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A COMÉDIA HUMANA - Livro 8 / Honoré de Balzac
A COMÉDIA HUMANA - Livro 8 / Honoré de Balzac

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Começa com este volume a série das Cenas da vida parisiense. Tal afirmação talvez surpreenda os leitores que seguem a presente edição desde o começo, pois poderá haver cena mais parisiense do que O pai Goriot (incluído nas Cenas da vida privada) ou como a segunda parte de Ilusões perdidas (colocada entre as Cenas da vida provinciana)? Na realidade, essas subdivisões de A comédia humana não se excluem; as oscilações do próprio autor, que mais de uma vez retirava determinada cena de um dos grupos para colocá-la em outro, mostram que elas não correspondem a características congênitas inconfundíveis; frequentemente obedecem a meras conveniências editoriais, como, por exemplo, a exigência de fazer volumes de espessura mais ou menos igual etc.
A reunião de três “episódios” sob o título comum de História dos Treze (em francês: Histoire des Treize) é menos casual do que o agrupamento de outros romances e novelas sob títulos coletivos, como Os celibatários ou Os parisienses na província, adotados também muitas vezes pela necessidade de juntar várias obras para fazer um volume. Desde o princípio, essa história devia constar de várias narrativas e, significativamente, o Prefácio foi escrito antes dos episódios.
A ideia central destes é, pois, a sociedade de “treze homens que recomeçam a Sociedade de Jesus em proveito do Diabo”. Esses treze amigos, cuja amizade permanece um segredo aos olhos do mundo, juraram que se ajudariam reciprocamente em todas as circunstâncias da vida. Cada vez que um deles se encontra em dificuldades, os outros, esquecidos das contingências de sua própria existência, lá estão para auxiliá-lo. O imperativo da amizade é a sua lei suprema, que domina todas as outras, e impõe silêncio a quaisquer escrúpulos de caráter moral.
Não há na associação dos Treze nenhum conceito superior, nenhum ideal teórico. O absoluto devotamento de todos está à disposição de cada um, não apenas para afastar um perigo como também para satisfazer um capricho, transformar em realidade uma fantasia. Vê-se que a ideia não podia ser mais romântica. Aceita-se a força do indivíduo como critério moral; para torná-la maior, treze indivíduos resolvem concentrar seus recursos em proveito de cada um.

 


 


Houve sob o Império, em Paris, treze homens igualmente tocados pelos mesmos sentimentos, dotados de energia assaz grande para serem fiéis à mesma ideia, suficientemente probos para se não traírem uns aos outros, mesmo quando seus interesses se encontrassem em oposição, profundamente políticos para dissimularem os sagrados laços que os uniam, bastante fortes para se colocarem acima de todas as leis, audaciosos a ponto de tudo empreenderem e felizes de modo a obterem êxito, quase sempre, em seus desígnios; corriam os maiores perigos e sabiam calar as suas derrotas; inacessíveis ao medo, não sabiam o que fosse tremer nem diante do rei nem à frente do carrasco nem perante a inocência. Haviam-se associado tais como eram, sem levar em conta preconceitos sociais; criminosos, sem dúvida; mas assinalavam-se por algumas das qualidades que fazem os grandes homens e só se recrutavam entre pessoas de escol. Finalmente, para que nada faltasse ao sombrio e misterioso encanto desta história, permaneceram esses treze homens para sempre desconhecidos, embora tenham todos realizado as mais bizarras ideias sugeridas à imaginação pelo fantástico poderio falsamente atribuído aos Manfredos, aos Faustos, aos Melmoths[1]; e todos, no presente, vencidos, pelo menos, dispersados, voltando tranquilamente ao jugo das leis civis, tal como Morgan, o Aquiles dos piratas,[2] que, depois de ter sido o terror dos mares, se fez colono pacífico e desfrutou, sem remorsos, ao calor da lareira doméstica, os milhões acumulados no sangue, sob o rubro clarão dos incêndios.

Depois da morte de Napoleão, um acaso, que o autor deve calar, dissolveu os laços daquela existência secreta, curiosa, tanto quanto o pode ser o mais negro dos romances da sra. Radcliffe.[3] A estranha permissão para contar a seu modo algumas das aventuras desses homens, embora respeitando certas conveniências, só recentemente lhe foi dada por um desses heróis anônimos aos quais toda a sociedade esteve secretamente submetida, e no qual acredita ter surpreendido um vago desejo de celebridade.

Tal homem, jovem ainda na aparência, de cabelos louros e olhos azuis, cuja voz suave e clara parecia denunciar uma alma feminina, era pálido de rosto e misterioso de maneiras, conversava com amabilidade, pretendia não ter mais que quarenta anos e podia pertencer às mais altas classes sociais. O nome que assumira parecia suposto; na sociedade, sua pessoa era desconhecida. Quem era? Ninguém o sabia.

Confiando ao autor as coisas extraordinárias que lhe revelou, talvez quisesse o desconhecido vê-las de qualquer modo impressas e gozar as emoções que despertariam no coração do povo — sentimento análogo ao que agitava Macpherson[4] ao ver o nome de Ossian, sua criatura, inscrever-se em todas as línguas. Era essa, decerto, para o advogado escocês, uma das sensações mais vivas, ou, pelo menos, das mais raras que os homens se possam permitir. Não é isso o incógnito do gênio? Escrever o Itinerário de Paris a Jerusalém[5] é tomar parte na glória humana de um século, mas dotar o seu país de um Homero não será usurpar o poder de Deus?

O autor conhece demais as leis da narrativa para ignorar os compromissos a que o obriga este curto prefácio, mas conhece bastante a História dos Treze para estar certo de jamais se encontrar aquém do interesse que deve inspirar tal programa. Foram-lhe confiados dramas gotejantes de sangue, comédias cheias de terror, romances em que rolam cabeças secretamente cortadas, e, se algum dos leitores não estivesse já farto dos horrores que vêm sendo servidos ao público há algum tempo, poderia revelar-lhe aqui frias atrocidades, surpreendentes tragédias de família, por pouco que lhe fosse testemunhado o desejo de conhecê-las; mas escolheu, de preferência, as aventuras mais suaves, aquelas em que cenas puras se sucedem a temporais de paixão e nas quais a mulher aparece radiosa de virtude e de beleza. Para honra dos Treze, encontram-se dessas aventuras na sua história, a qual talvez tenha um dia a glória de ser comparada à dos flibusteiros, essa gente à parte, tão curiosamente enérgica e tão atraente, apesar dos seus crimes.

O autor deve evitar converter a narrativa, quando verdadeira, numa espécie de caixa de surpresas, e levar o leitor, à maneira de certos romancistas, durante quatro volumes, de subterrâneo a subterrâneo, para mostrar-lhe um cadáver ressequido e dizer-lhe, à guisa de conclusão, que o assustou constantemente com uma porta oculta nalguma tapeçaria e com um morto deixado por descuido debaixo do assoalho.

Malgrado sua aversão aos prefácios, o autor teve de lançar estas linhas no princípio deste fragmento. Ferragus é um primeiro episódio que se liga por invisível trama à História dos Treze, cujo poderio, naturalmente conquistado, só por si pode explicar certos acontecimentos de aparência sobrenatural. E, embora seja permitido aos contistas uma certa vaidade literária, ao tornarem-se historiadores devem renunciar às vantagens que proporciona a aparente bizarria dos títulos sobre os quais se edificam hoje rápidos êxitos. Também o autor explicará sucintamente aqui as razões que o obrigaram a aceitar cabeçalhos aparentemente pouco naturais.

ferragus é, conforme antigo costume, nome tomado por um chefe dos “Devoradores”. No dia da eleição tais chefes continuavam a dinastia devorantesca cujo nome mais lhes agradava, tal como fazem os papas, no dia da investidura, quanto às dinastias pontificais. Têm assim os Devoradores seus Trempe-la-Soupe ix, Ferragus xxii, Tutanus xiii, Masche-Fer iv, do mesmo modo que a Igreja possui seus Clemente xiv, Gregório ix, Júlio ii, Alexandre vi[6] etc.

Agora, que são os Devoradores? “Devoradores” era o nome de uma das tribos de “Companheiros” oriundas outrora da grande associação mística formada entre os obreiros da cristandade para reconstruir o templo de Jerusalém.

A “Companheiragem” está ainda de pé na França entre o povo. Suas tradições tão poderosas sobre cabeças pouco esclarecidas e em gente não instruída o bastante para que possam faltar aos seus juramentos poderiam servir a empreendimentos formidáveis se algum rude gênio quisesse apoderar-se de suas sociedades. Com efeito, todos os instrumentos são ali quase cegos; e, de cidade em cidade, existe para os Companheiros, desde tempos imemoriais, uma “Obade”, espécie de albergue de pernoite mantido por uma Mère, meio boêmia, que nada tem a perder, bem informada de tudo o que se passa no lugar e devotada, por medo ou por longo hábito, à tribo que, particularmente, alimenta e aloja. Enfim essa gente cambiante mas submetida a imutáveis costumes pode ter olhos por toda parte, pode executar qualquer vontade sem a julgar, pois o mais velho dos Companheiros está ainda na idade em que se acredita em alguma coisa. Professam, aliás, doutrinas assaz verdadeiras e assaz misteriosas para eletrizar patrioticamente todos os adeptos, se forem suficientemente desenvolvidas. Demais, o apego dos Companheiros às suas leis é tão apaixonado que as diversas tribos travam entre si sangrentos combates na defesa de simples questões de princípios. Felizmente para a ordem pública atual, quando um Devorador é ambicioso, constrói casas, faz fortuna e deixa a Companheiragem.

Haveria ainda muita coisa curiosa a dizer sobre os Companheiros do Dever, rivais dos Devoradores, e sobre todas as diferentes seitas de obreiros, sobre seus usos e costumes, sua fraternidade e as relações entre eles e a franco-maçonaria; mas aqui tais minúcias ficariam deslocadas.

Assim, acrescentará apenas o autor que não era raro, na antiga Monarquia, encontrar-se um Trempe-la-Soupe, a serviço do rei, com lugar nas galés por cento e um anos, mas dominando sempre a tribo e por ela consultado a distância, religiosamente. Demais, ao deixar a sua prisão, tinha a certeza de encontrar auxílio, socorro e respeito em todos os lugares. Ver seu chefe nas galés não era, para a tribo fiel, mais que uma dessas desgraças pelas quais só a Providência é responsável, não dispensando os Devoradores de obedecer ao poder criado por eles e acima deles. Era o exílio momentâneo do seu legítimo rei, e para eles sempre rei. Hoje, porém, o prestígio romanesco ligado aos nomes de Ferragus e dos Devoradores está completamente dissipado.

Quanto aos Treze, o autor se acha bastante autorizado pelos detalhes desta história quase romanesca para dispensar também um dos mais belos privilégios do romancista de que há exemplo, privilégio que no Châtelet[7] da literatura poderia ser adjudicado a alto preço e impor ao público tantos volumes quantos lhe ofereceu a Contemporânea.[8] Os Treze eram homens da têmpera de Trelawney,[9] o amigo de Lord Byron que foi, ao que se diz, o modelo do “Corsário”;[10] todos fatalistas, pessoas de coração e de poesia, mas entediados da vida monótona que levavam e arrastados para deleites asiáticos por forças tanto mais excessivas e furiosas ao despertarem quanto mais tempo adormecidas.

Certo dia, um deles, depois de reler Veneza preservada,[11] admirando a união sublime de Pedro e Jaffeir, pensou nas virtudes particulares dos homens lançados à margem da ordem social, na probidade das prisões, na mútua fidelidade dos ladrões, nos privilégios do exorbitante poderio que tais homens sabem conquistar, confundindo todos os pensamentos numa só vontade. Achou o homem maior que os homens. Presumiu que a sociedade devia pertencer, inteiramente, a pessoas distintas que, à sua inteligência natural, aos conhecimentos adquiridos e à fortuna, juntassem um fanatismo tão vivo que fundisse num único bloco essas diferentes forças. Desde então, imensa de ação e de intensidade, essa oculta potência, contra a qual estaria sem defesa a ordem social, abateria os obstáculos, fulminaria as vontades e daria a cada um o poder diabólico de todos. Essa sociedade à parte na sociedade, hostil à sociedade, não admitindo nenhuma das ideias da sociedade, não reconhecendo nenhuma das suas leis, não se submetendo senão à consciência de sua necessidade, não obedecendo senão ao próprio devotamento, agiria inteiramente por um único dos associados quando qualquer deles reclamasse a assistência de todos. Essa vida de flibusteiros de luvas amarelas e carruagem; essa íntima união de gente superior, fria e escarninha, sorrindo e amaldiçoando, no seio de uma sociedade mesquinha e falsa; a certeza de fazer tudo dobrar-se a um capricho, de urdir com habilidade uma vingança e de viver em treze corações; a felicidade contínua de ter um segredo de ódio em face dos homens, de estar sempre armado contra eles, de poder recolher-se em si mesmo com uma ideia a mais que as pessoas mais notáveis; essa religião de prazer e de egoísmo fanatizou treze homens que recomeçaram a Sociedade de Jesus em proveito do Diabo.

Foi sublime e horrível. O pacto se fez. E durou precisamente porque parecia impossível.

Houve assim em Paris treze irmãos que se pertenciam e se desconheciam na sociedade; que se reuniam à noite como conspiradores, não escondendo uns aos outros um só pensamento e valendo-se um após outro de uma fortuna comparável à do Velho da Montanha.[12] Tinham os pés em todos os salões, as mãos em todos os cofres e os cotovelos nas ruas, as cabeças em todos os travesseiros, e, sem escrúpulos, faziam tudo obedecer à própria fantasia. Nenhum chefe os comandava e ninguém poderia arrogar-se tal poder; prevalecia apenas a paixão mais viva, a circunstância mais exigente.

Foram treze reis desconhecidos, mais realmente reis e mais que reis, juízes e carrascos, que, munindo-se de asas para percorrer a sociedade de alto a baixo, nela nada quiseram ser, porque nela podiam tudo. Se o autor souber das causas da sua abdicação, há de dizê-las.

Agora, pode começar a narrativa dos três episódios que, nesta história, mais particularmente o seduziram pelo sabor parisiense dos detalhes e pela bizarria dos contrastes.

 

 

Paris, 1831

 

 

FERRAGUS
OU O CHEFE DOS DEVORADORES

A HECTOR BERLIOZ[13]

 

 

I — A SRA. JÚLIO DESMARETS

Há em Paris certas ruas tão desonradas quanto pode sê-lo um homem culpado de infâmia, e depois existem ruas nobres, ruas simplesmente honestas, ruas jovens sobre cuja moralidade o público não formou ainda opinião, ruas assassinas, ruas mais velhas que velhas viúvas endinheiradas, ruas estimáveis, ruas sempre asseadas e ruas sempre sujas, ruas operárias, trabalhadoras, mercantis. As ruas de Paris têm, enfim, qualidades humanas, e suas fisionomias nos sugerem certas ideias contra as quais nos vemos indefesos.

Há ruas de má companhia onde não desejaríamos morar e ruas onde estabeleceríamos de boa vontade a nossa residência. Algumas, tal como a Rue Montmartre, possuem uma bela cabeça e terminam em cauda de peixe. A Rue de la Paix é uma rua larga, uma grande rua; mas não desperta nenhum dos pensamentos graciosamente nobres que surpreendem uma alma sensível em plena rua real e falta-lhe, certamente, a majestade que reina na Place Vendôme.

Se passardes pelas ruas da Île St-Louis,[14] não indagueis a razão da tristeza nervosa que se apodera da gente ante a solicitude e o ar melancólico das casas e dos grandes edifícios desertos. Essa ilha, cadáver dos coletores gerais, é como que a Veneza de Paris.

A Place de la Bourse é tagarela, ativa, prostituída; só é bonita ao luar, pelas duas da madrugada: de dia é uma síntese de Paris; de noite, um sonho da Grécia.

A Rue Traversière Saint-Honoré não é, acaso, uma rua de infâmia? Há nela pequenas casas de duas aberturas onde se encontram em cada andar crimes, vícios e misérias. As ruas estreitas expostas ao vento norte, onde o sol só penetra três ou quatro vezes por ano, são ruas assassinas que matam impunemente. A Justiça hoje não se mete nisto; mas antigamente o Parlamento teria talvez chamado o tenente de polícia para o vituperar “por causas tais” e teria pelo menos emitido alguma sentença contra a rua, tal como o fez contra as perucas do cabido de Beauvais. Não obstante, o sr. Benoiston de Châteauneuf[15] provou que a mortalidade nessas ruas era superior em dobro à das outras. Para resumir tais ideias num exemplo, a Rue Fromenteau não é ao mesmo tempo mortífera e de má vida?

Estas observações incompreensíveis fora de Paris serão, sem dúvida, compreendidas por esses homens de estudo e pensamento, de poesia e de prazer, que sabem colher, flanando por Paris, os íntimos prazeres que flutuam a qualquer hora entre as suas muralhas; por aqueles que veem em Paris o mais delicioso dos monstros: aqui, mulher bonita; mais longe, velha e feia; lá, nova em folha como a moeda de um novo reino; neste recanto, elegante como uma mulher da moda. Monstro completo, aliás. Suas águas-furtadas são-lhe a cabeça cheia de ciência e de gênio; os primeiros andares, estômagos felizes; suas lojas, verdadeiros pés; deles saem todos os transeuntes e todos os ocupados.

E que vida ativa tem o monstro! Apenas o último rodar das últimas carruagens de baile lhe cessa no coração, já os braços se agitam nas barreiras e ele se espreguiça lentamente. Todas as portas bocejam, giram sobre os gonzos, como as membranas de uma imensa lagosta, invisivelmente manobradas por trinta mil homens ou mulheres, cada um dos quais vive no espaço de seis pés quadrados, onde tem uma cozinha, um ateliê, um leito, filhos e um jardim, onde não vê claro e onde tudo deve ver.

Invisivelmente, as articulações estalam, o movimento se comunica, a rua fala. Ao meio-dia tudo está vivo, as chaminés fumegam, o monstro come; depois ruge e suas mil patas se agitam. Belo espetáculo.

Mas, ó Paris!, quem não haja admirado tuas paisagens sombrias, tuas fugas de luz, teus becos profundos e silenciosos; quem não tenha ouvido teus murmúrios entre meia-noite e duas horas não conhece ainda tua verdadeira poesia nem teus bizarros e grandes contrastes. Há porém um pequeno número de amadores, pessoas que não andam de cabeça no ar, que saboreiam a sua Paris, cuja fisionomia lhes é tão familiar que nela veem até uma verruga, uma espinha, uma pinta rubra. Para os outros, Paris é sempre a monstruosa maravilha, espantosa reunião de movimentos, de máquinas e de ideias, a cidade dos cem mil romances, a cabeça do mundo.

Mas, para aqueles, Paris é triste ou alegre, feia ou bela, viva ou morta; para eles, Paris é uma criatura; cada pessoa, cada fração de prédio é um lóbulo do tecido celular da grande cortesã da qual conhecem perfeitamente a cabeça, o coração e os fantásticos costumes. São os amantes de Paris: levantam o nariz em certa esquina, seguros de lá encontrar o quadrante de um relógio; dizem a um amigo cuja tabaqueira se encontre vazia: “Toma por tal passagem, há uma tabacaria à esquerda junto ao pasteleiro que possui uma linda mulher”. Viajar por Paris é para tais poetas um luxo caro. Como não conceder alguns minutos aos dramas, aos desastres, aos rostos, aos pitorescos acidentes que os assaltam nesta movimentada rainha das cidades, vestida de cartazes, que não tem ao menos um canto de seu, tanto é complacente para com os vícios do povo francês?

A quantos não aconteceu sair pela manhã de casa para ir às extremidades de Paris sem ter podido deixar o centro até a hora de jantar? Esses saberão desculpar este exórdio vagabundo que, entretanto, resume uma observação eminentemente útil e nova, tanto quanto uma observação pode ser nova em Paris, onde nada é novo, nem mesmo a estátua inaugurada na véspera, sobre a qual um moleque já rabiscou o nome.

Há, pois, ruas ou fins de ruas, certas casas, desconhecidas da maior parte das pessoas da alta sociedade, nas quais uma mulher que lhe pertencesse não poderia entrar sem que pensassem dela coisas cruelmente injuriosas. Quer seja rica e tenha carruagem, quer se encontre a pé ou disfarçada em qualquer desses desfiladeiros do meandro parisiense, compromete a sua reputação de mulher honesta. Mas, se, por acaso, ela lá estiver às nove horas da noite, as conjeturas que um observador pode formular tornam-se pavorosas em suas consequências. Enfim, se tal mulher é jovem e bonita, se entra nalguma casa de uma dessas ruas; se tem esta um corredor longo e sombrio, úmido e malcheiroso; se ao fim do corredor tremeluz o frouxo clarão de uma lâmpada e sob ele se desenha a figura horrível de uma velha de dedos descarnados; na verdade, dizemo-lo no interesse das mulheres jovens e lindas, tal mulher está perdida. Fica à mercê do primeiro homem que a conheça e a encontre nesses charcos parisienses.

Há porém ruas em Paris em que tal encontro pode tornar-se um drama espantosamente horrível, um drama cheio de sangue e de amor, um drama segundo a escola moderna. Desgraçadamente esta convicção, essa dramaticidade, como o drama moderno, só será compreendida por poucos; e não será uma grande lástima contar uma história a um público que não lhe alcança todo o mérito local? Quem pode aliás gabar-se de ter sido sempre compreendido? Morremos todos desconhecidos. Esse é o lema das mulheres e dos autores.

Às oito e meia da noite na Rue Pagevin, no tempo em que nela não havia uma só parede onde não se repetisse um palavrão, e na direção da Rue Soly, a mais estreita e impraticável das ruas de Paris, sem excetuar a esquina menos frequentada da mais deserta das ruas, em começos de fevereiro, há cerca de treze anos, um rapaz, por um dos tais acasos que não acontecem duas vezes na vida, contornava, a pé, a esquina da Rue Pagevin para entrar na Rue des Vieux-Augustins, pelo lado direito, onde, precisamente, se encontra a Rue Soly.

Nesse ponto o jovem, que residia na Rue de Bourbon, percebeu na mulher a poucos passos da qual caminhava muito descuidadamente vagas semelhanças com a mais linda das mulheres de Paris, uma casta e deliciosa criatura pela qual vivia secretamente apaixonado, e sem esperanças: era casada.

Seu coração deu um salto; um calor intolerável brotou-lhe do diafragma e passou-lhe por todas as veias; sentiu arrepios na espinha e um rápido latejar correu-lhe a fronte. Amava, era moço, conhecia Paris, e a sua perspicácia não lhe permitia ignorar tudo o que havia de comprometedor para uma mulher elegante, rica, bonita e moça em andar por ali, a passos criminosamente furtivos.

Ela, naquele lamaçal e àquela hora! O amor que o jovem dedicava àquela mulher poderá parecer muito romanesco, tanto mais quanto se tratava de um oficial da Guarda Real. Se fosse da infantaria, a coisa ainda seria verossímil; mas, oficial superior da cavalaria, pertencia à arma francesa que exige maior rapidez nas conquistas e que se orgulha tanto de seus hábitos amorosos quanto da própria farda. Não obstante, a paixão do oficial era verdadeira e a muitos corações jovens parecerá grande. Amava-a, porque era virtuosa e amava nela a virtude, a graça decente, a santidade que se impunha, como os mais apreciados tesouros de sua paixão ignorada. Era mulher verdadeiramente digna de inspirar um desses amores platônicos que se encontram como flores entre ruínas sanguinolentas, na história da Idade Média; digna de ser secretamente o motivo de todas as ações de um moço; amor tão alto, tão puro como o céu quando é azul; amor sem esperança ao qual a gente se prende porque não engana nunca; amor pródigo de gozos refreados, sobretudo na idade em que o coração é ardente, a imaginação aguçada e os olhos sabem ver claro.

Encontram-se em Paris singulares efeitos noturnos, bizarros e inconcebíveis. Só os que se divertiram a observá-los sabem como a mulher se torna fantástica ao lusco-fusco. Nele, ora a criatura que seguimos por acaso, ou de propósito, nos parece esbelta; ora as meias, se são bem brancas, nos fazem acreditar em pernas finas e elegantes; ora o busto, embora envolto num xale ou numa peliça, se revela jovem e voluptuoso na sombra; ora, enfim, a claridade incerta duma loja ou de um lampião dá à desconhecida um brilho fugitivo, quase sempre enganador, que desperta, incendeia a imaginação e a lança para além da realidade. Os sentidos se alvoroçam então, tudo se colore e se anima; a mulher toma aspecto inteiramente novo; seu corpo se embelece; por momentos não é mais uma mulher, mas um demônio, um fogo-fátuo que nos arrasta, por ardente magnetismo, até uma casa honesta onde a pobre burguesa, de medo de nossos passos ameaçadores ou das botas ressonantes, fecha-nos a porta na cara sem olhar-nos.

O clarão vacilante que projetava a vitrina de uma sapataria iluminou, de súbito, precisamente na altura dos quadris, o talhe da mulher que caminhava à frente do jovem. Ah, decerto, só ela era assim torneada! Somente ela possuía o segredo desse andar casto que dá inocentemente relevo à beleza das formas atraentes. Eram aqueles o seu xale e o seu chapéu de veludo. Em suas meias de seda gris não havia um salpico; em seus sapatos, nenhuma lama. O xale estava colado sobre o busto desenhando-lhe vagamente as curvas deliciosas, e o jovem, que contemplara aquelas brancas espáduas nos bailes, sabia todos os tesouros que ele encobria.

Pelo modo como uma parisiense se envolve em seu xale, pelo modo como ergue o pé na rua, um homem de espírito adivinha o segredo de sua caminhada misteriosa. Há qualquer coisa de palpitante, de leveza na pessoa e no andar: a mulher parece pesar menos, vai, ou melhor, desliza como uma estrela e voa levada por um pensamento que os movimentos e as pregas do vestido atraiçoam.

O rapaz apressou o passo, passou pela mulher e voltou-se para vê-la... Pst! Havia desaparecido num corredor cuja porta de postigo e campainha batia e soava. O jovem voltou e viu a mulher subir, ao fim do corredor, e recebendo os obsequiosos cumprimentos de uma velha porteira, os primeiros degraus, fortemente iluminados, de tortuosa escada; e subia lestamente, vivamente, como o faria uma mulher impaciente.

“Impaciente por quê?”, pensou o jovem, que recuou para se colar à parede do outro lado da rua. E contemplou o infeliz todos os andares da casa com a atenção de um agente de polícia à procura de um conspirador.

Era uma casa como milhares de outras em Paris, ignóbil, vulgar, estreita, amarelecida pelo tempo, de quatro andares de três janelas. A loja e o porão pertenciam ao sapateiro. As persianas do primeiro andar estavam cerradas. Aonde iria a senhora? O rapaz acreditou ouvir o retinir de uma sineta no apartamento do segundo andar. Efetivamente, uma luz se agitou numa peça de duas janelas fortemente iluminadas e passou à terceira, cuja obscuridade deixava adivinhar uma primeira peça, sem dúvida sala de visitas ou de jantar do apartamento. Mal a silhueta de um chapéu se desenhou vagamente, a porta fechou-se, a primeira peça tornou a ficar escura e os dois últimos caixilhos retomaram seus tons rubros. Nesse instante o rapaz ouviu:

— Cuidado!

E recebeu um golpe na espádua.

— Não presta atenção a nada! — gritou-lhe um operário que levava uma longa prancha ao ombro. O trabalhador passou. Foi como que o homem da Providência, dizendo ao curioso:

— Em que te vens meter? Cuida do teu serviço e deixa aos parisienses os seus pequenos casos.

O jovem cruzou os braços e, não sendo visto por ninguém, deixou correr pelas faces lágrimas de raiva sem as enxugar. A vista das sombras que deslizavam pelas duas janelas iluminadas fazia-lhe mal. Olhou por acaso para a parte superior da Rue des Vieux-Augustins e viu um carro parado ao longo de uma parede num lugar onde não havia nem porta de casa nem luz de loja.

Será ela? Não será ela? A vida ou a morte para um apaixonado. E o enamorado esperava. Ficou ali durante um século de vinte minutos. A mulher desceu, afinal, e ele reconheceu aquela a quem amava secretamente! Entretanto, duvidava ainda. A desconhecida dirigiu-se para o carro e subiu.

“A casa estará sempre aqui, poderei noutra ocasião examiná-la”, pensou o jovem, que seguiu o carro a correr a fim de dissipar suas últimas dúvidas, que logo se desvaneceram.

O carro parou na Rue Richelieu, diante de uma loja de flores, próximo à Rue de Ménars. A dama desceu, entrou na loja, mandou o dinheiro devido ao cocheiro e saiu depois de escolher algumas plumas de marabu. Plumas para os seus cabelos negros! Morena, aproximara da cabeça as penas para apreciar o efeito. O oficial acreditava ouvir a conversa da mulher com a florista:

— Senhora, não há o que fique melhor nas morenas. As morenas têm contornos demasiado vivos e as plumas dão-lhes às toilettes o flou que lhes falta. A duquesa de Langeais costuma dizer que isto dá à mulher qualquer coisa de vago, ossiânico,[16] perfeito.

— Bem, remeta-mas sem demora.

A seguir a dama caminhou lestamente para a Rue de Ménars e entrou em casa. Quando se fechou a porta do edifício em que residia, o jovem apaixonado, perdidas todas as esperanças e, dupla infelicidade, suas crenças mais amadas, andou por Paris como um ébrio e encontrou-se logo depois em casa sem saber como lá chegara. Atirou-se numa poltrona junto à lareira, pôs os pés no guarda-fogo e, com a cabeça entre as mãos, deixou secar as botas molhadas, queimando-as até. Vivia um momento espantoso, um desses momentos de vida humana em que se modifica o caráter e em que a conduta do melhor dos homens depende da felicidade ou da infelicidade de seu primeiro ato. Providência ou fatalidade, escolhei.

Pertencia o jovem a uma boa família cuja nobreza não era, entretanto, muito antiga; mas há tão poucas famílias antigas hoje em dia que todos os jovens são antigos sem contestação. Seu avô adquirira um cargo de conselheiro no Parlamento de Paris, do qual se tornara presidente. Seus filhos, providos todos de belas fortunas, conseguiram funções públicas e, por suas alianças, chegaram à Corte. A Revolução varrera a família; dela restou, porém, uma única velha e teimosa representante que não quisera emigrar; que, presa, ameaçada de morte e salva a 9 de Termidor,[17] recuperara seus bens. Fez voltar em tempo útil, lá por 1804, seu neto Augusto de Maulincour, último dos Charbonnon de Maulincour, que foi educado pela boa senhora com tríplices cuidados de mãe, de nobre dama e de chefe de família. Depois, quando veio a Restauração, o jovem, então com dezoito anos, entrou para a Casa Vermelha,[18] acompanhou os príncipes a Gand,[19] foi feito oficial da escolta, de onde saiu para servir nas forças de linha; foi depois chamado para a Guarda Real, onde se encontrava então, aos vinte e três anos, chefe de esquadrão de um regimento de cavalaria, posição soberba, devida à avó, que, não obstante a idade, conhecia muito bem seu mundo. Esta dupla biografia é o resumo da história geral e particular, salvo variantes, de todas as famílias que emigraram, que possuíam dívidas e bens e velhas parentes ricas de trato social.

A sra. baronesa de Maulincour tinha como amigo o velho vidama de Pamiers, antigo comendador da Ordem de Malta. Era uma dessas amizades eternas fundadas em laços sexagenários, que nada pode matar, porque no fundo dessas relações há sempre segredos do coração humano, admiráveis de se adivinhar quando se tem tempo, mas insípidos de explicar em vinte linhas e que dariam uma obra de quatro volumes, interessantes como podem sê-lo os de O deão de Killerine,[20] uma dessas obras de que falam os moços, julgando-as sem nunca as ter lido.

Augusto de Maulincour pertencia, pois, ao Faubourg Saint-Germain[21] por sua avó e pelo vidama, e era-lhe suficiente datar o nome de dois séculos para tomar os ares e as opiniões dos que pretendem remontar até Clóvis.[22] Aquele rapaz pálido, alto e delgado, de aparência delicada, homem de honra e de verdadeira coragem, que se batia em duelo por um sim ou por um não, não se vira ainda em nenhum campo de batalha, mas trazia à lapela a cruz da Legião de Honra. Era, como se vê, uma das culpas vivas da Restauração, talvez a mais perdoável.

A juventude daquele tempo não foi a juventude de época alguma: encontrou-se entre as recordações do Império e as lembranças do exílio, entre as velhas tradições da Corte e os estudos conscienciosos da burguesia, entre a religião e os bailes de máscaras, entre duas correntes políticas, entre Luís xviii, que só via o presente, e Carlos x, que via longe demais, obrigada a respeitar a vontade do rei ainda que a realeza se enganasse.

Essa juventude incerta a respeito de tudo, cega e clarividente, não foi levada em conta absolutamente pelos velhos ciosos de guardar em suas mãos débeis as rédeas do Estado, enquanto a monarquia poderia ter sido salva pela sua exoneração e com o acesso ao poder dessa jovem França da qual mofam ainda os velhos doutrinários, imigrados da Restauração.

Augusto de Maulincour era vítima das ideias que pesavam então sobre a mocidade e eis aqui o porquê: o vidama era ainda, aos sessenta e sete anos, um homem de espírito que muito vira e muito vivera, bom conversador, homem de honra, cavalheiresco, mas conservava a respeito das mulheres as opiniões mais detestáveis: amava-as e desprezava-as. Quanto à honra e aos sentimentos das mulheres? Histórias, bagatelas, momices! Junto das mulheres, outrora monstros, nelas confiava, não as contradizia nunca, gabava-as. Entre amigos, porém, ao vir o assunto à discussão, o vidama sustentava o princípio de que enganar as mulheres, conduzir várias intrigas amorosas a um tempo devia ser toda a ocupação dos rapazes, que se desencaminhavam ao querer meter-se nos negócios do Estado. É desagradável ter-se de traçar retrato tão antiquado. Não figurou ele por toda parte? E, literalmente, não está quase tão gasto como o de um granadeiro do Império? Mas o vidama teve sobre o destino de De Maulincour tal influência que é necessário assinalá-la; ele o moralizava a seu modo e queria convertê-lo às doutrinas do grande século da galanteria.

A avó, mulher terna e piedosa, posta entre o vidama e Deus, modelo de graça e doçura, mas dotada de uma persistência de bom gosto que de tudo triunfava com o tempo, quis conservar no neto as belas ilusões da vida, e educou-o nos melhores princípios; transmitiu-lhe todas as suas finuras e fez dele um homem tímido, verdadeiro tolo na aparência. A sensibilidade do rapaz conservada pura não se gastou exteriormente, e ele permaneceu tão pudico, tão cheio de melindres, que o ofendiam vivamente atos e palavras a que a sociedade não dava importância alguma. Envergonhado de tal suscetibilidade, o rapaz procurava escondê-la sob uma falsa confiança, e sofria em silêncio; e ria, com os outros, das coisas que só ele admirava.

Desse modo enganou a si próprio, pois, segundo um capricho muito comum do destino, encontrou no objeto de sua primeira paixão, ele, o homem das doces melancolias, espiritualista no amor, uma mulher que abominava o sentimentalismo alemão. O jovem duvidou de si mesmo, tornou-se sonhador e mergulhou nos seus pesares, lamentando-se por não ser compreendido. Depois, como desejamos mais violentamente as coisas que nos são mais difíceis de alcançar, continuou a adorar as mulheres com essa engenhosa ternura, essas felinas delicadezas, cujo segredo lhes pertence e do qual querem talvez conservar o monopólio.

E realmente, embora as mulheres se queixem de ser mal-amadas pelos homens, gostam pouco, todavia, daqueles cuja alma é meio feminina. Toda a sua superioridade consiste em fazer crer aos homens que eles lhe são inferiores no amor; abandonam assim muito satisfeitas um namorado bastante inexperiente para lhes arrebatar os temores com que se querem enfeitar: os deliciosos tormentos do falso ciúme, as perturbações da esperança enganada, as vãs esperas, enfim todo o cortejo de suas boas fraquezas femininas têm horror aos Grandisson.[23] Que haverá de mais contrário à sua natureza que um amor perfeito e sossegado? Querem é emoções, e a felicidade sem tormentas não é mais felicidade para elas. As almas femininas suficientemente fortes para colocar o infinito no amor constituem angélicas exceções e são entre as mulheres aquilo que entre os homens são os gênios. As grandes paixões são raras como as obras-primas. E, fora desse amor, não há senão arranjos, irritações passageiras, desprezíveis como tudo o que é pequeno.

Em meio aos secretos desastres do seu coração, durante a busca de uma mulher que pudesse compreendê-lo, busca que, diga-se de passagem, é a grande loucura amorosa da nossa época, Augusto encontrou na sociedade mais afastada da sua, na segunda camada da gente de dinheiro, em que os grandes banqueiros ocupam a primeira fila, uma criatura perfeita, uma dessas mulheres que têm não sei quê de santo e de sagrado, que inspiram tanto respeito, que o amor sente necessidade dos socorros de uma grande familiaridade para se declarar. Augusto entregou-se por completo às delícias da mais profunda, da mais tocante das paixões, a um amor puramente admirativo.

Teve inumeráveis desejos reprimidos; nuanças de paixão tão vagas e tão profundas, tão fugitivas e tão impressionantes que não sabemos a que compará-las; parecem perfumes, névoas, raios de sol, sombras, tudo o que na natureza pode brilhar um momento e desaparecer, avivar-se e morrer, deixando no coração largas emoções.

Desde que a alma seja ainda bastante jovem, para gerar a melancolia, as longínquas esperanças, sabendo encontrar na mulher mais que a mulher, não será a maior felicidade que pode acontecer a um homem amar tanto que lhe permita sentir mais alegria em tocar numa luva branca, em roçar nuns cabelos, em ouvir uma frase, em deitar um olhar do que na posse mais ardente de um amor feliz? Assim, as pessoas repelidas, as feias, as infelizes, os amantes desconhecidos, as mulheres e os homens tímidos, só eles conhecem os tesouros que encerram a voz da pessoa amada. Tendo sua origem e seu princípio na própria alma, as vibrações do ar carregado de fogo põem tão violentamente os corações em comunicação, transportam tão lucidamente os pensamentos, são tão pouco mentirosas, que uma só inflexão é, muitas vezes, um desenlace. Quanto encantamento não prodigaliza ao coração de um poeta o timbre harmonioso de uma doce voz! Quantos pensamentos ele não desperta! Quanto lenitivo não expande! O amor está na voz, antes mesmo de confessado pelo olhar.

Augusto, poeta ao modo dos amantes (entre os poetas que sentem e os que exprimem, os primeiros são os mais felizes), saboreara todas as primícias do contentamento, tão grandes e tão fecundas. Ela era dotada da garganta mais suave do que a que pudesse desejar a mais artificiosa das mulheres para iludir à vontade; possuía a voz argêntea, doce aos ouvidos, que só se faz estrepitosa para o coração que perturba e comove, que acaricia abalando. E essa mulher ia à noite à Rue Soly, junto à Rue Pagevin, e sua furtiva aparição numa casa infame acabava de matar a mais magnífica das paixões! A lógica do vidama triunfava.

“Se ela trai o marido, este e eu nos vingaremos”, pensou Augusto.

E havia ainda amor naquele se... A dúvida filosófica de Descartes[24] é uma polidez com a qual sempre se deve honrar a virtude.

Soaram dez horas. Nesse momento o barão de Maulincour lembrou-se de que a amada devia ir a um baile, numa casa a que ele tinha acesso. Vestiu-se num instante, partiu, chegou, procurou-a disfarçadamente pelos salões. Vendo-o tão azafamado, disse-lhe a sra. de Nucingen:[25]

— Não vê a sra. Desmarets, não é? Ela ainda não veio.

— Boa noite, querida — disse uma voz.

Augusto e a sra. de Nucingen voltaram-se. A sra. Desmarets chegava, vestida de branco, simples e nobre, toucada precisamente com as plumas que o jovem barão a vira escolher na loja de flores. Essa voz de amor feriu o coração de Augusto. Se houvesse conquistado o menor direito de demonstrar-lhe ciúme, tê-la-ia petrificado dizendo-lhe: “Rue Soly!”. Mas, quando ele, um estranho, houvesse repetido mil vezes tais palavras ao ouvido da sra. Desmarets, ela lhe teria perguntado, com espanto, o que queria dizer. Olhou-a, assim, com um ar estúpido.

Para as pessoas maldosas que de tudo riem, é talvez um grande divertimento conhecer o segredo de uma mulher, saber que sua castidade mente, que sua fisionomia calma esconde pensamentos profundos, que há algum drama espantoso sob sua fronte pura. Mas existem certas almas a que tal espetáculo contrista realmente, e muitos dos que dele riem, de volta a casa, sozinhos com a sua consciência, maldizem a sociedade e desprezam tal mulher. Assim se achava Augusto de Maulincour em presença da sra. Desmarets. Situação esquisita! Não existiam entre eles senão as relações que se estabelecem na sociedade entre pessoas que trocam algumas palavras sete ou oito vezes em cada inverno, e ele pretendia pedir-lhe contas de uma felicidade que ela ignorava e a julgava sem lhe fazer conhecer a acusação.

Muitíssimos jovens estiveram em situação igual, regressando à casa, desesperados por haver rompido para sempre com uma mulher que adoram em segredo, e em segredo condenada e desprezada. Surgem então monólogos ditos às paredes de um reduto solitário, tempestades nascidas e acalmadas sem saírem do fundo dos corações, admiráveis cenas do mundo moral para as quais faltam pintores.

A sra. Desmarets foi sentar-se, deixando o marido, que deu volta ao salão. Ao sentar-se ficou um tanto constrangida e, embora conversando com a vizinha, lançava um olhar furtivo a Júlio Desmarets, seu marido, corretor de câmbio do barão de Nucingen.

O sr. Desmarets era, cinco anos antes do casamento, auxiliar de um corretor de câmbio, e não possuía então outra fortuna senão os magros vencimentos de caixeiro. Era, porém, desses homens aos quais a desventura ensina antecipadamente as coisas da vida e que seguem em linha reta com a tenacidade de um inseto que quer chegar à toca; um desses moços teimosos que se fingem de mortos ante os obstáculos e cansam todas as paciências com uma paciência de bicho-de-conta. Muito moço, possuía, assim, todas as virtudes republicanas dos povos pobres: era sóbrio, avaro do seu tempo, inimigo dos prazeres. Esperava. A natureza havia-lhe concedido, além disso, as imensas vantagens de um exterior agradável. Sua fronte calma e serena, um corte de rosto plácido mas expressivo, modos simples, tudo nele revelava uma existência laboriosa e resignada, a alta dignidade pessoal que se impõe, e a secreta nobreza de coração que resiste a todas as situações. Sua modéstia inspirava certo respeito a quantos o conheciam. Solitário em plena Paris, não via a sociedade senão de relance durante os breves momentos em que atravessava os salões do patrão, nos dias de festa.

Havia nesse rapaz, como na maior parte das pessoas que vivem assim, paixões surpreendentemente profundas; paixões demasiado grandes para se comprometerem com pequenos incidentes. Sua pobreza o obrigava a uma vida austera e ele dominava suas fantasias com enorme trabalho. Depois de empalidecer sobre as cifras ele repousava, experimentando, obstinadamente, adquirir o conjunto de conhecimentos hoje necessários a quem quer que deseje fazer-se notado na sociedade, no comércio, no foro, na política ou nas letras.

O único escolho que encontram essas belas almas é exatamente a sua probidade. Veem uma moça pobre, enamoram-se, casam-se e passam a existência a se debater entre o amor e a miséria. Suas maiores ambições se extinguem no caderno das despesas do lar. Júlio Desmarets deu em cheio nesse escolho. Certo dia viu em casa do patrão uma jovem criatura da mais rara beleza. Os infelizes privados de afeto, que consomem as belas horas da juventude em longos trabalhos, têm o privilégio dos rápidos progressos da paixão em seus corações desertos e mal julgados. Têm tanta certeza de bem amar, tão depressa se concentram as suas forças na mulher de que se enamoram que, perto desta, recebem deliciosas sensações, não lhes dando, muita vez, nenhuma... É esse de todos os egoísmos o mais lisonjeiro para a mulher que sabe adivinhar essa aparente imobilidade da paixão e essas feridas tão profundas que requerem tempo para aparecer à superfície humana. Essas pobres criaturas, anacoretas em plena Paris, fruem todos os gozos dos anacoretas e podem por vezes sucumbir às suas tentações; mas, as mais das vezes enganados, traídos, mal compreendidos, raramente se lhes permite colher os doces frutos de tal amor, que, para eles, é sempre como uma flor caída do céu.

Um sorriso da jovem, uma só inflexão da voz foram suficientes para que Júlio Desmarets concebesse uma paixão sem limites. Felizmente, o fogo concentrado dessa paixão secreta revelou-se ingenuamente naquela que a inspirava. E ambos se amaram religiosamente. Para tudo dizer em poucas palavras, eles se deram as mãos, sem constrangimento, em meio da sociedade, como duas crianças, irmão e irmã, que quisessem atravessar uma multidão onde todos lhes cedessem lugar, admirando-os.

A jovem criatura se encontrava num desses terríveis estados em que o egoísmo coloca certas crianças: não tinha estado civil, e seu nome, Clemência, e sua idade foram estabelecidos por justificação judicial. Quanto aos seus bens, consistiam em pouca coisa. Júlio Desmarets tornou-se o mais feliz dos homens ao conhecer tais infelicidades. Se Clemência pertencesse a uma família opulenta, teria desesperado de obtê-la; era, porém, uma pobre filha do amor, o fruto de alguma terrível paixão adulterina: casaram-se.

Começou então para Júlio Desmarets uma série de acontecimentos felizes. Todos invejaram a sua felicidade e os ciumentos o acusaram logo de ser apenas feliz, sem fazer justiça nem às suas virtudes nem à sua coragem.

Alguns dias após o casamento da filha, a mãe de Clemência, que passava na sociedade por sua madrinha, aconselhou Júlio Desmarets a comprar um cargo de corretor de câmbio, prometendo-lhe arranjar o dinheiro necessário. Naquela época tais cargos se obtinham ainda a preços moderados. Uma tarde, na própria sala onde trabalhava, um capitalista propôs a Júlio Desmarets, em vista da recomendação da sogra, a transação mais vantajosa possível, cedendo-lhe os fundos necessários à exploração de tal privilégio, e no dia seguinte o feliz auxiliar adquiria o escritório do seu patrão. Em quatro anos Desmarets tornou-se um dos membros mais ricos de sua corporação; ótimos clientes se acrescentaram ao número dos que lhe legara o predecessor.

Inspirava confiança sem limites e era-lhe impossível desconhecer, pelo modo por que os negócios se lhe apresentavam, a influência oculta da sogra ou uma secreta proteção que atribuía à Providência.

Ao cabo de três anos Clemência perdeu a madrinha. Já então o sr. Júlio, que assim chamavam para distingui-lo do irmão mais velho, que ele conseguira fazer tabelião em Paris, possuía cerca de duzentas mil libras de renda. Não havia em Paris exemplo de felicidade igual à que gozava o casal. Durante cinco anos esse amor excepcional só fora perturbado por uma calúnia da qual Júlio tirara a mais retumbante vingança. Um de seus antigos camaradas atribuíra à mulher a fortuna do marido, que ele explicava ser fruto de alguma proteção adquirida por alto preço. O caluniador foi morto em duelo.

A paixão profunda dos dois esposos, resistindo ao casamento, obtinha da sociedade os mais elogiosos comentários, embora contrariasse muitas mulheres. O belo par era respeitado e todos o festejavam. Gostavam sinceramente deles, talvez porque não há nada mais agradável do que ver gente feliz; mas não ficavam nunca por muito tempo nos salões, e deles saíam impacientes por atingir o seu ninho em voo rápido como dois pombos extraviados.

Esse ninho situava-se aliás num grande e belo edifício da Rue de Ménars, onde o gosto artístico temperava o luxo que a gente das finanças continua a ostentar, por tradição, e no qual os esposos recebiam magnificamente, embora os deveres sociais pouco os atraíssem. Contudo, Júlio suportava a sociedade, sabendo que, cedo ou tarde, pode uma família ter necessidade dela; a mulher e ele, porém, nela se encontravam como plantas de estufa em meio de um temporal.

Por natural delicadeza Júlio ocultara cuidadosamente à mulher a calúnia e a morte do caluniador que quase destruíra sua felicidade. Clemência era levada por sua natureza delicada e artística a amar o luxo. E, malgrado a lição do duelo, algumas mulheres imprudentes cochichavam que ela deveria achar-se frequentemente constrangida. Os vinte mil francos que lhe dava o marido para a toilette e para suas fantasias não eram suficientes, segundo seus cálculos, para as despesas. De fato encontravam-na muitas vezes mais elegante em casa que na sociedade. Gostava de se enfeitar só para o marido, querendo mostrar-lhe assim que, para ela, ele era mais que a sociedade. Amor verdadeiro, amor puro, feliz acima de tudo, tanto como pode ser um amor publicamente clandestino.

Também Júlio, sempre apaixonado, dia a dia mais amoroso, completamente feliz junto à mulher, inquietava-se até de não lhe notar caprichos, como se isso fosse sintoma de doença.

Augusto de Maulincour tivera a infelicidade de se chocar contra aquela paixão e de enamorar-se daquela mulher a ponto de perder a cabeça. Entretanto, embora trouxesse no coração amor tão sublime, não se mostrava ridículo. Deixava-se levar por todas as exigências dos costumes militares; mas, mesmo bebendo uma taça de champanhe, tinha esse ar sonhador, esse mudo desdém pela existência, essa fisionomia nebulosa que, por diversos motivos, têm as pessoas blasées, as pessoas pouco satisfeitas de uma vida oca e os que se acreditam tuberculosos ou se atribuem uma doença do coração.

Amar sem esperança, mostrar-se desgostoso da vida constituem hoje posições sociais. Pois bem, a tentativa de violentar o coração de uma soberana permitiria talvez mais esperanças que o amor loucamente dedicado a uma mulher feliz. Tinha assim De Maulincour razões suficientes para mostrar-se grave e triste. Uma rainha tem ainda a vaidade do poder e tem contra si própria a sua posição; uma burguesa devota é, porém, como um ouriço, uma ostra, em seus ásperos invólucros.

O jovem oficial colocou-se próximo à sua ignorada amante, que não sabia decerto que estava sendo duplamente infiel. Lá estava ela singelamente sentada, como a mulher menos artificiosa do mundo, calma, cheia de majestosa serenidade. Que abismo é então a natureza humana? Antes de encetar palestra, o barão olhou alternadamente para a mulher e para o marido. Quantas reflexões não lhe ocorreram?! Recompôs todas As noites[26] de Young num momento.

A música, entretanto, ressoava pelos salões, onde a luz se coava de mil velas. Era um baile de banqueiro, uma dessas festas insolentes por meio das quais a sociedade do ouro em barra procurava afrontar os salões de ouro em pó, em que se divertia a boa gente do Faubourg Saint-Germain, sem prever que um dia o banco invadiria o Luxembourg[27] e se sentaria no trono. As conspirações dançavam então, descuidosas tanto das futuras bancarrotas do poder como das vindouras falências do banco. Os salões dourados do sr. barão de Nucingen possuíam a animação especial que a sociedade parisiense, alegre pelo menos na aparência, dá às festas da cidade. Neles os homens de talento distribuem aos tolos o seu espírito e os tolos lhes comunicam o ar feliz que os caracteriza. Com essa troca tudo se anima. Mas as festas de Paris sempre se parecem a um fogo de artifício: vaidade, espírito, prazer, tudo nelas brilha e se extingue como foguetes. No dia seguinte, esquecem-se todos do seu espírito, da sua vaidade e do seu prazer.

“Então!”, pensou Augusto, concluindo, “as mulheres são mesmo como o vidama as julga? Indubitavelmente todas as que aqui dançam são menos irrepreensíveis do que o parece a sra. Desmarets, e ela vai à Rue Soly.”

A Rue Soly era a sua ideia fixa e só o nome lhe apertava o coração.

— Madame, não dança então nunca? — perguntou-lhe.

— É a terceira vez que me faz esta pergunta desde o começo do inverno — observou ela, sorrindo.

— Mas se não me respondeu até hoje...

— É verdade.

— Eu bem sabia que era falsa como todas as mulheres...

Ela continuou a rir.

— Escute; se eu lhe dissesse a verdadeira razão, ela lhe pareceria ridícula. Penso que não há falsidade em não confessar segredos dos quais a sociedade tem o hábito de rir.

— Todo segredo exige, para ser dito, uma amizade de que não sou digno, madame. Mas a senhora só poderia ter segredos nobres. E julga-me então capaz de zombar de coisas respeitáveis?

— Sim — contestou ela —, o senhor, como todos os outros, ri dos mais puros sentimentos; o senhor os calunia. Aliás eu não possuo segredos. Tenho o direito de amar meu marido diante do mundo e, confesso-o, tenho orgulho disso; e, se mofar de mim ao saber que só danço com ele, formarei o pior conceito de seu coração, sr. de Maulincour.

— Não dançou nunca, depois do casamento, senão com o seu esposo?

— Sim, senhor. Seu braço foi o único em que desde então me apoiei e nunca mais senti o contato de outro homem.

— E seu médico não achou necessário tomar-lhe o pulso?

— Vê? Já está fazendo troça...

— Não, madame; eu a admiro, porque a compreendo. Mas a senhora nos deixa ouvir sua voz, deixa-nos vê-la... enfim... permite que a admiremos...

— Ah! Eis o meu pesar — disse, interrompendo-o. — Eu bem que desejaria fosse possível à mulher casada viver com o marido como uma amante, porque, então...

— E, nesse caso, por que estava há duas horas, a pé, disfarçada, na Rue Soly?

— Rue Soly, que rua é essa? — perguntou.

E sua voz puríssima não deixava adivinhar emoção alguma, nenhum traço do seu rosto vacilou, não corou, permaneceu calma.

— Como? A senhora não subiu ao segundo andar de uma casa da Rue des Vieux-Augustins, na esquina da Rue Soly? Não tinha um carro de aluguel a dez passos e não passou pela Rue Richelieu, pela florista, onde escolheu os marabus que lhe enfeitam agora a cabeça?

— Não saí hoje de casa.

Mentindo desse modo, impassível e risonha, abanava-se; mas quem tivesse o direito de passar-lhe a mão à cintura, ou pela espinha, tê-la-ia, decerto, encontrado úmida. Augusto lembrou-se das lições do vidama.

— Era então uma pessoa que se parece estranhamente com a madame — acrescentou com ar crédulo.

— Senhor, se é capaz de seguir uma mulher e de surpreender-lhe os segredos, permita-me dizer-lhe que isso é feio, muito feio, e dou-lhe a honra de não acreditar no que diz.

O barão afastou-se, indo colocar-se diante da lareira, e pareceu pensativo. Baixou a cabeça; seu olhar, porém, estava disfarçadamente fixo na sra. Desmarets, que, não pensando na traição dos espelhos, deitou-lhe dois ou três olhares cheios de terror. Fez um sinal ao marido e tomando-lhe o braço levantou-se para dar uma volta pelos salões. Ao passar junto ao barão de Maulincour, este, que conversava com um amigo, disse em voz alta, como que respondendo a uma interrogação:

— É uma mulher que decerto não dormirá tranquila esta noite...

A sra. Desmarets parou, deitou-lhe um olhar soberano, cheio de desprezo, e continuou a andar, sem calcular que, mais um olhar, se surpreendido pelo marido, poderia comprometer sua felicidade e a vida de dois homens.

Augusto, tomado da raiva que ele abafou nas profundezas da alma, saiu, logo depois, jurando penetrar até o coração daquela intriga. Antes de partir, procurou a sra. Desmarets para vê-la mais uma vez; havia desaparecido. Que drama naquela juvenil cabeça eminentemente romanesca como todas as que não conseguiram conhecer o amor em toda a grandeza que lhe conferem! Adorava a sra. Desmarets sob nova forma; amava-a com o furor do ciúme, com as delirantes angústias da esperança. Infiel ao marido, ela se tornava vulgar. Augusto podia entregar-se a todas as doçuras do amor feliz, e sua imaginação lhe abriu então a imensa gama dos prazeres da posse. E, se, enfim, perdera um anjo, encontrava o mais delicioso dos demônios. Deitou-se construindo mil castelos no ar, justificando a sra. Desmarets com algum romanesco benefício em que ele não acreditava. Depois, resolveu votar-se inteiramente, a partir do dia seguinte, à procura das causas, dos motivos, do enredo oculto em tal mistério. Era um romance para ler; ou melhor, um drama a representar, e no qual escolhera o seu papel.

II — FERRAGUS

Bela coisa é o ofício de espião, quando o praticamos por conta própria e em proveito de uma paixão. E não será como que conceder a si próprio os prazeres do ladrão, mas permanecendo honesto? É preciso, porém, resignar-se a ferver de cólera e rugir de impaciência, a deixar-se gelar os pés na lama, a transir e queimar, a tragar falsas esperanças. É preciso partir, apoiado num indício qualquer, para um destino ignorado, errar o alvo, praguejar, improvisar para si próprio elegias e ditirambos e soltar exclamações diante de um transeunte inofensivo que nos admira; derrubar fruteiras e seus cestos de maçãs, correr, descansar, para diante de uma janela, fazer mil suposições...

É a caça, a caça em Paris, a caça com todos os acidentes, menos os cães, a espingarda e os brados de atiçamento! Nada há de comparável a tais cenas senão as da vida do jogador. E é necessário um coração transbordante de amor ou de vingança para emboscar-se em Paris, como um tigre que quer saltar sobre a presa, e para gozar então todos os acidentes da cidade ou de um bairro, acrescentando-lhes mais um interesse aos muitos que lá já existem. E então não será necessária uma alma múltipla? Não será viver mil paixões, milhares de sentimentos ao mesmo tempo?

Augusto de Maulincour atirou-se a essa ardente existência com amor, pois nela encontrava todas as infelicidades e todos os prazeres. Andava disfarçado por Paris, vigiava todas as esquinas da Rue Pagevin e da Rue des Vieux-Augustins, corria como um caçador da Rue de Ménars à Rue Soly e da Rue Soly à Rue de Ménars, sem conhecer nem a vingança nem o preço por que seriam punidos ou recompensados tantos desvelos, caminhadas e manhas! Não chegara, entretanto, àquela impaciência que corrói as entranhas e faz suar; flanava com esperança, pensando que a sra. Desmarets não se arriscaria nos primeiros dias a voltar ao lugar em que fora surpreendida. Consagrava, assim, esses primeiros dias a se iniciar nos segredos da rua. Noviço nesse mister, não ousava interrogar nem o porteiro nem o sapateiro da casa a que vinha a sra. Desmarets; mas esperava arranjar um observatório no prédio situado à frente do apartamento misterioso. Estudava o terreno, desejando conciliar a prudência com a impaciência, seu amor e o segredo.

Num dos primeiros dias de março, entre os planos em que meditava para dar um grande golpe, ao deixar seu campo de ação após uma das assíduas rondas que até então nada lhe haviam adiantado, voltava ele, pelas quatro horas, para casa, onde o chamavam assuntos de serviço, quando foi surpreendido na Rue Coquillière por uma dessas belas chuvas que engrossam de repente a água das sarjetas, da qual cada gota, ao cair sob as poças d’água da via pública, parece uma badalada. O pedestre de Paris é então obrigado a deter-se imediatamente, a refugiar-se numa loja, ou num café, se é bastante rico para pagar a forçada hospitalidade, ou, conforme a urgência, sob uma porta, asilo da gente pobre ou malvestida.

Por que será que nenhum dos nossos pintores se lembrou ainda de reproduzir as fisionomias de um enxame de parisienses agrupados, num momento de temporal, sob o pórtico úmido de uma casa? Onde encontrar quadro mais rico? Acaso não está ali o pedestre sonhador ou filósofo que observa com prazer as raias feitas pela chuva sob o fundo cinza da atmosfera, espécie de cinzeladuras semelhantes aos riscos caprichosos das gravuras em cristal, ou os turbilhões de água branca que o vento rola como poeira luminosa sobre os telhados, ou os curiosos gargarejos dos canos crepitantes e espumarentos, enfim mil outras ninharias admiráveis, estudadas com delícia pelos flâneurs, malgrado as vassouradas d’água com que as regala o dono da casa? Ali está também o pedestre conversador que se lamenta e tagarela com a encarregada da portaria enquanto esta se apoia sobre a vassoura como um granadeiro sobre o fuzil; o pedestre indigente, fantasticamente colado à parede, sem nenhum cuidado pelos seus farrapos habituados ao contato das ruas; o sábio, que estuda, soletra ou lê os cartazes, sem acabar de fazê-lo; o trocista, que ri das pessoas que sofrem incidentes na rua, que acha graça das mulheres enlameadas e faz caretas aos ou às que estão à janela; o silencioso, que olha todas as janelas, todos os andares; o industrioso, armado de alforjes ou munido de pacotes, que analisa a chuva por lucros e perdas; o amável, que chega como uma bala, exclamando: “Ah! Que tempo, senhores!”, e saúda todo mundo; enfim, o verdadeiro burguês de Paris, homem de guarda-chuva, conhecedor do tempo, que previu o aguaceiro, mas saiu contrariando o aviso da mulher e que toma logo conta da cadeira do porteiro. Conforme o caráter, cada membro dessa reunião fortuita contempla o céu, sai saltitando para não pisar na lama, já por estar apressado, já por ver outros cidadãos andando a despeito do vento e da chuva, ou porque o chão da casa, estando úmido e catarralmente mortal, ache, como no ditado, pior a emenda que o soneto. Cada qual tem seus motivos. Só fica afinal o prudente, homem que só se põe a caminho depois de espiar alguns espaços azuis por entre as nuvens desfeitas.

O sr. de Maulincour refugiou-se, pois, com toda uma família de pedestres, sob o pórtico de uma velha casa, cuja entrada parecia um enorme cano de chaminé. Havia pelas paredes de estuque, úmidas e mofadas, tantos canos de chumbo e outros encanamentos e tantos andares nos quatro planos do aposento que se diriam as cascatinhas de Saint-Cloud. A água rolava por toda parte, fervilhava, saltitava, murmurava; era negra, branca, azul, verde, e gritava e se multiplicava sob a vassoura da porteira, velha desdentada, afeita aos trovões e que parecia bendizê-los atirando à rua mil detritos estranhos cujo inventário revelava a vida e os hábitos de cada locatário. Eram retalhos de chita, folhas de chá, pétalas de flores artificiais, descoradas, rasgadas, restos de legumes, papéis, fragmentos de metais. A cada vassourada a velha punha a nu o fundo da calha, fenda negra dividida em casas de tabuleiro, contra a qual se encarniçam os porteiros. O pobre apaixonado examinava esse quadro, um dos milhares que a mutável Paris oferece dia a dia; mas examinava-o maquinalmente, como homem absorvido em seus pensamentos, até que, levantando os olhos, encontrou-se cara a cara com um indivíduo que acabava de entrar.

Era, na aparência ao menos, um mendigo, mas não o mendigo de Paris, criação sem nome nas línguas humanas; não, o homem revelava um tipo novo, fora de todas as imagens despertadas pela palavra mendigo. O desconhecido não se distinguia nada pelo ar originalmente parisiense com que nos surpreendem muito seguidamente os infelizes que Charlet[28] tantas vezes representou, com rara felicidade de observação: grosseiras figuras roladas na lama, de voz rouca, nariz vermelho e bulboso, de bocas desprovidas de dentes, mas ameaçadoras; humildes e terríveis, nos quais a inteligência profunda que lhes brilha nos olhos parece um contrassenso. Alguns desses vagabundos impudentes têm a tez marmorizada, gretada, veiada, a fronte coberta de rugosidades, os cabelos raros e sujos como os de uma peruca jogada a um canto de parede. Alegres todos na sua degradação e degradados nas suas alegrias, marcados todos pelo sinete da devassidão, atiram-nos o seu silêncio como uma reprovação; sua atitude revela pavorosos pensamentos.

Colocados entre a esmola e o crime, não sentem mais remorsos e andam à roda do cadafalso sem nele cair, inocentes no meio do vício e viciosos no meio da inocência. Fazem muitas vezes rir, mas fazem sempre pensar. Representam uns a civilização em decadência; compreendem tudo: a honra das galés, a pátria, a virtude; há neles a malícia do crime vulgar e as finuras da perversidade elegante. Outros são resignados, simuladores profundos, mas estúpidos. Todos têm veleidades de ordem e de trabalho, embora repelidos para a sua lama pela sociedade, que não quer saber se há poetas, grandes homens, gente intrépida e magníficas organizações entre os mendigos, esses ciganos de Paris, gente soberanamente boa e soberanamente má, como todas as massas que sofreram, habituadas a suportar males inauditos e mantidas sempre ao nível da lama por um poder fatal. E todos eles têm um sonho, uma esperança, uma ventura: o jogo, a loteria ou o vinho.

Nada havia dessa vida estranha no personagem que descuidada e fortemente se colava à parede, diante do sr. de Maulincour, como uma fantasia desenhada por hábil artista no avesso de uma tela devolvida ao ateliê. Era um homem longo e seco, cuja fisionomia sombria estampava um pensamento profundo e glacial e afastava a piedade no coração dos curiosos com uma atitude cheia de ironia e com um olhar negro que anunciava a sua pretensão de tratar de igual para igual com eles. A tez era de um branco sujo, e o crânio enrugado, desguarnecido de cabelos, tinha uma vaga semelhança com um bloco de granito. Algumas mechas aplastadas e cinzentas desciam de cada lado da cabeça, caindo sobre a gola da sobrecasaca sebosa e abotoada até o pescoço. Parecia-se ao mesmo tempo com Voltaire e Dom Quixote; era escarninho e melancólico, cheio de desprezo, de filosofia, mas meio louco. Parecia não ter camisa. A barba era longa. Sua péssima gravata negra, usadíssima, rasgada, deixava entrever um pescoço protuberante, fortemente sulcado, composto de veias grossas como cordas. Um largo círculo escuro, pisado, desenhava-se sob cada olho. Parecia ter no mínimo sessenta anos. As mãos estavam limpas e brancas. Usava botinas acalcanhadas e rotas. Suas calças azuis, remendadas em vários lugares, branqueavam sob o efeito de uma espécie de lanugem que as tornava ignóbeis de ver.

Ou porque suas vestes molhadas exalassem um odor fétido, ou porque tivesse, no estado normal, esse cheiro de miséria que têm os casebres parisienses, tal como os escritórios, as sacristias e os hospitais têm o seu mau cheiro rançoso, de que ninguém pode dar ideia, os vizinhos desse indivíduo afastaram-se de seus lugares e o deixaram só: o homem lançou sobre eles e depois fixou no oficial o seu olhar calmo e sem expressão, o olhar tão famoso do sr. de Talleyrand, embaciado e sem calor, espécie de véu impenetrável sob o qual uma alma forte esconde profundas emoções e o mais exato dos cálculos a respeito dos homens, das coisas e dos acontecimentos. Nenhum traço do seu rosto se alterou. A boca e a fronte ficaram-lhe impassíveis; mas os olhos se abaixaram num movimento de nobre lentidão quase trágica. Houve, enfim, todo um drama no movimento daquelas pálpebras murchas.

O aspecto daquela figura estoica fez nascer em De Maulincour uma dessas cismas vagabundas que começam por uma interrogação vulgar e terminam pela compreensão de um mundo de pensamentos. O temporal passara. A essa altura, o sr. de Maulincour só percebeu do homem a aba da sobrecasaca que batia no marco da porta; mas, ao deixar o lugar em que estava, encontrou sob os pés uma carta que acabava de cair e adivinhou que pertencia ao desconhecido, vendo-o repor no bolso um lenço de que se servira. O oficial, que tomara da carta para a restituir, leu-lhe involuntariamente o endereço:

 

Ao sr. Ferragus

Rue des Grands-Augustins, esquina da Rue Soly

paris

 

A carta não trazia selo algum, e a indicação impediu o sr. de Maulincour de entregá-la: não há paixão que não se torne ímproba com o tempo. O barão teve pressentimento da oportunidade do achado e quis, guardando a carta, dar-se o direito de entrar na casa misteriosa para lá restituí-la ao homem, que não duvidava morasse no edifício suspeito. E já suspeitas incertas como os primeiros clarões do dia lhe faziam estabelecer relações entre esse indivíduo e a sra. Desmarets.

Os amantes ciumentos supõem tudo; e é supondo tudo, escolhendo as conjeturas mais prováveis que os juízes, os espiões, os namorados e os observadores adivinham a verdade que lhes interessa.

— É para ele a carta? Será da sra. Desmarets?

Mil perguntas lhe foram sugeridas ao mesmo tempo pela imaginação inquieta; mas já às primeiras palavras ele sorriu. Eis textualmente, no esplendor de suas frases ingênuas, na sua ortografia ignóbil, a carta à qual era impossível acrescentar-se alguma coisa, da qual não se devia retirar senão a própria letra, mas que foi necessário pontuar para ser entendida. No original não havia nem vírgulas nem pausas indicadas, nem sequer um ponto de exclamação, fato que tenderia a destruir o sistema de pontuação mediante o qual os autores modernos ensaiam pintar os grandes desastres de todas as paixões:

 

Henrique!

No numero dos sacrifissios que fiz por vossê estava o de não dar-lhe noticias minhas, mais uma voz irresistive memanda que eu lhe fassa conhecer os crimes que me feiz. Eu sei que a sua alma indurecida nos vissios não terá pena de mim. Seu coração está surdo a qualqué sensibilidade, até mesmo aos grito da natureza, mais não emporta: eu devo lhe dizer até que ponto vossê é culpado do orror da pusição em que vossê me meteu. Henrique vossê sabes tudo o que sofri no premero erro e vossê pôde me mergulhar na mesma inflicidade e mabandonar no desespero da dor? Sim eu confeço que a crença que tinha de ser amada e estimada de vossê me dava corage de supoltar minha vida. Mais hoge que é que eu ganhei? vossê me feiz perder tudo o que eu tinha de mais querido, tudo o que me prendia na vida: pais, amigos, onra, reputassão, tudo eu sacrifiquei pur vossê e só me resta o opróbio a vergonha e eu digo sem encabular a miséria. Não faltava mais nada pra minha inflicidade que a serteza do seu desprezo e do seu odio. Agora que eu tenho ela averei de ter a corage que o meu proposito izige. Minha resolução está tomada e a onra da minha família me manda cumprir: vou dar fim aos meus sofrimento. Não faças nenhuma reflessão sobre minha resolução Henrique. É medonha, eu sei, mas o meu estado me forsa. Sem ajuda, sem apoio, sem um amigo para me conçolar não posso viver, não. A sorte está lansada... Ansim daqui a dois dia, Henrique, em dois dia a Ida não será mais díguina da sua estima; mais receba o juramento que eu fasso de ter a minha conciença tranquila, pois nunca dechei de ser díguina da sua amizade. Ó Henrique meu amigo poisque eu não mesquesserei nunca de vossê, promete-me que me perdoará a vida que eu vou levar. Meu amor me deu coraje e ele me protejerá na virtude. Meu coração aliais cheio da tua imaje cerá para mim um prezervativo contra a cedussão. Não te esquessa nunca que a minha sorte é obra de vossê e se julgue. Peça o céu não te punir pelo teus crime e é de joelhos que eu pesso o perdão de vossê, porque eu sinto não faltará mais pra meu mal que a dor de lhe saber infeliz. Apesar do desamparo em que eu me acho recuso qualquer socorro de vossê. Si vossê tivesse me amado eu tinha podido receber seu auzilho como de amizade, mais um benefissio provocado pela piedade minhalma recusa e eu ceria mais cobarde em ressebelo do que aquele que o propusesse. Tenho um pedido pra vossê. Não sei porque tempo eu ainda vou ficar em casa da senhora Meynardie, seja jeneroso e evite aparesser lá. As duas visitas suas de ultimamente me fizeram muito mal; não quero entrar em detalhes sobre a sua conduta a esse respeito. Vossê me odeia, esta palavra está gravada no meu corassão e jelou ele de medo. E é no momento mesmo que eu preciso de toda a minha coraje que todas as minhas faculdades me abandona; Henrique meu amigo antes que eu ponha uma barrera entre nois, me dá uma ultima prova de amizade: escreveme, respondeme me diz que mestimas ainda imbora não me ames mais. Apesar que meus olhos serão sempre díguinos dos teu eu não pesso pra ver vossê: tenho medo da minha fraqueza e do meu amor. Mais por favor escreveme uma palavra enseguida; ela me dará a coraje que eu perciso para suportar a minha inflicidadi. Adeus hautor de todos os meus males, mais unico amigo que meu coração escolheu e que nunca esquesserá.

 

ida

 

Esta vida de rapariga, cujo amor enganado, cujas alegrias funestas, cujas dores, cuja miséria e espantosa resignação estavam resumidos em tão poucas palavras, esse poema desconhecido, mas essencialmente parisiense, escrito naquela carta suja, agiram durante um momento sobre o sr. de Maulincour, que acabou por perguntar se essa Ida não seria acaso uma parente da sra. Desmarets e se a entrevista daquela noite, de que fora testemunha fortuita, não teria sido exigida por algum passo caridoso. Que o velho mendigo tivesse seduzido Ida?... Essa sedução tinha muito de prodígio. E, jogando-se no labirinto de suas reflexões que se cruzavam e se destruíam uma por uma, o barão chegou próximo à Rue Pagevin e viu um carro parado na extremidade da Rue des Vieux-Augustins que dá para a Rue Montmartre. Todos os carros estacionados diziam-lhe algo. “Estará ela lá?”, pensou. E o coração bateu-lhe num movimento cálido e febril. Impeliu a porta em que havia a sineta, mas baixando a cabeça, como que obedecendo a certo sentimento de vergonha, pois ouvia uma voz secreta que lhe dizia: “Por que metes os pés neste mistério?”.

Subiu alguns degraus e encontrou-se à face da velha porteira.

— O sr. Ferragus?

— Não conheço...

— Como? Então não mora aqui?

— Não temos disso nesta casa.

— Mas, minha amiga...

— Não sou sua amiga, sou a encarregada da porta.

— Mas, senhora — recomeçou o barão —, tenho uma carta a entregar ao sr. Ferragus.

— Ah! Se o senhor tem uma carta — disse ela, mudando de tom —, a coisa é diferente. Quer mostrar-me a tal carta?

Augusto mostrou a carta, dobrada. A velha sacudiu a cabeça com ar de dúvida, hesitou, pareceu querer deixar o posto para consultar o misterioso Ferragus sobre o incidente imprevisto e afinal disse:

— Pois bem, suba, senhor. Deve saber onde é...

Sem responder à frase, através da qual a velha astuciosa podia estar armando um laço, o oficial subiu lestamente a escada e bateu vivamente à porta do segundo andar. Seu instinto de enamorado dizia-lhe: “Ela está aqui”.

O desconhecido do corredor, Ferragus ou o hautor dos males de Ida, abriu em pessoa. Apareceu vestindo um chambre florido, calças de flanela branca, os pés calçados em boas chinelas de tapeçaria e de cara lavada. A sra. Desmarets, cuja cabeça passava pela ombreira da porta da segunda peça, empalideceu e caiu sobre uma cadeira.

— Que tem, senhora? — gritou o oficial dirigindo-se para o seu lado.

Mas Ferragus estendeu o braço e atirou o visitante prestativo para trás com um movimento tão seco que Augusto pensou ter recebido no peito o golpe de uma barra de ferro.

— Para trás, senhor — disse o homem. — Que quer de nós? O senhor ronda no bairro há cinco ou seis dias. É acaso um espião?

— É o sr. Ferragus? — perguntou o barão.

— Não, senhor.

— Não importa — retrucou Augusto —; devo entregar-lhe este papel que perdeu na porta da casa em que nos abrigamos por ocasião da chuva.

E ao falar, alcançando a carta ao homem, o barão não pôde deixar de deitar um olhar pela peça onde o recebia Ferragus. Achou-a muito bem mobiliada, embora com simplicidade. Havia fogo numa lareira; junto dela estava uma mesa servida mais suntuosamente do que o comportava a situação aparente do indivíduo e a mediocridade do seu alojamento. Enfim, sobre uma conversadeira na peça imediata que lhe foi possível ver, percebeu um monte de ouro e ouviu um ruído que só podia provir de uma mulher.

— Este papel me pertence, agradeço-lhe — disse o desconhecido voltando-se de modo a dar-lhe a entender que o despedia sem mais cerimônias.

Demasiado curioso para dar atenção ao exame profundo de que era objeto, Augusto não viu os olhares meio magnéticos com que o desconhecido parecia querer devorá-lo; se houvesse percebido aquele olhar de basilisco, teria compreendido o perigo da sua posição. Apaixonado demais para pensar em si mesmo, Augusto saudou, desceu e voltou para casa procurando achar sentido na reunião daquelas três pessoas: Ida, Ferragus e a sra. Desmarets; ocupação que equivalia, moralmente, a tentar resolver um quebra-cabeça chinês sem conhecer as regras do jogo.

A sra. Desmarets, porém, o vira, a sra. Desmarets ia lá, a sra. Desmarets mentira-lhe. De Maulincour se propôs fazer-lhe uma visita no dia seguinte. Ela não poderia recusar-se a recebê-lo, visto que ele se fizera seu cúmplice e estava metido de pés e mãos na tenebrosa intriga. Dava-se já ares de sultão e pensava em solicitar imperiosamente à sra. Desmarets que lhe revelasse seus segredos.

Por aquele tempo Paris estava possuída da febre das construções. Se Paris é um monstro, é seguramente o mais maníaco dos monstros. Prende-se a mil fantasias. Tão depressa constrói como um grão-senhor que ama a sua trolha, depois larga a trolha e se torna militar; veste-se, da cabeça aos pés, de Guarda Nacional, faz exercícios e fuma; de repente abandona os ensaios militares e atira fora o charuto; depois se desola, abre falência, vende seus móveis na Place Châtelet, fecha o seu balanço; mas, dias depois, arranja os negócios, enfarpela-se e dança. Amanhã devorará pirulitos a mãos cheias, a boca cheia; ontem comprava papel Weynen; hoje o monstro tem dor de dentes e aplica um alexifármaco[29] a todas as suas muralhas; noutro dia fará pastilhas peitorais. Tem manias para o mês, para a estação, para o ano, como manias de um dia. Naquele momento, todo mundo construía ou demolia fosse o que fosse, não importando o quê. Muito poucas ruas havia em que se não vissem andaimes de longas varas, guarnecidos de pranchas postas sobre travessas fixadas de andar em andar em agulheiros, construções frágeis, sacudidas pelos passos dos pedreiros, mas fixadas por cordame, todas brancas de cal, raramente garantidas contra os choques dos veículos por essa parede de tábuas que cerca obrigatoriamente os monumentos que nunca se constroem. Há algo de marítimo naqueles mastros, naquelas escadas, naqueles cordames, nos gritos dos operários.

Ora a doze passos do palacete Maulincour elevava-se um desses efêmeros edifícios, diante de uma casa que estava sendo construída de pedra de talha. No dia seguinte, no momento em que o barão de Maulincour passava num cabriolé diante do andaime, para ir à casa da sra. Desmarets, uma pedra de dois pés quadrados, ao chegar ao alto das vigas, escapou da amarração de cordas e, volteando sobre si mesma, foi esmagar o criado que ia na parte posterior do carro.

Um grito de pavor fez tremer o andaime e os pedreiros; um deles, em perigo de morte, agarrava-se com esforço às longas varas e parecia ter sido apanhado pela pedra. A multidão se reuniu prontamente. Os pedreiros desceram todos, gritando, praguejando e dizendo que o carro do sr. de Maulincour causara o desarranjo. Mais duas polegadas e a pedra esmagaria a cabeça do oficial. O criado estava morto; o carro, quebrado. Foi um acontecimento para o bairro, e os jornais noticiaram-no. O sr. de Maulincour, certo de em nada haver tocado, queixou-se. A Justiça interveio. Feito o inquérito, ficou provado que um rapazelho munido de uma ripa montava guarda e gritava aos transeuntes que se afastassem. O caso parou aí.

O sr. de Maulincour, com o choque da morte do criado e a sua comoção, permaneceu no leito por vários dias; a parte posterior do carro, ao quebrar-se, causara-lhe contusões; depois a depressão nervosa trouxe-lhe febre. Não foi à casa da sra. Desmarets.

Dez dias após o desastre, saiu pela primeira vez, e se dirigia para o Bois de Boulogne no cabriolé restaurado, quando ao descer a Rue de Bourgogne, na sarjeta fronteira à Câmara dos Deputados, o eixo partiu-se exatamente pelo meio; e a velocidade era tal que o acidente teve por efeito fazer com que as duas rodas se chocassem com violência suficiente para esmagar-lhe a cabeça, mal de que foi preservado pela resistência da capota. Não obstante, recebeu grave ferimento de um lado. Pela segunda vez, em dez dias, foi transportado quase morto para a casa da velha avó desesperada. Esse segundo acidente trouxe-lhe certa desconfiança e pensou, ainda que vagamente, em Ferragus e na sra. Desmarets. Para esclarecer suas suspeitas, guardou o eixo quebrado em seu quarto e mandou chamar o segeiro. Este veio, examinou o eixo, a fratura, e provou duas coisas a Augusto: em primeiro lugar o eixo não saíra de suas oficinas; ele não empregava nenhum que não tivesse gravadas grosseiramente as iniciais de seu nome e não podia imaginar como tal eixo substituíra o outro; depois, a fratura do eixo suspeito fora causada por uma falha, uma cavidade interior, muito habilmente executada.

— Eh! Senhor barão, foi preciso ser muito esperto — concluiu ele — para preparar um eixo de tal modelo; a gente juraria que é natural...

O sr. de Maulincour pediu ao segeiro que nada dissesse da aventura e se considerou convenientemente advertido. As duas tentativas de assassinato haviam sido urdidas com tal astúcia que revelavam inimizade de gente superior. “É uma guerra de morte”, pensou ele, agitando-se no leito. “Uma guerra selvagem, de surpresa, de emboscada, de traição, declarada em nome da sra. Desmarets. A que homem pertence ela então? De que poder dispõe então esse Ferragus?’.

Enfim o barão de Maulincour, embora bravo e militar, não pôde deixar de tremer. Em meio dos pensamentos que o assaltaram houve um contra o qual se encontrava sem defesa e sem coragem: o veneno não seria empregado em breve pelos seus inimigos secretos? Imediatamente, dominado pelos temores que a fraqueza momentânea, que a dieta e a febre só aumentavam, mandou buscar uma velha dedicada havia muito tempo à avó, mulher que tinha por ele um desses sentimentos semimaternais, o que se encontra de mais elevado naquela classe.

Sem se declarar inteiramente, encarregou-a de comprar em sigilo, em lugar diferente cada dia, os alimentos que lhe eram necessários, recomendando-lhe que os guardasse à chave e ela própria lhos servisse, não permitindo que deles se aproximasse quem quer que fosse em tais ocasiões. Tomou enfim as mais minuciosas precauções para se garantir contra essa espécie de morte!

Encontrava-se acamado, doente e só; podia assim pensar com vagar em sua própria defesa, única necessidade bastante clarividente para permitir ao egoísmo humano nada esquecer. Mas o infeliz havia envenenado a vida pelo temor, e, malgrado seus esforços, a suspeita sublinhava-lhe todas as horas com seus tons sombrios. Entretanto, as duas tentativas de assassinato lhe ensinaram uma das virtudes mais necessárias aos políticos; compreendeu a alta dissimulação que é preciso usar no jogo dos grandes interesses da vida.

Calar um segredo não é nada; mas calar por adiantamento, saber esquecer um fato durante trinta anos, se necessário, ao modo de Ali Pasha,[30] para assegurar uma vingança meditada durante todo esse tempo é um belo estudo num país onde poucos homens sabem dissimular durante trinta dias.

O barão de Maulincour só vivia pela sra. Desmarets. Ocupava-se em examinar seriamente os meios que poderia empregar nessa luta silenciosa para triunfar de seus adversários ignorados. Sua paixão anônima por tal mulher crescia diante de todos os obstáculos. Ela continuava de pé, nos seus pensamentos e no seu coração, mais atraente então pelos vícios presumidos que pelas virtudes certas que dela fizeram o seu ídolo.

O enfermo, querendo reconhecer as posições do inimigo, acreditou poder informar sem perigo o velho vidama dos segredos da sua situação. O comendador amava Augusto como um pai ama os filhos de sua mulher; era fino, hábil e possuía espírito diplomático. Foi pois ouvir o barão, sacudiu a cabeça e ambos trocaram impressões. O bom vidama não compartilhou da confiança do seu jovem amigo quando este lhe disse que, no tempo em que viviam, a polícia e o poder estavam em condições de conhecer todos os mistérios e que, se fosse absolutamente necessário a eles recorrer, encontrariam poderosos auxiliares.

O velho respondeu gravemente:

— A polícia, meu rapaz, é o que há de mais inábil no mundo, e o poder, o que há de mais fraco nas questões individuais. Nem a polícia nem o poder sabem ler no fundo dos corações. O que se lhes pode razoavelmente pedir é só que procurem as causas de um fato. Ora, o poder e a polícia são eminentemente impróprios para tal mister: falta-lhes essencialmente esse quê de interesse pessoal que tudo revela aos que têm necessidade de tudo saber. Nenhum poder humano pode impedir um assassino ou um envenenador de chegar seja ao coração de um príncipe, seja ao estômago de um homem honesto. As paixões fazem toda a polícia.

O comendador aconselhou calorosamente ao barão que fosse para a Itália, da Itália para a Grécia, da Grécia para a Síria, da Síria para a Ásia e não voltasse senão depois de ter convencido os inimigos secretos do seu arrependimento, para assim fazer tacitamente as pazes com eles; senão, ficar em casa, encerrar-se mesmo no quarto, onde estaria garantido contra os golpes desse Ferragus, e só sair para esmagá-lo, com toda a segurança.

— Não se deve tocar no inimigo senão para cortar-lhe a cabeça — disse gravemente.

Entretanto, prometeu o velho ao seu favorito empregar tudo quanto o céu lhe concedera de astúcia para, sem comprometer ninguém, fazer um reconhecimento no campo do inimigo, relatá-lo e preparar a vitória. O comandante contava com um velho Fígaro aposentado, o símio mais esperto que já se vira sob figura humana, que fora espirituoso como um demônio, capaz de tudo fazer do seu corpo, como um forçado, alerta como um gatuno, fino como uma mulher, mas caído na decadência do gênio por falta de ocasião depois da reconstituição da sociedade parisiense que pôs fora de moda os lacaios de comédia.

Esse Scapin[31] emérito era dedicado ao patrão como a um ser superior; ainda assim o esperto vidama acrescentava todos os anos ao salário de seu antigo preboste de galanteria uma boa soma, atenção que consolidava a amizade natural com os laços do interesse e valia ao velho cuidados que a amante mais terna não saberia inventar para o amigo enfermo. Foi a essa pérola dos antigos lacaios de palco, sobrevivente do século passado, ministro incorruptível, pois não tinha paixões a satisfazer, a quem se confiaram o comendador e o sr. de Maulincour.

— O senhor barão estragaria tudo — disse o grande homem de libré, convocado para o conselho. — O senhor se alimente, beba e durma tranquilo. Tomo tudo a meu cargo.

Com efeito, oito dias depois dessa conferência, quando Augusto, já perfeitamente restabelecido, jantava com a avó e o vidama, Justino entrou para fazer o seu relatório. E com essa falsa modéstia que afetam as pessoas de talento contou, assim que a velha senhora se retirou para os seus aposentos:

— Ferragus não é o nome do inimigo que persegue o senhor barão. Esse homem, esse diabo chama-se Graciano, Henrique, Vítor, João José Bourignard. Esse Graciano Bourignard é um antigo mestre de obras, outrora muito rico e, sobretudo, dos mais belos rapazes de Paris, um Lovelace[32] capaz de seduzir Grandisson. Aqui terminam os meus apontamentos. Foi um simples operário e os Companheiros da Ordem dos Devoradores elegeram-no chefe há tempos, sob o nome de Ferragus xxiii. A polícia deveria saber isso, se houvesse sido instituída para saber alguma coisa. O homem mudou-se, não mora mais na Rue des Vieux-Augustins, aloja-se agora na Rue Joquelet; a sra. Desmarets vai visitá-lo frequentemente; muitas vezes o marido, ao dirigir-se para a Bolsa, leva-a até a Rue Vivienne, ou ela leva o marido à Bolsa. O senhor vidama conhece demais essas coisas para que eu lhe diga se é o marido que acompanha a mulher ou a mulher que conduz o marido; mas a sra. Desmarets é tão bonita que eu apostaria nela. Tudo isto é positivamente certo. O tal Bourignard joga sempre no número 129. E, se me permitem, senhores, é um farsante que ama as mulheres e dá-se ares de homem de posição. De resto, ganha frequentemente, disfarça-se como um ator, dissimula-se como quer e leva a vida mais original do mundo. Não duvido que tenha vários domicílios, pois a maior parte das vezes foge ao que o senhor comendador chama de investigações parlamentares. Se o senhor deseja, podemos, todavia, tendo em vista os seus hábitos, desfazer-nos honradamente dele. É sempre fácil a gente se desembaraçar dum homem que gosta de mulheres. Entretanto, esse capitalista fala em mudar-se de novo. Agora, o senhor vidama e o senhor barão têm ainda algo a ordenar-me?

— Estou contente contigo, Justino; não vás mais longe sem novas ordens; vela aqui por tudo, de forma que o senhor barão nada tenha a temer.

— Meu caro — acrescentou o vidama —, retoma tua vida e esquece a sra. Desmarets.

— Não, não — disse Augusto —, não cederei o lugar a Graciano Bourignard; quero tê-lo de pés e mãos atados e a sra. Desmarets também.

À noite, o barão Augusto de Maulincour, promovido recentemente ao posto superior de uma companhia de guardas, foi ao baile da duquesa de Berry[33] no Elysée-Bourbon. Lá decerto não poderia haver para ele perigo algum. O barão de Maulincour saiu de lá, no entanto, porque tinha um assunto de honra a resolver, assunto que fora impossível regular. Seu adversário, o marquês de Ronquerolles, tinha fortes razões de queixa contra Augusto que a tal dera lugar devido a uma antiga ligação com a irmã do sr. de Ronquerolles, a condessa de Sérisy.[34]

Essa dama, que não gostava nada do sentimentalismo alemão, era, entretanto, exigente até nos mínimos detalhes da sua indumentária de devota. Por uma dessas fatalidades inexplicáveis, Augusto dirigiu-lhe inocente gracejo, que a sra. de Sérisy recebeu muito mal e com o qual o irmão se julgou ofendido. A explicação deu-se a um canto, em voz baixa. Como homens educados, os adversários não fizeram rumor.

Apenas no dia seguinte, porém, a sociedade do Faubourg Saint-Germain, do Faubourg Saint-Honoré e do palácio comentou a aventura. A sra. de Sérisy foi calorosamente defendida, e culparam de tudo a De Maulincour. Augustas personagens intervieram. Testemunhas da mais alta distinção foram impostas aos senhores De Maulincour e De Ronquerolles e foram tomadas todas as precauções a propósito, para que não houvesse morte.

Ao encontrar-se diante do adversário, homem de sociedade a quem ninguém poderia recusar sentimentos de honra, Augusto não podia ver nele um instrumento de Ferragus, o chefe dos Devoradores, mas sentiu a secreta necessidade de, obedecendo a inexplicáveis pressentimentos, interrogar o marquês.

— Senhores — disse às testemunhas —, não me recuso de modo algum a receber uma bala do sr. de Ronquerolles, mas, de antemão, declaro que não tive razão e que lhe darei a satisfação de exigir; mesmo de público, se o quiser, pois, em se tratando de uma mulher, nada poderia, creio, desonrar um gentil-homem. Apelo, assim, para a sua razão e para a sua generosidade. Pois não é que há um pouco de tolice em nos batermos quando o bom direito pode soçobrar?...

O sr. de Ronquerolles não admitiu esse modo de terminar o assunto, e, então, mais suspeitoso, o barão aproximou-se do adversário.

— Pois bem, senhor marquês — disse-lhe —, dê-me, diante destes senhores, sua palavra de fidalgo de que não intervém neste encontro razão alguma de vingança além da que foi alegada publicamente.

— Senhor, não é pergunta que me faça.

E o sr. de Ronquerolles foi colocar-se em seu posto. Fora convencionado de antemão que os adversários se contentariam em trocar um tiro de pistola. O sr. de Ronquerolles, malgrado a distância determinada que parecia dever tornar a morte do sr. de Maulincour muito problemática, para não dizer impossível, fez tombar o barão. A bala atravessou-lhe as costelas dois dedos abaixo do coração, mas, felizmente, sem graves lesões.

— O senhor atira demasiado bem — disse o oficial da guarda — para apenas querer vingar paixões mortas.

O sr. de Ronquerolles acreditava-o morto e não pôde conter um sorriso sardônico ao ouvir tais palavras.

— A irmã de Júlio César não pode ser suspeitada[35] — disse.

— Sempre a sra. Júlio Desmarets — respondeu Augusto.

E desmaiou, sem poder concluir uma mordente zombaria que lhe morreu nos lábios; mas, embora houvesse perdido muito sangue, o ferimento não oferecia perigo. Após uma quinzena, durante a qual a avó e o vidama lhe dispensaram seus cuidados de velhos, cuidados cujo segredo só uma longa experiência de vida pode dar, a velha senhora lhe trouxe, certa manhã, desagradáveis novas. Revelou as mortais inquietudes a que estavam entregues os seus derradeiros dias. Havia recebido uma carta, assinada com um F., na qual a história da espionagem à qual se rebaixara o neto lhe era revelada ponto por ponto. Reprovavam-se nessa carta ao sr. de Maulincour ações indignas de um homem honesto. Havia posto, diziam, uma velha na Rue de Ménars, na praça de carros que ali há, velha espiã ocupada na aparência em vender aos cocheiros a água de suas pipas, mas encarregada, na realidade, de espionar as idas e vindas da sra. Júlio Desmarets. Havia espionado o homem mais inofensivo do mundo para penetrar-lhe todos os segredos, quando desses segredos dependia a vida ou a morte de três pessoas. Somente ele quisera a luta impiedosa na qual, ferido já por três vezes, sucumbiria inevitavelmente, pois a sua morte fora sentenciada e seria procurada por todos os meios humanos. O sr. de Maulincour não poderia mesmo evitar a sua sorte ao prometer respeitar a vida misteriosa dessas três pessoas, porque era impossível crer na palavra de um gentil-homem capaz de descer tão baixo como um agente de polícia; e por quê? Para perturbar, sem motivo, a vida de uma mulher inocente e de um velho respeitável.

A carta nada foi para Augusto em comparação com as ternas repreensões a que o sujeitou a baronesa de Maulincour. Faltar ao respeito e à confiança para com uma mulher, espioná-la sem ter para isso direito! E podia-se espionar até mesmo a mulher que nos ama? E prosseguiu numa torrente dessas excelentes razões que nada provam e que puseram o jovem barão, pela primeira vez na vida, numa grande cólera, dessas de onde germinam ou nascem as mais decisivas ações da existência.

— Pois se esse duelo é um duelo de morte — concluiu ele —, devo matar o inimigo por qualquer meio ao meu alcance.

O vidama foi procurar imediatamente, de parte do sr. de Maulincour, o chefe da polícia civil de Paris e, sem mesclar o nome da sra. Júlio Desmarets na narrativa da aventura, embora fosse ela a chave do segredo, deu-lhe parte dos temores que causava à família De Maulincour o personagem desconhecido, bastante ousado para sentenciar a morte de um oficial da guarda, sob os olhos da lei e da polícia. O homem da polícia levantou, de surpresa, as lunetas verdes, assoou-se várias vezes, ofereceu rapé ao vidama, que, por dignidade, alegou não tomar rapé, embora se lhe visse o nariz pulverizado dele. Depois o subchefe tomou notas e prometeu que, com o auxílio de Vidocq[36] e dos seus homens, daria, em poucos dias, boa conta do inimigo à família De Maulincour, afirmando que não havia mistérios para a polícia de Paris. Dias após, o chefe foi visitar o vidama na residência De Maulincour e encontrou o jovem barão perfeitamente restabelecido de seu último ferimento. Apresentou-lhe então em estilo administrativo seus agradecimentos pelas indicações que tivera a bondade de dar-lhe, informando-o de que o tal Bourignard era um condenado a vinte anos de trabalho forçado, que miraculosamente fugira durante o transporte de Bicêtre a Toulon. Havia treze anos que a polícia infrutiferamente procurava prendê-lo após ter sabido que viera muito confiadamente residir em Paris, onde evitara as buscas mais ativas, embora se houvesse comprometido em muitíssimas intrigas tenebrosas. Em breve o homem, cuja vida oferecia as mais curiosas particularidades, seria certamente surpreendido num dos seus domicílios e entregue à Justiça. O burocrata terminou o seu ofício-relatório dizendo ao barão que, se ele emprestava ao assunto suficiente importância para ser testemunha da captura de Bourignard, poderia comparecer na manhã seguinte, às oito horas, a uma casa da Rue Sainte-Foi, cujo número lhe deu. O sr. de Maulincour dispensou-se de ir buscar essa certeza, fiando-se, com o santo respeito que a polícia inspira em Paris, na diligência da administração.

Três dias depois, nada havendo lido nos jornais sobre a prisão, que devera ter fornecido curiosos dados à reportagem, De Maulincour começou a sentir certa inquietação que a seguinte carta dissipou:

 

Senhor barão,

Tenho a honra de participar-lhe que não deve conservar temor algum com respeito ao assunto de que tratamos. Graciano Bourignard, chamado Ferragus, faleceu ontem em seu domicílio, na Rue Joquelet, nº 7. As suspeitas que poderíamos alimentar sobre sua identidade foram plenamente destruídas pelos fatos. O médico da Chefatura de Polícia, que a nosso pedido auxiliou o da municipalidade, e o chefe da polícia de segurança fizeram todas as verificações necessárias para chegar a uma certeza plena. Ademais, a respeitabilidade das testemunhas que assinaram o atestado de óbito e os depoimentos das pessoas que cuidaram do citado Bourignard em seus últimos momentos, entre outros o do respeitável vigário da igreja da Boa-Nova, perante o qual fez suas confissões no tribunal da penitência, pois morreu como cristão, não nos permitem conservar a menor dúvida.

 

Aceite, senhor barão, etc.

 

De Maulincour, a velha baronesa e o vidama respiraram com indizível prazer. A boa senhora beijou o neto, deixando correr uma lágrima, e saiu para agradecer a Deus numa oração. Ela, que fazia uma novena pela salvação de Augusto, acreditou-se atendida.

— Bem — disse o comendador —, podes agora ir ao baile de que falaste, não tenho mais objeções a fazer.

De Maulincour deu-se pressa em comparecer ao baile, sobretudo porque a sra. Desmarets lá devia estar. Era a festa dada pelo prefeito do Sena, em cujos salões as duas sociedades de Paris se encontravam como num terreno neutro.

Augusto percorreu os salões sem ver a mulher que exercia sobre sua vida tão grande influência. Entrou para um gabinete ainda deserto, onde as mesas de jogo esperavam os parceiros, e sentou-se num divã entregue aos mais contraditórios pensamentos sobre a sra. Desmarets. Um homem tomou logo após o jovem oficial pelo braço e o barão ficou estupefato ao ver o pobre da Rue Coquillière, o Ferragus de Ida, o habitante da Rue Soly, o Bourignard de Justino, o forçado da polícia, o morto da véspera.

— Senhor, nem um grito nem uma palavra — disse-lhe Bourignard, cuja voz reconheceu, embora fosse irreconhecível para qualquer outro. Vestia-se com elegância, usava as insígnias da Ordem do Tosão de Ouro e uma condecoração à lapela. — O senhor — continuou com uma voz que sibilava como a de uma hiena — autorizou todas as minhas tentativas, pondo de seu lado a polícia. Morrerá, senhor. É preciso. Ama a sra. Desmarets? É amado por ela? Com que direito pretende perturbar-lhe o descanso, enodoar-lhe a honra?

Chegou alguém. Ferragus levantou-se para sair.

— Conhece este homem? — perguntou o sr. de Maulincour, segurando Ferragus pelo colete.

Mas Ferragus livrou-se lestamente, tomou o barão pelos cabelos e sacudiu-lhe zombeteiramente a cabeça por diversas vezes.

— Precisará absolutamente de chumbo para torná-la razoável? — perguntou.

— Não pessoalmente, senhor — respondeu De Marsay, a testemunha desta cena —; mas sei que é o sr. de Funcal, português muito rico.

O sr. de Funcal desaparecera. O barão saiu a persegui-lo sem o alcançar, mas ao chegar ao peristilo viu, numa brilhante equipagem, Ferragus, que ria escalvinhamente, a olhá-lo, partindo às pressas.

— Por favor, senhor — disse Augusto, reentrando no salão e dirigindo-se a De Marsay, que conhecia —, onde mora o sr. de Funcal?

— Ignoro-o, mas lho dirão aqui, sem dúvida.

Perguntando ao prefeito, soube o barão que o conde De Funcal residia na embaixada portuguesa. Nesse momento, parecendo-lhe sentir ainda os dedos gelados de Ferragus em seus cabelos, viu a sra. Desmarets em todo o esplendor de sua beleza, fresca, graciosa, cheia de candura, resplendente daquela inocência feminina pela qual se apaixonara. Aquela criatura, infernal para ele, só lhe excitava ódio, e esse ódio transpareceu sangrento, terrível em seu olhar; esperou oportunidade de falar-lhe sem ser ouvido por outros e disse-lhe:

— Madame, eis já três vezes que os seus bravi[37] erram o alvo...

— Que pretende dizer, senhor? — respondeu corando. — Sei que lhe sucederam vários acidentes deploráveis, que senti; mas de que modo posso ter algo a ver com eles?

— Sabe então que há bravi acirrados contra mim pelo homem da Rue Soly?...

— Senhor!

— Madame, agora não serei o único a lhe pedir conta, não mais da minha felicidade, mas do meu sangue...

Neste ínterim Júlio Desmarets aproximou-se.

— Que diz à minha esposa, senhor?

— Se está curioso, senhor, venha esclarecê-lo em minha casa.

E De Maulincour saiu, deixando a sra. Desmarets pálida e quase a desmaiar.

III — A MULHER ACUSADA

Bem poucas mulheres existirão que não se tenham encontrado uma vez na vida, a propósito de um fato incontestável, em face de uma interrogação precisa, nítida, categórica, uma dessas perguntas inexoravelmente feitas pelos maridos, cuja simples apreensão produz um ligeiro frio e cuja primeira palavra penetra no coração como o aço de um punhal. Daí o axioma: Toda mulher mente. Mentira oficiosa, mentira venial, mentira sublime, mentira horrível; mas obrigação de mentir. E, admitida essa obrigação, não é necessário saber mentir bem? As mulheres, na França, mentem admiravelmente. Os nossos costumes tão bem lhes ensinam a impostura! A mulher é enfim tão candidamente impertinente, tão linda, tão graciosa, tão verdadeira ao mentir, reconhece tão bem a sua utilidade para evitar, na vida social, os choques violentos, aos quais a felicidade não resistiria, que ela lhes é tão necessária como o cofre acolchoado em que guardam suas joias.

A mentira torna-se para elas como que o fundo da linguagem, e a verdade não lhes é mais que a exceção e dizem-na, conforme sejam virtuosas, por caprichos ou por especulação. Depois, conforme o caráter, certas mulheres riem, mentindo; estas choram; aquelas se tornam graves; outras se zangam. Após terem começado na vida por fingir insensibilidade às homenagens que mais as lisonjeavam, terminam muitas vezes por mentirem a si mesmas. Quem já não admirou sua aparência de superioridade no próprio momento em que tremem pelos misteriosos tesouros do seu amor? Quem não estudou sua naturalidade, sua facilidade, sua liberdade de espírito nos maiores embaraços? Nelas nada é postiço: o embuste flui como a neve cai dos céus. E com que arte descobrem a verdade nos outros! Com que finura empregam a lógica mais reta, a propósito da pergunta apaixonada que lhes revela invariavelmente qualquer segredo íntimo de um homem suficientemente simples para usar com elas o processo de interrogar! Dirigir uma pergunta a uma mulher não é acaso entregar-se a ela? Não saberá tudo o que se lhe quer esconder e não saberá calar, respondendo? E há homens que têm a pretensão de lutar com a mulher de Paris! Com a mulher que sabe colocar-se acima de uma punhalada, dizendo: É muito curioso! Que lhe importa? Por que quer saber? Ah! está com ciúme? E se eu não quiser responder? Enfim com uma mulher que conhece cento e trinta e sete mil modos de dizer não e incomensuráveis variações para dizer sim.

O tratado do não e do sim não será uma das mais belas obras diplomáticas, filosóficas, logográficas e morais que nos falta fazer? Mas, para cumprir essa tarefa diabólica, não seria necessário um gênio andrógino? Também nunca será sequer tentada. Depois, dentre todas as obras inéditas, não é essa a mais conhecida, a mais bem praticada pelas mulheres?

Já observaram a aparência, a atitude, a desenvoltura de uma mentira? Examinem então:

A sra. Desmarets ia sentada no canto direito do seu carro e o marido no esquerdo. Tendo sabido refazer-se de sua emoção ao sair do baile, ela afetava uma aparência calma. O marido nada lhe havia dito e não lhe dizia coisa alguma então. Júlio olhava através da porta os vultos negros das casas silenciosas pelas quais passavam; mas, repentinamente, como que movido por determinado pensamento, ao dobrar uma esquina, examinou a mulher, que parecia sentir frio, não obstante a peliça acolchoada em que estava envolta; achou-lhe um ar pensativo e talvez estivesse mesmo absorta. De todas as coisas que se comunicam, a reflexão e a gravidade são as mais contagiosas.

— Que teria podido dizer-te o sr. de Maulincour para te afetar tão vivamente — perguntou Júlio — e que quer ele que eu vá saber em sua casa?

— Ele nada te poderá dizer lá que eu não te diga agora — respondeu ela, e depois, com essa finura feminina que sempre deslustra um pouco a virtude, esperou outra pergunta.

O marido tornou a voltar-se para as casas e continuou seus estudos das portas de entrada. Uma pergunta mais não seria uma suspeita, uma desconfiança? Suspeitar de uma mulher é um crime em amor e Júlio já havia matado um homem sem duvidar da mulher. Clemência não sabia tudo o que havia de verdadeira paixão, de reflexões profundas no silêncio do marido, do mesmo modo que Júlio ignorava o drama admirável que apertava o coração de sua Clemência. E o carro atravessava Paris silenciosa, levando dois esposos, dois amantes que se idolatravam e que, docemente apoiados, unidos, sobre almofadas de seda, estavam, entretanto, separados por um abismo. Nesses elegantes cupês que voltam dos bailes entre meia-noite e duas horas da madrugada, quantas cenas bizarras não se passam para só falar nos cupês cujas lanternas iluminam a rua e o carro, aqueles cujos vidros são claros, enfim os cupês do amor legítimo, em que os casais podem questionar sem temor aos transeuntes, porque o estado civil lhes dá o direito de se zangar, bater ou beijar uma mulher num carro ou em outro qualquer lugar! Também quantos segredos não revelam eles aos pedestres notívagos, aos jovens que foram ao baile de carro, mas, por qualquer causa, tiveram de voltar a pé!

Era a primeira vez que Júlio e Clemência se encontravam assim, cada qual em seu canto. Ordinariamente o marido se colocava bem junto à mulher.

— Faz frio — disse ela.

O marido, porém, nada ouvia; estudava as tabuletas escuras das fachadas das lojas.

— Clemência — disse, enfim —, perdoa-me a pergunta que te vou fazer.

E ele inclinou-se, tomou-a pela cintura e atraiu-a para si.

“Meu Deus, eis-nos chegados aos fatos”, pensou a pobre mulher.

— Bem — respondeu ela adiantando-se à pergunta —, queres saber o que me dizia o sr. de Maulincour. Eu te direi, Júlio; mas não será sem terror. Meu Deus, poderemos nós ter segredos um para o outro? Há um momento que eu te vejo lutando entre a certeza do nosso amor e vagos temores; mas nossas consciências não estão limpas e tuas suspeitas não te parecem bem tenebrosas? Por que não ficarmos na claridade que te agrada? Quando eu te houver dito tudo, quererás saber mais, e, entretanto, eu mesma não sei o que escondem as estranhas palavras desse homem. Ah! E poderia haver entre vocês dois uma discussão fatal. Preferiria muito mais que esquecêssemos ambos esse mau momento. Mas, em todo caso, jura-me esperares que esta singular aventura se explique naturalmente. O sr. de Maulincour me declarou que os três acidentes de que ouviste falar, a pedra tombada sobre o seu criado, sua queda do cabriolé e o seu duelo a propósito da sra. de Sérisy, eram efeito de uma conspiração que eu teria tramado contra ele. Depois me ameaçou de te explicar o interesse que me levaria a assassiná-lo. Compreendes alguma coisa em tudo isto? Minha perturbação veio da impressão que me causaram a vista de sua fisionomia cheia de loucura, seus olhos ferozes e suas palavras violentamente entrecortadas pela emoção interior. Pensei que ele estava louco. Eis tudo. Agora, eu não seria mulher se não me houvesse apercebido que, há um ano, me tornei, como dizem, a paixão do sr. de Maulincour. Ele nunca me viu senão nos bailes e suas palavras foram insignificantes como todas as que se pronunciam em tais ocasiões. Talvez queira nos desunir para me encontrar, um dia, só e sem defesa. Vê bem! Já as tuas sobrancelhas se enrugam. Oh! Odeio cordialmente a sociedade. Somos tão felizes sem ela! Por que então procurá-la? Júlio, eu te suplico, promete-me esquecer tudo isto. Amanhã ouviremos sem dúvida que o sr. de Maulincour enlouqueceu.

“Que coisa singular”, pensou Júlio, descendo do carro no peristilo da escadaria. Estendeu os braços para a mulher e os dois subiram para os seus aposentos.

Para desdobrar esta história em toda a verdade de seus detalhes, para seguir-lhe o curso em todas as suas sinuosidades, é necessário divulgar aqui alguns segredos do amor, deslizarmos entre as molduras das portas de um quarto de dormir, não impudentemente, mas ao modo de Trilby, sem sobressaltar nem Dougal nem Jeannie,[38] sem sobressaltar ninguém, ser tão casto como o exige a nobre língua francesa, tão ousado como foi o pincel de Gérard no seu quadro de Dáfnis e Cloé.

A alcova da sra. Desmarets era um lugar sagrado. Ela, seu marido e a criada de quarto eram os únicos a entrar ali. A opulência tem belos privilégios, e deles os mais invejáveis são os que permitem desenvolver os sentimentos em toda a sua extensão de os fecundar com a cumplicidade de seus mil caprichos, de os rodear desse brilho que os engrandece, dessas buscas que os purificam, dessas delicadezas que os tornam ainda mais atraentes. Se odiais os piqueniques e as refeições malservidas, se experimentais prazer em ver uma toalha engomada, deslumbrante de alvura, um serviço de prata dourada, porcelanas de rara pureza, uma mesa de orlas de ouro, ricamente cinzelada, iluminada por velas diáfanas e, sob as redomas de prata armoriada, os milagres da cozinha mais rebuscada; para serdes consequentes deveis então deixar as mansardas no alto das casas, as costureirinhas na rua; abandonar as mansardas, as costureirinhas, os guarda-chuvas e os tamancos articulados, as pessoas que pagam o jantar com cupões; e, se assim for, deveis compreender o amor como um princípio que não se desenvolve em toda a sua graça senão sobre gobelinos, sob o clarão de opala duma lâmpada marmórea, entre paredes discretas revestidas de seda, diante de uma lareira dourada, numa peça surda aos ruídos vizinhos, da rua, de tudo, por meio de persianas, de postigos, de ondulantes cortinas. Serão precisos espelhos nos quais as formas se movam e que repitam ao infinito a mulher que se desejaria múltipla e que o amor tantas vezes multiplica; divãs bem baixos; um leito que, semelhante a um segredo, mais se deixe adivinhar que mostrar-se, e, nessa alcova garrida, peles para os pés nus, velas sob mangas em meio de musselinas pregueadas, para se ler a qualquer hora da noite, flores que não entonteçam e linhos finíssimos capazes de satisfazer Ana de Áustria.[39] A sra. Desmarets realizara este delicioso programa, mas isso não era nada. Qualquer mulher de gosto poderia fazer o mesmo, embora haja na arrumação dessas coisas um quê de pessoal que dá a cada ornamento, a cada detalhe, um caráter inimitável.

Hoje, mais que nunca, reina o fanatismo da individualidade. Quanto mais as nossas leis tendam para uma impossível igualdade, mais dela nos afastaremos pelos costumes. Desse modo, as pessoas ricas começam, na França, a se tornar mais exclusivas em seus gostos e nas coisas que lhes pertencem do que eram há trinta anos.

A sra. Desmarets sabia a quanto a obrigava tal programa e havia posto tudo em sua casa em harmonia com o luxo que tão bem condiz com o amor. Os “mil e quinhentos francos e minha Sofia”[40] ou a paixão numa choupana são palavras de esfaimados aos quais basta de início o pão de rolão, mas, tornado gulosos, se realmente amam, acabam por desejar as riquezas da gastronomia. O amor tem horror ao trabalho e à miséria. Prefere morrer a vegetar.

A maior parte das mulheres, voltando de um baile, impacientes por deitarem-se, atiram ao redor vestidos, flores murchas, os ramos cujo perfume desapareceu. Largam os sapatinhos em cima de uma cadeira, andam sobre coturnos inseguros, tiram as travessas e desenrolam as tranças, descuidadas de si próprias. Pouco lhes importa que os maridos vejam os colchetes e os alfinetes de segurança, os artificiosos grampos que sustinham os elegantes edifícios do penteado ou dos adornos. Nada de mistérios; tudo cai diante do marido, nada de falsa aparência para ele. O espartilho, na maioria dos casos espartilhos cheios de precauções, lá fica, se a criada de quarto sonolenta esquece de o levar. Enfim as anquinhas, os corpetes guarnecidos de tafetá engomado, os trapos mentirosos, os cabelos vendidos pelo cabeleireiro, toda a falsa mulher ali está esparsa. Disjecta membra poetae[41] a poesia artificial tão admirada por aqueles para quem foi concebida e elaborada, a mulher bonita enche todos os cantos. Ao amor do marido que boceja apresenta-se então uma mulher verdadeira, que também boceja, aparecendo numa desordem sem elegância, penteada para a noite com uma touca amarrotada, a mesma da véspera, a mesma do dia seguinte.

— Porque, depois de tudo, senhor, se quiser uma linda touca para amarrotar todas as noites, aumente-me a pensão.

E eis aí a vida tal qual é.

A mulher é sempre velha e desagradável para o marido, mas sempre elegante e bem arrumada para o outro, para o rival de todos os maridos, para o mundo que calunia e difama todas as mulheres. Inspirada por verdadeiro amor, pois o amor possui, como todos os seres, o instinto da própria conservação, a sra. Desmarets agia bem diferentemente e encontrava, nas graças constantes de sua felicidade, a força necessária para cumprir esses minuciosos deveres, que é preciso nunca relaxar, porque perpetuam o amor. Esses cuidados, esses deveres não procedem, aliás, da dignidade pessoal que faz parte do encanto? Não constituem carinho? Não consistem em respeitar em si mesma o ser amado?

A sra. Desmarets interditara assim ao marido a entrada do gabinete onde tirava a toilette de baile e de onde saía vestida para a noite, misteriosamente, adornada para as misteriosas festas do seu coração. Ao regressar dessa peça, sempre elegante e graciosa, Júlio contemplava uma mulher coquetemente envolta num elegante penhoar, com os cabelos simplesmente dispostos em grossas tranças sobre a cabeça; assim, não lhes temendo a desordem, ela não arrebatava ao amor nem a vista nem o tato; uma mulher sempre mais simples, mais bela ainda do que o era na sociedade; uma mulher que se reanimara na água e na qual todo o artifício consistia em ser mais branca que as suas musselinas, mais fresca que o mais fresco perfume, mais sedutora que a mais hábil cortesã, enfim, sempre terna e, portanto, sempre amada.

Essa admirável compreensão do métier feminino foi o grande segredo de Josefina para agradar Napoleão, como fora outrora o de Cesônia para Caio Calígula, de Diana de Poitiers para Henrique ii. E, se foi largamente produtiva para mulheres que contavam sete ou oito lustros, que arma não é nas mãos das mulheres jovens! Um marido saboreia então com delícia os prazeres de sua fidelidade.

Consequentemente, depois daquela conversação que a gelara de medo e que lhe causava vivíssima inquietude, a sra. Desmarets dedicou particular cuidado à sua toilette de noite. Quis fazer-se e se fez encantadora. Cerrara a cambraia do penhoar, entreabrira o corpete, deixara cair os negros cabelos sobre as espáduas roliças; o banho perfumado lhe emprestara um odor inebriante, seus pés nus calçavam pantufas de veludo. Consciente de suas vantagens, chegou-se a passos miúdos e pôs as mãos sobre os olhos de Júlio, que encontrou pensativo, metido num chambre, com o cotovelo apoiado na lareira e um pé sobre o guarda-fogo, e disse-lhe, falando-lhe à orelha, que aqueceu com o seu hálito, mordendo-a de leve:

— Em que pensa, meu senhor?

Abraçou-o a seguir, envolvendo-o em seus braços, para o arrancar aos maus pensamentos. A mulher que ama tem toda a intuição de seu poder; e quanto mais virtuosa, mais ativa é a sua garridice.

— Em ti — respondeu ele.

— Em mim só?

— Sim!

— Oh! Eis um sim muito impensado.

Deitaram-se. Ao adormecer, ela pensou: “Decididamente, o sr. de Maulincour será causa de alguma desgraça. Júlio está preocupado, distraído, conserva pensamentos que não me quer dizer”. Eram cerca de três horas quando Clemência foi despertada por um pressentimento que lhe ferira o coração durante o sono. Teve a percepção, física e moral ao mesmo tempo, da ausência do marido. Não sentia mais o braço que Júlio lhe passava sob a cabeça, aquele braço no qual dormia feliz e calma havia cinco anos e de que ela não se fatigava nunca. Depois, uma voz lhe dissera: “Júlio sofre, Júlio chora...”. Ela levantou a cabeça, sentou-se na cama, encontrou frio o lugar do marido e percebeu-o sentado diante da lareira, com os pés no guarda-fogo, a cabeça apoiada sobre o espaldar de uma poltrona. Júlio tinha lágrimas nas faces. A pobre mulher desceu rapidamente do leito e saltou, num impulso, para os joelhos do marido.

— Júlio, que tens? Sofres? Fala! Dize! Dize-me! Fala-me, se me amas.

Num instante ela lhe lançou cem palavras exprimindo-lhe a mais profunda ternura. Júlio pôs-se aos pés da mulher, beijou-lhe os joelhos e as mãos e respondeu-lhe deixando correr novas lágrimas:

— Minha querida Clemência, sou infeliz! Não há amor em se desconfiar de uma amante, e tu és a minha amante. Adoro-te duvidando de ti... As palavras que esse homem me disse esta noite tocaram-me o coração e lá ficaram, apesar de meus esforços, a transtorná-lo. Nelas há escondido algum mistério. Enfim envergonho-me, mas as tuas explicações não me satisfizeram. Minha razão me lança luzes que o meu amor repele. É um terrível combate. Poderia eu continuar a teu lado, com a tua cabeça em meu braço e suspeitando a existência, nela, de pensamentos que me são desconhecidos? Oh! Eu te acredito, eu te acredito — gritou-lhe sofregamente ao vê-la sorrir com tristeza e abrir a boca para falar. — Não me digas nada, não me repreendas nada. De ti, a menor palavra me mataria. Que me poderias dizer, aliás, que eu mesmo não me haja dito há três horas? Sim, há três horas que aqui estou vendo-te dormir, tão linda, admirando tua fronte tão pura e tão tranquila. Oh! Sim, sempre me disseste todos os teus pensamentos, não é? Estou sozinho em tua alma. Ao contemplar-te, ao mergulhar os meus olhos nos teus, neles bem vejo tudo. Tua vida é sempre tão pura como o teu olhar é claro. Não, não há segredos por trás desse olhar tão transparente.

Levantou-se e beijou-lhe as pálpebras.

— Deixa-me confessar-te, querida, que há cinco anos o que faz com que cresça dia a dia a minha felicidade é o não ver em ti nenhuma dessas naturais afeições que roubam sempre algo do amor. Não tinhas irmãs nem pai nem mãe nem amigos, e nesse caso não estou nem abaixo nem acima de ninguém em teu coração; eu estava sozinho nele. Clemência, repete-me as palavras de carinho que tantas vezes me disseste, não me ralhes, consola-me, porque sou infeliz. Tenho, sem dúvida, uma odiosa suspeita a reprovar-me, e nada tens no coração que te atormente. Minha bem-amada, dize, podia eu ficar, assim, junto a ti? Como podem ficar sobre o mesmo travesseiro duas cabeças tão unidas, quando uma delas sofre e a outra está tranquila... Em que pensas então? — exclamou bruscamente ao ver Clemência pensativa, interdita, sem poder reter as lágrimas.

— Penso em minha mãe — respondeu em tom grave. — Tu não poderias perceber, Júlio, a dor da tua Clemência forçada a lembrar-se do último adeus de sua mãe, ouvindo tua voz, a mais doce das músicas; a comparar a solene pressão das mãos geladas de uma moribunda à carícia das tuas, num momento em que me cumulas de testemunhos do teu delicioso amor.

E levantou o marido, puxou-o para si, apertou-o com uma força nervosa bem superior à de um homem, beijou-lhe os cabelos e o cobriu de lágrimas.

— Ah! Eu desejaria ser esquartejada viva por ti! Dize-me que eu te faço feliz, que sou para ti a mais linda das mulheres, que sou para ti mil mulheres. Mas és amado como nenhum homem o será jamais. Não sei o que querem dizer as palavras dever e virtude. Júlio, eu te amo por ti, sou feliz em te amar e hei de amar-te cada vez mais até meu último suspiro. Tenho orgulho do meu amor e creio-me destinada a experimentar um único sentimento em minha vida. O que te vou dizer é, talvez, horroroso: estou contente por não ter tido filhos e não os desejo. Sinto-me mais esposa que mãe. E tens dúvidas? Ouve-me, meu amor, promete-me esquecer não esta hora mista de ternura e de dúvidas, mas as palavras daquele louco. Júlio, eu o quero. Promete-me que não verás, que não irás à sua casa. Tenho a convicção de que, se deres um único passo nesse dédalo, rolaremos num abismo onde morrerei, mas tendo o teu nome em meus lábios e o teu coração no meu. Por que me colocas tão alto em tua alma e tão baixo na realidade? Tu que dás crédito a tanta gente, sobre suas fortunas, não me farias a esmola de uma suspeita; e, quando, pela primeira vez em tua vida, me podes provar uma fé sem limites, haverias de destronar-me do teu coração?! Entre um louco e mim, é no louco que acreditas, ó Júlio!

Parou, afastou os cabelos que lhe caíam sobre a testa e o pescoço e acrescentou em tom pungente:

— Já falei demais; uma palavra devia bastar. Se tua alma e tua fronte conservam uma sombra por leve que possa ser, deves sabê-lo bem, eu morreria!

Ela não pôde reprimir um estremecimento e empalideceu. “Ah! Matarei esse homem”, pensou Júlio, tomando a mulher nos braços e conduzindo-a ao leito.

— Durmamos em paz, meu anjo — disse-lhe —, esqueci tudo, eu te juro.

Clemência adormeceu sob essas doces palavras, docemente repetidas. E Júlio, vendo-a adormecida, pensou consigo mesmo: “Ela tem razão, quando o amor é tão puro, uma suspeita o dilacera. Para esta alma tão pura, para esta flor tão terna, um ferimento deve ser, sim, a morte”.

Quando entre dois seres cheios de afeto um pelo outro, cujas vidas se entrecomunicam a todo instante, sobrevém uma nuvem, ainda que ela se dissipe, deixa nas almas traços de sua passagem. E ou a ternura se faz mais viva como a terra depois de uma chuva, ou o abalo repercute ainda como um longínquo trovão num céu azul; mas é impossível voltar à vida anterior, e necessariamente o amor ou cresce ou diminui.

Ao almoço, Júlio e Clemência tiveram um para o outro essas atenções em que sempre se vislumbra certa afetação. Houve olhares cheios de alegria quase forçada, desses que parecem o esforço de pessoas empenhadas em se enganarem a si próprias. Júlio tinha dúvidas involuntárias, e a mulher, temores certos. Apesar disso, confiantes um no outro, haviam dormido. Seria aquele estado de espírito devido a uma falta de confiança, à recordação da cena noturna? Eles próprios não o sabiam. Mas haviam-se amado e amavam-se demasiado puramente para que a impressão a um tempo cruel e benéfica daquela noite não deixasse traço algum em suas almas; zelosos ambos em fazê-la desaparecer e desejando cada qual ser o primeiro a voltar para o outro, não podiam deixar de pensar na causa de um primeiro desacordo. Para as almas amantes isso não é sofrimento; as penas ainda estão longe; é, porém, uma espécie de aflição difícil de pintar. Se existem relações entre as cores e as agitações da alma; se, como disse a cega de Locke,[42] o escarlate deve produzir na vista o efeito produzido no ouvido por uma fanfarra, pode-nos ser permitido comparar a tons cinzentos essa melancolia reflexa. Mas o amor contristado, o amor que possui verdadeira consciência de sua felicidade momentaneamente turbada, dá voluptuosidades que, participando da pena e da alegria, são totalmente novas. Júlio estudava a voz da mulher, perscrutava-lhe o olhar com a emoção nova que o animava nos primeiros dias de sua paixão. As lembranças de cinco anos felizes de todo, a beleza de Clemência, a ingenuidade do seu amor afastaram então prontamente os últimos vestígios de uma dor intolerável.

Era um domingo, dia em que não havia Bolsa nem negócios; os dois passaram o dia juntos, penetrando no coração um do outro, mais do que nunca antes, semelhantes a duas crianças que, num momento de medo, se abraçam, se estreitam, unindo-se por instinto.

Há, na vida a dois, desses dias completamente felizes, devidos ao acaso e que não se relacionam nem com a véspera nem com o dia seguinte, flores efêmeras! Júlio e Clemência gozaram-no deliciosamente, como se pressentissem que era o último dia de sua vida amorosa.

Que nome dar a essa potência desconhecida que faz os transeuntes apressarem o passo antes que a tempestade se haja manifestado, que faz resplender de vida e de beleza o moribundo dias antes da morte e lhe inspira os mais ridentes projetos, que aconselha o sábio a levantar a lâmpada no momento em que ilumina perfeitamente, que faz uma mãe temer o olhar demasiado profundo lançado sobre o filho por um homem perspicaz? Sofremos todos a sua influência nas grandes catástrofes de nossa vida, e nem sequer lhe demos um nome ou a estudamos: é mais que o pressentimento, mas não é ainda a visão.

Tudo correu bem até o outro dia. Segunda-feira, Júlio Desmarets, obrigado a estar na Bolsa à hora de costume, não saiu sem perguntar à mulher, segundo o hábito, se queria aproveitar o carro.

— Não — disse-lhe esta. — Faz muito mau tempo para sair.

Com efeito, chovia a cântaros. Eram mais ou menos duas e meia quando Desmarets se dirigiu ao Tribunal e ao Tesouro. Às quatro, saindo da Bolsa, encontrou-se cara a cara com De Maulincour, que o esperava com a pertinácia fervorosa que o ódio e a vingança nos dão.

— Senhor, tenho informações importantes a comunicar-lhe — disse o oficial, tomando o agente de câmbio pelo braço. — Ouça, sou homem demasiado leal para recorrer a cartas anônimas que só perturbariam o seu repouso; preferi falar-lhe. Pode acreditar que, se não se tratasse de minha vida, eu não me imiscuiria, decerto, de maneira alguma, nos assuntos de um casal, ainda que me julgasse com o direito de fazê-lo.

— Se o que o senhor tem a dizer-me concerne à sra. Desmarets — respondeu Júlio —, eu lhe peço, senhor, que se cale.

— Se eu me calar, senhor, pode-lhe acontecer que ainda veja a sra. Desmarets num banco de tribunal, ao lado de um forçado. Devo ainda assim calar-me?

Júlio empalideceu, mas seu belo rosto retomou de pronto uma falsa tranquilidade; depois, conduzindo o oficial a uma das dependências da Bolsa provisória, onde se encontravam, disse-lhe com uma voz velada por profunda emoção:

— Senhor, eu o ouvirei, mas haverá entre nós um duelo de morte se...

— Oh! Concordo — exclamou o sr. de Maulincour. — Tenho pelo senhor a maior estima. O senhor fala de morte? Ignora, sem dúvida, que sua mulher me mandou talvez envenenar sábado à noite. Sim, senhor, desde anteontem se passa em mim algo de extraordinário; meus cabelos destilam interiormente, através do crânio, uma febre e um langor mortais e sei perfeitamente qual homem tocou os meus cabelos durante o baile.

O barão de Maulincour contou, sem omitir um único fato, seu amor platônico pela sra. Desmarets e as minúcias da aventura que começa este capítulo. Todo mundo o teria escutado com tanta atenção como o agente de câmbio, mas o marido de Clemência tinha o direito de se mostrar mais espantado que qualquer outra pessoa no mundo. Nisso revelou o seu caráter; mostrou-se mais surpreso que abatido. Tornado juiz, e juiz de uma mulher adorada, encontrou em sua alma a retidão do juiz e sua inflexibilidade. Amando ainda, cuidou menos de sua vida desfeita que da de sua mulher; ouviu não a sua própria dor, mas a voz distante que lhe gritava: “Clemência não saberia mentir! Por que te haveria ela de trair?”.

— Senhor — disse o oficial, ao concluir —, certo de haver reconhecido, sábado à noite, no sr. de Funcal o Ferragus que a polícia acreditava morto, pus, a seguir, em sua pista um homem inteligente. Voltando à casa, lembrei-me, por feliz acaso, do nome da sra. Meynardie, citado na carta da tal Ida, a amante presumível de meu perseguidor. Munido dessa única indicação, meu emissário logo me prestará conta dessa espantosa aventura, pois é mais hábil, na descoberta da verdade, que a própria polícia.

— Senhor — respondeu o agente de câmbio —, não saberia agradecer-lhe esta confidência. O senhor me promete provas, testemunhas, que aguardarei. Investigarei corajosamente a verdade neste estranho assunto, mas o senhor me permitirá duvidar até que a evidência dos fatos me seja provada. Em qualquer caso, terá satisfação, pois deve compreender que precisamos de uma satisfação.

Júlio regressou a casa.

— Que tens, Júlio? — perguntou-lhe a mulher. — Estás pálido de fazer medo.

— Faz frio — respondeu, andando a passos lentos pela alcova onde tudo falava de felicidade e de amor, a alcova tão calma em que se preparava uma tempestade mortal. — Não saíste hoje? — continuou, maquinalmente, em aparência.

Fora levado a fazer a pergunta pelo último dos mil pensamentos que se haviam secretamente misturado numa meditação lúcida, embora precipitadamente avivada pelo ciúme.

— Não — respondeu ela, num falso tom de candura.

Naquele momento Júlio percebeu no toucador da mulher algumas gotas d’água no chapéu que ela costumava usar durante o dia. Júlio era violento, mas por igual cheio de delicadezas, e repugnou-lhe colocar a mulher em face de um desmentido. Em tal situação, tudo deve acabar para o resto da vida, entre certas criaturas. Entretanto, aquelas gotas d’água foram como que um clarão que lhe ferisse o cérebro. Saiu do quarto, desceu ao andar térreo e disse ao porteiro, depois de verificar que estava só:

— Fouquereau, cem escudos de renda se disseres a verdade, rua se me enganares e nada se, dizendo-me a verdade, falares a alguém de minha pergunta e de tua resposta.

Parou para ver bem o porteiro, que atraiu para a luz de uma janela, e continuou:

— A senhora saiu esta tarde?

— Saiu às duas e três quartos e creio tê-la visto voltar há cerca de meia hora.

— Verdade, palavra de honra?

— Sim, senhor.

— Terás a renda prometida; mas, se falares, lembra-te de minha promessa! Então, perderás tudo.

Júlio voltou à alcova da mulher.

— Clemência — disse-lhe ele —, tenho necessidade de pôr em ordem as contas da casa, não te ofendas, pois, com o que te vou perguntar. Já não te entreguei quarenta mil francos desde o começo do ano?

— Mais — disse ela —, quarenta e sete.

— E poderás indicar seu emprego?

— Pois não. Para começar, tinha a pagar várias contas do ano passado...

“Assim não ficarei sabendo nada”, pensou Júlio, “comecei mal.”

Nesse momento o camareiro bateu e entregou-lhe uma carta, que ele abriu por compostura, mas que leu com atenção apenas pôs os olhos na assinatura.

 

Senhor,

No interesse do vosso sossego e do nosso, tomo a liberdade de vos escrever sem ter a honra de ser vossa conhecida; mas a minha posição, a minha idade e o temor de alguma desgraça me forçam a pedir vossa indulgência na desagradável conjuntura em que se encontra a nossa família desolada. O sr. Augusto de Maulincour nos vem dando desde alguns dias provas de alienação mental, e tememos que ele perturbe vossa felicidade com as quimeras que nos confiou, ao sr. de Pamiers e a mim, durante um acesso de febre. Nós o prevenimos, pois, da sua moléstia, que, sem dúvida, ainda curável, tem efeitos tão graves e tão importantes para a honra de nossa família e o futuro de meu neto que conto com a vossa inteira discrição.

Se o senhor comendador ou eu, senhor, pudéssemos nos transportar à vossa casa, nós nos dispensaríamos de escrever-vos; mas não duvido de que tereis a gentileza de queimar esta carta, atendendo à súplica que aqui vos faz uma mãe.

Recebei a segurança de minha perfeita consideração.

 

baronesa de maulincour, nascida De Rieux

 

 

— Quantas torturas! — exclamou Júlio.

— Mas que se passa contigo? — perguntou-lhe a mulher, com viva ansiedade.

— Chego — respondeu Júlio — a perguntar-me se foste tu que me enviaste este aviso para dissipar minhas suspeitas. — E atirou-lhe a carta. — Julga, pois, os meus sofrimentos.

— Infeliz — disse ela, deixando cair a carta. — Lamento-o, embora me tenha feito muito mal.

— Sabes o que ele me falou?

— Ah! Foste vê-lo apesar de tua palavra — disse ela, cheia de terror.

— Clemência, nosso amor está em perigo de morte e estamos fora de todas as leis ordinárias da vida; deixemos pois de pequenas considerações em meio de grandes perigos. Escuta: dize-me por que saíste esta tarde. As mulheres se creem no direito de nos pregar por vezes pequenas mentiras. Não se comprazem elas, frequentemente, em nos esconder prazeres que nos preparam? Há pouco disseste-me decerto uma palavra por outra, um não por um sim.

Entrou no toucador e trouxe o chapéu.

— Aqui está, vês? Sem que eu queira representar o papel de Bartolo,[43] o teu chapéu te traiu. Estas manchas não serão acaso gotas de chuva? Saíste, portanto, de carro, e recebeste estas gotas d’água quer ao procurares uma condução, quer ao entrares na casa aonde foste, quer ao deixá-la. Uma mulher pode decerto sair de casa muito inocentemente, mesmo após ter dito ao marido que não sairia. Há tantas razões para mudar de resolução. Ter caprichos não é um dos vossos direitos? Não sois obrigadas a ser consequentes convosco mesmas. Terás esquecido alguma coisa, um serviço a fazer, uma visita ou qualquer boa ação a praticar. Mas nada impede uma mulher de dizer ao marido o que fez. Ruboriza-se alguém por confiar num amigo? Então? Não é o marido ciumento que te fala, minha Clemência, é o amante, o amigo, o irmão. — E atirou-se desvairadamente aos seus pés. — Fala, não para te justificares, mas para acalmares horríveis sofrimentos. Eu bem sei que saíste. E, então, o que fizeste? Aonde foste?

— Sim, saí, Júlio — respondeu ela com voz alterada, embora seu rosto permanecesse calmo. — Mas não me perguntes mais nada. Espera com confiança, sem o que te proporcionarás eternos remorsos. Júlio, meu Júlio, a confiança é a virtude do amor. Confesso que neste momento estou por demais perturbada para te responder; mas não sou uma mulher artificiosa; eu te amo, tu o sabes.

— Em meio a tudo o que pode quebrantar a fé de um homem, despertar-lhe o ciúme, pois já não sou o primeiro em teu coração, não sou portanto tu mesma... Pois bem! Clemência, prefiro acreditar em ti, crer em tua voz, crer nos teus olhos! Se me enganas, merecerás...

— Oh! Mil mortes — disse ela, interrompendo-o.

— Eu não te escondo nenhum dos meus pensamentos, e tu, tu...

— Pst! — fez ela. — Nossa felicidade depende de nosso mútuo silêncio.

— Ah! Quero saber tudo — exclamou Júlio num violento acesso de raiva.

Nesse instante ouviram-se gritos de mulher, e os sons agudos de uma vozinha áspera chegaram da antecâmara até os esposos.

— Entrarei! Já disse! — gritava. — Sim, entrarei, quero vê-la e hei de vê-la.

Júlio e Clemência se precipitaram para a sala e viram quase logo as portas abrirem-se com violência; uma mulher moça surgiu de súbito, seguida por dois criados, que disseram ao patrão:

— Senhor, esta mulher quis entrar aqui à força. Já lhe dissemos que a senhora não estava. Ela nos respondeu que bem sabia que a senhora saíra, mas que acabava de vê-la voltar. Ameaçou ficar à porta da rua até falar com a senhora...

— Retirem-se! — ordenou o sr. Desmarets aos criados. — Que deseja, senhorita? — acrescentou voltando-se para a desconhecida.

A senhorita era o tipo de uma mulher que só em Paris se encontra. Ela se faz em Paris, como a lama, como as pedras do calçamento, como a água do Sena se fabrica em Paris, em grandes reservatórios através dos quais a indústria a filtra dez vezes antes de a entregar às garrafas facetadas onde cintila pura e clara, depois de ter sido lodosa. É, assim, uma criatura verdadeiramente original. Vinte vezes interpretada pelos pincéis dos pintores, pelos lápis dos caricaturistas, pela plumbagina dos desenhistas, escapa a todas as análises, porque é irretratável em todos os seus aspectos, como a natureza, como esta fantástica Paris.

Com efeito, ela não se prende ao vício senão por um raio e dele se afasta por mil outros pontos da circunferência social. Ademais, ela não deixa adivinhar senão um traço do seu caráter, o único que a torna censurável; suas belas virtudes estão escondidas; do seu ingênuo impudor ela se orgulha. Incompletamente traduzida nos dramas e nos livros onde foi posta em cena com toda a sua poesia, ela nunca será verdadeira fora de sua água-furtada, pois sempre será, em qualquer outra parte, ou caluniada ou lisonjeada. Rica, vicia-se; pobre, é incompreendida. E não poderia ser de outro modo! Tem vícios demais e demasiadas boas qualidades; coloca-se muito próxima de uma asfixia sublime ou de um riso aviltante; é muito bela e muito hedionda; personifica demasiado bem Paris, à qual fornece as porteiras desdentadas, as lavadeiras, as varredoras, as mendigas e, por vezes, condessas impertinentes, atrizes admiradas, cantoras aplaudidas; até chegou a dar outrora, à Monarquia, duas quase rainhas. Quem poderia interpretar esse Proteu? Ela é toda a mulher, menos que a mulher, mais que a mulher. Desse vasto retrato, um pintor de costumes não nos pode dar mais que certos detalhes; o conjunto é o infinito.

Era uma costureirinha de Paris, mas a grisette[44] em todo o seu esplendor; a grisette de carruagem, feliz, jovem, bela, fresca, mas grisette, e grisette de colchetes e tesoura, atrevida como uma espanhola, impertinente como uma inglesa virtuosa a reclamar seus direitos conjugais, faceira como uma grande dama, mais franca e disposta a tudo; verdadeira leoa saída do pequeno apartamento, com o qual ela tantas vezes sonhara, de cortinas de pano vermelho, móveis de veludo de Utrecht, mesa de chá, serviço de porcelanas pintadas, conversadeira, tapetezinho de lã, relógio de alabastro e candelabro com mangas de vidro, quarto amarelo e macio acolchoado; numa palavra, todas as alegrias da vida das costureirinhas: a governanta, antiga grisette também, mas grisette de bigodes e de galões, noitadas de espetáculo, marrons-glacés à discrição, vestidos de seda e chapéus a esbanjar; enfim todas as felicidades calculadas no balcão das modistas, menos a equipagem, que só aparece nas imaginações do balcão como o bastão de marechal nos sonhos dos soldados.

Sim, aquela costureirinha tinha isso tudo graças a uma afeição verdadeira ou apesar dela, como outras tudo obtêm quase sempre em troca de uma hora por dia, espécie de imposto despreocupadamente adquirido sob a chancela de um velhote.

A moça que se encontrava diante do casal Desmarets calçava sapatos tão decotados que mal se via uma estreita linha negra entre o tapete e as meias brancas. Esse calçado, do qual a criatura parisiense nos revela otimamente o traço, é uma graça particular da grisette parisiense. Ela porém se trai melhor aos olhos do observador pelo cuidado com que os vestidos lhe aderem às formas, que desenham nitidamente. Também a desconhecida estava, para usar a expressão pitoresca empregada pelo soldado francês, encordoada num vestidinho de fichu verde que lhe deixava adivinhar a beleza do busto, então perfeitamente visível, porque o seu xale de cashmere de Ternaux,[45] caído ao chão, só era retido pelas duas pontas retorcidas que apertava nas mãos. Possuía um rosto fino, faces rosadas, tez alva, olhos cinzentos brilhantes, testa arqueada, muito proeminente, cabelos cuidadosamente alisados que caíam do chapeuzinho em grossos cachos sobre o pescoço.

— Eu me chamo Ida, senhor. E, se é a sra. Júlio a quem tenho a honra de falar, venho para lhe dizer tudo o que tenho no coração contra ela. É malfeito, quando se tem a vida arranjada, quando se está instalada como ela está aqui, querer tirar de uma pobre rapariga o homem com quem tratei casamento de palavra e que fala em reparar o mal casando no juizado. Há muita gente boa no mundo, não é verdade, senhor?, para praticar as suas fantasias, sem vir me tomar um homem de idade que me torna feliz. Eu não tenho casa bonita, mas tenho o meu amor. Eu tenho pavor dos moços bonitos e do dinheiro, eu sou toda sentimento e...

A sra. Desmarets voltou-se para o marido.

— Permita-me, senhor, não ouvir mais — disse encaminhando-se para a alcova.

— Se esta dama está com o senhor, dei rata, pelo que vejo; mas tanto pior — continuou Ida. — Para que vai ela ver o sr. Ferragus todos os dias?

— Está enganada, senhorita — disse Júlio estupefato. — Minha mulher é incapaz...

— Ah! Vocês são casados os dois? — disse a grisette manifestando certa surpresa. — Então é muito mais malfeito, meu senhor, não é, uma mulher que tem a sorte de ser casada de verdade ter relações com um homem como Henrique...

— Que Henrique? — perguntou Júlio, tomando Ida pela mão e levando-a para uma peça vizinha para que a mulher não ouvisse nada mais.

— Claro! O sr. Ferragus...

— Mas ele morreu — disse Júlio.

— É mentira! Ainda ontem eu fui ao Franconi[46] com ele, e ele me levou depois pra casa como devia. Ademais, a sua senhora pode dar-lhe notícias. Pois não foi ver-lhe às três horas? Eu sei bem: eu esperei ela na rua, porque um homem amável, o sr. Justino, que talvez o senhor conheça, um velhinho que tem berloques e usa espartilho, me havia prevenido que eu tinha uma rival em certa sra. Júlio. Esse nome, senhor, é bem conhecido entre os nomes de guerra. Desculpe, pois é o seu; mas, mesmo que a sra. Júlio fosse uma duquesa da Corte, Henrique é tão rico que pode satisfazer todas as suas fantasias. Minha tenção é defender o meu, e eu tenho esse direito, porque eu amo Henrique! Foi a minha primeira inclinação, e nela estão o meu amor e a sorte que há de vir. Eu não tenho medo de nada, meu senhor; sou honesta e nunca menti nem roubei as coisas de outros quaisquer. Mesmo que fosse uma imperatriz a minha rival, eu iria a ela diretamente; e, se ela me tirasse o meu futuro marido, eu seria capaz de matá-la, por muito imperatriz que fosse, porque todas as mulheres bonitas são iguais, meu senhor...

— Basta! Basta! — disse Júlio. — Onde você mora?

— Na Rue de la Corderie du Temple, nº 14, senhor. Ida Gruget, costureira de espartilhos, para o servir, pois nós fazemos muitos para cavalheiros.

— E onde mora o homem que você chama Ferragus?

— Mas, cavalheiro — retrucou a rapariga, contraindo os lábios —, ele não é um homem qualquer. É um senhor mais rico do que talvez o senhor. Mas por que me pergunta o endereço dele quando sua mulher o sabe? Ele me recomendou que não o desse. Será que sou obrigada a responder-lhe?... Não estou, graças a Deus, nem no confessionário nem na polícia e só dependo de mim mesma.

— E se eu lhe oferecesse vinte, trinta, quarenta mil francos para que me diga onde mora o sr. Ferragus?

— Ah! N-a-o-til, meu amiguinho, está acabado! — disse ela acrescentando a essa singular resposta um gesto popular. — Não há dinheiro que me faça dizer isso. Tenho a honra de cumprimentá-lo. Por onde é que se sai daqui?

Júlio, aterrado, deixou-a sair, sem mais preocupar-se com ela. O mundo inteiro parecia desmoronar sobre ele; e acima dele o céu caía em pedaços.

— Senhor, o jantar está servido — veio dizer-lhe o camareiro.

O copeiro e ele haviam esperado, na sala de jantar, cerca de um quarto de hora sem ver chegarem os patrões.

— A senhora não virá jantar — avisou a criada de quarto.

— Que há, então, Josefina? — indagou o copeiro.

— Não sei — respondeu. — A senhora chora e vai deitar-se. Decerto o patrão tem alguma inclinação na cidade e a coisa se descobriu em mau momento, ouviu? Não respondo pela vida da senhora. Os homens são todos uns desastrados! Fazem sempre das suas sem nenhuma precaução.

— Qual nada — retrucou o criado em voz baixa —, ao contrário, a senhora é que... enfim você compreende. Que tempo tem o patrão para ir à cidade, ele que há cinco anos não dormiu uma única noite fora da alcova da senhora; que desce para o gabinete às dez horas e dele só sai ao meio-dia para almoçar? Enfim, sua vida é conhecida, regular, enquanto a senhora sai todos os dias às três da tarde, para ir não se sabe aonde.

— O patrão também — contestou a criada de quarto, tomando o partido da senhora.

— Mas ele vai à Bolsa. Já por três vezes avisei-o de que está servido — continuou o criado depois de uma pausa —, e é como se falasse a um móvel.

O patrão apareceu.

— Onde está a senhora? — perguntou.

— A senhora vai deitar-se, está com enxaqueca — respondeu a criada, tomando um ar importante.

Júlio disse então com perfeito sangue-frio, dirigindo-se aos criados:

— Podem tirar a mesa, vou fazer companhia à senhora. — E entrou para a alcova da mulher, que encontrou chorando, mas abafando os soluços com o lenço.

— Por que chora? — disse Júlio. — Não tem a esperar de mim nem recriminações nem violências. Por que me vingaria eu? Se não foi fiel ao meu amor, é que era indigna dele...

— Indigna! — Esta palavra repetida ouviu-se através dos soluços e o tom com que foi dita teria enternecido qualquer outro que não Júlio.

— Para matá-la, talvez fosse preciso amar mais do que amo — disse, continuando —, mas não teria coragem para tanto, antes me mataria, deixando-lhe a sua... felicidade, e a... a quem?

Não terminou.

— Matar-se! — exclamou Clemência, atirando-se aos pés de Júlio e conservando-os abraçados.

Ele, porém, quis desembaraçar-se do amplexo e sacudiu a mulher, arrastando-a até o leito.

— Deixe-me — disse.

— Não, não, Júlio! — gritou ela. — Se não me amas mais, eu morrerei! Queres saber tudo?

— Sim.

Prendeu-a, apertou-a violentamente, sentou-se à beira da cama e a reteve entre as pernas; depois, contemplando com um olhar duro a bela cabeça tornada cor de fogo e sulcada de lágrimas, repetiu:

— Vamos, diga.

Os soluços de Clemência recomeçaram.

— Não; é um segredo de vida e de morte. Se eu o disser, eu... Não, eu não posso. Perdoa, Júlio!

— Tu me enganas sempre...

— Oh! Agora me dizes tu! — exclamou. — Sim, Júlio, podes crer que eu te engane, mas muito breve saberás tudo.

— Mas esse Ferragus, esse forçado que tu vais ver, esse homem enriquecido pelo crime, se não é teu, se tu não lhe pertences...

— Oh! Júlio!


— Então, é o teu benfeitor desconhecido; o homem ao qual devemos nossa fortuna, como já o disseram?

— Quem disse isso?

— Um homem que matei em duelo.

— Oh, Deus! Já uma morte!

— Se não é o teu protetor, se não te dá dinheiro, se és tu quem lho levas, vejamos, será teu irmão?

— Pois bem! E se fosse?

O sr. Desmarets cruzou os braços.

— Será que as duas, tua mãe e tu, me haveríeis enganado? Por que mo teriam escondido? — continuou. — E depois, vai-se à casa de um irmão todos os dias, ou quase todos os dias, hem?

A mulher caiu desmaiada a seus pés.

— Morta — disse ele. — E se eu não tivesse razão?

Saltou para o cordão da campainha, chamou Josefina e pôs Clemência na cama.

— Eu morro — murmurou ela tornando a si.

— Josefina! — exclamou Desmarets. — Vá chamar o sr. Desplein.[47] Depois vá à casa de meu irmão e peça-lhe que venha cá o mais cedo possível.

— Por que seu irmão? — disse Clemência.

Júlio já havia saído.

Pela primeira vez, em cinco anos, a sra. Desmarets se deitou sozinha em sua cama e foi obrigada a deixar entrar um médico em sua câmara sagrada. Foram-lhe duas penas bem vivas. Desplein encontrou-a muito mal; jamais uma emoção violenta fora tão intempestiva. Não quis prejulgar e adiou para o dia seguinte o seu diagnóstico depois de ordenar algumas prescrições que não foram executadas, pois os interesses do coração fizeram esquecer os cuidados físicos. Pela manhã, Clemência não havia ainda dormido. Estava preocupada com o surdo murmúrio de uma conversação que durava várias horas entre os irmãos, mas a espessura das paredes não deixava chegar aos seus ouvidos palavra alguma que pudesse trair o objeto da longa conferência. O sr. Desmarets, o tabelião, saiu logo depois. A calma da noite e, depois, a singular acuidade dos sentidos que a paixão produz permitiram então a Clemência ouvir o ruído duma pena e os movimentos involuntários de um homem ocupado em escrever. Os que passam habitualmente em claro as noites e que já observaram os diferentes efeitos da acústica num silêncio profundo sabem que muitas vezes um leve ruído é fácil de perceber-se nos mesmos lugares onde murmúrios iguais e continuados nada tinham de distinto.

Às quatro horas, o rumor cessou. Clemência se levantou inquieta e trêmula. Descalça, sem penhoar, sem pensar nem que estava suada nem no estado em que se encontrava, a pobre mulher abriu a porta de comunicação sem a fazer ranger. E viu o marido, com uma pena na mão, adormecido na poltrona. As velas queimavam nos castiçais. Ela avançou lentamente e leu no envelope já cerrado:

 

ESTE É O MEU TESTAMENTO.

 

Ajoelhou-se como diante de uma tumba e beijou a mão do marido, que despertou de repente.

— Júlio, meu amigo, costuma-se dar alguns dias aos criminosos condenados à morte — disse-lhe, olhando-o com olhos que brilhavam de febre e de amor. — Tua mulher inocente não te pede mais que dois dias e... espera! Depois eu morrerei feliz, pois ao menos me lamentarás.

— Clemência, eu os concedo.

E, como ela beijasse as mãos do marido numa tocante efusão íntima, Júlio, fascinado por esse impulso da inocência, tomou-a nos braços e beijou-lhe a fronte, envergonhado de sofrer ainda a influência daquela nobre beleza.

No dia seguinte, depois de algumas horas de repouso, Júlio entrou na alcova da mulher, obedecendo maquinalmente ao hábito de não sair sem vê-la.

Clemência dormia. Um raio de luz passando pelas fendas mais altas das janelas caía sobre o rosto daquela mulher abatida. Já as dores lhe haviam alterado a fronte e o fresco vermelho dos lábios. A vista de um amante não podia enganar-se com o aspecto de algumas manchas escuras e a palidez doentia que substituíam o tom parelho das faces e a brancura mate da tez, duas telas puras, sobre as quais se estampavam tão ingenuamente os sentimentos daquela bela alma.

“Ela sofre”, pensou Júlio. “Pobre Clemência, que Deus nos proteja!”

Beijou-a docemente na testa. Ela acordou, viu o marido e compreendeu tudo; mas, não podendo falar, tomou-lhe a mão, e seus olhos se encheram de lágrimas.

— Estou inocente — disse ela, terminando seu sonho.

— Não vais sair? — perguntou Júlio.

— Não. Sinto-me muito fraca para levantar-me.

— Se mudares de opinião, aguarda que eu volte.

Desceu ao andar térreo.

— Fouquereau, vigie atentamente a porta; quero saber que pessoas entram ou saem do edifício.

A seguir Júlio se atirou num carro de aluguel e mandou tocar para a residência dos De Maulincour, onde perguntou pelo barão.

— O senhor barão está enfermo — disseram-lhe.

Júlio insistiu em entrar, deu seu nome; e, não podendo ver o sr. de Maulincour, quis avistar-se com o vidama ou com a dona da casa. Esperou algum tempo na sala da velha baronesa, que veio ao seu encontro, para dizer-lhe que o neto se achava muito indisposto, não podendo recebê-lo.

— Conheço, senhora — respondeu Júlio —, a natureza da sua doença pela carta que me deu a honra de escrever e peço-lhe acreditar...

— Uma carta ao senhor! Minha! — exclamou a nobre senhora, interrompendo-o. — Mas se nunca escrevi tal carta. E o que me fazem dizer, senhor, nessa carta?

— Senhora — continuou Júlio —, tendo a intenção de vir a esta casa hoje mesmo e de restituir-lhe a carta, acreditei poder conservá-la não obstante a ordem pela qual conclui. Ei-la.

A baronesa fez soar a campainha para pedir os óculos e logo que os colocou deitou olhos ao papel e manifestou imensa surpresa.

— Senhor — disse ela —, minha letra está tão perfeitamente imitada que, se não se tratasse de coisa recente, enganaria a mim mesma. Meu neto está doente, é verdade; mas a sua razão não se alterou o mais mínimo. Somos joguetes de alguns malvados; entretanto, não adivinho com que fim foi feita esta falsificação... O senhor verá meu neto e poderá verificar que está perfeitamente são de espírito.

Tocou de novo a campainha para mandar perguntar ao barão se podia receber o sr. Desmarets. O criado voltou com resposta afirmativa. Júlio subiu aos aposentos de Augusto de Maulincour, que encontrou numa poltrona, sentado ao lado da lareira, e que, muito fraco para se levantar, o saudou com um gesto melancólico; o vidama de Pamiers lhe fazia companhia.

— Senhor barão — disse Júlio —, tenho algo a dizer-lhe, muito em particular, para desejar que falemos a sós.

— Senhor — respondeu Augusto —, o senhor comendador conhece todo este caso; pode falar diante dele sem temor.

— Senhor barão — continuou Júlio com voz grave —, o senhor perturbou, quase destruiu a minha felicidade, sem ter direito para tal. Até o momento em que vejamos qual de nós pode pedir ou deve dar satisfações ao outro, tem de ajudar-me a andar pela via tenebrosa em que me lançou. Venho assim para saber do senhor a residência atual do ser misterioso que exerce sobre nossos destinos tão fatal influência e que parece ter sob suas ordens um poder sobrenatural. Ontem, no momento em que voltava a casa, depois de ouvir as suas confissões, recebi esta carta; ei-la.

E Júlio apresentou a carta apócrifa.

— Esse Ferragus, esse Bourignard ou esse sr. de Funcal é um demônio — exclamou De Maulincour depois de a ler. — Em que dédalo espantoso meti eu os pés? Onde irei parar? Fiz mal, senhor — disse ele encarando Júlio —, mas a morte é, decerto, a maior das expiações, e minha morte está próxima; pode, portanto, exigir de mim tudo quanto deseje; estou às suas ordens.

— Senhor, deve saber onde mora o desconhecido; quero absolutamente, embora me custe toda minha atual fortuna, penetrar neste mistério; e, na presença de um inimigo tão cruelmente inteligente, os momentos são preciosos.

— Justino vai dizer-lhe tudo — respondeu o barão.

A essas palavras, o comendador se agitou na cadeira.

Augusto fez soar a campainha.

— Justino não está aqui — exclamou o vidama com tal precipitação que dizia muita coisa.

— Pois bem! — disse vivamente Augusto. — Nossos criados sabem onde encontrá-lo. Um homem sairá imediatamente a cavalo, à sua procura. Está em Paris, não, o seu criado? Havemos de achá-lo.

O vidama parecia visivelmente perturbado.

— Justino não virá, meu amigo — disse o velho. — Está morto. Queria ocultar-te este incidente, mas...

— Morto? — exclamou De Maulincour. — Morto? Quando? E como?

— Ontem à noite. Foi cear com velhos amigos e sem dúvida se embriagou; seus amigos, tontos como ele, talvez o hajam deixado caído na rua, uma pesada viatura passou-lhe sobre o corpo...

— O forçado não falhou dessa vez. Matou-o ao primeiro golpe — disse Augusto. — Não foi tão feliz comigo, pois viu-se obrigado a tentar quatro vezes.

Júlio tornou-se sombrio e pensativo.

— Não saberei nada, pois — declarou o agente de câmbio depois de uma longa pausa. — O seu criado talvez tenha sido punido com justiça, pois não ultrapassou suas ordens caluniando a sra. Desmarets no espírito de uma tal Ida, cujo ciúme despertou para atirá-la contra nós?

— Ah! Senhor, na minha cólera, eu lhe havia abandonado a sra. Desmarets.

— Senhor! — exclamou o marido, vivamente irritado.

— Oh! Agora, senhor — respondeu o oficial, pedindo silêncio com um gesto —, estou pronto para tudo. Não poderá fazer melhor que o que está feito e nada dirá que a minha consciência já não me haja dito. Espero esta manhã o mais célebre dos professores de toxicologia para conhecer a minha sorte. Se estou condenado a demasiados sofrimentos, minha resolução está tomada, darei um tiro nos miolos.

— Falas como uma criança — exclamou o vidama, assustado ante o sangue-frio com que o barão dissera tais palavras. — Tua avó morreria de pesar.

— Não há, assim, senhores, meio algum de saber em que lugar de Paris mora esse homem extraordinário?

— Creio, senhor — respondeu-lhe o velho —, ter ouvido esse pobre Justino dizer que o sr. de Funcal se alojava na embaixada de Portugal ou na do Brasil.[48] O sr. de Funcal é um fidalgo que pertence aos dois países. Quanto ao forçado, está morto e enterrado. — Seu perseguidor, seja quem for, parece-me assaz poderoso para que o aceitemos sob sua nova forma até o momento em que se consigam meios de o confundir e esmagar; mas proceda com prudência, caro senhor. Se De Maulincour houvesse seguido os meus conselhos, nada disto teria acontecido.

Júlio retirou-se friamente, mas com polidez, não sabendo que partido tomar para chegar até Ferragus. Ao regressar à casa, o porteiro contou-lhe que a senhora saíra para colocar uma carta na caixa da agência do correio situada em frente à Rue de Ménars. Júlio se sentiu humilhado em reconhecer a prodigiosa inteligência com a qual o porteiro esposava sua causa e a habilidade com que adivinhava os meios de servi-lo. Eram-lhe conhecidas a solicitude dos inferiores e a sua habilidade em mais comprometer os patrões comprometidos; avaliara o perigo de os ter como cúmplices em qualquer coisa; mas não pôde pensar em sua dignidade pessoal senão no momento em que se viu tão subitamente rebaixado. Que triunfo, para o escravo incapaz de se elevar até o senhor, o de fazer o amo descer até ele! Júlio foi brusco e duro. Outro erro. Mas sofria tanto! Sua vida até ali tão reta, tão pura tornava-se tortuosa; era-lhe necessário agora enganar e mentir. E Clemência também enganava e mentia. Aquele momento foi-lhe um momento de desgosto. Perdido num abismo de amargos pensamentos, quedou-se maquinalmente imóvel à porta da casa. Ora, abandonando-se a ideias de desespero, queria fugir, deixar a França, levando sobre seu amor todas as ilusões da incerteza; ora, não pondo em dúvida que a carta posta no correio por Clemência fosse dirigida a Ferragus, procurava os meios de surpreender a resposta que o ser misterioso lhe haveria de dar. E, mal analisava os singulares acasos de sua vida depois do casamento, já se interrogava se a calúnia de que se vingara não teria sido uma verdade. Voltando por fim à resposta de Ferragus, dizia a si próprio:

“Mas esse homem tão profundamente hábil, tão lógico em seus menores atos, que vê, que pressente, que calcula e adivinha os nossos pensamentos, Ferragus, responderá? Não empregará ele meios mais de acordo com o seu poder? Será que não vai mandar a resposta por algum hábil malandro, ou quem sabe se num escrínio trazido por qualquer tipo honesto que não sabe o que traz, ou no envoltório dos sapatos que uma operária virá entregar inocentemente à minha mulher? E se Clemência e ele se entendem?”

E desconfiava de tudo, e percorria os campos imensos, o mar sem praias das suposições; depois de haver flutuado durante certo tempo entre mil resoluções contrárias, julgou-se mais forte em sua própria casa que em qualquer outra parte e resolveu velar na sua residência como uma formiga-leão ao fundo de sua voluta arenosa.

— Fouquereau — disse ao porteiro —, não estou em casa para ninguém. Se alguém quiser falar à senhora ou lhe trouxer alguma coisa, tocarás duas vezes. Depois me mostrarás todas as cartas que forem endereçadas para aqui, seja para quem for.

“Deste modo”, pensou subindo para o seu gabinete situado no entressolo, “adianto-me às habilidades de mestre Ferragus. Se ele mandar algum emissário assaz esperto para perguntar por mim a fim de saber se a senhora está só, ao menos não serei logrado como um tolo.”

Recostou-se às vidraças que no seu gabinete davam para a rua e, numa última astúcia inspirada pelo ciúme, resolveu enviar o seu primeiro auxiliar à Bolsa, em seu próprio carro, com uma carta para um colega, ao qual explicava suas compras e vendas, pedindo-lhe que o substituísse. Adiou as transações mais delicadas para outro dia, pouco se lhe dando as altas e baixas e todas as dívidas europeias. Belo privilégio o do amor! Esmaga tudo e tudo faz empalidecer: o altar, o trono e os livros de escrituração. Às três e meia, quando a Bolsa fervilhava em suas operações, suas liquidações, seus juros, seus papéis, o sr. Júlio viu entrar no gabinete, todo radiante, o porteiro Fouquereau.

— Senhor, acaba de chegar uma mulher velha mas bem-vestida que eu diria uma espiã disfarçada. Perguntou pelo senhor, pareceu contrariada por não o encontrar e deu-me uma carta para a senhora, que aqui está.

Tomado de febril angústia, Júlio rasgou o envelope; mas tornou logo a cair em sua cadeira, esgotado. A carta era uma coisa sem sentido do começo ao fim e seria preciso conhecer-lhe a chave para a ler. Estava escrita em código.

— Podes ir, Fouquereau.

O porteiro saiu.

— É este um mistério mais profundo que o do mar nos lugares onde a sonda se perde. Ah! É amor! Só o amor é assim sagaz, engenhoso assim, como esta correspondência. Meu Deus! Matarei Clemência.

Uma ideia feliz brotou-lhe do cérebro, com tanta força que ele se sentiu quase fisicamente esclarecido. Nos dias de sua laboriosa miséria, antes do casamento, Júlio conquistara um verdadeiro amigo, um meio Pméja.[49] A excessiva delicadeza com que ele havia evitado as suscetibilidades de um amigo pobre e modesto, o respeito de que o havia cercado, a engenhosa habilidade com que o obrigava nobremente a participar de sua opulência sem o fazer corar aumentaram sua recíproca amizade. Jacquet permaneceu fiel a Desmarets, apesar da diferença de fortunas.

Jacquet, homem probo, trabalhador, de austeros costumes, fizera lentamente carreira no ministério que exige ao mesmo tempo a maior soma de esperteza e de honestidade. Empregado do Ministério das Relações Exteriores, tinha a seu cargo a parte mais delicada dos arquivos. Jacquet era no ministério uma espécie de vaga-lume que lançava luz, quando era preciso, à correspondência secreta, decifrando e classificando os despachos. Colocado mais alto que o simples burguês, ocupava nos negócios estrangeiros o posto mais elevado do funcionalismo subalterno e vivia obscuramente, feliz com a obscuridade que o punha ao abrigo dos reveses, satisfeito de pagar em óbulos sua dívida para com a pátria. Adjunto nato de sua prefeitura, obtinha com isso, em estilo jornalístico, toda a consideração que lhe era devida. Graças a Júlio, sua posição melhorara por um bom casamento. Patriota desconhecido, funcionário de fato, contentava-se em comentar, junto à lareira, a marcha das coisas do governo. De resto, Jacquet era em seu lar um rei bonachão, um senhor de guarda-chuva, que entregava à mulher os vencimentos sem deles retirar coisa alguma. Enfim, para concluir o retrato desse filósofo sem o saber, não havia ainda suspeitado nem devia suspeitar jamais o partido que poderia tirar de sua posição tendo por amigo íntimo um agente de câmbio e conhecendo cada manhã os segredos do Estado. Esse homem sublime ao modo do soldado desconhecido que morre salvando Napoleão com um quem vem lá? morava no ministério.

Em dez minutos, Júlio se encontrou no gabinete do arquivista. Jacquet alcançou-lhe uma cadeira, depôs metodicamente sobre a mesa a pala de tafetá verde, esfregou as mãos, tomou da tabaqueira, levantou-se fazendo estalar as omoplatas, encheu o tórax e perguntou:

— Que acaso trouxe aqui o sr. Desmarets? Que queres de mim?

— Jacquet, tenho necessidade de ti para decifrar um segredo, segredo de vida ou de morte.

— Isso diz respeito à política?

— Não seria a ti que eu perguntaria, se quisesse sabê-lo. Não, é um assunto doméstico, sobre o qual te reclamo o mais profundo silêncio.

— Cláudio José Jacquet, mudo por ofício. Não me conheces então? — respondeu a rir. — A discrição é a minha segunda natureza.

Júlio mostrou-lhe a carta dizendo-lhe:

— É-me necessário ler este bilhete endereçado à minha mulher...

— Diabo! Diabo! Mau negócio — disse Jacquet examinando a carta do mesmo modo pelo qual um usurário examina um título de crédito. — Ah! É uma carta codificada. Espera.

Deixou Júlio sozinho no gabinete e voltou prontamente.

— Bagatela, meu amigo. Foi escrita com um velho código do qual se servia o embaixador de Portugal, no tempo do sr. de Choiseul,[50] quando da expulsão dos jesuítas. Aqui o tens.

E Jacquet superpôs um papel perfurado regularmente, de espaço a espaço, como uma dessas “rendas” que os confeiteiros colocam sob as suas tortas, e Júlio pôde facilmente ler as frases que ficaram descobertas.

 

Não te inquietes mais, minha querida Clemência, nossa felicidade não mais será perturbada por ninguém e teu marido porá de parte suas suspeitas. Não posso ir ver-te. Por doente que estejas, é preciso que tenhas a coragem de vir; procuras encontrar forças; tu as retirarás do teu amor. Meu afeto por ti me constrangeu a sofrer a mais cruel das operações e é-me impossível mover-me do leito. Alguns cautérios me foram aplicados ontem à tarde na nuca, de uma espádua à outra, e foi necessário deixá-los queimar por muito tempo. Tu me compreendes? Mas pensava em ti e não sofri muito.

Para despistar todos os inquéritos de De Maulincour, que não nos perseguirá por muito tempo, deixei o teto protetor da embaixada e estou fora do alcance de todas as investigações na Rue des Enfants-Rouges, nº 12, em casa de uma velha chamada sra. Estefânia Gruget, mãe daquela Ida que vai pagar caro sua tola empreitada. Vem amanhã, pelas nove horas. Estou num quarto ao qual só se pode chegar por uma escada interior. Pergunta pelo sr. Camuset. Até amanhã. Beijo-te a fronte, minha querida.

 

Jacquet olhou para Júlio com uma espécie de terror honesto, em que havia verdadeira compaixão, e pronunciou sua palavra favorita: “Diabo! Diabo!” em dois tons diferentes.

— Isto te parece claro, não é? — observou Júlio. — Pois bem! Há no fundo do meu coração uma voz que defende minha mulher e que se faz ouvir acima de todas as dores do ciúme. Sofrerei até amanhã o mais horrível dos suplícios; mas enfim amanhã, das nove às dez horas, saberei tudo, e serei feliz ou infeliz para o resto da vida. Pensa em mim, Jacquet.

— Estarei em tua casa às nove. Iremos lá juntos e esperarei, se quiseres, na rua. Podes correr perigo e será preciso teres junto a ti alguém bastante devotado para te compreender por meias palavras e que possas empregar com confiança. Conta comigo.

— Mesmo para ajudar-me a matar alguém?

— Diabo! Diabo! — exclamou Jacquet como que repetindo a mesma nota musical. — Tenho mulher e dois filhos...

Júlio apertou a mão de Cláudio Jacquet e saiu. Mas voltou precipitadamente.

— Esqueci a carta — explicou. — E isso não é tudo, é preciso fechá-la de novo.

— Diabo! Diabo! Abriste-a sem o menor cuidado; mas o lacre felizmente partiu-se bem. Vai, deixa-me, eu ta levarei secundum scripturam.[51]

— A que horas?

— Às cinco e meia.

— Se eu não houver regressado, entrega-a simplesmente ao porteiro, ordenando-lhe que a leve à senhora.

— Não me queres amanhã?

— Não. Adeus.

Júlio chegou logo à Place de la Rotonde du Temple, onde deixou o cabriolé, e foi a pé à Rue des Enfants-Rouges, onde examinou a casa da sra. Estefânia Gruget. Ali deveria esclarecer o mistério do qual dependia a sorte de tantas criaturas; ali estava Ferragus e a Ferragus iam dar todos os fios daquela intriga. A reunião da sra. Desmarets, do marido e daquele homem não era o nó górdio[52] daquele drama, já sanguinolento, ao qual não deveria faltar o gládio que corta os nós mais apertados?

A casa era do gênero das chamadas cabajoutis. Tal nome, assaz significativo, foi dado pelo povo de Paris às casas construídas por sucessivos acréscimos. São quase sempre habitações primitivamente separadas e reunidas pela fantasia de diferentes proprietários que, sucessivamente, as foram aumentando, ou de casas começadas e abandonadas, recomeçadas e concluídas; casas infelizes como certos povos, submetidos a várias dinastias de senhores caprichosos. Nem os andares nem as janelas estão no quadro, para empregarmos um dos termos mais pitorescos da pintura; tudo ali destoa, mesmo os ornamentos do exterior. As cabajoutis estão para a arquitetura de Paris como o cafarnaum para os apartamentos, verdadeira confusão onde foram atiradas de cambulhada as coisas mais disparatadas.

— A sra. Estefânia? — perguntou Júlio à porteira.

Alojava-se ela sob a grande porta numa espécie de gaiola de pintos, casinhola de tábuas montada sobre rodas, muito semelhante a esses gabinetes que a polícia construiu em todas as praças de carros.

— Hem? — fez a porteira deixando de lado a meia que tricotava.

Em Paris, os diferentes tipos que concorrem para formar uma porção qualquer da fisionomia desta monstruosa cidade se harmonizam admiravelmente com o caráter do conjunto. Assim, porteiro, zelador ou “suíço”, qualquer que seja o nome dado a esse músculo essencial do monstro parisiense, está ele sempre conforme ao bairro de que faz parte e, muitas vezes, o resume. Novidadeiro, ocioso, o guarda-portão especula, no Faubourg Saint-Germain, com suas rendas; o porteiro na Chaussée-d’Antin tem os seus haveres; o do bairro da Bolsa lê os jornais; o do Faubourg Montmartre tem boa situação. A porteira é uma ex-prostituta no bairro da prostituição; no Marais, tem bons costumes, é arisca, tem os seus caprichos.

Ao ver o sr. Desmarets, a porteira tomou de uma faca para remexer o fogo quase extinto de seu fogareiro de brasas e depois disse:

— Pergunta pela sra. Estefânia; será a sra. Estefânia Gruget?

— Sim — disse Júlio Desmarets tomando um ar meio aborrecido.

— Que trabalha em passamanaria?

— Sim.

— Então, senhor — disse ela saindo da gaiola, pondo a mão no braço de Júlio e conduzindo-o ao fim de longa passagem abobadada como um túnel —, suba pela segunda escada no fundo do pátio. Está vendo as janelas onde há gerânios? É lá que mora a sra. Estefânia Gruget.

— Obrigado, senhora. Será que ela está só?

— E por que então não estaria só essa mulher, se é viúva?

Júlio subiu rapidamente uma escada escura, cujos degraus tinham calosidades formadas pela lama endurecida que neles deixavam os que iam e vinham. No segundo andar viu três portas, mas nada de gerânios. Felizmente numa das portas, a mais sebosa e mais escura das três, leu estas palavras escritas a giz: Ida voltará esta noite, às nove horas.

— É aqui — disse Júlio a si mesmo.

Puxou um velho cordão de campainha, inteiramente enegrecido, de borla na ponta, ouviu o ruído abafado de uma sineta rachada e os latidos de um cachorrinho asmático. O modo pelo qual os sons retiniram no interior anunciou-lhe um apartamento atravancado de coisas que não deixavam repercutir o menor eco, traço característico dos alojamentos ocupados por operários e famílias pobres e nos quais falta espaço e ar. Júlio procurava maquinalmente os gerânios e acabou por achá-los na parte externa do peitoril de um caixilho de guilhotina entre dois canos malcheirosos. Ali estavam as flores; ali estava um jardim de dois metros de comprimento por seis polegadas de largura; ali estava um canteirinho de trigo; estava ali toda a vida resumida, mas, também, todas as misérias da vida. Sobre aquelas flores miseráveis e soberbos pés de trigo, um raio de luz, caindo do céu como por milagre, fazia ressaltar a poeira, a graxa e não sei que cor particular dos pardieiros de Paris, mil sujidades que emolduravam, envelheciam e manchavam os muros úmidos, os balaústres carcomidos da escada, os caixilhos desconjuntados das janelas e as portas primitivamente vermelhas.

Logo depois, uma tosse de velha e o passo pesado de uma mulher que arrastava com dificuldade chinelos de ourela anunciaram a mãe de Ida Gruget. A velha abriu a porta, adiantou-se para o patamar, levantou a cabeça e disse:

— Ah! É o sr. Bocquillon? Mas não. Ora essa, como o senhor se parece com o sr. Bocquillon! É irmão dele talvez? Em que lhe posso servir? Entre então, senhor.

Júlio seguiu a mulher a uma saleta onde viu acumulados gaiolas, utensílios domésticos, fogareiros, móveis, pratinhos de barro cheios de restos de comida ou água para o cão e os gatos, um relógio de madeira, talheres, gravuras de Eisen,[53] ferros velhos amontoados, misturados, confundidos de modo a formar um quadro grotesco, o verdadeiro cafarnaum parisiense, ao qual não faltavam nem mesmo alguns números de Le Constitutionnel.[54]

Júlio, dominado por um pensamento de prudência, não ouviu a viúva Gruget, que lhe dizia:

— Entre então aqui, senhor, para aquecer-se.

Temendo ser ouvido por Ferragus, Júlio se interrogava se não seria melhor tratar naquela primeira peça do negócio que vinha propor à velha. Uma galinha que saiu cacarejando de um desvão tirou-o de sua meditação secreta. Júlio tomara sua resolução. Seguiu então a mãe de Ida à peça aquecida, para onde foi também o cãozinho asmático, personagem mudo que trepou para um velho tamborete.

A sra. Gruget se mostrara em toda a fatuidade de uma semimiséria ao falar em aquecer o visitante. Sua panela escondia por completo dois tições notavelmente separados. A escumadeira jazia por terra, com o cabo nas cinzas. O paiol da chaminé, ornado com um Jesus de cera sob uma caixa de vidro com franjas de papel azulado, estava repleto de lãs, carretéis e utensílios necessários à passamanaria. Júlio examinou todos os móveis do apartamento com curiosidade cheia de interesse e manifestou, mesmo a contragosto, sua satisfação.

— E então, meu senhor, será que se contentará com os meus cacarecos? — disse-lhe a viúva sentando-se numa poltrona de vime que parecia ser o seu quartel-general. Nela guardava ao mesmo tempo o lenço, a tabaqueira, o tricô, legumes meio descascados, os óculos, um almanaque, galões de libré começados, um baralho sebento e dois volumes de romance, tudo isso atirado em desordem. O móvel sobre o qual a velha descia o rio da vida parecia a bolsa enciclopédica usada pelas mulheres em viagem, onde se encontra a própria casa resumida, desde o retrato do marido até a água de melissa para os desmaios, as pastilhas para as crianças e o esparadrapo para os talhos.

Júlio estudava tudo. Olhou atentamente o rosto amarelo da sra. Gruget, seus olhos cinzentos, sem sobrancelhas e sem pestanas, sua boca desdentada, suas rugas cheias de tons escuros, a touca de filó desbotado em rufos mais desbotados ainda, as saias de chita esburacadas, as pantufas rostidas, seu braseiro requeimado, a mesa carregada de pratos e de tecidos de seda, de obra de algodão e de lã, dentre os quais se elevava uma garrafa de vinho. E disse consigo: “Esta velha tem alguma paixão, alguns vícios ocultos, saberei dominá-la”.

— Senhora — disse em voz alta, fazendo-lhe um sinal de inteligência —, venho encomendar-lhe uns galões... — E, em voz baixa: — Sei — continuou — que tem aqui um desconhecido que se oculta sob o nome de Camuset.

A velha o encarou, rápida, sem dar o menor sinal de espanto.

— Diga, pode ele nos ouvir? Olhe que se trata da sua fortuna.

— Senhor — respondeu ela —, fale sem temor, não tenho ninguém aqui, mas, ainda que eu tivesse alguém lá em cima, ninguém poderia ouvir o senhor.

“Ah! a velha é esperta, sabe dar respostas ambíguas”, pensou Júlio. “Poderemos entrar em acordo.”

— Pode poupar-se o trabalho de fingir, senhora — recomeçou ele. — E saiba, antes de tudo, que não lhe desejo qualquer mal nem ao seu hóspede doente dos seus termocautérios nem à sua filha Ida, costureira de espartilhos, amiga de Ferragus. Pode ver que estou a par de tudo. E esteja tranquila, não sou da polícia e nada desejo que possa ofender sua consciência. Uma jovem senhora virá aqui amanhã, entre nove e dez horas, para conversar com o amigo de sua filha. Desejo ficar colocado de modo a tudo ver e ouvir, sem que eles me possam ver. Se a senhora me facilitar isso, eu retribuirei esse serviço com uma soma de dois mil francos, paga de uma vez, e com seiscentos francos de renda vitalícia. Meu tabelião preparará diante da senhora, esta tarde, a escritura e lhe remeterei o dinheiro que ele lhe entregará amanhã depois da conferência a que quero assistir e durante a qual terei a prova de sua boa-fé.

— Isso poderá prejudicar a minha filha, meu caro senhor? — perguntou ela lançando-lhe olhares de gata inquieta.

— Em nada, senhora. Aliás, parece que sua filha se conduz muito mal para com a senhora. Amada por um homem tão rico, tão poderoso como Ferragus, dever-lhe-ia ser fácil torná-la mais feliz.

— Ah! Meu caro senhor, nem sequer uma pobre entrada para o espetáculo do Ambigu ou do Gaîté,[55] aonde ela vai quando quer. É uma indignidade. Uma filha por causa de quem vendi o meu serviço de prata, pois como, agora, na minha idade, com coisas de metal alemão, para pagar-lhe a aprendizagem e dar-lhe uma situação na qual ela poderia fazer dinheiro, se quisesse. Porque nisso saiu a mim, ela é esperta como uma feiticeira, é justiça reconhecê-lo. Enfim, bem que ela podia me dar os seus vestidos de seda usados, pois gosto imensamente de vestir seda. Não, senhor, ela vai ao Cadran Bleu[56] jantar a cinquenta francos por cabeça, roda de carro como uma princesa e faz tanto caso da mãe como da primeira camisa que vestiu. Deus do céu! Que juventude incoerente esta que fizemos, e não é esse o nosso melhor elogio. Uma mãe, senhor, que é boa mãe, porque eu escondi as suas travessuras e sempre a conservei no meu regaço, tirando o pão da boca para dar-lhe tudo, que é que arranja? Pois bem, ela aparece, nos acaricia, e nos diz: “Bom dia, mamãe”. E eis todos os deveres cumpridos para com a autora de seus dias: ela que se arrume como pode. Ela, porém, terá filhos, um dia ou outro, e verá o que é esse mau negócio de que a gente gosta apesar de tudo.

— Como? Nada faz pela senhora?

— Ah! Nada, não, senhor, não digo isso; se ela nada fizesse, seria demasiado pouco. Ela me paga o aluguel, me fornece lenha e trinta e seis francos por mês... Mas, senhor, será que na minha idade, aos cinquenta e dois anos, com olhos que me ardem à noite, eu devia trabalhar ainda? Afinal, por que não quer saber de mim? Eu a envergonho? Que o diga logo. Na verdade a gente deveria desaparecer para esses cachorrinhos que nos esquecem, mal fecha-se a porta.

Tirou o lenço do bolso e com ele um bilhete de loteria que caiu ao chão; apanhou-o prontamente, dizendo:

— Opa! É o recibo dos meus impostos.

Júlio adivinhou logo a causa da sábia parcimônia de que se queixava a mãe, e tanto mais certo ficou de que a viúva Gruget concordaria com a sua proposta.

— E então, senhora, aceita o que lhe ofereci?

— Dizia o senhor, não é, dois mil francos à vista e seiscentos francos vitalícios?

— Não, mudei de opinião, prometo-lhe só trezentos francos de renda vitalícia. O negócio, assim, parece-me mais conveniente aos meus interesses. Mas dar-lhe-ei cinco mil francos à vista. Não gosta mais assim?

— Claro, sim, senhor.

— A senhora terá mais descanso, irá ao Ambigu, ao Franconi, a toda parte, à vontade, de carro.

— Ah! Não gosto do Franconi, devido a que lá não se fala. Mas, senhor, se aceito é porque isso será bem vantajoso para a pequena. Enfim, não dependerei tanto dela. Pobre garota, depois de tudo não lhe quero mal por tudo o que lhe dá prazer. É preciso, senhor, que a mocidade se divirta! Então! Se o senhor me garante que não farei mal a ninguém...

— A ninguém — repetiu Júlio. — Mas, vejamos, como vai fazer para esconder-me?

— Bem, senhor, dando esta noite ao sr. Ferragus uma tisanazinha de sementes de dormideira, ele dormirá bem, o pobre homem!, e ele bem que precisa devido aos seus sofrimentos, pois sofre que dá pena. Também, que lhe parece essa invenção de um homem são queimar as próprias costas para tirar um tique doloroso que só o incomodava de dois em dois anos? Mas, voltando ao nosso assunto, eu tenho a chave da vizinha, cujo apartamento fica por cima do meu e tem uma peça paredes-meias com aquela em que dorme o sr. Ferragus. Ela foi para fora, por dez dias. Portanto, mandando fazer um buraco durante a noite, na parede, poderá o senhor vê-los e ouvi-los à vontade. Sou íntima de um serralheiro, homem prestativo, que conta histórias como um anjo e fará isso para mim, sem indagar nada.

— Tem aqui cem francos para ele, e a senhora esteja esta noite em casa do sr. Desmarets, um tabelião cujo endereço está neste papel. Às nove horas, a escritura estará lavrada, mas... motus![57]

— De acordo, senhor, e, como diz, momus! Até logo.

Júlio voltou para casa quase tranquilizado pela certeza em que estava de tudo saber no dia seguinte. Ao chegar, encontrou em mãos do porteiro a carta com o envelope perfeitamente reconstituído.

— Como passas? — perguntou à mulher, não obstante a frieza que os separava. Os hábitos do coração são difíceis de deixar!

— Muito bem, Júlio — respondeu ela com uma voz insinuante —; queres jantar aqui junto a mim?

