno católico, ébrio de música, recompensaram-nas dos seus trabalhos e fizeram-lhes uma trincheira com suas danças aéreas. Mozart, Beethoven, Haydn, Paësiello, Cimarosa, Hummel[424] e os gênios secundários desenvolveram nelas mil sentimentos que não ultrapassaram o casto recinto de seus corações velados, mas que penetraram na criação onde voaram com toda a força de suas asas. Quando executavam algum trecho com perfeição, apertavam-se as mãos, abraçavam-se, dominadas por vivo êxtase, e o velho professor chamava-as de suas santas Cecílias.[425]

As duas Marias só foram a bailes com a idade de dezesseis anos, e isso mesmo só quatro vezes por ano, em casas bem selecionadas. Só se afastavam do lado da mãe munidas de instruções sobre o procedimento a ter com seus pares, e tão severas que só podiam responder sim ou não aos seus dizeres. Os olhos da condessa não se despegavam das filhas, parecendo adivinhar as palavras só com o movimento dos lábios. As pobres pequenas tinham toilettes de baile irrepreensíveis, vestidos de musselina afogados até o queixo, com infinidades de babados excessivamente largos e mangas compridas. Mantendo-lhes as graças comprimidas e a beleza velada, essa toilette lhes dava uma vaga semelhança com múmias egípcias; não obstante, emergiam daqueles blocos de algodão duas figuras deliciosas de melancolia. Ficavam furiosas por se verem objeto de uma meiga piedade. Qual a mulher, por mais cândida que seja, que não deseje causar inveja? Nenhuma ideia perigosa, malsã ou simplesmente equívoca maculou, pois, a branca polpa de seus cérebros; seus corações eram puros, suas mãos eram horrivelmente vermelhas, arrebentavam de saúde. Eva não saiu mais inocente das mãos de Deus do que aquelas duas raparigas da residência materna para irem à mairie e à igreja, com a simples mas espantosa recomendação de em tudo obedecer a homens junto aos quais deviam dormir ou velar durante a noite. Segundo o modo de ver das duas, não podiam estar pior na casa estranha para onde iam ser deportadas do que no convento materno. Por que motivo o pai dessas duas moças, o conde de Granville, aquele grande, sábio e íntegro magistrado, embora às vezes arrastado pela política, não protegia aquelas duas pequenas criaturas contra tão esmagador despotismo? Desgraçadamente, por uma memorável transação, feita dez anos depois de casados, os esposos viviam separados na própria casa. O pai se reservara a educação dos filhos, entregando à mulher a das filhas. Viu menos perigo para as mulheres do que para os homens na aplicação daquele sistema opressor. As duas Marias destinadas a suportar uma tirania, fosse a do amor, fosse a do casamento, perdiam com ele menos do que os rapazes, nos quais a inteligência devia permanecer livre e cujas qualidades se deteriorariam sob a violenta compressão de ideias religiosas levadas às suas últimas consequências. De quatro vítimas, o conde salvou duas. A condessa considerava os dois filhos, um voltado à magistratura de carreira, e o outro, à magistratura amovível, como demasiado mal-educados para lhes permitir a mínima intimidade com as irmãs. As comunicações eram severamente vedadas entre essas pobres crianças. De resto, quando o conde fazia os filhos saírem do colégio, tinha o máximo cuidado de não os prender em casa. Os dois rapazes aí vinham almoçar com a mãe e as irmãs; depois, o magistrado divertia-os com algum programa fora: restaurante, teatro, museus, o campo na estação propícia servia-lhes de distração. Salvo nos dias solenes da vida de família, como o onomástico da condessa ou do pai, o dia primeiro do ano, o da distribuição de prêmios, em que os dois rapazes ficavam na casa paterna e lá dormiam muito embaraçados, não se atrevendo a beijar as irmãs vigiadas pela condessa, que não os deixava juntos nem um instante, as duas pobres raparigas viram os irmãos tão raramente que entre eles não era possível haver laços afetivos. Nesse dia, as perguntas: — Onde está Angélica? — Que está fazendo Eugênia? — Onde estão as meninas? — ouviam-se a cada passo. Quando se tratava dos dois filhos, a condessa erguia para o céu seus olhos frios e macerados, como que para pedir perdão a Deus por não os ver arrebatados à impiedade. Suas exclamações, suas reticências em relação a eles equivaliam aos mais lamentáveis versículos de Jeremias e confundiam as duas irmãs, que julgavam os irmãos pervertidos e perdidos para sempre. Quando os filhos tiveram dezoito anos, o conde lhes deu dois quartos no seu apartamento e os fez estudar o curso de direito sob a vigilância de um advogado, seu secretário, encarregado de iniciá-los nos segredos do seu futuro. As duas Marias não conheceram, portanto, a fraternidade senão abstratamente. Na época dos casamentos das irmãs, um deles, advogado-geral num tribunal afastado, o outro nos seus começos da província, ficaram retidos, as duas vezes, por processos importantes. Em muitas famílias, a vida interior, que se poderia imaginar íntima, unida, coerente, passa-se assim: os irmãos, longe, tratando de fazer fortuna, de suas promoções ou presos ao serviço do país; as irmãs envolvidas num turbilhão de interesses de família estranha à delas. Todos os membros vivem, pois, em desunião, no olvido uns dos outros, ligados apenas pelos frágeis laços das recordações, até o momento em que o orgulho os chama, em que o interesse os reúne e algumas vezes os separa, de coração, como já o estavam de fato. Uma família, vivendo unida de corpo e de espírito, é uma exceção rara. A lei moderna, multiplicando a família pela família, criou o mais horrível de todos os males: o individualismo.

No meio da profunda solidão em que se escoou a sua mocidade, Angélica e Eugênia viram raras vezes o pai, o qual, de resto, levava para o grande apartamento habitado pela mulher no rés do chão do palácio um rosto entristecido. Conservava em casa a fisionomia grave e solene do magistrado no tribunal. Quando as duas pequenas passaram da idade dos brinquedos e das bonecas, quando começavam a fazer uso da razão, cerca dos doze anos, na época em que já não riam mais do velho Schmucke, surpreenderam o segredo das preocupações que produziam sulcos na fronte do conde, perceberam, sob aquela máscara severa, os vestígios de uma natureza boa e de um caráter encantador. Compreenderam ter ele cedido o lugar, em casa, à religião, decepcionado nas suas esperanças de marido, como fora ferido nas mais delicadas fibras de paternidade o amor dos pais pelas filhas. Semelhantes dores comovem singularmente a moças privadas de ternura. Algumas vezes, ao dar uma volta pelo jardim, entre elas, com um braço passado em torno da cintura de cada uma, acertando o passo pelo passo infantil das duas, o pai detinha-as num bosquete e beijava-as na fronte. Seus olhos, sua boca e sua fisionomia exprimiam então a mais profunda compaixão.

— Vocês não são muito felizes, minhas queridas filhinhas — dizia-lhes —, mas eu as casarei cedo e ficarei contente por vê-las sair de casa.

— Papai — dizia Eugênia —, estamos decididas a aceitar para marido o primeiro homem que aparecer.

— Aí está — exclamava ele — o fruto amargo de semelhante sistema. Querem fazer santas e fazem...

Não terminava. Muitas vezes as duas filhas sentiam uma bem viva ternura no adeus do pai, ou nos seus olhares quando, por acaso, ele jantava em casa. Aquele pai, visto tão raras vezes, elas o lamentavam, e ama-se àqueles a quem se lamenta.

Essa educação, severa e religiosa, foi a causa do casamento das duas irmãs, soldadas uma à outra pela desgraça, como Rita-Cristina[426] pela natureza. Muitos homens, impelidos ao casamento, preferem uma moça tirada do convento e saturada de devoções a uma rapariga educada nas doutrinas mundanas. Não há meio-termo. Um homem deve desposar uma rapariga muito instruída que leu os anúncios dos jornais e os comentou, que voltou a dançar o galope com mil rapazes, que assistiu a todos os espetáculos, que devorou romances, a quem um professor de dança magoou os joelhos apoiando-os nos dele, que pouco se preocupou com a religião e se fez ela mesma a sua moral, ou, então, uma moça ignorante e pura, como eram Maria Angélica e Maria Eugênia. É bem possível que haja tanto perigo, quer com uma, quer com as outras. Entretanto, a imensa maioria das pessoas, que não tem a idade de Arnolfo, prefere uma Inês religiosa a uma Célimène em formação.[427]

As duas Marias, pequenas e esbeltas, tinham o mesmo talhe, os mesmos pés, as mesmas mãos. Eugênia, a mais nova, era loura como a mãe; Angélica era morena como o pai. Mas ambas tinham a mesma tez: uma pele desse branco nacarado que revela a riqueza do sangue, jaspeada de cores vivas, destacadas sobre um tecido polpudo como o do jasmim, como ele fino, liso e tenro ao toque. Os olhos azuis de Eugênia, os olhos castanhos de Angélica, tinham uma expressão de ingênua despreocupação, de admiração não premeditada, bem patenteada pelo modo vago como flutuavam suas pupilas sobre o branco fluido dos olhos. Eram benfeitas de corpo; as espáduas um pouco magras deviam modelar-se mais tarde. Os colos das duas, tanto tempo velados, deixaram os olhares dos maridos deslumbrados por sua perfeição quando aqueles pediram que se decotassem para o baile; quer um, quer outro, gozaram então desse pejo encantador que fez enrubescer primeiro a portas fechadas e depois, durante toda uma soirée, aquelas duas criaturas ignorantes. No momento em que se inicia esta cena, na qual a mais velha chorava e se deixava consolar pela mais moça, suas mãos e seus braços tinham adquirido a alvura do leite. Ambas tinham amamentado, uma um rapaz, a outra uma menina. Eugênia dera à sua mãe a impressão de ser muito travessa, o que levara a condessa a redobrar para com ela a atenção e severidade. Aos olhos daquela mãe temida, Angélica, nobre e altiva, parecia ter uma alma cheia de exaltação que se defenderia sozinha, enquanto a endiabrada Eugênia parecia necessitar ser contida. Existem criaturas encantadoras, menosprezadas pela sorte, às quais tudo devia correr bem na vida, mas que vivem e morrem infelizes, atormentadas por um gênio mau, vítimas de circunstâncias imprevistas. Assim é que a inocente, a alegre Eugênia caíra sob o malicioso despotismo de um parvenu, ao sair da prisão materna. Angélica, resolvida às grandes lutas do sentimento, fora atirada nas mais altas esferas da sociedade parisiense, de rédea solta.

II – CONFIDÊNCIAS DE DUAS IRMÃS

A sra. de Vandenesse, que, evidentemente, sucumbia ao peso de sofrimento demasiado pesado para a sua alma, ainda ingênua, após seis anos de casamento, estava estendida, com as pernas meio curvas, o corpo dobrado, a cabeça como que desvairada sobre o encosto da conversadeira. Tendo corrido à casa da irmã, depois de breve aparição nos Italiens, tinha ainda nas suas madeixas algumas flores; outras, porém, jaziam esparsas sobre o tapete, com suas luvas, sua capa de seda guarnecida de peles, seu regalo e seu capuz. Lágrimas brilhantes misturadas com suas pérolas, sobre seu alvo colo, olhos molhados anunciavam estranhas confidências. No meio daquele luxo, não era isso horrível? A condessa não se sentia com coragem de falar.

— Pobre querida — disse a sra. du Tillet —, que falsa ideia fazes do meu casamento, para teres pensado em me pedir auxílio!

Ao ouvir essa frase arrancada do fundo do coração da irmã, pela violência da tormenta que ela lá provocara, do mesmo modo que a fusão das neves soergue as pedras mais bem enterradas no leito das torrentes, a condessa olhou com ar estúpido a mulher do banqueiro; o fogo do terror secou-lhe as lágrimas e seus olhos permaneceram fixos.

— Tu também, meu anjo, estás num abismo? — perguntou com voz baixa.

— Meus males não acalmariam tuas dores.

— Dize-os, querida filha. Ainda não estou bastante egoísta para não te ouvir! Sofremos pois ainda juntas, como em nossa juventude?

— Mas sofremos separadas — respondeu melancolicamente a esposa do banqueiro. — Vivemos em duas sociedades inimigas. Vou às Tulherias quando já não vais lá. Nossos maridos pertencem a dois partidos contrários. Sou a mulher de um banqueiro ambicioso, de um homem mau, meu querido tesouro! Tu és a de um ser bom, nobre e generoso.

— Oh! Nada de exprobrações — disse a condessa. — Para censurar-me, uma mulher deveria ter sofrido as tristezas de uma vida sem brilho e incolor, ter saído dela para entrar no paraíso do amor; precisaria conhecer a felicidade que se experimenta em sentir toda a sua vida num outro, em desposar as infinitas emoções de uma alma de poeta, a viver duplamente; ir, vir com ele nas suas excursões através do espaço, no mundo da ambição, sofrer os seus pesares, subir nas asas de seus imensos prazeres, expandir-se sobre um vasto teatro, e tudo isso enquanto se está calma, fria, serena, ante uma sociedade observadora. Sim, querida, deve-se muitas vezes conter todo um oceano do coração, estando como estamos aqui, diante do fogo, em casa, numa conversadeira. Que felicidade, entretanto, ter a todo momento um interesse enorme que multiplica as fibras do coração e as estende, de não se mostrar fria com coisa nenhuma, de achar sua vida ligada a um passeio no qual se verá por entre a multidão um olhar cintilante que faz o sol empalidecer, de se ficar emocionada por um atraso, de ter vontade de matar um importuno que rouba um desses raros momentos em que a felicidade palpita nas menores veias! Que inebriamento esse de finalmente viver! Ah!, querida, viver quando tantas mulheres imploram, de joelhos, emoções que lhes fogem! Pensa, filhinha, que para esses poemas só existe um período, a mocidade. Dentro de poucos anos, vem o inverno, o frio! Ah!, se possuísses essas riquezas do coração e que te visses ameaçada de perdê-las...

A sra. du Tillet, assustada, tapara o rosto com as mãos ao ouvir essa horrível antífona.

— Não tive a menor intenção de te censurar, muito adorada — disse ela ao ver o rosto da irmã banhado em lágrimas ardentes. — Acabas de atirar na minha alma, num momento, mais fachos incendiários do que quantos minhas lágrimas tenham apagado. Sim, que acabas de descrever-me. Deixa-me crer que se nos tivéssemos visto com mais frequência, não estaríamos no ponto a que chegamos. Se tivesses sabido dos meus sofrimentos, terias apreciado a tua felicidade, ter-me-ias, talvez, animado à resistência e eu seria feliz. Tua desgraça é um acidente ao qual um acaso poderá obviar, ao passo que a minha desgraça é de todos os instantes. Para meu marido, sou o cabide de seu luxo, a tabuleta das suas ambições, uma das suas vaidosas satisfações. Não tem por mim nem verdadeira afeição nem confiança. Ferdinando é seco e polido como este mármore — disse ela batendo no pano da lareira. — Desconfia de mim. Tudo o que eu peço para mim mesma é recusado de antemão; mas quanto ao que o lisonjeia e proclama sua fortuna, nem preciso desejar; ele decora meus aposentos, gasta quantias exorbitantes para minha mesa. Minha criadagem, meus camarotes no teatro, tudo o que é exterior é do mais requintado gosto. Sua vaidade nada poupa, botará rendas nas fraldas dos filhos, mas não lhes ouvirá os gritos nem adivinhará suas necessidades. Compreendes-me? Vou à corte coberta de diamantes; na cidade, uso as mais ricas bagatelas, mas não disponho de um vintém. A sra. du Tillet, que talvez desperte inveja, que parece nadar em ouro, não tem de seu cem francos. Se o pai não se preocupa com os filhos, muito menos se preocupa com a mulher. Ah!, ele me fez duramente sentir que me havia comprado, e que minha fortuna pessoal, da qual não disponho, lhe foi arrancada. Se não tivesse mais do que me tornar sua amante, talvez o seduzisse; mas sofro uma influência estranha, a de uma mulher de cinquenta anos feitos, que tem pretensões e o domina, a viúva de um notário. Sinto-o, só serei livre com a sua morte. Aqui, minha vida é regulada como a de uma rainha, tocam a sineta para meu almoço e meu jantar, como no teu castelo. Saio infalivelmente à hora certa para ir ao Bois de Boulogne. Ando sempre acompanhada por dois criados em grande uniforme e tenho de receber à mesma hora. Em vez de dar ordens, sou eu quem as recebe. No baile, no teatro, vem um lacaio e me diz: — “O carro da senhora está pronto” — e tenho de partir muitas vezes no meio de meu divertimento. Se eu não obedecesse à etiqueta que criou para sua esposa, Ferdinando se zangaria, e ele me causa medo. No meio dessa opulência maldita, tenho saudade e acho nossa mãe uma boa mãe; ela nos concedia as noites e eu podia conversar contigo. Enfim, eu vivia junto de uma criatura que me queria e sofria comigo, ao passo que aqui, nesta casa suntuosa, estou no meio de um deserto.

Ante essa terrível confissão, a condessa por sua vez tomou a mão da irmã e beijou-a, chorando.

— Como posso eu ajudar-te? — disse Eugênia em voz baixa a Angélica. — Se ele nos surpreendesse, desconfiaria e havia de querer saber o que me estás dizendo, faz uma hora; teria de mentir, coisa difícil de fazer com um homem esperto e traidor; ele armaria laços. Mas deixemos minhas desgraças e pensemos em ti. Teus quarenta mil francos, minha querida, nada seriam para Ferdinando, que movimenta milhões com um outro banqueiro forte, o barão de Nucingen.[428] Assisto por vezes a jantares em que eles dizem coisas de arrepiar. Du Tillet conhece a minha discrição e falam diante de mim sem constrangimento; têm certeza do meu silêncio. Pois bem! Os assassínios na estrada real se me afiguram atos de caridade, comparados com certas combinações financeiras. Nucingen e ele importam-se tanto de arruinar os outros como eu das suas prodigalidades. Muitas vezes recebo pobres ludibriados dos quais ouvi eles calcularem os haveres na véspera, e que se atiram em negócios em que devem perder a fortuna; dá-me vontade, como Leonarda, na caverna dos ladrões,[429] de lhes dizer: — Cuidado! — Mas, que seria de mim? Calo-me. Este suntuoso palácio é um covil. E du Tillet e Nucingen atiram suas cédulas de mil francos, aos punhados, para satisfazer seus caprichos. Ferdinando compra no Tillet a área do antigo castelo para reconstruí-lo, e quer juntar-lhe uma floresta e terras magníficas. Pretende que o filho seja conde e que na terceira geração ele será nobre. Nucingen, enfarado com o seu palacete da rue Saint-Lazare, está construindo um palácio. Sua mulher é uma das minhas amigas... Ah! — exclamou. Ela nos pode ser útil, é ousada como o marido, dispõe da sua fortuna; ela te salvará.

— Querida gatinha, não disponho senão de algumas horas, vamos lá esta noite, imediatamente — disse a sra. de Vandenesse, atirando-se nos braços da sra. du Tillet e pondo-se a chorar.

— E posso eu sair às onze horas da noite?

— Estou com meu carro à porta.

— Que estão conspirando aí? — disse du Tillet, empurrando a porta do boudoir.

Mostrava às duas irmãs um semblante anódino, iluminado por um ar fingidamente amável. Os tapetes tinham-lhe abafado os passos, e a preocupação das duas senhoras impedira-as de ouvir o ruído que fez o carro de du Tillet ao entrar. A condessa, em quem os costumes da alta sociedade e a liberdade em que a deixava Félix tinham desenvolvido o espírito e a esperteza, ainda comprimidos na irmã pelo despotismo marital que continuava o materno, viu em Eugênia um terror prestes a se trair e salvou-a por uma resposta franca.

— Pensei que minha irmã fosse mais rica do que de fato é — respondeu a condessa, encarando o cunhado. — As mulheres veem-se por vezes em apertos que não querem dizer aos maridos, como Josefina com Napoleão, e eu lhe vinha pedir um favor.

— Ela pode emprestar-lho facilmente, senhora. Eugênia é muito rica — respondeu du Tillet, com meloso azedume.

— Ela o é apenas para o senhor, meu irmão — replicou a condessa, sorrindo com amargura.

— Que necessita? — perguntou du Tillet, a quem não desagradava poder enlear a cunhada.

— Ah!, senhor, já não lhe disse que não queríamos nos comprometer com os nossos maridos? — respondeu sensatamente a sra. de Vandenesse, compreendendo que se entregava à mercê do homem cujo retrato, felizmente, acabava de lhe ser traçado pela irmã. — Virei buscar Eugênia amanhã.

— Amanhã? — respondeu friamente o banqueiro. — Não. A sra. du Tillet janta amanhã em casa de um futuro par de França, o barão de Nucingen, que me deixa seu lugar na Câmara dos Deputados.

— Não lhe permitirá aceitar meu camarote na Ópera? — disse a condessa, sem nem mesmo trocar um olhar com a irmã, tal o receio que tinha de a ver trair o segredo de ambas.

— Ela tem o seu, senhora — disse du Tillet.

— Pois bem! Eu a verei lá — replicou a condessa.

— Será a primeira vez que nos dará essa honra — disse du Tillet.

A condessa sentiu a recriminação e pôs-se a rir.

— Fique tranquilo, nada lhe farão pagar desta vez — disse ela. — Adeus, querida.

— Impertinente! — exclamou du Tillet, apanhando as flores caídas do penteado da condessa. — Devia — disse ele à esposa — estudar a sra. de Vandenesse. Quisera vê-la em sociedade impertinente como sua irmã acaba de se mostrar aqui. A senhora tem um ar burguês e abobado que me consterna.

Eugênia, por toda resposta, ergueu os olhos para o céu.

— Ora essa! Que estiveram as duas fazendo aqui? — disse o banqueiro, após uma pausa, mostrando-lhe as flores. — Que se passa para que sua irmã venha amanhã ao seu camarote?

A pobre hilota escusou-se, pretextando vontade de dormir, e saiu para se fazer despir, temendo um interrogatório. Du Tillet agarrou então a mulher pelo braço, puxou-a para diante de si sob a luz das velas que flamejavam num candelabro de prata dourada, entre dois deliciosos ramos de flores, e mergulhou seu olhar claro nos olhos da esposa.

— Sua irmã veio pedir-lhe emprestados quarenta mil francos que um homem, por quem ela se interessa, deve e que dentro de três dias será encerrado em Clichy, como uma coisa preciosa — disse ele friamente.

A pobre senhora foi invadida por um tremor nervoso que reprimiu.

— O senhor assustou-me — disse ela. — Minha irmã é demasiado bem-educada e ama muito seu marido, para interessar-se a esse ponto por um homem.

— Pelo contrário — respondeu ele secamente —; as raparigas educadas como vocês o foram, sempre vivendo em constrangimento e em meio a práticas religiosas, têm sede de liberdade, desejam a felicidade, e a felicidade de que gozam nunca é tão grande nem tão bela como aquela com que sonham. Semelhantes raparigas vêm a dar em más esposas.

— Refira-se a mim — disse a pobre Eugênia em tom de amargo sarcasmo —, mas respeite a minha irmã. A condessa de Vandenesse é bastante feliz e seu marido dá-lhe demasiada liberdade para que ela não lhe seja dedicada. De resto, se sua suposição fosse verdadeira, ela não mo diria...

— Pois é assim — disse du Tillet. — Proíbo-lhe fazer seja lá o que for nesse assunto. É do meu interesse que esse homem vá para o cárcere. Fica avisada.

A sra. du Tillet saiu.

— Ela com certeza vai desobedecer-me, e eu poderei saber tudo o que elas farão, vigiando-as — pensou du Tillet, ao ficar só no boudoir. — Essas pobres tolas querem lutar conosco!

Deu de ombros e foi ter com a esposa, ou melhor dito, com a escrava.

A confidência feita à sra. du Tillet pela sra. Félix de Vandenesse prendia-se a tantos pontos da sua história, havia seis anos, que seria ininteligível sem a narração sucinta dos principais acontecimentos de sua vida.

III – HISTÓRIA DE UMA MULHER FELIZ

Entre os homens notáveis que deveram seu destino à Restauração e que, infelizmente para ela, ela deixou com Martignac[430] fora dos segredos governamentais, contava-se Félix de Vandenesse, deportado, como vários outros, para a Câmara dos Pares nos últimos dias do reinado de Carlos x. Esse desfavor, embora momentâneo a seus olhos, fez com que ele pensasse no casamento, para o qual foi levado, como o têm sido muitos homens, por uma espécie de repugnância pelas aventuras galantes, essas aloucadas flores da mocidade. Há um momento supremo em que a vida social aparece com toda a sua gravidade. Félix de Vandenesse fora alternativamente feliz e infeliz, mais vezes infeliz do que feliz, como os homens que, na sua estreia na sociedade, encontraram o amor sob sua mais bela forma. Esses privilegiados tornam-se exigentes. Depois, tendo experimentado a vida e comparado os caracteres, chegam a se contentar com um pouco mais ou menos e se refugiam numa indulgência absoluta. Não é possível enganá-los, porque não se desenganam mais; mas põem graça na sua resignação; tudo esperando, sofrem menos. Entretanto, Félix podia ainda passar por um dos homens mais bonitos e mais agradáveis de Paris. Fora sobretudo recomendado junto às mulheres por uma das mais nobres criaturas deste século,[431] morta, diziam, de dor e de amor por ele; mas fora especialmente formado pela bela lady Dudley. Aos olhos de muitos parisienses, Félix, espécie de herói de romance, devera várias de suas conquistas ao mal que diziam dele. A sra. de Manerville[432] encerrara a carreira de suas aventuras. Sem ser um don Juan, ele trouxera do mundo dos amores os desencantos que trouxera do mundo da política. Esse ideal da mulher e da paixão, cujo tipo, para desgraça sua, iluminara sua mocidade, ele perdera a esperança de jamais poder encontrar. Ao beirar os trinta anos, o conde Félix resolveu terminar pelo casamento com os aborrecimentos de suas aventuras felizes.

Também ele sofrera o despotismo de uma mãe, recordava-se ainda da sua cruel mocidade, para reconhecer através das dissimulações do pudor feminino em que estado o jugo teria posto o coração de uma moça; se esse coração estaria azedado, entristecido, revoltado, se permanecera tranquilo, amável, prestes a abrir-se para os bons sentimentos. A tirania produz dois efeitos contrários, cujos símbolos existem em duas grandes figuras da escravatura antiga: Epicteto[433] e Espártaco,[434] o ódio e os maus sentimentos, a resignação e suas ternuras cristãs. O conde de Vandenesse se reconheceu a si mesmo em Maria Angélica de Granville. Ao tomar por esposa uma moça ingênua, inocente e pura, ele tinha resolvido de antemão, em moço velho que era, aliar o sentimento paterno ao sentimento conjugal. Sentia o coração dissecado pela sociedade, pela política, e sabia também que em troca de uma vida adolescente ele ia dar os restos de uma vida gasta. Junto às flores da primavera, ele ia colocar os gelos do inverno, a experiência encanecida junto à imprudência elegante e despreocupada. Depois de haver assim julgado sabiamente sua posição, acantonou-se nos seus quartéis conjugais com amplas provisões. A indulgência e a confiança foram as duas âncoras nas quais fundeou. As mães de família deveriam procurar homens desses para suas filhas; o Espírito é protetor como a divindade, o Desencanto é perspicaz como um cirurgião, a Experiência é previdente como uma mãe. Esses três sentimentos são as virtudes teologais do matrimônio. Os requintes, as delícias que seus hábitos de homem feliz nos amores e de homem elegante haviam ensinado a Félix de Vandenesse, os ensinamentos da alta política, as observações de sua vida, ora trabalhosa, ora cismadora, ora literária, todas essas forças foram empregadas para tornar sua mulher feliz, e nisso ele aplicou seu espírito. Ao sair do purgatório materno, Maria Angélica subiu de repente ao paraíso conjugal que lhe preparara Félix na rue du Rocher, num palacete onde as menores coisas tinham um perfume de aristocracia, mas onde o verniz da boa sociedade não perturbava aquele harmonioso desleixo que todos os corações amantes e jovens desejam. Maria Angélica saboreou de início os gozos da vida material em toda a sua plenitude; o marido, durante dois anos, fez-se de seu intendente. Félix explicou à esposa, lentamente e com muita arte, as coisas da vida, iniciou-a gradativamente nos mistérios da alta sociedade, ensinou-lhe a genealogia de todas as casas nobres, fez que ela conhecesse o mundo, guiou-a na arte da toilette e da conversação, levou-a de teatro a teatro, fez que ela fizesse um curso de literatura e de história. Terminou essa educação com um cuidado de amante, de pai, de professor e de marido, mas com uma sobriedade bem entendida, ele propiciava os gozos e as lições sem destruir as ideias religiosas. Enfim, desempenhou-se da sua empresa como um grande mestre. Ao cabo de quatro anos teve a satisfação de haver feito da condessa de Vandenesse uma das amáveis e notáveis mulheres de seu tempo. Maria Angélica sentiu precisamente por Félix o sentimento que ele desejava inspirar-lhe: uma amizade verdadeira, uma gratidão bem sentida, um amor fraternal que, oportunamente, se coloria de ternura nobre e digna, como a que deve existir entre marido e mulher. Ela era mãe e boa mãe. Félix prendia-se, pois, à sua mulher, por todos os laços possíveis sem ter o ar de amarrá-la, contando para ser feliz, sem nuvens, sobre os atrativos do hábito. Não há como os homens afeitos às vicissitudes da vida e que já tenham percorrido o ciclo das decepções políticas e amorosas para ter essa ciência e assim proceder.