— Sim — respondeu, entregando a carta —, olha o que Fouquereau me entregou para ti.

Clemência, que estava pálida, enrubesceu extraordinariamente, reconhecendo a carta, e esse rubor súbito causou viva dor ao marido.

— É alegria — disse sorrindo — ou efeito da espera?

— Oh! Muita coisa — murmurou ela, contemplando o lacre.

— Eu a deixo, senhora.

E desceu para o gabinete, onde escreveu ao irmão instruções relativas à constituição da renda vitalícia destinada à viúva Gruget. Quando voltou, encontrou seu jantar preparado numa mesinha junto ao leito de Clemência, e Josefina pronta a servir.

— Se eu estivesse de pé, com que prazer te serviria! — disse ela logo que Josefina os deixou a sós. — Oh! Até de joelhos — continuou, passando as mãos pálidas pela cabeleira de Júlio. — Meu coração de ouro, foste bem bondoso e gentil para mim há pouco. Fizeste-me mais bem com a tua confiança do que poderiam fazê-lo todos os médicos da terra com as suas prescrições. Tua delicadeza feminina, pois sabes amar como uma mulher... espalhou em minha alma não sei que bálsamo que quase me curou. Estamos em trégua, Júlio, avança a cabeça para que eu a beije.

Júlio não se pôde furtar ao prazer de beijá-la. Mas não foi sem uma espécie de remorso íntimo e achando-se pequeno diante da mulher, que se sentia sempre tentado a crer inocente. Ela mostrava uma espécie de triste alegria. Uma casta esperança brilhava em seu rosto através da expressão de seus sofrimentos. Pareciam ambos igualmente infelizes por se verem obrigados a enganar um ao outro; mais uma carícia faria com que tudo confessassem, não mais resistindo às suas dores.

— Amanhã à noite, Clemência.

— Não, senhor, amanhã ao meio-dia saberás tudo e virás ajoelhar-te diante de tua mulher. Oh! Não, tu não te humilharás, não, tudo está perdoado; não, não tens culpa. Escuta: ontem me feriste muito rudemente; mas minha vida talvez não ficasse completa sem esta angústia; será uma sombra a valorizar dias celestiais.

— Enfeitiças-me — exclamou Júlio — para despertar-me remorsos.

— Pobre amigo, o destino está acima de nós, e não sou cúmplice de meu destino. Sairei amanhã.

— A que horas?

— Às nove e meia.

— Clemência, toma todas as precauções, consulta o dr. Desplein e o velho Haudry.[58]

— Consultarei somente o meu coração e a minha coragem.

— Deixar-te-ei livre e só te verei ao meio-dia.

— Não vais fazer-me um pouco de companhia esta noite? Não estou mais doente...

Após concluir seus trabalhos, Júlio voltou para junto da mulher, levado por uma atração invencível. Sua paixão era mais forte que todos os seus sofrimentos.

IV — AONDE IR MORRER?

No outro dia, pelas nove horas, Júlio tratou de sair e correr à Rue des Enfants-Rouges, subiu e bateu em casa da viúva Gruget.

— Ah! É de palavra, exato como a aurora. Entre, pois, senhor — disse-lhe a velha passamaneira, reconhecendo-o. — Tenho pronta uma taça de café com creme, caso... — continuou ela depois de fechar a porta. — Ah! Verdadeiro creme, um potezinho que eu mesma vi preparar na leiteria que temos no mercado des Enfants-Rouges.

— Obrigado, senhora; não, nada. Conduza-me...

— Bem, bem, caro senhor. Venha por aqui.

A viúva conduziu Júlio para um quarto situado por cima do seu, onde lhe mostrou triunfalmente uma abertura do tamanho de uma moeda de quarenta sous, feita durante a noite num lugar correspondente às rosáceas mais altas e mais escuras do papel que forrava o quarto de Ferragus. A abertura fora feita, de um lado e outro, por cima de um armário. Os leves estragos causados pelo serralheiro não deixaram traços em nenhum dos lados da parede, e seria difícil perceber na sombra aquela espécie de seteira. Júlio, para chegar ali e para poder ver bem, teve de manter-se numa posição assaz fatigante, encarapitado numa banqueta que a viúva Gruget tivera o cuidado de trazer.

— Ele está com um senhor — disse a velha ao retirar-se.

Júlio percebeu com efeito um homem ocupado em fazer curativos num cordão de chagas, produzidas por certa quantidade de queimaduras praticadas sobre as espáduas de Ferragus, cuja cabeça reconheceu, pela descrição que lhe fizera o sr. de Maulincour.

— Quando pensas que estarei curado? — perguntou.

— Não sei — respondeu o desconhecido. — Mas, no dizer dos médicos, serão necessários ainda sete ou oito curativos.

— Então até logo à noite — disse Ferragus estendendo a mão para aquele que lhe acabava de aplicar a última ligadura.

— Até a noite — respondeu o desconhecido, apertando cordialmente a mão de Ferragus. — Desejo ver-te livre desse sofrimento.

— Enfim, os papéis do sr. de Funcal nos serão remetidos amanhã e Henrique Bourignard está bem morto — concluiu Ferragus. — As duas fatais cartas que tão caro nos custaram não existem mais. Voltarei a ser algo de social, um homem entre os homens, e eu bem valho o marinheiro que os peixes comeram. Deus sabe se é por mim que me faço conde!

— Pobre Graciano, nossa melhor cabeça, nosso irmão querido, és o Benjamin do bando; tu o sabes.

— Adeus! Vigiem bem o meu De Maulincour.

— Fica em paz a respeito.

— Eh, marquês! — exclamou o velho forçado.

— Que é?

— Ida é capaz de tudo, depois da cena de ontem à noite. Se se atirar à água, eu não a pescarei decerto, guardaria assim melhor o segredo do meu nome, que é o único que possui; mas vigia-a, pois, apesar de tudo, é uma boa rapariga.

— Bem.

O desconhecido saiu. Dez minutos depois, Júlio não ouviu sem um estremecimento de febre o frufru peculiar dos vestidos de seda e reconheceu o ruído dos passos da mulher.

— E então, meu pai — disse Clemência. — Pobre pai, como vai passando? Que coragem!

— Vem, minha filha — respondeu Ferragus estendendo-lhe a mão.

E Clemência apresentou-lhe a fronte, que ele beijou.

— Vamos, que tens tu, pobre pequena? Que novos pesares...

— Pesares, meu pai? Mas é a morte da filha a quem tanto ama. Como lhe escrevi ontem, é absolutamente necessário que em sua cabeça, tão fértil em ideias, encontre meios de avistar meu pobre Júlio, hoje ainda. Se soubesse como foi bom para mim apesar das suspeitas aparentemente tão legítimas! Meu pai, o meu amor é a minha vida. Quer ver-me morta? Ah! Já sofri demais! Minha vida está em perigo, sinto-o.

— Perder-te, minha filha, perder-te pela curiosidade de um miserável parisiense! Eu queimaria Paris! Ah! Tu sabes o que é um apaixonado, mas não sabes o que é um pai.

— Meu pai, assusta-me quando me olha assim. Não ponha na balança dois sentimentos tão diferentes. Tive um marido antes de saber que meu pai vivia...

— Se teu marido foi o primeiro a beijar-te a fronte — respondeu Ferragus —, fui o primeiro a umedecê-la de lágrimas... Tranquiliza-te, Clemência, e fala com toda a franqueza. Eu te amo o bastante para ser feliz sabendo que és feliz, embora teu pai seja quase nada em teu coração, ao passo que enches o seu.

— Meu Deus, como tais palavras me fazem bem! O senhor ainda mais se faz amar e parece-me que isso é roubar alguma coisa a Júlio. Mas, meu bom pai, pensa que ele está desesperado. Que lhe poderei dizer daqui a duas horas?

— Criança, então precisaria eu esperar tua carta para salvar-te do que te ameaça? E o que acontece aos que se arriscam a tocar em tua felicidade ou a meter-se entre nós? Não reconheceste então nunca a segunda Providência que vela por ti? Não sabes que doze homens cheios de força e de inteligência formam guarda em torno do teu amor e de tua vida, prontos a tudo para a sua conservação? E seria um pai que arriscou a vida para te ir ver nos passeios ou ir admirar-te no berço, à noite, em casa de tua mãe; seria o pai para o qual só a lembrança de tuas carícias infantis deu forças para viver no momento em que um homem de honra devia matar-se para fugir à infâmia; seria eu, enfim, eu que não respiro senão por tua boca, eu que não vejo senão pelos teus olhos, eu que não sinto senão através do teu coração, seria eu quem não saberia defender com unhas de leão, com alma de pai, o meu único bem, minha vida, minha filha?... Mas, depois da morte desse anjo que foi tua mãe, não sonhei senão com uma coisa: com a felicidade de te chamar minha filha, de te apertar nos braços em face do céu e da terra, de matar o forçado... — Houve ligeira pausa. — Em te dar um pai, em poder apertar sem sentir vergonha a mão de teu marido, em viver sem temor em vossos corações, em poder dizer a todo mundo ao ver-te: “Eis a minha filha!”; enfim, em ser pai à vontade.

— Oh! Meu pai, meu pai!

— Depois de muito custo, depois de ter esquadrinhado o globo — disse Ferragus, continuando —, meus amigos encontraram uma pele de homem para vestir-me. Vou ser daqui a alguns dias o sr. de Funcal, um conde português. Olha, minha querida filha, poucos homens haverá que possam na minha idade ter a paciência de aprender o português e o inglês, que esse diabo de marinheiro falava perfeitamente.

— Meu querido pai!

— Tudo está previsto, e, daqui a alguns dias, Sua Majestade Dom João vi, rei de Portugal, será meu cúmplice. Só é preciso, assim, um pouco de paciência nisto em que teu pai teve tanta. Para mim, era muito simples. O que eu não faria para recompensar o teu devotamento durante estes três anos! Vires tão religiosamente consolar teu velho pai, arriscares tua felicidade!...

— Meu pai! — E Clemência tomou as mãos de Ferragus e beijou-as.

— Vamos, mais um pouco de coragem, minha Clemência, guardemos o fatal segredo até o fim. Júlio não é um homem comum; entretanto, não sabemos se seu grande caráter e seu amor extremoso não determinariam uma espécie de desestima pela filha de um...

— Oh! — exclamou Clemência. — O senhor leu no coração da sua filha, não tenho outro receio — acrescentou num tom lancinante. — É um pensamento que me gela. Mas, meu pai, pense que prometi dizer a Júlio a verdade dentro de duas horas.

— Pois bem, minha filha, dize-lhe que vá à embaixada de Portugal ver o conde de Funcal, teu pai; lá estarei.

— E o sr. de Maulincour, o que lhe falou de Ferragus? Meu Deus, meu pai, enganar, enganar, que suplício!

— A quem o dizes? Mas uns dias mais e não existirá um só homem que me possa desmentir. Aliás, o sr. de Maulincour deve estar fora de estado de lembrar-se... Vamos, louquinha, seca tuas lágrimas e pensa...

Nesse momento, um grito terrível repercutiu na peça em que estava Júlio Desmarets.

— Minha filha! Minha pobre filha!

O clamor passou pela pequena abertura praticada por cima do armário e encheu de terror Ferragus e a sra. Desmarets.

— Vai ver o que é, Clemência.

Clemência desceu rapidamente a pequena escada, encontrou aberta para trás a porta do apartamento da sra. Gruget, ouviu os gritos que retumbavam do andar superior, subiu a escada, atraída pelo ruído dos soluços, foi até a peça fatal, de onde, antes de entrar, chegaram aos seus ouvidos estas palavras:

— Foi o senhor, com suas imaginações, a causa de sua morte.

— Cale-se, miserável — dizia Júlio metendo um lenço na boca da viúva Gruget, que gritou:

— Assassino! Socorro!

Nesse instante Clemência entrou, viu o marido e fugiu.

— Quem poderá salvar minha filha? — perguntou a viúva, depois de longa pausa. — O senhor a assassinou.

— Mas como? — perguntou maquinalmente Júlio, estupefato por haver sido reconhecido pela mulher.

— Leia, senhor — gritou a velha fundida em lágrimas. — Não há dinheiro que me possa consolar disto!

 

Adeus, minha mãe! Eu te lego tudo que tenho. Pesso-te perdão dos meus herros e do último aborressimento que te dou pondo fim nos meus dias. Henrique que eu amo mais que eu mesma mediçe que eu fazia a sua disgrassa e já que ele me desprezou, e que eu perdi todas as minhas esperansas de mestabelesser, eu vou me afougar. Eu irei para o baicho de Neully para não ser posta na Morgue. Se Henrique não me odeiar mais depois que eu tiver cido punida pela morte pede-lhe que fassa enterrar a pobre mossa cujo corassão só por ele bateu e que me perdoue porque fui culpada em meterme no que não era da minha conta. Cura-lhe bem suas queimaduras. Como sofreu ece pobre gatinho. Mas eu terei, para me destruir, a corajem que ele teve pra se fazer queimar. Mande levar os espartilhos acabados as mias freguesas. E pessa a Deus por sua filha

ida

 

— Leve esta carta ao sr. de Funcal, esse que está ali. Se ainda houver tempo, só ele poderá salvar sua filha.

E Júlio desapareceu, safando-se como um homem que houvesse cometido um crime. Suas pernas tremiam. Seu coração dilatado recebia ondas mais quentes de sangue, mais copiosas que em qualquer outro momento de sua vida, e as devolvia com força fora do comum. As mais contraditórias ideias se debatiam no seu espírito, mas, não obstante, um pensamento a todos dominava: não fora leal para com a pessoa que mais amava e lhe era impossível transigir com a consciência cuja voz, aumentada na razão do desatino, correspondia aos clamores de sua paixão, durante as mais cruéis das horas de dúvida que o haviam agitado anteriormente. Passou a maior parte do dia a errar por Paris sem ousar voltar para casa.

Aquele homem probo temia rever a fronte irrepreensível da mulher em quem não soubera confiar. Os crimes são proporcionais à pureza das consciências e o fato que para determinado coração é apenas um erro toma proporções de crime para as almas cândidas. A palavra “candura” não tem, realmente, um significado celeste? E a mais leve nódoa impressa nos vestidos brancos de uma virgem não é algo tão ignóbil quanto os farrapos de um mendigo? Entre essas duas coisas a única diferença é a existente entre a desgraça e a falta. Deus não mede nunca o arrependimento, não o parte, e tanto lhe é necessário para apagar uma mancha como para esquecer uma vida inteira. Estas reflexões oprimiam Júlio com todo o seu peso, dado que as paixões não perdoam como as leis humanas e raciocinam com mais precisão: pois não é que se apoiam numa consciência particular, infalível como o instinto?

Desesperado, Júlio voltou a casa, pálido, esmagado sob o sentimento de sua injustiça, mas exprimindo, contudo, a alegria que lhe causava a inocência da mulher. Penetrou no quarto dela palpitante e a viu deitada; tinha febre. Sentou-se junto do leito, tomou-lhe a mão, beijou-a, cobriu-a de lágrimas.

— Anjo querido — disse-lhe, ao ficarem sós —, são marcas de arrependimento.

— E de quê?

Dizendo estas palavras, inclinou a cabeça sobre o travesseiro, fechou os olhos e ficou imóvel, guardando o segredo do seu sofrimento para não assustar o marido: delicadeza de mãe, delicadeza de anjo. Era toda a mulher numa palavra. O silêncio durou muito. Júlio, pensando que Clemência dormia, foi interrogar Josefina sobre o estado da patroa.

— A senhora voltou quase morta, senhor. Fomos procurar o dr. Haudry.

— E ele veio? Que disse?

— Nada, senhor. Não pareceu contente e ordenou que não deixássemos chegar pessoa alguma junto da senhora, exceto a enfermeira, e afirmou que voltaria à noite.

Júlio voltou suavemente para junto da mulher, acomodou-se numa poltrona e ficou diante do leito, imóvel, com os olhos fixos nos olhos de Clemência; ao levantar as pálpebras, ela o via imediatamente e escapava-se-lhe entre os cílios dolorosos um olhar terno, cheio de paixão, isento de censura e de amargor, um olhar que caía como se fora de fogo no coração do marido nobremente absolvido e sempre amado pela criatura a quem matava. A morte era, para ambos, um pressentimento que igualmente os gelava. Seus olhares se uniam na mesma angústia, como os corações se haviam unido no mesmo amor, igualmente sentido e igualmente partilhado. Nada de perguntas; apenas horríveis certezas. Na mulher, generosidade perfeita; no marido, remorsos cruéis; nas duas almas, a mesma visão do desenlace, o mesmo sentimento da fatalidade.

Momento houve em que, supondo-a adormecida, Júlio lhe beijou docemente a fronte e disse depois de a contemplar longamente:

— Meu Deus, conserva-me este anjo por tempo bastante para que eu absolva a mim mesmo de minhas injustiças através de longa adoração... Filha, ela é sublime; mulher, que palavra a poderá qualificar?

Clemência levantou os olhos cheios de lágrimas.

— Tu me fazes mal — disse com voz fraca.

A noite ia avançada; o dr. Haudry veio e pediu ao marido que se retirasse. Quando saiu, Júlio não lhe fez uma só pergunta e ele não teve necessidade senão de um gesto.

— Chame para uma conferência os meus colegas em que o senhor tiver mais confiança. Posso não estar acertado.

— Mas, doutor, diga-me a verdade. Sou homem, posso ouvi-la; e tenho aliás o maior interesse em conhecê-la para regular certas contas...

— Sua esposa está à morte — respondeu o médico. — Tem uma doença moral que fez progressos e que complicou sua situação física, já perigosa, mas tornada mais grave ainda por imprudências: levantar-se descalça durante a noite; sair quando eu a proibira; sair ontem a pé, hoje de carro. Ela quis matar-se. Entretanto, a minha sentença não é irrevogável; tem mocidade, uma força nervosa admirável... Dever-se-ia talvez arriscar tudo por tudo, com algum reativo violento; mas não assumirei jamais a responsabilidade de ordená-lo, não o aconselho mesmo; e, na conferência, me oporei ao seu emprego.

Júlio tornou ao quarto. Durante onze dias e onze noites ficou junto ao leito da mulher, só dormindo de dia, com a cabeça apoiada aos pés da cama. Jamais homem algum levou mais longe o zelo dos cuidados e a ambição do devotamento. Não permitia que prestassem o menor serviço à mulher; tinha-lhe sempre a mão nas suas, parecendo assim querer comunicar-lhe a vida. Houve incertezas, falsas alegrias, dias bons, melhoras, crises, enfim as horríveis alternativas da morte que hesita, que balança, mas fere. Clemência sempre encontrava forças para sorrir ao marido; tinha pena dele, sabendo que em breve ele estaria só. Era uma dupla agonia, a da vida e a do amor; mas a vida ia enfraquecendo e o amor aumentando. Numa noite pavorosa Clemência sofreu esse delírio que sempre precede a morte nas criaturas jovens. Falou de seu amor feliz, falou do pai, narrou as revelações da mãe em seu leito de morte e as obrigações que ela lhe impusera. Debatia-se não com a vida, mas com a paixão que não desejava deixar.

— Meu Deus — exclamou —, fazei com que ele não saiba que desejo vê-lo morrer comigo.

Júlio, que não pudera suportar a cena, estava naquele momento numa sala próxima e não ouviu o voto, a que teria obedecido.

Passada a crise, Clemência refez-se de forças. Na manhã subsequente tornou-se bela, tranquila; conversou, mostrou-se esperançada, enfeitou-se como fazem as doentes. Depois quis ficar sozinha o dia todo e conseguiu que o marido saísse mediante uma dessas súplicas feitas com tais instâncias que são ouvidas como se atendem os pedidos das crianças.

Júlio tinha mesmo necessidade desse dia. Foi à casa do sr. de Maulincour, para reclamar-lhe o duelo de morte combinado entre ambos. Para chegar até o autor daquele infortúnio, teve sérias dificuldades; mas, ao saber que se tratava de um assunto de honra, o vidama, obediente aos preconceitos que o haviam orientado toda a vida, introduziu Júlio junto ao barão.

O sr. Desmarets procurou o barão de Maulincour.

— Oh! É bem ele — disse o comendador mostrando um homem acomodado numa poltrona junto ao fogo.

— Quem, Júlio? — perguntou o moribundo com voz cansada.

Augusto perdera a única qualidade que nos faz viver: a memória. Ao vê-lo, o sr. Desmarets recuou de horror. Não podia reconhecer o jovem elegante naquela coisa sem nome em nenhuma língua, segundo a frase de Bossuet.[59] Era com efeito um cadáver de cabelos brancos; ossos mal cobertos por uma pele enrugada, ressequida, murcha; olhos brancos sem movimento; boca horrendamente entreaberta, como as dos loucos ou dos devassos mortos pelos seus excessos. Nenhum vislumbre de inteligência havia mais nem na fronte nem em nenhum dos seus traços, da mesma forma pela qual não havia em suas carnes moles nem cor nem aparência de circulação sanguínea. Era, enfim, um homem passado, dissolvido, chegado ao estado desses monstros conservados flutuando no álcool dos bocais dos museus.

Júlio pensou ver por trás dessa visão a terrível cabeça de Ferragus, e aquela completa Vingança afugentou o Ódio. O marido encontrou piedade no coração para os duvidosos destroços daquele que fora, outrora, um jovem senhor.

— O duelo realizou-se — disse o comendador.

— Quanta gente matou o sr. de Maulincour! — exclamou Júlio dolorosamente.

— E pessoas muito queridas — acrescentou o velho. — Sua avó morre de pesar e eu a seguirei, talvez, à tumba.

No dia seguinte ao daquela visita, a sra. Desmarets entrou a piorar de momento a momento. Aproveitando um instante em que se sentiu com forças, tirou uma carta de sob os travesseiros, deu-a vivamente a Júlio, fazendo-lhe um sinal de fácil inteligência: queria dar-lhe num beijo o último sopro de vida; ele o recebeu e ela expirou.

Júlio tombou semimorto e foi levado para a casa do irmão. Lá, como deplorasse, entre lágrimas, em meio do seu delírio a ausência da véspera, o irmão explicou-lhe que essa separação fora vivamente desejada por Clemência, que não quisera fazê-lo testemunha do aparato religioso, tão terrível para as imaginações delicadas, que a Igreja desdobra ao conferir os últimos sacramentos.

— Não terias resistido — disse-lhe o irmão. — Eu mesmo não pude suportar a cena e a criadagem se desfazia em lágrimas. Clemência parecia uma santa. Encontrou forças para se despedir de nós, e aquela voz, ouvida pela última vez, nos dilacerava o coração. Quando pediu perdão pelos desgostos que involuntariamente poderia ter dado aos que a serviam, houve um queixume entremeado de soluços...

— Basta — disse Júlio —, basta.

E quis ficar só para os últimos pensamentos da mulher que o mundo admirara e que passara como uma flor.

 

Meu amado, este é o meu testamento.

Por que não se faz testamento para os tesouros do coração como para os outros bens? Meu amor não era todo o meu bem?

Quero ocupar-me aqui só do meu amor: ele foi toda a fortuna de tua Clemência e tudo o que ela pode deixar-te, ao morrer. Sou ainda amada, Júlio, e morro feliz. Os médicos explicarão minha morte a seu modo, mas só eu lhe conheço a verdadeira causa. Vou dizer-ta, qualquer que seja a pena que te possa dar. Não quero levar no coração, todo teu, algum segredo que não te haja dito, agora que morro vítima de uma discrição necessária.

Júlio, cresci, fui criada na mais profunda solidão, longe dos vícios e das mentiras do mundo, pela boa mulher que conheceste. A sociedade prestava justiça às suas qualidades convencionais, pelas quais uma mulher lhe agrada; eu, porém, gozei secretamente de uma alma celeste e pude querer a mãe que fazia de minha infância uma alegria sem amarguras, sabendo bem por que a amava. Não era, acaso, amar duplamente? Sim, eu a amava, eu a temia, eu a respeitava e nada pesava no coração, nem o respeito nem o temor. Era tudo para ela e ela tudo para mim. Durante dezenove anos, plenamente felizes, descuidosos, minha alma, solitária no mundo que se agitava ao meu redor, só refletia a mais pura imagem: a de minha mãe, e meu coração não bateu senão por ela e para ela.

Eu era escrupulosamente piedosa e timbrava em me conservar pura diante de Deus. Minha mãe cultivava em mim todos os sentimentos nobres e elevados. Ah! Tenho prazer em te confessar, Júlio, sei agora que fui menina ingênua, que vim a ti virgem de corpo e alma. Ao sair daquela profunda solidão, quando, pela primeira vez, alisei meus cabelos, ornando-os com uma coroa de flores de amendoeira; quando acrescentei complacentemente alguns laços de cetim ao meu vestido branco, pensando na sociedade que eu iria ver e que tinha curiosidade de ver, pois bem, Júlio, foi para ti essa inocente e modesta coqueteria, pois, ao entrar na sociedade, foi a ti que vi, foste tu o primeiro. Notei logo o teu vulto; ele sobressaía entre os mais; tua aparência me agradou; tua voz e teus modos me inspiraram favoráveis pressentimentos; e, quando vieste e me falaste, com o rubor na face, com a voz trêmula, tal momento me deixou lembranças que ainda me fazem palpitar ao escrever-te hoje, quando as evoco pela última vez. Nosso amor foi a princípio a mais viva das simpatias, mas foi, bem depressa, mutuamente adivinhado e, depois, logo partilhado, como lhe experimentamos depois, igualmente, os inumeráveis prazeres.

Desde então minha mãe passou para o segundo lugar no meu coração. Eu lho dizia e ela sorria, a adorável mulher! E fui tua, toda tua. Eis minha vida, toda a minha vida, meu querido.

E eis o que me resta dizer-te:

Uma noite, alguns dias antes de sua morte, minha mãe me revelou o segredo de sua vida, derramando lágrimas ardentes. E eu te amei mais ainda quando soube, antes do padre que teve a seu cargo absolver mamãe, que havia paixões condenadas pela sociedade e pela Igreja. Mas, decerto, Deus não deve ser severo quando elas representam o pecado de almas cheias de ternura como era a de minha mãe; mas aquele anjo não podia inclinar-se ao arrependimento. Ela amava muito, Júlio, ela era toda amor... Por isso, rezei por ela todos os dias, sem a julgar... Conheci, então, a causa de seu grande carinho materno; soube, então, que havia em Paris um homem de quem eu era toda a vida, todo o amor; que a tua fortuna era obra sua e que ele te amava, que era ele um exilado da sociedade, que tinha um nome infamado; que era mais infeliz por minha causa, por nós, do que por ele mesmo. Mamãe era todo o seu consolo e mamãe morria; prometi tomar-lhe o lugar.

Com todo o ardor de uma alma cujos sentimentos coisa alguma adulterara, não vi senão a felicidade de lenir o amargor que afligia os últimos momentos de minha mãe e me comprometi a continuar essa obra de caridade secreta, de caridade do coração. A primeira vez que vi meu pai foi junto ao leito em que mamãe acabava de expirar; quando levantou os olhos cheios de lágrimas, foi para reencontrar em mim todas as suas esperanças mortas.

Eu jurara não mentir, mas guardar silêncio; e tal silêncio, que mulher o teria rompido? Essa é minha culpa, Júlio, culpa expiada pela morte. Duvidei de ti. Mas o medo é natural na mulher, sobretudo na mulher que sabe tudo o que pode perder. Tremi pelo meu amor. O segredo de meu pai me pareceu a morte de minha felicidade, e quanto mais eu amava mais tinha medo. Não ousava confessar tal sentimento a meu pai, pois iria feri-lo, e na sua situação todo ferimento seria fundo.

Ele, porém, sem o dizer, compartilhava de meus temores. Seu coração todo paternal tremia pela minha felicidade como eu própria temia e não ousava falar, obedecendo à mesma delicadeza que me tornava muda. Sim, Júlio, acreditei que um dia poderias não mais amar a filha de Graciano, como amavas a tua Clemência. Sem este profundo terror, te haveria eu escondido qualquer coisa, a ti que enchias inteiramente todo o meu coração? No dia em que esse odioso e infeliz oficial te falou, fui forçada a mentir. Nesse dia, pela segunda vez em minha vida, conheci a dor, e essa dor foi crescendo até este momento em que converso contigo pela última vez. Que importa, agora, a situação de meu pai? Sabes tudo. Eu poderia, com a ajuda do meu amor, vencer a doença, suportar todos os sofrimentos, mas não saberia fazer calar a voz da dúvida.

Não é possível que a minha origem altere a pureza do teu amor, que o enfraqueça, o diminua? Nada pode destruir em mim esse temor. Tal é, Júlio, a causa de minha morte. Eu não poderia viver no temor de uma palavra, de um olhar; uma palavra que não dirás jamais talvez, um olhar que não te escapará nunca; mas que queres? Eu os temo.

Morro sendo amada, eis o meu consolo. Fiquei sabendo que, há quatro anos, meu pai e seus amigos quase reviraram o mundo, para mentir ao mundo. A fim de me darem um estado civil, compraram um morto, uma reputação, uma fortuna, tudo isso para fazer renascer um vivo, tudo por ti, por nós. Nada devíamos saber. Pois bem! Minha morte poupará, sem dúvida, essa mentira a meu pai e ele morrerá com a minha morte.

Adeus, pois, Júlio. Meu coração está todo aqui. Exprimir-te meu amor na inocência do seu terror não é deixar-te toda a minha alma? Não tive forças para te falar, mas tive a de te escrever. Acabo de confessar a Deus todos os erros de minha vida; prometi não me ocupar mais senão do rei dos céus, mas não pude resistir ao desejo de me confessar também àquele que, para mim, é tudo sobre a Terra. Ah! Quem não me perdoará este último suspiro, entre a vida que foi e a vida que vai ser? Adeus, pois, meu Júlio amado; vou para Deus, junto a quem o amor é sempre sem sombras, para junto de quem irás um dia. Lá, sob o seu trono, reunidos para sempre, poderemos nos amar durante os séculos. Só esta esperança me consola. Se eu for digna de lá estar por adiantamento, de lá te seguirei na vida, minha alma te acompanhará, te envolverá, pois ficas ainda aqui. Leva, pois, uma vida santa para ires com certeza para junto de mim. Podes fazer tanto bem na Terra! Não é uma missão angélica, para um ser sofredor, espalhar a alegria ao seu redor, dar o que não possui? Eu te deixo aos infelizes. Só de suas lágrimas e de seus sorrisos eu não terei ciúme. Encontraremos grande encanto nesses doces benefícios. Não poderemos viver ainda juntos se quiseres ligar o meu nome, o da tua Clemência, a essas belas obras? Depois de haver amado como nós nos amamos, só resta Deus, Júlio. Deus não mente. Deus não engana. Não adores senão a Ele, eu o quero. Cultiva-o bem em todos os que sofrem; mitiga os membros doloridos de sua Igreja. Adeus, alma querida que eu enchi; eu te conheço: não amarás duas vezes. Vou, assim, expirar feliz com o pensamento que faz todas as mulheres felizes. Sim, minha tumba será o teu coração. Depois daquela infância que te contei, minha vida não decorreu em teu coração? Morta, tu não me expulsarás nunca. Eu me orgulho dessa via única! Tu só me conheceste na flor da mocidade, deixo-te pesares sem desencanto. Júlio, é uma morte bem feliz.

Tu, que tão bem me compreendeste, permite-me recomendar-te, coisa supérflua, sem dúvida, o cumprimento de um capricho de mulher, um voto que vem da inveja de que somos objeto: peço-te que queimes tudo o que nos pertenceu, que destruas nosso quarto, tudo o que possa lembrar o nosso amor.

Ainda uma vez, adeus, o último adeus, cheio de amor, como será o meu último pensamento, o meu último suspiro.

 

Ao concluir a leitura, Júlio sentiu no coração um desses frenesis de que é impossível narrar as espantosas crises. As dores são todas individuais, seus efeitos não se submetem a nenhuma regra fixa: certos homens cobrem as orelhas para nada ouvirem, algumas mulheres fecham os olhos para nada verem; e encontram-se almas grandes e magníficas que se atiram à dor como a um abismo. Em matéria de desespero, tudo é verdadeiro.

Júlio fugiu da casa do irmão, voltou à sua, querendo passar a noite junto à mulher, ver a celeste criatura até o último momento. Enquanto caminhava, com essa despreocupação pela vida que só conhecem as pessoas que chegaram ao último grau da infelicidade, compreendia bem as leis que, na Ásia, dispõem que os esposos não sobrevivam um ao outro. Queria morrer. Não estava ainda sucumbido, estava na fase febril da dor. Chegou sem obstáculos, subiu para a alcova sagrada; viu sua Clemência em seu leito de morte, bela como uma santa, com os cabelos em bandós, as mãos juntas, envoltas já na sua mortalha. Os círios iluminavam um padre rezando, Josefina chorando a um canto, ajoelhada, e, junto ao leito, dois homens. Um era Ferragus. Conservava-se de pé, imóvel, contemplando a filha, de olhos enxutos; sua face dir-se-ia de bronze. Não viu Júlio. O outro era Jacquet, para quem a sra. Desmarets fora sempre bondosa. Jacquet, que tinha por ela a amizade respeitosa que conforta o coração sem o turbar, que é uma doce paixão — o amor sem o desejo e suas borrascas —, viera religiosamente pagar sua dívida de lágrimas, dizer um longo adeus à mulher do amigo, beijar pela primeira vez a fronte gelada de uma criatura da qual, tacitamente, fizera sua irmã.

Tudo estava silencioso ali. Não era nem uma morte terrível como a da Igreja nem a morte pomposa que atravessa as ruas; não, era a morte a deslizar sob o teto doméstico, a morte comovente; as exéquias do coração, os prantos derramados por todos os olhos. Júlio sentou-se próximo a Jacquet, cuja mão apertou, e, sem dizer palavra, todas as personagens desta cena ficaram assim até pela manhã. Quando o dia fez empalidecer os círios, Jacquet, prevendo as cenas dolorosas que se iriam suceder, conduziu Júlio para a peça contígua. Nesse momento o marido olhou para o pai e Ferragus olhou para Júlio. Aquelas duas dores interrogaram-se, sondaram-se, entenderam-se naquele olhar. Um clarão de furor brilhou passageiramente nos olhos de Ferragus.

“Foste tu que a mataste”, pensou ele.

“Por que desconfiar de mim?”, parecia responder o esposo. A cena assemelhava-se à que se passaria entre dois tigres que reconhecessem a inutilidade de uma luta, depois de se examinarem durante um momento de hesitação, sem sequer rugir.

— Jacquet — perguntou Júlio —, providenciaste acerca de tudo?

— Tudo — respondeu o chefe de seção —, mas por toda parte me precedeu um homem que tudo encomendava e pagava.

— Ele me rouba a filha! — exclamou o marido num violento acesso de desespero.

E lançou-se para o quarto da mulher; mas o pai não estava mais lá. Clemência fora colocada num caixão de chumbo e operários se apresentavam para soldar-lhe a tampa. Júlio voltou para a peça vizinha espavorido com aquele espetáculo, e o ruído do martelo de que se serviam aqueles homens fê-lo automaticamente fundir-se em lágrimas.

— Jacquet — disse ele —, ficou-me desta noite terrível uma ideia única, mas uma ideia que desejo realizar a qualquer preço. Não quero que Clemência fique num cemitério de Paris. Quero cremá-la, recolher-lhe as cinzas e guardá-las. Não me digas uma palavra a respeito, mas providencia para que se realize. Vou encerrar-me em sua alcova e lá ficarei até o momento de minha partida. Somente tu entrarás lá para me dar contas de teus passos... Vai e não economizes coisa alguma.

Ainda pela manhã, a sra. Desmarets, depois de ter sido exposta em câmara-ardente à porta da casa, foi conduzida a Saint-Roch. A igreja estava inteiramente coberta de preto. O luxo empregado naquele ofício atraíra muita gente, porque em Paris tudo é espetáculo, até a mais verdadeira das dores. Há gente que se põe à janela para ver como chora um filho acompanhando o corpo de sua mãe, como há quem deseje estar comodamente colocado para ver rolar uma cabeça. Nenhum povo no mundo tem olhos mais vorazes. Mas os curiosos ficaram particularmente surpreendidos ao perceber as seis capelas laterais de Saint-Roch igualmente forradas de preto. Dois homens de luto assistiam a uma missa fúnebre em cada uma das capelas. Não se via no coro senão o sr. Desmarets, o tabelião e Jacquet como únicos assistentes; depois, fora do gradil, os criados. Havia ali para os frequentadores de igrejas algo de inexplicável em tal pompa e tão pequena parentela. Júlio não quisera a presença de nenhum indiferente naquela cerimônia. A missa solene foi celebrada com a sombria magnificência das missas fúnebres. Além dos servidores comuns de Saint-Roch, havia treze padres vindos de diferentes paróquias. Desse modo, nunca talvez tenha o Dies Irae[60] produzido sobre os cristãos por acaso, fortuitamente reunidos pela curiosidade, mas ávidos de emoções, efeito mais profundo, mais nervosamente glacial que o da impressão produzida por aquele hino entoado por oito vozes de chantres, acompanhadas alternativamente pelas dos padres e dos meninos do coro. Das seis capelas laterais, doze outras vozes infantis se elevaram acerbas de dor e se misturaram no canto, como um lamento. De todas as partes da igreja surdia o pavor; por toda parte gritos de angústia respondiam a gritos de terror. A música terrífica acusava dores ignoradas do mundo e amizades secretas que choravam a morta. Jamais, em nenhuma religião humana, foram interpretados com tanto vigor os terrores da alma violentamente arrancada do corpo e tempestuosamente agitada diante da fulminante majestade de Deus.

Diante desse clamor dos clamores devem humilhar-se os artistas e suas composições mais apaixonadas. Não, nada pode lutar com esse canto que resume as paixões humanas e lhes dá uma vida galvânica para além do ataúde, levando-as palpitantes ainda à presença de Deus vivo e justiceiro.

Os gritos das crianças, unidos aos das vozes graves, que exprimem, nesse cântico de morte, a vida humana em todas as suas fases, evocando os sofrimentos do berço, acrescentando-se com as penas das outras idades, com os fortes acentos dos homens e os tremolos dos velhos e dos padres, toda essa estridente harmonia cheia de trovões e de raios fala às imaginações mais intrépidas, aos corações mais frios, até aos próprios filósofos!

Ouvindo-o, parece-nos que Deus troveja. As abóbadas de nenhuma igreja permanecem frias; tremem, falam, derramam por toda a parte a potência dos seus ecos. Acreditar-se-ia que inumeráveis mortos se levantam e nos estendem as mãos. Não se trata de um pai nem de uma mulher nem de um filho colocados sob o pano negro, mas da humanidade que sai do seu pó.

É impossível julgar da Igreja católica, apostólica e romana enquanto não se experimentou a mais profunda das dores, chorando a criatura adorada que jaz sob o cenotáfio; enquanto se não sentiram todas as emoções que nos enchem então o coração, traduzidas por esse hino de desespero, por esses gritos que esmagam as almas, por esse terror religioso que cresce de estrofe em estrofe, que turbilhona para o céu e que assombra, que comprime, que eleva a alma e nos deixa uma sensação de eternidade na consciência, no momento em que concluiu o último verso. Estivemos em contato com a grande ideia do infinito e então tudo se cala na igreja. Não se diz mais uma palavra; os próprios incrédulos não sabem o que têm. Só o gênio espanhol poderia ter inventado essa majestade inaudita para a mais inaudita das dores. Ao concluir a suprema cerimônia, doze homens de luto saíram das seis capelas e foram escutar em torno do cenotáfio o canto de esperança que a igreja faz ouvir à alma cristã antes de sepultar a forma humana. À saída, cada um desses homens tomou uma viatura coberta de negro, Jacquet e o tabelião ocuparam a décima terceira e os criados seguiram a pé. Uma hora após, os doze desconhecidos, reunidos no alto do cemitério denominado popularmente de Père-Lachaise,[61] fizeram círculo em torno de uma fossa à qual fora descido o féretro, diante de uma multidão que acorrera de todos os pontos daquele jardim público. Depois de curtas preces, o padre atirou alguns grãos de terra sobre os despojos daquela mulher, e os coveiros, obtidas suas gorjetas, se apressaram a encher a sepultura para ocupar-se com outra.

Aqui parece acabar-se a narração desta história; mas ficaria talvez incompleta se, depois de haver feito rápido croqui da vida parisiense, se, depois de haver seguido suas caprichosas ondulações, os efeitos da morte ali fossem esquecidos.

A morte, em Paris, não se parece com a morte em nenhuma outra capital, e poucas pessoas conhecem os debates de uma verdadeira dor às voltas com a civilização, com a administração parisiense.

Ademais, talvez o sr. Júlio e Ferragus xxiii interessem o bastante para que o desenlace de suas vidas não seja relegado à indiferença. Muita gente, enfim, gosta de saber tudo, e desejaria, como disse o mais engenhoso dos nossos críticos, saber por qual processo químico arde o óleo na lâmpada de Aladim.

Jacquet, homem da administração, endereçou-se, naturalmente, às autoridades para obter a permissão de exumar o corpo da sra. Desmarets e cremá-lo. Foi falar ao intendente de polícia, sob a proteção do qual dormem os mortos. Esse funcionário exigiu-lhe uma petição. Foi necessário comprar uma folha de papel selado, dar à dor uma forma administrativa; tornou-se indispensável empregar a gíria burocrática para exprimir os desejos de um homem atormentado, ao qual faltavam as palavras; foi preciso traduzir friamente e pôr à margem o objeto do requerimento:

 

O requerente

solicita a incineração

de sua mulher.

 

Vendo isso, o chefe encarregado de informar ao conselheiro de Estado, intendente de polícia, disse ao ler a apostila onde o objeto do pedido estava, como recomendara, claramente expresso:

— Mas é uma questão grave! A minha informação não poderá ser dada antes de oito dias.

Júlio, a quem Jacquet se viu forçado a falar dessa dilação, compreendeu então o que ouvira Ferragus dizer: “Queimar Paris”. Nada lhe pareceu mais natural que destruir esse receptáculo de monstruosidades.

— Mas — objetou ele a Jacquet — é preciso ir ao ministro do Interior, fazer com que lhe fale o teu ministro.

Jacquet se dirigiu ao Ministério do Interior e pediu uma audiência, que obteve, mas para dali a quinze dias. Jacquet era homem persistente. Andou assim de mesa em mesa e chegou ao secretário particular do ministro, ao qual fez com que falasse pessoalmente o secretário particular do ministro do Exterior. Com o auxílio dessas altas proteções conseguiu, para o dia seguinte, uma audiência furtiva, na qual, tendo-se munido de uma palavra do autocrata dos negócios estrangeiros para o paxá do interior, Jacquet esperava resolver o caso de uma penada. Preparou raciocínios, respostas peremptórias e vários no caso... mas tudo falhou.

— Isso não me diz respeito — respondeu o ministro. — A coisa é da competência do intendente de polícia. Além disso, não há lei que dê aos maridos a propriedade dos corpos de suas mulheres, nem aos pais os dos filhos. É grave! Demais, há considerações de ordem pública que exigem que tudo seja examinado. Os interesses da cidade de Paris podem ser prejudicados. Enfim, se o assunto dependesse imediatamente de mim, não o poderia decidir hic et nunc,[62] ser-me-ia necessário uma informação.

As informações são na administração atual aquilo que são os limbos no cristianismo. Jacquet conhecia a mania da informação e não esperara por essa ocasião para gemer sob tal ridículo burocrático. Sabia bem que depois da invasão dos negócios públicos pela informação, revolução administrativa consumada em 1804, não se encontrara ainda um ministro que tomasse a si ter uma opinião, decidir a menor coisa, sem que essa opinião, essa coisa houvesse sido joeirada, crivada, expurgada pelos come-papéis, porta-raspadeiras e sublimes inteligências de suas repartições.

Jacquet, que era homem digno de ter Plutarco[63] como biógrafo, reconheceu que se enganara na marcha do assunto e o tornara impossível querendo proceder legalmente. O que cumpria era simplesmente transportar a sra. Desmarets para uma das propriedades de Desmarets, e ali, sob a complacente autoridade de um prefeito de aldeia, satisfazer à dor de seu amigo. A legalidade constitucional e administrativa nada concebe; é um monstro infecundo para os povos, para os reis e para os interesses privados; mas os povos não sabem soletrar senão os princípios escritos com sangue; consequentemente as desgraças da legalidade serão sempre pacíficas; esmagam uma nação, eis tudo. Jacquet, homem da liberdade, retornou então pensando nos benefícios do arbitrário, pois o homem só julga as leis à luz de suas paixões. E, quando se viu em presença de Júlio, foi forçado a enganá-lo, e o infeliz, tomado de violenta febre, ficou retido ao leito ainda por dois dias.

O ministro falou, na mesma noite, num jantar ministerial, da fantasia que tivera um parisiense de mandar queimar a mulher ao modo dos romanos. Os círculos parisienses se ocuparam então por momentos dos funerais da Antiguidade. E, voltando à moda as coisas antigas, algumas pessoas acharam que seria interessante restabelecer-se para as grandes personagens a pira funerária. A lembrança teve os seus defensores e os seus detratores. Diziam uns que havia demasiados grandes homens e que esse costume faria encarecer a lenha, e que, num povo tão mutável em suas vontades como era o francês, seria ridículo ver-se a cada passo um Longchamp[64] de antepassados conduzidos em suas urnas; depois, se as urnas tivessem valor, haveria probabilidade de serem levadas a leilão, cheias de cinzas respeitáveis, pelos credores, gente habituada a nada respeitar. Outros respondiam que haveria mais segurança para os avós assim instalados que no Père-Lachaise, pois em pouco tempo a cidade de Paris seria obrigada a ordenar um Dia de São Bartolomeu[65] contra os seus mortos que invadiam a campanha e ameaçavam dar um giro pelas terras de Brie. Foi, enfim, uma dessas fúteis e espirituosas discussões de Paris que muitas vezes motivam feridas bem profundas.

Felizmente para Júlio, não ficou ele sabendo das conversações, das piadas, dos sarcasmos que sua dor fornecia a Paris. O intendente de polícia mostrou-se chocado por se haver Jacquet dirigido ao ministro para evitar a lentidão, a prudência da sua alta vigilância. A exumação da sra. Desmarets era uma questão de vigilância. Assim, a repartição de polícia trabalhava para responder asperamente à petição, pois é suficiente um pedido para que a administração se julgue afrontada e, uma vez afrontada, as coisas com ela vão longe. A administração pode levar todas as questões até o Conselho de Estado, outra máquina difícil de mover. Ao cabo de dois dias Jacquet fez com que o amigo compreendesse que era preciso renunciar ao projeto; que, numa cidade onde o número de lágrimas bordadas sobre os panos pretos era taxado, onde as leis admitiam sete classes de enterros, onde se vendia a peso de ouro a terra dos mortos, onde a dor era explorada, escriturada por partidas dobradas, onde se pagavam caro as preces da Igreja, cuja fábrica intervinha para reclamar alguns fios de vozes acrescentados ao Dies Irae, tudo o que sai da rotina administrativamente traçada à dor é impossível.

— Teria sido — disse Júlio — uma felicidade em minha desolação; tinha formado o projeto de morrer longe daqui e desejaria ter Clemência em meus braços, na tumba! Não sabia que a burocracia pudesse estender as unhas até nossos caixões.

Depois quis ir ver se havia junto à mulher um lugarzinho para ele. Os dois amigos foram ao cemitério. Lá chegados, encontraram, como à porta dos teatros ou à entrada dos museus, cicerones que se ofereceram para guiá-los no dédalo do Père-Lachaise. Era-lhes impossível, tanto a um como ao outro, saber onde jazia Clemência. Terrível angústia! Foram consultar o porteiro do cemitério. Os mortos têm um guarda-portão e há horas em que os mortos não são visíveis. Era preciso vasculhar os regulamentos da alta e da baixa polícia para obter o direito de lá ir chorar à noite, no silêncio e na solidão, sobre a tumba onde jazesse um ente amado. Havia senha para o inverno e senha para o verão.

Decerto, de todos os porteiros de Paris o do Père-Lachaise é o mais feliz. Em primeiro lugar não tem portas a abrir fora de hora; depois, em lugar de um cubículo tem uma casa, um estabelecimento que não é propriamente um ministério, embora tenha grande número de administrados e muitos funcionários, pois esse governador dos mortos tem emolumentos e dispõe de imenso poder de que ninguém se pode queixar: é arbitrário à vontade. Seu gabinete não é também uma casa de comércio, embora possua escrivaninhas, contabilidades, receitas, despesas e lucros. O homem não é nem um “suíço” nem um zelador nem um porteiro; a porta que recebe os mortos está sempre escancarada; embora haja ali monumentos a conservar, não é um zelador; é, enfim, uma indefinível anomalia, autoridade que participa de tudo e que não é nada, autoridade colocada, como a morte de que vive, fora de tudo.

Não obstante, esse homem excepcional representa a própria cidade de Paris, esse ser quimérico como o navio que lhe serve de emblema, criatura de invenção movida por mil patas raramente unânimes em seus movimentos, de sorte que seus empregados são quase irremovíveis. Esse guardião do cemitério é, pois, o zelador elevado à classe de funcionário, não solúvel pela dissolução. Seu lugar não é, aliás, uma sinecura: não deixa enterrar ninguém sem licença, tem de dar conta dos seus mortos, indica naquele vasto campo os sete palmos onde se pode meter um dia tudo o que se ama, tudo o que se odeia, uma amante, um primo.

Sim, saibam-no bem, todos os sentimentos de Paris vêm dar ao seu escritório e nele se administralizam. O homem tem registros para neles deitar seus mortos que ficam nas sepulturas e nos seus cartões. Tem sob suas ordens guardas, jardineiros, coveiros e ajudantes. É um personagem. As pessoas aflitas não lhe falam de imediato. Ele só comparece nos casos graves: um morto tomado por outro, um morto assassinado, uma exumação, um morto que renasce. O busto do rei atual está em sua sala e ele guarda provavelmente os antigos bustos reais, imperiais, quase reais, nalgum armário, espécie de pequeno Père-Lachaise das revoluções. Enfim, é um homem público, um excelente homem; bom pai, bom marido, epitáfio à parte. Mas tantos sentimentos diversos passaram diante dele sob a forma de carros fúnebres; viu tantas lágrimas, verdadeiras e falsas; viu a dor sob tantas faces e sobre tantas faces; viu seis milhões de dores eternas! Para ele a dor não é mais que uma pedra de onze linhas de espessura e quatro pés de comprimento por vinte e duas polegadas de largura. Quanto aos pesares, são os aborrecimentos do cargo; não almoça nem janta sem sofrer a chuva de um inconsolável pranto. É bom e terno para todas as outras afeições: chora por qualquer herói de romance, pelo sr. Germeuil do Albergue dos Adrets, o homem de calção cor de manteiga fresca assassinado por Macário;[66] mas o seu coração se ossificara para com os verdadeiros mortos. Os mortos são números para ele; sua missão é a de organizar a morte. E, afinal, ocorre, três vezes por século, uma situação em que seu papel é sublime, e então é sublime a todas as horas do dia... em tempo de peste.

Quando Jacquet o abordou, o monarca absoluto estava bastante encolerizado.

— Mandei — exclamava — regar as flores, desde a Rue Masséna até a Place Regnault de Saint-Jean-d’Angély! Vocês zombaram disso, vocês... Cambada! Se os parentes resolvem vir hoje, que o tempo está bom, se atirarão contra mim, gritarão como queimados vivos, dirão horrores de nós e nos caluniarão...

— Senhor — disse-lhe Jacquet —, desejaríamos saber onde foi sepultada a esposa do sr. Júlio.

— Júlio de quê? — perguntou ele. — Nestes oito dias tivemos três sras. Júlio... Ah! — fez ele, interrompendo-se e olhando pela porta. — Aí está o cortejo do Coronel de Maulincour, ide receber a licença... Um belo cortejo, palavra! — continuou. — Seguiu de perto a avó. Há famílias em que eles degringolam como que por aposta. Têm mau sangue, vejam, esses parisienses.

— Senhor — repetiu Jacquet tomando-o por um braço —, a pessoa de que falo é a sra. Júlio Desmarets, esposa do agente de câmbio.

— Ah! Sei — respondeu, contemplando Jacquet. — Não era um cortejo em que havia treze carros cobertos de crepe e um único parente em cada um dos doze primeiros? Era tão engraçado que isso nos impressionou...

— Senhor, tenha cuidado. O sr. Júlio está comigo, pode ouvi-lo, e o que diz não é conveniente.

— Perdão, senhor, tem razão. Desculpe-me, eu os tomava por herdeiros.

E, consultando uma planta do cemitério, continuou:

— A sra. Desmarets está na Rue Maréchal Lefebvre, aleia nº 4, entre a srta. Raucourt, da Comédie Française, e o sr. Moreau Malvin, um grande marchante,[67] para o qual há um mausoléu de mármore branco encomendado, que será verdadeiramente um dos mais belos do nosso cemitério.

— Senhor — disse Jacquet interrompendo o porteiro —, não ficamos mais bem informados...

— É verdade — respondeu, olhando em torno. — João — gritou depois a um homem que avistou —, conduz estes senhores à sepultura da sra. Desmarets, a mulher de um agente de câmbio! Você sabe, junto à srta. Raucourt, o túmulo que tem um busto.

E os dois amigos caminharam guiados por um dos guardas; mas não chegaram ao caminho escarpado que leva à aleia superior do cemitério sem ouvir vinte propostas que agentes de marmorarias, de serralherias e de ateliês de esculturas vinham fazer-lhes com melosa gentileza.

— Se o senhor quer mandar construir qualquer coisa, nós poderíamos consegui-la baratinho...

Jacquet foi bastante feliz em poder evitar ao amigo essas palavras espantosas para corações que sangram, e chegaram ao lugar do repouso da sra. Desmarets. Ao ver a terra removida de fresco, onde pedreiros haviam fincado estacas para marcar o lugar dos blocos de pedra necessários ao serralheiro para colocar a grade, Júlio se apoiou ao ombro de Jacquet e, erguendo-se a intervalos, lançava longos olhares sobre aquele monte de argila onde tinha de deixar os despojos do ser pelo qual vivia ainda.

— Como Clemência está mal aí!

— Mas não está ali — respondeu Jacquet —, ela está na tua memória. Vamos, vem, saiamos deste odioso cemitério onde os mortos são enfeitados como mulheres para um baile.

— Se a tirássemos daqui?

— Será possível?

— Tudo é possível! — exclamou Júlio.

E, depois de uma pausa:

— Virei para cá. Há lugar.

Jacquet conseguiu tirá-lo daquele recinto dividido como um tabuleiro de damas por grades de bronze, em elegantes compartimentos onde se encerravam as sepulturas, todas enfeitadas de palmas, de inscrições, de lágrimas tão frias como as pedras de que se haviam servido as pessoas desoladas para mandar esculpir seus pesares e suas armas. Há ali frases de espírito gravadas em negro, epigramas contra os curiosos, concetti,[68] adeuses espirituosos, encontros marcados nos quais só se encontra uma pessoa, biografias pretensiosas, ouropéis, frioleiras, lantejoulas. Aqui tirsos; ali ferros de lanças; mais além urnas egípcias; cá e lá alguns canhões; por toda parte emblemas de mil profissões; enfim todos os estilos: mourisco, grego, gótico, frisos, colunas, pinturas, urnas, gênios, templos, inumeráveis perpétuas murchas e roseiras mortas. Uma comédia infame! É ainda Paris, com suas ruas, suas insígnias, suas indústrias, seus edifícios; mas, visto pelo vidro redutor de um monóculo, uma Paris microscópica, reduzida às pequenas dimensões das sombras, das larvas, dos mortos, uma espécie humana que nada tem de grande senão sua vaidade.

E Júlio viu a seus pés, no longo vale do Sena, entre as colinas de Vaugirard, de Meudon, entre as de Belleville e de Montmartre, a verdadeira Paris, envolta numa névoa azulada, produto de seus fumos, que a luz do sol tornava então diáfana. Abrangeu de um golpe de vista furtivo aquelas quarenta mil casas e murmurou apontando para o trecho compreendido entre a coluna da Place Vendôme e a cúpula dourada dos Invalides:

— Ela me foi roubada ali pela funesta curiosidade dessa gente que se agita e se apressa para apressar-se e agitar-se.

A quatro léguas dali, às margens do Sena, numa aldeola situada na encosta duma colina que faz parte da longa cadeia em meio da qual Paris se move como uma criança em seu berço, passava-se uma cena de morte e de luto, mas livre de todas as pompas parisienses, sem acompanhamento de tochas e círios nem de carros cobertos de crepe, sem preces católicas; a morte, simplesmente. Era este o fato:

O corpo de uma jovem viera pela madrugada encalhar junto à margem, na lama e nos juncos do Sena. Tiradores de areia que iam para o trabalho viram-no, ao tomar o seu frágil barco.

— Olha! Cinquenta francos garantidos — disse um deles.

— É verdade — observou o outro.

E abordaram junto à morta.

— É uma pequena bem bonita. Vamos fazer nossa declaração.

E os dois tiradores de areia, depois de terem coberto o corpo com seus casacos, dirigiram-se ao prefeito de aldeia, que se viu embaraçado com o inquérito necessário em tais casos.

O ruído do acontecimento espalhou-se com a rapidez telegráfica peculiar às localidades em que as comunicações sociais não sofrem interrupção alguma, e onde a maledicência, a tagarelice, a calúnia, os diz-que-diz-que, dos quais a sociedade se alimenta, não deixam lacuna de uma à outra extremidade.

Quase logo, pessoas que acudiram à Prefeitura tiraram o prefeito do embaraço: converteram o inquérito numa simples certidão de óbito. Graças a elas o corpo da rapariga foi reconhecido como da srta. Ida Gruget, costureira de espartilhos, moradora à Rue de la Cordorie du Temple, nº 14. A polícia judiciária interveio; a viúva Gruget, mãe da defunta, chegou munida da última carta da filha. Entre os gemidos da mãe, um médico verificou a asfixia pela invasão do sangue negro no sistema respiratório, e tudo ficou por isso.

Feitas as investigações, obtidos os esclarecimentos, pela tarde, às seis horas a autoridade permitiu o sepultamento da grisette. O vigário do lugar recusou-se a recebê-la na igreja e a rezar por ela. Ida Gruget foi então envolvida na mortalha por uma velha camponesa, posta num caixão vulgar de pinho e levada ao cemitério por quatro homens, seguidos por algumas camponesas curiosas, que narravam a morte comentando-a com comiseração, a que se misturava certa surpresa. A viúva Gruget foi retida caridosamente por uma velha senhora que a impediu de juntar-se ao triste cortejo da filha. Um sujeito de tríplice funções — sineiro, sacristão e coveiro da paróquia — abrira uma cova no cemitério de meio alqueire, situado por trás da igreja; uma igreja comum, igreja clássica, ornada de uma torre quadrada, pontiaguda, de telhado de ardósia, sustido exteriormente por contrafortes angulosos. Por trás do semicírculo descrito pela capela-mor encontrava-se o cemitério, cercado de muros em ruína, campo cheio de montículos; nem mármores nem visitantes, mas em cada sulco prantos e pesares verdadeiros que faltaram a Ida Gruget. Foi sepultada a um canto entre espinheiros e altas heras. Descido o caixão à cova, tão poética em sua simplicidade, o coveiro encontrou-se quase imediatamente a sós, na tarde que morria. Enchendo a cova, parava de quando em quando para contemplar o caminho por cima do muro; em certo momento, com a mão apoiada no cabo do enxadão, examinava o Sena, que lhe trouxera aquele corpo.

— Pobre menina! — exclamou um homem aparecido repentinamente.

— O senhor me assustou — disse o coveiro.

— Houve encomendação para a que você está enterrando?

— Não, senhor. O senhor cura não quis. É a única pessoa aqui enterrada que não era da paróquia. Aqui todo mundo se conhece. Será que o senhor?... Pronto! Desapareceu!

Haviam decorrido alguns dias quando um homem vestido de preto se apresentou em casa de Júlio e, sem querer falar-lhe, depôs no quarto de sua mulher uma grande urna de pórfiro na qual se liam estas palavras:

 

invita lege,

conjugi moerenti

filiolae cineres

restituit

amicis xii juvantibus

moribundus pater[69]

 

— Que homem! — murmurou Júlio desmanchando-se em lágrimas.

Oito dias foram suficientes ao agente de câmbio para cumprir todos os desejos da mulher e pôr em ordem seus negócios. Vendeu o cargo ao irmão de Martim Falleix[70] e saiu de Paris, enquanto a administração discutia ainda se era lícito a um cidadão dispor do corpo de sua mulher.

v — CONCLUSÃO

Quem não terá encontrado nos bulevares de Paris, ao dobrar uma rua, ou sob as arcadas do Palais-Royal, enfim, em qualquer lugar onde o acaso queira apresentá-lo, um ser, homem ou mulher, à vista do qual mil pensamentos confusos nos brotam do espírito? Ao encontrá-lo, vimo-nos subitamente interessados ou nos traços cuja bizarra conformação denuncia uma vida agitada, ou pelo curioso conjunto que apresentam os gestos, a aparência, o caminhar e as vestes, por qualquer olhar profundo, ou por outros quês que nos impressionam forte e repentinamente, sem que se explique ao certo a causa de nossa emoção.

Logo depois, outros pensamentos, outras imagens parisienses apagam esse devaneio passageiro. Mas, se tornamos a encontrar o mesmo personagem, seja porque passe à hora certa como um empregado da Prefeitura, seja porque viva errante pelos passeios, como essas criaturas que parecem móveis adquiridos para as ruas de Paris e que a gente encontra nos lugares públicos, nas primeiras representações ou nas oficinas dos restauradores de que constituem o principal ornamento, então tal criatura se incorpora à nossa lembrança e lá fica como um primeiro volume de romance cujo fim nos escapa. Ficamos tentados a interrogar o desconhecido e a perguntar-lhe:

— Quem é você? Por que anda aqui flanando? Com que direito usa colarinho plissado, bengala de castão de marfim e colete bordado? Para que esses óculos azuis de vidro duplo, ou por que conserva a gravata dos janotas?

Entre essas criações errantes, uns pertencem à espécie dos deuses Termos:[71] nada dizem à alma; estão ali e nada mais; por quê? Ninguém o sabe; são figuras como essas que servem de tipo aos escultores para as Quatro Estações, para o Comércio e a Abundância. Outros, antigos advogados, velhos comerciantes, generais reformados, andam, caminham e parecem sempre parados. Semelhantes a árvores que se encontrassem meio desenraizadas à margem de um rio, não parecem fazer parte da torrente de Paris nem da sua multidão moça e ativa. É impossível saber-se se houve esquecimento de enterrá-los ou se fugiram dos caixões; chegaram quase ao estado de fósseis. Um desses Melmoth[72] parisienses viera misturar-se, fazia dias, à população prudente e sossegada que, desde que faça bom tempo, povoa, infalivelmente, o espaço compreendido entre a grade sul do Luxembourg e a grade norte do Observatoire, espaço sem gênero, espaço neutro, em Paris. Com efeito, ali não é mais Paris; e ali ainda está Paris. Esse lugar participa ao mesmo tempo da praça, da rua, do bulevar, da fortificação, do jardim, da avenida, da estrada, da província e da capital; sem dúvida há ali tudo isto, mas não é nada disto: é um deserto. Em redor desse lugar sem nome se elevam os Expostos, a Bourbe,[73] o hospital Cochim, os Capuchinhos, o asilo La Rochefoucault, os Surdos-Mudos, o hospital do Val-de-Grâce: enfim, todos os vícios e todas as desgraças de Paris ali têm seu asilo, e, para que nada faltasse àquele recinto filantrópico, a ciência ali estuda as marés e as longitudes; o sr. de Chateaubriand ali pôs a enfermaria Maria Teresa, e as carmelitas fundaram um convento. As grandes situações da vida são assinaladas pelos sinos que soam incessantemente naquele deserto, pela mãe que se recolhe ao leito e pelo filho que nasce, e pelo vício que sucumbe e pelo operário que morre, e pela virgem que ora e pelo velho que tem frio e pelo gênio que se ilude. Além, a dois passos, está o cemitério de Montparnasse, que atrai de hora em hora os pobres cortejos do Faubourg Saint-Marceau.

Aquela esplanada da qual se domina Paris foi conquistada pelos jogadores de bolas, velhas cabeças grisalhas cheias de bonomia, boa gente que continua os nossos antepassados, cujas fisionomias só podem ser comparadas às de seu público, a movimentada galeria que os circunda.

O homem que se tornara desde alguns dias habitante daquele bairro deserto assistia assiduamente às partidas de bolas e podia, decerto, passar como a criatura mais saliente dos grupos que, se nos fosse permitido assimilar os parisienses às diferentes classes da zoologia, pertenceriam ao gênero dos moluscos.

O recém-vindo andava sincronicamente com a bolinha, pequena bola que serve de ponto de mira e constitui todo o interesse do jogo; apoiava-se a uma árvore lá onde parasse a bolinha; e, com a mesma atenção que um cão presta aos gestos de seu dono, olhava para as bolas que voavam no ar ou rolavam pelo chão. Dir-se-ia o gênio fantástico da bolinha. Não dizia uma palavra e os jogadores de bolas, homens mais fantásticos que os sectários de qualquer religião, nunca lhe haviam pedido contas daquele obstinado silêncio; apenas alguns espíritos fortes o acreditavam surdo-mudo.

Nas ocasiões em que era preciso determinar as diferentes distâncias entre as bolas e a bolinha, a bengala do desconhecido tornava-se medida infalível; os jogadores vinham tomá-la dentre as mãos geladas do velho, sem uma palavra para pedi-la emprestada, sem ao menos fazer-lhe um sinal amistoso. O empréstimo da bengala era como que uma servidão na qual consentira negativamente. Quando acontecia cair um aguaceiro, ele ficava junto à bolinha, feito escravo das bolas, guarda da partida começada. A chuva não o surpreendia mais que o bom tempo, e era como os jogadores, uma espécie de intermediário entre o parisiense que tem menos inteligência e o animal que a tem mais.

Ademais, pálido e fraco, sem o menor cuidado por si mesmo, distraído, aparecia muitas vezes de cabeça descoberta, com os cabelos brancos e o crânio quadrado, calvo, semelhante a um joelho que furasse a calça de um pobre, à mostra. Caminhava vacilante, sem pensamento no olhar, sem apoio preciso no andar; não sorria nunca, não levantava nunca os olhos para o céu e os conservava habitualmente abaixados para a terra, parecendo sempre nela procurar alguma coisa. Às quatro horas, uma velha vinha procurá-lo para o conduzir não se sabia aonde, levando-o pelo braço, tal como uma jovem conduz uma cabra caprichosa que quer pastar ainda à hora de voltar para o aprisco. Era algo horrível de ver-se o velho.

Uma tarde, Júlio, sozinho numa caleche de viagem habilmente guiada pela Rue de l’Est, desembocou na esplanada do Observatoire no momento mesmo em que o velho, encostado a uma árvore, deixava que lhe tomassem a bengala, entre vociferações dos jogadores pacificamente irritados. Júlio, acreditando reconhecer aquele vulto, quis parar e o carro precisamente parou. Com efeito, o postilhão, apertado por duas charretes, não quis pedir passagem aos jogadores maldispostos; tinha demasiado temor às rusgas o postilhão.

— É ele — murmurou Júlio, descobrindo enfim naquele despojo humano Ferragus xxiii, o chefe dos Devoradores. — Como ele a amava! — acrescentou depois de uma pausa, e gritou: — Vamos, ande, postilhão!

 

 

Paris, fevereiro de 1833

 

 

A DUQUESA DE LANGEAIS

A FRANZ LISTZ[74]

I — A IRMÃ TERESA

Existe numa velha cidade espanhola, situada em certa ilha do Mediterrâneo, um convento de carmelitas descalças no qual a regra da ordem instituída por Santa Teresa se conservou no rigor da primitiva reforma promovida por essa ilustre mulher. O fato é verdadeiro, por mais extraordinário que pareça. Embora as casas religiosas da península e as do continente tenham sido quase na totalidade destruídas ou arruinadas em consequência da Revolução Francesa e das guerras napoleônicas, a ilha em apreço, seu rico convento e seus pacíficos habitantes se encontraram ao abrigo de perturbações e das espoliações gerais, protegidos como foram pela marinha inglesa.

As tempestades de toda espécie, que agitaram os quinze primeiros anos do século xix, quebraram-se assim contra aquele rochedo pouco distante da costa da Andaluzia. Se o nome do imperador chegou até aquelas plagas, é duvidoso que seu cortejo fantástico de glórias e as flamejantes majestades de sua vida meteórica tenham sido compreendidos pelas santas mulheres ajoelhadas naquele claustro.

Uma rigidez conventual que coisa alguma alterara recomendava aquele asilo a todas as memórias do mundo católico. Desse modo, a pureza de sua regra atraía, dos pontos mais afastados da Europa, as tristes mulheres cujas almas, despojadas de todos os laços humanos, suspiravam pelo longo suicídio levado a cabo no seio de Deus. Nenhum convento era aliás mais favorável ao completo alheamento das coisas terrenas, exigido pela vida religiosa.

Entretanto, via-se, no continente, grande número dessas casas, magnificamente construídas de conformidade com a sua destinação: algumas sepultadas ao fundo dos vales mais solitários; outras, suspensas ao alto das montanhas mais escarpadas, ou lançadas à borda de precipícios; por toda parte o homem procurou a poesia do infinito, o solene horror do silêncio; quis, por toda parte, colocar-se mais próximo de Deus; buscou-o nos cimos, no fundo dos abismos, à borda das falésias, e por toda parte o achou.

Mas em nenhum outro lugar se poderiam encontrar reunidas tantas harmonias diversas concorrendo para elevar a alma, nela apagar as impressões mais dolorosas, amortecer-lhe as mais vivas e a fazer as penas da vida um leito mais profundo do que naquele rochedo meio europeu, meio africano.

O mosteiro fora construído na extremidade da ilha, no ponto culminante do rochedo, que, por efeito da grande revolução do globo, é cortado a pique do lado do mar onde apresenta em todos os pontos as arestas vivas de suas escarpas ligeiramente roídas ao nível da água, mas inabordáveis.

O rochedo é protegido de qualquer ataque por perigosos escolhos que se prolongam até longe, e nos quais se quebram as ondas brilhantes do Mediterrâneo.

Só do mar se percebem os quatro corpos do edifício quadrado em cuja forma, altura e aberturas foram minuciosamente observadas as leis monásticas. Do lado da cidade, a igreja esconde inteiramente as sólidas construções do claustro, cujos tetos são recobertos por grandes lajes que os tornam invulneráveis aos golpes de vento, aos temporais e à ação do sol. A igreja, devido às liberalidades de uma família espanhola, coroa a cidade. A fachada audaz, elegante, empresta grande e bela fisionomia à pequena cidade marítima. Pois não é um espetáculo repleto de todas as sublimidades terrestres o aspecto de uma cidade de telhados comprimidos, dispostos quase todos em anfiteatro diante de lindo porto, e dominados por magnífico frontispício em tríglifo gótico, com campanários, com torrõezinhos, com flechas soltas? A religião dominando a vida e dela oferecendo incessantemente aos homens o fim e os meios, imagem muito espanhola, aliás!

Ponde esta paisagem no Mediterrâneo, sob um céu de fogo; acrescentai-lhe algumas palmeiras, muitas árvores raquíticas, mas vivazes, a misturarem suas verdes frondes agitadas às folhas esculpidas de arquitetura imóvel; vede as franjas do mar branqueando os recifes, contrastando com o azul-safira das águas; admirai as galerias, os terraços construídos no alto de cada casa, onde os habitantes vêm respirar o ar da tarde entre flores, sob as árvores de seus jardinzinhos. No porto, algumas velas. Enfim, na serenidade da noite em começo, ouvi a música dos órgãos, o canto dos ofícios e os sons admiráveis dos sinos em pleno mar. O ruído e a calma em tudo; mas, as mais das vezes, a calma por toda parte.

Interiormente a igreja se dividia em três naves sombrias e misteriosas. Tendo a fúria dos ventos sem dúvida impedido o arquiteto de construir lateralmente os arcobotantes que ornam em geral as catedrais e entre os quais são abertas as capelas, as paredes que flanqueavam as duas pequenas naves e sustinham a grande não lhe comunicavam luz alguma. Aquelas fortes muralhas apresentavam no exterior o aspecto de suas massas escuras, apoiadas de distância em distância sobre enormes contrafortes.

A nave maior e suas duas pequenas galerias laterais só eram, assim, iluminadas pela rosácea de vitrais coloridos, colocada com arte pasmosa no alto da fachada, cuja exposição favorável permitira o luxo das rendas de pedra e dos ornatos próprios do estilo inadequadamente chamado gótico.

A maior parte das três naves se destinava aos habitantes da cidade que lá iam ouvir a missa e os ofícios. Diante do coro, havia uma grade por trás da qual pendia um cortinado de numerosas pregas, ligeiramente entreaberto ao centro de modo a não deixar ver mais que o celebrante e o altar. A grade era separada em iguais intervalos por pilares que sustinham uma tribuna interior e os órgãos. A construção, harmonizando-se com os ornamentos da igreja, figura exteriormente, em madeira esculturada, as colunetas das galerias que se apoiavam nos pilares da nave principal. Seria assim impossível a qualquer curioso, bastante ousado para subir à estreita balaustrada dessas galerias, ver mais que as longas janelas octogonais e coloridas que se abriam em panos iguais em torno do altar-mor.

Quando da expedição francesa levada à Espanha para restabelecer a autoridade do rei Fernando vii,[75] depois da tomada de Cádis, um general francês, vindo à ilha para fazer com que se reconhecesse o governo real, prolongou ali a sua estada com o propósito de ver o convento e encontrou meios de nele se introduzir. A empresa era, decerto, delicada. Mas um homem cheio de paixão, um homem cuja vida não fora mais que, por assim dizer, uma série de poemas em ação, que sempre fizera romances em vez de os escrever, um homem decidido, sobretudo, deveria sentir-se tentado por uma coisa aparentemente impossível.

Abrir legalmente as portas de um convento de mulheres? Só com permissão do papa ou do arcebispo metropolitano. Empregar a astúcia ou a força? Em caso de indiscrição não seria perder a situação, comprometer toda a carreira militar e errar o alvo? O duque de Angoulême estava ainda na Espanha, e de todas as faltas que pudesse cometer um homem apreciado pelo generalíssimo, somente essa não encontraria nele piedade. Mas o general solicitara a missão a fim de satisfazer secreta curiosidade, embora jamais uma curiosidade fosse tão desesperada. Mas essa derradeira tentativa era um assunto de consciência. A casa dessas carmelitas era o único convento espanhol que escapara às suas pesquisas. Durante a travessia, que não durou mais de uma hora, gravou-se em sua alma um pressentimento favorável à sua expectativa. Depois, embora do convento só tivesse visto as muralhas, e das religiosas nem houvesse vislumbrado as vestes, ele, que só lhes ouvira os cantos litúrgicos, encontrou, sob aquelas muralhas e naqueles cantos, leves indícios que justificavam sua frágil esperança. Enfim, por mais leves que fossem as suspeitas tão bizarramente despertadas, jamais paixão humana se tornara mais violentamente interessada que a curiosidade do general.

É que não há pequenos acontecimentos para o coração; ele aumenta tudo; põe na mesma balança a queda de um império de catorze anos e a queda de uma luva de mulher, e, quase sempre, a luva nele pesa mais que o império. Eis, pois, aqui, os fatos em toda a sua positiva simplicidade. Depois dos fatos virão as emoções.

Uma hora depois de haver o general abordado o ilhote, a autoridade real fora restabelecida. Alguns constitucionalistas espanhóis, que lá se haviam refugiado depois da tomada de Cádis, embarcaram num navio que o general lhes permitiu fretar para se dirigirem a Londres. Não houve, pois, nem resistência nem reação. E a Restauraçãozinha insular não poderia ficar sem uma missa à qual teriam de assistir as duas companhias enviadas em expedição.

Não conhecendo o rigor da clausura das carmelitas descalças, o general esperara poder obter, na igreja, alguns dados sobre as religiosas encerradas no convento, das quais uma talvez fosse para ele mais amada que a vida e mais preciosa que a honra. Suas esperanças foram de pronto cruelmente desfeitas. A missa foi, na verdade, celebrada com pompa. Em atenção à solenidade, as cortinas que velavam habitualmente o coro foram abertas e deixaram ver as riquezas, os quadros preciosos e os relicários ornados de pedrarias cujo brilho fazia empalidecer os dos numerosos ex-votos de ouro e prata colocados pelos marinheiros do porto nas colunas da nave maior. As religiosas se haviam refugiado todas na tribuna do órgão. Entretanto, malgrado esse primeiro desengano, durante a missa em ação de graças, desenrolou-se largamente o drama mais secretamente interessante que jamais fez bater um coração de homem. A irmã que tocava o órgão excitou tão vivo entusiasmo, que nenhum dos militares lamentou ter comparecido à cerimônia. Os próprios soldados encontraram nela prazer, e os oficiais sentiram-se arrebatados. Quanto ao general, permaneceu aparentemente frio e calmo. As sensações que lhes causaram os diferentes trechos executados pela religiosa pertencem ao pequeno número de coisas cuja expressão é interdita à palavra e a torna impotente, mas que, semelhante à morte, a Deus e à eternidade, só se podem apreciar pelo ligeiro ponto de contato que têm com os homens. Por singular acaso, a música do órgão parecia pertencer à escola de Rossini, o compositor que transportou mais paixão humana para a arte musical e cujas obras inspirarão um dia, pelo seu número e extensão, um respeito homérico. Entre as partituras produzidas por esse belo gênio, a religiosa parecia haver estudado mais particularmente a do Moisés,[76] sem dúvida porque o sentimento da música sacra nele se exprime no mais alto grau.

Possivelmente esses dois espíritos, um tão gloriosamente europeu, desconhecido o outro, poderiam encontrar-se na intuição da mesma poesia. Essa era a opinião de dois dos oficiais, verdadeiros dilettanti, que tinham saudade, na Espanha, do Théâtre Favart.[77]

Por fim, no Te-Deum[78] foi impossível não reconhecer uma alma francesa no caráter que de súbito assumiu a música. O triunfo do Rei Cristianíssimo excitava, evidentemente, viva alegria no fundo do coração da religiosa. Decerto, era francesa. Dentro em pouco o amor da pátria surgiu, brotou como um feixe de luz numa réplica de órgãos em que a irmã introduziu motivos que revelaram toda a delicadeza do gosto parisiense e nos quais se misturavam vagamente os pensamentos de nossas mais belas árias nacionais. Mãos espanholas jamais teriam posto naquela graciosa homenagem às armas vitoriosas o calor que acabou por revelar a origem da musicista.

— A França está então em toda parte? — exclamou um soldado.

O general saíra durante o Te-Deum; fora-lhe impossível ouvi-lo. A execução musical lhe denunciava a mulher amada até a loucura e que se sepultara tão profundamente no coração da religião e se escondera tão cuidadosamente aos olhos do mundo, que escapara até então às pesquisas mais obstinadas, especialmente feitas por homens que dispunham de grande poder e duma inteligência superior.

A suspeita despertada no coração do general foi quase justificada pela vaga recordação de uma ária de deliciosa melancolia, a ária do “rio Tejo”,[79] romança francesa cujo prelúdio muitas vezes ouvira em Paris executado pela pessoa que amava, e da qual a religiosa acabava de servir-se para exprimir, em meio da alegria dos triunfadores, as saudades de uma exilada. Terrível sensação! Esperar a ressurreição de um amor perdido, encontrá-lo perdido ainda, entrevê-lo misteriosamente, depois de cinco anos durante os quais a paixão se irritara em vão e crescera pela inutilidade das tentativas feitas para a satisfazer!

Quem, na vida, não esquadrinhou, por uma vez ao menos, todas as suas coisas, seus papéis, sua casa, não interrogou com impaciência a memória, à procura de um objeto precioso, e sentiu o prazer inefável de o encontrar depois de um dia ou dois consumidos em vãs pesquisas; depois de ter esperado e desesperado de encontrá-lo; depois de haver dispendido as mais vivas irritações da alma por essa importante ninharia que quase motivou uma paixão? Pois bem, prolongai essa espécie de raiva por cinco anos; ponde em lugar dessa ninharia uma mulher, um coração, um amor; transportai a paixão para as mais altas regiões do sentimento; suponde, além disto, um homem ardente, um homem de coração e face de leão, um desses homens de juba que impõem e comunicam aos que os encaram respeitoso terror! Compreendereis então, talvez, a brusca saída do general durante o Te-Deum, no momento em que o prelúdio de uma romança, ouvido outrora com delícia por ele, sob tetos dourados, fez vibrar a nave daquela igreja à beira-mar.

Desceu a ladeira que conduzia à igreja e só parou no momento em que os sons graves do órgão deixaram de chegar aos seus ouvidos. Incapaz de pensar outra coisa que não o seu amor, cuja vulcânica erupção lhe queimava o coração, o general francês só se apercebeu do fim do Te-Deum no momento em que viu a assistência espanhola descer em ondas. Sentiu que sua conduta ou sua atitude poderiam parecer ridículas e voltou a retomar o seu lugar à frente do cortejo, dizendo ao alcaide e ao governador da cidade que uma súbita indisposição o havia obrigado a sair para tomar ar. Depois, a fim de poder ficar na ilha, cuidou de tirar partido do pretexto dado de início sem outra intenção. Alegando a agravação do seu mal-estar, recusou-se a presidir o jantar oferecido pelas autoridades insulares aos oficiais franceses; pôs-se ao leito e fez escrever ao major-ajudante para anunciar-lhe a indisposição passageira que o forçava a delegar a um coronel o comando das tropas. O expediente tão vulgar, mas tão usado, libertou-o de cuidados durante o tempo necessário ao cumprimento dos seus projetos. Como homem essencialmente católico e monárquico, informou-se da hora dos ofícios e afetou o maior apego às práticas religiosas, devoção que, na Espanha, não surpreenderia ninguém.

Já no dia seguinte, durante a partida dos seus soldados, o general se dirigiu para o convento a fim de assistir às Vésperas. Encontrou a igreja deserta dos habitantes que, não obstante sua devoção, tinham ido ao porto ver o embarque das tropas. O francês, feliz por se encontrar só na igreja, teve o cuidado de fazer retinir pelas abóbadas sonoras o tilintar das esporas; caminhou ruidosamente, tossiu, falou alto consigo mesmo para mostrar às religiosas, e sobretudo à musicista, que, se os franceses partiam, um ali ficava. O singular aviso teria sido ouvido e compreendido?... O general o acreditou. Ao Magnificat,[80] o órgão pareceu dar-lhe resposta que foi trazida pelas vibrações do ar. A alma da religiosa voou para ele nas asas de suas notas e se emocionou com o movimento dos sons. A música rompeu em toda a sua potência, aqueceu a igreja. O canto de alegria, consagrado pela sublime liturgia da cristandade romana para exprimir a exaltação da alma em presença dos esplendores do Deus sempre vivo, tornou-se a expressão de um coração quase aterrorizado pela sua felicidade na presença dos esplendores de um amor perecível que durava ainda e o vinha agitar na tumba religiosa onde se sepultam as mulheres para ressurgirem esposas de Cristo.

O órgão é, decerto, o maior, o mais completo, o mais magnífico dos instrumentos criados pelo gênio humano. É toda uma orquestra a que uma mão hábil tudo pode pedir, pois que ele pode exprimir tudo. Não é, de certa forma, um pedestal sobre o qual pousa a alma para se lançar aos espaços, quando, no seu voo, tenta traçar mil esboços, pintar a vida, percorrer o infinito que separa o céu da terra? Quanto mais um poeta ouve suas gigantescas harmonias, melhor concebe que só as centenas de vozes do coro possam vencer as distâncias que separam os homens ajoelhados do Deus oculto pelos raios deslumbrantes do santuário, e que seja ele, assim, o único intérprete capaz de transmitir ao céu as preces humanas na infinita variação de suas modalidades, na diversidade de suas melancolias, em todos os tons de seus êxtases meditativos, com os ímpetos de seus arrependimentos e as mil fantasias de todas as suas crenças.

Sim, sob essas altas abóbadas, as melodias criadas pelo gênio das coisas sagradas encontram grandezas inauditas de que elas se orlam e fortalecem. Ali, a meia-luz, o silêncio profundo, os cantos que alternam com o trovejar dos órgãos, formam para Deus como que um véu através do qual irradiam seus luminosos atributos. Todas essas sagradas riquezas pareciam lançadas como um grão de incenso sobre o frágil altar do amor em face do eterno trono de um Deus ciumento e vingativo.

Com efeito, a alegria da religiosa não tinha o caráter de grandeza e de gravidade que deve harmonizar-se com a solenidade do Magnificat; deu-lhe ricos, graciosos desenvolvimentos cujos diferentes ritmos acusavam uma alegria humana. Seus motivos tinham o brilho dos gorjeios de uma cantora que procurasse exprimir o amor e seus cantos saltitavam como um passarinho junto à companheira. Depois, por momentos, lançava-se por saltos ao passado para nele doidejar e chorar ao mesmo tempo. Seu compasso variável tinha algo de desordenado como a agitação de uma mulher feliz pelo retorno do amante! Após as fugas flexíveis do delírio e os efeitos maravilhosos daquele reconhecimento fantástico, a alma, que assim falava, recolheu-se.

A musicista, passando do tom maior ao menor, soube informar seu ouvinte de sua situação atual. De súbito contou-lhe as suas longas melancolias e lhe pintou sua lenta doença moral. Havia abolido cada dia um sentimento, reprimido um pensamento cada noite, reduzido gradualmente o coração a cinzas. Depois de algumas doces modulações, a música tomou, de tom em tom, uma cor de profunda tristeza. E logo os ecos derramaram pesares em torrentes. Afinal, repentinamente, as notas altas entoaram um concerto de vozes angélicas como que para anunciar ao amado perdido, mas não esquecido, que a reunião das duas almas só se faria nos céus: comovedora esperança!

Chegou o Amém. E não houve nem alegrias nem lágrimas nos ares, nem melancolia, nem pesar. O Amém foi um retorno a Deus: esse último acorde foi grave, solene, terrível. A musicista desdobrou nele todos os crepes da religiosa, e, após as últimas percussões dos baixos, que fizeram fremir os ouvintes até os cabelos, pareceu remergulhar na tumba de onde por instantes saíra. Quando cessaram, aos poucos, as vibrações oscilatórias do ar, dir-se-ia que a igreja, até então luminosa, recaíra em profunda obscuridade.

O general fora rapidamente transportado pelo voo daquele gênio vigoroso e o seguira pelas regiões que acabava de percorrer. Compreendia em toda a sua extensão as imagens do que abundou aquela sinfonia e para ele aqueles acordes iam muito longe. Para ele, como para a freira, aquele poema era o futuro, o presente e o passado. A música, mesmo a de teatro, não é, para as almas ternas e poéticas, para os corações sofredores e magoados, um texto que eles desenvolvem de conformidade com as suas recordações? Se é preciso um coração de poeta para fazer um músico, não é preciso poesia e amor para ouvir e compreender as grandes obras musicais? A Religião, o Amor e a Música não são a tríplice expressão de um mesmo fato, a necessidade de expansão pela qual é solicitada toda alma nobre? Essas três poesias vão diretamente a Deus, que nos desliga de todas as emoções terrenas. Esta santíssima trindade humana participa igualmente das infinitas grandezas de Deus, que nunca imaginamos sem o cercar das chamas do amor, dos sistros de ouro da música, da luz e da harmonia. Não é ele o princípio e o fim de nossas obras?

O francês adivinhou que, naquele deserto, sobre aquele rochedo cercado pelo mar, a religiosa se apoderara da música para nela lançar o excesso de paixão que a devorava. Seria uma homenagem prestada a Deus pelo seu amor ou seria o triunfo do amor sobre Deus? Difíceis questões a resolver. Mas o general não pôde duvidar, decerto, de ter encontrado naquele coração morto para o mundo uma paixão tão ardente como a sua. Concluídas as Vésperas, regressou à casa do alcaide, onde estava hospedado. Tomado das mil alegrias de que é pródiga uma satisfação longamente esperada, penosamente buscada, nada via além dela. Era sempre amado. A solidão aumentara o amor naquele coração, tanto como crescera no seu através das barreiras sucessivamente vencidas, colocadas por aquela mulher entre ambas. Aquela expansão d’alma teve a sua duração natural. Veio-lhe depois o desejo de rever a mulher, de a disputar a Deus, de lha arrebatar, temerário projeto que agradou àquele homem audaz.

Depois do jantar, acomodou-se para evitar as perguntas, para ficar só, para poder pensar sem perturbações e mergulhou nas mais profundas meditações até a manhã seguinte.

Levantou-se para ir à missa. Compareceu à igreja e colocou-se junto à grade; sua cabeça tocava a cortina que ele desejaria fazer em pedaços, mas não estava só: seu hospedeiro o acompanhava por gentileza, e a menor imprudência poderia comprometer o futuro de sua paixão, arruinar suas novas esperanças. O órgão se fez ouvir, mas não o tocavam as mesmas mãos. A musicista dos dois dias precedentes não dominava já o teclado. Tudo decorreu frio e sem cor para o general. Estaria sua amada dominada pelas mesmas emoções sob as quais quase sucumbia seu vigoroso coração de homem? Teria ela partilhado, compreendido bem o amor fiel e desejado a ponto de estar a morrer no leito de sua cela?

No instante mesmo em que mil reflexões desse gênero acudiam ao espírito do francês, ouviu soar perto dele a voz da criatura que adorava e reconheceu-lhe o timbre claro. Aquela voz, ligeiramente alterada por um tremor que lhe emprestava todas as graças que a tímida pudicícia dá às moças, sobressaía da massa do canto como a de uma prima donna na harmonia de um final. Fazia à alma o efeito que produz à vista um filete de ouro ou de prata sobre uma frisa escura.

Era ela, mesmo! Sempre parisiense, não se despojara de sua coqueteria embora houvesse trocado os enfeites da moda pelo véu, pela dura estamenha das carmelitas.

Depois de haver assinalado, na véspera, o seu amor, entre os louvores tributados ao Senhor, parecia dizer ao amado: “Sim, sou eu, estou aqui, sempre amante; mas colocada ao abrigo do amor. Ouvir-me-ás, meu amor te envolverá e eu ficarei sob a mortalha marrom deste coro de onde nenhum poder me poderá arrancar. Não me verás”.

“É bem ela!”, pensou o general levantando a cabeça de entre as mãos sob as quais a apoiara, pois não pudera, de momento, sofrer a dilacerante emoção que se elevou como um turbilhão em seu peito quando a voz tão conhecida vibrou sob as arcadas, acompanhada pelo murmúrio das ondas. A tempestade ia lá fora e a calma no santuário. Aquela voz tão rica continuava a desdobrar todos os seus carinhos e chegava como um bálsamo ao coração abrasado do amante, floria no ar que se desejaria aspirar melhor para apreender as emanações duma alma que se exalava com amor nas palavras da prece. O alcaide aproximou-se do seu hóspede e foi encontrá-lo fundido em lágrimas, na Elevação, que foi cantada pela religiosa, e o levou para casa.

Surpreso de ver tanta devoção num militar francês, o alcaide convidara para o jantar o confessor do convento e preveniu o general ao qual notícia alguma jamais dera maior prazer. Durante o jantar o confessor foi objeto das atenções do francês cujo interessado respeito confirmou aos espanhóis a alta opinião que haviam formado de seus sentimentos religiosos. Perguntou gravemente o nome das religiosas, pediu detalhes sobre as rendas do convento e suas riquezas, como que parecendo querer entreter polidamente o bom velho padre com as coisas que mais o deviam preocupar. Indagou, depois, da vida que levavam as santas mulheres. Podiam sair? Podia-se vê-las?

— Senhor — respondeu o venerável eclesiástico —, a regra é severa. Se é necessária a permissão do nosso Santo Padre para que uma mulher chegue a uma casa de São Bruno,[81] aqui há o mesmo rigor. É impossível a um homem entrar num convento de carmelitas descalças, a menos que seja padre e colocado pelo arcebispo a serviço da Casa. Nenhuma religiosa pode sair. Não obstante, a Grande Santa (a madre Teresa) deixou muitas vezes sua cela. Só o Visitador e as madres superioras podem permitir a uma religiosa, com a autorização do arcebispo, ver a estranhos, mesmo em caso de doença. A daqui é uma casa-matriz e há consequentemente, no convento, uma madre superiora. Temos, entre outras estrangeiras, uma francesa, a irmã Teresa, a que dirige a música na capela.

— Ah! — exclamou o general, fingindo surpresa —, ela deve ter ficado satisfeita com o triunfo das armas da casa de Bourbon.

— Contei-lhe o objetivo da missa, elas sempre são um nada curiosas.

— Mas a irmã Teresa pode ter interesses na França, talvez queira mandar algum recado, pedir notícias...

— Não o creio; ter-se-ia dirigido a mim para sabê-las.

— Na qualidade de seu compatriota — disse o general —, tenho curiosidade de vê-la... se for possível, se a superiora consentir, se...

— Na grade, mesmo em presença da Reverenda Madre, seria impossível uma entrevista com quem quer que fosse; mas, em favor de um libertador do trono católico e da santa religião, não obstante a severidade da Madre, a regra pode fechar os olhos por um instante — disse o confessor piscando um olho. — Eu falarei.

— Que idade tem a irmã Teresa? — perguntou o general, não ousando interrogar o padre quanto à beleza da religiosa.

— Ela não tem mais idade — respondeu o bom homem com uma simplicidade que fez o general estremecer.

Na manhã do outro dia, o confessor foi anunciar ao francês que a irmã Teresa e a Madre consentiam em recebê-lo na grade do parlatório, antes da hora das Vésperas. Depois da sesta, durante a qual o general devorou o tempo indo caminhar pelo porto, sob o calor mediterrâneo, o padre tornou a procurá-lo e o introduziu no convento; guiou-o por uma galeria que ladeava o cemitério e na qual algumas fontes, muitas árvores verdejantes e múltiplos arcos conservavam uma frescura que harmonizava com o silêncio do local. Chegados ao fim da longa galeria, o padre fez o companheiro entrar para uma sala dividida em duas partes por uma grade coberta por um reposteiro marrom. Do lado, de certo modo reservado ao público, onde o confessor deixou o general, havia, ao longo da parede, um banco de madeira; algumas cadeiras igualmente de pau estavam colocadas junto à grade. O teto era formado de traves salientes, de carvalho bem conservado e sem nenhum ornamento. A luz só chegava à peça por duas janelas situadas na parte reservada às religiosas, de modo que a pouca luz, mal refletida pela madeira de tons escuros, era apenas suficiente para iluminar o grande crucifixo negro, a estampa de Santa Teresa e um quadro da Virgem, que decoravam as paredes cor de cinza do parlatório. Os sentimentos do general tomaram então, malgrado sua violência, um tom melancólico. Tornou-se calmo, naquele calmo ambiente. Algo de grande como a tumba o dominava sob aqueles frescos tetos. Não era eterno o seu silêncio, profunda a sua paz, infinitas as suas meditações? Depois, a quietude e o pensamento fixo do claustro, esse pensamento que se insinua no ar, no claro-escuro, em tudo, e que não estando traçado em parte alguma mais aumenta através da imaginação a grande frase: A paz no Senhor, ali penetram à viva força na menos religiosa das almas.

Os conventos masculinos não se concebem bem; o homem ali parece um fraco; o homem nasceu para agir, para levar uma vida de trabalho à qual se subtrai em sua cela. Mas, num convento de mulheres, quanto vigor viril e comovedora fraqueza! Um homem pode ser levado por mil sentimentos ao fundo de uma abadia, nela se atira como num precipício; a mulher, porém, só é levada até lá por um único sentimento: ela não violenta a sua natureza, pois desposa Deus. Pode-se perguntar aos religiosos: por que não lutastes? Mas a reclusão de uma mulher não é, invariavelmente, uma luta sublime? O general achou aquele parlatório mudo e aquele convento, perdido no mar, cheios dele.

O amor raramente chega à sublimidade; mas o amor fiel, mesmo no seio de Deus, não é algo de sublime e acima do que um homem poderia esperar no século xix, dados os costumes correntes? As grandezas infinitas da situação podiam influir na alma do general e ele era, precisamente, bastante elevado para esquecer a política, as honrarias, a Espanha, a sociedade de Paris e elevar-se à altura daquele desfecho grandioso. Aliás, que poderá haver de mais verdadeiramente trágico? Quantos sentimentos, na situação dos dois amantes reunidos no meio do mar, sobre uma rocha de granito, mas separados por uma ideia, por uma barreira intransponível! E o homem se interrogava: “Triunfarei sobre Deus neste coração?”.

Um leve ruído fê-lo estremecer. O reposteiro marrom foi afastado. E ele viu na meia-luz uma mulher de pé, cujo rosto se ocultava pelo prolongamento do véu pregueado sobre a testa. Segundo as regras da ordem, estava vestida com o hábito cuja cor[82] se tornou proverbial. E o visitante não pôde ver os pés nus da religiosa, que lhe teriam revelado sua assustadora magreza; entretanto, não obstante as numerosas pregas das vestes grosseiras que cobriam e não ornavam a mulher, ele adivinhou que as lágrimas, a prece, a paixão, a vida solitária já a haviam dessecado.

A mão enregelada de uma mulher, a da superiora sem dúvida, segurava ainda o reposteiro; e o general, ao examinar a testemunha necessária da palestra, encontrou o olhar negro e profundo de uma velha religiosa, quase centenária, olhar claro e jovem que desmentia as numerosas rugas que sulcavam a face pálida da mulher.

— Senhora duquesa — perguntou com voz grandemente emocionada à religiosa que se mantinha de cabeça baixa —, sua companheira compreende o francês?

— Não há aqui duquesa alguma — respondeu a religiosa. — Está diante da irmã Teresa. A mulher, a que chama de minha companheira, é minha mãe em Deus, minha superiora aqui na terra.

Tais palavras, tão humildemente pronunciadas pela voz que outrora se harmonizava com o luxo e a elegância em que vivera aquela mulher, rainha da moda em Paris, pela boca cuja linguagem fora tão graciosa, tão irônica, tocaram o general como um raio.

— Minha santa mãe só fala o latim e o espanhol — acrescentou. — Não conheço nem uma nem outra. Minha querida Antonieta, desculpa-me com ela.

Ouvindo seu nome pronunciado com doçura por um homem que fora, não há muito, tão duro para com ela, a religiosa experimentou uma viva emoção que os leves tremores do véu, sob o qual a luz dava em cheio, atraiçoaram.

— Meu irmão — disse, levantando a manga sob o véu, talvez para enxugar os olhos —, eu me chamo irmã Teresa...

E, voltando-se para a Madre, disse-lhe em espanhol estas palavras que o general compreendeu perfeitamente; ele sabia o bastante para o entender e talvez também para o falar:

— Cara Madre, este cavalheiro lhe apresenta seus respeitos e pede desculpas por não poder ele próprio se colocar a seus pés, pois não sabe nenhuma das duas línguas que a senhora fala...

A velha inclinou a cabeça lentamente, sua fisionomia tomou uma expressão angélica de doçura, realçada, não obstante, pelo sentimento de seu poder e de sua dignidade.

— Conheces este cavalheiro? — perguntou-lhe a Madre, deitando-lhe um olhar perscrutador.

— Sim, minha mãe.

— Volta à tua cela, minha filha! — disse-lhe a superiora em tom imperioso.

O general se ocultou rapidamente por trás do reposteiro, para não deixar adivinhar pelo seu rosto as terríveis emoções que o agitavam; e, na sombra, parecia-lhe ver ainda os olhos verrumantes da superiora. A velha mulher, senhora da frágil e passageira felicidade, cuja conquista tanto custara, lhe fizera medo e ele tremia, ele a quem uma tríplice rajada de canhões jamais assustara. A duquesa, que se dirigia para a porta, voltou.

— Minha mãe — disse com voz horrivelmente calma —, este francês é um dos meus irmãos.

— Fica, então, minha filha! — respondeu a velha, depois de breve pausa.

Este admirável jesuitismo revelava tanto amor e tanta saudade que um homem menos forte que o general teria desfalecido ao experimentar tão vivo prazer entre imensos perigos, para ele totalmente novos. Que valor tinham então as palavras, os olhares, os gestos numa cena em que o amor teria de escapar a olhos de lince e garras de tigre! A irmã Teresa voltou.

— Viu, meu irmão, o que ousei fazer para falar-lhe um momento sobre sua salvação e sobre os votos que minh’alma dirige todos os dias por você ao céu? Cometo um pecado mortal. Menti. Quantos dias de penitências para apagar esta mentira! Mas será sofrer por você. Não sabe, meu irmão, que felicidade é a de amar no céu, de poder confessar os próprios sentimentos depois que a religião os purificou, transportando-os às mais altas regiões e permitindo-nos não mais olhar senão a alma. Se as doutrinas, se o espírito da santa, à qual devemos este asilo, não me houvessem transportado para longe das misérias terrestres e arrebatado para longe da esfera em que ela está, mas, decerto, para além da sociedade, eu não teria tornado a vê-lo. Mas posso vê-lo, ouvi-lo e permanecer calma...

— Pois bem! Antonieta — exclamou o general, interrompendo-a a essas palavras —, consente que eu te veja, tu a quem amo com loucura, perdidamente, como desejaste ser amada por mim.

— Não me chames Antonieta, suplico-te. As lembranças do passado me fazem mal. Não vês aqui mais que a irmã Teresa, uma criatura confiante na misericórdia divina. E — acrescentou após uma pausa — modera-te, meu irmão. Nossa Madre nos separaria impiedosamente se o teu rosto traísse paixões mundanas ou se teus olhos deixassem cair lágrimas.

O general baixou a cabeça como que para se recolher. Ao levantar os olhos para a grade, percebeu, entre duas barras, o rosto emagrecido, pálido, mas ainda ardente, da religiosa. Sua tez, onde floresciam outrora todos os encantos da juventude, onde a feliz oposição de um branco-mate contrastava com as cores da rosa de Bengala, tomara o tom quente de uma taça de porcelana sob a qual se encerrasse uma luz fraca. A bela cabeleira, de que ela se orgulhava, havia sido cortada. Um véu cingia-lhe a fronte e lhe envolvia o rosto. Seus olhos, rodeados de olheiras pelas austeridades daquela vida, lançavam, por momentos, raios febris, e sua calma habitual não era mais que um disfarce. Não restava, enfim, daquela mulher, senão a alma.

— Ah! Deixarás esta tumba, tu que te tornaste a minha vida! Pertencias-me e não eras livre de entregar-te, nem mesmo a Deus. Não me prometeste tudo sacrificar a uma ordem minha? Agora talvez me aches digno dessa promessa, ao saberes o que fiz por ti. Procurei-te no mundo inteiro. Há cinco anos és o meu pensamento de todos os instantes, a ocupação da minha vida. Meus amigos, e amigos bem poderosos como sabes, ajudaram-me a pesquisar os conventos da França, da Itália, da Espanha, da Sicília, da América. Meu amor aumentava a cada vã pesquisa; fiz, muitas vezes, longas viagens guiado por uma falsa esperança; gastei a minha vida e as mais fortes pulsações do meu coração em torno das negras muralhas de muitos claustros. Não te falo de uma fidelidade sem limites; que seria ela? Nada, em comparação com os desejos infinitos do meu amor. Se foste verdadeira outrora em teus remorsos, não deves hesitar hoje em seguir-me.

— Esqueces que não sou livre.

— O duque está morto — respondeu ele vivamente.

A irmã Teresa enrubesceu.

— Que o céu lhe seja dado — disse ela com viva emoção —, foi generoso comigo. Mas eu não te falava desses laços; um de meus erros foi o de ter desejado quebrá-los, por ti, sem escrúpulos.

— Falas dos teus votos — exclamou o general, franzindo as sobrancelhas. — Não acreditava que alguma coisa pesasse mais em teu coração que o teu amor. Mas não duvideis, Antonieta, obterei do Santo Padre um rescrito que te desligará do juramento. Irei a Roma, implorarei a todos os poderosos da terra; e, se Deus pudesse descer, eu lhe...

— Não blasfemes!

— Não te inquietes pois com Deus! Ah! Preferiria ouvir que, por mim, franquearias estas paredes; que hoje mesmo te atirarias num barco, ao pé dos rochedos. Iríamos ser felizes não importa onde, no fim do mundo! E, junto a mim, voltarias à vida, à saúde, sob as asas do amor.

— Não fales assim — respondeu a irmã Teresa. — Ignoras o que te tornaste para mim. Amo-te bem mais do que te amei. Peço a Deus diariamente por ti e não te vejo mais com os olhos do corpo. Se conhecesses, Armando, a felicidade de poder entregar-se sem pejo a uma amizade pura que Deus protege! Ignoras como sou feliz em pedir as bênçãos do céu para ti. Não peço nunca por mim: Deus fará de mim o que for de sua vontade. Mas, quanto a ti, eu desejaria, à custa de minha vida eterna, ter alguma certeza de que és feliz neste mundo e de que serás feliz no outro, durante os séculos. Minha vida eterna é tudo o que a desgraça me deixou para te oferecer. Atualmente me encontro envelhecida pelas lágrimas, não sou mais nem jovem nem bela, e desprezarias, aliás, uma religiosa tornada mulher sem que nenhum sentimento, nem mesmo o amor materno, a absolvesse... Que poderias dizer-me para contrabalançar as inúmeras reflexões acumuladas em meu coração há cinco anos e que o mudaram, o fatigaram e amorteceram? Eu o deveria dar menos triste a Deus!

— Que direi? Querida Antonieta! Direi que te amo; que o afeto, o amor, o verdadeiro amor, a felicidade de viver num coração todo nosso, inteiramente nosso, sem reservas, é tão rara e tão difícil de encontrar que duvidei de ti, que te submeti a rudes provas, mas hoje eu te amo com todas as forças de minha alma; se me seguires no meu retiro, não ouvirei outra voz senão a tua, não verei outro rosto senão o teu...

— Silêncio, Armando! Abrevias o único instante durante o qual nos será permitido vermo-nos neste mundo.

— Antonieta, queres seguir-me?

— Mas eu não te deixo! Vivo em teu coração, mas não por interesse de prazer mundano, de vaidade, de gozo egoístico; vivo aqui por ti, pálida e abatida, no seio de Deus! Se Ele é justo, tu serás feliz...

— Frases apenas! Mas e se eu te quero pálida e abatida? E se não posso ser feliz senão possuindo-te? Alegarás sempre deveres diante do teu amante? Ele não estará, então, nunca acima de tudo em teu coração? Há pouco preferias a sociedade a ele; agora é Deus, é a minha salvação. Na irmã Teresa reencontro sempre a duquesa ignorante dos gozos do amor e sempre insensível sob a máscara de sensibilidade. Não me amas, tu nunca me amaste...

— Ah! meu irmão...

— Não queres deixar esta tumba; amas, dizes, a minh’alma? Pois bem, perderás para sempre esta alma, eu me matarei...

— Minha mãe! — exclamou a irmã Teresa em espanhol —, eu lhe menti, este é o homem que eu amo!

Imediatamente o reposteiro caiu. O general, estupefato, ouviu apenas as portas interiores fechando-se com violência.

— Ah! ela me ama ainda! — exclamou, compreendendo quanto havia de sublime no grito da religiosa. — É preciso tirá-la daqui...

O general deixou a ilha, regressou ao quartel-general e, alegando razões de saúde, pediu licença e voltou imediatamente à França.

Eis, agora, a aventura que determinou a situação em que se encontravam os dois personagens desta cena.

II — O AMOR NA FREGUESIA DE SAINT THOMAS D’AQUIN

O que na França se denomina o Faubourg Saint-Germain não é um bairro, nem uma seita, nem uma instituição, nem nada que se possa claramente exprimir. A Place Royale, o Faubourg Saint-Honoré, a Chaussée-d’Antin possuem igualmente edifícios onde se respira o ar do Faubourg Saint-Germain. Assim, pois, todo o faubourg não está no faubourg. Pessoas nascidas muito longe de sua influência podem-no sentir e ingressar naquele mundo, enquanto certas outras que lá nasceram podem dele ser para sempre banidas. Os modos, a fala, numa palavra, a tradição do Faubourg Saint-Germain é, em Paris, há cerca de quarenta anos, o que a Corte era antigamente, o que era o Hôtel Saint-Paul no século xiv, o Louvre no século xv, o Palais de Justice, o Hôtel Rambouillet, a Place Royale no século xvi, depois Versailles nos séculos xvii e xviii.[83] Em todas as fases da história, a Paris da alta classe e da nobreza teve seu centro, como a Paris vulgar terá sempre o seu. Esta singularidade periódica oferece ampla matéria às reflexões daqueles que desejem observar ou pintar as diferentes esferas sociais; e talvez não lhe devamos buscar as causas somente para justificar o caráter desta aventura, mas, também, para servir a graves interesses, mais ativos no futuro que no presente, se é que, todavia, a experiência não é um contrassenso para os partidos, como o é para a juventude.

Os grandes senhores e a gente rica que sempre macaqueou os grandes tiveram, em todas as épocas, suas casas afastadas dos locais muito habitados. Se o duque de Uzès fez construir, no reinado de Luís xiv, o belo palácio à porta do qual pôs a fonte da Rue Montmartre, ato de beneficência que o tornou, mais que suas virtudes, objeto de uma veneração tão popular que o bairro acompanhou em massa o seu féretro, aquele recanto de Paris era então deserto. Mas assim que se demoliram as fortificações, que os charcos situados além dos bulevares se encheram de prédios, a família de Uzès deixou o belo edifício, habitado atualmente por um banqueiro. Posteriormente, a nobreza, comprometida no meio de lojas, abandonou a Place Royale, os arredores do centro parisiense e passou o rio a fim de respirar à vontade no Faubourg Saint-Germain, onde já muitos palácios se elevavam em torno do edifício construído por Luís xiv para o duque de Maine, o benjamim de seus legitimados. Para as pessoas habituadas aos esplendores da vida, nada há, realmente, de mais ignóbil que o tumulto, a lama, os gritos, o mau cheiro, a estreiteza das ruas populosas. Não estão os costumes de um bairro comercial ou manufatureiro constantemente em desacordo com os hábitos dos grandes? O comércio e o trabalho se deitam no momento em que a aristocracia pensa em jantar; uns se agitam ruidosamente enquanto a outra repousa; seus cálculos não se encontram jamais; uns são a receita, a outra, a despesa. Daí costumes diametralmente opostos. Esta observação nada tem de desdenhosa. Uma aristocracia é, de certo modo, o pensamento de uma sociedade, tal como a burguesia e os proletários são-lhe o organismo e a ação. Daí a necessidade de sedes diferentes para essas forças, e do seu antagonismo resulta uma antipatia aparente que produz a diversidade de movimentos que se empregam, não obstante, para um fim comum.

Essas discordâncias sociais resultam tão logicamente de qualquer carta constitucional, que o liberal mais disposto a lamentá-las como um atentado às sublimes ideias sob as quais os ambiciosos das classes inferiores ocultam os seus desígnios, qualquer deles acharia aliás prodigiosamente ridículo que o príncipe de Montmorency residisse na Rue Saint-Martin, esquina da rua que tem o seu nome,[84] ou que o duque de Fitz James,[85] descendente da família real da Escócia, tivesse seu palácio na Rue Marie Stuart, esquina da Montorgueil. Sint ut sunt, aut non sint,[86] estas belas palavras pontificais podem servir de divisa aos Grandes de todos os países. Esse fato, evidente em todas as épocas, e sempre aceito pelo povo, contém em si razões de Estado: é ao mesmo tempo um efeito e uma causa, um princípio e uma lei. As massas têm um bom senso que não abandonam senão quando pessoas de má-fé as apaixonam. Esse bom senso repousa em verdades de ordem geral, tão verdadeiras em Moscou como em Londres, em Genebra como em Calcutá. Por toda parte desde que se defrontam famílias de fortuna desigual sobre determinado espaço, ver-se-á formarem-se círculos superiores, patriciados, primeira, segunda e terceira camadas sociais.

A igualdade pode ser um direito, mas nenhum poder humano poderá convertê-la em fato. Será bem útil à felicidade da França popularizar-se nela tal pensamento. Às massas menos inteligentes também se revelam os benefícios da harmonia política. A harmonia é a poesia da ordem e os povos têm viva necessidade de ordem. A concordância das coisas entre si, a unidade, para dizer tudo numa palavra, não é a mais simples expressão da ordem?

A arquitetura, a música, a poesia, tudo na França se apoia, mais que em qualquer outro país, sobre esse princípio, que aliás se encontra escrito no fundo de sua linguagem pura e clara, e a língua será sempre a fórmula infalível de uma nação. Veja-se, por exemplo, o povo adotando aqui as árias mais poéticas, as mais bem moduladas, atendendo-se às ideias mais simples, preferindo os motivos incisivos que contenham maior número de ideias. A França é o único país onde qualquer pequena frase pode fazer uma grande revolução. As massas jamais se revoltaram aqui senão para tentar pôr de acordo os homens, as coisas e os princípios. Ora, nenhuma outra nação sente melhor o pensamento de unidade que deve existir na vida aristocrática, talvez porque nenhuma outra compreendeu melhor as necessidades políticas: a história nunca a encontrará em atraso. A França muitas vezes se engana, mas o faz como uma mulher, por ideias generosas, por sentimentos entusiastas, cujo alcance escapa aos limites do cálculo.

Assim, como primeiro traço característico, o Faubourg Saint-Germain tem o esplendor de seus edifícios, seus grandes jardins, seu silêncio, outrora em harmonia com a magnificência de seus bens territoriais. Esse espaço posto entre uma classe e toda uma capital não é uma consagração material das distâncias morais que os devem separar? Em todas as criações, a cabeça tem o seu lugar marcado. Se, por acaso, uma nação faz cair a cabeça a seus pés, tarde ou cedo se apercebe de que se suicidou. Como as nações não querem nunca morrer, trabalham então por construir de novo uma cabeça. Quando uma nação não tem mais forças para isso, perece como pereceram Roma, Veneza e tantas outras. A distinção criada pela diferença de costumes entre as outras esferas de atividade social e a esfera superior implica, necessariamente, valor real, capital, para as sumidades aristocráticas.

Desde que em qualquer Estado, seja qual for a forma afetada pelo governo, os patrícios faltem às suas condições de completa superioridade, eles se veem sem forças e os povos os derribam logo. O povo quer vê-los sempre como mãos, cabeça e coração; como riqueza, poder e ação; como palavra, inteligência e glória. Sem esse tríplice poder, todo privilégio se esvai. Os povos, como as mulheres, amam a força nos que os governam e o seu amor não existe sem o respeito; não concedem obediência a quem não a imponha. Uma aristocracia subestimada é como um rei ocioso, um marido de saias; é nula antes de ser alguma coisa. Assim, a separação dos grandes, seus costumes arrogantes, numa palavra, os hábitos em geral das classes patrícias são ao mesmo tempo símbolo de um poder real e razões de sua morte, uma vez perdido o poder.

O Faubourg Saint-Germain deixou-se momentaneamente abater por não ter querido reconhecer as obrigações de sua existência que lhe eram ainda fáceis de perpetuar. Devia ter tido o bom senso de ver a tempo, como o viu a aristocracia inglesa, que as instituições têm os seus anos climatéricos, nos quais as mesmas palavras não têm os mesmos significados, em que as ideias tomam outras roupagens e em que as condições da vida política mudam totalmente de forma, sem que o fundo fique essencialmente alterado. Tais ideias exigem desdobramentos que dizem respeito essencialmente a esta aventura, na qual entram como definição de causas e como explicação dos fatos.

A grandiosidade dos castelos e dos palácios aristocráticos, o luxo de suas minúcias, a suntuosidade constante do mobiliário; o espaço no qual se move sem constrangimento e sem experimentar atritos o feliz proprietário, rico antes de nascer; o hábito de jamais descer ao cálculo dos interesses diários e mesquinhos da existência; o tempo de que dispõe; a instrução superior que pode prematuramente adquirir; enfim as tradições patrícias que lhe emprestam as forças sociais e que seus adversários só compensam a poder de estudos, por força de vontade ou por vocações tenazes; tudo deveria elevar a alma do homem que, desde a juventude, possui tais privilégios, imprimindo-lhe o alto respeito de si mesmo, cuja menor consequência é a nobreza de coração em harmonia com a nobreza do nome.

Isso é verdade quanto a algumas famílias. Aqui e ali se encontram no Faubourg Saint-Germain belos caracteres, exceções que provam contra o egoísmo geral que motivou a perda desse mundo à parte. Tais vantagens são inerentes à aristocracia francesa, como de todas as eflorescências patrícias que se produzirão na superfície das nações, por todo o tempo em que assentarem suas existências sobre o domínio, o domínio-solo, como o domínio-dinheiro, única base sólida de uma sociedade regular; mas essas vantagens apenas são conservadas entre os patrícios de toda espécie enquanto mantêm as condições pelas quais o povo lhas cede. São espécies de feudos morais, cujo trato envolve obrigações para com o soberano e, aqui, o soberano é, hoje, decerto, o povo.

Os tempos estão mudados, e também as armas.

O cavalheiro a quem era, outrora, suficiente vestir a cota de malha, a couraça, manejar a lança e sustentar o seu pendão deve, atualmente, dar provas de inteligência e ali, onde não era necessária mais que uma grande coragem, é indispensável hoje um grande cérebro. A arte, a ciência e o dinheiro formam o triângulo social onde se inscreve o escudo do poder e de onde deve sair a moderna aristocracia. Um belo teorema vale um grande nome. Os Rothschild, esses Fugger[87] modernos, são príncipes de fato. Um grande artista é realmente um oligarca, representa todo um século, torna-se quase uma lei. Assim, o dom da palavra, as máquinas de alta pressão do escritor, o gênio do poeta, a constância do comerciante, a vontade do homem de Estado que em si concentra mil qualidades brilhantes, o gládio do general, de todas essas conquistas pessoais feitas por um só sobre toda a sociedade para lhas impor, deve a classe aristocrática esforçar-se por ter hoje o monopólio, como teve outrora o da força material.

Para permanecer à frente de um país não é preciso sempre ser digno de o dirigir; ser-lhe a alma, e o espírito, para fazê-lo mover as mãos? Como conduzir um povo sem ter os poderes que constituem o mando? O que seria o bastão do marechal sem a força intrínseca do capitão que o tem às mãos? O Faubourg Saint-Germain brincou com os bastões pensando que eles eram todo o poder. Havia invertido os termos da proposição que orienta a sua existência. Em lugar de deitar fora as insígnias que chocavam o povo e conservar secretamente sua força, deixou aumentar a força da burguesia, agarrou-se fatalmente às insígnias, e esqueceu, invariavelmente, as leis que lhe impunha a sua fraqueza numérica. Uma aristocracia que se compõe apenas de um milésimo da sociedade deve, hoje em dia, como outrora, multiplicar os seus meios de ação para opor, nas grandes crises, um peso igual ao das massas populares.

Em nossos dias, os meios de ação devem ser forças reais e não recordações históricas. Infelizmente, na França, a nobreza, ainda grávida de sua antiga potência desvanecida, tinha contra si uma espécie de presunção da qual lhe era difícil defender-se. Talvez seja um defeito nacional. O francês, mais que qualquer outro homem, não conclui jamais no que está abaixo dele, sobe do degrau em que está para o degrau superior: raramente lamenta os infelizes acima dos quais se coloca; geme sempre por ver tanta gente feliz acima dele. E, ainda que tenha demasiado coração, prefere, as mais das vezes, ouvir o seu próprio espírito.

Esse instinto nacional, que faz os franceses andarem sempre para frente, essa vaidade que lhes rói as fortunas e os rege tão absolutamente como o princípio da economia rege os holandeses, domina há três séculos a nobreza, que, neste particular, foi eminentemente francesa. O homem do Faubourg Saint-Germain sempre dispôs de sua superioridade material em favor de sua superioridade intelectual. Tudo na França o convenceu disso, dado que depois do estabelecimento do Faubourg Saint-Germain, revolução aristocrática iniciada no dia em que a monarquia deixou Versailles, ele se apoiou, salvo algumas lacunas, sobre o poder que será sempre na França mais ou menos Faubourg Saint-Germain; daí a sua derrota em 1830.[88] Nessa época, era como que um exército operando sem base. Não aproveitava a paz para se implantar no coração do povo. Pecava por defeito de instrução e por falta total de visão sobre o conjunto de seus interesses. Matava um futuro certo em proveito de um presente duvidoso.

Eis, talvez, a razão dessa falsa política: a distância física e moral, que esses superiores se esforçavam por manter entre si e o resto da nação, teve fatalmente como único resultado, após quarenta anos, o de alimentar na classe alta os sentimentos pessoais, matando o patriotismo de casta. Enquanto a nobreza da França foi grande, rica e poderosa, sabiam os fidalgos, no perigo, escolher chefes e obedecer-lhes. Tornados menores, mostraram-se indisciplinados; e, como no Baixo Império, cada qual queria ser o imperador. Vendo-se todos iguais por sua fraqueza, acreditaram-se todos superiores. Cada família arruinada pela revolução, arruinada pela partilha igual dos bens, só pensou em si mesma, em vez de pensar na grande família aristocrática, e parecia-lhes que, se todos enriquecessem, o partido seria forte. Foi um erro. O dinheiro também não é mais que um sinal do poder.

Compostas de pessoas que conservavam as altas tradições da boa polidez, da verdadeira elegância, da boa linguagem, da vaidade e do orgulho nobiliárquicos, de acordo com suas existências, ocupações mesquinhas desde que tornadas principais numa vida da qual só deveriam ser acessórias, todas essas famílias tinham um certo valor intrínseco que, vindo à tona, só lhes deixou um valor nominal. Nenhuma dessas famílias teve a coragem de interrogar-se: somos bastante fortes para arcar com o poder? E atiraram-se-lhe em cima como também fizeram em 1830 os advogados.

Em vez de se mostrar protetor como um Grande, o Faubourg Saint-Germain se fez ávido como um parvenu. E desde o dia em que se provou à nação mais inteligente do mundo que a nobreza restaurada organizava o poder e o orçamento em seu proveito, ela foi ferida de morte. Quis ser uma aristocracia quando não mais podia ser senão uma oligarquia, dois sistemas bem diferentes, como compreenderá qualquer pessoa assaz hábil para ler atentamente os nomes patronímicos dos lordes da Câmara alta. Decerto, o governo real teve boas intenções; mas esqueceu constantemente que é preciso fazer o povo tudo querer, mesmo a sua felicidade, e que a França, mulher caprichosa, quer ser feliz ou espancada a seu gosto. Se tivesse havido muitos duques de Laval, cuja modéstia era digna do nome, o trono do ramo mais velho ter-se-ia tornado tão sólido como o da Casa de Hanôver.[89]

Em 1814, mas sobretudo em 1820, a nobreza de França tinha a dominar a época mais instruída, a burguesia mais aristocrática, o país mais feminino do mundo. O Faubourg Saint-Germain podia muito facilmente conduzir e divertir uma classe média, ébria de distinções, enamorada da arte e da ciência. Mas os mesquinhos condutores dessa grande época de inteligência odiavam todos a arte e a ciência. Não souberam sequer apresentar a religião, de que tinham necessidade, sob cores poéticas que a fizessem amada. Enquanto Lamartine, La Mennais, Montalembert[90] e alguns outros escritores de talento douravam de poesia, renovavam ou exaltavam as ideias religiosas, todos os que malbaratavam o governo faziam sentir o amargor da religião.

Jamais nação alguma foi mais complacente, ela que era então como uma mulher fatigada que se torna fácil; nunca o poder fez mais tolices: e a França, como a mulher, ama mais os erros. Para se reintegrar, para fundar um grande governo oligárquico, a nobreza do faubourg devia esquadrinhar-se com boa-fé, a fim de encontrar em si mesma a moeda de Napoleão, desventrar-se para pedir ao profundo de suas entranhas um Richelieu[91] constitucional; e, se tal gênio não estivesse nela, ir procurá-lo até na fria mansarda onde podia estar a ponto de morrer, e o assimilar, como a câmara inglesa dos lordes assimila constantemente os aristocratas de acaso; depois, ordenar a esse homem que fosse implacável, que decepasse os galhos apodrecidos, que podasse a árvore da aristocracia.

Mas, desde logo, o grande sistema do torismo[92] inglês mostrou-se grande demais para cabeças pequenas; sua importação exigia muito tempo aos franceses, para os quais um bom êxito lento equivale a um fiasco. Ademais, longe de observar a política redentora que vai procurar a força lá onde Deus a pôs, essas grandes pequenas criaturas odiavam toda força que não proviesse delas; enfim, longe de rejuvenescer, o Faubourg Saint-Germain se fez velho.

A etiqueta, instituição de segunda necessidade, poderia ter sido mantida se não aparecesse somente nas grandes ocasiões; e a etiqueta tornou-se uma luta cotidiana, e, em lugar de ser uma questão de arte ou de magnificência, tornou-se uma questão de poder.

Se faltou, antes de tudo, ao trono um conselheiro tão grande quanto as circunstâncias eram grandes, à aristocracia faltou, sobretudo, o conhecimento de seus interesses gerais, que tudo poderia suprir.

Ela se deteve diante do casamento do sr. de Talleyrand,[93] o único homem que teve uma dessas cabeças metálicas em que se forjam de novo os sistemas políticos através dos quais revivem gloriosamente as nações. O faubourg mofava dos ministros que não eram gentis-homens e não dava gentis-homens assaz superiores para serem ministros; poderia prestar verdadeiros serviços ao país enobrecendo os juizados de paz, fertilizando o solo, construindo estradas e canais, fazendo-se potência territorial ativa, mas vendia suas terras para jogar na Bolsa. Podia privar a burguesia dos seus homens de ação e de talento, cuja ambição minava o poder, abrindo-lhes as suas fileiras; preferiu combatê-los e sem armas, pois que não possuía senão por tradição o que outrora possuíra na realidade.

Para infelicidade dessa nobreza restava-lhe, precisamente, muito de suas diversas fortunas para sustentar sua arrogância. Satisfeita com suas tradições, nenhuma dessas famílias cuidou seriamente de fazer com que seus primogênitos tomassem armas do sarilho que o século xix atirava à praça pública. A juventude, excluída dos negócios, dançava em casa de Madame,[94] em lugar de continuar em Paris, para influírem os talentos jovens, conscienciosos, inocentes do Império e da República, na obra que os chefes de cada família deveriam começar nos departamentos, neles conquistando o reconhecimento de seus títulos por continuadas gestões em favor dos interesses locais, conformando-se com o espírito do tempo e refundindo a casta segundo o gosto da época.

Concentrada no Faubourg Saint-Germain, onde sobrevivia o espírito das remotas oposições feudais, misturado ao da antiga Corte, a aristocracia, mal unida ao castelo das Tuileries, foi mais fácil de vencer, isolada em um só lugar e tão mal constituída quanto estava na Câmara dos Pares. Espalhada pelo país tornar-se-ia indestrutível; encurralada no seu faubourg, arrimada ao castelo, espalhada no orçamento, era suficiente um golpe de machado para cortar o fio de sua vida agonizante, e a figura vulgar de um pequeno advogado avançou para vibrar a machadada.

Não obstante o admirável discurso de Royer-Collard,[95] a hereditariedade do pariato e do morgadio caiu sob as pasquinadas de um homem que se gabava de ter habilmente disputado algumas cabeças ao carrasco, mas assassinava inabilmente grandes instituições.[96] Encontram-se ali exemplos e ensinamentos para o futuro. Se a oligarquia francesa não tivesse uma vida futura, seria uma triste crueldade martirizá-la depois de morta, e então só deveríamos pensar em seu sarcófago; mas, se o escalpelo dos cirurgiões é duro de sentir, restitui, às vezes, a vida aos moribundos. O Faubourg Saint-Germain, perseguido, poderá encontrar-se mais poderoso do que o era triunfante, se quiser ter um chefe e um sistema.

Torna-se agora fácil resumir este relato semipolítico. Esta falta de largas vistas e este vasto conjunto de pequenos erros; a ânsia de restabelecer as grandes fortunas com as quais todos se preocupavam; a necessidade real de religião para sustentar a política; uma sede de prazeres que prejudicava o espírito religioso e obrigava a hipocrisias; as resistências parciais de alguns espíritos elevados que viam justo e contrariavam as rivalidades da Corte; a nobreza da província, muitas vezes de mais pura cepa que a nobreza da Corte, que, frequentemente ofendida, se afastou; todas essas causas se reuniram para dar ao Faubourg Saint-Germain os costumes mais discordantes. Ele não foi nem compacto em seu sistema, nem consequente nos seus atos, nem completamente moral, nem francamente licencioso, nem corrompido nem corruptor; não abandonou inteiramente as questões que o prejudicavam nem adotou as ideias que o teriam salvado. Enfim, por débeis que fossem as pessoas, o partido, não obstante, se armara de todos os grandes princípios que fazem a vida das nações. Ora, para perecer em plena força, o que é preciso ser? Foi difícil na escolha das pessoas apresentadas; teve bom gosto e desprezo elegante; mas sua queda nada teve de brilhante nem de cavalheiresca. A emigração de 89 ainda acusava sentimentos; em 1830, a emigração para o interior só revela interesses.

Alguns homens ilustres nas letras, alguns triunfos tribunícios, o sr. de Talleyrand no Congresso, a conquista da Argélia e vários nomes tornados históricos nos campos de batalha mostram à aristocracia francesa os meios que lhe restam para se nacionalizar e fazer com que se reconheçam ainda os seus títulos, se é que ela se digna ainda de fazer isto.

Nos seres organizados realiza-se um trabalho de harmonia íntima. Um homem, se é preguiçoso, trai a preguiça em cada um dos seus movimentos. Do mesmo modo a fisionomia de uma classe se ajusta ao seu espírito geral, à alma que lhe anima o corpo. Sob a Restauração, a mulher do Faubourg Saint-Germain não ostentava nem a soberba ousadia que as damas da Corte usavam outrora em seus desvios, nem a modesta grandeza das tardias virtudes pelas quais expiavam suas faltas e que espalhavam ao seu redor tão viva luz. Nada teve de bem leviano, nada de bem grave. Suas paixões, salvo algumas exceções, foram hipócritas; transigiu, por assim dizer, com seus gozos. Algumas dessas famílias levaram a vida burguesa da duquesa de Orléans,[97] cujo leito conjugal era tão ridiculamente mostrado aos visitantes do Palais-Royal; apenas duas ou três continuaram os costumes da Regência e inspiravam certo desgosto às mulheres mais hábeis que elas. A nova grande dama não teve influência alguma sobre os costumes; entretanto ela podia muito; podia, em desespero de causa, oferecer o espetáculo imponente das mulheres da aristocracia inglesa; mas hesitou tolamente, entre antigas tradições, foi devota à força e escondeu tudo, mesmo suas boas qualidades.

Nenhuma dessas francesas pôde criar um salão onde as sumidades sociais fossem receber lições de gosto e de elegância. Seus votos, outrora tão decisivos na literatura, essa viva expressão das sociedades, foram completamente nulos. Ora, quando uma literatura não tem um sistema geral, não toma corpo e se dissolve com seu século. E, em qualquer tempo, quando se encontra no seio de uma nação um povo à parte, assim constituído, o historiador nela encontra quase sempre uma figura principal que resume as virtudes e defeitos da massa à qual pertence: Coligny[98] quanto aos huguenotes, o Coadjutor[99] na Fronda,[100] o marechal de Richelieu[101] ao tempo de Luís xv, Danton no Terror. Essa identidade de fisionomia entre um homem e seu cortejo histórico está na natureza das coisas. Para conduzir um partido não é acaso necessário concordar com suas ideias, para brilhar numa época não é preciso representá-la? Dessa obrigação constante em que se encontra a direção sábia e prudente dos partidos de obedecer aos preconceitos e às loucuras das massas que lhe formam cauda, derivam as ações que certos historiadores reprovam aos chefes de partidos, quando, à distância das terríveis ebulições populares, julgam a frio as paixões mais necessárias à conduta das grandes lutas seculares. O que é verdadeiro na comédia histórica dos séculos é igualmente verdade na esfera mais estreita das cenas parciais do drama nacional chamado costumes.

No começo da vida efêmera que o Faubourg Saint-Germain levou durante a Restauração, e à qual, se são verdadeiras as considerações precedentes, não soube ele dar consistência, uma jovem senhora foi, transitoriamente, o tipo mais completo da natureza ao mesmo tempo superior e débil, grande e pequena, de sua casta. Era uma mulher artificialmente instruída, realmente ignorante; cheia de sentimentos elevados, mas sem um pensamento que os coordenasse; que dispendia os mais ricos tesouros da alma em obedecer às conveniências; pronta a afrontar a sociedade, mas hesitante, chegando ao artifício em consequência de seus escrúpulos; tendo mais teimosia que caráter, mais preocupação que entusiasmo, mais cabeça que coração; soberanamente mulher e soberanamente faceira, parisiense acima de tudo, amando as festas e o esplendor; não refletindo ou refletindo tarde demais; de uma imprudência que quase chegava a poesia; insolente de arrebatar, mas humilde no fundo do coração; afetando força como um caniço bem reto, mas, como o caniço, pronta a dobrar sob uma mão poderosa; falando muito da religião, mas não a amando, e não obstante pronta a aceitá-la como uma solução. Como explicar uma criatura verdadeiramente múltipla, suscetível de heroísmo e esquecendo de ser heroica para dizer uma maldade; jovem e suave, menos velha de coração que envelhecida pelas máximas dos que a cercavam e compreendendo sua filosofia egoísta sem a aplicar; tendo todos os vícios do cortesão e todas as nobrezas da mulher adolescente; desconfiando de tudo e, não obstante, deixando-se por vezes levar a crer em tudo?

Não será sempre um retrato inacabado dessa mulher em que os tons mais cintilantes contrastavam, mas produzindo uma confusão poética, porque havia nela uma luz divina, um resplendor de juventude, que dava a seus traços confusos uma espécie de conjunto? A graça lhe dava unidade. Nada nela era artificial. Aquelas paixões, aquelas meias paixões, aquela veleidade de grandeza, aquela realidade de pequenez, aqueles sentimentos frios e aqueles impulsos cálidos eram naturais e dependiam de sua situação tanto quanto da aristocracia à qual pertencia. Compreendia-se por si mesma e se punha orgulhosamente acima da sociedade, sob o escudo de seu nome.

Havia algo do eu de Medeia[102] em sua vida, como na da aristocracia, que morria sem querer nem se recolher ao leito nem estender a mão a qualquer médico político, nem tocar nem ser tocada, tanto se sentia fraca ou já feita pó.

A duquesa de Langeais, era esse o seu nome, estava casada havia quatro anos quando a Restauração se consumou, ou seja, em 1816, época na qual Luís xviii, esclarecido pela revolução dos Cem Dias,[103] compreendeu sua situação e seu século, apesar da gente que o cercava, embora esta triunfasse mais tarde dessa espécie de Luís xi[104] sem machado, quando abatido pela doença. Era a duquesa de Langeais uma Navarreins, família ducal que desde Luís xiv tinha por princípio não abdicar do título nas suas alianças. As moças dessa casa deveriam ter, cedo ou tarde, tal como suas mães, um tamborete na Corte.[105]

Na idade de dezoito anos, Antonieta de Navarreins saiu do profundo retiro em que vivera para desposar o primogênito do duque de Langeais. As duas famílias viviam então afastadas da sociedade; mas a invasão da França fazia presumir aos monarquistas o retorno dos Bourbon como única conclusão possível às desgraças da guerra. Os duques de Navarreins e de Langeais, fiéis aos Bourbon, haviam resistido nobremente a todas as seduções da glória imperial, e, nas circunstâncias em que se encontravam, quando dessa união, obedeciam, naturalmente, à velha política de suas famílias.

A srta. Antonieta de Navarreins desposou pois, bela e pobre, o marquês de Langeais, cujo pai faleceu meses após esse casamento. Com a volta dos Bourbon, as duas famílias retomaram sua posição, seus cargos, suas dignidades na Corte e reintegraram-se no movimento social, fora do qual até então se haviam conservado. Tornaram-se os mais luminosos expoentes desse novo mundo político.

Naqueles tempos de covardias e de falsas conversões, a consciência pública reconheceu nessas duas famílias a fidelidade sem mancha, a concordância entre a vida privada e o caráter político, aos quais todos os partidos rendem involuntária homenagem. Mas por infelicidade muito comum nas épocas de transição, as pessoas mais puras, aquelas que, pela elevação de suas vistas e sabedoria de seus princípios, teriam feito a França acreditar na generosidade de uma política nova e ousada, foram afastadas dos negócios que caíram em mãos de pessoas interessadas em levar os princípios ao extremo, para dar prova de devotamento. As famílias de Langeais e de Navarreins permaneceram na alta esfera da Corte, condenadas aos deveres da etiqueta, às exprobações e às zombarias do liberalismo, acusadas de se locupletarem de honras e riquezas, enquanto seu patrimônio nada aumentava e as liberalidades da lista civil se consumiam em gastos de representação, necessários a qualquer monarquia europeia, mesmo que fosse republicana.

Em 1818, o duque de Langeais comandava uma divisão do Exército, e a duquesa tinha, junto a uma das princesas, lugar que a autorizava a residir em Paris, longe do marido, sem escândalo. O duque, aliás além do comando, tinha um cargo na Corte a que frequentava, passando, então, o comando a um substituto. Viviam assim o duque e a duquesa inteiramente separados de coração e de fato, sem o revelarem à sociedade.

Aquele casamento de interesse tivera a sorte bastante comum a esses pactos de família. Os dois caracteres mais antipáticos entre si se haviam defrontado, secretamente magoado, secretamente ferido e desunido para sempre. Depois, cada um deles obedecera à sua natureza e às conveniências. O duque de Langeais, espírito tão metódico como o do cavaleiro de Folard,[106] entregou-se metodicamente aos seus gostos, aos seus prazeres, e deixou a mulher livre para seguir os seus, depois de ter reconhecido nela um espírito eminentemente orgulhoso, um coração frio, uma grande submissão aos usos da sociedade, uma lealdade juvenil, e que, assim, deveria permanecer pura aos olhos dos avós e de uma Corte puritana e religiosa.

Procedeu pois, a frio, como os grandes senhores do século precedente, abandonando a si mesma uma mulher de vinte e dois anos, gravemente ofendida e que tinha em seu caráter uma temível qualidade: a de não perdoar jamais uma ofensa quando toda a sua vaidade de mulher, seu amor-próprio e suas virtudes, talvez, haviam sido desprezadas e ocultamente feridas. Quando um ultraje é público, a mulher gosta de esquecê-lo, pois é uma oportunidade para engrandecer-se; é mulher na sua clemência; mas as mulheres não absolvem jamais as secretas ofensas, porque não amam nem as covardias nem as virtudes nem os amores secretos.

Tal era a posição, desconhecida do mundo, na qual se encontrava a duquesa de Langeais e na qual ela própria não refletia na época das festas dadas por ocasião do casamento do duque de Berry.[107] A Corte e o Faubourg Saint-Germain saíram então de sua atonia e de sua reserva. Começou ali, realmente, o esplendor inaudito que abusou o governo da Restauração.

A duquesa de Langeais, fosse por cálculo ou por vaidade, não aparecia então jamais na sociedade sem cercar-se de três ou quatro mulheres tão distintas por seu nome como por sua fortuna. Rainha da moda, possuía as suas açafatas, que reproduziam, alhures, as suas maneiras e o seu espírito.

Havia-as escolhido habilmente entre pessoas que não tinham ainda intimidade na Corte nem no coração do Faubourg Saint-Germain e que possuíam, por isso mesmo, a pretensão de lá chegar; simples Dominações que desejavam elevar-se até as proximidades do trono e misturar-se às seráficas potências da alta esfera denominada “o castelinho”. Assim cercada, a duquesa de Langeais se fazia mais forte, dominava melhor, estava mais em segurança. Suas damas defendiam-na contra a calúnia e ajudavam-na a representar o detestável papel de mulher da moda. Podia, à vontade, zombar dos homens, das paixões, excitá-las, receber as homenagens de que se alimenta toda natureza feminina e continuar senhora de si mesma.

Em Paris, e na melhor sociedade, a mulher é sempre mulher; vive de incenso, de lisonjas e de honrarias. A mais autêntica beleza, a figura mais admirável, nada é se não se faz admirada: um amante, adulações, são os atestados do seu poder. Que vale um poder desconhecido? Nada. Suponde a mais linda das mulheres sozinha num recanto de salão; estará ali triste. Quando uma dessas criaturas se encontra em meio das magnificências sociais, deseja reinar em todos os corações, na impossibilidade, às vezes, de ser a soberana feliz de um só. Aquelas toilettes, aqueles enfeites, aquelas galanterias eram feitas para os mais pobres dos seres que se possam imaginar, para tolos sem espírito, homens cujo mérito consistia numa bonita figura, e pelos quais todas as mulheres se comprometiam sem proveito, verdadeiros ídolos de madeira dourada, que, embora algumas exceções, não tinham nem os antecedentes dos petimetres do tempo da Fronda nem a grande e sólida bravura dos heróis do Império nem o espírito e os bons modos de seus avós, mas, ainda assim, queriam ser, grátis, qualquer coisa semelhante; que eram valentes como o é a juventude francesa, hábeis, sem dúvida, se tivessem sido postos à prova, e não podiam ser coisa alguma, visto o reinado dos velhos que os conservavam à margem. Foi uma época fria, mesquinha e sem poesia. Possivelmente é necessário muito tempo para que uma restauração se torne monarquia.

Havia dezoito meses que a duquesa de Langeais levava essa vida vazia, exclusivamente tomada pelos bailes, pelas visitas, pelos triunfos sem objeto, pelas paixões efêmeras, nascidas e mortas num sarau. Ao entrar num salão, os olhares se concentravam nela e recolhia palavras de lisonja, expressões apaixonadas que ela encorajava com o gesto ou o olhar e que não podiam jamais ir além da epiderme. Seu tom, seus modos, tudo lhe dava autoridade. Vivia numa espécie de febre de vaidade, de perpétua fruição, que a atordoava. Ia longe demais nas conversas, ouvia tudo e se depravava, por assim dizer, à superfície do coração. Voltando à casa, enrubescia muitas vezes daquilo de que havia rido, da história escandalosa cujos detalhes a haviam ajudado a discutir as teorias do amor, que ela não conhecia, e as sutis distinções da paixão moderna, que hipócritas complacentes comentavam para ela; aliás, as mulheres, sabendo tudo dizer entre elas, perdem com isso mais mulheres do que corrompem os homens.

Houve um momento em que ela compreendeu que a criatura amada era a única cuja beleza, cujo espírito podem ser universalmente reconhecidos. O que prova um marido? Que, mocinha, uma mulher fora ricamente dotada, ou bem-educada, que possuíra uma mãe hábil, ou satisfizera as ambições do homem; mas um amante é a proclamação constante de suas perfeições pessoais.

A duquesa de Langeais aprendera, jovem ainda, que uma mulher pode deixar-se amar ostensivamente sem ser cúmplice do amor, sem o aprovar, sem o contentar senão com os mínimos adiantamentos do amor, e mais de uma sonsa lhe revelara os meios de representar essas perigosas comédias. Teve, pois, sua corte, e o número dos que a adoravam ou cortejavam era uma garantia de sua virtude. Era coquete, amável, sedutora até o fim da festa, do baile, da noitada; depois, descido o pano, tornava a achar-se só, fria e indiferente, e, não obstante, revivia no dia seguinte para outras emoções igualmente superficiais.

Havia dois ou três jovens, completamente iludidos, que a amavam verdadeiramente e dos quais ela mofava com perfeita insensibilidade. E murmurava: “Sou amada, ele me ama!”. E essa certeza lhe era suficiente. Semelhante ao avaro satisfeito em saber que seus caprichos podem ser realizados, ela não chegava talvez nem sequer ao desejo.

Certa noite, compareceu à casa de uma amiga íntima, a viscondessa de Fontaine, uma dessas humildes rivais que a odiavam cordialmente e a seguiam sempre, espécie de amizade armada de que cada qual desconfia, cujas confidências são habilmente discretas e por vezes pérfidas. Depois de haver distribuído alguns cumprimentos protetores, afetuosos ou cheios de desdém, com o ar natural da mulher que conhece o valor de seus sorrisos, os olhos dela caíram sobre um homem que lhe era totalmente desconhecido, mas cuja fisionomia larga e grave a surpreendeu. Sentiu, ao vê-lo, emoção bastante parecida com a do medo.

— Querida — perguntou à sra. de Maufrigneuse[108] —, quem é esse recém-chegado?

— Um homem de quem já ouviste, decerto, falar: o marquês de Montriveau.

— Ah! É ele.

Tomou das lunetas e examinou-o impertinentemente, como teria feito com um retrato, que recebe os olhares sem os devolver.

— Apresenta-mo então, deve ser divertido.

— Ninguém é mais aborrecido nem mais sombrio, minha cara, mas está na moda.

Armando de Montriveau era naquele momento, sem o saber, objeto da curiosidade geral e merecia-a mais que qualquer um desses ídolos passageiros de que Paris tem necessidade e pelos quais se apaixona por alguns dias, a fim de satisfazer a necessidade de admiração e de entusiasmo fictício por que é periodicamente assaltado. Armando de Montriveau era filho único do general de Montriveau, um dos ci-devant que serviram nobremente à República e que morrera junto a Joubert, em Novi.[109] O órfão fora colocado pelos cuidados de Bonaparte na escola de Châlons, e posto, como os filhos de outros generais mortos nos campos de batalha, sob a proteção da República Francesa. Ao sair da escola, sem fortuna alguma, entrou para a Artilharia, e não era mais que comandante de batalhão no desastre de Fontainebleau.[110] A arma a que pertencia Armando de Montriveau lhe ofereceu poucas oportunidades de progresso. Em primeiro lugar, o número de oficiais é nela mais limitado que nos outros corpos do Exército; depois, as opiniões liberais e quase republicanas que a Artilharia professava, os temores inspirados ao imperador por um grupo de homens sábios, habituados à reflexão, se opunham à rápida carreira da maior parte deles. Também, contrariamente às leis ordinárias, os oficiais que chegavam ao generalato nem sempre eram os mais notáveis da arma, porque os medíocres causavam poucos receios. A Artilharia formava um corpo à parte no Exército e só nos campos de batalha é que pertencia a Napoleão. A essas causas gerais que podiam explicar o retardamento verificado na carreira de Armando de Montriveau juntavam-se outras inerentes à sua pessoa e ao seu caráter.

Sozinho no mundo, jogado desde os vinte anos através daquela tempestade de homens, no seio da qual viveu Napoleão, não tendo interesse exterior algum, arriscando-se a morrer todos os dias, habituara-se a apenas existir pela estima própria e pelo sentimento do dever cumprido.

Era habitualmente silencioso como todos os homens tímidos; mas sua timidez não lhe vinha da falta de coragem, era uma espécie de pudor que lhe interditava qualquer manifestação de vaidade. Sua intrepidez nos campos de batalha não era fanfarrona. Via tudo, podia fazer tranquilamente uma advertência aos camaradas e avançar à frente das balas, abaixando-se a propósito, para evitá-las.

Era bom, mas sua reserva fazia-o passar como arrogante e severo. De um rigor matemático em todas as coisas, não admitia nenhuma combinação hipócrita nem com os deveres de um cargo nem com as consequências de um fato. Não se prestava a nada de vergonhoso, não pedia nada para si; era enfim um desses grandes homens desconhecidos, filósofos o bastante para desprezarem a glória, que vivem sem se apegar à vida porque não acham nela nada em que desenvolver sua força ou seus sentimentos em toda a sua extensão. Era respeitado, estimado, mas pouco amado.

Os homens nos permitem elevarmo-nos acima deles, mas não nos perdoam jamais que não desçamos tão baixo quanto eles. Assim, o sentimento que concedem aos grandes caracteres não está isento de um pouco de ódio e de temor. Demasiada honradez é para eles uma censura tácita que não perdoam nem aos vivos nem aos mortos.

Após as despedidas de Fontainebleau, embora nobre e titulado, Montriveau fora posto a meio-soldo. Sua probidade antiga assustou o Ministério da Guerra, onde era conhecida sua ligação aos juramentos prestados à águia imperial. Durante os Cem Dias fora nomeado coronel da guarda e ficou no campo de batalha de Waterloo. Seus ferimentos o retiveram na Bélgica e não se juntou assim ao Exército do Loire; mas o governo real não quis reconhecer-lhe os postos obtidos durante os Cem Dias e Armando de Montriveau deixou a França.

Levado pelo seu gênio empreendedor, pela acuidade de pensamento que até então os azares da guerra haviam satisfeito, e apaixonado, por sua retidão instintiva, pelos projetos de grande utilidade, o general de Montriveau embarcou com o desígnio de explorar o Alto Egito e as partes desconhecidas da África, sobretudo as regiões do centro que hoje excitam tanto interesse aos sábios.

Sua expedição científica foi longa e infeliz. Recolhera notas preciosas destinadas a resolver os problemas geográficos ou industriais tão ardentemente investigados, e chegara, não sem franquear muitos obstáculos, até o coração da África, quando, por traição, caiu em poder de uma tribo selvagem. Foi despojado de tudo, submetido à escravidão e levado durante dois anos através dos desertos, ameaçado de morte a cada instante, e mais maltratado que um animal com que brincassem crianças desapiedadas. Sua força física e sua constância d’alma permitiram-lhe sofrer todos os horrores do cativeiro, mas esgotou quase toda a energia na evasão, que foi milagrosa.

Atingiu a colônia francesa do Senegal, semimorto, em farrapos e não possuindo mais que informes lembranças. Os imensos sacrifícios da viagem, o estudo dos dialetos da África, suas descobertas e observações, tudo ficou perdido. Um único fato fará compreender seu sofrimento: durante dias, os filhos do xeque da tribo de que era escravo se divertiram a tomar-lhe a cabeça por alvo, em um jogo que consistia em atirar nela, de longe, ossinhos de cavalo de maneira que não caíssem depois no chão.

Montriveau voltou a Paris pela metade do ano de 1818, e ali se viu arruinado, sem protetores e sem os desejar. Morreria vinte vezes antes de solicitar fosse o que fosse, mesmo o reconhecimento de direitos adquiridos.

A adversidade e suas dores haviam-lhe desenvolvido energia mesmo para as pequenas coisas e o hábito de conservar a dignidade de homem em face dessa entidade moral a que denominamos consciência valorizavam, para ele, até os atos aparentemente mais indiferentes.

Suas relações com os maiores sábios de Paris, porém, e com alguns militares cultos fizeram conhecidos seus méritos e suas aventuras.

As particularidades de seu cativeiro e de sua evasão, e as de sua viagem, atestavam tanto sangue-frio, espírito e coragem, que ele adquiriu, sem o saber, aquela celebridade passageira de que os salões de Paris são tão pródigos, embora demandem aos artistas, que a pretendam perpetuar, inauditos esforços.

Pelo fim do mesmo ano, sua posição mudou subitamente. De pobre que era, tornou-se rico, ou, pelo menos, teve exteriormente todas as vantagens da riqueza. O governo real que procurava atrair homens de mérito a fim de dar força ao Exército fez então concessões aos antigos oficiais cuja lealdade e caráter reconhecidos oferecessem garantias de fidelidade. O sr. de Montriveau foi restabelecido nos quadros da Guarda Real. Os favores atingiram sucessivamente o marquês de Montriveau sem que ele fizesse o menor pedido. Amigos lhe pouparam as diligências pessoais a que ele se teria recusado.

Depois, contrariamente aos seus hábitos, que de repente se modificaram, frequentou a sociedade onde foi favoravelmente acolhido e por toda parte encontrou testemunhos de alta estima. Parecia haver encontrado uma solução para sua vida; mas nele tudo se passava no íntimo e nada havia de exterior. Afetava assim na sociedade um ar grave e recolhido, silencioso e frio. Obteve muito êxito precisamente porque contrastava fortemente com a massa de fisionomias convencionais que povoam os salões de Paris, onde aquilo era, com efeito, inteiramente novo.

Sua palavra tinha a concisão de linguagem das pessoas solitárias ou dos selvagens. Sua timidez foi tomada como altivez e agradou muito. Era algo de estranho e de grande, e as mulheres tanto mais geralmente se enamoraram daquele caráter original, porquanto escapava às suas astutas lisonjas, a esse manejo com o qual enganam os homens mais poderosos e corroem os espíritos mais inflexíveis.

O sr. de Montriveau não compreendia coisa alguma dessas macaquices parisienses e sua alma só podia corresponder às sonoras vibrações dos belos sentimentos. Teria sido posto logo de lado, não fossem a poesia que resultava de suas aventuras e de sua vida e os panegiristas que o louvavam sem que o soubesse e sem o triunfo do amor-próprio que aguardava à mulher a quem desse atenção. A curiosidade da duquesa de Langeais era, assim, tão viva quanto natural.

Por acaso, o homem a interessara na véspera, ao ouvir contar uma das cenas que, na viagem do sr. de Montriveau, produziam maior impressão sobre as móveis imaginações femininas. Numa excursão às cabeceiras do Nilo, o sr. de Montriveau tivera com um dos seus guias o debate mais extraordinário que se conhece nos anais das viagens. Havia um deserto a atravessar e só se podia chegar a pé ao lugar que ele queria explorar. Só um dos guias era capaz de o levar até lá. Até então viajante algum pudera penetrar naquela parte da região em que o intrépido oficial presumia dever encontrar-se a solução de muitos problemas científicos. Malgrado as observações feitas pelos velhos da terra e pelo guia, empreendeu a terrível viagem. Armando-se de toda a coragem, já aguçada pelo prenúncio de horríveis dificuldades a vencer, partiu pela manhã. Depois de haver marchado durante o dia inteiro, deitou-se, à noite, na areia, experimentando uma fadiga estranha causada pela mobilidade do solo, que parecia a cada instante fugir debaixo dele. Não obstante, sabia que teria que se pôr em marcha ao raiar da aurora, pois o guia lhe prometera atingir pelo meio-dia o termo da viagem. A promessa lhe deu coragem, fê-lo encontrar novas forças e, apesar dos sofrimentos, continuou a caminho, maldizendo um pouco a ciência; mas, com vergonha de lamentar-se diante do guia, guardou o segredo de suas penas. Marchara já durante um terço do dia e, sentindo-se esgotado de forças e com os pés sangrando, perguntou se chegariam em breve. “Dentro de uma hora”, respondeu o guia. Armando encontrou na alma forças para mais uma hora e continuou. A hora se esgotou sem que percebesse, mesmo no horizonte, um horizonte de areia tão vasto como o do alto-mar, as palmeiras e as montanhas cujos cimos deveriam anunciar o fim da viagem. Parou, ameaçou o guia, recusou ir mais longe, exprobrou-lhe tornar-se seu assassino; acusou-o de o haver enganado, e lágrimas de raiva e de cansaço rolaram-lhe pelas faces ardentes; curvava-se sob a dor da caminhada, e a garganta parecia-lhe coagulada pela sede do deserto. O guia, imóvel, ouvia suas queixas com ar irônico, estudando com a aparente indiferença dos orientais os imperceptíveis acidentes daquela areia, quase enegrecida como o ouro brunido. “Enganei-me”, retrucou friamente. “Faz muito tempo que andei por aqui, para que possa reconhecer os traços do caminho; vamos bem, mas será necessário marcharmos ainda duas horas.” “Este homem tem razão”, pensou o sr. de Montriveau. E recomeçou a andar, mal podendo seguir o africano impiedoso ao qual parecia estar ligado por um fio, como o condenado se liga invisivelmente ao carrasco.

Mas as duas horas se passaram e o francês dispendeu as últimas gotas de energia sem avistar no horizonte puro nem palmeiras nem montanhas. Não achou mais nem gritos nem gemidos; deitou-se na areia para morrer; mas o seu olhar teria enchido de terror o homem mais intrépido — parecia anunciar que ele não queria morrer só. O guia, como verdadeiro demônio, respondia-lhe com um olhar calmo, poderoso, e o deixou estendido, tendo o cuidado de se conservar à distância que lhe permitisse escapar ao desespero de sua vítima. O sr. de Montriveau encontrou, enfim, forças para uma última imprecação. O guia aproximou-se dele, olhou-o fixamente, impôs-lhe silêncio e disse: “Não quiseste, apesar de nosso aviso, ir lá aonde te conduzo? Censuras-me por te haver enganado; se eu não o houvesse feito, não terias vindo até aqui. Queres a verdade, ei-la: temos ainda cinco horas de marcha e não podemos retroceder. Sonda o teu coração, se não tens coragem, aqui está o meu punhal”.

Surpreendido por esta espantosa compreensão da dor e da força humana, o sr. de Montriveau não quis ficar abaixo do bárbaro; e firme no seu orgulho de europeu achou nova dose de coragem e levantou-se para seguir o guia. Esgotadas as cinco horas, o sr. de Montriveau nada percebia ainda e voltou para o guia um olhar mortiço; então, o núbio tomou-o aos ombros, elevou-o alguns pés no ar e fê-lo ver a uma centena de passos um lago, cercado de verdura de admirável floresta, iluminado pelos raios do sol poente. Haviam chegado a pouca distância de uma espécie de imenso banco de granito sob o qual aquela paisagem sublime estava como que sepultada. Armando pensou renascer, e o guia, aquele gigante de inteligência e de coragem, acabou sua obra de devotamento, transportando-o através de veredas quentes e polidas, toscamente traçadas na pedra. E ele via de um lado um inferno de areias e do outro o paraíso terrestre do mais lindo oásis existente naqueles desertos.

A duquesa, já impressionada com o aspecto poético daquele personagem, ficou-o mais ainda ao saber que era o marquês de Montriveau, com quem sonhara durante a noite. Ter-se encontrado com ele nas areias ardentes do deserto, tê-lo tido como companheiro de pesadelo, não era, para uma mulher da sua natureza, um delicioso prenúncio de entretenimento?

Jamais homem algum revelou mais que Armando o caráter na fisionomia e ninguém jamais pôde com melhor motivo atrair os olhares. Sua cabeça grande e quadrada tinha por principal traço característico a enorme e abundante cabeleira negra que lhe cercava o rosto de modo a lembrar perfeitamente o general Kleber, ao qual se parecia pelo vigor da fronte, pela conformação do rosto, pela audácia tranquila dos olhos e pela espécie de impetuosidade que exprimiam seus traços incisivos. Era pequeno, largo de busto, musculoso como um leão. Ao caminhar, sua aparência, o andar, o menor gesto, traía algo de segurança, de força, de imponência, algo de despótico. Parecia saber que nada se podia opor à sua vontade, talvez porque não desejava nada que não fosse justo. Entretanto, semelhante a todas as criaturas realmente fortes, era suave no falar, simples de modos e naturalmente bom. Somente todas essas belas qualidades pareciam desaparecer nas circunstâncias graves em que o homem se tornava implacável nos seus sentimentos, fixo em suas resoluções, terrível nas suas ações. Um observador teria podido ver na comissura de seus lábios uma contração habitual que anunciava propensão para a ironia.

A duquesa de Langeais, sabendo que prêmio transitório exigia a conquista daquele homem, resolveu, durante o breve tempo que a duquesa de Maufrigneuse empregou em ir buscá-lo para lho apresentar, fazê-lo um dos seus adoradores, ceder-lhe passo sobre todos os outros, prendê-lo à sua pessoa e desenvolver para ele toda a sua garridice. Foi uma fantasia, puro capricho de duquesa, com o qual Lope de Vega ou Calderón fez O cão do jardineiro.[111] Quis que aquele homem não pertencesse a mulher alguma e nem imaginou pertencer-lhe.

Recebera da natureza as qualidades necessárias para representar os papéis da faceira e sua educação mais as aperfeiçoara. As mulheres tinham razões para invejá-la e os homens para amá-la.

Não faltava à duquesa nada daquilo que pode inspirar o amor, daquilo que o justifica e daquilo que o perpetua. Seu gênero de beleza, seus modos, sua fala, seu porte concorriam para dotá-la de uma faceirice natural que, na mulher, parece ser a consciência do seu poder. Era bem-feita e compassava seus movimentos com excessiva indolência, única afetação que se lhe podia reprovar. Tudo nela se harmonizava, desde o menor gesto até a construção particular das frases, e o ar hipócrita que dava ao olhar. O caráter predominante de sua fisionomia era uma nobreza elegante, que a mobilidade muito francesa do seu todo não destruía. Tal atitude incessantemente cambiável exercia prodigioso atrativo sobre os homens.

Prometia ser a mais deliciosa das amantes retirado o espartilho e os aprestos de sua representação. Com efeito, todas as alegrias do amor existiam em germe na liberdade de seus olhares expressivos, no carinho de sua voz, na graça de suas palavras. Deixava perceber que havia nela uma nobre cortesã que as crenças religiosas da duquesa em vão desmentiam. Quem se sentasse junto dela, durante um sarau, achá-la-ia ora alegre ora melancólica, sem que parecesse fingir nem a melancolia nem a alegria. Sabia ser, a seu bel-prazer, afável, desdenhosa ou impertinente, ou confiante. Parecia bondosa e o era. Nada na sua situação a forçava a descer à maldade. Havia momentos em que se mostrava ora confiante, ora astuta, ora terna e comovida, ora dura e seca a ponto de partir corações. Mas para bem pintá-la seria necessário acumularem-se todas as antíteses femininas; numa palavra, ela era o que queria ser ou parecer. Suas formas um nada alongadas tinham a graça, algo de fino, de miúdo que lembravam as figuras da Idade Média. Sua tez era pálida, levemente rosada. Ela toda pecava, por assim dizer, por excesso de delicadeza.

Montriveau deixou-se apresentar complacentemente à duquesa de Langeais, que, segundo o hábito das pessoas às quais um gosto refinado faz evitar as banalidades, o acolheu sem cumulá-lo de perguntas nem de cumprimentos, mas com uma espécie de graça respeitosa que devia lisonjear a um homem superior, pois a superioridade supõe no homem um pouco desse tato que faz com que as mulheres adivinhem tudo que é sentimento. Se manifestou alguma curiosidade, foi pelo olhar; se fez elogios, foi pelos modos; desenvolveu o encantamento verbal, o fino desejo de agradar, que sabia mostrar mais do que ninguém.

Toda a sua conversação porém não foi mais que o texto de uma carta em que houvesse necessariamente um pós-escrito no qual fosse exposto o pensamento principal. Quando, após meia hora de palestra insignificante, na qual só os acentos, os sorrisos, davam valor às palavras, o sr. de Montriveau pareceu querer discretamente retirar-se, a duquesa o reteve com um gesto expressivo.

— Senhor — disse-lhe —, não sei se os poucos instantes durante os quais tive o prazer de palestrar consigo ofereceram ensejo bastante para que me seja permitido convidá-lo a ir à minha casa; tenho receio de que haja demasiado egoísmo em lá querer vê-lo. Se eu for assaz feliz para que a casa lhe agrade, pode encontrar-me sempre à noite, até as dez horas.

Estas frases foram ditas com tal acento de garridice que o sr. de Montriveau não pôde recusar-se a aceitar o convite. Ao voltar para os grupos de homens que se conservavam a alguma distância das senhoras, muitos dos seus amigos o felicitaram meio a sério, meio a gracejar, pelo acolhimento extraordinário que lhe concedera a duquesa de Langeais. Aquela difícil, aquela ilustre conquista estava decididamente feita e a glória a havia reservado para a Artilharia da Guarda. Fácil é imaginar as boas e as más brincadeiras que esse tema, uma vez aceito, sugeriu num desses salões parisienses onde tanto gostam de divertir-se e onde as caçoadas têm tão pouca duração que cada qual se apressa a delas tirar todas as variações.

Essas tolices lisonjearam, no íntimo, o general. Do lugar em que se postara, seus olhares se viram atraídos por mil reflexões indecisas para a duquesa; e ele não pôde deixar de confessar a si próprio que, de todas as mulheres cuja beleza seduzira seus olhos, nenhuma lhe oferecera mais deliciosas expressões das virtudes, dos defeitos, das harmonias que a imaginação mais juvenil pudesse desejar, na França, numa amante.

Que homem, qualquer que seja a posição em que a sorte o tenha colocado, não sentiria em sua alma um gozo indefinível ao encontrar na mulher que escolheu, mesmo em sonhos, para ser sua, as tríplices perfeições morais, físicas e sociais que lhe hão de permitir ver sempre nela satisfeitas todas as suas aspirações? Se não é uma causa de amor em lisonjeira reunião, é, decerto, dos maiores veículos do sentimento. Sem a vaidade, disse um profundo moralista do século passado, o amor é um convalescente. Há, sem dúvida, para o homem como para a mulher, um tesouro de prazeres na superioridade da pessoa amada. Não é muito, para não dizer tudo, saber que o nosso amor-próprio não sofrerá jamais por culpa sua; que ela é assaz nobre para nunca receber as feridas de um olhar de desprezo, assaz rica para ser cercada de um brilho igual ao que cerca até mesmo os reis efêmeros da finança, assaz espirituosa para jamais se ver humilhada por um fino gracejo, e assaz bela para ser rival de todo o seu sexo?

São reflexões que os homens fazem num abrir e fechar de olhos. Mas, se a mulher que os inspira lhes acena ao mesmo tempo, para o futuro de sua paixão nascente, com as mutáveis delícias da graça, a ingenuidade de uma alma virgem, as mil dobras das vestes das faceiras, os perigos do amor, não é de perturbar o coração do homem mais frio? Essa era a situação em que se encontrava no momento o sr. de Montriveau, relativamente à mulher, e o seu passado garantia de qualquer modo a bizarria do fato.

Lançado jovem no tufão das guerras francesas, tendo vivido sempre nos campos de batalha, só conhecia da mulher o que um viajante apressado, que anda de albergue em albergue, pode conhecer de um país. Da sua vida talvez pudesse dizer o que Voltaire dizia da sua aos oitenta anos, e não teria acaso mil tolices de que se arrepender? Na sua idade era tão novo em amor quanto um rapaz que acabasse de ler Faublas[112] às escondidas. Da mulher ele sabia tudo; mas do amor nada sabia; e sua virgindade de sentimentos produzia-lhe assim desejos totalmente novos.

Alguns homens, levados pelos trabalhos a que os condenaram a miséria ou a ambição, a arte ou a ciência, como o sr. de Montriveau fora levado pelo curso da guerra e pelos acontecimentos de sua vida, conhecem essa singular situação e raramente a confessam. Em Paris, todos os homens devem ter amado. Mulher alguma quer aquilo que nenhuma outra quis. Do temor de ser tomado por um tolo, procedem as mentiras da fatuidade geral na França, onde passar por tolo é não ser do país.

Naquele momento, o sr. de Montriveau foi tomado ao mesmo tempo por violento desejo, desejo acirrado pelo calor dos desertos, e por um movimento de coração cujo ardente aperto ele ainda não conhecia. Tão forte quanto era violento, o homem soube reprimir suas emoções; mas, embora conversando sobre coisas indiferentes, ele se interiorizava e jurava possuir aquela mulher, único pensamento pelo qual ele podia entrar no amor. Seu desejo tornou-se um juramento, feito ao modo dos árabes com os quais vivera, e para os quais um juramento é contrato feito entre eles e todo o seu destino, que subordinam ao êxito da empresa consagrada, e para a qual não contam a própria morte senão como mais um meio de alcançar a finalidade.

Um rapaz teria pensado: “Bem que eu queria ter como amante a duquesa de Langeais!”. Um outro: “Aquele que for amado pela duquesa de Langeais será um felizardo!”. Mas o general dizia a si próprio: “Terei como amante a duquesa de Langeais”. Quando um homem virgem de coração, e para quem o amor se torna uma religião, concebe semelhante pensamento, não sabe em que inferno acaba de pôr os pés.

O marquês de Montriveau fugiu bruscamente do salão e voltou para casa devorado pelos primeiros acessos de sua primeira febre amorosa. Se na idade madura um homem conserva ainda as crenças, as ilusões, a franqueza, a impetuosidade da infância, seu primeiro gesto é, por assim dizer, o de avançar a mão para se apoderar daquilo que deseja; depois, sondada a distância quase impossível de transpor, que o separa dele, é tomado, como as crianças, de uma espécie de espanto ou de impaciência que dá maior valor ao objeto desejado, e treme ou chora.

No dia seguinte, depois das mais tempestuosas reflexões que lhe teriam transtornado a alma, Armando de Montriveau se achou sob o jugo dos seus sentidos, que a pressão de um verdadeiro amor concentrara. Aquela mulher, tão desembaraçadamente tratada na véspera, tornou-se o mais santo e o mais temido dos poderes. Foi desde então para ele o mundo e a vida. A simples lembrança das mais leves emoções que ela lhe despertara fazia empalidecerem as suas maiores alegrias, as mais vivas dores que até então sentira.

As mais rápidas revoluções só perturbam o interesse do homem enquanto uma paixão lhe subverte os sentimentos. Ora, para aqueles que vivem mais pelo sentimento do que pelo interesse, para aqueles que têm mais alma e sangue que engenho e linfa, um amor real produz uma mudança completa de existência.

Com um só traço, por uma só reflexão, Armando de Montriveau apagou toda a sua vida passada. Depois de se ter interrogado vinte vezes, como uma criança — irei? não irei? —, vestiu-se e foi ao palácio de Langeais pelas oito horas da noite, sendo admitido à presença da mulher, não, mulher não, do ídolo que vira na véspera, em plena luz, tal uma doce e pura mocinha envolta em gaze, rendas e véus.

Chegou impetuosamente para lhe declarar o seu amor, como se se tratasse do primeiro tiro de canhão num campo de batalha. Pobre colegial! Encontrou sua vaporosa sílfide envolta num penhoar de casimira marrom habilmente enfeitado de laçarotes de fitas, languidamente reclinada sobre um divã do obscuro toucador.

A sra. de Langeais não se ergueu, deixando ver apenas a cabeça, com os cabelos em desordem, embora retidos por uma manta. E com a mão que, no claro-escuro produzido pelo trêmulo clarão de uma única vela colocada a distância, pareceu aos olhos de Montriveau branca como se fosse de mármore, fez-lhe sinal para sentar-se dizendo-lhe com voz tão fraca como a luz da peça:

— Se não fosse o senhor, senhor marquês, se se tratasse de um amigo com o qual pudesse agir sem cerimônias, ou de um indiferente que levemente me houvesse interessado, eu não o teria recebido. Aqui, como me vê, sofro terrivelmente.

Armando pensou consigo: “Vou-me embora”.

— Mas — continuou ela, lançando-lhe um olhar cujo ardor o ingênuo militar atribuiu à febre — não sei se é um pressentimento da bondade de sua visita, cuja solicitude muito me sensibiliza, desde um instante sinto a cabeça liberta de sua tontura.

— Poderei, então, demorar-me um pouco — disse-lhe Montriveau.

— Ah! ficaria bem aborrecida se o visse partir. Já esta manhã pensei que não devia ter-lhe produzido impressão alguma; que, sem dúvida, teria tomado o meu convite como uma dessas frases banais prodigalizadas ao acaso pelas parisienses e perdoei de antemão sua possível ingratidão. Um homem que chega dos desertos não é obrigado a saber quanto nosso faubourg é exclusivista em suas amizades.

Essas graciosas palavras, quase murmuradas, caíram uma a uma como que impregnadas do alegre sentimento que parecia ditá-las. A duquesa queria tirar todo o partido possível de sua indisposição, e sua esperteza obteve completo êxito. O pobre militar sofria realmente o falso sofrimento daquela mulher. Tal como Crillon ao ouvir a narrativa da Paixão de Jesus Cristo,[113] estava a ponto de arrancar da espada para combater aquele mal-estar. E como então falar à doente do amor que esta lhe inspirara? Armando começava a compreender que seria ridículo disparar o seu amor à queima-roupa sobre mulher tão superior. Compreendeu num único pensamento todas as delicadezas do sentimento e as exigências da alma. Amar não é, acaso, saber pedir, mendigar, esperar? Aquele amor que o comovia não precisava ser provado?

Ficou, assim, com a líng ua paralisada, gelado pelas conveniências do nobre faubourg, pela majestade da enxaqueca e pela timidez do amor verdadeiro. Nenhum poder do mundo poderia entretanto velar-lhe o olhar no qual relampejavam o calor, o infinito do deserto, olhos calmos como o das panteras sobre os quais as pálpebras só muito raramente baixavam. Ela gostou imensamente daquele olhar fixo que a banhava de luz e de amor.

— Senhora duquesa — respondeu —, temo exprimir mal a gratidão que me inspira sua bondade. Neste momento só desejo uma coisa: poder dissipar os seus sofrimentos.

— Permita que me livre disto, sinto agora muito calor — disse ela, fazendo saltar com um movimento cheio de graça a almofada que lhe cobria os pés, que se revelaram em toda a sua brancura.

— Madame, na Ásia seus pés valeriam quase dez mil sequins.

— Cumprimento de viajante — observou ela, sorrindo.

A espirituosa criatura empenhou-se em elevar o rude Montriveau a uma conversação cheia de tolices, de lugares-comuns, de coisas sem sentido em que ele manobrou, militarmente falando, como o teria feito o príncipe Carlos[114] às voltas com Napoleão. Divertiu-se maliciosamente em reconhecer a extensão daquela paixão em começo, pelo número de toleimas arrancadas ao estreante que ela enredava passo a passo num labirinto inextricável em que queria deixá-lo com vergonha de si mesmo. Começou por caçoar do homem a quem igualmente se comprazia em fazer esquecer o tempo. O prolongamento de uma primeira visita é quase sempre uma lisonja, mas Armando nem pensou em tal.

O célebre viajante estava já há uma hora naquele toucador a falar de tudo sem dizer nada, sentindo não ser mais que um instrumento com que brincava aquela mulher, quando ela resolveu sentar-se e, pondo ao pescoço a manta que tinha na cabeça, dar-lhe as honras de uma completa cura.

Tocou a campainha para mandar acender as velas. À inação absoluta em que estivera sucederam-se os movimentos mais graciosos. Voltou-se, depois, para Montriveau e disse-lhe em resposta a uma confidência que acabava de arrancar-lhe e que pareceu interessá-la vivamente:

— Quer mofar de mim procurando convencer-me de que nunca amou. Essa é a grande pretensão dos homens junto a nós. Nós os acreditamos por pura polidez! Então não sabemos a que nos ater nesse caso por nós mesmas? Onde está o homem que não encontrou na vida uma única ocasião de enamorar-se? Gostam de enganar-nos e nós os deixamos fazê-lo, pobres tolas que somos, pois os seus embustes são ainda homenagens prestadas à superioridade dos nossos sentimentos, que são todos pureza.

Esta última frase foi pronunciada num tom cheio de altivez e de orgulho que fez do amante noviço uma bala atirada ao fundo de um abismo e da duquesa um anjo a voar para o seu céu particular.

“Diabo!”, exclamou consigo Armando de Montriveau, “como fazer para declarar a esta criatura selvagem que a amo?”

Ele o havia confessado já vinte vezes, ou melhor, a duquesa já o lera vinte vezes em seus olhares, e via, na paixão daquele homem realmente grande, um divertimento para ela, um interesse para a sua vida sem interesse. Preparava-se já, assim, muito habilmente, para elevar em torno de si mesma uma certa quantidade de redutos que o obrigaria a tomar, antes de permitir-lhe a entrada em seu coração.

Joguete de seus caprichos, Montriveau devia permanecer estacionário enquanto saltava de dificuldade em dificuldade tal como o inseto atormentado por uma criança salta de um dedo para outro pensando avançar, enquanto seu malicioso carrasco o conserva no mesmo ponto. Não obstante, reconheceu a duquesa, com inexprimível felicidade, que aquele homem de caráter não mentia à sua palavra. Armando não havia realmente amado até então. Ia retirar-se descontente consigo mesmo e mais descontente ainda com ela; a duquesa porém via com alegria aquele arrufo que sabia poder dissipar com uma palavra, um olhar, um gesto:

— Virá amanhã à noite? — perguntou. — Vou ao baile, esperá-lo-ei até as dez horas.

Montriveau passou a maior parte do dia seguinte sentado à janela do seu gabinete, ocupado em fumar uma quantidade indeterminavel de charutos. Pôde, assim, esperar a hora de vestir-se para ir ao palácio de Langeais. Faria piedade a quem quer que conhecesse o magnífico valor daquele homem vê-lo tornado tão pequeno, tão trêmulo, saber aquele pensamento, cujos raios podiam abarcar mundos, reduzido às proporções do toucador de uma loureira. Ele próprio porém se sentia tão fraco na sua felicidade que, mesmo para salvar a vida, não teria confiado o seu amor a um amigo íntimo. No pudor que se apodera do homem que ama, não há sempre um pouco de vergonha e não será a sua pequenez que constitui o orgulho da mulher? Não será, enfim, por uma multidão de motivos desse gênero, que as mulheres não confessam, que são levadas quase todas a trair em primeiro lugar o mistério do amor, mistério de que se cansam talvez?

— Cavalheiro — disse-lhe o criado —, a senhora duquesa não pode vê-lo de momento, está fazendo a toilette e pede que a espere aqui.

Armando passeou pelo salão estudando o bom gosto dispendido nos menores detalhes. Admirou a sra. de Langeais ao admirar as coisas que dela provinham, traindo-lhe os hábitos, antes que pudesse apreender sua pessoa e suas ideias. Depois de mais ou menos uma hora, a duquesa de Langeais saiu da alcova sem fazer ruído. Montriveau, voltando-se, via-a andando com a leveza de uma sombra e estremeceu. Chegou a ele sem lhe dizer burguesmente: “Como me acha?”. Estava segura de si mesma e seu olhar fixo dizia: “Preparei-me assim para te agradar”. Só uma fada, madrinha de alguma princesa desconhecida, poderia ter disposto em torno do colo daquela criatura faceira a névoa de uma gaze cujas dobras de tons mais vivos deixavam ainda transparecer o brilho de uma pele acetinada. A duquesa estava deslumbrante. O azul-claro do vestido, cujos ornatos se repetiam nas flores do penteado, parecia pela riqueza da cor dar corpo àquelas leves formas tornadas aéreas, pois deslizando com rapidez para Armando fazia voar as duas pontas da écharpe, que lhe pendiam aos flancos, e o bravo soldado não pôde deixar de compará-la aos lindos insetos que volteiam sobre as águas, por entre as flores, com as quais parecem confundir-se.

— Eu o fiz esperar — disse com a voz que as mulheres têm para com os homens a quem desejam agradar.

— Esperaria pacientemente uma eternidade se soubesse que iria encontrar divindade tão bela quanto a senhora; mas não é um cumprimento falar-lhe de sua beleza quando só pode ser sensível à adoração. Deixe-me assim somente beijar sua écharpe.

— Ah! — disse ela, com um gesto de orgulho — Eu o estimo bastante para lhe oferecer a minha mão.

E deu-lhe a beijar a mão ainda úmida. Uma mão de mulher, no momento em que sai do banho perfumado, conserva não sei que delicada frescura, que maciez aveludada, cuja impressão cariciosa vai diretamente dos lábios à alma. E, para um homem apaixonado que tem nos sentidos tanta volúpia quanto amor possui no coração, aquele beijo, casto na aparência, pode excitar temíveis tempestades.

— Será que sempre ma estenderá assim? — perguntou humildemente o general beijando com respeito aquela mão perigosa.

— Sim; mas pararemos aí — respondeu ela, sorrindo.

Sentou-se e pareceu desajeitada ao pôr as luvas, querendo fazer a pele demasiado justa deslizar ao longo dos dedos e olhar, ao mesmo tempo, para o sr. de Montriveau, que admirava alternativamente a duquesa e a graça dos seus gestos reiterados.

— Ah! foi bom — disse ela — ter sido pontual; amo a pontualidade. Sua Majestade costuma dizer que ela é a polidez dos reis; mas, a meu ver, aqui entre nós, creio que é a mais respeitosa das lisonjas. E não é? Diga-me.

E olhou-o de novo para exprimir-lhe uma amizade enganadora e o viu mudo de felicidade e cheio de ventura por essas ninharias. Ah! A duquesa compreendia às maravilhas seu papel de mulher, sabia exaltar admiravelmente um homem à medida que ele se apequenava, recompensá-lo com ocas lisonjas a cada passo que dava para descer às pieguices do sentimentalismo.

— Não esquecerá nunca de vir às nove horas?

— Sim, mas irá todas as noites ao baile?

— Que sei eu? — respondeu levantando os ombros com um gesto infantil como que para confessar que era toda caprichos e que um apaixonado devia aceitá-la assim. — Ademais — continuou —, que lhe importa? Será o senhor quem me acompanhará.

— Esta noite — observou ele — será difícil, pois não me vesti convenientemente.

— Parece-me — respondeu ela, encarando-o com altivez — que se alguém terá de sofrer pelo senhor não estar vestido em condições, será decerto eu. Mas saiba, senhor viajante, que o homem cujo braço aceito está sempre acima da moda, ninguém o ousaria criticar. Vejo que não conhece a sociedade e gosto mais que seja assim.

E ela já o lançava nas pequenezas da sociedade, tratando de o iniciar nas vaidades de uma mulher da moda.

“Se ela quer cometer uma tolice por mim”, pensou Armando, “eu seria bem idiota se a impedisse. Ela me ama, sem dúvida, e, na certa, não despreza mais a sociedade que eu próprio; logo, vamos ao baile!”

A duquesa pensava, sem dúvida, que, ao ver o general acompanhá-la ao baile, de botas e gravata preta, pessoa alguma hesitaria em acreditá-lo apaixonadamente enamorado dela.

Feliz por ver a rainha do mundo elegante querer comprometer-se por ele, o general revelou vivacidade, conservando esperanças. Certo de agradar, discorreu sobre as suas ideias e os seus sentimentos, sem experimentar o constrangimento que, na véspera, lhe enregelara o coração. Será que aquela conversação substanciosa, animada, cheia dessas primeiras confidências tão doces de dizer como de ouvir, seduziu a sra. de Langeais, ou teria ela imaginado aquela encantadora faceirice? Fosse como fosse olhou maliciosamente para a pêndula ao soar meia-noite.

— Ah! O senhor me faz perder o baile! — exclamou exprimindo a surpresa e o despeito de se ter esquecido. Depois, justificou a troca de prazeres com um sorriso que fez saltar o coração de Armando. — Eu havia prometido à sra. de Beauséant — acrescentou. — Todos me esperam.

— Então vá.

— Não, continue — disse ela. — Fico. Suas aventuras no Oriente me encantam. Conte-me, sim, toda a sua vida. Gosto de participar dos sofrimentos de um homem de coração, porque eu os sinto, verdade!

Brincava com a écharpe, torcia-a, rasgava-a com movimentos de impaciência que pareciam denunciar um descontentamento íntimo, reflexões profundas.

— Não valemos nada — continuou. — Somos criaturas indignas, egoístas, frívolas. Não sabemos senão nos aborrecer à força de divertimentos. Nenhuma de nós compreende o seu papel na vida. Outrora, na França, as mulheres eram luzes benfeitoras, viviam para consolar os que choram, encorajar as grandes virtudes, recompensar os artistas e animar-lhes a vida com nobres pensamentos. Se a sociedade se tornou tão pequena, a culpa é nossa. O senhor nos faz odiar essa sociedade e as festas. Não, não lhe sacrifico grande coisa.

Acabou por destruir a écharpe, como uma criança que brincando com uma flor acaba por arrancar-lhe todas as pétalas; enrolou-a, jogou-a longe e pôde assim mostrar o seu pescoço de cisne. Tocou a sineta.

— Não sairei mais — disse ao criado.

Depois levantou timidamente seus grandes olhos azuis para Armando de modo a fazer-lhe aceitar, pela timidez que eles exprimiam, aquela ordem por uma confissão, por um primeiro, por um grande favor.

— Sofreu bastantes penas — disse, após uma pausa cheia de pensamentos e com o enternecimento que muitas vezes está na voz das mulheres sem estar em seu coração.

— Não — respondeu Armando. — Até hoje eu não sabia o que era a felicidade.

— Sabe então? — disse ela, baixando os olhos com um ar hipócrita e divertido.

— Para mim, sobretudo, doravante a felicidade consiste em vê-la e ouvi-la... Até então, apenas havia sofrido, e compreendo agora que posso ser infeliz.

— Basta, basta — disse ela —, já é meia-noite, respeitemos as conveniências. Não fui ao baile porque o senhor estava aqui. Não devemos dar o que falar. Adeus. Não sei o que direi, mas a enxaqueca é serviçal e não nos desmente jamais.

— Há baile amanhã?

— Acostumar-se-ia, creio. Pois bem, amanhã também iremos ao baile.

Armando saiu sentindo-se o homem mais feliz do mundo e voltou todas as noites à casa da sra. de Langeais, à hora que, por uma espécie de convenção tácita, lhe fora reservada.

Seria fastidioso e seria para uma multidão de jovens que possuem suas belas recordações uma redundância fazermos marchar esta narrativa passo a passo, tal como marcha o poema dessas conversações em segredo cujo curso avança ou se retarda à vontade de uma mulher, por uma troca de palavras, se o sentimento vai demasiado depressa, por uma queixa sobre os sentimentos, quando as palavras não correspondem mais ao que ela pensa.