Félix, de resto, achava na sua obra os prazeres que nas suas criações encontram pintores, arquitetos e escritores que erguem monumentos; gozava duplamente, ocupando-se da obra e vendo-lhe o triunfo, admirando sua mulher instruída e ingênua, espirituosa e natural, amável e casta, jovem e mãe, perfeitamente livre e acorrentada. A história dos bons casais é como a dos povos felizes, escreve-se em duas linhas e nada tem de literária. Por isso, como a felicidade não se explica senão por si mesma, esses quatro anos nada podiam fornecer que não fosse terno como o gris de linho dos amores eternos, insípido como o maná e divertido como o romance de Astreia[435].

Em 1833, o edifício da felicidade erguido por Félix esteve prestes a esboroar-se, solapado em suas bases, sem que ele o suspeitasse.

O coração de uma mulher de vinte e cinco anos não é o de uma moça de dezoito, na mesma proporção que o da mulher de quarenta não é o da mulher de trinta anos. Há quatro épocas na vida das mulheres. Cada idade cria uma nova mulher. Vandenesse conhecia, sem dúvida, as leis dessas transformações, devidas aos nossos costumes modernos; mas esqueceu-as para o seu próprio caso, como o mais sabido gramático pode esquecer as regras ao escrever um livro; como no campo de batalha, no veio do fogo, empolgado pelos incidentes de um assédio, o maior general esquece uma regra absoluta da arte militar. O homem que pode imprimir perpetuamente seu pensamento nos fatos é um homem de gênio; mas o homem mais genial não desenvolve seu gênio em todos os instantes, pois do contrário se assemelharia demasiado a Deus. Depois de quatro anos de uma vida sem choques de alma, sem uma palavra que produzisse a menor discordância naquele suave concerto de sentimentos, a condessa, sentindo-se perfeitamente desenvolvida como uma bela planta num bom terreno, sob as carícias de um belo sol que irradiava num éter constantemente azul, teve como que uma volta sobre si mesma.

Essa crise de sua vida, objeto desta cena, seria incompreensível sem explicações que talvez atenuem, aos olhos das mulheres, as faltas dessa jovem condessa, tão feliz esposa quanto mãe, e que deve, à primeira vista, parecer indesculpável. A vida resulta do jogo de dois princípios opostos; quando falta um, o ser sofre. Vandenesse, ao satisfazer tudo, suprimira o desejo, esse rei da criação, que absorve uma soma enorme de forças morais. O calor extremo, a extrema desgraça, a felicidade completa, todos os princípios absolutos imperam sobre espaços desprovidos de produções; querem estar sós, asfixiam tudo o que não é deles. Vandenesse não era mulher, e só as mulheres conhecem a arte de variar a felicidade; vêm daí suas faceirices, suas recusas, seus temores, suas querelas e as sábias e espirituosas puerilidades pelas quais elas põem em discussão no dia seguinte o que na véspera não apresentava nenhuma dificuldade. Os homens podem cansar com a sua constância, as mulheres nunca. Vandenesse era uma natureza demasiado boa de todo para atormentar de caso pensado uma mulher amada; por isso atirou-a no azul mais infinito, o menos nublado do amor. O problema da eterna felicidade é desses cuja solução só é conhecida por Deus, na outra vida. Cá na terra, poetas sublimes enfararam eternamente seus leitores ao abordar a pintura do paraíso. A armadilha de Dante foi também a de Vandenesse; honrar à coragem infeliz! Sua esposa acabou por achar certa monotonia num Éden tão bem-arranjado; a felicidade perfeita que a primeira mulher encontrou no paraíso terrestre provocou-lhe as náuseas que dão, com a continuação, as coisas doces e fez com que a condessa, como Rivarol ao ler Florian,[436] desejasse encontrar um lobo no redil. Isso, em todos os tempos, parece ter sido o significado da serpente emblemática, à qual Eva, provavelmente, se dirigiu por tédio. Essa moral parecerá talvez arriscada aos olhos dos protestantes, que levam o Gênesis mais a sério do que os próprios judeus. Mas a situação da sra. de Vandenesse pode explicar-se sem imagens bíblicas: ela sentia na alma uma força imensa sem ocupação, sua felicidade não a fazia sofrer, marchava sem preocupações nem cuidados, não tremia com receio de perdê-la, renovava-se todas as manhãs com o mesmo azul, o mesmo sorriso, as mesmas palavras encantadoras. Esse lago não era enrugado por nenhum sopro, nem mesmo por um Zéfiro; bem desejaria ela ver ondular aquele espelho. Seu desejo encerrava não sei quê de infantil que devia fazer com que a desculpassem; mas a sociedade não é mais indulgente do que o foi o Deus do Gênesis. Tornada espirituosa, a condessa compreendia admiravelmente quanto aquele sentimento era ofensivo, e achava horrível confiá-lo ao seu querido maridinho. Na sua simplicidade, ela não inventara outro termo de amor, pois que não se forja a frio a deliciosa linguagem de exagero que o amor ensina às suas vítimas no meio das chamas. Vandenesse, feliz com aquela adorável reserva, mantinha por meio de seus sábios cálculos sua mulher nas regiões temperadas do amor conjugal. Esse marido-modelo achara, de resto, indignos de uma alma nobre os recursos do charlatanismo que o teriam engrandecido, que lhe teriam valido recompensas de coração; queria agradar por ele mesmo e nada dever aos artifícios da sorte. A condessa Maria sorria ao ver no Bois uma equipagem incompleta ou mal atrelada; seus olhos pousavam então complacentemente na sua, cujos cavalos, ajaezados à inglesa, quase livres apesar dos arreios, se mantinham cada um no seu posto. Félix não se baixava até apanhar os benefícios dos trabalhos que se impunha; sua esposa achava naturais seu luxo e seu bom gosto; não lhe tinha nenhum reconhecimento por não sofrer no seu amor-próprio. E em tudo era assim. A bondade não deixa de ter suas armadilhas: é atribuída ao caráter, raras vezes se consente em reconhecer nela os esforços secretos de uma bela alma, ao passo que se recompensam os malvados pelo mal que não fazem. Por essa época, a sra. Félix de Vandenesse alcançara um grau de instrução mundana que lhe permitiu abandonar o papel bastante insignificante de comparsa tímida, de observadora, de ouvinte, que, segundo diziam, Giulia Grisi[437] representara durante algum tempo nos coros do Scala. A jovem condessa sentia-se capaz de assumir o posto de prima-dona, e por diversas vezes arriscou-se a tanto. Com grande contentamento de Félix, ela tomou parte nas conversações. Respostas atiladas e finas observações, semeadas no seu espírito pelo trato com o marido, fizeram-na notada, e o êxito deu-lhe coragem. Vandenesse, a quem tinham concedido que sua mulher era bonita, ficou encantado quando ela se mostrou espirituosa. À volta de um baile, de um concerto, de um raout, ela afetava um arzinho alegre e decidido para dizer a Félix: — Ficou contente comigo hoje? — A condessa despertou alguma inveja, entre outras na irmã do seu marido, a marquesa de Listomère,[438] que até então a tinha guiado, julgando proteger uma sombra destinada a realçá-la. Uma condessa chamada Maria, bela, espirituosa e cheia de virtudes, musicista e pouco coquete, que presa para a sociedade! Félix de Vandenesse tinha na alta-roda várias damas com as quais rompera ou que haviam rompido com ele, mas que não foram indiferentes ao seu casamento. Quando essas damas viram na condessa de Vandenesse uma mulherzinha de mãos vermelhas, bastante acanhada, falando pouco, não tendo o ar de quem pensa muito, julgaram-se suficientemente vingadas. Vieram os desastres de 1830, a sociedade foi dissolvida durante dois anos, as pessoas ricas foram para as suas propriedades durante a tormenta ou viajaram pela Europa, e os salões só se abriram em 1833. O Faubourg Saint-Germain ficou enfadado, mas considerou certas casas, entre outras a do embaixador da Áustria, como um terreno neutral; a sociedade legitimista e a nova sociedade aí se encontraram representadas pelas suas mais elegantes sumidades. Preso por mil laços de coração e gratidão à família exilada, porém firme nas suas convicções, Vandenesse não se julgou obrigado a imitar os tolos exageros de seu partido. Durante o perigo, cumprira seu dever com risco da própria vida, metendo-se por entre a multidão a fim de propor transações; decidiu-se, pois, a levar sua mulher à sociedade, onde sua fidelidade jamais seria comprometida. As antigas amigas de Vandenesse dificilmente reconheceram a jovem desposada na elegante, espirituosa e meiga condessa que se apresentou com as mais distintas maneiras da aristocracia feminina. As sras. d’Espard, de Manerville, lady Dudley[439], algumas outras menos conhecidas, sentiram no fundo do coração o despertar da serpente, ouviram os sibilos aflautados do orgulho raivoso, sentiram-se enciumadas com a felicidade de Félix; de bom grado teriam dado suas mais belas pantufas para que o alcançasse a desgraça. Em vez de se mostrarem hostis à condessa, essas boas-más mulheres cercaram-na, testemunharam-lhe uma amizade excessiva, gabaram-na para os homens. Conhecendo-lhes suficientemente as intenções, Félix vigiou suas relações com Maria, aconselhando-a a que desconfiasse delas. Todas adivinharam as inquietações que aquelas relações causavam ao conde, não lhe perdoaram sua desconfiança e redobraram as gentilezas e atenções para com a rival, a quem prepararam um êxito enorme, com grande pesar da marquesa de Listomère, que nada compreendia daquilo tudo. Citavam a condessa Félix de Vandenesse como a mais sedutora, a mais espirituosa dama de Paris. A outra cunhada de Maria, a marquesa Carlos de Vandenesse, experimentava mil desapontamentos devido à confusão provocada pela igualdade de nome e pelas comparações que isso ocasionava. Conquanto a marquesa fosse também muito bonita e muito espirituosa, suas rivais opunham-lhe com tanto mais vantagens a cunhada por ser esta mais moça doze anos. Essas senhoras sabiam quanto azedume o triunfo da condessa devia pôr no seu trato com as duas cunhadas, que se tornaram frias e descorteses para com a vencedora Maria Angélica. Foram parentes perigosas, inimigas íntimas. Todos sabem que a literatura naquele momento se defendia contra a indiferença geral engendrada pelo drama político produzindo obras mais ou menos byronianas, nas quais só se tratava de delitos conjugais. Nesse tempo, as infrações aos contratos matrimoniais enchiam as revistas, os livros, o teatro. Esse eterno assunto mais do que nunca esteve na moda. O amante, esse pesadelo dos maridos, estava em toda parte, menos talvez nos lares, onde, naquela época burguesa, ele florescia menos do que em qualquer outro tempo. É acaso quando todos correm à janela e gritam: Ó da Guarda! e iluminam a rua que os ladrões por ela passeiam? Se, durante esses anos férteis em agitações urbanas, políticas e morais, houve catástrofes matrimoniais, elas constituíam exceções que não foram tão notadas como durante a Restauração. Não obstante, as mulheres entre si falavam muito do assunto que ocultava as duas formas da poesia: o livro e o teatro. Tratava-se com frequência do amante, esse ser tão raro e desejado. As aventuras conhecidas davam o pasto a discussões, e essas discussões eram, como sempre, sustentadas por mulheres irrepreensíveis. Um fato digno de nota é o pouco gosto por essa espécie de conversação manifestado pelas mulheres que gozam de uma felicidade ilegal, as quais, em sociedade, conservam uma atitude de seriedade hipócrita, são reservadas e quase tímidas: têm o ar de pedir silêncio a todos ou perdão para os seus prazeres. Quando, pelo contrário, uma mulher se compraz em ouvir falar de catástrofes, deixa que lhes expliquem as voluptuosidades que justificam os culpados, podeis estar seguros de que ela se acha na encruzilhada da indecisão, sem saber que caminho tomar. Durante esse inverno, a condessa de Vandenesse ouviu mugir em seus ouvidos a grande voz do mundo, o vento das procelas soprou-lhe em torno. Suas pretensas amigas, que dominavam suas reputações do alto de seus nomes e de suas posições, desenharam-lhe múltiplas vezes a sedutora figura do amante e lhe lançaram na alma palavras ardentes sobre o amor, a chave do enigma que a vida oferece às mulheres, a grande paixão, segundo madame de Staël,[440] que pregou com o exemplo. Quando a condessa, ingenuamente, numa roda íntima, perguntava que diferença havia entre um amante e um marido, nunca uma das mulheres, que desejavam mal a Vandenesse, deixava de lhe responder de modo a espicaçar-lhe a curiosidade, a incitar-lhe a imaginação, a impressionar-lhe o coração, a interessar-lhe a alma.— Com o marido vegeta-se, minha querida; só se vive com o amante — dizia-lhe a cunhada, a marquesa de Vandenesse.

— O casamento, minha filha, é o nosso purgatório; o amor é o paraíso — dizia lady Dudley.

— Não acredite — exclamava a srta. des Touches[441] —, é o inferno.

— Mas é um inferno onde se ama — fazia observar a marquesa de Rochefide.[442] — Tem-se muitas vezes mais prazer no sofrimento do que na felicidade, e se não, veja os mártires.

— Com um marido, tolinha, nós vivemos, por assim dizer, da nossa vida; mas amar é viver da vida de um outro — dizia-lhe a marquesa d’Espard.

— Um amante é o fruto proibido, palavra que para mim resume tudo — dizia a rir a linda Moïne de Saint-Héren.[443]

Quando ela não ia a raouts diplomáticos ou ao baile em casa de algum estrangeiro rico, como lady Dudley ou a princesa Galathionne,[444] a condessa ia quase todas as noites fazer visitas, depois dos Italiens ou da Ópera, à casa da marquesa d’Espard, da sra. de Listomère, da srta. des Touches, da condessa de Montcornet[445] ou da viscondessa de Grandlieu,[446] únicas residências aristocráticas abertas, e jamais delas saía sem que em seu coração fossem atiradas más sementes. Falavam-lhe em completar sua vida, uma palavra que naquele tempo estava na moda; de ser compreendida, outra palavra à qual as mulheres dão estranhas significações. Ela voltava para casa inquieta, comovida, cuidadosa, pensativa. Achava que lhe faltava algo na vida, mas não chegava ao ponto de a ver deserta.

IV – UM HOMEM CÉLEBRE

A sociedade mais divertida, mas também a mais mesclada dos salões que a sra. Félix de Vandenesse frequentava, reunia-se em casa da condessa de Montcornet, mulherzinha encantadora que recebia os artistas ilustres, as sumidades da finança, os escritores distintos, mas depois de os ter submetido a um tão severo exame que os mais difíceis em matéria de boas companhias nada tinham a temer de encontrar lá quem quer que fosse da sociedade de segunda ordem. As maiores pretensões achavam-se em segurança naquela casa. Durante o inverno em que a sociedade se reunira, alguns salões, entre os quais os das sras. d’Espard e de Listomère, da srta. des Touches e da duquesa de Grandlieu,[447] haviam feito um recrutamento entre as recentes celebridades da arte, da ciência, da literatura e da política. A sociedade nunca perde seus direitos, quer sempre que a divirtam. A um concerto dado pela condessa, no fim do inverno, apareceu-lhe em casa uma das ilustrações contemporâneas da literatura e da política, Raul Nathan, apresentado por um dos escritores mais espirituosos, mas também mais preguiçosos da época, Emílio Blondet,[448] outro homem célebre, mas a portas fechadas; apregoado pelos jornalistas, mas desconhecido para além das barreiras, Blondet sabia disso; de resto não se fazia ilusões e, por entre outras palavras de desprezo, dizia que a glória era um veneno bom para tomar em pequenas doses.

Desde o momento em que furara a onda depois de lutar por muito tempo, Raul Nathan aproveitara o súbito enlevo que manifestaram pela forma esses elegantes sectários da Idade Média, tão jocosamente denominados Jovem-França.[449] Afetara as singularidades de homem de gênio alistando-se entre esses adoradores da arte, cujas intenções, aliás, eram excelentes; pois nada era mais ridículo do que o vestuário dos franceses do século xix; havia pois coragem em renová-lo. Raul, façamos-lhe justiça, ostentava na sua pessoa não sei quê de grande, de fantasioso e de extraordinário, que exige um quadro. Seus inimigos, os seus amigos, uns e outros se valem, confessavam que nada no mundo concordava melhor com o seu espírito do que a sua forma. Raul Nathan seria talvez mais singular ao natural do que o era com os seus adicionais. Seu rosto destroçado, destruído, dava-lhe o ar de quem se tivesse batido com os anjos ou com os demônios; assemelhava-se ao rosto que os pintores alemães atribuem ao Cristo morto; veem-se nele mil sinais de uma luta constante entre a fraca natureza humana e as potências do alto. Mas as rugas escavadas de suas faces, as saliências de seu crânio tortuoso e cheio de sulcos, os côncavos que assinalam seus olhos e suas fontes, nada indicava debilidade alguma na sua constituição. Suas membranas duras, seus ossos aparentes eram de uma solidez notável, e conquanto sua pele, curtida pelos excessos, neles se colasse, como se fogos interiores a houvessem dissecado, não deixava por isso de envolver um formidável arcabouço. Era magro e alto. Sua comprida cabeleira, sempre revolta, visava causar efeito. Esse Byron mal penteado, mal construído, tinha pernas de garça, joelhos intumescidos, curvatura exagerada, mãos musculosas, duras como as pinças de um caranguejo, com dedos magros e nervosos. Raul tinha olhos napoleônicos, olhos azuis, cujo olhar atravessa a alma; um nariz irregular, astucioso; uma boca encantadora, embelezada por dentes tão alvos como os pudesse desejar uma mulher. Havia naquela cabeça atividade e fogo, e gênio na fronte. Raul pertencia ao reduzido número de homens que mesmo de passagem impressionam, que num salão constituem um ponto luminoso que atrai todos os olhares; fazia-se notar por seu desleixo, se é permitido tomar de Molière o termo empregado por Eliante para descrever o sujo, trazendo sobre si poucos encantos.[450] Suas vestes pareciam sempre haver sido torcidas, amarrotadas, enrugadas propositalmente para se harmonizarem com a sua fisionomia. Mantinha habitualmente uma das mãos no colete aberto, numa atitude que o retrato de Chateaubriand por Girodet tornou célebre; ele, porém, tomava essa pose menos para se parecer com aquele — não quer parecer-se com ninguém — do que para deflorar as pregas regulares da camisa. A gravata, num momento, ficava enrolada pelas convulsões dos movimentos da cabeça, nele notavelmente bruscos e vivos, como os dos cavalos de raça que se impacientam com os arreios levantam constantemente a cabeça para se desembaraçarem do freio ou da bardela. A barba comprida e pontuda não era nem penteada, nem perfumada, nem escovada ou alisada como a dos elegantes que usam a barba em leque ou em ponta; ele a deixava como era. Os cabelos, emaranhados entre a gola da casaca e a gravata, luxuriantes sobre os ombros, engorduravam os lugares por onde roçavam. As mãos secas e fibrosas ignoravam os cuidados da escova de unhas e o luxo do limão. Vários folhetinistas pretendem que as águas lustrais não lhes refrescam com frequência a pele calcinada. Enfim, o terrível Raul era grotesco. Seus movimentos eram bruscos e intermitentes, como se fossem produzidos por um mecanismo imperfeito. Seu caminhar ofendia toda e qualquer ideia de ordem por zigue-zagues entusiastas, por paradas inesperadas que o faziam dar encontrões nos burgueses pacíficos que passeavam pelos bulevares de Paris. Sua conversação, de humor cáustico, de epigramas ásperos, imitava os ademanes de seu corpo, deixava, de súbito, o tom da vingança e tornava-se suave, poética, consoladora, doce, despropositada; tinha silêncios inexplicáveis, sobressaltos de espírito que por vezes cansavam. Levava para a sociedade uma falta de jeito ousada, um desdém das convenções, um ar de crítica contra tudo o que nela se respeita, que o deixava mal com os espíritos pequenos, como também com aqueles que se esforçavam por conservar as doutrinas da antiga cortesia; mas eram coisas originais como as criações chinesas, e que as mulheres não detestam. De resto, para elas ele se mostrava com frequência de uma amabilidade requintada, parecia comprazer-se em fazer esquecer suas formas estranhas e conseguir sobre as antipatias uma vitória que lisonjeava sua vaidade, seu amor-próprio ou seu orgulho. — Por que é o senhor assim? — perguntou-lhe um dia a marquesa de Vandenesse. — Não se acham as pérolas dentro das conchas? — respondeu ele faustosamente. A outra que lhe fazia a mesma pergunta, respondeu: — Se eu me mostrasse bem para todas, como poderia parecer melhor para uma pessoa escolhida entre todas?

Raul Nathan levava para a sua vida intelectual a desordem que tomava por lema. Sua apresentação não era enganadora; seu talento se assemelhava ao dessas pobres raparigas que se apresentam nas casas burguesas para todo serviço; a princípio foi crítico, e grande crítico; mas sentiu-se logrado com esse ofício. Seus artigos valiam por livros,[451] dizia ele. Os lucros do teatro tinham-no seduzido; incapaz, porém, do trabalho lento e pertinaz que exige a cena, fora obrigado a associar-se a um vaudevilista, du Bruel, que punha em cena suas ideias e sempre as reduzia a pequenas peças produtivas, cheias de espírito, sempre feitas para certos atores ou atrizes. Entre os dois, tinham inventado Florina, uma atriz de sucesso de bilheteria. Humilhado com essa associação, semelhante à dos irmãos siameses, Nathan estreara sozinho, no Teatro Francês, um grande drama que caíra, com todas as honras da guerra, ante as salvas de artigos fulminantes. Na sua mocidade já havia tentado o grande, o nobre Teatro Francês, com uma magnífica peça romântica no gênero de Pinto,[452] numa época em que o clássico reinava soberanamente. O Odeon fora tão rudemente agitado durante três noites que a peça foi proibida. Aos olhos de muita gente, essa segunda peça era tida, como a primeira, por uma obra-prima, e lhe conquistara mais reputação do que todas as peças tão produtivas feitas com seus colaboradores, mas isso numa sociedade pouco ouvida, a dos conhecedores e da gente de bom gosto.

— Mais uma queda como essa — disse-lhe Emílio Blondet —, e te tornas imortal.

Em vez, porém, de marchar nessa senda difícil, Nathan, por necessidade, caíra na poeira e nas moscas do vaudeville do século xviii, na peça de costumes e na reimpressão cênica dos livros de sucesso. Não obstante, passava por ser um grande espírito que ainda não dissera sua última palavra. De resto, ele tinha abordado a alta literatura e publicado três romances, sem contar os que mantinha no prelo, como peixes num viveiro. Um desses três livros, o primeiro, como acontece com muitos escritores que só puderam escrever uma primeira obra, obteve o mais brilhante triunfo. Essa obra, imprudentemente posta, então, na primeira linha, essa obra de artista, ele a fazia chamar, a propósito de tudo, o mais belo livro da época, o único romance do século. Aliás, queixava-se muito das exigências da arte; era um daqueles que mais haviam contribuído para fazer enfileirar todas as obras, quadros, estátuas, livros e edifícios sob a flâmula da arte. Começara perpetrando um livro de poesias que lhe valera um lugar na plêiade dos poetas atuais, entre as quais havia um poema nebuloso bastante admirado. Forçado a produzir por carência de dinheiro, ia do teatro à imprensa, e desta ao teatro, dissipando-se, dispersando-se e crendo sempre na sua sorte. Sua glória, portanto, não era inédita como a de várias celebridades agonizantes, sustentadas pelos títulos de obras por fazer, as quais não terão tantas edições quanto os mercados de que necessitavam. Nathan assemelhava-se a um homem de gênio; e se tivesse subido ao cadafalso, como teve vontade, teria podido bater na própria testa, tal como André Chénier.[453] Empolgado pela ambição política ao ver a irrupção no poder de uma dúzia de autores, de professores, de metafísicos e de historiadores que se incrustaram na máquina durante as tormentas de 1830 a 1833, lamentou não ter escrito artigos políticos em vez de artigos literários. Julgava-se superior a esses parvenus cuja elevação lhe inspirava, no momento, um ciúme excessivo. Pertencia a esses espíritos que tudo invejam, capazes de tudo, aos quais se roubam todos os sucessos e que vão esbarrando em mil lugares luminosos, sem se fixarem num único, esgotando sempre a vontade do vizinho. Naquele momento ele flutuava do sansimonismo ao republicanismo, para talvez voltar ao ministerialismo. Espreitava o osso para roer por todos os cantos e buscava um lugar seguro de onde pudesse ladrar ao abrigo dos golpes e tornar-se temível; mas envergonhava-se por não ser levado a sério pelo ilustre de Marsay,[454] que então dirigia o governo e não tinha nenhuma consideração pelos autores nos quais não encontrava o que Richelieu denominava espírito de continuidade, ou melhor, seguimento nas ideias. De resto, todo ministério teria de contar com o contínuo desarranjo nos negócios de Raul. Cedo ou tarde, a necessidade teria de levá-lo a submeter-se a condições e não a impô-las. O caráter real e cuidadosamente oculto de Raul concordava com seu caráter público. Era comediante de boa-fé, pessoal como se o Estado fosse ele e muito hábil declamador. Ninguém sabia melhor fingir sentimentos, vangloriar-se de falsas grandezas, adornar-se com belezas morais, respeitar-se em palavras e, agindo como um Filinto, apresentar-se como um Alceste.[455] Seu egoísmo trotava ao abrigo dessa armadura de cartão pintado e alcançava muitas vezes o alvo oculto que ele se propunha. Superlativamente preguiçoso, nada fazia senão aguilhoado pelas alabardas da necessidade. Ignorava a continuidade do trabalho aplicado à criação de um monumento; mas nos paroxismos de raiva que lhe causavam suas vaidades feridas, ou num momento de crise provocado por um credor, ele era capaz de atravessar o Eurotas[456] e triunfar dos mais difíceis abatimentos do espírito. Depois, cansado, surpreendido por ter criado algo, recaía no marasmo dos gozos parisienses. A necessidade voltava a apresentar-se formidável; ele se sentia sem forças, descia então e se comprometia. Movido por uma falsa ideia de sua grandeza e de seu futuro, que avaliava pela excepcional ascensão de um seu antigo camarada, um dos raros talentos ministeriais postos em foco pela Revolução de Julho, para se tirar de apertos permitia-se, como as pessoas que o queriam, barbarismos de consciência, enterrados nos mistérios da vida privada, mas dos quais ninguém falava nem se queixava. A banalidade de seu coração, o impudor de seu aperto de mão, que saudava todos os vícios, todas as desgraças, todas as traições, todas as opiniões, tornaram-no inviolável como um rei constitucional. O pecado venial, que excitaria o clamor público contra um homem de grande caráter, vindo dele não tinha importância; um ato pouco delicado é apenas uma coisinha, todo mundo o desculpa, desculpando-se a si mesmo. Mesmo aquele que se sentisse tentado a desprezá-lo lhe estenderia a mão por ter medo de vir a precisar dele. Tinha tantos amigos quantos eram os inimigos.

Essa bonomia aparente que seduz os recém-chegados e não impede nenhuma traição, que tudo se permite e justifica, que solta altos brados ante um ferimento e o perdoa, é um dos caracteres distintivos do jornalista. Essa camaradagem, termo criado por um homem de espírito, corrói as mais belas almas; enferruja-lhes a altivez, mata o princípio das grandes obras e consagra a covardia do espírito. Ao exigir essa moleza de consciência em todos, certas pessoas proporcionam-se assim a absolvição de suas perfídias, de suas mudanças de partido. É assim que a parte mais esclarecida de uma nação se torna a menos estimável. Julgado sob o ponto de vista literário, Nathan carecia de estilo e de instrução. Como a maioria dos jovens ambiciosos da literatura, ele vomitava no dia o que aprendera na véspera. Não tinha nem tempo nem paciência para escrever, não tinha observado, mas ouvia. Incapaz de construir um plano vigorosamente estruturado, salvava-se, talvez, pelo arrebatamento do desenho. Fabricava paixão, segundo a expressão da gíria literária, porquanto em matéria de paixão tudo é verdade; ao passo que o gênio tem por missão buscar, através das incertezas da verdade, o que para todos deve parecer provável. Em vez de despertarem ideias, seus heróis são individualidades engrandecidas, que excitam apenas simpatias fugazes; não se ligam aos grandes interesses da vida e portanto nada representam; ele, entretanto, mantinha-se pela rapidez de seu espírito, por esses encontros felizes que os jogadores de bilhar denominam retruques. E o mais hábil atirador ao voo de ideias que se abatem sobre Paris, ou as que Paris faz levantarem. Sua fecundidade não lhe pertencia, e sim à época; ele vivia das circunstâncias e, para dominá-las, exagerava-lhes o alcance. Finalmente, não era sincero, suas frases eram mentirosas; havia nele, como dizia o conde Félix, um embusteiro. Aquela pena, sentia-se, ia buscar sua tinta no gabinete de uma atriz. Nathan oferecia a imagem da juventude literária de hoje, de suas falsas grandezas e de suas misérias reais; representa-a com suas belezas incorretas e suas quedas profundas, sua vida de cascatas espumejantes, de súbitos reveses e triunfos inesperados. Era bem um filho do século, devorado de inveja, no qual mil rivalidades, ocultas sob sistemas, alimentam em seu proveito a hidra da anarquia de todas as suas decepções, que quer a fortuna sem o trabalho, a glória sem talento e o êxito sem o esforço, mas que, após muitas rebeliões, muitas escaramuças, é levado por seus vícios a se deitar no orçamento do bel-prazer do governo. Quando tantas jovens ambições partiram a pé e todas marcaram encontros no mesmo ponto, há concorrência de vontades, misérias inauditas, lutas encarniçadas. Nessa horrível batalha, conquista a vitória ou o egoísmo mais violento ou o mais esperto. O exemplo é invejado e justificado, apesar da berraceira, como diria Molière, e seguem-no. Quando, na sua qualidade de inimigo da nova dinastia, Raul foi introduzido no salão da sra. de Montcornet, suas aparentes grandezas floresciam. Aceitavam-no como o crítico político dos de Marsay, dos Rastignac, dos La Roche-Hugon,[457] elevado ao poder.

Vítima de suas fatais hesitações, de sua repugnância pela ação que só a ele dizia respeito, Emílio Blondet, o introdutor de Nathan, continuava no seu ofício de motejador, não tomava partido por ninguém e dava-se com todos. Era amigo de Raul, amigo de Rastignac, amigo de Montcornet.

— És um triângulo político — dizia-lhe a rir de Marsay, quando o encontrava na Ópera. — Essa forma geométrica pertence somente a Deus, que nada tem a fazer; os ambiciosos, porém, devem seguir por uma curva, o caminho mais curto em política.

Visto a distância, Raul Nathan era um belíssimo meteoro. A moda autorizava suas maneiras e sua apresentação. Seu republicanismo de empréstimo dava-lhe momentaneamente esse ríspido jansenismo que aparentam os defensores da causa popular, dos quais ele interiormente zombava, e que não deixa de ter seu encanto aos olhos das mulheres. Estas se comprazem em fazer prodígios, em espatifar rochedos, em fundir os caracteres que parecem ser de bronze. A toilette da moral harmonizava-se, pois, em Raul, com o seu vestuário. Tinha de ser e foi para a Eva entediada de seu paraíso da rue du Rocher a serpente cintilante, colorida, bem-falante, de olhos magnéticos, de movimentos harmoniosos, que perdeu a primeira mulher. Desde que a condessa Maria viu Raul, sentiu esse movimento interior cuja violência causa uma espécie de pavor. Aquele pretenso grande homem exerceu sobre ela, por seu olhar, uma influência física que irradiou até o coração da dama, perturbando-o. Essa perturbação causou-lhe prazer. O manto de púrpura que a celebridade atirava, por um momento, sobre os ombros de Nathan deslumbrou aquela mulher ingênua. À hora do chá, Maria deixou o lugar onde, entre algumas mulheres entretidas em conversar, ela se calara ao ver aquela criatura extraordinária. Esse silêncio fora notado por suas falsas amigas. A condessa aproximou-se do divã quadrado, que se achava no centro do salão, onde Raul perorava. Ela ficou de pé, dando o braço à sra. Otávio de Camps,[458] mulher excelente que guardou segredo dos tremores involuntários pelos quais se traíam suas violentas emoções. Conquanto os olhos de uma mulher seduzida ou surpreendida deixem transparecer incríveis doçuras, Raul, naquele momento, queimava um verdadeiro fogo de artifício; estava demasiado metido nos seus epigramas que esfuziavam, nas suas acusações enoveladas e desenroladas como sóis, nos flamejantes retratos que desenhava com traços de fogo, para notar a ingênua admiração de uma pobre pequenina Eva, oculta no grupo de senhores que o cercava. Essa curiosidade, semelhante à que faria Paris precipitar-se ao Jardin-des-Plants a fim de ver um licorne, se fosse possível encontrar um nas célebres montanhas da lua, virgem ainda dos passos de um europeu, embriaga os espíritos secundários, tanto quanto entristece as almas verdadeiramente elevadas; encantava, porém, Raul; ele pertencia a todas as mulheres para ser de uma única.

— Cuidado, querida — disse a Maria, ao ouvido, sua graciosa e adorável companheira —, vá embora.

A condessa olhou o marido para pedir-lhe o braço, por um desses olhares que os maridos nem sempre compreendem; Félix levou-a.

— Meu caro — disse a sra. d’Espard ao ouvido de Raul —, o senhor é um maroto feliz. Fez esta noite mais uma conquista, entre outras a da mulher encantadora que acaba de nos deixar tão bruscamente.

— Sabes o que a marquesa d’Espard me quis dizer? — perguntou Raul a Blondet, recordando-lhe o que dissera a grande dama, quando os dois ficaram mais ou menos a sós entre uma e duas horas da madrugada.

— Acabo de saber que a condessa de Vandenesse se apaixonou loucamente por ti. Tens sorte.

— Não a vi — disse Raul.

— Oh!, patife, tu a verás — disse Emílio Blondet, desatando a rir. — Lady Dudley convidou-te para o seu grande baile, precisamente para que te encontres com ela.

Raul e Blondet saíram juntos com Rastignac, o qual lhes ofereceu o carro. Os três se puseram a rir da reunião de um eclético subsecretário de Estado, de um republicano feroz e de um ateu político.

— E se nós ceássemos à custa da ordem de coisas atual? — perguntou Blondet, que queria repor em voga as ceias. Rastignac levou-os ao Véry, despediu o carro, e os três puseram-se à mesa, analisando a sociedade presente e rindo com o riso rabelaisiano.[459] No meio da ceia, Rastignac e Blondet aconselharam ao falso inimigo não desleixar uma aventura tão importante como a que se lhe oferecia. Esses dois devassos narraram, em estilo zombeteiro, a história da condessa Maria de Vandenesse: passearam o bisturi do epigrama e a ponta aguda do chiste naquela cândida infância e naquele matrimônio feliz. Blondet felicitou Raul por ter ele encontrado uma mulher cujas culpas até então consistiam apenas em maus desenhos a lápis encarnado, em medíocres paisagens em aquarela, em chinelos bordados para o marido, em sonatas executadas com a mais casta intenção, presa durante dezoito anos à saia materna, abeatada em práticas religiosas, educada por Vandenesse e cozida finalmente pelo casamento para ser degustada pelo amor. Na terceira garrafa de champanhe, Raul Nathan abriu-se como jamais o fizera com ninguém.

— Vocês, meus amigos — disse ele —, conhecem as minhas relações com Florina, conhecem a minha vida e por isso não se admirarão de me ouvir confessar-lhes que ignoro absolutamente a cor dos amores de uma condessa. Senti-me muitas vezes humilhado ao pensar que não me podia dar uma Beatriz ou uma Laura,[460] a não ser em poesia! Uma mulher nobre e pura é como uma consciência sem mancha, que nos representa a nós mesmos sob uma bela forma. Em outros lugares poderemos enlamear-nos; mas aí, permanecemos grandes, altivos, imaculados. Em outros lugares levamos uma vida endiabrada, mas aí se respira a calma, a frescura, o verdor dos oásis.

— Vai, vai, meu rapazola — disse-lhe Rastignac —, dedilha na quarta corda a prece de Moisés como Paganini.

Raul emudeceu, com o olhar fixo, hebetado.

— Esse vil aprendiz de ministro não me entende — disse ele após um momento de silêncio.

Assim, pois, enquanto a pobre Eva da rue du Rocher se deitava nos cueiros da vergonha, assustava-se do prazer com que tinha ouvido aquele pretenso grande poeta e flutuava entre a voz severa de sua gratidão por Vandenesse e as palavras douradas da serpente, aqueles três espíritos desavergonhados pisoteavam as tenras e brancas flores de seu amor nascente. Ah!, se as mulheres soubessem do comportamento cínico desses homens tão pacientes, tão lisonjeadores, quando longe delas! Como zombam do que adoram! Fresca, graciosa e pudica criatura, como o gracejo burlesco a despia e a analisava! Mas também que triunfo! Quanto mais véus perdia, mais belezas ostentava.

Maria, naquele momento, comparara Raul e Félix, sem suspeitar o perigo que o coração corre ao estabelecer semelhantes paralelos. Nada no mundo contrastava mais do que o desordenado e vigoroso Raul e Félix de Vandenesse, preparado como uma melindrosa, apertado na sua casaca, dotado de encantadora desenvoltura, sectário da elegância inglesa, à qual o acostumara lady Dudley em outra época. Esse contraste agrada à imaginação das mulheres, bastante propensas a passar de um extremo a outro. A condessa, mulher honesta e devota, proibiu-se a si mesma de pensar em Raul, classificando-se de infame ingrata, no dia seguinte, dentro de seu paraíso.

— Que pensa você de Raul Nathan? — perguntou ao marido durante o almoço.

— Um embusteiro — respondeu o conde —, um desses vulcões que se acalmam com um pouco de ouro em pó. A condessa de Montcornet fez mal em admiti-lo em sua casa.

Essa resposta magoou tanto mais Maria porque Félix, a par da vida do mundo literário, confirmou sua opinião com provas, contando o que sabia da vida de Raul Nathan, vida precária misturada com a de Florina, uma atriz de renome.

— Se esse homem tem gênio — disse ele ao terminar —, não tem nem a constância nem a paciência que o consagram e o tornam uma coisa divina. Quer impor-se ao mundo pondo-se numa categoria na qual não se pode manter. Os verdadeiros talentos, as pessoas estudiosas, respeitáveis, não procedem assim; marcham corajosamente na sua senda, aceitam suas misérias sem as cobrir de ouropéis.

O pensamento de uma mulher é dotado de incrível elasticidade quando recebe um golpe de abater, dobra-se, parece esmagado e em dado tempo retoma sua forma. — Félix — pensou a condessa — tem provavelmente razão.

Três dias depois, entretanto, ela pensava na serpente, levada a isso pela emoção ao mesmo tempo suave e cruel que lhe causara Raul e que Vandenesse cometera o erro de não lhe fazer conhecer. O conde e a condessa foram ao grande baile de lady Dudley, no qual de Marsay foi visto pela última vez em sociedade, porque morreu daí a dois meses, deixando uma grande reputação de homem de Estado cujo alcance, dizia Blondet, foi incompreensível. Vandenesse e a mulher tornaram a encontrar Raul Nathan nessa assembleia, notável pela presença de várias personalidades do drama político, as quais muito admiradas se mostravam por se acharem ali reunidas. Foi uma das primeiras solenidades da alta-roda. Os salões ofereciam à vista um espetáculo mágico; flores, diamantes, cabeleiras brilhantes, todos os cofres esvaziados, todos os recursos da toilette postos em contribuição. O salão podia comparar-se a uma das estufas de eleição, na qual ricos horticultores reúnem as mais magníficas raridades. O mesmo brilho, a mesma perfeição de tecidos. A indústria humana parecia também querer lutar com as criações animadas. Por toda parte gazes brancas ou coloridas como as asas das mais lindas libélulas, crepes, rendas, aplicações de seda, tules variados como as fantasias da natureza entomológica, recortadas, onduladas, denteadas, teias de aranha em ouro e em prata, nevoeiros de seda, flores bordadas por fadas ou florescidas por gênios encarcerados, plumas coloridas pelos ardores do trópico, como salgueiros-chorões por cima de cabeças orgulhosas, pérolas torcidas em tranças, fazendas laminadas, encaneladas, recortadas, como se o gênio dos arabescos tivesse aconselhado a indústria francesa. Esse luxo estava em harmonia com as belezas ali reunidas, como para realizar um keepsake. O olhar abarcava os mais alvos ombros, alguns cor de âmbar, outros lustrosos como se tivessem sido brunidos, estes acetinados, aqueles mates e gordos como se Rubens lhes tivesse preparado a massa, enfim todos os matizes encontrados pelo homem no branco. Eram olhos cintilantes como ônix ou turquesas, orlados de veludo negro ou de franjas louras; talhes de rosto variados que lembravam os mais graciosos tipos de múltiplos países, frontes sublimes e majestosas, ou suavemente arqueadas, como se o pensamento nelas abundasse, ou planas, como se a resistência ali dominasse invencível; ademais, o que dá tanto atrativo a essas festas preparadas para o olhar, seios comprimidos como os apreciava Jorge iv, ou separados à moda do século xviii, ou tendendo a se aproximarem como os queria Luís xv; mas exibidos com audácia, sem véus, ou sob aquelas gargantilhas franzidas dos retratos de Rafael, triunfo de seus pacientes alunos. Os mais lindos pés espichados para a dança, as cinturas entregues nos braços das valsas estimulavam a atenção dos mais indiferentes. O sussurrar das mais doces vozes, o roçar dos vestidos, os murmúrios da dança, os choques da valsa acompanhavam fantasticamente a música. A varinha de uma fada parecia ter organizado aquela mágica asfixiante, aquela melodia de perfumes, aquelas luzes irisadas nos cristais, onde as velas tremeluziam, aqueles quadros multiplicados pelos espelhos. Aquela reunião das mais lindas mulheres e das mais lindas toilettes destacava-se sobre a massa negra dos homens, na qual se notavam os perfis elegantes, frios, corretos dos fidalgos, os bigodes ruivos e os rostos graves dos ingleses e os semblantes graciosos da aristocracia francesa. Todas as ordens da Europa cintilavam sobre os peitos, ou presas ao pescoço a tiracolo, ou caindo sobre o quadril. Ao examinar aquela sociedade, via-se que não só apresentava o brilhante colorido dos adornos como também tinha uma alma, vivia, pensava, sentia.

Paixões ocultas davam-lhe uma fisionomia; teríeis surpreendido a troca de olhares maliciosos, jovens moças estonteadas e curiosas deixando entrever desejos, mulheres enciumadas confiando maldades umas às outras por trás do leque, ou atribuindo-se louvores exagerados. A sociedade enfeitada, encrespada, almiscarada, deixava-se arrastar a uma loucura de festas que subia à cabeça como um vapor capitoso. Parecia que de todas as frontes, como de todos os corações, evolavam-se sentimentos e ideias que se condensavam e cuja massa reagia sobre as mais frias criaturas para exaltá-las. No mais animado momento daquele sarau inebriante, num canto do salão dourado, onde um ou dois banqueiros embaixadores, antigos ministros e o velho, o imoral lord Dudley, que por acaso viera, estavam jogando, a sra. Félix de Vandenesse foi irresistivelmente arrastada a conversar com Nathan. Talvez cedesse ela à embriaguez do baile, que tantas vezes tem arrancado confissões às mais discretas.

Ante o aspecto daquela festa e dos esplendores de um ambiente que não lhe era familiar, Nathan sentiu que uma ambição redobrada lhe mordia o coração. Ao ver Rastignac, cujo irmão mais moço acabava de ser nomeado bispo aos vinte e sete anos; cujo cunhado, Marcial de la Roche-Hugon, era ministro, sendo ele próprio subsecretário de Estado e que ia, segundo se murmurava, casar com a filha única do barão de Nucingen; ao ver no corpo diplomático um escritor desconhecido que traduzia os jornais estrangeiros para um jornal que se tornara dinástico desde 1830, além de outros fazedores de artigos, ingressados no Conselho de Estado, professores, pares de França, ele se viu dolorosamente numa senda errada por pregar a derrubada daquela aristocracia, onde brilhavam os talentos felizes, as espertezas coroadas pelo êxito, as superioridades reais. Blondet, tão infeliz, tão explorado na imprensa, mas tão bem acolhido ali, podendo ainda, se quisesse, entrar na senda da fortuna por sua ligação com a sra. de Montcornet, foi para Nathan um exemplo frisante do poder das relações sociais. No fundo de seu coração, resolveu malabarizar com as opiniões a exemplo dos de Marsay, Rastignac, Blondet, Talleyrand,[461] o chefe daquela seita, de não aceitar senão os fatos, de os torcer em seu proveito, de ver em todo o seu sistema uma arma, e de não desarranjar uma sociedade tão bem constituída, tão bela, tão natural. “Meu futuro”, pensou consigo mesmo, “depende de uma mulher que pertença a essa sociedade.” Com esse pensamento concebido ao fogo de um desejo frenético, atirou-se sobre a condessa de Vandenesse como um milhafre sobre sua presa. Aquela criatura encantadora, tão bonita nos seus adornos de marabu, que produziam aquele delicioso flou das pinturas de Lawrence,[462] em harmonia com a doçura de seu caráter, foi penetrada pela fervente energia daquele poeta louco de ambição. Lady Dudley, a quem nada escapava, protegeu aquele aparté, entregando o conde de Vandenesse à sra. de Manerville. Usando do império de um antigo ascendente, essa mulher prendeu Félix na trama de uma querela cheia de provocações, de confidências embelezadas com ruborizações, de saudades atiradas como flores a seus pés, de recriminações em que ela se atribuía razões para se fazer declarar culpada. Esses dois amantes malquistados falavam-se, naquele momento, pela primeira vez de boca a ouvido. Enquanto a antiga amante de seu marido revolvia as cinzas dos prazeres extintos, para nelas encontrar alguma brasa, a sra. Félix de Vandenesse sentia as violentas palpitações que a certeza de estar cometendo uma falta e de estar palmilhando uma estrada proibida causa a uma mulher; emoções que não deixam de ter seu encanto e que despertam tantas forças adormecidas. Hoje, como no conto do Barba-Azul, todas as mulheres gostam de usar a chave manchada de sangue, magnífica ideia mitológica, uma das glórias de Perrault.[463]

O dramaturgo, que conhecia Shakespeare, estendeu-se sobre as suas misérias, contou sua luta com os homens e as coisas, fez entrever suas grandezas sem bases, seu gênio político ignorado, sua vida sem afeição nobre. Sem dizer uma palavra precisa, sugeriu à encantadora dama a ideia de representar para ele o papel sublime que Rebeca representa em Ivanhoé [464] de o amar, de o proteger. Passou-se tudo nas etéreas regiões do sentimento. Os miosótis não são tão azuis, os lírios tão alvos, a fronte dos serafins tão cândida como o eram as imagens, as coisas e a fronte iluminada, radiosa, daquele artista, que teria podido mandar sua conversação para o editor. Saiu-se bem no seu papel de réptil, fez brilhar ante os olhos da condessa as deslumbrantes cores da maçã fatal. Maria saiu daquele baile presa de remorsos que se assemelhavam a esperanças, deleitada com felicitações que lisonjeavam sua vaidade, comovida em todos os recantos de seu coração, caçada por suas virtudes, seduzida por sua piedade pela desgraça.

É possível que a sra. de Manerville tivesse levado de Vandenesse ao salão onde a sua esposa conversava com Nathan; é possível que ele lá tivesse ido espontaneamente a fim de procurar Maria para se retirarem, ou talvez que a conversação que tivera tivesse revolvido pesares adormecidos; fosse como fosse, quando a esposa lhe foi pedir o braço, achou-o com o semblante entristecido e com ar sonhador. A condessa temia ter sido vista. Logo que se viu a sós com Félix, na carruagem, dirigiu-lhe um sorriso esperto e lhe disse:

— Creio que estava conversando com a sra. de Manerville, não, meu amigo? — Félix não saíra ainda das brechas por onde a esposa o fizera passear, por meio de uma encantadora rusga, quando o carro chegou ao palácio. Foi esse o primeiro ardil ditado pelo amor. Maria sentiu-se feliz por ter triunfado sobre um homem que até então lhe parecera tão superior. Saboreou a primeira alegria que um sucesso necessário dá.

V – FLORINA

Entre a rue Basse-du-Rempart e a rue Neuve-des-Mathurins, Raul tinha, numa travessa, no terceiro andar de uma casa estreita e feia, um pequeno apartamento deserto, nu, frio, onde residia para o público dos indiferentes, para os neófitos literários, para seus credores, para os importunos e os múltiplos cacetes que devem permanecer no umbral da vida íntima. Seu domicílio verdadeiro, sua grande existência, sua representação, era em casa da srta. Florina, comediante de segunda ordem, mas que, havia dez anos, os amigos de Nathan, os jornais, alguns autores entronizavam no grupo das mais ilustres atrizes. Fazia dez anos que Raul se ligara de tal forma àquela mulher que passava metade da vida em sua casa; comia lá, quando não tinha de banquetear um amigo nem de jantar em casa de suas relações. Florina juntava a uma corrupção perfeita um espírito primoroso que o convívio com artistas desenvolvera e que o uso afiava diariamente. Entre os comediantes o espírito passa por ser uma qualidade rara. É tão natural supor que as pessoas que gastam a vida a tudo exteriorizar nada tenham no interior. Mas se se pensar no pequeno número de atores e de atrizes que vivem em cada século e na quantidade de autores dramáticos e de mulheres sedutoras que aquela população forneceu, é permitido refutar essa opinião que repousa numa eterna crítica feita aos artistas dramáticos, todos eles acusados de perder seus sentimentos pessoais na expressão plástica das paixões; ao passo que nelas eles empregam apenas as forças do espírito, da memória e da imaginação. Os grandes artistas são seres que, no dizer de Napoleão, interceptam à vontade a comunicação que a natureza põe entre os sentidos e o pensamento. Molière e Talma, na velhice, foram mais amorosos do que o são os homens comuns.

Obrigada a ouvir jornalistas que tudo adivinham e calculam, escritores que tudo preveem e dizem, a observar certos homens políticos que em sua casa se aproveitavam dos ditos de outros, Florina apresentava em si um misto de demônio e de anjo que a tornava digna de receber aqueles velhacos; ela os encantava com o seu sangue-frio. Agradava-lhes infinitamente sua monstruosidade de espírito e de coração. Sua casa, enriquecida por tributos galantes, ostentava a magnificência exagerada das mulheres que, pouco preocupadas com o preço das coisas, só prestam atenção nas próprias coisas e lhes dão o valor de seus caprichos, que, num acesso de ira, quebram um leque, uma caçoula, dignos de uma rainha, e soltam altos brados se lhes quebram uma porcelana de dez francos na qual os seus cãezinhos bebem. Sua sala de jantar, cheia dos mais distintos presentes, podia servir para fazer compreender a diversidade daquele luxo régio e desdenhoso. Por toda parte, mesmo no teto, havia forros de madeira de cedro esculpido, realçados com filetes de ouro mate, e cujas almofadas tinham por quadro crianças brincando com quimeras onde a luz tremeluzia, iluminando aqui um pastel de Decamps, ali um gesso de um anjo segurando uma pia de água benta, doado por Antonin Moine, mais longe um quadro gracioso de Eugène Deveria,[465] uma sombria figura de alquimista espanhol por Louis Boulanger,[466] um autógrafo de Lord Byron para Carolina[467] enquadrado em ébano esculpido por Elschoët;[468] em frente, uma carta de Napoleão para Josefina.[469] Tudo isso colocado sem nenhuma simetria, mas com arte sutil. O espírito era como que tomado de surpresa. Havia coquetismo e uma espécie de desleixo, duas qualidades que só se encontram reunidas nos artistas. Em cima da lareira de madeira deliciosamente esculpida, nada mais do que uma estranha e florentina estatueta de marfim, atribuída a Michelangelo, representando um sátiro descobrindo uma mulher sob a pele de um jovem pastor e cujo original está no tesouro de Viena; depois, de cada lado, lampadários trípodes devidos a algum cinzel da Renascença. Um relógio de Boule[470] num pedestal de madrepérola incrustado de arabescos de cobre cintilava no centro de um painel, entre duas estatuetas escapadas de alguma demolição abacial. Nos ângulos, sobre os seus pedestais, brilhavam lâmpadas de régia magnificência com as quais um fabricante havia pagado alguns reclamos sonoros sobre a necessidade de ter lâmpadas ricamente adaptadas a bojos do Japão. Sobre um mirífico aparador repimpava-se uma baixela de prata preciosa bem ganha num combate no qual algum lord tivera de reconhecer o ascendente da nação francesa, depois, porcelanas com relevos; enfim, o luxo admirável do artista que não tem outro capital além do seu mobiliário. O quarto, violeta, era um sonho de dançarina nos seus começos; reposteiros de veludo, forrados de seda branca, recobertos por um véu de tule; um teto forrado de cashmere branca com pregas de cetim violeta; aos pés da cama um tapete de arminho; no leito, cujas cortinas se assemelhavam a um lírio invertido, havia uma lanterna para ler os jornais antes de eles saírem. Um salão amarelo realçado com ornatos cor de bronze florentino estava em harmonia com todas aquelas magnificências; mas uma descrição exata faria com que estas páginas parecessem o anúncio de uma venda por mandado de justiça. Para encontrar comparações com todas essas belas coisas seria preciso ir a dois passos dali, em casa de Rotschild.

Sofia Grignault, que se apelidara Florina por meio de um batismo bastante habitual no teatro, estreara em palcos inferiores, apesar da sua beleza. Devia seu êxito e sua fortuna a Raul Nathan. A associação desses dois destinos, muito comum no mundo dramático e literário, de modo nenhum prejudicara Raul, que sabia respeitar as conveniências como homem de larga visão. A fortuna de Florina, entretanto, nada tinha de estável. Suas rendas aleatórias eram mantidas por seus contratos, suas férias e davam mal e mal para pagar suas toilettes e despesas da casa. Nathan dava-lhe algumas contribuições tiradas das novas empresas da indústria; mas, embora sempre galante e protetor, essa proteção nada tinha de regular nem de sólido. Essa incerteza, essa vida no ar não assustavam Florina. Ela acreditava no seu talento; tinha fé na sua beleza. Essa fé robusta tinha algo de cômico para aqueles que a ouviam hipotecar seu futuro sobre tais convicções quando a censuravam.

— Terei rendimentos quando me aprouver tê-los — dizia. — Já tenho cinquenta francos no Grande-Livro.[471]

Ninguém compreendia como pudera ter permanecido ignorada durante sete anos, sendo bela como era; mas, realmente, Florina fora inscrita como comparsa aos treze anos, e dois anos depois estreava num obscuro teatro dos bulevares. Aos quinze anos nem a beleza nem o talento existem: a mulher é apenas uma promessa. Tinha agora vinte e oito anos, idade em que a beleza das mulheres francesas está em todo o seu esplendor. Os pintores viam antes de mais nada em Florina ombros de uma alvura lustrosa, tonalidades azeitonadas junto à nuca, porém firmes e lisas; a luz deslizava sobre elas como por sobre uma fazenda brilhante. Quando ela virava a cabeça, formavam-se no seu pescoço pregas magníficas que faziam a admiração dos escultores. Sobre aquele pescoço triunfante tinha uma cabecinha de imperatriz romana, a cabeça elegante e fina, redonda e voluntariosa de Popeia,[472] traços de uma correção espiritual, a fronte lisa das mulheres que expulsam as preocupações e a reflexão, que cedem facilmente mas que também empacam como mulas e então nada mais ouvem. Essa fronte, talhada como de um único golpe de cinzel, valorizava belos cabelos foscos quase sempre erguidos na frente em duas massas iguais, à moda romana, e levantados em seio atrás da cabeça para prolongá-la e realçar por sua cor a alvura do colo. As pálpebras macias, nas quais se distinguiam fibrelas róseas, eram enquadradas por sobrancelhas negras e finas, que se diria pintadas por algum pintor chinês. As pupilas incendiadas por uma luz viva, mas tigradas por traços pardos, davam ao seu olhar a fixidez cruel das feras e revelavam a fria malícia da cortesã. Seus adoráveis olhos de gazela eram de um belo cinzento e franjados de longos cílios negros, contraste encantador que tornava ainda mais sensível sua expressão de atenta e calma voluptuosidade; o contorno apresentava tons fatigados; mas o modo artístico como ela sabia fazer deslizar as pupilas para o ângulo da órbita ou para o alto, a fim de observar ou ter o ar de quem medita; o modo como as mantinha fixas, fazendo-as lançar todo o seu brilho sem mover a cabeça e sem tirar ao seu semblante a imobilidade, manobra aprendida em cena; mas a vivacidade de seu olhar, quando abarcava toda uma sala buscando alguém, tornava seus olhos os mais terríveis, os mais meigos, os mais extraordinários do mundo. O rouge destruíra as deliciosas tonalidades diáfanas de suas faces, cuja pele era delicada, mas, se ela não mais podia corar ou empalidecer, tinha um nariz fino, com ventas róseas e apaixonadas, feito para exprimir a ironia, o motejo das criadinhas de Molière. A boca sensual e dissipadora, tão propícia para o sarcasmo como para o amor, era embelezada pelas duas arestas do sulco que ligava o lábio superior ao nariz. O mento, alvo, um pouco cheio, revelara uma certa violência amorosa. As mãos e os braços eram dignos de uma soberana. Tinha, porém, o pé curto e grosso, sinal indelével de sua origem humilde. Jamais uma herança causara tantas preocupações. Florina, para transformá-los, tudo tentou menos a amputação. Seus pés foram obstinados, como os bretões a quem devia a vida; resistiram a todos os sábios, a todos os tratamentos. Florina usava botinas compridas e forradas de algodão, no interior, para fingir uma curva no pé. Era de estatura mediana, ameaçada de obesidade, mas bastante perfilada e benfeita de corpo. Quanto ao moral, conhecia a fundo as denguices e os arrufos, os artifícios e as meiguices do seu ofício; imprimia-lhes um sabor particular, fazendo-se de meninazinha e escorregando, por entre seus risos ingênuos, malícias filosóficas. Ignorante na aparência, estouvada, era de primeira força em matéria de descontos e em tudo que dizia respeito à jurisprudência comercial. É que sofrera muitas misérias antes de chegar ao dia de seu triunfo duvidoso! Descera de andar para andar, até chegar ao primeiro, através de mil aventuras! Conhecia a vida, desde a que começa pelo queijo de Brie[473] até a que chupa displicentemente filhoses de ananás; desde a que cozinha para si e se ensaboa no canto da lareira de uma mansarda, com um fogão de barro, até a que convoca a turma e a subturma dos mestres cozinheiros, barrigudos, e dos desavergonhados calouros do forno. Mantivera o crédito sem matá-lo. Não ignorava nada do que as mulheres honestas ignoram, falava todas as linguagens; era povo pela experiência e nobre pela beleza distinta. Difícil de surpreender, a todos supunha espiões ou juízes ou velhos homens de Estado, e assim podia tudo penetrar. Conhecia as manobras a usar com os fornecedores e as suas manhas, sabia o preço das coisas tão bem como um leiloeiro. Quando se estendia em sua espreguiçadeira como uma recém-casada, alva e fresca, estudando um papel, todos pensariam tratar-se de uma menina de dezesseis anos, ingênua, ignorante, fraca, sem mais artifício além da sua inocência. Se então aparecesse um credor importuno, ela se erguia como um filhote de corça e praguejava desabridamente.