Para marcar os progressos deste trabalho de Penélope,[115] talvez fosse necessário nos atermos às expressões materiais do sentimento. Assim, alguns dias após o primeiro encontro da duquesa e Armando de Montriveau, o assíduo general conquistara em plena propriedade o direito de beijar as insaciáveis mãos da amada. Por toda parte em que se via a duquesa de Langeais, via-se inevitavelmente o sr. de Montriveau, a quem algumas pessoas nomeavam por brincadeira o ordenança da duquesa. A posição de Armando já lhe granjeara invejosos, ciumentos e inimigos. A sra. de Langeais atingia a sua finalidade. O marquês se confundia entre os seus numerosos admiradores e servia-lhe para humilhar os que se gabavam de estar em suas boas graças, dando-lhe de público preferência sobre todos.

— Decididamente — dizia a sra. de Sérisy — o sr. de Montriveau é o homem a quem a duquesa mais distingue.

Quem não sabe o que quer dizer em Paris ser distinguido por uma mulher? As coisas estavam, assim, perfeitamente em regra. O que outros se compraziam em contar do general fazia-o tão temível que os jovens hábeis abdicaram tacitamente de suas pretensões sobre a duquesa e só continuaram em sua esfera para explorar a importância que ela lhes emprestava, para servirem-se do seu nome, de sua pessoa, para arranjarem-se melhor com certas potências de segunda ordem, encantadas em roubar um admirador à sra. de Langeais.

A duquesa tinha olhos muito perspicazes para que não visse essas deserções e traições das quais o seu orgulho não lhe permitia ser vítima. Sabia então, dizia o príncipe de Talleyrand, que a estimava muito, tirar um palmo de vingança com a frase de dois gumes com que farpeava tais núpcias morganáticas. Sua desdenhosa ironia não contribuía mediocremente para fazê-la temida e passar como criatura excessivamente espirituosa. Consolidava assim sua reputação de virtude divertindo-se com os segredos alheios, sem deixar que ninguém penetrasse nos seus.

Não obstante, ao cabo de dois meses de assiduidade, sentiu, no fundo d’alma, um vago temor ao ver que o sr. de Montriveau nada entendia das finezas da faceirice Faubourg-Saint-Germanesca e levava a sério as brincadeiras parisienses.

— Aquele, minha cara duquesa — dissera-lhe o velho vidama de Pamiers[116] —, é primo-irmão das águias; a senhora não o conseguirá domesticar, e ele a levará para as suas alturas, se não tiver cautela.

Na noite que se seguiu a essas palavras do astuto velhinho, nas quais a sra. de Langeais temia ver uma profecia, experimentou fazer-se odiar, mostrou-se dura, exigente, nervosa, detestável para Armando, que a desarmou com uma doçura angélica. Conhecia ela tão pouco a profunda bondade dos grandes caracteres, que acabou dominada pelas graciosas zombarias com as quais foram desde logo acolhidas suas queixas. Procurou uma querela e encontrou provas de afeição. E então persistiu.

— Em que — disse-lhe Armando — um homem que a idolatra pode desagradar-lhe?

— Não me desagradou — respondeu fazendo-se repentinamente doce e submissa —, mas por que quer comprometer-me? Não devia ser mais que um amigo para mim. Não o sabe? Desejaria ver no senhor o instinto, a delicadeza da verdadeira amizade, para não perder nem a sua estima nem os prazeres que sinto a seu lado.

— Não ser mais que seu amigo? — exclamou Montriveau, em cuja cabeça essa terrível palavra produziu choques elétricos. — Na confiança das horas suaves que me concede, adormeço e desperto em seu coração; e hoje, sem motivo, a senhora se diverte gratuitamente em matar as secretas esperanças que me fazem viver. Quer, depois de me fazer prometer tanta constância e de haver mostrado tanto horror às mulheres que só têm caprichos, dar-me a entender que, como todas as mulheres de Paris, tem paixões e não amor? Por que então me pediu a vida e por que a aceitou?

— Fui desarrazoada, meu amigo. Sim, uma mulher não tem razão em deixar-se levar a tais arrebatamentos, quando não pode nem deve recompensá-los.

— Compreendo, foi apenas levemente faceira e...

— Faceira?... Odeio a faceirice. Ser faceira, Armando, é prometer-se a muitos homens e não se dar a nenhum. Dar-se a todos é libertinagem. Isto é o que eu creio entender de nossos costumes. Mas fazer-se melancólica junto aos humoristas, alegre para os aborrecidos, política com os ambiciosos, ouvir com aparente admiração aos tagarelas, discutir assuntos de guerra com os militares, apaixonar-se pelo bem do país com os filantropos, dar a cada um a sua dose de lisonjas, isso me parece tão necessário como pôr flores nos cabelos, usar diamantes, luvas e vestidos. A conversação é a parte moral da toilette, põe-se e tira-se como um chapéu de plumas. Chama a isto faceirice? Mas nunca o tratei como trato a todo mundo. Consigo, meu amigo, sou verdadeira. Não partilhei sempre de suas ideias, e, quando convencida depois de uma discussão, não me viu toda feliz? Enfim, eu o amo, mas somente como o é permitido a uma mulher religiosa e pura. Refleti muito. Sou casada, Armando. Se o modo por que vivo com o sr. de Langeais me deixa livre o coração, as leis, as conveniências tiraram-me o direito de dispor de minha pessoa. Qualquer que seja a categoria em que esteja colocada, uma mulher desonrada se vê expulsa da sociedade, e não conheço ainda exemplo algum de homem que tenha correspondido àquilo a que então o obrigam os nossos sacrifícios. Pior que isso, a ruptura que todos preveem entre a sra. de Beauséant e o sr. d’Ajuda,[117] que, dizem, se casa com a srta. de Rochefide, prova-me que esses mesmos sacrifícios são, quase sempre, as causas do abandono dos homens. Se me amasse sinceramente, cessaria de ver-me durante algum tempo. Pelo senhor, eu me despojaria de toda vaidade; não é alguma coisa? Que não dizem de uma mulher a quem nenhum homem se prende? Ah! é sem coração, sem espírito, sem alma, sem encanto sobretudo. Oh! as faceiras nada me perdoariam, tirar-me-iam até as qualidades que lhes dói encontrar em mim. Restando-me a minha reputação, que me importa ver contestada minha superioridade pelas rivais? Elas não poderão, decerto, herdá-la. Vamos, meu amigo, dê alguma coisa a quem tanto lhe sacrifica. Venha menos frequentemente, eu não o amarei menos.

— Ah! — respondeu Armando com a profunda ironia de um coração ferido —, o amor, segundo os escrevinhadores, só se alimenta de ilusões! Nada é mais verdadeiro, vejo-o, é preciso que eu imagine ser amado. Mas, veja, há pensamentos como há feridas das quais a gente não se restabelece: a senhora era uma das minhas últimas crenças, e percebo agora que tudo é falso na terra.

Ela se pôs a sorrir.

— Sim — continuou Montriveau com voz alterada —, sua fé católica à qual me quer converter é uma mentira que os homens pregam a si próprios, a esperança é uma mentira que se apoia no futuro, o orgulho é uma mentira que nos logra a nós mesmos, a piedade, a prudência, o terror são cálculos mentirosos. Minha felicidade será, pois, também alguma mentira; devo enganar-me a mim próprio e consentir sempre em dar um luís em troca de um escudo. Se pode tão facilmente dispensar-se de me ver, se não me aceita nem por amigo nem por amante, é que não me ama! E eu, pobre louco, penso assim, sei que é assim, e amo.

— Mas, meu Deus, meu pobre Armando, está a encolerizar-se...

— A encolerizar-me?

— Sim, acredita que tudo está desfeito, quando eu só falo de prudência.

No fundo ela estava encantada com a cólera que refletiam os olhos do seu amado. Ela o atormentava naquele instante, mas também o julgava, notando-lhe as menores alterações da fisionomia. Se o general tivesse tido a infelicidade de mostrar-se generoso sem discussão, como acontece algumas vezes a certas almas cândidas, teria sido banido para sempre, acusado e reconhecido de não saber amar. A maior parte das mulheres querem sentir-se moralmente violadas. Não é uma de suas lisonjas só ceder à força? Armando, porém, não era suficientemente esperto para perceber a cilada habilmente armada pela duquesa. Os homens fortes apaixonados têm tanta infância na alma!

— Se não quer mais que conservar as aparências — disse com ingenuidade —, estou pronto a...

— Conservar as aparências?! — exclamou ela, interrompendo-o — Mas que ideia faz, então, de mim? Já lhe dei o menor direito de pensar que eu possa ser sua?

— Ah, é? De que é que falávamos então? — perguntou Montriveau.

— Mas, senhor, assusta-me. Não, perdão, obrigada — continuou num tom frio —, obrigada, Armando, advertiu-me a tempo de uma imprudência bem involuntária, acredite-o, meu amigo. Sabe sofrer, diz! Eu também saberei sofrer. Cessaremos de nos ver; e, depois, quando um e outro tivermos recuperado um pouco de calma, então sim trataremos de obter uma felicidade aprovada pelo mundo. Sou jovem, Armando; um homem sem delicadeza faria cometer muitas tolices e loucuras a uma mulher de vinte e quatro anos. Mas o senhor! O senhor será meu amigo, prometa-me.

— A mulher de vinte e quatro anos — respondeu ele — sabe calcular. — Sentou-se no divã do toucador e ficou com a cabeça apoiada nas mãos. — Ama-me, senhora? — perguntou, levantando a cabeça e mostrando-lhe uma fisionomia resoluta. — Diga, corajosamente: sim ou não.

A duquesa assustou-se mais com aquela interrogação do que com uma ameaça de morte, expediente vulgar com que pouco se atemorizam as mulheres do século xix que não mais veem os homens de espada à cinta; mas não há franzir de supercílios, movimento de pálpebras, contrações no olhar, tremores de lábios que transmitam o terror que tão vivamente, tão magneticamente exprimem?

— Ah! — disse ela —, se eu fosse livre, se...

— Eh! É só o seu marido o que a constrange? — exclamou alegremente o general andando a largos passos pelo toucador. — Minha querida Antonieta, possuo um poder mais absoluto que o do autocrata de todas as Rússias. Eu me entendo com a fatalidade; posso, socialmente falando, adiantá-la ou retardá-la segundo a minha fantasia, como se faz com um relógio. Dirigir a fatalidade, em nossa máquina política, não consiste apenas em conhecer-lhe as engrenagens? Dentro em pouco será livre, lembre-se então da sua promessa.

— Armando! — exclamou ela — Que quer dizer? Meu Deus! Acredita que eu possa ser o prêmio de um crime? Deseja a minha morte? Não tem então sombra de religião? Eu temo a Deus. Embora o sr. de Langeais me tenha dado o direito de odiá-lo, não lhe desejo mal algum.

O marquês de Montriveau, que tamborilava maquinalmente o toque de retirada no mármore da lareira, contentou-se em olhar a duquesa com um ar calmo.

— Meu amigo — continuou ela —, respeite-o. Ele não me ama, não procedeu bem para comigo, mas tenho deveres a cumprir para com ele. Para evitar as desgraças de que o ameaça, que não faria eu? Ouça — continuou após uma pausa —, não lhe falarei mais de separação, continuará a vir como até aqui, dar-lhe-ei sempre a minha fronte a beijar; se alguma vez a recusei foi por pura faceirice, na verdade. Mas entendamo-nos — disse ao vê-lo aproximar-se. — Permitirá que aumente o número dos meus perseguidores, que possa recebê-los amanhã mais que outrora; quero redobrar de leviandade e desejo tratá-lo muito mal, aparentemente, fingir uma ruptura; virá apenas um pouco menos; e depois...

Dizendo estas palavras, deixou-se tomar pela cintura, parecendo sentir, assim, nos braços de Montriveau, o prazer extraordinário que encontra a maior parte das mulheres nessa pressão em que todos os gozos do amor parecem prometidos; e desejando, sem dúvida, arrancar alguma confidência, elevou-se na ponta dos pés para levar a fronte aos lábios ardentes de Armando.

— E — acrescentou Montriveau — não falará mais de seu marido; não deve mais pensar nele.

A sra. de Langeais guardou silêncio.

— Fará, ao menos — disse ela, depois de uma pausa expressiva —, tudo o que eu quiser, sem resmungar, sem ser mau, diga, meu amigo? Não quis assustar-me? Vamos, confesse. É bom demais para conceber pensamentos criminosos. Terá então segredos que eu não conheça? Como poderá dirigir a sorte?

— No momento em que confirma o dom que me fez do seu coração, sinto-me demasiadamente feliz para bem saber o que responder. Tenho confiança em si, Antonieta; não terei nem suspeitas nem falsos ciúmes. Mas se o acaso a tornar livre, estamos unidos...

— O acaso, Armando — observou ela, fazendo um desses lindos gestos de cabeça que parecem cheios de coisas e que certas mulheres esboçam facilmente tal como uma cantora brinca com a voz —, o puro acaso — continuou. — Fique sabendo: se acontecesse, por culpa sua, alguma desgraça ao sr. de Langeais, eu nunca pertenceria ao senhor.

Separaram-se satisfeitos um com o outro. A duquesa havia feito um pacto que lhe permitia provar à sociedade, por palavras e atos, que o sr. de Montriveau não era seu amante. Quanto a este, a astuta tencionava cansá-lo, não lhe concedendo outros favores além daquelas surpresas das pequenas lutas de que ela regulava o curso à vontade. Sabia tão lindamente revogar no dia seguinte as concessões dadas na véspera, estava tão seriamente determinada a permanecer fisicamente virtuosa, que não via perigo algum nos adiantamentos que só são temíveis para as mulheres apaixonadas.

Enfim, uma duquesa separada do marido ofereceria bem pouco ao amor sacrificando-lhe um casamento anulado há muito tempo. De seu lado Montriveau, felicíssimo por ter obtido a mais vaga das promessas e por haver afastado para sempre as objeções que uma esposa costuma apoiar na fé conjugal para se recusar ao amor, aplaudia-se por ter conquistado mais um pouco de terreno. Durante algum tempo, abusou, assim, dos direitos de usufruto que tão dificilmente lhe haviam sido outorgados.

Mais criança que nunca, o homem se deixava levar a todas as infantilidades que fazem do primeiro amor a flor da vida. Tornava-se pequenino, expandindo a alma e todas as forças enganosas que lhe comunicava a paixão nas mãos daquela mulher, sobre seus cabelos louros cujos anéis macios beijava, sobre aquela fronte ardente que ele imaginava pura.

Inundada de amor, vencida pelos eflúvios magnéticos de um sentimento tão ardente, a duquesa hesitava em dar início à querela que os devia separar para sempre. Era mais mulher do que acreditava aquela criatura frágil, experimentando conciliar as exigências da religião com as vivazes emoções da vaidade, com as aparências de prazer que as parisienses adoram. Ouvia missa todos os domingos, não faltava a nenhum ofício; e à noite mergulhava nas inebriantes voluptuosidades que proporcionam os desejos sempre reprimidos.

Armando e a sra. de Langeais pareciam-se a esses faquires da Índia que se sentem recompensados de sua castidade pelas tentações que esta lhes dá. E, quem sabe?, a duquesa talvez houvesse acabado por resumir o amor nessas carícias fraternais, que pareceriam sem dúvida inocentes a todo mundo, mas às quais a audácia dos seus pensamentos emprestava excessivas depravações. Como explicar de outro modo o mistério incompreensível de suas perpétuas vacilações?

Propunha-se, todas as manhãs, fechar a porta ao marquês de Montriveau, e, todas as noites, à hora certa, deixava-se encantar por ele. Depois de uma frouxa defesa, ela se fazia menos maldosa; sua palestra tornava-se doce, untuosa; só dois amantes poderiam ser assim.

A duquesa desenvolvia seu espírito mais cintilante, suas garridices mais arrebatadoras; e, ao excitar a alma e os sentidos do seu apaixonado, ela bem que desejaria deixar-se quebrar e torcer por ele, mais tinha o seu nec plus ultra[118] de paixão, e ao chegar até aí, zangava-se sempre que ele, dominado pelo próprio impulso, tentava transpor-lhe as barreiras. Mulher alguma ousa recusar-se sem motivo ao amor, nada é mais natural que ceder a ele; mas a sra. de Langeais cercou-se logo de uma segunda linha de fortificações mais difícil de vencer que a primeira.

Evocou os terrores da religião. Nunca o mais eloquente dos oradores sacros defendeu melhor a causa de Deus; nunca as vinganças do Altíssimo foram tão bem justificadas como pela voz da duquesa. Não empregava nem frases de sermão nem recursos de retórica. Não, tinha um pathos todo seu. A mais ardente súplica de Armando respondia com um olhar inundado de lágrimas, com um gesto que pintava terrível plenitude de sentimentos; fazia-o calar pedindo misericórdia: mais uma palavra, que não queria ouvir, ela sucumbiria e a morte lhe parecia preferível a uma felicidade criminosa.

— Não é então nada desobedecer a Deus! — dizia-lhe recuperando a voz enfraquecida pelos combates interiores sobre os quais a linda comediante parecia tomar dificilmente um império passageiro. — Os homens, a terra inteira, eu lhos sacrificaria de boa mente, mas é egoísta pedindo toda a minha vida futura por um momento de prazer! Vamos! vejamos, não é feliz? — acrescentava estendendo-lhe a mão e aparecendo-lhe num négligé que oferecia, decerto, ao apaixonado, consolações nas quais sempre ele achava recompensa.

Se, para reter o homem cuja ardente paixão lhe dava emoções inusitadas, ou, por fraqueza, deixava-o roubar um beijo rápido, logo fingia medo, enrubescia e afastava Armando do seu canapé, logo que o canapé se tornava perigoso.

— Seus prazeres são pecados que eu expio, Armando; custam-me eles penitências e remorsos — exclamava.

Ao ver-se Montriveau a duas cadeiras daquela saia aristocrática, surpreendia-se a blasfemar, maldizia Deus. A duquesa então se agastava.

— Mas, meu amigo — dizia secamente —, não compreendo por que se recusa a crer em Deus, pois que é impossível crer nos homens. Cale-se, não fale mais assim, tem uma alma muito grande para que possa desposar as tolices do liberalismo, que tem a pretensão de matar a Deus.

As discussões teológicas e políticas lhe serviam de duchas para acalmar Montriveau, que não sabia volver ao amor quando ela lhe excitava a cólera, atirando-o a milhares de léguas daquele toucador nas teorias do absolutismo que ela defendia às maravilhas. Poucas mulheres aliás ousam mostrar-se democráticas; ficam então muito em contradição com o seu despotismo em matéria de sentimentos. Mas muitas vezes o general também sacudia a juba, afastava a política, rugia como um leão, batia os flancos, lançava-se sobre a presa e reaparecia terrível de amor à sua amada, incapaz de manter por muito tempo o coração e o pensamento em conflito.

Se aquela mulher se sentia picada por uma fantasia assaz excitante para comprometê-la, sabia fugir ao toucador, deixar o ar carregado de desejos, que ali respirava, para vir para o salão, onde, sentando-se ao piano, cantava as mais deliciosas árias da música moderna, enganando o amor dos sentidos, que, por vezes, não a poupava, mas ao qual tinha a força de vencer. Em tais momentos era sublime aos olhos de Armando: não fingia, era verdadeira, e o pobre amante se acreditava amado. Aquela resistência egoísta fazia com que a tomasse por uma santa e virtuosa criatura, e ele se resignava e falava de amor platônico, ele, o general de artilharia!

Depois de ter brincado muito tempo com a religião no seu interesse pessoal, a sra. de Langeais passou a usá-la no de Armando; quis reconduzi-lo aos sentimentos cristãos, recompondo o Gênio do cristianismo[119] para uso dos militares. Montriveau impacientou-se, achou o jugo pesado.

Oh! aí, por espírito de contradição, ela lhe encheu a cabeça de Deus para ver se Deus a desembaraçava do homem que perseguia seus fins com uma constância que começava a assustá-la. Ademais, tinha prazer em prolongar toda discussão que tendesse a eternizar a luta moral depois da qual viria a luta material bem mais perigosa.

Mas se a oposição feita em nome das leis do casamento representa a época civil desta guerra sentimental, esta constituiria a época religiosa e teria, como a precedente, uma crise depois da qual seu vigor deveria decrescer. Uma noite, Armando chegou, por acaso, muito cedo e encontrou o padre Gondrand, diretor espiritual da sra. de Langeais, enterrado numa poltrona junto à lareira, como quem está digerindo seu jantar e os lindos pecados da sua penitente. À vista daquele homem de tez fresca e repousada, fronte calma, boca ascética e olhar maliciosamente inquiridor, que possuía no porte verdadeira nobreza eclesiástica e já nas suas vestes o roxo episcopal, escureceu-se singularmente o rosto de Montriveau, que não saudou ninguém e permaneceu silencioso.

Fora do seu amor não faltava discernimento ao general; adivinhou assim, na troca de alguns olhares com o futuro bispo, que era aquele homem o promotor das dificuldades com que se armava contra ele o amor da duquesa.

Um ambicioso padre a embaraçar e retardar a felicidade de um homem da têmpera de um Montriveau? Esse pensamento lhe queimou as faces, crispou-lhe os dedos, fê-lo levantar-se, andar, sapatear; mas voltando ao seu lugar com a intenção de fazer escândalo, um único olhar da duquesa foi suficiente para acalmá-lo.

A sra. de Langeais, sem absolutamente se embaraçar com o negro silêncio do apaixonado, com o qual qualquer outra mulher se sentiria molestada, continuou a conversar muito espirituosamente com o padre Gondrand sobre a necessidade de restabelecer a religião no seu antigo esplendor. Melhor do que o poderia fazer, o padre explicava por que a Igreja devia ser um poder simultaneamente temporal e espiritual, e lamentava que a Câmara dos Pares não possuísse ainda a sua bancada de bispos, como a Câmara dos Lordes.

Entretanto, sabendo o padre que a quaresma lhe permitiria tomar sua represália, cedeu o lugar ao general e saiu. A duquesa mal se levantou para prestar ao confessor sua humilde reverência, tanto a intrigava a atitude de Montriveau, e logo se voltou para este.

— Que tem, meu amigo?

— Estou por aqui com o seu padre.

— Por que não tomou um livro? — disse-lhe sem cuidar ser ouvida ou não pelo padre, que fechava a porta.

Montriveau permaneceu mudo um momento, pois a duquesa acompanhara as palavras com um gesto que ainda lhes realçava a profunda impertinência.

— Minha querida Antonieta, agradeço-lhe ter dado ao amor preferência sobre a Igreja; mas por favor, permita que lhe faça uma pergunta.

— Ah! interrogue-me. Gosto disso — continuou. — Não é meu amigo? Posso mostrar-lhe o fundo do meu coração, certa de que nele só verá uma imagem.

— Fala a esse homem do nosso amor?

— Ele é o meu confessor.

— Sabe ele que eu a amo?

— Sr. de Montriveau, não pretenderá, suponho, penetrar os segredos da minha confissão.

— Assim, conhece tal homem as nossas discussões e o meu amor pela senhora...

— Um homem, senhor! Diga “Deus”.

— Deus! Deus! Devo ser o único em seu coração. Mas deixe Deus em paz onde quer que esteja, por amor dele e de mim. Senhora, não irá mais à confissão ou...

— Ou? — disse ela, sorrindo.

— Ou não virei mais aqui.

— Parta, Armando. Adeus. Adeus para sempre.

Levantou-se e se dirigiu para o toucador, sem um único olhar para Montriveau, que ficou de pé, com a mão apoiada a uma cadeira. Quanto tempo permaneceu assim, jamais ele próprio o soube. A alma tem o poder de dilatar, como o de limitar o espaço. Abriu a porta do toucador; estava às escuras. Uma voz fraca fez-se forte para dizer asperamente:

— Não chamei. Ademais, por que entrou sem ordens? Deixe-me, Suzette.

— Sofres então? — exclamou Montriveau.

— Levante-se, senhor — replicou ela fazendo soar a sineta. — Saia daqui ao menos por um momento.

— A senhora duquesa pede luz — disse ele ao criado, que entrou no toucador para acender as velas.

Ao ficarem sós os amantes, a sra. de Langeais continuou deitada no divã, muda, imóvel, absolutamente como se Montriveau não estivesse ali.

— Querida — disse este com um acento de dor e de bondade sublime —, não tenho razão. Eu não te quereria, decerto, sem religião...

— Felizmente — replicou ela sem o olhar e com voz dura — reconhece a necessidade da consciência. Eu lho agradeço em nome de Deus.

Aqui, o general, abatido pela inclemência daquela mulher que sabia tornar-se, querendo, uma estranha ou uma irmã para ele, deu, em direção à porta, um passo de desespero e ia abandoná-la para sempre sem dizer palavra. Sofria, e a duquesa ria interiormente dos sofrimentos causados por uma tortura moral bem mais cruel do que a antiga tortura judiciária. Mas o homem não era capaz de ir-se. Em todas as espécies de crises a mulher se encontra como que pejada por uma certa quantidade de palavras; e, enquanto não as diz, experimenta a sensação que a vista de uma coisa incompleta provoca. A sra. de Langeais, que não dissera ainda tudo, retomou a palavra.

— Não temos as mesmas convicções, general, sinto muito. Seria horrível para a mulher não crer numa religião que permite amar-se além da tumba. Ponho de parte os sentimentos cristãos, o senhor não os compreende. Deixe-me falar-lhe somente das conveniências. Pretende, sem ver que é preciso fazer-se algo pelo próprio partido, interditar a uma dama da Corte o tabernáculo em véspera da Páscoa? Os liberais não poderão matar, não obstante o seu desejo, o sentimento religioso. A religião será sempre uma necessidade política. Ousaria governar um povo de raciocinadores? Napoleão não o ousou e perseguiu os ideólogos. Para impedir os povos de raciocinar, é preciso impor-lhes sentimentos. Aceitemos pois a religião católica com todas as suas consequências. Se queremos que a França vá à missa, não devemos começar por lá irmos nós mesmos? A religião, Armando, é, como vê, o cimento dos princípios conservadores que permitem aos ricos viverem tranquilos. A religião se liga intimamente à propriedade. E decerto é melhor governar os povos com ideias morais do que pelo cadafalso, como nos tempos do Terror, único meio que a sua detestável revolução inventou para se fazer obedecer. O padre e o rei, é o senhor, sou eu, é a princesa minha vizinha; e, numa palavra, todos os interesses personificados das pessoas honestas. Vamos, meu amigo, não quer então ser do nosso partido, o senhor que poderia se lhe tornar o Sila,[120] se tivesse a mínima ambição? Ignoro a política; raciocino por sentimento; sei, não obstante, o suficiente para adivinhar que a sociedade seria destruída se se pusessem a todo momento suas bases em discussão.

— Se a sua Corte, se o seu governo pensam assim, causa-me piedade — disse Montriveau. — A Restauração, madame, deve dizer a si própria como Catarina de Médicis quando acreditou perdida a batalha de Dreux:[121] “Pois bem, iremos à prédica!”. Ora, 1815 é a sua batalha de Dreux. Como o trono daquele tempo, ganharam de fato, mas perderam de direito. O protestantismo político está vitorioso nos espíritos. Se não querem baixar um edito de Nantes;[122] ou se baixando-o o revogarem; se forem um dia acusados e reconhecidos de não mais desejarem a Constituição, que é apenas uma vantagem dada à manutenção dos interesses revolucionários, a revolução ressurgirá terrível e não precisará dar-lhes mais que um golpe; não será ela que há de sair da França; ela aqui é o próprio solo. Os homens se deixam matar, mas não os interesses... Eh! Meu Deus! Que nos importa a França, o trono, a legitimidade, o mundo inteiro? São coisas frívolas diante da minha felicidade. Que reinem, que sejam derribados, pouco me importa... Onde é que estou?...

— Meu amigo, está no toucador da sra. duquesa de Langeais.

— Não, nada de duquesa, nada de Langeais, estou junto de minha querida Antonieta!

— Quer fazer-me o favor de ficar onde estava? — disse ela rindo e repelindo-o, mas sem violência.

— Nunca me amou, então? — perguntou com raiva que lhe relampejou nos olhos.

— Não, meu amigo.

Aquele não equivalia a um sim.

— Sou um grande tolo — continuou ele beijando a mão da terrível rainha que retornava a ser mulher. — Antonieta — recomeçou ele, apoiando a cabeça nos seus pés —, és por demais terna e casta para contares a nossa felicidade a quem quer que seja.

— Ah! o senhor é um grande louco — disse ela levantando-se com um movimento gracioso, embora vivo.

E, sem acrescentar palavra, correu para o salão.

— Que terá ela? — perguntou o general, que não sabia adivinhar o poder da agitação que sua fronte ardente comunicara eletricamente dos pés à cabeça de sua amada.

Ao chegar, furioso, ao salão, ouviu acordes celestiais. A duquesa estava ao piano. Os cientistas e os poetas que podem ao mesmo tempo compreender e gozar sem que a reflexão perturbe os seus prazeres sentem que o alfabeto e a fraseologia musical são os instrumentos íntimos do musicista, como a madeira e o metal são os do executante. Para eles existe uma música à parte no fundo da dupla expressão dessa sensual linguagem das almas. Andiamo, mio ben[123] pode arrancar lágrimas de prazer ou fazer rir de pena, conforme a cantora. Às vezes, aqui e ali, na sociedade, uma jovem expirando sob o peso de uma dor desconhecida, um homem cuja alma vibra sob os acicates da paixão tomam um tema musical e conversam com o céu ou falam a si próprios através de uma sublime melodia qualquer, espécie de poema perdido. Ora, o general ouvia naquele momento uma dessas poesias tão desconhecidas como o pode ser a queixa solitária de um pássaro, morto sem companheira numa floresta virgem.

— Meu Deus, que está tocando? — perguntou emocionado.

— O prelúdio de uma romança chamada, creio, Rio Tejo.

— Eu não sabia o que podia ser uma música para piano — respondeu.

— Ah, meu amigo — disse-lhe, lançando-lhe pela primeira vez um olhar de mulher amorosa —, não sabe também que eu o amo, que me faz sofrer horrivelmente e que devo queixar-me sem me fazer compreender muito, pois de outro modo já seria sua... Mas o senhor não vê nada.

— E não quer fazer-me feliz!

— Armando, eu morreria de dor no dia seguinte.

O general saiu bruscamente; mas, ao encontrar-se na rua, enxugou duas lágrimas que tivera a força de reter.

A religião durou três meses. Expirando esse prazo, a duquesa, enfastiada de suas repetições, entregou Deus de pés e mãos atadas ao amante. Talvez temesse ela, à força de falar na eternidade, perpetuar o amor do general neste mundo e no outro. Para honra dessa mulher, será necessário acreditá-la virgem, mesmo de coração; de outro modo seria horroroso. Ainda bem longe da idade em que o homem e a mulher se encontram ambos muito próximos da vida futura para perderem tempo a discutir seus prazeres, ela estava, sem dúvida, não em seu primeiro amor, mas em seus primeiros gozos. Não podendo comparar o bem e o mal, não tendo passado por sofrimentos que lhe permitissem avaliar os tesouros atirados aos seus pés, brincava com eles. Desconhecendo as resplandecentes delícias da luz, ela se comprazia em permanecer nas trevas. Armando, que começava a entrever aquela bizarra situação, punha esperanças na primeira palavra da natureza. Pensava, todas as noites, ao sair da casa da sra. de Langeais, que uma mulher não teria aceitado durante sete meses as atenções de um homem e as provas de amor mais ternas e delicadas, não se teria abandonado às exigências superficiais de uma paixão, para iludi-lo no último momento, e esperava pacientemente a estação do sol, convencido de que haveria então de colher-lhe os frutos nas suas primícias.

Compreendera-lhe perfeitamente os escrúpulos de mulher casada e de religiosa. Alegrava-se mesmo com tais combates. Achava a duquesa pudica quando era apenas terrivelmente faceira; e ele não a teria desejado diferente. Gostava, assim, de vê-la levantar obstáculos; pois não triunfava deles, gradualmente? E cada triunfo não aumentava a pequena soma de familiaridades amorosas longamente defendidas, mas concedidas por ela com todas as aparências do amor? Ele, porém, saboreara tanto as ínfimas e progressivas conquistas que são o repasto dos amantes tímidos, que elas se lhe haviam tornado hábitos.

Em matéria de obstáculos, não tinha assim mais que os seus terrores a vencer, pois não via na sua felicidade outro impedimento além dos caprichos daquela que se deixava chamar Antonieta. Resolveu então exigir mais, exigir tudo. Embaraçado como um amante muito moço que não ousa acreditar na diminuição do seu ídolo, hesitou por muito tempo e conheceu as terríveis reações do coração, as vontades firmes que uma palavra aniquila, as decisões tomadas que expiram na soleira de uma porta. Desprezava-se por não ter a coragem de lhe dizer uma palavra e não a dizia. Uma noite, entretanto, através de negra melancolia apresentou a brusca exigência dos seus direitos ilegalmente legítimos. A duquesa não esperou o requisitório do seu escravo para lhe adivinhar o desejo. Um desejo de homem nunca é secreto! Não possuem todas as mulheres a ciência infusa de certas alterações da fisionomia?

— Quê? Quer deixar de ser meu amigo? — disse-lhe interrompendo-o à primeira palavra, deitando-lhe olhares embelezados por divino rubor que correu como sangue novo sob a sua tez diáfana. — Para recompensar minhas generosidades, quer desonrar-me. Reflita um pouco. Eu já refleti demais; penso constantemente em nós. Existe uma probidade feminina à qual não devemos faltar nunca, tal como os homens não devem faltar à honra. Não sei enganar. Se eu lhe pertencesse, não poderia ser de maneira alguma a mulher do sr. de Langeais. Exige o sacrifício de minha posição, de minha categoria, de minha vida a um duvidoso amor que não teve sete meses de paciência. Como! Quer roubar-me a livre disposição de mim mesma! Não, não me fale assim. Não, não diga nada. Eu não quero, eu não posso ouvi-lo.

E a sra. de Langeais tomou a cabeleira nas duas mãos para afastar para trás os tufos de anéis que lhe escaldavam a fronte e pareceu mais animada.

— O senhor vem à casa de uma fraca criatura com cálculos bem delineados, dizendo consigo: “Ela vai me falar do marido durante certo tempo, depois de Deus, depois das consequências inevitáveis do amor; mas usarei, abusarei da influência já conquistada; tornar-me-ei necessário; terei por mim os laços do hábito, os arranjos feitos para o público; enfim, quando a sociedade tiver acabado por aceitar a nossa ligação, serei o senhor dessa mulher”. Seja franco, estes são os seus pensamentos... Ah! Calcula e diz que ama, ufa! Está apaixonado, ah! eu creio! Deseja-me e me quer para amante, eis tudo. Pois bem, não, a duquesa de Langeais não descerá até lá. Que ingênuas burguesas sejam vítimas de suas falsidades, vá; eu não o serei jamais. Nada me assegura o seu amor. Fala da minha beleza; posso me tornar feia em seis meses, como a princesa minha vizinha. Está encantado com o meu espírito, com a minha graça; meu Deus, há de acostumar-se com eles como se acostumaria ao prazer. Não se habituou aos favores que tive a fraqueza de lhe conceder? Perdida, um dia não me dará outra razão da sua mudança, além das palavras decisivas: não amo mais. Nobreza, fortuna, honra, toda a duquesa de Langeais mergulhará numa esperança iludida. Terei filhos que atestarão a minha vergonha e... Mas — continuou, esboçando um gesto de impaciência — estou sendo demasiado condescendente em explicar o que sabe melhor do que eu. Vamos! Fiquemos por aqui. Sou felicíssima em poder quebrar os laços que acredita tão fortes. Há então algo de heroico em vir ao palácio de Langeais passar alguns instantes, todas as noites, junto a uma mulher cuja garrulice lhe agradou e com a qual se divertiu como com um brinquedo? Mas vários jovens presumidos aqui vêm, das três às cinco, tão regularmente como o senhor à noite, e esses são bem mais generosos. Caçoo deles, suportam muito calmamente as minhas bizarrias, minhas impertinências, e me fazem rir, enquanto o senhor, a quem concedo o mais precioso tesouro de minha alma, quer perder-me e me causa mil aborrecimentos. Cale-se, basta — disse ao vê-lo prestes a falar —, não tem nem coração nem alma nem delicadeza. Sei o que quer dizer-me. Pois bem, sim. Prefiro passar a seus olhos como uma mulher fria, insensível, sem compaixão, sem coração mesmo, a passar, aos olhos da sociedade, por uma mulher vulgar, a ser condenada às penas eternas, depois de ser condenada a seus pretendidos prazeres, que acabarão certamente por cansá-lo... O seu amor egoísta não vale tantos sacrifícios.

Estas palavras representam imperfeitamente as que pronunciou a duquesa com a prolixidade de um realejo. E pôde falar por muito tempo; o pobre Armando só opunha, como resposta àquela torrente de notas aflautadas, um silêncio cheio de horríveis pensamentos.

Pela primeira vez entrevia a faceirice daquela mulher e adivinhava, instintivamente, que o amor devotado, o amor compartilhado não calcula, não raciocina assim numa verdadeira mulher. E experimentava uma espécie de vergonha, lembrando-se de ter feito involuntariamente os cálculos cujos odiosos pensamentos lhe eram reprovados. Examinando-se com angélica boa-fé, só encontrava, de fato, egoísmo nas suas palavras, nas suas ideias, nas respostas concebidas e não expressas. Achou-se sem razão e, no seu desespero, teve ímpetos de precipitar-se pela janela. O eu o matava. Que dizer, realmente, a uma mulher que não crê no amor? “Deixe-me provar quanto a amo.” Sempre o eu.

Montriveau não sabia, como em tais circunstâncias o sabem os heróis de toucador, imitar o rude lógico, a caminhar diante dos pirronistas[124] que negavam o movimento. Àquele homem audacioso faltava, precisamente, a audácia habitual nos amantes que conhecem as fórmulas da álgebra feminina. Se tantas mulheres, mesmo as mais virtuosas, são presas das pessoas hábeis no amor, às quais o vulgo dá um nome pouco lisonjeiro, talvez seja porque eles são grandes experimentadores, e porque o amor quer, não obstante sua deliciosa poesia de sentimento, um pouco mais de geometria do que se imagina. Ora, a duquesa e Montriveau pareciam-se nesse ponto, pois eram igualmente inexperientes no amor.

Ela conhecia-lhe muito pouco a teoria e ignorava-lhe a prática, nada sentia e refletia sobre tudo. Montriveau conhecia pouco a prática, ignorava a teoria e sentia demais para refletir. Ambos sofriam pois a infelicidade dessa situação bizarra.

Naquele momento supremo, as miríades de pensamentos do homem poderiam se resumir neste: “Deixe-se possuir”, frase horrivelmente egoísta para uma mulher a quem essas palavras não traziam lembrança alguma e não revelavam nenhuma imagem. Não obstante, era preciso responder. E, embora tivesse o sangue açoitado por frases em forma de flechas, bem agudas, bem frias, bem aceradas para atirar-lhe uma a uma, Montriveau tinha de esconder a própria cólera, para não perder tudo por uma extravagância.

— Senhora duquesa, desespero-me por não ter Deus inventado para a mulher outro modo de confirmar o dom de seu coração senão acrescentando-lhe o de sua pessoa. O alto preço em que a estimo mostra-me que não devo avaliá-la em menos. Se me concede sua alma e todos os seus sentimentos, como me afirma, que importa o resto? Ademais, se minha felicidade lhe é tão penoso sacrifício, não falemos mais dela. Perdoará apenas a um homem de coração o sentimento de humilhação ao ver-se tomado por um fraldiqueiro.

O tom da última frase teria, talvez, assustado a outras mulheres; mas, quando uma dessas porta-saias se põe acima de tudo, deixando-se divinizar, nenhum poder terreno sabe ser orgulhoso como ela.

— Senhor marquês, eu me desespero por Deus não ter inventado para o homem modo mais nobre de confirmar o dom do seu coração que a manifestação de desejos prodigiosamente vulgares. Se ao darmos nossa pessoa nos tornamos escravas, o homem a nada se obriga ao nos aceitar. Quem me garante ser sempre amada? O amor que eu empregasse a cada instante, para melhor o prender, seria talvez uma das razões para ser abandonada. Não quero tornar-me uma segunda edição da sra. de Beauséant. Sabe-se nunca o que vos retém junto a nós? Nossa constante frieza é o segredo da constante paixão de alguns dentre vós; para outros é preciso um devotamento perpétuo, uma adoração de todos os momentos; a estes a doçura, àqueles o despotismo. Mulher alguma pôde ainda decifrar os vossos corações.

Houve uma pausa depois da qual ela mudou de tom.

— Enfim, meu amigo, não pode impedir uma mulher de estremecer a esta pergunta: “Serei sempre amada?”. Por duras que sejam, as minhas palavras são ditadas pelo temor de o perder. Meu Deus! Não sou eu, meu caro, quem fala; é a razão: e como se encontra ela numa criatura tão louca como eu? Na verdade não sei.

Ouvir esta resposta começada com a mais acerba ironia e terminada com os acentos mais melodiosos de que uma mulher já se serviu para pintar o amor em toda a sua ingenuidade não era ir, num momento, do martírio ao céu? Montriveau empalideceu e, pela primeira vez na vida, caiu aos pés de uma mulher. Beijou-lhe a barra do vestido, os pés, os joelhos; mas, para honra do Faubourg Saint-Germain, é necessário que não se revelem os mistérios de seus toucadores, onde se queria tudo do amor, menos o que pudesse provar amor.

— Antonieta querida — exclamou Montriveau no delírio em que o mergulhara o abandono da duquesa que se acreditou generosa em se deixar adorar —, sim, tens razão, não quero que conserves dúvidas. Neste momento eu também temo ser abandonado pelo anjo de minha vida e desejaria inventar para nós laços indissolúveis.

— Ah! — disse ela baixinho —, tu vês, eu tinha razão.

— Deixa-me concluir — continuou Armando —, vou numa só palavra dissipar todos os teus temores. Ouve, se eu te abandonasse, morreria mil mortes. Sê toda minha, dar-te-ei o direito de matar-me sem te trair. Escreverei eu próprio uma carta na qual declararei certos motivos que me constrangiriam a matar-me; porei nela, enfim, minhas últimas disposições. Possuirás esse testamento que legitimará minha morte e poderás assim vingar-te sem nada teres a temer nem de Deus nem dos homens.

— Tenho lá necessidade de tal carta? Se eu houvesse perdido o teu amor, que faria da vida? Se eu te quisesse matar, não saberia seguir-te? Não; agradeço-te a ideia, mas não quero a carta. Pois não poderia eu crer que me serias fiel apenas por medo e o perigo da infidelidade não poderia ser um atrativo para quem entrega assim a sua vida? Armando, o que eu peço é apenas difícil de fazer.

— E que é que queres?

— Tua obediência e minha liberdade.

— Meu Deus — exclamou ele —, sou uma criança.

— Uma criança voluntariosa e mimada demais — disse ela acariciando a espessa cabeleira daquela cabeça que conservava entre os joelhos. — Oh! Sim, bem mais amado do que pensa e entretanto cada vez mais desobediente. Por que não ficar assim? Por que não sacrificar desejos que me ofendem? Por que não aceitar aquilo que concedo, se é tudo o que eu posso honestamente outorgar? Não é feliz?

— Sim! sim — disse ele —, sou feliz quando não tenho dúvidas. Antonieta, no amor, duvidar não é morrer?

E ele se mostrou de logo o que era e o que são todos os homens sob o ardor dos desejos, eloquente, insinuante. Depois de haver saboreado os prazeres permitidos sem dúvida por um secreto e jesuítico ucasse, a duquesa experimentou aquelas emoções cerebrais cujo hábito lhe tornara o amor de Armando tão necessário quanto lhe eram a sociedade, o baile e a ópera. Ver-se adorada por um homem cuja superioridade, cujo caráter inspiravam medo, fazer dele uma criança, brincar, como Popeia,[125] com um Nero; muitas mulheres, como as esposas de Henrique viii,[126] pagaram com todo o sangue de suas veias essa perigosa felicidade. E, pressentimento bizarro!, entregando-lhe os lindos cabelos nitidamente louros, nos quais ele gostava de mergulhar os dedos, sentindo a mão pequena daquele homem verdadeiramente grande a acariciá-la, brincando ela própria com os tufos negros da sua cabeleira, naquele toucador onde reinava, a duquesa dizia consigo: “Este homem é capaz de matar-me, se perceber que me divirto com ele”.

O marquês de Montriveau ficou até as duas horas da madrugada junto da amada, que, desde então, não lhe pareceu nem duquesa nem uma Navarreins: Antonieta havia levado o disfarce até parecer mulher. Durante aquela deliciosa noitada, o mais doce prefácio que jamais uma parisiense traçara àquilo que a sociedade chama uma falta, foi permitido ao general nela ver, não obstante as denguices do fingido pudor, toda a beleza de uma mocinha. Pôde ele assim pensar, com alguma razão, que suas tantas questiúnculas caprichosas formavam os véus de que se revestia uma alma celestial, e que seria necessário levantá-los um a um, como aos que envolviam a sua adorável pessoa. A duquesa foi para ele a mais simples, a mais ingênua das amantes e ele achou-a a mulher dos seus sonhos.

Partiu felicíssimo por tê-la levado a lhe dar tantas provas de amor que lhe parecia impossível não ser dali em diante para ela um secreto esposo cuja escolha era aprovada por Deus. Com esse pensamento, com a candura dos que sentem todas as obrigações do amor saboreando-lhe os prazeres, Armando voltou para casa, lentamente. Seguiu pelo cais para ver o maior espaço possível de céu como que desejando alargar o firmamento e a natureza por se encontrar com o coração inflado. Seus pulmões lhe pareciam inspirar mais ar que na véspera. Caminhando, ele se interrogava e prometia a si mesmo amar tão religiosamente aquela mulher, que ela pudesse encontrar todos os dias uma absolvição de suas faltas sociais numa felicidade constante. Doces agitações de uma vida plena!

Os homens que têm forças bastantes para colorir a alma de um sentimento único sentem infinitos gozos ao contemplar, de relance, uma vida invariavelmente ardente, tal como certos religiosos podem contemplar a luz divina em seus êxtases. Sem a crença na sua perpetuidade, o amor nada seria; a constância o engrandece. Foi assim que, deixando-se avassalar por sua felicidade, Montriveau compreendeu a paixão.

“Somos um do outro para sempre!” Este pensamento era para ele um talismã que realizava todas as aspirações da sua vida. Não indagava da possibilidade de a duquesa mudar, nem se o amor duraria; não, tinha fé, uma das virtudes sem as quais não há vida futura cristã, mas que é talvez mais necessária ainda à sociedade. Pela primeira vez concebia a vida pelos sentimentos, ele que não havia vivido senão pela ação mais exorbitante das forças humanas, o devotamento quase material do soldado.

No dia seguinte o sr. de Montriveau dirigiu-se cedo ao Faubourg Saint-Germain. Tinha uma reunião numa casa vizinha do palácio de Langeais, para onde, concluídos os negócios, se encaminhou como que para a própria casa.

O general ia então na companhia de um homem pelo qual parecia sentir certa aversão ao encontrá-lo nos salões. Era ele o marquês de Ronquerolles,[127] cuja reputação se tornara grande nos toucadores de Paris, homem de espírito, de talento, homem de coragem, sobretudo, e que ditava leis a toda a mocidade de Paris; um gentil-homem cujos êxitos e experiência eram igualmente invejados e ao qual não faltava nem a fortuna nem o bom nascimento, que acrescentam em Paris tanto lustro às qualidades das criaturas em moda.

— Aonde vais? — perguntou o sr. de Ronquerolles a Montriveau.

— À casa da sra. de Langeais. Ah! é verdade, esquecia que te deixaste prender por seu visco. Perdes junto dela um amor que podias bem melhor empregar alhures. Eu poderia indicar-te de momento dez mulheres que valem mil vezes mais que essa cortesã titulada que faz com a cabeça o que outras mulheres mais francas fazem...

— Que dizes, meu caro? — interrompeu Armando. — A duquesa é um anjo de candura.


Ronquerolles desatou a rir.

— Já que chegamos aí, meu caro, devo esclarecer-te. Uma só palavra! Entre nós, ela não terá consequências. A duquesa te pertence? Nesse caso nada tenho a dizer. Vamos, faze-me esta confidência. Trata-se de não perderes o teu tempo, pretendendo enxertar tua bela alma numa natureza ingrata que fará abortar as esperanças da tua cultura.

Depois de Armando ter feito ingenuamente um relato da situação no qual mencionou minuciosamente os direitos que havia tão penosamente obtido, Ronquerolles explodiu num frouxo de riso tão cruel que a qualquer outro teria custado a vida. Mas ao ver de que modo esses dois seres se olhavam e se falavam, sozinhos junto a um muro, tão longe dos homens como poderiam estar no meio de um deserto, era fácil presumir que uma amizade sem limites os unia e que nenhum interesse humano os poderia indispor.

— Meu caro Armando, por que não me disseste que te enredavas com a duquesa? Ter-te-ia dado alguns conselhos que te haveriam permitido levar a cabo essa intriga. Aprende que as mulheres do nosso bairro gostam, como todas as outras, de se banharem no amor; mas querem possuir sem ser possuídas. Elas transigiram com a natureza. A jurisprudência da paróquia lhes permite quase tudo, menos o pecado positivo. As gulodices com que te regala tua linda duquesa são pecados veniais de que ela se lava nas águas da penitência. Mas, se tiveres a impertinência de querer seriamente o grande pecado mortal ao qual deves naturalmente dar a mais alta importância, verás com que profundo desdém a porta do toucador e do palácio te serão incontinente fechadas. A terna Antonieta esquecerá logo tudo, serás menos que zero para ela. Teus beijos, meu caro amigo, seriam apagados com a indiferença que uma mulher emprega nas coisas de sua toilette. A duquesa passaria uma esponja nas faces para tirá-los como faz para tirar-lhes o rouge. Conhecemos bem essa espécie de mulheres, a parisiense pura. Já viste nas ruas uma costureirinha andando a passos miúdos? Sua cabeça vale uma tela: lindo chapéu, faces frescas, cabelos garridos, sorriso fino. O resto é simplesmente descuidado. Não é bem esse o retrato? Eis aí a parisiense: ela sabe que só a cabeça será vista; para a cabeça pois todos os cuidados, os enfeites, as vaidades. Pois bem, tua duquesa é toda cabeça, não sente senão pela cabeça, tem um coração na cabeça, uma voz na cabeça, é apetitosa pela cabeça. Costumamos chamar essa pobre coisa de uma Laís[128] intelectual. Brinca contigo como uma criança. Se duvidas, podes ter a prova esta tarde, esta manhã, agora mesmo. Sobe até lá, experimenta pedir, exigir imperiosamente o que te recusa; ainda mesmo que te comportes como o falecido marechal de Richelieu,[129] será indeferido.

Armando estava aniquilado.

— Será que a desejas a ponto de te haveres tornado tolo?

— Quero-a a qualquer preço — exclamou Montriveau, desesperado.

— Pois bem, ouve. Sê tão implacável quanto ela, trata de a humilhar, de espicaçar a sua vaidade; de interessar-lhe não o coração, não a alma, mas os nervos e a linfa dessa mulher ao mesmo tempo nervosa e linfática. Se conseguires despertar-lhe um desejo, estarás salvo. Mas põe de lado tuas belas ideias de criança. Se cederes tendo-a presa em tuas garras de águia, se recuares, se uma das tuas sobrancelhas mover-se, se ela puder pensar ainda em dominar-te, deslizará de tuas unhas como um peixe e escapará para nunca mais se deixar prender. Sê inflexível como a lei. Não tenhas mais piedade que o carrasco. Bate. Quando tiveres batido, bate ainda. Bate sempre como se manejasses o cnute. As duquesas são duras, meu caro Armando, e certas naturezas de mulher só se enternecem sob os golpes; é o sofrimento que lhes empresta coração, e é obra de caridade bater-lhes. Bate-lhe pois sem cessar. Ah! quando a dor houver abrandado aqueles nervos, amolecido aquelas fibras que acreditas doces e suaves, fará bater-lhe o coração seco, que, com esse jogo, retomará elasticidade; quando o cérebro houver cedido, a paixão talvez penetre nas molas metálicas daquela máquina de lágrimas, de boas maneiras, de desmaio, de frases derretidas; e verás o mais magnífico dos incêndios se todavia a lareira pegar fogo. Aquele sistema de aço feminino terá o rubro do ferro na forja!, um calor mais durável que qualquer outro e tal incandescência talvez se torne amor. Não obstante, duvido. E a duquesa valerá tantas penas? Aqui entre nós, bem que ela precisaria ser previamente formada por um homem como eu: eu a faria uma mulher encantadora; ela é de raça; entretanto, vocês dois permanecerão sempre no abc do amor. Mas tu amas e não partilharás neste momento minhas ideias sobre o assunto... Sejam felizes, meus filhos — acrescentou Ronquerolles, depois de uma pausa. — Pronunciei-me em favor das mulheres fáceis; ao menos são ternas, amam ao natural e não põem condimentos sociais. Meu pobre rapaz, uma mulher que negaceia, que só quer inspirar amor? Eh, mas é preciso ter-se uma como a um cavalo de luxo; ver no combate do confessionário contra o canapé, do branco contra o preto, da rainha contra o bispo, dos escrúpulos contra o prazer, uma partida de xadrez muito divertida. Um homem, por menos esperto que seja, sabendo o jogo, dá o mate em três lances, facilmente. Se eu assediasse uma mulher desse gênero, teria por alvo...

E disse uma palavra ao ouvido de Armando, deixando-o bruscamente para não ouvir a resposta.

Quanto a Montriveau, saltou de um ímpeto para o jardim do palácio de Langeais, subiu aos aposentos da duquesa e, sem se anunciar, penetrou em sua alcova.

— Mas isto não se faz, Armando — observou ela, fechando às pressas o penhoar —, o senhor é um homem abominável. Vamos, deixe-me, peço-lhe. Saia, saia logo. Espere-me no salão. Vá.

— Anjo querido — disse-lhe ele —, um esposo não tem então privilégio algum?

— É coisa de detestável mau gosto, senhor, seja para um esposo, seja para um marido, surpreender assim a sua mulher.

Armando chegou-se a ela, tomou-a, apertou-a nos braços:

— Perdoa, minha querida Antonieta, mas mil suspeitas cruéis me trabalham o coração.

— Suspeitas, ora essa!

— Suposições quase justificadas. Se me amasses, estarias assim a ralhar-me? Não estarias contente de me ver? Não terias palpitante o coração? Pois eu, que não sou mulher, experimento íntimo sobressalto ao som de tua voz. O desejo de te saltar ao pescoço, quantas vezes me assaltou num baile.

— Ah! se você suspeita por eu não lhe ter saltado ao pescoço diante de todo o mundo, acho que serei suspeitada toda a vida; mas, perto do senhor, Otelo não passa de uma criança!

— Ali! — exclamou ele —, não sou amado.

— Pelo menos, neste momento, convenhamos que não é amável.

— Então ainda estou por te agradar?

— Ah! penso que sim. Vamos — acrescentou com um arzinho imperativo —, saia, deixe-me. Não sou o senhor: desejo agradar-lhe sempre.

Jamais mulher alguma soube, melhor que a sra. de Langeais, pôr tanta graça numa impertinência; e não será isto duplicar-lhe o efeito? Não é para tornar furioso o homem mais frio? Naquele instante, seus olhos, o som de sua voz, sua atitude demonstraram a perfeita liberdade que nunca se encontra na mulher amorosa em presença daquele cuja simples vista deveria fazê-la palpitar. Posto de sobreaviso pelo marquês de Ronquerolles e ajudado pela rápida introspecção de que momentaneamente são dotadas pela paixão as criaturas menos sagazes, mas que se encontra tão completa nos homens fortes, Armando adivinhou a terrível verdade que o desembaraço da duquesa revelava e o seu coração inflou numa borrasca como um lago prestes a extravasar.

— Se falavas sinceramente ontem, querida Antonieta, sê minha — exclamou. — Eu a quero...

— Em primeiro lugar — respondeu, repelindo-o com força e calma ao vê-lo adiantar-se —, não me comprometa. Minha criada poderá ouvi-lo. Respeite-me, peço-lhe. Sua familiaridade é muito interessante à noite, em meu toucador; mas aqui, absolutamente. Depois, o que significa seu “eu quero”? Ninguém me disse ainda tal frase. A mim ela me parece ridícula, perfeitamente ridícula.

— Não cederás nada nesse ponto?

— Oh! Chama de ponto a livre disposição de nós mesmos: um ponto capital, com efeito; e me permitirá ser, nesse ponto, completamente senhora de mim.

— E se, confiando em tuas promessas, eu o exigisse?

— Ah! O senhor me provaria que fui tola em fazer-lhe a menor promessa, mas não serei tão tola que a sustente e lhe pedirei que me deixe em paz.

Montriveau empalideceu, quis avançar; a duquesa tocou a sineta e, ao aparecer a criada de quarto, disse, a sorrir, com graça escarninha:

— Tenha a bondade de volver quando eu estiver apresentável.

Armando de Montriveau sentiu então a dureza daquela mulher fria e cortante como o aço, e seu esmagador desprezo. Num momento quebrara ela os laços que só eram fortes para o apaixonado. Lera a duquesa na fronte de Armando as exigências secretas daquela visita e julgara chegada a oportunidade de fazer sentir àquele soldado imperial que as duquesas bem podiam se prestar ao amor, mas a ele não se entregavam, e que sua conquista era bem mais difícil que a da Europa.

— Senhora — disse Armando —, não tenho tempo de esperar. Sou, a senhora o disse, uma criança mimada. Quando eu quiser seriamente aquilo de que há pouco falávamos, eu o terei.

— O senhor o terá? — disse ela com ar altivo em que se misturava a surpresa.

— Eu o terei.

— É? Dar-me-á muito prazer em exigi-lo. Pela curiosidade do fato, ficarei encantada em ver como o senhor se arranjaria...

— Estou satisfeito — respondeu Montriveau, rindo de modo a atemorizar a duquesa — por ter dado um interesse à sua vida. Permita que venha buscá-la para o baile desta noite?

— Mil agradecimentos. O sr. de Marsay o antecedeu, prometi.

Montriveau saudou gravemente e retirou-se.

“Ronquerolles tem razão”, pensou, “vamos agora jogar uma partida de xadrez.”

A partir daí escondeu suas emoções sob completa calma. Homem algum é suficientemente forte para poder suportar as mutações que fazem a alma passar rapidamente do maior bem a desgraças supremas. Não sentira ele a vida feliz senão para melhor avaliar o vazio de sua existência anterior! Foi uma tempestade horrível; mas sabia sofrer e recebeu o assalto dos pensamentos tumultuosos como um rochedo de granito recebe as vagas do oceano enfurecido.

“Nada pude dizer-lhe; em sua presença falta-me espírito. Ela não sabe até que ponto é vil e desprezível. Ninguém ousou ainda pôr essa criatura em face dela mesma. Sem dúvida iludiu muitos homens, mas a todos vingarei.”

Pela primeira vez decerto, num coração de homem, o amor e a vingança se misturaram tão completamente que seria impossível ao próprio Montriveau saber qual ganharia, se o amor, se a vingança. Foi naquela noite ao baile onde devia estar a duquesa de Langeais e quase desesperou de aguardar aquela mulher à qual se viu tentado a atribuir algo de demoníaco: mostrou-se para ele graciosa e cheia de amáveis sorrisos, não desejando, sem dúvida, deixar parecer à sociedade que se comprometera com o sr. de Montriveau.

Um arrufo mútuo trairia o amor. Mas nada mudando em suas maneiras, enquanto o marquês se mostrava sombrio e magoado, não era prova de que Armando nada obtivera dela? A sociedade sabe bem adivinhar a infelicidade dos homens desdenhados e não a confunde absolutamente com as indisposições que certas mulheres ordenam que os amantes finjam na esperança de esconder o mútuo amor.

Todos mofavam de Montriveau, que, não tendo consultado seu cornaca, permaneceu pensativo e sofredor, quando o sr. de Ronquerolles lhe teria prescrito possivelmente que procurasse comprometer a duquesa, respondendo aos seus falsos gestos de amizade com demonstrações apaixonadas. Armando de Montriveau deixou o baile, com horror da natureza humana e mal acreditando ainda em tão completa perversidade.

“Se não há cadafalsos para semelhantes crimes”, dizia-se, contemplando o assoalho luminoso dos salões em que dançavam, falavam e riam as mulheres mais sedutoras de Paris, “eu te pegarei pela nuca, duquesa, e te farei experimentar um ferro mais afiado que o da guilhotina. Aço contra aço, veremos que coração será mais cortante”.

III — A MULHER VERDADEIRA

Durante uma semana, mais ou menos, a sra. de Langeais esperou rever o marquês de Montriveau, mas Armando se contentou em mandar todas as manhãs seu cartão ao palácio de Langeais. Cada vez que o cartão era entregue à duquesa, ela não podia deixar de estremecer, assaltada por pensamentos sinistros mas indistintos como um pressentimento de desgraça. Ao ler-lhe o nome, parecia-lhe algumas vezes sentir nos cabelos a mão poderosa daquele homem implacável; de outras, prognosticava-lhe ele vinganças que seu móvel espírito representava atrozes. Ela o havia estudado muito bem para que não o temesse. Seria assassinada? Aquele homem de pescoço de touro iria estripá-la, lançando-a para trás por cima da cabeça? Pisá-la-ia aos pés? Quando, onde, como a assaltaria? Fá-la-ia sofrer muito, e que gênero de suplício imaginaria impor-lhe? Arrependia-se. A certas horas, se ele aparecesse, ter-se-ia atirado a seus braços com completo abandono. Todas as noites, ao adormecer, revia a fisionomia de Montriveau sob aspecto diferente. Às vezes o seu sorriso amargo; de outras, a contração jupiteriana de suas sobrancelhas, o seu olhar de leão, ou qualquer altivo movimento de ombros, que o faziam parecer terrível. Noutro dia o cartão se lhe afigurava coberto de sangue. Vivia agitada por aquele nome, mais do que o fora pelo amante fogoso, obstinado e exigente. E suas apreensões tornavam-se maiores no silêncio; via-se obrigada a preparar-se, sem auxílio alheio, para uma luta horrorosa de que lhe não era permitido falar.

Aquela alma altaneira e dura era mais sensível às titilações do ódio do que, antes, às carícias do amor. Ah! se o general tivesse podido vê-la nos momentos em que se acumulavam as rugas entre as suas sobrancelhas, mergulhada em amargas reflexões, no fundo daquele toucador onde saboreara tantas alegrias, talvez tivesse concebido grandes esperanças. Não é a altivez um dos sentimentos humanos que só podem gerar nobres ações? Embora a sra. de Langeais guardasse o segredo de seus pensamentos, era permitido supor que o sr. de Montriveau não lhe fosse mais indiferente. Não é uma imensa conquista para o homem ocupar o pensamento de uma mulher? Nela, necessariamente, deveria haver então um progresso, num sentido ou noutro.

Ponde uma criatura feminina sob as patas de um cavalo furioso, em face de qualquer animal terrível; cairá, certamente, de joelhos e esperará a morte; mas se o animal amansar, se não a matar de todo, ela amará o cavalo, o leão, o touro, falar-lhe-á calmamente. A duquesa se sentia sob as patas do leão: tremia, mas não odiava. As duas criaturas, tão singularmente colocadas em face uma da outra, encontraram-se por três vezes, durante aquela semana, na sociedade.

Em todas elas, a duquesa recebera de Armando, como resposta a perguntas faceiras, cumprimentos respeitosos e sorrisos cheios de ironia tão cruel que confirmavam todos os temores inspirados de manhã pelo cartão de visita. A vida não é senão aquilo que dela fazem os nossos sentimentos e os sentimentos haviam cavado abismos entre aqueles dois seres.

A condessa de Sérisy, irmã de Ronquerolles, daria, no começo da semana seguinte, um grande baile ao qual deveria comparecer a sra. de Langeais. A primeira figura que se deparou à duquesa, ao chegar, foi a de Armando. Armando a esperava desta vez, ou pelo menos ela o pensou. Trocaram um olhar. Um suor frio brotou repentinamente dos poros da mulher.

Acreditara Montriveau capaz de alguma vingança inaudita proporcionada à sua importância: tal vingança fora achada, estava próxima, aquecia-se, fervia. Os olhos do amante iludido lançavam-lhe fulgores de raio e seu rosto resplandecia de ódio feliz. Também, malgrado a vontade que tinha a duquesa de exprimir frieza e impertinência, seu olhar se conservou tristonho. Foi colocar-se junto da condessa de Sérisy, que não pôde conter-se:

— Que tens, minha querida Antonieta? Estás de fazer medo.

— Uma contradança me fará bem — respondeu dando a mão a um jovem que se dirigia a ela.

A sra. de Langeais pôs-se a valsar com uma espécie de furor e arrebatamento que redobrou a gravidade do olhar de Montriveau, que permanecia de pé, à frente dos que se entretinham a ver os que dançavam. Cada vez que a amante passava diante dele, seus olhos mergulhavam naquela cabeça que rodopiava, como os de um tigre em sua presa. Terminada a valsa, foi a duquesa sentar-se ao lado da condessa sem que o marquês afastasse dela os olhos, embora palestrasse com um desconhecido.

— Senhor — dizia-lhe —, uma das coisas que mais me chocaram nessa viagem...

A duquesa era toda ouvidos.

— ... foi a frase que o guarda de Westminster pronuncia ao mostrar-nos o machado com que, dizem, um homem mascarado cortou a cabeça de Carlos i, em memória do rei que a disse a um curioso.

— Que disse ele? — perguntou a sra. de Sérisy.

— Não toque no machado — respondeu Montriveau num tom de voz em que havia ameaça.

— Na verdade, senhor marquês — disse a duquesa de Langeais —, contempla meu pescoço com ar tão melodramático, repetindo essa velha história, conhecida de quantos vão a Londres, que me parece vê-lo de machado em punho.

Estas últimas palavras foram pronunciadas a rir, embora um suor frio inundasse a duquesa.

— Mas esta história é, nesta circunstância, muito nova — respondeu ele.

— Como? Peço-lhe, por obséquio, que me explique...

— É que, madame, a senhora tocou no machado...

— Que arrebatadora profecia! — retrucou ela sorrindo, com afetada graça. — E quando deve cair a minha cabeça?

— Não desejo ver rolar sua linda cabeça, madame. Temo apenas para si uma grande desgraça. Se lhos cortassem, não lamentaria esses cabelos tão deliciosamente louros, de que tira tão bom partido?...

— Mas há pessoas às quais as mulheres gostam de fazer tais sacrifícios e às vezes até a homens que não lhes sabem desculpar um movimento de humor.

— De acordo. Então, se, repentinamente, por um processo químico, um gracejador lhe roubasse a beleza, reduzindo-a a cem anos, quando não tem para nós mais que dezoito?

— Mas, senhor — disse ela, interrompendo-o —, a varíola é a nossa batalha de Waterloo.[130] Após ela conhecemos os que nos amam de verdade.

— Não lamentaria esse adorável rosto que...

— Ah! muitíssimo; não porém por mim, mas por aquele de quem era ele a alegria. Entretanto, se eu fosse sinceramente amada, sempre, muito, que me importaria a beleza? Que dizes, Clara?

— Que é uma especulação perigosa — respondeu a sra. de Sérisy.

— Poder-se-ia perguntar a sua majestade o rei dos feiticeiros — continuou a sra. de Langeais — quando foi que cometi a falta de tocar no machado, eu que ainda não fui a Londres?

— Non so[131] — disse ele, deixando escapar um riso de mofa.

— E quando começará o suplício?

Montriveau tirou friamente o relógio, e verificou a hora com uma convicção realmente assustadora:

— Não findará a noite sem que lhe aconteça uma horrível desgraça...

— Não sou uma criança que se possa facilmente espavorir, ou melhor, sou uma criança que não conhece o perigo — disse a duquesa — e que vai dançar sem medo à borda do abismo.

— Estou encantado, senhora, por ver na senhora tanto caráter — retrucou ele ao vê-la tomar lugar numa quadrilha.

Não obstante seu aparente desdém pelas negras predições de Armando, a duquesa fora invadida por verdadeiro terror. A opressão moral e quase física sob que a mantinha o amante apenas cessou quando ele deixou o baile. Mas, depois de ter gozado por um momento o prazer de respirar à vontade, surpreendeu-se a ter saudades das emoções do medo, tanto a natureza feminina é ávida de sensações extremas.

Aquela saudade não era amor, mas pertencia, sem dúvida, aos sentimentos que o preparam. Depois, como se a duquesa sentisse de novo o efeito que o sr. de Montriveau lhe fazia experimentar, lembrou-se do ar de convicção com que ele vira as horas e, tomada de pavor, retirou-se.

Era, mais ou menos, meia-noite. Aquele, dentre os seus criados, que a esperava ajudou-a a pôr a peliça e caminhou à sua frente para fazer avançar a carruagem; tomando nela assento, caiu numa cisma muito natural, provocada pela predição do sr. de Montriveau. Chegada ao seu pátio, entrou num vestíbulo quase igual ao de seu palácio, mas, de repente, não reconheceu a sua escadaria; e, no momento em que se voltava para chamar os criados, vários homens a assaltaram rapidamente, meteram-lhe um lenço na boca, amarraram-lhe as mãos e os pés e a transportaram. Ela se pôs a gritar.

— Madame, temos ordem de matá-la, se gritar — disse-lhe um deles ao ouvido.

O pavor da duquesa foi tão grande que ela não pôde jamais compreender por onde nem como foi transportada. Quando recuperou os sentidos encontrou-se de pés e mãos atadas com cordões de seda, deitada sobre o canapé de um quarto de solteiro. Não pôde reter um grito ao encontrar os olhos de Armando de Montriveau, que, tranquilamente sentado numa poltrona e envolto no seu chambre, fumava um charuto.

— Não grite, senhora duquesa — disse ele, tirando friamente o charuto da boca —, estou com dor de cabeça. Vou, aliás, desatá-la. Mas ouça bem o que tenho a honra de dizer-lhe. — Desatou delicadamente os cordões que apertavam os pés da duquesa. — Para que serviriam seus gritos? Ninguém os pode ouvir. A senhora é muito bem-educada para fazer caretas inúteis. Se não se conservar quieta, se desejar lutar comigo, eu lhe atarei de novo pés e mãos. Creio que, tudo bem considerado, há de respeitar-se o suficiente para permanecer nesse canapé, como se estivesse em sua casa, no seu; fria ainda, se quiser... Fez-me derramar sobre esse canapé muito pranto que eu escondia a todos os olhos.

Enquanto Montriveau falava, a duquesa deitou em torno esse olhar de mulher, olhar furtivo que sabe ver tudo mesmo parecendo distraído. Gostou muito daquele quarto bastante semelhante à cela de um monge. A alma e o pensamento do homem ali pairavam. Nenhum ornamento alterava a pintura gris das paredes nuas. Por terra havia um tapete verde. Um canapé preto, uma mesa coberta de papéis, duas poltronas; a cômoda ornada com um despertador, um leito muito baixo, sobre o qual estava estendida uma colcha vermelha bordada com uma grega preta, anunciavam pelo arranjo os hábitos de uma vida reduzida à mais simples expressão. Um tríplice castiçal posto sobre a lareira lembrava, pela forma egípcia, a imensidade dos desertos pelos quais o homem errara por tanto tempo. Ao lado do leito, entre os pés deste, que enormes patas de esfinge deixavam adivinhar sob as pregas do estofo, e uma das paredes laterais da alcova, via-se uma porta oculta por um reposteiro verde com franjas vermelhas e negras, que grossas argolas fixavam a uma lança.

A porta pela qual haviam entrado os desconhecidos tinha uma guarnição semelhante, mas levantada por uma braçadeira. No último olhar que a duquesa lançou aos reposteiros para os comparar, percebeu que a porta próxima ao leito estava aberta e que clarões avermelhados produzidos na outra peça se desenhavam sob as franjas inferiores. Sua curiosidade viu-se naturalmente excitada por aquela luz triste, que apenas lhe permitiu distinguir nas trevas algumas formas bizarras; em tal momento, porém, não pensou que o perigo poderia vir-lhe dali e quis satisfazer um interesse mais ardente.

— Senhor, é indiscrição perguntar-lhe que pretende fazer de mim? — disse com impertinência e ironia ferinas.

Pensava a duquesa ter adivinhado um amor excessivo nas palavras de Montriveau. Ademais, para raptar uma mulher não é necessário adorá-la?

— Nada absolutamente, madame — respondeu soprando com graça a última baforada. — Está aqui por pouco tempo. Quero primeiro explicar-lhe o que a senhora é e o que sou eu. Quando se enrosca sobre o divã do seu toucador, não encontro palavras para as minhas ideias. Além disso, em sua casa, ao menor pensamento que lhe desagrade, puxa o cordão da sineta, grita bem alto e põe o seu amante à porta como se fosse o último dos miseráveis. Aqui, tenho o espírito livre. Aqui, ninguém pode lançar-me à porta. Aqui, será minha vítima por alguns instantes e terá a extrema bondade de ouvir-me. Nada tema. Não a raptei para lhe dirigir injúrias, para obter por violência o que não soube merecer, o que não quis outorgar-me graciosamente. Isso seria uma indignidade. A senhora, talvez, conceba a violação; eu não a concebo.

Lançou, com um movimento brusco, o charuto ao fogo.

— Madame, o fumo sem dúvida a incomoda?

Imediatamente levantou-se, tomou na lareira uma caçoula aquecida e queimou perfumes, purificando o ar. O espanto da duquesa só se podia comparar à sua humilhação. Estava em poder daquele homem e aquele homem não queria abusar do seu poder. Seus olhos, não há muito flamejantes de amor, via-os calmos e fixos como estrelas. Estremeceu. E o terror que Armando lhe inspirava aumentou por uma dessas sensações petrificantes, análogas às agitações sem movimento, sentidas nos pesadelos. Permaneceu paralisada pelo terror, acreditando ver o clarão por trás do reposteiro aumentar de intensidade sob o sopro de um fole. Repentinamente os reflexos se fizeram mais vivos e iluminaram três pessoas mascaradas. A visão horrível se desvaneceu tão rapidamente que ela a tomou por ilusão de óptica.

— Madame — continuou Armando contemplando-a com desdenhosa frieza —, um minuto, um só me bastará para atingi-la em todos os momentos de sua vida, única eternidade de que posso dispor. Não sou Deus. Ouça-me bem — disse, fazendo uma pausa para dar solenidade às palavras. — O amor corresponderá sempre aos seus anelos; a senhora tem sobre os homens um poder sem limites; mas lembre-se de que um dia chamou o amor: ele veio puro e cândido, tanto quanto o pode ser neste mundo; tão respeitoso quão violento; carinhoso como o amor de uma mulher devotada ou como o de uma mãe pelo filho; tão grande, enfim, que era uma loucura. Zombou desse amor, cometeu um crime. O direito de toda mulher é recusar-se a um amor a que não pode corresponder. O homem que ama sem fazer-se amado não deveria ser lamentado e não tem o direito de lamentar-se. Mas, senhora duquesa, atrair a si, com fingido sentimento, um infeliz privado de toda afeição, fazer-lhe entrever a ventura em toda a sua plenitude, para lha arrebatar, roubar-lhe o seu futuro de felicidade; matá-lo não apenas hoje, mas na eternidade de sua vida, envenenando-lhe todas as suas horas e todos os seus pensamentos, eis o que eu denomino um espantoso crime!

— Senhor...

— Não posso ainda permitir-lhe que me responda. Ouça-me, pois, ainda. Tenho, aliás, direitos sobre a senhora; mas não quero mais que os do juiz sobre o criminoso, a fim de despertar sua consciência. Se não tivesse mais consciência, eu não a censuraria; mas é tão jovem! Apraz-me pensar que deve sentir ainda a vida do coração. Se eu a acredito bastante depravada para cometer um crime não punido pelas leis, não a tenho por tão degradada que não compreenda o alcance de minhas palavras. Reconheço.

Naquele momento, a duquesa ouviu o ruído surdo de um fole, com o qual os desconhecidos que acabava de entrever atiçavam, sem dúvida, o fogo cujo clarão se projetou na cortina; mas o olhar fulgurante de Montriveau a obrigou a permanecer palpitante e de olhos fixos à sua frente. Qualquer que fosse a sua curiosidade, o fogo das palavras de Armando interessava mais que a voz daquele fogo misterioso.

— Madame — disse ele após uma pausa —, quando, em Paris, o carrasco deve pôr a mão num pobre assassino, ele o deita sobre uma prancha onde a lei quer que o assassino seja estendido para que lhe cortem a cabeça... Sabe, os jornais previnem disso os ricos e os pobres, a fim de avisar a uns que podem dormir tranquilos, e a outros que se cuidem para viver. Pois bem, a senhora, que é religiosa, até mesmo um pouco devota, mandaria rezar missas por tal homem: é da família; mas é do ramo mais antigo, do que pode reinar em paz, existir feliz e sem cuidados. Levado pela miséria ou pela cólera, seu irmão de galés apenas matou um homem; e a senhora? A senhora matou a felicidade de um homem, sua vida mais bela, suas crenças mais caras. O outro, muito ingenuamente, esperou sua vítima; matou-a a contragosto, de medo; mas a senhora?... A senhora acumulou todas as atrocidades da fraqueza contra a força inocente; amansou o coração de sua vítima para melhor o devorar; cevou-o de carícias, não omitindo nenhuma das que o podiam fazer supor, sonhar, desejar as delícias do amor. Pediu-lhe mil sacrifícios para recusá-los todos. Fez-lhe ver bem a luz antes de lhe vazar os olhos. Admirável coragem! Tais infâmias são um luxo que não pode ser compreendido por essas burguesas de que zomba. Elas sabem dar-se e perdoar; sabem amar e sofrer. Fazem-nos pequenos pela grandeza de sua dedicação. À medida que se sobe na sociedade, encontra-se mais lama do que a que havia embaixo; é apenas mais dura e dourada. Sim, para encontrar-se a perfeição na ignomínia, é preciso uma boa educação, um grande nome, uma mulher bonita, uma duquesa. Para cair abaixo de tudo é preciso estar acima de tudo. Digo-lhe mal o que penso, sofro ainda demais pelas feridas que me fez; mas não pense que me lamento! Não. Minhas palavras não exprimem esperança pessoal alguma, não contêm nenhuma amargura; saiba, madame, e bem, que eu a perdoo e este perdão é tão completo que não lamentará ter vindo buscá-lo contra a vontade... Apenas poderia abusar de outros corações tão jovens como o meu e devo poupar outras dores. Inspirou-me assim um pensamento de justiça. Expie sua culpa aqui na terra, Deus talvez a perdoe; são os meus votos; mas Ele é implacável, e, antes, a castigará.

A essas palavras os olhos da mulher abatida, desfeita, se encheram de lágrimas.

— Por que chora? Permaneça fiel à sua natureza. Não contemplou sem emoção as torturas do coração que dilacerava? Basta, senhora, console-se. Eu não posso mais sofrer. Outros lhe dirão que a senhora lhes deu a vida, eu só posso dizer, com delícia, que me deu o nada. Talvez adivinhe que já não me pertenço, que devo viver para os meus amigos, que terei de sofrer assim a gelidez da morte e os pesares da vida ao mesmo tempo. Teria tanta bondade? Seria como os tigres do deserto que rasgam a chaga para depois lambê-la?

A duquesa fundia-se em lágrimas.

— Poupe-me seu pranto, senhora. Se eu nele acreditasse seria apenas para desconfiar. É ou não é um dos seus artifícios? Depois dos tantos que empregou, como pensar que possa haver nele algo de sincero? Nada que me venha da senhora tem mais o poder de comover-me. E está dito tudo.

A sra. de Langeais levantou-se com um movimento cheio ao mesmo tempo de nobreza e humildade.

— Tem o direito de me tratar duramente — disse estendendo ao marquês uma mão que ele não tomou. — Suas palavras não são suficientemente duras e eu mereço esta punição.

— Eu puni-la, senhora! Mas punir não é amar? Não espere de mim qualquer coisa que se pareça com um sentimento. Poderia fazer-me, em causa própria, acusador e juiz, promotor e carrasco; mas não. Cumprirei daqui a pouco um dever e não absolutamente um desejo de vingança. A mais cruel das vinganças é, a meu ver, o desprezo de uma vingança possível. E quem sabe? Serei talvez o ministro de seus prazeres. Doravante, vestindo elegantemente a triste libré com que a sociedade reveste os criminosos, talvez seja forçada a ter a sua probidade. E, então, há de amar!

A duquesa ouvia com uma submissão que não era mais representada nem faceiramente calculada; e só tomou a palavra depois de um intervalo de silêncio.

— Armando — disse —, penso que, resistindo ao amor, eu obedecia a todos os pudores da mulher, e não seria do senhor que esperaria tais recriminações. Arma-se de todas as minhas fraquezas para transformá-las em crimes. Então não imaginou que eu pudesse ser levada além dos meus deveres, pelas curiosidades todas do amor, e no dia seguinte me visse aflita e desolada por ter ido longe demais? Ai de mim! Era pecar por ignorância. E havia, juro-lhe, tanta boa-fé em meus erros como nos meus remorsos. Minhas durezas traíam mais amor que as minhas complacências. Além disto, de que se queixa? O dom do meu coração não lhe bastou, exigiu brutalmente minha pessoa...

— Brutalmente! — exclamou o sr. de Montriveau. Mas pensou consigo mesmo: “Se me deixo levar à disputa de palavras, estou perdido”.

— Sim, chegou à minha casa como à de uma dessas mulheres de má fama, sem respeito, sem nenhuma das atenções do amor. Não tinha eu o direito de refletir? Pois bem! Refleti. A inconveniência da sua conduta é desculpável, era o amor o seu princípio; permita-me acreditá-lo e justificá-lo perante mim mesma. Pois bem, Armando, no próprio instante, esta noite, em que me predizia uma desgraça, eu acreditava em nossa felicidade. Sim, tinha confiança nesse caráter nobre e altivo de que me deu tantas provas... E eu me sentia toda tua — acrescentou inclinando-se para o ouvido de Montriveau. — Sim, sentia não sei que desejo de tornar feliz um homem tão violentamente castigado pela adversidade. Senhor por senhor, queria um grande homem. Quanto mais alta me sentia, mais queria descer. Confiante em ti, via uma vida inteira de amor no instante em que me mostravas a morte. A força não existe sem bondade. És, meu amigo, muito forte para te fazeres mau para uma pobre mulher que te ama. Se errei, não posso obter perdão? Não posso reparar meus erros? O arrependimento é a graça do amor e eu quero ser bem graciosa para ti. Por que só eu não poderia ter, como todas as outras mulheres, as incertezas, os temores, a timidez, que é tão natural experimentar-se quando se trata de toda nossa vida, e de laços que os homens quebram tão facilmente? Essas burguesas às quais me comparas dão-se, mas resistem. Pois bem! Eu resisti, mas eis-me aqui... Meu Deus! Ele não me ouve! — exclamou, interrompendo-se. Torceu as mãos gritando: — Mas eu te amo! Eu sou tua!

Caiu de joelhos aos pés de Armando.

— Tua, tua, meu único senhor!

— Senhora — disse Armando, tentando erguê-la. — Antonieta não pode salvar a duquesa de Langeais. Não creio mais nem numa nem noutra. A senhora se entregaria hoje para se recusar amanhã. Poder algum do céu ou da terra me garantirá a submissa fidelidade de seu amor. Seu possível penhor é o passado; e nós não temos passado.

Naquele instante, brilhou tão vivamente um clarão que a duquesa não pôde deixar de voltar-se para a porta e viu desta vez nitidamente os três homens mascarados.

— Armando — observou ela —, eu não desejaria menosprezá-lo. Mas que fazem aqui esses homens? Que prepara contra mim?

— Aqueles homens serão tão discretos quanto eu sobre o que se vai passar aqui. Não deve ver neles mais que os meus braços e o meu coração. Um deles é cirurgião...

— Um cirurgião? Meu amigo, a incerteza é a mais cruel das dores. Fale-me, diga-me se deseja a minha vida: eu a darei, não me será tirada.

— Não me compreendeu então? Não lhe falei de justiça? Vou explicar — acrescentou friamente, tomando um pedaço de ferro que estava em cima da mesa — para que cessem as suas apreensões o que decidi a seu respeito.

Mostrou-lhe uma cruz de Lorena adaptada à ponta de uma haste de aço.

— Dois dos meus amigos aquecem ao rubro, neste instante, uma cruz cujo modelo é este. Nós a aplicaremos aí, entre os dois olhos, para que não lhe seja possível ocultá-la com alguns diamantes e fugir assim às interrogações do mundo. Terá, assim, na fronte a marca infamante que se aplica na espádua dos seus irmãos os forçados. O sofrimento é pequeno, mas eu temia alguma crise nervosa ou uma resistência...

— Resistência?! — disse ela batendo as mãos de alegria —, não, não, quisera ver aqui neste instante a terra inteira. Ah! meu Armando, marca, marca depressa a tua criatura como uma mísera coisa tua! Exigias um penhor do meu afeto. Mas eis aí todos num só. Ah! Só vejo clemência e perdão, só felicidade eterna em tua vingança... Quando tiveres marcado assim uma mulher como tua, quando possuíres uma alma escrava portadora de tua marca vermelha, não a poderás abandonar, serás meu para sempre. Isolando-me do mundo, tomarás a teu cargo a minha felicidade, sob pena de seres um covarde, e eu te sei nobre, grande! Mas a mulher que ama se marca por si mesma. Venham, senhores, entrem e marquem, marquem a duquesa de Langeais. Ela pertence ao marquês de Montriveau. Entrem depressa, minha fronte arde mais que o seu ferro!

Armando voltara-se rapidamente para não ver a duquesa ajoelhada, palpitante. Disse uma palavra que fez com que desaparecessem os seus três amigos. As mulheres habituadas à vida dos salões conhecem os jogos de espelhos. E a duquesa, interessada em ler o coração de Armando, era toda olhos. Montriveau, que não desconfiava do espelho, deixou correr duas lágrimas rapidamente enxugadas. Todo o futuro da duquesa estava naquelas duas lágrimas. Ao voltar-se para erguer a sra. de Langeais, encontrou-a de pé; ela se julgava amada.

E foi palpitante que ela ouviu Montriveau dizer-lhe, com a firmeza que tão bem sabia ostentar, mesmo quando ela zombava dele:

— Perdoo-lhe, senhora. Pode acreditar-me, esta cena será como se nunca houvesse acontecido. Mas aqui diremos adeus. Prefiro pensar que foi franca em suas faceirices, no seu canapé, e franca aqui em suas efusões. Adeus. Não tenho mais confiança. A senhora me atormentaria sempre, seria sempre duquesa, e... mas adeus, não nos entenderemos nunca. Que deseja agora? — perguntou tomando ares de mestre de cerimônias. — Voltar para casa ou retornar ao baile da sra. de Sérisy? Fiz todo o possível para conservar sua reputação intata. Nem os seus criados nem a sociedade podem saber coisa alguma do que se passou entre nós neste quarto de hora. Os seus criados pensam que está no baile; o seu carro não deixou o pátio da sra. de Sérisy; o seu coupé se encontra igualmente no de seu palácio. Onde deseja estar?

— Qual é o seu conselho, Armando?

— Não existe mais Armando, senhora duquesa. Somos estranhos um ao outro.

— Conduza-me então ao baile — disse ela curiosa de pôr à prova mais uma vez o poder de Armando. — Restitua ao inferno da sociedade a criatura que lá sofria e que lá deve continuar a sofrer, já que para ela não há mais felicidade. Oh! meu amigo, eu o amo; entretanto, como amam as burguesas. Amo-o a ponto de saltar-lhe ao pescoço em pleno baile, diante de todo o mundo, se o quiser. Esse mundo horrível não me corrompeu. Sou jovem e acabo de rejuvenescer ainda mais. Sim, sou uma criança pequenina; acabas de me criar. Oh! não me expulses do meu Éden!

Armando fez um gesto.

— Ah! Se tenho de sair, deixa-me levar daqui alguma coisa, um nada!, isto, para pôr esta noite sobre o meu coração — disse ela apoderando-se de um barrete de Armando, que meteu no seio. — Não — continuou —, não sou desse mundo de mulheres depravadas; não o conheces e portanto não me podes julgar; sabe-o pois! Há ali as que se dão por dinheiro e as que são sensíveis aos presentes; tudo ali é infame. Ah! eu quisera ser uma simples burguesa, uma operária, se gostas mais das mulheres que estejam abaixo de ti do que de uma mulher na qual a dedicação se alia às grandezas humanas. Ah! meu Armando, há, entre nós, nobres, grandes, castas, puras mulheres, e elas são então deliciosas. Desejaria possuir todas as nobrezas para sacrificá-las todas a ti, a infelicidade me fez duquesa; quisera ter nascido junto ao trono; não faltaria nada para sacrificar-te. Seria uma grisette para ti, rainha para os outros.

Ele ouvia, a umedecer os charutos.

— Quando quiser partir — disse — previna...

— Mas eu quero ficar...

— Isso é outra coisa!

— Vês, este estava mal preparado! — exclamou, apoderando-se do charuto e devorando o que os lábios de Armando nele haviam deixado.

— Eras capaz de fumar? — perguntou.

— Oh! O que não faria eu para te agradar!

— Pois bem, retire-se, madame.

— Obedeço — disse ela, chorando.

— É preciso vendar-lhe os olhos para que não veja o caminho.

— Estou pronta, Armando — disse ela atando as pontas de um lenço.

— Vê?

— Não.

Ele se pôs silenciosamente de joelhos.

— Ah! Eu te ouço — disse ela deixando escapar um gesto cheio de gentileza, acreditando que o fingido vigor ia cessar.

Ele fez menção de beijar-lhe os lábios e ela avançou.

— Está vendo, senhora.

— Mas sou um nada curiosa.

— Engana-me sempre!

— Oh! — disse ela, com o furor da grandeza posta em dúvida —, tire-me o lenço e conduza-me, senhor, não abrirei os olhos.

Armando, certo da probidade cujo grito ouvira, guiou a duquesa, que, fiel à sua palavra, se fez nobremente cega; mas levando-a paternalmente pela mão, já para fazê-la subir, já para obrigá-la a descer, Montriveau estudava as vivas palpitações que agitavam o coração daquela mulher tão prontamente tomada de um amor verdadeiro. A sra. de Langeais, feliz de poder-lhe assim falar, comprazeu-se em dizer-lhe tudo, ele porém permaneceu inflexível; e, quando a mão da duquesa interrogava, a sua permanecia muda. Afinal, depois de caminharem juntos por algum tempo, Armando disse-lhe que avançasse, ela deu alguns passos e percebeu que ele impedia que o seu vestido roçasse as paredes de uma abertura sem dúvida estreita. A sra. de Langeais sentiu-se comovida por tal cuidado, que trazia ainda um pouco de amor, mas esse foi como que o adeus de Montriveau, que a deixou sem dizer palavra.

Sentindo-se numa atmosfera tépida, a duquesa abriu os olhos. Estava só diante da lareira do toucador da condessa de Sérisy. Seu primeiro movimento foi o de corrigir a desordem da toilette; rapidamente reajustou o vestido e restabeleceu a poesia do penteado.

— Oh! minha querida Antonieta, nós te procurávamos por toda parte — disse a condessa, abrindo a porta do boudoir.

— Vim respirar aqui um pouco; fazia, nos salões, um calor insuportável.

— Pensávamos que tivesses saído; mas meu irmão Ronquerolles me disse que teus criados estavam à espera.

— Estou aniquilada, minha querida, deixa-me repousar um momento aqui.

A duquesa sentou-se no divã.

— Que tens? Estás toda trêmula.

O marquês de Ronquerolles entrou.

— Receio, madame, que lhe aconteça qualquer acidente. Acabo de ver seu cocheiro completamente embriagado.

A duquesa não respondeu; contemplava a lareira, os espelhos, procurando traços de sua passagem; sentia uma sensação extraordinária ao ver-se em meio das alegrias do baile depois da terrível cena que acabava de dar outro curso à sua vida. Pôs-se a tremer violentamente.

— Tenho os nervos desfeitos pela predição que há pouco me fez o sr. de Montriveau. Embora não passe de brincadeira, vou ver se o machado de Londres não me vem perturbar o sono. Adeus, pois, minha cara. Adeus, senhor marquês.

Atravessou os salões onde a fizeram parar cumprimentadores que lhe inspiraram piedade. Achou pequena a sociedade de que era rainha, ela que se sentia tão humilhada e tão pequena. O que eram, aliás, os homens diante daquele a quem amava verdadeiramente e cujo caráter retomara as proporções gigantescas, momentaneamente diminuídas por ela, mas que agora ela talvez aumentasse desmesuradamente?

Ao avistar o criado que a tinha acompanhado, percebeu que dormia a sono solto.

— Você não saiu daqui? — perguntou.

— Não, senhora.

Subindo para a carruagem, viu que, realmente, o cocheiro estava num estado de embriaguez que lhe teria causado medo, noutras circunstâncias. Mas os grandes abalos da vida tiram ao medo seus motivos vulgares. Chegou aliás sem acidente à casa; mas viu-se ali mudada, presa de sentimentos totalmente novos. Para ela não havia mais que um homem no mundo, isto é, que só para ele desejava dali por diante ter algum valor. Se os fisiologistas podem prontamente definir o amor baseados nas leis da natureza, os moralistas veem-se bem embaraçados em o explicar quando querem considerá-lo em todo o desenvolvimento que lhe deu a sociedade. Não obstante, existe, malgrado as heresias das mil seitas que dividem a igreja amorosa, uma linha reta e nítida que separa claramente suas doutrinas, uma linha que as discussões jamais poderão curvar e cuja aplicação inflexível explica a crise na qual, como quase todas as mulheres, mergulhara a duquesa de Langeais: não amava ainda; estava apaixonada.

O amor e a paixão são dois diferentes estados d’alma que os poetas e a gente mundana, os filósofos e os tolos confundem continuamente. O amor importa uma mutualidade de sentimentos, uma certeza de gozos que coisa alguma pode alterar, uma troca muito constante de prazeres, uma completa e excessiva aderência de corações que não exclui o ciúme. A posse é então um meio e não um fim; uma infidelidade faz sofrer, mas não separa; a alma não se vê nem mais nem menos ansiosa ou inquieta, sente-se invariavelmente feliz; o desejo, enfim, espalhado por um sopro divino de uma ponta a outra da imensidade do tempo, tinge-nos todo ele de uma só cor, a vida é azul como o céu puro.

A paixão é o pressentimento do amor e do seu infinito ao qual aspiram todas as almas sofredoras. A paixão é uma esperança que pode ser iludida. Paixão significa ao mesmo tempo sofrimento e transição; a paixão cessa quando morre a esperança.

Homens e mulheres podem, sem se desonrarem, conceber múltiplas paixões; é tão natural a gente lançar-se à busca da felicidade! Mas só há um amor na vida. Todas as discussões, verbais ou escritas, sustentadas sobre os sentimentos, podem, assim, ser resumidas em duas perguntas: É uma paixão? É amor?

O amor não existe sem o conhecimento íntimo dos prazeres que o perpetuam; portanto a duquesa estava sob o jugo de uma paixão, experimentava assim as angústias devoradoras, os cálculos involuntários, os enervantes desejos, tudo enfim quanto exprime a palavra paixão: sofria. Em meio da confusão que lhe ia na alma, encontravam-se turbilhões movidos por sua vaidade, por seu amor-próprio, por seu orgulho, ou por sua altivez. Todas essas variações do egoísmo se conjugam. Ela dissera a um homem: “Eu te amo, sou tua!”. Poderia a duquesa de Langeais ter proferido em vão semelhantes palavras? Tinha ou de ser amada ou de abdicar de sua posição social.

Sentindo afinal a solidão do leito voluptuoso, onde a volúpia não pusera ainda os pés aquecidos, rolava nele, retorcia-se, a repetir: “Quero ser amada!”. E a confiança que ainda tinha em si dava-lhe esperanças de o conseguir. A duquesa sentia-se melindrada, a parisiense vaidosa via-se humilhada, a verdadeira mulher entrevia a felicidade, e sua imaginação, vingando o tempo perdido pela natureza, se comprazia em flambá-la nas chamas inextinguíveis do prazer. Atingia quase as sensações do amor, pois, na dúvida de ser amada, que a apunhalava, sentia-se feliz em dizer-se a si mesma: “Eu o amo!”. A sociedade e Deus, tinha vontade de calcá-los aos pés. Montriveau era agora a sua religião. Passou o dia seguinte num estado de estupor moral a que se juntavam perturbações físicas que coisa alguma poderia exprimir. Destruiu tantas cartas quantas escreveu e formulou mil suposições impossíveis. À hora em que, até pouco, Montriveau costumava aparecer, convenceu-se de que ele viria e dispôs-se com prazer a esperá-lo. Sua vida concentrou-se toda no ouvido. Fechava por vezes os olhos e se esforçava por ouvir através do espaço. Desejava ter o poder de suprimir todos os obstáculos que se interpunham entre ela e o amante a fim de obter o silêncio absoluto que permite perceber ruídos a enormes distâncias. Naquele recolhimento, o tique-taque da pêndula lhe pareceu odioso, era uma espécie de lenga-lenga sinistra que ela fez parar. Soou meia-noite no salão.

“Meu Deus!”, pensou, “vê-lo aqui, seria a felicidade... E ele aqui vinha, não há muito, atraído pelo desejo. Sua voz enchia este toucador. E agora, nada.”

Ao lembrar-se das cenas de faceirice que havia representado, e que haviam afastado Armando, lágrimas de desespero rolaram de seus olhos por muito tempo.

— Senhora duquesa — disse-lhe a criada de quarto —, talvez não saiba que são duas horas da madrugada; pensei que estivesse indisposta.

— Sim, vou deitar-me; mas lembre-se, Suzette — acrescentou a sra. de Langeais enxugando as lágrimas —, que não deve entrar jamais aqui sem ser chamada; não lho direi outra vez.

Durante uma semana foi a duquesa a todas as casas em que esperava encontrar o sr. de Montriveau. Contrariamente aos seus hábitos, chegava cedo e retirava-se tarde; não dançava mais, jogava. Tentativas inúteis! Não conseguiu rever Armando, cujo nome não ousava pronunciar. Não obstante, uma noite, num momento de desesperança, disse à sra. de Sérisy, tão descuidadosamente quanto lhe era possível fingir:

— Não estarás estremecida com o sr. de Montriveau? Não o vejo mais em tua casa.

— Achas que ele não vai mais lá? — perguntou a condessa a rir. — Não é visto aliás em parte alguma; ocupa-se, sem dúvida, com alguma mulher.

— Pensei — retrucou a duquesa com doçura — que o marquês de Ronquerolles fosse um dos seus amigos.

— Nunca ouvi meu irmão dizer que o conhece.

A sra. de Langeais nada respondeu. A sra. de Sérisy acreditou poder então criticar a discreta amizade que a amargara por tanto tempo e retomou a palavra.

— Lamentas então esse triste personagem? Ouvi dizer dele coisas monstruosas; ferido, não volta jamais, não perdoa nunca; amado, quer algemar. A tudo que eu objetava a seu respeito, um dos que o elevam às nuvens respondia sempre com uma frase: Ele sabe amar! Não cessam de me repetir: Montriveau deixaria tudo por um amigo, é uma alma imensa. Ora! a sociedade não pede almas tão grandes. Os homens de tal caráter ficam muito bem em casa; que lá permaneçam e nos deixem com as nossas boas pequenezas. Que dizes, Antonieta?

Não obstante o seu traquejo social, a duquesa pareceu agitada, mas respondeu tão naturalmente que enganou a amiga:

— Estou aborrecida por não o ver, tinha-lhe muito interesse e lhe votava sincera amizade. Posso parecer-te ridícula, querida, mas amo as grandes almas. Entregar-se a um tolo não é confessar claramente que não se tem senão sentidos?

A sra. de Sérisy nunca distinguira senão a criaturas vulgares e era então amada por um belo homem, o marquês d’Aiglemont.[132]

A condessa, acreditai, abreviou a visita.

A sra. de Langeais, vendo uma esperança no desaparecimento de Armando, escreveu-lhe, a seguir, uma carta muito doce e humilde, que lho deveria restituir, se a amava ainda. Mandou-a pelo criado a quem perguntou, quando de volta, se a havia entregue ao próprio Montriveau. E diante da afirmativa não pôde conter um movimento de alegria. Armando estava em Paris, permanecia só, encerrado em casa, sem frequentar a sociedade! Ela era amada pois! Esperou o dia inteiro uma resposta e a resposta não veio. Entre as crises, que ressurgiam na impaciência, Antonieta justificava a si mesma a demora: Armando estava atrapalhado, a resposta viria pelo correio; mas, à noite, não pôde mais iludir-se. Sucederam-se momentos terríveis, sofrimentos agradáveis, palpitações arrasadoras, excessos de coração desses que consomem a vida. De manhã mandou à casa de Armando procurar a resposta.

— O senhor marquês mandou dizer que virá à casa da senhora duquesa — respondeu Juliano.

Afastou-se para não deixar perceber sua alegria e foi cair no canapé para nele saborear as primeiras emoções.

— Ele virá! — Este pensamento lhe dilacerava a alma. Infelizes, com efeito, aqueles para quem a espera não é a mais horrível das tempestades e a fecundação dos mais doces prazeres; não têm eles a chama que desperta a imagem das coisas e duplica a natureza prendendo-nos tanto à essência pura dos objetos como à sua realidade? No amor, esperar não é acaso esboçar uma esperança certa, entregar-se ao flagelo terrível da paixão, sentir-se feliz com os desencantos da verdade? Emanação constante de força e de desejos, a espera não será para a alma humana o que são para certas flores suas exalações perfumadas? Deixamos logo as cores brilhantes e estéreis do coreópsis ou das tulipas e voltamos a aspirar incessantemente os deliciosos odores da flor de laranjeira ou da volkaméria, duas flores que suas pátrias compararam involuntariamente a jovens noivas cheias de amor, belas de seu passado e belas de seu futuro.

A duquesa aprendeu os prazeres de sua nova vida sentindo com uma espécie de embriaguez as flagelações do amor; e, mudando de sentimentos, achou outros destinos e melhor sentido nas coisas da vida. Precipitando-se para o seu toucador, compreendeu o que é a busca de um enfeite e os cuidados corporais mais minuciosos, quando dirigidos pelo amor e não pela vaidade; e os seus aprestos ajudaram-na a suportar a lentidão do tempo. Terminada a toilette, recaiu na agitação excessiva, nos estremecimentos nervosos dessa terrível potência que põe em fermentação todas as ideias e que não é mais, talvez, que uma doença cujos sofrimentos a gente ama. A duquesa ficou pronta às duas horas da tarde e o marquês de Montriveau às onze e meia da noite não chegara ainda. Explicar as angústias daquela mulher, que era filha mimada da civilização, seria querer demonstrar quanta poesia pode o coração concentrar num pensamento; seria pretender pesar a força evolada da alma pelo som de uma campainha, ou avaliar o que gasta da vida o abatimento causado por uma carruagem cujo rodar continuou, sem se deter.

— Estará ele a zombar de mim? — pensou ao ouvir bater meia-noite.

Empalideceu, seus dentes entrebateram, e ela torcia as mãos andando por aquele toucador, onde, não há muito, pensava, ele surgia sem necessidade de chamá-lo. Mas resignou-se. Não o havia ela feito empalidecer e vacilar sob as setas aguçadas de sua ironia? A sra. de Langeais compreendeu o horror do destino das mulheres, que, privadas de todos os meios de ação que os homens possuem, só podem esperar, quando amam. Comparecer diante do amado é um erro que poucos homens sabem perdoar. A maior parte deles vê uma degradação nessa celestial concessão; Armando, porém, possuía uma grande alma e devia fazer parte do pequeno número de homens que sabe tomar por eterno amor um tal excesso de amor.

— Pois bem, irei! — dizia ela voltando-se no leito sem poder conciliar o sono —, irei a ele e lhe estenderei a mão sem me fatigar de estendê-la. Um homem invulgar vê em cada passo que dê uma mulher para ele promessas de amor e de constância. Sim, os anjos têm de descer dos céus para chegarem aos homens e quero ser para ele um anjo.

Pela manhã escreveu um desses bilhetes em que excele o espírito das dez mil Sévignés que Paris conta atualmente. Entretanto, para saber queixar-se sem se rebaixar, voar a plena força de suas duas asas sem se arrastar humildemente, ralhar sem ofender, revoltar-se com graça, perdoar sem comprometer a dignidade pessoal, dizer muito sem nada confessar, era preciso ser a duquesa de Langeais e, para escrever tão delicioso bilhete, ter sido educada pela sra. princesa de Blamont-Chauvry. Juliano partiu. Juliano era, como todos os criados de quarto, a vítima das marchas e contramarchas do amor.

— Que lhe respondeu o sr. de Montriveau? — perguntou tão indiferentemente quanto pôde, ao vir Juliano prestar-lhe contas da incumbência.

— O senhor marquês me mandou dizer à senhora duquesa que está bem.

Terrível reação da alma sobre si mesma! Esconder diante de testemunhas curiosas a pergunta do coração, e nem sequer murmurar, ver-se forçada ao silêncio. Uma das mil dores do rico!

Durante vinte e dois dias, a sra. de Langeais escreveu ao sr. de Montriveau sem obter resposta. Acabara por dizer-se doente para ser dispensada de seus deveres, quer junto à princesa, de quem era dama, quer dos deveres relativos à sociedade. Recebia apenas o pai, duque de Navarreins; a tia, princesa de Blamont-Chauvry; o velho vidama de Pamiers; o tio-avô materno, e o tio do marido, duque de Grandlieu.[133] Essas pessoas acreditavam na moléstia da sra. de Langeais, ao vê-la dia a dia mais abatida, mais pálida, mais magra. Os vagos ardores de um amor real, as irritações do orgulho ferido, as constantes aguilhoadas do único desprezo que a poderia atingir, sua ânsia de prazeres eternamente desejados e perpetuamente traídos, todas as suas forças, enfim, inutilmente excitadas, minavam sua dupla natureza. Pagava as dívidas vencidas de sua vida truncada.

Saiu, afinal, um dia, para assistir a um desfile no qual deveria achar-se o sr. de Montriveau. Alojada no balcão das Tuileries com a família real, a duquesa teve uma dessas festas de que a alma guarda indelével lembrança. Surgiu sublime de langor e todos os olhos a saudaram com admiração. Trocou alguns olhares com Montriveau, cuja presença a fazia tão linda. O general desfilou, quase a seus pés, todo o esplendor do fardamento militar, cujo efeito nas imaginações femininas é confessado até pelas criaturas mais puritanas. Para uma mulher apaixonada, que não via o amado havia dois meses, aquele rápido momento deveria ter-se assemelhado à fase do sonho em que, fugitivamente, nossa vista abarca uma paisagem sem horizonte! Só as mulheres e os jovens poderão imaginar a avidez delirante que os olhos da duquesa exprimiram. Pois se há homens que experimentaram, durante a juventude, no paroxismo de suas primeiras paixões, tais fenômenos nervosos, mais tarde os esquecem tão completamente que chegam a negar esses luxuriantes êxtases, único nome possível dessas intuições magníficas.

O êxtase religioso é a loucura do pensamento liberto de seus laços materiais; no êxtase amoroso, porém, confundem-se, unem-se, se comprimem as forças de nossas duas naturezas. Quando uma mulher se vê sob o domínio das furiosas tiranias, sob as quais se curvava a duquesa de Langeais, as resoluções definitivas se sucedem tão rapidamente que é impossível o seu controle. Os pensamentos nascem então um dos outros e percorrem a alma como as nuvens levadas pelo vento, sobre um fundo cinzento que vela o sol.

A partir daí os fatos dizem tudo. Eis, pois, os fatos.

No dia seguinte ao da parada, a sra. de Langeais mandou sua carruagem e seus pajens postarem-se à porta do marquês de Montriveau, das oito da manhã às três da tarde. Armando residia na Rue de Seine, a poucos passos da Câmara dos Pares, onde, naquele dia, havia sessão. Mas muito antes que os pares se dirigissem a seu palácio, várias pessoas perceberam a carruagem e a libré da duquesa. Um jovem oficial desprezado pela sra. de Langeais e recolhido pela sra. de Sérisy, o barão de Maulincour,[134] foi o primeiro a reconhecer a equipagem. Foi imediatamente contar à amante, em segredo, aquela estranha loucura. Sem tardar, a notícia foi como que telegraficamente levada ao conhecimento de todas as esferas do Faubourg Saint-Germain, chegou ao castelo, ao Eliseu-Bourbon, tornou-se o assunto do dia, o motivo de todas as palestras, do meio-dia até à noite.

As mulheres, quase todas, negavam o fato, mas de modo a fazer com que fosse acreditado; os homens aceitavam-no, testemunhando à sra. de Langeais o mais indulgente interesse.

— Esse selvagem Montriveau tem um coração de bronze; exigiu, decerto, esse escândalo — diziam alguns, atribuindo a culpa a Armando.

— Ora — dizem outros —, a sra. de Langeais cometeu a mais nobre das imprudências! Renunciar, diante de Paris inteira, por seu amante, à sociedade, à sua classe, à sua fortuna, à consideração geral, é um golpe de Estado feminino, belo como a punhalada desse cabeleireiro que tanto emocionou Canning[135] no tribunal. Nenhuma das mulheres que censuram a duquesa seria capaz dessa confissão digna da antiguidade. A sra. de Langeais é uma mulher heroica em expor-se assim francamente. Agora não poderá amar senão Montriveau. Não há certa grandeza na mulher que declara: só terei uma paixão?

— Que será, então, da sociedade, se todos honram assim o vício, sem respeito à virtude? — observou a mulher do procurador-geral, a condessa de Grandville.[136]

Enquanto o castelo, o faubourg, a Chaussée-d’Antin se entretinham com o naufrágio daquela aristocrática virtude; enquanto jovens apressados galopavam para ver com os próprios olhos a carruagem na Rue de Seine e verificar se a duquesa estava realmente em casa do sr. de Montriveau, ela jazia palpitante no interior do seu toucador. Armando, que não dormira em casa, passeava nas Tuileries com o sr. de Marsay. Depois, os fidalgos parentes da sra. de Langeais se visitavam uns aos outros, marcando encontro em casa dela para a repreender e providenciar quanto aos meios de acabar com o escândalo causado por sua conduta.

Às três horas, pois, o duque de Navarreins, o vidama de Pamiers, a velha princesa de Blamont-Chauvry e o duque de Grandlieu encontravam-se reunidos no salão da sra. de Langeais e a esperavam. A eles, como a muitos curiosos, a criadagem afirmara que a senhora havia saído. A duquesa não excetuara ninguém da proibição.

Os quatro personagens, ilustres nas esferas da qual o Almanaque de Gotha[137] consagra anualmente as revoluções e pretensões hereditárias, exigem um rápido esboço sem o qual ficaria incompleto este quadro social.

A princesa de Blamont-Chauvry era, no mundo feminino, a ruína mais poética do reinado de Luís xv,[138] para cujo epíteto contribuíra com a sua parte, quando de sua bela juventude, dizia-se. De seus antigos encantos, só lhe restava um nariz notavelmente saliente, delgado, recurvo como uma espada turca e ornamento principal de um rosto semelhante a uma velha luva branca; alguns cabelos crespos e empoados; chinelos de salto alto, touca de rendas de folhos, mitenes pretas e perfeito convencimento. Mas, para fazer-lhe inteira justiça, é preciso acrescentar que fazia alta ideia de seus destroços que, à noite, se decotava, punha luvas de canhão comprido e pintava ainda as faces com o clássico rouge de Martin. Havia em suas rugas uma amabilidade perigosa, um brilho prodigioso no olhar, uma dignidade profunda em toda a sua pessoa; tinha na língua um espírito de tríplice dardo e na cabeça uma memória infalível, que faziam dessa velha senhora verdadeira potência. No pergaminho do seu cérebro havia todo um arquivo nobiliárquico e conhecia as alianças das casa principescas, ducais e condais da Europa, a ponto de saber onde se achavam os últimos colaterais de Carlos Magno. Desse modo, nenhuma usurpação de título poderia escapar-lhe. Os moços que desejavam ser apreciados, os ambiciosos, as jovens damas lhe prestavam constante homenagem. Seu salão tinha autoridade no Faubourg Saint-Germain. As palavras desse Talleyrand feminino valiam como sentenças. Muitas pessoas iam pedir-lhe conselhos sobre a etiqueta ou os usos, ou receber lições de bom gosto. Velha alguma sabia como ela usar a tabaqueira; ao sentar-se ou ao cruzar as pernas, fazia movimentos de saia de tal precisão, de tal graça, que eram o desespero das moças mais elegantes. A voz se conservara “de cabeça” durante dois terços de sua vida, mas não pudera evitar que descesse às membranas do nariz, coisa que a fazia estranhamente significativa. Da sua grande fortuna lhe restavam cento e cinquenta mil libras em matas, generosamente restituídas por Napoleão. Assim, pessoa e bens, tudo nela era considerável.

Essa curiosa antiguidade se colocara numa poltrona junto à lareira e palestrava com o vidama de Pamiers, outra ruína contemporânea. O velho senhor, antigo comendador da Ordem de Malta, era um homem alto, comprido, delgado, cujo colarinho, sempre apertado de modo a manter-lhe a cabeça levantada, lhe comprimia as faces, que transbordavam ligeiramente sobre a gravata, atitude cheia de suficiência em certas pessoas, mas nele justificada por um espírito voltairiano. Seus olhos à flor da cara pareciam ver tudo e efetivamente tudo viam. Punha algodão nos ouvidos. Enfim, sua pessoa oferecia no conjunto um perfeito modelo de linhas aristocráticas, linhas breves e delicadas, flexíveis e agradáveis, que, semelhantes às da serpente, podiam à vontade curvar-se, endireitar-se, tornar-se maleáveis ou rígidas.

O duque de Navarreins passeava de um lado para outro pelo salão, com o duque de Grandlieu. Ambos regulavam cinquenta e cinco anos ainda verdes; eram gordos, baixos, bem nutridos, a tez algo vermelha, os olhos cansados, o lábio inferior já pendente. Não fosse o tom delicado da linguagem de ambos, a afável polidez de seus modos, a sua calma, que podia repentinamente tornar-se impertinência, um observador superficial poderia tomá-los por banqueiros. Mas qualquer equívoco teria de cessar ao ouvir-se-lhes a palestra, armada de precauções para aqueles a quem temem, seca ou ociosa para com os iguais, pérfida para com os inferiores, que os cortesãos e os homens de Estado sabem dominar com verbosas delicadezas ou ferir com uma palavra inesperada.

Tais eram os representantes daquela alta nobreza que desejava morrer ou permanecer intata, que merecia tantos elogios como censuras, e seria imperfeitamente julgada até que um poeta[139] a mostrasse feliz por obedecer ao rei, expirando sob o machado de Richelieu e desprezando a guilhotina de 89 como uma suja vingança.

Os quatro personagens se distinguiam pela voz aguda, em perfeita harmonia com as suas ideias e o seu porte. A mais perfeita igualdade reinava, aliás, entre eles. O hábito, que haviam tomado na Corte, de esconder suas emoções os impedia, sem dúvida, de manifestar a contrariedade que lhes causava o despropósito de sua jovem parenta.

Para impedir os críticos de taxarem de puerilidade o começo da cena seguinte, talvez seja necessário relembrar aqui que, encontrando-se Locke[140] na companhia de grandes fidalgos ingleses, famosos por seu espírito, distintos por suas maneiras e sua importância política, se divertiu maldosamente em estenografar as suas palestras por um processo particular e os fez dar boas gargalhadas, lendo-as a fim de saber deles próprios o que se poderia delas concluir. Com efeito, as altas classes sociais têm em todos os países sua algaravia lantejoulada que, lavada nas bateias literárias ou filosóficas, deixa muito pouco ouro no fundo. Em todas as camadas sociais, salvo nalguns salões parisienses, o observador encontra os mesmos ridículos, apenas diferençados pela transparência ou pela espessura do verniz. Assim, as conversações substanciais constituem exceção, e é a toleima a diversão habitual dos diferentes círculos mundanos.

Se forçosamente se fala muito nas altas esferas, pouco se pensa. Pensar cansa, e os ricos gostam de ver a vida correr sem grandes esforços. É pois comparando o fundo do espírito nas diversas camadas, a partir do garoto de Paris até o par de França, que o observador compreende a frase do sr. de Talleyrand: As maneiras são tudo, tradução elegante deste axioma judiciário: A forma supre o fundo. Aos olhos do poeta, a vantagem ficará com as classes inferiores, que nunca deixam de dar um rude tom de poesia aos seus pensamentos. Esta observação fará com que se compreenda também a infertilidade dos salões, seu vazio, sua pouca profundidade e a repugnância que as pessoas superiores experimentam na prática do mau comércio de ali trocar pensamentos.

O duque parou de súbito, como se lhe houvesse acudido uma ideia luminosa, e disse ao vizinho:

— Vende então o Thornthon?

— Não; está doente. Tenho muito medo de perdê-lo e ficaria desolado se tal acontecesse. É um excelente cavalo para a caça. Sabe como vai a condessa de Marigny?[141]

— Não, não fui lá esta manhã. Ia sair para vê-la quando o senhor me veio falar de Antonieta. Ontem, porém, estava muito mal; desesperavam, e ministraram-lhe...

— A morte dela vai alterar a posição do seu primo...

— Em nada, ela fez sua partilha em vida e reservara-se uma pensão que era paga pela sobrinha, sra. de Soulanges,[142] à qual dera suas terras de Guébriant, como renda vitalícia.

— Será uma grande perda para a sociedade. Era uma boa senhora. Sua família terá a menos uma pessoa cujos conselhos e experiência eram de peso. Diga-se aqui entre nós, ela era o chefe da família. O filho, Marigny,[143] é um homem amável; tem trato, sabe conversar. É agradável, muito agradável; oh! como agradável, nada se pode dizer; mas... não tem o senso da conduta. Veja! é extraordinário, mas é muito fino. Outro dia, jantava no Círculo com todos os ricaços da Chaussée-d’Antin e o seu tio (que lá vai sempre jogar sua partida) o viu. Admirado de o encontrar ali, perguntou-lhe se pertencia ao Círculo: “Sim, não frequento mais a sociedade, vivo com os banqueiros”. Sabe por quê? — perguntou o marquês endereçando ao duque um fino sorriso.

— Não.

— Está apaixonado por uma recém-casada, aquela pequena sra. Keller,[144] filha de Gondreville,[145] uma mulher que, dizem, está muito em moda naquele meio.

— Mas Antonieta não se molesta, ao que parece — observou o velho vidama.

— O afeto que consagro a essa mulherzinha me obriga neste momento a um singular passatempo — respondeu-lhe a princesa, pondo no bolso a tabaqueira.

— Cara tia — disse o duque, parando —, estou desesperado. Só mesmo um homem de Bonaparte seria capaz de exigir de uma mulher correta semelhantes inconveniências. Aqui entre nós, Antonieta poderia escolher melhor.

— Meu caro — respondeu a princesa —, os Montriveau são antigos e muito bem aparentados com toda a alta nobreza da Borgonha. Se os Rivaudoult d’Arschoot, do ramo Dulmen, se acabassem na Galícia, os Montriveau sucederiam a eles nos títulos de Arschoot; herdá-los-iam pelo bisavô.

— Está certa disso?

— Sei melhor do que o sabia o pai do general, que eu via frequentemente e a quem comuniquei tal coisa.

— Embora cavalheiro de alta classe, não lhe deu importância; era um enciclopedista. Mas o irmão aproveitou bem a emigração. Ouvi dizer que os parentes do norte foram corretíssimos com ele...

— Sim, decerto. O conde de Montriveau faleceu em Petersburgo, onde o encontrei — observou o vidama. — Era um homem enorme que tinha incrível paixão pelas ostras.

— Quantas comia, então? — perguntou o duque de Grandlieu.

— Dez dúzias diariamente.

— Sem consequências?

— Absolutamente.

— Oh! mas é extraordinário! Esse gosto não lhe trouxe nem a pedra nem a gota, nenhum incômodo?

— Não, conservou-se muito bem, morreu num acidente.

— Num acidente! A natureza lhe aconselhava a comer ostras: eram-lhe provavelmente necessárias; pois, até certo ponto, os nossos gostos predominantes são condições de nossa existência.

— Sou da sua opinião — disse a princesa, sorrindo.

— Madame interpreta sempre maliciosamente as coisas — observou o marquês.

— Desejo somente fazer notar que tais coisas seriam muito mal compreendidas por uma moça — respondeu ela.

Interrompeu-se para dizer:

— Mas a minha sobrinha! a minha sobrinha!

— Cara tia — disse o sr. de Navarreins —, não posso acreditar ainda que ela tenha ido à casa do sr. de Montriveau.

— Ora! — exclamou a princesa.

— Qual é a sua opinião, vidama? — perguntou o marquês.

— Se a duquesa fosse ingênua, eu acreditaria...

— Mas uma mulher que ama torna-se ingênua, meu pobre vidama. Está ficando velho?

— Enfim, que fazer? — perguntou o duque.

— Se a minha querida sobrinha for sensata — respondeu a princesa —, irá esta noite à Corte, pois, por felicidade, estamos numa segunda-feira, dia de recepção; providenciar-se-ia em bem rodeá-la, para desmentir esse boato ridículo. Há mil meios de explicar as coisas; e, se o marquês de Montriveau é um gentil-homem, a tudo se prestará. Faremos voltar à razão essas crianças...

— Mas é difícil vencer o sr. de Montriveau, querida tia. É um aluno de Bonaparte e tem posição. Como então! é um dos senhores do dia, tem um comando importante na Guarda, onde é muito útil. Não possui a menor ambição. À primeira palavra que lhe desagrade, é homem para dizer ao rei: “Eis o meu pedido de demissão, deixai-me em paz”.

— Que pensará ele então?

— Nada de bom.

— Na verdade — disse a princesa —, o rei continua o que sempre foi, um jacobino flordelisado.

— Oh! um tanto moderado — disse o vidama.

— Não, eu o conheço de longa data. O homem que dizia à mulher no dia em que ela assistia ao primeiro grande banquete: “Eis os nossos criados!”, mostrando-lhe a Corte, não podia ser senão um grande celerado. Revejo no rei, perfeitamente, a Monsieur.[146] O mau irmão que votava tão mal na sua bancada da Assembleia Constituinte deve pactuar com os liberais, deixá-los falar e discutir. Esse filósofo tartufo será, assim, tão perigoso para o irmão mais moço quanto foi para o mais velho, pois não sei se o seu sucessor poderá safar-se das dificuldades que se apraz em criar-lhe esse grande homem de pouco espírito; ele aliás o execra e sentir-se-á feliz se puder dizer ao morrer: “Ele não reinará por muito tempo”.

— Minha tia, é o rei, tenho a honra de o servir, e...

— Mas, meu caro, seu cargo lhe tira a possibilidade de falar francamente! Afinal, o senhor é de tão boa cepa quanto os Bourbon. Se os Guise[147] tivessem tido um pouco mais de energia, Sua Majestade seria hoje um pobre-diabo. Eu me vou a tempo deste mundo, a nobreza está morta. Sim, tudo está perdido para vós, meus filhos — continuou, olhando para o vidama. — Então a conduta de minha sobrinha era para ocupar a cidade? Ela não tem razão, não a aprovo, um escândalo inútil é um erro; duvido ainda, aliás, dessa falta às conveniências; eu a criei e sei que...

Nesse momento a duquesa saiu do toucador. Reconhecera a voz da tia e ouvira pronunciar o nome de Montriveau. Vestia um déshabillé matinal e, quando apareceu, o duque de Grandlieu, que olhava descuidosamente pela vidraça, via regressar a carruagem da sobrinha sem ela.

— Minha querida filha — disse-lhe o duque tomando-lhe a cabeça entre as mãos e beijando-a na fronte —, não sabes então o que se passa?

— Que acontece de extraordinário, papai?

— Pois toda Paris te acredita em casa de Montriveau.

— Minha querida Antonieta, não saíste, não foi? — disse a princesa, estendendo-lhe a mão, que a duquesa beijou com respeitoso afeto.

— Não, querida mamãe, não saí. Mas — acrescentou voltando-se para cumprimentar o vidama e o marquês — quis que toda Paris pensasse que eu estava em casa de Montriveau.

O duque levantou as mãos para o céu, bateu-as com desespero e cruzou os braços.

— Mas não sabes o que vai resultar dessa loucura? — perguntou por fim.

A velha princesa levantara-se subitamente e encarou a duquesa, que corou e baixou os olhos; a sra. de Chauvry atraiu-a docemente para si e disse-lhe:

— Deixa-me beijar-te, meu anjinho. — E beijou-lhe a fronte muito afetuosamente, apertou-lhe a mão e continuou, sorrindo: — Não estamos mais no tempo dos Valois,[148] querida. Comprometeste teu marido, tua situação na sociedade; entretanto vamos providenciar para tudo reparar.

— Mas, titia, eu não quero reparar coisa alguma. Desejo que Paris inteira saiba ou diga que estive até agora em casa de Montriveau. Destruir essa suposição, por falsa que seja, é prejudicar-me extraordinariamente.

— Minha filha, queres então perder-te e afligir tua família?

— Meu pai, minha família, sacrificando-me aos seus interesses, condenou-me, sem o querer, a irreparáveis desgraças. Poderá censurar-me por eu procurar lenitivos a isso, mas, decerto, há de lamentar-me.

— E passe a gente mil trabalhos para assegurar o futuro das filhas! — murmurou o sr. de Navarreins ao vidama.

— Queridinha — disse a princesa, sacudindo os grãos de rapé caídos sobre o vestido —, sê feliz se puderes. Não se trata de perturbar tua felicidade, mas de pô-la de acordo com os costumes. Nós todos sabemos que o casamento é uma instituição defeituosa, atenuada pelo amor. Mas havia necessidade de, tomando um amante, preparar-lhe o leito no Carroussel?[149] Vamos, tem um pouco de juízo, ouve-nos.

— Estou ouvindo.

— Senhora duquesa — disse o duque de Grandlieu —, se os tios fossem obrigados a guardar as sobrinhas, teriam uma função social. A sociedade lhes deveria recompensas, honras, emolumentos, como dá aos servidores do rei. Não estou pois aqui para falar de meu sobrinho, mas dos interesses da senhora. Calculemos um pouco. Se quer fazer escândalo, eu conheço o rapaz, até nem gosto dele. Langeais é muito avaro, diabolicamente egoísta; separar-se-á da senhora, embolsará sua fortuna, a deixará pobre e, consequentemente, sem consideração. As cem mil libras de rendas que a senhora ultimamente herdou de sua tia-avó materna passarão a pagar os prazeres das amantes dele. E a senhora ficará algemada, garroteada pelas leis, obrigada a dizer amém a tais arranjos. E se Montriveau a abandona! Meu Deus, querida sobrinha, não nos encolerizemos, nenhum homem a abandonará jovem e bela; entretanto, vimos tantas mulheres lindas abandonadas, mesmo entre as princesas, que me permitirá uma suposição quase impossível, creio eu; e, então, que será da senhora sem marido? Trate, pois, dos seus interesses, como cuida da sua beleza, que é, antes de tudo, a salvaguarda da mulher, tal como o é um marido. Mas, admitindo que seja sempre amada e venturosa, que não suceda nenhum acontecimento desagradável, se, por felicidade ou desgraça, tiver filhos? Que nome lhes dará? O de Montriveau? Mesmo assim, não herdarão toda a fortuna do pai. A senhora há de querer dar-lhes toda a sua e o pai há de querer fazer o mesmo. Por Deus! nada é mais natural. Mas a lei estará contra a senhora e ele! Quantos processos não se veem, promovidos pelos herdeiros legítimos contra os filhos do amor. São propostos em todos os tribunais do mundo. Terão de recorrer a um fideicomisso: se a pessoa em que depositaram confiança os enganar, a justiça humana nada terá com isso, mas os seus filhos ficarão arruinados. Escolha bem! Veja em que perplexidade está. De qualquer modo, seus filhos serão sacrificados às fantasias de seu coração e privados de sua condição social. Meu Deus, enquanto forem pequenos, serão encantadores, mas, um dia, os reprovarão por ter a senhora cuidado mais de si mesma do que deles. Sabemos bem tudo isso, nós os velhos fidalgos. As crianças se tornam homens, e os homens são ingratos. Pois não ouvi então o jovem Horn,[150] na Alemanha, dizer, depois de um jantar: “Se minha mãe tivesse sido uma mulher honesta, eu seria príncipe-reinante”. Mas passamos a vida a ouvir esse se da plebe, e foi ele que fez a Revolução. Quando os homens não podem culpar nem o pai nem a mãe de sua má sorte, culpam a Deus. Em suma, minha querida filha, estamos aqui para a esclarecer. E eu sintetizo numa frase aquilo em que deve meditar: Uma mulher não deve jamais fornecer razões ao marido.

— Meu tio, eu calculei enquanto não amava. Como o senhor, só via interesses onde para mim não há mais que sentimentos — disse a duquesa.

— Mas, queridinha, a vida é francamente uma mistura de sentimentos e interesses — replicou o vidama —; e, para ser feliz, sobretudo na posição em que está, é preciso tratar de fazer concordarem os sentimentos e os interesses. Que uma costureirinha faça o amor segundo sua fantasia, concebe-se; mas a senhora tem uma bela fortuna, uma família, um título, um lugar na Corte e não deve atirá-los pela janela. Para tudo conciliar, que vimos pedir-lhe? Que contorne habilmente a lei das conveniências, em vez de a violar. E, meu Deus! Vou fazer oitenta anos dentro em pouco, e não me lembro de ter encontrado, em nenhum regime, um amor que valesse o preço que quer pagar pelo desse feliz mortal.

A duquesa impôs silêncio ao vidama com um olhar; e, se Montriveau tivesse podido vê-la, tudo lhe perdoaria...

— Isto seria de belo efeito no teatro — disse o duque de Grandlieu —, mas nada significa quando se trata de seus bens parafernais, de sua posição e de sua independência. Não é agradecida, cara sobrinha. Não achará, no entanto, muitas famílias em que os parentes sejam bastante corajosos para levar os ensinamentos da experiência e fazer ouvir a voz da razão a jovens cabeças loucas. Renuncie à salvação em dois minutos, se lhe apraz condenar-se às penas eternas; de acordo! Mas reflita bem quando se trata de renunciar às suas rendas. Não conheço confessor que nos absolva da miséria. Julgo-me no direito de lhe falar assim, pois, se se perder, só eu lhe poderei oferecer asilo. Sou quase tio de Langeais e só eu teria razão, negando razão a ele.

— Minha filha — disse o duque de Navarreins, como que despertando de dolorosa meditação —, já que falas em sentimentos, permite-me que te observe que uma mulher que usa o teu nome se deve a sentimentos diferentes dos da gente comum. Queres então dar ganho de causa aos liberais, a esses jesuítas de Robespierre que se esforçam por infamar a nobreza? Há certas coisas que uma Navarreins não pode fazer sem faltar a toda sua linhagem. Não serás, assim, a única desonrada.

— Vamos — disse a princesa —, lá vem a desonra. Não façam, meus filhos, tanto barulho sobre o percurso de uma carruagem vazia e deixem-me a sós com Antonieta. Venham os três jantar comigo. Encarrego-me de arranjar convenientemente as coisas. Não entendem nada disto; os homens põem logo acidez nas palavras. E eu não quero vê-los zangados com a minha filha querida. Por favor, saiam.

Os três fidalgos adivinharam, sem dúvida, as intenções da princesa e despediram-se das parentas. O sr. de Navarreins beijou a fronte da filha, dizendo-lhe:

— Vamos, criança querida, sê sensata. Se quiseres, ainda é tempo.

— Será que não se poderia encontrar na família um bom rapaz que desafiasse a esse Montriveau? — perguntou o vidama, descendo a escada.

— Minha joia — chamou a princesa, fazendo sinal à sobrinha para sentar-se num tamborete junto a ela, ao ficarem sós —, não sei de nada mais caluniado neste mundo vil do que Deus e o século xviii, pois, rememorando as coisas da minha mocidade, não me lembro de uma só duquesa que haja calcado aos pés as conveniências como acabas de fazer. Os romancistas e os escrevinhadores desonraram o reinado de Luís xv, não os creia. A Dubarry, minha cara, bem valia a viúva Scarron,[151] e, além disso, era melhor pessoa. No meu tempo, uma mulher sabia guardar dignidade em meio às suas galanterias. As indiscrições nos perderam. Daí vem todo o mal. Os filósofos, esse pessoal sem importância que metíamos em nossos salões, tiveram a inconveniência e a ingratidão, em paga das nossas bondades, de fazer o inventário de nossos corações, de nos criticar em conjunto e em detalhe, e deblaterar contra o século. O povo, que está muito mal colocado para julgar o que quer que seja, viu o fundo das coisas, sem lhes ver a forma. Mas, naquele tempo, meu coração, os homens e as mulheres foram tão notáveis como nas outras épocas da monarquia. Nenhum dos Werther,[152] de vocês, nenhuma das suas notabilidades, como se diz, nenhum de seus homens de luvas amarelas e calças que só servem para lhes ocultar a magreza das pernas, atravessaria a Europa, disfarçado em mascate, para ir meter-se, com risco da vida e afrontando os punhais do duque de Módena, no toucador da filha do Regente.[153] Nenhum dos seus tisiquinhos de luneta de madrepérola se ocultaria, como Lauzun,[154] durante seis semanas, em um armário, para dar coragem à sua amante, quando esta estava para fazer-se mãe. Havia mais paixão no dedo mindinho do sr. Jaucourt[155] que em toda essa raça de discutidores que deixam as mulheres pelos parágrafos! Onde encontrar um desses pajens que se deixam abater a machado e enterrar sob um soalho, para beijar o dedo enluvado de uma Konigsmarck?[156] Hoje, na verdade, parece que os papéis estão trocados, e que as mulheres devem devotar-se aos homens. Tais senhores valem menos e têm-se em maior estima. Acredita-me, minha querida, todas essas aventuras que se tornaram públicas e de que se armam hoje para assassinar o nosso bom Luís xv eram a princípio secretas. Sem uma corja de poetastros, de rimadores, de moralistas, que se metiam com nossas criadas e escreviam calúnias, nossa época teria literariamente bons costumes. Eu justifico o século e não os seus extremos. Talvez tenha havido cem mulheres de qualidade perdidas; mas os pândegos puseram milhares, como fazem os jornalistas quando avaliam o número de mortos do partido contrário. Aliás, não sei o que a Revolução e o Império nos podem censurar: que aqueles tempos foram licenciosos, sem espírito, grosseiros — qual! tudo isso me revolta. São os lugares excusos da nossa história. Tal preâmbulo, minha querida filha — continuou ela, após uma pausa —, é para dizer-te que, se Montriveau te agrada, és bem senhora de amá-lo à tua vontade, e tanto quanto puderes. Quanto a mim, eu sei, por experiência (a menos que te encerrem num convento, mas hoje não se encerra mais ninguém), que tu farás o que bem te agradar; e é o que eu teria feito na tua idade. Apenas, minha joia, eu não teria abdicado do direito de fazer duques de Langeais. Assim, pois, comporta-te decentemente. O vidama tem razão, nenhum homem vale um só dos sacrifícios pelos quais somos bastante loucas para pagar o seu amor. Faze de maneira, se um dia tiveres a desgraça de arrepender-te, com que possas continuar esposa do sr. de Langeais. Quando fores velha hás de sentir-te melhor assistindo à missa na Corte do que num convento da província. Eis a questão. Uma imprudência é uma pensão, uma vida errante é ficar à mercê do amante; é o aborrecimento causado pelas impertinências das mulheres que valem menos do que tu, exatamente por terem sido ignobilmente espertas. Cem vezes melhor seria ires à casa de Montriveau, à noite, de fiacre, disfarçada, do que enviar-lhe a tua carruagem em pleno dia. Tu és uma tolinha, minha querida filha. Tua carruagem lisonjeou a vaidade dele, mas tua pessoa lhe teria conquistado o coração. Eu te disse o que é justo e verdadeiro, mas não te quero mal pelo teu procedimento. Tu estás dois séculos atrasada, com a tua falsa grandeza. Vamos, deixa-nos arranjar os teus assuntos, dizer que Montriveau embriagou os teus criados, para satisfazer o seu amor-próprio e comprometer-te...

— Em nome do Céu, minha tia — exclamou a duquesa, erguendo-se —, não o calunie!

— Oh! querida filha — disse a princesa, cujos olhos se animaram —, eu queria ver-te com ilusões que não te fossem funestas, mas toda ilusão deve cessar. Tu me enternecerias, se não fosse a minha idade. Vamos, não causes incômodos a ninguém, nem a ele nem a nós. Encarrego-me de contentar a todo o mundo, mas promete-me que não te permitirás de ora em diante um único passo sem me consultares. Conta-me tudo, que eu talvez consiga guiar-te bem.

— Prometo, minha tia...

— Que me dirás tudo...

— Sim, tudo, tudo o que se possa dizer.

— Mas, meu coração, é exatamente o que não se pode dizer que eu quero saber. Entendamo-nos bem. Vamos, deixa-me apoiar meus lábios secos sobre a tua bela fronte. Não, deixa-me fazer, eu te proíbo que beijes os meus ossos. Os velhos têm uma polidez toda sua... Vamos, conduze-me até o meu carro — concluiu ao beijar a sobrinha.

— Minha tia, posso então ir à casa dele, disfarçada?

— Naturalmente, isso se poderá sempre negar — disse a velha.

A duquesa só percebera claramente isso, em todo o sermão que lhe acabava de fazer a princesa. Ao ver a sra. de Chauvry sentar-se a um canto da carruagem, a duquesa lhe dirigiu gracioso adeus e subiu as escadas, feliz.

— Minha presença lhe teria conquistado o coração; minha tia tem razão. Um homem não deve recusar uma mulher bonita, se esta souber oferecer-se.

À noite, nos círculos da duquesa de Berry, o duque de Navarreins, o vidama de Pamiers, o sr. de Marsay, o duque de Grandlieu e o sr. de Maufrigneuse desmentiram vitoriosamente os boatos caluniosos que corriam sobre a duquesa de Langeais. E tantos oficiais, tantas pessoas atestaram ter visto Montriveau passeando pelas Tuileries durante a manhã, que a confusa história foi levada à conta do acaso, que aceita tudo quanto se lhe atribui. Desse modo, no dia seguinte, a reputação da duquesa se tornou, não obstante o estacionamento de sua carruagem, clara e sem manchas, como o elmo de Mambrino[157] depois de polido por Sancho.

Às duas horas, porém, no Bois de Boulogne, o sr. de Ronquerolles, passando ao lado de Montriveau numa aleia deserta, disse-lhe, sorrindo:

— Vai bem a tua duquesa! Ainda e sempre — acrescentou, aplicando uma chicotada em sua égua, que partiu como uma bala.

Dois dias depois do seu inútil escândalo, a duquesa de Langeais escreveu a Montriveau uma carta, que, como as precedentes, ficou sem resposta.

Resolveu então corromper Augusto,[158] o camareiro de Armando. Assim, às oito da noite, conseguiu ser introduzida numa alcova bem diferente daquela onde se passara a cena que permanecera secreta. Soube a duquesa que o general não voltaria. Teria dois domicílios? O criado não quis responder. A sra. de Langeais comprara a chave daquela alcova e não toda a probidade do homem. Ficando a sós, viu as suas catorze cartas postas sobre a mesa de centro; não estavam nem amarrotadas nem sequer abertas; não tinham sido lidas. Ao vê-las, caiu numa poltrona e perdeu por momentos os sentidos. Ao voltar a si, viu Juliano a fazer-lhe aspirar vinagre.

— Um carro, depressa — pediu.

Chegado este, desceu com convulsa rapidez e voltou para casa, pôs-se ao leito e interditou a porta. Permaneceu vinte e quatro horas acamada, só deixando aproximar-se dela a criada de quarto, para levar-lhe algumas taças de infusão de folhas de laranjeira. Suzette ouviu a senhora murmurar algumas queixas e surpreendeu lágrimas em seus olhos brilhantes, mas pisados.

Ao terceiro dia, depois de meditar, entre lágrimas de desespero, no partido a tomar, a sra. de Langeais teve uma conferência com o encarregado de seus negócios e o incumbiu, sem dúvida, de certos preparativos. Depois mandou chamar o vidama de Pamiers. Enquanto esperava pelo comendador, escreveu ao sr. de Montriveau. O vidama foi pontual. Encontrou a jovem prima pálida, abatida, mas resignada. Eram mais ou menos duas horas da tarde. Jamais aquela divina criatura fora mais interessante que então, nos langores de sua agonia.

— Meu caro primo — disse ao vidama —, os seus oitenta anos lhe proporcionam este encontro. Oh! não sorria, suplico-lhe, ante uma pobre mulher no cúmulo da infelicidade. É um gentil-homem, e as aventuras da mocidade lhe inspiraram, decerto, alguma indulgência para com as mulheres.

— Nenhuma — disse ele.

— Verdade?!

— Claro. Não precisam dela — retrucou.

— Ah! Bem! Está no coração de minha família e será talvez o último parente, o último amigo a quem hei de apertar a mão; posso assim reclamar seus bons ofícios. Preste-me, caro vidama, um serviço que não poderei pedir ao meu pai nem ao tio Grandlieu nem a mulher alguma. Deve compreender-me. Suplico-lhe que me obedeça e que o esqueça depois, qualquer que seja o resultado de seus passos. Trata-se de ir, munido desta carta, à casa do sr. de Montriveau, de o avistar e mostrar-lha, de pedir-lhe, como o sabem fazer entre homens, pois têm eles, entre si, probidade e sentimentos que esquecem para conosco, de pedir-lhe que a leia; não precisa que seja em sua presença, pois os homens escondem uns aos outros certas emoções. Autorizo-o para o decidir, se julgar necessário, a dizer-lhe que disto depende a minha vida ou a minha morte. Se ele dignar-se...

— Dignar-se?!

— Se ele se dignar a lê-la — continuou com dignidade a duquesa —, faça-lhe uma derradeira observação. Vê-lo-á às cinco, ele janta hoje a essa hora em casa, eu o sei; e, como única resposta, deve vir ver-me. Se três horas depois, se às oito horas, não houver saído, tudo estará acabado. A duquesa de Langeais terá desaparecido do mundo. Não estarei morta, meu caro, não; mas nenhum poder humano conseguirá encontrar-me nesta terra. Venha jantar comigo; terei ao menos um amigo para me assistir nas minhas últimas angústias. Sim, esta noite, meu caro primo, decidirei minha vida, que, aconteça o que acontecer, só poderá ser cruelmente ardente. Vamos, silêncio, não quero ouvir coisa alguma que se pareça quer a observações quer a conselhos. Conversemos, riamos — disse-lhe, estendendo-lhe a mão, que ele beijou. — Sejamos como dois velhinhos filósofos que saibam gozar a vida até o último momento. Eu me enfeitarei, me farei bem garrida para o senhor. Será talvez o último homem a ver a duquesa de Langeais.

O vidama não respondeu, saudou-a, pegou a carta e cumpriu a incumbência. Voltou às cinco horas e encontrou a parenta vestida com apuro, deliciosa enfim. O salão estava ornado de flores, como para uma festa. O jantar foi magnífico. Para o velhinho, a duquesa fez cintilar todos os brilhos do seu espírito e se mostrou mais atraente que nunca. O comendador quis a começo ver uma brincadeira de moça em todos aqueles preparativos; mas, aos poucos, foi empalidecendo à falsa magia das seduções desdobradas pela prima. E, tão logo a surpreendia a tremer emocionada por uma espécie de terror súbito, como, pouco depois, parecia perscrutar o silêncio. E então ele indagava:

— Que tem?

— Pst! — respondia ela.

Às sete horas, a duquesa deixou o velho e retornou prontamente, mas vestida como o faria sua criada de quarto para uma viagem; reclamou o braço do seu conviva, que desejou por companheiro, atirou-se num carro de aluguel e ambos se encontraram, faltando um quarto para as oito, à porta do sr. de Montriveau.

Armando, durante esse tempo, meditara sobre a seguinte carta:

 

Meu amigo,

Passei alguns momentos em sua casa, sem que o soubesse; retomei as minhas cartas. Oh! Armando, aqui entre nós, isso pode ser indiferença, e o ódio procede de outro modo. Se me ama, cesse este jogo cruel. Matar-me-ia. Mais tarde haverá de desesperar-se, sabendo o quanto é amado. Mas, se infelizmente o compreendi, se tem por mim apenas aversão, a aversão importa desprezo e desgosto; então toda esperança me abandonará: os homens não retrocedem desses dois sentimentos. Por terrível que seja, esse pensamento trará consolações ao meu longo sofrer. Não terá do que arrepender-se um dia. Arrependimento! Ah! meu Armando, que eu o ignore. Se eu lhe causasse um desgosto, um só?... Não, não lhe quero dizer que devastações faria em mim. Viveria e não poderia ser sua mulher. Depois de me ter dado inteiramente, em pensamento, a você, a quem então me dar?... A Deus. Sim, os olhos que você amou um momento não hão de ver mais rosto algum de homem, e possa a glória de Deus fechá-los! Não ouvirei mais voz humana depois de ter escutado a sua, tão doce a princípio, tão terrível ontem, pois que continuo sempre no amanhã de sua vingança; possa pois a palavra de Deus me consumir! Entre a cólera dele e a sua, meu amigo, não haverá para mim mais que lágrimas e orações. Perguntará talvez por que lhe escrevo? Ai de mim! só para conservar um vislumbre de esperança, exalar ainda um suspiro sobre a vida feliz, antes de a deixar para sempre. Estou numa situação horrível. Sinto toda a serenidade que uma grande resolução nos comunica à alma e ouço ainda os derradeiros ribombos da tempestade.

Nessa terrível aventura que tanto me ligou a você, Armando, você ia do deserto para o oásis, levado por um bom guia. Eu, ao contrário, me arrasto do oásis para o deserto, e você é o meu guia sem piedade. Não obstante, só você, meu amigo, poderá compreender a melancolia dos últimos olhares que dirijo à felicidade, e é a única pessoa a quem me posso queixar sem enrubescer. Se me atender, serei feliz; se for inexorável, expiarei meus erros. Não é, enfim, natural querer uma mulher permanecer na memória do seu amado, revestida de todos os sentimentos nobres? Oh! meu único amor! Deixe a sua criatura sepultar-se na crença de que haverá de julgá-la grande. Suas severidades me fizeram refletir; e, desde que o amo inteiramente, encontro-me menos culpada do que pensa. Ouça, pois, a minha justificação, eu lha devo; e você, que é tudo para mim no mundo, deve-me, ao menos, um instante de justiça.

Sei, por meu próprio sofrimento, quanto as minhas faceirices o fizeram sofrer; mas, então, eu me achava na completa ignorância do amor. Você, entretanto, está no segredo dessas torturas e a elas me submete. Durante os oito primeiros meses que me concedeu, não se fez amado. Por que, meu amigo? Não lho sei dizer, como não sei explicar por que o amo. Ah! decerto eu me sentia lisonjeada por me ver objeto de suas frases apaixonadas, e por receber seus olhares de fogo, mas me deixava fria e sem desejos. Não, eu não era absolutamente mulher; eu não concebia nem a dedicação nem a felicidade de nosso sexo. De quem a culpa? Não me teria desprezado se eu me houvesse entregue sem resistência? Talvez seja o sublime em nosso sexo o dar-se sem experimentar prazer algum; mas haverá algum mérito em entregar-se a gozos conhecidos e ardentemente desejados? Ai de mim! meu amigo, posso dizer-lhe, tais pensamentos me ocorreram, quando eu era tão faceira para você; mas já então eu o julgava tão grande que não desejava que me devesse à piedade... Que palavra acabo de escrever! Ah! Retomei de você todas as minhas cartas, atiro-as ao fogo! Elas se queimam. Não saberá jamais o que elas acusavam de amor, de paixão, de loucura... Calo-me, Armando, paro; não quero nada mais dizer-lhe dos meus sentimentos. Se minhas palavras não forem compreendidas de alma para alma, não poderei então, eu também, eu, a mulher, dever seu amor apenas à sua piedade. Quero ser amada impetuosamente ou impiedosamente desprezada. Se recusar ler esta carta, ela será queimada. Se, havendo-a lido, não for, dentro de três horas e para sempre, o meu único esposo, não sentirei vergonha de sabê-la em suas mãos: a nobreza do meu desespero garantirá minha memória contra toda injúria e o meu fim será digno do meu amor.

Tu mesmo, não me vendo mais neste mundo, embora sabendo-me viva, não pensarás sem fremir numa mulher que, dentro de três horas, não respirará mais senão para te cumular de ternura, numa mulher consumida pelo amor sem esperança e fiel, não a prazeres compartilhados, mas a sentimentos menosprezados.

A duquesa de Lavallière[159] chorava a felicidade perdida, e seu poder desvanecido, ao passo que a duquesa de Langeais será feliz no seu pranto e permanecerá para você um poder. Sim, há de ter pena de mim. Sinto que não era deste mundo, e agradeço-o por me haver demonstrado.

Adeus, não tocará em meu machado; o seu era o do carrasco, o meu é de Deus; o seu mata, o meu salva. O seu amor era mortal, não soube suportar nem o desdém nem a zombaria; o meu pode tudo sofrer sem fraquejar, porque é imoralmente vivaz. Ah! experimento uma alegria sombria em esmagá-lo, a você que se supõe tão grande, em humilhá-lo com o sorriso calmo e protetor dos débeis anjos que assumem, deitando-se aos pés de Deus, o direito e a força de velar em seu nome sobre os homens.

Você só teve passageiros desejos, enquanto a pobre religiosa iluminará incessantemente com as suas ardentes preces e o cobrirá sempre com as asas do amor divino. Pressinto a sua resposta, Armando, e lhe marco um encontro... no céu. Amigo, a força e a fraqueza são lá igualmente admitidas; ambas representam sofrimentos. Tal pensamento apazigua as agitações de minha última prova. Eis-me tão calma, que pensaria não mais te amar, se não fosse por ti que deixo o mundo.

antonieta

 

— Caro vidama — disse a duquesa chegando à casa de Montriveau —, faça-me o favor de perguntar na porta se ele está em casa.

O comendador, obediente à maneira dos homens do século xviii, desceu e voltou para dizer à prima um sim que a fez estremecer. A essa palavra, ela atraiu o comendador, apertou-lhe a mão, deixou-o beijar-lhe ambas as faces e pediu-lhe que se fosse sem a espiar ou pretender protegê-la.

— Mas e os transeuntes? — disse ele.

— Ninguém me poderá faltar ao respeito — respondeu ela.

Foram as últimas palavras da mulher da moda e da duquesa. O comendador se foi. A sra. de Langeais permaneceu na soleira da porta, envolta no manteau, e esperou que soassem as oito horas. O prazo expirou. A infeliz mulher concedeu-se mais dez minutos, um quarto de hora; por fim, viu uma nova humilhação naquele atraso e a confiança a abandonou. Não pôde reter uma exclamação:

— Ó meu Deus! — e deixou o funesto portal.

Foram as primeiras palavras da carmelita.

Montriveau estava em conferência com alguns amigos e apressou-os a dá-la por terminada, mas a sua pêndula estava atrasada e só saiu para ir ao palácio de Langeais no momento em que, levada por um frio furor, a duquesa fugia a pé pelas ruas de Paris. Ao atingir o Boulevard d’Enfer, ela chorou. Ali, pela última vez, contemplou a cidade confusa, ruidosa, coberta pela avermelhada atmosfera que suas luzes produziam; subiu depois para um carro de praça e saiu de Paris para nunca mais voltar.

Quando o marquês de Montriveau chegou ao palácio de Langeais, não encontrava a amante e acreditou-se logrado. Correu então à casa do vidama e foi recebido no momento em que o bom velho vestia o chambre, pensando na felicidade de sua jovem parenta. Montriveau lançou-lhe aquele olhar terrível cujo choque elétrico tocava do mesmo modo os homens e as mulheres.

— Senhor, ter-se-ia prestado a um cruel gracejo? — exclamou. — Venho de casa da sra. de Langeais, e os criados afirmam que saiu.

— Oh! aconteceu, sem dúvida, por culpa sua, uma grande desgraça — respondeu o vidama. — Deixei a duquesa à sua porta...

— A que horas?

— Às oito menos um quarto.

— Boa-noite — disse Montriveau, e regressou precipitadamente à casa, para perguntar ao porteiro se não vira, fazia pouco, uma dama à porta.

— Sim, senhor, uma bela senhora, que parecia sofrer grande desgosto. Chorava como uma Madeleine, sem fazer ruído, e permanecia ereta como uma estaca. Por fim disse um: “Ó meu Deus!” ao partir, que, com sua licença, nos cortou o coração, a mulher e a mim, que estávamos próximos sem que ela o percebesse.

Estas poucas palavras fizeram empalidecer aquele homem tão firme. Escreveu algumas linhas ao marquês de Ronquerolles, a cuja casa imediatamente as remeteu, e subiu para o quarto.

Cerca de meia-noite chegou Ronquerolles.

— Que tens, meu bom amigo? — disse, ao avistar o general.

Armando deu-lhe a ler a carta da duquesa.

— E então? — indagou Ronquerolles.

— Esteve à minha porta às oito horas e, às oito e um quarto, desapareceu. Eu a perdi e a amo! Ah! se a minha vida me pertencesse já teria feito saltar os miolos!

— Ora! Ora! — disse Ronquerolles —, acalma-te. As duquesas não desaparecem como os passarinhos. Ela não poderá andar mais de três léguas por hora; amanhã, nós faremos seis. Irra! — continuou —, a sra. de Langeais não é uma mulher qualquer. Amanhã estaremos todos a cavalo. Durante o dia saberemos pela polícia para onde foi. Foi-lhe preciso um carro, esses anjos não têm asas. Quer esteja a caminho ou escondida em Paris, nós a encontraremos. Não dispomos do telégrafo para fazê-la parar sem a seguir? Serás feliz. Mas, meu caro irmão, cometeste o erro de que são mais ou menos culpados os homens de tua força: o de julgar as outras almas pela sua, sem saber onde acaba o humano ao lhe estirarem as cordas. Por que não me disseste uma palavra antes? Eu te haveria dito: sê pontual. Até amanhã, pois — acrescentou, apertando a mão de Montriveau, que permanecia mudo. — Dorme, se puderes.

Mas foram em vão empregados os maiores recursos de que jamais homens de Estado, soberanos, ministros, banqueiros, enfim, de que nenhum poder humano se haja investido.

Nem Montriveau nem seus amigos puderam encontrar vestígios da duquesa. Evidentemente estava enclausurada. Montriveau resolveu esquadrinhar e mandar revistar todos os conventos do mundo. Queria a duquesa, ainda que custasse a vida de uma cidade inteira. Para fazer justiça a esse homem extraordinário, cumpre dizer que seu furor apaixonado se elevou dia a dia, sempre ardente, por cinco anos.

Somente em 1829, por acaso, soube o duque de Navarreins que a filha partira para a Espanha como criada de quarto de lady Julia Hopwood[160] e que deixara essa dama em Cádis sem que lady Julia se houvesse apercebido que a srta. Carolina era a ilustre duquesa cuja desaparição preocupava a alta sociedade parisiense.

Os sentimentos que animavam os dois amantes ao se reencontrarem na grade das carmelitas e em presença da madre superiora serão agora compreendidos em toda a sua extensão; e a sua violência, despertada de parte a parte, explicará, sem dúvida, o desenlace desta aventura.

IV — DEUS FAZ OS DESENLACES

Morto em 1823 o duque de Langeais, sua mulher estava livre. Antonieta de Navarreins vivia consumida pelo amor num rochedo do Mediterrâneo, mas o papa poderia anular os votos da irmã Teresa. A felicidade, adquirida com tanto amor, podia enfim desabrochar para ambos. Tais pensamentos fizeram Montriveau voar de Cádis a Marselha, de Marselha a Paris.

Poucos meses depois de sua volta à França, um brigue mercante, armado em pé de guerra, partiu do porto de Marselha e seguiu pela rota da Espanha. O navio fora fretado por vários homens distintos, quase todos franceses, que, tomados de paixão pelo Oriente, desejavam visitar tais regiões. O grande conhecimento que Montriveau possuía dos costumes daqueles povos fazia dele precioso companheiro de viagem para tais cavalheiros, que lhe solicitaram fosse com eles, ao que acedeu. O ministro da Guerra nomeou-o tenente-general e transferiu-o para a Artilharia, a fim de lhe facilitar aquela viagem de recreio.

O brigue ancorou, vinte e quatro horas depois de sua partida, a noroeste de uma ilha, à vista das costas da Espanha. A embarcação fora escolhida de carena muito fina e de mastreação leve, para que pudesse sem perigo ancorar a uma meia légua mais ou menos dos recifes que, desse lado, impediam inteiramente a abordagem da ilha.

Se outros barcos, ou os habitantes, percebessem o brigue naquele ancoradouro, não poderiam conceber receio algum. Ademais, foi fácil justificar o estacionamento. Antes de chegar à vista da ilha, Montriveau fizera arvorar o pavilhão dos Estados Unidos. Os marinheiros engajados para o serviço eram americanos e só falavam inglês. Um dos companheiros de Montriveau embarcou-os numa chalupa e os conduziu para um albergue da cidadezinha, onde os mantinha num estado de embriaguez que não lhes deixava a língua solta. Fez constar, depois, que o brigue fora equipado por buscadores de tesouros, gente conhecida nos Estados Unidos por seu fanatismo, e cuja história foi narrada por um dos escritores daquele país.[161] Desse modo, a presença do navio nos recifes ficou suficientemente explicada. Os armadores e os passageiros procuravam ali, dizia o pretenso contramestre dos marinheiros, os destroços de um galeão naufragado em 1788, com tesouros remetidos do México. Os hoteleiros e as autoridades locais não indagaram mais nada.

Armando e os devotados amigos que o secundavam na difícil empresa pensaram, de início, que nem a astúcia nem a força poderiam dar resultado no livramento ou rapto da irmã Teresa pelo lado da pequena cidade. Então, de comum acordo, aqueles homens audazes resolveram pegar o touro pelos chifres. Entenderam franquear um caminho até o convento pelos lugares que pareciam de todo impraticáveis e vencer a natureza, como o fizera o general Lamarque[162] no assalto a Capri. Em tais circunstâncias, as paredes de granito talhadas a pique, na extremidade da ilha, lhes ofereciam menos possibilidades que as de Capri ofereceram para Montriveau, que fizera parte da incrível expedição, e as monjas lhes pareciam mais temíveis do que o fora sir Hudson Lowe.[163] Raptar a duquesa com escândalo encheria de vergonha aqueles homens. Seria o mesmo que sitiar a cidade, o convento, e não deixarem uma só testemunha da vitória, à maneira dos piratas. Para eles a empresa não tinha senão duas alternativas: ou um incêndio, um feito de armas que horrorizaria a Europa se conservada na ignorância do motivo do crime; ou um rapto aéreo, misterioso, que persuadisse às freiras que o diabo lhes fizera uma visita. Esse último partido triunfou no conselho secreto reunido em Paris antes da partida. Em consequência, tudo fora previsto para o bom êxito da empresa que oferecia àqueles homens, fatigados dos prazeres de Paris, verdadeira diversão.

Uma espécie de canoa de extrema leveza fabricada em Marselha, segundo modelo malaio, permitia vogar pelos recifes até o local em que cessavam de ser praticáveis. Dois cabos de arame estendidos paralelamente à distância de poucos pés e inversamente inclinados, sobre os quais deviam deslizar os cestos também de arame, serviam de ponte, como na China, entre um rochedo e outro. Os escolhos foram assim unidos uns aos outros por um sistema de cabos e de cestos semelhante aos fios sobre os quais viajam certas aranhas e com os quais envolvem uma árvore: obra de instinto que o chinês, povo essencialmente imitador, copiou antes dos outros, historicamente falando. Nem as ondas nem os caprichos do mar poderiam desarranjar aquelas frágeis construções. Os cabos eram suficientemente folgados, a fim de oferecerem ao furor das vagas essa curvatura estudada por um engenheiro, o falecido Cachin,[164] o imortal criador do Port de Cherbourg, a linha sábia além da qual cessa o poder da água enfurecida; curva calculada segundo uma lei roubada aos segredos da natureza pelo gênio da observação que é quase todo o gênio humano.

Os companheiros do sr. de Montriveau ficaram a sós no navio. Olhos de homens não podiam chegar até eles. Os melhores óculos de alcance assestados do alto dos conveses pelos marinheiros dos navios em trânsito não permitiriam descobrir nem os cabos perdidos nos recifes nem os homens escondidos no rochedo. Depois de onze dias de preparativos, os treze demônios humanos chegaram ao pé do promontório que se eleva umas trinta toesas[165] sobre o mar, bloco tão difícil de ser transposto pelos homens como, talvez, a um camundongo o trepar pelo ventre polido de um vaso de porcelana. Felizmente o paredão de granito tinha uma fenda. Esta, cujos lados tinham a rigidez da linha reta, permitiu que se fixassem, a um pé de distância uma da outra, grandes cunhas de madeira nas quais os ousados trabalhadores cravaram grampos de ferro, os quais, preparados de antemão, terminavam numa palheta perfurada, sobre a qual fixaram degraus de madeira de pinho extremamente leve, que vinham adaptar-se aos entalhes de um mastro tão alto como o promontório e fixado ao pé da rocha, na margem. Com habilidade digna de tais executores, um deles, profundo matemático, calculara o ângulo necessário para afastarem-se gradualmente os degraus do alto e debaixo do mastro de modo a colocar no centro o ponto a partir do qual os degraus da parte superior atingiam em leque o alto rochedo; figura que igualmente representavam, mas em sentido inverso, os degraus da parte inferior. A escada de miraculosa leveza e de solidez perfeita custou vinte e dois dias de trabalho. Um isqueiro, uma noite e a ressaca do mar eram suficientes para fazer desaparecer para sempre os seus vestígios. Assim, nenhuma indiscrição seria possível e pesquisa alguma contra os violadores do convento poderia dar resultado.

No alto do rochedo se encontrava uma plataforma limitada por três lados pelo precipício cortado a pique. Os treze desconhecidos, examinando o terreno através dos óculos de alcance do alto do cesto da gávea, haviam verificado que, não obstante algumas asperezas, poderiam facilmente chegar aos jardins do convento, onde árvores suficientemente copadas ofereciam seguros abrigos. Ali chegados, teriam de decidir ulteriormente por que meios se consumaria o rapto da religiosa. Depois de tão grandes esforços não queriam comprometer a empresa arriscando ser percebidos e foram, assim, obrigados a aguardar que expirasse o último quarto da lua.

Montriveau permaneceu durante duas noites envolto numa capa, deitado sobre o rochedo. Os cantos das Vésperas e os de Matinas causaram-lhe inexprimíveis delícias. Foi até o muro para poder ouvir a música do órgão e esforçou-se por distinguir uma voz naquela massa de vozes. Mas, apesar do silêncio, a distância não deixava chegar a seu ouvido senão harmonias em que os defeitos de execução não se faziam mais sentir e cujo puro pensamento de arte se desprendia, comunicando-se à alma sem lhe exigir nem os esforços da atenção nem as fadigas do entendimento. Terríveis lembranças para Armando, cujo amor refloria por inteiro naquela brisa musical em que supunha encontrar aéreas promessas de ventura.

Na manhã que se seguiu à última noite, ele desceu antes do nascer do sol, depois de ter permanecido várias horas com os olhos fitos na janela sem grades de uma cela. As grades não eram necessárias no alto de tais abismos.

Vira ali uma luz durante toda a noite. E o instinto do coração, que tantas vezes engana como diz verdade, segredara-lhe: “Ela está lá”.

“Ela está certamente lá, e amanhã eu a terei”, pensou ele, mesclando alegres pensamentos aos sons de um sino que soava lentamente. Estranha bizarria do coração! Amava com mais paixão a religiosa desfeita pelos transportes de amor, consumida pelas lágrimas, os jejuns, as vigílias e a prece, a mulher de vinte e nove anos fortemente posta à prova, do que amara a moça graciosa, a mulher de vinte e quatro anos, a sílfide. Mas não têm inclinações os homens de alma vigorosa que os arrastam para as sublimes expressões que nobres desventuras ou impetuosos movimentos de pensamento gravam na fisionomia da mulher?

A beleza de uma mulher mortificada não é a mais atraente de todas para os homens que sentem no coração um tesouro inesgotável de consolações e de ternuras para espargir sobre uma criatura graciosa pela fraqueza e forte pelo sentimento? A beleza fresca, corada, sem falhas, o bonito, numa palavra, é o atrativo vulgar a que se prende a mediocridade.

Montriveau devia amar os rostos em que o amor ressalta entre as rugas da dor e as ruínas da melancolia. Um amante faz brotar, pela atração de seus poderosos desejos, um ser inteiramente novo, jovem, palpitante, que rompe por si só um envoltório belo para ele, desfeito para o mundo. E não possui ele duas mulheres — a que se apresenta aos outros, pálida, descorada, triste; e a do coração, que ninguém vê, um anjo que compreende a vida pelo sentimento e que só se manifesta em toda a sua glória nas solenidades do amor?

Antes de deixar o seu posto, ouviu o general fracos acordes que partiam daquela cela, doces vozes cheias de ternura. Ao encontrar-se na base do rochedo sob o qual se conservavam os seus amigos, disse-lhes em poucas palavras impregnadas da paixão comunicativa, embora discreta, de que os homens sempre respeitam a expressão grandiosa, que jamais na vida experimentara tão cativante felicidade.

Chegada a noite, onze companheiros devotados se içaram na sombra para o alto do rochedo, tendo cada um deles um punhal, uma provisão de chocolate e todos os instrumentos que comporta o ofício de ladrão. Franquearam o muro do recinto por meio de escadas que haviam fabricado e viram-se assim no cemitério do convento.

Montriveau reconheceu a longa galeria abobadada pela qual chegara ao parlatório e as janelas da sala. Num momento elaboraram um plano e o adotaram. Consistia em abrir uma passagem pela janela do parlatório que iluminava a parte deste reservado às carmelitas, penetrar nos corredores, verificar se havia nomes inscritos em cada cela, ir até à da irmã Teresa e surpreender e amordaçar a religiosa durante o sono, manietá-la e roubá-la. Todas as partes do programa eram fáceis para homens que à audácia, à desenvoltura de forçados, aliavam os conhecimentos próprios das pessoas da sociedade, e para os quais era indiferente dar uma punhalada para garantir o silêncio.

A grade da janela foi serrada em duas horas. Três homens se puseram de sentinela no exterior e dois outros ficaram no parlatório. O resto, de pés descalços, postou-se de distância em distância através do claustro onde penetrou Montriveau oculto por trás de um jovem, o mais ágil de todos, Henrique de Marsay, que, por prudência, vestia um hábito de carmelita absolutamente igual aos do convento. O relógio batia três horas quando a falsa religiosa e Montriveau chegaram ao dormitório. Imediatamente verificaram a situação das celas. A seguir, não ouvindo ruído algum, leram, com auxílio de uma lanterna surda, os nomes felizmente inscritos em cada porta, acompanhados de estampas de santos ou santas e de divisas místicas, que cada religiosa tomava como epígrafe do novo capítulo de sua vida e nas quais revelava seus últimos pensamentos.

Na cela da irmã Teresa, leu Montriveau esta inscrição:

 

sub invocatione sanctæ matris theresæ

 

E a divisa era:

 

adoremus in æternum.[166]

 

Seu companheiro, pondo-lhe uma mão no ombro, chamou-lhe a atenção para um raio de luz que iluminava as lajes do corredor pela fresta da porta. Nesse instante o sr. de Ronquerolles alcançou-os.

— Todas as religiosas estão na igreja e começam a rezar o ofício dos mortos — disse.

— Fico aqui — respondeu Montriveau —, retirem-se para o parlatório e fechem a porta deste corredor.

Entrou rapidamente fazendo-se preceder pela falsa religiosa, que baixara o véu. Viram então, na antecâmara da cela, a duquesa morta, posta no chão sobre a tábua de seu leito e iluminada por dois círios. Nem Montriveau nem De Marsay disseram uma só palavra ou soltaram uma só exclamação, entreolharam-se apenas. E o general fez um gesto que queria dizer: “Levemo-la”.

— Fujam — gritou-lhes Ronquerolles. — A procissão das religiosas se põe em marcha e serão surpreendidos.

Com a rapidez mágica que um extremo desejo comunica aos movimentos, a morta foi levada para o parlatório, passada pela janela e transportada para o pé do muro, no momento em que a Madre Superiora, seguida pelas religiosas, chegava para carregar o corpo da irmã Teresa. A freira que velava a morta tinha cometido a imprudência de remexer na cela para conhecer-lhe os segredos e se absorvera tanto na revista que nada ouviu e saía então de lá, espavorida por não ver mais ali o corpo. Antes que aquelas mulheres estupefatas tivessem pensado numa busca, o corpo da duquesa fora descido por uma corda para a base do rochedo e os companheiros de Montriveau tinham destruído a sua obra. Às nove horas da manhã nenhum vestígio existia nem da escada nem das pontes de cabos; o corpo da irmã Teresa estava a bordo; o brigue foi até o porto para embarcar os marinheiros e desapareceu no mesmo dia.

Montriveau ficou sozinho na sua cabina com Antonieta de Navarreins, cujo rosto, durante algumas horas, resplandeceu para ele das sublimes belezas que a calma particular da morte empresta aos nossos despojos mortais.

— Ah! Aquilo — disse Ronquerolles a Montriveau, quando este reapareceu no convés — era uma mulher, agora não é nada. Atemos-lhe uma bala em cada pé e atiremo-la ao mar; e não penses mais nela senão como pensamos num livro lido durante a infância.

— Sim — disse Montriveau —, pois que isto nada mais é que um poema.

— Vejo-te, afinal, ajuizado. Daqui por diante tem paixões, mas quanto ao amor é preciso saber bem empregá-lo; e só o último amor de uma mulher pode satisfazer o primeiro amor de um homem.

 

 

Genebra, Pré-Lévêque, 26 de janeiro de 1834

 

 

A MENINA DOS OLHOS DE OURO

A EUGÈNE DELACROIX[167]

I — FISIONOMIAS PARISIENSES

Espetáculo que reúne todos os assombros é, sem dúvida, o aspecto geral da população parisiense, gente horrível de ver-se, lívida, amarela, tanada. Pois não é Paris um vasto campo incessantemente revolvido pela tempestade dos interesses sob a qual turbilhona uma seara de homens que a morte ceifa mais frequentemente que alhures, e que renascem sempre do mesmo modo comprimidos, de rostos conturbados, fisionomias retorcidas, a extravasarem por todos os poros o espírito, os desejos, os venenos que lhe enchem os cérebros? Mas, não; não são rostos; são antes máscaras — máscaras de fraqueza, máscaras de força, máscaras de misérias, máscaras de alegria, máscaras de hipocrisia; todas extenuadas, marcadas todas pelos sinais indeléveis de uma ofegante avidez. Que quer essa gente? Dinheiro ou prazer?

Algumas observações sobre a alma de Paris poderão explicar as causas de sua fisionomia cadavérica, que só tem duas idades: a juventude ou a senilidade; juventude desbotada e sem cor; senilidade dissimulada que quer parecer jovem.

Ao ver esse povo exumado, os estrangeiros, não habituados a refletir, experimentam à primeira vista um movimento de repugnância pela capital, vasto laboratório de gozos, do qual eles próprios não conseguirão em breve sair, nele permanecendo prazenteiramente a se deformar. Poucas palavras serão suficientes para justificar fisiologicamente a cor de tez quase infernal das criaturas parisienses, pois não seria apenas por brincadeira que Paris foi chamada de um inferno. Considere-se verdadeira a palavra. Ali tudo queima, tudo é fumaça, tudo brilha, tudo ferve, tudo arde, se evapora, se extingue, se reacende, faísca, cintila e se consome. Jamais a vida em qualquer outro lugar foi mais ardente ou mais abrasadora. Essa natureza social, sempre em fusão, parece dizer ao cabo de cada obra: “Vamos a outra!” tal como o faz a própria natureza. Como a natureza, essa natureza social ocupa-se com insetos, flores de um dia, bagatelas, coisas efêmeras, e lança também fogo e cinzas por sua cratera eterna.

Antes de analisar as causas que dão uma fisionomia especial a cada tribo dessa nação inteligente e móvel, talvez se deva assinalar a causa geral que descolore, empalidece, torna azulados e pardos seus indivíduos, ora mais, ora menos.

À força de se interessar por tudo, o parisiense acaba não se interessando por nada. Não dominando sentimento algum em sua face gasta pelo atrito, ela torna-se acinzentada como as fachadas dos prédios que receberam toda espécie de poeiras e fuligens. Com efeito, indiferente, na véspera, àquilo que o vai apaixonar no dia seguinte, o parisiense, seja qual for sua idade, vive como uma criança. Queixa-se de tudo; consola-se com tudo; ri-se de tudo; esquece tudo; quer tudo; gosta de tudo; empenha-se em tudo com paixão; abandona tudo com indiferença: seus reis, suas conquistas, suas glórias, seu ídolo, quer seja de bronze, quer de vidro, tal como esbanja as meias, os chapéus e a fortuna.

Em Paris, sentimento algum resiste ao fluxo dos acontecimentos, cuja corrente obriga a uma luta que desarma as paixões; o amor é nela um desejo e o ódio uma veleidade; não há nela parente mais verdadeiro que uma nota de mil francos nem melhor amigo que a casa de penhores. Essa indiferença geral produz seus frutos; e nos salões, como nas ruas, ninguém está de mais, ninguém é absolutamente útil nem absolutamente prejudicial, mesmo os tolos e os tratantes, e as pessoas de espírito ou as criaturas honestas. Tudo ali se tolera: o governo e a guilhotina, a religião e a cólera. Em tal sociedade todos cabem sempre e ninguém jamais faz falta. Quem então domina nessas paragens sem costumes, sem crenças, sem sentimento algum, mas de onde partem e aonde vão ter todos os sentimentos, todas as crenças e todos os costumes? O prazer e o ouro.

Tomem-se estas duas palavras como uma lanterna e percorra-se essa grande jaula de estuque, essa colmeia de valetas negras, e siga-se o serpentear do pensamento que a agita, que a conduz, que a trabalha. Que se vê? Examinemos em primeiro lugar o mundo dos que nada têm:

O trabalhador, o proletário, o homem que move os pés, as mãos, a língua, o dorso, o braço único, os cinco dedos para viver; pois bem! Esse, que deveria ser o primeiro a economizar o princípio vital, ultrapassa as próprias forças, atrela a mulher a uma máquina qualquer, pega do filho e o amarra a uma engrenagem. Quanto ao artífice — esse não sei que fio secundário cujo movimento agita o povo que com as mãos sujas modela e doura as porcelanas, cose as casacas e os vestidos, afila o ferro, desbasta a madeira, cinzela o aço, fia o cânhamo e o linho, lustra os bronzes, recorta o cristal, imita as flores, borda a lã, adestra os cavalos, trança os arreios e os galões, retalha o cobre, pinta as carruagens, torneia os velhos olmos, torna vaporoso o algodão, sopra o vidro, lapida o diamante, funde os metais, corta o mármore em folhas, dá polimento às pedras, enfeita o pensamento, colore, embranquece ou enegrece tudo —, esse contramestre veio prometer a esse mundo de suor e de vontade, de estudo e de paciência, um salário desmedido, já em nome dos caprichos da cidade, já a mando do monstro chamado Especulação. Então, esses quadrúmanos puseram-se a velar, a sofrer, a trabalhar, a praguejar, a jejuar e a andar; excederam-se todos para ganhar o ouro que os fascina.

E, descuidados do futuro, ávidos de prazeres, contando com os braços como os pintores com suas palhetas, atiram, grandes senhores de um dia, seu dinheiro às segundas-feiras nas tabernas, que cercam a cidade de um cinto de lama, cinto da mais impudica das Vênus, incessantemente afivelado e desafivelado, onde se perde, como no jogo, a fortuna periódica dessa gente tão feroz no prazer como resignada no trabalho. Durante cinco dias, não há assim repouso para essa parte ativa de Paris. Entrega-se a movimentos que a fazem torcer-se, inchar, emagrecer, empalidecer, borbulhar em mil jatos de vontade criadora. Depois, seu prazer, seu repouso é uma fatigante devassidão de pele trigueira, negra de bofetadas, macilenta de embriaguez ou amarela de indigestão, devassidão que não dura mais de dois dias, mas que rouba o pão do futuro, a sopa da semana, os vestidos da mulher, os cueiros dos filhos esfarrapados.

Esses homens, nascidos, sem dúvida, para serem belos, pois que toda criatura tem sua beleza relativa, arregimentaram-se desde a infância sob o comando da força, sob o império do martelo, das tesouras ou da fiação, e prontamente se vulcanizaram... Vulcano,[168] com a sua deformidade e a sua força, não é acaso o símbolo desta nação disforme e forte, sublime de inteligência mecânica, paciente todo o tempo, terrível um dia por século, inflamável como a pólvora e preparada para o incêndio revolucionário pelo álcool, bastante espiritual enfim para prender fogo a um mote capcioso que para ela significa sempre: ouro e prazer?!

Computando-se todos os que estendem a mão à esmola, ao salário justo ou aos cinco francos concedidos a toda espécie de prostituição parisiense, enfim, a todo dinheiro bem ou mal ganho, totaliza essa gente trezentos mil indivíduos. Sem as tabernas, o governo não seria derrubado todas as terças-feiras? Felizmente, na terça, essa gente toda se acha entorpecida, coze o seu prazer, não tem mais vintém e retorna ao trabalho, ao pão seco, estimulada por uma necessidade material de procriação que para ela se tornou hábito. Tem esse povo, entretanto, seus fenômenos de virtude, seus homens completos, seus Napoleões desconhecidos, que são os protótipos de sua força elevada à expressão mais alta e resumem o alcance social de uma existência em que o pensamento e a ação se combinam menos para nela injetar alegria que para regularizar a ação da dor.

Se o acaso tornou econômico um operário, se o acaso o presenteou com uma ideia, se pôde lançar olhos ao futuro, se encontrou uma mulher e viu-se pai, depois de anos de duras privações abre um pequeno armarinho, estabelece uma loja. E se nem a doença nem o vício o fazem parar no caminho, se pôde prosperar, eis completo o quadro dessa vida normal.

Mas, antes de tudo, saudemos esse rei do movimento parisiense, que submeteu a si o tempo e o espaço. Sim, saudemos essa criatura composta de azougue e de gás, que dá filhos à França durante suas noites laboriosas e multiplica durante o dia a sua pessoa para o serviço, a glória e o prazer dos seus concidadãos. Tal homem resolveu o problema de satisfazer, ao mesmo tempo, a uma mulher amável, ao lar, a Le Constitutionnel,[169] à repartição, à Guarda Nacional, à Ópera e a Deus; mas para transformar em escudos Le Constitutionnel, a repartição, a Ópera, a Guarda Nacional, a mulher e a Deus.

Saudemos, enfim, o irrepreensível acumulador.

Levantando-se diariamente às cinco horas, percorre como um pássaro a distância que separa sua residência da Rue Montmartre. Quer chova ou vente, neve ou troveje, chega a Le Constitutionnel e espera o maço de jornais cuja distribuição empreitou. Recebe esse pão político com avidez, agarra-o e o carrega. Às nove se encontra à soleira de sua porta, atira um trocadilho à mulher, rouba-lhe um grande beijo, saboreia uma taça de café ou ralha com os filhos. Às dez menos um quarto aparece na mairie.[170] Lá, instalado numa cadeira, como um papagaio num poleiro, aquecido pela cidade de Paris, inscreve até as quatro, sem lhes conceder uma lágrima ou um sorriso, os óbitos e os nascimentos de toda uma zona. A felicidade e a desgraça do distrito passam pelo bico da sua pena, como o espírito de Le Constitutionnel viajava, há pouco, sobre seus ombros. Nada lhe pesa. Anda sempre em linha reta, para a frente, toma o seu patriotismo já formulado pelo jornal, não contradiz ninguém, grita ou aplaude como todo o mundo, e vive como as andorinhas. A dois passos da sua paróquia, pode, no caso de uma cerimônia importante, deixar o lugar entregue a um extranumerário e ir cantar um réquiem no coro da igreja, de que é, aos domingos e dias santos, o mais belo ornamento, a voz mais imponente, ou onde abre com energia a grande boca para trovejar um alegre Amém. É, então, cantor. Livre às quatro horas do serviço oficial, aparece para espalhar alegria e bom humor na mais célebre das lojas da Cité.[171] Feliz da sua mulher, pois que ele não tem tempo para ser ciumento; é mais homem de ação que de sentimento. Por isso, desde que chega, começa a provocar as pequenas do balcão, cujos olhos vivos atraem numerosos fregueses. Recreia-se entre os adereços, as mantilhas, a musselina trabalhada por aquelas mãos hábeis; ou, mais seguidamente, antes de jantar, atende a uma freguesa, escritura uma página de diário ou leva ao oficial do registro uma letra vencida. Às seis, de dois em dois dias, está fielmente em seu posto. Irremovível barítono dos coros, encontra-se na Ópera, pronto a fazer-se soldado, árabe, prisioneiro, selvagem, campônio, sombra, pata de camelo, leão, diabo, gênio, escravo, eunuco negro ou branco, sempre capaz de provocar alegria ou dor, piedade ou espanto, de soltar invariáveis gritos ou de se calar, sempre pronto a caçar ou a duelar, a representar Roma ou o Egito, mas, sempre, in petto,[172] armarinheiro. À meia-noite volta a ser bom marido, humano, pai amoroso, desliza no leito conjugal com a imaginação ainda repleta das formas sedutoras das ninfas da Ópera, e faz assim reverter, em proveito do amor conjugal, as depravações da sociedade e as voluptuosas curvas das pernas da Taglioni.[173] Se dorme, enfim, dorme rapidamente, e gasta o sono como gasta a vida. Não é ele o movimento feito homem, o espaço em pessoa, o proteu da civilização? Esse homem resume tudo: história, literatura, política, administração, religião, arte militar. Não é uma enciclopédia viva, um atlas grotesco, incessantemente em marcha, como Paris, e que jamais repousa? Nele tudo são pernas. Fisionomia alguma poderia conservar-se pura em tais trabalhos. O operário que morre velho aos trinta anos, com o estômago curtido pelas doses progressivas do álcool, talvez seja, no dizer de certos filósofos bem instalados, mais feliz do que é o armarinheiro. Um morre de uma vez só e o outro no varejo. De seus oito ofícios, de suas espáduas, de sua garganta, de suas mãos, de sua mulher e de seu comércio este retira, como de outras tantas granjas, filhos, alguns milhares de francos e a mais trabalhosa felicidade que já tenha alegrado o coração de homem. Tal fortuna e tais filhos, ou só os filhos, que resumem tudo para ele, são encaminhados para uma posição superior; a ela conduz seus escudos e sua filha, ou seu filho educado no colégio, o qual, mais instruído que o pai, lança mais longe suas vistas ambiciosas. E quantas vezes o benjamim de um modesto retalhista quer ser alguém no Estado.

Essa ambição leva a considerar a segunda camada parisiense. Subi, pois, um andar e chegai ao sótão ou descei do sótão e permanecei no quarto piso. Penetrai, enfim, na sociedade que possui algo: lá, o resultado é o mesmo. Os atacadistas e os seus rapazes, os empregados, o pessoal dos pequenos bancos e da grande probidade, os velhacos, as almas danadas, os primeiros e os últimos caixeiros, os auxiliares dos oficiais de justiça, dos tabeliões, dos advogados, os membros agentes, pensantes, especulantes dessa pequena burguesia que cuida dos negócios de Paris e vigia os seus interesses, monopoliza os gêneros, armazena os produtos fabricados pelos proletários, acondiciona as frutas do sul, os peixes do oceano e os vinhos das costas amadas pelo sol; que estende as mãos para o Oriente e traz os xales desprezados pelos turcos e pelos russos, que vai buscar as colheitas até mesmo à Índia e deita-se para esperar a venda, que suspira depois pelos lucros, desconta as letras, arrola e encaixa todos os valores; que encaixota amiúde Paris inteira, transporta-a, observa as fantasias da infância, espreita os caprichos e os vícios da idade madura e explora-lhe as moléstias; pois bem, sem beber álcool como o operário, sem ir chafurdar na lama das barreiras, todos excedem também as próprias forças; distendem além da medida o físico e o moral, um pelo outro, ralam-se de desejos, atiram-se a corridas desenfreadas. Neles a distorção física se verifica sob o acicate dos interesses, sob o estímulo das ambições que atormentam as classes elevadas dessa monstruosa cidade, tal como a dos proletários se verifica sob a cruel maromba das elaborações materiais incessantemente solicitadas pelo despotismo do eu quero aristocrático.