— Olhe lá, meu caro, suas insolências são um juro demasiado elevado do dinheiro que lhe devo — dizia ela ao cacete —; estou cansada de vê-lo, mande um meirinho, prefiro-o à sua cara idiota.

Florina dava jantares encantadores, concertos e saraus muito frequentes, e neles se jogava um jogo dos diabos. Suas amigas eram todas bonitas. Jamais uma mulher velha comparecera à sua casa; ignorava a inveja, na qual via a confissão de uma inferioridade. Conhecera Corália,[474] o Torpedo,[475] conhecia as Túlias,[476] as Eufrásias,[477] as Aquilinas,[478] a sra. do Val-Noble,[479] Marieta,[480] essas mulheres que passam por Paris como as filandras[481] na atmosfera, sem que se saiba para onde vão nem de onde vêm; hoje rainhas, amanhã escravas; conhecia, ademais, as atrizes, suas rivais, as cantoras, enfim, toda aquela sociedade feminina excepcional, tão benfazeja, tão graciosa na sua despreocupação, cuja vida boêmia absorve quantos se deixam prender na dança descabelada do seu entusiasmo, de sua loquacidade, do seu desprezo pelo dia de amanhã. Conquanto a vida de boêmia se desenvolvesse em casa dela com toda a sua desordem, por entre risos de artistas, a rainha do cenáculo tinha dez dedos e sabia contar melhor do que qualquer dos seus hóspedes. Ali se realizavam as saturnais secretas da literatura e da arte, misturadas com a política e a finança. Ali o desejo reinava soberanamente; ali o spleen e a fantasia eram sagrados como o são em casa de um burguês a honra e a virtude. Frequentavam a casa Blondet, Finot,[482] Estevão Lousteau,[483] seu sétimo amante e que julgavam ter sido o primeiro, Feliciano Vernou,[484] o folhetinista. Couture,[485] Bixiou,[486] antigamente Rastignac, Cláudio Vignon,[487] o crítico, Nucingen, o banqueiro du Tillet, Conti, o compositor,[488] enfim a legião endiabrada dos mais ferozes calculistas em qualquer gênero; por fim, amigos das cantoras, das dançarinas e das atrizes que conheciam Florina. Toda essa gente se odiava ou se queria segundo as circunstâncias. Essa casa banal, onde para se ser recebido bastava ser-se célebre, era como que o alcouce do espírito, as galés da inteligência; nela não se penetrava sem se haver legalmente abocanhado a fortuna, passado dez anos de miséria, enforcado duas ou três paixões, adquirido uma celebridade qualquer, seja por livros ou por coletes, por um drama ou por uma bela carruagem; nelas combinavam as tratantadas a fazer, se investigavam os meios de adquirir fortuna, zombava-se dos sarilhos provocados na véspera, avaliava-se a alta e a baixa. Cada homem, ao sair, reenvergava a libré de sua opinião; podia, sem se comprometer, criticar seu próprio partido, reconhecer a ciência e os bons lances dos adversários, formular os pensamentos que ninguém confessa, enfim, dizer tudo, como gente que é capaz de fazer tudo. Paris é o único lugar do mundo onde existem dessas casas ecléticas, nas quais todos os gostos, todos os vícios, todas as opiniões são recebidos como uma indumentária decente. Também não é certo ainda que Florina seja sempre uma comediante de segunda categoria. De resto a vida de Florina não é uma vida ociosa, nem uma vida invejável. Muita gente, seduzida pelo magnífico pedestal que o teatro proporciona a uma mulher, a supõe entregue à alegria de um perpétuo Carnaval. No fundo de muito cubículo de porteiro, sob os telhados de mais de uma mansarda, pobres criaturas sonham, à volta do espetáculo, com pérolas e diamantes, com vestidos debruados de ouro e cintos suntuosos, veem-se com cabeleiras iluminadas, supõem-se aplaudidas, compradas, adoradas, raptadas; mas todas ignoram as realidades dessa vida de cavalo de picadeiro, na qual a atriz é submetida a ensaios sob pena de multa, à leitura de peças, a constantes estudos de novos papéis, numa época em que se representam duzentas a trezentas obras por ano, em Paris. Durante cada representação Florina muda duas ou três vezes de vestido, e muitas vezes volta ao seu camarim semimorta de cansaço. É então obrigada a tirar, à força de cosméticos, seu rouge ou o branco, de se desempoar se representou um papel do século xviii. Mal e mal tem tempo para jantar.

Quando uma atriz representa, não pode nem apertar o colete, nem comer, nem falar. Florina tampouco tem tempo para cear. À volta dessas representações que, agora, terminam no dia seguinte, não tem ela de preparar sua toilette da noite e ordens a dar? Deitando-se a uma ou duas horas da manhã, tem de se levantar muito cedo para recordar seus papéis, encomendar os vestidos, explicá-los, prová-los, depois almoçar, ler as cartas amorosas, respondê-las, trabalhar com os empresários de aplausos para bem preparar suas entradas e saídas, saldar as contas dos triunfos do mês passado, comprando por atacado os do mês corrente. No tempo de são Genésio,[489] comediante canonizado, que cumpria seus deveres religiosos e usava cilício, é de crer que o teatro não exigia essa feroz atividade. Muitas vezes, para poder ir colher, burguesmente, flores no campo, Florina tinha de dar parte de doente. Essas ocupações, puramente mecânicas, nada eram, comparadas com as intrigas a que se via forçada, com os pesares da vaidade ferida, com as preferências dadas pelos autores, com as malícias de uma rival, com as impertinências dos diretores, dos jornalistas, e que exigem um outro dia dentro do dia. Até aqui ainda não se tratou da arte, da expressão das paixões, dos detalhes da mímica, das exigências da cena, onde mil binóculos descobrem as falhas de qualquer esplendor, e que açambarcavam a vida e o pensamento de Talma, de Lekain, de Baron, de Contat, de Clairon, de Champmeslé.[490] Nesses bastidores infernais o amor-próprio não tem sexo; o artista que triunfa, seja ele homem ou mulher, tem contra si os homens e as mulheres. Quanto à fortuna, por mais consideráveis que fossem os contratos de Florina, não davam para cobrir as despesas das toilettes para o teatro, as quais, além dos vestidos, exigem enorme quantidade de luvas compridas, de sapatos, e não excluem nem a toilette da noite nem a de passeio. A terça parte dessa vida passa-se a mendigar, a outra a se sustentar e a última a se defender; tudo é trabalho. Se nela a felicidade é ardentemente saboreada, é por ser como que furtada, rara, muito tempo esperada, encontrada por acaso entre detestáveis prazeres impostos e sorrisos para a plateia. Para Florina, o poder de Raul era como que um cetro protetor; ele lhe poupava muitos incômodos, muitas preocupações, como nos tempos passados os grão-senhores o faziam para as suas amantes, como fazem hoje alguns velhos, que vão em busca dos jornalistas quando uma palavra num jornaleco lhes assustou o ídolo; ela queria-lhe mais do que a um amante; queria-lhe como a um apoio, cuidava-o como a um pai, enganava-o como a um marido; mas era capaz de lhe sacrificar tudo. Raul tudo podia para a sua vaidade de artista, para a tranquilidade de seu amor-próprio, para o seu futuro no teatro. Sem a intervenção de um grande autor, não há grande atriz; a Racine deve-se a Champmeslé,[491] da mesma forma que a Monvel[492] e a Andrieux[493] se deve Mars.[494] Florina nada podia em benefício de Raul, e bem quisera ela ser-lhe útil ou necessária. Contava com os atrativos do hábito, estava sempre pronta a abrir seus salões, a ostentar o luxo de sua mesa para os projetos e para os amigos dele. Aspirava, finalmente, a ser para ele o que madame Pompadour fora para Luís xv. As atrizes invejavam a posição de Florina, da mesma forma que os jornalistas invejavam a de Raul.

Agora, aqueles para quem a tendência do espírito humano para as oposições e os contrários é conhecida, conceberão bem que, após dez anos dessa vida desordenada, boêmia, cheia de altos e baixos, de festas e sequestros, de sobriedades e de orgias, Raul fosse arrastado para um amor casto e puro, para a casa sossegada e harmoniosa de uma grande dama da mesma forma que a condessa Félix desejava introduzir as tormentas da paixão na sua vida monótona, à força de felicidade. Essa lei da vida é a de todas as artes que só existem pelo contraste. A obra feita sem esse recurso é a última expressão do gênio, como o claustro é o maior esforço do cristão.

Ao voltar para casa, Raul encontrou um bilhete de Florina trazido pela camareira, mas que o sono invencível não lhe permitiu ler; deitou-se nas recentes delícias do suave amor que lhe fazia falta na vida. Algumas horas depois, leu naquela carta notícias importantes, que nem Rastignac nem de Marsay tinham deixado transpirar. Por uma indiscrição, a atriz viera a saber da dissolução da Câmara após a sessão. Raul foi em seguida à casa de Florina e mandou chamar Blondet. No boudoir da comediante, Emílio e Raul, com os pés na grelha da lareira, analisaram a situação política da França em 1834. De que lado estariam as melhores probabilidades de êxito? Passaram em revista os republicanos puros, os republicanos presidenciais, os republicanos sem república, os constitucionais sem dinastia, os constitucionais dinásticos, os ministeriais conservadores, os ministeriais absolutistas; depois a Direita disposta a concessões, a Direita aristocrática, a Direita legitimista, a henriquinquinista e a Direita carlista.[495] Quanto ao partido da Resistência e ao do Movimento, não havia que hesitar: seria o mesmo que discutir a vida ou a morte.

Nessa época uma porção de jornais, criados para cada matiz, acusava a espantosa confusão política, chamada gâchis por um soldado. Blondet, o mais judicioso espírito desse tempo, mais judicioso para os outros, nunca para ele, semelhante a esses advogados que resolvem mal seus próprios negócios, era sublime nessas discussões privadas. Aconselhou pois a Nathan que não apostasse bruscamente.

— Napoleão já o disse, não se fazem jovens repúblicas com velhas monarquias. Assim pois, meu caro, torna-te o herói, o apoio, o criador do centro esquerdo da futura Câmara, e triunfarás na política. Uma vez admitido, uma vez no governo, a gente é o que quer ser, é-se de todas as opiniões vencedoras.

Nathan resolveu criar um jornal político cotidiano, de ser nele senhor absoluto, de ligar a esse jornal uma das pequenas folhas que pululam na imprensa e de estabelecer relações com uma revista. A imprensa tinha sido a origem de tantas fortunas em torno dele que Nathan não ouviu a opinião de Blondet, que lhe aconselhava não se fiasse naquilo. Blondet fez-lhe ver que o negócio era mau, tal o número de jornais que se disputavam os assinantes, e por estar a imprensa tão gasta. Raul, confiado nas suas pretensas amizadese na sua coragem, atirou-se cheio de audácia, levantou-se num gesto orgulhoso e disse:

— Triunfarei!

— Não tens vintém!

— Farei um drama!

— Ele cairá!

— Pois seja! Que caia! — disse Nathan.

Percorreu o apartamento de Florina, acompanhado por Blondet, que o julgava louco; depois, com olhar ávido, contemplou as riquezas que ali estavam reunidas. Blondet, então, compreendeu-o.

— Há aqui cento e muitos mil francos — disse Blondet.

— Sim — disse Raul, dando um suspiro diante do suntuoso leito de Florina —, mas eu preferiria ser para o resto da vida vendedor de correntes de segurança no bulevar e viver de batatas fritas a vender uma patera deste apartamento.

— Não uma patera — disse Blondet —, mas tudo! A ambição é como a morte, deve pôr sua mão em tudo, sabe que a vida a esporeia.

— Não! Cem vezes não! Tudo aceitaria da condessa de ontem, mas privar Florina da sua concha!...

— Derrubar seu palácio da moeda — disse Blondet com ar trágico —, quebrar o fiel da balança, partir a cunha, é grave.

— Segundo o que compreendi, vai fazer política em vez de fazer teatro — disse-lhe Florina, surgindo subitamente.

— Sim, minha filha — disse Raul num tom bondoso, segurando-a pelo pescoço e beijando-a na fronte. — Estás fazendo beicinho? Perderás com isso? Não fará o ministro mais do que o jornalista para que a rainha do palco obtenha melhores contratos? Não terás papéis e suetos?

— E onde irás buscar dinheiro? — perguntou ela.

— Com meu tio — disse Raul.

Florina conhecia o tio de Raul. Essa palavra simbolizava a usura, da mesma forma que na linguagem popular minha tia significa empréstimo sob penhor.

— Não te preocupes, minha joia — disse Blondet a Florina dando-lhe umas palmadinhas no ombro —, eu conseguirei para ele a assistência de Massol,[496] um advogado que, como todos os advogados, quer ser guarda dos selos algum dia; de du Tillet, que quer ser deputado; de Finot, que ainda se acha por trás de um jornaleco; de Plantin, que quer ser referendário e que patinha numa revista. Sim, eu o salvarei dele mesmo; convocaremos aqui Estêvão Lousteau, que escreverá ao folhetim; Cláudio Vignou, que fará a alta crítica; Feliciano Vernou será a arrumadeira de casa do jornal; o advogado trabalhará; du Tillet se ocupará da Bolsa e da Indústria, e veremos aonde irão todas essas vontades e esses escravos reunidos.

— Ao hospital ou ao ministério, que são os lugares aonde vão ter as pessoas arruinadas de corpo ou de espírito — disse Raul.

— Quando pretendes banqueteá-los?

— Daqui a cinco dias, aqui mesmo — disse Raul.

— Tu me avisarás da quantia que é preciso — pediu Florina com toda a simplicidade.

— Mas o advogado, mas du Tillet e Raul não se podem embarcar sem ter, cada um, um cento de mil francos — disse Blondet. — O jornal seguirá bem assim durante uns dezoito meses, tempo preciso para se firmar ou cair em Paris.

Florina fez um pequeno trejeito de aprovação. Os dois amigos subiram num cabriolé para recrutar os convivas, as penas, as ideias e os interesses. A bela atriz, essa mandou chamar quatro ricos negociantes de móveis, de curiosidades, de quadros e de joias. Esses homens entraram naquele santuário e fizeram um inventário de tudo, como se Florina tivesse morrido. Ela os ameaçou com uma venda pública, caso eles fechassem a consciência à espera de melhor ocasião. Acabara, segundo disse, de agradar a um lord inglês, num papel da Idade Média, e queria colocar toda a sua fortuna mobiliária, para ter o ar de pobre e se fazer dar um magnífico palacete que mobiliaria de modo a rivalizar com Rostchild. Por mais que ela fizesse para embaí-los, eles não deram senão setenta mil francos por aquele espólio que valia cento e cinquenta mil. Florina, que não daria por aquilo nem dois soldos, prometeu entregar tudo daí a sete dias por oitenta mil francos. — É pegar ou deixar — disse ela. Ficou fechado o negócio. Quando os compadres saíram, a atriz deu pulos de contente como as colinas do rei Davi.[497] Disse mil loucuras, pois não julgava ser tão rica. Quando Raul chegou, fingiu-se de zangada com ele. Disse que estava abandonada, que tinha refletido; que os homens não pulavam de um partido para outro, nem do teatro para a Câmara, sem motivos; que tinha uma rival! O que é instinto! Fez com que ele lhe jurasse um amor eterno! Cinco dias depois deu o mais esplêndido banquete deste mundo. O jornal foi batizado em casa dela, com torrentes de vinho e de pilhérias, de compromissos de fidelidade, de bom companheirismo e camaradagem séria. O nome, hoje esquecido, como o Liberal, o Municipal, o Departamental, o Guarda Nacional, o Federal, o Imparcial, foi qualquer coisa em al que deve ter sentado muito mal. Após as numerosas descrições de orgias que assinalaram essa fase literária, durante a qual tão poucas orgias foram feitas nas mansardas onde as descreveram, é difícil poder descrever a de Florina. Uma palavra somente. Às três da madrugada, Florina pôde despir-se e deitar-se como se estivesse sozinha, embora ninguém tivesse saído. Aqueles luzeiros da época dormiam como animais. Quando, de manhã muito cedo, os enfardadores, os comissionistas e os carregadores vieram transportar todo o luxo da célebre atriz, ela pôs-se a rir ao vê-los pegando aquelas ilustrações como se fossem móveis pesados e colocando-as em cima dos embrulhos.

Assim se foram aquelas belas coisas. Florina desterrou todas as suas recordações para a casa dos negociantes, onde ninguém, ao passar, podia, pelo seu aspecto, saber nem onde nem como aquelas flores de luxo haviam sido pagas. Por convenção deixaram, até à noite, a Florina suas coisas reservadas: o leito, a mesa, a louça para que pudesse dar almoço aos seus hóspedes. Depois de terem adormecido sob as cortinas elegantes da riqueza, os belos espíritos despertaram entre as paredes frias e despidas da miséria, cheias de buracos de pregos, desonradas pelas estranhezas discordantes que se encontram sob as tapeçarias como cordéis por trás das decorações da Ópera.

— Ora vejam, a pobre Florina foi penhorada — exclamou Bixiou, um dos convivas. — Mãos ao bolso! Uma subscrição!

Ao ouvir essas palavras a assembleia pôs-se de pé. Todos os bolsos esvaziados produziram trinta e sete francos, que Raul zombeteiramente entregou à galhofeira dama. A feliz cortesã soergueu a cabeça do travesseiro e mostrou sob os lençóis um maço de notas de banco, grosso como os do tempo em que os travesseiros das cortesãs podiam render tanto, um ano pelo outro. Raul chamou Blondet.

— Compreendi — disse Blondet. — A velhaca fez-se executar sem nada nos dizer. Bem, meu anjinho!

Aquele gesto fez com que os amigos que ainda ali estavam carregassem a atriz em triunfo e seminua até a sala de jantar. O advogado e os banqueiros tinham ido embora. À noite, no teatro, Florina teve um sucesso atroador. A notícia de seu sacrifício circulara pela sala.

— Eu preferia ser aplaudida pelo meu talento — disse-lhe a rival, nos bastidores.

— É um desejo bem natural numa artista que ainda é aplaudida somente por seus favores — respondeu Florina.

Durante a noite, a criada de quarto de Florina instalara-a na travessa Sandrié, no apartamento de Raul. O jornalista foi acampar na casa onde se abriram os escritórios do jornal.

Tal era a rival da cândida sra. Félix de Vandenesse. A fantasia de Raul unia como que com um anel a comediante à condessa; nó horrível que uma duquesa cortou, no reinado de Luís xv, mandando envenenar a Lecouvreur,[498] vingança muito concebível quando se pensa na grandeza da ofensa.

VI – O AMOR ÀS VOLTAS COM O MUNDO

Florina não atrapalhou os começos da paixão de Raul. Previu dificuldades monetárias na difícil empresa em que ele se metera e quis uma licença de seis meses. Raul tramitou vivamente a negociação e conseguiu a licença, o que o tornou ainda mais querido da atriz. Com o bom senso do camponês da fábula de La Fontaine,[499] que assegura o jantar enquanto os fidalgos conversam, a atriz foi cortar lenha na província e no estrangeiro para manter o homem célebre enquanto ele procurava caçar o poder.

Até agora poucos pintores abordaram o quadro do amor como ele é nas altas esferas sociais, cheio de grandezas e de misérias secretas, terrível nos seus desejos reprimidos pelos mais tolos e mais vulgares acidentes, roto muitas vezes pela lassidão. É possível que aqui o vejam por alguma abertura. Desde o dia seguinte ao baile dado por lady Dudley, sem ter feito ou recebido a mais tímida declaração, Maria julgava-se amada por Nathan, de acordo com o programa de seus sonhos, e Raul sabia ter sido escolhido para amante de Maria. Embora nem um nem outro tivessem chegado a esse declínio no qual homens e mulheres abreviam as preliminares, ambos foram rapidamente ao alvo. Raul, farto de gozos, tendia para o mundo ideal; ao passo que Maria, para quem a ideia de uma falta nem por sombras lhe vinha ao espírito, não imaginava que os pudesse sentir.

Desse modo, nenhum amor foi de fato mais inocente e mais puro que o amor de Raul e de Maria; mas nenhum, em imaginação, foi mais arrebatado nem mais delicioso. A condessa fora empolgada por ideias dignas do tempo da cavalaria, mas completamente modernizadas. No espírito de seu papel, a repugnância do marido por Nathan não era mais obstáculo para o seu amor. Quanto menos estima merecesse Raul, tanto maior ela seria. A conversação inflamada do poeta tivera mais repercussão no seu seio do que no seu coração. A Caridade se despertara à voz do Desejo. Essa rainha das virtudes sancionou quase, aos olhos da condessa, as emoções, os prazeres, a ação violenta do amor. Maria achou belo ser uma providência humana para Raul. Que pensamento suave! Sustentar com sua branca e fraca mão aquele colosso, no qual não queria ver pés de argila, pôr vida onde esta faltava, ser secretamente a criadora de uma grande carreira, auxiliar um homem de gênio a lutar contra a sorte e domá-la, bordar-lhe sua faixa para o torneio, dar-lhe arras, dar-lhe o amuleto contra os sortilégios e o bálsamo para os ferimentos! Numa mulher educada como Maria, religiosa e nobre como ela, o amor tinha de ser uma caridade voluptuosa. Daí a razão de sua audácia. Os sentimentos puros se comprometem com um desdém soberbo que se assemelha ao impudor das cortesãs. Assim que, por uma distinção capciosa, ela teve certeza de não atentar contra a fé conjugal, a condessa se atirou plenamente no prazer de amar Raul.

As menores coisas da vida pareceram-lhe, então, encantadoras. Fez do seu boudoir, onde agora pensava nele, um santuário. Até mesmo sua escrivaninha lhe despertava na alma os mil prazeres da correspondência; ia ter cartas para ler, para esconder, para responder. A toilette, essa magnífica poesia da vida feminina, por ela esgotada ou desleixada, reapareceu dotada de uma mágica que até então não fora percebida. Tornou-se repentinamente para ela o que é para todas as mulheres, uma manifestação constante do pensamento íntimo, uma linguagem, um símbolo. Quantos gozos nos adornos meditados para lhe agradar, para homenageá-lo! Muito ingenuamente entregou-se a essas adoráveis ninharias que enchem a vida das parisienses e que dão amplos significados a tudo o que se vê em casa delas, nelas, sobre elas. Muito poucas mulheres vão às lojas de sedas, à casa da modista, aos grandes costureiros exclusivamente pelo seu próprio interesse. Quando velhas, não mais pensam em se enfeitarem. Quando, ao passardes, virdes uma pessoa parada durante um momento ante o vidro de um mostruário, examinai-a bem: “Achar-me-á ele melhor com isto?” é uma frase escrita na fronte iluminada, nos olhos brilhantes de esperança, no sorriso que brinca nos lábios.

O baile de lady Dudley realizara-se numa noite de sábado; na segunda-feira a condessa foi à Ópera, impelida pela certeza de lá ver Raul. Este efetivamente lá estava de pé, firme, numa das escadas que descem para as poltronas da plateia. Baixou os olhos quando a condessa entrou no seu camarote. Com que delícia a sra. de Vandenesse notou o cuidado desusado que o seu amante empregara com o seu vestuário! Aquele contemptor das leis da elegância apresentava a cabeleira bem penteada, na qual os perfumes reluziam nos mil contornos dos cachos: o colete obedecia à moda, a gravata estava bem atada, a camisa tinha pregas irrepreensíveis. Sob as luas amarelas, de acordo com os preceitos em vigor, as mãos pareceram-lhe muito alvas. Raul estava de braços cruzados sobre o peito, como se estivesse em pose para um retrato magnífico de indiferença para toda a sala, cheio de impaciência mal contida. Embora abaixados, seus olhos pareciam virados para o apoio de veludo vermelho sobre o qual repousava o braço de Maria. Félix, sentado no outro canto do camarote, dava então as costas a Nathan. A espirituosa condessa colocara-se de modo a poder fitar a coluna contra a qual se apoiava Raul. Num momento, pois, Maria fizera com que aquele homem de espírito abjurasse seu cinismo em matéria de vestuário. Tanto a mais vulgar como a mais elevada mulher embriaga-se ao ver a primeira proclamação de seu poder em alguma dessas metamorfoses. Toda transformação é uma confissão de cativeiro. — Elas tinham razão, há muita felicidade em ser compreendida — disse ela, referindo-se às suas detestáveis mestras. Após terem os dois amantes examinado a sala com uma dessas rápidas miradas que tudo veem, trocaram um olhar de inteligência. Quer para um, quer para outro, foi como se um orvalho celestial lhes tivesse refrescado o coração abrasado pela espera. “Faz uma hora que estou no inferno, e agora o céu se entreabre”, diziam os olhos de Raul. “Eu sabia que estavas aí, mas não sou livre”, diziam os olhos da condessa. Os ladrões, os espiões, os amantes, os diplomatas, enfim, todos os escravos, só eles conhecem os recursos e os gozos da vista. Somente eles sabem tudo o que há de inteligência, de doçura, de espírito, de ira, de perversidade nas modificações dessa luz carregada de alma. Raul sentiu seu amor corcovear sob a espora da necessidade, mas aumentando à vista dos obstáculos. Entre o degrau no qual estava e o camarote da condessa Félix de Vandenesse havia uma distância de apenas trinta pés e era impossível anular aquele intervalo. Para um homem cheio de ardor, e que até então pouca distância encontrara entre um desejo e o prazer, aquele abismo de pé firme, mas instransponível, inspirava-lhe o desejo de pular até a condessa com um salto de tigre. Num paroxismo de raiva, procurou tatear o terreno. Saudou visivelmente a condessa, a qual respondeu com uma dessas leves inclinações de cabeça cheias de desprezo, com as quais as mulheres tiram aos seus adoradores a vontade de recomeçar. O conde Félix virou-se para ver quem se dirigira à sua esposa; viu Nathan, não o cumprimentou, parecendo pedir-lhe satisfação por sua audácia, e virou-se lentamente dizendo alguma frase pela qual aprovava sem dúvida o falso desdém da condessa. A porta do camarote estava evidentemente fechada para Nathan, que lançou para Félix um olhar terrível. Esse olhar, todos o teriam interpretado com uma das frases de Florina. — O que és tu? Em breve não poderás mais botar o chapéu! — A sra. d’Espard, uma das mais impertinentes mulheres daquele tempo, tudo vira do seu camarote; ergueu a voz dizendo algum insignificante “bravo”. Raul, por sobre a qual ele se achava, acabou por voltar-se; saudou-a e recebeu dela um gracioso sorriso que parecia tão bem dizer-lhe: “Se o recusam ali, venha aqui!”, que Raul deixou a sua coluna e foi fazer-lhe uma visita. Ele tinha necessidade de se mostrar ali para ensinar àquele senhorzinho de Vandenesse que a celebridade vale tanto quanto a nobreza e que diante de Nathan todas as portas armoriadas giravam nos seus gonzos. A marquesa obrigou-o a sentar-se diante dela, na frente do camarote. Queria fazê-lo falar.

— A sra. Félix de Vandenesse está encantadora esta noite — disse-lhe ela, cumprimentando-o por aquela toilette como por um livro que ele tivesse publicado na véspera.

— Sim — disse Raul com indiferença —, os marabus sentam-lhe a matar; ela, porém, lhes é muito fiel, pois já os trazia anteontem — acrescentou com ar desprendido, como para repudiar com aquela crítica a sedutora cumplicidade da marquesa.

— Conhece o provérbio? — perguntou ela. — Não há boa festa sem continuação.

Nos torneios de ditos maliciosos, as celebridades literárias nem sempre são tão exímias quanto as marquesas. Raul achou melhor fazer-se de tolo, último recurso das pessoas de espírito.

— O provérbio é verdadeiro para mim — disse ele olhando para a marquesa com ar galante.