Lá, também, para obedecer a esse senhor universal, o prazer ou o ouro, é preciso devorar o tempo, apressar o tempo, arranjar mais de vinte e quatro horas no dia e na noite, enervar-se, matar-se, vender trinta anos de velhice por dois anos de repouso doentio. Apenas o operário morre no hospital ao se operar o último termo do seu definhamento, enquanto o pequeno-burguês persiste em viver e vive, mas cretinizado; encontrá-lo-eis com a face gasta, aplastada, velha, sem brilho nos olhos, sem firmeza nas pernas, arrastando-se com ar idiota pelos bulevares, o cinto de sua Vênus, de sua querida cidade.

Que deseja o burguês? O sabre da Guarda Nacional, um cozido invariável, um lugar decente no Père-Lachaise,[174] e, para a velhice, um pouco de ouro, legitimamente ganho. A segunda-feira dele é o domingo. Seu repouso é o passeio ao campo, num carro de aluguel, passeio durante o qual a mulher e os filhos engolem alegremente a poeira ou se assam ao sol; sua barreira é o restaurante, cujo venenoso jantar possui renome, ou algum baile familiar onde se sufoca até meia-noite.

Certos tolos admiram-se da dança de Saint Guido, de que parecem atacadas as mônadas que o microscópio permite divisar-se numa gota d’água; mas que diria o Gargântua[175] de Rabelais, figura de sublime audácia incompreendida, que diria esse gigante caído das esferas celestes, se se divertisse a contemplar o movimento dessa segunda esfera da vida parisiense? Eis uma das suas fórmulas: quem não viu ainda uma dessas barraquinhas, frias no verão, sem outro aquecimento no inverno que o de um fogareiro de brasas, colocadas sob a vasta calota metálica que cobre o mercado do trigo? Madame lá está desde manhã cedo, pois é comissária da feira e ganha nesse ofício, ao que dizem, doze mil francos por ano. O marido, quando madame se levanta, passa para um escuro gabinete, onde faz empréstimos usurários aos comerciantes do bairro. Às nove horas, encontra-se na seção dos passaportes, de que é um dos subchefes. À noite, está na caixa do Théâtre des Italiens[176] ou de qualquer um dos outros. Os filhos são entregues a uma ama e só voltam para serem enviados à escola ou a um internato. O casal reside num terceiro andar, tem apenas uma cozinheira, dá bailes numa sala de doze pés por oito, iluminada por lampiões de querosene; mas tem cento e cinquenta mil francos para o dote da filha e se retira dos negócios aos cinquenta anos, idade na qual começa a aparecer nos camarotes de terceira da Ópera, num carro de aluguel em Longchamp, ou com roupas desbotadas, todos os dias de sol, nos “bulevares”, que são a latada de tais frutos. Estimados na região, prezados pelo governo, aliados à alta burguesia, o marido obtém aos sessenta e cinco anos a cruz da Legião de Honra, e o pai do seu genro, maire[177] de um distrito, convida-o para os seus saraus.

Tais trabalhos de uma vida inteira aproveitam, assim, aos filhos que essa pequena burguesia tende fatalmente a elevar para a alta. Cada esfera atira assim sua prole à esfera superior. O filho do rico vendeiro faz-se tabelião, o filho do lenheiro torna-se magistrado. Não falta um único dente para se engranzar na ranhura e tudo estimula o movimento ascensional do dinheiro.

Desse modo chegamos ao terceiro círculo desse inferno que, possivelmente, terá um dia o seu Dante. Nesse terceiro círculo social, espécie de ventre parisiense, onde se digerem os interesses da cidade e onde eles se condensam sob a forma chamada negócios, move-se e agita-se, por um movimento intestinal ácido e bilioso, a multidão dos procuradores, médicos, tabeliões, advogados, homens de negócios, banqueiros, grandes comerciantes, especuladores e magistrados. Ali se encontram ainda mais causas para a destruição física e moral do que em qualquer outra parte. Quase toda essa gente vive em infectos escritórios, empestadas salas de audiências, em pequenos gabinetes gradeados, passa o dia curvada sob o peso dos negócios, encontra-se de pé desde a madrugada para estar atenta, para não deixar-se roubar, para tudo ganhar e nada perder, para apoderar-se de um homem ou do seu dinheiro, para combinar ou desmanchar um negócio, para tirar partido de uma circunstância de momento, para fazer enforcar ou absolver um homem.

Reagem sobre os cavalos e os rebentam; cansam-nos, envelhecem-lhes, também a eles, as pernas antes do tempo. O tempo é o seu tirano; falta-lhes e lhes foge; não o podem aumentar nem diminuir. Que alma pode conservar-se grande, pura, moral e generosa, e, consequentemente, que rosto permanecerá belo no degradante exercício de uma profissão que força a suportar o peso das misérias públicas, a analisá-las, pesá-las, avaliá-las e explorá-las?

Onde coloca essa gente o coração?... Não sei; mas deixa-o em algum lugar, quando o tem, antes de descer todas as manhãs ao fundo das angústias que torturam as famílias. Para essas criaturas não há mistérios; veem o avesso da sociedade de que são os confessores, e a desprezam. Seja o que for que façam, à força de se medirem com a corrupção, ou têm dela horror e se entristecem, ou, por cansaço, por transação secreta, nela caem: necessariamente, enfim, embotam-se para todos os sentimentos esses homens que as leis, os homens, as instituições fazem voar como corvos sobre os cadáveres ainda quentes.

A todo momento o homem de dinheiro pesa os vivos, o homem dos contratos pesa os mortos, o homem da lei pesa a consciência. Obrigados a falar sem cessar, trocam todos o pensamento pela palavra, o sentimento pela frase, e suas almas transformam-se em laringe. Gastam-se e se desmoralizam. Nem o grande comerciante nem o juiz nem o advogado conservam reto o juízo: não sentem mais; aplicam as regras que adulteram as espécies. Levados por sua existência tormentosa, não são nem esposos nem pais nem amantes; deslizam sobre as coisas da vida e vivem cada instante impelidos pelos negócios da grande cidade.

Ao voltarem à casa, são compelidos a ir ao baile, à Ópera, às festas onde vão fazer clientes, travar relações, procurar protetores. Comem todos desmedidamente, jogam, velam, e seus rostos se arredondam, se embrutecem, se avermelham. A tão terríveis gastos de forças intelectuais, a tantas contrações morais opõem não o prazer, que é demasiado fraco para contraste, mas a devassidão, devassidão secreta, espantosa, pois podem dispor de tudo e formulam a moral da sociedade. Sua estupidez real esconde-se sob uma ciência especial. Conhecem seus ofícios, mas ignoram tudo o que não lhes diz respeito. Então, para salvar o amor-próprio, questionam sobre tudo, criticam a torto e a direito; fingem-se duvidadores quando na realidade são papalvos, e desperdiçam o espírito em intermináveis discussões.

Quase todos adotam, comodamente, os preconceitos sociais, literários ou políticos para se dispensarem de ter opinião, tal como põem suas consciências ao abrigo do Código ou do Tribunal de Comércio. Começando cedo para se tornarem homens notáveis, permanecem medíocres e se arrastam pelos cimos sociais. Desse modo, suas fisionomias apresentam essa palidez áspera, essas falsas cores, esses olhos embaciados por olheiras, essas bocas tagarelas e sensuais em que o observador descobre os sintomas do abastardamento do pensar e sua rotação no círculo duma especialidade que mata as faculdades criadoras do cérebro, o dom de encarar as coisas com grandeza, de generalizar e de destruir.

Encarquilham-se quase todos na fornalha dos negócios. Ora, necessariamente, o homem que se deixa prender nos dentes ou nas engrenagens dessas imensas máquinas nunca poderá tornar-se grande. Se é médico, pouco praticará a medicina, ou será uma exceção, um Bichat,[178] a morrer jovem. Se, grande comerciante, mantiver-se à tona, é quase um Jacques Cœur.[179] Robespierre não exerceu a profissão; Danton foi um preguiçoso em expectativa. Mas quem, aliás, já invejou as figuras de Danton e Robespierre, por soberbas que tenham sido? Esses azafamados por excelência atraem a si o dinheiro e o entesouram para se aliarem às famílias aristocráticas. Se a ambição do operário é a mesma do pequeno-burguês, nesse caso são ainda iguais as paixões. Em Paris a vaidade resume todas as ambições. O protótipo dessa classe será ou o burguês ambicioso que, depois de uma vida de angústias e de contínuas manobras, passa para o Conselho de Estado como uma formiga por uma fenda; ou qualquer redator de jornal, mestre em intrigas, que o rei faz par de França, talvez para se vingar da nobreza; ou um tabelião, que se tornou maire do seu distrito; mas sempre homens moldados pelos negócios e que, se atingem o fim, a ele chegam mortos. É uso na França entronizar os medalhões. Napoleão, Luís xiv e os grandes reis sempre quiseram jovens para realizar os seus desígnios.

Acima dessa esfera vive o mundo artístico. Mas ali, também, as fisionomias marcadas pelo cunho da originalidade são nobremente alquebradas, mas sempre alquebradas, gastas e desfeitas. Esgotados pela necessidade de produzir, fatigados pelas suas árduas fantasias, cansados por um gênio devorador, esfomeados de prazeres, os artistas de Paris querem reparar com penosos trabalhos as lacunas deixadas pela preguiça, e visam em vão conciliar a sociedade e a glória, o dinheiro e a arte. No começo o artista vive incessantemente a ofegar sob o acicate dos credores; suas necessidades geram as dívidas e as dívidas exigem-lhe as noites. Depois do trabalho vem o prazer. O comediante representa até meia-noite, estuda pela manhã, ensaia ao meio-dia; o escultor dobra-se sob o peso de sua estátua; o jornalista é um pensamento em marcha como um soldado na guerra; o pintor em voga vê-se sobrecarregado de trabalho, enquanto o pintor sem ocupação passa fome se se julgar genial. A concorrência, as rivalidades e as calúnias assassinam os talentos. Uns, desesperados, rolam no abismo dos vícios, outros morrem jovens e ignorados por haverem sacado muito cedo sobre o futuro. Poucas dessas figuras, originariamente sublimes, continuam belas. De resto, a beleza flamejante de suas cabeças permanece incompreendida. Uma fisionomia de artista é sempre exorbitante, encontra-se sempre aquém ou além das linhas convencionais daquilo que os imbecis denominam de belo ideal. Que poder os destrói? A paixão. Toda paixão em Paris resume-se em dois termos: ouro e prazer.

Agora, respiremos. Não sentis o ar e o espaço purificados? Aqui não há trabalhos nem penas. A turbilhonante voluta do ouro atingiu as alturas. Do fundo dos respiradouros onde começam as suas torrentes, do fundo das lojas onde a detêm mesquinhas ensecadeiras de dentro dos balcões ou dos grandes laboratórios onde se deixa fundir em barras, o ouro, sob a forma de dotes ou de sucessões, trazido por mãos de jovens noivas ou por mãos ossudas de velhos, flui para a gente aristocrática em cujas mãos vai reluzir, ostentar-se, jorrar.

Mas, antes de abandonarmos os quatro terrenos sobre os quais assenta a alta propriedade parisiense, não será necessário deduzir-se, depois das causas morais já apontadas, as causas físicas, mostrar uma peste por assim dizer subjacente, que age sem cessar sobre as fisionomias do porteiro, do lojista, do operário; assinalar uma influência deletéria cuja corrupção iguala à dos administradores parisienses que a deixam complacentemente subsistir? O ar das casas em que vive a maior parte dos burgueses é infecto, a atmosfera das ruas cospe miasmas cruéis nas peças interiores das lojas onde o ar se rarefaz; mas, além dessa pestilência, os quarenta mil prédios dessa grande cidade mergulham seus alicerces em imundícies que o poder público não quis ainda seriamente cercar de muralhas que impeçam a lama mais fétida de filtrar-se através do solo, de envenenar os poços e de fazer perdurar subterraneamente em Lutécia seu nome célebre.[180] Metade de Paris jaz entre exalações pútridas dos pátios, das ruas e dos esgotos.

Mas vejamos os grandes salões arejados e dourados, os palacetes com jardins, a sociedade rica, ociosa, feliz, bem-dotada. Os rostos ali estão estiolados e corroídos pela vaidade. Nada de real, ali. Procurar o prazer não é acaso deparar com o aborrecimento? As pessoas da alta sociedade desde cedo falseiam a própria natureza. Ocupadas apenas em fabricar alegria, abusam desde logo dos sentidos, como o operário abusa do álcool. O prazer é como certas substâncias medicinais: para se obter constantemente os mesmos efeitos é indispensável duplicar-lhes as doses, estando a morte ou o embrutecimento contido na última delas. Todas as classes inferiores acocoram-se diante dos ricos e lhes espreitam os gostos para deles fazerem vícios e os explorarem. Como resistir às hábeis seduções que se tramam neste país? Assim, Paris possui os seus teriakis,[181] para quem o jogo, a gastrolatria ou as cortesãs representam um ópio. Assim, cedo descobrem-se nessas criaturas gostos e não paixões, fantasias romanescas e amores glaciais. Reina entre elas a impotência; não têm mais ideias; passaram como a energia nas simulações dos toucadores, nas momices femininas. Há ali fedelhos de quarenta anos e velhos doutores de dezesseis.

Os ricos encontram em Paris espírito já pronto, ciência já mastigada, opiniões já formuladas, que os dispensam de ter espírito, ciência e opinião. Em tal sociedade o despropósito é igual à fraqueza e à libertinagem. É-se ali avaro do tempo à força de o dissipar. E não se procure nela mais afeições do que ideias. Os abraços disfarçam uma profunda indiferença e a polidez um desprezo invariável. Ali não se ama jamais a outrem. Ditos sem profundeza, muita indiscrição, mexericos, e ainda por cima lugares-comuns, tal é o fundo das suas conversas; mas esses infelizes felizes pretendem que não se congregam para dizer e forjar máximas à La Rochefoucauld;[182] como se não existisse um meio-termo, achado pelo século xviii, entre o excessivamente cheio e o vazio absoluto. Se alguns homens capazes fazem uso de uma graça leve e fina, esta não é compreendida; fatigados em breve de dar sem receber, calam-se e deixam os tolos senhores do terreno que lhes deveria pertencer.

Essa vida oca, essa contínua espera de um prazer que nunca chega, esse tédio permanente, essa inanidade de espírito, de coração e de cérebro, essa lassidão das altas-rodas parisienses reproduzem-se nos traços de seus componentes e dão lugar a essas máscaras de papelão, a essas rugas prematuras, a essas fisionomias de ricos em que se patenteia a impotência, em que se reflete o ouro e de onde fugiu a inteligência.

Esse aspecto da Paris moral prova que a Paris física não poderia ser diferente do que é. Essa cidade coroada é uma rainha que, sempre grávida, tem desejos irresistivelmente furiosos. Paris é a cabeça do globo, um cérebro que estala de gênio e dirige a civilização humana, um grande homem, um artista incessantemente criador, um político clarividente, que deve ter, necessariamente, as rugas do cérebro, os vícios do grande homem, as fantasias do artista e as corrupções do político. Na sua fisionomia transparece a germinação do bem e do mal, o combate e a vitória, a batalha moral de 89 cujas trombetas ressoam ainda por todos os recantos do mundo, e, também, o desalento de 1814. Essa cidade não pode pois ser mais moral nem mais cordial nem mais limpa que a caldeira motora desses magníficos piróscafos que admiramos a fender as ondas. Paris não é um sublime navio carregado de inteligência?[183] Sim, suas armas são um desses oráculos que por vezes a fatalidade se permite. A Cidade de Paris tem o seu grande mastro todo de bronze, esculpido de vitórias, e Napoleão como vigia. Essa nau tem também suas arfadas e seus balouços; mas cruza o mundo, faz fogo pelas cem bocas de suas tribunas, sulca os mares científicos neles, voga de velas soltas, e grita do alto de suas gáveas pela voz de seus sábios e de seus artistas: “Avante, marchai! Segui-me!”. Leva uma equipagem imensa que se compraz em empavesá-la de novas bandeirolas. Há grumetes e garotos risonhos pelos cordames; lastro de pesada burguesia; obreiros e marinheiros alcatroados; nas cabinas, felizes passageiros; elegantes midshipmen[184] fumam seus charutos, debruçados à amurada; no convés, seus soldados, inovadores ou ambiciosos, que vão abordar todas as praias, e, espalhando vivos resplendores, reclamam a glória que é um prazer, ou amores que requerem ouro.

Assim, a agitação excessiva dos proletários, a depravação dos interesses que esmagam as duas burguesias, as severidades do pensamento artístico e os excessos do prazer incessantemente procurado pelos grandes explicam a fealdade normal da fisionomia parisiense. Só no Oriente a raça humana apresenta um busto magnífico; é, porém, efeito da calma constante afetada por aqueles profundos filósofos de longos cachimbos, de pernas curtas, de troncos robustos, que desprezam o movimento e lhe têm horror; enquanto em Paris pequenos, médios e grandes correm, saltam e cabriolam, fustigados por uma deusa impiedosa, a Necessidade; necessidade de dinheiro, de glória, de diversões.

Desse modo, qualquer rosto fresco, repousado, gracioso, verdadeiramente jovem é ali a mais extraordinária das exceções; só muito raramente se encontra. Se algum se nos depara, pertence seguramente a um eclesiástico fervoroso e moço, ou a algum frade quarentão de tríplice papada; a uma jovem criatura de costumes puros como se veem em certas famílias burguesas; a uma mãe de vinte anos, ainda cheia de ilusões e que amamenta seu primeiro filho; a um rapaz recém-desembarcado da província e confiado a uma devota matrona que o deixa sem vintém; ou, quem sabe, a algum caixeiro de loja que se deita à meia-noite, exausto de dobrar e desdobrar as peças de algodão, e que se levanta às sete para arrumar as prateleiras; ou, por vezes, a um homem de ciência ou a um poeta, que vive monasticamente em paz com uma bela ideia e se conserva sóbrio, paciente e casto; ou a um bobo qualquer, satisfeito consigo mesmo, alimentando-se de asneiras, rebentando de saúde, ocupado sempre em sorrir para si próprio; ou à feliz e frouxa espécie dos flâneurs, únicas criaturas realmente felizes de Paris, que saboreiam a todo instante suas instáveis poesias.

Há, entretanto, em Paris uma porção de seres privilegiados aos quais aproveita esse movimento excessivo das manufaturas, dos lucros, dos negócios, das artes e do ouro. Esses seres são as mulheres. Embora tenham também elas mil causas secretas que, mais que alhures, destroem suas fisionomias, encontram-se no mundo feminino tribos felizes que vivem ao modo oriental e podem conservar a beleza. Mas tais mulheres dificilmente saem à rua a pé; permanecem ocultas como as plantas raras que só entreabrem suas pétalas a certas horas e que constituem verdadeiras exceções exóticas. Paris é, entretanto, essencialmente, a cidade dos contrastes. Se os sentimentos verdadeiros são nela raros, encontram-se também ali, como por toda parte, nobres amizades, dedicações sem limites. No campo de batalha dos interesses e paixões, tal como no seio dessas sociedades em marcha nas quais triunfa o egoísmo, onde cada qual é obrigado a se defender sozinho, e que chamamos de exércitos, parece que os sentimentos quando surgem é para serem completos e se tornarem sublimes por justaposição. Assim, também, as fisionomias.

Em Paris, às vezes na alta aristocracia, veem-se aqui e ali alguns rostos deslumbrantes de jovens criaturas, frutos de educação e de costumes inteiramente excepcionais. À juvenil beleza do sangue inglês aliam a firmeza dos traços meridionais, o espírito francês e a pureza de formas. O brilho dos olhos, uma deliciosa vermelhidão de lábios, o negro lustroso da bela cabeleira, a tez alva, o talhe de rosto distinto tornam-nas belas flores humanas, magníficas de ver entre a massa das outras fisionomias, descoradas, envelhecidas, aduncas, cheias de tiques. Também as mulheres admiram logo essas jovens criaturas com esse ávido prazer que leva o olhar dos homens a uma moça bonita, recatada, graciosa, dotada de todas as virgindades com que a nossa imaginação se compraz em adornar a donzela perfeita.

Se este rápido olhar lançado à população de Paris fez compreender a raridade de uma figura rafaelesca e a admiração apaixonada que deve inspirar à primeira vista, estará justificado o objetivo principal de nossa história. Quod erat demonstrandum, o que devia ser demonstrado, se nos for permitido aplicar as fórmulas da escolástica à ciência dos costumes.

Ora, por uma dessas belas manhãs de primavera em que as folhas ainda não estão verdes, embora já desenvolvidas; em que o sol começa a fazer reluzir os telhados sob o céu azul; em que a população parisiense sai de seus alvéolos e vem zumbir pelos bulevares correndo como uma serpente de mil cores pela Rue de la Paix em direção às Tuileries para saudar as pompas do himeneu que os campos recomeçam; numa dessas alegres manhãs, um jovem, tão belo como aquele dia, vestido com apuro, de modos desembaraçados (e digamos o segredo), um filho do amor, filho natural de lorde Dudley e da célebre marquesa de Vordac, passeava pela grande alameda das Tuileries. Esse Adônis, chamado Henrique de Marsay,[185] nascera na França, onde lorde Dudley viera casar a jovem, já então mãe de Henrique, com um velho fidalgo — o sr. de Marsay. Este, borboleta apagada, quase extinta, reconhecera a criança como sua, mediante o usufruto de uma renda de cem mil francos definitivamente atribuída ao filho putativo, extravagância que não custou muito caro a lorde Dudley; os títulos franceses valiam então dezessete francos e cinquenta cêntimos. O velho fidalgo morreu sem conhecer a mulher. A sra. de Marsay desposou depois o marquês de Vordac; mas, antes de se tornar marquesa, pouco se importou com o filho e com lorde Dudley. Aliás a declaração de guerra entre a França e a Grã-Bretanha havia separado os amantes, e a fidelidade a toda prova não estava e não estará muito em moda em Paris. Além disso, os êxitos da mulher elegante, bonita, universalmente adorada, amorteceram na parisiense o sentimento materno. Lorde Dudley, por sua vez, não cuidou de seu filho mais que a mãe.

Talvez a imediata infidelidade da moça ardentemente amarga lhe houvesse comunicado certa aversão por tudo que dela vinha. É também possível, ademais, que os pais só amem os filhos com os quais possuam intimidade; convicção social essa da maior importância para a estabilidade das famílias, e que deve ser alimentada por todos os celibatários, por provar que a paternidade é sentimento cultivado em estufa pela mulher, pelos costumes e pela lei.

O pobre Henrique de Marsay só encontrou pai naquele dentre os dois que não era obrigado a sê-lo. Naturalmente, a paternidade do sr. de Marsay foi muito incompleta. As crianças, na ordem natural, só têm pai por poucos instantes; e o fidalgo imitou a natureza. O velhote não teria vendido o nome se não tivesse vícios. Comeu, então, sem remorsos, pelas espeluncas e bebeu totalmente as parcas rendas semestrais que lhe ia pagando o Tesouro nacional. Entregou o menino a uma velha irmã solteirona, que a ele se dedicou, dando-lhe, com a magra pensão concedida pelo irmão, um preceptor, um padre sem eira nem beira que, avaliando o futuro do rapaz, resolveu pagar-se dos desvelos dados ao pupilo, por quem tomou-se de afeição, com os mil francos de sua renda. Aconteceu que esse preceptor era um verdadeiro padre, um desses eclesiásticos talhados para se tornarem cardeais na França ou na Bórgia sob a tiara. Ensinou em três anos ao rapazinho o que só em dez teria este aprendido numa escola. E esse grande homem, chamado padre De Maronis, concluiu a educação do aluno fazendo-o estudar a civilização sob todos os aspectos: transmitiu-lhe sua experiência e levou-o muito pouco às igrejas, então fechadas; conduziu-o algumas vezes aos bastidores e muitas às casas de cortesãs; desmontando-lhe os sentimentos humanos peça por peça; mostrou-lhe a política nos salões onde ela então refervia; enumerou-lhe as máquinas governamentais e tentou, por amizade a uma bela natureza desamparada, mas rica de esperanças, substituir-lhe virilmente a mãe; não é a Igreja a mãe dos órfãos?

O aluno correspondeu a tantos cuidados. O digno homem morreu bispo, em 1812, com a satisfação de haver deixado sob os céus um filho cujo coração e espírito estavam aos dezesseis anos tão bem-formados, que poderia superar um homem de quarenta. Quem poderia imaginar um coração de bronze, um cérebro alcoolizado sob as mais sedutoras aparências que os velhos pintores, artistas ingênuos, deram à serpente no paraíso terrestre? E ainda não é nada. Além disso, o bom diabo roxo fizera com que o seu pupilo travasse na alta sociedade de Paris certos conhecimentos que podiam equivaler, nas mãos do jovem, a outros cem mil francos de renda. Enfim, o padre, vicioso mas político, incrédulo mas sábio, pérfido mas amável, na aparência fraco mas tão vigoroso de inteligência como de corpo, foi tão realmente útil ao discípulo, tão complacente com os seus vícios, tão bom calculador de todas as espécies de forças, tão profundo quando era preciso achar qualquer desculpa humana, tão jovem à mesa, no Frascati,[186] em... não sei onde, que o agradecido Henrique de Marsay só se enternecia, em 1814, ao contemplar o retrato de seu caro bispo, única coisa mobiliária que lhe pôde legar o prelado, admirável tipo dos homens que hão de salvar a Igreja Católica Apostólica e Romana, comprometida a esta altura pela fraqueza dos seus recrutas e pela velhice dos seus pontífices; mas, ainda assim, a Igreja!

A guerra continental impediu o jovem De Marsay de conhecer seu verdadeiro pai, de quem é duvidoso que soubesse o nome. Criança abandonada, não conheceu também a sra. de Marsay. Naturalmente, pouco sentiu a perda do pai putativo. Quanto à irmã deste, sua única mãe, fez erigir-lhe no cemitério do Père-Lachaise, quando ela morreu, um lindo e pequeno túmulo. Monsenhor de Maronis havia garantido àquela velha touca de rendas um dos melhores lugares no céu, de modo que, vendo-a morrer feliz, Henrique concedeu-lhe algumas lágrimas egoístas, pondo-se a chorar por si mesmo. Observando aquela dor, o prelado secou as lágrimas do discípulo, fazendo-o observar que a boa mulher estava a se acabar de modo tão desagradável, tornando-se tão feia, tão surda, tão enfadonha, que se devia até agradecer à morte.

O bispo fizera emancipar seu aluno em 1811. Mais tarde, quando a mãe do sr. de Marsay tornou a casar-se, o sacerdote escolheu, num conselho de família, um desses honestos acéfalos bem joeirados por ele no confessionário e o encarregou de administrar a fortuna cujos rendimentos ele aplicava, é certo, em bem da comunidade, mas da qual queria conservar intacto o capital. Lá para os fins de 1814, Henrique de Marsay não tinha, pois, sobre a terra nenhum sentimento obrigatório e se encontrava tão livre como um pássaro sem companheira. Apesar de já ter completado vinte e dois anos, parecia ter apenas dezessete. Geralmente, os seus rivais mais exigentes consideravam-no o mais belo rapaz de Paris. De seu pai, lorde Dudley, herdara os olhos azuis mais amorosamente sedutores; de sua mãe, os mais bastos cabelos negros; de ambos, um sangue puro, uma pele de moça, um ar doce e modesto, um talhe fino e aristocrático e mãos belíssimas. Para uma mulher, vê-lo era enlouquecer, compreendeis?, conceber um desses desejos que roem o coração, mas que se esquecem pela impossibilidade de ser satisfeitos, porque a mulher, em Paris, geralmente não tem tenacidade. Poucas dentre elas afirmam como os homens o Je maintiendrai[187] da Casa de Orange.

Sob esse frescor de vida, e apesar da limpidez de seus olhos, Henrique tinha uma coragem de leão e uma agilidade de macaco. A dez passos colocava uma bala na lâmina de uma faca; montava a cavalo de modo a tornar realidade a fábula do centauro; guiava com graça uma carruagem de longas rédeas; era lesto como Querubim[188] e tranquilo como um cordeiro; mas sabia bater um homem dos arrabaldes no terrível jogo da savate[189] ou do pau; além disso, tocava piano de tal modo que poderia tornar-se recitalista se um dia ficasse em má situação, e possuía uma voz pela qual Barbaja[190] pagaria cinquenta mil francos por temporada. Mas ai! todas essas belas qualidades, esses encantadores senões, eram maculados por um defeito terrível; ele não acreditava nem nos homens, nem nas mulheres, nem em Deus, nem no diabo. A natureza caprichosa havia começado a dotá-lo; um sacerdote havia completado a obra.

Para tornar compreensível esta história, é necessário acrescentar aqui que lorde Dudley achou naturalmente muitas mulheres dispostas a tirar algumas cópias de retrato tão delicioso. Sua segunda obra-prima neste gênero foi uma jovem chamada Eufêmia, nascida de uma dama espanhola, criada em Havana e reconduzida a Madri com uma jovem crioula das Antilhas e com todos os gostos perniciosos das colônias; mas, felizmente, casada com um velho senhor espanhol prodigiosamente rico, don Hijos, marquês de San-Real, que depois da ocupação da Espanha pelas tropas francesas viera residir em Paris e morava na Rue Saint-Lazare. Tanto por displicência como por respeito à inocência da juventude, lorde Dudley não deu conhecimento a seus filhos da parentela que por toda parte lhes criava. É esse um dos pequenos inconvenientes da civilização, que tem tantas vantagens! Há que perdoar-lhe seus males à vista de seus benefícios.

Em resumo: lorde Dudley veio em 1816 refugiar-se em Paris, a fim de evitar as perseguições da justiça inglesa, que, do Oriente, só protege a mercadoria. O lorde viajante, ao ver Henrique, perguntou quem era aquele belo jovem. Depois, ao ouvir-lhe o nome, disse: “Ah?! É meu filho. Que desgraça!”.

Tal era a história do rapaz que, por meados do mês de abril de 1815, percorria despreocupadamente a grande Avenue des Tuileries, com os modos de todos os animais que, conhecendo sua força, caminham com majestosa tranquilidade. As burguesas voltavam-se ingenuamente para o ver; as damas, porém, não se voltavam, esperavam-no em sua volta e gravavam na memória, para o evocar oportunamente, aquele rosto suave que não teria enfeado o corpo da mais bela dentre elas.

— Que fazes por aqui num domingo? — disse a Henrique o marquês de Ronquerolles, que passava.

— Há peixe na rede — respondeu o jovem.

Essa troca de pensamentos fez-se por meio de dois olhares significativos e sem que nem Ronquerolles nem De Marsay dessem demonstração de se conhecerem. O jovem examinava os passeantes com esse olhar vigilante e esse ouvido atento peculiares ao parisiense, que, sob a aparência de nada ver e nada ouvir, tudo vê e tudo ouve. Nesse momento um rapaz chegou-se a ele e tomou-lhe familiarmente o braço, dizendo:

— Como vai, meu bom De Marsay?

— Mas muito bem — respondeu De Marsay, com esse ar aparentemente afetuoso que entre os jovens parisienses nada prova, nem quanto ao presente nem quanto ao futuro.

Efetivamente, os moços de Paris não se assemelham aos de nenhuma outra cidade. Dividem-se em duas classes: o jovem que tem alguns haveres e o jovem que nada tem; ou aquele que pensa e aquele que gasta.

Entretanto, é preciso compreender bem que não se trata aqui senão desses nativos que em Paris seguem o curso delicioso duma vida elegante. Existem ainda na capital, é certo, alguns outros moços: são, porém, crianças que só muito tarde se apercebem da existência parisiense e dela se tornam joguetes. Estes não especulam, estudam; “cavam”, dizem os outros. Enfim, veem-se ainda certos jovens, ricos ou pobres, que abraçam uma carreira e a seguem uniformemente. São um pouco como o Emílio[191] de Rousseau, estofo de que se fazem bons cidadãos; jamais aparecem na sociedade. Os diplomatas impolidamente os chamam de tolos. Tolos ou não, eles aumentam o número de pessoas medíocres sob cujo peso a França verga. Estão sempre presentes, sempre prontos a estragar os negócios públicos ou particulares com a trolha chata da mediocridade, jactando-se de sua impotência, a que chamam “hábitos de probidade”. Essa espécie de primeiros prêmios sociais infestam a administração, o Exército, a magistratura, as câmaras, a Corte. Rebaixam, achatam o país e constituem, de certo modo, no corpo político, uma linfa que o sobrecarrega e o extenua. Tais pessoas honestas chamam de imorais ou de patifes as pessoas de talento. Mas, se esses patifes fazem pagar seus serviços, pelo menos prestam serviços; ao passo que aqueles são nocivos e são respeitados pela multidão. Felizmente, porém, para a França, a mocidade elegante os estigmatiza sem cessar com o apodo de basbaques.

É natural, portanto, que ao primeiro golpe de vista se julguem muito diferentes as duas espécies de jovens que levam vida elegante — amável corporação à qual pertencia Henrique de Marsay. Entretanto, os observadores que não se detêm na superfície das coisas chegam logo à convicção de que as diferenças são puramente morais e que nada é tão enganador como essa bela aparência. No entanto, todos eles tomam a dianteira a todo o mundo; falam a torto e a direito das coisas, dos homens, de literatura, de belas-artes. Têm sempre na boca o Pitt e Cobourg[192] de cada ano; interrompem uma conversa com um trocadilho; ridicularizam a ciência e os sábios; desprezam tudo o que desconhecem ou temem; colocam-se acima de tudo, arvorando-se em supremos juízes de tudo. Qualquer deles mistificaria seus próprios pais e seria capaz de derramar no seio materno lágrimas de crocodilo. Mas geralmente em nada creem, falam mal das mulheres ou fingem modéstia, e na realidade obedecem a uma cortesã nada recomendável ou a alguma mulher velha. São todos igualmente corrompidos, até a medula dos ossos, pelo interesse, pela depravação e por uma brutal ambição de ascender. Se sofressem de cálculos e os sondássemos, no coração é que lhes iríamos encontrar as pedras. Em seu estado normal têm a mais encantadora das aparências; por qualquer coisa põem em jogo a amizade, são sempre atraentíssimos. A mesma irreverência domina sua gíria inconstante; visam à extravagância na indumentária, vangloriam-se de repetir as asneiras de tal ou qual ator em voga e começam com quem quer que seja pelo desprezo ou pela impertinência para ter de certo modo a primeira vantagem nesse jogo; mas ai daquele que não souber deixar-se vazar um olho para poder vazar os dois ao adversário. Parecem igualmente indiferentes às desgraças e aos flagelos da pátria. Parecem-se todos, enfim, à bela espuma branca que coroa as ondas tempestuosas. Vestem-se, jantam, dançam, divertem-se no dia da batalha de Waterloo, durante a cólera ou durante uma revolução.

Todos em suma vivem no mesmo ritmo perdulário; mas aqui começa o paralelo. Dessa fortuna flutuante e agradavelmente desbaratada, uns têm o capital e outros o aguardam. Vestem-se no mesmo alfaiate, mas as faturas daqueles estão por pagar. Depois se estes, como crivos, recebem toda espécie de ideias sem guardar nenhuma, aqueles as comparam e assimilam as boas. Se estes julgam saber alguma coisa, nada sabem e tudo compreendem, emprestam tudo a quem de nada precisa e nada oferecem aos que necessitam de alguma coisa; aqueles estudam secretamente os pensamentos alheios e colocam seu dinheiro bem como suas loucuras a juros elevados. Uns não têm impressões exatas porque suas almas, como um espelho despolido pelo uso, não refletem mais imagem alguma; outros poupam seus sentidos e sua vida aparentando, como aqueles, jogá-la pela janela. Os primeiros, sob a bandeira de uma esperança, devotam-se sem convicção a um sistema que está a favor do vento e que sobe a correnteza, mas saltam para outra barca política quando a primeira deriva; os segundos medem o futuro, sondam-no e veem na fidelidade política aquilo que os ingleses veem na probidade comercial: um elemento de sucesso.

Mas ali onde o jovem que possui algo faz um trocadilho ou diz uma pilhéria sobre a reviravolta do trono, o que nada possui faz um cálculo público ou uma baixeza secreta e sobe distribuindo apertos de mão entre os amigos. Uns nunca veem grandes faculdades em pessoa alguma, pensam que todas as suas próprias ideias são novidades, como se o mundo tivesse sido criado na véspera; têm uma confiança ilimitada em si e não possuem inimigos mais cruéis do que eles mesmos. Os outros, porém, estão possuídos de contínua desconfiança dos homens que eles estimam pelo justo valor e são bastante profundos para ter um pensamento a mais que os amigos a quem exploram. À noite, com a cabeça no travesseiro, pesam os homens como um avarento pesa suas moedas de ouro. Uns zangam-se por qualquer impertinência sem alcance e deixam-se ridicularizar pelos diplomatas que os fazem dançar como títeres puxando-lhes o cordão principal — o amor-próprio, enquanto os outros fazem-se respeitar e escolhem suas vítimas e seus protetores. E, afinal, um dia os que nada tinham possuem algo, e os que possuíam alguma coisa nada mais têm.

Esses consideram seus camaradas chegados a uma alta posição como espertos e corações duros, mas também como homens fortes. “Ele é um colosso!”... é o imenso elogio conferido àqueles que atingiram, quibuscumque viis,[193] a política, que conseguiram uma mulher ou uma fortuna.

Entre eles encontram-se certos jovens que desempenham tal papel começando com dívidas; e, naturalmente, são mais perigosos do que aqueles que o representam sem ter um vintém.

O rapaz que se intitulava amigo de Henrique de Marsay era um estouvado que chegara da província e ao qual os jovens então na moda ensinavam a arte de podar uma herança convenientemente. Mas possuía ainda na província um último prato a ser devorado, uma situação segura. Era simplesmente um herdeiro que passara sem transição de seus magros cem francos mensais à posse de toda a fortuna paterna e que, se não tinha espírito bastante para se aperceber de que zombavam dele, sabia calcular o bastante para se conter nos dois terços de seu capital. Vinha descobrir em Paris, mediante algumas cédulas de mil francos, o valor exato dos seus arneses, a arte de não dar demasiada importância às suas luvas, ouvir sábias indicações sobre salários a pagar aos criados e procurar qual o melhor partido a tirar deles.

Fazia questão de falar como conhecedor em seus cavalos, em seu cão dos Pirineus e a reconhecer pelo traje, pelo caminhar, pelo calçado, a que espécie pertencia uma mulher; estudar o écarté,[194] empregar algumas palavras em voga e conquistar, por sua permanência na sociedade parisiense, a autoridade necessária para levar mais tarde para a província o gosto do chá, a prataria inglesa, e arrogar-se o direito de desprezar tudo em torno dele pelo resto de seus dias.

De Marsay aceitara sua amizade para dele servir-se na sociedade, como um especulador audacioso se serve de um agente de confiança. A amizade, falsa ou verdadeira, de De Marsay era uma posição social para Paulo de Manerville,[195] que, por seu lado, julgava-se muito hábil explorando à sua maneira o amigo íntimo. Vivia do reflexo do amigo; punha-se à sua sombra, imitava-o, dourava-se em seus raios. Colocando-se junto a Henrique, ou mesmo caminhando atrás dele, parecia dizer: “Não nos insulteis, nós somos verdadeiros tigres”. Muitas vezes dava-se o luxo de dizer com fatuidade: “Se eu pedisse isto ou aquilo a Henrique, ele seria bastante meu amigo para o fazer”... Mas tinha o cuidado de jamais lhe pedir coisa alguma. Temia-o, e seu temor, ainda que imperceptível, reagia sobre os outros e servia a De Marsay.

— É um sujeito formidável este De Marsay — dizia Paulo. — Ah, ah! vocês hão de ver, ele será tudo o que quiser ser. Não me admiraria vê-lo um dia ministro das Relações Exteriores. Nada lhe resiste.

Fazia enfim de De Marsay o que o cabo Trim[196] fazia de seu quepe: uma parada perpétua.

— Perguntem a De Marsay e vocês verão.

Ou:

— Outro dia, enquanto eu e De Marsay caçávamos, não querendo ele acreditar-me, saltei uma sebe de espinheiros sem me mover na sela.

Ou:

— Estávamos, eu e De Marsay, numa casa de mulheres, e, palavra de honra, eu estava etc.

Assim, Paulo de Manerville não podia ser classificado senão na grande, na ilustre e poderosa família dos tolos que triunfam. Deveria chegar um dia a deputado. Por ora não era nem mesmo alguém. Seu amigo De Marsay definia-o assim: “Vocês me perguntam o que é Paulo. Mas Paulo... Paulo é Paulo de Manerville”.

— Assombra-me, meu caro — disse ele a De Marsay — que andes por aqui num domingo.

— E eu ia te dizer o mesmo.

— Uma aventura...

— Uma aventura?

— Ora!

— A ti eu posso contar, sem comprometer minha paixão. Afinal, uma mulher que vem aos domingos às Tuileries não tem grande valor, aristocraticamente falando.

— Ah! ah!

— Cala-te, ou nada mais te digo. Ris muito alto; vais fazer crer que abusamos do almoço. Quinta-feira passada, aqui, sobre o Terrasse des Feuillants,[197] eu passeava distraído, sem pensar em coisa alguma. Ao chegar, porém, à grade da Rue Castiglione, pela qual pensava seguir, encontrei-me frente a frente com uma mulher, ou antes com uma mocinha que, se não me saltou ao pescoço, foi por sentir-se coibida, penso, menos pelo respeito humano que por um desses profundos assombros que amolecem pernas e braços, descem ao longo da espinha dorsal e se detêm na sola dos pés para pregar a gente no chão. Tenho produzido muitas vezes efeitos desse gênero, espécie de magnetismo animal que se torna muito poderoso quando existe certa afinidade de sentimento. Mas, meu caro, desta vez não era nem um assombro vulgar nem uma pequena vulgar. Moralmente falando, seu semblante parecia dizer: “Como? és tu, o meu ideal, a criatura dos meus pensamentos, dos meus sonhos diuturnos? Como estás aqui? Por que esta manhã? Por que não ontem? Toma-me, sou tua, et cœtera!”. “Bom”, disse eu a mim mesmo, “ainda uma outra!” Examinei-a então. Ah! meu caro, fisicamente falando, a desconhecida é a criatura mais adoravelmente feminina que já encontrei. Pertence a essa variedade que os romanos denominavam fulva, flava, a mulher de fogo. E o que à primeira vista mais me surpreendeu, o que ainda me impressiona, são dois olhos fulvos como os dos tigres; olhos cor de ouro, de ouro que brilha, de ouro que tem vida, de ouro que pensa, de ouro que ama e quer absolutamente vir a ser nosso!

“Mas nós conhecemos isso muito bem, meu caro! — exclamou Paulo. — Ela vem aqui algumas vezes, é a menina dos olhos de ouro. Nós lhe demos esse nome. É uma jovem de uns vinte e dois anos mais ou menos e que eu encontrei aqui quando os Bourbon aqui estavam. Vi-a com uma mulher que vale cem mil vezes mais que ela.”

— Cala-te, Paulo! É impossível que uma mulher, seja quem for, possa sobrepujar essa pequena que se assemelha a uma gata que quer vir roçar-se em nossas pernas, uma criatura alva de cabelos prateados, de aparência delicada, mas que deve ter fiozinhos sedosos sobre a terceira falange dos dedos e ao longo das faces uma penugem clara cuja linha, luminosa na claridade, começa sob as orelhas e se perde no colo.

— Oh! A outra, meu caro De Marsay, tem uns olhos negros que jamais choraram, mas que queimam; sobrancelhas pretas que, quando se unem, lhe dão um ar de dureza desmentido pelo franzir dos lábios, sobre os quais o beijo não se demora, lábios ardentes e frescos; uma tez mourisca à qual um homem se aquece como ao sol; mas, palavra de honra, ela se parece contigo...

— Tu a lisonjeias!

— Um talhe bem torneado, o talhe esbelto de uma corveta construída para fazer o corso, dessas que se lançam sobre um navio mercante com a impetuosidade francesa, e o abrem e põem a pique em dois tempos.

— Enfim, meu caro, que me importa aquela que nunca vi! — respondeu De Marsay. — Desde que estudo as mulheres, minha desconhecida é a única cujo seio virgem, cujas formas ardentes e voluptuosas tornaram realidade a verdadeira mulher de meus sonhos. Ela é o original da delirante tela chamada Mulher a acariciar sua quimera,[198] a mais cálida, a mais infernal inspiração do gênio antigo, sagrada poesia prostituída pelos que a copiaram para afrescos e mosaicos, para a súcia de burgueses que não veem nesse camafeu senão um berloque e o põem nas suas chaves de relógio, enquanto na verdade ela é toda a mulher, um abismo de prazer onde a gente rola sem chegar ao fim, uma mulher ideal que se vê algumas vezes na Espanha, na Itália, mas quase nunca na França. Pois bem, eu revi essa menina dos olhos de ouro, essa mulher a acariciar sua quimera, eu a revi aqui, sexta-feira. Tive o pressentimento de que no dia seguinte ela viria à mesma hora. Não me enganei. Dei-me ao prazer de segui-la sem que me visse, de estudar esse andar indolente da mulher sem preocupações, mas nos movimentos da qual se adivinha a voluptuosidade que dorme. Ela voltou-se e me viu, de novo me adorou, de novo se assustou, estremeceu. Então notei a verdadeira aia espanhola que a guarda, uma hiena em que um ciumento pôs um vestido, alguma bruxa bem paga para vigiar aquela suave criatura... Oh! então, a ama me tornou mais que enamorado; tornei-me curioso. Sábado, ninguém. Eis-me aqui hoje esperando essa pequena de quem sou a quimera, e nada mais desejando que me colocar como o monstro do quadro.

— Aí vem ela — disse Paulo. — Todo o mundo se volta para vê-la...

A desconhecida enrubesceu e seus olhos cintilaram ao perceber Henrique; cerrou-os e passou.

— E dizes que ela te distingue? — exclamou zombeteiramente Paulo de Manerville.

A aia olhou fixamente e com atenção os dois rapazes. Quando a desconhecida e Henrique de novo se encontraram, a moça roçou-o de leve e sua mão apertou a mão do jovem. Depois voltou-se e sorriu com paixão; mas a aia arrastou-a apressadamente para a grade da Rue Castiglione. Os dois amigos seguiram a moça admirando o torneado magnífico daquele pescoço ao qual a cabeça se unia por uma combinação de linhas fortes, e de onde ressaltavam com vigor alguns anéis de cabelos. A menina dos olhos de ouro tinha esse pé elegante, pequenino, recurvo, que tantos encantos oferece às imaginações gulosas. Estava também elegantemente calçada e usava vestido curto.

Durante o trajeto ela se voltava de momento a momento para rever Henrique. Parecia seguir a contragosto a velha de quem parecia ser ao mesmo tempo senhora e escrava: poderia fazê-la moer de pancadas, mas não a despedir. Tudo isso era evidente. Os dois amigos chegaram à grade. Dois criados de libré desdobravam o estribo de um cupê de bom gosto, carregado de brasões. A menina dos olhos de ouro subiu em primeiro lugar e ocupou o lado de onde poderia ser vista quando a carruagem fizesse a volta; pôs a mão sobre a portinhola e agitou o lenço às escondidas da aia, sem se importar com o que dirão dos curiosos, dando a entender publicamente a Henrique com a linguagem do lenço: “Siga-me”...

— Viste alguma vez manejar o lenço com mais graça? — disse Henrique a Paulo de Manerville. Depois, avistando um fiacre prestes a partir depois de haver trazido algumas pessoas, fez sinal ao cocheiro que esperasse.

— Siga esse cupê, veja em que rua, em que casa ele entra; terá dez francos. Adeus, Paulo.

O fiacre seguiu o cupê, que entrou na Rue Saint-Lazare, num dos mais belos palácios do bairro.

II — UMA SINGULAR AVENTURA AMOROSA

De Marsay não era um estouvado. Qualquer outro teria obedecido ao desejo de tomar imediatamente informações sobre a moça que realizava tão bem as mais luminosas ideias expressas acerca das mulheres pela poesia oriental. Mas, muito hábil para comprometer assim o futuro de sua boa fortuna, disse ao cocheiro que continuasse pela Rue Saint-Lazare e o conduzisse ao seu palacete.

No dia seguinte, seu primeiro camareiro, chamado Lourenço, rapaz astuto como um Frontin[199] da antiga comédia, esperava, nas cercanias da casa da desconhecida, a hora em que se distribuem as cartas. A fim de poder espionar à vontade e perambular em torno do palácio, havia comprado ali mesmo, segundo o costume da gente da polícia quando se quer disfarçar, as roupas usadas de um auvergnês, tentando imitar-lhe os modos. Quando o carteiro, que essa manhã fazia o serviço da Rue Saint-Lazare, passou, Lourenço fingiu-se um carregador em dificuldades por não poder recordar-se do nome da pessoa à qual deveria entregar um pacote; e consultou o carteiro. Enganado à primeira vista pelas aparências, esse personagem tão pitoresco no meio da civilização parisiense explicou-lhe que o palácio onde morava a menina dos olhos de ouro pertencia a don Hijos, marquês de San-Real, grande d’Espanha. Naturalmente o auvergnês nada queria com o marquês.

— Meu pacote — disse ele — é para a marquesa.

— Ela está ausente — respondeu o carteiro. — Suas cartas são reexpedidas para Londres.

— A marquesa não é então uma jovem que...

— Ah! — disse o carteiro, interrompendo o camareiro e o examinando com atenção —, tu és tão carregador como eu bailarino.

Lourenço mostrou algumas moedas de ouro ao carteiro, que se pôs a rir.

— Bem, aqui está o nome da tua caça — disse ele tomando da bolsa de couro uma carta que trazia o carimbo de Londres e sobre a qual este endereço:

 

À senhorita

paquita valdez

Rue Saint-Lazare, Palace San-Real

paris

 

Estava escrito em caracteres finos e miúdos que denunciavam mão de mulher.

— Faria desfeita a uma garrafa de vinho de Chablis, acompanhado de um filé com champignons e precedido de algumas dúzias de ostras? — perguntou Lourenço, que desejava conquistar a preciosa amizade do carteiro.

— Às nove e meia, depois de meu serviço. Onde?

— À esquina da Rue de La Chaussée-d’Antin com a Rue Neuve-des-Mathurins, no Puits sans Vin — disse Lourenço.

— Escute, meu amigo — disse o carteiro ao encontrar-se de novo com o camareiro, uma hora depois —, se o seu amo está enamorado dessa menina, ele vai ter um trabalho louco! Duvido que você consiga vê-la. Durante os dez anos em que sou carteiro em Paris, pude conhecer bem todas as espécies de portarias e posso afirmar, sem medo de ser desmentido por nenhum de meus camaradas, que não há porta mais misteriosa que a do sr. de San-Real. Pessoa alguma pode penetrar no palácio sem não sei que santo e senha. E note que ele foi propositalmente escolhido por estar situado no meio do terreno, para evitar qualquer comunicação com outras casas. O porteiro é um velho espanhol que não fala uma palavra de francês, mas que encara as pessoas como faria Vidocq[200] para saber se não são ladrões. Se esse primeiro guarda-chaves pudesse deixar-se enganar por um amante, por um ladrão ou por você (não comparando), pois bem, encontraria na primeira sala, que é fechada por uma porta de vidro, um mordomo cercado de lacaios, um velho farsante ainda mais selvagem e mais feroz do que o porteiro. Se alguém franquear a porta principal, o tal mordomo sai, espera a gente sob o peristilo e a faz passar por um interrogatório como a um criminoso. Isso me aconteceu, a mim, simples emissário. Ele me tomou por um hemisfério[201] disfarçado — disse ele rindo do disparate. — Quanto aos criados, nada espere conseguir deles; creio que são mudos; ninguém nos arredores conhece o som de suas vozes; não sei que ordenado lhes dão para que nunca falem e nunca bebam. O fato é que são inabordáveis, ou porque tenham medo de ser fuzilados, ou porque tenham enorme soma a perder em caso de indiscrição. Se o seu patrão ama de tal modo a srta. Paquita Valdez que chegue a vencer todos esses obstáculos, não triunfará por certo de dona Concha Marialva, a aia que a acompanha e que antes a meteria sob suas saias do que deixá-la só. Essas duas mulheres parecem viver coladas.

— O que me diz, amigo carteiro — respondeu Lourenço depois de haver provado o vinho —, confirma o que soube há pouco. Palavra! pensei que zombavam de mim. A vendedora de frutas em frente me disse que soltavam durante a noite, nos jardins, cães cujo alimento é suspenso em postes de maneira que não o possam atingir. Esses danados animais acreditariam assim que as pessoas que lá possam entrar procurem a sua comida e as fariam em pedaços. Você dirá que lhes poderiam atirar nacos de carne, mas parece que eles são adestrados de forma a nada comerem senão da mão do porteiro.

— O porteiro do sr. barão de Nucingen,[202] cujo jardim limita na parte alta com o do Palace San-Real, me contou isso efetivamente — disse o carteiro.

— Bom, meu amo o conhece — disse consigo Lourenço. — Sabe — continuou ele piscando o olho para o carteiro — que sirvo a um amo que é um homem formidável, que se lhe der na cabeça de beijar a sola dos pés de uma imperatriz ela terá que passar por isso? Se precisar de você, o que eu lhe desejo, porque ele é generoso, pode-se contar com o amigo?

— Ora essa, senhor Lourenço, eu me chamo Moinot. Meu nome se escreve absolutamente como um moineau:[203] M-o-i-n-o-t, not, Moinot.

— De fato — disse Lourenço.

— Moro na Rue des Trois Frères, nº 11, no quinto — continuou Moinot —; tenho mulher e quatro filhos. Se o que quer de mim não está além das possibilidades da consciência e de meus deveres administrativos, você compreende!, estou ao seu dispor.

— Você é um bom sujeito — disse Lourenço apertando-lhe a mão.

— Paquita Valdez é sem dúvida amante do marquês de San-Real, o amigo do rei Fernando. Só um velho cadáver espanhol de oitenta anos é capaz de tomar semelhantes precauções — disse Henrique quando o camareiro lhe contou o resultado de suas indagações.

— Senhor — disse-lhe Lourenço —, a menos que vá num balão, ninguém pode entrar naquele palácio.

— Tu és uma besta! Não há necessidade de entrar no palácio para ter Paquita, uma vez que Paquita dele pode sair.

— Mas, meu senhor, e a aia?

— Há de ser encerrada num quarto por alguns dias, a tua aia.

— Então, teremos Paquita! — disse Lourenço esfregando as mãos.

— Patife! — respondeu Henrique. — Eu te condeno à Concha se levas a insolência ao ponto de falar assim de uma mulher antes de ela ter sido minha. Trata de me vestir, que vou sair.

Henrique ficou durante alguns instantes mergulhado em agradáveis reflexões. Digamo-lo em louvor das mulheres: estava habituado a ter quantas se dignasse desejar. E que se poderia pensar de uma mulher sem amante que soubesse resistir a um jovem armado da beleza, que é o espírito do corpo, armado do espírito, que é uma graça da alma, armado da força moral e da fortuna, que são os dois únicos poderes verdadeiros? Mas, triunfando assim facilmente, De Marsay devia entediar-se de seus triunfos; por isso, fazia uns dois anos que se entediava muitíssimo. Mergulhando no fundo dos prazeres, deles trazia mais areia que pérolas. Daí ter chegado, como os soberanos, a implorar do acaso algum obstáculo a vencer, alguma ocupação que lhe exigisse o emprego das forças morais e físicas inativas. Apesar de Paquita Valdez lhe apresentar todo o maravilhoso conjunto de perfeições que ele não havia ainda gozado senão em bocados, o fascínio da paixão era nele quase nulo. Uma saciedade constante havia-lhe embotado o sentimento do amor. Como os velhos e os prostrados, não tinha mais que caprichos extravagantes, gostos ruinosos, fantasias que, satisfeitas, não lhe deixavam no coração nenhuma lembrança feliz. Nos moços, o amor é o mais belo dos sentimentos: faz florescer a vida na alma, faz desabrochar por seu poder solar as mais belas inspirações e os grandes pensamentos; as primícias em todas as coisas têm um delicioso sabor. Nos adultos, o amor se transforma em paixão; a força leva ao abuso. Nos velhos, ele se torna um vício; a impotência conduz aos extremos. Henrique era, ao mesmo tempo, velho, adulto e moço. Para experimentar as emoções de um verdadeiro amor, precisava, como Lovelace, de uma Clarissa Harlowe.[204] Sem o reflexo mágico dessa pérola raríssima, ele só poderia ter ou paixões aguçadas por alguma vaidade parisiense, ou preconcebidos propósitos de levar tal ou qual mulher a certo grau de corrupção, ou ainda aventuras que estimulassem sua curiosidade. O relatório de Lourenço, seu camareiro, acabava de dar um valor enorme à menina dos olhos de ouro. Tratava-se de travar batalha com um inimigo secreto, que parecia tão perigoso quanto hábil; e, para conquistar a vitória, nenhuma das forças de que Henrique poderia dispor seria inútil. Ele ia representar a eterna, a velha comédia sempre nova, na qual os personagens são um velho, uma moça e um enamorado: don Hijos, Paquita, De Marsay.

Se Lourenço equivalia a Fígaro,[205] a aia parecia incorruptível. A peça real fazia-se, assim, mais emaranhada pelo caso do que pela ficção de qualquer autor dramático! Mas não será o acaso também um homem de gênio?

— Vai ser preciso jogar forte — disse consigo Henrique.

— E então — disse Paulo de Manerville entrando —, em que ficamos? Venho almoçar contigo.

— Bem — disse Henrique. — Não te ofenderás se eu me visto em tua presença, não?

— Ora, essa é boa!

— Adotamos tanta coisa dos ingleses agora, que nos poderíamos tornar hipócritas e moralistas como eles — disse Henrique.

Lourenço havia trazido para junto do amo tantos utensílios, tantos móveis diferentes e tão lindas coisas, que Paulo não pôde deixar de dizer:

— Mas vais levar nisso umas duas horas, não?

— Não! — retrucou Henrique. — Duas horas e meia.

— Pois bem! Aqui entre nós, já que estamos sós e que podemos confiar um no outro, explica-me por que um homem superior como tu, pois que és superior, afeta até o exagero uma fatuidade que não pode ser nele natural. Por que passar duas horas e meia a se embonecar, quando bastaria tomar um banho em quinze minutos, pentear-se em dois tempos e vestir-se? Vamos, conta-me lá o teu sistema.

— É preciso que eu te queira muito, meu patetão, para te confiar tão altos pensamentos — disse o rapaz, que se fazia nesse momento escovar os pés com uma escova macia passada em sabão inglês.

— Mas tenho por ti a mais sincera afeição — respondeu Paulo de Manerville — e te admiro por te achar superior a mim...

— Deves ter notado, se todavia és capaz de observar um fato moral, que a mulher ama os fátuos — tornou De Marsay respondendo apenas com um olhar à declaração de Paulo. — Sabes por que as mulheres gostam dos fátuos? Os fátuos, meu amigo, são os únicos homens que têm cuidados consigo mesmos. Ora, cuidar zelosamente de si não é afinal zelar em si mesmo pelo bem de outrem? O homem que não se pertence é precisamente o homem que as mulheres cobiçam. O amor é essencialmente ladrão. E nem preciso falar-te do excessivo sentimento de propriedade que as domina. Encontraste já uma única que se tenha apaixonado por algum desmazelado, mesmo que fosse um homem notável? Se isso aconteceu alguma vez, o fato deve ser levado à conta de desejos de mulher grávida, uma dessas ideias loucas que passam pela cabeça de todo o mundo. Pelo contrário, tenho visto pessoas altamente notáveis postas de lado em consequência de sua incúria. Um presunçoso que se ocupa com sua pessoa ocupa-se de frivolidades, de pequenas coisas. E o que é a mulher? Uma pequena coisa, um amontoado de frioleiras. Com duas palavras ditas no ar, não a fazemos palpitar durante quatro horas? Está convencida de que o fátuo pensará nela, visto que ele não pensa em grandes coisas; que não será jamais preterida pela glória, pela ambição, pela política, pela arte, essas grandes prostitutas que ela considera rivais. Depois, os fátuos têm a coragem de se cobrir de ridículo para agradar à mulher, e o coração dela está cheio de recompensas para o homem ridículo por amor. Enfim, um fátuo só pode ser fátuo se tem razões para o ser. São as mulheres que nos dão tal patente. O fátuo é o coronel do amor, tem as suas oportunidades, tem seu regimento de mulheres para comandar! Em Paris, meu caro, tudo se sabe, e um homem não pode ser aqui um fátuo gratis. Experimenta, tu que só tens uma mulher e que talvez tenhas razões para só teres uma, experimenta fazer-te fátuo... não te tornarás, na verdade, ridículo, suicidar-te-ás. Converter-te-ias num boneco de carne e osso, num desses homens condenados inevitavelmente a fazer sempre uma só e mesma coisa. Passarias a significar tolice, tal como La Fayette[206] significa América; Talleyrand, diplomacia; Désaugiers,[207] canção; De Ségur,[208] romança. Se eles saíssem do seu gênero, ninguém mais daria valor ao que fizessem. Eis como somos nós franceses, sempre soberanamente injustos! Talleyrand talvez possa ser um grande financista, La Fayette um tirano e Désaugiers um administrador. Poderias ter quarenta mulheres num ano, mas, publicamente, só te concederiam uma. Nestas condições, amigo Paulo, a fatuidade é o signo de um incontestável poder adquirido sobre o mundo feminino. Um homem amado por muitas mulheres passa por ter qualidades superiores; e então, todas quererão possuí-lo, o infeliz! Mas mesmo assim, pensas que nada valha o direito de chegar a um salão e de lá encarar toda a gente do alto de sua gravata ou através de um monóculo, e de poder desprezar o mais elevado dos homens se ele usar um colete fora de moda? Lourenço, tu me estás magoando! Depois do almoço, Paulo, iremos às Tuileries ver a adorável menina dos olhos de ouro.

Após excelente repasto, os dois jovens percorreram, apressados, o Terrasse des Feuillants e a grande Allée des Tuileries sem encontrar em parte alguma a sublime Paquita Valdez, por causa de quem se encontravam ali cinquenta dos rapazes mais elegantes de Paris completamente almiscarados, rigorosamente engravatados, de botas e esporas e pinguelins, andando, rindo, falando e praguejando.

— Fomos logrados — observou Henrique —, mas me ocorre a mais luminosa ideia do mundo: a pequena recebe cartas de Londres; compramos ou embriagamos o carteiro, abrimos uma das cartas, naturalmente a lemos, juntamos-lhe um bilhetinho amoroso e a fechamos de novo. O velho tirano, crudel tirano, deve decerto conhecer a pessoa que escreve as cartas de Londres e não desconfiará.

No dia seguinte, De Marsay foi mais uma vez passear ao sol no Terrasse dos Feuillants e lá viu Paquita. A paixão já a havia feito linda, para ele. Apaixonou-se seriamente por aqueles olhos cujos raios pareciam ser da natureza dos do sol e cujo ardor resumia o daquele corpo perfeito onde tudo era voluptuosidade. De Marsay sentia-se tentado a tocar o vestido da sedutora criaturinha ao defrontá-la no passeio; mas suas tentativas eram sempre vãs. Em certo momento, ao passar adiante da aia e de Paquita, para poder achar-se ao lado da menina dos olhos de ouro quando ele se voltasse, Paquita, não menos impaciente, avançou vivamente, sentindo De Marsay que ela lhe apertava a mão de modo ao mesmo tempo tão rápido e tão significativamente apaixonado, que pensou ter recebido o choque de uma faísca elétrica. Num instante todas as emoções da sua juventude lhe acudiram ao coração. Ao se contemplarem, Paquita pareceu envergonhada; baixou os olhos para não enfrentar os de Henrique, mas seu olhar deslizou para baixo a fim de ver os pés e o talhe daquele que as mulheres chamavam antes da revolução de seu vencedor.

— Tê-la-ei, decididamente, como amante — murmurou Henrique.

Seguindo-a até o fim do terraço, para o lado da Place Louis xv, avistou o velho marquês de San-Real apoiado ao braço de seu camareiro, a caminhar com todas as precauções de um gotoso e de um caquético. Dona Concha, que desconfiava de Henrique, fez com que Paquita se colocasse entre ela e o velho.

“Oh! tu”, pensou De Marsay, lançando um olhar de desprezo sobre a aia, “se não pudermos fazer-te capitular, com um pouco de ópio te faremos dormir. Conhecemos a mitologia e a fábula de Argos.”[209]

Antes de tomar o carro, a menina dos olhos de ouro trocou com o namorado alguns olhares cuja expressão nada tinha de duvidosa e pela qual Henrique sentiu-se arrebatado; a aia, porém, surpreendeu um deles e disse vivamente algumas palavras a Paquita, que se atirou no cupê com um ar de desespero.

Durante alguns dias, Paquita não apareceu nas Tuileries.

Lourenço, que, por ordem do patrão, passara a espionar os arredores do palácio, soube pelos vizinhos que nem as duas mulheres nem o velho marquês haviam saído desde o dia em que a aia surpreendera um olhar entre a jovem confiada à sua guarda e Henrique. O laço tão frágil que unia os dois enamorados se havia rompido.

Dias após, sem que ninguém imaginasse por que meios, De Marsay atingira o seu alvo. Conseguira um sinete e um lacre absolutamente iguais ao sinete e ao lacre que fechavam as cartas remetidas de Londres à srta. Valdez, um papel semelhante ao de que se servia o correspondente, e todos os utensílios e ferros necessários para apor-lhe os carimbos dos correios inglês e francês. Assim escrevera a seguinte carta, à qual dera todas as aparências das cartas vindas de Londres:

 

Querida Paquita, não procurarei descrever-te, com palavras, a paixão que me inspiraste. Se por felicidade minha a partilhas, sabes agora que encontrei os meios de me corresponder contigo. Chamo-me Adolfo de Gouges e moro na Rue de l’Université, nº 54. Se te encontras muito vigiada para escrever-me, se não tens papel nem pena, saberei pelo teu silêncio. Assim, se amanhã, das oito da manhã até as dez da noite, não tiveres lançado uma carta por sobre o muro do teu jardim para o do barão de Nucingen, onde ela será esperada todo o dia, um homem que me é inteiramente devotado te passará por cima do muro, atados a um cordão, dois frasquinhos, às dez horas do dia seguinte. Nesse momento deves estar passeando pelo jardim. Um deles conterá ópio para fazer adormecer a tua Argos; bastará dar-lhe seis gotas. O outro conterá tinta. O vidro de tinta é entalhado e o outro liso. Ambos são suficientemente achatados para que possas escondê-los no corpete. Tudo o que tenho tentado para me corresponder contigo diz bem o quanto te amo. Se duvidas, asseguro-te que, para ver-te apenas uma hora, daria minha vida.

 

“E elas ainda creem nisto, as pobres criaturas!”, pensou De Marsay, “mas têm razão. Que pensaríamos de uma mulher que não se deixasse seduzir por uma carta de amor acompanhada de provas tão convincentes?”

A carta foi entregue pelo sr. Moinot, o carteiro, ao porteiro do Palácio San-Real, pelas oito horas do dia seguinte.

Para estar próximo do campo de batalha, De Marsay viera almoçar com Paulo, que morava na Rue de la Pépinière. Às duas horas, no momento em que os dois amigos recordavam, a rir, o desastre de um jovem que pretendera levar uma vida elegante sem dispor de fortuna sólida e se perguntavam que fim teria ele, o cocheiro de Henrique veio procurar o patrão para apresentar-lhe um personagem misterioso que queria a viva força falar-lhe pessoalmente. Era um mulato, no qual Talma[210] se teria, decerto, inspirado para representar Otelo, se o tivesse encontrado. Jamais figura de africano exprimiu melhor a grandeza na vingança, a rapidez da suspeita, a imediata execução de um pensamento, a força do Mouro e a sua irreflexão de criança. Seus olhos negros tinham a fixidez dos olhos de uma ave de rapina e eram encastoados, como os de um abutre, numa membrana azulada desprovida de cílios. Sua fronte, estreita e baixa, tinha algo de ameaçador. Evidentemente, o homem estava sob o jugo de um só e único pensamento. Seu braço nervoso não lhe pertencia. Seguia-o um homem que todas as imaginações, desde as que tremem de frio na Groenlândia até as que suam na Nova Inglaterra, definiriam por estas palavras: Era um infeliz. Com essa frase, como é fácil de adivinhar, seria representado segundo as ideias peculiares a cada região. Mas quem poderá imaginar-lhe o rosto branco, enrugado, vermelho nas extremidades, e suas longas barbas? Quem poderá ver-lhe a gravata amarelada em tiras, o colarinho ensebado, o chapéu deformado, a sobrecasaca esverdeada, as calças lamentáveis, o colete encarquilhado, o alfinete de ouro falso, as botinas enlameadas, cujos atadores haviam chafurdado no barro? Quem poderia compreendê-lo em toda a imensidade de sua miséria passada e atual? Quem? Só o parisiense. O infeliz de Paris é o infeliz completo, porque possui ainda momentos de alegria nos quais ele vê o quanto é desventurado. O mulato parecia um carrasco de Luís xi[211] conduzindo um condenado à forca.

— Quem nos teria enviado esse dois velhacos? — disse Henrique.

— Puxa! Um deles me dá calafrios — retrucou Paulo.

— Quem és tu, tu que tens ares de ser o mais cristão dos dois? — perguntou Henrique encarando o tipo infeliz.

O mulato ficou de olhos cravados nos dois jovens, com o aspecto de quem nada entendia, mas que buscava adivinhar alguma coisa pelos gestos e movimentos dos lábios.

— Sou escrivão e intérprete público. Resido no Palais de Justice e me chamo Poincet.

— Bem! E esse aí? — perguntou Henrique a Poincet, apontando para o mulato.

— Não sei; só fala uma espécie de gíria espanhola e me trouxe aqui para poder entender-se com o senhor.

O mulato tirou do bolso a carta escrita a Paquita por Henrique e lha entregou; Henrique atirou-a ao fogo.

“Bem, a coisa começa a esclarecer-se”, pensou Henrique.

— Paulo, deixa-nos a sós um momento.

— Eu traduzi para ele essa carta — continuou o intérprete logo que ficaram sós. — Depois de traduzida, ele foi não sei aonde. Depois voltou para me conduzir aqui, prometendo-me dois luíses.

— Que tens a dizer-me, bárbaro? — perguntou Henrique.

— Não o chamei de bárbaro — disse o intérprete, enquanto esperava a resposta do mulato.

— Ele diz — tornou o intérprete depois de haver escutado o desconhecido — que o senhor deve encontrar-se amanhã à noite, às dez e meia, no Boulevard Montmartre, junto ao café. Lá estará um carro, ao qual subirá dizendo à pessoa que estará pronta a abrir-lhe a portinhola a palavra cortejo, palavra espanhola que quer dizer amante — concluiu Poincet deitando um olhar de felicitações a Henrique.

— Muito bem!

O mulato quis dar os dois luíses; mas De Marsay não o consentiu e gratificou o intérprete. Enquanto o fazia, o mulato proferiu algumas palavras.

— Que diz ele?

— Previne-me — respondeu o homem infeliz — que, se eu cometer a menor indiscrição, me estrangulará. É um tipo amável; tem a aparência de ser bem capaz de cumprir a ameaça.

— Estou certo disso — respondeu Henrique. — Ele faria o que diz.

— Ele acrescenta — continuou o intérprete — que a pessoa que o envia suplica-lhe, pelo senhor e por ela, que guarde a maior prudência em seus atos, pois que os punhais erguidos sobre a sua cabeça e a dela lhes cairiam nos corações sem que poder algum no mundo o pudesse evitar.

— Disse isso! Melhor, será mais divertido. Mas podes entrar, Paulo! — gritou para o amigo.

O mulato, que não cessara de olhar o amante de Paquita Valdez com atenção magnética, saiu seguido do intérprete.

“Afinal, eis uma aventura bem romântica”, pensou Henrique no momento em que Paulo regressava. “À força de participar de algumas, acabei encontrando nesta Paris uma intriga acompanhada de circunstâncias graves e de sérios perigos. Ah! Diabo! Como o perigo torna a mulher ousada! Molestar uma mulher, querer constrangê-la, não é dar-lhe o direito e a coragem de transpor num momento barreiras que ela levaria anos a saltar? Criatura gentil, vamos, salta! Morrer? Pobrezinha! Punhais? Imaginação de mulher! Todas elas sentem necessidade de fazer valer sua pequena zombaria. Ademais, pensaremos nisso, Paquita! Pensaremos nisso, minha filha! O diabo me conduz. Agora que sei que essa bela criatura, essa obra-prima da natureza é minha, a aventura perde muito do seu sabor.”

Não obstante essas palavras levianas, o rapaz reaparecia em Henrique. Para esperar até o dia seguinte sem se atormentar, recorreu a prazeres exorbitantes: jogou, ceou com os amigos; bebeu desbragadamente, comeu como um alemão e ganhou dez ou doze mil francos. Saiu do Rocher de Cancale[212] às duas da madrugada, dormiu como uma criança, acordou fresco e rosado e vestiu-se para ir às Tuileries, pretendendo, depois de ver Paquita, montar a cavalo para abrir o apetite e jantar melhor, a fim de poder matar o tempo.

À hora marcada, Henrique foi ao bulevar, avistou o carro e deu a senha a um homem que lhe pareceu ser o mulato. Ao ouvi-la, o homem abriu a porta e desceu prontamente o estribo. Henrique foi tão rapidamente levado através de Paris e seus pensamentos lhe deixavam tão pequena possibilidade de prestar atenção às ruas pelas quais passava, que não ficou sabendo onde parou a carruagem. O mulato introduziu-o numa casa cuja escada se encontrava junto ao portão de entrada para carros. A escada era escura e também o patamar no qual Henrique teve de aguardar durante o tempo que o mulato levou a abrir a porta de um apartamento úmido, nauseabundo, sem luz, cujas peças, mal iluminadas pela vela que o guia encontrou na antecâmara, pareceram-lhe vazias e mal mobiliadas, como as de uma casa cujos habitantes se encontrassem viajando.

Teve de novo a sensação que lhe proporcionara a leitura de um dos romances de Ann Radcliffe,[213] no qual o herói atravessa as salas frias, escuras e desabitadas de uma mansão triste e deserta.

O mulato abriu, por fim, a porta de uma sala. O estado dos velhos móveis e das cortinas desbotadas de que a peça era ornada fazia-a parecer uma sala de casa suspeita. Havia nela a mesma pretensão à elegância, o mesmo conjunto de coisas de mau gosto, de poeira e imundície. Num canapé coberto de veludo de Utrecht vermelho, junto a uma lareira fumegante, cujo fogo estava abafado nas cinzas, achava-se uma mulher idosa, malvestida, toucada com um desses turbantes que as inglesas sabem inventar ao chegarem a certa idade, e que teriam grande sucesso na China, onde o ideal de beleza dos artistas é a monstruosidade. A sala, a velha, a lareira fria, tudo teria gelado o amor, se Paquita lá não estivesse numa conversadeira, vestindo voluptuoso penhoar, livre para lançar seus olhares de ouro e chamas, livre para mostrar o pé torneado, livre em seus movimentos luminosos.

Esse primeiro encontro foi o que costumam ser todos os primeiros encontros entre criaturas apaixonadas que rapidamente franquearam as distâncias e que se desejam ardentemente, sem, todavia, conhecer-se. Impossível, aliás, é que não se encontrem de início ligeiras discordâncias nessa situação, incômoda até o momento em que as almas se afinam no mesmo tom. Se o desejo comunica audácia ao homem e o dispõe a nada poupar, a amante, sob pena de não ser mulher, por maior que seja o seu amor, assusta-se de se ver tão prontamente chegada ao alvo pretendido e face a face com a necessidade de se dar o que, para muitas mulheres, equivale à queda num abismo, no fundo do qual não sabem o que irão encontrar. A frieza involuntária da mulher contrasta com a sua paixão declarada e reage necessariamente sobre o amante mais apaixonado. Tais ideias, que por vezes flutuam como vapores ao redor das almas, nelas determinam uma espécie de tontura passageira.

Na doce viagem que dois seres empreendem através das belas regiões do amor, esse momento é como uma charneca a atravessar, uma charneca sem urzes, alternativamente cálida e úmida, ora cheia de areias escaldantes, ora pontilhada de lagoas, e que conduz a ridentes bosques revestidos de rosas onde o amor e seu cortejo de prazeres se espalham sobre macios tapetes de grama. Frequentes vezes o homem espiritual apresenta um sorriso idiota que lhe serve de resposta a tudo; seu espírito acha-se como que entorpecido pela glacial compreensão de seus desejos. Não é, assim, impossível que dois seres igualmente belos, espirituais e apaixonados, falem primeiro dos lugares-comuns mais simplórios, até que o acaso, uma palavra, o tremor de certo olhar, a comunicação de uma faísca, lhes permita achar a transição feliz que os leva ao caminho florido onde não se anda, mas sim se rola, sem, contudo, descer.

Esse estado d’alma está sempre em função da violência dos sentimentos. Dois seres que mal se amam nada sentem que com isso se pareça. O efeito de tal crise pode comparar-se ainda ao que produz um céu puro. A natureza parece à primeira vista coberta por um véu de gaze, o azul do firmamento parece negro, a extrema luz assemelha-se às trevas.

Em Henrique, como na espanhola, o amor manifestava-se com igual violência; e a lei da estática, segundo a qual duas forças idênticas se anulam quando se chocam, bem poderia ser também verdade no terreno moral. Além disso, o embaraço desse instante foi singularmente aumentado pela presença da velha múmia. O amor assusta-se ou rejubila-se com tudo; para ele tudo tem significação, tudo é presságio feliz ou funesto. Aquela mulher decrépita lá estava como um desenlace possível, e figurava a horrenda cauda de peixe pela qual os simbólicos gênios da Grécia terminavam as Quimeras e as Sereias, tão sedutoras, tão atraentes pelo busto, como o são todas as paixões no começo.

Embora Henrique fosse, não um espírito forte (essa expressão é sempre uma zombaria) mas um homem de extraordinário vigor, um homem tão grande quanto se possa ser sem fé, o conjunto de todas essas circunstâncias o impressionou. Os homens mais fortes são, aliás, os mais impressionáveis e, consequentemente, os mais supersticiosos, se é que se pode chamar de superstição à impressão do primeiro instante, que é, sem dúvida, percepção do resultado de causas ocultas a outros olhos, e imperceptíveis aos próprios.

A espanhola aproveitou esse momento de estupor para entregar-se ao êxtase dessa infinita adoração que avassala o coração de uma mulher, quando ama verdadeiramente e se encontra na presença de um ídolo longamente esperado. Seus olhos expressavam só alegria e felicidade, e expeliam clarões. Estava sob o encanto de uma felicidade há muito sonhada e dela se inebriava sem receio. Pareceu a Henrique tão maravilhosamente bela, que toda aquela fantasmagoria em farrapos, de velhice, de planejamentos vermelhos gastos, de capachos verdes diante das poltronas, todo aquele ladrilho vermelho mal varrido, todo aquele luxo desbotado e indigente, tudo desapareceu imediatamente.

A sala iluminou-se. Ele não mais viu senão através de uma nuvem a terrível harpia, fixa, muda, sobre o canapé vermelho, cujos olhos amarelados traíam os sentimentos servis que a desgraça comunica ou que um vício causa quando se caiu sob a sua escravidão como nas garras de um tirano que nos embrutece sob as flagelações do seu despotismo. Seus olhos tinham o brilho frio dos de um tigre enjaulado que conhece sua impotência e se vê obrigado a sufocar seus desejos de destruição.

— Quem é essa mulher? — perguntou a Paquita.

Mas Paquita não respondeu. Fez sinal de que não entendia o francês e perguntou a Henrique se falava o inglês. De Marsay repetiu a pergunta em inglês.

— É a única mulher em que posso confiar, muito embora já me tenha vendido — disse Paquita tranquilamente. — Meu caro Adolfo, é minha mãe, uma escrava adquirida na Geórgia pela sua rara beleza, da qual pouco ou nada resta atualmente. Fala somente a sua língua materna.

A atitude daquela mulher e o seu desejo de adivinhar, pelos movimentos da filha e de Henrique, o que se passava entre eles, foram assim explicados ao jovem, e essa explicação o pôs à vontade.

— Paquita — disse-lhe —, não seremos então livres?

— Nunca! — exclamou ela com ar triste. — Temos mesmo poucos dias ao nosso dispor.

Baixou os olhos, olhou as mãos e começou com a direita a contar nos dedos da esquerda, mostrando assim as mais lindas mãos que Henrique jamais vira.

— Um, dois, três... — E contou até doze.

— Sim — disse —, temos doze dias.

— E depois?

— Depois... — respondeu ela absorta como uma fraca mulher diante do machado do carrasco e morta, antes de receber o golpe, por um temor que a despojava daquela magnífica energia que a natureza só lhe parecia ter dado para aumentar as voluptuosidades e converter em infinitos poemas os prazeres mais grosseiros. — Depois... — repetiu; e seus olhos se tornaram fixos parecendo contemplar um objeto distante e ameaçador. — Não sei — concluiu.

“Está doida”, pensou Henrique, que recaiu também em estranhas reflexões.

Paquita parecia-lhe preocupada com qualquer coisa alheia a ele, como uma mulher dominada ao mesmo tempo pelo remorso e pela paixão. Talvez tivesse no coração outro amor, que ela ora lembrasse, ora esquecesse. Num instante Henrique viu-se assaltado por mil pensamentos contraditórios. Para ele, a jovem era um mistério; mas, contemplando-a com a sábia atenção do homem experiente, sequioso de novas volúpias, como aquele rei do Oriente que ordenava que lhe criassem um prazer novo, dominado por essa sede horrível que invade as grandes almas, Henrique reconhecia em Paquita a mais rica das organizações que a natureza já se comprazera em criar para o amor. O pressuposto movimento daquela máquina, posta de parte a alma, teria assustado qualquer outro que não De Marsay; ele, porém, ficou fascinado por aquela rica e promissora seara de prazeres, por aquela constante variedade na ventura, que é o sonho de todos os homens e que toda mulher amorosa também ambiciona.

Sentia-se enlouquecido pelo infinito tornado palpável e transportado aos mais altos gozos da criatura. Via tudo isso naquela mulher, mais distintamente do que até então, pois que ela se deixava contemplar complacentemente, feliz por se ver admirada. A admiração de De Marsay tornou-se secreta raiva, que ele revelou inteiramente lançando um olhar que a espanhola compreendeu como se estivesse habituada a receber outros semelhantes.

— Se não devesses ser unicamente minha, eu te mataria! — exclamou ele.

Ouvindo essas palavras, Paquita levou as mãos ao rosto e exclamou ingenuamente:

— Virgem Santa, onde me fui meter!

Levantou-se, dirigiu-se ao canapé vermelho, mergulhou a cabeça nos farrapos que cobriam o seio de sua mãe e chorou. A velha recebeu-a sem sair da sua imobilidade, sem um gesto. Possuía no mais alto grau essa gravidade das hordas selvagens, essa impassibilidade da estatuária ante a qual se malogra a observação. Amava, não amava a filha? Nenhuma resposta. Sob aquela máscara ocultavam-se todos os sentimentos humanos, bons e maus; tudo se poderia esperar daquela criatura. Seu olhar ia lentamente dos belos cabelos da filha, que a recobriam como uma mantilha, ao rosto de Henrique, que ela observava com inexprimível curiosidade. Parecia perguntar a si mesma por que espécie de sortilégio ele estava ali, por que capricho a natureza fizera um homem tão sedutor.

“Estas mulheres riem-se de mim!”, pensou Henrique.

Nesse momento Paquita levantou a cabeça e deitou-lhe um desses olhares que penetram até a alma e a abrasam. E pareceu-lhe tão bela que jurou possuir aquele tesouro de beleza.

— Paquita querida, sê minha!

— Queres matar-me? — respondeu ela medrosa, palpitante, inquieta, mas impelida para ele por uma força inexplicável.

— Matar-te, eu?! — disse ele, sorrindo.

Paquita lançou um grito de susto e disse algo à velha que, tomando com autoridade a mão de Henrique e depois a da filha, olhou-os algum tempo e largou-as meneando a cabeça de modo significativo.

— Sê minha esta noite, agora, vem, não me deixes, eu a quero, Paquita! Não me amas? Vem!

Num segundo disse-lhe mil palavras insensatas com a rapidez duma torrente que cascateia entre rochedos e repete o mesmo som de mil formas diferentes.

— É a mesma voz! — disse Paquita melancolicamente, sem que De Marsay pudesse ouvi-la — e... o mesmo ardor. Pois sim! — respondeu ela com um abandono apaixonado que ninguém poderia exprimir. — Sim, mas não esta noite. Esta noite, Adolfo, dei pouco ópio à Concha, ela poderia acordar e eu estaria perdida. Todos pensam que a esta hora eu esteja a dormir em meu quarto. Daqui a dois dias, vai ao mesmo lugar e dize a mesma palavra ao mesmo homem. É o marido da minha ama de leite, Cristêmio, que me adora e é capaz de morrer por mim, torturado, sem que lhe arranquem uma única palavra contra mim. Adeus — concluiu abraçando Henrique e enroscando-se nele como uma serpente.

Apertou-o todo ao mesmo tempo e, levantando a cabeça até a dele, ofereceu-lhe os lábios num beijo que deu tais vertigens a ambos que De Marsay imaginou que a terra se abria a seus pés e Paquita gritou:

— Vai! — com uma voz que denunciava quão pouco se sentia senhora de si. Mas dominando-se e sempre a dizer-lhe “vai!” conduziu-o lentamente até a escada.

Lá, o mulato cujos olhos brancos se iluminaram à vista de Paquita tomou o candelabro das mãos de seu ídolo e conduziu Henrique até a rua. Depôs o candelabro num nicho, abriu a portinhola, fez Henrique subir à carruagem e o conduziu ao Boulevard des Italiens com maravilhosa rapidez. Os cavalos pareciam ter o diabo no corpo.

Essa cena foi como um sonho para De Marsay, mas um desses sonhos que, ao se dissiparem, deixam n’alma um sentimento de volúpia sobrenatural, atrás da qual um homem corre pelo resto de sua vida. Um único beijo fora o suficiente. Encontro algum se teria passado de modo mais conveniente, nem mais casto nem mais frio talvez, em lugar de arranjo mais horroroso, diante de divindade mais pavorosa; porque aquela mãe ficara na imaginação de Henrique como algo de infernal, de baixo, de fúnebre, de vicioso, de selvagemente feroz, que a fantasia dos pintores e dos poetas não conseguira até então adivinhar.

De fato, jamais um encontro lhe excitara tanto os sentidos, lhe revelara voluptuosidades mais completas, ou fizera brotar com mais ímpeto o amor de seu coração para espalhar-se como uma atmosfera especial em torno de um homem. Foi qualquer coisa de sombrio, de misterioso, de doce, de terno, de constrangedor e de expansivo, um misto de horrível e de celestial, de paraíso e de inferno, que inebriou De Marsay. Não se sentia mais ele próprio, embora fosse assaz forte para resistir à embriaguez do prazer.

Para compreender-se bem a sua conduta no desenrolar desta história, é necessário explicar como sua alma era elevada na idade em que os jovens se amesquinham misturando-se às mulheres ou delas ocupando-se demais. Ele fizera-se superior pelo concurso de circunstâncias secretas que o investiam de um imenso poder desconhecido. Aquele rapaz tinha nas mãos um cetro mais poderoso que o dos reis modernos, quase todos limitados pelas leis em suas menores vontades.

De Marsay possuía o poder autocrático do déspota oriental. Mas esse poder, tão estupidamente exercido na Ásia por homens embrutecidos, era requintado pela inteligência europeia, pelo espírito francês, o mais vivo, o mais acerado dos instrumentos intelectuais. Henrique podia tudo o que queria no interesse de seus prazeres e vaidades. Uma invisível ação sobre o mundo social revestira-o de uma majestade real, mas secreta, sem ênfase e dobrada sobre si mesma. Tinha a seu respeito não a opinião que Luís xiv pudesse ter de si, mas a que o mais orgulhoso dos califas, dos faraós, dos Xerxes que se acreditavam divinos tinham deles próprios ao imitarem Deus, ocultando-se dos seus súditos sob o pretexto de que seu olhar causava a morte.

Assim, sem sentir remorso algum por ser ao mesmo tempo juiz e réu, De Marsay condenava friamente à morte o homem ou a mulher que o ofendesse seriamente. E, ainda que muitas vezes a sentença fosse proferida levianamente, a condenação era irrevogável. Um erro era uma infelicidade semelhante àquela que causa o raio caindo sobre uma parisiense feliz no interior de um carro, em vez de fulminar o velho cocheiro que a leva a uma entrevista.

A chocarrice amarga e profunda que caracterizava a conversação do jovem causava, também, geralmente, calafrios; ninguém sentia desejos de a provocar. As mulheres amam prodigiosamente os homens que se chamam a si próprios paxás, que parecem fazer-se acompanhar de leões e de carrascos, e marcham cercados de um aparato de terror. Daí resulta para tais homens uma segurança de ação, uma certeza de poder, uma altivez de olhar, uma consciência leonina que resume para as mulheres o tipo de força com que todas sonham. Assim era De Marsay.

Confiando, naquele momento, em seu futuro, tornou-se mais jovem e flexível e só pensava em amar ao deitar-se. Sonhou com a menina dos olhos de ouro, como sonham os moços apaixonados. Eram imagens monstruosas, bizarrias indescritíveis, cheias de luz, a revelarem mundos invisíveis, mas de modo sempre incompleto, porque um véu interposto mudava as condições de óptica. Nos dois dias que se seguiram, desapareceu sem que se pudesse saber para onde fora. Sua força só lhe pertencia em determinadas condições e, felizmente para ele, durante esses dois dias, foi simples soldado a serviço do demônio que alimentava sua talismânica existência. Mas, à hora marcada, de noite, aguardou no bulevar a carruagem, que não se fez esperar. O mulato aproximou-se de Henrique para dizer-lhe em francês uma frase que parecia haver decorado:

— Ela me disse que se o senhor quiser ir deve deixar-se vendar os olhos.

E Cristêmio mostrou um lenço de seda branca.

— Não! — disse Henrique, cuja altivez se revoltou imediatamente.

E quis subir. O mulato fez um sinal; a carruagem partiu.

— Sim! — exclamou De Marsay, furioso, na iminência de perder uma ventura sonhada. Via, aliás, a impossibilidade de entrar em acordo com um escravo cuja obediência era tão cega como a de um carrasco. Ademais, não era sobre aquele instrumento passivo que deveria cair sua cólera.

O mulato assobiou; a carruagem deu volta. Henrique subiu precipitadamente. Já alguns curiosos se acotovelavam parvamente no bulevar. Henrique era forte e quis lograr o mulato. Assim que o carro partiu a trote largo, agarrou-lhe as mãos para dominá-lo e poder conservar o exercício de suas faculdades a fim de saber para onde ia. Tentativa inútil. Os olhos do mulato cintilaram na sombra. O homem lançou gritos que o furor fazia expirar em sua garganta, desembaraçou-se, repeliu De Marsay com mão de ferro e o pregou, por assim dizer, no fundo da carruagem; depois, com a mão livre, sacou de um punhal triangular e assobiou. O cocheiro ouviu-o e parou. Henrique estava desarmado e teve de render-se: estendeu a cabeça para o lenço. Esse gesto de submissão apaziguou Cristêmio, que lhe vendou os olhos com um respeito e um cuidado que testemunhavam certa veneração pelo homem amado de seu ídolo. Mas, antes de fazê-lo, havia escondido o punhal, desconfiado, no bolso do lado oposto e se abotoara até o pescoço.

“Esse bárbaro me mataria”, pensou De Marsay.

A carruagem rodou de novo rapidamente. Restava um recurso para quem conhecia tão bem Paris, como Henrique. Para saber aonde ia, bastava recolher-se e contar, pelo número de calhas atravessadas, as ruas transversais dos bulevares enquanto andassem em linha reta. Poderia assim reconhecer por qual rua lateral tomaria o carro, quer para o lado do Sena, quer para as alturas de Montmartre, e adivinhar o nome ou a situação do lugar onde o guia o fizesse descer. Mas a emoção violenta que lhe causara a luta, o furor em que o punha sua dignidade comprometida, as ideias de vingança a que se entregava, as suposições que lhe sugeria o cuidado minucioso tomado pela misteriosa moça para o fazer chegar a ela, tudo o impediu de exercitar essa atenção de cego necessária à concentração de sua inteligência e à perfeita perspicácia da memória. O trajeto durou uma meia hora. Quando o carro parou, não se encontrava mais sobre o calçamento. O mulato e o cocheiro tomaram Henrique pelos braços e o conduziram a uma espécie de padiola, em que o transportaram através de um jardim, onde sentiu o aroma das flores e o odor peculiar às árvores e à vegetação. O silêncio que ali reinava era tão profundo que se podia ouvir o ruído que faziam algumas gotas d’água caindo das folhas úmidas. Os dois homens levaram-no por uma escada, fizeram-no levantar-se, conduziram-no através de várias peças, guiando-o pela mão, e deixaram-no num quarto de atmosfera perfumada, onde sentiu sob os pés um tapete espesso. Uma mão de mulher fê-lo sentar num divã e tirou-lhe a venda. Henrique viu Paquita diante dele, mas Paquita em seu esplendor de mulher voluptuosa.

Metade do toucador em que Henrique se encontrava descrevia uma linha circular graciosíssima, em contraposição à outra parte perfeitamente quadrangular, em meio da qual brilhava uma lareira de mármore branco e ouro. Ele havia entrado por uma porta lateral escondida sob um fino reposteiro e que fazia face a uma janela. A parte em ferradura estava ornada com um verdadeiro divã turco, vale dizer, uma almofada posta sobre o assoalho, mas uma almofada do tamanho de um leito, um divã de cinquenta pés de perímetro, acolchoado de casimira branca, com fofos em seda negra e vermelho-papoula, dispostos em losangos. O espaldar desse imenso leito elevava-se de várias polegadas sobre as numerosas almofadas que o faziam ainda mais rico pelo gosto de seus enfeites.

O toucador era forrado de estofo vermelho sobre o qual fora disposta musselina da Índia, estriada como uma coluna coríntia, por listras ora côncavas, ora convexas, que terminavam em cima e embaixo em barras de estofo cor de papoula sobre o qual se desenhavam arabescos em negro. Sob a musselina, o vermelho tornava-se rosa, cor amorosa, que as cortinas da janela repetiam, pois eram de musselina da Índia forrada de tafetá cor-de-rosa e ornadas de franjas vermelhas e negras. Seis braços de prata dourada, cada um com dois castiçais, estavam colocados sobre a tapeçaria, a distâncias iguais, para iluminar o divã. O teto, do centro do qual pendia um lustre de prata fosca, esplendia de brancura e sua cornija era dourada. O tapete parecia um xale do Oriente, cheio de desenhos, e lembrava poesias da Pérsia, onde mãos de escravas o tinham trabalhado. Os móveis eram forrados de casimira branca, realçada por iguais enfeites negros e cor de papoula. A pêndula, os candelabros, tudo era de mármore branco e ouro. A única mesa que ali havia tinha como toalha um pano de casimira. Elegantes jardineiras continham rosas de todas as espécies, flores brancas e vermelhas. Enfim, os menores detalhes pareciam ter sido alvo de um cuidado carinhoso. Jamais a riqueza se escondera mais garridamente para se fazer elegância, para exprimir graça, para inspirar volúpia. Tudo ali era de aquecer o ente mais frígido. Os reflexos cambiantes da tapeçaria, cuja cor variava segundo a direção do olhar, tornando-se totalmente branca ou totalmente rosa, concordavam com os enfeites de luz que se produziam nas diáfanas pregas da musselina dando-lhe aparências sombrias.

A alma sente não sei que atração pelo branco, o amor gosta do vermelho e o ouro lisonjeia as paixões, pois tem o poder de realizar as suas fantasias. Desse modo, tudo o que o homem possui de vago e misterioso em si mesmo, todas as suas afinidades inexplicadas ali se encontravam afagadas em suas simpatias involuntárias. Havia naquela harmonia perfeita um concerto de cores que se refletiam n’alma por ideias voluptuosas, indecisas, flutuantes.

Foi em meio a uma vaporosa atmosfera, carregada de esquisitos perfumes, que Paquita, envolta num penhoar branco, com os pés descalços e flores de laranjeira em seus cabelos negros, apareceu a Henrique, ajoelhada diante dele, adorando-o como o deus daquele templo em que se dignara aparecer. Embora De Marsay estivesse habituado aos requintes do luxo parisiense, sentiu-se surpreendido ante aquela concha semelhante àquela em que nasceu Vênus. Fosse efeito do contraste entre as trevas de que saía e a luz que lhe iluminava a alma, fosse por uma comparação rapidamente feita entre aquela cena e a da primeira entrevista, experimentou uma dessas sensações delicadas que nos comunicam a verdadeira poesia.

Ao perceber, no centro daquele retiro criado pela vara de condão de uma fada, a obra-prima da criação, aquela criatura cuja tez de tons cálidos, cuja pele macia e ligeiramente dourada pelos reflexos vermelhos e pela efusão de não sei que fluido de amor, brilhava como se refletisse os raios das luzes e das cores, sua cólera, seus desejos de vingança, sua vaidade ferida, tudo desapareceu. Como uma águia que cai sobre a presa, ele a tomou no colo, fê-la sentar-se em seus joelhos, e sentiu com indizível embriaguez o voluptuoso contato da jovem, cujas belezas livremente expandidas o envolveram docemente.

— Vem! Paquita! — murmurou.

— Fala! fala sem temor — disse-lhe ela. — Este recanto foi construído para o amor. Nenhum som dele se escapa, tanto nele se quis ambiciosamente guardar os acentos e a música da voz amada. Por fortes que sejam os gritos, não seriam ouvidos do outro lado destes muros. Poder-se-ia aqui assassinar alguém; suas queixas seriam tão vãs como se estivesse no centro do Grande Deserto.

— Quem assim compreendeu tão bem o ciúme e as suas necessidades?

— Não me perguntes nada a respeito — contestou ela desfazendo com incrível meiguice a gravata do jovem, sem dúvida para ver-lhe melhor o pescoço. — Sim, eis este pescoço de que tanto gosto! — disse ela. — Queres ser-me agradável?

Essa pergunta, que o tom fazia quase lasciva, tirou De Marsay do devaneio em que o mergulhara a despótica resposta pela qual Paquita lhe interditara qualquer indagação referente ao ser desconhecido que pairava como uma sombra por sobre eles.

— E se eu quisesse saber quem reina aqui?

Paquita encarou-o, tremente.

— Não sou eu, então — disse ele levantando-se e se desembaraçando da moça, que caiu para trás. — Quero ser o único, onde estou!

— Isto é surpreendente! — exclamou a pobre escrava, amedrontada.

— Por quem me tomas? Responde!

Paquita levantou-se vagarosamente, com os olhos lacrimosos, foi buscar num dos móveis de ébano um punhal e ofereceu-o a Henrique com um gesto de submissão que teria enternecido um tigre.

— Dá-me um prazer como o que sabem os homens dar quando amam — disse ela —, e, quando eu adormecer, mata-me, pois não sei responder-te. Escuta: vivo atada como um pobre animal no cabresto; estou admirada de ter podido lançar uma ponte sobre o abismo que nos separa. Inebria-me, e depois me mata. Oh! não, não — exclamou juntando as mãos —, não me mates! Gosto da vida! A vida é tão bela para mim! Se sou escrava, sou também rainha. Poderia iludir-te com palavras, dizer-te que só amo a ti, prová-lo, aproveitar meu domínio momentâneo para dizer-te: Toma-me como se aspirasses o perfume de uma flor no jardim de um rei. Depois, após ter posto em cena a eloquência astuta da mulher e aberto as asas do prazer, depois de ter saciado minha sede, poderia fazer-te lançar num poço onde ninguém te pudesse encontrar, construído expressamente para satisfazer a vingança sem temor ao castigo da justiça, um poço cheio de cal que queimaria para te consumir sem que restasse uma só partícula de teu ser. Ficarias no meu coração, serias meu para sempre.

Henrique encarou a jovem sem tremer, e esse olhar sem medo a encheu de alegria.

— Não! não o faria! Tu não caíste aqui numa armadilha, mas num coração de mulher que te adora; e eu é que serei lançada no poço.

— Tudo isto me parece prodigiosamente tolo — disse-lhe De Marsay, examinando-a. — Mas pareces-me uma boa criatura, uma natureza esquisita; és, palavra de honra, uma charada viva cuja solução julgo difícil achar.

Paquita nada entendeu do que dizia o jovem; fitou-o docemente com olhos que jamais poderiam ser tolos, tanta era a volúpia que neles se estampava.

— Escuta, meu amor — disse ela voltando à sua primeira ideia —, queres dar-me um prazer?

— Farei tudo o que quiseres e até o que não quiseres — respondeu rindo De Marsay, que reencontrara sua desenvoltura enquanto tomava a resolução de se entregar ao sabor de sua aventura sem olhar para trás ou para a frente. Talvez contasse com sua força e com sua habilidade de homem feliz no amor para dominar, horas mais tarde, aquela mulher e conhecer-lhe todos os segredos.

— Então — prosseguiu ela —, deixa-me arranjar-te a meu gosto.

— Põe-me, pois, ao teu gosto — consentiu Henrique.

Paquita, contente, foi buscar num dos móveis um roupão de veludo vermelho, que vestiu em Henrique, pondo-lhe em seguida uma touca de mulher e envolvendo-o com um xale. Entregando-se a tais loucuras, executadas com uma inocência de criança, ela ria com um riso convulsivo e parecia um pássaro batendo as asas; mas não via nada além da brincadeira.

Se é impossível pintar as delícias inéditas que experimentaram aquelas duas belas criaturas feitas pelo céu num momento de alegria, talvez seja conveniente traduzir metafisicamente as impressões extraordinárias, quase fantásticas, do rapaz. O que as pessoas que se encontram na situação social em que estava De Marsay e que vivem como ele vivia melhor sabem reconhecer é a inocência de uma jovem. Mas, coisa estranha!, se a menina dos olhos de ouro era virgem, não era, decerto, inocente. A união tão bizarra do misterioso e do real, da sombra e da luz, do horrível e do belo, do prazer e do perigo, do paraíso e do inferno, que já se encontrava naquela aventura, continuava no ser caprichoso e sublime de que De Marsay desfrutava. Tudo o que a volúpia mais refinada tem de mais sábio, tudo aquilo que Henrique conhecia dessa poesia dos sentidos a que chamamos amor foi ultrapassado pelos tesouros que revelou aquela criatura, cujos olhos tentadores não mentiram a nenhuma das promessas que faziam.

Foi um poema oriental em que brilhava o sol com que Saadi[214] e Hafiz[215] iluminaram suas alegres estrofes. Todavia, nem o ritmo de Saadi nem o de Píndaro[216] poderiam exprimir o êxtase cheio de confusão e o espanto de que ficou possuída aquela deliciosa criatura ao cessar o erro em que uma mão de ferro a fizera viver.

— Morta! — murmurou ela —, estou morta! Adolfo, leva-me para os confins da terra, para uma ilha onde ninguém nos possa achar. Que nossa fuga não deixe traços! Seríamos seguidos até o inferno. Deus! Já é dia. Foge! Tornarei a ver-te? Sim, amanhã, quero rever-te, ainda que para conquistar essa felicidade tivesse de matar todos os que me vigiam. Até amanhã.

Apertou-o nos braços num amplexo em que havia o terror da morte. Tocou a seguir um botão que devia corresponder a uma campainha e suplicou a De Marsay que se deixasse vendar os olhos.

— E se eu não consentisse, se quisesse ficar aqui?

— Causarias mais depressa a minha morte — disse ela —, pois que agora tenho certeza de que vou morrer por ti.

Henrique submeteu-se. Encontra-se no homem que acaba de se fartar do gozo uma tendência ao esquecimento, não sei que ingratidão, um desejo de liberdade, uma vontade de espairecer, um quê de desprezo e quiçá de repugnância por seu ídolo; enfim, inexplicáveis sentimentos que o tornam ignóbil e infame. A certeza dessa afecção confusa, mas real nas almas não iluminadas pela luz celestial nem perfumadas pelo bálsamo santo de que nos vem a pertinácia do sentimento, foi que ditou a Rousseau, sem dúvida, as aventuras de milorde Eduardo pelas quais concluem as cartas da Nova Heloísa. Mas, se Rousseau buscou inspiração evidentemente na obra de Richardson, dela se afastou por mil detalhes que tornam seu monumento original; recomendou-o à posteridade por grandes ideias que são difíceis de decantar, pela análise, quando, na juventude, se lê esse livro com o desígnio de nele encontrar a cálida pintura do mais físico de nossos sentimentos, enquanto os escritores sérios e filósofos só empregam as suas imagens como consequência ou exigência de um vasto pensamento; e as aventuras de milorde Eduardo constituem uma das ideias mais europeiamente delicadas dessa obra.

Henrique encontrava-se, pois, sob o império desse confuso sentimento que o verdadeiro amor desconhece. Faltavam-lhe de certa maneira a persuasiva segurança das comparações e o atrativo irresistível das lembranças para o ligar a uma mulher. O verdadeiro amor reina, sobretudo, pela memória. A mulher que se não gravou na alma nem pelo excesso do prazer nem pela força do sentimento poderá ser alguma vez amada? Sem que Henrique tivesse consciência disso, Paquita nele penetrara por esses dois meios. Mas, naquele momento, todo entregue à fadiga da ventura, essa deliciosa melancolia do corpo, ele não podia analisar o próprio coração fazendo voltar aos lábios o gosto das mais vivas voluptuosidades que até então experimentara.

Viu-se no Boulevard Montmartre ao amanhecer, encarou estupidamente a carruagem que se afastava e, tirando dois charutos do bolso, acendeu um na lanterna de uma mulher que vendia aguardente e café aos trabalhadores, aos vendedores de jornais, aos carregadores, a toda essa população de Paris que começa a vida antes do dia; depois afastou-se, a fumar o seu charuto, de mãos nos bolsos da calça, com uma despreocupação verdadeiramente desonrosa.

“Que coisa boa é um charuto! Uma coisa de que o homem jamais se fatigará”, disse de si para si.

Naquela menina dos olhos de ouro que apaixonava na época toda a juventude elegante de Paris, mal pensava! A ideia da morte expressa através do prazer, e cujo temor fizera por várias vezes empalidecer a fronte daquela bela criatura, que provinha das huris da Ásia por parte de mãe e se ligava à Europa pela educação e aos trópicos pelo nascimento, parecia-lhe um desses embustes mediante os quais todas as mulheres procuram tornar-se interessantes.

— Ela é de Havana, do país mais espanhol do Novo Mundo, e achou melhor fingir terror que me lançar em rosto o sofrimento, a dificuldade, a coqueteria ou o dever, como fazem as parisienses. Pelos seus olhos de ouro! Como tenho vontade de dormir...

Viu um cabriolé de praça estacionado na esquina do Frascati,[217] à espera de alguns jogadores, chamou-o, fez-se conduzir a casa, deitou-se e dormiu o sono dos patifes, o qual, por um capricho de que nenhum cançonetista tirou ainda partido, é tão profundo como o dos justos, talvez por efeito do axioma proverbial os extremos se tocam.

III — A FORÇA DO SANGUE

Pelo meio-dia De Marsay estirou os braços, despertando, e sentiu os sintomas de uma dessas fomes caninas que todos os velhos soldados se lembram de ter experimentado no dia seguinte ao da vitória. Por isso, foi com alegria que viu diante dele Paulo de Manerville, pois nada então é mais agradável do que almoçar acompanhado.

— E então? — disse-lhe o amigo. — Todos imaginávamos que estavas encerrado há dez dias com a menina dos olhos de ouro.

— A menina dos olhos de ouro! nem penso mais nela. Meu Deus! Tenho outras coisas em que pensar.

— Ah! finges-te discreto.

— Por que não? — replicou rindo De Marsay. — Meu caro, a discrição é o mais hábil dos cálculos. Escuta... mas, não; não te direi nada. Nunca me ensinas coisa alguma e não estou disposto a dar em pura perda os tesouros da minha política. A vida é um rio que nos serve para fazer comércio. Por tudo o que há de mais sagrado na terra, pelos charutos, não sou professor de economia social colocada ao alcance dos simplórios. Almocemos. Custa-me menos dar-te uma omeleta de atum que te prodigalizar meu cérebro.

— Não confias nos teus amigos?

— Meu caro — tornou Henrique, que raramente se privava de uma ironia —, como pode acontecer à ti como a qualquer outro ter necessidade de discrição, e como eu gosto muito de ti... Sim, gosto de ti! Palavra de honra, se para não estourares os miolos fosse preciso uma nota de mil francos, encontrá-la-ias aqui, pois que ainda nada hipotecamos, hem, Paulo? Se duelasses amanhã, eu mediria a distância e carregaria as pistolas para que fosses morto conforme as regras. Enfim, se alguém que não eu ousasse falar mal de ti na tua ausência, teria que medir-se com o rude cavalheiro que se encontra sob a minha pele. Eis o que eu chamo de uma amizade a toda prova. Pois bem! para quando tiveres necessidade de discrição, meu rapaz, fica sabendo, que há duas espécies de discrição: discrição ativa e discrição negativa. A discrição negativa é a dos tolos que usam o silêncio, a negação, o ar fechado, a discrição das portas cerradas, verdadeira impotência! A discrição ativa procede por afirmação. Se esta noite, no clube, eu dissesse: “Francamente, a menina dos olhos de ouro não valia o que me custou!”, todo o mundo, mal eu saísse, exclamaria: “Ouviram esse pretensioso De Marsay a nos querer impingir que já possuiu a menina dos olhos de ouro?”. Queria assim desembaraçar-se dos rivais, e não deixa de ser hábil. Mas esse estratagema é vulgar e perigoso. Por grande que seja a tolice que nos escapa, há sempre idiotas capazes de a engolir. A melhor das discrições é a de que usam as mulheres astutas quando querem lograr aos maridos. Consiste em comprometer uma mulher a quem não ligamos, ou a quem não amamos, ou a quem não possuímos, para conservar a reputação daquela que amamos o bastante para respeitá-la. É o que eu chamo de mulher para despistar. — Ah! aí está Lourenço. Que nos trazes?

— Ostras de Ostende, senhor conde...

— Hás de saber um dia, Paulo, como é divertido iludir a sociedade ocultando-lhe o segredo de nossas afeições. Experimento um prazer imenso em fugir à jurisdição da massa, que jamais sabe nem o que quer nem o que a fazem querer, que toma os meios pelos resultados, que ora ama e ora maldiz, ora constrói e ora arrasa! Que prazer impor-lhe emoções e não as receber dela, dominá-la, não lhe obedecer jamais! Se nos podemos orgulhar de alguma coisa, não será de um poder adquirido por nós mesmos, do qual somos, a um tempo, a causa e o efeito, o princípio e o resultado? Pois bem! homem algum sabe a quem amo nem o que quero. Talvez saibam a quem amei e o que quis, como se sabe dos dramas que aconteceram; mas deixar perceber o meu jogo?... franqueza, burla. Não sei de nada mais miserável que a força iludida pela esperteza. Inicio-me, a rir, no mister de embaixador, se todavia a diplomacia é tão difícil como a vida. Tens ambições? Queres chegar a ser alguma coisa?

— Mas, Henrique, zombas de mim, como se eu não fosse bastante medíocre para tudo alcançar.

— Bem, Paulo! Se continuas a rir de ti mesmo, poderás em breve rir de todo o mundo.

Almoçando, De Marsay começou, no momento de acender o charuto, a ver os acontecimentos da noite sob uma luz singular. Como muitas das grandes inteligências, sua perspicácia não era espontânea, não penetrava de imediato no fundo das coisas. Como em todas as naturezas dotadas da faculdade de viver muito no presente, de lhe espremer, por assim dizer, o suco e o tragar, sua vidência tinha necessidade de uma espécie de sono para chegar às causas. O cardeal de Richelieu era assim, o que não excluía nele o dom da previsão necessária à concepção das grandes coisas.

De Marsay encontrava-se em todas essas condições, mas não usou de início suas armas senão para seu deleite e só se tornou um dos políticos mais profundos dos tempos atuais quando se sentiu saturado dos prazeres que constituem a primeira preocupação dos jovens, quando possuem dinheiro e poder. O homem se galvaniza desse modo: usa a mulher para que a mulher não o possa usar.

Nesse momento, pois, De Marsay percebeu que fora um joguete para a menina dos olhos de ouro, ao passar em revista aquela noite cujas delícias haviam manado gradualmente para acabarem por se despenhar em torrentes. Pôde então ler aquela página de efeito tão brilhante e adivinhar-lhe o sentido oculto.

A inocência puramente física de Paquita, a sua surpreendente alegria, algumas palavras antes obscuras e agora claras, escapadas em meio à sua satisfação, tudo lhe provava que ele havia feito as vezes de uma outra pessoa. Como nenhuma das corrupções sociais lhe era desconhecida e como professava a respeito de todos os caprichos perfeita indiferença, julgando-os justificados por isso mesmo que podiam ser satisfeitos, ele não se exasperou com o vício, que conhecia como se conhece a um amigo, mas sentiu-se chocado por lhe ter servido de pasto. Se suas suposições eram verdadeiras, fora ultrajado no mais íntimo do ser. Esta única suspeita despertou-lhe o furor; soltou o rugido de um tigre de que uma gazela tivesse zombado, o urro de um tigre que reunia à força da besta a inteligência de um demônio.

— Ufa! que tens? — perguntou Paulo.

— Nada!

— É? Pois eu não queria que, se te perguntassem se tens algo contra mim, respondesses com semelhante nada. Teríamos de nos bater no dia seguinte.

— Não me bato mais — observou De Marsay.

— Isto me parece ainda mais trágico. Assassinas, então?

— Estás a trocar as palavras. Eu executo.

— Meu caro amigo, tuas caçoadas se apresentam de cores carregadas, esta manhã.

— Que queres? A volúpia conduz à ferocidade. Por quê? Não sei e não sou bastante curioso para procurar-lhe a causa. Estes charutos são excelentes. Dá um pouco de chá ao teu amigo. Sabes, Paulo, que levo uma vida de bruto? Já era tempo de eu escolher um destino, de empregar minhas forças em qualquer coisa que valesse a pena de viver. A vida é uma comédia singular. Assusto-me e rio da inconsequência de nossa ordem social. O governo faz cortar a cabeça de pobres-diabos que matam um homem, e dá diploma a pessoas que expedem, medicamente falando, uma dúzia de criaturas moças em cada inverno. A moral não tem poder contra uma dúzia de vícios que destroem a sociedade e que ninguém pode punir. Mais uma taça? Palavra de honra! O homem é um bufão a dançar sobre um precipício. Falam-nos da imoralidade de As relações perigosas[218] e de não sei que outro livro que tem um nome de criada de quarto;[219] mas existe um livro horrível, sujo, espantoso, corruptor, sempre aberto, que nunca se fechará, o grande livro da sociedade, sem contar outro livro mil vezes mais perigoso, que se compõe de tudo que se murmura ao ouvido, entre homens, ou sob o leque, entre mulheres, nos salões de baile.

— Henrique, passa-se, decerto, em ti alguma coisa extraordinária, e isso se vê apesar da tua discrição ativa.

— Sim! Confesso que sinto necessidade de matar o tempo até a noite. Vamos ao jogo. Talvez eu tenha a sorte de perder.

De Marsay levantou-se, tomou um punhado de notas que enrolou na charuteira, vestiu-se e aproveitou a carruagem de Paulo para ir ao Salon des Étrangers, onde, até o jantar, consumiu o tempo nessas emocionantes alternativas de perdas e ganhos que são o último recurso das fortes organizações quando constrangidas a agir no vácuo.

À noite compareceu ao lugar marcado e deixou complacentemente que lhe vendassem os olhos. Depois, com a firme vontade que só os homens verdadeiramente fortes têm a faculdade de concentrar, prestou atenção e aplicou a inteligência para adivinhar por que ruas passava o carro. Obteve uma espécie de intuição de haver sido conduzido à Rue Saint-Lazare e de ter parado no portão do jardim do Palais San-Real. Quando atravessou, como da primeira vez, o portão, e quando foi posto na padiola, levada, sem dúvida, pelo mulato e pelo cocheiro, compreendeu, ouvindo ranger a areia sob os passos deles, por que tomavam precauções tão minuciosas. Poderia, se estivesse livre, ou se caminhasse, colher um ramo de arbusto, verificar a natureza da areia que lhe ficasse presa às botas; enquanto, transportado por assim dizer pelo ar a um castelo inacessível, sua ventura continuaria a ser o que fora até então, um sonho. Mas, para desespero do homem, nada pode ele realizar, senão imperfeitamente, seja para o bem, seja para o mal. Todas as suas obras intelectuais ou físicas são marcadas por um cunho de destruição.

Caíra uma leve chuva, a terra estava úmida. Durante a noite certos odores vegetais são bem mais fortes que durante o dia. Henrique sentiu assim perfume de resedá ao longo da aleia pela qual era levado. Esse indício deveria esclarecê-lo nas pesquisas que projetava fazer para localizar o palácio em que se encontrava o toucador de Paquita. Estudou do mesmo modo as voltas que seus carregadores fizeram na casa, e julgou-se capaz de as reter na memória. Viu-se, como na véspera sobre a otomana, diante de Paquita, que lhe retirava a venda; mas viu-a pálida e mudada. Havia chorado. Ajoelhada como um anjo em prece, mas um anjo triste, profundamente melancólico, a pobre moça não parecia mais a curiosa, a impaciente, a saltitante criatura que tomara De Marsay sobre suas asas para o transportar ao sétimo céu do amor. Havia algo de tão verdadeiro naquele desespero velado pelo prazer, que o terrível De Marsay sentiu dentro de si admiração por aquela nova obra-prima da natureza e esqueceu momentaneamente o motivo principal da entrevista.

— Que tens, minha Paquita?

— Meu amigo — respondeu ela —, levar-me-ás esta noite mesmo? Larga-me em qualquer lugar onde não possam dizer ao ver-me: “Eis Paquita”; onde ninguém possa responder: “Há aqui uma moça de olhar dourado, de longos cabelos”. Dar-te-ei então todo o prazer que de mim queiras receber. Depois, quando não mais me quiseres, me deixarás; não me lamentarei, nada direi; e meu abandono não deverá causar-te nenhum remorso, pois um dia passado junto a ti, um só dia durante o qual te haja visto, terá valido toda uma vida. Mas, se ficar aqui, estarei perdida.

— Não posso deixar Paris, minha querida — respondeu Henrique. — Não me pertenço; estou ligado por um juramento à sorte de muitas pessoas que me são devotadas como eu o sou a elas. Mas posso arranjar-te em Paris um asilo onde nenhum poder humano há de chegar.

— Não — disse ela —, esqueces o poder feminino.

Jamais frase pronunciada por uma voz humana exprimiu tão completamente o terror.

— Que poderia acontecer-te, se me interponho entre ti e o mundo?

— O veneno! — replicou ela. — Dona Concha já suspeita de ti. E — continuou, derramando lágrimas que brilharam ao longo de suas faces — é bem fácil ver que não sou mais a mesma. Pois bem, se me abandonas ao furor do monstro que me vai devorar, que tua santa vontade seja feita. Mas vem, faze com que haja todas as volúpias da vida em nosso amor. Ademais, suplicarei, chorarei, gritarei, defender-me-ei, talvez me salvarei.

— A quem implorarás? — perguntou ele.

— Silêncio! — retrucou Paquita. — Se for perdoada, isso se deverá, talvez, à minha discrição.

— Dá-me o meu roupão — disse insidiosamente Henrique.

— Não, não — respondeu ela vivamente —, fica o que és, um desses anjos que me haviam ensinado a odiar, e nos quais eu só via monstros, quando na realidade és o que há de mais belo sob o céu — murmurou ela acariciando os cabelos de Henrique. — Ignoras até que ponto sou ignorante; nada aprendi. Desde a idade de doze anos vivo encerrada sem ver ninguém. Não sei ler nem escrever e só falo o inglês e o espanhol.

— Como é então que recebes cartas de Londres?

— Minhas cartas! Olha, aqui estão! — disse ela indo buscar uns papéis num longo vaso do Japão.

Estendeu a De Marsay folhas em que o jovem viu com surpresa figuras bizarras semelhantes às dos enigmas pitorescos, traçadas a sangue, e que exprimiam frases cheias de paixão.

— Mas — exclamou ele, admirando aqueles hieróglifos criados por hábil ciúme — estás sob o poder de um gênio infernal?

— Infernal — repetiu ela.

— Como pudeste, então, sair...

— Ah! — respondeu ela —, daí vem minha perda. Coloquei Dona Concha entre o medo de uma morte imediata e uma cólera por vir. Eu tinha uma curiosidade de demônio, queria romper o círculo de ferro que haviam interposto entre a criação e mim, queria ver o que eram os moços, pois não conhecia outros homens senão o marquês e Cristêmio. Nosso cocheiro e o ajudante que nos acompanham são velhos...

— Mas não estavas sempre encerrada? Tua saúde exigiria...

— Ah — volveu ela —, nós passeávamos, mas durante a noite e no campo, pelas margens do Sena, longe de todos.

— Não sentes orgulho de seres assim amada?

— Agora não — disse ela —, ainda que bem cheia, esta vida escondida não é mais que treva, comparada à luz.

— E a que chamas luz?

— Tu, meu belo Adolfo! tu, por quem eu daria a vida. Todas as coisas de paixão que me contaram e que eu inspirava, eu as sinto por ti! Durante muito tempo nada compreendia da existência, mas agora sei como amamos; até o presente eu só era amada, não amava. Deixarei tudo por ti, leva-me. Se quiseres, toma-me como um brinquedo, mas deixa-me ficar perto de ti até que me quebres.

— Não te arrependerás?

— Nunca! — disse ela, falando também com os olhos, cujo tom de ouro permaneceu puro e claro.

“Sou o preferido?”, perguntou a si mesmo Henrique, que, embora entrevisse a verdade, se encontrava disposto a perdoar a ofensa por amor tão ingênuo. “Veremos depois”, pensou.

Se Paquita não lhe devia conta alguma do passado, a menor recordação tornava-se a seus olhos um crime. Teve assim a triste força de ter um pensamento próprio de julgar a amante, de estudá-la abandonando-se aos prazeres mais arrebatadores que jamais criatura descida dos céus tenha achado para o seu bem-amado. Paquita parecia ter sido criada para o amor, com cuidados especiais da natureza. De uma noite para a outra seu gênio de mulher fizera os mais rápidos progressos. Quaisquer que fossem a fortaleza do rapaz e sua displicência em matéria de gozos, não obstante a sua saciedade da véspera, encontrou na menina dos olhos de ouro aquele harém que a mulher amante sabe criar e ao qual um homem nunca renuncia. Paquita correspondia a essa paixão que sentem todos os homens verdadeiramente grandes pelo infinito, paixão misteriosa tão dramaticamente retratada no Fausto, tão poeticamente traduzida no Manfredo,[220] e que impelia dom Juan a esquadrinhar o coração das mulheres, esperando encontrar nele esse pensamento sem limites à procura do qual andam tantos caçadores de espectros, que os sábios julgam entrever na ciência e que os místicos só encontram em Deus.

A esperança de possuir enfim o Ser ideal com quem pudesse lutar constantemente sem cansar-se empolgou De Marsay, que, pela primeira vez, depois de anos, abriu o coração. Seus nervos distenderam-se, sua frieza fundiu-se na atmosfera daquela alma abrasadora, suas teorias decisivas esvaneceram-se e a felicidade coloriu sua existência, tal como aquele toucador, de branco e rosa. Ao sentir o aguilhão de um prazer superior, foi arrebatado para além dos limites em que até então circunscrevera a paixão. Não quis deixar-se sobrepujar por aquela criatura que um amor de certo modo artificial conformara antecipando-se às necessidades de sua alma, e então achou, na vaidade que leva o homem a ser em tudo o vencedor, forças para dobrar a jovem. Mas, lançado também para além da linha em que a alma é senhora de si, perdeu-se nos limbos deliciosos que vulgar e tolamente são chamados de espaços imaginários. Foi terno, bom e comunicativo. Tornou Paquita quase louca.

— Por que não iremos a Sorrento, a Nice, a Chiavari, passar toda a nossa vida assim? Queres? — dizia ele a Paquita com voz cativante.

— Tens acaso necessidade de me dizer: Queres? — exclamou ela. — Será que sou dona de uma vontade? Não sou uma coisa fora de ti senão para te dar prazer. Se queres escolher um retiro digno de nós, a Ásia é a única região em que o amor pode abrir suas asas...

— Tens razão — retrucou Henrique. — Vamos às Índias, lá onde a primavera é eterna, onde a terra tem sempre flores, onde o homem pode ostentar o aparato dos soberanos sem que se comente isso como nos países tolos em que se quer realizar a reles quimera da igualdade. Vamos para a região onde se vive em meio a multidões de escravos, onde o sol ilumina palácios sempre brancos, onde se espalham perfumes no ar, onde os pássaros cantam o amor e onde se morre quando não se pode mais amar...

— E onde os que se amam morrem juntos! — disse Paquita. — Mas não partamos amanhã, partamos agora mesmo, levando Cristêmio.

— Sim! O prazer é o mais belo desfecho da vida. Partamos para a Ásia, mas para partir, criança, é preciso ouro, e para ter ouro é indispensável deixar em ordem os negócios.

Ela nada entendia disso.

— Ouro, existe aqui alto assim — disse levantando a mão.

— Mas não é meu.

— E que tem isso? — retrucou ela. — Se temos necessidade, lancemos mão dele.

— Ele não te pertence.

— Pertencer? — repetiu ela. — Não te apossaste de mim? Quando nos apossarmos dele, ele nos pertencerá.

Ele pôs-se a rir.

— Pobre inocente! Nada sabes das coisas deste mundo.

— Não, mas isto eu sei — exclamou ela atraindo Henrique.

No justo momento em que De Marsay tudo esquecia, concebendo o desejo de se apropriar para sempre daquela criatura, recebeu em plena alegria uma punhalada que lhe atravessou de lado a lado o coração mortificado pela primeira vez. Paquita, que o elevara vigorosamente no ar como que para o contemplar, exclamara:

— Oh! Mariquita!

— Mariquita! — exclamou, corando, o rapaz —; sei agora aquilo de que eu ainda queria duvidar.

Saltou sobre o móvel em que estava guardado o longo punhal. Felizmente para ele e para ela, o armário estava fechado. Sua raiva aumentou com esse obstáculo; mas ele recobrou a tranquilidade, foi buscar sua gravata e avançou para Paquita com ar tão ferozmente significativo, que, sem saber de que crime era culpada, compreendeu ela, não obstante, que fora condenada a morrer. Então, de um só salto, lançou-se para a extremidade do toucador a fim de evitar o nó fatal que De Marsay queria passar-lhe em torno do pescoço. Iniciou-se um combate. A agilidade, a flexibilidade e o vigor foram iguais de parte a parte. Para acabar a luta, Paquita atirou uma almofada às pernas do amante, fazendo-o cair, e aproveitou a trégua que lhe deu essa vantagem para apertar o botão de chamada. O mulato entrou bruscamente. Num abrir e fechar de olhos Cristêmio atirou-se a De Marsay, derribou-o e pôs-lhe o pé sobre o peito com o calcanhar voltado para a garganta. De Marsay compreendeu que se ele se debatesse seria, num momento, esmagado a um sinal de Paquita.

— Por que quiseste matar-me, meu amor? — perguntou ela.

De Marsay não respondeu.

— Em que te desagradei? — continuou ela. — Fala, expliquemo-nos.

Henrique conservou a atitude fleumática do homem forte que se sente vencido; atitude fria, silenciosa, toda inglesa, que manifestava a consciência de sua dignidade por uma resignação momentânea. Ademais já pensara, não obstante o arroubo de sua cólera, que seria pouco prudente comprometer-se com a Justiça matando uma moça de improviso, sem haver preparado o assassínio de modo a assegurar-se impunidade.

— Meu bem-amado — suplicou Paquita —, fala-me: não me deixes sem um adeus de amor! Não quero conservar em meu coração o assombro que acabas de pôr nele. Não falarás? — acrescentou batendo o pé com cólera.

De Marsay lançou-lhe por resposta um olhar que significava tão claramente: “morrerás!” que Paquita se precipitou sobre ele.

— Pois bem! queres matar-me? Se minha morte pode dar-te prazer, mata-me!

Fez um sinal a Cristêmio, que tirou o pé de cima do rapaz e saiu sem deixar ver na fisionomia se levava um julgamento bom ou mau a respeito de Paquita.

— Esse é um homem! — murmurou De Marsay apontando para o mulato com gesto sombrio. — Não há devotamento senão aquele que obedece à amizade sem a julgar. Tens nesse homem um verdadeiro amigo.

— Se quiseres eu to darei — respondeu ela —, ele te servirá com o mesmo devotamento que tem por mim, desde que lhe recomende.

Esperou uma palavra de resposta e continuou com acento cheio de ternura:

— Adolfo, dize-me afinal uma palavra de esperança. Não tarda o dia.

Henrique não respondeu. Tinha uma triste qualidade, pois se olha como grande coisa tudo o que se parece à força e muitas vezes os homens divinizam extravagâncias. Henrique não sabia perdoar. Dominar-se, que, indubitavelmente, é uma das graças da alma, era coisa sem sentido para ele. A ferocidade dos homens do norte, de que o sangue inglês tem fortíssimas tintas, fora-lhe transmitida pelo pai. Era inflexível tanto nos bons como nos maus sentimentos. A exclamação de Paquita foi tanto mais horrível para ele quanto é certo que se vira destronado do mais doce triunfo que jamais lisonjeara sua vaidade de homem. A esperança, o amor, os sentimentos todos achavam-se nele exaltados; no seu coração e na sua inteligência tudo se inflamara; depois, essas chamas acesas para iluminar-lhe a vida receberam o sopro de um vento frio. Paquita, estupefata, só teve em sua dor a força necessária para dar o sinal de partida.

— Isto é inútil — disse ela largando a venda. — Se ele não me ama mais, se me odeia, tudo está acabado.

Esperou um olhar e não o obteve. Caiu semimorta. O mulato fitou Henrique de modo tão espantosamente significativo, que fez estremecer pela primeira vez na vida aquele jovem, a quem pessoa alguma negava o dom de uma rara intrepidez. “Se não a amares, se lhe deres o menor pesar, eu te matarei.”

Tal era o sentido daquele rápido olhar. De Marsay foi conduzido com precauções quase servis ao longo de um corredor iluminado por respiradouros e no fim do qual saiu por uma porta secreta de uma escada oculta que levava ao jardim do Palais San-Real. O mulato fê-lo andar com cautela ao longo da aleia de tílias que conduzia a um portãozinho que dava para uma rua naquela época deserta.

De Marsay notou bem tudo. A carruagem esperava-o; desta vez o mulato não o acompanhou, e, no momento em que Henrique pôs a cabeça à portinhola para examinar o jardim e o palácio, encontrou os olhos brancos de Cristêmio, com o qual trocou um olhar. De um e de outro lado foi uma provocação, um desafio, o sinal duma guerra de selvagens, dum duelo em que não seriam observadas as leis ordinárias, em que a traição e a perfídia seriam recursos admitidos. Cristêmio sabia que Henrique jurara matar Paquita. Henrique sabia que Cristêmio queria matá-lo antes que ele matasse Paquita. Ambos entenderam-se às maravilhas.

“A aventura complica-se de modo assaz interessante”, pensou Henrique.

— Para onde vai, cavalheiro? — perguntou o cocheiro.

De Marsay fê-lo seguir para a casa de Paulo de Manerville.

Durante mais de uma semana Henrique conservou-se ausente de casa, sem que ninguém pudesse saber o que fez no decurso desse tempo, nem em que local permaneceu. Esse retiro salvou-o do furor do mulato e causou a perda da pobre criatura que pusera toda a sua esperança naquele a quem amava como jamais criatura alguma amou na terra.

No último dia dessa semana, pelas onze horas da noite, Henrique dirigiu-se de carro ao pequeno portão do Palais San-Real. Três homens acompanhavam-no. O cocheiro era evidentemente um dos seus amigos, porquanto pôs-se de pé na boleia, como se quisesse, qual uma sentinela atenta, escutar o menor ruído. Um dos três outros postou-se fora da porta, na rua; o segundo colocou-se no jardim, de pé, apoiado no muro; o último, que levava um molho de chaves, acompanhou De Marsay.

— Henrique — disse-lhe o companheiro —, fomos traídos.

— Por quem, meu bom Ferragus?

— Não estão todos dormindo — respondeu o chefe dos Devoradores. — Houve decerto alguém na casa que não bebeu nem comeu. Olha, repara aquela luz.

— De onde virá ela? Temos a planta do edifício.

— Não tenho necessidade da planta para sabê-lo — respondeu Ferragus —; vem do quarto da marquesa.

— Ah! — exclamou De Marsay. — Certamente chegou hoje de Londres. Será que essa mulher me roubou até a minha vingança?! Mas, se ela me antecedeu, meu bom Graciano, entregá-la-emos à justiça.

— Ouve! A coisa está feita — disse Ferragus a Henrique.

Os dois amigos ficaram atentos e ouviram gritos abafados que teriam enternecido um tigre.

— Tua marquesa não pensou que os sons poderiam sair pela chaminé da lareira — observou o chefe dos Devoradores com o riso de um crítico encantado por descobrir uma falha numa bela obra.

— Somente nós sabemos prever tudo — disse Henrique. — Espera-me, quero ir ver o que se passa lá em cima, a fim de saber como tratam dos seus negócios íntimos. Por Deus, creio que ela a faz assar em fogo lento.

De Marsay subiu lestamente a escada que conhecia e achou o caminho para o toucador. Ao abrir a porta sofreu o estremecimento involuntário que causa no homem mais decidido a vista do sangue espalhado. O espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos constituía para ele, aliás, mais de um motivo de espanto. A marquesa era mulher: havia calculado sua vingança com essa perfeição de perfídia que caracteriza os animais fracos. Dissimulara sua cólera para certificar-se do crime antes de o punir.

— Tarde demais, meu bem-amado! — disse Paquita agonizante, cujos olhos embaciados se voltaram para De Marsay.

A menina dos olhos de ouro expirava banhada em sangue. Todos os candelabros iluminados, um perfume delicado que se fazia sentir, certa desordem na qual o olhar de um homem com experiência amorosa reconheceria loucuras comuns a todas as paixões, denunciavam que a marquesa soubera sabiamente interrogar a culpada. Aquela alcova branca, em que o sangue ficava tão bem, traía um longo combate. As mãos de Paquita estavam enterradas nas almofadas. Por toda parte ela se agarrara à vida, por toda parte se defendera, e em toda parte fora alcançada. Panejamentos inteiros da tapeçaria pregueada haviam sido arrancados por suas mãos ensanguentadas, que, sem dúvida, tinham lutado por muito tempo. Paquita devera ter tentado escalar as paredes. Seus pés nus estavam marcados ao longo do encosto do divã, sobre o qual evidentemente correra. Seu corpo, dilacerado a punhaladas por seu carrasco, mostrava com que encarniçamento ela disputara a vida que Henrique lhe havia tornado tão cara. Ela jazia no chão e tinha, ao morrer, mordido os músculos do peito do pé da sra. de San-Real, que conservava na mão seu punhal sangrento.

A marquesa tinha cabelos arrancados, estava coberta de mordidas, das quais muitas sangravam, e seu vestido rasgado deixava-a seminua, com os seios arranhados à mostra. Estava sublime assim. Sua cabeça ávida e furiosa aspirava o cheiro do sangue. Sua boca palpitante estava entreaberta, e suas narinas não bastavam à aspiração do ar. Certos animais, quando enfurecidos, atiram-se ao inimigo, causam-lhe a morte, e, tranquilos na sua vitória, parecem tudo haver esquecido. Outros há que rondam em torno da vítima, que a conservam no temor de que lha venham arrebatar, e que, como o Aquiles de Homero, dão nove voltas ao redor de Troia, arrastando o inimigo pelos pés. Assim era a marquesa. Nem viu Henrique. Antes de tudo, sabia que estava completamente só para temer testemunhas; depois, estava tão embriagada pelo sangue quente, tão animada pela luta, tão exaltada, que não perceberia Paris inteira, se Paris tivesse formado um círculo em derredor dela. Ela não notaria um raio. Ela nem sequer ouvira o último suspiro de Paquita e acreditava poder ser ainda ouvida pela morta.

— Morre sem confissão! — dizia-lhe —, vai para o inferno, monstro de ingratidão; sê do demônio e de mais ninguém. Pelo sangue que lhe deste, deves-me o teu! Morre, morre, sofre mil mortes; fui boa demais, levei só um momento a matar-te, quando desejaria fazer-te experimentar todas as dores que me legas. Eu, eu viverei! viverei infeliz, reduzida a só amar a Deus!

Contemplou-a.

— Ela está morta! — disse depois de uma pausa, dando violenta volta sobre si mesma. — Morta, ah! eu morro de dor!

A marquesa quis atirar-se sobre o divã, invadida por um desespero que lhe tirava a voz, e esse movimento permitiu-lhe então avistar Henrique de Marsay.

— Quem és tu? — perguntou, correndo para ele de punhal erguido.

Henrique segurou-lhe o braço e os dois puderam assim contemplar-se face a face. Uma horrível surpresa fez-lhes a ambos correr um sangue glacial nas veias, e tremeram-lhes as pernas como tremem as dos cavalos assustados. Com efeito, dois sósias não seriam mais parecidos. Pronunciaram em uníssono a mesma frase:

— Lorde Dudley deve ser seu pai!

Cada qual baixou a cabeça afirmativamente.

— Ela era fiel ao sangue — disse Henrique mostrando Paquita.

— Era o menos culpada possível — retrucou Margarita-Eufêmia Porraberil, que se atirou sobre o corpo de Paquita soltando um grito de desespero. — Pobre criatura! Ah! como eu quisera reanimar-te! Procedi mal, perdoa-me, Paquita! Estás morta, e eu vivo! Sou a mais infeliz!

Nesse instante apareceu a horrível figura da mãe de Paquita.

— Vens dizer-me que não ma vendeste para que eu a matasse — exclamou a marquesa. — Sei por que sais do teu covil. Pagar-te-ei duas vezes. Cala-te.

Foi buscar uma bolsa com ouro no móvel de ébano e a atirou desdenhosamente aos pés da velha. O som do ouro teve o poder de esboçar um sorriso na impassível fisionomia da georgiana.

— Cheguei bem a tempo para ti, minha irmã — disse Henrique. — A justiça vai te pedir...

— Nada — respondeu a marquesa. — Uma única pessoa podia pedir contas desta criatura: Cristêmio, e está morto.

— E esta mãe — indagou Henrique apontando para a velha — não te explorará depois?

— Ela é de um país em que as mulheres não são seres, mas coisas das quais se faz o que se quer, que se vendem, que se compram, que se matam, enfim, das quais a gente se serve para seus caprichos, como vocês se serviram aqui dos móveis. De resto, ela tem uma paixão que faz todas as outras capitularem e que teria aniquilado o seu amor materno, se houvesse amado a filha; uma paixão...

— Qual? — fez vivamente Henrique interrompendo a irmã.

— A do jogo, de que Deus te livre! — respondeu a marquesa.

— Mas em quem vais tu buscar ajuda — disse Henrique mostrando a menina dos olhos de ouro — para apagar os traços desse desvario, a que a Justiça talvez não feche os olhos?

— Tenho a sua mãe — respondeu a marquesa, indicando a velha georgiana, a quem fez sinal para ficar.

— Tornaremos a ver-nos — disse Henrique, que pensava na inquietude dos amigos e sentia necessidade de partir.

— Não, meu irmão — respondeu ela —, não nos tornaremos nunca mais a ver. Volto à Espanha para entrar no convento de Los Dolores.

— És ainda muito moça, muito bela — disse-lhe Henrique tomando-a nos braços e dando-lhe um beijo.

— Adeus — disse ela —, nada nos consola de haver perdido aquilo que nos parecia o infinito.

Oito dias depois, Paulo de Manerville encontrou De Marsay nas Tuileries, no Terrasse des Feuillants.

— E então, que é feito da nossa linda menina dos olhos de ouro, grande celerado?

— Morreu.

— De quê?

— Do peito.

 

Paris, março 1834 — abril 1835

 

 

INTRODUÇÃO

A História de César Birotteau (título completo em francês: Histoire de la grandeur et de la décadence de César Birotteau, marchand parfumeur, adjoint au maire du deuxième arrondissement de Paris, chevalier de la Légion d’Honneur etc.) tem a sua história.

Respondendo a Hippolyte Castille, um dos críticos que o censuraram pelas proporções sobre-humanas que conferia a vários de seus protagonistas, lembrou-lhe Balzac outras personagens de A comédia humana espécimes da humanidade mais comum, e por isso mais dificeis de pintar. “Conservei César Birotteau durante seis anos em estado de esboço, desesperado de poder despertar o interesse de quem quer que fosse pela figura de um lojista bastante tolo, bastante medíocre, cujos infortúnios são vulgares e simbolizam aquilo de que tanto zombamos, o pequeno comércio parisiense. Pois bem, senhor, num dia feliz eu disse comigo mesmo: ‘É preciso transfigurá-lo fazendo dele uma imagem da probidade’. E ele pareceu-me possível. Acha-o colossal? Será que o pobre perfumista quebra, com a sua cabeça, os frisos de meu pequeno teatro?”

Este romance, que levou tanto tempo a se plasmar no espírito de seu autor, uma circunstância fortuita fê-lo desabrochar de repente. Em 1837, dois jornais, Le Figaro e L’Estafette, pretendiam oferecer a seus assinantes, como prêmio de fim de ano, um romance inédito, e procuraram saber de Balzac, por volta de 20 de novembro, se tinha algo pronto. Prometiam 20.000 francos pelos direitos de uma única tiragem de cinco mil exemplares. O romancista não tinha, por assim dizer, nem sequer uma linha pronta de todo o livro. Mas, como sempre, precisava de dinheiro, e prometeu o romance para o dia 15 de dezembro. Depois de um trabalho exaustivo, de dia e de noite, ele ficou efetivamente pronto, fato que seria único na história literária, mesmo se Balzac não trabalhasse com aquele seu método torturado, revendo provas sobre provas e refazendo o livro inteiro em cada uma delas. Houve dezessete provas de César Birotteau — dezessete desses livros subterrâneos de que fala Stefan Zweig — e, acabado o romance, Balzac sentia-se acabado também. “Não sei o que é César Birotteau”, escreverá um mês depois à condessa Hanska. “Você mo dirá antes que eu esteja em condições de me tornar público para lê-lo. Inspira-me o desgosto mais profundo e não sou capaz senão de amaldiçoá-lo pelas fadigas que me causou”... Foi um dos esforços mais gigantescos de Balzac, um daqueles que lhe comprometeram a saúde e, não obstante a sua constituição atlética, mataram-no aos cinquenta anos, com parte de sua Comédia por fazer.

Embora menos famosa que muitas outras obras de Balzac, esta é, no conceito unânime da crítica, um de seus romances mais perfeitos; é, também, podemos acrescentar, um dos mais característicos, o modelo por excelência do romance balzaquiano.

Já em 1834, anunciando à condessa, segundo seu costume, este livro, que só escreveria bem mais tarde, Balzac chamava a César Birotteau uma “obra capital...” “... César Birotteau, o irmão daquele que você conhece, vítima como o irmão, mas vítima da civilização parisiense, ao passo que aquele é vítima de um único homem. É o Médico rural; mas em Paris é Sócrates tolo, bebendo na sombra, e gota a gota, sua cicuta, o anjo espezinhado, o homem honesto desconhecido. Ah, é um grande quadro; será maior, mais vasto do que tudo o que tenho feito até agora.”

Bem vemos que, mais de três anos antes de escrever o livro, Balzac já lhe via nitidamente o assunto, o problema central e o protagonista. A definição de César — “o anjo espezinhado” — é a mesma que voltará diversas vezes no próprio romance. “A vingança votada a César por Du Tillet era um dos sentimentos mais naturais, ou não se deve acreditar na luta dos anjos malditos mais naturais, ou não se deve acreditar na luta dos anjos malditos e dos anjos da luz.” “César, expulso do paraíso da probidade, era a imagem de um anjo suspirando após o perdão.”

Luta de anjos e demônios: não é este, desde os começos do gênero, o principal assunto do romance? Mas era preciso ser Balzac para se lembrar de escolher o anjo entre os comerciantes de Paris, na pessoa de um modesto perfumista pouco inteligente, bastante pueril e, às vezes, ridículo. Os sofrimentos de César nada têm das dores grandiosas e imateriais dos heróis românticos; as estações de seu calvário são o vencimento de uma letra, a reforma de uma duplicata, uma conta a pagar quando o caixa está vazio.

Brunetière observa, e não sem razão, que em todo o livro não se passa quase nada; os caracteres nada têm de extraordinário, faltam as grandes paixões e a própria catástrofe é mínima; entretanto cabe nele “a Restauração inteira”. Com um material dos mais humildes, o escritor conseguiu criar um romance grandioso, porque verdadeiro, e conferir à narrativa excepcional importância, a tal ponto que a reminiscência “irônica” do título de Montesquieu, História e grandeza dos romanos, nem sequer nos parece exagerada (na opinião de Georg Brandes). Em César Birotteau Balzac efetivamente realizou “o poema das vicissitudes burguesas, a que nenhuma voz deu até agora importância, porque parecem completamente destituídas de grandeza, quando, por isso mesmo, são imensas: não se retrata aqui apenas um homem, mas toda uma multidão de aflições”.

Quando resolveu dar à sua luta de bons e maus anjos a forma de um romance burguês, Balzac sentia perfeitamente que tudo ali devia ser verdadeiro, inclusive os pormenores mais insignificantes da vida comercial. Suas indicações “contrastam, decerto, pela sua justiça e pela sua solidez, com esses mais ou menos e esses engana-vistas de que geralmente os romances de negócios andam cheios”, observa René Bouvier, crítico sagaz e homem de negócios experimentado que se entregou a um exame minucioso da escrita da perfumaria A Rainha das Rosas e das atas da concordata de Birotteau. Concluindo que toda essa contabilidade “imaginária” está rigorosamente certa, ele justifica a opinião dos advogados que, segundo a sra. Surville, irmã de Balzac, guardavam César Birotteau entre seus livros de consulta.

A exatidão de todos esses pormenores é mais uma prova da probidade literária do autor. Claro, César Birotteau não é obra-prima por oferecer em ordem todos os elementos de um balanço de falência; seu autor é que é genial por conseguir mantê-lo uma obra-prima, cuidando, ao mesmo tempo, da absoluta veracidade dos pormenores. “Não se trata, aí, de algarismos áridos e mortos; com efeito, encerram a chave do drama e atrás de cada um deles encontrareis, no ativo: muitos esforços, uma honestidade admirável, piedade, amor e esperanças; no passivo: velhacaria e ódio. Essas duas colunas em presença vão combater-se encarniçadamente, enquanto Birotteau procura desesperadamente, e até morrer disso, harmonizá-las, saldá-las, correndo desvairado do ativo ao passivo” (René Bouvier).

Os caracteres não são extraordinários; extraordinárias são, porém, a penetração do autor em descobrir-lhes os elementos e sua habilidade em captar-lhes as manifestações. Birotteau, repetindo vinte vezes as mesmas palavras para explicar sua distinção com a Cruz da Legião de Honra e julgando-se, mesmo no fundo da sua miséria, superior a Popinot, que foi seu aprendiz; a sra. Birotteau, heroica e amorosa companheira de César, resistindo virtuosamente à sedução de Du Tillet e, no entanto, guardando-lhe as cartas no seu cofrezinho; Du Tillet, incubando no fundo do coração a vingança contra seu benfeitor; Molineux, tipo monstruoso do proprietário, não tendo outro medo senão o de ser julgado insuficientemente esperto pelos frequentadores do Café David; Cesarina e Anselmo Popinot, os jovens amantes, incapazes, embora solidários com o sofrimento de César, de se arrancarem ao egoísmo de seu amor — eis alguns rasgos da intuição genial que fazia Balzac idear um caráter num só bloco e tirar dele tudo o que podia dar. Claparon, Nucingen, Gaudissart, Pillerault, a tia Madou, Finot constituem mais uma série de personagens fortes, cuja atuação em outros romances de A comédia humana se esclarece pela parte que tomam no desastre e na reabilitação de César.

O acontecimento central do livro é o baile de César: antes dele a carreira do perfumista está em perpétua ascensão; depois, começa a derrocada, ocasionada, aliás, em parte, pelas despesas loucas dessa solenidade. É, pode-se dizer, uma das cenas centrais de toda A comédia humana, um desses desfiles em que o criador contemplava com visível satisfação aquela multidão de seres surgidos de seu cérebro, todos diversos, todos complexos, multiplamente determinados pelo ambiente, pela situação social, pelos antecedentes biológicos.

Elogia-se, e com razão, a admirável construção do romance, um dos mais harmoniosos e mais bem equilibrados de Balzac. A pureza de suas linhas salta aos olhos de qualquer leitor atento; quero apenas assinalar a esplêndida utilização de um leitmotiv (o uso, aqui, desta palavra quase nada tem de metafórico, pois se trata mesmo de um trecho musical): o final da Sinfonia em dó, de Beethoven. Como em Ferragus e em A duquesa de Langeais, Balzac sabe enriquecer a sua motivação com esses empréstimos à magia de outra arte.

Psicólogo dos mais profundos, poeta dos mais intuitivos, Balzac era, sobretudo, orgulhoso de sua qualidade de historiador. Mais uma vez, em César Birotteau, vemos como essa pretensão não era descabida num romancista a quem a crítica inepta dos contemporâneos considerava apenas um escritor de sucesso fácil, um autor de best-sellers, como se diria hoje, rival dos Eugène Sue e dos Paul de Kock. Não há nenhum fenômeno essencial da transformação social processada no século xix de que ele não nos assinale o aparecimento. Veremos, por exemplo, como percebeu a importância futura do anúncio pago na imprensa, o qual ia transformar todo o caráter dos jornais.

A especulação com os terrenos da Madeleine é explicada com inteira clareza: dir-se-ia que o autor é corretor de imóveis. As diversas fases da falência são analisadas passo a passo com mestria: parece tratar-se da obra de um síndico (ou, como nos será mais fácil admitir conhecendo a vida de Balzac, de um falido). Por outro lado, ele nada ignora dos segredos de fabricação das pomadas e dos elixires vendidos nas farmácias, pois lera até a dissertação do sr. Vauquelin sobre o couro cabeludo! Tampouco desconhece as regras da rotulação e da embalagem das garrafas, os lugares onde se compra a matéria-prima, o estilo pomposo das bulas! Não ignora as posturas municipais que regem os direitos dos proprietários e os deveres dos inquilinos; desmascara a hipocrisia dos grandes bancos, analisa a tática dos agiotas, conhece a fundo as funções dos tribunais do comércio. Dez especialistas devem ter-se juntado a um escritor genial: César Birotteau só pode ser o resultado dessa aliança. Mas os dez especialistas e o escritor genial têm o mesmo nome: Balzac.

Em tudo isso, evidentemente, a experiência tem a sua parte, e em sua excelente biografia André Billy mostra pertinentemente tudo o que há, no calvário de Birotteau, dos dissabores de Balzac, o antigo impressor quase falido. Sem ser um lírico, Balzac punha muito de si em cada romance, mesmo nas personagens com quem pouco tinha em comum. Ainda desta vez, segundo percebeu René Guise, prefaciador do romance na edição da Pléiade, há numerosas semelhanças entre o autor e a sua personagem: ambos de aparência camponesa, baixinhos e gorduchos, tinham a imaginação acesa e gastavam facilmente os rendimentos ainda duvidosos dos negócios que empreendiam.

Pesquisadores procuraram identificar personagens do romance, antes de tudo o próprio César, com personagens reais. Georges Lenôtre encontrou um protótipo deste num perfumista Caron, ao mesmo tempo conspirador monarquista; Jules Lecomte, em outro perfumista, de nome Bully, arruinado como César e honesto como ele. A balzaquista Madeleine Fargeaud aponta um terceiro droguista, de nome Piver, que em 1827 mandou imprimir, na malfadada tipografia do jovem Balzac, um volumoso catálogo das mercadorias que vendia. Não há dados suficientes para resolver esta questão. De Pillerault, porém, sabemos com certeza que foi moldado no ferragista Dablin, um dos primeiros amigos de Balzac, e que o auxiliou no momento de seu desastre financeiro. Pouco importaria, aliás, que chegássemos a identificar os modelos de todas as personagens; não lhes acrescentaríamos nenhuma qualidade dizendo que viveram, uma vez que vivem.

Balzac tinha o hábito de trabalhar simultaneamente em vários romances. Enquanto amadurecia no cérebro o de César Birotteau, terminou e publicou várias outras obras, entre elas Eugênia Grandet, em que conta outra falência, a do tio de Eugênia, que também termina pela reabilitação do falido; só que este já cometeu suicídio, ao passo que César Birotteau viveu bastante para se ver reabilitado. Há mais narrativas em A comédia humana ligadas à nossa: Ao “Chat-qui-pelote” introduz-nos na existência dos Guillaume, vendedores de tecidos, mostrando a forte ligação entre o seu comércio e a sua vida privada; A Casa Nucingen, em que acompanhamos outra bancarrota vista do lado dos que a provocam; e O cura de Tours, em que assistimos ao drama do irmão de César, o padre Birotteau.

Num século mudaram muito (nem sempre para melhor) os costumes e as leis do comércio assim como a probidade burguesa, o sentimento de honra, os escrúpulos, as preocupações da classe: nem por isso César Birotteau deixa de nos interessar. “Balzac não fez nada mais patético do que este romance sem amor. Retratos, diálogos, intriga sabiamente urdida, tudo nele é natural, justo, forte, perpassado de humanidade. Os velhacos não são punidos senão pela consideração que se dedica às pessoas a quem eles arruinaram. Eis mais um traço de verossimilhança e um exemplo excelente para os romancistas que andam sempre mal em antecipando a vida futura” (Bellesort).

 

paulo rónai


HISTÓRIA DA GRANDEZA E DA
DECADÊNCIA DE CÉSAR BIROTTEAU

perfumista, adjunto do maire

do segundo distrito de paris,

cavaleiro da legião de honra etc.

 

 

 

AO SR. ALPHONSE DE LAMARTINE[221]

seu admirador

DE BALZAC


PRIMEIRA PARTE

CÉSAR NO APOGEU

 

 

 

I — UMA ALTERCAÇÃO CONJUGAL

Nas noites de inverno, o barulho cessa apenas um instante na Rue Saint-Honoré, pois os hortelãos que se dirigem para o mercado continuam o movimento dos que voltam do teatro ou dos bailes. No meio dessa pausa musical que, na grande sinfonia da algazarra parisiense, se produz à uma da madrugada, a esposa do sr. César Birotteau, comerciante de perfumes estabelecido nas proximidades da Place Vendôme, foi despertada em sobressalto por um sonho pavoroso. Vira-se duplicada, aparecera a seus próprios olhos em andrajos, torcendo, com uma mão seca e enrugada, o trinco de sua própria loja, vendo-se, simultaneamente, à soleira da porta e na sua poltrona atrás do balcão; estava pedindo esmola e ouvia a própria voz ao mesmo tempo na porta e no balcão. Quis despertar o marido e, estendendo a mão, tocou num lugar frio; seu medo, então, tornou-se tão intenso que não pôde mover o pescoço, que se petrificou; as paredes da garganta colaram-se, faltou-lhe a voz; ficou imóvel, recostada no leito, com os olhos esgazeados e fixos, os cabelos eriçados, os ouvidos cheios de sons estranhos, o coração comprimido, mas palpitante, suando e enregelada ao mesmo tempo, no meio de uma alcova com a porta aberta de par em par.

O medo é um sentimento morbífico pela metade, que impulsiona tão violentamente a máquina humana que suas faculdades são subitamente levadas ora ao mais alto grau de sua força, ora à extrema desorganização. A fisiologia vem se surpreendendo há muito tempo com esse fenômeno que altera seus sistemas e transtorna suas conjeturas, muito embora ele seja pura e simplesmente uma prostração total produzida no íntimo, mas, como todos os acidentes elétricos, singular e caprichoso em suas formas: explicação que se tornará vulgar no dia em que os sábios reconhecerem o imenso papel que a eletricidade desempenha no pensamento humano.

A sra. Birotteau passou, então, por algumas dessas angústias de certo modo luminosas provocadas por essas terríveis descargas da vontade espalhadas ou concentradas por um mecanismo desconhecido. Assim, durante um lapso de tempo extremamente curto, se apreciado pela medida dos nossos cronômetros, mas incomensurável em vista de suas rápidas impressões, a pobre mulher dispôs do monstruoso poder de emitir mais ideias, de fazer surgir mais recordações do que, no estado normal de suas faculdades, teria concebido durante um dia inteiro. A pungente história desse monólogo pode ser resumida em algumas frases absurdas, contraditórias e destituídas de sentido, como realmente foi.

“Não há nenhuma razão para que Birotteau tivesse saído da minha cama! Ele comeu tanto terneiro que talvez esteja indisposto; mas, se estivesse adoentado, ele me acordaria. Em dezenove anos que dormimos juntos nesta cama, nesta mesma casa, nunca lhe aconteceu sair do seu lugar sem me avisar, o coitado! Nunca passou a noite fora de casa a não ser para dar guarda no serviço militar. Será que ele se deitou comigo esta noite? Mas, sim, meu Deus, como sou estúpida!”

Olhou para o leito e viu o gorro de dormir do marido, que conservava a forma quase cônica da cabeça.

“Vai ver que ele morreu! Será que se matou? Por quê?”, continuou ela. “Faz dois anos que o nomearam suplente do juiz distrital e ele anda não sei como. Metê-lo em cargos públicos não é mesmo de causar dó? Seus negócios vão bem, ele me deu um xale. Ou quem sabe se vão mal? Ora, neste caso eu saberia. Acaso a gente sabe quanto é que um homem tem escondido? E mesmo uma mulher? Isso, enfim, não é nenhum mal. Mas não vendemos cinco mil francos hoje? Além disso, um suplente não pode se suicidar, ele conhece suficientemente as leis. Onde estará ele, então?”

Não podia virar o pescoço nem espichar a mão para puxar o cordão da campainha, que teria movimentado uma cozinheira, três empregados e um caixeiro. Presa do pesadelo que persistia no estado de vigília, esquecia-se da filha que dormia calmamente num quarto contíguo ao seu e cuja porta ficava ao pé do seu leito. Finalmente, gritou “Birotteau!” e não recebeu resposta alguma. Pensava ter gritado o nome, mas pronunciara-o apenas mentalmente.

“Terá uma amante? É estúpido demais para isso”, continuou. “Por outro lado, gosta muito de mim para fazer uma coisa dessas. Não disse à sra. Roguin[222] que nunca cometera uma infidelidade, nem mesmo em pensamento? É a probidade personificada, esse homem. Se alguém merece o paraíso, é ele! De que é que ele se pode acusar ao confessor? Só lhe conta bobagens. Para um monarquista como ele, que o é sem saber por que, não se esforça muito para ostentar sua religião. Coitado! Vai à missa das oito horas, às escondidas, como se fosse a uma casa suspeita. Teme a Deus, por Deus mesmo: o inferno não existe para ele. Como poderia ter uma amante? Afasta-se tão pouco da minha saia que até me aborrece com isso. Gosta mais de mim do que dos seus próprios olhos, seria capaz de deixar-se cegar por mim. Em dezenove anos, nunca pronunciou uma palavra mais alta que outra, ao falar comigo. Mesmo sua filha está em segundo lugar. Mas Cesarina está aqui, Cesarina! Cesarina! Birotteau nunca teve um pensamento que não me confiasse. Razão tinha ele, quando ia ao Pequeno Marinheiro,[223] de dizer que eu só o ficaria conhecendo com o tempo! E agora esta! É extraordinário!”

Voltou a cabeça com dificuldade e olhou furtivamente para o quarto, então cheio desses pitorescos efeitos da noite que fazem o desespero da linguagem e parecem pertencer exclusivamente ao pincel dos pintores do gênero. Que palavras poderão descrever os espantosos ziguezagues produzidos pelas sombras que se movem, as aparências fantásticas das cortinas arqueadas pelo vento, os efeitos de luz bruxuleante projetados pela lamparina nas dobras do pano de algodão vermelho, as chamas vomitadas por uma pátera rutilante cujo centro parece o olho de um ladrão, a aparição de um vestido ajoelhado, enfim todas as extravagâncias que amedrontam a imaginação no momento em que ela não tem capacidade senão para perceber as aflições e ampliá-las! A sra. Birotteau julgou ver uma luz forte na peça que precedia seu quarto e logo pensou em incêndio; mas, ao avistar um lenço vermelho, que lhe pareceu uma poça de sangue derramado, a ideia dos ladrões dominou-a por completo, principalmente quando ela pretendeu ver vestígios de luta na maneira pela qual estavam colocados os móveis. Ao se lembrar da quantia contida no caixa, um generoso medo extinguiu os últimos vestígios do pesadelo; correu apavorada, em camisão, para o meio do quarto, a fim de socorrer o marido, que ela supunha às voltas com assassinos.

— Birotteau! Birotteau! — gritou, por fim, com uma voz cheia de angústia.

Encontrou o comerciante de perfumes no meio da peça vizinha, com uma vara na mão, medindo o ar, mas tão mal abrigado no chambre de tecido indiano verde com bolinhas cor de chocolate que o frio lhe avermelhava as pernas sem que ele o sentisse, tal a preocupação em que estava. Quando César voltou-se para dizer à mulher: “Então, que queres, Constança?”, sua expressão, como as dos homens distraídos por cálculos, foi tão aparvalhada que a sra. Birotteau pôs-se a rir.

— Meu Deus, César, és engraçado mesmo! — disse ela. — Por que me deixas sozinha sem me avisar? Quase morri de medo, não sabia o que imaginar. Que estás fazendo aqui, nesta corrente de ar? Vais ficar rouco como um lobo. Estás ouvindo, Birotteau?

— Sim, mulher, está pronto — respondeu o perfumista, voltando para o quarto.

— Trata de aquecer-te e dize-me que é que te deu na cabeça — acrescentou a sra. Birotteau, tirando a cinza da lareira e apressando-se a acendê-la novamente. — Estou gelada. Sou uma estúpida por levantar-me só de camisão! Mas cheguei a pensar que te estivessem assassinando.

O comerciante colocou o castiçal em cima da lareira, enrolou-se no chambre e foi maquinalmente buscar uma saia de flanela para a mulher.

— Toma, queridinha, agasalha-te — disse. — Vinte e dois por dezoito — acrescentou, continuando seu monólogo —; podemos ter um soberbo salão.

— Que é isso, Birotteau? Estás ficando louco? Estás sonhando?

— Não, mulher, estou calculando.

— Devias, pelo menos, esperar que clareasse o dia para fazer tuas asneiras — exclamou ela, amarrando a saia por cima da camisola para ir abrir a porta do quarto onde dormia a filha. — Cesarina está dormindo — disse. — Não nos ouvirá. Vamos ver, Birotteau, fala. Que é que tens?

— Podemos dar um baile.

— Dar um baile! Nós? Não há dúvida, estás sonhando, meu caro.

— Não estou sonhando, minha belezinha. Escuta, a gente tem o dever de agir de acordo com a posição em que se encontra. O governo colocou-me em evidência, pertenço ao governo; estamos obrigados a estudar as disposições do governo e estimular suas intenções, dando-lhes maior amplitude. O duque de Richelieu[224] acaba de fazer cessar a ocupação da França. Segundo o sr. de La Billardière,[225] os funcionários que representam a cidade de Paris devem considerar um dever seu, cada um na sua esfera de influência, celebrar a libertação do território. Testemunhemos um sincero patriotismo que fará corar o dos chamados liberais, esses danados intrigantes, hein? Achas que eu não amo o meu país? Quero mostrar aos liberais, aos meus inimigos, que amar o rei é amar a França!

— Então achas que tens inimigos, meu pobre Birotteau?

— É claro, minha mulher, temos inimigos. E a metade dos nossos amigos no bairro são nossos inimigos. Todos eles dizem: “Birotteau tem sorte, Birotteau é um homem de nada, e, contudo, foi nomeado suplente, tudo lhe sai bem”. Pois bem! Eles vão cair das nuvens. És a primeira a saber que sou cavaleiro da Legião de Honra: o rei assinou ontem o decreto.

— Oh! Se é assim — disse a sra. Birotteau, muito comovida — , então precisamos dar um baile, meu bom amigo. Mas que é que fizeste para obter a cruz?

— Ontem, quando o sr. de La Billardière me deu essa notícia — replicou Birotteau, embaraçado —, eu também me perguntei, como tu, quais eram os meus títulos; mas, ao voltar para casa, acabei descobrindo-os e aprovei o governo. Em primeiro lugar, sou realista, fui ferido em Saint-Roch em vendemiário,[226] e não é alguma coisa ter empunhado armas pela boa causa naquela época? Depois, segundo alguns comerciantes, eu me desempenhei das minhas funções consulares[227] com satisfação geral. E, finalmente, sou suplente, e o rei reserva quatro cruzes para o órgão administrativo da cidade de Paris. Examinando as pessoas que, entre os suplentes, estavam em condições de ser condecoradas, o prefeito colocou-me em primeiro lugar na lista. O rei, aliás, deve conhecer-me: graças ao velho Ragon,[228] eu lhe forneci o único pó que ele usa; somos os únicos a possuir a receita do pó da falecida rainha, a pobre da augusta vítima! O juiz distrital apoiou-me fortemente. Que queres? Se o rei me dá a cruz sem que eu lha peça, parece-me que não posso recusá-la sem fazer-lhe uma desconsideração. Acaso pedi para ser suplente? Assim, mulher, já que vamos de vento em pompa, como diz teu tio Pillerault nos seus momentos de bom humor, resolvi colocar tudo em nossa casa em harmonia com a nossa grande fortuna. Se posso ser alguma coisa, arriscarei a ser o que o bom Deus quiser que eu seja, subprefeito, se tal for o meu destino. Cometes um grave erro, mulher, julgando que um cidadão pode considerar paga sua dívida para com o país, vendendo durante vinte anos perfumes aos que vinham comprá-los. Se o Estado reclama o concurso das nossas luzes, nós lhas devemos, do mesmo modo que lhe devemos o imposto sobre bens móveis, as portas e janelas et cætera. Queres ficar toda a vida atrás do balcão? Já faz muito tempo, graças a Deus, que estás lá. O baile será a nossa festa. Adeus à venda a varejo, para ti, bem entendido. Queimo a nossa tabuleta da Rainha das Rosas, apago o letreiro césar birotteau, comerciante de perfumes, sucessor de ragon e mando escrever simplesmente perfumarias em grandes letras douradas. Instalo no entressolo o escritório, o caixa e um lindo gabinete para ti. Transformo em loja o depósito, a sala de jantar e a cozinha atuais. Alugo o primeiro andar da casa vizinha e abro uma porta na parede entre as duas. Mudo o lugar da escada a fim de deixar no mesmo nível as duas casas. Teremos, assim, um grande apartamento mobiliado que será uma maravilha! Sim, reformo teu quarto, arranjo-te um gabinete elegante e dou um bonito quarto para Cesarina. A caixeira que tomarás, nosso primeiro caixeiro e tua criada de quarto (sim, a senhora terá uma) morarão no segundo andar. No terceiro ficarão a cozinha, a cozinheira e o criado para todo o serviço. O quarto será o nosso depósito geral de garrafas, cristais e porcelanas. E o laboratório dos empregados na água-furtada! Os transeuntes não verão mais colar os rótulos, fazer a embalagem, classificar os frascos, arrolhar os recipientes. Isso é bom para a Rue Saint-Denis, mas na Rue Saint-Honoré... Imagina só! Não fica bem. Nossa loja deve ser luxuosa como um salão. Dize-me uma coisa: somos os únicos perfumistas investidos de honrarias? Não há vinagreiros, comerciantes de mostarda que comandam a Guarda Nacional e são muito bem-vistos no castelo? Vamos imitá-los! Ampliemos nosso negócio e, ao mesmo tempo, lancemo-nos na alta sociedade.

— Olha, Birotteau, sabes que é que eu penso, ao ouvir-te? Tenho a impressão de que estás procurando sarna para te coçares. Lembra-te do que te aconselhei quando falaram em nomear-te juiz distrital: tua tranquilidade acima de tudo! “Nasceste para viver em evidência”, foi o que eu te disse, como o meu braço para ser asa de moinho. “As grandezas serão a tua perda.” Não me escutaste; e a nossa ruína chegou. Para desempenhar um papel político, é necessário dinheiro; nós o temos? Como! Queres queimar tua tabuleta que custou seiscentos francos e renunciar à Rainha das Rosas, à tua verdadeira glória? Deixa que os outros sejam ambiciosos. Quem mete a mão no fogo se queima, não é verdade? E a política, atualmente, está queimando. Temos cem bons mil francos, em dinheiro colocado, além do nosso negócio, da nossa fábrica e das nossas mercadorias. Se queres aumentar tua fortuna, age agora como em 1793. Os títulos de renda estão a setenta e dois francos; compra títulos, terás dez mil francos de rendimento sem que esse emprego de capital prejudique nossos negócios. Aproveita essa reviravolta para casar nossa filha, vende nosso estabelecimento e vamos para a tua terra. Como! Não me falaste, durante quinze anos, em comprar as Trésorières, aquela linda propriedadezinha perto de Chinon, onde há aguadas, campos, matos, parreirais, construções, cuja casa tanto nos agrada, que ainda podemos conseguir por sessenta mil francos, e o senhor quer agora ser alguma coisa no governo? Lembra-te do que somos: perfumistas. Há dezesseis anos, antes que tivesses inventado a Dupla Pomada das Sultanas e a Água Carminativa, se te dissessem: “Você vai conseguir o dinheiro necessário para comprar as Trésorières!”, não terias ficado louco de alegria? Pois bem, podes adquirir essa propriedade, que tanto desejavas, pois só abrias a boca para falar nisso! E agora falas em gastar em bobagens um dinheiro ganho com o suor do nosso rosto, posso dizer do nosso, pois estive sempre sentada atrás do balcão como um pobre cão na sua casinhola. Não é preferível ter um quarto na casa da tua filha, feita esposa de um tabelião de Paris, e passar oito meses por ano em Chinon a começar a fazer aqui de cinco sous[229] seis moedas de prata e de seis moedas de prata, nada? Espera a alta das apólices, darás oito mil francos de renda à tua filha, ficaremos com dois mil para nós e o produto do nosso estabelecimento nos permitirá comprar as Trésorières. Lá, na tua terra, meu bom gatinho, levando nossa mobília, que vale bastante, viveremos como príncipes, ao passo que aqui precisaremos de um milhão, no mínimo, para fazer figura.

— Era justamente isto que eu esperava que dissesses, mulher — disse César Birotteau. — Ainda não sou suficientemente estúpido (embora já me julgues bastante estúpido!) para não ter pensado em tudo. Presta atenção. Alexandre Crottat nos senta como uma luva para genro e vai ficar com o cartório de Roguin, mas achas que ele se contentará com cem mil francos de dote? (Supondo-se que déssemos todo o nosso capital líquido para casar nossa filha, e é isto que penso fazer; eu me sujeitaria a não ter mais que pão seco no resto dos meus dias para vê-la feliz como uma rainha, esposa de um tabelião de Paris, como dizes.) Pois bem! Cem mil francos ou mesmo oito mil francos de renda não são nada para comprar o cartório de Roguin. Esse pequeno Xandrot, como o chamamos, julga-nos, assim como todo mundo, muito mais ricos do que somos. Se seu pai, esse grande proprietário rural que é avarento como um caracol, não vender cem mil francos de terras, Xandrot não será tabelião, pois o cartório de Roguin vale quatrocentos ou quinhentos mil francos. Se Crottat não pagar a metade à vista, como poderá fechar o negócio? Cesarina precisa de duzentos mil francos de dote e eu quero que nos retiremos como bons burgueses de Paris, com quinze mil francos de renda. Que tal? Se eu te fizesse ver isto claro como o dia, não ficarias com o bico calado?

— Bem! Já que és dono do Peru!

— Sim, sou, minha gatinha. Sim — repetiu, segurando a esposa pela cintura, e dando-lhe uns tapinhas, comovido pela alegria que animou suas feições. — Não quis falar-te neste negócio antes que ele estivesse maduro; mas, afinal, amanhã talvez eu o conclua. É isto: Roguin propôs-me uma especulação tão segura que ele próprio se vai meter nela com Ragon, com teu tio Pillerault e dois outros clientes. Vamos comprar nas proximidades da Madeleine terrenos que, segundo os cálculos de Roguin, conseguiremos pela quarta parte do valor que alcançarão daqui a três anos, época em que, expirados os arrendamentos, ficaremos com liberdade para explorá-los. Somos seis, com quotas combinadas. Eu entro com trezentos mil francos e fico com três oitavos da compra. Se algum de nós precisar de dinheiro, Roguin o conseguirá hipotecando a respectiva parte. Para poder ficar de olho no fogão e ver como fritará o peixe, tratei de ficar como proprietário nominal da metade que será comum entre Pillerault, o velho Ragon e mim. Roguin será, sob o nome dum sr. Carlos Claparon, meu coproprietário e dará, como eu, uma contraescritura a seus sócios. Os atos de aquisição se fazem por promessas de venda sob firma particular até que sejamos donos de todos os terrenos. Roguin examinará os contratos que deverão ser realizados, pois ele não tem certeza de que nos possamos eximir do registro e de outorgar os direitos àqueles a quem os vendermos em lotes; isto seria muito longo para explicar-te. Pagos os terrenos, nada mais teremos a fazer a não ser cruzar os braços e, daqui a três anos, teremos um milhão. Cesarina terá então vinte anos, venderemos o estabelecimento e assim, com a graça de Deus, encaminhar-nos-emos modestamente para as grandezas.

— Bem, mas aonde irás buscar os trezentos mil francos? — perguntou a sra. Birotteau.

— Não entendes nada de negócios, minha querida gatinha. Darei os cem mil francos que tenho no cartório de Roguin, tomarei quarenta mil emprestados sobre os prédios e os jardins onde estão localizadas nossas fábricas no Faubourg du Temple e ainda temos vinte mil francos em caixa; no total, cento e sessenta mil francos. Restam ainda cento e quarenta mil, para os quais assinarei letras à ordem do sr. Carlos Claparon, banqueiro, que as descontará, deduzindo os respectivos juros. E aí estão os nossos cem mil escudos pagos, pois enquanto não se vence o prazo não se deve nada. Quando as letras vencerem, nós as resgataremos com nossos ganhos. Se não pudéssemos saldá-las, Roguin me forneceria dinheiro a cinco por cento, mediante hipoteca da minha parte no terreno. Mas os empréstimos serão desnecessários: descobri uma essência para fazer nascer cabelo, um Óleo Comageno! Livingston instalou para mim uma prensa hidráulica lá embaixo, para fabricar meu óleo com avelãs que, sob forte pressão, deixarão extrair todo o seu óleo. Em um ano, segundo minhas probabilidades, terei ganho cem mil francos, no mínimo. Estou pensando num cartaz que começará por: Abaixo as perucas!, cujo efeito será prodigioso. Nem notas as minhas insônias! Há três meses que o Óleo de Macassar me impede de dormir. Quero derrubar o Macassar!

— Então são esses os belos projetos que andas fazendo girar na cachola há dois meses, sem querer dizer-me nada! Acabo de me ver mendigando à minha própria porta. Que aviso do céu! Daqui a pouco tempo, não nos restará mais que os olhos para chorar. Nunca farás isso enquanto eu for viva, ouve bem, César! Por baixo disso deve haver alguma trapaça que não percebes, és demasiado honesto e leal para suspeitar de patifarias por parte dos outros. Por que é que te oferecem milhões? Tu te desfazes de todos os teus bens, tomas empréstimos acima das tuas posses e, se teu Óleo não vencer, se não conseguires o dinheiro, se o valor dos terrenos não se realizar, com que pagarás tuas letras? Será com as cascas das avelãs? Para conquistar um lugar mais alto na sociedade, não queres mais negociar em teu nome, queres tirar a tabuleta da Rainha das Rosas, e agora vais fazer salamaleques com cartazes e prospectos que mostrarão César Birotteau em todas as esquinas e em todos os andaimes das construções.

— Oh! Não estás entendendo nada. Terei uma sucursal sob o nome de Popinot,[230] em alguma casa perto da Rue des Lombards, onde colocarei o pequeno Anselmo. Saldarei, assim, minha dívida de gratidão com o sr. e a sra. Ragon, estabelecendo seu sobrinho, que poderá fazer fortuna. Esses pobres Ragon me parecem muito necessitados, ultimamente.

— Aí está, essa gente quer o teu dinheiro.

— Mas que gente, minha querida? O teu tio Pillerault, que nos estima imensamente e que janta conosco todos os domingos? Esse bom velho Ragon, nosso predecessor, que tem um passado de quarenta anos de probidade e com quem jogamos o nosso bóston? E, enfim, Roguin, um tabelião de Paris, um homem de cinquenta e sete anos, que tem vinte e cinco anos de notariado? Um tabelião de Paris seria a mais distinta das criaturas, se todas as pessoas honestas não tivessem o mesmo valor. Em caso de necessidade, meus sócios me prestariam auxílio! Então, onde está a trapaça, minha beleza? Escuta, preciso dizer-te umas verdades! Palavra de honra, andava mesmo ansioso para dizer-te isto. Sempre foste desconfiada como uma gata! Logo que tivemos dois sous na loja, começaste a achar que os fregueses eram ladrões. Preciso ajoelhar-me para suplicar-te que te deixes enriquecer! Para uma mulher de Paris, não tens ambição! Se não fossem teus constantes receios, não haveria homem mais feliz do que eu! Se eu tivesse ido atrás do que dizias, nunca teria feito a Pomada das Sultanas nem a Água Carminativa. Nossa loja tem-nos dado o suficiente para vivermos, mas foi graças a essas duas descobertas que obtivemos os nossos cento e sessenta francos líquidos! Se não fosse a minha capacidade, pois tenho talento como perfumista, não passaríamos de pequenos varejistas, andaríamos matando cachorro a grito, e eu não seria um dos notáveis comerciantes que concorrem às eleições dos juízes do Tribunal de Comércio, não teria sido juiz nem suplente. Sabes o que é que eu seria? Um vendeiro como foi o tio Ragon, isso sem querer ofendê-lo, pois respeito as lojas, tudo o que temos nos veio delas! Depois de ter vendido perfumarias durante quarenta anos, possuiríamos, como ele, três mil francos de renda; com o preço a que estão as coisas, cujo valor duplicou, teríamos, como ele, apenas com que viver. (Cada dia que passa mais me preocupo com esse casal de velhos, preciso descobrir o que é que há por lá, amanhã o saberei por Popinot!) Se eu tivesse seguido teus conselhos, a ti, que vives com receio do futuro e que te perguntas se terás amanhã o que tens hoje, eu não teria prestígio, não teria a Cruz da Legião de Honra nem estaria às vésperas de me tornar um político. Sim, não adianta sacudir a cabeça; caso se realize o nosso negócio, poderei chegar a ser deputado de Paris. Ah! Não é por nada que me chamo César, tudo me sai bem. É inimaginável; lá fora, todos reconhecem minha capacidade; mas aqui, a única pessoa a quem quero agradar, suando sangue e água para fazê-la feliz, é precisamente quem me considera uma besta.

Essas frases, embora cindidas por eloquentes pausas e lançadas como projéteis, como fazem todos os que se colocam numa atitude recriminatória, exprimiam uma afeição tão profunda, tão sólida, que a sra. Birotteau sentiu-se intimamente enternecida; mas, como todas as mulheres, serviu-se do amor que inspirava para ter ganho de causa.

— Bem, Birotteau, se me amas, deixa-me ser feliz à minha maneira. Nem tu nem eu recebemos educação; não sabemos falar nem bancar o capacho, como fazem as pessoas da alta sociedade, e como queres que tenhamos êxito nos postos governamentais? Por mim, seria muito feliz nas Trésorières! Sempre gostei dos animais e dos passarinhos e passaria muito bem a minha vida a cuidar das galinhas, a trabalhar como chacareira. Vendamos nosso estabelecimento, casemos Cesarina e deixa o teu Comageno. Passaremos os invernos em Paris, na casa do nosso genro; seremos felizes, nada na política nem no comércio poderá alterar nossa maneira de ser. Que necessidade teremos de querer esmagar os outros? Nossa fortuna atual não nos basta? Quando fores milionário, jantarás duas vezes por dia? Precisas de outra mulher além de mim? Olha para o meu tio Pillerault! Contentou-se, sensatamente, com o pouco que tem e emprega a vida em boas obras. Acaso ele precisa de móveis bonitos? Tenho certeza de que encomendaste minha mobília, pois vi Braschon aqui e é claro que não veio cá para comprar perfumes.

— É isso mesmo, minha querida, teus móveis foram encomendados, as obras vão começar amanhã e serão dirigidas por um arquiteto recomendado pelo sr. de La Billardière.

— Meu Deus — exclamou ela —, tende piedade de nós!

— Mas não és razoável, minha filha. Será que aos trinta e sete anos, jovem e bonita como és, tencionas enterrar-te em Chinon? Eu, graças a Deus, não tenho mais de trinta e nove anos. O acaso abre-me uma bela carreira e eu entro nela! Conduzindo-me com prudência, posso constituir uma casa respeitável na burguesia de Paris, como se fazia antigamente, fundar os Birotteau, como há os Keller, os Júlio Desmarets, os Roguin, os Cochin, os Guillaume, os Lebas, os Nucingen, os Saillard, os Popinot, os Matifat,[231] que são ou foram notáveis nos seus bairros. Ora, vamos! Se este negócio não fosse seguro como ouro em barra...

— Seguro!

— Seguro, sim. Há dois meses que venho fazendo cálculos. Sem que ninguém o perceba, tomo informações sobre as construções, na municipalidade, entre os arquitetos e os empreiteiros. O sr. Grindot, o jovem arquiteto que vai reformar o nosso apartamento, está desesperado por não ter dinheiro para se meter na nossa especulação.

— Ele terá casas para construir; empurra vocês para o negócio para ganhar dinheiro.

— Achas que podem enganar pessoas como Pillerault, Carlos Claparon e Roguin? O lucro é tão certo como o da Pomada das Sultanas, podes ficar certa!

— Mas, meu caro, que necessidade tem Roguin de especular, se já está com o cartório pago e a fortuna feita? Às vezes vejo-o passar mais preocupado do que um ministro de Estado, com um olhar dissimulado que não me agrada: ele esconde alguma inquietação. Há cinco anos, seu rosto se tornou igual ao de um velho libertino. Quem te diz que ele não fugirá quando estiver com o capital de vocês na mão? Não seria a primeira vez que aconteceria isto! Achas que o conhecemos bem? Não importa que seja nosso amigo há quinze anos, eu não poria a mão no fogo por ele. Olha, ele tem mau cheiro e não vive com a esposa; deve ter amantes a quem paga e que o arruínam; não encontro outra causa para sua tristeza. Enquanto me visto, espio pelas persianas e vejo-o chegar em casa a pé, de manhã cedo, voltando de onde? Ninguém o sabe. Ele me dá a impressão dum homem que tem casa na cidade, com despesas próprias, enquanto a senhora gasta por outro lado. Isso é vida para um tabelião? Se a gente ganha cinquenta mil francos e gasta sessenta, em vinte anos a fortuna se acaba e a gente se vê pobre como Jó; mas, como se está habituado a brilhar, saqueiam-se os amigos sem piedade: a caridade bem compreendida começa por si mesmo. Ele é íntimo desse tratantezinho do Du Tillet, nosso antigo caixeiro, e não vejo nada de bom nessa amizade. Se ele não percebeu quem é Du Tillet, é muito cego; e, se o conhece, por que o trata com tanto carinho? Vais dizer-me que sua mulher ama o Du Tillet? Pois bem! Não posso esperar nada de um homem que não tem dignidade perante a esposa. E, por último, serão tão estúpidos os atuais proprietários dos terrenos para dar por cem sous o que vale cem francos? Se encontrasses uma criança que não soubesse quanto vale um luís, não lho dirias? O negócio de vocês me parece um roubo, digo isto sem a mínima intenção de te ofender.

— Meu Deus, como as mulheres são engraçadas, algumas vezes, e como embrulham tudo! Se Roguin não estivesse no negócio, tu me dirias: “Olha, César, vais fazer um negócio no qual Roguin não está metido, e, portanto, não pode ser bom”. Pois bem, desta vez ele está no negócio como uma garantia, e me dizes...

— Não, quem está é um Claparon...

— Mas um tabelião não pode figurar numa especulação.

— E como é que ele vai fazer uma coisa que a lei lhe proíbe? Que é que me vais responder, tu, que só conheces a lei?

— Mas deixa-me continuar. Roguin está metido nisto e dizes que o negócio não vale nada! És razoável? Dizes mais: ele está fazendo uma coisa contrária à lei. Mas ele participará ostensivamente se for preciso. E agora me dizes: ele é rico. Não se pode dizer o mesmo de mim? Ragon e Pillerault seriam delicados se me dissessem: “Por que vai fazer este negócio o senhor, que tem dinheiro como um vendedor de porcos?”.

— Os comerciantes não estão na mesma situação dos tabeliães — objetou a sra. Birotteau.