— Seu dito, meu caro, chega demasiado tarde para que eu o aceite — replicou ela rindo. — Não seja tão dissimulado; vamos, o senhor ontem de madrugada, no baile, achou a sra. de Vandenesse deliciosa com os marabus; ela sabe disso e tornou a usá-los para o senhor. Ela o ama, o senhor adora-a; é um tanto rápido, mas nada vejo aí que não seja perfeitamente natural. Se eu estivesse enganada, o senhor não estaria aí, a torcer uma das suas luvas, como um homem que está raivoso por estar a meu lado, em vez de se achar no camarote do seu ídolo, do qual acaba de ser repelido por um desdém oficial, e de se ouvir dizer baixinho o que desejaria ouvir dizer em voz bem alta.

Raul efetivamente amassava uma das luvas, deixando ver uma mão admiravelmente alva.

— Ela obteve do senhor — disse a marquesa, olhando fixamente aquela mão do modo mais impertinente — sacrifícios que o meu amigo não fazia para a sociedade. Ela deve estar encantada com o triunfo e vai ficar com certeza um pouco vaidosa, mas eu, no lugar dela, ainda ficaria mais. Ela era somente mulher de espírito, vai passar a ser mulher de gênio. O senhor nos vai pintar seu retrato num desses deliciosos livros que sabe escrever. Meu caro, não esqueça Vandenesse no seu livro, faça isso por mim. Francamente, ele se mostra demasiado seguro de si mesmo. Eu não deixaria de mencionar esse ar radiante do Júpiter olímpico, o único deus mitológico preservado, segundo dizem, de qualquer acidente.

— Senhora — exclamou Raul —, a senhora me atribui uma alma bastante vil se me supõe capaz de traficar com as minhas sensações e com o meu amor. A essa baixeza literária, eu preferiria o hábito inglês de pôr uma corda no pescoço de uma mulher e de a levar ao mercado.

— Mas eu conheço Maria, ela lho pedirá.

— Ela é incapaz disso — assegurou Raul calorosamente. — Conhece-a então bem?

Nathan pôs-se a rir de si mesmo, dele, fazedor de cenas, que se deixava apanhar num jogo de cena.

— A comédia não está ali — disse ele mostrando o palco —, ela está aqui.

Pegou no binóculo e pôs-se a examinar a sala para disfarçar.

— Está aborrecido comigo? — disse a marquesa, olhando-o de esguelha. — De qualquer forma não viria eu a conhecer seu segredo? Nós nos reconciliaremos facilmente. Vá à minha casa, eu recebo todas as quartas; a querida condessa não faltará a nenhuma recepção, assim que souber que o senhor está lá. Eu lucrarei. Vejo-a algumas vezes entre quatro e cinco horas; eu serei boa amiga, vou incluí-lo no pequeno grupo de favoritos que admito a essa hora.

— Pois bem! — disse Raul. — Veja como é o mundo, diziam que a senhora era má.

— Eu! — disse ela —, sou-o oportunamente. Não é necessário a gente defender-se? Mas, quanto à sua condessa, adoro-a; o senhor me vai agradecer, ela é encantadora. O senhor vai ser o primeiro cujo nome será gravado no coração dela com essa alegria infantil que faz com que todos os namorados, até mesmo os cabos de esquadra, gravem suas iniciais na casca das árvores. O primeiro amor de uma mulher é um fruto delicioso. Mais tarde, há ciência nos nossos carinhos, nas nossas atenções. Uma mulher velha como eu pode dizer tudo, ela nada mais teme, nem mesmo um jornalista. Pois bem, no outono nós sabemos fazê-los felizes; mas quando começamos a amar, nós é que somos felizes e lhes damos assim mil satisfações de orgulho. Em nós, então, tudo é encantadoramente inesperado, o coração é todo ingenuidade. O senhor é demasiado poeta para não preferir as flores aos frutos. Espero-o daqui a seis meses.

Raul, como todos os criminosos, entrou no sistema das denegações; isso, porém, era dar armas àquele rude adversário. Prontamente enleado nos nós corredios da mais espirituosa, da mais perigosa palestra em que são incomparáveis as parisienses, ele teve receio de se deixar arrancar confissões que a marquesa em seguida exploraria nos seus motejos, por isso retirou-se prudentemente ao ver entrar lady Dudley.

— E então? — disse a inglesa à sra. d’Espard. — Em que ponto estão?

— Amam-se loucamente. Nathan acaba de dizer-mo.

— Gostaria que ele fosse mais feio — respondeu lady Dudley, que dirigiu ao conde Félix um olhar de víbora. — Aliás, ele é justamente o que eu queria que ele fosse, o filho de um adelo judeu, que morreu falido nos primeiros dias do casamento; mas a mãe era católica, infelizmente fez dele um cristão.

Aquela origem que Nathan ocultava cuidadosamente, lady Dudley acabava de descobri-la, e gozava de antemão o prazer de daí tirar algum terrível epigrama contra Vandenesse.

— E eu que acabo de convidá-lo para ir à minha casa! — disse a marquesa.

— Não o recebi eu ontem? — respondeu lady Dudley. — Que quer, meu anjo, há prazeres que nos custam caríssimo.

A notícia da mútua paixão de Raul e da sra. de Vandenesse circulou, essa noite, pela sociedade, não sem provocar reclamações e incredulidades, mas a condessa foi defendida pelas suas amigas, lady Dudley e as sras. d’Espard e de Manerville, com um calor desastrado, que conseguiu dar crédito àquele murmúrio. Vencido pela necessidade, Raul foi na quarta-feira à tarde à casa da marquesa d’Espard, encontrando-se lá com a boa sociedade que a frequentava. Como Félix não acompanhou a esposa, Raul pôde trocar algumas palavras com Maria, palavras mais expressivas pelo tom de que pelas ideias. A condessa, alertada contra a maledicência pela sra. Otávio de Camps, compreendera a importância de sua situação frente à sociedade e fez com que Raul o compreendesse.

No meio daquela bela assembleia, um e outro tiveram, pois, como único prazer essas sensações tão profundamente saboreadas, fornecidas pelas ideias, pela voz, pelos gestos e atitudes da criatura amada. A alma agarra-se violentamente a nadas. Às vezes os olhos de um e outro fixam-se sobre o mesmo objeto, incrustando nele, por assim dizer, um pensamento que foi tomado, retomado e interpretado. Durante uma conversação admira-se um pé largamente avançado, a mão que palpita, os dedos ocupados com uma joia na qual batem, que soltam e atormentam de modo significativo. Não são mais as ideias nem a linguagem que falam, e sim as coisas; falam tanto que muitas vezes um homem apaixonado deixa a outros o cuidado de levar uma chávena, o açucareiro para o chá, não importa que a mulher a quem ele ama pede, pelo medo de deixar transparecer sua perturbação para olhos que parecem nada ver, mas que veem tudo. Miríades de desejos, de anseios insensatos, pensamentos violentos passam abafados nos olhares. Aí, os apertos de mão furtados aos mil olhos de Argos adquirem a eloquência de uma longa carta e a volúpia de um beijo. O amor cresce então com tudo o que se recusa, apoia-se em todos os obstáculos para se engrandecer. Enfim, essas barreiras mais vezes amaldiçoadas do que transpostas são picadas e atiradas ao fogo para mantê-lo. Aí as mulheres podem medir a extensão de seu poder, na pequenez que alcança um imenso amor que se enovela sobre si mesmo, se oculta num olhar perturbado, sem uma contração nervosa, por trás de uma fórmula banal de polidez. Quantas vezes, no último degrau de uma escada, não se recompensam com uma única palavra os tormentos ignorados, a linguagem insignificante de toda uma noite? Raul, homem pouco preocupado com a sociedade, transvazou sua ira no discurso e foi cintilante. Todos ouviram os rugidos inspirados pela contrariedade que os artistas tão pouco sabem suportar. Aquele furor à Orlando,[500] aquele espírito que quebrava, despedaçava tudo, servindo-se do epigrama como de uma clava, embriagou Maria e divertiu a roda como se tivessem visto um touro farpado de bandarilhas, enfurecido num circo espanhol.

— Podes quanto quiseres derrubar tudo, não farás a solidão em torno de ti — disse-lhe Blondet.

Essas palavras restituíram a Raul sua presença de espírito, fazendo com que não mais desse sua irritação em espetáculo. A marquesa veio oferecer-lhe uma chávena de chá e disse em voz bastante alta para que a sra. de Vandenesse ouvisse:

— O senhor é realmente muito divertido, queira ter a gentileza de me vir visitar algumas vezes às quatro horas.

Raul ofendeu-se com o termo “divertido”, embora tivesse ele servido de passaporte para o convite. Pôs-se a escutar, como esses atores que olham a plateia em vez de estarem em cena. Blondet teve pena dele.

— Meu caro — disse-lhe, levando-o para um canto —, tu te portas na alta-roda como se estivesses em casa de Florina. Aqui, nunca ninguém se exalta, não se fazem artigos longos, de quando em quando se diz uma frase de espírito, afeta-se um ar calmo no momento em que se sente o mais forte desejo de atirar as pessoas pela janela, zomba-se com doçura, finge-se distinguir a mulher a quem se adora e ninguém se rebolca como um asno no meio da estrada. Aqui, meu caro, ama-se segundo a fórmula. Ou bem raptes a sra. de Vandenesse ou então mostra-te como um gentil-homem. És bem o amante de um dos teus livros.

Nathan ouvia de cabeça baixa, estava como um leão aprisionado em redes.

— Não boto mais os pés aqui — disse ele. — Essa marquesa de papelão vende-me seu chá demasiado caro. Acha-me divertido! Agora compreendo por que Saint-Just[501] guilhotinava toda essa gente.

— Amanhã estarás aqui de novo.

Blondet acertara. As paixões são tão covardes quanto cruéis. No dia seguinte, depois de muito flutuar entre: Irei — não irei, Raul deixou seus associados no meio de uma discussão importante e correu para o Faubourg Saint-Honoré, à casa da marquesa d’Espard. Ao ver entrar o brilhante cabriolé de Rastignac, enquanto ele, Raul, na porta, pagava a seu cocheiro, sua vaidade sentiu-se ferida; resolveu ter um cabriolé elegante e o competente moço. A equipagem da condessa estava no pátio. Àquela vista, o coração de Raul dilatou-se de contentamento. Maria, sob a pressão dos seus desejos, marchava com a regularidade de um ponteiro de relógio, movido por sua corda. Ela estava no canto da lareira, no salão pequeno, reclinada numa poltrona. Em vez de olhar para Nathan, quando ele foi anunciado, ela o contemplou pelo espelho, pela certeza que tinha de que a dona da casa se viraria para ele. Perseguido na sociedade, como se vê, o amor é forçado a recorrer a esses pequeninos ardis; dá vida aos espelhos, aos regalos, aos leques, a uma porção de coisas, cuja utilidade não é demonstrável à primeira vista e que muitas mulheres usam sem delas se servirem.

— O senhor ministro — disse a sra. d’Espard dirigindo-se a Nathan e apresentando-lhe de Marsay — sustentava, no momento em que o senhor entrou, que os monarquistas e os republicanos se entendiam; o senhor deve saber alguma coisa a respeito.

— E, se assim fosse — disse Raul —, onde estaria o mal? Odiamos o mesmo objeto, estamos de acordo no nosso ódio; diferimos no nosso amor, eis tudo.

— Essa aliança, pelo menos, é estranha — disse de Marsay envolvendo num olhar a condessa Félix e Raul.

— Ela não durará — disse Rastignac, que pensava demasiado em política, como todos os neófitos.

— Que diz a isso, querida amiga? — perguntou a sra. d’Espard à condessa.

— Nada entendo de política.

— A senhora se envolverá — disse de Marsay —, e será então nossa inimiga duplamente.

Nathan e Maria só compreenderam o dito depois de Marsay sair. Rastignac acompanhou-o e a sra. d’Espard levou-os até a porta do primeiro salão. Os dois amantes não pensaram mais nos epigramas do ministro, pois se viam senhores de alguns minutos. Maria estendeu com vivacidade a mão, da qual retirara a luva, a Raul, o qual a tomou e beijou como se tivesse apenas dezoito anos. Os olhos da condessa exprimiam uma tão nobre e completa ternura que Raul sentiu assomar-lhe aos olhos essa lágrima que os homens de temperamento nervoso têm sempre em reserva para servi-los.

— Onde vê-la, onde poder falar-lhe? — disse ele. — Eu morreria se tivesse sempre de disfarçar minha voz, meu olhar, meu coração, meu amor.

Comovida com aquela lágrima, Maria prometeu dar um passeio no Bois todas as vezes que o tempo não estivesse impossível. Essa promessa deu mais felicidade a Raul do que a que Florina lhe houvesse dado em cinco anos.

— Tenho tanta coisa para lhe dizer! Sofro tanto com o silêncio a que somos condenados.

A condessa olhava-o inebriada, sem poder responder-lhe, quando a marquesa voltou.

— Como, não soube dar uma resposta a de Marsay? — disse ela ao entrar.

— Devem-se respeitar os mortos — respondeu Raul. — Não vê que ele está a expirar? Rastignac é seu enfermeiro e tem esperança de figurar no testamento.

A condessa fingiu ter visitas a fazer e quis sair para não se comprometer. Raul, por aquele quarto de hora, sacrificou seu mais precioso tempo e seus mais palpitantes interesses. Maria ignorava ainda as minúcias daquela vida de pássaro pousado no galho, misturada com os mais complicados negócios e o mais exigente trabalho. Quando dois seres unidos por um amor eterno levam uma vida cada dia mais estreitada pelos nós da confidência, pelo exame em comum das dificuldades surgidas; quando dois corações trocam à noite ou pela manhã seus pesares, como as bocas trocam os suspiros quando se encontram nas mesmas ansiedades e juntas palpitam à volta de um obstáculo, tudo então tem importância; uma mulher sabe quanto amor existe num atraso evitado, quanto esforço há numa rápida saída; ela se ocupa, vai, vem, espera, agita-se com o homem ocupado, atormentado; dirige seus murmúrios às coisas; não duvida mais, conhece e aprecia os detalhes da vida. Mas no começo de uma paixão, na qual tanto ardor, tantas desconfianças e exigências se desenvolvem, na qual um não sabe do outro; mas com as mulheres ociosas, em cuja porta o amor tem de estar sempre de sentinela; mas junto às que exageram sua dignidade e querem ser obedecidas em tudo, mesmo quando ordenam um erro que arruína um homem, o amor, em Paris, e na nossa época, comporta trabalhos impossíveis. As mulheres da alta-roda permaneceram sob o império das tradições do século xviii, em que cada um tinha uma situação segura e definida. Poucas mulheres conhecem as dificuldades da existência da maioria dos homens; os quais têm, todos, de conquistar uma posição, alcançar uma glória, consolidar uma fortuna. Hoje as pessoas cuja fortuna está alicerçada são contadas, somente os velhos têm tempo para amar, ao passo que os jovens remam nas galeras da ambição, como Nathan remava. As mulheres, ainda pouco resignadas a essa mudança nos costumes, atribuem o tempo que lhes sobra aos que dele carecem; não imaginam outras ocupações, outras finalidades que não as suas. Mesmo que o amante houvesse vencido a hidra de Lerna[502] para triunfar não teria o menor mérito; tudo se apaga ante a felicidade de vê-lo; elas só lhes são gratas por suas emoções, sem se informarem de quanto custam. Se nas suas horas de ociosidade inventam um desses estratagemas que lhes ocorrem à vontade, elas o fazem brilhar como uma gema. O homem terá torcido as barras de ferro de alguma necessidade, enquanto elas calçam as mitenes ou vestem o manto de um ardil; para elas a palma, e que não lhes seja disputada. De resto, têm razão; como não despedaçar tudo por uma mulher que tudo despedaça por nós? Elas exigem tanto quanto dão. Raul ao regressar percebeu quão difícil lhe seria sustentar um amor na alta sociedade, o carro de dez cavalos do jornalismo, suas peças de teatro e seus negócios embrulhados.

— O jornal esta tarde sairá péssimo — disse ele ao ir-se. — Não terá artigo meu, e isso no segundo número!

A sra. Félix de Vandenesse foi três vezes ao Bois de Boulogne sem lá ver Nathan e voltava desesperada e inquieta. Raul não queria deixar-se ver senão no esplendor de um príncipe da imprensa. Empregou toda a semana em procurar dois cavalos, um cabriolé e um moço conveniente, em convencer seus associados da necessidade de poupar um tempo tão precioso quanto o dele e a fazer debitar sua equipagem nas despesas gerais do jornal. Seus sócios, Massol e du Tillet, acederam tão complacentemente ao seu pedido que ele os considerou os melhores rapazes do mundo. Sem esse auxílio, a vida para Raul teria sido impossível; de resto tornou-se tão rude, embora temperada pelos mais delicados prazeres do amor ideal, que muita gente, mesmo de melhor constituição, não teria podido satisfazer tais dissipações. Uma paixão violenta e feliz já toma muito lugar numa existência comum; mas quando ela tem por alvo uma mulher da posição social da sra. de Vandenesse, tem de devorar a vida de um homem ocupado como Raul. Eis aqui as obrigações que sua paixão inscrevia antes de tudo. Tinha de ir quase todos os dias, a cavalo, ao Bois de Boulogne, entre duas e três horas, trajado como o mais desocupado gentleman. Aí ficava sabendo em que casa ou teatro ele tornaria a ver, à noite, a condessa de Vandenesse. Só se retirava dos salões cerca da meia-noite, após ter colhido algumas frases de muito tempo esperadas, alguns fiapos de ternura sonegados por baixo da mesa, entre duas portas ou ao subir para o carro. Com frequência Maria, que o lançara na alta sociedade, fazia com que o convidassem para jantar em certas casas aonde ela ia. Não era isso tudo muito simples? Por orgulho, arrastado por sua paixão, Raul não se animava a falar de seus trabalhos. Devia obedecer às mais caprichosas vontades daquela inocente soberana e acompanhar os debates parlamentares, a torrente da política, superintender a direção do jornal e levar à cena duas peças, cujas receitas eram indispensáveis. Bastava que a sra. de Vandenesse fizesse beicinho, quando ele queria escusar-se de ir a um balé, a um concerto, a um passeio, para que ele sacrificasse seus interesses ao seu prazer. Ao retirar-se das reuniões mundanas, entre uma e duas horas da madrugada, ele ia trabalhar até às oito ou nove horas, quase não dormia, levantava-se para combinar as opiniões do jornal com as das pessoas influentes das quais dependia e para debater os mil e um negócios interiores. Nessa época, o jornalismo toca em tudo, indústria, interesses públicos e privados, empresas novas, tudo quanto é amor-próprio da literatura e seus produtos.

Quando, exausto, cansado, corria do seu escritório da redação ao teatro, do teatro à Câmara, da Câmara à casa de alguns credores, tinha de se apresentar a Maria calmo e feliz, galopar junto à portinha de sua carruagem com a despreocupação de um homem sem inquietação e que não tem outras fadigas que não as da felicidade. Quando para prêmio de tanto devotamento ignorado ele conseguia apenas as palavras doces, as mais mimosas certezas de uma dedicação eterna, ardentes apertos de mão obtidos durante alguns segundos de solidão, palavras apaixonadas em troca das suas, achava que havia certo logro em deixar ignorar o preço enorme com o qual pagava aqueles miúdos sufrágios, como diriam os nossos maiores. A oportunidade para se explicar não se fez esperar. Um belo dia do mês de abril, a condessa aceitou o braço de Nathan num lugar ermo do Bois de Boulogne; ela ia fazer-lhe uma dessas rusgas a propósito de nadas, sobre as quais as mulheres sabem edificar montanhas. Ao invés de o acolher com um sorriso nos lábios, com a fronte iluminada pela felicidade, com os olhos animados por algum pensamento delicado e alegre, ela mostrou-se grave e séria.

— Que tem? — perguntou Nathan.

— Não dê atenção a essas insignificâncias — disse ela —; deve saber que as mulheres são como as crianças.

— Desagradei-lhe?

— Se assim fosse, estaria eu aqui?

— Mas não me sorri, não parece contente por me ver.

— Estou arrufada consigo, não é? — disse ela, olhando-o com esse ar submisso com o qual as mulheres se apresentam como vítimas. Nathan deu alguns passos, numa apreensão que lhe angustiava o coração e o entristecia.

— Deve ser — disse ele após um momento de silêncio — algum desses frívolos temores, dessas suspeitas nebulosas que as senhoras colocam acima das maiores coisas da vida; têm a arte de fazer a balança pender, atirando nela uma palhinha, um argueiro.

— Ironia?... Já esperava por isso — disse ela, baixando a cabeça.

— Não vês, Maria, que disse essas palavras, meu anjo, para te arrancar teu segredo?

— Meu segredo será sempre um segredo, mesmo depois de ter sido confiado...

— Pois então dize...

— Eu não sou amada — replicou ela, dirigindo-lhe esse olhar oblíquo e esperto com o qual as mulheres interrogam com tanta malícia o homem a quem querem atormentar.

— Não é amada?... — exclamou Nathan.

— Sim, o senhor tem demasiadas ocupações. Que sou eu no meio de todo esse movimento? Ontem vim ao bosque e o esperei...

— Mas...

— Tinha posto um vestido novo para o senhor, e o senhor não veio; onde estava?

— Mas...

— Não sabia. Fui à casa da sra. d’Espard e não o encontrei...

— Mas...

— À noite, na Ópera, não tirei os olhos da plateia. Cada vez que a porta se abria, tinha palpitações a ponto de me partir o coração.

— Mas...

— Que noite! O senhor não faz ideia dessas tormentas do coração.

— Mas...

— Essas emoções gastam a vida...

— Mas...

— Que diz? — disse ela.

— Sim, a vida se gasta — disse Nathan —, e em poucos meses terá devorado a minha. Suas censuras insensatas arrancam-me também meu segredo — disse ele. — Ah! Não é amada?... É-o demais!

Descreveu-lhe vivamente sua situação, contou-lhe suas vigílias, detalhou suas obrigações a horas fixas, a necessidade de triunfar, as insaciáveis exigências de um jornal que é obrigado a julgar, antes de todos e sem se enganar os acontecimentos, sob pena de perder seu poder, enfim, quantos estudos rápidos sobre as questões, que, nessa época devoradora, passavam tão rapidamente como nuvens!

Raul em um momento passou a não ter razão. A marquesa d’Espard já lho dissera: nada mais ingênuo do que um primeiro amor. Resultou daí que a condessa era culpada de demasiado amor. Uma mulher que ama responde a tudo como um gozo, uma confissão ou um prazer. Ao ver desenrolar-se aquela vida imensa, a condessa foi dominada pela admiração. Ela imaginara Nathan muito grande, achou-o então sublime. A si mesma acusou-se de amar excessivamente, pediu-lhe que viesse nas suas horas livres; esmagou aqueles trabalhos de ambicioso com um olhar que ergueu para o céu. Ela esperaria! Dali por diante, ela sacrificaria seus prazeres. Ao querer ser apenas um degrau, ela se tornava um obstáculo!... Chorou de desespero.

— As mulheres — disse ela, com os olhos rasos de lágrimas — nada podem senão amar, os homens têm mil modos de agir; nós podemos apenas pensar, orar, adorar.

Tanto amor exigia uma recompensa. Como o rouxinol que quer descer do ramo em que está pousado para a fonte, ela verificou com um olhar se estavam sós naquela solidão, se o silêncio não ocultava nenhuma testemunha; depois ergueu a cabeça para Raul, que inclinou a sua, e deixou que ele colhesse um beijo, o único que iria dar fraudulentamente, e sentiu-se mais feliz naquele momento do que o fora nos cinco anos anteriores. Raul achou que todos os seus trabalhos estavam pagos. Caminhavam os dois sem saber ao certo para onde, na estrada de Auteuil para Boulogne; foram forçados a voltar para as suas carruagens, andando com o passo uniforme e cadenciado que os amantes conhecem. Raul tinha fé naquele beijo, dado com a facilidade decente que a santidade do sentimento outorga.

Todo o mal vinha da sociedade, e não daquela mulher tão completamente sua. Raul não teve mais pena das torturas de sua vida infernal, que Maria esqueceria ao fogo do seu primeiro desejo, como todas as mulheres que não veem continuamente as terríveis atribulações dessas vidas excepcionais. Empolgada pela admiração agradecida, que caracteriza a paixão das mulheres, Maria seguia com passo decidido e leve sobre a fina areia de uma alameda lateral, dizendo, como Raul, poucas palavras, mas palavras sentidas e significativas. O céu estava límpido, as árvores em plena brotação e já algumas pontas verdes animavam seus mil pincéis pardacentos. Os arbustos, as bétulas, os salgueiros, os choupos exibiam sua primeira, sua tenra folhagem ainda diáfana. Nenhuma alma resiste a semelhante harmonia. O amor explicava a natureza à condessa, como lhe havia explicado a sociedade.

— Quanto eu quisera que o senhor jamais tivesse amado outra que não eu! — disse ela.

— Seu desejo está realizado — respondeu Raul. — Nós nos revelamos o amor um ao outro.

Dizia a verdade. Colocando-se ante aquele jovem coração como um homem puro, Raul se deixara empolgar por suas frases empenachadas de belos sentimentos. Tinha começado mentindo, acabava por falar a verdade. Há, de resto, em todo escritor um sentimento dificilmente sopitado que o leva à admiração do belo moral. Finalmente, à força de fazer sacrifícios, um homem acaba por se interessar pelo ser que os exige. As mulheres da alta-roda, da mesma forma que as cortesãs, têm o instinto da verdade; é mesmo possível que a pratiquem sem conhecê-la. Por isso a condessa, após seu primeiro ímpeto de gratidão e de surpresa, sentiu-se encantada por ter inspirado tantos sacrifícios, em ter feito vencer tantas dificuldades. Era amada por um homem digno dela. Raul ignorava a que o obrigaria sua falsa grandeza, porque a mulher não permite ao amante que ele desça do seu pedestal. Não se perdoa a um deus a menor pequenez. Maria não conhecia a chave daquele enigma que Raul propusera aos amigos na ceia do Véry. A luta daquele escritor, vindo das camadas inferiores, ocupara-lhe os primeiros dez anos de sua mocidade; ele queria ser amado por uma das rainhas da alta sociedade. A vaidade sem a qual o amor é bem fraco, disse Champfort,[503] amparava sua paixão e devia aumentá-la dia a dia.

— Pode jurar-me — disse Maria — que não é nem será nunca de nenhuma mulher?

— Não haveria mais tempo na minha vida para uma outra mulher como não há lugar no meu coração — respondeu ele, sem julgar estar dizendo uma mentira, tal o desprezo que tinha por Florina.

— Creio-o — disse ela.

Tendo chegado à alameda onde estacionavam as carruagens, Maria soltou o braço de Nathan, o qual tomou uma atitude respeitosa, como se acabasse de encontrá-la; acompanhou-a de chapéu na mão até o carro, depois a seguiu pela avenida Carlos x, aspirando a poeira que a caleça levantava, olhando as plumas em salgueiro-chorão que o vento agitava. Não obstante as nobres renúncias de Maria, Raul, excitado pela paixão, comparecia a todos os lugares onde ela estivesse; adorava o ar ao mesmo tempo descontente e feliz que a condessa tomava para repreendê-lo sem poder fazê-lo ao vê-lo dissipar aquele tempo que lhe era tão necessário. Maria assumiu a direção dos trabalhos de Raul, impôs-lhe ordens formais quanto ao emprego das suas horas e ficou em casa para privá-lo de qualquer pretexto para dissipação. Todas as manhãs lia o jornal e tornou-se o arauto da glória de Estêvão Lousteau, o folhetinista, que ela achava encantador, de Feliciano Vernou, de Cláudio Vignon, de todos os redatores. Aconselhou Raul a fazer justiça a de Marsay, quando ele morreu, tendo lido inebriada o grande e belo elogio que Nathan fez do ministro falecido, embora censurando seu maquiavelismo e seu ódio contra as massas. Assistiu naturalmente, num camarote do proscênio do Gymnase, à primeira representação da peça com a qual Nathan contava para sustentar sua empresa e cujo sucesso pareceu imenso.

— Não foi despedir-se dos Italianos? — perguntou-lhe lady Dudley, à casa de quem ela fora ao sair daquele espetáculo.

— Não, fui ao Gymnase. Havia uma estreia.

— Não suporto o vaudeville. Nisso sou como Luís xiv com os Téniers[504] — disse lady Dudley.

— Pois eu — respondeu a sra. d’Espard — acho que os autores têm feito progressos. Os vaudevilles, hoje, são comédias encantadoras, com muito espírito, que exigem muito talento e me divertem muito.

— Os artistas, aliás, são ótimos — disse Maria. — Os do Gymnase representaram muito bem, hoje; a peça lhes agradava, o diálogo é fino e espirituoso.

— Como o de Beaumarchais — disse lady Dudley.

— O sr. Nathan não é ainda Molière; mas... — disse a sra. d’Espard olhando a condessa.

— Ele faz vaudevilles — disse a sra. Carlos de Vandenesse.

— E desfaz ministérios — replicou a sra. de Manerville.

A condessa permaneceu calada; tinha vontade de responder com epigramas acerados; estava com o coração agitado por ímpetos de raiva; não achou nada melhor do que dizer:

— Talvez venha a fazê-los.