— Enfim, minha consciência está intata — disse César, continuando. — As pessoas que vendem, vendem por necessidade; não lhes roubamos, do mesmo modo que não se rouba de quem compra títulos de renda a setenta e cinco. Hoje compraremos os terrenos pelo preço atual; daqui a dois anos, ele será diferente, tal como acontece com as apólices. Fique sabendo, Constança-Bárbara-Josefina Pillerault, que a senhora nunca apanhará César Birotteau praticando uma ação que atente contra a mais rígida probidade nem contra a lei nem contra a consciência nem contra a decência. Um homem estabelecido há dezoito anos ser suspeito de improbidade na própria casa!

— Ora, acalma-te, César! Uma mulher que vive contigo há tanto tempo conhece o íntimo da tua alma. És o dono da casa, afinal. Esta fortuna, tu a ganhaste, não é? Ela te pertence, podes gastá-la. Mesmo que ficássemos reduzidas à extrema miséria, nem eu nem tua filha te faríamos uma única censura. Mas escuta: quando estavas fabricando tua Pomada das Sultanas e tua Água Carminativa, que é que arriscavas? Cinco a seis mil francos. Atualmente, vais jogar toda a tua fortuna numa cartada e não serás o único a jogar, tens sócios que se podem mostrar mais espertos do que tu. Dá o teu baile, reforma o teu apartamento, faze dez mil francos de despesas, tudo isso é desnecessário, mas não é arriscado. Quanto ao teu negócio da Madeleine, oponho-me formalmente. És perfumista, conserva-te perfumista e não te faças revendedor de terrenos. Nós, as mulheres, temos um instinto que não nos engana. Eu te preveni, agora age como quiseres. Foste juiz do Tribunal de Comércio, conheces as leis, tens sabido orientar tua vida, eu te acompanharei, César! Mas viverei receosa até ver nossa fortuna solidamente estabelecida e Cesarina bem casada. Queira Deus que meu sonho não seja uma profecia!

Essa submissão contrariou Birotteau, que empregou a inocente astúcia a que recorria em semelhantes ocasiões.

— Escuta, Constança, ainda não dei minha palavra; mas é como se já a tivesse dado.

— Oh! César, não há mais nada a dizer, não falemos mais nisso. A honra vale mais do que a fortuna. Vamos, deita-te, meu caro amigo, não temos mais lenha na lareira. Além disso, ficaríamos melhor na cama para conversar, se isso te agrada. Oh! Que sonho mau! Meu Deus, a gente ver a si mesma! Isto é horrível! Cesarina e eu vamos fazer novenas pelo bom êxito dos teus terrenos.

— Certamente que o auxílio de Deus não prejudica — disse gravemente Birotteau. — Mas a essência de avelãs também é uma potência, minha mulher! Fiz esta descoberta, como há tempos a da Dupla Pomada das Sultanas, por acaso: na primeira vez, ao abrir um livro, e nesta ao contemplar a gravura de Hero e Leandro,[232] tu sabes, uma mulher derramando óleo sobre a cabeça do amante, não é bonito? As especulações mais seguras são aquelas que repousam sobre a vaidade, sobre o amor-próprio, o desejo de aparecer. Esses sentimentos nunca morrem.

— Perfeitamente! Vejo-o muito bem.

— Numa certa idade os homens fariam o impossível para ter cabelos, quando não os têm. Há algum tempo os cabeleireiros me dizem que vendem não só o Macassar mas todas as drogas para tingir o cabelo ou anunciadas para fazê-lo nascer. Desde a paz, os homens convivem muito mais com as mulheres e elas não gostam dos calvos, eh! eh! A procura desse artigo se explica, assim, pela situação política. Um preparado que mantivesse os cabelos em boa saúde se venderia como pão, tanto mais que esta essência será, sem dúvida, aprovada pela Academia de Ciências. É possível que o meu bom sr. Vauquelin me ajude novamente. Amanhã irei submeter-lhe minha ideia, e lhe mostrarei a gravura que acabei por encontrar após dois anos de buscas na Alemanha. Ele se ocupa precisamente da análise dos cabelos.[233] Chiffreville, seu sócio na fábrica de produtos químicos, foi quem me disse. Se a minha descoberta estiver de acordo com a sua, minha essência será comprada pelos dois sexos. Minha ideia representa uma fortuna, repito-o. Meu Deus, já não durmo. E, por sorte, o pequeno Popinot tem os mais belos cabelos do mundo. Com uma caixeirinha de cabelos compridos caídos até o chão e que diria, tanto quanto fosse possível sem ofender a Deus nem ao próximo, que era ao Óleo Comageno (pois será decididamente um óleo) que devia aquela cabeleira, as cabeças grisalhas se atirariam a ele como a pobreza ao mundo. Dize-me uma coisa, querida, e o teu baile? Não sou malvado, mas gostaria muito de encontrar esse patifezinho do Du Tillet, que banca o importante com a fortuna que tem e que sempre me evita na Bolsa. Ele sabe que eu conheço uma ação dele que não é nada bonita. Talvez eu tenha sido bom demais com ele. É engraçado, mulher, que a gente sempre seja punido pelas boas ações que pratica, aqui na Terra, é claro! Fui como um pai para ele. Não sabes tudo o que fiz por ele.

— Fico toda arrepiada só de ouvir-te falar nisso. Se soubesses o que ele queria fazer contigo, não terias guardado segredo sobre o roubo dos três mil francos, pois descobri a maneira pela qual o caso se resolveu. Se o tivesses mandado para a cadeia, talvez tivesses prestado um serviço a muita gente!

— Que é que ele pretendia fazer comigo?

— Nada. Se estivesses disposto a escutar-me esta noite, eu te daria um bom conselho, Birotteau, que seria o de deixares o teu Du Tillet.

— Não achariam estranho que eu deixasse de receber na minha casa um antigo caixeiro, a quem dei fiança para os primeiros vinte mil francos com que ele se iniciou nos negócios? Deixa isso, façamos o bem pelo bem. Além disso, é possível que Du Tillet se tenha emendado.

— Vai ficar tudo em desordem, aqui.

— Que queres dizer com essa tua “desordem”? Tudo será perfeitamente regulado. Já te esqueceste do que acabei de dizer-te relativamente à escada e à locação da casa vizinha, que já combinei com o vendedor de guarda-chuvas Cayron? Amanhã iremos juntos à casa do sr. Molineux, seu proprietário. Amanhã estarei ocupado como um ministro...

— Transtornaste-me a cabeça com teus projetos — disse-lhe Constança —, estou completamente confusa. Além disso, Birotteau, estou caindo de sono.

— Bom-dia — respondeu o marido. — Escuta aqui, digo-te bom-dia porque já é de manhã, querida. Ah! Já se foi deitar a menina! Fica descansada, serás riquíssima ou não me chamarei mais César.

Alguns instantes depois, Constança e César ressonavam calmamente.

Um rápido olhar sobre o passado desse casal confirmará as suposições que devem ter sido sugeridas pela amigável altercação entre os dois principais personagens desta cena da vida parisiense. Ao descrever os costumes dos varejistas, este trabalho mostrará, além disso, por quais singulares acasos César Birotteau se fizera suplente e perfumista, antigo oficial da Guarda Nacional e cavaleiro da Legião de Honra. Desvendando a intimidade do seu caráter e as causas da sua grandeza, compreender-se-á como os acidentes comerciais, que os fortes vencem, constituem irreparáveis catástrofes para os espíritos fracos. Os acontecimentos nunca são absolutos, seus resultados dependem exclusivamente dos indivíduos: o infortúnio é um degrau para o gênio, uma piscina para o cristão, um tesouro para o homem hábil, um abismo para os fracos.

II — ANTECEDENTES DE CÉSAR BIROTTEAU

Um chacareiro das redondezas de Chinon, chamado Jacques Birotteau, casou-se com a criada de quarto duma senhora em cujo vinhedo trabalhava; nasceram três filhos homens, a mulher morreu por ocasião do parto do último e o pobre homem não lhe sobreviveu muito tempo. A patroa tinha grande afeição pela criada: mandou educar junto com seus filhos o primogênito do chacareiro, chamado Francisco, e o colocou num seminário. Ordenado sacerdote, Francisco Birotteau escondeu-se durante a Revolução e levou a vida errante dos padres não juramentados, que eram perseguidos como feras e pela menor coisa guilhotinados. No momento em que começa esta história, ele era vigário da catedral de Tours e só saíra uma vez dessa cidade para ir visitar seu irmão César. O burburinho de Paris atordoou de tal modo o bom padre que ele não se animava a sair do quarto; chamava os cabriolés de meios fiacres, espantava-se de tudo. Depois de uma permanência de uma semana, voltou para Tours, prometendo a si mesmo nunca mais voltar à capital.[234]

O segundo filho do vinhateiro, João Birotteau, apanhado pela milícia, alcançou rapidamente o posto de capitão durante as primeiras batalhas da Revolução. Na batalha do Trébia, Macdonald pediu uns homens de boa vontade para tomar de assalto uma bateria, o capitão João Birotteau avançou com a sua companhia e foi morto.[235] O destino dos Birotteau queria, sem dúvida, que eles fossem oprimidos pelos homens ou pelos acontecimentos em qualquer lugar onde estivessem.

O filho mais moço é o herói desta história. Logo que, na idade de catorze anos, César soube ler, escrever e contar, deixou sua terra e veio a pé para Paris tentar a fortuna com um luís no bolso. Graças à recomendação dum farmacêutico de Tours, empregou-se como caixeiro na casa do sr. e da sra. Ragon, comerciantes de perfumes. César possuía então um par de sapatos ferrados, uns calções, meias azuis, um colete floreado, um traje de camponês, três grossas camisas de boa fazenda e um bastão de viagem. Se usava os cabelos cortados como os dos meninos de coro, tinha os rins sólidos dos filhos da Touraine; se às vezes se entregava à indolência característica da sua terra, ela era compensada pelo desejo de fazer fortuna; se lhe faltavam inteligência e instrução, tinha uma retidão instintiva e sentimentos delicados que herdara da mãe, criatura que, segundo a expressão da Touraine, era um coração de ouro. César começou ganhando seis francos de ordenado por mês, cama e comida, e dormia num catre, na água-furtada, perto da cozinheira. Os outros caixeiros, que lhe ensinaram a fazer pacotes e dar recados, a varrer a loja e a rua, riam-se à sua custa enquanto o habituavam ao serviço, de acordo com os costumes das casas de comércio, onde os trotes figuram como principal elemento de instrução. O sr. e a sra. Ragon dirigiam-se a ele como se fosse um cão; ninguém se importava com seu cansaço, embora à noite seus pés, machucados pelo calçamento das ruas, lhe doessem terrivelmente e sentisse os ombros desconjuntados. Essa rude aplicação do cada um por si, o evangelho de todas as capitais, fez-lhe achar a vida de Paris muito dura. À noite, chorava, pensando na Touraine, onde o camponês trabalha à vontade, onde o pedreiro assenta uma pedra em doze tempos, onde a preguiça é sabiamente misturada ao trabalho; adormecia, porém, sem tempo de pensar em fugir, pois sempre tinha corridas a fazer pela manhã e cumpria seu dever com o instinto de um cão de guarda. Se, por acaso, se queixava, o primeiro caixeiro sorria com um ar brincalhão.

— Ah! meu rapaz — dizia ele —, nem tudo são rosas na Rainha das Rosas e aqui as calhandras não caem assadas; em primeiro lugar, é preciso correr atrás delas, depois apanhá-las e finalmente arranjar com que temperá-las.

A cozinheira, gorda moça da Picardie, ficava com as melhores porções para ela, e não dirigia a palavra a César a não ser para se queixar do sr. ou da sra. Ragon, que não lhe deixavam roubar nada. No fim do primeiro mês, num domingo, a moça, que ficara cuidando da casa, puxou conversa com César. Úrsula, lavada e arrumada, pareceu encantadora ao criado de todo o serviço que, se não fosse o acaso, teria encalhado no primeiro recife oculto em seu caminho. Como todos os seres desprotegidos, amou a primeira mulher que lhe dirigiu um olhar amável. A cozinheira tomou César sob sua égide, e disso resultaram secretos amores, de que os caixeiros zombaram impiedosamente. Dois anos mais tarde, a cozinheira deixou felizmente César por um jovem insubmisso de sua terra oculto em Paris, um picardo de vinte anos, possuidor de algumas jeiras de terra, que se deixou desposar por Úrsula.

Durante esses dois anos, a cozinheira alimentara bem seu pequeno César, ensinara-lhe vários mistérios da vida parisiense, fazendo-lhe examiná-la por baixo, e inculcara-lhe, por ciúme, um profundo horror pelos lugares mal frequentados cujos perigos não lhe pareciam desconhecidos. Em 1792, os pés de César traído estavam habituados ao calçamento, seus ombros às caixas e seu espírito àquilo que denominavam as mentiras de Paris. Assim, quando Úrsula o abandonou, consolou-se imediatamente, pois ela não satisfizera nenhuma de suas ideias instintivas sobre os sentimentos. Lasciva e caprichosa, hipócrita e gatuna, maculava a candura de Birotteau sem lhe oferecer nenhuma perspectiva vantajosa. Às vezes, o pobre menino se via, com pesar, ligado pelos laços mais fortes para um coração inocente a uma criatura com quem não simpatizava. Quando ficou senhor do seu coração, já estava crescido, com dezesseis anos. Seu espírito, desenvolvido por Úrsula e pelos gracejos dos caixeiros, lançou-se ao estudo do comércio com um olhar no qual a inteligência se ocultava sob a simplicidade: observou os fregueses, pediu explicações, nos momentos de folga, sobre as mercadorias, inteirando-se de suas classificações e de suas procedências; até que um dia ficou conhecendo os artigos, os preços e as cifras melhor do que os novatos; desde então o sr. e a sra. Ragon habituaram-se a contar com ele.

No dia em que a terrível requisição do ano ii[236] esvaziou a casa do cidadão Ragon, César Birotteau, promovido a segundo caixeiro, aproveitou-se da circunstância para obter cinquenta francos de ordenado por mês e passou a sentar-se à mesa dos Ragon com uma alegria inefável. O segundo caixeiro da Rainha das Rosas, que já possuía seiscentos francos, passou para um quarto onde pôde guardar convenientemente, em móveis há muito cobiçados, as coisas que conseguira juntar. Nos dias de décadi,[237] vestido como os rapazes da época, a quem a moda ordenava afetar maneiras brutais, o meigo e modesto camponês assumia um ar que o tornava no mínimo igual a eles e assim transpôs as barreiras que, em outros tempos, a condição de criado teria erguido entre a burguesia e ele. No fim desse ano, sua honestidade elevou-o ao cargo de caixa. A imponente cidadã Ragon cuidava da roupa-branca do caixeiro e os dois comerciantes familiarizaram-se com ele.

Em vendemiário de 1794,[238] César, que possuía cem luíses de ouro, trocou-os por seis mil francos de bônus do governo, comprou apólices a trinta francos, pagou-as na véspera do dia em que a escala de depreciação foi instituída na Bolsa e encerrou sua inscrição com incrível felicidade. A partir desse dia, acompanhou o movimento dos títulos e dos negócios públicos com secretas ansiedades que lhe davam palpitações ao ouvir as narrativas dos triunfos e dos reveses que assinalaram esse período da nossa história. O sr. Ragon, antigo perfumista de Sua Majestade a rainha Maria Antonieta, confiou, nesses momentos críticos, a César Birotteau sua afeição pelos tiranos destronados. Essa confidência foi uma das circunstâncias capitais da vida de César. As palestras à noite, quando a loja estava fechada, a rua calma e o caixa feito, fanatizaram-no, e, tornando-se realista, obedecia a sentimentos inatos. A narrativa das virtuosas ações de Luís xvi, as anedotas pelas quais os dois esposos exaltavam os méritos da rainha inflamaram a imaginação de César. A horrível sorte das duas cabeças coroadas, decepadas a poucos passos da loja, revoltou seu coração sensível e inspirou-lhe ódio por um sistema de governo ao qual não custava nada derramar sangue inocente. O interesse comercial mostrou-lhe a morte do seu comércio no Máximo[239] e nos vendavais políticos, sempre inimigos dos negócios. Como verdadeiro perfumista, odiava, por outro lado, uma revolução que punha a todos à moda de Tito[240] e suprimia o uso do pó. Como somente a tranquilidade proporcionada pelo poder absoluto podia dar vida ao dinheiro, fanatizou-se pela realeza. Quando o sr. Ragon o viu em boas disposições, nomeou-o primeiro caixeiro e iniciou-o no segredo da loja da Rainha das Rosas, que tinha entre seus fregueses os mais ativos, os mais dedicados emissários dos Bourbon e onde se fazia a correspondência do Oeste com Paris. Arrastado pelo ardor da juventude, eletrizado por suas relações com os Georges, os La Billardière, os Montauran, os Bauvan, os Longuy, os Mandat, os Bernier, os Du Guénic e os Fontaine,[241] César meteu-se na conspiração que os monarquistas e os terroristas reunidos dirigiram, a 13 de vendemiário, contra a Convenção moribunda.

César teve a honra de lutar contra Napoleão nas escadarias de Saint-Roch e foi ferido logo no começo da revolta. Todos conhecem o desfecho dessa intentona. Se o ajudante de campo de Barras[242] saiu da obscuridade, Birotteau foi salvo por ela. Alguns amigos transportaram o belicoso primeiro caixeiro à Rainha das Rosas, onde ele ficou escondido na água-furtada, sob os cuidados da sra. Ragon e felizmente esquecido. César Birotteau tivera apenas um ímpeto de coragem militar. Durante o mês que durou a convalescença, fez sólidas reflexões sobre a ridícula aliança da política com a perfumaria. Se permaneceu realista, resolveu ser pura e simplesmente um perfumista realista, sem se comprometer nunca mais, e se entregou de corpo e alma ao seu negócio.

A 18 de brumário, o sr. e a sra. Ragon, desesperando da causa real, decidiram deixar a perfumaria e viver como bons burgueses, sem se envolver na política. Para conseguir o valor do estabelecimento, precisavam encontrar um homem que tivesse mais probidade do que ambição, mais bom senso do que capacidade, e Ragon propôs o negócio ao seu primeiro caixeiro. Birotteau hesitou, embora possuidor, aos vinte anos, de mil francos de renda em títulos públicos. Sua ambição limitava-se a ir morar nas redondezas de Chinon quando tivesse mil e quinhentos francos de renda, depois de ver o primeiro-cônsul consolidar a dívida pública ao firmar-se nas Tuileries. Para que arriscar sua honesta e simples independência nos azares do comércio?, pensava. Nunca imaginara que pudesse ganhar tamanha fortuna numa dessas aventuras a que a gente se atira somente na mocidade; pensava, pois, em desposar na Touraine uma mulher que tivesse tanto dinheiro como ele para poder comprar e cultivar as Trésorières, pequena propriedade que, desde a idade da razão, cobiçava, sonhava ampliar para produzir mil escudos de renda e onde levaria uma vida venturosamente obscura. Ia recusar, quando o amor alterou subitamente sua resolução, decuplicando sua ambição.

Desde a traição de Úrsula, César mantinha-se casto, tanto por temor dos perigos que se corre no amor, em Paris, como devido aos seus trabalhos. Quando as paixões não têm alimento, transformam-se em necessidades; o casamento torna-se então, para as pessoas da classe média, uma ideia fixa, pois não dispõem de outro meio para conquistar uma mulher e se apropriar dela. César Birotteau achava-se nessa situação. Tudo estava a cargo do primeiro caixeiro na loja da Rainha das Rosas: ele não dispunha de um momento que fosse para dedicar ao prazer. Numa existência assim, as necessidades são ainda mais imperiosas: e por isso o encontro com uma moça bonita, a que um caixeiro libertino pouco ligaria, devia causar a mais forte impressão ao casto César.

Num belo dia de junho, ao entrar pela Pont Marie na Île Saint-Louis, ele viu uma moça de pé à porta duma loja situada na esquina do Quai d’Anjou. Constança Pillerault era a primeira caixeira de uma loja de novidades denominada Pequeno Marinheiro, a primeira das casas de comércio que a partir dessa época se estabeleceram em Paris com maior ou menor número de tabuletas pintadas, bandeirolas flutuantes, vitrinas cheias de xales pendurados em cordas, gravatas dispostas como castelos de cartas e uma infinidade de outras seduções comerciais: preços fixos, fitas de papel, cartazes, ilusões e efeitos de óptica levados a tal grau de aperfeiçoamento que as fachadas das lojas se transformaram em poemas comerciais. O baixo preço dos objetos chamados novidades que havia no Pequeno Marinheiro deu-lhe uma popularidade incrível, na zona de Paris menos favorável à popularidade e ao comércio. A primeira caixeira era citada por sua beleza como mais tarde o foram a Bela Limonadeira do Café das Mil Colunas[243] e várias outras pobres criaturas que têm atraído mais jovens e velhos às modistas, aos botequins e às lojas do que o número de pedras que há nos calçamentos de Paris. O primeiro caixeiro da Rainha das Rosas, que morava entre a igreja de Saint-Roch e a Rue de la Sourdière, nem suspeitava da existência do Pequeno Marinheiro, pois o pequeno comércio de Paris se desconhece quase completamente. César ficou tão fortemente impressionado pela beleza de Constança que entrou impetuosamente no Pequeno Marinheiro para comprar seis camisas, cujo preço discutiu demoradamente, fazendo espalhar sobre o balcão pilhas e pilhas de camisas, tal como uma inglesa quando sai a fazer compras (shopping). A primeira caixeira dignou-se a atender a César, ao perceber, por alguns sintomas que todas as mulheres conhecem, que ele fora lá mais pela mercadora do que pela mercadoria. Ele ditou o nome e o endereço à senhorita, que se mostrou muito indiferente à admiração do freguês depois de feita a compra. O pobre caixeiro tivera pouco que fazer para conquistar as boas graças de Úrsula e conservara-se ingênuo como um cordeiro; o amor o tornava ainda mais ingênuo, não se animou a dizer uma palavra sequer e retirou-se demasiadamente deslumbrado para notar a indiferença que sucedia ao sorriso daquela sereia comercial.

Durante oito dias foi, todas as noites, postar-se diante do Pequeno Marinheiro, implorando um olhar como um cão implora um osso à porta duma cozinha, indiferente às zombarias que se permitiam os caixeiros e as moças, afastando-se com humildade para deixar passar os compradores ou os transeuntes, atento aos menores movimentos da loja. Alguns dias mais tarde, entrou novamente no paraíso onde estava seu anjo, menos para comprar lenços do que para comunicar-lhe uma ideia luminosa.

— Se a senhorita precisar de perfumarias, terei prazer em mandar-lhe algumas — disse ele, ao pagar.

Constança Pillerault recebia diariamente brilhantes propostas, nas quais nunca figurava o casamento; e, embora seu coração fosse tão puro como era alvo seu rosto, não foi senão depois de seis meses de marchas e contramarchas, nas quais César demonstrou seu incansável amor, que ela se dignou aceitar as atenções de César, mas sem se comprometer, prudência aconselhada pelo número infinito de admiradores, comerciantes de vinho por atacado, ricos botequineiros e outros, que lhe faziam a corte. O apaixonado recorrera ao auxílio do tutor de Constança, o sr. Cláudio José Pillerault, então comerciante de ferragens nos Quai de la Ferraille e que ele acabara por descobrir entregando-se à espionagem subterrânea que distingue o verdadeiro amor.

A rapidez desta narrativa obriga-nos a silenciar as delícias do amor parisiense inocente, a calar as prodigalidades peculiares aos caixeiros: presentes dos primeiros melões da estação, finos jantares no Vénua[244] seguidos de teatro, excursões ao campo em fiacre, nos domingos. Sem ser propriamente um belo rapaz, César não tinha nada em sua pessoa que o impedisse de ser amado. A vida em Paris e a permanência numa loja escura haviam feito desaparecer a vivacidade da sua tez de campônio. Sua abundante cabeleira negra, seu pescoço de cavalo normando, seus membros grossos, seu ar simples e honesto, tudo contribuía para torná-lo simpático. O tio Pillerault, encarregado de velar pela felicidade da filha do irmão, tomara informações: sancionou as intenções do turreniano. Em 1800, no belo mês de maio, a srta. Pillerault consentiu em desposar César Birotteau, que desmaiou de alegria quando, sob uma tília, em Sceaux, Constança-Bárbara-Josefina o aceitou para esposo.

— Minha filha — disse o sr. Pillerault —, conseguiste um bom marido, ele tem um coração nobre e sentimentos de dignidade: é reto como o vime e casto como um Menino Jesus, enfim, é o rei dos homens.

Constança renunciou definitivamente aos brilhantes futuros com que, como todas as empregadas de lojas, sonhara algumas vezes: quis ser uma mulher honesta, uma boa dona de casa e adotou uma existência de acordo com o religioso programa da classe média. Esse papel, aliás, era mais compatível com as suas ideias do que as perigosas vaidades que seduzem tantas jovens imaginações parisienses.

De inteligência estreita, Constança era o tipo da pequeno-burguesa que vive a se queixar do trabalho, que começa recusando o que deseja e se zanga quando é apanhada pela palavra, cuja atividade inquieta abrange a cozinha e o caixa, os mais sérios negócios e os invisíveis remendos a fazer na roupa interior; que ama resmungando, não concebe senão as ideias mais simples, o dinheiro miúdo do espírito, raciocina sobre tudo, tem medo de tudo, calcula tudo e sempre está pensando no futuro. Sua beleza fria, mas cândida, seu ar comovedor, sua mocidade impediram Birotteau de reparar nos defeitos, compensados, aliás, por essa delicada probidade natural às mulheres, por uma ordem absoluta, pelo fanatismo do trabalho e pelo talento para vender. Constança contava, então, dezoito anos e possuía onze mil francos.

César, a quem o amor inspirou a mais intensa ambição, adquiriu as existências da Rainha das Rosas e as transportou para uma bela casa perto da Place Vendôme. Com vinte e um anos apenas, casado com uma bela mulher adorada, proprietário dum estabelecimento pelo qual pagara somente três quartos do valor, era natural que visse, como realmente viu, um belo futuro pela frente, sobretudo ao avaliar o caminho percorrido desde o ponto de partida. Roguin, tabelião dos Ragon e redator do contrato de casamento, deu sábios conselhos ao novo perfumista, impedindo-o de completar o pagamento da loja com o dote da esposa.

— Guarde algum dinheiro para quando aparecer um bom negócio — disse-lhe.

Birotteau olhou para o tabelião com admiração, tomou o hábito de consultá-lo e se fez seu amigo. Como Ragon e Pillerault, adquiriu tamanha confiança no tabelionato que se entregava a Roguin sem se permitir qualquer suspeita. Graças a esse conselho, César, munido dos onze mil francos de Constança para se iniciar nos negócios, não teria trocado seu haver pelo do primeiro-cônsul, por mais brilhante que lhe parecesse o haver de Napoleão. No começo, Birotteau teve apenas uma cozinheira, instalou-se no entressolo situado por cima da loja, num quartinho muito bem-arranjado por um tapeceiro e onde os recém-casados iniciaram uma eterna lua de mel. A sra. Birotteau surgiu no balcão como uma maravilha. Sua beleza famosa exerceu enorme influência sobre as vendas, e entre os elegantes do Império só se falava na bela sra. Birotteau. Se César foi acusado de realismo, todos fizeram justiça à sua probidade; se alguns comerciantes vizinhos invejaram sua sorte, ele foi considerado digno dela. O tiro que recebera na escadaria de Saint-Roch deu-lhe uma reputação de homem envolvido nos segredos da política e de pessoa corajosa, muito embora não tivesse a mínima coragem militar no coração nem qualquer ideia política no cérebro. Em consideração a esses títulos, as pessoas de bem do distrito nomearam-no capitão da Guarda Nacional; foi, porém, destituído por Napoleão, que, segundo Birotteau, o odiava em virtude do seu encontro em vendemiário. César adquiriu, assim, por pouco preço, uma fama de perseguição que o tornou interessante aos olhos dos oposicionistas e lhe conferiu certa importância.

Eis o que foi a sorte desse casal, constantemente venturoso pelos sentimentos e agitado unicamente pelas ansiedades comerciais.

Durante o primeiro ano, César Birotteau pôs a mulher a par da venda e das particularidades das perfumarias, tarefa na qual se acertou admiravelmente bem; parecia ter sido criada e trazida ao mundo para tratar com os fregueses. Terminado o ano, o balanço apavorou o ambicioso perfumista: deduzidas as despesas, levaria vinte anos para ganhar o modesto capital de cem mil francos em que calculara sua felicidade! Resolveu, então, alcançar a fortuna mais rapidamente e, a princípio, teve a ideia de acrescentar a fabricação à venda a varejo. Embora contra a vontade da esposa, ele alugou um galpão com um terreno no Faubourg du Temple e mandou pintar uma tabuleta com letras grandes: fábrica de césar birotteau. Subornou e levou para sua companhia um operário de Grasse,[245] com quem constituiu uma sociedade para a fabricação de sabonetes, essências e água-de-colônia. Sua sociedade com o operário não durou mais de seis meses e terminou com perdas que ele suportou sozinho. Sem desanimar, Birotteau quis obter resultado a qualquer preço, unicamente para não ser censurado pela esposa, a quem mais tarde confessou que naquela época de desespero a cabeça lhe fervia como uma marmita e que em diversas ocasiões, se não fossem seus sentimentos religiosos, teria se atirado ao Sena.

Desolado com algumas experiências infrutíferas, passeava um dia ao longo dos bulevares antes do jantar, pois o passeante parisiense é tão comumente um homem desesperado como um vadio. Entre alguns livros de seis sous espalhados num cesto no chão, seus olhos foram atraídos por um título amarelo de poeira:

 

abdeker

ou

a arte de conservar a beleza[246]

 

Apanhou o pretenso livro árabe, espécie de romance escrito por um médico do século passado, e deu com uma página que tratava de perfumes. Encostado a uma árvore do bulevar para folhear o livro, leu uma nota na qual o autor descrevia a natureza da derme e da epiderme e demonstrava que tal pomada ou tal sabonete produziam um efeito muitas vezes contrário ao que deles se esperava, pois a pomada e o sabonete tonificavam uma pele que precisava ser relaxada ou relaxavam uma pele que necessitava de tônicos. Birotteau comprou o livro, no qual viu uma fortuna. Pouco confiante, contudo, nas suas luzes, foi à casa dum famoso químico, Vauquelin, a quem pediu com toda a naturalidade instruções sobre a maneira de conseguir um duplo cosmético que produzisse efeitos apropriados aos diversos tipos da epiderme humana. Os verdadeiros sábios, esses homens realmente grandes no sentido de que nunca obtêm em vida o renome pelo qual seus imensos trabalhos ignorados deviam ser pagos, são quase todos prestativos e sorriem dos pobres de espírito. Assim, Vauquelin protegeu o perfumista e permitiu-lhe que se intitulasse inventor duma pomada para branquear as mãos, cuja composição lhe indicou.

Birotteau deu a esse cosmético o nome de Dupla Pomada das Sultanas. A fim de completar a obra, aplicou o processo da pomada para as mãos numa água para o rosto a que denominou Água Carminativa. Imitou, na sua indústria, o sistema do Pequeno Marinheiro e foi o primeiro entre os perfumistas a usar esse luxo de cartazes, de anúncios e de meios de publicidade que se denominam, talvez injustamente, charlatanismo.

A Pomada das Sultanas e a Água Carminativa foram introduzidas no mundo galante e comercial por meio de cartazes coloridos encimados por estas palavras:

 

aprovadas pelo instituto!

 

Essa fórmula, empregada pela primeira vez, teve um efeito mágico. Não só a França, mas o continente inteiro foi coberto de cartazes amarelos, vermelhos e azuis pelo soberano da Rainha das Rosas, que tinha em depósito, fornecia e fabricava, a preços módicos, tudo quanto dizia respeito ao ramo. Numa época em que só se falava no Oriente, dar a um cosmético o nome de Pomada das Sultanas, prevendo a magia que exerceriam tais palavras num país onde todos os homens têm tanta vontade de ser sultão como as mulheres de ser sultana, era uma inspiração que tanto podia ocorrer a um homem vulgar como a um homem inteligente; mas o público, julgando, como sempre, pelos resultados, passou a considerar Birotteau um homem superior, comercialmente falando, tanto mais que ele mesmo redigiu um prospecto cuja ridícula fraseologia constituiu um elemento de sucesso, pois, na França, o povo somente acha graça das coisas e dos homens que o interessam e ninguém se interessa por aquilo que não triunfa. Embora Birotteau não tivesse precisado fingir para redigir tais asneiras, acharam que ele tinha grande talento para passar deliberadamente por asneirento.

Um exemplar desses prospectos foi encontrado, não sem dificuldade, na casa Popinot e Cia., droguistas, à Rue des Lombards. Essa peça curiosa pertence ao número daquelas que, num círculo mais elevado, os historiadores denominam peças justificativas. Ei-la.


dupla pomada das sultanas e água carminativa

DE CÉSAR BIROTTEAU,

 

DESCOBERTA MARAVILHOSA

APROVADA PELO INSTITUTO DA FRANÇA!

 

Há muito tempo que uma pomada para as mãos e uma água para o rosto que dessem resultado superior ao obtido pela água-de-colônia nos cuidados da pele vinham sendo geralmente desejadas pelos dois sexos na Europa. Após ter consagrado longas vigílias ao estudo da derme e da epiderme nos dois sexos, que, tanto um como o outro, dão, com toda a razão, o maior apreço à suavidade, à maciez, ao brilho, ao aveludado da pele, o sr. Birotteau, perfumista largamente conhecido na capital e no estrangeiro, descobriu uma pomada e uma água justamente denominadas, desde sua aparição, maravilhosas, pelos elegantes e pelas elegantes de Paris. Com efeito, esta pomada e esta água possuem admiráveis propriedades para agir sobre a pele sem enrugá-la prematuramente, consequência infalível das drogas que inconsideradamente têm sido usadas até agora e inventadas por ignorantes ambiciosos. Esta descoberta baseia-se na classificação dos temperamentos, que se dividem em duas grandes categorias indicadas pela cor da pomada e da água, que são cor-de-rosa para a derme e a epiderme das pessoas de constituição linfática e brancas para as das pessoas de temperamento sanguíneo.

Esta pomada é denominada Pomada das Sultanas porque já fora descoberta por um médico árabe para uso nos serralhos. Foi aprovada pelo Instituto de acordo com o parecer do nosso ilustre químico Vauquelin, assim como a água, cuja fórmula obedece aos mesmos princípios que ditaram a composição da Pomada.

Esta preciosa Pomada, que exala os mais suaves perfumes, apaga as sardas mais rebeldes, clareia as epidermes mais recalcitrantes e elimina os suores das mãos de que tanto se queixam as mulheres e os homens.

A Água Carminativa faz desaparecer essas pequenas espinhas que, em certos momentos, acometem inopinadamente as mulheres e contrariam seus projetos de ir a um baile; refresca e reaviva as cores abrindo ou fechando os poros segundo as exigências do temperamento; ela já é tão conhecida por sua propriedade de deter os ultrajes do tempo que muitas damas, por gratidão, a denominaram A Amiga da Beleza!

A água-de-colônia é pura e simplesmente um perfume banal sem eficácia especial, ao passo que a Dupla Pomada das Sultanas e a Água Carminativa são duas composições operantes, duma força motriz que age, sem perigo, sobre as funções internas, secundando-as; seus odores, essencialmente balsâmicos e dotados duma faculdade recreativa, alegram admiravelmente o coração e o cérebro, dão encanto às ideias e as estimulam; são tão admiráveis por seu mérito como por sua simplicidade, enfim, constituem um atrativo a mais oferecido às mulheres e um meio de sedução colocado à disposição dos homens.

O uso diário da Água dissipa a ardência causada pela navalha; preserva, igualmente, os lábios de gretas e os mantêm vermelhos; seu emprego continuado apaga naturalmente as sardas e acaba restituindo o tom à pele. Esses resultados traduzem sempre, no homem, um perfeito equilíbrio entre os humores, o que tende a libertar as pessoas sujeitas à enxaqueca dessa terrível moléstia. Finalmente, a Água Carminativa, que pode ser empregada pelas mulheres em todos os seus cuidados da pele, evita as afecções cutâneas sem prejudicar a transpiração dos tecidos, ao mesmo tempo que lhes comunica um aveludado persistente.

Os pedidos, livres de porte, devem ser dirigidos ao sr. César Birotteau, sucessor de Ragon, antigo perfumista da rainha Maria Antonieta, na Rainha das Rosas, Rue Saint-Honoré, em Paris, próximo à Place Vendôme.

 

O preço do pote de Pomada é de três francos e o do vidro de Água de seis francos.

O sr. César Birotteau, a fim de evitar as imitações, previne o público de que a Pomada vem envolta em papel com a sua assinatura e que os vidros trazem seu monograma gravado.

 

O êxito foi devido, sem que César desse por isso, a Constança, que lhe aconselhou enviar a Água Carminativa e a Pomada das Sultanas em caixas a todos os perfumistas da França e do estrangeiro, oferecendo-lhes um lucro de trinta por cento se quisessem adquirir os dois artigos em grosas. A Pomada e a Água eram, realmente, melhores do que os cosméticos similares e seduziam os ignorantes pela distinção estabelecida entre os temperamentos: os quinhentos perfumistas da França, atraídos pelo lucro, passaram a adquirir atualmente de Birotteau mais de trezentas dúzias de Pomada e de Água cada um e essa procura lhe proporcionou lucros que, embora restritos quanto ao preço do artigo, foram enormes devido à quantidade das compras. César pôde então comprar os casebres e os terrenos do Faubourg du Temple, lá construiu vastas fábricas e decorou magnificamente sua loja da Rainha das Rosas. Sua vida doméstica desfrutou as pequenas venturas da abastança e sua mulher passou a ter menos medo.

Em 1810, a sra. Birotteau previu uma alta nos aluguéis e levou o marido a fazer-se principal locatário da casa da qual ocupavam a loja e o entressolo e a transferir seu apartamento para o primeiro andar. Uma feliz circunstância fez Constança fechar os olhos diante das loucuras que Birotteau praticou, por ela, no apartamento. O perfumista acabava de ser eleito juiz do Tribunal de Comércio. Sua rígida probidade, sua cortesia proverbial e a consideração que desfrutava valeram-lhe essa dignidade, que, daí por diante, o incluiu entre os comerciantes notáveis de Paris. Para aumentar seus conhecimentos, passou a levantar-se às cinco da manhã a fim de ler os anais de jurisprudência e os livros que tratavam dos litígios comerciais. Seu sentimento de justiça, sua retidão, sua boa vontade, qualidades essenciais na apreciação das dificuldades submetidas às sentenças consulares, tornaram-no um dos juízes mais respeitados. Seus defeitos contribuíram igualmente para sua reputação. Reconhecendo sua inferioridade, César subordinava com satisfação suas opiniões às dos colegas, que se sentiam lisonjeados por serem tão atentamente escutados por ele: uns requestavam a silenciosa aprovação dum homem considerado muito perspicaz, em sua qualidade de ouvinte; os outros, encantados com sua modéstia e sua delicadeza, o elogiavam. Os que estavam sob sua jurisdição louvavam sua solicitude, seu espírito conciliador, e ele foi muitas vezes tomado como árbitro em contestações nas quais seu bom senso lhe sugeria uma justiça de cádi. Enquanto duraram suas funções, compôs para seu uso uma linguagem recheada de lugares-comuns, cheia de axiomas e de cálculos traduzidos em frases harmoniosas que, brandamente pronunciadas, soavam aos ouvidos das pessoas superficiais com eloquência. Dessa maneira, agradou à maioria naturalmente medíocre, perpetuamente condenada ao trabalho, aos espíritos vulgares. César perdia tanto tempo no tribunal que sua esposa obrigou-o a recusar, daí por diante, essa cara honraria.

Em 1813, graças à sua constante união e após ter vivido obscuramente, o casal viu iniciar-se uma era de prosperidade que aparentemente nada haveria de interromper. O sr. e a sra. Ragon, seus predecessores, seu tio Pillerault, o tabelião Roguin, os Matifat, droguistas da Rue des Lombards, fornecedores da Rainha das Rosas; José Lebas, comerciante de fazendas, sucessor dos Guillaume na casa do “Chat-qui-pelote”, um dos talentos da Rue Saint-Denis; o juiz Popinot, irmão da sra. Ragon; Chiffreville, da casa Protez & Chiffreville; o sr. e a sra. Cochin, funcionários do Tesouro e comanditários dos Matifat; o padre Loraux, confessor e diretor espiritual dessa sociedade; e mais algumas pessoas constituíam o círculo dos seus amigos.

A despeito dos sentimentos realistas de Birotteau, a opinião pública era-lhe favorável e ele passava por ser muito rico, embora não possuísse ainda mais de cem mil francos além da sua casa de comércio, pois a regularidade dos seus negócios, sua pontualidade, seu hábito de nada dever, de nunca descontar os títulos e de, pelo contrário, aceitar títulos garantidos daqueles a quem podia ser útil e sua solicitude granjearam-lhe enorme crédito. Além disso, ganhara realmente muito dinheiro; mas suas construções e suas fábricas haviam absorvido grande parte dele. Sua casa custava-lhe cerca de vinte mil francos por ano. E, finalmente, a educação de Cesarina, filha única idolatrada tanto por Constança como por ele, exigia grandes despesas. Nem o marido nem a mulher olhavam para o dinheiro quando se tratava de dar uma alegria à filha, de quem não se quiseram separar. Imaginai a satisfação do pobre camponês enriquecido, ao ouvir sua encantadora Cesarina repetir ao piano uma sonata de Steibelt[247] ou cantar uma romança; ao vê-la escrever corretamente a língua francesa, ler Racine pai e filho,[248] descrever-lhes as belezas, desenhar uma paisagem ou fazer uma sépia! Reviver numa flor tão bela, tão pura, que ainda não deixara a haste materna, um anjo, enfim, cujas graças nascentes, cujos primeiros progressos haviam sido apaixonadamente acompanhados, admirados! Uma filha única, tão verdadeiramente senhorita que era incapaz de menosprezar o pai ou de escarnecer da sua falta de instrução!

Quando César chegou a Paris, sabia ler, escrever e contar, mas sua instrução não fora além disso, pois sua vida laboriosa não lhe permitira adquirir ideias e conhecimentos alheios ao comércio de perfumarias. Devido ao permanente contato com pessoas a quem as ciências e as letras eram indiferentes, e cuja instrução não ia além do âmbito de suas especialidades, e não dispondo de tempo para entregar-se a estudos elevados, o perfumista tornou-se um homem prático. Adotou assim, necessariamente, o modo de falar, os erros e as opiniões do burguês de Paris que admira Molière, Voltaire e Rousseau por ouvir dizer, que compra suas obras, mas não as lê; que sustenta que a pronúncia exata de armário é armário, pois significa lugar para guardar armas e que só ultimamente vem sendo usado para guardar roupas e outros objetos de uso. Para eles, Potier, Talma e a srta. Mars[249] eram dez vezes milionários e não viviam como as outras criaturas: o grande trágico comia carne crua e a srta. Mars mandava fazer guisado de pérolas para imitar uma famosa atriz egípcia. O imperador tinha no colete bolsos de couro para poder servir-se de rapé aos punhados e subia a cavalo, galopando, as escadarias do laranjal de Versailles. Os escritores e os artistas morriam no hospital em consequência de suas extravagâncias; eram todos ateus e a gente devia evitar de recebê-los em casa. José Lebas citava apavorado a história do casamento da sua cunhada Agostinha com o pintor Sommervieux.[250] Os astrônomos viviam de aranhas. Esses pontos luminosos de seus conhecimentos em língua francesa, em arte dramática, em política, em literatura, em ciência mostram até onde vão essas inteligências burguesas. Um poeta, ao passar pela Rue des Lombards, pode sonhar com a Ásia ao sentir algum perfume; admira dançarinas numa estalagem para caravaneiros no deserto enquanto aspira vetiver; impressionado com o brilho da cochonilha, descobre nela os poemas brâmanes, suas religiões e suas castas e, esbarrando contra o marfim bruto, monta no dorso dos elefantes, numa gaiola de musselina, e ali faz o amor como o rei de Lahore. O pequeno comerciante, porém, ignora de onde vêm e onde se produzem os artigos com os quais trabalha. O perfumista Birotteau não sabia patavina de história natural nem de química. Vendo em Vauquelin um grande homem, considerava-o uma exceção, era da força daquele merceeiro aposentado que resumia assim uma discussão sobre a origem do chá:

— O chá nos chega por dois únicos meios: pelos comboios e pelo Havre — dizia, com uma expressão ladina.

Segundo Birotteau, o aloés e o ópio só existiam à Rue des Lombards, a chamada água de rosa de Constantinopla era fabricada, como a água-de-Colônia, em Paris. Esses nomes de lugares eram mentiras inventadas para agradar aos franceses, que não suportam as coisas do seu país. Um comerciante francês devia apresentar sua descoberta como inglesa a fim de dar-lhe prestígio, do mesmo modo que na Inglaterra os droguistas atribuem as suas à França. César, contudo, nunca se mostrava completamente tolo nem estúpido: a honestidade e a bondade refletiam-se sobre os atos da sua vida, tornando-os respeitáveis, pois uma bela ação faz aceitar todas as ignorâncias possíveis. Seu constante sucesso deu-lhe arrojo. Em Paris, o arrojo é interpretado como um símbolo de poder. Vendo-o diferente do que fora nos três primeiros anos de vida conjugal, a esposa foi acometida de contínuas apreensões: ela representava, naquela união, a parte sagaz e previdente, a dúvida, a oposição, o receio, como César representava a audácia, a ambição, a ação, o gosto pela aventura. A despeito das aparências, o comerciante era medroso, ao passo que a esposa possuía, na realidade, paciência e coragem. Assim, um homem pusilânime, medíocre, sem instrução, sem ideias, sem conhecimentos, sem energia, destinado a fracassar em qualquer iniciativa, conseguiu, graças à habilidade, ao sentimento de justiça, à bondade de uma alma verdadeiramente cristã e ao amor pela única mulher que possuiu, passar por um homem notável, corajoso e resoluto. O público via apenas os resultados. Com exceção de Pillerault e do juiz Popinot, as pessoas de suas relações conheciam-no apenas superficialmente e não podiam formar um juízo exato a seu respeito; por outro lado, os vinte ou trinta amigos que compunham sua sociedade se diziam as mesmas tolices, repetiam os mesmos lugares-comuns, consideravam-se todos criaturas superiores em sua esfera. As mulheres faziam alarde de bons jantares e de vestidos e resumiam sua palestra numa frase desdenhosa sobre o marido; a sra. Birotteau era a única que tinha o bom senso de tratar o seu com dignidade e respeito em público: via nele o homem que, apesar de suas secretas incapacidades, ganhara a fortuna que possuíam e de cuja consideração participava. Apenas se indagava, às vezes, o que seria do mundo se todos os chamados homens superiores fossem iguais ao seu marido. Essa conduta contribuía poderosamente para manter a respeitosa estima que o esposo desfrutava, num meio onde as mulheres têm uma enorme tendência para desconsiderar os maridos e queixar-se deles.

Os primeiros dias do ano de 1814, tão fatal à França imperial, foram assinalados, para os Birotteau, por dois acontecimentos pouco significativos para qualquer casal, mas suficientes para impressionar almas simples como as de César e da esposa, que, dirigindo um olhar para o passado, nele viam apenas doces emoções. Haviam tomado como primeiro caixeiro um rapaz de vinte e dois anos, chamado Ferdinando du Tillet. Esse moço, que saíra duma casa de perfumarias onde lhe haviam recusado interessá-lo nos lucros e que passava por um talento, fez grande esforço para empregar-se na Rainha das Rosas, cujas pessoas, forças e costumes interiores conhecia. Birotteau acolheu-o e deu-lhe mil francos de ordenado com a intenção de torná-lo seu sucessor. Ferdinando teve tamanha influência sobre os destinos da família que se torna necessário dizer alguma coisa a seu respeito.

A princípio, ele se chamava simplesmente Ferdinando, sem nome de família. Essa anonímia pareceu-lhe uma imensa vantagem numa época em que Napoleão andava no encalço das famílias para arranjar soldados. Ele, contudo, nascera em algum lugar, como fruto de alguma cruel e voluptuosa fantasia. Eis as escassas informações conseguidas a respeito do seu estado civil. Em 1793, uma pobre moça de Tillet, lugarejo situado perto dos Andelys, deu à luz uma criança, à noite, no jardim do cura da igreja de Tillet e, depois de bater à porta da casa, foi afogar-se no rio. O bom padre recolheu o menino, deu-lhe o nome do santo daquele dia e criou-o como se fosse seu filho. O cura morreu em 1804, sem deixar uma herança suficiente para continuar a educação que iniciara. Ferdinando, atirado em Paris, levou uma vida de pirata cujos azares poderiam tê-lo levado ao cadafalso ou à fortuna, ao tribunal, ao Exército, ao comércio ou à situação de criado. Ferdinando, obrigado a viver como um verdadeiro Fígaro,[251] fez-se caixeiro-viajante e, depois, empregado de uma perfumaria em Paris, para onde voltou após ter percorrido a França, conhecido a sociedade, e tomado a resolução de lá vencer a qualquer preço. Em 1813, achou necessário verificar sua idade e conseguir um estado civil e requereu ao tribunal dos Andelys uma sentença que fez passar sua certidão de batismo do registro do presbitério para o do registro civil, e obteve uma retificação requerendo que se acrescentasse ao seu nome o de Du Tillet, sob o qual se tornara conhecido, autorizado pelo fato de ter sido enjeitado naquela comuna.

Sem pai nem mãe, tendo como tutor apenas o procurador imperial, sozinho no mundo, não tendo que dar satisfação a ninguém, tratou a sociedade rudemente ao sentir a sua hostilidade. Não conheceu outro guia além do interesse, e todos os meios de ganhar dinheiro lhe pareceram bons. Esse normando, dotado de perigosas capacidades, aliava a seu desejo de vencer os amargos defeitos censurados, com ou sem razão, nos naturais de sua província. Suas maneiras hipócritas mascaravam sua índole agressiva, pois era o mais rude espadachim judiciário; mas, se contestava audaciosamente o direito alheio, não cedia nada do seu; vencia o adversário pelo tempo, fatigava-o por meio de uma inflexível vontade. Seu principal mérito consistia no dos intrigantes da antiga comédia: possuía a mesma fertilidade de recursos, a mesma habilidade para contornar o injusto, a mesma preocupação de tomar para si tudo quanto é bom. Esperava, finalmente, aplicar à sua indigência a frase que o padre Terray[252] dizia em nome do Estado, para tornar-se mais tarde, depois de rico, um homem de bem. Dotado duma atividade apaixonada, duma intrepidez militar para exigir de qualquer um tanto boa como má ação, justificando sua exigência pela teoria do interesse pessoal, desprezava tanto os homens, julgando-os todos venais, era tão pouco escrupuloso na escolha dos meios, achando que todos eram bons, e considerava tão convictamente o triunfo e o dinheiro como a absolvição do mecanismo moral que, mais cedo ou mais tarde, teria de vencer. Um homem assim, colocado entre as galés e os milhões, tinha de ser vingativo, despótico, rápido em suas decisões, mas dissimulado como um Cromwell que quisesse decapitar a probidade. Sua perspicácia escondia-se sob uma índole trocista e frívola. Embora simples caixeiro de perfumaria, sua ambição não tinha limites; apreendera a sociedade inteira num olhar rancoroso, dizendo para si mesmo: “Serás minha!”. Fizera um juramento íntimo de não se casar antes dos quarenta anos. E manteve a palavra.

Fisicamente, Ferdinando era um rapaz esbelto, de aspecto agradável e maneiras dúbias que lhe permitiam adaptar-se ao diapasão de qualquer meio, de acordo com a necessidade. Seu rosto fino agradava à primeira vista; mas, conhecendo-o melhor, podiam-se surpreender nele expressões estranhas como as que aparecem nos rostos das pessoas que vivem mal consigo mesmas ou cuja consciência resmunga em certas ocasiões. Sua tez muito vermelha sob a pele fofa dos normandos tinha um tom áspero. A expressão de seus olhos garços recobertos duma lâmina de prata era vaga, mas tornava-se terrível quando caía diretamente sobre a vítima. Sua voz parecia velada como a dum homem que houvesse falado durante muito tempo. Seus lábios finos não eram destituídos de graça; mas seu nariz pontudo, sua fronte ligeiramente arqueada denunciavam sua origem plebeia. Finalmente, seus cabelos, duma coloração semelhante à dos cabelos pintados de preto, mostravam um mestiço social que devia a inteligência a um fidalgo libertino, a baixeza a uma camponesa seduzida, os conhecimentos a uma educação incompleta e os vícios ao seu estado de abandono.

Birotteau inteirara-se com o mais profundo espanto de que seu caixeiro se vestia com demasiada elegância, voltava para casa muito tarde e ia aos bailes dos banqueiros e dos tabeliães. Esses hábitos desgostaram a César; segundo seu modo de pensar, os caixeiros deviam estudar os livros da casa e pensar exclusivamente no seu ramo de atividade. O perfumista escandalizou-se com ninharias, repreendeu suavemente Du Tillet por usar roupa interior demasiado fina e ter cartões de visita nos quais seu nome estava gravado: f. du tillet, fórmula que, de acordo com a sua jurisprudência comercial, era privativa da gente da alta sociedade. Ferdinando fora para a casa daquele Orgon com intenções de Tartufo:[253] fez a corte à sra. César, tentou seduzi-la e formou um juízo a respeito do patrão igual ao que ela formara, mas com espantosa rapidez. Embora discreto, reservado, não dizendo senão o que queria dizer, Du Tillet revelou suas opiniões sobre os homens e a vida de maneira a assustar uma mulher medrosa que partilhava da devoção religiosa do marido e considerava um crime causar o mais leve mal ao próximo. Apesar da habilidade empregada pela sra. Birotteau, Du Tillet percebeu o desprezo que inspirava. Constança, a quem Ferdinando escrevera algumas cartas de amor, notou logo uma alteração nas maneiras do caixeiro, que assumiu atitudes arrogantes diante dela para dar a impressão de que havia alguma coisa entre ambos. Sem informar o marido de suas secretas razões, aconselhou-o a despedir Ferdinando. Birotteau concordou com a mulher nesse ponto. A dispensa do caixeiro foi resolvida. Três dias antes de despedi-lo, num sábado à noite, Birotteau fez a conta mensal do caixa e deu pela falta de três mil francos. Sua consternação foi horrível, menos pela perda do que pelas suspeitas que pairavam sobre três caixeiros, uma cozinheira, um empregado da loja e operários qualificados. A quem culpar? A sra. Birotteau não abandonava o balcão. O encarregado da caixa era um sobrinho do sr. Ragon, chamado Popinot, rapaz de dezenove anos, que morava com eles e era a probidade em pessoa. Seus cálculos, em desacordo com a quantia em caixa, acusavam o déficit e indicavam que a subtração fora feita depois do balanço. Os dois esposos resolveram calar-se e vigiar a casa.

No dia seguinte, domingo, eles recebiam os amigos. As famílias que compunham essa espécie de sociedade reuniam-se cada domingo na casa duma delas. Quando foram jogar cartas, o tabelião Roguin pôs sobre a mesa uns velhos luíses que a sra. Birotteau recebera uns dias antes duma recém-casada, a sra. d’Espard.

— Você andou roubando algum cofre! — disse rindo o perfumista.

Roguin declarou ter ganho aquele dinheiro na casa dum banqueiro, jogando com Du Tillet, que confirmou a resposta do tabelião sem corar. O perfumista, porém, tornou-se escarlate. Terminada a reunião, quando Ferdinando ia deitar-se, Birotteau levou-o à loja, pretextando falar-lhe sobre negócios.

— Du Tillet — disse-lhe César —, faltam três mil francos no caixa e não posso suspeitar de ninguém; a circunstância daqueles luíses antigos fala demasiado contra você para que eu não lhe toque nisso; assim, não nos deitaremos enquanto não tivermos encontrado o engano, pois, afinal, isso só pode ser um engano. É bem possível que você tenha retirado algum dinheiro por conta do ordenado.

Du Tillet disse que efetivamente retirara os luíses. O perfumista consultou a escrituração e verificou que a retirada não fora debitada ao caixeiro.

— Eu estava com pressa e teria de pedir a Popinot que debitasse a quantia — disse Ferdinando.

— É justo — disse Birotteau, desconcertado com a fria despreocupação do normando, que conhecia muito bem as pessoas em cuja casa se introduzira com a intenção de ganhar dinheiro.

O perfumista e o caixeiro passaram a noite fazendo verificações, que o digno comerciante sabia serem inúteis. Andando de um lado para outro, César meteu três notas de mil francos no caixa, colando-as à tampa da gaveta, depois mostrou-se extenuado, fingiu adormecer e começou a ressonar. Du Tillet despertou-o triunfalmente e manifestou uma alegria exagerada por ter esclarecido o engano. No dia seguinte, Birotteau censurou publicamente o pequeno Popinot e a esposa e mostrou-se encolerizado com a negligência deles. Quinze dias mais tarde, Ferdinando du Tillet ingressou numa casa de câmbio. A perfumaria não lhe convinha mais, disse, e queria estudar o serviço bancário. Ao sair da casa de Birotteau, Du Tillet referiu-se à sra. César de maneira a fazer crer que o patrão o despedira por ciúme.

Alguns meses depois, Du Tillet foi à casa do antigo patrão e pediu-lhe uma caução de vinte mil francos a fim de completar as garantias exigidas por um negócio que o lançaria no caminho da fortuna. Ao notar a surpresa de Birotteau diante desse descaramento, Du Tillet franziu as sobrancelhas e perguntou-lhe se não tinha confiança nele. Matifat e dois comerciantes que estavam tratando de negócios com Birotteau perceberam a indignação do perfumista, que reprimiu a cólera em sua presença. Era possível que Du Tillet se tivesse tornado honesto, sua falta poderia ter sido causada por uma amante desesperada ou por alguma tentativa no jogo e a reprovação pública duma pessoa de bem atiraria a uma estrada de crimes e de desgraças um homem ainda moço e que talvez estivesse arrependido. Aquele anjo tomou então a pena e avalizou as letras de Du Tillet, dizendo-lhe que era com grande prazer que prestava aquele pequeno serviço a um rapaz que lhe fora muito útil. O sangue subiu-lhe ao rosto ao pregar essa mentira oficiosa. Du Tillet não pôde enfrentar o olhar do homem e certamente lhe votou, naquele momento, o ódio sem tréguas que os anjos das trevas conceberam contra os anjos de luz.

Du Tillet sustentou tão bem a maromba ao dançar na corda bamba das especulações financeiras que conseguiu conservar-se elegante e rico na aparência antes de sê-lo na realidade. Logo que conseguiu um cabriolé não o abandonou mais; manteve-se na esfera elevada das pessoas que misturam os prazeres com os negócios, os açambarcadores da época fazendo do saguão da Ópera a sucursal da Bolsa. Graças à sra. Roguin, que conheceu na casa de Birotteau, insinuou-se rapidamente entre as pessoas mais altamente colocadas no mundo das finanças.

Ferdinando du Tillet atingira uma prosperidade que nada tinha de falsa. Nas melhores relações com a Casa Nucingen, onde Roguin o introduzira, aliara-se imediatamente aos irmãos Keller e ao alto mundo bancário. Ninguém sabia de onde lhe vinham os imensos capitais com que girava, mas atribuíam sua boa sorte à inteligência e à probidade.

A Restauração fez de César um ilustre personagem e o turbilhão das crises políticas naturalmente apagou em sua memória a lembrança desses dois acidentes domésticos. A imutabilidade de suas convicções realistas, às quais se tornara muito indiferente depois do ferimento, mas nas quais persistira por decoro, a recordação de sua abnegação em vendemiário granjearam-lhe altas proteções, justamente porque não pediu nada. Foi nomeado comandante de batalhão na Guarda Nacional, embora fosse incapaz de repetir a mais simples voz de comando. Em 1815, Napoleão, sempre inimigo de Birotteau, o destituiu. Durante os Cem Dias, Birotteau tornou-se o alvo de ódio dos liberais do seu bairro, pois somente em 1815 começaram as cisões políticas entre os comerciantes, até então unânimes nos seus anseios de tranquilidade, tão necessária aos negócios. Na Segunda Restauração, o governo real teve de recompor o órgão municipal. O prefeito quis nomear Birotteau maire. Graças à esposa, o perfumista aceitou apenas o lugar de suplente, que o punha menos em evidência. Essa modéstia aumentou imensamente a estima que geralmente lhe votavam e granjeou-lhe a amizade do maire, o sr. Flamet de La Billardière. Birotteau, que o vira na Rainha das Rosas quando sua loja servia de quartel-general das conspirações realistas, tomou a iniciativa de indicá-lo ao prefeito do Sena, que o consultou sobre a escolha a fazer. O sr. e a sra. Birotteau nunca foram esquecidos nos convites do maire. Além disso, a sra. César participou frequentemente de peditórios em Saint-Roch, ao lado de senhoras da alta sociedade. De La Billardière apoiou calorosamente Birotteau quando se tratou de distribuir ao órgão municipal as cruzes que lhe eram destinadas, alegando o ferimento recebido em Saint-Roch, sua dedicação aos Bourbon e a consideração que desfrutava. O ministério, que queria distribuir fartamente a Cruz da Legião de Honra para desmoralizar a obra de Napoleão e, ao mesmo tempo, conseguir adeptos e trazer novamente para os Bourbon os diversos ramos de comércio, os homens de arte e de ciência, incluiu Birotteau na primeira promoção. Essa distinção, em harmonia com o prestígio que cercava Birotteau no bairro, colocava-o numa situação que necessariamente alargaria as ideias dum homem a quem até então tudo havia corrido favoravelmente. A notícia que o juiz lhe dera de sua promoção foi o argumento culminante que o decidiu a lançar-se à operação que acabava de expor à mulher a fim de abandonar o mais rapidamente possível a perfumaria e elevar-se às regiões da alta burguesia de Paris.

César tinha então quarenta anos. Os trabalhos da fábrica haviam-lhe dado algumas rugas prematuras e prateado ligeiramente a longa cabeleira espessa que a pressão do chapéu cingia duma faixa lustrosa. Sua testa, onde, pela maneira como se implantavam, os cabelos desenhavam cinco pontas, atestava a simplicidade da sua vida. Suas grossas sobrancelhas não assustavam, pois os olhos azuis harmonizavam-se, por sua expressão límpida e sempre franca, com sua fronte de homem de bem. O nariz, achatado na base e grosso na extremidade, dava-lhe esse ar espantado dos papa-moscas de Paris. Os lábios eram muito carnudos e o queixo largo e reto. O rosto, fortemente corado, de contornos nítidos, mostrava, pela disposição das rugas, pelo conjunto dos traços, a índole ingenuamente astuta do camponês. O corpo vigoroso, os membros grossos, as costas amplas, os pés grandes, tudo, aliás, denunciava o aldeão transplantado para Paris. As mãos largas e peludas, as falanges gordas dos dedos enrugados, as grandes unhas largas bastariam para atestar sua origem, se já não houvesse vestígios dela em toda a sua pessoa. Tinha nos lábios esse sorriso benevolente que os comerciantes adotam quando entramos em suas casas; esse sorriso comercial, porém, era a imagem de sua satisfação interior e traduzia o estado de sua alma afável. Sua desconfiança não excedia os limites dos negócios, sua esperteza o abandonava no limiar da Bolsa ou quando fechava seus livros de escrituração, pois a suspeita era para ele o mesmo que as faturas impressas, uma necessidade própria das vendas. Seu rosto exibia uma espécie de cômica segurança, de fatuidade aliada à pachorra, que lhe dava um aspecto original e evitava uma semelhança demasiadamente completa com a fisionomia vulgar do burguês parisiense. Sem esse ar de ingênuo espanto e de confiança em si mesmo, inspiraria excessivo respeito; aproximava-se, assim, dos homens, pagando sua cota-parte de ridículo. Ao falar, costumava cruzar as mãos nas costas. Quando julgava ter dito alguma coisa galante ou brilhante, erguia-se imperceptivelmente nas pontas dos pés, em dois tempos, e depois caía pesadamente sobre os calcanhares, como se quisesse apoiar a frase. Às vezes, no aceso duma discussão, fazia uma súbita meia-volta, dava alguns passos como se fosse buscar argumentos e depois voltava para o adversário num movimento brusco. Nunca interrompia ninguém e frequentemente era vítima dessa exata observância das conveniências, pois os outros tomavam conta da palestra e o bom homem se retirava sem ter proferido uma só palavra. Sua grande experiência dos negócios comerciais dera-lhe hábitos que algumas pessoas qualificavam de manias. Quando alguma letra não era paga, mandava-a ao oficial de justiça e não se importava mais com ela a não ser para receber o respectivo capital acrescido dos juros e despesas da cobrança; o oficial de justiça tinha de perseguir o comerciante até levá-lo à falência; César interrompia, então, a cobrança judicial, não comparecia a nenhuma assembleia de credores e ficava com as letras em seu poder. Esse sistema e seu implacável desprezo pelos falidos vinham-lhe do sr. Ragon, que, no curso da sua vida comercial, acabara descobrindo que os litígios consomem tanto tempo, que o magro e incerto dividendo pago pelas concordatas pode ser amplamente recuperado pelo emprego do tempo perdido em andar dum lado para outro a fazer acordos e a ouvir as escusas da improbidade.

— Se o falido for um homem de bem e se reerguer, pagará — dizia o sr. Ragon. — Se ficar sem recursos e for apenas sem sorte, para que atormentá-lo? Se ele for um patife, você nunca receberá nada. Com a fama de severidade você passará por intratável e, assim, como é impossível transigir com você, sempre que ele puder pagar é a você que pagará.

César chegava aos encontros à hora marcada, mas dez minutos depois retirava-se com uma inflexibilidade que nada conseguia vergar: assim, sua pontualidade tornava-se extensiva às pessoas que tratavam com ele.

O costume que adotara concordava com seus hábitos e sua fisionomia. Força alguma o faria renunciar às gravatas de musselina branca, cujas pontas, bordadas pela esposa ou pela filha, lhe caíam sobre o pescoço. O colete de piquê branco, trespassado, era muito comprido e terminava sobre o ventre proeminente, pois ele tinha uma leve obesidade. Usava calças azuis, meias de seda preta e sapatos com fitas, cujos laços frequentemente se desfaziam. A sobrecasaca verde-oliva, sempre muito folgada, e o chapéu de aba larga davam-lhe o aspecto de um quacre. Quando se vestia para as reuniões dos domingos, punha uns calções de seda, sapatos com fivelas de ouro e seu inevitável colete trespassado com as duas extremidades entreabertas para mostrar a parte superior do peitilho franzido. A casaca de fazenda parda tinha abas largas e cauda comprida. Até 1819 conservou duas correntes de relógio que pendiam paralelamente, mas só usava a segunda quando se vestia para uma festa. Tal era César Birotteau, digno homem a quem os mistérios que presidem ao nascimento das criaturas haviam recusado a faculdade de formar um juízo crítico sobre as relações da política com a vida, de se elevar acima do nível social sob o qual vive a classe média, que em tudo seguia os erros da rotina, pois todas as suas opiniões lhe vinham de fora, e os aplicava sem exame. Cego, mas bondoso, pouco inteligente, mas profundamente religioso, tinha sentimentos puros. No seu coração brilhava um único amor, a luz e a força da sua vida, pois seu desejo de elevação e os escassos conhecimentos que adquirira provinham-lhe da afeição pela esposa e pela filha.

Quanto à sra. César, então com trinta e sete anos de idade, parecia-se tão perfeitamente com a Vênus de Milo que todos os que a conheciam viram seu retrato naquela bela estátua quando o duque de Rivière[254] a mandou para cá. Em alguns meses, os desgostos passaram tão rapidamente seus tons amarelados por cima da sua alvura deslumbrante, escavaram e escureceram tão cruelmente os círculos azulados onde brincavam seus belos olhos verdes, que ela adquiriu a expressão duma velha madona, pois, mesmo entre suas ruínas, conservou uma suave candura, um olhar límpido quase triste, e era impossível não continuar a achá-la uma bela mulher, duma aparência casta e cheia de decência. No baile premeditado por César, ela ia desfrutar, aliás, um derradeiro esplendor de beleza, que não passou despercebido.

Toda a existência tem seu apogeu, uma época durante a qual as causas agem em relação exata com os resultados. Esse meio-dia da vida, no qual as forças vivas se equilibram e se exercem em todo o seu fulgor, é comum não só aos seres organizados como também às cidades, às nações, às ideias, às instituições, aos ramos do comércio, às empresas que, como as raças nobres e as dinastias, nascem, sobem e caem. De onde vem o rigor com que esse princípio de ascensão e descensão se aplica a tudo quanto se organiza na Terra, pois a própria morte, nas épocas de calamidade, tem seus avanços e recuos, seu recrudescimento e seu repouso? Nosso globo, mesmo, talvez seja um foguete um pouco mais durável do que os outros. A história, repetindo as causas da grandeza e da decadência de tudo quanto existe na Terra, oferece ao homem uma advertência do momento em que deve interromper o exercício de todas as suas faculdades; mas nem os conquistadores, nem os atores, nem as mulheres, nem os autores lhe escutam a voz salutar.

César Birotteau, que se devia considerar no apogeu da fortuna, via nesse ponto de parada um novo ponto de partida. Não conhecia, e nem mesmo as nações ou os reis tentaram escrever, em caracteres indeléveis, a causa desses transtornos de que a história está cheia e de que tantas casas reais e comerciais oferecem tão grandes exemplos. Seria útil que novas pirâmides recordassem constantemente essa lei que deve reger tanto a política das nações como a dos indivíduos:

 

sempre que o efeito produzido não está mais em

relação direta nem em proporção com a causa,

começa a desorganização.

 

Tais monumentos, porém, existem em toda parte, nas tradições e nas pedras que nos falam do passado, que consagram os princípios do indomável Destino, cuja mão desfaz nossos sonhos e nos prova que os mais importantes fatos se resumem numa ideia. Troia e Napoleão não são mais do que poemas. Possa esta história ser o poema das vicissitudes burguesas a que nenhuma voz deu até agora importância porque parecem completamente destituídas de grandeza, quando, por isso mesmo, são imensas: não se retrata aqui apenas um homem, mas toda uma multidão de aflições.

III — OS GERMES DA DESGRAÇA

Antes de adormecer, César, receando que, no dia seguinte, a esposa lhe fizesse algumas objeções peremptórias, decidiu levantar-se muito cedo para resolver tudo. Pela madrugada, saiu sem fazer ruído, deixou a mulher na cama, vestiu-se às pressas e desceu à loja no momento em que o empregado retirava os taipais numerados. Birotteau, vendo-se só, esperou que os caixeiros se levantassem e ficou parado à soleira da porta observando como o criado, chamado Raguet, se desempenhava de suas funções, que Birotteau conhecia muito bem! A despeito do frio, o dia estava magnífico.

— Popinot, vai buscar teu chapéu, enfia os sapatos, dize ao sr. Celestino que desça e vamos os dois conversar nas Tuileries — disse, ao ver Anselmo, que vinha descendo.

Popinot, admirável oposto de Du Tillet e que um desses felizes acasos que fazem crer numa Subprovidência levara para junto de César, desempenha tamanho papel nesta história que é necessário descrevê-lo.

A sra. Ragon era uma Popinot. Tinha dois irmãos. Um, o mais moço da família, era então juiz substituto do Tribunal de Primeira Instância do Sena. O mais velho dedicara-se ao comércio de lã bruta, consumira nele a fortuna e morrera deixando aos Ragon e ao seu irmão juiz, que não tinha filhos, o seu filho único, já órfão de mãe, que morrera por ocasião do parto. Para dar um meio de vida ao sobrinho, a sra. Ragon o empregara na perfumaria esperando que ele sucedesse a Birotteau. Anselmo Popinot era baixo e coxo, enfermidade que o destino deu a Lord Byron, a Walter Scott e a Talleyrand a fim de não desanimar os que dela padecem. Tinha a tez luzidia e coberta de sardas, característica das pessoas de cabelos ruivos; mas sua fronte límpida, seus olhos da cor da ágata de estrias pardas, sua boca bem-feita, sua alvura e a graça duma mocidade casta, a timidez que lhe inspirava aquele defeito de conformação, tudo lhe granjeava sentimentos protetores: a gente gosta dos fracos. Popinot despertava interesse. O pequeno Popinot — todos o chamavam assim — pertencia a uma família essencialmente religiosa, de virtudes inteligentes e de vida modesta e cheia de belas ações. O menino, criado pelo tio juiz, reunia, pois, as qualidades que tornam a mocidade tão bela: recatado e afetuoso, um pouco encabulado, mas cheio de entusiasmo, meigo como um cordeiro, mas ardoroso no trabalho, dedicado, sóbrio, era dotado de todas as virtudes dum cristão dos primeiros tempos da Igreja.

Ao ouvir falar num passeio às Tuileries, o convite mais excêntrico que o imponente patrão poderia fazer-lhe àquela hora, Popinot julgou que ele quisesse falar-lhe em casamento; o caixeiro pensou imediatamente em Cesarina, a verdadeira rainha das rosas, o emblema vivo daquela casa e de quem se apaixonara no mesmo dia em que, dois meses antes de Du Tillet, entrara para a casa de Birotteau. Ao subir a escada, foi obrigado a parar, pois seu coração se intumescia demais e as artérias batiam com excessiva violência; desceu logo depois seguido de Celestino, o primeiro caixeiro de Birotteau. Anselmo e o patrão encaminharam-se, sem trocar uma palavra, para as Tuileries. Popinot estava com vinte e um anos, Birotteau casara-se nessa idade. Anselmo não via, pois, nenhum impedimento ao seu casamento com Cesarina, embora a fortuna do perfumista e a beleza da filha constituíssem imensos obstáculos à realização de tão ambiciosos projetos; o amor, porém, age por meio de arroubos de esperança e, quanto mais insensatos são, mais confia neles; assim, quanto mais distante lhe parecia a namorada, mais ardentes eram seus desejos. Ditoso menino o que, numa época em que tudo se nivela, em que todos os chapéus se assemelham, conseguia criar distâncias entre a filha dum perfumista e ele mesmo, descendente duma antiga família parisiense! Apesar de suas incertezas, de suas apreensões, era feliz: jantava diariamente ao lado de Cesarina! E depois, ao entregar-se às tarefas da casa, fazia-o com um desvelo, um entusiasmo que lhes tirava toda a dureza; fazendo tudo em nome de Cesarina, nunca se cansava. Num rapaz de vinte anos, o amor se nutre de abnegação!

— Será um comerciante, há de vencer na vida — dizia dele César à sra. Ragon, elogiando a atividade de Anselmo nas coisas da fábrica, louvando sua aptidão em compreender as sutilezas da arte e referindo-se à rudeza do seu trabalho nos momentos em que as expedições aumentavam, pois nessas ocasiões o coxo, com as mangas arregaçadas e os braços nus, enchia e pregava sozinho maior número de caixas que os outros empregados.

As pretensões conhecidas e declaradas de Alexandre Crottat, primeiro ajudante de Roguin, e a fortuna do seu pai, rico proprietário rural na Brie, representavam obstáculos muito grandes à vitória do órfão; essas dificuldades, contudo, não eram as mais difíceis de vencer: Popinot guardava no fundo do coração tristes segredos que aumentavam a distância que o separava de Cesarina. A fortuna dos Ragon, com a qual teria podido contar, estava comprometida; o órfão tinha a ventura de ajudá-los, levando-lhes seus magros ordenados. Acreditava, contudo, no triunfo. Julgava ter surpreendido, várias vezes, o olhar de Cesarina dirigir-se, com um aparente orgulho, para ele; e animara-se a ler, no fundo dos seus olhos azuis, um pensamento secreto cheio de carinhosas esperanças. Caminhava, assim, excitado pela presente esperança, trêmulo, silencioso, perturbado, tanto quanto poderiam sê-lo, em idêntica circunstância, todos os rapazes para os quais a vida está em plena brotação.

— Popinot — disse-lhe o bom comerciante —, tua tia vai bem?

— Sim, senhor.

— Há algum tempo que ela me parece preocupada; será que alguma coisa não vai bem em casa? Escuta, rapaz, não adianta bancar o misterioso comigo, sou quase da família, conheço teu tio Ragon há vinte e cinco anos. Entrei para a casa dele com uns sapatões ferrados, quando vim da minha aldeia. Embora aquilo lá se chame Trésorières, todo o meu dinheiro era um luís de ouro que me dera minha madrinha, a falecida sra. marquesa d’Uxelles, parente do sr. duque e da sra. duquesa de Lenoncourt, que são nossos fregueses. Por isso, todos os domingos rezo por ela e por toda a família; remeto para sua sobrinha, a sra. de Mortsauf, na Touraine, todas as perfumarias de que ela precisa. Sempre me aparecem alguns fregueses por intermédio deles, como, por exemplo, o sr. de Vandenesse,[255] que compra mil e duzentos francos de cada vez. Se a gente não fosse grato por bondade de coração, deveria sê-lo, pelo menos, por interesse; mas minha estima por ti é desinteressada, é apenas por ti mesmo.

— Ah! Se me permite dizer, o senhor tinha uma cabeça formidável.

— Não, meu rapaz, isso não basta. Não digo que não tenha boa cabeça como qualquer outro, mas é que eu tinha também honestidade, no duro!, e ainda boa conduta, e nunca amei outra mulher além da minha esposa. O amor é um notável veículo, como disse o sr. de Villèle, ontem, na Tribuna.

— O amor! — disse Popinot. — Oh! Será que?...

“Olha, lá vem vindo o tio Roguin, a pé, descendo a Place Louis xv, às oito horas. Que será que o velho anda fazendo?”, pensou César, esquecendo-se de Anselmo Popinot e do óleo de avelãs.

As suspeitas da esposa acudiram-lhe à memória, e, em vez de entrar no jardim das Tuileries, Birotteau encaminhou-se na direção do tabelião para encontrá-lo. Anselmo seguiu o patrão a distância, sem compreender o súbito interesse que ele tomava por uma coisa aparentemente tão insignificante, mas contentíssimo com o encorajamento que lhe davam as palavras de César sobre os sapatões ferrados, seu luís de ouro e o amor.

Roguin, homem alto e gordo com o rosto cheio de espinhas, a testa muito lisa e cabelos negros, tivera outrora uma fisionomia expressiva; fora audacioso e entusiasta, pois de obscuro escrevente chegara a tabelião; presentemente, porém, seu rosto revelava aos olhos dum observador hábil a prostração e a fadiga dos prazeres libidinosos. Quando um homem se atola na lama dos excessos, é difícil que seu rosto não fique enlameado em algum ponto; assim, as linhas das rugas e o calor da tez eram, em Roguin, destituídos de nobreza. Em lugar dessa aparência pura que se ostenta sob os tecidos dos homens continentes e lhes empresta um viço de saúde, percebia-se nele a impureza de um sangue fustigado por esforços contra os quais o corpo protesta. Seu nariz era ignobilmente arrebitado, como o das pessoas nas quais os humores, tomando o rumo desse órgão, produzem uma enfermidade secreta que uma virtuosa rainha da França acreditava ingenuamente ser um mal próprio da espécie, pois, nunca se tendo aproximado de outro homem além do rei, não descobrira seu erro. Para tentar dissimular sua doença, Roguin usava rapé da Espanha em excesso, mas com isso só conseguira agravar a moléstia que foi a causa principal dos seus infortúnios.

Não é uma exagerada adulação social descrever sempre os homens sob falsas cores e não revelar algumas das verdadeiras causas dos seus reveses, tão frequentemente determinados pela doença? O mal físico considerado em seus danos morais, examinado em suas influências sobre o mecanismo da vida tem sido, talvez, muito negligenciado até agora pelos historiadores dos costumes. A sra. César descobrira perfeitamente o segredo do casal.

Já na noite de núpcias a bela sra. Roguin, encantadora filha única do banqueiro Chevrel, encheu-se duma invencível repulsa pelo pobre tabelião e imediatamente quis requerer o divórcio. Imensamente satisfeito com uma esposa que possuía quinhentos mil francos, sem contar o que devia receber mais tarde, Roguin implorou à mulher que não intentasse uma ação de divórcio, deixando-lhe inteira liberdade e sujeitando-se a todas as consequências de semelhante pacto. A sra. Roguin, investida de absoluta soberania, conduziu-se com o marido como uma cortesã com um amante velho. Roguin logo achou a esposa muito cara e, como muitos maridos parisienses, arranjou uma ligação na cidade. Restrita inicialmente dentro de prudentes limites, a despesa foi pequena. No começo, Roguin encontrou, sem grandes despesas, raparigas que se sentiam muito felizes com a sua proteção; há três anos, porém, vinha sendo roído por uma dessas paixões indomáveis que invadem os homens entre os cinquenta e os sessenta anos e que era justificada por uma das mais magníficas criaturas da época, conhecida nos anais da prostituição pelo apelido de a Bela Holandesa, pois mais tarde voltaria a cair nesse abismo, onde sua morte ficou famosa. Viera de Bruges para Paris trazida por um dos clientes de Roguin, que, obrigado a partir devido aos acontecimentos políticos, a deixara de presente ao amigo em 1815. O tabelião comprara para sua beldade uma casinha nos Champs-Élysées, mobiliara-a luxuosamente e deixara-se arrastar a satisfazer os custosos caprichos dessa mulher, cujos gastos excessivos consumiram sua fortuna.

A sombria expressão estampada na fisionomia de Roguin, e que se dissipou ao ver o cliente, estava relacionada com acontecimentos misteriosos que encerravam os segredos da fortuna tão rapidamente feita por Du Tillet.

O plano feito por Du Tillet modificou-se desde o primeiro domingo no qual ele pôde observar, na casa do patrão, a situação respectiva do sr. e da sra. Roguin. Fora para lá menos para seduzir a sra. Birotteau do que para que lhe oferecessem a mão de Cesarina como indenização por uma paixão recolhida, e fora-lhe muito fácil renunciar a esse casamento porque julgava César rico e descobrira que ele era pobre. Espionou o tabelião, conquistou sua confiança e fez-se introduzir na casa da Bela Holandesa, onde examinou suas relações com Roguin, vindo a saber que ela ameaçava despedir o amante se ele lhe cortasse o dinheiro para o luxo. A Bela Holandesa era uma dessas mulheres sem juízo que nunca se preocupam em saber de onde lhes vem o dinheiro nem como ele é ganho e que seriam capazes de dar uma festa com o dinheiro dum parricida. Nunca pensava no dia seguinte. Para ela, o futuro resumia-se no que faria depois do jantar e a eternidade era o fim do mês, isso mesmo quando tinha contas a pagar. Encantado por ter encontrado uma alavanca inicial, Du Tillet começou por obter da Bela Holandesa que ela amasse Roguin por trinta mil francos anuais em vez de cinquenta mil, serviço que os velhotes apaixonados raramente esquecem.

Um dia, finalmente, após uma ceia na qual os vinhos abundaram, Roguin abriu-se com Du Tillet a respeito da sua crise financeira. Como seus imóveis estavam interditados pela hipoteca legal da esposa, ele fora levado, pela paixão, a retirar dos depósitos dos clientes uma quantia superior à metade do capital do cartório. Quando o resto fosse devorado, o infortunado Roguin se suicidaria, pois ele acreditava atenuar o horror da falência recorrendo à compaixão pública. Du Tillet entreviu uma fortuna rápida e segura, que brilhou como um raio na noite de embriaguez, e tranquilizou Roguin, insuflando-lhe sua própria audácia e fazendo-o renunciar à ideia do suicídio.

— Quando um homem da sua posição se arrisca desse modo — disse-lhe —, não se pode conduzir como um tolo nem andar às apalpadelas, mas tem de agir ousadamente.

Aconselhou-o a lançar mão, imediatamente, duma elevada quantia, que lhe entregaria para que ele a arriscasse num jogo qualquer, na Bolsa ou em alguma das inúmeras especulações que então estavam sendo empreendidas. Se ganhassem, fundariam ambos uma casa bancária na qual tirariam proveito dos depósitos e cujos lucros lhe permitiriam satisfazer sua paixão. Se a sorte se voltasse contra eles, Roguin iria viver no estrangeiro em vez de se matar, pois o “seu” Du Tillet lhe seria fiel até o último sou. Isso representava uma corda ao alcance da mão dum homem que estava se afogando e Roguin não percebeu que o caixeiro da perfumaria lha estava enrolando no pescoço.

Senhor do segredo de Roguin, Du Tillet aproveitou-se dele para firmar seu poder simultaneamente sobre a esposa, a amante e o marido. Prevenida de um desastre de que estava longe de suspeitar, a sra. Roguin aceitou as atenções de Du Tillet, que então saiu da casa do perfumista, confiante no futuro. Não teve dificuldade em convencer a amante a arriscar uma certa quantia a fim de não ter de recorrer à prostituição, se lhe acontecesse algum desastre. A mulher pôs seus negócios em ordem, reuniu rapidamente um pequeno capital e entregou-o a um homem em quem o marido confiava, pois o tabelião dera inicialmente cem mil francos ao seu cúmplice. Vivendo ao lado da sra. Roguin de maneira a transformar os interesses da bela mulher em afeições, Du Tillet soube inspirar-lhe a mais violenta paixão. Seus três comanditários instituíram-lhe, naturalmente, uma cota; mas, descontente com essa cota, teve a audácia de, enquanto os fazia jogar na Bolsa, entrar em entendimento com um adversário que lhe restituía o montante das supostas perdas, jogando, assim, para os clientes e para si mesmo. Logo que conseguiu cinquenta mil francos, convenceu-se de que faria uma grande fortuna; lançou o olhar de águia que o caracterizava sobre as alternâncias pelas quais então passava a França: jogou na baixa durante a campanha da França e na alta quando os Bourbon voltaram. Dois meses após o regresso de Luís xviii, a sra. Roguin possuía duzentos mil francos, e Du Tillet, cem mil escudos. O tabelião, a cujos olhos o rapaz era um anjo, restabelecera o equilíbrio dos seus negócios. A Bela Holandesa dissipava tudo, estava acometida dum câncer infame chamado Máximo de Trailles, antigo pajem do imperador. Du Tillet descobriu o verdadeiro nome da cortesã ao fazê-la assinar um documento. Chamava-se Sara Gobseck. Impressionado com a coincidência desse nome com o de um agiota de quem já ouvira falar,[256] foi à casa do velho usurário, que era a Providência dos rapazes ricos, a fim de descobrir até que ponto a parenta tinha crédito com ele. O Brutus dos agiotas foi implacável com a sobrinha-neta, mas Du Tillet soube conquistar-lhe a simpatia apresentando-se como banqueiro de Sara e como possuidor de capitais que queria empregar. A índole normanda e a índole usurária acertaram-se perfeitamente. Gobseck estava precisando de um homem moço e hábil para tratar duma pequena operação no estrangeiro.

Um auditor do conselho de Estado, surpreendido pelo retorno dos Bourbon, tivera a ideia, a fim de ficar bem colocado perante a Corte, de ir à Alemanha resgatar os títulos de dívidas contraídas pelos príncipes durante a emigração. Oferecia os lucros do negócio, que para ele era puramente político, a quem lhe fornecesse o capital necessário. O agiota só queria entregar o dinheiro à proporção que as letras fossem sendo resgatadas e ainda desejava fazê-las examinar por um representante astuto. Os usurários não confiam em ninguém, exigem garantias; junto deles, a ocasião é tudo: gelados quando não precisam de uma pessoa, tornam-se amáveis e dispostos a prestar favores quando encontram nela alguma utilidade. Du Tillet conhecia o imenso papel desempenhado em surdina na praça de Paris pelos Werbrust e Gigonnet, que negociavam em descontos de títulos com o comércio das Rues Saint-Denis e Saint-Martin, por Palma, banqueiro do Faubourg Poissonnière, quase sempre interessados com Gobseck. Ofereceu, pois, uma caução em dinheiro que renderia juros e exigiu que esses banqueiros empregassem no seu comércio de dinheiro os fundos que lhes confiaria: preparava, desse modo, elementos de apoio. Acompanhou o sr. Clemente Chardin des Lupeaulx[257] numa viagem à Alemanha que teve a duração dos Cem Dias e voltou por ocasião da Segunda Restauração, tendo aumentado mais os meios de fazer fortuna do que a própria fortuna. Iniciara-se nos segredos dos mais hábeis calculistas de Paris, conquistara a amizade do homem a quem servia como fiscal, pois o esperto escamoteador lhe desvendara os expedientes e o código da alta política. Du Tillet era uma dessas inteligências que entendem as meias palavras e completou sua formação durante a viagem.

Ao regressar, encontrou a sra. Roguin fiel. Quanto ao pobre tabelião, este esperava Ferdinando com uma impaciência igual à da esposa; a Bela Holandesa tornara a arruiná-lo. Du Tillet interrogou a Bela Holandesa e não encontrou uma despesa equivalente ao dinheiro gasto. Du Tillet descobriu então o segredo que Sara Gobseck lhe ocultara tão cautelosamente: sua louca paixão por Máximo de Trailles, cuja estreia na carreira de vícios e de libertinagem já anunciava o que ele realmente foi, um desses tratantes políticos necessários a todos os bons governos e que o jogo tornava insaciável. Ao fazer essa descoberta, Du Tillet compreendeu a insensibilidade de Gobseck para com a sobrinha-neta. Nessa conjuntura, o banqueiro Du Tillet — pois ele se fez banqueiro — aconselhou insistentemente Roguin a preparar uma reserva para um caso de necessidade, metendo os clientes mais ricos num negócio do qual pudesse ficar com elevadas quantias se o reinício do jogo na Bolsa o arrastasse à falência. Depois de altos e baixos, que só foram proveitosos a Du Tillet e à sra. Roguin, o tabelião ouviu finalmente soar a hora da derrota. Sua agonia foi explorada pelo seu melhor amigo. Du Tillet inventou a especulação relativa aos terrenos situados ao redor da Madeleine. Os cem mil francos depositados por Birotteau no cartório de Roguin, à espera duma colocação, foram naturalmente entregues a Du Tillet, que, querendo arruinar o perfumista, convenceu Roguin de que correria menor perigo envolvendo na trama seus amigos íntimos.

— Um amigo — disse-lhe — conserva a consideração mesmo encolerizado.

Poucas pessoas sabem hoje como valia pouco, naquela época, uma toesa de terreno ao redor da Madeleine, mas aqueles terrenos iam ser necessariamente vendidos acima do valor passageiro porque os interessados teriam de ir procurar os proprietários e estes certamente aproveitariam a ocasião; ora, Du Tillet queria colocar-se em condições de colher os benefícios sem ter de suportar os prejuízos duma especulação a longo prazo. Em outros termos, seu plano consistia em matar o negócio para arrematar um cadáver que ele sabia que poderia reavivar. Em casos como esse, os Gobseck, os Palma, os Werbrust e os Gigonnet costumavam auxiliar-se mutuamente; Du Tillet, porém, não tinha suficiente intimidade com eles para pedir-lhes ajuda. Por outro lado, queria ocultar sua intervenção, embora lhe coubesse dirigir o negócio, para que pudesse colher as vantagens do roubo sem se desonrar; sentiu, pois, necessidade de ter à sua disposição um desses manequins vivos, chamados, na linguagem comercial, testas de ferro. Seu falso jogador da Bolsa pareceu-lhe indicado para ser sua alma danada e ele usurpou os direitos divinos, criando um homem. Dum antigo caixeiro-viajante, sem recursos nem competência, exceto a de falar indefinidamente sobre qualquer assunto sem dizer nada, sem eira nem beira, mas apto a entender um papel e desempenhá-lo sem comprometer a peça, dotado da mais rara dignidade, isto é, capaz de guardar um segredo e de se deixar infamar em favor do seu comitente, Du Tillet fez um banqueiro que organizava e dirigia as maiores empresas, o chefe da casa Claparon. O fim de Carlos Claparon seria cair nas mãos dos judeus e dos fariseus se os negócios empreendidos por Du Tillet exigissem uma falência, e Claparon o sabia. Mas, para um pobre-diabo que andava passeando melancolicamente pelos bulevares com um futuro de quarenta sous no bolso quando seu camarada Du Tillet o encontrou, as pequenas parcelas que lhe tocariam em cada negócio foram um Eldorado. Assim, sua amizade, sua dedicação por Du Tillet, corroboradas por uma gratidão sem limites e estimuladas pelas necessidades duma vida libertina e desordenada, faziam-lhe dizer amém a tudo. Além disso, após ter vendido sua dignidade, ele o viu arriscá-la com tamanha prudência que acabou afeiçoando-se ao antigo camarada como um cão ao seu dono. Claparon era um lulu muito feio, mas sempre disposto a dar o salto de Cúrcio.[258] Nesse plano, ele representaria uma metade dos adquirentes dos terrenos, como César Birotteau representaria a outra. Os títulos que Claparon receberia de Birotteau seriam descontados por um dos usurários cujo nome Du Tillet estava autorizado a usar para precipitar Birotteau no abismo duma falência, quando Roguin lhe arrebatasse o dinheiro. Os síndicos da falência agiriam ao sabor das instruções de Du Tillet, que, de posse do dinheiro entregue pelo perfumista e por seu credor sob diferentes nomes, faria levar os terrenos à hasta pública e os compraria pela metade do valor, pagando-os com o dinheiro de Roguin e o dividendo da falência. O tabelião fizera-se cúmplice do plano na esperança de ficar com uma boa parte dos despojos do perfumista e dos seus cointeressados; mas o homem a cuja discrição se entregara ia ficar, como realmente ficou, com a parte do leão. Roguin, não podendo acusar Du Tillet diante de nenhum tribunal, contentou-se em roer o osso que todos os meses lhe era atirado a uma aldeia da Suíça, onde ele encontrou belezas a baixo preço.

Foram as circunstâncias, e não a imaginação dum autor trágico inventando um enredo, que engendraram esse horrível plano. O ódio sem desejo de vingança é um grão de areia que cai sobre um granito, mas a vingança votada a César por Du Tillet era um dos sentimentos mais naturais, ou não se deve acreditar na luta dos anjos malditos e dos anjos de luz. Du Tillet não podia, sem grandes inconvenientes, assassinar o único homem em Paris que o sabia culpado dum furto doméstico, mas podia lançá-lo na lama e aniquilá-lo a ponto de tornar seu testemunho impossível. Durante muito tempo a vingança germinara em seu coração sem florescer, pois, em Paris, mesmo as pessoas mais rancorosas fazem muito poucos projetos, visto que a vida aqui é demasiado rápida, excessivamente agitada e cheia de acidentes imprevistos; por outro lado, porém, essas perpétuas oscilações, mesmo que não permitam a premeditação, auxiliam bem uma ideia fixa oculta no coração do político bastante forte para esperar-lhes a maré alta. Quando Roguin fizera sua confidência a Du Tillet, o caixeiro entrevira nela, vagamente, a possibilidade de destruir César e não se enganara. Às vésperas de deixar seu ídolo, o tabelião bebia o resto da sua poção na taça quebrada, ia todos os dias aos Champs-Élysées e voltava para casa de manhã. Assim, a desconfiada sra. Birotteau tinha razão.

Quando um homem se decide a representar o papel que Du Tillet confiara a Roguin, imediatamente adquire um talento de grande comediante, fica com o olhar dum lince e a penetração dum vidente, torna-se capaz de magnetizar a vítima; assim, o tabelião avistou Birotteau muito antes que este o visse e, quando o perfumista o enxergou, ele já lhe estendia a mão de longe.

— Fui receber o testamento duma pessoa importante que não tem oito dias de vida — disse com a maior naturalidade. — Trataram-me, porém, como um médico da aldeia, mandaram buscar-me de carro e estou voltando a pé.

Essas palavras dissiparam uma leve sombra de desconfiança que escurecera a fronte do perfumista e fora percebida por Roguin; por isso, o tabelião evitou ser o primeiro a falar no negócio dos terrenos, pois queria dar o último golpe em sua vítima.

— Depois dos testamentos, os contratos de casamento — disse Birotteau —, assim é a vida. E, a propósito disso, quando desposaremos a Madeleine, eh! eh! papá Roguin? — acrescentou, dando-lhe um tapinha no ventre, pois, entre homens, os mais castos burgueses têm a pretensão de passar por farristas.

— Se não for hoje — respondeu o tabelião com um ar diplomático —, não será nunca mais. Estamos com medo de que o negócio venha a público, já estou sendo importunado por dois dos meus mais ricos clientes, que querem se meter na especulação. Como vê, é pegar ou largar. Depois do meio-dia lavrarei os documentos e você só pode ficar lá até a uma hora. Até logo. Vou precisamente ler as minutas que Xandrot deve ter rascunhado durante a noite.

— Bem, está combinado! Você tem a minha palavra — disse Birotteau, correndo atrás do tabelião e batendo-lhe na mão. — Lance mão dos cem mil francos que deviam constituir o dote da minha filha.

— Muito bem — disse Roguin, afastando-se.

Durante o breve espaço de tempo que Birotteau gastou para voltar perto do pequeno Popinot, experimentou um violento calor nas entranhas, seu diafragma contraiu-se, suas orelhas encheram-se de zumbidos.

— Que é que o senhor tem? — perguntou-lhe o caixeiro, ao ver o rosto pálido do patrão.

— Ah! meu rapaz, acabo de fechar com uma única palavra um grande negócio e, num caso destes, ninguém pode dominar suas emoções. Aliás, não és estranho à coisa. Trouxe-te aqui justamente para falar-te mais à vontade sobre isto, ninguém nos escutará. Tua tia está aborrecida; como foi que ela perdeu seu dinheiro? Conta-me.

— Meu tio e minha tia tinham seu dinheiro na casa bancária do sr. de Nucingen; foram obrigados a ficar, a título de reembolso, com ações das minas de Worstchin, que ainda não dão dividendos, e, na idade deles, é difícil viver de esperanças.

— Mas com que é que vivem?

— Eles me deram o prazer de aceitar meu ordenado.

— Bem, bem, Anselmo — disse o perfumista, deixando ver uma lágrima deslizando dos seus olhos —, és digno da afeição que te dedico. Vais receber, portanto, uma alta recompensa por tua dedicação aos meus negócios.

Ao pronunciar essas palavras, o comerciante se engrandecia tanto a seus próprios olhos como aos de Popinot; empregou nelas essa ênfase burguesa e ingênua que era a expressão de sua superioridade artificial.

— Como! Será que o senhor descobriu minha paixão pela...

— Por quem? — perguntou o perfumista.

— Pela srta. Cesarina.

— Ah! rapaz, és muito atrevido — exclamou Birotteau. — Mas guarda bem o teu segredo, prometo esquecê-lo e sairás da minha casa amanhã. Não te quero mal! No teu lugar, isso é o diabo! Eu teria feito o mesmo. Ela é tão bonita!

— Ah! senhor! — disse o caixeiro, com a camisa empapada de suor.

— Meu rapaz, isso não é negócio para se resolver num dia: Cesarina é senhora de si e a mãe dela tem lá suas ideias. Assim, cala-te, enxuga os olhos, refreia o coração e não falemos mais nisso. Eu não me envergonharia de ter um genro como tu: és sobrinho do sr. Popinot, juiz do Tribunal de Primeira Instância; és sobrinho dos Ragon, tens direito de vencer na vida como qualquer outro; mas há os mas, os por que, os se! Que diabo foste meter numa conversa de negócios! Olha, senta-te nessa cadeira e que o apaixonado ceda o lugar ao caixeiro. Popinot, és valente? — disse, fitando o empregado. — Tens coragem de lutar com uma coisa mais forte do que tu, de combater corpo a corpo?...

— Sim, senhor.

— De sustentar um combate longo, perigoso?...

— De que se trata?

— De derrubar o Óleo de Macassar! — disse Birotteau, erguendo-se como um herói de Plutarco. — Não nos iludamos, o inimigo é forte, sólido, temível. O Óleo de Macassar foi lançado com muita inteligência. A concepção é engenhosa: as garrafinhas quadrangulares têm a seu favor a originalidade da forma. Para o meu projeto, pensei fazer as nossas triangulares! Mas, depois de maduras reflexões, acho que preferiria umas garrafinhas de vidro muito fino cobertas duma cestinha de vime; teriam uma aparência misteriosa e o consumidor gosta de tudo o que o intriga.

— É muito caro — disse Popinot. — Seria preciso fazer tudo pelo menor preço possível, a fim de dar uma grande margem de lucro aos varejistas.

— Bem, meu rapaz, aqui estão os verdadeiros princípios. Pensa bem nisto, o Óleo de Macassar se defenderá! É atraente, tem um nome sedutor. Apresentam-no como uma importação estrangeira e nós teremos a infelicidade de ser nacionais. Então, Popinot, tens coragem de matar o Macassar? De início, terás de levar vantagem nas expedições para ultramar, pois parece que o Macassar provém realmente das Índias: será mais natural, assim, enviar o produto francês para os indianos do que mandar-lhes de volta uma coisa que eles têm fama de nos fornecer. Toma conta dos mascates! É preciso lutar no estrangeiro, lutar nos departamentos! Ora, o Óleo de Macassar foi muito bem introduzido, não nos devemos iludir a respeito de sua força, já está lançado, o público o conhece.

— Liquidarei com ele! — exclamou Popinot, com o olhar em fogo.

— De que modo? — disse-lhe Birotteau. — Isso é que é entusiasmo de gente moça. Escuta-me, então, até o fim.

Anselmo assumiu a atitude dum soldado apresentando armas diante de um marechal da França.

— Inventei, Popinot, um óleo para estimular o crescimento dos cabelos, reavivar o couro cabeludo e manter a cor das cabeleiras masculinas e femininas. Essa essência não terá menor êxito do que a minha pomada e a minha água: não quero, porém, explorar pessoalmente esse segredo, pois pretendo retirar-me do comércio. Serás tu, meu filho, que lançarás meu Óleo Comageno[259] (da palavra coma, termo latino que significa cabelos, segundo me disse o sr. Alibert, médico do rei;[260] essa palavra encontra-se na tragédia de Berenice,[261] na qual Racine incluiu um rei de Comagena, amante da bela rainha tão famosa pela cabeleira e que certamente foi em homenagem a ela que deu esse nome ao seu reino! Como têm espírito os grandes gênios! Descem aos mínimos detalhes).

O pequeno Popinot manteve-se sério ao escutar esse ridículo parêntese, evidentemente dito para ele, que tinha instrução.

— Anselmo! Lembrei-me de ti para fundar uma casa comercial de alta drogaria, à Rue des Lombards — disse Birotteau. — Serei teu sócio secreto e, para isso, dar-te-ei o capital inicial. Depois do Óleo Comageno, tentaremos a essência de baunilha, o álcool de hortelã. Numa palavra, entraremos no comércio de drogas revolucionando-o, vendendo produtos concentrados em vez de vendê-los ao natural. Ambicioso rapaz, estás satisfeito?

Anselmo estava tão opresso que não podia responder, mas seus olhos cheios de lágrimas respondiam por ele. Essa proposta parecia-lhe ditada por uma indulgência paternal que lhe dizia: “Trata de merecer Cesarina, tornando-te rico e considerado”.

— Senhor — respondeu finalmente, tomando a emoção de Birotteau por admiração —, eu também vencerei!

— Eu era justamente assim — exclamou o perfumista —, foi isso mesmo que eu disse! Se não tens minha filha, em compensação um dia terás uma fortuna. Então, rapaz, que é que te prende?

— Deixe-me esperar que, ao adquirir uma, eu consiga a outra.

— Não posso impedir-te de esperar, meu amigo — disse Birotteau, comovido pelo tom de voz de Anselmo.

— Bem, então, senhor, posso providenciar para encontrar uma loja a fim de começar o mais cedo possível?

— Sim, meu filho. Amanhã iremos ambos encerrar-nos na fábrica. Antes de ir ao bairro da Rue des Lombards, passarás pela casa de Livingston para saber se a minha prensa poderá começar a funcionar amanhã. Esta noite, à hora do jantar, iremos à casa do ilustre e bom sr. Vauquelin para consultá-lo. Este sábio vem se ocupando ultimamente da composição dos cabelos. Procura saber qual é a substância que os colora, de onde provêm, qual é a contextura dos cabelos. Tudo está nisso, Popinot. Ficarás de posse do meu segredo e não terás nada mais a fazer senão procurar explorá-lo com inteligência. Antes de ir à casa de Livingston, passa pela de Pieri Bénard.[262] Meu filho, o desinteresse do sr. Vauquelin é um dos grandes pesares da minha vida: é impossível fazer com que ele aceite alguma coisa. Felizmente, soube por Chiffreville que ele gostaria de ter uma Virgem de Dresde,[263] gravada por um certo Müller, e, depois de uma correspondência de dois anos com a Alemanha, Bénard acabou por encontrá-la, em papel da China; custa mil e quinhentos francos, meu rapaz. Hoje, o nosso benfeitor a encontrará no vestíbulo quando sairmos, pois ela já deve estar emoldurada, quero que te assegures disso. Assim, nós nos recomendaremos à sua lembrança, minha mulher e eu, pois, quanto à gratidão, há dezesseis anos que rezamos diariamente por ele. No que se refere a mim, nunca o esquecerei; mas, Popinot, os sábios, mergulhados na ciência, esquecem-se de tudo, mulheres, amigos, agradecidos. A nós nossa escassa inteligência permite pelo menos que tenhamos um coração ardoroso e isso consola de não ser um grande homem. Esses senhores do Instituto são só cérebro, vais ver. Nunca os encontrarás numa igreja. O sr. Vauquelin está sempre no gabinete ou no laboratório; esforço-me por acreditar que ele pensa em Deus enquanto analisa suas obras. Então está tudo combinado; fornecerei o capital, deixar-te-ei de posse do meu segredo e seremos sócios em partes iguais, sem necessidade de contrato. Que venha o sucesso! Arrumaremos a nossa vida. Corre, meu rapaz; vou tratar dos meus negócios! Escuta uma coisa, Popinot: daqui a vinte dias darei um grande baile; manda fazer uma casaca e apresenta-te como um comerciante já próspero...

Com esse último rasgo de bondade, Popinot ficou de tal modo comovido que ele pegou a grande mão de Birotteau e a beijou. O bom homem lisonjeara o apaixonado com aquela confidência, e os enamorados são capazes de tudo.

— Pobre rapaz — disse Birotteau, ao vê-lo correr através das Tuileries —, se Cesarina o amasse! Mas ele é coxo, tem os cabelos da cor dum tacho e as moças são tão cheias de coisas! Não acredito que Cesarina... E, depois, sua mãe quer que ela seja esposa dum tabelião. Alexandre Crottat fá-la-á rica: a riqueza torna tudo suportável, ao passo que não há felicidade que a miséria não faça sucumbir. Enfim, resolvi dar inteira liberdade à minha filha, salvo qualquer loucura, é claro.

IV — GASTOS EXCESSIVOS

O vizinho de Birotteau era um pequeno comerciante de guarda-chuvas, sombrinhas e bengalas, chamado Cayron, languedociano, que andava mal de negócios e a quem Birotteau já prestara favores em diversas ocasiões. Cayron ficou radiante com a perspectiva de limitar sua locação à loja e ceder ao rico perfumista as duas peças do primeiro andar, reduzindo, assim, o preço do aluguel.

— Muito bem, vizinho — disse-lhe Birotteau, num tom familiar, ao entrar na casa do vendedor de guarda-chuvas —, minha mulher está de acordo com o aumento da nossa casa! Se quiser, podemos ir à casa do sr. Molineux hoje às onze horas.

— Meu caro sr. Birotteau — replicou o vendedor de guarda-chuvas —, nunca lhe pedi nada por esta transferência, mas o senhor sabe que um bom comerciante deve fazer dinheiro de tudo.

— Diabo! Diabo! — respondeu o perfumista. — Não sou podre de rico. Não sei se o meu arquiteto, que estou esperando, achará a coisa praticável. Antes de fechar o negócio, disse-me ele, precisamos saber se os assoalhos estão no mesmo nível. Depois, é preciso que o sr. Molineux consinta que se abra a parede, e será que a parede é comum às duas casas? Finalmente, tenho de virar a escada para o lado da minha casa, a fim de modificar o patamar e fazer o nivelamento. Tudo isso representa despesas, e eu não posso ficar na miséria.

— Oh! Senhor, antes que o senhor fique na miséria, o sol terá vindo dormir com a terra e já terão tido filhos.

Birotteau coçou o queixo, ergueu-se nas pontas dos pés e descansou novamente sobre os calcanhares.

— Além disso — acrescentou Cayron —, só lhe peço que me desconte estas letras...

E apresentou-lhe uma fatura de cinco mil francos, acompanhada de dezesseis letras de câmbio.

— Ah! — disse o perfumista, examinando as letras. — São umas insignificâncias, a dois meses, a três meses...

— Fique com elas a seis por cento, somente — disse o comerciante, com uma expressão humilde.

— Pensa que eu sou agiota? — perguntou o perfumista, com um ar de censura.

— Meu Deus, senhor, fui à casa do seu antigo caixeiro Du Tillet; ele não as quis por preço algum, certamente para saber que quantia eu estava disposto a perder.

— Não conheço essas assinaturas — disse o perfumista.

— Ora, temos uns nomes muito engraçados nas bengalas e nos guarda-chuvas, esses são uns vendedores de bugigangas!

— Bem, não digo que fique com todas, mas ficarei com as de prazo mais curto.

— Por mil francos que se vencem daqui a quatro meses, não deixe que eu corra atrás dessas sanguessugas que nos tiram a melhor parte do lucro, fique com todas, senhor. Minhas possibilidades de recorrer ao desconto são muito pequenas, não tenho crédito, e é isso que nos mata, aos pequenos varejistas.

— Bem, aceito suas letrinhas, Celestino fará o cálculo. Esteja pronto às onze horas. Cá está o meu arquiteto, sr. Grindot[264] — acrescentou o perfumista, ao ver chegar um rapaz com quem, na véspera, marcara um encontro na casa do sr. de La Billardière. — Contrariamente aos hábitos das pessoas de talento, o senhor é pontual — disse-lhe César, empregando seus mais distintos gracejos comerciais. — Se a pontualidade, segundo uma frase do rei, que é tanto um homem de espírito como um grande político, é a cortesia dos reis, é também a riqueza dos comerciantes. O tempo, o tempo é dinheiro, principalmente para os senhores, os artistas. A arquitetura é a reunião de todas as artes, permita-me que diga isso. Não vamos passar pela loja — acrescentou, mostrando o falso portão da casa.

Quatro anos antes, Grindot ganhara o grande prêmio de arquitetura e estava voltando de Roma depois de uma permanência de três anos a expensas do governo. Na Itália, o jovem artista cuidava da arte; em Paris, cuidava da fortuna. Somente o governo pode dar a um arquiteto os milhões necessários para edificar sua glória; e ao voltar de Roma é tão natural que um arquiteto se julgue um Fontaine ou um Percier[265] que todo o arquiteto ambicioso se inclina ao ministerialismo: o pensionista liberal, tornado realista, tratava, pois, de conseguir a proteção de pessoas influentes. Quando um grande prêmio se conduz desse modo, seus camaradas chamam-no de cavador. O jovem arquiteto tinha dois partidos a tomar: servir o perfumista ou arrancar-lhe dinheiro. Mas Birotteau, o suplente, Birotteau, o futuro proprietário da metade dos terrenos da Madeleine, ao redor da qual cedo ou tarde seria construído um belo quarteirão, merecia ser tratado com deferência. Grindot sacrificou, assim, o ganho presente pelas vantagens futuras. Ouviu pacientemente os planos, as repetições, as ideias dum desses burgueses que são o alvo constante dos trotes, das brincadeiras dos artistas, objeto permanente de seu desprezo, e acompanhou o perfumista, balançando a cabeça para aplaudir seus projetos. Depois que o perfumista explicou tudo, o jovem arquiteto tentou resumir o plano para ele.

— O senhor tem três janelas que dão para a rua e mais a janela perdida no alto da escada e ocupada pelo patamar. Quer acrescentar a essas quatro janelas as duas do mesmo nível da casa vizinha, mudando a direção da escada para que todo o apartamento, na frente, fique no mesmo nível.

— O senhor me compreendeu perfeitamente — disse o perfumista, admirado.

— Para realizar o seu plano, é preciso iluminar a escada por cima e construir um cubículo para o porteiro, debaixo do pedestal.

— Um pedestal...

— Sim, a parte sobre a qual se assentará...

— Compreendo, senhor.

— Quanto ao seu apartamento, dê-me carta branca para dividi-lo e decorá-lo. Quero torná-lo digno...

— Digno! O senhor disse a palavra exata, senhor.

— Que tempo me dá para fazer essa reforma da decoração?

— Vinte dias.

— Quanto quer gastar com os operários? — perguntou Grindot.

— Ora, a quanto poderão montar essas reformas?

— Um arquiteto pode orçar uma construção nova com toda precisão — respondeu o moço —; mas, como não sei engrossar burgueses... perdão, senhor, a frase escapou-me!... devo preveni-lo de que é impossível orçar reformas e consertos. Somente daqui a oito dias poderei fazer um orçamento aproximado. Confie em mim: o senhor terá uma linda escada iluminada por cima, com um belo vestíbulo dando para a rua, e, debaixo do pedestal...

— Sempre o pedestal...

— Não se preocupe com isso, arranjarei lugar para um cubículo de porteiro. Seus apartamentos serão estudados e restaurados com carinho. Sim, senhor, viso à arte e não ao dinheiro! Não acha que, antes de tudo, preciso fazer com que falem em mim para vencer? Na minha opinião, o melhor meio para isso é não fazer negociatas com os fornecedores, conseguir belos resultados a baixo preço.

— Com tais ideias, moço — disse Birotteau num tom protetor —, o senhor há de vencer.

— Assim — acrescentou Grindot —, trate diretamente com os pedreiros, pintores, serralheiros, carpinteiros, marceneiros. Eu me encarrego de fiscalizar os pagamentos. Dê-me apenas dois mil francos de honorários, será dinheiro bem empregado. Dê-me liberdade para examinar as duas casas, amanhã ao meio-dia, e indique-me os seus operários.

— A quanto pode montar a despesa, por alto? — disse Birotteau.

— A dez ou doze mil francos — disse Grindot. — Não incluo o mobiliário, que certamente o senhor renovará. O senhor me dará o endereço do seu tapeceiro, pois tenho de entender-me com ele para combinar as cores, a fim de conseguir um conjunto de bom gosto.

— É o sr. Braschon, à Rue Saint-Antoine, a minhas ordens — disse o perfumista, assumindo uma atitude ducal.

O arquiteto anotou o endereço numa dessas cadernetinhas que são sempre presentes duma mulher bonita.

— Bem — disse Birotteau —, confio no senhor. Espere apenas que eu tenha conseguido a transferência do aluguel dos dois quartos vizinhos e obtido a permissão para abrir a parede.

— Avise-me por meio dum bilhete, esta noite — disse o arquiteto. — Tenho de passar a noite fazendo meus projetos e preferimos trabalhar para os burgueses a trabalhar para o rei da Prússia, isto é, para nós. Mesmo assim, vou tomar as medidas, as alturas, a dimensão dos quadros, o vão das janelas...

— É preciso que fique pronto no dia marcado — replicou Birotteau. — Sem o que, nada feito.

— Perfeitamente — respondeu o arquiteto. — Os operários passarão as noites trabalhando, empregaremos meios para secar as pinturas; mas não se deixe explorar pelos empreiteiros, pergunte-lhes o preço antecipadamente e fiscalize tudo!

— Paris é o único lugar do mundo onde se pode fazer um passe de mágica como este — disse Birotteau, permitindo-se um gesto asiático digno das Mil e Uma Noites. — O senhor me dará a honra de assistir ao meu baile. Nem todos os homens de talento participam do desprezo que se vota ao comércio e o senhor verá aqui um sábio de primeira ordem, o sr. Vauquelin, do Instituto! E também o sr. de La Billardière, o sr. conde de Fontaine, o sr. Lebas, juiz e presidente do Tribunal de Comércio; magistrados: o sr. conde de Granville,[266] da Corte real, e o sr. Popinot, do Tribunal de Primeira Instância, o sr. Camusot, do Tribunal de Comércio, e o sr. Cardot, seu sogro. E, finalmente, talvez também o sr. duque de Lenoncourt,[267] primeiro gentil-homem da Câmara do rei. Vou reunir alguns amigos, tanto... para festejar a libertação do território... como para celebrar a minha... promoção na Ordem da Legião de Honra...

Grindot fez um gesto estranho.

— É possível... que eu tenha merecido esse... insigne... e... real favor servindo no tribunal consular e combatendo pelos Bourbon nas escadarias de Saint-Roch a 13 de vendemiário, onde fui ferido por Napoleão. Esses títulos...

Constança, em traje matinal, saiu do quarto de dormir de Cesarina, onde se vestira; seu primeiro olhar interrompeu subitamente a inspiração do marido, que procurava formular uma frase normal para contar suas grandezas ao próximo.

— Vem cá, querida, aqui está o sr. Grindot, moço distinto e possuidor de grande talento. O senhor é o arquiteto recomendado pelo sr. de La Billardière para dirigir as nossas pequenas obras aqui.

O perfumista escondeu-se da mulher para fazer um sinal ao arquiteto, colocando um dedo nos lábios ao pronunciar a palavra pequenas, e o artista o compreendeu.

— Constança, este senhor vai tomar as medidas, as alturas, deixa-o trabalhar, querida — disse Birotteau, esquivando-se para a rua.

— Isto vai sair muito caro? — perguntou Constança ao arquiteto.

— Não, minha senhora, seis mil francos, por alto...

— Por alto! — exclamou a sra. Birotteau. — Peço-lhe, senhor, que não comece nada sem um orçamento nem sem uma lista de preços assinada. Conheço o sistema dos senhores empreiteiros: seis mil significam vinte mil. Não estamos em condições de fazer loucuras. Embora meu marido seja senhor de si, peço-lhe que lhe dê tempo para refletir.

— Minha senhora, o senhor suplente disse-me que lhe entregasse tudo pronto daqui a vinte dias e, se demorarmos mais um pouco, arriscar-se-ão a fazer as despesas sem alcançar o resultado.

— Há despesas e despesas — disse a bela perfumista.

— Ora, minha senhora, acha que é muita honra decorar um apartamento para um arquiteto que deseja erigir monumentos? Se me rebaixo a esse detalhe, é unicamente para ser agradável ao sr. de La Billardière, e, se a senhora tem medo de mim...

E fez um movimento de retirada.

— Está bem, está bem, senhor — disse Constança, voltando para o quarto e encostando a cabeça no ombro de Cesarina. — Ah! minha filha, teu pai vai ficar na miséria! Chamou um arquiteto, que tem bigodes e uma pera, e fala em construir monumentos! Vai atirar a casa pelas janelas para construir-nos um Louvre. César nunca se demora quando se trata de fazer uma loucura; falou-me no projeto esta noite e já vai executá-lo esta manhã.

— Ora, mamãe, deixa papai fazer o que quer; o bom Deus sempre o protegeu — disse Cesarina, beijando a mãe e sentando-se ao piano para mostrar ao arquiteto que a filha dum perfumista não era estranha às belas-artes.

Quando entrou no quarto de dormir, o arquiteto ficou surpreendido com a beleza de Cesarina e ficou até perturbado. Saindo do seu quartinho em traje caseiro de manhã, Cesarina, viçosa e rosada como uma moça pode ser rosada e viçosa aos dezoito anos, loura e franzina, de olhos azuis, oferecia ao olhar do artista essa elasticidade, tão rara em Paris, que realça as cútis mais delicadas e matiza duma coloração adorada pelos pintores o azul das veias cuja rede palpita sob a alvura da pele. Embora vivesse na atmosfera linfática duma loja parisiense, onde o ar dificilmente se renova, onde o sol pouco penetra, seus hábitos davam-lhe os benefícios da vida ao ar livre duma transtiberina de Roma. Tinha cabelos abundantes, implantados como os do pai e levantados de maneira a mostrar um pescoço bem-feito; eles caíam em cachos bem cuidados, como costumam fazê-lo todas as caixeiras de loja, a quem o desejo de ser notada inspira as minúcias mais inglesas em matéria de elegância. A beleza da moça não era nem a beleza duma lady nem a das duquesas francesas, mas a beleza simples e ruiva das flamengas de Rubens. Cesarina tinha o nariz arrebitado do pai, mas tornado espiritual pela delicadeza dos traços, semelhantes aos desses narizes essencialmente franceses tão bem conseguidos por Largillière.[268] A pele, como um tecido cheio e forte, denotava a vitalidade duma virgem. Tinha a fronte bonita da mãe, tornada ainda mais pura pela serenidade duma moça sem preocupações. Seus olhos azuis, submersos num fluido rico, exprimiam a graça meiga duma loura feliz. Se o bem-estar privava sua cabeça dessa expressão poética que os pintores se esforçam por emprestar às suas composições, fazendo-as demasiadamente pensativas, a vaga melancolia física que acomete as moças que nunca se afastaram do aconchego materno imprimia-lhe uma espécie de beleza ideal. Apesar da delicadeza das formas, tinha uma constituição forte; seus pés denunciavam a origem camponesa do pai, pois pecava por falta de nobreza e talvez também pela vermelhidão das mãos, sinal duma existência puramente burguesa: cedo ou tarde haveria de engordar. Como algumas jovens senhoras elegantes frequentavam a loja, ela acabara adquirindo o sentimento da elegância, certas atitudes de cabeça, certa maneira de falar e de se mover que lhe davam a aparência duma mulher distinta e transtornavam a cabeça de todos os rapazes, dos caixeiros, aos quais parecia distintíssima. Popinot jurara que não teria outra esposa a não ser Cesarina. Essa loura fluida que um olhar parecia trespassar e sempre pronta a desmanchar-se em lágrimas a uma palavra de censura era a única que lhe poderia dar o sentimento da superioridade masculina.

A encantadora moça inspirava amor sem deixar tempo de examinar se tinha suficiente espírito para torná-lo duradouro; mas de que serve isso que em Paris se denomina o espírito, numa classe onde o principal elemento de felicidade é o bom senso e a virtude? Moralmente, Cesarina saíra à mãe, um pouco aperfeiçoada pelas superfluidades da educação; gostava da música, desenhava a lápis preto a Virgem sentada, lia as obras das sras. Cottin e Riccoboni, de Bernardin de Saint-Pierre, Fénelon,[269] Racine. Nunca era vista ao lado da mãe no balcão, a não ser pouco antes de irem para a mesa ou quando ia substituí-la, o que raramente acontecia. O pai e a mãe, como todos esses plebeus enriquecidos que se esforçam por cultivar a ingratidão dos filhos, colocando-os acima deles, tinham prazer em deificar Cesarina, que, felizmente, tinha as virtudes da burguesia e não abusava da fraqueza dos pais.

A sra. Birotteau acompanhava o arquiteto com uma expressão inquieta e súplice, observando com terror e mostrando à filha os estranhos movimentos do metro, a bengala dos arquitetos e dos construtores, com a qual Grindot tomava suas medidas. Via naqueles golpes de varinha mágica uma atitude esconjuradora de muito mau agouro, preferiria que as paredes fossem menos altas, as peças menores, e não se animava a interrogar o moço sobre os efeitos daquela bruxaria.

— Fique descansada, minha senhora, não levarei nada comigo — disse o artista, sorrindo.

Cesarina não pôde conter o riso.

— Meu senhor — disse Constança, com uma voz implorativa, sem mesmo perceber o sarcasmo do arquiteto —, faça tudo com economia e, mais tarde, poderemos recompensá-lo...

Antes de ir à casa do sr. Molineux, proprietário da casa vizinha, César passou pelo cartório de Roguin para apanhar o contrato que Alexandre Crottat devia ter-lhe preparado para aquela transferência de arrendamento. Ao sair, Birotteau avistou Du Tillet à janela do escritório de Roguin. Embora a ligação do seu antigo caixeiro com a mulher do tabelião tornasse perfeitamente natural o encontro com Du Tillet à hora em que estavam sendo feitos os tratados relativos aos terrenos, Birotteau ficou preocupado, a despeito de sua extrema boa-fé. A expressão animada de Du Tillet indicava que estavam discutindo.

“Estará ele metido no negócio?”, interrogou-se intimamente, movido por sua prudência comercial.

A desconfiança atravessou sua alma como um raio. Voltou-se, viu a sra. Roguin e então a presença do banqueiro não mais lhe pareceu suspeita.

“Mas e se Constança tivesse razão?”, pensou. “Ora, não sou idiota para dar ouvidos às ideias da minha mulher! Aliás, falarei nisso a meu tio, esta manhã. Da Cour Batave,[270] onde mora o sr. Molineux, à Rue des Bourdonnais é um pulo.”

Um observador desconfiado, um comerciante que na sua carreira tivesse encontrado alguns patifes se teria salvado; mas os antecedentes de Birotteau, a incapacidade do seu espírito pouco hábil para subir a cadeia das induções pelas quais um homem superior chega às causas, tudo isso o perdeu. Encontrou o comerciante de guarda-chuvas todo enfarpelado e ia saindo com ele rumo à casa do proprietário quando sua criada Virgínia o segurou pelo braço.

— Senhor, a patroa não quer que o senhor saia...

— Ora essa! — exclamou Birotteau. — Mais uma ideia de mulher!...

— ... sem tomar sua taça de café, que já está servida.

— Ah! É mesmo. Vizinho — disse Birotteau a Cayron —, tenho tantas coisas na cabeça que nem ouço o estômago. Faça-me o favor de ir na frente; nós nos encontraremos na porta da casa do sr. Molineux, a não ser que prefira subir para explicar-lhe o caso: assim pouparíamos tempo.

O sr. Molineux era um capitalistazinho grotesco, desses que só existem em Paris, do mesmo modo que há um certo líquen que cresce só na Islândia. Esta comparação parecerá tanto mais justa se considerarmos que esse homem pertencia a uma natureza mista, a um reino animal e vegetal que um novo Mercier[271] poderia compor com criptógamos que nascem, florescem e morrem, sobre, nas ou sob as paredes barrentas de diversas casas estranhas e insalubres onde esses seres crescem de preferência. À primeira vista, essa planta humana, umbelífera, visto o boné azul, tubulado, que a coroava, de haste envolta numas calças esverdeadas e raízes bulbosas metidas em chinelas debruadas, mostrava uma fisionomia esbranquiçada e inexpressiva que certamente nada denunciava de venenoso. Nesse estranho exemplar reconheceríeis facilmente o acionista por excelência, que acredita em todas as notícias que a imprensa periódica batiza com sua tinta e que se limita a dizer: “Leia o jornal!”, o burguês essencialmente amigo da ordem e sempre rebelado contra o poder, ao qual, contudo, continua a obedecer, criatura fraca no conjunto e forte no detalhe, insensível como um oficial de justiça quando se trata dos seus direitos, e que dá morrião fresco aos pássaros e espinhas de peixe ao gato, capaz de interromper um recibo de aluguel para ensinar um canário a cantar, desconfiado como um carcereiro, mas que emprega dinheiro num mau negócio e depois trata de cobrir o prejuízo com uma sórdida avareza. A maldade dessa flor híbrida, realmente, só se revelava com o tempo; e, para se manifestar, sua amargura nauseabunda exigia a cocção duma transação qualquer na qual seus interesses se achassem misturados com os dos homens. Como todos os parisienses, Molineux tinha desejos de dominação e ambicionava essa parcela de soberania mais ou menos considerável, exercida por qualquer um, mesmo por um porteiro, sobre um maior ou menor número de vítimas, esposa, filho, locatário, caixeiro, cavalo, cão ou macaco, aos quais se devolvem, por ricochete, as mortificações recebidas na esfera superior aonde se aspira a chegar. Esse velhote cacete não tinha esposa nem filho, nem sobrinho, nem sobrinha; como tratava a criada muito mal, não conseguia fazer dela um saco de pancadas, pois ela evitava todo contato com ele, executando rigorosamente o serviço. Deste modo, seus apetites de tirania ficavam frustrados; para satisfazê-los, estudara pacientemente as leis sobre o contrato de aluguel e sobre as paredes-meias: aprofundara a jurisprudência que rege as casas em Paris, nos infinitamente pequenos artigos das entradas, saídas, dependências, taxas, impostos, varreduras, armação de altares na Festa de Corpus Christi, canos de despejos, iluminação direta, saliências sobre a via pública e vizinhança de estabelecimentos insalubres. Empregava seus recursos, sua atividade, toda a sua inteligência em manter sua situação de proprietário em perfeito estado de guerra; fizera disso uma distração e essa distração transformara-se em monomania. Gostava de proteger os cidadãos contra as invasões da ilegalidade; mas, como os motivos de queixa eram raros, sua paixão acabara envolvendo os locatários. O locatário passava a ser imediatamente seu inimigo, seu subalterno, seu súdito, seu feudatário; achava-se com direito às suas reverências e considerava grosseiro que passasse por ele na escada sem nada dizer-lhe. Redigia pessoalmente os recibos e os enviava ao meio-dia, na data do vencimento. O contribuinte em atraso recebia uma intimação com prazo fixo. Logo depois, apareciam a penhora, as custas, toda a cavalaria judiciária, com a rapidez daquilo que o carrasco chama de o maquinismo. Molineux não concedia prazo nem prorrogação; seu coração tinha um calo no lugar correspondente aos aluguéis.

— Eu lhe emprestarei dinheiro quando o senhor precisar — dizia a um homem solvável —, mas pague-me o aluguel; toda demora acarreta uma perda de juros de que a lei não nos indeniza.

Após um demorado exame das cabriolantes fantasias dos locatários que não mostravam nada de normal, que se sucediam derrubando as instituições dos seus antecessores, nem mais nem menos do que as dinastias, ele se outorgara uma Constituição e a observava religiosamente. Assim, o velhote não consertava nada; nenhuma lareira fumegava, as escadas eram limpas, os tetos brancos, as cornijas irrepreensíveis, os assoalhos inflexíveis sobre os barrotes, as pinturas satisfatórias; a serralheria nunca tinha mais de três anos, não faltava uma só vidraça, não havia fendas, só apareciam ladrilhos quebrados quando desocupavam os locais e, para recebê-los do inquilino, ele se fazia assistir por um serralheiro e um pintor vidraceiro, pessoas muito cordatas, dizia ele. O novo locatário tinha, então, liberdade para melhorar o local; mas, se o imprudente restaurasse o apartamento, o pequeno Molineux ficava pensando dia e noite num meio de o pôr na rua a fim de reocupar o apartamento recentemente decorado; espreitava-o, esperava-o e fazia-o cair nas suas manhas. Conhecia todas as sutilezas da legislação parisiense a respeito dos aluguéis. Demandista, escrevinhador, minutava cartas amáveis e polidas aos locatários; mas, no fundo do seu estilo, como sob sua fisionomia enfastiada e amável, escondia-se a alma de Shylock.[272] Exigia sempre seis meses adiantados, imputáveis sobre o último termo do aluguel, e o cortejo das espinhosas condições que inventara. Verificava se as casas tinham móveis suficientes para garantir o aluguel. Quando aparecia um novo inquilino, submetia-o ao policiamento de suas informações, pois não queria saber de certas profissões, o mais leve martelo o assustava. Depois, na hora de assinar o contrato, conservava-o e soletrava-o durante oito dias, temendo o que ele chamava de os etc. dos tabeliães.

Fora de suas manias de proprietário, João Batista Molineux parecia bondoso, prestativo; jogava bóston sem se queixar do jogo do parceiro; ria daquilo que faz rir os burgueses, falava no que eles falavam, nos atos arbitrários dos padeiros que tinham a sem-vergonhice de vender com pesos falsos, na conivência da polícia, nos heroicos dezessete deputados da Esquerda.[273] Lia o Bom senso do cura Meslier[274] e ia à missa, por não poder escolher entre o deísmo e o cristianismo; mas não contribuía com o pão bento e naquela época estava justamente pleiteando para se furtar às extorsivas exigências do clero. O infatigável peticionário escrevia, a esse respeito, cartas aos jornais, que não inseriam e deixavam sem resposta. Finalmente, parecia-se com um estimável burguês que põe solenemente no fogo sua acha de lenha de Natal, festeja os Reis, inventa trotes, percorre todos os bulevares quando o tempo está bonito, vai ver patinar e se dirige às duas horas para a esplanada da Place Louis xv nos dias de fogos de artifício, com pão no bolso, para pegar o melhor camarote.

A Cour Batave, onde morava o velhote, é o resultado duma dessas singulares especulações que, uma vez executadas, a gente não se consegue mais explicar. Essa construção claustral, com arcadas e galerias interiores, erguida em pedra de cantaria, ornada duma fonte ao fundo, uma fonte sedenta que abre sua boca de leão menos para dar água do que para pedi-la a todos os transeuntes, foi, sem dúvida, inventada para dotar o Faubourg Saint-Denis duma espécie de Palais-Royal. Esse monumento insalubre, enterrado no meio de altas casas que o cercam por todos os lados, só tem vida e movimento durante o dia; é o centro das obscuras travessas que lá se encontram e ligam o bairro do Mercado, Les Halles, ao de Saint-Martin pela famosa Rue Quincampoix, becos úmidos onde as pessoas apressadas contraem reumatismos; à noite, porém, nenhum lugar de Paris é mais deserto, e ao vê-lo diríeis que ele representa as catacumbas do comércio. Há ali várias cloacas industriais, poucos batavos e muitos vendeiros. Os apartamentos dessa casa destinada ao comércio não têm, naturalmente, outra vista a não ser a do pátio interno para onde dão todas as janelas, motivo por que os aluguéis são de preço ínfimo. O sr. Molineux morava num dos ângulos, no sexto andar, por motivos de saúde: o ar só era puro a setenta pés acima do solo. Lá, o bom proprietário desfrutava a encantadora vista dos moinhos de Montmartre enquanto passeava pelas caleiras, onde cultivava flores a despeito das determinações da polícia relativas aos jardins suspensos da moderna Babilônia. Seu apartamento compunha-se de quatro peças, não incluídas suas preciosas inglesas[275] situadas no andar superior: ele tinha a chave delas, elas lhe pertenciam, ele as instalara e estava em regra a esse respeito. Ao entrar, uma indecente nudez revelava imediatamente a avareza do homem: no vestíbulo, seis cadeiras de palha, uma lareira de louça, e, às paredes forradas de papel verde-garrafa, viam-se dependuradas quatro gravuras compradas em leilão; na sala de jantar, dois armários, duas gaiolas cheias de pássaros, uma mesa coberta com uma toalha de oleado, um barômetro, uma porta-janela dando para os jardins suspensos e cadeiras de acaju acolchoadas de crina; a sala de visitas tinha umas cortinazinhas de velha fazenda de seda verde, um móvel de veludo de Utrecht verde com a madeira pintada de branco. Quanto ao quarto do velho celibatário, este ostentava móveis do tempo de Luís xv desfigurados pelo uso e nos quais uma mulher com vestido branco não se encostaria de medo de manchá-lo. A lareira era ornada de uma pêndula de duas colunas entre as quais ficava o mostrador que servia de pedestal a uma Palas arremessando a lança: um mito. No assoalho viam-se pratos cheios de restos de comida destinados aos gatos, e quem entrasse arriscaria meter o pé dentro deles. Em cima de uma cômoda de pau-rosa, um retrato a pastel (Molineux na mocidade). E ainda livros, mesas onde se viam ignóbeis cartões verdes; sobre um consolo, seus falecidos canários empalhados; finalmente, uma cama duma penúria capaz de ensinar pobreza a uma carmelita.

César Birotteau ficou encantado com a requintada cortesia de Molineux, a quem encontrou de chambre de baetilha parda, cuidando do leite colocado sobre um pequeno rescaldo de lata a um canto da lareira e da água borrenta que fervia numa tigela de barro escura e que ele derramava em pequenas doses na cafeteira. Para não incomodar o proprietário, o vendedor de guarda-chuvas fora abrir a porta a Birotteau. Molineux tinha uma espécie de veneração pelos maires e pelos suplentes da cidade de Paris, que ele chamava de autoridades municipais. Ao ver o magistrado, levantou-se e conservou-se de pé, com o boné na mão, enquanto não se sentou o grande Birotteau.

— Não, senhor, sim, senhor. Ah! Senhor, se eu soubesse que tinha a honra de possuir, no seio dos meus modestos penates, um membro do órgão municipal de Paris, pode estar certo de que eu me sentiria no dever de ir à sua casa, embora sendo seu senhorio... ou às vésperas... de... sê-lo.

Birotteau fez-lhe um sinal, pedindo-lhe que tornasse a pôr o boné.

— Não, senhor, não me cobrirei enquanto o senhor não estiver sentado e de chapéu, se estiver resfriado; meu quarto é um pouco frio, a modicidade dos meus rendimentos não me permite... Às suas ordens, senhor suplente.

Birotteau espirrara enquanto procurava os documentos. Entregou-os a Molineux, dizendo, para evitar toda demora, que fora o sr. Roguin, tabelião, que os redigira à sua custa.

— Não contesto a capacidade do sr. Roguin, nome antigo muito conhecido no notariado parisiense; mas tenho meus pequenos hábitos, eu mesmo trato dos meus negócios, é uma mania muito desculpável, e meu tabelião é...

— Mas o nosso caso é tão simples... — disse o perfumista, habituado às decisões rápidas dos comerciantes.

— Tão simples! — exclamou Molineux. — Nada é simples em matéria de locação. Ah! O senhor não é proprietário, e deve-se considerar muito feliz por isso. Se o senhor soubesse até onde os locatários levam a ingratidão e a quantas precauções estamos obrigados! Olhe, senhor, tenho um inquilino...

Molineux narrou, durante um quarto de hora, de que modo o sr. Gendrin, desenhista, burlara a vigilância do seu porteiro à Rue Saint-Honoré. Gendrin cometera infâmias dignas de um Marat,[276] desenhos obscenos que a polícia tolerava, devido à conivência da polícia! Esse Gendrin, artista profundamente imoral, entrava em casa acompanhado de mulheres de vida desregrada e deixava a escada impraticável, brincadeira bem digna de um homem que desenhava caricaturas contra o governo. E por que essas maldades?... Porque lhe cobravam o aluguel no dia 15. Gendrin e Molineux iam questionar em juízo, porque, mesmo não tendo pago, o artista pretendia continuar no seu apartamento vazio. Molineux recebia cartas anônimas nas quais Gendrin, sem dúvida, o ameaçava de homicídio, à noite, nas vielas que levam à Cour Batave.

— A coisa chegou a um ponto — disse, continuando — que o senhor intendente de polícia, a quem confiei meu embaraço (aproveitei a ocasião para dizer-lhe algumas palavras sobre as modificações a introduzir nas leis que regem a matéria), me autorizou a usar pistolas para a minha segurança pessoal.

O velhote levantou-se para ir buscar as pistolas.

— Aqui estão elas! — exclamou.

— Mas o senhor não tem nada de semelhante a recear da minha parte — disse Birotteau, olhando para Cayron, a quem sorriu, dirigindo-lhe um olhar no qual transparecia um sentimento de compaixão por tal homem.

Molineux surpreendeu esse olhar e ficou ofendido por encontrar semelhante expressão numa autoridade municipal, que devia proteger seus administrados. A qualquer outro, ele teria perdoado esse gesto, mas não o perdoou a Birotteau.

— Meu senhor — replicou, num tom seco —, um juiz consular dos mais estimados, um suplente, um respeitável comerciante não desceria a essas baixezas, pois são baixezas! Mas, aqui no caso, há uma abertura que necessita do consentimento do seu senhorio, o sr. conde de Granville, e convenções a estipular para o restabelecimento da parede quando findar o arrendamento; finalmente, os aluguéis estão consideravelmente baixos, hão de subir, a Place Vendôme se valorizará, já se está valorizando! A Rue de Castiglione vai ser construída! E eu ficarei amarrado... amarrado...

— Acabemos com isto — disse Birotteau, estupefato. — Que é que o senhor quer? Conheço suficientemente os negócios para saber que os seus argumentos se calarão diante do argumento superior, o dinheiro! Bem, quanto quer?

— Nada além do justo, senhor suplente. Por quanto tempo quer fazer o arrendamento?

— Sete anos — respondeu Birotteau.

— Em sete anos, quanto não valerá o meu primeiro andar! — exclamou Molineux. — Quem não há de querer alugar dois quartos mobiliados neste bairro por mais de duzentos francos por mês, talvez! E eu ficarei amarrado, amarrado por um arrendamento. Elevaremos, portanto, o aluguel para mil e quinhentos francos. Por este preço, consinto em fazer a transferência dos dois quartos da locação do sr. Cayron, que, fica combinado — disse, olhando de esguelha para o comerciante —, arrendo por sete anos consecutivos. A abertura da porta será feita à sua custa, sob a condição de o senhor me trazer a aprovação e a desistência de todos os direitos do sr. conde de Granville. O senhor ficará com a responsabilidade dos fatos decorrentes dessa pequena abertura, não será obrigado a reconstruir a parede na parte que me concerne e me dará a título de indenização, desde já, quinhentos francos; não sabemos o que o futuro nos reserva e não quero correr um dia atrás de ninguém para reconstruir a parede.

— Essas condições me parecem mais ou menos justas — disse Birotteau.

— Além disso — acrescentou Molineux —, o senhor me dará uma caução de setecentos e cinquenta francos, hic et nunc, imputáveis sobre os seis últimos meses de ocupação das duas peças e dos quais o arrendamento dará quitação. Oh! Aceitarei pequenas letras, a título de valores em aluguel, para não perder a minha garantia, e com o prazo que quiser. Sou franco e breve em negócios. Estipularemos que o senhor fechará a porta que dá para a minha escada, onde não terá nenhum direito de entrada... à sua custa... em alvenaria. Fique tranquilo, não exigirei indenização para o restabelecimento ao fim do arrendamento: considero-a compreendida nos quinhentos francos. O senhor notará que sempre sou justo.

— Nós, os comerciantes, não somos tão meticulosos — disse o perfumista. — Não haveria negócio possível com tais formalidades.

— Oh! No comércio, isso é muito diferente, e principalmente na perfumaria, onde tudo corre às mil maravilhas — disse o velhote, com um sorriso azedo. — Mas, meu senhor, em matéria de locação, em Paris, nada é indiferente. Olhe, tive um inquilino, à Rue Montorgueil...

— Cavalheiro — disse Birotteau —, eu sentiria muito retardar o seu almoço; aqui estão os papéis, retifique-os, estou de acordo com tudo quanto o senhor me exige, assinemos amanhã, deixemos tudo combinado hoje, pois amanhã meu arquiteto precisa ter a casa à sua disposição.

— Há ainda um aluguel vencido — acrescentou Molineux, olhando para o vendedor de guarda-chuvas. — O sr. Cayron não quer pagá-lo, vamos juntá-lo às letras de câmbio para que o arrendamento vá de janeiro a janeiro. Será mais regular.

— Vá lá — disse Birotteau.

— O sou por franco para o porteiro...

— Mas — disse Birotteau — o senhor me priva da escada, da entrada, não é justo...

— Oh! O senhor é locatário — disse com voz peremptória o pequeno Molineux, a cavalo sobre o Código —, o senhor deve os impostos de portas e janelas e sua parte nas taxas. Quando tudo fica perfeitamente combinado, senhor, não há mais dificuldade alguma. O senhor vai ampliar bastante a sua casa, os negócios vão bem?

— Sim — disse Birotteau. — Mas o motivo é outro. Vou reunir alguns amigos, tanto para celebrar a libertação do território como para festejar minha promoção na Ordem da Legião de Honra...

— Ah! Ah! — disse Molineux. — Uma recompensa bem merecida!

— Sim — disse Birotteau —, é possível que eu tenha merecido essa distinção e esse favor real, trabalhando no tribunal consular e combatendo pelos Bourbon nas escadarias de Saint-Roch, a 13 de vendemiário, onde fui ferido por Napoleão; esses títulos...

— Equivalem aos dos nossos bravos soldados do antigo Exército. A fita é vermelha, porque é embebida no sangue derramado.

A essas palavras, tiradas de Le Constitutionnel,[277] Birotteau não se pôde esquivar de convidar o pequeno Molineux, que se confundiu em agradecimentos e se sentiu inclinado a perdoar-lhe o desdém. O velhote acompanhou o novo inquilino até o patamar, cumulando-o de gentilezas. Quando Birotteau chegou ao centro da Cour Batave com Cayron, olhou para o vizinho com uma expressão divertida.

— Nunca pensei que pudesse haver gente tão... medrosa! — disse, retendo nos lábios a palavra estúpida.

— Ah! Senhor — disse Cayron —, nem todo mundo tem o seu talento.

Birotteau podia se considerar um homem superior diante do sr. Molineux; a resposta do vendedor de guarda-chuvas fê-lo sorrir satisfeito e ele o cumprimentou regiamente.

“Estou no mercado”, pensou Birotteau, “vamos tratar do negócio das avelãs.”

Depois de uma hora de procura, Birotteau, que as vendedoras do mercado haviam mandado à Rue des Lombards, onde vendiam avelãs para confeitos, soube, pelos amigos Matifat, que a fruta seca só era vendida por atacado por uma certa sra. Angélica Madou, residente à Rue Perrin-Gasselin, único endereço onde se podiam encontrar a legítima avelã da Provença e a verdadeira avelã branca dos Alpes.

A Rue Perrin-Gasselin é um dos becos do labirinto limitado pelo cais, a Rue Saint-Denis, a Rue de la Ferronnerie e a Rue de la Monnaie, e que representa as entranhas da cidade. Formiga ali um número infinito de mercadorias heterogêneas e misturadas, fétidas e elegantes, o arenque e a musselina, a seda e o mel, a manteiga e os filós, principalmente muito desse comércio miúdo que a gente não suspeita de que haja em Paris, do mesmo modo que a maioria dos homens nem desconfia do que se cozinha no seu pâncreas, e que tinha então como sugador um certo Bidault, conhecido por Gigonnet, agiota, residente à Rue Grenétat. Aqui, antigas estrebarias são ocupadas por tonéis de óleo, as cocheiras encerram miríades de meias de algodão. Mais adiante se guarda o grosso dos gêneros vendidos a varejo no mercado. A sra. Madou, antiga revendedora de peixe fresco, lançada há dez anos na fruta seca por uma ligação com o antigo proprietário do seu estabelecimento e que alimentara durante muito tempo os falatórios do mercado, era uma beleza viril e provocante, então desaparecida no meio de uma excessiva gordura. Morava no pavimento térreo de uma casa amarela em ruínas, mas sustentada em cada andar por cruzes de ferro. O falecido conseguira desfazer-se dos concorrentes e converter seu comércio em monopólio; a despeito de uns leves defeitos de educação, sua herdeira podia continuar a rotina que ele estabelecera, andando dum lado para outro nos armazéns, que ocupavam cocheiras, estrebarias e antigas oficinas, onde combatia os insetos com êxito. Não tinha balcão nem caixa nem livros; não sabia ler nem escrever; respondia às cartas com murros, considerando-as um insulto. No restante, uma boa mulher, forte em cores, que usava na cabeça um lenço por cima da touca e conquistava, com sua voz de oficlide, a estima dos carroceiros que lhe levavam as mercadorias e com os quais fazia encrencas que sempre terminavam numa garrafa de branquinha. Nunca tinha dificuldades com os cultivadores que lhe expediam seus frutos, pois se correspondiam por meio do dinheiro batido, única maneira de entendimento possível entre eles, e a tia Madou ia visitá-los no verão. Birotteau avistou a selvagem vendedora no meio dos sacos de avelãs, de castanhas e de nozes.

— Bom dia, minha cara senhora! — disse Birotteau, com um ar despreocupado.

— Tua cara! — replicou ela. — Eh! meu filho, acaso me conheces para ter relações amáveis comigo? Será que guardamos reis juntos?

— Sou perfumista e, além disso, adjunto do maire do segundo distrito de Paris, e assim, como magistrado e comprador, tenho direito a que a senhora use outro tom comigo.

— Não me interessa saber se você vive junto com o maire nem se mora no primeiro ou no segundo distrito. Falo com a minha freguesia como bem entendo. Se ela não estiver contente, que se arranje noutra parte.

— Aí está o resultado do monopólio! — murmurou Birotteau.

— Popole! Ele é meu afilhado: será que fez alguma asneira? O senhor veio para cá por causa dele, meu respeitável magistrado? — disse ela, abrandando a voz.

— Não, tenho a honra de dizer-lhe que vim na qualidade de comprador.

— Bem, e como te chamas, meu rapaz? Nunca te vi por aqui.

— Falando nesse tom, você deve vender as avelãs bem baratinhas, hem? — disse Birotteau, que declinou seu nome e seus títulos.

— Ah! O senhor é o famoso Birotteau que tem uma bela mulher. E quanto quer destes torrões de açúcar de avelãs, meu benzinho?

— Seis mil pesadas.

— É tudo quanto tenho — disse a vendedora, falando como uma flauta rouca. — O senhor não se descuida para casar as moças e perfumá-las! Que Deus o abençoe, o senhor tem trabalho. Desculpe! O senhor vai ser um freguês e tanto, e será inscrito no coração da mulher que mais estimo no mundo.

— Quem é?

— Quem? A prezada sra. Madou!

— Quanto custam as suas avelãs?

— Para o senhor, meu burguês, vinte e cinco francos o cento de pesadas, se comprar todas.

— Vinte e cinco francos — disse Birotteau —, mil e quinhentos francos! E talvez eu precise de cem milheiros por ano!

— Mas veja que bela mercadoria, colhida de pés descalços! — disse ela, mergulhando o braço vermelho num saco de avelãs. — E nada de frutas ocas, meu caro senhor! Imagine que as mercearias vendem seus “quatro mendigos” a quatro francos a libra e que em cada quatro libras misturam mais de uma libra de avelãs vazias. Terei de perder dinheiro na minha mercadoria para ser-lhe agradável? O senhor é muito gentil, mas não me agrada suficientemente para isto! Se o senhor precisa de tão grande quantidade, poderemos fechar o negócio por vinte francos, pois não se deve mandar de volta um adjunto do maire, isso poderia dar azar aos casados! Pegue o artigo para ver que bonito, e pesado! Não é preciso contar cinquenta por libra! São cheias, o verme não entrou nelas!

— Bem, mande-me seis milheiros de pesadas por dois mil francos, e a noventa dias, para a minha fábrica, à Rue du Faubourg du Temple, amanhã bem cedo.

— Apressado como uma noiva! Bem, adeus, senhor maire, não me queira mal. Mas, se for a mesma coisa para o senhor — disse ela, acompanhando Birotteau pelo pátio —, prefiro suas letras a quarenta dias, pois lhe vendo muito barato e não posso, ainda por cima, perder o valor do desconto! Ah! que bom coração tem o tio Gigonnet, suga-nos a alma como uma aranha papa uma mosca.

— Está bem, a cinquenta dias. Mas vamos pesar cem libras a mais, para compensar as frutas vazias. Sem isso, nada feito.

— Ah! O cachorro é sabido! — disse a sra. Madou. — Não se pode alisar-lhe o pelo. Foram aqueles avarentos da Rue des Lombards que lhe ensinaram isso! Aqueles lobos grandes se juntam para devorar os pobres cordeirinhos.

O cordeirinho tinha cinco pés de altura e três pés de circunferência, parecia um frade-de-pedra vestido de algodão listado e sem cintura.

O perfumista, mergulhado em seus projetos, meditava, caminhando ao longo da Rue Saint-Honoré, sobre o duelo com o Óleo de Macassar, imaginava rótulos e formatos dos frascos, calculava a contextura da tampa, a cor dos cartazes. E diga-se, depois, que não há poesia no comércio! Newton não fez mais cálculos para o seu famoso binômio do que os fazia Birotteau para a Essência Comagena, pois o óleo se transformara em essência, ele passava duma expressão para a outra sem lhes conhecer o valor. Todas as combinações se comprimiam na sua cabeça e ele tomava essa atividade no vácuo pela substancial ação do talento. Na sua preocupação, passou da Rue des Bourdonnais e teve de voltar, ao lembrar-se do tio.

V — UM VERDADEIRO FILÓSOFO, UM GRANDE QUÍMICO

Cláudio José Pillerault, ex-comerciante de ferragens numa casa em cuja tabuleta se lia o sino de ouro, era uma dessas fisionomias belas por si mesmas: modo de vida e hábitos, inteligência e coração, linguagem e pensamento, tudo nele se harmonizava. Único parente da sra. Birotteau, Pillerault concentrara toda sua afeição nela e em Cesarina, depois de ter perdido, no curso de sua vida comercial, a esposa e um filho, além de um filho adotivo, o filho da sua cozinheira. Essas cruéis perdas lançaram o bom homem num estoicismo cristão, bela doutrina que animava sua existência e dava aos seus últimos dias um colorido entre vivo e amortecido como o que doura o pôr do sol no inverno.

Sua cabeça, magra e encovada, dum tom severo, no qual o ocre e o bistre estavam harmoniosamente misturados, oferecia uma impressionante analogia com a cabeça que os pintores dão ao Tempo, modificada, porém, no sentido da vulgaridade, pois os hábitos do comércio haviam atenuado nele o caráter monumental e rebarbativo que os pintores, os estatuários e fundidores de pêndulas costumam exagerar. De estatura mediana, Pillerault era antes rechonchudo que gordo; a natureza talhara-o para o trabalho e a longevidade. Seus ombros largos denunciavam uma constituição robusta, pois era de temperamento seco, que aparentava não ter emoções, sem, contudo, ser insensível. Pillerault, pouco expansivo, como se percebia por sua atitude calma e seu rosto fechado, tinha uma sensibilidade puramente interior, sem palavras e sem ênfase. Seus olhos, de pupilas verdes pontilhadas de preto, caracterizavam-se por uma inalterável lucidez. Sua fronte, sulcada de linhas retas e amarelada pelo tempo, era pequena, estreita, severa, coberta de cabelos dum cinzento prateado, cortados rente e parecidos com feltro. A boca fina atestava a prudência e não a avareza. A vivacidade do olhar revelava uma existência moderada. Finalmente, a probidade, o sentimento do dever e uma sincera modéstia constituíam-lhe uma espécie de auréola, emprestando ao seu rosto o relevo duma bela saúde.

Durante sessenta anos levara a vida dura e sóbria dum trabalhador obstinado. Sua história parecia-se com a de César, com exceção das circunstâncias favoráveis. Fora caixeiro até os trinta anos, aplicava o dinheiro na casa comercial onde trabalhava, enquanto César empregava suas economias em títulos de renda; finalmente, tivera de suportar o máximo, suas enxadas e suas ferramentas foram requisitadas. Sua índole prudente e reservada, sua previdência e sua reflexão matemática influíram sobre seus métodos de trabalho. A maioria dos seus negócios era fechada sob palavra e ele raramente encontrara dificuldades. Observador, como todas as pessoas pensativas, estudava os indivíduos, deixando-os conversar; por esse meio, muitas vezes recusava negócios aparentemente vantajosos, que seus vizinhos pegavam para mais tarde se arrependerem, dizendo consigo que Pillerault farejava os velhacos. Preferia os lucros mínimos e seguros a esses golpes audaciosos que visam a avultadas somas. Lidava com chapas de lareira, grades, grelhas grosseiras, tachos de ferro fundido e de ferro, enxadas e fornecimentos aos camponeses. Esse ramo muito ingrato exigia um trabalho mecânico imenso. O ganho não estava na razão do trabalho, ele tinha pequena margem de lucro nesses artigos pesados, difíceis de transportar e de armazenar. Assim, tivera de pregar muitos caixotes, fazer e desfazer muitos fardos, descarregar muitos volumes. Não havia fortuna mais nobremente ganha nem mais legítima nem mais respeitável do que a dele. Nunca fora careiro nem jamais correra atrás dos negócios. Nos últimos dias de sua atividade comercial, era visto fumando cachimbo à porta da casa, observando os transeuntes e contemplando o trabalho dos caixeiros. Em 1814, quando se retirou da atividade, seu capital consistia, em primeiro lugar, em setenta mil francos, que empregou e que lhe davam cinco mil e tantos francos de renda, e mais quarenta mil francos, pagáveis em cinco anos, sem juros, que representavam o valor do estabelecimento, que vendera a um dos seus caixeiros. Durante trinta anos, fazendo anualmente cem mil francos de negócios, ganhara sete por cento dessa soma, a metade dos quais era absorvida com as suas despesas. Tal foi o seu balanço.

Seus vizinhos, pouco invejosos dessa mediocridade, elogiavam sua prudência sem compreendê-la. Na esquina da Rue de la Monnaie com a Rue Saint-Honoré, há o Café David, onde alguns antigos comerciantes, como Pillerault, costumavam tomar café à noite. A adoção do filho da cozinheira constituíra, às vezes, naquela roda de palestra, objeto de certas brincadeiras, dessas que a gente dirige a um homem respeitável, pois o ferrageiro inspirava uma estima respeitosa sem a ter procurado: a sua lhe bastava. Assim, quando Pillerault perdeu o pobre rapaz, mais de duzentas pessoas compareceram às cerimônias e o acompanharam até o cemitério. Nessa circunstância, mostrou-se heroico. Sua mágoa, reprimida como a de todos os homens fortes sem ostentação, aumentou a simpatia do bairro pelo bom sujeito, expressão pronunciada por Pillerault com uma inflexão de voz que lhe ampliava o sentido e o enobrecia.

A sobriedade de Cláudio Pillerault, tornada um hábito, não cedeu aos prazeres da vida ociosa, quando, ao deixar o comércio, se recolheu a esse descanso que tanto abate o burguês parisiense; continuou no seu gênero de vida e animou a velhice com suas convicções políticas, que, podemos dizê-lo, eram as da extrema esquerda. Pillerault pertencia a essa parcela trabalhadora agregada pela Revolução à burguesia. A única mancha do seu caráter era a importância que ligava à sua conquista: pugnava por seus direitos, pela liberdade, pelos frutos da Revolução; julgava seu bem-estar e sua estabilidade política comprometidos pelos jesuítas, cujo secreto poder os liberais denunciavam, e ameaçados pelas ideias que Le Constitutionnel atribuía ao irmão mais velho do rei.[278] Ele era, aliás, coerente com sua vida e suas ideias; não era mesquinho na política, não injuriava os adversários, tinha medo dos cortesãos, acreditava nas virtudes republicanas: imaginava Manuel incapaz de qualquer excesso, o general Foy um grande homem, Casimir Perier um político sem ambição, La Fayette um profeta político, Courier um homem bom.[279] Numa palavra, acariciava nobres quimeras. O belo ancião vivia uma vida de família, frequentava a casa dos Ragon e a da sua sobrinha, a do juiz Popinot, a de José Lebas e a dos Matifat. Mil e quinhentos francos cobriam todas as suas despesas pessoais. Quanto ao restante dos rendimentos, empregava-o em obras de caridade, em presentes à sobrinha; quatro vezes por ano oferecia um jantar aos amigos no Roland, à Rue du Hasard, e os levava ao teatro. Representava o papel desses solteirões sobre os quais as mulheres casadas emitem letras de câmbio à vista para suas fantasias: um passeio ao campo, à Ópera, ao Montagnes-Beaujon.[280] Pillerault sentia-se feliz, então, com o prazer que proporcionava, alegrava-se no coração dos outros. Depois que vendeu sua casa comercial, não quis deixar o bairro onde viviam seus amigos e alugou, à Rue des Bourdonnais, um pequeno apartamento de três peças, no quarto andar de uma casa velha.

Assim como os hábitos de Molineux se retratavam em seu estranho mobiliário, também a vida pura e simples de Pillerault se revelava na disposição interior do seu apartamento, composto de um vestíbulo, uma sala de visitas e um quarto de dormir. Salvo as dimensões, era a cela do cartuxo. O vestíbulo, de assoalho vermelho e encerado, tinha apenas uma janela ornada de cortinas de percal com barras encarnadas, cadeiras de acaju guarnecidas de carneira encarnada e pregos dourados; as paredes eram forradas de papel verde-oliva e decoradas com o Juramento dos Americanos, o retrato de Bonaparte como primeiro-cônsul e A batalha de Austerlitz.[281] A sala de visitas, arranjada certamente pelo tapeceiro, tinha uma mobília amarela com rosáceas e um tapete, a guarnição da lareira de bronze sem ornatos, com a frente simplesmente pintada, um console com um vaso de flores sob uma redoma, uma mesa redonda com um licoreiro. Tudo era novo nessa peça, denunciando um sacrifício feito às exigências mundanas pelo velho ferrageiro, que raramente recebia visitas. No quarto, simples como o dum religioso ou dum velho soldado, os dois homens que melhor apreciam a vida, destacava-se um crucifixo com uma pia de água benta. Essa profissão de fé num republicano estoico comovia profundamente. Uma velha encarregava-se da arrumação da casa, mas seu respeito pelas mulheres era tão grande que ele não deixava que ela lhe engraxasse os sapatos, que eram limpos por um engraxate mediante ordenado.

Seu vestuário era simples e de boa aparência. Usava habitualmente sobrecasaca e calças de casimira azul, colete de algodão de cor, gravata branca e botinas; nos feriados, envergava uma casaca com botões de metal. Seus hábitos relativos ao despertar, ao almoço, às caminhadas, ao jantar, às reuniões nas casas dos amigos e à volta para a casa eram assinalados pela mais estrita pontualidade, pois a regularidade dos costumes dá vida longa e saúde. Nunca se falou em política entre César, os Ragon, o padre Loraux e ele, pois as pessoas desse círculo se conheciam suficientemente para que se fossem entregar a uma discussão no terreno do proselitismo. Como o sobrinho e os Ragon, tinha grande confiança em Roguin. Para ele, todo tabelião de Paris era uma criatura venerável, uma imagem viva da probidade. No negócio dos terrenos, Pillerault entregara-se a uma investigação que motivara a audácia com que César combatera os pressentimentos da esposa.

O perfumista subiu os setenta e oito degraus que levavam à portinha escura do apartamento do tio, conjeturando que o velho devia estar ainda muito forte para continuar a subir aquilo sem se queixar. Avistou a sobrecasaca e as calças num cabide, no lado de fora; a sra. Vaillant[282] as batia e escovava, enquanto o legítimo filósofo, envolto numa sobrecasaca de baetilha cinza, almoçava junto à lareira, lendo os debates parlamentares em Le Constitutionnel ou em Journal du Commerce.[283]

— Meu tio — disse César —, o negócio está feito, vão ser lavradas as escrituras. Se o senhor, contudo, tiver algum receio ou estiver descontente, ainda é tempo de desistir.

— Por que haveria eu de desistir? O negócio é bom, embora os resultados sejam muito demorados, como os de todos os negócios seguros. Meus cinquenta mil francos estão no Banco, recebi ontem os últimos cinco mil francos da venda da minha casa comercial. Quanto aos Ragon, vão empregar toda a fortuna nisto.

— Bem, e como vivem eles?

— Ora, fica descansado, vão vivendo.

— Compreendo o que o senhor quer dizer, meu tio — disse Birotteau, vivamente comovido e apertando as mãos do austero velho.

— Como será feito o negócio? — perguntou bruscamente Pillerault.

— Entrarei com três oitavos; o senhor e os Ragon, com um oitavo; abrirei um crédito para os senhores até que se tenha decidido a questão da escritura.

— Bem, meu rapaz, és rico que chegue para empregar trezentos mil francos nisto? Acho que arriscas demais fora do teu negócio; será que ele não ficará prejudicado com isso? Enfim, isso é contigo! Se sofresses um fracasso, as apólices estão a oitenta e eu poderia vender dois mil francos das minhas consolidadas. Toma cuidado, rapaz! Se tivesses de recorrer a mim, seria na fortuna da tua filha que tocarias.

— Meu tio, como o senhor sabe dizer com simplicidade as mais belas coisas! O senhor me sensibiliza muito.

— O general Foy me sensibilizou agora mesmo, de maneira completamente diferente! Enfim, vai, fecha o negócio: os terrenos não hão de voar, serão nossos em partes iguais; mesmo que tenhamos de esperar seis anos, sempre teremos alguns juros, existem lá uns galpões que podem ser alugados. Não poderemos perder nada. Só há um risco, mas este é impossível, que seria Roguin fugir com o nosso dinheiro...

— Foi isso mesmo que minha mulher me disse esta noite, ela está com medo.

— Roguin fugir com o nosso dinheiro! — disse Pillerault, rindo. — E por quê?

— Ela diz que ele gosta muito de mulheres e, como todos os que não podem consegui-las, vive furioso por...

Após ter deixado escapar um sorriso de incredulidade, Pillerault destacou uma folha duma caderneta, escreveu a quantia e assinou.

— Toma, aqui tens um cheque de cem mil francos, correspondente à minha parte e à dos Ragon. Eles venderam ao patife do Du Tillet suas quinze ações das minas de Wortschin para completar a importância. Gente de bem passando dificuldades é de apertar o coração. Gente tão digna, tão nobre, a flor da antiga burguesia, enfim. Seu irmão Popinot, o juiz, não sabe nada disso, eles se escondem dele para evitar que ele os ajude. Pessoas que trabalharam, como eu, durante trinta anos...

— Deus queira que o Óleo Comageno vença! — exclamou Birotteau. — Assim eu serei duplamente feliz! Adeus, meu tio; venha jantar conosco no domingo com os Ragon, Roguin e o sr. Claparon, pois assinaremos todos depois de amanhã; amanhã é sexta-feira e não quero fazer negó...

— És supersticioso?

— Meu tio, nunca poderei acreditar que o dia em que o filho de Deus foi levado à morte pelos homens seja um dia favorável. No dia 21 de janeiro a gente também suspende todos os negócios.

— Até domingo — disse Pillerault.

“Se não fossem suas opiniões políticas”, pensou Birotteau, enquanto descia a escada, “não sei se haveria alguém igual ao meu tio no mundo. Que proveito lhe dá a política? Ele seria perfeito se não pensasse absolutamente nela. Sua teimosia prova que não há um homem perfeito.”

— Três horas, já — disse César, entrando em casa.

— O senhor vai ficar com estas letrinhas? — perguntou-lhe Celestino, mostrando-lhe os títulos do vendedor de guarda-chuvas.

— Sim, a seis, sem comissão. Minha mulher, apronta tudo para eu me vestir, vou à casa do sr. Vauquelin, sabes para quê. Uma gravata branca, principalmente.

Birotteau deu algumas ordens aos caixeiros; não viu Popinot, imaginou que seu futuro sócio estivesse se vestindo e subiu rapidamente ao quarto, onde encontrou a Virgem de Dresde magnificamente emoldurada de acordo com as suas determinações.

— Então, achas bonitinho? — perguntou à filha.

— Ora, papai, dize que é belo, senão hão de zombar de ti.

— Vejam só a filha censurando o pai!... Ora, para o meu gosto, prefiro o Hero e Leandro. A Virgem é um assunto religioso que fica bem numa capela; mas Hero e Leandro... hei de comprá-lo, pois o frasco de óleo me deu uma ideia...

— Não te entendo, papai.

— Virgínia, um fiacre! — gritou César, com uma voz retumbante, quando acabou de fazer a barba e o tímido Popinot apareceu arrastando o pé, por causa de Cesarina.

O apaixonado não percebera ainda que seu defeito já não existia para a namorada. Deliciosa prova de amor que somente aqueles a quem a natureza infligiu um defeito corporal podem receber!

— Senhor — disse —, a prensa poderá começar a funcionar amanhã.

— Então, que tens, Popinot? — perguntou César, vendo Anselmo corar.

— Estou muito contente porque encontrei uma loja com depósito, cozinha e quartos no andar de cima, por mil e duzentos francos anuais, à Rue des Cinq-Diamants.

— Precisas conseguir um arrendamento por dezoito anos — disse Birotteau. — Mas vamos à casa do sr. Vauquelin, conversaremos no caminho.

Popinot e Birotteau tomaram um fiacre, diante dos caixeiros espantados com aqueles trajes fora do comum e aquela carruagem anormal, pois ignoravam as grandes coisas imaginadas pelo dono da Rainha das Rosas.

— Vamos agora saber a verdade sobre as avelãs! — disse consigo o perfumista.

— Avelãs? — indagou Popinot.

— Conheces o meu segredo, Popinot — disse o perfumista —, deixei escapar a palavra avelã! Tudo está nisto. O óleo de avelã é o único que tem ação sobre os cabelos, nenhuma casa de perfumaria ainda se lembrou disto. Ao ver a gravura de Hero e Leandro, pensei: se os antigos usavam tanto o óleo para os cabelos, deviam ter razão, pois os antigos são os antigos! Apesar das pretensões dos modernos, sou da opinião de Boileau a respeito dos antigos.[284] Partindo desse ponto, cheguei ao óleo de avelã, graças ao pequeno Bianchon,[285] o estudante de medicina, teu parente; disse-me ele que na escola seus colegas usavam o óleo de avelã para ativar o crescimento do bigode e das suíças. Falta-nos apenas a sanção do ilustre sr. Vauquelin. Esclarecidos por ele, não enganaremos o público. Agora mesmo estive no mercado, na casa duma vendedora de avelãs, para conseguir a matéria-prima; daqui a pouco, estarei na casa dum dos maiores sábios da França para extrair-lhe a quintessência. Os provérbios não são tolos! Os extremos se tocam. Vê, meu rapaz, como o comércio é o intermediário dos produtos vegetais e da ciência. Angélica Madou colhe, o sr. Vauquelin extrai e nós vendemos uma essência. As avelãs valem dez sous a libra, o sr. Vauquelin vai centuplicar-lhes o valor e nós talvez venhamos a prestar um serviço à humanidade, pois, se a vaidade causa grandes tormentos ao homem, um bom cosmético constitui um benefício.

A religiosa admiração com que Popinot escutava o pai da sua Cesarina estimulou a eloquência de Birotteau, que se permitiu as frases mais selvagens que um burguês seja capaz de inventar.

— Sê respeitoso, Anselmo — disse, quando entraram na rua onde morava Vauquelin —, vamos penetrar no santuário da ciência. Põe a Virgem em evidência, sem ostentação, na sala de refeições, em cima duma cadeira. Queira Deus que eu não me atrapalhe no que quero dizer! — exclamou Birotteau com toda naturalidade. — Popinot, esse homem me causa uma impressão química, sua voz me esquenta as entranhas e chega mesmo a provocar-me uma leve cólica. Ele é o meu benfeitor, e, daqui a pouco, Anselmo, será também o teu.

Essas palavras deram frio a Popinot, que começou a pisar como se andasse sobre ovos e olhou com um ar inquieto para as paredes. O sr. Vauquelin estava no escritório e anunciaram-lhe a visita de Birotteau. O acadêmico sabia que o perfumista fora nomeado suplente do maire e estava com muito prestígio, e o recebeu.

— Vejo que mesmo nas suas grandezas não se esqueceu de mim — disse o sábio. — Mas, de químico a perfumista, não há mais do que um palmo.

— Ai de mim, senhor! Do seu gênio à simplicidade dum homem como eu, vai a imensidade! Devo-lhe isso que o senhor chama de minhas grandezas, e não o esquecerei nem neste mundo nem no outro.

— Oh! No outro, segundo dizem, seremos todos iguais, os reis e os remendões.

— Quer dizer, os reis e os remendões que tiverem vivido santamente — observou Birotteau.

— É seu filho? — perguntou Vauquelin, olhando para Popinot, que estava espantado de não ver nada de extraordinário no gabinete onde esperava encontrar monstruosidades, máquinas gigantescas, metais volantes, substâncias animadas.

— Não, senhor, mas é um rapaz que estimo muito e que vem implorar um favor à sua generosidade, que é igual ao seu talento, o que quer dizer infinita — disse com uma expressão astuciosa. — Vimos consultá-lo uma segunda vez, com dezesseis anos de intervalo, sobre um assunto importante, a respeito do qual sou ignorante como um perfumista.

— Vejamos o que é.

— Sei que os cabelos ocupam as suas vigílias e que o senhor se dedica à sua análise. Enquanto o senhor pensa neles para a glória, eu penso para o comércio.

— Meu caro sr. Birotteau, que quer de mim? A análise dos cabelos?

E tomou uma folha de papel.

— Vou ler na Academia de Ciências uma nota sobre esse assunto. Os cabelos são formados duma grande quantidade de muco, duma pequena quantidade de óleo branco, de muito óleo preto esverdeado, de ferro, de alguns átomos de óxido de manganês, de fosfato de cálcio, duma quantidade muito pequena de carbonato de cálcio, de sílica e de muito enxofre. As diferentes proporções dessas matérias determinam as diferentes cores dos cabelos. Assim, os ruivos têm muito mais óleo preto esverdeado do que os outros.

César e Popinot arregalaram os olhos de maneira a provocar o riso.

— Nove coisas! — exclamou Birotteau. — Como! então há nos cabelos metais e óleos? É preciso que isso seja dito pelo senhor, que é um homem que venero, para que eu acredite. É extraordinário! Deus é grande, sr. Vauquelin.

— O cabelo é produzido por um órgão folicular — acrescentou o grande químico —, uma espécie de bolsa aberta nas duas extremidades: por uma ela comunica aos nervos e aos vasos, e pela outra sai o cabelo. Segundo alguns dos nossos sábios colegas, e entre eles o sr. de Blainville,[286] o cabelo seria uma parte morta expulsa dessa bolsa ou cripta, que se enche duma matéria polposa.

— É como se se dissesse o suor em varinhas — interveio Popinot, a quem o perfumista bateu com o pé no calcanhar.

Vauquelin sorriu à ideia de Popinot.

— Ele tem talento, não é? — disse então César, indicando Popinot. — Mas, senhor, se os cabelos são natimortos, é impossível fazê-los viver e estamos perdidos! O prospecto é absurdo: o senhor não sabe como o público é engraçado, não se pode dizer-lhe...

— Que ele tem estrume na cabeça — disse Popinot, querendo fazer Vauquelin rir novamente.

— Catacumbas aéreas — respondeu-lhe o químico, continuando a brincadeira.

— E as minhas avelãs que já estão compradas! — exclamou Birotteau, sentido com a perda comercial. — Mas como é que vendem?...

— Tranquilize-se — disse Vauquelin, sorrindo. — Vejo que se trata de algum segredo para impedir os cabelos de cair ou de branquear. Escute, eis a minha opinião sobre o assunto, depois de todos os meus estudos.

Aqui Popinot ergueu as orelhas como uma lebre assustada.

— A descoloração dessa substância morta ou viva é, segundo penso, causada pela interrupção da secreção das matérias corantes, o que explicaria como, nos climas frios, o pelo dos animais que dão as belas peliças empalidece e branqueia durante o inverno.

— Presta atenção, Popinot!

— É evidente — acrescentou Vauquelin — que a alteração das cabeleiras é devida a alterações súbitas na temperatura ambiente...

— Ambiente, Popinot... lembra-te disso! — gritou César.

— Sim — disse Vauquelin —, ao frio e ao calor alternados, ou a fenômenos internos que produzem o mesmo efeito. Assim, provavelmente, as enxaquecas e as afecções cefalálgicas absorvem, consomem ou deslocam os fluidos geradores. O interior compete aos médicos. Quanto ao exterior, venham os seus cosméticos.

— Pois bem — disse Birotteau —, o senhor me restitui a vida. Tive a ideia de vender óleo de avelãs, lembrando-me de que os antigos usavam óleo para os cabelos, e os antigos são os antigos, sou da opinião de Boileau. Por que é que os atletas untavam...

— O óleo de oliva equivale ao óleo de avelãs — disse Vauquelin, que não estava escutando Birotteau. — Qualquer óleo é bom para preservar o bulbo das influências nocivas às substâncias que ele contém em trabalho, ou melhor, em dissolução, como diríamos em química. É possível que o senhor tenha razão: Dupuytren[287] disse-me que o óleo de avelãs possui um estimulante. Vou investigar as diferenças que existem entre os óleos de faia, de colza, de oliva, de nozes etc.

— Então não me enganei — disse Birotteau triunfalmente —, minha opinião coincide com a de um grande homem! O Macassar está liquidado! O Macassar, senhor, é um cosmético fornecido, quer dizer, vendido, e vendido caro, para fazer nascer cabelos.

— Meu caro sr. Birotteau — disse Vauquelin —, ainda não chegaram à Europa nem duas onças de Óleo de Macassar. O Óleo de Macassar não tem a mínima ação sobre os cabelos; os malaios, porém, o compram a peso de ouro por causa da sua influência conservadora sobre os cabelos, ignorando que o óleo de baleia é tão bom quanto ele. Nenhuma força, nem química nem divina...

— Oh! Divina! Não diga isso, sr. Vauquelin.

— Mas, meu caro, a primeira lei que Deus segue é ser coerente consigo mesmo: sem unidade, não há força...

— Ah! Sob esse ponto de vista...

— Nenhuma força pode fazer nascer cabelos aos calvos, do mesmo modo que o senhor nunca conseguirá tingir sem perigo os cabelos ruivos ou brancos; mas, ao exaltar o uso do óleo, o senhor não cometerá uma mentira, e penso mesmo que os que se servirem dele poderão conservar os cabelos.

— Acha que a Academia Real de Ciências poderia aprovar...

— Oh! Nisso não há a mínima descoberta — disse Vauquelin. — Por outro lado, os charlatães têm abusado tanto do nome da Academia, que o senhor não teria vantagem alguma nisso. Minha consciência se recusa a considerar o óleo de avelãs como um prodígio.

— Qual seria a melhor maneira de extraí-lo: pela decocção ou pela compressão? — perguntou Birotteau.

— Pela compressão entre duas chapas quentes, o óleo será mais abundante; mas, obtido pela compressão entre duas chapas frias, será de melhor qualidade. É preciso aplicá-lo — disse Vauquelin com bondade — sobre o próprio couro cabeludo, e não esfregar os cabelos com ele, senão o resultado seria falho.

— Guarda bem isto, Popinot — disse Birotteau, com um entusiasmo que lhe inflamava o rosto. — Este moço aqui — acrescentou a Vauquelin — contará este dia entre os mais belos da sua vida. Ele já o conhecia e o venerava, sem o ter visto. Ah! Falamos seguidamente no senhor em minha casa, o nome que vive nos corações chega frequentemente aos lábios. Minha esposa, minha filha e eu rezamos pelo senhor todos os dias, como se deve fazer por um benfeitor.

— É muito por tão pouco — disse Vauquelin, incomodado com a verbosa gratidão do perfumista.

— Tá tá tá! — fez Birotteau. — O senhor não me pode impedir de estimá-lo, já que não aceita nada de mim. O senhor é como o sol, fornece a luz, e aqueles que o senhor ilumina nada lhe podem dar em troca.

O sábio sorriu e levantou-se, o perfumista e Popinot levantaram-se também.

— Olha, Anselmo, olha bem este gabinete. O senhor dá licença? Seus momentos são preciosos, mas talvez ele não volte mais aqui.

— Muito bem, e o senhor está satisfeito com os negócios? — disse Vauquelin a Birotteau. — Afinal, somos ambos pessoas do comércio...

— Bastante — disse Birotteau, retirando-se para a sala de jantar, acompanhado de Vauquelin. — Mas, para lançar este óleo sob o nome de Essência Comagena, é preciso muito dinheiro...

— “Essência” e “Comagena” são duas palavras que chocam. Denomine o seu cosmético Óleo de Birotteau. Se não quiser pôr o seu nome em evidência, use outro... Mas olha a Virgem de Dresde!... Ah! Sr. Birotteau, o senhor quer que eu me zangue.

— Sr. Vauquelin — disse o perfumista, segurando as mãos do químico —, essa raridade só tem valor pela persistência que empreguei em procurá-la; foi preciso revolver toda a Alemanha para encontrá-la em papel da China, avant la lettre.[288] Eu sabia que o senhor a desejava, suas ocupações não lhe permitiam procurá-la e eu me fiz seu caixeiro-viajante. Aceite, portanto, não uma gravura sem valor, mas os trabalhos que ela deu, uma solicitude, caminhadas e providências que atestam uma dedicação absoluta. Eu gostaria que o senhor desejasse algumas substâncias que fosse necessário ir buscar no fundo dos precipícios, para poder dizer-lhe: “Aqui estão elas!”. Não recuse. Temos tantas razões para ser esquecidos, deixe-me colocar sob seus olhos a mim, minha esposa, minha filha e o genro que terei. O senhor pensará, ao ver a Virgem: “Há gente boa que pensa em mim”.

— Aceito — disse Vauquelin.

Popinot e Birotteau enxugaram os olhos, comovidos com a inflexão de voz que o acadêmico pôs nessa palavra.

— O senhor quer levar sua bondade ao auge?

— Que é? — fez Vauquelin.

— Vou reunir alguns amigos...

Ergueu-se nos calcanhares, assumindo, não obstante, uma atitude humilde.

— ... tanto para celebrar a libertação do território como para festejar minha nomeação na Ordem da Legião de Honra.

— Ah! — disse Vauquelin, admirado.

— É possível que eu tenha merecido esse insigne e real favor, servindo no tribunal consular e combatendo pelos Bourbon nas escadarias de Saint-Roch, a 13 de vendemiário, onde fui ferido por Napoleão... Minha esposa dará um baile daqui a vinte dias, no domingo, peço-lhe que venha! Dê-nos a honra de jantar conosco nesse dia. Para mim, isso será receber duas vezes a Cruz. Escrever-lhe-ei antes disso.

— Sim, está bem — disse Vauquelin.

— Meu coração está inchado de alegria — exclamou o perfumista, na rua. — Ele irá à minha casa! Receio ter esquecido o que ele disse a respeito dos cabelos. Lembras-te, Popinot?

— Sim, senhor, e daqui a vinte anos ainda me lembrarei.

— Que grande homem! Que olhar e que penetração! — disse Birotteau. — Ah! Com ele não tem conversa fiada; no primeiro momento adivinhou os nossos pensamentos e forneceu-nos os meios de abater o Óleo de Macassar. Ah! Então nada é capaz de fazer nascer cabelos! Macassar, tu mentes! Popinot, temos uma fortuna nas mãos. Assim, amanhã, às sete horas, estejamos na fábrica, chegarão as avelãs e faremos o óleo, pois não vale a pena dizer que qualquer óleo é bom, ficaríamos arruinados se o público o soubesse. Se no nosso óleo não entrasse um pouco de avelã e de perfume, sob que pretexto poderíamos vendê-lo por três a quatro francos as quatro onças?

— O senhor vai ser condecorado — disse Popinot. — Que glória para...

— Para o comércio, não é meu filho?

A expressão triunfante de César Birotteau, ante a perspectiva de que ganharia uma fortuna, foi notada pelos empregados, que trocaram sinais, pois a corrida de fiacre, a elegância do caixa e do patrão haviam-nos levado a imaginar os mais estranhos romances. O mútuo contentamento de César e Anselmo, denunciado por olhares diplomaticamente trocados e pelo olhar cheio de esperança que Popinot dirigiu por duas vezes a Cesarina, anunciava algum grave acontecimento e confirmava as conjeturas dos caixeiros. Naquela vida atarefada e quase claustral, os menores acontecimentos adquiriam o mesmo interesse que um prisioneiro nutre pelos de sua prisão. A atitude da sra. Birotteau, que respondia aos olhares olímpicos do marido com expressões de dúvida, denunciava um novo empreendimento, pois, em épocas normais, a sra. Birotteau estaria contente, ela que se alegrava com o êxito da venda a varejo. Por exceção, naquele dia a receita se elevou a seis mil francos: tinham sido pagas algumas contas atrasadas.

A sala de jantar e a cozinha iluminada por uma areazinha e separada da sala de jantar por um corredor onde desembocava a escada construída a um canto do escritório da loja ficavam no entressolo, onde era antigamente o apartamento de César e de Constança; assim, a sala de jantar onde decorrera a lua de mel tinha o aspecto duma pequena sala de visitas. Durante o jantar, Raguet, o empregado de confiança, cuidava da loja; mas, à hora da sobremesa, os caixeiros voltavam para a loja e deixavam César, a esposa e a filha terminarem o jantar junto à lareira. Esse hábito vinha dos Ragon, em cuja casa os antigos usos e costumes do comércio, sempre em vigor, mantinham entre eles e os caixeiros a enorme distância que outrora existia entre os oficiais e os aprendizes. Cesarina ou Constança preparava, então, para o perfumista, uma taça de café, que ele tomava sentado numa poltrona junto à lareira. Durante essa hora, César punha a esposa a par dos pequenos fatos do dia, contava o que vira em Paris, o que se passava no Faubourg du Temple, as dificuldades da fábrica.

— Mulher — disse ele, depois que os caixeiros desceram —, o dia de hoje foi, sem dúvida, um dos mais importantes da nossa vida! As avelãs compradas, a prensa hidráulica pronta para funcionar amanhã, o negócio dos terrenos concluído. Toma, guarda este cheque — disse, entregando-lhe a ordem de pagamento de Pillerault. — A restauração do apartamento decidida, nosso apartamento aumentado. Meu Deus! Encontrei na Cour Batave um homem muito singular!

E contou a visita ao sr. Molineux.

— Pelo que vejo — respondeu a esposa, interrompendo-o no meio duma frase —, fizeste uma dívida de duzentos mil francos!

— É verdade, mulher — disse o perfumista, com uma falsa humildade. — Como iremos pagar isso, bom Deus? Não podemos contar com os terrenos da Madeleine, que estão destinados a ser, um dia, o mais belo bairro de Paris.

— Um dia, César.

— Ai de mim! — disse ele, continuando a brincadeira. — Meus três oitavos valerão um milhão somente daqui a seis anos. E como hei de pagar duzentos mil francos? — acrescentou César, fazendo um gesto de pavor. — Bem, havemos de pagá-los com isto — disse, tirando do bolso uma avelã que trouxera da casa da sra. Madou e guardara preciosamente.

Mostrou a avelã entre os dois dedos a Cesarina e a Constança. A esposa não disse nada, mas Cesarina, intrigada, disse ao pai, enquanto lhe servia o café:

— Ah! Que é isso, papai? Estás brincando?

O perfumista, do mesmo modo que os caixeiros, surpreendera, durante o jantar, os olhares dirigidos por Popinot a Cesarina e quis esclarecer suas suspeitas.

— Olha, filhinha, esta avelã determinou uma revolução cá em casa. Desta noite em diante haverá um de menos sob o nosso teto.

Cesarina olhou para o pai como se dissesse: “Que me importa!”.

— Popinot vai embora...

Embora César fosse pouco observador e houvesse preparado a última frase tanto para armar uma cilada à filha como para chegar à notícia da fundação da casa A. Popinot & Cia., sua afeição paterna permitiu-lhe descobrir os confusos sentimentos que saíram do coração da filha, floriram em rosas vermelhas em suas faces e em sua fronte e animaram-lhe os olhos, que ela abaixou. César pensou então que houvesse sido trocada alguma palavra entre Cesarina e Popinot. Não havia nada disso: as duas crianças entendiam-se, como todos os namorados tímidos, sem se terem dito uma palavra.

Alguns moralistas pensam que o amor é a paixão mais involuntária, mais desinteressada, menos calculista de todas, excetuado, todavia, o amor materno. Essa opinião comporta um erro grosseiro. Se a maioria dos homens ignora as razões que fazem amar, nem por isso toda simpatia física ou moral deixa de se basear sobre cálculos feitos pela inteligência, pelo sentimento ou pela brutalidade. O amor é uma paixão essencialmente egoísta. Quem diz egoísmo diz cálculo aprofundado. Assim, para os espíritos que só se impressionam com os resultados, pode parecer, no primeiro momento, inverossímil ou estranho que uma moça bonita como Cesarina se apaixonasse por um pobre rapaz coxo e de cabelos ruivos. Esse fenômeno, contudo, está de acordo com a aritmética dos sentimentos burgueses. Explicá-lo seria analisar casamentos observados em todos os tempos com uma constante surpresa e que se realizam entre grandes e belas mulheres e pequenos homens, entre pequenas e feias criaturas e belos rapazes. Todo homem atingido por um defeito qualquer de conformação, pés tortos, claudicação, as diversas gibosidades, a exagerada fealdade, manchas roxas nas faces, a enfermidade de Roguin e outras monstruosidades independentes da vontade só tem dois partidos a tomar: fazer-se temível ou tornar-se duma requintada bondade; não lhe é permitido flutuar entre os meios-termos habituais à maioria dos homens. No primeiro caso, há talento, gênio ou força: um homem não inspira o terror senão pela força do mal, o respeito senão pelo gênio, o medo senão por uma grande inteligência. No segundo caso, faz-se adorar, presta-se admiravelmente às tiranias femininas e sabe amar melhor do que as pessoas de físico irrepreensível.

Criado por pessoas virtuosas, os Ragon, modelos da mais respeitável burguesia, e por seu tio, o juiz Popinot, Anselmo procurava, tanto por sua timidez como por seus sentimentos religiosos, redimir seu leve defeito físico pela perfeição de seu caráter. Impressionados com essa tendência que torna a mocidade tão atraente, Constança e César haviam frequentemente elogiado Anselmo diante de Cesarina; mesquinhos nas outras questões, os dois comerciantes possuíam uma alma grande e compreendiam perfeitamente as coisas do coração. Esses elogios encontraram eco no coração duma moça que, apesar de sua inocência, leu nos olhos muito puros de Anselmo um sentimento violento, sempre lisonjeiro, quaisquer que sejam a idade, a categoria social e a aparência do apaixonado. O jovem Popinot devia ter muito maiores razões do que um homem bonito para amar uma mulher. Se esta fosse bela, ele ficaria louco por ela até o seu último dia, seu amor lhe daria ambição, seria capaz de matar-se para fazer a esposa feliz, deixá-la-ia dona da casa e iria ao encontro do poder. Assim pensava Cesarina, involuntariamente e talvez não tão nitidamente; entrevia de relance os frutos do amor e raciocinava por comparação: a felicidade da mãe estava diante dos seus olhos, ela não ambicionava outra vida; seu instinto mostrava-lhe em Anselmo outro César, aperfeiçoado, como ela, pela educação. Sonhava com Popinot maire dum distrito, e sentia prazer em representar-se participando dum peditório na igreja de sua paróquia, como sua mãe em Saint-Roch. Acabara por não perceber mais a diferença existente entre a perna esquerda e a perna direita de Popinot, e teria sido capaz de dizer: “Mas ele é coxo?”. Gostava daquelas pupilas tão límpidas e deliciava-se ao ver o efeito que seu olhar produzia sobre aqueles olhos que se animavam subitamente dum brilho pudico para logo depois se abaixarem melancolicamente. O primeiro escrevente de Roguin, Alexandre Crottat, dotado dessa precoce experiência devida ao hábito dos negócios, tinha um ar meio cínico, meio bonachão que revoltava Cesarina, revoltada já pelos lugares-comuns da palestra dele. O silêncio de Popinot denunciava um espírito dócil, ela gostava do sorriso meio triste que lhe inspiravam as mais insignificantes vulgaridades; as tolices que o faziam sorrir provocavam nela certa repulsa, e eles sorriam ou se entristeciam juntos. Essa superioridade não impedia Anselmo de se aplicar ao trabalho e seu infatigável ardor agradava a Cesarina pois ela percebia que, embora os outros caixeiros dissessem: “Cesarina vai casar-se com o primeiro escrevente do sr. Roguin”, Anselmo, pobre, coxo e de cabelos ruivos, não desesperava de obter sua mão. Uma grande esperança prova um grande amor.

— Para onde é que ele vai? — perguntou Cesarina ao pai, procurando assumir um ar indiferente.

— Vai montar uma casa comercial à Rue des Cinq-Diamants, e, palavra de honra, graças a Deus! — disse Birotteau, cuja exclamação não foi compreendida pela esposa nem pela filha.

Quando Birotteau encontrava uma dificuldade moral, fazia como os insetos diante dum obstáculo, lançava-se para a direita e para a esquerda; assim, mudou de assunto, tomando a decisão de falar com a esposa a respeito de Cesarina.

— Contei teus receios e tuas ideias a respeito de Roguin ao teu tio e ele se pôs a rir — disse ele a Constança.

— Nunca deves contar o que conversamos em casa — exclamou Constança. — Esse pobre Roguin talvez seja o homem mais honesto do mundo, tem cinquenta e oito anos e certamente não pensa mais em...

Interrompeu-se bruscamente ao ver Cesarina atenta e mostrou-a a César com um olhar.

— Então fiz bem em fechar o negócio — disse Birotteau.

— Ora, tu te governas — respondeu ela.

César tomou as mãos da esposa e beijou-a na testa. Essa resposta representava sempre nela um consentimento tácito aos projetos do marido.

— Vamos trabalhar! — gritou o perfumista, descendo à loja e dirigindo-se aos caixeiros. — A loja fechará às dez horas. Vamos fazer um esforço, senhores! Vamos transportar, durante a noite, todos os móveis do primeiro andar para o segundo! É preciso, como se diz, meter os vasos pequenos dentro dos grandes, para que o meu arquiteto possa trabalhar à vontade amanhã.

— Popinot saiu sem licença — disse César, não o vendo na loja. — Ora, esqueci-me de que ele não vai dormir aqui. Ele deve ter ido redigir as ideias do sr. Vauquelin ou alugar uma loja.

— Conhecemos o motivo desta mudança — disse Celestino, falando em nome dos demais caixeiros e de Raguet, agrupados atrás dele. — Permita-nos felicitá-lo por essa honraria que se reflete sobre toda a loja... Popinot disse-nos que o senhor...

— Bem, meus filhos, que querem? Condecoraram-me. Por isso, não somente por causa da libertação do país como, também, para festejar minha promoção na Legião de Honra, vamos reunir nossos amigos. Talvez eu tenha merecido esse insigne e real favor, servindo no tribunal consular e combatendo pela causa real que defendi... na idade de vocês, nas escadarias de Saint-Roch, a 13 de vendemiário; e, palavra de honra, Napoleão, o imperador, me feriu! Fui ferido na coxa, e a sra. Ragon cuidou de mim. Tenham coragem e serão recompensados! Vejam, meus filhos, como nenhum infortúnio é perdido.

— Não se lutará mais nas ruas! — disse Celestino.

— É o que esperamos — disse César, que aproveitou essa resposta para fazer um discurso que terminou com um convite.

A perspectiva de um baile animou os três caixeiros, Raguet e Virgínia de um entusiasmo que lhes deu a destreza dos equilibristas. Todos subiam e desciam as escadas carregando coisas sem nada quebrar nem derrubar. Às duas da manhã, a mudança estava terminada; César e a mulher foram dormir no segundo andar. O quarto de Popinot passou a ser o de Celestino e do segundo caixeiro. O terceiro andar foi transformado num guarda-móveis provisório.

VI — OS DOIS ASTROS

Possuído desse magnífico entusiasmo que estimula a produção do fluido nervoso e transforma num braseiro o diafragma das pessoas ambiciosas ou apaixonadas agitadas por grandes projetos, Popinot, habitualmente tão amável e tão calmo, escarvara o chão como um cavalo de raça antes da corrida, na loja, ao sair da mesa.

— Que tens? — perguntou-lhe Celestino.

— Que dia, meu caro! Vou estabelecer-me — disse-lhe ao ouvido — e o sr. César foi condecorado.

— Tens muita sorte, o patrão te ajuda! — exclamou Celestino.

Popinot não respondeu, desapareceu como se fosse impelido por um vento furioso, o vento do sucesso!

— Sorte coisa nenhuma! — disse um caixeiro ocupado em separar as luvas por dúzias ao seu vizinho, que estava verificando as etiquetas. — É que o patrão percebeu os olhares que Popinot dirigia à srta. Cesarina e, como ele é muito esperto, o patrão!, livrou-se de Anselmo; seria difícil recusá-lo, devido aos parentes. Celestino toma esta astúcia por uma generosidade.

Anselmo Popinot descia a Rue Saint-Honoré em direção à Rue des Deux Écus, em busca dum rapaz que seu tino comercial lhe designava como o principal instrumento de sua fortuna. O juiz Popinot prestara serviços ao mais hábil caixeiro-viajante de Paris, cuja triunfante loquacidade e atividade lhe granjearam mais tarde o epíteto de ilustre. Especializado na chapelaria e no Artigo de Paris, esse rei dos viajantes chamava-se então pura e simplesmente Gaudissart.[289] Aos vinte e dois anos, já se distinguia pela força de seu magnetismo comercial. Franzino, de olhar vivo, fisionomia expressiva, uma memória infatigável, visão hábil em descobrir o gosto de cada um, nesse tempo, já merecia ser considerado o que foi mais tarde, o rei dos caixeiros-viajantes, o francês por excelência. Alguns dias antes, Popinot encontrara Gaudissart, que lhe dissera estar às vésperas de partir; e era a esperança de encontrá-lo ainda em Paris que levava o apaixonado à Rue des Deux Écus, onde soube que o viajante reservara passagem na diligência. Para despedir-se da sua querida capital, Gaudissart fora assistir a uma nova peça no Vaudeville: Popinot resolveu esperá-lo. Confiar a colocação do óleo de avelãs a esse precioso movimentador das invenções mercantis não era emitir uma letra de câmbio sobre a fortuna? Popinot dispunha de Gaudissart. O caixeiro-viajante, tão hábil na arte de enredar as pessoas mais rebeldes, os pequenos comerciantes da província, deixara-se enredar na primeira conspiração tramada contra os Bourbon depois dos Cem Dias. Gaudissart, a quem a liberdade era indispensável, viu-se preso sob uma acusação capital. O juiz Popinot, encarregado da instrução do processo, impronunciara Gaudissart, reconhecendo que ele fora comprometido no caso unicamente devido a uma imprudente tolice. Com um juiz desejoso de agradar ao poder ou de um exaltado realismo, o infeliz caixeiro-viajante teria acabado no cadafalso.[290] Gaudissart, que acreditava dever a vida ao juiz de instrução, alimentava um profundo desespero por não poder manifestar ao seu salvador mais que uma estéril gratidão. Como não podia agradecer a um juiz por ter feito justiça, fora à casa dos Ragon declarar-se aliado dos Popinot. Enquanto o esperava, Popinot foi naturalmente dar uma volta na loja da Rue des Cinq-Diamants e pedir o endereço do proprietário, a fim de tratar do arrendamento. Errando pelo dédalo escuro do mercado grande e pensando nos meios de conseguir um rápido triunfo, Popinot encontrou, à Rue Aubry-le-Boucher, uma ocasião única e de bom augúrio com que esperava regalar César no dia seguinte. Parado à porta do Hotel do Comércio, na extremidade da Rue des Deux Écus, pela meia-noite, Popinot ouviu, a distância, na Rue de Grenelle, uma canção entoada por Gaudissart, acompanhada dum significativo arrastar da bengala pela calçada.

— Senhor — disse Anselmo, aparecendo subitamente à porta —, permite-me duas palavras?

— Onze até, se quiser — disse o caixeiro-viajante, erguendo a bengala chumbada contra o agressor.

— Sou Popinot — disse o pobre Anselmo.

— Isso basta — disse Gaudissart, reconhecendo-o. — Que é que precisa?... Dinheiro? Ele está ausente, de licença, mas havemos de encontrá-lo. Meu braço para um duelo? Estou inteiramente às suas ordens, dos pés ao occipício.

E cantou:

 

Eis aqui, eis aqui

O verdadeiro soldado francês!

 

— Venha falar comigo uns dez minutos, não no seu quarto, pois poderiam ouvir-nos, mas no Quai de l’Horloge: a esta hora não há ninguém lá — disse Popinot. — Trata-se de uma coisa da maior importância.

— É urgente, então? Vamos!

Em dez minutos, Gaudissart, de posse dos segredos de Popinot, percebera-lhes a importância.

 

— Aparecei, oh! perfumistas, cabeleireiros, varejistas! —

 

declamou Gaudissart, imitando Lafon[291] no papel do Cid. — Vou tomar conta de todos os lojistas da França e de Navarra. Oh! tenho uma ideia! Ia partir, mas resolvo ficar, vou pegar comissões do comércio parisiense.

— Para quê?

— Para estrangular os seus rivais, inocente! De posse das suas comissões, posso deitar por terra os pérfidos cosméticos deles, falando e ocupando-me exclusivamente do seu. Um golpe notável de viajante. Ah! Ah! Somos os diplomatas do comércio. Notável! Quanto ao seu prospecto, encarrego-me dele. Sou amigo de infância de Andoche Finot,[292] o filho do chapeleiro da Rue du Coq, o velho que me lançou na profissão de viajante no ramo da chapelaria; Andoche, que tem muita inteligência, pois recolheu a de todas as cabeças que seu pai enchapelou, está na literatura, faz pequenas notas teatrais no Courrier des Spectacles.[293] Seu pai, um velho cão cheio de razões para não gostar da inteligência, não acredita na inteligência: é impossível provar-lhe que a inteligência pode ser vendida, que se faz dinheiro com ela. De coisas do espírito, ele conhece apenas o espírito de vinho. O velho Finot traz o jovem Finot preso pela apertura. Andoche, homem capaz, e naturalmente meu amigo, pois somente no terreno comercial convivo com tolos, faz anúncios para o Fidèle Berger,[294] que paga, ao passo que os jornais, nos quais se mata trabalhando, o enchem de aborrecimentos. É invejosa aquela gente! É como no Artigo de Paris. Finot tinha uma formidável comédia em um ato para a srta. Mars, a mais famosa das famosas. Ah! Essa é uma mulher de quem gosto! Pois bem! Para conseguir que a representassem, foi obrigado a levá-la ao Gaîté.[295] Andoche entende de propaganda, identifica-se com as ideias do comerciante, não é orgulhoso e fará o nosso anúncio grátis. Meu Deus! Com uma taça de ponche e uns presentes ficará satisfeitíssimo; pois, Popinot, nada de farsas: viajarei sem comissão nem diárias, os seus concorrentes pagarão, eu os tapearei! Vamos ficar bem entendidos. Para mim, este sucesso é uma questão de honra. Minha recompensa consistirá em servir de pajem no seu casamento! Irei à Itália, à Alemanha, à Inglaterra! Carrego comigo cartazes em todas as línguas, faço-os afixar em toda parte, nas aldeias, à porta das igrejas, em todos os bons lugares que conheço nas cidades da província! O seu óleo há de brilhar, inflamar-se, há de andar em todas as cabeças. Ah! O seu casamento não será um casamento magro, mas sim um casamento pomposo! Você terá a sua Cesarina ou não me chamarei mais o ilustre!, nome que me deu o velho Finot depois que fiz triunfar seus chapéus cor de cinza. Vendendo o seu óleo, continuo na minha especialidade, a cabeça humana; o óleo e o chapéu são conhecidos como meios de conservar a cabeleira pública.

Popinot voltou para a casa da tia, onde ia dormir, de tal modo excitado pela previsão do triunfo que as ruas lhe pareciam riachos de óleo. Dormiu pouco, sonhou que os seus cabelos cresciam loucamente e viu dois anjos que lhe exibiam, como nos melodramas, uma faixa onde estava escrito: óleo cesariano. Ao despertar, lembrou-se do sonho e resolveu dar esse nome ao óleo de avelãs, considerando essa fantasia do sono como uma ordem celeste.

César e Popinot chegaram à fábrica, no Faubourg du Temple, muito antes da chegada das avelãs; enquanto esperavam os carregadores da sra. Madou, Popinot narrou de modo triunfal seu tratado de aliança com Gaudissart.

— Temos conosco o ilustre Gaudissart, estamos milionários! — exclamou o perfumista, estendendo a mão ao seu caixa com a mesma atitude que deve ter assumido Luís xiv ao receber o marechal de Villars de volta de Denain.[296]

— Temos ainda outra coisa! — disse o venturoso caixeiro, tirando do bolso uma garrafinha achatada, facetada e em forma de abóbora. — Encontrei dez mil frascos iguais a este modelo, já fabricados, prontos para entrega, a... quatro sous... com seis meses de prazo.

— Anselmo — disse Birotteau, contemplando a mirífica forma do frasco —, ontem — e adotou um tom grave — nas Tuileries, sim, não mais tarde do que ontem, dizias: “Vencerei”. Pois bem, hoje digo eu: vencerás! Quatro sous! Seis meses de prazo! Uma forma original! O Macassar está em perigo; que golpe no Óleo de Macassar! Acertei em apoderar-me das únicas avelãs existentes em Paris! Onde foi que encontraste esses frascos?

— Eu estava fazendo hora para encontrar-me com Gaudissart e andava caminhando sem destino...

— Tal qual eu fazia, em outros tempos! — exclamou Birotteau.

— Ao descer a Rue Aubry-le-Boucher, na casa dum atacadista de vidros, um comerciante de vidros convexos e de redomas, que tem uma loja imensa, vi este frasco... Ah! Ele me feriu os olhos como uma luz súbita e uma voz me gritou: “Aí está o que te serve!”.

— Comerciante nato! Há de casar-se com a minha filha — disse César, resmungando.

— Entrei e vi milhares desses frascos encaixotados.

— Perguntaste o preço?

— O senhor me julga tão trouxa assim? — disse Anselmo, sentido.

— Comerciante nato! — repetiu Birotteau.

— Pedi que me mostrassem umas redomas para colocar sobre imagens de cera. Enquanto negociava as redomas, censurei a forma dos frascos. Levado a uma confissão geral, o meu comerciante foi deixando escapar, aos poucos, que Faille e Bouchot, que faliram recentemente, iam lançar um cosmético e queriam frascos de forma estranha; desconfiando deles, exigiu metade do pagamento à vista; Faille e Bouchot, esperançosos de vencer, entregaram o dinheiro; a falência estourou durante a fabricação; os síndicos, intimados a pagar, fizeram um acordo com ele, deixando os frascos e o dinheiro que fora adiantado como indenização duma encomenda que foi considerada ridícula e sem colocação possível. Os frascos custam oito sous e ele ficará muito contente em vendê-los por quatro. Deus sabe quanto tempo teria de conservar em depósito uns frascos cuja forma não é vendável. “Quer contratar a venda de dez mil a quatro sous? Posso livrá-lo dos seus frascos, sou o caixeiro do sr. Birotteau.” E assim o fui levando e convencendo, acabei dominando o meu homem e o temos conosco.

— Quatro sous! — disse Birotteau. — Sabes que podemos lançar o óleo a três francos e ganhar trinta sous, deixando um lucro de vinte para os varejistas?

— O Óleo Cesariano! — exclamou Popinot.

— Óleo Cesariano!... Ah! senhor apaixonado, então quer lisonjear o pai e a filha. Pois bem, que seja Óleo Cesariano! Os Césares eram donos do mundo, deviam ter cabelos notáveis.

— César era calvo! — disse Popinot.

— Porque não usou o nosso óleo! É o que dirão! A três francos o Óleo Cesariano! O Óleo de Macassar custa o dobro. Gaudissart está metido nisto, teremos cem mil francos por ano, pois obteremos de todas as cabeças que se prezam doze frascos por ano, dezoito francos! Digamos dezoito mil cabeças, são cento e oitenta mil francos. Somos milionários.

Entregues as avelãs, Raguet, os operários, Popinot e César separaram uma quantidade suficiente delas e antes das quatro horas já haviam conseguido algumas libras de óleo. Popinot foi levar o produto de presente a Vauquelin, que por sua vez presenteou Popinot com uma fórmula para misturar à essência de avelãs corpos oleaginosos menos caros e perfumá-la. Popinot providenciou imediatamente para obter uma patente de invenção e de aperfeiçoamento. O dedicado Gaudissart emprestou dinheiro para o direito fiscal a Popinot, que tinha a ambição de pagar a metade das despesas do estabelecimento.

A prosperidade traz consigo uma embriaguez a que os homens inferiores não resistem. Essa exaltação teve um resultado fácil de prever. O sr. Grindot apareceu com o esboço colorido duma deliciosa vista interior do futuro apartamento com os respectivos móveis. Birotteau, seduzido, concordou com tudo. Imediatamente os pedreiros começaram a dar golpes de picareta que fizeram gemer a casa e Constança. Seu pintor de construções, o sr. Lourdois, riquíssimo empreiteiro que se empenhava em nada negligenciar, falou em douraduras para o salão. Ao ouvir essa palavra, Constança interveio.

— Sr. Lourdois — disse ela —, o senhor tem trinta mil francos de renda, mora em casa própria, pode fazer lá o que bem entender; mas nós...

— Minha senhora, o comércio deve brilhar e não se deixar esmagar pela aristocracia. Veja, o sr. Birotteau está no governo, está em evidência...

— Sim, mas ainda está atrás do balcão — disse Constança, diante dos caixeiros e das cinco pessoas que a escutavam. — Nem eu, nem ele, nem seus amigos, nem seus inimigos nos esqueceremos disto.

Birotteau ergueu-se na ponta dos pés e deixou-se cair sobre os calcanhares, várias vezes, com as mãos cruzadas nas costas.

— Minha esposa tem razão — disse. — Seremos modestos na prosperidade. Aliás, quando um homem está no comércio, deve ser prudente nas despesas, moderado no luxo; a lei o obriga a isso, ele não se deve entregar a gastos excessivos. Se a ampliação da minha casa e sua decoração ultrapassarem os limites, será imprudente de minha parte excedê-los; você mesmo me censuraria por isso, Lourdois. O bairro inteiro está com os olhos em mim: os que vencem fazem ciumentos, invejosos! Ah! Logo você há de ver esta verdade, rapaz — disse ao sr. Grindot. — Já que eles nos caluniam, não lhes daremos motivos para difamar-nos.

— Nem a calúnia nem a difamação podem atingi-lo — disse Lourdois. — O senhor está numa situação excepcional e tem tamanha experiência comercial que sabe fundamentar seus empreendimentos, o senhor é um demônio.

— É verdade, tenho alguma experiência de negócios. Sabe por que quero fazer esta ampliação? Se estabeleço uma forte multa relativamente à pontualidade, é porque...

— Não.

— Bem, minha esposa e eu vamos reunir alguns amigos, tanto para celebrar a libertação do país como para festejar a minha promoção na Ordem da Legião de Honra.

— Como! Como! — disse Lourdois. — Então lhe deram a Cruz!

— Sim. É possível que eu tenha merecido esse insigne e real favor, servindo no tribunal consular e combatendo pela causa real a 13 de vendemiário, em Saint-Roch, onde fui ferido por Napoleão. Venha com sua esposa e sua filha...

— Fico muito contente com a honra que o senhor me dá — disse o liberal Lourdois. — Mas o senhor é um farsista, tio Birotteau. Convida-me para ter a certeza de que não faltarei à minha palavra. Pois bem, empregarei os meus melhores operários, faremos um fogo infernal para secar as pinturas; dispomos de processos dessecantes, pois não se pode dançar no meio duma cerração exalada pelas paredes úmidas. Passaremos um verniz para tirar todo o cheiro.

Três dias mais tarde, o comércio do bairro estava em rebuliço com a notícia do baile que Birotteau estava organizando. Todos podiam ver, aliás, as escoras externas exigidas pela rápida mudança da escada, os tubos de madeira por onde os escombros eram lançados às carroças que ali estacionavam. Os operários apressados que trabalhavam com tochas, pois havia uma turma do dia e uma turma da noite, detinham os ociosos e os curiosos na rua, e os falatórios apoiavam-se nesses preparativos para anunciar enormes suntuosidades.

No domingo fixado para a conclusão do negócio, o sr. e sra. Ragon e o tio Pillerault chegaram às quatro horas, depois das vésperas. Em vista das demolições, dizia César, só pudera convidar naquele dia Carlos Claparon, Crottat e Roguin. O tabelião levou o Journal des Débats,[297] onde o sr. de La Billardière fizera inserir a seguinte notícia:

 

Sabemos que a libertação do país será festejada com entusiasmo em toda a França; em Paris, porém, os membros da administração municipal sentiram chegado o momento de restituir à capital aquele esplendor que, por um sentimento de conveniência, cessara durante a ocupação estrangeira. Cada um dos maires e dos respectivos suplentes se propõe a dar um baile; o inverno promete, pois, ser brilhante; esse movimento nacional será imitado. Entre todas as festas que estão sendo preparadas, fala-se muito no baile do sr. Birotteau, nomeado cavaleiro da Legião de Honra e muito conhecido por sua dedicação à causa real. O sr. Birotteau, ferido no combate de Saint-Roch, a 13 de vendemiário, e um dos mais estimados juízes consulares, mereceu duplamente essa distinção.

 

— Como se escreve bem, atualmente! — exclamou César. — Falam de nós no jornal — disse a Pillerault.

— Bem, e então? — respondeu-lhe o tio, a quem o Journal des Débats era particularmente antipático.

— Essa notícia talvez nos faça vender a Pomada das Sultanas e a Água Carminativa — disse baixinho a sra. César à sra. Ragon, sem, contudo, partilhar da exaltação do marido.

A sra. Ragon, mulher alta, seca e enrugada, de nariz adunco e lábios finos, tinha uma falsa aparência de marquesa da antiga Corte. O contorno dos olhos era obscurecido numa grande circunferência, como habitualmente se vê nas velhas que sofreram desgostos. Sua atitude severa e digna, embora afável, impunha respeito. Tinha na sua pessoa, aliás, esse certo quê de estranho que surpreende sem provocar o riso e que era explicado pelas maneiras e pelo vestuário: usava mitenes, saía à rua, sob qualquer tempo, com uma sombrinha de cabo curvo igual à que a rainha Maria Antonieta usava no Trianon;[298] seu vestido, cuja cor favorita era esse pardo opaco denominado folha morta, desdobrava-se nas cadeiras em pregas inimitáveis, cujo segredo as velhas rendeiras de antigamente levaram consigo. Conservava a mantilha preta guarnecida de rendas negras de grandes malhas quadradas; suas toucas, de forma antiga, tinham ornatos que lembravam os entalhes das velhas molduras esculpidas à jour. Servia-se do rapé com aquele requintado asseio e fazendo aqueles gestos de que ainda se lembram os jovens que tiveram a felicidade de ver suas avós e tias-avós depositarem solenemente as caixinhas de ouro junto delas, numa mesa, sacudindo os grãos de rapé caídos no fichu. O sr. Ragon era um homenzinho de cinco pés de altura, no máximo, com um rosto de pica-pau, onde apenas se viam os olhos, duas maçãs salientes, um nariz e um queixo; sem dentes, engolindo a metade das palavras, duma conversação chuvosa, galante, pretensiosa e sempre sorrindo com o sorriso que usava para receber as belas damas que outrora diferentes acasos levavam à porta da sua loja. O pó de arroz desenhava sobre seu crânio uma meia-lua muito alva, bem raspada, flanqueada de duas pontas de asa separadas por um rabinho amarrado com uma fita. Usava casaca azul-clara, colete branco, calções e meias de seda, sapatos com fivelas de ouro, luvas de seda preta. O traço mais saliente do seu temperamento era andar pela rua com o chapéu na mão. Tinha o aspecto dum mensageiro da Câmara dos Pares, dum meirinho do gabinete do rei, duma dessas pessoas colocadas ao lado duma autoridade de maneira a receber seu reflexo sem, contudo, deixar de ser muito pouca coisa.

— Pois bem, Birotteau — disse com uma expressão magistral —, estás arrependido, meu rapaz, de nos haver escutado naquela época? Duvidamos alguma vez da gratidão dos nossos bem-amados soberanos?

— Você deve estar muito contente, minha filha — disse a sra. Ragon à sra. Birotteau.

— Claro que sim — respondeu a bela perfumista, sempre fascinada pela sombrinha de cabo curvo, pelas toucas borboleta, pelas mangas justas e pelo grande fichu à la Julie que a sra. Ragon usava.

— Cesarina está encantadora: venha cá, belezinha — disse a sra. Ragon, com sua voz autoritária e ar protetor.

— Faremos o negócio antes do jantar? — perguntou o tio Pillerault.

— Estamos esperando o sr. Claparon — disse Roguin. — Deixei-o vestindo-se.

— Sr. Roguin — disse César —, o senhor o preveniu de que vamos jantar num mau entressolozinho...

— Ele o achava magnífico há dezesseis anos — murmurou Constança.

— ... no meio dos escombros e entre os operários?

— Ora — disse Roguin —, você vai ver como ele é um bom sujeito, muito simples.

— Deixei Raguet à espera dele na loja, pois não se pode mais passar pela nossa porta; você viu como tudo está demolido — disse César ao tabelião.

— Por que não trouxe seu sobrinho? — disse Pillerault à sra. Ragon.

— Será que o veremos? — perguntou Cesarina.

— Não, querida — disse a sra. Ragon. — Anselmo está trabalhando loucamente, o coitado! Aquela rua sem ar e sem sol, aquela malcheirosa Rue des Cinq-Diamants, me mete medo; a sarjeta é sempre azul, verde ou negra. Receio que ele morra, lá. Mas quando os moços têm alguma coisa na cabeça... — disse a Cesarina, traduzindo, por um gesto, a palavra cabeça pela palavra coração.

— Então ele já assinou o contrato de arrendamento? — perguntou César.

— Já, ontem, e em cartório — respondeu Ragon. — Conseguiu dezoito anos, mas exigem seis meses adiantados.

— Então, sr. Ragon, está satisfeito comigo? — disse o perfumista. — Dei-lhe o segredo duma descoberta... enfim!

— Já o conhecemos muito bem, César — disse o pequeno Ragon, tomando as mãos de César e apertando-as com uma religiosa amizade.

Roguin não estava tranquilo a respeito da entrada em cena de Claparon, cujos hábitos e maneira de falar podiam assustar burgueses virtuosos: achou necessário, pois, preparar os espíritos.

— Os senhores vão conhecer — disse a Ragon, a Pillerault e às senhoras — um sujeito original, que oculta suas qualidades sob uns maus modos assustadores, pois duma posição muito baixa fez carreira por si mesmo. Ele acabará, sem dúvida, adquirindo boas maneiras, à força de conviver com banqueiros. Os senhores talvez o encontrem no bulevar ou num café, bêbado, desalinhado, jogando bilhar: ele parece um grande vagabundo... Pois não é verdade! É um homem que estuda e pretende revolucionar a indústria por meio de novas concepções.

— Sei o que é isso — disse Birotteau. — Foi vagabundeando pelas ruas que encontrei minhas melhores ideias, não é, querida?

— Claparon — acrescentou Roguin — recupera durante a noite o tempo gasto em procurar e combinar os negócios durante o dia. Todas essas pessoas de grande talento têm uma vida estranha, inexplicável. Pois bem, sou testemunha de que através de toda essa desordem ele consegue alcançar seus fins: acabou fazendo todos os proprietários cederem, eles não queriam, desconfiavam de alguma coisa, ele os mistificou, foi falar com eles todos os dias, e agora, afinal, somos donos do terreno.

Um singular broum! broum! peculiar aos bebedores de cálices de aguardente e de licores fortes anunciou a personagem mais estranha desta história e o árbitro aparente do futuro de César. O perfumista precipitou-se pela escadinha escura, tanto para mandar Raguet fechar a loja como para apresentar a Claparon suas escusas por ter de recebê-lo na sala de jantar.

— Ora essa! Aqui até está muito bom para a gente entrar nas comidas... quero dizer, para tratar de negócios.

A despeito dos hábeis preparativos de Roguin, o sr. e a sra. Ragon, burgueses bem-educados, o observador Pillerault, Cesarina e sua mãe ficaram de início muito mal impressionados pelo pretenso banqueiro das altas classes.

Aos vinte e oito anos, mais ou menos, esse antigo caixeiro-viajante já não tinha um fio de cabelo na cabeça e usava uma cabeleira postiça frisada em saca-rolhas. Esse penteado exige um frescor de virgem, uma transparência láctea, as mais encantadoras graças femininas; assim, ele fazia ressaltar ignobilmente um rosto cheio de espinhas, pardo-avermelhado, afogueado como o dum condutor de diligência, e cujas rugas prematuras denunciavam, pela forma como se desenhavam e pela sua fixidez, uma vida libertina cujos estragos ainda eram atestados pelo mau estado dos dentes e pelos pontos negros espalhados pela pele áspera. Claparon tinha o aspecto de um comediante de província que conhece todos os papéis, representa peças ordinárias, em cujas faces o ruge não permanece mais, abatido pela fadiga, de lábios empastados, língua sempre alerta, mesmo durante a embriaguez, o olhar despudorado, e, finalmente, comprometedor pelos gestos. Tal fisionomia, iluminada pela alegre chama do ponche, não se harmonizava com a austeridade dos negócios. Claparon necessitou, pois, de longos estudos mímicos antes de conseguir compor uma aparência de acordo com sua importância artificial. Du Tillet assistira o vestuário de Claparon como um diretor de teatro preocupado com a estreia do seu principal ator, pois receava que os hábitos grosseiros daquela vida desleixada viessem boiar à superfície do banqueiro.

— Fala o mínimo possível — dissera-lhe. — Um banqueiro nunca conversa: age, pensa, medita, escuta e pondera. Assim, para teres a perfeita aparência dum banqueiro, não digas nada, ou apenas coisas insignificantes. Apaga teu olhar experto e torna-o grave, mesmo com o risco de torná-lo estúpido. Em política, fica sempre do lado do governo e lança-te a generalidades como: O orçamento é pesado. Não há acordo possível entre os partidos. Os liberais são perigosos. Os Bourbon devem evitar todo conflito. O liberalismo é o manto que esconde interesses coalizados. Os Bourbon preparam-nos uma era de prosperidade; apoiemo-los, mesmo que não os estimemos. A França já fez experiências políticas que chegam etc. Não chafurdes na mesa, lembra-te de que deves conservar a dignidade de um milionário. Não fungues com o rapé como um inválido; brinca com a tua tabaqueira, olha muitas vezes para as pontas dos teus pés ou para o teto antes de responder, enfim, assume uma atitude circunspecta. Sobretudo, perde esse teu mau costume de pôr a mão em tudo. Na sociedade, um banqueiro deve demonstrar que já está cansado de pôr a mão nas coisas. Isso! Passas as noites em claro, os algarismos te embrutecem, é necessário reunir tantos elementos para lançar um negócio, tantos estudos! E, principalmente, queixa-te amargamente dos negócios. Os negócios são pesados, penosos, difíceis, espinhosos. Não saias disso e não especifiques nada. Não vás para a mesa cantar tuas farsas de Béranger[299] nem bebas demais. Se te embebedares, estragarás teu futuro. Roguin te vigiará; vais enfrentar pessoas morigeradas, burgueses virtuosos, não vás assustá-los com essas tuas ideias de botequim.

Essa mercurial produzira no espírito de Carlos Claparon um efeito semelhante ao que produziam em seu corpo as roupas novas. O folgazão despreocupado, amigo de todo mundo, habituado às roupas desalinhadas dentro das quais seu corpo ficava tão à vontade como seu espírito dentro da sua maneira de falar, e agora mantido dentro dum traje novo que o alfaiate o fizera esperar muito tempo fiado e que ele usava pela primeira vez, teso como uma estaca, receoso tanto dos movimentos como das frases, recolhendo a mão que imprudentemente avançava para um frasco ou uma garrafa, do mesmo modo que se interrompia no meio de uma frase, assinalava-se, à observação de Pillerault, por um ridículo desacordo. Sua fisionomia avermelhada e sua peruca à saca-rolhas desmentiam seu garbo, do mesmo modo que seus pensamentos estavam em contradição com suas frases. Os bons burgueses, porém, acabaram por ver nessas constantes dissonâncias sinais de preocupação.

— Ele tem tantos negócios! — dizia Roguin.

— Os negócios lhe dão muito pouca educação — disse a sra. Ragon a Cesarina.

O sr. Roguin ouviu a frase e pôs um dedo nos lábios.

— Ele é rico, hábil e duma excessiva honestidade — disse, inclinando-se para a sra. Ragon.

— Pode-se perdoar-lhe alguma coisa, em vista de tantas qualidades — disse Pillerault a Ragon.

— Vamos ler os papéis antes do jantar — disse Roguin. — Estamos a sós.

A sra. Ragon, Cesarina e Constança deixaram os contratantes, Pillerault, Ragon, César, Roguin e Claparon, ouvirem a leitura feita por Alexandre Crottat. César assinou, em favor de um cliente de Roguin, uma obrigação de quarenta mil francos hipotecados sobre os terrenos e as fábricas situadas no Faubourg du Temple; entregou a Roguin o cheque de Pillerault contra o Banco; deu, sem recibo, vinte mil francos em dinheiro e cento e quarenta mil francos em títulos à ordem de Claparon.

— Não tenho recibo para lhe dar — disse Claparon. — Entenda-se, de sua parte, com o sr. Roguin, como nós nos entendemos da nossa. Os vendedores receberão no cartório o valor em dinheiro; não tenho outra tarefa a não ser apurar o complemento da sua parte com os seus cento e quarenta mil francos em títulos.

— É justo — disse Pillerault.

— Pois bem, senhores, chamemos as damas, pois a sala ficou fria sem elas — disse Claparon, olhando para Roguin como se quisesse verificar se o gracejo não fora muito pesado. — Minhas senhoras!... Oh! A senhorita é certamente a sua filha — disse, empertigando-se e olhando para Birotteau. — Bem, habilidade não lhe falta. Nenhuma das rosas que o senhor destilou pode ser comparada a ela e talvez seja porque tenha destilado rosas que...

— Confesso que estou com fome — disse Roguin, interrompendo.

— Pois bem, vamos jantar — disse Birotteau.

— Vamos jantar perante o tabelião — disse Claparon, empertigando-se.

— O senhor tem muitos negócios? — perguntou Pillerault, sentando-se à mesa, ao lado de Claparon, intencionalmente.

— Excessivamente, por atacado — respondeu o banqueiro. — Mas eles são pesados, espinhosos: há os trâmites! Oh! os trâmites! O senhor não imagina como os trâmites nos dão trabalho! E isso se compreende. O governo exige os trâmites. O trâmite é uma necessidade que geralmente se faz sentir nos departamentos e que atinge todos os ramos do comércio, o senhor sabe! Os rios, disse Pascal, são estradas que marcham. É necessário, portanto, marchar pelas estradas. As estradas dependem do terreno, e há terríveis aterros: os aterros dizem respeito à classe pobre, e daí os empréstimos que, em definitivo, são restituídos aos pobres! Disse Voltaire: “Trâmites, tramantes, tramoias!”. Mas o governo tem seus engenheiros, que o esclarecem; é difícil burlá-lo, a não ser que nos entendamos com eles; pois a Câmara!... Oh! Senhor, a Câmara nos dá um trabalho! Ela não quer reconhecer a questão política oculta sob a questão financeira. Há má-fé de uma e de outra parte! Acredita numa coisa? Os Keller, bem, Francisco Keller é um orador, ataca o governo a propósito dos títulos públicos, a propósito dos trâmites. Ao voltar para casa, o meu rapaz encontra-nos com as nossas propostas, que são favoráveis, e precisa entrar num acordo com esse mesmo governo insolentemente atacado naquele mesmo momento. O interesse do banqueiro e o do orador se chocam, ficamos entre dois fogos! O senhor compreende agora como os negócios são espinhosos, precisamos satisfazer a tanta gente: os corretores, as Câmaras, as antecâmaras, os ministros...

— Os ministros! — disse Pillerault, que queria ficar conhecendo aquele sócio.

— Sim, senhor, os ministros.

— Bem, então os jornais têm razão — disse Pillerault.

— Aí está o meu tio metido em política — disse Birotteau. — O sr. Claparon o provoca.

— São outros farsistas danados — disse Claparon —, esses jornais! Senhor, os jornais nos atrapalham tudo, ajudam-nos algumas vezes, mas fazem-me passar noites terríveis; e eu gostaria de passá-las de outro modo; já estraguei os olhos de tanto ler e calcular.

— Voltemos aos ministros — disse Pillerault, esperando revelações.

— Os ministros têm exigências puramente governamentais. Mas que é isto que estou comendo? Ambrosia? — disse Claparon, interrompendo-se. — Eis aqui um molho que a gente só come em casas burguesas; os taverneiros nunca...

Ao ouvir essa frase, as flores da touca da sra. Ragon saltaram como cabritos. Claparon percebeu que a palavra era ignóbil e procurou desfazer a má impressão.

— Nos altos meios bancários — disse — chamamos de taverneiros os diretores de cabarés elegantes, Véry,[300] os Frères Provençaux.[301] Pois bem, nem esses infames taverneiros nem os nossos eruditos cozinheiros nos preparam molhos substanciosos; uns servem água clara acidulada por limão, outros fazem preparações químicas.

O jantar decorreu inteiramente sob os ataques de Pillerault, que procurava sondar o homem e somente encontrava o vácuo; considerou-o um indivíduo perigoso.

— Tudo vai indo bem — disse Roguin ao ouvido de Carlos Claparon.

— Ah! Garanto que vou acabar tirando esta roupa! — respondeu Claparon, que estava sufocado.

— Senhor — disse-lhe Birotteau —, se fomos obrigados a fazer da sala de jantar uma sala de visitas, é porque daqui a dezoito dias vamos reunir alguns amigos, tanto para celebrar a libertação do território...

— Muito bem, senhor, eu também sou homem do governo. Pertenço, pelas minhas opiniões, ao status quo do grande homem que dirige os destinos da Casa da Áustria, um sujeito corajoso! Conservar para adquirir e, principalmente, adquirir para conservar... Essa é a essência das minhas opiniões, que têm a honra de ser as mesmas do príncipe de Metternich.

— ... como para festejar minha promoção na Ordem da Legião de Honra — continuou César.

— Sim, eu sei. Quem foi mesmo que me falou nisso? Os Keller ou Nucingen?

Roguin, surpreso com tamanha presença de espírito, fez um gesto de admiração.

— Não. Foi na Câmara.

— Na Câmara, o sr. de La Billardière? — indagou César.

— Precisamente.

— Ele é encantador — disse César ao tio.

— Faz frases, frases — disse Pillerault —, frases nas quais a gente se afoga.

— É possível que eu tenha merecido esse favor... — acrescentou Birotteau.

— Por seus trabalhos em perfumaria; os Bourbon sabem recompensar todos os méritos. Ah! Apoiemos esses generosos príncipes legítimos, aos quais vamos dever prosperidades inconcebíveis... Pois, acredite, a Restauração sente que deve lutar com o Império; fará conquistas em plena paz, o senhor há de ver conquistas!...

— O senhor certamente nos dará a honra de assistir ao nosso baile — disse a sra. Birotteau.

— Para passar uma noitada na companhia da senhora, eu renunciaria a ganhar milhões.

— Decididamente, ele é um grande conversador — disse César ao tio.

Enquanto a glória da perfumaria, no declínio, ia lançar seus últimos raios, outro astro se levantava debilmente no horizonte comercial. O pequeno Popinot, justamente naquela hora, estava assentando os alicerces de sua fortuna, à Rue des Cinq-Diamants.

A Rue des Cinq-Diamants, ruazinha estreita por onde os veículos carregados têm dificuldade em passar, desemboca, por uma das extremidades, na Rue des Lombards e, pela outra, na Rue Aubry-le-Boucher, diante da Rue Quincampoix, uma das ruas da antiga Paris que ficaram ilustres na história da França. A despeito dessa desvantagem, o agrupamento dos comerciantes de drogas torna essa rua favorável e, sob esse aspecto, Popinot não fizera má escolha. A casa, a segunda a contar da Rue des Lombards, era tão escura que, em certas ocasiões, era necessário acender a luz em pleno dia. Na véspera, à noite, o estreante ocupara os lugares mais escuros e desagradáveis. Seu predecessor, comerciante de melaço e de açúcar bruto, deixara os estigmas do seu comércio nas paredes, no pátio e nos depósitos.

Imaginai uma grande e espaçosa loja com portas revestidas de ferro, pintadas de verde-dragão, com longas vigas de ferro à mostra, ornadas de pregos cujas cabeças pareciam cogumelos, guarnecida de grades feitas de arame e reforçadas na parte inferior como as das antigas padarias, enfim, pavimentada de grandes pedras brancas, na maioria quebradas, as paredes amareladas e nuas como as duma guarita de sentinela. Vinham depois um escritório e uma cozinha, com janelas dando para o pátio; e, finalmente, um segundo depósito no ângulo da casa e que devia ter sido outrora uma estrebaria. Uma escada interna construída no escritório dava acesso a dois quartos com janelas para a rua e nos quais Popinot tencionava instalar o caixa e o escritório. Por cima dos depósitos ficavam três quartos estreitos que tinham parede comum com a casa do vizinho, com janelas para o pátio, e onde ele pretendia morar. Três quartos inutilizados, sem outra vista além da do pátio irregular, sombrio, cercado de muros a que a umidade, mesmo nos dias mais secos, dava a impressão de terem sido recentemente pintados; um pátio que tinha entre as pedras do calçamento uma crosta escura e fétida resultante da permanência dos melaços e do açúcar bruto. Um dos quartos, apenas, tinha lareira, e os demais não tinham papel nas paredes e eram pavimentados de tijolos.

Desde a manhã, Gaudissart e Popinot, auxiliados por um forrador que o caixeiro-viajante desencantara, estendiam eles mesmos um papel de quinze sous nas paredes desse horrível quarto, que o trabalhador besuntava de cola. Uma cama colegial de madeira vermelha, uma velha mesinha de cabeceira, uma cômoda antiga, duas poltronas e seis cadeiras, que o juiz Popinot dera ao sobrinho, compunham o mobiliário. Gaudissart pusera em cima da lareira um tremó guarnecido dum espelho velho, comprado a preço de ocasião. Pelas oito da noite, sentados diante da lareira onde ardia um feixe de lenha, os dois amigos iam atacar o resto do almoço.

— Abaixo o carneiro frio! Isto não fica bem para a inauguração duma casa — exclamou Gaudissart.

— Mas — disse Popinot, mostrando a única moeda de vinte francos que conservava para pagar o anúncio — eu...

— Eu?... — disse Gaudissart, pondo uma moeda de quarenta francos diante do olho.

Uma pancada ressoou então no pátio, naturalmente solitário e sonoro no domingo, dia em que os industriais se distraem e abandonam os laboratórios.

— Aí está o fiel da Rue de la Poterie. Meu — acrescentou o ilustre Gaudissart. — Meu, e não eu!

Realmente, um rapaz acompanhado de dois serventes de cozinha apareceu trazendo, em dois cestos compridos, um jantar abrilhantado por seis garrafas de vinho escolhidas a capricho.

— Mas como faremos para comer tanta coisa? — disse Popinot.

— Nós e o homem de letras! — exclamou Gaudissart. — Finot conhece as pompas e as vaidades, ele vem cá, menino inocente, munido dum anúncio incrível! A palavra é bonita, hem? Os anúncios sempre têm sede. É preciso regar os grãos se quisermos flores. Vão embora, escravos — disse aos serventes de cozinha, assumindo um ar importante —, tomem dinheiro.

E deu-lhes dez sous com um gesto digno de Napoleão, seu ídolo.

— Muito obrigado, sr. Gaudissart — responderam os serventes, mais alegres com a brincadeira do que com o dinheiro.

— E tu, meu filho — disse ele ao rapaz que ficara para servir o jantar —, há uma porteira, que jaz nas profundidades dum antro onde ela às vezes cozinha, como outrora Nausícaa fazia a barrela, por simples desfastio. Aproxima-te dela, implora sua candura, interessa-a, rapaz, para que ela aqueça estes pratos. Dize-lhe que ela será abençoada e, principalmente, respeitada, muito respeitada por Félix Gaudissart, filho de João Francisco Gaudissart, neto dos Gaudissart, vis proletários muito antigos, seus antepassados. Anda e trata de que tudo saia bem, senão eu te meto um dó maior no traseiro.

Ouviu-se outra pancada na porta.

— Chegou o talentoso Andoche — disse Gaudissart.

Um rapaz gordo e bochechudo, de estatura mediana e que, da cabeça aos pés, se parecia com um filho de chapeleiro, de feições arredondadas nas quais a sagacidade se ocultava sob uma aparência circunspecta, entrou bruscamente. Seu rosto, triste como o de um homem cansado duma vida miserável, adquiriu uma expressão alegre ao ver a mesa posta e as garrafas. À aclamação com que Gaudissart o recebeu, seu olhar amortecido cintilou; sua enorme cabeça, quase inteiramente tomada pelo rosto calmuco, moveu-se da direita para a esquerda e ele cumprimentou Popinot duma maneira estranha, sem servilismo nem deferência, como quem não se sente em seu lugar e não faz concessão alguma. Nessa época ele começava a perceber que não tinha nenhum talento literário e pensava conservar-se na literatura como explorador, elevar-se nela à custa das pessoas de espírito e dedicar-se a fazer negócios em vez de escrever obras mal pagas. Precisamente nesse momento, após ter esgotado a humildade das negociações e a humilhação das tentativas, ele, como as pessoas de grande capacidade financeira, ia mudar de atitude e tornar-se deliberadamente insolente. Faltava-lhe, porém, um capital inicial, e Gaudissart lhe mostrara a possibilidade de consegui-lo por meio do lançamento do óleo de Popinot.

— Você tratará o preço com jornais, mas não vá explorá-lo, senão teremos um duelo de morte; aplique bem o dinheiro dele.

Popinot olhou para o autor com uma expressão inquieta. Os verdadeiros comerciantes encaram os escritores com um sentimento em que entram o terror, a compaixão e a curiosidade. Embora Popinot houvesse sido bem-educado, os hábitos dos seus pais, suas ideias, os embrutecedores afazeres duma loja e dum caixa haviam modificado sua inteligência, amoldando-a aos usos e aos costumes de sua profissão, fenômeno que se pode observar atentando para as metamorfoses sofridas dez anos mais tarde por cem camaradas há pouco saídos do colégio ou do pensionato. Andoche recebeu essa surpresa como uma demonstração de profunda admiração.

— Muito bem! Antes do jantar, vamos liquidar o prospecto, poderemos beber sem preocupações — disse Gaudissart. — Depois do jantar a gente lê mal. A língua também digere.

— Senhor — disse Popinot —, muitas vezes um prospecto representa toda uma fortuna.

— E muitas vezes — replicou Andoche —, para um plebeu como sou, a fortuna é apenas um anúncio.

— Ah! Muito bonito! — disse Gaudissart. — Esse farsista do Andoche tem inteligência como os Quarenta.[302]

— Como cem — disse Popinot, estupefato com essa ideia.

O impaciente Gaudissart tomou o manuscrito e leu em alta voz e com ênfase:

 

óleo cefálico

 

— Eu preferiria Óleo Cesariano — disse Popinot.

— Meu amigo — disse Gaudissart —, não conheces a gente da província: há uma intervenção cirúrgica que tem esse nome, essa gente é tão estúpida que iria pensar que o teu óleo fosse próprio para apressar os partos; e daí para levá-lo até os cabelos teríamos muito que fazer.

— Sem querer defender o nome que escolhi — disse o autor —, observo-lhe que Óleo Cefálico quer dizer “óleo para a cabeça” e resume as suas ideias.

— Vamos ver! — disse Popinot, impaciente.

Eis o anúncio, tal como ainda hoje o comércio o recebe aos milhares (outra peça justificativa).


MEDALHA DE OURO NA EXPOSIÇÃO DE 1824

 

 


óleo


cefálico

PATENTES DE INVENÇÃO E DE APERFEIÇOAMENTO

 

Nenhum cosmético pode fazer nascer cabelos, do mesmo modo que nenhum preparado químico os tinge sem perigo para a sede da inteligência. A ciência declarou recentemente que os cabelos são uma substância morta e que agente algum pode impedi-los de cair nem de embranquecer. Para prevenir a Xerasia e a Calvície, basta preservar o bulbo de onde eles saem de toda a influência exterior atmosférica e manter na cabeça o calor que lhe é próprio. O Óleo Cefálico, baseado nesses princípios estabelecidos pela Academia das Ciências, proporciona esse importante resultado a que recorriam os antigos, os romanos, os gregos e as nações do norte, para os quais a cabeleira era preciosa. Sábias pesquisas demonstraram que os nobres, que antigamente se distinguiam pelo comprimento dos cabelos, não empregavam outro meio; acontece, porém, que sua técnica de preparo, habilmente redescoberta por A. Popinot, inventor do Óleo Cefálico, fora perdida.

Conservar, em vez de tentar provocar um estímulo impossível ou nocivo sobre a derme que contém os bulbos, tal é, pois, a finalidade do Óleo Cefálico. Com efeito, este óleo, que se opõe à esfoliação das películas, que exala um odor suave e que, pelas substâncias que o compõem, entre as quais figura, como principal elemento, a essência de avelãs, impede qualquer influência do ar exterior sobre as cabeças, ao mesmo tempo que evita os resfriados, a coriza e todas as afecções dolorosas do encéfalo mantendo a sua temperatura interna. Desta maneira, os bulbos que contêm os líquidos geradores dos cabelos nunca são atingidos pelo frio nem pelo calor. A cabeleira — esse magnífico produto —, a que os homens e as mulheres dão tanto valor, conserva, assim, até a idade avançada de quem se serve do Óleo Cefálico, esse brilho, essa delicadeza, esse esplendor que tornam tão encantadoras as cabeças das crianças.

A maneira de usar acompanha cada frasco e lhe serve de invólucro.

 

maneira de usar o óleo cefálico

 

É completamente inútil untar os cabelos; isso constitui não só um preconceito ridículo como também um hábito incômodo, visto que o cosmético deixa por toda parte seus vestígios. Basta molhar no óleo, todas as manhãs, uma esponja fina, separar os cabelos com o pente e embeber os fios, risca após risca, de modo que a pele receba uma leve camada, após ter sido a cabeça previamente limpa com a escova e o pente.

Este óleo é vendido em frascos que levam a assinatura do inventor, para impedir qualquer falsificação, e ao preço de três francos, na casa de A. Popinot, à Rue des Cinq-Diamants, quartier des Lombards, em Paris.

 

pede-se escrever livre de porte

 

nota — A casa A. Popinot tem igualmente à venda os óleos de drogaria, como essência de flor de laranjeira, óleo de amêndoas doces, óleo de cacau, óleo de café, de rícino e outros.

 

 

— Meu caro amigo — disse Gaudissart a Finot —, isto está escrito com perfeição. Formidável a maneira como abordamos a alta ciência. Não fazemos rodeios, vamos diretamente ao fato. Ah! Apresento-lhe meus sinceros cumprimentos, isso é que é literatura útil.

— Um belo anúncio! — disse Popinot, entusiasmado.

— Um anúncio que já na primeira frase mata o Macassar — disse Gaudissart, levantando-se com uma atitude magistral para pronunciar as palavras seguintes, escandidas com gestos parlamentares: — Não... se... faz... nascer... os... cabelos!... Não... se... os... tinge... sem... perigo! Ah! Ah! Ah! Aí é que está o sucesso. A ciência moderna está de acordo com os hábitos dos antigos. Podemos entender-nos com os velhos e com os moços. Ao abordar um velho: “Ah! Ah! Senhor, os antigos, os gregos, os romanos tinham razão e não são tão estúpidos como se os quer fazer!”. Ao tratar com um moço: “Meu caro rapaz, eis mais uma descoberta devida ao progresso dos nossos conhecimentos, estamos progredindo. Que é que não se deve esperar da máquina a vapor, dos telégrafos e outros! Este óleo é o resultado dum estudo do sr. Vauquelin!”. E se imprimíssemos uma passagem da nota lida pelo sr. Vauquelin na Academia das Ciências, confirmando as nossas asserções, hem? Formidável! Bem, Finot, vamos para a mesa! Papemos os legumes! Enxuguemos o champanhe, pelo sucesso do nosso jovem amigo!

— Considerei — disse o autor, modestamente — que a época do anúncio leve e alegre já passou; estamos entrando no período da ciência, é necessário um ar doutoral, um tom de autoridade, para se impor ao público.

— Havemos de fazer esse óleo ferver, já sinto coceira nos pés e na língua. Tenho as comissões de todos os que trabalham no ramo dos cabelos, nenhum dá mais de trinta por cento; é preciso deixar quarenta por cento de lucro e garanto cem mil frascos em seis meses. Atacarei os farmacêuticos, os merceeiros, os cabeleireiros! E, dando-lhes quarenta por cento, eles hão de convencer o público.

Os três rapazes comiam como leões, bebiam como suíços e embriagavam-se com o êxito futuro do Óleo Cefálico.

— Este óleo sobe à cabeça — disse Finot, sorrindo.

Gaudissart esgotou as diversas séries de trocadilhos a respeito das palavras óleo, cabelos, cabeça etc. No meio dos risos homéricos dos três amigos, à sobremesa, a despeito dos recíprocos brindes e dos votos de felicidade, ouviram bater à porta.

— É o meu tio. Ele é bem capaz de ter vindo visitar-me — exclamou Popinot.

— Um tio? — disse Finot. — E nem temos um copo!

— O tio do meu amigo Popinot é um juiz de instrução — disse Gaudissart a Finot —, não podemos abusar, ele me salvou a vida. Ah! Quem já se viu na situação em que me encontrei, diante do cadafalso, onde “zás! e adeus aos cabelos!” — fez ele, imitando com um gesto o cutelo fatal —, não se pode esquecer do virtuoso magistrado a quem se deve ter conservado o canal por onde passa o vinho de Champagne! Mesmo a cair de bêbado a gente se lembra! Você não sabe, Finot, se não virá a ter necessidade do sr. Popinot. Caramba, precisamos duma boa saudação para ele!

O virtuoso juiz de instrução, realmente, estava perguntando pelo sobrinho à porteira e, ao reconhecer-lhe a voz, Anselmo desceu com um castiçal à mão para iluminar a entrada.

— Saúdo-os, meus senhores — disse o magistrado.

O ilustre Gaudissart fez uma profunda inclinação. Finot examinou o juiz com um olhar de ébrio e achou-o passavelmente pateta.

— Não há luxo, aqui — disse gravemente o juiz, correndo o olhar pelo quarto. — Mas, meu filho, para ser alguma coisa de grande, é preciso saber começar por não ser nada.

— Que homem profundo! — disse Gaudissart a Finot.

— Uma ideia de artigo — disse o jornalista.

— Ah! O senhor! — disse o juiz, ao avistar o caixeiro-viajante. — Então, que está fazendo aqui?

— Quero contribuir, senhor, com todos os meus parcos recursos, para o sucesso do seu querido sobrinho. Acabamos de refletir sobre a propaganda do seu óleo e o cavalheiro que o senhor está vendo aqui é o autor do anúncio, que nos parece um dos mais belos trechos dessa literatura de perucas.

O juiz olhou para Finot.

— O sr. Andoche Finot — disse Gaudissart —, um dos moços mais distintos da literatura, que faz nos jornais do governo a alta política e o baixo teatro, um ministro a caminho de ser autor.

Finot puxou Gaudissart pela aba da sobrecasaca.

— Muito bem, meus filhos — disse o juiz, a quem essas palavras explicaram o aspecto da mesa onde se viam os restos dum banquete perfeitamente compreensível. — Meu amigo — disse a Popinot —, vista-se, iremos esta noite à casa do sr. Birotteau, a quem devo uma visita. Você assistirá o contrato da sociedade, que examinei cuidadosamente. Como você vai ter a fábrica do óleo nos terrenos do Faubourg du Temple, acho que ele lhe deve arrendar a oficina; pode ser que ele tenha procuradores, e as coisas bem regularizadas poupam discussões. Estas paredes me parecem úmidas: Anselmo, ponha uma esteira no lugar da cama.

— Permita-me, senhor juiz de instrução — disse Gaudissart, com a lábia dum cortesão —, nós mesmos colamos os papéis, hoje, e... eles... ainda não... estão... secos.

— Economia! Muito bem! — disse o juiz.

— Escute — disse Gaudissart ao ouvido de Finot —, o meu amigo Popinot é um moço virtuoso e vai sair com o tio; vamos acabar a noitada num bom lugar.

O jornalista revirou o forro do bolso do colete e Popinot viu esse gesto: passou vinte francos ao autor do anúncio. O juiz tinha um fiacre esperando na esquina e levou o sobrinho à casa de Birotteau.

Pillerault, o sr. e a sra. Ragon e Roguin estavam jogando bóston e Cesarina estava bordando um fichu, quando o juiz Popinot e Anselmo chegaram. Roguin, que estava diante da sra. Ragon, ao lado de quem estava Cesarina, notou a satisfação da moça ao ver entrar Anselmo; e, por um sinal, mostrou-a a seu primeiro escrevente.

— Será hoje o dia de assinar contratos? — disse o perfumista, quando, após os cumprimentos, o juiz lhe comunicou o motivo da visita.

César, Anselmo e o juiz dirigiram-se ao segundo andar, ao quarto provisório do perfumista, para discutir o arrendamento e o contrato de sociedade redigido pelo magistrado. O arrendamento foi ajustado por dezoito anos, a fim de ficar de acordo com o da casa da Rue des Cinq-Diamants, circunstância aparentemente insignificante, mas que, mais tarde, foi útil aos interesses de Birotteau. Quando César e o juiz voltaram ao entressolo, o magistrado, admirado da desordem geral e da presença de operários, num domingo, na casa dum homem tão religioso, perguntou a causa daquilo. O perfumista já esperava por essa.

— Embora o senhor não seja homem de sociedade, não há de achar mal celebrarmos a libertação do país. E não é tudo. Se vou reunir alguns amigos, é também para festejar a minha promoção na Ordem da Legião de Honra...

— Ah! — fez o juiz, que não fora condecorado.

— É possível que eu me tenha tornado digno desse insigne e real favor, fazendo parte do tribunal consular e combatendo pelos Bourbon nas escadarias...

— Perfeitamente — disse o juiz.

— ... de Saint-Roch, a 13 de vendemiário, onde fui ferido por Napoleão...

— Com muito prazer — disse o juiz. — Se minha mulher não estiver doente, hei de trazê-la.

— Xandrot — disse Roguin ao seu escrevente, ao saírem —, não penses, de maneira alguma, em desposar Cesarina, e daqui a seis semanas verás que te dei um bom conselho.

— Por quê? — perguntou Crottat.

— Birotteau vai gastar cem mil francos com o baile, meu caro, e vai empenhar a fortuna nesse negócio dos terrenos, contra o meu conselho. Daqui a seis semanas, essa gente não terá mais o que comer. Casa-te com a srta. Lourdois, filha do pintor de construções. Ela tem trezentos mil francos de dote, e já te preparei a troca. Se quiseres pagar-me cem mil francos à vista, podes ficar com o meu cartório amanhã.

VII — O BAILE

As magnificências do baile que o perfumista estava preparando, anunciadas pelos jornais à Europa, eram propaladas de maneira completamente diferente no seio do comércio pelos rumores a que davam lugar os trabalhos de dia e de noite. Aqui, dizia-se que César alugara três casas; ali, que mandara dourar os salões; lá, que o banquete apresentaria pratos inventados para a ocasião; acolá, dizia-se que os comerciantes não seriam convidados e que a festa era dada aos membros do governo; mais além, o perfumista era severamente censurado por sua ambição, faziam troça de suas pretensões políticas e negavam que houvesse sido ferido! O baile gerava mais de uma intriga no segundo distrito; os amigos estavam tranquilos, mas as exigências dos simples conhecidos eram enormes. Toda dignidade gera cortesãos. Houve um bom número de pessoas para quem o convite custou mais de uma solicitação. Os Birotteau ficaram pasmos com o número de amigos a quem não conheciam. Essa solicitude assustava a sra. Birotteau, seu aspecto tornava-se cada vez mais sombrio à medida que se aproximava a solenidade. Preliminarmente, confessava a César que nunca saberia que maneiras devia adotar, sentia medo dos inúmeros detalhes duma festa daquele gênero: onde iria encontrar a prataria, os cristais, os refrescos, a baixela, o serviço? E quem se encarregaria de fiscalizar tudo? Pedia a Birotteau que se plantasse à porta da casa para só deixar entrar os convidados, pois ouvira contar estranhas coisas de pessoas que compareciam aos bailes burgueses, invocando amigos cujo nome não sabiam dizer. Quando, dez dias antes da data marcada, Braschon, Grindot, Lourdois e Chaffaroux, o empreiteiro de construções, afirmaram que o apartamento estaria pronto para o famoso domingo, 17 de dezembro, houve uma ridícula conferência, à noite, após o jantar, na modesta sala do entressolo, entre César, a esposa e a filha, para compor a lista dos convidados[303] e endereçar os convites que, pela manhã, um impressor enviara, em belos caracteres ingleses, em papel cor-de-rosa e segundo a fórmula do código de civilidade frívola e honesta.

— Cuidado! Não esqueçamos ninguém! — disse Birotteau.

— Se esquecermos alguém — disse Constança —, ele nunca esquecerá. A sra. Derville, que nunca nos visitou, apareceu aqui ontem à noite muito pressurosa.

— Ela estava bem bonita — disse Cesarina. — Gostei dela.

— Antes do seu casamento, contudo, ela era ainda menos do que eu[304] — disse Constança. — Trabalhava em roupa-branca, à Rue Montmartre, fazia camisas para o teu pai.

— Bem, comecemos a lista — disse Birotteau — pelas pessoas mais de cima. Escreve, Cesarina: sr. duque e sra. duquesa de Lenoncourt...[305]

— Meu Deus, César — disse Constança —, não mandes convite às pessoas a quem somente conheces na qualidade de fornecedor. Irás acaso convidar a princesa de Blamont-Chauvry,[306] que afinal é mais parente da tua falecida madrinha, a marquesa d’Uxelles,[307] do que o duque de Lenoncourt? Vais convidar os dois srs. de Vandenesse,[308] o sr. de Marsay,[309] o sr. de Ronquerolles,[310] o sr. d’Aiglemont,[311] enfim, os teus fregueses? Estás louco, as grandezas te transtornaram a cabeça.

— Sim! Mas e o sr. conde de Fontaine e a família? Hem! Este vinha sob o nome de grand jacques, com o gars, que era o sr. marquês de Montauran, e o sr. de La Billardière, que se chamava le nantais,[312] à Rainha das Rosas antes do grande acontecimento do 13 de vendemiário. Então vinha cada aperto de mão! “Meu caro Birotteau, coragem! Faça-se matar, como nós, pela boa causa!” Somos antigos camaradas de conspiração.

— Convida-os — disse Constança —, pois, se o sr. de La Billardière e o filho vierem, é preciso que tenham com quem conversar.

— Escreve, Cesarina — disse Birotteau. — Primo, senhor prefeito do Sena: ele virá ou não, mas é quem dirige a administração municipal; a César o que é de César! O sr. de La Billardière e o filho, o juiz distrital. Vamos fazer a lista até o fim. Meu colega, sr. Granet, o suplente, e a esposa: ela é muito feia, mas não faz mal, não podemos deixar de convidá-la. O sr. Curel, ourives e coronel da Guarda Nacional, a esposa e as duas filhas. Aí estão os que chamo de autoridades. Vamos ver, agora, as pessoas importantes! O sr. conde e a sra. condessa de Fontaine e sua filha, srta. Emília de Fontaine.[313]

— Uma impertinente que me obriga a sair da loja para falar com ela à porta da carruagem, qualquer que seja o tempo que faça — disse a sra. César. — Se ela vier, será para zombar de nós.

— Então, talvez venha — disse César, que fazia questão de ter muita gente. — Continua, Cesarina. O sr. conde e a sra. condessa de Granville,[314] meu senhorio, o maior cérebro da Corte real, segundo diz Derville. Ah! O sr. de La Billardière faz com que eu seja recebido como cavaleiro, amanhã, pelo sr. conde de Lacépède em pessoa. Convém que eu mande um convite para o baile e para o jantar ao grande chanceler. Sr. Vauquelin. Para o baile e para o jantar, Cesarina. E, para não esquecê-los, todos os Chiffreville e os Protez. Sr. e sra. Popinot,[315] juiz do tribunal do Sena. Sr. e sra. Thirion, oficial de gabinete do rei, amigos dos Ragon, e sua filha, que, segundo dizem, vai desposar um dos filhos do primeiro casamento do sr. Camusot.

— César, não te esqueças do jovem Horácio Bianchon,[316] sobrinho do sr. Popinot e primo de Anselmo — disse Constança.

— É claro! Cesarina já pôs um número quatro junto aos Popinot. Sr. e sra. Rabourdin, chefe de seção da divisão do sr. de La Billardière. Sr. Cochin,[317] do mesmo ministério, esposa e filhos, comanditários dos Matifat,[318] e sr., sra. e srta. Matifat, já que estamos metidos nisso.

— Os Matifat — disse Cesarina — pediram convites para o sr. e sra. Colleville, o sr. e a sra. Thuillier, seus amigos, e para os Saillard.[319]

— Veremos depois — disse César. — Nosso corretor de câmbio: sr. e sra. Júlio Desmarets.[320]

— Essa será a mais bonita do baile! — disse Cesarina. — Gosto muito dela, mais do que de qualquer outra.

— Derville e a esposa.

— Põe então o sr. e a sra. Coquelin, os sucessores do meu tio Pillerault — disse Constança. — Eles esperam tão seguramente ser convidados que a pobre mulherzinha já mandou fazer, pela minha costureira, um lindo vestido de baile: abrigo de cetim branco, vestido de tule bordado com flores de chicória. Com um pouco mais, teria encomendado um vestido prateado como se fosse para comparecer à Corte. Se não os convidarmos, passaremos a ter neles inimigos ferozes.

— Põe, então, Cesarina; devemos honrar o comércio, somos dele. Sr. e sra. Roguin.

— Mamãe, a sra. Roguin porá seu colar de brilhantes, todas as suas joias e o vestido enfeitado de Malines.

— Sr. e sra. Lebas[321] — disse César. — Depois, o senhor presidente do Tribunal de Comércio, a esposa e as duas filhas. Esqueci-me deles entre as autoridades. Sr. e sra. Lourdois e filha. Sr. Claparon, banqueiro, sr. du Tillet, sr. Grindot, sr. Molineux, Pillerault e seu senhorio. Sr. e sra. Camusot,[322] os ricos comerciantes de seda, com todos os filhos, o da Escola Politécnica e o advogado; este vai ser nomeado juiz, graças ao seu casamento com a srta. Thirion.

— Mas na província — disse Cesarina.

— Sr. Cardot,[323] sogro de Camusot, e todos os filhos Cardot. Olha! E os Guillaume, da Rue du Colombier, sogro de Lebas, dois velhos que vão fazer crochê. Alexandre Crottat, Celestino...

— Papai, não te esqueças do sr. Andoche Finot e do sr. Gaudissart, dois rapazes muito úteis a Anselmo.

— Gaudissart? Ele andou às voltas com a Justiça, mas não faz mal; ele vai partir daqui a uns dias, vai viajar com o nosso óleo... está bem! Quanto ao sr. Andoche Finot, que é que ele tem a ver conosco?

— O sr. Anselmo disse que ele vai ser uma pessoa ilustre, tem inteligência como Voltaire.

— Escritor? São todos uns ateus.

— Convida-o, papai; ainda não há dançarinos que cheguem. Além disso, foi ele quem fez o belo anúncio do seu óleo.

— Ele acredita no nosso óleo — disse César —, pois convida, queridinha.

— Vou incluir também os meus protegidos — disse Cesarina.

— Põe o sr. Mitral, oficial de justiça do meu tribunal; o dr. Haudry,[324] nosso médico, apenas por formalidade, pois ele não virá.

— Ele há de vir jogar sua partida de cartas — disse Cesarina.

— Olha, César, espero que convides para o jantar o padre Loraux.[325]

— Já lhe escrevi — disse César.

— Oh! Não nos esqueçamos da cunhada de Lebas, a sra. Agostinha de Sommervieux — disse Cesarina. — Pobre mulher! Está muito doente, está morrendo de tristeza, disse-nos Lebas.

— Aí está no que dá casar-se com artistas! — exclamou o perfumista. — Repara como a tua mãe está dormindo — disse baixinho à filha. — Muito boa noite, sra. César. Então, Cesarina — acrescentou —, e o vestido da tua mãe?

— Tudo ficará pronto, papai. A mamãe pensa que só tem um vestido de crepe da China, como o meu; a costureira tem certeza de que não vai precisar prová-lo.

— Quantas pessoas? — disse César em voz alta, ao ver a esposa reabrir as pálpebras.

— Cento e nove, com os caixeiros — disse Cesarina.

— Onde é que vamos meter toda essa gente? — perguntou a sra. Birotteau. — Mas, afinal, depois desse domingo — acrescentou — haverá uma segunda-feira.

Nada se pode fazer com simplicidade entre as pessoas que sobem dum degrau social a outro. Nem a sra. Birotteau nem César nem ninguém podia entrar sem algum pretexto no primeiro andar. César prometera a Raguet, o encarregado da loja, um traje novo para o dia do baile, se ele vigiasse bem e executasse perfeitamente sua ordem. Birotteau, como o imperador Napoleão em Compiègne, por ocasião da restauração do castelo para o seu casamento com Maria Luísa da Áustria, não queria ver nada parcialmente, desejava gozar a surpresa. Os dois antigos adversários tornaram a encontrar-se, sem que o soubessem, não no campo de batalha, mas no terreno da vaidade burguesa.

O sr. Grindot devia, assim, tomar César pela mão e mostrar-lhe o apartamento, como um cicerone mostra uma galeria a um curioso. Todos, em casa, tinham, aliás, preparado a sua surpresa. Cesarina, a filha querida, empregara todo o seu pequeno tesouro, cem luíses, na compra de livros para o pai. O sr. Grindot confiara-lhe, uma manhã, que o quarto do pai teria duas paredes com armários para livros, adquirindo, assim, um aspecto de gabinete, o que seria uma surpresa de arquitetura. Cesarina jogara todas as suas economias de moça ao balcão dum livreiro, para oferecer ao pai: Bossuet, Racine, Voltaire, Jean-Jacques Rousseau, Montesquieu, Molière, Buffon, Fénelon, Delille, Bernardin de Saint-Pierre, La Fontaine, Corneille, Pascal, La Harpe, enfim, essa biblioteca vulgar que se vê em toda parte e que seu pai nunca leria. Isso representava uma avultada despesa de encadernação. O impontual e famoso artista Thouvenin[326] prometera entregar os volumes no dia 16, ao meio-dia. Cesarina confiara o embaraço em que se encontrava ao tio Pillerault, que se encarregara da conta. A surpresa de César à esposa era um vestido de veludo cereja ornado de rendas, de que acabava de falar à filha, sua cúmplice. A surpresa da sra. Birotteau para o novo cavaleiro consistia num par de fivelas de ouro e num alfinete de gravata com um solitário. E, finalmente, havia, para toda a família, a surpresa do apartamento, à qual se devia seguir, na quinzena imediata, a grande surpresa das contas a pagar.

César refletiu maduramente sobre quais convites deviam ser feitos pessoalmente e quais deviam ser levados por Raguet, à noite. Tomou um fiacre, meteu nele a mulher enfeada com um chapéu de plumas e o último xale que lhe dera, o xale de casimira que ela desejara durante quinze anos. Os perfumistas, enfarpelados, desempenharam-se de vinte e duas visitas numa manhã.

César poupou à esposa as dificuldades que a confecção burguesa dos diferentes comestíveis exigidos pelo esplendor da festa criaria em casa. Um tratado diplomático fora concluído entre o ilustre Chevet[327] e Birotteau. Chevet forneceria uma soberba prataria, cujo aluguel era tão caro como o duma propriedade rural; forneceria o jantar, os vinhos, os criados chefiados por um maître-d’hôtel de aspecto conveniente, todos conscientes dos seus atos e dos seus gestos. Chevet pedira a cozinha e a sala de jantar do entressolo para nelas instalar seu quartel-general, pois não poderia abandonar seu posto para servir um jantar de vinte talheres às seis horas e à uma da manhã uma magnífica ceia fria. Birotteau encomendara ao Café de Foy os gelados de frutas, que seriam servidos em belas taças, com colheres de prata dourada e bandejas de prata. Tanrade,[328] outro fornecedor em moda, se encarregaria dos refrescos.

— Fica descansada — disse César à esposa, ao vê-la um pouco preocupada na antevéspera. — Chevet, Tanrade e o Café de Foy ocuparão o entressolo. Virgínia cuidará do segundo andar, a loja ficará bem fechada. Não teremos nada mais que fazer a não ser ficarmos no primeiro andar a nos darmos ares.

No dia 16, às dez horas, o sr. de La Billardière foi buscar César para levá-lo à chancelaria da Legião de Honra, onde ele devia ser recebido cavaleiro pelo sr. conde de Lacépède, com uma dezena de outros cavaleiros. O juiz distrital encontrou o perfumista com os olhos cheios de lágrimas: Constança acabava de fazer-lhe a surpresa das fivelas de ouro e do solitário.

— Como é bom ser amado assim! — disse ele, ao tomar o fiacre, em presença dos caixeiros reunidos, de Cesarina e de Constança, que admiravam César em calções de seda preta, meias de seda e a nova casaca azul-clara sobre a qual ia brilhar a condecoração que, segundo Molineux, estava embebida de sangue.

Quando César voltou para jantar, estava pálido de alegria, contemplava a Cruz em todos os espelhos, pois, no entusiasmo inicial, não se contentou com a roseta, foi orgulhoso sem falsa modéstia.

— Minha mulher — disse —, o senhor chanceler é um homem encantador; De La Billardière falou com ele e ele aceitou meu convite. Ele virá com o sr. Vauquelin. O sr. de Lacépède é um grande homem, tão grande como Vauquelin; escreveu quarenta volumes! É também um escritor par de França. Não nos esqueçamos de tratá-lo por “Vossa Senhoria” ou “senhor conde”.

— Mas trata de comer, César — disse-lhe a mulher. — Teu pai é pior do que uma criança — disse Constança a Cesarina.

— Como isso fica bem na tua lapela! — disse Cesarina. — Hão de te apresentar armas quando sairmos juntos?

— Apresentar-me-ão armas em toda parte onde houver soldados de sentinela.

Nesse instante, Grindot desceu com Braschon. Depois do jantar, o senhor, a senhora e a senhorita iam ter o direito de lançar um primeiro olhar ao apartamento; o primeiro operário de Braschon tinha acabado de pregar alguns cabides e três homens estavam acendendo as velas.

— São necessárias cento e vinte velas — disse Braschon.

— Uma conta de duzentos francos na casa Trudon — disse a sra. César, cujos lamentos foram interrompidos por um olhar do Cavaleiro Birotteau.

— A sua festa vai ser magnífica, senhor cavaleiro — disse Braschon.

Birotteau disse consigo:

“Começam os aduladores! Bem, o padre Loraux me aconselhou a não cair nas suas ciladas e conservar-me modesto. Hei de me lembrar da minha origem.”

César não compreendeu o que o rico tapeceiro da Rue Saint-Antoine quisera dizer. Braschon fez onze tentativas inúteis para ser convidado, com a esposa, a filha, a sogra e a tia. Braschon tornou-se inimigo de Birotteau. Ao sair, já não o tratava mais por “senhor cavaleiro”.

O ensaio geral começou. César, a esposa e Cesarina saíram da loja e entraram na casa pela rua. A porta fora reformada em alto estilo, com dois batentes, divididos em almofadas iguais e quadradas, no centro das quais havia um ornato arquitetural de ferro fundido e pintado. Essa porta, que depois se tornou tão comum em Paris, era, naquela época, absoluta novidade. Ao fundo do vestíbulo, via-se a escadaria dividida em duas rampas retas entre as quais se destacava aquele pedestal com que tanto se preocupara Birotteau e que formava uma espécie de balcão onde se podia instalar uma mulher. O vestíbulo, pavimentado de mármore branco, era iluminado por uma lâmpada antiga de quatro bicos. O arquiteto associara a riqueza à simplicidade. Um estreito tapete vermelho realçava a alvura dos mármores da escadaria de lioz polido com pedra-pomes. Um primeiro patamar dava entrada ao entressolo. A porta dos apartamentos era do mesmo gênero da da rua, mas em marcenaria.

— Que lindo! — disse Cesarina. — E, contudo, não há nada que surpreenda o olhar.

— Precisamente, senhorita, a graça provém das exatas proporções entre os estilobatos, os plintos, as cornijas e os ornatos; depois, não dourei nada, as cores são sóbrias e não apresentam tons berrantes.

— Isso é uma ciência — disse Cesarina.

Entraram todos num vestíbulo de bom gosto, parquetado, espaçoso, decorado com simplicidade. Vinha depois um salão com três janelas para a rua, branco e encarnado, com cornijas elegantemente desenhadas, de pinturas delicadas, onde nada feria o olhar. Sobre uma lareira de mármore branco com colunas havia um ornato escolhido com gosto, que não apresentava nada de ridículo e combinava com os outros detalhes. Reinava lá, enfim, essa suave harmonia que só os artistas sabem alcançar seguindo um sistema de decoração até nos menores acessórios e que os burgueses ignoram, mas que os surpreende. Um lustre de vinte e quatro velas fazia resplandecer as amplas cortinas de seda vermelha; o parque tinha um aspecto excitante que convidou Cesarina a dançar. Um gabinete verde e branco dava passagem ao gabinete de César.

— Coloquei uma cama aqui — disse Grindot, abrindo as portas duma alcova habilmente escondida entre as duas alas de armários de livros. — O senhor ou a senhora podem adoecer e nesse caso cada um terá seu quarto.

— Mas e esta biblioteca cheia de livros encadernados!... Oh! Minha mulher! Minha mulher! — disse César.

— Não, isto é a surpresa de Cesarina.

O perfumista beijou a filha.

— Desculpe, senhor, a emoção dum pai — disse ao arquiteto.

— Ora, à vontade — disse Grindot —, o senhor está na sua casa.

Nesse gabinete predominavam os tons pardos, realçados por ornatos verdes, pois as mais hábeis transições da harmonia ligavam todas as peças do apartamento entre si. Assim, a cor que constituía o fundo duma peça servia de ornato para a outra, e vice-versa. A estampa de Hero e Leandro ostentava-se sobre uma almofada no gabinete de César.

— Hás de pagar tudo isso, tu mesma — disse Birotteau, brincando.

— Esta bela gravura é um presente do sr. Anselmo — disse Cesarina.

Anselmo também tomara a liberdade de fazer uma surpresa.

— Pobre rapaz, fez comigo o que fiz com o sr. Vauquelin.

Logo depois vinha o quarto da sra. Birotteau. O arquiteto empregara nele certas magnificências a fim de agradar aquela gente a quem queriam dominar, pois mantivera sua palavra ao estudar aquela restauração. O quarto era guarnecido de seda azul com ornatos brancos e a cama era forrada de casimira branca com ornatos azuis. A pêndula que se via sobre a lareira de mármore branco representava a Vênus sentada sobre um belo bloco de mármore; um lindo tapete de lã, com um desenho turco, ligava essa peça ao quarto de Cesarina, guarnecido de estofo estampado e muito elegante: um piano, um belo armário com espelho, uma caminha casta com cortinado singelo e todos os pequenos móveis de que as moças gostam.

A sala de jantar ficava atrás do quarto de Birotteau e do da esposa; e nela se entrava pela escada. Fora instalada no gênero chamado Luís xiv, com a pêndula de Boule,[329] os armários de cobre e madrepérola, as paredes forradas com estofo fixado por tachinhas douradas.

A alegria das três pessoas era indescritível, principalmente quando, ao voltar ao seu quarto, a sra. Birotteau encontrou, em cima da cama, o vestido de veludo cereja enfeitado de rendas, presente do marido e colocado lá, sorrateiramente, por Virgínia.

— Este apartamento — disse Constança a Grindot — constituirá uma honra para o senhor. Teremos amanhã à noite cento e tantas pessoas e o senhor vai receber elogios de todos.

— Hei de recomendá-lo — disse César. — O senhor encontrará aqui a nata do comércio e ficará mais conhecido, numa só noite, do que se tivesse construído cem casas.

Constança, comovida, não pensava mais na despesa nem em criticar o marido. Eis por quê.

Pela manhã, ao levar Hero e Leandro, Anselmo Popinot, em quem Constança reconhecia elevada inteligência e grande capacidade, afirmara-lhe o sucesso do Óleo Cefálico, no qual estava trabalhando com um afinco sem exemplo; o apaixonado prometera que, a despeito do vulto das despesas resultantes das loucuras de Birotteau, em seis meses essas despesas seriam cobertas pela sua parte nos lucros proporcionados pelo óleo. Depois de ter vivido cheia de receios durante dezenove anos, era tão agradável entregar-se um só dia que fosse à alegria que Constança prometeu à filha, que não estragaria a ventura do marido com nenhuma reflexão e que concordaria inteiramente com tudo.

Quando, às onze horas, o sr. Grindot os deixou, ela se lançou, pois, ao pescoço do marido e derramou algumas lágrimas de contentamento dizendo:

— César, deixas-me completamente louca e completamente feliz!

— Contanto que isso dure, não é? — disse César, sorrindo.

— Há de durar, não tenho mais medo — disse a sra. Birotteau.

— Já não é sem tempo — disse o perfumista. — Até que enfim me aprecias.

As pessoas dotadas de suficiente grandeza para reconhecer suas fraquezas hão de confessar que uma pobre órfã que, dezoito anos antes, era primeira caixeira no Pequeno Marinheiro, na Île Saint-Louis, e um pobre camponês vindo da Touraine para Paris com um bastão na mão, a pé, com sapatos ferrados, tinham de se sentir lisonjeados, satisfeitos, por dar tal festa com tão louváveis motivos.

— Meu Deus, eu perderia cem francos com prazer para que tivéssemos uma visita — disse César.

— Chegou o sr. padre Loraux — disse Virgínia.

O padre Loraux apareceu. Esse sacerdote era então vigário de Saint Sulpice. A força da alma nunca se revelou melhor do que nesse santo padre, cujo trato deixou profundas impressões na memória de todos quantos o conheceram. Seu rosto carrancudo, feio a ponto de não inspirar confiança, tornara-se sublime pelo exercício das virtudes católicas: brilhava nele, antecipadamente, um esplendor celeste. Uma candura disseminada no sangue dava harmonia às suas feições desgraciosas, e o fogo da caridade purificava as linhas incorretas graças a um fenômeno oposto ao que, em Claparon, animalizara e degradara tudo. Em suas rugas ostentavam-se as graças das três belas virtudes humanas: a Esperança, a Fé e a Caridade. Sua palavra era doce, lenta e penetrante. Seu traje era o dos padres de Paris; ele se permitia uma sobrecasaca pardo-escura. Ambição alguma se intrometera naquele coração puro, que os anjos devem ter conduzido a Deus na sua primitiva inocência. Foi necessária a branda violência da filha de Luís xvi para conseguir que o padre Loraux aceitasse um curato em Paris, e mesmo assim um dos mais modestos. Ele lançou um olhar inquieto a todas aquelas munificências, sorriu aos três comerciantes encantados e balançou a cabeça encanecida.

— Meus filhos — disse-lhes —, o meu papel não é de assistir a festas, mas de consolar os aflitos. Vim agradecer ao sr. César e felicitá-los. Só quero comparecer a uma festa, aqui: a do casamento desta bela menina.

Um quarto de hora mais tarde, o padre se retirou sem que o perfumista nem a esposa se tivessem animado a mostrar-lhe os apartamentos. Essa austera aparição lançou algumas gotas frias na fervente alegria de César. Cada um deles foi dormir no meio do seu luxo, entrando na posse dos bons e bonitos móveis que havia cobiçado. Cesarina tirou o vestido da mãe diante dum toucador de mármore branco com espelho. César se proporcionara algumas superfluidades, que quis usar logo. Todos adormeceram antegozando as alegrias do dia seguinte.

Depois de terem ido à missa e lido as orações das Vésperas, Cesarina e a mãe, às quatro horas, vestiram-se, após terem entregado o entressolo à autoridade secular dos empregados de Chevet. Jamais um vestido sentou melhor na sra. César do que aquele de veludo cereja guarnecido de rendas, com mangas curtas: seus belos braços, ainda viçosos e jovens, seu peito resplandecente de alvura, seu colo, suas espáduas encantadoramente desenhadas estavam realçados pela rica fazenda e pela cor magnífica. O natural contentamento que toda mulher experimenta ao se ver na plenitude do seu poder dava uma certa suavidade ao perfil grego da perfumista, cuja beleza apareceu em toda a sua delicadeza de camafeu.

Cesarina, vestida de crepe branco, tinha uma coroa de rosas brancas na cabeça e uma rosa ao lado; uma echarpe cobria-lhe castamente os ombros e o busto; deixou Popinot louco.

— Essa gente está pisando em cima de nós — disse a sra. Roguin ao marido, ao percorrer o apartamento.

Estava furiosa por não ser tão bonita como a sra. Birotteau, pois todas as mulheres sentem intimamente a superioridade ou a inferioridade duma rival.

— Ora! Isso não durará muito tempo e dentro em breve hás de jogar lama na pobre mulher ao encontrá-la a pé pela rua e na miséria! — disse Roguin, em voz baixa, à esposa.

Vauquelin foi duma amabilidade perfeita. Apareceu na companhia do sr. de Lacépède, seu colega no Instituto, a quem fora buscar de carro. Ao ver a resplandecente perfumista, os dois sábios entregaram-se a um elogio científico.

— A senhora possui um segredo que a ciência ignora, para conservar-se tão jovem e tão bela — disse o químico.

— O senhor aqui está um pouco na sua casa, senhor acadêmico — disse Birotteau. — Sim, senhor conde — acrescentou, voltando-se para o grande chanceler da Legião de Honra —, devo a minha fortuna ao sr. Vauquelin. Tenho a honra de apresentar a Vossa Senhoria o senhor presidente do Tribunal de Comércio. O sr. conde de Lacépède, par de França, um dos grandes homens da França; escreveu quarenta volumes — disse a José Lebas, que acompanhava o presidente do tribunal.

Os convivas foram pontuais. O jantar decorreu como costumam decorrer os jantares de comerciantes, extremamente alegre, muito cordial, ilustrado por essas anedotas vulgares que sempre fazem rir. A excelência dos pratos e a qualidade dos vinhos foram muito apreciadas. Quando os convivas se dirigiram para o salão a fim de tomar o café, eram nove e meia. Alguns fiacres já haviam trazido bailarinas impacientes. Uma hora mais tarde, o salão estava repleto e o baile se animou.

O sr. de Lacépède e o sr. Vauquelin retiraram-se, para grande desespero de Birotteau, que os acompanhou até a escada suplicando-lhes, em vão, que ficassem. Conseguiu prender o sr. Popinot, juiz, e o sr. de La Billardière. Com exceção das três mulheres que representavam a Aristocracia, a Finança e a Administração — a srta. de Fontaine, a sra. Júlio Desmarets e a sra. Rabourdin — e que se destacavam na reunião pela esplêndida beleza, vestuário e maneiras, as outras mulheres exibiam trajes pesados, sólidos, esse ar abastado que dá às massas burguesas um aspecto vulgar, que a leveza e a graça das três mulheres faziam cruelmente ressaltar.

A burguesia da Rue Saint-Denis ostentava-se majestosamente, exibindo-se em toda a plenitude dos seus direitos de divertida estupidez. Era essa mesma burguesia que veste os filhos de lanceiro ou de membro da Guarda Nacional, que compra Vitórias e Conquistas, O soldado lavrador, admira O enterro do pobre,[330] diverte-se nos dias de guarda, passa os domingos numa casa de campo de sua propriedade, preocupa-se em ter um aspecto distinto, sonha com as honrarias municipais; essa burguesia invejosa de tudo e, não obstante, bondosa, serviçal, dedicada, sensível, complacente, que assina listas em favor dos filhos do general Foy, dos gregos cujas piratarias desconhece, do Champ-d’Asile[331] quando este já não existe mais, enganada por suas virtudes e ridicularizada por seus defeitos por uma sociedade que vale menos do que ela, pois ela tem coragem precisamente porque ignora as conveniências; essa virtuosa burguesia que cria as filhas inocentes debilitadas pelo trabalho e cheias de predicados, que o contato das classes superiores diminui logo que ela as lança nesse meio, essas moças sem inteligência entre as quais o bom Crisalo[332] teria escolhido sua esposa; uma burguesia, enfim, admiravelmente representada pelos Matifat, os droguistas da Rue des Lombards, cuja casa fazia fornecimentos à Rainha das Rosas há sessenta anos.

A sra. Matifat, que quisera aparentar um ar de dignidade, dançava com um turbante e um pesado vestido cor de papoula, escamado de dourado, traje que se harmonizava com um porte altivo, um nariz romano e os esplendores duma cútis carmesim. O sr. Matifat, tão garboso numa parada da Guarda Nacional, onde, a cinquenta passos, se avistava seu ventre saliente sobre o qual brilhava a corrente do relógio e o seu monte de berloques, era dominado por essa Catarina ii[333] de balcão. Gordo e baixo, de óculos, com o colarinho à altura do cerebelo, fazia-se notar por sua voz de baixo cantante e pela opulência do vocabulário. Nunca dizia Corneille, e sim “o sublime Corneille”. Racine era “o doce Racine”. Voltaire! Oh! Voltaire, “o segundo em todos os gêneros, com mais inteligência do que gênio, mas, mesmo assim, homem de gênio!”. Rousseau, “espírito obscuro, homem dotado de orgulho e que acabou por enforcar-se”. Contava de maneira pesada as anedotas vulgares sobre Piron,[334] que passa por homem prodigioso na burguesia. Matifat, apaixonado pelos atores, tinha uma leve tendência para a obscenidade. A exemplo do velho Cardot, predecessor do rico Camusot, e do próprio Camusot, sustentava uma amante.

Às vezes, a sra. Matifat, ao vê-lo prestes a contar uma anedota, apressava-se em interrompê-lo: “Meu velho, presta atenção ao que vais dizer!”. Tratava-o familiarmente por “meu velho”. Essa volumosa rainha das drogarias fez a srta. de Fontaine perder a atitude aristocrática; a orgulhosa moça não pôde evitar rir ao ouvi-la dizer a Matifat:

— Não te atires aos gelados, meu velho! Isso fica feio.

É mais difícil explicar a diferença que separa a alta sociedade da burguesia do que a burguesia conseguir desfazê-la. Essas mulheres, que se sentiam constrangidas dentro dos vestuários, sabiam que estavam endomingadas e exibiam ingenuamente uma alegria que demonstrava que os bailes eram uma raridade na sua existência atarefada, ao passo que as três mulheres que representavam, cada uma, uma esfera social mostravam-se da mesma forma como estariam no dia seguinte, não pareciam ter-se vestido expressamente para aquilo, não se admiravam nas insólitas maravilhas dos seus enfeites nem se preocupavam com a impressão que causavam; tudo ficara terminado no momento em que, diante do espelho, haviam dado o último retoque na arrumação para o baile; seus rostos não revelavam nada de forçado, dançavam com a graça e a despreocupação que gênios ignorados deram a algumas estátuas antigas. As outras, pelo contrário, assinaladas pelo estigma do trabalho, conservavam suas atitudes triviais e divertiam-se em excesso; seus olhares eram inconsideradamente curiosos, sua voz não conservava esse leve murmúrio que dá às palestras dos bailes um inimitável tom excitante; faltavam-lhes, principalmente, essa impertinente seriedade que mantém em germe o epigrama e essa tranquila atitude pela qual se reconhecem as pessoas habituadas a manter um grande domínio sobre si mesmas. Assim, a sra. Rabourdin, a sra. Desmarets e a srta. de Fontaine, que esperavam divertir-se imensamente nesse baile do perfumista, destacavam-se no meio da burguesia por suas atitudes despreocupadas, pelo requintado gosto dos vestuários e por seu desembaraço, do mesmo modo que as três principais figuras da Ópera se destacam no meio da pesada cavalaria dos comparsas. Eram examinadas com um olhar pasmo, ciumento. A sra. Roguin, Constança e Cesarina formavam uma espécie de laço que ligava as figuras comerciais aos três tipos da aristocracia feminina. Como em todos os bailes, houve um momento de animação em que as torrentes de luz, a alegria, a música e o entusiasmo das danças causaram uma embriaguez que fez desaparecer essas gradações no crescendo do tutti. O baile ia tornar-se ruidoso e a srta. de Fontaine manifestou o desejo de ir embora; mas, quando procurou o braço do venerável vendeano, Birotteau, a esposa e a filha correram a fim de impedir a deserção de toda a aristocracia da sua assembleia.

— Há neste apartamento um perfume de bom gosto que sinceramente me surpreende — disse a insolente moça ao perfumista — e eu o cumprimento por isso.

Birotteau estava tão inebriado pelas felicitações públicas que não compreendeu; sua esposa, porém, corou e não soube o que responder.

— É uma festa nacional que muito o honra — dizia-lhe Camusot.

— Raramente tenho visto um baile tão lindo — dizia o sr. de La Billardière, a quem uma mentira oficiosa não custava nada.

Birotteau levava todos os cumprimentos a sério.

— Que maravilhoso conjunto! E que boa orquestra! Vai dar-nos bailes frequentemente? — perguntava a sra. Lebas.

— Que apartamento encantador! Foi o senhor que escolheu o estilo? — dizia-lhe a sra. Desmarets.

Birotteau teve a coragem de mentir, dando a entender que ele é que dirigira as obras.

Cesarina, que naturalmente seria convidada para todas as contradanças, verificou quanta delicadeza havia na alma de Anselmo.

— Se eu escutasse somente o meu desejo — disse-lhe ele ao ouvido, ao saírem da mesa —, eu lhe pediria que me fizesse o favor duma contradança; mas minha ventura custaria caro demais ao nosso mútuo amor-próprio.

Cesarina, que achava que os homens caminhavam sem graça quando se mantinham eretos nas duas pernas, quis abrir o baile com Popinot. Popinot, encorajado pela tia, que o aconselhara a mostrar-se ousado, animou-se a falar no seu amor à encantadora moça durante a contradança, servindo-se, porém, dos rodeios que empregam os namorados tímidos.

— A minha fortuna depende da senhorita.

— Como?

— Só há uma esperança capaz de me fazer consegui-la.

— Espere.

— Sabe exatamente o que representa o que acaba de dizer com uma única palavra?

— Espere a fortuna — disse Cesarina, com um sorriso malicioso.

— Gaudissart! Gaudissart! — disse Anselmo ao amigo, depois da contradança, apertando-lhe o braço com uma força hercúlea. — Vence ou eu me suicido. Vencer representará desposar Cesarina, ela mo disse; e vê como é linda!

— Sim, está lindamente vestida — disse Gaudissart — e é rica. Havemos de fritá-la no óleo.

O namoro entre a srta. Lourdois e Alexandre Crottat, sucessor designado de Roguin, foi notado pela sra. Birotteau, que renunciou com profundo pesar a fazer da filha a esposa dum tabelião de Paris. O tio Pillerault, que trocara um cumprimento com o pequeno Molineux, foi instalar-se numa poltrona na biblioteca: observou os jogadores, escutou as conversas e de vez em quando chegara até a porta para ver os cestos de flores móveis constituídos pelas cabeças dos pares dançando o molinete. Sua atitude era a dum verdadeiro filósofo.

Os homens eram pavorosos, com exceção de Du Tillet, que já tinha algum traquejo social; do jovem De La Billardière, pequeno elegante em começo; do sr. Júlio Desmarets; e das personagens oficiais. Mas, entre todos os tipos mais ou menos cômicos que caracterizavam a reunião, havia um particularmente apagado como uma moeda de cem sous republicana, mas que o vestuário tornava curioso. Todos percebem que se trata do tirano da Cour Batave, vestindo roupa branca amarelada no armário, exibindo aos olhares um peitilho de renda recebido de herança e preso por um camafeu azulado, com calções de seda preta que denunciavam as pernas extremamente finas sobre as quais ele tinha a coragem de se amparar. César mostrou-lhe triunfalmente as quatro peças criadas pelo arquiteto no primeiro andar da casa.

— Eh! Eh! Isso é com o senhor — disse-lhe Molineux. — Meu primeiro andar assim reformado ficará valendo mais de mil escudos.

Birotteau respondeu com um gracejo, mas sentiu uma verdadeira alfinetada no tom com que o velhote pronunciara aquela frase. “Logo hei de ficar novamente com o meu primeiro andar, esse homem está se arruinando!” Tal era o sentido da expressão ficará valendo que Molineux lançou como uma unhada.

O rosto um tanto pálido, o olhar assassino do proprietário impressionaram Du Tillet, cuja atenção fora de começo excitada por uma corrente de relógio que sustentava uma libra de diversos berloques sonantes e por uma casaca verde mesclada de branco com colete singularmente decotado que davam ao velhote o aspecto duma cascavel. O banqueiro foi, pois, interrogar o pequeno usurário para saber por que se sentia tão contente.

— Aqui, senhor — disse Molineux, pondo um pé no gabinete —, estou na propriedade do sr. conde de Granville; mas, aqui — acrescentou, apontando para o outro pé —, estou na minha, pois sou o dono desta casa.

Molineux se prestava tão complacentemente a quem o escutasse que, encantado com a expressão atenta de Du Tillet, se abriu com ele, contou-lhe seus hábitos, as insolências do sr. Gendrin e o acordo que fizera com o perfumista, sem o qual o baile não se teria realizado.

— Ah! Então o sr. César pagou-lhe os aluguéis — disse Du Tillet. — Nada é mais contrário aos seus hábitos.

— Fui eu que pedi, sou bondoso com os meus inquilinos!

“Se o tio Birotteau falir”, pensou Du Tillet, “este palhaço será certamente um excelente síndico. Sua mesquinhez é preciosa: acho que, como Domiciano,[335] ele se diverte matando moscas quando está sozinho em casa.”

Du Tillet meteu-se no jogo, onde, por ordem sua, já se encontrava Claparon, pois ele era de opinião que, sob o anteparo das cartas, sua fisionomia de banqueiro escaparia a qualquer exame. A atitude de ambos, um diante do outro, foi tão perfeitamente a de dois estranhos que mesmo o mais desconfiado nada descobriria que pudesse denunciar seu entendimento. Gaudissart, que conhecia a fortuna de Claparon, não se animou a abordá-lo ao receber do rico caixeiro-viajante o olhar solenemente frio do plebeu enriquecido que não quer ser cumprimentado por um camarada.

O baile, brilhante como um fogo de artifício, extinguiu-se às cinco da manhã. Por essa hora, dos cento e tantos fiacres que enchiam a Rue Saint-Honoré, só restavam uns quarenta. Estavam dançando então a boulangère e o cotilhão, que seriam mais tarde destronados pelo galope inglês. Du Tillet, Roguin, Cardot filho, o conde de Granville e Júlio Desmarets continuavam jogando cartas. Du Tillet estava ganhando três mil francos. Veio a alvorada, fazendo empalidecer as velas, e os jogadores assistiram à última contradança. Nas casas burguesas, essa suprema alegria não se realiza sem alguns excessos. As personagens imponentes já se retiraram; a embriaguez do movimento, o calor comunicativo do ar, os espíritos ocultos nas mais inocentes bebidas abrandaram as calosidades das mulheres velhas, que, por condescendência, entram nas quadrilhas e se entregam à loucura de um momento; os homens estão acalorados, os cabelos desfrisados caem sobre os rostos e lhes emprestam grotescas expressões que provocam o riso; as senhoras jovens tornam-se levianas, algumas flores caíram dos seus penteados. O Momo burguês aparece acompanhado de suas farsas! Os risos explodem, todos se entregam à brincadeira, lembrando-se de que, no dia seguinte, o trabalho reassumirá seus direitos. Matifat estava dançando com um chapéu de mulher na cabeça; Celestino entregava-se a caricaturas. Algumas damas batiam exageradamente nas mãos quando a figura dessa interminável contradança o ordenava.

— Como se divertem! — dizia o venturoso Birotteau.

— Contanto que não quebrem nada! — disse Constança ao tio.

— O senhor deu o baile mais magnífico que já vi, e já vi muitos — disse Du Tillet ao antigo patrão, ao cumprimentá-lo.

Na obra das oito sinfonias de Beethoven, há uma fantasia, grandiosa como um poema, que domina o final da sinfonia em dó menor. Após os lentos preparativos do sublime mágico tão bem compreendido por Habeneck,[336] um gesto do regente entusiasta ergue a rica cortina dessa decoração, pedindo ao seu arco o encantador motivo para o qual todas as forças musicais convergiram. Pois bem. Lembrando-se desse momento, os poetas cujo coração palpita compreenderão que o baile de Birotteau estava produzindo, na sua vida, o efeito que causa sobre as almas esse fecundo motivo, ao qual a sinfonia em dó deve talvez sua supremacia sobre suas brilhantes irmãs. Uma fada radiosa avança empunhando sua varinha mágica. Ouve-se o rumor das cortinas de seda escarlate que os anjos abrem. Portas de ouro lavrado como as do batistério giram sobre seus gonzos de diamante. O olhar mergulha em esplêndidas visões, envolve uma fila de palácios maravilhosos de onde surgem seres de natureza superior. O incenso das prosperidades fumega, o altar da felicidade flameja, um ar perfumado circula! Criaturas de sorriso divino, vestindo túnicas brancas bordadas de azul, passam levemente sob os vossos olhos, mostrando-vos rostos sobre-humanos de bondade, formas duma delicadeza infinita. Os Amores revoluteiam espalhando os clarões das suas tochas! Vós vos sentis amado, sois feliz duma felicidade a que aspirais sem compreender, banhando-vos nas ondas dessa harmonia que jorra e derrama a cada um a ambrosia que escolheu. Senti-vos atingidos no íntimo das vossas secretas esperanças, que se realizam por um momento. Após terdes andado a passear pelo céu, o feiticeiro, pela profunda e misteriosa transição dos baixos, torna a mergulhar-vos no charco da fria realidade, para vos arrancar de lá no momento em que, tendo-vos provocado a sede das suas divinas melodias, vossa alma grita: “Mais um pouco!”.

A história psíquica do ponto culminante desse belo final é a mesma das emoções proporcionadas pela festa a Constança e a César. Collinet[337] compusera com sua flauta o final de sua sinfonia comercial.

Cansados, mas felizes, os três Birotteau adormeceram pela manhã, tendo ainda nos ouvidos o rumor da festa que, em construções, reparações, mobiliário, consumações, vestuários e biblioteca, que foi reembolsada a Cesarina, se elevava, sem que César suspeitasse, a sessenta mil francos. Eis o que custou a fatal roseta vermelha colocada pelo rei na lapela de um perfumista.

Se acontecesse um desastre a César Birotteau, essa louca despesa bastaria para levá-lo à polícia correcional. Um comerciante incorre em bancarrota simples quando faz despesas consideradas excessivas. Talvez seja mais horrível ir à Sexta Câmara[338] por ninharias inocentes ou inabilidades do que ser levado ao tribunal por uma imensa fraude. Aos olhos de certa gente, é preferível ser criminoso a ser tolo.


SEGUNDA PARTE

CÉSAR EM LUTA COM A DESGRAÇA

 

 

 

VIII — ALGUNS RELÂMPAGOS

Oito dias depois dessa festa, derradeira fagulha do fogo de palha duma prosperidade de dezoito anos prestes a extinguir-se, César contemplava os transeuntes através das vidraças da loja, meditando sobre a extensão dos seus negócios, que lhe pareciam pesados! Até então, tudo fora simples em sua vida: fabricava e vendia, ou comprava para revender. Agora, o negócio dos terrenos, seu interesse na casa A. Popinot & Cia., o reembolso de cento e sessenta mil francos de dívidas que contraíra na praça, e que iam exigir ou negociações de títulos que desagradariam à esposa ou inesperados êxitos na casa Popinot, assustavam o pobre homem pela multiplicidade dos pensamentos; sentia nas mãos maior número de novelos do que podia segurar. Como estaria Anselmo dirigindo o negócio? Birotteau tratava Popinot como um professor de retórica trata um aluno, desconfiava da capacidade dele e lamentava não estar por detrás do sócio. A batida que lhe dera com a ponta do pé para fazê-lo calar-se na casa de Vauquelin explica os receios que o jovem comerciante inspirava ao perfumista. Birotteau esforçava-se por não se deixar descobrir pela esposa, pela filha ou pelo caixeiro; sentia-se, porém, como um simples barqueiro do Sena a quem, por acaso, um ministro confiasse o comando duma fragata. Essas reflexões formavam uma espécie de nevoeiro em sua inteligência, pouco apta à meditação, e ele se conservava de pé procurando enxergar claro no meio dele.

Nesse momento apareceu na rua um rosto pelo qual experimentava uma violenta antipatia e que era o do seu segundo senhorio, o pequeno Molineux. Todos já tiveram esses sonhos ricos em acontecimentos, que representam uma existência inteira e nos quais frequentemente surge um ser fantástico incumbido de tarefas más, o vilão da peça. Molineux parecia a Birotteau encarregado pelo acaso de um papel análogo na sua vida. Aquele rosto fizera diabólicas caretas no meio da festa, contemplando as suntuosidades com um olhar rancoroso. Ao revê-lo, César se recordou tanto mais nitidamente das impressões que lhe causara o pequeno pão-duro (uma expressão do seu vocabulário) porque Molineux lhe causou uma nova repulsa surgindo subitamente no meio de sua meditação.

— Senhor — disse o homenzinho, com sua voz atrozmente anódina —, concluímos tão apressadamente o nosso negócio que o senhor se esqueceu de aprovar a escritura do nosso contrato.

Birotteau tomou o contrato para reparar o esquecimento. Nessa ocasião entrou o arquiteto, cumprimentou o perfumista, deu diplomaticamente uma volta pela sala.

— Senhor — disse-lhe, finalmente, ao ouvido —, o senhor sabe como é difícil o começo numa profissão; se está satisfeito comigo, o senhor me faria um grande favor pagando os meus honorários.

Birotteau, que estava desprevenido por ter gasto o livro de cheques e o dinheiro, disse a Celestino que fizesse uma letra de dois mil francos com três meses de prazo e que preparasse um recibo.

— Eu ficaria muito satisfeito se o senhor ficasse com a parte que estava alugada ao vizinho — disse Molineux, com um ar sorrateiramente brincalhão. — O porteiro foi avisar-me de que esta manhã o juiz de paz vai embargar a casa, devido ao desaparecimento do sr. Cayron.

“Contanto que eu não perca os meus cinco mil francos!”, pensou Birotteau.

— Constava que ele ia muito bem de negócios — disse Lourdois, que acabava de chegar para entregar a conta ao perfumista.

— Um negociante só fica ao abrigo dos desastres quando se retira da atividade — disse o pequeno Molineux, dobrando o contrato com uma minuciosa regularidade.

O arquiteto examinou o velhote com o prazer que todo artista sente ao ver uma caricatura que confirma suas opiniões sobre os burgueses.

— Quando a gente está com a cabeça debaixo dum guarda-chuva, pensa geralmente que ela está abrigada no caso de chover — disse o arquiteto.

Molineux examinou muito mais o bigode e a pera do que a fisionomia do arquiteto, ao contemplá-lo, e o desprezou tanto quanto o sr. Grindot o desprezava. Depois, ficou para dar-lhe um golpe de garra ao sair. À força de viver com os seus gatos, Molineux tinha, tanto nas maneiras como nos olhos, alguma coisa da raça felina.

Nesse momento entraram Ragon e Pillerault.

— Falamos sobre o nosso negócio ao juiz — disse Ragon ao ouvido de César. — Ele acha que, numa especulação dessa natureza, precisamos ter uma quitação dos vendedores e completar os atos, a fim de ficarmos realmente proprietários indivisos...

— Ah! O senhor está metido no negócio da Madeleine? — disse Lourdois. — Andam falando nisso, vai haver casas a construir, lá!

O pintor, que vinha para cobrar logo sua conta, achou de seu interesse não apressar o perfumista.

— Trouxe-lhe a minha conta porque é fim de ano — disse ao ouvido de César. — Não estou precisando de dinheiro.

— Então, que é que tens, César? — disse Pillerault, ao notar a surpresa do perfumista, que, estupefato com a conta, não respondia a Ragon nem a Lourdois.

— Ora, uma ninharia! É que eu descontei cinco mil francos em letras do comerciante de guarda-chuvas, meu vizinho, que faliu. Se os títulos que ele me deu não forem bons, eu terei caído como um patinho.

— Lembre-se do que lhe venho dizendo há muito tempo — observou Ragon. — Quem está se afogando agarra-se até à perna do pai para se salvar e o afoga com ele. Já tenho visto tantas vezes isso, em falências! Quando começa um desastre, não se é precisamente um canalha, mas tornamo-nos canalhas por necessidade.

— Isso é verdade — disse Pillerault.

— Ah! Se um dia eu chegar à Câmara dos Deputados ou se vier a ter alguma influência no governo... — disse Birotteau, erguendo-se nas pontas dos pés e deixando-se cair sobre os calcanhares.

— Que é que fará? — perguntou Lourdois. — O senhor é um homem muito sensato.

Molineux, a quem qualquer discussão sobre Direito interessava, permaneceu na loja; Pillerault e Ragon conheciam as opiniões de César, mas, mesmo assim, como a atenção dos outros nos torna atentos, escutaram gravemente Birotteau, como os três estranhos.

— Pleitearia — disse o perfumista — a criação dum tribunal de juízes inamovíveis com um ministério público que julgasse o criminoso. Depois de uma instrução, durante a qual um juiz substituiria imediatamente as atuais funções dos agentes, síndicos e juiz comissário, o comerciante seria declarado falido reabilitável ou bancarroteiro. Falido reabilitável, ficaria obrigado a pagar tudo; seria, nessas condições, o depositário dos seus bens e dos da esposa, pois os seus direitos e as suas heranças, tudo ficaria pertencendo aos credores; administraria os negócios por sua conta e sob fiscalização; enfim, continuaria negociando, assinando, entretanto: Fulano de Tal, falido, até saldar completamente as dívidas. Bancarroteiro, seria condenado, como antigamente, ao pelourinho na sala da Bolsa, exposto durante duas horas, com um gorro verde. Seus bens, como os da esposa e os créditos, passariam para as mãos dos credores e ele seria banido do reino.

— O comércio seria um pouco mais seguro — disse Lourdois — e a gente refletiria duas vezes antes de fazer uma operação.

— A lei atual não é observada — disse César, exasperado. — Sobre cem comerciantes, há mais de cinquenta que estão a setenta e cinco por cento abaixo dos seus negócios ou que vendem suas mercadorias a vinte e cinco por cento abaixo do preço de inventário e que, assim, arruínam o comércio.

— O senhor está com a verdade — disse Molineux —, a lei atual deixa demasiada liberdade. É necessário o abandono completo ou a infâmia.

— Com os diabos! — disse César. — No caminho em que vão as coisas, o comerciante acabará um ladrão patenteado. Com sua assinatura, pode tirar dinheiro do cofre de todo mundo.

— Não está sendo delicado, sr. Birotteau — disse Lourdois.

— Ele tem razão — disse o velho Ragon.

— Todos os falidos são suspeitos — disse César, exasperado com aquela pequena perda, que soava aos seus ouvidos como o primeiro grito do halali aos dum cervo.

Nesse momento, o maître-d’hôtel chegou com a fatura de Chevet. Depois, apareceram, com as contas das suas casas, um aprendiz de Félix, um empregado do Café de Foy e uma de Collinet.

— O quarto de hora de Rabelais[339] — disse Ragon, sorrindo.

— Palavra que o senhor deu uma bela festa — disse Lourdois.

— Estou ocupado — disse César a todos os empregados, que deixaram as contas.

— Sr. Grindot — disse Lourdois, ao ver o arquiteto dobrando uma letra assinada por Birotteau —, peço-lhe que verifique e regularize a minha conta; é só medir, todos os preços foram aceitos pelo senhor, em nome do sr. Birotteau.

Pillerault olhou para Lourdois e Grindot.

— Preços combinados entre o arquiteto e o construtor — disse o tio ao ouvido do sobrinho. — Estás sendo roubado.

Grindot saiu, Molineux o seguiu e o abordou com um ar misterioso.

— O senhor ouviu o que eu disse, mas não me entendeu: desejo-lhe um guarda-chuva.

Grindot encheu-se de medo. Quanto mais ilegal é um lucro, mais seduz o homem; assim é feito o coração humano. O artista estudara, com efeito, o apartamento com amor, dedicara-lhe toda a sua ciência e todo o seu tempo, cansara-se em demasia por dez mil francos e sentia-se prejudicado pelo amor-próprio; os empreiteiros tiveram pouca dificuldade em seduzi-lo. O argumento irresistível e a ameaça bem compreendida de causar-lhe dano por meio da calúnia foram menos poderosos do que a observação feita por Lourdois sobre o negócio dos terrenos da Madeleine: Birotteau não pretendia construir nenhuma casa lá, estava apenas especulando sobre o preço dos terrenos. As relações entre os arquitetos e os construtores são iguais às que existem entre o autor e os atores, uns dependem dos outros. Grindot, incumbido por Birotteau de estipular o preço, colocou-se ao lado dos colegas de profissão contra os burgueses. Assim, três grandes empreiteiros, Lourdois, Chaffaroux e o carpinteiro Thorein, proclamaram-no um desses bons meninos com os quais há prazer em trabalhar. Grindot previu que as contas nas quais tinham uma percentagem seriam pagas, como os seus honorários, em títulos, e o velhote acabava de manifestar-lhe dúvidas sobre o pagamento. Grindot resolveu ser implacável, à maneira dos artistas, as criaturas mais cruéis contra os burgueses.

Pelo fim de dezembro, César tinha sessenta mil francos de contas a pagar. Félix, o Café de Foy, Tanrade e os pequenos credores que têm de ser pagos à vista já haviam mandado três vezes as contas a Birotteau. No comércio, essas ninharias prejudicam mais que um desastre, pois o anunciam. As perdas conhecidas são limitadas, o pânico não conhece limites. Birotteau viu o caixa limpo. O medo acometeu então o perfumista, a quem jamais acontecera coisa semelhante durante a sua vida comercial. Como a todas as pessoas fracas que nunca tiveram de lutar contra a miséria, essa circunstância, banal na vida da maioria dos pequenos comerciantes de Paris, levou a perturbação ao cérebro de César.

O perfumista ordenou a Celestino que enviasse as faturas aos fregueses; antes de executá-la, porém, o primeiro caixeiro pediu-lhe que repetisse essa incrível ordem. Os clientes, nobre expressão aplicada pelos varejistas aos fregueses e de que César se servia a despeito da esposa, que acabara dizendo-lhe: “Chama-os como quiseres, desde que paguem!”, os clientes, pois, eram pessoas ricas entre as quais não havia risco de perdas, que pagavam segundo sua fantasia e entre os quais César tinha cinquenta a sessenta mil francos a receber. O segundo caixeiro tomou o livro de contas e pôs-se a copiar as mais avultadas. César tinha medo da mulher. Para não lhe deixar perceber o abatimento causado pelo simum do infortúnio, resolveu sair.

— Bom dia, senhor — disse Grindot, entrando com esse ar desembaraçado que os artistas assumem para falar de interesses pelos quais aparentam ser completamente indiferentes. — Não consigo apurar dinheiro algum com os seus títulos e vejo-me obrigado a pedir-lhe que os troque por moeda corrente. Sou o homem mais infeliz deste negócio, mas não quis recorrer aos agiotas, não gostaria de mascatear com a sua assinatura, entendo o suficiente de comércio para saber que isso seria aviltá-lo; é do seu interesse, portanto...

— Senhor — disse Birotteau, estupefato —, mais baixo, faça o favor; o senhor me surpreende muito.

Lourdois entrou.

— Lourdois — disse Birotteau, sorrindo —, o senhor compreende?

Birotteau deteve-se. O pobre homem ia pedir a Lourdois que descontasse a letra de Grindot zombando do arquiteto com a boa-fé do comerciante seguro de si; notou, porém, uma sombra na fronte de Lourdois e estremeceu de sua imprudência. A inocente brincadeira seria a morte dum crédito sob suspeita. Num caso desses, um comerciante rico retoma a letra, não a oferece. Birotteau sentia a cabeça agitada como se tivesse olhado para o fundo dum abismo talhado a pique.

— Meu caro sr. Birotteau — disse Lourdois, levando-o ao fundo da loja —, minha conta está conferida, regularizada, aprovada, peço-lhe que me dê o dinheiro amanhã. Vou casar a minha filha com o jovem Crottat e preciso de dinheiro, os tabeliães não negociam; além disso, nunca ninguém viu minha assinatura.

— Mande receber depois de amanhã — disse altivamente Birotteau, que contava com o pagamento das contas que enviara. — E o senhor também — disse a Grindot.

— E por que não já? — perguntou o arquiteto.

— Tenho de pagar hoje os trabalhadores da fábrica — disse César, que nunca mentira.

Tomou o chapéu para sair com eles; mas, quando fechava a porta, o pedreiro, Thorein e Chaffaroux o detiveram.

— Senhor — disse-lhe Chaffaroux —, precisamos muito de dinheiro.

— Ora essa! Não sou dono das minas do Peru! — disse César, impacientando-se e seguindo apressadamente a cem passos de distância deles.

“Há alguma coisa no meio disso”, pensou. “Maldito baile! Todo mundo pensa que a gente possui milhões. Além disso, a atitude de Lourdois não me pareceu natural, aqui há gato encerrado.”

E seguiu pela Rue Saint-Honoré, sem rumo, com a sensação de ter se derretido.

IX — O RAIO

Alexandre e César esbarraram um contra o outro à esquina de uma rua, como dois carneiros ou como dois matemáticos absortos pela solução de um problema.

— Ah! Senhor — disse o futuro tabelião —, permita-me uma pergunta: Roguin deu os seus quatrocentos mil francos ao sr. Claparon?

— O negócio foi feito diante dos senhores, Claparon não me deu recibo algum; meus títulos eram... a negociar... Roguin deve ter-lhe entregado... meus duzentos e quarenta mil francos em dinheiro... nós devemos... ficou assentado que se realizariam definitivamente os atos de venda... O sr. Popinot, o juiz, acha que... O recibo!... Mas... por que esta pergunta?

— Por que poderia fazer-lhe semelhante pergunta? Para saber se os seus duzentos e quarenta mil francos estão com Claparon ou com Roguin. Roguin estava, desde havia muito, ligado com o senhor e poderia, por escrúpulo, tê-los entregado a Claparon, e assim o senhor escaparia por um triz! Mas que estúpido que sou! Ele os levou junto com o dinheiro do sr. Claparon, que, por felicidade, ainda não lhe mandara mais que os cem mil francos. Roguin fugiu, ele recebeu de mim os cem mil francos correspondentes ao valor do cartório e dos quais não tenho recibo, entreguei-lhos do mesmo modo que confiaria a minha bolsa ao senhor. Os seus vendedores não receberam nada, estiveram agora mesmo lá em casa. O dinheiro do seu empréstimo sobre os terrenos não existia nem para o senhor nem para o seu emprestador; Roguin o consumira do mesmo modo que os seus cem mil francos... que... já não tinha há muito tempo... Assim, os seus últimos cem mil francos desapareceram, lembro-me de os ter recebido do Banco.

As pupilas de César dilataram-se tão desmesuradamente que ele via apenas uma chama vermelha.

— Os cem mil francos do seu cheque, mais os cem mil que dei pelo cartório e os cem mil do sr. Claparon, aí estão trezentos mil francos desaparecidos, sem contar os furtos que vão ser descobertos — acrescentou o jovem tabelião. — Não temos esperança na sra. Roguin; o sr. du Tillet passou a noite em companhia dela. Du Tillet escapou por um triz! Roguin insistiu com ele durante um mês para metê-lo no negócio dos terrenos, mas, por sorte, ele estava com todo o seu dinheiro empenhado numa especulação com a Casa Nucingen. Roguin escreveu à esposa uma carta pavorosa! Acabo de lê-la. Há cinco anos que ele vinha lançando mão do capital dos clientes, e por quê? Por uma amante, a Bela Holandesa; ele a abandonou quinze dias antes de dar o golpe. Essa esbanjadora está completamente sem dinheiro, venderam os seus móveis, porque ela assinara letras de câmbio. A fim de escapar à perseguição, ela se refugiara numa casa do Palais-Royal,[340] onde foi assassinada, ontem à noite, por um capitão. Foi bem cedo punida por Deus, ela que, sem dúvida, foi quem devorou a fortuna de Roguin. Há mulheres para as quais nada é sagrado. Devorar um cartório! A sra. Roguin só poderá ficar com dinheiro lançando mão da sua hipoteca legal, todos os bens do velhaco estão gravados além do seu valor. O cartório foi vendido por trezentos mil francos! E eu, que acreditava ter feito um bom negócio, começo por pagar pelo cargo cem mil francos a mais do que vale! Não tenho recibo, há custas do processo que vão absorver o cartório e a caução, os credores pensarão que sou cúmplice se eu falar nos meus cem mil francos e, quando se começa, é preciso cuidar da reputação. O senhor receberá apenas trinta por cento. Na minha idade, ter de engolir uma coisa destas! Um homem de cinquenta e nove anos sustentar uma mulher!... Velho patife! Faz uns vinte dias que ele me aconselhou a não me casar com Cesarina, porque o senhor ia ficar logo na miséria, o monstro!

Alexandre poderia ter falado durante muito tempo, Birotteau estava de pé, petrificado. Cada frase era um golpe de malho. Ele não ouvia mais que um dobre de finados, do mesmo modo que desde o começo não via mais que o clarão do seu incêndio. Alexandre Crottat, que julgava o digno perfumista forte e inteligente, espantou-se com sua palidez e sua imobilidade. O sucessor de Roguin não sabia que o tabelião fugira com mais que a fortuna de César. A ideia do suicídio passou imediatamente pela cabeça do comerciante tão profundamente religioso. O suicídio, num caso desses, representa um meio de evitar mil mortes e parece lógico preferir apenas uma. Alexandre Crottat deu o braço a César e quis fazê-lo andar, mas foi impossível: as pernas fugiam-lhe, como se estivesse embriagado.

— Mas que é que o senhor tem? — perguntou Crottat. — Um pouco de coragem, meu bravo sr. César! Isto não é a morte de um homem! Além disso, poderá recuperar quarenta mil francos, o homem que ia dar-lhe o empréstimo não tinha essa importância, e, como ela não lhe foi entregue, há margem para pleitear a rescisão do contrato.

— Meu baile, minha Cruz, duzentos mil francos de títulos na praça, nada em caixa... Os Ragon, Pillerault... como minha mulher viu claramente!

Uma chuva de palavras confusas que despertavam uma infinidade de ideias aniquiladoras e sofrimentos inauditos caiu como uma saraivada matando todas as flores do jardim da Rainha das Rosas.

— Eu gostaria que me cortassem a cabeça — disse finalmente Birotteau —, seu tamanho me incomoda, não me serve de nada...

— Pobre tio Birotteau! — disse Alexandre. — Mas, então, o senhor está em perigo?

— Perigo!

— Bem, tenha coragem, lute!

— Lute! — repetiu o perfumista.

— Du Tillet foi seu caixeiro, ele é muito hábil e há de ajudá-lo.

— Du Tillet?

— Bem, venha comigo.

— Meu Deus! Eu não gostaria de voltar para casa na situação em que estou — disse Birotteau. — Você, que é meu amigo, se é que há amigos, que me despertou interesse e que tem jantado em minha casa, em consideração pela minha mulher, leve-me de fiacre, Xandrot, acompanhe-me...

O tabelião designado meteu num fiacre, com grande dificuldade, a máquina inerte que se chamava César.

— Xandrot — disse o perfumista, com a voz embargada pelas lágrimas, pois nesse momento as lágrimas jorraram dos seus olhos, afrouxando um pouco a cinta de ferro que lhe comprimia o crânio —, vamos passar pela minha casa, fale com Celestino por mim. Meu amigo, diga-lhe que se trata da minha vida e da da minha mulher! Que sob pretexto algum ninguém espalhe o desaparecimento de Roguin. Peça para Cesarina descer e diga-lhe que não deixe que falem neste caso à sua mãe. Devemos desconfiar dos nossos melhores amigos, Pillerault, os Ragon, todo mundo...

A alteração da voz de Birotteau impressionou vivamente Crottat, que compreendeu a importância dessa recomendação. A Rue Saint-Honoré levava à casa do magistrado; ele se desincumbiu das determinações do perfumista, que Celestino e Cesarina viram, apavorado, sem voz, pálido e como que aturdido, no fundo do fiacre.

— Guardem segredo sobre este caso — disse o perfumista.

“Ah!”, pensou Xandrot. “Está voltando a si; já o julgava perdido.”

A conferência entre Alexandre Crottat e o magistrado durou muito tempo: mandaram chamar o presidente da câmara dos tabeliães; levaram Birotteau por toda parte, ele não se movia nem dizia uma palavra. Pelas sete horas da noite, Alexandre Crottat levou o perfumista de volta para casa. A ideia de comparecer diante de Constança restituiu a firmeza a César. O jovem tabelião tivera a bondade de precedê-lo a fim de prevenir a sra. Birotteau de que ele tivera uma espécie de congestão.

— Ele está com as ideias perturbadas — disse, fazendo o gesto empregado para descrever a confusão do cérebro —, talvez seja preciso sangrá-lo ou aplicar-lhe umas sanguessugas.

— Isto tinha de acontecer — disse Constança, a mil léguas de supor um desastre. — Ele não fez o seu tratamento preventivo, à entrada do inverno, e há dois meses vem trabalhando como um forçado, como se já não tivesse o seu pão garantido.

A esposa e a filha imploraram a César que se metesse na cama e mandaram chamar o velho dr. Haudry, médico de Birotteau. O velho Haudry era um médico da escola de Molière, grande clínico prático e amigo das antigas fórmulas farmacêuticas, medicando os clientes mais ou menos como um medicastro, embora fosse um verdadeiro clínico. Chegou, observou a fácies de César, ordenou a imediata aplicação de sinapismos nas plantas dos pés: estava percebendo os sintomas de uma congestão cerebral.

— Que é que lhe pode ter causado isso? — perguntou Constança.

— O tempo úmido — respondeu o doutor, a quem Cesarina disse qualquer coisa.

Os médicos têm frequentemente a obrigação de dizer deliberadamente algumas asneiras a fim de salvar a honra ou a vida das pessoas sãs que cercam o enfermo. O velho doutor já vira tanta coisa, que compreendeu facilmente. Cesarina acompanhou-o pela escada para perguntar-lhe que regime deviam seguir.

— Calma e silêncio, depois arriscaremos uns fortificantes quando a cabeça estiver desembaraçada.

A sra. César passou dois dias à cabeceira do marido, que seguidamente lhe dava a impressão de estar delirando. Recolhido ao belo quarto azul da esposa, dizia coisas incompreensíveis para Constança, ao ver aqueles cortinados, aqueles móveis e suas caras magnificências.

— Está louco — disse a Cesarina, numa ocasião em que César se recostara no leito citando, a esmo, com uma voz solene, os artigos do Código do Comércio.

— Se as despesas são julgadas excessivas... Tirem os cortinados!

Ao fim de três dias terríveis, durante os quais a razão de César esteve em perigo, a forte constituição do camponês turreniano triunfou, sua cabeça ficou livre; o dr. Haudry o obrigou a tomar cordiais, um alimento enérgico, e, depois de uma taça de café dada a tempo, o negociante se levantou. Constança, fatigada, tomou o lugar do marido.

— Pobre mulher! — disse César, ao vê-la adormecida.

— Vamos, papai, coragem! O senhor é um homem tão superior que há de triunfar. Isto não há de ser nada. O sr. Anselmo o ajudará.

Cesarina disse com uma voz doce essas vagas palavras que a afeição adoça ainda mais e que restitui a coragem aos mais abatidos, como as canções maternas aliviam as dores duma criança atormentada pela dentição.

— Sim, minha filha, vou lutar; mas não dês uma palavra sequer sobre isto a quem quer que seja no mundo, nem a Popinot, que nos estima, nem ao teu tio Pillerault. Em primeiro lugar, vou escrever ao meu irmão: ele é, segundo creio, cônego, vigário de uma catedral; ele não gasta nada, deve ter dinheiro. A mil escudos de economia por ano, ao fim de vinte anos deve ter cem mil francos. Na província, os padres têm crédito.

Cesarina, indo buscar apressadamente para o pai uma mesinha contendo tudo quanto era necessário para escrever, levou-lhe o resto dos convites impressos em papel cor-de-rosa para o baile.

— Queima tudo isso! — gritou o comerciante. — Só mesmo o diabo pode ter-me inspirado a dar esse baile. Se eu sucumbir, terei o aspecto de um canalha. Vamos, nada de frases.

 

carta de césar a francisco birotteau

 

Meu caro irmão,

Encontro-me numa crise comercial tão difícil que te peço que me mandes todo o dinheiro de que possas dispor, mesmo que tenhas de pedi-lo emprestado.

Teu

césar

 

Tua sobrinha Cesarina, que está a meu lado enquanto escrevo esta carta e minha pobre mulher dorme, recomenda-se a ti e manda-te lembranças.

 

Esse pós-escrito foi acrescentado a pedido de Cesarina, que levou a carta a Raguet.

— Meu pai — disse, ao voltar para cima —, está aí o sr. Lebas, que quer falar contigo.

— O sr. Lebas! — exclamou César, assustado, como se o seu desastre o tornasse criminoso. — Um juiz!

— Meu caro sr. Birotteau, tenho tamanho interesse pelo senhor — disse o corpulento comerciante de fazendas ao entrar —, pois nós nos conhecemos há tanto tempo e fomos eleitos juízes juntos na primeira vez, que não posso deixar de dizer-lhe que um tal sr. Bidault, conhecido por Gigonnet, um usurário, tem títulos seus emitidos à ordem dele, sem garantia, pela casa bancária Claparon. Essas duas palavras constituem não só uma afronta como a morte do seu crédito.

— O sr. Claparon deseja falar com o senhor — disse Celestino, aparecendo. — Mando-o subir?

— Vamos conhecer agora a causa desse insulto — disse Lebas.

— Senhor — disse o perfumista a Claparon, ao vê-lo entrar —, aqui está o sr. Lebas, juiz do Tribunal de Comércio e meu amigo...

— Ah! Então é o sr. Lebas — disse Claparon, interrompendo —, tenho muito prazer em encontrá-lo, sr. Lebas do tribunal, há tantos Lebas, sem contar os altos e baixos...[341]

— Ele viu — disse Birotteau, interrompendo o tagarela — os títulos que lhe entreguei e que, segundo o senhor dizia, não seriam postos em circulação; ele os viu com estas palavras: sem garantia.

— Bem — disse Claparon —, eles efetivamente não circularão, estão nas mãos dum homem com quem tenho muitos negócios, o tio Bidault. Aí está por que fiz a anotação sem garantia. Se eles tivessem de ser postos em circulação, o senhor os teria emitido diretamente à ordem dele. O senhor juiz vai compreender a minha situação. Que representam esses títulos? O valor dum imóvel. Pago por quem? Por Birotteau. Por que haveria eu de garantir Birotteau com a minha assinatura? Devemos pagar, cada um de sua parte, a nossa parcela no referido valor. Ora, não basta sermos solidários perante os vendedores? Para mim, a regra comercial é inflexível: não dou inutilmente meu aval do mesmo modo que não dou recibo duma importância a receber. Faço todas as suposições. Quem assina paga. Não quero ficar exposto a ter de pagar três vezes.

— Três vezes! — disse César.

— Sim, senhor — respondeu Claparon. — Já garanti Birotteau aos nossos vendedores, por que iria garanti-lo também ao banqueiro? As circunstâncias em que nos encontramos são duras. Roguin levou-me cem mil francos. Assim, a minha metade nos terrenos já me custa quinhentos mil francos, em vez de quatrocentos mil. Roguin levou duzentos e quarenta mil francos de Birotteau. Que faria no meu lugar, sr. Lebas? Coloque-se na minha situação. Não tenho a honra de ser conhecido pelo senhor assim como não conheço o sr. Birotteau. Faça o favor de acompanhar o caso. Fazemos juntos um negócio em partes iguais. O senhor entra com a sua parte em moeda corrente; eu regularizo a minha, emitindo títulos, e os ofereço ao senhor; o senhor, por grande condescendência, encarrega-se de convertê-los em dinheiro. O senhor vem a saber que Claparon, banqueiro, rico, considerado (aceito todas as virtudes do mundo), que o virtuoso Claparon se encontra em falência com um passivo de seis milhões: iria o senhor, precisamente nesse momento, apor a sua assinatura para garantir a minha? Só se fosse louco! Pois bem, sr. Lebas, Birotteau está no caso em que figurei Claparon. Não vê, então, que eu poderia ter de pagar aos adquirentes como solidário e ainda reembolsar a parte de Birotteau até a concorrência de seus títulos, se eu os garantisse, e sem ter...

— A quem? — perguntou o perfumista, interrompendo.

— E sem ficar com a sua metade de terrenos — disse Claparon, sem dar atenção à interrupção —, pois eu não teria privilégio algum; teria, assim, necessidade de comprá-la, ainda! Como vê, eu seria obrigado a pagar três vezes.

— Reembolsar a quem? — insistiu Birotteau.

— Ora, ao terceiro portador, se eu endossasse e lhe acontecesse algum desastre.

— Eu não deixaria de pagar, senhor — disse Birotteau.

— Bem — disse Claparon —, o senhor já foi juiz, é um hábil comerciante e sabe que a gente deve prever tudo. Não se admire, pois, se eu faço o meu ofício.

— O sr. Claparon tem razão — disse José Lebas.

— Tenho razão — repetiu Claparon — comercialmente. Mas este negócio é territorial. Ora, que é que eu devo receber?... Dinheiro! Terei de entregar dinheiro aos vendedores. Deixemos de lado os duzentos e quarenta mil francos que o sr. Birotteau há de arranjar, tenho certeza disso — disse Claparon, olhando para Lebas. — Vim cá para pedir-lhe a bagatela de vinte e cinco mil francos — disse, fitando Birotteau.

— Vinte e cinco mil francos! — exclamou César, sentindo gelo em vez de sangue nas veias. — Mas a que título?

— Eh! Meu caro senhor, somos obrigados a realizar a venda em cartório. Ora, relativamente ao preço, podemos entender-nos entre nós; mas, com o fisco, é ali no duro! O fisco não vai com conversa fiada, não dá crédito a ninguém e temos de cuspir-lhe esta semana quarenta e quatro mil francos de impostos. Eu estava longe de esperar receber censuras ao vir aqui, pois, pensando que esses vinte e cinco mil francos poderiam causar-lhe algum embaraço, eu queria anunciar-lhe que, por um imenso acaso, eu lhe salvei...

— Quê! — disse Birotteau, emitindo esse grito de angústia com o qual ninguém se engana.

— Uma miséria! Os vinte e cinco mil francos de títulos sobre diversos que Roguin me entregara para negociar, eu lhos creditei na conta do registro e das despesas, de que lhe enviarei uma nota; há uma pequena comissão a deduzir, de modo que o senhor me deve ainda seis ou sete mil francos.

— Tudo isto me parece perfeitamente justo — disse Lebas. — No lugar deste senhor, que me parece entender perfeitamente de negócios, eu teria agido da mesma forma com um desconhecido.

— O sr. Birotteau não morrerá por isto — disse Claparon —, é necessário mais de um golpe para matar um lobo velho; já tenho visto lobos com balas na cabeça correrem como... que diabo!... como os lobos.

— Quem poderia prever uma infâmia como essa de Roguin? — disse Lebas, admirado do silêncio de César e ao mesmo tempo de sabê-lo envolvido em tamanha especulação estranha à perfumaria.

— Pouco faltou para que eu desse quitação de quatrocentos mil francos a este senhor — disse Claparon — e então eu estaria liquidado. Eu havia entregado cem mil francos a Roguin na véspera. Nossa confiança mútua me salvou. Parecia-nos completamente indiferente que o dinheiro estivesse no cartório ou na minha casa bancária até o dia dos contratos definitivos.

— Teria sido melhor que cada um guardasse o seu dinheiro no Banco até o momento de pagar — disse Lebas.

— Roguin era o Banco, para mim — disse César. — Mas ele está metido no negócio — acrescentou, olhando para Claparon.

— Sim, pela quarta parte, sob palavra — respondeu Claparon. — Depois da tolice de deixar que ele levasse o meu dinheiro, dar-lhe dinheiro seria uma tolice ainda mais refinada. Se ele não me enviar os meus cem mil francos e mais os duzentos mil da sua parte, então veremos! Mas é claro que ele não mos enviará para um negócio que exige cinco anos de panela no fogo antes de dar um primeiro caldo. Se ele não levou, como dizem, mais de trezentos mil francos, bem que vai precisar de quinze mil francos de renda para viver no estrangeiro.

— O bandido!

— Eh! Meu Deus! Foi uma paixão que arrastou Roguin até isso — disse Claparon. — Qual é o velho que pode garantir que não se deixará dominar, arrebatar pela sua última fantasia? Nenhum de nós, que somos sensatos, pode saber como há de acabar! O último amor, eh!, é o mais violento! Vejam os Cardot, os Camusot, os Matifat... todos têm amantes! E, se fomos tapeados, a culpa não é nossa? Como foi que não desconfiamos dum tabelião que ia entrar numa especulação? Todo tabelião, todo agente de câmbio, todo corretor que se mete num negócio é suspeito. A falência, para eles, é uma bancarrota fraudulenta, e preferem passar a fronteira a passar pelo tribunal criminal. Nunca mais cairei numa destas. Afinal, a gente não tem coragem de fazer condenar à revelia pessoas em cuja casa jantamos, que nos deram belos bailes, pessoas da alta sociedade, enfim! Ninguém se deve queixar, a culpa é nossa.

— E muito nossa — disse Birotteau. — A lei sobre as falências e as bancarrotas precisa ser modificada.

— Se precisar de mim — disse Lebas a Birotteau —, estou inteiramente às suas ordens.

— Ele não precisa de ninguém — disse o infatigável conversador, de quem Du Tillet abrira as comportas após tê-las enchido de água, pois Claparon estava repetindo uma lição que lhe fora muito habilmente soprada por Du Tillet. — O seu caso é claro: a falência de Roguin dará cinquenta por cento de dividendo, segundo me disse o jovem Crottat. Além desse dividendo, o sr. Birotteau vai reaver quarenta mil francos, que o seu emprestador não pôde fornecer; e depois pode fazer empréstimo sobre as suas propriedades. Ora, só temos de pagar duzentos mil francos aos nossos vendedores daqui a quatro meses. Daqui até lá, o sr. Birotteau pagará os seus títulos, pois ele não devia contar com o que Roguin levou embora para resgatá-los. E mesmo que o sr. Birotteau estivesse um pouco apertado... ora, pondo alguns títulos em circulação, haveria de se arranjar.

O perfumista recobrara a coragem ao ouvir Claparon analisar o seu caso e resumi-lo traçando-lhe, por assim dizer, um plano de conduta. Nessas condições, sua atitude tornou-se firme e decidida e ele passou a fazer um alto conceito da capacidade do antigo viajante.

Du Tillet julgara conveniente passar por vítima de Roguin perante Claparon. Dera cem mil francos a Claparon para que este os entregasse e Roguin, que lhos devolveu. Claparon, preocupado, desempenhava naturalmente o seu papel e dizia a quem quisesse ouvi-lo que Roguin lhe custava cem mil francos. Du Tillet achava que Claparon ainda não era suficientemente forte, julgava-o muito cheio de princípios de dignidade e de escrúpulo para poder confiar-lhe seus planos em toda a extensão; sabia, além disso, que ele seria incapaz de descobri-los.

— Se não fizermos do nosso primeiro amigo a nossa primeira vítima, não encontraremos uma segunda — disse ele a Claparon no dia em que, recebendo censuras do seu proxeneta comercial, o despedaçou como um instrumento gasto.

O sr. Lebas e Claparon saíram juntos.

“Posso livrar-me desta”, pensou Birotteau. “Meu passivo em títulos a pagar eleva-se a duzentos e cinquenta mil francos, a saber: setenta e cinco mil francos da casa e cento e setenta e cinco mil dos terrenos. Ora, para cobrir esses pagamentos, tenho o dividendo Roguin, que será, talvez, de cem mil francos, e posso anular o empréstimo sob garantia dos terrenos, ao todo cento e quarenta. Preciso ganhar cem mil francos com o Óleo Cefálico e esperar, com alguns títulos de favor e um crédito com um banqueiro, o momento em que os terrenos atinjam o seu mais alto preço.”

Quando, no meio do desastre, um homem é capaz de compor um romance de esperança através duma sequência de raciocínios mais ou menos justos com que enche o travesseiro, muitas vezes está salvo. É frequente que tomem a confiança conferida pela ilusão por energia e talvez seja a esperança a metade da coragem. Também a religião católica fez dela uma virtude. E, realmente, não tem a esperança amparado muitos fracos, dando-lhes tempo para esperar os momentos favoráveis da vida?

X — O ALTO MUNDO BANCÁRIO

Tendo resolvido ir à casa do tio da esposa expor sua situação antes de procurar amparo em outra parte, Birotteau desceu a Rue Saint-Honoré até a Rue des Bourdonnais cheio de angústias que ainda não conhecia e que o agitaram tão violentamente que ele chegou a crer que sua saúde estivesse arruinada. Tinha fogo nas entranhas. Com efeito, os que sentem pelo diafragma sofrem justamente nesse ponto, do mesmo modo que os que sentem pela cabeça padecem de dores cerebrais. Nas grandes crises, o físico é atingido no ponto em que o temperamento situou a sede da vida do indivíduo: os fracos sentem cólicas, Napoleão adormece.

Para que uma pessoa honrada assalte uma confiança passando por cima de todas as barreiras da altivez, é preciso que tenha sentido mais de uma vez, no coração, a espora da necessidade, essa rude cavaleira! Assim, Birotteau deixara-se esporear durante dois dias antes de ir à casa do tio e só se decidiu a isso por motivos de família: em qualquer estado de coisas devia explicar sua situação ao severo ferrageiro. Não obstante, ao chegar à porta, sentiu esse desfalecimento íntimo que toda criança experimenta ao entrar no gabinete de um dentista; essa falta de coragem, porém, atingia a vida em sua totalidade, em vez de atingi-la por um sofrimento passageiro. Birotteau subiu lentamente. Encontrou o velho lendo Le Constitutionnel junto à lareira, diante da mesinha redonda onde estava o seu frugal almoço: um pãozinho, manteiga, queijo da Brie e uma taça de café.

— Eis um verdadeiro sábio — disse Birotteau, invejando a vida do tio.

— Olá! — disse-lhe Pillerault, tirando os óculos. — Eu soube ontem, no Café David, do caso de Roguin e do assassinato da Bela Holandesa, sua amante! Espero que, prevenido por nós, que queríamos ser proprietários da verdade, tenhas ido buscar o recibo de Claparon.

— Ah! Meu tio, tudo está nisso, o senhor pôs o dedo sobre a ferida. Não.

— Ah! Diabo! Estás arruinado — disse Pillerault, deixando cair o jornal, que Birotteau apanhou no chão, apesar de ser o Le Constitutionnel.

Pillerault foi tão violentamente chocado pelas reflexões que sua fisionomia de medalha e de estilo severo adquiriu a cor do bronze como o metal sob um golpe de balanceiro: tornou-se fixa; olhou, sem ver, para a parede fronteira através das vidraças, enquanto escutou o longo discurso de Birotteau. Evidentemente, compreendia e julgava, pesava o pró e o contra com a inflexibilidade dum Minos[342] que atravessara o Estige[343] do comércio trocando o Quai des Morfondus por seu pequeno apartamento no terceiro andar.

— Então, meu tio? — disse Birotteau, que esperava uma resposta após ter terminado por um pedido para vender sessenta mil francos de títulos de renda.

— Bem, meu pobre sobrinho, não posso fazê-lo, estás comprometido demais. Os Ragon e eu vamos perder, cada um, cinquenta mil francos. Eles, a conselho meu, venderam suas ações das minas de Wortschin: considero-me obrigado, em caso de perda, não a restituir-lhes o capital, mas a ampará-los, a amparar minha sobrinha e Cesarina. É possível que venha faltar o que comer para vocês todos, e vocês o encontrarão em minha casa...

— O que comer, meu tio?

— Isso mesmo, o que comer. Vê as coisas como elas são: desta não escaparás! De cinco mil e seiscentos francos de renda, poderei retirar quatro mil francos para dividi-los entre vocês e os Ragon. Consumada tua ruína, e eu conheço Constança, ela trabalhará como uma louca, se privará de tudo, e tu também, César!

— O caso não é completamente desesperado, meu tio.

— Não penso como tu.

— Hei de provar-lhe o contrário.

— Nada me causará mais prazer.

Birotteau deixou Pillerault sem nada responder. Fora em busca de consolação e coragem e recebera um novo golpe, menos forte, na verdade, do que o primeiro, mas que, em vez da cabeça, atingia-lhe o coração: o coração era toda a vida do pobre homem. Voltou depois de ter descido alguns degraus.

— Senhor — disse com uma voz fria —, Constança não sabe de nada, guarde segredo, pelo menos! E peça aos Ragon que não me tirem a tranquilidade de que preciso para lutar contra o infortúnio.

Pillerault fez um gesto de consentimento.

— Coragem, César! — acrescentou. — Vejo que estás zangado comigo, mas mais tarde me farás justiça, pensando na tua esposa e na tua filha.

Desencorajado pela opinião do tio, em quem reconhecia uma lucidez especial, César caiu do alto da sua esperança ao pântano lodoso da incerteza. Quando, numa dessas horríveis crises comerciais, um homem não tem a alma da têmpera da de Pillerault, torna-se o joguete dos acontecimentos: segue as ideias alheias e as suas como um viajante corre atrás dos fogos-fátuos. Deixa-se arrastar pelo turbilhão em vez de se deitar sem olhá-lo quando ele passa ou de se levantar para acompanhar-lhe a direção a fim de escapar dele. No meio de sua aflição, Birotteau lembrou-se do processo relativo ao seu empréstimo. Dirigiu-se à casa de Derville, seu advogado, à Rue Vivienne, a fim de iniciar o processo o mais cedo possível, no caso de o advogado ver alguma possibilidade de fazer anular o contrato.

O perfumista encontrou Derville enrolado num chambre de baetilha branca, junto à lareira, calmo e grave como todos os advogados habituados às mais terríveis confidências. Pela primeira vez Birotteau notou essa frieza necessária, que gela o homem apaixonado, ferido, acometido pela febre do interesse em perigo, e dolorosamente atingido na vida, na honra, na esposa e nos filhos, como o estava Birotteau ao narrar sua desgraça.

— Se ficar provado — disse-lhe Derville, após tê-lo escutado — que o emprestador já não possuía no cartório de Roguin a soma que Roguin ia emprestar-lhe em nome dele, como não houve entrega de dinheiro, haverá lugar para a rescisão: o emprestador poderá recorrer à caução, do mesmo modo que o senhor aos seus cem mil francos. Neste caso, garanto pelo processo tanto quanto é possível garantir, pois não há processo ganho de antemão.

A opinião de tão hábil jurisconsulto deu um pouco de coragem ao perfumista, que pediu a Derville que fizesse com que o julgamento se realizasse naquela mesma quinzena. O advogado respondeu que, antes de três meses, possivelmente conseguiria uma sentença que anulasse o contrato.

— Três meses! — disse o perfumista, que julgava ter encontrado um amparo.

— Ora, mesmo conseguindo incluir rapidamente o processo na pauta de julgamentos, não podemos fazer com que o seu adversário ande tão depressa como o senhor: ele há de se aproveitar dos prazos do processo, os advogados nem sempre estão presentes; quem sabe se o seu adversário não se deixará condenar à revelia? A gente não anda depressa como quer, meu caro chefe! — disse Derville, sorrindo.

— Mas no Tribunal de Comércio...! — disse Birotteau.

— Oh! — disse o advogado. — Os juízes consulares e os juízes de primeira instância são duas espécies diferentes de juízes. Os senhores julgam superficialmente os negócios! No tribunal, temos normas de processo. As normas de processo são a proteção do Direito. O senhor gostaria dum julgamento à queima-roupa que lhe fizesse perder os seus quarenta mil francos? Pois bem, o seu adversário, ao ver essa importância em perigo, procurará se defender. Os prazos são os instrumentos de proteção nos casos judiciários.

— O senhor tem razão — disse Birotteau, cumprimentando Derville e saindo com a morte no coração. — Todos eles têm razão. Dinheiro! Dinheiro! — gritava o perfumista pelas ruas, falando sozinho, como fazem todas as pessoas atarefadas desta turbulenta e efervescente Paris, que um poeta moderno chama de tina.[344]

Ao vê-lo entrar, o caixeiro que andara por toda parte entregando as contas disse-lhe que, em vista da aproximação do fim do ano, todos os fregueses haviam devolvido o recibo e ficado com a fatura.

— Não há, mesmo, dinheiro em parte alguma! — disse o perfumista, em voz alta, na loja.

Disse-o e mordeu os lábios, pois todos os caixeiros haviam erguido a cabeça para ele.

Cinco dias decorreram assim, cinco dias durante os quais Braschon, Lourdois, Thorein, Grindot, Chaffaroux, todos os credores não pagos passaram pelas fases camaleonescas, as quais tem de suportar o credor antes de chegar ao estado pacífico em que o coloca a confiança de cores sanguinolentas da Belona comercial.[345] Em Paris, o período adstringente da desconfiança é tão rápido em chegar quanto o movimento expansivo da confiança é lento em se decidir: uma vez tombado no sistema restritivo dos temores e das precauções comerciais, o credor chega a sinistras infâmias que o colocam abaixo do devedor. Duma dulçorosa polidez, os credores passaram ao rubro da impaciência, às sombrias crepitações das importunações, aos clarões do desapontamento, ao azul pálido duma decisão antecipada e à negra insolência da intimação preparada. Braschon, o rico tapeceiro do Faubourg Saint-Antoine, que não fora convidado para o baile, deu o sinal de alarme como credor ferido no amor-próprio: queria ser pago em vinte e quatro horas, exigia garantias, não uma penhora de móveis, mas uma hipoteca de quarenta mil francos sobre os terrenos do bairro. A despeito da violência de suas recriminações, Birotteau teve alguns intervalos de repouso, durante os quais ainda podia respirar.

Em vez de vencer esses primeiros obstáculos duma situação difícil por meio de uma resolução enérgica, César empregou sua inteligência em impedir que a esposa, a única pessoa que lhe poderia dar conselhos, viesse a conhecê-los. Mantinha-se de sentinela à soleira da sua porta e em redor da loja. Confiara a Celestino o segredo da sua momentânea dificuldade e Celestino examinava o patrão com um olhar tão curioso quanto espantado: a seus olhos, César se diminuía, como se diminuem, nos desastres, os homens habituados ao êxito e cuja força consiste exclusivamente na experiência que a rotina confere às inteligências medíocres. Sem a enérgica capacidade necessária para se defender em tantos pontos simultaneamente ameaçados, César teve, contudo, coragem para encarar a situação. Para o fim de dezembro e 15 de janeiro, precisava, para as despesas da casa, vencimentos, aluguéis e obrigações à vista, duma importância de sessenta mil francos, trinta mil dos quais para o dia 31 de dezembro: todos os seus recursos não dariam mais de vinte mil; faltavam-lhe, pois, dez mil francos. Nada lhe parecia desesperado, pois para ele só interessava o momento presente, como esses aventureiros que vivem ao acaso.

Antes que o rumor das suas aperturas se tornasse público, resolveu, pois, tentar um meio que lhe parecia um grande golpe, dirigindo-se ao famoso Francisco Keller, banqueiro orador e filantropo, célebre pela benevolência e pelo desejo de ser útil ao comércio parisiense, tendo em vista manter-se na Câmara como deputado de Paris. O banqueiro era liberal, Birotteau era realista; o perfumista, porém, julgou-o pelo próprio coração e viu, nessa divergência de opiniões, um motivo a mais para conseguir um crédito. Caso precisasse de dinheiro corrente, não duvidava da dedicação de Popinot, a quem pretendia pedir uns trinta mil francos em títulos, que o permitiriam esperar o ganho de causa no processo e que ofereceria como garantia aos credores mais impacientes. O expansivo perfumista, que contava, sobre o travesseiro, à sua querida Constança, as menores emoções da sua existência e nisso encontrava coragem e buscava as luzes da contradição, não podia conversar sobre a sua situação nem com o primeiro caixeiro nem com o tio nem com a esposa. Suas ideias pesavam-lhe duplamente. Preferia, porém, sofrer a lançar esse braseiro na alma da mulher. O generoso mártir queria informá-la do perigo quando este já houvesse passado. Talvez recuasse diante da horrível confidência. O medo que a mulher lhe inspirava dava-lhe coragem. Ia todas as manhãs ouvir uma missa rezada em Saint-Roch e tomava Deus para confidente.

— Se, ao voltar de Saint-Roch para a minha casa, eu não encontrar nenhum soldado, meu pedido será atendido. Essa será a resposta de Deus — dizia consigo, após ter pedido a Deus que o amparasse.

E ficava contente de não encontrar nenhum soldado. Tinha, contudo, o coração muito opresso, precisava de outro coração ao qual pudesse se lamentar. Cesarina, a quem já se confiara por ocasião da fatal notícia, ficou a par de todo o seu segredo. Houve entre eles olhares furtivos, olhares contidos cheios de desespero e de esperança, invocações lançadas com um mútuo ardor, perguntas e respostas simpáticas, sinais luminosos trocados entre as duas almas. Birotteau fazia-se alegre, jovial, para a esposa. Constança dirigia-lhe uma pergunta? Ora! Tudo ia bem; Popinot, em quem César nem pensava, estava vencendo! O óleo ia de vento em popa! Os títulos Claparon seriam pagos, não havia nada a temer. Essa falsa alegria era aterradora. Quando a esposa estava adormecida no leito suntuoso, Birotteau recostava-se na cama e mergulhava na contemplação de sua desgraça. Cesarina aparecia, às vezes, em camisão, com um xale sobre as costas brancas e os pés descalços.

— Papai, ouvi, estás chorando — dizia ela, chorando também.

Birotteau caiu em tal estado de torpor após ter escrito a carta pedindo um encontro ao grande Francisco Keller que a filha o levou à cidade. Só então ele viu, nas ruas, enormes cartazes vermelhos, e seu olhar foi surpreendido por estas palavras:

 

óleo cefálico

 

Durante as catástrofes ocidentais da Rainha das Rosas, a casa A. Popinot se erguia, radiosa, nas chamas orientais do triunfo. Aconselhado por Gaudissart e Finot, Anselmo lançara seu óleo com audácia. Dois mil cartazes haviam sido afixados, nos últimos três dias, nos pontos mais visíveis de Paris. Ninguém podia evitar de dar com os olhos no Óleo Cefálico nem de ler uma frase concisa, inventada por Finot, sobre a impossibilidade de fazer nascer cabelos e o perigo de tingi-los, acompanhada da citação da memória lida à Academia de Ciências por Vauquelin; um verdadeiro certificado de vida para os cabelos mortos, prometido aos que usassem o Óleo Cefálico. Todos os cabeleireiros de Paris, barbeiros e perfumistas haviam decorado suas portas com molduras douradas contendo um belo impresso, sobre velino, ao alto do qual brilhava a estampa de Hero e Leandro, reduzida, com esta asserção por epígrafe:

 

Os antigos povos da Antiguidade conservavam seus cabelos

com o emprego do ÓLEO CEFÁLICO.

 

“Ele inventou quadros permanentes, o anúncio eterno!”, pensou Birotteau, detendo-se estupefato ao ver a fachada da casa O Sino de Prata.

— Mas não viste na tua casa — disse-lhe a filha — um quadro que o sr. Anselmo levou pessoalmente, entregando a Celestino trezentas garrafas de óleo?

— Não.

— Celestino já vendeu cinquenta a transeuntes e sessenta a fregueses antigos!

— Ah! — disse César.

O perfumista, aturdido pelos mil sinos que a miséria badala nos ouvidos de suas vítimas, vivia num ritmo vertiginoso: na véspera, Popinot o esperara durante uma hora e saíra após ter falado com Constança e Cesarina, que lhe disseram que César estava absorvido pelo seu grande negócio.

— Ah! Sim, o negócio dos terrenos.

Felizmente, Popinot, que há um mês não saía da Rue des Cinq-Diamants, passava as noites e trabalhava aos domingos na fábrica, não encontrara nem os Ragon nem Pillerault nem o seu tio juiz. Não dormia mais de duas horas, o pobre menino! Tinha apenas dois empregados e, pelo ritmo em que iam as coisas, logo precisaria de quatro. No comércio, a ocasião é tudo. Quem não prende o sucesso segurando-se à crina perde a oportunidade de enriquecer. Popinot dizia consigo que seria bem recebido quando, seis meses mais tarde, dissesse à tia e ao tio: “Estou salvo, minha fortuna está feita!”. E bem recebido por Birotteau quando lhe levasse trinta ou quarenta mil francos correspondentes à parte dele, seis meses mais tarde. Ignorava, pois, a fuga de Roguin, os desastres e a dificuldade de César e não pôde dizer nenhuma palavra indiscreta à sra. Birotteau.

Popinot prometeu a Finot quinhentos francos por jornal grande, e havia dez!, e trezentos francos por jornal secundário, e havia outros dez!, se falassem no Óleo Cefálico três vezes por mês. Finot viu três mil francos a ganhar nesses oito mil, que seriam sua entrada a lançar ao grande e imenso tapete verde da especulação! Arrojara-se, assim, como um leão, sobre os amigos e os conhecidos; morava nas redações dos jornais; insinuava-se à cabeceira de todos os redatores, pela manhã, e, à noite, percorria a caixa de todos os teatros.

— Pensa no meu óleo, caro amigo, não ganho nada com ele, é um negócio de camaradagem, tu sabes! Gaudissart, um sabido! — tal era a primeira e a última frase de todos os seus discursos.

Assaltou a parte inferior de todas as colunas finais de todos os jornais, onde publicou artigos em troca de dinheiro aos redatores. Tornou-se astuto como um figurante que quer passar por ator; alerta como um escrevente de cartório que ganha sessenta francos por mês. Escreveu cartas capciosas, lisonjeou o amor-próprio de todos, prestou imundos serviços aos chefes de redação, a fim de poder publicar seus artigos. Dinheiro, jantares, adulações, tudo serviu à sua apaixonada atividade. Corrompeu com entradas de teatro os operários que, pela meia-noite, completam a paginação dos jornais, enchendo as colunas com pequenas notícias tiradas das variedades, os enchimentos do jornal. Finot encontrava-se sempre na tipografia, ocupado como se tivesse um artigo a revisar. Amigo de todos, fez o Óleo Cefálico vencer a Pomada de Regnaud, a Mistura Brasileira[346] e todas as outras invenções que haviam sido as primeiras a ter o talento de perceber a influência do jornalismo e o efeito de pistão produzido sobre o público por um artigo reiterado. Naqueles tempos de inocência, muitos jornalistas eram como os bois, ignoravam sua força, ocupavam-se de atrizes, de Florina, de Túlia, de Marieta[347] etc. Dominavam tudo e não tiravam proveito algum. As pretensões de Andoche não se referiam nem a uma atriz que fosse preciso aplaudir, nem a uma peça a representar, nem a comédias musicadas a admitir, nem a artigos pagos; pelo contrário, oferecia dinheiro nas aperturas e jantares oportunos; assim, não houve um jornal que não falasse no Óleo Cefálico, na sua concordância com as análises de Vauquelin, que não zombasse dos que acreditam que se possa fazer nascer cabelos e que não proclamasse o perigo de tingi-los.

Esses artigos alegravam a alma de Gaudissart, que se armava de jornais para destruir os preconceitos e fazia, na província, isso que, mais tarde, os especuladores, depois dele, denominaram de carga a fundo. Naquele tempo, os jornais de Paris dominavam os departamentos, ainda sem órgãos, os coitados! Os jornais eram, assim, seriamente estudados no interior, desde o título até o nome do editor, linha onde se podiam ocultar as ironias da opinião perseguida. Gaudissart, apoiado na imprensa, obteve brilhantes sucessos desde as primeiras cidades que percorreu.

Todos os lojistas da província queriam quadros e impressos com a estampa de Hero e Leandro. Finot dirigiu contra o Óleo de Macassar essa encantadora pilhéria que tanto fazia rir nos Funâmbulos:[348] Pierrot toma uma velha vassoura de crina na qual só se veem buracos, derrama sobre ela o Óleo de Macassar e a vassoura fica cheia de cabelos. Essa cena irônica causava hilaridade geral. Mais tarde, Finot contava alegremente que, não fossem aqueles mil escudos, teria morrido de miséria e de pesar. Para ele, mil escudos eram uma fortuna. Nessa campanha ele descobriu, antes que qualquer outro, o poder do anúncio, de que fez tão amplo e sábio emprego. Três meses mais tarde, tornou-se redator-chefe de um jornalzinho, que acabou por comprar e que constituiu a base de sua fortuna.

Assim como a carga a fundo feita pelo ilustre Gaudissart, o Murat[349] dos caixeiros-viajantes, nos departamentos e cidades fronteiriças, fez triunfar comercialmente a casa A. Popinot, ela triunfou também no seio da opinião pública, graças ao famélico assalto feito aos jornais e que causou essa intensa publicidade igualmente conseguida pela Mistura Brasileira e pela Pomada de Regnaud. De início, essa tomada de assalto da opinião pública deu origem a três sucessos, a três fortunas, e causou a invasão duma infinidade de ambições que mais tarde desceram em cerrados batalhões à arena dos jornais, onde criaram os anúncios pagos, imensa revolução! Naquele momento, a casa A. Popinot & Cia. se pavoneava em todas as paredes e em todas as fachadas. Incapaz de avaliar o alcance de semelhante publicidade, Birotteau contentou-se em dizer a Cesarina: “Esse pequeno Popinot marcha nas minhas pegadas”, sem perceber as diferenças de época, sem apreciar o poder dos novos meios de execução, cuja rapidez e amplitude abarcavam, muito mais depressa do que antigamente, todo o mundo comercial. Birotteau não pusera os pés na fábrica desde o baile; ignorava o movimento e a atividade que Popinot lá realizava. Anselmo tomara todos os operários de Birotteau, dormia lá; via Cesarina sentada sobre todas as caixas, deitada em todas as expedições, impressa em todas as faturas; dizia para si mesmo: “Ela será minha esposa!” quando, sem casaco, com as mangas arregaçadas até os cotovelos, metia corajosamente os pregos num caixote, na falta de algum empregado ocupado na rua.

No dia seguinte, após ter estudado durante toda a noite tudo quanto devia dizer e não dizer a um dos grandes homens do alto mundo bancário, César chegou à Rue du Houssay e não foi sem horríveis palpitações que abordou o palácio do banqueiro liberal, que pertencia àquela corrente de opinião acusada, por tão justos títulos, de querer derrubar os Bourbon. O perfumista, como todas as pessoas do pequeno comércio parisiense, não conhecia os costumes nem os homens dos altos círculos bancários.

Em Paris, entre a alta esfera bancária e o comércio, há estabelecimentos secundários, intermediários úteis aos bancos, que neles encontram uma garantia a mais. Constança e Birotteau, que nunca haviam avançado além dos seus recursos, cujo caixa nunca estivera vazio e que guardavam os títulos no cofre, nunca haviam recorrido a essas casas de segunda ordem e, com mais forte razão, eram desconhecidos nos altos círculos bancários. Talvez seja um erro não fazer contas, mesmo inúteis; as opiniões se dividem a respeito deste ponto. Seja como for, Birotteau lamentava muito nunca ter emitido sua assinatura. Mas, conhecido como suplente e como político, pensou que bastaria dar o nome e entrar; ignorava a afluência quase real que distinguia a audiência daquele banqueiro. Introduzido na sala que precedia o escritório daquele homem famoso por tantos títulos, Birotteau viu-se no meio de uma sociedade numerosa, composta de deputados, escritores, jornalistas, corretores de câmbio, fortes comerciantes, procuradores, engenheiros, e principalmente de familiares, que atravessavam os grupos e batiam de uma forma especial à porta do escritório, onde entravam por privilégio.

“Que sou eu no meio desta máquina?”, pensou Birotteau, completamente aturdido pelo movimento daquela forja intelectual onde se distribuía o pão cotidiano da oposição, onde se ensaiavam os papéis da grande tragicomédia representada pela Esquerda.

Ouvia discutir, à direita, a questão do empréstimo para a conclusão dos principais traçados de canais, proposto pela Direção de Pontes e Estradas, e falava-se em milhões! À esquerda, jornalistas sustentados pelo amor-próprio do banqueiro tratavam da sessão da véspera e da improvisação do patrão. Durante duas horas de espera, Birotteau avistou três vezes o banqueiro político acompanhando até além da porta do escritório homens importantes. Francisco Keller foi até o vestíbulo acompanhando o último, o general Foy.

“Estou perdido!”, disse consigo Birotteau, sentindo um aperto no coração.

Quando o banqueiro voltou ao gabinete, a multidão de cortesãos, amigos e interessados o assaltou como cães que perseguem uma linda cadela. Alguns audaciosos vira-latas insinuaram-se, a despeito de tudo, no santuário. As conferências duravam cinco minutos, dez minutos, um quarto de hora. Uns saíam tristes, outros exibiam uma atitude satisfeita ou assumiam ares importantes. O tempo se escoava, Birotteau olhava ansiosamente para a pêndula. Ninguém prestava a mínima atenção àquela aflição oculta que gemia sobre uma poltrona dourada junto à lareira, à porta daquele gabinete onde morava a panaceia universal: o crédito! César refletia tristemente que também já fora, por um momento, rei em sua casa, como aquele homem era rei todas as manhãs, e avaliava a profundidade do abismo em que caíra. Amargo pensamento! Quantas lágrimas contidas durante a hora que passou lá!... Quantas vezes Birotteau suplicou a Deus que lhe fizesse aquele homem favorável, pois descobria nele, sob um grosseiro invólucro de bonomia popular, uma insolência, uma tirania colérica, um brutal desejo de dominar que atemorizava sua alma humilde! Finalmente, quando já não havia mais que dez ou onze pessoas, Birotteau resolveu que quando a porta se abrisse ele se levantaria e se colocaria no mesmo nível do grande orador, dizendo-lhe: “Sou Birotteau!”. O granadeiro que primeiro assaltou o reduto de Moscou não empregou mais coragem do que a que o perfumista reuniu para se entregar a essa manobra.

“Afinal, sou seu adjunto”, pensou, ao levantar-se para declinar seu nome.

A fisionomia de Francisco Keller tornou-se afável; evidentemente, quis ser amável, olhou para a roseta vermelha do perfumista, recuou, abriu a porta do gabinete, mostrou-lhe o caminho e ficou durante algum tempo a conversar com duas pessoas que haviam subido correndo pela escada com a violência de uma tromba.

— Decazes quer falar com o senhor — disse um dos dois.

— Trata-se de matar o pavilhão Marsan![350] O rei vê claro, vem ao nosso encontro! — exclamou o outro.

— Iremos juntos à Câmara — disse o banqueiro, entrando no gabinete na atitude da rã que deseja imitar o boi.

“Como é que ele pode pensar nos negócios do banco?”, indagou-se Birotteau completamente confuso.

O sol da superioridade cintilava, deslumbrava o perfumista, como a luz cega os insetos que só podem viver numa luz suave ou na semiobscuridade duma bela noite. Sobre uma mesa imensa, via o orçamento, os inúmeros impressos da Câmara, os volumes de Le Moniteur[351] abertos, consultados e assinalados para lançar ao rosto dum ministro suas precedentes palavras esquecidas e fazer-lhe cantar a palinódia com os aplausos duma multidão estúpida e incapaz de compreender que os acontecimentos modificam tudo. Sobre uma outra mesa, cartões empilhados, contas, projetos, a infinidade de informações confiadas a um homem em cujo caixa todas as indústrias nascentes tentavam meter a mão. O luxo régio daquele gabinete cheio de quadros, estátuas, obras de arte; o atulhamento da lareira; o amontoado de interesses nacionais e estrangeiros empilhados como embrulhos, tudo impressionava Birotteau, diminuía-o, aumentava seu terror e lhe gelava o sangue. Sobre a mesa de Francisco Keller jaziam rolos de títulos, de letras de câmbio, de circulares comerciais. Keller sentou-se e pôs-se a assinar rapidamente as cartas que não exigiam exame.

— Meu senhor, a que devo a honra de sua visita?

Ao ouvir essas palavras, pronunciadas exclusivamente para ele por aquela voz que falava à Europa, enquanto aquela mão ávida corria sobre o papel, o pobre perfumista sentiu-se como se tivesse um ferro em brasa no ventre. Assumiu um ar afável, que o banqueiro se habituara a ver, há dez anos, em todos aqueles que queriam embrulhá-lo em algum negócio importante somente para eles e que já constituía uma informação prévia. Francisco Keller dirigiu, pois, a César um olhar que lhe trespassou a cabeça, um olhar napoleônico. A imitação do olhar de Napoleão era um leve ridículo que então se permitiam alguns plebeus enriquecidos que não chegaram nem aos pés do seu imperador. Esse olhar caiu sobre Birotteau, homem da Direita, caudatário do poder, elemento de eleição monárquica, como um selo de chumbo alfandegário que assinala uma mercadoria.

— Senhor, não quero abusar do seu tempo, serei breve. Venho tratar de um assunto puramente comercial, pedir-lhe um crédito no seu estabelecimento. Antigo juiz do Tribunal do Comércio e conhecido no Banco, o senhor compreende que, se eu tivesse uma carteira cheia de títulos, não teria mais que me dirigir ao banco onde o senhor é chefe. Tive a honra de servir no tribunal com o senhor barão Thibon, chefe da seção de descontos, e ele certamente não me recusaria. Mas nunca me servi do meu crédito nem da minha assinatura; minha assinatura é virgem e o senhor sabe quantas dificuldades apresenta um negócio nestas condições...

Keller sacudiu a cabeça e Birotteau tomou esse gesto por um sinal de impaciência.

— Senhor, eis o caso — acrescentou. — Meti-me num negócio territorial estranho ao meu ramo de comércio...

Francisco Keller, que continuava a assinar e a ler, sem dar a impressão de estar escutando César, voltou a cabeça e fez-lhe um sinal de adesão que o encorajou. Birotteau julgou o seu negócio bem encaminhado e respirou.

— Continue, estou escutando — disse-lhe Keller, com simplicidade.

— Sou adquirente, pela metade, dos terrenos situados ao redor da Madeleine.

— Sim, já ouvi falar na casa dos Nucingen nesse imenso negócio promovido pela casa Claparon.

— Pois bem — continuou o perfumista —, um crédito de cem mil francos, garantido pela minha metade nesse negócio ou pelas minhas propriedades comerciais, bastaria para manter-me até eu receber os lucros que deve dar brevemente uma concepção rigorosamente de perfumaria. Se for necessário, eu garantirei o empréstimo com títulos duma nova casa, a casa Popinot, um jovem que...

Keller deu a impressão de ligar muito pouco à casa Popinot, e Birotteau percebeu que estava tomando um mau caminho; deteve-se e depois, assustado do próprio silêncio, acrescentou:

— Quanto aos juros, nós...

— Sim, sim — disse o banqueiro —, a coisa pode ser arranjada, não tenha dúvidas sobre o meu desejo de ser-lhe agradável. Atarefado como sou, pois tenho as finanças europeias nos braços e a Câmara ocupa todos os meus momentos, o senhor não se espantará de saber que confio aos meus escritórios o estudo duma imensidade de negócios. Vá falar, lá embaixo, com o meu irmão Adolfo e explique-lhe a natureza das suas garantias; se ele aprovar a operação, volte com ele amanhã ou depois de amanhã, à hora em que examino a fundo os negócios, às cinco da manhã. Ficaremos muito satisfeitos e orgulhosos de ter conseguido a sua confiança, o senhor é um desses realistas consequentes, de quem a gente pode ser inimigo político, mas cuja estima nos lisonjeia...

— Senhor — disse o perfumista, exaltado por essa frase de tribuno —, sou tão digno da honra que o senhor me faz como do insigne e real favor... Mereci-o servindo no tribunal consular e combatendo...

— Sim — replicou o banqueiro —, a reputação de que o senhor goza é um passaporte, sr. Birotteau. O senhor só pode propor negócios viáveis, pode contar com o nosso concurso.

Uma mulher, a sra. Veller, uma das duas filhas do conde de Granville, par de França, abriu uma porta que Birotteau não notara.

— Meu amigo, espero ver-te antes da Câmara — disse ela.

— São duas horas — exclamou o banqueiro —, a batalha já começou! Desculpe-me, senhor, temos de derrubar um ministério... Fale com o meu irmão.

Acompanhou o perfumista até a porta do salão e disse a um dos empregados:

— Leve este senhor para falar com o sr. Adolfo.

Através do labirinto de escadas pelo qual o guiava um homem de libré em direção a um gabinete menos suntuoso do que o do chefe do estabelecimento, mas mais útil, o perfumista, a cavalo sobre um se, a mais doce montaria da esperança, coçava o queixo, achando de excelente augúrio as lisonjas do homem famoso. Lamentava que um inimigo dos Bourbon fosse tão gentil, tão capaz, tão grande orador.

Cheio dessas ilusões, entrou num gabinete nu, frio, mobiliado com duas secretárias cilíndricas, mesquinhas poltronas e guarnecido de cortinas muito descuidadas e de um magro tapete. Este gabinete estava para o outro como uma cozinha para a sala de jantar, a fábrica para a loja. Lá se estripavam os negócios bancários e comerciais, se analisavam as empresas e se arrancavam os descontos bancários de todos os lucros das indústrias julgadas prósperas. Lá se combinavam os audaciosos golpes pelos quais os Keller se tornaram notáveis no alto comércio e pelos quais conseguiam, durante alguns dias, um monopólio rapidamente explorado. Lá se estudavam as falhas da legislação e se estipulava, sem pudor, o que, na Bolsa, se denomina a parte do leão, comissão exigida pelos mínimos serviços, como apoiar uma empresa com seu nome e dar-lhe crédito. Lá se urdiam esses logros enfeitados de legalidade que consistem em comanditar sem compromisso empresas duvidosas, a fim de esperar seu sucesso e depois matá-las para apoderar-se delas, exigindo o capital num momento crítico, horrível manobra na qual foram envolvidos tantos acionistas.

Os dois irmãos haviam repartido os papéis. Em cima, Francisco, homem brilhante e político, conduzia-se como um rei, distribuía as graças e as promessas, mostrava-se amável com todos. Com ele tudo era fácil: estimulava nobremente os negócios, embriagava os recém-chegados e os especuladores de data recente com o vinho do seu favor e sua palavra capciosa, desenvolvendo neles suas próprias ideias. Embaixo, Adolfo desculpava o irmão por suas preocupações políticas e passava habilmente a pá pelo tapete; era o irmão responsável, o homem difícil. Era necessário, pois, ter duas palavras para fechar um negócio com o pérfido estabelecimento. Frequentemente o amável sim do gabinete suntuoso transformava-se num não seco no gabinete de Adolfo. Essa manobra dilatória permitia a reflexão e servia muitas vezes para distrair inábeis concorrentes. O irmão do banqueiro estava então conversando com o famoso Palma,[352] o conselheiro íntimo do estabelecimento Keller, que se retirou ao chegar o perfumista. Quando Birotteau acabou de explicar-se, Adolfo, o mais astuto dos dois irmãos, um verdadeiro lince, de olhar aguçado, lábios finos, fisionomia ríspida, lançou a Birotteau, por cima dos óculos e abaixando a cabeça, um olhar que se deve denominar de “olhar de banqueiro” e que tem alguma semelhança com o olhar dos abutres e dos advogados: é ávido e indiferente, claro e obscuro, luminoso e sombrio.

— Queira enviar-me os documentos relativos ao negócio da Madeleine — disse ele —, pois nisso está a garantia do crédito, precisamos examiná-lo antes de abrir-lhe a conta e de combinar os juros. Se o negócio for bom, poderemos, para não sobrecarregá-lo, contentar-nos com uma parte nos lucros em lugar de um desconto.

“Bem”, pensou Birotteau ao voltar para casa, “vejo de que se trata. Como o castor perseguido, preciso desembaraçar-me duma parte da minha pele. É preferível deixar-se tosquiar a morrer.”

Subiu ao apartamento muito sorridente nesse dia e mostrou-se muito espirituoso.

— Estou salvo — disse a Cesarina —, vou conseguir um crédito no banco dos Keller.

Foi só oito dias mais tarde, a 29 de dezembro, que Birotteau pôde ser recebido no gabinete de Adolfo Keller. Na primeira vez que o perfumista voltara lá, Adolfo tinha ido a seis léguas de Paris examinar umas terras que o grande orador queria comprar. Na segunda vez, os dois Keller estavam ocupados por toda a manhã: tratavam dum empréstimo proposto às Câmaras e por isso pediram ao sr. Birotteau que voltasse somente na sexta-feira seguinte. A demora estava matando o perfumista. Finalmente, a sexta-feira chegou. Birotteau viu-se no gabinete, a um lado da lareira, diante da janela, e Adolfo Keller no outro lado.

— Bem, senhor — disse-lhe o banqueiro, mostrando-lhe os documentos. — Mas quanto pagou sobre o valor dos terrenos?

— Cento e quarenta mil francos.

— Em dinheiro?

— Em títulos.

— Estão pagos?

— Não, ainda não venceram.

— Mas, se o senhor tiver pago mais do que o valor atual dos terrenos, onde estará a nossa garantia? Ela repousaria apenas sobre a confiança que o senhor inspira e a consideração de que goza. Os negócios não se apoiam em sentimentos. Se o senhor tivesse pago duzentos mil francos, supondo que tenha dado cem mil francos mais do que eles valem a fim de ficar com os terrenos, teríamos então uma garantia de cem mil francos para responder a um adiantamento de cem mil. O resultado, para nós, seria ficar como proprietários da sua parte pagando em seu lugar, e, assim, é preciso saber se o negócio é bom. Esperar cinco anos para duplicar o capital, é preferível colocá-lo a juros num banco. Acontece tanta coisa! O senhor quer emitir títulos para pagar títulos a vencer, isso é uma manobra perigosa! A gente recua para saltar melhor! O negócio não nos serve.

Essa frase atingiu Birotteau como se o carrasco lhe tivesse encostado ao ombro o ferro de marcar, e ele perdeu a cabeça.

— Vamos ver — disse Adolfo —, meu irmão tem grande interesse pelo senhor, falou-me a seu respeito. Vamos examinar os seus negócios — acrescentou, dirigindo ao perfumista um olhar de cortesã intimada a pagar o aluguel.

Birotteau passou a fazer as vezes de Molineux, de quem zombara com tanta superioridade. Engambelado pelo banqueiro, que se divertiu em esvaziar a bobina dos pensamentos do pobre homem e que sabia interrogar um comerciante como o juiz Popinot sabia fazer um criminoso falar, César narrou os seus empreendimentos: pôs em cena a Dupla Pomada das Sultanas, a Água Carminativa, o caso Roguin e o seu processo relativo ao empréstimo hipotecário do qual não recebera nada.