Todas as mulheres trocaram um olhar de misteriosa conveniência. Quando Maria de Vandenesse se retirou, Moïna de Saint-Heren exclamou:

— Ela adora Nathan!

— E não faz disso mistério — disse a sra. d’Espard.

Maio chegou; Vandenesse levou a esposa para a sua propriedade rural, onde o único consolo que a condessa tinha eram as cartas apaixonadas de Raul, a quem ela escrevia todos os dias.

VII – O SUICÍDIO

A ausência da condessa teria podido salvar Raul do abismo no qual ele pusera o pé, se Florina estivesse perto dele; mas estava só, entre amigos que se haviam tornado inimigos secretos, assim que ele manifestou a intenção de os dominar. Seus colaboradores odiavam-no momentaneamente, prontos para estender-lhe a mão em caso de êxito. É assim o mundo literário. Só os inferiores são queridos. Cada um é inimigo de quem quer que tente se elevar. Essa inveja geral decuplica as probabilidades dos medíocres, os quais não excitam bem a inveja nem a desconfiança, seguindo seu caminho ao modo das toupeiras, e, embora tolos, veem-se colocados no Moniteur[505] em três ou quatro postos, enquanto as pessoas de talento brigam ainda à porta para se impedirem de entrar. A surda inimizade desses pretensos amigos que Florina teria descoberto com a ciência inata que as cortesãs têm para adivinhar a verdade entre mil hipóteses não era o maior perigo para Nathan. Seus dois associados, o advogado Massol e o banqueiro du Tillet, tinham pensado em jungir o ardor de Raul ao carro no qual eles se repimpavam, de afastá-lo assim que ele estivesse incapacitado de dirigir o jornal, ou de o privar desse grande poder no momento em que o quisessem exercer. Para eles Nathan representava uma certa quantia a devorar, uma força literária com o poder de dez penas a empregar. Massol, um desses advogados que tomam a faculdade de falar indefinidamente por eloquência, que possuem o segredo de cacetear, dizendo seja lá o que for, uma peste das assembleias onde tudo apequenam, e que querem tornar-se, a qualquer preço, personalidades, não fazia mais questão de ser guarda do selo; em quatro anos, ele vira passar cinco ou seis titulares pelo posto e isso o desiludira da samarra. Como dinheiro de algibeira, ele quis uma cátedra na instrução pública, um lugar no Conselho de Estado, tudo temperado com a cruz da Legião de Honra. Du Tillet e o barão de Nucingen tinham-lhe garantido a cruz e sua nomeação de referendário se ele lhes auxiliasse os planos; o advogado achou-os mais em situação de realizar suas promessas do que Nathan e obedecia-lhes cegamente. Para melhor iludir Raul, aquela gente o deixava exercer o poder sem controle. Du Tillet não se servia do jornal senão para os seus interesses de agiotagem, coisas de que Raul não entendia patavina; mas, por intermédio do barão de Nucingen, ele fizera avisar Rastignac que o jornal seria tacitamente complacente com o governo, com a única condição de apoiar sua candidatura em substituição da do sr. de Nucingen, futuro par de França e que tinha sido eleito numa espécie de burgo pobre, distrito eleitoral de poucos eleitores, para onde o jornal foi mandado gratuitamente e em profusão. Assim pois Raul era ludibriado pelo banqueiro e pelo advogado, que com prazer infinito o viam reinar despoticamente no jornal, aproveitando-se até de todas as vantagens, cobrando todos os frutos do amor-próprio e de outras espécies.

Nathan, encantado com eles, achava-os, como por ocasião de seu pedido de fundos equestres, os melhores rapazes do mundo, e julgava poder manobrá-los. Os homens de imaginação, para os quais a esperança é a base da vida, jamais convêm que, em matéria de negócios, o mais perigoso momento é aquele em que tudo marcha de acordo com os seus desejos. Foi um momento de triunfo, do qual, aliás, se aproveitou Nathan, que se produziu então no mundo político e financeiro; du Tillet apresentou-o em casa de Nucingen. A sra. de Nucingen acolheu Raul às mil maravilhas, menos por ele do que pela sra. de Vandenesse; quando, porém, ela lhe deu algumas indiretas a respeito da condessa, ele julgou mostrar-se muito esperto, acobertando-se com Florina; espraiou-se, em generosa fatuidade, sobre suas relações com a artista, as quais, disse, eram impossíveis de ser rotas. Pode-se lá deixar uma felicidade certa pelas faceirices dos Faubourg Saint-Germain? Nathan, ludibriado por Nucingen e Rastignac, por du Tillet e Blondet, deu faustosamente seu apoio aos doutrinários para a formação de um de seus efêmeros gabinetes. Depois, para chegar puro aos negócios, desdenhou, por ostentação, de se fazer outorgar vantagens em algumas empresas, que se formaram com o auxílio de sua folha, ele, que não hesitava em comprometer seus amigos e que se portava indelicadamente com alguns industriais em certos momentos críticos. Esses contrastes, engendrados por sua vaidade, por sua ambição, encontram-se em muitas existências semelhantes. O manto, para o público, deve ser esplêndido, busca-se o pano entre os amigos para tapar-lhe os buracos. Não obstante, dois meses após a partida da condessa, Raul teve um certo quarto de hora de Rabelais[506] que lhe causou algumas inquietações em meio aos seus triunfos. Du Tillet tinha adiantado cem mil francos. O dinheiro dado por Florina, o terço da sua primeira entrada de capital, tinha sido devorado pelo fisco, pelas despesas da primeira instalação, que tinham sido enormes. Era preciso prever o futuro. O banqueiro favoreceu o escritor, dando cinquenta mil francos em promissória a quatro meses. Du Tillet ficava com Raul preso assim pelo gasganete, com aquela promissória. Por meio desse suplemento, os fundos do jornal estavam garantidos por seis meses. Aos olhos de alguns escritores, seis meses são uma eternidade. De resto, à força de anúncios, à força de viajantes, oferecendo aos assinantes vantagens ilusórias, tinham conseguido dois mil. Esse meio sucesso encorajava para atirar as cédulas bancárias naquele braseiro.

Mais um pouco de talento, um processo político que surgisse, uma aparente perseguição e Raul tornar-se-ia um desses condottieri modernos cuja tinta vale hoje o que valia outrora a pólvora dos canhões. Infelizmente essa combinação estava feita quando Florina chegou com cerca de cinquenta mil francos. Em vez de se criar um fundo de reserva, Raul, certo do sucesso, ao vê-lo necessário, já humilhado por ter aceitado o dinheiro da atriz, sentindo-se interiormente engrandecido por seu amor, deslumbrado pelos capitosos louvores de seus cortesãos, iludiu Florina sobre a sua situação e obrigou-a a empregar aquela quantia em restaurar sua casa. Nas presentes circunstâncias, uma magnífica representação tornava-se uma necessidade. A atriz, que não precisava ser influenciada, sobrecarregou-se com trinta mil francos de dívidas. Florina ficou senhora de uma deliciosa casa, completamente sua, na rue Pigalle, para onde afluíram suas antigas relações. A casa de uma rapariga instalada na vida como Florina era um terreno neutro, muito favorável para os ambiciosos políticos que aí, com Raul ou sem Raul, tratavam de seus assuntos, como Luís xiv entre os holandeses.[507] Nathan reservara para o reaparecimento de Florina no teatro uma peça cujo papel principal lhe sentava admiravelmente. Esse drama-vaudeville devia ser a despedida de Raul do teatro. Os jornais, a quem essa complacência para com Raul nada custava, premeditaram uma tal ovação a Florina que a Comédie Française falou num contrato. As crônicas viam em Florina a herdeira da srta. Mars. Esse triunfo tonteou suficientemente a artista para impedi-la de estudar o terreno sobre o qual Nathan caminhava; ela viveu num mundo de festas e de festins. Rainha de uma corte de solicitadores diligentes, um para seu livro, outro para sua peça, este para sua dançarina, aquele para o seu teatro, alguns para suas empresas, muitos para um reclame, ela se deixava arrastar para todos os prazeres do poder da imprensa, vendo nela a aurora do poder ministerial. A dar ouvidos aos que vinham a sua casa, Nathan era um grande homem político. Tivera razão na sua empresa, seria deputado, ministro com certeza, durante algum tempo, como tantos outros. As atrizes raramente dizem não ao que as lisonjeia. Florina tinha bastante talento no folhetim para desconfiar do jornal e dos que o faziam. Conhecia demasiado pouco o mecanismo da imprensa para se preocupar com os meios. As raparigas da têmpera de Florina não veem nunca senão os resultados. Quanto a Nathan, acreditou, desde então, que na próxima sessão ele chegaria às posições políticas, como dois antigos jornalistas dos quais um, no momento ministro, procurava escorraçar seus colegas para consolidar-se. Após seis meses de ausência, Nathan tornou com prazer a encontrar Florina e recaiu indolentemente nos seus hábitos. A pesada trama daquela vida, ele secretamente bordou-a com as mais belas flores de sua paixão ideal e com os prazeres que Florina nela semeava. Suas cartas para Maria eram obras-primas de amor, de graça e de estilo. Nathan fazia dela a luz de sua vida, nada empreendia sem consultar seu gênio bom. Desolado por se achar do lado popular, ele queria, às vezes, adotar a causa da aristocracia; mas, apesar de seu hábito de grandes feitos, via uma impossibilidade absoluta de saltar da esquerda para a direita; achava mais fácil ser ministro. As preciosas cartas de Maria eram depositadas numa dessas pastas com fecho secreto, fabricadas por Huret ou Fichet,[508] um dos dois mecânicos que se digladiavam a golpes de reclame e de anúncios em Paris para saber quem faria as fechaduras mais impenetráveis e mais discretas. Essa pasta era guardada no novo boudoir de Florina, onde Raul trabalhava. Não há ninguém mais fácil de enganar do que uma mulher a quem habitualmente se diz tudo; ela nada desconfia, crê ver tudo, saber tudo. De resto, desde sua volta, a atriz assistia à vida de Nathan e nada achava nela de irregular. Jamais teria imaginado que aquela pasta, ligeiramente entrevista, guardada sem afetação, contivesse tesouros de amor, cartas de uma rival que, segundo o pedido a Raul, a condessa dirigia para os escritórios do jornal. A situação de Nathan parecia, portanto, extremamente brilhante. Tinha muitos amigos. Duas peças feitas em colaboração, e que acabavam de ter êxito, supriam o seu luxo e libertavam-no de qualquer inquietação quanto ao futuro. De resto, pouco se preocupava com sua dívida a du Tillet, seu amigo.

— Como desconfiar de um amigo? — dizia ele, quando Blondet em certos momentos se deixava arrastar pela dúvida, em consequência de seu hábito de tudo analisar.

— Mas nós não temos necessidade de desconfiar dos nossos inimigos — dizia Florina.


Nathan defendia du Tillet. Du Tillet era o melhor, o mais complacente, o mais íntegro dos homens. Essa existência de dançarina de corda sem maromba teria assustado a todos, mesmo a um indiferente, se lhe tivesse penetrado o mistério: du Tillet, porém, contemplava-a com o estoicismo e os olhos secos de um parvenu. Havia na amistosa bonomia de suas relações com Nathan sarcasmos atrozes. Um dia ele lhe apertava as mãos ao sair de casa de Florina e o olhava subir no cabriolé.

— Isso vai ao Bois de Boulogne numa equipagem magnífica — disse ele a Lousteau, o invejoso por excelência — e dentro de seis meses estará talvez em Clichy.[509]

— Ele? Nunca — exclamou Lousteau. — Florina está aí.

— Quem te diz, meu velho, que ele a conservará? Quanto a ti, que vales mil vezes mais do que ele, serás sem dúvida, daqui a seis meses, nosso redator-chefe.

Em outubro, venceram-se as promissórias e du Tillet graciosamente as reformou, mas a dois meses de prazo, com aumento dos juros de mora e de um novo empréstimo. Certo da vitória, Raul não olhava as despesas. A sra. Félix de Vandernesse devia voltar dentro de poucos dias, um mês mais cedo do que habitualmente, trazida por um desejo desenfreado de ver Nathan, o qual não quis estar à mercê de uma necessidade de dinheiro no momento de reencetar sua vida de militante. A correspondência, onde a pena é sempre mais ousada do que a palavra, onde o pensamento revestido de suas flores aborda tudo e tudo pode dizer, tinha feito a condessa chegar ao mais alto grau de exaltação; ela via em Raul um dos mais belos gênios da época, um coração delicioso e mal apreciado, sem máculas e digno de adoração; ela o via estendendo uma mão ousada sobre os festins do poder. Breve, aquela voz, tão bela no amor, reboaria na tribuna. Maria vivia somente daquela vida de círculos entrelaçados, como os de uma espera, e em cujo centro está o mundo. Sem gosto pelas tranquilas alegrias do matrimônio, ela recebia as agitações daquela vida turbilhonante, comunicadas por uma pena hábil e enamorada; beijava aquelas cartas escritas no meio de batalhas feridas pela imprensa, em tempo roubado às horas de estudo; conhecia-lhes todo o valor; tinha certeza de ser amada unicamente, de ter como rivais somente a glória e a ambição; achava no fundo de sua solidão como empregar todas as suas forças; sentia-se feliz por ter feito uma boa escolha: Nathan era um anjo. Felizmente, seu retiro na sua propriedade e as barreiras que existiam entre ela e Raul tinham feito calar a maledicência. Durante os últimos dias de outono, Maria e Raul renovaram seus passeios ao Bois de Boulogne, só ali podiam se encontrar até o momento da reabertura dos salões. Raul pôde saborear um pouco mais à vontade os puros, os delicados gozos de sua vida ideal e de ocultá-la a Florina; trabalhava um pouco menos, as coisas no jornal seguiam a sua rotina, cada redator conhecia sua tarefa. Fez involuntariamente comparações, todas vantajosas para a atriz, sem que, entretanto, a condessa com elas nada perdesse. Esfalfado outra vez com as manobras a que o condenavam seu amor cerebral e de coração por uma dama da alta sociedade, Raul achou forças sobre-humanas para estar simultaneamente em três teatros: a sociedade, o jornal e os bastidores. No momento em que Florina, que se lhe mostrava agradecida em tudo, que quase partilhava seus trabalhos e suas inquietações, aparecia e desaparecia oportunamente, derramando sobre ele, em torrentes, uma felicidade real, sem frases, sem nenhum acompanhamento de remorsos, a condessa, de olhos insaciáveis, de seio casto, esquecia aqueles trabalhos gigantescos e as dificuldades vencidas para vê-la um instante. Em vez de dominar, Florina deixava-se tomar, largar, retomar com a complacência de um gato que cai sobre suas patinhas e sacode as orelhas. Essa facilidade de costumes concorda admiravelmente com a conduta dos intelectuais e todo artista a teria aproveitado, como Nathan o fez, sem abandonar o prosseguimento daquele belo amor ideal, daquela esplêndida paixão que seduzia seus instintos de poeta, suas grandezas secretas, suas vaidades sociais. Convencido da catástrofe que resultaria de uma indiscrição, a si mesmo dizia: — Nem a condessa nem Florina saberão de nada! — Estavam tão longe uma da outra! Na entrada do inverno, Raul reapareceu na alta sociedade, no seu apogeu: era quase uma personagem. Rastignac, que caíra com o ministério dissolvido com a morte de Marsay, apoiava-se sobre Raul e apoiava-o com os seus louvores.

A sra. de Vandenesse quis então saber se o marido modificara seu juízo sobre Nathan. Depois de um ano, ela o interrogou novamente, julgando que iria alcançar uma dessas brilhantes desforras de que tanto gostam as mulheres, mesmo as mais nobres, as menos terrestres, pois se pode apostar na certa que os anjos, ao se colocarem à roda do Santo dos Santos, têm ainda amor-próprio.

— Só lhe faltava ser engazopado pelos intrigantes — respondeu o conde.

Félix, a quem o hábito do mundo e da política permitia ver com clareza, penetrara a situação de Raul. Tranquilamente explicou à mulher que a tentativa de Fieschi[510] tivera como resultado agremiar muita gente em torno dos interesses ameaçados na pessoa do rei Luís Filipe. Os jornais cuja cor não fosse nítida perderiam seus assinantes, porquanto o jornalismo ia simplificar-se com a política. Se Nathan tinha posto sua fortuna no jornal, em breve estaria liquidado. Esse golpe de vista tão exato, tão preciso, embora sucinto e exposto na intenção de aprofundar uma questão sem interesse por um homem que sabia calcular as probabilidades de todos os partidos, assustou a sra. de Vandenesse.

— Interessa-se então muito por ele? — perguntou Félix à esposa.

— Como por um homem cujo espírito me diverte e cuja conversação me agrada.

Essa resposta foi dada com um ar tão natural que o conde de nada suspeitou.

No dia seguinte, às quatro horas, em casa da sra. d’Espard, Maria e Raul tiveram uma longa palestra em voz baixa. A condessa exprimiu-lhe temores que Raul dissipou, muito feliz por abater sob epigramas a grandeza conjugal de Félix. Nathan tinha uma desforra a tomar. Pintou o conde como um espírito pequeno, como um homem atrasado, que queria julgar a Revolução de Julho pela medida da Restauração, que se recusava a ver o triunfo da classe média, a nova força das sociedades, temporária ou durável, porém real. Não havia mais possibilidade de grão-senhores; estava chegando o reinado das verdadeiras superioridades. Em vez de estudar os avisos indiretos e imparciais de um homem político interrogado sem paixão, Raul pavoneou-se, discursou com ênfase e envolveu-se na púrpura do seu triunfo. Qual a mulher que não crê mais no amante do que no marido? A sra. de Vandenesse, tranquilizada, recomeçou, pois, aquela vida de irritações reprimidas, de pequenos gozos furtados, de apertos de mão clandestinos, sua alimentação do último inverno, mas que acaba arrebatando uma mulher para além dos limites quando o homem a quem ama é um pouco resoluto e se impacienta com os obstáculos. Felizmente para ela, Raul, moderado por Florina, não era perigoso. De resto, ele foi absorvido por interesses que não lhe permitiram aproveitar-se de sua felicidade. Entretanto, uma desgraça súbita acontecida a Nathan, obstáculos renovados, uma impaciência podiam precipitar a condessa no abismo. Raul entrevia essas disposições em Maria quando, em fins de dezembro, du Tillet quis ser reembolsado. O rico banqueiro, que dizia estar apertado, aconselhou Raul a que tomasse a quantia por empréstimo, e por quinze dias, a um usurário, Gigonnet,[511] a providência de vinte e cinco por cento de todos os rapazes que se viam em dificuldades. Daí a poucos dias, o jornal operava sua grande renovação de janeiro, haveria dinheiro em caixa e du Tillet ia ver... E afinal, por que não escreveria Nathan outra peça? Por orgulho, Nathan fez questão de pagar, custasse o que custasse. Du Tillet deu uma carta a Raul para o usurário, mediante a qual Gigonnet entregou-lhe a importância em troca de promissórias a vinte dias. Em vez de indagar dos motivos de semelhante facilidade, Raul arrependeu-se de não ter pedido mais. Assim acontece com os homens mais notáveis pela força do pensamento; em um fato grave veem motivos para gracejos, parecem reservar o espírito para as suas obras e, por medo de apequená-lo, não o empregam nas coisas da vida. Raul contou sua manhã a Florina e a Blondet; pintou-lhes Gigonnet de corpo inteiro, sua chaminé sem fogo, seu papel ordinário de Réveillon,[512] sua escada, a campainha asmática e seu cabo, o pequeno capacho gasto, a lareira sem fogo como o olhar do dono; ele os fez rir com aquele novo tio. Não se preocuparam nem com du Tillet, que alegava estar sem dinheiro, nem com um usurário tão mão-aberta. Tudo isso, caprichos!

— Ele te taxou apenas em quinze por cento — disse Blondet —, deves-lhe agradecimentos. Aos vinte e cinco por cento eles não se cumprimentam mais; a usura começa aos cinquenta por cento, a essa taxa são desprezados.

— Desprezados! — disse Florina. — Quais os amigos de vocês que lhes emprestariam dinheiro a essa taxa, sem tomar atitudes de benfeitores?

— Ela tem razão, sinto-me feliz por nada mais dever a du Tillet — disse Raul.

Por que essa falta de penetração nos seus negócios particulares por parte dos homens habituados a tudo penetrar? Seria, talvez, porque o espírito não pode ser completo em todas as suas faces, ou senão por viverem os artistas demasiado na hora presente para estudar o futuro, ou também por observarem demasiado os ridículos, o que não lhes deixa ver as armadilhas, e por julgarem que ninguém ousará embrulhá-los. O futuro não se fez esperar. Vinte dias depois as promissórias eram protestadas; mas, no tribunal do comércio, Florina fez pedir e obteve vinte e cinco dias para pagar. Raul estudou sua posição e pediu um extrato das contas; resultou que as receitas do jornal cobriam dois terços das despesas e que as assinaturas diminuíram. O grande homem ficou inquieto e sombrio, mas somente para Florina, a quem se confiou. Florina aconselhou-o a conseguir um empréstimo sobre peças teatrais que escrevia, vendendo-as em bloco e alienando as rendas do seu repertório. Nathan conseguiu vinte mil francos por esse meio e reduziu sua dívida a quarenta mil. A 10 de fevereiro, expiraram os vinte e cinco dias. Du Tillet, que não queria Nathan como seu competidor no distrito eleitoral de onde pretendia apresentar-se, deixando a Massol um outro distrito à escolha do ministro, fez com que Gigonnet perseguisse Raul, pertinazmente. Um homem preso por dívidas não se pode apresentar como candidato. A prisão de Clichy podia anular o futuro ministro. A própria Florina estava continuamente em conversações com os oficiais de justiça acerca de suas dívidas pessoais e naquela crise não lhe restava outro recurso que não o eu de Medeia,[513] pois seus móveis foram sequestrados. O ambicioso ouvia por todos os lados os estalidos do esboroamento do seu edifício tão novo, construído sem alicerces. Já sem forças para sustentar uma empresa tão vasta, ele se sentia incapaz de a reiniciar; ia pois perecer sob os escombros da sua fantasia. Seu amor pela condessa dava-lhe ainda alguns clarões de vida. Ele animava sua máscara, mas interiormente a esperança morrera. Não suspeitava de du Tillet, só via o usurário. Rastignac, Blondet, Lousteau, Vernou, Finot, Massol abstinham-se de esclarecer aquele homem de uma atividade tão perigosa. Rastignac, que queria reconquistar o poder, fez causa comum com Nucingen e du Tillet. Os outros experimentavam gozos infinitos ao ver a agonia de um igual, culpado de haver tentado ser seu senhor.

Nenhum deles consentiria em dizer uma palavra a Florina; pelo contrário, elogiavam-lhe Raul. “Nathan tinha ombros para carregar o mundo, ele se sairia bem, tudo iria às mil maravilhas!”

— Ontem se inscreveram dois assinantes — dizia Blondet com ar grave. — Raul será deputado. Votado o orçamento, será publicada a ordem de dissolução.

Nathan, perseguido, não podia mais contar com a usura. Florina, penhorada, não podia contar senão com o acaso de uma paixão inspirada a algum ingênuo, que nunca aparece no momento preciso. Os amigos de Nathan eram todos pessoas sem dinheiro e sem crédito. Uma prisão matava-lhe as esperanças de carreira política. Para cúmulo de infelicidade, ele se via comprometido em enormes trabalhos, pagos adiantadamente: não entrevia fundo no abismo de miséria para o qual descambava. Diante de tantas ameaças perdeu a audácia. A condessa de Vandenesse continuaria a lhe ser dedicada? Fugiria dele? As mulheres nunca são levadas a esse abismo, a não ser por um amor integral, e a paixão de ambos não os atara um ao outro pelos laços misteriosos da felicidade. Embora, porém, a condessa o acompanhasse ao estrangeiro, ela iria sem fortuna, nua e despojada, seria um embaraço a mais. Um espírito de segunda ordem, um orgulhoso como Nathan, devia ver, e viu, então no suicídio a espada que cortaria aquele nó górdio. A ideia de cair diante daquela sociedade em que penetrara, que quisera dominar, de deixar lá a condessa triunfante e de tornar a ser um infante enlameado, não era suportável. A loucura saracoteava e fazia ouvir seus guizos à porta do palácio fantástico habitado pelo poeta. Nessa extremidade, Nathan esperou um acaso e não se quis matar até o último instante.

Durante os últimos dias exigidos pela imposição da sentença, pelas intimações e pela denúncia da ordem de prisão, Raul passeou por toda parte, sem querer, com o ar friamente sinistro que os observadores têm podido notar em todas as pessoas destinadas ao suicídio ou que nele pensam. As ideias fúnebres que estes cultivam imprimem-lhes na fronte tonalidades plúmbeas e nebulosas; seu sorriso tem um não sei quê de fatal, seus movimentos são solenes. Esses infelizes parecem querer sugar até o âmago os frutos dourados da vida; seus olhares visam continuamente o coração, ouvem o dobre a finados por eles, no ar são desatentos. Esses aterradores sintomas, Maria os percebeu, uma noite, em casa de lady Dudley: Raul ficara sozinho num divã, no boudoir, enquanto todos conversavam no salão; a condessa chegou à porta e ele não ergueu a cabeça, não ouviu nem a respiração de Maria nem o frêmito do seu vestido de seda; fixava uma flor do tapete, com os olhos parados, aturdido pela dor; preferia morrer a abdicar. Nem todos têm o pedestal de Santa Helena.[514] De resto, naquela época, o suicídio imperava em Paris; não deve ele ser a última palavra das sociedades incrédulas? Raul acabara de tomar a resolução de morrer. O desespero está em proporção das esperanças, e o de Raul não tinha outra saída que não o túmulo.

— Que tens? — perguntou Maria, voando para perto dele.

— Nada — respondeu Raul.

Há um modo de dizer nada que significa exatamente o contrário. Maria deu de ombros.

— Você é uma criança — disse ela —, aconteceu-lhe alguma desgraça.

— Não, não a mim — disse ele. — Aliás, você a saberá demasiado cedo, Maria — acrescentou afetuosamente.

— No que estavas pensando quando eu entrei? — perguntou ela com ar autoritário.

— Queres saber a verdade? — ela inclinou a cabeça. — Pensava em ti, a mim mesmo dizia que em meu lugar muitos homens teriam querido ser amados sem restrição: eu o sou, não é?

— Sim — disse ela.

— E — continuou ele, enlaçando-lhe o busto e atraindo-a a ele para beijá-la na fronte, em risco de ser surpreendido — deixo-te pura e sem remorsos. Posso arrastar-te ao abismo, e tu permaneces em toda a tua glória, na beira, sem mácula. Entretanto um único pensamento me preocupa...

— Qual?

— Tu me desprezarás — ela sorria soberbamente. — Sim, jamais acreditarás ter sido santamente amada; e, ademais, me enxovalharão, sei-o. As mulheres não imaginam que do fundo da nossa lama nós possamos erguer os olhos para o céu a fim de nele adorar sem partilha uma Maria. Elas misturam a esse santo amor ideias lamentáveis, não compreendem que homens de alta inteligência e de vasta poesia possam desprender sua alma do gozo a fim de reservá-lo para algum altar querido. Entretanto, Maria, o culto do ideal é mais fervoroso em nós do que em vocês, nós o encontramos na mulher que nem sequer o busca em nós.

— Por que esse artigo? — disse ela zombeteiramente, como uma mulher segura de si mesma.

— Deixo a França, amanhã saberás por quê e como, por uma carta que meu criado de quarto te levará. Adeus, Maria.

Raul saiu após ter apertado Maria sobre seu coração num horrível abraço e deixou-a estupidificada de dor.

— Que tem, querida? — perguntou-lhe a marquesa d’Espard ao vir buscá-la. — Que lhe disse o sr. Nathan? Ele nos deixou com um ar melodramático. Você é ou demasiado ajuizada ou desajuizada...

A condessa tomou o braço da sra. d’Espard para voltar ao salão, de onde se retirou em poucos minutos.

— Ela vai talvez ao seu primeiro rendez-vous — disse lady Dudley à marquesa.

— Eu o saberei — replicou a sra. d’Espard, retirando-se e seguindo o carro da condessa.

O coupé da sra. de Vandenesse tomou, porém, a direção do Faubourg Saint-Honoré. Quando a sra. d’Espard chegou à casa, viu a condessa Félix seguindo o Faubourg para tomar a direção da rue du Rocher. Maria deitou-se mas não pôde dormir e passou a noite lendo uma viagem ao Polo Norte sem nada compreender do que lia. Às oito horas e meia, recebeu uma carta de Raul e abriu-a precipitadamente. A carta começava pelas palavras clássicas:

Minha querida bem-amada, quando te chegarem às mãos estas linhas, não mais existirei...

Não terminou, amarrotou o papel por uma contração nervosa, tocou a campainha chamando a camareira, vestiu apressadamente um peignoir, calçou o primeiro sapato que achou, envolveu-se num xale, pôs um chapéu e saiu, recomendando à servente que dissesse ao conde que ela fora à casa da irmã, a sra. du Tillet.

— Onde deixou seu patrão? — perguntou ao criado de Raul.

— No escritório do jornal.

— Vamos lá — disse ela.