Ao ver o ar sorridente e pensativo de Keller e suas inclinações de cabeça, Birotteau pensava: “Ele me escuta! Está se interessando! Conseguirei meu crédito!”. Adolfo Keller ria de Birotteau do mesmo modo que o perfumista rira de Molineux. Arrastado pela loquacidade peculiar às pessoas que se deixam embriagar pelo infortúnio, César mostrou o verdadeiro Birotteau: revelou-se claramente propondo como garantia o Óleo Cefálico e a casa Popinot, seu último lance. O bom homem, iludido por uma falsa esperança, deixou-se sondar, examinar. Adolfo Keller viu no perfumista um bobalhão realista prestes a falir. Os Keller estavam encantados de ver falir um suplente do juiz distrital do seu distrito, um homem recentemente condecorado, uma pessoa do poder. Adolfo declarou então, claramente, a Birotteau, que não podia abrir-lhe um crédito nem falar em favor dele ao seu irmão Francisco, o grande orador. Se Francisco se deixasse levar por generosidades idiotas, amparando as pessoas de opinião contrária à sua e os seus inimigos políticos, ele, Adolfo, se oporia com toda a força a que ele fizesse um papel de tolo e o impediria de estender a mão a um velho adversário de Napoleão, a um ferido de Saint-Roch.

Birotteau, exasperado, quis dizer alguma coisa a respeito da avidez do alto mundo bancário, da sua crueldade, da sua falsa filantropia; foi, porém, acometido de tão violenta dor que pôde apenas balbuciar algumas frases sobre a instituição do Banco da França, a que os Keller recorriam.

— Mas — disse Adolfo Keller — o Banco nunca fará um negócio que um simples banqueiro recusa.

— O Banco — disse Birotteau — sempre me deu a impressão de falhar em sua finalidade, desde que, ao publicar a conta dos seus lucros, se felicitou por não ter perdido mais que cem ou duzentos mil francos com o comércio parisiense. Ele é o tutor do comércio.

Adolfo pôs-se a rir, levantando-se com um gesto de homem entediado.

— Se o Banco se metesse a comanditar as firmas em dificuldades na praça mais patife e mais manhosa do mundo financeiro, pediria falência ao fim de um ano. Ele já tem bastante trabalho em se defender contra as emissões e os falsos títulos. Como poderia estudar ainda os negócios dos que querem que ele os ajude?

“Onde encontrarei os dez mil francos que me faltam para amanhã, sábado, dia 30?”, pensava Birotteau, ao passar pelo corredor.

Costuma-se pagar no dia 30, quando o dia 31 é feriado.

XI — UM AMIGO

Ao chegar ao portão, com os olhos banhados de lágrimas, o perfumista viu apenas um belo cavalo inglês suarento que fez parar, precisamente à porta, um dos mais lindos cabriolés que circulavam naquela época pelas ruas de Paris. Bem que gostaria de ser esmagado pelo cabriolé, pois assim teria morrido por acidente e a desordem dos seus negócios teria sido atribuída ao fato. Não reconheceu Du Tillet, que, esbelto e em elegante traje matinal, atirou as rédeas ao criado e uma capa ao lombo suado do cavalo de puro-sangue.

— Que acaso o trouxe aqui? — perguntou Du Tillet ao antigo patrão.

Du Tillet sabia-o muito bem: os Keller haviam pedido informações a Claparon, que, fiel às instruções de Du Tillet, demolira, na véspera, a reputação do perfumista. Embora subitamente contidas, as lágrimas do pobre comerciante falavam energicamente.

— Terá vindo pedir algum serviço a estes árabes — disse Du Tillet —, a estes estranguladores do comércio, que têm praticado golpes infames, como subir o preço do anil após tê-lo açambarcado, baixar o do arroz para forçar os possuidores a vendê-lo a fim de ficarem com tudo e dominarem o mercado, a estes cruéis piratas que não têm nem honra nem lei nem coração? Então não sabe de que são capazes? Eles lhe abrem um crédito quando o senhor tem um bom negócio e lho fecham quando o senhor estiver encaminhado, a fim de obrigá-lo a vender-lhes por baixo preço. O Havre, Bordeaux e Marseille podem contar-lhe belas coisas a respeito deles. A política serve-lhes para cobrir uma imensidade de sujeiras! Por isso, exploro-os sem escrúpulo! Vamos dar uma volta, meu caro Birotteau. José! Leve o meu cavalo, está muito quente. Que diabo! Mil escudos sempre são um capital.

E dirigiu-se para o bulevar.

— Então, patrão, pois o senhor foi meu patrão, precisa de dinheiro? Eles devem ter-lhe pedido garantias, os miseráveis! Mas eu o conheço, ofereço-lhe dinheiro mediante uma simples letra. Fiz dignamente a minha fortuna com trabalhos incríveis. Fui à Alemanha buscá-la! Agora posso contar-lhe: comprei créditos contra o rei com um abatimento de sessenta por cento, e naquela ocasião a sua caução me foi muito útil e eu sou muito grato! Se precisar de dez mil francos, disponha!

— Como! Du Tillet — exclamou César —, é verdade? Não está brincando comigo? Sim, estou um pouco apertado, mas é apenas por um momento...

— Eu sei, o caso Roguin — respodeu Du Tillet. — Eh! Também caí com dez mil francos, que o velho patife me pediu emprestados para fugir; mas a sra. Roguin mos restituirá, com o que lhe ficará. Aconselhei a pobre mulher a não cometer a asneira de dar sua fortuna para pagar dívidas feitas por uma rapariga. Seria bom se ela resgatasse tudo, mas como favorecer alguns credores em prejuízo dos outros? O senhor não é um Roguin, conheço-o — disse Du Tillet —, o senhor se suicidaria antes de me prejudicar num sou. Venha, estamos na Chaussée-d’Antin, suba comigo.

O aventureiro enriquecido deleitou-se em mostrar ao antigo patrão o apartamento em vez de levá-lo ao escritório e acompanhou-o lentamente a fim de que ele visse uma bela e suntuosa sala de jantar guarnecida de telas adquiridas na Alemanha, dois salões duma elegância e dum luxo que Birotteau até então só havia visto na casa do duque de Lenoncourt. Os olhos do burguês ficaram deslumbrados pelas douraduras, obras de arte, loucas fantasias, vasos preciosos, uma infinidade de detalhes que obscureciam completamente o luxo do apartamento de Constança; e, como sabia o preço da sua loucura, pensava: “Onde será que ele foi buscar tantos milhões?”.

Entrou num quarto de dormir diante do qual o da sua esposa ficava como o quarto de terceiro andar dum figurante fica para o palácio dum primeiro ator da Ópera. O teto, todo de cetim violeta, era realçado por dobras de cetim branco. Uma descida de cama de arminho desenhava-se sobre as cores violáceas dum tapete do Levante. Os móveis e os acessórios exibiam formas novas e dum requinte extravagante. O perfumista deteve-se diante duma maravilhosa pêndula com o Amor e a Psique que acabara de ser feita para um famoso banqueiro; Du Tillet conseguira dele o único exemplar existente além do do seu colega. Por fim, o antigo patrão e o antigo caixeiro chegaram a um gabinete de moço elegante, onde se respirava mais o amor que as finanças. Fora certamente a sra. Roguin quem oferecera, para agradecer os cuidados que ele tivera com a sua fortuna, um cortador de papéis de ouro lavrado, pesos de papéis em malaquite cinzelados, todos os caros enfeites de um luxo exagerado. No chão havia um tapete, um dos produtos mais ricos da Bélgica e que surpreendia tanto os olhos como os pés. Du Tillet fez sentar-se junto à lareira o pobre perfumista deslumbrado, confuso.

— Quer almoçar comigo?

Chamou. Apareceu um criado mais bem vestido do que Birotteau.

— Diga ao sr. Legras que suba; depois, vá chamar José, que está à porta do banco Keller, entre e diga ao sr. Adolfo Keller que, em vez de eu ir visitá-lo, esperá-lo-ei até a hora da Bolsa. E mande servir-me o almoço, depressa!

Essas frases deixaram o perfumista perplexo.

“Ele faz com que o temível Adolfo Keller venha à casa dele, chama-o como a um cão, o Du Tillet!”

Um tigre,[353] do tamanho dum punho, estendeu uma mesa tão delgada que Birotteau nem a vira e trouxe um patê de foie gras, uma garrafa de vinho de Bordeaux, todas essas coisas requintadas que não apareciam na casa de Birotteau mais de duas vezes por trimestre, nos grandes dias. Du Tillet deliciava-se. Seu ódio contra o único homem que tinha o direito de desprezá-lo manifestava-se tão calorosamente que Birotteau lhe fez experimentar a profunda sensação que causaria o espetáculo dum carneiro se defendendo contra um leão. Passou-lhe pelo coração uma ideia generosa: indagava-se se a vingança já não se consumara e flutuava entre as inspirações da clemência e as do ódio adormecido.

“Posso anular comercialmente este homem”, pensava, “tenho direito de vida e morte sobre ele, sobre sua mulher, que me enxotou de casa, sobre sua filha, cuja mão me pareceu, tempos atrás, toda uma fortuna. Tenho o dinheiro de que ele precisa, contentemo-nos, portanto, a deixar este pobre idiota nadar amarrado à corda que lhe estenderei.”

As pessoas honestas são privadas de tato, não medem o bem que fazem, porque para elas tudo é dado, sem rodeios. Birotteau consumou sua desgraça, irritou o leão, feriu-o no coração sem o saber, tornou-o implacável com uma palavra, um elogio, uma expressão virtuosa pela franqueza própria da probidade.

Quando o caixa veio, Du Tillet indicou-lhe César.

— Sr. Legras, traga-me dez mil francos e uma letra dessa importância, feita à minha ordem e a noventa dias, para este senhor, que é o sr. Birotteau... o senhor conhece, não é?... assinar.

Du Tillet serviu o patê, encheu um copo de vinho de Bordeaux para o perfumista, que, vendo-se salvo, se entregava a risadas convulsas; brincava com a corrente do relógio e só levava o garfo à boca quando seu antigo empregado lhe dizia: “Não está comendo?”. Birotteau desvendava, assim, a profundidade do abismo a que o lançara a mão de Du Tillet, de onde o retirara e onde ele poderia tornar a lançá-lo. Quando o caixa voltou e, após ter assinado a letra, César sentiu as duas notas no bolso, não se conteve mais. Um momento antes, seu bairro e o Banco iam saber que ele não pagava as dívidas e ele ia ter de confessar sua ruína à esposa! Agora, tudo estava reparado! A ventura da libertação igualava-se, em intensidade, às torturas do desastre. Os olhos do pobre homem umedeceram-se contra a sua vontade.

— Então, que é que tem, meu caro patrão? — perguntou Du Tillet. — Não faria amanhã por mim o que hoje estou fazendo pelo senhor? Não lhe parece muito simples isto?

— Du Tillet — disse com ênfase e gravidade o bom homem, levantando-se e segurando a mão do antigo caixeiro —, devolvo-te toda a minha estima.

Du Tillet foi tão fortemente atingido no meio da sua prosperidade que corou.

— Como! Eu a perdera? — disse.

— Perder... precisamente, não — disse o perfumista, fulminado pela tolice que dissera. — É que me contaram coisas a respeito da sua ligação com a sra. Roguin. Que diabo! Tomar a mulher de outro...

“Estás falando demais, meu velho”, disse consigo Du Tillet.

Ao dizer-se esta frase, voltava ao projeto de abater aquela virtude, de pisoteá-la, de tornar desprezível na praça de Paris o homem que o apanhara com a boca na botija. Todos os ódios, políticos ou privados, de mulher para mulher, de homem para homem, não têm outra origem senão uma surpresa desse gênero. Não se odeia por interesses lesados, por uma ofensa, nem mesmo por uma bofetada; tudo é reparável. Mas ser apanhado em flagrante delito de infâmia!... O duelo que se segue entre o criminoso e a testemunha do crime só pode terminar pela morte de um ou de outro.

— Oh! A sra. Roguin — disse Du Tillet com um ar brincalhão. — Mas isso não é, pelo contrário, uma pluma no boné dum rapaz? Compreendo o que o senhor pensa, meu caro patrão: devem ter-lhe dito que ela me emprestou dinheiro. Pois bem, muito pelo contrário, eu é que lhe restaurei a fortuna, singularmente comprometida nos negócios do marido. A origem da minha fortuna é limpa, acabo de descrevê-la ao senhor. Eu não tinha nada, o senhor sabe! Os rapazes veem-se, frequentemente, em necessidades terríveis. A gente pode deixar-se arrastar ao fundo da miséria. Mas, se fazemos, como a República, empréstimos forçados e os pagamos, ficamos mais honestos do que a França.

— É isto mesmo — disse Birotteau. — Meu filho... Deus... Não foi Voltaire quem disse: “Faz do arrependimento uma virtude dos mortais”?[354]

— Contanto que... — replicou Du Tillet, novamente atingido por essa citação — contanto que a gente não fuja com a fortuna do próximo, infamemente, vilmente, como, por exemplo, se o senhor viesse a falir antes de três meses e os meus dez mil francos ficassem perdidos...

— Eu, falir! — disse Birotteau, que bebera três copos de vinho e estava embriagado de contentamento. — Todos conhecem a minha opinião sobre a falência. A falência é a morte dum comerciante, e eu morreria!

— À sua saúde! — disse Du Tillet.

— À tua prosperidade! — retribuiu o perfumista. — Por que não compras mais na minha casa?

— Francamente — disse Du Tillet —, confesso-o, tenho medo da sra. Birotteau, ela continua a causar-me uma impressão!... Bem, se o senhor não tivesse sido meu patrão, palavra que eu...

— Ora, não és o primeiro que a acha bonita e muitos a têm desejado, mas ela gosta de mim! Bem, Du Tillet — acrescentou Birotteau —, meu amigo, não faças as coisas pela metade.

— Como?

Birotteau expôs o negócio dos terrenos a Du Tillet, que arregalou os olhos e cumprimentou o perfumista pela sua penetração, pela sua previsão, elogiando o negócio.

— Bem, fico muito satisfeito com a tua aprovação; passas por uma das mais fortes cabeças do mundo bancário, Du Tillet! Meu caro menino, bem podes conseguir-me um crédito no Banco da França a fim de que eu possa esperar os resultados do Óleo Cefálico.

— Posso encaminhá-lo ao banco Nucingen — respondeu Du Tillet, decidido a fazer sua vítima dançar todas as figuras da contradança dos falidos.

Ferdinando dirigiu-se ao escritório para redigir a seguinte carta:

 

Ao sr. barão de Nucingen,

 

Paris

 

Meu caro barão,

O portador desta carta é o sr. César Birotteau, suplente do juiz distrital do segundo distrito e um dos industriais mais conceituados da perfumaria parisiense; ele deseja entrar em relações com o senhor; atenda-o com toda a solicitude em tudo quanto ele lhe pedir e pelo que lhe fizer muito obrigará

Seu amigo

f. du tillet

 

Du Tillet não colocou o ponto em cima do i do seu nome. Para aqueles com quem ele tinha negócios, esse erro voluntário era um sinal convencional. As mais ardentes recomendações, as calorosas e favoráveis instâncias de sua carta não valiam nada nesse caso. Podia dar-se o caso de Du Tillet não ter podido recusar uma carta na qual os pontos de exclamação suplicavam, na qual ele se colocava de joelhos, e então ela poderia ser considerada como não escrita. Ao ver o i sem ponto, seu amigo iludia o solicitador com promessas vãs. Muitas pessoas da alta sociedade, e das mais importantes, são assim engambeladas como crianças pelos homens de negócios, pelos banqueiros, pelos advogados, que têm, todos, uma dupla assinatura, uma morta e outra viva. Mesmo os mais espertos são apanhados. Para descobrir essa astúcia, é preciso ter experimentado o duplo efeito duma carta calorosa e duma carta fria.[355]

— Você me salva, Du Tillet! — disse César, ao ler a carta.

— Meu Deus — disse Du Tillet —, vá buscar o dinheiro. Nucingen, ao ler o meu bilhete, lhe dará quanto o senhor quiser. Infelizmente, meu capital está comprometido por alguns dias: se não fosse isto, eu não o enviaria ao príncipe do alto mundo bancário, pois os Keller são apenas uns pigmeus comparados ao barão de Nucingen. É Law[356] reencarnado em Nucingen. Com a minha carta o senhor estará garantido até 15 de janeiro, e depois veremos. Nucingen e eu somos os melhores amigos do mundo, ele não haveria de querer desagradar-me nem por um milhão.

“Isto é o mesmo que um aval”, pensou Birotteau, que saiu cheio de gratidão por Du Tillet. “Bem, um benefício nunca fica perdido.”

E seguiu filosofando. Um pensamento, contudo, amargurava sua felicidade. Conseguira, durante alguns dias, impedir que a esposa examinasse os livros, confiara o caixa a Celestino, ajudando-o, e assim conseguira que a esposa e a filha desfrutassem calmamente o belo apartamento que lhes arranjara, mas, esgotadas essas primeiras alegrias, a sra. Birotteau preferiria morrer a renunciar a ver com os próprios olhos os detalhes da casa, a mandar em tudo. Birotteau estava no fim do seu latim; empregara todos os artifícios para ocultar à esposa o conhecimento dos sintomas das suas aperturas. Constança reprovara energicamente a remessa das contas, repreendera os caixeiros e acusara Celestino de querer arruinar sua casa, certa de que a ideia fora exclusivamente do empregado. Celestino, por ordem de Birotteau, deixara-se censurar. Aos olhos dos empregados, a sra. César governava o perfumista, pois é possível enganar o público, mas não os criados da casa, a respeito de quem tem a verdadeira superioridade num lar. Birotteau via-se obrigado a confessar sua situação à esposa, pois a conta com Du Tillet exigiria uma justificação. Ao voltar para casa, não foi sem estremecer que Birotteau viu Constança ao balcão, verificando o livro de vencimentos e fazendo, sem dúvida, a conta do caixa.

— Com que é que vais pagar amanhã? — perguntou-lhe ao ouvido, quando ele se sentou a seu lado.

— Com dinheiro — respondeu, tirando as notas do bolso e fazendo um sinal a Celestino para que as guardasse.

— Mas de onde é que veio isso?

— Logo à noite te contarei. Celestino, anota, para o fim de março, uma letra de dez mil francos, à ordem de Du Tillet.

— Du Tillet! — repetiu Constança, aterrorizada.

— Vou visitar Popinot — disse César. — Fiz mal em não ter ido visitá-lo até agora. O óleo está saindo?

— As trezentas garrafas que ele nos mandou já foram vendidas — respondeu Celestino.

— Birotteau, não saias, preciso falar contigo — disse Constança, segurando César pelo braço e arrastando-o para o quarto com uma precipitação que em qualquer outra circunstância teria provocado o riso. — Du Tillet! — disse ela, quando ficou a sós com o marido e após ter-se certificado de que lá só estava Cesarina. — Du Tillet, que nos roubou mil escudos! Estás fazendo negócios com Du Tillet, um monstro... que queria seduzir-me — disse-lhe ao ouvido.

— Loucura da mocidade — disse Birotteau, tornado subitamente forte.

— Escuta, Birotteau, estás diferente, não vais mais à fábrica. Há alguma coisa, sinto-o! Vais contar-me, quero saber tudo.

— Pois bem — disse Birotteau —, quase ficamos arruinados, esta manhã mesmo já o estávamos, mas agora tudo está reparado.

E narrou a horrível história da quinzena.

— Aí está a causa da tua doença! — exclamou Constança.

— Sim, mamãe — interveio Cesarina. — Olha, papai foi muito corajoso. Tudo quanto desejo é ser amada como ele te ama. Ele só pensava no pesar que te causaria.

— Meu sonho se realizou — disse a pobre mulher, atirando-se à sua poltrona junto à lareira, pálida, lívida, apavorada. — Previ tudo. E te disse, naquela noite fatal, no nosso antigo quarto que demoliste, que só nos restariam os olhos para chorar. Minha pobre Cesarina! Eu...

— Ora, ora! — exclamou Birotteau. — Não vais tirar-me a coragem de que tanto preciso!

— Perdão, meu amigo — disse Constança, tomando a mão de César e apertando-a com uma ternura que penetrou até o coração do pobre homem. — Fiz mal; já que a desgraça chegou, serei muda, resignada e cheia de força. Não, nunca hás de ouvir uma queixa.

Atirou-se aos braços de Birotteau e disse, chorando:

— Coragem, meu amigo, coragem! Eu a terei por dois, se for preciso.

— O meu óleo, mulher, o meu óleo nos salvará.

— Que Deus nos proteja! — disse Constança.

— Então Anselmo não amparou meu pai? — perguntou Cesarina.

— Vou visitá-lo — disse César, profundamente comovido pela pungente inflexão de voz da mulher, que ele ainda não conhecia completamente, mesmo depois de dezenove anos. — Constança, não tenhas medo. Toma, lê a carta de Du Tillet ao sr. de Nucingen, estamos certos de conseguir um crédito. Daqui até lá terei ganho o processo. Além disso — acrescentou, cometendo uma mentira necessária —, ainda temos o tio Pillerault; basta que tenhamos coragem.

— Se fosse só isto! — disse Constança, sorrindo.

Birotteau, aliviado de um grande peso, pôs-se a andar como um homem posto em liberdade, embora experimentasse intimamente esse indefinível esgotamento que se segue às lutas morais excessivas, nas quais se gasta mais fluido nervoso, mais vontade do que se pode produzir diariamente e nas quais se saca, por assim dizer, contra o capital da existência. Birotteau já estava envelhecido.

A casa A. Popinot, à Rue des Cinq-Diamants, mudara muito nos dois últimos meses. A loja fora pintada de novo. As prateleiras, destacando-se ao fundo, cheias de garrafas, alegrariam o olhar de qualquer comerciante que conhece os sintomas da prosperidade. O assoalho da loja estava coberto de papel de embalagem. O depósito continha pequenos tonéis de diferentes óleos cuja representação fora conseguida para Popinot pelo dedicado Gaudissart. Os livros, a contabilidade e o caixa ficavam por cima da loja e do depósito. Uma velha cozinheira fazia o serviço da casa para os três empregados e Popinot. Popinot, confinado a um canto da loja dentro de um escritório envidraçado, estava com um avental de sarja, de duplas mangas de fazenda verde, a pena atrás da orelha, quando não estava mergulhado num montão de papéis, como no momento em que chegou Birotteau, que o encontrou despachando a correspondência, cheia de contratos e pedidos.

A estas palavras: “Que tal, meu rapaz?”, pronunciadas pelo antigo patrão, levantou a cabeça, fechou o cubículo a chave e aproximou-se com ar jovial, com a ponta do nariz avermelhada, pois não tinha lareira na loja, cuja porta se conservava aberta.

— Estava com medo de que o senhor nunca viesse cá — respondeu Popinot com uma expressão respeitosa.

Os empregados acorreram para ver o grande homem da perfumaria, o suplente condecorado, o sócio do patrão. Essas mudas homenagens lisonjearam o perfumista. Birotteau, ainda há pouco tão pequeno no estabelecimento dos Keller, sentiu necessidade de imitá-los: coçou o queixo, deu um salto com o auxílio dos calcanhares, dizendo banalidades.

— Então, meu amigo, madrugam por aqui? — perguntou-lhe.

— Não, nem sequer nos deitamos... sempre... — disse Popinot. — Precisamos agarrar-nos ao sucesso...

— Então, que é que eu te dizia? O meu óleo é uma fortuna.

— Sim, senhor, mas os meios de execução valem alguma coisa: engastei bem o seu diamante.

— A propósito — disse o perfumista —, como vamos? Há lucros?

— Ao fim de um mês! — exclamou Popinot. — O senhor já está pensando nisso? O meu amigo Gaudissart está em viagem apenas há vinte e cinco dias e tomou uma diligência sem me dizer nada. Oh! Ele é muito dedicado. Ficaremos devendo muito ao meu tio. Os jornais — disse ao ouvido de Birotteau — vão custar-nos doze mil francos.

— Os jornais!... — exclamou o suplente.

— O senhor não os leu?

— Não.

— Então não sabe de nada — disse Popinot. — Vinte mil francos de cartazes, molduras e impressos!... Cem mil garrafas compradas!... Ah! Tudo é sacrifício, por enquanto. A fabricação está sendo feita em grande escala. Se o senhor tivesse vindo até este bairro, onde tenho passado muitas vezes a noite, teria visto o pequeno quebra-nozes de minha invenção, que não é nada mau. Por minha conta, fiz nestes últimos cinco dias três mil francos somente em comissões sobre óleos de drogaria.

— Que talento! — disse Birotteau, segurando os cabelos de Popinot e sacudindo-os como se Popinot fosse um menino. — Bem o adivinhei.

Diversas pessoas entraram na loja.

— No domingo, vamos jantar na casa da tua tia Ragon — disse Birotteau, deixando Popinot entregue aos negócios ao perceber que a carne fresca que fora cheirar ainda não estava cortada.

“Isto é extraordinário! Um caixeiro torna-se comerciante em vinte e quatro horas”, pensava Birotteau, tão espantado do êxito e do garbo de Popinot como do luxo de Du Tillet. “Anselmo assumiu um arzinho ofendido quando lhe pus a mão na cabeça, como se já fosse Francisco Keller.”

Birotteau não se dera conta de que os caixeiros o estavam observando e que um patrão precisa conservar a dignidade na loja. Lá, como na casa de Du Tillet, o bom homem cometera uma tolice por bondade de coração e por não saber conter um sentimento sincero, burguesmente exteriorizado. César teria ofendido a qualquer outro homem que não fosse Anselmo.

O jantar do domingo na casa dos Ragon ia ser a última alegria dos dezenove anos felizes do lar de Birotteau, alegria completa, aliás. Ragon morava à Rue du Petit-Bourbon-Saint-Sulpice, num segundo andar, numa casa antiga de aparência digna, num velho apartamento de tremós onde dançavam as poltronas em cestos e onde pastavam os carneiros desse século xviii do qual os Ragon representavam tão bem a burguesia grave e austera, de costumes cômicos, ideias respeitosas para com a nobreza, dedicada ao soberano e à Igreja. Os móveis, as pêndulas, a roupa-branca, a coberta de mesa, tudo parecia patriarcal, de formas novas pela própria velhice. O salão, forrado de velho damasco, ornado de cortinas de brocatel, ostentava amplas poltronas, secretariazinhas de senhora, um soberbo Popinot, almotacel de Sancerre, pintado por Latour, o pai da sra. Ragon, um camarada muito hábil em pintura e que sorria em sua glória como um plebeu enriquecido. Em casa a sra. Ragon se completava por um cachorrinho inglês da raça dos de Carlos ii, que dava uma impressão maravilhosa em cima do seu sofazinho duro, de estilo rococó, que certamente nunca desempenhara o papel do sofá de Crébillon.[357] Entre todas as suas virtudes, os Ragon se recomendavam pela conservação de velhos vinhos, que já haviam atingido um perfeito despojamento, e pela posse de alguns licores da sra. Anfoux,[358] que pessoas suficientemente teimosas para amar (sem esperança, segundo se dizia) a bela sra. Ragon lhe haviam trazido das Ilhas. Assim, seus jantares eram muito apreciados! Uma velha cozinheira, Janete, servia os dois velhos com uma dedicação cega, seria capaz de roubar frutas para fazer-lhes doces! Em vez de colocar o dinheiro na poupança, empregava-o prudentemente na loteria, esperando levar um dia o grande prêmio para os patrões. No domingo em que os patrões recebiam visitas, ela ficava, a despeito dos seus sessenta anos, na cozinha para fiscalizar os pratos e na mesa para servir com uma agilidade que teria batido a srta. Contat[359] no seu papel de Suzana em O casamento de Fígaro.

Os convidados eram o juiz Popinot, o tio Pillerault, Anselmo, os três Birotteau, os três Matifat e o padre Loraux. A sra. Matifat, que ainda recentemente comparecera ao baile com um turbante, foi com um vestido de veludo azul, grossas meias de algodão e sapatos de pele de cabra, luvas de camelo bordadas de pelúcia verde e um chapéu de pano cor-de-rosa enfeitado. As dez pessoas reuniram-se às cinco horas. Os velhos Ragon pediam aos convivas que fossem pontuais. Quando se convidava o digno casal, tinha-se o cuidado de servir o jantar a essa hora, pois aqueles estômagos de setenta anos não se adaptavam aos novos horários introduzidos pela moda.

Cesarina sabia que a sra. Ragon a colocaria ao lado de Anselmo; todas as mulheres, mesmo as devotas e as ingênuas, são entendidas em questões de amor. A filha do perfumista vestira-se, portanto, de maneira a transtornar a cabeça de Popinot. Constança, que com grande pesar renunciara ao tabelião, que desempenhava, na sua imaginação, o papel dum príncipe hereditário, contribuiu, não sem amargas reflexões, àquela arrumação. A previdente mãe abaixou o pudico fichu de gaze para descobrir um pouco os ombros de Cesarina e deixar à mostra a implantação do pescoço, que era duma notável elegância. A blusa de estilo grego, trespassada da direita para a esquerda, com cinco pregas, podia entreabrir-se e mostrar deliciosos contornos. O vestido de merino cinza-escuro com falbalás bordados de enfeites verdes desenhava-lhe nitidamente a cintura, que nunca pareceu tão fina e tão flexível. As orelhas estavam ornadas de brincos de ouro lavrado. Os cabelos, erguidos à chinesa, permitiam ao olhar surpreender as suaves frescuras de uma pele matizada de veias pelas quais circulava a vida mais pura. Cesarina estava, enfim, tão sedutoramente bela que a sra. Matifat não pôde deixar de confessá-lo, sem perceber que a mãe e a filha haviam compreendido a necessidade de fascinar o jovem Popinot.

Nem Birotteau nem a esposa nem a sra. Matifat, ninguém perturbou a doce palestra que as duas crianças inflamadas de amor mantiveram em voz baixa num vão de janela onde soprava o vento frio do inverno. Além disso, a conversa das pessoas grandes animou-se quando o juiz Popinot deixou escapar uma palavra sobre a fuga de Roguin, observando que esse era o segundo tabelião que cometia uma falta e que tal crime era desconhecido antigamente. A sra. Ragon, ao ouvir falar em Roguin, pisou no pé do seu irmão, como Pillerault abafara a voz do juiz, e ambos mostraram-lhe a sra. Birotteau.

— Sei de tudo — disse Constança aos amigos, com uma voz ao mesmo tempo suave e compungida.

— Então — disse a sra. Matifat a Birottteau, que baixara humildemente a cabeça —, quanto foi que ele lhes levou? A dar ouvidos aos falatórios, o senhor estaria arruinado.

— Ele tinha duzentos mil francos meus. Quanto aos quarenta mil que ele me fez emprestar imaginariamente por um dos seus clientes cujo dinheiro fora consumido por ele, estamos em processo.

— O senhor vai assistir ao julgamento esta semana — disse Popinot. — Achei que o senhor não me ficaria querendo mal por eu explicar a sua situação ao senhor presidente; ele ordenou a remessa dos papéis de Roguin à câmara do conselho, a fim de examinar desde que época o dinheiro do emprestador fora desviado e as provas do fato alegado por Derville, que advogou pessoalmente para poupar-lhe despesas.

— Ganharemos? — perguntou a sra. Birotteau.

— Não sei — respondeu Popinot. — Embora eu pertença à câmara à qual foi entregue o caso, eu me absterei de deliberar, mesmo que seja chamado.

— Mas pode haver dúvida sobre um processo tão simples? — disse Pillerault. — O documento não deve fazer menção da entrega do dinheiro e os tabeliães não precisam declarar terem visto o emprestador entregá-lo ao solicitador do empréstimo? Roguin iria para as galés, se tivesse caído nas mãos da Justiça.

— Segundo penso — respondeu o juiz —, o emprestador deve recorrer contra Roguin sobre o valor do cartório e da caução; mas, mesmo em casos ainda mais claros, na Corte real, às vezes os conselheiros ficam seis a seis.

— Como, senhorita, então o sr. Roguin fugiu? — disse Popinot, ao ouvir, finalmente, o que diziam. — O sr. César não me disse nada, a mim que daria o meu sangue por ele...

Cesarina notou que toda a família cabia nesse por ele, pois, mesmo que a inocente moça não tivesse percebido a inflexão da voz, não se teria podido enganar com o olhar que a envolveu numa chama de púrpura.

— Eu bem o sabia e lhe dizia, mas ele escondeu tudo da mamãe e só se confiou a mim.

— Você lhe falou em mim, nesta circunstância — disse Popinot. — Você lê no meu coração, mas será que lê tudo?

— Talvez.

— Fico muito contente — disse Popinot. — Se você quiser tirar-me todo o receio, daqui a um ano estarei tão rico que seu pai não mais me receberá tão mal como quando lhe falei no nosso casamento. Não vou dormir mais de cinco horas por noite...

— Não vá adoecer — disse Cesarina com uma inimitável inflexão de voz, dirigindo a Popinot um olhar no qual se lia todo o seu pensamento.

— Minha mulher — disse César, ao sair da mesa —, acho que esses dois moços se amam.

— Bem, tanto melhor — disse Constança com um tom de voz grave —, minha filha será esposa dum homem inteligente e enérgico. O talento é o mais belo dote dum noivo.

Apressou-se em deixar o salão e foi para o quarto da sra. Ragon. César pronunciara, durante o jantar, algumas frases que haviam feito o juiz e Pillerault sorrirem, tal a ignorância que revelavam e que mostraram à infeliz mulher o quanto seu pobre marido se achava fraco para lutar contra o infortúnio. Constança tinha lágrimas no coração, desconfiava instintivamente de Du Tillet, pois todas as mães sabem o Timeo Danaos et dona ferentes,[360] mesmo sem saber latim. Chorou nos braços da filha e da sra. Ragon sem querer confessar a causa de sua aflição.

— É nervosismo — disse ela.

O resto do serão foi dedicado aos jogos de cartas, pelos velhos, e pelos moços a esses deliciosos joguinhos inocentes, porque encobrem as inocentes malícias dos amores burgueses. Os Matifat tomaram parte nos joguinhos.

— César — disse Constança ao voltar —, vai já no dia 8 à casa do sr. barão de Nucingen, a fim de ficares certo de poder pagar teu vencimento do dia 15 com bastante antecedência. Se te sucedesse algum contratempo, seria dum dia para o outro que irias encontrar meios de pagar?

— Irei, minha mulher — respondeu César, que apertou a mão de Constança e a da filha, acrescentando: — Minhas queridas gatinhas brancas, dei-lhes um triste presente de festas!

Na obscuridade do fiacre, as duas mulheres, que não podiam ver o pobre perfumista, sentiram lágrimas quentes cair sobre as suas mãos.

— Tem confiança, meu amigo — disse Constança.

— Tudo irá bem, papai; o sr. Anselmo Popinot me disse que é capaz de derramar seu sangue por ti.

— Por mim — replicou César — e pela família, não é? — disse, assumindo um ar alegre.

Cesarina apertou a mão do pai como para dizer-lhe que Anselmo era seu noivo.

Durante os três primeiros dias do ano, foram enviadas duzentas cartas à casa de Birotteau. Essa afluência de falsas amizades, esses testemunhos de prestígio são horríveis para quem se vê arrastado pela correnteza da desgraça. Birotteau foi três vezes, em vão, ao palácio do famoso banqueiro, o barão de Nucingen. O começo do ano e as festas do momento justificavam perfeitamente a ausência do financista. Na última vez, o perfumista penetrou até o escritório do banqueiro, onde seu primeiro empregado, um alemão, lhe disse que o sr. de Nucingen, que voltara às cinco horas dum baile dado pelos Keller, não poderia receber às nove e meia. Birotteau soube interessar no caso o primeiro empregado, com quem ficou conversando durante meia hora. Nesse mesmo dia, aquele primeiro-ministro do banco Nucingen lhe escreveu anunciando que o barão o receberia no dia seguinte, 12, ao meio-dia. Embora cada hora lhe trouxesse uma gota de absinto, o dia passou com espantosa rapidez. O perfumista chegou em fiacre e desceu a uma curta distância do palácio, cujo pátio estava cheio de carruagens. O pobre homem sentiu um grande aperto no coração ao ver os esplendores da famosa casa.

“E, contudo, já liquidou duas vezes”, pensou, enquanto subia a soberba escadaria guarnecida de flores e atravessava os suntuosos apartamentos pelos quais a baronesa Delfina de Nucingen[361] se tornara célebre.

A baronesa tinha pretensão de rivalizar com as mais ricas casas do Faubourg Saint-Germain onde ainda não era recebida. O barão estava almoçando com a esposa. Apesar do grande número de pessoas que o esperavam nos escritórios, ele disse que os amigos de Du Tillet podiam entrar a qualquer hora. Birotteau estremeceu de esperança ao ver a mudança operada pela frase do barão na fisionomia inicialmente insolente do criado.

— Pertoe-me, querrita — disse o barão à esposa, levantando-se e fazendo uma pequena inclinação de cabeça a Birotteau —, este zinior é um pom realista e amigo muito íntime te Ti Tillet. Além tisso, é suplente to secunto tistrito e tá pailes tuma magnifizência aciática e zertamente terás crante prazer en conhecê-lo.

— Mas terei muita honra em ir tomar lições na casa da sra. Birotteau, pois Ferdinando...

“Bem”, pensou o perfumista, “ela o chama de Ferdinando, simplesmente!”

— ... nos falou naquele baile com uma admiração que é tanto mais precisa porque ele não admira nada. Ferdinando é um crítico severo, tudo deve ter sido perfeito. Será que o senhor dará outro baile, em breve? — perguntou ela, com o ar mais amável.

— Minha senhora, gente pobre como nós diverte-se raramente — respondeu o perfumista, ignorando se aquilo era uma brincadeira ou um elogio banal.

— O zinior Crendot tirrichiu a restauraçon tos seus apartementos — disse o barão.

— Ah! Grindot! Um bonito arquitetozinho que acaba de voltar de Roma? — disse Delfina de Nucingen. — Gostei muito dele, ele fez uns desenhos deliciosos no meu álbum.

Nenhum conspirador torturado pelo questionário em Veneza se sentiu em pior situação nos instrumentos de tortura do que Birotteau se sentia nos seus trajes. Via uma expressão zombeteira em todas as frases.

— Nós tampém tamos uns pailezínios — disse o barão, dirigindo um olhar inquiridor ao perfumista. — Come fê, tuto o munto costa tisso!

— O sr. Birotteau quer almoçar sem cerimônia conosco? — disse Delfina, mostrando a mesa suntuosamente servida.

— Senhora baronesa, vim tratar de negócios e estou...

— Zim! — disse o barão. — Minha ziniora, permite que falemos te necócios?

Delfina fez um pequeno gesto de assentimento, dizendo ao barão:

— Vai comprar perfumes?

O barão sacudiu os ombros e voltou para o desesperado César.

— Ti Tillet tem o maior interesse pelo zinior — disse.

“Finalmente”, pensou o pobre negociante, “chegamos à questão.”

— Com a sua carta, o zinior tem no meu panco um crétito só limitado pelos limites ta mínia própria fortuna...

O bálsamo hilariante contido na água oferecida pelo anjo a Agar[362] no deserto devia ser semelhante ao rocio que essas palavras atrapalhadas derramaram nas veias do perfumista. O astuto barão, para ter motivos de voltar atrás nas suas palavras bem calculadas e mal-entendidas, conservara a horrível pronúncia dos judeus alemães.

— E terá um conte corrente. Eis como proceteremos — disse com uma simplicidade alsaciana o bom, o venerável e grande financista.

Birotteau não duvidou de mais nada, era comerciante e sabia que os que não estão dispostos a prestar um serviço nunca entram nos detalhes da execução.

— Non preziso tizer-lhe que tanto para os crantes come para os pequenes o panco ecsige tres assinatures. Assim, o zinior fará as letras ao ordem to nosso amigo Ti Tillet, que no mesme tia as inviará com meu assinature ao panco, e às quatre horas o zinior terá o montante tas letras que tiver assinato te maniã. Non quero comisson nem qualquer outro fantachem, pois terei o pracer de ser-lhe acratável... Mas com uma contiçon! — disse, aflorando o nariz com o indicador esquerdo, num gesto de inimitável malícia.

— Senhor barão, concedo-a de antemão — disse Birotteau, que pensou que se tratasse de alguma participação nos lucros.

— É uma contiçon a que tou a maior importance, pois quero que a ziniora Nucindguene tome, como tisse, lizões ta ziniora Pirotô.

— Por favor, senhor barão, não zombe de mim.

— Zinior Pirotô — disse o financista com um ar sério —, está compinato, o zinior nos confitará ao zeu prócsimo paile. Minha mulher é infechosa, quer fer os zeus apartamentes, que totos elochiam muito.

— Senhor barão.

— Oh! Se o zinior nos recusa, nata feito! O zinior está gom crante prestíchio. Zei que o prefeito do Sena prometeu ir a zua casa.

— Senhor barão!

— O zinior teve no paile La Pilartière, um chentil-omem ta Câmara, pom fenteiano, e também foi ferito... em Saint-Roch...

— A 13 de vendemiário, senhor barão.

— E tampém o zinior Te Lassépète, com o zinior Fauquelaine, ta Acatemia...

— Senhor barão!

— Non zecha tan motesto, zinior suplente, eu zoube que o rei tisse que o zeu paile...

— O rei? — perguntou Birotteau, que não pôde saber mais nada.

Entrou familiarmente no apartamento um rapaz cujos passos, reconhecidos pela bela Delfina de Nucingen, a fizeram corar intensamente.

— Pom tia, meu caro Te Marsay — disse o barão de Nucingen —, fique no seu lucar; tisseram-me que há muita chente no meu escritório. E zei por quê! As minas te Wortschine eston tando tuas vezes zeu capital em rentas! Recebi as contes! A ziniora tem zem mil francos te rentes a mais, ziniora ti Nucindguene. Poterá comprar fantacias à fontate para ficar ponita, come se precizasse telas.

— Deus do céu! Os Ragon venderam as suas ações! — exclamou Birotteau.

— Quem são esses senhores? — perguntou o jovem elegante, sorrindo.

— Ólia — disse o sr. de Nucingen, voltando-se, pois já chegara à porta —, parece-me que essas pessoas... Te Marsay, este é o zinior Pirotô, zeu perfumiste, que tá pailes tuma magnifizência aciática e que o rei contecorou...

De Marsay tomou a luneta e disse:

— Ah! é mesmo, bem que a fisionomia não me era desconhecida. Vai então perfumar os seus negócios com algum virtuoso cosmético, untá-los com óleo?...

— Ah! Zim, esses Racon — acrescentou o barão, fazendo uma careta de descontentamento — tinham um conte no meu panco, eu lhes tei os meios te facer uma fortune, mas eles non quiceram esperar nem um tia mais.

— Senhor barão! — exclamou Birotteau.

O bom homem estava achando o seu negócio extremamente obscuro e, sem cumprimentar a baronesa nem De Marsay, correu atrás do banqueiro. O sr. de Nucingen já estava no primeiro degrau da escada e o perfumista o alcançou ao fim dela quando ele já ia entrando no escritório. Ao abrir a porta, o sr. de Nucingen viu um gesto desesperado da pobre criatura que se sentia afundar num abismo e disse-lhe:

— Pem, está compinato, non é? Fá falar com Ti Tillet e arranche tuto gom ele.

Birotteau pensou que De Marsay tivesse algum domínio sobre o barão, tornou a subir a escada com a rapidez duma andorinha e entrou na sala de jantar onde ainda se deviam encontrar a baronesa e De Marsay: ele deixara Delfina esperando o seu café com creme. Viu, realmente, o café servido, mas a baronesa e o jovem elegante haviam desaparecido. O criado sorriu diante do espanto do perfumista, que desceu lentamente a escada.

César correu à casa de Du Tillet, que, segundo lhe disseram, estava no campo, na casa da sra. Roguin. O perfumista tomou um cabriolé e pagou para ser conduzido tão rapidamente como pela posta a Nogent-sur-Marne. Em Nogent-sur-Marne o zelador da casa informou ao perfumista que o senhor e a senhora haviam voltado para Paris. Birotteau regressou aniquilado.

Quando narrou a excursão à esposa e à filha, ficou pasmo de ver a sua Constança, ordinariamente empoleirada como uma ave de mau agouro sobre a menor dificuldade comercial, dar-lhe as mais doces consolações e afirmar-lhe que tudo acabaria bem.

No dia seguinte, Birotteau dirigiu-se à rua de Du Tillet muito cedo, às sete horas, e lá ficou à espera. Pediu ao porteiro da casa de Du Tillet que o levasse à presença do camareiro de Du Tillet e para isso meteu-lhe dez francos na mão. César obteve a graça de falar com o camareiro de Du Tillet e pediu-lhe que o levasse para junto de Du Tillet logo que ele pudesse receber, e meteu duas moedas de ouro na mão do camareiro de Du Tillet. Esses pequenos sacrifícios e essas grandes humilhações, comuns aos cortesãos e aos solicitadores, permitiram-lhe atingir o objetivo. Às oito e meia, enquanto seu antigo caixeiro enfiava um chambre e estremunhava, bocejava, espreguiçava pedindo perdão ao antigo patrão, Birotteau viu-se face a face com o leão sedento de vingança no qual via o único amigo.

— Esteja à vontade — disse Birotteau.

— Que quer, meu bom César? — perguntou Du Tillet.

César transmitiu, não sem terríveis palpitações, a resposta e as exigências do barão de Nucingen à desatenção de Du Tillet, que o escutava procurando o fole e repreendendo o camareiro pela inabilidade com que ele estava acendendo a lareira.

O camareiro estava ouvindo, César não o percebeu e, finalmente, quando o viu, interrompeu-se confuso, para recomeçar à esporada que lhe deu Du Tillet.

— Continue, estou ouvindo — disse o banqueiro distraído.

O bom homem estava com a camisa molhada. Seu suor ficou gelado quando Du Tillet dirigiu o olhar fixo para ele, mostrando-lhe as pupilas prateadas com listras douradas e penetrando-lhe até o coração com um clarão diabólico.

— Meu caro patrão, se o Banco recusou as letras que o senhor emitiu, pela casa Claparon, a Gigonnet, sem garantia, a culpa é minha? Como é que o senhor, antigo juiz consular, comete uma tolice destas? Sou, acima de tudo, banqueiro. Poderia dar-lhe dinheiro meu, mas não seria capaz de expor minha assinatura a uma recusa do Banco. Vivo apenas pelo crédito. Isto é o que se dá com todos nós. Quer dinheiro?

— Poderá dar-me tanto quanto preciso?

— Depende da importância! De quanto precisa?

— Trinta mil francos.

— Puf! — fez Du Tillet, dando uma gargalhada.

Ao ouvir a risada, o perfumista, iludido pelo luxo de Du Tillet, interpretou-a como sendo o riso dum homem para quem aquela importância era uma ninharia, e respirou. Du Tillet chamou.

— Chame o meu caixa.

— Ele ainda não chegou — respondeu o camareiro.

— Esses patifes estão brincando comigo! Já são oito e meia, já devíamos ter feito um milhão de negócios a esta hora.

Cinco minutos mais tarde, o sr. Legras subiu.

— Quanto temos em caixa?

— Vinte mil francos, somente. O senhor deu ordem para comprar trinta mil francos em títulos, pagáveis a 15.

— É mesmo, vejo que ainda estou dormindo.

O caixa olhou para Birotteau com um ar ambíguo e saiu.

— Se a verdade fosse banida da Terra, ela confiaria sua última palavra a um caixa — disse Du Tillet. — O senhor não tem capital na casa do jovem Popinot, que acaba de se estabelecer? — disse, após uma horrível pausa durante a qual o suor perlou a testa do perfumista.

— Sim — disse ingenuamente Birotteau —, acha que poderia conseguir-me uma grande soma com a assinatura dele?

— Traga-me cinquenta mil francos de aceites dele e eu conseguirei o dinheiro para o senhor, a uma taxa razoável, com um certo Gobseck,[363] que é muito amável quando tem bastante dinheiro para colocar, e o tem agora.

XII — O ÚLTIMO DIA DE UM FALIDO

Birotteau voltou para casa confuso, sem perceber que os banqueiros o mandavam dum lado para outro como uma bola numa raquete; Constança, porém, já descobrira que era impossível qualquer crédito. Se três banqueiros já o haviam recusado, certamente que todos já haviam indagado a respeito dum homem tão em evidência como o suplente e, consequentemente, o Banco da França não poderia constituir um recurso a mais.

— Tenta reformar as letras — disse Constança — e vai à casa do sr. Claparon, teu sócio, e à de todos aqueles a quem deste letras vencíveis a 15 e propõe reformá-las. Sempre terás tempo de recorrer aos agiotas com os aceites de Popinot.

— Amanhã já é dia 13! — disse Birotteau, completamente abatido.

Segundo a expressão do seu anúncio, ele gozava dum temperamento sanguíneo, que consome muito sono para reparar as perdas. Cesarina levou o pai ao salão e, para distraí-lo, tocou para ele o Sonho de Rousseau, linda peça de Hérold, enquanto Constança ficou trabalhando ao lado dele. O pobre homem deixou a cabeça cair ao encosto do sofá e, sempre que levantava os olhos para a esposa, via-a com um doce sorriso nos lábios; e assim adormeceu.

— Coitado — disse Constança —, a que torturas está condenado!... Se, ao menos, ele resistir!

— Então, que é que tens, mamãe? — perguntou Cesarina, ao ver a mãe em pranto.

— Filhinha querida, estou vendo chegar a falência. Se teu pai for obrigado a pedir falência, é preciso que não imploremos a compaixão de ninguém. Minha filha, prepara-te para ser uma simples caixeira de loja. Vendo tomares corajosamente uma decisão, terei forças para recomeçar a vida. Conheço teu pai, ele não lançará mão de dinheiro algum, eu renunciarei aos meus direitos e venderemos tudo quanto possuímos. Tu, minha filha, leva amanhã tuas joias e teus vestidos para a casa do teu tio Pillerault, pois não estás obrigada a nada.

Cesarina foi acometida dum pavor sem limites ao ouvir essas palavras pronunciadas com uma simplicidade religiosa. Teve a ideia de procurar Anselmo, mas seus escrúpulos impediram-na de fazê-lo.

No dia seguinte, às nove horas, Birotteau estava na Rue de Provence, entregue a aflições inteiramente diferentes daquelas por que passara. Pedir um crédito é um ato muito natural no comércio. Todos os dias, ao empreender um negócio, é necessário encontrar capital; mas pedir para renovar letras representa, na jurisprudência comercial, o que a polícia correcional é para o tribunal criminal: um primeiro passo para a falência, como o delito leva ao crime. O segredo da incapacidade e da apertura do comerciante está em outras mãos que não as suas. O negociante entrega-se de mãos e pés amarrados à disposição de outro negociante, e a caridade não é uma virtude praticada na Bolsa.

O perfumista, que antigamente andava pelas ruas de Paris com um olhar tão brilhante de confiança, agora enfraquecido pelas incertezas, hesitava em entrar na casa do banqueiro Claparon; começava a compreender que nos banqueiros o coração não é mais que uma víscera. Claparon parecia-lhe tão brutal na sua grosseira jovialidade e tão mal-educado, que tinha medo de abordá-lo.

“Ele está mais próximo da plebe, talvez tenha melhor coração!”

Tal foi a primeira frase acusadora que a raiva da sua posição lhe ditou.

César foi buscar no fundo da alma a última dose de coragem e subiu a escadaria de um mesquinho entressolozinho em cujas janelas avistara cortinas verdes amareladas pelo sol. Leu à porta a palavra escritório gravada em preto sobre um oval de cobre; bateu e, como ninguém respondesse, entrou.

Aqueles locais mais que modestos denunciavam a miséria, a avareza ou a negligência. Nenhum empregado apareceu detrás das grades de latão que ocupavam a parte superior dos revestimentos de madeira que serviam de recinto a mesas e estantes de madeira enegrecida. As escrivaninhas desertas estavam cheias de tinteiros de tinta bolorenta, de penas desgrenhadas como moleques e encurvadas em forma de girassóis, e, finalmente, cobertas de cartões, papéis impressos, sem dúvida inúteis. O assoalho da entrada estava tão gasto, sujo e úmido, que parecia o da sala de visitas duma pensão.

A segunda peça, cuja porta estava ornada com a palavra caixa, harmonizava-se com as sinistras facécias do primeiro escritório. A um canto, havia uma grande gaiola de carvalho guarnecida de fios de cobre, de gateira móvel, contendo uma enorme mala de ferro, abandonada sem dúvida às cabriolas dos ratos. Essa gaiola, cuja porta estava aberta, continha ainda uma escrivaninha fantástica e sua cadeira ignóbil, furada, verde, com o assento rasgado deixando escapar a crina, como a peruca do patrão, numa infinidade de saca-rolhas desgrenhados. Essa peça, que evidentemente fora, em outros tempos, a sala do apartamento, antes de ser convertida em escritório de banco, mostrava, como principal ornamento, uma mesa redonda coberta duma fazenda verde e em torno da qual havia velhas cadeiras de marroquim preto e com os pregos já sem douradura. A lareira, muito elegante, não mostrava nenhuma dessas marcas negras deixadas pelo fogo; sua chapa estava limpa; o espelho, injuriado pelas moscas, tinha um aspecto mesquinho, em harmonia com uma pêndula de acaju proveniente da venda dos móveis de algum antigo tabelião e que enfastiava o olhar, já entristecido por dois castiçais sem velas e uma poeira pegajosa. O papel das paredes, de cor parda de rato, com desenhos cor-de-rosa, denunciava, nos tons fuliginosos, a permanência malsã de alguns fumantes. Nada se assemelhava tanto à sala comum que os jornais chamam de Gabinete da Redação. Birotteau, receando ser indiscreto, deu três breves pancadas à porta oposta àquela pela qual entrara.

— Entre! — gritou Claparon, com uma tonalidade que indicou a distância que sua voz tinha de percorrer e o vazio daquela peça onde o perfumista ouvia crepitar um bom fogo, mas na qual o banqueiro não estava.

Esse quarto servia-lhe, com efeito, de gabinete particular.

Entre a faustosa audiência de Keller e o singular desleixo desse pretenso grande industrial havia a mesma diferença que separa Versalhes do wigwam dum chefe de huronianos.[364] O perfumista vira as grandezas do mundo bancário; ia conhecer, agora, as suas molecagens.

Deitado numa pocilga oblonga instalada detrás do gabinete, onde os hábitos duma vida negligente haviam estragado, manchado, engordurado, destruído, confundido, rasgado, arruinado todo um mobiliário mais ou menos elegante nos seus primeiros tempos, Claparon, ao ver Birotteau, cobriu-se com o chambre imundo, soltou o cachimbo e fechou o cortinado do leito com uma rapidez que o inocente perfumista pôde conceber suspeitas sobre o seu modo de vida.

— Sente-se, senhor — disse esse simulacro de banqueiro, que, sem a cabeleira postiça e com a cabeça envolta num lenço colocado de lado, pareceu ainda mais horrendo a Birotteau porque o chambre, entreabrindo-se, deixou à mostra uma espécie de roupa de meia branca, tornada parda pelo uso infinitamente prolongado. — Quer almoçar comigo? — disse Claparon, recordando-se do baile do perfumista e desejando tanto tirar uma desforra como dar-lhe o troco com esse convite.

Com efeito, uma mesa redonda, apressadamente desembaraçada dos seus papéis, denunciava uma linda companhia, mostrando um pastelão, ostras, vinho branco e o vulgar guisadinho de rim com champanhe coalhado no molho. Diante da lareira aquecida a carvão de pedra, o fogo dourava uma omelete de trufas. Finalmente, dois serviços com os respectivos guardanapos manchados da ceia da véspera eram suficientes para esclarecer a mais pura inocência. Julgando-se hábil, Claparon insistiu a despeito das recusas de Birotteau.

— Eu esperava uma companhia para o almoço, mas falhou — disse o diabólico viajante, de maneira a fazer-se ouvir por uma criatura que estava metida debaixo das cobertas.

— Senhor — disse Birotteau —, vim unicamente tratar de negócios e não lhe roubarei muito tempo.

— Estou sobrecarregado de serviço — respondeu Claparon, mostrando um arquivo cilíndrico e mesas atulhadas de papéis. — Não me deixam nenhum momento livre. Só recebo aos sábados, mas, para o senhor, sempre estou em casa! Já não encontro tempo para amar nem para passear, estou perdendo o gosto pelos negócios, que, para se conservar, exige uma ociosidade sabiamente calculada. Já não me veem pelos bulevares ocupado em não fazer nada. Diabo! Os negócios me aborrecem, não quero mais ouvir falar em negócios, já tenho bastante dinheiro e nunca terei felicidade bastante. Palavra, quero viajar, visitar a Itália! Oh! Querida Itália! Bela mesmo no meio dos seus reveses, terra adorável onde encontrarei, sem dúvida, uma italiana indolente e majestosa! Sempre gostei das italianas! O senhor já teve uma italiana? Não? Pois bem, vá comigo à Itália. Veremos Veneza, residência dos doges e muito desgraçadamente caída nas mãos inteligentes da Áustria, onde as artes são desconhecidas! Ora! Deixemos os negócios, os trâmites, os empréstimos e os governos tranquilos. Sou um bom príncipe quando estou com o bolso cheio. Raios! Vamos viajar.

— Uma palavra apenas, senhor, e depois irei embora — disse Birotteau. — O senhor transferiu as minhas letras para o sr. Bidault.

— O senhor quer dizer Gigonnet, o bom Gigonnet, um homem muito razoável...

— Sim — replicou César. — Eu queria... e para isto conto com a sua dignidade e a sua honestidade...

Claparon fez uma inclinação.

— Eu queria ver se podia reformá-las...

— Impossível — respondeu terminantemente o banqueiro —, não estou sozinho no negócio. Estamos reunidos em conselho, uma verdadeira câmara, mas na qual nos entendemos como toicinho na frigideira. Ah! Diabo! Nós deliberamos. Os terrenos da Madeleine não são nada, operamos em outra parte. Eh! meu caro senhor, se não nos tivéssemos metido nos Champs-Élysées, ao redor da Bolsa que se vai concluir, no bairro de Saint-Lazare e em Tivoli, não estaríamos, como diz o gordo Nucingen, nos necócios. Que é, pois, a Madeleine? Um negociozinho de nada. Prrr! Não pregamos calote em ninguém, meu caro — disse, batendo no ventre de Birotteau e apertando-lhe a cintura. — Bem, vamos almoçar e, enquanto isso, falaremos — acrescentou Claparon, a fim de abrandar a recusa.

— Com muito prazer — disse Birotteau.

“Tanto pior para o conviva”, pensou o perfumista, planejando embebedar Claparon a fim de descobrir quais eram os seus verdadeiros sócios num negócio que começava a parecer-lhe tenebroso.

— Bem! Vitória! — gritou o banqueiro.

A esse grito, surgiu uma legítima Leonarda,[365] enfeitada como uma vendedora de peixe.

— Diga aos meus empregados que não estou em casa para ninguém, nem para Nucingen, os Keller, Gigonnet ou qualquer outro!

— Só veio o sr. Lempereur.

— Ele que receba a gente importante — disse Claparon. — A gentalha não passará da primeira sala. Digam que estou tratando duma incorporação... de champanhe.

Embriagar um antigo caixeiro-viajante é coisa impossível. César interpretou esse gracejo de mau gosto como sintoma de embriaguez e tentou pôr o sócio em confissão.

— Esse infame Roguin continua seu amigo — disse Birotteau. — O senhor devia escrever-lhe, dizendo-lhe que ajudasse um amigo a quem comprometeu, um homem com quem ele jantava todos os domingos e a quem conhece há vinte anos.

— Roguin?... É um idiota! Sua parte fica para nós. Não fique triste, meu caro, tudo irá bem. Pague no dia 15 e, na primeira ocasião, veremos! Quando digo veremos (mais um copo de vinho!), o dinheiro não me diz respeito de maneira alguma. Ah! Se o senhor não pagar, não lhe virarei a cara, pois estou no negócio apenas por uma comissão e uma percentagem na compra, mediante o que manobro os proprietários. Compreende? O senhor tem sócios sólidos e, assim, não tenho medo de nada. Atualmente, os negócios se dividem! Um negócio exige o concurso de tantas capacidades! Meta-se conosco nos negócios! Deixe de andar logrando o povo com potes de pomada e com pentes: isso é mau! Tose o público, entre na especulação.

— A Especulação? — disse o perfumista. — Que comércio é esse?

— É o comércio abstrato — respondeu Claparon —, um comércio que permanecerá secreto durante uma dezena de anos ainda, segundo diz o grande Nucingen, o Napoleão das finanças, e pelo qual um homem se apodera da totalidade dos algarismos, tira a nata dos rendimentos antes que existam, uma concepção gigantesca, uma forma de explorar a esperança, enfim, uma nova cabala! Ainda não somos mais de dez ou doze cérebros fortes iniciados nos segredos cabalísticos dessas magníficas combinações.

César abria os olhos e os ouvidos, tentando entender aquela fraseologia complicada.

— Escute — disse Claparon, depois de uma pausa —, golpes como esses exigem homens. Há aqui um homem de ideias que não tem dinheiro, como todos os homens de ideias. Essa gente pensa e gasta sem prestar atenção a nada. Imagine um porco vagueando por um bosque de trufas! Ele é seguido por um esperto, um homem de dinheiro, que espera o grunhido provocado pelo achado. Quando o homem de ideias encontra algum bom negócio, o homem de dinheiro dá-lhe um tapinha nas costas e diz-lhe: “Que é isto? Você está se metendo na boca dum forno sem estar suficientemente capacitado para isso. Tome mil francos e deixe-me levar este negócio adiante”. Bem, o banqueiro convoca então os industriais. “Meus amigos, mãos à obra! Façamos propaganda! Mintamos até não poder mais!” Toma-se, então, uma trompa de caça e grita-se aos quatro cantos: “Cem mil francos por cinco sous ou cinco sous por cem mil francos, minas de ouro, minas de carvão...”. Enfim, toda a fanfarronice do comércio. Compra-se a opinião dos homens de ciência ou da arte, o negócio se desenvolve, o público entra com o dinheiro e nós ficamos com os lucros. O porco fica encerrado no chiqueiro com umas batatas, enquanto os outros nadam em dinheiro. É isso, meu caro senhor. Entre no negócio. Que é que deseja ser? Porco, peru, palhaço ou milionário? Pense nisto: apresentei-lhe a teoria dos empréstimos modernos. Venha falar comigo, sempre encontrará em mim um rapaz jovial. A jovialidade francesa, grave e leve ao mesmo tempo, não prejudica os negócios, muito pelo contrário! Homens que batem os copos foram feitos para se entender! Então? Mais um copo de champanhe? É bem-feita, beba! Esta foi enviada por um homem de Épernay mesmo, para quem consegui negócios, e a bom preço (estive nos vinhos). Ele se mostra agradecido e se lembra de mim na minha prosperidade. Isto é raro.

Birotteau, surpreendido com a leviandade, a despreocupação daquele homem a quem todos atribuíam uma espantosa gravidade e grande capacidade, não mais se animou a interrogá-lo. Na perturbadora excitação em que o deixara a champanhe, ele se recordou, contudo, dum nome pronunciado por Du Tillet e perguntou quem era e onde morava o sr. Gobseck, banqueiro.

— O senhor já chegou a este ponto? — perguntou Claparon. — Gobseck é banqueiro como o carrasco de Paris é médico. Sua primeira palavra é “cinquenta por cento”; é da escola do Avarento: mantém à sua disposição passarinhos das Canárias, serpentes empalhadas, peliças no verão, nanquim no inverno. E que valores o senhor lhe iria oferecer? Para tomar suas letras sem aval, o senhor teria que empenhar-lhe a esposa, a filha, o guarda-chuva, tudo, até sua caixa de chapéu, os tamancos, as pás, as tenazes e a lenha que tiver no porão!... Gobseck! Gobseck! Virtude da desgraça! Quem foi que lhe indicou essa guilhotina financeira?

— O sr. Du Tillet.

— Ah! O patife! Bem o reconheço. Fomos amigos, antigamente. Se brigamos a ponto de nem mais nos cumprimentarmos, pode estar certo de que minha repulsa é justa: ele permitiu que eu lesse no fundo da sua alma de lama, ele me deixou em muito má situação durante o baile que o senhor nos ofereceu; nem posso mais vê-lo, com o seu ar enfatuado. Só porque ele é amante duma tabeliã! Eu terei até marquesas, quando quiser, e ele nunca mais terá a minha estima! Ah! A minha amizade é uma princesa que nunca irá incomodá-lo na cama. O senhor é um farsista, confesse, meu velho: impingir-nos um baile e dois meses depois pedir para reformar letras! O senhor pode ir longe, assim! Vamos fazer negócios juntos? O senhor tem uma reputação, ela me servirá. Oh! Du Tillet nasceu para compreender Gobseck. Du Tillet vai acabar mal! Se ele é, como dizem, o agente desse velho Gobseck, não pode ir longe. Gobseck está a um canto da sua teia, agachado como uma aranha que deu a volta ao mundo. Cedo ou tarde, zut!, o usurário suga o seu homem como eu, este copo de vinho. Tanto melhor! Du Tillet pregou-me uma peça... oh!... uma peça terrível!

Ao fim de uma hora e meia empregada em tagarelagem completamente destituída de sentido, Birotteau quis retirar-se, deixando o antigo caixeiro-viajante prestes a contar-lhe a aventura dum representante do povo em Marseille, apaixonado por uma atriz que estava desempenhando o papel da Bela Arsênia,[366] sob uma vaia da plateia realista.

— Ele se levanta — disse Claparon —, empertiga-se no camarote: “Quem a vaiou... que se apresente!... Se for uma mulher, ponho-a para fora; se for um homem, havemos de nos entender; se não for nem um nem outro, que vá para o diabo que o carregue!...”. Sabe como foi que acabou a aventura?

— Adeus, senhor — disse Birotteau.

— O senhor precisa vir conversar comigo — disse-lhe então Claparon. — A primeira letrinha Cayron nos foi devolvida com um protesto, e, como sou o endossador, paguei. Vou mandá-la para a sua casa, pois os negócios vão acima de tudo.

Birotteau sentiu-se, assim, mais atingido no coração por essa fria e hipócrita cortesia do que pela dureza dos Keller e pela brincadeira germânica de Nucingen. A familiaridade desse homem e suas grotescas confidências inflamadas pela champanhe haviam maculado a alma do honesto perfumista, que teve a impressão de sair dum prostíbulo financeiro. Desceu a escada e viu-se na rua sem saber para onde ir. Seguiu pelos bulevares, alcançou a Rue Saint-Denis, lembrou-se de Molineux e dirigiu-se para a Cour Batave. Subiu a escada imunda e tortuosa que ainda há pouco galgara, glorioso e altivo. Lembrou-se da mesquinha rispidez de Molineux e estremeceu por ter de implorar-lhe. Como na primeira visita do perfumista, o proprietário estava junto à lareira, digerindo o almoço; Birotteau formulou-lhe seu pedido.

— Reformar uma letra de mil e duzentos francos? — disse Molineux, exprimindo uma incredulidade brincalhona. — O senhor não é homem para fazer uma coisa destas. Se o senhor não tiver mil e duzentos francos para pagar a minha letra no dia 15, irá adiar o pagamento do meu aluguel atrasado? Ah! Sentirei muito, mas não tenho a mínima cortesia em matéria de dinheiro, os meus aluguéis são os meus rendimentos. Sem isso, com que iria pagar o que devo? Um comerciante não pode desaprovar este princípio salutar. O dinheiro não conhece ninguém: não tem ouvidos, o dinheiro; não tem coração, o dinheiro! O inverno está rude, a lenha subiu de preço. Se o senhor não pagar no dia 15, a 16 receberá uma intimaçãozinha, ao meio-dia. Ora! O bom amigo Mitral, seu meirinho e meu, lhe enviará a intimação num envelope, com todas as considerações devidas à sua alta posição.

— Senhor, nunca recebi intimação pelo que me diz respeito — disse Birotteau.

— Tudo tem a primeira vez — replicou Molineux.

Consternado pela seca ferocidade do velhote, o perfumista ficou abatido, pois começou a ouvir o dobre de finados da falência. Cada badalada lhe despertava a recordação dos conceitos que sua implacável jurisprudência lhe sugerira a respeito das falências. Suas opiniões gravavam-se em letras de fogo sobre a substância mole do seu cérebro.

— A propósito — disse Molineux —, o senhor se esqueceu de anotar nas suas letras: Valor recebido em aluguéis, o que me asseguraria o privilégio.

— Minha situação me impede de fazer qualquer coisa em prejuízo dos meus credores — disse o perfumista, aturdido pela visão do precipício entreaberto.

— Bem, senhor, muito bem! Eu pensava que já aprendera tudo quanto se refere a locações, com os senhores locatários. Estou aprendendo agora, do senhor, a nunca receber letras em pagamento. Ah! Levarei a questão a juízo, pois a sua resposta diz suficientemente que o senhor não vai pagar. O assunto interessa a todos os proprietários de Paris.

Birotteau saiu desgostoso da vida. É próprio do temperamento dessas almas sensíveis e fracas desanimar a uma primeira recusa, assim como entusiasmar-se com um primeiro triunfo. César não teve outra esperança a não ser a dedicação do jovem Popinot, em quem pensou, naturalmente, ao passar pelo Marché des Innocents.

“Pobre menino, quem poderia pensar numa coisa destas, há seis semanas, quando nas Tuileries eu o lancei na indústria!”

Eram quatro horas mais ou menos, momento em que os magistrados saem do tribunal. Por uma coincidência, o juiz de instrução fora visitar o sobrinho. O juiz, um dos espíritos mais perspicazes em questões de moral, tinha uma visão que lhe permitia desvendar as intenções secretas, descobrir o sentido das ações humanas, mesmo as mais indiferentes, o germe de um crime, as raízes de um delito, e observou Birotteau sem que Birotteau o notasse. O perfumista, contrariado de encontrar o tio com o sobrinho, pareceu-lhe embaraçado, preocupado, pensativo. O jovem Popinot, sempre atarefado, com a pena atrás da orelha, mostrou-se, como sempre, profundamente atencioso com o pai da sua Cesarina. As frases banais ditas por César ao seu sócio pareceram ao juiz o disfarce dum pedido importante. Em vez de se retirar, o astuto magistrado permaneceu na casa do sobrinho mesmo contra a vontade deste, pois calculara que o perfumista tentaria desembaraçar-se dele, indo embora. Quando Birotteau saiu, o juiz também se retirou, mas notou Birotteau vagueando pela parte da Rue des Cinq-Diamants que leva à Rue Aubry-le-Boucher. Essa insignificante circunstância inspirou suspeitas ao velho Popinot a respeito das intenções de César e ele entrou na Rue des Lombards. E, ao ver o perfumista tornar a entrar na casa de Anselmo, voltou lá imediatamente.

— Meu caro Popinot — disse César ao seu sócio —, venho pedir-te um favor.

— Que é preciso fazer? — perguntou Popinot, com um generoso entusiasmo.

— Ah! Salvas-me a vida! — exclamou o bom homem, sentindo-se feliz com esse calor de sentimento que via brilhar no meio dos gelos pelos quais estava viajando há vinte e cinco dias... — Preciso que me simules um crédito de cinquenta mil francos a título de uma suposta parte nos lucros, depois combinaremos a forma de pagamento.

Popinot olhou fixamente para César e César baixou os olhos. Nesse momento o juiz entrou.

— Meu filho... Ah! Desculpe, sr. Birotteau! Meu filho, esqueci-me de dizer-te...

E, com o gesto imperioso dos magistrados, o juiz arrastou o sobrinho para a rua e o obrigou, mesmo de avental e com a cabeça descoberta, a ouvi-lo, enquanto se dirigiam para a Rue des Lombards.

— Meu sobrinho, pode ser que o teu patrão esteja metido em negócios tão embaraçados que tenha de pedir falência. Antes de chegar a esse ponto, mesmo os homens que contam com quarenta anos de honestidade e os mais virtuosos, no desejo de conservar a honra, imitam os jogadores mais incorrigíveis; são capazes de tudo: vendem as mulheres, traficam as filhas, comprometem os melhores amigos, empenham mesmo o que não lhes pertence, recorrem ao jogo, tornam-se comediantes, mentirosos, sabem chorar... Enfim, tenho visto as coisas mais extraordinárias. Tu mesmo foste testemunha da cordialidade de Roguin, a quem teriam dado o bom Deus sem confissão. Não aplico estas rigorosas conclusões ao sr. Birotteau, julgo-o honesto; mas, se ele te pedir o que quer que seja contrário às leis do comércio, como subscrever letras de favor, e lançar-te num sistema de circulações que, segundo minha opinião, é um começo de patifaria, pois representa a moeda falsa do papel, promete-me que nada assinarás sem me consultar. Lembra-te de que, se amas a filha dele, é preciso que, no interesse mesmo da tua paixão, não destruas o teu futuro. Se o sr. Birotteau tiver de cair, de que adianta caírem todos? Não irias assim privar, um e outro, de todas as possibilidades da tua casa comercial, que será o refúgio dele?

— Obrigado, meu tio: para bom entendedor... basta — disse Popinot, que viu explicada então a pungente exclamação do patrão.

O comerciante de óleos finos e outros voltou para a loja com a fronte preocupada. Birotteau notou a mudança.

— Dê-me a honra de subir ao meu quarto, lá estaremos melhor do que aqui. Os empregados, embora estejam muito ocupados, poderiam ouvir-nos.

Birotteau acompanhou Popinot, entregue à ansiedade do condenado entre a revogação da sentença e a recusa do pedido de graça.

— Meu caro benfeitor — disse Anselmo —, o senhor não pode duvidar da minha dedicação, que é cega. Permita-me apenas que lhe pergunte se esta importância o salva completamente ou se é apenas um adiamento de alguma catástrofe, e, neste caso, de que adiantaria arrastar-me a ela? O senhor precisa de letras a noventa dias. Pois bem, tenho certeza de que em três meses não poderei pagá-las.

Birotteau, pálido e solene, levantou-se e encarou Popinot.

Popinot, assustado, exclamou:

— Se o senhor quiser, eu darei.

— Ingrato! — disse o perfumista, que empregou o restante das suas forças para lançar essa palavra ao rosto de Anselmo como um estigma de infâmia.

Birotteau encaminhou-se para a porta e saiu. Popinot, refeito da sensação que aquela palavra terrível lhe causara, precipitou-se pela escada, correu para a rua, mas não encontrou mais o perfumista. O apaixonado de Cesarina continuou ouvindo sempre essa formidável acusação, teve constantemente diante dos olhos a fisionomia esquálida do pobre César; viveu, enfim, como Hamlet, com um pavoroso espectro ao lado.

XIII — UM PEDIDO DE FALÊNCIA

Birotteau perambulou pelas ruas do bairro como um ébrio. Quando se deu conta, viu-se no cais e continuou por ele até Sèvres, onde passou a noite numa hospedaria, alucinado pelo sofrimento.

Sua esposa, assustada, não se animou a mandar procurá-lo em parte alguma. Numa situação dessas, um alarme intempestivo é fatal. A prudente Constança imolou suas preocupações à reputação comercial; esperou durante toda a noite, misturando as preces às conjeturas. César teria morrido? Teria feito alguma excursão fora de Paris, na pista de uma última esperança? Na manhã seguinte, conduziu-se como se conhecesse as razões da ausência; chamou, porém, o tio e pediu-lhe que fosse ao necrotério, visto que às cinco horas Birotteau ainda não voltara. Durante esse tempo, a corajosa criatura conservou-se ao balcão, com a filha bordando ao seu lado. Ambas, com a fisionomia grave, nem triste nem sorridente, atendiam ao público.

Pillerault voltou acompanhado de César. Ao voltar da Bolsa, encontrara-o no Palais-Royal, hesitando em subir à sala de jogo. Era o dia 14. Ao jantar, César não pôde comer. O estômago, contraído com extrema violência, rejeitava os alimentos. O tempo decorrido após o jantar foi ainda mais terrível. O negociante experimentou, pela centésima vez, uma dessas pavorosas alternativas de esperança e de desespero que, mostrando à alma toda a gama das sensações alegres e precipitando-a na última das sensações de tristeza, consomem essas naturezas fracas. Derville, advogado de Birotteau, chegou e precipitou-se no esplêndido salão onde a sra. César amparava, com toda a sua força, o pobre marido, que queria ir dormir no quinto andar “para não ver os monumentos da minha loucura!”, dizia.

— Ganhamos o processo — disse Derville.

A essas palavras, a fisionomia crispada de César se relaxou, mas sua alegria assustou o tio Pillerault e Derville. As mulheres saíram apavoradas, para ir chorar no quarto de Cesarina.

— Posso, então, fazer um empréstimo? — exclamou o perfumista.

— Seria imprudente — disse Derville. — Eles apelaram, e a Corte pode reformar a sentença; mas daqui a um mês teremos uma decisão definitiva.

— Um mês!

César caiu num entorpecimento do qual ninguém tentou arrancá-lo. Essa espécie de catalepsia invertida, durante a qual o corpo vivia e respirava enquanto as funções da inteligência estavam suspensas, esse descanso proporcionado pelo acaso foi considerado, e com todo o acerto, um favor de Deus, por Constança, Cesarina, Pillerault e Derville. Birotteau pôde, assim, suportar as dilacerantes emoções da noite. Estava numa poltrona a um lado da lareira; no outro lado achava-se a esposa, que o observava atentamente, com um doce sorriso nos lábios, um desses sorrisos que provam que as mulheres estão mais próximas do que os homens da natureza angélica, pela maneira como sabem aliar uma infinita ternura à mais completa compaixão, segredo que só possuem os anjos entrevistos em raros sonhos providencialmente distribuídos, com longos intervalos, na vida humana. Cesarina, sentada a um tamboretezinho, aos pés da mãe, roçava, de vez em quando, a cabeleira nas mãos do pai, fazendo-lhe uma carícia pela qual tentava transmitir ideias que, em tais crises, a voz torna importunas.

Sentado numa poltrona, como o chanceler De L’Hospital[367] no peristilo da Câmara dos Deputados, Pillerault, filósofo pronto para tudo, exibia, na fisionomia, essa inteligência gravada na fronte das esfinges, e falava com Derville em voz baixa. Constança fora de opinião que se consultasse o advogado, cuja discrição não admitia suspeita. Tendo o balanço gravado na cabeça, expusera sua situação ao ouvido de Derville. Ao fim de uma conferência de cerca de uma hora, o advogado sacudiu a cabeça olhando para Pillerault.

— Minha senhora — disse, com esse horrível sangue-frio dos homens de negócios —, é preciso abrir falência. Supondo que, por um artifício qualquer, consiga fazer os pagamentos de amanhã, mesmo assim terá de saldar pelo menos trezentos mil francos antes de poder fazer um empréstimo sobre os terrenos. A um passivo de quinhentos e cinquenta mil francos, os senhores opõem um ativo muito bonito, muito produtivo, mas não realizável, e num prazo maior ou menor terão de sucumbir. Sou de opinião que é melhor saltar pela janela do que se deixar rolar pela escada.

— Esta é também a minha opinião, minha filha — disse Pillerault.

Derville foi acompanhado até a porta pela sra. Birotteau e por Pillerault.

— Pobre papai! — disse Cesarina, levantando-se suavemente para beijar a fronte de César. — Então Anselmo não pôde fazer nada? — perguntou, quando o tio e a mãe voltaram.

— Ingrato! — exclamou César, ferido por esse nome no único ponto vivo de sua recordação, como uma tecla de piano cujo martelo vai bater na respectiva corda.

Desde o momento em que aquela palavra lhe fora lançada como um anátema, o jovem Popinot não tivera mais um momento de sono nem um instante de tranquilidade. O infeliz rapaz amaldiçoava o tio e fora procurá-lo. Para fazer capitular aquela antiga experiência judiciária, empregara a eloquência do amor, esperando seduzir o homem por quem as palavras humanas deslizavam como a água por cima dum pano encerado, um juiz!

— Comercialmente falando — disse-lhe —, o hábito permite ao sócio-gerente creditar uma certa importância ao sócio comanditário por antecipação sobre os lucros, e nossa sociedade certamente os terá. Perfeitamente examinados os meus negócios, sinto-me suficientemente forte para pagar quarenta mil francos daqui a três meses! A probidade do sr. César permite acreditar que esses quarenta mil francos serão empregados em saldar suas letras. Assim, os credores, se houver falência, não nos poderão fazer nenhuma censura! Além disso, meu tio, prefiro perder quarenta mil francos a perder Cesarina. No momento em que lhe falo, ela certamente já foi informada da minha recusa e vai retirar-me sua estima. Prometi dar o meu sangue pelo meu benfeitor! Estou no caso de um jovem marinheiro que deve se afogar, estendendo a mão para o seu capitão, do soldado que deve perecer com o seu general.

— Bom coração e mau comerciante, não perderás a minha estima — disse o juiz, apertando a mão do sobrinho. — Tenho pensado muito nisto — acrescentou —, sei que estás loucamente apaixonado por Cesarina e acho que podes satisfazer as leis do coração e as leis do comércio.

— Ah! Meu tio, se o senhor encontrasse um meio de consegui-lo, salvar-me-ia a honra.

— Adianta a Birotteau cinquenta mil francos, por meio dum termo de reivindicação de propriedade, relativo aos seus lucros no óleo, que se tornou uma propriedade. Eu te redigirei o documento.

Anselmo abraçou o tio, voltou para casa, encheu letras no valor de cinquenta mil francos e foi correndo da Rue des Cinq-Diamants à Place Vendôme, de modo que, enquanto Cesarina, sua mãe e o tio Pillerault contemplavam o perfumista, surpresos com o tom sepulcral no qual ele pronunciara aquela palavra “Ingrato!” em resposta à pergunta da filha, a porta do salão se abriu e Popinot apareceu.

— Meu caro e estimado patrão — disse, enxugando a testa alagada de suor —, aqui está o que o senhor me pediu.

E entregou-lhe as letras.

— Sim, estudei bem a minha situação, não tenha receio algum, eu pagarei; salve, salve a sua honra!

— Eu tinha inteira confiança nele! — exclamou Cesarina, tomando a mão de Popinot e apertando-a com uma força convulsa.

A sra. Birotteau beijou Popinot. O perfumista levantou-se como um justo ao ouvir a trombeta do juízo final, como se estivesse saindo de um túmulo! Depois, estendeu a mão num movimento frenético para apanhar os cinquenta papéis selados.

— Um momento! — disse o terrível tio Pillerault, arrancando as letras da mão de Popinot. — Um momento!

As quatro personagens que compunham a família, César e a esposa, Cesarina e Popinot, aturdidos pela atitude do tio e pela inflexão de sua voz, viram-no, com terror, rasgar os papéis e jogá-los ao fogo, que os consumiu sem que ninguém pudesse intervir.

— Meu tio!

— Meu tio!

— Meu tio!

— Senhor!

Quatro vozes, quatro corações num só, uma espantosa unanimidade.

O tio Pillerault passou o braço em torno do pescoço do jovem Popinot, apertou-o de encontro ao coração e beijou-o na testa.

— És digno da adoração de todas as pessoas de coração — disse-lhe. — Se amasses a minha filha, mesmo que ela tivesse um milhão e tu não tivesses nada mais do que isto — e mostrou-lhe as cinzas negras das letras — e se ela te amasse, vós vos casaríeis dentro de quinze dias. Teu patrão — disse, apontando para César — está louco. Meu sobrinho — continuou o austero Pillerault, dirigindo-se ao perfumista —, meu sobrinho, nada de ilusões! Deve-se negociar com escudos e não com sentimentos. Isto é sublime... mas inútil. Passei duas horas na Bolsa, não tens nem dois liards[368] de crédito: todo mundo estava falando do teu desastre, de reformas rejeitadas, das tuas tentativas junto a vários banqueiros e da recusa deles, das tuas loucuras, dos seis andares que subiste para procurar um proprietário falador como uma gralha a fim de reformar uma letra de mil e duzentos francos, do baile que deste para ocultar as tuas aperturas... Chegam até a dizer que não tinhas nada no cartório de Roguin. Segundo os teus inimigos, Roguin é um pretexto. Um amigo meu, encarregado de informar-se de tudo, veio confirmar as minhas suspeitas. Todos pressentem a emissão das letras de Popinot, tu o estabeleceste deliberadamente para fazer dele uma prancha de letras de câmbio. Enfim, todas as calúnias e as maledicências que atrai contra si um homem que quer subir mais um degrau na escala social correm, agora, pelo comércio. Dizem que andaste oferecendo em vão, durante oito dias, as cinquenta letras de Popinot em todos os balcões e que tiveste de suportar humilhantes recusas, porque ninguém as quis: nada prova o número que emitirias de tais letras; assim, esperam ver-te sacrificar o pobre rapaz pela tua salvação. Terias destruído, em pura perda, o crédito da casa Popinot. Sabes quanto o mais audacioso dos agiotas te daria por esses cinquenta mil francos em letras? Vinte mil, vinte mil, fica sabendo! Em comércio, há situações em que é preciso se manter diante do público durante três dias sem comer, como se se tivesse uma indigestão, para no quarto dia ser admitido na despensa do crédito. Não podes viver esses três dias, eis tudo. Meu pobre sobrinho, coragem, precisas pedir falência. Aqui está Popinot, e estou eu: logo que os teus empregados forem dormir, vamos trabalhar juntos para poupar-te essa angústia.

— Meu tio!... — disse o perfumista, juntando as mãos.

— César, quererás fazer um balanço vergonhoso sem ativo? Teu interesse na casa Popinot te salva a honra.

César, esclarecido por esse fatal e derradeiro raio de luz, viu, finalmente, a terrível verdade em toda a sua extensão, caiu sobre a poltrona e de lá tornou a cair ajoelhado, perdeu o juízo, fez-se criança; a esposa pensou que ele estivesse morrendo e ajoelhou-se para levantá-lo; uniu-se a ele, porém, ao vê-lo juntar as mãos, erguer os olhos e recitar com uma compunção resignada, diante do tio, da filha e de Popinot, a sublime oração dos católicos:

— Pai Nosso, que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. o pão nosso de cada dia nos dai hoje e perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos aos que nos ofenderam. Não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.

Lágrimas brotaram dos olhos do estoico Pillerault; Cesarina, acabrunhada, em pranto, estava com a cabeça inclinada sobre o ombro de Popinot, pálido e ereto como uma estátua.

— Vamos descer — disse o antigo negociante ao rapaz, tomando-lhe o braço.

Às onze e meia, deixaram César entregue aos cuidados da esposa e da filha.

Nesse momento, Celestino, o primeiro caixeiro, que durante a secreta tempestade estivera dirigindo a casa, subiu ao apartamento e entrou no salão. Ao ouvir seus passos, Cesarina correu para abrir-lhe a porta para que ele não visse o abatimento do patrão.

— Entre as cartas desta tarde — disse — havia uma vinda de Tours, com o endereço mal redigido e por isso sofreu uma demora. Pensei que devia ser do irmão do patrão e não a abri.

— Meu pai — gritou Cesarina —, uma carta do meu tio de Tours!

— Ah! Estou salvo! — exclamou César. — Meu irmão, meu irmão! — disse, beijando a carta.

 

resposta de francisco birotteau

a césar birotteau

 

Tours, 17 do corrente

 

Meu muito estimado irmão, tua carta me causou a mais viva aflição; por isso, depois que a li, fui oferecer a Deus o santo sacrifício da missa em tua intenção, pedindo-lhe que, pela intercessão do sangue que seu Filho, nosso divino Redentor, derramou por nós, ele dirija às tuas aflições um olhar misericordioso. Enquanto pronunciava minha oração Pro meo fratre Cæsare, fiquei com os olhos cheios de lágrimas ao pensar em ti, de quem, por desgraça, estou separado nestes dias em que deves ter necessitado muito do amparo da amizade fraternal. Lembrei-me, porém, de que o digno e venerável sr. Pillerault certamente me substituirá. Meu caro César, não te esqueças, no meio dos teus pesares, de que esta vida é de provações e de passagem; que um dia seremos recompensados por termos sofrido pelo santo nome de Deus, por sua santa Igreja, por ter observado as máximas do Evangelho e praticado a virtude; se assim não fosse, as coisas deste mundo não teriam sentido algum. Se te repito estas máximas, mesmo sabendo o quanto és piedoso e bom, é porque pode acontecer a pessoas, como tu, lançadas aos vendavais do mundo e atiradas ao mar perigoso dos interesses humanos, permitir-se blasfêmias no meio das adversidades, arrebatadas, como foram, pelo sofrimento. Não maldigas nem aos homens que te ofenderam nem a Deus, que, em seus desígnios, misturou amargura à tua vida. Não olhes para a terra; pelo contrário, eleva sempre os olhos para o céu: de lá vêm as consolações para os fracos, lá residem as riquezas dos pobres, lá moram os terrores do rico.

 

— Mas, Birotteau — disse-lhe a esposa —, passa por cima disso e vê se ele nos manda alguma coisa.

— Havemos de relê-la muitas vezes — replicou o comerciante, enxugando as lágrimas. Ao correr os olhos pela carta, entreabriu-a e quase caiu ao chão um cheque contra o Tesouro real.

— Eu estava certo dele; pobre irmão — disse Birotteau, segurando o cheque.

 

“ ... Fui à casa da sra. de Listomère”,[369] continuou, lendo com a voz entrecortada pelo pranto, “e, sem dizer-lhe o motivo do meu pedido, implorei-lhe que me emprestasse tudo de quanto pudesse dispor em meu favor, a fim de aumentar o fruto das minhas economias. Sua generosidade permitiu-me completar uma soma de mil francos, que te envio por meio de cheque do recebedor-geral em Tours contra o Tesouro.”

 

— Estamos bem adiantados! — disse Constança, olhando para Cesarina.

 

Cortando algumas coisas supérfluas nos meus hábitos de vida, poderei restituir, em três anos, à sra. de Listomère, os quatrocentos francos que ela me emprestou, e assim não te preocupes com isto, meu caro César. Mando-te tudo quanto possuo no mundo, fazendo votos para que esta quantia possa levar ajuda a uma feliz conclusão dos teus embaraços comerciais, que, sem dúvida, serão apenas momentâneos. Conheço tua suscetibilidade e quero antecipar-me às tuas objeções. Não penses em pagar-me juro algum por esta importância nem em restituí-la num dia de prosperidade que não tardará a surgir para ti, se Deus se dignar atender as preces que lhe dirigirei todos os dias. Pela última carta que recebi de ti, há dois anos, julgava-te rico e pensava poder dispor das minhas economias em favor dos pobres; agora, porém, tudo quanto possuo te pertence. Quando tiveres vencido este escolho passageiro da tua navegação, guarda essa quantia para a minha sobrinha Cesarina, para que, quando se casar, ela possa empregá-la em alguma ninharia que lhe recorde um velho tio cujas mãos se elevarão continuamente ao céu para pedir a Deus que derrame suas bênçãos sobre ela e sobre todos os que lhe são caros. Enfim, meu caro César, lembra-te de que sou um pobre padre que vive com a graça de Deus como as calhandras, seguindo pela sua senda sem ruído, tratando de obedecer aos mandamentos do nosso divino Salvador e que, consequentemente, pouca coisa tem feito. Assim, não tenhas o menor escrúpulo na circunstância difícil em que te encontras e pensa em mim como em alguém que te estima afetuosamente.

Nosso excelente padre Chapeloud,[370] a quem não contei a tua situação, mas que sabe que te estou escrevendo, encarregou-me de transmitir-te as coisas mais amáveis para todas as pessoas da tua família e deseja-te a continuação da tua prosperidade. Adeus, meu caro e muito estimado irmão; faço votos para que, nas conjunturas em que te encontras, Deus te faça a graça de te conservar em boa saúde, bem como à tua esposa e à tua filha; desejo a vós todos paciência e coragem nas vossas adversidades.

 

francisco birotteau,

Padre, vigário da igreja catedral e

paroquial de Saint Gatien de Tours

 

— Mil francos! — disse a sra. Birotteau, furiosa.

— Guarda-os — disse gravemente César —, ele só tem isto. Além disso, pertencem à nossa filha e com eles viveremos sem ter de pedir nada aos nossos credores.

— Eles vão pensar que lançaste mão de somas importantes.

— Eu lhes mostrarei a carta.

— Dirão que é falsa.

— Meu Deus! Meu Deus! — gritou Birotteau, aterrorizado. — Pensei isso mesmo de pobres criaturas que certamente estavam numa situação igual à minha.

Extremamente preocupadas com o estado em que se encontrava César, a mãe e a filha ficaram trabalhando de agulha junto dele, num profundo silêncio. Às duas horas da manhã, Popinot abriu mansamente a porta do salão e fez um sinal à sra. Birotteau para que descesse. Ao ver a sobrinha, o tio tirou os óculos.

— Minha filha, ainda há esperança — disse-lhe —, nem tudo está perdido; teu marido, porém, não resistiria às alternativas das negociações a fazer e que Anselmo e eu vamos tentar. Não saias da loja amanhã e toma todos os endereços das letras de câmbio; dispomos de tempo até as quatro horas. Eis o meu plano. Tanto o sr. Ragon como eu não inspiramos receios. Suponha, agora, que os seus cem mil francos depositados no cartório de Roguin tivessem sido entregues aos vendedores, vocês já não os teriam mais, do mesmo modo. Estão, pois, em presença de cento e quarenta mil francos subscritos a Claparon, que devem pagar de qualquer modo; assim, não é a bancarrota de Roguin a causa do desastre. Para vocês atenderem às obrigações, vejo quarenta mil francos a tomar emprestados, mais cedo ou mais tarde, sob a garantia das fábricas, e sessenta mil francos de letras emitidas por Popinot. Pode-se, portanto, lutar, pois, mais tarde, poderão fazer um empréstimo sobre os terrenos da Madeleine. Se o principal credor de vocês consentir em ajudá-los, não olharei para a minha fortuna; venderei os meus títulos de renda, ficarei até sem pão. Popinot ficará entre a vida e a morte; quanto a vocês, ficarão à mercê do mais insignificante acontecimento comercial. Mas o óleo há de dar, sem dúvida, grandes lucros. Popinot e eu acabamos de conversar e resolvemos ampará-los nesta luta. Ah! Comerei alegremente o meu pão seco se avistar o triunfo no horizonte. Tudo, porém, depende de Gigonnet e dos sócios Claparon. Popinot e eu iremos à casa de Gigonnet, entre as sete e as oito horas, e então teremos uma ideia das suas intenções.

Constança atirou-se completamente desolada nos braços do tio, sem outra voz além da das lágrimas e dos soluços. Nem Popinot nem Pillerault podiam saber que Bidault, conhecido por Gigonnet, e Claparon eram Du Tillet sob uma dupla forma, e Du Tillet desejava ler nos Petites Affiches esta terrível informação:

 

“Julgamento do Tribunal de Comércio que declara o sr. César Birotteau, comerciante perfumista, estabelecido em Paris, à Rue Saint-Honoré, nº 397, em estado de falência, estando fixada provisoriamente a abertura para 16 de janeiro de 1819. Juiz comissário, sr. Gobenheim Keller. Agente, sr. Molineux.”

 

Anselmo e Pillerault estudaram até o amanhecer os negócios de César. Às oito da manhã, os dois heroicos amigos, um, velho soldado, e o outro, tenente de ontem, que jamais deviam conhecer, a não ser por procuração, as angústias dos que haviam subido a escada de Bidault, conhecido por Gigonnet, dirigiram-se, sem trocar uma palavra, à Rue Grenétat. Sofriam. Pillerault passou a mão repetidas vezes pela testa.

A Grenétat é uma rua onde todas as casas, invadidas por uma multidão de ramos de comércio, oferecem um aspecto repugnante. Suas construções são pavorosas. Impera lá a ignóbil falta de asseio das oficinas. O velho Gigonnet morava no terceiro andar duma casa que tinha todas as janelas de báscula como pequenos caixilhos sujos. A escada terminava na rua. A zeladora estava instalada no entressolo, num cubículo que recebia luz apenas do vão da escada. Exceto Gigonnet, todos os locatários exerciam um ofício. Os operários entravam e saíam constantemente; por isso, os degraus da escada eram cobertos duma camada de lama, dura ou mole, conforme as condições atmosféricas, e neles se acumulava a imundície. Nessa escada fétida, cada patamar exibia o nome do artesão, em letras douradas sobre uma lata pintada de vermelho e envernizada, com amostras das suas obras-primas. As portas, quase sempre abertas, deixavam à mostra a singular união do lar com a oficina, e por elas saíam gritos e grunhidos estranhos, cantigas e assobios que lembravam o momento das quatro horas entre os animais do Jardin des Plantes. No primeiro andar, fabricavam-se, numa pocilga infecta, os mais belos suspensórios do Artigo de Paris. No segundo, confeccionavam-se, em meio das piores sujeiras, as mais elegantes caixas de papelão que se exibem, no dia de Ano-Novo, nas vitrinas. Gigonnet morreu com uma fortuna de um milhão e oitocentos mil francos no terceiro andar dessa casa, sem que argumento algum conseguisse arrancá-lo de lá, e a despeito do oferecimento que lhe fez a sra. Saillard, sua sobrinha, de um apartamento num palacete da Place Royale.

— Coragem! — disse Pillerault, ao puxar a corda da campainha pendente à porta parda e limpa de Gigonnet.

Gigonnet em pessoa abriu a porta. Os dois padrinhos do perfumista, em ação no terreno das falências, atravessaram um primeiro quarto correto e frio, sem cortinas nas janelas. Os três sentaram-se na segunda peça, ficando o agiota diante duma lareira cheia de cinzas no meio das quais a madeira se defendia contra o fogo. Popinot ficou com a alma enregelada diante das pastas verdes do usurário e da rigidez monástica daquele gabinete não mais arejado do que um porão. Observou, cheio de pasmo, o papel azulado estampado de flores tricolores, colocado às paredes há vinte e cinco anos, e passou os olhos aflitos para a lareira ornada duma pêndula em forma de lira e duns vasos oblongos em azul de Sèvres ricamente montados em cobre dourado. Esse objeto, salvo por Gigonnet no naufrágio de Versailles, no qual a população quebrou tudo,[371] provinha do quarto de vestir da rainha; essa joia magnífica estava, porém, acompanhada de dois castiçais de ferro batido do mais miserável modelo que lembravam, por esse feroz contraste, a circunstância a que era devida.

— Sei que não é por sua causa que os senhores vieram — disse Gigonnet — e sim pelo grande Birotteau. Pois bem, que é que há, meus amigos?

— Sei que ninguém precisa informar-lhe nada, e assim seremos breves — disse Pillerault. — O senhor tem umas letras à ordem de Claparon?

— Sim.

— Quer trocar as primeiras, até o valor de cinquenta mil francos, por letras do sr. Popinot, aqui presente, mediante desconto, é claro?

Gigonnet tirou o terrível boné verde, que parecia ter nascido com ele, mostrou o crânio cor de manteiga fresca despido de cabelos, fez sua careta voltairiana e disse:

— O senhor quer pagar-me em óleo para os cabelos, mas que é que eu farei com eles?

— Quando o senhor graceja, só nos resta retirar-nos — disse Pillerault.

— O senhor fala como homem sábio que é — disse-lhe Gigonnet, com um sorriso lisonjeiro.

— Bem, e se eu endossasse as letras do sr. Popinot? — disse Pillerault, fazendo um último esforço.

— O senhor é ouro em barra, sr. Pillerault, mas não necessito de ouro, preciso apenas do meu dinheirinho em papel.

Pillerault e Popinot cumprimentaram e saíram. Ao chegarem ao fim da escada, as pernas de Popinot ainda tremiam.

— Isso é um homem? — perguntou a Pillerault.

— Dizem que sim — respondeu o velho. — Lembra-te sempre desta breve cena, Anselmo! Acabas de ver o mundo bancário sem a máscara das suas formas amáveis. Os imprevistos são a prensa do lagar, nós somos a uva e os banqueiros bebem o vinho. O negócio dos terrenos é bom, sem dúvida; Gigonnet, ou alguém por detrás dele, quer estrangular César para se vestir com a pele dele: tudo está acabado, não há mais remédio. Isso é o banco, nunca recorras a ele!

Depois dessa terrível manhã, na qual, pela primeira vez, a sra. Birotteau pediu aos que iam buscar dinheiro que deixassem o endereço e mandou de volta o empregado do Banco sem pagá-lo, às onze horas a corajosa mulher, contente de ter poupado tais sofrimentos ao marido, viu voltarem Anselmo e Popinot, que estava esperando no meio de crescentes ansiedades: leu a sentença nas fisionomias deles. A falência era inevitável.

— Ele vai morrer de pesar — disse a pobre mulher.

— Também acho — disse gravemente Pillerault. — Mas ele é tão religioso que, nas circunstâncias atuais, só quem o pode salvar é o padre Loraux, seu mentor espiritual.

Pillerault, Popinot e Constança esperaram que um empregado fosse chamar o padre Loraux para depois apresentarem o balanço que Celestino estava preparando para César assinar. Os empregados estavam desesperados, pois gostavam do patrão. Às quatro horas, o bom padre chegou, Constança o pôs a par da desgraça que desabara sobre eles e o padre subiu a escada como um soldado galga uma trincheira.

— Sei por que foi que o senhor veio! — exclamou Birotteau.

— Meu filho — disse o padre —, conheço há muito tempo os seus sentimentos de resignação à vontade de Deus; agora, chegou a vez de aplicá-los: tenha sempre os olhos na cruz, não deixe de contemplá-la pensando nas humilhações de que foi cumulado o Salvador dos homens e no quanto a sua paixão foi cruel! Assim, o senhor poderá suportar as mortificações que Deus lhe envia...

— Meu irmão sacerdote já me preparou para isto — disse César, mostrando-lhe a carta, que relera e que entregou ao confessor.

— O senhor tem um bom irmão — disse o padre Loraux —, uma esposa virtuosa e meiga, uma filha afetuosa, dois verdadeiros amigos, o seu tio e o bom Anselmo, dois credores indulgentes, os Ragon; todos esses generosos corações hão de derramar constantemente um bálsamo sobre as suas feridas e hão de ajudá-lo a carregar sua cruz. Prometa-me conservar a firmeza dum mártir e encarar o golpe sem desfalecer.

O padre tossiu para prevenir Pillerault, que estava no salão.

— Minha resignação é sem limites — disse César, com calma. — Veio a desonra, devo pensar somente em repará-la.

A voz do pobre perfumista e sua expressão surpreenderam Cesarina e o padre. Contudo, nada era mais natural. Todos os homens suportam melhor uma desgraça conhecida, definida, do que as cruéis alternativas dum acaso que, dum momento para outro, traz a mais intensa alegria ou a extrema tristeza.

— Estive sonhando durante vinte e dois anos e agora desperto com o meu cajado na mão — disse César, voltando a ser um camponês da Touraine.

Ao ouvir essas palavras, Pillerault estreitou o sobrinho nos braços. César viu a esposa, Anselmo e Celestino. Os papéis que o primeiro empregado tinha na mão eram bastante significativos. César contemplou tranquilamente o grupo, no qual todos os olhares eram tristes, mas amigos.

— Um momento! — disse, arrancou a Cruz da Legião de Honra e entregou-a ao padre Loraux. — O senhor ma devolverá quando eu puder usá-la sem me envergonhar. Celestino — acrescentou, dirigindo-se ao empregado —, redija o meu pedido de demissão de suplente. O senhor padre lhe ditará a carta; date-a de 14 e mande Raguet levá-la ao sr. de La Billardière.

Celestino e o padre Loraux desceram. Durante cerca de um quarto de hora, reinou um profundo silêncio no gabinete de César. Sua coragem surpreendeu a família. Celestino e o padre voltaram e César assinou o pedido de demissão. Quando o tio Pillerault lhe apresentou o balanço, o pobre homem não pôde dominar seu horrível nervosismo.

— Meu Deus, tende piedade de mim! — disse, ao assinar o terrível documento, e entregou-o a Celestino.

— Meu senhor — disse então Anselmo Popinot, sobre cuja fronte enuviada passou um raio luminoso —, minha senhora, deem-me a honra de conceder-me a mão da srta. Cesarina.

A essa frase, todos os presentes ficaram com lágrimas nos olhos, exceto César, que se levantou, tomou a mão de Anselmo e, com uma voz grave, lhe disse:

— Meu filho, nunca te casarás com a filha dum falido.

Anselmo olhou fixamente para Birotteau.

— O senhor se compromete, na presença de toda a sua família, a consentir no nosso casamento, se a senhorita me aceitar para marido, no dia em que se reabilitar da falência?

Houve um momento de silêncio, durante o qual todos ficaram tocados pelas emoções que se estamparam na fisionomia abatida do perfumista.

— Sim — disse finalmente.

Anselmo fez um gesto indescritível para tomar a mão de Cesarina, que lha estendeu, e beijou-a.

— Também concorda? — perguntou a Cesarina.

— Sim — disse ela.

— Então sou, afinal, da família, e tenho o direito de me ocupar dos seus negócios! — disse ele, com uma expressão estranha.

Saiu precipitadamente para não demonstrar uma alegria que contrastava com a tristeza do patrão. Anselmo não estava propriamente contente com a falência, mas o amor é tão absoluto, tão egoísta! Cesarina mesma sentiu no coração uma emoção que estava em desarmonia com sua amarga tristeza.

— Já que chegamos a este ponto — disse Pillerault ao ouvido de Cesarina —, vamos tentar todos os meios.

A sra. Birotteau deixou escapar um gesto de pesar e não de assentimento.

— Meu sobrinho — disse Pillerault, dirigindo-se a César —, que pensas fazer agora?

— Continuar o comércio.

— Não é essa a minha opinião — disse Pillerault. — Liquida e distribui teu ativo aos credores e não reapareças mais na praça de Paris. Já me imaginei muitas vezes numa situação análoga à tua... (Ah! No comércio, é preciso prever tudo! O negociante que não pensa na falência é como um general que está certo de nunca ser vencido, é apenas negociante pela metade.) Se fosse eu, não continuaria. Como! Passar a vida a corar diante dos homens a quem eu tivesse prejudicado, a receber seus olhares desconfiados e suas tácitas censuras? Compreendo a guilhotina!... Num instante, tudo está acabado. Mas sentir a cabeça renascer e tornar a ser cortada todos os dias é um suplício que eu não toleraria. Muitas pessoas retomam os negócios como se nada lhes tivesse acontecido! Tanto melhor... são mais fortes do que Cláudio José Pillerault. Se fizeres os teus negócios à vista, e serás obrigado a isso, dirão que soubeste guardar uma boa quantia ao falir; e, se não tiveres dinheiro, nunca te poderás reabilitar. Assim, abandona o teu ativo, deixa que vendam o teu estabelecimento e dedica-te a outra coisa.

— Mas a quê? — perguntou César.

— Eh! — disse Pillerault. — Procura um emprego. Não tens proteções? O duque e a duquesa de Lenoncourt, a sra. de Mortsauf, o sr. de Vandenesse! Escreve-lhes, vai visitá-los, eles te empregarão na casa do rei com uns mil escudos; tua mulher pode ganhar outro tanto, e tua filha também. A situação não é desesperada. Os três, reunidos, farão uns dez mil francos por ano. Em dez anos, poderás pagar cem mil francos, pois não gastarás nada do que ganhardes: tua mulher e tua filha terão mil e quinhentos francos de minha parte para as despesas, e, quanto a ti, daremos um jeito!

Constança, e não César, refletiu sobre essas sensatas palavras. Pillerault dirigiu-se para a Bolsa, então instalada numa construção provisória de tábuas e que formava uma sala redonda com entrada pela Rue Feydeau. A falência do perfumista em evidência e invejado já conhecida estava provocando um rumor generalizado no alto comércio, então constitucional.

Os comerciantes liberais viam na festa de Birotteau um audacioso atentado contra os seus sentimentos. A gente da oposição queria ter o monopólio do amor à pátria. Permitia-se aos realistas amar o rei, mas a pátria era privilégio da Esquerda: o povo lhe pertencia! A gente do poder fizera mal em rejubilar-se, através dos seus órgãos, por um fato no qual os liberais viam apenas uma exploração. A queda dum protegido do castelo, dum ministerial, dum realista incorrigível que, a 13 de vendemiário, insultara a liberdade lutando contra a gloriosa Revolução Francesa; essa queda excitava falatórios e os aplausos da Bolsa. Pillerault queria conhecer, examinar a opinião. Encontrou, num dos grupos mais animados, Du Tillet, Gobenheim Keller, Nucingen, o velho Guillaume e seu genro José Lebas, Claparon, Gigonnet, Mongenod, Camusot, Gobseck, Adolfo Keller, Palma, Matifat, Grindot e Lourdois.

— Sim, senhor, como a gente precisa ter prudência! — disse Gobenheim a Du Tillet. — Pouco faltou para que os meus cunhados concedessem um crédito a Birotteau.

— Quanto a mim, perdi dez mil francos, que ele me pediu há quinze dias e que lhe dei mediante sua simples assinatura — disse Du Tillet. — Mas ele já me prestou um favor, tempos atrás, e não lastimo perdê-los.

— Fez como todos os outros o seu sobrinho — disse Lourdois a Pillerault —, deu festas! Que um patife tente jogar areia nos olhos dos outros para estimular a confiança, admito; mas um homem que era considerado a nata da gente honesta recorrer aos golpes desse velho charlatanismo, nos quais a gente sempre acaba caindo...

— Presa como sanguessugas — disse Gobseck.

— Não confie senão nos que vivem em pocilgas, como Claparon — disse Gigonnet.

— Muito pem — disse o gordo barão de Nucingen a Du Tillet —, focê quis tar-me um trote mandando Pirotô brocurar-me. Non zei por quê — acrescentou, voltando-se para Gobenheim, o industrialista —, ele non mantou puscar zincoenta mil francos, no meu panco, eu lhe teria mantato...

— Não diga isto, barão — disse José Lebas. — O senhor sabia muito bem que o Banco recusara sua letra, o senhor mesmo fizera rejeitá-la na sessão de descontos. O caso desse pobre homem, por quem ainda professo uma elevada estima, apresenta circunstâncias estranhas...

A mão de Pillerault apertou a de José Lebas.

— É impossível, com efeito — disse Mongenod —, explicar o que está acontecendo, a menos que se acredite que haja, ocultos atrás de Gigonnet, banqueiros interessados em matar o negócio da Madeleine.

— Sucede-lhe o que sempre sucederá aos que se afastam da especialidade — disse Claparon, interrompendo Mongenod. — Se ele mesmo tivesse lançado o seu Óleo Cefálico em vez de vir encarecer os terrenos de Paris atirando-se a eles, teria perdido os cem mil francos que tinha no cartório de Roguin, mas não teria falido. Ele vai trabalhar sob o nome de Popinot.

— Fiquem de olho em Popinot! — disse Gigonnet.

Roguin, segundo aquela massa de negociantes, era o infortunado Roguin, e o perfumista, o pobre Birotteau. Um parecia desculpado por uma grande paixão, o outro parecia mais culpado devido às suas pretensões.

Ao deixar a Bolsa, Gigonnet passou pela Rue Perrin-Gasselin antes de voltar para a Rue Grenétat e foi à casa da sra. Madou, a vendedora de frutas secas.

— Então, tia — disse-lhe com sua cruel jovialidade —, como vai esse negociozinho?

— Vai indo — disse respeitosamente a sra. Madou, oferecendo sua única poltrona ao agiota com um afetuoso servilismo que só tivera pelo querido falecido.

A tia Madou, que jogava ao chão um carroceiro recalcitrante ou excessivamente confiado, que não tivera medo de participar do assalto às Tuileries a 10 de outubro,[372] que repreendia os melhores fregueses e que era capaz, enfim, de dirigir, sem tremer, a palavra ao rei em nome das mulheres do Mercado, Angélica Madou tratava Gigonnet com um profundo respeito. Sentindo-se sem forças na presença dele, estremecia sob o seu olhar ríspido. A gente do povo continuará ainda por muito tempo a tremer diante do carrasco, e Gigonnet era o carrasco do comércio. No Mercado nenhum poder é mais respeitado do que o do homem que empresta dinheiro. As outras instituições humanas não são nada comparadas a ele. Mesmo a Justiça se traduz aos olhos do Mercado pelo comissário, personagem com o qual ele acaba se familiarizando. Mas a usura sentada atrás das suas pastas verdes, a usura implorada com o medo no coração mata o desejo de gracejar, seca a garganta, abate a altivez do olhar e torna o povo respeitoso.

— Tem alguma coisa a pedir-me? — perguntou ela.

— Um nada, uma miséria: prepare-se para receber logo o dinheiro das letras de Birotteau; o bom homem faliu, tudo fica sendo exigível, amanhã de manhã eu lhe mandarei a conta.

Os olhos da sra. Madou concentraram-se, inicialmente, como os duma gata, e depois vomitaram chamas.

— Ah! O velhaco! Ah! O bandido! Ele mesmo veio cá, dizendo-me que era suplente do maire e contando vantagens! Patife! É assim mesmo o comércio! Já não se pode confiar nem nos juízes, o próprio governo nos engana. Mas, espere, eu vou obrigá-lo a me pagar, se vou!...

— Eh! Nesses negócios, cada um se defende como pode, minha filha! — disse Gigonnet, erguendo a perna com esse pequeno movimento seco semelhante ao dum gato que quer passar por um lugar molhado e ao qual devia o seu apelido.[373] — Há gente graúda resolvida a se salvar enquanto é cedo.

— Bom! Bom! Pois eu também vou tratar de salvar as minhas avelãs. Maria Joana! Traze os meus tamancos e a minha capa de casimira com pele de coelho, e depressa, senão eu te arrebento a cara com uma bofetada!

“Isto vai ferver na rua”, disse consigo Gigonnet, esfregando as mãos. “Du Tillet ficará contente, vai haver um escândalo no bairro. Não sei o que foi que lhe fez esse pobre-diabo do perfumista; quanto a mim, tenho pena dele como de um cão ao qual se quebra uma pata. Ele não é homem, não tem energia.”

Às sete da noite, a sra. Madou irrompeu, como uma insurreição do Faubourg Saint-Antoine, à porta do pobre Birotteau, abrindo-a com extrema violência, pois a subida dos degraus excitara ainda mais a sua fúria.

— Cara de todos os bichos! Preciso do meu dinheiro, quero o meu dinheiro! O senhor me dá o meu dinheiro ou levarei estes saquinhos, estas bugigangas, estes leques, qualquer mercadoria, enfim, pelos meus dois mil francos! Onde é que já se viu maires roubarem dos seus administrados! Se o senhor não me pagar, hei de mandá-lo para as galeras, irei falar com o procurador do rei e a Justiça há de ter serviço! Bem, não sairei daqui sem o meu dinheiro.

E fingiu que ia abrir a porta dum armário que encerrava objetos preciosos.

— A Madou está pegando fogo[374] — disse em voz baixa Celestino ao colega que estava perto dele.

A vendeira ouviu a frase, pois, nos paroxismos da paixão, os órgãos se obliteram ou se aperfeiçoam, segundo as constituições, e ela aplicou à orelha de Celestino a mais vigorosa bofetada que já se deu numa loja de perfumaria.

— Aprende a respeitar as mulheres, meu anjo — disse ela —, e a não enxovalhar o nome daqueles a quem roubas.

— Minha senhora — disse a sra. Birotteau, saindo da sala que ficava atrás da loja, onde, por acaso, se achava o seu marido, que o tio Pillerault queria levar embora e que, para obedecer à lei, exagerava a sua humildade a ponto de querer se deixar prender. — Minha senhora, em nome do céu, não chame a atenção dos transeuntes.

— Eh! Eles que entrem — disse a mulher —, eu lhes direi a coisa, que é mesmo para rir! Sim, a minha mercadoria e os meus escudos ganhos com o suor do meu rosto servindo para dar bailes. E a senhora mesma anda vestida como uma rainha da França com a lã tirada dos pobres cordeirinhos como eu! Jesus! Isso me queimaria as costas, a mim, uma roupa roubada! Não tenho mais que uma pele de coelho em cima da minha carcaça, mas pelo menos é minha! Súcia de ladrões, deem-me o meu dinheiro, ou...

Lançou-se a uma linda caixa de marchetaria onde havia objetos preciosos de toucador.

— Deixe isso, senhora — disse César, aparecendo —, nada disto aqui é meu, tudo pertence aos meus credores. Não tenho mais que a minha pessoa, e, se a senhora quiser ficar com ela, meter-me na prisão, dou-lhe a minha palavra de honra — e uma lágrima rolou dos seus olhos — de que esperarei o seu oficial de justiça, o fiscal do comércio e seus esbirros...

O tom de voz e o gesto, em harmonia com a ação, abrandaram a cólera da sra. Madou.

— Meu capital foi furtado por um tabelião e sou inocente pelos desastres que estou causando — acrescentou César. — Mas com o tempo a senhora será paga, nem que eu tenha de morrer de cansado, trabalhando como um operário, no Mercado, na profissão de carregador.

— Está bem, o senhor é um homem às direitas — disse a mulher do Mercado. — Desculpe as minhas palavras, senhora; mas vou ter que me atirar à água, pois Gigonnet vai me perseguir e só tenho títulos a dez meses para reembolsar as suas danadas letras.

— Vá procurar-me amanhã — disse Pillerault, aparecendo —, eu lhe arranjarei o seu negócio, a cinco por cento, com um amigo.

— Mas veja quem! É o bravo tio Pillerault. Eh! Mas ele é seu tio! — disse a Constança. — Ora, os senhores são gente honesta, não perderei nada, não é? Até amanhã, meu velho! — disse ao antigo ferrageiro.

César fez questão fechada de permanecer no meio das suas ruínas, dizendo que assim se explicaria com todos os credores. A despeito das súplicas da sobrinha, o tio Pillerault aprovou a atitude de César e o fez subir ao quarto. O astuto velho correu à casa do dr. Haudry, explicou-lhe a situação de Birotteau, conseguiu uma receita para uma poção sonífera, mandou aviá-la e voltou para passar o serão na casa do sobrinho. De combinação com Cesarina, obrigou César a beber com eles. O narcótico adormeceu o perfumista, que acordou, catorze horas mais tarde, no quarto do tio Pillerault, à Rue des Bourdonnais, encarcerado pelo velho, que, por sua vez, dormia numa cama de vento na sala.

Quando Constança ouviu rodar o fiacre no qual o tio Pillerault levava César, sua coragem a abandonou. Muitas vezes as nossas forças são estimuladas pela necessidade de amparar uma criatura mais fraca do que nós. A pobre mulher chorou ao ver-se a sós com a filha, do mesmo modo que teria chorado a morte de César.

— Mamãe — disse Cesarina, sentando-se nos joelhos da mãe e afagando-a com esses carinhos de gata que as mulheres só sabem fazer entre si —, tu me disseste que se eu me conduzisse corajosamente terias força contra a adversidade. Não chores, pois, querida mamãe. Estou disposta a empregar-me imediatamente numa loja qualquer e nunca mais pensarei no que fomos. Serei, como tu foste na mocidade, uma primeira caixeira, e nunca ouvirás de mim uma queixa ou um lamento. Tenho uma esperança. Não ouviste o que disse o sr. Popinot?

— Pobre menino, não será meu genro...

— Oh! Mamãe...

— Ele será, na verdade, meu filho...

— A desgraça — disse Cesarina, abraçando a mãe — tem isto de bom, que nos faz conhecer os verdadeiros amigos.

Cesarina acabou por suavizar a mágoa da pobre mulher, desempenhando junto dela o papel de mãe.

Na manhã seguinte, Constança foi à casa do duque de Lenoncourt, um dos primeiros fidalgos da Câmara do rei, e lá deixou uma carta na qual lhe pedia uma audiência a uma certa hora do dia. No intervalo, foi à casa do sr. de La Billardière, expôs-lhe a situação em que a fuga do tabelião deixara César e pediu-lhe que a apoiasse junto ao duque e lhe falasse por ela, pois tinha receio de se explicar mal. Queria um emprego para Birotteau. Birotteau seria o tesoureiro mais honesto, se fosse possível fazer distinções na honestidade.

— O rei acaba de nomear o conde de Fontaine para uma direção geral no ministério da sua casa, não há tempo a perder.

Às duas horas, De La Billardière e a sra. César subiam a grande escadaria do palácio de Lenoncourt, à Rue Saint-Dominique, e foram introduzidos na casa do fidalgo preferido do rei, se é que o rei Luís xviii teve preferências. O amável acolhimento desse nobre, que pertencia ao pequeno número dos verdadeiros fidalgos que o século passado legou a este, deu esperança à sra. César. A esposa do perfumista mostrou-se grande e simples no infortúnio. O infortúnio enobrece as pessoas vulgares, pois tem sua grandeza; e, para receber seus reflexos, basta ser sincero. Constança era uma mulher essencialmente sincera. Era necessário falar ao rei imediatamente.

No meio da conferência anunciaram o sr. de Vandenesse, e o duque exclamou:

— Aí está o seu salvador!

A sra. Birotteau não era desconhecida desse rapaz, que fora à casa dela uma ou duas vezes para comprar essas ninharias que muitas vezes têm maior importância do que as grandes coisas. O duque explicou as intenções de De La Billardière. Ao ser informado da desgraça que se abatera sobre o afilhado da marquesa d’Uxelles, De Vandenesse dirigiu-se imediatamente, com De La Billardière, à casa do conde de Fontaine, pedindo à sra. Birotteau que o esperasse.

o sr. conde de Fontaine era, como De La Billardière, um desses bravos fidalgos da província, heróis quase desconhecidos que fizeram a Vendeia.[375] Birotteau não lhe era estranho, pois ele o vira, tempos atrás, na Rainha das Rosas. As pessoas que haviam derramado seu sangue pela causa real gozavam, nessa época, de privilégios que o rei conservava secretos, para não espantar os liberais. O sr. de Fontaine, um dos favoritos de Luís xviii, passava por gozar de toda a sua confiança. O conde não somente prometeu positivamente um emprego mas ainda foi à casa do duque de Lenoncourt, então de serviço, para pedir-lhe que lhe conseguisse um momento de audiência no serão de Monsieur,[376] que estimava particularmente o antigo diplomata vendeano.

Na mesma noite, o sr. conde de Fontaine foi das Tuileries à casa da sra. Birotteau anunciar-lhe que o seu marido, depois da concordata, seria oficialmente nomeado para um cargo de dois mil e quinhentos francos na Caixa de Amortização, pois todos os postos da casa do rei estavam então ocupados por nobres supranumerários com os quais haviam tomado compromissos.

Esse triunfo não era mais que uma parte da tarefa da sra. Birotteau. A pobre mulher foi à Rue Saint-Denis, a Ao “Chat-qui-pelote”, procurar José Lebas. No caminho, encontrou numa suntuosa equipagem a sra. Roguin, que, sem dúvida, andava fazendo compras. Seus olhos e os da bela tabeliã se cruzaram. A vergonha que a mulher feliz não pôde ocultar ao ver a mulher empobrecida deu coragem a Constança.

“Eu nunca andaria de carro com o dinheiro alheio”, pensou ela.

Bem recebida por José Lebas, ela pediu-lhe que conseguisse para sua filha um emprego numa casa de comércio respeitável. Lebas não prometeu nada; mas, oito dias mais tarde, Cesarina foi nomeada com casa, comida e mil escudos para a mais rica das casas de moda de Paris, que fundara uma filial no Faubourg des Italiens. O caixa e a fiscalização da loja ficaram confiados à filha do perfumista, que, colocada acima da primeira caixeira, substituía o patrão e a patroa da casa.

Quanto à sra. Birotteau, foi no mesmo dia à casa de Popinot pedir-lhe que a empregasse para atender ao caixa, à escrita e ao serviço da casa. Popinot compreendeu que a sua casa era a única onde a esposa do perfumista poderia encontrar o respeito que lhe era devido e uma posição sem inferioridade. O nobre rapaz deu-lhe três mil francos por ano, casa e comida, instalando-a no seu próprio quarto e mudando-se para a mansarda dum empregado. Assim, a bela perfumista, após ter desfrutado, durante um mês, as suntuosidades do seu apartamento, teve de ir morar no pavoroso quarto com vista para o pátio sombrio e úmido onde Gaudissart, Anselmo e Finot haviam lançado o Óleo Cefálico.

Quando Molineux, nomeado agente pelo Tribunal de Comércio, foi tomar posse do ativo de César Birotteau, Constança, auxiliada por Celestino, verificou o inventário com ele. Depois, a mãe e a filha saíram, a pé, singelamente vestidas, e dirigiram-se para a casa do tio Pillerault, sem olhar para trás, após terem morado naquela casa a terça parte da sua vida. Encaminharam-se em silêncio para a Rue des Bourdonnais, onde jantaram com César pela primeira vez depois da sua separação. Foi um jantar triste. Todos eles haviam tido tempo para fazer as suas reflexões, avaliar a extensão de suas obrigações e sondar sua coragem. Os três achavam-se como marinheiros prontos para lutar contra o mau tempo, sem se dissimular o perigo. Birotteau recobrou coragem ao ser informado da grande solicitude com que altas personalidades lhe haviam conseguido um emprego, mas chorou ao saber o que ia suceder à filha. Depois, estendeu a mão para a mulher ao ver a coragem com que ela voltava à vida de trabalho.

O tio Pillerault ficou, pela última vez na vida, com os olhos molhados diante do patético quadro das três criaturas unidas, confundidas num abraço no meio do qual Birotteau, o mais fraco dos três, o mais abatido, levantou a mão, dizendo:

— Confiemos!

— Para economizar — disse o tio —, fica morando comigo, ocupa meu quarto e reparte o meu pão. Há muito tempo que me aborreço de viver sozinho, tu substituirás o pobre filho que perdi. Daqui, ficarás a um passo da Rue de l’Oratoire, onde fica o teu caixa.

— Deus de bondade! — exclamou Birotteau. — No forte da tempestade, uma estrela me guia!...

Resignando-se, o desgraçado vence a desgraça. A queda de Birotteau estava consumada. Ele se submetia ao infortúnio e voltava a ser forte.


TERCEIRA PARTE

VITÓRIA DE CÉSAR

 

 

 

XIV — HISTÓRIA GERAL DAS FALÊNCIAS

Um comerciante, depois de entrar em falência, não deveria pensar em mais nada a não ser encontrar um oásis na França ou no estrangeiro, para lá viver sem se imiscuir em coisa alguma, como criança que é, pois a lei o declara menor e incapaz de qualquer ato legal, civil e cívico. Mas não é isso o que se dá. Antes de reaparecer, espera um salvo-conduto que nunca um juiz comissário ou um credor negou, pois, se fosse encontrado sem esse exeat, seria preso, ao passo que, munido dessa salvaguarda, pode andar como parlamentar pelo campo inimigo, não por curiosidade, mas para desfazer as más intenções da lei relativamente aos falidos. Toda lei que atinge a fortuna privada desenvolve prodigiosamente as trapaças do espírito. O pensamento dos falidos, como o de todos aqueles cujos interesses são contrariados por uma lei qualquer, é de anulá-la no que lhes diz respeito.

A situação de morte civil, em que o falido se conserva como uma crisálida, dura cerca de três meses, tempo exigido pelas formalidades antes de chegar ao Congresso, no qual se assina, entre os credores e o devedor, um tratado de paz, transação denominada concordata. Esta palavra mostra suficientemente que volta a reinar a concórdia depois da tempestade surgida entre interesses violentamente contrariados.

À vista do balanço, o Tribunal de Comércio nomeia imediatamente um juiz do comércio para velar pela massa de credores desconhecidos e que também deve proteger o falido contra os atentados vexatórios dos seus credores exaltados, duplo papel que seria magnífico de desempenhar, se os juízes comissários tivessem tempo para isso. Esse juiz comissário investe um agente do direito de meter a mão no estabelecimento, nos valores e nas mercadorias, para verificar o ativo consignado no balanço; e, por fim, o escrivão faz uma convocação de todos os credores, ao som de trombeta dos editais nos jornais. Os credores, falsos ou verdadeiros, são convidados para uma reunião a fim de nomear síndicos provisórios que substituem o agente, se calçam com os sapatos do falido, transformam-se, graças a uma ficção da lei, no falido mesmo, e podem liquidar tudo, vender tudo, transigir a respeito de tudo, enfim, arrasar tudo em benefício dos credores, se o falido não se opuser.

A maioria das falências parisienses fica confiada aos síndicos provisórios, e eis por quê.

A nomeação de um ou de vários síndicos definitivos é um dos atos mais apaixonados a que se possam entregar credores sedentos de vingança, burlados, ridicularizados, zombados, logrados, iludidos, roubados e enganados. Embora, geralmente, os credores sejam enganados, roubados, iludidos, logrados, zombados, ridicularizados e burlados, não há, em Paris, paixão comercial que dure noventa dias. Em negócio, somente as letras de comércio são capazes de se conservar sedentas de pagamento durante três meses. Ao fim de noventa dias, todos os credores, exaustos de fadiga pelas marchas e contramarchas exigidas por uma falência, dormem tranquilamente ao lado das suas excelentes mulherzinhas. Isto pode auxiliar os estrangeiros a compreender o quanto, na França, o provisório é definitivo: entre mil síndicos provisórios, não há cinco que se tornem definitivos. A razão dessa abjuração dos ódios suscitados pela falência logo será compreendida. Mas é necessário explicar às pessoas que não têm a felicidade de ser negociantes o drama duma falência, a fim de mostrar como ela constitui, em Paris, uma das mais monstruosas trapaças legais, e como a falência de César ia ser uma enorme exceção.

Esse belo drama comercial tem três atos distintos: o ato do agente, o ato dos síndicos, o ato da concordata. Como todas as peças de teatro, ele oferece um duplo espetáculo: tem sua encenação para o público e seus meios secretos; tem a representação vista da plateia e a representação vista dos bastidores.

Nos bastidores, ficam o falido e seu representante, o advogado dos comerciantes, os síndicos e o agente, e finalmente o juiz comissário.

Ninguém fora de Paris sabe e ninguém em Paris ignora que o juiz do Tribunal de Comércio é o mais estranho magistrado que uma sociedade pode se permitir criar. Este juiz está ameaçado, a todo o momento, de ver sua justiça voltar-se contra si mesmo. Paris viu o presidente do seu Tribunal de Comércio ser obrigado a abrir falência. Em vez de ser um antigo comerciante retirado dos negócios, e para quem essa magistratura seria a recompensa de uma vida honesta, esse juiz é um comerciante sobrecarregado de enormes tarefas, à frente de uma grande casa comercial. A condição sine qua non de elegibilidade desse juiz, incumbido de julgar as avalanchas de processos comerciais que rolam incessantemente na capital, é viver em grande dificuldade para dirigir os próprios negócios. Esse Tribunal de Comércio, em vez de ter sido instituído como uma útil transição de onde o negociante se elevaria, sem ridículo, às regiões da nobreza, é composto de comerciantes em exercício, que podem ser prejudicados por suas sentenças ao se defrontar com as partes descontentes, como Birotteau se estava defrontando com Du Tillet.

O juiz comissário é, pois, necessariamente, um personagem diante do qual se dizem muitas palavras, que as escuta pensando nos seus negócios e se louva nos síndicos e no advogado comercial para resolver sobre a coisa pública, salvo alguns casos estranhos e curiosos, nos quais as fraudes se apresentam com circunstâncias singulares e o levam a declarar que os credores ou o devedor são pessoas espertas. Este personagem, colocado no drama como um busto real numa sala de audiência, é visto pela manhã, entre as cinco e as sete horas, no seu depósito, se é comerciante de madeiras; na sua loja, se, como antigamente Birotteau, é perfumista; ou à noite, depois do jantar, sempre, aliás, terrivelmente apressado. Assim, essa personagem geralmente é muda. Façamos justiça à lei: a apressada legislação que rege a matéria amarra as mãos ao juiz comissário, e, em várias circunstâncias, ele consagra fraudes sem poder impedi-las, como vereis.

O agente, que deve ser o defensor dos credores, pode-se tornar o defensor do devedor. Cada um espera poder engordar o seu quinhão fazendo-se favorecer pelo falido, que sempre se supõe ter tesouros escondidos. O agente pode se utilizar das duas partes, seja evitando a confusão nos negócios do falido ou reservando alguma coisa para as pessoas influentes: acende, assim, uma vela a Deus, outra ao Diabo. Muitas vezes, um agente hábil tem conseguido adiar um julgamento resgatando os créditos e reerguendo o negociante, que então fica a saltar como uma bola de borracha. O agente volta-se, então, contra a parte mais polpuda, seja porque precise proteger os mais fortes credores e desproteger o devedor, seja porque precise imolar os credores ao futuro do negociante. Assim, o ato do agente é o ato decisivo. Esse homem, do mesmo modo que o advogado, é quem leva a maior vantagem na peça, onde tanto um como o outro só aceitam seus papéis depois de se terem assegurado dos honorários. Em mil falências, o agente é, em média, novecentas e cinquenta vezes o homem do falido. Na época em que decorreu esta história, quase todos os advogados comerciais iam procurar o juiz comissário e lhe indicavam um agente a nomear, o seu agente, um homem que conhecia os negócios do comerciante e que saberia conciliar os interesses da massa de credores com os do homem digno que caíra no infortúnio. Há alguns anos, os juízes hábeis fazem com que lhes indiquem o agente que desejam, a fim de não o nomear, e tratam de nomear um quase virtuoso.

Durante esse ato, apresentam-se os credores, falsos ou verdadeiros, para designar os síndicos provisórios, que são, como ficou dito, definitivos. Nesta assembleia eleitoral têm direito de voto tanto aqueles a quem se devem cinquenta sous como os credores de cinquenta mil francos: os votos são contados, e não pesados. Essa assembleia, na qual figuram os falsos eleitores introduzidos pelo falido, os únicos que nunca faltam à eleição, propõe como candidatos os credores entre os quais o juiz comissário, presidente sem autoridade, é obrigado a escolher os síndicos. Assim, o juiz comissário recebe, quase sempre, das mãos do falido, os síndicos que a este convêm: outro abuso que torna essa catástrofe um dos mais burlescos dramas que a Justiça possa proteger. O homem digno caído no infortúnio, senhor do terreno, legaliza então a fraude que planejou. O pequeno comércio de Paris, de modo geral, está acima de qualquer censura. Quando um lojista chega à falência, o pobre honesto homem já vendeu o xale da esposa, empenhou os talheres, lançou mão de todos os meios e sucumbiu com as mãos vazias, arruinado, sem dinheiro nem mesmo para o advogado comercial, que pouco se importa com ele.

A lei exige que a concordata, que restitui ao negociante uma parte da sua dívida e lhe permite continuar a negociar, seja votada por uma certa maioria de créditos e de pessoas. Esta grande tarefa reclama uma hábil diplomacia dirigida no meio de interesses opostos que se cruzam e se chocam, pelo falido, seus síndicos e seu advogado. A manobra habitual, vulgar, consiste em oferecer à parcela de credores que constitui a maioria exigida pela lei gratificações a serem pagas pelo devedor, além dos dividendos fixados na concordata. Para esta imensa fraude, não há remédio algum: os trinta tribunais de comércio que se sucederam a conhecem por havê-la praticado. Esclarecidos por um longo tirocínio, eles ultimamente se decidiram a anular os créditos acusados de fraude; e, como os falidos têm interesse em se queixar dessa extorsão, os juízes esperam moralizar, assim, a falência; mesmo assim, eles a tornarão cada vez mais imoral: os credores inventarão alguns atos ainda mais sórdidos, que os juízes condenarão como juízes, e dos quais se aproveitarão como negociantes.

Uma outra manobra extremamente em uso, e à qual se deve a expressão credor sério e legítimo, consiste em criar credores, como Du Tillet criara uma casa bancária, e em introduzir um certo número de Claparons, sob a pele dos quais se oculta o falido, que, desse modo, reduz o dividendo dos verdadeiros credores e acumula recursos para o futuro, ao mesmo tempo que se assegura a quantidade de votos e de quantias para obter a concordata. Os credores alegres e ilegítimos são como falsos eleitores introduzidos no colégio eleitoral. Que pode fazer o credor sério e legítimo contra os credores alegres e ilegítimos? Desembaraçar-se deles, impugnando-os! Pois bem. Para expulsar o intruso, o credor sério e legítimo precisa abandonar seus negócios, encarregar um advogado da sua causa, advogado que, não ganhando quase nada nisso, prefere dirigir falências e não se esforça pela causa. Para desalojar o credor alegre, é necessário penetrar no dédalo das operações, remontar a épocas distantes, folhear livros, obter, por mandato judicial, vista dos livros do falso credor, descobrir o inverídico da ficção, demonstrá-lo aos juízes do tribunal, questionar, andar dum lado para outro, aquecer muitos corações frios; depois, fazer o papel de Dom Quixote diante de cada credor ilegítimo e alegre, o qual, se vem a ser convencido de alegria, se retira, cumprimentando os juízes, e diz: “Desculpem-me, os senhores estão enganados, sou muito sério”. Tudo isso sem prejudicar os direitos do falido, que pode levar o Dom Quixote ao tribunal. Durante esse tempo, os negócios do Dom Quixote vão mal e ele é suscetível de abrir falência.

Moral: o devedor nomeia os seus síndicos, verifica seus créditos e arranja pessoalmente a sua concordata.

De posse destes dados, quem não percebe as intrigas, os golpes de Sganarello, as invenções de Frontin, as mentiras de Mascarille e os sacos vazios de Scapin[377] a que dão lugar esses dois sistemas? Não há falência em que não se invente o suficiente para fornecer a matéria dos catorze volumes de Clarissa Harlowe[378] ao escritor que quisesse narrá-la. Um único exemplo bastará. O ilustre Gobseck, o mestre dos Palma, dos Gigonnet, dos Werbrust, dos Keller e dos Nucingen, encontrando-se numa falência na qual resolvera tratar rudemente um negociante que conseguira prejudicá-lo, recebeu, em letras vencíveis após a concordata, uma quantia que, junto à dos dividendos, formava a integralidade do seu crédito. Gobseck determinou a aceitação de uma concordata que concedia ao falido um abatimento de setenta e cinco por cento. Os credores foram, assim, prejudicados em benefício de Gobseck. Acontece, porém, que as letras assinadas pelo negociante foram emitidas por sua razão social em falência e ele pôde, assim, aplicar a esses títulos a dedução de setenta e cinco por cento. Gobseck, o grande Gobseck, recebeu apenas cinquenta por cento. Daí por diante, passou a cumprimentar o seu devedor com um respeito irônico.

Como todas as operações feitas com um falido dez dias antes da falência podem ser incriminadas, alguns homens prudentes têm o cuidado de entabular certas negociações com certo número de credores, cujo interesse, como o do falido, consiste em chegar a uma rápida concordata. Credores muito espertos vão procurar credores muito ingênuos ou muito atarefados, descrevem-lhes a falência com as cores mais sombrias e compram-lhes os créditos pela metade do que valerão na liquidação, e recuperam, assim, seu dinheiro pelo dividendo dos seus créditos e pela metade, o terço ou o quarto ganho sobre os créditos comprados.

A falência é o fechamento mais ou menos hermético duma casa na qual a pilhagem deixou alguns sacos de dinheiro. Feliz do negociante que se insinua pela janela, pelo teto, pelo porão, por um buraco, que apanha um saco e engrossa a sua parte! Nesse desbarato, no qual se brada o salve-se quem puder do Berezina,[379] tudo é ilegal e legal, falso e verdadeiro, honesto e desonesto. Um homem é admirado se se defende. Defender-se é apoderar-se de alguns valores em prejuízo dos outros credores. Repercutiram em toda a França os debates em torno de uma imensa falência ocorrida numa cidade que era sede duma Corte real e na qual os magistrados, em conta corrente com os falidos, ficaram para si com mantos impermeáveis tão pesados que o manto da Justiça ficou cheio de buracos. Foi forçoso, devido à suspeita legítima, transferir o julgamento da falência para outra Corte. Não havia juiz comissário nem agente nem corte soberana possíveis na cidade onde estourara a bancarrota.

Esse pavoroso lodaçal comercial é tão bem compreendido em Paris que, a não ser que esteja interessado na falência por uma soma vultosa, qualquer comerciante, por pouco atarefado que seja, aceita a falência como um sinistro sem seguradores, passa o prejuízo para a conta de lucros e perdas e não comete a tolice de gastar tempo; continua a tratar dos seus negócios. Quanto ao pequeno comerciante, preocupado com o fim do mês, atarefado em conduzir os seus negócios, tem receio de um processo espantoso de duração e dispendioso; renuncia, assim, a meter-se nele, imita o forte comerciante e baixa a cabeça, conformando-se com a perda.

Os comerciantes fortes não vão mais à falência, liquidam amigavelmente: os credores dão quitação, recebendo o que se lhes oferece. Evitam-se, assim, a desonra, as demoras judiciárias, os honorários dos advogados, as depreciações das mercadorias. Todos acreditam que a falência daria menos que a liquidação. Há mais liquidações do que falências, em Paris.

O ato dos síndicos é destinado a provar que todo síndico é incorruptível, que nunca houve entre eles e o falido o mínimo conluio. A plateia, que já foi, mais ou menos, síndico, sabe que todo síndico é um credor encoberto. Escuta, acredita no que ele quer que acredite e chega ao dia da concordata após três meses empregados em verificar os créditos passivos e os créditos ativos. Os síndicos provisórios fazem, então, à assembleia, um pequeno relatório, cuja fórmula, em linhas gerais, é a seguinte:

 

Senhores, era-nos devido, em bloco, um milhão. Desmanchamos o nosso homem em pedacinhos, como uma fragata soçobrada. Os pregos, os ferros, as madeiras e os cobres renderam trezentos mil francos. Temos, portanto, trinta por cento dos nossos créditos. Satisfeitos de ter encontrado esta soma, quando o nosso devedor nos poderia ter deixado apenas cem mil francos, nós o declaramos um Aristides,[380] votamos-lhe prêmios de encorajamento e coroas e propomos deixar-lhe o seu ativo, concedendo-lhe um prazo de dez ou doze anos para nos pagar cinquenta por cento do que ele se dignar prometer-nos. Aqui está a concordata, passem ao escritório e assinem-na!

 

Ao ouvir esse discurso, os venturosos negociantes se felicitam e se abraçam. Após a homologação dessa concordata, o falido volta a ser comerciante como antes; restituem-lhe o ativo, ele recomeça os negócios, sem ficar privado do direito de abrir falência dos dividendos prometidos, uma neta da falência, que se vê frequentemente e que é como um filho dado à luz por uma mãe nove meses após o casamento de uma filha.

Se a concordata não é aprovada, os credores nomeiam então síndicos definitivos, tomam medidas arbitrárias, coligando-se para explorar os bens, o comércio do devedor, apoderando-se de tudo quanto ele tiver, a herança do pai, da mãe, da tia etc. Esta rigorosa medida é executada por meio de um contrato de união.

Há, pois, duas espécies de falência: a falência do negociante que volta aos negócios e a falência do negociante que, caído na água, se contenta em ir para o fundo do rio. Pillerault conhecia bem essa diferença. Era, segundo ele e também segundo Ragon, tão difícil sair honrado da primeira como sair rico da segunda. Depois de ter aconselhado o abandono completo, dirigiu-se ao mais honesto advogado comercial da praça para que ele executasse a falência, liquidando e colocando os valores à disposição dos credores. A lei manda que os credores, enquanto dura o drama, deem alimentos ao falido e à sua família. Pillerault comunicou ao juiz comissário que ele custearia as necessidades da sobrinha e do sobrinho.

Tudo fora combinado por Du Tillet para tornar a falência uma contínua agonia para o seu antigo patrão. Eis como: o tempo é tão precioso, em Paris, que, geralmente, nas falências apenas um dos dois síndicos se ocupa dos negócios. O outro é pura formalidade: aprova, como o segundo tabelião, nos atos realizados em cartório. O síndico em função louva-se frequentemente no advogado. Por este meio, em Paris, as falências do primeiro tipo são conduzidas tão apressadamente que, nos prazos exigidos pela lei, tudo fica concluído, resolvido, arranjado. Em cem dias, o juiz comissário pode pronunciar a atroz frase de um ministro: “A ordem reina em Varsóvia”.[381]

Du Tillet desejava a morte comercial do perfumista. Assim, o nome dos síndicos designados por influência de Du Tillet foi significativo para Pillerault. O sr. Bidault, conhecido por Gigonnet, principal credor, não devia se ocupar de nada. Molineux, o velhote exigente que nada ia perder, é que se ocuparia de tudo. Du Tillet lançara esse chacal àquele nobre cadáver comercial, para atormentá-lo enquanto o devorasse.

Após a assembleia na qual os credores nomearam o sindicato, o pequeno Molineux voltou para casa, honrado, disse, pelos sufrágios dos seus concidadãos, contente de ver Birotteau à sua mercê, como uma criança de poder maltratar um inseto. O proprietário, a cavalo sobre a lei, pediu a Du Tillet que o auxiliasse com as suas luzes e comprou o Código de Comércio. Felizmente, José Lebas, avisado por Pillerault, conseguira antes de mais nada que o presidente confiasse o caso a um juiz comissário sagaz e benévolo. Gobenheim Keller, que Du Tillet esperava ver indicado, foi substituído pelo sr. Camusot, juiz suplente, rico comerciante liberal de sedas, proprietário da casa onde morava Pillerault e homem considerado digno.

Uma das mais horríveis cenas da vida de César foi a sua conferência forçada com o pequeno Molineux, essa criatura que ele considerava tão nula e que por uma ficção da lei passara a fazer as vezes de César Birotteau. Ele teve de ir, acompanhado do tio, à Cour Batave, subir os seis andares e entrar novamente no horroroso apartamento do velhote, seu tutor, seu quase juiz, o representante da massa dos seus credores.

— Que tens? — perguntou Pillerault a César, ao ouvir uma exclamação.

— Ah! Meu tio, o senhor não sabe que homem é esse Molineux!

— Há quinze anos que me encontro com ele, de vez em quando, no Café David, onde joga dominó à noite: foi por isso que te acompanhei.

O sr. Molineux foi de uma cortesia exagerada com Pillerault e uma desdenhosa condescendência com o falido. O velhote meditara sobre a conduta a manter, estudara as cambiantes da sua atitude, preparara as ideias.

— Que esclarecimentos quer? — perguntou Pillerault. — Não há contestação alguma relativamente aos credores.

— Oh! — disse o pequeno Molineux. — Os créditos estão em ordem, tudo foi conferido. Os credores são sérios e legítimos. Mas a lei, senhor, a lei! As despesas do falido estão em desproporção com a sua fortuna... Consta que o baile...

— A que o senhor compareceu — disse Pillerault, interrompendo-o.

— ... custou cerca de sessenta mil francos, ou que tal soma foi gasta naquela ocasião: o ativo do falido não ia, então, a mais de cento e poucos mil francos... Há elementos para denunciar o falido ao juiz extraordinário, sob acusação de bancarrota simples.

— É essa a sua opinião? — perguntou Pillerault, ao ver o abatimento em que essa frase lançou Birotteau.

— Meu senhor, eu distingo: o sr. Birotteau era autoridade municipal...

— Creio que o senhor não nos chamou, aparentemente, para nos dizer que vamos ser mandados para a cadeia — disse Pillerault. — Todo o Café David iria rir, esta noite, da sua conduta.

A opinião do Café David pareceu assustar imensamente o velhote, que olhou para Pillerault com um ar medroso. O síndico esperava que Birotteau fosse sozinho e resolvera portar-se como árbitro soberano, como um Júpiter. Esperava atemorizar Birotteau por meio do fulminante requisitório preparado, brandir sobre a cabeça do falido o bastão correcional, troçar com seus receios, seus terrores, e depois abrandar-se, deixando-se comover e assim tornar a sua vítima uma alma eternamente agradecida. Em vez do seu inseto, encontrava agora a velha esfinge comercial.

— Senhor — disse-lhe —, não há do que rir.

— Perdoe-me — respondeu Pillerault. — O senhor tem relações muito estreitas com o sr. Claparon; o senhor abandona os interesses da massa a fim de conseguir ser privilegiado na parcela que lhe cabe. Ora, como credor, posso intervir. É para isso que há um juiz comissário.

— Senhor — disse Molineux —, eu sou incorruptível.

— Eu o sei — disse Pillerault. — O senhor apenas, como se diz, defendeu a sua parte. O senhor é astuto, agiu neste caso como com o seu locatário...

— Oh! Senhor — disse o síndico, voltando a ser proprietário, como a gata, metamorfoseada em mulher, corre atrás dum camundongo —, o meu caso da Rue Montorgueil não foi julgado. Aconteceu o que se chama de um incidente. O inquilino é locatário principal. Esse tratante pretende, agora, que, tendo pago um ano antecipadamente, e não tendo mais que um ano a...

Neste ponto, Pillerault dirigiu a César um olhar para recomendar-lhe a mais viva atenção.

— ... e que, o ano estando pago, ele pode desmobiliar a casa. É um processo novo. Com efeito, preciso conservar as minhas garantias, pois pode ser que ele me deva reparações.

— Mas — disse Pillerault — a lei só lhe dá os móveis como garantia dos aluguéis.

— E acessórios! — disse Molineux, atingido no seu ponto forte. — O artigo do Código é interpretado pelas sentenças proferidas sobre a matéria; seria necessário, contudo, uma retificação legislativa. Estou elaborando, agora mesmo, um memorial à S. Exª o ministro da Justiça, sobre essa lacuna da legislação. Os interesses da propriedade merecem a atenção do governo. Nesse assunto, tudo é para o Estado, nós somos apenas o talão de impostos.

— O senhor está perfeitamente capacitado para esclarecer o governo — disse Pillerault. — Mas nós, em que poderemos esclarecê-lo relativamente aos nossos negócios?

— Quero saber — disse Molineux com uma enfática autoridade — se o sr. Birotteau recebeu alguma quantia do sr. Popinot.

— Não, senhor — disse Birotteau.

Seguiu-se uma discussão sobre os interesses de Birotteau na casa Popinot, da qual resultou que Popinot tinha o direito de ser integralmente pago dos seus adiantamentos, sem entrar na falência pela metade das despesas de instalação devidas por Birotteau. O síndico Molineux, manobrado por Pillerault, foi passando, lentamente, para atitudes mais brandas, que demonstravam a importância que ele dava à opinião dos frequentadores do Café David. Acabou consolando Birotteau e convidando-o, assim como a Pillerault, a partilhar do seu modesto jantar. Se o ex-perfumista tivesse ido sozinho, talvez houvesse irritado Molineux e assim o caso tivesse se dificultado. Nessa circunstância, como em outras, o velho Pillerault foi um anjo tutelar.

Há um horrível suplício que a lei comercial impõe aos falidos: eles devem comparecer pessoalmente, entre os síndicos provisórios e o juiz comissário, à assembleia na qual os credores decidem sobre a sua sorte. Para um homem que se coloca acima de tudo, como para o negociante que busca uma desforra, essa triste cerimônia é pouco temível; mas, para um homem como César Birotteau, tal cena é um suplício só comparável ao último dia de um condenado à morte. Pillerault fez tudo para tornar suportável ao sobrinho esse dia pavoroso.

Eis quais foram as operações de Molineux, com que o falido concordou. O processo relativo aos terrenos da Rue du Faubourg du Temple foi ganho na Corte real. Os síndicos resolveram vender as propriedades. César não se opôs a isso. Du Tillet, informado das intenções do governo relativas a um canal que devia ligar Saint-Denis ao alto Sena, passando pelo Faubourg du Temple, comprou os terrenos de Birotteau pela importância de setenta mil francos. César transferiu seus direitos no negócio dos terrenos da Madeleine ao sr. Claparon, sob a condição de que este, por sua vez, renunciasse a qualquer reclamação referente à metade devida por Birotteau nas despesas de registro e de transferência de contrato e ficasse encarregado de pagar o preço dos terrenos, recebendo, na falência, o dividendo que tocava aos vendedores. O interesse do perfumista na casa A. Popinot & Cia. foi vendido ao mesmo Popinot por quarenta e oito mil francos. O estabelecimento da Rainha das Rosas foi adquirido por Celestino Crevel por cinquenta e sete mil francos, com direito ao arrendamento, às mercadorias, aos móveis, à propriedade da Pomada das Sultanas e da Água Carminativa e à locação, por doze anos, da fábrica, cujos utensílios lhe foram igualmente vendidos. O ativo líquido foi de cento e noventa e cinco mil francos, aos quais os síndicos acrescentaram setenta mil francos provenientes dos direitos de Birotteau na liquidação do infortunado Roguin. Assim, o total atingiu duzentos e cinquenta e cinco mil francos. O passivo montava a quatrocentos e quarenta; o ativo representava, portanto, mais de cinquenta por cento. A falência é como uma operação química, da qual o falido trata de sair gordo. Birotteau, completamente destilado naquela retorta, dava um resultado que enfurecia Du Tillet. Du Tillet esperava uma falência desonesta e via uma falência virtuosa. Pouco sensível ao seu ganho, pois ia ficar com os terrenos da Madeleine sem desembolsar dinheiro, gostaria de ver o pobre comerciante desonrado, perdido, vilipendiado. Os credores, na assembleia geral, iam, sem dúvida, carregar o perfumista em triunfo. À medida que a coragem voltava a Birotteau, seu tio, como um sábio médico, lhe graduava as doses, iniciando-o nas operações da falência. Essas medidas violentas representavam verdadeiros golpes. Não é sem pesar que um comerciante se informa da depreciação das coisas que para ele representam tanto dinheiro, tanto trabalho. As notícias que o tio lhe dava o petrificavam.

— Cinquenta e sete mil francos pela Rainha das Rosas! Mas a loja custou dez mil francos; os apartamentos custam quarenta mil; a instalação da fábrica, os utensílios, as fôrmas, as caldeiras custaram trinta mil francos; além de tudo isso, mesmo com cinquenta por cento de depreciação, há uns dez mil francos na loja; e a Pomada e a Água são uma propriedade que vale tanto quanto uma granja!

Essas jeremiadas do pobre César quase não espantavam Pillerault. O antigo negociante as escutava como um cavalo recebe um aguaceiro, mas estava preocupado com o sombrio silêncio que o perfumista guardava quando lhe falavam na assembleia. Para quem conhece as vaidades e as fraquezas que atingem o homem em cada esfera social, é fácil avaliar o suplício que representaria para o pobre homem voltar como falido no tribunal comercial no qual entrara como juiz, receber injúrias onde tantas vezes havia recebido agradecimentos pelos serviços que prestara; ele, Birotteau, cujas opiniões inflexíveis a respeito dos falidos eram conhecidas de todo o comércio parisiense; ele, que dissera: “Um comerciante pode ser honesto ao abrir falência, mas sai velhaco duma assembleia de credores!”. O tio estudou as horas favoráveis para familiarizá-lo com a ideia de comparecer diante dos credores reunidos, como a lei exigia. Essa obrigação estava matando Birotteau. Sua muda resignação causava forte impressão a Pillerault, que, muitas vezes à noite, através da parede, o ouvia exclamar:

— Nunca! Nunca! Morrerei antes disso.

Pillerault, homem tão forte pela simplicidade dos hábitos de vida, compreendia a fraqueza. Resolveu poupar a Birotteau as angústias a que poderia sucumbir, na cena terrível do comparecimento perante os credores, cena inevitável. A lei, nesse ponto, é precisa, formal, exigente. O negociante que se nega a comparecer pode, por esse simples fato, ser preso sob a acusação de bancarrota simples. Mas, se a lei obriga o falido a se apresentar, não tem autoridade para forçar o credor a comparecer. Uma assembleia de credores só constitui uma cerimônia importante em determinados casos: por exemplo, se há margem para desapossar um velhaco e fazer um contrato de união, se há dissidência entre credores favorecidos e credores lesados, se a concordata é ultradesonesta e o falido necessita de uma maioria duvidosa. Mas, no caso de uma falência na qual tudo está em ordem, como no caso duma falência na qual o patife já arranjou tudo, a assembleia é mera formalidade.

Pillerault foi pedir a um por um dos credores que assinassem uma procuração para o seu advogado. Todos os credores, exceto Du Tillet, lastimavam sinceramente César após terem-no abatido. Todos sabiam como se conduzia o perfumista, como os seus livros eram regulares, como seus negócios eram claros. Todos os credores estavam contentes de não haver entre eles nenhum credor alegre. Molineux, inicialmente agente e depois síndico, encontrara na casa de César tudo quanto o pobre homem possuía, mesmo a estampa de Hero e Leandro dada por Popinot, suas joias pessoais, seu pregador de gravata, suas fivelas de ouro, seus dois relógios, que um homem honesto teria levado consigo sem receio de faltar à probidade. Constança deixara o seu modesto cofre de joias. Essa comovente obediência à lei impressionou vivamente o comércio. Os inimigos de Birotteau apresentaram essas circunstâncias como sinais de estupidez; mas as pessoas sensatas mostraram-nas sob o seu verdadeiro aspecto, como um magnífico excesso de honestidade. Dois meses mais tarde, a opinião na Bolsa havia mudado. Mesmo os mais indiferentes confessavam que aquela falência era uma das mais raras curiosidades comerciais já vistas na praça. Os credores, por sua vez, sabendo que iam receber cerca de sessenta por cento, fizeram tudo quanto Pillerault queria. Há muito poucos advogados comerciais, e, assim, aconteceu que muitos credores tomaram o mesmo. Pillerault acabou reduzindo a formidável assembleia a três advogados, ele próprio, Ragon, os dois síndicos e o juiz comissário.

Na manhã desse dia solene, Pillerault disse ao sobrinho:

— César, podes ir sem receio à tua assembleia, hoje; não encontrarás ninguém lá.

O sr. Ragon quis acompanhar o seu devedor. Quando ouviu a vozinha seca do antigo proprietário da Rainha das Rosas, o seu ex-sucessor empalideceu; o bom velho, porém, abriu-lhe os braços, Birotteau atirou-se a eles como um filho aos braços do pai e os dois perfumistas banharam-se nas lágrimas comuns. O falido recebeu a coragem ao ver tamanha indulgência e subiu ao fiacre com o tio. Às dez e meia, exatamente, os três chegaram ao cloître Saint-Merry, onde, naquela época, se reunia o Tribunal de Comércio. Àquela hora, não havia ninguém na sala de falências. A hora e o dia haviam sido escolhidos de acordo com os síndicos e o juiz comissário. Os advogados estavam lá, representando os clientes; assim, nada havia que pudesse intimidar César Birotteau. Não foi, porém, sem uma profunda emoção que o pobre homem entrou no gabinete do sr. Camusot, que, por uma coincidência, havia sido o seu gabinete, e estremeceu diante da necessidade de entrar na sala de falências.

— Está muito frio — disse o sr. Camusot a Birotteau — e esses senhores certamente não se incomodarão de ficar aqui, em vez de nos irmos gelar na sala. — Não pronunciou a palavra falência. — Sentem-se, senhores.

Cada um tomou uma cadeira e o juiz deu sua poltrona a Birotteau confuso. Os advogados e os síndicos assinaram.

— Mediante a entrega dos seus bens — disse Camusot a Birotteau —, os seus credores, por unanimidade, restituem-lhe o restante dos seus créditos; sua concordata está redigida em termos que podem suavizar o seu pesar; o seu advogado fá-la-á homologar rapidamente: o senhor, portanto, está livre. Todos os juízes do tribunal, meu caro sr. Birotteau — disse Camusot, tomando-lhe as mãos —, estão comovidos com a sua situação e não se surpreendem com a sua coragem, não há ninguém que não tenha feito justiça à sua honestidade. No infortúnio, o senhor foi digno do posto que ocupou aqui. Há vinte anos que sou juiz do comércio e esta é a segunda vez que vejo um negociante caído tornar-se ainda maior na estima pública.

Birotteau tomou as mãos do juiz e apertou-as, com lágrimas nos olhos; Camusot perguntou-lhe o que era que ele esperava fazer e Birotteau respondeu que ia trabalhar para pagar os credores integralmente.

— Se, para completar essa nobre tarefa, o senhor precisar de alguns mil francos, o senhor os encontrará, a qualquer momento, em minha casa — disse Camusot. — Eu os darei com muito prazer para ser testemunha dum fato muito raro em Paris.

Pillerault, Ragon e Birotteau retiraram-se.

— Bem, a coisa não era tão difícil — disse Pillerault, à porta do tribunal.

— Reconheço a sua intervenção em tudo isso, meu tio — disse o pobre homem, comovido.

— Você agora já está reabilitado, estamos a dois passos da Rue des Cinq-Diamants, vamos visitar o meu sobrinho — disse-lhe Ragon.

Mais uma cruel impressão estava ainda reservada a Birotteau: a de ver Constança sentada num escritoriozinho no entressolo baixo e escuro situado por cima da loja, dominado por uma tabuleta que ocupava a terça parte da janela, interceptando-lhe a luz, e na qual estava escrito:

 

a. popinot

 

— Eis um dos tenentes de Alexandre[382] — disse Birotteau, com a graça do infortúnio, mostrando a tabuleta.

Esse gracejo forçado, que denunciava, em toda a sua naturalidade, o inextinguível sentimento de superioridade de que Birotteau estava convencido, causou um certo estremecimento a Ragon, a despeito dos seus setenta anos. César viu a esposa levando para Popinot cartas para assinar e não pôde conter as lágrimas nem impedir seu rosto de empalidecer.

— Bom dia, meu amigo — disse-lhe ela, com uma expressão risonha.

— Não preciso perguntar-te se estás bem aqui — disse César a ela, olhando para Popinot.

— Estou como na casa de um filho — respondeu ela, com um ar comovido que impressionou o ex-negociante.

Birotteau segurou Popinot e abraçou-o, dizendo:

— Acabo de perder para sempre o direito de chamá-lo de meu filho.

— Esperemos — disse Popinot. — O seu óleo está indo para a frente, graças aos meus esforços nos jornais e aos de Gaudissart, que percorreu a França inteira, inundou-a de anúncios e cartazes, e que agora está mandando imprimir em Estrasburgo prospectos em alemão para com eles entrar na Alemanha como um invasor. Já conseguimos colocar três mil grosas.

— Três mil grosas! — disse César.

— E comprei, no Faubourg Saint-Marceau, um terreno, nada caro, onde mandei construir uma fábrica. Conservarei a do Faubourg du Temple.

— Minha mulher — disse Birotteau, ao ouvido de Constança —, com um pouco de auxílio, nós nos teríamos salvado.

XV — O MAIS BELO ESPETÁCULO QUE UM HOMEM
PODE OFERECER AO SEU SEMELHANTE

César, a esposa e a filha se compreenderam. O pobre funcionário quis atingir um resultado, se não impossível, pelo menos gigantesco: pagar integralmente sua dívida! As três criaturas, unidas pelo laço duma feroz probidade, tornaram-se avarentas e renunciaram a tudo: um liard lhes parecia sagrado. Cesarina, interesseiramente, dedicou-se com todo o entusiasmo ao emprego. Passava as noites em claro, esforçava-se por aumentar a prosperidade da loja, inventava desenhos de tecidos e manifestava um talento comercial inato. Os patrões eram obrigados a moderar seu entusiasmo pelo trabalho e a recompensavam com gratificações; ela, porém, recusava as joias e os adornos que os patrões lhe ofereciam. “Dinheiro!”, era o seu grito. Todos os meses, levava o seu ordenado e os ganhos suplementares ao tio Pillerault. O mesmo faziam César e a sra. Birotteau. Como os três se consideravam inábeis, nenhum deles queria assumir a responsabilidade da movimentação do dinheiro e haviam cedido a Pillerault a direção suprema da aplicação das suas economias. Novamente transformado em negociante, o tio fazia render o capital jogando na Bolsa. Soube-se, mais tarde, que ele foi auxiliado nessa tarefa por Júlio Desmarets e José Lebas, interessados, ambos, em indicar-lhe os negócios sem riscos.

O antigo perfumista, que morava com o tio, não ousava interrogá-lo sobre o emprego das quantias conseguidas por seus trabalhos e pelos da filha e da esposa. Andava cabisbaixo pelas ruas, furtando a todos os olhares a sua fisionomia abatida, decomposta, embrutecida. César censurava-se de usar roupa de boa fazenda.

— Pelo menos — dizia, com um olhar angélico para o tio — não estou comendo o pão dos meus credores. O seu pão me parece doce, embora dado pela compaixão que lhe inspiro, pois vejo que, graças a essa santa caridade, não preciso subtrair nada ao meu ordenado.

Os negociantes que encontravam o funcionário não viam nele nenhum vestígio do perfumista. Mesmo os mais indiferentes ficavam fazendo uma elevada ideia das quedas humanas, ao ver aquele homem em cuja fisionomia o mais negro desgosto pusera o seu luto, que se mostrava transtornado por uma coisa que nunca se vira nele, o pensamento! Não se destrói quem quer. As criaturas levianas, sem consciência, para as quais tudo é indiferente, nunca podem oferecer o espetáculo de um desastre. Somente a religião imprime um timbre particular aos indivíduos caídos: eles acreditam num futuro, numa Providência; há neles um certo clarão que os assinala, um ar de sagrada resignação misturado de esperança, que causa uma espécie de enternecimento; eles sabem perfeitamente o que perderam, como um anjo exilado chorando à porta do céu. Os falidos não podem comparecer à Bolsa. César, expulso do domínio da probidade, era a imagem de um anjo suspirando após o perdão.

Durante catorze meses, cheios dos religiosos pensamentos que sua queda lhe inspirou, Birotteau recusou qualquer diversão. Embora certo da amizade dos Ragon, foi impossível convencê-lo a ir jantar na casa deles, nem na dos Lebas, nem na dos Matifat, nem na dos Protez e na dos Mongenod, nem mesmo na do sr. Vauquelin, todos solícitos em honrar em César uma nobre virtude. César preferia ficar sozinho no quarto a encontrar o olhar de algum credor. As amabilidades mais cordiais dos amigos lembravam-lhe amargamente sua situação. Constança e Cesarina, então, não iam a parte alguma. Nos domingos e dias santos, únicos dias em que ficavam livres, as duas mulheres iam, à hora da missa, buscar César e ficavam fazendo-lhe companhia na casa de Pillerault depois de terem cumprido os seus deveres religiosos. Pillerault convidava o padre Loraux, cuja palavra amparava César na sua vida de provações, e ficavam, então, em família. O antigo ferrageiro tinha a fibra da probidade excessivamente sensível para que fosse desaprovar os escrúpulos de César. E, assim, tratara de aumentar o número das pessoas no meio das quais o falido podia aparecer de fronte erguida e olhar altivo.

No mês de maio de 1821, essa família, vítima da adversidade, foi recompensada de seus esforços com uma primeira festa que lhe organizou o árbitro dos seus destinos. O último domingo desse mês era o aniversário do noivado de César e Constança. Pillerault alugara, de acordo com os Ragon, uma casinha de campo em Sceaux, e o antigo ferrageiro quis festejar a data lá.

— César — disse Pillerault ao sobrinho, no sábado à noite —, amanhã vamos ao campo, e irás conosco.

César, que tinha uma linda caligrafia, fazia, à noite, cópias para Derville e alguns outros advogados. E aos domingos, munido duma permissão paroquial, trabalhava como um mouro.

— Não — respondeu —, o sr. Derville está esperando uma conta de tutela.

— Tua esposa e tua filha bem merecem uma recompensa. Só encontrarás amigos: o padre Loraux, os Ragon, Popinot e seu tio. Além disso, quero que vás.

César e a esposa, arrastados pelo turbilhão dos negócios, nunca haviam voltado a Sceaux, embora, de vez em quando, ambos sentissem desejo de voltar lá para rever a árvore sob a qual o primeiro caixeiro da Rainha das Rosas quase desmaiara. Durante o trajeto, que César fez em fiacre, com a esposa, a filha e Popinot, que os conduzia, Constança dirigiu ao marido olhares significativos, sem poder trazer um sorriso aos lábios. Disse-lhe algumas palavras ao ouvido e ele, como resposta, limitou-se a balançar a cabeça. As doces expressões daquela ternura, inalterável mas forçada, em vez de clarear a fisionomia de César, tornaram-na ainda mais sombria e fizeram brotar em seus olhos algumas lágrimas contidas. O pobre homem fizera aquela viagem vinte anos antes, rico, jovem, cheio de esperança, apaixonado por uma moça tão linda como era agora Cesarina; sonhava, então, com a felicidade, e via agora, no fundo do fiacre, sua nobre filha empalidecida pelas vigílias, sua corajosa esposa não tendo mais que a beleza das cidades por cima das quais passaram as lavas de um vulcão. Só o Amor ficara! A atitude de César sufocava a alegria no coração da filha e de Anselmo, que lhe reproduziam a encantadora cena de outrora.

— Sede felizes, meus filhos, tendes direito a isso — disse-lhes o pobre pai, num tom pungente. — Vós vos podeis amar sem pensamento reservado — acrescentou.

Birotteau, ao dizer essas últimas palavras, tomou as mãos da esposa e as beijou com uma sagrada e admirativa afeição que comoveu mais a Constança do que a mais intensa alegria. Quando chegaram à casa onde os esperavam Pillerault, os Ragon, o padre Loraux e o juiz Popinot, essas cinco pessoas de escol tiveram atitudes, olhares e palavras que deixaram César completamente à vontade, pois todos estavam emocionados de ver aquele homem sempre abatido pelo peso do seu infortúnio.

— Vão passear pelos bosques de Aulnay — disse o tio Pillerault, pondo a mão de César na de Constança —, vão com Anselmo e Cesarina; voltem às quatro horas.

— Coitados, nós os perturbaremos — disse a sra. Ragon, enternecida pela sincera tristeza do seu devedor —, mas logo ele terá uma grande alegria.

— É o arrependimento sem a falta — disse o padre Loraux.

— Ele só se poderia engrandecer pela desgraça — disse o juiz.

Esquecer é o grande segredo das existências fortes e criadoras; esquecer à maneira da natureza, que não conhece o passado, que recomeça constantemente os mistérios das suas infatigáveis criações. As existências débeis, como a de Birotteau, vivem na dor, em vez de transformá-la em máximas de experiência; saturam-se dela e consomem-se, retrocedendo cada dia às desgraças passadas.

Quando os dois casais alcançaram a senda que leva aos bosques de Aulnay, colocados como uma coroa sobre um dos mais belos lugares das redondezas de Paris, e o Vallé-aux-Loups apareceu em todo o seu encantamento, a beleza do dia, a graça da paisagem, o primeiro verdor e as deliciosas recordações do mais belo dia da sua mocidade afrouxaram as cordas tristes na alma de César: ele apertou o braço da esposa contra o seu coração palpitante, seu olhar perdeu o aspecto vítreo e brilhou neles o clarão da alegria.

— Finalmente — disse Constança ao marido — eu te revejo, meu pobre César! Acho que nos comportamos suficientemente bem para nos permitirmos uma pequena diversão de vez em quando.

— Mas acaso eu posso? — disse o pobre homem. — Ah! Constança, a tua afeição é o único bem que me resta. Sim, perdi até a confiança que tinha em mim mesmo, já não tenho energia, meu único desejo é viver o bastante para morrer quite com a terra. Tu, querida esposa, tu, que és a minha sabedoria e a minha prudência, tu, que vias claro, tu, que és irrepreensível, tu podes ter alegrias; de nós três, sou o único culpado. Há dezoito meses, no meio daquela festa fatal, eu via a minha Constança, a única mulher que amei, mais bela talvez do que a moça com quem andei correndo, nesta senda, há vinte anos, como hoje correm os nossos filhos!... Em vinte meses, fiz murchar essa beleza, que é o meu orgulho, um orgulho permitido e legítimo. Amo-te mais ainda, conhecendo-te melhor... Oh! Querida! — disse, dando a essa palavra uma expressão que atingiu o coração da esposa. — Eu gostaria de ouvir-te resmungar, em vez de te ver afagar a minha dor.

— Eu não acreditava — disse ela — que após vinte anos de vida conjugal o amor duma mulher pelo marido pudesse aumentar.

Essa frase fez César esquecer, por um momento, todas as suas desgraças, pois era tão afetivo que, para ele, essa frase representava uma fortuna. Encaminhou-se, assim, quase alegre, para a árvore deles, que, por acaso, não fora abatida. Os dois esposos sentaram-se debaixo dela, contemplando Anselmo e Cesarina, que estavam dando voltas no mesmo trecho de relva sem o perceber, convencidos de que estavam andando em linha reta.

— Senhorita — dizia Anselmo —, acredita-me tão infame e tão ambicioso para ter tirado proveito da aquisição da parte do seu pai no Óleo Cefálico? Estou conservando com carinho a sua metade, estou cuidando dela. Com o seu capital, eu saquei dinheiro; se há letras duvidosas, fico com elas para mim. Nós somente poderemos ser um do outro no dia seguinte ao da reabilitação do seu pai, e estou antecipando esse dia com toda a força que dá o amor.

O namorado evitara dizer esse segredo à futura sogra. Entre os apaixonados, mesmo os mais inocentes, sempre há o desejo de se mostrarem grandes aos olhos das suas amadas.

— E será logo? — perguntou ela.

— Logo — disse Popinot.

Esta resposta foi dada num tom tão penetrante que a casta e pura Cesarina ofereceu a fronte ao querido Anselmo, que nela depositou um beijo ávido e respeitoso, tal a nobreza que havia na atitude da menina.

— Papai, tudo vai bem — disse ela a César, com um ar malicioso. — Sê amável, conversa e deixa essa expressão triste.

Quando a família, tão fortemente unida, entrou na casa de Pillerault, César, embora pouco observador, notou nos Ragon uma mudança de atitude que denunciava algum acontecimento. O acolhimento da sra. Ragon foi particularmente untuoso, seu olhar e a inflexão de sua voz diziam a César: “Estamos pagos”.

À sobremesa, apareceu o tabelião de Sceaux; Pillerault ofereceu-lhe uma cadeira e olhou para Birotteau, que começava a suspeitar de alguma surpresa, sem poder imaginar qual fosse.

— Meu sobrinho, nestes catorze meses as economias da tua esposa, as da tua filha e as tuas produziram quinze mil francos. Recebi trinta mil francos pelo dividendo do meu crédito, e temos, assim, quarenta e cinco mil francos para dar aos teus credores. O sr. Ragon recebeu trinta mil francos pelo seu dividendo, e, assim, o senhor tabelião de Sceaux te traz um recibo do pagamento integral, incluídos os juros, feito aos teus amigos. O resto dessa quantia está com Crottat, para Lourdois, a tia Madou, o pedreiro, o carpinteiro e os teus credores mais apressados. No ano que vem, veremos o que se poderá fazer. Com tempo e paciência, vai-se longe.

A alegria de Birotteau foi indescritível, ele se atirou aos braços do tio, chorando.

— Agora ele deve usar a Cruz — disse Ragon ao padre Loraux.

O confessor prendeu a fita vermelha à lapela do funcionário, que se admirou a todo momento, durante o serão, nos espelhos da sala, manifestando um prazer de que se teriam rido as pessoas que se julgam superiores e que aqueles bons burgueses acharam natural. No dia seguinte, Birotteau dirigiu-se à casa da sra. Madou.

— Ah! É você, bom rapaz — disse ela. — Você branqueou tanto que nem o reconheci. E, no entanto, vocês não passam trabalho, têm empregos. Ao passo que eu trabalho como um cão que dá voltas a uma máquina e que merece o batismo.

— Mas, senhora...

— Ora, isto não é uma censura — disse ela —, o senhor tem quitação.

— Vim anunciar-lhe que lhe pagarei hoje, no cartório do sr. Crottat, o resto do seu crédito e os juros...

— É verdade?

— Esteja lá às onze e meia...

— Isso é que é honradez! — disse ela, com sincera admiração por Birotteau. — Olhe, meu caro senhor, tenho feito bons negócios com o seu ruivinho, ele é amável, dá-me bastante a ganhar sem regatear o preço a fim de me indenizar; pois bem, vou dar-lhe uma quitação, e o senhor fique com o seu dinheiro, meu velho! A Madou às vezes explode, é gritalhona, mas tem isto — acrescentou, batendo nos mais volumosos coxins de carne viva que já apareceram no mercado.

— Nunca! — disse Birotteau. — A lei é precisa, quero pagar-lhe integralmente.

— Bem, neste caso não me farei rogar — disse ela. — E amanhã, no mercado, proclamarei a sua honra. Ah! É rara uma história destas!

O bom homem repetiu a cena na casa do pintor de construções, o sogro de Crottat, mas com variantes. Chovia. César deixou o guarda-chuva a um canto da porta. O pintor enriquecido, ao ver a água escorrer pela bela sala onde estava almoçando com a esposa, não foi nada amável.

— Então, que deseja, meu pobre tio Birotteau? — disse, nesse tom ríspido que muita gente usa para falar aos mendigos importunos.

— Então o seu genro não lhe disse?...

— O quê? — interrompeu Lourdois, impaciente, pensando que se tratasse de algum pedido.

— ... que o senhor fosse ao cartório dele, hoje pela manhã, às onze horas, para me dar quitação do pagamento integral do seu crédito?

— Ah! Isto é diferente... Sente-se, sr. Birotteau. Coma um pouco conosco.

— Dê-nos o prazer de partilhar do nosso almoço — disse a sra. Lourdois.

— Então, vai tudo bem? — perguntou o gordo Lourdois.

— Não, senhor, tive de almoçar um pãozinho todos os dias, na minha repartição, para juntar algum dinheiro; mas, com o tempo, espero reparar os prejuízos que causei ao meu próximo.

— Realmente — disse o pintor, engolindo uma fatia coberta de patê de foie gras — o senhor é um homem de honra.

— E que é que está fazendo a sra. Birotteau? — perguntou a sra. Lourdois.

— Está fazendo a escrita e atendendo ao caixa na casa do sr. Anselmo Popinot.

— Pobre gente! — disse a sra. Lourdois, em voz baixa, ao marido.

— Se precisar de mim, meu caro sr. Birotteau, venha falar comigo — disse Lourdois. — Poderei ajudá-lo...

— Preciso do senhor às onze horas — disse Birotteau, e retirou-se.

Esse primeiro resultado deu coragem ao falido, sem lhe restituir o repouso; o desejo de reconquistar a honra agitou demasiadamente a sua vida; ele perdeu completamente as cores que lhe adornavam o rosto, seus olhos ficaram sem brilho e suas faces se encovaram. Quando antigos conhecidos encontravam César, pela manhã, às oito horas, ou às quatro da tarde, dirigindo-se à Rue de L’Oratoire ou voltando de lá, envergando a sobrecasaca que usava no momento da queda e de que ele cuidava como um tenente pobre cuida do uniforme, com os cabelos inteiramente brancos, pálido, tímido, alguns o interrompiam, mesmo contra a vontade dele, pois andava com o olhar alerta; esgueirava-se pelas paredes, como os ladrões.

— Todos conhecem a sua conduta, meu amigo — diziam. — Todos lamentam o rigor com que o senhor se trata, bem como à sua filha e à sua esposa.

— Não se apresse tanto — diziam outros —, ferida de dinheiro não é mortal.

— Não, mas a ferida da alma o é! — respondeu, um dia, a Matifat o pobre César abatido.

No começo do ano de 1823, resolveram construir o canal Saint-Martin. Os terrenos situados no Faubourg du Temple alcançaram preços loucos. O projeto cortou precisamente em duas partes a propriedade de Du Tillet, que pertencera a César Birotteau. A companhia a quem foi dada a concessão do canal propôs pagar um preço exorbitante se o banqueiro pudesse entregar o terreno dentro de certo prazo. O arrendamento transferido por César a Popinot impedia o negócio. O banqueiro foi à Rue des Cinq-Diamants entender-se com o droguista. Se Popinot era indiferente a Du Tillet, o noivo de Cesarina nutria por aquele homem um ódio instintivo. Ele ignorava o roubo e as infames maquinações feitas pelo venturoso banqueiro, mas uma voz interior lhe gritava: “Esse homem é um ladrão impune”. Popinot não teria feito o menor negócio com ele, sua presença lhe era odiosa. Nesse momento, principalmente, ele via Du Tillet enriquecendo-se com os despojos do antigo patrão, pois os terrenos da Madeleine estavam alcançando preços que já pressagiavam o absurdo valor que atingiram em 1827. Também depois que o banqueiro expôs o motivo de sua visita, Popinot fitou-o com uma indignação concentrada.

— Não quero recusar-lhe a minha desistência do arrendamento, mas preciso de sessenta mil francos, e não baixarei um liard.

— Sessenta mil francos! — exclamou Du Tillet, fazendo um movimento de retirada.

— Tenho ainda quinze anos de arrendamento, e gastarei três mil francos a mais, por ano, para conseguir outra fábrica. Portanto, sessenta mil francos ou não se fala mais nisto — disse Popinot, encaminhando-se para a loja, seguido de Du Tillet.

A discussão acalorou-se, o nome de César foi pronunciado, a sra. Birotteau desceu e viu Du Tillet pela primeira vez depois do famoso baile. O banqueiro não pôde conter um gesto de surpresa diante das alterações que se haviam operado na antiga patroa, e baixou os olhos, assustado da sua obra.

— Este senhor — disse Popinot à sra. César — vai ganhar com os seus terrenos trezentos mil francos e nos recusa sessenta mil francos de indenização pelo nosso arrendamento...

— Três mil francos de renda — disse Du Tillet, com ênfase.

— Três mil francos... — repetiu a sra. César, num tom simples, mas penetrante.

Du Tillet empalideceu, Popinot olhou para a sra. Birotteau. Houve um momento de profundo silêncio, que tornou a cena ainda mais inexplicável para Anselmo.

— Assine a desistência que mandei preparar pelo tabelião Crottat — disse Du Tillet, tirando do bolso do lado uma folha de papel — e eu vou dar-lhe um cheque de sessenta mil francos.

Popinot olhou para a sra. Birotteau sem dissimular seu profundo espanto: pensava estar sonhando. Enquanto Du Tillet assinava o cheque, numa escrivaninha alta, Constança retirou-se e voltou a subir para o entressolo. O droguista e o banqueiro trocaram os documentos. Du Tillet saiu depois de cumprimentar Popinot friamente.

— Enfim, dentro de alguns meses — disse Popinot, enquanto via Du Tillet dirigir-se à Rue des Lombards, onde o seu cabriolé o esperava —, graças a este estranho negócio, terei a minha Cesarina. Minha querida mulherzinha não terá de se matar no trabalho. Como! Bastou um olhar da sra. César! Que haverá entre ela e esse patife? O que acaba de acontecer é muito extraordinário.

Popinot mandou receber o cheque no Banco e tornou a subir para falar com a sra. Birotteau; não a encontrou, porém, no caixa; certamente ela fora para o quarto. Anselmo e Constança viviam como vivem um genro e uma sogra, quando um genro e uma sogra se dão bem; assim, ele se dirigiu para os aposentos da sra. Birotteau com a ansiedade natural a um apaixonado que alcança a felicidade. O jovem comerciante ficou prodigiosamente surpreso de encontrar a futura sogra, de quem se aproximou com um salto de gato, lendo uma carta de Du Tillet, pois Anselmo reconheceu a letra do antigo primeiro empregado de Birotteau. Uma vela acesa e os fantasmas negros e agitados de cartas queimadas no chão fizeram estremecer Popinot, que, dotado duma visão penetrante, lera, sem o querer, esta frase no começo da carta que a sogra tinha na mão:

Adoro-a! Você o sabe, anjo da minha vida, e porque...

— Que ascendência tem a senhora sobre Du Tillet, para obrigá-lo a fechar um negócio daqueles? — perguntou ele, rindo com esse riso convulso provocado por uma suspeita reprimida.

— Não falemos nisto — disse ela, mostrando uma horrível perturbação.

— Está bem — replicou Popinot, completamente aturdido —, vamos falar sobre o fim das suas dificuldades.

Anselmo girou sobre os calcanhares e foi tamborilar com os dedos na vidraça, olhando para o pátio. “Afinal”, pensou, “mesmo que ela tivesse amado Du Tillet, por que não haveria eu de me conduzir como um homem às direitas?”

— Que é que tem, meu filho? — perguntou a pobre mulher.

— O cálculo dos lucros líquidos do Óleo Cefálico eleva-se a duzentos e quarenta e dois mil francos, a metade é de cento e vinte e um — disse bruscamente Popinot. — Descontando dessa quantia os quarenta e oito mil francos dados ao sr. Birotteau, restam, ainda, setenta e três mil, que, acrescentados aos sessenta mil da transferência do arrendamento, lhe dão cento e trinta e três mil francos.

A sra. Birotteau escutava em meio de angústias que a fizeram palpitar tão violentamente, que Popinot ouvia os batimentos do seu coração.

— Pois bem, sempre considerei o sr. Birotteau como meu sócio — acrescentou — e podemos, assim, dispor dessa quantia para reembolsar seus credores. Juntando-a à de vinte e oito mil francos das suas economias, colocados pelo nosso tio Pillerault, temos cento e sessenta e um mil francos. Nosso tio não nos recusará a quitação dos seus vinte e cinco mil francos. Nenhuma força humana me pode impedir de emprestar ao meu sogro, por conta dos seus lucros do próximo ano, a soma necessária para perfazer o que ele deve aos credores... E ele... ficará... reabilitado.

— Reabilitado! — exclamou a sra. Birotteau, dobrando o joelho na cadeira.

Ela juntou as mãos, recitando uma prece, depois de ter deixado cair a carta.

— Querido Anselmo! — disse, após ter-se persignado. — Querido filho!