Com grande espanto da criadagem, a condessa saiu a pé, antes das nove horas, presa de uma loucura visível. Felizmente, para ela, a criada de quarto foi dizer ao conde que a senhora acabava de receber uma carta da sra. du Tillet que a desnorteara e tinha ido apressadamente à casa da irmã, acompanhada pelo criado que trouxera a missiva. Vandenesse esperou a volta da esposa para ter explicações. A condessa tomou um fiacre e foi rapidamente levada ao escritório do jornal. A essa hora, os vastos apartamentos ocupados pelo jornal num velho solar da rue Feydeau estavam desertos; só estava ali um servente de escritório, muito assombrado por ver uma mulher, jovem e bonita, atravessá-los desvairada, correndo, a perguntar-lhe onde estava o sr. Nathan.

— Está com certeza em casa da srta. Florina — respondeu ele, tomando a condessa por uma rival que vinha fazer uma cena de ciúme.

— Onde é que ele trabalha? — perguntou ela.

— Num gabinete cuja chave ele tem no bolso.

— Quero ir lá!

O servente levou-a a uma peça sombria que dava para um pátio interior e que era antigamente um toucador, contíguo a um grande quarto de dormir cuja alcova não fora destruída. A condessa, ao abrir a janela do quarto, pôde ver pela do gabinete o que nele acontecia; Nathan estertorava, sentado na sua poltrona de redator-chefe.

— Arrombe essa porta e cale-se, comprarei o seu silêncio — disse ela. — Não vê que o sr. Nathan está morrendo?

O servente foi buscar na tipografia uma armação de ferro com a qual pôde arrombar a porta. Raul se estava asfixiando, como uma simples costureira, com um fogareiro de carvão. Tinha terminado de escrever uma carta a Blondet, para pedir-lhe que atribuísse sua morte a uma apoplexia fulminante. A condessa chegara a tempo; fez transportar Raul para um fiacre e, não sabendo onde atendê-lo, entrou num hotel, tomou um quarto e mandou o servente do escritório chamar um médico. Em poucas horas, Raul estava fora de perigo, mas a condessa não deixou a cabeceira da cama dele sem ter obtido uma confissão geral. Depois que o ambicioso abatido lhe derramou no coração aquelas espantosas elegias de sua dor, ela voltou para casa presa de todos os tormentos, de todas as ideias que, na véspera, assediavam a fronte de Nathan.

— Eu arrumarei tudo — dissera-lhe ela para o fazer viver.

— Então! O que tem a tua irmã? — perguntou Félix à esposa ao vê-la entrar. — Acho-te bem mudada.

— É uma história horrível, da qual devo guardar o mais profundo segredo — respondeu Maria, recuperando as forças para aparentar calma.

A fim de ficar só e de pensar à vontade, ela fora à noite aos Italiens, tendo ido depois aliviar seu coração no da sra. du Tillet, contando-lhe a horrível cena da manhã, pedindo-lhe conselho e auxílio. Nem uma nem outra podiam então saber que du Tillet acendera o fogo do vulgar fogareiro, cuja vista apavorara a condessa Félix de Vandenesse.

— Ele só tem a mim no mundo — dissera Maria à irmã —, e eu não lhe faltarei.

Essa palavra contém o segredo de todas as mulheres; elas são heroicas quando têm a certeza de ser tudo para um homem grande e irrepreensível.

VIII – O AMANTE SALVO E PERDIDO

Du Tillet ouvira falar da paixão mais ou menos provável da cunhada por Nathan; era, porém, dos que a negavam ou a julgavam incompatível com a ligação de Raul e Florina. A atriz devia excluir a condessa reciprocamente. Mas quando ao entrar em casa, naquela noite, lá encontrou a cunhada, cujo rosto, nos Italiens, já lhe havia revelado amplas perturbações, compreendeu que Raul tinha confiado suas dificuldades à condessa; esta, portanto, amava-o, tinha vindo, pois, pedir a Maria Eugênia o dinheiro da dívida do velho Gigonnet. A sra. du Tillet, para a qual o segredo daquela penetração, aparentemente sobrenatural, escapava, mostrara tanta estupefação que as suspeitas de du Tillet tornaram-se certeza. O banqueiro julgou poder segurar o fio das manobras de Nathan. Ninguém sabia que aquele infeliz estava de cama, na rue du Mail, num hotel modesto, sob o nome do servente do escritório a quem a condessa prometera quinhentos francos se ele guardasse o segredo sobre os acontecimentos da noite e da manhã. Por isso Francisco Quillet tivera o cuidado de dizer à porteira que Nathan se sentira mal em consequência de excesso de trabalho. Du Tillet não se admirou por não ver Nathan. Era natural que o jornalista se ocultasse para fugir aos encarregados de prendê-lo. Quando os espiões chegaram em busca de informações, souberam que de manhã uma dama viera e levara o redator-chefe. Passaram-se dois dias antes que descobrissem o número do fiacre, que interrogassem o cocheiro, que sondassem o hotel onde o devedor se estava reanimando. Assim é que as sábias medidas tomadas por Maria haviam feito Nathan obter uma dilação de três dias.

Cada uma das duas irmãs passou, pois, uma noite cruel. Semelhante catástrofe projeta o resplendor de seu carvão sobre toda a vida, ele ilumina os baixios, os escolhos, mais do que os cimos, que até esse momento haviam retido os olhares. Impressionada com o horrível espetáculo de um rapaz morrendo na sua poltrona, diante do seu jornal, escrevendo, à romana, seus últimos pensamentos, a pobre sra. du Tillet em nada mais podia pensar a não ser em lhe prestar auxílio, em restituir à vida aquela alma pela qual a irmã vivia. É da natureza de nosso espírito olhar os efeitos antes de analisar as causas. Eugênia aprovou novamente a ideia que tivera de se dirigir à baronesa de Nucingen, em cuja casa ia jantar, e não duvidou do sucesso. Generosa, como todas as pessoas que não foram premiadas nas engrenagens de aço polido da sociedade moderna, a sra. du Tillet resolveu assumir a responsabilidade de tudo.

Por seu lado, a condessa, já feliz por ter salvado a vida de Nathan, empregou a noite a inventar estratagemas para conseguir os quarenta mil francos. As mulheres, nessas crises, são sublimes. Guiadas pelo sentimento, chegam a combinações que surpreenderiam os ladrões, os homens de negócios e os usurários, se essas três classes de industriais, mais ou menos potentados, pudessem se assombrar de alguma coisa. A condessa vendia seus diamantes, pensando em usar outros falsos. Decidia-se a pedir a quantia a Vandenesse para a irmã, que já pusera em causa; tinha, porém, muita nobreza para não recuar ante os meios desonrosos; concebia-os, mas repelia-os. O dinheiro de Vandenesse para Nathan! Saltava na cama espantada com sua perversidade. Engastar diamantes falsos! O marido acabaria por perceber. Queria ir pedir o dinheiro aos Rotschild, que tinham tanto ouro, ao arcebispo de Paris, que devia amparar os pobres, correndo assim de uma religião à outra, implorando tudo. Lamentou-se por estar fora do governo; em outros tempos ela teria conseguido tomar o dinheiro por empréstimo nas vizinhanças do trono. Pensava em recorrer ao pai. O antigo magistrado tinha, porém, horror às ilegalidades; seus filhos acabaram sabendo quão pouco ele simpatizava com as desgraças do amor; nem queria ouvir falar nisso, tornara-se misantropo, tinha asco por tudo que era aventura amorosa. Quanto à condessa de Granville, esta vivia retirada na Normandia, numa propriedade sua, economizando e rezando, terminando seus dias entre padres e sacos de moedas, fria até o último momento. Embora Maria tivesse tempo de chegar a Bayeux, dar-lhe-ia sua mãe o dinheiro, sem saber mais como pretendia empregá-lo? Imaginar dívidas? Sim, talvez se deixasse ela enternecer por sua favorita. Pois bem! Em caso de insucesso a condessa iria à Normandia. O conde de Granville não recusaria fornecer-lhe um pretexto para a viagem, mandando-lhe um falso aviso a propósito de uma grave doença da esposa. O espetáculo desconsolador que a apavorara pela manhã, os cuidados prodigalizados a Nathan, as horas passadas à cabeceira de seu leito, aquelas narrativas entrecortadas, aquela agonia de um grande espírito, aquele voo do gênio detido por um obstáculo vulgar, ignóbil, voltou-lhe tudo à memória para estimular-lhe o amor. Rememorou suas emoções e sentiu-se ainda mais apaixonada pelas misérias do que pelas grandezas. Teria ela beijado aquela fronte coroada pelo triunfo? Não. Encontrava uma nobreza infinita nas últimas palavras que Nathan lhe dissera no boudoir de lady Dudley. Que santidade naquele adeus! Que nobreza na imolação de uma felicidade que se haveria tornado o seu tormento, dela.

A condessa almejara emoções em sua vida, e estas abundavam terríveis, cruéis, porém amadas. Vivia mais pela dor do que pelo prazer. Com que delícia a si mesma dizia: “Salvei-o e vou salvá-lo ainda!”. Ela ouvia-o exclamar: “Só os desgraçados sabem até que ponto vai o amor!”, quando ele sentira os lábios de sua Maria pousados em sua fronte.

— Estás doente? — perguntou-lhe o marido, ao ir ao seu quarto buscá-la para o almoço.

— Estou horrivelmente torturada com o drama que se está desenrolando em casa de minha irmã — disse ela sem mentir.

— Ela caiu numas mãos bem perversas; é uma vergonha para uma família ter no seu seio um du Tillet, um homem sem nobreza; se acontecesse alguma desgraça à sua irmã, ela não encontraria absolutamente piedade nele.

— Qual a mulher que se conforma com a piedade? — disse a condessa, fazendo um movimento convulsivo. — Impiedosos! Vosso rigor é uma mercê para nós.

— Não é de hoje que sei da nobreza de seu coração — disse Félix beijando a mão da mulher, profundamente emocionado com aquela altivez. — Uma mulher que pensa assim não tem necessidade de ser vigiada.

— Vigiada? — repetiu ela. — Outra vergonha que recai sobre vocês.

Félix sorriu, mas Maria enrubescia. Quando uma mulher se acha secretamente culpada, ostensivamente eleva o orgulho feminino ao mais alto grau. É uma dissimulação do espírito da qual lhes devemos ser gratos. O engano fica então cheio de dignidade, quando não de grandeza. Maria escreveu duas linhas a Nathan, sob o nome de Quillet, para dizer-lhe que tudo ia bem, e mandou-as por um mensageiro ao hotel do Mail.

À noite, na Ópera, a condessa colheu os benefícios de suas mentiras, porquanto o marido achou muito natural que ela deixasse o camarote para ir ver a irmã. Félix esperou para dar-lhe o braço quando du Tillet deixasse a esposa sozinha. Que emoções devem ter agitado Maria ao atravessar o corredor, ao entrar no camarote da irmã e se apresentar com a fronte calma e serena, frente a uma sociedade admirada de as ver juntas?

— E então? — perguntou ela.

A fisionomia de Maria Eugênia era uma resposta; resplandecia nela uma alegria ingênua, que muitas personagens atribuíram a uma vaidosa satisfação.

— Ele será salvo, querida, mas somente por três meses, durante os quais trataremos de arranjar meios de o socorrer mais eficazmente. A sra. de Nucingen quer quatro promissórias de dez mil francos cada uma, firmadas seja lá por quem for, para não te comprometer. Explicou-me como deveriam ser feitas, não compreendi patavina, mas o sr. Nathan as preparará para ti. Pensei apenas que Schmucke, nosso velho professor, nos poderá ser muito útil nas atuais circunstâncias; ele as assinará. Ao juntar a esses valores uma carta pela qual garantirás seu pagamento à sra. de Nucingen, ela te entregará o dinheiro amanhã. Faze tudo tu mesma, não te fies em ninguém. Julgo que Schmucke não terá abjeções a opor. Para desviar as suspeitas disse que tu querias prestar um serviço a um nosso antigo professor de música, um alemão, presentemente na miséria. Pude assim pedir o mais absoluto segredo.

— Tens espírito como um anjo! Contanto que a baronesa de Nucingen não se ponha a falar senão depois de ter dado o dinheiro — disse a condessa, erguendo os olhos, como que para implorar a Deus, embora estivesse na Ópera.

— Schmucke mora na pequena rue de Nevers, no Quai Conti. Não te esqueças e vai tu mesma.

— Obrigada — disse a condessa apertando a mão da irmã. — Ah! Eu daria dez anos de vida...

— Que tirarias de tua velhice...

— Para acabar com semelhantes angústias — disse a condessa, sorrindo da interrupção.

Todas as pessoas que naquele momento olhavam as duas irmãs, através dos binóculos, poderiam julgá-las entretidas com frivolidades ao admirar-lhes os risos ingênuos; entretanto, um desses desocupados que vão à Ópera mais para espionar as toilettes e os rostos do que por prazer teria podido adivinhar o segredo da condessa ao notar a violenta sensação que apagou a alegria daqueles dois encantadores semblantes. Raul, que durante a noite não temia mais os beleguins, surgiu nos degraus da escada onde costumava postar-se, pálido e lívido, com o olhar inquieto e fronte entristecida. Procurou a condessa no camarote, encontrou-o vazio e apertou então a fronte com as mãos, apoiando o cotovelo na coluna.

— Como pode ela estar na Ópera! — pensou ele.

— Olhe-nos, pobre grande homem — disse em voz baixa a sra. du Tillet.

Quanto a Maria, correndo embora o risco de se comprometer, fixou sobre ele o olhar firme e violento pelo qual a vontade jorra dos olhos, como do sol jorram as ondas luminosas e que, segundo os magnetizadores, penetra a pessoa sobre a qual é dirigido. Raul foi como que tocado por uma varinha mágica; ergueu a cabeça e seus olhos encontraram subitamente os olhos das duas irmãs. Com o adorável espírito que jamais abandona as mulheres, a sra. de Vandenesse pegou numa cruz que se balouçava no seu colo e mostrou-lha com um sorriso rápido e significativo. A joia irradiou até à fronte de Raul, o qual respondeu com uma expressão alegre; compreendera.

— Que dizes, Eugênia — fez notar a condessa —, achas que não vale nada restituir-se por essa forma a vida aos mortos?

— Podes entrar para a sociedade dos Náufragos — respondeu Eugênia sorrindo.

— Como ele veio triste e abatido, mas como irá contente!

— E então! Como vais, meu caro? — disse du Tillet, apertando a mão a Raul e abordando-o com todas as demonstrações da amizade.

— Como um homem que acaba de receber as melhores informações sobre as eleições. Serei eleito — respondeu o radioso Raul.

— Encantado — replicou du Tillet. — Vai ser preciso dinheiro para o jornal.

— Oh! Acharemos.

— As mulheres têm pacto com o diabo — disse du Tillet, sem se deixar convencer pelas palavras de Raul, a quem ele chamava Charnathan.[515]

— A que vem isso? — disse Raul.

— Minha cunhada está no camarote de minha mulher — disse o banqueiro. — Deve haver mouros na costa. Pareces adorado pela condessa, que te cumprimenta através da sala.

— Olha — disse a sra. du Tillet à irmã —, dizem que somos falsas. Meu marido está acarinhando o sr. Nathan, e é ele que o quer fazer prender.

— E os homens nos acusam! — exclamou a condessa. — Eu o esclarecerei.

Levantou-se, tomou o braço de Vandenesse, que a estava esperando no corredor, e voltou radiante ao seu camarote; depois saiu da Ópera, deu ordem para que lhe trouxessem o carro, no dia seguinte, às oito horas, e às oito e meia estava no Quai Conti, depois de ter passado pela rue du Mail. A carruagem não podia entrar na rue de Nevers, mas como Schmucke morava numa casa situada na esquina do cais, a condessa não teve de caminhar na lama, quase que saltou do estribo do carro na calçada lamacenta e arruinada daquela casa velha e escura, remendada como a porcelana de um porteiro com grampos de ferro, e pênsil, de modo a atemorizar os passantes. O velho organista morava no quarto andar e gozava do belo panorama do Sena, desde a Pont-Neuf até a Colline de Chaillot. Aquela boa criatura ficou tão surpreendida quando o criado lhe anunciou a visita da sua antiga aluna que na sua estupefação a deixou penetrar em sua casa. Jamais a condessa teria concebido ou suspeitado a existência que se revelou subitamente ao seu olhar, embora conhecesse de havia muito o profundo desdém de Schmucke pelo vestuário e o pouco que ele ligava às coisas deste mundo. Quem poderia acreditar no desleixo de semelhante vida, numa tão completa despreocupação? Schmucke era um Diógenes músico, não tinha pejo de seu relaxamento; tê-lo-ia negado, de tal forma se habituara a ele. O uso incessante de um bom e pesado cachimbo alemão espalhara pelo teto, sobre o miserável papel das paredes, rasgado em mil lugares por um gato, uma tonalidade loura que dava aos objetos o aspecto de searas douradas de Ceres. O gato, de um pelo magnífico, de longos fios arrepiados com um vestido de seda que causaria inveja a uma porteira, estava ali como uma dona de casa, grave na sua barba, sem inquietações. Do alto de um excelente piano de Viena, onde ele se repimpava magistralmente, dirigiu à condessa, quando ela entrou, o olhar adocicado e frio com que toda mulher admirada de sua beleza a teria saudado. Não se moveu, agitou apenas os dois fios de prata de seu bigode direito e volveu para Schmucke seus olhos de ouro. O piano, caduco e de boa madeira pintada de preto e ouro, porém sujo, desbotado, cheio de escamas, apresentava teclas gastas como os dentes de um cavalo velho e amarelecidas pelas cores fuliginosas caídas do cachimbo. Em cima da mesinha, pequenos montículos de cinza revelavam que na véspera Schmucke cavalgara sobre o velho instrumento, rumo a alguma orgia musical. O pavimento, cheio de lousa seca, de papéis rasgados, de cinza de cachimbo, de restos inexplicáveis, assemelhava-se ao assoalho dos internatos quando não foram varridos durante oito dias e dos quais os criados retiram montões de coisas classificadas entre lixo e trapos. Um olhar mais exercitado do que o da condessa teria dali tirado informações sobre a vida de Schmucke, em algumas cascas de castanhas e de batatas, cascas de ovos vermelhos, pratos quebrados por inadvertência e lambuzados de Sauercraut.[516] Esse detrito alemão formava um tapete de poeirentas imundícies que estralejavam sob os pés e se juntavam a um montão de cinzas que descia majestosamente de uma chaminé de pedra pintada onde presidia um toro de carvão de pedra, diante do qual dois tições tinham o ar de se consumirem.

Em cima da lareira, um aparador antigo com seu espelho, no qual as figuras dançavam uma sarabanda; de um lado, dependurado, o glorioso cachimbo, do outro, um vaso chinês no qual o professor guardava o fumo. Duas poltronas, compradas por acaso, bem como um pequeno leito raquítico e chato, uma cômoda carcomida e sem mármore, uma mesa estropiada sobre a qual se viam os restos de um almoço frugal compunham aquele mobiliário tão simples como o de um wigham[517] de moicanos. Um espelho para barba, suspenso no fecho da janela, sem cortinas, sobre o qual havia um trapo raiado pelas limpezas da navalha, indicava os únicos sacrifícios feitos por Schmucke às elegâncias e à sociedade. O gato, ser fraco e protegido, era o mais bem aquinhoado, gozava de uma velha almofada de bergère junto à qual havia uma xícara e um prato de porcelana branca. Mas o que nenhum estilo poderia descrever era o estado em que Schmucke, o gato e o cachimbo, trindade viva, tinham deixado aqueles móveis. O cachimbo tinha queimado a mesa aqui e ali. O gato e a cabeça de Schmucke tinham engordurado o veludo verde de Utrecht das duas poltronas, tirando-lhe sua rudeza. Se não fosse a esplêndida cauda do gato, que em parte fazia a limpeza da casa, jamais os lugares livres sobre a cômoda ou o piano se veriam limpos. Num canto estavam os sapatos que exigiriam uma descrição épica. O pano da cômoda e o do piano estavam cheios de partituras de música, de dorsos roídos, descolados, de cantos embranquecidos, gastos, nos quais o papelão mostrava suas mil folhas. Ao longo das paredes havia, colados a lacre, os endereços das alunas. O número de placas de lacre indicava os endereços já inúteis. Viam-se no papel cálculos feitos a giz. A cômoda estava enfeitada de canjirões de cerveja tomados na véspera, os quais pareciam novos e brilhantes no meio daquelas velharias e papelada. A higiene estava representada por um jarro de água, tapado por uma toalha, e um pedaço de sabão comum, branco, com escamas azuis, que umedecia o pau-rosa em vários lugares. Dois chapéus, igualmente velhos, achavam-se pendurados num cabide do qual pendia o mesmo sobretudo azul de gola tríplice que a condessa sempre vira em Schmucke. Embaixo da janela havia três potes de flores, sem dúvida flores alemãs, e bem perto delas uma bengala de azevinho. Embora a vista e o olfato da condessa estivessem desagradavelmente impressionados, o sorriso e o olhar de Schmucke ocultaram-lhe aquelas misérias sob raios celestes, que fizeram esplender as tonalidades louras e vivificaram aquele caos. A alma daquele homem divino, que conhecia e revelava tantas coisas divinas, cintilava como um sol. Seu riso tão franco, tão ingênuo, lembrando o de uma de suas santas Cecílias, espalhava os clarões da mocidade, da alegria e da inocência. Derramava os mais queridos tesouros do homem e com eles se fazia um manto que ocultava sua nobreza. O mais desdenhoso parvenu teria achado talvez ignóbil de se lembrar do quadro no qual se agitava aquele magnífico apóstolo da religião musical.

— Eh! Bur que acaza, grida zenhorra condeza? — disse ele. — É breciza que eu ganta as gantigas te Zimeou, no meu idade? — Essa ideia reavivou seu acesso de riso imoderado. — Eu está feliz no amorr? — continuou com um ar esperto. Depois, começou a rir como uma criança. — O zenhorra vem pelo musique, e non por um pobre alma. Eu sabe — disse com ar melancólico —, mas pôde vi pô que quizé, o zenhorra sabe que aqui tudo é do zenhorra, gorpo, alma e pens!

Tomou a mão da condessa, beijou-a deixando cair nela uma lágrima, porque para o pobre-diabo todos os dias eram o dia seguinte ao benefício. Sua alegria dissipa-lhe, por um instante, a recordação, para restituir-lha em toda a sua pujança. Pegou em seguida um giz, pulou para cima da poltrona que estava diante do piano; depois com rapidez de rapaz escreveu no papel com letras grandes: 17 de fevereiro de 1835. Esse gesto tão bonito, tão ingênuo, foi realizado com tão veemente gratidão, que a condessa se sentiu profundamente emocionada.

— Minha irmã virá — disse ela.

— O outra também! Guando? Guando? Que zeja antes de que eu morra — continuou ele.

— Ela virá agradecer-lhe um grande favor que lhe venho pedir por parte dela — disse a condessa.

— Tepressa, tepressa, tepressa — exclamou Schmucke —, que breciza fazer? É breciza ir para o diabo?

— Nada mais do que escrever: Aceito pela importância de dez mil francos, em cada um destes papéis — disse ela, tirando do seu regalo quatro promissórias, preparadas segundo a fórmula de Nathan.

— Ah! Este non vai demora — respondeu o alemão com a mansidão de um cordeiro. — Zó, que eu non zabe onde stá meus penas e minha tinterra. Zai pra forra daí, meu sinhorr Mirr — gritou ele para o gato, o qual o olhou friamente. — Esta é minha gato — disse ele, mostrando o animal à condessa. — É a pobre animal que vive com a pobre do Schmucke. É muito ponita.

— Sim — disse a condessa.

— O zenhorra quer ela?

— Nem por sombras — disse ela. — Não é ele seu amigo?

O gato, que ocultava o tinteiro, adivinhou que Schmucke o queria e saltou para cima da cama.

— Ela é mais esberta que uma magago — disse Schmucke, mostrando-o na cama. — Eu jama ele Mirr, bra glorivigar noza crande Hoffmann,[518] te Perlin, que eu gonezi muita.

O bom homem assinou com a inocência de uma criança que executa o que a mãe manda fazer, sem saber do que se trata, mas com a certeza de que está agindo bem. Preocupava-se mais com a apresentação do gato à condessa do que com os papéis pelos quais sua liberdade podia ser, de acordo com a lei relativa aos estrangeiros, alienada para sempre.

— O zenhorra me azecura que ezes bedazinhos do babel zelados...

— Não tenha a menor inquietação — disse a condessa.

— Eu non dêm nenhum inquiedazon — replicou ele bruscamente. — Eu bregunda si ezes bedazinhos de babel zelados von brestá pro qualqué coze pro madame di Dilet.

— Oh! Sim — disse ela —, presta-lhe um serviço como se fosse seu pai.

— Eu fica muita feliz de brestá qualqué coze pro ela. Esgute um poca de meus musique — disse ele, deixando os papéis na mesa e correndo para o piano.

Já as mãos daquele anjo percorriam o velho teclado, já seu olhar alcançava o céu através do teclado, já o mais delicioso de todos os climas florescia no ar e penetrava a alma; a condessa, porém, não deixou aquele ingênuo intérprete das coisas celestes fazer falar o marfim e as cordas, como o teria feito a santa Cecília de Rafael para os anjos que a ouviam, senão durante o tempo que a tinta levou a secar; introduziu as promissórias no seu regalo, e fez o radioso mestre voltar dos espaços etéreos onde ele planava, batendo-lhe no ombro.

— Meu bom Schmucke — disse ela.

— Chá? — exclamou ele com atroz submissão. — Burque entou veio o zenhorra?

Não murmurou, ergueu-se como um cão fiel para ouvir a condessa.

— Meu bom Schmucke — replicou ela —, trata-se de um assunto de vida ou de morte, os minutos economizam sangue e lágrimas.

— Zempre o mesma — disse ele. — Enton vá zegar os lágrimes dos outros! Zabe non fais mal que o bobre Schmucke gonta mais zeu visite que seus rendes.

— Nós nos tornaremos a ver — disse ela —, o senhor terá de ir fazer música e jantar comigo todos os domingos, sob pena de nos zangarmos. Espero-o no domingo que vem.

— Ferdade?

— Peço-lhe, e minha irmã lhe marcará com certeza também um dia.

— Meu felizidade zerá enton glombete — disse ele — burgue eu non via os zenhorras si non nos Gampes-Elizees, guande o zenhorra bassava de garre, muinte raramente.

Essa ideia secou as lágrimas que lhe caíam dos olhos e ele ofereceu o braço à sua bela aluna, a qual sentiu bater aceleradamente o coração do velho.

— O senhor então pensava em nós? — perguntou ela.

— Zembre guando eu come minha pan — replicou ele. — Brimerra gomo nas minhas benfeitor, e desbos gomo nos das brimerras mozas dignes de amor que eu vi.

A condessa não ousou dizer mais nada; havia naquela frase uma incrível e respeitosa, uma fiel e religiosa solenidade. Aquele quarto enfumarado e cheio de troços era um templo habitado por duas divindades. Ali o sentimento se engrandecia continuamente, sem que o soubessem os que o inspiravam.

“Aqui, pois, nós somos queridas, bem-queridas”, pensou ela.

A emoção com que o velho Schmucke viu a condessa subir ao carro foi partilhada por ela, que, com a ponta dos dedos, lhe enviou um desses delicados beijos que as mulheres se mandam a distância para se dizerem bom-dia. Ante aquele gesto, o velho Schmucke ficou plantado sobre as pernas até muito tempo depois de o carro ter desaparecido. Passados alguns instantes, a condessa entrava no pátio do palácio da sra. de Nucingen. A baronesa não se levantara ainda; mas, para não fazer esperar uma senhora de tão alta posição, ela envolveu-se num xale e num peignoir.

— Trata-se de uma boa ação, senhora — disse a condessa —, e nessas condições a presteza é uma mercê; não fosse isso e eu não a teria vindo importunar tão cedo.

— Como! Mas me sinto extremamente feliz — disse a mulher do banqueiro, apoderando-se dos quatro papéis e da garantia da condessa. Tocou a campainha chamando a camareira. — Teresa, diga ao caixa para que ele mesmo me traga imediatamente quarenta mil francos.

Depois, guardou num compartimento secreto de sua mesa a carta da sra. de Vandenesse, após tê-la lacrado.

— Tem um quarto delicioso, senhora — disse a condessa.

— O sr. de Nucingen vai privar-me dele. Está fazendo construir uma nova casa.

— Vai dar, seguramente, esta à sua filha. Falam do casamento dela com o sr. de Rastignac.

O caixa apareceu no momento em que a sra. de Nucingen ia responder; ela pegou as notas e entregou as quatro promissórias.

— Está em regra, não é? — disse ela ao caixa.

— Non gontando os juros — respondeu este. — Eze Schmucke, ele está um música to Anspach — acrescentou ao ver a assinatura e fazendo a condessa estremecer.

— Não costumo fazer negócios — disse a sra. de Nucingen, fustigando o caixa com um olhar altivo. — Isto só a mim diz respeito.

Por mais que o caixa revirasse os olhos, alternativamente para a condessa e a baronesa, as duas ficaram com o semblante impassível.

— Pode retirar-se, deixe-nos. Tenha a bondade de ficar alguns instantes para que eles não julguem que a senhora tem alguma coisa a ver com esta negociação — disse a baronesa à sra. de Vandenesse.

— Eu lhe pedirei — disse a condessa — que acrescente a tanta complacência o favor de me guardar o segredo sobre o assunto.

— Para uma boa ação, já se deixa ver — respondeu a baronesa, sorrindo. — Vou mandar seu carro para o fundo do jardim; ele sairá sem a senhora; depois nós atravessaremos juntas, ninguém a verá sair daqui; o caso ficará perfeitamente inexplicável.

— A senhora é gentil como uma pessoa que sofreu — disse a condessa.

— Não sei se sou gentil — disse a baronesa. — Sei, sim, que sofri muito; a senhora é que pagou sua gentileza a menor preço, assim espero.

Uma vez dada a ordem, a baronesa calçou umas pantufas forradas, uma capa e conduziu a condessa à pequena porta do jardim.

Quando um homem amadureceu um plano como o que du Tillet tramara contra Nathan, ele não o confia a ninguém. Nucingen sabia alguma coisa a respeito, mas sua mulher estava completamente alheia àqueles cálculos maquiavélicos. Entretanto, a baronesa, que tinha conhecimento dos apertos de Raul, não foi ludibriada pelas duas irmãs; bem percebera ela para que mãos iria aquele dinheiro; mas se sentia feliz em obsequiar a condessa, tanto mais que tinha uma piedade profunda por tais embaraços.

Rastignac, em situação de compreender as manobras dos dois banqueiros, veio almoçar com a baronesa de Nucingen. Delfina e Rastignac não tinham segredos um para o outro, ela contou-lhe, pois, sua cena com a condessa. Rastignac, incapaz de imaginar que a baronesa pudesse jamais ser mesclada àquele assunto, aliás, acessório aos seus olhos, apenas um meio entre outros meios, esclareceu-a. Delfina acabava, talvez, de destruir as esperanças eleitorais de du Tillet, de tornar inúteis os enganos e sacrifícios de um ano inteiro. Rastignac pôs então a baronesa a par do fato, recomendando-lhe segredo sobre o erro que cometera.

— Contanto — disse ela — que o caixa nada diga a Nucingen.

Alguns instantes antes do meio-dia, durante o almoço de du Tillet, anunciaram-lhe a visita do sr. Gigonnet.

— Faça-o entrar — disse o banqueiro, embora a esposa estivesse à mesa. — Então, meu velho Shylock, o homem já está nas grades?

— Não.

— Como? Não lhe disse que era na rue du Mail, no hotel...

— Ele pagou — disse Gigonnet, puxando da carteira quarenta notas de mil francos. Du Tillet fez cara de desespero. — Nunca se devem receber mal os escudos — disse o impassível compadre de du Tillet —, isso pode trazer desgraça.

— Onde conseguiu esse dinheiro, senhora? — disse o banqueiro, dirigindo à mulher um olhar que a fez corar até a raiz dos cabelos.

— Não sei o que significa sua pergunta — disse ela.

— Eu desvendarei esse mistério — respondeu ele, levantando-se, furioso. — A senhora derrubou meus mais caros projetos.

— O senhor vai derrubar seu almoço — disse Gigonnet, que segurou a toalha da mesa que ficara presa ao robe de chambre de du Tillet.

A sra. du Tillet levantou-se friamente para sair, porque aquelas palavras a tinham aterrorizado.

— Minha equipagem — disse ela ao lacaio. — Chame Virgínia que me quero. vestir.

— Aonde vai? — perguntou du Tillet.

— Os maridos bem-educados não interrogam as esposas — respondeu ela —, e o senhor tem a pretensão de portar-se como um gentil-homem.

— De há dois dias estou desconhecendo-a; desde que viu sua impertinente irmã duas vezes.

— O senhor ordenou-me que fosse impertinente — disse ela —, e me estou ensaiando consigo.

— Um seu criado, senhora — disse Gigonnet, pouco curioso de assistir a uma cena conjugal.

Du Tillet olhou fixamente para a esposa, a qual lhe devolveu o olhar sem baixar os olhos.

— Que significa isto? — disse ele.

— Que eu não sou mais uma meninazinha a quem o senhor mete medo — replicou ela. — Sou e serei sempre uma boa e leal esposa para o senhor. Pode, se quiser, ser um senhor, mas um tirano, não!

Du Tillet saiu. Após aquele esforço, Maria Eugênia foi para seus aposentos, abatida. — Sem o perigo que minha irmã está correndo — disse ela a si mesma —, jamais teria tido coragem para afrontá-lo por esse modo, mas como lá diz o ditado, há males que vêm para bem.

Durante a noite a senhora du Tillet repassara na memória as confidências da irmã. Certa da salvação de Raul, sua razão não mais era dominada pelo pensamento daquele perigo iminente. Lembrou-se da energia terrível com que a irmã falara em fugir com Nathan para consolá-lo do desastre, se ela não o impedisse. Compreendeu que aquele homem poderia levar a irmã, por um excesso de gratidão e de amor, a fazer o que a comportada Eugênia considerava uma loucura. Havia, nas altas-rodas, exemplos recentes dessas fugas que pagam prazeres incertos com remorsos, com a desconsideração acarretada pelas posições dúbias, e Eugênia lembrava-se de seus pavorosos resultados. As palavras de du Tillet acabavam de levar seu terror ao auge; ela temia que tudo viesse a ser descoberto; viu a assinatura da sra. de Vandenesse na carteira da casa Nucingen; quis convencer a irmã que confessasse tudo a Félix. A sra. du Tillet não encontrou a condessa. Félix estava em casa. Uma voz íntima bradou a Eugênia que salvasse a irmã. Talvez que amanhã fosse tarde. Atreveu-se a muito, mas resolveu tudo dizer ao conde. Não seria ele indulgente, vendo sua honra ainda a salvo? A condessa estava mais transviada do que pervertida. Eugênia teve medo de ser indigna e traidora, divulgando segredos que a sociedade guarda em peso de acordo nisso, mas viu afinal o futuro da irmã, tremeu de vê-la um dia, só, arruinada por Nathan, pobre, doente, infeliz, desesperada; não hesitou mais e solicitou ao conde que a recebesse. Félix, admirado com aquela visita, teve com a cunhada uma longa conversação, durante a qual se mostrou tão calmo e tão senhor de si que ela ficou trêmula de receio de o ver tomar alguma resolução terrível.

— Fique tranquila — disse-lhe Vandenesse —, procederei de modo que a senhora será um dia abençoada pela condessa. Seja qual for sua repugnância em guardar segredo em relação a ela, depois de me ter avisado, peço-lhe que me faça crédito de alguns dias. Poucos dias me são necessários para penetrar mistérios que a senhora não vislumbra, e sobretudo para agir com prudência. É possível que saiba tudo num momento! Somente eu sou culpado, minha irmã. Todos os amantes fazem o seu joguinho; mas nem todas as mulheres têm a sorte de ver a vida como ela é.

A sra. du Tillet saiu tranquilizada.

IX – O TRIUNFO DO MARIDO

Félix de Vandenesse foi imediatamente ao Banco de França retirar quarenta mil francos e correu à casa da sra. de Nucingen: encontrou-a, agradeceu-lhe a confiança que ela depositara em sua esposa e restituiu-lhe o dinheiro. O conde explicou aquele empréstimo misterioso pelas loucuras de uma beneficência à qual quisera pôr limites.

— Não me dê explicações de espécie alguma, senhor — disse a sra. de Nucingen —, visto a sra. de Vandenesse ter-lhe confessado tudo.

“Ela sabe de tudo”, pensou Vandenesse.

A baronesa entregou a carta de garantia e mandou buscar as quatro promissórias. Vandenesse, enquanto isso, dirigiu à baronesa o olhar atilado dos homens de Estado, quase que a inquietou e julgou a hora propícia para uma negociação.

— Vivemos numa época, senhora, na qual nada é firme — disse-lhe ele. — Os tronos se erguem e desaparecem em França com uma rapidez espantosa. Bastam quinze anos para liquidar um grande império, uma monarquia e também uma revolução. Ninguém se atreveria a tomar sobre si responsabilidades pelo futuro. A senhora conhece a minha dedicação à legitimidade. Tais palavras nada têm de extraordinário nos meus lábios. Imagine uma catástrofe: não se sentiria feliz em ter um amigo no partido que triunfasse?

— Com certeza — disse ela sorrindo.

— Pois bem! Quer ter em mim, secretamente, uma pessoa grata, que poderia, se se desse o caso, manter para o sr. de Nucingen o pariato a que ele aspira?

— Que quer o senhor de mim? — exclamou ela.

— Pouca coisa — replicou ele. — Tudo o que a senhora sabe a respeito de Nathan.

A baronesa repetiu-lhe a conversação que tivera pela manhã com Rastignac e disse ao ex-par de França, ao restituir as quatro promissórias que fora receber do caixa:

— Não esqueça a sua promessa.

Vandenesse esqueceu tão pouco aquela prestigiosa promessa que a fez reluzir ante os olhos do barão de Rastignac, para obter dele algumas outras informações.

Ao sair da casa do barão, ele ditou, para Florina, a um escrivão público, a seguinte carta:

Se a srta. Florina quer saber qual é o primeiro papel que ela representará, fica convidada a vir ao próximo baile da Ópera, fazendo-se acompanhar pelo sr. Nathan.

Uma vez posta essa carta no correio, foi à casa de seu procurador, rapaz muito hábil e decidido, embora honesto; pediu-lhe que representasse o papel de um amigo ao qual Schmucke teria contado a visita da sra. de Vandenesse, por se ter inquietado tardiamente com a significação das palavras — Aceito por dez mil francos, repetidas quatro vezes, o qual iria pedir ao sr. Nathan uma promissória de quarenta mil francos como contravalor. Era um jogo perigoso. Nathan podia já ter sabido como as coisas se tinham arrumado, mas era preciso arriscar um pouco para ganhar muito.

Na sua perturbação, Maria bem podia ter esquecido de pedir ao seu Raul um documento para Schmucke. O agente de negócios foi imediatamente ao jornal e, às cinco horas, voltou triunfante à casa do conde, com um contravalor de quarenta mil francos; logo às primeiras palavras trocadas com Nathan, ele tinha podido dizer que era enviado pela condessa.

Esse êxito obrigava Félix a impedir a esposa de ver Nathan até à hora do baile da Ópera, ao qual ele pretendia levá-la, e deixou que, por si mesma, ela se inteirasse da natureza das relações de Nathan com Florina. Ele conhecia a ciumenta altivez da condessa; queria fazer com que ela renunciasse espontaneamente ao seu amor, não lhe dar motivo para corar ante ele e mostrar-lhe a tempo suas cartas a Nathan vendidas por Florina, a quem ele contava comprá-las. Esse plano tão bem arquitetado, tão rapidamente concebido, em parte executado, devia falhar por um capricho do acaso, que tudo modifica na terra. Depois do jantar, Félix orientou a conversação sobre o baile da Ópera, ao notar que Maria jamais lá fora, e propôs-lhe o divertimento para o dia seguinte.

— Eu lhe darei alguém para que você o intrigue — disse ele.

— Ah! Me dará muito prazer.

— Para que o brinquedo seja excelente, uma mulher deve atirar-se contra uma bela presa, uma celebridade, um homem de espírito e desnorteá-lo. Queres que eu te entregue Nathan? Terei, por alguém que conhece Florina, uns quantos segredos que o deixarão louco.

— Florina? — disse a condessa. — A atriz?

Maria já ouvira esse nome dos lábios de Quillet, o servente do escritório do jornal; como um relâmpago ele lhe atravessou a alma.

— Pois sim! A amante dele — respondeu o conde. — Que tem isso de estranho?

— Eu julgava que o sr. Nathan estivesse demasiado ocupado para ter uma amante. Os autores têm tempo para amar?

— Não digo que eles amem, querida; mas são obrigados a morar em algum lugar como todos os outros homens e, quando não têm um domicílio próprio, quando são importunados pelos guardas do comércio, eles moram na casa da amante, o que lhe pode parecer licencioso, mas é infinitamente mais agradável do que morar na prisão.

O fogo não era tão vermelho quanto as faces da condessa.

— Quer que ele seja sua vítima? Você o assombrará — disse o conde, continuando, sem dar atenção ao semblante da mulher. — Eu a porei em condições de lhe provar que ele está servindo de joguete, como um criança, nas mãos de seu cunhado du Tillet. Esse miserável o quer levar à prisão, a fim de incapacitá-lo de se apresentar como seu competidor no distrito eleitoral por onde Nucingen foi eleito. Sei por um amigo de Florina a quantia produzida pela venda de sua mobília, a qual ela lhe deu para fundar o jornal; sei o que ela lhe deu da colheita que foi fazer este ano nos departamentos e na Bélgica, dinheiro que em definitivo vai beneficiar a du Tillet, a Nucingen e a Massol. Todos os três, antecipadamente, venderam o jornal ao ministério, tal a certeza que têm de lograr aquele grande homem.

— O sr. Nathan é incapaz de ter aceitado o dinheiro de uma atriz.

— Você não conhece essa gente, minha querida; ele não lhe negará o fato.

— Irei com certeza ao baile.

— Vai divertir-se — disse Vandenesse. — Com semelhantes armas, você vai fustigar rudemente o amor-próprio de Nathan e lhe prestará um serviço. Você vai vê-lo enfurecer-se, acalmar-se, saltar sobre seus epigramas picantes! Embora gracejando, você esclarecerá um homem de espírito sobre o perigo em que ele se acha e terá a alegria de infligir uma derrota aos cavalos do Meio-Termo[519] em sua própria coudelaria... Não me ouves mais, filhinha...

— Pelo contrário, ouço-o muito — respondeu ela. — Mais tarde lhe direi o motivo pelo qual quero ter certeza de tudo isso.

— Certeza! — replicou Vandenesse. — Conserva a máscara e eu te farei cear com Nathan e Florina; será bem divertido para uma mulher da tua categoria intrigar uma atriz depois de ter feito cabriolar o espírito de um homem célebre em torno de segredo tão importante; tu os atrelarás um e outro no mesmo engodo. Vou pôr-me na pista das infidelidades de Nathan. Se puder apanhar detalhes de alguma aventura recente, poderás gozar a cólera de uma cortesã, coisa magnífica; a ira a que Florina se entregará vai ferver como uma torrente dos Alpes; ela adora Nathan, ele é tudo para ela; ela lhe está presa como a carne aos ossos, como a leoa aos seus filhotinhos. Lembro-me de ter visto, na minha mocidade, uma atriz célebre, que escrevia como uma cozinheira, ao vir reclamar suas cartas a um amigo meu; nunca mais vi um espetáculo igual àquele, o furor tranquilo, a impertinente majestade, a atitude selvagem... Estás sentindo alguma coisa, Maria?

— Não, fizeram fogo muito forte.

A condessa foi atirar-se numa conversadeira. Repentinamente, por um desses movimentos impossíveis de prever e sugerido pelas dores devoradoras do ciúme, ela ergueu-se nas pernas, trêmula, cruzou os braços e veio lentamente à frente do marido.

— Que sabes tu? — perguntou-lhe. — Não és homem para torturar-me; tu me esmagarias sem me fazer sofrer, no caso de eu ser culpada.

— Que queres que eu saiba, Maria?

— Pois bem! Nathan.

— Tu julgas amá-lo — replicou ele —, mas amas um fantasma feito com frases.

— Então, sabes?

— Tudo.

Essa palavra caiu como uma clava sobre a cabeça de Maria.

— Se quiseres, jamais saberei nada — continuou ele. — Estás num abismo, minha filha, é preciso tirar-te dele. Já pensei nisso. Toma.

Tirou do bolso do lado a carta de garantia e as quatro promissórias de Schmucke, que a condessa reconheceu, e atirou-as no fogo.

— Que seria de ti, Maria, daqui a três meses? Ias ver-te arrastada pelos beleguins ante os tribunais. Não baixes a cabeça, não te humilhes; foste o ludíbrio dos mais belos sentimentos, flertaste com a poesia e não com um homem. Todas as mulheres, todas, ouviste, Maria?, teriam, em teu lugar, sido seduzidas. Não seríamos absurdos, nós os homens, que fizemos mil loucuras em vinte anos, de querer que vocês não sejam imprudentes uma única vez na vida? Deus me preserve para triunfar de ti ou de te acabrunhar com uma piedade, que faz poucos dias tu repelias tão vivamente. É possível que esse infeliz fosse sincero quando te escrevia, sincero ao suicidar-se, sincero ao voltar naquela mesma noite para a casa de Florina. Nós valemos menos do que vocês. Neste momento, não falo por mim, falo por ti. Sou indulgente; mas a sociedade não o é; ela foge da mulher que dá um escândalo, não quer que se acumule uma felicidade completa e a consideração. Será isso justo? Não saberia dizê-lo. O mundo é cruel, eis tudo. É possível que seja mais invejoso em conjunto do que tomado em detalhe. Sentado na plateia, um ladrão aplaude o triunfo da inocência e lhe roubará as joias na saída. A sociedade recusa acalmar os males que engendra; confere honrarias aos hábeis enganos, e não tem recompensas para as dedicações ignoradas. Sei e vejo tudo isso; mas, se não posso reformar o mundo, pelo menos me é possível proteger-te contra ti mesma. Trata-se aqui de um homem que nada mais te traz senão misérias, e não um desses amores santos e sagrados que impõem por vezes nossa abnegação, que carregam consigo sua desculpa. É possível que eu tenha feito mal em não variar tua felicidade, de não ter oposto a prazeres tranquilos prazeres ardorosos, viagens, distrações. Aliás, posso explicar-me o desejo que te empurrou para um homem célebre, pela inveja que causaste a certas mulheres. Lady Dudley, a sra. d’Espard, a sra. de Manerville e minha cunhada Emília têm parte em tudo isso. Essas mulheres, contra as quais eu te prevenira, terão cultivado tua curiosidade mais para me causar aborrecimentos do que para te atirar em tormentas que, assim o espero, terão rugido por sobre ti sem te atingirem.

Ao ouvir aquelas palavras impregnadas de bondade, a condessa sentiu-se dominada por mil sentimentos contrários, mas esse vendaval foi dominado por uma viva admiração por Félix. As almas nobres e altivas reconhecem prontamente a delicadeza com que as manejam. Esse tato é para os sentimentos o que a graça é para o corpo. Maria apreciou aquela grandeza solícita em se baixar aos pés de uma mulher culpada, para não a ver corar. Fugiu como uma louca e voltou trazida pela inquietação que seu gesto podia causar ao marido.

— Espera — disse-lhe ela ao desaparecer.

Félix habilmente tinha-lhe preparado a desculpa; ele foi imediatamente recompensado por sua habilidade, pois sua mulher voltou, trazendo nas mãos todas as cartas de Nathan, e entregou-lhas.

— Julgue-me — disse ela pondo-se de joelhos.

— Pode alguém estar em condições de julgar quando ama? — respondeu ele. Pegou as cartas e atirou-as no fogo, pois, mais tarde, sua mulher poderia não lhe perdoar o tê-las lido. Maria, com a cabeça sobre os joelhos do conde, debulhava-se em pranto. — Minha filha, onde estão as tuas? — disse ele, erguendo-lhe a cabeça.

A essa pergunta, a condessa não sentiu mais o intolerável calor que sentia nas faces, teve frio.

— Para que não suspeites teu marido de caluniar o homem que julgaste digno de ti, eu te farei restituir tuas cartas pela própria Florina.

— Oh! Por que não as restituiria ele, a meu pedido?

— E se ele recusasse?

A condessa baixou a cabeça.

— A sociedade me enoja — replicou ela —, não quero mais frequentá-la; viverei sozinha perto de ti, se me perdoas.

— Tu poderias te aborrecer outra vez. De resto, que diria o mundo se o desertasses bruscamente? Na primavera, viajaremos, iremos à Itália, percorreremos a Europa, enquanto esperamos que tenhas mais de um filho a criar. Não estamos dispensados de ir ao baile da Ópera amanhã, porque não poderemos ter tuas cartas de outra forma sem nos comprometermos, e, ao trazê-las, não demonstrará Florina bem o seu poder?

— E verei isso? — perguntou a condessa, apavorada.

— Depois de amanhã, de manhã.

No dia seguinte, cerca da meia-noite, no baile da Ópera, Nathan estava passeando no foyer, dando o braço a uma mascarada com ar bastante marital. Após duas ou três voltas, duas mulheres mascaradas o abordaram.

— Pobre tolo! Estás te perdendo, Maria está aqui e te vê — disse a Nathan Vandenesse, que se disfarçara de mulher.

— Se me quiseres ouvir, saberás segredos que Nathan te ocultou e que te informarão dos perigos que o teu amor por ele corre — disse a tremer a condessa a Florina.

Nathan soltara bruscamente o braço de Florina para seguir o conde, que se furtara ao seu olhar, por entre a multidão. Florina foi sentar-se ao lado da condessa, que a guiou para uma banqueta ao lado de Vandenesse, o qual voltara para proteger a mulher.

— Explica-te, querida — disse Florina —, e não penses que me vais fazer de boba por muito tempo. Ninguém no mundo me arrancará Raul, fique sabendo; eu o tenho preso pelo hábito, que vale bem o amor.

— Primeiro que tudo, és tu, Florina? — disse Félix, retomando sua voz natural.

— Boa pergunta! Se não o sabes, como queres que te acredite, seu farsante?

Nessa horrível conjuntura, Raul deu uma violenta sacudida no braço de Florina, que não contava com aquela manobra; e embora o estivesse agarrando com força, foi obrigada a soltá-lo. Nathan imediatamente perdeu-se por entre a multidão.

— Que te dizia eu? — gritou Félix ao ouvido de Florina, estupefata, ao dar-lhe o braço.

— Vamos — disse ela —, quem quer que sejas, vem. Tens um carro?

Por única resposta, Vandenesse levou Florina precipitadamente e correu a juntar-se com a esposa num lugar convencionado, sob o peristilo. Em poucos instantes, os três mascarados, levados celeremente pelo cocheiro de Vandenesse, chegaram à casa da atriz, a qual tirou a máscara. A sra. de Vandenesse não pôde conter um estremecimento de surpresa ante o aspecto de Florina, que estava sufocada de raiva, soberba, de ira e de ciúme.

— Há — disse-lhe Vandenesse — uma certa pasta cuja chave jamais lhe foi confiada, as cartas devem estar nela.

— Agora, sim, estou intrigada. Tu sabes qualquer coisa que me inquietava já fazia muitos dias — disse Florina, precipitando-se no gabinete para ir buscar a pasta.

Vandenesse sentiu que a esposa empalidecia sob a máscara. O quarto de Florina dizia mais da intimidade da atriz e de Nathan do que uma amante ideal houvesse querido saber. Os olhos de uma mulher sabem penetrar a verdade dessa espécie de coisas num momento, e a condessa percebeu na promiscuidade dos objetos do casal um atestado do que lhe dissera Vandenesse. Florina voltou com a pasta.

— Como abri-la? — disse ela.

A atriz mandou buscar o facão da cozinheira e, quando a camareira o trouxe, Florina brandiu-o dizendo com ar sarcástico:

— É com isto que se degolam os frangos.[520]

Essa palavra fez a condessa estremecer e explicou-lhe melhor do que o fizera seu marido na véspera a profundidade do abismo onde escapara de mergulhar.

— Que tola sou eu! — disse Florina. — A navalha dele é melhor.

Foi buscar a navalha com a qual Nathan acabara de se barbear e cortou as dobras do marroquim que se abriu e deixou as cartas de Maria passearem. Florina tomou uma ao acaso.

— Sim, é bem de uma mulher da alta-roda! Têm-me o ar de não ter um erro de ortografia.

Vandenesse pegou as cartas, deu-as à esposa, a qual foi, sobre a mesa, verificar se estavam todas.

— Queres cedê-las em troca disto? — disse Vandenesse, estendendo para Florina a promissória de quarenta mil francos.

— Que idiota é ele de assinar semelhante documento!... Bom para bilhetes — disse Florina ao ler a promissória. — Ah! Eu te darei condessas! E eu, que me matava de corpo e alma na província para conseguir-lhe dinheiro, eu que seria capaz de aguentar a cantilena de um cambista para salvá-lo! Assim são os homens: quando a gente se condena às penas do inferno por eles, eles nos pisoteiam! Ele me pagará!

A sra. de Vandenesse fugira com as cartas.

— Epa! Vem cá, linda mascarada! Deixa-me uma que seja, para convencê-lo.

— Não é mais possível — disse Vandenesse.

— E por quê?

— Porque aquela mascarada é a tua rival.

— Ora essa! Podia pelo menos ter-me dito obrigada — exclamou Florina.

— E por que ficas então com os quarenta mil francos? — disse Vandenesse, saudando-a.

É extremamente raro que uma pessoa moça, impelida ao suicídio, recomece, depois de lhe ter sofrido as dores. Quando o suicida não se cura da vida, cura-se da morte voluntária. Por isso Raul não teve mais vontade de se matar, quando se viu numa situação mais terrível ainda do que aquela da qual queria sair, ao achar sua promissória a Schmucke nas mãos de Florina, que evidentemente a recebera do conde de Vandenesse. Tentou rever a condessa para explicar-lhe a natureza de seu amor, o qual brilhava em seu coração mais do que nunca. Mas a primeira vez que, em sociedade, a condessa viu Raul, ela dirigiu-lhe esse olhar fixo e de desprezo que põe um abismo intransponível entre uma mulher e um homem. Não obstante sua prosápia, não se atreveu, nunca mais, durante o resto do inverno, nem a falar à condessa nem a abordá-la.

Entretanto, abriu-se com Blondet: quis, a propósito da sra. de Vandenesse, falar-lhe de Laura e de Beatriz. Fez a paráfrase daquela linda passagem devida à pena de um dos mais notáveis poetas daquele tempo.


Ideal, flor azul, de coração de ouro, cujas raízes fibrosas, mil vezes mais tênues que as tranças de seda das fadas, mergulham no fundo de nossa alma para aí beber-lhe a mais pura substância; flor doce e amarga! Não se te pode arrancar sem fazer que o coração sangre, sem que tua haste partida deixe transmudarem gotas vermelhas! Ah!, flor maldita, como ela vicejou em minha alma!


— Estás caducando, meu caro — disse-lhe Blondet. — Concedo-te que havia uma bonita flor, mas não era absolutamente ideal e, em vez de contar como um cego ante um nicho vazio, deverias pensar em lavar-te as mãos para fazer tua submissão ao poder e te colocar. És demasiado grande artista para seres um homem político, foste enganado por gente que não te valia. Pensa em te fazer enganar outra vez, mas em outro lugar.

— Maria não poderá impedir-me de amá-la — disse Nathan. — Farei dela a minha Beatriz.

— Meu caro, Beatriz era uma meninota de doze anos que Dante não tornou mais a ver; se não fosse assim, teria ela sido Beatriz? Para fazer-se de uma mulher uma divindade, não devemos vê-la, hoje, com um mantelete, amanhã, com um vestido decotado, depois de amanhã, no bulevar, regateando brinquedos para o último filhinho. Quanto se tem Florina, que é alternativamente duquesa de vaudeville, burguesa de drama, negra, marquesa, coronel, camponesa suíça, Virgem do Sol no Peru — seu único modo de ser virgem —, não sei como se possa aventurar com uma dama da alta sociedade.

Du Tillet, em termos de Bolsa, executou Nathan, que, por falta de dinheiro, abandonou sua parte no jornal. O homem célebre não teve mais do que cinco votos no distrito onde o banqueiro foi eleito.

Quando, após uma longa e feliz viagem pela Itália, a condessa de Vandenesse voltou a Paris, no inverno seguinte, Nathan havia justificado todas as previsões de Félix; de acordo com os conselhos de Blondet, ele negociava com o poder. Quanto aos assuntos pessoais desse escritor, estavam eles em tal desordem que um dia, nos Champs-Élysées, a condessa Maria viu seu antigo adorador a pé, no mais triste trajo, dando o braço a Florina. Um homem indiferente já é passavelmente feio aos olhos de uma mulher, mas, quando ela não mais o ama, ele se lhe afigura horrível, sobretudo quando se parece com Nathan. A sra. de Vandenesse teve um gesto de pejo ao lembrar-se de que se tinha interessado por Nathan. Se não estivesse curada de qualquer paixão extraconjugal, o contraste que apresentava agora o conde, comparado com aquele homem, já menos digno da simpatia do público, bastaria para fazê-la preferir o marido a um anjo.

Hoje, aquele ambicioso, tão rico de tinta e tão pobre em querer, acabou por capitular e. por se alojar numa sinecura, como um homem medíocre. Depois de ter apoiado todas as tentativas desorganizadoras, ele vive em paz, à sombra de uma folha ministerial. A cruz da Legião de Honra, texto fecundo dos seus gracejos, orna-lhe a lapela. A paz a qualquer preço, sobre a qual ele fizera viver a redação de um jornal revolucionário, é o objeto de seus artigos laudatórios. A hereditariedade, tão atacada, com suas frases san-simonistas, é hoje por ele defendida com a autoridade da razão. Essa conduta ilógica tem sua origem e autoridade na mudança de frente de algumas pessoas que durante nossas últimas evoluções políticas agiram como Raul.

Jardies, dezembro de 1883

 

 

                                                   Honoré de Balzac         

 

 

 

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