Segurou-o pela cabeça, beijou-o na testa, estreitou-a de encontro ao coração e fez uma infinidade de loucuras.

— Cesarina é inteiramente tua! Minha filha será completamente feliz. Ela vai sair desta casa, onde se está matando.

— Por amor — disse Popinot.

— Sim — respondeu a mãe, sorrindo.

— Ouça um segredinho — disse Popinot, olhando para a fatal carta com o canto dos olhos. — Fiz um favor a Celestino, para facilitar-lhe a aquisição do estabelecimento, mas impus uma condição para esse auxílio. O seu apartamento está como a senhora o deixou. Eu tinha uma ideia, mas não acreditava que o acaso nos fosse favorecer tanto. Celestino ficou obrigado a subalugar-lhe o antigo apartamento, onde ele não pôs os pés e onde todos os móveis pertencerão à senhora. Reservei para mim o segundo andar, para morar lá com Cesarina, de quem a senhora nunca se separará. Depois do meu casamento, virei passar os dias aqui, das oito da manhã às seis da tarde. Para refazer a sua fortuna, comprarei por cem mil francos o interesse do sr. César na minha casa, e, assim, a senhora terá, com o cargo dele, oito mil francos de renda. Então, não será feliz?

— Não me diga mais nada, Anselmo, senão eu fico louca.

A angélica atitude da sra. César e a pureza dos seus olhos, a inocência da sua bela fronte desmentiam de maneira tão magnífica as inúmeras ideias que circulavam no cérebro do apaixonado que ele quis acabar de vez com as monstruosidades da sua imaginação. Uma falta era inconciliável com a vida e os sentimentos da sobrinha de Pillerault.

— Minha querida mãe adorada — disse Anselmo —, acaba de entrar na minha alma, contra a minha vontade, uma horrível suspeita. Se a senhora quiser ver-me feliz, terá de destruí-la agora mesmo.

Popinot avançara a mão para a carta e apoderara-se dela.

— Sem o querer — acrescentou, assustado do terror estampado no rosto de Constança — li as primeiras palavras desta carta escrita por Du Tillet. Essas palavras coincidem de maneira tão singular com o efeito que a senhora acaba de conseguir determinando a imediata adesão desse indivíduo às minhas loucas exigências que qualquer homem lhe daria a mesma explicação que o demônio me dá, mesmo contra a minha vontade. Um olhar seu e três palavras bastaram...

— Não termine — disse a sra. César, retomando a carta e queimando-a diante de Anselmo. — Meu filho, fui punida bem cruelmente por uma falta mínima. Fique, pois, sabendo de tudo, Anselmo. Não quero que a suspeita inspirada pela mãe prejudique a filha e, além disso, posso falar sem me envergonhar: eu poderia dizer ao meu marido o que lhe vou confessar. Du Tillet quis seduzir-me, meu marido foi logo avisado e Du Tillet teve de ser despedido. No dia em que o meu marido ia mandá-lo embora, Du Tillet nos tirou três mil francos!

— Bem que o suspeitei — disse Popinot, exprimindo, na inflexão da voz, todo o seu ódio.

— Anselmo, o seu futuro e a sua felicidade exigem esta confidência; ela, porém, deve morrer no seu coração, como já está morta no meu e no de César. Você deve estar lembrado daquele barulho do meu marido a propósito de um erro de caixa. O sr. Birotteau, para evitar um processo e não arruinar esse homem, tornou a pôr na caixa os três mil francos, o preço daquele xale de casimira que só pude comprar três anos mais tarde. Aí está explicada a minha exclamação. Ai! Meu querido filho, vou contar-lhe a minha infantilidade. Du Tillet escrevera-me três cartas de amor, que o retratavam tão bem — disse ela, suspirando e baixando os olhos — que as guardei... como curiosidade. Não as reli mais de uma vez. Depois, pensei que seria imprudente conservá-las. Ao rever Du Tillet, lembrei-me disso e subi ao quarto para queimá-las, e estava olhando para a última quando você entrou... Aí está tudo, meu amigo.

Anselmo pôs um joelho no chão e beijou a mão da sra. Birotteau com uma expressão de admiração que encheu de lágrimas os olhos de ambos. A sogra levantou o genro, estendeu-lhe os braços e apertou-o de encontro ao coração.

Esse dia devia ser um dia de alegria para César. O secretário particular do rei, o sr. de Vandenesse, foi à repartição falar com ele. Saíram juntos para o pequeno pátio da Caixa de Amortização.

— Sr. Birotteau — disse o visconde de Vandenesse —, os seus esforços para pagar os credores chegaram, por acaso, ao conhecimento do rei. Sua Majestade, comovida por uma conduta tão rara e sabendo que, por humildade, o senhor não usa a Cruz da Legião de Honra, mandou-me ordenar-lhe que volte a usá-la. Alem disso, desejando auxiliá-lo a atender as suas obrigações, encarregou-me de entregar-lhe esta quantia, tirada do seu caixa pessoal, lamentando não poder mandar-lhe mais. Que isto fique em profundo segredo. Sua Majestade acha pouco real a divulgação oficial de suas boas obras — disse o secretário íntimo, entregando seis mil francos ao funcionário, que, durante o discurso, experimentava sensações inexprimíveis.

Birotteau não pôde senão balbuciar algumas palavras sem nexo. De Vandenesse cumprimentou-o com a mão, sorrindo. O sentimento que animava o pobre César é tão raro em Paris que sua vida fora aos poucos excitando a admiração. José Lebas, o juiz Popinot, Camusot, o padre Loraux, Ragon, o chefe da importante casa onde estava Cesarina, Lourdois e o sr. de La Billardière haviam comentado o fato. A opinião, já modificada a seu respeito, o elevava às nuvens.

“Eis um homem de honra!” Esta frase já ressoara várias vezes aos ouvidos de César quando ele passava pelas ruas e dava-lhe a emoção que experimenta um escritor ao ouvir dizer: “Olhe quem vem aí!”. Essa bela fama estava assassinando Du Tillet. Quando César se viu com as notas de banco enviadas pelo soberano, seu primeiro pensamento foi de empregá-las em pagar o antigo empregado. O bom homem foi à Rue de la Chaussée-d’Antin, de modo que, quando o banqueiro voltou para casa, se encontrou na escada com o antigo patrão.

— Então, meu pobre Birotteau! — disse, com ar hipócrita.

— Pobre? — exclamou altivamente o devedor. — Estou muito rico. Esta noite vou descansar a cabeça no travesseiro com a satisfação de saber que lhe paguei.

Essa frase cheia de probidade constituiu uma breve tortura para Du Tillet. A despeito da estima geral, ele pessoalmente não se estimava; uma voz inapagável lhe gritava: “Esse homem é sublime!”.

— Pagar-me? Então, que negócios anda fazendo?

Certo de que Du Tillet não ia repetir a sua confidência, o antigo perfumista disse:

— Nunca mais voltarei aos negócios, senhor. Nenhuma força humana podia prever o que me aconteceu. Quem sabe se eu não seria vítima de um outro Roguin? Minha conduta chegou ao conhecimento do rei, sua bondade dignou-se compartilhar dos meus esforços e ele os encorajou enviando-me, agora mesmo, uma quantia bastante grande, que...

— Quer, então, um recibo? — perguntou Du Tillet, interrompendo-o. — Vai pagar?...

— Integralmente, e com os juros. Por isso, peço-lhe que me acompanhe até aqui pertinho, ao cartório do sr. Crottat.

— Quer um recibo em cartório?

— Perfeitamente — disse César. — Não estou proibido de tratar da minha reabilitação, e, nesse caso, os documentos autênticos são irrecusáveis...

— Bem — disse Du Tillet, saindo com Birotteau —, fica perto daqui. Mas de onde é que tem tirado tanto dinheiro? — acrescentou.

— Não o tiro de parte alguma — disse César —, ganho-o com o suor do meu rosto.

— O senhor deve uma soma enorme à casa Claparon.

— Sim, é a minha maior dívida, acho que morrerei trabalhando para pagá-la.

— O senhor nunca a poderá pagar — disse duramente Du Tillet.

“Ele tem razão”, pensou Birotteau.

O pobre homem, ao voltar para casa, passou, por descuido, pela Rue Saint-Honoré, pois sempre dava uma volta para não ver a loja nem as janelas do antigo apartamento. Pela primeira vez depois da queda, tornava a ver aquela casa onde dezoito anos de felicidade haviam sido apagados pelas angústias de três meses.

“Sempre acreditei que acabaria os meus dias aqui”, disse consigo.

E estugou o passo, pois vira a nova tabuleta:

 

celestino crevel

sucessor de césar birotteau

 

— Deve ser uma alucinação... Aquela não era Cesarina? — exclamou, recordando-se de ter visto uma cabeça loura à janela.

Viu, efetivamente, a filha, a esposa e Popinot. Os namorados sabiam que Birotteau nunca passava pela frente da antiga casa; e, incapazes de imaginar o que lhe estava acontecendo, haviam ido tomar algumas providências relativas à festa que pensavam oferecer a César. Essa singular aparição causou tal espanto a Birotteau que ele ficou imóvel na rua.

— Olhe o sr. Birotteau contemplando a antiga casa — disse o sr. Molineux ao comerciante estabelecido em frente à Rainha das Rosas.

— Coitado! — disse o amigo vizinho do perfumista. — Ele deu lá um dos bailes mais lindos... Havia duzentas carruagens.

— Estive lá, ele faliu três meses mais tarde — disse Molineux —, eu fui o síndico.

Birotteau fugiu, com as pernas trêmulas, e correu para a casa do tio Pillerault.

Pillerault, informado do que se passara à Rue des Cinq-Diamants, pensava que o sobrinho dificilmente suportaria o choque duma alegria tão grande como a causada pela sua reabilitação, pois ele era testemunha cotidiana das vicissitudes morais do pobre homem, sempre em face das suas inflexíveis doutrinas relativas aos falidos e com as energias constantemente gastas. A honra era, para César, um morto que podia ter a sua Páscoa. Essa esperança tornava seu sofrimento constantemente ativo. Pillerault encarregou-se de preparar o sobrinho para receber a boa notícia. Quando Birotteau entrou na casa do tio, encontrou-o meditando sobre os meios de alcançar seu objetivo. Assim, a alegria com que o funcionário narrou o testemunho de interesse que o rei lhe dera pareceu de bom augúrio a Pillerault e seu espanto de ter visto Cesarina na Rainha das Rosas foi uma excelente entrada no assunto.

— Pois bem, César — disse Pillerault —, sabes qual é a causa disso? É a impaciência que tem Popinot de desposar Cesarina. Ele não suporta mais, nem deve, por teus exageros de probidade, deixar passar a mocidade a comer pão seco sentindo o cheiro de um bom jantar. Popinot quer dar-te o dinheiro necessário ao pagamento integral dos teus credores.

— Isso seria comprar a esposa — disse Birotteau.

— Não é uma coisa digna reabilitar o sogro?

— Mas isso daria margem a contestação. Além disso...

— Além disso — disse o tio, fingindo-se encolerizado —, podes ter o direito de te imolar, mas não podes imolar tua filha.

Estabeleceu-se uma cerrada discussão, que Pillerault, muito de propósito, acalorava.

— Bem! Se Popinot não te emprestasse nada — exclamou Pillerault —, se ele te houvesse considerado seu sócio, se tivesse considerado o valor dado aos teus credores pela tua parte no Óleo como uma antecipação de lucros, a fim de não te despojar...

— Eu teria dado a impressão de ter enganado os meus credores, de combinação com ele.

Pillerault fingiu deixar-se vencer por esse argumento. Conhecia suficientemente o coração humano para saber que, durante a noite, o digno homem discutiria consigo mesmo a respeito desse ponto; e essa discussão interior o acostumaria à ideia da sua reabilitação.

— Mas que estavam fazendo minha mulher e minha filha no antigo apartamento? — perguntou, durante o jantar.

— Anselmo quer alugá-lo para morar lá com Cesarina. Tua mulher está de acordo. Sem te dizer nada, eles mandaram publicar os editais a fim de te obrigar a consentir. Popinot diz que haverá menos mérito em desposar Cesarina depois da tua reabilitação. Aceitas os seis mil francos do rei e não queres aceitar nada dos teus parentes! Quanto a mim, posso perfeitamente dar-te quitação do que me cabe, será que recusarias?

— Não — disse César —, mas isso não me impediria de economizar para pagar-lhe, apesar da quitação.

— Isso tudo é sutileza — disse Pillerault. — Deves acreditar-me em questões de probidade. Que tolice acabas de dizer? Enganarás os teus credores, pagando-lhes?

César examinou Pillerault e Pillerault ficou comovido de ver, depois de três anos, um sorriso completo animar pela primeira vez as feições entristecidas do sobrinho.

— É verdade — disse —, eles seriam pagos... Mas isto é vender a minha filha.

— E eu quero ser comprada — exclamou Cesarina, surgindo na companhia de Popinot.

Os dois namorados haviam ouvido essas últimas palavras, entrando na ponta dos pés no vestíbulo do pequeno apartamento do tio, seguidos da sra. Birotteau. Os três haviam corrido em carruagem às casas dos credores ainda não pagos para convocá-los para comparecer, à tarde, ao cartório de Alexandre Crottat, onde estavam sendo preparadas as quitações. A força lógica do apaixonado Popinot triunfou sobre os escrúpulos de César, que insistia em se declarar devedor e em pretender que ia fraudar a lei por uma inovação. Acabou fazendo calar os melindres da sua consciência ao ouvir a exclamação de Popinot:

— Então o senhor quer matar a sua filha?

— Matar a minha filha! — disse César, pasmo.

— Pois bem — disse Popinot —, tenho o direito de fazer-lhe uma doação entre vivos da importância que, conscientemente, penso que o senhor tem no meu estabelecimento. Recusa?

— Não — disse César.

— Bem, iremos ao cartório de Alexandre Crottat esta tarde para que o senhor não possa voltar atrás; resolveremos, ao mesmo tempo, o nosso contrato de casamento.

XVI — RUMO AO CÉU

Um requerimento de reabilitação, com todos os documentos em seu apoio, foi apresentado, por intermédio de Derville, ao procurador-geral da Corte real de Paris.

Durante o mês consumido pelas formalidades e pelas publicações dos editais para o casamento de Cesarina e Anselmo, Birotteau foi acometido de crises febris. Andava inquieto, tinha receio de não viver até o grande dia de ser lavrada a sentença. Seu coração tinha palpitações sem razão, dizia. Queixou-se de dores surdas nesse órgão, que, além de gasto pelas emoções do sofrimento, estava fatigado por aquela suprema alegria.

As sentenças de reabilitação são tão raras no expediente da Corte real de Paris que não vão além de uma em dez anos. Para os que levam a sociedade a sério, o órgão da Justiça tem algo de grandioso e de grave. As instituições dependem inteiramente dos sentimentos que os homens lhes atribuem e das grandezas de que são revestidas pela imaginação. Também, quando o povo perde não apenas religião mas também a crença, quando a primeira educação relaxa todos os laços conservadores habituando a criança a uma implacável análise, a nação se dissolve, pois já não se mantém senão pelas ignóbeis soldaduras do interesse material, pelos mandamentos do culto criado pelo egoísmo bem compreendido. Nutrido de ideias religiosas, Birotteau considerava a Justiça o que ela devia realmente ser aos olhos dos homens, um símbolo da própria sociedade, uma augusta expressão da lei aceita, independente da forma sob a qual ela se exerce: quanto mais o magistrado é velho, alquebrado, encanecido, mais solene é o exercício do seu sacerdócio, que exige um estudo tão profundo dos homens e das coisas que sacrifica o coração e o endurece na tutela de interesses palpitantes.

São cada vez mais raros os homens que não sobem sem intensas emoções a escadaria da Corte real, no velho Tribunal de Justiça, em Paris, e o antigo negociante era um desses homens.

Poucos têm notado a majestosa solenidade dessa escadaria, situada tão acertadamente para causar efeito; está no alto do peristilo exterior que orna o pátio do tribunal e sua porta fica ao centro de uma galeria que leva, numa extremidade, ao imenso Salão dos Passos Perdidos e, na outra, à Santa Capela, dois monumentos que fazem parecer mesquinho tudo quanto os cerca. A igreja de São Luís é um dos mais importantes edifícios de Paris e seu contorno oferece algo de sombrio e de romanesco no fundo dessa galeria. O grande Salão dos Passos Perdidos apresenta, ao contrário, um quadro cheio de luminosidades, e é difícil esquecer que a história da França está ligada a ela. A escadaria deve ter, portanto, singular grandiosidade, pois não parece esmagada por essas duas magnificências. Talvez a alma estremeça diante do aspecto da praça onde se executam as sentenças, vista através das ricas grades do palácio. A escadaria desemboca numa imensa peça, o vestíbulo daquela onde a Corte realiza as audiências da sua primeira câmara e que forma o Salão dos Passos Perdidos da Corte. Avaliai, assim, as emoções que deve ter experimentado o falido, que, naturalmente, ficou impressionado com esse aparato, ao subir à Corte cercado dos amigos: Lebas, então presidente do Tribunal de Comércio; Camusot, seu antigo juiz comissário; Ragon, seu patrão; o padre Loraux, seu mentor espiritual. O piedoso padre realçou esses esplendores humanos com uma reflexão que os tornou ainda mais imponentes aos olhos de César.

Pillerault, filósofo prático, tivera a ideia de exagerar antecipadamente a alegria do sobrinho para resguardá-lo dos perigos dos acontecimentos imprevistos daquela festa. Quando o antigo negociante estava acabando de se vestir, viu chegar seus verdadeiros amigos, que disputavam a honra de acompanhá-lo à barra do tribunal. Esse cortejo produziu no bom homem tal contentamento que o lançou na exaltação necessária para suportar o imponente espetáculo da Corte. Birotteau encontrou outros amigos reunidos na sala de audiências solenes, onde estavam sentados doze conselheiros.

Após a chamada das causas, o advogado de Birotteau fez o requerimento em poucas palavras. A um gesto do primeiro presidente, o advogado-geral, convidado a apresentar suas conclusões, levantou-se. Em nome da Justiça, o procurador-geral, o homem que representa a vindita pública, ia pedir pessoalmente para restituir a honra ao comerciante que não fizera mais do que comprometê-la: cerimônia única, pois o condenado só podia ser absolvido. As pessoas sensíveis podem imaginar as emoções de Birotteau ao ouvir o sr. de Granville[383] pronunciar um discurso, cujo resumo é o seguinte:

— Meus senhores — disse o famoso magistrado —, a 16 de janeiro de 1819, Birotteau foi declarado em estado de falência por sentença do Tribunal de Comércio do Sena. A falência não fora ocasionada nem por imprudência desse comerciante nem por falsas especulações nem por qualquer outra razão que possa enodoar a sua honra. Sentimos necessidade de declarar em voz alta: esse infortúnio foi causado por um desses desastres que se vêm repetindo para grande amargura da Justiça e da cidade de Paris. Estava reservado ao nosso século, no qual ainda por muito tempo há de fermentar o mau lêvedo dos costumes e das ideias revolucionárias, ver o notariado de Paris afastar-se das gloriosas tradições dos séculos precedentes e provocar, em poucos anos, tantas falências quantas ocorreram em dois séculos sob a antiga Monarquia. A sede de dinheiro, rapidamente disseminada, atingiu as autoridades ministeriais, esses tutores da fortuna pública, esses magistrados intermediários!

Seguiu-se uma tirada sobre este tópico, e, para obedecer às exigências do seu papel, o conde de Granville encontrou pretexto para incriminar os liberais, os bonapartistas e outros inimigos do trono. Os acontecimentos provaram que esse magistrado tinha razão em suas apreensões.

— A fuga dum tabelião de Paris, que levou consigo o capital depositado no seu cartório por Birotteau, determinou a ruína do impetrante — continuou. — A Corte preferiu, nesse caso, uma sentença que prova a que ponto a confiança dos clientes de Roguin foi indignamente burlada. Fez-se uma concordata. Queremos observar, para honra do impetrante, que as operações se caracterizaram por uma lisura que não se encontra em nenhuma das falências escandalosas pelas quais o comércio de Paris é cotidianamente atormentado. Os credores de Birotteau encontraram os mais insignificantes objetos que o infortunado possuía. Encontraram, senhores, suas roupas, suas joias, enfim, as coisas de uso estritamente pessoal, não somente dele mas também da esposa, que renunciou a todos os seus bens para aumentar o ativo. Birotteau, nessa circunstância, mostrou-se digno da consideração que conquistara no exercício de suas funções municipais, pois era então suplente do maire do segundo distrito e acabara de receber a condecoração da Legião de Honra, conferida tanto à dedicação do realismo que lutara em vendemiário nas escadarias de Saint-Roch, então tintas com o seu sangue, como ao magistrado consular estimado por seu saber, querido por seu espírito conciliador, e à modesta autoridade municipal que recusara as honras da mairie indicando um mais digno, o respeitável barão de La Billardière, um dos nobres vendeanos que ele aprendera a prezar nos maus dias.

— Essa frase é melhor do que a minha — disse César ao ouvido do tio.

— Assim, os credores, tendo encontrado sessenta por cento dos seus créditos, graças à renúncia que esse leal negociante fazia, bem como a esposa e a filha, de tudo quanto possuíam, consignaram as expressões do seu apreço na concordata que se fez entre eles e seu devedor e pela qual lhe restituíam o restante dos seus créditos. Esses testemunhos se recomendam à atenção do tribunal pela maneira como foram concebidos.

Aqui, o procurador-geral leu os considerandos da concordata.

— Diante dessas benévolas disposições, meus senhores, muitos comerciantes se poderiam considerar liberados e teriam marchado altivos pela praça pública. Longe disso, Birotteau, sem se deixar abater, formulou, na consciência, o projeto de chegar ao dia glorioso que hoje surge para ele. Nada o desanimou. Um emprego foi concedido pelo nosso muito querido soberano para dar pão ao ferido de Saint-Roch, e o falido reservou o ordenado aos credores, sem nada tirar dele para as suas necessidades, pois não lhe faltou a dedicação da família...

Birotteau, chorando, apertou a mão do tio.

— Sua esposa e sua filha deitavam no tesouro comum os frutos do seu trabalho, pois haviam abraçado a nobre ideia de Birotteau. Ambas desceram da situação que ocupavam para uma inferior. Esses sacrifícios, meus senhores, devem ser altamente honrados, pois são os mais difíceis de praticar. Eis aqui a tarefa que Birotteau se impusera.

Aqui, o procurador-geral leu o resumo do balanço, designando as somas que faltavam pagar e os nomes dos credores.

— Cada uma dessas importâncias, incluídos os juros, foi paga, não mediante recibos com assinaturas particulares que reclamam a severidade da investigação, e sim mediante quitações autênticas que não poderiam surpreender o rigor do tribunal e que não impediram os magistrados de cumprir o seu dever fazendo a sindicância exigida pela lei. Restituireis a Birotteau não a honra, mas os direitos de que ele se achava privado, e fareis justiça. Espetáculos como este são tão raros em vossa audiência que não podemos deixar de testemunhar ao impetrante o quanto aplaudimos tal conduta, já encorajada por augustas proteções.

Depois, leu as conclusões formais em estilo judiciário. A Corte deliberou sem se retirar e o presidente se levantou para pronunciar a sentença.

— A Corte — disse, ao terminar — encarrega-me de exprimir a Birotteau a satisfação que sente em proferir tal sentença. Meirinho, chame a causa seguinte.

Birotteau, já vestido com o cafetã de honra que lhe haviam enfiado as frases do ilustre procurador-geral, foi fulminado de satisfação ao ouvir a frase solene pronunciada pelo primeiro presidente da primeira Corte real da França e que denunciava estremecimentos no coração da impassível justiça humana. Não pôde sair do seu lugar na barra, deu a impressão de estar pregado ali, olhando com um ar embrutecido para os magistrados como se fossem anjos que tivessem ido reabrir-lhe as portas da vida social; o tio segurou-o pelo braço e levou-o para a sala. César, que não obedecera a Luís xviii, pôs, então, maquinalmente, a condecoração da Legião de Honra na lapela e foi cercado pelos amigos e levado em triunfo até o carro.

— Para onde me levam, meus amigos? — perguntou a José Lebas, a Pillerault e a Ragon.

— Para a sua casa.

— Não. São três horas. Quero entrar na Bolsa e usar os meus direitos.

— Para a Bolsa — disse Pillerault ao cocheiro, fazendo um sinal expressivo a Lebas, pois estava notando no reabilitado sintomas inquietantes e receava que ele enlouquecesse.

O antigo perfumista entrou na Bolsa, dando o braço ao tio e a Lebas, os dois venerados comerciantes. Sua reabilitação já era conhecida. A primeira pessoa que viu os três negociantes, acompanhados do velho Ragon, foi Du Tillet.

— Ah! Meu caro patrão, tenho muito prazer em saber que o senhor se livrou desta. Talvez eu tenha contribuído, pela facilidade com que deixei o jovem Popinot tirar-me uma pluma da asa, para este feliz desfecho das suas dificuldades. Alegro-me com a sua felicidade como se fosse minha.

— O senhor não pode fazer outra coisa — disse Pillerault. — Ao senhor isto nunca acontecerá.

— Em que sentido diz isso, senhor? — perguntou Du Tillet.

— Ora essa, no bom sentido — disse Lebas, sorrindo da vingativa malícia de Pillerault, que, sem nada saber, olhava para o homem como para um celerado.

Matifat reconheceu César. Logo os negociantes mais conceituados cercaram o antigo perfumista e fizeram-lhe uma ovação bolsista; ele recebeu os cumprimentos mais lisonjeiros, apertos de mão que despertavam muitas invejas e provocavam alguns remorsos, pois, entre cem pessoas que andavam por lá, mais de cinquenta já haviam liquidado. Gigonnet e Gobseck, que estavam conversando a um canto, contemplaram o virtuoso perfumista como os físicos devem ter contemplado o primeiro gimnoto elétrico que lhes apresentaram. Esse peixe, dotado da potência duma garrafa de Leyde, é a maior curiosidade do reino animal.

Após ter aspirado o incenso do seu triunfo, César tornou a subir ao fiacre e dirigiu-se para casa, onde se devia assinar o contrato de casamento da sua querida Cesarina e do dedicado Popinot. Ele tinha um riso nervoso, que impressionou os três velhos amigos.

É um erro da mocidade achar que todos são fortes como ela, erro que resulta, aliás, das suas qualidades: em vez de ver os homens e as coisas através das lentes, ela os matiza com os reflexos da sua flama e estende o seu excesso de vitalidade mesmo sobre as pessoas velhas. Como César e Constança, Popinot conservava na memória uma faustosa imagem do baile dado por Birotteau. Durante aqueles três anos de provações, Constança e César haviam, sem o dizer, ouvido muitas vezes a orquestra de Collinet, revisto a assembleia florida e gozado aquela alegria tão cruelmente punida, como Adão e Eva devem ter pensado frequentemente naquele fruto proibido que deu a morte e a vida a toda a posteridade, pois parece que a reprodução dos anjos é um mistério do céu. Popinot, porém, podia pensar naquela festa sem remorsos, com deleite: Cesarina, em toda a sua glória, se prometera a ele, pobre. Durante a festa, tivera a certeza de ser amado por si mesmo. Por isso, ao comprar de Celestino o apartamento restaurado por Grindot, estipulando que tudo seria conservado intato, e ao resolver conservar religiosamente as menores coisas pertencentes a César e a Constança, ele estava sonhando com dar o seu baile, um baile de núpcias.

Preparara a festa com carinho, imitando o patrão apenas nas despesas necessárias, mas não nas loucuras: as loucuras já estavam feitas. Assim, o jantar seria servido por Chevet, os convivas eram mais ou menos os mesmos. O padre Loraux substituía o grande chanceler da Legião de Honra, e o presidente do Tribunal de Comércio, Lebas, não faltaria. Popinot convidou o sr. Camusot, em sinal de gratidão pela consideração que ele tivera com Birotteau. O sr. de Vandenesse e o sr. de Fontaine ocuparam os lugares de Roguin e sua esposa. Cesarina e Popinot haviam distribuído os convites para o baile com grande discernimento. Ambos temiam igualmente a publicidade dum casamento e haviam evitado os constrangimentos que sofrem com isso os corações ternos e puros imaginando realizar o baile no dia do contrato. Constança encontrara novamente aquele vestido cereja no qual, durante um único dia, brilhara com efêmero esplendor! Cesarina deliciara-se em fazer a Popinot a surpresa de aparecer com aquele vestido de baile de que ele lhe falara tantas e tantas vezes. Assim, o apartamento ia oferecer a Birotteau o encantador espetáculo que ele saboreara durante uma única noite. Nem Constança nem Cesarina nem Anselmo haviam visto perigo para César naquela enorme surpresa e o esperavam, às quatro horas, em meio de uma alegria que os levava a fazer infantilidades.

Depois das indescritíveis emoções que lhe haviam causado sua reentrada na Bolsa, esse herói de probidade comercial ia receber o abalo que o esperava à Rue Saint-Honoré. Quando, ao entrar na antiga casa, viu ao pé da escada, que se conservara como nova, a esposa com o vestido de veludo cereja, Cesarina, o conde de Fontaine, o visconde de Vandenesse, o barão de La Billardière, o ilustre Vauquelin, formou-se um tênue véu diante dos seus olhos e o tio Pillerault, que lhe dava o braço, sentiu um estremecimento interior.

— É demais — disse o filósofo ao apaixonado Anselmo. — Ele não poderá suportar todo o vinho que lhe serves.

A alegria era tão intensa em todos os corações que todos atribuíram a emoção de César e seus passos trôpegos a uma embriaguez muito natural, mas frequentemente mortal. Ao encontrar-se novamente em casa e ao rever o salão e os seus convivas, entre os quais havia mulheres vestidas para o baile, subitamente o movimento heroico do final da grande sinfonia de Beethoven irrompeu no seu cérebro e no seu coração. Essa música ideal explodiu, crepitou em todos os tons musicais e fez soar seus clarins nas meninges daquele cérebro fatigado, para o qual aquilo ia ser o grande epílogo.

Atordoado por essa harmonia interior, tomou o braço da esposa e disse-lhe ao ouvido, com a voz abafada por uma onda contida de sangue:

— Não estou bem!

Constança, assustada, levou o marido para o quarto, com grande dificuldade. Ao chegar lá, ele caiu numa poltrona, dizendo:

— Dr. Haudry! Padre Loraux!

O padre Loraux acorreu, seguido dos convivas e das mulheres em vestido de baile, e todos se detiveram, formando um grupo estupefato. Diante daquela sociedade florida, César apertou a mão do seu confessor e reclinou a cabeça sobre o peito da esposa ajoelhada. Um vaso já se rompera no seu peito e, agravando a situação, o aneurisma estava estrangulando sua derradeira respiração.

— Eis a morte do justo — disse o padre Loraux, numa voz grave, apontando para César com um desses gestos divinos que Rembrandt soube encontrar para o seu quadro Cristo ressuscitando Lázaro.

Nessa tela, Jesus ordena à terra que devolva a sua presa. O santo padre indicava ao céu um mártir da probidade comercial a condecorar com a palma eterna.

 

 

Paris, novembro de 1837

 

 

INTRODUÇÃO

O narrador desta história, ao jantar num restaurante elegante de Paris em companhia feminina, surpreende por acaso a conversação de quatro conhecidos que, refestelados do outro lado de um tabique, não percebem a presença do casal. Mantendo silêncio, vem a aprender como duas pessoas importantes, o barão de Nucingen e Eugênio de Rastignac, construíram a sua fortuna.

Por mais engenhosa que seja, essa apresentação peca por inverossimilhança: como o narrador (Balzac?) foi capaz de reter e reproduzir palavra por palavra todo o debate e, até, os gestos e os trejeitos dos quatro comensais? Mas as revelações feitas são de tamanho interesse que o leitor simplesmente esquece esse defeito de construção.

Publicado com a mesma data de César Birotteau (novembro de 1837), A Casa Nucingen (em francês: La Maison Nucingen) devia, na ideia de Balzac, fazer contraste com aquele. “As duas histórias nasceram gêmeas”, lemos no Prefácio à edição de César Birotteau, desaparecido das outras edições. “Quem ler César Birotteau deve, portanto, ler Nucingen, se quiser conhecer a obra completa.”

O barão de Nucingen é em tudo o oposto de César: este é honesto, ingênuo e fraco; aquele, velhaco, inteligentíssimo e robusto. Segundo as leis do universo balzaquiano, tão parecidas com as do nosso, o “lince” da alta finança vence, o “anjo bom” da perfumaria sucumbe.

Que diferença enorme, contudo, entre as duas narrativas! A história de César, exposta com amplidão épica, é um exemplo da transfusão de matéria moderna em formas clássicas... Na de Nucingen tudo é moderno: tanto o assunto como a forma. Essa série de especulações, truques e golpes concertados entre cúmplices entendidos, esses crimes comerciais não previstos em nenhum Código são contados num estilo nervoso, rápido, irônico, ora familiar, ora dialetal. Não é por acaso que nesta novela Balzac cita O sobrinho de Rameau, de Diderot, outra obra-prima “modernista” não menos exuberante, irregular e torrencial, e, também, perpassada de um terrível pessimismo.

Contada em primeira pessoa, a novela consiste, toda, numa conversa de quatro convivas de restaurante, quatro aventureiros que já encontramos ora neste, ora naquele recanto do mundo balzaquiano, sobre a origem da fortuna de Rastignac e de Nucingen, duas figuras de primeiro plano desse mesmo mundo. O assunto da conversa, por si só, deve interessar a todos os leitores de A comédia humana. Mas, indiretamente, o autor caracteriza também de maneira admirável os interlocutores, sobretudo Bixiou, personagem amoral mas de uma atração irresistível, ao mesmo tempo representante, público, vítima e juiz do século xix.

Sainte-Beuve declarava, com certo orgulho, que nada entendera de A Casa Nucingen, demonstrando apenas, com essa afirmação, que não tinha as antenas sensíveis de Balzac e não vivia o século como este. Admitiremos que o enredo é dos que nunca antes apareceram em romance (mas sim inúmeras vezes na realidade) e que exige do leitor uma atenção inteligente; mas, quanto à condenação sumária, atribuí-la-emos à prevenção de Sainte-Beuve (para não termos de atribuí-la a limitações de sua sensibilidade artística). Muito mais acertado anda René Bouvier ao afirmar que “nessa narrativa propositadamente descosida e displicente — cuja aparente negligência escondeu às vezes o valor documentário — o interesse não esmorece nem um instante sequer, porque assistimos aí ao próprio nascimento da especulação moderna”.

Bouvier examinou, aliás, o aspecto financeiro da novela, e acha-o prodigiosamente exato. Quantas coisas sabia esse Balzac! Tudo nele vive: não apenas as personagens, mas os negócios, as especulações, os algarismos.

André Billy, biógrafo de Balzac, dos mais agudos e o mais agudo, salienta a conclusão da obra: “O devedor é mais forte do que o credor. Talvez Balzac acreditasse nisso. Fosse como fosse, a dívida foi o nervo do seu gênio criador, como o crédito é a alma do comércio”.

Esse espantoso Nucingen, que já nos empolgou e repeliu em tantas obras de A comédia humana, e que aparece aqui pela primeira vez com toda a sua brutalidade e toda a sua finura, teve o seu protótipo vivo, o barão James Rothschild. Sabem o-lo não somente por haver este figurado sob seu verdadeiro nome na primeira edição de A falsa amante, ao passo que na segunda edição da mesma obra já aparecia em vez dele o nome de Nucingen, como também por uma carta de Balzac a sua noiva onde ele afirma que o barão de Rothschild é “Nucingen sem tirar nem pôr”.

“Nucingen decerto é algo mais que um simples banqueiro”, escreve Alain. “É um homem de amplo horizonte que meditou primeiro o papel na Bolsa e o curso desse papel. Começa por apossar-se dos melhores valores, por exemplo das minas de chumbo argentífero. Depois, manipulando esses valores, que aparentemente sabe fazer baixar ou subir, demonstra que a riqueza pode nascer do nada e nem por isso deixar de ser sólida, com a condição de se manobrar.”

Depois de ler A Casa Nucingen, compreenderemos melhor a frase de Engels em que este afirma ter aprendido mais em Balzac, “mesmo no que concerne aos pormenores econômicos, do que em todos os livros dos historiadores, economistas e estatísticos profissionais da época, todos juntos”.

Além de tudo isso, para o balzaquista — título bem merecido pelos leitores que nos acompanham desde o volume 1 — há um prazer sempre novo em entrever as luzes que saem de um capítulo de A comédia humana para esclarecer outros, conexões ignoradas cuja revelação acaba por completar um perfil e gravar uma personagem. Só agora vimos a saber — por mais que suspeitássemos — que o acontecimento decisivo da vida de Rastignac foi a morte do pai Goriot; numa frase acessória somos informados da carreira de Cointet; outra, como que pronunciada por acaso, lembra que a queda de Felipe Bridau foi obra de Nucingen e mostra como Balzac pretendia suprir, de um romance para outro, as aparentes inconsequências da justiça divina; uma terceira espicaça-nos a impaciência à espera de Os funcionários. A esse especial ponto de vista, A Casa Nucingen é uma obra concentradamente balzaquiana, que prefigura, por assim dizer, o esplêndido pasticho de Proust, inserido em Pastichos e miscelânea.

 

paulo rónai


A CASA NUCINGEN

À SRA. ZULMA CARRAUD[384]

 

Não é à senhora, cuja elevada e proba inteligência é como que um tesouro para seus amigos, à senhora que, para mim, é ao mesmo tempo um público e a mais indulgente das irmãs, a quem devo dedicar esta obra? Digne-se aceitá-la como testemunho de uma amizade da qual me orgulho. A senhora e algumas belas almas, belas como a sua, compreenderão meu pensamento, ao ler La Maison Nucingen junto a César Birotteau. Nesse contraste, não haverá uma completa lição social?

DE BALZAC

 

 

Todos sabem como são delgados os tabiques que separam os gabinetes reservados nos mais elegantes cabarés de Paris. No Véry,[385] por exemplo, o maior salão é dividido em dois por um tabique que se tira e se repõe à vontade. A cena não era aí, mas num bom lugar que não me convém dizer. Éramos dois; direi, pois, como o Prudhomme de Henri Monnier:[386] “Não quero comprometê-la”. Acariciávamos os petiscos de um jantar, delicioso por vários motivos, num salãozinho em que falávamos baixo, depois de termos verificado a pouca espessura da parede. Tínhamos chegado ao momento do assado sem que tivéssemos tido vizinhos na peça contígua à nossa, na qual ouvíamos somente a crepitação do fogo. Ao soarem oito horas, fez-se um grande barulho de pés, ouvimos vozes, os criados trouxeram velas. Ficou demonstrado que o salão vizinho fora ocupado. Ao reconhecer as vozes, fiquei sabendo quais os personagens com que nos tínhamos de haver.

Eram quatro dos mais ousados albatrozes nascidos da espuma que coroa as vagas incessantemente renovadas da presente geração; rapazes amáveis, de vida duvidosa, dos quais não se conhecem rendas nem propriedades, e que vivem bem. Esses espirituosos condottieri[387] da indústria moderna, que se tornou a mais cruel das guerras, deixam as inquietações para os seus credores e guardam para si os prazeres, não tendo outra preocupação além da dos seus trajes. De resto, valentes a ponto de, como Jean Bart,[388] fumarem seus cachimbos em cima de um barril de pólvora, talvez para não falharem ao seu papel; mais trocistas do que os jornalecos, trocistas capazes de troçarem de si mesmos; perspicazes e incrédulos, cavadores de negócios, ávidos e pródigos, invejosos dos outros, mas satisfeitos consigo; com repentes de políticos profundos, tudo analisando, adivinhando tudo, ainda não tinham podido tomar pé no mundo em que se queriam exibir. Só um dos quatro conseguiu chegar... apenas ao pé da escada. De nada vale o dinheiro, e o que triunfa não sabe tudo o que lhe falta a não ser depois de seis meses de bajulações. Meio calado, frio, empertigado, sem espírito, esse vencedor, chamado Andoche Finot,[389] teve estômago para pôr-se de rojo aos pés daqueles que o podiam servir, e a finura de ser insolente com aqueles de que não mais precisava. Semelhante a um dos grotescos do bailado de Gustavo,[390] é marquês pelas costas e vilão pela frente. Esse prelado industrial mantém um caudatário, Emílio Blondet,[391] redator de jornais, homem de muito espírito, mas descosido, brilhante, competente, preguiçoso, sabendo-se explorado, deixando-se levar, tão pérfido como bom, ao sabor do capricho; um desses homens a quem se quer, mas a quem não se estima. Fino como uma criadinha de comédia, incapaz de recusar sua pena a quem lha solicita e seu coração a quem lho pede emprestado, Emílio é o mais sedutor desses homens-raparigas, de quem o mais imaginoso dos nossos humoristas disse: “Prefiro-os antes de sapatos de cetim a de botas”. O terceiro, chamado Couture,[392] mantém-se pela especulação. Enxerta negócio sobre negócio; o êxito de um compensa o insucesso do outro. Por isso, vive à flor da água sustentado pela força nervosa de seu jogo, em braçadas rígidas e audaciosas. Nada daqui, nada dali, buscando no imenso mar dos interesses parisienses uma ilhota suficientemente contestável para poder alojar-se nela. Evidentemente não está no seu lugar. Quanto ao último, o mais malicioso dos quatro, basta o seu nome: Bixiou![393] Infelizmente, não é mais o Bixiou de 1825, e sim o de 1836, o misantropo burlesco a quem se reconhece o máximo de veia e de causticidade, um diabo furioso por ter gasto tanto espírito em pura perda, danado por não ter recolhido seu bocado na última revolução, dando seu pontapé em todos, como verdadeiro Pierrot dos Funâmbulos,[394] conhecendo seu tempo e, na ponta dos dedos, as aventuras escandalosas, enfeitando-as com as suas invenções maliciosas, saltando em todos os ombros como um palhaço, e esforçando-se por deixar neles uma marca, à maneira do carrasco.

Depois de terem satisfeito as primeiras exigências do apetite, nossos vizinhos chegaram ao ponto do jantar em que estávamos, à sobremesa; e, graças ao silêncio que guardamos, julgaram-se sós. Ao fumarem os charutos, sob os vapores da champanhe, através dos divertimentos gastronômicos da sobremesa, entabularam uma conversação íntima. Impregnada desse espírito glacial que retesa os mais elásticos sentimentos, detém as mais generosas inspirações e dá ao riso qualquer coisa de agudo, aquela conversação, cheia de mordaz ironia que transforma a alegria em sarcasmo, revelou o esgotamento de almas entregues a si mesmas, sem outra finalidade que a satisfação do egoísmo, fruto da paz em que vivemos. Esse panfleto contra o homem, que Diderot não se atreveu a publicar, O sobrinho de Rameau,[395] esse livro, propositalmente desalinhado para mostrar chagas, somente ele pode ser comparado àquele panfleto dito sem nenhuma restrição mental, no qual a palavra não respeitou sequer o que o pensador ainda discute, no qual não se construiu a não ser com ruínas, no qual tudo foi negado, no qual não se admirou senão o que o ceticismo adota: a onipotência, a onisciência, a oniconveniência do dinheiro. Depois de ter alvejado o círculo das pessoas conhecidas, a maledicência pôs-se a metralhar os amigos íntimos. Basta um sinal para explicar o desejo que eu tinha de ficar e de ouvir, no momento em que Bixiou tomou a palavra, como se vai ver. Ouvimos então um desses terríveis improvisos que deram àquele artista sua reputação junto a certos espíritos gastos; e, embora muitas vezes interrompido e recomeçado, minha memória estenografou-o. Formas e opiniões, tudo nele está fora das condições literárias. Mas é o que foi: uma miscelânea de coisas sinistras que retratam a nossa época, à qual não se deveriam contar senão histórias como essa, cuja responsabilidade, de resto, deixo ao principal narrador. A pantomima, os gestos, em relação com as frequentes mudanças de voz pelos quais Bixiou pintava os interlocutores postos em cena, deviam ser perfeitos, porquanto seus três ouvintes deixavam escapar exclamações aprobatórias e interjeições de contentamento.

— E Rastignac[396] te recusou? — perguntou Blondet a Finot.

— Peremptoriamente.

— Mas não o ameaçaste com os jornais? — indagou Bixiou.

— Ele pôs-se a rir — respondeu Finot.

— Rastignac é o herdeiro direto do falecido De Marsay;[397] fará carreira tanto em política como nos salões — disse Blondet.

— Mas como fez ele fortuna? — perguntou Couture. — Em 1819 ele vivia numa miserável pensão do Quartier Latin com o ilustre Bianchon; a família dele comia besouros assados e bebia vinho da própria colheita para poder mandar-lhe cem francos por mês; os domínios do pai não valiam mil escudos; tinha o encargo de duas irmãs e de um irmão, e agora...

— Agora tem quarenta mil francos de renda — continuou Finot —, cada uma das irmãs teve um rico dote e foi nobremente casada, e ele deixou o usufruto da propriedade à mãe.

— Em 1827 — disse Blondet — eu ainda o vi sem vintém.

— Oh! Em 1827 — disse Bixiou.

— Pois bem — replicou Finot —, hoje nós o vemos a caminho de ser ministro, par de França e tudo o mais que quiser! Faz três anos que terminou convenientemente com Delfina;[398] não se casará senão em boas condições, e pode casar com uma moça nobre! O maroto teve a boa ideia de se ligar a uma mulher rica.

— Meus amigos, levem-lhe em conta circunstâncias atenuantes — disse Blondet —; ele caiu nas garras de um homem hábil ao soltar-se das garras da miséria.

— Conheces bem Nucingen — disse Bixiou —; nos primeiros tempos Delfina e Rastignac achavam-no bom; uma mulher parecia ser para ele, em casa, uma joia, um ornamento. E aí está o que, para mim, torna esse homem tão sólido de base como de altura: Nucingen não faz cerimônia para dizer que sua mulher é a representação de sua fortuna, uma coisa indispensável, porém secundária, na vida de alta pressão dos homens políticos e dos grandes financistas. Ele disse diante de mim que Bonaparte fora idiota como um burguês nas suas primeiras relações com Josefina, e que, depois de ter tido a coragem de tomá-la como um degrau, fora ridículo ao querer fazer dela uma companheira.

— Todo homem superior deve ter, sobre as mulheres, as opiniões do Oriente — disse Blondet.

— O barão fundiu as doutrinas orientais e ocidentais numa encantadora doutrina parisiense. Tinha horror a De Marsay, que não era manejável, mas Rastignac lhe agradou muito, e ele o explorou, sem que Rastignac o percebesse: deixou-lhe toda a carga de sua casa. Rastignac endossou todos os caprichos de Delfina, levava-a ao Bois de Boulogne, acompanhava-a ao teatro. Esse pequeno grande homem político de hoje durante muito tempo passou a vida a ler e a escrever lindas cartinhas. No começo Eugênio era ralhado por nada; ele se alegrava com Delfina, quando ela estava alegre; entristecia-se, quando ela estava triste; suportava o peso das suas enxaquecas, das suas confidências, dava-lhe todo o seu tempo, suas horas, sua preciosa mocidade para encher o vazio da ociosidade daquela parisiense. Delfina e ele tinham grandes conferências sobre os adornos que melhor sentavam; ele suportava o fogo das cóleras e o chuveiro dos dichotes, ao passo que, em compensação, ela se mostrava encantadora com o barão. Este ria interiormente; depois, quando via Rastignac vergando sob o peso dos seus encargos, fingia suspeitar alguma coisa, e unia os dois amantes por um medo comum.

— Concebo que uma mulher rica tenha feito Rastignac viver, e viver abastadamente; mas aonde foi ele buscar sua fortuna? — perguntou Couture. — Uma fortuna tão grande como a dele, hoje, é tirada de algum lugar, e ninguém o acusou jamais de ter inventado um bom negócio.

— Ele herdou — disse Finot.

— De quem? — perguntou Blondet.

— Dos tolos que encontrou — replicou Couture.

— Ele não abocanhou tudo, meus amorzinhos — disse Bixiou.

 

... Reponham-se de um tão quente alarme;

Vivemos num tempo muito amigo da fraude.[399]

 

— Vou contar-lhes a origem da fortuna dele. Antes do mais, honra ao talento! Nosso amigo não é um maroto, como disse Finot, e sim um gentleman que conhece o jogo, que sabe as cartas e a quem a galeria respeita. Rastignac tem todo o espírito que é necessário ter num determinado momento, como um militar que não coloca sua coragem senão a noventa dias, três assinaturas e garantias. Poderá parecer arrogante, espalha-brasas, sem lógica nas ideias, sem constância nos seus projetos, sem opinião fixa; mas basta apresentar-se um negócio sério, uma combinação a seguir, e ele não será dispersivo, como Blondet que aí está!, o qual, numa ocasião dessas, discute por conta do vizinho; Rastignac concentra-se, encolhe-se, estuda o ponto que deve atacar, e ataca em carga cerrada. Com o valor de Murat, ele arrebenta os quadros, os acionistas, os fundadores e toda a igrejinha; quando a carga abre brecha, ele retoma a sua vida moleirona e despreocupada, volta a ser o Homem do Meio-Dia, o voluptuoso, o dizedor de nadas, o ocioso Rastignac, que pode levantar-se ao meio-dia porque não se deitou no momento da crise.

— Até aqui vai tudo bem; mas vamos à fortuna dele — disse Finot.

— Bixiou não nos fará senão uma caricatura — disse Blondet.

— A fortuna de Rastignac é Delfina de Nucingen, mulher notável, e que à audácia alia a previsão.

— Ela emprestou-te dinheiro? — perguntou Bixiou.

Explodiu uma risada geral.

— Engana-se a respeito dela — disse Couture a Blondet —; seu espírito consiste em ditos mais ou menos picantes, em amar Rastignac com uma fidelidade incômoda, em obedecer-lhe cegamente, uma mulher completamente tipo italiano.

— Dinheiro à parte — disse Andoche Finot amargamente.

— Vamos, vamos — interveio Bixiou com voz hipócrita —, ainda ousam, depois do que acabamos de dizer, censurar esse pobre Rastignac por ter vivido a expensas da Casa Nucingen, por ter sido instalado num apartamento, nem mais nem menos do que outrora a Torpedo pelo nosso amigo Des Lupeaulx?[400] Se assim fizessem, cairiam na vulgaridade da Rue Saint-Denis. Primeiro, falando abstratamente, como diz Royer-Collard,[401] a questão pode sofrer a crítica da razão pura; quanto à da razão impura...

— Ei-lo com toda a corda! — disse Finot a Blondet.

— Mas — exclamou Blondet — ele tem razão. A questão é muito antiga, foi a grande palavra do famoso duelo de morte entre La Châteigneraie e Jarnac. Jarnac era acusado de estar em boas relações com a sogra, que supria o fausto de seu muito amado genro. Quando um fato é tão verdadeiro, não deve ser dito. Por devotamento ao rei Henrique ii, que se permitira essa maledicência, La Châteigneraie assumiu-lhe a responsabilidade; daí esse duelo que enriqueceu a língua francesa com a expressão: coup de jarnac.[402]

— Ah! Se a expressão vem de tão longe, é então nobre?! — disse Finot.

— Na tua qualidade de antigo proprietário de jornais e revistas, tinhas o direito de ignorar isso — disse Blondet.

— Existem mulheres — disse gravemente Bixiou —, existem também homens que podem cindir sua existência, e não dar senão parte dela (notem que fraseio minha opinião segundo a fórmula humanitária). Para essas pessoas, todo interesse material está alheio aos sentimentos; elas dão a vida, o tempo, a honra a uma mulher e acham que não é correto malbaratar entre si papel de seda no qual se grave: A lei pune com a morte o falsificador. Por reciprocidade, essa gente nada aceita de uma mulher. Sim, tudo se torna desonroso, se há fusão de interesses como há fusão de almas. Professa-se essa doutrina, mas se aplica raramente...

— Epa! — disse Blondet — que futilidades! O marechal de Richelieu, sabido em galanterias, estabeleceu uma pensão de mil luíses para a sra. de La Popelinière, depois da aventura da placa da lareira.[403] Agnès Sorel,[404] muito ingenuamente, levou para o rei Carlos vii sua fortuna, e o rei aceitou-a. Jacques Cœur[405] estipendiou a coroa de França, que se deixou presentear e foi ingrata como uma mulher.

— Senhores — disse Bixiou —, o amor que não comporta uma amizade indissolúvel afigura-se-me uma libertinagem momentânea. O que significa um completo abandono no qual se reserva alguma coisa? Entre essas duas doutrinas, tão opostas e tão profundamente imorais, uma como a outra, não há conciliação possível. A meu ver, as pessoas que temem uma completa ligação têm, sem dúvida, a crença de que ela pode acabar, e adeus ilusão! A paixão que não se julga eterna é hedionda. (Isto aqui é puro Fénelon.)[406] Por isso os que conhecem o mundo, os observadores, as pessoas corretas, os homens bem enluvados e bem engravatados, que não coram por desposar uma mulher devido à sua fortuna, proclamam como indispensável uma completa cisão dos interesses e sentimentos. Os demais são loucos que amam, que se julgam sós no mundo com suas amantes! Para estes, os milhões são lama; a luva, a camélia usada por seu ídolo vale milhões! Se em casa deles jamais se encontra o vil metal dissipado, sempre se encontram restos de flores ocultos em lindas caixinhas de cedro! Não se distinguem mais um do outro. Para eles não há mais eu. Tu, eis o seu Verbo encarnado. Que querem? Podem vocês, acaso, impedir essa doença secreta do coração? Há tolos que amam sem nenhuma espécie de cálculo, e há pessoas ponderadas que calculam quando amam.

— Acho Bixiou sublime — exclamou Blondet. — Que diz disso, Finot?

— Em qualquer outro lugar — respondeu Finot empertigando-se no seu colarinho — eu diria como os gentlemen; mas aqui penso...

— Como os infames libertinos com quem tens a honra de estar — concluiu Bixiou.

— Palavra que sim — disse Finot.

— E tu? — perguntou Bixiou a Couture.

— Tolices — exclamou Couture. — Uma mulher que não faz de seu corpo um degrau para que o homem que ela distingue alcance a meta é uma mulher que tem coração só para ela.

— E tu, Blondet?

— Eu? Pratico.

— Pois bem! — continuou Bixiou com sua mais sarcástica voz. — Rastignac não era da mesma opinião que vocês. Tomar e não restituir é horrível e até mesmo um pouco leviano; mas tomar para ter o direito de imitar o Senhor, restituindo o cêntuplo, é um ato cavalheiresco. Assim pensava Rastignac. Rastignac estava profundamente humilhado de sua comunhão de interesses com Delfina de Nucingen; posso falar dos seus aborrecimentos, vi-o com lágrimas nos olhos deplorando sua situação. Sim, aquilo fazia-o chorar verdadeiramente!... depois da ceia. Pois bem! Segundo vocês...

— Ora essa! Estás zombando de nós — disse Finot.

— De modo nenhum. Trata-se de Rastignac, cuja dor, segundo vocês, seria uma prova de sua corrupção, pois que então ele amaria menos Delfina! Mas que querem? O pobre rapaz tinha aquele espinho no coração. É um gentil-homem profundamente depravado, fiquem sabendo, e nós somos artistas virtuosos. Portanto, Rastignac queria enriquecer Delfina, ele pobre, ela rica! Pois acreditam?... Conseguiu-o. Rastignac, que teria duelado como Jarnac, aceitou desde então a opinião de Henrique ii, em virtude de sua grande sentença: “Não há virtude absoluta, e sim circunstâncias”. Isto prende-se à história de sua fortuna.

— Tu farias melhor se começasses o teu conto, em vez de nos induzir a nos caluniarmos — disse Blondet com graciosa bonomia.

— Ah! Ah! Meu velho — disse-lhe Bixiou, dando-lhe o batismo de um pequeno tapa no occipúcio —, tu te desforras na champanhe.

— Pelo santo nome do Acionista — disse Couture —, contas ou não contas tua história?

— Faltava-me um capítulo — respondeu Bixiou —, mas, com a tua praga, pões-me no desenlace.

— Então há acionistas na história? — perguntou Finot.

— Riquíssimos, como os teus — respondeu Bixiou.

— Parece-me — disse Finot com ar importante — que devias ter contemplações para com um bom rapaz, com o qual, nos momentos oportunos, consegues uma nota de quinhentos...

— Garçom! — bradou Bixiou.

— Que queres pedir ao garçom? — perguntou-lhe Blondet.

— Quinhentos francos, para restituí-los a Finot, a fim de libertar minha língua e rasgar minha gratidão.

— Conta tua história — disse Finot fingindo rir.

— São testemunhas — disse Bixiou — de que não pertenço a esse impertinente que julga não valer o meu silêncio mais do que quinhentos francos! Nunca serás ministro, se não souberes avaliar as consciências. Pois bem! Sim — disse ele com voz carinhosa —, meu bom Finot, narrarei a história sem personalizar, e ficaremos quites.

— Ele nos vai demonstrar — disse Couture, sorrindo — que Nucingen fez a fortuna de Rastignac.

— Não estás tão longe da verdade, como pensas — disse Bixiou. — Vocês não sabem quem é Nucingen, financeiramente falando.

— Tu não sabes sequer uma palavra do começo da sua carreira? — disse Blondet.

— Só o conheci em casa dele — disse Bixiou —, mas é bem possível que nos tivéssemos visto tempos atrás na estrada.

— A prosperidade da Casa Nucingen é um dos fenômenos mais extraordinários da nossa época — disse Blondet. — Em 1804, Nucingen era pouco conhecido; os banqueiros de então teriam tremido se soubessem haver em praça cem mil escudos de aceites dele. Esse grande financista sente então a sua inferioridade. Como fazer-se conhecer? Suspende pagamentos. Bom! Seu nome, limitado a Estrasburgo e ao Faubourg Poissonière, repercute em todas as praças! Ele desinteressa sua gente com valores mortos, e recomeça seus pagamentos; imediatamente suas ações se firmam por toda a França. Por uma circunstância inaudita, os valores revivem, são disputados, dão lucros. Nucingen é muito procurado. Chega o ano de 1815, o meu homem reúne seus capitais, compra títulos antes da batalha de Waterloo, suspende seus pagamentos no momento da crise, liquida com ações das minas de Wortschin que ele obtivera a vinte por cento abaixo do valor pelo qual ele próprio as emitia! Sim, senhores! Toma de Grandet cento e cinquenta mil garrafas de champanhe para cobrir-se, prevendo a falência daquele virtuoso pai do atual conde de Aubrion,[407] e outro tanto a Duberghe[408] em vinho de Bordeaux. Essas trezentas mil garrafas aceitas, aceitas, meu caro, a um franco e meio, ele deu a beber aos aliados por seis francos, no Palais-Royal, de 1817 a 1819. As ações da Casa Nucingen e seu nome tornam-se europeus. Esse ilustre barão elevou-se do abismo onde outros teriam naufragado. Por duas vezes, sua liquidação produziu vantagens imensas para os seus credores: ele quis embrulhá-los, e foi impossível! Passa por ser o mais honrado homem do mundo. Na terceira suspensão, as ações da Casa Nucingen se firmarão na Ásia, no México, na Austrália, entre os selvagens. Ouvrard[409] foi o único que adivinhou aquele alsaciano, filho de algum judeu convertido por ambição: “Quando Nucingen solta seu ouro”, dizia ele, “fiquem certos que pega diamante!”.

— Seu compadre Du Tillet[410] vale tanto quanto ele — disse Finot. — Imaginem que, em questão de origem, Du Tillet não tem mais do que o necessário para existir, e que esse tipo, que em 1814 não tinha um vintém, tornou-se o que sabem; mas ele teve amigos ao invés de ter inimigos, o que nenhum de nós (não me refiro a ti, Couture) soube fazer. Finalmente, ocultou tão bem os seus antecedentes que foi preciso vasculhar as sarjetas, até encontrá-lo como caixeiro em uma casa de perfumes da Rue Saint-Honoré mais ou menos em 1814.

— Tá! tá! tá! — replicou Bixiou. — Nunca compare a Nucingen um pequeno intrujão como Du Tillet, um chacal que triunfa pelo olfato, que fareja os cadáveres e é o primeiro a chegar para ter o melhor osso. De resto, veja esses dois homens: um tem o aspecto fino dos gatos, é magro, delgado; o outro é cúbico, gordo, pesado como um saco, imóvel como um diplomata. Nucingen tem a mão espessa e um olhar de lince que nunca se anima; sua profundeza não está na frente e sim por trás; é impenetrável, nunca se lhe adivinham os planos, ao passo que a finura de Du Tillet se assemelha, como dizia Napoleão não sei a respeito de quem, ao algodão fiado muito fino, que se parte.

— Não vejo em Nucingen outra vantagem sobre Du Tillet além da de ter o bom senso de compreender que um financista não deve passar de barão, ao passo que Du Tillet quer ser nomeado conde, na Itália — disse Blondet.

— Blondet?... Uma palavra, meu filho — replicou Couture. — Em primeiro lugar, Nucingen se atreveu a dizer que não há senão aparências de homem honrado; depois, para bem conhecê-lo, é preciso estar metido em negócios. Para ele o banco é um pequeno departamento administrativo: tem os fornecimentos do governo, os vinhos, as lãs, os índigos, enfim, tudo o que proporciona algum lucro. Seu gênio abarca tudo. Esse elefante das finanças seria capaz de vender deputados ao ministério, e gregos aos turcos. Para ele, o comércio, como diria Cousin,[411] é a totalidade das variedades, a unidade das especialidades. Os negócios financeiros assim encarados tornam-se uma política completa, exigem uma cabeça forte e levam então um homem de fibra a colocar-se acima das leis da probidade, dentro das quais ele se sente apertado.

— Tens razão, meu filho — disse Blondet. — Mas somente nós compreendemos que é, então, a guerra levada ao mundo do dinheiro. O banqueiro é um conquistador que sacrifica as massas para chegar a resultados ocultos; seus soldados são os interesses dos particulares. Ele tem de combinar seus estratagemas, preparar suas emboscadas, fazer avançar seus partidários, tomar cidades. A maioria desses homens está tão próxima à política, que acaba se metendo nela, e suas fortunas aí sucumbem. A casa Necker foi aí que se perdeu, o famoso Samuel Bernard[412] quase que se arruinou na política. Em cada século há um banqueiro com uma fortuna colossal que não deixa nem fortuna nem sucessor. Os irmãos Pâris,[413] que contribuíram para abater Law,[414] e o próprio Law, perto dos quais todos os que inventam sociedades por ações são pigmeus, Bouret,[415] Beaujon,[416] todos eles desapareceram sem se fazer representar por uma família. Como o Tempo,[417] a finança devora seus filhos. Para poder subsistir, o banqueiro precisa tornar-se nobre, fundar uma dinastia, como os que emprestavam dinheiro a Carlos v, os Fugger,[418] que foram feitos príncipes de Babenhausen, e que ainda existem... no Almanaque de Gotha.[419] A finança busca a nobreza por instinto de conservação, e talvez sem o saber. Jacques Cœur fez uma grande casa nobre, a de Noirmoutier, extinta sob Luís xiii. Que energia naquele homem, arruinado por ter feito um rei legítimo! Morreu como príncipe de uma ilha do Arquipélago, onde fez construir uma catedral magnífica.[420]

— Ah! se vocês fazem um curso de história, nós saímos do tempo presente, no qual o trono está destituído do direito de conferir a nobreza, no qual se fazem barões e condes a portas fechadas, que miséria! — disse Finot.

— Lamentas a falta do sabão para tirar a casca de plebeu[421] — disse Bixiou — e tens razão. Voltamos à vaca fria. Conhecem Beaudenord![422] Não, não e não. Bem. Vejam como tudo passa! O pobre rapaz, há dez anos, era a flor do dandismo. Mas foi tão bem absorvido, que vocês não o conhecem, assim como Finot, há pouco, também, não conhecia o golpe de Jarnac (é pela frase e não para implicar contigo que digo isto, Finot!). Na verdade, ele pertencia ao Faubourg Saint-Germain. Pois bem, Beaudenord é o primeiro marreco que lhes vou pôr em cena. Para começar: ele se chamava Godofredo de Beaudenord. Nem Finot, nem Blondet, nem Couture, nem eu negaremos semelhante vantagem. O rapaz não sofria no seu amor-próprio por ouvir chamar sua criadagem ao sair de um baile, quando trinta mulheres encapuzadas e escoltadas por seus maridos e seus adoradores esperavam suas carruagens. Depois, ele gozava de todos os membros que Deus deu ao homem: são e inteiro, sem belida nos olhos nem falso topete nem falsas barrigas de pernas; não era cambaio nem pé espalhado; joelhos não engrossados, espinha dorsal direita, corpo delgado, mão branca e bonita, cabelos negros; tez nem rosada como a de um caixeiro de venda nem muito morena como a de um calabrês. Finalmente, coisa essencial: Beaudenord não era um homem bonito demais, como são alguns amigos nossos que parecem fazer da beleza uma profissão e não ter outra coisa; mas não insistamos nisso, já o dissemos, é uma coisa infame! Atirava bem de pistola, montava elegantemente a cavalo; duelara por uma ninharia e não matara o adversário. Saberão vocês que, para se fazer conhecer em que consiste a felicidade completa, pura, sem mescla, no século xix, em Paris, a uma felicidade de rapaz de vinte e seis anos, é preciso enveredar pelas coisas infinitamente pequenas da vida? O sapateiro acertara bem com o pé de Beaudenord, e o alfaiate gostava de vesti-lo. Godofredo não endurecia a pronúncia dos rr, não fanfarronava, não normandiava, falava pura e corretamente, e dava muito bem o laço da gravata, como Finot. Primo por afinidade do marquês d’Aiglemont,[423] seu tutor (ele era órfão de pai e mãe, outra felicidade!), podia ir, e ia, aos bancos sem que o Faubourg Saint-Germain lhe censurasse essa assiduidade, pois um rapaz, felizmente, tem o direito de fazer do prazer sua única lei, de correr para os lugares de divertimentos e de fugir dos recantos sombrios onde floresce o pesar. Finalmente, ele era vacinado (tu, Blondet, me compreendes). Apesar de todas essas virtudes, ele poderia sentir-se muito infeliz. He! he! A felicidade tem a desgraça de parecer significar qualquer coisa de absoluto, aparência que induz tantos tolos a perguntar: “O que é a felicidade?”. Uma mulher de muito espírito dizia: “A felicidade está onde a colocamos”.

— Ela proclamava uma triste verdade — disse Blondet.

— E moral — acrescentou Finot.

— Arquimoral! A Felicidade, como a Virtude, como o Mal, exprimem algo de relativo — respondeu Blondet. — La Fontaine, por exemplo, esperava que, com o decorrer dos tempos, os condenados eternos se acostumariam com sua posição e acabariam vivendo no Inferno como os peixes na água.

— Os merceeiros conhecem todos os ditos de La Fontaine! — disse Bixiou.

— A felicidade de um homem de vinte e seis anos que vive em Paris não é a felicidade de um homem de vinte e seis anos que vive em Blois — disse Blondet sem ouvir a interrupção. — Os que partem daí para deblaterar contra a instabilidade das opiniões ou são velhacos, ou ignorantes. A medicina moderna, cujo mais belo título de glória é ter passado, de 1799 a 1837, do estado conjetural ao estado de ciência positivo, e isso pela influência da grande escola analista de Paris, demonstrou que, ao cabo de certo período, o homem se renovou completamente...

— À feição da faca de Jeannot, que se julga ser sempre a mesma — replicou Bixiou. — Há, pois, múltiplos losangos nesse traje de Arlequim a que chamamos felicidade; pois bem, o traje do meu Godofredo não tinha buracos nem manchas. Um rapaz de vinte e seis anos, que fosse feliz nos amores, isto é, amado, não por sua mocidade primaveril, não por seu espírito, não por seu porte, mas irresistivelmente, nem mesmo por causa do amor em si mesmo; mas, ainda quando esse amor fosse abstrato, para insistirmos na expressão de Royer-Collard, esse supradito rapaz poderia perfeitamente não ter vintém na carteira que lhe teria sido bordada pelo objeto amado, poderia dever o aluguel da casa ao proprietário, as botas àquele sapateiro já designado, as roupas ao alfaiate que, como a França, acabaria por perder-lhe a afeição. Enfim, poderia ser pobre! A miséria estraga a felicidade do rapaz que não possui nossas transcendentais opiniões sobre a fusão dos interesses. Não sei de nada mais cansativo que ser moralmente muito feliz e materialmente muito infeliz. Não é isso ter uma perna gelada, como a minha, pelo vento encanado da porta, e a outra assada pela brasa do fogo? Espero ser bem compreendido; há eco no bolso do teu colete, Blondet? Cá entre nós, deixemos o coração, ele estraga o espírito. Continuemos! Godofredo de Beaudenord gozava, pois, da estima dos seus fornecedores, por terem estes, com toda a regularidade, o seu dinheiro. A mulher de muito espírito já citada, e cujo nome não se pode dizer, porque, graças ao pouco coração que tem, ela vive...

— Quem é?

— A marquesa d’Espard![424] Ela dizia que um rapaz devia morar num entressolo, não ter em casa nada que lembrasse a vida doméstica, nem cozinheira nem cozinha, ser servido por um velho criado, e não mostrar nenhuma pretensão à estabilidade. Na opinião dela, qualquer outra instalação é de mau gosto. Godofredo de Beaudenord, fiel a esse programa, morava no Quai Malaquais, num rés do chão; não obstante, fora obrigado a ter uma pequena similitude com as pessoas casadas, ao pôr no seu quarto uma cama, aliás tão estreita, que pouco lugar ocupava. Uma inglesa, que por acaso entrasse no quarto dele, nada poderia achar de improper. Finot, faze com que te expliquem a grande lei de improper que rege a Inglaterra! Mas, uma vez que estamos ligados por uma nota de mil, vou dar-te uma ideia da coisa. Eu, sim, senhor, estive na Inglaterra! (Baixo, ao ouvido de Blondet: concedo-lhe espírito por mais de dois mil francos.) Na Inglaterra, Finot, tu crias relações estreitas com uma mulher, durante a noite, no baile, ou em qualquer outro lugar; no dia seguinte tu a encontras na rua, e se fazes menção de reconhecê-la: improper! Encontras num jantar, sob a casaca do teu vizinho da esquerda, um homem encantador, espirituoso, sem nenhuma empáfia, um certo desleixo, sem nada de inglês; seguindo as leis da antiga usança francesa, tão cortês, tão amável, tu lhe falas: improper! Aborda-se num baile uma bonita mulher para fazê-la dançar: improper! Você se acalora, discute, ri, derrama seus sentimentos, sua alma, seu espírito na palestra; nela expressa sentimentos; joga, quando está no jogo, conversa na conversação, e come ao comer: improper! improper! improper! Um dos homens mais espirituosos e mais profundos desta época, Stendhal, caracterizou muito bem o improper dizendo haver um tal lorde da Grã-Bretanha que, mesmo só, não ousa cruzar as pernas em frente à lareira, com medo de ser improper. Uma dama inglesa, embora seja ela da seita furibunda dos santos (protestantes ferrenhos que deixariam toda a família morrer de fome, se ela fosse improper), não será improper fazendo o diabo a quatro no seu quarto de dormir, e se considerará perdida se receber um amigo nesse mesmo quarto. Graças ao improper, qualquer dia se encontrarão Londres e seus habitantes petrificados.

— Quando se pensa que há em França toleirões que querem importar para cá as solenes besteiras que os ingleses fazem na sua terra com o belo sangue-frio que vocês conhecem — disse Blondet —, é de fazer arrepiar quem quer que tenha visitado a Inglaterra e recorde os graciosos e encantadores costumes franceses. Nos últimos tempos, Walter Scott,[425] que não se animou a descrever as mulheres como elas são, com medo de ser improper, tinha arrependimento de ter feito a bela personagem de Effie na prisão de Edimburgo. Queres não ser improper na Inglaterra? — disse Bixiou a Finot.

— Pois sim — disse Finot.

— Vai às Tuileries ver uma espécie de bombeiro de mármore, intitulado Temístocles pelo estatuário, e procura caminhar como a estátua do Comendador; assim nunca serás improper. Foi por uma aplicação rigorosa da grande lei do improper que a felicidade de Godofredo se completou. Aqui vai a história. Ele tinha um tigre[426] e não um groom, como costumam escrever pessoas que nada sabem. Seu tigre era um pequeno irlandês, chamado Paddy, Joby, Toby (à vontade), de três pés de altura, vinte polegadas de largura, cara de fuinha, nervos de aço temperados no gim, ágil como um esquilo, guiando um landô com uma habilidade que nunca falhou nem em Londres nem em Paris, um olho de lagartixa, fino como o meu, montando a cavalo, como o velho Franconi,[427] de cabelos louros como os de uma virgem de Rubens, faces róseas, dissimulado como um príncipe, instruído como um solicitador aposentado, com dez anos de idade: numa palavra, uma verdadeira flor de perversidade, jogando e praguejando, amante de geleias e de ponche, insultador como um folhetim, ousado e ladravaz como um garoto de Paris. Era a honra e a mascote de um célebre lorde inglês, ao qual ele já fizera ganhar setecentos mil francos nas corridas. O lorde queria muito àquele menino: seu tigre era uma curiosidade; ninguém em Londres tinha um groom tão pequeno. Em cima de um cavalo de corrida, Joby parecia um falcão. Pois bem, o lorde despediu Toby, não por ter sido guloso, nem por roubo, nem por assassínio, nem por conversações criminosas, nem por falta de compostura, nem por insolência para com milady, não por ter furado o bolso da primeira dama de milady, não por ter-se deixado subornar pelos adversários de milorde no prado, não por ter-se divertido num domingo, enfim por nenhum ato censurável. Embora Toby tivesse feito todas essas coisas, e até mesmo tomado a palavra sem ter sido interrogado, milorde lhe teria perdoado esse crime doméstico. Milorde era capaz de suportar muitas coisas de Toby de tanto que o queria consigo. Seu tigre guiava um carro de duas rodas com dois cavalos, um diante do outro, montado no segundo, sem que as pernas ultrapassassem os varais, tendo, enfim, o ar de uma dessas cabeças de anjo que os pintores italianos semeiam em torno do Padre Eterno. Um jornalista inglês fez uma descrição deliciosa daquele anjinho, achou-o demasiado lindo para ser um tigre, ofereceu apostar em como Paddy era um tigre fêmea domesticado. A descrição ameaçava envenenar-se e tornar-se supinamente improper. O superlativo de improper leva à forca. Milorde foi muito louvado pela sua circunspeção, por milady. Toby não pôde achar colocação em parte alguma, depois de ter visto contestarem seu estado civil na zoologia britânica. Nessa época, Godofredo florescia na embaixada da França em Londres, onde teve notícia da aventura de Toby, Joby, Paddy. Godofredo apoderou-se do tigre, que encontrou chorando ao lado de um pote de geleia, porquanto o pequeno já perdera os guinéus com os quais milorde lhe dourara a desgraça. No seu regresso, pois Godofredo de Beaudenord importou para cá o mais encantador tigre da Inglaterra; ficou conhecido por seu tigre como Couture se fez notado por seus coletes. Por isso entrou facilmente na confederação do clube chamado hoje de Grammont. Não causava inquietações a nenhuma ambição depois de ter renunciado à carreira diplomática, não tinha um espírito perigoso, foi bem recebido por todos. Nós outros nos sentiríamos ofendidos no nosso amor-próprio se encontrássemos somente semblantes risonhos. A nós nos agrada ver a careta amarga dos invejosos. Godofredo não gostava de ser odiado. Cada qual come do que gosta! Cheguemos ao sólido, à vida material. O apartamento dele, onde papei mais de um almoço, recomendava-se por um quarto de vestir misterioso, bem enfeitado, cheio de coisas confortáveis, com chaminé, banheiro, saída numa pequena escada, batentes de porta almofadados para abafar o som, fechaduras fáceis, gonzos discretos, janelas de vidraças opacas, com cortinas impassíveis. Se o quarto de dormir apresentava e devia apresentar a mais bela desordem que o mais exigente pintor de aquarelas possa desejar, se tudo nele respirava o descuido boêmio de uma vida de rapaz elegante, o quarto de vestir era como que um santuário: branco, limpo, arrumado, aquecido, sem vento encanado, tapetes próprios para neles se saltar descalço, em camisa, assustado. Nisso está o traço do rapaz verdadeiramente petimetre que sabe gozar a vida! Porque aí, durante alguns minutos, ele pode mostrar-se tolo ou grande nos pequenos detalhes da existência que revelam o caráter. A marquesa já citada, não, foi a marquesa de Rochefide,[428] saiu furiosa de um quarto de vestir e nunca mais lá voltou, por nada ter achado de improper. Godofredo tinha lá um pequeno armário cheio...

— De camisolas — disse Finot.

— Vamos, aí estás tu, gordanchudo Turcaret![429] (Nunca farei nada dele!) Não, rapaz: cheio de bolos, de frutas, lindas garrafinhas de vinho de Málaga, de Lunel, uma merenda à Luís xiv, tudo o que pode agradar a estômagos delicados e bem-educados, estômagos de dezesseis costados. Um velho e malicioso criado, muito forte na arte veterinária, tratava dos cavalos e cuidava de Godofredo, porque pertencera ao falecido sr. Beaudenord e nutria por Godofredo uma afeição inveterada, essa doença do coração que as poupanças acabaram por curar nos criados. Toda felicidade material repousa em algarismos. Vocês, para quem a vida parisiense é conhecida até nas suas exostoses, percebem que lhe eram necessários cerca de dezessete mil francos de renda, porque ele tinha dezessete francos de contribuição e mil escudos de fantasias. Pois bem, meus queridos filhos, no dia em que ele se levantou maior, o marquês d’Aiglemont apresentou-lhe contas de tutela, como nós não seríamos capazes de apresentar aos nossos sobrinhos, e entregou-lhe uma inscrição de dezoito mil francos de renda no Grande Livro, restos da opulência paterna avariada pela grande redução republicana e rematada pelos atrasados do Império. Esse virtuoso tutor pôs seu pupilo à frente de uma trintena de mil francos de economia colocados no banco Nucingen, dizendo-lhe com toda a graça de um grão-senhor e a despreocupação de um soldado do Império que lhe tinha arranjado aquela quantia para as suas loucuras de rapaz. “Se me ouvires, Godofredo”, acrescentou ele, “em vez de gastá-los totalmente como tantos outros, farás loucuras úteis, aceitarás um posto de adido de embaixada em Turim, de lá irás a Nápoles, de Nápoles voltarás a Londres, e ter-te-ás divertido e instruído com esse dinheiro. Mais tarde, se quiseres seguir uma carreira, não terás perdido nem teu tempo nem teu dinheiro.” O falecido D’Aiglemont valia mais do que sua reputação; outro tanto não se pode dizer de nós.

— Um rapaz que se inicia na vida aos dezoito anos, com dezoito mil francos de renda, é um rapaz arruinado — disse Couture.

— A menos que seja avarento ou muito superior — disse Blondet.

— Godofredo fez uma estada nas quatro capitais da Itália[430] — continuou Bixiou. — Viu a Alemanha e a Inglaterra, um pouco de São Petersburgo, percorreu a Holanda; mas separou-se dos supraditos trinta mil francos vivendo como se tivesse trinta mil francos de renda. Por toda parte encontrou o suprême de volaille, o aspic e os vinhos da França, ouviu todo mundo falar francês, finalmente não soube sair de Paris. Bem quisera ele depravar seu coração, couraçá-lo, perder suas ilusões, aprender a tudo ouvir sem corar, falar sem dizer nada, penetrar os secretos interesses das potências... Ora! Teve bastante trabalho para munir-se de quatro línguas, isto é, fazer provisão de quatro palavras contra uma ideia. Voltou viúvo de várias matronas enfadonhas, denominadas no estrangeiro de aventuras felizes, tímido e pouco formado, bom rapaz, cheio de confiança, incapaz de dizer mal das pessoas que faziam a honra de admiti-lo em suas casas, tendo demasiada boa-fé para ser diplomata; enfim, o que chamamos de um rapaz leal.

— Em resumo, um rapazola que tinha suas dezoito mil libras de renda à disposição das primeiras ações que aparecessem — disse Couture.

— Este diabo do Couture tem de tal forma o hábito de antecipar seus dividendos que antecipa o desenlace da minha história. Onde estava eu? Na volta de Beaudenord. Depois de instalado no Quai Malaquais, resultou que mil francos acima de suas necessidades se tornaram insuficientes para a sua parte do camarote nos Italiens e na Ópera. Quando ele perdia vinte e cinco ou trinta luíses ao jogo, numa aposta, ele naturalmente pagava; se ganhava, gastava-os, o que nos aconteceria a nós se fôssemos suficientemente idiotas para deixar-nos meter em apostas. Beaudenord, apertado nos seus dezoito mil francos de renda, sentiu a necessidade de criar o que hoje denominamos fundo de circulação. Ele fazia questão de não se afundar a si próprio. Foi consultar o tutor: “Meu caro filho”, disse-lhe D’Aiglemont, “as rendas estão chegando ao par; vende as tuas, eu vendi as minhas e as de minha mulher. Nucingen está com todo o meu capital e me dá seis por cento; faze como eu, terás um por cento a mais, e esse um por cento te permitirá ficar completamente à vontade”. Em três dias o nosso Godofredo ficou à vontade. Achando-se as suas rendas num perfeito equilíbrio com aquele supérfluo, sua felicidade material foi completa. Se fosse possível interrogar todos os rapazes de Paris com um único olhar, como parece que se fará no dia do juízo final para os bilhões de gerações que terão chafurdado em todo o globo, quer como guardas nacionais, quer como selvagens, e lhes perguntar se a felicidade de um moço de vinte e seis anos não consiste em poder sair a cavalo, de tílburi, ou num cabriolé com um tigre do tamanho de um punho, fresco e rosado como Toby, Joby ou Paddy; em ter, à noite, por doze francos, um cupê de aluguel muito decente; em apresentar-se elegantemente trajado segundo as leis do vestuário que regem as oito horas, o meio-dia, as quatro horas e a noite; em ser bem recebido em todas as embaixadas, e nelas colher as flores efêmeras de amizades cosmopolitas e superficiais; em ser de uma beleza suportável, e a bem usar seu nome, sua casaca e sua cabeça; em morar num encantador rés de chão arranjado como lhes disse que era o do Quai Malaquais; em poder convidar alguns amigos para acompanhá-lo ao Rocher de Cancale[431] sem ter antes interrogado o bolso, e não ser detido em nenhum dos seus razoáveis gestos por esta pergunta: “Ah! e dinheiro?”; em poder renovar os topes de fita que enfeitam as orelhas de seus três cavalos puro-sangue e em ter sempre um forro novo no chapéu. Todos, mesmo nós, homens superiores, todos responderiam que essa felicidade é incompleta, que é a Madeleine sem altar,[432] que é preciso amar e ser amado, ou amar sem ser amado, ou ser amado sem amar, ou poder amar a torto e a direito. Cheguemos à felicidade moral. Quando, em janeiro de 1823, ele se achou bem instalado nos seus gozos, depois de ter tomado pé e lugar nas várias sociedades parisienses onde lhe aprouve ir, sentiu a necessidade de pôr-se ao abrigo de uma sombrinha, de ter de se queixar de uma mulher distinta, de não mascar o talo de uma rosa comprada por meio franco à sra. Prévost,[433] a exemplo dos jovens rapazelhos que cacarejam nos corredores da Ópera como frangos na ceva. Resolveu finalmente dedicar seus sentimentos, suas ideias, suas afeições a uma mulher, uma mulher! La Phamme! Ah! A princípio concebeu a ideia extravagante de ter uma paixão infeliz; durante algum tempo girou em torno de sua bela prima, a sra. d’Aiglemont, sem perceber que um diplomata já dançara a valsa de Fausto[434] com ela. O ano de 1825 passou-se em ensaios, em buscas, em coqueterias inúteis. O objeto amante pedido não foi encontrado. As paixões são extremamente raras. Nessa época, foram erguidas tantas barricadas nos costumes quantas nas ruas! Em verdade lhes digo, meus irmãos, o improper nos invade! Como se nos faz a censura de irmos nas pegadas dos pintores de retratos, dos leiloeiros e dos negociantes em modas, não os castigarei com a descrição da pessoa na qual Godofredo reconheceu a sua fêmea. Idade, dezenove anos; estatura, um metro e cinquenta centímetros; cabelos louros, sobrancelhas idem, olhos azuis, fronte média, nariz curvo, boca pequena, queixo curto e arrebitado, rosto oval; sinais particulares, nenhum. Tal era o passaporte do objeto amado. Não sejam mais exigentes do que a polícia, do que os senhores maires de todas as cidades e comunas da França, do que os gendarmes e outras autoridades constituídas. De resto, palavra de honra, era o bloco da Vênus de Médicis. A primeira vez que Godofredo foi à casa da sra. de Nucingen, a qual o convidara para um daqueles bailes que lhe fizeram adquirir, a bom preço, uma certa reputação, ele lá entreviu, numa quadrilha, a criatura a amar e ficou maravilhado com aquele porte de um metro e cinquenta centímetros. Aqueles cabelos louros jorravam em cascatas espumejantes, numa cabecinha ingênua e fresca como a de uma náiade que tivesse posto o nariz no jato cristalino da sua fronte, para ver as flores da primavera. (Isto é o nosso novo estilo, frases que deslizam como o nosso macarrão de há pouco.) O idem das sobrancelhas, se com isso concorda a chefatura de polícia, teria podido pedir seis versos ao amável Parny;[435] esse poeta gracioso tê-las-ia gentilmente comparado ao arco de Cupido, fazendo observar que o traço não estava na altura, mas que era um traço fraco, rombo, por nele reinar ainda hoje a cordeira mansidão que as frentes da lareira atribuem à sra. de La Vallière,[436] no momento em que ela assinava sua ternura perante Deus, por não tê-la podido assinar perante o tabelião. Conhecem vocês o efeito dos cabelos louros e dos olhos azuis, combinados com uma dança mole, voluptuosa e decente? Uma jovem criatura loura não nos atinge audaciosamente o coração, como essas morenas que por seu olhar parecem dizer, como um mendigo espanhol: “A bolsa ou a vida! Cinco francos ou eu te desprezo”. Essas belezas insolentes (e um tanto perigosas!) podem agradar a muitos homens; mas, a meu ver, a loura que tem a felicidade de parecer excessivamente terna e complacente, sem perder seus direitos de repreensão, de implicância, de discursos desmedidos, de falso ciúme e de tudo o que torna a mulher adorável, terá sempre mais certeza de casar-se do que a morena ardente. A lenha está cara. Isaura, alva como uma alsaciana (vira a luz do dia em Estrasburgo e falava alemão com um leve sotaque francês muito agradável), dançava maravilhosamente. Seus pés, que o funcionário da polícia não mencionava, e que, entretanto, podiam ter sido colocados entre os sinais particulares, eram notáveis por sua pequenez, por aquele manejo especial que os velhos mestres denominaram zás-trás, e comparável ao meneio agradável da srta. Mars,[437] porquanto todas as musas são irmãs, e tanto o dançarino como o poeta tem igualmente os pés no solo. Os pés de Isaura conversavam com uma precisão, uma clareza, uma leveza, uma rapidez de muito bom augúrio para as coisas do coração. “Ela tem zás-trás!”, era o supremo elogio de Marcel,[438] o único professor de dança digno de merecer o qualificativo de grande. Fala-se do grande Marcel como do grande Frederico, e do tempo de Frederico.

— Ele compôs bailados? — perguntou Finot.

— Compôs; algo assim como os Quatro elementos, A Europa galante.

— Que tempo — disse Finot — o tempo em que os grãos-senhores vestiam as bailarinas!

— lmproper! — replicou Bixiou. — Isaura não se erguia nas pontas dos pés; ficava no terra a terra, balançava-se sem sacudidas, nem mais nem menos voluptuosamente do que uma moça se deve balançar. Marcel dizia, com profunda filosofia, que cada condição tinha sua dança: uma mulher casada devia dançar de modo diferente do de uma moça solteira, um togado de outra forma do que um financeiro, e um militar diversamente do que um pajem; chegava mesmo a ponto de dizer que um soldado de infantaria devia dançar de modo diferente do que um soldado de cavalaria; e partia daí para examinar toda a sociedade. Todas essas belas nuanças estão bem longe de nós.

— Ah! — disse Blondet —, pões o dedo numa grande desgraça. Se Marcel tivesse sido compreendido, não teria havido a Revolução Francesa.

— Godofredo — continuou Bixiou — não percorreu a Europa sem observar a fundo as danças estrangeiras. Sem esse profundo conhecimento em coreografia, qualificado de fútil, talvez não tivesse ele amado aquela jovem; mas, dos trezentos convidados que se apertavam nos belos salões da Rue Saint-Lazare, foi ele o único a compreender o amor inédito que uma dança palradeira traía. É verdade que notaram o modo de Isaura d’Aldrigger; mas neste século em que todos exclamam: “Deslizemos, não apoiemos!”, um diz: “Ali está uma jovem que dança famosamente bem” (era um ajudante de tabelião); um outro: “Ali está uma mocinha que dança encantadoramente” (era uma dama de turbante); a terceira, uma mulher de trinta anos: “Aí está uma moçoila que não dança mal!”. Voltemos ao grande Marcel e digamos, parodiando seu dito mais famoso: “Quanta coisa num avant-deux!”.[439]

— Epa, vamos um pouco mais depressa! — disse Blondet. — Estás alambicando.

— Isaura — disse Bixiou, olhando Blondet de esguelha — estava com um vestido simples, de crepe branco enfeitado de fitas verdes, trazia uma camélia nos cabelos, uma na cintura, uma outra na fímbria do vestido, e uma camélia...

— Pronto, aí temos as trezentas cabras de Sancho![440]

— É toda a literatura, meu caro! Clarissa[441] é uma obra-prima, tem catorze volumes, e o mais obtuso vaudevilleista é capaz de ta contar num ato. Contanto que eu te distraia, que mais queres? Aquela toilette era de um efeito delicioso; será que não gostas de camélias? Preferes dálias? Pois aí vai uma castanha! — disse Bixiou, o qual sem dúvida atirou uma castanha em Blondet, pois ouvimos um barulho no prato.

— Bem. Fiz mal, continua — disse Blondet.

— Continuo — disse Bixiou. — “Não é linda de desposar?”, disse Rastignac a Beaudenord mostrando-lhe a menina das camélias brancas, puras e sem falta de folha alguma. Rastignac era um dos íntimos de Godofredo. “Pois bem, estava pensando nisso”, respondeu-lhe Godofredo ao ouvido. Entretinha-me pensando que em vez de tremer a todo momento na própria felicidade, de atirar com grande trabalho uma palavra num ouvido desatento, de olhar, nos Italiens, se num penteado puseram uma flor encarnada ou branca, se no Bois de Boulogne se vê uma mão enluvada na almofada de um carro, como se faz em Milão, no Corso; se em vez de roubar uma bocada de babás por trás de uma porta, como um lacaio que termina uma garrafa; de gastar a inteligência para dar e receber uma carta, como um carteiro; se em vez de receber ternuras infinitas em duas linhas, ter hoje cinco volumes in-fólio para ler, amanhã uma entrega de duas folhas, o que é cansativo; se em vez de se arrastar numa rodeira por trás das sebes não seria melhor deixar-se levar pela adorável paixão cobiçada por J. J. Rousseau, amar muito simplesmente uma jovem como Isaura, com a intenção de fazer dela sua esposa, no caso de verificar durante a troca de sentimentos que os corações se convêm; enfim, de ser Werther[442] feliz! “É um ridículo como outro qualquer”, disse Rastignac sem rir. “Em teu lugar é possível que eu mergulhasse nas delícias infinitas desse ascetismo; ele é novo, original e barato. Tua Mona Lisa[443] é suave, mas tola como uma música de bailado, previno-te.” O modo pelo qual Rastignac disse essa última frase fez com que Beaudenord acreditasse ter o seu amigo interesse em desencantá-lo, e julgou-o seu rival, na sua qualidade de antigo diplomata. As vocações falhadas deixam vestígios sobre toda a vida. Godofredo embeiçara-se tanto pela srta. Isaura d’Aldrigger que Rastignac foi procurar uma grande rapariga que estava conversando num salão de jogo, e disse-lhe ao ouvido: “Malvina, sua irmã acaba de puxar na sua rede um peixe que pesa dezoito mil francos de renda; ele tem um nome, certo prestígio na sociedade e apresentação; vigie-os; se o namoro se firma, esforce-se por ser a confidente de Isaura, a fim de não lhe deixar dizer uma palavra sem a ter corrigido”. Cerca de duas horas da madrugada, o camareiro veio dizer a uma pequena pastora dos Alpes, de quarenta anos, faceira como a Zerlina da ópera Don Giovani, e junto à qual achava-se Isaura: “A carruagem da senhora baronesa está às ordens”. Godofredo viu então sua beleza de balada alemã levando sua fantástica mãe para o salão da saída, aonde as duas damas foram seguidas por Malvina. Godofredo, que fingiu (o criançola!) ir informar-se em que pote de geleia se metera Joby, teve a felicidade de entrever Isaura e Malvina empacotando sua buliçosa mamãe numa peliça, e dispensando-se uma a outra esses pequenos cuidados de toilette exigidos por uma viagem noturna em Paris. As duas irmãs examinaram-no de soslaio, como gatas bem ensinadas que observam um camundongo sem parecer que lhe estão prestando atenção. Ele sentiu-se satisfeito ao ver o tom, o uniforme, as maneiras do grande alsaciano de libré, bem enluvado, que veio trazer grandes sapatos forrados para as três patroas. Nunca duas irmãs foram mais diferentes do que Isaura e Malvina. A mais velha, alta e morena; Isaura, pequena e franzina; esta de feições finas e delicadas; a outra de formas vigorosas e acentuadas; Isaura era a mulher que reina por sua fraqueza e que um colegial se julga obrigado a proteger; Malvina era a mulher do “Vistes em Barcelona?”.[444] Ao lado da irmã, Isaura produzia o efeito de uma miniatura perto de um retrato a óleo. “Ela é rica!”, disse Godofredo a Rastignac ao voltar para o baile. “Quem?” “Aquela mocinha.” “Ah! Isaura d’Aldrigger. Sim. A mãe é viúva, o marido dela teve Nucingen nos seus escritórios de Estrasburgo. Queres revê-la? Dirige um galanteio à sra. de Restaud,[445] que dá um baile depois de amanhã; a baronesa d’Aldrigger e as duas filhas lá estarão, tu serás convidado!” Durante três dias, na câmara escura de seu cérebro, Godofredo viu a sua Isaura e as camélias brancas, e as atitudes da cabeça, como quando depois de contemplar muito tempo um objeto fortemente iluminado nós o tomamos a ver com os olhos fechados, em tamanho reduzido, radioso e colorido, cintilando no meio das trevas.

— Bixiou, estás caindo no fenômeno, condensa-nos teus quadros — disse Couture.

— Aqui está! — replicou Bixiou, tomando provavelmente a atitude de um garçom de café. — Aqui está, senhores, o quadro pedido! Atenção, Finot! É preciso fazer pressão na tua boca como um cocheiro de diligência na da sua pileca! A sra. Teodora-Margarida-Guilhermina Adolphus (da casa Adolphus & Companhia, de Manheim), viúva do barão d’Aldrigger, não era uma boa alemã grandalhona, compacta e refletida, branca, de rosto dourado como a espuma de um canecão de cerveja, enriquecida com todas as virtudes patriarcais que a Germânia possui romanceadamente falando. Tinha as faces ainda frescas, coradas nas maçãs do rosto como as de uma boneca de Nuremberg, cachos buliçosos nas fontes, olhos provocantes, nem um único cabelo branco, uma cintura fina, e cujas pretensões eram postas em relevo por vestidos justos. Tinha na fronte e nas têmporas algumas rugas involuntárias que, como Ninon,[446] ela bem quisera exilar para os calcanhares; mas as rugas persistiam em desenhar seus zigue-zagues nos lugares mais visíveis. Nela, as tonalidades do nariz murchavam e a ponta se avermelhava, o que era tanto mais incômodo porque o nariz, então, se harmonizava com a cor das maçãs do rosto. Na qualidade de única herdeira, estragada pelos mimos dos pais, pelos mimos do marido, pelos de Estrasburgo, e sempre amimada pelas duas filhas que a adoravam, a baronesa permitia-se o cor-de-rosa, a saia curta, o laço na ponta do corpete que lhe desenhava o talhe. Quando um parisiense vê essa baronesa passando pelo bulevar, ele sorri, condena-a sem admitir, como o júri atual condena as circunstâncias atenuantes num fratricídio! O motejador é sempre uma criatura superficial e consequentemente cruel; o malandro não leva em conta a parte que toca à sociedade no ridículo do qual ele ri, porquanto a natureza não fez senão animais; os tolos nós os devemos ao estado social.

— O que acho de belo em Bixiou — disse Blondet — é que ele é completo: quando não zomba dos outros, faz troça de si mesmo.

— Blondet, eu te retribuirei isso — disse Bixiou, num tom astuto. — Se essa pequena baronesa era vaporosa, frívola, egoísta, incapaz de cálculo, a responsabilidade dos seus defeitos cabia à casa Adolphus & Companhia, de Manheim, ao amor cego do barão d’Aldrigger. Meiga como um cordeiro, essa baronesa tinha o coração terno, fácil de comover-se, mas a emoção, infelizmente, durava pouco, e consequentemente renovava-se amiúde. Quando o barão morreu, aquela pastora escapou de segui-lo, tão violenta foi a sua dor, violenta e verdadeira, mas... no dia seguinte, ao almoço, serviram-lhe ervilhas, de que ela gostava, e aquelas deliciosas ervilhas acalmaram a crise. Era tão cegamente amada pelas filhas, pela criadagem, que toda a casa se sentiu feliz por uma circunstância que lhe permitia ocultar à baronesa o doloroso espetáculo do préstito fúnebre. Isaura e Malvina esconderam suas lágrimas daquela mãe adorada, e entretiveram-na com a escolha do luto, com sua encomenda, enquanto se estava cantando o Réquiem. Quando um féretro é colocado sobre aquele grande catafalco preto e branco, manchado de cera, que serviu a três mil cadáveres de pessoas distintas antes de ser reformado, segundo a estimativa de um gato-pingado filósofo a quem consultei sobre esse ponto, entre dois copos de petit-blanc; quando um baixo clero completamente indiferente brada um Dies irae,[447] quando o alto clero não menos indiferente reza o ofício fúnebre, sabem vocês o que dizem os amigos vestidos de preto, sentados ou de pé na igreja? (Aqui está o quadro pedido.) Reparem, estão vendo-os? “Quanto julgam que deixa o velho D’Aldrigger?”, dizia Desroches[448] a Taillefer, que nos fez realizar, antes de sua morte, a mais linda orgia conhecida...[449]

— Desroches nesse tempo era solicitador?

— Fez contrato em 1822 — disse Couture. — E era uma ousadia para o filho de um pobre empregado, que nunca teve mais de mil e oitocentos francos, e cuja mãe geria uma agência de papel estampilhado. Ele, porém, trabalhou firmemente de 1818 a 1822. Tendo entrado como quarto ajudante no escritório de Derville,[450] em 1819 já era segundo ajudante!

— Desroches!

— Sim — disse Bixiou. — Como nós, Desroches rolou em cima da estrumeira do Jobismo. Cansado de vestir roupa muito apertada e de mangas curtas, ele devorou o Direito por desespero, e acabava de comprar um título nu. Solicitador sem vintém, sem clientela, sem mais amigos do que nós, ele tinha de pagar os juros de um cargo e de uma caução.

— Naquele tempo ele me dava a impressão de um tigre saído do Jardin des Plantes — disse Couture. — Magro, de cabelos ruivos, olhos da cor do tabaco espanhol, uma tez rude, ar frio e fleumático, mas duro com as viúvas, peremptório com os órfãos, trabalhador, terror dos seus empregados, que não podiam perder tempo, instruído, manhoso, dúplice, de uma elocução adocicada, nunca se exaltando, rancoroso ao modo de um homem judiciário.

— E tem coisas boas — disse Finot. — É dedicado aos amigos, e seu primeiro cuidado foi colocar Godeschal, o irmão de Marieta,[451] como chefe dos ajudantes.

— Em Paris — disse Blondet — o solicitador não tem senão dois matizes: há o solicitador homem de bem que permanece dentro dos termos da lei, faz marchar os processos, não corre atrás de negócios, não se descuida de nada, aconselha os clientes com lealdade, faz com que eles transijam nos pontos duvidosos: um Derville, enfim. Depois, há o solicitador famélico, para o qual tudo é bom, contanto que as custas estejam garantidas; que faria duelarem não montanhas (essas, ele as vende), mas planetas; que se encarrega do triunfo de um patife sobre um homem de bem, quando por acaso o homem de bem não regularizou sua situação. Quando um destes últimos solicitadores faz uma patifaria de mestre Gonin,[452] um pouco forte demais, a Câmara força-o a vender. Desroches, nosso amigo Desroches, compreendeu essa profissão, muito pobremente organizada por pobres-diabos; ele comprou causas de gente que tremia de medo de perdê-las, atirou-se na chicana como resolvido a sair da miséria. Teve razão e exerceu muito honestamente o seu ofício. Achou protetores entre os políticos salvando-lhes os negócios atrapalhados, como para o nosso querido Des Lupeaulx, cuja posição estava tão comprometida. Precisava disso para se livrar das dificuldades, porque Desroches começou muito malvisto pelo Tribunal! Ele que retificava com tanto trabalho os erros dos seus clientes!... Vamos, Bixiou, voltemos atrás. Por que motivo estava Desroches na igreja?

— “D’Aldrigger deixa setecentos ou oitocentos mil francos!”, respondeu Taillefer a Desroches. “Ora essa! Não há senão uma pessoa que lhes saiba da fortuna”, disse Werbrust,[453] um amigo do defunto. “Quem?” “Esse grande espertalhão do Nucingen. Ele irá até o cemitério; D’Aldrigger foi seu patrão, e por gratidão ele geria os bens do velhote.” “A viúva vai achar uma grande diferença!” “Que quer dizer com isso?” “Ora. D’Aldrigger amava tanto a mulher! Não riam, que estão nos olhando.” “Olha, ali está Du Tillet; veio bem atrasado, chega na Epístola.” “Com certeza desposará a mais velha.” “Será possível?”, disse Desroches. “Ele está cada vez mais comprometido com a sra. Roguin.” “Ele?... comprometido?... você não o conhece.” “Sabem da posição de Nucingen e de Du Tillet?”, perguntou Desroches. “Ei-la”, disse Taillefer. “Nucingen é homem capaz de engolir o capital de seu antigo patrão e restituí-lo...” “Hum! hum!”, fez Werbrust. “As igrejas são úmidas como o diabo. Hum! hum!” “Como, restituí-lo?...” “Pois bem, Nucingen sabe que Du Tillet tem uma grande fortuna, ele quer casá-lo com Malvina; mas Du Tillet desconfia de Nucingen. Para quem vê o jogo, essa partida é divertida.” “Como!”, disse Werbrust, “já em condições de casar?... Como envelhecemos depressa!” “Malvina d’Aldrigger tem mais de vinte anos, meu caro. O velho D’Aldrigger casou em 1800! Deu-nos festas bem lindas, em Estrasburgo, por ocasião de seu casamento e do nascimento de Malvina. Era em 1801, na paz de Amiens, e nós estamos em 1823, tio Werbrust. Naquele tempo ossianizava-se tudo; por isso, chamou de Malvina a filha.[454] Seis anos depois, no Império, houve durante algum tempo um furor pelas coisas cavalheirescas; era Partant pour la Syrie,[455] uma porção de bobagens. Deu à segunda filha o nome de Isaura; ela tem dezessete anos. Aí estão duas raparigas casadouras.” “Dentro de dez anos essas mulheres não terão um vintém”, disse Werbrust confidencialmente a Desroches. “Há”, respondeu Taillefer, “o camareiro de D’Aldrigger, aquele velho que muge no fundo da igreja; viu educar as duas meninas, é capaz de tudo para conservar-lhes algo com o que viver.” (Os chantres: “Dies irae!”) (Os meninos do coro: “Dies illa”.) Taillefer: “Adeus, Werbrust; ao ouvir o Dies irae penso demais no meu pobre filho”. “Também me vou, está úmido em excesso”, disse Werbrust. (In favilla) (Os pobres na porta: “Uma esmolinha, meus caros senhores!”.) (O suíço: “Pan! pan! Para as necessidades da igreja”. Os chantres: “Amém!”. Um amigo: “De que morreu ele?”. Um curioso trocista: “De um vaso roto no calcanhar”. Um passante: “Sabem quem é o personagem que se deixou morrer?”. Um parente: “O presidente de Montesquieu”. O sacristão aos pobres: “Retirem-se de uma vez, deram-nos para vocês, não peçam mais nada!”.)

— Que veia! — disse Couture.

Efetivamente, parecia-nos ouvir todo o movimento que se faz numa igreja. Bixiou imitava tudo, até o ruído das pessoas que saem com o corpo, por meio da movimentação dos pés no assoalho.

— Há poetas, romancistas, escritores que dizem lindas coisas a propósito dos costumes parisienses — disse Bixiou —, mas esta é a verdade a respeito de enterros. De cem pessoas que vão prestar as últimas homenagens a um pobre-diabo morto, noventa e nove falam de negócios e de divertimentos em plena igreja. Para observar-se uma pobre e pequenina dor verdadeira, são precisas circunstâncias impossíveis. E, ainda assim, haverá uma dor sem egoísmo?

— Hé! hé! — riu Blondet. — Não há nada menos respeitado do que a morte, e talvez é o que haja de menos respeitável, não? — disse ele.

— É tão comum! — replicou Bixiou. — Quando terminou a cerimônia, Nucingen e Du Tillet acompanharam o defunto ao cemitério. O velho camareiro ia a pé. O cocheiro conduzia o carro por trás do clero. “E enton! mínia boa amiga”, disse Nucingen a Du Tillet, ao dobrar no bulevar, “o momento é splêndide parra dezposar Malfina; o zinior serrá a protetor deste pobre família em pranto, o zinior terrá um família, uma interior; o zinior encontrará um casa já formata, e Malfina é, nong tem túlvita, um fertateiro tesouro.”

— Parece-me estar ouvindo o velho Roberto Macário[456] de Nucingen falar — disse Finot.

— “Uma criatura encantadora”, respondeu Ferdinando du Tillet com fogo e sem se acalorar — disse Bixiou.

— Du Tillet inteirinho numa palavra! — exclamou Couture.

— “Ela poderá parecer feia para aqueles que não a conhecem, mas, confesso, ela tem alma”, dizia Du Tillet. “E corraçon, que é o melior, meu caro; ela terrá teticazon e intelichentzia. Na nossa descraziate profezon, non ze zabe ni quem vive ni quem móri; é um grande felizitate a chente poder confiar no corraçon ta sua mulier. Eu pem que trocaria Telfine, que, vozê zape, me trouze mais de uma million, por Malfina, que non tem uma dote tan crante.” “Mas quanto tem ela?” “O egzato eu non zei”, disse o barão de Nucingen, “mas ela tem qualquerr coiza.” “Ela tem uma mãe que gosta bastante do cor-de-rosa!”, disse Du Tillet. Essas palavras puseram fim às tentativas de Nucingen. Depois do jantar, o barão comunicou a Wilhelmine-Adolphus que lhe restavam somente quatrocentos mil francos em seu poder. A filha dos Adolphus de Manheim, reduzida a vinte e quatro mil francos de renda, perdeu-se em cálculos que se lhe baralhavam na cabeça. “Como!”, dizia ela a Malvina, “como! eu sempre tive seis mil francos para nós na costureira! Mas onde teu pai conseguia dinheiro? Com vinte e quatro mil francos não teremos nada, estamos na miséria. Ah! Se meu pai me visse assim decaída, morreria, se já não estivesse morto! Pobre Wilhelmine!” E pôs-se a chorar. Malvina, não sabendo como consolar a mãe, fez-lhe ver que ela ainda era moça e bonita, o cor-de-rosa continuava a sentar-lhe, ela iria à Ópera, aos Bouffons,[457] no camarote da sra. de Nucingen. Adormeceu a mãe num sonho de festas, de bailes, de música, de belas toilettes e de triunfos, o qual começou sob os cortinados de um leito de seda azul, num quarto elegante, contíguo àquele no qual, duas noites antes, expirara o sr. João Batista, barão d’Aldrigger, cuja história aqui vai em três palavras: em vida, esse respeitável alsaciano, banqueiro em Estrasburgo, fizera uma fortuna de cerca de três milhões. Em 1800, com trinta e seis anos de idade, no apogeu de uma fortuna feita durante a Revolução, ele desposara, por ambição e inclinação, a herdeira dos Adolphus de Manheim, moça adorada por toda a família, e, naturalmente, ela recolheu a fortuna de todos no espaço de dez anos. D’Aldrigger foi então baronificado por Sua Majestade o imperador e rei, porque sua fortuna duplicou; mas apaixonou-se pelo grande homem que lhe dera um título. Portanto, em 1814 e 1815, arruinou-se por ter levado a sério o sol de Austerlitz.[458] O honrado alsaciano não suspendeu pagamentos, não indenizou seus credores com os valores que julgava ruins; pagou tudo à boca do cofre, retirou-se do banco e mereceu o qualificativo dado por seu antigo primeiro caixeiro, Nucingen, de “Homem honrado, mas idiota!”. Feitas as contas, sobraram-lhe quinhentos mil francos e cobranças sobre o Império que não mais existia. “Aí stá o que é terr acretitato temais em Napoleon”, disse ele ao ver o resultado de sua liquidação. Quando se foi dos primeiros na sua cidade, como é possível ficar nela, diminuído?... O banqueiro da Alsácia fez o que fazem todos os provincianos arruinados; veio para Paris, usou corajosamente suspensórios tricolores nos quais estavam bordadas as águias imperiais e concentrou-se na sociedade bonapartista. Entregou seus fundos ao barão de Nucingen, o qual lhe deu oito por cento de tudo, aceitando seus créditos sobre o Império a sessenta por cento de perda somente, o que foi causa de D’Aldrigger apertar a mão de Nucingen dizendo-lhe: “Eu pem sapia de achar, em tu, um corraçon de alzaciano!”. Nucingen fez-se pagar integralmente por nosso amigo Des Lupeaulx. Conquanto bem sovado, o alsaciano teve um rendimento industrial de quarenta e quatro mil francos. Seu pesar complicou-se de spleen, doença que ataca as pessoas acostumadas a viver pelo movimento dos negócios, quando se veem privadas deles. O banqueiro impôs-se como um dever sacrificar-se, nobre coração, por sua mulher, cuja fortuna acabava de ser devorada, e que ela deixara ser levada com a facilidade de uma rapariga para quem os assuntos de dinheiro eram completamente desconhecidos. A baronesa d’Aldrigger tornou, pois, a encontrar os gozos a que estava habituada; o vácuo que lhe podia causar a sociedade de Estrasburgo foi preenchido pelos prazeres de Paris. A Casa Nucingen já então marchava à frente, como ainda marcha hoje, da sociedade financeira, e o barão, hábil, considerou ponto de honra tratar bem o barão honrado. Essa bela virtude causava bom efeito no salão Nucingen. Cada inverno desfalcava um pouco o capital de D’Aldrigger; ele, porém, não se animava a fazer a mais leve censura à pérola dos Adolphus: sua ternura foi das mais engenhosas e inteligentes do mundo. Homem de bem, mas idiota! Morreu perguntando a si mesmo: “Que será delas sem mim?”. Depois, num momento em que ficou a sós com o seu velho camareiro Wirth, o bom homem, entre duas sufocações, recomendou-lhe a mulher e as filhas, como se aquele Caleb[459] da Alsácia fosse o único ser racional que houvesse na casa. Três anos depois, em 1826, Isaura contava vinte anos de idade e Malvina não estava casada. Frequentando a sociedade, Malvina acabara verificando quão superficiais são ali as relações, como tudo ali é examinado, definido. Semelhante à maioria das moças bem-educadas, Malvina ignorava o mecanismo da vida, a importância da fortuna, a dificuldade para obter a menor quantia, o preço das coisas. Por isso, durante esses seis anos, cada conhecimento adquirido fora um ferimento para ela. Os quatrocentos mil francos deixados pelo falecido D’Aldrigger à Casa Nucingen foram levados a crédito da baronesa, porque a sucessão do marido devia-lhe um milhão e duzentos mil francos, e nos momentos de aperto a pastora dos Alpes a eles recorria como a um caixa inesgotável. No momento em que o nosso pombo se dirigia para a sua pombinha, Nucingen, conhecendo o caráter de sua antiga patroa, deve ter-se aberto com Malvina a respeito da situação financeira em que se achava a viúva: não havia mais do que trezentos mil francos em suas mãos, estando os vinte e quatro mil francos de renda reduzidos a dezoito. Wirth mantivera a situação durante três anos! Após a confidência do banqueiro, os cavalos foram aposentados, o carro, vendido, e o cocheiro despedido por Malvina, sem que sua mãe tivesse conhecimento disso. O mobiliário do palacete, que já contava dez anos de existência, não pôde ser renovado, mas tudo se estiolara ao mesmo tempo. Para os que gostam da harmonia, não havia nisso mais do que um ambiente insalubre. A baronesa, aquela flor tão bem conservada, tomara o aspecto de uma rosa fria e crispada que permanece isolada numa moita, em meados de novembro. Eu, que aqui lhes falo, vi aquela opulência degradando-se por tonalidades, por meios-tons! Apavorante! Palavra de honra. Foi o meu último pesar. Depois, disse a mim mesmo: É uma estupidez interessar-se tanto pelos outros! Enquanto estive empregado, cometia a tolice de me interessar por todas as casas onde jantava, em caso de maledicência eu as defendia, não as caluniava, eu... Oh! Era uma criança. Quando a filha lhe explicou a situação, a ex-pérola exclamou: “Minhas pobres filhas! Quem me fará os vestidos? Não poderei mais ter toucas novas, nem receber, nem frequentar a sociedade!”. Quais são os indícios por meio dos quais vocês julgam que se reconhece o amor num homem? — perguntou Bixiou, interrompendo-se. — Trata-se de saber se Beaudenord estava verdadeiramente apaixonado por aquela lourinha.

— Ele se descuidou dos seus negócios — respondeu Couture.

— Ele veste três camisas por dia — disse Finot.

— Uma pergunta prévia — disse Blondet. — Um homem superior pode e deve apaixonar-se?

— Meus amigos — disse Bixiou com ar sentimental —, preservemo-nos, como de um animal venenoso, do homem que, sentindo-se louco de amor por uma mulher, faz estalar os dedos, ou atira fora o charuto, dizendo: “Ora! Existem outras no mundo!”. Mas o governo pode empregar esse cidadão no Ministério do Exterior. Faço-te observar, Blondet, que Godofredo abandonara a diplomacia.

— Pois bem! Ele foi absorvido, o amor é a única probabilidade que os tolos têm para se engrandecer — respondeu Blondet.

— Blondet, por que somos nós tão pobres? — exclamou Bixiou.

— E por que Finot é rico? — replicou Blondet. — Eu te direi por que, meu filho; nós nos entenderemos. Vamos, aí está Finot servindo-me bebida como se eu lhe tivesse carregado sua lenha. Mas no fim de um jantar deve-se degustar o vinho. E então?

— Tu o disseste: o absorvido Godofredo travou amplas relações com a grande Malvina, a frívola baronesa e a pequena dançarina. Caiu na mais minuciosa e adstringente sujeição. Aqueles restos de uma opulência corrompida não o assustaram. Ah!... ora! Ele acostumou-se gradativamente a todos aqueles farrapos. Nunca a lâmpada verde, enfeitada de branco, do salão pareceu àquele rapaz nem gasta, nem velha, nem manchada, nem precisando ser substituída. As cortinas, a mesa do chá, as bugigangas chinesas espalhadas por sobre a lareira, o lustre rococó, os tapetes, imitação de casimira, mostrando os fios, o piano, o pequeno aparelho de chá, de florzinhas, os guardanapos, de franjas e também furados à espanhola, o salão persa que antecedia o quarto de dormir azul da baronesa, com os seus acessórios, tudo para ele foi santo e sagrado. As mulheres estúpidas e nas quais a beleza brilha de modo a deixar na sombra o espírito, o coração e a alma são as únicas que podem inspirar semelhantes descuidos, porquanto uma mulher de espírito não abusa nunca de suas vantagens, é preciso ser mesquinha e tola para se apoderar de um homem. Beaudenord, ele próprio me disse, gostava do velho e solene Wirth! Esse velho original tinha pelo seu futuro senhor o respeito de um crente católico pela Eucaristia. Aquele honrado Wirth era um Gaspard[460] alemão, um desses bebedores de cerveja que mascaram sua esperteza com a bonomia, como um cardeal da Idade Média, de punhal na manga. Wirth, vendo em Godofredo um marido para Isaura, cercava-o dos rodeios e circunlocuções arábicas de sua bonomia alsaciana, o mais pegajoso visgo de todas as matérias adesivas. A sra. d’Aldrigger era profundamente improper; achava que o amor era a coisa mais natural. Quando Isaura e Malvina saíam juntas e iam às Tuileries ou aos Champs-Élysées, onde deviam encontrar rapazes de seu meio social, a mãe dizia-lhes: “Divirtam-se bem, queridas filhas!”. Seus amigos, os únicos que poderiam caluniar as duas irmãs, defendiam-nas; porque a desmedida liberdade que todos tinham no salão dos D’Aldrigger tornou este um lugar único em Paris. Mesmo com milhões, dificilmente se teriam conseguido semelhantes saraus, nos quais se falava de tudo com espírito, onde a toilette de rigor não era exigida, onde se estava à vontade a ponto de pedir para cear lá. As duas irmãs escreviam a quem lhes agradasse, recebiam cartas tranquilamente, ao lado da mãe, sem que nunca ocorresse à baronesa a ideia de perguntar de que se tratava. Essa adorável mãe dava às filhas todos os benefícios de seu egoísmo, a mais amável paixão do mundo, neste sentido que os egoístas, não querendo ser incomodados, não incomodam ninguém e não atrapalham a vida daqueles que os cercam, pelas silvas do conselho, pelos espinhos das admoestações nem pelas implicâncias de vespa que se permitem as amizades excessivas, as quais querem saber tudo, controlar tudo...

— Tu me atinges no coração — disse Blondet. — Mas, meu caro, tu não narras, tu pilherias.

— Blondet, se não estivesses embriagado, tu me magoarias. De nós quatro ele é o único homem seriamente literário! Por causa dele, eu lhes estou fazendo a honra de os tratar como a finos apreciadores de petiscos, instilando-lhes minha história, e ele ainda me critica! Meus amigos, o maior sinal de esterilidade espiritual é o acúmulo de fatos. A sublime comédia do Misantropo[461] prova que a arte consiste em edificar um palácio na ponta de uma agulha. O mito da minha ideia está na varinha das fadas que pode fazer da planície de Sablon um Interlaken[462] em dez segundos (o tempo de esvaziar este copo). Querem que eu lhes faça uma narrativa que vá como uma bala de canhão, um relatório de general em chefe? Estamos conversando, rindo, e este jornalista, bibliófobo em jejum, quer, quando está bêbado, que eu dê à minha língua o feitio idiota de um livro (ele fingiu chorar). Desgraçada da imaginação francesa, querem embotar as agulhas do seu gracejo! Dies irae. Choremos Cândido[463] e viva a Crítica da razão pura!,[464] a simbólica, e os sistemas em cinco volumes compactos, impressos por alemães que não sabiam existirem eles em Paris, desde 1750, em algumas palavras finas, os diamantes da nossa inteligência nacional. Blondet conduz o préstito fúnebre do seu suicídio, ele que em seu jornal escreve as últimas palavras dos grandes homens que morrem sem dizer nada.

— Segue teu caminho — disse Finot.

— Eu quis explicar-lhes no que consiste a felicidade de um homem que não é acionista (uma gentileza para Couture!). Pois bem, não estão vendo agora por que preço Godofredo obteve a mais extensa felicidade que um rapaz possa sonhar?... Ele estudava Isaura para ter certeza de ser compreendido!... As coisas que se compreendem umas às outras devem ser similares. Ora, nada há de igual a si mesmo, senão o nada e o infinito; o nada é a tolice, o gênio é o infinito. Esses dois amantes escreviam um ao outro as mais estúpidas cartas do mundo, devolvendo reciprocamente as palavras na moda em papel perfumado: anjo! harpa eólia! contigo serei completo! há um coração no meu peito de homem! fraca mulher! pobre de mim, toda a velharia do coração moderno. Godofredo ficava apenas dez minutos num salão, conversava sem nenhuma pretensão com as mulheres; elas o achavam então muito espirituoso. Ele era dos que não têm outro espírito senão aquele que lhes atribuem. Enfim, julguem da sua absorção: Joby, seus cavalos, seus carros tornaram-se coisas secundárias na sua existência. Ele só se sentia feliz mergulhado na sua boa poltrona em frente à baronesa, no canto daquela lareira de mármore verde antigo, entretido em ver Isaura, em tomar chá conversando com a pequena roda de amigos que vinham todas as noites, entre onze horas e meia-noite, à Rue Joubert, e onde sempre se podia jogar a bouillotte sem receio; sempre ganhei, lá. Quando Isaura avançava seu lindo pezinho calçado com um sapato de cetim preto, e Godofredo o contemplava muito tempo, este ficava por último e dizia a Isaura: “Dá-me teu sapato...”. Isaura erguia o pé, punha-o sobre uma cadeira, tirava o sapato e dava-lho, dirigindo-lhe um olhar, um desses olhares... enfim, compreendem, não? Godofredo acabou por descobrir um grande mistério em Malvina. Quando Du Tillet batia à porta, o rubor que coloria vivamente as faces da moça dizia: Ferdinando! Ao olhar para aquele tigre de dois pés, os olhos da pobre rapariga chamejavam como um braseiro por sobre o qual passasse uma corrente de ar; deixava transparecer um prazer infinito quando Ferdinando a levava para junto de um consolo ou de uma janela para conversarem a sós. Como é raro e belo uma mulher suficientemente apaixonada para tornar-se ingênua e deixar ler em seu coração! Meu Deus, isso em Paris é tão raro quanto nas Índias a flor que canta. Apesar dessa amizade iniciada desde o dia em que os D’Aldrigger apareceram em casa dos Nucingen, Ferdinando não desposava Malvina. Nosso feroz amigo Du Tillet nunca se mostrou enciumado com a corte assídua que Desroches fazia a Malvina, porquanto para acabar de pagar seu cartório, com um dote que não parecia ser inferior a cinquenta mil escudos, ele fingira amar, ele, o homem do Palácio da Justiça! Embora profundamente humilhada com a despreocupação de Du Tillet, Malvina amava-o muito para fechar-lhe a porta. Naquela moça, toda ela alma, toda sentimento, toda expansão, ora o orgulho cedia ao amor, ora o amor ofendido deixava o orgulho dominar. Calmo e frio, nosso amigo Ferdinando aceitava aquela ternura, respirava-a com a tranquila delícia do tigre lambendo o sangue que lhe tinge a goela; vinha ali em busca das provas, não passava dois dias sem aparecer na Rue Joubert. O tratante possuía então um milhão e oitocentos mil francos; a seus olhos a questão fortuna devia ser de pouca importância; ele resistira não somente a Malvina, mas também aos barões de Nucingen e de Rastignac, os quais tinham-no feito palmilhar setenta e cinco léguas por dia, com guias de quatro francos, e postilhão na frente, e sem fio, nos labirintos de sua esperteza. Godofredo não pôde deixar de falar à sua futura cunhada da situação ridícula em que ela se achava entre um banqueiro e um solicitador. “Você me quer arengar a respeito de Ferdinando, saber o segredo que existe entre nós”, disse ela com franqueza. “Querido Godofredo, não reincida nisso. As origens de Ferdinando, seus antecedentes, sua fortuna, nada tem que ver com isto; assim é que deve crer numa coisa extraordinária.” Entretanto, daí a alguns dias, Malvina tomou Beaudenord à parte e lhe disse: “Não julgo o sr. Desroches um homem de bem (o que é o instinto do amor!), ele desejaria desposar-me, e corteja a filha de um vendeiro. Eu desejaria saber se sou um último recurso, se o casamento para ele é uma questão de dinheiro”. Apesar da profundeza de seu espírito, Desroches não podia decifrar Du Tillet, e temia vê-lo desposar Malvina. Portanto, o tipo reservara-se uma saída; sua situação era intolerável, ele ganhava apenas, líquido, os juros de sua dívida. As mulheres nada compreendem dessas situações. Para elas o coração é sempre milionário.

— Mas, posto que nem Desroches nem Du Tillet desposaram Malvina — disse Finot —, explica-nos o segredo de Ferdinando.

— O segredo é este — respondeu Bixiou. — Regra geral: uma moça que deu uma única vez seu sapato, embora o recuse durante dez anos, não é nunca desposada por aquele que...

— Tolice! — disse Blondet, interrompendo. — Ama-se também por já se ter amado. O segredo é este: regra geral, não se case sendo sargento, quando você pode vir a ser duque de Dantzick e marechal da França.[465] Por isso já veem que casamento fez Du Tillet! Desposou uma das filhas do conde de Granville,[466] uma das mais antigas famílias da magistratura francesa.

— A mãe de Desroches — continuou Bixiou — tinha uma amiga, a mulher de um droguista, o qual retirara-se dos negócios gordo de fortuna. Esses droguistas têm ideias bem extravagantes: para dar à filha uma boa educação, ele a pusera num internato!... Esse Matifat[467] contava bem casar a filha, pela razão de duzentos mil francos, em bom dinheiro sonante que não tinha cheiro de drogas.

— O Matifat de Florina?[468] — perguntou Blondet.

— Pois bem! É o de Lousteau,[469] o nosso, enfim! Esses Matifat, perdidos então para nós, tinham vindo morar na Rue du Cherche-Midi, o quarteirão mais oposto à Rue des Lombards, onde tinham feito fortuna. Eu, sim, que os estudei, aos Matifat! Durante o meu tempo de galeriano ministerial, quando ficava encerrado durante oito horas entre bobalhões de vinte e dois quilates, vi originais que me convenceram de que a sombra tem asperezas, e que nas maiores chatezas pode haver ângulos! Sim, meu caro, um determinado burguês está para tal outro assim como Rafael está para Natoire.[470] A senhora viúva Desroches tinha há muito agenciado aquele casamento para o filho, apesar do enorme obstáculo constituído por um certo Cochin,[471] filho do sócio comanditário dos Matifat, jovem funcionário do Ministério das Finanças. Aos olhos do sr. e da sra. Matifat, a profissão de solicitador parecia, segundo a expressão deles, oferecer garantias para a felicidade de uma mulher. Desroches prestara-se aos planos de sua mãe a fim de ter um último recurso. Poupava pois os droguistas da Rue du Cherche-Midi. Para lhes fazer compreender um outro gênero de felicidade, seria preciso descrever-lhes esses dois negociantes macho e fêmea, que dispunham de um jardinzinho, instalados num belo andar térreo, divertindo-se em contemplar um repuxo, delgado e comprido como uma espiga, que funcionava perpetuamente e jorrava de uma pequena mesa redonda de pedra calcária, situada no centro de um tanque de seis pés de diâmetro; levantando-se ao clarear do dia para ver se as flores do seu jardim tinham nascido, ociosas e inquietas, vestindo-se por vestir-se, aborrecendo-se no teatro e sempre entre Paris e Luzarches, onde tinham uma casa de campo e onde jantei. Um dia, Blondet, eles quiseram mistificar-me, eu então lhes contei uma história desde as nove horas até a meia-noite, uma aventura com capítulos. Eu estava na introdução do meu vigésimo nono personagem (os romances de rodapé me roubaram), quando o velho Matifat, que na qualidade de dono da casa ainda estava aguentando firme, roncou como os outros, depois de ter piscado durante cinco minutos. No dia seguinte todos me felicitaram pelo desenlace da minha história. A sociedade desses merceeiros constava do sr. e da sra. Cochin, de Adolfo Cochin, da sra. Desroches, do pequeno Popinot,[472] droguista em exercício que lhes dava notícias da Rue des Lombards (um homem a quem conheces, Finot). A sra. Matifat, que gostava das artes, comprava litografias, litocromias, desenhos coloridos, tudo o que havia de mais barato. O sr. Matifat distraía-se examinando as novas empresas e tentando jogar com alguns capitais a fim de sentir emoções (Florina curara-o do gênero Regência).[473] Basta uma palavra para lhes fazer compreender a profundeza do meu Matifat. O bom homem dava às sobrinhas um boa-noite assim: “Vai te deitar, minhas sobrinhas!”. Tinha medo, dizia ele, de afligi-las não as tratando por “vocês”. A filha deles era uma moça sem distinção, com o ar de uma criada de quarto de casa abastada, tocando uma sonata como era possível, tendo uma bonita caligrafia inglesa, sabendo o francês e a ortografia, enfim, uma educação burguesa completa. Estava impaciente por casar-se a fim de deixar a casa paterna, onde se aborrecia como um oficial de Marinha no turno da noite; é preciso, entretanto, dizer que o turno durava o dia todo. Desroches ou Cochin filho, um tabelião ou um soldado da guarda, um falso lorde inglês, qualquer marido lhe servia. Como evidentemente ela nada conhecia da vida, tive piedade dela e quis revelar-lhe o grande mistério. Ora pílulas! Os Matifat fecharam-me a porta; os burgueses e eu jamais nos compreenderemos.

— Ela desposou o general Gouraud[474] — disse Finot.

— Em quarenta e oito horas, Godofredo de Beaudenord, o ex-diplomata, adivinhou os Matifat e sua intrigante corrupção — continuou Bixiou. — Por acaso, Rastignac achava-se em casa da frívola baronesa, conversando no canto do fogo, enquanto Godofredo fazia seu relatório a Malvina. Algumas palavras feriram-lhe o ouvido, adivinhou do que se tratava, sobretudo pelo ar azedamente satisfeito de Malvina. Rastignac ficou até as duas horas da madrugada, ele, a quem há pessoas que chamam de egoísta! Beaudenord retirou-se, quando a baronesa foi deitar-se. “Querida filha”, disse Rastignac a Malvina com ar bondoso e paternal, quando ficaram sós, “lembre-se de que um pobre rapaz louco de sono tomou chá para ficar desperto até as duas horas da madrugada, a fim de lhe poder dizer solenemente: case-se. Não se mostre exigente, não se preocupe com os seus sentimentos, não pense no ignóbil cálculo dos homens que têm um pé aqui e o outro em casa dos Matifat, não reflita em nada; case-se! Para uma moça, casar-se é impor-se a um homem que assume o compromisso de a fazer viver numa situação mais ou menos feliz, mas na qual o lado material fica garantido. Conheço o mundo; moças, mamães e avós são todas hipócritas, quando batem a tecla do sentimento em se tratando de casamento. Nenhuma delas pensa em outra coisa a não ser numa posição. Quando a filha está bem casada, a mãe diz que ela fez um ótimo negócio.” E Rastignac desenvolveu-lhe sua teoria a respeito do casamento, o qual, segundo ele, é uma sociedade comercial instituída para suportar a vida. “Não lhe peço seu segredo”, disse ele a Malvina ao terminar, “conheço-o. Os homens, entre eles, dizem tudo uns aos outros, como vocês, quando saem depois do jantar. Pois bem, aqui está minha última palavra: case-se. Se não se casar, lembre-se de que eu, aqui, lhe supliquei que o fizesse!” Rastignac falava com um certo acento que solicitava não a atenção, mas a reflexão. Sua insistência era de natureza a surpreender. Malvina foi, nesse momento, tão atingida no âmago da inteligência, o ponto justamente em que Rastignac quisera atingi-la, que ainda pensava nisso no dia seguinte e buscava inutilmente a causa daquela advertência.

— Não vejo todas essas petas que nos atiras, nada que se pareça com a origem da fortuna de Rastignac, e nos estás tomando por Matifats multiplicados por seis garrafas de champanhe — exclamou Couture.

— Lá chegamos — disse Bixiou. — Vocês seguiram o curso de todos os regatos que fazem os quarenta mil francos de renda que tanta gente inveja! Rastignac tinha então, nas mãos, o fio de todas essas existências.

— Desroches, os Matifat, Beaudenord, os D’Aldrigger, D’Aiglemont...

— E de cem outros — disse Bixiou.

— Vejamos! Como? — exclamou Finot. — Sei de muita coisa e não entrevejo a chave desse enigma.

— Blondet nos falou por alto das duas primeiras liquidações de Nucingen; aqui têm a terceira em pormenores — replicou Bixiou. — Desde a paz de 1815, Nucingen compreendeu o que nós só hoje compreendemos: que o dinheiro só é uma potência quando se encontra em quantidades desproporcionadas. Secretamente ele invejava os irmãos Rothschild. Ele possuía cinco milhões e queria ter dez! Com dez milhões sabia que poderia ganhar trinta, ao passo que com cinco só obteria quinze. Resolvera, pois, operar uma terceira liquidação! Esse grande homem pensava então em pagar seus credores com valores fictícios, ficando-lhes com o dinheiro. Na praça, uma concepção desse gênero não se apresenta sob uma expressão tão matemática. Semelhante liquidação consiste em dar um pequeno pastel por um luís de ouro às crianças grandes, que, como as pequenas de outrora, preferem o pastel à moeda, sem saber que com esta podem obter duzentos pastéis.

— Que estás aí a dizer, Bixiou? — exclamou Couture. — Mas se nada é mais leal, não se passa uma semana que seja, hoje em dia, sem que se apresentem ao público pastéis, pedindo-lhe um luís. Mas o público é forçado a dar seu dinheiro? Não tem ele o direito de procurar esclarecimentos?

— Vocês prefeririam que ele fosse obrigado a se tornar acionista — disse Blondet.

— Não — disse Finot. — Onde estaria o talento?

— Isto é muito forte para Finot — disse Bixiou.

— Quem foi que deu a ele essa expressão? — perguntou Couture.

— Enfim — disse Bixiou —, Nucingen tivera por duas vezes a sorte de dar, sem querer, um pastel que resultara valer mais do que o que recebera. Essa desgraçada sorte causava-lhe remorsos. Semelhantes felicidades acabam por matar um homem. Fazia dez anos que ele esperava a oportunidade de não mais se enganar, de criar valores que tivessem o ar de valer alguma coisa e que...

— Mas — disse Couture —, explicando a finança dessa forma, não há comércio possível. Mais de um banqueiro leal persuadiu, com a aprovação de um governo leal, os mais espertos bolsistas a comprarem fundos, que, em determinado tempo, deviam sofrer depreciação. Já viram coisa melhor do que isso! Não foram emitidos, sempre com consentimento e apoio dos governos, valores para pagar os interesses de certos fundos, a fim de lhes manter o curso e poder desfazer-se deles? Essas operações têm mais ou menos analogia com a liquidação Nucingen.

— Em ponto pequeno — disse Blondet — o negócio pode parecer singular; mas, em grande escala, é a alta finança. Existem atos arbitrários que, de indivíduo a indivíduo, são criminosos, mas que, estendidos a uma multidão qualquer, ficam reduzidos a nada, como uma gota de ácido prússico que numa tina de água se torna inócua. Se vocês matam um homem, são guilhotinados. Mas se, com uma convicção governamental qualquer, vocês matam quinhentos homens, respeita-se o crime político. Se você tira cinco mil francos da minha secretária, vai para a cadeia. Mas com o condimento de um lucro a fazer, posto na goela de mil bolsistas, você os obriga a se apoderarem das rendas de não sei que república ou monarquia falida, emitidas, como diz Couture, para pagar os juros dessas mesmas rendas: ninguém pode queixar-se. Eis os verdadeiros princípios dessa idade de ouro que estamos vivendo.

— A encenação de uma máquina tão vasta — replicou Bixiou — exigia muitos Polichinelos.[475] Primeiro que tudo, a Casa Nucingen tinha conscientemente e de caso pensado empregado seus cinco milhões num negócio na América, negócio esse cujos lucros tinham sido calculados de modo a chegar tarde demais. Premeditadamente a casa esvaziara seu caixa. Toda liquidação deve ser motivada. Possuía em fundos particulares e em valores emitidos cerca de seis milhões. Entre os fundos particulares achavam-se os trezentos mil francos da baronesa d’Aldrigger, os quatrocentos mil de Beaudenord, um milhão de D’Aiglemont, trezentos mil de Matifat, meio milhão de Carlos Grandet, marido da srta. de Aubrin, etc. Se ele próprio criasse uma empresa industrial por ações, com as quais se propusesse indenizar seus credores, por meio de manobras mais ou menos hábeis, Nucingen poderia ser alvo de suspeitas; ele porém agiu com mais esperteza: fez com que outro criasse! Essa máquina destinada a representar o papel do Mississippi[476] do sistema de Law. Uma das particularidades de Nucingen é fazer com que as mais hábeis pessoas da praça sirvam seus planos, sem lhos comunicar. Nucingen aventou perante Du Tillet a ideia piramidal e vitoriosa de combinar uma empresa por ações que constituísse um capital bastante forte para poder proporcionar, nos primeiros tempos, grandes juros aos acionistas. Experimentada pela primeira vez, num momento em que abundassem capitais ingênuos, essa combinação devia produzir uma alta das ações e, por consequência, um benefício para o banqueiro que as tivesse emitido. Lembrem-se de que isto é coisa de 1826. Embora impressionado com aquela ideia, tão fecunda quanto engenhosa, Du Tillet pensou naturalmente que, se a empresa não tivesse êxito, haveria qualquer censura. Por isso, sugeriu que fizessem aparecer um diretor responsável para aquela máquina comercial. Conhecem agora o segredo da casa Claparon,[477] fundada por Du Tillet, uma das suas mais belas invenções!

— Sim — disse Blondet —, o editor responsável em finanças, o agente provocador, o bode expiatório, mas hoje somos mais fortes, botamos: Dirigir-se à administração da coisa, rua tal, número tantos, onde o público encontra empregados de casquetes verdes, lindos como auxiliares de beleguim.

— Nucingen apoiara a casa Carlos Claparon com todo o seu crédito — continuou Bixiou. — Podia-se atirar sem temor, em algumas praças, um milhão de papel Claparon. Du Tillet propôs, portanto, levar em frente a casa Claparon. Adotado. Em 1825, o acionista não era mimado nas concepções industriais. O fundo de disponibilidades era desconhecido! Os gerentes não assumiam o compromisso de não emitir suas ações beneficiárias, não depositavam nada no banco, nada garantiam. Não se explicava a comandita dizendo ao acionista que se fazia o favor de não lhe pedir mais de mil ou quinhentos, ou mesmo duzentos e cinquenta francos! Não se divulgava que a experiência in aere publico[478] não duraria senão sete, cinco ou mesmo três anos, e que assim o desenlace não se faria esperar muito tempo. Era a infância da arte! Nem sequer se fizera intervir a publicidade desses gigantescos anúncios pelos quais se estimulam as imaginações, pedindo dinheiro a todo mundo...

— Isso acontece quando ninguém quer dar — disse Couture.

— Finalmente, não existia concorrência nessa espécie de empresa — disse Bixiou. — Os fabricantes de massa de papel, de impressões em chita, os laminadores de zinco, os teatros, os jornais não se atiravam como cães para o estraçalhamento do acionista expirante. Os belos negócios por ações, como, diz Couture, tão ingenuamente publicados, apoiados em relatórios de peritos (os principais da ciência!...), eram tratados vergonhosamente no silêncio e na sombra da Bolsa. Os linces executavam, financeiramente falando, a ária da calúnia do Barbeiro de Sevilha.[479] Iam piano, piano, procedendo por meio de leves diz que diz que, sobre a excelência do negócio, murmurados de boca a ouvido. Não exploravam o paciente, o acionista, a não ser a domicílio, na Bolsa, ou na sociedade, por aquele rumor habilmente criado e que se avolumava até ao tutti[480] de uma quota de quatro algarismos...

— Mas, embora estejamos entre nós e possamos tudo nos dizer, eu voltarei sobre o assunto — disse Couture.

— Sois ourives, sr. Josse?[481] — disse Finot.

— Finot permanecerá clássico, constitucional e arcaico — disse Blondet.

— Sim, sou ourives — replicou Couture, por causa de quem Cérizet[482] acabava de ser condenado na polícia correcional. — Sustento que o novo método é infinitamente menos traiçoeiro, mais leal, menos assassino do que o antigo. A publicidade permite a reflexão e o exame. Se algum acionista é engazopado, é porque veio por sua própria e espontânea vontade, não se lhe venderam nabos em saco. A indústria...

— Pronto, aí temos a indústria! — exclamou Bixiou.

— A indústria ganha com isso — continuou Couture sem dar importância à interrupção. — Todo governo que se intromete no comércio e não o deixa livre comete uma grossa asneira: ou chega ao Máximo,[483] ou ao monopólio. A meu ver, nada é mais conforme com os princípios da liberdade de comércio do que as sociedades por ações! Tocar nisso é querer responsabilizar-se pelo capital e pelos lucros, o que é estúpido. Em todo negócio, os lucros são proporcionais aos riscos! Que importa ao Estado o modo pelo qual se obtém o movimento rotatório do dinheiro, contanto que ele se mantenha numa atividade perpétua! Que importa quem seja rico ou quem seja pobre, se há sempre a mesma quantidade de ricos tributáveis? De resto, já lá vão vinte anos que as sociedades por ações, as comanditas, bônus sob todas a formas estão em uso no país mais comercial do mundo, na Inglaterra, onde tudo é motivo de controvérsia, onde as Câmaras põem mil ou mil e duzentas leis por sessão, e onde nunca um membro do Parlamento se ergueu para falar contra o método...

— ... curativo dos cofres cheios, e pelos vegetais! — concluiu Bixiou. — Os bananas!

— Como! — disse Couture inflamado. — Você tem dez mil francos, toma dez ações cada uma de mil, em dez empresas diferentes. Você é roubado nove vezes... (Não é assim! O público é mais sabido do que quem quer que seja! Mas suponho) uma única empresa triunfa! (Por acaso. De acordo! Foi sem querer! Pois sim, podem fazer troça.) Pois bem, o ponto, bastante cauteloso para ter assim dividido seus haveres, topa com uma soberba colocação de dinheiro, como aconteceu com os que compraram ações das minas de Wortschin. Confessemos aqui entre nós que as pessoas que gritam são hipócritas desesperadas por não terem tido nem ideia de um negócio nem o poder de proclamar nem habilidade de o explorar. A prova não se fará esperar. Dentro em pouco, vocês verão a aristocracia, a gente da Corte, os ministeriais descendo em colunas compactas para a especulação, e avançando mãos de mais unhas e inventando ideias mais tortuosas do que as nossas, sem que tenham nossa superioridade. Que cabeça é preciso ter para fundar uma empresa numa época em que a atividade do acionista iguala a do inventor! Que grande magnetizador deve ser o homem que cria um Claparon, que encontra expedientes novos! Querem saber a moral disto? Nosso tempo não vale mais do que nós! Vivemos numa época de avidez em que não nos preocupamos com o valor da coisa, se ela proporciona lucros a quem a passa para o vizinho; e passa-se a coisa para o vizinho porque a avidez do acionista que crê num lucro é igual à do fundador que lhe propõe.

— Como é belo, este Couture, como é belo! — disse Bixiou a Blondet. — Ele vai pedir que lhe ergam estátuas como a um benfeitor da humanidade.

— Seria preciso levá-lo a concluir que o dinheiro dos trouxas é, por direito divino, patrimônio dos homens de espírito — disse Blondet.

— Senhores — replicou Couture —, riamos aqui pela seriedade que deveremos conservar, quando ouvimos falar das respeitáveis asneiras que as leis feitas do pé para a mão consagram.

— Ele tem razão. Que tempo, senhores — disse Blondet —, este em que assim que o fogo da inteligência aparece, apressadamente o apagam pela aplicação de uma lei de emergência. Os legisladores, vindos quase todos de uma pequena circunscrição onde estudaram a sociedade pelos jornais, encerram então o fogo dentro da máquina. Quando esta arrebenta, aí vêm os prantos e o ranger de dentes! Um tempo no qual não se fazem senão leis fiscais e penais! Querem saber qual é o grande lema do que se está passando? Não há mais religião no Estado.

— Ah! bravo, Blondet! — disse Bixiou. — Puseste o dedo na ferida da França, o Fisco, que alienou mais conquistas da nossa terra do que os vexames da guerra. No ministério em que fui galeriano durante sete anos, acolherado com burgueses, havia um funcionário, homem de talento, o qual resolvera mudar todo o sistema das finanças... Ah! pois sim, sapecamos-lhe uma ducha de água fria. A França iria ficar muito feliz, iria divertir-se em reconquistar a Europa, e agimos pelo repouso das nações. Matei esse Rabourdin[484] com uma caricatura!

— Quando digo a palavra religião, não quero dizer com isso uma patacoada; interpreto o termo como grande político — disse Blondet.

— Explica-te — pediu Finot.

— Aqui está — continuou Blondet. — Muito se falou nos negócios de Lyon,[485] da república canhoneada nas ruas; ninguém disse a verdade. A república apoderara-se do motim como um insurrecto se apodera de uma espingarda. A verdade eu a dou a vocês, como esquisita e profunda. O comércio de Lyon é um comércio sem alma, que não faz fabricar um palmo de seda sem que tenha sido encomendado e sem que o pagamento seja garantido. Quando as encomendas param, o operário morre de fome, e quando trabalha ganha apenas com que viver; os forçados são mais felizes do que ele. Depois da Revolução de Julho, a miséria chegou ao ponto que esses canuts hastearam o pendão: Pão ou a morte! Uma dessas proclamações que o governo deveria ter estudado, e que era provocada pela carestia da vida em Lyon. Lyon quer construir teatros e tornar-se uma capital, daí taxas aduaneiras insensatas. Os republicanos farejaram essa revolta a propósito do pão e organizaram os canuts, os quais duelaram por partidas dobradas. Lyon teve os seus três dias, mas a ordem se restabeleceu, e o canut voltou para o seu pardieiro. O canut, até então probo, restituindo em tecido a seda que lhe pesavam em novelos, pôs a probidade na rua, lembrando-se de que os negociantes o exploravam, e engraxou os dedos: devolveu peso por peso, mas vendeu a seda representada pelo óleo e o comércio da seda francesa foi infestado de tecidos gordurosos, o que poderia ter acarretado a perda de Lyon e a de um dos ramos do comércio francês. Os fabricantes e o governo, em vez de suprimirem a causa do mal, fizeram, como certos médicos, recolher o mal por meio de um tópico violento. Deviam ter mandado a Lyon um homem hábil, um desses tipos denominados imorais, um padre Terray,[486] mas viram o lado militar! As perturbações produziram pois os “gros de Nápoles” a dois francos a ana. Esses “gros de Nápoles” são hoje, pode-se dizer, vendidos e os fabricantes inventaram sem dúvida não sei que meio de controle. Esse sistema de fabricação sem previdência tinha de acontecer num país onde Richard Lenoir,[487] um dos maiores cidadãos que a França teve, arruinou-se por ter feito seis mil operários trabalharem, independente de encomendas, por tê-los alimentado e por ter encontrado ministros suficientemente estúpidos para deixá-lo sucumbir na revolução que 1814 fez no preço dos tecidos. Eis o único caso em que um negociante merece uma estátua. Pois bem, esse homem é hoje alvo de uma subscrição sem subscritores, ao passo que deram um milhão aos filhos do general Foy.[488] Lyon é consequente: conhece a França, não tem nenhum sentimento religioso. A história de Richard Lenoir é um desses erros que Fouché achava piores do que um crime.[489]

— Se no modo por que se apresentam os negócios — disse Couture, voltando ao ponto em que se achava antes da interrupção — há laivos de charlatanismo, termo que se tornou depreciativo e posto a cavaleiro sobre o muro de separação do justo e do injusto, pois, pergunto eu, onde começa e onde acaba o charlatanismo, e o que é o charlatanismo? Tenham a bondade de dizer-me quem não é charlatão? Vejamos! Vejamos! Um pouco de boa-fé, o mais raro ingrediente social! O comércio que consistiria em ir buscar de noite o que se venderia de dia seria um contrassenso. Um vendedor de fósforos tem o instinto de açambarcamento. Monopolizar a mercadoria é o pensamento do lojista da Rue Saint-Denis, considerado o mais virtuoso, como do especulador tido como o mais descarado. Quando os armazéns estão cheios, há necessidade de vender. Para vender é preciso entusiasmar o freguês, daí a tabuleta da Idade Média e o prospecto de hoje! Entre atrair a clientela e forçá-la a entrar, a consumir, não vejo a diferença de um cabelo! Pode acontecer, deve acontecer, acontece amiúde que negociantes adquiram mercadorias avariadas, porque o vendedor engana incessantemente o comprador. Pois bem, consultem as mais honradas pessoas de Paris, os comerciantes notáveis, enfim!... Todos lhes contarão triunfalmente as manhas que então inventaram para dar saída às suas mercadorias, quando lhas venderam de má qualidade. A famosa casa Minard começou com vendas dessa espécie. A Rue Saint-Denis não nos vende senão vestidos de seda engordurados, pois não pode fazer outra coisa. Os mais virtuosos negociantes lhes dirão com o ar mais cândido esta expressão da mais desenfreada improbidade: “A gente se livra de um mau negócio como pode”. Blondet fez-lhes ver os negócios de Lyon nas suas causas e nas suas consequências; eu vou à aplicação da minha teoria por uma anedota. Um artesão em lãs, ambicioso e crivado de filhos por uma mulher muito amada, crê na República. Compra lã encarnada e fabrica esses barretes de lã, tricotados, que vocês devem ter visto na cabeça de todos os garotos de Paris, e já vão saber por quê. A República foi vencida. Depois do caso de Saint-Méry,[490] os barretes tornaram-se invendíveis. Quando um obreiro se vê em casa com mulher, filhos e dez mil barretes de lã encarnada, recusados pelos chapeleiros de qualquer tendência, passam-lhe pela cabeça tantas ideias quantas podem afluir à de um banqueiro embuchado com dez milhões de ações por colocar num negócio do qual desconfia. Querem saber o que fez o obreiro, esse Law de arrabalde, esse Nucingen dos barretes? Foi em busca de um dândi de botequim, um desses malandros que são o desespero dos guardas civis nos bailes campestres das Barrières, e pediu-lhe que representasse o papel de um capitão americano, negociante de pacotilhas, hospedado no Hôtel Maurice, desejoso de adquirir dez mil barretes de lã encarnada, na casa de um rico chapeleiro que ainda tinha um no seu mostrador. O chapeleiro fareja um negócio com o americano, corre à casa do obreiro e se atira, dinheiro à vista, sobre os barretes. Compreendem: necas de capitão americano, mas um montão de barretes. Atacar a liberdade comercial por causa desses inconvenientes seria atacar a Justiça sob pretexto de que há delitos que ela não pune, ou acusar a sociedade de ser mal organizada por causa das desgraças que ela engendra. Dos barretes e da Rue Saint-Denis às ações e aos bancos, concluam!

— Couture, uma coroa! — disse Blondet pondo o guardanapo enrolado na cabeça dele. — Vou mais longe, meus amigos. Se há um vício na teoria atual, de quem é a culpa? Da lei! Da lei tomada em seu sistema completo, da legislação! Desses grandes homens de circunscrição que a província manda recheados de ideias morais, ideias indispensáveis para o encaminhamento da vida menos em caso de luta contra a Justiça, mas estúpidas desde que impeçam um homem de elevar-se à altura em que se deve manter um legislador. Embora as leis proíbam às paixões tal ou tal desenvolvimento (o jogo, a loteria, as Ninons[491] de esquina, tudo o que quiserem), jamais as extinguirão. Matar as paixões seria matar a sociedade, a qual, se não as engendra, pelo menos as desenvolve. Assim é que, se dificultam por meio de restrições o desejo de jogar, que jaz no fundo de todos os corações, na jovem, no homem da província do mesmo modo que no diplomata, porquanto todos almejam uma fortuna gratis, o jogo se exerce imediatamente em outras esferas. Suprimam estupidamente a loteria, nem por isso as cozinheiras roubam menos aos patrões; levam seu roubo a uma poupança, e para elas as apostas serão de duzentos e cinquenta francos, em vez de dois francos, porque as ações industriais, as comanditas tornam-se loteria, jogo sem tapete, mas com uma pá invisível e um empate calculado. Os jogos estão suprimidos, a loteria não existe mais, eis a França bem mais moral, clamam os imbecis, como se tivessem suprimido os apostadores! Continua-se jogando! Apenas os lucros não vão mais para o Estado, o qual substitui um imposto pago com prazer por outro incomodativo, sem diminuir os suicídios, porquanto o jogador não morre, morre sua vítima! Não lhes falo dos capitais perdidos no estrangeiro pela França nem das loterias de Frankfurt, contra cujos vendedores ambulantes a Convenção decretara a pena de morte e a que se dedicavam os procuradores síndicos! Eis o sentido da tola filantropia do nosso legislador. O incentivo dado às poupanças é uma grande asneira política. Suponham uma inquietação qualquer sobre a marcha dos negócios; o governo terá criado a fila do dinheiro, como durante a Revolução criaram a fila do pão. Tantas caixas, tantos motins. Se num canto três garotos hasteiam uma única bandeira, aí está uma revolução. Esse perigo, porém, por maior que possa ser, parece-me menos de temer do que o da desmoralização do povo. Uma poupança é a inoculação dos vícios engendrados pelo interesse, a pessoas que nem a educação nem o raciocínio retêm nas suas combinações tacitamente criminosas. E aí estão os efeitos da filantropia!... Um grande político deve ser um celerado abstrato, sem o qual as sociedades são mal dirigidas. Um político, homem de bem, é uma máquina a vapor que sente, ou um piloto em transes de amor ao leme: o navio vai a pique. Um primeiro-ministro que engole cem milhões e torna a França grande e gloriosa não é preferível a um ministro enterrado à custa do Estado mas que arruinou seu país? Entre Richelieu, Mazarin, Potemkin,[492] todos três possuidores, em cada época, de trezentos milhões, e o virtuoso Robert Lindet,[493] que não soube tirar partido nem dos assinados nem dos bens nacionais, ou os virtuosos imbecis que perderam Luís xvi, vocês hesitariam? Prossegue, Bixiou.

— Não lhes explicarei — recomeçou Bixiou — a natureza do empreendimento inventado pelo gênio financeiro de Nucingen, pois seria tanto mais inconveniente por existir ainda hoje; suas ações são cotadas na Bolsa. As combinações eram tão reais, o objeto da empresa tão vivaz, que, criadas com o capital nominal de mil francos, estabelecidas por uma ordenança real, baixadas a trezentos francos, subiram a setecentos e chegarão ao par depois de terem atravessado as tormentas dos anos 27, 30 e 32. A crise financeira de 1827 fê-las afrouxar, a Revolução de Julho abateu-as, mas o negócio tem realidades no ventre (Nucingen não poderia inventar um mau negócio). Finalmente, como várias casas bancárias de primeira ordem participaram dela, não seria parlamentar entrar em maiores detalhes. O capital nominal foi de dez milhões, o capital real de sete, três milhões pertenciam aos fundadores e aos banqueiros encarregados da emissão das ações. Tudo foi calculado para fazer com que as ações nos seis primeiros meses chegassem a ganhar duzentos francos, pela distribuição de um dividendo falso. Portanto, vinte por cento sobre dez milhões. O interesse de Du Tillet foi de quinhentos mil francos. No vocabulário financeiro, esse bolo chama-se a parte do glutão! Nucingen propunha-se operar, com os seus milhões feitos de um caderno de papel cor-de-rosa com auxílio de uma pedra litográfica, bonitas pequenas ações para serem colocadas, preciosamente guardadas no seu gabinete. As ações reais iam servir para fundar o negócio, comprar um palacete magnífico e começar as operações. Nucingen tinha ainda ações em não sei que minas de chumbo argentífero, em minas de carvão e em dois canais, ações beneficiárias concedidas pela apresentação dessas quatro empresas em plena atividade, superiormente organizadas e preferidas, por causa do dividendo tirado do capital. Nucingen podia contar com um ágio se as ações subissem, mas o barão não o levou em conta nos seus cálculos, deixava-o à flor da água, na praça, a fim de atrair os peixes! Tinha pois reunido os seus valores, como Napoleão reunia as suas tropas, a fim de liquidar a crise que se esboçava e que revolucionou, em 26 e 27, as praças europeias. Se ele tivesse tido seu príncipe de Wagram,[494] teria podido dizer como Napoleão do alto do Santon: “Examine bem o lugar; a tal dia e em tal hora haverá aí fundos espalhados!”. Mas a quem podia ele confiar-se? Du Tillet não suspeitou seu compadrio involuntário. As duas primeiras liquidações tinham demonstrado ao nosso poderoso barão a necessidade de ligar a ele um homem que lhe pudesse servir de trombeta para agir sobre o credor. Nucingen não tinha sobrinho, não se animava a tomar um confidente, precisava de um homem dedicado, um Claparon inteligente, dotado de boas maneiras, um verdadeiro diplomata, um homem digno de ser ministro e digno dele Nucingen. Semelhantes ligações não se fazem num dia nem num ano. Rastignac tinha sido tão bem enredado pelo barão que, como o príncipe da Paz,[495] que era tão querido pelo rei como pela rainha da Espanha, julgava ter conquistado em Nucingen uma preciosa vítima. Depois de ter rido de um homem cujo alcance durante muito tempo ignorou, acabara tributando-lhe um culto grave e sério reconhecendo nele a força que julgava ser o único a possuir. Desde sua estreia em Paris, Rastignac fora levado a desprezar a sociedade toda. Desde 1820, ele pensava como o barão que existem apenas aparências de homem de bem, e considerava o mundo como a reunião de todas as corrupções, de todas as patifarias. Se admitia exceções, condenava a massa: não acreditava em nenhuma virtude, mas em circunstâncias nas quais o homem é virtuoso. Essa ciência foi coisa de um momento; foi adquirida no alto do Père-Lachaise,[496] no dia em que para lá conduziu um pobre homem de bem, o pai de sua Delfina, morto ludibriado pela nossa sociedade, homem dos sentimentos mais verdadeiros, e abandonado pelas filhas e pelos genros. Resolveu enganar toda essa sociedade, e de nela se manter em grande uniforme de virtude, de probidade e de belas maneiras. O egoísmo armou aquele jovem nobre dos pés à cabeça. Quando o rapaz encontrou Nucingen revestido com aquela mesma armadura, estimou-o, como na Idade Média, num torneio, um cavaleiro damasquinado da cabeça aos pés, montado num cavalo brabo, teria estimado seu adversário revestido e montado como ele. Mas deixou-se amolecer durante algum tempo nas delícias de Cápua.[497] A amizade de uma mulher como a baronesa de Nucingen é de molde a fazer abjurar todo e qualquer egoísmo. Depois de ter sido enganada uma primeira vez nas suas afeições, por ter encontrado um maquinismo de Birmingham, como era o finado De Marsay, Delfina deve ter sentido, por um homem moço e cheio das religiões da província, uma atração sem limites. Essa ternura reagiu sobre Rastignac. Quando Nucingen pôs no amigo de sua mulher os arreios que todo explorador põe no seu explorado, o que aconteceu precisamente no momento em que ele estava meditando a sua terceira liquidação, confessou àquela sua situação, mostrando-lhe como um dever imposto pela intimidade, como uma reparação, o papel de compadre que o outro deveria representar. O barão julgou perigoso iniciar seu colaborador conjugal no seu plano. Rastignac acreditou numa desgraça e o barão deixou-o crer que estava salvando a casa. Mas, quando uma meada tem tantos fios, nela se formam nós; Rastignac teve receio pela fortuna de Delfina: ele estipulou a independência da baronesa, exigindo uma separação de bens, jurando a si mesmo saldar sua conta com ela, triplicando-lhe a fortuna. Como Eugênio não falava de si mesmo, Nucingen suplicou-lhe que aceitasse, no caso de êxito completo, vinte e cinco ações de mil francos cada uma, nas minas de chumbo argentífero, que Rastignac aceitou para não ofendê-lo! Nucingen tinha instruído Rastignac na véspera do serão no qual nosso amigo dissera a Malvina que se casasse. Ante o aspecto das cem famílias felizes que iam e vinham por Paris, tranquilas quanto à sua fortuna, os Godofredo de Beaudenord, os D’Aldrigger, os D’Aiglemont etc., Rastignac sentiu um arrepio como um jovem general que pela primeira vez contempla seu exército antes da batalha. A pobre da pequena Isaura e Godofredo, brincando de amor, não estavam representando Ácis e Galateia[498] sob o rochedo que o gordo Polifemo vai fazer cair em cima deles?...

— Este símio do Bixiou quase que tem talento — disse Blondet.

— Ah! Não estou então mais com pernosticismos! — disse Bixiou gozando seu triunfo e olhando seus ouvintes surpreendidos. — Fazia dois meses — continuou ele após a interrupção — que Godofredo se entregava a todas as pequenas alegrias de um homem que vai se casar. Nessas condições todos se assemelham a esses pássaros que fazem ninho na primavera, vão e vêm, apanhando pedacinhos de palha, levam-nos no bico e acolchoam o domicílio de seus ovos. O futuro de Isaura alugara à Rue de la Planche um pequeno palacete de mil escudos, cômodo, decente, nem muito grande nem muito pequeno. Ele ia todas as manhãs ver os operários trabalhar, e superintender as pinturas. Tinha introduzido na casa o comfort, a única coisa boa que existe na Inglaterra: calorífero para manter uma temperatura igual em toda a casa; mobiliário bem escolhido, nem brilhante demais nem demasiado elegante; cores frescas e suaves para os olhos, estores interiores e exteriores em todas as janelas: baixela de prata, carros novos. Fizera arranjar a estrebaria, a selaria, as cocheiras onde Toby, Joby, Paddy se azafamava e remexia como uma marmota solta, parecendo muito feliz por saber que haveria mulheres em casa e uma lady! Essa paixão do homem que monta casa, que escolhe relógios, que vai à casa da futura com os bolsos cheios de amostras de fazenda, consulta-a a respeito da mobília do quarto de dormir, que vai, vem, caminha, quando vai, vem e caminha animado pelo amor, é uma das coisas que mais alegram um coração honesto e principalmente os fornecedores. E como nada agrada mais à sociedade do que o casamento de um bonito rapaz de vinte e sete anos com uma encantadora jovem de vinte que dança bem, Godofredo, embaraçado por causa dos presentes de noivado, convidou Rastignac e a sra. de Nucingen para almoçar, a fim de os consultar sobre esse assunto importante. Teve a excelente ideia de convidar seu primo D’Aiglemont e a esposa, assim como a sra. de Sérisy.[499] As damas da alta-roda gostam bastante de se distrair uma vez por acaso em casa de rapazes solteiros, e lá almoçar.

— É seu modo de fazer gazeta — disse Blondet.

— Deviam ir ver, na Rue de la Planche, o pequeno palacete dos futuros esposos — disse Bixiou. — As mulheres para essas pequenas expedições são como o papão pela carne fresca, refrescam assim seu presente por essa jovem alegria que não está ainda maculada pelo gozo. A mesa foi posta no pequeno salão que, para o enterro da vida de solteiro, foi enfeitado como um cavalo de cortejo. O almoço foi encomendado de modo a apresentar esses lindos pratinhos que as mulheres gostam de comer, de mastigar, de chupar pela manhã, momento em que elas sentem um apetite espantoso, sem querer confessá-lo, por parecer-lhes que se comprometem se disserem: “Estou com fome!”. “E por que sozinho?”, perguntou Godofredo ao ver Rastignac. “A sra. de Nucingen está triste, eu te contarei tudo”, respondeu Rastignac, que apresentava a atitude de um homem contrariado. “Uma ruptura?”, exclamou Godofredo. “Não”, disse Rastignac. Às quatro horas, tendo as mulheres voado para o Bois de Boulogne, Rastignac ficou no salão e olhou melancolicamente pela janela Toby, Joby, Paddy, que estava audaciosamente diante do cavalo atrelado ao tílburi, de braços cruzados como Napoleão; o menino não o podia dominar pela rédea senão com sua voz esguiçada, e o cavalo temia Joby, Toby. “Mas, então, que tens tu, meu caro amigo?”, perguntou Godofredo a Rastignac, “estás sombrio, inquieto, tua alegria não é franca. A felicidade incompleta repuxa-te a alma! É de fato muito triste não ser casado na mairie e na Igreja com a mulher que se ama.” “Tens coragem, meu caro, para ouvir o que tenho a dizer-te, e saberás até que ponto é preciso que se queira a uma pessoa para cometer a indiscrição de que me vou tornar culpado?”, disse-lhe Rastignac com esse tom que parece uma chicotada. “Que há?”, disse Godofredo empalidecendo. “Eu estava triste pela tua alegria, e não tenho coragem, ao ver todos esses preparativos, essa felicidade em flor, de guardar semelhante segredo.” “Dize-o em três palavras.” “Jura-me pela tua honra que a respeito disto serás mudo como um túmulo.” “Como um túmulo.” “Que, se um dos teus parentes estivesse interessado nesse segredo, ele não o saberia.” “Não.” “Pois bem! Nucingen seguiu esta noite para Bruxelas; é preciso depor se não se quer liquidar. Delfina acaba de pedir esta manhã, ao tribunal, sua separação de bens. Ainda podes salvar tua fortuna.” “Como?”, disse Godofredo sentindo o sangue gelar-se-lhe nas veias. “Escreve muito simplesmente ao barão de Nucingen uma carta antedatada de quinze dias, na qual lhe dás ordem para empregar todos os teus fundos em ações (e citou-lhe a sociedade Claparon). Tens quinze dias, um mês, três meses, talvez, para vendê-los acima do preço atual, pois elas subirão ainda.” “Mas D’Aiglemont, que almoçou conosco, D’Aiglemont, que tem um milhão na Casa Nucingen!” “Escuta, não sei se existe um número suficiente dessas ações para cobri-lo, e, ademais, não sou amigo dele, não posso trair os segredos de Nucingen, não deves falar ao teu primo. Se disseres uma palavra, terás de responder-me pelas consequências.” Godofredo permaneceu dez minutos na mais perfeita imobilidade. “Aceitas? Sim, ou não?”, disse-lhe implacavelmente Rastignac. Godofredo tomou uma pena, escreveu e assinou a carta que Rastignac lhe ditou. “Meu pobre primo!”, exclamou. “Cada qual por si”, disse Rastignac. “Este está no papo”, acrescentou ele ao deixar Godofredo. Enquanto Rastignac manobrava em Paris, eis o aspecto que apresentava a Bolsa. Tenho um amigo da província, um animal, que, de passagem pela Bolsa, entre quatro e cinco horas, me perguntou o motivo daquele ajuntamento de pessoas a conversar, que iam e vinham, o que é que podiam dizer umas às outras, e por que motivo aqueles passeios depois da irrevogável fixação dos valores dos papéis: “Meu amigo”, disse-lhe eu, “eles comeram e estão digerindo; durante a digestão, batem boca a respeito do vizinho; sem isso não há segurança comercial em Paris. Aí se fazem os negócios, e há certos homens, Palma,[500] por exemplo, cuja autoridade é semelhante à de Sinard[501] na Academia Real de Ciências. Ele diz que se faça a especulação e a especulação se faz!

— Que homem, senhores — disse Blondet —, esse judeu que possui uma instrução, não universitária, mas universal. Nele a universidade não exclui a profundeza; o que ele sabe, sabe-o a fundo; seu gênio em matéria de negócios é intuitivo; é o grande referendário dos linces que dominam a praça de Paris, os quais não fazem um empreendimento senão depois de Palma o ter examinado. Ele é grave, ouve, estuda, reflete e diz ao seu interlocutor que, tendo em vista sua atenção, julga-o seduzido: “Isso não me serve”. O que acho mais extraordinário é que, depois de ter estado dez anos associado a Werbrust, nunca entre ambos se ergueu uma nuvem.

— Isso só acontece entre gente muito forte, ou então muito fraca; todos os que se acham entre as duas coisas brigam e não tardam em separar-se inimizados — disse Couture.

— Vocês compreendem — disse Bixiou — que Nucingen tinha sabiamente e com mão hábil atirado sob as colunatas da Bolsa um pequeno obus que explodiu ali pelas quatro horas. “Sabe de uma notícia grave?”, disse Du Tillet a Werbrust chamando-o para um canto, “Nucingen está em Bruxelas e a mulher dele apresentou ao tribunal um pedido de separação de bens.” “Será você um compadre para a liquidação?”, perguntou Werbrust, sorrindo. “Deixe-se de tolices, Werbrust”, disse Du Tillet, “você conhece as pessoas que têm papéis dele; ouça-me, temos um negócio a combinar. As ações da nossa nova sociedade ganham vinte por cento, no fim do trimestre ganharão vinte e cinco, você sabe por quê; vai distribuir-se um dividendo magnífico.” “Finório!”, disse Werbrust, “siga, siga a sua marchinha, você é um diabo de unhas longas e pontudas, que enterra na manteiga.” “Mas deixe-me falar, ou então não teremos tempo de agir. Acabo de ter uma ideia ao receber a notícia e, positivamente, vi a sra. de Nucingen debulhada em lágrimas, temerosa por causa da sua fortuna.” “Pobre pequena!”, disse Werbrust com ar irônico. “E então?”, perguntou o antigo judeu da Alsácia, interrogando o amigo que se calara. “Pois bem! Tenho em casa mil ações de mil francos que Nucingen me entregou para colocar, compreende?” “Bom!” “Compremos a dez, a vinte por cento de abatimento, letras da Casa Nucingen pelo valor de um milhão, teremos sobre elas um bom lucro, porque seremos credores e devedores, e a confusão se produzirá! Mas operemos com sutileza, pois do contrário os detentores poderiam pensar que estamos manobrando pelos interesses de Nucingen.” Werbrust compreendeu então a esperteza proposta e apertou a mão de Du Tillet, dirigindo-lhe o olhar de uma mulher que faz uma picuinha a outra. “Que me dizem, sabem da novidade?”, disse-lhes Martim Falleix,[502] “a Casa Nucingen suspende pagamentos!” “Ora”, replicou-lhe Werbrust, “não divulgue isso, deixe que os que têm letras dela façam seus negócios.” “Sabem qual a causa do desastre?”, disse Claparon intervindo. “O que és tu, nada sabes”, disse-lhe Du Tillet, “não haverá o menor desastre, haverá pagamento integral. Nucingen recomeçará os negócios e encontrará tantos fundos quantos quiser em minha casa. Conheço o motivo da suspensão: ele dispôs de todos os seus capitais em favor do México, que lhe devolve metais, canhões espanhóis fundidos tão estupidamente que há neles ouro, sinos, prataria de igrejas, todas as demolições da monarquia espanhola nas Índias. A volta desses valores está demorando. O caro barão está apertado, eis tudo.” “É verdade”, disse Werbrust, “eu compro valores dele com vinte por cento de desconto.” A notícia circulou desde então com a rapidez do fogo numa meda de palha. Diziam-se as coisas mais contraditórias. Havia, porém, uma tal confiança na Casa Nucingen, sempre por causa das duas liquidações precedentes, que todos guardavam os valores Nucingen. “É preciso que Palma nos dê uma ajuda”, disse Werbrust. Palma era o oráculo dos Keller,[503] que estavam empanturrados de valores Nucingen. Uma palavra de alarme dita por ele era o quanto bastava. Werbrust obteve de Palma que ele desse um toque de rebate. No dia seguinte o alarme reinava na Bolsa. Os Keller, aconselhados por Palma, cederam seus valores com dez por cento de abatimento, e fizeram lei na Bolsa: sabia-se serem eles muito espertos. Taillefer deu então trezentos mil francos a vinte por cento, e Martim Falleix, duzentos e cinquenta mil a quinze por cento. Gigonnet[504] adivinhou o golpe! Exacerbou o pânico a fim de conseguir valores Nucingen para ganhar uns dois ou três por cento cedendo-os a Werbrust. Viu num canto da Bolsa o pobre Matifat, que tinha trezentos mil francos na Casa Nucingen. Não foi sem estremecer que o droguista pálido e lívido viu o terrível Gigonnet, o corretor do seu antigo bairro, dirigindo-se para ele a fim de o serrar em duas porções. “Isto vai mal, a crise se esboça. Nucingen está fazendo combinações! Mas isso pouco se lhe dá, tio Matifat, pois o senhor está retirado dos negócios.” “Pois se engana, Gigonnet; fui pilhado em trezentos mil francos com os quais eu queria operar nas rendas da Espanha.” “Eles estão salvos, as rendas da Espanha lhe teriam engolido tudo, ao passo que eu lhe darei alguma coisa pela sua conta na Casa Nucingen, digamos uns cinquenta por cento.” “Prefiro ver chegar a liquidação”, respondeu Matifat, “nunca um banqueiro deu menos de cinquenta por cento. Ah! se se tratasse somente de uns dez por cento de prejuízo...”, disse o antigo droguista. “Pois bem, quer quinze por cento?”, perguntou Gigonnet. “Acho-o um tanto apressado”, disse Matifat. “Boa tarde, disse Gigonnet”. “Quer a doze?” “Seja”, disse Gigonnet.

À noite tinham sido comprados dois milhões e dados em balanço na Casa Nucingen por Du Tillet, por conta daqueles três associados fortuitos, que no dia seguinte receberam sua percentagem. A velha, bonita e pequena baronesa d’Aldrigger estava almoçando com as duas filhas e Godofredo quando Rastignac, com ar diplomático, veio entabular conversação sobre a crise financeira. O barão de Nucingen tinha uma viva afeição pela família D’Aldrigger; havia arrumado as coisas, para, em caso de desgraça, cobrir a conta da baronesa com os seus melhores valores, ações nas minas de chumbo argentífero; mas, para maior segurança da baronesa, ela devia pedir-lhe para empregar os fundos daquele modo. “Esse pobre Nucingen!”, disse a baronesa. “Que foi que lhe aconteceu?” “Ele está na Bélgica; a mulher pediu uma separação de bens; mas ele foi buscar recursos com alguns banqueiros.” “Meu Deus! Isso me lembra meu pobre marido! Caro sr. Rastignac, como isso o deve fazer sofrer, ao senhor que é tão dedicado àquela casa.” “Contanto que todos os indiferentes fiquem resguardados, seus amigos serão recompensados mais tarde; ele sairá desse mau passo, é um homem hábil.” “Um homem de bem, sobretudo”, disse a baronesa.

Ao cabo de um mês, a liquidação do passivo da Casa Nucingen estava feita, sem outros processos além das cartas por meio das quais os interessados pediam o emprego do seu dinheiro em valores designados e sem outras formalidades por parte das casas bancárias a não ser a entrega de valores Nucingen em troca de ações que estavam tendo procura. Enquanto Du Tillet, Werbrust, Claparon, Gigonnet e algumas pessoas que se julgavam espertas faziam voltar do estrangeiro, com um por cento de prêmio, os valores da Casa Nucingen, porque ainda ganhavam na troca com ações que estavam subindo, o rumor era tão grande na praça de Paris que ninguém tinha mais o que temer. Tagarelavam sobre Nucingen, examinavam-no, julgavam-no, achavam meio de caluniá-lo! Seu luxo! Suas empresas! Quando um homem faz coisas dessas, ele mergulha etc. etc. No auge desse tutti, algumas pessoas ficaram admiradas ao receber cartas de Genebra, de Basileia, de Milão, de Nápoles, de Gênova, de Marselha, de Londres, nas quais seus correspondentes avisavam, sem espanto, que lhes ofereciam prêmios de um por cento pelos valores Nucingen, cuja falência elas lhes haviam anunciado. “Algo está acontecendo”, disseram os linces. O tribunal pronunciara a separação de bens entre Nucingen e sua esposa. A questão complicou-se muito mais ainda: os jornais noticiaram a volta do sr. barão de Nucingen, o qual tinha ido pôr-se em entendimentos com um célebre industrial da Bélgica, para a exploração de antigas minas de carvão de pedra, então abandonadas, as fossas das matas de Bossuet. O barão reapareceu na Bolsa, sem sequer dar-se o trabalho de desmentir os murmúrios caluniadores que haviam circulado sobre a sua casa; não se dignou reclamar por intermédio dos jornais e comprou por dois milhões uma magnífica propriedade sita às portas de Paris. Seis semanas depois, o jornal de Bordeaux noticiou a entrada no rio de dois navios com um carregamento de metais, por conta da Casa Nucingen, no valor de sete milhões. Palma, Werbrust e Du Tillet compreenderam que a tramoia tinha sido feita, mas eles foram os únicos a compreender. Esses alunos estudaram a encenação desse golpe financeiro, reconheceram que estava preparado fazia onze meses, e proclamaram Nucingen o maior financista europeu. Rastignac nada entendeu do assunto, mas tinha ganho quatrocentos mil francos que Nucingen lhe deixara tosar nas ovelhas parisienses, e com os quais dotou as duas irmãs. D’Aiglemont, avisado por seu primo Beaudenord, fora suplicar a Rastignac para que aceitasse dez por cento do seu milhão, se este lhe conseguisse o emprego desse dinheiro em ações de um canal que ainda está por fazer, porque Nucingen embrulhou tão magistralmente o governo nesse negócio, que os concessionários do canal têm interesse em não concluí-lo. Carlos Grandet implorou ao amante de Delfina que lhe fizesse trocar seu dinheiro por ações. Finalmente, Rastignac representou durante dez dias o papel de Law, solicitado pelas mais belas duquesas para que lhes desse ações, e hoje o rapaz pode ter quarenta mil francos de renda cuja origem vem das ações das minas de chumbo argentífero.

— Se todos ganharam, quem foi então que perdeu? — perguntou Finot.

— Conclusão — disse Bixiou —: engodados pelo pseudodividendo que receberam alguns meses depois da troca do seu dinheiro por ações, o marquês d’Aiglemont e Beaudenord conservaram-nas (cito-os por todos os demais); tinham três por cento a mais dos seus capitais, entoaram louvores a Nucingen, e defenderam-no no momento preciso em que ele foi suspeitado de suspender pagamentos. Godofredo desposou sua querida Isaura e recebeu tanto como cem mil francos de ações das minas. Por ocasião desse casamento, os Nucingen deram um baile cuja magnificência ultrapassou a ideia que dele se fazia. Delfina ofereceu à jovem noiva um encantador adereço de rubis. Isaura dançou, não mais como moça, mas como mulher feliz. A pequena baronesa mais do que nunca foi uma pastora dos Alpes. Malvina, a mulher de “Vistes em Barcelona?”, ouviu no meio do baile Du Tillet aconselhar-lhe secamente que fosse a sra. Desroches. Desroches, insuflado por Nucingen e Rastignac, tentou tratar dos negócios de interesse; mas, às primeiras palavras de ações de minas dadas em dote, rompeu, e virou-se para os Matifat. Na Rue du Cherche-Midi, o solicitador encontrou-se com as malditas ações dos canais que Gigonnet empurrara para Matifat em vez de lhe dar dinheiro. Vocês imaginam Desroches encontrando a pá de Nucingen sobre os dois dotes os quais ele apontara? As catástrofes não se fizeram esperar. A sociedade Claparon fez negócios em demasia, houve congestão de valores, ela deixou de servir os interesses e de dar dividendos, embora suas operações fossem excelentes. Essa desgraça combinou-se com os acontecimentos de 1827. Em 1829, Claparon era por demais conhecido para ser testa de ferro daqueles dois colossos, e ruiu do seu pedestal, indo ao chão. De mil e duzentos e cinquenta francos, as ações caíram a quatrocentos francos, embora intrinsecamente valessem seiscentos. Nucingen, que lhes conhecia o valor intrínseco, resgatou-as. A pequena baronesa d’Aldrigger vendera suas ações das minas que nada rendiam, e Godofredo vendeu as de sua mulher pelo mesmo motivo. Assim como a baronesa, Godofredo trocara suas ações das minas pelas da sociedade Claparon. Suas dívidas forçaram-nos a vender em plena baixa. Do que lhes representava setecentos mil francos eles obtiveram duzentos e trinta mil. Fizeram sua liquidação e o resto foi prudentemente colocado no três por cento a 75. Godofredo, um rapaz tão feliz, sem preocupações, para quem bastava deixar-se viver, via-se sobrecarregado com uma mulherzinha burra como uma pata, incapaz de suportar o infortúnio, pois que ao cabo de seis meses ele se apercebera da transformação do objeto amado em uma ave; e, ademais, tem o peso de uma sogra sem pão que sonha com toilettes. As duas famílias juntaram-se a fim de poder subsistir. Godofredo foi obrigado a fazer intervir todas as suas proteções que se haviam esfriado, para conseguir um cargo de mil escudos no Ministério das Finanças. Os amigos?... nos balneários. Os parentes?... admirados, prometendo: Como não, meu caro, conte comigo! Pobre rapaz! Esquecidos de tudo daí a um quarto de hora. Beaudenord deveu seu posto à influência de Nucingen e de De Vandenesse. Essa gente tão estimável e tão infeliz mora hoje na Rue du Mont-Thabor, num terceiro andar acima do entressolo. A pérola neta dos Adolphus, Malvina, nada possui, dá lições de piano para não ser pesada ao cunhado. Escura, alta, delgada, seca, ela se assemelha a uma múmia fugida da casa Passalacqua,[505] correndo a pé por Paris. Em 1830, Beaudenord perdeu o lugar, e a mulher deu-lhe um quarto filho. Oito patrões e dois criados (Wirth e sua mulher)! Receita: oito mil francos de renda. As minas dão hoje dividendos tão grandes que a ação de mil francos vale mil francos de renda. Rastignac e a sra. de Nucingen compraram as ações vendidas por Godofredo e pela baronesa. Nucingen foi feito par de França pela Revolução de Julho, e grande oficial da Legião de Honra. Conquanto não tenha feito liquidações desde 1830, ele tem uma fortuna, dizem, de dezesseis a dezoito milhões de francos. Prevendo com certeza as Ordenanças de Julho[506] ele vendera todos os seus fundos e tornara a colocá-los audazmente, quando o três por cento chegou a 45; fez acreditar, no castelo, que o fazia por devotamento, e nessa época engoliu, com Du Tillet, três milhões daquele grande tratante Felipe Bridau![507] Ultimamente, ao passar pela Rue de Rivoli para ir ao Bois de Boulogne, nosso barão entreviu sob as arcadas a baronesa d’Aldrigger. A velhinha trazia uma capota verde forrada de cor-de-rosa, um vestido com flores, uma mantilha, enfim, era sempre e mais do que nunca uma pastora dos Alpes, porquanto não compreendeu melhor as causas de sua desgraça do que as causas de sua opulência. Ela se apoiava na pobre Malvina, modelo das dedicações heroicas, a qual tinha o ar de ser a velha mãe, ao passo que a baronesa parecia ser a jovem! E Wirth seguia-as com um guarda-chuva na mão. “Eston ali chentes”, disse o barão ao sr. Cointet,[508] um ministro com o qual ele ia de passeio, “que non pute facer fortuna teles. A tormenta de princípios está acapata, coloque este popre Potenord.” Beaudenord voltou para as finanças graças a Nucingen, que é exaltado pelos D’Aldrigger como um herói da amizade, porque ele sempre convida a pastorinha dos Alpes e as filhas para os seus bailes. É impossível a quem quer que seja neste mundo demonstrar como esse homem, por três vezes, e sem efração, quis roubar o público a quem enriqueceu, contra a vontade. Ninguém tem exprobação a fazer-lhe. Quem viesse a dizer que a alta finança é muitas vezes um covil de ladrões e assassinos cometeria a mais insigne calúnia. Se as mercadorias sobem e baixam, se os valores aumentam e se deterioram, esse fluxo e refluxo é produzido por um movimento mútuo, atmosférico, em relação com a influência da lua, e o grande Arago[509] é culpado por não apresentar nenhuma teoria científica sobre esse importante fenômeno. Disto resulta unicamente uma verdade pecuniária que não vi escrita em parte alguma...

— Qual é ela?

— O devedor é mais forte do que o credor.

— Oh! — disse Blondet. — Quanto a mim, vejo no que dissemos a paráfrase de um dito de Montesquieu, no qual ele concentrou O espírito das leis.[510]

— O quê? — disse Finot.

— As leis são teias de aranha através das quais as moscas grandes passam, enquanto as pequenas são retidas.

— Aonde afinal queres chegar? — perguntou Finot a Blondet.

— Ao governo absoluto, o único no qual os cometimentos do espírito contra a lei possam ser reprimidos! Sim, o arbitrário salva os povos indo em auxílio da Justiça, porque o direito de perdão não tem avesso; o rei, que pode perdoar aquele que faz bancarrota fraudulenta, nada restitui à vítima despojada. A legalidade mata a sociedade moderna.

— Faze compreender isso aos eleitores! — disse Bixiou.

— Há alguém que se encarregou disso.

— Quem?

— O tempo. Como disse o bispo de Léon,[511] se a liberdade é antiga, a realeza é eterna: toda nação sã de espírito a ela voltará sob uma ou outra forma.

— Olha, havia gente aí ao lado — disse Finot ao ouvir-nos sair.

— Há sempre gente ao lado — respondeu Bixiou, que devia estar avinhado.

Paris, novembro 1837

 

 

                                                   Honoré de Balzac         

 

 

 

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